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FAMÍLIA: UM FATOR
DE FRAGMENTAÇÃO?

J. KRISHNAMURTI

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[...] Pergunta: Dissestes que as nacionalidades, as crenças,
os dogmas são fatores de desunião. A família é também uma força
separativa?
KRISHNAMURTI: Se há qualquer forma de identificação
com a família, com um grupo nacional, com um dogma, uma cren-
ça, então, evidentemente, isso constitui uma força separativa. Se
me identifico com a Índia, com seu passado, sua religião, seus
dogmas, sua nacionalidade, estou, sem dúvida nenhuma, erguen-
do uma muralha ao redor de mim mesmo, pela identificação com
aquilo que considero ser maior do que eu.
A questão, por certo, não é se a família ou o grupo é uma
força separativa, mas sim: por que a mente se identifica com uma
coisa e cria, desse modo, a divisão? Por que me identifico com a
Índia? É porque, se não me identifico com a Índia, com a América,
com o Oriente ou o Ocidente ou o que quer que seja, estou perdi-
do, estou só, abandonado. Este medo de ficar só, impele-me à
identificação com minha família, minha propriedade, uma casa,
uma crença. Isto é que está causando a separação, e não a família.
Se não me identifico com algo, que sou eu? Ninguém. Se digo,
porém, que sou hindú, possuidor da sabedoria oriental, e outras
bobagens que tais, sou alguém. Se me identifico com a América
ou a Rússia, isso me confere prestígio, faz-me sentir-me um indi-
víduo prestável, importante na vida — pois não quero ser nin-
guém, não quero viver no anonimato; posso levar um rótulo, mas
o rótulo deve dar-me importância. Repugna-me ser ninguém, não
estar com o meu “eu” identificado com algo que considero maior:
Deus, a Verdade, a pátria, a família, a ideologia.
Esse processo de identificação é que é separativo, destru-
tivo. Escutai isto, por favor. É vosso problema, pois o mundo atu-
almente está sendo dividido em duas correntes ideológicas de
identificação, que aumentam a força separativa. Somos entes
humanos, e não hindús, ou americanos, ou russos; e é possível
viver sem identificação — ser nada, neste mundo em que todos
lutam por ser alguém? Certamente, é possível. Vossa luta para
serdes alguém, está acarretando sofrimentos e guerras — e em,
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tudo isso está implicada a busca de poder; e quando aspirais ao
poder, como indivíduo, como grupo ou como nação, estais provo-
cando a vossa própria destruição. Isto é um fato. Podemos — vós
e eu — permanecer sós, interiormente, sem buscarmos o poder,
sem nos identificarmos com coisa alguma — o que com efeito
significa: não ter medo? Encontrareis a resposta por vós mesmos,
se examinardes bem o problema.

Viver sem temor



[...] É possível ver-se a totalidade da vida, a qual semelha
um rio, a rolar infinitamente, sem descanso, cheio de beleza, im-
pelido pelo enorme volume de suas águas? Pode-se ver totalmen-
te essa vida? Pois só vendo totalmente uma coisa, a compreen-
demos; mas não podemos vê-la totalmente, completamente, se
há alguma atividade egocêntrica a guiar, a moldar a nossa ação e
os nossos pensamentos. É a imagem egocêntrica que se identifica
com a família, com a nação, com conclusões ideológicas, com
partidos — políticos ou religiosos. É esse centro que, dizendo-se
em busca de Deus, da Verdade, impede a compreensão do todo
da vida.

[...] Temos, pois, de morrer para tudo, para cada dia, para
todas as relações. Refleti bem nisso, para verdes o que implica. Se
não morreis para vossas relações, seja com vossa mulher, seja
com vossos filhos ou vosso patrão, continuareis meramente num
hábito; e todo hábito embota a mente, torna-a insensível, incapaz
de criar. Por essa razão, estais sempre com medo da morte, por-
que a morte é algo de desconhecido. Não podeis apreendê-la com
a mente, com o pensamento. Não podeis apreender o amor com o
pensamento, nem podeis cultivar o amor com o pensamento. Só
podeis compreender o amor e saber o que significa amar, quando
morreis para o ciúme, para a estreita esfera da família, quando o
pensamento não dita as ações da vida. Quando amais, podeis
fazer tudo o que desejais fazer, porque a vida é sem conflito.
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A mente que é ambiciosa, ávida, invejosa, desejosa da
autoridade — essa mente não tem amor, embora fale muito de
amor, com os políticos, os gurus, que estão sempre e sempre a
falar em amor, com o coração vazio, e cheios de conflitos e de
ardentes desejos; nunca há um momento em que, dentro deles
próprios, tudo esteja morto, e sua mente esteja inteiramente
vazia. Só quando a mente está completamente vazia, é possível
compreender essa coisa extraordinária chamada “amor”. Quando
dizeis “Amo meu marido, meu filho”, não amais; porque, se o
marido ou mulher vos vira as costas, sentis ciúme, sentis cólera,
amargor. É isso o que chamais “amor”. O amor não tem apego. E,
portanto, amor não significa “amor à família”.

[...] Em geral, somos violentos. Por isso inventamos a ideia


de que devemos ser “não-violentos”. Vede o resultado! Sou vio-
lento — em meus gestos, minhas atitudes, minha inacessibilidade,
meu insulamento, meu orgulho, minha inveja, minha ambição.
Sou violento, transijo com a violência, e invento a ideia da “não-
violência”. O fato é uma coisa, e a fórmula, a ideia outra coisa, na
qual nos vemos enredados. Correto? Essa esquizofrenia, essa ati-
tude dupla perante a vida, em que nunca enfrentamos a fato, mas
falamos incessantemente de uma ideia sem nenhuma realidade —
é a causa direta do conflito. Não sou fraterno porque, para ser
fraterno, não deve haver nacionalidade, nem família; “família”
como ideia — o que estou dizendo não significa que não devemos
ter mulher e filhos. A família, evidentemente, é diretamente anti-
social, pois está sempre oposta ao resto do mundo.

[...] Nós, na realidade, não temos amor; é terrível reco-


nhecer isso. Com efeito, não temos amor; temos sentimento, te-
mos emotividade, sensualidade, sexualidade; temos lembranças
de algo que pensávamos ser amor. Porque ter amor significa não
haver violência, nem medo, nem competição, nem ambição. Se
tivésseis amor, nunca diríeis: “Esta é minha família”. Podeis ter
uma família e dedicar-lhe todos os desvelos, porém não será
“nossa família”, contraposta ao resto do mundo. Se amais, se há
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amor, há paz. Se amásseis, haveríeis de educar vosso filho para
não ser nacionalista, para não ter simplesmente uma dada ocupa-
ção técnica e cuidar unicamente de seus pequeninos interesses;
não teríeis nacionalidade. Não haveria divisões religiosas, se
amásseis. Mas, como essas coisas existem de fato — não teorica-
mente, porém brutalmente — neste mundo tão feio — elas indi-
cam que não tendes amor. Mesmo o amor da mãe pelo filho não é
amor. Se as mães amassem realmente os filhos, achais que o
mundo seria como é? Cuidariam de que tivessem alimentação
adequada, educação correta, fossem entes sensíveis, amantes da
beleza, não ambiciosos, ávidos, invejosos. Não, a mãe, por mais
que pense amar o seu filho, não o ama.

Uma nova maneira de agir



[...] A SITUAÇÃO do mundo atual exige uma nova aborda-
gem, uma nova forma de enfrentar o problema mundial, sempre
novo. Somos incapazes de abordá-lo adequadamente porque o
fazemos com a nossa mente condicionada, com preconceitos na-
cionais, locais, religiosos e de família. Ou seja, nossas experiências
anteriores funcionam como barreiras à compreensão do novo
desafio, e assim continuamos a cultivar a memória sem jamais
compreender o novo e nunca encaramos o desafio de forma com-
pleta. O desafio só dá frutos e riquezas quando se está apto a
enfrentá-lo de forma nova, original, sem o passado.

[...] A vida não se resume a uma camada da consciência;


não é apenas uma folha, um galho; a vida é um todo, um processo
total. Antes de sermos capazes de compreender a beleza da vida,
sua grandeza, suas dores, seus sofrimentos e suas alegrias, é pre-
ciso que compreendamos o processo por inteiro. E para esvaziar o
subconsciente, o que implica compreender todo o estado de ser,
da consciência, é indispensável saber do que ele se constitui; pre-
cisamos dar-nos conta das inúmeras formas de condicionamento
que são as recordações de raça, família, grupos e assim por dian-
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te; são as diversas experiências incompletas. Agora, é possível
analisar essas recordações, tomar cada resposta, cada lembrança
e desenredá-la, examiná-la em profundidade e dissolvê-la; mas
para isso seria necessário tempo, paciência e atenção infinitos.

[...] Não apenas na Índia mas no mundo inteiro existe con-


tradição — somos todos pessoas gentis e amáveis, e nos prepa-
ramos para a guerra! Então a nação, a raça, o grupo, a família, o
indivíduo vivem em estado de contradição, e quanto mais profun-
da a contradição, maior a tensão, e quanto maior a tensão, maior
a atividade.

[...] Além disso, queremos ter raízes, identificação — iden-


tificação com um grupo, com a família, com algum guru, e é por
isso que vocês usam essas roupas estranhas. Eu sei que vocês não
abandonarão isso, mas esse é um problema de vocês. Nós quere-
mos, pois, nos identificar com um grupo, com a família, com a
nação, e assim por diante. E a ameaça de guerra é um fator impor-
tante na nossa vida, porque a guerra destrói psicologicamente as
nossas raízes; portanto, queremos matar. E queremos também
nos identificar. Compreendem? Queremos ser identificados com
um nome, identificados com a família, e assim por diante. Estes
são, portanto, os principais fatores de nossas vidas fragmentadas.
Bem, mas vocês estão ouvindo a verdade disto ou estão apenas
ouvindo a descrição, não a verdade? A ideia, não o fato.
[...] vocês querem ser identificados, porque ser identifica-
do como hindu, como muçulmano, como cristão ou o que quer
que seja lhes dá segurança. Isto é um fato. E a identificação é uma
das causas da fragmentação na nossa vida, assim como o tempo, o
pensamento, e também querer segurança e, portanto, criar raízes
num determinado país, numa determinada família, comunidade
ou grupo. Ouçam, não façam nada — esses são os fatores dá nos-
sa fragmentação.

Uma nova maneira de agir



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[...] VOCÊS SABEM que não temos amor — compreender
isto é terrível. Na verdade, não temos amor; temos sentimentos;
temos as emoções, a sensualidade, a sexualidade; temos lem-
branças de algo que pensamos que seja amor. Mas, na verdade,
não temos amor. Porque amor significa ausência de violência,
ausência de medo, de competição, de ambição. Se tivessem amor,
vocês nunca diriam “esta é a minha família”. Vocês podem ter
uma família e dar a ela o melhor de vocês mesmos, mas ela não
será “a sua família” — o que seria opor-se ao mundo. Se vocês
amam, se há amor, há paz. Se amassem, teriam educado seus
filhos ensinando-os a não serem patriotas, a não terem só uma
profissão técnica, a não tratar unicamente de seus pequenos ne-
gócios; vocês não teriam nacionalidade. Não haveria divisões de
religião, se vocês amassem. Mas, visto que essas coisas na verda-
de existem — não como teoria, mas concreta e brutalmente —
neste mundo horrível, isso demonstra que não há amor. Até
mesmo o amor de uma mãe pelo filho não é amor. Se a mãe de
fato amasse o filho, vocês acham que o mundo seria assim? Ela
cuidaria para que ele tivesse a alimentação certa, a educação cor-
reta, para que ele fosse sensível, para que apreciasse a beleza,
para que não fosse ambicioso, invejoso nem tivesse cobiça. Assim,
a mãe, conquanto ela ache que ama seu filho, não o ama. Desse
modo, não temos esse amor.

[...] Como pode um homem que está buscando o poder


ter um relacionamento? Ele pode ter uma família, dormir com a
mulher, mas não está relacionado. Um homem que esteja compe-
tindo com outro não tem nenhum relacionamento. E toda a nossa
estrutura social, com sua imoralidade, está baseada nisso. Estar
fundamental e essencialmente relacionado significa acabar com o
eu que aumenta a separação e a tristeza.

[...] Nós nunca estamos sós; podemos estar andando sozi-


nhos pela floresta, mas nunca estamos sós. Vocês podem estar
com a família, em sociedade, mas a mente humana está tão con-
dicionada pelas experiências do passado, pelo conhecimento, pela
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lembrança, que não sabe o que é estar sozinha. E temos medo de
ficar sozinhos porque ficar sozinhos implica — não é verdade? —
estarmos fora da sociedade. E, para sermos estranhos à socieda-
de, temos de estar livres dela. A sociedade requer que vocês ajam
de acordo com uma ideia; isso é tudo o que a sociedade sabe; isso
é tudo o que os seres humanos conhecem — conformar-se, imi-
tar, aceitar, obedecer. E quando aceitamos a tradição, quando nos
conformamos com o modelo que a sociedade estabeleceu (o que
significa que os seres humanos estabeleceram), então somos par-
tes desse todo condicionado da existência humana, que desperdi-
ça sua energia no esforço contínuo, no conflito constante, na con-
fusão e na infelicidade. Será possível que seres humanos se liber-
tem dessa confusão, desse conflito?

[...] O amor é tão tranquilo quanto as águas do mar e tão


forte quanto o oceano; é como as corredeiras de um rio abundan-
te fluindo incessantemente, sem começo nem fim. Mas o homem
que mata os cachalotes ou as enormes baleias está preocupado
com sua sobrevivência. Ele dirá: “Eu vivo disso, esse é o meu co-
mércio.” Ele não se preocupa nem um pouco com o que chama-
mos de amor. É provável que ame a família dele — ou pense que a
ama — e não está muito preocupado com o modo como ganha o
sustento. Talvez este seja um dos motivos pelos quais o homem
vive uma vida fragmentada; ele nunca parece gostar do que está
fazendo — embora talvez algumas poucas pessoas gostem. Se nos
sustentássemos por meio de um trabalho do qual gostássemos, a
situação seria diferente — entenderíamos a vida como um todo.
Nós dividimos a vida em fragmentos: o mundo dos negócios, o
mundo artístico, o mundo científico, o mundo político e o mundo
religioso. Parecemos pensar que todos os mundos são separados
e que devem ser mantidos assim. Dessa forma, nos tomamos hi-
pócritas, fazendo algo feio, corrupto, no mundo dos negócios,
voltando depois para casa para viver tranquilamente com a nossa
família; isso alimenta a hipocrisia, um padrão duplo de vida.

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[...] Pode a mente livrar-se de todo esse condicionamen-
to?... Estou condicionado pela cultura que existe há milhares de
anos... Podem as células cerebrais livrar-se de todo condiciona-
mento como o observador, como uma entidade que se conforma,
como uma entidade que está condicionada pelo ambiente, pela
cultura, pela família, pela raça? Se a mente não está livre do con-
dicionamento, ela nunca poderá estar livre do conflito e, portanto,
da neurose... A menos que sejamos inteiramente livres, somos um
povo desequilibrado. A partir do nosso desequilíbrio, fazemos
todo tipo de travessuras. Portanto, a maturidade é a liberdade do
condicionamento.

[...] Vocês podem ser altos, podem ser loiros, ter cabelos
castanhos; eu posso ser branco ou preto, ou cor-de-rosa, ou de
qualquer cor — mas, por dentro, estamos todos passando por um
período difícil. Todos temos uma sensação de solidão desespera-
da. Vocês podem ter filhos, um marido, família, mas, quando es-
tão sozinhos, têm a sensação de que não têm relacionamento
com coisa nenhuma. Sentem-se totalmente isolados. A maioria de
nós tem essa sensação. Este é o solo comum de toda humanidade.

[...] Vocês podem olhar para suas esposas sem usar ne-
nhuma palavra, sem todas as lembranças do seu relacionamento,
por mais íntimo que tenha sido, sem nenhuma lembrança? Podem
olhar para suas esposas, para seus maridos, sem a lembrança do
passado? Já fizeram isso alguma vez? Por favor, vamos aprender
juntos a observar uma flor. Se souberem como olhar para a flor,
verão que ela contém a eternidade. Não se deixem levar pelas
minhas palavras! Se souberem como olhar para um estrela, para
uma densa floresta, então, nessa observação haverá espaço, ha-
verá eternidade. Temos de descobrir juntos como observar suas
esposas os seus maridos sem a imagem que criaram a respeito
dele ou dela. Vocês têm de começar bem perto para irem muito
longe. Se não começarem com o que está perto, nunca irão muito
longe. Se quiserem subir à montanha ou ir à cidade próxima, o
primeiro passo é importante; como andam, com que graça, com
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que facilidade, com que felicidade. Assim estamos dizendo que,
para ir muito, muito longe — o longe que é a eternidade —, vocês
terão de começar muito próximo — o próximo é o relacionamento
com os seus parceiros. Vocês conseguem observar sua família com
visão clara, sem as palavras “minha esposa”, ou “meu marido”,
“meu sobrinho” ou “meu filho”? Sem a palavra, sem todas as má-
goas acumuladas e a lembrança de coisas que já passaram. Façam
isso agora. Observem. E, quando forem capazes de observar todas
as imagens que construíram em tomo de si mesmos e em tomo
deles, então existirá o relacionamento correto.
Quando vocês viverem todos os dias com “o que é” e ob-
servarem “o que é”, não só exterior mas interiormente, então
criarão uma sociedade sem conflitos.

[...] Podemos perguntar: no que pensa um cérebro tran-


quilo e em silêncio? E apenas por meio do silêncio que vocês
aprendem, que vocês observam, e não quando estão fazendo um
bocado de ruído. Para observar as montanhas e as belas árvores,
para observar sua família e seus amigos, vocês têm de ter espaço
e é preciso que haja silêncio. Mas se estiverem tagarelando, con-
versando, não terão espaço nem silêncio. E precisamos de espaço,
não apenas fisicamente, mas sobretudo psicologicamente. Esse
espaço é negado quando estamos pensando sobre nós mesmos. E
tão simples. Porque quando há espaço, amplo espaço psicológico,
há grande vitalidade. Mas quando esse espaço é limitado ao nosso
pequeno eu, essa grande energia está totalmente contida, com
suas limitações. Portanto, é por isso que a meditação é o fim do
eu.

Sobre a natureza e o meio ambiente


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[...] QUANDO SUA MULHER, ou seu marido, ou sua irmã
morre, ou quando você perde uma propriedade, logo descobrirá o
quanto você é apegado ao conhecido, mas quando a mente se
liberta do conhecido, então não é a própria mente o desconheci-
do? Afinal, temos medo é de deixar o conhecido, entendendo-se
por conhecido tudo aquilo que concluímos, que julgamos, que
comparamos, que acumulamos. Eu conheço a minha mulher, a
minha casa, a minha família, o meu nome; eu cultivei certos pen-
samentos, experiências, virtudes, e tenho medo de que tudo isso
se vá. Assim, enquanto a mente tiver qualquer tipo de conceito,
enquanto ela se mantiver presa a um sistema, a uma fórmula, a
um conceito, ela não poderá saber o que é a verdade. A mente
que acredita é a mente condicionada, e quer ela acredite na con-
tinuidade ou na aniquilação, não poderá descobrir o que é a mor-
te. E é apenas agora, enquanto você vive, não quando estiver in-
consciente, morrendo, que você pode descobrir a verdade desse
extraordinário fenômeno chamado morte.

[...] todo o meu processo de pensar está condicionado


pela ideia de controlar; minha educação, minha religião, a socie-
dade em que vivo, a estrutura familiar, tudo me diz para contro-
lar: esse foi o conceito que me foi transmitido, o conceito que
também adquiri, e eu ajo de acordo com esse conceito, que é
mecânico. E vivo, portanto, em permanente luta.

[...] Como sabem, na literatura, no mundo das artes, é


muito comum ouvir falar de um grande artista, ou de um grande
escritor criativo. Mas, se examinarem o que há por trás da sua
literatura, verão que o autor vive em conflito diário — com a mu-
lher, com a família, com a sociedade, ou é ambicioso, cheio de
cobiça, deseja poder, posição, prestígio. E ele possui certos talen-
tos para escrever. Através das tensões, através do conflito, ele
pode escrever bons livros, mas não é criativo no verdadeiro senti-
do da palavra: não me refiro à criatividade que se manifesta na
expressão, ou seja, escrever um livro, uma poesia, etc., mas sim a
ter uma ideia nova sem formar conceitos a partir dela, de tal mo-
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do a mover-se sempre de uma ideia para outra, de uma ação para
outra. Isso é espontaneidade.

[...] A ênfase na psique, em se dar importância ao eu, vem


provocando grandes estragos no mundo, pois a psique é separati-
va e, portanto, vive em permanente conflito, não apenas dentro
de si mesma, mas também com a sociedade, com a família, e as-
sim por diante.

Sobre a mente e o pensamento


[...] ASSIM, enquanto a mente estiver buscando qualquer


espécie de segurança (e é isso que a maioria de nós quer), en-
quanto a mente estiver procurando qualquer forma de perma-
nência, não pode haver liberdade. Enquanto, individual e coleti-
vamente, buscarmos segurança, obviamente terá de haver guerra
e é isso que, hoje em dia, está ocorrendo no mundo. Só pode exis-
tir liberdade quando a mente compreende todo o processo do
desejo de segurança e permanência. Afinal de contas, é isso que
querem com seus deuses e gurus. Em suas relações sociais e com
seus governos querem segurança; eis por que atribuem a seu deus
a segurança máxima, algo que está acima de si mesmos; revestem
aquela imagem com a ideia de que, sendo entidades efêmeras, lá,
pelo menos, encontrarão permanência. E assim, pois, que come-
çam desejando ser permanentes através da religião e todas as
atividades que realizam (políticas, religiosas e sociais), quaisquer
que sejam, baseiam-se nesse desejo de permanência — terem
segurança, perpetuarem-se através da família, da nação, de uma
ideia ou através do filho. E como pode ter liberdade uma mente
que está sempre buscando, consciente ou inconscientemente,
permanência e segurança?

[...] Vemos o que está acontecendo no mundo nos dias de


hoje. Onde quer que haja tiranias nega-se a liberdade; onde quer

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que exista a poderosa organização de igrejas e religiões, nega-se
também a liberdade. Embora usem a palavra liberdade, tanto as
organizações religiosas quanto as políticas rejeitam essa liberda-
de. Vemos também que, onde há superpopulação, a liberdade
entra em decadência e onde há organização excessiva, comunica-
ção de massa, nega-se a liberdade. Percebendo tudo isso, como é
que um indivíduo os senhores e eu interpreta a liberdade? Viven-
do como vivemos neste mundo, numa sociedade totalmente pre-
sa a organizações, na qual os técnicos são tão importantes, a men-
te acaba escrava de uma espécie de técnica, de um método, de
certos hábitos. Em que nível, portanto, em que profundidade tra-
duzimos a palavra liberdade? Se abandonassem o escritório em
que trabalham, isso não significaria liberdade; apenas perderiam o
emprego. Se dirigissem pelo lado errado da estrada, o policial os
perseguiria e perderiam a liberdade. Se fizerem o que desejarem
ou se ficarem ricos, o Estado irá vigiá-los. Em torno de nós há san-
ções, leis, tradições, várias formas de repressão e domínio e tudo
isso tolhe a liberdade. Se, como seres humanos, por conseguinte,
quiserem compreender esse problema, um problema real, então a
que profundidade deve chegar a investigação? Ou não estão abso-
lutamente interessados nisso? Receio que muitos de nós não este-
jam; só estamos interessados no pão de cada dia, nas nossas famí-
lias, nos nossos pequenos problemas, ciúmes, ambições; mas não
estamos interessados nos problemas mais amplos, maiores. E o
remédio não está no mero interesse pela solução do problema.
Podem descobrir um remédio de efeito imediato, mas isso apenas
vai gerar outros problemas, como bem sabemos. Assim, em que
nível e profundidade vão examinar a palavra liberdade?

[...] O pensamento é a resposta da memória que trabalha


o tempo inteiro como uma máquina. Por isso, perguntamos: “O
que significa liberdade?” Espero que entendam a pergunta e que
eu esteja sendo claro. Se minha mente como um todo resulta do
tempo, da tradição, de diferentes culturas, de experiências e con-
dicionamentos, da base familiar, da raça, da crença, da esfera do
conhecido em que vivemos — nesse caso, onde está a liberdade?
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Se, o tempo todo, estou a me mover, como sou, dentro dos limi-
tes da minha própria mente que está abarrotada de memórias e
produtos do tempo, como pode essa mente ir além de si mesma?

[...] Por que desejam ser membros de alguma coisa? Sem


sombra de dúvida que apenas a mente que está só pode acolher o
verdadeiro, não a que está comprometida com algum partido ou
crença. Pensem nisso, por favor, consultem o coração. Por que
pertencemos a alguma coisa? Por que se submetem a um país, um
partido, uma ideologia, uma crença, uma família, uma raça? Por
que esse desejo de se identificarem com alguma coisa? Quais são
as implicações disso? Só o homem que está completamente fora
desse processo pode compreender, e não o homem comprometi-
do com um grupo ou que está constantemente passando de um
grupo para outro, deste para aquele compromisso.
Claro que desejam pertencer a alguma coisa porque isso
lhes dá uma sensação de segurança — não apenas segurança ex-
terna mas também a segurança interior. Quando pertencem a
alguma coisa, sentem-se seguros. Pertencendo ao que se chama
hinduísmo, sentem-se socialmente respeitáveis, interiormente
seguros, confiantes. Portanto, comprometem-se com alguma coi-
sa a fim de terem a sensação de segurança, firmeza, o que, evi-
dentemente, diminui a margem de liberdade — não é isso?
A maioria de nós não está livre. Somos escravos do hindu-
ísmo, do comunismo, desta ou daquela sociedade, de líderes, de
partidos políticos, religiões organizadas, gurus e, assim, acabamos
perdendo nossa dignidade de seres humanos. Só temos dignidade
como ser humano quando experimentamos, cheiramos e conhe-
cemos essa coisa extraordinária chamada liberdade. Da liberdade
florescente é que vem a dignidade humana. Se não conhecemos
essa liberdade, vivemos como escravos. É isso que está aconte-
cendo no mundo, não é? E creio que o desejo de pertencer a al-
guma coisa, de nos comprometermos com algo é uma das causas
de se amesquinhar a liberdade. Para estarmos isentos desse im-
pulso de pertencer, para estarmos livres do desejo de nos com-
prometermos, temos de investigar nossa maneira de pensar, te-
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mos de estar em comunhão com nós mesmos, com nosso próprio
coração e nossos desejos. E isso é uma coisa muito difícil de fazer.
Requer paciência, um delicado exame da questão, uma constante
e persistente investigação de nós mesmos, sem condenação nem
aceitação. Isso é que é a verdadeira meditação; mas não acharão
nada fácil realizar tal coisa e pouquíssimos dentre nós estarão
dispostos a se empenhar nisso.
A maioria de nós escolhe o caminho fácil de ser guiado,
conduzido; mas, pertencendo a alguma coisa, perdemos nossa
dignidade humana. “Bem, já ouvi isso antes; ele está falando do
seu assunto favorito” — é o que talvez digam, virando as costas.
Gostaria que ouvissem isso como se fosse pela primeira vez —
assim como olhar o pôr-do-sol ou o rosto de um amigo pela pri-
meira vez. Nesse caso, aprenderiam e, aprendendo, descobririam
por si mesmos — que nada tem que ver com a chamada liberdade
oferecida por outrem. Desse modo, examinemos paciente e per-
severantemente essa questão do que é a liberdade. Só o homem
livre pode compreender a verdade que é descobrir se existe algo
eterno, além da medida da mente; mas o homem sobrecarregado
com sua própria experiência ou conhecimento nunca é livre por-
que o conhecimento o impede de aprender.

[...] Já lhes deve ter sucedido, algumas vezes, perceber a


verdade de alguma coisa instantaneamente — como a verdade de
que não pertencem a nada. Percepção é isto: ver a verdade de
alguma coisa imediatamente, sem análise, sem raciocínio, sem
nada do que o intelecto cria para adiar a percepção. Isso é intei-
ramente diferente de “intuição”, uma palavra que usamos sem
cerimônia e com leviandade. E percepção nada tem que ver com
experiência. A experiência diz que devem pertencer a alguma
coisa porque, do contrário, serão destruídos, perderão o empre-
go, a família, a propriedade, a posição e o prestígio.
O intelecto, dessa maneira, com todo o seu raciocínio,
com suas engenhosas avaliações, com seu pensamento condicio-
nado, alega que devem fazer parte de alguma coisa, que devem
comprometer-se com algo a fim de sobreviver. Se perceberem,
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porém, que o indivíduo deve estar completamente só, essa per-
cepção, nesse caso, será um fator de libertação e, para estar só,
não se precisa lutar.

[...] A maioria de nós muda por compulsão, em virtude de


alguma influência externa como o medo, punição, recompensa —
é só isso que nos faz mudar. Sigam isso, senhores, observem tudo.
Nunca mudamos deliberadamente, mas sempre por um motivo e
mudar por um motivo não significa mudança alguma. Estarmos
conscientes dos motivos, das influências e das compulsões que
nos forçam a mudar; estarmos cônscios de todas essas coisas e
negá-las todas, isto, sim, é provocar a mudança. São as circuns-
tâncias que nos fazem mudar: é a família, a lei, nossas ambições,
nossos temores, tudo isso nos faz mudar. Tal mudança, porém, é
uma reação e, por isso, é real mente apenas uma resistência, uma
resistência psicológica à compulsão. Essa resistência cria sua pró-
pria modificação, sua mudança; sendo assim, não é mudança al-
guma. Se eu mudo ou se me ajusto à sociedade porque dela espe-
ro alguma coisa, isso é mudança? Ou será que só ocorre a muta-
ção quando percebo as coisas que me estão compelindo a mudar
e, mais ainda, quando vejo que são falsas? Todas as influências,
boas ou más, condicionam a mente, e aceitar apenas esse condi-
cionamento é resistir, interiormente, a qualquer forma de mudan-
ça, a qualquer mudança radical.

[...] Precisamos ter liberdade — não liberdade verbal; não


mera liberdade política nem simplesmente estar livre das organi-
zações religiosas. Creio que muitas pessoas conscientes da situa-
ção mundial já abandonaram essas formas institucionalizadas de
vida. Embora isso tenha tido um efeito superficial em nossas exis-
tências, bem no fundo o efeito foi muito pequeno. Se quisermos
descobrir o que é liberdade, temos de questionar tudo, todas as
instituições — a família, a religião, o casamento, a tradição, os
valores que a sociedade nos impôs, a educação, toda a estrutura
da organização social e moral. Só que nós não questionamos para
descobrir a verdade e, sim, para achar uma saída; por esse moti-
18
vo, nunca estamos psicologicamente livres. Temos mais interesse
na oposição do que na liberdade. Acho importante compreender
isso.

[...] Se nos observarmos, descobriremos que, geralmente,


nós reagimos de acordo com o nosso conhecimento, com nossa
experiência, com nosso condicionamento como hindu, budista,
cristão, comunista, técnico ou como chefe de família. Esse homem
adquiriu um monte de experiências e, com o que acumulou delas,
é que reage. E com tal conhecimento que ele olha para si mesmo
e diz: “Isso é bom” — “Isso é mau” — “Isso eu conservo” — “Isso
eu rejeito”. Quando ele assim procede, já não está mais a se olhar;
está simplesmente projetando seu conhecimento sobre o que vê e
traduzindo ou interpretando o que vê em termos de sua experiên-
cia, conhecimento e condicionamento.

[...] Não podemos viver sem cooperar. Vida é relação; vida


é cooperação. Não podemos viver, os senhores e eu, sem coope-
ração. Mas, para cooperar, é preciso que haja liberdade. Para
cooperarmos, têm de ser livres e tenho de ser livre. Liberdade não
significa fazer o que queremos: ser cruéis e ter todas as reações
que correspondem a essa palavra. Só o homem livre para amar,
que não tem ciúme nem ódio, que nada deseja para si nem para
sua família, sua raça ou grupo, só o homem livre, que conhece o
pleno significado do amor e da beleza, só ele pode cooperar.
É necessário, portanto, entender essa liberdade. O pen-
samento não traz liberdade. O pensamento nunca é livre. Ele é
apenas uma reação do conhecimento acumulado como memória,
como experiência; desse modo, nunca liberta o homem.

[...] Nós não somos indivíduos. Podem possuir um nome


próprio, um corpo separado e, talvez, com alguma sorte, uma
conta bancária; mas, no íntimo, psicologicamente, não são indiví-
duos. Pertencem a uma raça, a uma comunidade, a uma tradição,
ao passado e, por esse motivo, deixaram de ser criativos. Deixa-

19
ram de estar cônscios da imensidade, da vastidão, do sentido pro-
fundo e da beleza da vida.
Como não somos indivíduos, não sabemos o que significa
amar. Só conhecemos o amor que contém ciúme, ódio, inveja e
todo aquele mal que o pensamento pode gerar. Observem, se
quiserem, a chamada afeição que sentem; observem-se a si mes-
mos, observem sua afeição pela esposa, pela família. Não há se-
quer uma centelha de amor; é um grupo em que há corrupção,
apego, dor, ciúme, ambição e domínio. Podem procriar, mas nisso
não existe amor; é só prazer. E onde há prazer há dor. O homem
que quiser compreender essa coisa chamada amor deve compre-
ender, primeiro, o que é ser livre.

[...] Mas, para compreender a liberdade nas relações, pre-


cisamos penetrar na questão do espaço pois as mentes da maioria
de nós são pequenas, acanhadas e insignificantes. Estamos forte-
mente condicionados — pela religião, pela sociedade em que vi-
vemos, pela nossa educação, pela tecnologia; somos compelidos e
forçados a nos ajustar a um padrão e percebemos que não há
liberdade nessa área limitada. Todavia, precisamos de liberdade
— liberdade total, não de uma meia-liberdade. Viver numa cela de
prisão durante vinte e quatro horas por dia e, ocasionalmente,
passear pelo pátio da prisão — isso não é liberdade. Como o ser
humano que vive na atual sociedade com toda sua confusão, mi-
séria, conflito e tortura, carecemos de liberdade e tal exigência é
uma coisa saudável e normal. Assim, vivendo em sociedade (vi-
vendo em relação com a família, com a propriedade, com as idei-
as), o que significa ser livre? Pode a mente ser livre se ela não tem
dentro de si o espaço ilimitado, o espaço que não foi criado por
uma ideia de espaço, por uma imagem que, como centro, tem um
limitado espaço em tomo de si? Certamente que, como seres hu-
manos, temos de descobrir a relação que existe entre liberdade e
espaço. O que é espaço? Haverá espaço sem o centro, sem o obje-
to que cria o espaço?

20
[...] para a maioria de nós, a disciplina (gostemos ou não,
pratiquemos ou não, estejamos conscientes ou inconscientes dis-
so) é uma espécie de conformismo. Todos os soldados do mundo
(essas pobres e miseráveis criaturas, da esquerda ou da direita)
têm de se submeter a um padrão pois há certas coisas que se es-
pera que eles façam. Embora nós, os demais, não sejamos solda-
dos treinados para destruir os outros e nos proteger, seguimos
também uma disciplina que nos impõe o ambiente, a sociedade, a
família, o escritório, a rotina de nossa existência diária ou a que
nós mesmos nos impomos.
Quando examinamos toda a estrutura e significação da
disciplina, seja uma disciplina imposta de fora seja uma autodisci-
plina, percebemos que ela é uma forma de sujeição externa ou
interna, um ajustamento a um padrão, a um produto da memória,
a uma experiência. E revoltamo-nos contra essa disciplina. A men-
te humana se revolta contra tal estúpida espécie de submissão,
seja ela estabelecida por ditadores, padres, santos, deuses, seja
por quem for. Não obstante, entendemos que, na vida, tem de
haver uma espécie de disciplina — uma disciplina que não seja
mero conformismo, que não seja um ajustamento a um padrão,
que não se baseie no temor etc. porque, se não houver disciplina
alguma, não podemos viver. Cumpre descobrir, por conseguinte,
se há uma disciplina que não seja conformismo uma vez que o
conformismo destrói a liberdade, nunca nos traz a liberdade. Ob-
servem as religiões organizadas pelo mundo afora, os partidos
políticos. E claro que o conformismo destrói a liberdade; não pre-
cisamos insistir nesse ponto. Ou veem, ou não veem. Depende
dos senhores.
A disciplina do conformismo, criada que é pelo medo da
sociedade que faz parte da estrutura psicológica da sociedade,
essa disciplina é imoral, gera desordem e estamos presos a ela.
Mas poderá a mente descobrir se há um movimento de disciplina
que não seja um processo de controle, padronização e confor-
mismo? Para descobrir isso, temos de estar atentos a essa extra-
ordinária desordem, confusão e miséria em que vivemos, estar

21
cônscios disso, não fragmentariamente, mas totalmente e, por-
tanto, sem escolha — e isso já disciplina.

[...] Para investigar, para saber, para descobrir, obviamen-


te tem de haver liberdade — não a liberdade no fim, mas exata-
mente no começo. Sem liberdade, não podem olhar, não podem
investigar, não podem mover-se em direção ao desconhecido. De
liberdade necessita a mente que deseja investigar, quer no com-
plexo campo da ciência quer no complicado e sutil campo da
consciência humana. Não podem ir com seus conhecimentos,
preconceitos, ansiedades e temores, pois tudo isso vai condicionar
a percepção que tiverem, vai empurrá-los em diversas direções e,
desse modo, cessa toda verdadeira indagação. Assim também,
quando tentamos ver o que significa essa coisa extraordinária
(isso a que chamamos amor), não podemos levar conosco nossos
preconceitos pessoais, nossas conclusões, nossas ideias preconce-
bidas ditando que este ou aquele deve ser o caminho; não pode-
mos afirmar que o amor tem de ser expresso na família, entre
marido e mulher, ou que há amor profano e amor espiritual uma
vez que tudo isso nos impede de penetrar, profunda e livremente,
com certo anelo, na questão.
Por conseguinte, precisamos de liberdade para investigar
e, por isso, temos de estar atentos, desde o começo, para ver
como somos condicionados, como somos preconceituosos; temos
de estar atentos ao fato de que olhamos a vida através do desejo
de prazer e de que, assim, ficamos impedidos de ver o que real-
mente é. Mas, quando estamos livres de tudo isso, podemos, en-
tão, investigar essa coisa extraordinária chamada amor.
Neste mundo vivemos em relação — relação entre ho-
mem e mulher, entre amigos, entre nós mesmos e nossas ideias,
nossas propriedades e assim por diante. Vida implica relação e
não pode haver relação quando a mente se isola em suas ativida-
des. Observem, por favor, esse processo em si próprios. Se houver
atividade egocêntrica, não haverá relação. Quer durmam na
mesma cama com outra pessoa, quer viajem num ônibus lotado,
quer estejam olhando as montanhas, enquanto a mente estiver
22
presa a uma atividade egocêntrica, é claro que ela só pode cair no
isolamento e, desse modo, não haverá relação.
Mas é justamente nessa confusão decorrente da atividade
egocêntrica que a maioria de nós começa a investigar o que é o
amor e isso também impede a verdadeira investigação pois toda
atividade egocêntrica visa buscar o prazer e evitar a dor. Enquanto
investigamos partindo do centro, que existe para o seu próprio
prazer, inútil e vã é toda investigação. Para investigar de fato,
temos de estar livres dessa atividade egocêntrica — o que é ex-
tremamente difícil.
Isso requer muita inteligência, uma profunda compreen-
são, um extraordinário insight e, portanto, precisamos de uma
mente sã — que não seja sentimental, emocionalista nem levada
pela entusiasmo, mas uma mente muito lúcida, atenta e sensível a
tudo que ocorre em derredor. Só essa mente pode começar a
investigar isso a que chamamos amor.

[...] Investiguem, portanto, a questão da liberdade, não in-


telectualmente, mas de fato, com o sangue, a mente e o coração!
Só podem viver em liberdade e só quando há liberdade é que há
paz. Nessa liberdade, então, imensa paz tem a mente para cami-
nhar; mas a mente que não está livre, que está presa a uma cren-
ça, à ambição, à família ou a um tolo demiurgo de sua invenção,
essa mente jamais entenderá a extraordinária beleza ou o amor
que provém dessa liberdade. Mas tal liberdade só pode surgir
natural e espontaneamente quando começamos a compreender o
condicionamento. E não podem estar atentos a esse condiciona-
mento quando estão encarcerados, dentro das quatro paredes de
sua religião particular ou de suas ambições. Para investigar esse
condicionamento, precisamos, primeiro, estar atentos. Estar aten-
to significa observar, olhar nossos pensamentos, olhar nossas
crenças, nossos sentimentos. Entretanto, quando olhamos, con-
denamos, justificamos ou dizemos que “isso é natural”. Não
olhamos sem escolher; não estamos cônscios do nosso condicio-
namento. Olhamos nosso condicionamento fazendo uma escolha
— gostando daquilo que é agradável e não gostando do que é
23
desagradável. Mas não estamos realmente cônscios do nosso
condicionamento tal qual ele é, sem qualquer escolha.

[...] A percepção, por conseguinte, é essa condição da


mente que observa sem qualquer justificação nem condenação,
sem aprovação nem desaprovação, sem simpatia nem antipatia —
apenas observa. E a coisa toma-se um tanto difícil quando estão
emocionalmente agitados, quando a segurança, a família, as opi-
niões, os julgamentos e crenças ficam abalados — e ficarão abala-
dos. Não há segurança de espécie alguma; tudo está mudando e
recusamo-nos a aceitar essa mudança; daí, a batalha interior.
Desse modo, quando se observam a si mesmos com muita calma e
observam o mundo circundante, dessa observação nasce a liber-
dade — que não é o estar livre de alguma coisa.

[...] A identificação com nossos corpos, com nossas expe-


riências, com a casa, a família, a nação, com uma ideologia ou
crença particular aumentou a importância que damos ao eu, ao
ego. E isso tem alimentado a ideia (e estou usando a palavra ideia
no seu sentido próprio) da individualidade, a ideia de que nós,
seres humanos, somos separados, indivíduos isolados, segregados
do resto do mundo. Essa importância dada à individualidade criou
uma série de males. Tem destruído famílias (não sei se estão a par
disso) e tem gerado coisas extraordinárias nas realizações e na
tecnologia e um senso de maior empenho por parte do ser huma-
no, do indivíduo, do empreendimento individual. Em oposição, há
a ideologia do totalitarismo. Temos, portanto, essas duas coisas
contrárias: de um lado, a chamada liberdade e, do outro, nenhu-
ma liberdade em absoluto, exceto para uns poucos. Como obser-
vamos no mundo inteiro, o aprimoramento individual produziu
certos resultados benéficos, não apenas no mundo tecnológico
mas também no mundo artístico. Assim, muito embora o indiví-
duo pense que está livre, estará ele realmente livre? O outro lado
da moeda é o totalitarismo onde não há liberdade alguma, exceto
para uns poucos.

24
[...] Enquanto houver identificação com uma nacionalida-
de, com uma família, com o marido, com uma garota, com esta
crença, com aquele dogma, ritual ou tradição, haverá liberdade?

[...] O auto-interesse divide as pessoas — certo? Nós e


eles, os senhores e eu, meu interesse em oposição ao seu, os inte-
resses da minha família em conflito com os interesses de sua famí-
lia, seu país, o meu país no qual investi muita emoção e interesse
material e pelo qual estou disposto a lutar e matar na guerra.
Investimos nosso interesse em ideias, crenças, dogmas, rituais etc.
Na raiz de tudo isso, há muito auto-interesse.
Mas podemos viver, diariamente, neste mundo, com lucidez e
auto-interesse onde for necessário (por favor, estou usando essa
palavra com muito cuidado), onde for fisicamente necessário,
embora psicologicamente, interiormente, de todo descartado?
Será isso possível? Compreendem? Estamos juntos? Será possível
para nós, vivendo numa sociedade tão complexa e competitiva,
dividida por acordos e desacordos, crenças em conflito, com toda
essa enorme divisão que existe, não só individual mas coletiva
igualmente, vivendo neste mundo assim, será possível traçar a
linha entre o auto-interesse cabível e a total ausência de auto-
interesse psicológico?

Sobre a liberdade

25
[...] KRISHNAMURTI: Eu afirmo que os objetivos afastam
as pessoas. Um objetivo não aproxima as pessoas. O seu objetivo
e o meu são diferentes; eles nos separaram. O objetivo em si nos
separou, não a cooperação, que é irrelevante para o objetivo.
Q: Percebo uma coisa: sempre que duas pessoas se junta-
rem pela alegria de alguma coisa, aí é diferente.
K: Não. Quando duas pessoas se aproximam por conta de
uma afeição, ou do amor, da alegria, então o que vem a ser a ação
que não divide, que não separa? Eu o amo, você me ama, e qual é
a ação que resulta desse amor? Não um objetivo? Qual é a ação
entre duas pessoas que se amam?
Q: Quando duas pessoas se aproximam por afeição isso
pode produzir um resultado, mas eles não estão se aproximando
pelo resultado. Portanto, em cada uma dessas aproximações não
há separação. Ao passo que, se duas pessoas se aproximarem com
um objetivo, este é um fator de separação.
K: Descobrimos algo. Vamos examinar melhor. Vejo que
quando duas pessoas se aproximam com afeto, quando não existe
um objetivo, quando não existe uma meta, utopia, então não há
separação. Então desaparece todo o status e há apenas a função.
A seguir vou varrer o jardim pois é parte das necessidades do lo-
cal.
Q: Amor pelo lugar.
K: Não, amor. Não amor pelo lugar. Você percebe o que
estamos deixando de considerar. Os objetivos separam as pessoas
— pois o objetivo é uma fórmula, um ideal. Quero descobrir o que
está envolvido nisso. Eu vejo o que está envolvido. Vejo que, en-
quanto eu tiver uma meta, um objetivo, um princípio, uma utopia,
vejo que o próprio objetivo, o próprio princípio separa as pessoas.
Portanto, está acabado. Então pergunto a mim mesmo como devo
viver, como devo trabalhar com você sem um objetivo?
Vejo que relacionamento significa estar em contato íntimo
de forma a não haver distância entre os dois. Certo? Vejo que no
relacionamento entre eu e a árvore, entre eu e as flores, entre eu
e a minha mulher, há uma distância física e há uma enorme dis-

26
tância psicológica. Portanto, vejo que não tenho absolutamente
um relacionamento.
Então o que devo fazer? Assim eu digo: “Desista, desligue-
se do objetivo e trabalhem juntos.” Todos os intelectuais dizem:
“A meta é mais importante do que você, o todo é maior do que
você; portanto desista, envolva-se completamente com sua mu-
lher, com a árvore, com o mundo.”
O que estou fazendo? Eu amo a natureza. Eu me dedico
ao mundo da natureza, à família e à ideia de que devemos todos
trabalhar juntos para um determinado fim. O que está acontecen-
do, o que estou fazendo nisso tudo?
Q: Isolando-me.
K: Não, senhor. Olhe o que está acontecendo.
Q: O fato é que não tenho um relacionamento. Eu luto pa-
ra construir esse relacionamento, para estabelecer uma ponte
entre pensamento e pensamento. Preciso construir essa ponte
entre pensamento e pensamento pois, a menos que faça isso,
sinto-me absolutamente isolado. Sinto-me perdido.
K: Isso é apenas parte do problema. Analise um pouco
mais. O que está acontecendo na minha mente, quando ela está
lutando para se vincular a tudo, à família, à natureza, à beleza, a
trabalhar juntos?
Q: Há muito de conflito nisso, senhor.
K: Verifico que, como apontou A, não estou relacionado
com nada. Cheguei a este ponto. Então, não estando relacionado
com nada, eu quero me relacionar; portanto submeto-me, portan-
to envolvo-me em certas ações e, ainda assim, o isolamento pros-
segue. Portanto, o que se passa na minha mente?
Q: A morte.
Q: Há uma luta constante.
K: Vejam que vocês não se afastaram deste ponto. Não es-
tou tendo um relacionamento e então procuro me relacionar.
Tento me identificar através da ação. E o que está ocorrendo na
minha mente? Estou me dirigindo a um vínculo periférico. O que
sucede à minha mente quando ela se move no exterior durante
todo o tempo?
27
Q: A mente se fortalece.
Q: Estou fugindo de mim mesmo.
K: O que significa isso? Examinem bem. A natureza se to-
ma muito importante, a família se torna muito importante, a ação
à qual me dediquei inteiramente se torna extremamente impor-
tante. E o que aconteceu comigo? Eu exteriorizei tudo completa-
mente. E o que aconteceu com a mente que exteriorizou todo o
movimento de relacionamento? O que acontece à sua mente
quando ela está ocupada pelo exterior, pelo periférico?
Q: Perde toda a sensibilidade.
K: Olhe para o que ocorre dentro de você. Em reação à ex-
teriorização, você se retrai, torna-se um monge. O que acontece à
mente quando ela se retrai?
Q: Sinto-me incapaz de ser espontâneo.
K: Você descobrirá a resposta. Observe. O que ocorre à
sua mente quando você se retira ou quando você se submete? O
que sucede quando você se refugia em suas próprias conclusões?
Trata-se de um outro mundo. Em vez de um mundo, você criou
outro mundo, que você chama de mundo interior.
Q: A mente não está livre.
K: É isso o que está acontecendo com sua mente?
Q: Ela está sempre ligada a algo.
K: A mente está vinculada aos fenômenos externos e a re-
ação a isso é a submissão interior, o retraimento. A submissão
interior é a reação do mundo da sua imaginação, de experiência
mística. O que ocorre à mente que está fazendo isso?
Q: Está ocupada.
K: É isso o que está acontecendo? Ela diz que está ocupa-
da. Isso é tudo? Concentrem-se nisso. A mente exterioriza sua
atividade e a seguir se retrai e age. O que acontece com a quali-
dade da mente, com o cérebro que está se retraindo e exteriori-
zando?
Q: Ele não encara os fatos.
Q: Há um grande medo. Ela se toma estúpida.
Q: Não está livre para olhar.

28
K: Você já observou a sua mente quando ela está exterio-
rizando toda a ação para fora e toda a ação para dentro? Trata-se
do mesmo movimento — o externo e o interno. É como uma maré
subindo e descendo. É bastante simples, não é? O que ocorre com
a mente que vai para fora e volta para dentro?
Q: Ela torna-se mecânica.
K: Passa a ser uma mente completamente sem apoios,
completamente instável, uma mente que não tem ordem. Torna-
se neurótica, desequilibrada, desproporcionada, não harmoniosa,
destrutiva, pois não há estabilidade em todo o movimento.
Q: Não tem descanso.
K: Portanto, não há estabilidade. Portanto, o que aconte-
ce? Ela inventa outra ação exterior ou se retrai. E o cérebro preci-
sa de ordem e ordem significa estabilidade. Ele tenta encontrar
ordem ali fora no relacionamento e não encontra; então se retrai
e procura encontrar ordem no interior e é novamente apanhado
no mesmo processo. Isso é um fato?
A mente tenta encontrar estabilidade numa ação coopera-
tiva sobre qualquer coisa. A mente tenta encontrar estabilidade
na família, nos vínculos, e não encontra, e por isso se desloca,
procura o relacionamento com a natureza, torna-se imaginativa,
romântica, o que novamente produz instabilidade. Ela se retira
para um mundo de infinitas conclusões, utopias, esperanças, e
novamente não há estabilidade; portanto, ela inventa uma ordem
nisso. Sendo instável, estreita, não enraizada em nada, a mente se
sente perdida. É isso o que está acontecendo com vocês?
Q: Isso explica o culto do belo.
K: O culto do belo, o culto do feio, o culto dos hippies. É
isso o que está acontecendo com a mente de vocês? Atenção. Não
aceitem o que estou dizendo.
Uma mente que não é estável, no sentido de firme, pro-
fundamente enraizada na ordem — não uma ordem inventada,
pois uma ordem inventada deve ser morte —, essa mente é a
mais destruidora das mentes. Ela vai do comunismo ao guru, ao
Yoga Vashista, ao Ramana Maharshi e de volta novamente. É to-

29
mada pelo culto do belo, pelo culto do feio, pelo culto da devo-
ção, da meditação, e assim por diante.
Como deve a mente fazer para estar completamente se-
rena? A partir dessa serenidade, a ação é completamente diferen-
te. Vejam a beleza disso.
Q: Este é o beco sem saída da mente.
K: Não senhor. Estou perguntando a mim mesmo como
deve fazer essa mente para atingir a serenidade total? Não a es-
tabilidade no sentido de dureza, mas uma estabilidade flexível. A
mente que é completamente estável, firme, profunda, tem suas
raízes no infinito. Como isso é possível? Então o que é o relacio-
namento com a árvore, com a família, com o comitê?
Verifico que a minha mente é instável e compreendo o
que isso significa. Agora eu sei por mim mesmo, agora eu com-
preendo por mim mesmo que esse movimento é fruto da instabi-
lidade. Eu sei disso e, por isso, eu o nego. E pergunto, o que é
instabilidade? Conheço a instabilidade com toda a sua atividade,
com toda a sua destruição e, quando deixo isso completamente
de lado, o que é estabilidade? Procurei a estabilidade na família,
no trabalho, na experiência, no conhecimento, na minha capaci-
dade, em Deus. Percebo que não sei o que seja estabilidade. O
não saber é estável.
O homem que diz: “Eu sei” e, portanto, diz “Eu sou está-
vel” nos levou a esse caos — pessoas que dizem: “Nós somos os
únicos escolhidos.” O imenso número de mestres e gurus diz: “Eu
sei.”
Rejeitando tudo isso, apoie-se em si mesmo. Tenha confi-
ança em si mesmo. E quando a mente tiver posto de lado tudo
isso, quando tiver compreendido o que é não-estável e que ela
não pode saber o que vem a ser a verdadeira estabilidade, então
ocorre um movimento de flexibilidade, de harmonia, pois a mente
não sabe. A verdade do não conhecer é o único fator a partir do
qual podemos começar. A verdade disso é o estável. A mente que
não sabe está em fase de aprendizado. No momento em que digo:
“eu aprendi”, parei de aprender, e esse parar é a estabilidade da
separação.
30
Portanto, eu não sei. A verdade é que eu não sei. Isso é
tudo. E isso lhe dá uma qualidade de aprendizado e no aprendiza-
do há estabilidade. A estabilidade está no “eu estou aprendendo”,
e não no “Eu aprendi”. Vejam o que isso faz para a mente. Isso
tira totalmente a carga que pesa sobre a mente e isso é liberdade;
a liberdade do não-saber. Vejam a beleza disso — o não-saber e,
portanto, a liberdade. Por outro lado, o que sucede com o cérebro
que funciona com o conhecimento? Esta é a sua função, não é?
Funcionar de lembrança a lembrança. No conhecimento, a mente
encontrou uma grande segurança, e biologicamente essa segu-
rança é necessária. De outra forma, seria impossível sobreviver.
Agora, pergunto, o que acontece com o cérebro que afirma não
saber nada a não ser o conhecimento biológico de sobrevivência?
O que acontece com o restante do cérebro? Antes, o restante do
cérebro estava acorrentado. Agora ele não está mais ocupado. Ele
irá agir, mas não está ocupado.
O cérebro nunca foi tocado. Ele não pode mais ser ferido.
Nasceu um novo cérebro ou o velho cérebro foi purgado de suas
preocupações.

[...] Somos escravos da tradição. Podemos pensar que so-


mos modernos, muito livres, mas lá no fundo somos bastante
tradicionalistas, o que se pode observar quando aceitamos essa
formação de imagens e estabelecemos o nosso relacionamento
com cada pessoa baseando-nos nessas imagens. Isso é tão antigo
quanto andar para a frente. Esta é uma das nossas tradições. Nós
a aceitamos, vivemos com isso, nos torturamos uns aos outros
com isso. Então, essa tradição pode ser interrompida? Isto é,
quando ocorrer um incidente, um acontecimento no nosso relaci-
onamento, não registrá-lo em absoluto? Compreendeu? Não.
No nosso relacionamento diário você diz alguma coisa
quando está zangado, irritado, e o cérebro a registra e acrescenta
à imagem que você formou sobre você. Esse insulto, essa irrita-
ção, essa raiva com algo que você disse, que me machuca, que
machuca a imagem, isso pode ter um fim? Compreendem a minha
pergunta? Isso só pode acabar quando você compreende todo o
31
processo do registro feito pelo cérebro. O cérebro registra tudo.
Agora mesmo ele está registrando tudo o que estou falando. E
quando um incidente acontece, ele o registra. Agora estamos
perguntando se esse registro pode ser interrompido. Compreen-
dem a pergunta? Eu o insulto no nosso relacionamento e imedia-
tamente há uma reação e o registrador põe-se a funcionar. Isso
pode ser interrompido? Pois, de outra maneira, o nosso amor será
apenas emocional, sentimental, sexual, e bastante superficial.
Apenas a mente que não foi magoada É capaz de amar, não é
verdade? Vocês percebem o sentido disto? Vamos em frente.
Então você me magoa, ou seja, você machuca a imagem que cons-
truí sobre mim mesmo. Esse insulto pode deixar de ser registrado
se o meu cérebro não estiver magoado? Então saberei o significa-
do total e a beleza de algo que eu sempre soube que existia mas
que só agora eu verifico. Assim, vou descobrir se é possível impe-
dir totalmente que essa dor seja registrada.
Isso só é possível quando a imagem não existe. Está claro?
Quando não tenho imagem alguma sobre você e você não tem
imagem alguma sobre mim, só então o que quer que você diga
não deixa marcas. Isso não quer dizer que eu esteja isolado, ou
que não tenha afeição, mas o registro de mágoas, de insultos,
todos esses movimentos do pensamento chegaram ao fim. Ou
seja, estar completamente atento no momento do insulto, com
todos os seus sentidos. Vocês percebem? Nossos cérebros ficam
magoados. Através de vários choques, de incidentes, uma sensa-
ção de tremendo dano está sendo feito contra o cérebro. Ele quer
segurança, e ele encontra segurança nas coisas normais e anor-
mais. Como uma nação, adorar uma nação é anormal, um instinto
tribal, mas ele encontra segurança nisso, e assim por diante. O
próprio desejo de segurança o está destruindo. Compreendem?
Sinto-me seguro com a minha família. Com a minha família há
uma batalha sendo travada o tempo todo, entre eu e você, com
meus filhos, conflito constante, agonia, desespero, aborrecimen-
tos. Você sabe que tudo isso está acontecendo dia após dia, con-
tinuamente. Isso é um grande choque para o cérebro. E então
dizemos: enquanto houver um formador de imagens deve haver
32
feridos, deve haver registros. Somente quando o formador de
imagens deixar de existir cessarão os registros. O que implica dizer
que não há o “eu”, que é a imagem que se machuca. Compreen-
de? Não existe o “eu”. O “eu” é a imagem que tenho sobre mim
mesmo como uma pessoa extraordinariamente capaz ou como
um ser humano bem-sucedido; as coisas que o pensamento cons-
truiu em torno de si mesmo como o eu, a imagem profundamente
consciente ou inconsciente que ele construiu.
No nosso relacionamento, a construção de imagens torna-
se uma extraordinária atividade do dia-a-dia; portanto, não existe
realmente relacionamento. O relacionamento só pode acontecer
quando não há imagem. Você compreende o que estou dizendo?
E você tem alguma coisa disso? Não verbalmente, mas verdadei-
ramente, no seu sangue! Então isso traz a verdade ao nosso rela-
cionamento.
Então, o que vem a ser o nosso relacionamento se não
existe imagem entre eu e você? Quando você não tem nenhuma
imagem sobre mim, o que é o seu relacionamento comigo? Quan-
do você não tem imagem, e eu não tenho imagem, o que aconte-
ce entre nós? Porque tenho uma imagem sobre mim mesmo en-
tro em luta com você; você não tem imagem, então você não está
em luta comigo. Você compreende? E você pode, no nosso relaci-
onamento, provocar em mim um estado de espírito no qual a
formação de imagem deixou de existir? Esta é a sua responsabili-
dade para comigo. Quando você não tem imagem, e eu tenho
uma imagem sobre você, você tem a responsabilidade no nosso
relacionamento de cuidar para que eu não forme imagens sobre
você. Esta é responsabilidade sua. Então você fica atento, fica
alerta, permanece plenamente vivo, e eu passo a minha vida toda
semi-adormecido. Portanto, é responsabilidade sua o fato de eu
não ter imagem.
Sendo assim, duas pessoas não terem imagem — se isso
alguma vez ocorrer — é algo milagroso, maior que qualquer mila-
gre na terra. Se isso acontecer, então há um tipo de comunhão
totalmente diferente entre cada uma das pessoas. O que implica a
não existência de brigas — compreendem? — nunca ser possessi-
33
vo, nem dominador, nunca moldar o outro por palavras, ameaças,
insinuações. Tem-se então um relacionamento dos mais extraor-
dinários. Eu sei que isso pode acontecer. E já aconteceu; nós o
fizemos. Não se trata apenas de um amontoado de palavras.
Estamos afirmando que quando não existe imagem existe
amor. Precisamos, pois, descobrir o que é, na realidade, esse
amor. O que vem a ser o que chamamos amor nas nossas vidas?
Quando você diz que ama alguém, o que isso significa? Trata-se de
amor sexual, algo biológico, a recordação disso, a exigência disso,
a busca disso? Isso aparentemente tem uma extraordinária signi-
ficação na nossa vida; é mostrado em todas as revistas, nos cine-
mas, e em tudo o mais. Trata-se de amor sexual? Trata-se de amor
quando há ciúme? Compreendem? Existe amor quando — por
favor, me escutem —, quando saio para ir para o escritório ou
para a fábrica, ou me torno uma secretária, ou o que quer que
seja, e você também se põe a fazer algo, pois quer se realizar. O
marido quer se realizar, a mulher quer se realizar, os filhos que-
rem se realizar; afinal, onde estamos? Vocês compreendem? E
tudo isso recebe o nome de “amor”, “responsabilidade”. Sendo
assim, para descobrir o que vem a ser o amor, não pode haver
fragmentação, fragmentação no meu trabalho e nas implicações
deste meu trabalho, e não pode haver divisão entre o meu traba-
lho, a minha família, a minha mulher, a minha garota. Compreen-
dem o que estou dizendo? Não se trata de algo quebrado. Eu vou
para o escritório; lá eu sou bastante ambicioso, cheio de cobiça e
inveja, desejo sucesso, você sabe, empurrando, empurrando, le-
vando, competindo, e então volto para casa e digo: “Oh, querida,
eu te amo.” Isto se torna muito pequeno. Essa é a nossa tradição.
Então, estamos perguntando: será possível viver uma vida
totalmente harmoniosa, plena, de forma que, quando vou para o
escritório, eu estou totalmente lá, e não alguém diferente da mi-
nha família? Você compreende? Será possível isso? Não diga que
isso é uma ideia, uma utopia. É preciso tornar isso possível, é pre-
ciso trabalhar nisso, debruçar-se sobre isso, porque estamos nos
destruindo.

34
[...] Por que os seres humanos nunca mudam? Esta é uma
pergunta importante. Por que vocês vivem em conflito, em des-
graça, em confusão, na incerteza, discutindo com a mulher, com o
marido, tudo isso se passando na família; por que aceitam isso,
vivem com isso? Por quê? Compreendem a minha questão? E é
porque estamos tão acostumados a um determinado padrão de
pensamento, a um determinado padrão de vida que somos inca-
pazes de romper esse padrão? E será preguiça, será medo do des-
conhecido, aceitar “o que existe” em vez de sair “do que existe”?
Será que seus cérebros ficaram tão obtusos por causa da nossa
educação? Vocês todos são doutores, mestres em finanças, em
administração, e assim por diante; estará essa educação condicio-
nando vocês a serem engenheiros pelo resto da vida de forma a se
tomarem incapazes de pensar em outra coisa que não sejam pon-
tes ou estradas de ferro? Estará a nossa educação destruindo a
humanidade?
Por favor, examinem tudo isso, pelo amor de Deus! O que
provocará uma mudança no homem, ou seja, o que mudará o seu
relacionamento com outra pessoa? Compreendem? Esta é a ques-
tão básica. Nós todos estamos preocupados com a sociedade em
mudança, com a fealdade, a brutalidade, o horror que está ocor-
rendo e nunca nos perguntamos por que cada um de nós não
muda, por que não muda o nosso relacionamento.
Assim, o que vem a ser o seu relacionamento? O que é o
seu relacionamento com a mulher, o marido, a irmã, a filha, ou
com quem quer que seja? O que é esse relacionamento? Vamos.
Será esse relacionamento baseado numa busca egotista, cada um
desejando à sua maneira? Compreendem tudo isso? Precisamos
indagar cuidadosamente e, é claro, ceticamente, o que é o relaci-
onamento. Se não compreendermos o relacionamento jamais
seremos capazes de produzir a necessária revolução na sociedade.
O que é então o nosso relacionamento? Estamos em al-
gum momento relacionados um com o outro de alguma forma?
Você pode ter uma esposa, ou uma namorada, o que é a fantasia
atual. Você pode ter um marido ou pode ter diversas garotas ou
senhoras, mas qual é a base desse relacionamento? Trata-se me-
35
ramente de prazer sexual, trata-se meramente de uma sensação
de bem-estar, de conveniência, de contato social? Por favor, inter-
roguem-se sobre isso. Será que nos atrevemos a examinar esse
relacionamento? Estaremos assustados demais para examiná-lo?
Compreendem a minha pergunta? Estamos com medo de exami-
nar o nosso relacionamento — a mulher, a filha, a namorada, o
marido, toda a estrutura do relacionamento na família? Não deve-
ríamos descobrir por nós mesmos o que é o verdadeiro relacio-
namento? [... ] Olhem inicialmente para o que na verdade está se
passando. É prazer sexual ou prazer da companhia, prazer de ter
alguém com quem você possa conversar, gracejar, brigar, ou ve-
nerar, adorar? Nesse relacionamento, existe algum amor, ou essa
palavra, esse sentimento, está totalmente ausente? E nesse rela-
cionamento com o outro você tem uma imagem sobre ele e ele
tem uma imagem de você. Certo? O relacionamento se dá entre
essas duas imagens que o pensamento criou. Eu gostaria de saber
se vocês veem tudo isso por vocês mesmos. Posso ter uma mulher
ou um marido. Vivemos um com o outro por vários anos, e eu
formei uma imagem sobre ela, uma imagem sexual, imagem de
bem-estar, de encorajamento, de alguém em quem eu posso con-
fiar, que irá amparar meus filhos, e ela tem uma imagem sobre
mim. Não sou casado, não se preocupem. Graças a Deus! Vocês
riem, mas não percebem a tragédia que há em tudo isso.
Assim, o que é o seu relacionamento verdadeiro? Você
não tem nenhum. Certo? Você pode ter uma casa, uma mulher,
filhos. Você trabalha no escritório todos os dias das 9 às 5 ou 6 da
tarde pelos próximos cinquenta anos, volta para a sua casa, para a
sua cama, para suas brigas, não tem tempo para nada a não ser
para o dinheiro. Se você está em busca de poder, de posição, de
status, esta é a sua vida — conflito — e você chama a isso de rela-
cionamento. Certo? Não concordem. Olhem bem para a situação
e pensem se essa construção de imagens pode ter fim. Compre-
endem? Pois a maioria de nós vive com imagens, a respeito de nós
mesmos e dos outros. A imagem do político, a imagem do cientis-
ta, a imagem do guru, as imagens feitas pela mente e pela mão —

36
vivemos com imagens. As imagens passam a assumir uma impor-
tância incrível, e não o viver.
A questão é saber se o mecanismo que cria a imagem po-
de chegar a um fim. Vocês compreendem o que estou dizendo?
Por favor, me acompanhem. Estamos fazendo juntos esta jornada.
Vocês não estão sendo hipnotizados pelo orador; então, por fa-
vor, não durmam. Estamos percorrendo juntos o caminho, um
caminho bastante tortuoso, bastante complexo, com muitas vol-
tas, curvas perigosas, e juntos precisamos compreender uma for-
ma de viver que seja totalmente diferente, para ter uma socieda-
de que seja totalmente diferente, e essa sociedade só pode ser
diferente se vocês, como seres humanos, forem diferentes. Trata-
se de uma equação muito simples. Portanto, podemos nós viver
sem uma única imagem? Você tem uma imagem de você mesmo
como advogado, como engenheiro, como santo, como guru, como
um seguidor, você tem uma imagem de você mesmo. Por quê?
Existirá segurança nessa imagem? Porque nossas mentes, nossos
cérebros estão sempre buscando segurança, e vocês acreditam
que existe segurança num conceito, numa crença, até que alguém
surja e a faça balançar.
Pergunto então: há segurança na imagem que vocês cons-
truíram sobre vocês mesmos? Porque não há segurança numa
coisa viva, ativa, que se move, mas nós acreditamos que há segu-
rança na imagem que criamos. Sabem, acreditamos que há uma
tremenda segurança no conhecimento. Se você é professor, mes-
tre, se você é um guru, se você é qualquer tipo de arrivista, você
tem um certo conhecimento. Esse conhecimento lhe proporciona
um trabalho, uma habilidade, e você acredita que há grande segu-
rança nisso. Você jamais questionou o que vem a ser o conheci-
mento, o conhecimento que não seja o conhecimento tecnológi-
co. O conhecimento invariavelmente é incompleto. Você não po-
de ter completo conhecimento sobre coisa alguma. Isso é um fato.
O conhecimento, portanto, vive sempre à sombra da ignorância.
Acreditem nisso! Ele vive à sombra da ignorância. Então qualquer
ação nascida do conhecimento terá de ser incompleta. Portanto,
sendo incompleta, deve invariavelmente produzir conflito. Então
37
o conhecimento que você tem sobre o outro no seu relaciona-
mento é incompleto, e portanto qualquer ação baseada nesse
conhecimento, que é a imagem que você tem sobre o outro no
seu relacionamento, terá de produzir conflito. Isso é óbvio. Existi-
rá um relacionamento que não se baseie no conhecimento? Ou
seja, eu a conheço como minha mulher, eu vivi com você durante
vinte anos e sei tudo sobre você, o que é bobagem, é claro. Mas o
conhecimento que tenho é a imagem de você que o meu pensa-
mento criou. Vocês compreendem isso?
O mecanismo que é o movimento do pensamento no rela-
cionamento cria a imagem e portanto a divisão. Onde há divisão
deve haver conflito: entre os hindus e os muçulmanos, entre a
Índia e o Paquistão, entre árabes e judeus, entre socialistas e cató-
licos. Será possível pôr um fim ao conflito no relacionamento?
Indaguem comigo sobre a possibilidade de terminar completa-
mente o conflito. Vamos indagar o porquê de a humanidade, de
você, um ser humano que é o resto da humanidade, por que você
vive em conflito no seu relacionamento. O conflito deve existir
sempre que houver divisão. Certo? Esta é a lei e, se você percebe
o fato de que você não é um indivíduo, mas o resto da humanida-
de, incluindo sua mulher, cujo rosto você tem olhado nos últimos
vinte anos e com a qual se aborreceu — pode o conflito ter fim?
Isto é: por que entra o pensamento no relacionamento? Percebe
o que digo? O pensamento invariavelmente divide, o pensamento
invariavelmente cria a imagem: você e o outro. Por que o pensa-
mento entra no relacionamento? O que significa dizer que o pen-
samento é amor? O pensamento é desejo, o pensamento é prazer
no relacionamento?
Estamos perguntando por que, afinal, o pensamento entra
no relacionamento. Por favor, mergulhem nisso, indaguem sobre
isso. Não é o pensamento que está nos dividindo: você um hindu,
eu um muçulmano; eu um comunista, você um socialista? Vocês
conhecem tudo isso. E especialmente no nosso relacionamento,
por que entraria o pensamento? Por favor, façam essa pergunta,
não de forma superficial, não verbalmente apenas ou como um
ideia abstrata que vocês estão examinando; mas por que entraria
38
o pensamento no meu relacionamento com outra pessoa? Que
lugar ocupa o pensamento fora do mundo tecnológico? Compre-
endem o que quero saber? No mundo tecnológico preciso do pen-
samento para poder construir um computador, ou um robô; para
construir o que quer que seja, uma cadeira, para plantar uma ár-
vore, preciso do pensamento. Para aprender uma língua, preciso
do pensamento. Mas por que entraria o pensamento no nosso
relacionamento? Por favor, olhem para isso! Será que é porque
ele construiu uma imagem sobre o outro, tal como ele criou a
imagem sobre você mesmo e essa imagem tornou-se mais impor-
tante do que o relacionamento real? Será verdade que gostamos
mais de viver na ilusão do que na realidade? Será a realidade tão
desagradável que preferimos não olhar para ela?
Você pode olhar para o seu relacionamento diário com a
sua mulher, com seu patrão? Nesse relacionamento, você, como
entidade autocentrada, torna-se a coisa importante e, em conse-
quência, inevitavelmente deve haver conflito. E você pode olhar
para a sua mulher, para o seu marido, e não permitir que a pala-
vra interfira? A palavra é o pensamento — compreende? —, a
palavra é o símbolo. Quando você diz, “minha mulher”, veja o que
você fez. A palavra tornou-se importante. Nessa palavra existe a
totalidade da estrutura da possessão, da dominação, do apego, e
quando existe apego deve haver corrupção.
Você ouve tudo isso. E será que ao ouvi-lo surge uma abs-
tração denominada ideia, ou no próprio ato de ouvir você vê a
verdade de tudo isso? O que na verdade está se passando no seu
cérebro: enxergando a verdade real, ou ouvindo e fazendo uma
abstração disso, formando uma ideia e, portanto, a ideia torna-se
importante e não o fato? Você está realmente observando o que é
o fato e você pode — isto é importante, se posso apontá-lo —,
você pode permanecer com o fato sem nenhum movimento do
pensamento? Se eu criei uma imagem sobre mim mesmo, sentado
nesta cátedra diante de uma grande plateia, com uma reputação,
aquela conversa fiada de que escrevi diversos livros, de que fui
homenageado, insultado, e tudo isso, essa imagem pode ser apa-
gada, pode ser ferida. Surge alguém e me diz: “Meu amigo, você é
39
muito pequeno em comparação com alguém que conheço”, e eu
me ofendo porque a imagem foi arranhada. Se eu não tiver ne-
nhuma imagem sobre mim mesmo — o que no meu caso é um
fato — ninguém pode arranhá-la. Portanto, um relacionamento
com essa pessoa não se baseia no pensamento e há um relacio-
namento de um tipo inteiramente diferente. Isto é para o orador
e não tem importância alguma. O que é importante é você no seu
relacionamento. Você pode enxergar esse fato e permanecer com
o fato; não inventar desculpas, justificativas, suprimir e fugir do
fato, mas, ao contrário, permanecer verdadeiramente com o fato
de que você é uma imagem, o que é o fator que produz conflito
com o outro?
Se você permanecer assim solidamente, sem nenhum tipo de
movimento, então essa energia que foi dissipada através da su-
pressão dissolve o fato. Faça isso, teste e você verá que tem um
tipo de relacionamento totalmente diferente com o outro e, por-
tanto, uma sociedade diferente na qual esse terrível conceito de
um indivíduo com suas próprias buscas, com sua ambição falsa e
todo o resto chega a um fim. Você passa a viver de um modo to-
talmente diferente. Isso significa que você vive com amor. Temo
que neste país, e em outros países, essa palavra tenha perdido o
sentido mas, sem a beleza do amor, o relacionamento torna-se
um horror.

Sobre relacionamentos

40
[...] A COMPARAÇÃO gera o medo. Observe esse fato em
você mesmo. Quero ser melhor escritor, ou uma pessoa mais bo-
nita e inteligente. Quero ter mais conhecimentos do que os ou-
tros; quero obter sucesso, tomar-me alguém, ter mais fama neste
mundo. O sucesso e a fama são a verdadeira essência psicológica
da comparação, através da qual produzimos continuamente o
medo. E a comparação dá lugar ao conflito e à luta, o que é consi-
derado altamente respeitável. Você afirma que é obrigado a ser
competitivo para sobreviver neste mundo e, então, você se com-
para e compete nos negócios, na família e nas assim chamadas
questões religiosas. Você precisa alcançar o céu e sentar-se ao
lado de Jesus, ou de quem quer que seja o seu salvador. O espírito
de comparação reflete-se no padre que se toma arcebispo, carde-
al e, por fim, papa. Cultivamos esse mesmo espírito com muita
assiduidade ao longo da vida, lutando para nos tomarmos melho-
res ou para alcançar uma condição mais elevada do que a de ou-
tra pessoa. Nossa estrutura moral e social baseia-se nisso.

[...] KRISHNAMURTI: O que você quer dizer com a palavra


apego?
Q: A mente está presa a alguma coisa.
K: Ou seja, a mente está presa a alguma lembrança.
“Quando eu era jovem, como tudo era maravilhoso!” Ou, então,
estou-me apegando a alguma coisa que poderia acontecer; então,
eu cultivei uma crença que irá me proteger. Eu estou preso à me-
mória, estou preso a uma peça da mobília, estou preso ao que
estou escrevendo porque através disso ficarei famoso. Estou pre-
so ao nome, à família, à casa, a várias lembranças, e assim por
diante. Eu me identifiquei com tudo isso. Por que acontece esse
apego?
Q: Não será porque o medo é a verdadeira base da nossa
sociedade?
K: Não, senhor; por que o apego? O que significa a palavra
apego? Eu dependo de algo. Eu dependo de que todos vocês pres-
tem atenção, para poder falar a vocês; eu estou dependendo de
vocês e, portanto, estou ligado a vocês, porque através dessa liga-
41
ção obtenho certa energia, certo élan, e todo o resto dessas bo-
bagens! Então eu estou apegado, e isso significa o quê? Eu de-
pendo de vocês, eu dependo dos móveis. Estando apegado à mo-
bília, à crença, ao livro, à família, à mulher, eu sou dependente
daquilo que me dá bem-estar, prestígio, posição social. Assim, a
dependência é uma forma de apego. Mas por que eu dependo?
Não me respondam, examinem isso em vocês mesmos. Você de-
pende de algo, não é verdade? Do seu país, dos deuses, da cren-
ças, das drogas que você toma, da bebida!
Q: É tudo parte do condicionamento social.
K: Será que é o condicionamento social que faz você de-
pender? Isto é: você é parte da sociedade; a sociedade não é in-
dependente de você. Você fez a sociedade, que é corrupta; você a
construiu. E você ficou aprisionado nessa jaula, você é parte dela.
Então, não culpe a sociedade. Você percebe as implicações dessa
dependência? Do que se trata? Por que você depende?
Q: Para não me sentir solitário:
K: Espere, ouça com atenção. Eu dependo de algo porque
esse algo preenche o meu vazio: Eu dependo do conhecimento,
dos livros; porque isso recobre o meu vazio, a minha superficiali-
dade, á minha estupidez; assim, o conhecimento adquire uma
importância extraordinária. Falo da beleza dos quadros porque eu
mesmo dependo disso. A dependência, portanto, indica o meu
vazio, a minha solidão, a minha insuficiência, e isso me torna de-
pendente de você. Isso é um fato, não é verdade? Não vamos
teorizar, não vamos discutir isso; é assim. Se eu não fosse vazio, se
eu não fosse insuficiente, não me importaria com o que você iria
dizer ou não. Eu não dependeria de nada. Porque sou vazio e soli-
tário, eu não sei como proceder com a minha vida. Escrevo um
livro tolo e isso satisfaz à minha vaidade. Então eu dependo, o que
significa que tenho medo da solidão; tenho medo desse meu va-
zio. Dessa forma, eu o preencho com objetos materiais, ou com
ideias, ou com pessoas.
Não estarão vocês com medo de pôr a descoberto a pró-
pria solidão? Vocês já desnudaram a solidão, a insuficiência, o
vazio que sentem? Isso está ocorrendo agora, não é mesmo? Por-
42
tanto, vocês têm medo desse vazio, agora. O que irão fazer? O
que está acontecendo? Antes, vocês estavam apegados a pessoas,
a ideias, a tudo, enfim; e vocês percebem que essa dependência
recobre o seu vazio, a sua superficialidade. Ao perceber isso, vo-
cês se libertam, não é verdade? Agora, qual é a resposta? Será
esse medo a resposta da memória? Ou esse medo é real - você o
vê?
Eu trabalho duro para vocês, não é mesmo? (Risos) Assisti
a um desenho animado ontem pela manhã. Um garoto diz a outro
garoto: “Quando eu crescer, serei um grande profeta; falarei de
verdades profundas, mas ninguém irá me ouvir.” E o outro garoto
responde: “Então, para que você vai falar, se ninguém vai escu-
tar?” “Ah”, respondeu o primeiro, “nós, os profetas, somos muito
obstinados.” (Risos)
Bem, você agora revelou o seu medo através do apego,
que é dependência. Ao examinar isso você vê o seu vazio, a sua
superficialidade, a sua insignificância e você sente medo. O que
acontece, então? Os senhores percebem isso?
Q: Eu tento fugir.
K: Tenta fugir através do apego, através da dependência.
Portanto, recai no velho padrão. Mas, se perceber que, na verda-
de, esse apego e essa dependência recobrem o seu vazio, você
não fugirá, certo? Se não perceber esse fato, estará condenado a
fugir. Você tentará preencher o vazio de outras maneiras. Antes
você o preenchia com drogas, agora você o preenche com sexo ou
com alguma outra coisa. Então, ao perceber esse fato, o que acon-
tece? Continuem, senhores, desenvolvam esse raciocínio! Eu vivi
apegado à minha casa, à minha mulher, aos meus escritos, a ficar
famoso; eu percebo que o medo aparece porque eu não sei como
proceder com o meu vazio; portanto, eu dependo; portanto, eu
me apego. O que faço quando sou tomado por esse sentimento
de enorme vazio interior?
Q: Há um sentimento muito forte.
K: É o medo. Eu descubro que estou com medo; por con-
seguinte, me apego. Será esse medo a resposta da memória ou
será ele a descoberta real? Descobrir é algo bem diferente de uma
43
resposta do passado. Mas qual delas ocorre com vocês? Será a
verdadeira descoberta? Ou será a resposta do passado? Não me
respondam. Descubram, escavem bem fundo em vocês mesmos.

[...] A DOR EXISTE quando existe medo. É preciso, portan-


to, abordar a questão do medo. Por que determinado ser humano
sente medo? O que significa o medo na verdade? Sensação de
insegurança? Uma criança necessita de segurança total; e o pai e a
mãe cada vez estão trabalhando mais, os lares são desfeitos, os
pais se ocupam tanto com eles mesmos, com sua posição na soci-
edade, em conseguir mais dinheiro, mais refrigeradores, mais
carros, mais isto e mais aquilo, que não dispõem de tempo para
cuidar da segurança total da criança. Segurança é algo essencial
na vida, não apenas para você ou para mim, mas para todos. Tan-
to para aqueles que vivem nas favelas como para os que vivem
em palácios, a segurança é indispensável. De outra forma, o cére-
bro não funciona com eficiência, de modo saudável. Observe esse
processo. Eu preciso de segurança, preciso de comida, de roupas e
de abrigo; todos precisam disso. E se eu tiver sorte, poderei con-
seguir tudo isso. Mas a completa segurança psicológica é mais
difícil. Passo então a buscar segurança numa crença, numa convic-
ção, na nacionalidade, na família, ou na minha experiência, e
quando essa experiência, essa família, essa crença está ameaçada,
há o medo. Existe medo quando tenho que me defrontar com o
perigo psicológico, que é a incerteza, que é o encontrar-me com
algo que não conheço, com o amanhã. Então, há o medo. E existe
medo também quando eu me comparo com você, quando eu
acho que você é maior que eu.

[...] É fácil ver o que o medo faz a cada um de nós. Leva a


pessoa a contar mentiras, corrompe de diversas maneiras, torna a
mente vazia, rasa. Existem cantos escuros na mente que jamais
serão investigados e desnudados enquanto a pessoa tiver medo. A
autoproteção física, a ânsia instintiva de manter afastada a cobra
venenosa, de recuar do precipício, de evitar cair na frente de um
bonde, e assim por diante, é algo saudável, normal e útil. Mas eu
44
estou me referindo à autoproteção psicológica que faz a pessoa
ter medo da doença, da morte ou de um inimigo. Quando busca-
mos uma satisfação de qualquer natureza, seja através da pintura,
da música, de relacionamentos ou do que quer que seja, existe
sempre o medo. Sendo assim, o que importa é dar-se conta de
todo esse processo em você mesmo, observar, aprender acerca
dele, e não perguntar como ficar livre do medo. Quando você
quer apenas ficar livre do medo você encontra formas e meios de
fugir dele e, assim, você jamais poderá libertar-se do medo.
Se você considerar o que vem a ser o medo e como abor-
dá-lo, você verá que, para a maioria de nós, a palavra é mais im-
portante do que o fato. Tome, por exemplo, a palavra solidão. Por
essa palavra eu entendo a sensação de isolamento que nos atinge
de súbito, sem razão aparente. Não sei se isso já lhe aconteceu.
Embora cercado pela sua família, pelos seus vizinhos, embora
você possa estar caminhando ao lado de amigos ou num ônibus
lotado, de repente você se sente em completo isolamento. A par-
tir da lembrança dessa experiência, surge o medo do isolamento,
de ficar sozinho. Ou você está apegado a alguém que morre, e
agora você se vê sozinho, isolado. Tendo essa sensação de solidão,
você foge dela por meio do rádio, do cinema, ou você se volta
para o sexo, para a bebida, ou vai à igreja, adora a Deus. Quer
você vá à igreja ou tome um comprimido, isso é uma fuga, e todas
as fugas são, necessariamente, a mesma coisa.
A palavra solidão nos impede de obter uma completa
compreensão desse estado. A palavra, associada à experiência
passada, evoca o sentimento de perigo e cria medo; portanto,
tentamos fugir. Por favor, observe a você mesmo, como se esti-
vesse diante de um espelho, não se limite a me ouvir, e você verá
que a palavra tem um significado extraordinário para a maioria de
nós. Palavras como Deus, comunismo, inferno, céu, solidão, espo-
sa, família — que influência espantosa elas exercem sobre nós.
Somos escravos dessas palavras, e a mente escravizada
jamais ficará livre do medo.

45
[...] Existem os medos escondidos bem lá no fundo, medos
dos quais você não tem consciência, e os evidentes medos psico-
lógicos e físicos. Existe o medo da insegurança, de não conseguir
um emprego, ou de perder o emprego, das várias formas de gre-
ves que vêm ocorrendo, etc. Sendo assim, vivemos nervosos, as-
sustados por não termos total segurança física. E claro, mas por
quê? Será, talvez, devido ao nosso contínuo movimento de nos
isolarmos como nação, como família, como grupo? Será esse lento
processo de isolamento - os franceses isolando-se, os alemães
também, e assim por diante - será ele o responsável pela gradati-
va criação dessa nossa insegurança?

Sobre o medo

[...] O QUE DE FATO está acontecendo nos nossos relacio-


namentos? Nossos relacionamentos não constituem um auto-
isolamento? Não são todas as atividades da mente um processo
de salvaguarda, de busca de segurança, de isolamento? Não é
esse pensamento, que dizemos ser coletivo, um processo de iso-
lamento? Não é toda ação da nossa vida um processo de auto-
encerramento? Vocês podem vê-lo na sua vida diária, A família
tomou-se um processo de auto-isolamento e, sendo isolada, deve
existir em oposição. Assim, todas as nossas ações estão levando
ao auto-isolamento, que cria essa sensação de vazio; e, sendo
vazios, procuramos preencher o vazio com rádios, com barulho,
com tagarelices, com fofocas, com a leitura, com a aquisição de
conhecimento, com a respeitabilidade, o dinheiro, a posição social
e por aí afora. Mas tudo isso é parte do processo de isolamento e,
portanto, apenas reforça o isolamento. Assim, para a maioria de
nós, a vida é um processo de isolamento, de negação, de resistên-
cia, de ajustamento a um padrão; e, naturalmente, nesse processo
não há vida, havendo, por conseguinte, ema sensação de vacuida-
de, uma sensação de frustração. Claro que amar alguém é estar
em comunhão com essa pessoa, não num determinado grau, mas
46
completa, integral e profusamente; porém, nós não conhecemos
esse amor. Só conhecemos o amor como sensação — os meus
filhos, a minha mulher, a minha propriedade, o meu conhecimen-
to, a minha realização; e isso é novamente um processo de isola-
mento. A nossa vida, em todas as direções, leva à exclusão; ela é
um impulso de auto-isolamento da parte do pensamento e do
sentimento; às vezes conseguimos nos comunicar com o outro. Eis
por que existe esse enorme problema.

[...] Questionador: Como pode o homem realizar-se se


não tiver ideais?
Krishnamurti: Existirá a realização, embora a maioria de
nós a busque? Sabemos que tentamos nos realizar por meio da
família, do filho, do irmão, da mulher, da propriedade, da identifi-
cação com um país ou com um grupo, bem como por meio da
busca de um ideal ou do desejo de continuidade do "eu”. Há dife-
rentes formas de realização em diferentes níveis de consciência.
Existirá a realização? Qual a coisa que traz realização?
Qual a entidade que se busca ser, numa certa identificação ou por
meio dela? Quando vocês pensam em realização? Quando estão
buscando realização?

[...] K: será que duas mentes podem se encontrar? Não


são elas comparáveis a dois trilhos de estrada de ferro, que nunca
se encontram? Será que nosso relacionamento mútuo enquanto
seres humanos, mulher e marido e assim por diante, não é sem-
pre paralelo, cada qual caminhando em seu próprio trilho e nunca
encontrando-se de fato com o outro no sentido de ter um verda-
deiro amor pelo outro, ou mesmo no sentido do amor sem um
objeto?
MW: Bem, na prática, há sempre algum grau de separa-
ção.
K: Sim, isso é tudo o que estou dizendo.
MW: Se o relacionamento puder ocorrer num nível dife-
rente, não haverá mais trilhos separados por um espaço.

47
K: Claro, mas chegar a esse nível parece quase impossível.
Sou apegado à minha mulher, digo-lhe que a amo, e ela é apegada
a mim. Isso é amor? Eu a possuo, ela me possui ou ela gosta de
ser possuída, e assim por diante — todas as complicações do rela-
cionamento. Mas eu lhe digo, ou ela me diz “eu te amo”, e isso
parece nos satisfazer. Eu pergunto se há nisso algo de amor.
MW: Bem, isso deixa as pessoas tranquilas por algum
tempo.
K: E sentir-se tranquilo é amor?
MW: É uma coisa limitada; e quando um parceiro morre, o
outro fica desesperado.
K: Sim, com solidão, lágrimas, sofrimento. Realmente, te-
mos de conversar sobre isso. Conheci um homem para quem o
dinheiro era Deus. Ele tinha muito dinheiro e, quando estava à
morte, quis ver tudo quanto possuía. As coisas que ele possuía
eram ele; ele estava morrendo para essas coisas exteriormente,
mas as posses materiais eram ele. E ele estava assustado, não
com a situação de chegar ao fim, mas por perder aquilo tudo. O
senhor compreende? Perder aquilo tudo, não perder-se a si mes-
mo e encontrar algo novo.
MW: Posso fazer uma pergunta sobre a morte? Que dizer
de um homem que está à morte e quer ver todas as pessoas que
conheceu, todos os seus amigos, antes de morrer? Isso é apego a
esses relacionamentos?
K: Sim, é apego. Ele está moribundo e a morte é bastante
solitária, é um clube muito restrito, uma ação excludente. Nesse
estado, eu quero ver minha mulher, meus filhos, meus netos,
porque sei que vou perdê-los a todos; vou morrer, chegar ao fim.
E uma coisa terrificante. Um dia desses vi um homem morrendo.
Saiba que eu nunca tinha visto tanto medo, tal medo absoluto de
chegar ao fim. Ele disse: “Estou assustado com a separação da
minha família, do dinheiro que tenho, das coisas que fiz. Esta é a
minha família. Eu os amo e estou extremamente assustado por
perdê-los.”
MW: Mas suponho que o homem possa querer ver todos
os seus amigos e sua família para dizer...
48
K: “Adeus, meu velho, encontramo-nos do outro lado!” Is-
so é outra coisa.
MW: Talvez.
K: Conheci um homem, senhor, que disse à família: “Em
janeiro do ano que vem vou morrer no dia tal.” E, nesse dia, ele
convidou todos os amigos e a família. E disse: “Estou morrendo
hoje”, e fez o testamento. “Deixem-me, por favor.” Todos saíram
do quarto, e ele morreu!
MW: Sim, bem, se os relacionamentos com todas essas
pessoas eram importantes para ele e ele ia morrer, o homem sim-
plesmente gostaria de vê-los pela última vez, e agora acabou.
“Acabou, vou morrer.” Não era apego.
K: Não, claro que não. A consequência do apego é doloro-
sa, cheia de ansiedade; há uma certa sensação de agonia, de per-
da.
MW: De constante insegurança, de medo.
K: A insegurança e tudo o mais vêm disso. E a isso damos
o nome de amor! Eu digo que amo a minha mulher e, bem lá no
fundo, tenho conhecimento de toda a angústia desse apego, mas
não consigo me desapegar.
MW: Mas o senhor ainda fica aflito por saber que sua mu-
lher ficará triste quando o senhor morrer.
K: Ah, sim, faz parte do jogo, parte da coisa toda. Ela logo
supera isso e se casa com outro, e dá seguimento ao jogo.
MW: Sim, é o que se espera; mas podemos ficar preocu-
pados e temerosos com a tristeza de outras pessoas.
K: Sem dúvida.
MW: Presume-se que a aceitação da própria morte mino-
re a tristeza dessas pessoas.
K: Não. A tristeza está vinculada ao medo? Tenho medo
da morte, tenho medo de chegar ao fim da minha carreira; todas
as coisas que acumulei física e interiormente chegam ao fim. O
medo então inventa a reencarnação e todas essas coisas. Posso de
fato me livrar do medo da morte? O que significa: posso viver com
a morte? Não que eu cometa suicídio; vivo com ela, encantado
com o fim das coisas, o fim do meu apego. Será que minha mulher
49
aguentaria se eu dissesse “Acabei com o meu apego a você”? Ha-
veria agonia, estou questionando todo esse conteúdo de consci-
ência trazido pelo pensamento. O pensamento domina a nossa
vida, e eu pergunto a mim mesmo se o pensamento pode ter o
seu lugar próprio, e apenas esse lugar, não interferindo em ne-
nhum outro plano. Por que é preciso haver pensamento no meu
relacionamento com o meu amigo, ou com a minha mulher ou
com a minha filha? Por que é preciso pensar nisso? Alguém dizer
“Estou pensando em você” parece uma tolice.
MW: Bem, com efeito, muitas vezes se tem de pensar em
outras pessoas por razões práticas.
K: Isso é outra coisa. Mas estou dizendo: onde existe o
amor, por que deve existir o pensamento? O pensamento no rela-
cionamento é destrutivo. É apego, é posse, é depender do outro
para se sentir tranquilo, seguro, protegido; e essas coisas todas
não são amor.
MW: Não, mas como o senhor disse, o amor pode usar o
pensamento, e há o que o senhor chama de reflexão no relacio-
namento.
K: Sim, essa é uma outra questão. Veja bem: se sou ape-
gado à minha mulher, ao meu marido ou a um móvel, amo nesse
apego, e as consequências disso são incalculavelmente danosas.
Posso amar minha mulher sem apego? Como é maravilhoso amar
uma pessoa sem nada querer dela!
MW: É uma grande liberdade.
K: Sim, senhor. Logo, o amor é liberdade.
MW: Mas o senhor parece supor que, se houver amor en-
tre marido e mulher, e um deles morrer, o outro ficará triste.
Creio que isso talvez esteja certo.
K: Penso que sim. Está certo, senhor.
MW: A pessoa transcenderia o sofrimento.
K: O sofrimento é pensamento, é uma emoção; o sofri-
mento é um choque, é um sentimento de perda, a sensação de
perder alguém e de súbito se achar profundamente desolado e
solitário.

50
MW: Sim. O senhor afirma que um estado de solidão é
contrário à natureza, por assim dizer.
K: Portanto, se eu pudesse compreender a natureza do
fim — ficar o tempo inteiro fazendo algo chegar ao fim: acabar
com a minha ambição, acabar com o sofrimento, acabar com o
medo, acabar com a complexidade do desejo! Acabar; o que é a
morte. E necessário morrer todos os dias para tudo o que se reu-
niu psicologicamente.
MW: E todos concordam que a morte é liberdade.
K: É a verdadeira liberdade.
MW: Não há dificuldade em perceber isso. O senhor quer
dizer que quer transferir essa liberdade última para todos os as-
pectos da vida.
K: Sim, senhor. Do contrário, somos escravos, escravos da
escolha, escravos de tudo.
MW: Não senhores do tempo, mas escravos do tempo.
K: Sim, escravos do tempo.

[...] A sociedade diz que vocês têm de ser morais, e que a


moralidade é a família. A família se toma um empecilho quando se
confina a si própria; ou seja, a família é o indivíduo e o indivíduo
que é a família se opõe à multidão, ao coletivo, à sociedade; e
então começa todo o processo destrutivo. Logo, a virtude não tem
absolutamente nada que ver com a respeitabilidade. A virtude se
assemelha à flor que está florescendo; não se trata de um estado
que se alcance.

[...] Assim sendo, o amor não deve ser cultivado. Ele não
pode ser dividido em amor divino e amor físico; ele é só amor. E
não é que vocês amem a multidão ou o um; trata-se mais uma vez
de um absurdo perguntar: “Você ama a todos?” Vocês sabem,
uma flor perfumada não se preocupa em saber quem vai cheirá-la
ou quem lhe dará as costas. O mesmo sucede com o amor. O
amor não é uma lembrança, não é uma coisa da mente nem do
intelecto. Ele vem a existir naturalmente, na forma de compaixão,
quando todo esse problema da existência — o medo, a cobiça, a
51
inveja, o desespero, a esperança — tiver sido compreendido e
resolvido. O ambicioso não pode amar. Aquele que se apega à
família não tem amor. Nem tem o ciúme qualquer coisa que ver
com o amor. Quando diz “Eu amo minha mulher”, você não fala
sério, pois no momento seguinte tem ciúme dela.

[...] Questionador: O senhor falou do relacionamento ba-


seado no uso do outro para a gratificação pessoal de cada um, e
muitas vezes aludiu a um estado chamado amor. O que o senhor
designa por amor?
Krishnamurti: Sabemos o que é o nosso relacionamento
— uma mútua satisfação e uso, embora procuremos encobrir isso
dando-lhe o nome de amor. No uso, há ternura pelo que é usado
e salvaguarda sua. Salvaguardamos as nossas fronteiras, os nossos
livros, a nossa propriedade; do mesmo modo, temos o cuidado de
salvaguardar a nossa mulher, a nossa família, a nossa sociedade,
visto que, sem elas, nos sentiríamos solitários, perdidos. Sem o
filho, o pai se sente solitário; você espera que o filho seja aquilo
que você não é, de maneira que este se torna um instrumento da
sua vaidade. Conhecemos o relacionamento da necessidade e do
uso. Necessitamos do carteiro e ele de nós, mas nem por isso di-
zemos que o amamos. Dizemos, no entanto, que amamos nossa
mulher e nossos filhos, muito embora os usemos para a nossa
satisfação pessoal e estejamos dispostos a sacrificá-los pela vaida-
de de ser considerados patriotas. Conhecemos muito bem esse
processo e, evidentemente, ele não pode ser amor. O amor que
usa, explora e depois se lamenta não pode ser amor, porque o
amor não é uma coisa da mente.
[...] Quando vocês me usam como guru e eu os uso como
discípulos, há uma mútua exploração. Do mesmo modo, quando
vocês usam a mulher e os filhos para seu próprio avanço, há ex-
ploração. Isso por certo não é amor. Quando há uso, tem de haver
posse; a posse invariavelmente faz nascer o medo e, com ele, vêm
o ciúme, a inveja, a suspeita. Quando há uso, não pode haver
amor, porque o amor não é uma coisa da mente. Pensar numa
pessoa não é amá-la. Você só pensa na pessoa quando ela não
52
está presente, quando está morta ou quando ela não dá o que
você quer. Então, sua insuficiência interior desencadeia o proces-
so da mente. Quando a pessoa está perto, você não pensa nela;
fazê-lo nessas circunstâncias seria perturbar-se, e por isso você
considera a proximidade dela como um ponto absolutamente
pacífico — ela está ali. O hábito é um meio de esquecer e de ficar
em paz, destinado a evitar que se venha a ser perturbado. Assim,
o uso invariavelmente leva ao fechamento e à insensibilidade, e
isso não é amor.
[...] Vocês vão conhecer o amor quando a mente estiver
bem imóvel e livre de sua busca de satisfação e de fugas. Antes de
tudo, a mente tem de chegar ao fim absoluto. A mente é o resul-
tado do pensamento, e este é apenas uma passagem, um meio
para um fim. Quando a vida é somente uma passagem para algu-
ma coisa, como pode haver amor?
O amor começa a existir quando a mente se aquieta de
maneira natural, em vez de ser aquietada; quando ela percebe o
falso como falso e o verdadeiro como verdadeiro. Quando a men-
te está aquietada, tudo aquilo que acontece é ação do amor, não
é a ação do conhecimento. O conhecimento é mera experiência, e
a experiência não é amor. A experiência não pode conhecer o
amor. O amor passa a existir quando compreendemos o processo
de nós mesmos com um todo — e a compreensão de nós mesmos
é o começo da sabedoria.

Sobre o amor e a solidão


53
[...] Q: A FAMÍLIA é o esqueleto do nosso amor, da nossa
cobiça, do nosso egoísmo e divisão. Que papel desempenha ela no
esquema que o senhor propõe?

K: Não tenho nenhum esquema. Veja de que forma ab-


surda pensamos a vida! A vida é viver, é dinâmica, ativa; não se
pode colocá-la em um esquema. Os intelectuais a colocam em
esquemas e têm modelos para sistematizá-la: eu não tenho es-
quemas. Mas vejamos os fatos. Em primeiro lugar, existe o fato do
nosso relacionamento com o outro, seja com a mulher, com o
marido ou com o filho — o relacionamento a que damos o nome
de família. Vamos examinar “o que é” isso e não o que gostaría-
mos que fosse. Qualquer um pode ter ideias acerca da vida em
família; mas se a examinarmos, se observarmos e se compreen-
dermos o que ela é, talvez sejamos capazes de transformá-la. O
simples ato de cobri-la com o que não passa de um belo conjunto
de palavras — dando a isso o nome de responsabilidade, dever,
amor — nada disso tem sentido. Vamos examinar aquilo a que
damos o nome de família. Para compreender algo, é preciso exa-
minar “o que é” e não encobri-lo com uma série de frases de efei-
to.
O que é isso a que damos o nome de família? Obviamen-
te, é um relacionamento de intimidade, de comunhão. Bem, mas
existe comunhão na sua família, no seu relacionamento com a sua
esposa ou com seu marido? Sem dúvida, é isso o que entendemos
por relacionamento. Relacionamento significa a comunhão sem
medo, a liberdade de compreender o outro, de se comunicar de
forma direta. E, é óbvio, relacionamento significa isso — estar em
comunhão com o outro. E eu pergunto: vocês estão? Você está
em comunhão com sua mulher? Quem sabe, fisicamente, mas isso
não é relacionamento. Você e sua mulher vivem nos lados opostos
de um muro de isolamento, não é mesmo? Você tem os seus ob-
jetivos, as suas ambições, e ela tem os dela. Você vive atrás desse
muro e, de vez em quando, dá uma olhadinha por cima dele, e a
isso você chama de relacionamento. Você pode aumentá-lo, dimi-
nuí-lo, introduzir uma infinidade de novas e belas palavras para
54
descrevê-lo, mas o fato real é esse — você e o outro vivem em
isolamento, e a essa vida em isolamento damos o nome de relaci-
onamento. Quando existe um relacionamento verdadeiro entre
duas pessoas, e isso significa haver comunhão entre elas, as impli-
cações são enormes.
Não há isolamento, há amor e não responsabilidade ou
dever. As pessoas que se escondem atrás de seus muros são as
que falam em responsabilidade e dever. Mas um homem que ama
não fala de responsabilidade — ele ama. Portanto, ele divide com
o outro suas alegrias, suas dores, seu dinheiro. Nossas famílias são
assim? Existe comunhão direta com sua esposa, seus filhos? É
obvio que não. A família é, pois, uma mera desculpa para perpe-
tuar seu nome ou tradição, para que você tenha aquilo que dese-
ja, sexual ou psicologicamente. A família se transforma numa for-
ma de autoperpetuação. Esse é um tipo de imortalidade, de per-
manência. E, além disso, a família é usada como uma espécie de
gratificação. Lá fora, no mundo social ou da política, no mundo
dos negócios, eu exploro impiedosamente os outros; na minha
casa procuro ser gentil e generoso. Que Absurdo! Ou o mundo é
grande demais para mim e eu quero paz, e vou para casa. Eu sofro
no mundo, e vou para casa e tento achar consolo. Uso o relacio-
namento como meio de gratificação, o que significa que não que-
ro ser perturbado de modo algum.
Nas nossas famílias existe isolamento e não comunhão, e
portanto não existe amor. Amor e sexo são diferentes; discutire-
mos isso depois. Podemos desenvolver no nosso isolamento uma
forma de egoísmo, uma devoção, gentileza, mas permaneceremos
sempre atrás do muro, porque nos preocupamos mais com nós
mesmos do que com os outros. Se vocês estivessem preocupados
com os outros, em comunhão com seu marido ou esposa, e por-
tanto abertos para o próximo, o mundo não estaria nessa desgra-
ça. Eis por que famílias em isolamento são um perigo para a soci-
edade.
Então, pergunto; como romper este isolamento? Para fa-
zer isso, precisamos identificá-lo; é preciso não nos desvencilhar
dele nem afirmar que ele não existe. Existe; é um fato óbvio. Per-
55
ceba de que forma você trata sua esposa, seu marido, seus filhos;
perceba a dureza, a brutalidade, as afirmativas convencionais, a
falsa educação. Você pode afirmar que, se amasse sua mulher ou
marido, ainda assim teríamos este conflito, esta desgraça no
mundo? É porque você não sabe como amar sua mulher, seu ma-
rido, que não sabe como amar a Deus. Você quer Deus como uma
forma maior de isolamento, de segurança. Afinal de contas, Deus
é a mais completa segurança; mas não é a Deus que se busca e
sim um mero refúgio, um meio de fuga. Para encontrar Deus você
precisa aprender a amar, não a Deus, mas sim os seres humanos à
sua volta, as árvores, as flores, os pássaros. E, quando você tiver
aprendido a amá-los, você saberá o que na verdade é amar a
Deus. Sem amar o outro, sem saber o que é viver em completa
comunhão com o outro, você não pode estar em comunhão com a
verdade. Mas, veja, não pensamos em amor; não nos preocupa-
mos em viver em comunhão com o outro. Queremos segurança,
seja na família, na propriedade ou nas ideias; e enquanto a mente
continuar a buscar segurança jamais haverá amor. Pois o amor é o
que há de mais perigoso, porque quando amamos alguém, nos
tomamos vulneráveis, ficamos abertos; e não queremos ser aber-
tos e vulneráveis. Queremos estar enclausurados, mais à vontade
dentro de nós mesmos.
Promover uma transformação nos nossos relacionamen-
tos não é uma questão de leis, de compulsão segundo as escritu-
ras. Para transformar de forma radical o relacionamento, é preciso
começar por nós mesmos. Observe-se, veja como você trata a
esposa e os filhos. Sua esposa é uma mulher, e ponto final — ela
deve ser usada como capacho! Não acredito que você perceba o
estado catastrófico do mundo atual; caso contrário, você não tra-
taria o assunto de forma tão casual. Estamos à beira de um preci-
pício — moral, social e espiritual. Você não percebe, mas a casa
está em chamas e você continua morando nela. Se percebesse o
incêndio, ou soubesse que você está na beira de um precipício,
você agiria. Mas infelizmente você é complacente, medroso, tran-
quilo; vive aborrecido ou exausto, querendo satisfação imediata.
Você deixa tudo passar e, em consequência, a catástrofe mundial
56
se aproxima. Não se trata de mera ameaça; é um fato real. Na
Europa a guerra já começou — guerra, guerra, guerra, desintegra-
ção, insegurança. Afinal, o que afeta o outro afeta a você também.
Você é responsável pelo outro, e não pode fechar os olhos e dizer:
“Estou a salvo em Bangalore.” Obviamente, isso é sinal de uma
visão curta e de um pensamento estúpido.
A família toma-se uma ameaça quando existe isolamento
entre marido e mulher, entre pais e filhos, porque a família então
encoraja o isolamento geral; mas se os muros do isolamento se
quebrarem na família, você estará em comunhão não apenas com
sua esposa e filhos mas também com seu vizinho. A família não
viverá enclausurada, limitada; ela não será um refúgio, uma fuga.
O problema, portanto, não é dos outros, mas seu.

[...] Os seres humanos não podem continuar como estão,


matando-se uns aos outros, odiando-se mutuamente, dividindo-se
em países, em todas as atividades mesquinhas, pequenas, estrei-
tas e individualistas, porque isso é certeza de novas desgraças, de
mais confusão e de mais dor. Será possível enxergar a totalidade
da vida? Vida que é tal qual um enorme rio a deslizar incessante-
mente, sem descanso, com grande beleza, movendo-se porque
tem por trás dele um grande volume de água? Podemos ver a vida
assim, dessa forma total? Só enxergando de forma total podere-
mos compreender algo, mas isso não será possível enquanto exis-
tir uma atividade egocêntrica guiando, moldando a nossa ação ou
nossos pensamentos. É a imagem egocêntrica que se identifica
com a família, com a nação, com convicções ideológicas, partidos
— sejam eles religiosos ou políticos. E esse núcleo afirma que está
à procura de Deus, da verdade e de todo o resto, e isso impede a
compreensão da totalidade da vida como um todo. Para compre-
ender esse núcleo, para compreender o que ele realmente é, a
mente não pode estar atravancada com conceitos e convicções.
Eu preciso verdadeiramente saber o que eu sou, e não em teoria.
O que penso, o que sinto, as minhas ambições, cobiças, invejas, o
desejo de sucesso, de status, prestígio, minha cobiça, meus sofri-
mentos — tudo isso é o que eu sou. Posso pensar que sou Deus,
57
que sou algo diferente; mas isso é ainda parte do pensamento,
parte da imagem que se projeta através do pensamento. Assim, a
menos que você compreenda tudo isso, não segundo Sankara,
segundo Buda ou segundo quem quer que seja, a menos que você
veja realmente o que você é a cada dia — sua maneira de falar, de
sentir, de reagir, não apenas consciente mas também inconscien-
temente — a menos que você lance aí as bases, como poderá ir
longe? Mesmo que consiga ir longe, ainda assim isso será apenas
imaginação, fantasia, logro, e você será um hipócrita.

[...] Só quando não existirem nacionalidades, nem distin-


ções, como cristãos, budistas, hindus, muçulmanos, comunistas
ou capitalistas, deixará de haver guerras. Só quando o homem
abandonar suas crenças mesquinhas e seus preconceitos, a adora-
ção de sua própria família e todo o resto, haverá possibilidade de
paz no mundo. Essa paz só poderá ocorrer quando o mundo todo
estiver organizado, e ele não se organizará econômica ou social-
mente enquanto houver divisões. Isso significa que deve haver um
planejamento e uma linguagem universais — o que nenhum de
vocês quer. Mas, enquanto vocês continuarem com as suas cren-
ças, nacionalidades, deuses e gurus particulares, vocês estão fa-
dados a guerrear uns contra os outros. É como um homem que
finge que faz parte de uma fraternidade, quando na verdade ele
odeia as pessoas.

Sobre conflitos

58
[...] VOCÊS TÊM VIVIDO em pensamento; isto é, vocês
têm dado tremenda importância ao pensamento. Mas o pensa-
mento é antigo; o pensamento nunca é novo; o pensamento é a
continuação da memória. Se vocês viveram ali, obviamente existe
algum tipo de continuidade. E é uma continuidade que está mor-
ta, superada, acabada. É algo velho; apenas aquilo que acaba po-
de ter algo de novo. Desta forma, morrer é bastante importante
para se compreender; morrer, morrer para tudo o que se conhe-
ce. Não sei se alguma vez o tentaram. Libertar-se do conhecido,
libertar-se de suas recordações, ainda que por poucos dias, liber-
tar-se de seus prazeres, sem discussões, sem medos, morrer para
sua família, para sua casa, para seu nome, tornar-se completa-
mente anônimo. Apenas a pessoa que é completamente anônima
está em estado de não-violência, não possui violência. E assim
pode morrer a cada dia, não como uma ideia, mas realmente —
façam isso realmente alguma vez!

[...] Por que temos medo da morte, como acontece com


muitos? Do que temos medo? Por favor, observem os seus medos
sobre o que chamamos morte, medos de chegar ao fim dessa
batalha que chamamos vida. Temos medo do desconhecido, do
que pode acontecer; temos medo de deixar as coisas conhecidas,
a família, os livros, o apego à nossa casa e mobília, às pessoas que
nos cercam. Temos medo de perder as coisas conhecidas; e o co-
nhecido é este viver em sofrimento, dor e desespero, com ocasio-
nais lampejos de alegria. Essa batalha constante não tem fim; é
isso o que chamamos viver; é isso o que temos medo de perder.

[...] Por sermos apegados a tudo o que é conhecido, o que


tememos é o desaparecimento completo desse apego em suas
mais diversas formas: apego ao meu nome, apego à minha família,
ao meu trabalho, ao livro que escrevi, ao livro que pretendo es-
crever ou a uma concepção de Deus. A morte é o fim desse apego.
Certo? E vivendo em seu dia-a-dia você pode se libertar do apego,
e portanto incitar a morte? Compreende o que estou falando?
Compreenderam? Estou sendo claro? Quero dizer, estou apegado
59
ao meu livro, à minha reputação, à minha família, ao meu traba-
lho, ao meu orgulho, à minha vaidade, ao meu senso de honesti-
dade, ao meu senso de glória, ou ao que quer que cu esteja ape-
gado. A morte representa o fim deste apego. Mas posso terminar
imediatamente esse apego — o que é a morte? Dessa forma eu
trouxe a morte para o próprio momento de viver. Então não pode
haver medo. Quando a mente percebeu a verdade que há nisso —
que a morte é o fim de tudo aquilo a que você está apegado, quer
se trate de seus móveis, do seu voto, de seus ideais e assim por
diante — você trouxe esse fenômeno distante chamado morte
para a ação imediata da vida, ou seja, o desaparecimento total de
seus apegos. Portanto, a morte significa uma total renovação —
compreendem? — uma total renovação da mente que ficara presa
ao passado. Assim, a mente torna-se assombrosamente viva; não
está mais vivendo no passado.
Se a mente é capaz de agir dessa forma, e trata-se de uma
ação tremenda, de pôr fim completamente, dia após dia, a tudo
aquilo a que estamos apegados, a cada dia e a cada minuto você
estará vivendo com a vida e a morte juntas.
Disso resulta o problema: se você não for capaz de fazê-lo,
o que sucederá? Entendem? Meu filho não pode fazer isso, ou
meu amigo, meu irmão não pode fazer; você conseguiu mas eu
não. Você se aplicou, você é diligente, é atento, você entendeu
tudo isso radicalmente, profundamente; entendeu que você não
depende mais de nada. Acabar imediatamente com toda esta
dependência, com esse apego: eis a morte. Então o que sucede
aos que não penetram na inteligência, na excelência suprema
dessa ação?

[...] Não há nada psicológico construído pela geração pas-


sada que seja digno de ser mantido. Examine a sociedade, o mun-
do que a geração passada criou. Se alguém tentasse fazer o mun-
do mais confuso, mais miserável, não o poderia fazer. Você preci-
sa varrer tudo isso instantaneamente, jogar tudo na lixeira. E para
cortar fora tudo isso, para varrer tudo, para destruir tudo você

60
precisa compreender e precisa de algo ainda mais do que a com-
preensão. Uma parte dessa compreensão é a compaixão.
Percebem, nós não amamos. O amor surge apenas quan-
do não há nada, quando você negou o mundo todo — não esta
enormidade chamada “mundo”, mas o seu mundo, o pequeno
mundo no qual você vive —, a família, o apego, as brigas, a domi-
nação, o seu sucesso, as suas esperanças, as suas culpas, as suas
obediências, os seus deuses e os seus mitos. Quando você nega
todo esse mundo, quando absolutamente nada houver restado,
nem deuses, nem esperanças, nem desesperos, quando não mais
houver busca, então deste grande vazio surgirá o amor, que é
uma extraordinária realidade, que é um fato extraordinário não
conjurado pela mente, que tem continuidade com a família atra-
vés do sexo, através do desejo.
E se você não tiver amor — que é realmente o desconhe-
cido —, faça o que fizer, o mundo continuará sendo um caos.
Apenas quando você nega totalmente o conhecido — aquilo que
você sabe, suas experiências, seu conhecimento, não o conheci-
mento tecnológico mas o conhecimento das suas ambições, das
suas experiências, da sua família —, quando você nega completa-
mente o conhecido, quando você o varre para longe, quando mor-
re para tudo isso, você verá que existe um extraordinário vazio,
um espaço extraordinário na mente. E apenas esse espaço pode
saber o que é o amor. E apenas nesse espaço existe criação — não
a criação de crianças ou de colocar uma pintura numa tela, mas
aquela criação que é energia total, o incognoscível. Mas, para
atingir isto, você precisa morrer para tudo o que conheceu. E nes-
te morrer há grande beleza, há uma inesgotável energia de vida.

[...] Não sei se alguma vez tentaram ou experimentaram


isto: morrer sem esforço para tudo o que vocês conhecem, não
superficialmente, mas verdadeiramente, sem perguntar o que vai
acontecer amanhã. Se puderem fazer isso, chegarão a uma extra-
ordinária sensação de solidão, a um estado de vazio em que não
há o amanhã — e se vocês atravessarem isso, não haverá um de-
sespero árido. Muito pelo contrário!
61
Afinal de contas, a maioria de nós é terrivelmente solitá-
ria. Você pode ter uma ocupação interessante, pode ter família e
muito dinheiro, pode ter o amplo conhecimento de uma mente
cultivada; mas se você colocar tudo isto de lado quando estiver só
consigo mesmo, conhecerá esta extraordinária sensação de soli-
dão.

Sobre a vida e a morte



[...] PERGUNTA: O que é a sociedade?

Krishnamurti: O que é a sociedade? E o que é a família?


Examinemos, passo a passo, como a sociedade é criada, de que
modo ela passa a existir.
O que é a família? Quando você diz: “Esta é minha famí-
lia”, o que quer dizer? Seu pai, sua mãe, seu irmão e sua irmã, a
sensação de proximidade, o fato de que vocês estão vivendo jun-
tos na mesma casa, a sensação de que seus pais irão protegê-lo, a
posse de certa propriedade, de joias, de roupas — tudo isto é a
base da família. Há outras famílias como a sua vivendo em outras
casas, sentindo exatamente as mesmas coisas que você, tendo a
sensação de “minha esposa”, “meu marido”, “meus filhos”, “mi-
nha casa”, “minhas roupas”, “meu carro”; há muitas de tais famí-
lias vivendo no mesmo pedaço de terra, e elas passam a ter a im-
pressão de que não devem ser invadidas por outras famílias. En-
tão, elas passam a fazer leis. As famílias poderosas guindam-se a
posições elevadas, adquirem grandes propriedades, possuem
mais dinheiro, mais roupas, mais carros; elas se unem e organizam
leis, e dizem ao resto de nós o que fazer. Assim, gradativamente,
passa a existir uma sociedade com leis, regulamentos, policiais,
com um exército e uma marinha. Por fim, toda a Terra passa a ser
povoada por sociedades de vários tipos. Então, as pessoas passam
a ter ideias antagônicas e querem subverter os que estão estabe-
lecidos em altas posições, os que detêm todos os meios de poder.
Elas destroem essa sociedade específica e formam outra.
62
[...] Pergunta: Como podemos ser livres quando nossos
pais dependem de nós em sua velhice?

Krishnamurti: Porque eles são idosos, eles dependem de


você para sustentá-los. Então o que acontece? Eles esperam que
você ganhe o dinheiro que permita vesti-los e alimentá-los; e se o
que você quer é tornar-se carpinteiro ou artista, ainda que com
isso não ganhe dinheiro, eles dizem que não deve fazer isso, por-
que precisa sustentá-los. Pense um pouco nisso. Não estou dizen-
do que isso seja bom ou mau. Ao dizer que isso é bom ou mau,
pomos fim ao raciocínio. A exigência por parte de seus pais de que
você os sustente impede que você viva sua própria vida, e o fato
de viver sua própria vida será considerado egoísta; portanto, você
se torna escravo de seus pais.
Você talvez diga que o Estado deveria cuidar dos velhos
mediante pensões e vários outros meios de seguro social. Mas
num país superpovoado, com renda nacional insuficiente, falta de
produtividade e tudo o mais, o Estado não pode cuidar dos velhos.
Desse modo, pais idosos dependem dos jovens, e os jovens sem-
pre se ajustam na trilha da tradição e são, desse modo, destruí-
dos. Mas não me cabe discutir esse problema. Vocês todos devem
refletir a respeito e encontrar uma solução.
Eu naturalmente desejo dar apoio a meus pais dentro de
limites racionais. Mas suponha que eu também queira fazer algu-
ma coisa pouco lucrativa. Imagine que eu queira tornar-me religi-
oso e dedicar minha vida a procurar descobrir o que é Deus, o que
é a verdade. Esse tipo de vida, com certeza, não me trará nenhum
dinheiro, e se eu prosseguir nessa carreira, posso ter de abando-
nar a família — o que significa que ela provavelmente passará
fome, a exemplo de milhões de outras pessoas. Que fazer? En-
quanto eu tiver medo do que outras pessoas digam — que sou um
filho irresponsável, que sou um filho indigno - nunca serei um ser
humano criativo. Para ser alguém feliz e criativo preciso ter muita
iniciativa.

63
Pergunta: Seria digno de nossa parte permitir que nossos
pais passassem fome?

Krishnamurti: Você não está formulando isto da maneira


correta. Imagine que eu queira mesmo me tornar um artista, um
pintor, e sei que a pintura vai me render bem pouco dinheiro. Que
farei? Sacrificarei meu profundo impulso de pintar e tornar-me-ei
um funcionário? Isso é o que em geral acontece, não é? Torno-me
funcionário, e para o resto da vida, viverei em grande conflito,
sentindo-me angustiado; e porque estou sofrendo, frustrado,
infernizo a vida de minha esposa e de meus filhos. Mas se, como
jovem artista, vejo a significação de tudo isto, digo a meus pais:
“Desejo pintar e darei a vocês o que puder do pouco que tiver; só
posso fazer isso.”

O verdadeiro objetivo da vida


[...] NUMA DAS ÚLTIMAS cartas dissemos que a respon-


sabilidade total é amor. Esta responsabilidade não é em relação a
uma determinada nação, a um certo grupo, a uma comunidade, a
uma divindade particular, a qualquer forma de programa político,
ou a um “instrutor espiritual” ou “guru”, mas em relação a toda a
humanidade. É preciso sentir e compreender isto profundamente,
e isso faz parte da responsabilidade do educador.
Quase todos nós nos sentimos responsáveis pela nossa
família, pelos filhos, etc., mas não nos sentimos inteiramente im-
plicados e cheios de empenhamento em relação ao meio social,
em relação à natureza, ou totalmente responsáveis pelos nossos
atos. Este empenhamento absoluto é amor. Sem este amor não
pode haver uma verdadeira transformação na sociedade.

[...] Geralmente as pessoas são empenhadas, diligentes,


quando se trata do seu interesse pessoal, quer este se identifique
com a família, quer com um grupo particular, uma seita ou uma
64
nação. Este interesse egocêntrico traz consigo o germe da negli-
gência, embora haja uma constante preocupação consigo próprio.
Esta preocupação é limitada e é portanto negligência. Uma tal
preocupação é energia aprisionada dentro de estreitos limites.
O verdadeiro empenhamento liberta da preocupação ego-
cêntrica e é fonte de grande energia. Quando se percebe em pro-
fundidade a natureza da negligência, o empenhamento surge sem
qualquer esforço.

[...] A maior parte dos seres humanos é egoísta. Não tem


consciência do seu próprio egoísmo; é a sua maneira de viver. E se
alguém se apercebe de que é egoísta esconde-o com muito cuida-
do e ajusta-se ao padrão da sociedade, que é essencialmente ego-
ísta.
A mente egoísta é muito astuciosa. Esse egoísmo ou se
manifesta de uma forma aberta e violenta ou assume muitas ou-
tras formas. Se se trata de um político, o egoísmo procura o po-
der, a posição social, a popularidade; identifica-se com uma ideia,
com uma missão, e tudo “pelo bem público”. No tirano, expressa-
se por um domínio brutal. No homem com tendências religiosas,
toma a forma de adoração, de devoção, de adesão a uma crença,
a um dogma. Também se manifesta na família; o pai deixa-se levar
pelo egocentrismo nos vários aspectos da sua vida, e o mesmo
acontece com a mãe.[...] O egocentrismo começa na infância e
continua até à velhice.

[...] Torna-se cada vez mais urgente, se queremos sobrevi-


ver, que haja um espírito de cooperação com o universo, com
tudo o que vive, no mar e na terra.
Pode-se constatar, em todas as estruturas sociais, o efeito
destruidor da fragmentação atual — nação contra nação, grupo
contra grupo, família contra família, indivíduo contra indivíduo.
Acontece o mesmo nos aspectos religioso, social e econômico.
Cada um luta por si: pela sua classe, pelo seu grupo, ou pelos seus
interesses particulares na comunidade.

65
Esta divisão, derivada de crenças, de ideais, conclusões e
preconceitos, impede o desabrochar do espírito de cooperação.
Somos seres humanos, e não entidades tribais, exclusivamente,
separadas. Somos seres humanos prisioneiros de conclusões, de
teorias, de crenças. Somos criaturas vivas e não rótulos.

[...] Parece que somos incapazes de viver e de trabalhar


juntos em harmonia.
A que será devido este agressivo processo de isolamento?
Será porque o cérebro, o centro do nosso pensamento e da nossa
capacidade de sentir, ficou condicionado pela necessidade, desde
tempos antiquíssimos, para procurar a sua própria sobrevivência
pessoal? Será porque este processo de isolamento se identifica
com a família, se identifica com a tribo e se torna o tão glorificado
nacionalismo? Não estará todo este isolamento ligado a uma ne-
cessidade de identificação e de afirmação pessoal? A importância
do eu não terá sido cultivada, através da evolução, pela oposição
de eu e tu, de nós e eles?[...]

Carta às escolas

66
[...] NÃO TEMAIS o descontentamento; tratai, antes, de
entretê-lo, até que a centelha se converta em chama e vos vejais
perenemente descontentes com tudo: com vossos empregos,
vossas famílias, com a tradicional ânsia de dinheiro, de posição, de
poder. Assim começareis a pensar, a descobrir realmente. Mas,
quando fordes mais velhos, vereis quanto é difícil manter esse
espírito de descontentamento. Tereis filhos para sustentar, e as
exigências de vosso emprego deverão ser levadas em considera-
ção; a opinião de vossos vizinhos, da sociedade, influirá cada vez
mais em vossa vida, e, nessas condições, não tardareis a perder a
chama ardente do descontentamento.

[...] Pergunta: Quando estamos doentes, por que se afli-


gem tanto os nossos pais por nossa causa?

Krishnamurti: Os pais, em geral, têm interesse em olhar


pelos filhos, em cuidar deles, mas, quando se afligem demais, isso
indica estarem mais interessados em si próprios do que nos filhos.
Não querem ver-vos morrer, porque, dizem: "Se nosso filho ou
nossa filha morrer, que irá ser de nós?” Se os pais amassem os
filhos, sabeis o que aconteceria? Se vossos pais vos amassem re-
almente, cuidariam de que não tivésseis nenhum motivo para ter
medo, de que fosseis entes humanos sãos e felizes; cuidariam de
que não houvesse guerra nem pobreza no mundo, de que a socie-
dade não vos destruísse e aos que vos cercam — quer aldeões,
quer citadinos, quer animais. É por que os pais não amam verda-
deiramente aos filhos, que há guerras, que há ricos e pobres. Nos
filhos "empataram" a própria existência, por meio deles esperam
ter continuidade. Assim, se adoeceis gravemente e vossos pais se
afligem muito, o que os aflige é o sofrer deles próprios. Mas isso
eles nunca admitirão.
Posses, terras, nome, riqueza e família, constituem os
meios da continuidade individual, também chamada "imortalida-
de”; e quando algo acontece aos filhos, os pais ficam aterrados, e
grandemente aflitos, porque estão principalmente interessados
em si próprios. Se os pais estivessem realmente interessados em
67
seus filhos, a sociedade seria transformada da noite para o dia;
teríamos uma educação de diferente espécie, um lar diferente,
um mundo sem guerra.

[...] Muito importa compreender por que a mente humana


sente necessidade de exercer poder sobre outros. Os pais exer-
cem poder sobre os filhos, a mulher sobre o marido ou o marido
sobre a mulher. Da pequena família o mal se estende até tornar-
se tirania dos governos, dos líderes políticos e intérpretes religio-
sos. E pode uma pessoa viver sem essa fome de poder, sem dese-
jar influenciar nem explorar outros, sem desejar poder para si
própria, um grupo ou nação, um Mestre ou santo? Todas as for-
mas de poder são destrutivas e acarretam aflições ao homem. Ao
passo que ser verdadeiramente atencioso, bondoso, amar — eis
uma coisa extraordinária, que tem seu efeito próprio, eterno. O
amor "é sua própria eternidade’’, e onde há amor, não há poder
ruim.

[...] Não sei se em vossos passeios já notastes uma vala


longa e estreita, ao lado do rio. Pescadores a devem ter cavado, e
ela não está ligada ao rio. O rio, largo e profundo, está em cons-
tante fluir, mas aquela vala, segregada da vida do rio, só contém
água pútrida em que não podem viver peixes. São águas estagna-
das, enquanto o rio profundo, cheio de vida e pujança, prossegue
rápido o seu curso.
Não vos parecem assim os entes humanos? Cavam para si
próprios um pequeno fosso, à margem da célere corrente da vida,
onde ficam estagnados, a morrer; e a essa estagnação e deterio-
ração chamamos "existência”. Isto é, todos desejamos um estado
de permanência; queremos que certos desejos durem infinita-
mente, queremos prazeres sem fim. Cavamos um pequeno fosso
em que nos entrincheiramos com nossas famílias, nossas ambi-
ções, nossas "culturas”, nossos temores, nossos deuses, nossas
variadas devoções, e ali nos deixamos morrer, enquanto a vida
passa a nosso lado — aquela vida que é impermanente, que varia

68
constantemente, que é tão veloz, com tão prodigiosas profunde-
zas, tanta força e beleza!
Já não notastes, quando se está sentado tranquilamente à
margem do rio, que se pode ouvir o seu canto: o marulhar das
águas, o som da corrente que passa? Sente-se então a presença
de um movimento, movimento prodigioso em demanda de maio-
res amplidões e maiores profundezas. Mas, naquele pequeno
fosso, nenhum movimento existe: só água estagnada! E, se obser-
vardes, vereis que assim o quer a maioria de nós: uma existência
estagnada em pequenos fossos, à margem da vida. Dizemos que
essa existência estagnada é correta, e inventamos uma filosofia
para a justificar, criamos teorias sociais, políticas, econômicas e
religiosas, para protegê-la. E não desejamos ser perturbados, por-
que, como sabeis, o que nos interessa é o sentimento de perma-
nência.
Sabeis o que significa buscar a permanência? Significa de-
sejar que as coisas agradáveis durem eternamente, e as desagra-
dáveis terminem o mais rápido possível. Desejamos que nosso
nome se torne famoso e tenha continuidade em nossa família e
em nossos bens materiais; queremos o sentimento de permanên-
cia em nossas relações e atividades; e tudo isso significa que dese-
jamos uma existência duradoura, contínua, em nosso fosso estag-
nado; lá, não queremos verdadeiras mudanças e, assim, edifica-
mos uma sociedade que nos garante a permanência de nossos
bens, nosso nome, nossa fama.
Mas, vede, a vida de modo nenhum é assim; a vida não é
permanente. Como as folhas que caem da árvore, todas as coisas
são impermanentes, nada perdura; há sempre mutação e morte.
Já observastes uma árvore nua, desenhada contra o céu? Em seus
galhos bem delineados, em sua nudez, há um poema, uma can-
ção. Foram-se-lhe todas as folhas, e ela aguarda a primavera. Com
a vinda da primavera, de novo se enche a árvore da música de
suas folhas que, na estação própria, caem e são levadas pelo ven-
to. Assim também é a vida.
Mas nós não a queremos assim. Apegamo-nos a nossos fi-
lhos, nossas tradições, nossa sociedade e nossas insignificantes
69
virtudes, porque desejamos permanência; por isso é que temos
medo de morrer. Tememos perder as coisas que conhecemos.
Mas a vida não é como a desejamos; a vida em coisa nenhuma é
permanente. Os pássaros morrem, a neve derrete-se, as árvores
são abatidas pelo homem ou destruídas pelas tempestades, e
assim por diante. Mas, queremos que tudo aquilo que nos dá sa-
tisfação seja permanente; queremos que perdure a nossa posição,
a autoridade que sobre outros exercemos. Recusamo-nos a acei-
tar a vida como efetivamente é.
O fato é que a vida é como o rio: eternamente em movi-
mento, perenemente buscando, explorando, impelindo, transbor-
dando, penetrando todas as frestas com sua água. Mas, vede, a
mente não quer que assim aconteça. Percebe que é perigoso,
arriscado, viver num estado de impermanência, de insegurança e,
por conseguinte, constrói uma muralha em torno de si própria: a
muralha da tradição, da religião organizada, das teorias políticas e
sociais. Família, nome, bens materiais — tudo isso se encontra
atrás das muralhas, separado da vida. A vida, que é movimento,
impermanência, procura incessantemente penetrar, demolir essas
muralhas, atrás das quais só há confusão e angústia. Os deuses
que moram atrás das muralhas são falsos deuses, e suas escrituras
e filosofias sem significação, porque a vida as excede.
Ora, para a mente que não tem muralhas, que não está
pejada de aquisições, acumulações, conhecimentos, para a mente
que vive fora do tempo, na insegurança, para essa mente a vida é
uma coisa maravilhosa. Essa mente é a própria vida, porque a vida
não tem pouso. Mas, quase todos nós queremos um pouso, uma
pequena casa, um nome, uma posição, e consideramos muito
importantes estas coisas. Exigimos permanência, e criamos uma
"cultura” baseada nessa permanência, inventamos deuses que
não são deuses, mas, tão só, "projeções” de nossos próprios dese-
jos.
A mente que busca a permanência depressa se torna es-
tagnada; como a vala ao lado do rio, depressa se enche de corrup-
ção, deterioração. Só a mente que não tem muralhas, que não
tem ponto de apoio, não tem barreira, não tem pouso, que se
70
move, toda inteira, com a vida, eternamente ousando, exploran-
do, "explodindo” — só essa mente pode ser feliz, eternamente
nova, porque ela é essencialmente criadora.
Entendeis o que estou dizendo? Deveis compreendê-lo,
porque faz parte da verdadeira educação e, quando o compreen-
derdes, vossa vida será completamente transformada, vossas
relações com o mundo, com o próximo, com vosso esposo ou
esposa, terão significado de todo diferente. Já não tentareis, en-
tão, preencher-vos com coisa alguma, por que percebereis que a
busca de preenchimento só atrai sofrimento e desdita. Por essa
razão, deveis fazer perguntas aos vossos mestres sobre tudo isso,
e discuti-lo também entre vós. Se o compreenderdes, tereis co-
meçado a compreender essa verdade extraordinária que é a vida,
e nessa compreensão encontra-se grande beleza e amor, o flores-
cimento da bondade. Mas, os esforços da mente que busca um
fosso de segurança, de permanência, só podem conduzir à treva e
à corrupção. Uma vez instalada naquele fosso, a mente teme
aventurar-se fora dele, para buscar, explorar; mas a Verdade,
Deus, a Realidade — ou o nome que quiserdes — encontra-se
além dos limites do fosso.
Sabeis o que é religião? Não é o cântico, não é a execução
de puja ou outro ritual, não é adoração de deuses de lata ou ima-
gens de pedra; ela não se encontra nos templos e igrejas, nem na
leitura da Bíblia ou do Gita; não é a repetição de um nome sagra-
do ou o seguir de qualquer outra superstição inventada pelos
homens. Nada disso é religião.
Religião é o sentimento da bondade, daquele amor seme-
lhante ao rio — que é um movimento vivo, eterno. Naquele esta-
do, vereis chegar um momento em que não haverá busca de es-
pécie alguma; e esse findar da busca é o começo de algo total-
mente novo. A busca de Deus, da Verdade, o sentimento de se ser
integralmente bom (não o cultivo da bondade, da humildade,
porém o buscar, além das invenções e dos artifícios da mente,
uma certa coisa — e isso significa ser sensível a essa coisa, viver
nela, sê-la) isso é que é a verdadeira religião. Mas nada disso vos
será possível se não abandonardes o fosso que para vós mesmo
71
cavastes, e entrardes no rio da vida. A vida cuidará então de vós,
de uma maneira surpreendente, pois, de vossa parte, nada haverá
para cuidar. A vida, então, vos levará aonde lhe aprouver, porque
sereis uma parte dela; não haverá mais problemas concernentes à
segurança ou ao que "os outros” digam ou não digam. E esta é
que é a beleza da vida.

[...] Pergunta: Por que se encolerizam meus pais quando


digo que desejo seguir outra religião?

Krishnamurti: Em primeiro lugar, eles estão apegados à


sua própria religião, que consideram a melhor se não a única reli-
gião do mundo; por isso desejam, muito naturalmente, que tam-
bém a sigais. Além disso, querem-vos preso à maneira de pensar
deles, de seu grupo, de sua raça, de sua classe. Estas são algumas
das razões; e também, é bem de ver, se seguísseis outra religião,
vos tornaríeis uma fonte de aborrecimentos e de perturbações na
família.
Mas, que acontece, mesmo quando abandonais uma reli-
gião organizada para seguir outra? Isso não significa apenas mu-
dar-se para outra prisão? Enquanto a mente se mantém apegada
a uma crença, está cativa numa prisão. Se nascestes hinduísta e
vos tornais cristão, vossos pais poderão aborrecer-se, mas este é
um ponto secundário. O importante é perceberdes que, ingres-
sando noutra religião, adotais apenas um novo sistema de dogmas
em lugar do antigo. Podereis tornar-vos um pouco mais ativo, um
pouco mais isto ou aquilo, mas estais ainda na prisão da crença e
do dogma.
Portanto, não troqueis de religião, pois isso é apenas re-
voltar-se dentro da prisão, mas tratai de deitar abaixo os muros
da prisão e de descobrir por vós mesmo o que é Deus, o que é a
Verdade. Isto, sim, tem significação e vos dará enorme vitalidade,
energia. Mas, meramente passar de uma prisão para outra e dis-
putar sobre qual é a melhor prisão — isso é brincadeira infantil.
O libertar-se da prisão da crença requer uma mente ama-
durecida, uma mente refletida, uma mente que perceba a nature-
72
za da própria prisão, e não compare uma prisão com outra. Para
compreenderdes uma coisa, não podeis compará-la com outra. A
compreensão não vem da comparação, só vem quando examinais
a coisa em si. Se examinardes a natureza da religião organizada,
vereis que todas as religiões são essencialmente iguais — seja o
budismo, o hinduísmo, o maometismo, o cristianismo, seja o co-
munismo, que é outra forma de religião — a mais novinha. No
momento em que compreenderdes a prisão — quer dizer, perce-
berdes tudo o que está implicado na crença, nos ritos, nos sacer-
dotes, nunca mais pertencereis a religião nenhuma; porque só o
homem livre de crença pode descobrir aquilo que excede todas as
crenças, aquilo que é imensurável.
A cultura e o problema humano

73
[...] KRISHNAMURTI: Por que pensais tanto em vós mes-
mos? Vede o que está envolvido nisso. Pensar em si mesmo não é
apenas um caso corriqueiro, pensais em vós mesmos em relação a
outra pessoa com simpatia e antipatia; e pensais em vós mesmos
identificando-vos com outra pessoa — certo? Penso na pessoa
que acabo de deixar, ou na pessoa de que suponho gostar, ou na
pessoa com a qual briguei, ou na pessoa que amo. Identifiquei-me
com todas essas pessoas, não me identifiquei?
Pergunta: Que entendeis por “identificar-vos”?
Krishnamurti: Eu vos amo, identifico-me convosco. Ou eu
a magoei, identificais-vos com ela e zangais-vos comigo. Vede o
que aconteceu: eu disse a ela algo desagradável; sois amigo dela,
identificais-vos com ela e ficais com raiva de mim. Desse modo,
essa é uma parte da atividade egocêntrica, não é? Tendes certe-
za?
Pergunta: Mas não é a outra pessoa que se identifica con-
vosco?

74
Krishnamurti: É ou não é? Indaguemos. Gosto de vós, gos-
to muito de vós — que significa isso? Gosto da vossa fisionomia,
sois um bom companheiro, e assim por diante. Que quer dizer
isso?
Interrogante: Que sou melhor companheiro do que outras
pessoas e por isso gostais de estar comigo.
Krishnamurti: Aprofundai-vos um pouco mais. Que quer
dizer isso?
Pergunta: Conservais-me convosco e excluís outras pes-
soas.
Krishnamurti: Isso faz parte do todo, mas continuai.
Pergunta: É agradável estar comigo.
Krishnamurti: É agradável estar convosco e não é agradá-
vel estar com outra pessoa. Por isso meu relacionamento convos-
co se baseia no meu prazer. Se não gostar de vós, direi: “Vou-me
embora!” Meu prazer é minha preocupação, como minha mágoa,
minha raiva. Desse modo, preocupar-se consigo mesmo não é
apenas pensar em si e identificar-se com esta ou aquela posses-
são, pessoa ou livro. É o que fazeis o dia inteiro? Há a ocupação
periférica, e também me comparo convosco; isso acontece o tem-
po todo, mas partindo de um centro.
Interrogante: Ledes a respeito dos refugiados na Índia e,
embora não os conheçais pessoalmente, identificais-vos com eles.
Krishnamurti: Por que me identifico com essa gente, en-
xotada e morta do Paquistão Oriental? Vi-os outro dia na televi-
são; isso está acontecendo em toda a parte, não só no Paquistão,
é aterrador. Agora dizeis que vos identificais com todos os refugi-
ados — que é o que sentis?
Interrogante: Simpatia.
Krishnamurti: Vamos, esquadrinhai o assunto, desenre-
dai-o.
Interrogante: (1) Raiva das pessoas causadoras da situa-
ção.
Interrogante: (2) Frustração porque não posso fazer nada
a respeito.

75
Krishnamurti: Ficais com raiva das pessoas que fazem es-
sas coisas, que matam os jovens e escorraçam velhos e crianças. É
o que fazeis? Identificais-vos com isto e rejeitais aquilo. Qual é a
estrutura, a análise dessa identificação?
Interrogante: Dualística.
Krishnamurti: Continuai...
Interrogante: Não nos sentimos seguros.
Krishnamurti: Sentis, através da identificação, que pode-
ríeis fazer alguma coisa?
Interrogante: Mesmo tomando um partido sentimos que
podemos ter a oportunidade de fazer alguma coisa.
Krishnamurti: Sou anticatólico, identifico-me com um
grupo anticlerical. Identificando-me com esse grupo, sinto que
posso fazer alguma coisa. Mas continuai, ainda sou eu fazendo
alguma coisa, ainda é a ocupação comigo mesmo. Identifiquei-me
com o que considero maior: a Índia, o comunismo, o catolicismo,
etc. Minha família, meu Deus, minha crença, minha casa, vós me
magoastes — estais entendendo? Qual é a razão dessa identifica-
ção?
Interrogante: Separo-me do resto do mundo e, ao identi-
ficar-me com algo maior, esse algo passa a ser meu aliado.
Krishnamurti: Sim, mas por que o fazeis? Identifico-me
convosco porque gosto de vós. Não me identifico com ele porque
não gosto dele. E me identifico com minha família, com meu país,
com meu Deus, com minha crença. Ora, por que me identifico
com alguma coisa? — não digo que seja certo ou errado — que é
o que há por trás da identificação?
Interrogante: Confusão interior.
Krishnamurti: Será?
Interrogante: Tendes medo.
Krishnamurti: Continuai.
Interrogante: A confusão é causada pela identificação.
Krishnamurti: Será? Estou-vos interrogando e deveis in-
terrogar-me também. Não aceiteis o que digo, indagai. Todo esse
processo de identificação, por que acontece? E se não me identifi-

76
co convosco, ou com alguma coisa, sinto-me frustrado. Tendes
certeza?
Interrogante: (1) Não sei.
Interrogante: (2) Sentis-vos não realizado, vazio.
Krishnamurti: Prossegui. Sinto-me triste, frustrado, não
realizado, insuficiente, vazio. Agora quero saber por que me iden-
tifico com um grupo, com uma comunidade, com sentimentos,
ideias, ideais, heróis e todo o resto — por quê?
Pergunta: Não será para terdes segurança?
Krishnamurti: Sim. Mas que quereis dizer com a palavra
“segurança”?
Interrogante: Sozinho sou fraco.
Krishnamurti: Porque não podeis ficar só?
Interrogante: Porque tenho medo de ficar só.
Krishnamurti: Tendes medo de ficar só e por isso vos
identificais?
Interrogante: Nem sempre.
Krishnamurti: Mas é o centro, a raiz disso. Por que quero
identificar-me? Porque, identificando-me, me sinto seguro. Tenho
lembranças agradáveis de pessoas e lugares, por isso me identifi-
co com elas. Vejo na identificação que estou muito mais seguro.
Certo?
Interrogante: Não sei se desejais falar sobre esse aspecto
da questão, mas se eu vir que a matança no Vietnã está errada, e
um grupo de pessoas se manifestar contra a guerra em Washing-
ton, unir-me-ei a esse grupo.
Krishnamurti: Esperai um momento. Um grupo de pesso-
as é contra a guerra e eu me junto a ele. Identifico-me com ele
porque, ao identificar-me com um grupo que faz alguma coisa a
respeito disso, também estou fazendo alguma coisa; sozinho não
posso fazer nada. Mas pertencendo a um grupo que se manifesta,
que escreve artigos e diz “É terrível”, participo ativamente do
esforço para deter a guerra. Isso é identificação. Não estamos
procurando os resultados da identificação — bons ou maus. Mas
por que a mente humana deseja identificar-se com alguma coisa?
Pergunta: Quando é ação e quando é identificação?
77
Krishnamurti: Chegarei lá. Primeiro, quero esclarecer as
coisas para mim mesmo e, conversando sobre o assunto, desco-
brir por que devo identificar-me. E, quando for necessário, identi-
ficar-me-ei. Isto é, preciso primeiro compreender o que significa
cooperar. Depois, quando estiver cooperando, saberei quando
não cooperar. E não pelo processo inverso. Não sei se o percebeis.
Se eu souber o que está envolvido na cooperação, que é uma coi-
sa tremenda — trabalhar juntos, viver juntos, fazer coisas juntos
— se eu o souber, saberei quando não devo cooperar.
Agora quero saber por que me identifico com alguma coi-
sa. Não que eu não deva identificar-me quando há necessidade de
identificação na ação mas, antes de descobrir como agir, ou com
quem posso cooperar, quero descobrir o por quê dessa impulsão
para identificar-me. Para ter segurança? — será essa a razão?
Porque estais longe de vosso país, de vossa família, identificais-
vos com esta casa, com um grupo, para estar seguro, protegido. A
identificação ocorre porque sentis: “Aqui estou seguro.” Portanto,
o motivo que vos leva a identificar-vos é a insegurança. É isso
mesmo? Insegurança significa medo, incerteza, não saber o que
pensar, estar confuso. Necessitais de proteção — é bom ter pro-
teção. É por essa razão que vos identificais?
Qual é o passo seguinte? Intimamente estou incerto, pou-
co claro, confuso, amedrontado e insuficiente, portanto me iden-
tifico com uma crença. Muito bem, que acontece?
Interrogante: Descobris que continuais inseguro.
Krishnamurti: Não. Identifiquei-me com certas ideologias.
Que acontece então?
Interrogante: Tentais encontrar nisso a vossa segurança.
Krishnamurti: Dei várias razões para a identificação: por-
que é racional, é exequível, etc. Ora, que acontece depois que me
identifico?
Interrogante: Tendes um conflito.
Krishnamurti: Prestai atenção ao que acontece. Identifi-
quei-me com uma ideologia, com um grupo de pessoas, ou com
uma pessoa, isso agora faz parte de mim. Devo protegê-lo, não
devo? Portanto, se o objeto da minha identificação estiver amea-
78
çado, estarei perdido, voltarei à insegurança. E que acontece? Fico
com raiva de quem quer que o ataque ou duvide dele. Então, que
é mesmo que acontece?
Interrogante: Conflito.
Krishnamurti: Prestai atenção: identifiquei-me com uma
ideologia. Preciso protegê-la porque ela é minha segurança e re-
sistirei a toda e qualquer pessoa que a ameaçar, isto é, que tiver
uma ideologia contrária. Portanto, onde me identifiquei com a
ideologia haverá resistência, erguerei um muro em torno do que
identifiquei comigo mesmo. Onde há muro, há divisão. E onde há
divisão, há conflito. Não sei se vedes tudo isso.
Agora, qual é o passo seguinte? — continuai
Pergunta: (1) Qual é a diferença entre identificação e co-
operação?
Pergunta: (2) Não é preciso haver maior compreensão da
cooperação?
Krishnamurti: Sabeis o que significa cooperar, trabalhar
juntos? Poderá haver cooperação quando há identificação? Sabeis
o que queremos dizer com identificação? Já lhe examinamos a
anatomia. Cooperar quer dizer trabalhar juntos. Poderei trabalhar
convosco se me identifiquei com uma ideologia e vós vos identifi-
castes com outra? É evidente que não.
Pergunta: Mas as pessoas têm de trabalhar juntas.
Krishnamurti: Isso é cooperação?
Interrogante: Não.
Krishnamurti: Vede o que está envolvido. Por causa da
nossa identificação com uma ideologia, trabalhamos juntos, vós a
protegeis e eu a protejo. É a nossa segurança, em nome de Deus,
em nome da beleza, em nome de qualquer coisa. Pensamos que
isso é cooperação. Pois bem, que acontece? Pode haver coopera-
ção quando há identificação com um grupo?
Interrogante: Não, porque há divisão. Estou em conflito
com membros do grupo, porque continuo a identificar-me com
eles.

79
Krishnamurti: Vede o que está acontecendo. Vós e eu nos
identificamos com a ideologia. Nossa interpretação dela pode
ser...
Interrogante: ... diferente...
Krishnamurti: É claro. Se variar a vossa interpretação da
ideologia estareis aberrando, e nós entraremos em conflito. Por
conseguinte, precisamos ambos concordar inteiramente sobre
ela. Será isso possível?
Interrogante: É exatamente o que acontece com a escola.
Em lugar de uma ideologia, vós vos identificais com a escola e
cada pessoa tem seu próprio conceito.
Krishnamurti: É isso mesmo — e por quê?
Pergunta: Tenho a impressão de que, às vezes, há conflito
aqui pela mesmíssima razão que aduzistes ao falar da ideologia.
Se vós e eu nos identificamos com a escola, cuidamos estar coo-
perando, mas não existe esse espírito.
Krishnamurti: Por isso pergunto, pode haver cooperação
quando há identificação?
Interrogante: Não.
Krishnamurti: Sabeis o que estais dizendo? (Risos.) Assim
é que funciona tudo neste mundo. Será verdade — que onde há
identificação não pode haver cooperação? É uma coisa maravilho-
sa descobrir a verdade disso. Não a vossa opinião, nem a minha,
mas a verdade, a validade disso. Portanto precisamos descobrir o
que entendemos por cooperação. Vedes que não pode haver coo-
peração quando há identificação com uma ideia, com um líder,
com um grupo, etc. Então, que é cooperação em que não há iden-
tificação?
Interrogante: A ação em resposta à própria situação.
Krishnamurti: Não digo que não tendes razão, mas pode-
mos trabalhar juntos quando vós e eu pensamos de maneira dife-
rente? Quando vós vos preocupais convosco e eu me preocupo
comigo? E uma das razões é que, sabendo que não podemos coo-
perar quando estamos pensando em nós mesmos, procuramos
identificar-nos com uma ideologia, esperando dessa maneira pro-

80
vocar a cooperação. Mas se não vos identificardes, que é coope-
ração?
Estamos em Brockwood, numa escola. Vemos que não
pode haver cooperação quando há identificação com a escola,
com uma ideia, com um programa, com determinada política dis-
to ou daquilo. E vemos que a identificação é a causa de toda divi-
são. Então, que é cooperação? Trabalhar juntos: não “acerca de
alguma coisa”. Vedes a diferença? Portanto, antes de fazerdes
alguma coisa juntos, que é o espírito da cooperação? A ideia, a
interioridade dela, que ideia é essa?
Interrogante: A compreensão, a completa abertura em re-
lação a ela.
Krishnamurti: Aprofundai-vos um pouco mais. Dissemos
que identificação não é cooperação. Tendes absoluta convicção
disso? E estais inteiramente certos de que não pode existir coope-
ração quando cada um de nós se preocupa consigo próprio? Mas
vós estais preocupados convosco, portanto não tendes espírito de
cooperação, só cooperais quando vos agrada fazê-lo. Por conse-
guinte, que significa cooperar? Não estamos disputando jogos de
salão. Que significa cooperar quando não há “eu”? — pois de ou-
tro modo não podeis cooperar. Posso tentar cooperar em torno
de uma ideia, mas há sempre o “eu” que tenta identificar-se com
a coisa que estou fazendo. Por isso mesmo preciso descobrir por
que penso em mim o dia todo: que tal pareço, alguém está me-
lhor do que eu por que fulano me magoou, ou por que beltrano
disse, “Sois uma linda pessoa.” Ora, por que faço isso o dia intei-
ro? E à noite também, quando estou dormindo, o processo conti-
nua. Sou melhor do que vós, sei do que estou falando, é minha
experiência, sois estúpido, sou inteligente. Por quê?
Interrogante: Parece que grande parte disso se transmuda
em hábito.
Krishnamurti: Que é hábito?
Interrogante: É não dar tento das coisas.
Krishnamurti: Não. Que é hábito? — não quero saber co-
mo se forma.
Interrogante: A repetição de um movimento.
81
Krishnamurti: Certo. Por que há repetição de um movi-
mento? Por que se forma o hábito? Vereis algo extraordinário se
fordes devagar. Temos todos cabelos curtos ou compridos — por
quê? Porque os outros os têm assim.
Pergunta: Isso é hábito ou imitação?
Krishnamurti: Vede o que acontece. Primeiro imitais ou-
tros, depois dizeis que os cabelos curtos são quadrados.
Pergunta: O costume é um hábito também?
Krishnamurti: É. Não quero examinar o assunto muito de-
pressa. Toda atividade mental é um hábito. Não concordais?
Interrogante: Bem, é alguma coisa que fazeis muitas e
muitas vezes.
Krishnamurti: Continuai, vede o que podeis descobrir so-
zinhos, quando analisamos toda a questão do hábito.
Pergunta: É realmente uma situação com uma velha rea-
ção, não é?
Krishnamurti: Uma situação nova que enfrentamos com
velhas respostas. A identificação não é um hábito?
Interrogante: É.
Krishnamurti: Porque sois inseguros. Conheceis a nature-
za do mecanismo que contribui para o hábito? Tendes consciência
de que operais sempre por hábito? Levantar-vos às seis da manhã
todos os dias; acreditar em “tudo isso” ; fumar, não fumar, tomar
drogas — estais entendendo? Tudo se reduz ao hábito — de uma
semana, de dez dias, de cinquenta anos, mas o hábito está forma-
do. Por que cai a mente neste sulco? Não vos perguntastes por
que tendes um hábito? — visto que o hábito é mera tradição. Já
observastes vossa mente trabalhando por hábito?
Interrogante: (2) É mais fácil.
Interrogante: (2) É preciso realmente grande quantidade
de energia para viver sem hábitos.
Krishnamurti: Chegarei a esse ponto. Não salteis. Vamos a
passo. Pergunto a mim mesmo: por que a mente vive sempre pelo
hábito? Pensei nisso ontem, ainda estou pensando hoje e pensa-
rei amanhã — com pequenas modificações talvez. Ora, por que a
mente faz isso?
82
Interrogante: Porque estamos meio adormecidos.
Krishnamurti: Dissemos que a preguiça participa do pro-
cesso. Que mais? As coisas parecem mais fáceis com hábitos.
Interrogante: Receamos o desconhecido.
Krishnamurti: Quero aprofundar-me um pouco mais.
Interrogante: A mente receia que, se não mantiver o pen-
samento no mesmo rumo, ela própria venha a ser ameaçada.
Krishnamurti: E que quer dizer isso?
Interrogante: Que ela vê certa ordem no hábito.
Krishnamurti: O hábito é ordem?
Interrogante: Podeis formar uma estrutura com o hábito,
mas isso não é necessariamente uma ordem.
Krishnamurti: O que quer dizer que a mente funciona por
hábito, como uma máquina, por várias razões: é mais fácil, foge à
solidão, receia o desconhecido e supõe certa ordem dizer, “Segui-
rei isso e nada mais.” Ora, por que há de a mente cair no sulco do
hábito?
Interrogante: Essa é a sua natureza.
Krishnamurti: Mas, se responderdes dessa maneira, inter-
rompereis a indagação. Conhecemos as razões por que a mente
funciona por hábito. Tendes mesmo consciência disso? O psicopa-
ta tem um hábito que difere completamente de outros. O neuró-
tico tem certos hábitos. Condenamo-los, mas aceitamos outros.
Ora, por que há de a mente fazer isso? Quero aprofundar-me
ainda mais no assunto, quero ver por que ela o faz e saber se ela
pode viver sem o hábito.
Interrogante: Porque ela sente que é a personalidade.
Krishnamurti: Dissemos que a personalidade, o ego, o
“eu”, que diz, “Estou com medo, quero ordem”, a preguiça, tudo o
que é “eu” — são diferentes facetas do “eu”. Pode a mente viver
sem o hábito? — tirante os hábitos biológicos, o funcionamento
regular do corpo, que tem seu próprio mecanismo, sua própria
inteligência, sua própria maquinaria. Mas por que a mente aceita
o hábito tão depressa? A pergunta, “Pode ela viver sem o hábito?”
é tremenda. Dizer que há um Deus, um Salvador, é um hábito. E

83
dizer que não há Salvador, mas apenas o Estado, é outro. Portan-
to, a mente vive no hábito. Sentir-se-á mais segura nele?
Interrogante: Sim.
Krishnamurti: Vamos devagar. Que significa isso? O funci-
onamento no campo do conhecido proporciona uma sensação de
segurança. O conhecido é hábito — certo?
Interrogante: Mesmo assim, dizemos que não nos senti-
mos seguros.
Krishnamurti: Porque o conhecido pode mudar, pode ser
afastado ou acrescentado de alguma coisa. Mas a mente funciona
sempre no campo do conhecido, porque lá se sente segura. Assim
sendo, o conhecido, é o hábito, o conhecido é conhecimento —
isto é, o conhecimento da ciência, da tecnologia, o conhecimento
das minhas próprias experiências. E nisso há o hábito mecânico —
naturalmente. Agora pergunto: pode a mente afastar-se do co-
nhecido — não para o desconhecido, não sei o que isso quer dizer
— mas estar livre para afastar-se dos limites do conhecido?
Vede bem. Se eu souber tudo a respeito do motor de
combustão interna, poderei continuar fazendo experiências na
mesma direção, mas haverá um limite. Terei de encontrar algo
novo, será mister que haja outra maneira de criar energia.
Pergunta: A mente diria isso, se quisesse a segurança do
conhecido?
Krishnamurti: Não estou falando em segurança por en-
quanto.
Pergunta: Estais dizendo que é preciso haver falta de con-
tinuidade? Em tecnologia, para que aconteça alguma coisa nova, é
preciso que haja uma solução de continuidade.
Krishnamurti: Está certo. É o que acontece. De outro mo-
do, o homem não teria inventado o jato, encararia o problema de
modo diferente. Estais compreendendo tudo isso? Minha mente
trabalha sempre no campo do conhecido, do modificado, que é o
hábito. No relacionamento com seres humanos, em pensamento
— que é a resposta da memória e sempre dentro do campo do
conhecido — identifico-me com o desconhecido através do co-
nhecido. De sorte que pergunto: a mente precisa funcionar com o
84
conhecido porque, de outro modo, não poderíamos falar, mas
pode também funcionar sem o hábito?
Pergunta: A mente faz essa pergunta porque não tem êxi-
to ao agir fora do hábito?
Krishnamurti: Não estou pensando em êxito.
Pergunta: Mas que levaria a mente a fazer a pergunta?
Krishnamurti: Minha mente diz: “Isso não é suficiente-
mente bom, quero mais.” Ela quer mais, porém não o encontra no
campo do conhecido e só pode expandir esse campo.
Interrogante: Mas ela terá de compreender a limitação.
Krishnamurti: Eu compreendo, e digo a mim mesmo: Pos-
so funcionar no campo do conhecido, posso expandi-lo ou contraí-
lo, horizontalmente, verticalmente, de qualquer maneira, mas ela
estará sempre no campo do conhecido. Minha mente diz: eu o
compreendo perfeitamente. E, sendo curiosa, pergunta: pode a
mente viver, pode funcionar sem o hábito?
Pergunta: Essa é uma pergunta diferente?
Krishnamurti: Agora estou falando psicológica, interior-
mente. Pelo visto, toda a vida, toda a atividade mental da psique é
uma continuidade do hábito.
Pergunta: Há realmente um ímpeto ou alguma coisa...?
Krishnamurti: Estou criando um ímpeto. A própria mente
está criando o ímpeto para descobrir — não porque deseje desco-
brir o que quer que seja.
Pergunta: Este é um ponto muito delicado. Esta parece
ser a chave de alguma dificuldade. Por que — se me for permitido
perguntar — a mente afirma: vejo a necessidade de viver sem o
hábito psicológico?
Krishnamurti: Não vejo a necessidade, não estou postu-
lando coisa alguma. Estou dizendo apenas que vi a mente em ope-
ração no campo do conhecido — contraindo-o, expandindo-o,
horizontal ou verticalmente, ou reduzindo-o a nada, mas sempre
dentro daquela área. E minha mente pergunta, haverá um modo
de viver — não o conheço, nem sequer o postulo — em que não
haja hábito algum? Assim, voltamos atrás: sabeis em que estais
pensando o dia inteiro? Respondeis: sim, estou pensando em
85
mim, vaga, concreta ou sutilmente, ou da maneira mais requinta-
da, mas sempre em torno disso. Pode haver amor quando a men-
te está ocupada consigo mesma o tempo todo? Dizeis: “Não” . Por
quê?
Interrogante: Porque, se pensardes em vós mesmo o
tempo todo, não podereis...
Krishnamurti: Portanto, nunca podereis dizer “eu vos
amo”, enquanto não parardes de pensar em vós. Quando o ho-
mem se sente ambicioso, competitivo, imitativo, o que faz parte
do seu pensar em si mesmo, pode haver amor? Por isso precisa-
mos encontrar um jeito de viver sem o hábito. Mas o hábito pode
ser usado, o conhecido pode ser usado — não lhe chamarei hábito
— de maneira diferente, conforme as circunstâncias, a situação,
etc. Assim o amor é hábito? O prazer é hábito, não ó? — o amor é
prazer?
Pergunta: Que é o que entendeis por amor, senhor?
Krishnamurti: Não sei. Eu vos direi o que ele não é, e
quando este não estiver em vós, o outro estará. Atentai para isto:
onde houver conhecido, não haverá amor.
Pergunta: Por conseguinte, temos de descobrir primeiro o
que é o hábito e, depois, o não-hábito.
Krishnamurti: Já o descobrimos. Dissemos: o hábito é a
continuação da ação no campo do conhecido. O conhecido é o
amanhã. Amanhã é domingo, e sairei para um passeio de auto-
móvel — sei disso, já arranjei tudo. Posso dizer: “Amanhã, ama-
rei”?
Interrogante: (1) Não.
Interrogante: (2) Eu posso.
Krishnamurti: Que estais dizendo? “Eu vos amarei ama-
nhã”?
Interrogante: É o que prometemos.
Krishnamurti: Quereis dizer, na igreja? Isso significa que o
amor está dentro do campo do conhecido e, portanto, dentro do
tempo.
Pergunta: Mas, se amardes uma vez, podereis deixar de
amar de repente?
86
Krishnamurti: Amei-vos outrora, agora me entediais!
Pergunta: Se amais alguém hoje podeis amá-lo amanhã.
Krishnamurti: Como posso saber? Amo-vos hoje, mas co-
mo quereis ter a certeza de que vos amarei amanhã, prometo:
“Amar-vos-ei amanhã.”
Pergunta: Isso é outra coisa.
Krishnamurti: Estou perguntando: o amor tem um ama-
nhã? O hábito tem um amanhã porque continua. O amor é conti-
nuidade? O amor é identificação? — amo minha esposa, meu
filho, meu Deus? Por conseguinte, tendes de compreender deve-
ras — e não apenas verbalmente — todo o processo, a estrutura e
a natureza do conhecido, todo o seu campo interior, como funci-
onais sempre dentro desse campo, pensando desde esse campo.
Podeis captar o amanhã porque ele é projetado do conhecido.
Para compreendê-lo realmente, tendes de compreender tudo o
que dissemos; tendes de saber o que pensais e por que, e tendes
de observá-lo.
Interrogante: Podeis saber o que estais pensando, mas
nem sempre sabereis por que pensais.
Krishnamurti: Oh, sim, é muito simples. Quero saber por
que penso, por que me acode o pensamento. Ontem fui ao alfaia-
te e lá esqueci o relógio. À noite o procurei, pensei nele e disse:
“Como fui preguiçoso, como fui desatencioso, deixando-o ali,
dando trabalho” — tudo isso me passou pela cabeça.
Interrogante: Quando dissestes que foi desatenção de
vossa parte, vós vos estáveis identificando.
Krishnamurti: Não, esqueci o relógio. O que quer dizer
que eles terão o trabalho de cuidar dele, pois alguém poderá tirá-
lo, e eles serão os responsáveis, etc. Pensei nisso, e sei por que
todo esse momento de reflexão nasceu daquele incidente. Obser-
vei o fluxo de pensamentos; podeis conhecer o princípio e o fim
do pensamento — pareceis tão mistificados! — pensei nisso e
posso concluí-lo. Deixei lá o relógio e cuidei que poderia perdê-lo;
estava comigo havia muito tempo, eu o zelara. Seria capaz de dá-
lo, mas de perdê-lo, não. E ele está perdido! — acabado. Não pen-
sei mais nele. Agora é observar cada pensamento, dar tento dele!
87
Todo pensamento é importante para quem o penetra; pode ver-
se-lhe a origem e o fim — e não continuar indefinidamente.
Pergunta: E dizeis, senhor, que, se virdes por que se origi-
nou o pensamento, sereis capaz de ver-lhe o fim?
Krishnamurti: Não, esperai. Haverá um pensamento indi-
vidual separado de outro? Os pensamentos são todos separados
ou interligados? Que dizeis?
Interrogante: São interligados.
Krishnamurti: Tendes certeza?
Interrogante: Todos vêm uns dos outros.
Krishnamurti: Quando lhes compreendo a interligação, ou
quando compreendo o meio do qual vem todo pensamento...
Pergunta: Este é o ponto difícil.
Krishnamurti: Observar sem desejar a resposta significa
infinita vigilância — não impaciência — mas observai com cuida-
do, porque depois tudo se torna evidente. Se nós brigarmos, não
quero carregar a briga em minha mente, em pensamento, quero
acabar com ela. Vou procurar-vos e digo, “Sinto muito, eu não
quis fazer isso” — e tudo se acaba. Mas é o que faço? Tendes
aprendido muito hoje cedo? “Aprendido”, não, mas “aprenden-
do”: que é o que quer dizer aprender.
O começo do Aprendizado

88
[...] INTELECTUALMENTE estamos limitados e emocional-
mente somos inautênticos, deformados, cheios de sentimentalis-
mo, falsidade e hipocrisia. Assim, na vida perdemos toda a liber-
dade, exceto no sexo. Essa é provavelmente a única coisa livre
que se tem. E com ele anda o prazer, a imagem que o pensamento
cria acerca do ato, e ruminamos essa imagem, esse prazer, como
uma vaca mastiga repetidamente o alimento. É a única coisa que
se tem em que a pessoa se sente realmente livre como ser huma-
no. Em tudo o mais não se é livre, porque somos escravos da pro-
paganda, seja Protestante, Católica, Comunista, etc. E, faltando a
liberdade por todo o lado, apenas existe essa, que também não é
liberdade, porque se fica aprisionado pelo prazer e pela responsa-
bilidade desse prazer, que é a família. Mas se se amasse realmen-
te a família, se se amassem os filhos realmente, de todo o cora-
ção, pensam que se teria um único dia de guerra?

[...] Todas as nossas relações com outros seres humanos


— íntimas ou não — são baseadas na divisão e na separatividade.
O marido tem uma imagem da mulher e esta uma imagem do
marido. Essas imagens são construídas ao longo dos anos, através
do prazer e da dor, através da irritação, e tudo o resto— sabeis
como é a relação entre marido e mulher. Assim, essa relação é na
verdade uma relação entre duas imagens. Mesmo sexualmente —
exceto no ato — a imagem tem uma parte importante. Deste mo-
do, quando a pessoa se observa, vê que está constantemente a
construir imagens, no relacionamento, e portanto a criar divisão.
Por isso não há uma verdadeira relação. Embora se possa dizer
que se ama a família ou a mulher, a imagem existe, e portanto
não há relacionamento real. Relacionamento significa não só con-
tato físico mas também um estado em que psicologicamente não
há divisão.

[...] Interlocutor: Falou em ser-se responsável mas eu pos-


so não ser responsável pelo meu pensamento. Qualquer mudança
que eu queira fazer tem de ser feita com pensamentos e talvez eu

89
não seja responsável pelos meus pensamentos. Não posso esco-
lher aquilo que penso.

Krishnamurti: Que entendemos pela palavra “responsabi-


lidade”? E esse sentimento de responsabilidade será produto do
pensamento?
Interlocutor: Não é, ao mesmo tempo, sim.
Krishnamurti: Vejamos, será que o amor resulta do pen-
samento?
Interlocutor: Não.
Krishnamurti: Espere, pois. Vamos devagar. Então, se diz
que não, que lugar tem o pensamento quando se ama?
Interlocutor: isso pressupõe a minha compreensão do que
é o amor.
Krishnamurti: Reparemos então. Foi por isso que pergun-
tei se o amor é prazer: se é prazer, então resulta do pensamento.
Então o prazer pode ser cultivado indefinidamente — que é o que
nós fazemos. Mas o amor não pode ser cultivado. O amor, portan-
to, não é produto do pensamento. E quando há amor, o que é a
responsabilidade? Vamos sem pressa. Quando a responsabilidade
é baseada no pensamento e no prazer, então há o dever implica-
do nisso, e tudo o resto. Mas se o amor não é prazer — e tem de
se examinar isto com muito cuidado — então o amor — se posso
usar esta palavra — terá “responsabilidade” no sentido vulgar do
termo? Amo a minha família, portanto sou responsável por ela.
Será esse amor baseado no prazer? Se assim for, então essa pala-
vra “responsabilidade” adquire um sentido completamente dife-
rente: então a família é minha, possuo-a, dependo dela, devo
olhar por ela. Então sou ciumento, porque sempre que há depen-
dência, há medo e ciúme.
Assim, usamos esta palavra “amor” quando dizemos:
“Amo a minha família, sou responsável por ela”; mas quando se
observa um pouco mais de perto, veem-se crianças a serem trei-
nadas para matar, a serem educadas de maneira peculiar para
que sejam sempre capazes de “ganhar a vida”, de conseguir um

90
emprego, como se fosse esse o objetivo final da existência. Tudo
isso será então responsabilidade?
Interlocutor: Na realidade, não podemos ter vontade,
porque aquilo que queremos é determinado pelo nosso condicio-
namento.
Krishnamurti: Que é então a vontade ? Mas reparem que
estas questões precisam de ser bem explanadas, e as pessoas
estão a ficar maçadas ou têm de se ir embora. Seria melhor ficar-
mos por aqui.

[...] Interlocutor: Será que o homem tenta sempre possuir


o que lhe dá prazer?
Krishnamurti: Não é o que todos fazemos? Não deseja-
mos todos possuir aquilo que nos dá prazer — um quadro, uma
casa, uma mulher? E quando possuímos, por exemplo, uma peça
de mobiliário de que gostamos, somos esse móvel. E há sofrimen-
to implicado nessa posse, porque ela pode perder-se. É por isso
que nos apegamos ao marido, à mulher, à família. Tece-se um
círculo maravilhoso à volta da família, pondo-a em oposição ao
resto do mundo. Mas pergunta-se se a família não poderia existir
sem o círculo, sem o muro à volta. Aqueles de vós que têm família
deveriam experimentá-lo e ver o que acontece. Talvez então se
saiba o que é o amor e se veja com os próprios olhos a natureza
da mudança que o amor faz acontecer.

[...] Interlocutor: Disse ontem que se a pessoa se pudesse


libertar do círculo de que se rodeia a família, aconteceria uma
coisa extraordinária. Gostaria muito de compreender isso.
Krishnamurti: Antes de mais, cada pessoa estará consci-
ente — não verbalmente — de que há um muro à roda de si
mesma? Cada um de nós tem um muro à sua volta, um muro de
resistência, de medo e ansiedade — é o “eu” construído à minha
volta a fazer essa barreira; é este “eu” na família, cada membro da
qual está também rodeado pelo seu próprio muro. Depois, é toda
a família, com uma parede à sua volta, e o mesmo acontece com a
comunidade e a sociedade. Ora, estaremos nós conscientes disso?
91
Não temos nós o sentimento de que, vivendo neste mundo, isso é
necessário, de outro modo o “eu” seria destruído, assim como a
família? Desse modo, mantemos o muro, como a coisa mais sa-
grada. Ora, se tomarmos consciência disso, que acontece? Se fi-
zermos desaparecer completamente esse muro à volta de cada
um, à volta da família, será que a família acaba? Que acontece
então à competição entre o “eu”, a família, e o resto do mundo?
Sabemos muito bem o que se passa quando há um muro
— há então resistência, conflito, luta e sofrimento constantes,
porque qualquer movimento separativo, qualquer atividade ego-
cêntrica, gera de fato conflito e sofrimento. Quando se tem cons-
ciência de toda a natureza e estrutura deste círculo, deste muro, e
se compreende como ele surge — isto é, quando há um percebi-
mento imediato de tudo isto que sucede então ? Quando fazemos
desaparecer a divisão entre o “eu” e o “tu”, o “nós” e o “eles”,
que acontece? Só então e não antes, se pode talvez usar a palavra
amor. E o amor é que é essa coisa absolutamente extraordinária
que acontece quando não há “eu”, como o seu círculo com o seu
muro.

[...] Interrogante: Como é que as pessoas se tornam neu-


róticas?
Krishnamurti: Como é que sabemos que elas são neuróti-
cas? É uma pergunta muito séria, por isso reparemos bem. Como
é que sei que elas são neuróticas? Serei também neurótico por
reconhecer que elas o são?
Interlocutor: Sim.
Krishnamurti: Não diga que sim tão rapidamente! Vamos
olhar bem para isto, vamos escutá-lo, Que quer dizer neurótico?
Ser um pouco estranho, confuso, sem lucidez, ligeiramente dese-
quilibrado. E infelizmente quase todos somos ligeiramente dese-
quilibrados. Não? Não tem bem a certeza. Não somos desequili-
brados quando somos Cristãos, Hindus, Budistas, Comunistas,
etc.? Não somos neuróticos quando nos fechamos nos nossos
problemas, erguendo um muro à nossa volta porque pensamos
que somos muito melhores do que outro qualquer? Não somos
92
desequilibrados quando a nossa vida está cheia de resistência — o
“eu” e “tu”, o “nós” e “eles” e todas as outras divisões? Não so-
mos neuróticos no emprego quando queremos passar à frente do
outro?
Como é então que a pessoa se torna neurótica? Será a so-
ciedade que a faz neurótica? Essa é a explicação mais simples — o
meu pai, a minha mãe, o meu vizinho, o governo, o exército, toda
a gente me faz neurótico. São todos responsáveis pelo meu dese-
quilíbrio. E quando vou ao psiquiatra em busca de ajuda, pobre
homem, ele também é neurótico, como eu... Não riam, por favor,
é exatamente o que está a acontecer no mundo.
Ora por que é que me torno neurótico ? Tudo no mundo,
tal como existe agora, a sociedade, a família, os pais, os filhos —
não têm amor. Pensam que haveria guerras se tivessem amor?
Julgam que haveria governos que consideram perfeitamente certo
que as pessoas sejam mortas? Uma sociedade assim nunca existi-
ria se as mães e os pais amassem realmente os filhos, se quises-
sem o seu bem, se olhassem por eles e os ensinassem a ser bon-
dosos, a viver e a amar.
Essas são as pressões e as exigências exteriores que dão
origem a esta sociedade neurótica; há também impulsos e as
pressões dentro de nós mesmos, a violência inata que herdamos
do passado — tudo isso ajuda a criar esta neurose, este desequilí-
brio. O fato é portanto este — somos quase todos ligeiramente
desequilibrados, ou mais do que isso, e não adianta culpar seja
quem for. O fato é que psiquicamente não se é equilibrado —
mentalmente, sexualmente, de todas as maneiras, estamos dese-
quilibrados. Mas o importante é a pessoa tomar consciência disso,
saber que não é equilibrada, não “como” tornar-se equilibrada.
Uma mente neurótica não pode fazer-se equilibrada, mas se não
tiver chegado ao extremo da neurose, se ainda conservar algum
equilíbrio, é capaz de se observar a si própria. A pessoa pode en-
tão estar atenta ao que faz, ao que diz, ao que pensa, à maneira
como anda, como está sentada, como come, observando constan-
temente, mas sem corrigir.

93
Se se observar dessa maneira sem qualquer escolha, en-
tão, dessa observação profunda surgirá um ser humano são e
equilibrado; então não mais se será neurótico. Uma mente equili-
brada é sábia, e não moldada por juízos e opiniões. .
O mundo somos nós

[...] EM VERDADE, não amais vossa família, não amais vos-


sos filhos. Se os amásseis, com o coração, com o cérebro, lhes
daríeis uma educação diferente, não lhes ofereceríeis o que estais
oferecendo.
Que estais oferecendo à nova geração, que tendes vós pa-
ra oferecer-lhe? Já alguma vez considerastes o que vós, os da ve-
lha geração, tendes para oferecer aos mais jovens? Vossas cren-
ças? Eles estão vendo como sois hipócritas. Vossa rotina de todos
os dias? Negócios, política, exército, vossa moralidade social abso-
lutamente imoral? Qualquer jovem ou estudante inteligente recu-
sará tudo isso.

[...] Dizeis que amais vossa família. Sabeis o que significa


amar alguém? Pode um homem amar sua esposa e filhos se é
ambicioso, se, nos negócios, quer prosperar enganando seus se-
melhantes?
Por conseguinte, para descobrirdes o que é o amor, a ele
vos deveis chegar negativamente: não ser ambicioso. Se dizeis:
“Se eu não for ambicioso, serei destruído por este mundo” —
deixai-vos destruir; porque, afinal de contas, este é um mundo
estúpido, monstruoso, imoral. Se realmente desejais descobrir a
beleza, a verdadeira natureza do amor, deveis renegar toda a
moral cultivada pelo homem. O que tendes cultivado é a ambição,
a avidez, a inveja, a competição, o apego a vosso desprezível “eu”,
a vossa insignificante família. Vossa família sois vós mesmo. Estais
identificado com ela e, por conseguinte, amais a vós mesmo, não

94
a vossa família, a vossos filhos. Se de fato amásseis vossos filhos, o
mundo seria diferente, não haveria guerras. Assim, para desco-
brirdes o que é o amor, deveis afastar o que ele não é. Estais dis-
posto a isso? Ora, vós estais disposto a tudo, menos isso[...]
O novo ente humano

[...] TEMOS DE OLHAR a vida tal como é, ver esta intermi-


nável confusão e aflição, e a fuga desse estado para alguma su-
perstição religiosa ou o culto do Estado, ou para divertimentos de
várias espécies. Impende ver como fugimos para as neuroses —
pois uma neurose oferece uma extraordinária impressão de segu-
rança. O homem que crê é neurótico, e neurótico é também o que
adora uma imagem. Nestas neuroses encontra-se muita seguran-
ça. E a segurança não faz operar-se uma radical revolução em nós
mesmos. Para realizá-la, cumpre observar sem escolha, sem ne-
nhuma deformação causada pelo desejo, pelo prazer ou pelo me-
do. Temos de observar o que realmente somos, sem nenhuma
espécie de fuga. E não deis nome ao que vedes: observai-o, ape-
nas! Tereis então a paixão, a energia necessária ao observar, e
nesse observar verifica-se uma extraordinária transformação.
Que é o amor? A seu respeito muito se fala: amor a Deus,
amor à humanidade, amor à Pátria, amor à família; todavia, o
estranho é que esse amor anda acompanhado do ódio. Amais ao
vosso Deus e odiais o deus de outrem, amais vossa pátria, vossa
família, mas estais contra a família de outrem, a pátria de outrem.
E, cada vez mais, em todas as partes do mundo, o amor está sen-
do associado ao sexo. Não estamos condenando, nem avaliando,
nem tampouco julgando: estamos apenas observando o que de
fato está sucedendo, e, se souberdes observá-lo, essa observação
vos dará uma energia extraordinária.
Fora da violência

95
[...] POR QUE RAZÃO somos condicionados? Vemos as in-
fluências externas que nos estão condicionando e, interiormente,
a “voluntária necessidade” de sermos condicionados. Porque acei-
tamos tal condicionamento? Porque se deixou a mente condicio-
nar? Qual o fator que está atrás de tudo isso? Por que razão eu,
nascido num certo país, numa certa cultura, que me denomino
hindu, com toda a carga de superstição e tradição imposta pela
família, pela sociedade — por que razão aceito esse condiciona-
mento? Qual o impulso existente atrás disso? Qual o fator que
constantemente exige, aceita, cede ou resiste a esse condiciona-
mento? Vemos que desejamos estar em segurança, numa socie-
dade que está seguindo determinado padrão. Se não observamos
esse padrão, podemos perder nosso emprego, ficar sem dinheiro,
não sermos considerados entes humanos respeitáveis. Contra ele
nasce a revolta, e essa revolta forma o seu peculiar condiciona-
mento — como está acontecendo com a maioria dos jovens, hoje
em dia. Devemos descobrir esse impulso que nos faz ajustar-nos a
um padrão. A menos que, por nós mesmos, o descubramos, per-
maneceremos condicionados, de uma ou de outra maneira, posi-
tiva ou negativamente. Do nascimento à morte, vemos esse pro-
cesso continuamente em vigor. Pode uma pessoa revoltar-se con-
tra ele, buscar refúgio noutro condicionamento, recolher-se a um
mosteiro, como fazem certos indivíduos que devotam sua vida à
contemplação, à filosofia, mas o movimento é sempre o mesmo.
Que mecanismo é esse que se acha em constante movimento,
ajustando-se a diferentes formas de condicionamento?

[...] O medo é uma consequência da fragmentação. O


apego é uma consequência da fragmentação. E ver o apego e ten-
tar ser desapegado é um movimento resultante da fragmentação.
Tenho apego a minha família e descubro que esse apego causa
dor ou prazer. Se é doloroso, quero lutar contra ele, para dele me
libertar. Esse, como dissemos, é um movimento resultante da
fragmentação e, por conseguinte, dele não pode vir solução ne-
nhuma. Qual é a base, qual o mecanismo dessa fragmentação de
nossa vida? — fragmentação tanto interior como exterior: divisão
96
em diferentes nacionalidades, religiões, costumes? Com um des-
ses fragmentos esperamos chegar a uma síntese, ao estado de
integração, de esclarecimento, ou como quer que o chameis.
Isto é, por meio da fragmentação, esperais “produzir”
uma mente não fragmentária. Isso é possível?
A questão do impossível

[...] CADA ENTE HUMANO se isola numa pequena poça de


água, onde fica a deteriorar-se; nunca se lança à correnteza do rio.
De alguma maneira, aquele rio, tão poluído pelos entes humanos
que habitavam mais acima, era no meio tão límpido, azul verde, o
profundo. Um rio deslumbrante, principalmente de madrugada,
antes de nascer o Sol; tão sereno e remansoso, e cor de prata
fundida! E, ao surgir o Sol, por sobre as árvores, ele se tomava de
ouro, depois novamente uma faixa de prata; e então suas águas
se reanimavam.
Naquele quarto que dava para o rio o ar era fresco, quase
frio, pois estávamos no começo do inverno. Sentado à nossa fren-
te, um homem jovem com a esposa mais jovem ainda. Achávamo-
nos sentados sobre o tapete estendido num chão um tanto frio e
duro. Os dois não sentiam interesse em olhar o rio, e quando paia
ele lhes chamamos a atenção - sua largura, sua beleza, e a mar-
gem verde, do outro lado - corresponderam delicadamente. Vie-
ram de longe, do norte, de ônibus e de trem e estavam ansiosos
por conversar sobre os assuntos que tinham em mente; o rio po-
dia ficar para depois, quando houvesse tempo.
Disse ele: "O homem jamais pode ser livre; está preso à
família, aos filhos, ao emprego. Até morrer, tem responsabilida-
des. A menos, naturalmente", acrescentou, "que se torne sannya-
si, monge".
Ele via a necessidade de ser livre, entretanto achava ser
isso impossível de conseguir neste mundo cheio de competição e
brutalidade. A esposa o escutava com um ar meio surpreso, satis-

97
feita de ver que o marido era capaz de mostrar-se sério e de falar
inglês com desembaraço. Isso lhe dava uma certa sensação de
orgulho de propriedade. Disso ele estava completamente desper-
cebido, pois ela estava sentada um pouco para trás dele.
"Pode-se mesmo ser livre?", perguntou. "Alguns escritores
e teóricos políticos, tais os comunistas, dizem ser a liberdade coisa
burguesa, inatingível e irreal, enquanto no mundo democrático
muito se fala de liberdade. O mesmo fazem os capitalistas e, natu-
ralmente, todas as religiões a pregam, embora tenham cuidado
em aprisionar o homem em suas respectivas crenças e ideologias -
desmentindo com os seus atos; as suas promessas. Vim com o
propósito de descobrir, não apenas intelectualmente, se o ho-
mem, se eu sou realmente capaz de ser livre neste mundo. Tirei
uma folga de meu emprego para vir aqui; por dois dias estou livre
de meu trabalho - da rotina do escritório e da prosaica vida da
pequena cidade onde moro. Se eu tivesse mais dinheiro, seria
mais livre e teria a possibilidade de ir aonde quisesse e fazer o que
entendesse, pintar, talvez, ou viajar. Mas isso é impossível, por-
que meu ordenado é reduzido e eu tenho responsabilidades; sou
um prisioneiro de minhas responsabilidades."
A esposa não percebia tudo o que ele dizia, mas aguçou os
ouvidos à palavra "responsabilidades". Talvez perguntasse a si
mesma se ele não estaria com vontade de abandonar o lar e sair a
vagar pela face da terra.
"Estas responsabilidades", prosseguiu, "me impedem de
ser livre, tanto exterior como interiormente. É compreensível que
o homem não possa ficar completamente livre do mundo dos
correios, do mercado, do escritório etc., e não é aí que estou bus-
cando a liberdade. O que desejo descobrir é se existe alguma pos-
sibilidade de se ser livre interiormente."
Os pombos estavam arrulhando e esvoaçando na varanda
e os gritos dos papagaios entravam pela janela, e o Sol lhes fazia
luzir as verdes asas.
Que é liberdade? É uma ideia, ou sentimento que o pen-
samento cria por se ver envolvido numa série de problemas, ansi-
edades, etc.? A liberdade é um resultado, uma recompensa que se
98
encontra no fim de um certo percurso? É liberdade vos livrardes
da cólera? Há liberdade quando achamos que a responsabilidade
é uma carga e tratamos de livrar-nos dela? É liberdade resistir, ou
ceder? Pode o pensamento dar essa liberdade, pode ela ser facul-
tada por alguma ação?
"Parece-me que tendes de ir um pouco mais devagar".
Liberdade é o oposto de escravidão? Há liberdade quando
estais numa prisão e, sabendo que sois prisioneiro e conhecendo
as restrições de uma prisão, imaginais a liberdade? Pode a imagi-
nação dar liberdade, ou é ela uma fantasia do pensamento? O que
realmente conhecemos, e o que realmente existe, é a escravidão -
não só às coisas externas, ao lar, à família, ao emprego, mas tam-
bém interiormente, à tradição, aos hábitos, ao prazer de dominar
e de possuir, ao medo, ao êxito, e a tantas outras coisas. Quando
o êxito proporciona grande prazer, ninguém fala ou pensa em
libertar-se dele. Só falamos em liberdade quando há dor. Estamos
escravizados a todas essas coisas, tanto interiormente como exte-
riormente, e essa escravidão é o que é. A resistência ao que é - é o
que chamamos liberdade. Resistimos ou fugimos ao que é, ou
procuramos suprimi-lo, esperando que assim alcançaremos uma
certa forma de liberdade. Interiormente, só conhecemos duas
coisas: escravidão e resistência; e a resistência cria a escravidão.
"Desculpai-me, não estou entendendo."
Quando resistis à cólera ou ao ódio, o que foi que real-
mente sucedeu? Construístes um muro contra o ódio, mas o ódio
continua existente; o muro está apenas a escondê-lo de vós. Ou
vos determinais a não irritar-vos, mas essa própria determinação
faz parte da cólera, essa própria resistência dá mais força à cólera.
Podeis ver esse fato em vós mesmo, se o observardes. Quando
resistis, controlais, reprimis ou procurais transcender uma coisa -
tudo isso vem a dar no mesmo, porque todos esses atos provêm
da vontade - tornastes mais espesso o muro da resistência e, as-
sim, vos tornastes mais escravo, mais estreito, mais insignificante.
E é dessa insignificância, dessa estreiteza que vos quereis libertar,
sendo esse próprio desejo a reação que irá criar outra barreira - e
mais insignificância. Dessa forma, ficamos a mover-nos de uma
99
resistência, de uma barreira para outra - às vezes dando ao muro
de resistência um colorido diferente, uma diferente qualidade, ou
designando-o com uma palavra nobilitante. Mas, resistência é
escravidão, e escravidão é dor.
"Quer isso dizer que, exteriormente, devemos deixar que
os outros nos deem pontapés à vontade, e, interiormente, soltar
as rédeas à nossa cólera, etc?."
Está parecendo que não escutastes o que se esteve dizen-
do. Quando se trata de prazer, gostais do "pontapé" (dos seus
efeitos estimulantes), da deleitável sensação que experimentais,
mas quando o "pontapé" dói, então resistis. Quereis estar livre da
dor e ao mesmo tempo conservar o prazer. Conservar o prazer
significa resistência.
É natural reagir; se não reagimos fisicamente à picada de
um alfinete, isso significa que estamos entorpecidos. Interiormen-
te, também, se não reagimos, há algum desarranjo. Mas a manei-
ra como reagimos e a natureza da reação são importantes, e não a
própria reação. Quando alguém vos lisonjeia, "reagis"; e reagis
quando alguém vos insulta. Ambas as reações são resistências -
uma de prazer e a outra de dor. Uma tratais de conservar, e a
outra ou a desprezais ou dela desejais desforrar-vos. Mas ambas
são resistências. Tanto o conservar como o rejeitar são formas de
resistência; e liberdade não é resistência.
"Tenho possibilidade de reagir sem a resistência de prazer
ou de dor?"
Que pensais vós, senhor? Que sentis vós? Estais fazendo
essa pergunta a mim ou a vós mesmo? Se um estranho, um agen-
te externo, responde a essa pergunta em vosso lugar, ficais então
na dependência dele e essa dependência se torna uma autorida-
de, uma resistência. E então, mais uma vez, desejais ficar livre
dessa autoridade! Assim, como podeis fazer a outrem tal pergun-
ta?
"Poderíeis chamar-me a atenção para o fato, e, se eu o
percebesse, não haveria nisso autoridade alguma, não achais?"

100
Mas eu já vos chamei a atenção para o que realmente é.
Vede o que é sem reação de prazer ou de dor. Ver é ser livre. Só
se pode ver, em liberdade.
"Esse ver pode ser um ato de liberdade, mas que efeito
pode ter na minha escravidão, ou seja aquilo que é, a coisa vista?"
Dizendo que o ver "pode ser um ato de liberdade", estais
apresentando uma suposição e, portanto, o vosso ver é também
uma suposição. Não se está vendo, então, o que é.
"Não sei, senhor, vejo minha sogra irritar-se contra mim;
ela para com isso, só porque eu o vejo?"
Tratai de ver os atos de vossa sogra e de ver as vossas rea-
ções, sem reações adicionais de prazer e de dor. Vede-o em liber-
dade. Vossa ação pode então consistir em não ligar importância
ao que ela diz ou em sair para a rua. Mas o "sair para a rua" ou o
"não ligar importância" a ela, não é um ato de resistência. Esse
percebimento sem escolha é liberdade. A ação proveniente dessa
liberdade não pode ser prevista, sistematizada, encaixada num
padrão de moralidade social. Esse percebimento sem escolha é
apolítico, não pertence a nenhum 'ismo'; não é produto do pen-
samento.
A outra margem do caminho

101
[...] INTERROGANTE: Tive o hábito de tomar drogas, mas
dele já me libertei. Porque tenho tanto medo de tudo? De manhã,
desperto paralisado de terror. Mal posso erguer-me do leito; te-
nho medo de sair de casa e tenho medo de ficar em casa. Subita-
mente, quando estou a dirigir o meu carro, esse medo se apodera
de mim; passo o resto do dia a suar, nervoso, apreensivo e à noite
estou completamente exausto. Por vezes, embora isso muito ra-
ramente aconteça, quando em companhia de amigos íntimos ou
em casa de meus pais, perco este medo; sinto-me então tranquilo,
feliz, livre de toda tensão. Quando vinha hoje para cá, senti medo
de ver-vos, mas, enquanto percorria o drive e ao dirigir-me à por-
ta, perdi repentinamente o medo e agora, sentado aqui, nesta
sala aprazível e tranquila, sinto-me tão feliz que nem sei de que é
que estava com tanto medo. Não sinto mais medo nenhum. Posso
sorrir e dizer sinceramente: Folgo muito em ver-vos! Mas, não
posso permanecer aqui para sempre e sei que, quando me for
embora, de novo me envolverá a nuvem do medo. Eis o problema
que estou enfrentando. Já consultei não sei quantos analistas e
psiquiatras, aqui e no estrangeiro, mas o que eles fazem é só
exumar memórias de minha infância; disso estou farto, porque o
medo não desapareceu, absolutamente.
Krishnamurti: Deixemos de parte as memórias da infância
e outras futilidades, e vamos ao presente. Aqui estais, e dizeis que
já não sentis medo; por ora, vos sentis feliz e mal podeis imaginar
aquele medo que estivestes sentindo. Porque não o sentis agora?
Esta sala tranquila, clara, bem proporcionada, mobiliada com gos-
to, e o serdes recebido amistosamente - é por isso que não tendes
medo agora?
Interrogante: Em parte. Talvez seja também por causa de
vossa pessoa. Já vos ouvi na Suíça, e já vos- ouvi aqui, e sinto por
vós uma certa e profunda amizade. Mas, não quero depender de
casas bonitas, de atmosferas acolhedoras e de bons amigos, para
não sentir medo. Ao visitar meus pais, tenho este mesmo senti-
mento confortante. Mas, em casa é terrível; todas as famílias são
terríveis, com suas atividades insignificantes e isoladas, suas bri-
gas, suas banalidades e hipocrisia. De tudo isso estou farto. Toda-
102
via, quando visito os meus e há uma certa cordialidade, sinto-me,
deveras, temporariamente livre deste medo. Os psiquiatras não
podem explicar-me a razão dele. Chamam-no um "medo flutuan-
te". Ele é como um abismo tenebroso e sem fundo. Já gastei gran-
des somas de dinheiro e de tempo com análises que, em verdade,
não serviram para nada. Que devo fazer?
Krishnamurti: Será que, sendo uma pessoa sensível, ne-
cessitais de um certo abrigo, uma certa segurança e, não conse-
guindo encontrá-la, sentis medo deste mundo brutal? Sois sensí-
vel?
Interrogante: Sim, creio que sim. Talvez não o seja na vos-
sa maneira de entender, mas sou sensível. Não gosto do barulho,
da agitação, da vulgaridade desta existência moderna, da maneira
como o sexo é posto em evidência, hoje em dia, em toda parte
aonde vamos, e da competição para obter-se um emprego detes-
tável e insignificante - o que não significa que eu seja incapaz de
lutar para conquistar um lugar para mim também, mas essa luta
me põe doente de medo.
Krishnamurti: A maioria das pessoas sensíveis têm neces-
sidade de um refúgio tranquilo, de uma atmosfera cordial, amigá-
vel. Ou eles a criam para si próprios ou ficam dependendo de ou-
tros que lhe podem dar - da família, da esposa, do marido, do
amigo. Tendes algum amigo desses?
Interrogante: Não. Tenho medo de ter um amigo desses.
Tenho medo de ficar dependendo dele.
Krishnamurti: Eis, pois, a questão: Uma pessoa é sensível,
necessita de um certo abrigo, e depende de outros para o obter.
Sensibilidade e dependência são duas coisas que, muitas vezes,
andam juntas. E depender de outra pessoa é ter medo de a per-
der. Fica-se, assim, dependendo mais e mais, e o medo cresce
proporcionalmente à dependência. Um círculo vicioso. Já investi-
gastes porque dependeis? Nós dependemos do carteiro, do con-
forto físico, etc.; isto é bem simples. Dependemos de pessoas e
coisas para nosso bem estar físico e nossa sobrevivência, isto é
perfeitamente natural e normal. Temos de depender disso que se
pode chamar "o lado orgânico da sociedade". Mas, dependemos
103
também psicologicamente e essa dependência, embora confor-
tante, gera medo. Porque dependemos psicologicamente?
Interrogante: Estais agora a falar-me de dependência,
mas eu vim para conversarmos sobre o medo.
Krishnamurti: Examinemos ambas as coisas, porque, co-
mo veremos, elas estão relacionadas uma com a outra. Objetais a
que tratemos de ambas? Estávamos falando de dependência - que
é dependência? Porque dependemos psicologicamente de outra
pessoa? A dependência não é a negação da liberdade? Tirem-se-
lhe a casa, o marido, os filhos, as posses - que é um ente humano,
se tudo isso lhe é retirado? Em si próprio, ele é insuficiente, vazio,
sem rumo. Assim, por causa desse vazio, de que tem medo, ele
depende de posses, pessoas e crenças. Podeis sentir-vos tão segu-
ro das coisas de que dependeis que não possais imaginar a possi-
bilidade de perdê-las - o amor de vossos filhos, e o conforto que
ele proporciona. Todavia, o medo continua existente. Portanto,
deve ficar-nos bem claro que qualquer forma de dependência
psicológica gera inevitavelmente medo, ainda que as coisas de
que dependemos possam parecer-nos quase indestrutíveis. O
medo se origina dessa insuficiência interior, dessa pobreza e vazio
interiores. Assim, estais vendo que temos agora três questões: a
sensibilidade, a dependência e o medo? Três coisas relacionadas
entre si. Consideremos a sensibilidade: Quanto mais sensível a
pessoa (a menos que saiba ser sensível sem dependência, saiba
ser vulnerável, sem angústia), tanto mais depende. Agora, a de-
pendência: Quanto mais a pessoa depende, tanto maior o seu
desprazer e a necessidade de libertar-se. Essa necessidade de
liberdade dá mais força ao medo, porque é uma reação, e não
libertação da dependência.
Interrogante: E vós - dependeis de alguma coisa?
Krishnamurti: Decerto, fisicamente dependo de alimenta-
ção, roupas e morada, mas, psicologicamente, interiormente, não
dependo de coisa alguma - nem de deuses, nem da moralidade
social, nem de crenças, nem de pessoas. Mas, não é relevante
saber se eu sou ou não sou dependente. Portanto, continuemos.
O medo é o percebimento de nosso vazio, de nossa solidão e po-
104
breza interiores, e de não haver possibilidade de fazermos alguma
coisa a tal respeito. O que nos interessa aqui é só esse medo que
gera a dependência e, por sua vez, é aumentado pela dependên-
cia. Se compreendemos o medo, compreendemos também a de-
pendência. Portanto, para compreendermos o medo, é indispen-
sável a sensibilidade, para descobrirmos, percebermos como ele
se origina. Se o indivíduo é suficientemente sensível, torna-se
cônscio de sua medonha vacuidade - desse abismo sem fundo que
não se pode encher com o vulgar entretenimento das drogas, nem
com o entretenimento das igrejas ou das diversões sociais; nada o
preencherá. Sabendo-se disso, cresce o medo. Este nos impele à
dependência, a esta dependência torna-nos cada vez mais insen-
síveis. E, vendo que assim é realmente, sentimos medo. A ques-
tão, pois, agora, é de ultrapassarmos esse vazio, essa solidão, e
não de aprendermos a depender de nós mesmos, ou de disfar-
çarmos permanentemente o nosso vazio.
Interrogante: Por que dizeis que a questão não é de de-
pendermos de nós mesmos?
Krishnamurti: Porque, dependendo de vós mesmo, per-
deis a sensibilidade; vos tornais endurecido, indiferente e "fecha-
do". Viver sem dependência, ultrapassar a dependência, não signi-
fica tornar-se dependente de si próprio. Pode a mente enfrentar
aquele vazio e com ele viver, sem fugir em direção alguma?
Interrogante: Eu enlouqueceria, só de pensar em viver
com ele para sempre.
Krishnamurti: Todo movimento para nos afastarmos des-
se vazio é uma fuga. E essa fuga de uma coisa, essa fuga de "o que
é" é medo. O medo é a fuga a alguma coisa. "O que é" não é o
medo, a fuga é que é o medo, e esta fuga é que poderá enlouque-
cer-vos, e não o próprio vazio. Que é, pois, esse vazio, essa soli-
dão? Como surge ele? Ele surge, decerto, por causa da medição e
comparação. Comparo-me com o santo, o Mestre, o grande músi-
co, o erudito, o homem que se "realizou". Nessa comparação,
vejo-me incompleto, insuficiente; não tenho talento, sou inferior,
não me "realizei"; eu não sou, e aquele homem é. Assim, em con-
sequência do medir e comparar, vem-nos o horrível sentimento
105
de vacuidade, de sermos "nada". E a fuga a esse vácuo é medo. E
o medo nos impede de compreender esse abismo sem fundo. E
uma neurose que de si própria se nutre. E, também, a medida, a
comparação, é a essência mesma da dependência. Eis-nos, pois,
de volta à dependência; um círculo vicioso.
Interrogante: Percorremos uma longa distância nesta
nossa palestra, e as coisas se tornaram mais claras. Há dependên-
cia; é possível não dependermos? Sim, acho que é possível. Em
seguida o medo; é possível não fugirmos de maneira nenhuma ao
vazio, isto é, não fugirmos por medo? Sim, creio-o possível. Isso
significa que ficamos com o vazio. E, então, possível enfrentar
esse vazio, já que deixamos de fugir dele por medo? Sim, creio-o
possível. E, por último, é possível não medir, não comparar? Por-
que, se chegamos até este ponto - e acho que chegamos - resta-
nos então, unicamente, o vazio, e vemos que ele é o resultado de
comparação. E vemos, também, que a dependência e o medo
provêm desse vazio. Temos, pois, a comparação, o vazio, o medo,
a dependência. Posso realmente viver uma vida isenta de compa-
ração, de medida?
Krishnamurti: Naturalmente, tendes de tirar medidas para
colocar um tapete no soalho!
Interrogante: Sim. Quero dizer: Posso viver sem compara-
ção psicológica?
Krishnamurti: Sabeis o que significa viver sem compara-
ção psicológica, quando em toda a vossa vida fostes condicionado
para comparar - na escola, nos jogos, na universidade, no escritó-
rio? Tudo é comparação. Viver sem comparação! Sabeis o que isso
significa? Significa que não há dependermos de outros nem de
nós mesmos, não há buscar nem indagar; por conseguinte, signifi-
ca -- amar. O amor desconhece a comparação e, portanto, o amor
desconhece o medo. O amor não tem consciência de si próprio
como "amor"; porque a palavra não é a coisa.

[...] Interrogante: Eu gostaria de compreender a natureza


da dependência. Vejo-me na dependência de tantas coisas - mu-
lheres, diversões, bons vinhos, minha esposa e filhos, meus ami-
106
gos, o que dizem os outros. Felizmente, já não dependo do "entre-
tenimento" religioso, mas dependo dos livros que leio para me
estimular e da boa conversação. Vejo que os jovens são também
dependentes, talvez não tanto quanto eu, mas têm igualmente
suas próprias formas de dependência. Estive no Oriente e lá vi
como as pessoas dependem do guru e da família. Lá a tradição
tem maior importância e raízes mais profundas do que aqui na
Europa e, naturalmente, muito mais profundas ainda do que na
América. Mas, parece que todos nós dependemos de alguma coi-
sa, para nos amparar, não apenas fisicamente, porém, muito mais
ainda, interiormente. Assim, eu desejava saber se há alguma pos-
sibilidade de nos livrarmos, realmente, da dependência, e se de-
vemos livrar-nos dela.
Krishnamurti: Suponho que o que vos interessa são os
apegos psicológicos, interiores. Quanto mais apego, tanto maior a
dependência. Não há só apego a pessoas, mas também a ideias e
a coisas. Somos apegados a um certo ambiente, um certo país,
etc. Daí se origina a dependência e, por conseguinte, a resistência.
Interrogante: Por que "resistência"?
Krishnamurti: O objeto de meu apego é meu domínio, ter-
ritorial ou sexual. Esse domínio eu protejo, resistindo a qualquer
espécie de intrusão por parte de outros. Limito, também, a liber-
dade da pessoa a quem estou apegado, e limito minha própria
liberdade. Apego, portanto, é resistência. Tenho apego a alguma
coisa ou a alguma pessoa. Esse apego é sentimento de posse; o
sentimento de posse é resistência e, consequentemente, apego é
resistência.
Interrogante: Sim, percebo.
Krishnamurti: Qualquer forma de invasão de meus domí-
nios leva à violência, legal ou psicologicamente. Portanto, apego é
violência, resistência, aprisionamento nosso e do objeto de nosso
apego. Apego significa "Isto é meu, e não teu; não o toques!". Por
conseguinte, essa relação é resistência a outros. O mundo inteiro
está dividido em "meu" e "vosso"; minha opinião, meu julgamen-
to, meu alvitre, meu Deus, minha pátria - uma infinidade de ab-
surdos tais. Vendo-se tudo isso ocorrer em nossa vida diária, não
107
abstratamente, porém realmente, é lícito perguntar por que exis-
te esse apego a pessoas, coisas e ideias. Por que depende uma
pessoa? Existir é estar em relação, e todas as relações estão nessa
dependência, com sua violência, resistência e domínio. Eis o que
fizemos do mundo. Quando há posse, há necessariamente domí-
nio. Encontramo-nos com a beleza e nasce o amor; imediatamen-
te ele se converte em apego, e começa a nossa aflição. O amor
"fugiu-nos pela janela". Perguntamos, então: "Que foi feito de
nosso grande amor?" É isso, com efeito, o que está acontecendo
em nossa vida diária. E, assim, podemos agora perguntar: Porque
é que o homem invariavelmente tem apego, não só ao que é belo,
mas também a tudo quanto é ilusão e a tantas fantasias absurdas?
A liberdade não é um estado de não dependência; é um
estado positivo em que não há dependência nenhuma. Mas, a
liberdade não é um resultado, a liberdade não tem causa. Isso
precisa ser compreendido bem claramente, antes de se poder
examinar esta questão do porque o homem depende ou se deixa
cair na armadilha do apego, com todas as suas aflições. Porque
temos apego, tentamos cultivar um estado de independência - e
isso é mais uma forma de resistência.
Interrogante: Então, que é liberdade? Dizeis que ela não é
a negação ou cessação da dependência; dizeis que não é estar
livre de alguma coisa, porém, simplesmente, liberdade. Que é ela,
pois? Uma abstração ou uma realidade?
Krishnamurti: Não é uma abstração. É um estado mental
em que não existe nenhuma espécie de resistência. Ela não é co-
mo o rio que se acomoda às rochas que encontra em seu curso,
contornando-as ou sobre elas passando. Nessa liberdade não há
rochas, porém apenas o movimento da água.
Interrogante: Mas a rocha do apego existe, neste rio da
vida. Não se pode simplesmente falar de outro rio em que não
existem rochas.
Krishnamurti: Não estamos evitando a rocha ou dizendo
que ela não existe. Temos, primeiramente, de compreender a
liberdade. Ela não é o mesmo rio que aquele onde existem, ro-
chas.
108
Interrogante: Eu tenho ainda o meu rio, com suas rochas,
e foi sobre ele que vim consultar-vos, e não sobre algum outro rio
livre de rochas. Este não tem nenhuma utilidade para mim.
Krishnamurti: Está certo. Mas, deveis saber o que é liber-
dade, para poderdes compreender as vossas rochas. Deixemos,
porém, de parte este símile. Consideremos tanto a liberdade co-
mo o apego.
Interrogante: O meu apego tem alguma coisa que ver com
a liberdade, ou a liberdade com meu apego?
Krishnamurti: No vosso apego há dor. Quereis ficar livre
dessa dor e tratais de cultivar o desapego, sendo isso mais uma
forma de resistência. No oposto não se encontra nenhuma liber-
dade. Estes dois opostos (o apego e o desapego) são idênticos e
mutuamente se reforçam. O que vos interessa é saber como ter
os prazeres do apego, sem as suas aflições. Isso não é possível. Eis
porque importa compreender que liberdade não significa desape-
go. No processo da compreensão do apego, nasce a liberdade, e
não na fuga do apego. Assim, nossa questão agora é esta: Por que
são os entes humanos apegados, dependentes?
Vendo que somos "nada", que em nós mesmos somos um
deserto, esperamos com a ajuda de outrem encontrar água Ven-
do-nos vazios, pobres, desgraçados, incompletos, sem nada de
interessante ou de importante, esperamos, com a ajuda de outro,
enriquecer-nos. Com a ajuda do amor de outrem, esperamos es-
quecer a nós mesmos. Com a ajuda da beleza de outrem, espera-
mos alcançar a beleza. Com a ajuda da família, da nação, do
amante, de alguma crença fantástica, esperamos cobrir de flores o
deserto. E Deus é o supremo amante. Em todas essas coisas pro-
curamos amparar-nos. Nisso há dor e incerteza, e o deserto se
torna mais árido do que nunca. Naturalmente, ele não se torna
nem mais árido nem menos árido; continua a ser o que sempre
foi; nós é que o estivemos evitando, enquanto fugíamos para uma
dada forma de apego, com suas dores, e destas dores fugindo
para o desapego. Mas, continuamos áridos e vazios como dantes.
Assim, em vez de tentarmos a fuga para o apego ou o desapego,
não será melhor tornar-nos cônscios do fato, dessa profunda po-
109
breza e insuficiência interior, desse sombrio e vazio isolamento?
Essa é a única coisa importante, e não o apego ou o desapego.
Podeis olhar o fato sem nenhuma ideia de condenação ou avalia-
ção? Quando o fazeis, estais a olhá-lo como o observador a olhar a
coisa observada, ou sem o observador?
Interrogante: "O observador" - que quereis dizer com is-
so?
Krishnamurti: Estais a olhá-lo de um centro, com todas as
suas conclusões de agrado e desagrado, de opinião, juízo, desejo
de vos libertardes desse vazio, etc. - estais a olhar a vossa aridez
com os olhos da conclusão, ou a estais olhando com olhos com-
pletamente límpidos? Quando a olhais com olhos límpidos, não
existe observador. E, se não existe observador, existe então a
coisa que é observada como solidão, vazio, aflição?
Interrogante: Quereis dizer que aquela árvore não existe,
se a olho sem conclusões, sem um centro que é o observador?
Krishnamurti: A árvore existe, naturalmente.
Interrogante: Por que é que a solidão desaparece e a ár-
vore não desaparece, quando a olho sem o observador?
Krishnamurti: Porque a árvore não foi criada pelo centro,
pela "mente do eu”. Com sua atividade egocêntrica, a mente do
eu criou esse vazio, esse isolamento. Mas, quando aquela mente
em que não há centro olha, termina a atividade egocêntrica. Já
não existe solidão. A mente funciona então em liberdade. Obser-
vando a estrutura do apego e do desapego, e o movimento da dor
e do prazer, vemos como a mente do "eu" cria seu próprio deser-
to e suas próprias fugas. Quando a mente do "eu" está quieta, não
há mais deserto, e não há fuga.

[...] Interrogante: Pode uma pessoa libertar-se realmente


da tradição? Pode alguém ficar livre do que quer que seja? Ou a
questão é de nos esquivarmos dela e não nos deixarmos preocu-
par com ela? Muito tendes falado a respeito do passado e do seu
condicionamento; mas tenho de fato alguma possibilidade de
libertar-me disso que constitui o próprio "fundo" de minha vida?
Ou só tenho possibilidade de modificar esse fundo em conformi-
110
dade com os diferentes desafios e necessidades externas, a ele
me acomodar, em vez de me livrar dele? Essa me parece ser uma
das coisas mais importantes, e eu gostaria de compreendê-la,
porque sempre tive o sentimento de que estou levando um fardo,
o peso do passado. Eu bem gostaria de aliviar-me dele para sem-
pre. É possível isso?
Krishnamurti: "Tradição" não significa transportar o pas-
sado para o presente? O passado não são apenas nossas heranças
pessoais, mas também o peso do pensamento global de um de-
terminado grupo de pessoas que vivem numa determinada cultu-
ra e tradição. Levamos conosco toda a acumulação de conheci-
mentos e experiências da raça e da família. Tudo isso é o passado:
o transporte do conhecido para o presente, que forma o futuro.
Não é tradição tudo o que a História nos ensina? Perguntais se
uma pessoa pode libertar-se dela. Antes de mais nada, por que
deseja ela libertar-se? Por que deseja aliviar-se dessa carga? Por
quê?
Interrogante: Isso me parece bem simples. Eu não desejo
ser o passado; quero ser eu mesmo. Quero expurgar-me de toda
essa tradição, para poder tornar-me um ente humano novo. Pen-
so que na maioria de nós existe esse sentimento, esse desejo de
renascer.
Krishnamurti: Não podeis "tornar-vos novo" pelo simples
fato de o desejardes ou de lutardes para ser novo. Tendes, não só
de compreender o passado, mas também de descobrir quem sois.
Não sois o passado? Não sois a continuação do que foi, modifica-
do pelo presente?
Interrogante: Minhas ações e pensamentos são-no, mas
minha existência não o é.
Krishnamurti: Pode-se separar as duas coisas - a ação e o
pensamento - da existência? Meu pensamento, minha ação, mi-
nha existência, meu viver e minhas relações - tudo isso não é a
mesma coisa? A fragmentação em "eu" e "não eu" faz parte dessa
tradição.

111
Interrogante: Quereis dizer que, quando não estou pen-
sando, quando o passado não está funcionando, eu estou comple-
tamente apagado, deixei de existir?
Krishnamurti: Deixemo-nos de perguntas supérfluas e
consideremos o ponto com que iniciamos esta palestra. Pode uma
pessoa libertar-se do passado - não apenas do passado recente,
mas também do passado imemorial, do passado coletivo, racial,
humano, animal? Vós sois todo ele, dele não estais separado. E
perguntastes se tendes possibilidade de pô-lo de parte e renascer.
O "vós" é o passado e, quando desejais renascer como uma enti-
dade nova, a nova entidade que imaginais é uma projeção da ve-
lha, coberta da palavra "nova". Mas, por baixo, sois o passado. A
questão, pois, é se o passado pode ser posto de parte ou se conti-
nua a haver, infinitamente, unia forma "modificada" de tradição -
a mudar, a acumular, a rejeitar, porém sempre o passado, em
diferentes combinações. O passado é a causa, e o presente o efei-
to, e hoje - o efeito de ontem - se torna a causa do amanhã. Essa
cadeia é a maneira de ser do pensamento, pois o pensamento é o
passado. Perguntais se pode ser detido esse movimento do ontem
para o hoje. Pode-se olhar e examinar o passado, ou isso é com-
pletamente impossível? Para olhá-lo, o observador deveria estar
fora dele - mas não está. E apresenta-se, assim, outro problema:
Se o próprio observador é o passado, como isolar o passado, para
observá-lo?
Interrogante: Posso observar uma coisa objetivamente...
Krishnamurti: Mas vós, o observador, sois o passado que
está tentando observar a si próprio. Só podeis "objetivar" a vós
mesmo como uma imagem que formastes através dos anos, em
relações de toda espécie e, portanto, o "vós" que "objetivais" é
memória e imaginação - o passado. Quereis olhar-vos como se
fôsseis uma entidade diferente daquela que está olhando, mas,
vós sois o passado, com seus velhos juízos, avaliações, etc. A ação
do passado está a observar, a olhar, a memória do passado. E,
assim, nunca ficareis livre do passado. O contínuo exame do pas-
sado pelo próprio passado perpetua o passado; esta é a ação
mesma do passado, a ação mesma da tradição.
112
Interrogante: Que ação é então possível? Se eu sou o pas-
sado - e vejo que o sou - então, tudo o que eu faço para apagar o
passado estará aumentando o passado. Vejo-me assim numa situ-
ação irremediável! Que posso fazer? Não posso rezar, porque a
invenção de um Deus é também ação do passado. Não posso re-
correr a outrem, porque esse outro é também uma criação de
meu desespero. Não posso fugir, porque, no fim de minha fuga,
vejo que ainda estou levando o meu passado. Não posso identifi-
car-me com uma imagem não pertencente ao passado, porque
essa imagem é igualmente uma projeção minha. Em vista de tudo
isso, vejo-me numa situação irremediável, em desespero.
Krishnamurti: Porque dizeis "situação irremediável" e
"desespero"? Não estais traduzindo o que vedes como sendo o
passado, numa ansiedade emocional, por não poderdes alcançar
um certo resultado? Com isso, estais novamente fazendo o passa-
do atuar. Ora, podeis olhar todo esse movimento do passado, com
todas as suas tradições, sem desejardes livrar-vos dele, sem modi-
ficá-lo ou dele fugir; ficar simplesmente a observá-lo, sem ne-
nhuma reação?
Interrogante: Mas, como temos dito no decurso desta pa-
lestra, como posso eu observar o passado, se sou o passado? Eu
não posso de modo nenhum olhá-lo!
Krishnamurti: Podeis olhar a vós mesmo, que sois o pas-
sado, sem nenhum movimento do pensamento, que é o passado?
Se podeis olhar sem pensar, sem avaliar, gostar, não gostar, julgar,
isso é olhar com olhos não contaminados pelo passado. É olhar
em silêncio, sem o barulho produzido pelo pensamento. Nesse
silêncio, não há o observador e a coisa que ele está observando -
o passado.
Interrogante: Quereis dizer que, quando se olha sem ava-
liação ou julgamento, o passado desapareceu? Mas, ele não desa-
pareceu-existem ainda os milhares de pensamentos, e ações, e
todas as ninharias que, um momento atrás, pululavam. Olho, e
vejo que tudo isso existe ainda. Como podeis dizer que o passado
desapareceu? Poderá ter detido, momentaneamente, o seu mo-
vimento...
113
Krishnamurti: Quando a mente está em silêncio, esse si-
lêncio é uma dimensão nova, e se alguma ninharia subsistir, será
instantaneamente dissolvida, porque a mente tem agora uma
energia de qualidade diferente, que não é a energia gerada pelo
passado. É isto que importa verdadeiramente: ter essa energia
que dissipa tudo o que vem do passado. O "transportar" do pas-
sado é uma energia de espécie diferente. O silêncio dissolve essa
outra energia; o maior absorve o menor e permanece intacto.
Semelha o mar, que recebe as águas impuras do rio e permanece
puro. Isso é que é importante. Só essa energia pode apagar o pas-
sado. Ou temos silêncio, ou temos o barulho do passado. No si-
lêncio, o barulho cessa, e o novo é esse silêncio. Não sois vós que
vos tornais novo. Esse silêncio é infinito, e o passado é limitado.
Na plenitude do silêncio, o condicionamento do passado cai por
terra.

[...] Interrogante: Tendes falado repetidamente sobre o


aprender. Não percebo bem o que entendeis por isso. Somos en-
sinados na escola e na universidade, e a vida também nos ensina
muitas coisas - ajustar-nos ao ambiente e aos nossos vizinhos, a
nossa esposa ou marido, a nossos filhos. Parece que aprendemos
de quase tudo o que nos cerca, mas com certeza não é bem isso o
que entendeis quando falais a respeito do aprender, porque, apa-
rentemente, negais a experiência como mestra. Mas, negando a
experiência, não estais negando a possibilidade de aprender?
Afinal de, contas, graças à experiência, tanto em matéria técnica
como no viver humano de cada dia, aprendemos tudo o que sa-
bemos. Podemos examinar esta questão?
Krishnamurti: Aprender por meio da experiência é uma
coisa - é acumulação de condicionamento; e aprender constante-
mente, não só a respeito de coisas objetivas, mas também a res-
peito de nós mesmos, é coisa inteiramente diferente. Há a acumu-
lação que traz condicionamento - como bem sabemos - e há o
aprender a que nos referimos em nossas palestras. Esse aprender
é observação - observar sem acumulação, observar em liberdade.

114
Essa observação não é dirigida pelo passado. Tenhamos bem cla-
ras essas duas coisas.
Que é que aprendemos por meio da experiência? Apren-
demos coisas tais como línguas, agricultura, boas maneiras, voar
para a Lua, medicina, matemática. Mas, aprendemos alguma coisa
a respeito da guerra, fazendo guerra? Aprendemos a tornar a
guerra mais mortífera, mais eficiente, mas não aprendemos a não
fazer guerra. Nossa experiência em matéria de guerra está pondo
em perigo a sobrevivência da humanidade. Isso é aprender? Po-
deis construir uma casa melhor, mas a experiência vos ensinou a
viver nobremente em seu interior? Pela experiência, aprendemos
que o fogo queima, e isso se tornou um condicionamento, mas,
também, por meio de condicionamento, aprendemos a considerar
o nacionalismo uma coisa boa. Entretanto, a experiência deveria
ensinar-nos também que o nacionalismo é uma coisa mortífera,
como tudo o prova. A experiência religiosa, baseada em nosso
condicionamento, separou o homem do homem. A experiência
ensinou-nos a tomar alimentos mais saudáveis, a termos roupas
melhores e casas melhores, mas não nos ensinou que a injustiça
social impede o relacionamento entre o homem e o homem. A
experiência, pois, condiciona e torna mais fortes os nossos pre-
conceitos, nossas peculiares tendências, e nossos dogmas e cren-
ças pessoais. Não aprendemos a ver a estupidez de tudo isso; não
aprendemos a viver numa relação correta com os outros homens.
Essa relação correta é o amor. A experiência me ensina a fortale-
cer a família, como unidade oposta à sociedade e às outras famí-
lias. Isso traz luta e divisão, que tornam cada vez mais importante
o fortalecimento da família, como medida de proteção; e, desse
modo, vai continuando indefinidamente o círculo vicioso. Acumu-
lamos, e a isso chamamos "aprender pela experiência", mas esse
aprender acarreta cada vez mais fragmentação, cada vez mais
limitação e especialização.
Interrogante: Estais criando um caso contra o aprender e
a experiência, no domínio tecnológico, contra a ciência e todo o
saber científico acumulado? Se dermos as costas a essas coisas,
volveremos ao estado selvagem.
115
Krishnamurti: Não, não estou de modo nenhum criando
um caso desses. Parece que não nos estamos entendendo bem.
Dissemos que há duas espécies de aprender: Acumular, por meio
da experiência, e agir na base dessa acumulação, que é o passado.
Essa acumulação é absolutamente necessária toda vez que se
requeira a ação do saber. Não somos contra ela; isso seria absur-
do!
Interrogante: Gandhi tentou excluir a máquina da vida,
iniciando, na Índia, o movimento a que se deu o nome de "home
industries" ou "cottage industries". Entretanto, ele próprio se
servia dos modernos meios de transporte. Isso denota a inconsis-
tência e a hipocrisia de sua posição.
Krishnamurti: Deixemos de fora outras pessoas. Como
íamos dizendo, há duas espécies de aprender: uma, o agir na base
da acumulação de conhecimentos e de experiência, e a outra,
aprender sem acumulação, porém constantemente, no próprio
ato de viver. A primeira espécie é absolutamente necessária em
coisas técnicas, mas as relações, o comportamento, não são coisas
técnicas, porém coisas vivas, e sobre elas é necessário aprender a
todas as horas. Se uma pessoa atua segundo o que aprendeu so-
bre comportamento, esse comportamento se tornará mecânico, e
as relações , por conseguinte, se tornarão rotina.
E há, ainda, outro ponto muito importante: no aprender
que é acumulação e experiência, o lucro é o critério que determi-
na a sua eficiência. E quando, nas relações humanas, opera esse
"motivo" de lucro, são destruídas essas relações, já que ele provo-
ca o isolamento e a divisão. Quando o aprender baseado na expe-
riência e na acumulação invade o domínio do comportamento
humano, o domínio psicológico, torna-se inevitavelmente destru-
tivo. O "egoísmo esclarecido', se por um lado é lucrativo, por ou-
tro lado é a própria fonte de muitos males, aflição e confusão. As
relações não podem florescer onde há qualquer espécie de inte-
resse egoísta, e essa é a razão por que as relações não podem
florescer quando guiadas pela experiência ou pela memória.
Interrogante: Percebo, mas a experiência religiosa não é
diferente? Refiro-me à experiência acumulada e transmitida de
116
geração a geração, em coisas de religião - as experiências dos
santos e dos gurus, a experiência dos filósofos. Essa espécie de
experiência não nos é benéfica, em nossa ignorância?
Krishnamurti: De modo nenhum! O santo precisa ser re-
conhecido como tal pela sociedade e é obrigado a ajustar-se às
noções sociais de "santidade"; do contrário, não o chamariam
"santo". O guru, igualmente, precisa ser reconhecido como tal por
seus seguidores, condicionados pela tradição. Assim, tanto o guru
como o discípulo fazem parte do condicionamento cultural e reli-
gioso da sociedade em que vivem. Quando eles afirmam ter tido
contato com a realidade e que a conhecem, podeis estar certo de
que o que conhecem não é a realidade: é sua própria "projeção",
baseada no passado. Assim, o homem que diz que sabe, não sabe.
Inerente a todas essas chamadas experiências religiosas, há um
processo cognitivo de reconhecimento. Só podeis reconhecer uma
coisa que conhecestes antes; essa coisa, por conseguinte, vem do
passado; é, por conseguinte, temporal, não é atemporal. A cha-
mada experiência religiosa não pode trazer benefícios, porém
apenas condicionar-vos, conforme vossa própria tradição, inclina-
ção, tendência e desejo, facilitando, assim, toda espécie de ilusão
e de isolamento.
Interrogante: Quereis dizer que não se pode experimen-
tar a realidade?
Krishnamurti: O experimentar implica a existência de um
experimentador, e o experimentador é a essência de todo condi-
cionamento. O que ele experimenta é o "já conhecido".
Interrogante: Que entendeis quando falais de "experi-
mentador"? Se não há experimentador, quereis dizer que desapa-
recemos?
Krishnamurti: Naturalmente. O "vós" é o passado, e en-
quanto permanecer o "vós" ou "eu", não pode existir o imensurá-
vel. O "eu", com sua mente limitada e superficial, seus limitados e
superficiais conhecimentos e experiência, com o coração repleto
de ciúme e ansiedade - como pode uma tal entidade compreender
aquilo que não tem começo nem fim, que é êxtase? Assim, o co-

117
meço da sabedoria é a compreensão de vós mesmo. Começai a
compreender-vos.
Interrogante: O experimentador difere daquilo que ele
experimenta, o desafio é diferente da reação ao desafio?
Krishnamurti: O experimentador é a experiência; do con-
trário, não poderia reconhecer a experiência e chamá-la "uma
experiência"; a experiência já existe nele, antes de ele a reconhe-
cer. Assim, o passado está sempre a operar e a reconhecer a si
próprio; o novo é absorvido pelo velho. Analogamente, é a reação
que determina o desafio; o desafio é a reação, não são duas coisas
separadas; sem reação não haveria desafio. Por conseguinte, a
experiência de um experimentador, ou a reação a um desafio por
parte do experimentador, são velhos, já que determinados pelo
experimentador. A palavra "experimentar", se nela refletimos,
significa "passar por uma certa coisa" e acabar com ela, não guar-
dá-la; mas, quando falamos em experiência, entendemos exata-
mente o contrário. Toda vez que se fala em experiência, fala-se
em alguma coisa que foi armazenada e da qual procede a ação, de
alguma coisa deleitável que se deseja repetir, ou de alguma coisa
desagradável cuja repetição é temida.
Por consequência, viver é, com efeito, aprender, sem o
processo de acumulação.
A luz que não se apaga

118
[...] O SOFRIMENTO E O AMOR não podem coexistir, mas
no mundo cristão idealizaram o sofrimento, crucificaram-no para
o adorar, dando a entender que ninguém pode escapar ao sofri-
mento a não ser por aquela única porta; tal é a estrutura de uma
sociedade religiosa, exploradora. Assim, ao perguntardes o que é
o amor, podeis ter muito medo de ver a resposta. Ela pode signifi-
car uma completa reviravolta; poderá dissolver a família; podeis
descobrir que não amais vossa esposa ou marido ou filhos (vós os
amais?); podeis ter de demolir a casa que construístes; podeis
nunca mais voltar ao templo. Mas, se desejais continuar a desco-
brir, vereis que o medo não é amor, a dependência não é amor, o
ciúme não é amor, a posse e o domínio não são amor, responsabi-
lidade e dever não são amor, autocompaixão não é amor, a agonia
de não ser amado não é amor, que o amor não é o oposto do
ódio, como também a humildade não é o oposto da vaidade. Des-
se modo, se fordes capaz de eliminar tudo isso, não à força, po-
rém lavando-o assim como a chuva fina lava a poeira de muitos
dias depositada numa folha, então, talvez, encontrareis aquela
flor peregrina que o homem sempre buscou sequiosamente.
Liberte-se do passado

119
[...] É POSSÍVEL DESCOBRIR o que significa, psicologica-
mente, morrer? O organismo físico, sujeito a constante desgaste,
constante tensão, etc., a doenças, acidentes, velhice, inevitavel-
mente se deteriorará. E que coisa estranha, o medo que temos da
velhice! Temo-lo, não é verdade? E, envelhecendo, como nos tor-
namos feios, e cobrimo-nos de joias e adornamo-nos com fantás-
ticos penteados, tentando aparentar juventude. Isso é muito tris-
te, porque significa que nunca vivemos, não sabemos sequer o
que é viver, e por isso a velhice nos aterra. É possível, pois, mor-
rermos psicologicamente para tudo o que conhecemos? É isso o
que acontecerá quando morrermos fisicamente. Deixaremos nos-
sa família, nossas realizações e sabe Deus o que mais. Não se pode
argumentar com a morte, pedir-lhe um adiamento da hora fatal.
Podemos tentar fugir-lhe por meio do pensamento, dizendo: “vi-
verei uma vida futura, ressuscitarei, serei isto ou aquilo”. Isso são
puras teorias, fantásticos conceitos psicológicos, sem nenhuma
realidade.
Mas, é possível morrermos psicologicamente para todas
as coisas conhecidas? Já tentastes fazê-lo, morrer para um prazer,
morrer para uma determinada experiência que vos é muito cara,
largá-la da mão, facilmente, alegremente, sem nenhuma luta?
Isso, salvo se feito sem nenhum esforço, seria uma coisa mórbida,
uma espécie de masoquismo. Mas, se o não fizerdes, não sabereis
o que é viver. Olhai em que estado de confusão pusemos a vida:
fragmentação, malevolência, inimizade, violência, etc. Mas se,
interiormente, pudéssemos morrer para todo apego à família, à
posição, às coisas realizadas, ficaríamos então livres do conhecido,
que é sempre o passado, que se projeta e se torna futuro, mas
continua a ser passado. Se pudermos morrer para o conhecido,
saberemos então, talvez, o que significa viver. O viver se tornará
uma coisa inteiramente nova; será então possível criar uma socie-
dade de nova espécie, diferente desta sociedade homicida, cheia
de injustiça, de guerras e de imoralidade. Porque, morrendo para
o conhecido, sabereis o que é o amor. O amor não é essa coisa
que agora conhecemos — ciumenta, invejosa, desconfiada, inte-
grante, sequiosa de prazer. Quando há o verdadeiro amor, o pra-
120
zer é coisa inteiramente diferente. Mas, se pomos em primeiro
lugar o prazer, o amor “foge pela janela". E, sem essa base do
amor, sem se morrer a cada minuto para as coisas que se acumu-
laram, não se pode viver uma vida virtuosa. É esta a base correta.
Estamos, então, aptos a ingressar numa dimensão bem diversa. A
meditação tem então um significado todo diferente. Porque medi-
tação não é nenhuma dessas fantasias de que se fala; meditação é
esvaziar a mente do conhecido, para que ela seja nova, pura, ino-
cente, viva; livre das malhas do conhecido, mas servindo-se do
conhecido como instrumento, e não por o considerar importante.
Então, nesse vazio, a verdade tem um significado completamente
novo — não é um produto da mente, do intelecto.
Palestras com estudantes americanos

121
[...] NÃO SEI SE PERCEBEIS o que sucede no universo; nes-
te País, podeis achar-vos relativamente seguros, economicamen-
te, mas há uma civilização inteira, uma nação, a Índia, cujo povo
se vê flagelado pela pobreza, pela fome, pela incerteza da próxima
refeição. E haverá, inevitavelmente, um choque entre os que
“têm” e os que “não têm”. Tendes vossa parte de responsabilida-
de na guerra do Vietnã e cabe-vos, portanto, o dever de trabalhar
para que sejam deitadas por terra as divisões nacionalistas. A uni-
ão dos homens é que importa, e não a nação ou a família.

[...] Estamos fragmentados em nacionalidades, classes,


separações essas que se alargam e aprofundam cada vez mais.
Consideremos esta questão da relação, questão realmente impor-
tantíssima, porque viver é estar em relação; e, considerando-a,
indaguemos o que significa viver. Que é nossa vida, que exige
relações profundas, seja com a esposa, o marido, os filhos, a famí-
lia, seja com a comunidade ou outra entidade qualquer? Ao tra-
tarmos desta questão, não podemos considerá-la fragmentaria-
mente, porque, se tomamos uma única seção, uma única parte da
totalidade da existência e procuramos resolver só essa parte, a
questão não fica de modo nenhum resolvida. Mas, talvez tenha-
mos possibilidade de compreender esta questão das relações e de
viver diferentemente, se a considerarmos em seu todo, e não
fragmentariamente (como, por exemplo, o indivíduo e a comuni-
dade, e o indivíduo em oposição à comunidade, o indivíduo e a
sociedade, o indivíduo e a religião, etc. — pois tudo isso são frag-
mentos). Queremos sempre resolver os nossos problemas pela
compreensão de um insignificante fragmento da existência intei-
ra. Assim, pergunto se podemos, pelo menos por esta tarde (e
espero por todo o resto de nossa vida) observar a vida sem estar-
mos fragmentados — como católicos, protestantes, especialistas
do Zen, ou seguidores de determinado guru, determinado Mestre,
coisa absurda e pueril. Temos um problema imenso, que é o de
compreender a existência, de aprender a viver, e, como dissemos,
viver é relação, não há viver se não estamos em relação. E, como a
maioria de nós não se acha em relação, no sentido mais profundo
122
da palavra, tentamos identificar-nos com alguma coisa — com a
nação, com um dado sistema ou filosofia, ou certo dogma ou
crença. É isto que se observa no mundo: a identificação de cada
indivíduo com alguma coisa — com a família ou com sua própria
pessoa — e eu não sei o que significa “identificar-se consigo mes-
mo”.
Esta existência fragmentária, separativa, leva inevitavel-
mente a várias formas de violência. Assim, se pudéssemos dispen-
sar atenção ao problema das relações, teríamos talvez a possibili-
dade de resolver as iniquidades sociais, as injustiças, a imoralida-
de e aquela coisa terrífica chamada “respeitabilidade”, que o ho-
mem sempre cultivou. “Ser respeitável” é ser moral em conformi-
dade com uma coisa deveras imoral. Em tais condições, há alguma
espécie de relação? Relação significa estar em contato, profun-
damente, fundamentalmente, com a natureza, com outro ente
humano — estar em relação, não de sangue, como membro de
uma família, ou como marido e mulher, pois isso dificilmente po-
de chamar-se “estar em relação”.

[...] Pois bem; quando vos olhais diretamente, não desco-


bris que vossas atividades diárias (vossos pensamentos, vossas
ambições, vossa agressividade, vossa constante ânsia de ser ama-
do e de amar, a constante tortura do medo, a agonia do isolamen-
to), não descobris que essas coisas são fortemente separativas e
causadoras de profundo isolamento? E, nesse profundo isolamen-
to, que relação podeis ter com outro, com esse outro que também
se isola com sua ambição, sua avidez, sua avareza, sua ânsia de
domínio, de posse, de poder, etc.? Eis, pois, duas entidades cha-
madas entes humanos a viverem em seu próprio isolamento, a
gerarem filhos, etc., mas sempre no isolamento. E a cooperação
entre essas duas entidades isoladas torna-se mecânica; alguma
cooperação, entretanto, é necessária entre eles, para que possam
viver, ter família, trabalhar num escritório ou numa fábrica, mas
eles permanecem sempre entidades isoladas, com suas crenças e
dogmas, suas nacionalidades — bem conheceis todas as coisas de
que o homem se cerca para isolar-se dos demais. O isolamento,
123
portanto, é, essencialmente, o fator do estado de “não relação”. E
nas pseudo-relações desse isolamento, o prazer se torna da má-
xima importância.

[...] Que é o amor? O amor é prazer? O amor é desejo? É o


amor a lembrança de uma multiplicidade de coisas que formastes
e conservastes — a respeito de vossa esposa, de vosso marido, de
vosso próximo, da sociedade, da comunidade, de vosso Deus?
Pode-se chamar a isso amor? Se o amor é produto do pensamento
(como de fato é, na maioria dos casos), então esse amor está fe-
chado entre cercas, emaranhado na rede do ciúme, da inveja, do
desejo de dominar, de possuir e ser possuído, da ânsia de ser
amado e de amar. Pode, então, haver amor a um e amor a todos?
Se amo um, destruo o amor para com outros? E como, para a
maioria de nós, o amor é prazer, companhia, conforto, segregação
na família e o sentimento de segurança que nela se encontra —
existe, aí, realmente amor? Pode um homem que está acorrren-
tado à família amar o seu próximo? Podeis discorrer teoricamente
acerca do amor, ir à igreja para amar a Deus (o que quer que isso
signifique) e, no dia seguinte, ir para o trabalho e destruir o vosso
próximo — porque estais em competição com ele, ambicionando
o seu cargo, as suas posses, e desejando melhorar a vós mesmos,
comparando-vos com ele. Assim, quando, dentro em vós, existe
essa atividade, da manhã à noite, e mesmo durante o sono, em
sonhos, podeis estar em relação? Ou relação é coisa de todo dife-
rente?
Só pode haver relação quando há total abandono do “eu”,
do “ego”. Quando não existe “eu”, estais então em relação; nesta,
não há separação de espécie alguma. Provavelmente, nunca expe-
rimentamos esse estado de total negação (não intelectual, porém
real), de total cessação do “eu” . E talvez seja esse estado que a
maioria de nós está buscando, sexualmente ou pela identificação
com uma coisa superior. Todavia, esse processo de identificação
com uma coisa superior deriva do pensamento; e o pensamento é
sempre velho (como o “eu”, o “ego”, ele pertence ao passado).
Apresenta-se, assim, a questão: Como é possível abandonar de
124
todo esse processo isolante, esse processo que se centraliza no
“eu”? Como é possível isso? Compreendeis esta pergunta? Como
pode o “eu”, cujas atividades diárias são motivadas pelo medo,
pela ansiedade, pelo desespero, a tristeza, a confusão e a espe-
rança — como pode esse “eu” que se separa de outro pela identi-
ficação com Deus, com seu condicionamento, sua sociedade, suas
atividades morais e sociais, com o Estado — morrer, desaparecer,
para que o ente humano possa estar em relação? Porque, se não
estamos em relação, iremos viver em guerra uns com os outros.
Poderá não haver matança mútua, porque isso se está tornando
muito perigoso, a não ser, talvez, em terras muito longínquas.
Como podemos viver de modo que não haja separação, de modo
que possamos cooperar realmente?
Há tanta coisa por fazer neste mundo — acabar com a po-
breza, viver com felicidade, viver deleitosamente em vez de viver
na agonia e no medo, edificar uma sociedade de espécie comple-
tamente diferente, com uma moralidade superior. Isso, porém, só
se tornará possível quando a moralidade da atual sociedade for
totalmente negada. Há tanto que fazer, e que não poderá ser feito
enquanto estiver em funcionamento o processo de isolamento.
Falamos do “eu”, do “meu”, e do “outro” ; “o outro” está do outro
lado do muro, e o “eu” e o “meu” deste lado. Como pode, pois,
essa essência da resistência, que é o “eu”, ser totalmente aban-
donada? Porque esta é realmente a questão mais importante, em
todas as relações — já que percebemos que a relação entre ima-
gens não é relação nenhuma e que, quando existe tal qualidade
de relação, há necessariamente conflito e estamos sempre em
guerra uns com os outros.
Ao fazerdes a vós mesmos essa pergunta, direis, inevita-
velmente: “Tenho de viver num estado de vacuidade, de vazio?”.
Não sei se já vistes o que significa ter uma mente totalmente va-
zia. Vós tendes vivido num espaço criado pelo “eu” (um espaço
limitadíssimo). O espaço que o “eu” (o processo de isolamento)
criou entre uma pessoa e outra, é esse o único espaço que conhe-
cemos, o espaço entre ele próprio e a circunferência (a fronteira
que o pensamento criou). Nesse espaço é que vivemos; nele há
125
divisão. Dizeis: “Se abandono a mim mesmo, ou se abandono o
centro que é o “eu”, ficarei vivendo num vácuo.” Mas, já alguma
vez abandonastes o “eu”, de fato, realmente, de modo que dele
não tenha ficado nenhum resquício? Já vivestes neste mundo
nesse estado de espírito — no vosso trabalho, com vossa esposa
ou marido? Se alguma vez já vivestes assim, deveis saber que há
um estado de relação em que o “eu” não existe, um estado que
não é utópico, que não é coisa sonhada ou experiência mística,
irracional, porém um estado possível: viver numa dimensão em
que todos os entes humanos estejam relacionados.
Mas essa possibilidade só existe se compreendemos o que
é o amor. E, para existirmos, para vivermos nesse estado, temos
de compreender o prazer (sustentado pelo pensamento) e todo o
seu mecanismo. Então, se poderá ver instantaneamente todo o
complicado mecanismo que construímos para nós mesmos e em
redor de nós. Não há necessidade de percorrermos todo o proces-
so analítico, ponto por ponto. Toda análise é fragmentária e, por
essa porta, não virá resposta nenhuma.
Existe este imenso e complexo problema da existência,
com seus temores, ansiedades, esperanças, passageira felicidade
e alegrias, mas a análise não pode resolvê-lo. O que o resolverá é
abarcá-lo, no seu todo, num rápido lance de olhos. Só podemos
compreender uma coisa quando a olhamos (não com o olhar pro-
longado, exercitado, do artista, do cientista ou do homem que se
exercitou para “olhar”), só podemos compreender uma coisa
quando a olhamos com toda a atenção, quando a vemos, em seu
conjunto, num relance de olhos. E, assim, vos sentireis livres. Esta-
reis então fora do tempo. O tempo se deterá e, por conseguinte,
terá fim o sofrer. O homem entregue à amargura ou ao medo não
está em relação. Como pode um homem ambicioso de poder es-
tar em relação? Ele poderá ter família, dormir com sua mulher,
mas não está em relação. Quem compete com outro não está em
nenhuma relação. E toda a nossa estrutura social, com sua mora-
lidade, se baseia na competição. Achar-se em relação, fundamen-
tal e essencialmente, significa cessação do “eu”, gerador da sepa-
ração e do sofrimento.
126
[...] Estou bem certo de que todos nós, por mais medíocre
ou por mais intelectual que seja qualquer de nós, desejamos des-
cobrir um “curso de vida” em que impere a ordem, a beleza, e um
imenso amor. É isso o que o homem vem buscando há milhares
de anos. Mas, em vez de achá-lo, o homem o “externalizou”, o pôs
“fora de si próprio”, criando deuses, salvadores, sacerdotes com
suas ideias e, desse modo, perdeu a coisa essencial. Tudo isso
temos de rejeitar, recusar-nos a aceitar um céu por intermédio de
outrem ou seguindo outrem. Ninguém, nem na terra, nem no céu,
pode dar-vos aquela vida. Para alcançá-la, temos de trabalhar
infinitamente.
E, ao procurarmos compreender esta existência, esta vida
tão dolorosa, devemos também perguntar qual é o significado da
vida, qual a sua finalidade. Somos educados erradamente, prepa-
rados para obter um dado emprego, um meio de vida e, depois,
cairmos na vida de família, na luta interminável. É para isso que
vivem os entes humanos; isso é realmente vida? Por essa razão
inventamos a teoria de um “modo de ser” diferente; a teoria de
que existe alguma coisa além desta vida ou que, em nós, há algo
que é a verdadeira divindade, etc., etc. — coisas que absoluta-
mente não são fatos. Os fatos se encontram em nossa vida diária,
e temos o dever de rejeitar toda a estrutura que nós mesmos
inventamos a fim de fugirmos à vida de cada dia. É no cotidiano
viver que temos de promover a mudança, e não num certo mundo
futuro, ideológico.
[...] Qual a finalidade da vida? Para que vivemos? Qual o
significado da vida? O significado da vida não é determinado pelos
teóricos, pelos teólogos. Estes se acham tão condicionados por
sua crença, sua experiência, pela igreja ou pelo grupo a que estão
agrilhoados, que não podem ver a Verdade. Assim, somos força-
dos a perguntar: Qual a finalidade da vida? Qual o seu significado?
Tem a vida alguma significação? Ou o que há é só esta vida de
luta, de batalha, desespero e infinita confusão?
Palestras com estudantes americanos

127
[...] A IDENTIFICAÇÃO com uma certa coisa é relativamen-
te fácil, porém conduz a maior conflito, aflição, solidão. A maioria
das pessoas identifica-se com os filhos, o marido, a esposa, a na-
ção, e essa identificação tem levado a enormes aflições, e guerras
monstruosas. Estamos falando de algo totalmente diferente, algo
que deveis compreender, não verbalmente, porém em vosso cer-
ne, em vosso coração, na raiz mesma de vosso ser — pois, se o
compreenderdes, vos vereis eternamente livre do medo; e só
então conhecereis o amor.
É necessário compreender o observador e não a coisa ob-
servada, que tem muito pouco valor. O medo tem, com efeito,
insignificante valor, quando nele refletimos; o que tem valor é a
maneira como olhamos o medo, o que fazemos ou o que não fa-
zemos com o medo. A análise, a pesquisa da causa do medo, o
eterno indagar, perguntar, sonha — tudo isso constitui o observa-
dor; portanto, a compreensão do observador tem mais valor do
que a compreensão da coisa observada. Quando se olha o obser-
vador — que é “nós mesmos” — vemos não só que esse “nós
mesmos” é do passado, constituído que é de memórias mortas,
esperanças, “culpa”, saber, mas também que todo o saber se acha
no passado. Quando digo “Conheço-te”, isso significa que te co-
nheço como ontem eras; não te conheço realmente agora. “Nós
mesmos” é o passado; vivemos no presente contaminado pelo
passado, sob a sombra do passado, enquanto o amanhã nos
aguarda. Isso também faz parte do observador, está compreendi-
do no campo do tempo — tempo no sentido de ontem, hoje e
amanhã. Eis tudo o que sabemos, e nesse estado mental, de ob-
servador, olhamos o medo, o ciúme, a guerra, a família — aquela
entidade enclausurante chamada “família”. Com isso vivemos. O
observador está sempre a tentar resolver o problema da coisa
observada, a qual é o desafio, o novo, e estamos sempre a tradu-
zir o novo nos termos do “velho”; e vemo-nos, perpetuamente,
até o fim da vida, em conflito.

128
[...] Deveis estar bem cientes do que está ocorrendo no
mundo — não apenas em vossa pequena família, porém no mun-
do todo.
[...] Viver intensamente significa, decerto, morrer para to-
das as coisas de ontem — todos os prazeres, conhecimentos, opi-
niões, juízos, nossos estúpidos e insignificantes sucessos; morrer
para tudo isso; morrer para a família, para nossas conquistas, que
só têm produzido caos no mundo e tamanho conflito em nós
mesmos. Pois esse morrer cria uma intensidade, um estado men-
tal em que o passado deixou de existir, e o futuro, na figura da
morte, extinguiu-se. Assim, viver é morrer; não podeis viver se
não morreis. Mas, a maioria de nós sente medo porque deseja
segurança, deseja a continuidade da aflição que conhecemos, da
doença, da dor, do prazer, da ansiedade.
[...] Quando morremos para os milhares de dias passados
— então viver é morrer. Só nesse estado o tempo cessa, e o pen-
samento só funciona onde dele necessitamos e em nenhum outro
nível, em nenhum outro caso, em nenhuma outra de nossas pre-
tensões.
Como viver neste mundo

129
[...] EM GERAL tememos a morte porque não sabemos o
que significa viver. Não sabemos viver, e por isso não sabemos
morrer. Enquanto tivermos medo da vida, teremos medo da mor-
te. O homem que não teme a vida não teme a insegurança, por-
que compreende que, interiormente, psicologicamente, não exis-
te “segurança” nenhuma. Quando não há “segurança”, há um
movimento infinito e então a vida e a morte são uma coisa só. O
homem que vive sem conflito, que vive com beleza e amor, não
teme a morte, porque amar é morrer.
Se morreis para tudo o que conheceis, incluindo a “vossa”
família, a memória, tudo o que sentistes, a morte é então uma
purificação, um processo de rejuvenescimento; a morte traz então
a inocência, e só os inocentes são apaixonados, e não aqueles que
creem ou que desejam descobrir o que acontece após a morte.
Para descobrirmos o que realmente acontece quando se
morre, temos de morrer. Não estou a brincar. Temos de morrer —
não fisicamente, mas psicologicamente, interiormente, morrer
para as coisas que apreciamos e para as coisas de que não gosta-
mos. Se morrermos para um dos nossos prazeres, para o mais
insignificante ou para o mais importante, sem nenhuma compul-
são ou argumentação, saberemos então o que significa morrer.
Morrer é ter uma mente completamente vazia de si mesma, vazia
dos seus diários anseios, prazeres e agonias. A morte é uma reno-
vação, uma mutação, em que o pensamento não funciona, porque
o pensamento é coisa velha. Quando há morte, há algo totalmen-
te novo. Libertar-se do conhecido é morrer e é então que estamos
a viver.
A transformação do homem

130
[...] HÁ AINDA UMA COISA para examinar, ou seja a ques-
tão do amor. A maioria de nós tem diferentes conceitos, ideias,
opiniões a esse respeito — amor divino e amor profano; amor a
um só e amor a todos; pode-se amar a todos se se ama a um só? E
só conhecemos o amor porque somos ciumentos. Para nós o ciú-
me faz parte do amor. Vós amais vossa esposa, vossos filhos, a
família; nesse amor há ciúme, inveja, ambição, avidez. A família
não representa para vós um fator de comodidade, mas assume
uma enorme importância e se torna anti-social. E onde há ciúme,
inveja, avidez, ambição, competição, é bem óbvio que não há
amor. Sabemos também que a palavra “amor” não é o fato. E se
não há amor em nosso coração, em nosso ser, por mais que nos
esforcemos haverá sempre aflição e conflito.
Sendo assim, como pode a mente ou o coração alcançar
essa coisa extraordinária chamada “amor”? Todos falam a respei-
to dela, o político, o ladrão, o explorador, o sacerdote, o guru.
Todo o mundo traz nos lábios a palavra “amor”. Mas descobrir o
que ele é, isso é outra coisa. Saber o que ele significa é coisa mui-
to diferente. Não tendes nenhuma possibilidade de sabê-lo quan-
do tendes ciúme, inveja de outrem, quando vossa mulher olha
para outro homem, quando estais em busca de poder, posição,
prestígio. Não há amor quando um guru diz que sabe e que vós
não sabeis, ainda que esse guru fale em amor e pronuncie ser-
mões sobre o amor. No momento em que qualquer pessoa diz “Eu
sei, e vós não sabeis”, essa pessoa que diz “Sei” não conhece o
amor.
O amor, por conseguinte, não é uma coisa facilmente ad-
quirível. Temos de estar cônscios, o mais profundamente possível,
das diferentes características, dos diferentes conflitos — estar
simplesmente cônscios, observar, escutar. E não pode haver amor
quando a mente está embotada. A mente da maioria de nós está
embotada porque a qualidade de educação que recebemos em-
bota-nos a mente.
[...] Dizemos agora que o amor é negação total. Nós não
sabemos o que ele significa. Não sabemos o que significa o amor.
Sabemos o que é o prazer, o qual confundimos com o amor.
131
Onde está o amor, aí não está o prazer. O prazer, é óbvio,
resulta do pensamento. Olho uma coisa bela; o pensamento entra
em cena e começa a ocupar-se com ela, criando uma imagem.
Observai isso em vós mesmo. Essa imagem vos proporciona um
enorme prazer, a propósito daquele espetáculo e do sentimento
que provocou; e o pensamento dá a esse prazer nutrição e conti-
nuidade. E na vida familiar isso se chama “amor”, mas nada tem
que ver com o amor. Só se está interessado no prazer; e onde está
o desejo de prazer, encontra-se a continuidade no tempo.
Viagem por um mar desconhecido

[...] PARA ENTRARDES profundamente em vós mesmo,


deveis primeiramente dar atenção ao exterior e compreendê-lo.
Isto é, assim como a maré “sai” e as mesmas águas tornam a “en-
trar”, assim devemos atuar: navegar nas águas que saem, que são
as nossas relações com o mundo e, depois de compreender essas
relações, tornar a entrar, nas mesmas águas, em nosso interior.
Deveis, pois, prestar atenção a vossas relações com o
mundo. Essas relações começam com a família — a esposa, o ma-
rido, os filhos: é este o mundo em que viveis. Deveis compreender
essas relações, investigar as bases em que se assentam; não con-
tinueis a enganar a vós mesmo. Em que se baseiam elas, realmen-
te? No hábito, numa certa tradição, no apertado círculo em que
vivemos. O lar se compõe de marido, mulher e filhos; e, aí, domi-
namos ou somos dominados, sexual, emocionalmente; aí, somos
dependentes.
Observai-vos, por favor! Não estais aqui apenas para ouvir
uma longa série de palavras. Pode-se construir sobre um monte
de palavras. Mas isso não vos levará muito longe. Contudo, as
palavras revelam o estado de vossa relações, vossa vida real de
relação: não como gostaríeis que fossem vossas relações com a
esposa, os filhos, porém o fato real. Daí, então, podeis partir.

132
A família está oposta à sociedade; a família está oposta às
relações humanas como um todo. É como viver uma pessoa numa
parte de um grande edifício, num pequeno quarto, e dar exagera-
da importância a esse exíguo aposento — o lar. A família só tem
importância em relação com o edifício todo. Assim como aquele
pequeno quarto relaciona-se com o edifício inteiro, assim está a
família em relação com a humanidade em geral. Mas, nós a sepa-
ramos e a ela nos mantemos apegados. Fazemos muito escarcéu
em torno da família — meus parentes, vossos parentes — e vive-
mos empenhados em perpétua batalha. Mas a família é como a
pequena alcova em relação com todo o edifício. Quando esque-
cemos o edifício, em seu todo, o pequeno aposento se torna su-
mamente importante; assim também se torna a família sobremo-
do importante, quando esquecemos o todo da existência humana.
Só tem importância a família, em relação com a totalidade da
existência humana; de contrário, converte-se numa coisa terrível,
monstruosa.
Temos, pois, de compreender, por nós mesmos, o fato re-
presentado por nossas relações reais e, baseados nessas relações,
compreender a relação com os semelhantes, o mundo, com aque-
les entes estranhos que se mostram turbulentos, nocivos, cruéis,
brutais, tirânicos. E, para compreenderdes tudo isso, tendes de
começar com o que está mais perto.
Há também o problema do sexo, que, para a maioria das
pessoas, se tornou de desmedida importância, uma coisa suma-
mente complexa. Como há dias estivemos dizendo, quando não
encontramos outros meios de libertação (de nossas energias),
voltamo-nos para essa única coisa, o sexo, para convertê-lo num
monstruoso problema. E quando dizemos que amamos a família
— não a amamos realmente; não amamos nossos filhos; com efei-
to, não os amamos! Quando dizeis que amais os vossos filhos,
estais dizendo realmente que eles se vos tornaram um hábito, se
tornaram brinquedos, com que vos entretendes, de vez em quan-
do... Mas, se amásseis, se amásseis vossos filhos, teríeis então
zelo para com eles.

133
Sabeis o que é ter zelo? Se sois zeloso e plantais uma ár-
vore, cuidais dela com carinho, dais-lhe nutrição, procurais para
ela o solo adequado, o fertilizante adequado, e a protegeis e vigi-
ais infinitamente. Não sei se alguma vez já plantastes uma árvore,
uma muda, e a observastes diariamente. É preciso cavar bem a
terra antes de plantá-la, ver se o solo é adequado, em seguida
plantá-la, depois, protegê-la, observá-la todos os dias, zelá-la co-
mo se fosse uma parte de vosso ser. Mas, não amais dessa manei-
ra os vossos filhos. Se os amásseis, dar-lhes-íeis uma educação
completamente diferente. Não haveria guerras, não haveria naci-
onalidades. Mas, porque não amamos, toda essa uma entidade
meramente técnica. Não haveria competição, não haveria nacio-
nalidades. Mas, porque não amamos, toda essa erva daninha
cresceu livremente.
Por conseguinte, temos de começar com o que está mais
perto de nós e, daí partindo, descobrir o estado real de nossa
mente, de nosso ser. E isso é sobremodo difícil, porque, dentro
em nós, encontramos muitas coisas feias, tanto conscientes como
inconscientes. E, como não temos coragem de encará-las, fugimos
para um templo, uma igreja, ou outro qualquer divertimento or-
ganizado; pois o templo ou a igreja são também divertimentos
organizados. Encarar uma coisa, realmente, exige energia. Essa
energia, não a tendes se estais incessantemente a batalhar por
causa de nada. É isso o que está fazendo a maioria de nós!
[...] Para descobrirdes o que é a mente religiosa, não só
deveis compreender vossas relações com a família, com a socie-
dade e tudo o mais, mas também todo esse “processo” de busca
de poder — que significa dominar, seja na família, seja na socie-
dade, ou ser a autoridade suprema numa organização, religiosa ou
de outra natureza.
[...] A mente religiosa é, pois, aquela que não tem ilusão
de espécie alguma, que não procura posição, que não sente ne-
nhum impulso ou desejo de adquirir poder de qualquer espécie
que seja. Também, a mente religiosa compreende sua relação
com a família e com o homem em geral.

134
[...] A mente religiosa é aquela que compreende a família
e sua posição em relação com o todo; aquela que não busca poder
e posição; que não está presa a nenhum ritual, igreja organizada,
ou templo; que já não tem a propriedade de criar ilusões. É tam-
bém aquela que olha os fatos e, por conseguinte, nenhum esforço
faz em qualquer trabalho que executa.

Suprema realização

[...] EM GERAL, somos violentos. Por isso inventamos a


ideia de que devemos ser “não-violentos”. Vede o resultado! Sou
violento — em meus gestos, minhas atitudes, minha inacessibili-
dade, meu insulamento, meu orgulho, minha inveja, minha ambi-
ção. Sou violento, transijo com a violência, e invento a ideia da
“não-violência”. O fato é uma coisa, e a fórmula, a ideia outra
coisa, na qual nos vemos enredados. Correto? Essa esquizofrenia,
essa atitude dupla perante a vida, em que nunca enfrentamos a
fato, mas falamos incessantemente de uma ideia sem nenhuma
realidade — é a causa direta do conflito. Não sou fraterno porque,
para ser fraterno, não deve haver nacionalidade, nem família;
“família” como ideia — o que estou dizendo não significa que não
devemos ter mulher e filhos. A família, evidentemente, é direta-
mente anti-social, pois está sempre oposta ao resto do mundo.
[...] Nós, na realidade, não temos amor; é terrível reco-
nhecer isso. Com efeito, não temos amor; temos sentimento, te-
mos emotividade, sensualidade, sexualidade; temos lembranças
de algo que pensávamos ser amor. Porque ter amor significa não
haver violência, nem medo, nem competição, nem ambição. Se
tivésseis amor, nunca diríeis: “Esta é minha família”. Podeis ter
uma família e dedicar-lhe todos os desvelos, porém não será
“nossa família”, contraposta ao resto do mundo. Se amais, se há
amor, há paz. Se amásseis, haveríeis de educar vosso filho para
não ser nacionalista, para não ter simplesmente uma dada ocupa-
ção técnica e cuidar unicamente de seus pequeninos interesses;
135
não teríeis nacionalidade. Não haveria divisões religiosas, se
amásseis. Mas, como essas coisas existem de fato — não teorica-
mente, porém brutalmente — neste mundo tão feio — elas indi-
cam que não tendes amor. Mesmo o amor da mãe pelo filho não é
amor. Se as mães amassem realmente os filhos, achais que o
mundo seria como é? Cuidariam de que tivessem alimentação
adequada, educação correta, fossem entes sensíveis, amantes da
beleza, não ambiciosos, ávidos, invejosos. Não, a mãe, por mais
que pense amar o seu filho, não o ama.
[...] Uma grande porção de nós é ainda animal; e, a menos
que funcionemos de maneira completa, que nos livremos do ani-
mal em nós, continuaremos por mais dois milhões de anos a so-
frer, em desespero, em agonia, inventando filosofias sem nenhum
valor para nossa existência diária, e buscando Deus, porque, em
nosso coração e em nossa mente, temos medo.
Esse, portanto, parece ser o problema principal. Pode a
mente — nossa mente, vossa mente, que está sendo condiciona-
da há dois milhões de anos — atenção: condicionada! — moldada
e impiedosamente refreada por vossa sociedade, por vossos sa-
cerdotes, por vossos políticos, por vossos economistas, por vossas
atividades sociais; refreada por vossa família — pode essa mente
atuar sobre si própria, desligar-se completamente do passado e
descobrir, por si mesma, que extraordinária mutação é essa que
se faz necessária para resolver os nossos problemas?

Uma nova maneira de agir


[...] COMO SE PODE observar, no mundo inteiro, onde


quer que se esteja, há um declínio geral, uma desintegração gene-
ralizada. E especialmente num país que se supõe ser antiquíssimo,
como este, há desintegração a todos os níveis. Politicamente há
corrupção, tirania, culto da personalidade, os políticos a deseja-
rem poder e posição; neste nível, há corrupção de alto a baixo. No
mundo dos negócios também existe corrupção, declínio, só se
136
está empenhado em ganhar dinheiro, e não a ajudar o próximo a
viver também feliz, em plenitude, num ambiente de felicidade.
Assim, também aí há corrupção, declínio, desintegração, degene-
rescência. Na família também existe declínio. Quando a família se
torna o que há de mais importante, como se pode observar, ela
representa então, apenas, a continuidade da própria pessoa, de
modo ampliado. E quando cada um só se interessa por si próprio,
agindo sempre com calculismo, é ele a raiz da corrupção. E há
então corrupção no relacionamento entre as pessoas.
A vida é relação. Para se viver neste mundo tem de se es-
tar em relação, porque não se pode existir isoladamente. Estar em
relação significa também cooperar, e cooperar é trabalhar junta-
mente, em boa relação. Não é possível trabalhar em boa relação,
se um domina o outro, se um tem uma determinada ideia e a im-
põe ao outro. A cooperação só pode existir quando há verdadeira
afeição, simpatia, compaixão, sentimento de união. E o que não se
encontra neste país. Ideologicamente, sim! Ou seja, no campo das
palavras - que devemos todos trabalhar juntamente, que somos
irmãos, que somos uma só vida... - conheceis todas essas palavras
vãs que repetimos incessantemente. Mas, de fato, em cada mo-
mento da nossa vida, nada disso é assim.

O despertar da sensibilidade

[...] A MAIORIA de nós deseja estar psicologicamente se-


gura, disso fazemos questão, e, por essa razão, a família se torna
um verdadeiro pesadelo; torna-se uma coisa terrível, porque dela
fazemos nosso próprio meio de segurança. Em seguida, torna-se
também a nação a nossa segurança e nos deixamos empolgar
pelas inanidades do nacionalismo. A família tem sua razão de ser,
mas, quando nos serve como meio de segurança, é veneno mor-
tal.

137
Para descobrir a verdade relativa à segurança, deveis estar
em comunhão com o desejo de vos sentir seguros, profundamen-
te arraigado em nós e que constantemente se manifesta sob dife-
rentes formas. Busca-se a segurança, não só na família, mas tam-
bém em lembranças e na dominação ou influência de outro. Re-
correis à lembrança de alguma experiência ou relação que vos foi
grata, que vos deu esperança, conforto, e nessa lembrança bus-
cais abrigo.
[...] Estou expressando em palavras o que talvez experi-
mentais em raros momentos em que vos sentis fartos de tudo —
de vossas igrejas, de vossos políticos, de vossos bancos, da insigni-
ficância de vossas relações no lar, da monotonia do escritório, de
tantas coisas estúpidas desta vida que constituem um insulto à
dignidade humana. Tendo passado vinte ou mais anos da vida
frequentando diariamente o escritório, ou cozinhando e gerando
filhos, um atrás do outro — havendo experimentado os prazeres e
também os enfados, o prosaísmo, o desespero, inerentes a tudo
isso, deveis às vezes ter perguntado a vós mesmo se não existe
alguma possibilidade de atingir, subitamente, a fonte original, a
verdadeira essência das coisas; e, daí, viver, funcionar, florescer,
de modo que nunca necessitais ler um livro, estudar filosofia al-
guma, adorar qualquer imagem ou salvador, porque, para qual-
quer lado que olheis, encontrais aquele centro de onde parte toda
a ação, todo o amor, tudo.
O fato bem óbvio é que — com a nossa avidez, nosso ciú-
me, nossa ânsia de posse, nosso medo, nosso sentimentalismo,
nossos efêmeros prazeres, nossa satisfação pessoal — somos
animais, animais altamente evoluídos. Se observamos um animal,
vemos que ele tem conflitos como nós. Os macacos antropoides
são ciumentos e têm seus desentendimentos conjugais. Como
nós, eles se juntam em grupos — primeiro a família, depois a tri-
bo, etc.; e, há pouco, alguém disse que esses macacos fariam tão
boa figura na assembleia das Nações Unidas como qualquer ente
humano! É evidente que nosso caráter, nossa devoção, nossa
coragem, nosso medo, nossas guerras, nossa pretensa paz, nossas
lutas, tudo procede desse fundo animal. Não precisais discutir
138
comigo a este respeito. Os biologistas, os antropólogos o dizem —
se desejais autoridades.
Ora, é possível um homem libertar-se desse fundo animal,
não no fim, lenta e gradualmente, porém cortando-o de um só
golpe, eliminando-o definitivamente, para que tenha então uma
moral, uma ética, uma percepção da beleza totalmente distinta,
separada do fundo animal? Por certo, para vivermos juntos no
mundo, necessitamos de uma moralidade de conduta social; mas,
atualmente, nossa moral, nossos conceitos de conduta — que
constituem as fórmulas de nossa existência diária — são ainda
procedentes do “animal”, — e não queremos admitir isso. Apraz-
nos pensar — porque somos um pouco mais capazes, mais efici-
entes e inventivos do que os macacos — que por isso somos mais
humanos; mas os macacos também se servem de instrumentos
para apanhar coisas, têm inventividade e, portanto, é pequena a
diferença entre eles e nós.
Existe, pois, essa extraordinária atividade dos animais e a
atividade igualmente extraordinária da mente humana que deseja
segurança, tanto no mundo físico como também interiormente —
sendo isso ainda um resultado do instinto animal. E há, ao mesmo
tempo, o desejo de descobrir alguma coisa verdadeira, original,
um estado não contaminado, são. Ora, é possível atingir-se esse
estado subitamente, sem ser necessário cultivá-lo, procurá-lo?
Pois a beleza não pode ser cultivada, e muito menos o amor. Esse
estado surge instantaneamente, assim como se nos depara, de
repente, um panorama nunca visto. Repentinamente o vemos à
nossa frente cheio de riqueza, de plenitude e de vida — e nós
fazemos parte dele; e daí vivemos, atuamos, somos. Sem despen-
der esforço, sem disciplina, controle, coação, procedentes do ex-
terior, sem imitação, etc., atingimos subitamente a fonte da vida,
as nascentes de toda a existência; e, bebendo dessa fonte, a men-
te viveu e vive eternamente. Isso é possível? Compreendeis minha
pergunta? Isto não é sentimentalismo nem misticismo — não é
coisa para excitar-vos as emoções ou inspirar-vos, e tampouco
para ser sentida intuitivamente. Nada disso. Enquanto conserva-
mos o “fundo animal” — nossas invejas, ciúmes, desesperos —
139
isso não é possível; as duas coisas são incompatíveis. Extinguir
totalmente, de um só golpe, o fundo animal e recomeçar de ma-
neira nova — é isso possível?

[...] Como disse, considerar a vida fragmentariamente é


viver em constante confusão, contradição, aflição. Tendes de ver a
totalidade da vida; e só se pode ver essa totalidade quando há
afeição, quando há amor. O amor é a única revolução que produ-
zirá a ordem. É inútil adquirir constantes conhecimentos de Ma-
temática, Medicina, História, Economia, e depois reunir todos
esses fragmentos; isso não resolverá coisa alguma. Sem o amor, a
revolução só conduz ao endeusamento do Estado ou à adoração
de uma imagem, ou a inumeráveis e tirânicas perversões, e à des-
truição do homem. Do mesmo modo, quando a mente, medrosa
que é, põe a morte à distância, separando-a do viver diário, tal
separação só serve para gerar mais medo, mais ansiedade, e uma
multiplicidade de teorias a respeito da morte. Para se compreen-
der a morte, é necessário compreender a vida. Mas a vida não é
continuidade do pensamento, continuidade essa responsável por
todas as nossas aflições.
Assim, pode a mente trazer a morte, da distância em que
se acha, para o imediato (o agora)? Entendeis? A morte, com efei-
to, não se acha em nenhum lugar remoto: ela está aqui e agora.
Está presente quando falamos, quando nos divertimos, quando
escutamos, quando nos dirigimos ao escritório. Está aqui a cada
instante da vida, exatamente como o amor. Percebendo-se esse
fato, deixa de haver medo à morte. Tememos, não o desconheci-
do, porém a perda do conhecido. Tememos perder nossa família,
ficar só, sem companheiros; tememos a dor da solidão, ficar pri-
vado das experiências, dos haveres acumulados. É o conhecido
que temos medo de largar. O conhecido é memória — memória a
que nos apegamos. Mas a memória é apenas uma coisa mecânica
— como os computadores o provam sobejamente.
Para compreendermos a beleza e a extraordinária nature-
za da morte, precisamos livrar-nos do conhecido. No morrer para
o conhecido, está o começo da compreensão da morte, porque a
140
mente então se torna fresca, nova, e nenhum medo existe; por
conseguinte, pode-se entrar naquele estado que se chama “a
morte”. Assim, do começo até o fim, a vida e a morte são insepa-
ráveis. O sábio compreende o tempo, o pensamento e o sofrimen-
to, e só ele é capaz de compreender a morte. A mente que morre
a cada instante, que não armazena experiência, é imaculada e, por
conseguinte, se acha num perene estado de amor.

A mente sem medo


[...] O AMOR é o oposto do ódio? E o amor é emoção,


sensação, sentimento prolongado pela memória? Sabemos o que
significa amar? Sabemos realmente? Falamos de “amar a Deus”,
amar nossas esposas, nossos maridos, dizemos que amamos nos-
sos animais; e em cartazes de propaganda lê-se: “Amável Cerveja”
Isso é amor? Amamos realmente nossas famílias? Coisa extraordi-
nária, a família! A família se tomou uma coisa terrível, porque lhe
ficamos apegados, nela “empatamos dinheiro”, por ela nos sacrifi-
camos e damos continuidade a nós mesmos através do nome da
família; ela somos “nós mesmos”, prolongados e perpetuados.
Mas, podemos ter família sem nenhuma dessas complicações e
fealdade.
Ora, que entendemos por amor? O amor, por certo, não é
memória. Isso nos é muito difícil de compreender, porque para a
maioria o amor é memória. Quando dizeis que amais vossa esposa
ou marido, que quereis dizer com isso? Amais o que vos dá pra-
zer? Amais aquilo com que vos identificastes e que reconheceis
como coisa que vos pertence? Notai, por favor, que tudo isso são
fatos, e que nada estou inventando; portanto, não vos mostreis
horrorizados.
Ao dizermos que amamos, que significa isso? O amor é
questão de tempo? Pode o amor existir se há apego, ou se possuís
outra pessoa? Quando dizeis: “Ela é minha mulher”, “Ele é meu
marido” — existe amor nessas relações? Existe amor quando sois
141
ciumento? O sentir-vos só, infeliz, agoniado, porque vossa esposa
ou marido vos abandonou, isso é amor? E é amor a Deus o “ouvir
missa” todos os dias ou uma vez por semana e executar todas as
devoções correspondentes?
Para amar uma coisa é preciso “estar com ela” completa-
mente, vosso coração, vossa mente, todo o vosso ser deve “estar
com ela”, de modo que não haja “observador e coisa observada”.
Isso não significa identificação, que é simplesmente um artifício.
Quando vos identificais com vossa família, isso não é amor, abso-
lutamente. É o “prolongamento” de vós mesmo que estais aman-
do.
É a imagem, o símbolo de “minha mulher” ou “meu mari-
do” que amamos ou julgamos amar, e não o ser vivente. Não co-
nheço minha mulher ou meu marido, absolutamente, e nunca
conhecerei essa pessoa enquanto conhecimento significar reco-
nhecimento. Porque o reconhecimento baseia-se na memória —
memória de prazer e de dor, memória das coisas para as quais
tenho vivido, pelas quais tenho sofrido agonias, das coisas que
possuo e a que estou apegado. Como posso amar quando há me-
do, sofrimento, isolamento, a sombra do desespero? Como pode
um homem ambicioso amar? E todos somos muito ambiciosos,
ainda que honradamente.
Assim, para se descobrir realmente o que é o amor, de-
vemos morrer para o passado, para todas as nossas emoções,
boas e más — morrer sem esforço, assim como “morreríamos”
para uma coisa venenosa, uma vez compreendida.

O homem e seus desejos em conflito

142
[...] A MORALIDADE SOCIAL não é moralidade nenhuma; é
imoral; é uma outra maneira de nos defendermos; e, por conse-
guinte, gradualmente, estamos sendo destruídos pela sociedade.
O homem que deseja compreender a liberdade deve, sem remor-
sos, livrar-se da sociedade — psicologicamente, não fisicamente.
Não podeis estar livre da sociedade fisicamente, porque, para
tudo, dependeis da sociedade — para a roupa que vestis, o di-
nheiro de que necessitais, etc. Exteriormente, não, psicologica-
mente, dependeis da sociedade. Mas o estar livre da sociedade
implica liberdade psicológica — isto é, estar totalmente livre da
ambição, da inveja, da avidez, da vontade de poder, de posição,
de prestígio. Mas, infelizmente, temos interpretado da maneira
mais absurda o estar livre da sociedade. Pensamos que o libertar-
se significa “trocar de roupas” — pondes as vestes do sannyasi, e
pensais que ficastes livre do mundo; ou vos tornais monge e pen-
sais que, de certo modo, destruístes o mundo e a sociedade. Mui-
to ao contrário; podeis vestir uma tanga, mas, interiormente, es-
tais psicologicamente ligado à sociedade, porque continuais a ser
ambicioso, invejoso, desejoso de poder. Assim, a mente que está
investigando o que é a liberdade deve estar de todo livre da soci-
edade, psicologicamente, e livre, também, da dependência da
família.
A família é a forma mais conveniente de resistência, por-
que essa resistência é considerada altamente respeitável pela
sociedade; e, se observardes, podereis ver quanto a mente se
vinculou à família. A família se tornou o meio de vosso preenchi-
mento; a família se tornou o meio de vossa imortalidade, pelo
nome, pela ideia, pela tradição. Não estou dizendo que se destrua
a família; toda revolução tem tentado fazê-lo; a família é indestru-
tível. Mas, o indivíduo precisa ficar psicologicamente livre da famí-
lia, não depender da família, interiormente. Por que depende uma
pessoa?
Já alguma vez examinastes a questão da dependência psi-
cológica? Se a tiverdes examinado a fundo, deveis saber que a
maioria de nós está terrivelmente só. Em regra temos a mente tão
superficial, tão vazia! De ordinário, não sabemos o que significa o
143
amor. E, assim, por causa dessa solidão, dessa insuficiência, dessa
privação de vida, estamos ligados a alguma coisa, estamos apega-
dos à família; dela dependemos. E quando o marido ou a esposa
vos volta às costas, tornamo-nos ciumentos. Ciúme não é amor;
mas o amor que a sociedade reconhece, na família, é considerado
respeitável. Essa é uma outra forma de defesa, uma outra forma
de fuga a nós mesmos. Como vemos, toda forma de resistência
cria dependência. A mente dependente nunca pode ser livre.
[...] Existe essa energia que é incorruptível. Ela pode viver
e atuar neste mundo. Pode operar diariamente em vossos escritó-
rios, em vossas famílias — porque essa energia é amor; não o
amor de vossa mulher e de vossos filhos, que, em absoluto, não é
amor. Aquela criação, aquela energia é destrutiva. Vede o que
fizestes para descobrir essa energia! Tudo destruistes em torno de
vós, psicologicamente; interiormente, deitastes abaixo tudo o que
a sociedade, a religião, os políticos edificaram.
Essa energia, pois, é morte. A morte é totalmente destru-
tiva. Essa energia é amor, e o amor, por consequência, é destruti-
vo, e não aquela coisa mansa de que é constituída a família, não
aquela coisa mansa que as religiões têm nutrido. Assim, aquela
energia é criação — não o poema que escreveis, não a estátua
que esculpis no mármore; isso é apenas uma capacidade e um
talento para expressar algo que se sente. Mas a coisa a que nos
referimos transcende o sentimento, transcende o pensamento. A
mente que, no sentido psicológico, não se liberta de todo da soci-
edade — sendo a sociedade: ambição, inveja, avidez, aquisição,
poder — essa mente, o que quer que faça, nunca a achará. E nós
temos de achá-la, porque ela é a única salvação do homem, por-
que só nela há ação real; e ela própria, quando atua, é ação.
[...] O espírito de posse, em qualquer forma que seja, gera
a autoridade — autoridade da família, autoridade dos livros, auto-
ridade da crença, autoridade da lei. Assim, devemos capacitar-nos
para discernir por nós mesmos a autoridade psicológica. A autori-
dade da lei é bastante óbvia — o policial, os impostos, o governo.
Não se pode desobedecer à autoridade da lei. Podeis desejar de-
sobedecer a ela, desejar não pagar impostos; e, provavelmente,
144
muita gente rica — os corruptos, em geral, são ricos — deverá
sonegar impostos. Nós temos de discernir, inteligente e livremen-
te, esta questão da obediência à lei e à autoridade psicológica. A
obediência à lei é necessária; mas, psicologicamente, a obediência
ao que quer que seja — à família, ao pai, à mãe, aos avós, à socie-
dade, é coisa má, uma vez que todo poder é mau, seja o poder do
político, do ditador, seja o poder do guru.
Assim, a obediência à família, a aceitação psicológica da
autoridade, é coisa má. Já explico por que. Não sois obrigados a
aceitar a minha palavra. Peço-vos, apenas, que escuteis. Podeis
ser extremamente apegado a vossa família; mas apego não é
amor. Podeis desejar ardentemente que vosso filho ou filha rece-
bam uma boa educação, façam um bom casamento. Mas esse
apego ao filho e à filha representa um mal, porquanto gera a au-
toridade, é sinal de posse. Porque, como disse na palestra anteri-
or, para descobrirmos o que é verdadeiro iremos deitar abaixo
toda a estrutura que a mente humana edificou através de séculos.
[...] Como disse, onde existe a posse, aí existe também o
desejo de estar em segurança psicológica, e, assim, torna-se exis-
tente a autoridade. O rico recorre à autoridade do policial, porque
deseja estar em segurança com seu dinheiro; mantém o status
quo de uma certa sociedade; não deseja revolução nenhuma; não
deseja mudança; deseja continuar no estado psicológico tradicio-
nal que a sociedade lhe facultou a autoridade do pai, a autoridade
da família, a autoridade da posse, na família — posse do filho, da
filha — e educa o filho para obedecer, ajustar-se, imitar. E nesse
ajustamento ao padrão encontra-se segurança; mas, para a mente
que busca a segurança, há sempre aflição. Só a mente livre não
conhece aflição. E a mente isenta de aflição tem de compreender
de todo a imensa estrutura da autoridade. Quando buscamos
segurança em qualquer forma que seja, fisiológica ou psicológica,
interior ou exterior, existe necessariamente o medo, gerador da
autoridade, da obediência. Em geral desejamos segurança, e en-
contramos essa segurança no possuir — possuir conhecimentos
técnicos, família, dinheiro, poder, posição, prestígio. Esse prestí-
gio, esse poder, essa família, poderão durar alguns anos; nisso
145
buscamos nossa segurança. E nosso sistema matrimonial está
inteiramente baseado nessa segurança, consistente em possuir a
esposa, o marido; e a essa posse se chama “amor”. Escutai, se-
nhores, por favor. Eu não estou atacando vosso sistema. A própria
vida o está demolindo. Só o homem inteligente será capaz de
olhá-lo, de compreendê-lo, de educar o filho ou a filha de maneira
diferente e criar, assim, um novo Estado, um novo mundo, um
novo ente humano, uma mente nova.
Qualquer forma de posse, de apego, indica impulso de
domínio. Tais são as condições da família: domínio sobre a esposa
ou sobre o marido (a que se chama “amor”) ; domínio sobre os
filhos, interesse em casá-los ricamente; só isso vos interessa, isto
é, encontrar segurança para vós mesmo e para vossos filhos. A
isso chamais “amor”.
Assim, o “processo” e a estrutura da autoridade começam
com a família, e a família constitui a base desse desejo de segu-
rança. Não há nada “seguro” no mundo — nem vossas ideias, nem
vossos livros, nem vossos deuses, nem vosso ritual; nada em que
se possa confiar — nem mesmo em vossa família, nem no dinhei-
ro depositado no banco; pois pode vir o comunismo, pode vir o
socialismo, pode sobrevir uma revolução, um terremoto, qualquer
coisa pode acontecer. E alguma coisa há de acontecer. Para que
um homem esteja cônscio de tudo isso e perceba que a realidade
não é só para o rico ou para o pobre, deverá compreender a es-
trutura da autoridade, baseada na segurança, a qual tem suas
raízes na família. E o homem que busca a realidade deverá destru-
ir, psicologicamente a família. Refleti! Esta é a razão por que os
sannyasis e os monges abandonam a família; entretanto, não
abandonam a estrutura psicológica; abandonam uma família, um
nome, mas adotam novo nome e, psicologicamente, continuam
condicionados; continuam a obedecer, a seguir um certo padrão
de pensamento, resultante da sociedade, do meio cultural em que
viveram e cresceram. Os monges cristãos e os sannyasis hinduís-
tas não são entes humanos livres; abandonaram o chamado
“mundo exterior” e trocaram de roupas — só isso. Nenhuma troca
de roupas dá liberdade a ninguém; tão pouco a dá o tomar uma só
146
refeição ao dia ou usar uma tanga. O que traz a liberdade é a
compreensão da autoridade.
[...] Ao verdes isso, ao compreenderdes isso, então, com
essa compreensão, surgirá o amor — pois a autoridade e o amor
nunca poderão coexistir, e tampouco podem coexistir o apego e o
amor. Mas, vós sois apegados — não sois? — a vossas famílias,
vossas ideias, vossos gurus, vossas visões, vossos rituais, vosso
dinheiro. E ainda falais de amor! Para vós, amor é segurança. E
como pode a mente que impõe a obediência, que está ensinando
todo mundo a ajustar-se, que só se mostra empenhada na aquisi-
ção de conhecimentos mundanos, técnicos — como pode essa
mente amar? O que desejais é só segurança, para vós mesmos e
para vossos filhos. Só nisso estais interessados, e em levá-los a
ajustar-se. Ora, amor não é apego. O amor nenhum motivo tem; e
o amor é árduo, exige trabalho ingente, trabalho psicológico — e
não que fiqueis sentado à sombra de uma árvore, ou que prati-
queis ritos ou disciplinas. Isso não é trabalho, é falta de madureza,
pura infantilidade.
Mas, para vos investigardes profundamente, tereis de le-
var vossa investigação até o fim. E, então, dessa liberdade, surgirá
o amor. Mas, vede, a maioria de nós se satisfaz com amar superfi-
cialmente; em geral nos satisfazemos com ganhar nosso sustento,
se conseguimos um modesto emprego, onde nos deixamos estio-
lar. Em geral, estamos satisfeitos com nossa conta bancária, se
somos ricos; e gostamos de tagarelar a respeito de Deus, rituais,
etc. etc.
Mas nossos corações estão vazios, tornaram-se vazios sob
a influência de uma mente embotada, estúpida, que só pensa em
termos de autoridade e obediência. Assim, a destruição da estru-
tura da sociedade, que é vosso cérebro, que sois vós, é uma abso-
luta necessidade para o homem verdadeiramente interessado em
descobrir o imensurável, em descobrir se existe essa coisa chama-
da “O Imensurável”.
Desse modo, a autoridade, que engendra o poder, é coisa
má. O homem poderoso, o homem de posição, de prestígio, é tão
terrível e tão venenoso como uma serpente; a mente religiosa
147
nada tem que ver com tais pessoas. Nenhum homem rico chegará
a saber o que é o amor, enquanto o dinheiro for o seu Deus. Neste
país, infelizmente, os poderosos, os ricos, estão moldando as
mentes dos demais. Ninguém trata de libertar-se dessa estrutura.
Tornaram-se todos “conformistas”, todos dizem “sim”, ninguém
diz “não”. E o dizer “não” não é revolta, porém compreensão psi-
cológica de toda a estrutura da atual sociedade.
O homem, pois, que deseja ser livre, que deseja compre-
ender o Real, tem de libertar-se da estrutura psicológica da socie-
dade; esta é a primeira coisa que tem de fazer — e, não, praticar
ritos, frequentar igrejas, etc. — coisas que perderam todo o valor
e nas quais não se pode confiar.
Deveis estar completamente só. Há beleza neste estar só,
que é amor.
Só nessa solitude se encontra a possibilidade de descobrir
o indenominável, o imensurável.
[...] Vós tendes de descobrir o que é meditação. Importa
saber o que é meditação; não “como” meditar, não o sistema, a
prática, porém a essência da meditação. O estado de espírito ade-
quado, a disposição para meditar, requer uma mente bem gene-
rosa, uma mente sem limites, uma mente não aprisionada no
processo do tempo. A mente que não está ligada a coisa alguma
— a nenhuma atividade, nenhum pensamento, nenhum dogma,
nenhuma família, nenhum nome — só essa mente pode ser gene-
rosa; só essa mente pode começar a compreender a profundeza, a
beleza, a extraordinária doçura da meditação.

A mutação interior

148
[...] APARTE: Sentimo-nos agrilhoados ao nosso condicio-
namento, em virtude de nossos deveres para com a sociedade e a
família.
Krishnamurti: Diz este cavalheiro, com toda a razão, que
estamos agrilhoados pelos nossos deveres para com a família, a
sociedade, nosso emprego, nossa pátria, a religião em que fomos
criados, etc. etc. É assim que, quando nos vemos frente a frente
com a necessidade de termos uma mente de todo nova, contra-
pomos a família, a sociedade, ao fato. E, por essa razão, há confli-
to entre o fato e aquilo que concebeis como vosso dever, não é? E
é assim que, para fugir desse conflito, um homem ingressa num
mosteiro, torna-se monge, ou isola-se interiormente; constrói um
hábito em torno de si e aí fica vivendo. Ora, senhores, quando
empregais as palavras “dever”, “responsabilidade”, estais-vos
pondo em oposição à liberdade. Mas, se percebêsseis o fato sobre
o qual estivemos falando, teríeis então uma maneira de agir com-
pletamente diferente, em relação a vossa família e à sociedade.
Como vedes, estou voltando à questão da ação e talvez
forçando um pouco as conclusões. É bem de ver que todos dese-
jamos “fazer alguma coisa” de nossa vida. Conheço pessoas, pelo
mundo inteiro, que se disciplinaram rigorosamente, por deseja-
rem descobrir o que é correto fazer. Essas pessoas se isolaram,
renunciaram a tudo, obedeceram a preceitos religiosos e fizeram
esforços tremendos; e o resultado final é que são entes humanos
mortos, estiolados. Foi o constante esforço para ser alguma coisa,
tornar-se alguma coisa, que os destruiu. E quando pomos a socie-
dade e a família em oposição à liberdade, o que fazemos é apenas
introduzir o fator de conflito. E eu vos digo: não introduzais o
elemento de conflito. Vede a verdade aí existente, e esse próprio
percebimento se encarregará das relações. Como disse, para a
maioria de nós ação é puramente reação. Eu vos lisonjeio, e vós
reagis; ou vos insulto, e reagis. Nossa ação é sempre reação. E eu
estou falando a respeito de coisa diferente, da ação que não é
reação, porém ação total. Isto não é nenhuma ideia singular, ex-
travagante, fantástica, de minha própria cabeça. Mas, se obser-
vásseis diretamente a coisa, na sua totalidade, se observásseis o
149
mundo, as pessoas, estudando-as, olhando-as realmente — os
grandes, os pequenos, os chamados santos e os chamados peca-
dores — veríeis que todos edificaram suas vidas no conflito, na
luta, na repressão e no temor, e veríeis os horrores que daí resul-
tam. Para ficardes livres de tudo isso, tendes de primeiramente
vê-lo.
Aparte: Há tanto condicionamento inconsciente!
Krishnamurti: Considerai isso, por favor. Todos vivemos
em nossa mente consciente, superficial, e como podeis clarear
todas as camadas, todas as seções do inconsciente, sem perder
uma única? É possível a mente consciente penetrar em algo in-
consciente, oculto? Ora, sem dúvida, o que posso fazer é só ob-
servar, permanecer completamente desperto, vigilante, o dia in-
teiro — quando trabalho, quando descanso, quando passeio,
quando falo — para que tenha uma noite sem sonhos. Começa-
mos falando sobre uma revolução que não é resultado de cálculo
e pensamento; porque o pensamento é mecânico, o pensamento
é reação. O comunismo é reação ao capitalismo; se eu abandonar
o catolicismo e me tornar outra coisa, isso é ainda uma reação.
Mas, sê percebo a verdade de quê pertencer a qualquer
coisa, crer em qualquer coisa significa estar apegado a uma certa
forma de segurança e impedindo, por consequência, o percebi-
mento do que é verdadeiro, não há então conflito, nem esforço.
Estou vendo, pois, que a ação que é reação, não é ação,
de modo nenhum. Desejo descobrir o que é a liberdade. Percebo
a imperiosa e urgente necessidade de ter uma mente nova, e não
sei o que faça para ter. Assim, fico preocupado acerca do que
“devo fazer”; por conseguinte, estou dando toda a importância ao
que “devo fazer” e não à mente nova. “O que devo fazer” tornou-
se, pois, de suma importância, e rogo: “Tende a bondade de me
dizer” — e deste modo cria-se a autoridade, a coisa mais pernicio-
sa deste mundo.
Assim sendo, podemos perceber interiormente, ver este
fato real: que toda ação é reação; que toda ação nasce do impulso
para realizar, alcançar, tornar-se algo, chegar a alguma parte?
Posso perceber este fato realmente, sem introduzir “o que devo
150
fazer”, “minha família”, “meu emprego” e outras coisas que tais?
Porque, se a mente percebe o fato, sem traduzi-lo nos termos do
velho, há então percepção imediata; compreender-se-á então a
ação que não é reação; e essa compreensão é uma qualidade es-
sencial da mente nova.
[...] Pergunta: Que é que nos está impedindo de examinar
profundamente um dado problema?
Krishnamurti: O que nos está tolhendo? Uma porção de
coisas, não é verdade? Desejais de fato examinar muito profun-
damente o problema do medo? Sabeis o que isso significa? Signifi-
ca sondar todos os recantos da mente, deitar abaixo todos os
abrigos, despedaçar todos os refúgios da mente. E desejais fazer
isso, desejais abrir-vos a vós mesmos? Por favor, não digais tão
prontamente “sim”. Isso significa abandonar muitas coisas a que
estais apegados. Poderá significar abandonar vossas famílias, vos-
sos empregos, vossas igrejas, vossos deuses e tudo mais. Mui
poucos desejam tal coisa. Por isso, fazem perguntas superficiais —
por exemplo, “como ficar livre do medo?” — e pensam que assim
fica resolvido o problema. Ou perguntam se existe Deus — refleti
na estupidez de tal pergunta! Para se descobrir se existe Deus,
cumpre abandonar todos os deuses, não achais? Precisais estar
despojado de tudo, para o descobrirdes; todos os absurdos que o
homem edificou, concernentes a Deus, precisam ser reduzidos a
cinzas. Isso significa ser sem medo, jornadear sozinho; e mui pou-
cos estão dispostos a tal.
[...] Pergunta: É possível distinguir entre “estar identifica-
do com o que vemos” e “viver com o que vemos”?
Krishnamurti: Por que desejamos identificar-nos com al-
guma coisa? A fim de nos tornarmos mais importantes, mais no-
bres, mais interessantes, não é exato? Queremos dar significação
à vida, porque a vida nenhuma significação tem para nós. Por que
deve uma pessoa identificar-se com a família, o amigo, uma ideia,
uma nação? Por que não abandonar completamente a identifica-
ção e viver a todas as horas com “o que é” — sempre cambiante,
nunca estático?

151
Pergunta: Se não nos identificamos com coisas, então, su-
ponho eu, podemos viver completamente alheios a tudo.
Krishnamurti: O fato é que vivemos dentro de nosso es-
treito círculo, com nossos mesquinhos ciúmes, nossas vaidades,
nossas práticas estúpidas. Tal é nossa vida; e temos de enfrentá-
la, em vez de nos identificarmos com os deuses, as montanhas,
etc. É muito mais difícil, requer mais intensidade e inteligência
viver com a coisa que é, sem tentar modificá-la, do que viver com
Jesus — que é mera fuga.
[...] Pergunta: Como podem as pessoas, inclusive eu pró-
prio, ter esse amor da realidade?
Krishnamurti: Vós não o podeis ter, senhor; não o podeis
comprar. Para os que não conhecem o amor, não há sacrifício ou
barganha que o traga. Como se obtém o amor? Por meio de exer-
cício, de esforço, da ordem de amar, dia após dia, ano após ano?
A simples amabilidade não é amor; mas o amor inclui a amabili-
dade, a delicadeza, a consideração para com outro. Vede, o amor
não é um resultado final; e no amor não há apego. Só vem o amor
quando não há medo. Um homem pode ser casado, viver com sua
família, e amar sem apego. Mas isso é incrivelmente difícil; requer
vigilância de todas as horas.

O passo decisivo

152
[...] O TREM PARA FLORENÇA desenvolvia uma velocidade
de 150 quilômetros horários. Aquela paisagem nos era familiar: as
cidades sobre as encostas dos morros, o lago, a oliveira, o cipreste
e a estrada paralela à linha do trem. A terra recebia contente a
chuva que caía depois de um longo período de seca, tornando os
rios caudalosos e barrentos e reanimando a vegetação. O trem
seguia por entre os vales, causando estardalhaço nos cruzamentos
e, sempre que reduzia a marcha, os trabalhadores do local acena-
vam aos passageiros. Manhã agradável e fria, em que o outono
tingia as folhas de ocre e amarelo; os camponeses aravam fundo a
terra para a semeadura do inverno, e era acolhedora a visão dos
morros centenários de pouca altura. Assim que o trem retomou a
velocidade habitual, seus condutores nos saudaram, convidando-
nos a visitar sua cabine, pois nos conheciam das anteriores via-
gens. Esse convite fora feito pouco antes da partida do trem e,
agora, sua atitude era tão afável e acolhedora quanto a dos rios e
dos montes. De sua cabine tinha-se uma visão completa da paisa-
gem, que parecia à espera do costumeiro apito do trem. O sol
iluminava alguns dos montes e a superfície da terra parecia sorrir.
Rumo ao norte, o céu clareava, contrastando com o delicado es-
plendor do cipreste e da oliveira. A terra, como sempre, estava
bela.
Estranha coisa o amor, que se tomou tão respeitável: o
amor a deus, o amor ao semelhante, o amor à família. Primoro-
samente demarcado como sacro e profano, como dever e respon-
sabilidade, como disciplina e sacrifício, tanto os padres como os
generais, ao planejarem as guerras, invocam o amor. Os políticos
e as donas-de-casa sempre se queixam dele. O ciúme e a inveja
alimentam o amor, que serve de prisão a toda forma de relacio-
namento. Ele está nas telas dos cinemas, nas páginas das revistas,
e cada estação de rádio e televisão o apregoa. Ao findar o objeto
do amor, surge a foto emoldurada na parede, ou a imagem culti-
vada pela memória ou pela crença. Esses valores passam de gera-
ção a geração, sem que o sofrimento tenha fim.
A continuidade do amor resulta no prazer, sempre acom-
panhado da aflição; apegados ao prazer, lutamos para nos des-
153
vencilhar da dor. Através da continuidade se busca a permanência
e a certeza nas relações.
Ao evitar-se qualquer mudança nas relações, fica-se enre-
dado na sensação opressiva da segurança e na agonia do hábito.
E, tachando de amor esse fluxo incessante de prazer e dor, tor-
namo-nos prisioneiros daquela obsessão. Para escapar ao tédio
buscamos refúgio na religião e no romantismo, variável de acordo
com as pessoas, que, em verdade, é uma fuga eficaz perante o
fato do prazer e da dor. Sem esquecer, é claro, deus, o maior ape-
lo e a derradeira esperança da humanidade, e o qual se tornou
tão respeitável e lucrativo.
Nada disto é amor. Não há continuidade no amor; ao con-
trário da memória, ele ignora o amanhã ou o futuro. As recorda-
ções nascem das cinzas do passado, mas o amor é livre do jugo do
tempo e desconhece a promessa, a esperança ou o desespero. O
cérebro não pode conceber o amor pois este não pertence a ne-
nhuma crença, símbolo ou sentimento. De sua eterna morte e
ressurreição advém a destruição definitiva, o aniquilamento do
conhecido, os quais são o próprio amor.

Diário de Krishnamurti

154
[...] PERGUNTA: Falais frequentemente de relações. Que
significação dais a isto?

Krishnamurti: Em primeiro lugar, não existe o estar isola-


do. Ser é estar em relação, e sem relações não há existência. Que
entendemos por relações? Uma relação recíproca de desafio e
reação entre duas pessoas, entre vós e mim, o desafio que vós me
lançais e que eu aceito ou a que reajo e, também, o desafio que
vos lanço. As relações entre duas pessoas criam a sociedade; a
sociedade não é independente de vós e de mim; a massa, em si,
não é uma entidade separada, mas vós e eu, em nossas relações,
criamos a massa, o grupo, a sociedade. Relações é o percebimen-
to da reciprocidade entre duas pessoas. Em que se baseiam essas
relações, geralmente? Não se baseiam na chamada interdepen-
dência, na assistência mútua? Pelo menos dizemos que elas são
ajuda mútua, assistência mútua, mas na realidade, abstraindo das
palavras, abstraindo da cortina emocional que estendemos uns
diante dos outros, em que se baseiam elas? Na satisfação mútua,
pois não? Se não vos agrado, vós vos livrais de mim, se vos agra-
do, vós me aceitais, como esposo, como vizinho, como amigo. Isto
é um fato.
Que é isso a que se chama família? É evidentemente uma
relação de intimidade, de comunhão. Na vossa família, nas vossas
relações com vossa esposa, vosso marido, há comunhão? Por cer-
to, é isto que se entende por relações, não é verdade? Relações
significa comunhão isenta de temor, liberdade para nos compre-
endermos uns aos outros, para nos comunicarmos diretamente.
Relações, obviamente, significa: estar em comunhão com outrem.
Estais em comunhão? Estais em comunhão com vossa esposa?
Talvez estejais, fisicamente, mas isso não são relações. Vós e vos-
sa esposa estais vivendo em lados opostos de uma muralha de
isolamento, não é verdade? Tendes vossos interesses e ambições
pessoais, e ela tem os seus. Estais, os dois, vivendo atrás da mura-
lha e vez por outra vos olhais por cima dela — a isso chamais estar
em relação. Isto é um fato, não? Podeis engrandecê-lo, atenuá-lo,
inventar novos conjuntos de palavras para o descreverdes, mas o
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fato é este; vós e outra pessoa estais vivendo no isolamento e a
essa vida de isolamento chamais relações.
Se há verdadeiras relações entre duas pessoas, vale dizer,
se há comunhão entre elas, o que daí decorre é de enorme signifi-
cação. Não há então isolamento; há amor, e não responsabilidade
ou dever. Só as pessoas que vivem isoladas, atrás das suas mura-
lhas, falam de dever e responsabilidade. O homem que ama não
fala de responsabilidade: ama. Por conseguinte, divide com outro
suas alegrias, seus sofrimentos, seu dinheiro. São assim vossas
famílias? Há comunhão direta com vossa esposa, com vossos fi-
lhos? Evidentemente, não há. Portanto, a família só serve de pre-
texto para a continuação de nosso nome ou tradição, para nos dar
o que desejamos, sexual ou psicologicamente, e se torna assim
um meio de autoperpetuação, um meio de conservar o nome. Isto
já é uma espécie de imortalidade, uma espécie de permanência. A
família é também utilizada como meio de satisfação. Exploro ou-
trem, sem piedade, no mundo dos negócios, no mundo político ou
social, fora de casa, e em casa procuro ser bom e generoso. Que
absurdo! Ou, o mundo me cansa, quero paz, e refugio-me no lar.
Sofro no mundo e busco conforto no liar. Servem-me pois as rela-
ções como meio de satisfação, o que significa que não desejo ser
perturbado pelas minhas relações.
Procuramos relações, quando há satisfação mútua. Quan-
do não encontramos essa satisfação, mudamos de relações ou nos
divorciamos ou, se continuamos a viver juntos, buscamos a satis-
fação noutra parte ou passamos de uma relação para outra, até
acharmos o que buscamos: a satisfação, o sentimento de proteção
pessoal e conforto. Afinal de contas, são estas as nossas relações
no mundo. Tal é o fato. Procuram-se relações onde se encontra
segurança, onde o indivíduo possa viver em estado de segurança,
em estado de satisfação, em estado de ignorância — estados cau-
sadores de conflito, não é verdade? Se não me satisfazeis e estou
em busca de satisfação, tem de haver conflito, naturalmente, por-
que ambos estamos procurando a segurança um no outro. Quan-
do esta segurança se torna incerta, vós vos tornais ciumento, vos
tornais violento, quereis possuir, etc. As relações, pois, redundam
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invariavelmente em posse, condenação, em arrogantes exigências
de segurança, de conforto, de satisfação, e nisso, naturalmente,
não há amor.
Falamos de amor, falamos de responsabilidades e deve-
res, mas de fato não existe amor. As relações estão baseadas na
satisfação, cujos efeitos estamos observando na civilização atual.
A maneira como tratamos nossas esposas, nossos filhos, vizinhos,
amigos, indica que nas relações não há, realmente, amor. Elas
constituem simples busca de mútua satisfação. Assim sendo, qual
é a finalidade das relações? Qual sua significação fundamental? Se
observais a vós mesmo, nas relações com outros, não descobris
que as relações constituem um processo de auto-revelação? Meu
contato convosco não revela meu próprio estado de ser, se estou
bem cônscio, se estou bem vigilante, para perceber minhas rea-
ções, nas relações? As relações são, com efeito, um processo de
auto-revelação, vale dizer, um processo de autoconhecimento.
Essa revelação nos apresenta muitas coisas desagradáveis, pen-
samentos e atividades desconfortáveis e inquietantes. Como não
gosto das coisas que descubro, fujo das relações que são desagra-
dáveis, para outras que sejam agradáveis. As relações, por conse-
guinte, têm muito pouca significação, quando estamos apenas em
busca de satisfação mútua, mas se tornam extraordinariamente
significativas quando constituem um meio de auto-revelação e
autoconhecimento.
Afinal, no amor não há relações, há? Só quando amais e
esperais retribuição desse amor, há relação. Quando amais, isto é,
quando vos dais inteiramente, completamente, não há relações.
Se amais, se existe um tal amor, ele é então uma coisa
maravilhosa. Neste amor não há atrito, não há um e outro, há
união completa. É um estado de integração, um ser completo.
Existem desses momentos, desses momentos raros, felizes, festi-
vos, em que reina um amor completo, uma comunhão completa.
O que em geral acontece é que o importante não é o amor, mas
"o outro”, o objeto do amor; aquele a quem damos nosso amor se
torna importante, e não o próprio amor. Então, o objeto do nosso
amor, por várias razões, biológicas ou verbais, ou em virtude de
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um desejo de satisfação, de conforto, se torna importante, e o
amor se retrai. Depois, a posse, o ciúme, as exigências, criam con-
flito, e o amor se retrai mais e mais. E quanto mais ele se retrai,
tanto mais o problema das relações perde em significação e valor.
Por conseguinte, o amor é uma das coisas mais difíceis de com-
preender. Ele não pode vir em virtude de uma exigência intelectu-
al, não pode ser fabricado por variados métodos, meios e discipli-
nas. Ele é um estado de ser em que cessaram as atividades do
"eu”. Essas atividades não cessarão, se apenas procurais recalcá-
las, evitá-las ou discipliná-las. Tendes de compreender as ativida-
des do "eu” em todas as diferentes camadas da consciência. Há
momentos em que realmente amamos, em que não há pensa-
mento nem móvel algum; mas tais momentos são raríssimos. Por-
que raros, a eles nos apegamos, com a memória, criando uma
barreira entre a realidade viva e a ação da nossa existência de
cada dia.
Para compreender as relações, importa compreender em
primeiro lugar o que é, o que realmente está sucedendo em nossa
vida, em formas tão variadas e sutis; e compreender também o
que realmente significam às relações. As relações são auto-reve-
lação. Porque não desejamos ser revelados a nós mesmos, nós
nos refugiamos no conforto e as relações perdem sua extraordiná-
ria profundidade, significação e beleza. Só pode haver relações
verdadeiras quando há amor; amor, porém, não é busca de satis-
fação. Só existe amor quando há auto-esquecimento, comunhão
completa, não entre dois, mas comunhão com o supremo, o que
só pode acontecer quando o "eu” não está na lembrança.

A primeira e a última liberdade


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