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Novo Testamento
Exegese do
Novo Testamento
Gerson Luis Linden
Vilson Scholz
Conselho Editorial EAD
Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Andréa Eick
Mara Lúcia Machado André Loureiro Chaves
Astomiro Romais Cátia Duizith
CDU: 225.07
ISBN 978-85-7528-412-4
Projeto Gráfico: Humberto G. Schwert Dados técnicos do livro
Editoração: Rodrigo Saldanha de Abreu Fontes: Minion Pro, Officina Sans
Capa: Juliano Dall’Agnol Papel: offset 90g (miolo) e supremo 240g (capa)
Supervisão de Impressão Gráfica: Edison Wolf Medidas: 15x22cm
Gráfica da ULBRA
Setembro/2011
Sumário
Apresentação............................................................... 7
7 | Filipenses 1.1-11....................................................... 85
8 | Filipenses 2.5-11....................................................... 99
9 | Filipenses 3.2-11......................................................115
10 | Filipenses 4.10-20.....................................................131
Apresentação
Exegese é daqueles termos técnicos, empregados principalmente na teologia,
que foi dicionarizado pela primeira vez, na língua portuguesa, no começo do
século XIX. No entanto, a palavra é antiga. Soa grega, porque, a rigor, é uma
palavra grega. Ela própria carece de exegese, ou seja, precisa ser esclarecida
ou explicada. Deixada assim, sem maiores explicações, sugere que teólogos
se dedicam a atividades estranhas, designadas por nomes complicados. Em
termos bem simples, exegese ou exegética é “o ramo da teologia que se decida
à explanação e à interpretação da Bíblia” (Dicionário Houaiss).
Se teologia é “gramática do texto bíblico”, como disse Lutero, e se “aquilo
que não é bíblico não é teológico”, como diz um importante princípio da
teologia, então está claramente posta a importância da exegese. É evidente que
as disciplinas de exegese bíblica não são as únicas do currículo da Teologia, e
as aulas de exegese não são o único momento em que se estuda a Bíblia, num
curso de teologia. Mas as disciplinas de exegese são um momento privilegiado,
em que os textos bíblicos são estudados quase que como um fim em si (e não
como elementos ou recursos para outras finalidades, como a fundamentação
de uma tese, por mais válido que isso seja).
Infelizmente, um curso de teologia é muito breve para se poder esclarecer
ou interpretar minuciosamente (isto é, fazer exegese de) um grande número de
livros bíblicos. Assim, o que se faz é feito muito mais em termos de apresentação
de modelo (enfoque qualitativo) do que propriamente tentativa de cobrir um
8 Apresentação
grande número de temas ou livros bíblicos (enfoque quantitativo). Foi com isso
em mente que, no primeiro capítulo da exegese de Mateus, foi inserida uma
seção sobre a Análise da Narrativa aplicada a Mateus e, mais adiante, aparece um
capítulo introdutório à prática da exegese das Epístolas. Isso repete, em parte,
o que se aprende em outra disciplina, Princípios de Interpretação Bíblica, mas
a repetição faz parte da aprendizagem.
Para esta disciplina de Exegese do Novo Testamento, foram escolhidos dois
livros bíblicos: Mateus e Filipenses. Esta combinação, além de trazer variedade
de temas (por serem dois livros) e de estilos (na medida em que envolve dois
docentes), permite ao aluno entrar em contato com gêneros literários diferentes:
um Evangelho e uma Epístola ou Carta.
Do Evangelho de Mateus, que, de qualquer forma, não poderia ser
interpretado na íntegra no contexto desta disciplina, foram selecionados os
seguintes trechos: Mateus 1.1-25; Mateus 3.13–4.11; Mateus 9.35–10.8; Mateus
16.13-28 e Mateus 28.1-20. A Epístola de Paulo aos Filipenses, com os seus
quatro capítulos, poderia até ter sido abordada em quatro aulas. No entanto,
devido às limitações de espaço e no intuito de aprofundar em vez de estender,
fez-se a seleção de quatro trechos: Filipenses 1.1-11, Filipenses 2.5-11, Filipenses
3.2-11 e Filipenses 4.10-20.
Pedro, que, na sua segunda Epístola, constatou que nas cartas de Paulo há
algumas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e os fracos na fé explicam
de maneira errada, para a sua própria destruição (2 Pe 3.16), poderia ter advertido
contra eventuais perigos da exegese. Mas ele não o fez. Ao contrário, estimula-nos
a continuarmos a crescer na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo (2 Pe 3.18). Que esta disciplina de exegese lhe traga, caro(a) aluno(a),
crescimento no conhecimento e, acima de tudo, crescimento na graça.
A abertura do Evangelho
de Mateus – Mateus 1.1-25
Gerson Luis Linden
etc.). Nestes textos, Mateus deixa claro que o Antigo Testamento encontra em
Jesus seu pleno cumprimento. Não apenas alguns textos específicos do Antigo
Testamento referem-se a eventos isolados na vida e no ministério de Jesus. Na
perspectiva de Mateus, todo o Antigo Testamento encontra em Jesus seu ápice.
Com isso, ele deixa claro que Jesus é o Messias prometido e aguardado pelos
fiéis do Antigo Testamento.
Um ensino fundamental de Mateus é o anúncio da chegada do Reino de
Deus (Mateus prefere a linguagem de “reino dos céus”). Este reino é a ação
dinâmica de Deus em trazer as pessoas para seu domínio, um domínio de graça
e misericórdia, que resulta em salvação e vida para as pessoas. O reino dos céus
está presente antecipadamente na pessoa e no ministério de Jesus (Mt 4.17;
12.28). Ele é o Rei que vem (Mt 2.2; 21.4,5) e traz o reinar gracioso de Deus, para
o qual chama as pessoas. Neste intuito Jesus prepara seus discípulos (= alunos)
para que venham a ser os apóstolos (= enviados), que levarão a mensagem do
reino por onde quer que forem (Mt 4.18-22; 10.5-7; 28.18-20).
O Evangelho conforme Mateus está estruturado conforme três grandes
partes, cada uma delas acentuando um aspecto da vinda do Reino de Deus na
pessoa de Jesus Cristo. Na primeira parte (Mt 1.1–4.16), a ênfase está na pessoa
de Jesus, o Messias. Nesta parte Mateus deixa claro quem Jesus é. A segunda
parte vai de 4.17 até 16.20. Observe-se que ela inicia com a expressão “Daí por
diante passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o
reino dos céus” (Mt 4.17). Nesta segunda parte, o foco está no ministério terreno
de Jesus, caracterizado pelo anúncio do reino e sua manifestação através de
proclamação, ensino e cura de doentes e expulsão de demônios. A terceira parte
inicia em 16.21 seguindo até o final do Evangelho (28.20), com destaque para
a obra de Cristo, com sua rejeição por parte dos líderes judeus, seu sofrimento,
morte e ressurreição. Esta parte é introduzida na narrativa com a seguinte
afirmação: “Desde esse tempo, começou Jesus a mostrar a seus discípulos que
lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos
principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia”.
É importante observar que os dois textos que iniciam uma nova seção usam
uma linguagem muito semelhante (no texto grego). Tanto Mateus 4.17 como
16.21 iniciam com a expressão vApo. To,te h;rxato o` vIhsou/j [apo tote erxato ho
Iesous] – “Desde então começou Jesus a...”.
A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25 11
O Evangelho conforme Mateus inicia com uma frase que chama a atenção,
assim traduzida: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de
Abraão” (Mt 1.1). Não há um verbo nesta frase, o que dá a entender ser ela um
título daquilo que segue.
A pergunta que exegetas fazem inicialmente é qual o referente de “livro
da genealogia”? Será, como parece óbvio à primeira vista, que se trata apenas
do título para a “genealogia” de Jesus (versículos 2 a 17)? Ou, levando em
consideração a palavra “livro”, deveríamos entender isso como um título para
todo o Evangelho? É possível que estas duas referências sejam verdadeiras. Outra
possibilidade é que se refira à primeira parte do Evangelho, que vai do início até
4.16, onde Mateus apresenta ao leitor quem é Jesus.
A expressão grega bi, b loj gene, s ewj [biblos geneseos] é traduzida por
“livro da genealogia”. Mas ge,nesij [genesis] também pode ser traduzido como
“origem”. Esta mesma palavra é empregada em Mateus 1.18, onde as traduções
normalmente trazem: “nascimento”. Assim, sem ignorar a referência imediata
da expressão à própria genealogia de Jesus e ao seu nascimento (todo o capítulo
1), ela também pode se referir à primeira parte de Mateus (1.2 até 4.16), onde
Jesus é apresentado como o verdadeiro Filho de Deus.
É significativo que o Evangelho conforme Mateus inicie com a genealogia de
Jesus. Genealogias eram usadas já no Antigo Testamento, acentuando o papel
da pessoa à qual esta genealogia se referia. Além disso, serviam para conectar
aquela pessoa à história do povo ao qual ela estava ligada. Genealogias não são
apenas fontes de informação sobre antepassados de alguém, mas comunicam
algo importante sobre a pessoa que está em vista.
Um aspecto importante da genealogia de Mateus 1.2-17 é a ligação que o
evangelista faz entre Jesus e o Antigo Testamento. A genealogia mostra que a
história do povo de Deus no Antigo Testamento tem seu clímax e atinge seu
objetivo na vinda de Jesus. Como visto acima, um dos grandes propósitos de
A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25 15
mudança de foco na narrativa. Neste caso (v.20), ela serve para Mateus mostrar
o contraste entre os planos de José e aquilo que Deus tinha planejado.
Os nomes que o menino recebe revelam sua identidade e sua missão. “Jesus”
(vIhsou/j [Iesous]) é a tradução do hebraico Ieshuah (ou Iehoshuah). É um nome
relativamente comum entre os judeus. Ele significa “Javé é salvação” ou “Javé
salva”. No caso específico de Jesus, o nome diz qual é sua missão, que Mateus
deixa expressa: “pois salvará o seu povo dos pecados deles”. Nesta expressão
se apresenta mais uma evidência da ênfase do Evangelho conforme Mateus,
de mostrar Jesus como aquele que veio primeiramente para ministrar a Israel
e salvar este povo, sem deixar de considerar sua missão universal, de salvação
para todos os povos (cf. Mt 28.19).
O nome “Emanuel” – Deus [está] conosco – diz quem Jesus é, ou seja, o
verdadeiro Filho de Deus. Mateus ainda trará o tema da presença de Deus em
Cristo mais duas vezes (18.20; 28.20). A comparação entre os três textos revela
uma mudança nos beneficiados pela presença de Deus. Em 1.23, levando em
conta a citação de Isaías 7.14, a referência é ao povo de Israel. Em 18.20 o
contexto trata da Igreja, ou seja, o povo de Deus na nova aliança. Em 28.20, a
presença de Cristo (“estou convosco”) é prometida àqueles que ele envia como
seus mensageiros na tarefa de fazerem discípulos de todos os povos. Em cada
um destes casos, o fator comum é que a presença de Deus manifestada em Jesus
é uma presença benéfica, que traz salvação, segurança, consolo e força.
Neste trecho encontramos o primeiro exemplo de fórmula de cumprimento
– “tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por
intermédio do profeta”. A expressão, especialmente pelo uso do verbo “cumprir”
(plhro,w [pleroo]), destaca que os fatos da vida de Jesus trazem a plena realização
daquilo que fora anunciado pelos profetas no Antigo Testamento. A expressão
não deve ser entendida como se Deus, ao conduzir os acontecimentos na vida
de Jesus, estivesse agindo de forma artificial, de modo a simplesmente seguir
um roteiro escrito anteriormente. “Cumprir” significa que aquilo que foi dito
anteriormente não estava completo antes de sua realização em Jesus. Ou seja,
Deus, em seu plano eterno, planejou que no ministério, vida, morte e ressurreição
de Jesus fosse realizado todo o necessário para a salvação da humanidade. Ele
próprio conduziu então seus profetas para que anunciassem e escrevessem de
antemão, conforme o que estava planejado para o futuro (cf. 1 Pe 1.10-12).
A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25 19
O texto conclui com José fazendo aquilo que lhe havia sido orientado pelo
anjo. Recebeu Maria como sua esposa e cuidou do Menino como se fosse
realmente seu filho. A história da Igreja veio a mostrar uma controvérsia sobre a
figura de Maria no cristianismo. Uma grande parcela de cristãos segue o ensino
do semper virgo, ou seja, que Maria teria ficado virgem ao longo de toda sua vida.
Apesar do versículo 25 não dar maiores detalhes, parece deixar claro que José e
Maria tiveram uma vida normal como marido e mulher após o nascimento do
menino Jesus. Mas é importante lembrar que a controvérsia a respeito de Maria
não está no texto, mas é bastante posterior a ele.
Exercícios de revisão
1. Por que a genealogia de Jesus é importante no início do Evangelho
conforme Mateus?
a) Ela mostra como é sério o papel da família.
b) Ela traz os nomes mais importantes do povo de Israel para
conhecimento dos leitores.
c) Ela conecta Jesus com o Antigo Testamento, mostrando ser ele o alvo
de todo o AT.
d) Ela ensina os leitores a valorizarem a história e as tradições de seu
povo.
Respostas:
1. c 2. d 3. a 4. d
2
2.1 Introdução
Após a leitura do texto em mais de uma tradução, considere e reflita sobre
as seguintes questões:
1. O que era o batismo realizado por João Batista? Qual era seu
propósito?
2. Por que Jesus foi batizado? Note como João Batista reage quando Jesus
vem a ele para ser batizado. O que mostram as palavras de Jesus para
João a respeito de seu batismo?
3. Qual a participação de cada uma das três Pessoas da Trindade (Pai,
Filho e Espírito Santo) no texto do batismo de Jesus?
4. Que eventos da história do povo de Israel no Antigo Testamento são
lembrados a partir da forma como se apresenta o Espírito Santo?
5. Observe o papel do Espírito Santo no episódio da tentação de Jesus.
6. Em que aspecto de sua vida Jesus é atingido em cada uma das tentações
registradas por Mateus?
22 O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11
7. Verifique que textos do Antigo Testamento são citados por Jesus diante
das tentações efetuadas por Satanás. Observe em que situações aqueles
textos foram originalmente usados. Qual a importância disso para o
episódio da tentação de Cristo?
2.2 O contexto
O texto em estudo mostra o início oficial do ministério terreno de Jesus.
Antes de apresentar o evento do batismo de Jesus, Mateus mostra a seu leitor
que João Batista vinha batizando junto ao rio Jordão.
O batismo de João era um rito preparatório, que antecipava a chegada do
reinar de Deus (Mt 3.2). Não se tratava de um mero ato ritual, mas lidava com
a situação de pecado das pessoas (Mt 3.6). Este batismo era propriamente “para
remissão dos pecados” (cf. Mc 1.4), ou seja, ele trazia ao pecador o benefício
antecipado da obra do Messias que estava por vir.
A esperança dos judeus era que a voz de Deus seria ouvida uma
vez mais, que Ele se faria conhecido e isso podia bem ser expresso
nas palavras: “Oh! Se fendesses os céus e descesses” (Is 64.1). ...
A abertura dos céus no batismo de Jesus era, assim, para ser vista
como um prelúdio para um pronunciamento divino; mas tal evento
ocorreria apenas no último dia, o dia da libertação messiânica, e
assim a voz celestial, ligada à descida do Espírito de Deus sobre
Jesus, poderia ser interpretada apenas como um evento que, no
mínimo, marcou o começo do fim. (P.134,5)
|| 2 Cabe uma observação a respeito das divisões em capítulos. É importante notar que tal divisão
vem da Idade Média, não fazendo parte do texto original, que era corrido, sem separação
numérica em capítulos e versículos. Estes foram introduzidos para auxiliar na localização de
determinado texto. Levando isso em conta, sabemos que no texto original o (que hoje temos
como) 4.1 vinha imediatamente após o 3.17. Isto ajuda a perceber a conexão entre os dois
textos.
O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11 27
texto do Salmo 91, citado pelo diabo, não sugere que o filho de Deus force uma
situação, mas trata-se de uma promessa que Deus guardará os seus “em todos
os seus caminhos” (palavras estas deixadas de fora pelo diabo em sua citação).
A promessa de Deus no Salmo 91 é que Deus dará ordem aos seus anjos para
que guardem, sim, seus filhos no percurso da vida destes e não em situações
criadas artificialmente.
Jesus denuncia o erro de Satanás ao citar Deuteronômio 6.16: “Não tentarás
ao Senhor teu Deus”. Aquele texto em Deuteronômio, por sua vez, refere-se a
um episódio relatado em Êxodo 17.7. O povo de Israel estava acampado em
Refidim, onde não havia água. O povo se revoltou contra Moisés e contra Deus,
reclamando do porquê de terem saído do Egito, onde havia água. O povo chega
a duvidar da presença de Deus – “Está o Senhor no meio de nós ou não?”. Nisso
consistiu o pecado de Israel, ao exigir um sinal visível da presença de Deus. Em
outras palavras, Jesus diz a Satanás: “Não posso fazer o que você sugere, pois eu
estaria colocando Deus à prova, como Israel fez no deserto”.
O verbo traduzido por “tentar” é evkpeira,zw [ekpeirazo]. Além de presente
neste texto (e no paralelo em Lucas 4.12), também é utilizado em 1 Coríntios 10.9
(uma referência a Israel colocando Deus à prova, reclamando de Moisés devido
às dificuldades encontradas) e em Lucas 10.25 (um intérprete da lei vem tentar
Jesus com uma pergunta). Outra situação que se refere a alguém tentando a Deus
está registrada em Atos 15.10 (onde o verbo peira,zw [peirazo] é utilizado), nas
palavras de Pedro por ocasião do concílio de Jerusalém: “Agora, pois, por que
tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos
pais puderam suportar, nem nós?”. Neste caso, Pedro referia-se à exigência feita
por alguns judeus para que os gentios convertidos fossem obrigados a seguir a
lei de Moisés e, particularmente, a circuncisão.
Exercícios de revisão
1. Jesus tinha de ser batizado por João Batista porque:
a) precisava lavar o próprio pecado.
b) ninguém queria acreditar em João.
c) assim cumpria a justiça de Deus, como nosso Substituto.
d) assim ele se tornaria melhor do que já era.
Respostas:
1. c 2. a 3. b 4. c
3
Jesus e na criação dos novos céus e nova terra, é antecipado na chegada de Cristo
para sua obra da salvação da humanidade.
|| 3 Mateus 9.36;14.4 – curou enfermos; 15.32 – alimentou a multidão; 18.27 – perdoou a dívida;
20.34 – curou os cegos; Mc 1.41 – curou leproso; 6.34 – ensinou; 8.2 – alimentou multidão;
9.22 – pedido de pessoas em necessidade; Lc 7.13 – ressuscitou o filho da viúva; 10.33 – o
bom samaritano; 15.20 – pai do filho perdido.
Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8 37
está agindo, no seu reinar gracioso, para trazer vida e salvação para as pessoas.
Rogar por trabalhadores é pedir a Deus que Ele, em sua graça, mande gente
que seja instrumento do Pastor de Israel, para que por meio do trabalho destes
ele venha a ser reconhecido pelo povo aflito e desamparado, para que seja um
povo que tenha o Pastor certo.
Depois, uma segunda ação decorrente da compaixão de Jesus foi que ele
próprio respondeu à oração (talvez mesmo antes dela ter sido feita): ele mesmo
enviou os trabalhadores (10.1ss).
Jesus é o Pastor verdadeiro – esta é a mensagem já desde o início do evangelho,
na citação feita pelos sacerdotes de Jerusalém (Mt 2.4-6, citando Mq 5.1). Com
a chegada de Jesus e o início do seu ministério, fica evidenciado que a lacuna
de um verdadeiro pastor está sendo preenchida. Além dele estar pessoalmente
presente, aquele que ele enviar levará consigo sua presença (cf. Mt 10.40). Uma
lição fundamental neste texto é que a missão – o envio dos apóstolos para
proclamarem o evangelho – nasce a partir da compaixão de Jesus!
chamados em Mateus: “apóstolos”. Este termo define o que eles são – enviados,
sob a autoridade daquele que os envia. Até este ponto o grupo dos “discípulos” era
de tamanho indeterminado. São aqueles mencionados em 9.37. Dentre eles, Jesus
escolhe doze – isto fica explícito em Lc 6.13: “...chamou a si os seus discípulos
e escolheu doze dentre eles, aos quais deu também o nome de apóstolos”. Vale
lembrar que “discípulo” significa o mesmo que “aluno”. Os doze eram alunos de
Jesus, pois estavam sendo ensinados, equipados para uma tarefa. Ao chamá-los
de “apóstolos” (= enviados), Mateus refere-se à tarefa deles, ou seja, são enviados
por Jesus como seus representantes, proclamadores de sua mensagem.
“Primeiro, Simão” – ele é o que se chama de um primus inter pares, ou seja,
alguém que, sendo igual aos seus companheiros, assume uma liderança entre
eles. Isto não o torna superior, mas é possível notar que ao longo da narrativa
do Evangelho, Pedro toma a frente como um porta-voz dos doze.
A partir do v.5 (até v.42) segue o assim chamado “discurso missionário”
de Jesus. Duas seções distintas podem ser identificadas: vs.5-23, que trata
especificamente da missão dos doze para as ovelhas perdidas de Israel; vs.24-
42, que tem uma linguagem mais inclusiva e geral, que a torna mais aplicável à
Igreja apostólica em sua abordagem a judeus e gentios.
|| 4 Jeffrey Gibbs, Matthew 1.1-11.1, St Louis: Concordia Publishing House, 2006, p.506.
Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8 43
Exercícios de revisão
1. Ao falar da compaixão de Jesus (Mt 9.36) o evangelista usa um
verbo que:
a) é apenas usado neste texto.
b) é tão somente um sentimento, sem nenhuma consequência prática.
c) normalmente significa um desprezo pelo sofredor.
d) manifesta um sentimento de compaixão acompanhado por uma ação
concreta em favor do necessitado.
Respostas:
1. d 2. a 3. c 4. a
4
5. Como explicar que num período tão breve de tempo Pedro possa ter
tido duas manifestações tão diferentes?
6. O que significa “carregar a própria cruz”?
4.1 Contexto
Comparado com os outros sinóticos, o relato de Mateus é o mais completo.
E é o único que, após a confissão de Pedro, traz as palavras de Jesus sobre a
Igreja e o abrir e fechar do reino dos céus. É significativo que esta confissão
de Pedro e as palavras de Jesus sobre o discipulado cristão se constituem em
um momento-chave dentro do relato de Mateus. Considerando a proposta do
exegeta Jack D. Kingsbury, que sugere entendermos a estrutura de Mateus em
três grandes partes, a partir de 16.21 uma nova etapa no relato inicia. Até aqui
(desde 4.17), a ênfase estava no ministério de Jesus centralizado na proclamação
do Reino de Deus. A partir deste trecho, o foco no relato do Evangelho vai para
a consumação da obra de Jesus, com sua morte e ressurreição. Em 16.21 Jesus
faz o primeiro de três anúncios dos eventos culminantes do Evangelho.
4.2 O texto
13
Indo Jesus para os lados de Cesareia de Filipe, perguntou a
seus discípulos: Quem diz o povo ser o Filho do Homem? 14 E eles
responderam: Uns dizem: João Batista; outros: Elias; e outros:
Jeremias ou algum dos profetas. 15 Mas vós, continuou ele, quem
dizeis que eu sou? 16 Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo,
o Filho do Deus vivo. 17 Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado
és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram,
mas meu Pai, que está nos céus. 18 Também eu te digo que tu és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do
inferno não prevalecerão contra ela. 19 Dar-te-ei as chaves do reino
dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que
desligares na terra terá sido desligado nos céus. 20 Então, advertiu
os discípulos de que a ninguém dissessem ser ele o Cristo. 21 Desde
esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que
lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas
Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28 47
Isso também ajuda a explicar por que o próprio Jesus fez pouco uso deste
título – Cristo (Messias) – para si mesmo. Paulo, no entanto, designa Jesus de
Cristo frequentemente (379 das 529 ocasiões de uso do título em todo o Novo
Testamento), e isso ocorre após a obra de Jesus ter sido completada.
“O Filho do Deus vivo” (v.16). Na avaliação de alguns autores (entre eles,
Jack D. Kingsbury), “Filho de Deus” é o título mais importante de Jesus neste
Evangelho. Isso está diretamente ligado ao conceito de “reino dos céus (de Deus)”
em Mateus. Por ser o Filho de Deus, Jesus traz, em sua pessoa e obra, o reinar
gracioso de Deus ao mundo. “Deus vivo” – a expressão grega o` zw/n [ho Zoon]
(literalmente: “aquele que vive”), particípio presente do verbo za,w [Zaoo] (viver)
é aplicada a Deus em Mateus 16.16; 26.63; João 6.57; Atos 14.15; Romanos 9.26;
2 Coríntios 3.3; 6.16; 1 Tessalonicenses 1.9; 1 Timóteo 3.15; 4.10; 6.17; Hebreus
3.12; 9.14; 10.31; 12.22; Apocalipse 7.2; 4.9; 15.7. Ao dizer que Deus é aquele
que vive (o Deus vivo) o texto bíblico não está apenas se referindo à vida que
Deus tem para si, mas o fato de que ele é o doador e mantenedor da vida. Toda
vida depende dele. E por isso mesmo só ele pode ser cultuado e adorado. Ao
dizer que Jesus é o filho do “Deus vivo”, Pedro também reconhece que em Jesus
há a verdadeira vida.
“Tu és Pedro e sobre esta pedra ...” (v.18) – é importante notar que Jesus
usa um jogo de palavras no grego, o que também transparece na tradução em
português: “Tu és pe,troj [petros] e sobre esta pe,tra [petra] edificarei a minha
igreja”. Apesar de que as duas palavras são sinônimas, pode-se notar uma
diferença entre petra e petros: petra é entendida como uma massa rochosa,
enquanto que petros seria uma pequena pedra. Assim, por um lado é preciso
afirmar que Jesus não está se referindo à pessoa de Pedro, ao falar da pedra sobre
a qual a igreja é edificada (senão ele poderia simplesmente dizer: “Tu és Pedro e
sobre ti edificarei a minha igreja”). Por outro lado, também é importante notar
que a pessoa de Pedro (e especialmente sua função) não é ignorada. A palavra
de Jesus é dirigida a Pedro, a partir da confissão deste (que lhe foi dada pelo Pai:
v.17). É importante a conclusão de Michael Wilkins:
“A referência não deve ser entendida tão estritamente [isto é, como se
referindo à pessoa de Pedro em si]. O propósito de um jogo de palavras é acentuar
características específicas entre palavras de som ou significado semelhantes.
Neste caso, a pessoa em si não é enfatizada, pois senão o jogo de palavras seria
desnecessário. Assim, o uso do nome Petros sugere que mais do que a pessoa
50 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28
Após a confissão de Pedro, Jesus passou a mostrar “que era necessário seguir
para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e
escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia” (v.21). Depois disso, chamou
a atenção aos discípulos das consequências de ser cristão (vs.24-25). Estas duas
palavras de Jesus (sobre sua própria missão e sobre o futuro dos seus seguidores)
estão profundamente ligadas ao conteúdo da confissão de Pedro. O fato de
Jesus ser o Cristo, o Messias, o levará à cruz do sofrimento e morte em favor da
humanidade. E também trará consequências na vida dos seus seguidores.
“É necessário”, no grego é uma forma de verbo impessoal – dei/ [dei] –, usado
como verbo auxiliar de outro verbo que normalmente está no Infinitivo. Denota
aquilo que é preciso acontecer a fim de que um plano maior se concretize. O
Evangelho conforme Mateus desde o seu começo mostra que a vida e obra de
Jesus cumprem o propósito de Deus, já revelado no Antigo Testamento. Neste
propósito estava a pregação de João Batista – por isso os discípulos perguntam
a Jesus por que seria necessário (dei/) Elias vir primeiro (Mt 17.10). Os próprios
discípulos de Jesus tiveram dificuldade de entender (e aceitar) o que estava
para acontecer com Jesus, mas o Senhor lhes afirmou que assim era necessário
(dei/) ocorrer com ele (Mt 26.54). Sendo este o plano de Deus para a salvação
da humanidade, Jesus estava disposto a cumpri-lo até o final, apesar da falta de
compreensão até mesmo dos que lhe eram mais próximos, como demonstra a
atitude de Pedro.
As palavras preditivas de Jesus falam de seu sofrimento, morte e ressurreição
(assim como ele faria novamente em 17.22,23 e 20.17-19). Pela reação dos
discípulos, parece que nem chegaram a ouvir a última parte (a promessa da
ressurreição), mas se apegaram tão somente nas palavras sobre sofrimento e
morte.
A reação de Pedro diante do anúncio feito por Jesus, além de manifestar
uma reprovação às palavras de Cristo, parece pretender, em termos práticos,
oferecer um plano alternativo para o que Deus tinha como necessário (dei).
Pedro pouco antes havia confessado ser Jesus o Messias, mas sua atitude agora
revela que ainda faltava uma compreensão mais profunda do que isso significava.
Aproveitando a confissão de Pedro, Jesus expôs com clareza o que significava e
implicava ser ele o Messias. O Cristo enviado por Deus é o Servo Sofredor (de
que falou o profeta Isaías, especialmente nos capítulos 52 e 53 de seu livro), mas
Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28 53
Pedro não conseguia entender a ligação entre o que afirmara antes e o que Jesus
agora predizia sobre sua obra.
Na tentação de Jesus (relatada em Mt 4), o diabo tentou afastá-lo de sua
missão. Aqui mais uma vez esta tentação ocorre, agora através das palavras de
um dos amigos e seguidores, o mesmo Pedro que fizera uma confissão de fé tão
notável pouco tempo antes. A semelhança entre as duas situações é ressaltada
pela resposta de Jesus a Pedro – u[page satana/ [hupage satana]. Aqui Cristo usa
palavras iguais às que ele dirigiu a Satanás por ocasião da tentação (Mt 4.10). Há
apenas o acréscimo de ovpi,sw mou [opiso mou] – parte esta que nem é traduzida
pela versão Almeida Revista e Atualizada, que tem apenas, “Arreda, Satanás!”. A
Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) traduz a expressão como: “Saia
da minha frente, Satanás!”
“Não cogitas das coisas de Deus, e sim, dos homens” – Jesus mostra com
estas palavras que a resposta de Pedro é um retrato de uma maneira tipicamente
humana de “teologizar”, ou seja, na forma de imaginar como Deus é e age. Nesta
concepção puramente humana, ao se falar de Deus e de Messias, o que vem à
mente é poder, glória, majestade. Sofrimento e morte parecem ser o oposto do
que se espera que Deus venha a realizar com seu Messias. No entanto, é por este
meio que o grande plano de Deus para a salvação da humanidade se manifesta.
E é no sofrimento e morte do Messias que seu caráter messiânico realmente se
revela.
“Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-
me” – neste texto Jesus apresenta algumas das implicações para aqueles que o
seguem, que são seus discípulos. É possível observar uma unidade nas frases
expostas nos versículos 24 a 27, sendo que cada afirmação fundamenta o que foi
dito imediatamente antes – note-se que os versículos 25, 26 e 27 iniciam com a
conjunção ga,r [gar] – “pois”, que conecta cada frase com a anterior.
“A si mesmo se negue” – esta exortação de Jesus poderia ser aplicada de
muitas maneiras diferentes (e de fato o é, em aplicações que são feitas deste
texto). É preciso estar atento ao contexto em que essas palavras foram ditas,
pois ele é decisivo para uma correta interpretação. Imediatamente antes dessas
palavras, Jesus teve de repreender Pedro, porque este pensava de maneira humana
e contrária à maneira divina, a respeito de como Deus age (especificamente
sobre como o Messias iria cumprir sua obra). Assim, negar-se a si mesmo é ir
54 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28
4.3 Conclusão
O teólogo e exegeta Frederick D. Bruner, em seu comentário ao Evangelho
conforme Mateus, chama a atenção para o capítulo 16 deste Evangelho como
sendo um texto em que Jesus ensina o que faz a Igreja ser Igreja:
1º. Confessar Jesus como o Cristo Divino, conforme a confissão feita por
Pedro – versículos 13-20;
2º. Seguir Jesus como o Cristo Sofredor, reconhecendo ser este o caminho
que Deus escolheu – versículos 21-28.
56 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28
Bruner ainda lembra que é importante manter os dois textos juntos (13-20
e 21-28), pois eles dão um quadro mais completo e fiel a respeito de Pedro e,
consequentemente, dos apóstolos de Cristo e da própria Igreja. Ele afirma: “a
Igreja é tanto o principal meio de Jesus (‘rocha’), como seu principal problema
(‘satanás’), em trazer a salvação ao mundo (assim como Israel o era para Yahweh
sob a antiga aliança).”6
Exercícios de revisão
1. Chamar Jesus de “o Cristo” significa:
a) usar aquele que foi seu sobrenome.
b) reconhecê-lo como o Messias.
c) empregar o título que Jesus mais gostava de usar para si mesmo.
d) usar um termo que não se aplica a ele.
4. Quando Jesus diz que seus discípulos devem “carregar a cruz”, ele quer
dizer que estes
a) deverão pagar pelos próprios pecados.
b) terão consequências na própria vida do fato de serem seguidores de
Cristo.
c) irão ajudá-lo a levar a cruz até o Calvário.
d) irão todos morrer crucificados, assim como Jesus.
Respostas:
1. b 2. d 3. c 4. b
5
A Ressurreição de Jesus e o
comissionamento dos apóstolos –
Mateus 28.1-20
Gerson Luis Linden
ainda é chamado de “o crucificado” (no caso das cartas de Paulo, isto acontece
mesmo algumas décadas após a ressurreição). Obviamente esta designação não é
usada para dizer que ele ainda está crucificado, mas pela importância permanente
da crucificação de Cristo. A morte do Messias na cruz não foi apenas um ato do
passado, mas algo que trouxe (e traz) consequências para o presente.
“Ele ressuscitou dos mortos” (v.6,7) – a expressão grega evk tw/n nekrw/n– dentre
os mortos – enfatiza o fato de que Jesus estava realmente morto. A preposição evk
[ek] denota separação – Jesus estava entre os mortos, verdadeiramente morto.
Este fato é fundamental para ressaltar a importância da ressurreição.
As mulheres recebem tanto do anjo como de Jesus a orientação para que
avisem os discípulos que ele ressuscitou. Elas foram as primeiras testemunhas
da ressurreição de Jesus. Este fato vem mostrar a dignidade e a importância que
as mulheres recebem no cristianismo. Já no Antigo Testamento isto é verdade,
em comparação com o judaísmo e islamismo. Mas isto se torna especialmente
evidente no ministério terreno de Jesus e na igreja primitiva. Jesus tinha
mulheres como seguidoras (Mt 27.55; Lc 8.2,3), ainda que nenhuma delas
viesse a ser “apóstola”. Na igreja primitiva havia um cuidado especial com as
viúvas. Priscila é mencionada diversas vezes como instrumento importante no
trabalho da Igreja, ao lado de seu esposo, Áquila. O fato de mulheres não serem
escolhidas para “apóstolas” (Mt 10.2-4; At 1.21-26) não tira delas a dignidade
que a fé cristã lhes dá.
“Meus irmãos” (v.10) – esta forma de Jesus referir-se aos discípulos é muito
significativa. Estes eram os mesmos discípulos que fugiram quando Jesus foi
preso e entre eles estava Pedro, que o negou. Estas palavras amorosas são como
uma palavra de absolvição para com aqueles que o haviam abandonado e nem
mesmo acreditavam que ele iria realmente ressuscitar.
Ao preservar em seu evangelho o relato da alegação dos judeus de que os
discípulos teriam roubado o corpo de Jesus (vs.11-15), Mateus traz algo único,
não relatado em nenhum outro dos Evangelhos canônicos. A deliberação
dos judeus, utilizando subterfúgios para chegar aos seus objetivos, lembra o
julgamento de Jesus pelo Sinédrio. Um fato curioso é que os guardas, que não
são crentes, são de fato os primeiros informantes históricos da ressurreição
de Jesus (v.11). Este relato, tanto do testemunho inicial dos guardas, como da
deliberação dos judeus e da subsequente mentira que se divulgou, tudo isso são
A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20 63
elementos importantes incluídos por Mateus em sua narrativa. Eles mostram que
a mensagem do evangelho não poderia continuar entre aqueles que negavam a
veracidade da ressurreição, afinal esta é fundamental na proclamação cristã.
aquele grupo para serem os apóstolos, seus enviados ao mundo como mensageiros
do evangelho. Outros viriam também mais adiante, mas estes onze ocupariam um
lugar especial no projeto de Jesus e no próprio Novo Testamento, como se pode
observar no livro de Atos dos Apóstolos.
“Seguiram ... para a Galileia” – Mateus menciona a Galileia três vezes neste
capítulo 28 (vs.7,10,16). Esta ênfase na Galileia pode ser vista em conexão com
uma menção anterior àquela região, em Mateus 4.15, no início da pregação
de Jesus (4.17). Naquele texto, Mateus cita palavras do profeta Isaías (9.1,2),
em que este fala das terras de Zebulom e Naftali como a “Galileia dos gentios”.
Gentios eram pessoas de origem outra que não a judaica. É significativo que a
palavra traduzida por “gentios” em 4.15, e;qnh [ethne] é a mesma usada por Jesus
no comissionamento dos apóstolos em 28.18, que grande parte das versões em
português traduz como “nações” (28.19).
Lembrando que Mateus escreveu seu evangelho especialmente para pessoas
de origem judaica, o texto final do Evangelho chama a atenção para os leitores
que Jesus dirigiu o trabalho missionário futuro especialmente aos gentios e
que eles, os descendentes dos patriarcas, perderam seu estado especial (cf. Mt
8.11,12). Anteriormente, Jesus havia dado aos Seus discípulos a ordem de ir para
as ovelhas perdidas da casa de Israel e não dirigir o trabalho para os gentios
(10.5,6). Agora, ao final do Evangelho, Mateus mostra que os novos discípulos
de Jesus devem ser feitos dentre os gentios. Evidente que isso não implica que
os judeus serão deixados fora do propósito salvador de Deus, pela proclamação
do evangelho. No entanto, eles não mais terão um status especial como povo
de Deus. Eles serão mais um povo, ao lado de tantos outros, e, neste sentido,
também serão objeto da atuação missionária dos apóstolos, como deixa claro o
livro de Atos dos Apóstolos e as Epístolas do apóstolo Paulo.
“Para o monte” (v.16) – acontecimentos importantes no ministério de Jesus
ocorreram em montes (Mt 5.1ss; 17.1ss; etc.). Particularmente, uma situação
há de ser notada. É aquela em que Jesus, sobre um monte, na Galileia (seria o
mesmo monte?), constitui Seus discípulos como apóstolos (Mt 10.1-5; cf. Mc
3.13-19). No Antigo Testamento, o monte Sião é retratado como o “lugar” do
encontro de Deus com o Seu povo, manifestando-se em graça e salvação. E eis
aí Jesus, o mesmo Yahweh, encontrando-se com os Seus.
A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20 65
“Adoraram ... duvidaram” – o texto grego deixa claro que os mesmos que
adoraram, também duvidaram. A adoração só pode ser compreendida como
um reconhecimento do caráter divino de Jesus. O próprio Jesus havia deixado
claro que não se pode adorar a ninguém a não ser o próprio Deus (Mt 4.10).
A pergunta surge: como puderam eles adorar e também duvidar, assim, numa
mesmo situação? Apesar de algumas traduções do texto (“Alguns adoraram
... outros duvidaram ...”) e explicações sugerirem que havia outras pessoas
naquela situação, de modo que os onze teriam adorado e os demais duvidado,
tal explicação não encontra qualquer respaldo no próprio texto. Como visto
acima, a audiência de Jesus neste texto são os onze e mais ninguém. A questão,
portanto, que tem de ser respondida é esta: como podem as mesmas pessoas
adorar a Cristo e ao mesmo tempo duvidar? A resposta para isso vem de duas
considerações, uma quanto ao significado do verbo traduzido por “duvidar”. E
a outra explicação vem de uma reflexão sobre a natureza humana.
O verbo dista,zw [distazoo] – duvidar – significa um estado de incerteza,
indecisão quanto a como agir. Não é que os discípulos duvidassem que aquele à
sua frente fosse Jesus. O fato é que eles não sabiam como agir! Vale lembrar que
foram estes mesmos discípulos que alguns dias antes o haviam abandonado.
O exegeta bíblico David R. Bauer, em seu estudo sobre a estrutura do
Evangelho conforme Mateus, deixa claro que não há no texto qualquer
contradição, que alguns estudiosos têm visto entre os conceitos de adoração e
de dúvida. Todos adoraram, mas eles também duvidaram. Bauer lembra que
esta dúvida deve ser entendida à luz de Mateus 14.31-33, onde os discípulos são
identificados como aqueles de “pequena fé”. Aquele é o único outro texto em que
o mesmo verbo dista,zw é utilizado em Mateus, além de em 28.18. A conclusão
de Bauer: “esta dúvida expressa uma hesitação, que impede os discípulos de se
apropriarem das plenas possibilidades de persistência, poder e missão que são
oferecidos através de Cristo”.8
Este quadro, de adoração e dúvida, é bastante realista em relação à natureza
humana. No caso dos filhos de Deus – como mostram inúmeros exemplos nas
páginas do Antigo e Novo Testamentos – demonstrações de fé andam lado a
lado com momentos de dúvida, quedas, fraquezas. Tal fato vem a ressaltar a
|| 8 David R. Bauer, The Structure of Matthew’s Gospel, Sheffield, England: Almond Press, 1988,
p.110.
66 A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20
Fica evidente que nestas palavras de Jesus há uma ordem – “discipulai” (verbo
no Imperativo). Para que esta ação se realize, dois instrumentos são dados pelo
Senhor: Batismo e ensino da Palavra. Os dois verbos no particípio mostram de
que maneira a ação de discipular se realizará. O verbo traduzido em algumas
versões por “ide” está na verdade no modo Particípio. Uma tradução melhor seria
“indo”, ou “tendo ido”. Ou seja, o “ir” é circunstancial. É preciso estar em algum
lugar (onde há pessoas!) para discipular! Mas não há uma ordem específica para
ir a algum lugar. Não há, portanto, uma “teologia de ir” no texto. Portanto, não
se deveria enfatizar o “ir”, como se esta fosse a ordem dada por Cristo.
“Discipulai” = “fazei discípulos” (v.19) – significa levar pessoas à fé e à vida
cristã. Como as próprias palavras de Jesus deixam claro, este não é um ato que
se realiza através de um convencimento racional, dependente da habilidade
humana. É através do batizar e ensinar a palavra de Cristo que pessoas virão a
ser seus discípulos.
A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20 67
Exercícios de revisão
1. Qual a importância da menção à Galileia, local em que a situação
relatada ocorre?
a) Era o local onde ficavam as pessoas mais nobres da Palestina.
b) É o local identificado como de maioria de pessoas de origem gentílica,
a quem Jesus enviou os apóstolos.
c) Nunca Jesus havia ido para esta região antes.
d) Lá estavam localizadas as maiores cidades da região.
Respostas:
1. b 2. d 3. c 4. b
6
Introdução
Não será necessário, nem possível, refazer o caminho percorrido em
Princípios de Interpretação da Bíblia, ensinando como se lê adequadamente
um texto bíblico. O que se pode fazer é recomendar que se releia, em especial,
o capítulo sobre a interpretação de epístolas que faz parte daquela disciplina. No
entanto, nunca é demais relembrar e aprofundar alguns detalhes, especialmente
em preparação para um estudo mais sistemático de textos da carta de Paulo aos
Filipenses. É o que faremos neste capítulo.
em que Jesus nos chamar para com ele morar, no céu, onde todas as coisas que
estão ocultas aos nossos olhos se revelarão”.
Examinado à luz de um estudo mais cuidadoso do texto de Colossenses 3,
este comentário pode ser criticado nos seguintes termos: muito mais do que
dizer que “Cristo está em nós”, Paulo parece pressupor que nós estamos em
Cristo, pois morremos e ressuscitamos “com ele”. O texto nada diz sobre o que
Cristo nos dá (paz, etc.). “Cristo é a nossa vida”: com certeza, é isso que o texto
diz. Apelar a um verbo grego em nada muda a situação: faneróo (na verdade, o
verbo aparece na voz passiva, e não na voz ativa!) diz essencialmente o mesmo
que expressamos através de “manifestar”. Colossenses 3 afirma que Jesus vai nos
chamar “para com ele morar, no céu”? Certamente, não. Fala da manifestação de
Cristo, no último dia. O texto também não trata da revelação de coisas ocultas
aos nossos olhos, no céu, mas da nossa revelação, em glória, em e com Cristo,
no último dia!
Além de ater-se cuidadosamente ao que o texto diz, é preciso levar em conta
o contexto comunicacional. Nisso se inclui o contexto social e cultural daquela
época. Vivemos muito tempo após a época dos apóstolos. Nosso contexto é
diferente. E, em se tratando de uma comunicação entre pessoas que se conhecem,
como é o caso de um apóstolo de Cristo e determinada igreja, no momento
em que começamos a ler uma dessas cartas entramos numa comunicação
que já está em andamento. Sempre que fazemos um primeiro contato com
alguém, somos muito explícitos naquilo que dizemos ou escrevemos. Quando
a comunicação está em andamento, podemos pressupor tudo que já foi dito ou
escrito anteriormente. No caso de Filipenses, ela faz parte de uma “conversa”
mais longa entre Paulo e essa igreja. Após o encontro inicial que resultou na
fundação da igreja, Paulo e os filipenses continuaram em contato. Na carta,
Paulo cita que eles já o haviam auxiliado em mais de uma oportunidade (Fp
4.16). Este contexto, que é pressuposto, é o que mais nos falta.
Tentar reconstruir o contexto comunicacional original é algo que sempre
fazemos, quase que automaticamente. Não se trata de perguntar se vamos
fazer essa reconstrução, mas como vamos fazê-lo. Quando alguém escreve uma
história, geralmente descreve a situação; ela faz parte da narrativa. No caso
de uma epístola, porém, essa situação é em geral pressuposta. Mas, como o
texto só faz sentido pleno dentro do contexto em que ocorre, temos que tentar
reconstruí-lo.
74 Como fazer a exegese das Epístolas
6.2.2 Vocabulário
Ainda sob aspectos textuais, é preciso examinar as partes, as palavras e frases.
A pergunta a ser feita é: Entendo todas as palavras? E como as palavras se juntam
para formar um texto? No caso das epístolas – como também em outros gêneros
bíblicos – é preciso superar a tendência de querer enxergar apenas palavras
isoladas. Um texto é feito de palavras, sim, mas um texto é mais do que a soma
dessas palavras. Um texto é um tecido, uma série de palavras que são ajuntadas
para expressar o pensamento. Não há como não ir de palavra em palavra, até
chegar ao final do texto. Mas, no final dessa caminhada, é preciso ver o todo.
Ou seja, importa ir das partes (as palavras) para o todo (o texto) e do todo (o
texto completo) voltar às partes (as palavras individualmente).
Contexto
Texto – Fp 4.2,3 Ideias transmitidas
comunicacional
v.2 – Rogo a Quando há uma Tudo indica – pelos nomes
Evódia e rogo a divergência ou falta de citados – que Paulo se
Síntique pensem concórdia entre cristãos, dirige a duas senhoras
concordemente, no este é um assunto sério, cristãs.
Senhor. que o apóstolo (em Havia mulheres, com
nome de Deus) quer ver certeza líderes, naquela
tratado. igreja, a ponto de
Isso tem especial receberem uma palavra
importância no caso de especial, direta, do
lideranças. apóstolo Paulo.
A concórdia é, acima de Havia algum tipo de
tudo, uma possibilidade divergência entre essas
“no Senhor”, em Cristo, duas mulheres.
na fé.
v.3 – A ti, fiel Paulo contou com Paulo se vê como alguém
companheiro de a participação de que está “sob um jugo”.
jugo, também peço colaboradores na tarefa Ele não se vê como alguém
que as auxilies, pois de espalhar o evangelho, que está sozinho nessa
juntas se esforçaram incluindo Evódia e condição, mas conta
comigo no evangelho, Síntique. com a colaboração de
também com Clemente Ele pode se valer companheiros.
e com os demais também dos serviços de Esse companheiro de jugo
cooperadores meus, um companheiro de jugo está em condições de
cujos nomes se para auxiliar duas irmãs prestar uma ajuda àquelas
encontram no Livro da na fé a superarem as irmãs, embora essa ajuda
Vida. suas divergências. não seja especificada.
Todo esse trabalho é Trata-se efetivamente
feito sob a perspectiva de duas mulheres (como
do fim, isto é, dos nomes as formas do feminino
inscritos no Livro da claramente indicam).
Vida. Paulo teve colaboradores
no trabalho de espalhar
o evangelho, incluindo
mulheres.
Existe um Livro da Vida no
qual são inscritos nomes.
Tudo indica que a inscrição
do nome é uma forma de
“recompensa”.
80 Como fazer a exegese das Epístolas
e à sua credibilidade (etos)? Ele faz uso de argumentos mais objetivos ou lógicos
(logos)? Ele procura mover os seus ouvintes, talvez com algum apelo de ordem
mais emocional (pathos)?
Outra possibilidade é ouvir o texto em termos da polaridade lei-evangelho.
Onde o texto acusa (em nome de Deus)? Que problemas diagnostica e ataca?
O que o texto promete e dá (em nome de Deus)? Em outras palavras: onde está
a lei e onde está o evangelho?
Também é possível perguntar: O que esse texto tem a dizer a mim, à igreja
de nossos dias, às pessoas de nossos dias? Ele me inspira a orar e louvar? Que
atitude devo tomar diante dele?
Depois de aplicarmos o texto a nós mesmos, podemos começar a refletir sobre
formas de ensiná-lo ou pregá-lo a outros. O que eu gostaria de enfatizar num
estudo bíblico ou numa pregação? O que só este texto ensina? Que mensagem
bíblica mais ampla é confirmada por este texto?
Exercícios de revisão
1. No campo da interpretação bíblica, utiliza-se comumente o termo
“exegese” e, por vezes, também se utiliza o termo “eisegese”. Explicando,
isso significa:
a) que exegese é o ato de interpretar um texto, extraindo dele o que ele
diz, e que eisegese é o ato (censurável) de atribuir ao texto ideias que
ele não traz.
b) que exegese é o ato de fazer o texto dizer o que ele de fato não diz, ao
passo que eisegese é a prática correta, ou seja, é extrair o conteúdo
do texto.
c) que exegese é o ato de enxergar no texto o que normalmente não se
vê, enquanto eisegese é limitar-se exclusivamente ao que o texto está
dizendo.
d) que os termos exegese e eisegese são essencialmente sinônimos,
sendo que alguns autores preferem o termo exegese, enquanto outros
preferem o termo eisegese.
82 Como fazer a exegese das Epístolas
Respostas:
1. a 2. d 3. b 4. c
7
Filipenses 1.1-11
Vilson Scholz
Introdução
Para esta segunda parte da disciplina de Exegese do Novo Testamento –
dedicada ao estudo de textos de epístola – decidimos examinar trechos da carta
de Paulo aos Filipenses.
Por que Filipenses? Trata-se de uma carta relativamente breve, o que permite
que se faça o estudo de seus quatro capítulos em pouco tempo (normalmente,
meio semestre letivo). Mas isso não é o mais importante. Filipenses é uma
candidata natural a assunto de exegese por ser uma interessante porta de entrada
no conjunto dos escritos paulinos. Ela aborda uma série de temas que são típicos
das cartas de Paulo. Por outro lado, nela encontramos Paulo “nos seus melhores
dias”, alegre e feliz da vida, ainda que esteja na prisão. Escreve (ou faz o ditado da
carta) de forma mais descontraída, sem a pressão resultante de algum problema
urgente numa de suas igrejas.
E, ao escrever (ou ditar a carta), Paulo registra palavras que se tornaram
clássicas no cristianismo, como “para mim, o viver é Cristo” (1.23); “tenho o
desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (1.23);
“para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho... e toda língua confesse que
Jesus Cristo é Senhor” (2.10-11); “considero tudo como perda, por causa da
sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor” (3.8); “esquecendo-
86 Filipenses 1.1-11
me das coisas que para trás ficam ... prossigo para o alvo, para o prêmio da
soberana vocação de Deus, em Cristo Jesus” (3.13-14); “a nossa pátria está nos
céus” (3.20); “alegrai-vos sempre no Senhor” (4.4); “tudo posso naquele que me
fortalece” (4.13).9
Não nos será possível fazer exegese da carta na íntegra. Decidimos, então,
escolher um trecho de cada capítulo da carta. Iniciamos com a abertura da carta,
Filipenses 1.1-13. Talvez não seja um texto visto como dos mais profundos ou
significativos de Filipenses; no entanto, ao se fazer um início, nada melhor do
que começar pelo princípio.
7.1 O texto
Segundo a tradução de Almeida Revista e Atualizada, nos primeiros treze
versículos da carta se lê o que segue:
|| 9 Tirar essas citações de seu contexto não é boa prática exegética. Fazemos apenas com o intuito
de mostrar algumas das preciosidades que são reveladas pelo estudo de Filipenses, para que
você se anime e diga: Sim, vai valer a pena estudar alguns trechos desta carta!
Filipenses 1.1-11 87
7.3.2 Vocabulário
Os termos ou vocábulos que aparecem na tradução de Almeida não
apresentam maiores dificuldades, embora ocorram termos um tanto técnicos
como “santos” (v.1), “graça” (v.7) e “inculpáveis” (v.10).
Uma formulação que chama a atenção ocorre no v.10, na Bíblia de Almeida:
“para ... serdes sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo”. O “Dia de Cristo”
é, com certeza, o dia da vinda de Cristo. Agora, o que seria “para o Dia de
Cristo”? Tudo indica que seja algo como “até o Dia de Cristo” (Almeida Revista
e Corrigida) ou “no dia da vinda de Cristo” (NTLH).10 Mas o que chama a
atenção é o uso do termo “sincero”. Em português moderno, “sincero”, quando
aplicado a pessoas, pode significar “aquele que não tem a intenção de enganar”
ou, então, “em quem se pode confiar”. Estes dois significados não se encaixam
muito bem no contexto de Filipenses 1.10. O sentido aqui parece ser o de “puro”
ou “inocente”. A palavra que segue (“inculpáveis”), um sinônimo usado, ao que
tudo indica, para reforçar a ideia do termo anterior, tende a confirmar esta
leitura. Tanto assim que a NTLH traduz assim: “vocês estarão livres de toda
impureza e de qualquer culpa”.
Também chama a atenção a frequente combinação de duas palavras sinônimas:
conhecimento e discernimento (v.9), puros e inculpáveis (v.10), glória e louvor
(v.11). Uma dessas palavras, “discernimento” (aisthesis, em grego) é hápax, ou
seja, palavra que, em todo o Novo Testamento, ocorre somente aqui.11
Examinando mais de perto esse trecho no seu todo, percebe-se que, depois
da abertura da carta, nos versículos 1 e 2, existe um longo período que vai do
versículo 3 ao 7. Apenas no versículo 8 aparece uma conjunção (“pois”). O
versículo 9 é uma nova frase, que vai até o final do versículo 11.
|| 10 É preciso levar em conta que, no tempo do Novo Testamento, a preposição grega eis, que em
geral é traduzida por “para”, podia ter o significado de “em”.
|| 11 O caráter singular de Filipenses já aparece no número de hápax: são 40 ao todo. Gálatas e Efésios,
que são mais longas do que Filipenses, têm, respectivamente, 31 e 35 termos de ocorrência
única no NT.
90 Filipenses 1.1-11
“intercessões”, tal leitor citaria uma ocorrência em Filipenses 1.4 (“súplicas por
vós”), quando, na verdade, o que existe são duas ocorrências desse termo.
No versículo 5, aparece a palavra grega “koinonía”. Vendo a palavra dentro da
frase, constata-se que está escrito o que segue: “a koinonía vossa no (ou, com vistas
ao) evangelho”. ARA traduz isso por “vossa cooperação no evangelho”. NTLH diz:
“a maneira como vocês me ajudaram no trabalho de anunciar o evangelho”.13 As
duas traduções dão a entender que os filipenses são ajudantes de Paulo na tarefa
de anunciar o evangelho. E eles certamente o foram, especialmente com ajuda
de ordem financeira. Agora, o termo koinonía (“comunhão”) sugere mais; sugere
uma sociedade, uma parceria.14 Os filipenses, muito mais do que ajudantes de
Paulo, eram “sócios” dele. Pelo menos é assim que Paulo os apresenta.15
No v.8, a Bíblia de Almeida (tanto a Revista e Corrigida quanto a Revista
e Atualizada) emprega o termo “saudade(s)”. Considerando que saudade é um
termo típico da língua portuguesa, que não se traduz facilmente para outras
línguas,16 o exegeta fica curioso em saber o que exatamente está sendo traduzido
por “saudade”. A resposta vem, mais uma vez, do Novo Testamento Interlinear
Grego-Português, que reproduz a estrutura formal do grego: “como anseio
por todos vós”. Em outras palavras, no grego aparece um verbo (epipothéo).
Existe um substantivo cognato (epipóthesis), que é usado duas vezes no Novo
Testamento (2 Co 7.7,11) e que, nos dois casos, é traduzido por “saudades” na
Bíblia de Almeida.17
|| 13 A NTLH reflete o consenso exegético de que “evangelho”, neste caso, significa “o anúncio do
evangelho”.
|| 14 Na época do NT, o termo podia ser usado em referência ao casamento, que não deixa de ser
uma “sociedade”.
|| 15 Do ponto de vista retórico, denominar alguém de sócio é muito mais “simpático” do que chamá-
lo de ajudante ou colaborador.
|| 16 O termo inglês “homesick” traduz parte do que podemos dizer com “saudade”, mas não soa
muito natural quando se tem saudades de uma pessoa. Tanto assim que, em inglês, as traduções
tendem a usar a expressão “to long for” ou “to yearn for”. Segundo o Dicionário Houaiss, a
palavra saudade derivou de uma palavra latina que significava “só, solitário”. Foi preservada
em espanhol na forma de “soledad” (solidão) e, em português, virou “saudade”.
|| 17 Na Almeida Revista e Corrigida, “saudade” aparece uma única vez, ao passo que “saudades”
ocorre oito vezes. Na Almeida Revista e Atualizada, aumenta a frequência desses termos: onze
ocorrências (5 de “saudade”; 6 de “saudades”). Na NTLH, o número de ocorrências é bem maior:
21 (“saudades”, 8 vezes; “saudade”, 13). Sendo um termo tão expressivo em nossa língua, é
muito bom que o número de ocorrências aumente.
92 Filipenses 1.1-11
Contexto
Texto – Fp 1.9-11 Ideias transmitidas
comunicacional
E também faço esta Paulo ora pelos filipenses, • Parece que era comum
oração: que o vosso fazendo um pedido bem um líder como Paulo
amor aumente mais específico, que é, na fazer oração por uma
e mais em pleno verdade, um pedido feito igreja.
conhecimento e de várias partes. Começa • Ao se orar, costuma-
toda a percepção, falando sobre o amor, que se fazer pedidos bem
para aprovardes as ele quer ver aumentar. Fica específicos.
coisas excelentes claro que a vida cristã é • O amor pode aumentar.
e serdes sinceros e uma jornada em que o alvo • Amor e conhecimento
inculpáveis para o sempre se desloca para a não são coisas opostas.
Dia de Cristo, cheios frente. Ele não especifica • Há coisas que são
do fruto de justiça, um objeto do amor (quem é excelentes, ou seja, não
o qual é mediante amado?), embora se possa existe indiferença moral.
Jesus Cristo, para a pensar na ajuda financeira • É possível ter o
glória e louvor de que os filipenses haviam discernimento para
Deus. (Fp 1.9-11) mandado para Paulo. Ao escolher o que é melhor.
crescimento do amor Paulo • Existe o que se chama de
acrescenta o conhecimento “o Dia de Cristo”.
e o discernimento, • Naquele Dia é importante
mostrando que o amor não ser puro e inculpável.
é cego. Parte do pedido • O “fruto da justiça” (ou
é que os cristãos tenham “as boas qualidades”)
o discernimento para acompanha o ser
escolher o que é o melhor, inculpável, por mais que
para que sejam inculpáveis o ser inculpável venha
no dia do Juízo, cheios do antes.
fruto de justiça. Este fruto • Cristo é mediador, ou
de justiça é por meio de seja, existem coisas que
Jesus, ou seja, decorre da ocorrem “por meio dele”.
ação de Jesus, e o alvo de • Deus pode e deve ser
tudo é a glória e o louvor glorificado e louvado.
de Deus.
Percebe-se que Paulo não faz muito progresso ao longo desses versículos. Ele
inicia dizendo que intercede pelos filipenses e explicando que faz essa intercessão
com alegria. Refere-se, então, à parceria dos filipenses na obra da evangelização,
expressando sua convicção de que Deus vai mantê-los nesse caminho. A rigor, ele
não apresenta o conteúdo da intercessão. Explica, ainda, que é natural que ele se
sinta assim em relação aos filipenses, pois estão no coração dele. Em seguida ele
reafirma que os filipenses são seus parceiros nessa obra e assegura que Deus é
testemunha do amor que ele tem por eles. Neste sentido, a frase 7 repete a frase
3, e a frase 8 reafirma o conteúdo das frases 5 e 6. Na frase 9 (que corresponde
ao v.9), Paulo finalmente chega ao ponto: ele indica o conteúdo da intercessão
ou explica o que, em específico, ele pede, em sua oração.19
|| 19 Convém notar que a tradução de Almeida Revista e Atualizada não traduz de forma adequada,
ao dizer “e também faço esta oração”. A rigor, o texto grego diz apenas “e isto oro”, ou seja,
“e faço a seguinte oração” (ARC traz “e peço isto”). Apenas no v.9 Paulo expressa o conteúdo
de sua oração.
96 Filipenses 1.1-11
|| 20 Lembrando, mais uma vez, que esses períodos de abertura ou parágrafos iniciais funcionam, nas
cartas de Paulo, como uma espécie de apresentação ou palavra introdutória: ali se percebe o
tom da carta e são anunciados os temas principais a serem desenvolvidos no corpo da carta.
|| 21 Embora apareça como primeiro item da lista, cumpre ressaltar que alegria não é de forma
alguma o único tema ou o tema principal desta carta. Quem descreve Filipenses como “a carta
da alegria” transmite uma impressão errônea.
Filipenses 1.1-11 97
Quanto aos argumentos que Paulo emprega, se temos mais ethos, logos ou
pathos, nota-se que há uma tendência de pathos. Em outras palavras, Paulo
fala bem dos filipenses. Ele “joga para a torcida”, lembrando-lhes a parceria na
proclamação do Evangelho.
Exercícios de revisão
1. Sobre a igreja cristã de Filipos, a quem Paulo escreveu a carta que faz
parte do Novo Testamento, podemos dizer:
a) que foi fundada pelo próprio Paulo, como ele explica na carta, em
detalhes.
b) que foi fundada pelo próprio Paulo, embora esse dado nos venha de
Atos.
c) que foi fundada por um colaborador de Paulo, chamado Epafrodito.
d) que foi fundada antes de Paulo, por pessoas que estiveram no
Pentecoste, em Jerusalém (At 2).
Respostas:
1. b 2. c 3. a 4. c
8
Filipenses 2.5-11
Vilson Scholz
Introdução
Filipenses 2.5-11 é um dos textos mais bem conhecidos de toda a Bíblia,
especialmente em sua parte final, onde se fala sobre “todo joelho se dobre
e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor”. É um texto importante,
muito importante, para a doutrina da pessoa de Cristo (cristologia). É, também,
uma das mais antigas confissões de fé. Foi um texto longamente debatido,
especialmente no passado. Hoje, parece haver um consenso quanto ao que o
texto diz, embora a primeira parte seja bastante complexa e passível de diferentes
leituras. Assim, vale a pena debruçar-se sobre tão importante texto da carta de
Paulo aos Filipenses, chamado por Lutero de “um poço dos mais profundos”.
8.1 O texto
Segundo a tradução de Almeida Revista e Atualizada, o texto de Filipenses
2.5-11 é o seguinte:
|| 22 Pode parecer confusa essa distinção entre seção e parágrafo. Por seção se entende um trecho,
maior ou menor, que tem um título, o assim chamado “título de seção”. Já o parágrafo é um
bloco de texto ou um conjunto de versículos que não tem, necessariamente, um título. Em
geral, uma seção é feita de vários parágrafos.
Filipenses 2.5-11 101
8.2.2 Vocabulário
Já se mencionou que Filipenses 2.5-11 é um texto complexo. Talvez não tanto
pelas palavras tomadas individualmente, mas pelo conjunto delas, na formação
do texto. No entanto, algumas palavras da tradução de Almeida apresentam
maiores dificuldades, especialmente à luz do significado que têm, à primeira
vista, em português moderno.
Um desses termos é “sentimento”, na frase “tende em vós o mesmo
sentimento”, no versículo 5. Segundo o Dicionário Houaiss, sentimento pode
ser o ato ou efeito de sentir ou de sentir-se. Mas pode significar, também, algo
como “sensibilidade”. Um terceiro sentido é “faculdade de conhecer, perceber
ou apreciar”. Em quarto lugar aparece “atitude mental ou moral caracterizada
pelo estado afetivo”, um significado que a palavra tem numa expressão como
“sentimento patriótico”. Visto que, em grego, aparece um verbo (phronéo) que
pode ser traduzido por “ter em mente”, a melhor maneira de entender “tende
em vós o mesmo sentimento” é em termos de “tende a mesma atitude mental”
ou “tende a mesma disposição mental” (com tudo que daí decorre, em termos
de atitudes). Sentimento, neste caso, é um modo de pensar e de agir.
Outra formulação difícil aparece no v.6, onde diz que Cristo Jesus “não julgou
como usurpação o ser igual a Deus”. O que seria, neste caso, usurpação? Trata-
se do ato de usurpar. Usurpar dá a ideia de apossar-se de algo ou tomar algo
|| 23 Nota-se, em O Novo Testamento Grego, a preferência por um título mais “teológico”, incluindo
os termos humilhação e exaltação. A NTLH, por sua vez, opta por um título mais simples, com
os termos humildade e grandeza. Isso mostra que o termo “exaltação”, por exemplo, é complexo
e difícil de entender, fora do contexto específico do estudo da teologia.
|| 24 A outra edição do texto grego, conhecida como Nestle-Aland, faz um novo parágrafo no versículo
5. Como é sabido, esta edição não traz títulos de seção.
102 Filipenses 2.5-11
pela força ou sem direito.25 Pode, também, ter um sentido um pouco diferente:
exercer um cargo ou uma função indevidamente. A definição do significado
passa pelo exame do termo grego. A palavra (harpagmós) é um hápax, isto
é, palavra de ocorrência única no Novo Testamento. Discute-se o significado
exato deste termo, que é um cognato do verbo harpázo, geralmente traduzido
por “arrebatar” (como em Jo 10.12). Há, basicamente, duas opções: a) algo a ser
conseguido à força; b) algo a ser mantido à força ou a qualquer custo.26
O dicionário semântico de Louw e Nida27 registra as duas possibilidades,
sugerindo, inclusive, que, na tradução de Filipenses 2.6, se indique claramente
essas duas possibilidades de tradução, uma no texto, outra em nota de pé de
página. A primeira possibilidade é traduzir por “ele sempre tinha a natureza de
Deus e não considerou que se tornar igual a Deus era algo a ser conseguido à
força”. Tal interpretação reflete o ponto de vista de Jesus após a encarnação e o
fato de que ele não pensava em tornar-se igual a Deus porque ele já tinha todos
os atributos da divindade. A segunda opção é “usurpação” no sentido de algo
que se quer manter à força. Neste caso, Filipenses 2.6 poderia ser traduzido por
“ele sempre tinha a natureza de Deus e não julgou que permanecer igual a Deus
era algo que tinha de ser mantido à força”. Esta interpretação presume a situação
de Jesus antes da encarnação e, por conseguinte, a sua disposição de passar pelo
“esvaziamento” de suas prerrogativas divinas.
Uma definição mais clara desta questão passa pela definição do referente
específico de “Cristo Jesus”. Claro, trata-se de Cristo. Agora, que Cristo: o Cristo
já encarnado ou o Cristo antes da sua encarnação? Teólogos luteranos preferem,
em geral, a primeira opção, entendendo que o texto não fala sobre a encarnação
de Cristo, mas estritamente sobre a sua humilhação.
No mesmo versículo 6 aparece o termo “subsistindo”. Subsistir é perdurar,
continuar a existir, entre outros significados possíveis. Quem lê Almeida Revista
e Atualizada pode pensar que se trata, em grego, de um verbo complicado ou
algo assim. Na verdade, é um verbo que é equivalente ao verbo ser. Tanto assim
|| 25 As primeiras edições da Almeida, do século XVII, trazem o termo “rapina”, que diz mais ou
menos o mesmo que “usurpação”. O mesmo termo aparece em O Novo Testamento Interlinear
Grego-Português. É o termo usado também na Vulgata.
|| 26 Uma vez que essa “rapina” ou “usurpação” é “o ser igual a Deus”, fica claro que a palavra é usada
em sentido figurado ou metafórico. Em outras palavras, não se trata de raptar um objeto.
|| 27 Neste dicionário, o termo foi incluído num subdomínio intitulado “furtar, roubar”, dentro do
domínio semântico de número 57: possuir, transferir, trocar.
Filipenses 2.5-11 103
|| 29 Esta tradução foi relançada em formato impresso pela Sociedade Bíblica do Brasil em 2011.
Antes já havia sido disponibilizada em formato eletrônico.
|| 30 Esta tradução segue os mesmos princípios da Nova Tradução na Linguagem de Hoje, só que feita
em Portugal.
Filipenses 2.5-11 105
direito de ser igual a Deus. Pelo contrário, privou-se do que era seu e tomou a
condição de escravo, tornando-se igual aos homens”. Percebe-se que também
esta tradução prefere a opção 2: Cristo Jesus esteve disposto a abrir mão de um
direito que tinha. Fica mais evidente, nesta tradução, que a grandeza do gesto
de Cristo consiste na sua humanização, ou seja, no fato de tornar-se igual aos
homens. Chama a atenção o emprego do termo “escravo” para traduzir doulos,
sendo que a maioria das traduções prefere “servo”.31
A Contemporary English Version32 diz mais ou menos assim: “Cristo era
verdadeiro Deus. Mas ele não tentou permanecer na condição de igual a Deus.
Ao contrário, abriu mão de tudo e se tornou um escravo, ao se tornar como um
de nós”. Percebe-se que a tradução anterior se aproxima bastante do texto desta
versão inglesa, que, por sua vez, também prefere a opção 2. O uso do termo
“escravo” é outra semelhança com A Bíblia Para Todos.33
A English Standard Version, uma das mais recentes traduções ao inglês (ela é
de 2001), diz aproximadamente o que segue: “Tende entre vós esta mentalidade,
que é vossa em Cristo Jesus, o qual, embora estivesse na forma de Deus, não
considerou igualdade com Deus algo a ser conseguido, mas se anulou, assumindo
a forma de um servo, tendo nascido na semelhança de homens”. Esta tradução
reflete a opção 1, ou seja, Cristo é Deus, mas não faz questão de ser igual a Deus.
Sugere, igualmente, que Cristo assumiu a forma de servo depois que nasceu em
semelhança de homens.
A Traducción en Lenguaje Actual, uma versão castelhana de 2003, feita na
América Latina e destinada a um público feito de crianças e leitores novos,
traduz o texto por “Tenham a mesma maneira de pensar que Jesus Cristo teve:
Ainda que Cristo sempre tenha sido igual a Deus, não insistiu nessa igualdade.
Ao contrário, renunciou a essa igualdade, e se fez igual a nós, fazendo-se escravo
de todos”. Parece que também esta tradução prefere a opção 2. Embora isso não
seja dito com todas as letras, a tradução parece sugerir, todavia, que, ao se fazer
escravo de todos, Jesus se fez igual a nós. Neste caso, nós seríamos o modelo
|| 31 Reveja a aula anterior, sobre Filipenses 1.1-11, e a discussão sobre a tradução desse termo.
Note-se que A Bíblia Para Todos traduz o mesmo termo por “servos”, em Filipenses 1.1.
|| 32 Esta “Tradução Inglesa Contemporânea” foi publicada, como Bíblia completa, em 1995. A
tradução, feita ao correr da pena, é nossa.
|| 33 Não se está sugerindo que uma tradução depende da outra. Caso, porém, tivesse havido tal
dependência, seria da tradução portuguesa em relação à inglesa, por causa da ordem cronológica
em que surgiram.
106 Filipenses 2.5-11
que Cristo seguiu. No entanto, tal leitura pode resultar de uma compreensão
inadequada do texto espanhol.
Já a Nova Tradução na Linguagem de Hoje parece um pouco mais ambígua na
questão que estamos a investigar. Afirma que Cristo Jesus “tinha a natureza de
Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo
o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres
humanos”. A ambiguidade reside no uso da expressão “tentou ficar igual a Deus”.
Isso pode ser lido (numa probabilidade maior) como abrir mão da tentativa de
permanecer na condição de igualdade com Deus (opção 2), mas poderia ser lido
também como um abrir mão da tentativa de alcançar a igualdade com Deus
(opção 1). Também esta tradução, pelo uso do “assim” (em “tornando-se assim
igual”), dá a entender que Cristo tornou-se igual aos seres humanos no ato de
tomar a natureza de servo. Ou seja, também neste caso, o modelo do que Cristo
fez seriam os seres humanos.
Dito isso, queremos igualmente, conforme anunciado, verificar como foi
traduzido um trecho da parte final do texto, mais especificamente a referência aos
joelhos que se dobram no céu, na terra, e debaixo da terra (v.10). Aqui cumpre
lembrar que, numa tradução bem literal,34 o texto grego diz “para que ... se dobre
todo joelho de (seres) celestiais e de (seres) terrestres e de (seres) debaixo da
terra”. O “joelho” é, sem dúvida, uma metonímia para “pessoa” ou “criatura”
(NTLH). Mas o que interessa mesmo é a maneira como as traduções lidam
com a expressão citada. Trata -se de uma maneira de falar de todo o universo,
conforme a concepção que se tinha naquele tempo: o céu (onde Deus está), a
terra (o habitação humana) e as regiões debaixo da terra (a morada dos mortos).
Nenhuma tradução, porém, ousa simplificar isso, afastando-se da formulação
tradicional, que reflete “um universo em três andares”: céu, terra, debaixo da
terra. A NTLH, todavia, prefere especificar a que se refere essa região debaixo da
terra: “todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos”. Já a Tradução
Brasileira, confirmando sua fama de Bíblia Tira-Teima, é a que mais se aproxima
do que efetivamente está escrito no grego: “para que em o nome de Jesus se dobre
todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra”.35
Contexto
Texto – Fp 2.8-11 Ideias transmitidas
comunicacional
8
(Cristo Jesus) Cristo se humilhou, sendo • “Morte de cruz” é algo
a si mesmo se obediente até à morte, bem mais sério ou grave
humilhou, tornando- e morte reservada a um do que simplesmente
se obediente até criminoso da pior espécie. “morte”. Os detalhes
à morte e morte Mas este não é o final da disso, que as pessoas
de cruz. 9Pelo que história. Deus o exaltou ao daquela época
também Deus o máximo (certamente pela conheciam, são omitidos.
exaltou sobremaneira ressurreição e ascensão), • A história de Cristo não
e lhe deu o nome que dando-lhe um nome terminou na cruz, pois
está acima de todo acima de todos os outros Deus o exaltou. Não há
nome, 10para que ao (provavelmente o nome referência a como isso
nome de Jesus se de “Senhor”). O propósito se deu.
dobre todo joelho, disso é que todos, em todo • Receber um “nome”
nos céus, na terra e o universo, o adorem e é uma forma de ser
debaixo da terra, 11 e confessem que ele é Senhor. exaltado.
toda língua confesse Como isso tudo procede do • Joelhos que se dobram,
que Jesus Cristo é próprio Deus, a adoração a isto é, “ajoelhar-se”
Senhor, para glória Jesus e a confissão do seu significa algo (bem mais
de Deus Pai. nome só podem resultar na do que mero exercício
glória de Deus Pai. físico de flexionar os
joelhos).
• “Nome” está diretamente
relacionado com a
pessoa.
• Céus, terra, (região)
debaixo da terra é uma
maneira de visualizar o
mundo.
• Confessar é dizer algo.
Neste caso, a respeito de
Jesus.
• Dizer que Jesus é Senhor
em nada diminui a glória
de Deus Pai.
Mas se esvaziou,
tendo assumido uma forma de servo
e tendo se tornado em semelhança de homens.
|| 38 É claro que Paulo vai além disso, especialmente na parte final. Em outras palavras, Paulo conta
a história de Jesus em termos mais amplos, incluindo, no final, a sua exaltação. Este não é
necessariamente um modelo a ser imitado pelos cristãos; afinal, como seria possível imitar a
exaltação de alguém? Cristo foi exaltado e a Igreja, corpo de Cristo, participa e participará de
sua exaltação, mas o texto não trata disso.
|| 39 Pelo uso de uma conjunção final (hína) no início do v.10, Paulo indica que a “superexaltação”
(huperúpsosen) tem em vista a adoração a Jesus e a confissão de que ele é Senhor. Não há
indicação de quando isso sucederá, embora se possa dizer que isso já acontece, de forma
antecipada, na Igreja.
112 Filipenses 2.5-11
|| 40 Isso levanta a discussão em torno de uma suposta “cristologia de Adão”, nos textos de Paulo,
como defende, entre outros, James Dunn. Não será possível entrar nessa discussão aqui.
Filipenses 2.5-11 113
Exercícios de revisão
1. Paulo estimula os cristãos a terem “o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus” (Fp 2.5, ARA). Isso significa que ele espera:
a) que os cristãos tenham a mesma compaixão que Jesus teve.
b) que os cristãos tenham a mesma sensibilidade que Jesus teve,
especialmente na percepção daquilo que se passa ao seu redor.
c) que os cristãos tenham a mesma dedicação a Deus que Jesus teve.
d) que os cristãos tenham a mesma disposição mental, o mesmo modo
de pensar e a mesma atitude que Jesus teve.
c) que Cristo Jesus, ao ser exaltado, deixou para trás sua humanidade.
d) que Cristo Jesus era uma figura humana que queria ser igual a
Deus.
3. Ao dizer que Deus exaltou Cristo Jesus, para que ao nome dele se dobre
todo joelho “nos céus, na terra e debaixo da terra” (Fp 2.10), Paulo está,
muito provavelmente, se referindo a:
a) uma região fixa no céu, toda a superfície da Terra, e um suposto
planeta que fica situado abaixo da terra.
b) anjos bons, seguidores de Cristo, e forças satânicas.
c) todos os seres em todo o universo, visto como que tendo três “andares”:
morada de Deus (céu), morada dos homens (terra), morada dos
mortos (região debaixo da terra).
d) uma série de poderes espirituais que se opõem a Deus e que não têm,
em si, nenhuma localização geográfica.
4. O texto de Filipenses 2.11 anuncia que toda língua confessará “que Jesus
Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai”. Nesta afirmação:
a) Paulo ensina a verdadeira humanidade de Jesus Cristo, implícita no
uso do termo “Senhor”.
b) está implícita a divindade de Cristo, cuja confissão não fere ou não
diminui em nada a glória de Deus Pai.
c) nada se diz sobre Cristo, e sim, unicamente, sobre a glória de Deus.
d) Paulo apenas cita um texto de Isaías 45, que nada permite concluir
sobre o que ele próprio pensava ou ensinava.
Respostas:
1. d 2. a 3. c 4. b
9
Filipenses 3.2-11
Vilson Scholz
Introdução
Este trecho é uma passagem de fundamental importância para a teologia. É,
além disso, um clássico da espiritualidade cristã e uma importante fonte histórica
para se escrever a biografia do apóstolo Paulo. Vale a pena examiná-lo mais de
perto, segundo nosso método exegético desenvolvido para textos de epístola.
9.1 O texto
Segundo a tradução de Almeida Revista e Atualizada, o texto de Filipenses
3.2-11 diz assim:
2
Acautelai-vos dos cães! Acautelai-vos dos maus obreiros! Acautelai-
vos da falsa circuncisão! 3 Porque nós é que somos a circuncisão, nós
que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus,
e não confiamos na carne. 4 Bem que eu poderia confiar também
na carne. Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu
ainda mais: 5 circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel,
da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, 6
quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na
116 Filipenses 3.2-11
lei, irrepreensível. 7 Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei
perda por causa de Cristo. 8 Sim, deveras considero tudo como perda,
por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu
Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como
refugo, para ganhar a Cristo 9 e ser achado nele, não tendo justiça
própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo,
a justiça que procede de Deus, baseada na fé; 10 para o conhecer,
e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos,
conformando-me com ele na sua morte; 11 para, de algum modo,
alcançar a ressurreição dentre os mortos.
9.2.2 Vocabulário
Nesse texto, há vários termos e expressões que merecem uma pequena
descrição. Logo no início, Paulo faz a advertência: Acautelai-vos dos cães! Isso
equivale a dizer: Cuidado com os cães! É óbvio que ele não está simplesmente
transcrevendo um aviso que havia lido junto à porta de alguma casa, alertando
para a presença de cachorros bravos. Em outras palavras, o termo tem significado
metafórico ou conotação religiosa. “Cães” era uma designação usada pelos
judeus, quando se referiam aos gentios ou não judeus. Nos Salmos, por exemplo,
os “cães” são os inimigos do povo de Deus.
|| 41 Este é o título que aparece na Tradução em Francês Corrente, que equivale, em língua francesa,
à NTLH.
|| 42 Este é o nome dado à edição revista da Bíblia em Português Corrente, a “irmã” da NTLH, feita
em Portugal.
118 Filipenses 3.2-11
Em seguida, Paulo faz o alerta contra “maus obreiros”. Não se trata de obreiros
preguiçosos ou descuidados, mas de obreiros destrutivos (por confiarem na
carne). São obreiros (literalmente “trabalhadores”) que fazem coisas más, como
aparece na NTLH.
Paulo alerta, também, contra a “falsa circuncisão”. Em A Bíblia Para Todos,
de Portugal, o texto foi traduzido por “os fanáticos da circuncisão”. Trata-se, no
grego, de um hápax, uma palavra de ocorrência única, usada por causa de sua
semelhança com o termo grego para “circuncisão”.43 Uma boa tradução, que
preserva a semelhança sonora dos dois termos, é “mutilação”.
No v.3, Paulo usa o termo “circuncisão” em sentido metafórico, na medida em
que diz que “nós (os cristãos) somos a circuncisão”. Há culturas, como a nossa,
em que a circuncisão não é coisa muito comum. Isso torna necessário explicar
do que se trata. Uma maneira de explicar isso é conforme segue: “Cerimônia
religiosa dos judeus, que consistia em cortar parte do prepúcio – pele que envolve
a ponta do órgão sexual masculino. Entre os israelitas do Antigo Testamento,
era a marca da pertença ao povo da aliança (Gn 17.9-14)”.44
No mesmo v.3, Paulo descreve o cristão como alguém que não confia na carne.
“Não confiamos na carne”, diz ele. O que seria “carne” (sárx), neste caso? Como
todas as palavras de qualquer língua, também esta é polissêmica, ou seja, tem
vários significados associados a ela. Aqui ela parece referir-se à materialidade
do ser humano, ou, então, a vida em seu aspecto exterior. “Confiar na carne” é
depositar a confiança naquilo que é apenas humano. O contexto confirma isso,
pois Paulo enumera coisas como origem e descendência (“hebreu de hebreus,
da tribo de Benjamim”).
Ao apresentar-se como “hebreu de hebreus”, Paulo parece evitar o termo
de caráter mais étnico (“judeu”), usando em vez disso um termo que tem uma
conotação mais religiosa (“hebreu”). Alguém que é “hebreu de hebreus” é um
hebreu que descende de hebreus, alguém que é “de sangue hebreu” (NTLH),
ou, como poderíamos dizer, um “puro-sangue”.
|| 43 Em grego, “circuncisão” é peritomé (que dá a ideia de “cortar em volta”). A palavra que Paulo
emprega é katatomé (que dá a ideia de cortar de alto a baixo).
|| 44 Existem culturas em que a circuncisão dos homens faz parte do rito de passagem à puberdade.
Quando chegam ao amadurecimento sexual, os meninos são circuncidados. Num contexto desses,
uma referência à “circuncisão ao oitavo dia” soa muito estranha, pois sugere uma virilidade
ultraprecoce!
Filipenses 3.2-11 119
Paulo se apresenta como “fariseu”. Esta é a única vez que essa palavra aparece
nas epístolas ou cartas do Novo Testamento. Todas as demais ocorrências do
termo estão nos Evangelhos e em Atos dos Apóstolos.45
Ao dizer que considera tudo como perda, por causa da sublimidade do
conhecimento de Cristo Jesus, Paulo escreve uma locução que, à primeira vista,
soa ambígua. “Conhecimento de Cristo” pode significar o conhecimento que
Cristo tem (genitivo subjetivo) ou o conhecimento que alguém (Paulo) tem de
Cristo (genitivo objetivo). O contexto ajuda a eliminar a ambiguidade, indicando
que se trata do conhecimento que Paulo tem de Cristo. Assim, para eliminar a
“santa ambiguidade”, a NTLH diz com todas as letras: “aquilo que tem muito
mais valor, isto é, conhecer completamente Cristo Jesus, o meu Senhor”.
Ao dizer que considera todas as coisas como “refugo”, para ganhar a Cristo (v.8),
Paulo escreve mais um dos quarenta hápax legómena desta carta.46 “Refugo” é um
termo mais brando ou eufemístico para “lixo”, que é o termo usado na NTLH.
Por fim, ao falar sobre a “comunhão dos seus sofrimentos”, isto é, dos sofrimentos
de Cristo, Paulo usa o mesmo termo koinonía que já havia utilizado em Filipenses
1.5 e 2.1. Trata-se de um associar-se com Cristo nos sofrimentos,47 que Paulo
explica em termos de “conformando-me com ele na sua morte”. Este “conformar-se”
pode ser mal interpretado pelo leitor apressado. Afinal, em português, o primeiro
significado que vem à mente é “resignar-se com” ou “aceitar”. No entanto, aqui o
termo traduz um verbo grego48 que significa “assumir a mesma forma”, “tornar-se
igual”. A NTLH traduz bem: “me tornar como ele na sua morte”.
|| 45 Uma pergunta que se pode fazer é o quanto os filipenses estavam informados a respeito das
diferentes “seitas judaicas”. Esta questão terá de ser retomada mais adiante.
|| 46 Lembrando que um hápax é uma palavra que ocorre uma única vez em determinado corpo
literário. O termo grego é skúbala, que pode ser relacionado com “as coisas que são jogadas
para os cachorros”.
|| 47 Esta associação no sofrimento contribui para que Filipenses 3 seja descrito como um “clássico
da espiritualidade cristã”.
|| 48 Symmorphízo.
120 Filipenses 3.2-11
passagem desta carta em que fica bem evidente a veemência do apóstolo Paulo,
conhecida de textos como 2 Coríntios e Gálatas.
Por outro lado, o início desse texto é um belo exemplo do potencial
linguístico e retórico de Paulo, algo que se percebe mais nitidamente no original
grego. Paulo repete o verbo três vezes, como mostra a tradução de Almeida
(“acautelai-vos”). Além disso, recorre ao uso de aliteração, ou seja, o uso
repetido da mesma letra, algo muito difícil de manter na tradução. Três vezes
ele usa termos ou locuções iniciadas com a letra grega capa (cuja grafia parece
um “k” do nosso alfabeto): kúnas (“cães”), kakoús ergátas (“maus obreiros”),
katatomén (“mutilação”). Se acrescentarmos a isso a ironia no uso do termo
“cães”49 e o sarcasmo presente em “mutilação”, teremos bem caracterizada a
habilidade retórica do apóstolo Paulo.
|| 51 Neste caso, “seu Espírito” se refere ao “Espírito de Deus”. A tradução francesa citada é de Parole
de Vie (“Palavra de Vida”).
|| 52 Chama-se God’s Word to the Nations (“A Palavra de Deus para as Nações”), publicada em 1995.
|| 53 Sua formulação grega é hói pneumati theou latreuontes (literalmente: “os pelo Espírito de Deus
adorando”).
122 Filipenses 3.2-11
“Deus”.54 E o texto com essa alteração entrou nas edições impressas do assim
chamado “texto recebido”, o texto de que se valeram Lutero, os tradutores da
King James e também da Almeida, para fazerem as suas traduções. O curioso é
que, neste caso, o “texto recebido”, que normalmente integra o “texto bizantino”
ou “majoritário”, é desautorizado por este texto. Em outras palavras, o texto
majoritário ou bizantino apoia o “texto crítico”, contra o “texto recebido”. Outra
curiosidade – ou enigma – é que Almeida Revista e Atualizada, que normalmente
traduz o “texto crítico”, retém o mesmo texto de Almeida Revista e Corrigida.
Em outras palavras, fica com o “texto recebido”.
E como explicar aquela tradução inglesa que diz “adoramos o Espírito de Deus”?
Ela prefere o mesmo texto grego que é traduzido na NVI, NTLH e tantas outras
traduções, ou seja, o “texto crítico”.55 Só que interpreta esse texto de forma diferente.
Em vez de dizer “adoramos pelo Espírito de Deus” (em que o termo grego é visto
como “instrumental”), opta pela formulação “adoramos ao Espírito de Deus” (em
que o mesmo termo grego é interpretado como objeto do verbo adorar). É uma
leitura possível, do ponto de vista gramatical, mas pouco provável do ponto de vista
do conteúdo. Dificilmente Paulo diria que os cristãos adoram o Espírito de Deus.
|| 54 O texto grego, neste caso, é hói pneumati theoo latreuontes (literalmente: “os pelo Espírito
[ou: espírito] a Deus adorando”).
|| 55 Veja a nota 11, acima.
Filipenses 3.2-11 123
obreiros”. Da advertência ele passa a dar aos seus leitores um grande argumento,
tirado de sua própria biografia, que refuta o apelo daqueles que promovem o
que Paulo denomina de “mutilação”.
|| 56 Como membro da tribo de Benjamim, “Saulo” recebeu o nome do mais ilustre membro dessa
tribo, o rei Saul.
124 Filipenses 3.2-11
Texto – Contexto
Ideias transmitidas
Fp 3.4-7 comunicacional
Bem que eu Se o assunto é depositar • há pessoas que julgam importante
poderia confiar a confiança nas confiar na carne ou nas suas
também na prerrogativas naturais supostas prerrogativas naturais e
carne. Se e nas realizações de nas realizações pessoais;
qualquer outro cunho pessoal, eu, • há povos ou religiões que
pensa que pode Paulo, não fico para trás. praticam a circuncisão;
confiar na carne, Aliás, tenho todas as • os judeus fazem a circuncisão dos
eu ainda mais: vantagens possíveis: fui meninos ao oitavo dia (após o
circuncidado circuncidado exatamente nascimento);
ao oitavo dia, no oitavo dia (como • existe um povo chamado Israel,
da linhagem de manda a Lei); sou um que se divide em tribos, sendo
Israel, da tribo israelita de origem, uma delas a tribo de Benjamim;
de Benjamim, membro da renomada • ser da tribo de Benjamim é,
hebreu de tribo de Benjamim, um por algum motivo ou outro, um
hebreus; quanto hebreu de pedigree ou motivo de orgulho;
à lei, fariseu, puro-sangue; quanto à • existe uma “lei” que, como a
quanto ao zelo, prática da lei, eu era continuação indica, serve de
perseguidor da fariseu; em termos de critério para algumas coisas;
igreja; quanto zelo e dedicação, cheguei • em relação a essa lei, alguém
à justiça que ao ponto de perseguir podia se apresentar como um
há na lei, a igreja cristã; em se fariseu;
irrepreensível. tratando da justiça que • embora, naquele tempo, ainda
Mas o que, para pode provir da lei, eu houvesse outros grupos que
mim, era lucro, era alguém que ninguém pudessem ser designados de
isto considerei podia acusar de falta “igreja”, há uma igreja por
perda por causa alguma. Tudo isso posto excelência, e esta é a “igreja
de Cristo. na balança representava cristã”;
lucro para mim. No • essa igreja passou por um período
entanto, quando Cristo, de perseguições;
um valor mais alto, • há uma justiça segundo o padrão
entrou em minha vida, da lei, que permite alguém se
passei a ver como perda apresentar como irrepreensível,
tudo isso que, antes, eu isto é, uma pessoa que ninguém
considerava lucro. pode acusar de nada;
• é possível fazer uma avaliação das
prerrogativas e das realizações
pessoais e concluir que são
“lucro”;
• um grande valor pode ser
considerado de valor nenhum
quando “um valor mais alto se
levanta”.
Filipenses 3.2-11 125
|| 57 Convém relembrar que o nome “Cristo Jesus”, nesta ordem, é uma característica paulina, no NT.
|| 58 O texto pode ser descrito como tendo o seguinte movimento: eles (a oposição) – nós (os
cristãos) – eu (Paulo).
|| 59 Sob a nossa ótica, ser da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim e hebreu de hebreus, vem
antes do ato da circuncisão no oitavo dia. Afinal, no dia em que nasceu, Paulo já tinha essas
prerrogativas. Paulo, no entanto, coloca a circuncisão no início. Talvez porque fosse aquilo de
que um judeu mais se orgulhava (junto com a observância do sábado). Ou, então, porque era
isso que ele tinha em mente o tempo todo, especialmente quando fez referência ao “confiar na
carne” (v.4). Convém notar que a NTLH explicita que esse “confiar na carne” era exatamente
“pôr a confiança em cerimônias religiosas como a circuncisão” (tradução do final do v.4).
126 Filipenses 3.2-11
|| 60 Em Romanos 5.11, Paulo diz que “nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo”.
|| 61 Hoje, talvez, alguém queira se gloriar do fato de ter aceito Cristo. Seria possível descrever isso
como “gloriar-se em Cristo”?
Filipenses 3.2-11 127
Exercícios de revisão
1. Ao escrever, “Acautelai-vos dos cães! Acautelai-vos dos maus obreiros!
Acautelai-vos da falsa circuncisão!” (Fp 3.2):
a) Paulo está sendo irônico no uso do termo “cães”, poético na repetição
do termo “acautelai-vos” e sarcástico no uso do termo “falsa
circuncisão” (= mutilação).
b) Paulo está sendo poético no uso do termo “cães”, sarcástico na
repetição do termo “acautelai-vos” e irônico no uso do termo “falsa
circuncisão” (= mutilação).
c) Paulo está sendo sarcástico no uso do termo “cães”, irônico na
repetição de “acautelai-vos” e poético no uso de “falsa circuncisão”
(= mutilação).
d) Paulo está sendo irônico e sarcástico no uso do termo “acautelai-vos”
e poético no uso do termo “cães”.
Filipenses 3.2-11 129
4. Paulo apresenta dados de sua vida, não para que biógrafos tenham mais
sobre o que escrever, mas com uma intenção pragmática ou retórica.
Pode-se dizer que, à luz daquele “acautelai-vos da falsa circuncisão” (Fp
3.2), a intenção principal de Paulo é:
a) ensinar aos filipenses como fazer frente à ameaça daqueles
que se apresentavam nas igrejas para insistir na necessidade da
circuncisão.
b) estimular os filipenses a também darem testemunho de quem eles
eram e de como Jesus havia mudado a vida deles.
130 Filipenses 3.2-11
Respostas:
1. a 2. c 3. d 4. a
10
Filipenses 4.10-20
Vilson Scholz
Introdução
Este trecho de Filipenses 4.10-20 não é, com certeza, dos mais conhecidos,
exceção feita a duas afirmações que são bastante citadas: “aprendi a viver contente
em toda e qualquer situação” (v.11) e “tudo posso naquele que me fortalece”
(v.13). Como exegese é, basicamente, dar atenção ao texto dentro do seu contexto,
vale a pena estudar a seção inteira em que aparecem essas afirmações tão
conhecidas e, muitas vezes, mal citadas, para que se tenha melhor compreensão
não apenas delas, mas também do todo. Quem sabe confirmaremos a impressão
de que é um dos importantes textos bíblicos que ensinam a correta atitude cristã
diante das realidades e dos bens deste mundo.
10.1 O texto
Como de costume, antes de dar atenção aos detalhes – e para lembrar que
um texto é sempre mais do que um simples conjunto de palavras – convém ler
o texto na íntegra. Segundo a tradução de Almeida Revista e Atualizada, Paulo
se dirige aos filipenses nos seguintes termos:
132 Filipenses 4.10-20
10.2.2 Vocabulário
Num exame por alto, até mesmo uma tradução clássica como Almeida não
oferece maiores dificuldades, em se tratando de vocábulos individuais. Como
o exame do texto será retomado, em parte, mais adiante, na comparação entre
traduções, podemos nos limitar, neste tópico, a listar e comentar alguns dos
termos raros.
Já vimos que a carta aos Filipenses traz um grande número de palavras raras,
mais especificamente um grande número de termos que são hápax, isto é, que
ocorrem uma única vez. As razões para tal incidência podem ser várias, como,
por exemplo, em alguns textos, a presença de um grande número de citações
|| 62 Há até quem escreva comentários sobre “as cartas de Paulo aos filipenses”. Entretanto, Filipenses
foi canonizada como uma única carta e, do ponto de vista da retórica, ela forma um todo
coerente.
|| 63 Este é um exemplo de inferência a partir do que está implícito no contexto comunicacional.
134 Filipenses 4.10-20
mas de uma suficiência que vem de Deus. Para quem lê a carta fica a lição:
contentamento não depende da abundância de bens.
No versículo 12, Paulo afirma: “em tudo e em todas as coisas sou iniciado”.
Aqui, faz uso de um termo que, segundo os dicionários do grego do Novo
Testamento, era, em outros contextos, um termo técnico do âmbito da
religião, que designava o processo de iniciação nas assim chamadas “religiões
de mistério”.66 O dicionário semântico de Louw-Nida fornece a seguinte
descrição desse significado: “aprender o segredo de algo através de vivência
pessoal ou em decorrência de um processo de iniciação”.67 Um equivalente
de tradução adequado é “aprender um segredo” (NTLH). “Ter experiência”
(ARA) também reproduz o significado. Paulo está dizendo que ele é um
“iniciado” ou alguém que, por experiência, conhece os segredos tanto da
fartura quanto da carência. Em outras palavras, ele conhece os vários aspectos
da vida; nada o surpreende. Tudo isso ele pode enfrentar “com a força que
Cristo ... dá” (v.13, NTLH).
|| 66 Iniciação é a admissão de uma pessoa no culto de uma divindade ou, então, como membro de
uma seita ou sociedade secreta.
|| 67 Louw-Nida, 27.14.
136 Filipenses 4.10-20
|| 68 O interessante é que, ao final do v.12, Paulo repete o verbo “ter abundância” ou “ter mais do
que o necessário” (perisséuein). Neste caso, ARA traduz por “(ter experiência) de abundância”.
Acontece que ali o par contrastante é “passar necessidade”, e não “ser humilhado”. Quem,
porém, faz um estudo de palavras a partir da tradução, não percebe que se trata do mesmo
verbo traduzido anteriormente por “ser honrado”. Tanto mais se faz necessário estudar o texto
original!
Filipenses 4.10-20 137
|| 69 Lembrando que “texto recebido” é o nome dado ao texto grego usado desde o tempo de Erasmo
(que editou o texto da primeira impressão, em 1516) até o século XX. O “texto recebido” faz
parte do “texto bizantino” e do “texto majoritário”, com a diferença de que se baseia num
número bem reduzido de manuscritos, os poucos a que Erasmo teve acesso, em seu tempo.
|| 70 Este acréscimo não faz parte da Almeida Revista e Corrigida, embora esteja no “texto recebido”.
A tradução de Lutero (1545) e a King James Version (1611) trazem esta explicitação do nome
de Cristo.
|| 71 Este exemplo mostra que muitas das variantes textuais são explicitações do que está implícito
no contexto. Os copistas já faziam, no seu tempo, o que traduções modernas também tendem
a fazer, para o benefício dos leitores e ouvintes.
|| 72 Também neste caso o leitor da tradução de Almeida não percebe o vínculo verbal que existe
entre Filipenses 4.14-15 e Filipenses 1.5.
138 Filipenses 4.10-20
No versículo 16, Paulo confirma para os filipenses que, quando ele estava
em Tessalônica, eles enviaram ajuda. A questão é: quantas vezes? ARA diz
“não somente uma vez, mas duas”, ao passo que NTLH traz “mais de uma
vez”. Segundo ARA, foram duas vezes; segundo NTLH, foram duas ou mais.
Quem está com a razão? Como explicar a diferença?
No grego aparece kai hápax kai dís (“e uma vez e duas vezes”). ARA traduz
isso ao pé da letra, palavra por palavra. NTLH, por sua vez, seguindo um
novo consenso exegético, entende que se trata de uma expressão idiomática,
significando “mais de uma vez”.73 O dicionário semântico de Louw e Nida
reconhece que se trata de expressão idiomática e registra o seguinte significado:
“um número indefinido baixo, embora mais do que uma vez”, sugerindo que
seja traduzida por “mais de uma vez, várias vezes”.
Por fim, no versículo 18, Paulo, segundo ARA, afirma “recebi tudo” e,
segundo a NTLH, escreve “aqui está o meu recibo de tudo o que vocês me
enviaram”. O significado não é radicalmente diferente, mas alguém poderia
perguntar sobre a origem do “recibo”, na NTLH. Será que Paulo está fazendo
contabilidade? Sim, ele está prestando contas à igreja que o apoia. Já no
versículo 17 ele faz uso de termos do mundo das finanças. ARA usa o termo
“crédito”, onde NTLH tem “conta”. E onde ARA diz “fruto”, o significado,
em termos econômicos, é “juros” (NTLH diz “lucros”), especialmente em
conexão com o verbo “aumentar”.74 Portanto, ao dizer “recebi”, Paulo está,
a rigor, escrevendo o recibo, o documento que comprova que ele recebeu
o dinheiro.
|| 73 Este “consenso exegético” existe desde, pelo menos, 1956, quando, num artigo publicado na
revista Novum Testamentum, o renomado exegeta conservador Leon Morris mostrou que se tratava
de expressão idiomática. Já em Platão, quatro séculos antes do Novo Testamento, aparece uma
expressão análoga: kai dis kai tris (literalmente, “e duas vezes e três vezes”). É claro que esse
avanço da exegese não poderia ter entrado na Almeida Revista e Atualizada, uma revisão que
foi finalizada justamente em 1956.
|| 74 Quando uma conta aumenta, dizemos que se trata de “juros”.
Filipenses 4.10-20 139
Contexto
Texto – Fp 4.14-16 Ideias transmitidas
comunicacional
14
Todavia, fizestes Paulo se encontrava numa • Paulo se encontra numa
bem, associando-vos situação difícil, na prisão, situação descrita como
na minha tribulação. e agradece aos cristãos “tribulação” ou aflições.
15
E sabeis também que moravam na cidade (Ele se encontra preso.)
vós, ó filipenses, de Filipos o fato de terem • Quem ajuda pessoas que se
que, no início do se associado com ele encontram em dificuldades
evangelho, quando naquele momento difícil, faz bem.
parti da Macedônia, com ajuda financeira, o • Os filipenses eram os
nenhuma igreja se que é algo muito bom. moradores da cidade de
associou comigo Na verdade, tinham feito Filipos, na província romana
no tocante a dar isso desde o início da da Macedônia.
e receber, senão evangelização, logo que • Paulo diz que os filipenses
unicamente vós Paulo saiu da província fizeram bem ao enviarem
outros; 16 porque romana da Macedônia, ajuda, o que equivale mais
até para Tessalônica onde ficava Filipos. Eles ou menos a dizer “muito
mandastes não como que “abriram uma obrigado”.
somente uma vez, conta conjunta” com ele, • Filipos ficava na província
mas duas, o bastante e, infelizmente, foram da Macedônia.
para as minhas a única igreja a fazer • Paulo esteve na Macedônia
necessidades. isso. Mais de uma vez, e partiu de lá.
por exemplo, mandaram • Os filipenses como que
ajuda (financeira) para abriram uma “conta
o apóstolo quando ele conjunta” de perdas e
estava na cidade de ganhos.
Tessalônica, que ficava • Paulo esperava que mais
nas imediações (uns igrejas fizessem isso, mas
150km para o oeste). os filipenses foram os
únicos.
• Parece bom saber que a
gente faz alguma coisa que
ninguém mais fez.
• Tessalônica era uma cidade
nas imediações de Filipos,
tanto assim que era possível
mandar ajuda em várias
oportunidades. (Ficava uns
150km para o oeste, ao
longo da Via Egnatia.)
Filipenses 4.10-20 141
A relação entre essas várias afirmações pode ser descrita assim: Paulo inicia
dizendo que ficou muito contente (frase 1) e logo explica a razão disso: os
filipenses se lembraram dele outra vez (frase 2).
Pressentindo, talvez, que poderia ser mal entendido (“até que enfim, não é
mesmo, seus filipenses?”), Paulo trata de se explicar: nunca se esqueceram de
mim; faltava oportunidade (frase 3).
Pressentindo também, quem sabe, que os filipenses concluiriam que gostava
muito de receber donativos (um “pastor dinheirista”, como se diria hoje), Paulo
trata de explicar ou atenuar a sua explosão de alegria inicial:75 Na verdade, não
preciso de nada (frase 4). A isto ele acrescenta três razões. Uma que soaria bem
|| 75 Percebe-se uma estrutura de certa forma quiástica: estou muito alegre (a), porque voltaram
a me ajudar (b), mas, explicando melhor, nunca deixaram de fazê-lo (b’), e, para não
entenderem de forma errada a minha alegria inicial, digo que, na verdade, não tenho
necessidade de nada (a’).
142 Filipenses 4.10-20
a quem conhecia o ideal dos filósofos: eu me basto a mim mesmo (frase 5).
Outra que soaria bem aos ouvidos dos que tinham algum contato com “religiões
de mistério”: sou um iniciado nas situações extremas da vida (frase 6). E uma
terceira razão, bem mais teológica: posso enfrentar todas essas situações com a
força que vem de Cristo (frase 7).
Por fim, depois de tantas explicações, Paulo como que pressente que os
filipenses poderiam ficar ofendidos (“esse mal agradecido!”) e, por isso, arremata:
“No entanto, fizeram bem em me ajudar” (frase 8). Ou seja, Paulo termina o
parágrafo, após um longo parêntese (vs.11-13), reiterando o que havia dito no
início: Fiquei feliz com o que vocês fizeram (v.14).
No segundo parágrafo, ele como que continua esse “pingue-pongue”: vocês
são especiais nessa questão de enviar ajuda (vs.15-16). No entanto, não me
entendam mal: não quero o dom, mas o aumento em vossa conta (v.17). Aí,
aproveita para “fazer o recibo” (v.18). E, como não pode deixar de ser teólogo,
coloca isso tudo numa dimensão teológica (vs.18b-19) e doxológica (v.20).
|| 76 A carta aos Romanos é diferente: lá temos um missionário pedindo ajuda a uma igreja para a
continuação de sua missão.
Filipenses 4.10-20 143
verdadeira vida de uma pessoa não depende das coisas que ela tem, mesmo que
sejam muitas” (Lc 12.15, NTLH). Paulo dá uma bela lição de contentamento
(que é repetida em 1 Tm 6.6) baseado na força que vem de Cristo.
Como verdadeiro pastor, Paulo se preocupa menos com o seu bem-estar e
mais com o progresso espiritual de sua igreja. Ele afirma no v.17: “Não é que eu
só pense em receber ajuda. Pelo contrário, quero ver mais lucros acrescentados à
conta de vocês” (NTLH). Diríamos hoje que o mais importante não é o montante
da oferta, mas o que ela representa em termos de expressão de fé e crescimento
espiritual. Quanto dinheiro foi recolhido é algo fácil de verificar; mais difícil é
avaliar o que isso representa em termos de crescimento espiritual.
Além de ser um exemplo pessoal, Paulo interpreta teologicamente o gesto dos
cristãos de Filipos. Em sua interpretação, Paulo faz uso de linguagem sacrificial,
que não é muito comum no Novo Testamento (afora o livro de Hebreus).
Afirma que a ajuda recebida é “como aroma suave, como sacrifício aceitável e
aprazível a Deus” (v.18, ARA). A expressão “aroma suave”, traduzida, na NTLH,
por “um perfume suave oferecido a Deus”, aparece, em sua forma grega (osmén
euodías), com muita frequência em contextos sacrificiais do Antigo Testamento,
particularmente nos livros de Levítico e Números (Lv 1.9, por exemplo). É
uma forma antropomórfica de falar de Deus, que sente o cheiro agradável do
holocausto ou da oferta queimada por inteiro. Paulo dá uma interpretação
sacrificial ao gesto dos filipenses. Acrescenta que o sacrifício é aceitável e
aprazível, ou seja, um sacrifício que Deus aceita e que lhe agrada.
Nunca é demais enfatizar que Paulo não espiritualiza a ajuda. Ele não faz
de conta que não recebeu dinheiro. A ajuda foi enviada para ele. Ele acusa o
recebimento, escreve o recibo, e “agradece”. Esta é a oferta em sua dimensão
horizontal. Mas Paulo não vê a oferta dos filipenses apenas como um gesto
humanitário. Como teólogo, enxerga a ação deles do ponto de vista do teólogo.
Assim, a ajuda que ele recebe é vista como um sacrifício a Deus. A oferta tem
também uma dimensão vertical. Apoiar a missão de Deus nunca é um simples
“dar dinheiro”, embora seja isso também; é, antes e acima de tudo, um sacrifício
que Deus aceita e que lhe agrada.
Ao concluir, antes da doxologia (v.20), Paulo faz um voto, que é também uma
mensagem: “E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em
144 Filipenses 4.10-20
Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades” (ARA). Paulo está dizendo: Não
lhes faltará o necessário para continuarem no mesmo caminho de ajuda!
Exercícios de revisão
1. O texto de Filipenses 4.10-20 pode ser descrito como um agradecimento
de Paulo. Isso significa:
a) que Paulo agradece a Deus pelas bênçãos recebidas ao longo da
vida.
b) que Paulo agradece aos filipenses o fato de haverem permitido que
Epafrodito ficasse perto dele, na prisão.
c) que Paulo usa diretamente a expressão “muito obrigado”, para
agradecer pelas orações dos cristãos de Filipos.
d) que Paulo agradece a ajuda financeira recebida daquela igreja que o
apoiava em sua missão.
Respostas:
1. d 2. a 3. c 4. d