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José Paulo Paes e a inversão do hipertexto: análise do

uso de metáforas visuais em Meia palavra (1973)


Maurício Guilherme Silva Júnior
UFMG / UNI-BH

Índice 1 Introdução
1 Introdução 1
2 O mínimo como caminho 4 Para aquele jovem literato em formação, e
3 Jogos lúdicos 8 também estudante de Química na Curitiba
4 A inversão hipertextual de Paes 11 dos anos 1940, o ofício de poeta resumia-
5 Os poemas: análise concisa 13 se ao talento do amigo paranaense Glauco
6 Conclusão 15 Flores de Sá Brito. A aguçada atenção
7 Referências 15 sobre a atividade literária do autor de O
marinheiro (1947), primeiro livro de poe-
mas lançado por Brito, estimulara um cu-
rioso José Paulo Paes a desvendar não só o
RESUMO: que havia de especial na lírica espontânea
do “camarada de lutas literárias” (PAES,
No referido artigo, analisou-se o uso de 1997, p. 182), mas também de enig-
metáforas visuais no livro Meia palavra mático na produção de badalados autores
– cívicas, eróticas e metafísicas (1973), modernistas. “Grande alquimista” na in-
do poeta paulista José Paulo Paes (1926- fância, quando produzia poções mágicas no
1998). Além da reconstituição de car- quartinho-laboratório construído pelo pai no
acterísticas centrais à poética do escritor, quintal de casa, Paes partiria, não racional-
confrontaram-se os conceitos de “hiper- mente, em busca da “pedra filosofal” de sua
texto” e “transleituras” – cunhados, respec- própria poética futura: a arte de transformar,
tivamente, por Pierre Lévy e pelo próprio na mais simples e fina concisão, a experiên-
J.P.Paes – para análise de três poemas visuais cia cotidiana em poesia.
do livro aqui abordado. José Paulo enxergava Glauco como poeta
Palavras-chave: José Paulo Paes. Mod- “no sentido mais forte da palavra” (PAES,
ernismo. Poesia visual. Hipertexto. 1997, p. 182). Em ensaio dedicado a
Brito, escrito já na década de 1990, Paes ex-
plica a capacidade lírica do colega curitibano
através da distinção entre o criador autên-
2 Maurício Guilherme Silva Júnior

tico, ou poeités – caso de Glauco –, e o tido algum. Causavam-lhe perplexidade, em


mero versejador, stixopoiós. No ofício do cada poema, a “linguagem rasteira de to-
amigo, Paes percebe a natural espontanei- dos os dias” (PAES, 1996, p. 34) e a pre-
dade da poesia, que nasce repentina e facil- sença de “palavras e idéias amiúde destituí-
mente, fruto direto da inspiração, e não da das de ligação lógica entre si” (PAES, 1996,
inteligência. p. 34). Tão acostumado aos preceitos par-
A produção poética de Brito, pois, faz nasianos de poesia elevada, cuja métrica e
com que o jovem paulista de Taquaritinga retórica destinavam-se ao elogio dos “deuses
proponha-se a retirar de dentro do caixote olímpicos, da temática greco-romana, do
onde guardava livros as “nebulosas” obras ideal objetivo, descritivo, marmóreo e es-
de poetas modernistas, adquiridas anos antes cultural” (SILVA BRITO, 1958), Paes nada
em sebos de São Paulo. Diante dos ol- compreendia do despojamento poético dos
hos de José Paulo Paes, os versos livres modernistas. Segundo o próprio poeta: “Eu
de Manuel Bandeira1 , Carlos Drummond de lia e relia Bandeira e Drummond sem lhes
Andrade e Murilo Mendes2 não faziam sen- entender os propósitos, embora desconfiasse
1
Manuel Bandeira foi decisivo no ingresso de que tinham algum” (PAES, 1996, p. 8).
Paes à prática modernista de poetizar. Em ensaio ded- Em certo dia de insônia, acontece o “es-
icado à obra pré-modernista de Bandeira – caracteri- talo de Vieira” (PAES, 1996, p. 34). Por iro-
zada em A cinza das horas, Carnaval e O ritmo disso- nia, como num breve poema do próprio José
luto –, o poeta de Taquaritinga lembra a própria sur-
Paulo Paes, cuja obra futura seria marcada
presa diante daqueles versos com certo caratér “des-
viante”, que, além de ultrapassarem “a estreiteza das pela apurada busca de concisão, o entendi-
jaulas epigônicas” do parnaso-simbolismo, contin- mento dos “propósitos” modernistas fixa-se
ham já o gérmen da revolução que, mais tarde, seria na mente do jovem paulista num átimo: abre-
o modernismo. Nas palavras de Paes: “Foi lendo e se diante de Paes um novo e inquietante hor-
relendo a obra poética de Manuel Bandeira, na antiga
izonte, rumo ao qual, a partir de então, dire-
edição de 1944 publicada pela Americ=Edit, que con-
segui chegar ao entendimento e fruição de poesia ciona sua nau de “poeta em embrião” (PAES,
moderna. Isso nos idos da adolescência, dois ou três 1996, p. 34).
anos depois de completado o curso ginasial, do qual O estalo vivenciado por Paes pode ser
saíra eu com a anacrônica concepção de ser poesia traduzido como o que Hugo Friedrich (1978)
um tipo de linguagem obrigatoriamente rimada, met-
rificada e enfeitada” (PAES. Pulmões feitos corações.
chama de tensão desviante, terminologia
In: Os perigos da poesia e outros ensaios, p.115). representativa da principal busca da arte
2
José Paulo Paes haveria de buscar muita com- moderna: a possibilidade de surpreender o
preensão em Murilo Mendes. Na visão do paulista, o receptor. Além de fascinar, as expressões
poeta mineiro, instaurador e profeta de certa “bagunça artísticas da modernidade buscariam descon-
transcendente” na literatura brasileira, fora um dos
poetas que mais bem incorporara – e talhara – os
certar o leitor, utilizando-se, para tal, do re-
fundamentos da revolução de 22. A dizer de outra aprofundar e dramatizar – sem descambar no patético
forma, Paes o considerava o mais apto a manter vivo ou perder seu travo de humor modernista – na visada
o ímpeto dos modernistas, sem, em momento algum, universal de O visionário e livros subseqüentes [de
radicalizá-lo. “Pois o que era cosmopolitismo turís- Murilo Mendes]” (PAES. O poeta/profeta da bagunça
tico ou nacionalismo pitoresco na poesia do Oswald transcendente. In: Os perigos da poesia e outros en-
e do Mário da fase primitivista vai-se essencializar, saios, p.171).

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curso da “dissonância”, aqui explicado como Dever-se-ia dizer: pensa-se em


a capacidade, na poesia moderna, de se in- mim”. Ao redimir o eu poético do
tegrar “incompreensibilidade e fascinação” comprazimento em si a que o acos-
(FRIEDRICH, 1978, p. 15). O autor afirma tumara o individualismo român-
que a poesia quer ser “ma criação auto- tico e ao impessoalizar-lhe o olhar
suficiente, pluriforme na significação, con- até o ponto crítico de ele se ver
sistindo em um entrelaçamento de tensões como outro, a lírica moderna põe
de forças absolutas, as quais agem sugesti- definitivamente em xeque a ipsei-
vamente em estratos pré-racionais, mas tam- dade [princípio de individuação]
bém deslocam em vibrações as zonas de mis- do poeta. O exemplo mais teatral
tério dos conceitos” (FRIEDRICH, 1978, p. é o dos heterônimos de Pessoa e
16). do “fingimento” como estratégia
Segundo o crítico, “transformar”, no que de despersonalização. Foi o que,
tange à língua e ao mundo, é o comporta- em compasso microscópico, tentei
mento prioritário da lírica moderna. Além exprimir num epigrama, “O último
disso, o artista não mais participa de sua cri- heterônimo”, que diz: “O poema é
ação como pessoa particular, mas como “in- o autor do poeta.” (PAES, 1997, p.
teligência que poetiza” (FRIEDRICH, 1978, 167)
p. 17). Para Friedrich, “a língua poética
adquire o caráter de um experimento, do qual Anteriormente ao “estalo de Vieira”, so-
emergem combinações não pretendidas pelo bre o qual já se discorreu, José Paulo Paes é
significado, ou melhor, só então criam o sig- despertado para a poesia ao ler O corvo, de
nificado” (FRIEDRICH, 1978, p. 17). Na Edgar Allan Poe, em tradução de Machado
poesia moderna, tal possibilidade de impes- de Assis. A atmosfera sombria dos versos de
soalização do autor, aliada à força do verso Poe leva-no, naturalmente, ao interesse pela
livre – cujas combinações3 de linguagem for- “visada cósmica e o pessimismo existencial”
mam o próprio significado do poema – en- (PAES, 1996, p. 6) de Augusto dos Anjos,
canta José Paulo Paes. Ao comentar a análise sua primeira referência literária. A partir da
que Friedrich faz da poética de Rimbaud, por leitura de Eu, obra, segundo o próprio Paes,
exemplo, Paes ressalta o quanto o crítico muito longe do “convencionalismo” encon-
trado à época nos manuais de língua por-
não se esquece de completar a tuguesa, o jovem literato passa a compreen-
frase: “É falso dizer: penso. der a poesia “como linguagem de descoberta
3 e apropriação do mundo; como fala inaugu-
Para Friedrich, na lírica moderna, “traços de
origem arcaica, mística e oculta, contrastam com ral diante da surpresa da vida, a vida de fora
uma aguda intelectualidade, a simplicidade da ex- e a vida de dentro” (PAES, 1996, p. 6).
posição com a complexidade daquilo que é expresso, A leitura dos versos do poeta paraibano,
o arredondamento lingüístico com a inextricabili- cuja obra centra no ser humano “todas as
dade do conteúdo, a precisão com a absurdidade, a
energias do universo”, apresenta-se como o
tenuidade do motivo com o mais impetuoso movi-
mento estilístico” (FRIEDRICH. Estrutura da lírica contato inicial de José Paulo Paes com uma
moderna, p.16). poesia bastante calcada na construção desse

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“mistério que é o ‘eu”’ (BOSI, 1976, p. 322). (1947), livro de estréia do autor, com ver-
Em certa medida, Augusto dos Anjos é re- sos nitidamente carregados da herança do
sponsável por ressaltar no escritor paulista modernismo, o autor paulista revela-se um
o primeiro gosto pelo ofício poético. Aos “poeta que ainda não chegara a escrever
16 anos, Paes escreve os primeiros versos, os próprios poemas”, segundo expressão de
plágios confessos da obscuridade do Eu, que Carlos Drummond de Andrade, cuja opinião
representam o mergulho definitivo do poeta de crítico/leitor foi que, de fato,
no oceano literário pré-modernista.
as influências são sensíveis em
Além do obscurantismo de Augusto dos
v. [José Paulo Paes], e até con-
Anjos, contudo, até 1945, as preocupações
fluências (“Canção do afogado”
estéticas de José Paulo Paes mantêm-se atre-
identifica-se com “Balada”, do
ladas à realidade dos dramas sociais, frutos
Glauco; são simultâneas?). A ver-
da instabilidade política do período, quando
dade é que há um ar de família
da eclosão da Segunda Guerra Mundial
entre os novos poetas brasileiros,
(PAES, 1996, p. 10). Do ponto de vista
ar de família que estou aflito para
literário, e mais especificamente, poético,
eles perderem, marchando cada
eram tempos de consolidação do traço mod-
um para o seu rumo difícil. (AN-
ernista e de definitiva valorização dos versos
DRADE, 1997, p. 35)
livres.
A preocupação social afeta muito o jovem O recado de um dos mestres acaba por se
José Paulo Paes, de quem os primeiros ver- revelar vital ao futuro literário de Paes. Tanto
sos livres, ao invés de se espelhar nos mod- é que o poeta paulista, em outro período de
ernistas, são escritos segundo o molde dos sua vida, ressaltaria exatamente o quanto o
Poemas proletários (s/d), de um hoje es- conselho da carta de Drummond fora respon-
quecido Paulo Torres. Tal produção poética sável por seus primeiros frutos literários:
surge como extensão natural do sentimento “Anos mais tarde, numa entrevista, eu diria
político que caracteriza o período. Segundo que toda a minha trajetória de poeta se ori-
o próprio Paes, que à época lia entusias- entou para a conquista de uma voz própria,
ticamente Cacau e Suor (1931), de Jorge fraca que fosse, mas minha” (PAES, 1996, p.
Amado, além de livros de divulgação marx- 15).
ista e romances políticos de Gorki, Gladkov
e Malraux, dentre outros, “uma angústia in-
definida nos roía por dentro, refletindo-se no 2 O mínimo como caminho
que tentávamos escrever” (PAES, 1996, p.
10).
Apesar disso, curiosamente, Paes revela- Carlos Drummond de Andrade, portanto, fiz-
se ao universo das letras como estrito apren- era o autor atentar para uma de suas princi-
diz dos modernistas, sem maior influência pais preocupações: ter sua arte própria, por
do mistério de Augusto dos Anjos ou das mínima que se configurasse4 . Neste ponto,
preocupações ideológicas de Paulo Torres. 4
Na referida carta, Drummond dá ainda outra
Nos nove poemas que compõem O aluno importante sugestão a José Paulo Paes, que o mar-

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é interessante lembrar, inclusive, a natural do autor sulista, o que sempre considerara


polissemia intrínseca ao adjetivo “mínima” uma das mais importantes lições da poética
na poesia de Paes. Muito além de mera de vanguarda. Trata-se da “atenção sempre
modéstia intelectual, pode-se dizer que a ex- voltada para a fisicalidade da palavra em si,
pressão “arte mínima” da frase é nada menos de modo a poder atualizar-lhe as possibili-
que o leit motiv de sua obra. Desde cedo dades de desdobramento semântico, as mais
ciente das auroras, e dos revezes da vida, das vezes por via paronomásica” (PAES,
o poeta encontra na miniaturização artística 1996, p. 86). É importante ressaltar, pois,
das “coisas” do mundo o caminho pessoal que o caráter miniaturista da arte de Paes
para a transmissão, e interpretação, de sua calca-se, prioritariamente, na extrema pre-
experiência. A constante busca pelo “máx- ocupação do poeta com a palavra em si.
imo no mínimo” passa a lhe caracterizar a O que não quer dizer que ele deixe de lado
pena, principalmente a partir da década de sua experiência existencial com o intuito de
1950, período em que Paes é atraído pelas se dedicar a versos “puristas”, caracteriza-
inovadoras propostas da geração concretista. dos pela simples integração e justaposição de
Discutir a importância da concisão no sílabas e sons. Ao contrário, o poeta paulista
fazer poético significa, de certa forma, ter em critica a boutade de Mallarmé, para quem a
mãos uma das principais senhas para aden- poesia é feita apenas com palavras. Difer-
trar o universo literário de José Paulo Paes. entemente do autor de Un Coup De Dés, a
Prova disso está no depoimento do próprio preocupação de Paes diz respeito à importân-
poeta: “As discussões, as teorizações sobre cia de o poeta encontrar o conjunto certo de
poesia me interessavam menos, pois o que palavras para exprimir “vivências, reais ou
me atraiu sempre foi a concisão. Desloco o imaginárias” (PAES, 1996, p. 11). Neste
centro de atenção do verso para a palavra, ponto, o autor professa, ainda, da famosa
numa espécie de virada intraverbal, para os idéia de Drummond, segundo a qual escrever
’semas’, unidades elementares da palavra” é cortar palavras. A partir de tal máxima,
(PAES, 1990, p. 31-34). torna-se possível, pois, enxergar o ofício de
Em texto escrito na década de 1990, ao co- um bom poeta como se a habilidade especí-
mentar o livro Minuto diminuto, edição pes- fica do referido homem de letras para, “cirur-
soal do poeta gaúcho Flávio Luís Ferrarini, gicamente”, eliminar excessos.
Paes revela, a partir da análise dos versos A partir de tal princípio, pode-se dizer que
a miniaturização do mundo, ou a ordenação
caria definitivamente. O poeta mineiro comenta a
importância de se conhecer os autores estrangeiros, poética – e subjetiva – da experiência cotidi-
lendo-os na língua original: “Para fugir aos mode- ana, em poemetos, ilustra exatamente o per-
los nacionais, leia os estrangeiros; é contrapeso ex- fil, avesso a excessos, do poeta José Paulo
celente, e imitação por imitação, a dos últimos nos Paes. Somado a isso, o escritor paulista
faz ir mais longe e nos universaliza mais, isto é, traz
busca incessantemente, como bem o resume
consigo mesma a possibilidade de libertação.” (AN-
DRADE. Da fortuna crítica de O aluno. In: PAES. Fernando Paixão, “dar formatos novos para
O aluno, p.36). Futuro tradutor de autores de diver- a expressão poética, em vez de se contentar
sos idiomas, Paes absorveria, categoricamente, a sug- com um estilo cristalizado” (PAIXÃO, 1999,
estão. p. 50-53). A começar pelo resgate do epi-

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grama, gênero clássico5 retomado por Paes 59). Paes aprendera com “os fundadores da
segundo propostas – além de inteiramente nossa modernidade poética” que
pessoais - bastante modernas. No ver de
Arrigucci Júnior, “pela fórmula peculiar de poesia é ver as coisas do mundo
redução do mundo, cada poemeto traz em como se fosse pela primeira vez
seus próprios fundamentos os traços típicos e exprimir essa novidade de visão
do epigrama e sua vocação para exprimir os da maneira mais concisa e intensa
traços da modernidade” (ARRIGUCCI JR., possível, numa linguagem onde só
1998, p. 30). haja lugar para o essencial, não
Quando se fala em miniaturização do para o acessório. Daí, a elimi-
mundo, ou, de outro modo, em redução nação de tudo quanto cheire a en-
da experiência cotidiana à essência poética, feite ou ornato, inclusive rima e
não há como escapar da influência direta métrica, se necessário for. Nunca
dos modernistas na formação do poeta. De mais esqueci essa lição funda-
certa forma, ele absorve exatamente o que mental; disso dá testemunho a
diz o mestre Manuel Bandeira em seu Itin- dicção econômica das dezessete
erário de Pasárgada (1954): “Meditei na coletâneas de poemas que até hoje
lição [do crítico João Ribeiro, que havia tran- publiquei. (PAES, 1996, p. 34)
scrito uma quadra de Carlyle reduzida à es-
sência] e até hoje em toda poesia que escrevo Ao absorver, e reinterpretar subjetiva-
me lembro dela e procuro só pronunciar as mente, as propostas dos autores modernistas,
palavras essenciais” (BANDEIRA, 1984, p. Paes passa a definir sua poética, sempre
calcada na eliminação de excessos. Nasce
5
Segundo Davi Arrigucci Júnior, “desde suas for- assim o poeta cuja obra extrai elementos
mas clássicas, enquanto inscrição feita na pedra para de diversas tendências, mas não se limita
assinalar o reconhecimento de que ali alguma coisa
é, até o amplo desenvolvimento que teve na poesia
a nenhuma delas. Em relação à chamada
greco-latina e, posteriormente, nos empregos pontuais Geração de 456 , por exemplo, à qual o
ao longo dos séculos da cultura poética ocidental, o escritor paulista estaria ligado cronologica-
epigrama sempre se mostrou renitente à definição pre- mente, sua obra mantém considerável dis-
cisa. Em princípio, constitui uma fórmula condensada tância. A começar pela noção do grupo,
em poucos versos, na qual se mesclam os gêneros, po-
dendo combinar a notação épica do acontecimento e 6
A Geração de 45 provocara polêmica no meio
o sentimento do drama ao tom lírico da elegia ou à literário brasileiro, justamente, por desprezar a liber-
verve satírica, a que em geral vem associado nos nos- dade conquistada, até então, pelo movimento mod-
sos dias”. Ao retomar a técnica do epigrama, Paes, ernista. Ao contrário do verso livre, diversos autores
além de exibir técnicas e abordagens bastante moder- da época retomam formas fixas de cunho clássico,
nas, como a recorrência à temática do cotidiano, in- como o soneto, a ode e a elegia. Segundo Alfredo
corpora ao estilo epigramático sua “verve” marcada, Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira,
principalmente, por recursos como o chiste, que em os representantes de tal grupo, que se dedicavam
Paes, segundo o próprio Arrigucci Jr., assume “força à pesquisa formal, “repropuseram no meio literário
catártica, como o desafogo que pudesse redimi-lo ou brasileiro um problema básico: o da concepção de
a todos nós de uma pressão indizível.” (ARRIGUCCI poesia como arte da palavra, em contraste com outras
JR. Agora é tudo história. In: PAES. Melhores poe- abordagens que privilegiam o material extra-estético
mas, p.12). do texto”.

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não seguida por Paes, presente na nota ao de sangue em cada poema (1917) comenta
Panorama da nova poesia brasileira (1951), os dois níveis de trabalho artístico, que mais
em que o antologista Fernando Ferreira de tarde sistematizaria como o processo de
Loanda comenta a busca de tal geração por
separação nítida entre o estado de
um “novo estado poético”, no qual os camin-
poesia e o estado de arte, mesmo
hos seriam traçados fora dos limites do mod-
na composição dos meus poemas
ernismo. É interessante dizer que havia po-
mais ‘dirigidos’. As lendas na-
emas de Paes em tal publicação, como tam-
cionais, por exemplo, o abrasileira-
bém de João Cabral de Melo Neto e Ferreira
mento lingüístico de combate. Es-
Gullar, ambos também distantes das preten-
colhido um tema, por meio das
sões neomodernistas7 .
excitações psíquicas e fisiológi-
Na verdade, José Paulo Paes prima pelo
cas sabidas, preparar e esperar a
que chama de “lucidez da técnica e da ex-
chegada do estado de poesia. Se
periência” (PAES, 1996, p.5), cuja aquisição
este chega (quantas vezes nunca
só aconteceria após anos e anos de árduo tra-
chegou...), escrever sem coação de
balho e imensa vontade de escrever. Tal lu-
espécie alguma tudo o que me
cidez a que alude o escritor vai ao encontro
chega até a mão – a ‘sinceridade’
de muitas das idéias do combativo Mário de
do indivíduo. E só em seguida, na
Andrade de O movimento modernista, texto
calma, o trabalho penoso e lento da
de 1942 onde o autor interpreta as ações
arte – a ’sinceridade’ da obra-de-
do grupo. Ao comentar o surgimento de
arte, coletiva e funcional, mil vezes
sua obra Paulicéia desvairada (1922), Mário
mais importante que o indivíduo”.
conta como, em determinada noite, bastante
(ANDRADE, 1972, p. 234)
alterado pelas discussões familiares, saíra
para espairecer. Na volta noturna, aconte- Na famosa conferência de 1942, três anos
ceria, similarmente ao que se dera com Paes, antes de sua morte, Mário de Andrade con-
o “estalo”: em um pequeno caderno, Mário cede ao movimento de inteligência mod-
rabisca, pela primeira vez, o título do livro ernista o status de preparador de mudanças
que começa a criar no mesmo instante. É im- político-sociais. Para ele, o modernismo
portante reforçar, neste ponto, o processo de marcara-se como “criador de um estado
trabalho de Mário ao conceber a obra. Difer- de espírito revolucionário e de um senti-
entemente do que apregoavam os integrantes mento de arrebentação” (ANDRADE, 1972,
da Geração de 45, o mecanismo de criação já p. 241). Dessa forma, revela as três prin-
se moldava pelo apuro estético. Em O movi- cipais características do movimento mod-
mento modernista, o autor de Há uma gota ernista: “o direito permanente à pesquisa es-
7
tética; a atualização da inteligência artística
Cunhado por Tristão de Ataíde, em artigo publi-
cado em julho de 1947, o termo Neomodernismo assi- brasileira; e a estabilização de uma consciên-
nalava a morte do modernismo e a aparição de um cia criadora nacional” (ANDRADE, 1972, p.
novo movimento, absolutamente oposto ao anterior. 242).
Neomodernistas, pois, seria o codinome para os com- Trata-se de três importantes características
ponentes das chamada Geração de 45.
que fizeram com que a Geração de 45 encon-

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trasse, em sua década de estréia, um cenário enxuta e a certa observação minimalista das
de liberdade muito bem descrito por Mário nuances de seu tempo.
de Andrade, em que o artista brasileiro

tem diante de si uma verdade so-


cial, uma liberdade (infelizmente
3 Jogos lúdicos
só estética), uma independência,
um direito às suas inquietações e Tal “compromisso” de Paes com a constante
pesquisas que não tendo passado pesquisa estética fará com que o poeta, prin-
pelo que passaram os modernistas cipalmente em seus livros publicados nas dé-
da Semana, ele nem pode imag- cadas de 1960 e 1970 – Anatomias (1967) e
inar que conquista enorme rep- Meia palavra – cívicas, eróticas e metafísi-
resenta. Quem se revolta mais, cas (1973) – busque “refúgio” temporário
quem briga mais contra o poli- na poesia Concreta, movimento estético que,
tonalismo de um Lourenço Fer- à época, parecer-lhe-á interessante à exper-
nandes, contra a arquitetura do imentação formal. Além da aproximação
Ministério da Educação, contra os com a vanguarda, Paes permanece à cata
versos ’incompreensíveis’ de um de novos “meios e interfaces de captura
Murilo Mendes, contra o person- poética”: a partir de um olhar refinado e
alismo de um Guignard?... Tudo acurado sobre o cotidiano, o poeta revela-se
isto são hoje manifestações nor- ávido por novos “espaços” de manifestação
mais, discutíveis sempre, mas que do poético – naquele contexto, espaços de
não causam o menor escândalo linguagem capazes de “suportar” as próprias
público. (ANDRADE, 1972, p. inquirições e interpretações do escritor ac-
241) erca do status sóciopolítico do Brasil, que,
desde 1964, vivia, asfixiado, sob regime mil-
José Paulo Paes entrega-se a tal liberdade, itar.
expressa nos comentários de Mário de An- Em Meia palavra – de cuja obra retiramos
drade. Do início ao fim de sua trajetória os três poemas a serem discutidos neste ar-
poética e ensaística, ao contrário de boa tigo –, José Paulo Paes reitera, justamente,
parte dos puristas da Geração de 45, o po- sua necessidade de experimentação de novas
eta paulista parte em busca do que, categori- expressões poéticas. Somem-se a isso o acir-
camente, Mário classificaria de “normaliza- ramento do gosto pelo epigrama e certo tom
ção do espírito de pesquisa estética, anti- oswaldiano para a sátira e o humor. Ao tratar
acadêmica, porém não mais revoltada e de- da influência de Oswald de Andrade, aliás, é
struidora”, que representa “a maior manifes- importante rever o quanto a maleabilidade de
tação de independência e de estabilidade na- Paes nas formas breves deve-se ao contato,
cional” (ANDRADE, 1972, p. 249) já con- de certa forma tardio, com um dos papas do
quistada pela inteligência brasileira. Impor- modernismo brasileiro. A proximidade com
tante, pois, ressaltar que Paes, recusa os ex- Oswald, já na década de 1950, levará Paes a
cessos verbais e dá prioridade à linguagem

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ler os “epigramas moleques” de Pau-Brasil modernidade. Trata-se, em certa medida, da


(1924). arte como gosto pela brincadeira, algo que
A partir de então, passa a enxergar tais em José Paulo Paes assume relevância vi-
obras como providenciais. A lírica e o sar- tal, principalmente no livro Meia palavra,
cástico humor oswaldianos lhe abrem no- onde certas atrações imagéticas do cotidiano
vas e promissoras perspectivas em relação – placas e cenas corriqueiras, por exemplo
ao ofício literário. Ao analisar o Cân- – são registradas em máquina fotográfica e
tico, por exemplo, comenta a importância “transportadas”, pelo poeta, às páginas do
de tais versos para sua própria compreen- livro de poemas, espaço onde ganham nova
são da proximidade entre poesia e questões significação. Muitas vezes, a modernidade
sociais. Na obra, Paes encontra o mesmo do poeta paulista encontra no “brincar”9 de-
tipo de fusão “entre o lírico e o ideológico spretensioso dos olhos a essência do fazer
que já aprendera a admirar no Éluard dos poético. Se para os modernistas a infantili-
Sept poèmes d’amour en guerre (1943) e, dade era o recurso utilizado como forma de
em bem menor medida, no Aragon de Les parodiar a seriedade da arte acadêmica e, ao
yeux d’Elsa. (...) Daí meu entusiasmo pela mesmo tempo, recusar a má consciência bur-
linha Oswald/Éluard na qual subjetivo e ob- guesa, para Paes tal atitude assume ares de
jetivo, individual e coletivo se confrontavam libertação10 .
sem contradizer-se” (PAES, 1996, p. 14). Já Tal idéia de libertação aqui disposta pode
na década de 1990, em A aventura literária, ser explicada como a possibilidade de o
Paes dedica amplo estudo a Cinco livros do artista “brincar” com o significado e a im-
Modernismo Brasileiro, entre os quais Pau- agem usuais das palavras. José Paulo Paes,
brasil (1924) e Memórias sentimentais de aliás, compara a renomeação e apropriação
João Miramar (1924), ambos de Oswald. metafórica a “um gesto não só de rever mas
Tal trabalho busca a compreensão das carac- também de reaver, de tornar a achar o já
terísticas de obras fundamentais ao advento visto, no sentido de trazer de volta a sur-
da modernidade literária brasileira, além de 9
É interessante, neste ponto, lembrar a importân-
levantar os principais pressupostos teóricos cia dos livros infantis na obra de José Paulo Paes. De
do grupo de 22. alguma forma, o tradutor, o poeta e o ensaísta apren-
No ensaio, Paes discute a “promoção culta deram muito com o complexo – e meticuloso – ofí-
da barbárie” e o processo de “infantilidade”8 , cio do escritor de obras destinadas às crianças. Para
exercer tal atividade, é preciso conhecer a fundo a
dois dos mais marcantes traços artísticos da
séria arte de “brincar” com as palavras, visto que o
8
A “promoção culta da barbárie” revela a busca repertório cultural dos pequenos é muito diferenciado
dos modernistas pelas raízes primitivas do Brasil, do usual no universo adulto.
10
como forma de desvendar a identidade brasileira. Já o Em outro ensaio publicado por Paes, Para uma
chamado processo de infantilidade diz do intuito de pedagogia da metáfora, o autor compara o mecan-
aproximar a expressão artística do gosto pela brin- ismo da metáfora à brincadeira infantil do esconde-
cadeira. Trata-se, além disso, de um dos modos uti- esconde. Como o jogo lúdico, é bem de ver que a
lizados pelos modernistas com o intuito de parodiar a metáfora faz com que o interesse – no caso, do leitor
seriedade da arte acadêmica. Por fim, a inocência e a – “não se esgota na primeira vez; prolonga-se e au-
pureza infantis serviam de instrumental para a recusa menta nos ulteriores encobrimentos/descobrimentos”
da má consciência burguesa. (PAES, 1997, p.13).

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10 Maurício Guilherme Silva Júnior

presa de um primeiro contato que o automa- invenção – como os azuis ângelus de Mal-
tismo da repetição embotara” (PAES, 1996, larmé, que transmitem a paz intensa das
p. 22). Em Para uma pedagogia da Metá- cores do céu ao entardecer – e as de con-
fora, ensaio escrito na década de 1990, o po- venção – como no caso de arranha-céu, em
eta explica o modo como, no processo de que tal idéia é automaticamente associada
miniaturização poética do mundo, é impor- somente à existência de prédios imensos.
tante lançar mão de metáforas cuja signifi- Importante explicar, contudo, que as metá-
cação deve se caracterizar por certo ar “es- foras de convenção já perderam sua labili-
trangeiro”, alheio aos sentidos – e empregos dade – e também o certo ar estrangeiro – de-
– práticos da palavra. vido ao uso corrente e coloquial. São, assim,
No ver de Paes, as metáforas são as únicas incorporadas por designação direta, e não
capazes de, no verso, promover um enlace mais metafórica. Segundo o poeta paulista,
entre o ser e o não-ser “de maneira a mais elas terminam “seus dias como meros sinôn-
estranha” (PAES, 1997, p. 24). Para explicar imos no dicionário da língua” (PAES, 1997,
sua visão acerca da utilização dos recursos p. 20). Em pólo oposto, as metáforas
metafóricos, José Paulo recorre a uma analo- de invenção caracterizam-se pela “labilidade
gia com determinado jogo infantil, no qual dinâmica”, capaz de instalar,
um adulto, diante de uma criança pequena,
entre o real e o imaginário, uma
esconde o rosto para, rapidamente, revelá-
ponte de mão dupla por onde a
lo de novo. No caso, há certa alternância
surpresa da descoberta irá transitar
de presença e ausência a que se associam,
comprazidamente num repetido ir
simultaneamente, sensações de prazer e de-
e vir. Esse tipo de metáfora imanta
sprazer. Segundo a teoria de Paes, a ráp-
com suas linhas de força toda a ex-
ida mudança de sensações a que está su-
tensão da fala e não apenas o ponto
jeita a criança faz parte da própria idéia do
dela em que instaurou uma impert-
jogo lúdico. Exatamente como acontece com
inência semântica. Com isso funda
a metáfora. “Na contínua alternância en-
o próprio discurso poético, o qual
tre o sim/não encontra a metáfora o mo-
se constitui num desvio tão radi-
tor da sua dinâmica, assim como o encontra
cal da lógica da fala comum com
nosso jogo [infantil] na reiteração do enco-
que Julia Kristeva o define como o
brir/descobrir” (PAES, 1997, p. 17-18).
discurso da negatividade. (PAES,
Neste ponto, comenta o que chama de “la-
1997, p. 21)
bilidade dinâmica” da expressão metafórica,
responsável por unificar presença e ausên- Tal visão do discurso poético como “neg-
cia numa só ocorrência verbal. Na metá- atividade”, a partir do uso das metáforas de
fora, o inanimado torna-se animado. “Mais invenção, aparece amiúde na obra de José
que isso, um estatuto de duplicidade passa Paulo Paes, para quem, na economia do pro-
a consorciar labilmente entre as coisas e os cesso metafórico literário, “figurante e figu-
seres, o humano e o não-humano” (PAES, rado vão alcançar estatuto de plena equipon-
1997, p. 17). Paes ressalta, então, a ex- derância” (PAES, 1997, p. 13). Em in-
istência de dois tipos de metáforas: a de úmeros momentos, Paes leva ao extremo

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José Paulo Paes e a inversão do hipertexto 11

tal desvio do sentido ordinário das palavras, definir, segundo critérios pessoais, o poema-
principalmente através da criação de pe- piada modernista. E o autor revela que, rap-
quenos – e intensos – chistes. Em Paes, idamente, as técnicas da poesia concreta lhe
o chiste pode ser definido como o recurso atraíram pela
capaz de unificar, condensar e metaforizar
o mundo dentro da pequena célula poética. extrema condensação de sentidos
De outra forma, pode-se dizer que o poeta, alcançada pela eliminação, total
através do lúdico jogo do chiste, encontra ou parcial, das conexões gramat-
sua forma peculiar de tratar das questões so- icais, já que a atenção do poeta
ciais, políticas e econômicas de seu tempo. se voltava para as palavras em si,
Davi Arrigucci Júnior ressalta que em Paes não para a sucessão delas no verso.
“o prazer lúdico do lance verbal, o gosto Por outro lado, a exploração do
do disparate, tudo o que parece fazer a ten- branco na página ou fragmentos de
são, a graça e o prazer do chiste assume palavras ali disseminados ganhas-
nele força catártica, como o desafogo que sem ênfase e ressonâncias. (PAES,
pudesse redimi-lo ou a todos de uma pressão 1996, p. 55)
indizível, feito uma arma de combate em luta Principalmente em Meia palavra, tudo
contra a repressão vinda de dentro ou fora do passa a se reduzir ao mínimo, como se numa
poeta” (ARRIGUCCI JR., 1998, p. 12). incessante busca por incluir o mundo em
apenas um grão de areia. Trata-se, em ver-
dade, da incorporação do signo não-verbal
4 A inversão hipertextual de à poesia de José Paulo Paes. Além da
Paes preocupação anti-retórica, o poeta paulista
percebe que a ênfase dos concretos na
medula ideogrâmica vai ao encontro da poe-
Já nas décadas de 1960 e 1970, aviva-se sia epigramática que ele próprio já produz,
em José Paulo Paes o interesse pela poe- como reação
sia Concreta. Neste sentido, Anatomias
(1967) e Meia Palavra – cívicas, eróticas a certo metaforismo ornamental
e metafísicas (1973) revelarão o interesse em voga entre os da minha ger-
de Paes pela então propalada obra dos po- ação [Geração de 45] e seus con-
etas concretos. A veia epigramática, concisa tinuadores; nessa reação, não tive
e cômica do autor, aliada à desconstrução medo de ir até o poema-piada
poética do concretismo, culminará com po- de 22 tão abominado por eles.
emas criados a partir de recursos como de- Não cheguei a ser um poeta con-
struição paródica; desmontagem do verso e creto em sentido estrito; faltavam-
destaque da palavra isolada; remontagem vo- me raízes poundianas ou mallar-
cabular e trocadilhos; e incorporação do vi- maicas. Outrossim, mais do que o
sual à estrutura da composição poética. De projeto teórico, interessou-me so-
certa forma, pode-se dizer que Paes irá re- bretudo a prática poética dos con-
cretos. Utilizei-lhes alguns dos

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12 Maurício Guilherme Silva Júnior

procedimentos não por amor do sua própria vivência – também composta de


experimento verbal em si, mas conexões reticulares e em forma “estelar” –
na medida em que pudessem rad- , estimulada pela re-significação da imagem
icalizar o viés epigramático da poética nas páginas do livro.
minha dicção. (PAES, 1996, p. 17) Para explicar tal rede de conexões inter-
nas, aliás, o próprio José Paulo Paes desen-
Importante ressaltar, neste momento, o volveu um conceito importante. Trata-se do
modo como aqui trabalharemos o conceito termo “transleitura”, analisado da seguinte
de “hipertexto”, no que diz respeito à poe- forma:
sia do escritor paulista, para explicar a trans-
posição poética, realizada por Paes em Meia O prefixo trans – visa simples-
palavra, de imagens cotidianas da São Paulo mente, no caso, a acentuar que
dos anos 1970. Para Pierre Lévy (1993), o a leitura de uma obra literária é
hipertexto poderia ser explicado como certo um ato de imersão e de distancia-
conjunto de “nós” interligados por conexões. mento a um só tempo. Tal duplici-
Tais “nós” são representativos de palavras, dade do ato de leitura responde, si-
páginas, imagens, gráficos, sequências sono- metricamente, à duplicidade do ato
ras ou, até mesmo, documentos e índices de criação literária. Este faz sur-
complexos. Apesar de não ligados linear- gir o que antes não existia – daí
mente – como ao longo de uma corda –, falar-se em criação –, mas a nova
tais nós apresentam conexões reticulares, em obra, por mais original que seja,
forma de “estrela”. nem por isso deixa de se inscr-
Ao transportar cenas do cotidiano para as ever no sistema da literatura, for-
páginas de Meia palavra, José Paulo Paes, mado teoricamente por todas as
à forma do conceito de Lévy (1993), pro- obras literárias jamais escritas e
move, contudo, certa inversão do jogo hiper- por todas as interpretações ou co-
textual da atualidade, calcado nos proces- mentários críticos que vêm susci-
sos digitais: ao invés de abrir links para o tando. Só dentro desse vasto sis-
“exterior” – como nas páginas da Internet, tema, por nexos de continuidade
que levam o usuário a conexões reticulares ou de ruptura ou, melhor ainda,
não-lineares e sem “compromisso entre si” – de continuidade/ruptura, pode ela
, Paes irá propor links interiores (e também adquirir a plenitude de sua signifi-
não-lineares), através dos quais será possível cação. (PAES, 2005, p .5)
ao leitor, que contempla a imagem singu- No caso específico da rede de conexões
lar da capital paulista nas páginas do livro internas proporcionada pelo que aqui
de poemas, reavivar sentimentos, interesses chamamos de “inversões hipertextuais” da
políticos e sociais próprios de sua trajetória. poesia de José Paulo Paes em Meia palavra
Trata-se, em suma, de certa “viagem” hiper- (1973), certo mecanismo de “transleitura”
textual invertida: ao invés de seguir a novas pode ser acionado diante dos poemas
instâncias – links externos e não-lineares - visuais, que, a partir de imagens aparente-
, o leitor é convidado a refletir a partir de mente corriqueiras, estimulam novos “nexos

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José Paulo Paes e a inversão do hipertexto 13

de continuidade”, capazes de – princi- Com significados que transcendem a mera


palmente naquele período sóciopolítico – estilização, o referido poema visual de
transportar o leitor a novas instâncias (links) José Paulo Paes afirma-se a partir da re-
de significação ética e estética. significação entre a função utilitarista dos
componentes da cena e os sentidos por trás
da imagem. Artefatos de utilidade prática
à melhoria do bem-estar no trânsito de
5 Os poemas: análise concisa
uma megalópole – no caso, São Paulo –,
as tais placas com aviso utilitarista estim-
Sob o título O ESPAÇO É CURVO (PAES, ulam, quando expostas em Meia palavra,
2008, p. 203-204), grafado em caixa alta percepções outras, capazes de fazer com
na página anterior ao poema visual, a im- o que o leitor desenvolva sua transleitura
agem em preto e branco, em Meia palavra particular, de modo a criar novas redes de
(1973), revela duas placas de metal, dis- conexão interna, fruto direto das “inversões
postas lado a lado e em tamanhos distin- hipertextuais” da poesia de Paes: placas de
tos, a exibir a mesma mensagem: “Rua aviso, aparentemente banais, transportam o
sem saída”. Em segundo plano, percebem- “motorista/leitor” a novos “nexos de con-
se vestígios do que os olhos passam com- tinuidade”.
preendem como postes – onde uma das pla- Tais nexos, no contexto de publicação do
cas está afixada –, fios e semáforos urbanos. poema, carregam em si o “calor dos acontec-
No interior de uma das placas que compõem imentos”: em plena década de 1970, a “rua
o poema, há, ainda, a marca da instituição sem saída” metaforiza as nuances de “um
pública – Detran – responsável pelas regras Brasil sem saída”, marcado pela opressão
do trânsito na metrópole: política e social dos militares no poder. As
redes reticulares internas, links de signifi-
cação engendradas pelo poema e que provo-
cam novas instâncias de relação entre ética e
estética, também são estimuladas em SICK
TRANSIT (PAES, 2008, p. 188-189), título
do seguinte poema:

(PAES, 2008, p. 203-204)

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14 Maurício Guilherme Silva Júnior

suais e gramaticais, revela a exploração, pelo


poeta, “do branco na página”, assim como o
uso de “fragmentos de palavras ali dissemi-
nados”, que “ganham ênfase e ressonâncias”
(PAES, 1996, p. 55).
Por fim, entre as experiências visuais de
Paes, EPITALÂMIO (PAES, 2008, p. 198-
199) discute as relações conjugais através da
imagem de duas escovas de dente que, dis-
postas num copo, “relacionam-se” intima-
(PAES, 2008, p. 188-189) mente.

Aliada ao irônico Sick transit, título que


aqui traduz-se livremente como trânsito
adoentado, a imagem do poema repete a es-
tratégia da re-significação através da relação
entre a “função utilitarista dos componentes
da cena” e os sentidos “por trás da imagem”.
A função denotativa da placa é dizer a mo-
toristas e pedestres que as vias que levam
ao bairro paulista da Liberdade estão inter-
ditadas. Portanto, para chegar às regiões
Paraíso e Vila Mariana, seria preciso seguir
a seta, que também conta com a indicação
do órgão governamental responsável – no-
vamente, como em O ESPAÇO É CURVO
(PAES, 2008, p. 203-204), o Detran.
A função conotativa do poema, contudo, (PAES, 2008, p. 198-199)
revela outras fontes de sentido: no auge do
regime militar, momento em que a sociedade
brasileira ressente-se pela ausência de dire- Através do descolamento da fotografia de
itos sociais, políticos e civis, importante ob- três objetos em simbiose – duas escovas e
servar a força de um “verso cotidiano” como um copo –, o poeta estimula novas conexões
Liberdade interditada. Some-se a tal força, de significado: o hipertexto, neste sentido,
proporcionada pela inversão hipertextual da provoca transleituras que dizem respeito à
poesia de Paes – que leva a imagem às pági- intimidade das relações humanas e, de certa
nas de Meia palavra –, a ironia intrínseca ao forma, elucida o subtítulo do livro de Paes
destino da seta exibida pela placa: “Paraíso”. – cívicas, eróticas e metafísicas. O ero-
A vasta condensação de sentidos propor- tismo inerente à sobreposição das escovas –
cionada pelo poema, através de conexões vi- pré-figuração do entrelaçamento dos corpos

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José Paulo Paes e a inversão do hipertexto 15

– reacende, no leitor, a discussão em torno Paulo. O aluno. Ponta Grossa: UEPG,


da(s) união(ões) amorosa(s). 1997. p.35-36.
Também o título do poema, EPI-
TALÂMIO, amplia ainda mais seus ANDRADE, Mário de. Aspectos da Lit-
significados: o termo é referência direta ao eratura Brasileira. São Paulo, Mar-
cântico nupcial, de natureza religiosa, que tins/MEC, 1972. 288p.
busca reivindicar aos noivos a bênção dos ARRIGUCCI JR., Davi. Agora é tudo
deuses. Mais uma vez, a inversão hipertex- história. In: PAES, José Paulo. Mel-
tual do escritor paulista, aliada à concisão hores poemas – José Paulo Paes. São
própria de seus versos, é capaz de levar o Paulo: Global, 1998. (Prefácio)
leitor à revisão de seus próprios “nós”. Nas
páginas de Meia palavra, a delicadeza e a —. Davi. Uma vida em resumo. Folha
simplicidade do “apego” entre as escovas, de São Paulo, São Paulo, 18 out. 1998.
eroticamente acomodadas no interior do Mais!, p.5/9.
copo, estão aptas a estimular discussões –
políticas, por que não? – em torno da vida BOSI, Alfredo. História concisa da liter-
(íntima) em sociedade. atura brasileira. São Paulo: Cultrix,
1976. 528p.

—. O livro do alquimista. In: PAES, José


6 Conclusão Paulo. O aluno. Ponta Grossa: UEPG,
1997. p.44-46.
Nos três poemas analisados, buscou-se rev- CAMPOS, Augusto de. Do epigrama ao
elar de forma sucinta a habilidade de José ideograma. Jornal do Brasil, Rio de
Paulo Paes, através do uso concentrado de Janeiro, 16 dez. 1967.
recursos estilísticos, linguísticos e metafóri-
cos, para subverter em poesia a lógica da im- CANDIDO, Antonio. Literatura e so-
agem cotidiana; assim como para diminuir – ciedade. São Paulo: Companhia Edi-
através da inversão hipertextual e a rede de tora Nacional, 1965. 201p.
novas conexões que suscita – a distância en-
CULT – REVISTA BRASILEIRA DE LIT-
tre territórios por vezes antípodas: ética e es-
ERATURA. Dossiê José Paulo Paes.
tética; amor e política; significante e signifi-
São Paulo: Lemos editorial, no 22, mai.
cado; imagem e palavra.
1999, p.39-63.

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação


7 Referências com o inconsciente. Rio de Janeiro:
Imago, 1969. 247p.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Da for- FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica


tuna crítica de O aluno. In: PAES, José moderna. São Paulo: Duas cidades,
1978. 350p.

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16 Maurício Guilherme Silva Júnior

GUIMARÃES, Julio Castañon. Meia —. Os perigos da poesia e outros ensaios.


palavra. Diário Oficial de Minas Grais, Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 208p.
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MEDINA, Cremilda. Humor e síntese —. Poesia completa. São Paulo: Compan-


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posse da terra: escritor brasileiro PAIXÃO, Fernando. O “cantinho do Zé”.
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—. Os melhores poemas de José Paulo


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—. Quem, eu? Um poeta como outro qual-


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Grossa: Editora UEPG, 1996. 94p.

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