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Exegese do

Novo Testamento
Exegese do
Novo Testamento
Gerson Luis Linden
Vilson Scholz
Conselho Editorial EAD
Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Andréa Eick
Mara Lúcia Machado André Loureiro Chaves
Astomiro Romais Cátia Duizith

Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que


é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer
meio ou forma sem a prévia autorização da Editora da ULBRA.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98
e punido pelo Artigo 184 do Código Penal.

Gerson Luis Linden é graduado em Teologia pelo Seminário Concórdia


de São Leopoldo (1984) e mestre em Teologia Exegética pelo Concordia
Seminary de St. Louis, EUA (1993). Doutorando em Teologia Sistemática.
É professor de Grego e Teologia Exegética da ULBRA e do Seminário
Concórdia de São Leopoldo, RS.
Vilson Scholz possui graduação em Teologia pelo Seminário Concórdia
(1978), mestrado em Teologia Exegética pelo Concordia Seminary de
St. Louis, EUA (1981) e doutorado em Teologia Exegética pelo mesmo
Concordia Seminary de St. Louis (1993). É professor de Teologia Exegética
da ULBRA e do Seminário Concórdia de São Leopoldo, RS, e consultor
de traduções da Sociedade Bíblica do Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L744e Linden, Gerson Luis.


Exegese do Novo Testamento / Gerson Luis Linden, Vilson Scholz. –
Canoas : Ed. ULBRA, 2011.
146 p.

1. Exegese. 2. Novo Testamento. 3. Bíblia Sagrada. I. Scholz, Vilson.

CDU: 225.07

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas

ISBN 978-85-7528-412-4
Projeto Gráfico: Humberto G. Schwert Dados técnicos do livro
Editoração: Rodrigo Saldanha de Abreu Fontes: Minion Pro, Officina Sans
Capa: Juliano Dall’Agnol Papel: offset 90g (miolo) e supremo 240g (capa)
Supervisão de Impressão Gráfica: Edison Wolf Medidas: 15x22cm
Gráfica da ULBRA
Setembro/2011
Sumário

Apresentação............................................................... 7

1 | A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25.......... 9

2 | O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11....... 21

3 | Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8.................. 33

4 | Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28........... 45


5 | A Ressurreição de Jesus e o comissionamento
dos apóstolos – Mateus 28.1-20................................... 59

6 | Como fazer a exegese das Epístolas............................... 71

7 | Filipenses 1.1-11....................................................... 85

8 | Filipenses 2.5-11....................................................... 99

9 | Filipenses 3.2-11......................................................115

10 | Filipenses 4.10-20.....................................................131
Apresentação
Exegese é daqueles termos técnicos, empregados principalmente na teologia,
que foi dicionarizado pela primeira vez, na língua portuguesa, no começo do
século XIX. No entanto, a palavra é antiga. Soa grega, porque, a rigor, é uma
palavra grega. Ela própria carece de exegese, ou seja, precisa ser esclarecida
ou explicada. Deixada assim, sem maiores explicações, sugere que teólogos
se dedicam a atividades estranhas, designadas por nomes complicados. Em
termos bem simples, exegese ou exegética é “o ramo da teologia que se decida
à explanação e à interpretação da Bíblia” (Dicionário Houaiss).
Se teologia é “gramática do texto bíblico”, como disse Lutero, e se “aquilo
que não é bíblico não é teológico”, como diz um importante princípio da
teologia, então está claramente posta a importância da exegese. É evidente que
as disciplinas de exegese bíblica não são as únicas do currículo da Teologia, e
as aulas de exegese não são o único momento em que se estuda a Bíblia, num
curso de teologia. Mas as disciplinas de exegese são um momento privilegiado,
em que os textos bíblicos são estudados quase que como um fim em si (e não
como elementos ou recursos para outras finalidades, como a fundamentação
de uma tese, por mais válido que isso seja).
Infelizmente, um curso de teologia é muito breve para se poder esclarecer
ou interpretar minuciosamente (isto é, fazer exegese de) um grande número de
livros bíblicos. Assim, o que se faz é feito muito mais em termos de apresentação
de modelo (enfoque qualitativo) do que propriamente tentativa de cobrir um
8 Apresentação

grande número de temas ou livros bíblicos (enfoque quantitativo). Foi com isso
em mente que, no primeiro capítulo da exegese de Mateus, foi inserida uma
seção sobre a Análise da Narrativa aplicada a Mateus e, mais adiante, aparece um
capítulo introdutório à prática da exegese das Epístolas. Isso repete, em parte,
o que se aprende em outra disciplina, Princípios de Interpretação Bíblica, mas
a repetição faz parte da aprendizagem.
Para esta disciplina de Exegese do Novo Testamento, foram escolhidos dois
livros bíblicos: Mateus e Filipenses. Esta combinação, além de trazer variedade
de temas (por serem dois livros) e de estilos (na medida em que envolve dois
docentes), permite ao aluno entrar em contato com gêneros literários diferentes:
um Evangelho e uma Epístola ou Carta.
Do Evangelho de Mateus, que, de qualquer forma, não poderia ser
interpretado na íntegra no contexto desta disciplina, foram selecionados os
seguintes trechos: Mateus 1.1-25; Mateus 3.13–4.11; Mateus 9.35–10.8; Mateus
16.13-28 e Mateus 28.1-20. A Epístola de Paulo aos Filipenses, com os seus
quatro capítulos, poderia até ter sido abordada em quatro aulas. No entanto,
devido às limitações de espaço e no intuito de aprofundar em vez de estender,
fez-se a seleção de quatro trechos: Filipenses 1.1-11, Filipenses 2.5-11, Filipenses
3.2-11 e Filipenses 4.10-20.
Pedro, que, na sua segunda Epístola, constatou que nas cartas de Paulo há
algumas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e os fracos na fé explicam
de maneira errada, para a sua própria destruição (2 Pe 3.16), poderia ter advertido
contra eventuais perigos da exegese. Mas ele não o fez. Ao contrário, estimula-nos
a continuarmos a crescer na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo (2 Pe 3.18). Que esta disciplina de exegese lhe traga, caro(a) aluno(a),
crescimento no conhecimento e, acima de tudo, crescimento na graça.

Professores Gerson Luis Linden e Vilson Scholz


1

A abertura do Evangelho
de Mateus – Mateus 1.1-25
Gerson Luis Linden

1.1 Introdução ao Evangelho conforme Mateus


O Evangelho conforme Mateus sempre teve um lugar de destaque na história
da Igreja cristã e no estudo teológico. Este Evangelho proporciona ao leitor um
quadro bastante amplo a respeito da vida, ministério e obra de Jesus, ao combinar
narrativas que vão desde o anúncio do seu nascimento até sua ressurreição e
comissionamento dos apóstolos. Intercalados entre narrativas estão alguns dos
principais discursos (mensagens) pronunciados por Cristo.
É através do relato de Mateus que alguns dos eventos e ensinos muito especiais
de Jesus se tornaram conhecidos – a visita dos magos do Oriente ao menino
Jesus, o sermão do monte, a orientação sobre como se deve tratar um irmão
que pecou, um grande número de parábolas, um longo relato sobre a prisão,
julgamento, morte e ressurreição de Cristo.
Mateus traz 43 citações do Antigo Testamento, possivelmente por ter em
vista uma audiência de leitores de origem preponderantemente judaica. Ele
parte do pressuposto de que seus leitores conhecem o Antigo Testamento
e o consideram Escritura, Palavra de Deus. Algumas destas referências são
conhecidas como “citações de cumprimento” (por exemplo, Mt 2.15,23; 4.12-16;
10 A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25

etc.). Nestes textos, Mateus deixa claro que o Antigo Testamento encontra em
Jesus seu pleno cumprimento. Não apenas alguns textos específicos do Antigo
Testamento referem-se a eventos isolados na vida e no ministério de Jesus. Na
perspectiva de Mateus, todo o Antigo Testamento encontra em Jesus seu ápice.
Com isso, ele deixa claro que Jesus é o Messias prometido e aguardado pelos
fiéis do Antigo Testamento.
Um ensino fundamental de Mateus é o anúncio da chegada do Reino de
Deus (Mateus prefere a linguagem de “reino dos céus”). Este reino é a ação
dinâmica de Deus em trazer as pessoas para seu domínio, um domínio de graça
e misericórdia, que resulta em salvação e vida para as pessoas. O reino dos céus
está presente antecipadamente na pessoa e no ministério de Jesus (Mt 4.17;
12.28). Ele é o Rei que vem (Mt 2.2; 21.4,5) e traz o reinar gracioso de Deus, para
o qual chama as pessoas. Neste intuito Jesus prepara seus discípulos (= alunos)
para que venham a ser os apóstolos (= enviados), que levarão a mensagem do
reino por onde quer que forem (Mt 4.18-22; 10.5-7; 28.18-20).
O Evangelho conforme Mateus está estruturado conforme três grandes
partes, cada uma delas acentuando um aspecto da vinda do Reino de Deus na
pessoa de Jesus Cristo. Na primeira parte (Mt 1.1–4.16), a ênfase está na pessoa
de Jesus, o Messias. Nesta parte Mateus deixa claro quem Jesus é. A segunda
parte vai de 4.17 até 16.20. Observe-se que ela inicia com a expressão “Daí por
diante passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o
reino dos céus” (Mt 4.17). Nesta segunda parte, o foco está no ministério terreno
de Jesus, caracterizado pelo anúncio do reino e sua manifestação através de
proclamação, ensino e cura de doentes e expulsão de demônios. A terceira parte
inicia em 16.21 seguindo até o final do Evangelho (28.20), com destaque para
a obra de Cristo, com sua rejeição por parte dos líderes judeus, seu sofrimento,
morte e ressurreição. Esta parte é introduzida na narrativa com a seguinte
afirmação: “Desde esse tempo, começou Jesus a mostrar a seus discípulos que
lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos
principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia”.
É importante observar que os dois textos que iniciam uma nova seção usam
uma linguagem muito semelhante (no texto grego). Tanto Mateus 4.17 como
16.21 iniciam com a expressão vApo. To,te h;rxato o` vIhsou/j [apo tote erxato ho
Iesous] – “Desde então começou Jesus a...”.
A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25 11

1.2 Análise da narrativa aplicada a Mateus1


O Evangelho conforme Mateus é uma história a respeito de Jesus. No entanto,
ele tem sido tratado em estudos acadêmicos como uma fonte para reconstrução
histórica do que acontece fora do próprio relato. Diversos instrumentos dentro
do assim chamado “Método histórico-crítico” (análise das fontes, das formas e
da redação) têm sido usados por estudiosos para investigar o que está fora do
texto, ou seja, que fatos teriam realmente acontecido, o que teria sido incluído
pela “comunidade que produziu o Evangelho de Mateus”. Tal abordagem tem
sérias limitações. Uma delas, talvez a mais séria, seja de desconsiderar com
bastante facilidade o aspecto divino do texto – Mateus é Escritura, é Palavra de
Deus. Seu relato é fidedigno em todos os aspectos.
Outra limitação dos métodos comumente usados pela erudição é o de
esquecer que o Evangelho conforme Mateus, assim como os demais Evangelhos
canônicos, é um todo, que deve ser estudado fundamentalmente a partir dele
mesmo e do seu todo. A partir das últimas décadas do século XX, estudiosos
têm observado que este Evangelho deve ser visto como uma história com
começo, meio e fim e não como uma “colcha de retalhos”, com textos individuais
unidos artificialmente, ou simplesmente como um recurso para investigar uma
história que está fora do texto. Um dos recursos utilizados para o estudo de
Mateus, considerando-o como uma história completa, é a chamada análise da
narrativa.
Diferentemente das abordagens tradicionais do método histórico-crítico, a
análise da narrativa vê o Evangelho de Mateus como um todo unificado, não
como a compilação de partes individuais.
Estudos do método histórico-crítico têm insistido na figura do redator, ou
editor, como aquele que produziu o Evangelho de Mateus, através de compilação
e edição de tradições que lhe chegaram às mãos. Assim, segundo estas teorias,
o redator teria utilizado o Evangelho de Marcos e outras fontes para produzir
uma obra que servisse aos seus próprios interesses teológicos e às necessidades
de sua comunidade.

|| 1 Na abordagem a seguir, utilizamo-nos especialmente do estudo do exegeta Mark Allan


Powell, especialista nos estudos do Evangelho conforme Mateus: “Toward a Narrative-Critical
Understanding of Matthew”, Interpretation 46/4 (outubro 1992): 341-346.
12 A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25

Proponentes da análise da narrativa têm procurado interpretar o Evangelho


conforme Mateus a partir da perspectiva do próprio narrador da história, não
de um redator (hipotético). O narrador nos guia à medida que seguimos na
história, dando-nos as informações necessárias e moldando nossa percepção.
O narrador expressa a perspectiva divina a respeito de Jesus, seu ministério e
sua obra de salvação da humanidade.
Estudos histórico-críticos têm se fixado na tentativa de descobrir o contexto
da comunidade original para a qual o evangelho foi dirigido. O significado
do evangelho seria definido em termos da mensagem que ele tentava trazer à
audiência original. Daí se investe muito esforço e tempo para descobrir quem
teriam sido exatamente o autor e os leitores originais do Evangelho, em que
situação viviam, quais seriam seus problemas, etc. Certamente, algumas destas
informações estão disponíveis ao leitor a partir do texto dos Evangelhos e mesmo
de aspectos históricos fora do texto. No entanto, os estudiosos da narrativa
percebem que o Evangelho conforme Mateus continua sendo recebido como uma
narrativa significativa por audiências diferentes daquela para a qual o texto foi
originalmente escrito. Assim, por mais que alguns dados históricos externos ao
texto possam contribuir para sua compreensão, a análise da narrativa insiste em
que o próprio texto seja lido e analisado cuidadosamente pelo seu conteúdo.
O interesse fundamental da análise da narrativa é observar como a história
que Mateus relata se desdobra para o leitor. É muito importante considerar
o roteiro da narrativa, notando que há uma continuidade entre os diferentes
episódios. Dentre os diversos eventos relatados pelo evangelista, alguns marcam
pontos-chave de mudança no relato que se desdobra. Também têm grande
importância o desenvolvimento e a resolução de conflitos dentro da narrativa
e a maneira como os personagens atuam.
Isso indica que, ao lermos determinado trecho do Evangelho, será sempre
importante observar em que ponto da narrativa geral do Evangelho está este
texto. Para o entendimento de determinada narrativa ou discurso de Jesus o
leitor deverá ter em mente o que veio antes, ou seja, o contexto desta passagem
específica.
Apesar de também o método da análise da narrativa ter suas limitações (por
ser um método humano de ler um texto), apresenta boas vantagens ao estudioso
de Mateus. Especialmente, é digno de nota o fato de ver este Evangelho como
A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25 13

um todo, em que o autor, divinamente guiado, conduz o leitor à história de Jesus,


de sua pessoa, proclamação e obra da salvação.
Devido às limitações de espaço, precisaremos nos restringir a alguns textos do
Evangelho no estudo que segue neste e nos próximos capítulos deste livro. Tendo
em vista o que foi dito acima, incentivamos o aluno a, antes mesmo de iniciar o
estudo, ler todo o Evangelho conforme Mateus. E ao estudar cada um dos textos
que traremos nos cinco capítulos deste livro destinados a Mateus, é recomendável
sempre reler o que vem antes, a fim de que o contexto esteja claro.
Recomendamos que o aluno leia cada trecho em pelo menos duas traduções
da Bíblia (por exemplo, Almeida Revista e Atualizada e a Nova Tradução na
Linguagem de Hoje – ambas podem ser acessadas no site: www.sbb.org.br). Na
exposição abaixo, tomamos por base a tradução Almeida Revista e Atualizada,
editada pela Sociedade Bíblica do Brasil. Quando necessário, referimo-nos ao
texto original grego (incluiremos a transliteração das letras gregas).

1.3 O texto de Mateus 1.1-25 – A genealogia


de Jesus
1
Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. 2
Abraão gerou a Isaque; Isaque, a Jacó; Jacó, a Judá e a seus irmãos;
3
Judá gerou de Tamar a Perez e a Zera; Perez gerou a Esrom; Esrom,
a Arão; 4 Arão gerou a Aminadabe; Aminadabe, a Naassom; Naassom,
a Salmom; 5 Salmom gerou de Raabe a Boaz; este, de Rute, gerou a
Obede; e Obede, a Jessé; 6 Jessé gerou ao rei Davi; e o rei Davi, a
Salomão, da que fora mulher de Urias; 7 Salomão gerou a Roboão;
Roboão, a Abias; Abias, a Asa; 8 Asa gerou a Josafá; Josafá, a
Jorão; Jorão, a Uzias; 9 Uzias gerou a Jotão; Jotão, a Acaz; Acaz, a
Ezequias; 10 Ezequias gerou a Manassés; Manassés, a Amom; Amom,
a Josias; 11 Josias gerou a Jeconias e a seus irmãos, no tempo do
exílio na Babilônia. 12 Depois do exílio na Babilônia, Jeconias gerou a
Salatiel; e Salatiel, a Zorobabel; 13 Zorobabel gerou a Abiúde; Abiúde,
a Eliaquim; Eliaquim, a Azor; 14 Azor gerou a Sadoque; Sadoque, a
Aquim; Aquim, a Eliúde; 15 Eliúde gerou a Eleazar; Eleazar, a Matã;
Matã, a Jacó. 16 E Jacó gerou a José, marido de Maria, da qual nasceu
14 A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25

Jesus, que se chama o Cristo. 17 De sorte que todas as gerações, desde


Abraão até Davi, são catorze; desde Davi até ao exílio na Babilônia,
catorze; e desde o exílio na Babilônia até Cristo, catorze. (Almeida
Revista e Atualizada – Sociedade Bíblica do Brasil)

O Evangelho conforme Mateus inicia com uma frase que chama a atenção,
assim traduzida: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de
Abraão” (Mt 1.1). Não há um verbo nesta frase, o que dá a entender ser ela um
título daquilo que segue.
A pergunta que exegetas fazem inicialmente é qual o referente de “livro
da genealogia”? Será, como parece óbvio à primeira vista, que se trata apenas
do título para a “genealogia” de Jesus (versículos 2 a 17)? Ou, levando em
consideração a palavra “livro”, deveríamos entender isso como um título para
todo o Evangelho? É possível que estas duas referências sejam verdadeiras. Outra
possibilidade é que se refira à primeira parte do Evangelho, que vai do início até
4.16, onde Mateus apresenta ao leitor quem é Jesus.
A expressão grega bi, b loj gene, s ewj [biblos geneseos] é traduzida por
“livro da genealogia”. Mas ge,nesij [genesis] também pode ser traduzido como
“origem”. Esta mesma palavra é empregada em Mateus 1.18, onde as traduções
normalmente trazem: “nascimento”. Assim, sem ignorar a referência imediata
da expressão à própria genealogia de Jesus e ao seu nascimento (todo o capítulo
1), ela também pode se referir à primeira parte de Mateus (1.2 até 4.16), onde
Jesus é apresentado como o verdadeiro Filho de Deus.
É significativo que o Evangelho conforme Mateus inicie com a genealogia de
Jesus. Genealogias eram usadas já no Antigo Testamento, acentuando o papel
da pessoa à qual esta genealogia se referia. Além disso, serviam para conectar
aquela pessoa à história do povo ao qual ela estava ligada. Genealogias não são
apenas fontes de informação sobre antepassados de alguém, mas comunicam
algo importante sobre a pessoa que está em vista.
Um aspecto importante da genealogia de Mateus 1.2-17 é a ligação que o
evangelista faz entre Jesus e o Antigo Testamento. A genealogia mostra que a
história do povo de Deus no Antigo Testamento tem seu clímax e atinge seu
objetivo na vinda de Jesus. Como visto acima, um dos grandes propósitos de
A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25 15

Mateus é apresentar Jesus como o cumprimento do Antigo Testamento. E isso


já fica evidenciado nos primeiros versículos deste Evangelho.
Mateus chama a atenção para dois personagens principais – Abraão e Davi
– e um dos grandes eventos da história de Israel – o exílio na Babilônia – que
marcam os pontos divisórios na estrutura da genealogia. Ao dizer que Jesus é
o filho de Davi, Mateus acentua seu papel como Messias (= Rei). E ao destacar
Abraão, Mateus conecta a história de Jesus com a promessa que Deus fez aos
patriarcas, primeiramente a Abraão, de através dele abençoar todos os povos
da Terra (cf. Gn 12.3). O exílio babilônico é um ponto especial na história de
Israel, por lembrar que foi o pecado daquele povo, especialmente de idolatria,
que o ocasionou. Aqui, ao final da genealogia, é apresentado Aquele que é o
“novo Israel”. Diferente do Israel do Antigo Testamento, ele não falhará, mas
cumprirá plenamente a vontade de Deus (isso ficará evidenciado no episódio
da tentação de Jesus, como se verá mais adiante).
É preciso observar que genealogias são normalmente seletivas nos nomes que
mencionam. O objetivo não é dar uma lista completa, mas apresentar uma “linha”
de descendência que conecte pessoas-chave na história. Assim, por exemplo,
ao dizer que “Esrom [gerou] Arão; Arão gerou a Aminadabe; Aminadabe a
Naassom” (1.3,4) Mateus está mencionando Esrom, que foi um dos que foram
ao Egito no tempo de José (Gn 46). O filho (descendente) de Arão, Aminadabe,
é mencionado em Número 1.7, como pai de Naassom, que auxiliou Moisés no
censo de Israel. Entre estes dois eventos há um período de cerca de 400 anos.
Mateus menciona apenas um nome, Arão, dentro de todo este período.
Um dos destaques da genealogia é a menção de cinco mulheres: Tamar (1.3;
Gn 38.6-30), Raabe (1.5; Js 2.1-21; 6.17-25), Rute (1.5; Rt 4.13-22), Bate-Seba
(não mencionada por nome, mas como “aquela que fora mulher de Urias” – 1.6; 2
Sm 11.2–12.25); além de Maria, mãe de Jesus (1.16). Para o leitor que conhecia a
história do povo de Israel e o texto do Antigo Testamento como um todo, alguns
aspectos chamariam a atenção. Primeiro, porque as mulheres mais conhecidas e
importantes na narrativa do Antigo Testamento (Sara, Rebeca, Raquel) não são
mencionadas. Por algum motivo especial, portanto, estas quatro (excetuando
Maria) foram mencionadas na genealogia.
Além disso, o leitor sabe que as quatro primeiras mulheres mencionadas
não seriam exatamente exemplos – além de algumas delas estarem envolvidas
16 A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25

em histórias que depunham seriamente contra sua moralidade (como Tamar –


Gn 38; e Bate-Seba – 2 Sm 11). Ao menos duas delas têm um papel importante
na história de Israel, mas não são originalmente do povo de Deus, por serem
estrangeiras (Raabe e Rute). A inclusão destas mulheres vem mostrar, sobretudo,
a graça de Deus, que é surpreendente e que vai além das expectativas humanas.
Mesmo pessoas e eventos que normalmente não seriam colocados como bons
exemplos aqui são usados por Deus no seu propósito de manifestar seu reino
através de Cristo.
Chama a atenção na gramática do texto que, ao mencionar as mulheres na
genealogia, Mateus usa a expressão: {nome do pai} gerou – evge,nnhsen [egennesen]
– {o filho} de – evk [ek] – {nome da mãe}. Assim, o papel do pai é acentuado
com o uso do verbo genna,w [gennao] – “gerar”. Quando é mencionada Maria, a
expressão muda: “...José, marido de Maria, da qual nasceu (evgennh,qh [egennethe]
Jesus.” (Mt 1.16). Neste último caso o mesmo verbo genna,w é empregado, mas
agora na Voz Passiva (o assim chamado “passivo divino”!), deixando claro que
José não teve participação na geração de Jesus. Esta verdade será colocada de
forma explícita por Mateus mais adiante, em 1.18,20.

1.4 O texto de Mateus 1.18-25 – O nascimento


de Jesus
18
Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua
mãe, desposada com José, sem que tivessem antes coabitado,
achou-se grávida pelo Espírito Santo.19 Mas José, seu esposo, sendo
justo e não a querendo infamar, resolveu deixá-la secretamente. 20
Enquanto ponderava nestas coisas, eis que lhe apareceu, em sonho,
um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber
Maria, tua mulher, porque o que nela foi gerado é do Espírito Santo.
21
Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele
salvará o seu povo dos pecados deles. 22 Ora, tudo isto aconteceu
para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio
do profeta: 23 Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele
será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco).
24
Despertado José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor
e recebeu sua mulher. 25 Contudo, não a conheceu, enquanto ela não
A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25 17

deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus. (Almeida Revista


e Atualizada – Sociedade Bíblica do Brasil)

A palavra traduzida por “nascimento” – ge,nesij [genesis] – é a mesma


empregada por Mateus em 1.1, podendo ser mais bem traduzida como
“origem”. De fato, há muito pouco no Evangelho conforme Mateus que se refira
especificamente ao nascimento de Jesus (só mencionado diretamente em 1.25
e em 2.1). Lucas trará maiores detalhes na sua narrativa. A ênfase do relato de
Mateus está na origem de Jesus. E esta origem tem a ver diretamente com uma
atuação extraordinária do Espírito Santo. Maria é a verdadeira mãe de Jesus.
José é seu pai adotivo! A origem de Jesus não está em um pai humano, mas na
ação milagrosa do Espírito Santo. Jesus é o Filho de Deus (o Pai), mas o Espírito
Santo terá um papel importante no seu ministério, papel este que já está presente
na sua origem humana.
José e Maria estavam “desposados”, ou seja, estavam noivos. Isso significa
que estavam prometidos um ao outro para o casamento. Ainda não poderiam
ter relações sexuais, mas uma separação neste ponto teria o impacto de uma
quebra de promessa matrimonial, configurando um divórcio. Daí se entende o
dilema sofrido por José, ao saber da gravidez de Maria.
José é um personagem central no relato de Mateus sobre a origem de Jesus.
Apesar de não ser o pai biológico, ele é legalmente o pai. Ao saber da gravidez de
Maria, José supôs que outro homem era responsável pela gravidez e, portanto,
teria acontecido uma traição por parte de sua noiva. José estaria dentro dos
preceitos da lei se colocasse toda culpa sobre Maria, o que poderia levá-la a ser
apedrejada (Dt 22.23,24). Isso José não queria que acontecesse. Por outro lado,
por ser justo, não iria simplesmente aceitar o acontecido. Note-se que somente
através de uma revelação de Deus José chega a mudar de ideia e aceitar Maria.
A expressão “eis que” (v.20) parece não ter um significado maior, considerando
a língua portuguesa. No entanto, ela tem uma importância na narrativa de
Mateus. Esta expressão traduz a palavra grega ivdou, [idou], usada sessenta e
duas vezes por Mateus. Ela é originalmente uma forma do Imperativo do verbo
o`ra,w [horao] – “ver”, mas é usado como uma interjeição. Ela é empregada por
Mateus para destacar de maneira enfática aquilo que virá a seguir na narrativa.
Algumas vezes, é uma forma de Mateus chamar a atenção do leitor para uma
18 A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25

mudança de foco na narrativa. Neste caso (v.20), ela serve para Mateus mostrar
o contraste entre os planos de José e aquilo que Deus tinha planejado.
Os nomes que o menino recebe revelam sua identidade e sua missão. “Jesus”
(vIhsou/j [Iesous]) é a tradução do hebraico Ieshuah (ou Iehoshuah). É um nome
relativamente comum entre os judeus. Ele significa “Javé é salvação” ou “Javé
salva”. No caso específico de Jesus, o nome diz qual é sua missão, que Mateus
deixa expressa: “pois salvará o seu povo dos pecados deles”. Nesta expressão
se apresenta mais uma evidência da ênfase do Evangelho conforme Mateus,
de mostrar Jesus como aquele que veio primeiramente para ministrar a Israel
e salvar este povo, sem deixar de considerar sua missão universal, de salvação
para todos os povos (cf. Mt 28.19).
O nome “Emanuel” – Deus [está] conosco – diz quem Jesus é, ou seja, o
verdadeiro Filho de Deus. Mateus ainda trará o tema da presença de Deus em
Cristo mais duas vezes (18.20; 28.20). A comparação entre os três textos revela
uma mudança nos beneficiados pela presença de Deus. Em 1.23, levando em
conta a citação de Isaías 7.14, a referência é ao povo de Israel. Em 18.20 o
contexto trata da Igreja, ou seja, o povo de Deus na nova aliança. Em 28.20, a
presença de Cristo (“estou convosco”) é prometida àqueles que ele envia como
seus mensageiros na tarefa de fazerem discípulos de todos os povos. Em cada
um destes casos, o fator comum é que a presença de Deus manifestada em Jesus
é uma presença benéfica, que traz salvação, segurança, consolo e força.
Neste trecho encontramos o primeiro exemplo de fórmula de cumprimento
– “tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por
intermédio do profeta”. A expressão, especialmente pelo uso do verbo “cumprir”
(plhro,w [pleroo]), destaca que os fatos da vida de Jesus trazem a plena realização
daquilo que fora anunciado pelos profetas no Antigo Testamento. A expressão
não deve ser entendida como se Deus, ao conduzir os acontecimentos na vida
de Jesus, estivesse agindo de forma artificial, de modo a simplesmente seguir
um roteiro escrito anteriormente. “Cumprir” significa que aquilo que foi dito
anteriormente não estava completo antes de sua realização em Jesus. Ou seja,
Deus, em seu plano eterno, planejou que no ministério, vida, morte e ressurreição
de Jesus fosse realizado todo o necessário para a salvação da humanidade. Ele
próprio conduziu então seus profetas para que anunciassem e escrevessem de
antemão, conforme o que estava planejado para o futuro (cf. 1 Pe 1.10-12).
A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25 19

O texto conclui com José fazendo aquilo que lhe havia sido orientado pelo
anjo. Recebeu Maria como sua esposa e cuidou do Menino como se fosse
realmente seu filho. A história da Igreja veio a mostrar uma controvérsia sobre a
figura de Maria no cristianismo. Uma grande parcela de cristãos segue o ensino
do semper virgo, ou seja, que Maria teria ficado virgem ao longo de toda sua vida.
Apesar do versículo 25 não dar maiores detalhes, parece deixar claro que José e
Maria tiveram uma vida normal como marido e mulher após o nascimento do
menino Jesus. Mas é importante lembrar que a controvérsia a respeito de Maria
não está no texto, mas é bastante posterior a ele.

Exercícios de revisão
1. Por que a genealogia de Jesus é importante no início do Evangelho
conforme Mateus?
a) Ela mostra como é sério o papel da família.
b) Ela traz os nomes mais importantes do povo de Israel para
conhecimento dos leitores.
c) Ela conecta Jesus com o Antigo Testamento, mostrando ser ele o alvo
de todo o AT.
d) Ela ensina os leitores a valorizarem a história e as tradições de seu
povo.

2. Quem eram as mulheres citadas na genealogia de Jesus em Mateus?


a) Eram as mulheres mais conhecidas na história de Israel.
b) Eram todas desconhecidas para o povo de Israel.
c) Foram famosas, por serem exemplos de virtudes.
d) Mostram a graça de Deus, agindo de maneira inesperada.

3. Sobre a origem de Jesus, o relato de Mateus nos dá informações


suficientes para afirmar que:
a) Maria ficou grávida sem que houvesse participação de homem para
gerar o Menino.
b) Jesus nasceu em Jerusalém.
20 A abertura do Evangelho de Mateus – Mateus 1.1-25

c) Jesus nasceu e foi colocado em uma manjedoura.


d) não havia lugar para ele na hospedaria.

4. Os textos de Mateus que usam a “fórmula de cumprimento” ensinam


como principal verdade o fato de que:
a) os profetas eram muito sábios e conheciam o futuro.
b) nem tudo se cumpriu como havia sido predito.
c) os verdadeiros seguidores de Jesus devem cumprir o que é ordenado
pelos profetas.
d) em Jesus o Antigo Testamento encontrou seu pleno cumprimento.

Respostas:
1. c 2. d 3. a 4. d
2

O batismo e a tentação de Jesus –


Mateus 3.13–4.11
Gerson Luis Linden

2.1 Introdução
Após a leitura do texto em mais de uma tradução, considere e reflita sobre
as seguintes questões:
1. O que era o batismo realizado por João Batista? Qual era seu
propósito?
2. Por que Jesus foi batizado? Note como João Batista reage quando Jesus
vem a ele para ser batizado. O que mostram as palavras de Jesus para
João a respeito de seu batismo?
3. Qual a participação de cada uma das três Pessoas da Trindade (Pai,
Filho e Espírito Santo) no texto do batismo de Jesus?
4. Que eventos da história do povo de Israel no Antigo Testamento são
lembrados a partir da forma como se apresenta o Espírito Santo?
5. Observe o papel do Espírito Santo no episódio da tentação de Jesus.
6. Em que aspecto de sua vida Jesus é atingido em cada uma das tentações
registradas por Mateus?
22 O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11

7. Verifique que textos do Antigo Testamento são citados por Jesus diante
das tentações efetuadas por Satanás. Observe em que situações aqueles
textos foram originalmente usados. Qual a importância disso para o
episódio da tentação de Cristo?

2.2 O contexto
O texto em estudo mostra o início oficial do ministério terreno de Jesus.
Antes de apresentar o evento do batismo de Jesus, Mateus mostra a seu leitor
que João Batista vinha batizando junto ao rio Jordão.
O batismo de João era um rito preparatório, que antecipava a chegada do
reinar de Deus (Mt 3.2). Não se tratava de um mero ato ritual, mas lidava com
a situação de pecado das pessoas (Mt 3.6). Este batismo era propriamente “para
remissão dos pecados” (cf. Mc 1.4), ou seja, ele trazia ao pecador o benefício
antecipado da obra do Messias que estava por vir.

2.3 O texto de Mateus 3.13-17 – o batismo


de Jesus
13
Por esse tempo, dirigiu-se Jesus da Galileia para o Jordão, a fim
de que João o batizasse. 14 Ele, porém, o dissuadia, dizendo: Eu é
que preciso ser batizado por ti e tu vens a mim? 15 Mas Jesus lhe
respondeu: Deixa por enquanto, porque assim nos convém cumprir
toda a justiça. Então ele o admitiu. 16 Batizado Jesus, saiu logo
da água e eis que se lhe abriram os céus e viu o Espírito de Deus
descendo como pomba, vindo sobre ele. 17 E eis uma voz dos céus, que
dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. (Tradução
Almeida Revista e Atualizada, SBB)

“A fim de que João o batizasse” – no original um verbo no Infinitivo é usado –


tou/ baptisqh/nai [tou baptisthenai] – que denota propósito de uma ação: a fim de
ser batizado por João. O verbo está na voz passiva, ou seja, aquele que é batizado
não se batiza a si mesmo. Na linguagem do Novo Testamento, especialmente
usada para o batismo cristão que se seguirá após a ascensão de Jesus, a pessoa
O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11 23

nunca se batiza, mas é batizada. Ao se submeter ao batismo de João, o primeiro


“recado” que Jesus deixa é que aquele batismo, desprezado por alguns líderes
judeus (cf. Mt 21.25), era verdadeiro e digno de respeito.
Uma questão que deve ser considerada é o porquê de Jesus vir a ser batizado.
Sabendo-se, como já exposto acima, que o batismo de João era para perdão dos
pecados, e sendo Jesus o Filho de Deus, santo e justo, por que se submeteria
ao batismo?
A atitude de João Batista (v.14) mostra que a vinda de Jesus para ser batizado
parece não ter sentido. “João o dissuadia” – a forma verbal no texto grego –
diekw,luen [diekoluen] – está no Imperfeito, que é usado por vezes (como neste
caso) para expressar uma tentativa. João tentou dissuadir (ou seja, tentou
impedir) Jesus, mas não conseguiu. E esta tentativa é feita de maneira enfática
(o uso dos pronomes pessoais no grego implica ênfase: “Eu é que preciso ser
batizado por ti e tu vens a mim?”).
A resposta de Jesus para João indica o porquê de ser ele batizado – “assim nos
convém cumprir toda a justiça”. “Convém” significa ser conveniente, adequado,
necessário dentro do plano de Deus. Dessa forma, é verbo usado também em
Hebreus 2.10 e 7.26. Quanto ao “cumprir a justiça”, é importante lembrar que um
dos importantes temas em Mateus é o cumprimento do Antigo Testamento na
pessoa e obra de Cristo (por exemplo, Mateus 1.22; 2.15, 17, 23). Mais adiante,
Jesus irá dizer, no “Sermão do monte”: “não vim para revogar [a lei e os profetas],
vim para cumprir” (Mt 5.17).
A “justiça” se refere àquilo que Deus exige, especialmente tendo em vista a
salvação da humanidade. Não foi por uma necessidade sua que Jesus veio para
ser batizado, mas por aqueles a quem ele vem salvar. Ao comentar a “justiça” a
que Jesus se refere (Mt 3.15), o teólogo J. K. Howard faz o paralelo com o Servo
do Senhor, de que fala Isaías: “Nos poemas de Isaías, o Servo é mostrado como
alguém que viria de Israel e ao mesmo tempo corporificaria tudo o que Israel
deveria ter sido. Ele era, na verdade, um retrato do Israel ideal, o cumprimento
do conceito do remanescente fiel” (“The Baptism of Jesus and Its Present
Significance”, The Evangelical Quarterly 39:3, p.133).
É preciso observar um aspecto importante do episódio em estudo, ou seja,
de estarmos aqui diante do início oficial do ministério e obra redentora que veio
Jesus realizar neste mundo. No seu batismo, Jesus se identifica com os pecadores,
24 O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11

que vêm a ser batizados em arrependimento. Howard lembra isso, dizendo:


“O batismo é, pois, o primeiro lugar onde o pleno significado da encarnação é
expresso: Jesus é um conosco, sendo solidário com a necessidade, o sofrimento,
a mortalidade e o pecado humanos” (p.134).
No seu ministério posterior Jesus andará com publicanos e pecadores, pois veio
para salvá-los. Já no ato do seu batismo, ele se identifica com os pecadores, apesar
de não ser um pecador. Dessa forma, no seu batismo, Jesus está antecipando aquilo
que será a grande marca de sua obra: o Substituto da humanidade diante do justo
e santo Deus (cf. 2 Co 5.21). Assim, o batismo de Jesus não é tanto um episódio
que nos serve de exemplo, mas que nos conduz ao cerne da missão de Cristo, de
levar sobre si os pecados do mundo. Colocando-se na “fila” dos pecadores a serem
batizados por João, ele já se coloca como aquele que carregará sobre si as culpas
de todos (como profetizado por Isaías – Is 53.4,5).
A descida do Espírito Santo sobre Jesus em seu batismo marca o início oficial
de seu ofício messiânico (cf. At 10.37,38). O caminho de Jesus estará marcado
pela presença do Espírito Santo (como o próprio Jesus lembra em Mateus 12.28).
A vinda do Espírito Santo também traz o aspecto escatológico do batismo de
Jesus. É possível ver, na sua descida na forma de pomba, uma vinculação com
Gênesis 1.2, onde é dito por ocasião da criação do mundo que o Espírito de
Deus “pairava por sobre as águas”. O verbo “pairar” se aplica ao movimento de
um pássaro, mesmo de uma pomba, na proteção de seus filhotes. A presença do
Espírito Santo mostra que na vinda de Jesus há um novo começo. Em escritos
cristãos dos primeiros séculos encontra-se a ideia de que “As últimas coisas serão
como as primeiras” (Epístola de Barnabé). É significativo também perceber as
semelhanças que há entre a descrição da nova criação em Apocalipse 21 e 22 e
a primeira criação (Gn 1 e 2). Assim, no ministério de Jesus, que agora se inicia,
uma nova criação é antecipada. Por isso o apóstolo pode dizer também que
aqueles que estão em Cristo são nova criação (2 Co 5.17).
Sobre a voz que vem dos céus, Howard lembra que para os judeus daquela
época Deus era o “totalmente outro”, isto é, totalmente transcendente, e que a
imanência de Deus, tão presente na mensagem dos profetas, estava esquecida.
Além disso, a voz dos profetas estava calada já por alguns séculos.
O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11 25

A esperança dos judeus era que a voz de Deus seria ouvida uma
vez mais, que Ele se faria conhecido e isso podia bem ser expresso
nas palavras: “Oh! Se fendesses os céus e descesses” (Is 64.1). ...
A abertura dos céus no batismo de Jesus era, assim, para ser vista
como um prelúdio para um pronunciamento divino; mas tal evento
ocorreria apenas no último dia, o dia da libertação messiânica, e
assim a voz celestial, ligada à descida do Espírito de Deus sobre
Jesus, poderia ser interpretada apenas como um evento que, no
mínimo, marcou o começo do fim. (P.134,5)

A declaração do Pai – “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo”


– ecoa dois textos do Antigo Testamento: Salmo 2.7 e Isaías 42.1. Jesus é tanto o
Filho Messiânico como o Servo Sofredor. Estas palavras do Pai não estão dizendo
que a partir daquele momento Jesus será o Filho (assim dizia uma das heresias
presentes nos primeiros séculos da Igreja cristã, que veio a ser conhecida como
“adopcionismo”). As palavras do Pai apenas confirmam o que Jesus é, o Filho
eterno de Deus. E, ainda mais, o Pai afirma que a obra do seu Filho, que ele vem
realizar e que agora está sendo oficialmente iniciada, agrada o Pai.

2.3 O texto de Mateus 4.1-11 – A tentação


de Jesus
1
A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado
pelo diabo. 2 E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites,
teve fome. 3 Então, o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho
de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães. 4 Jesus,
porém, respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem,
mas de toda palavra que procede da boca de Deus. 5 Então, o diabo
o levou à Cidade Santa, colocou-o sobre o pináculo do templo 6 e
lhe disse: Se és Filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito:
Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem; e: Eles te
susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra.
7
Respondeu-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor,
teu Deus. 8 Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-
lhe todos os reinos do mundo e a glória deles 9 e lhe disse: Tudo isto te
26 O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11

darei se, prostrado, me adorares. 10 Então, Jesus lhe ordenou: Retira-


te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e
só a ele darás culto. 11 Com isto, o deixou o diabo, e eis que vieram
anjos e o serviram. (Almeida Revista e Atualizada, SBB)

A tentação de Jesus segue-se imediatamente ao seu batismo. Neste sentido, é o seu


primeiro “ato oficial” como o Messias. Antes de assumir o governo pleno de todas as
coisas, como o Rei supremo (cf. Mt 28.18), Jesus precisou assumir a responsabilidade
pelos pecados daqueles sobre quem ele foi constituído Rei (Messias). É significativo
que o primeiro passo concreto na caminhada messiânica de Jesus tenha sido um
passo de sofrimento, aliando a fome e sede ao ataque de Satanás. Isto viria a dar a
tônica de toda a sua caminhada terrena, até culminar na cruz.
Chama a atenção o contraste entre o último versículo do capítulo anterior e
o primeiro versículo do capítulo quatro.2 Em 3.17 o Pai manifesta quem Jesus
é, “coroando-o” oficialmente como o Messias e declarando ser ele o Seu amado
Filho. Imediatamente, diz Mateus, Jesus é conduzido pelo Espírito ao deserto.
Dois detalhes no v.1 chamam a atenção:
1. Jesus é levado (o verbo está na voz passiva) pelo Espírito. Trata-se do
mesmo Espírito Santo que veio sobre Jesus por ocasião do batismo para
ungi-lo de forma especial. O que o texto passa a relatar, pois, trata-se
de atividade oficial de Jesus como o Messias (= Ungido), conduzido
para isso pelo próprio Espírito Santo.
2. O verbo no Infinitivo (peirasqh/nai [peirasthenai]) denota finalidade: com
o fim de ser tentado. Ao ser conduzido ao deserto, Jesus o foi com um
propósito divino: ser tentado. A tentação de Jesus, portanto, não foi um
“acidente de percurso”, mas parte do projeto de Deus para a missão do
Messias neste mundo. Por isso, também este episódio da tentação deve ser
visto dentro da trajetória de Jesus na obra da salvação da humanidade.

|| 2 Cabe uma observação a respeito das divisões em capítulos. É importante notar que tal divisão
vem da Idade Média, não fazendo parte do texto original, que era corrido, sem separação
numérica em capítulos e versículos. Estes foram introduzidos para auxiliar na localização de
determinado texto. Levando isso em conta, sabemos que no texto original o (que hoje temos
como) 4.1 vinha imediatamente após o 3.17. Isto ajuda a perceber a conexão entre os dois
textos.
O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11 27

“Teve fome” – a humanidade de Jesus é plenamente manifesta. Ele, como


nós, tem limitações físicas. Mas, diferente de nós, ele as tem não por um estado
natural de limitação, pois é o glorioso Filho de Deus. Jesus limita a si mesmo em
poder, majestade e glória em seu estado de humilhação, quando ele, segundo
sua natureza humana, deixa de usar aquilo que é seu (cf. Fp 2.5-8).
A situação vivida por Cristo apresenta paralelos com a história do povo de
Israel no Antigo Testamento. Após a saída do cativeiro no Egito, Israel passou
quarenta anos no deserto; Jesus esteve quarenta dias no deserto. O povo sentiu
fome, podendo ver claramente o quanto era dependente de Deus; Jesus também
sentiu fome e colocou em Deus sua confiança. Israel teve testes para demonstrar
seu apego a Deus e suas promessas, mas falhou; Jesus passou pela tentação e
foi vitorioso.

2.4 A primeira tentação – Versículos 3,4


A primeira tentação focaliza as dificuldades da vida, particularmente aquelas
necessidades mais evidentes no dia a dia da vida humana.
“O tentador” – no grego temos aqui um verbo no Particípio Presente –
o` peira,zwn [ho peirazon] – que dá a ideia de uma ação constante, costumeira.
Vem à mente a cena descrita em Gênesis 3, quando o diabo veio até as primeiras
pessoas, Adão e Eva, para tentá-los. O objetivo do diabo não é simplesmente
levar a pessoa a pecar. A tentação visa afastar a pessoa de Deus, levando-o à
apostasia (abandono da fé).
“Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães”
(v.3) – por vezes enfatiza-se a partícula condicional “se”, dando a entender que
a principal investida do diabo fosse com o propósito de semear a dúvida em
Jesus sobre sua filiação divina. No entanto, a construção desta frase no grego –
chamada condicional de realidade – deixa claro que o peso não está no “se”, que
poderia até ser traduzido como “visto que”. Ou seja, o que o diabo está fazendo
é sugerir que da filiação divina de Jesus decorre necessariamente a ausência de
necessidade material. Seria algo como: “Visto que és o Filho de Deus (assim o
dizes), então não tens por que passar necessidade”!
28 O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11

O que se encontra nesta investida de Satanás é um exemplo daquilo que


teólogos mais tarde chamariam de “teologia da glória”, ou seja, a ideia de que ser
filho de Deus (= cristão) é garantia de estar livre de problemas materiais.
A resposta de Jesus vem na forma de uma citação do Antigo Testamento, mais
especificamente retirada de Deuteronômio 8.3. (Vale a pena ler todo o trecho
de Deuteronômio 8.1-10.) Após os quarenta anos no deserto, perto de entrar
na terra prometida de Canaã, o povo de Israel ouve de Moisés que a situação
vivida no deserto estava dentro dos propósitos de Deus de disciplinar o filho
(v.5). Ao fazer vir do céu o maná, Deus estava mostrando que o povo dependia
dele inteiramente, também nas necessidades corporais. E que nas promessas de
Deus (“toda palavra que procede da boca de Deus”) estava a verdadeira fonte
de vida para Israel. Infelizmente, o povo de Israel era duro de coração e ao lhe
faltar alimento logo duvidava da graciosa proteção e direção de Deus.
O diabo se aproxima na situação de dificuldade de Jesus e assim o faz com
as pessoas. Traz uma solução aparentemente simpática, até bem lógica. “Se és
filho de Deus, para que sofrer?” A resposta de Jesus não explica os sofrimentos
do filho de Deus – nem sempre é possível explicar tudo o que acontece, também
em nossa vida. No entanto, ele mostra onde está a fonte de vida para cada filho
de Deus – a palavra que vem do Senhor.

2.5 A segunda tentação – Versículos 5,6


Aqui a tentação visa atingir a impaciência! Se és filho de Deus, para que
esperar? Mostra agora tua condição divina através de um feito poderoso,
milagroso!
Nesta tentação, Satanás usa a Escritura Sagrada. Ele não a desconhece! Na
verdade, demonstra conhecer a Bíblia e usa-a para seus propósitos: “Se és Filho
de Deus, atira-te abaixo, por que está escrito:...”. Em outras palavras, o diabo
sugere que Jesus “force” os anjos a agirem a seu favor e busca um texto bíblico
que (pretensamente) lhe daria fundamento para isso.
Um exame um pouco mais cuidadoso das palavras citadas por Satanás
mostra que ele tirou um texto de seu devido contexto e inclusive deixou fora
palavras que não lhe eram favoráveis (veja-se, por exemplo, o versículo 13 do
Salmo 91, comparado com 1 Pedro 5.8 e Apocalipse 20.2). Em primeiro lugar, o
O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11 29

texto do Salmo 91, citado pelo diabo, não sugere que o filho de Deus force uma
situação, mas trata-se de uma promessa que Deus guardará os seus “em todos
os seus caminhos” (palavras estas deixadas de fora pelo diabo em sua citação).
A promessa de Deus no Salmo 91 é que Deus dará ordem aos seus anjos para
que guardem, sim, seus filhos no percurso da vida destes e não em situações
criadas artificialmente.
Jesus denuncia o erro de Satanás ao citar Deuteronômio 6.16: “Não tentarás
ao Senhor teu Deus”. Aquele texto em Deuteronômio, por sua vez, refere-se a
um episódio relatado em Êxodo 17.7. O povo de Israel estava acampado em
Refidim, onde não havia água. O povo se revoltou contra Moisés e contra Deus,
reclamando do porquê de terem saído do Egito, onde havia água. O povo chega
a duvidar da presença de Deus – “Está o Senhor no meio de nós ou não?”. Nisso
consistiu o pecado de Israel, ao exigir um sinal visível da presença de Deus. Em
outras palavras, Jesus diz a Satanás: “Não posso fazer o que você sugere, pois eu
estaria colocando Deus à prova, como Israel fez no deserto”.
O verbo traduzido por “tentar” é evkpeira,zw [ekpeirazo]. Além de presente
neste texto (e no paralelo em Lucas 4.12), também é utilizado em 1 Coríntios 10.9
(uma referência a Israel colocando Deus à prova, reclamando de Moisés devido
às dificuldades encontradas) e em Lucas 10.25 (um intérprete da lei vem tentar
Jesus com uma pergunta). Outra situação que se refere a alguém tentando a Deus
está registrada em Atos 15.10 (onde o verbo peira,zw [peirazo] é utilizado), nas
palavras de Pedro por ocasião do concílio de Jerusalém: “Agora, pois, por que
tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos
pais puderam suportar, nem nós?”. Neste caso, Pedro referia-se à exigência feita
por alguns judeus para que os gentios convertidos fossem obrigados a seguir a
lei de Moisés e, particularmente, a circuncisão.

2.6 A terceira tentação – Versículos 8-10


A terceira tentação procura atingir a busca de um caminho de prazeres. O
diabo oferece uma alternativa de vida onde não há um caminho difícil a trilhar,
mas há abundância, glória e riqueza. Por detrás desta “oferta” está a tentação para
a questão central da vida da pessoa: quem é o seu Deus? A quem adorar?
30 O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11

Na tentação a Jesus mais uma vez a história do povo de Israel no Antigo


Testamento fornece o pano de fundo. Israel, desde o início de sua caminhada após
a saída do Egito, foi tentado a seguir outros deuses (basta lembrar o episódio do
bezerro de ouro – Êx 32). O primeiro mandamento da lei de Deus (Êx 20.1-3)
trata exatamente desta questão: “Não terás outros deuses diante de mim”.
O diabo chega até Jesus nesta última tentação e se apresenta como o “dono
do mundo”: “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mt 4.9). É preciso
cuidar a que conclusões se chega a partir desta palavra. O relato em Lucas traz
ainda mais detalhes. O diabo diz: “Dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes
reinos, porque ela me foi entregue e a dou a quem eu quiser” (Lc 4.6). É preciso
observar quem está falando – trata-se do pai da mentira (Jo 8.44). De fato, o
apóstolo João diz que “o mundo inteiro jaz no maligno” (1 Jo 5.19). Na linguagem
típica de João, o “mundo” é uma referência àqueles que estão sem Cristo, que
são “do mundo” (João 17.16). Ainda assim, o mundo, enquanto natureza criada
por Deus, é de Deus. Não se justifica, por isso, usar as palavras do diabo para
dizer que as coisas da criação de Deus pertencem ao diabo. Ele é um usurpador,
querendo para si o que de fato é de Deus. E usa, sim, das coisas que aí estão para
os seus propósitos, mas nem por isso é o diabo o senhor da criação.
A resposta dada por Jesus mais uma vez vem na forma de uma citação do
Antigo Testamento, desta vez de Deuteronômio 6.13. O contexto daquela palavra
é significativo, pois traz aquela que viria a ser uma das grandes afirmações de fé
no Antigo Testamento: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”
(Dt 6.4). Percebe-se claramente que o que está em jogo é o tema do primeiro
mandamento da Lei de Deus. Culto e adoração pertencem tão somente a Deus.
Nenhuma criatura pode ser cultuada.
O leitor atento ao Evangelho conforme Mateus lembrará do início deste
Evangelho, a cena em que os magos vindos do Oriente, ao verem o menino
Jesus, “prostrando-se, o adoraram” (Mt 2.11) – são os mesmos verbos usados
em Mateus 4.9. Este fato e o uso dos mesmos verbos, assim como a declaração
de Jesus tirada de Deuteronômio, vêm a sublinhar a grande verdade de que este
Jesus é o verdadeiro Deus, assim como o Pai e o Espírito Santo. Após a tentação,
Mateus mostra diversas situações em que Jesus é adorado e em que ele aceita a
adoração (Mt 8.2; 9.18; 14.33; 15.25; 20.20; 28.9, 17).
O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11 31

Ainda sobre as citações do Antigo Testamento usadas por Jesus em sua


resposta a Satanás: Jesus aplica cada um daqueles textos a si mesmo – ele é
aquele que vive de toda palavra que procede da boca de Deus; é ele que se
recusa a colocar Deus à prova e é Jesus que serve e adora o Senhor Deus de
maneira perfeita. É preciso cuidar para não ter uma aplicação moralista deste
texto. Não se deve considerá-lo como ensinando-se simplesmente que Jesus é
um exemplo para nós enfrentarmos a tentação. O texto retrata uma situação
na caminhada de Jesus como o Filho de Deus e Messias. Em outras palavras,
neste texto, o leitor tem, mais do que um exemplo a seguir, o consolo de saber
que o Salvador enfrentou Satanás e o venceu. E esta vitória tem repercussão na
vida de cada filho de Deus.
“Com isto, o deixou o diabo” – no seu relato deste evento, Lucas acrescenta um
detalhe significativo: “até momento oportuno” (Lc 4.13). Ou seja, esta não seria
a última vez em que Jesus seria tentado a abandonar seu caminho em direção
ao ato máximo de sua obra, na morte de cruz. Mateus mesmo relata situações
em que Jesus é tentado a deixar de lado a caminhada para a cruz (16.23; 27.40).
O fato de Cristo seguir em frente é confortador para todos os que nele creem.
O Salvador não abandonou a obra da salvação. Para tanto, enfrentou o maior
inimigo, o tentador, e o venceu. Esta vitória estaria completa quando Jesus
completasse sua missão, ao morrer na cruz e ressuscitar gloriosamente. Mas já
aqui, no episódio da tentação, esta vitória é anunciada antecipadamente.
A tentação de Jesus tem um aspecto muito consolador para aqueles que são
tentados. O autor da Epístola aos Hebreus considerou desta forma o porquê
da tentação de Jesus: “Por isso convinha que, em todas as coisas, se tornasse
semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas
referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo. Pois naquilo
que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são
tentados” (Hb 2.17,18).
Assim, também ao ser tentado Jesus estava atuando substitutivamente, em
favor de todas as pessoas. Sua tentação é uma garantia que temos de que ele
nos conhece muito bem (conhecendo nossas fraquezas), de modo que podemos
confiar no seu socorro quando somos tentados.
32 O batismo e a tentação de Jesus – Mateus 3.13–4.11

Exercícios de revisão
1. Jesus tinha de ser batizado por João Batista porque:
a) precisava lavar o próprio pecado.
b) ninguém queria acreditar em João.
c) assim cumpria a justiça de Deus, como nosso Substituto.
d) assim ele se tornaria melhor do que já era.

2. A voz que veio do céu, após o batismo de Jesus:


a) lembra os textos de Salmo 2.7 e Isaías 42.1.
b) era o Pai, dizendo o que João Batista deveria agora fazer.
c) disse às pessoas que elas também deveriam ser batizadas.
d) disse que a partir daquele momento Jesus era o Filho de Deus.

3. Ao ser tentado pelo diabo, Jesus:


a) procurou fugir, pois estava debilitado fisicamente.
b) resistiu às investidas mostrando que não iria deixar de confiar em
Deus.
c) permaneceu calado, pois sabia que não era possível argumentar.
d) citou alguns textos bíblicos que falavam especificamente de situações
em que Satanás aparece no texto.

4. Ao responder a Satanás, Jesus fez uso de citações do Antigo Testamento,


que mostravam:
a) o diabo agindo sobre os povos pagãos.
b) como o povo de Israel já havia vencido Satanás antes.
c) situações em que Israel caiu (pecou).
d) que não adiantava resistir aos avanços de Satanás.

Respostas:
1. c 2. a 3. b 4. c
3

Jesus envia os apóstolos –


Mateus 9.35-10.8
Gerson Luis Linden

Após a leitura cuidadosa do texto, considere as seguintes questões:


1. Qual o contexto (histórico e literário) em que ocorre a situação
descrita?
2. Observe os diferentes personagens (ou grupos de personagens)
mencionados – Jesus, as multidões, os discípulos. Qual o papel que
cada um destes assume no texto?
3. Como as multidões são descritas? Qual a reação de Jesus diante do que
vê? Como os discípulos são envolvidos?
4. Qual a importância do evangelista mencionar a compaixão de Jesus?
5. O que mais chama a atenção nas palavras de Jesus ao enviar seus
discípulos na proclamação do evangelho?
34 Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8

3.1 Mateus 9.35


“E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas,
pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e
enfermidades.”
Os três verbos no particípio (= gerúndio) trazem resumidamente o conteúdo
do ministério de Jesus: ensinando, pregando e curando. De certa forma, o
ministério dos apóstolos terá aí seu paradigma. A grande verdade por detrás
desta ação de Jesus era a manifestação antecipada do reinar de Deus, que se
manifestava agora no ministério terreno de Jesus. Este era um tempo muito
especial, pois o próprio Deus estava presente entre os homens, em Jesus, agindo
no propósito de trazer para a comunhão consigo todas as pessoas.
Há quem proponha uma distinção substancial entre “ensinar” e “pregar”.
Mesmo que os verbos possam, ocasionalmente, ser usados em sentidos muito
próximos, podem-se notar algumas diferenças pelo seu uso em Mateus:
O verbo dida,skw [didasko] – ensinar – é usado 14 vezes em Mateus (4.23; 5.2;
5.19 [2 vezes]; 7.29; 9.35; 11.1; 13.54; 15.9; 21.23; 22.16; 26.55; 28.15; 28.20). O
verbo é empregado algumas vezes referindo-se ao ensino de Jesus nas sinagogas
e no templo. Sugere a ideia de um ensino organizado, completo. No sentido de
ensino da palavra, o sujeito é Jesus, ou os discípulos, ou os fariseus e escribas
(cap. 15). Este ensino por parte de quem está atuando num “ofício” parece lhe
dar um caráter diferenciado em relação a uma transmissão de conhecimento
de maneira mais informal.
Khsu,ssw [kerysso] é empregado 9 vezes em Mateus (3.1; 4.17; 4.23; 9.35;
10.7; 11.1; 24.14; 26.13). O verbo está ligado diversas vezes a “evangelho” e a
“reino”. Neste texto, o objeto da proclamação é o “evangelho do reino”. Trata-se
das boas-novas (= evangelho) a respeito do reinar de Deus. É importante lembrar
que nos Evangelhos “Reino de Deus” não se refere a um lugar, mas a uma ação.
Deus reina! Como observamos acima, Ele o faz através da chegada do reino na
pessoa, ministério e obra de Jesus. Assim, o assunto da proclamação é o próprio
Jesus, que faz o Reino de Deus vir e estar presente entre as pessoas.
“Curando” – as curas de Jesus mostravam a chegada do reino escatológico
na pessoa e obra do Messias (cf. o próprio Jesus deixa claro em Mateus 12.28).
Aquilo que é esperado plenamente no fim dos tempos, na vinda definitiva de
Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8 35

Jesus e na criação dos novos céus e nova terra, é antecipado na chegada de Cristo
para sua obra da salvação da humanidade.

3.2 Mateus 9.36


“Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e
exaustas como ovelhas que não têm pastor.”
As pessoas estavam “aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor”. Os
termos usados pelo evangelista dizem bastante sobre a situação daquelas pessoas.
A construção h=san evskulme,noi kai. evrrime,noi [esan eskulmenoi kai errimenoi]
utiliza duas formas verbais no Particípio Perfeito Passivo, que denota um estado,
uma situação decorrente de algo que lhes acontecera. Eles se apresentavam em
uma situação de aflitos (evskulme,noi [eskulmenoi] – do verbo sku,llw [skullo]
– estar aflito, atribulado) e desamparados (evrrime,noi [errimenoi] – do verbo
r`i,ptw [ripto] – estar jogado, atirado, desamparado).
Esta é a percepção de Jesus. A situação de vida daquelas pessoas era miserável,
triste e sem esperança. E esta situação era decorrente de serem como ovelhas sem
pastor. Ora, o único pastor de Israel é Yahweh (o Senhor), como bem mostra o
profeta Ezequiel no capítulo 34 de seu livro. Portanto, eram pessoas do povo de
Israel, mas que viviam sem rumo, sem salvação, porque estavam sem o Pastor
que lhes poderia dar descanso, alento, força para viverem.
Há uma semelhança (anotada na margem da edição de O Novo Testamento
Grego de Nestle-Aland) entre a expressão acima e dois textos do Antigo
Testamento. Um deles é Números 27.17, onde Moisés suplica que Deus dê um
outro guia em lugar dele, “para que a congregação do Senhor não seja como
ovelhas que não têm pastor”. O outro é de 1 Reis 22.17 (2 Cr 18.16), onde o profeta
Macaías diz diante do ímpio rei Acabe que “todo o Israel [está] disperso pelos
montes, como ovelhas que não têm pastor”. São textos que mostram a situação
do povo de Israel, sem líderes, ou com maus líderes e, por isso, vulneráveis.
No tempo de Jesus, esta situação continuava. Havia falta de uma liderança que
conduzisse o povo para os braços do Pastor de Israel.
O evangelista diz que Jesus se compadeceu. O verbo empregado neste texto é
bastante significativo, tanto pela sua forma, como especialmente pelo seu uso. O
36 Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8

verbo splagcni,zomai [splanchnizomai] é empregado diversas vezes em Mateus


e nos outros Sinóticos3 e seu uso leva a três conclusões:
Primeira, é um verbo forte, que transmite de forma concreta o que se está
sentindo. Na etimologia do verbo (que evidentemente não explica de forma
completa seu sentido, mas relata sua origem) está um sentimento que se manifesta
em uma reação física, algo como uma dor nas vísceras. A forma deste verbo dá
a entender que o sentimento envolve o físico. Para nós, ocidentais, sentimentos
fortes por vezes são expressos na forma de “dor no coração”, enquanto que os
orientais, de maneira até mais realista, falam de uma dor nos intestinos, para se
referir a um sentimento forte de tristeza ou compaixão.
Uma segunda observação, decorrente da forma como este verbo é empregado
no Novo Testamento: cada vez que este verbo é usado nos Evangelhos mostra
uma situação em que o sentimento definido pelo verbo parte de alguém frente
a outra pessoa que está em condição miserável e sem condições de sair desta e
muito menos de oferecer algo em troca pela ajuda recebida. É um sentimento que
surge diante da fraqueza, do sofrimento, da insuficiência do outro. Normalmente
é Deus, ou mesmo Jesus, o sujeito do sentimento determinado pelo verbo.
Terceiro, em cada um dos episódios em que este verbo é utilizado há sempre
uma ação concreta decorrente deste sentimento de compaixão. Se olharmos
cada um dos textos em que Jesus é o sujeito, notaremos que em decorrência de
sua compaixão Ele cura, consola, alimenta, etc., aqueles que despertaram nele
o sentimento. É, por isso, não apenas um sentimento, mas algo que produz uma
ação benéfica, graciosa e concreta em favor do aflito e desamparado.
Considerando o que foi dito na terceira observação acima, poderíamos
perguntar: Qual foi a ação decorrente da compaixão de Jesus na situação descrita
por Mateus 9? Observando o que sucede, podemos notar que houve uma dupla
ação decorrente da compaixão de Jesus.
Primeiro, ele exortou seus discípulos a que rogassem por trabalhadores para
a seara (9.38). Jesus muda a ilustração de rebanho para uma plantação, metáfora
esta que, aliás, é bastante usada nas Escrituras para mostrar o lugar em que Deus

|| 3 Mateus 9.36;14.4 – curou enfermos; 15.32 – alimentou a multidão; 18.27 – perdoou a dívida;
20.34 – curou os cegos; Mc 1.41 – curou leproso; 6.34 – ensinou; 8.2 – alimentou multidão;
9.22 – pedido de pessoas em necessidade; Lc 7.13 – ressuscitou o filho da viúva; 10.33 – o
bom samaritano; 15.20 – pai do filho perdido.
Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8 37

está agindo, no seu reinar gracioso, para trazer vida e salvação para as pessoas.
Rogar por trabalhadores é pedir a Deus que Ele, em sua graça, mande gente
que seja instrumento do Pastor de Israel, para que por meio do trabalho destes
ele venha a ser reconhecido pelo povo aflito e desamparado, para que seja um
povo que tenha o Pastor certo.
Depois, uma segunda ação decorrente da compaixão de Jesus foi que ele
próprio respondeu à oração (talvez mesmo antes dela ter sido feita): ele mesmo
enviou os trabalhadores (10.1ss).
Jesus é o Pastor verdadeiro – esta é a mensagem já desde o início do evangelho,
na citação feita pelos sacerdotes de Jerusalém (Mt 2.4-6, citando Mq 5.1). Com
a chegada de Jesus e o início do seu ministério, fica evidenciado que a lacuna
de um verdadeiro pastor está sendo preenchida. Além dele estar pessoalmente
presente, aquele que ele enviar levará consigo sua presença (cf. Mt 10.40). Uma
lição fundamental neste texto é que a missão – o envio dos apóstolos para
proclamarem o evangelho – nasce a partir da compaixão de Jesus!

3.3 Mateus 9.37


“E, então, se dirigiu a seus discípulos: A seara, na verdade, é grande, mas os
trabalhadores são poucos.”
A “seara” – qerismo,j [therismos] – literalmente pode se referir ao processo (e
ao tempo) da colheita – Marcos 4.29; 13.30a. Em Mateus 13.39 (na explicação da
parábola do joio e do trigo), o vocábulo serve como figura para a “consumação do
século” – uma conotação escatológica que muito bem pode ser levada em conta
para o entendimento no texto em estudo. Em um sentido figurado, therismos
pode se referir à safra a ser colhida – Mateus 9.37,38 (e o texto paralelo em
Lucas 10.2); João 4.35b [“vede os campos, pois já branquejam para a ceifa” – o
interessante neste texto é que também aqui Jesus está falando aos discípulos, em
um contexto evangelístico – a conversa com a mulher samaritana]. A palavra
também serve como uma referência direta ao julgamento final em Apocalipse
14.15 [“A seara da terra já secou”].
“Trabalhadores” – ev r ga, t ai [ergatai] – a mesma palavra é empregada
tanto para trabalhadores, especialmente em serviço na agricultura, como
figuradamente para referir-se a apóstolos e mestres: 2 Co 11.13 [referindo-se
38 Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8

a falsos apóstolos – “obreiros fraudulentos”]; Fp 3.2 [também em um sentido


negativo, numa referência aos judaizantes – “acautelai-vos dos maus obreiros”];
2 Tm 2.15 [“procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem
do que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade”].
É importante observar a referência a “obreiros” no contexto do texto em
estudo. Ao falar do sustento dos seus discípulos, na missão para a qual estavam
sendo enviados, Jesus diz: “Digno é o trabalhador do seu alimento” (Mt 10.10).
Tal referência mostra que Jesus fala aos Seus discípulos estando estes em um
ofício específico, do apostolado. Eles serão os emissários do próprio Senhor e
trabalharão na proclamação do reino do Senhor.

3.4 Mateus 9.38


“Rogai, pois, ao senhor da seara que mande trabalhadores para a sua
seara.”
“Rogai” – deh,qhte [deethete] – temos aqui uma forma verbal no Aoristo do
Imperativo do verbo de,omai [deomai] – peçam; orem. O verbo é empregado
normalmente para uma referência à oração, muitas vezes uma súplica enfática,
dramática até (por ex., Lc 5.12; 9.38). O Aoristo Imperativo focaliza mais a
ação em si e não a ligação entre a pessoa que pratica a ação e esta (que seria a
ênfase do presente do imperativo). Esta forma verbal dá um sentido de urgência
na ação para a qual Jesus exorta seus discípulos. É preciso rogar, pedindo
trabalhadores.
“O Senhor da seara” – kuri,ou tou/ qerismou/ [kuriou tou therismou] – uma
referência clara a Deus, que é o único dono do campo e o responsável pela
colheita. Dele depende o trabalho. Sem ele, os trabalhadores não podem fazer
nada.
É importante lembrar o contexto desta passagem, para que ela não seja usada
de maneira indiscriminada. Jesus tem compaixão das pessoas que andam sem
pastor (guia). Sendo ele o Pastor, é preciso que aquelas multidões o recebam.
Enquanto ele estiver visivelmente no mundo, irá buscar e chamar o maior
número possível. Quando deixar visivelmente o mundo, seus enviados (os
apóstolos), pela proclamação do evangelho, trarão o Pastor Jesus às pessoas.
Assim, a oração que os discípulos devem fazer (e nós também!) é que Deus envie
Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8 39

mensageiros que anunciem de maneira fiel a todas as pessoas que o verdadeiro


Pastor é Jesus Cristo.
É significativo que o primeiro envolvimento dos discípulos na missão é orar!
Com isto Jesus valoriza a oração e também deixa claro que a missão é de Deus.
É preciso “deixar Deus ser Deus”. Por mais que seja importante a participação
dos cristãos no trabalho missionário, não se pode perder de vista a dimensão
teológica (por excelência) desta obra.

3.5 Mateus 10.1


“Tendo chamado os seus doze discípulos, deu-lhes Jesus autoridade
sobre espíritos imundos para os expelir e para curar toda sorte de doenças e
enfermidades.”
“Tendo chamado” – proskalesa,menoj [proskalesamenos] – temos aqui uma
forma do Particípio Aoristo de proskale,w [proskaleo] – tendo convocado;
chamado. Este verbo é também empregado para o chamado divino à fé – Atos
2.39 [“para vós outros é a promessa ... para quantos o Senhor nosso Deus
chamar.”]. Mais próximo ao sentido usado no texto em estudo, encontramos este
mesmo verbo sendo empregado para o chamado a um ofício, por exemplo, em
Atos 13.2: “... disse o Espírito Santo: separai-me agora a Barnabé e a Saul, para a
obra a que os tenho chamado”; também em Atos 16.10: “Assim que Paulo teve
a visão, imediatamente procuramos partir para aquele destino, concluindo que
Deus nos havia chamado para lhes anunciar o evangelho.”
Cada um destes textos deixa claro que Deus é o que chama. O trabalho é
a pregação do evangelho. O episódio de Jesus com os discípulos (apóstolos)
combina muito bem com o uso do verbo nos dois textos citados de Atos –
são pessoas escolhidas, convocadas e enviadas por Deus (Jesus) para a obra
missionária. Desta forma, os doze apóstolos são o princípio do ministério
apostólico do Novo Testamento. Depois deles, outros serão chamados para este
mesmo ofício (por exemplo, Atos 20.17,28; Tito 1.5-9). A missão será a mesma
– anunciar a pessoa e obra de Jesus Cristo, o verdadeiro Pastor, que dá alento e
conforto àqueles que andam como ovelhas sem pastor.
“Os seus doze discípulos” – tou.j dw,deka maqhta.j auvtou/ [tous dodeka
mathetas autou] – a referência é específica ao grupo daqueles que estavam mais
40 Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8

próximos de Jesus e que foram chamados a primeira vez com o propósito de


serem preparados para serem “pescadores de homens” (cf. Mt 4.18-22). Havia
um grande número de discípulos (mais de setenta, cf. Lc 10.1). Mas os doze
foram preparados para serem os anunciadores oficiais do Reino de Deus, após
a ascensão de Jesus.
“Deu-lhes autoridade sobre espíritos impuros” – e;dwken auvtoi/j evxousi,an
pneuma,twn avkaqa,rtwn [edoken autois exousia pneumaton akatharton] – a função
a ser desempenhada (dentro do ofício para o qual estão sendo chamados) só
é possível a partir das dádivas de Deus. Jesus dá autoridade e é só assim que
os discípulos poderão agir. É com Sua autoridade que os apóstolos irão. Sem
ela, seriam usurpadores do trabalho para o qual só Deus pode convocar (visto
ser Sua a seara). É significativo que no final do Evangelho, após a ressurreição
Jesus diga: “Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra” (Mateus 28.18)
e daí envie os apóstolos para seu trabalho definitivo. É sempre a autoridade de
Cristo, não dos homens, que é a base para a proclamação do seu evangelho.
Aquilo que caracteriza o ministério de Jesus (Mt 4.23; 9.35) é agora conferido
aos apóstolos. A missão deles está em continuidade com a de Jesus (no Seu
caráter profético).
É significativo que Jesus faça a escolha dos doze apóstolos (v.2) exatamente
após ter dito a eles que rogassem a Deus por mais trabalhadores da seara! Jesus
dá concretamente resposta à oração (talvez mesmo antes que ela aconteça). A
ação de Jesus aí mostrada deixa claro o que Ele quer dizer com “trabalhadores
na seara”. Não se refere a pessoas em geral, que testemunhem sua fé. Mas
trata especificamente daqueles a quem Deus envia, com o encargo especial de
proclamação – este será seu ofício!

3.6 Mateus 10.2-4


“Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro, Simão, por sobrenome
Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu e João, seu irmão; Filipe e
Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano; Tiago, filho de Alfeu e Tadeu; Simão,
o Zelote e Judas Iscariotes, que foi quem o traiu.”
“Os nomes dos doze apóstolos” – Tw/n dw,deka avposto,lwn ta. ovno,mata [ton
dodeka apostolon ta onomata] – é a única vez que os doze discípulos são assim
Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8 41

chamados em Mateus: “apóstolos”. Este termo define o que eles são – enviados,
sob a autoridade daquele que os envia. Até este ponto o grupo dos “discípulos” era
de tamanho indeterminado. São aqueles mencionados em 9.37. Dentre eles, Jesus
escolhe doze – isto fica explícito em Lc 6.13: “...chamou a si os seus discípulos
e escolheu doze dentre eles, aos quais deu também o nome de apóstolos”. Vale
lembrar que “discípulo” significa o mesmo que “aluno”. Os doze eram alunos de
Jesus, pois estavam sendo ensinados, equipados para uma tarefa. Ao chamá-los
de “apóstolos” (= enviados), Mateus refere-se à tarefa deles, ou seja, são enviados
por Jesus como seus representantes, proclamadores de sua mensagem.
“Primeiro, Simão” – ele é o que se chama de um primus inter pares, ou seja,
alguém que, sendo igual aos seus companheiros, assume uma liderança entre
eles. Isto não o torna superior, mas é possível notar que ao longo da narrativa
do Evangelho, Pedro toma a frente como um porta-voz dos doze.
A partir do v.5 (até v.42) segue o assim chamado “discurso missionário”
de Jesus. Duas seções distintas podem ser identificadas: vs.5-23, que trata
especificamente da missão dos doze para as ovelhas perdidas de Israel; vs.24-
42, que tem uma linguagem mais inclusiva e geral, que a torna mais aplicável à
Igreja apostólica em sua abordagem a judeus e gentios.

3.7 Mateus 10.5-8


“A estes doze enviou Jesus, dando-lhes as seguintes instruções: Não tomeis
rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos; mas, de preferência,
procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel; e, à medida que seguirdes, pregai
que está próximo o reino dos céus. Curai enfermos, ressuscitai mortos, purificai
leprosos, expeli demônios; de graça recebestes, de graça daí.”
“As ovelhas perdidas da casa de Israel” – há duas possibilidades de traduzir a
expressão no grego. Uma possibilidade é: “as ovelhas perdidas do meio da casa
de Israel”, ou seja, dando a entender que alguns em Israel são ovelhas perdidas. A
outra possibilidade seria: “as ovelhas perdidas, isto é, a casa de Israel”, expressando
o fato de que a casa de Israel como um todo estaria em vista. O exegeta Jeffrey
Gibbs, em seu Comentário a Mateus, sugere a segunda alternativa. Isto não nega
que houvesse verdadeiros crentes entre o povo de Israel, mas visto como um
todo, o povo judeu no tempo de Jesus eram ovelhas perdidas. Trata-se de uma
42 Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8

alternativa gramaticalmente possível. Além disso, a menção dos samaritanos e


gentios, como elementos contrastantes, aponta para o fato de que o ministério dos
doze será dirigido ao povo judeu como um todo. Além disso, tal caracterização
de Israel concorda com algumas descrições deste povo já no Antigo Testamento
(por exemplo, 1Reis 22.17; Jeremias 50.6; Ezequiel 34).4
A tarefa que os apóstolos recebem tem seu modelo no ministério do próprio
Jesus. Assim como ele, também os apóstolos anunciarão a proximidade do
reino dos céus e manifestarão com atos milagrosos que este reino já chegou na
pessoa de Cristo.
No trecho que segue (vs.9-42) Jesus continua a orientar os apóstolos sobre
a missão que terão pela frente. Eles irão depender da manutenção que Deus
proverá, através das próprias pessoas a quem eles anunciarão o evangelho (vs.9-
15). Haverá ameaças e perigos para a integridade física dos mensageiros, mas eles
estarão sempre acompanhados por Deus, por ele orientados sobre o que devem
falar e confortados pela promessa de que o próprio Pai zela por eles (vs.16-33).
Desde já, Jesus lhes garante que a mensagem do seu reino trará divisões, mesmo
entre pessoas muito próximas, mas que esta mensagem é o cerne da verdadeira
vida (vs.34-39). Ao final deste “discurso”, Jesus garante aos seus enviados que a
missão deles será sublime, na medida em que, ao serem recebidos pelas pessoas,
será o próprio Cristo, com todos os seus benefícios eternos, que será recebido
(vs.40-42).
J. Gibbs chama a atenção para o fato de que o texto do discurso de Jesus afirma
o caráter trinitário presente na ação missionária daqueles que são enviados.
Afinal, é o próprio Cristo que os envia, como resposta à oração feita ao Pai
(9.38). Além disso, a presença de Jesus e do Pai está naqueles que são enviados
(10.40), e em tempos de profunda perseguição e dificuldade os missionários
falarão capacitados pelo Espírito Santo (10.20) (GIBBS, p.499). Assim, a missão
para a qual os apóstolos são chamados é, em última análise, a missão de Deus,
realizada pelo próprio Deus através de seus mensageiros, pela qual pessoas são
trazidas para a ação do Reino de Deus, no qual há vida abundante e salvação,
para aqueles que haviam sido “aflitos e exaustos, como ovelhas que não têm
pastor” (9.36).

|| 4 Jeffrey Gibbs, Matthew 1.1-11.1, St Louis: Concordia Publishing House, 2006, p.506.
Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8 43

Considerando a abrangência da missão dada por Jesus aos doze apóstolos


neste momento de seu ministério, como relacioná-la com as palavras finais do
Evangelho, em que Jesus envia estes mesmos (sem Judas Iscariotes), para todas
as nações? Uma leitura cuidadosa de toda a narrativa do Evangelho a partir do
capítulo 10 mostra que haverá uma sobreposição entre esta tarefa, de dirigir-se
à casa de Israel (aos judeus) e aquela, de seguir a todos os povos do mundo. Isso
ocorrerá ao menos pelo espaço de tempo de uma geração (até o ano 70 d.C., com
a queda de Jerusalém, em que Israel deixa de existir como uma nação).
O próprio texto de Mateus 28.18-20 (a assim chamada “grande comissão”)
envolverá os apóstolos na proclamação do evangelho a todas as nações (todos os
povos), onde estarão incluídos judeus, samaritanos e gentios, indistintamente.
O relato do livro de Atos dos Apóstolos mostra que os seguidores de Jesus
continuaram a anunciar aos judeus o reino que veio em Cristo enquanto
expandiam o alcance desta mensagem também aos não judeus.

Exercícios de revisão
1. Ao falar da compaixão de Jesus (Mt 9.36) o evangelista usa um
verbo que:
a) é apenas usado neste texto.
b) é tão somente um sentimento, sem nenhuma consequência prática.
c) normalmente significa um desprezo pelo sofredor.
d) manifesta um sentimento de compaixão acompanhado por uma ação
concreta em favor do necessitado.

2. Ao dizer que as pessoas estavam “aflitas e exaustas”, Mateus mostra que


elas:
a) eram como ovelhas sem pastor, isto é, sem Cristo.
b) haviam trabalhado arduamente no serviço do Reino de Deus.
c) eram escravas e os seus patrões eram impiedosos.
d) mereciam estar assim.
44 Jesus envia os apóstolos – Mateus 9.35-10.8

3. O texto refere-se a algumas pessoas que acompanhavam Jesus


como sendo “discípulos” e “apóstolos”; estes dois termos significam,
respectivamente:
a) seguidores; alunos
b) enviados; seguidores
c) alunos; enviados
d) alunos; mestres

4. “Ovelhas perdidas da casa de Israel” se refere a:


a) pessoas de origem judaica e que precisavam ouvir o evangelho.
b) judeus que não eram fiéis aos preceitos da lei judaica.
c) não judeus.
d) Samaritanos.

Respostas:
1. d 2. a 3. c 4. a
4

Episódio em Cesareia de Filipe –


Mateus 16.13-28
Gerson Luis Linden

Após a leitura cuidadosa do texto, considere as seguintes questões:


1. Observe a importância do contexto literário em que está o texto em
estudo (ou seja, o que vem antes e após ele, dentro da narrativa de
Mateus). Leve em consideração a estrutura do Evangelho conforme
Mateus. Qual a importância do v.21? (Lembre a estrutura em três partes,
apresentada no primeiro capítulo deste estudo)
2. O texto em estudo é normalmente apresentado na forma de dois
trechos – em algumas das traduções em português há um título editorial
colocado após o v.20. Desconsiderando estes títulos editoriais, observe
o texto inteiro (vs.13-28). Que ideia geral conecta o texto como um
todo?
3. O que a resposta dada por Pedro à pergunta de Jesus diz sobre a pessoa
e obra deste?
4. Por que Jesus teria proibido seus discípulos de divulgarem quem ele é?
46 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28

5. Como explicar que num período tão breve de tempo Pedro possa ter
tido duas manifestações tão diferentes?
6. O que significa “carregar a própria cruz”?

4.1 Contexto
Comparado com os outros sinóticos, o relato de Mateus é o mais completo.
E é o único que, após a confissão de Pedro, traz as palavras de Jesus sobre a
Igreja e o abrir e fechar do reino dos céus. É significativo que esta confissão
de Pedro e as palavras de Jesus sobre o discipulado cristão se constituem em
um momento-chave dentro do relato de Mateus. Considerando a proposta do
exegeta Jack D. Kingsbury, que sugere entendermos a estrutura de Mateus em
três grandes partes, a partir de 16.21 uma nova etapa no relato inicia. Até aqui
(desde 4.17), a ênfase estava no ministério de Jesus centralizado na proclamação
do Reino de Deus. A partir deste trecho, o foco no relato do Evangelho vai para
a consumação da obra de Jesus, com sua morte e ressurreição. Em 16.21 Jesus
faz o primeiro de três anúncios dos eventos culminantes do Evangelho.

4.2 O texto
13
Indo Jesus para os lados de Cesareia de Filipe, perguntou a
seus discípulos: Quem diz o povo ser o Filho do Homem? 14 E eles
responderam: Uns dizem: João Batista; outros: Elias; e outros:
Jeremias ou algum dos profetas. 15 Mas vós, continuou ele, quem
dizeis que eu sou? 16 Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo,
o Filho do Deus vivo. 17 Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado
és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram,
mas meu Pai, que está nos céus. 18 Também eu te digo que tu és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do
inferno não prevalecerão contra ela. 19 Dar-te-ei as chaves do reino
dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que
desligares na terra terá sido desligado nos céus. 20 Então, advertiu
os discípulos de que a ninguém dissessem ser ele o Cristo. 21 Desde
esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que
lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas
Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28 47

dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e


ressuscitado no terceiro dia. 22 E Pedro, chamando-o à parte, começou
a reprová-lo, dizendo: Tem compaixão de ti, Senhor; isso de modo
algum te acontecerá. 23 Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda,
Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das
coisas de Deus, e sim das dos homens. 24 Então, disse Jesus a seus
discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me. 25 Porquanto, quem quiser salvar a sua
vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á. 26
Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder
a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma? 27 Porque
o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos,
e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras. 28 Em verdade
vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira
nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem
no seu reino. (Almeida Revista e Atualizada)

O local do acontecimento é significativo: literalmente na fronteira entre Israel


e o mundo. Este texto anuncia os grandes fatos a respeito de Jesus (o Cristo; sua
morte e ressurreição). Desta forma, nos dá uma ideia da importância missionária
(para o mundo) da confissão de Pedro e de tudo o que segue.
Jesus não destinou muito do seu ensino, até aqui, para falar sobre quem Ele
era. Na maior parte do tempo, anunciou o Reino de Deus e fez os atos próprios
de seu ministério (curas e expulsão de demônios). Tais ensinos e atos anunciavam
quem ele era!
No v.13 Jesus se autodenomina “Filho do Homem”. Nos Evangelhos
Sinóticos este título é atribuído a Jesus 69 vezes. Trata-se do título preferido
por Jesus ao referir-se a si mesmo. O sentido parecer ser “o Homem”, no sentido
representativo, ou o Homem ideal. Encontramos uma designação semelhante
feita pelo apóstolo Paulo, quando designa Jesus como o “último Adão” (1 Co
15.45), isto é, aquele em quem a humanidade não está corrompida pelo pecado;
aquele que é o protótipo do ser humano na perfeição do reino escatológico de
Deus. A expressão usada por Jesus parece ter origem em uma visão do profeta
Daniel (7.13,14). Naquele capítulo do profeta Daniel, a expressão também é
usada como referência ao povo de Deus, os “santos do Altíssimo” (Dn 7.18, 27).
48 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28

Jesus é o verdadeiro povo de Deus. Dito de outra forma, ao designar-se “Filho


do Homem”, Jesus se apresenta como o “homem representativo”.
É importante observar o seguinte no diálogo de Jesus com Pedro (e os
discípulos):
(a) a pergunta é feita aos discípulos (v.15);
(b) Pedro responde (v.16);
(c) Jesus se dirige a Pedro (vs.17-19);
(d) Jesus se dirige aos discípulos, para mostrar o que implica ser ele o
Cristo (v.20,21).

Levando isso em conta e comparando o v.19 (a sua segunda parte) com


Mateus 18.18, pode-se perceber que, apesar de Pedro ser o interlocutor de
Jesus, ele o faz como um dos doze discípulos (apóstolos) de Jesus. As palavras
dirigidas a Pedro, portanto, não são exclusivamente para ele, mas para o grupo
dos discípulos como um todo, no qual Pedro é nesta etapa o primus inter pares
(cf. lição sobre Mt 9.35–10.8).
“Tu és o Cristo” (v.16). Cristo,j [Christos] traduz o hebraico “Maschiach”,
aquele que foi ungido. Este termo era aplicado no Antigo Testamento a alguém
sobre quem fora derramado óleo, mostrando que havia sido escolhido para uma
missão dada por Deus. Isso ocorria especialmente com os reis de Israel, que
tinham a missão de “pastorear” Israel (veja o uso da designação “pastor” pelos
profetas, por exemplo, Ez 34; Jr 23.1-6). Também os sacerdotes (Êx 30.30; Lv
4.5) e profetas (1 Rs 19.16) eram ungidos, mas este ato era mais característico
da função real.
Tendo este pano de fundo em vista, pode-se entender a advertência de Jesus
no v.20. O termo Christos tinha uma forte conotação política para os judeus do
tempo de Jesus. Eles viviam uma situação em que os romanos dominavam a
Palestina. Havia forte expectativa de uma libertação da dominação estrangeira.
Falar da chegada do Christos naquele contexto poderia levar as pessoas a uma
falsa compreensão sobre a natureza da obra de Jesus. Pareceria a muitos que
Jesus seria um Rei que os libertaria do jugo (terreno) dos romanos. Mas não era
este tipo de reinado que Jesus veio assumir (cf. João 18.36).
Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28 49

Isso também ajuda a explicar por que o próprio Jesus fez pouco uso deste
título – Cristo (Messias) – para si mesmo. Paulo, no entanto, designa Jesus de
Cristo frequentemente (379 das 529 ocasiões de uso do título em todo o Novo
Testamento), e isso ocorre após a obra de Jesus ter sido completada.
“O Filho do Deus vivo” (v.16). Na avaliação de alguns autores (entre eles,
Jack D. Kingsbury), “Filho de Deus” é o título mais importante de Jesus neste
Evangelho. Isso está diretamente ligado ao conceito de “reino dos céus (de Deus)”
em Mateus. Por ser o Filho de Deus, Jesus traz, em sua pessoa e obra, o reinar
gracioso de Deus ao mundo. “Deus vivo” – a expressão grega o` zw/n [ho Zoon]
(literalmente: “aquele que vive”), particípio presente do verbo za,w [Zaoo] (viver)
é aplicada a Deus em Mateus 16.16; 26.63; João 6.57; Atos 14.15; Romanos 9.26;
2 Coríntios 3.3; 6.16; 1 Tessalonicenses 1.9; 1 Timóteo 3.15; 4.10; 6.17; Hebreus
3.12; 9.14; 10.31; 12.22; Apocalipse 7.2; 4.9; 15.7. Ao dizer que Deus é aquele
que vive (o Deus vivo) o texto bíblico não está apenas se referindo à vida que
Deus tem para si, mas o fato de que ele é o doador e mantenedor da vida. Toda
vida depende dele. E por isso mesmo só ele pode ser cultuado e adorado. Ao
dizer que Jesus é o filho do “Deus vivo”, Pedro também reconhece que em Jesus
há a verdadeira vida.
“Tu és Pedro e sobre esta pedra ...” (v.18) – é importante notar que Jesus
usa um jogo de palavras no grego, o que também transparece na tradução em
português: “Tu és pe,troj [petros] e sobre esta pe,tra [petra] edificarei a minha
igreja”. Apesar de que as duas palavras são sinônimas, pode-se notar uma
diferença entre petra e petros: petra é entendida como uma massa rochosa,
enquanto que petros seria uma pequena pedra. Assim, por um lado é preciso
afirmar que Jesus não está se referindo à pessoa de Pedro, ao falar da pedra sobre
a qual a igreja é edificada (senão ele poderia simplesmente dizer: “Tu és Pedro e
sobre ti edificarei a minha igreja”). Por outro lado, também é importante notar
que a pessoa de Pedro (e especialmente sua função) não é ignorada. A palavra
de Jesus é dirigida a Pedro, a partir da confissão deste (que lhe foi dada pelo Pai:
v.17). É importante a conclusão de Michael Wilkins:
“A referência não deve ser entendida tão estritamente [isto é, como se
referindo à pessoa de Pedro em si]. O propósito de um jogo de palavras é acentuar
características específicas entre palavras de som ou significado semelhantes.
Neste caso, a pessoa em si não é enfatizada, pois senão o jogo de palavras seria
desnecessário. Assim, o uso do nome Petros sugere que mais do que a pessoa
50 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28

está sendo considerada no jogo de palavras. Aquelas características que fazem de


Simão uma ‘pedra’ compõem os elementos que são usados no jogo de palavras. O
demonstrativo taute acentua isso ainda mais: Pedro, como aquele que está agora
atuando como a rocha, esta é a rocha sobre a qual Jesus edificará Sua igreja. E qual
é esta? Esta rocha é tudo o que Pedro se constitui naquele momento. Esta rocha
inclui Pedro como o confessor corajoso, Pedro como o porta-voz representativo
dos discípulos, Pedro como o recipiente abençoado de revelação, Pedro como
o primeiro indivíduo a fazer confissão pública de Cristo, e Pedro como um que
conduz os demais discípulos avante na expressão da fé. Sobre este Pedro Jesus
edificará Sua igreja. Se Pedro funciona desta maneira, ele é uma rocha; senão,
se torna pedra de tropeço (16.23).5
Vale notar que Pedro teve, de fato, uma participação muito especial no início
da Igreja: em Atos 2, é ele o instrumento divino para proclamar o evangelho aos
judeus; em Atos 8 ele e João são usados por Deus para trazer samaritanos ao
Reino de Deus; em Atos 10 Pedro é aquele que anuncia o evangelho aos gentios.
Assim, Pedro é rocha no sentido de que ele, como representante dos discípulos, é
usado por Deus para proclamar o evangelho, de modo que o Reino de Deus seja
aberto para muitas pessoas. No entanto, é importante destacar estes dois aspectos
na ação de Pedro: (1) ele o faz como um dos discípulos (apóstolos) e não como
indivíduo isolado; (2) o que recebe ênfase é o conteúdo de seu testemunho, ou
seja, a messianidade e filiação divina de Jesus. Além disso, deve-se ressaltar que
a confissão de Pedro foi revelada para ele pelo Pai (Mateus 16.17). Ou seja, não
foi uma conclusão sua propriamente, mas uma dádiva de Deus.
“Edificarei a minha igreja” – a palavra “igreja” (evkklhsi,a [ekklesia]) é
usada apenas aqui e em Mateus 18.17 nos Evangelhos. Mas a palavra não é
desconhecida para a audiência de Jesus. O termo grego é usado mais de cem
vezes na Septuaginta (LXX), tradução grega do Antigo Testamento, quase
sempre traduzindo o vocábulo hebraico kahal, que é usado para se referir à
congregação de Israel. É, portanto, um termo apropriado para referir-se à nova
congregação, ao novo povo que Jesus irá instituir a partir de sua obra da salvação.
Neste sentido, a Igreja cristã vem tomar o lugar que no Antigo Testamento era
do povo de Israel.

|| 5 The Concept of Disciple in Matthew’s Gospel, p.193.


Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28 51

A promessa de Jesus é dupla:


1º. ele edificará a Igreja, ou seja, ela não é obra humana. A Igreja não
é o resultado de um acordo entre pessoas. Apesar de na sociedade
contemporânea a Igreja ser vista como uma “comunidade” por vezes
assemelhada a um clube, ou grupo de amigos, sua origem é celeste!
Cristo edifica a Igreja, que é formada por aqueles a quem Deus mesmo
chama e traz para dentro desde seu novo povo.
2º. As “portas do inferno” não vencerão esta Igreja, edificada por Jesus. Esta
expressão, certamente de sentido figurado, parece referir-se às forças
do mal, cujo representante específico é Satanás. Ele já havia tentado
desviar Jesus de sua missão (Mt 4) e haverá de tentar também destruir
o povo de Cristo, mas não terá sucesso.

“Dar-te-ei as chaves ...” (v.19) – o vocábulo “chave” – klei/j [kleis] – é


usado cinco vezes no Novo Testamento além do texto em estudo: Lucas 11.52;
Apocalipse 1.18; 3.7; 9.1; 20.1. O verbo cognato, klei,w [kleio], é usado diversas
vezes, mas encontramos usos teológicos em: Mateus 23.13; 25.10; Apocalipse
3.7; 20.3. A figura das chaves é teologicamente aplicada à situação eterna da
pessoa – trata de céu e inferno. Assim, uma ideia de poder terreno está totalmente
fora de propósito. O texto trata da situação eterna do pecador, de sua relação
com o Reino de Deus. A proclamação de João Batista (Mt 3.2) e de Jesus (Mt
4.17) mostrou que esta chave que abre a entrada no Reino de Deus é o próprio
Evangelho, a boa mensagem da salvação (cf. Mc 1.15).
Ligar – de,w [deo] – e desligar – lu,w [luo] – significam, respectivamente,
“colocar sob cadeias” e “libertar de cadeias” (ou seja, prender e soltar,
respectivamente). Os verbos tratam da questão de dar ou reter a liberdade. Neste
caso, referem-se ao perdão dos pecados, que é dado ou retido. No aramaico, as
palavras significam “impor ou remover excomunhão, retirar alguém ou trazê-lo
de volta para a Congregação” (F. Buchsel, deo (luo) – Theological Dictionary of the
New Testament II: 61). Donald Guthrie, em seu livro New Testament Theology,
chama a atenção para o fato de o “ligar” e “desligar” como referência ao reter e
perdoar pecados ter se concretizado na vida de Pedro, especialmente em duas
situações: Atos 2.38; 5.3 (p.714).
52 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28

Após a confissão de Pedro, Jesus passou a mostrar “que era necessário seguir
para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e
escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia” (v.21). Depois disso, chamou
a atenção aos discípulos das consequências de ser cristão (vs.24-25). Estas duas
palavras de Jesus (sobre sua própria missão e sobre o futuro dos seus seguidores)
estão profundamente ligadas ao conteúdo da confissão de Pedro. O fato de
Jesus ser o Cristo, o Messias, o levará à cruz do sofrimento e morte em favor da
humanidade. E também trará consequências na vida dos seus seguidores.
“É necessário”, no grego é uma forma de verbo impessoal – dei/ [dei] –, usado
como verbo auxiliar de outro verbo que normalmente está no Infinitivo. Denota
aquilo que é preciso acontecer a fim de que um plano maior se concretize. O
Evangelho conforme Mateus desde o seu começo mostra que a vida e obra de
Jesus cumprem o propósito de Deus, já revelado no Antigo Testamento. Neste
propósito estava a pregação de João Batista – por isso os discípulos perguntam
a Jesus por que seria necessário (dei/) Elias vir primeiro (Mt 17.10). Os próprios
discípulos de Jesus tiveram dificuldade de entender (e aceitar) o que estava
para acontecer com Jesus, mas o Senhor lhes afirmou que assim era necessário
(dei/) ocorrer com ele (Mt 26.54). Sendo este o plano de Deus para a salvação
da humanidade, Jesus estava disposto a cumpri-lo até o final, apesar da falta de
compreensão até mesmo dos que lhe eram mais próximos, como demonstra a
atitude de Pedro.
As palavras preditivas de Jesus falam de seu sofrimento, morte e ressurreição
(assim como ele faria novamente em 17.22,23 e 20.17-19). Pela reação dos
discípulos, parece que nem chegaram a ouvir a última parte (a promessa da
ressurreição), mas se apegaram tão somente nas palavras sobre sofrimento e
morte.
A reação de Pedro diante do anúncio feito por Jesus, além de manifestar
uma reprovação às palavras de Cristo, parece pretender, em termos práticos,
oferecer um plano alternativo para o que Deus tinha como necessário (dei).
Pedro pouco antes havia confessado ser Jesus o Messias, mas sua atitude agora
revela que ainda faltava uma compreensão mais profunda do que isso significava.
Aproveitando a confissão de Pedro, Jesus expôs com clareza o que significava e
implicava ser ele o Messias. O Cristo enviado por Deus é o Servo Sofredor (de
que falou o profeta Isaías, especialmente nos capítulos 52 e 53 de seu livro), mas
Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28 53

Pedro não conseguia entender a ligação entre o que afirmara antes e o que Jesus
agora predizia sobre sua obra.
Na tentação de Jesus (relatada em Mt 4), o diabo tentou afastá-lo de sua
missão. Aqui mais uma vez esta tentação ocorre, agora através das palavras de
um dos amigos e seguidores, o mesmo Pedro que fizera uma confissão de fé tão
notável pouco tempo antes. A semelhança entre as duas situações é ressaltada
pela resposta de Jesus a Pedro – u[page satana/ [hupage satana]. Aqui Cristo usa
palavras iguais às que ele dirigiu a Satanás por ocasião da tentação (Mt 4.10). Há
apenas o acréscimo de ovpi,sw mou [opiso mou] – parte esta que nem é traduzida
pela versão Almeida Revista e Atualizada, que tem apenas, “Arreda, Satanás!”. A
Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) traduz a expressão como: “Saia
da minha frente, Satanás!”
“Não cogitas das coisas de Deus, e sim, dos homens” – Jesus mostra com
estas palavras que a resposta de Pedro é um retrato de uma maneira tipicamente
humana de “teologizar”, ou seja, na forma de imaginar como Deus é e age. Nesta
concepção puramente humana, ao se falar de Deus e de Messias, o que vem à
mente é poder, glória, majestade. Sofrimento e morte parecem ser o oposto do
que se espera que Deus venha a realizar com seu Messias. No entanto, é por este
meio que o grande plano de Deus para a salvação da humanidade se manifesta.
E é no sofrimento e morte do Messias que seu caráter messiânico realmente se
revela.
“Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-
me” – neste texto Jesus apresenta algumas das implicações para aqueles que o
seguem, que são seus discípulos. É possível observar uma unidade nas frases
expostas nos versículos 24 a 27, sendo que cada afirmação fundamenta o que foi
dito imediatamente antes – note-se que os versículos 25, 26 e 27 iniciam com a
conjunção ga,r [gar] – “pois”, que conecta cada frase com a anterior.
“A si mesmo se negue” – esta exortação de Jesus poderia ser aplicada de
muitas maneiras diferentes (e de fato o é, em aplicações que são feitas deste
texto). É preciso estar atento ao contexto em que essas palavras foram ditas,
pois ele é decisivo para uma correta interpretação. Imediatamente antes dessas
palavras, Jesus teve de repreender Pedro, porque este pensava de maneira humana
e contrária à maneira divina, a respeito de como Deus age (especificamente
sobre como o Messias iria cumprir sua obra). Assim, negar-se a si mesmo é ir
54 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28

na contramão da tendência humana (expressa por Pedro). Neste pensamento


tipicamente humano, as ações de Deus deveriam sempre manifestar poder e
sucesso. A vida dos cristãos deveria ser de sucesso. E o mal jamais deveria ter
qualquer progresso. Mas Jesus diz “não” para esta perspectiva, a começar por sua
própria missão, que terá pela frente rejeição, sofrimento e morte. E isso também
vale para os seus seguidores.
“Tome a sua cruz” – esta exortação está ligada à anterior: tomar a cruz tem a
ver com diariamente lutar contra o pecado, manifestado principalmente numa
maneira humana de ver as coisas de Deus. Esta palavra de Jesus por vezes é
aplicada às mais diversas situações de sofrimentos e privações que ocorrem na
vida de alguém. Novamente, o contexto é fundamental e não se devem entender
estas palavras à parte do seu contexto. Jesus está falando dos sofrimentos que
acontecem aos discípulos (seguidores) de Jesus especificamente pelo fato de
serem discípulos (cf. v.25: “por minha causa”). Ou seja, são consequências da fé,
na forma de perseguições, privações, etc. Numa sociedade em que não acontecem
perseguições violentas e declaradas contra cristãos, outras formas da “cruz” estão
evidenciadas. Até mesmo o chamado exclusivista de Jesus – Siga-me, isto é, só
a Jesus e a nenhum outro líder religioso, por si só é por vezes ofensivo a uma
sociedade pluralista e causa problemas para os cristãos.
Os versículos 25 e 26 mostram que o seguir a Jesus, carregando a cruz e
negando-se a si mesmo, tem a ver com ganhar ou perder a vida. Note-se que,
apesar de algumas traduções trazerem num dos versículos, “vida” (v.25) e, no
outro, “alma” (v.26), no original trata-se da mesma palavra, yuch, [psuche]. O
aspecto fundamental nas palavras de Jesus nestes versículos é a expressão “por
minha causa”, ou seja, por causa de Cristo. Tentar ganhar a vida por si só ou
o mundo inteiro de nada adianta, se a pessoa perder de fato sua vida, numa
perspectiva eterna (como mostra o v.27, referindo-se à vinda gloriosa de Jesus
para o grande julgamento). Apenas em Jesus a pessoa tem verdadeira vida e
conhece como Deus age.
“Retribuirá a cada um conforme as suas obras” – no texto original temos o
singular th.n pra/xin [ten praksin], ou seja, “a obra”, ou “o procedimento”. Assim,
não está em vista alguma obra em particular, nem as obras entendidas como
atos individuais. Jesus fala do todo da vida da pessoa como sua pra/xij [praksis].
No contexto, isso se refere ao seguir a Jesus (com a fé na obra que ele próprio
Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28 55

realizará) ou rejeitá-lo pela incredulidade ou construção de uma religiosidade


baseada no pensamento humano e não na obra divina.
O versículo final do trecho em estudo (28) tem trazido diversas interpretações
ao longo da história. A pergunta principal é a que Jesus se refere ao falar que
alguns dos discípulos estarão vivos “até que vejam vir o Filho do homem no
seu reino”. Isso não se refere à segunda vinda de Cristo, para o Juízo Final, pois
todos os discípulos de Jesus que ouviram aquelas palavras já morreram. Que
outro evento poderia estar sendo referido por Jesus? É importante observar,
primeiramente, que na linguagem bíblica (usada inclusive no Evangelho
conforme Mateus), o Reino de Deus não virá apenas no fim, mas já está presente
na pessoa e obra de Cristo (cf., por exemplo, Mt 3.2 e 4.17 – “está próximo”;
12.28 – “é chegado”).
Uma das sugestões é que Jesus estivesse se referindo ao evento que aconteceria
logo depois, ao qual Mateus se refere em 17.1-8, na transfiguração, quando a
glória do Rei Jesus se manifestou diante de três dos discípulos (Pedro, Tiago
e João). Outros ainda sugerem que Jesus esteja se referindo a sua morte e
ressurreição, quando a verdadeira realeza de Jesus se manifestou ao cumprir a
obra da salvação da humanidade, ainda que de uma maneira diferente daquela
imaginada pelos homens (cf. 16.22,23), mas conforme o plano de Deus. Ainda
outro evento pode ser lembrado, ou seja, da queda de Jerusalém no ano 70 d.C.,
por ser tipológica da destruição final do mundo na vinda definitiva de Jesus.

4.3 Conclusão
O teólogo e exegeta Frederick D. Bruner, em seu comentário ao Evangelho
conforme Mateus, chama a atenção para o capítulo 16 deste Evangelho como
sendo um texto em que Jesus ensina o que faz a Igreja ser Igreja:
1º. Confessar Jesus como o Cristo Divino, conforme a confissão feita por
Pedro – versículos 13-20;
2º. Seguir Jesus como o Cristo Sofredor, reconhecendo ser este o caminho
que Deus escolheu – versículos 21-28.
56 Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28

Bruner ainda lembra que é importante manter os dois textos juntos (13-20
e 21-28), pois eles dão um quadro mais completo e fiel a respeito de Pedro e,
consequentemente, dos apóstolos de Cristo e da própria Igreja. Ele afirma: “a
Igreja é tanto o principal meio de Jesus (‘rocha’), como seu principal problema
(‘satanás’), em trazer a salvação ao mundo (assim como Israel o era para Yahweh
sob a antiga aliança).”6

Exercícios de revisão
1. Chamar Jesus de “o Cristo” significa:
a) usar aquele que foi seu sobrenome.
b) reconhecê-lo como o Messias.
c) empregar o título que Jesus mais gostava de usar para si mesmo.
d) usar um termo que não se aplica a ele.

2. Por que Jesus proibiu seus discípulos de divulgarem ser ele o


Messias?
a) porque este título não se refere a ele.
b) porque nunca no Novo Testamento ele é chamado assim.
c) na verdade, ele não proibiu, apenas queria testar a fé dos discípulos.
d) porque naquela época poderia gerar uma falsa compreensão entre o
povo.

3. As “chaves” às quais Jesus se referiu


a) significam o poder de Pedro de dar ordens e proibições.
b) simbolizam que Pedro é o chefe da Igreja.
c) tem a ver com a situação das pessoas em relação ao Reino de Deus.
d) eram chaves que Pedro usava para abrir as portas do templo de
Jerusalém.

|| 6 Frederick D. Bruner, Matthew, Dallas, Word, 1990, vol. I: 568.


Episódio em Cesareia de Filipe – Mateus 16.13-28 57

4. Quando Jesus diz que seus discípulos devem “carregar a cruz”, ele quer
dizer que estes
a) deverão pagar pelos próprios pecados.
b) terão consequências na própria vida do fato de serem seguidores de
Cristo.
c) irão ajudá-lo a levar a cruz até o Calvário.
d) irão todos morrer crucificados, assim como Jesus.

Respostas:
1. b 2. d 3. c 4. b
5

A Ressurreição de Jesus e o
comissionamento dos apóstolos –
Mateus 28.1-20
Gerson Luis Linden

Após uma leitura do texto (preferencialmente em mais de uma tradução),


reflita sobre as seguintes questões:
1. O que o texto diz especificamente sobre a ressurreição de Jesus?
2. Qual a importância das mulheres na divulgação da ressurreição?
3. Qual a importância do local onde o comissionamento dos apóstolos,
relatado no texto, aconteceu?
4. É possível identificar esta situação com aqueles encontros de Jesus
com os discípulos, conforme relatados no final dos outros Evangelhos
canônicos?
5. A quem Jesus especificamente dirigiu as palavras finais registradas no
Evangelho conforme Mateus?
6. Por que é significativa a menção de Jesus a sua autoridade?
7. Qual a relação entre as formas verbais presentes nos versículos 19 e 20
(ir, fazer discípulos, batizar, ensinar)?
60 A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20

O texto relata situações ocorridas no dia da ressurreição de Jesus e algum


tempo depois. O capítulo final de Mateus consiste de três seções:
(1) acontecimentos ligados à tumba vazia de Jesus, com a manifestação de
um anjo e de Jesus para as mulheres (versículos 1-10);
(2) a maquinação empreendida pelos sacerdotes dos judeus, inclusive
com suborno dos guardas romanos, de que o corpo de Jesus teria sido
roubado pelos discípulos (versículos 11-15); e
(3) o comissionamento dos discípulos para atuarem em todo o mundo no
propósito de fazer discípulos de Cristo (versículos 16-20).

5.1 Mateus 28.1-15


1
No findar do sábado, ao entrar o primeiro dia da semana, Maria
Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro. 2E eis que houve
um grande terremoto; porque um anjo do Senhor desceu do céu,
chegou-se, removeu a pedra e assentou-se sobre ela. 3O seu
aspecto era como um relâmpago, e a sua veste, alva como a neve.
4
E os guardas tremeram espavoridos e ficaram como se estivessem
mortos. 5Mas o anjo, dirigindo-se às mulheres, disse: Não temais;
porque sei que buscais Jesus, que foi crucificado. 6Ele não está aqui;
ressuscitou, como tinha dito. Vinde ver onde ele jazia. 7Ide, pois,
depressa e dizei aos seus discípulos que ele ressuscitou dos mortos
e vai adiante de vós para a Galileia; ali o vereis. É como vos digo!
8
E, retirando-se elas apressadamente do sepulcro, tomadas de medo
e grande alegria, correram a anunciá-lo aos discípulos. 9E eis que
Jesus veio ao encontro delas e disse: Salve! E elas, aproximando-
se, abraçaram-lhe os pés e o adoraram. 10Então, Jesus lhes disse:
Não temais! Ide avisar a meus irmãos que se dirijam à Galileia e lá
me verão. 11E, indo elas, eis que alguns da guarda foram à cidade e
contaram aos principais sacerdotes tudo o que sucedera. 12Reunindo-
se eles em conselho com os anciãos, deram grande soma de dinheiro
aos soldados, 13recomendando-lhes que dissessem: Vieram de noite
os discípulos dele e o roubaram enquanto dormíamos. 14Caso isto
chegue ao conhecimento do governador, nós o persuadiremos e vos
A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20 61

poremos em segurança. 15Eles, recebendo o dinheiro, fizeram como


estavam instruídos. Esta versão divulgou-se entre os judeus até ao
dia de hoje. (Almeida Revista e Atualizada, SBB)

É importante notar que, a rigor, o texto não fala propriamente da ressurreição


de Jesus (tomando este termo como o momento da vivificação do corpo de
Jesus). O texto fala, sim, do aparecimento de Jesus, vivo, para as mulheres que
vieram visitar o túmulo.
As mulheres foram “ver o sepulcro” – note-se que não havia nas mulheres
uma confiança de que Jesus poderia ter ressuscitado. Lucas (24.1) explica que
as mulheres estavam indo, levando os aromas que haviam preparado, para
embalsamar o corpo (morto!) de Jesus.
Os seguidores de Jesus não nutriam esperança de que Jesus ressuscitaria,
apesar do Senhor lhes ter anunciado de antemão que isto aconteceria (cf. Mt
16.21; etc.). Não foi a fé dos seguidores de Jesus que produziu a ressurreição
como uma crença, como sugerem teólogos liberais. Foi o fato comprovado,
incontestável da ressurreição de Jesus – manifesta nos seus aparecimentos – que
criou e edificou a fé.
A vinda do anjo está ligada à retirada da pedra. No entanto, ele não o fez a
fim de que Jesus pudesse sair do túmulo, visto que ele podia passar por portas
fechadas (cf. Jo 20.19). A pedra foi retirada para comprovação de que o corpo
de Jesus não estava mais lá, mas que ele havia ressuscitado.
“Não temais” – no grego encontramos mh. fobei/sqe [me fobeisthe] – uma
forma do Imperativo Presente, que com o negativo dá ideia de interromper algo
que vem sendo feito. Assim, uma tradução mais acurada seria: “Não continuem
com medo”, ou “Parem de ter medo”. A ressurreição de Jesus é boa notícia, que
traz consolo e fortalecimento na fraqueza e no medo. Para os descrentes, a
exemplo dos guardas do túmulo, a ressurreição é motivo de temor, pois comprova
a veracidade da doutrina de Jesus.
“Jesus, que foi crucificado” (v.5) – a forma verbal ev s taurwme, n on
[estauromenon] está no Particípio Perfeito. Trata-se da mesma forma utilizada
pelo apóstolo Paulo em 1 Coríntios 1.23; 2.2 e Gálatas 3.1. Chama a atenção o uso
do Perfeito. Este “tempo” verbal é usado para falar de uma ação completa, cujos
resultados são perceptíveis no tempo presente. Mesmo após a ressurreição, Jesus
62 A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20

ainda é chamado de “o crucificado” (no caso das cartas de Paulo, isto acontece
mesmo algumas décadas após a ressurreição). Obviamente esta designação não é
usada para dizer que ele ainda está crucificado, mas pela importância permanente
da crucificação de Cristo. A morte do Messias na cruz não foi apenas um ato do
passado, mas algo que trouxe (e traz) consequências para o presente.
“Ele ressuscitou dos mortos” (v.6,7) – a expressão grega evk tw/n nekrw/n– dentre
os mortos – enfatiza o fato de que Jesus estava realmente morto. A preposição evk
[ek] denota separação – Jesus estava entre os mortos, verdadeiramente morto.
Este fato é fundamental para ressaltar a importância da ressurreição.
As mulheres recebem tanto do anjo como de Jesus a orientação para que
avisem os discípulos que ele ressuscitou. Elas foram as primeiras testemunhas
da ressurreição de Jesus. Este fato vem mostrar a dignidade e a importância que
as mulheres recebem no cristianismo. Já no Antigo Testamento isto é verdade,
em comparação com o judaísmo e islamismo. Mas isto se torna especialmente
evidente no ministério terreno de Jesus e na igreja primitiva. Jesus tinha
mulheres como seguidoras (Mt 27.55; Lc 8.2,3), ainda que nenhuma delas
viesse a ser “apóstola”. Na igreja primitiva havia um cuidado especial com as
viúvas. Priscila é mencionada diversas vezes como instrumento importante no
trabalho da Igreja, ao lado de seu esposo, Áquila. O fato de mulheres não serem
escolhidas para “apóstolas” (Mt 10.2-4; At 1.21-26) não tira delas a dignidade
que a fé cristã lhes dá.
“Meus irmãos” (v.10) – esta forma de Jesus referir-se aos discípulos é muito
significativa. Estes eram os mesmos discípulos que fugiram quando Jesus foi
preso e entre eles estava Pedro, que o negou. Estas palavras amorosas são como
uma palavra de absolvição para com aqueles que o haviam abandonado e nem
mesmo acreditavam que ele iria realmente ressuscitar.
Ao preservar em seu evangelho o relato da alegação dos judeus de que os
discípulos teriam roubado o corpo de Jesus (vs.11-15), Mateus traz algo único,
não relatado em nenhum outro dos Evangelhos canônicos. A deliberação
dos judeus, utilizando subterfúgios para chegar aos seus objetivos, lembra o
julgamento de Jesus pelo Sinédrio. Um fato curioso é que os guardas, que não
são crentes, são de fato os primeiros informantes históricos da ressurreição
de Jesus (v.11). Este relato, tanto do testemunho inicial dos guardas, como da
deliberação dos judeus e da subsequente mentira que se divulgou, tudo isso são
A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20 63

elementos importantes incluídos por Mateus em sua narrativa. Eles mostram que
a mensagem do evangelho não poderia continuar entre aqueles que negavam a
veracidade da ressurreição, afinal esta é fundamental na proclamação cristã.

5.2 Mateus 28.16-20


16
Seguiram os onze discípulos para a Galileia, para o monte que
Jesus lhes designara. 17E, quando o viram, o adoraram; mas alguns
duvidaram. 18Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a
autoridade me foi dada no céu e na terra. 19Ide, portanto, fazei
discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do
Filho, e do Espírito Santo; 20ensinando-os a guardar todas as coisas
que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até
à consumação do século. (Almeida Revista e Atualizada, SBB)7

Mateus expressamente identifica os receptores originais do comissionamento


como sendo os “onze discípulos” (v.16). Por vezes, há sugestões de que mais
pessoas estivessem presentes naquele momento. Tenta-se, por exemplo,
identificar esta aparição de Jesus com aquela em que ele apareceu de uma só
vez a mais de quinhentas pessoas (cf. 1 Co 15.6). No relato final do Evangelho
conforme Lucas, há um grupo maior de seguidores de Jesus presentes na sua
ascensão ao céu. Deve-se então lembrar que o episódio relatado por Mateus
acontece na Galileia e por isso mesmo não pode ser confundido com o relato
de Lucas, que retrata algo ocorrido próximo a Jerusalém, em Betânia (Lc 24.50),
no monte das Oliveiras (At 1.12).
É significativo lembrar que havia outros seguidores de Jesus, em número maior
do que os onze. Mas estes onze eram aqueles mesmos que Mateus havia designado
anteriormente como “apóstolos”. Ou seja, na perspectiva de Mateus, esta aparição
de Jesus aos onze e seu comissionamento estão ligados ao preparo destes homens
para serem “pescadores de homens” (Mt 4.19). No comissionamento relatado por
Mateus encontramos a concretização de todo o trabalho de Jesus em preparar

|| 7 Na abordagem abaixo, utilizamo-nos do estudo de David P. Scaer, “The relation of Matthew


28:16-20 to the Rest of the Gospel”, Concordia Theological Quarterly 55/4, outubro de 1991,
p.245-266.
64 A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20

aquele grupo para serem os apóstolos, seus enviados ao mundo como mensageiros
do evangelho. Outros viriam também mais adiante, mas estes onze ocupariam um
lugar especial no projeto de Jesus e no próprio Novo Testamento, como se pode
observar no livro de Atos dos Apóstolos.
“Seguiram ... para a Galileia” – Mateus menciona a Galileia três vezes neste
capítulo 28 (vs.7,10,16). Esta ênfase na Galileia pode ser vista em conexão com
uma menção anterior àquela região, em Mateus 4.15, no início da pregação
de Jesus (4.17). Naquele texto, Mateus cita palavras do profeta Isaías (9.1,2),
em que este fala das terras de Zebulom e Naftali como a “Galileia dos gentios”.
Gentios eram pessoas de origem outra que não a judaica. É significativo que a
palavra traduzida por “gentios” em 4.15, e;qnh [ethne] é a mesma usada por Jesus
no comissionamento dos apóstolos em 28.18, que grande parte das versões em
português traduz como “nações” (28.19).
Lembrando que Mateus escreveu seu evangelho especialmente para pessoas
de origem judaica, o texto final do Evangelho chama a atenção para os leitores
que Jesus dirigiu o trabalho missionário futuro especialmente aos gentios e
que eles, os descendentes dos patriarcas, perderam seu estado especial (cf. Mt
8.11,12). Anteriormente, Jesus havia dado aos Seus discípulos a ordem de ir para
as ovelhas perdidas da casa de Israel e não dirigir o trabalho para os gentios
(10.5,6). Agora, ao final do Evangelho, Mateus mostra que os novos discípulos
de Jesus devem ser feitos dentre os gentios. Evidente que isso não implica que
os judeus serão deixados fora do propósito salvador de Deus, pela proclamação
do evangelho. No entanto, eles não mais terão um status especial como povo
de Deus. Eles serão mais um povo, ao lado de tantos outros, e, neste sentido,
também serão objeto da atuação missionária dos apóstolos, como deixa claro o
livro de Atos dos Apóstolos e as Epístolas do apóstolo Paulo.
“Para o monte” (v.16) – acontecimentos importantes no ministério de Jesus
ocorreram em montes (Mt 5.1ss; 17.1ss; etc.). Particularmente, uma situação
há de ser notada. É aquela em que Jesus, sobre um monte, na Galileia (seria o
mesmo monte?), constitui Seus discípulos como apóstolos (Mt 10.1-5; cf. Mc
3.13-19). No Antigo Testamento, o monte Sião é retratado como o “lugar” do
encontro de Deus com o Seu povo, manifestando-se em graça e salvação. E eis
aí Jesus, o mesmo Yahweh, encontrando-se com os Seus.
A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20 65

“Adoraram ... duvidaram” – o texto grego deixa claro que os mesmos que
adoraram, também duvidaram. A adoração só pode ser compreendida como
um reconhecimento do caráter divino de Jesus. O próprio Jesus havia deixado
claro que não se pode adorar a ninguém a não ser o próprio Deus (Mt 4.10).
A pergunta surge: como puderam eles adorar e também duvidar, assim, numa
mesmo situação? Apesar de algumas traduções do texto (“Alguns adoraram
... outros duvidaram ...”) e explicações sugerirem que havia outras pessoas
naquela situação, de modo que os onze teriam adorado e os demais duvidado,
tal explicação não encontra qualquer respaldo no próprio texto. Como visto
acima, a audiência de Jesus neste texto são os onze e mais ninguém. A questão,
portanto, que tem de ser respondida é esta: como podem as mesmas pessoas
adorar a Cristo e ao mesmo tempo duvidar? A resposta para isso vem de duas
considerações, uma quanto ao significado do verbo traduzido por “duvidar”. E
a outra explicação vem de uma reflexão sobre a natureza humana.
O verbo dista,zw [distazoo] – duvidar – significa um estado de incerteza,
indecisão quanto a como agir. Não é que os discípulos duvidassem que aquele à
sua frente fosse Jesus. O fato é que eles não sabiam como agir! Vale lembrar que
foram estes mesmos discípulos que alguns dias antes o haviam abandonado.
O exegeta bíblico David R. Bauer, em seu estudo sobre a estrutura do
Evangelho conforme Mateus, deixa claro que não há no texto qualquer
contradição, que alguns estudiosos têm visto entre os conceitos de adoração e
de dúvida. Todos adoraram, mas eles também duvidaram. Bauer lembra que
esta dúvida deve ser entendida à luz de Mateus 14.31-33, onde os discípulos são
identificados como aqueles de “pequena fé”. Aquele é o único outro texto em que
o mesmo verbo dista,zw é utilizado em Mateus, além de em 28.18. A conclusão
de Bauer: “esta dúvida expressa uma hesitação, que impede os discípulos de se
apropriarem das plenas possibilidades de persistência, poder e missão que são
oferecidos através de Cristo”.8
Este quadro, de adoração e dúvida, é bastante realista em relação à natureza
humana. No caso dos filhos de Deus – como mostram inúmeros exemplos nas
páginas do Antigo e Novo Testamentos – demonstrações de fé andam lado a
lado com momentos de dúvida, quedas, fraquezas. Tal fato vem a ressaltar a

|| 8 David R. Bauer, The Structure of Matthew’s Gospel, Sheffield, England: Almond Press, 1988,
p.110.
66 A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20

importância do que vem logo depois: a presença e, especialmente, as palavras


de Jesus – única fortaleza para os que estão hesitantes em sua fé.
“Toda a autoridade ... portanto ...” (vs.18,19) – a conjunção ou=n [oun]
(portanto) é importante. Esta partícula vincula o texto que segue com a afirmação
feita antes. Ou seja, o imperativo que segue – maqhteu,sate [matheteusate]
“discipulai” (fazei discípulos) – está edificado sobre a autoridade de Jesus.
Sempre que em Mateus se fala da autoridade de Jesus, há um vínculo com o
uso da Palavra, para ensinar, perdoar, curar (7.29; 8.9; 9.6,8; 10.1; 21.23,24,27).
Baseados nesta autoridade de Cristo, os que são enviados por Ele proclamam a
palavra. Mas é a autoridade dele que conta, não a deles!
É importante observar cuidadosamente a construção dos verbos do v.18 no
texto grego:
- “Tendo ido (poreuqe,ntej [poreuthentes] – Aoristo Particípio),
- discipulai (maqhteu,sate [matheteusate] – Aoristo Imperativo)...,
- batizando (bapti,zontej [baptizontes] – Presente Particípio) ... ensinando
(dida,skontej [didaskontes] – Presente Particípio).

Fica evidente que nestas palavras de Jesus há uma ordem – “discipulai” (verbo
no Imperativo). Para que esta ação se realize, dois instrumentos são dados pelo
Senhor: Batismo e ensino da Palavra. Os dois verbos no particípio mostram de
que maneira a ação de discipular se realizará. O verbo traduzido em algumas
versões por “ide” está na verdade no modo Particípio. Uma tradução melhor seria
“indo”, ou “tendo ido”. Ou seja, o “ir” é circunstancial. É preciso estar em algum
lugar (onde há pessoas!) para discipular! Mas não há uma ordem específica para
ir a algum lugar. Não há, portanto, uma “teologia de ir” no texto. Portanto, não
se deveria enfatizar o “ir”, como se esta fosse a ordem dada por Cristo.
“Discipulai” = “fazei discípulos” (v.19) – significa levar pessoas à fé e à vida
cristã. Como as próprias palavras de Jesus deixam claro, este não é um ato que
se realiza através de um convencimento racional, dependente da habilidade
humana. É através do batizar e ensinar a palavra de Cristo que pessoas virão a
ser seus discípulos.
A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20 67

“Todas as nações” – a expressão é de totalidade – ninguém fica de fora do


propósito salvador de Deus. Como já exposto acima, o termo traduzido por
“nações” é uma referência específica a “gentios”. Antes Jesus havia dirigido os
discípulos para proclamarem o evangelho aos judeus (Mt 10). Agora, tendo
cumprido sua obra de salvação, Jesus amplia a missão para atingir a todos.
“Batizando-os ... ensinando-os ...” – chama a atenção o fato de que a palavra
e;qnh [ethne] é do gênero neutro e está sendo usada na sua forma plural. Neste
caso, o mais usual seria ter o pronome auvta, [auta], que é neutro plural. No
entanto, Jesus usa auvtou,j [autous], que é masculino plural. A razão para isso
deve ser para mostrar que Jesus está lidando com pessoas e não com grupos.
O neutro se refere ao grupo como um todo e o masculino aos indivíduos neste
grupo.
“Batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” – a expressão
eivj to. o;noma [eis to onoma] é importante. A preposição indica movimento “para
dentro de”. Falar do “nome” de Deus é falar do Deus que age, especialmente em
atos de salvação e bênção sobre Seu povo. Assim é usado no Antigo Testamento,
em textos como, por exemplo, Êxodo 6.2-8; Números 6.22-27. No Batismo
as pessoas são colocadas “para dentro do nome de Deus”, ou seja, entram na
comunhão do Deus Triúno.
A prática do batismo não foi algo completamente novo para aqueles que
ouviram a orientação de Jesus. Basta lembrar que o ministério de João Batista se
caracterizou por proclamação e por batismo. O verbo “batizar” já era usado antes
do período do Novo Testamento num sentido secular. Significava simplesmente
aplicar água, sem especificar de que maneira. No caso do batismo cristão, a
“novidade” é a ordem divina associada ao aplicar da água e o aspecto completo
da obra de Jesus (no que difere do batismo realizado por João Batista, que era
preparatório diante da obra que o Messias iria realizar).
Os próprios discípulos de Jesus já batizavam antes, agindo como seus
substitutos (João 4.2). O batismo marcava para eles o fato de que o reino dos
céus estava vindo em Jesus (Mt 3.1; 4.17). Na morte e ressurreição de Jesus
aquele reino veio. Ao dar a ordem para os discípulos fazerem discípulos através
do batismo, Jesus estava mostrando que aquilo que João, Jesus e seus discípulos
tinham feito antes da crucificação iria agora continuar basicamente da mesma
forma. A grande diferença agora era o fato da obra completa de Jesus.
68 A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20

“Ensinando-os” – o verbo traduzido por “ensinar” – dida,skw [didasko] –


dá a ideia da transmissão de um conteúdo de forma completa e organizada.
No caso presente, refere-se à comunicação de tudo aquilo que Jesus mesmo
ensinou. Aqueles que foram tornados discípulos através do batismo permanecem
como discípulos pelo ouvir do ensino apostólico, que não é nada mais do que
a proclamação de todo o desígnio de Deus.
O conteúdo do ensino é “todas as coisas” que Jesus “ordenou”. De certa forma,
o leitor do Evangelho conforme Mateus, ao chegar neste ponto, terá diante de
si todo o texto do Evangelho como fonte para conhecer tudo aquilo que Jesus
ensinou. Aqui no seu Evangelho estão coletados os ditos de Jesus, a instituição
dos sacramentos e o registro da vida, morte e ressurreição do Senhor. “Tudo o
que vos tenho ordenado” – as palavras de Jesus são palavras de Deus, portanto,
têm a autoridade divina.
Em Atos 2.1-41 é possível observar um exemplo prático da concretização
daquilo que Jesus ordena em Mateus 28. Os apóstolos não precisaram ir a
algum lugar – Deus trouxe as pessoas até eles. Mas, a fim de que mais pessoas
chegassem a ser discípulos, foi preciso que houvesse o batismo e o ensino da
palavra de Cristo. Estes foram os meios dados pelo Senhor, fundamentados na
Sua autoridade, pelos quais Ele mesmo atua, para fazer discípulos.
“Estou convosco” – note-se que é uma promessa feita de forma bem especial
aos que Cristo envia na tarefa de discipular, através do batismo e do ensino. A
mesma promessa é feita à Igreja como um todo (Mt 18.20). É digno de nota que
o texto do Evangelho conforme Mateus conclui com uma promessa, ou seja,
com uma palavra que é literalmente “evangelho” (boa-nova)!
A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20 69

Exercícios de revisão
1. Qual a importância da menção à Galileia, local em que a situação
relatada ocorre?
a) Era o local onde ficavam as pessoas mais nobres da Palestina.
b) É o local identificado como de maioria de pessoas de origem gentílica,
a quem Jesus enviou os apóstolos.
c) Nunca Jesus havia ido para esta região antes.
d) Lá estavam localizadas as maiores cidades da região.

2. A assim chamada “grande comissão”, registrada em Mateus 28.18-20,


foi dirigida:
a) a mais de quinhentas pessoas.
b) a Pedro, Tiago e João.
c) aos líderes judeus de Jerusalém.
d) aos onze discípulos de Jesus, os apóstolos.

3. O texto fala que os discípulos adoraram e duvidaram. Isso quer


dizer que:
a) os onze discípulos adoraram Jesus, e outras pessoas que lá estavam
duvidaram.
b) alguns dos onze discípulos adoraram Jesus; outros ainda duvidaram
que era Jesus mesmo diante deles.
c) os mesmos que adoraram também tinham dúvidas.
d) aquela adoração foi falsa e os discípulos apenas queriam impressionar
Jesus.

4. Considerando as formas verbais nos versículos 19 e 20, a ordem dada


por Jesus está no verbo:
a) ir
b) discipular (fazer discípulos)
c) batizar
d) ensinar
70 A Ressurreição de Jesus e o comissionamento dos apóstolos – Mateus 28.1-20

Respostas:
1. b 2. d 3. c 4. b
6

Como fazer a exegese das Epístolas


Vilson Scholz

Introdução
Não será necessário, nem possível, refazer o caminho percorrido em
Princípios de Interpretação da Bíblia, ensinando como se lê adequadamente
um texto bíblico. O que se pode fazer é recomendar que se releia, em especial,
o capítulo sobre a interpretação de epístolas que faz parte daquela disciplina. No
entanto, nunca é demais relembrar e aprofundar alguns detalhes, especialmente
em preparação para um estudo mais sistemático de textos da carta de Paulo aos
Filipenses. É o que faremos neste capítulo.

Reflexão sobre a tarefa da exegese


Uma das dificuldades com as epístolas é o fato de que conhecemos muito
bem muitos textos das epístolas. Além disso, muito do que se aprende em termos
de interpretação bíblica é (ou foi) derivado da leitura das epístolas. Assim,
pensamos que estamos suficientemente preparados para ler essas epístolas ou
cartas do Novo Testamento. Por expressarem diretamente o que querem dizer
(não precisamos perguntar, como no caso de parábolas, por exemplo, “qual a lição
desta história?”), pensamos que elas são mais fáceis de serem interpretadas. Mas
é aí que muitas vezes nos enganamos. Elas são mais complexas do que parecem
à primeira vista. Por isso é importante fazer esta reflexão inicial.
72 Como fazer a exegese das Epístolas

Antes de tudo, precisamos lembrar que queremos fazer exegese. Exegese é,


para todos os efeitos práticos, um sinônimo de interpretação. Interpretar ou
fazer exegese é escutar o texto de forma atenta. Interpretar não é tirar do texto
o que ele não diz; é, isto sim, ler o texto com o máximo de cuidado, para extrair
dele tudo que ele de fato diz (exegese), sem levar para dentro dele algo que ele
não diz (algo que se convencionou chamar de “eisegese”).
De certa forma, a interpretação se resume em focalizar o texto e o contexto.
O texto é o que está concretamente diante dos nossos olhos. Contexto é um
conceito amplo, podendo ir desde o que se chama de “cotexto” (o texto que vem
imediatamente antes e que segue), passando pelo contexto literário mais amplo
e terminando no contexto cultural e comunicacional.
Atentar ao texto significa escutar com todo o cuidado o que ele está dizendo.
Todo intérprete tem, por assim dizer, um texto ou uma série de textos formulados
em sua mente. Isso não é necessariamente mau, e é até mesmo inevitável. Sem
tais pré-requisitos e pressupostos nem lhe seria possível ler e entender um texto
novo. Por outro lado, sempre existe o risco de impor esse “texto” ao texto que
está sendo estudado. Não raras vezes o intérprete reage assim: “Ah, é este o texto?
Já o conheço muito bem. Diz isto e mais isto e aquilo”. Nem sempre, porém, o
texto diz o que o intérprete afirma.
Tomemos o exemplo de Colossenses 3.1-4. Esse texto tem partes bem
conhecidas, mas faz, também, afirmações que não são muito comuns, no Novo
Testamento. Isso pode, facilmente, levar o intérprete a amoldar o texto ao “texto”
que já tem formulado em sua mente. Transcrevo o texto conforme aparece na
Nova Tradução na Linguagem de Hoje: “Vocês foram ressuscitados com Cristo.
Portanto, ponham o seu interesse nas coisas que são do céu, onde Cristo está
sentado ao lado direito de Deus. Pensem nas coisas lá do alto e não nas que são
aqui da terra. Porque vocês já morreram, e a vida de vocês está escondida com
Cristo, que está unido com Deus. Cristo é a verdadeira vida de vocês, e, quando
ele aparecer, vocês aparecerão com ele e tomarão parte na sua glória”.
Num pequeno comentário, incluído num material de apoio a pregadores, um
intérprete expressou-se assim: “Paulo nos mostra que Cristo está em nós, nos
dá a sua paz, nos conforta, diz para não temermos, pois Cristo é a nossa vida.
O verbo ‘faneróo’ (aoristo, subj. at. se manifestar) empregado por Paulo nos traz
justamente isto, que Cristo é a nossa vida, hoje, e com grande impacto no dia
Como fazer a exegese das Epístolas 73

em que Jesus nos chamar para com ele morar, no céu, onde todas as coisas que
estão ocultas aos nossos olhos se revelarão”.
Examinado à luz de um estudo mais cuidadoso do texto de Colossenses 3,
este comentário pode ser criticado nos seguintes termos: muito mais do que
dizer que “Cristo está em nós”, Paulo parece pressupor que nós estamos em
Cristo, pois morremos e ressuscitamos “com ele”. O texto nada diz sobre o que
Cristo nos dá (paz, etc.). “Cristo é a nossa vida”: com certeza, é isso que o texto
diz. Apelar a um verbo grego em nada muda a situação: faneróo (na verdade, o
verbo aparece na voz passiva, e não na voz ativa!) diz essencialmente o mesmo
que expressamos através de “manifestar”. Colossenses 3 afirma que Jesus vai nos
chamar “para com ele morar, no céu”? Certamente, não. Fala da manifestação de
Cristo, no último dia. O texto também não trata da revelação de coisas ocultas
aos nossos olhos, no céu, mas da nossa revelação, em glória, em e com Cristo,
no último dia!
Além de ater-se cuidadosamente ao que o texto diz, é preciso levar em conta
o contexto comunicacional. Nisso se inclui o contexto social e cultural daquela
época. Vivemos muito tempo após a época dos apóstolos. Nosso contexto é
diferente. E, em se tratando de uma comunicação entre pessoas que se conhecem,
como é o caso de um apóstolo de Cristo e determinada igreja, no momento
em que começamos a ler uma dessas cartas entramos numa comunicação
que já está em andamento. Sempre que fazemos um primeiro contato com
alguém, somos muito explícitos naquilo que dizemos ou escrevemos. Quando
a comunicação está em andamento, podemos pressupor tudo que já foi dito ou
escrito anteriormente. No caso de Filipenses, ela faz parte de uma “conversa”
mais longa entre Paulo e essa igreja. Após o encontro inicial que resultou na
fundação da igreja, Paulo e os filipenses continuaram em contato. Na carta,
Paulo cita que eles já o haviam auxiliado em mais de uma oportunidade (Fp
4.16). Este contexto, que é pressuposto, é o que mais nos falta.
Tentar reconstruir o contexto comunicacional original é algo que sempre
fazemos, quase que automaticamente. Não se trata de perguntar se vamos
fazer essa reconstrução, mas como vamos fazê-lo. Quando alguém escreve uma
história, geralmente descreve a situação; ela faz parte da narrativa. No caso
de uma epístola, porém, essa situação é em geral pressuposta. Mas, como o
texto só faz sentido pleno dentro do contexto em que ocorre, temos que tentar
reconstruí-lo.
74 Como fazer a exegese das Epístolas

Para fazer tal reconstrução do contexto comunicacional, em geral não


dispomos de nada que não seja o próprio texto. Assim, através de atenta leitura
e estudo do texto se consegue abstrair o contexto dentro do qual ele funcionou.
Uma referência a algemas, por exemplo, permite concluir que o autor estava
preso. Se o escritor pede aos leitores a que não estranhem o “fogo ardente” que
surge no meio deles (1 Pe 4.12), facilmente se pode concluir que eles estavam
em vias de passar por duras provações por causa da sua fé. Existe, nisso, uma
boa dose de raciocínio circular. Isso significa que o intérprete reconstrói uma
situação ou um contexto a partir do texto e, num segundo momento, lê o texto
à luz dessa reconstrução.
Tal procedimento, por mais circular que seja, não pode ser evitado, apesar dos
riscos que traz. Facilmente, os intérpretes vão além da conta nessa reconstrução,
exagerando nessa assim chamada “leitura em espelho”. Assim, sempre que o
escritor afirma algo, conclui-se (muitas vezes de forma precipitada) que os
leitores negavam aquilo. E quando o leitor combate ou desmascara certa forma
de pensar, conclui-se, muito apressadamente, que os leitores defendiam aquele
ponto de vista. Assim, por exemplo, quando Paulo anima os filipenses a se
alegrarem no Senhor, a conclusão de muitos é que os filipenses eram cristãos
tristes. Não necessariamente! É possível que tudo não passasse de uma espécie
de suspeita de Paulo. Como ele, o pastor, estava preso, pensava que os cristãos
filipenses estavam muito tristes em decorrência disso. (Mais ou menos como a
mãe que, ao sair de viagem por alguns dias, imagina que os filhos estão muito
tristes com a sua ausência e não cessa de mandar mensagens, pedindo que não
fiquem tristes. Na verdade, porém, os filhos estão felizes porque podem ficar
alguns dias sem a presença constante e fiscalizadora da mãe!) Outra possibilidade
é que, na medida em que Paulo estava feliz e alegre, queria que os filipenses
tivessem a mesma alegria.
Outro exemplo de reconstrução de contexto que passa dos limites é postular
que os leitores de 1 Pedro eram cristãos perseguidos pelas autoridades romanas,
mais especificamente na época do imperador Nero. Ora, o texto de 1 Pedro não
dá a entender que se tratava de perseguição oficial; tudo indica que era apenas
um clima hostil em relação aos cristãos, promovido pelos pagãos em meio aos
quais viviam.
Como formas de “conversa a distância”, as epístolas do Novo Testamento
foram, em geral, escritas em resposta a alguma necessidade. Em termos
Como fazer a exegese das Epístolas 75

de retórica, fala-se sobre a situação retórica, ou seja, a situação que exige a


intervenção de alguém com um discurso (falado ou escrito). Em termos de
análise epistolar, fala-se sobre “ocasião”, tanto assim que já se tornou quase um
lugar-comum dizer que as epístolas são “documentos ocasionais”. Sendo um
pouco mais rigoroso na análise, podemos dizer que há uma distinção entre as
razões de uma carta e a ocasião. No caso de Filipenses, por exemplo, as razões
podem ser descritas como agradecer aos cristãos filipenses o apoio financeiro
recebido e animá-los a que estejam “firmes em um só espírito, como uma só
alma, lutando juntos pela fé evangélica” (Fp 1.27). A ocasião é o momento ou
fator específico que leva alguém a escrever. No caso de Filipenses, trata-se
do retorno de Epafrodito à cidade de Filipos. Se ele não estivesse de partida,
humanamente falando a carta aos Filipenses poderia não ter sido escrita.
Entretanto, normalmente não se faz distinção entre as razões da carta e a
ocasião específica, sendo que as duas coisas podem ser descritas tanto como
“razões”, “propósito” ou “ocasião”.
Epístolas, em especial as do Novo Testamento, podem ser descritas como
documentos argumentativos. Elas informam, mas também têm uma intenção
persuasiva. Para persuadir, é necessário elaborar uma argumentação. Traçar
esta lógica, fazer o registro dessa argumentação nem sempre é fácil. A lógica
da argumentação muitas vezes nos escapa. Em parte, porque são documentos
antigos; e, em parte, porque a argumentação não é necessariamente aquela com
a qual estamos acostumados (nossa lógica é ocidental, para não dizer aristotélica
ou grega). Assim sendo, mapear a sequência das ideias é um processo complexo,
difícil de ensinar através de um método ou uma série de procedimentos. Cada
caso é um caso, ou seja, cada trecho argumentativo tem a sua própria lógica e
precisa ser examinado em seus próprios termos.
Um primeiro passo, neste processo, é isolar as ideias individuais do texto. Em
geral, uma ideia completa é expressa através de uma frase, que é um conjunto
de palavras com uma ideia verbal que as une. Neste ponto, pode-se fazer uma
lista de frases ou afirmações do texto.
O segundo passo envolve identificar as palavras que fazem conexão entre as
frases. São conectivos e conjunções, termos como “e”, “portanto”, “mas”, “porém”,
“pois”. Vale lembrar que nem todas as frases se ligam ao contexto por meio de
conjunções ou conectivos. Traduções mais literais, ou, de preferência, o Novo
76 Como fazer a exegese das Epístolas

Testamento Interlinear Grego-Português, revelam as conjunções que aparecem


no original grego e são de grande ajuda ao exegeta.
O passo final é identificar o relacionamento entre as ideias. Neste ponto, é
preciso ir de frase em frase, identificando o relacionamento entre elas, atentando
para os conectivos e ouvindo as conexões implícitas, quando não há conectivos
explícitos.
Sugerimos os seguintes passos metodológicos, que queremos apresentar e
comentar rapidamente:

6.1 Contexto histórico


Dada a importância do contexto comunicacional, conhecer ou tentar
conhecer um pouco do contexto histórico da carta é importante para se entender
a resposta que aparece na carta.
Como já vimos, aquilo que os destinatários ou primeiros leitores mais bem
conheciam, a sua própria situação, é o que nós menos conhecemos. Por mais
conhecida que seja, não custa repetir a metáfora: nos sentimos como quem
ouve uma longa conversa ao telefone. Como não podemos ver o que a outra
pessoa está dizendo, deduzimos isso a partir da fala que ouvimos. Assim,
constantemente, temos de perguntar: Que questão ou questões este texto parece
estar respondendo?

6.2 Aspectos textuais

6.2.1 Delimitação do texto


Um dos aspectos textuais que precisam ser levados em conta é a delimitação
do texto. Em se tratando de uma história, num dos Evangelhos, o texto tem um
início e um fim mais ou menos delimitado. No caso das cartas, que são textos
argumentativos mais longos, o fato de se fazer uma seleção ou um recorte pode
ser problemático. Em alguns casos, a seleção já vem pronta, pois foi feita por
uma equipe ou comissão de culto ou alguém que pede ao exegeta uma análise
de um texto específico. Nestes casos, é bom perguntar: Onde começa o texto
Como fazer a exegese das Epístolas 77

e onde termina? Trata-se de uma unidade completa em si mesma? Quantos


parágrafos aparecem no texto?

6.2.2 Vocabulário
Ainda sob aspectos textuais, é preciso examinar as partes, as palavras e frases.
A pergunta a ser feita é: Entendo todas as palavras? E como as palavras se juntam
para formar um texto? No caso das epístolas – como também em outros gêneros
bíblicos – é preciso superar a tendência de querer enxergar apenas palavras
isoladas. Um texto é feito de palavras, sim, mas um texto é mais do que a soma
dessas palavras. Um texto é um tecido, uma série de palavras que são ajuntadas
para expressar o pensamento. Não há como não ir de palavra em palavra, até
chegar ao final do texto. Mas, no final dessa caminhada, é preciso ver o todo.
Ou seja, importa ir das partes (as palavras) para o todo (o texto) e do todo (o
texto completo) voltar às partes (as palavras individualmente).

6.2.3 Exame de traduções


Por fim, cabe um exame das traduções, para ver como diferentes equipes
de tradução entenderam o texto. Numa leitura comparativa, o intérprete pode
perguntar: O que chama a atenção nesta ou naquela tradução? Se existem
diferenças, qual a possível razão? O que é bom e o que é questionável?

6.3 Aspectos teológicos


Aqui, podem-se incluir considerações sobre o contexto literário, a progressão
de ideias e os temas teológicos de destaque.

6.3.1 Contexto literário ou cotexto


Examinar o contexto literário implica verificar o que vem antes e depois
do texto em questão, especialmente o que vem antes. Como se trata de um
texto argumentativo, o escritor pressupõe que o leitor tenha acompanhado
o seu raciocínio desde o início. Como em textos argumentativos o contexto
78 Como fazer a exegese das Epístolas

é fundamental, importa perguntar: Onde estamos na argumentação do


escritor?

6.3.2 Contexto comunicacional


Tão importante quanto o contexto literário (por vezes chamado de cotexto)
é o contexto comunicacional. Aqui se insere tudo aquilo que fazia parte do
assim chamado ambiente cognitivo do escritor e de seus leitores. (A partir desse
ambiente cognitivo, os leitores formam um contexto dentro do qual entendem
o que recebem por escrito.) Desse ambiente cognitivo fazem parte todos os
conhecimentos (da língua utilizada, por exemplo, bem como da história do
mundo ou do lugar onde vivem) que as pessoas envolvidas naquela situação
comunicativa têm, as suas lembranças (de encontros anteriores com a pessoa
que escreve e, em geral, de tudo que já vivenciaram até aquele momento), as
suas ideias (aquilo que julgam ser importante), as crenças (o que sabem e creem
a respeito de Deus, por exemplo), e assim por diante. Tudo isso está, por assim
dizer, implícito, não é colocado no texto, ficando pressuposto. Como fazemos
um exercício de reconstrução, certamente não conseguimos refazer um quadro
completo ou fazer uma descrição totalmente adequada desse contexto cognitivo.
Só conseguimos reconstruir o que o texto sugere ou parece pressupor.
No quadro abaixo, o que é fixo e imutável é o texto. É, de certa forma, tudo
que temos. Mas ele não diz tudo. Muito fica implícito. Nem tudo conseguimos
reconstruir. Mas podemos esboçar um quadro do contexto comunicacional.
Juntando o que o texto diz (coluna da esquerda) ao que está implícito no contexto
comunicacional (coluna da direita), podemos fazer um registro (geralmente um
pouco mais amplo do que o texto em si) das ideias (fatos, convicções, etc.) que
o texto transmite.
Como exemplificar sempre é mais didático do que simplesmente explicar,
consideremos o exemplo de Filipenses 4.2,3. O texto aparece na coluna da
esquerda. O contexto comunicacional implícito (deduzido a partir do texto)
é colocado por extenso na coluna da direita. Nem tudo que ali consta é
absolutamente certo ou garantido. Também não é necessariamente exaustivo
ou completo. Mas tentar é preciso.
Como fazer a exegese das Epístolas 79

Contexto
Texto – Fp 4.2,3 Ideias transmitidas
comunicacional
v.2 – Rogo a Quando há uma Tudo indica – pelos nomes
Evódia e rogo a divergência ou falta de citados – que Paulo se
Síntique pensem concórdia entre cristãos, dirige a duas senhoras
concordemente, no este é um assunto sério, cristãs.
Senhor. que o apóstolo (em Havia mulheres, com
nome de Deus) quer ver certeza líderes, naquela
tratado. igreja, a ponto de
Isso tem especial receberem uma palavra
importância no caso de especial, direta, do
lideranças. apóstolo Paulo.
A concórdia é, acima de Havia algum tipo de
tudo, uma possibilidade divergência entre essas
“no Senhor”, em Cristo, duas mulheres.
na fé.
v.3 – A ti, fiel Paulo contou com Paulo se vê como alguém
companheiro de a participação de que está “sob um jugo”.
jugo, também peço colaboradores na tarefa Ele não se vê como alguém
que as auxilies, pois de espalhar o evangelho, que está sozinho nessa
juntas se esforçaram incluindo Evódia e condição, mas conta
comigo no evangelho, Síntique. com a colaboração de
também com Clemente Ele pode se valer companheiros.
e com os demais também dos serviços de Esse companheiro de jugo
cooperadores meus, um companheiro de jugo está em condições de
cujos nomes se para auxiliar duas irmãs prestar uma ajuda àquelas
encontram no Livro da na fé a superarem as irmãs, embora essa ajuda
Vida. suas divergências. não seja especificada.
Todo esse trabalho é Trata-se efetivamente
feito sob a perspectiva de duas mulheres (como
do fim, isto é, dos nomes as formas do feminino
inscritos no Livro da claramente indicam).
Vida. Paulo teve colaboradores
no trabalho de espalhar
o evangelho, incluindo
mulheres.
Existe um Livro da Vida no
qual são inscritos nomes.
Tudo indica que a inscrição
do nome é uma forma de
“recompensa”.
80 Como fazer a exegese das Epístolas

6.3.3 Progressão de ideias


Visto que se quer priorizar o parágrafo, e não o versículo individual, é
importante perguntar pela progressão de ideias, ou seja, como se passa
(se é que se passa) de um tópico ou assunto ao próximo. Neste momento,
conforme foi explicado acima, é preciso ficar atento a conectivos, conjunções,
transições, etc.

6.3.4 Contexto teológico e intertextualidade


Como o objetivo é analisar os “aspectos teológicos”, não se pode esquecer
de colocar o texto que se está estudando no contexto teológico da Bíblia. Cabe
verificar se existe algum texto paralelo, fazer o levantamento de referências
cruzadas numa boa Bíblia de estudo, e dar atenção especial a termos ou
expressões que chegam a ser “conceitos teológicos”. Ao se fazer o levantamento
de referências cruzadas, se o texto em estudo é das cartas de Paulo, interessam
em primeiro lugar as passagens análogas em textos paulinos. Outro nome dado
a este passo é dizer que se trata de atentar para a intertextualidade, isto é, para
ecos ou reverberações de textos anteriores.

6.4 Aspectos práticos


Num certo sentido, nenhuma exegese está completa se não levar em
consideração a seguinte pergunta: “E daí? O que isso tem a ver com a gente hoje?”
A este passo chamamos, em geral, de aplicação. Embora isso seja, normalmente,
colocado ao final da exegese, não há como adiar isso, pois a força do texto em
geral começa a ser sentida desde a sua primeira leitura.
Uma das formas de sentir o pulso do texto é fazer uma, ainda que reduzida,
análise retórica. Cabe perguntar se o escritor da epístola está se defendendo de
alguma acusação (retórica forense ou jurídica); se está celebrando valores que
tem em comum com os seus leitores (retórica epidíctica ou demonstrativa); ou
se está, como acontece com maior frequência no Novo Testamento, procurando
levar seus ouvintes a mudar de rumo ou a continuar no rumo certo em que já
se encontram (retórica deliberativa). Outra possibilidade é verificar que tipo de
argumentação o escritor emprega no trecho em estudo. Ele apela à sua autoridade
Como fazer a exegese das Epístolas 81

e à sua credibilidade (etos)? Ele faz uso de argumentos mais objetivos ou lógicos
(logos)? Ele procura mover os seus ouvintes, talvez com algum apelo de ordem
mais emocional (pathos)?
Outra possibilidade é ouvir o texto em termos da polaridade lei-evangelho.
Onde o texto acusa (em nome de Deus)? Que problemas diagnostica e ataca?
O que o texto promete e dá (em nome de Deus)? Em outras palavras: onde está
a lei e onde está o evangelho?
Também é possível perguntar: O que esse texto tem a dizer a mim, à igreja
de nossos dias, às pessoas de nossos dias? Ele me inspira a orar e louvar? Que
atitude devo tomar diante dele?
Depois de aplicarmos o texto a nós mesmos, podemos começar a refletir sobre
formas de ensiná-lo ou pregá-lo a outros. O que eu gostaria de enfatizar num
estudo bíblico ou numa pregação? O que só este texto ensina? Que mensagem
bíblica mais ampla é confirmada por este texto?

Exercícios de revisão
1. No campo da interpretação bíblica, utiliza-se comumente o termo
“exegese” e, por vezes, também se utiliza o termo “eisegese”. Explicando,
isso significa:
a) que exegese é o ato de interpretar um texto, extraindo dele o que ele
diz, e que eisegese é o ato (censurável) de atribuir ao texto ideias que
ele não traz.
b) que exegese é o ato de fazer o texto dizer o que ele de fato não diz, ao
passo que eisegese é a prática correta, ou seja, é extrair o conteúdo
do texto.
c) que exegese é o ato de enxergar no texto o que normalmente não se
vê, enquanto eisegese é limitar-se exclusivamente ao que o texto está
dizendo.
d) que os termos exegese e eisegese são essencialmente sinônimos,
sendo que alguns autores preferem o termo exegese, enquanto outros
preferem o termo eisegese.
82 Como fazer a exegese das Epístolas

2. Ao se fazer interpretação bíblica, dá-se atenção ao texto e ao contexto.


Também se usa o conceito de “cotexto”. Neste sentido, a afirmação
correta é:
a) que o texto é aquilo que vem antes e depois do trecho em estudo, e
que contexto é tudo que se pode extrair daquela passagem bíblica.
b) que texto é o trecho que se está estudando e que contexto designa
unicamente a conexão do texto com outros textos bíblicos, podendo
ser chamado também de intertextualidade.
c) que texto é o trecho ou a passagem que se está estudando, que cotexto
é o que vem antes desse trecho, e que contexto é aquilo que vem
depois.
d) que texto é o trecho que se está estudando e que contexto, por vezes
também chamado de cotexto, é aquilo que vem antes e depois do texto,
com destaque para aquilo que vem antes.

3. Na leitura de um texto, especialmente de epístola, faz-se a reconstrução


do contexto em que aquela comunicação foi inserida ou fez sentido.
Nessa reconstrução da ocasião de uma carta do Novo Testamento:
a) as informações são, geralmente, derivadas de fontes históricas daquele
tempo, sendo, portanto, totalmente objetivas.
b) as informações são, de modo geral, derivadas da leitura do próprio
texto, que é o único material a que se tem acesso, havendo, portanto,
um bom grau de circularidade (do texto se extrai o contexto e, à luz
do contexto extraído, se lê ou interpreta o texto).
c) as informações são sempre derivadas unicamente do livro de Atos
dos Apóstolos, o que resulta em dados absolutamente confiáveis.
d) as informações nunca são derivadas do próprio texto em estudo, pois
fazer isso comprometeria a objetividade da investigação.

4. Uma análise retórica do texto de uma epístola se utiliza de conceitos


da retórica clássica conhecida e utilizada no tempo dos apóstolos por
gregos e romanos. Fala-se, ali, sobre diferentes tipos de retórica e a
utilização de diferentes tipos de argumentos. Neste sentido, a afirmação
correta é:
Como fazer a exegese das Epístolas 83

a) que a maioria dos escritos do Novo Testamento é do tipo deliberativo,


em que os autores se defendem de acusações ou explicam aspectos
de sua conduta, priorizando o uso de argumentos mais objetivos
(logos).
b) que a maioria dos escritos do Novo Testamento é do tipo deliberativo,
em que os autores censuram e elogiam, celebram valores que têm em
comum com seus ouvintes, priorizando o uso de argumentos mais
objetivos (logos).
c) que a maioria dos escritos do Novo Testamento é do tipo deliberativo,
em que os autores procuram levar seus leitores a tomar decisões quanto
a que fazer a partir daquele momento e no futuro (mudar de atitude
ou continuar no caminho que se vinha seguindo), priorizando o uso
de argumentos mais objetivos (logos).
d) que a maioria dos escritos do Novo Testamento é do tipo deliberativo,
em que os autores apelam para as emoções dos seus leitores, tentando
convencê-los de sua credibilidade pessoal (etos).

Respostas:
1. a 2. d 3. b 4. c
7

Filipenses 1.1-11
Vilson Scholz

Introdução
Para esta segunda parte da disciplina de Exegese do Novo Testamento –
dedicada ao estudo de textos de epístola – decidimos examinar trechos da carta
de Paulo aos Filipenses.
Por que Filipenses? Trata-se de uma carta relativamente breve, o que permite
que se faça o estudo de seus quatro capítulos em pouco tempo (normalmente,
meio semestre letivo). Mas isso não é o mais importante. Filipenses é uma
candidata natural a assunto de exegese por ser uma interessante porta de entrada
no conjunto dos escritos paulinos. Ela aborda uma série de temas que são típicos
das cartas de Paulo. Por outro lado, nela encontramos Paulo “nos seus melhores
dias”, alegre e feliz da vida, ainda que esteja na prisão. Escreve (ou faz o ditado da
carta) de forma mais descontraída, sem a pressão resultante de algum problema
urgente numa de suas igrejas.
E, ao escrever (ou ditar a carta), Paulo registra palavras que se tornaram
clássicas no cristianismo, como “para mim, o viver é Cristo” (1.23); “tenho o
desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (1.23);
“para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho... e toda língua confesse que
Jesus Cristo é Senhor” (2.10-11); “considero tudo como perda, por causa da
sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor” (3.8); “esquecendo-
86 Filipenses 1.1-11

me das coisas que para trás ficam ... prossigo para o alvo, para o prêmio da
soberana vocação de Deus, em Cristo Jesus” (3.13-14); “a nossa pátria está nos
céus” (3.20); “alegrai-vos sempre no Senhor” (4.4); “tudo posso naquele que me
fortalece” (4.13).9
Não nos será possível fazer exegese da carta na íntegra. Decidimos, então,
escolher um trecho de cada capítulo da carta. Iniciamos com a abertura da carta,
Filipenses 1.1-13. Talvez não seja um texto visto como dos mais profundos ou
significativos de Filipenses; no entanto, ao se fazer um início, nada melhor do
que começar pelo princípio.

7.1 O texto
Segundo a tradução de Almeida Revista e Atualizada, nos primeiros treze
versículos da carta se lê o que segue:

Paulo e Timóteo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos em Cristo


Jesus, inclusive bispos e diáconos que vivem em Filipos, 2 graça e
paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus
Cristo.
3
Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós, 4 fazendo
sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as minhas
orações, 5 pela vossa cooperação no evangelho, desde o primeiro
dia até agora. 6 Estou plenamente certo de que aquele que
começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo
Jesus. 7 Aliás, é justo que eu assim pense de todos vós, porque
vos trago no coração, seja nas minhas algemas, seja na defesa
e confirmação do evangelho, pois todos sois participantes da
graça comigo. 8 Pois minha testemunha é Deus, da saudade que
tenho de todos vós, na terna misericórdia de Cristo Jesus. 9 E
também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais
em pleno conhecimento e toda a percepção, 10 para aprovardes

|| 9 Tirar essas citações de seu contexto não é boa prática exegética. Fazemos apenas com o intuito
de mostrar algumas das preciosidades que são reveladas pelo estudo de Filipenses, para que
você se anime e diga: Sim, vai valer a pena estudar alguns trechos desta carta!
Filipenses 1.1-11 87

as coisas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis para o Dia


de Cristo, 11 cheios do fruto de justiça, o qual é mediante Jesus
Cristo, para a glória e louvor de Deus.

7.2 Contexto histórico da carta


Sendo este o primeiro estudo exegético em Filipenses, é importante tentar
situar esta carta em seu contexto histórico. Não será necessário repetir isso nos
estudos seguintes.
Na própria carta, o apóstolo nada informa sobre o início da igreja em Filipos.
Tanto ele quanto os seus leitores conheciam os detalhes, e não havia necessidade
de fazer menção a isso. Além disso, a carta não era a primeira comunicação entre
eles, pois haviam tido muitos encontros pessoais antes daquilo. Assim, muitas
informações puderam ser deixadas implícitas. No entanto, o livro de Atos dos
Apóstolos dá conta de que a igreja dos filipenses havia sido fundada durante a
assim chamada segunda viagem missionária de Paulo. Isso ocorreu no início da
década de 50 e o relato se encontra em Atos dos Apóstolos 16.12-40.
Os livros de história nos informam que Filipos era uma das mais importantes
cidades da província romana da Macedônia (hoje, o norte da Grécia). Por ali
passava, nos dias de Paulo, a via Egnatia, uma estrada calçada que fazia a ligação
do Oriente com a costa do mar Adriático, no caminho a Roma. Muito antes
disso, em 360 a.C., a cidade havia sido conquistada por Filipe da Macedônia, e
foi em homenagem a Filipe que a cidade recebeu o nome. Nos tempos romanos,
como atestam moedas daquele tempo, era chamada, em latim, de Colonia Iulia
Augusta Philippensis. Por morarem numa colônia romana, os cidadãos de Filipos
desfrutavam do Ius Italicum, o que significava que era como se estivessem
morando na Itália.
Filipos é conhecida como uma das cartas do cativeiro ou cartas escritas
da prisão, ao lado de Efésios, Colossenses, Filemom e 2 Timóteo. Paulo faz
referência à sua condição de prisioneiro em Filipenses 1.7,12-17. Discute-se, no
entanto, onde e quando exatamente Paulo teria escrito essa carta. Em Atos dos
Apóstolos são narrados três encarceramentos de Paulo (16.23-40; 21.33–26.32;
27.1–28.16). Por muito tempo se acreditou – e ainda se acredita – que Paulo
escreveu essa carta durante o terceiro encarceramento (Atos 28), em Roma,
entre os anos 61 e 63 d.C. Entretanto, nada impede que a carta tenha sido
88 Filipenses 1.1-11

escrita durante outro eventual encarceramento de Paulo, não mencionado em


Atos, alguns anos antes, talvez em 56 ou 57. A rigor, essa diferença de datas só é
importante caso se quiser escrever uma biografia de Paulo ou traçar um suposto
“desenvolvimento” em sua teologia. Para quem lê apenas o texto de Filipenses,
isso não tem maior importância.
Quanto à ocasião da carta (que não é exatamente o mesmo que o propósito da
carta), o quadro parece ser o seguinte: os cristãos de Filipos, sabendo que Paulo
estava preso, decidiram encaminhar um auxílio financeiro ao apóstolo. Enviaram
esse auxílio através de um membro da igreja, chamado Epafrodito. Aconteceu,
porém, que Epafrodito adoeceu durante essa missão. Corria risco de vida, mas,
graças a Deus, sua saúde foi restabelecida. Paulo, sabendo ou pressupondo que
os filipenses estavam angustiados com a situação, manda Epafrodito de volta.
Nesse contexto, decide escrever a carta, para, entre outras coisas, agradecer a
seus irmãos e amigos a ajuda recebida.

7.3 Aspectos textuais


Nesta seção, queremos abordar alguns aspectos da “aparência” do texto, de
como o texto se apresenta, começando com a delimitação do texto ou da porção
selecionada e terminando com uma análise de como o texto (ou partes dele)
aparece(m) em diferentes traduções.

7.3.1 Delimitação do texto


Como a porção selecionada inicia no começo da carta, não há nenhuma
observação a ser feita quanto ao início do trecho em 1.1. Nada mais natural do
que iniciar o estudo da carta no primeiro versículo.
Os primeiros onze versículos formam, no mínimo, dois parágrafos (vs.1-2;
vs.3-11), sendo possível também dividir o texto em três parágrafos: vs.1-2:
saudação; vs.3-8: agradecimento pela comunhão e pelo compartilhamento;
vs.9-11: oração pelo amor e discernimento dos filipenses.
Entre os versículos 11 e 12 há uma cesura ou um corte maior, pois se trata
da passagem para outro assunto, sinalizada pela frase “quero que saibais”
Filipenses 1.1-11 89

(v.12). Portanto, o trecho está muito bem delimitado: do versículo 1 ao final


do versículo 11.

7.3.2 Vocabulário
Os termos ou vocábulos que aparecem na tradução de Almeida não
apresentam maiores dificuldades, embora ocorram termos um tanto técnicos
como “santos” (v.1), “graça” (v.7) e “inculpáveis” (v.10).
Uma formulação que chama a atenção ocorre no v.10, na Bíblia de Almeida:
“para ... serdes sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo”. O “Dia de Cristo”
é, com certeza, o dia da vinda de Cristo. Agora, o que seria “para o Dia de
Cristo”? Tudo indica que seja algo como “até o Dia de Cristo” (Almeida Revista
e Corrigida) ou “no dia da vinda de Cristo” (NTLH).10 Mas o que chama a
atenção é o uso do termo “sincero”. Em português moderno, “sincero”, quando
aplicado a pessoas, pode significar “aquele que não tem a intenção de enganar”
ou, então, “em quem se pode confiar”. Estes dois significados não se encaixam
muito bem no contexto de Filipenses 1.10. O sentido aqui parece ser o de “puro”
ou “inocente”. A palavra que segue (“inculpáveis”), um sinônimo usado, ao que
tudo indica, para reforçar a ideia do termo anterior, tende a confirmar esta
leitura. Tanto assim que a NTLH traduz assim: “vocês estarão livres de toda
impureza e de qualquer culpa”.
Também chama a atenção a frequente combinação de duas palavras sinônimas:
conhecimento e discernimento (v.9), puros e inculpáveis (v.10), glória e louvor
(v.11). Uma dessas palavras, “discernimento” (aisthesis, em grego) é hápax, ou
seja, palavra que, em todo o Novo Testamento, ocorre somente aqui.11
Examinando mais de perto esse trecho no seu todo, percebe-se que, depois
da abertura da carta, nos versículos 1 e 2, existe um longo período que vai do
versículo 3 ao 7. Apenas no versículo 8 aparece uma conjunção (“pois”). O
versículo 9 é uma nova frase, que vai até o final do versículo 11.

|| 10 É preciso levar em conta que, no tempo do Novo Testamento, a preposição grega eis, que em
geral é traduzida por “para”, podia ter o significado de “em”.
|| 11 O caráter singular de Filipenses já aparece no número de hápax: são 40 ao todo. Gálatas e Efésios,
que são mais longas do que Filipenses, têm, respectivamente, 31 e 35 termos de ocorrência
única no NT.
90 Filipenses 1.1-11

Em geral, quando se quer dar o exemplo de um período longo, quase


interminável, numa carta do Novo Testamento, aponta-se para o início de Efésios.
Em traduções mais modernas, esses períodos longos tendem a ser fracionados ou
transformados em unidades menores, para facilitar a compreensão. No entanto,
o início de Filipenses não fica longe daquilo que se encontra em Efésios.

7.3.3 Exame de traduções


Ao se fazer o exame de traduções, é muito importante ter como critério ou
ponto de partida o texto original, e não o texto de outra tradução. Em outras
palavras, não é boa prática avaliar, por exemplo, a Nova Tradução na Linguagem
de Hoje (NTLH) à luz de Almeida. A melhor opção, na falta de acesso ao grego,
é examinar o Novo Testamento Interlinear.12
Tomemos uma frase do primeiro versículo. Em ARA diz assim: “a todos os
santos em Cristo Jesus ... que vivem em Filipos”. Alguém poderia estranhar que
a parte em itálico (“que vivem em Filipos”) aparece na forma de “moradores da
cidade de Filipos”, na NTLH. No entanto, neste caso, tanto ARA como NTLH,
para auxiliar o leitor, transformam o original, que diz, literalmente (conforme o
Interlinear), “os que estão em Filipos”. A NTLH, para evitar equívocos, explicita
o fato de Filipos ser uma cidade.
Outra comparação interessante pode ser feita no v.4, onde Paulo fala da
oração que ele faz pelos filipenses. Segundo o Interlinear, o original grego diz
mais ou menos o seguinte: “sempre em toda (= cada) petição minha por todos vós,
com alegria a petição fazendo”. Num mesmo versículo o apóstolo usa duas vezes
o mesmo termo: “petição” (em grego, déesis). A NTLH preserva essa aparente
redundância, ao traduzir por “todas as vezes que oro em favor de vocês, oro com
alegria”. ARA, por sua vez, trata de “melhorar” o estilo de Paulo, utilizando dois
termos diferentes: “fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas
as minhas orações”. Ganha-se em termos de estilo, mas perde-se a possibilidade
de ver que Paulo insiste no uso do mesmo termo. Quem se vale unicamente da
tradução de Almeida nunca suspeitaria que as orações de Paulo são, a rigor,
intercessões. Ao fazer a contagem do número de vezes que Paulo fala sobre

|| 12 Novo Testamento Interlinear Grego-Português. Tradução de Vilson Scholz com a colaboração de


Roberto G. Bratcher. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
Filipenses 1.1-11 91

“intercessões”, tal leitor citaria uma ocorrência em Filipenses 1.4 (“súplicas por
vós”), quando, na verdade, o que existe são duas ocorrências desse termo.
No versículo 5, aparece a palavra grega “koinonía”. Vendo a palavra dentro da
frase, constata-se que está escrito o que segue: “a koinonía vossa no (ou, com vistas
ao) evangelho”. ARA traduz isso por “vossa cooperação no evangelho”. NTLH diz:
“a maneira como vocês me ajudaram no trabalho de anunciar o evangelho”.13 As
duas traduções dão a entender que os filipenses são ajudantes de Paulo na tarefa
de anunciar o evangelho. E eles certamente o foram, especialmente com ajuda
de ordem financeira. Agora, o termo koinonía (“comunhão”) sugere mais; sugere
uma sociedade, uma parceria.14 Os filipenses, muito mais do que ajudantes de
Paulo, eram “sócios” dele. Pelo menos é assim que Paulo os apresenta.15
No v.8, a Bíblia de Almeida (tanto a Revista e Corrigida quanto a Revista
e Atualizada) emprega o termo “saudade(s)”. Considerando que saudade é um
termo típico da língua portuguesa, que não se traduz facilmente para outras
línguas,16 o exegeta fica curioso em saber o que exatamente está sendo traduzido
por “saudade”. A resposta vem, mais uma vez, do Novo Testamento Interlinear
Grego-Português, que reproduz a estrutura formal do grego: “como anseio
por todos vós”. Em outras palavras, no grego aparece um verbo (epipothéo).
Existe um substantivo cognato (epipóthesis), que é usado duas vezes no Novo
Testamento (2 Co 7.7,11) e que, nos dois casos, é traduzido por “saudades” na
Bíblia de Almeida.17

|| 13 A NTLH reflete o consenso exegético de que “evangelho”, neste caso, significa “o anúncio do
evangelho”.
|| 14 Na época do NT, o termo podia ser usado em referência ao casamento, que não deixa de ser
uma “sociedade”.
|| 15 Do ponto de vista retórico, denominar alguém de sócio é muito mais “simpático” do que chamá-
lo de ajudante ou colaborador.
|| 16 O termo inglês “homesick” traduz parte do que podemos dizer com “saudade”, mas não soa
muito natural quando se tem saudades de uma pessoa. Tanto assim que, em inglês, as traduções
tendem a usar a expressão “to long for” ou “to yearn for”. Segundo o Dicionário Houaiss, a
palavra saudade derivou de uma palavra latina que significava “só, solitário”. Foi preservada
em espanhol na forma de “soledad” (solidão) e, em português, virou “saudade”.
|| 17 Na Almeida Revista e Corrigida, “saudade” aparece uma única vez, ao passo que “saudades”
ocorre oito vezes. Na Almeida Revista e Atualizada, aumenta a frequência desses termos: onze
ocorrências (5 de “saudade”; 6 de “saudades”). Na NTLH, o número de ocorrências é bem maior:
21 (“saudades”, 8 vezes; “saudade”, 13). Sendo um termo tão expressivo em nossa língua, é
muito bom que o número de ocorrências aumente.
92 Filipenses 1.1-11

7.4 Aspectos teológicos


Aqui, o objetivo que se tem em vista é fazer uma leitura mais atenta do texto,
com atenção especial às diferentes dimensões do contexto.

7.4.1 Contexto literário ou cotexto


A estrutura de Filipenses é complexa e requer atenção especial. No caso do
trecho em estudo, não há cotexto anterior, pois estamos na abertura da carta.
No que segue, a partir do v.12, Paulo faz um relato de sua situação e reflete sobre
sua condição de prisioneiro em Cristo Jesus. Um ou outro tema abordado em
1.1-11 pode reaparecer no trecho seguinte, mas, enquanto não se ler essa parte
da carta, não será possível dizer se sim ou se não.
Por outro lado, a partir do momento em que Paulo escreve ou dita a segunda
frase, já se tem um cotexto ou contexto literário anterior. Esta análise, porém,
aparece, em parte, no tópico “Delimitação do texto” (acima), e será retomada
no tópico “Progressão de ideias” (mais adiante).

7.4.2 Contexto histórico


O contexto histórico da carta em si já foi abordado anteriormente. Aqui,
seria possível analisar as questões históricas que este texto específico (1.1-11)
permite levantar.
Sem a pretensão de querer ser exaustivo, aponto para os seguintes dados que
demandariam um estudo mais aprofundado:
Paulo cita Timóteo na abertura da carta (v.1). A pergunta é: qual o papel
de Timóteo? Será que a referência a ele seria mera formalidade? Será que ele
não passa de um corremetente (alguém que se associa a outra pessoa como
remetente de uma carta)? Ou seria ele coautor? NTLH dá a entender que ele é
coautor, na medida em que traduz o texto por “eu Paulo, e Timóteo, servos de
Cristo Jesus, escrevemos esta carta”. Embora nossa tendência seja a de ver Paulo
como um “gênio solitário”, nada impede que uma carta como essa tenha sido
“escrita a quatro mãos”.
Outra questão histórica é suscitada pelo uso do termo “servos”, no início da carta
(v.1). Há quem insista que o termo doulos sempre deveria ser traduzido por “escravo”.
Filipenses 1.1-11 93

As traduções ao português usam, em geral, num contexto como o de Filipenses 1.1,


o termo “servo”. Servo parece um termo brando demais. Por outro lado, à luz do que
“escravo” significa em nossos dias (especialmente diante da história de escravatura
que marcou o continente americano), é um termo forte demais. Disso se conclui que,
para entender corretamente o uso do termo no Novo Testamento, é preciso fazer um
estudo cuidadoso do que o termo significava naquele tempo, bem como levar em
conta as diferenças entre a escravatura no mundo greco-romano e a escravatura do
período colonial brasileiro. Altos funcionários de um rei costumavam denominar-
se “douloi” (servos ou escravos). Por outro lado, em alguns casos, a situação de um
“escravo” no mundo de Paulo era, em muitos aspectos, bem semelhante à condição
de um empregado em nossos dias.
Uma terceira questão histórica diz respeito à menção de bispos e diáconos.
Quem era essa gente? Um “bispo” era o que o termo grego (epískopos, onde aparece
o radical skopéo = ver) sugere: um supervisor. E um diácono é alguém que serve.
Trata-se, com certeza, de pessoas que exerciam liderança na igreja de Filipos.
Parecem ser o equivalente a pastores e ministros nos dias atuais. A referência a
essas funções (para não dizer “ofícios”) mostra que, ao contrário do que muitos
pensavam e ainda pensam, as igrejas que Paulo fundou não estavam desprovidas
de liderança, e isso desde o período mais antigo. Em outras palavras, essa referência
derruba a tese de que as igrejas paulinas eram, no início, “carismáticas”, no sentido
de terem uma liderança ad hoc (um novo líder a cada nova reunião, conforme o
“sopro” do Espírito Santo). Outra questão interessante é o motivo que teria levado
Paulo a citar os bispos e diáconos. Desde o tempo de Crisóstomo, se não antes,
pensa-se que eles tiveram papel importante (o que é bem provável) na coleta do
auxílio financeiro que foi enviado a Paulo, na prisão.

7.4.3 Contexto comunicacional


Aqui, cumpre examinar de modo especial o que está implícito no contexto
comunicacional. Somando isso ao que o texto diz de forma explícita, tem-se
um quadro das ideias transmitidas.18 Não será possível completar este exercício
para todo o texto e, em razão disso, haverá uma restrição a alguns versículos,
a saber, os vs.9-11.

|| 18 É importante lembrar que o texto, de um lado, e o contexto comunicacional, de outro, se juntam,


por assim dizer, para formar o conjunto daquilo que o texto transmite (a coluna do meio).
94 Filipenses 1.1-11

Contexto
Texto – Fp 1.9-11 Ideias transmitidas
comunicacional
E também faço esta Paulo ora pelos filipenses, • Parece que era comum
oração: que o vosso fazendo um pedido bem um líder como Paulo
amor aumente mais específico, que é, na fazer oração por uma
e mais em pleno verdade, um pedido feito igreja.
conhecimento e de várias partes. Começa • Ao se orar, costuma-
toda a percepção, falando sobre o amor, que se fazer pedidos bem
para aprovardes as ele quer ver aumentar. Fica específicos.
coisas excelentes claro que a vida cristã é • O amor pode aumentar.
e serdes sinceros e uma jornada em que o alvo • Amor e conhecimento
inculpáveis para o sempre se desloca para a não são coisas opostas.
Dia de Cristo, cheios frente. Ele não especifica • Há coisas que são
do fruto de justiça, um objeto do amor (quem é excelentes, ou seja, não
o qual é mediante amado?), embora se possa existe indiferença moral.
Jesus Cristo, para a pensar na ajuda financeira • É possível ter o
glória e louvor de que os filipenses haviam discernimento para
Deus. (Fp 1.9-11) mandado para Paulo. Ao escolher o que é melhor.
crescimento do amor Paulo • Existe o que se chama de
acrescenta o conhecimento “o Dia de Cristo”.
e o discernimento, • Naquele Dia é importante
mostrando que o amor não ser puro e inculpável.
é cego. Parte do pedido • O “fruto da justiça” (ou
é que os cristãos tenham “as boas qualidades”)
o discernimento para acompanha o ser
escolher o que é o melhor, inculpável, por mais que
para que sejam inculpáveis o ser inculpável venha
no dia do Juízo, cheios do antes.
fruto de justiça. Este fruto • Cristo é mediador, ou
de justiça é por meio de seja, existem coisas que
Jesus, ou seja, decorre da ocorrem “por meio dele”.
ação de Jesus, e o alvo de • Deus pode e deve ser
tudo é a glória e o louvor glorificado e louvado.
de Deus.

7.4.4 Progressão de ideias


Sobre a progressão de ideias, quero me concentrar sobre a parte central do
texto, a saber, os versículos 3 a 9, tentando entender como Paulo inicia com “dou
graças” (v.3) e, no v.9, ainda não foi muito além de “e faço esta oração”.
Filipenses 1.1-11 95

Em primeiro lugar, é necessário listar as frases, na sequência em que ocorrem:


1. Dou graças ao meu Deus cada vez que lembro de vós, sempre, em cada
petição minha por todos vós. (vs.3-4)
2. Faço essa petição com alegria. (v.4)
3. Levo em conta a vossa participação (ou parceria) no evangelho desde
o primeiro dia até agora. (v.5)
4. Estou convencido do seguinte: aquele que começou em vós uma boa
obra completará (essa obra) até o Dia de Cristo Jesus. (v.6).
5. É justo que eu pense isto a respeito de todos vós. (v.7)
6. Eu vos tenho em meu coração. (v.7)
7. Tanto nas minhas algemas quanto na defesa e confirmação do evangelho
todos vós sois coparticipantes da graça comigo. (v.7)
8. Deus é minha testemunha de como anseio por todos vós no profundo
amor de Cristo Jesus. (v.8)
9. E faço esta oração: ... (v.9)

Percebe-se que Paulo não faz muito progresso ao longo desses versículos. Ele
inicia dizendo que intercede pelos filipenses e explicando que faz essa intercessão
com alegria. Refere-se, então, à parceria dos filipenses na obra da evangelização,
expressando sua convicção de que Deus vai mantê-los nesse caminho. A rigor, ele
não apresenta o conteúdo da intercessão. Explica, ainda, que é natural que ele se
sinta assim em relação aos filipenses, pois estão no coração dele. Em seguida ele
reafirma que os filipenses são seus parceiros nessa obra e assegura que Deus é
testemunha do amor que ele tem por eles. Neste sentido, a frase 7 repete a frase
3, e a frase 8 reafirma o conteúdo das frases 5 e 6. Na frase 9 (que corresponde
ao v.9), Paulo finalmente chega ao ponto: ele indica o conteúdo da intercessão
ou explica o que, em específico, ele pede, em sua oração.19

|| 19 Convém notar que a tradução de Almeida Revista e Atualizada não traduz de forma adequada,
ao dizer “e também faço esta oração”. A rigor, o texto grego diz apenas “e isto oro”, ou seja,
“e faço a seguinte oração” (ARC traz “e peço isto”). Apenas no v.9 Paulo expressa o conteúdo
de sua oração.
96 Filipenses 1.1-11

7.4.5 Contexto teológico e intertextualidade


Neste ponto, seria possível fazer uma série de investigações, principalmente em
termos da assim chamada intertextualidade. Embora Paulo nunca cite o Antigo
Testamento na carta aos Filipenses, existem com certeza “ecos” de textos anteriores
que podem ser ouvidos aqui e ali, como uma boa Bíblia de Estudo indica.
Devido à limitação de espaço, limito-me a listar os tópicos anunciados nesse
parágrafo de abertura (o “exórdio” da carta) que funcionam como temas, na
medida em que são retomados ao longo da carta.20 São os seguintes: alegria
(v.4),21 comunhão (vs.5,7), o evangelho e sua defesa (vs.5,7), convicção (v.6),
pensar ou ter em mente (v.7), afeto ou amor (vs.8-9), estar em Cristo (vs.1,13),
o Dia de Cristo (vs.6,10), a ajuda financeira dos filipenses (vs.3,5), todos – como
parte do apelo à concórdia (vs.4,7,8).

7.5 Aspectos práticos

7.5.1 Análise retórica


Examinando o parágrafo em estudo de um ponto de vista retórico, pode-se
perguntar qual o tom dominante da carta e o tipo de argumentação que Paulo
emprega.
Filipenses 1.1-11 não tem caráter forense ou jurídico. Paulo não se defende de
nenhuma acusação, nesta parte de Filipenses, tampouco acusa alguém. O trecho
também não é essencialmente deliberativo, no sentido de esperar dos filipenses
uma decisão em termos de fé ou conduta futura. Indiretamente, existe um tom
deliberativo ou exortativo na referência à expectativa de que sejam “puros e
inculpáveis no Dia de Cristo”. Por se tratar de uma oração, o tom é essencialmente
epidíctico. Em outras palavras, nesse trecho Paulo celebra valores que ele e os
filipenses têm em comum.

|| 20 Lembrando, mais uma vez, que esses períodos de abertura ou parágrafos iniciais funcionam, nas
cartas de Paulo, como uma espécie de apresentação ou palavra introdutória: ali se percebe o
tom da carta e são anunciados os temas principais a serem desenvolvidos no corpo da carta.
|| 21 Embora apareça como primeiro item da lista, cumpre ressaltar que alegria não é de forma
alguma o único tema ou o tema principal desta carta. Quem descreve Filipenses como “a carta
da alegria” transmite uma impressão errônea.
Filipenses 1.1-11 97

Quanto aos argumentos que Paulo emprega, se temos mais ethos, logos ou
pathos, nota-se que há uma tendência de pathos. Em outras palavras, Paulo
fala bem dos filipenses. Ele “joga para a torcida”, lembrando-lhes a parceria na
proclamação do Evangelho.

7.5.2 Polaridade Lei-Evangelho


Perguntar pela polaridade Lei-Evangelho é perguntar onde o texto nos acusa
e onde o texto nos consola ou anima. Ao pintar um quadro tão róseo ou positivo
dos cristãos de Filipos, que são parceiros de Paulo na proclamação do Evangelho,
podemos ficar admirados. Por outro lado, essa descrição pode nos incomodar,
especialmente ao nos darmos conta de que estamos longe de um ideal assim.
Em termos de Evangelho, Paulo deixa bem claro que a boa obra dos filipenses
(a parceria deles na evangelização) foi iniciada e será concluída por Deus (v.6).
Mais para o final do trecho (v.10), indica que o “fruto de justiça” é produzido por
Cristo. Também isso é evidência daquilo que se chama de monergismo divino.

Exercícios de revisão
1. Sobre a igreja cristã de Filipos, a quem Paulo escreveu a carta que faz
parte do Novo Testamento, podemos dizer:
a) que foi fundada pelo próprio Paulo, como ele explica na carta, em
detalhes.
b) que foi fundada pelo próprio Paulo, embora esse dado nos venha de
Atos.
c) que foi fundada por um colaborador de Paulo, chamado Epafrodito.
d) que foi fundada antes de Paulo, por pessoas que estiveram no
Pentecoste, em Jerusalém (At 2).

2. Quando Paulo diz que os filipenses tiveram “cooperação no evangelho”


(Fp 1.5), ele certamente está querendo dizer:
a) que os filipenses devem ter ajudado a escrever algum dos
evangelhos.
98 Filipenses 1.1-11

b) que os filipenses cooperaram no sentido de terem aceito o


Evangelho.
c) que os filipenses eram parceiros de Paulo na pregação do
Evangelho.
d) que os filipenses tinham pouco interesse no Evangelho, o que leva
Paulo a censurá-los.

3. Entre os temas da carta aos Filipenses que são citados no trecho de Fp


1.1-11 estão os seguintes:
a) Comunhão, o que pensar ou ter em mente, o Dia de Cristo.
b) Estar em Cristo, como organizar a Igreja de Deus, o perigo de amar
o mundo.
c) a defesa do Evangelho, a liberdade cristã, a unidade da Igreja.
d) a importância do amor, a divindade de Cristo, os dons do Espírito.

4. Uma análise da abertura da carta aos Filipenses em termos de retórica


permite concluir que esse trecho é epidíctico. Isso quer dizer que em
Filipenses 1.1-11:
a) o apóstolo Paulo se defende de acusações de adversários.
b) o apóstolo Paulo insiste com os filipenses a que, no futuro, sejam
sempre alegres.
c) o apóstolo Paulo fala bem dos filipenses e celebra valores que tem em
comum com eles.
d) o apóstolo Paulo quer persuadir os filipenses a lutar pelo
Evangelho.

Respostas:
1. b 2. c 3. a 4. c
8

Filipenses 2.5-11
Vilson Scholz

Introdução
Filipenses 2.5-11 é um dos textos mais bem conhecidos de toda a Bíblia,
especialmente em sua parte final, onde se fala sobre “todo joelho se dobre
e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor”. É um texto importante,
muito importante, para a doutrina da pessoa de Cristo (cristologia). É, também,
uma das mais antigas confissões de fé. Foi um texto longamente debatido,
especialmente no passado. Hoje, parece haver um consenso quanto ao que o
texto diz, embora a primeira parte seja bastante complexa e passível de diferentes
leituras. Assim, vale a pena debruçar-se sobre tão importante texto da carta de
Paulo aos Filipenses, chamado por Lutero de “um poço dos mais profundos”.

8.1 O texto
Segundo a tradução de Almeida Revista e Atualizada, o texto de Filipenses
2.5-11 é o seguinte:

Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo


Jesus, 6 pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como
usurpação o ser igual a Deus; 7 antes, a si mesmo se esvaziou,
100 Filipenses 2.5-11

assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens;


e, reconhecido em figura humana, 8 a si mesmo se humilhou,
tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. 9 Pelo que
também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está
acima de todo nome, 10 para que ao nome de Jesus se dobre todo
joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, 11 e toda língua confesse
que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.

8.2 Aspectos textuais


Nesta seção, queremos abordar alguns aspectos daquilo que já foi chamado de
“a face do texto”, isto é, a maneira como o texto se apresenta, desde a delimitação
do texto em si até a forma como o texto aparece em diferentes traduções.

8.2.1 Delimitação do texto


Fizemos a opção de estudar o trecho que vai do versículo 5 ao 11. A rigor, o “corte”
ao final do versículo 11 é bem natural. Por um lado, o que poderia ser acrescentado,
depois que se disse “para a glória de Deus Pai”? Além disso, no versículo 12 há uma
mudança de tom e de assunto, na medida em que Paulo se dirige ao filipenses com
um “portanto, meus amados, como sempre obedecestes ...”
Agora, onde iniciar o estudo do texto? A Bíblia de Almeida abre uma nova
seção no versículo 5, com o título de “O exemplo de Cristo na humilhação”. Na
mesma edição da Bíblia, a seção anterior, Filipenses 2.1-4, é intitulada “Exortação
ao amor fraternal e à humildade”. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje, por
sua vez, inicia a seção no começo do capítulo, em Filipenses 2.1, com o título
“A humildade e a grandeza de Cristo”, abrindo um novo parágrafo no versículo
5.22 Segue, a princípio, a segmentação de O Novo Testamento Grego, que traz o

|| 22 Pode parecer confusa essa distinção entre seção e parágrafo. Por seção se entende um trecho,
maior ou menor, que tem um título, o assim chamado “título de seção”. Já o parágrafo é um
bloco de texto ou um conjunto de versículos que não tem, necessariamente, um título. Em
geral, uma seção é feita de vários parágrafos.
Filipenses 2.5-11 101

título “A humilhação e a exaltação de Cristo”23, com a diferença de que nesta


edição do texto grego não se abre novo parágrafo no versículo 5.24
Por um lado, é bem verdade que o assunto da humilhação e exaltação de
Cristo não começa a ser tratado no início do capítulo, o que faz com que o leitor
estranhe essa segmentação. Por outro lado, essa segmentação tem o mérito
de lembrar ao leitor que o trecho de 5 a 11 está diretamente conectado com o
contexto anterior.

8.2.2 Vocabulário
Já se mencionou que Filipenses 2.5-11 é um texto complexo. Talvez não tanto
pelas palavras tomadas individualmente, mas pelo conjunto delas, na formação
do texto. No entanto, algumas palavras da tradução de Almeida apresentam
maiores dificuldades, especialmente à luz do significado que têm, à primeira
vista, em português moderno.
Um desses termos é “sentimento”, na frase “tende em vós o mesmo
sentimento”, no versículo 5. Segundo o Dicionário Houaiss, sentimento pode
ser o ato ou efeito de sentir ou de sentir-se. Mas pode significar, também, algo
como “sensibilidade”. Um terceiro sentido é “faculdade de conhecer, perceber
ou apreciar”. Em quarto lugar aparece “atitude mental ou moral caracterizada
pelo estado afetivo”, um significado que a palavra tem numa expressão como
“sentimento patriótico”. Visto que, em grego, aparece um verbo (phronéo) que
pode ser traduzido por “ter em mente”, a melhor maneira de entender “tende
em vós o mesmo sentimento” é em termos de “tende a mesma atitude mental”
ou “tende a mesma disposição mental” (com tudo que daí decorre, em termos
de atitudes). Sentimento, neste caso, é um modo de pensar e de agir.
Outra formulação difícil aparece no v.6, onde diz que Cristo Jesus “não julgou
como usurpação o ser igual a Deus”. O que seria, neste caso, usurpação? Trata-
se do ato de usurpar. Usurpar dá a ideia de apossar-se de algo ou tomar algo

|| 23 Nota-se, em O Novo Testamento Grego, a preferência por um título mais “teológico”, incluindo
os termos humilhação e exaltação. A NTLH, por sua vez, opta por um título mais simples, com
os termos humildade e grandeza. Isso mostra que o termo “exaltação”, por exemplo, é complexo
e difícil de entender, fora do contexto específico do estudo da teologia.
|| 24 A outra edição do texto grego, conhecida como Nestle-Aland, faz um novo parágrafo no versículo
5. Como é sabido, esta edição não traz títulos de seção.
102 Filipenses 2.5-11

pela força ou sem direito.25 Pode, também, ter um sentido um pouco diferente:
exercer um cargo ou uma função indevidamente. A definição do significado
passa pelo exame do termo grego. A palavra (harpagmós) é um hápax, isto
é, palavra de ocorrência única no Novo Testamento. Discute-se o significado
exato deste termo, que é um cognato do verbo harpázo, geralmente traduzido
por “arrebatar” (como em Jo 10.12). Há, basicamente, duas opções: a) algo a ser
conseguido à força; b) algo a ser mantido à força ou a qualquer custo.26
O dicionário semântico de Louw e Nida27 registra as duas possibilidades,
sugerindo, inclusive, que, na tradução de Filipenses 2.6, se indique claramente
essas duas possibilidades de tradução, uma no texto, outra em nota de pé de
página. A primeira possibilidade é traduzir por “ele sempre tinha a natureza de
Deus e não considerou que se tornar igual a Deus era algo a ser conseguido à
força”. Tal interpretação reflete o ponto de vista de Jesus após a encarnação e o
fato de que ele não pensava em tornar-se igual a Deus porque ele já tinha todos
os atributos da divindade. A segunda opção é “usurpação” no sentido de algo
que se quer manter à força. Neste caso, Filipenses 2.6 poderia ser traduzido por
“ele sempre tinha a natureza de Deus e não julgou que permanecer igual a Deus
era algo que tinha de ser mantido à força”. Esta interpretação presume a situação
de Jesus antes da encarnação e, por conseguinte, a sua disposição de passar pelo
“esvaziamento” de suas prerrogativas divinas.
Uma definição mais clara desta questão passa pela definição do referente
específico de “Cristo Jesus”. Claro, trata-se de Cristo. Agora, que Cristo: o Cristo
já encarnado ou o Cristo antes da sua encarnação? Teólogos luteranos preferem,
em geral, a primeira opção, entendendo que o texto não fala sobre a encarnação
de Cristo, mas estritamente sobre a sua humilhação.
No mesmo versículo 6 aparece o termo “subsistindo”. Subsistir é perdurar,
continuar a existir, entre outros significados possíveis. Quem lê Almeida Revista
e Atualizada pode pensar que se trata, em grego, de um verbo complicado ou
algo assim. Na verdade, é um verbo que é equivalente ao verbo ser. Tanto assim

|| 25 As primeiras edições da Almeida, do século XVII, trazem o termo “rapina”, que diz mais ou
menos o mesmo que “usurpação”. O mesmo termo aparece em O Novo Testamento Interlinear
Grego-Português. É o termo usado também na Vulgata.
|| 26 Uma vez que essa “rapina” ou “usurpação” é “o ser igual a Deus”, fica claro que a palavra é usada
em sentido figurado ou metafórico. Em outras palavras, não se trata de raptar um objeto.
|| 27 Neste dicionário, o termo foi incluído num subdomínio intitulado “furtar, roubar”, dentro do
domínio semântico de número 57: possuir, transferir, trocar.
Filipenses 2.5-11 103

que as edições mais antigas do texto de Almeida trazem “sendo em forma de


Deus”. Como isso soa um tanto estranho, a opção seria dizer “existindo em
forma de Deus”.

8.2.3 Gênero literário


Não há nada mais natural ou óbvio, à primeira vista, do que dizer que
Filipenses 2 é um trecho de uma epístola. Portanto, o gênero só poderia ser
epistolar. No entanto, nada impede que, dentro de uma epístola ou carta, se
tenha algum outro gênero ou forma literária.
O texto que estamos estudando sempre foi visto como um dos mais
importantes textos cristológicos. Foi visto como “sede de doutrina”, e ainda é.
Só que mais recentemente, a partir do início do século XX, passou a ser visto
como “um hino cristão primitivo” de exaltação a Cristo. Afirma-se, inclusive,
que seria pré-paulino, ou seja, que teria surgido no contexto da igreja na região
de Jerusalém. Outros pensam que era, no mínimo, um “hino” conhecido dos
filipenses. Paulo, ao citar esse texto, teria feito seus próprios acréscimos, como,
por exemplo, a locução “e morte de cruz”. É claro que é difícil para não dizer
impossível determinar se o texto é pré-paulino ou não. Certo é que, sendo
composição original ou não, faz parte de um texto paulino e, para todos os
efeitos práticos, integra a carta aos filipenses.
Sendo impossível determinar se era hino ou não, pois hino parece pressupor
que seria cantado, a opção mais segura é dizer que se trata de uma “confissão
de fé litúrgica, com uma cadência poética”. Em O Novo Testamento Grego, o
texto aparece como se fosse prosa. No entanto, há uma indicação, no aparato de
segmentação,28 de que, em outras edições, é visto como “material tradicional”,
particularmente do versículo 6 ao 11. De fato, o texto aparece num formato
poético, com linhas de comprimento desigual, na edição grega de Nestle-Aland
e em grande número de traduções, incluindo a Nova Tradução na Linguagem
de Hoje (NTLH).

|| 28 Este aparato de segmentação é peculiaridade de O Novo Testamento Grego, publicado com


roupagem portuguesa pela Sociedade Bíblica do Brasil em 2009. Nesse aparato indica-se como
o texto é segmentado (divisão em seções, parágrafos, bem como pontuação e outros detalhes)
em cinco edições do texto grego e onze traduções para diferentes línguas.
104 Filipenses 2.5-11

Qual seria a implicação disso? À primeira vista, trata-se de uma simples


opção editorial. Entretanto, quem sinaliza que o texto é poético ou prosa poética
não estaria, ao mesmo tempo, dando a entender que o mesmo não deve ser lido
como uma formulação dogmática precisa? Não estaria dando a entender que o
trecho deve ser lido mais ou menos como se lê um salmo? É possível. Entretanto,
mesmo tirando um pouco o “peso” do texto, a sua tradução comunica algo, e
desse significado sempre serão tiradas conclusões teológicas, especialmente no
âmbito da cristologia ou doutrina de Cristo.

8.2.4 Exame de traduções


No exame de traduções, uma possibilidade é verificar como determinadas
traduções entenderam o texto ou uma parte dele. Para esta aula, decidimos
verificar como certas traduções entendem aquilo que, na Bíblia de Almeida,
aparece como “não julgou como usurpação”. Num segundo momento, queremos
examinar como foi traduzida uma expressão da parte final do texto.
Comecemos pela questão do “não julgar como usurpação”: trata-se de algo
a ser conseguido a qualquer custo (opção 1) ou algo a ser mantido a qualquer
custo (opção 2)?
A Tradução Brasileira, de 1917,29 diz: “Tende em vós este sentimento que
houve também em Cristo Jesus, o qual, subsistindo em forma de Deus, não julgou
que o ser igual a Deus fosse coisa de que não devesse abrir mão, mas esvaziou-
se, tomando a forma de servo, feito semelhante aos homens”. Não julgar algo
como coisa de que não se deve abrir mão (negativo com negativo) equivale a
considerar que se pode abrir mão disso. Portanto, a Tradução Brasileira prefere
a opção 2. Note-se, também, a presença do termo “subsistindo”, que acabaria
entrando na Almeida Revista e Atualizada.
A Bíblia para Todos, que é uma revisão da Tradução em Português Corrente,
feita em 2009,30 tem o seguinte texto: “Tenham os mesmos sentimentos que
havia em Cristo Jesus: Ele, que por natureza era Deus, não quis agarrar-se a esse

|| 29 Esta tradução foi relançada em formato impresso pela Sociedade Bíblica do Brasil em 2011.
Antes já havia sido disponibilizada em formato eletrônico.
|| 30 Esta tradução segue os mesmos princípios da Nova Tradução na Linguagem de Hoje, só que feita
em Portugal.
Filipenses 2.5-11 105

direito de ser igual a Deus. Pelo contrário, privou-se do que era seu e tomou a
condição de escravo, tornando-se igual aos homens”. Percebe-se que também
esta tradução prefere a opção 2: Cristo Jesus esteve disposto a abrir mão de um
direito que tinha. Fica mais evidente, nesta tradução, que a grandeza do gesto
de Cristo consiste na sua humanização, ou seja, no fato de tornar-se igual aos
homens. Chama a atenção o emprego do termo “escravo” para traduzir doulos,
sendo que a maioria das traduções prefere “servo”.31
A Contemporary English Version32 diz mais ou menos assim: “Cristo era
verdadeiro Deus. Mas ele não tentou permanecer na condição de igual a Deus.
Ao contrário, abriu mão de tudo e se tornou um escravo, ao se tornar como um
de nós”. Percebe-se que a tradução anterior se aproxima bastante do texto desta
versão inglesa, que, por sua vez, também prefere a opção 2. O uso do termo
“escravo” é outra semelhança com A Bíblia Para Todos.33
A English Standard Version, uma das mais recentes traduções ao inglês (ela é
de 2001), diz aproximadamente o que segue: “Tende entre vós esta mentalidade,
que é vossa em Cristo Jesus, o qual, embora estivesse na forma de Deus, não
considerou igualdade com Deus algo a ser conseguido, mas se anulou, assumindo
a forma de um servo, tendo nascido na semelhança de homens”. Esta tradução
reflete a opção 1, ou seja, Cristo é Deus, mas não faz questão de ser igual a Deus.
Sugere, igualmente, que Cristo assumiu a forma de servo depois que nasceu em
semelhança de homens.
A Traducción en Lenguaje Actual, uma versão castelhana de 2003, feita na
América Latina e destinada a um público feito de crianças e leitores novos,
traduz o texto por “Tenham a mesma maneira de pensar que Jesus Cristo teve:
Ainda que Cristo sempre tenha sido igual a Deus, não insistiu nessa igualdade.
Ao contrário, renunciou a essa igualdade, e se fez igual a nós, fazendo-se escravo
de todos”. Parece que também esta tradução prefere a opção 2. Embora isso não
seja dito com todas as letras, a tradução parece sugerir, todavia, que, ao se fazer
escravo de todos, Jesus se fez igual a nós. Neste caso, nós seríamos o modelo

|| 31 Reveja a aula anterior, sobre Filipenses 1.1-11, e a discussão sobre a tradução desse termo.
Note-se que A Bíblia Para Todos traduz o mesmo termo por “servos”, em Filipenses 1.1.
|| 32 Esta “Tradução Inglesa Contemporânea” foi publicada, como Bíblia completa, em 1995. A
tradução, feita ao correr da pena, é nossa.
|| 33 Não se está sugerindo que uma tradução depende da outra. Caso, porém, tivesse havido tal
dependência, seria da tradução portuguesa em relação à inglesa, por causa da ordem cronológica
em que surgiram.
106 Filipenses 2.5-11

que Cristo seguiu. No entanto, tal leitura pode resultar de uma compreensão
inadequada do texto espanhol.
Já a Nova Tradução na Linguagem de Hoje parece um pouco mais ambígua na
questão que estamos a investigar. Afirma que Cristo Jesus “tinha a natureza de
Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo
o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres
humanos”. A ambiguidade reside no uso da expressão “tentou ficar igual a Deus”.
Isso pode ser lido (numa probabilidade maior) como abrir mão da tentativa de
permanecer na condição de igualdade com Deus (opção 2), mas poderia ser lido
também como um abrir mão da tentativa de alcançar a igualdade com Deus
(opção 1). Também esta tradução, pelo uso do “assim” (em “tornando-se assim
igual”), dá a entender que Cristo tornou-se igual aos seres humanos no ato de
tomar a natureza de servo. Ou seja, também neste caso, o modelo do que Cristo
fez seriam os seres humanos.
Dito isso, queremos igualmente, conforme anunciado, verificar como foi
traduzido um trecho da parte final do texto, mais especificamente a referência aos
joelhos que se dobram no céu, na terra, e debaixo da terra (v.10). Aqui cumpre
lembrar que, numa tradução bem literal,34 o texto grego diz “para que ... se dobre
todo joelho de (seres) celestiais e de (seres) terrestres e de (seres) debaixo da
terra”. O “joelho” é, sem dúvida, uma metonímia para “pessoa” ou “criatura”
(NTLH). Mas o que interessa mesmo é a maneira como as traduções lidam
com a expressão citada. Trata -se de uma maneira de falar de todo o universo,
conforme a concepção que se tinha naquele tempo: o céu (onde Deus está), a
terra (o habitação humana) e as regiões debaixo da terra (a morada dos mortos).
Nenhuma tradução, porém, ousa simplificar isso, afastando-se da formulação
tradicional, que reflete “um universo em três andares”: céu, terra, debaixo da
terra. A NTLH, todavia, prefere especificar a que se refere essa região debaixo da
terra: “todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos”. Já a Tradução
Brasileira, confirmando sua fama de Bíblia Tira-Teima, é a que mais se aproxima
do que efetivamente está escrito no grego: “para que em o nome de Jesus se dobre
todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra”.35

|| 34 Seguindo de perto o texto do Novo Testamento Interlinear Grego-Português.


|| 35 No grego, aparece uma construção de genitivo, expressa, em português, através do uso da
preposição “de”. Ou seja, esses joelhos nos céus, na terra e debaixo da terra são, a rigor, os
joelhos “dos que estão no céu...”
Filipenses 2.5-11 107

8.3 Aspectos teológicos


Aqui, o objetivo que se tem em vista é fazer uma leitura mais atenta do texto,
com atenção especial às diferentes dimensões do contexto. Não abordaremos
o contexto histórico, pois a história que o texto apresenta é, essencialmente, a
trajetória do ministério de Jesus.

8.3.1 Contexto literário ou cotexto


O trecho de Filipenses 2.5-11 faz parte de um todo maior, que começa
em Filipenses 1.27. Embora se possa argumentar que o texto não conclui em
2.11, nada impede que se faça uma pausa naquele lugar. E como cotexto é
basicamente o que vem antes, é importante levar em conta o trecho anterior, a
saber, Filipenses 2.1-4.
Ali, Paulo enfatiza a importância de unidade e humildade em vez de orgulho.
Fosse outra pessoa, talvez começasse com o exemplo de Cristo, passando em
seguida a tirar conclusões ou a fazer aplicações. Paulo faz o contrário. Na verdade,
pelo que parece, ele não havia “decidido” escrever um capítulo de cristologia;
ele se dirige aos cristãos de Filipos, insistindo na importância de se ter em vista
o bem dos outros, em detrimento dos interesses próprios. E isso o remete ao
exemplo de Cristo Jesus.

8.3.2 Contexto comunicacional


Ao se falar sobre contexto comunicacional, pressupõe-se que toda
comunicação se dá dentro de um ambiente cognitivo (um poço de informações,
uma série de convicções, uma visão de mundo, etc.) que, no caso de uma carta,
é compartilhado entre quem escreve e quem lê. Na medida em que existe esse
campo comum, muitas coisas ficam implícitas e não precisam ser ditas com todas
as letras. Se somarmos isso (que aparece, abaixo, de forma provisória, na coluna
da direita) ao que o texto expressa de forma explícita (coluna da esquerda), tem-
se um quadro das ideias transmitidas (a coluna do meio, na tabela abaixo). Nos
limitaremos a uma parte do texto, a saber, ao trecho que vai do v.8 ao v.11.
108 Filipenses 2.5-11

Contexto
Texto – Fp 2.8-11 Ideias transmitidas
comunicacional
8
(Cristo Jesus) Cristo se humilhou, sendo • “Morte de cruz” é algo
a si mesmo se obediente até à morte, bem mais sério ou grave
humilhou, tornando- e morte reservada a um do que simplesmente
se obediente até criminoso da pior espécie. “morte”. Os detalhes
à morte e morte Mas este não é o final da disso, que as pessoas
de cruz. 9Pelo que história. Deus o exaltou ao daquela época
também Deus o máximo (certamente pela conheciam, são omitidos.
exaltou sobremaneira ressurreição e ascensão), • A história de Cristo não
e lhe deu o nome que dando-lhe um nome terminou na cruz, pois
está acima de todo acima de todos os outros Deus o exaltou. Não há
nome, 10para que ao (provavelmente o nome referência a como isso
nome de Jesus se de “Senhor”). O propósito se deu.
dobre todo joelho, disso é que todos, em todo • Receber um “nome”
nos céus, na terra e o universo, o adorem e é uma forma de ser
debaixo da terra, 11 e confessem que ele é Senhor. exaltado.
toda língua confesse Como isso tudo procede do • Joelhos que se dobram,
que Jesus Cristo é próprio Deus, a adoração a isto é, “ajoelhar-se”
Senhor, para glória Jesus e a confissão do seu significa algo (bem mais
de Deus Pai. nome só podem resultar na do que mero exercício
glória de Deus Pai. físico de flexionar os
joelhos).
• “Nome” está diretamente
relacionado com a
pessoa.
• Céus, terra, (região)
debaixo da terra é uma
maneira de visualizar o
mundo.
• Confessar é dizer algo.
Neste caso, a respeito de
Jesus.
• Dizer que Jesus é Senhor
em nada diminui a glória
de Deus Pai.

8.3.3 Progressão de ideias


Em termos de progressão de ideias, parece claro que o texto traz duas etapas
da história de Cristo: sua humilhação e sua exaltação. A sequência de ideias na
segunda etapa, a partir do v.9, parece mais clara. O que se discute e precisa ser
abordado é a progressão de ideias na primeira etapa, naquilo que aparece nos
Filipenses 2.5-11 109

versículos 6 a 8. Poderia haver alguma redundância ou repetição naquilo que


Paulo escreve, ou teria tudo uma sequência estritamente linear? E em que ponto
começa a narração da “história” de Cristo Jesus?
Inicialmente, no entanto, faz-se necessário listar as várias frases ou afirmações
que aparecem nesse trecho:
1. Cristo Jesus existia na forma essencial36 de Deus;
2. ele não considerou esse ser igual a Deus uma “rapina” (algo a ser obtido,
ou, quem sabe, algo a ser retido de qualquer forma);
3. ao contrário, ele se esvaziou, tendo assumido (ou: assumindo) a forma
de servo, tendo-se tornado (ou: tornando-se) em semelhança de
homens;
4. tendo sido encontrado (ou: visto) em forma (exterior)37 de homem,
humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz;

Normalmente, a leitura que se faz de Filipenses 2 condiz com o que aparece


em 1 Timóteo 1.15: “Cristo Jesus veio ao mundo”. Não há nada de errado com
esta afirmação em 1 Timóteo; a questão é se Filipenses 2 diz a mesma coisa.
A maioria dos exegetas e das traduções entende que sim. Em outras palavras,
Cristo Jesus, na eternidade, antes da encarnação, não considerou o fato de ser
Deus algo a que se aferrar. Abriu mão de sua condição e se fez um de nós.
Minha tendência é ler esse texto de forma diferente. Tendo assumido
a condição humana, isto é, depois de se tornar um de nós, Cristo Jesus,
verdadeiro Deus, não fez uso dessa condição ou prerrogativa. Esta leitura
depende, em grande parte, da interpretação de formas do Particípio grego
no verso 7 (a frase 3 e o início da frase 4, acima). Na Bíblia de Almeida essas
formas são traduzidas por “assumindo” e “tornando-se”, mas poderiam ser
traduzidas, também, por “tendo assumido” (labon, do verbo lambáno, que
pode ser traduzido, também, por “tomar”) e “tendo-se tornado” (genómenos, do
verbo gínomai, que designa o processo de vir a ser). São, no grego, Particípios

|| 36 O termo grego é morphé.


|| 37 O termo grego, neste caso, é schema, que, sinônimo de morphé, poderia acentuar a forma
exterior, reflexo do que se é interiormente.
110 Filipenses 2.5-11

no aspecto do Aoristo. E embora se possa argumentar que um Particípio


Aoristo usado ao lado de verbos no Aoristo do Indicativo (“se esvaziou” e “se
humilhou”) denota tempo anterior ao do verbo finito (o que daria suporte ao
nosso ponto de vista, ou seja, “primeiro assumiu a condição humana; depois,
se humilhou”), também é preciso dizer que um Particípio Aoristo, já por ser
Aoristo (“indeterminado”), não transmite noção de tempo. A noção de tempo
(se presente, passado ou futuro) precisa ser derivada do contexto. O que nos
leva de volta à semântica (o significado do texto), que é, de certa forma, anterior
à sintaxe (a estruturação do texto).
Em 1928, o renomado exegeta alemão Ernst Lohmeyer estruturou o texto
da seguinte forma, que, diga-se de passagem, é a estruturação que nos parece
a mais adequada:

O qual existindo em forma de Deus,


não pensou que fosse algo a ser explorado
este ser igual a Deus,

Mas se esvaziou,
tendo assumido uma forma de servo
e tendo se tornado em semelhança de homens.

E, sendo achado em aparência como um homem,


ele se humilhou,
tendo se tornado obediente até à morte – morte de cruz.

8.3.4 Contexto teológico e intertextualidade


Explorar em todos os seus aspectos a dimensão teológica de um texto tão
denso como este seria um exercício interminável. Teremos que nos limitar a
alguns pontos.
Filipenses 2.5-11 ensina, claramente, a verdadeira divindade de Cristo
(expressa também na adoração e na confissão, mencionadas ao final), a sua
verdadeira humanidade, sua humilhação, sua morte vergonhosa, sua exaltação.
Ou seja, fala tanto da pessoa quanto da obra de Cristo.
Filipenses 2.5-11 111

A grande pergunta, como já vimos, é se esse texto trata da encarnação de


Cristo. Não há nada no texto que diga, diretamente, que este é o assunto principal,
embora faça parte da descrição. Paulo trata, a rigor, do exemplo de Cristo na
humilhação.38 Normalmente, nos escritos de Paulo, à parte da passagem de 1
Timóteo 1.15, quem vem ao mundo ou é enviado ao mundo é o “Filho” (veja-
se, por exemplo, Gl 4.4), e não “Cristo Jesus”, embora sejam a mesma pessoa.
Do ponto de vista da lógica teológica, o problema de identificar a humilhação
com a humanização é que, nesse caso, a exaltação deveria ser o “livrar-se” desta
humanização. No entanto, o Novo Testamento deixa bem claro que Jesus não
abriu mão de sua humanidade ao ressuscitar e subir ao céu.
Quanto à divindade de Cristo Jesus, a afirmação de que ele subsistia ou
existia em forma de Deus (v.6) implica divindade. Esta fica bem evidenciada
no nome que está acima de todo nome (v.9) e na adoração e na confissão do
senhorio de Jesus (vs.10-11).39
Discute-se qual seria o nome acima de todo nome, mas em geral se conclui
que é o nome “Senhor”, que corresponde ao nome de Deus (o tetragrama) no
Antigo Testamento.
O assunto do texto é a pessoa e obra de Cristo Jesus. Deus Pai aparece apenas
na segunda metade: Deus lhe deu a mais alta honra, e a confissão de que Jesus
Cristo é Senhor será feita “para a glória de Deus Pai”. Ou seja, a única ação
atribuída a Deus é a exaltação de Cristo.
Paulo não vê incompatibilidade entre cair de joelhos diante de Cristo,
confessando que ele é Senhor, e manter a fé monoteísta. Dar honra divina
a Jesus não diminui em nada a glória de Deus. Aliás, nos versículos 10 e 11
pode-se ouvir um eco intertextual de Isaías 45.23, vindo do texto grego da
Septuaginta. Em tradução mais ou menos literal, o texto grego de Isaías 45.23
diz: “Diante de mim se dobrará todo joelho e toda língua confessará Deus”. Estas

|| 38 É claro que Paulo vai além disso, especialmente na parte final. Em outras palavras, Paulo conta
a história de Jesus em termos mais amplos, incluindo, no final, a sua exaltação. Este não é
necessariamente um modelo a ser imitado pelos cristãos; afinal, como seria possível imitar a
exaltação de alguém? Cristo foi exaltado e a Igreja, corpo de Cristo, participa e participará de
sua exaltação, mas o texto não trata disso.
|| 39 Pelo uso de uma conjunção final (hína) no início do v.10, Paulo indica que a “superexaltação”
(huperúpsosen) tem em vista a adoração a Jesus e a confissão de que ele é Senhor. Não há
indicação de quando isso sucederá, embora se possa dizer que isso já acontece, de forma
antecipada, na Igreja.
112 Filipenses 2.5-11

palavras ocorrem num contexto em que se acentua o monoteísmo. Paulo ecoa


essa afirmação do monoteísmo num texto em que anuncia que todo joelho se
dobrará diante de Cristo, em claro sinal de que não vê contradição entre afirmar
a divindade de Cristo e manter a fé monoteísta. O Novo Testamento como um
todo confirma isso.
A referência a Isaías 45 lembra Isaías 53, que começa, a rigor, em Isaías 52.13.
Nesse texto já temos a sequência que se repete em Filipenses 2: glória (Is 52.13-
15), humilhação (53.1-11), glória (53.12).
Outro paralelo interessante é o de Adão, em Gênesis 3.40 Ao exemplo de
Romanos 5, a relação é antitética. Em Gênesis 3, temos o homem que quer
ser “como Deus”, se torna rebelde e cai. Adão é cabeça da humanidade, cuja
mentalidade é “fazer tudo por interesse pessoal” e “desejos tolos de receber
elogios” (Fp 2.3). Ou seja, há uma constante busca por ser “como Deus”. Em
Cristo Jesus, por outro lado, temos o Deus-homem, “igual a Deus”, que, ao
contrário de Adão, não considera o ser igual a Deus uma coisa que precisa ser
conseguida (ou mantida) a qualquer custo; ele se rebaixa e é obediente. Ele é
cabeça de uma nova humanidade, cuja mentalidade é “procurar os interesses
dos outros” (Fp 2.4) e “considerar os outros superiores a si mesmo” (Fp 2.3). É
para ele, o último Adão, e não para o primeiro Adão, que a Igreja precisa voltar
os seus olhos.

8.4 Aspectos práticos

8.4.1 Análise retórica


Do ponto de vista da retórica, a argumentação do apóstolo é claramente de
ordem deliberativa. Em outras palavras, ele coloca Cristo Jesus como exemplo
de mentalidade e comportamento. O impacto disso remete à polaridade lei-
evangelho.

|| 40 Isso levanta a discussão em torno de uma suposta “cristologia de Adão”, nos textos de Paulo,
como defende, entre outros, James Dunn. Não será possível entrar nessa discussão aqui.
Filipenses 2.5-11 113

8.4.2 Polaridade Lei-Evangelho


O ponto de partida de Paulo é a lei, na medida em que propõe o exemplo de
Cristo. Aliás, um exemplo mais “humano” seria menos assustador. Por outro
lado, quem é mais humano do que o Cristo apresentado nessa passagem, o
Cristo que se faz servo (ou “escravo”, como dizem algumas traduções) e morre
da forma mais vergonhosa possível. Mesmo assim, o exemplo de Cristo, ao nos
ser proposto como ideal, nos fere e “ofende”. Nossa alternativa é não perder de
vista a dimensão evangélica do texto. Embora o “por nós” não esteja diretamente
expresso, fica implícito.

8.4.3 Leva a que atitude?


Filipenses 2.5-11 nos convida a dobrar o joelho e confessar que Jesus Cristo
é Senhor. Não se pode afirmar categoricamente que esse texto “nasceu” como
um hino. Mas se presta muito bem a uma confissão cantada. E não são poucos
os hinos e cânticos inspirados nesse texto. Cantemos, pois. Mas, acima de tudo,
mantenhamos a confissão.

Exercícios de revisão
1. Paulo estimula os cristãos a terem “o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus” (Fp 2.5, ARA). Isso significa que ele espera:
a) que os cristãos tenham a mesma compaixão que Jesus teve.
b) que os cristãos tenham a mesma sensibilidade que Jesus teve,
especialmente na percepção daquilo que se passa ao seu redor.
c) que os cristãos tenham a mesma dedicação a Deus que Jesus teve.
d) que os cristãos tenham a mesma disposição mental, o mesmo modo
de pensar e a mesma atitude que Jesus teve.

2. O texto de Filipenses 2.5-11 ensina claramente:


a) que Cristo Jesus existia em forma de Deus, foi reconhecido em figura
humana e se humilhou.
b) que Cristo Jesus se humilhou quando se fez homem.
114 Filipenses 2.5-11

c) que Cristo Jesus, ao ser exaltado, deixou para trás sua humanidade.
d) que Cristo Jesus era uma figura humana que queria ser igual a
Deus.

3. Ao dizer que Deus exaltou Cristo Jesus, para que ao nome dele se dobre
todo joelho “nos céus, na terra e debaixo da terra” (Fp 2.10), Paulo está,
muito provavelmente, se referindo a:
a) uma região fixa no céu, toda a superfície da Terra, e um suposto
planeta que fica situado abaixo da terra.
b) anjos bons, seguidores de Cristo, e forças satânicas.
c) todos os seres em todo o universo, visto como que tendo três “andares”:
morada de Deus (céu), morada dos homens (terra), morada dos
mortos (região debaixo da terra).
d) uma série de poderes espirituais que se opõem a Deus e que não têm,
em si, nenhuma localização geográfica.

4. O texto de Filipenses 2.11 anuncia que toda língua confessará “que Jesus
Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai”. Nesta afirmação:
a) Paulo ensina a verdadeira humanidade de Jesus Cristo, implícita no
uso do termo “Senhor”.
b) está implícita a divindade de Cristo, cuja confissão não fere ou não
diminui em nada a glória de Deus Pai.
c) nada se diz sobre Cristo, e sim, unicamente, sobre a glória de Deus.
d) Paulo apenas cita um texto de Isaías 45, que nada permite concluir
sobre o que ele próprio pensava ou ensinava.

Respostas:
1. d 2. a 3. c 4. b
9

Filipenses 3.2-11
Vilson Scholz

Introdução
Este trecho é uma passagem de fundamental importância para a teologia. É,
além disso, um clássico da espiritualidade cristã e uma importante fonte histórica
para se escrever a biografia do apóstolo Paulo. Vale a pena examiná-lo mais de
perto, segundo nosso método exegético desenvolvido para textos de epístola.

9.1 O texto
Segundo a tradução de Almeida Revista e Atualizada, o texto de Filipenses
3.2-11 diz assim:

2
Acautelai-vos dos cães! Acautelai-vos dos maus obreiros! Acautelai-
vos da falsa circuncisão! 3 Porque nós é que somos a circuncisão, nós
que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus,
e não confiamos na carne. 4 Bem que eu poderia confiar também
na carne. Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu
ainda mais: 5 circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel,
da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, 6
quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na
116 Filipenses 3.2-11

lei, irrepreensível. 7 Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei
perda por causa de Cristo. 8 Sim, deveras considero tudo como perda,
por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu
Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como
refugo, para ganhar a Cristo 9 e ser achado nele, não tendo justiça
própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo,
a justiça que procede de Deus, baseada na fé; 10 para o conhecer,
e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos,
conformando-me com ele na sua morte; 11 para, de algum modo,
alcançar a ressurreição dentre os mortos.

9.2 Aspectos textuais


Sob “aspectos textuais”, costumamos abordar aquilo que alguém já chamou
de “a face do texto”, ou seja, a maneira como o texto se apresenta, ao olharmos
para ele. Trataremos da delimitação do texto, eventuais palavras difíceis, o gênero
literário e a apresentação do texto em diferentes traduções.

9.2.1 Delimitação do texto


O texto poderia perfeitamente ser iniciado em Filipenses 3.1, isto é, no
primeiro versículo do capítulo 3. No entanto, o v.1, que parece sinalizar que a
carta está chegando ao fim, pode ser visto como uma pausa na composição da
mesma. Assim, o primeiro versículo forma uma transição. Paulo reflete sobre a
propriedade de escrever as mesmas coisas. De repente, muda o tom, no início
do v.2. Isso justifica o início do trecho em estudo no v.2.
Na tradução de Almeida Revista e Atualizada, a seção se estende do v.2 ao 11,
com o título: “O aviso contra os falsos mestres”. A Nova Tradução na Linguagem
de Hoje (NTLH) insere o v.1 na mesma seção, dando a esse conjunto o título
de “Completamente unidos com Cristo”. Nisso a NTLH segue a segmentação
adotada em O Novo Testamento Grego (NTG). A diferença é que o NTG traz
um título diferente: “A verdadeira justiça”.
Quanto ao corte no final, o trecho poderia muito bem ser estendido até o
v.16. Pode-se, é claro, fazer um corte provisório ou temporário no final do v.11.
No entanto, é preciso estar consciente de que, a rigor, o texto continua.
Filipenses 3.2-11 117

Os títulos de seção, como de costume, procuram dar uma noção do conteúdo


daquele trecho. Não raras vezes, porém, conseguem expressar bem pouco do
que o texto apresenta. Isso fica bem claro no caso desta seção. “O aviso contra os
falsos mestres” é um título viável, mas quem se guia por ele deixará de perceber
que esse trecho é um dos poucos, nas cartas de Paulo, em que o apóstolo trata do
assunto principal das cartas aos Gálatas e aos Romanos: “a verdadeira maneira de
ser justo aos olhos de Deus”.41 Uma tradução inglesa, a English Standard Version,
destaca este ensino, optando pelo título: “Justiça por meio da fé em Cristo”.
O título da NTLH – “Completamente unidos com Cristo” – destaca o que
aparece no v.9 (“estar unido com ele”), embora, naquele momento, Paulo esteja
falando na primeira pessoa do singular (“eu”). É possível argumentar que “estar
unido com Cristo” é, na teologia de Paulo, um tema mais fundamental (pelo
menos “mais encontradiço”) do que o tema da “justificação”, por mais que sejam
dois temas que se complementam.
O título de seção em A Bíblia Para Todos42 é “Cristo vale mais que tudo”, dando
destaque ao versículo 8. Uma tradução alemã prefere o título: “Vantagens e feitos
humanos não contam”, destacando o conteúdo dos versículos 5 a 8.
Nota-se, pois, que vários títulos são possíveis, o que atesta a riqueza do texto.
Raramente um título consegue dar conta de todo o conteúdo da seção.

9.2.2 Vocabulário
Nesse texto, há vários termos e expressões que merecem uma pequena
descrição. Logo no início, Paulo faz a advertência: Acautelai-vos dos cães! Isso
equivale a dizer: Cuidado com os cães! É óbvio que ele não está simplesmente
transcrevendo um aviso que havia lido junto à porta de alguma casa, alertando
para a presença de cachorros bravos. Em outras palavras, o termo tem significado
metafórico ou conotação religiosa. “Cães” era uma designação usada pelos
judeus, quando se referiam aos gentios ou não judeus. Nos Salmos, por exemplo,
os “cães” são os inimigos do povo de Deus.

|| 41 Este é o título que aparece na Tradução em Francês Corrente, que equivale, em língua francesa,
à NTLH.
|| 42 Este é o nome dado à edição revista da Bíblia em Português Corrente, a “irmã” da NTLH, feita
em Portugal.
118 Filipenses 3.2-11

Em seguida, Paulo faz o alerta contra “maus obreiros”. Não se trata de obreiros
preguiçosos ou descuidados, mas de obreiros destrutivos (por confiarem na
carne). São obreiros (literalmente “trabalhadores”) que fazem coisas más, como
aparece na NTLH.
Paulo alerta, também, contra a “falsa circuncisão”. Em A Bíblia Para Todos,
de Portugal, o texto foi traduzido por “os fanáticos da circuncisão”. Trata-se, no
grego, de um hápax, uma palavra de ocorrência única, usada por causa de sua
semelhança com o termo grego para “circuncisão”.43 Uma boa tradução, que
preserva a semelhança sonora dos dois termos, é “mutilação”.
No v.3, Paulo usa o termo “circuncisão” em sentido metafórico, na medida em
que diz que “nós (os cristãos) somos a circuncisão”. Há culturas, como a nossa,
em que a circuncisão não é coisa muito comum. Isso torna necessário explicar
do que se trata. Uma maneira de explicar isso é conforme segue: “Cerimônia
religiosa dos judeus, que consistia em cortar parte do prepúcio – pele que envolve
a ponta do órgão sexual masculino. Entre os israelitas do Antigo Testamento,
era a marca da pertença ao povo da aliança (Gn 17.9-14)”.44
No mesmo v.3, Paulo descreve o cristão como alguém que não confia na carne.
“Não confiamos na carne”, diz ele. O que seria “carne” (sárx), neste caso? Como
todas as palavras de qualquer língua, também esta é polissêmica, ou seja, tem
vários significados associados a ela. Aqui ela parece referir-se à materialidade
do ser humano, ou, então, a vida em seu aspecto exterior. “Confiar na carne” é
depositar a confiança naquilo que é apenas humano. O contexto confirma isso,
pois Paulo enumera coisas como origem e descendência (“hebreu de hebreus,
da tribo de Benjamim”).
Ao apresentar-se como “hebreu de hebreus”, Paulo parece evitar o termo
de caráter mais étnico (“judeu”), usando em vez disso um termo que tem uma
conotação mais religiosa (“hebreu”). Alguém que é “hebreu de hebreus” é um
hebreu que descende de hebreus, alguém que é “de sangue hebreu” (NTLH),
ou, como poderíamos dizer, um “puro-sangue”.

|| 43 Em grego, “circuncisão” é peritomé (que dá a ideia de “cortar em volta”). A palavra que Paulo
emprega é katatomé (que dá a ideia de cortar de alto a baixo).
|| 44 Existem culturas em que a circuncisão dos homens faz parte do rito de passagem à puberdade.
Quando chegam ao amadurecimento sexual, os meninos são circuncidados. Num contexto desses,
uma referência à “circuncisão ao oitavo dia” soa muito estranha, pois sugere uma virilidade
ultraprecoce!
Filipenses 3.2-11 119

Paulo se apresenta como “fariseu”. Esta é a única vez que essa palavra aparece
nas epístolas ou cartas do Novo Testamento. Todas as demais ocorrências do
termo estão nos Evangelhos e em Atos dos Apóstolos.45
Ao dizer que considera tudo como perda, por causa da sublimidade do
conhecimento de Cristo Jesus, Paulo escreve uma locução que, à primeira vista,
soa ambígua. “Conhecimento de Cristo” pode significar o conhecimento que
Cristo tem (genitivo subjetivo) ou o conhecimento que alguém (Paulo) tem de
Cristo (genitivo objetivo). O contexto ajuda a eliminar a ambiguidade, indicando
que se trata do conhecimento que Paulo tem de Cristo. Assim, para eliminar a
“santa ambiguidade”, a NTLH diz com todas as letras: “aquilo que tem muito
mais valor, isto é, conhecer completamente Cristo Jesus, o meu Senhor”.
Ao dizer que considera todas as coisas como “refugo”, para ganhar a Cristo (v.8),
Paulo escreve mais um dos quarenta hápax legómena desta carta.46 “Refugo” é um
termo mais brando ou eufemístico para “lixo”, que é o termo usado na NTLH.
Por fim, ao falar sobre a “comunhão dos seus sofrimentos”, isto é, dos sofrimentos
de Cristo, Paulo usa o mesmo termo koinonía que já havia utilizado em Filipenses
1.5 e 2.1. Trata-se de um associar-se com Cristo nos sofrimentos,47 que Paulo
explica em termos de “conformando-me com ele na sua morte”. Este “conformar-se”
pode ser mal interpretado pelo leitor apressado. Afinal, em português, o primeiro
significado que vem à mente é “resignar-se com” ou “aceitar”. No entanto, aqui o
termo traduz um verbo grego48 que significa “assumir a mesma forma”, “tornar-se
igual”. A NTLH traduz bem: “me tornar como ele na sua morte”.

9.2.3 Gênero e estilo


O estilo desse trecho é bem paulino: de um começo exaltado passa-se a uma
conclusão mais calma e serena. Aliás, este início do capítulo 3 é talvez a única

|| 45 Uma pergunta que se pode fazer é o quanto os filipenses estavam informados a respeito das
diferentes “seitas judaicas”. Esta questão terá de ser retomada mais adiante.
|| 46 Lembrando que um hápax é uma palavra que ocorre uma única vez em determinado corpo
literário. O termo grego é skúbala, que pode ser relacionado com “as coisas que são jogadas
para os cachorros”.
|| 47 Esta associação no sofrimento contribui para que Filipenses 3 seja descrito como um “clássico
da espiritualidade cristã”.
|| 48 Symmorphízo.
120 Filipenses 3.2-11

passagem desta carta em que fica bem evidente a veemência do apóstolo Paulo,
conhecida de textos como 2 Coríntios e Gálatas.
Por outro lado, o início desse texto é um belo exemplo do potencial
linguístico e retórico de Paulo, algo que se percebe mais nitidamente no original
grego. Paulo repete o verbo três vezes, como mostra a tradução de Almeida
(“acautelai-vos”). Além disso, recorre ao uso de aliteração, ou seja, o uso
repetido da mesma letra, algo muito difícil de manter na tradução. Três vezes
ele usa termos ou locuções iniciadas com a letra grega capa (cuja grafia parece
um “k” do nosso alfabeto): kúnas (“cães”), kakoús ergátas (“maus obreiros”),
katatomén (“mutilação”). Se acrescentarmos a isso a ironia no uso do termo
“cães”49 e o sarcasmo presente em “mutilação”, teremos bem caracterizada a
habilidade retórica do apóstolo Paulo.

9.2.4 Exame de traduções


Este exame de traduções poderia ser um exercício quase interminável, caso
se optasse por verificar todos os detalhes de todos os versículos. Precisamos,
porém, nos limitar a dois itens: um no v.2, outro no versículo 3.
Lendo a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), percebe-se que a
tríplice repetição do verbo grego blépete (“vede” ou “acautelai-vos”) foi reduzida
a uma única ocorrência de “cuidado”: “Cuidado com os que fazem coisas más,
esses cachorros, que insistem em cortar o corpo!”. Por outro lado, vimos um pouco
acima, sob “gênero e estilo”, que Paulo faz uma aliteração, usando várias palavras
iniciadas com a letra grega capa. Pois, a NTLH – e se isso foi de forma consciente
ou não, pouco importa agora – foi muito feliz ao trazer uma aliteração equivalente
em português: “Cuidado com os que fazem coisas más, esses cachorros, que
insistem em cortar o corpo!” Neste caso, temos uma aliteração com a letra “c”.
No v.3, ao examinar diferentes traduções, o leitor mais atento notará que
existem pequenas variações entre algumas delas. Almeida Revista e Atualizada diz
assim: “nós é que somos a circuncisão, nós que adoramos a Deus no Espírito”.50

|| 49 Os que insistem na circuncisão se fizeram gentios; os verdadeiros israelitas (circuncisão) são


os cristãos. Nisso reside a ironia.
|| 50 O texto da Almeida Revista e Corrigida é essencialmente o mesmo: “servimos a Deus no Espírito”.
Muda apenas a tradução do verbo grego latreúo, traduzido às vezes por “servir”, outras vezes
por “adorar”, e até mesmo por “prestar culto”.
Filipenses 3.2-11 121

A consagrada tradução inglesa King James, de 1611, tem a mesma sequência,


só que escreve a palavra “espírito” com inicial minúscula: “adoramos a Deus no
espírito”. Esta formulação é diferente, pois desaparece a referência ao Espírito
Santo e “no espírito” pode ser entendido no sentido de “espiritualmente” ou até
mesmo “com sinceridade”.
Já a Tradução Brasileira (TB), de 1917, tem um texto diferente: “rendemos
culto pelo Espírito de Deus”. A Nova Versão Internacional (NVI) é bem
semelhante: “adoramos pelo Espírito de Deus”. Percebe-se que nestas duas
traduções não aparece o objeto da adoração, ou seja, a quem se dirige a adoração,
e o “Espírito” é claramente identificado como o “Espírito de Deus”, ou seja, o
Espírito Santo. É óbvio que, nessa forma do texto, fica implícito que a adoração
se dirige a Deus. Assim sendo, traduções que tendem a explicitar o que fica
implícito fazem o que aparece na NTLH: “Nós adoramos a Deus por meio do
seu Espírito”. Uma tradução francesa que se destina a crianças e leitores novos
diz assim: “nós servimos a Deus com a ajuda do seu Espírito”.51 Neste caso,
explica-se melhor o que significa “por meio do seu Espírito”, indicando que se
trata da ajuda prestada pelo Espírito Santo.
E existe ainda uma tradução inglesa52 que traz “servimos (ou: adoramos) o
Espírito de Deus”.
Como explicar tal variedade de traduções? É fácil apontar a razão ou causa
dessa variedade, por mais difícil que seja explicar as diferenças. Trata-se de um
lugar onde existe o que se chama de “uma unidade de variação”. Em outras palavras,
ali existe uma variante textual. Os manuscritos gregos não são todos iguais neste
ponto, e isso se reflete nas traduções, que optam, umas por este texto grego, outras
por aquele. O texto grego hoje aceito como original, que alguns chamam de “texto
crítico”, traz a leitura “os que pelo Espírito de Deus adoram”. Este texto é traduzido
na TB, NVI, NTLH e na maioria das demais traduções modernas.53
Já o texto que aparece na Almeida, na King James, e em outras traduções mais
antigas, resulta de uma pequena alteração na desinência da palavra grega para

|| 51 Neste caso, “seu Espírito” se refere ao “Espírito de Deus”. A tradução francesa citada é de Parole
de Vie (“Palavra de Vida”).
|| 52 Chama-se God’s Word to the Nations (“A Palavra de Deus para as Nações”), publicada em 1995.
|| 53 Sua formulação grega é hói pneumati theou latreuontes (literalmente: “os pelo Espírito de Deus
adorando”).
122 Filipenses 3.2-11

“Deus”.54 E o texto com essa alteração entrou nas edições impressas do assim
chamado “texto recebido”, o texto de que se valeram Lutero, os tradutores da
King James e também da Almeida, para fazerem as suas traduções. O curioso é
que, neste caso, o “texto recebido”, que normalmente integra o “texto bizantino”
ou “majoritário”, é desautorizado por este texto. Em outras palavras, o texto
majoritário ou bizantino apoia o “texto crítico”, contra o “texto recebido”. Outra
curiosidade – ou enigma – é que Almeida Revista e Atualizada, que normalmente
traduz o “texto crítico”, retém o mesmo texto de Almeida Revista e Corrigida.
Em outras palavras, fica com o “texto recebido”.
E como explicar aquela tradução inglesa que diz “adoramos o Espírito de Deus”?
Ela prefere o mesmo texto grego que é traduzido na NVI, NTLH e tantas outras
traduções, ou seja, o “texto crítico”.55 Só que interpreta esse texto de forma diferente.
Em vez de dizer “adoramos pelo Espírito de Deus” (em que o termo grego é visto
como “instrumental”), opta pela formulação “adoramos ao Espírito de Deus” (em
que o mesmo termo grego é interpretado como objeto do verbo adorar). É uma
leitura possível, do ponto de vista gramatical, mas pouco provável do ponto de vista
do conteúdo. Dificilmente Paulo diria que os cristãos adoram o Espírito de Deus.

9.3 Aspectos teológicos


Aqui, entra em consideração aquilo que poderia ser chamado de “os pés do
texto”, a saber, a localização do texto em termos dos vários contextos.

9.3.1 Contexto literário ou cotexto


No início do capítulo 3, Paulo parece encaminhar-se para o final da epístola.
Exorta os leitores a que se alegrem no Senhor. Tal exortação será retomada
em Filipenses 4.2. O que segue é, a rigor, um assunto novo, tanto que alguns
consideram isso um bilhete independente.
A explicação mais provável é que Paulo tenha interrompido o ditado da
carta e, ao retomar, julgou necessário incluir essa advertência contra os “maus

|| 54 O texto grego, neste caso, é hói pneumati theoo latreuontes (literalmente: “os pelo Espírito
[ou: espírito] a Deus adorando”).
|| 55 Veja a nota 11, acima.
Filipenses 3.2-11 123

obreiros”. Da advertência ele passa a dar aos seus leitores um grande argumento,
tirado de sua própria biografia, que refuta o apelo daqueles que promovem o
que Paulo denomina de “mutilação”.

9.3.2 Contexto histórico


O texto que estamos estudando tem como pano de fundo a assim chamada
“controvérsia judaizante”, ou seja, a tentativa de forçar os gentios convertidos
ao cristianismo a viver como se fossem judeus. O passo inicial para tanto seria
submeter-se à circuncisão, chamada por Paulo de “mutilação”.
Mas há outros detalhes do texto que interessam do ponto de vista histórico. De
tudo aquilo que Paulo diz a respeito de si, o que mais pode deixar o leitor moderno
perplexo (para não dizer que já deixou os próprios filipenses perplexos) é essa
referência ao fato de ser ele da tribo de Benjamim. Que diferença faz? Certamente
era algo bom, pois Paulo cita coisas que poderiam ter sido contadas a seu favor.
De fato, a tribo de Benjamim tinha renome entre os israelitas. Dela procedia
Saul, o primeiro rei de Israel.56 Ao lado da tribo de Judá, ficou fiel à casa de Davi,
depois da divisão do reino em reino do Norte e reino do Sul (1 Rs 12.21). Além
disso, a cidade santa de Jerusalém e o Templo ficavam no território da tribo de
Benjamim (Juízes 1.21).

9.3.3 Contexto comunicacional


Neste passo, queremos investigar o que fica implícito nessa comunicação de
Paulo, por ser algo que, aparentemente, era compartilhado por ele e seus leitores.
Trata-se de informações que, na visão de Paulo, os seus leitores poderiam extrair
de seu ambiente cognitivo (sua memória), para formar o contexto adequado
ao entendimento do que ele estava a escrever. No que segue, o texto aparece
na coluna da esquerda; na coluna da direita está o que fica implícito, ou seja,
é subentendido pelo escritor; e, ao centro, está a mensagem que resulta da
combinação entre o que fica implícito e o que foi colocado por escrito.

|| 56 Como membro da tribo de Benjamim, “Saulo” recebeu o nome do mais ilustre membro dessa
tribo, o rei Saul.
124 Filipenses 3.2-11

Texto – Contexto
Ideias transmitidas
Fp 3.4-7 comunicacional
Bem que eu Se o assunto é depositar • há pessoas que julgam importante
poderia confiar a confiança nas confiar na carne ou nas suas
também na prerrogativas naturais supostas prerrogativas naturais e
carne. Se e nas realizações de nas realizações pessoais;
qualquer outro cunho pessoal, eu, • há povos ou religiões que
pensa que pode Paulo, não fico para trás. praticam a circuncisão;
confiar na carne, Aliás, tenho todas as • os judeus fazem a circuncisão dos
eu ainda mais: vantagens possíveis: fui meninos ao oitavo dia (após o
circuncidado circuncidado exatamente nascimento);
ao oitavo dia, no oitavo dia (como • existe um povo chamado Israel,
da linhagem de manda a Lei); sou um que se divide em tribos, sendo
Israel, da tribo israelita de origem, uma delas a tribo de Benjamim;
de Benjamim, membro da renomada • ser da tribo de Benjamim é,
hebreu de tribo de Benjamim, um por algum motivo ou outro, um
hebreus; quanto hebreu de pedigree ou motivo de orgulho;
à lei, fariseu, puro-sangue; quanto à • existe uma “lei” que, como a
quanto ao zelo, prática da lei, eu era continuação indica, serve de
perseguidor da fariseu; em termos de critério para algumas coisas;
igreja; quanto zelo e dedicação, cheguei • em relação a essa lei, alguém
à justiça que ao ponto de perseguir podia se apresentar como um
há na lei, a igreja cristã; em se fariseu;
irrepreensível. tratando da justiça que • embora, naquele tempo, ainda
Mas o que, para pode provir da lei, eu houvesse outros grupos que
mim, era lucro, era alguém que ninguém pudessem ser designados de
isto considerei podia acusar de falta “igreja”, há uma igreja por
perda por causa alguma. Tudo isso posto excelência, e esta é a “igreja
de Cristo. na balança representava cristã”;
lucro para mim. No • essa igreja passou por um período
entanto, quando Cristo, de perseguições;
um valor mais alto, • há uma justiça segundo o padrão
entrou em minha vida, da lei, que permite alguém se
passei a ver como perda apresentar como irrepreensível,
tudo isso que, antes, eu isto é, uma pessoa que ninguém
considerava lucro. pode acusar de nada;
• é possível fazer uma avaliação das
prerrogativas e das realizações
pessoais e concluir que são
“lucro”;
• um grande valor pode ser
considerado de valor nenhum
quando “um valor mais alto se
levanta”.
Filipenses 3.2-11 125

9.3.4 Progressão de ideias


Paulo inicia esse trecho com uma severa advertência contra os falsos mestres
(v.2). Em seguida, afirma, num tom polêmico, que os cristãos são o verdadeiro
Israel (a “circuncisão”, v.3). As características deste povo são, no sentido positivo,
adorar a Deus por meio do seu Espírito e gloriar-se em “Cristo Jesus”57; no sentido
negativo, envolve um “não confiar na carne” (v.3).
A referência ao “confiar na carne” se apresenta como oportunidade a que
Paulo, num tom autobiográfico, apresente tudo aquilo em que ele poderia
confiar.58 Lista quatro privilégios de nascença, sobre os quais não teve nenhuma
influência: circuncidado ao oitavo dia; da linhagem de Israel; da tribo de
Benjamim; hebreu de hebreus.59 A isso Paulo agrega três elementos ou feitos
que têm a ver com opções pessoais dele: ser fariseu, perseguir a Igreja, cumprir
a lei à risca.
No entanto, o conhecimento de Cristo levou-o a considerar tudo isso perda
e lixo, pois “em Cristo” (achado nele – v.9) Paulo tem a justiça que vem de
Deus, baseada na fé. Esse conhecer a Cristo é definido mais precisamente como
conhecer o poder da sua ressurreição. Envolve também um tomar parte nos
sofrimentos de Cristo, um tornar-se semelhante a Cristo na sua morte, para, de
algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos (vs.7-11).

9.3.5 Contexto teológico e intertextualidade


O texto é denso do ponto de vista do conteúdo teológico, o que torna
necessário fazer uma seleção de temas para um breve comentário.
No v.3, Paulo descreve os cristãos como aqueles que adoram Deus pelo
Espírito de Deus. Adorar é render culto, como explica a Tradução Brasileira.

|| 57 Convém relembrar que o nome “Cristo Jesus”, nesta ordem, é uma característica paulina, no NT.
|| 58 O texto pode ser descrito como tendo o seguinte movimento: eles (a oposição) – nós (os
cristãos) – eu (Paulo).
|| 59 Sob a nossa ótica, ser da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim e hebreu de hebreus, vem
antes do ato da circuncisão no oitavo dia. Afinal, no dia em que nasceu, Paulo já tinha essas
prerrogativas. Paulo, no entanto, coloca a circuncisão no início. Talvez porque fosse aquilo de
que um judeu mais se orgulhava (junto com a observância do sábado). Ou, então, porque era
isso que ele tinha em mente o tempo todo, especialmente quando fez referência ao “confiar na
carne” (v.4). Convém notar que a NTLH explicita que esse “confiar na carne” era exatamente
“pôr a confiança em cerimônias religiosas como a circuncisão” (tradução do final do v.4).
126 Filipenses 3.2-11

E, embora isso possa culminar no culto comunitário da igreja reunida, seria


injustificado restringir tal adoração ao que chamaríamos hoje de “ambiente
litúrgico”. Esta adoração a Deus envolve a vida em todas as suas dimensões.
Como Jesus já havia explicado em João 4.24, os verdadeiros adoradores
de Deus o adoram em Espírito e verdade. A verdadeira adoração é suscitada
pelo Espírito Santo. É, neste sentido, dom de Deus. Deus se antecipou a nós
em tudo e, mesmo quando damos a nossa resposta de adoração, é ele quem a
torna possível, pelo seu Espírito. Neste sentido, ele nos serve até quando nos
possibilita adorá-lo.
Outra descrição do cristão é que ele se gloria em Cristo.60 Há um gloriar-se
em si mesmo, nas próprias realizações, e nas outras pessoas. O cristão se gloria
no Senhor (1 Co 1.31), em Cristo, e não naquilo que é por natureza ou por
opção pessoal.61 Aliás, este texto de Filipenses 3 tem uma interessante relação de
intertextualidade com Gálatas 6.13-14. Ali Paulo observa, em tom crítico, que
aqueles que insistiam com os cristãos gálatas para que se deixassem circuncidar
queriam mesmo era “se gabar de terem colocado o sinal da circuncisão no
corpo” deles (Gl 6.13, NTLH). Ao que Paulo acrescenta: “Mas longe esteja de
mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo
está crucificado para mim, e eu, para o mundo” (Gl 6.14, ARA).
O v.9 de Filipenses 3 é como que a essência da teologia de Paulo. O apóstolo
abriu mão de tudo, “para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo justiça
própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que
procede de Deus, baseada na fé”. A discussão que este texto levanta tem sido
intensa entre os exegetas que se especializam nos escritos de Paulo. Pergunta-se
pela relação entre “estar em Cristo” e “ser justificado”. Tradicionalmente se vê a
justificação pela fé como o centro da teologia de Paulo. Desde o início do século
XX, porém, com Albert Schweitzer, se não já antes, argumenta-se que o cerne
da teologia da salvação em Paulo é o conceito do “estar em Cristo”. No texto de
Filipenses 3.9, Paulo junta as duas coisas, como que dando a entender que estar
em Cristo, ser encontrado nele, pela fé, é estar na relação correta com Deus; é
ser justo. Justo diante de Deus é aquele que está em Cristo. Em síntese, estar em

|| 60 Em Romanos 5.11, Paulo diz que “nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo”.
|| 61 Hoje, talvez, alguém queira se gloriar do fato de ter aceito Cristo. Seria possível descrever isso
como “gloriar-se em Cristo”?
Filipenses 3.2-11 127

Cristo e ser justo diante de Deus (e vice-versa) são descrições complementares,


e não antagônicas.
Outro assunto relacionado com Paulo, que foi amplamente discutido em
tempos recentes, é a postura do apóstolo em relação ao judaísmo. Afirma-se,
com razão, que a experiência de Paulo não foi exatamente a mesma pela qual,
séculos mais tarde, passaria Martinho Lutero. Em outras palavras, não se pode
ler a experiência de Paulo à luz da experiência de Lutero. Como se sabe, Lutero
passou por intensa luta até que as portas do paraíso se abriram, no momento em
que ele descobriu o evangelho. Nada o satisfazia, até que ele encontrou Cristo.
Com Paulo a história não foi bem assim. Em momento algum ele indica que
estava insatisfeito com o judaísmo. Ela afirma que seu pedigree e suas realizações
eram “ganho”. Ele não trocou “lixo” por Cristo. Ele trocou coisas muito valiosas
por um bem maior, Cristo, mais ou menos como aqueles homens das parábolas
do tesouro e da pérola (Mt 13.44-46), que venderam tudo para poderem ficar
com a preciosidade que haviam encontrado. E foi apenas diante da sublimidade
do conhecimento de Cristo, ou seja, olhando da perspectiva cristã, que Paulo
caracteriza as coisas do seu passado como sendo “lixo”.
Por fim, não há como não ver certo paralelo entre a trajetória de Cristo Jesus,
apresentada em Filipenses 2, e a experiência de Paulo, descrita em Filipenses 3.
Nos dois casos, parte-se de uma situação de privilégio, passa-se a uma perda,
e, no final, tem-se um “bem” de valor maior. Cristo é Deus, mas se humilha e
recebe o nome que está acima de todo o nome. Paulo é modelo de judeu, mas
considera tudo isso perda diante de um valor maior que irrompe em sua vida: o
conhecimento de Cristo e a “justiça que precede de Deus, baseada na fé” (v.9).

9.4 Aspectos práticos


Por mais informativa que seja esta seção da carta aos Filipenses, Paulo não
a escreveu para que tivéssemos mais dados sobre a sua vida, facilitando a vida
dos biógrafos do apóstolo dos gentios. Na verdade, esse trecho tem um lado
pragmático. Paulo quer alcançar algo com esse texto. Ou, melhor, parece que
ele quer que os cristãos de Filipos consigam atingir o objetivo de fazer frente
à eventual visita de outros missionários “cristãos”, pregadores da circuncisão.
Paulo se apresenta como modelo quanto a como responder ao apelo dos assim
128 Filipenses 3.2-11

chamados “judaizantes”. Os cristãos de Filipos poderiam responder: Examinem


o exemplo de Paulo e verão que a situação não é bem assim!
Este parecer se confirma diante da constatação, aparentemente banal, de que
os filipenses provavelmente teriam pouco conhecimento a respeito dos fariseus,
da tribo de Benjamim, da importância de ser circuncidado ao oitavo dia, entre
outras coisas que Paulo menciona. Há dois fatos que sugerem que os cristãos de
Filipos eram, em sua grande maioria, de origem gentílica: o relato de Atos, em
que se registra que, aparentemente, não havia sinagoga em Filipos; e o fato de
Paulo em momento algum citar um texto bíblico em sua carta. Aquele histórico
de “bom judeu” interessaria a quem? Certamente interessaria aos filipenses, mas
para que pudessem mostrar à “concorrência” e dizer: “Nosso modelo e padrão
de cristianismo é esse daqui: o próprio Paulo!”.
Com isso estou dizendo, também, que entendo que não havia missionários
judaizantes infiltrados na igreja de Filipos. Paulo não está fazendo correção de
rota; está tomando medidas profiláticas ou preventivas. Tão logo a oposição se
fizesse presente, o que não haveria de tardar, os filipenses estariam preparados
para o embate.

Exercícios de revisão
1. Ao escrever, “Acautelai-vos dos cães! Acautelai-vos dos maus obreiros!
Acautelai-vos da falsa circuncisão!” (Fp 3.2):
a) Paulo está sendo irônico no uso do termo “cães”, poético na repetição
do termo “acautelai-vos” e sarcástico no uso do termo “falsa
circuncisão” (= mutilação).
b) Paulo está sendo poético no uso do termo “cães”, sarcástico na
repetição do termo “acautelai-vos” e irônico no uso do termo “falsa
circuncisão” (= mutilação).
c) Paulo está sendo sarcástico no uso do termo “cães”, irônico na
repetição de “acautelai-vos” e poético no uso de “falsa circuncisão”
(= mutilação).
d) Paulo está sendo irônico e sarcástico no uso do termo “acautelai-vos”
e poético no uso do termo “cães”.
Filipenses 3.2-11 129

2. Ao dizer que os cristãos se gloriam em Cristo Jesus e não confiam na


carne (Fp 3.3), o texto bíblico está ensinando:
a) que os cristãos gostam de dizer “glória a Jesus” e evitam comer
carne.
b) que os cristãos sentem orgulho de Jesus e lutam contra os desejos da
carne pecaminosa.
c) que os cristãos se orgulham do que são pela fé em Jesus e não confiam
em qualidades ou realizações pessoais.
d) que os cristãos não buscam a glória deste mundo e não levam a sério
os desejos da carne, isto é, de sua natureza pecaminosa.

3. Ao listar aquilo que poderia citar a seu favor, se quisesse “confiar na


carne”, Paulo apresenta qualidades que tinha de nascença e coisas que
resultavam de opção pessoal. As coisas de opção pessoal são:
a) ser hebreu de hebreus, ser fariseu, ter sido perseguidor da Igreja.
b) ser da tribo de Benjamim, ser fariseu, ter sido perseguidor da
Igreja.
c) ter sido circuncidado ao oitavo dia, ser fariseu, ter sido perseguidor
da Igreja.
d) ter sido irrepreensível em termos da justiça que há na lei, ser fariseu,
ter sido perseguidor da Igreja.

4. Paulo apresenta dados de sua vida, não para que biógrafos tenham mais
sobre o que escrever, mas com uma intenção pragmática ou retórica.
Pode-se dizer que, à luz daquele “acautelai-vos da falsa circuncisão” (Fp
3.2), a intenção principal de Paulo é:
a) ensinar aos filipenses como fazer frente à ameaça daqueles
que se apresentavam nas igrejas para insistir na necessidade da
circuncisão.
b) estimular os filipenses a também darem testemunho de quem eles
eram e de como Jesus havia mudado a vida deles.
130 Filipenses 3.2-11

c) encorajar os filipenses a finalmente começarem a expulsar os


judaizantes que se haviam instalado na igreja.
d) ensinar aos filipenses como citar corretamente aquilo que se é e que
se tem feito em termos religiosos ou espirituais.

Respostas:
1. a 2. c 3. d 4. a
10

Filipenses 4.10-20
Vilson Scholz

Introdução
Este trecho de Filipenses 4.10-20 não é, com certeza, dos mais conhecidos,
exceção feita a duas afirmações que são bastante citadas: “aprendi a viver contente
em toda e qualquer situação” (v.11) e “tudo posso naquele que me fortalece”
(v.13). Como exegese é, basicamente, dar atenção ao texto dentro do seu contexto,
vale a pena estudar a seção inteira em que aparecem essas afirmações tão
conhecidas e, muitas vezes, mal citadas, para que se tenha melhor compreensão
não apenas delas, mas também do todo. Quem sabe confirmaremos a impressão
de que é um dos importantes textos bíblicos que ensinam a correta atitude cristã
diante das realidades e dos bens deste mundo.

10.1 O texto
Como de costume, antes de dar atenção aos detalhes – e para lembrar que
um texto é sempre mais do que um simples conjunto de palavras – convém ler
o texto na íntegra. Segundo a tradução de Almeida Revista e Atualizada, Paulo
se dirige aos filipenses nos seguintes termos:
132 Filipenses 4.10-20

Alegrei-me, sobremaneira, no Senhor porque, agora, uma vez mais,


renovastes a meu favor o vosso cuidado; o qual também já tínheis
antes, mas vos faltava oportunidade. 11 Digo isto, não por causa
da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e qualquer
situação. 12 Tanto sei estar humilhado como também ser honrado;
de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto
de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; 13
tudo posso naquele que me fortalece.
14
Todavia, fizestes bem, associando-vos na minha tribulação. 15 E
sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando
parti da Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante
a dar e receber, senão unicamente vós outros; 16 porque até para
Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas, o bastante
para as minhas necessidades. 17 Não que eu procure o donativo,
mas o que realmente me interessa é o fruto que aumente o vosso
crédito. 18 Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde
que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte
como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. 19
E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em
Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades. 20 Ora, a nosso Deus
e Pai seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém!

10.2 Aspectos textuais

10.2.1 Delimitação do texto


As edições do texto grego, bem como as traduções, de modo geral, apresentam
o texto em dois parágrafos. Não existe, porém, unanimidade quanto ao final de
um e o início de outro. A maioria das traduções, incluindo a Almeida Revista e
Atualizada (como pode ser notado, acima) e a Nova Tradução na Linguagem de
Hoje, prefere iniciar o segundo parágrafo no v.14. A edição Nestle-Aland faz o
mesmo. Em O Novo Testamento Grego, optou-se por iniciar o segundo parágrafo
no v.15. Adotamos esta segmentação, por entendermos que o v.14 conclui o
assunto iniciado no v.10, mas que Paulo havia interrompido com uma reflexão
sobre as suas circunstâncias (vs.11-13). Portanto, dividimos o texto nos seguintes
Filipenses 4.10-20 133

parágrafos: 4.10-14 e 4.15-20. O primeiro parágrafo poderia ser intitulado “Penúria


e contentamento”; o segundo, “Uma teologia das posses e das ofertas”.
Quanto ao início da seção, há um nítido corte entre os versículos 9 e 10 do
capítulo 4 de Filipenses. O versículo 9 termina com “e o Deus da paz estará
convosco”; e o versículo 10 começa com “Alegrei-me, sobremodo, no Senhor”.
Passa-se de um voto de bênção sobre a igreja a uma expressão de alegria pessoal.
O contraste é tão nítido que muitos exegetas entendem que Fp 4.10-20 é uma
comunicação independente do resto da carta.62
Quanto ao final da seção, a última palavra é “amém” (4.20). E que mais
se poderia dizer depois que se disse “amém”? A rigor, nada. Por isso, Paulo
simplesmente acrescenta saudações finais (4.21-23).
Quanto ao título, Almeida diz “A gratidão de Paulo para com os filipenses”.
A Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) traz “Agradecimento de Paulo”.
Embora ninguém tenha dúvidas de que Paulo está agradecendo a ajuda recebida
dos filipenses, também é fato que em momento algum ele diz, literalmente,
“muito obrigado”. O mais próximo que ele chega disso é aquele “fizestes bem”
do v.14.63

10.2.2 Vocabulário
Num exame por alto, até mesmo uma tradução clássica como Almeida não
oferece maiores dificuldades, em se tratando de vocábulos individuais. Como
o exame do texto será retomado, em parte, mais adiante, na comparação entre
traduções, podemos nos limitar, neste tópico, a listar e comentar alguns dos
termos raros.
Já vimos que a carta aos Filipenses traz um grande número de palavras raras,
mais especificamente um grande número de termos que são hápax, isto é, que
ocorrem uma única vez. As razões para tal incidência podem ser várias, como,
por exemplo, em alguns textos, a presença de um grande número de citações

|| 62 Há até quem escreva comentários sobre “as cartas de Paulo aos filipenses”. Entretanto, Filipenses
foi canonizada como uma única carta e, do ponto de vista da retórica, ela forma um todo
coerente.
|| 63 Este é um exemplo de inferência a partir do que está implícito no contexto comunicacional.
134 Filipenses 4.10-20

do Antigo Testamento.64 Não é o caso aqui, em Filipenses, pois nesta carta o


Antigo Testamento não é citado uma única vez. No caso do texto que estamos
estudando, o uso de termos raros ajuda a lembrar que se trata de um texto bem
peculiar em todo o Novo Testamento. Alguns temas têm paralelo em outros
lugares, mas o texto como tal é único.
O primeiro hápax da lista é um advérbio do versículo 10, traduzido por
“sobremaneira” em ARA e por “muito” na NTLH. Trata-se do termo grego
megálos, um advérbio formado a partir de mégas, megále, méga, que, em grego
(assim como em português), significa “grande”. “Alegrei-me grandemente”, diz
Paulo. Ou, poderíamos dizer, “foi, para mim, motivo de intensa alegria”.
No mesmo versículo 10 aparecem mais dois termos que são hápax, a saber,
anethálete e ekairêisthe. O primeiro, anethálete, era usado, em sentido literal,
em referência a plantas que reverdeciam ou voltavam a florescer. Aqui, o uso é
metafórico, e por isso se traduz por “renovar (o cuidado)” ou “mostrar de novo
(o cuidado)”. Não implica que a “planta” havia morrido; o que faltava era o
reverdecer. Como Paulo explica, o que faltava aos filipenses era a oportunidade
de ajudar. Naquele tempo, qualquer tipo de ajuda tinha de ser levada em mãos,
por particulares (não havia, por exemplo, um sistema público de correios, muito
menos um sistema bancário). Não havendo um portador ou mensageiro, como
Epafrodito, por exemplo, a ajuda não podia ser entregue. O outro termo hápax é
ekaireisthe, uma forma verbal de akairéomai. O leitor nota a presença do radical
kair- (relacionado com kairós, ocasião, oportunidade, tempo), que é antecedido
pelo assim chamado “alfa privativo” (um “a” que equivale a um “não”, como, por
exemplo, em “atemporal”). É muito difícil traduzir esse verbo por uma só palavra
em português, sendo necessário recorrer à formulação “não ter a oportunidade
de (fazer algo)”.
Um pouco adiante, no v.11, Paulo usa o termo autárkes,65 que é traduzido por
“contente” (ARA) e “satisfeito” (NTLH). Ele diz estar contente nas circunstâncias
em que se encontra. Esse ideal da autossuficiência era tido em alta conta no
mundo greco-romano, especialmente entre os filósofos estoicos. Mais adiante,
no v.13, Paulo deixa claro que, no caso dele, não se trata de autossuficiência,

|| 64 Isso se verifica, por exemplo, em Romanos 3.9-18.


|| 65 Do mesmo radical nos vem a palavra portuguesa “autarquia”.
Filipenses 4.10-20 135

mas de uma suficiência que vem de Deus. Para quem lê a carta fica a lição:
contentamento não depende da abundância de bens.
No versículo 12, Paulo afirma: “em tudo e em todas as coisas sou iniciado”.
Aqui, faz uso de um termo que, segundo os dicionários do grego do Novo
Testamento, era, em outros contextos, um termo técnico do âmbito da
religião, que designava o processo de iniciação nas assim chamadas “religiões
de mistério”.66 O dicionário semântico de Louw-Nida fornece a seguinte
descrição desse significado: “aprender o segredo de algo através de vivência
pessoal ou em decorrência de um processo de iniciação”.67 Um equivalente
de tradução adequado é “aprender um segredo” (NTLH). “Ter experiência”
(ARA) também reproduz o significado. Paulo está dizendo que ele é um
“iniciado” ou alguém que, por experiência, conhece os segredos tanto da
fartura quanto da carência. Em outras palavras, ele conhece os vários aspectos
da vida; nada o surpreende. Tudo isso ele pode enfrentar “com a força que
Cristo ... dá” (v.13, NTLH).

10.2.3 Exame de traduções


Não raras vezes, quando pessoas fazem comparação entre traduções e se
deparam com diferenças entre elas, concluem que uma delas está correta (aquela
com a qual estão mais familiarizados) e que a outra, necessariamente, está errada.
Nem sempre este é o caso. Há momentos – e não são raros – em que o texto grego
permite duas ou mais traduções, todas elas válidas ou justificáveis. Queremos
fazer um exercício de comparação entre ARA (Almeida Revista e Atualizada) e
NTLH (Nova Tradução na Linguagem de Hoje), a partir do original grego, em
pontos onde se notam aparentes divergências entre elas.
No versículo 12, segundo ARA, Paulo diz que aprendeu a viver contente
“em toda e qualquer situação”. Segundo a NTLH, Paulo diz que aprendeu a estar
satisfeito “com o que tem”. Como explicar a diferença? Acontece que, no grego,
aparece unicamente a locução “nas quais estou” ou “nas coisas em que estou”.
Isso pode ser interpretado como “nas circunstâncias em que me encontro” ou, à

|| 66 Iniciação é a admissão de uma pessoa no culto de uma divindade ou, então, como membro de
uma seita ou sociedade secreta.
|| 67 Louw-Nida, 27.14.
136 Filipenses 4.10-20

luz do contexto, “sejam quais forem as circunstâncias em que eu me encontrar”.


Esta é a opção de ARA: “em toda e qualquer situação”. No entanto, à luz do que
segue (Paulo fala sobre “ter pouco” e “ter muito” e que não vê diferença entre
uma coisa e outra), a locução grega pode, também, ser interpretada como estar
satisfeito “com o que tem” (seja pouco, seja muito). Pensando bem, o significado
é essencialmente o mesmo.
Um pouco adiante, Paulo diz, segundo ARA, que tanto sabe “estar humilhado
como também ser honrado” (v.12). Segundo a NTLH, Paulo diz que sabe o que
é “estar necessitado” e sabe “também o que é ter mais do que é preciso”. Estar
humilhado (ARA) e estar necessitado (NTLH) são mais ou menos a mesma
coisa. Agora, parece haver uma grande diferença entre “ser honrado” e “ter
mais do que é preciso”. Como explicar? Olhando no grego, percebe-se que ali
diz, literalmente, “sei também ser humilhado, sei também ter abundância”. Estas
são duas coisas que parecem fazer parte de contextos diferentes, mas Paulo faz
uma comparação (em forma de contraste) entre elas. Assim, as duas traduções
que estamos examinando adaptam a tradução de um dos termos à tradução
do outro. ARA tomou como ponto de partida o “ser humilhado”. Qual seria
o oposto? Paulo diz “ter abundância”, mas o mais natural, num contraste com
“ser humilhado”, é “ser honrado”.68 A rigor, quem tem abundância ou é rico
normalmente é honrado. A NTLH faz o contrário: toma como ponto de partida
o segundo verbo, “ter em abundância”. A isso Paulo contrasta “estar humilhado”.
Agora, o que seria “estar humilhado” em contraste com “ter abundância”? É o
contrário de ter abundância, ou seja, é “estar necessitado”. E, em geral, passar
necessidades é uma humilhação para um ser humano, tanto assim que o
significado é essencialmente o mesmo.
O leitor talvez estranhe, ao chegar ao famoso versículo 13, que, onde ARA
diz, “tudo posso naquele que me fortalece”, a NTLH diz, “com a força que Cristo
me dá, posso enfrentar qualquer situação”. Literalmente, o texto grego diz:
“todas as coisas posso no que fortalece a mim”. Claro, existe, aqui, uma variante

|| 68 O interessante é que, ao final do v.12, Paulo repete o verbo “ter abundância” ou “ter mais do
que o necessário” (perisséuein). Neste caso, ARA traduz por “(ter experiência) de abundância”.
Acontece que ali o par contrastante é “passar necessidade”, e não “ser humilhado”. Quem,
porém, faz um estudo de palavras a partir da tradução, não percebe que se trata do mesmo
verbo traduzido anteriormente por “ser honrado”. Tanto mais se faz necessário estudar o texto
original!
Filipenses 4.10-20 137

textual, registrada no assim chamado “texto recebido”.69 Essa variante explicita


quem é o que fortalece: “...naquele que me fortalece, Cristo”.70 Só que, neste
caso, a NTLH não segue o “texto recebido”, mas explicita o que se depreende
do contexto.71 Poderia ser, também, “com a força que Deus me dá”. No entanto,
Paulo provavelmente diria “Cristo”.
E que dizer da diferença entre “tudo posso” e “posso enfrentar qualquer
situação”? Embora “tudo” seja mais literal, presta-se a equívocos, especialmente
quando o texto de Filipenses 4.13 é tirado do contexto. Alguém pode pensar
que Paulo se apresenta como “super-homem”. Na realidade, porém, aquele
“tudo” se refere ao que ele menciona no contexto da comunicação, a saber,
viver com fartura e viver com escassez. Para deixar isso bem claro, a NTLH,
corretamente, traduz por “posso enfrentar qualquer situação” (daquelas descritas
no contexto).
No versículo 14, Paulo “cumprimenta” os filipenses, dizendo que fizeram bem
em associar-se com ele na tribulação. No versículo 15, explica que os filipenses
foram a única igreja que associou-se com ele. Nestes dois casos, aparece um
verbo da mesma família do termo koinonía (“comunhão, participação”). A
NTLH preferiu traduzir por ajudar (“vocês fizeram bem em me ajudar”). Neste
caso, ARA é mais feliz, ao preservar a noção de “parceria”. No entanto, não foi
consistente na tradução de Filipenses 1.5, onde aparece o termo koinonía, que
foi traduzido por “cooperação”.72 Por sua vez, a NTLH traduz por “ajudar”, um
termo menos expressivo do que “associar-se com”, mas ela emprega esse termo
de forma consistente, permitindo, inclusive, que se perceba o vínculo verbal e
temático com Filipenses 1.5, onde diz “vocês me ajudaram”.

|| 69 Lembrando que “texto recebido” é o nome dado ao texto grego usado desde o tempo de Erasmo
(que editou o texto da primeira impressão, em 1516) até o século XX. O “texto recebido” faz
parte do “texto bizantino” e do “texto majoritário”, com a diferença de que se baseia num
número bem reduzido de manuscritos, os poucos a que Erasmo teve acesso, em seu tempo.
|| 70 Este acréscimo não faz parte da Almeida Revista e Corrigida, embora esteja no “texto recebido”.
A tradução de Lutero (1545) e a King James Version (1611) trazem esta explicitação do nome
de Cristo.
|| 71 Este exemplo mostra que muitas das variantes textuais são explicitações do que está implícito
no contexto. Os copistas já faziam, no seu tempo, o que traduções modernas também tendem
a fazer, para o benefício dos leitores e ouvintes.
|| 72 Também neste caso o leitor da tradução de Almeida não percebe o vínculo verbal que existe
entre Filipenses 4.14-15 e Filipenses 1.5.
138 Filipenses 4.10-20

No versículo 16, Paulo confirma para os filipenses que, quando ele estava
em Tessalônica, eles enviaram ajuda. A questão é: quantas vezes? ARA diz
“não somente uma vez, mas duas”, ao passo que NTLH traz “mais de uma
vez”. Segundo ARA, foram duas vezes; segundo NTLH, foram duas ou mais.
Quem está com a razão? Como explicar a diferença?
No grego aparece kai hápax kai dís (“e uma vez e duas vezes”). ARA traduz
isso ao pé da letra, palavra por palavra. NTLH, por sua vez, seguindo um
novo consenso exegético, entende que se trata de uma expressão idiomática,
significando “mais de uma vez”.73 O dicionário semântico de Louw e Nida
reconhece que se trata de expressão idiomática e registra o seguinte significado:
“um número indefinido baixo, embora mais do que uma vez”, sugerindo que
seja traduzida por “mais de uma vez, várias vezes”.
Por fim, no versículo 18, Paulo, segundo ARA, afirma “recebi tudo” e,
segundo a NTLH, escreve “aqui está o meu recibo de tudo o que vocês me
enviaram”. O significado não é radicalmente diferente, mas alguém poderia
perguntar sobre a origem do “recibo”, na NTLH. Será que Paulo está fazendo
contabilidade? Sim, ele está prestando contas à igreja que o apoia. Já no
versículo 17 ele faz uso de termos do mundo das finanças. ARA usa o termo
“crédito”, onde NTLH tem “conta”. E onde ARA diz “fruto”, o significado,
em termos econômicos, é “juros” (NTLH diz “lucros”), especialmente em
conexão com o verbo “aumentar”.74 Portanto, ao dizer “recebi”, Paulo está,
a rigor, escrevendo o recibo, o documento que comprova que ele recebeu
o dinheiro.

|| 73 Este “consenso exegético” existe desde, pelo menos, 1956, quando, num artigo publicado na
revista Novum Testamentum, o renomado exegeta conservador Leon Morris mostrou que se tratava
de expressão idiomática. Já em Platão, quatro séculos antes do Novo Testamento, aparece uma
expressão análoga: kai dis kai tris (literalmente, “e duas vezes e três vezes”). É claro que esse
avanço da exegese não poderia ter entrado na Almeida Revista e Atualizada, uma revisão que
foi finalizada justamente em 1956.
|| 74 Quando uma conta aumenta, dizemos que se trata de “juros”.
Filipenses 4.10-20 139

10.3 Aspectos teológicos


Sob aspectos teológicos, podem-se incluir considerações sobre o contexto
literário, o contexto comunicacional, a progressão de ideias, e o aprofundamento
de um ou outro tema teológico.

10.3.1 Contexto literário ou cotexto


Este tema já foi abordado, em parte, sob “segmentação do discurso”. Cumpre
acrescentar que esse assunto do agradecimento parece vir muito tarde, na carta.
No entanto, é também um assunto sensível, relacionado com finanças. Mas ele
já havia preparado o terreno, por via de alusões em 1.4-5 e 2.17,30.

10.3.2 Contexto comunicacional


Também aqui queremos fazer uma tentativa de colocar por extenso o que
fazia parte do contexto comunicacional compartilhado por Paulo e pelos
cristãos de Filipos. É uma série de informações e detalhes que ficam implícitos
na comunicação entre eles. Nossa tentativa de reconstrução é feita a partir do
que o texto diz. Da combinação do que está expresso no texto com o que está
implícito no contexto comunicacional resulta a totalidade do que Paulo está
comunicando. Para efeitos de exercício, nos limitamos ao trecho que vai do
versículo 14 ao 16.
140 Filipenses 4.10-20

Contexto
Texto – Fp 4.14-16 Ideias transmitidas
comunicacional
14
Todavia, fizestes Paulo se encontrava numa • Paulo se encontra numa
bem, associando-vos situação difícil, na prisão, situação descrita como
na minha tribulação. e agradece aos cristãos “tribulação” ou aflições.
15
E sabeis também que moravam na cidade (Ele se encontra preso.)
vós, ó filipenses, de Filipos o fato de terem • Quem ajuda pessoas que se
que, no início do se associado com ele encontram em dificuldades
evangelho, quando naquele momento difícil, faz bem.
parti da Macedônia, com ajuda financeira, o • Os filipenses eram os
nenhuma igreja se que é algo muito bom. moradores da cidade de
associou comigo Na verdade, tinham feito Filipos, na província romana
no tocante a dar isso desde o início da da Macedônia.
e receber, senão evangelização, logo que • Paulo diz que os filipenses
unicamente vós Paulo saiu da província fizeram bem ao enviarem
outros; 16 porque romana da Macedônia, ajuda, o que equivale mais
até para Tessalônica onde ficava Filipos. Eles ou menos a dizer “muito
mandastes não como que “abriram uma obrigado”.
somente uma vez, conta conjunta” com ele, • Filipos ficava na província
mas duas, o bastante e, infelizmente, foram da Macedônia.
para as minhas a única igreja a fazer • Paulo esteve na Macedônia
necessidades. isso. Mais de uma vez, e partiu de lá.
por exemplo, mandaram • Os filipenses como que
ajuda (financeira) para abriram uma “conta
o apóstolo quando ele conjunta” de perdas e
estava na cidade de ganhos.
Tessalônica, que ficava • Paulo esperava que mais
nas imediações (uns igrejas fizessem isso, mas
150km para o oeste). os filipenses foram os
únicos.
• Parece bom saber que a
gente faz alguma coisa que
ninguém mais fez.
• Tessalônica era uma cidade
nas imediações de Filipos,
tanto assim que era possível
mandar ajuda em várias
oportunidades. (Ficava uns
150km para o oeste, ao
longo da Via Egnatia.)
Filipenses 4.10-20 141

10.3.3 Progressão de ideias


Para efeito de brevidade, vamos dar destaque apenas à linha de pensamento
no primeiro parágrafo (Fp 4.10-14). Inicialmente, convém listar as várias
afirmações que são feitas:
1. Fiquei muito contente.
2. Vocês voltaram a pensar em mim (para me ajudar).
3. Na verdade, nunca deixaram de se preocupar comigo; o que faltava era
oportunidade.
4. Não tenho necessidade de nada.
5. Aprendi a estar satisfeito nas minhas circunstâncias, tanto quando estou
humilhado como também quando tenho abundância.
6. Sou um “iniciado” em tudo e em todas as coisas, tanto no estar satisfeito
quanto no passar fome, no ter de sobra e no passar necessidade.
7. Tudo posso naquele que me fortalece.
8. Fizeram bem em se associar comigo nesta hora difícil.

A relação entre essas várias afirmações pode ser descrita assim: Paulo inicia
dizendo que ficou muito contente (frase 1) e logo explica a razão disso: os
filipenses se lembraram dele outra vez (frase 2).
Pressentindo, talvez, que poderia ser mal entendido (“até que enfim, não é
mesmo, seus filipenses?”), Paulo trata de se explicar: nunca se esqueceram de
mim; faltava oportunidade (frase 3).
Pressentindo também, quem sabe, que os filipenses concluiriam que gostava
muito de receber donativos (um “pastor dinheirista”, como se diria hoje), Paulo
trata de explicar ou atenuar a sua explosão de alegria inicial:75 Na verdade, não
preciso de nada (frase 4). A isto ele acrescenta três razões. Uma que soaria bem

|| 75 Percebe-se uma estrutura de certa forma quiástica: estou muito alegre (a), porque voltaram
a me ajudar (b), mas, explicando melhor, nunca deixaram de fazê-lo (b’), e, para não
entenderem de forma errada a minha alegria inicial, digo que, na verdade, não tenho
necessidade de nada (a’).
142 Filipenses 4.10-20

a quem conhecia o ideal dos filósofos: eu me basto a mim mesmo (frase 5).
Outra que soaria bem aos ouvidos dos que tinham algum contato com “religiões
de mistério”: sou um iniciado nas situações extremas da vida (frase 6). E uma
terceira razão, bem mais teológica: posso enfrentar todas essas situações com a
força que vem de Cristo (frase 7).
Por fim, depois de tantas explicações, Paulo como que pressente que os
filipenses poderiam ficar ofendidos (“esse mal agradecido!”) e, por isso, arremata:
“No entanto, fizeram bem em me ajudar” (frase 8). Ou seja, Paulo termina o
parágrafo, após um longo parêntese (vs.11-13), reiterando o que havia dito no
início: Fiquei feliz com o que vocês fizeram (v.14).
No segundo parágrafo, ele como que continua esse “pingue-pongue”: vocês
são especiais nessa questão de enviar ajuda (vs.15-16). No entanto, não me
entendam mal: não quero o dom, mas o aumento em vossa conta (v.17). Aí,
aproveita para “fazer o recibo” (v.18). E, como não pode deixar de ser teólogo,
coloca isso tudo numa dimensão teológica (vs.18b-19) e doxológica (v.20).

10.3.4 Contexto teológico e intertextualidade


Paulo foi apóstolo, pastor e teólogo. Como apóstolo e embaixador de Cristo,
foi missionário itinerante. Por ser apóstolo, estava na prisão no momento em que
escreveu (ou ditou) a carta aos Filipenses. Poderia, quem sabe, diríamos hoje,
ter ficado em sua “zona de conforto” em Filipos ou outro lugar, mas seu desejo
era anunciar o Evangelho nos lugares onde ainda não se havia falado de Cristo
(Rm 15.20). Paulo foi também pastor, e seu coração pastoral transparece nesta
carta aos Filipenses. Mas Paulo nunca deixou de ser teólogo, embora ele talvez
não conhecesse esse termo ou hesitaria em se descrever assim. Na qualidade de
teólogo, como são profundas as coisas que ele diz! Essencialmente, porém, ele
se via como um apóstolo e missionário.
Na carta aos Filipenses, temos um missionário agradecendo a ajuda recebida
da igreja que o apoiava em sua missão.76 Ao agradecer, Paulo compartilha sua
atitude diante das diferentes situações em que se encontra, mostrando que “a

|| 76 A carta aos Romanos é diferente: lá temos um missionário pedindo ajuda a uma igreja para a
continuação de sua missão.
Filipenses 4.10-20 143

verdadeira vida de uma pessoa não depende das coisas que ela tem, mesmo que
sejam muitas” (Lc 12.15, NTLH). Paulo dá uma bela lição de contentamento
(que é repetida em 1 Tm 6.6) baseado na força que vem de Cristo.
Como verdadeiro pastor, Paulo se preocupa menos com o seu bem-estar e
mais com o progresso espiritual de sua igreja. Ele afirma no v.17: “Não é que eu
só pense em receber ajuda. Pelo contrário, quero ver mais lucros acrescentados à
conta de vocês” (NTLH). Diríamos hoje que o mais importante não é o montante
da oferta, mas o que ela representa em termos de expressão de fé e crescimento
espiritual. Quanto dinheiro foi recolhido é algo fácil de verificar; mais difícil é
avaliar o que isso representa em termos de crescimento espiritual.
Além de ser um exemplo pessoal, Paulo interpreta teologicamente o gesto dos
cristãos de Filipos. Em sua interpretação, Paulo faz uso de linguagem sacrificial,
que não é muito comum no Novo Testamento (afora o livro de Hebreus).
Afirma que a ajuda recebida é “como aroma suave, como sacrifício aceitável e
aprazível a Deus” (v.18, ARA). A expressão “aroma suave”, traduzida, na NTLH,
por “um perfume suave oferecido a Deus”, aparece, em sua forma grega (osmén
euodías), com muita frequência em contextos sacrificiais do Antigo Testamento,
particularmente nos livros de Levítico e Números (Lv 1.9, por exemplo). É
uma forma antropomórfica de falar de Deus, que sente o cheiro agradável do
holocausto ou da oferta queimada por inteiro. Paulo dá uma interpretação
sacrificial ao gesto dos filipenses. Acrescenta que o sacrifício é aceitável e
aprazível, ou seja, um sacrifício que Deus aceita e que lhe agrada.
Nunca é demais enfatizar que Paulo não espiritualiza a ajuda. Ele não faz
de conta que não recebeu dinheiro. A ajuda foi enviada para ele. Ele acusa o
recebimento, escreve o recibo, e “agradece”. Esta é a oferta em sua dimensão
horizontal. Mas Paulo não vê a oferta dos filipenses apenas como um gesto
humanitário. Como teólogo, enxerga a ação deles do ponto de vista do teólogo.
Assim, a ajuda que ele recebe é vista como um sacrifício a Deus. A oferta tem
também uma dimensão vertical. Apoiar a missão de Deus nunca é um simples
“dar dinheiro”, embora seja isso também; é, antes e acima de tudo, um sacrifício
que Deus aceita e que lhe agrada.
Ao concluir, antes da doxologia (v.20), Paulo faz um voto, que é também uma
mensagem: “E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em
144 Filipenses 4.10-20

Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades” (ARA). Paulo está dizendo: Não
lhes faltará o necessário para continuarem no mesmo caminho de ajuda!

10.4 Aspectos práticos


Sob o ponto de vista da retórica, o texto de Filipenses 4 parece mais
demonstrativo ou epidíctico do que deliberativo. Em outras palavras, Paulo
parece celebrar valores comuns (“estamos juntos nessa empreitada”), elogiando o
gesto dos filipenses. Paulo mexe também com as emoções dos filipenses (páthos),
ao revelar que eles são a única igreja que se associou com ele numa espécie de
“conta conjunta para o que der e vier”.
Porém, esse trecho tem também uma dimensão deliberativa. Esse gênero
retórico se vale de exemplos e, neste caso, o exemplo é Paulo. É verdade que Paulo
passa mais tempo falando sobre as suas circunstâncias e sobre a sua atitude em
relação à vida do que dando conselhos ou fazendo apelos diretos aos filipenses.
Mas, na medida em que descreve a sua atitude, ele se apresenta como exemplo.
Os filipenses (e nós com eles) podem (e, talvez, queiram) aprender com ele.
E, ao final, quando diz que Deus suprirá todas as necessidades deles, Paulo
indiretamente sugere aos filipenses que continuem no rumo certo em que já se
encontram, o que é, também, retórica deliberativa.
Ouvindo o texto em termos de Lei e Evangelho, a impressão que se tem é
que transparece mais uma dimensão de Lei. Exemplos esperam seguidores, e
isso sempre funciona como Lei. Exemplos sublimes nos desafiam, mas também
nos acusam. O exemplo dos filipenses, tão elogiado por Paulo, é a experiência
de todas as igrejas ou congregações cristãs? E que dizer da atitude de Paulo? Por
mais que saibamos de cor aquele “tudo posso naquele que me fortalece”, quem
pode dizer isso de coração e sem soar artificial? Ou seja, se não passamos por algo
semelhante, se não experimentamos os extremos de pobreza e fartura, podemos
de fato dizer isso? Claro, podemos fazer uma nova contextualização dessas
palavras, fazendo a mesma confissão a partir de nossas experiências pessoais.
E mesmo que essas palavras sejam usadas como se fossem uma promessa da
parte de Deus (o que é evangelho), elas são, a rigor, uma confissão que resulta
de uma experiência de vida.
Filipenses 4.10-20 145

Em termos de evangelho, o texto nos assegura que Deus supre as nossas


necessidades (v.19). Ele não nos dá tudo que desejamos, mas tudo de que
precisamos. O que não é pouco, em termos de boa notícia. Tudo isso nos inspira
a refletir, agir e louvar, dizendo: “Ao Deus e Pai seja dada glória para todo o
sempre! Amém!”.

Exercícios de revisão
1. O texto de Filipenses 4.10-20 pode ser descrito como um agradecimento
de Paulo. Isso significa:
a) que Paulo agradece a Deus pelas bênçãos recebidas ao longo da
vida.
b) que Paulo agradece aos filipenses o fato de haverem permitido que
Epafrodito ficasse perto dele, na prisão.
c) que Paulo usa diretamente a expressão “muito obrigado”, para
agradecer pelas orações dos cristãos de Filipos.
d) que Paulo agradece a ajuda financeira recebida daquela igreja que o
apoiava em sua missão.

2. Nesse trecho de Filipenses 4.10-20 aparece um grande número de hápax


legómena. Esta expressão:
a) vem da língua grega e se refere a palavras que ocorrem uma única
vez, confirmando a singularidade do texto de Filipenses.
b) vem da língua latina e se refere unicamente a citações bíblicas do
Antigo Testamento, muito frequentes em Filipenses.
c) vem da língua latina e se refere a termos técnicos tirados do mundo
contábil (recibos, livro-caixa, conta bancária), utilizados por Paulo
nessa carta.
d) vem da língua grega e se refere a palavras que têm um único
significado, ou seja, que não são polissêmicas.
146 Filipenses 4.10-20

3. Ao dizer “tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.13):


a) Paulo diz que pode realizar qualquer projeto, por mais arriscado e
difícil que seja.
b) Paulo afirma que pode enfrentar as doenças (seu “espinho na carne”),
especialmente com o fortalecimento vindo do médico amado,
Lucas.
c) Paulo afirma que, com a ajuda de Cristo, sabe viver tanto em situações
de fartura como em situações de escassez e penúria.
d) Paulo afirma que conseguirá completar seu ministério apostólico,
especialmente o projeto de evangelizar a Espanha.

4. Em termos retóricos, Filipenses 4.10-20 tem uma dimensão epidíctica


e uma dimensão deliberativa. Pode-se dizer que:
a) a dimensão deliberativa aparece no fato de Paulo se defender de
suspeitas levantadas pelos filipenses quanto ao destino da oferta que
havia sido enviada ao apóstolo.
b) a dimensão epidíctica aparece no fato de Paulo se apresentar como
modelo a ser imitado, especialmente no aspecto de ser agradecido.
c) a dimensão deliberativa aparece no fato de Paulo elogiar os filipenses,
ao mesmo tempo em que celebra e agradece a parceria deles na
evangelização.
d) a dimensão deliberativa aparece no fato de Paulo falar de si mesmo,
apresentando-se, indiretamente, como exemplo a ser imitado.

Respostas:
1. d 2. a 3. c 4. d

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