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VideoCriaturas e Expedições Multimídia


de Otavio Donasci

Projetos, Diagramas e Performances

Artur Matuck
Otávio Donasci
Organizadores

COLABOR | PGEHA | ECA


USP

2017
São Paulo
3
Coleção Meta-Autoria
COLABOR | PGEHA | USP

Conselho Editorial
Artur Matuck
Antonio Herci
Karina Quintanilha
Antonio de Pádua Rodrigues
Naira Ciotti
Rosane Borges
Ivaldo Brasil
Babatunde Lawal
Rodrigo Maceira

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

P964m Projetos, diagramas e performances: videocriaturas e


expedições multimídia de Otavio Donasci / Artur Matuck e Otávio Do-
nasci (organizadores) ; autores: Antonio Herci ... [et al.] – São Paulo:
COLABOR : ECA-USP, 2017.
191 p. – (Meta-autoria: teoria, história e práxis).

ISBN 978-85-7205-173-6

1. Arte tecnológica 2. Crítica de arte 3.Artistas – Brasil – Século 21


4. Donasci, Otávio, 1952- I. Matuck, Artur II. Donasci, Otávio III. Her-
ci, Antonio.

CDD 21.ed. – 709.0408

4
ÍNDICE

Prefácio
Artur Matuck.......................................................................7

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e


lugar próprio em Otávio Donasci
Antonio Herci..................................................................... 11

Imagem relacional: Apontamentos sobre as vídeo-ins-


talações de Otávio Donasci
Fernanda Albuquerque de Almeida................................. 27

Performance e Teatro: aproximações e distinções no


caso Otávio Donasci
Lucio Agra......................................................................... 39

Videocriaturas no contexto do duplo digital


Vanderlei Baeza Lucentini............................................... 57

Vida e arte de um videocriador


Artur Matuck..................................................................... 71

VideoCriaturas: análise de videoperformances realiza-


das entre 1980 e 2001
Otávio Donasci.................................................................. 83

Processos de Criação das Expedições Experimentais


Multimídia
Otávio Donasci................................................................ 199

Sobre os autores.................................................................212

5
Prefácio

Otávio Donasci foi um dos primeiros artistas a serem


considerados como multimídia no Brasil, desde que este termo co-
meçou a ser utilizado nos anos 1980. Formado em Artes Plásticas
na FAAP, ele transitou por áreas diversas da criação, diretor de
arte em agencias de propaganda, cartunista, e cenógrafo. Mas seu
trabalho se consolidou na convergência entre arte e tecnologia. Em
sua passagem pelo teatro foi agraciado com os prêmios APCA e
Mambembe pelo conjunto de sua obra (1984), especialmente por
seu  trabalho como cenógrafo.
Nos anos 1980 começou a construir, roteirizar e atuar com
as videocriaturas - personagens que utilizavam televisores
acoplados a um corpo - apresentadas em festivais de vídeo no país
e posteriormente no exterior.
Suas videocriaturas são estranhas figuras com corpo de gente
e cabeça de televisor. Armações ergonômicas mantém o pesado
aparelho sobre um corpo, para que expressões faciais pré-gravadas
sejam exibidas e conjugadas com o movimento do ator-performer.
Uma indumentária de tecido escuro, mas semitransparente
na altura dos olhos, envolve tudo menos a tela, criando um ser
híbrido, humano-eletrônico, de uma espécie desconhecida, que se
assemelha a um possível alienígena.
Ele faz um esforço constante de documentar o próprio desen-
volvimento. Hoje em dia, por exemplo, ele foi capaz de construir
uma casa de quatro pavimentos, bem espaçosa em que ele preser-
va a obra ele. Ele procura preservar tanto as gravações de vídeo
que foram usadas na vídeo criatura como as gravações de vídeo
das criaturas performando diante do público, nos teatros e tam-
bém preserva as próprias criaturas. São portanto pelo menos três
níveis de documentação.
No início dos anos 1990, com o diretor Ricardo Karman, criou
as Expedições Experimentais Multimídia (Viagem ao Centro da
Terra, 1992, e A Grande Viagem de Merlin, 1994), gigantescos es-
petáculos interativos que envolveram teatro, turismo, artes plás-

Prefácio|7 7
ticas, video-instalações, video-interativos e videocriaturas. O reco-
nhecimento por esse trabalho veio com o Prêmio Shell de Realização
com Viagem ao Centro da Terra em 2001.
A peça multimidiática “Viagem ao centro de terra” de 1992
que acontecia num subterrâneo da cidade, no interior de um tú-
nel abandonado, foi seguida pelo espetáculo  “A Grande Viagem
de Merlin” de 1994, uma forma de teatro processional. Um ônibus
levava os expectadores para vários lugares. Nestes experimentos
absolutamente originais teatrais, Donasci atuou junto com Ricardo
Karman, como autor/diretor das vídeos instalações e como o proje-
tista das sequências experienciais que os expectadores passariam.

Quando completou 60 anos, em 2009, Otavio pensou em como pode-


ria renascer para uma nova vida, seria então Otávio Renasci e não
Donasci. Na disciplina “Corpo Fragmentado” do curso de Artes do
Corpo na PUCSP, começou a experimentar com corpos suspensos
em casulos de plástico, primeiro nas barras de metal das salas de
ballet e logo nos corrimões das escadas, que depois de um tempo
eles rompiam pra nascer.
Seu projeto artistico passou a experimentar com a capacidade
sensorial/vivencial do espectador.
Em 2011, a performance Casulos do Renascimento, foi apresen-
tada durante a mostra CORPO na Virada Cultural de São Paulo
em que performers ficavam suspensos em plásticos PVC durante a
noite no Largo do Paissandú.

Artur Matuck

8 8 | Artur Matuck
9
10
Performance e jogos de linguagem: campo
expandido e lugar próprio em Otávio
Donasci
Antonio Herci

Ora descrita como “a década perdida”, ora como “a volta da


pintura”, ou tantos outros epítetos a década de 1980 parece ser isso
tudo, sem, entretanto, ser nada disso, se tomarmos por ser isso ter
condições necessárias e suficientes.
Nada tem condição necessária ou suficiente para definir-se como
década de oitenta, apenas semelhanças de família.
Partindo do artigo de Rosalind Krauss (1984) podemos traçar
uma importância cada vez mais presente do que se sugere como
campo expandido em duas esferas: expandido no sentido da trans-
disciplinaridade e que transita por duas ou mais linguagens ar-
tísticas. Mas expandido também como expressão artística, pois ao
recolocar determinados símbolos e questões de uma determinada
linguagem, circunscreve tais linguagens a novos paradigmas de
fruição, axiologia e estética.
O silêncio, por exemplo em se tratando da música, talvez seja o
mais forte dos signos performáticos. Para além de qualquer dúvida
deixa de ser uma “interrupção da melodia ou da nota” para ser um
objeto expressivo pleno.

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e lugar próprio em Otávio Donasci |11 11
Nova-mente (Figuras 4 a 8) foi apresentada no Festival de
Inverno de Campos de Jordão, em 1981.
Koellreutter já havia convidado Donasci para o curso de compo-
sição, e para ajudá-lo a organizar o concerto final. Conta Donasci,
em entrevista para o Canal Contemporâneo (concedida em outu-
bro de 2011), que alegou ao mestre: “mas eu não sei tocar nada”.
Koellreutter respondeu para ele: “você vai tocar vídeo! ”
Os músicos dispunham-se em um círculo, tendo ao centro uma
partitura planimétrica, o método gráfico de composição e escrita
que o professor utilizava. E no primeiro plano do palco diversos
televisores voltados para o público projetando cenas planejadas e
soltadas manualmente (em videocassetes), já que não existia ainda
tecnologia on-line.
Entrava, pela primeira vez, a vídeo criatura: um ser humano
com cabeça de televisão (ainda de tubo na época). Essa cabeça era
do próprio Donasci parodiando o governador da época, Paulo Maluf,
com frases típicas da política, principalmente promessas. O detalhe
é que o governador em pessoa fazia parte da plateia. Em dado mo-
mento entravam atores dizendo, no ouvido das pessoas em cochicho:
“é mentira, é mentira, é mentira...”, referindo-se às promessas que a
vídeocriatura ia fazendo, como bom político. A orquestra em círculo,
em volta da partitura também circular composta de desenhos, grá-
ficos e diagramas, executava a obra sob a regência de Koellreutter,
explorando, além dos sons tradicionais dos instrumentos, formas
inusitadas de tocar.
Em dado momento, quando a peça já discorria há um tempo, o
professor fixou, com fita adesiva, uma nota de um sintetizador, tam-
bém estreante em palcos eruditos de então, que começou a emitir
uma nota média prolongada.
Todos pararam sob o comando de Koellreutter, ficando a soar
apenas a nota. Por muitos e muitos minutos, causando aplausos,
vaias, tendo o público abandonado o auditório, voltado ao auditório
depois, novos aplausos e vaias...

12 12 | Antonio Herci
Figura 4: Nova-mente, partitura gráfica. Fonte: acervo pessoal.

Até que finalmente de forma inusitada — pois os planos do


mestre eram de deixar o som até ver onde dava — um saxofonista
reinicia uma frase e, obtendo a aprovação de Koellreutter, retoma o
improviso coletivo e a peça termina.

Cibernética
Se para Aristóteles a mimese se caracterizava pela imitação dos
processos da Natureza, em Koellreutter abre-se uma outra alter-
nativa: nossos processos não mais copiam a natureza, mas moldam
uma natureza cibernética, comandada por algoritmos, mas que
pode acabar presa deles, ao render-se ao modelo. Paradoxalmente
Koellreutter propunha a humanização da máquina como superação
humana para a crise, pois a alternativa à humanização da máquina
é a submissão aos algoritmos e ao controle absoluto dos modelos.
Para Koellreutter, a cibernética era inevitável, como é inevitável
para o míope usar óculos, se não quer ver o mundo desfocado. Veja-
se que o termo tecnologia e ciência tem um sentido amplo para o
compositor. Utilizar-se das notas temperadas, que é uma tecnologia,

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e lugar próprio em Otávio Donasci |13 13
é similar a organizar uma estética dodecafônica, outra tecnologia. A
diferença entre ambas, na leitura pessoalíssima de Koellreutter, é
que a dodecafonia poderia conter em si a expressão da tonalidade,
se necessário à forma da música, pois acreditava que uma forma
posterior mais abrangente tenha que conter a anterior, através do
seu conceito de alfa privativo, ou contrariedade sem contradição. E
por forma entendia-se a forma que adquiria cada uma das músicas,
não havia uma forma padrão.

Figura 5: Rosto de Donasci na primeira vídeocriatura. Fonte: acervo pessoal

Por isso Koellreutter achava que existia uma função social em


defender a dodecafonia, por exemplo. E comparava-a com a técnica
harmônica, ou modal, não vendo grande diferença entre elas, nun-
ca aceitando o argumento contrário que se lhe dirigiam de que a
dodecafonia, diferentemente dos outros estilos “mais fundados na
natureza” era muito intelectual.
Figura 6: Nova-mente, detalhe de instrumentos eletroacústicos
Ele defendia que a técnica da dodecafonia poderia interferir na

14 14 | Antonio Herci
semântica do que se chama gosto através da quebra sistemática da
regulação da tonalidade, numa aliança entre estética e pedagogia
social. A quebra da obra e a abertura da percepção auditiva inci-
diriam sobre uma rede de sentidos, uma forma de vida, e o cam-
po de expansão da arte poderia abrir um halo para além dele: um
campo expandido. Não se trata mais do halo da obra romântico,
da qual Walter Benjamin já ousara escrever a lápide (BENJAMIN
1987), mas de algo que surge, estando sempre presente. Como se
Koellreutter quisesse um novo round entre Thomas Edison e Tesla,
questionando até que ponto a tecnologia, malgrado inevitável, deve
servir à humanidade ou aos royalties que emana: e no final, seria
mesmo a “luz fria” que abriria o tempo da tecnologia sustentável no
século XX. Tesla acaba reagindo em cada choque de partículas que
mostra o quão descontínuo é o continuo que vemos trivialmente.
Quanto à perspectiva cibernética, Koellreutter e Schenberg
também desenvolvem um pensamento bastante similar, ao consi-
derar as questões para um novo humanismo.

A tecnologia cibernética se distingue da anterior pela utilização


de aparelhos que permitem a substituição parcial do trabalho
mental humano. O mais característico é o computador eletrônico
popularizado com o nome de cérebro eletrônico. As máquinas da
primeira Revolução Industrial substituem parcialmente apenas
o trabalho físico do homem. O grande desenvolvimento da tecno-
logia cibernética está naturalmente ligado ao da eletrônica, que
permitiu também a transformação da telecomunicação pelo rádio
e pela televisão. Naturalmente a introdução de máquinas pensan-
tes não pode deixar de afetar fundamentalmente toda a cultura
moderna. (SCHENBERG 1988, 203)

Koellreutter, por seu lado dirá que:

Pela expressão “a sociedade de massa, tecnológico-industrial, que


ora se iniciou”, refiro-me a essa fase do nosso desenvolvimento
social em que um número cada vez maior de máquinas assume
um papel não mais de trabalho físico, mas, em vez disso, atuam
em funções não-físicas: as chamadas máquinas cibernéticas de
pensamento. (KOELLREUTTER 1977)

Um mundo globalizante e a integração humana entre oriente e


ocidente.

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e lugar próprio em Otávio Donasci |15 15
Na sociedade planetária trata-se, antes de mais nada, de valori-
zar as características culturais que nos diferenciam e, ao mesmo
tempo, redescobrir o homem como parte integrante de um todo.
(KOELLREUTTER 1984, 18).

O sujeito reaparece
A estética do século XX afasta-se do sujeito onipotente da obra.
Agamben descreve um arco que, começando em Walter Benjamin e
chegando em Foucault que descreve o que foi consagrado como “a
morte do sujeito”.
Por sua vez, Adorno lança a Dialética Negativa, em que o sujeito
acaba se dissolvendo no próprio objeto.
O sujeito romântico, o senhor da obra, chegaria mesmo a ser si-
nônimo de decadência entre as formas tenderiam para uma espécie
de neoclassicismo, que teriam nas formas, concretas ou abstratas,
uma visão de transcendência e modelo.
A década de 1980 recoloca essa questão de forma drástica: Não
existem mais formas e sim modelos. A autoria é um direito virtual
que não mais vincula-se à reprodução, mas sim ao uso. E os esti-
los passam a conviver em uma espécie de pacto de condomínios fe-
chados, onde cada um estabelece-se por popularidade disseminan-
do a estrutura necessária para difusão. Por isso mesmo cada vez
mais é necessário perguntar e estabelecer a origem da obra, tanto
para o juízo estético quanto para seu valor, artístico ou de merca-
do. E por origem duas coisas passam dividir o espaço, o projeto e a
performance.
E o primeiro ponto crucial disso foi o restabelecimento do sujeito,
do artista-criador, cujo valor é a marca de sua estética na expressão
do seu tempo: sua personalidade. Em grande sintonia com a reto-
mada, nas artes plásticas e nas performances, do trabalho assinado
e com marcas de personalidade, Koellreutter acaba sendo o indutor
de toda uma geração a lançar-se ao seu subjetivismo, construin-
do uma estética que desse respostas a problemas de sua própria
geração.
No entanto, paradoxalmente, o sujeito criador que Koellreutter
restabelece não é mais uma pessoa, e sim um disseminado, formas
separadas numa forma só: uma rede que permitia conceber a cria-
ção da obra como um PROCESSO, de forma que fazia disso também
o processo de constituição teórica, pedagógica e estética.

16 16 | Antonio Herci
O trabalho do artista vai além da partitura, pois o PROCESSO
DE CRIAÇÃO faz dele também responsável também pela difusão e
pela pedagogia e defesa dos seus valores, isto é, a criação da obra é
também sua constituição teórica e pedagógica.
Figura 7: Nova-mente, preparação e planejamento da peça
A suma disso é que a estética e a retórica compartilhando
esse campo híbrido que se abria com a queda da ditadura e grande
parte da solução de problemas contemporâneos de um Brasil que
finalmente saía da ditadura militar e teria que superar a lingua-
gem metafórica e o anonimato ou universalidade da crítica. Nem
todos os gatos seriam mais pardos, e diversos matizes acabaram
saindo do armário, junto com uma enorme pressão de mudanças
morais, sexuais e raciais que, reprimidas indistintamente e violen-
tamente sob ditadura, naquele momento iniciavam o exercício de
suas expressões em discursos cada vez mais radicais na direção de
demandas reprimidas.

Obra, autor e espectador


Considera-se frequentemente que a apreciação ou interpretação
estéticas devem levar em conta três posições fixas: a obra, o au-
tor e o espectador. Poderíamos facilmente acrescentar uma outra,
sem causar problemas ou novidades bruscas a esse sistema de apre-
ciação: a de intérprete, talvez desimportante, ou não tão presente
no processo de produção nas artes plásticas ou na literatura, mas
muito importante na música, no teatro e no campo expandido da
performance.
Com essas âncoras a análise contemporânea da arte pode con-
viver muito bem, discutindo os limites e papéis de cada uma dessas
posições fixas: qual o grau de interatividade ou o papel do especta-
dor e do autor, qual o limite do intérprete na manutenção ou não da
autoria original de uma obra, quais os limites da própria obra como
significativa de algo estético.
Ora se pede mais ou menos intervenção ativa do público, ora se
preserva mais ou menos a autoria e uma obra dita original. Mas pa-
rece que qualquer mudança ou interpretação que se faça dentro do
campo das artes e das oscilações dos seus humores, acaba passando
por um desses quatro pontos fixos na configuração do que podemos
chamar de discurso estético: obra, autor, espectador e intérprete.

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e lugar próprio em Otávio Donasci |17 17
Ruído e redundância
A introdução do ruído, ou do que atrapalha a comunicação, como
elemento estético. A utilização da redundância, ou repetição, como
repetição do diferente. No caso da nota repetida isso é evidente: ela
se repete de forma diferente no decorrer de sua repetição. Sua mo-
notonia está emoldurada por acontecimentos que a criam uma nova
camada de significados decorrentes diretos da performatividade.
A peça mistura e organiza elementos de diversas linguagens que
concorrem para um mesmo efeito, imprevisível e que apenas toma
ou dá sentido estético quando performado. A introdução do vídeo
torna-se um elemento disparador para novos horizontes criativos
e relacionais. O cochicho ao invés da voz impostada também é um
exemplo de reutilização das linguagens.
Ademais disso, introduzem uma ligação entre estética e tecno-
logia que se aprofunda cada vez mais com o desenvolvimento dos
softwares e da Inteligência Artificial.
Figura 8: Nova-mente, orquestra contracenando com monitores de TV. Fonte: acervo
pessoal.

Política e conscientização
O fato de o governador estar presente, da impostação da vídeo-
criatura ser típica do político, de fazer promessas parecidas com as
que eram feitas e a entrada dos atores cochichando ao pé do ouvido
que era mentira acabou por expandir o campo expressivo de forma
que conquistou, na prática, um lugar próprio, um lugar na polis:
uma dimensão política.

Rodô e Viagem ao centro da terra: lugar próprio


Lugar geográfico e lugar político
Rodô. Escrita por Koellreutter especialmente para a inaugura-
ção do Teatro José de Alencar, 1991 em Fortaleza. Segundo o pró-
prio compositor

Escrevi então uma música para os instrumentos e os ruídos utili-


zados durante a reforma do teatro, ou seja: corrupios, furadeiras,

18 18 | Antonio Herci
serradeiras, talhadeiras e lixadeiras (elétricas e simples), apare-
lhos de marcenaria, martelos, etc. Os executantes (em torno de
95) foram os próprios operários, misturados a um grupo de alunos
meus.

A palavra rôdô, em japonês, significa trabalho. Os instrumen-


tos são as próprias ferramentas de trabalho: serras, furadeiras, li-
xadeiras, martelos etc. e o palco o canteiro de obras. Os operários
são regidos segundo uma partitura desenvolvida em módulos, ou
seja, cada indicação dispara e combina módulos sonoros dos grupos
e participantes.

[...] A primeira parte partiu da ideia da monotonia tediosa, so-


cialmente triste do trabalho dos operários. A segunda evoca o
caos e a poluição sonora das cidades, interrompida pela polícia
(a ordem vigente). A terceira representa a transcendência de
tudo isso, pela ordem da arte — no caso, a polifonia dos martelos.
(KOELLREUTTER 1991)

Na primeira parte vai se dando uma lenta mistura de timbres,


através da execução coordenada de grupos, segundo uma estrutura
modular. Cada grupo entra e sai, combinando-se entre si. Na se-
gunda parte, intitulada “Caos”, além dos instrumentos entram fer-
ramentas mecânicas, como betoneiras, gritos de operários tirados
de seu trabalho cotidiano e motos de batedores da polícia no auge
do caos. A última parte é a “Sinfonia dos Martelos”, batidas cuja es-
trutura contrapontística é baseada na série de Fibonacce, do mate-
mático Leonardo de Piza (1170-1240), onde o consequente é a soma
dos dois antecedentes: 1, 1, 2, 3, 4, 8, 13, 21... (AMADIO 1999, 105s)
No final os operários músicos, que participaram da execução,
recitam versos de Rossini Camargo Guarnieri (adaptados por
Koellreutter), dando um tom político e novamente, recorrente em
sua vida, uma referência ao marxismo na escolha do tema trabalho
e na centralidade autoral dos operários que eram verdadeiramente
trabalhadores da construção civil.
“Nós trazemos em nossas veias
O sangue de todas as raças,
Nós trazemos no coração
A angustia de todos os povos.
Nós somos a voz do grande rio

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e lugar próprio em Otávio Donasci |19 19
Do desespero humano,
Somos a grande voz anônima
Dos oprimidos
Que não sabem
Ou não podem falar ... “ (Transcrito por AMADIO 1999, 106)
Segundo Bezerra (BEZERRA et al. 2012, 31) teatro foi reinaugura-
do com uma extensa pauta, que começara logo pela manhã, no dia
26 de janeiro de 1991. Um dos destaques foi Amir Haddad, mestre
do teatro de rua, “que começou em cortejo na Praça do Ferreira, indo
para a Praça José de Alencar para finalmente invadir as dependên-
cias do teatro já no final da tarde”. Outro destaque foi Koellreutter:

Algo curioso sobre a inauguração. A programação foi intensa


durante todo o dia. Aqui, no entanto, gostaríamos de salientar um
desses momentos, ocorrido logo no começo da manhã desse dia: a
execução do Concerto ruidístico. [...] Uma peça musical composta
e regida pelo cultuado e respeitadíssimo compositor, musicólogo,
maestro e professor Hans-Joachim Koellreutter. Os instrumen-
tos tocados pelos operários da obra, no caso, os músicos, eram
marteletes pneumáticos, serras, betoneiras, martelos percutidos
em talhadeira, furadeiras elétricas etc. O maestro­ compositor
regeu esse inusitado conjunto usando cartões numerados cor-
respondentes, cada número, a um grupo de instrumentos-ferra-
mentas. (Depoimento do engenheiro Argos Mesquita, membro da equipe
técnica responsável pela reforma, em 17 abr. 2009. In: BEZERRA et al.
2012, 31–32)”publisher”:”UNIFOR, Laboratório de Estudos em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará
(UFC

Percebe-se algumas questões importantes: primeiramente fica


claro para o engenheiro da obra, que deu o depoimento, a forma da
música, enquanto performance e execução: “usando cartões nume-
rados correspondentes...”.
O nome “instrumentos-ferramentas” também nos indica que a
referência deixou de ser a ferramenta da obra, e esta transmutou
de valor e passou a referenciar um instrumento da obra. Também a
situação do operário está transmutada: como participante, faz par-
te ativa da autoria e desempenha sua parte não de forma alienada
(como na linha de produção), mas sim conhecendo as regras da obra
como um todo, a sua forma. Além disso a metáfora entre instru-

20 20 | Antonio Herci
mento e ferramenta induz a uma interpretação metafórica também
do trabalho humano, tanto em seu sentido na participação dentro
de um modo de vida, onde por fim “apropria-se do discurso”, como
metáfora da liberdade — por isso mesmo a partitura é baseada em
diagramas que contam com a aleatoriedade de eventos — e quan-
to ao sentido de autoria metaforicamente apropria-se dos bens de
produção para realizar uma obra criativa: que seja expressão do
seu caráter. Tudo isso oferece uma riqueza polissêmica que, atra-
vés da performatividade, de fato percorrem o que Danto chama de
transfiguração.

Faz parte da estrutura de uma transfiguração metafórica que o


objeto da metáfora mantenha sua identidade o tempo todo e seja
reconhecido como tal. Trata-se, portanto, mais de uma transfigu-
ração do que de uma transformação. (DANTO 2005, 248)

As ferramentas não estão se transformando em instrumentos,


pois continuam sendo o que são, estão transfigurando, isto é, assu-
mindo o papel de algo, portando seus atributos, mas não virando
aquilo. E a estética de Rôdô conta com o fato de que as pessoas re-
conheçam as ferramentas e nelas vejam os instrumentos, e não que
se encantem por algum artifício de trucagem.
Com relação à própria arte, os instrumentos ferramenta, não
tem por fim senão essa transfiguração, deixando de ter por petição
a subversão ou a crítica da arte ou dos instrumentos:

Sua reivindicação parece ser ao mesmo tempo revolucionária e ri-


sível: ela não deseja subverter a sociedade das obras de arte, mas
ser admitida nela, ocupando o mesmo lugar dos objetos sublimes.
(DANTO 2005, 297)

Danto admite que, num primeiro momento, o mundo da arte


ficará aviltado, ao admitir essa pretensão. “Parece fora de questão
que um objeto tão baixo, um lúmpen, seja enaltecido mediante essa
admissão”. Mas logo nos damos conta de que confundimos a obra de
arte — os instrumentos — com sua “correspondente vulgar no mun-
do” — as ferramentas. Mas a obra justifica sua pretensão ao status
de arte, justamente ao propor tão ousada metáfora: a ferramenta
como instrumento.

Ao fim e ao cabo essa transfiguração de um objeto banal não

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e lugar próprio em Otávio Donasci |21 21
transforma coisa alguma no mundo da arte. Ela simplesmente
traz à luz da consciência as estruturas da arte, o que sem dúvida
pressupõe que tenha havido um certo desenvolvimento histórico
para que a metáfora fosse possível. Uma vez possível, algo como
a Brillo Box já era a um só tempo inevitável e vão. Inevitável por-
que o gesto tinha de ser feito, fosse com esse objeto ou com algum
outro. E vão porque, uma vez feito o gesto, não havia mais razão
alguma de fazê-lo. (DANTO 2005, 298)

Mas, imaginemos agora que por lugar comum se oponha lugar


próprio. E que se afirme que outra metáfora ocorre nesse nível.
Ocorre que a peça foi apresentada no canteiro de obras, aonde os
instrumentos-ferramenta existiam em seu lugar comum, em seu,
digamos assim, habitat natural. Neste caso acaba transfigurando
também o seu lugar comum e passa a assumir um lugar próprio,
isto é, um topos na própria construção de sentido. E canteiro de
obras agora, em seu lugar próprio transfigurado, tenha um sentido
muito próximo ao que lhe deu Vovelle, quando se refere ao “eco”
que fez e faz até hoje a “revolução francesa”, um imenso “canteiro
de obras” (VOVELLE 1989, 25). Vovelle foi um dos historiadores que,
nas primeiras décadas do século XX, editando a revista francesa
Analles, propôs uma mudança drástica na estrutura do pensamen-
to tópico marxista — baseado em infra e superestruturas, onde a se-
gunda é determinada dinamicamente pela primeira. Tal mudança
ficou conhecida como “do porão ao sótão”, pois seu modelo, para o
conhecimento de uma sociedade, ao invés de partir da infraestrutu-
ra econômica — o porão — começa estudando a sociedade pela sua
cultura e organização social — o sótão (VOVELLE 2004, 296)
Segundo o historiador, um canteiro, em primeiro lugar, apenas
existe enquanto se constrói algo que, depois de pronto, desativa
seu canteiro”. Por outro lado, ele se refere a algo que opera que se
constrói: conjunto de instrumentos, conhecimentos e trabalho. E o
próprio canteiro, que já atestou seu lado efêmero — é desativado
quando termina o que está construindo — mas que também mostra
que está em plena atividade. (VOVELLE 1989, 25s)
Mas, que tipo de unidade podemos reivindicar que nos permita
falar em expressão de um canteiro de obras se a própria obra senão
seu próprio processo? Sua forma de trabalho, seu material, sua mão
de obra, ou o paradigma de um projeto final são os elementos de
sua unidade, e decorrem quando o lugar comum, com sua unidade

22 22 | Antonio Herci
de produção fragmentada, exploratória, desorganizadora de classe,
que é o canteiro de obras da reforma do Theatro, se transfigura no
canteiro de obras do Rôdô, o canteiro de obras do próprio trabalho.
O lugar próprio do canteiro de obras da obra é a figuração de si
como técnica, conhecimento e subjetivação colaborativa ou desfrag-
mentada das regras do jogo estético.
Mas estamos falando em transfiguração do lugar, tomemos ago-
ra lugar no seu sentido estrito: o canteiro de obras que se torna o
canteiro de obras da obra. Evidentemente existe, na própria base do
que se chamou de transfiguração, uma razão de significação entre
o lugar o sentido da obra. Ambos são indissociáveis: onde a obra
ocorre é parte da própria obra e vice-versa, só pode ser parte da
obra se concorrer, ocorrer junto com ela. Vale dizer, a obra tem um
componente de sentido que se aproxima do que será um dos para-
digmas da arte contemporânea até as primeiras décadas do século
XXI: o site específico.
Mas além disso, também mudava o paradigma que reivindicava
estruturalista, e a obra carrega-se de um máximo de subjetividade
e o sujeito da obra, os operários, voltam a figurar como componen-
tes necessários de autoria. No entanto, ao invés disso significar um
passo atrás, em direção ao gênio ou autor romântico, que pairava
senhor absoluto sobre a obra, também aqui Koellreutter revela as-
pectos de uma contemporaneidade que estava apenas engatinhan-
do, mas já mostrava ali suas marcas: a autoria colaborativa.

Viagem ao Centro da Terra


Nessa mesma época, Otávio Donasci, que já trabalhara com
Koellreutter em Nova-mente onde, como vimos, concebeu suas ví-
deocriatura, desenvolve um trabalho simultâneo, mas totalmente
independente, mas que também planta definitivamente esse con-
ceito aqui apresentado de transfiguração do lugar comum como um
tipo de sentido que se chama de site específico.
Donasci monta Viagem ao Centro da Terra em um canteiro de
obras que foi desativado e que se encontra paralisado. Trata-se do
que hoje é o túnel Jânio Quadros, cujo ousadia era ser um túnel que
passava por baixo do Rio Pinheiros. Hoje ligando a Av. Juscelino
Kubitschek ao outro lado da Marginal Pinheiros.

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e lugar próprio em Otávio Donasci |23 23
Figura 9: Viagem ao Centro da Terra, peça montada em túnel abandonado. Fonte:
Otávio Donasci, acervo pessoal.

Acontece que a obra era objeto de muita discussão, que passa-


va por superfaturamento, e isso se torna o eixo da discussão po-
lítica na disputa pela prefeitura, com os candidatos se colocando
contra ou a favor. Luíza Erundina ganha a eleição pelo Partido dos
Trabalhadores (PT) e paralisa as obras em 1990, originalmente co-
meçadas pelo que deu nome ao túnel, Jânio Quadro. Tal paralisa-
ção para além de um ato administrativo, ganhou uma conotação
ideológica e um símbolo de rompimento com o antigo prefeito e a
imprensa produziu algumas matérias sobre o impasse. O túnel sido
depois terminado e inaugurado pelo rival e sucessor, Paulo Maluf,
em 1994!
A montagem de Donasci começa na estratégia política para con-
seguir autorização para utilizar uma obra embargada, que ainda
oferecia riscos devido à precariedade, como cenário de sua peça.
Para além da caracterização arquitetônica ou do espaço físico, es-
sas obras estabelecem um outro patamar na questão do lugar onde
ocorrem: a dimensão da polis, um lugar onde o discurso por defini-
ção é político.

24 24 | Antonio Herci
A localização da obra, nestes dois casos, em Rôdô e em Viagem
ao Centro da Terra, além de esteticamente estar muito bem resol-
vida como forma, quando ocorre no espaço de construção do Teatro
que será inaugurado (Rôdô) — como cenário onde os operários serão
os artistas —; ou quando percorre o espaço de um túnel abandonado
sob o Rio Pinheiros — como cenário de uma Viagem do Centro da
Terra — assumem também seu lugar próprio na ágora, na política e
nos debates da cidade, ao mobilizar o escombro como símbolo de um
projeto político e conseguir costurar um amplo leque de negociações
para viabilizar a aprovação e uso, uma batalha política e judicial.
Torna-se um manifesto!
Neste sentido, relaciona-se duplamente com o espaço: (i) o es-
paço físico reapropriado do túnel; (ii) o espaço político da cidade em
seu entorno, evocando a obra como argumento político.
De forma que ao transmutarem o lugar comum e constituírem
um valor específico como lugar (site específico) trouxeram para pri-
meiro plano as relações entre a estética, a ética e a retórica, de
modo que a obra ao mesmo tempo ocorre e ocorre como metadis-
curso retórico de si mesma, como pregação simbólica que se tornou:
seus signos transmutaram-se em tópicos de uma arena ideológica.
As estéticas ampliam os horizontes iniciais da criação artística
estabelecendo um campo cuja característica é a expansão discursi-
va e a aproximação entre a estética e a retórica. A obra, utilizando-
-se do ser lugar próprio e de seu campo expandido de discurso, volta
seu sentido para a convocação do outro para uma causa:

— Psiu, ei você!

Num mesmo movimento em que reforça o sentido da expressão


da subjetividade, convidando à colaboração, coletividade e compar-
tilhamento da humanidade como compartilhamento de um modo de
vida, que pressupõe arte, beleza, sentido e prazer como reafirmação
de sua própria condição humana e retorna subjetiva:

— Sou, creio que.... Tenho certeza!

Performance e jogos de linguagem: campo expandido e lugar próprio em Otávio Donasci |25 25
26
Imagem relacional: apontamentos sobre
as videoinstalações de Otávio Donasci

Fernanda Albuquerque de Almeida

N os anos 1980, o artista brasileiro Otávio Donasci inventou


as videocriaturas, uma combinação do aparelho televisivo
com o corpo humano, que resultou em indivíduos atuantes em di-
versas situações. Suas criaturas o tornaram conhecido, sobretudo
no campo da performance, mas Donasci também realizou instala-
ções em museus e em espaços públicos. Ao longo de mais de 30 anos,
suas obras acompanharam, ao mesmo tempo, os desenvolvimentos
tecnológicos – como a passagem do eletrônico para o digital e a po-
pularização de telas planas e projeções em diferentes dimensões – e
os processos de investigação artística que saíram dos confins das
paredes dos museus e ocuparam seus espaços e as ruas. O objetivo
deste artigo é fazer alguns apontamentos sobre as suas videoinsta-
lações, enfatizando o aspecto relacional das imagens que as com-
põem. A investigação se inspira nos objetos relacionais da artista
brasileira Lygia Clark para conceber o conceito de imagem rela-
cional, que considera a relação entre ela e o espectador fundamen-
tal. O percurso será composto por: 1) Uma breve apresentação da
primeira videocriatura (1980) de Donasci, contextualizada em um

Imagem relacional: Apontamentos sobre as vídeo-instalações de Otávio Donasci |27 27


movimento de imbricação das linguagens artísticas e dos meios de
comunicação de massa, a partir dos anos 1960; 2) A análise de algu-
mas videoinstalações exibidas em museus e instituições culturais,
como Videobusto (1986, Pinacoteca de São Paulo), Videomáscaras
e Videotaxigirls (1992, Videobrasil); 3) A análise de algumas vi-
deoinstalações apresentadas nas ruas, compondo ambientes pene-
tráveis ou experiências imersivas, como Hidra (1998) e Capacete
Virtual (Fenasoft-Nokia) (2001); e 4) A apresentação do conceito de
imagem relacional, a partir das análises realizadas.

O Surgimento da Videocriatura
Otávio Donasci e muitos artistas que viveram em países como
Brasil e Estados Unidos se dedicaram a experimentar as possibili-
dades artísticas do vídeo em meados das décadas de 1970 e 1980. A
ideia subjacente a essas experimentações era contrapor o formato
hegemônico da televisão e sugerir outras formas de concebê-la como
meio de expressão, contestação e comunicação bidirecional. Artistas
como Bill Viola construíram uma consistente trajetória artística
usando o vídeo como seu maior meio de expressão. No caso de Viola,
a dimensão temporal da mídia do vídeo é trabalhada, sobretudo
através da desaceleração, de modo a ressaltar questões relativas
aos ciclos naturais, à finitude e às emoções. Em uma direção dife-
rente, outros artistas produziram obras como Television Delivers
People (1973)1, de Richard Serra, e Technology/Transformation:
Wonder Woman (1978-79)2, de Dara Birnbaum, que denunciam
aspectos dos discursos construídos e propagados pela mídia tele-
visiva. Na primeira obra, assistimos à descrição por escrito de es-
tratégias de manipulação e motivações corporativas por trás dos
discursos proferidos nela. A segunda apresenta um compilado de
cenas do seriado Wonder Woman, que abrange sobretudo os mo-
mentos de transformação da protagonista Diana em mulher mara-
vilha. A repetição das cenas e a ênfase dada à letra da música tema
tornam evidente a construção imagética da protagonista, cujo poder
de super-heroína é submetido à sexualização feminina. Ainda, ou-
tras obras da época como Hole in Space (1980), de Kit Galloway e
1 Cf. <https://youtu.be/LvZYwaQlJsg>. Acesso em: 18 set. 2017.
2 Cf. <https://youtu.be/HhMG-QCJVsE>. Acesso em: 18 set. 2017.

28 28 | Fernanda Almeida
Sherrie Rabinowitz, chamam atenção para o potencial dialógico da
televisão em detrimento do formato unidirecional de comunicação3.
Esta foi uma proposta de arte pública, na qual duas telas foram
colocadas na rua, uma em Nova York e outra em Los Angeles, pos-
sibilitando a comunicação entre os passantes de ambos os locais.
Em todas essas obras, o principal intuito é intervir no status quo
social a partir do questionamento do próprio meio, como já prenun-
ciava Nam June Paik em TV Magnet (1965), obra seminal da área
de videoarte, na qual é possível manipular os sinais eletrônicos da
imagem televisiva com ímãs.
No Brasil, muitos artistas realizaram experimentações e busca-
ram desenvolver suas poéticas através do vídeo, de forma similar às
tendências internacionais elencadas4. Dentre eles, Otávio Donasci é
um nome que se destaca pela sua trajetória em torno da invenção e
desenvolvimento de diversas versões da videocriatura. Assim como
outros artistas da época, Donasci entendia o elétron como o mate-
rial de produção artística de seu tempo; também era instigado pelas
questões relativas à imbricação entre o orgânico, representado na
sua obra especialmente pelo rosto exibido nas telas, e pelo eletrôni-
co, relativo ao vídeo, daí a ideia de criar uma espécie de “costura”
entre essas duas dimensões através da construção de um ser que
agregasse, inicialmente, o vídeo ao corpo humano – videocriatura.
A primeira videocriatura construída por Donasci foi feita em
1980 com televisores em preto e branco ortopedicamente fixados
na cabeça de um performer, posicionados verticalmente e ligados
por cabos a um videocassete ou câmera low-tech. O figurino era
composto por uma malha preta semitransparente com um capuz,
que cobria todo o equipamento agregado ao corpo. A transparência
permitia a visão do performer, que deveria interagir com o público
enquanto imagens de rostos previamente gravadas eram exibidas
no televisor. As gravações haviam sido feitas em laboratórios com
atores como Osmar Di Pieri e Cacá Rosset, pessoas comuns, ani-
mais, bonecos, efeitos de animação, mãos ou qualquer coisa que pu-
desse emular um rosto. Como eram imagens gravadas, os recursos

3 Cf. MATUCK, Artur. O potencial dialógico da televisão: Comunicação e arte na


perspectiva do receptor. São Paulo: Annablume: ECA-USP, 1995.
4 O tema da videoarte no Brasil já foi amplamente abordado. Cf. MACHADO,
Arlindo. (Org.) Made in Brasil: Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo:
Iluminuras: Itaú Cultural, 2007.

Imagem relacional: Apontamentos sobre as vídeo-instalações de Otávio Donasci |29 29


de edição do vídeo, como trucagens de câmera, iluminação, sonori-
zação e computação gráfica, foram experimentados, resultando em
máscaras videográficas com imagens dinâmicas. Donasci descreve
que algumas imagens exibidas nessas telas foram:

o close na boca, que acaba ocupando todo o rosto/tela imprimindo


agressividade ao texto verbalizado; o rosto que vai se desfocando
enquanto fala, expressando um conceito de desvanecimento ou
morte gradual; ou ainda a técnica da inversão do rosto, colocan-
do-o de cabeça para baixo, ideal para se criar caricaturas que pro-
duzem um estranhamento humorístico.5

As possibilidades de edição do vídeo não eram o único aspecto


relevante da videocriatura. Tão importante quanto elas era a ex-
pressão corporal do performer que daria sustentação à estrutura
do aparelho televisivo. Deveriam ser levados em consideração os
cabos acoplados a esse aparelho, que depois foram substituídos pela
tecnologia Wi-Fi. Com o desenvolvimento tecnológico, os tubos dos
televisores também foram trocados por telas planas de LCD, facili-
tando, assim, a movimentação do performer6. Donasci fez diversas
experimentações com videocriaturas sobre animais e pessoas até
elaborar sua primeira videoinstalação em um espaço expositivo.

Videoinstalações em museus e instituições


culturais: Bustos e esqueletos vivos
A primeira videoinstalação de Donasci foi Videobusto (1986),
criada especialmente para o 80º aniversário da Pinacoteca de São

5 DONASCI, Otávio. Videocriaturas: Análise de videoperformance realizadas entre


1980 e 2001. Dissertação de Mestrado em Poéticas Visuais. Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, 2002, p.11.
6 Na abertura da sua edição de 2014 em São Paulo, o FILE – Festival Internacional de
Linguagem Eletrônica promoveu o encontro da primeira videocriatura de Donasci
com obras similares de artistas estrangeiros que trabalham com novas tecnologias.
Em YamadaTaro, projeto de Katsuki Nogami, a face do performer é substituída
por um iPad, que capta e exibe, em seu lugar, os rostos dos passantes. A proposta
é fazer uma analogia com o modo como, nas redes sociais, as pessoas se tornam
similares aos demais com os quais querem se parecer. De acordo com o artista, a
performance “expressa a temporalidade e o anonimato da internet”. Cf.: <http://file.
org.br/file_sp_2014/file-sp-2014-10/?lang=pt>. Acesso em: 18 set. 2017.

30 30 | Fernanda Almeida
Paulo. Tratava-se de um busto em fibra de vidro com um rosto pré-
-gravado exibido em um monitor na vertical, instalado sobre um
pedestal grego. Na entrada do espaço, Videobusto passava o dia
inteiro conversando com os visitantes, impaciente sobre o término
do expediente. Em outros momentos, tentava imitar um busto po-
sicionado ao seu lado. De acordo com Donasci7, esta proposta usava
recursos de edição de vídeo como o “freeze”, versão eletrônica da
estátua, e o “desabafo”, no qual “o rosto parado ia ficando cada vez
mais tenso até que gritava, voltando a sorrir relaxado, repetindo o
ciclo”.
Anos depois, uma nova versão do Videobusto (1992) foi apre-
sentada na 9ª edição do festival Videobrasil. Donasci gravou ros-
tos de pessoas conhecidas e desconhecidas, fazendo declarações
sobre diversos assuntos, para depois mostrá-los acoplados a um
busto instalado na choperia do SESC Pompeia. De acordo com o
artista: “A importância e a credibilidade histórica do busto eram
ridicularizadas e comprometidas com opiniões misturadas, fazendo
uma analogia ao sagrado da opinião veiculada pela TV que deveria
ser desmistificada.” Ecoando as propostas de Richard Serra e Dara
Birnbaum, essa versão da obra caracterizava-se pela denúncia à su-
posta verdade dos discursos televisivos e provocava a legitimidade
do próprio discurso da história da arte, que tem o busto como uma
de suas formas escultóricas mais clássicas.
No mesmo local, a instalação Videotaxigirls (1992) explorou lin-
guagens sensoriais. Essa obra consistiu em manequins perfuma-
dos, vestidos com roupas de tecidos com diferentes texturas (seda,
veludo, renda, couro) e adereços, que podiam ser movimentados pe-
los visitantes. As faces os seduziam, convidando-os ao envolvimento
físico de uma dança. Donasci relata que os visitantes foram envol-
vidos pela proposta de tal modo que um dos manequins recebeu até
mesmo um beijo. A obra coloca os afetos em questão e questiona em
que medida uma máquina pode sanar as necessidades de envolvi-
mento social humano.
Uma nova instalação foi exposta ao longo de 5 dias no Itaú
Cultural. A obra Videoesqueleto (1997) era constituída por um es-
queleto de plástico em tamanho natural, no qual foram inseridos
um pequeno monitor de 5 polegadas, instalado no seu crânio, um vi-
deocassete, colocado no seu tórax, e um alto-falante, posicionado na
7 DONASCI, 2002, p.34.

Imagem relacional: Apontamentos sobre as vídeo-instalações de Otávio Donasci |31 31


sua traqueia. Suas articulações foram amarradas a fios de nylon,
que possibilitavam a mudança da sua posição por parte da própria
equipe do local. Videoesqueleto falava com os visitantes, contando
sua história. Segundo Donasci8:

Ele teria sido descoberto por um professor alemão [...] e seria o


fóssil de um ator de um lugar fictício, Nostáugia, que por uma
aberração da natureza preservou junto com seus ossos, suas me-
mórias numa língua desconhecida vibrante e apaixonada, às ve-
zes humorística, compreensível apenas pelas suas inflexões do
texto.

É possível observar que Videobusto (1986), Videotaxigirls (1992)


e Videoesqueleto (1997) apresentam criaturas que não dependem
de um corpo orgânico e em movimento para a sua existência, dife-
renciando-se da primeira videocriatura de Donasci. Contudo, elas
preservam o aspecto “vivo” desse corpo, pois continuam a interpelar
o espectador para que ele participe da situação construída. Sua par-
ticipação pode ser física, através do envolvimento em uma dança
como em Videotaxigirls, ou mental, como, por exemplo, no convite
ao pensamento que Videobusto (1992) faz para desconfiarmos das
verdades proferidas por figuras de autoridade, representadas pelos
bustos na história da arte e pelos meios de comunicação de massa
no convívio social.

Videobusto (1986), Videotaxigirls (1992),


Videoesqueleto (1997)

8 DONASCI, 2002, p.38.

32 32 | Fernanda Almeida
Videoinstalações nas ruas: Penetráveis e
capacetes virtuais
A passagem pelos museus e instituições culturais com videoins-
talações de Donasci é apenas uma entre muitas outras passagens
de criaturas performáticas em espaços públicos e privados, internos
e externos. Além da diversidade de espaços, Donasci utiliza supor-
tes que variam do corpo humano aos bustos e esqueletos, ou ainda
superfícies flexíveis, sobre as quais corpos inteiros são projetados.
Um exemplo de obra que explora essa composição foi apresentado
na 10ª Bienal de São Paulo, como parte da programação de perfor-
mances. Videovivo (1989) consistiu em uma apresentação na qual o
corpo inteiro de uma mulher foi projetado sobre uma malha flexível,
que podia ser manipulada por um performer presente fisicamente
no espaço da projeção. A performance envolvia a relação física entre
os corpos – e entre ausência e presença – culminando na encenação
de uma relação sexual entre o performer, que efetivamente estava
no espaço, e a imagem da mulher sobre a malha.

Videovivo (1989)

Imagem relacional: Apontamentos sobre as vídeo-instalações de Otávio Donasci |33 33


Assim como em Videovivo, as imbricações entre eletrônico e or-
gânico, imagem e corpo, privado e público permeiam especialmen-
te os projetos de arte pública realizados por Donasci, como Hidra
(1998) e Capacete Virtual (Fenasoft-Nokia) (2001).
Hidra (1998) foi uma videocriatura gigante exposta no espaço
público, composta por um guindaste encapado que tinha uma face
de 4 metros de altura e um corpo de 100 metros de comprimen-
to – como o de uma serpente – no qual era possível aos passantes
adentrar. A face da criatura consistia na combinação de dois rostos
de mulheres, uma negra e uma branca, que cantavam e gritavam
chamando por seus amados. O rosto da criatura se movia, descendo
e subindo a uma altura de 28 metros. Dentro dela, junto aos visi-
tantes, havia 5 homens e 5 mulheres representando arquétipos do
masculino e do feminino. Dentre os homens, estava, por exemplo,
um branco vestido de Don Juan DeMarco, que proclamava textos
poéticos no ouvido dos passantes, e um negro nu, com o corpo co-
berto de óleo aromático de cânfora, que deixava seu perfume ao to-
car nas mulheres. Dentre as mulheres, estavam, entre outras, uma
gigante, uma anã e uma anciã, que penteava seus cabelos nua, ao
mesmo tempo em olhava fixamente para os olhos dos homens que
a visitavam. De acordo com Donasci, mais de 3.000 pessoas passa-
ram pela instalação, que foi exposta nas ruas de Santo André, na
Grande São Paulo. O amplo espaço dessa instalação suscita a refle-
xão sobre o público e o privado, ao tratar de um tema que é ao mes-
mo tempo íntimo e social, as relações entre pessoas. Assim como em
Videotaxigirls (1992) e em Videovivo (1989), Hidra (1998) convida
os espectadores a vislumbrarem relações possíveis com a imagem,
propiciando a imersão a partir do estímulo de diversos sentidos ao
mesmo tempo: visão, audição, tato e olfato.
Essa abordagem multissensorial visando à criação de ambientes
imersivos foi desenvolvida em outras propostas abrangendo tecno-
logias. A partir dos anos 1990, a disseminação das telas em LCD de
diversas dimensões possibilitou a criação de máscaras compostas
por pequenas telas múltiplas. Ao mesmo tempo, a popularização dos
computadores propiciou a experimentação de artistas na geração de
imagens sintetizadas digitalmente, muitas delas integrando expe-
riências imersivas com uso de capacetes de realidade virtual. Um

34 34 | Fernanda Almeida
exemplo é Osmose9 (1995), de Charlotte Davies, uma instalação in-
terativa que envolve o uso de um capacete virtual, no qual o especta-
dor irá se deparar com um simulacro da natureza. Influenciado por
projetos como esse, vistos no ISEA (1995, Montreal), Donasci conta
que quis “levar as pessoas para uma viagem virtual de imersão do
modo mais simples e barato possível, dando menos ênfase às técni-
cas computacionais para realização disso e mais para o binômio do
Videoteatro, linguagem vídeo/presença física com toque”10. Tendo
isso em vista, criou o Capacete Virtual (Fenasoft-Nokia) (2001).
Essa obra consistiu em um mecanismo com uma pequena tela
de LCD e um fone de ouvido montados dentro de um capacete, que
deveria ser vestido pela performer e pelo espectador ao mesmo tem-
po. O capacete reduzia o campo perceptivo dos arreadores e aumen-
tava a sensação de imersão, pois obscurecia e silenciava o ambiente.
A conexão com o mundo exterior era dada somente pelo toque das
mãos da performer, que conduzia o espectador em sua jornada. O
conteúdo do vídeo, de apenas 4 minutos, era composto por uma nar-
rativa com câmeras subjetivas e ações sincronizadas com a atuação
física da performer11. Ao contrário da instalação de Davies, na qual
o espectador podia modificar a realidade virtual a partir das suas
ações, o ambiente imersivo do Capacete Virtual não propiciava a
interação. Conforme comenta Donasci sobre essa obra: “A narrativa
cinematográfica se sobrepõe à linguagem cênica, acrescida ainda
com a possibilidade de improviso do performer, enriquecendo o ro-
teiro do espetáculo feito para um só.”12
Tanto Hidra (1998) quanto Capacete Virtual (Fenasoft-Nokia)
(2001) abrangem a mescla das esferas pública e privada, bem como
seguem algumas tendências apresentadas desde a primeira video-
criatura de Donasci: a ênfase na relação entre eletrônico e orgânico,
vídeo e performance, imagem e suporte, e, finalmente, na dinâmica
construída entre obra e espectador.

9 Cf. <https://youtu.be/54O4VP3tCoY>. Acesso em: 18 set. 2017.


10 DONASCI, 2002, p.64.
11 É possível compreender melhor essa proposta na documentação em vídeo
apresentada em 30 anos de videocriaturas. Disponível em: <https://youtu.be/
NYHF6FrGG84>. Acesso em: 18 set. 2017.
12 DONASCI, 2002, p.66.

Imagem relacional: Apontamentos sobre as vídeo-instalações de Otávio Donasci |35 35


Hidra (1998) e Capacete Virtual (Fenasoft-Nokia) (2001)

Imagem relacional
É possível observar que a obra de Donasci engloba diferentes
mídias e linguagens artísticas, como a performance, o teatro, a ins-
talação e o vídeo. Ela se adapta a vários ambientes, internos e ex-
ternos, públicos e privados, grandes e pequenos. Estimula diversos
sentidos concomitantemente: visão, audição, tato e olfato. Trata das
imbricações entre orgânico e artificial, do eletrônico ao digital. Ela
dialoga, assim, com a história da arte e com as recentes tecnologias
de produção de imagens, visando propiciar ao espectador uma expe-
riência multissensorial através da arte.
Além, portanto, da conexão com o campo da videoarte, as vi-
deoinstalações de Donasci remetem a noções como “ambiente” e
“participação do espectador”, que foram disseminadas na área das
artes visuais a partir dos anos 1960. Segundo Julio Plaza, este pe-
ríodo é marcado pela desmaterialização da obra e pela sua pluri-
disciplinaridade. Ainda, de acordo com o autor: “Nos ambientes, é
o corpo do espectador e não somente seu olhar que se inscreve na
obra. Na instalação, não é importante o objeto artístico clássico,
fechado em si mesmo, mas a confrontação dramática do ambiente
com o espectador.”13 Tal proposição está evidentemente presente
nas videoinstalações de Donasci. O corpo do espectador está tão im-
plicado quanto seu olhar, sobretudo em obras como Videotaxigirls
(1992), Hidra (1998) e Capacete Virtual (Fenasoft-Nokia) (2001),
13 PLAZA, Júlio. “Arte e interatividade: Autor-obra-recepção”. (2001) In:
ARS, vol.1, nº.2, São Paulo, dez. 2003, p.14.

36 36 | Fernanda Almeida
que propõem que ele se envolva fisicamente com pessoas e objetos.
Essas obras ecoam a prática de artistas pioneiros como Hélio
Oiticica e Lygia Clark, para os quais não bastava que as obras fos-
sem vistas; elas deveriam ser vivenciadas, preferencialmente atra-
vés de vários sentidos. Sobretudo para Clark, a ênfase da experiên-
cia estava no seu aspecto sensorial. Ela desenvolveu essa linha de
pensamento em seus “objetos relacionais”, proposta na qual objetos
e elementos do cotidiano, como sacos plásticos preenchidos por dife-
rentes objetos e substâncias, eram colocados junto aos corpos para
que as sensações provocadas pela sua materialidade pudessem ser
absorvidas pelos sentidos, evocando memórias e afetos. A ênfase
estava, portanto, na relação que era estabelecida entre o objeto e os
sentidos do espectador.
Rememoro brevemente a prática desses artistas à luz das vi-
deoinstalações de Donasci para conceber um conceito ampliado de
imagem, que considera a relação entre a obra e o espectador funda-
mental. A imagem relacional não reside no vídeo, no suporte ou na
imbricação entre ambos, mas na relação estabelecida entre a obra
e o espectador, no momento em que este a experimenta. Isso não
quer dizer que a forma ou superfície sobre a qual a imagem se ma-
terializa, mesmo que de forma efêmera, não importe. Ao contrário,
assim como nos objetos relacionais de Clark, é essa materialidade
que afetará os sentidos. Contudo, apenas na relação entre obra e
espectador é que a imagem relacional se completa. Suscitando ou
não a participação, as videoinstalações comentadas são exemplares
deste tipo de imagem, ao preservam o aspecto dialógico e relacional
da arte, em oposição às pretensões de comunicação unidirecional
das mídias de massa, tão criticadas desde o início da videoarte.

Referências
DONASCI, Otávio. Videocriaturas: Análise de videoperformance realizadas entre
1980 e 2001. Dissertação de Mestrado em Poéticas Visuais. Escola de Comuni-
cações e Artes da Universidade de São Paulo, 2002.
MACHADO, Arlindo. (Org.) Made in Brasil: Três décadas do vídeo brasileiro. São
Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2007.
MATUCK, Artur. O potencial dialógico da televisão: Comunicação e arte na pers-
pectiva do receptor. São Paulo: Annablume: ECA-USP, 1995.
PLAZA, Júlio. “Arte e interatividade: Autor-obra-recepção”. (2001) In: ARS,
vol.1, nº.2, São Paulo, dez. 2003.

Imagem relacional: Apontamentos sobre as vídeo-instalações de Otávio Donasci |37 37


38
Performance e Teatro: aproximações e
distinções no caso Otávio Donasci

Lucio Agra

Desde 2001, quando foi publicado pela primeira vez, o livro


de John Mckenzie Perform or else – from discipline to performance14
chama a atenção por sua curiosa tese: a de que teríamos saído do
sistema disciplinar, tal como descrito exaustivamente por Foucault
e estaríamos a caminho do sistema performativo (performático? Da
performance? Enfim!). Sob essa nova ordenação do mundo, a per-
formance passa a ser o que configura uma possível “ontologia” dos
fazeres e das percepções. “A performance tornou-se uma das pala-
vras-chave para o novo século” assevera a apresentação do livro. E
ninguém menos do que Marvin Carlson, no seu Performance: uma
introdução crítica15 chega a conceder a Mckenzie o status de um
Deleuze ou uma Butler, no sentido de se tornar, à maneira desses
14 “Performe ou mais nada – da disciplina à performance” seria um título ruim.
A tradução dessa locução é dificílima o que, evidentemente, não justifica o
livro ainda não ter uma versão em português do Brasil
15 De 1995, mas somente traduzido aqui em 2010 e, atualmente, esgotado, pela
Editora da UFMG

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|39 39


importantes nomes, um dos fundadores do entendimento do mundo
no século 21, “um ponto de orientação para o trabalho futuro nos
modos do pensamento ocidental”.
Tamanho apreço pode derivar em parte, quero crer, da cons-
tatação, que John Mckenzie torna clara, de que a performance é
uma das práticas humanas mais pervasivas do mundo contemporâ-
neo. Que alguém torne isso um objeto de pesquisa, preocupando-se
em dar consistência ao que já se chamou, em outra época, de “per-
formative turn” (virada performativa) (CONQUERGOOD,1989) é o
que torna o trabalho deste autor tão central a ponto de ser citado
mesmo por aqueles – e não são poucos – que tratam esse aconteci-
mento com reticência.
É o caso de um Patrice Pavis, por exemplo, notório historia-
dor francês do Teatro – e também um dos seus mais destacados exe-
getas e defensores. Autor de clássicos como o Dicionário do Teatro,
Pavis representa uma tradição complexa e erudita que, entretanto,
durante muito tempo, viu com reticência o que Mackenzie, na cer-
teza de um achado científico proeminente, no mundo das artes e
das ciências humanas, celebra em suas múltiplas vertentes. O livro
de Pavis de 2007 La mise em scène contemporaine, traduzido entre
nós por Nanci Fernandes em 2010, com o mesmo título, A encenação
contemporânea – origens, tendências, perspectivas (PAVIS, 2010)
demonstra consideravel avanço do autor que pusera um verbete de
“performance” no seu Dicionário de forma elusiva e reticente.
Ao tentar traçar, em seu primeiro capítulo, uma narrativa
da evolução da encenação (o equivalente dado pelo tradutor ao ter-
mo “mise em scène”), Pavis se vê às voltas com a sombra amea-
çadora do termo performance e vamos aos poucos percebendo que
o capítulo inteiro – quiçá o livro – é construído para tentar dar
conta desse conflito (a saber, o conflito encenação X performance)
e, desse modo, justificar a crise pela qual irá passar a “encenação”
a partir sobretudo da segunda metade do século vinte, o que por
sua vez justificaria porque o autor tenta demonstrar a existência
e os desdobramentos dessa prática artística. Mas não será ainda
nesse primero capítulo que o que chamo aqui de conflito se torna
manifesto. Ao chegar na crise da encenação que, no caso francês, é
praticamente sinônimo de crise do uso do texto, Pavis se vê forçado
a abrir um segundo capítulo, nos moldes do anterior, e cujo título é
“nas fronteiras da encenação”. Nas primeiras frases do capítulo, o

40 40 | Lucio Agra
dilema retorna de forma interessante:

“Tendo experimentado quase todas as possibilidades da cena, às


vezes o teatro gostaria de retornar a formas mais próximas da lei-
tura do que a representação. (…) Qualquer leitura feita em cima
do palco não se confirgura, como representação no ato da leitura,
como uma encenação, por mais minimalista que seja?” (PAVIS,
2010:25)

Que o leitor me permita deter-me um pouquinho nessa passa-


gem para ver alguns detalhes do discurso de Pavis. Eu o farei nova-
mente, mais adiante, com outros trechos, mas agora me interessa
destacar locuções como “quase todas as possibilidades da cena”, o
atenuante aí servindo como sugestão de que a cena é algo inesgo-
tável; a breve oposição entre a simples leitura do texto e sua posta
em cena que significa, afinal, subir em um “palco”. “To stage”, verbo
de língua inglesa que não temos em português mas que sempre é
traduzido por “encenar” do mesmo modo que se faz para superar a
tradução literal de “mise-en-scène” ou “posta-em-cena”, isto é, “en-
cenar”. Encenar, por em cena é, de fato, nesse caso, pôr no palco;
além disso, a assunção final: sempre que se faz o “ato da leitura”
“em cena”, não está excluída a representação. Ou, como ouvi cer-
ta vez de um colega do teatro, em uma reunião de Departamento:
“estamos condenados à representação”. A propósito, não deixa de
chamar a atenção que, entre nós, atuar cenicamente seja o mesmo
que “representar”, termo que, popularmente, sempre designou, em
português do Brasil, o ofício do “ator”.
Nas três partes desse curioso segundo capítulo, Pavis anali-
sa a leitura cênica, a “não-encenação” e a “encenação improvisada”.
Que ninguém imagine que no segundo tópico Pavis se lembrará da
fundamental gradação proposta por Michael Kirby, que dá conta de
um “atuar menos”16. A referência de Pavis para isso parte de um
certo Clayde Régy, num movimento um tanto irritante que autores
como o próprio Pavis ou Carlson – no caso do contexto estaduniden-
se – costumam seguir: ater-se ao contexto monoglota de seus países.
16 Me limito aqui a dar a referência apreenida a partir do livro de Carlson, mas
remeto o leitor à bibliografia e ao lamentavelmente ainda não traduzido texto
de Kirby sobre o “atuar menos” ou “não atuar” (“On Acting and non-acting”
in ZARRILLI, Philip (org) Acting (re)considered – a theoretical and practical
guide London/NY, Routledge, 1995). O mesmo texto também se encontra em
BATTOCK, G.e NICKAS, R (eds) The art of performance: a critical anthology,
1984.

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|41 41


O terceiro tópico do capítulo, “a encenação improvisada” prepara,
sutilmente, o leitor que está ávido para saber onde é que Pavis quer
chegar, como você que leu até aqui e não encontrou ainda nenhum
comentário sobre o Otávio Donasci proposto no título,. É evidente
que Pavis não quer repetir uma narrativa linear sobre o teatro mo-
derno e contemporâneo. Mas certamente o leitor que compra um
livro com o nome A encenação contemporânea tem avidez em desco-
brir o que, afinal, é esse novo denominador que pode ajudar a dar
sentido ao que parece estar, por assim dizer, vazando das formas já
conhecidas do teatro.
Chegamos ao terceiro capítulo - “Encenação, Performance:
Qual é a diferença” que começa desse modo:

“Jogando um pouco com as palavras, examinaremos uma questão


muito séria:o modo pelo qual as duas palavras – encenação ou per-
formance – nos ajudam, mas também nos obrigam, a pensar tanto
na interpretação de uma representação quanto na concepção do
teatro. Com efeito, cada uma das duas línguas vê as coisas mui-
to diferentemente e se encontra mais ou menos apta a descrever
o fenômeno teatral que não cessa de evoluir. (PAVIS, 2010:43;
grifos nossos)

Começando pelo fim da citação, convido o leitor a voltar atrás


alguns parágrafos e lembrar de que Pavis fez questão de asseverar
que tinham-se experimentado, ao longo dos séculos e particular-
mente no dezenove e início do vinte, “quase todas as possibilidades
da cena”, agora complementando: “que não cessa de evoluir”. Assim
se pode compreender que o aparecimento de formas artísticas que
ignoram as práticas cênicas dentro do escopo teatral, podem ser
compreendidas, a despeito delas mesmas, como processos de evolu-
ção da “encenação” ou seja, em última instância, do próprio teatro
em seu eterno evoluir.
“Encenação” por sua vez, passa a ser um termo passível de
equivaler a “performance” pois, logo de início, trata-se de um pro-
blema de línguas que chamariam de diversas formas a mesma coi-
sa. Um parágrafo depois, Pavis escreve:

“O termo inglês performance, aplicado ao teatro, designa aquilo


que é desempenhado pelos atores e realizado por todos os colabo-
radores da ‘representação’ ou sea, daquio que e apresentado a um

42 42 | Lucio Agra
úblico após um trabalho de ensaios”.

Estariam excluídas, portanto, as categorias descritas no capítu-


lo anterior como a não-atuação e o improviso. E no uso corriqueiro
do termo performance em inglês – para designar qualquer tipo de
apresentação, teatral, musical, humorística – a descrição de Pavis
está correta. Isto torna evidente um uso coloquial do termo, muito
antigo aliás, que corresponde à execução de uma ação com resulta-
dos previstos, o que tem feito com que a articulação com a noção,
em português, de desempenho, faça todo o sentido. Durante muitos
anos, aliás, a dupla Skill/Performance,da teoria linguística de Noam
Chomsky, revisando as noções de langue e parole de Saussure, foi
traduzida em português como Competência (skill) e Desempenho
(performance). O deslocamento, neste sentido, que as ideias de
Chomsky produziram em relação ao pensamento da Linguística do
genebrino Saussure foram importantes ao dar ênfase ao segundo
termo da díade: Chomsky revoluciona a linguística nos anos 50 ao
dar destaque precisamente àquilo que Saussure considerava im-
possível de ser analisado no seu sistema: o modo como o usuário
emprega a língua. Para Saussure isso dizia respeito tão somente
ao uso individual do idioma e o que valia era o sistema deste, sua
langue. Para Chomsky, porém, eram os modos de desempenhar a
língua o objeto principal de sua pesquisa, contemporânea da desco-
berta de regiões cerebrais especializadas no uso de idiomas.
Voltemos a Pavis, para com tudo isso dizer que sim, há uma
questão de terminologias e línguas aí, como vimos. Mas a expres-
são “aplicado ao teatro”, referindo-se ao “termo performance”, logo
no início do capítulo, vai eximindo Pavis da tarefa da qual Marvin
Carlson não se esquivou. Quero dizer que a “esgrima” de Pavis é
constantemente a de evitar tocar na noção de performance em si
mesma, ou seja como algo que nem é (do) teatro, nem de qualquer
outra coisa. O leitor começa a se dar conta de que o que Pavis está
querendo desde o início, ao propor uma ideia de cena contemporâ-
nea é afastar a possibilidade de lidar com o fato de que há “algo”
cênico que não “cabe” no teatro e que, afinal, é seu território de

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|43 43


investigações.17
Aqui, pelo contrário, é onde queremos chegar. Ele, como to-
dos os que se interessam por entender a performance, busca a etimo-
logia da palavra. Se ela é empregada na língua inglesa, é de origem
francesa antiga, “parformer que significava parfaire” (o tradutor
esclarece que a palavra quer dizer “acabar, terminar, dar a última
mão, aperfeiçoar, perfazer” PAVIS, 2010:44 e nota). Curiosamente
o polonês Jan Swidzinski, lido aqui em sua primeira tradução fran-
cesa feita no Québec, afirma que o termo “provém do latim per-for-
ma (transformação de qualquer coisa, formação segundo um modo
diferente). E o verbo inglês to perform significa realizar, preencher”
(SWIDZINSKI, 2005:129)18. Swidzinski é – foi – um artista da per-
formance que morreu recentemente com bem mais que 90 anos de
idade. Não fazia performance “no teatro”, decerto tinha um pé nas
artes visuais, mas seu principal “foco” era a performance. É nesse
momento, o da etimologia (eu poderia ficar citando vários autores e
diferentes versões dessa etimologia, mas fica para outro texto) que
Pavis admite, muito brevemente que performance “designa igual-
mente um gênero que se desenvolveu consideravelmente nos anos
70 nos Estados Unidos” (PAVIS, 2010:44). Mais adiante admite que
“o termo inglês não tem equivalente em francês” (idem).
Discutir a questão em termos do que é nomeável ou não em
uma língua torna-se então um jeito de desviar de vários problemas.
O primeiro é que dificilmente, nas páginas seguintes, Pavis conse-
gue comprovar o que afirmara. O leitor, confuso, acaba percebendo
que não dá para falar “encenação OU performance” e que “encena-
ção”, muito embora no século dezenove se aplicasse “às obras que
não são literárias como os balés, pantomimas, feéries ou melodra-
mas” acaba havendo um momento, no contexto francês, que tudo
isso mergulha na “mise-en-scène” e, afinal, sendo encenado, é tea-
tro. Mesmo porque o autor acaba, quando descreve a transição para
17 Impossível não assinalar aqui que Renato Cohen, quase dez anos após es-
crever Performance como Linguagem (1989) lança Work in progress na cena
contemporânea (1998) e, portanto, põe em discussão o termo que Pavis usa
mas certamente na direção oposta, pois fora ele mesmo o propagador e inves-
tigador da própria performance, em seu país, além de ser um dos poucos a
compreender, internacionalmente, a emergência não de um novo gênero (do
teatro ou das artes visuais) mas uma nova linguagem, isto é, uma nova forma
de fazer arte.
18 Na tradução francesa, as duas últimas palavras são accomplir e remplir e o
que trago aqui é uma terceira tradução, a minha

44 44 | Lucio Agra
o moderno, assumindo uma configuração análoga à do diretor de
cinema: um cinema “autoral” (ou um teatro assim também) não é o
cinema do roteirista (o autor do texto) mas do diretor do filme, antes
encenador que vem a galgar uma posição de destaque no teatro e
assim também no cinema.
Por contraste, Pavis analisa a vida dos termos na língua in-
glesa. O que se passa na Inglaterra, segundo ele, é uma diferente
lexicalização pois o termo que se refere ao que o teatro faz é en-
tão production. Vendo que é preciso uma contextualização maior,
Pavis vai então retomar o método que usara no primeiro capítulo:
traçar uma cronologia. No início do século vinte, ele identifica os
“primeiros encenadres no sentido atual do termo, as vanguardas
européias” (PAVIS, 2010:46) E aí o que para RoseLee Goldberg, ou-
tra autora canônica da Performance, é o início desta, para ele são
encenações modernas que “fizeram experiências a partir do espaço,
do ator e das artes plásticas” (idem, grifo nosso). “não se interes-
saram especialmente pelas relações entre texto e palco, porém pelo
dispositivo construído para o palco”. Nos anos 20, 30, 40 as alusões
a autores não franceses são sempre àqueles que de certo modo “con-
juminam” com a ideia textual francesa. Ao falar de Brecht

“a encenação (Regie, Inszenierung) não tem valor estético e po-


lítico em si. É uma noção ligada àquela da prática cênica que
se supõe estar incumbida de demonstrar a fabricação de signos
e da ilusão (…) O teatro está aberto ao mundo e, à imagem da
performance, torna-se uma forma ativa” (PAVIS, 2010:47, grifos
do autor)

Quando chega aos 50 e 60 permanece a predominância francesa


e nos anos 70 o texto, nunca abandonado como fator cênico, é discu-
tido em termos do ambiente estruturalista. Nesse período, afirma,
“o único domínio em que a performance realizou um caminho au-
têntico é o do physical theatre, teatro físico (porém na época não se
chamava assim)” (idem, grifos do autor). Na página seguinte dirá
que “a encenação parecia submissa demais ao teatro de texto, à
espera da chegada do teatro de imagens de Robert Wilson e do tra-
balho experimental de Peter Brook (em 1971)” (PAVIS, 2010:51).
As contradições entre os termos vão se acirrando pois Wilson tam-
bém é reivindicado pela performance do mesmo modo que Laurie
Anderson, definitivamente da performance de Nova York dos anos

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|45 45


80, nunca por ele mencionada, e fez seu trabalho em palcos, na cai-
xa preta, a exemplo do próprio Wilson e de performers de várias
partes do mundo, dentre eles, no Brasil, Guto Lacaz.
O inevitável acontece, após os anos 80, na cronologia de
Pavis: seu próximo tópico se chamará “o estado atual da dupla per-
formance/encenação” que, digamos já, não é uma dupla, mas uma
distância:“A partir do último decênio do século XX, a tendência à
aproximação de encenação e performance confirmou-se. A ampli-
tude e a importância do fenômeno da performance não pararam de
crescer.” (PAVIS, 2010:54).
E é aí que surge em Pavis a menção a Mckenzie e só então
parece haver a admissão da possibilidade de que esta inexplicável
performance possa ser algo maior até mesmo do que a encenação
(quer dizer, o teatro, afinal, e em outros termos).
Se ao invés de tomar esse rumo, Pavis buscasse a história
do teatro na Europa, nos anos da Revolução Industrial, como o faz
Christophe Charle (CHARLE, 2012)19, teria chegado à conclusão
que este chega, a de que o formato daquilo que chamamos ainda
hoje de teatro foi construído em torno de um business progressiva-
mente mais e mais elitista que se desenvolveu nas principais capi-
tais européias com diferentes matizes. Tudo o que a linha do tempo
de Pavis observa amplifica-se sob a perspectiva de Charle e torna-
-se muito mais claro: as funções do autor do texto, do encenador e
do ator, bem como as demais especializações “do palco”, obedecem
a uma lógica que atende por outro nome, não tão simpático como
encenação: o espetáculo. Aquilo que no Brasil e na França dizemos
que vamos ver quando vamos ao teatro, tem uma história, um co-
meço e provavelmente está por se findar nesse modelo.
O que o livro de Pavis contorna é a constatação feita antes
dele pelo alemão Hans-Thies Lehman: o que Pavis sonha preservar
perdera o sentido. E isso é o que os outros franceses como Pavis –
tais como Sarrazac ou mais particularmente o teatro performativo/
performático de uma Josette Féral tentam resolver: o problema da
distância entre uma teoria do drama, do dramático, do dramatúrgi-
co e a contaminação inevitável de uma nova “encenação” pelo pós-
-neo-não-dramático (conforme o caso) ao que a performance desde o
19 O copyright da edição original do livro de Charle é de 2008. É provável que
Pavis tenha escrito o seu antes do lançamento dessa obra que provoca uma
reviravolta no entendimento histórico canônico do teatro em geral.

46 46 | Lucio Agra
início aderira por constituir-se em um terreno do fora desse proble-
ma “cênico”.
O empreendimento comercial que o teatro foi – e agora a
ideia de Mackenzie fica mais clara – pertence, foucaultianamente,
ao mundo das práticas disciplinares, no qual a escola, a prisão, o
hospital, o auditório, a sala de aula e a sala teatral/cinematográ-
fica se assemelham. São todos modos de assujeitamento da lógi-
ca de vários com o olhar tangido para uma só direção, são todos
modos de produção do que Rancière, no seu O espectador emanci-
pado (RANCIÈRE, 2008) assinala como a prática dos aptos e re-
conhecidos socialmente como autorizados a dizer, contra aqueles
que devem apenas assistir, sem participar, de modo passivo. Seria
interessante contrastar – mas aqui fica apenas a sugestão – os ar-
gumentos de Pavis com os de Rancière e com a história contada por
Charle. Ficaria bem fácil perceber o quanto a teoria teatral france-
sa de Pavis, Sarrazac e companhia busca manter em pé o que não
pode mais se sustentar.
Inversamente, costumo sempre chamar a performance do
lugar dos que desistiram, num sentido próximo do que Cohen cha-
mava de “legião estrangeira”, ou seja, o lugar dos que não conse-
guiram desenvolver uma poética no terreno tradicionalmente deli-
mitado (seja ele escultura, pintura, desenho, música, teatro, dança
ou que mais ocorrer de linguagens milenares). É um lugar de exílio
portanto. Exílio face à constatação da iniquidade autoritária do pal-
co ou do histórico comercial do teatro. Exílio que tem essa dimensão
de fuga do ambiente irrespirável mas também exílio como força de
afirmação de uma diferença possível.
Entendo como sendo essa a situação que se passou com a
obra de Otavio Donasci desde que ele constata que não fazia um
Videoteatro ou Teatro Eletrônico mas sim Performance.
Essa constatação se deu já a partir das primeiras aparições
de seu artefato fundamental, a videocriatura. Quero tratá-la aqui
como um agenciador dessa passagem do teatro à performance, e
das significações que essa “virada performativa” na obra de Donasci
passa a engendrar.
No III Festival Videobrasil, ainda no início da expansão vi-
deográfica, Donasci apresenta um trabalho que oscila – inclusive
no próprio texto do catálogo – entre as denominações “videoteatro”,

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|47 47


“videocriatura”, “videomáscara” e até mesmo “performance”. Tratava-
se de um desdobramento do trabalho que estreara, no ano anterior, na
Galeria São Paulo20.
Torna-se sintomático que já nesse texto, em sua primeira parte
– “A máscara eletrônica” –Donasci faça uso de uma ideia que repercuti-
rá na pesquisa de Renato Cohen, na qual a noção de persona serve para
estabelecer distinções em relação ao teatro:

“Na performance geralmente se trabalha com persona e não persona-


gens. A persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico (…) A
personagem é mais referencial. Uma persona é uma galeria de persona-
gens (…) O trabalho do performer é de “levantar” sua persona. Isso ge-
ralmente se dá pela forma, de fora para dentro (a partir da postura, da
energia, da roupagem dessa persona) (…) a persona surge no processo
de ciração e pode tomar qualquer rumo (…) (COHEN, 1989:107, grifos
do autor)

Em diversas outras passagens nesse e em seu livro posteriror,


Work in progress na cena contemporânea (1998), Cohen faz menções mais
ou menos precisas à noção de persona. Tenho buscado entende-la através
da ideia de um “atuar menos”, presente em Michael Kirby, como já disse
acima. No caso de Donasci, caberia perfeitamente entender o conceito
de persona para o que ele chama de “videomáscara”, pois corresponde
ao sentido etimológico (per+sonare= soar através). Ao mesmo tempo, a
“videocriatura” acrescenta a esse “rosto” sua dimensão mítica em conso-
nância com o que McLuhan já detectara nos seus estudos da TV.
Donasci pergunta-se – como bom aluno de Vilém Flusser, com

20 Registre-se que algumas das iniciativas fundantes da performance de fins dos anos
70 (por exemplo, o lendário Mitos Vadios) e início dos 80 contaram com a intervenção
direta de Ivald Granato, autodenominado o “pai da performance brasileira”. Ainda
estava em curso a recuperação da obra de Flávio de Carvalho, em parte devida
à sua reaparição, em retrospectiva, na 17a Bienal, curada por Walter Zanini. Da
mesma forma, o clima favorável ensejava eventos no Sesc Pompéia (onde Renato
Cohen programava) e na Sala Guiomar Novaes da Funarte, a essa altura convertida
em ponto de encontro da “nova” arte. Em Performance como linguagem, Cohen faz
referência a Granato mas timbra em caracterizar como nomes decisivos na época, os
de Guto Lacaz (Eletroperformance, Ponderosa Bar, junho de 83) e Donasci (Galeria
São Paulo, maio de 82). Ao primeiro se refere, ainda, como “espetáculo ritual” e ao
segundo como “espetáculo conceitual” (COHEN, 1989:76/80). A versão definitiva de
Eletroperformance se dará na 16a Bienal (curadoria de Sheila Lerner). Na Galeria
São Paulo também havia a atuação decisiva de Tadeu Jungle, cuja figura de apre-
sentador no programa Fábrica do Som da TV Cultura, gravado no mesmo SESC
Pompéia, tinha elementos da performance que ele e outros realizadores como Walter
Silveira consideravam parte imprescindível da produção no novo meio, o vídeo.

48 48 | Lucio Agra
quem fez cursos na FAAP – “o que acontece com o teatro na era das
tecno-imagens?”

“Slides projetados substituem o cenário assim como filmes en-


riquecem a narrativa. Um dos maisores cenógrafos de teatro do
mundo, Joseph Svoboda já projetava no cenário imagens-vídeo de
closes do ator que estava em cena. E isso em 1952.” (DONASCI,
1985: s/no pág.)

Sou testemunha do impacto negativo desta e de outras tec-


nologias elementares na cena brasileira dos anos 70 a 90. O “es-
cândalo” com os microfones de Gerald Thomas, as tvs no palco do
“Circo Antropofágico” de José Roberto Aguilar ainda nos anos 70.
A aparição de bandas “trilhando” ao vivo os espetáculos (sobretudo
a partir dos 80). A relação desses elementos com o teatro brasi-
leiro nos grandes centros do País foi sempre dilemática. Adiante,
Donasci esclarece o que pensava ser o “videoteatro”:

“Seria muito rico para a expressão humana se conseguíssemos


incororar o vídeo, que é a síntese das tecno-imagens com o teatro que
tem no ator ao vivo seu foco principal de expressão. Foi querendo
isso que nasceu o videoteatro” (DONASCI, 1985)
Na segunda parte de seu texto, “Frankenstein e a costura
eletrônica”, o artista dá espaço para um caminho que é o da perfor-
mance. Já Renato Cohen advertia para uma das chaves de leitura
da performance: “collage como estrutura”. É evidente que a metáfo-
ra do corpo que é “colagem” de outros corpos, constantemente revi-
sitada no contemporâneo, constitui-se o fundamento mítico perfeito
para uma criação baseada no jogo paratático da montagem (ilha de
edição).
Ao descobrir a reduplicação do rosto no tubo de imagem de 12
polegadas posto em posição vertical (anti-paisagem), Donasci nota
imediatamente que a aplicabilidade é infinita e tanto se conecta
com um corpo humano como todos os demais existentes. Nos protó-
tipos apresentados, a videocriatura “encabeça” esse corpo humano,
mas também pode “residir” num inflável, funcionar como boneco de
ventíloquo, etc. Em várias ocasiões ela habitou bichos, superfícies
grandes, simulações de bestas imaginárias, marionetes, corpos du-
plicados, bustos e até óculos. Trata-se de uma espécie de emanação
da imagem do ator convencional (aquele que interpreta) mas opera

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|49 49


como se este fosse decapitado e reinserido como memória artifical
de alguma outra coisa. Essa solidão estranha, bastante conhecia do
performer, é a solidão do monstro que se aparta do diálogo humano.
O teatro vive dessa circunstância especial que nos congrega:
a vida em sociedade exige, em primeiro lugar, a negociação com o
outro, o estado da dialogia. A persona,por outro lado, revela a face
do excluído, daquele que, como observou E. Goffmann, carrega um
“estigma” que o condena a uma espécie de “degredo” (a “legião es-
trangeira das artes” é como Cohen caracterizou a performance). É
dessa ordem de questões que a performance emerge, daí o sentido
de “idiossincrasia” que Cohen valoriza, inassimilável à versatilida-
de desejável de um ator dramático.
Donsaci também recorre ao monstro de Frankstein (a con-
fusão entre criador e criatura, como no caso dele mesmo, “profes-
sor Pardal” e “cavalo” de suas personas) para descrever os vários
possíveis “acoplamentos” que a tecnologia (àquela altura exclusiva-
mente analógica) permitia, desmembrando essa cabeça em várias
possibilidades.

“No laboratório de expressão com protótipos, os atores improvi-


sam usando aparelhoes e criam as características das persona-
gens gravadas anteriormente. Ensaiam com espelhos. São cria-
dos também os figurinos e os ajustes eletrônicos. Depois dessas
fases preliminares éfeito o laboratório de finalização do espetácu-
lo, no qual é explorado o espaço cênico, são feitas as marcações, os
ajustes de iluminação, adereços etc.” (DONASCI, 1985)

Repare-se toda a terminologia clássica do teatro (atores, per-


sonagens, espaço cênico, espetáculo). No parágrafo seguinte, no en-
tanto, algo parece contradizer o anterior:

“Já foram realizados espetáculos de videoteatro em vários espa-


ços: teatros, ruas, praias, galerias de arte, danceterias, lojas etc.,
explorando possibilidades expressivas tais como a peça teatral, o
evento performático, o show etc. Acredito que ainda estamos na
pré-história do videoteatro. Nossos métodos são sempre experi-
mentais e variam conforme a evolução da tecnologia possível ou
novas técnicas de interpretação cênica” (DONASCI, idem ibid.)

Notável o esforço de quem buscava atores que se dispuses-


sem a abandonar as estratégias às quais estavam acostumados.

50 50 | Lucio Agra
Os atores tornavam-se performers e trocavam a tal exploração do
“espaço cênico” pela formulação do que Cohen chamará, anos mais
tarde, o “topos cênico” e que, autores dos estudos da performance
vêm chamando de “contexto” (Swidzinski) ou “forma dinamizada”
(Zumthor). Para esse último este ambiente que envolve e ao mesmo
tempo é construído pelo performer é, ele mesmo, também, a perfor-
mance (ZUMTHOR, 2007:27-28).
O que “atrai”, segundo esse autor, é “o jogo” (noção também
encarecida por Swidzinski). “O que nos havia atraído era o espetá-
culo. Um espetáculo que me prendia, apesar da hora de meu trem
que avançava e me fazia correr em seguida até a Estação do Norte”
(ZUMTHOR, idem ibid.) Nas suas considerações iniciais em torno à
noção de performance, o autor de Performance, recepção, leitura nos
fala de uma memória da infância, irrecuperável (como a Erfahrung
de Benjamin) precisamente porque muito embora os folhetos dos
cançonetistas que assistia na rua, ao retornar da escola, a caminho
de sua casa, em Paris, fosse acessíveis posteriormente, nada po-
deria reevocar aquela experiência: “Mais ou menos tudo isto fazia
parte da canção. Era a canção” Dos aromas às pessoas, das árvores
ao clima, da “folhas-volantes” ao “riso das meninas”, tudo isso fazia
parte dessa “forma dinâmica”, ou seja, muito mais do que a cena,
senão como rememoração, pode abarcar em estado laboratorial.
Donasci, ao asseverar, ainda na terceira parte do texto (“Um
projeto brasileiro. Quem diria!”) que o “campo de atuação” é “o pal-
co, o espaço cênico, a rua. O espaço de um ator”, tenta garantir essa
dimensão “nobre” para o degredo que sua “videocriatura” represen-
ta. Mas frases depois completa:

“Não tem medo de enfrentar um público maior e menos iniciado.


Tem bastante espaço para outros criadores trabalharem, além de
atores, produtores, técnicos, etc... Enfim é um projeto de videoper-
formance (um dos poucos que se pode chamar assim) que vem
dando certo. E merece apoio” (DONASCI, 1985)

Para concluir, Donasci, dá o arremate que, a meu ver, é exa-


tamente o ponto e inflexão a partir do qual é impossível a reconci-
liação com o status quo cênico da época. A ruptura com o modelo
teatral clássico – via teatro “performático” ou “pós-dramático – que
viria a se dar dez anos depois com o ensaio de Hans-Thies Lehman
e, na prática, no Brasil, a partir do século 21, vem sendo um proces-

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|51 51


so que pouco a pouco e com muita reticência reconhece a linguagem
artística da performance como tal. Diz-nos Donasci, ainda naquela
época:

“O teatro seria a expressão mais completa senão tivesse supor-


tes físicos tão sólidos para se expressar (palco, cenário, atores).
O sonho é conseguir um teatro onde tudo fluísse como um sonho
e atores contracenassem com seres incorpóreos, sólidos apenas o
bastante para nossas sensações, permitindo assim que um ator se
dissolvesse em cena, voasse ou virasse um animal. Enfim pudesse
o que poe nosso pensmento hoje. Ou fosse como nós realmente
somos e não como parecemos no espelho.” (DONASCI, 1985,
grifos do autor).

Essa reivindicação que parece quase ingênua de uma possí-


vel “autenticidade”, guarda em seu âmago o princípio que havia sido
o motor principal da performance desde seu início. A partir dos anos
subsequentes, Donasci realizará com as “expedições multimídia”,
junto ao diretor Ricardo Karman (Viagem ao Centro da Terra, 1992,
São Paulo; A grande viagem de Merlin, 1994, São Paulo; Viagem ao
Centro da Terra, 2001, Rio de Janeiro) todos os possíveis que alme-
jara nesse texto. Usou os mesmos atores que já treinara e construiu
espaço para que a nova geração, ingressasse direto na Performance
(como foi o caso, ainda nos 80, de Theo Werneck que começara como
seu assistente). Na mesma década de 90, Renato Cohen leva o seu
trabalho de nomadismo do espaço cênico, sem definição dos espaços
de palco e platéia, às últimas consequências no porão do CCSP, com
Vitória sobre o sol. A década de 90 assiste à emergência de vários
experimentos teatrais que usam “espaços não-convencionais” como
o próprio Cohen e seu grupo “Orlando Furioso” (e depois o “Midia
Ka”, fruto do “espetáculo” Ka, a sombra da alma, dos formandos
da Unicamp de 98, mantido em temporada de 3 meses no Museu
Ferroviário daquela cidade); o Teatro da Vertigem com suas cenas
construídas em hospitais desativados, na rua etc; e vários outros.
Também nos anos 90 tornou-se uso corrente no meio teatral a ex-
pressão “teatro de imagens”, polêmica que o opôs ao teatro de base
textual, ainda então vigente. Não se sabia, entretanto, do ensaio de
Lehman que, como se pode ver na bibliografia, só seria publicado
em 2007. Entretanto, por volta do início dos anos 00, o autor visitou
o Brasil a convite do Goethe Institut. Eu e Renato Cohen assisti-
mos sua palestra na ocasião. Me lembro nitidamente de advertir

52 52 | Lucio Agra
que o que Lehman dizia já me parecia estar no livro de Cohen de
98. No ano de sua morte, 2003, dávamos juntos um curso na USP,
no qual tivemos a honra de contar com Antonio Araújo como aluno.
Também me lembro que ele trouxe a edição em francês do livro de
Lehman e era com isso que contávamos para nos pormos a par des-
sa formulação nova. Cohen se foi meses antes do curso terminar.
Um ano antes do livro de Lehman sair, o de RoseLee Goldberg, A
arte da performance finalmente era publicado. Sua primeira edição
era de 1979 e foi lido, nessa mesma versão, com avidez por mim e
por Renato. Não nos conhecíamos ainda e posteriormente descobri-
mos que usáramos as mesmas fontes.
Com tudo isso, e dentro desse contexto, surgiu a criação e
consolidação da área de performance no então emergente curso de
Graduação em Artes do Corpo da PUC-SP. Tudo isso hoje é história.
Donasci e Arthur Matuck, dois performers da voga dos 80, foram
banca dos primeiros TCCs de performance do curso. Graças ao es-
forço de Naira Ciotti, Donasci veio a se tornar professor do curso
onde está até hoje.
Na nossa tradição, como bem observou Rogério Nagaoka, em
diversas conversas durante os projetos em que estivemos juntos,
a performance paga um raro tributo ao teatro. Em outros países
também existe uma dinâmica desse diálogo, entretanto levada a
cabo em diversos termos. Não se pode dizer, homogeneamente, que
no mundo todo performance – essa palavra que, na língua inglesa
designa a atuação, a encenação mesmo, como demonstrou Pavis –
equivale, necessariamente a teatro. Quiçá estejamos em um mo-
mento ainda inaugural, de compreensão da “virada performativa”
de que nos falou Conquergood. De qualquer modo, quer Lehman
possa ou mesmo admita ter desacreditado do drama – que seu mes-
tre, Peter Szondi, codificara – um fato é significativo: a única lin-
guagem que compõe um capítulo, no livro, é a Performance. Decerto
isso demonstra como ela foi incontornável para certo temperamento
artístico do qual Donasci é um dos mais destacados representantes
no mundo inteiro.
Em várias ocasiões eu o vi mencionar o impacto – por mui-
tos relatado – da visão da obra de Nam June Paik, TV garden, na
16a Bienal (1981). Conversávamos a respeito disso ainda outro dia,
com outra pioneira do vídeo e da performance, Lucila Meirelles.
Paik fragmentou a nossa expectativa de pessoas criadas diante do

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|53 53


tubo da TV, ao multiplicar por dezenas os aparelhos e advertir para
seu uso tão inusitado, em meio a plantas, num jardim-instalação.
Décadas antes, Helio Oiticica, em obra essencial para a história de
nossa arte, pôs uma TV dentro do penetrável Tropicália (1967). A
performance brasileira é, até hoje, um universo de ações e discus-
sões sobre os fantasmas de nosso próprio entendimento como país.

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UFMG, 2010, tradução de Thais Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pe-
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CHARLE, Christophe A gênese da Socieade do Espetáculo- Teatro em Paris, Ber-
lim, Londres e Viena São Paulo, Companhia das Letras, 2012, tradução Hil-
degard Feist
COHEN, Renato Performance como linguagem SP, Perspectiva, 1989
______________Work in progress na cena contemporânea SP, Perspectiva, 1998.
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DONASCI, Otavio “O projeto videoteatro – a máscara eletrônica” Catálogo 3o Fes-
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_______________ “Diálogo entre o pensamento de Dietmar Kamper e as Expedições
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doutorado em Comunicação e Semiótica, 2016 (cópia cedida pelo autor)
________________ e KARMAN, Ricardo A grande viagem de Merlin – documenta-
ção São Paulo, 1995 (cópia cedida pelos autores)
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54 54 | Lucio Agra
SWIDZINSKI, Jan L’art et son contexte: au fait, qu’est-ce que l’art? Québec, Inter
editeur, 2005, tradução de Hubert Kryzanowski.

Performance e Teatro: aproximações e distinções no caso Otávio Donasci|55 55


56
Videocriaturas no contexto do duplo
digital

Vanderlei Baeza Lucentini


Colabor - USP

Resumo
A proximidade entre as artes e as tecnologias audiovisuais
têm seduzido o discurso poético de vários artistas na história
recente da performance art, do teatro, da dança, da música
de concerto e dos shows musicais. O link entre artista
e tecnologia tem se mostrado um campo fértil, desde as
vanguardas históricas até os dias de hoje, que por sua vez,
trouxe à superfície uma série de questionamentos, embates
teóricos e realizações na prática artística. Nessa arena de
discussão tem influenciado diretamente a construção de
novos paradigmas no processo de exploração criativa na
interface homem-máquina propostos por alguns artistas, em
especial as videocriaturas de Otavio Donasci. Nesse artigo,
relacionaremos as tipologias de duplos digitais propostas por
Steve Dixon com algumas variantes das videocriaturas pré-
digitais de Otavio Donasci.

Videocriaturas no contexto do duplo digital|57 57


Abertura
Na performance digital essa presença ocorre através a midiação
duplicada: no momento em que um performer ao vivo se confronta
com o seu espectro ou fantasma midiatizado através das tecnologias
de reprodução audiovisual. Essa ideia no plano tecnológico come-
çou a ganhar corpo com as experiências conceituais propostas pelos
futuristas italianos que, naquele tempo, já clamavam pela subs-
tituição de atores por máquinas e efeitos. O derivativo desse pro-
jeto vanguardista confluiu para a cena contemporânea entre gru-
pos e performers autônomos que começaram a utilizar tecnologia,
principalmente as assistidas por computador, para transformação
e expansão visual e sonora de seus corpos em novos contornos. O
real e o virtual têm ocorrido com a incorporação de novas mídias e
também pelo uso crescente de meios telemático por praticantes da
performance, o que parece uso corrente nesse ambiente tecnocultu-
ral, já se verificou de forma constante em outros territórios com a
presença da figura do duplo.
A concepção do duplo tem seus referenciais não apenas no
ambiente tecnodigital foi adotado por Steve Dixon na sua obra
Performance Digital (2007) onde ele denominou esse artífico de du-
plo digital. Anteriormente à apropriação digital do duplo, suas pri-
meiras aparições já ocorriam na mitologia ancestral nas fábulas de
Narciso e Eco; no teatro grego; na literatura medieval, renascentis-
ta e romântica; na teoria psicanalítica de Sigmund Freud; na teoria
analítica de Carl Jung; nos quadros surrealistas de Rene Magrite;
no teatro e seu duplo em Antoine Artaud e também nas realidades
expandidas das emanações e encarnações do corpo espiritual e suas
relações com fantasmas, corpos astrais, experiências extracorpó-
reas e projeções da alma.
Além do âmbito mágico e maravilhoso, a trajetória sedutora
do duplo deixou suas marcas em obras literárias, filmes, pinturas,
teatro, dança, música e performance art. O duplo persegue sua
imagem original criando uma segunda vida que aparece como fi-
gura, imagem, uma sombra, uma miragem, reflexos em espelhos
cuja existência depende de outra pessoa. Esse quadro referencial
encontramos na imagem totêmica das videocriaturas e plasmacria-
turas criados pelo performer e artista plástico Otavio Donasci. O
performer paulistano trafegou por esse arcabouço teórico, longe dos

58 58 | Vanderlei Baeza Lucentini


salões acadêmicos, mas dentro de sua oficina de fundo de quintal
onde confeccionou e aprimorou as criaturas entre cabos e ferros de
solda. As videocriaturas se configuram em diversos modelos desde
de tubos de tv branco e preto até fantoches televisivos, suas últi-
mas versões experimentais utilizam a tecnologia das telas planas
de plasma e lcd. De uma forma genérica, a definição das videocria-
turas, segundo Donasci é:

“um ser híbrido, uma espécie de cyborg, (metade gente e metade


máquina) com um monitor de TV colocado, por meio de armações
de tubo PVC moldado a quente, em cima de um ator escondido
sob mantos pretos. Cada tela de monitor, ligada por cabos a um
gravador de vídeo, mostra-nos a imagem de um rosto recitando
monólogos ou dialogando ao vivo com o público ou com outras
videocriaturas. O efeito criado nesses “seres” é chamado de low
tech, feito com equipamentos domésticos de vídeo e recursos arte-
sanais, improvisado á maneira brasileira, com os conhecimentos
de eletrônica que Donasci foi adquirindo na prática”.

Nesses contextos artísticos, a contribuição de Donasci nos ajuda


a compreender a relação existencial estabelecida entre o sujeito e o
seu duplo é marcada pela divisão do sujeito, o visível e o invisível,
existente no humano e que se estende para a relação homem-má-
quina na contemporaneidade.

O Duplo na Mitologia
Antes de adentramos no universo do duplo em ambientes digi-
tais adotado por Steve Dixon, se faz necessário voltarmos aos tem-
pos imemoriais, período em que o homem ainda não era governado
pela racionalidade cartesiana tecnocientífica. A presença do duplo
neste período pré-cartesiano se manifesta na forma de mitos, uma
das manifestações mais potentes da cultura humana. Os primeiros
indícios do aparecimento do duplo remontam a períodos longínquos
do tempo em que aparecem em configurações de sagas, narrativas
e no poder simbólico mítico-lendárias das culturas tradicionais. No
Egito antigo, o duplo aparece a relação corpo e alma entre Ka e Bha;
nas divindades pré-colombianas no Senhor da Dualidade: o panteão
mexicano Omeoteotl; no livro maia-quíchuas Popul Vuh com os ir-
mãos gêmeos Hunaphu Um e Hunaphu Sete.

Videocriaturas no contexto do duplo digital|59 59


A literatura cristã também é repleta de simbologias míticas, fru-
to de mudanças no conceito que antagonizava a realidade divina da
realidade humana. Dessa forma, no cristianismo e nas religiões mo-
noteístas o conceito antitético criou campos distintos entre o bem e
o mal, corpo e a alma, diabo e anjo da guarda, a vida e a morte, o
homem e a mulher. Um caso ilustrativo foi a prática da bipartição,
um recurso usado por Deus e bem ilustrado no livro do Gênesis,
onde no princípio o homem era um (Adão) e acabou sendo dividido
em dois (Adão e Eva), que ao cair na tentação da serpente e do co-
nhecimento foram expulsos do Paraíso e, como pena, tiveram que
conhecer as agruras da nova realidade humana.
A busca da transgressão e da autodeterminação levou o homem
a transpor os limites determinados pelas forças divinas, e como con-
sequência acabou gerando punições exemplares aos humanos. Na
mitologia grega aparecem alguns mitos exemplares sobre o duplo,
cujo destino é o castigo da cizânia infligido pelos deuses aos ho-
mens. Essa punição aparece no O banquete de Platão (discurso de
Aristófones) e no mito de Prometeu, cujo protagonista se revoltou
contra as hierarquias divinas e acaba se aliando aos homens e in-
gressa em territórios exclusivos e restritos, até então, aos deuses, e
acaba sendo punido por seus atos de ousadia.
A bipartição exemplifica na mitologia grega marca o fim da con-
cepção una do ser humano, trazendo à tona outra configuração que,
de acordo com a professora Nicole Bravo, marcou o início da auto-
nomia humana como agente da própria vontade em relação ao di-
vino. Para Bravo (1988:262), “masculino/feminino, homem/mulher,
espírito/carne, vida/morte - revela uma crença na metamorfose (até
mesmo metempsicose) que implica certa ideia do homem como res-
ponsável pelo seu próprio destino”.
Na literatura, da Antiguidade ao início da Idade Moderna, o du-
plo foi representado pela ideia do homogêneo, do idêntico. Em mui-
tas obras, a figura do gêmeo na comédia Os menecmas de Plauto
(206 a.C) causando uma série de mal-entendidos tornou visível ao
mundo a primeira forma de aparição do duplo. O enredo é retomado
mais tarde na Inglaterra por William Shakespeare na Comédia dos
Erros (1592-1593). A partir do final do século XVI e início do XVII, o
duplo passou a representar o heterogêneo, em sintonia com as mu-
danças geradas numa sociedade em transição do feudalismo para
um sistema capitalista incipiente. No século XIX, o idealismo filo-

60 60 | Vanderlei Baeza Lucentini


sófico serviu de suporte para a teoria do eu duplo, no qual os artistas
românticos se deparam com dois mundos marcados pelo massacrante
antagonismo entre a realidade próxima e o sonho distante. O duplo
aparece na literatura romântica na obra A Fabulosa História de Peter
Schlehrnil (1813) de Adelbert von Chemisso e Homem de Areia (1816)
do escritor alemão E.T.A. Hoffmann.

Duplo na Psicanálise
No século XX, o advento da psicanálise foi preponderante na cons-
trução analítica das sombras encontradas nas entrelinhas de algumas
obras literárias de grande porte da literatura do século XIX. A psica-
nálise aprofundou a divisão identitária, mostrando que o inconscien-
te situado na sombra do mundo racional é um fator determinante da
conduta humana.
Em 1939, com o objetivo de constituir uma teoria da personalidade
o psicanalista Otto Rank publica, em 1924, na revista Imago o texto
Der Doppelganger [O Duplo], um estudo que busca em fontes literárias
e míticas compreender a questão do duplo. Como material norteador
de sua pesquisa, Rank analisa obras literárias no formato de contos,
romances e novelas de vários autores importantes da literatura mun-
dial, entre eles: Edgar Allan Poe [A queda do Solar de Usher e William
Wilson], Fiodor Dostoievski [O Duplo], J.W. Goethe [Fausto]. Nessa
cartografia literária, Rank relaciona a questão do duplo com imagens
de espelho, irmãos gêmeos, espíritos, sombras, pessoas com dupla per-
sonalidade, bonecos animado e vozes invisíveis.
Para a teoria psicanalítica de Otto Rank, que foi um dos discípulos
de Freud, o Duplo evidencia o distúrbio neurótico da personalidade,
que se constitui através da cisão provocada pelo excessivo amor pró-
prio de raiz narcisística. Essa configuração psicológica está relaciona-
da a incapacidade para amar, e ao mesmo tempo ao impulso de morte.
Ao contrário do que ocorria na literatura pré-romântica, a imagem do
duplo esteve geralmente ligada à comédia, por outro lado, no roman-
tismo o duplo e a figura da morte se concatenam em situações de estra-
nhamento caracterizadas por narrativas assustadoras, perturbadoras
e sinistras. Nesse quadro, a construção das personagens estava cir-
cunscrita ao âmbito da insanidade, da destrutividade e do desajuste
social.
No ensaio Das Unheimlich [O inquientante] (1919) Sigmund Freud

Videocriaturas no contexto do duplo digital|61 61


discute as articulações polissêmicas da palavra alemã unheimlich
correntemente traduzida para o português como inquietante, sinis-
tro, assustador. Unheimlich pode significar tanto algo que não é
familiar, não é conhecido, como algo que é familiar, usual. Nesse
artigo, Freud vê uma ambiguidade que toma conta da palavra
Unheimlich, para ele, o significativo nela está no sentido que o es-
tranho orbita, naquilo que se caracteriza justamente por algo que
era familiar e se torna subitamente algo estranho. Segundo Freud,

unheimlich é evidentemente o oposto de heimlich, heimisch, ver-


traut [doméstico, autóctone, familiar], sendo natural concluir que
algo é assustador justamente por não ser conhecido e familiar.
Claro que não é assustador tudo o que é novo e não familiar; a re-
lação não é reversível. Pode-se apenas dizer que algo novo torna-
-se facilmente assustador e inquietante; algumas coisas novas são
assustadoras, certamente não todas. Algo tem de ser acrescenta-
do ao novo e não familiar, a fim de torná-lo inquietante. (Freud,
1919:249)

Dessa forma, o estranho causa terror não de alguma fonte ex-


terna ou desconhecida mas, pelo contrário, de algo conhecido que
supera quaisquer esforços do indivíduo para se separar dele. Em
nota de rodapé no ensaio de Freud, Schelling (apud Freud:254) de-
fine o inquietante como “tudo o que deveria permanecer em segre-
do, oculto, mas apareceu”. O ponto crucial do artigo de Freud está
no aparecimento na alma humana do duplo do corpo que relacio-
na o elemento mortal a outro imortal. Nas culturas tradicionais,
o homem ancestral, na tentativa de lutar contra a destruição de
seu ego, constrói os duplos, registrando suas imagens em material
durável para manter “vivo” aquilo que já está em outra dimensão.
Mesmo as questões relativas ao duplo sendo aparentemente supe-
radas, Freud diz que mesmo assim, continuamos a criar duplos, só
que agora em outro contexto, eles saem das sombras para nos ater-
rorizar e atormentar.

O Duplo Digital
O duplo surge na teoria contemporânea para auxiliar na cons-
trução e formular uma sintaxe analítica dos gestos estéticos inseri-
dos na performance dos tempos recentes. Dentro da cultura midia-

62 62 | Vanderlei Baeza Lucentini


tizada, Mathew Causey propõe para configuração de sua teoria do
duplo na performance digital, estruturadas na tecnologia midiáti-
ca/eletrônica três eixos estruturantes:
1. O corpo material e sua subjetividade são estendidos, desafia-
do e reconfigurado através da tecnologia.
2. O televisual é a modalidade primária da representação tec-
nológica contemporâneo dominando modos de pensamento e
de comunicação, cultura e construção do sujeito.
3. Existe uma inevitável convergência entre o homem e a má-
quina em que a máquina escrava domina o assunto do mes-
tre humano. (Causey, 2006:16)
Ao analisar as diferentes manifestações exploradas do duplo na
performance digital, outra referência fundamental é o teórico inglês
Steve Dixon. Em Performance Digital (2007), Dixon identifica qua-
tro categorias de duplos digitais que exploraram representações e
temas distintos. Essas categorias encontradas por Dixon no campo
digital se materializam nas formas de reflexo, alter-ego, emanação
espiritual e manequim manipulável. Essa categorização proposta
pelo autor levou em consideração questões estéticas distintas, filo-
sóficas ou paradigmáticas, mas ressalta que o duplo em sua nature-
za é uma entidade misteriosa e instável que pode, ocasionalmente,
desafiar e atravessar fronteiras nítidas. Esse ponto é o que configu-
ra a concepção de videocriaturas criadas por Otavio Donasci, mas
para compreendermos o duplo nas videocriaturas é importante con-
ceitualizarmos cada categoria de duplo separadamente.

Duplo como Reflexo


Essa formulação tecnológica de duplo digital tem suas ressonân-
cias nos mitos ancestrais de Narciso no contexto visual e Eco no
contexto sonoro. Narciso procurou o sublime através da contempla-
ção de sua própria beleza natural refletida na matéria-água natu-
ral. Eco, uma ninfa linda e falante que em qualquer conversa que-
ria sempre pronunciar a última palavra. Numa cena de ciúmes da
deusa Hera foi condenada somente a somente a responder, nunca
a pergunta. Apaixonada por Narciso, e rejeitada por ele, com extre-
ma vergonha fugiu para a floresta onde se transformou em pedra
e só restou a voz, que responde sempre a última palavra emite por

Videocriaturas no contexto do duplo digital|63 63


alguém.
Essa roupagem nova e moderna de Dixon propõe aos nossos
olhos e ouvidos o nosso próprio reflexo, não no sentido natural, mas
midiatizado por meio de simulações eletrônicas com a intermedia-
ção de equipamentos de vídeo e áudio. Esses efeitos que simulam
a água em Narciso e os delays em Eco eram produzidos em equi-
pamentos de áudio e vídeo, digital e analógico, entretanto, mais
recentemente, essa tarefa ficou a cargo dos computadores que tra-
duzem em algoritmos que ao serem renderizados geram efeitos de
computação gráfica e processamento digital sonoro.
Essa nova metáfora é acompanhada por impulsos externos e
ao serem processados nos proporciona ambientes altamente resso-
nantes, que simula de forma fascinante e hipnótica o natural. Esse
mundo digital pulsante reflete simultaneamente a natureza sinteti-
camente replicante dos nossos próprios corpos. Essa forma de duplo
pode ser ilustrada nos trabalhos de Niki Woods Backwards (1999)
onde a figura original do performer é captada por uma câmera de
vídeo ao vivo que amplia a sua imagem no espaço da performance.
Essa peça é pontuada com imagens de seus diários em vídeo, onde
ela especula e fantasia sobre o seu futuro. Juntamente com a gra-
vação, Woods utiliza como estratégia para orientar sua mente e seu
corpo, a fim de ser capaz de viajar através do tempo, analisando
de forma minuciosa suas ações cotidianas passadas ligando-as ao
presente e ao futuro.

Duplo como Alter-Ego


O duplo como alter-ego começou a ser explorado desde o início
do século XX em produções teatrais [como o balé Relachê de Francis
Picabia e Eric Satie] que incorporavam em suas performances pro-
jeções de filmes e posteriormente vídeo. Dixon conceitualiza esse
duplo digital dentro da performance como alter-ego, marcado pela
coexistência entre o performer ao vivo e a imagem midiatizada,
mas sem nenhuma dependência ou reconhecimento entre si. A en-
carnação visual e sonora desse duplo se caracteriza pela atividade
assíncrona mostrando o outro lado da fonte original. Essa formu-
lação imagética trouxe um misto de estranhamento, satisfação e
curiosidade ao público quando tem a possibilidade de reconhecer
e diferenciar os dois lados do mesmo objeto: o corpo vivo do corpo

64 64 | Vanderlei Baeza Lucentini


midiatizado A sombra gerada pelo duplo alter-ego na performan-
ce digital apresenta-se como alternativa incorporando o lado oculto
do performer. Essa sombra instalada no cerne do duplo digital na
performance multimídia contemporâneo comumente se divide em
vários entes subliminares encapsulando em diferentes “devires”, já
emitidos por Artaud em seu Teatro e seu duplo, e teorizado filosofi-
camente por Deleuze e Guattari no centro de Mille plateaux (1997)
como uma série de devires: devir-animal, devir-mulher, devir-invi-
sível, devir-molécula, devir-estrelas.
Um exemplo impressionante de multiplicidade camadas do cor-
po humano, que caracteriza o duplo alter-ego, ocorreu no trabalho
da companhia canadense 4D Artes na performance Grand Hôtel des
Étrangers (2002). A companhia usa um sistema de projeção sofisti-
cada incorporando telas semi-espelhadas que são invisíveis a olho
nu, para criar a ilusão de duplos humanos tridimensionais que apa-
recem simultaneamente no espaço físico do palco com os artistas ao
vivo, contracenando com suas próprias projeções. Na figura abaixo,
o performer se particiona em três imagens sobrepostas, cada uma
delas abordando um detalhe específico, realçando um caráter fan-
tasmagórico da ação.

Duplo como Emanação Espiritual


Dixon relaciona os duplos digitais como emanações ou encar-
nações do corpo espiritual com noções de fantasmas, corpos as-
trais, experiências fora do corpo e projeção astral. O autor descreve
o duplo de duas maneiras: como uma figura gasosa composto por
partículas ou por uma forma líquida com aspecto etéreo, luminosa
e transparente. Dentro campo teórico e histórico da performance
existe uma série de linhas que adotam as ideias da espiritualidade,
do misticismo e da transcendência. Desde os primeiros rituais sa-
grados para as divindades do teatro grego, os transes e possessões
da dança asiática e teatro para os ritos liminares do xamanismo em
que o médium faz a mediação com forças espirituais o transporte
para esferas mais elevadas.
A performance de Viking Shoppers desvendar a natureza es-
tranha do duplo em performances ao vivo utilizando o corpo como
imagem digital. Em A Creature Very Like Us (1999), inspiradas
nas paisagens físicas e culturais da Islândia, Shoopers usa em sua

Videocriaturas no contexto do duplo digital|65 65


performance telemática sequências hibridas de dança, cinema, arte
digital e som num mesmo ambiente performático. Os movimentos
dos bailarinos ao vivo exploraram relações com seus Eus virtuais,
digitais e espirituais através da utilização de sequências de mo-
vimentos interativos em tempo real. Por meio de câmeras ASCII,
Shoppers captura o movimento dos performers para emanarem
identidades duplas entre o real e o imaginário.
O trabalho da companhia Troika Ranch envolve a mistura e a
interação conjunta de três disciplinas artísticas: dança, teatro e mí-
dia. A companhia explora e investiga essencialmente o que é ser
humano em um momento de rápida mudança tecnológica e crescen-
te alienação física, integrando os intrincados desenhos da mente
humana e o esforço físico dedicada para traduzir as expressões da
alma. Para levar a cabo essa missão, o Troika Ranch desenvolve e
utiliza de forma inovadora tecnologias digitais e sistemas de senso-
res de forma original, o que acabou levando-os a serem reconhecidos
como líderes criativos no campo das práticas da performance digi-
tal. O seu diretor em tecnologia Mark Coniglio e equipe desenvol-
veram seus próprios sistemas de software e hardware, destinados
especificamente para artistas, como é o caso do software Isadora
(2001), desenvolvido em 2011, que possibilita o controle interativo
sobre vídeo digital e som para performances da Troika Ranch. O
trabalho do grupo está sempre em constante evolução para as com-
plexas relações entre dançarino, tecnologia e público que se move
para além da mera magia tecnologia, alcançando em seus trabalhos
a criação de imagens espectrais.

Marionetes Manipuladas
O duplo como bonecos manipulados com um corpo gerado por
computador teve um forte apelo nas performances concebidas por
grupos de dança e teatro, onde as aplicações de softwares funcio-
naram para substituir os manipuladores humanos de teatros de
marionetes tradicionais. Com a adição da informática, a manipula-
ção ficou sob a responsabilidade de softwares na manipulação dos
bonecos e na criação de imagens gráficas na área de trabalho para
conceber e experimentar com coreografia antes do trabalho de estú-
dio com bailarinos ao vivo.
A tecnologia de captura de movimento torna semelhante ao du-

66 66 | Vanderlei Baeza Lucentini


plo manipulável do dançarino na tela do computador onde ele pode
ainda ser modificado e, em seguida, representado na performan-
ce, como exemplificado em colaborações da Riverbed com Merce
Cunningham e Bill T. Jones no final dos anos 90 e início do século
XXI. Livre de gravidade ou quaisquers restrições físicas humanas,
essas formas ciber-humanóides parecem mover-se sem esforço atra-
vés do espaço sem gravitação. Esses dançarinos ciber-humanos fo-
ram usados juntamente com performance ao vivo, interagindo com
entre os dançarinos humanos em tempo real como na obra Biped
[1999] de Merce Cunnigham.
O ator Claudio Pinharez criou um sistema que permite que as
pessoas interajam com personagens de computador na produção de
uma peça de teatro. Na peça de teatro experimental It/I, ele uma
utiliza a um software para criar e controlar um personagem de com-
putação gráfica em telas de palco. A peça é uma pantomima, onde
um dos personagens, It, tem um corpo não-humano composto por
computação gráfica que projeta objetos na tela de vídeo. Os objetos
são utilizados par interagir com o personagem humano, I, realizado
por um ator de verdade em um palco. o ator computadorizado It
também pode também falar através de imagens e vídeos projetados
nas telas, por meio de sistema de alto-falantes colocados no palco.
O jogo consiste em dois personagens, um ser humano e o seu
duplo controlado por um computador. O humano é treinado para
interagir com o computador e seguir os comandos emitidos por ela,
e dessa forma, acontece o jogo entre o humano e a máquina. Essa
manipulação das marionetes pela informática tem como suporte
facilitador o uso de três câmeras suspensas acima do público que
construir imagens de silhueta do ator.

A videocriatura no contexto do duplo digital


A figura do duplo se expande de diversas formas, contextos e
se configurações dentro da performance, mesmo se utilizando de
tecnologia low tech como o caso das videocriaturas donascianas. Os
modelos propostos por Dixon subvertem as divisões determinísticas
do duplo digital, hibridizando o híbrido, as videocriaturas se reve-
lam híbridso originais, miscigenados e produto brasileiro.
O duplo como auto-reflexo proposto na videocriatura anuncia o

Videocriaturas no contexto do duplo digital|67 67


aparecimento de um contexto autorreflexivo e autotecnologizado,
concebido a partir do seu homólogo humano. A emulação da ima-
gem no tubo televisivo transita no território entre a vaidade huma-
na e a nova vaidade tecnológica, acentuando o conflito entre o poder
do virtual sobre o real que espelha a modernidade eletrônica. Na
mitologia antiga dos gregos e hindus o rito do reflexo da autoima-
gem na água e o sonho era tratado como presságio de morte. Esse
indícios estaria na morte do performer, da performance, do teatro
ou do homem pré-telemático?
O duplo como alter-ego é o doppelgänger obscuro representando
o Id resultante da cizânia da consciência num ato autoesquizofrêni-
co. A face midiatizada é um reflexo tecnológico onde, na videocriatu-
ra, vislumbramos o lado enigmático e oculto causador da sensação
de estranhamento em sua relação corpo-imagem. Esse efeito mate-
rializado no devir homem-tela ou homem-imagem nos realimenta,
nossos novos eus eletrônicos, nesse caso, a viodeocriatura é o duplo
que acompanha o criador Otávio Donasci por algumas décadas.
O duplo como espiritual emanação simboliza uma concepção
mística do corpo virtual, realizando uma projeção auto transcen-
dente da alma. Na concepção donasciana, recheada de humor e
rumor, a videocriatura se despe de toda carga metafísica. A sua
configuração de duplo vem ao encontra daquilo que Renato Cohen
(1989) denominou como um totem eletrônico, tanto pela sua enorme
estatura física como prenunciadora de uma nova sensibilidade na
relação homem-máquina.
A concepção do manequim manipulável está presente em algu-
mas variações da videocriatura original, isto é, máscaras eletrôni-
cas criadas por tubos de televisores branco-e-preto fixados na ca-
beça ligados por cabos a um videocassete ou câmera low-tech. A
emulação de avatares revelado pelas lentes e pela máquina visava
ampliar os recursos expressivos do ator com a incorporação da lin-
guagem dos meios audiovisuais. O videofantoche, uma variante de
videocriatura, se utiliza de um pequeno monitor de cinco polegadas,
com a participação de um performer que manipula uma pequena
marionete, similares àquelas utilizadas no teatro de fantoches. A
manipulação manual do fantoche eletrovisual, aumentado as pos-
sibilidades fisionômicas do boneca ao infinito e também coloca no
mesmo contextos os duplos auto-reflexo, alter-ego e, dependendo do
contexto, a emanção espiritual

68 68 | Vanderlei Baeza Lucentini


Toda a trajetória adotada nesse trabalho apresentou o duplo em
diversos contextos e a sua relação com um dos mais significativos
trabalhos do artista Otavio Donasci que ampliou as perspectivas
do performer e reflexos midiatizados na cena contemporânea. A
interface homem-máquina criada por Donasci transita livremente
no contexto das mídias eletrônicas, performance e teatro. Essa cir-
culação colocou o artista no contexto expressivo no cruzamento de
diversos vetores artísticos cuja resultante é a intermídia. O traba-
lho pioneiro de Donasci foi o prenúncio de um novo contexto ligado
ao progresso tecnológico que aponta o futuro do duplo em conexão
com diretamente ciborgues, robôs e a inteligência artificial. As né-
voas contemporâneas tratam de um possível cenário onde compos-
tos por seres humanos e máquinas inteligentes, na vida e na arte,
proposta por algumas correntes da ciência e pesquisadores. Esse
novo ambiente pode apontar para caminhos belos e psicologicamen-
te atraentes ou ser apenas um canto de sereia sedutor que nos ar-
raste para a morte paralisante e hipnotizante que foi o destino de
Narciso. A videocriatura faz parte desse contexto.

Referências Bibliográficas
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo, Martins Fontes, 2012.
BRAVO, Nicole. Duplo In: BRUNEL, Pierre (Org.) Dicionário dos Mitos Literários.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
CAUSEY, Matthew. Theatre and Performance in Digital Culture. Abingdon: Rout-
ledge, 2006.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989.
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
São Paulo: Editora 34, 1997.
DIXON, Steve. Digital Performance: a history of new media in theater, dance,
performance art, and installation. Cambrigde: MIT Press, 2007.
FREUD, Sigmund. Obras Completas, Volume 14. São Paulo: Companhia das Le-
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Sites
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New York Times. http://www.nytimes.com/2006/01/20/arts/dance/20troi.html?_
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Videocriaturas no contexto do duplo digital|69 69


TROIKA RANCH. http://www.troikaranch.org/index.html. Acessado em
10/01/2016.

70
Vida e arte de um videocriador

Artur Matuck
São Paulo, Maio de 2017

Meu primeiro contato com uma Videocriatura ocorreu em 1981,


na Galeria São Paulo, um espaço amplo e muito valorizado na rua
Estados Unidos, ao lado do Clube Paulistano, no bairro dos Jardins
em São Paulo, da galerista Regina Boni. A apresentação denomina-
va-se “O Profeta”. Pouco me lembro do texto ou do rosto na Vídeo
Criatura declamando um texto excessivamente dramático. Era a
primeira videocriatura de Donasci que ele mesmo conduzia como
viria a fazer inúmeras vezes. A tela ficava bem acima da cabeça,
constituindo um personagem enorme e um tanto disforme. Daí sur-
giu uma identificação com o trabalho desenvolvido por Donasci e o
começo de uma parceria que iria se desenvolver nos anos e décadas
seguintes.
Eu já havia encontrado o Donasci no SESC Pompeia em frente
ao teatro, na rua interna projetada por Lina Bo Bardi. Estávamos
nos conhecendo na qualidade de vídeo-makers, artistas que traba-
lhavam com imagem eletrônica em São Paulo. Formávamos comu-
nidades informais por termos interesses comuns e porque o acesso
aos equipamentos era muito restrito.

Vida e arte de um videocriador|71 71


No SESC Donasci me falou que estava pesquisando a polariza-
ção da imagem. Imaginei que metade da tela ficaria vazia e a outra
metade manteria algum sinal de luz. Mas recentemente explicou
que buscava colocar duas imagens na mesma fita para não precisar
sincronizar dois VHS’s. Duas cabeças surgiriam juntos na mesma
imagem e no televisor da videocriatura.
Havia recém chegado da Califórnia onde concluí um mestrado
em Artes Visuais. Nos Estados Unidos, as possibilidades de artistas
trabalharem com vídeo já estavam bem avançadas, enquanto que
no Brasil não tínhamos acesso nem mesmo as câmeras.
Artistas que trabalhavam com arte e tecnologia sempre se cru-
zavam. Lembro-me de ter discutido na Galeria São Paulo com José
Roberto Aguilar, um artista bem proeminente, que fazia videoar-
te, performances musicais e instalações. Outros artistas bem ati-
vos eram Ivald Granato, Gilberto Prado, Tadeu Jungle e Valter da
Silveira. Nesta época foram formados os primeiros coletivos que se
tornariam empresas produtoras como o Olhar Eletrônico e a TVTudo
e foi também inaugurada a Academia de Vídeo em Pinheiros pro-
movendo cursos. O vídeo migrou do gueto da arte para o documen-
tário e a programação televisiva. Trazer uma câmara e equipamen-
tos de edição para o Brasil era uma tarefa heroica. Os vídeo-makers
elaboravam estratégias para burlar uma legislação que restringia a
entrada de qualquer equipamento que hoje nos parecem antiquados
e canhestros.
Hans-Joachim Koellreutter, um músico, compositor, teórico,
professor muito considerado e muito influente, foi o primeiro a reco-
nhecer a criatividade do Otávio. “Koellreutter viu meus trabalhos
iniciais de videoarte e me ofereceu uma bolsa para seu curso dele no
“Festival de Campos do Jordão” em 1981. Ele tinha interesse em re-
lacionar a videoarte a suas teorias musicais. Contei aos colegas que
estava fazendo uma videocriatura (que ainda não tinha nome) mas
que estava em construção. Eles pediram para trazer assim mesmo.
Finalizei as pressas e incluímos na apresentação de nosso grupo
que se chamava “NovaMente”. Não houve ensaio, foi performance
mesmo. Koellreutter estava presente e gostou muito. Então fiz dois
trabalhos nessa apresentação: como videoartista dentro de um gru-
po de música contemporânea e como videoperformer.” (1)
Em Campos do Jordão, uma outra característica de Donasci fi-
cou evidenciada. A câmera retornou a sua função mais imediata

72 72 | Artur Matuck
para documentar um concerto de música conceitual no qual ele to-
cava videoplayers. Apenas uma nota era repetida continuamente
transtornando a audiência e os fundamentos mais básicos da mú-
sica. A gravação em VHS foi preservada, digitalizada e tornou-se
histórica para celebrações e conhecimento da obra de Koellreutter.
Nesta época, no início dos anos 80, estávamos muito interessa-
dos nas possibilidades da linguagem da videoarte. Roberto Sandoval
era um artista-produtor e um dos centros de convergência do mo-
vimento. Sandoval tinha câmeras profissionais, um estúdio de gra-
vação e edição, colaborava e divulgava outros artistas. Em um dos
muitos fóruns de discussão, ele disse que havia sido no trabalho do
Otávio Donasci que, pela primeira vez, viu uma televisão andar,
uma frase que me ficou na memória. Repentinamente Sandoval de-
sistiu totalmente do vídeo e foi para o comércio de roupas, para a
área de ‘pronta-entrega’, como relatou, decepcionado com tudo rela-
cionado a arte no Brasil.
Nesta época me aproximei de Donasci e estabelecemos uma
crescente amizade e colaboração. Contei que trabalhava com ví-
deo e tinha retornado a pouco dos EUA onde havia feito inúmeras
experiências na Universidade da Califórnia em San Diego. Tive a
oportunidade de mostrar algumas destas pesquisas na Bienal de
São Paulo em 1981 e em 1983 fui oficialmente convidado para par-
ticipar da 17a. Bienal Internacional de São Paulo. A conexão com
Donasci se consolidou nesta época no projeto das vídeo-instalações
e performances para esta Bienal.
O curador Walter Zanini oferecia um lugar prestigiado para os
artistas convidados, ele não selecionava o trabalho e sim o artista,
então tínhamos uma espécie de liberdade expandida. Elaborei um
projeto complexo de 120 m² em colaboração com a “Terra”, empresa
de arquitetura do Guilherme Wendell de Magalhães e obtivemos
patrocínio para equipamentos de áudio e vídeo.
O trabalho se fundamentava na ficção científico-poética “Ataris
Vort no Planeta Megga”, narrativa que havia escrito em inglês
em San Diego que traduzi para o português com interferências do
esperanto.
Foram meses de trabalho intenso com a colaboração de inúme-
ros artistas, produtores, músicos, atores e performers. Produzimos
uma performance, uma vídeo-instalação circular, outra intera-

Vida e arte de um videocriador|73 73


tiva com espelhos e câmeras, além de uma holografia circular do
Fernando Catta-Preta.
No estúdio da rua Fidalga, na Vila Madalena, em São Paulo
havia uma grande sala e uma varanda externa que foram palco de
inúmeras experiências. Trabalhávamos até alta madrugada dese-
nhando, projetando, conversando, atuando, gravando, vídeos.
Como as câmeras eram muito raras em São Paulo, consegui le-
var adiante este trabalho por conta da gentileza de um amigo ame-
ricano, Richard Rew, que se dispôs a vir dos EUA para trazer uma
câmera de vídeo.
O auxílio de Otávio Donasci com sua habilidade de projetar, criar
e imaginar quase imediatamente, foi fundamental na concepção e
na montagem do espaço e do projeto inteiro. Reconheço hoje que
Donasci foi o coautor das duas instalações de vídeo. Uma delas era
um círculo de doze televisores colocados na vertical, inclinados em
45 graus para o exterior. Formavam um círculo de televisores que
dava visão de fora e de dentro do círculo ao mesmo tempo. O tema
era a estrela binária, Alpha Centauri Stelo Binara em Esperanto.
O outro centro estelar era formado por uma instalação interati-
va de três pontas idênticas. O elemento deflagrador era um espelho
vertical de 130 cm de altura com uma câmera de vídeo que obser-
vava o espelho, estrutura que se repetia três vezes. Assim através
do espelho se via uma tela de televisão virada para cima que ficava
encostada no espelho. A câmera observava a tela e enviava ima-
gens para a própria tela. Isto resultava em um looping, um “eco de
vídeo”. Este é um conceito que debati muito e praticamente aprendi
com Otávio Donasci. Este eco de vídeo através do espelho propor-
cionava um efeito extraordinário pois quando os objetos eram mo-
vimentados a tela mostrava o movimento na direção inversa. Este
efeito causava certo estranhamento, uma inquietação cognitiva.
Esta instalação foi possivelmente a primeira no Brasil a apre-
sentar múltiplos monitores. Esta Bienal foi minha porta de entrada
para o mundo das artes na cidade de São Paulo. No entanto, era
perceptível que a crítica, a imprensa ou mesmo outros artistas não
estavam dispostos a aceitar vídeo, áudio, holografia e performance
como formas válidas quando apresentadas por artistas brasileiros.
Aparentemente, não havia ninguém preparado para entender, per-
ceber ou discutir arte mediática.

74 74 | Artur Matuck
A performance “Ataris Vort no planeta Megga” já havia sido
apresentada em San Diego, mas em São Paulo foi ampliada através
de um trabalho de muitos artistas-autores.
Também contei com a colaboração do meu primo, Carlos Kater
que compôs peças originais, organizou um coral, criou músicas
eletrônicas para servirem como trilha musical da performance.
Fizemos mais de dez encenações nesta Bienal. O Otávio participava
com uma videocriatura enorme. Ele chegava no final da apresenta-
ção e entoava a voz de um conselho tecnocrático que contestava a
ideia do personagem principal Ataris Vort, que basicamente propu-
nha uma moratória, para interromper a experimentação científica
com seres humanos, animais e mesmo os seres artificiais.
O trabalho foi desenvolvido todo em laboratório com a partici-
pação do Otávio Donasci. Ele morava em Santana e vinha para a
Vila Madalena, sempre que necessário. Esta generosidade é uma
característica sua que se mantêm até hoje. Ele está sempre dispos-
to a colaborar. A relação com Otávio Donasci se tornou cada vez
mais importante e enriquecedora a medida que trabalhávamos em
parceria.
Fiquei cada vez mais consciente de que o humano é a questão
primordial em tudo e se confronta com o mundo artístico, princi-
palmente de São Paulo nas décadas de 1980, que eu conheci muito
bem, tanto nas galerias, nos museus, nas Bienais como na Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
Um mundo no qual a crítica implacável por uma suposta qua-
lidade, o requerimento de precisão intelectual, valem muito mais
do que a amizade, o afeto, a consideração humana. As pessoas es-
tavam dispostas a destruir o colega artista, a atacar e solapar sua
obra a partir de um pseudo intelectualismo que na verdade é uma
disputa por território artístico, uma agressão desmedida disfarçada
de controle de qualidade, executada com ares de inocência. Mas isto
nunca existiu na relação com o Otávio Donasci, apesar dele ser uma
fonte incessante de criatividade artística.
Em minhas viagens de estudo ao exterior tive oportunidade de
participar de vários congressos sobre arte eletrônica, arte tecno-
lógica, muito concorridos, mas nunca tinha visto um trabalho se-
melhante ao de Donasci. Ele se utilizava da tecnologia disponível
de uma maneira muito pessoal, uma espécie de “baixa tecnologia”,

Vida e arte de um videocriador|75 75


que entrava em choque com as tendências importadas das novas
mídias, tão alardeadas e que vinham com um elevado grau de
exibicionismo.
Otávio era uma pessoa forte capaz de, em movimento, condu-
zir um mecanismo bem pesado e ainda atuar. Em 1983, durante
uma performance de rua das Perdizes, próximo a PUC SP, ele, pa-
ramentado como uma videocriatura, abriu vigorosa e rapidamente
uma porta metálica de uma garagem num gesto surpreendente e
dramático, impactando a todos.
Donasci ajudou o público brasileiro a entrar em contato com a
arte da performance que estava se popularizando no Brasil, sempre
enfatizando o uso da tecnologia nas artes. No Festival Videobrasil
de 1984, ele colocou videocriaturas lutavam kendô no espaço
expositivo.

O gesto recriador de Donasci, replicado em suas videocriatu-
ras, revela uma resistência a formatação industrial dos aparatos,
ao previsível, a restrição registrada no formato do dispositivo. Ele
segue um princípio de reinvenção mediática que reclama resistên-
cia ao inscrito, a instauração do não-prescrito, do imprevisível, a
aceitação do acaso, do erro e da errância, a intervenção criativa nos
comportamentos e formatos.
Mas Donasci reinventa com seu modo particular sem buscar
hardware e software de última geração, tão somente com criativi-
dade e um mínimo de equipamentos e acessórios. O trabalho do
Otávio fundamenta-se numa equação: como o vídeo pode gerar um
dispositivo inédito associado a um objeto de uso comum como um
violão, uma bicicleta, ou um órgão humano como uma boca, então
surge o “videolão”, a “videocleta”, a “videoboca”. Ele acoplou objetos
de vídeo não só em seres humanos mas em animais, em objetos me-
cânicos, e mesmo em uma empilhadeira, trazendo a performance de
rua para uma escala monumental. Seu trabalho ocupou um espaço
único que nenhum outro artista, nenhum outro gênero, ocupava, a
marca de sua originalidade. Ele investigava as possibilidades rela-
cionais, interativas, escalares e teleativas da tecnologia do vídeo e
demonstrava que a pesquisa era praticamente infindável.
Algumas criaturas traziam um conteúdo cômico muito forte.
Os vídeo-personagens tiravam as pessoas para dançar, entrevis-

76 76 | Artur Matuck
tavam, interagiam, eram inusitadas, surpreendentes e um tanto
inquietantes.
Lembro-me bem de uma performance que ele conduziu no
Instituto Itaú. A criatura hipertecno se aproximou de mim para me
interpelar sobre minhas supostas práticas de masturbação.
Esta vídeo criatura carregava uma imagem ecrânica, auto fa-
lantes e também uma câmera. Dentro de uma cabine, um performer
podia se comunicar com aqueles que a videocriatura encontrasse na
vernissage. O interessante era que seu rosto, boca e voz não per-
tenciam aquele corpo, surgiam através da tela e do áudio. A pessoa
que se dirigia a mim estava inacessível dentro de uma cabine. Fui
tomado por uma inquietação cognitiva ao me dar conta de que esta
pessoa estava me vendo mas permanecia distante.
Fui impactado ao ser confrontado por este homem-vídeo, video-
criatura, homem-máquina. Como reagimos diante de um ser híbri-
do? Nosso organismo parece não estar preparado para confrontar
esta entidade semi-humana na qual quem fala não está presente. A
pessoa se dirige a você, lhe confrontando, interpelando, mas ela não
está naquele corpo.
Muitos críticos mantinham uma perspectiva severa diante das
proposições do Donasci pois pensavam que os textos falados pelas
criaturas não tinham a dimensão dramática necessária para se qua-
lificar como Arte Contemporânea. Donasci no entanto tinha uma
resposta para esta contestação: “Acredito hoje que os primeiros tra-
balhos eram um catálogo de possibilidades dessa linguagem mais
que uma obra dramatúrgica. Queria muito na época que isso fosse
uma contribuição para um novo tipo de teatro. Via menos como obra
minha como performer e mais como ferramenta para futuros auto-
res e performers.”
Vale lembrar que todo o conceito de videoarte havia chegado dos
EUA, um conceito marcado por artistas americanos e especialmen-
te por Nam June Paik, sul-coreano emigrado para New York. Na
medida em que se impôs como gênero a videoarte adentrou galerias
e museus e ganhou apoio da fundação Rockefeller como vim saber
depois. Apesar de um início experimental e mesmo contestatório a
videoarte havia se transformado em um caro produto de exportação.
Ao contrário, o trabalho do Otávio Donasci propõe uma estética
descompromissada com o mercado ou as instituições, não requer co-

Vida e arte de um videocriador|77 77


nhecimentos prévios de história da arte ou contextualização históri-
ca. É um trabalho de comunicação popular e imediata com públicos
de qualquer estrato ou idade.
Mas outras perspectivas crítico-filosóficas podem ser aventadas.
Podemos analisar o projeto de Donasci a partir da inter-relação
entre o orgânico e o artificial, avaliando a criação de natureza tec-
nológica, mediática e científica.
Donasci se apropria de tecnologias mas numa dimensão que ele
chama de “low tech”, quer dizer, suas proposições vídeo-tecnológi-
cas não derivam da alta tecnologia, mas de uma estratégia de cata-
dor, de bricoleur. Suas criaturas e instalações são traquitanas cons-
truídas a partir de sua imensa biblioteca de tranqueiras, objetos
mecânicos ou eletrônicos, sucatas, brinquedos, tecidos, acessórios
dos mais diversos.
Ele é um artista da área de tecnologia, mas é também um ‘me-
dia-designer’, projetista de dispositivos mediáticos redesenhando
e reinventando mídias tradicionais. Ele recoloca de uma maneira
inédita o corpo humano, o organismo animal ou mesmo estruturas
mecânicas em situações eletro-mediáticas.
Cada dispositivo seu apresenta-se como uma proposição re-me-
diática susceptível de absorver enunciados variados.
Instauram-se como proposições maquínicas mas também como
uma máquina capaz de registrar, distribuir e disseminar enun-
ciados. A videocriatura se apresenta portanto como um sistema
múltiplo passível de ser vivificado através inúmeros personagens
normalmente pré-gravados. Ela se apresenta como atual mas man-
tém sua dimensão virtual, no sentido meta-autoral, sua potência de
tornar-se sempre outra.
Diante da diversidade, relevância e importância de seus pro-
jetos, uma importante questão ressurge, a documentação. O ideal
seria que sua coleção de criaturas, gravações e documentos se tor-
nasse um museu, por exemplo, o Museu da Vídeo Criatura de São
Paulo. Apresentei esta proposta para ele, como uma possível es-
tratégia de sobrevivência da coleção mas também do artista. Esta
coleção de arte mecano-eletrônica poderia se tornar uma das mais
importantes do Brasil e da América Latina além de um possível
centro cultural e atração turística.
Mas as condições atuais que o estado brasileiro oferece para as

78 78 | Artur Matuck
artes, a cultura popular, para as poéticas marginais, não favore-
cem que um artista mesmo com toda esta relevância sobreviva ape-
nas com sua arte. Inexiste uma política de valorização da produção
estética nativa.
Mas o Otávio reage de uma maneira um pouco desconcertan-
te em relação a sua própria documentação. Ele se mantém oposto
a um museu, apenas disponível a continuar seu processo criativo,
criando novas obras. Particularmente entendo no entanto que seu
legado deveria ser preservado de imediato. Tanto as gravações que
alimentaram as videocriaturas como os registros documentais de
suas atuações precisariam ser digitalizados, como as próprias vi-
deocriaturas preservadas como documentos maquínicos.
Otávio Donasci confronta-se também com o mundo acadêmi-
co. Trata-se de uma questão estilos e normas de linguagens que
determinaram as histórias das ciências. Tanto na produção de sua
tese de mestrado na ECA-USP, em 2002, como agora na redação de
sua dissertação de doutorado na PUCSP, a instituição requer um
texto especialmente como evidência de produção de conhecimento.
Para artistas mediáticos como Otávio o que se produz não pode ser
aceito como uma proposição teórica capaz de sustentar a obtenção
de um certificado acadêmico.
Pode-se aventar no entanto a possibilidade de uma inversão de
pontos de vista. A academia e a ciência poderiam perceber a dimen-
são teórica destas produções apenas reconhecidas no campo estéti-
co? As criações mediáticas poderiam também constituírem-se em
contribuições teóricas?
Se esta possibilidade for avançada, Otávio Donasci e outros ar-
tistas das linguagens e das mídias não seriam forçados a reproduzir
os modos discursivos da teoria tradicional que valida apenas co-
nhecimento fundamentado em textos.
A universidade deveria portanto procurar reconhecer o valor
teórico destes trabalhos e encontrar critérios para validar criações
midiáticas como formas epistêmicas que podem contribuir para o
desenvolvimento científico, cognitivo, histórico, sociológico e certa-
mente midiático e artístico. A evidência disto pode ser encontrada
na história das invenções tecnológicas e mediáticas, especialmente
na criação artística como descoberta do potencial inexplorado de
inúmeras linguagens.

Vida e arte de um videocriador|79 79


Embora tenha realizado o seu mestrado no início dos anos 2000
e agora seja professor de performance na PUC Otávio se mantém
como um artista não-teórico, reafirmando uma postura de resistên-
cia e de afirmação da produtividade epistemológica das linguagens
mediáticas. Ele se instalou no espaço da criação mediática, reafir-
mando sua contribuição a partir deste lugar e assim reclama sua
identidade como instaurador de processos.
Mencionemos ainda sua mais notável colaboração que se deu
no início da década de 90, com Ricardo Karman, um reconhecido
diretor de teatro, que resultaram nas Expedições Experimentais
Multimídias, e que foram objeto de sua tese de doutorado deste ano.
(2)
Sua produção mais recente, pós-expedições, surpreende ao
abandonar qualquer tecnologia para explorar experiências senso-
riais individualizadas. Pessoas são convidadas a vivenciar um novo
nascimento no projeto dos “Casulos” concebido em 2009 na PUC SP.
Os primeiros Casulos aconteceram na universidade em espaços
reservados, intimistas, sem a presença de público. O encapsula-
mento com um plástico muito resistente possibilitava que os corpos
ficassem imobilizados e em suspensão por longos períodos. As prá-
ticas inquietaram o serviço médico e mesmo os bombeiros da insti-
tuição que interromperam os exercícios interferindo no estado de
suspensão e meditação dos alunos. Mas uma vez tudo averiguado
foi dada permissão para o projeto prosseguir.
Os participantes eram lenta e longamente enrolados num plás-
tico transparente para entrarem em um estado de letargia atem-
poral, permanecendo imóveis por longas horas, suspensos entre as
barras de uma sala de ballet ou entre os corrimões das escadas.
Donasci revela que o processo foi gradualmente informando seu
sentido, sua significação possível. A metáfora do verme rasteiro que
fabrica seu próprio casulo, se alimenta de si mesmo, permanece hi-
bernando até mutacionar-se num ser voador, livre e muito colorido,
passou a envolver as ações e o nome Casulos foi consolidado: “Este
verme produz seu próprio renascimento, não depende de nenhum
outro, nem de um pai nem de uma mãe para operar esta transfor-
mação radical em si mesmo.” (3)
O conceito se fixou gradualmente como uma performance ofere-
cida pelo artista gratuitamente para que um Outro vivenciasse uma

80 80 | Artur Matuck
experiência inédita de renascimento. O autor-criador tornou-se um
performer que oferece uma dádiva, uma experiência de um renas-
cimento, num processo de meta-autoria, criando uma meta-perfor-
mance, uma arte relacional desenhada para o Outro. Ele mesmo
ainda não foi encasulado e não tem planos para tanto ao menos por
enquanto. Ele se apraz em proporcionar a experiência aos outros.
A nudez sugerida pelo meta-performer foi gradualmente aceita.
“As roupas atrapalhavam e um novo nascimento deve também pro-
porcionar a vivência de um corpo próximo de sua natureza. Muitos
no entanto permaneciam com suas cuecas ou calcinhas,” revela
Otávio. (4)
O indivíduo ao rasgar, romper e assim emergir do invólucro, re-
vive a experiência de um nascimento, abandona a fluida sucessão
de sensações puramente mentais para retornar ao corpo, ao uni-
verso físico-sensorial. A proposta visa conduzir o performer-expe-
rienciador a experiências de restrição sensorial mas com intensa
densidade emocional e psicológica.
No espaço urbano o processo se dava na realidade do concreto.
Ao renascer caiam na água suja da sarjeta, surgiam nus no meio da
cidade, diante de desconhecidos, alguns bêbados ousavam interpe-
lar as mulheres e mesmo furar o plástico para forçar e tocar a carne
e a pele.
Por estas e outras, Donasci está planejando conduzir uma ceri-
mônia no meio do mato. “Os performers serão encasulados, vão per-
noitar, adormecer, e apenas no nascer do sol, despertar e romper o
casulo para renascerem num ambiente o mais natural possível.” (5)
O performer-propositor, aquele que conduz a cerimônia de enca-
sular e posteriormente liberar a corpo-metáfora para sua mutação, é
representado pelo próprio Otávio, que assim se propõe a estabelecer
um vínculo relacional com cada uma das crisálidas-experienciado-
ras, o que revela uma constante busca pelo afeto em seus trabalhos.
Este corpo-crisálida surge no mediaverso da performance numa
época em que a comunicação digital se intensifica, se intimiza com
um corpo contemporâneo que se torna um terminal de múltiplos
canais, sujeito a ser a qualquer momento intimado a responder cha-
mados e chamadas.
Este ser humano praticamente mudou de natureza, se desnatu-
ralizou, pulsando agora em consonância com uma imensa rede em

Vida e arte de um videocriador|81 81


comunicação constante. As pessoas tornaram-se híbridas, princi-
palmente com o celular e o computador que se tornaram agregados
dos olhos, mãos e cérebros. A cena contemporânea pode se resu-
mir ao ser humano híbridizado por dispositivos que reclamam sua
atenção e o forçam a abstrair o próprio corpo. A hibridização com
os aparelhos tecnológicos se generaliza. Surgem filmes e seriados
especificamente para se debruçar sobre os efeitos, modos e conse-
quências desta anuência aos aparelhos digitais e conexões em rede.
Todos temos de enfrentar esta questão, de como vamos reconhe-
cer este mundo digital e como se adaptar a ele, aprender novas ca-
pacitações e habilidades para poder habitar neste mundo. Desta
forma, muitos artistas quiseram enfatizar justamente o orgânico,
o sensível, a pele. Surgem previsivelmente movimentos artísticos
e anartísticos que procuram esboçar, construir, uma resistência ao
digital, exemplarmente, surge o corpo-crisálida.
A partir deste relato, fica evidenciado que Otávio possui a capaci-
dade extraordinária de, ao se deparar com qualquer questão, ativar
seus neurônios para começar imediatamente a criar. Responde com
sugestões, propostas, ideias, máquinas, performances, espetáculos.
Além disso, ele certamente detém potencialidades de atuar como
teórico, curador, designer, museógrafo, de organizar eventos, cole-
ções, museus especialmente se tiver liberdade de inovar e expandir.
Na convergência destas habilidades surge um professor de per-
formance, um pesquisador selvagem, um artista mediático que in-
vestiga o sensorial, o comportamental, o feminino, o gesto, o maquí-
nico e assim por diante. Surpreenda-se.

Artur Matuck em colaboração com Otávio Donasci, Edson Luis


de Oliveira, Antonio Rodrigues e Antonio Herci.

Notas
1. Email enviado por Otávio Donasci ao autor, 21 de maio de 2017.
2. O próprio Otávio Donasci discorre sobre as Expedições no último capítulo
deste livro.
3. Email enviado por Otávio Donasci ao autor, 21 de maio de 2017.
4. Email enviado por Otávio Donasci ao autor, 21 de maio de 2017.
5. Email enviado por Otávio Donasci ao autor, 21 de maio de 2017.

82 82 | Artur Matuck
VideoCriaturas: análise de videoperfor-
mances realizadas entre 1980 e 2001

Otavio Donasci

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|83 83


84
INTRODUÇÃO
Proponho-me nesta dissertação a desenvolver uma análise do
processo de construção de uma linguagem que chamo Videoteatro
a partir das performances concebidas e apresentadas ao longo dos
anos 80 e 90 principalmente no Brasil.
O teor memorial narrativo e pessoal dessa dissertação de-
ve-se ao fato de eu ter sido a figura central e principal testemu-
nha desse processo tanto nas suas intenções como procedimentos e
apresentações
Busco, acima de tudo, fornecer aos pesquisadores futuros
um relato detalhado e rico onde espero mostrar desde as intenções
até os métodos experimentais criados para obter os resultados pre-
tendidos e as interligações entre as várias performances que no fun-
do sempre foram feitas como demonstrações de uma forma nova de
se fazer teatro e performance: o Videoteatro.
As fotos e ilustrações pesquisadas em meus arquivos pessoais e
aqui mostradas pretendem mais do que mostrar o processo de cria-
ção de protótipos e espetáculos através de documentos.
São parte integrante da construção dessa linguagem.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|85 85


1 - A FACE E A MÁSCARA ELETRÔNICA
Vejo a face humana como síntese da expressão corporal e principal
representação física da identidade do ser, pelo fato de a meu ver, in-
cluir entre seus atributos a comunicação através da fala, da audição
e do olhar.
Estudando os simulacros do rosto através da história do homem
e suas representações, como a pintura facial ritual e máscaras ceri-
moniais, descobri um esforço incessante do ser humano de emprestar
o próprio corpo e principalmente o rosto como suporte de outro ser,
ficcional ou relacional com vários fins:
No princípio da civilização, por motivos rituais e religiosos (civili-
zações indígenas), essa pintura facial ou máscara representava enti-
dades espirituais e elementais.
Depois, por motivos estéticos e artísticos, - na seqüência evolutiva
dos rituais para as festas populares e depois para o teatro, - a face
virtual foi e é utilizada ainda com o mesmo objetivo o de assumir uma
alteridade.
Cada época explora as possibilidades do suporte material dispo-
nível dependendo do domínio sobre técnicas artesanais - madeira,
palha, resina, pano, gesso, borracha - e depois industriais tais como
plástico.

86 86 | Otávio Donasci
Acredito que o material do meu tempo é o elétron, daí eu ter
decidido pela criação de um rosto virtual eletrônico que pudesse ser
aplicado sobre o rosto real como uma segunda pele.
Acredito ser o rosto virtual/eletrônico a mais sutil, maleável e
dinâmica das máscaras.
Pretendo que minha máscara eletrônica seja o suporte desse
rosto virtual, um aparelho que permita a sobreposição desse rosto
sobre o outro, do performer, substituindo-o e criando assim uma
costura entre o virtual e o real.
Construí essa máscara a partir de televisores preto e branco
ortopédicamente fixados na cabeça orientados de modo “vertical”
(formato depois chamado de “retrato”), acompanhando o formato
do rosto e ligados por cabos a um videocassete ou câmera low-tech,
único equipamento acessível a mim na época (1980) no Brasil.
O figurino, era uma malha preta de bailarino ou ginasta que
com um capuz do mesmo material cobria todo o equipamento agre-
gado ao corpo e ao mesmo tempo pela semitransparência dava visão
ao performer, permitindo sua movimentação pelo espaço.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|87 87


As faces foram gravadas em várias sessões experimentais que
chamo de laboratórios, que utilizavam desde atores experientes
como Osmar Di Pieri e Cacá Rosset, até pessoas comuns, ou mesmo
animais, bonecos, efeitos de animação, mãos ou qualquer coisa que
se possa transformar num rosto.
Nesses laboratórios procurei experimentar muito dos recursos
da linguagem vídeo, como trucagens de câmera, iluminação, edição,
sonorização, computação gráfica, o que resultou numa dinâmica
que eu nunca vira antes numa máscara.

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Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|89 89
2 - A VIDEOCRIATURA, O SER HÍBRIDO
Ao vestir essa máscara eletrônica, sentiu meu corpo se deixar
levar pelo comando desse rosto, como que tomado por outro ser, ar-
rancando de mim expressões performáticas desconhecidas.
Senti que formávamos, - eu e a imagem do rosto do ator fundida
- uma terceira pessoa, híbrida de nós, diferente de nós, potenciali-
zação de nossas expressões e ao mesmo tempo estranho para nós.
Chamei de Videocriatura esse novo ser, uma espécie de
”Frankenstein” formado pela hibridização dimensional dessa más-
cara virtual no meu corpo vivo. Uma ‘costura eletrônica’.
Sentia uma energia que vinha do rosto-tela direcionado pelo
som, e que fluía direto até meu corpo sem minha interferência, co-
mandando meus movimentos.
Ficou claro desde o começo que esse ser pedia mais que a con-
templação passiva de um vídeo ou espetáculo cênico: pedia uma re-
lação física direta com o público.
E a participação ativa do público já acontecia nas primeiras per-
formances - onde a Videocriatura avançava sobre a platéia, e tirava
as pessoas para dançar um tango.
Lembro-me bem que as pessoas se abandonavam nos braços
desta criatura talvez devido a sentimentos confusos de medo e
excitação.
Um distanciamento brechtiniano novo e diferente me permitia
assistir a performance de dentro desse ser, vendo as expressões as-
sustadas e divertidas das pessoas como se não fosse comigo e sim
com esse ser incorporado em mim.
Tem duas visões, pensando na Vídeocriatura: Tem a minha, que
é a de dentro. A visão de quem está dentro olhando para fora. Essa
é a visão do performer. Essa visão de quem está dentro é uma visão
muito parecida com o distanciamento do Brecht por um lado, e por
outro lado a sensação de estar à parte do processo, vendo de fora.
Você vê a sua mão, você vê o seu corpo, você vê as pessoas te toca-
rem, você vê as pessoas reagirem, mas não é você. É como se você
estivesse vendo através daquele corpo.

90 90 | Otávio Donasci
Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|91 91
Essa sensação cria essa visão de fora. Dá uma [sensação de] ir-
responsabilidade que é um dos atributos interessantes da criatura.
O fato, por exemplo, de que não sou eu que estou fazendo, é ele, o
rosto [que toma o comando]. ...
Osmar di Pieri, se sentava na platéia e se via atuando em outro
corpo. É uma sensação muito interessante. Eu perguntei como você
se sente se vendo no palco? E ele falou: “Não sou eu. É uma outra
coisa, mas não sou eu. Eu estou aqui.“
E a terceira possibilidade de visão é você usar um ‘head-set’
com uma [micro-] câmera, um capacete com câmera voltada para
seu rosto, e aí você transporta o seu rosto para a cabeça da cria-
tura. Então você está fora de você. Seu rosto está em outro corpo.
Também tem [uma sensação de] irresponsabilidade muito grande,
porque você pede coisas pro corpo fazer, sugere coisas que você não
faria.
Então é muito comum, uma brincadeira básica que eu uso, ao
vivo, é o fato de eu pegar a pessoa e dizer: “olha, ponha esse capace-
te e escolha qualquer um aqui para namorar. De quem você gosta,
daqui?”. “Ah, sei lá, aquele loirinho ali.” Então a Vídeocriatura vai
lá, senta no colo dele, pega ele no colo, passa a mão nele, acaba com
aquela distância que você tinha com a pessoa mais distante. E você
se diverte muito, porque você não está lá. Não é seu corpo. E a pes-
soa que tá lá, brincando com o garoto, também não podia fazer isso,
se não fosse você.
Então ela usa o seu rosto para ficar sem culpa. E você usa o
corpo dela para ficar sem culpa. Resumindo as três visões: uma é de
quem está dentro, distante; a outra é quando a pessoa é que grava o
rosto, que ela se assiste. Então ela vê o trabalho, que ela fez de um
jeito, ser feito de outro. E a terceira é quando se faz ao vivo, aí os
dois são irresponsáveis e fica improvisando, um sacaneando o outro.
Quer dizer, você faz coisas para sacanear a pessoa que faz o corpo, e
a pessoa do corpo faz coisas com as pessoas que você teria vergonha
de fazer. É um jeito de brincar experimentando uma linguagem.¹
A morte no final da performance “Profeta” surgia como o des-
prendimento de um ser que tinha me possuído. Essa sensação de
posse, de incorporação quase mediúnica, todos os performers que se
seguiram a mim também sentiram.
A criação da imagem do rosto/tela videografado evoluiu, com a

92 92 | Otávio Donasci
pesquisa de enquadramentos e iluminação. O rosto foi sendo trans-
formado numa janela virtual a serviço da inflexão do texto.
Exemplos que considero clássicos deste processo são: o close na
boca, que acaba ocupando todo o rosto/tela imprimindo agressivi-
dade ao texto verbalizado; o rosto que vai se desfocando enquanto
fala expressando um conceito de desvanecimento ou morte gradual;
ou ainda a técnica da inversão do rosto, colocando-o de cabeça para
baixo, ideal para se criar caricaturas que produzem um estranha-
mento humorístico.

2.1 - O CONE DE INTERFERÊNCIA


A interferência de mãos, manipulando ou sufocando o rosto, ou
o acréscimo de acessórios como óculos, bigodes e até mesmo água
escorrendo, fizeram-me descobrir o que penso ser uma possibilidade
completamente nova para uma máscara: o espaço entre a câmera
de vídeo e o rosto do performer no momento da gravação ou ao vivo.
Estes cones virtuais, disponíveis para interferências de todo tipo,
permanecem invisíveis para quem observa o rosto da videocriatura.
Esse espaço, diante do rosto/tela, permite não só agir sobre o
rosto que está sendo gravado como também criar ações nesse cone
que sugerem, pelo deslocamento no espaço cênico da videocriatura,
ambientes, situações e até outros personagens.
A videocriatura parece carregar seu próprio cenário, adereços, e
até seus coadjuvantes, nesse espaço invisível armazenado no tape e
que se revela na hora da performance.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|93 93


94 94 | Otávio Donasci
3 – PRIMEIRAS PERFORMANCES
“O Profeta”, foi realmente a primeira performance concebida to-
talmente para uma videocriatura, coagulando as experiências de
construção de protótipo, criação de rostos e expressão corporal num
espaço não teatral.²
Ela foi o resultado dos primeiros laboratórios faciais que revela-
ram uma espécie de catálogo de possibilidades dessa nova lingua-
gem, o Videoteatro.
Na época, realizei longas sessões com Osmar di Pieri, ator versá-
til para esse começo de trajetória, com o qual explorei desde o texto
clássico com inflexão teatral até sons guturais sem nexo, passando
pela dublagem de cantores famosos do passado até uma versão do
hino nacional brasileiro cantado de forma iconoclasta.
Como um profeta apocalíptico pós-moderno, a primeira video-
criatura, enrolada em panos pretos montados improvisadamente,
descia aos gritos a rampa da Galeria de Arte São Paulo numa raiva
santa que ia se transformando, se entristecendo, até chegar ao cí-
nico, ao humorístico, à perplexidade e por fim, à morte quando seu
rosto desfoca-se no meio do povo.
A videocriatura usava cabo de transmissão de sinais de RF (rá-
dio freqüência) e força que eram arrastados e enrolados pelo meu
assistente na época, o performer Théo Werneck, de modo ostensivo
e performático.
Corporificar as experiências faciais transpondo o ritmo da edi-
ção de vídeo para as transições dos movimentos corporais foi o gran-
de desafio desse primeiro trabalho.

Descobri que a cumplicidade entre o movimento dos olhos no


rosto eletrônico e a intenção do gesto no corpo era fundamental para
a ‘costura’ entre os dois e condição número um para que a inusitada
experiência flua da videocriatura para a platéia.
Minha vocação para espaços não convencionais surgiu desde o
início. Eu sentia que era importante a videocriatura estar no mes-
mo espaço que a platéia, interagindo diretamente com as pessoas.
Apesar de funcionar muito bem num palco italiano, a criatura

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|95 95


eletrônica brilhava mais quando disputava o mesmo espaço de um
ser humano, tanto físico como emocional.
Daí a terceira performance ser na rua, com a videocriatura per-
seguindo alguém ³. Nesta atuação, a videocriatura levava apenas
um olho, gravado no lugar do rosto, e emitia sons guturais.
Aquele ser inquietante, espécie de ciclope eletrônico, surgia de
uma van, onde ficava o equipamento, e iniciava uma perseguição a
um olho holográfico, pelo qual simulava uma paixão, um olho video-
grafado atraído por um olho holografado.
Ivan Isola, na época diretor do Museu da Imagem e do Som de
São Paulo, fugia pelo centro movimentado da cidade de Curitiba, no
Paraná, levando este olho desejado. Até que vencido ele o entrega
ao apaixonado ser.
A criatura-cíclope dirige-se então até um parlatório, numa região
da cidade conhecida como “Boca Maldita”, onde uma boca imensa
surge em seu rosto-tela e passa a criticar “as bocas que calam e não
dizem o que sentem”.
Nessa época a criatura ainda requeria cabos de trinta metros
e uma tomada de força. No entanto, a quarta performance, ainda
no espaço público, celebrou a independência dos cabos e da força:
videocassete e baterias surgiram acoplados à um cavalo montado
por um vídeo-cavaleiro de olhos vazados, descendo uma ladeira de
um quilômetro, a Rua Augusta de São Paulo, em pleno trânsito,
anunciando um apocalíptico ‘fim dos tempos’ e xingando a burgue-
sia e o governo brasileiro. Uma espada fluorescente, que iluminava
a cena, e uma capa preta completava a terrível figura. Estes foram
os primeiros adereços além da malha preta, básica.
Na gravação do rosto do cavaleiro a inovação foi criar o olhar
vazado indicando a cegueira de um ser que ainda assim cavalgava
em alta velocidade e manejava uma espada. Algo que só uma video-
criatura podia fazer.
Daí em diante surgiu uma diretriz para o projeto de pesquisa
desta linguagem de hibridização homem-máquina: criar situações
“non-sense” que só videocriaturas poderiam desempenhar.

96 96 | Otávio Donasci
Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|97 97
Em 1984 seria a vez da videocriatura nadar numa piscina pa-
rodiando a famosa atriz da década de 40 dos musicais da MGM,
Esther Williams. A performance parodiava o Festival de Cannes
onde atrizes sensuais chamavam a atenção à beira das piscinas dos
hotéis.

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Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|99 99
4 - A PRIMEIRA TEMPORADA
A SEGUNDA VIDEOCRIATURA
Até 1983, somente existia um protótipo utilizando televisor de
12 polegadas e performances curtas. Neste ano, no entanto, a convi-
te de Cândido José Mendes de Almeida, diretor do Centro Cultural
Candido Mendes, do Rio de Janeiro, montei um espetáculo solo
de 50 minutos, para teatro de arena, um desafio e tanto para um
“ator” de rosto plano. O espetáculo, que permaneceu um mês em
cartaz, introduzia a segunda videocriatura, o Caceton que parecia
um grande pênis. Atuar no interior do Caceton, exigia do ator (Túlio
de Menezes) um preparo físico digno de um contorcionista.5
Mais um desafio foi vencido nesta temporada no Rio de Janeiro:
o diálogo entre as videocriaturas. O processo exigiu uma pesquisa
complexa de sincronismo de dois videocassetes VHS low-tech além
de gravações especiais com Osmar di Pieri que atuou nos dois pa-
péis: o do Domador e o do Caceton.
Era um número circense curto – de 3 minutos - em que um do-
mador apresentava seu bicho que dançava com pessoas da platéia.
Um bicho muito sacana e preguiçoso.

100 100 | Otávio Donasci


Esta temporada no palco iniciava a atualização de um projeto
bem mais amplo de criar um Circo de Videocriaturas, no qual se ex-
ploraria a linguagem circense; a pesquisa pretende ainda explorar
outras linguagens cênicas tradicionais tais como a comédia ‘dell’ar-
te’ e o vaudeville.
A maior parte do espetáculo foram solos em a videocriatura
trocava de adereços a cada número. Estas cenas resultaram da se-
gunda fase dos laboratórios de rosto, onde foi enfatizada a pesqui-
sa humorística (ao contrário dos laboratórios dedicados ao Profeta
onde os textos eram mais dramáticos).
Osmar gravou dentro de um aquário suficiente apenas para sua
cabeça. A água subia simulando seu afogamento. Em outra cena,
um personagem chamado Resmungão esfregava a cara num vidro
aparentando tentar escapar do monitor.
Utilizei também inversões de rosto de todo tipo que resultaram
nos números musicais dublados. Rostos tirados de filmes clássicos
como o de Boris Karloff interpretando Frankenstein, ou da progra-
mação da TV comercial brasileira, como o de Silvio Santos, presta-
ram-se a outras Vídeo-performance.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|101 101


Para divulgar esse espetáculo apresentei uma performance na
praia, pela primeira vez em plena luz do sol, com a videocriatura
de sunga, botina preta e guarda-chuva preto, que dava uma som-
bra para a imagem do rosto aparecer melhor no televisor. Atrás,
Agnaldo, num carrinho de pedreiro levava o videocassete e a bate-
ria. Parodiava os vendedores de praia e seus pregões. Ana Nery e
Túlio distribuíam panfletos do espetáculo.
Em 1984 o desafio foi gerar o rosto ao vivo.
A primeira vez foi durante a apresentação dos Titãs que se apre-
sentavam no Radio Clube em São Paulo e a videocriatura subiu ao
palco e cantou com o rosto do ‘crooner’, Arnaldo Antunes.
Instalei na câmera, operada por Théo Werneck, um fluorescente
circular e o Arnaldo cantava “Sonífera Ilha”.
Mas 1984 foi talvez o ano mais produtivo para as videocriaturas.

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Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|103 103
No segundo Videobrasil, o protótipo #1 perdia os cabos graças a
um sistema de transmissão de TV caseiro e low-tech que eu havia
montado baseado num amplificador de sinal de RF e uma antena
comum de TV .

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A videocriatura andava de bicicleta em volta do Museu da
Imagem e do Som de São Paulo apenas com uma bateria na cintura.
Enquanto isso, toda a vizinhança ao redor do museu recebia a ima-
gem do meu rosto em seu televisor quando sintonizava o canal três.
A interferência fortuita me fez entrar para o time dos que faziam
TV-pirata por ter construído um transmissor. Cheguei a fazer per-
formances com videocriatura interferindo nas TVs da vizinhança.
Várias vezes usei a bicicleta depois para apresentar performances.
A mais famosa das aparições da vídeo-bicicleta ocorreu na XIX
Bienal em 1987 onde percorri de bicicleta todos os andares fazendo
performances,interagindo com as pessoas. Ela tinha um fluorescen-
te circular no lugar do farol.
Em 1994 foi criada a Videocleta. Ela exibia dois monitores de 3
polegadas preto & branco com olhos gravados que eram transmiti-
dos por link do videocassete no bagageiro.
Dentro do Museu, três novas videocriaturas apareciam frutos
da pesquisa com tubos de tevês disponíveis no mercado na época.
A #2 de rosto de 17 polegadas, a #3 de rosto de 24 polegadas e o
Videofantoche com rosto de apenas 5 polegadas.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|105 105


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Todos televisores em preto e branco, os mais baratos na época, e
sempre novos. Nunca adquiri usados já que queria algo que durasse
muito.
Considerava o tubo de 12 polegadas do tamanho de um rosto
normal, daí a videocriatura # 1 ser a mais “normal” delas. As outras
de 17 polegadas fazia o rosto parecer que ia da cabeça à barriga.
A de 24 polegadas requeria que o rosto ficasse entre 2 atores que
faziam as pernas e braços. Os dois personagem eram aberrações ca-
ricatas da mesma família que deram o cunho humorístico/circence
das performances seguintes.
As três juntas formaram a Banda [II Videobrasil - Mis - SP -
1984] cantando uma canção dos Demônios da Garoa e dançando
juntas.
Cada videocriatura nova era como um ator com um tipo de “phy-
sique-de-role” diferente e abria uma possibilidade imensa de estra-
tégias cênicas.
O Videofantoche, por exemplo, com um rosto-vídeo de cinco pole-
gadas, atuava acoplado à mão, como um boneco de luva.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|107 107


Esse minúsculo ser híbrido inaugurava uma possibilidade iné-
dita para o teatro de fantoches: miniaturizar o rosto de um ator de
verdade, colocando-o numa escala nova de atuação.
E no mesmo II Videobrasil, o Videofantoche estreou ao lado do
enorme com vídeo-rosto de 24 polegadas, o maior até aquele mo-
mento, para criar o número do Ventríloquo onde um boneco neuró-
tico estilo Woody Allen reclama com o ventríloquo por ser manipu-
lado e no fim eles trocam de rosto, num clima bem “non-sense”.
Essa gigantesca videocriatura de 24 polegadas requeria dois
performers para sustentá-lo um de cada lado representando as per-
nas e os braços.
Eu atuava no lado esquerdo e uma das minhas mãos era do protó-
tipo de 24 polegadas enquanto a outra manipulava o Videofantoche,
obrigando a me dividir em dois para fazer uma videocriatura e meia
por assim dizer.

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Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|109 109
No II Videorio, ainda em 1984, o Videofantoche, contracenava
comigo ao vivo, atuando sem nenhum protótipo, somente de cha-
péu coco e macacão. Ele era colocado nos ombros e na cabeça das
pessoas, usando-asT como cenário e coadjuvantes. Eu usava uma
meia máscara cobrindo minha boca porque o som do diálogo era
pré-gravado.
Voltando aos laboratórios eles passaram a ser específico para
uma determinada performance, e não genéricos.
Convidado por Abrão Bermann em 1984 para fazer uma ani-
mação com os hóspedes do Hotel Eldorado de Atibaia, levei câmera
e durante toda a manhã gravei improvisos descontraídos usando
seus rostos, que eram editados à tarde no meu quarto para apre-
sentá-los à noite no auditório. Durante o espetáculo, suas imagens
gravadas contavam piadas, cantavam e assobiavam músicas.E eu
os convidava a dançarem comigo com o rosto deles.
As pesquisas de mudança do corpo da videocriatura tornam-se
mais radicais quando o suporte deixa de ser humano.
A partir dos vários projetos de colocar uma máscara eletrônica
na cabeça de um cavalo de verdade, nasce o Videotauro, um centau-
ro-vídeo que, finalmente, atrelado a uma carroça, aonde também ia
o equipamento, era dirigido por outra videocriatura encarregada de
entregar um capitalista selvagem dentro de uma jaula no Teatro
Sergio Cardoso onde acontecia o Festival. 6
Osmar di Pieri fez os dois rostos: do cavalo e do cocheiro, além
de, ao vivo ser o capitalista vestido de terno e gravata grunhindo
violento na jaula.
A performance foi nas ruas do Bexiga, um bairro artístico aonde
fica o Teatro. O Videotauro dialogava com o cocheiro e com as pes-
soas no caminho.

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112 112 | Otávio Donasci
Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|113 113
Nesta linha de videocriaturas utilizando corpo de animais, con-
cebi protótipos para cães, porcos e até para peixes grandes, mas
estes ficaram até agora apenas no papel.
Neste festival, o III Videobrasil, foi onde apresentei mais perfor-
mances numa espécie de maratona onde além da abertura fiz mais
de uma performance diferente por dia durante toda a semana do
evento.

114 114 | Otávio Donasci


No encerramento criei uma videocriatura xipófaga que fazia
uma dupla de apresentadores ao vivo que entregava os prêmios,
beijando os vencedores do Festival que subiam ao palco.
O formato horizontal do televisor de 17 polegadas dessa criatura
(ao contrário de uma videocriatura comum que usa ele na vertical)
reunia os dois rostos juntos enquadrados ao vivo por uma câmera
no bastidor do Teatro. Este televisor era apoiado em dois atores,
grudados pelo figurino, um de smoking e outro de vestido longo, que
representavam um casal.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|115 115


Esse protótipo permitia o toque entre os dois rostos, além de
interferências como um beijo ou um terceiro rosto entre os dois,
criando uma área de interferência similar àquela do cone mencio-
nado anteriormente.
Ainda nesse festival, uma videocriatura, no elevador do teatro,
atuava como ascensorista. Seu rosto-tela subia e descia sincroni-
zando-se com o elevador, mostrando, para quantos espectadores
coubessem no elevador, seis rostos diferentes.
Acompanhados por uma orquestra de dez figuras e um maestro,
quatro videocriaturas sincronizadas cantavam em coro uma Ode ao
Rio Tietê, paródia operística, criada pelo grupo “Bolinho de Carne
com Berinjela”, no palco do Teatro Sergio Cardoso.O refrão dizia:
“Tietê,ó Tietê, esses “poico intupiro ocê”

116 116 | Otávio Donasci


Os quatro rostos apareciam boiando em água suja com cigarros
e lixo em volta deles. A cena foi gravada com os atores imersos em
uma banheira cheia de resíduos. Suas vozes foram posteriormente
dubladas.
No catalogo desse festival lancei os fundamentos dessa nova
linguagem das máscaras eletrônicas: o Videoteatro

O PROJETO VIDEOTEATRO
(Excetos do catálogo do III Videobrasil - )

Seria muito rico para a expressão artística humana se conse-


guíssemos incorporar o vídeo, que é a síntese das tecno-imagens,
com o teatro que tem no ator ao vivo seu foco principal de expressão.
Foi querendo isso que nasceu o Videoteatro.
FRANKENSTEIN E A COSTURA ELETRÔNICA
Reduzindo a linguagem teatral ao necessário cheguei ao ator.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|117 117


Estudando a função do ator me detive em dois focos expressivos:
a face e o corpo. E apesar do corpo ser mais ampla e conter a face as
duas se equivalem em potencial cênico.A face sempre prejudicada
pela distancia e disposição da platéia.
Daí a maquiagem reforçada, a iluminação teatral focada no ros-
to,a arquitetura do teatro inclinada para favorecer à expressão fa-
cial,importantíssima para a linguagem teatral.
Reduzindo o vídeo ao foco expressivo cheguei ao tubo cinescópio
(hoje tela de cristal líquido) e descobri que sua proporção equivale
a de um rosto normal.
Daí em diante foi um trabalho de “costura”de um tubo num ator
como se fosse uma cabeça ortopédica.
E da fusão de uma linguagem bidimensional luminosa, o vídeo
com uma linguagem tridimensional viva e iluminada, o teatro nas-
ce o híbrido: o videoteatro.

118 118 | Otávio Donasci


A expressão facial do ator foi trocada pelo rosto/video.
Basicamente o rosto é a parte mais característica da expressão.
Movimenta-se no espaço frontal da cabeça que trabalha sobre o cor-
po que se desloca no espaço cênico.
Logo o rosto é o menor espaço de expressão teatral e o mais
importante. E que fora o nariz é o mais bidimensional e estável de
todas as outras partes expressivas do corpo. Daí ele ser o escolhido
para receber o enxerto vídeo.
A partir do momento em que essa fusão deu certo, todo o rosto
o que era colocado no vídeo/rosto era considerado em cena pela pla-
téia como rosto do ator que usava o vídeo-rosto.
As possibilidades de exploração dos cruzamentos dessas duas
linguagens são infinitas. Rostos podem ter dois corpos, assim como
um corpo pode ter vários rostos que se sucedem interpretando.
Esse rosto pode ser deslocado para a mão ou costas de um ator,
ser acoplando em animais, maquinas e criar seres com vários phy-
sique-de-role inusitados.
Pode ser transmitido para o mundo todo eliminando em parte
o problema de ubiqüidade do ator, podendo fazer performances em
vários lugares simultaneamente ao vivo

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|119 119


OS LABORATÓRIOS DE VIDEOTEATRO
A partir de um projeto inicial, desenvolve-se o protótipo de vi-
deocriatura, ou determina-se qual das existentes vai se usar, como
se fosse um casting baseado no “physique”.
O desenvolvimento do projeto se faz por laboratórios específicos.
No de expressão facial grava-se a face com todas as possibilida-
des da linguagem vídeo, somente que não para assistir num televi-
sor, mas sim para usar numa videocriatura. O monitor de referen-
cia é a videocriatura.
A direção do ator que faz o rosto é muito importante já que a
realidade da cena vai depender do olhar dele ser convincente. A
Videocriatura vai parecer impressionantemente viva se o olhar do
ator for focado no lugar certo, para isso existem técnicas para diri-
gir o olhar do ator para os ângulos certos de cena, que dependem da
altura do vídeo/rosto da videocriatura e o tipo de ação que ela vai
executar.
Nesse laboratório determina-se a luz que o rosto vai ter em cena
independente da luz do cenário ou do corpo, já que o rosto é lumino-
so e independe da iluminação de cena.

Grupo que se apresentou nos 80 anos da Pinacoteca em 1986. Encima:


Ana Nery, André Ceccato, Alcione Alves,Théo Werneck,Milton Tanaka.
Embaixo Silen Clair, Túlio Menezes, Otávio , Osmar di Pieri.

120 120 | Otávio Donasci


Pode-se usar rostos de arquivo, laboratorizados, editados,ani-
mados em computação gráfica,tudo enfim que pareça um rosto
quando encaixado na videocriatura.
No laboratório de protótipos são pesquisados e construídos ou
aperfeiçoados as costuras entre o ator e a cabeça/monitor, basea-
dos em projetos técnicos onde o conhecimento de eletrônica, física,
química, ortopedia e figurinos são necessários para o sucesso da
“costura”.
No laboratório de expressão com protótipos os performers im-
provisam usando as gravações feitas do rosto em frente a espelhos.
Criam as características físicas dos personagens esboçados pelo ros-
to gravado.Desenvolve-se o figurino final e ajustes técnicos e ortopé-
dicos o que remete aos laboratórios de protótipo e de rosto de novo
se necessário.
Esse laboratório também pode ser com o rosto ao vivo até che-
gar-se à construção da inflexão certa para o movimento do corpo.
Depois dessas fases preliminares, é feito o laboratório de finali-
zação do espetáculo, no qual é explorado o espaço cênico com mar-
cações, adereços, iluminação etc.
Pode-se fazer qualquer tipo de trabalho cênico com uma video-
criatura: onde um ator pode trabalhar uma videocriatura pode tam-
bém, fazendo coisas que um ator talvez não possa.
O Videoteatro é o começo de um teatro tão fluído como o
pensamento.
O sonho é conseguir um teatro onde tudo fluísse como num sonho
e atores pudessem contracenar com seres incorpóreos, e suportes fí-
sicos mais leves, apenas o bastante para tocar nossa sensibilidade.
Enfim seria bom se o teatro pudesse ir fisicamente até onde nos-
so pensamento pode ir.
Talvez assim possamos ser como realmente somos e não como
parecemos no espelho.
Nessa época surge um clássico das performances de videocriatu-
ra: o Palhaço. Acompanhado de uma orquestra regida pelo maestro
Jamil Maluf tocando Circus Polca de Stravinsky, o Palhaço fazia
números circenses de malabarismo “non-sense” explorando o “cone
de interferência” 7
A princípio a cena era realizada com o protótipo de vinte e qua-

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|121 121


tro polegadas e dois performers. O projeto deste ‘clown’ encontrou,
no entanto, sua melhor forma no novo protótipo #1 que permitia
uma mímica mais apurada.

Esse novo protótipo, definitivo para 12 polegadas foi redesenha-


do para o melhor encaixe possível do tubo na cabeça do performer,
separando o circuito e colocando-o nas costas para melhor distri-
buição do peso (dez quilos) além das baterias, amplificação extra
de som (10w com 2 falantes no peito) antena de recepção embuti-
da na estrutura e chave que permitia inverter o rosto durante a
performance.
O segundo espetáculo de 50 minutos é montado e desta vez com
10 performers e 4 videocriaturas com uma primeira parte de per-
formances tradicionais e na segunda parte uma pesquisa nova: um

122 122 | Otávio Donasci


programa de auditório ao vivo com o André Ceccato na videocria-
tura #1 nova, conversando com a platéia ao vivo a partir de minha
boca enquadrada por uma câmera numa cabine no bastidor com
vista para a platéia de modo a identificar com quem eu falava, e
contracenando com o Osmar di Pieri, sem videocriatura interpre-
tando um troglodita/assistente de palco.
Esse número durou cerca de 20min e improvisava uma série de
brincadeiras típicas de auditório como concurso das cadeiras, res-
posta de perguntas ridículas, valendo prêmios também ridículos. 8
Em 1988 a videocriatura atuou telepresencialmente pela pri-
meira vez entre a universidade Carnegie Mellon de Pittsburgh,
EUA e o Museu da Imagem e do Som de São Paulo.
Um rosto capturado em Pittsburgh era transformado para si-
nais sonoros e transmitido via telefone, através do sistema de tele-
visão de varredura lenta (‘slow-scan television’), até a videocriatura
que atuava no palco do Museu da Imagem e do Som em São Paulo
para uma pequena platéia.

A imagem da videocriatura, atuando no palco com um rosto tele-


transmitido, retornava para Pittsburgh por outro ‘slow-scan’. Uma
outra conexão telefônica transmitia a trilha sonora. O resultado
era muito fragmentário, o sistema de televisão de varredura lenta
transmitia apenas uma imagem a cada doze segundos. 8

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|123 123


5 -A VIDEOCRIATURA NO TEATRO
Nunca considerei a proposta do Videoteatro como algo restrito
às minhas performances, mas sim como uma nova forma de se fazer
Teatro acessível a qualquer autor e diretor, e possível de integrar-
-se até num espetáculo normal.
Mas o teatro paulista à época era arredio à linguagem vídeo,
muito ligada a TV comercial e assim somente em 1985 o diretor José
Celso Martinez Correa faz uma leitura dramática de “O Homem e o
Cavalo” de Oswald de Andrade e me convida para fazer o papel de
Eisenstein com uma videocriatura ao vivo, iniciando uma série de
trabalhos nos anos posteriores dentro de sua proposta de fazer do
teatro um “terreiro eletrônico”.
Meu personagem, Eisenstein entrava em cena e fazia um monó-
logo extenso perante um coro de crianças.
No palco uma antena de TV era usada para transmissão de si-
nais para a videocriatura que não tinha cabos e andava livremente
em cena, descendo até a platéia.
Nos bastidores, Tadeu Jungle fazia o rosto de óculos escuros
para não trair o fato de que estava lendo o texto, como enfim todos
os atores, já que era uma leitura dramática.
Mas a videocriatura que eu fazia era o único em cena que não
parecia estar lendo nem improvisando apesar de nunca termos en-
saiado nada juntos antes.
É preciso que se explique que, nessa época José Celso Martinez
Correa fazia um teatro com características performáticas, na maio-

124 124 | Otávio Donasci


ria das vezes apenas uma apresentação, em geral polêmica, fora do
circuito de teatro convencional, com participação bem pessoal dele
em todo o espetáculo e convidando a nata da vanguarda em artes
para participar de seus eventos.
Durante toda essa época, em que Zé Celso fez muitas experiên-
cias do seu estilo teatral ele me convidou para participar, com mi-
nhas videocriaturas de suas pesquisas.
Assim, em 1986, participei de Accords adaptado de Brecht onde
através de fotos e filmes do rosto dessas personalidades do teatro
que já morreram; eu as reencarnava em cena através da video-
criatura. Lembro-me da forte emoção de Zé ao ver Zienbinsnky e
Cacilda Becker de novo em cena dançando com ele.
Dessa experiência eu tirei a idéia de criar um banco de imagens
de rostos de atores fazendo seus melhores papéis para que depois
que morram outros possam usá-los em máscaras eletrônicas como
a videocriatura.
Depois em 1989 foi a vez de “Os Sertões”, adaptado de Euclides
da Cunha, onde eu usei a cara dos presidenciáveis da época, Collor,
Enéas, tiradas de seus programas políticos eleitorais para na peça
representar a classe política. Também construí uma cabeça/monitor
com a cara do Zé para quando ele, que fazia o Antonio Conselheiro,
fosse decapitado. Ela ficava balançando pendente numa corda gri-
tando “Evoé! Evoé!”
Em 1990 foi o “Banquete Antropofágico” baseado em Oswald de
Andrade, para o qual criei especialmente, o Videopau, uma sunga-
-vídeo com um monitor de 5 polegadas que eu usava nu em cena
entre as pernas com gravações de falos e genitálias e as vezes rostos
debochados.
No mesmo ano, usei-o em uma performance chamada “O
Exibicionista” apresentado na Feira Auvicom em São Paulo. O per-
former, Ricardo Karman, provocava os casais, abrindo o casaco e
mostrando a sunga onde se via um rosto-tela mostrando a língua.
Era parte de um espetáculo, com uma série de performances, cha-
mado “Simulacrópolis”.
Como veremos mais à frente, Karman e Marcelo Paiva me con-
vidariam em 1989 para criar um personagem/imagem dentro de
“525 linhas” peça que ficou em cartaz no Aeroanta, SP.
Aí começou uma parceria que culminou numa linha nova de es-

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|125 125


petáculos multimídia.
Dentro das Expedições Experimentais Multimídia, que criamos
juntos em 1992 ,1994 e 2001, entre as várias instalações e inflá-
veis que fiz, aparecem algumas versões de videocriaturas como o
“Cavaleiro do Apocalipse” agora com o rosto de uma caveira caval-
gando pelo túnel, em silêncio ou o “Midiotauro” com cabeça de boi
só que nu, diferente do “Midiotauro” do IX Videobrasil que vestido,
buscava pelas instalações do festival, um Dédalo improvável.
O Midiotauro de “Viagem ao Centro da Terra”, com tochas de
fogo na mão, seduzia as mulheres da platéia, carregava-as no colo
até que sua mulher aos gritos o submete violentamente ao seu jugo
e o arrasta pelos chifres e pelo pênis pelo túnel adentro.

O midiotauro tinha como proposta exibir o masculino, em toda


sua infantilidade e fragilidade, perante o feminino emocionalmente
onipotente.
Uma cabeça-de-medusa-vídeo com cabelos de fios elétricos e cir-
cuitos eletrônicos é balançada por uma bruxa aos gritos, ameaçan-
do fisicamente os expedicionários que passavam, aludindo ao perigo

126 126 | Otávio Donasci


do feminino virtual, que literalmente pode dar choque.
Esta medusa representava uma evolução da video-cabeça, ba-
lançando com o rosto de Zé Celso.

6 - AS VIDEOCRIATURAS-INSTALAÇÃO
A primeira videocriatura-instalação foi o Videobusto criado em
1986 para os 80 anos da Pinacoteca de São Paulo. O conceito do
busto me apaixonava e me intrigava, levando-me a um estudo de
suas origens e evolução.
Um busto em fibra de vidro com rosto pré-gravado num moni-
tor na vertical, instalado sobre um pedestal grego, logo na entrada,
passava o dia todo conversando com as pessoas que visitavam a
Pinacoteca.
Sua personalidade era de um funcionário público de arte, sem-
pre perguntando a que horas acaba o expediente e sendo rude com
quem o fica encarando muito.
Essa performance era substituída nos dias subseqüentes com
outra sobre um “aprendizado de ser estátua” onde ele tentava imi-
tar outro busto ao lado, completamente estático, explorando re-
cursos de vídeo como o “freeze”, versão eletrônica da estátua, e o
“Desabafo” onde o rosto parado ia ficando cada vez mais tenso até

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|127 127


que gritava, voltando a sorrir relaxado, repetindo o ciclo.

128 128 | Otávio Donasci


A evolução dessa instalação aconteceu no IX Videobrasil em
1992 onde o conceito de “busto-mídia” ficou mais explícito e mais
nítido. O Videobusto ficava na choperia do Sesc Pompéia, um bar
onde as pessoas do Festival se encontravam.
Eu saía com minha câmera e gravava o rosto de pessoas famosas
do Festival (videomakers, palestrantes, autoridades) e também de
pessoas comuns dando depoimentos ou simplesmente fazendo seu
manifesto.
E toda tarde mostrava-os no Videobusto como se fosse a voz da
verdade, um misto de informação, performance e instalação. Era
atualizado todo dia.
A importância e a credibilidade histórica do busto era ridicu-
larizada e comprometida com opiniões misturadas, fazendo uma
analogia ao sagrado da opinião veiculada pela TV que deveria ser
desmistificada.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|129 129


No mesmo Festival, na mesma choperia do Sesc, outra video-
criatura-instalação as “Videotaxigirls”, explorava as linguagens
sensoriais.
As “Videotaxigirls”, baseadas nos “Videomanequins”, criados
em 1991, consistiam em dois manequins femininos e um masculino,
em massa plástica, articulados, com modelagem de cabeça especial
para incrustar um tubo de 5 pol. vertical. Nesse monitor passava o
miolo de um rosto pre-gravado, completado pela modelagem do ros-
to do manequim criando uma fusão entre o virtual e o real.
Foi feito um laboratório com mulheres e homens atuando. Foi
solicitada a dramatização de uma sedução irresistível durante o
tempo de uma dança. Olhos, gestos faciais, o texto era um improvi-
so de cada um, e um júri formado por mim e minha equipe na época
escolheria o mais irresistível.
Foram colocados nos videomanequins roupas com toques sen-
suais (seda, veludo, lingerie, couro para o homem) perfumes, adere-
ços e rodízios nos pés para que pudessem ser movimentados numa
pista de dança ambientada como uma boate com musicas românti-
cas e sensuais. Qualquer um podia dançar, abraçar e até beijar os
Videomanequins o que, acreditem, realmente aconteceu.

130 130 | Otávio Donasci


Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|131 131
Essa instalação inaugurava uma linha de performances que cha-
mo “solidão eletrônica” onde se questiona o carinho virtual dado por
máquinas e afins. É a primeira instalação em que enfoco o tema ca-
rinho envolvendo o masculino e o feminino e seus jogos de sedução.
A videocriatura-instalação Videoesqueleto era um esqueleto
plástico em tamanho natural que tinha um endo-rosto de 5 pol. no
crânio (ou um exo-crâneo com um monitor dentro) e os circuitos ex-
postos no tórax, ligados à um videocassete com fita contínua. O som
saía de um alto-falante instalado na traquéia do esqueleto.
Ele ficava exposto o dia todo no Itaú Cultural em 1997 falando
ao público, cada dia mudando de pose ao longo dos cinco dias de ex-
posição, graças aos fios de nylon onde ele estava pendurado.

132 132 | Otávio Donasci


Ele teria sido descoberto por um professor alemão (performance
com a Cristalmask), e seria o fóssil de um ator de um lugar fictí-
cio, Nostáugia, que por uma aberração da natureza preservou junto
com seus ossos, suas memórias numa língua desconhecida vibran-
te e apaixonada, às vezes humorística, compreensível apenas pelas
suas inflexões do texto.
Pretendia ser uma visão bem humorada da arqueologia da
História da Civilização e do Teatro.
Em 2000 em Lisboa ele já estava adaptado ao corpo de um per-
former (Shane Morgan) que se vestia de preto como num teatro ne-
gro. Deste modo, o performer/operador desaparecia no cenário preto
dando vida ao esqueleto, movimentando-se em cena e interagindo
com a platéia, como as outras videocriaturas.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|133 133


Das videocriatura,s com imagem de corpo inteiro, não só rosto,
surgiriam depois com a Telacriatura e Videovivo.

134 134 | Otávio Donasci


Apenas uma utilizava televisores: o Videopersonagem. Uma
montagem de dois monitores de 29 polegadas em posição vertical
empilhados e sobre rodízios, ele apareceu na Feira de Informática
de 1992. Uma mulher pré-gravada em duas partes dialogava e até
dançava com um homem ao vivo e uma projeção numa tela.
Por cortes e efeitos simples as duas partes vão trocando mos-
trando a atriz com várias roupas e até seminua, para desespero do
homem que tenta escondê-l7 do público que nesse caso só assistia,
não participava.
Em 2002 apareceu a possibilidade de fazê-lo com 3 monitores de
34 polegadas empilhados e ao vivo, onde 3 câmeras enquadram par-
tes de uma performer deitada no chão em ‘chroma-key’ parecendo
boiar num aquário.

7 - AS VIDEOCRIATURAS DE PROJETOR DE VÍDEO:


O TRIDIMENSIONAL NO VIDEOTEATRO
Chega 1986 e o projetor de vídeo proporciona um novo elemento
para a pesquisa. Proporciona o nascimento de uma videocriatura
de corpo inteiro projetada numa tela de dois metros de altura por
um metro de largura, sobre rodinhas, que chamei de Telacriatura,
contracenando com a videocriatura e um ator ao vivo. O segredo foi
projetar em tamanho real a imagem do ator e deslocar a tela em
cena dando dimensão cênica à atuação da imagem fixa do ator na
tela.
A Telacriatura podia deslocar-se pelo palco desde que se manti-
vesse no eixo do projetor, que era frontal. (desenho 6)
Eram quatro esquetes, criados para palco italiano e apresenta-

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|135 135


dos durante o IV Videobrasil no auditório do Museu da Imagem e
do Som de São Paulo:
“A Fila”, onde uma Telacriatura na vertical,onde tinha a gra-
vação de uma mulher (Alcione Alves) uma videocriatura #1 (Túlio
Meneses) e um músico (Gilberto) que tocava clarinete ao vivo,
criavam, através de mímica um típico número de slapstick, co-
média pastelão sem palavras, com escorregões, tapas e confusão.
Homenagem ao Vaudeville e os filmes mudos.Demonstrava a pos-
sibilidade de contracenar no mesmo espaço cênico, imagens de ato-
res, videocriaturas híbridas e atores criando a trilha sonora da cena
acusticamente e ao vivo.
“Bêbados” mostrava a Telacriatura na horizontal, fixa onde se
via a imagem de um bêbado sentado tocando violão ao lado de uma
mesa virtual que continuava ao vivo em cena com uma cadeira real
onde a videocriatura #2 sentava e os dois conversavam e cantavam
juntos.
Demonstrava a fusão do real e virtual não só na videocriatura
mas também na cenografia e adereços, já que sobre a mesa haviam
copos e garrafas reais e virtuais misturados.
“LoveStory” já era um quadro mais elaborado, uma noveli-
nha onde uma videocriatura- homem (Túlio) casado com uma
Telacriatura mulher,(Silen Clair) apaixona-se por uma mulher de
carne e osso (Alcione Alves) e tenta explicar pela sua dupla nature-
za (imagem/corpo) que sua cabeça (feita de imagem) é dela mas que
seu corpo é da outra.
Havia cenas de agressão onde a mulher da vídeo-tela “pulava”
em cima da videocriatura e suas mãos apareciam no cone de inter-
ferência simulando uma luta física.
Outra demonstração era o cone de interferência da vídeo-tela
numa cena de correria em volta da tela entre as duas mulheres (a
virtual e a real) onde panelas e outras coisas “passavam voando”
pela tela indo atingir a videocriatura.
Ainda houve um quarto esquete no qual uma vedete de circo
projetada na Telacriatura chegava transportada por um carregador
e em seguida tentava sair do quadro da tela girando-a como se fosse
uma caixa, mostrando mãos e pernas diferentes dela num estilo de
humor ‘non-sense’. Atrás da tela escondiam-se a própria vedete e
mais um performer que revezava nas partes diferentes.

136 136 | Otávio Donasci


A Telacriatura pretendia mostrar a versatilidade da videotela,
e as possibilidades de situações ‘non-sense’ que a mistura de real e
virtual podem produzir em cena.
A Telacriatura instalada num palco italiano mostra só um pe-
queno pedaço da cena onde “capta” o personagem imaginando-se
que ele está em movimento no palco sugerindo uma ação invisível
em volta completada pela imaginação da platéia que assiste.
Um exemplo disso ocorre quando a mulher/imagem atira pane-
las na mulher de verdade que escapa das “panelas invisíveis” des-
viando-se. Outro momento ocorre quando, num acesso de raiva a
mulher/imagem some da tela em direção a videocriatura-homem
aos gritos, e a mão dela aparece unhando o rosto/imagem dele, que
se debate numa luta invisível e a joga de volta à tela.
A seqüência de pesquisa dessa Telacriatura aconteceu mais
tarde (1990) num espetáculo de teatro intitulado “Graças à Fafi”.
Neste projeto, a humorista Fafi Siqueira contracenava através de
uma telacriatura móvel com personalidades famosas do ‘show busi-
ness’ brasileiro que não poderiam estar presentes em cena com ela
durante a temporada.
Dirigidas por mim em gravações especiais, onde o fundo preto
e a angulação de câmera seguida de uma direção cênica precisa -
que incluía as marcações de Fafi para que o olhar não traísse as
intenções - essas pessoas contracenaram virtualmente com Fafi em
seus quadros humorísticos sem precisar estar toda noite no palco.
Aproveitei e sugeri uma série de quadros dentro do show onde o
real virava virtual e vice-versa através dessa telacriatura.
Eu via essa solução como mais uma contribuição do videoteatro
para resolver problemas de espetáculos que sem esse recurso não
seriam encenados. Nessa época encontrava-se intrigado pelo tridi-
mensional na arte: a presença, o volume.
Daí meu interesse pela holografia participando das experiências
dos hológrafos dessa época no Brasil, como Fernando Cattapreta,
Moisés Baunstein, Eduardo Kac, Wagner Garcia, Ivan Isola.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|137 137


Hológrafos em 1986, Expo High Tech sentados da esquerda para
a direita: Moisés Baunstein, Fernando Cattapreta e Eduardo Kac.
Atrás dele Otávio Donasci.
Mas a holografia digital não acontecia e a imagem holográfica
em movimento estava ainda muito distante de se concretizar.
Até hoje ainda sonho com imagens tridimensionais em movi-
mento soltas no ar como nos filmes de ficção.
Minha saída foi encontrar um suporte tridimensional para a
imagem do corpo e após um ano de experimentações com suportes
flexíveis nasceu o Videovivo. Enfim a videocriatura tinha perfil.
Uma tela de malha fina, bem maleável, permitia que uma pes-
soa moldasse com seu corpo uma imagem de um corpo lançada por
um projetor de vídeo gerando uma imagem tridimensional palpável.
O corpo vídeo, do mesmo tamanho desenvolvido nas experiên-
cias da telacriatura onde o corpo/imagem mantinha do mesmo ta-
manho que o real que servia de molde, permitindo contracenar com
outro ator ao vivo.

138 138 | Otávio Donasci


Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|139 139
Partitura multimídia do “Videovivo” com movimentos dos ato-
res, operadores e tela.
A Iluminação era o problema já que a projeção pedia escuridão e
o ator ao vivo pedia luz. A saída foi criar uma luz de baixa intensi-
dade, bem marcada, rente a tela.
Baseado nos laboratórios anteriores criei um roteiro onde uma
mulher imaginária e um homem se entrelaçam num jogo erótico
entre o real e o virtual
A imagem de uma mulher nua dançando estica seu braço um
metro fora da tela e seduz um homem real agarrando-o fisicamente
e faz com que ele, apaixonado, pule dentro da tela maleável, trans-
formando-se em imagem.
A tela os envolve como se suas imagens tridimensionais estives-
sem soltas no ar. No fim a tela se abre e ela o empurra pra fora. Ele
cai no palco. Ela voa junto com a tela e deita-se encima dele que se
enrosca no pano da tela onde não tem nada. Apenas o palco vazio.
A tela era operada por duas assistentes que faziam todos os mo-
vimentos de moldagem segundo uma partitura, criada por mim es-
pecialmente para essa linguagem.
Este projeto desenvolveu a partir de estudos que fiz orientados

140 140 | Otávio Donasci


por Hans Joachin Koellreuter.
A coreografia foi concebida por Ana Lívia Cordeiro, que tam-
bém atuou e convidou Eduardo Malot para contracenar com
ela. Posteriormente, para as apresentações no Museu de Arte
Contemporânea no Parque Ibirapuera, Malot foi substituído por
Túlio Meneses.
O espetáculo chamou-se “Videovivo” porque, queria eu, seu títu-
lo deveria marcar o nome da técnica que acabara de inventar, uma
espécie de video-ballet.

Cena de “525 Linhas” com Videovivo

Nesta oportunidade, Marcelo Rubens Paiva e Ricardo Karman


estavam montando uma peça chamada “525 linhas”.
No texto de Paiva, a imagem de uma mulher criada por um pu-
blicitário ganha vida, mata quem a gerou, seduz o marido da mu-
lher que a gerou e no fim mata a própria mulher para casar-se com
o marido dela, ele também transformado em uma imagem.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|141 141


Karman viu o Videovivo, no Museu de Arte Contemporânea do
Ibirapuera e convidou-me para criar esse personagem/imagem.
O ponto alto do espetáculo ocorria quando o marido transava
em cena, deitado no chão com a imagem tridimensional da própria
mulher que em seguida entra em cena.
Outra cena impressionante incluía um diálogo da imagem da
mulher com a mulher real em cena na qual a imagem abraça a
mulher.
Esse foi outro espetáculo que sem essa linguagem nova ficaria
desfigurado já que o texto pedia um ator/imagem.

142 142 | Otávio Donasci


Ainda pesquisando o tridimensional, concebi em 1992 as
Videomáscaras, para o Videobrasil. Neste projeto, telas em formato
de rosto eram sopradas por motores, como se fossem velas de um
barco.
Projetores de vídeo especialmente regulados mostravam nestas
telas rostos de três metros de altura que surgiam, devido ao forma-
to da tela, como tridimensionais.
Todo o sistema, constituído por projetor de vídeo montado verti-
calmente, soprador e caixa de som, estava instalado em uma torre
metálica sobre rodas operada por um performer.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|143 143


O projeto original previa o performer operando a torre e usando
um Videocapacete com micro-camera para que o rosto gigante fosse
uma expansão do rosto do ator ao vivo.
Mas o espetáculo de 13 minutos apresentado por duas
Videomáscaras no Teatro do Sesc Pompéia teve seus rostos pré-
-gravados e posteriormente sincronizados a partir de dois players
S-VHS.
Os rostos de uma mulher e um homem apareciam em cada canto
do palco.
A máscara do homem começava a fazer carinho com a boca na
lateral da máscara da mulher como se fosse na orelha dela.

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Croquis para montagem “Videomáscaras” em Lisboa-2000 com
instalação “Beijo”

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|145 145


A enorme vídeo/mulher foge e começa a flertar com a platéia
insinuando que vai beijá-los mas ela invade como sobrevoando a
platéia e tenta “engolir” alguém nas primeiras filas.
As pessoas sentem o tecido passando por suas cabeças. Após
um momento estão “atrás” do rosto vendo-o do contrário. Fade in
dos rostos.
No segundo ato o rosto feminino é uma fusão de vários rostos
de mulheres diferentes brigando com homens e o rosto masculino
é uma fusão de vários rostos masculinos menosprezando mulheres.
O rosto feminino começa a gritar invadindo o corredor central da
platéia. Fade out.
O terceiro ato mostra os dois rostos iniciais de perfil se olhan-
do. Partem para um beijo prolongado e as duas faces “incendeiam-
-se” enquanto as duas telas se recolhem como se fossem papel
queimando.
Durante todos os três atos uma performer nua com o cor-
po coberto com gel faz uma coreografia como se fosse a libido
dos dois, saindo de uma boca para a outra e circulando pela plat

146 146 | Otávio Donasci


8 - AS VIDEOCRIATURAS SOBRE MÁQUINAS E
INFLÁVEIS.
Depois de usar o corpo de animais no lugar do corpo humano,
pretendi incorporar a máquina na linha de pesquisa que busca dife-
rentes corpos para a máscara eletrônica.
Tirar expressão corporal de uma escavadeira de cinco toneladas
e 7 metros de altura.
Esse foi o desafio que em 1990 me fez construir o primeiro
Videossauro em São Paulo e em 1991 o segundo, melhorado, em
Niterói, Rio de Janeiro, no Festival dos Festivais.
Via a escavadeira como um esqueleto com músculos e força.

Dei-lhe uma pele inflável toda coberta de grafites urbanas, cria-


das e pintada por Carlos Delfino, um par de olhos formado de te-
levisores de 17 polegadas preto & branco e uma boca formada de

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|147 147


um televisor de 20 polegadas também preto & branco fixadas na
caçamba,
Uma mini-câmera instalada no nariz desta criatura proporcio-
nava retorno interativo para mim e para a equipe.
Na testa acima dos seus olhos, duas cornetas alto-falantes.
O videossauro tinha no total 15 metros de comprimento da cabe-
ça à cauda e 7 metros de altura quando levantava a cabeça.
Internamente parecia um submarino com uma equipe de 7
pessoas operando-o de dentro do inflável estruturado com ferro de
construção.
No centro da máquina, numa cadeira, eu me instalava com uma
câmera enquadrando ao vivo minha boca. A minha esquerda a cabi-
ne de comando dos movimentos da máquina-criatura com um ope-
rador que seguia meus sinais; a direita, ao alcance de minha mão,
os videocassetes para meus olhos e boca pré-gravados.

Atrás os geradores elétricos sopradores e equipamento de áudio


acionado por outros operadores.
Sentado no “pescoço” do bicho, vestindo um smoking branco, o
amigo Ricardo Karman performava como se cavalgasse o estranho
animal pelas ruas e praias de Niterói - Rio de Janeiro durante dois
dias.

148 148 | Otávio Donasci


O Videossauro conversava com
as pessoas da rua de modo ingênuo,
simples, meio perdido com seu tama-
nho e seu jeito de se mover, como o
Videotauro no passado também se
sentia.
Em dado momento ele para e can-
ta musicas antigas brasileiras, de
Vicente Celestino, rumbas, boleros,
tangos, recorrentes em vários núme-
ros com videocriaturas. Fazem as videocriaturas parecerem ter vin-
do de um futuro do pretérito, do passado de um universo paralelo.
No segundo dia de performance, ao tentar passar a ponte Rio-
Niterói, o Videossauro foi barrado pela polícia rodoviária por causar
tumulto. Os motoristas assustados corriam risco de bater os carros.
O primeiro vídeo-inflável que criei foi o Videobalão para o X
Videobrasil no Sesc Pompéia em São Paulo em 1994.

Instalado no topo de um prédio de 10 andares, o inflável de ar


contínuo, de 15 metros de largura por 10 metros de altura, modela-
do como um rosto com projeção/vídeo de dois olhos e em dois inflá-
veis separados duas mãos projetadas por eslaides, observa, assus-
tado a rua embaixo onde menores abandonados cheiram cola.
Chamei de Videomoita em alusão à figura grafitada em muros

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|149 149


e paredes da cidade na década de 70 que olhava por cima de um
muro, que foi apelidada de o “moita”, aquele que espreita de trás da
moita, o curioso.

Seus olhos agitados buscavam entender o que acontecia, mas ele


parecia mais e mais desesperado com o que via. Considero-o como
uma videocriatura-instalação por não usar performer ao vivo, ape-
nas projetores de eslaides e vídeo, sem som.
Em 1995 outro vídeo-inflável, agora dentro da expedição mul-
timídia “A Grande Viagem de Merlin”, minha e do Karman, foi o
Videodemônio. Na cena, o protagonista encontra o vídeo/diabo, seu

150 150 | Otávio Donasci


pai, e mantém um diálogo tenso.

Considero-o uma videocriatura porque além do rosto eletrônico,


era operado por um performer.
Ele consistia de três televisores usados de 24 polegadas preto
& branco representando seus olhos e boca, instalados num suporte
metálico que permitia o movimento deles, forrado de inflável preto
de três metros de diâmetro, recortando os olhos e boca para não
parecerem televisores, com chifres de dois metros, todo manchado
de vermelho pelo grafiteiro Carlos Delfino, repetindo uma parceria
que fizemos quando da construção do Videossauro.
Foi construído à mão no próprio local onde estava instalado e
tinha cordões internos como músculos faciais operados por Juan,
para conseguir expressões faciais. Ficava desinflado e de repente
aparecia em cena.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|151 151


8.1 - VIDEOCRIATURAS PENETRÁVEIS
Unindo a tecnologia de rostos infláveis instalados em máquinas
com os túneis performáticos desenvolvidos a partir das expedições
experimentais multimídia, apareceram os híbridos, mistura de vi-
deocriatura com túneis penetráveis.
Santo André no ABCD paulista várias vezes tinha me convidado
para festivais de vídeo e mostras e por ocasião do 24o.Salão de Arte
Contemporânea que coincidiu com as comemorações de aniversário
da cidade em 1998, recebi um convite para fazer uma apresentação
de meus trabalhos e eu ofereci um projeto que não tinha conseguido
produzir para o Arte Cidade 2, a Hydra.
Concebida inicialmente para ser uma instalação que saia de-
baixo do Viaduto do Chá, no Anhagabaú no centro de São Paulo,
acabou fundindo-se com outra instalação performática produzida
anteriormente, a “Libido Tour”; Desta conjunção nasceu a primeira
videocriatura penetrável, instalada no meio de um bosque no Paço
Municipal de Santo André.
E o suporte foi um guindaste Munk com hidráulicos que levan-
tavam a cabeça a 28 metros de altura.
Tinha um rosto de 4 metros de altura instalado numa cabeça de
10 metros vermelha e amarela, e um rabo de 100 metros de com-
primento por 3 metros de diâmetro, penetrável, onde as pessoas po-
diam entrar e relacionar-se fisicamente com 5 homens que povoam
as fantasias femininas e 5 mulheres diferentes que assustam os
homens.

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Dentre os homens, um vestido de Dom Ruan de Marco que dizia
coisas poéticas ao ouvido das passantes, um negro nu com o corpo
coberto de óleo aromático de cânfora que tocava nas mulheres e dei-
xava o perfume, um violinista nu, e outro dentro de uma camisinha
gigante que beijava as mulheres
Dentre as mulheres, uma gigante e uma anã lindas, além de
uma senhora de 70 anos nua que se penteava olhando nos olhos dos
homens. Havia também uma nua agressiva e outra na camisinha
gigante beijando os homens.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|153 153


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Interior com areia e rosto de quatro metros da Hydra.
O rosto tridimensional projetado na cabeça era uma fusão de

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|155 155


dois rostos: uma negra e uma branca de olhos azuis que lá do alto
dos 28 metros cantavam e gritavam chamando seus amados. Uma
câmera operada por mim percorria a fila de entrada gravando gri-
tos de mulheres para misturá-los com os rostos da cabeça.
O pescoço e a cabeça da Hydra eram móveis, subindo e descendo
do bosque e movimentando-se de um lado para o outro.
Num dado momento ela desce e me dá um beijo que mais parece
uma mordida. A boca da Hydra tem o meu tamanho.
Mais de 3000 pessoas passaram por dentro dela.
O sucesso foi tão grande que no ano seguinte me convidaram
para fazer outro e daí saiu o VideOrganismo, O Videobalão foi usa-
do como cabeça e os túneis como corpo dessa video-instalação-inflá-
vel-penetrável-performática-interativa, o VideOrganismo em 1999.
O objetivo no caso não era movimentar o rosto da criatura, mas sim
movimentar as paredes do túnel “corpo” dando a sensação de movi-
mentos de “engolir” para quem estava dentro do tubo.

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O rosto/vídeo/balão ficava no centro de 100 metros de túneis e 6
salas infláveis que pulsavam como um organismo graças a 50 perfor

mers que atuavam sobre as paredes reforçados por uma trilha


feita ao vivo por Wilson Sukorsky, através de vários aparelhos cd-
-players e instrumentos inventados e acionada pelo movimento das
pessoas dentro dele, dando a impressão ao público que passava de
estar dentro de um ser vivo.
Para esse trabalho foram arregimentados através de workshops,
vários grupos de teatro amador de Sto. André, de onde sairam a
maior parte dos performers

Todas as performances eram interativas e questionavam o uni-


verso masculino: homens de terno se esbofeteando polidamente,
mulheres com o corpo soltando labaredas tentavam abraçar os mais

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|157 157


tímidos, performers ofereciam beijos na boca através de paredes de
plástico que evitavam o contato direto, outros ofereciam colo e cari-
nho delicado enquanto paredes cheias de mãos massageavam quem
passasse por ali.
Um sábio oriental numa sala circular ofuscantemente branca
falava sobre a sabedoria dos homens enquanto dava uma volta pela
instalação.
Cada dia o Videorganismo se portava e emitia sons diferentes
conforme seu estado de espírito: no primeiro dia, assustado, no se-
gundo, raivoso e no terceiro, agonia, doença. Ao final o público era
convidado a destruir o Videorganismo de dentro pra fora, implodin-
do-o, como se fossem vermes.
Mais de 3.000 pessoas também passaram pela instalação graças
a um conceito novo performático que foi experimentado tanto nesta
como na Hydra: o “continuum play”.
Ao contrário do teatro onde poucos sentam e assistem duas horas
de espetáculo, no continuum play milhares de pessoas passando em
fila assistem 3 a 4 minutos de uma temática seqüencial contínua.

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9 - A MÁSCARA DE CRISTAL LÍQUIDO
Evolução do tubo televisivo, a máscara eletrônica de cristal lí-
quido que chamei de “Cristalmask” estava já concebida em primei-
ros projetos aguardando ser acessível aos meus recursos no Brasil.
Somente em 1997 no Centro Cultural Itaú apresentei uma ver-
são simplificada onde montava no rosto 2 monitores de 3 polegadas
de LCD para os olhos e 1 de 5 polegadas para a boca ligados a duas
câmeras Hi8 usadas como players e a uma corneta portátil de am-
plificação de som que também tinha uma buzina.
O figurino era o macacão preto característico das videocriaturas.

Foram 3 performances diferentes: uma em que eu provocava as


pessoas e convencia as mulheres a me dar um “beijo seguro” na boca
de cristal líquido.
A segunda eu imitava um professor estrangeiro e fazia uma pa-
lestra arqueológica sobre o Videoesqueleto, um fóssil pós-moderno,
achado em seu quintal

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|159 159


Na terceira performance a Cristalcriatura fazia cócegas e outras
bobagens como beliscar a bochecha das pessoas enquanto emitia
sons idiotas tipo “gutchi- gutchi”.
As três performances pretendiam desmistificar o discurso her-
mético e elitizado da arte eletrônica, trazendo-a para um patamar
popularesco e vulgar, crítica do próprio público do evento.

Projeto de 1985 para máscara de Cristal Líquido flexível

160 160 | Otávio Donasci


A segunda geração da máscara de LCD incorporaram um casal,
Alfa e Berta. A novidade era o posicionamento dos olhos de cristal
e sua maquiagem que definiam o sexo, e a micro-câmera no nariz
de cada uma que transmitia para uma cabine onde performers fa-
ziam as bocas ao vivo, num estúdio onde havia monitores para que
vissem e ouvissem as pessoas com as quais interagiam através de
headsets com microfones,fones de ouvido e micro-câmeras podendo
se deslocar sem perder o enquadramento

Eram alienígenas apaixonados por máquinas que buscavam tra-


ços eletrônicos e mecânicos nas pessoas da platéia, mexendo em
suas roupas e cabelos. O público participava subindo no palco, abra-
çando e beijando as Cristalcriaturas.
Estas já não usavam figurinos pretos mas prateados ou
vermelhos
Foi a primeira experiência de uma face ‘interface’ onde a distân-
cia entre a boca de verdade do performer e a boca virtual é mínima
aumentando a sensação de “vestir a imagem”.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|161 161


Para quem se relaciona com a face de cristal líquido, sua própria
característica física gera uma “reação visível” na imagem quanto
tocada aumentando a sensação de “reação” do rosto independente
do performer.

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Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|163 163
10 - CAPACETES INTERATIVOS
Por toda a década de 80 a captação do rosto das videocriaturas
era feita com câmeras fixas grandes montadas em tripés e ligadas
a aparelhos VHS que, ao vivo ou pré-gravado, mandavam os sinais
de radiofreqüência para o canal três de sintonia dos televisores que
compunham uma videocriatura, freqüentemente por cabos e depois
por transmissão.
Em 1990, a convite de Sergio Groismann assumo um quadro
semanal dentro de seu programa “Matéria Prima” na TV Cultura
de São Paulo no qual apresentei uma performance diferente por dia
durante um ano.

Foi nesse programa de criei o Videocapacete para uma perfor-


mance ambiciosa.
Usando o link de reportagem da emissora transmitiria o rosto
do Serginho para o corpo de uma videocriatura que estaria usando
e de microfone em punho me propunha a ser o corpo dele, entrevis-
tando ao vivo as pessoas na rua.
Ele só teria de vestir o videocapacete e, sem sair do estúdio es-
taria entrevistando as pessoas na rua a quilômetros dalí acompa-
nhando através de monitores que mostravam a videocriatura com o
rosto dele e as pessoas em volta que ele entrevistaria.

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Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|165 165
O videocapacete era pesado na época. A mini câmera tinha o ta-
manho de um maço de cigarros e usava uma lente grande angular
feita de olho mágico para se vigiar porta.
Um microfone embutido na estrutura e duas pequenas luzes
compunham o sistema que era ajustável na cabeça para enquadra-
mento do rosto
Permitia o deslocamento do corpo e da cabeça livremente sem
perder o enquadramento necessário para a videocriatura, permitin-
do ainda,devido à distorção provocada pela grande angular,efeitos
caricatas ao deslocar-se o rosto.
Com o barateamento das micro-câmeras já com microfones em-
butidos e iluminação infravermelho, foi possível a criação dos head-
sets leves e eficientes, abrindo uma nova fronteira para as video-
criaturas: a apresentação ao vivo com os atores/rosto livres para se
deslocar em cena junto com as criaturas.

11. O CAPACETE VIRTUAL:


UMA VIDEOCRIATURA / VIAGEM
O passo seguinte se deu por influencia dos projetos de realidade
virtual que havia presenciado em Montreal em 1995 por ocasião do
ISEA.
Queria levar as pessoas para uma viagem virtual de imersão do
modo mais simples e barato possível, dando menos ênfase ás técni-
cas computacionais para realização disso e mais para o binômio do

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Videoteatro, linguagem vídeo/presença física com toque.
Um sistema simples, pré-gravado onde fizesse parte do roteiro a
participação física e a interação com o performer através do toque.
As múltiplas Expedições Experimentais que criei na década de
90 e a experiência de dirigir a criação na Incentive House na década
de 80 me prepararam para criar roteiros multimídia para poucas
pessoas participarem, porém mais intensamente.
O objetivo era proporcionar a imersão e a intimidade ou
cumplicidade.
Mistura multimídia de linguagem vídeo tecnológica, o pé na es-
trada da viagem, e o toque, elementos que venho trabalhando em
meus espetáculos nos últimos anos.
Por isso essa criatura vis-à-vis seria para uma só pessoa de cada
vez.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|167 167


Tecnologia de cristal líquido e players DV já estavam ao meu
alcance, - já havia experimentado nas máscaras de cristal líquido.
O design do capacete, apesar de ser estritamente funcional como
escurecer e abrigar a tela e os fones, isolar o exterior e firmar-se à
cabeça do performer,atendeu as funções de criar um estranhamen-
to, mostrar o rosto/video num recorte que é completado pelo corpo
do performer, na tradição das videocriaturas.
É a mais intimista das criaturas. E a que abre mais possibilida-
des já que agora não sugere mais os adereços e cenários em janelas/
rosto abertas para o cone interativo, mas arrasta pelas mãos – li-
teralmente - a pessoa para dentro dessas janelas, que a princípio
são rostos como de qualquer videocriatura, porém que permitem
um mergulho através daquele rosto para uma viagem, caminhando
junto, e compartilhando dos percalços desse roteiro/estrada virtual.
Saem de cena os roteiros teatrais nos quais os rostos eram o cen-
tro do espetáculo que acontecia no espaço cênico do público e entra
o roteiro multimídia onde o performer é – fisicamente - o condutor
de um roteiro que acontece no espaço virtual onde os dois convivem
e interagem fisicamente.

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A narrativa cinematográfica se sobrepõe à linguagem cênica,
acrescida ainda com a possibilidade de improviso do performer, en-
riquecendo o roteiro do espetáculo feito para um só.
Apesar disso, pode-se dizer que, a visão exterior da dupla inte-
ragindo sem ver as pessoas em volta oferece uma bela performance,
gerando curiosidade e vontade de participar.
A construção da linguagem dessa peça videográfica, o vídeo que

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|169 169


passa no capacete virtual, passa por conceitos de câmera subjetiva
onde os movimentos e relações com os atores seguem um roteiro
sincronizado depois com os movimentos do performer e seus toques.
Devido à simplicidade do sistema, o participante não tem livre
arbítrio ainda, ele é conduzido e apesar de se deslocar e sentir na
pele o roteiro, não pode interferir nele. Ele se entrega nas mãos do
performer e frui do roteiro.
O projeto já existia desde 1999 mas a ocasião só apareceu a con-
vite da Nokia para uma feira de alta tecnologia em São Paulo em
2001.
A falta de tempo para produzir o vídeo, fez com que fizéssemos
apenas 1 minuto de material especialmente gravado para o capa-
cete e os outros 3 minutos foram editados e material videográfico
fornecido pela Nokia editados de modo a serem completados pelos
movimentos do performer. Foi um sucesso. Depois o capacete foi du-
plicado e aperfeiçoado no design mantendo a estrutura técnica e foi
apresentado em outra feira para a Ambev, desta vez com produção
videográfica totalmente voltada para a linguagem do capacete, com
animações gráficas e degustação de bebida.

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12 - VIDEOCRIATURAS INVADEM O PLANETA!
AS TEMPORADAS FORA DO BRASIL
A primeira foi em Nova York no Soho em 1987. Fui sem convite,
levando a videocriatura #1 nova debaixo do braço e por telefone
acertei 3 dias de performance no PS/122 um local off-off-brodway.
(US$ 6,00 a entrada)
Tinha editado uma fita com 20 min. dos melhores laboratórios
(reprodução 1). Na época visitei o La Mamma que queriam agendar
trabalhos para o mês seguinte. Eu não podia. Ficaria somente uma
semana em Nova York.
A segunda foi na Europa em 1988, também sem convite nenhum.
Primeiro na frente do Beauborg em Paris, a praça dos performers,
onde criei uma performance em francês,

“La Banana Brasiliènne” onde usava o cone de interferência da


videocriatura para brincar com uma banana invisível. Feita em
francês.

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Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|173 173
Mais tarde me encontrei com Mr. Michel Jafreneau que desen-
volvia uma linha de videoperformances com atores as quais eu me
identificava e que também usava o nome “videotheatre” para desig-
nar sua linguagem. Diria que éramos complementares em nossas
propostas já que ele nunca usou um rosto vídeo no corpo do ator.
Dalí para Berlim, O UFA Fabrik, onde apresentei o mesmo pro-
grama de NY, agora, porém dentro de um cabaré, interagindo com
as pessoas.
O resultado foi tão bom que me convidaram para outras boates
em Berlin e o WUK, outro centro cultural parecido com o UFA em
Viena, Austria.
Conheci o diretor do UBU Theatre em Berlin, que me contratou
para voltar o ano seguinte para uma temporada de um mês no seu
teatro em Krauzberg.
Em 1989 fui convidado pelo Festival Clown du Prato em Lille,
França, onde apresentei pelas ruas da cidade, a “Videocreature: Le
clown eletronique” andando de bicicleta e fazendo performances em
cada esquina.
Depois Berlin: “Videokreaturen” ficou em cartaz por um mês
no UBU Theater em Krauzberg apresentando 3 videocriaturas di-
ferentes, a #1 modelo novo, a #2 também modelo novo construído
para a viagem e o Videofantoche.
O espetáculo era bem intimista, apresentado num teatro para
60 pessoas com areia no chão, apesar de ser no 3o. andar de um pré-
dio, e mostramos 50 minutos de performances mesclando a maioria
dos laboratórios, mais alguns criados em inglês, com o Osmar di
Pieri falando um inglês propositalmente caipira.
Saímos em todos os jornais e revistas especializadas com uma
excelente crítica .

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Matéria em jornal e revista quando da apresentação de “Videocreatur”
em Berlin, Alemanha.

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Em 1995 foi no Canadá, em Montreal durante o ISEA onde fiz
7 dias de performances já consagradas no Brasil, além de ser o
primeiro brasileiro a fazer a abertura e encerramento do Festival
usando a boca dos organizadores falando em francês e inglês numa
videocriatura usando um guarda chuva preto..

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Levei a #1, a # 2, que com um par de monitores/olhos extras
virava a videocriatura “bolero singer” e a boca cantora, tubo tele-
visivo que eu colocava na boca para cantar e apresentar meu show
em francês/inglês usando um locutor local ao vivo com uma câmera
enquadrada na boca dele. O show era interativo e eu tirava as pes-
soas para dançar.
Também andei de bicicleta com videocriatura pelas ruas de
Montreal fazendo performance e interagindo com o publico. Houve
cobertura pela MTV Television de lá.
Em 2000,a convite da Fundação Calouste Gulbenkian fui à
Lisboa,Portugal participar das comemorações dos 500 anos do
Descobrimento do Brasil,com uma equipe de 3 performers (Alcione
Alves,Juliana Pinheiro,Shane Morgan) para apresentar a mais
completa retrospectiva de performances de videocriaturas, fora do
Brasil, abrangendo a maior parte dos estilos de fazer videoteatro.
O programa consistia de um espetáculo de palco onde reuni as
performances clássicas iniciais com videocriaturas preto e bran-
co de tubo, (profeta,palhaço,ventríloquo) com performances novas
(alone,videoesqueleto) num total de 50 minutos.
O espetáculo ainda contava com projeções de esquetes com
as videopersonas criados para o programa Matéria Prima da TV
Cultura/SP.
Na semana seguinte apresentamos as Videomáscaras que en-
cerravam com a instalação “Beijo na Boca” que tinha estreado em
Miami onde, ao sair do teatro, a platéia passava no meio das más-
caras se beijando,um beijo molhado já que eu borrifara água com
perfume antes deles passarem.
Ainda teve o Cavaleiro do Apocalipse, rebatizado de Cybercalipse,
nos jardins da Fundação e o casal alienígena usando máscaras
de cristal liquido ao vivo interagindo com o público no saguão do
Centro Cultural na outra semana.
Um workshop com um vídeo-documentário de 2 horas com deba-
tes no final completou a visão retrospectiva do trabalho.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|177 177


13– VIDEOCRIATURAS NA MIDIA TELEVISIVA
Apesar da vocação básica do videoteatro e das videocriaturas
ser a performance e o espaço cênico ao vivo, não poderia negar à lin-
guagem televisiva a possibilidade de experimentação com o video-
teatro, apesar de que fusões híbridas gerando personagens fazerem
parte dessa linguagem assim como de todas as tecno-imagens desde
a fotografia passando pelo cinema e vídeo.
A experimentação aí no caso foi gerar interfência em progra-
mas típicos de TV, como a entrevista, o programa de auditório, o
comercial publicitário, o telejornal criando um ruído,e ao oferecer
a linguagem vídeo hibridizada no videoteatro de volta ao vídeo,ofe-
recer uma opção nova para as estruturas já gastas dos programas
televisivos.
Assim fui convidado para participar de vários programas popu-
lares e eruditos, debates, entrevistas, comerciais e documentários
e sempre que podia eu exercitava a linguagem videoteatro nessas
ocasiões.
No clipe da Gang 90, eu era encarado como personagem multi-
mídia pós-moderno, num cenário urbano que envolvia as artes de
rua daquela época como o grafite e a performance.
A mesma coisa com as “Oficinas Culturais/Artes Plásticas” da
TV Cultura onde a videocriatura munida de um machado destrói
obras de arte em plena Avenida Paulista, em frente ao Masp para
ilustrar o que é arte.
Gosto da idéia de que a videocriatura é um personagem paulista

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urbano, híbrido como a cidade.
Mas as experiências populares me atraíram mais, o desafio era
comunicar em linguagem de TV sem explicações teóricas complexas.
Animadores famosos de TV como Fausto Silva e Gugu Liberato
respectivamente da lobo e SBT convidaram-me para participar de
seus programas e até substituí-los em cena.
Foi o caso do Domingo do Faustão de 1º de Janeiro de 1991 em
que eu abri o programa com o rosto dele ao vivo.
No caso do Gugu ele me convidou para ser júri de um quadro de
seu programa que julgava videocassetadas em 1994.
Eu levei o videofantoche e, usando meu rosto ao vivo fui o menor
jurado da TV brasileira.
Em seguida em 1995 ele me convida para trazer os videoma-
nequins e com o rosto de cantores famosos ao vivo oferece para a
platéia abraçá-los e fazer declarações de amor.
Eles cantaram com o corpo dos videomanequins e as câmeras
enquadravam como se eles estivessem se apresentando no palco.
O resultado dessas pesquisas é que a videocriatura com sua vo-
cação circense de bicho exótico encaixa bem com as propostas de
programas de auditório atuais, onde a variedade e o grotesco dão
bom ibope.

13.1 - O DESAFIO ‘MATÉRIA PRIMA’


Aceitei o desafio de fazer um quadro por semana no Programa
Materia Prima da TV-2 Cultura a convite de Sergio Groismann
por duas razões: o programa era ao vivo com platéia e o espaço era
arena.
Duas características que aproximavam o programa de meus
objetivos performáticos. Daí foi desenvolver performances como se
apresentasse para uma platéia de adolescentes que interagiam com
as videocriaturas. O modo de capturar e editar a performance ao
vivo ficaram por conta do diretor de TV, assim ao assistir depois a
gravação do programa eu podia estudar um pouco mais a possibili-
dade de expressão de uma videocriatura no meio vídeo e desenvol-
ver performances para isso.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|179 179


Outro desafio que impus a mim mesmo foi criar uma criatura
nova por semana, gerando um trabalho imenso de produção nun-
ca compensado pelo cachê do programa, mas muito gratificante em
matéria de divulgação do trabalho.

180 180 | Otávio Donasci


Nesse programa nasceram protótipos como o vidiolhos, o vidio-
lão, a boca cantora e o sapo (depois rebatizado de Bolero Singer)
além, é lógico, do videocapacete e a primeira videocriatura por link
de microondas.

E outros puderam ser experimentado por uma platéia arena,


praticamente impossível para um ser com rosto sem perfil como é a
videocriatura. Não para o Abelardo.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|181 181


Criado para a exposição ”Osvídeo” de Tadeu Jungle, Abelardo,
assim chamado em homenagem ao Rei da Vela, tinha o rosto de
Cacá Rosset interpretando escrachadamente textos de Oswald.
Mas a característica principal desse protótipo era ter dois rostos
opostos e 2 figurinos diferentes, um para frente e outro para as cos-
tas, me obrigando a criar uma interpretação “espelhada” para dar
conta das duas faces.
Abelardo era um personagem que não tinha costas, ideal para
uma platéia arena como a do Matéria Prima.

Lembro-me do comentário que Cacá Rosset fez na época.

182 182 | Otávio Donasci


Após a gravação do rosto com o texto cheio de baixarias que ele
inventou, Cacá me diz que não teria coragem de falar aquilo em
público. Eu disse:
- Nem eu...
- Mas não é V. que vai fazer a performance?
- Sim, mas quem vai falar tudo isso é você...
- Sim... mas eu não vou estar lá ...
- E eu vou mascarado...Retruquei
Após uma reflexão, ele dá um sorriso maroto e diz:
- Muito interessante seu trabalho...
Ele tinha descoberto a irresponsabilidade das partes de um ser
híbrido.

Voltando ao programa, a partir do Videocapacete uma série de


quadros interativos com a platéia foi criada, como “Namoro com a

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|183 183


TV” onde uma menina ou rapaz vestia o videocapacete e escolhia
alguém para namorar, fazer declarações, dançar,beijar.
O “Teatro na TV” convidava alguém a vestir o videocapacete e
fazer o papel de Hamlet, símbolo do teatro.
Depois de fazer o solilóquio, e lutar espada, após o texto: ”Morre,
ó ímpio!” a videocriatura avança e enfia a espada na própria pessoa
que estava gerando o rosto que disse a frase, criando uma espécie
de eco ‘non-sense’.

Criou-se também um Karaovídeo (expressão que cunhei antes


do atual significado, diverso do meu) onde uma pessoa vestia o ca-
pacete e aparecia numa videocriatura com o vidiolão que, com uma
música pré-gravada, dava a deixa para ele cantar.

184 184 | Otávio Donasci


O vidiolão não é considerado uma videocriatura, e sim um ins-
trumento/vídeo/performático, formado de um monitor com braço de
violão e um espaço interno no monitor para esconder a mão, simu-
lando estar tocando o violão que está gravado no vídeo.
Foi criado para quem não toca violão e em combinação com a
boca cantora, um tubo televisivo de 5 polegadas encaixado na boca
do performer que foi criado para quem não canta nem fala direito,
deu o quadro “Elvis” onde eu “cantava e tocava” “Love me tender”
de Elvis Plesley, num figurino alusivo e uma interpretação que in-
cluía paquerar moças na platéia.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|185 185


De videocriaturas mixadas uma interessante fazia o texto da
performance “Profeta” com a #2 de rosto de 17 polegadas com o ros-
to repetido num monitor de 5 polegadas instalado na mão (não o
videofantoche).
Enquanto ela falava olhado para a platéia em geral, o rosto na
mão em movimentos que lembravam uma cobra encarava um a um
dos que estavam sentados por perto criando um estranhamento e
uma possibilidade nova de se dizer um texto em cena.
Não só de videocriaturas vivia o meu quadro no programa.
Logo descobri ser desnecessária para os telespectadores, a pre-
sença do protótipo de videocriatura para a fusão híbrida necessária
à construção do personagem.
A Videocriatura só tinha fruição completa para quem estava ali
presente no programa.
É uma linguagem cênica.
Para quem assistia passivamente tudo pela TV, não existia a
presença física do ator, condição sinequanon para a realização da
linguagem videoteatro. Tudo se chapava e se igualava numa lin-
guagem só: o vídeo.
Seria necessário criar videocriaturas especiais para isso.

186 186 | Otávio Donasci


Assim nasceram as Videopersonas, videocriaturas virtuais que
são mixadas em suítes de corte e edição de TV.
Elas foram construídas dentro dos conceitos de videoteatro de
baixa tecnologia só que no caso, truques simples de TV como wipes
(cortinas) fades (desfoques) fusões e sobreposições encontradas em
qualquer emissora de TV, até as mais pobres.
No “telejornal inverso” um locutor com apenas a cabeça inverti-
da no tronco normal, de paletó e gravata, fala um texto de trás pra
frente enquanto atrás uma janela mostra filmes com ações inverti-
das que criam situações engraçadas.
Parodiando velhos truques de ilusionismo gráfico o locutor
tinha uma barba que era sua cabeleira que ás vezes ele puxava
desesperado.
No fim, letreiros e créditos passavam em sentido contrários es-
critos também de trás pra frente.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|187 187


Na “entrevista” um videomaker com rosto de baixa definição é
entrevistado por um personagem cafona e tendencioso. Interpretei
os 2 papéis.
Para o videomaker parodiei o processo de composição da video-
criatura: rosto vídeo VHS e corpo “real”.
Para isso gravei simultaneamente o rosto com uma câmera de
baixa definição VHS e o corpo com equipamento da emissora de alta
definição (broadcasting) fundindo os dois com máscaras de corte.
A partir disso criei interferências de sintonia de canal e ruídos
de RF para o rosto dele que justamente reclamava na entrevista de
falta de espaço para videomakers pobres com equipamentos anti-
gos, na televisão atual.
Ele enfiava o dedo na orelha para corrigir o vertical e manipula-
va uma antena tentando sintonizar melhor o rosto até que, exaspe-
rado, pede um ‘bombril’ para colocar nela.
O terceiro era um cantor em dueto que tinha no mesmo rosto
duas bocas, uma masculina e outra feminina além de adereços am-
bíguos como terno, gravata e colar de contas e brincos.
Dubla “A tua voz” cantada por Agnaldo Timóteo e Ângela Maria,
um clássico cafona.
Ofereci vários esquetes nessa linha de videopersonas para o pro-
grama, mas em seguida Sergio sai da TV Cultura para ir para o
SBT.
Em 2001, prestes a estrear na Rede Globo o mesmo programa,

188 188 | Otávio Donasci


convidou-me para dar continuidade ao projeto de videocriaturas
com capacetes por link só que em 3 lugares diferentes do Brasil.
Não deu certo por causa do custo alto dos links de microondas.

13.2 - ENTREVISTAS PERFORMÁTICAS


As entrevistas para a televisão sobre o meu trabalho, também
eram performáticas e sempre fizeram sucesso porque equivaliam a
uma performance, ao mesmo tempo que divulgava meus conceitos
sobre videoteatro.
Eu colocava o rosto do entrevistador ao vivo na videocriatu-
ra me entrevistando ou os dois rostos, meu e do repórter cada um
numa videocriatura, num sistema que incluía duas câmeras extras
operadas pela minha equipe além das câmeras do programa.
A primeira numa grande rede foi em 1985 no programa “Gabi”
de Marília Gabriela na TV Bandeirantes em São Paulo.
Depois de apresentar a performance “A Banda” com 3 criaturas
sincronizadas, eu dei entrevista ao vivo com meu rosto reproduzido
nas três criaturas e num videofantoche que eu manipulava no colo.
Elas “reinterpretavam” de modo clown minhas respostas a Gabi.
Outra interessante foi para o “Jornal de Vanguarda” também
da Bandeirantes onde coloquei através de recursos simples de mesa
de corte de vídeo, o rosto do entrevistador, Décio Pignatari no meu
corpo enquanto meu rosto numa videocriatura respondia as per-
guntas que ele fazia ao vivo. No final eu mostrava o truque para os
telespectadores.
O vídeo/rosto ao vivo exigia um grau de improviso muito grande
tanto de mim como dos meus interlocutores além de uma equipe
extra de cameras.
As performances explorando a câmera ao vivo só ganharam ou-
tro impulso mais tarde quando criei o Videocapacete em 1990.

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|189 189


CRONOLOGIA DAS ENTREVISTAS E PARTICIPAÇÕES
EM PROGRAMAS DE TV DAS VIDEOCRIATURAS

1984 – Programa Radar – TV Gazeta-SP – entrevista


performática
1985 – Programa Marilia Gabriela – TV Bandeirantes –SP – en-
trevista performática
1986 – Ondas Livres – TV Gazeta-SP – entrevista parformática
– visita ao laboratório das videocriaturas
1988 – Clip Gang 90 – 3 min. – primeiro clip
- Paulista 900 – Especial Otávio Donasci – uma hora de progra-
ma com entrevista performática.TV Gazeta-SP
- Panorama de Natal – várias performances e um happening
final com vários grupos de vanguarda – TV2 Cultura –SP
1989 – Programa Jô Soares – performance Tango e entrevista
normal
– Programa Perfil/Otávio Mesquita – SBT-SP
Entrevista performática onde Mesquita vira uma videocriatura.
Performance riso no telhado de casa.

1990 – Programa Matéria Prima- apresentava toda 5a feira du-


rante um ano um quadro de 3 min. com videocriaturas diferentes.
primeira videocriatura por link de microondas.

- Programa Lanterna Mágica – TV2-Cultura-SP – entrevista


performática com videopersonas.

1991 – Abertura do Programa do Faustão – Rede Glogo de TV –


avideocriatura entrava com a roupa do Fausto Silva e ele o vivo no
bastidor transmitia o rosto para ela em cena.

1992 – História da Video arte no Brasil – TV Educativa RJ – vi-


deocriaturas,videomáscara e entrevista performática.

190 190 | Otávio Donasci


1993 – Entrevista performática para Cacá Rosset – TV Record-SP –
Ele e eu em duas videocriaturas ao vivo.

1994 – Jornal de Vanguarda – TV Bandeirantes


entrevista performática p/ Decio Pignatalli com videopersonas
e videocriatura ao vivo.
1995 – Programa do Gugu –SBT- SP videofantoche ao vivo como juri
de quadro sobre videocassetadas

1996 – Programa do Gugu – SBT-SP – videomanequins com rosto de


astros ao vivo para a platéia abraçar.

1999 – Oficinas Culturais- Artes Plasticas – TV2-Cultura-SP – per-


formance na Av. Paulista quebrando obras de arte.

URL VideoCriaturas 30 anos e VideoTango

https://youtu,be/NYHF6FrGG84 - VideoCriaturas 30 Anos

https://youtu,be/05CqHVng2XI - VideoTango Bodearte - 2012

Ver no Youtube: “Otavio Donasci”.

VIDEOTEATRO

1981 – NOVAMENTE (CAMPOS DE JORDÃO-


Festival de Inverno)VCT/1
nasce a primeira VIDEOCRIATURA
PROFETA (GALERIA São PAULO)VCT/1
Primeiras experiências de linguagem
1992- DOMADOR &CACETON VCT/1 E VCT/2
primeiro diálogo - I Videorio

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|191 191


BOCA MALDITA – (CURITIBA) VCT/1
Primeira performance de rua
1983- CAVALEIRO DO APOCALIPSE (1 VIDEOBRASIL)
primeira performance à cavalo
INTERCITIES (MAC)
Primeira telepresença internacional
- BANDA – (VIDEOBRASIL II) VCT/1/2/3
Primeiro coro e coreografia com 3 videocriaturas
BICICLETA (VIDEOBRASIL II)
Primeiro sistema de transmissão
sem fio caseiro
1984- VIDEOTHEATER (FESTIVAL DE MONTBELLIARD/
FRANÇA)
Primeiro documentário onde se fala da linguagem, em Festival
Internacional
RADIO CLUBE (TITÃS) SHOW
Primeiro com rosto ao vivo (Arnaldo Antunes)
VCT HOTEL ELDORADO (ATIBAIA)
Primeiro show feito com o rosto da platéia.
VENTRILOCO (VIDEOBRASIL II)
Primeiro fantoche e a linguagem para bonecos
1985-KENDÔ ( MAC IBIRAPUERA)
Primeiro balett coreográfico
PALHAÇO (COISAS FINAS)
Cone Interativo e primeiro com orquestra ao vivo
- ENTREVISTA C/ GABI (TV BANDEIRANTES)
Primeira entrevista performática
VIDEOTAURO (VIDEOBRASIL III)
Primeiro animal videocriatura
ELEVADOR (VIDEOBRASIL III) NO ELEVADOR
Primeira performance continuum play
- O HOMEM E O CAVALO (TEATRO SERGIO CARDOSO)
Primeira peça ao vivo c/ transmissão sem fio

192 192 | Otávio Donasci


A FILA,BEBADOS E LOVESTORY (IV VIDEOBRASIL)
Primeira misturando videocriaturas e projeção
1986- VIDEOBUSTO (PINACOTECA)
Primeira instalação/criatura
1987- VIDEOCREATURE INVADES NY! (PS122/NY/USA)
Primeira performance fora do Brasil
1988- LA BANANA BRASILIÈNNE (PARIS/FRANÇA)
Primeiras performances na Europa
VIDEOKREATUR (BERLIN/ALEMANHA)
Primeira temporada internacional
- VIDEOVIVO ( MAC E XX BIENAL)-
Primeira videocriatura tridimensional com toque
C&A (COMERCIAL DE TV 30’)
Primeiro comercial

1989- DESEJO (MIS)


Primeira videocriatura nua (Beatriz Bianco)
- LE CLONE ELETRONIC (LILLE/FRANÇA)
FESTIVAL DE CLOWS DU PRATO.
Primeiro Festival Internacional como clown
1990- VIDEOWALLCRIATURA (ALVICON /SP) E OUTRAS
PERFORMANCES COM VCT-1
Transformar uma feira de vídeo numa cidade performática
PROGRAMA MATÉRIA PRIMA
Primeiro programa em televisão

CAPACETE VÍDEO /VCT-1


Primeira videocriatura por link de microondas
VIDEOLÃO
Primeiro acessório/videocriatura
VICENTE CELESTINO e VIDEOBOCA

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|193 193


Primeira desmontagem do rosto
VIDEOPERSONAS
Primeiras videocriaturas virtuais
ABELARDO (OS VÍDEO - GAL. São PAULO)
2 FACES OPOSTAS IGUAIS
Interpretação duplicada /frente/verso
VIDEOSSAURO (FESTIVAL DOS FESTIVAIS)
Primeira videocriatura sobre máquina
1992- VIDEOMÁSCARAS (9 VIDEOBRASIL)
Primeira videocriatura tridimensional móvel
- VIDEOTAXIGIRLS ( 9 VIDEOBRASIL)
Primeira instalação/videocriatura interativa com toque
1994 –ORÁCULO (ARTE CIDADE 2)
Primeiro cd-rom com viruscreature (vct computador)
VIDEOBALÃO ( 10 VIDEOBRASIL)
Primeira videocriatura inflável
1995 – VIDEOCRIATURA ISEA (MONTREAL/CANADÁ)
Primeiro Festival Internacional de Arte Eletrônica
1997 - OUTDOOR CRIATURA (ARTE LIXO NA FARIA LIMA
Primeiro outdoor videocriatura
- CRISTALMASKS (ITAU)
Primeira videocriatura de cristal líquido
VIDEOCAVEIRA (ITAU)
Face por dentro da cabeça (endorosto)
1998- HIDRA (STO ANDRÉ)
Primeira videocriatura penetrável
1999- VIDEORGANISMO (STO ANDRÉ)
Primeira videocriatura que é destruída pelo público
2001 - CAPACETE VIRTUAL (FENASOFT-NOKIA )
Primeira videocriatura com conceito “viagem sensorial”

194 194 | Otávio Donasci


BIBLIOGRAFIA SOBRE OTÁVIO DONASCI E
VIDEOCRIATURAS
“O Que. É Vídeo”, Candido Mendes, 1984
“A Arte do Vídeo”, Arlindo Machado, 1988
“A Performance como Linguagem”, Renato Cohen, 1989
“Máquina e Imaginário”, Arlindo Machado, 1993
“Work in Progress na Cena Contemporânea”
Renato Cohen (1998)

Além de vários artigos em revistas internacionais especializa-


das em arte eletrônica e performance.
(Revista Leonardo 1983)
Catálogos de exposições
No Brasil e no exterior:
Videobrasil (Brasil 1983)
Isea (Canadá 1995)
Acarte (Lisboa 2000)

Análise de videoperformances realizadas entre 1980 e 2001|195 195


196 196 | Otávio Donasci
Processos de Criação das Expedições
Experimentais Multimídia
Otávio Donasci
Resumo:
O presente artigo parte do problema de conseguir unir um texto reflexivo a
respeito de um processo de criação e, ao mesmo tempo, trazer elementos da
memória visto que o autor é também um dos autores da obra em análise.
Escrever a respeito de um processo de criação vivenciado há vários anos
atrás é o nosso desafio. Se o propósito desse artigo fosse falar sobre um
processo de criação de uma outra pessoa, teríamos que reunir documentos,
imagens, anotações, enfim, juntar um volume de dados que nos permitisse
resgatar o processo como um todo. Embora também tenhamos que
utilizar esse procedimento, nosso foco será resgatar as memórias vividas.
Considerando que a produção de conhecimento é algo que vai além da
mera representação de experiência, pois envolve entender a memória
como um espaço em fluxo, como um espaço em processo, nos perguntamos
como traçar um roteiro de pesquisa?

Palavras-chave: processos de criação; expedição experimental;


espetáculo multimídia.

Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|197 197


A pesquisa que pretendemos realizar e que será o tema desse
artigo está fundamentada na ideia de processo dinâmico e
complexo. Como investigar processos de criação de uma obra e não
a obra como produto final? Mesmo porque, a obra em questão, em si
mesma, já foi concebida enquanto sistema aberto e mutante. Como
cartografar processos vivenciados?
Para nos auxiliar nessa empreitada, iremos rever os diagramas
originais utilizados na época de criação da obra. É importante dei-
xar claro que a obra, durante o processo de criação, reuniu uma sé-
rie de vetores heterogêneos que agiam como método de associações
díspares. Entre os vetores implicados no processo da obra, destaca-
mos a diversidade das visões de mundo e as bagagens culturais que
os dois autores trouxeram para o processo. Outros vetores que atua-
ram: busca de auxílios financeiros, adequação de recursos (que será
explicado em detalhes no artigo), desafios espaciais, climáticos, as
multiplicidades e as diferenças individuais das pessoas participan-
tes e equipe.
Do ponto de vista das estratégias de investigação, a cartografia
aposta no acesso ao plano que reúne lado a lado a diversidade de
vetores heterogêneos implicados na pesquisa: o pesquisador e seu
campo de interlocuções acadêmicas e instrumentos técnicos, agên-
cias de fomento, compromissos políticos, alianças institucionais,
bem como o objeto e suas diversas articulações. Tal plano é dito
comum não por ser homogêneo ou por reunir atores (sujeitos e ob-
jetos; humanos e não humanos) que manteriam entre si relações
de identidade, mas porque opera comunicação entre singularida-
des heterogêneas, num plano que é pré-individual e coletivo. Trata-
se de incluir as múltiplas linhas ou vetores que Gilles Deleuze e
Felix Guattari (1997) chamam de rizoma e que Bruno Latour (2000;
2007) evoca como rede de articulação e composição, para que pos-
samos fazer emergir o entendimento de uma realidade complexa.
Em tal rede estamos todos incluídos - ou implicados, como preferiu
dizer René Lourau (1996; 2004): diferentes sujeitos, objetos e ins-
tituições, cabendo, portanto, às estratégias de pesquisa acessar o
plano que articula, conecta e agencia essa diversidade. Na medida
em que a cartografia traça esse plano comum e heterogêneo, ela
concorre para a construção de um mundo comum.

198 198 | Otávio Donasci


Procuramos recuperar as memórias do ponto de vista do au-
tor, do modo como iniciou e desenvolveu o processo de criação das
Expedições Experimentais Multimídia, espetáculos de grande porte
em espaços inusitados, imersivos e interativos apresentados entre
1990 e 2001, junto com o diretor Ricardo Karman resultando em 3
obras com características únicas e distintas:

1. “Viagem ao Centro da Terra” – 1992 – S. Paulo – no atual


Túnel Janio Quadros - V. Olímpia - na época inacabado e
paralisado. (50 pessoas, 50 atores/técnicos) (Figuras 1 - 5 e 6)
2. “A Grande Viagem de Merlin”- 1994 – entre S.Paulo, ca-
pital e Jundiaí, estado de S.Paulo em várias locações ao
longo da Rodovia dos Bandeirantes todas sucateadas. (36
pessoas, 50 atores/técnicos) (Figuras 3 e 7)
3. “Viagem ao Centro da Terra” 2001 – Rio de Janeiro-
Galpão da Cidadania, bairro de Mauá, no cais do porto ca-
rioca, na época em desuso. (50 pessoas, 50 atores/técnicos)
(Figuras 2 e 8)

Para melhor compreensão do processo de criação usado na época


dos espetáculos apresentados, o autor se refere a quatro fases que
serão o foco de nosso artigo aqui exposto.
O processo é aqui entendido como as conversas e atitudes ge-
radoras do impulso criar/executar/vivenciar apontado pelo olhar
subjetivo de um dos autores em retrospectiva.
A partir de um trabalho anterior (“525 Linhas”) inicia uma par-
ceria entre a dupla, Karman/Donasci para a criação de espetáculos
multimídia de grande porte e linguagem experimental.

Nível 1º - Processos Pessoais


Onde entram a bagagem anterior, o tirocínio, e a expertise nas
respectivas áreas de atuação dos autores.
Nível 2º - Brainstorm 1>Ideias
Ideias, conceitos, visões, apresentados de modo descontraído em for-
ma de conversas e discussões às vezes apaixonadas e agressivas,
que aconteciam em qualquer lugar onde a dupla se reunisse (ruas,
restaurantes, moradia de cada um, visitas a lugares interessantes).

Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|199 199


Nível 3º - Brainstorm 2> Espaço
Etapa que já acontecia em espaços eleitos como possíveis para o
trabalho e, que desenvolvia-se de modo peripatético andando e
relacionando-se com os acidentes físicos, paisagens e objetos do
local. Uma parceria com o ambiente.
Nível 4º - Expedição
Etapa desenvolvida quando o espetáculo já estava em curso,
com público participante ativo, onde o processo de criação conti-
nuava e se desenvolvia a partir dos acontecimentos factuais do
cotidiano daquela Expedição em curso. (Vide figura 1)

Nível 1 - Processos Pessoais


Ricardo Karman trouxe como parceria nas Expedições, seus co-
nhecimentos e vivências em teatro, como diretor, dramaturgo, en-
cenador, produtor, e mais tarde como dono de teatro e agente cultu-
ral. Foi assistente de direção de Antunes Filho; estudou com Peter
A.Brook. Agregou também sua experiência da área de engenharia,
pois é formado arquiteto e trabalhava na sua empresa de incor-
poração e construção. É pesquisador em literatura e dramaturgia,
e acabou trazendo e se dedicando mais ao texto e às referências
literárias, um dos pontos de partida do processo.
Trouxe um conceito de sucata urbana que foi desenvolvido pela
dupla nas Expedições, e que consistia em reciclar espaços e ins-
talações públicas que estavam sem uso pela cidade, abandonadas,
tomando posse e transformando-as em espetáculo, por razões artís-
ticas e também econômicas.
Otávio Donasci, de formação teatral autodidata, parte de grupos
amadores na década de 70 como ator, diretor e principalmente ce-
nógrafo, campo onde se identificou mais por causa da sua vivência
em Artes Plásticas, ganhou vários prêmios (APCA, Mambembe).
Participou de laboratórios teatrais de vanguarda com o diretor
José Celso Martinez Correa, de caráter performático (Banquete
Antropofágico, O Homem e o Cavalo, Mistérios Gozosos, Os vivos e
os Mortos) em oposição ao estilo mais tradicional de Antunes Filho
(do qual Karman fora assistente). Desenhista desde criança, foi
cartunista, ilustrador, diretor de arte em propaganda e diretor de
criação em áreas de Marketing de Incentivo onde também desen-

200 200 | Otávio Donasci


volveu trabalhos em Turismo Criativo (onde criavam-se roteiros de
viagens personalizados). Nas Artes Plásticas teve formação acadê-
mica com Mestrado em Poéticas Visuais. Fotógrafo, cineasta expe-
rimental (8 e super8), pioneiro em Videoarte (década de 70), em vi-
deoperformance (década de 80, com a criação das VideoCriaturas e
Instalações Multimídia Performáticas Imersivas (década de 90 até
os dias atuais). Atualmente desenvolve Vivências Performáticas –
Meta Performance.

Nível 2 - Brainstorm I - Ideias


Nesse nível das ideias, aconteciam longas conversas sobre todos
os assuntos que os moviam na época, sem distinção de importância:
referências, artigos escritos, ideias pessoais, leituras, filmes assisti-
dos, vivências em suas áreas de atuação (como teatro, performance
e música) opiniões pessoais, que duravam horas (e as vezes dias) e
embates várias vezes fortes e agressivos, outras vezes ridículos e
embaraçosos já que ocorriam muitas vezes em ambientes públicos
como restaurantes e ruas.
Em todas as Expedições o processo partia geralmente de mate-
rial referencial trazido por Karman (textos, propostas de roteiros,
referências literárias, visuais e de lugares), os quais, Donasci in-
variavelmente desmontava, invertia, oferecia variantes criativas,
contrapunha ideias diferentes das dele, caminhos díspares e não
raro tentava como processo, destruir conceitos e argumentos pro-
pondo novos, de tom humorísticos e non-sense, tendência que de-
senvolvera como cartunista e criador em marketing (em cursos no
exterior de Criatividade com Sidney Parnes). Esses brainstorm
geravam mapas, croquis, visualizações e storyboards desenhados
por Donasci; ou gráficos, planilhas, textos e roteiros gerados por
Karman. Às vezes criados durante o processo, outras ao voltarem
para suas casas.

Nível 3º - Brainstorm 2> Espaço


Faziam parte desses brainstorm deambulações pela cidade em
busca de espaços as vezes os dois juntos, as vezes separados. Foi
assim que encontraram o Túnel da Primeira Expedição. Já na
Segunda Expedição, Karman encontrou o Teatro Politeama aban-

Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|201 201


donado em Jundiaí e depois juntos criaram o roteiro enquanto an-
davam pela estrada (Rodovia Bandeirantes) até Jundiaí onde en-
contraram, no caminho, o Aterro Sanitário de Perus (utilizado no
Inferno de “Merlin”), e a Lagoa da Olaria, depois chamada Lagoa
de Ninianne. (Vide Figura 3).
Depois desse momento particular, entravam os atores/perfor-
mers em laboratórios de criação no local, onde apareciam as vivên-
cias e expertises de cada um para compor os personagens, cenas
ou performances. Assim exploravam os “fisique-de-role” de cada
um para as cenas ou situações. Reescreviam os roteiros e textos
num trabalho de feed-back interativo, buscando enriquecer o tra-
balho com outros frutos dos laboratórios, tais como: figurinos e
adereços ou cenografias (que pareciam mais, instalações/objetos).
Privilegiavam antes o uso e simplicidade de manuseio ao invés da
aparência falsa, procurando mais a simbologia do ritual que o tru-
que teatral, já que o publico via de perto e manuseava os elementos
cênicos. Essa parte era a que Donasci mais ativamente participava.
Criava narrativas com os materiais e objetos de cena como tochas
no Inferno, que tinham papel técnico de iluminar a cena e ao mesmo
tempo temperar humoristicamente o material de que eram feitas
(pé de cadeira, taças); ou no caso da guerra da cena no Castelo, onde
todos morriam de objetos ridículos enfiados nas costas (como um
peixe, um filão de pão, ou o salto de um sapato feminino). Outros
adereços tinham funções múltiplas como a cabeça do demônio no
Inferno que era um crânio de boi, real, com um sistema de gel in-
flamável que fazia com que ele servisse de iluminação da cena, e seu
cheiro (de osso queimado) fizesse parte do clima da cena. Donasci
chama isso de Piro-adereços.
Ainda haviam os fatores burocráticos que seriam as circunstân-
cias em que eram oferecidos os espaços pelas autoridades, que ao
invés de os limitar, entravam no processo de criação e se transfor-
mavam no estilo ou características do espetáculo.
Como na Terceira Expedição no Rio de Janeiro em 2001 em
que foi preparado o espetáculo para ser num túnel abandonado (do
metrô), e que de repente ao ser ativado de novo, invalidou o espe-
táculo, após anos de brainstorm no local.
Resolveram então que Donasci, construiria um túnel inflável de
plástico preto de 1km de extensão com várias salas diferentes, tam-

202 202 | Otávio Donasci


bém infláveis, onde aconteceriam as cenas. Isso permitiu uma liber-
dade maior de criação já que poderiam decidir se os túneis seriam
estreitos ou largos e se as salas poderiam ser de formatos varia-
dos de acordo com a instalação dentro delas. Donasci as chamava:
Dramaturgias do Espaço. Puderam forrar o chão de areia sílica e
o público experimentou andar descalço pelo espetáculo (diferente
da Primeira Expedição onde tinham que andar de botas). Criaram
então instalações com nuvens de água aspergida e o público pode
experimentar o prazer da água no corpo nu.
Foi preciso recriar todo o espetáculo para essa nova circunstân-
cia, que deu oportunidade de ousar mais e oferecer experiências
mais radicais a esse público-expedicionário e com isso ganharam o
“Premio Shell de Realização - 2001 - Rio de Janeiro”.

Nível 4 - Expedição.
Mesmo depois que o espetáculo estreava, continuava o proces-
so de criação alterando e introduzindo cenas e vivências de acordo
com o público de cada dia; as circunstâncias cotidianas, como chu-
va, trânsito, acidentes, problemas com o elenco e técnicos se alter-
navam, por pura diversão em pregar uma peça no público colocan-
do alguém em situação difícil ou constrangedora, sempre dentro
da proposta geral do espetáculo que era criar novas possibilidades
para o público-herói vencer os obstáculos e provarem-se bravos e
corajosos. Tal processo era totalmente cíclico, podendo todo dia
retornarmos a qualquer nível do processo anterior e introduzir in-
formações novas em técnicas de relacionamento com o público. Tais
técnicas surgidas do dia-a-dia no espetáculo, como montar tochas,
ou recriar logísticas de movimentação de técnicos e elenco, tan-
to dentro do Túnel na Primeira Expedição, como ao longo dos 65
km da Segunda Expedição. Criaram logísticas para o publico não
correr (muito) risco, ser alimentado, banhado, desnudado, vestido
com botas para o Túnel (Primeira Expedição) ou ser açoitado em
jaulas no Inferno (Segunda Expedição). Tudo fazia parte do pro-
cesso, desde criar textos ou ensaiar atores tradicionalmente como
num teatro. Uma importante característica das Expedições era o
Manual do Expedicionário, peça gráfica com várias funções. Nele

Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|203 203


constavam várias informações tanto técnicas (tamanho do Túnel,
diâmetro, distâncias percorridas, etc.)como recomendações práticas
(normas de segurança, recomendações de como fazer uma boa via-
gem) ou ainda, poemas e textos de autores conhecidos como Borges
ou desconhecidos como Kafavis. Além dos autores e até dos atores/
performers. E também, desinformações humorísticas como “não
alimente Cérbero o cão do Inferno” no audiovisual que é apresenta-
do na Agência de Turismo da Primeira Expedição ou o “grito fóssil”
que é mostrado na palestra de um cientista no começo da Segunda
Expedição. Outra era o diário individual preenchido pela plateia
depois de cada espetáculo onde tinham o retorno e avaliação do pú-
blico relatando como foi a experiência para cada um. (depois era
compartilhado com o elenco já que não havia o tradicional aplauso,
retorno importante para quem fazia o espetáculo). Os relatos do
público eram emocionantes, carregados de significados profundos
e tão diversos como “Me senti invadido!” até “Tive um encontro com
Deus!”. Cada detalhe, desde o cartaz do espetáculo até o bi-
lhete de entrada (que não era um ingresso mas uma passagem para
o Centro da Terra na Primeira Expedição) tentava escapar dos cli-
chês teatrais para inventar o novo formato: Expedição (por se tra-
tar de viagem, aventura) Experimental (por sempre haver o fator
acaso, novidade, risco) e Multimídia (por fundir várias linguagens
e técnicas para criar um híbrido). O lema da dupla era: “Para coisas
novas, novos nomes...” Finalmente, para entender melhor da visão
de Donasci, vemos anexos os textos pessoais e figuras que ele
inseriu nos Manuais do Expedicionário das três Expedições, onde
longe de ser um texto técnico, como os do Karman, mostravam o
seu estado de espírito na época.

Referências bibliográficas
DELEUZE, G; GUATTARI, F. Acerca do ritornelo. In: Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 2006.
LEÃO, Lucia (2002). O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São
Paulo: Senac.

204 204 | Otávio Donasci


LATOUR, B. Ciência em ação. São Paulo:UNESP, 2000. LATOUR, B. Como falar
do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In: NUNES, J.
A.; ROQUE, R. (Org.). Objetos impuros: experiências em estudos sociais da
ciência. Porto: Afrontamento, 2007.
LOURAU, R. Implicação e sobreimplicação In: ALTOÉ, S. (org) René Lourau:
Analista institucional em tempo integral. Rio de Janeiro: Hucitec, 2004.
MACHADO, Arlindo (2007). O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no
ciberespaço. São Paulo: Paulus. 
SALLES, Cecilia Almeida. Redes de criação: construção da obra de arte. Vinhedo,
São Paulo: Editora Horizonte, 2006.
______, Gesto Inacabado - processo de criação artística. Intermeios, São Paulo, SP,
5ª ed., 2011
______, Crítica Genética - Fundamentos dos Estudos Genéticos sobre o Processo de
Criação Artística. Editora da PUC-SP,
SANTAELLA, Lucia (2007). Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo:
Paulus. 

REFERÊNCIAS NA WEB:
URL DOS VÍDEOS DISPONÍVEIS

Viagem ao Centro da Terra -1992 (SP)


https://youtu.be/5K86bzZHZQM

A Grande Viagem de Merlin – 1995 (SP)


1º PARTE - https://youtu.be/iLWv5eQqeWk
2º PARTE - https://youtu.be/8rUTAFo76k4
Editado (André) - https://youtu.be/k9d-PEmPjwI

Viagem ao Centro da Terra -2001 (RJ)


https://youtu.be/EJgI4g3332A

“Making-of” de Viagem ao Centro da Terra – 2001 (RJ)


https://youtu.be/Rok4J6Rsw5A

Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|205 205


206 206 | Otávio Donasci
Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|207 207
208 208 | Otávio Donasci
Figura 5 - Safe Sex - Primeira Expedição 1992

Figura 6 - Morubixaba - Primeira Expedição - 1992

Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|209 209


Figura 7 - O Inferno - Segunda Expedição - 1995

Figura 8 - Túnel Inflado - Terceira Expedição 2001

210 210 | Otávio Donasci


Textos do Manual de “Viagem ao Centro
da Terra” Rio de Janeiro -2001

Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|211 211


212 212 | Otávio Donasci
Processos de Criação das Expedições Experimentais Multimídia|213 213
Biografia dos autores
Antonio Herci Ferreira Junior
Compositor e dramaturgo, mestrando em Estética e História
da Arte pelo Interunidades PGEHA (USP). Possui graduação em
Filosofia pela Universidade de São Paulo. Trabalha com teatro
de ocupação urbana em territórios de conflito: ocupações, comu-
nidades, manifestações e grupos de refugiados sírios e palestinos.
Pesquisador do Colabor, desenvolve trabalho sobre as formas esté-
ticas e éticas da contemporaneidade a partir dos conceitos de jogos
de linguagem. Faz parte do Coletivo de Galochas, grupo de teatro.

Fernanda Almeida
Curadora e pesquisadora de arte contemporânea. Faz par-
te da equipe de organização do FILE – Festival Internacional
de Linguagem Eletrônica desde 2008 e do Grupo de Estudos em
Estética Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Sociais da USP desde 2015. Doutoranda em Estética e
História da Arte pela Universidade de São Paulo, na linha de pes-
quisa Metodologia e Epistemologia da Arte, sob a orientação do
Prof. Dr. Ricardo Nascimento Fabbrini. E-mail: frnndeaa@gmail.
com.

Lucio Agra
Professor, performer, poeta, pesquisador, doutor em
Comunicação e Semiótica pela PUC SP, professor do Centro de
Cultura, Linguagens e Tecnologias da UFRB (BA). Seus livros
mais recentes são Monstrutivismo - reta e curva das vanguardas
(Perspectiva) e Décio Pignatari - vida noosfera (Educ). Vive e traba-
lha no Recôncavo da Bahia.

Vanderlei Baeza Lucentini


Mestre e doutorando em Estética e História da Arte pelo
PGHEA-USP, com dissertação baseada em sua pesquisa e produção
artística Electropera: trajetórias sonoras na performance digital
examinando as relações conceituais e históricas entre a performan-

214 214
ce art, música contemporânea e tecnologia audiovisual. No Brasil,
estudou composição com Ernest Mahle e Conrado Silva. Tem expe-
riência nas áreas de música e mídias digitais, atuando principal-
mente nos seguintes temas: de Performance Art, Arte Telemática,
Electropera, Tecnologia Audiovisual e Composição Musical, pesqui-
sando os seguintes temas: composição musical auxiliada por com-
putadores, arte sonora, tecnologia sonora, videoarte, tecnologia nas
artes cênicas, performance art e telepresença. Atualmente é pes-
quisador do grupo de pesquisa COLABOR - Centro de Pesquisas em
Linguagens Digitais na área de Processos Criativos em Artemídia.
Sua produção artística tem sido exibida na Bienal Internacional
de São Paulo, Festival Música Nova, FILE Hipersônica, Perfor e
Ubicidades.

Artur Matuck
Artur Matuck tem atuado no Brasil, América do Norte, Europa
e Ásia como professor, pesquisador, escritor, artista plástico, per-
former, produtor de eventos de telearte e, mais recentemente, como
filósofo da comunicação contemporânea e organizador de simpósios
internacionais. Desde 1977 tem apresentado conferências, ofici-
nas e projetos, nacional e internacionalmente, em tópicos diversos,
tais como Artes Mediáticas, Arte e Tecnologia, Telecomunicações
e Artes, Televisão Interativa, Arte Performance, História da Arte,
Arte Combinatória. Sua produção artística tem sido exibida nas
Bienais de São Paulo em 1983, 1987, 1989, 1991 e 2002. Em 1990,
recebeu prêmio na categoria Vídeo-Arte da Associação Paulista
dos Críticos de Arte. Sua produção teórica tem sido publicada nos
EUA através do periódico Leonardo, publicação oficial da Sociedade
Internacional de Arte, Ciência e Tecnologia. Atua como Professor
Livre-Docente nas áreas de Comunicações e Artes na Universidade
de São Paulo onde fundou e coordena o Centro COLABOR de
Pesquisa em Linguagens Digitais.
216 216
Donasci, replicado em suas videocriaturas, revela uma
resistência a formatação industrial dos aparatos, ao pre-
visível, a restrição registrada no formato do dispositivo.
Ele segue um princípio de reinvenção mediática que re-
clama resistência ao inscrito, a instauração do não-pres-
crito, do imprevisível, a aceitação do acaso, do erro e da
errância, a intervenção criativa nos comportamentos e
formatos.
(Artur Matuck)

COLABOR | PGEHA | ECA


USP

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