Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
[via revistapolivox.com]
Quando ouvi Luís Capucho uma das coisas que logo me chamou a
atenção foi que suas canções se pareciam muito umas com as outras. Ele
estava dentro de um paradigma que não era o da profusão de cores e ritmos
da MPB; parecia fazer em toda sua obra uma única canção contínua, à
maneira de um Bob Dylan. As letras eram narrativas como em seus livros.
Ouvindo “Poema maldito”, por exemplo, aprendi que na canção que conta
histórias é melhor que não se varie tanto os acordes para que não se perca o
fio da meada — já conduzido com melodias sinuosas e frequentemente
próximas da fala. Luís descreve objetos e situações com uma aspereza
deslumbrante; quando cantados, porém, se abrem em um mundo de fantasia
e delicadezas, com luz e paleta de cor próprias. A criação desse universo
mágico passa pelos temas obsessivos, pelo modo (como foi dito)
perturbadoramente direto de narrar, por uma visão de mundo rica de
subjetividade, mas também pela materialidade de sua voz crua e de seu
violão de movimentos limitados — as cordas soltas dos acordes inventados
por ele soam erradas aos ouvidos educados —, ambas restrições motoras
que lhe foram impingidas pelo coma. Dessa forma, os gatinhos de Pedro, a
cadeira que Valfredo lhe deu, sua mãe, os vizinhos de trás, o vale onde
mora (bichos, lugares, pessoas, situações ordinárias do cotidiano) se tornam
encantados na voz de Luís. Na origem, o afeto agudo do artista com as
pessoas e as coisas ao seu redor.
Ao fim da entrevista, em frente ao prédio onde mora em Niterói,
Luís apontou, na outra calçada, uma igreja evangélica, ao lado dela, uma
batista, e, mais à frente, um centro espírita. Os cultos, disse, aconteciam
todos ao mesmo tempo e sempre com música; isso fazia com que ali
circulasse uma forte energia espiritual. A amendoeira ao nosso lado,
explicou, subia daquele modo, linda, se abrindo em copa larga e com tal
inclinação para a rua, por causa disso.
1-
2-
3-
Bom, eu acho que a vida tem uma natureza mágica. Que as palavras
têm uma natureza mágica. Eu me sinto meio doido com isso, acho que ter
um corpo é uma coisa mágica.
Comecei a sentir a magia nas coisas depois que fiquei adolescente e
que comecei com o desejo sexual, que é um lance tão forte, sem controle.
Antes, quando eu era criança, era como se eu vivesse na lua, com a cabeça
sempre nas nuvens e não via mágica, que é um lance que você começa a
ver se você vibra mais tenso e fundo, onde as coisas são mais pesadas e
fortes. Aí, você pensa, caramba, como é que isso apareceu aqui, forte e
grande assim, da onde isso veio, o que é isso e tal.
Acho que fazer música e fazer literatura e pintar As Vizinhas de Trás
[série de retratos pintados por Luís], que parecem ser coisas de criança, de
você poder brincar com as cores, com as palavras e com os acordes do
violão, tem a ver com esse mundo da magia, mais forte e denso, pesado e
que ao ser transposto pra linguagem artística pode parecer leve, de criança.
Brincando assim de fazer arte, as coisas parecem ir perdendo o sentido, se
esfumaçando, se espalhando, sumindo como mágica.
4-
Eu na verdade não sei a importância das coisas. Não sei se elas são,
extraordinariamente, por acaso. Ou se tem uma finalidade, no fato de as
coisas existirem. Então, de qualquer modo, acho que seria importante que a
gente pudesse ter a vida que a gente quer, ter a possibilidade disso. O
Guilherme Arantes colocou numa música que nem tudo é, exatamente
como a gente quer. Mas era bom, importante, que tivéssemos o desejo
como possibilidade, que tivéssemos como possibilidade as coisas que a
gente quer. Era importante que a gente pudesse transformar as coisas do
mundo naquilo que a gente quer.
5-
Acho que a beleza deva ser uma coisa grandiosa, insuportável pra o
sentimento da gente, acho que ela faz com que não a suportemos, é algo
transbordante e que não cabe na gente. Na verdade, a beleza é um horror,
sabe? Algo de que a gente não consegue dar conta.
Sobre a minha música ser bonita, acho que é parte da beleza do
mundo, sim. E começo a gostar mais delas, quando as pessoas gostam
também. É parte do mundo mais ordinário, do mundo suportável, e pode
num primeiro momento não cair no agrado dos ouvidos mais destreinados
na audição delas. Eu mesmo as acharia sem graça, sem beleza, se as
ouvisse com a idade de 10 anos. E não sei se gostar, quer dizer que são
bonitas, acho que sim. Eu gosto das minhas músicas. E acho que a beleza
delas está no caminho melódico, que está a um grau ou graus de distância
do caminho natural da entoação da fala, se eu falasse suas letras. Acho que
o tanto que eu consigo me distanciar da fala, e o tanto que consigo frisar de
sentido pras palavras que canto, sem deixar que ele esvoace e se perca na
melodia, é o tanto de beleza ou gosto que consigo na minha música.
Eu tou falando da minha música, como e quando ela aparece e se
forma pra mim. Porque se eu for imaginá-la executada com outros
instrumentos que não apenas o meu voz e violão, aí, entram outras belezas.
Porque se pode inventar outras formas de resolver suas voltas, entende?
6-