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1-Introdução:
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Oyewumi e Obioma Nnaemeka, que argumentam, dentre outras coisas, que a
marginalização do sujeito feminino no continente africano é uma invenção do ocidente.
Sem investir, por razões obvias de tempo e espaço exíguos nesta comunicação, no
debate acirrado proposto pelas referidas autoras, passaremos por uma breve descrição
das demandas do feminismo africano na seção seguinte. Em sequência, faremos uma
exposição da vida e obra da escritora a fim de seguirmos com a análise propriamente
dita.
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africana e seus problemas, não parece estar em consonância com as demandas das
mulheres das zonas rurais. Nos estudos africanos, ela afirma, “ a criação, constituição e
produção de conhecimento tem permanecido privilégio do Ocidente” (OYEWUMI,
1997, p. x). De fato, Olabise Aina, (qtd in NNAEMEKA, 1998, p. 82) ainda sobre tal
conflito de perspectivas, admite que as experiências de vida das mulheres africanas da
elite acadêmica está em dissonância com àquelas das mulheres chamadas ‘grassroots
women’, muito mais preocupadas com condições básicas de subsistência do que com
causas sociopolíticas. .A maior parte das mulheres do continente vivem nas zonas
rurais, e não lhes sobram muitas alternativas além de casar e procriar (NWAPA, qtd in
NNAEMEKA, p. 95). Ogundipe-Leslie (qtd in NNAEMEKA, p. 80) observa que há
uma enorme dificuldade em unir os interesses das mulheres africanas, principalmente
pela enorme diversidade do continente em termos políticos, culturais e econômicos. A
autora defende que, devido ao fato de uma grande maioria viver dentro de sistemas de
poligamia, religião islâmica e tradições étnicas muito arraigadas, é um enorme desafio
para os movimentos militantes conscientizar as mulheres africanas de seus dilemas.
Adiciona ainda que há necessidade de um ativismo capaz de aliar teoria e prática.
Segundo a autora, as mulheres africanas tendem a ignorar a opressão emocional e
biológica a que tem que submeter, e insistem no direito à democracia, ao trabalho e a
terem seus filhos reconhecidos e amparados financeiramente pelos pais, que ainda
detém todo o poder de custódia dos filhos em caso de separação. Os programas
implementados pelos órgãos de fomento e desenvolvimento destinados às mulheres
africanas não se centram em uma política capaz de auxiliá-las a atingir um certo grau de
autonomia econômica, nem na valorização dos potenciais de cada uma. Muitos das
agências internacionais são geridas por homens, sem articulação com as verdadeiras
necessidades das mulheres locais, o que gera poucas mudanças na ordem patriarcal
existente.
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africana, daí nossa decisão de nos apoiar na crítica literária também localizada fora do
ocidente. Compartilhamos do ponto de vista de Oyewumi quando declara que ‘as
diferenças e hierarquias... estão sacralizadas nos corpos; e os corpos sacralizam
diferenças e hierarquias. ”( p. 7)
A nossa próxima seção objetiva fazer uma breve descrição da vida e obra da
escritora, sua temática e alguns dados essenciais para a compreensão de sua ouvre.
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¹ Yvonne Vera venceu o Zimbabwe Publisher’s Literary Award quatro vezes. Em 1993, por seu
primeiro romance, Nehanda, e a cada dois anos a partir daí- em 1995 por Without a Name,
1997 por Under the Tongue e 1999, por Butterfly Burning, este último aclamado como um dos
cem melhores romances do século vinte na África. A autora foi nomeada em 2011 para o
Prêmio Nobel de Literatura.
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No universo das várias personagens complexas encontradas na obra desta autora está
Mazvita, a heroína do romance Without a Name, publicado em 1994. Como outras,
Mazvita tipifica as mulheres marginalizadas que constituem as inúmeras vítimas sem
voz presas no labirinto histórico da tradição, do colonialismo e do neo-colonialismo.
(Ogbazi, p. 32) Bull Christiansen realça como sendo um dos principais objetivos de
Yvonne Vera o de “representar as mulheres oprimidas de forma a dar-lhes agência, que
é o que lhes falta em outras representações, e [a autora] fala sobre questões encobertas
pelos discursos de uma cultura patriarcal” (citado em Ogbazi, p. 33)
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3- Without a Name: a maternidade como fardo
A estória de Mazvita é, acima de tudo, sobre como uma jovem moça da zona rural,
sem educação formal, pobre, negra, marginalizada e colonizada tenta fugir aos padrões
impostos pela sociedade onde está inserida. (LUNGA, p. 79). Desde o início, percebe-se
que a personagem tem, dentro de si, um forte desejo de crescer (VERA, 1994, pp.
55,58) e sua maior ambição é “influenciar e modificar as forças que definem sua própria
realidade” (VERA, 1994, p. 34). No entanto, as forças patriarcais existentes
contrapõem-se à sua vontade de desenvolvimento individual e a personagem enfrenta
um verdadeiro martírio ao longo da narrativa, que alterna passado e presente em
analepses e prolepses a cada capítulo. As páginas iniciais de Without a Name
descrevem, na realidade, as últimas experiências da personagem, que retorna para seu
vilarejo natal a fim de enterrar o filho morto. Não há razões, inicialmente, que levem o
leitor a suspeitar de que o bebê não está mais vivo. Vera emprega uma estratégia
narrativa que é retomada em outros de seus romances- a de alternar passado e presente-
capítulos pares narram o que está ocorrendo enquanto os ímpares narram o que
aconteceu, ou seja, as memórias vividas pela protagonista.
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² “people who suffer violence may themselves take their frustrations out on others whom they
perceive as more vulnerable than themselves.” (OGBAZI, p. 12)
³ …it is women who bear the brunt of the hatred and violence. (idem, p. 18)
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mais relevante para a compreensão dos motivos da jornada de autoconhecimento da
protagonista, ou seja, o assassinato do bebê pelas mãos da própria personagem, é
mantido em sigilo pela voz narrativa. Aparentemente, para o leitor, ao embarcar no
ônibus com aquele fardo nas costas, Mazvita carrega uma criança, viva, visto que, no
referencial cultural africano, é nas costas que as mulheres carregam seus filhos, a fim de
possibilitá-las trabalhar na lavoura e executar os afazeres domésticos com mais
facilidade. Entretanto, a constante repetição das palavras ´pescoço’, e ‘caroço’ causa
estranheza ao leitor, já que há uma ênfase muito forte no corpo estranho e pesado que
acompanha Mazvita. “Ela nunca se livraria deste sofrimento em particular. O bebê era
dela própria, verdadeiramente seu próprio fardo ( ...) ela estava à beira de um
penhasco ( p. 51)
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Tal experiência faz de Mazvita uma pessoa violada em vários níveis- além da
violação do corpo, o estuprador submete a personagem a humilhações psicológicas
ainda maiores. (LUNGA, p. 89). Por exemplo, ele ordena Mazvita que lhe sirva água de
joelhos (p. 28), bem nos moldes da tradição cultural africana de submissão feminina,
prática abominada pela crítica feminista deste continente (NNAEMEKA, 1998, p. 46).
Para a personagem, pior do que ouvir o soldado chamá-la de irmã, é ter que lidar com as
visões recorrentes daquela manhã, quando teve seu vestido rasgado violentamente ao ser
submetida ao sexo não-consentido. O estupro deixará marcas indeléveis na personagem,
tanto físicas quanto emocionais. A heroína sente, por exemplo, sua pele descascar; por
outras vezes, se enoja com algo que permanece escorregadio entre suas coxas, do qual
ela tenta se desvencilhar a todo custo, mas em vão. Tenta lembrar das palavras por ele
proferidas, mas tudo o que consegue lembrar é a frase que ele a tinha possuído.
“Handzvadzi... ele disse. Você é minha irmã... sussurrou. (...) Ela ansiava por escapar
os gemidos insistentes do seu triunfo.” (VERA, 1994, p. 35)
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Em retrospecto, percebe-se que todas as fugas da personagem são em vão; após o
estupro, Mazvita sai da zona rural para Kadoma, uma fazenda de tabaco, onde
reencontra o namorado Nyenyedzi. Este a quer junto de si, presa à terra, que ele
considera sinônimo de “vida e morte”. Ela retruca: “O que você diz é verdade, mas esta
verdade se aplica igualmente a todos nós?” (VERA, 1994, p. 40) A protagonista
objetiva banir os limites ao seu progresso e por isso, decide fugir ainda mais longe para
a capital, Harare, situada na zona urbana. “Sentia-se livre como uma semente, e (...)
poderia crescer em qualquer lugar”. Acreditando ter potencial para recomeçar, “a
esperança de Mazvita se misturou ao desejo de descobrir algo novo em seu mundo”
(idem, p. 41) e como não “tinha medo de despedidas”, ela parte para a cidade, que
acredita ser um lugar de recomeços; no entanto, a cidade também trai a personagem. A
princípio, Mazvita é confundida pela visão de um desconhecido, Joel, que não a
promete nada, apenas um passeio de bicicleta. “Ela não tinha que conhecer ninguém.
Conhecer era um impedimento. (...) Reconhecer você mesma. Esse era o perigo. Era
melhor permanecer anônima. Algumas coisas você simplesmente não consegue
entender.” (idem, p. 53) E é no silêncio que a vida de Mazvita na cidade se torna
possível e faz a relação desta com Joel se desenvolver. “Se ela estava grávida, então era
melhor manter a novidade para si própria (...) pesava sobre ela, esse nascimento sub-
reptício. Mazvita rejeitava o bebê porque ele a impedia em seu desejo de ser livre ”. (p.
73) Até que, sentindo a rejeição do bebê por parte do novo companheiro, resolve
cometer um ato impensado, por já não mais conseguir lidar com tamanho silêncio e
tanto segredo. A angústia da personagem e profunda tristeza são acentuadas, quando
perambulando pelas ruas de Harare com o bebê já morto em seus braços, é reconhecida
como mãe por uma vendedora de aventais. Dentro do referencial cultural africano, é
sobre o avental que a mãe repousa o filho, antes de amarrá-lo em seu corpo para
protegê-lo e mantê-lo seguro. Ao ser vista com o bebê, a vendedora toma Mazvita por
uma mãe à procura de um lugar para manter seu bebê vivo e feliz e a oferece um
avental. No dialeto Shona, ‘Amai’ é uma palavra que pode ser referir à mãe e mulher ao
mesmo tempo:
“Mazvita não conseguia mais lembrar da mulher que lhe vendera o avental. Amai.
Ela lembrava disso. Amai. Ela era, realmente, uma mãe. Era pesado ser uma mãe. Ser
mãe tornava uma pessoa reconhecível nas ruas, mesmo quando tal pessoa não mais
reconhecia a si própria. Amai. Era doloroso.(...) Amai. Se referia a qualquer mulher
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que passasse, que carregasse um filho nas costas, que fosse uma mãe em potencial. Mas
aquele Amai nunca havia se referido a ela, pelo menos, não especificamente” (VERA,
1994, p. 48)
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controle do próprio corpo e continuar sobrevivendo que a personagem recorre ao
infanticídio, ato desesperado, de empoderamento e resistência.
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5-Referências
HUNTER, Eva. “Shaping the truth of the struggle”. Entrevista com Yvonne Vera.
Current Writing, vol. 10.1, 1998, pp. 75-86.
OGBAZI, Ifeyinwa. History and the voiceless: Yvonne Vera and postcolonial
Zimbabwe. Saarbrücken: LAP Lambert, 2012.
VERA, Yvonne. Without a Name and Under the Tongue. New York: Farrrar, Straus
and Giroux, 1994.
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