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Tavares: um
novo mundo começa
Trata-se de um mundo com leis físicas diferentes do mundo tal como o conhecemos.
O corpo de uma mulher sem cabeça está vivo, e até a cabeça, movendo-se ambas as
partes autonomamente. Uma ficção significativa para pensarmos algumas questões
identitárias: onde está aquela mulher, no seu corpo ou na sua cabeça? Segundo os seus
filhos, está no corpo: “O mais velho insulta a cabeça da mãe; o do meio cospe-lhe, o
mais novo dá-lhe um pontapé” (p. 12). A cabeça não é mais importante do que o resto
do corpo, nem o rosto é a única parte do corpo – uma parte especialmente convulsa,
sempre em movimento – que nos distingue. Em O Bairro também já estávamos num
mundo à parte, mas de Mitologias não se excluiu a morte, pois as suas personagens
sofrem como os mortais. Mitologias não é uma investigação divertida da
especialização humana em fugir. Um mundo diferente, duro, fantástico, mas não
maravilhoso, com algumas histórias que lembram o mundo terrífico e entusiasmante
de Trilogia da vida de Pasolini.
Outro aspeto importante deste mundo consiste no facto de as personagens não serem,
na maioria dos casos, reconhecidas por um nome próprio, mas por uma característica
ou um comportamento que as singulariza. A exceção são as cinco crianças, que têm
os nomes dos filhos de Nicolau II. O facto de não ter cabeça identifica uma mulher;
um homem é definido pelo mau-olhado que os outros lhe reconhecem. Estes são os
protagonistas deste romance, ou novela extensa, ou reunião de contos. Mas podem
tornar-se personagens secundárias em livros seguintes desta série, nos quais ganham
protagonismo as personagens secundárias de A mulher-sem-cabeça e o homem-do-
mau-olhado. Não sabemos em que espaço e em que tempo decorre a ação. Isto indica,
digamo-lo de modo rápido, que o fundamental neste território textual é investigar o
ser humano, cujo comportamento não varia significativamente segundo coordenadas
espácio-temporais.
Devemos falar da linguagem. Mais sóbria e concisa do que habitual, com poucos
adjetivos, poucos elementos ornamentais, com as repetições sintácticas e lexicais
próprias de uma litania ou de um sortilégio. A narração centra-se na ação, o que
potencia leituras do texto e devolve a literatura à literatura, afastando-a da esfera
informativa, estruturante da mundividência contemporânea. Este pode ser um dos
modos de ler a epígrafe final do texto, extraída de “O narrador”, ensaio de Walter
Benjamin: “Todas as manhãs somos informados sobre o que de novo acontece à
superfície da Terra. E no entanto somos cada vez mais pobres de histórias de espanto.
Isso deve-se ao facto de nenhum acontecimento chegar até nós sem estar já
impregnado de uma série de explicações”. A mulher-sem-cabeça e o Homem-do-mau-
olhado é uma narrativa que pouco explica e expõe os eventos sem julgamentos nem
apresentação das suas possíveis causas, estimulando deste modo a imaginação do
leitor. O contrário dos eventos descritos em jornais e televisões, que se mantêm na
atualidade até serem esclarecidos totalmente os seus efeitos e as suas causas. Os
órgãos informativos fomentam uma espécie de febre explicativa que anula o espanto.
Sentimo-nos insatisfeitos quando algo não está absolutamente claro. Queremos o
consolo da explicação, o fim do desassossego. Preferimos até, como observou
Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos, uma “explicação qualquer (..) à ausência de
explicação”. Quando se torna claro que, afinal, nada se esclarece por completo,
ficamos algo desiludidos. O fim da procura da clareza e da verdade é, muitas vezes, o
nojo e a desilusão, como diz com humor este verso de Manoel de Barros: “As coisas
muito claras me noturnam”. As explicações são a tentativa infrutífera de cessar o
espanto e, assim, de provocar o tédio. A literatura vive da inquietação própria da
ausência de explicações. Falar do fim do espanto ajuda a compreender as causas da
melancolia contemporânea. Não explicar tudo consegue-se com um estilo depurado,
árido, como começávamos por dizer neste ponto. É o não querer avançar com
explicações filosóficas ou psicológicas para tudo o que as personagens fazem ou
pensam que permite que o texto literário conserve a sua força, não se gastando no
presente como acontece com a informação. É a aridez narrativa, a ausência de
esclarecimentos e julgamentos, que suscitam “admiração e reflexão”, como observou
Benjamin no ensaio citado. Aridez que, de certo modo, acelera a narração, ao cingi-la
à ação. Uma velocidade diferente daquela que encontramos em animalescos e
Canções mexicanas, obras constituídas por ficções narradas de modo embriagante e
perverso com cortes, lacerações e rupturas (ao estilo de Um copo de cólera de Raduan
Nassar). Neste novo livro de Gonçalo M. Tavares, encontramos uma espécie de
“narração-comboio”, avancemos com o termo, centrada na ação, veloz, como o
comboio que enlouquecia as pessoas que nele viajavam: “há coisas que não se vêem
porque estão longe, há outras que não se entendem porque passam demasiado rápido”
(p. 102). Notemos que esta rapidez narrativa acaba também por deixar pouca margem
à ironia, habitual nos textos do autor. Pois a ironia é um modo de julgar os eventos.