Sunteți pe pagina 1din 14

Ciência & Saúde Coletiva

ISSN: 1413-8123
cecilia@claves.fiocruz.br
Associação Brasileira de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva
Brasil

Cavalcante, Fátima
Família, subjetividade e linguagem: gramáticas da criança anormal
Ciência & Saúde Coletiva, vol. 6, núm. 1, 2001, pp. 125-137
Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63060111

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
125

Família, subjetividade e linguagem:

ARTIGO ARTICLE
gramáticas da criança “anormal”

Family, subjectivity and language:


the “abnormal” child grammar

Fátima Cavalcante 1

Abstract This paper discuss how the birth of Resumo O artigo procura refletir sobre o im-
an “abnormal” child causes a social impact in pacto do nascimento social de uma criança
the family’s life. In order to articulate the in- “anormal” na família. Propõe uma grade con-
dividual and the social levels, it was integrat- ceitual, abstraída da antropologia e da filoso-
ed some conceptual notions from antropholo- fia da linguagem, que permita articular sujei-
gy and philosophy of language. This study is to e contexto social. Analisa um rico material
based upon an empirical data of life histories empírico, baseado em histórias de vida de fa-
from “abnormal” children’s families, which was mílias com filhos excepcionais, de uma pesqui-
collected in a research made in Rio de Janeiro. sa desenvolvida no município do Rio de Janei-
In these analyses, it is done some descriptions ro. Faz uma descrição densa das etapas ini-
of families’ reactions when they find out about ciais, pelas quais a família passa, quando des-
their children’s mental illness. It is also given cobre a anormalidade mental de seu filho, na
an emphasis in the families’ capabilities to com- primeira infância. Este enfoque valoriza a ca-
municate their own experience against the ab- pacidade das famílias de comunicarem sua ex-
normality, as a learning way of gaining strength periência de enfrentamento da anormalidade,
and wisdom. The conclusions say that the pro- como aprendizado, luta e sabedoria de vida.
cedure to communicate the diagnosis is very As conclusões revelam que o momento do diag-
important, because it changes the child condi- nóstico é delicadíssimo, pois transforma o ser
tion to an “abnormal” one, and it also creates a da criança e inaugura um novo pai e uma no-
new kind of mother, and a new kind of father. va mãe. As reações à dor serão inevitáveis. Um
A lot of pain will have to be faced. It is neces- acolhimento e uma orientação clara são fun-
sary to comfort the families and to give them damentais. A rotina familiar se altera. Uma
the right orientations. Families’ routines will ética da responsabilidade e do sacrifício se im-
1 CLAVES – Centro be changed. A new kind of care will be devel- põe pelos cuidados ao filho. A família precisa
Latino-Americano de oped with these children; new responsibilities desenvolver um novo estoque de conhecimen-
Estudos da Violência and some sacrifice’s acts will be expected from to. O apoio familiar é crucial, para que a fa-
e Saúde Jorge Careli,
Escola Nacional de
their families. It is needed a new repertory of mília tenha condições de fazer face ao deses-
Saúde Pública, knowledge. It is very important to offer family pero, à confusão, à desorientação. O combate
Fundação Oswaldo Cruz. support in order to help them to overcome des- mais difícil é contra a discriminação social por-
Av. Brasil, 4.036 sala 702
Manguinhos 21040-361,
peration, confusion, and disorientation. But, que traz, como conseqüência, uma dor que fe-
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. what it is more difficulty than anything is the re por dentro e por fora.
cavalcan@ensp.fiocruz.br fight against the social discrimination, which Palavras-chave Família, Linguagem e subje-
injures people inside and outside. tividade, Criança anormal, Doença mental in-
Key words Family, Subjectivity and language, fantil
126
Cavalcante, F.

Introdução no funcionamento adaptativo atual nas se-


guintes áreas: comunicação, cuidados pessoais,
Para constituir um modo de pensar sobre a vida doméstica, habilidades sociais, indepen-
subjetividade e sobre a linguagem que não se dência, entre outras (DSM-IV, 1995).
limite a uma compreensão meramente psico- 2) Autismo – os chamados transtornos in-
lógica, irei desenvolver dois momentos reflexi- vasivos do desenvolvimento (DSM-IV, 1995).
vos complementares. Primeiro, vou buscar na A palavra vem do grego autos que significa si
antropologia e na filosofia da linguagem uma mesmo, referindo-se a alguém retraído e ab-
grade conceitual que permita articular sujei- sorto em si mesmo. Alguém que caminha co-
to e contexto social. Segundo, vou fazer uma mo que envolto em sombras, vive em um mun-
análise etnográfica baseada em histórias de vi- do próprio ao qual não podemos chegar. Autis-
da, esculpindo as subjetividades do cenário mo é o mais grave distúrbio da comunicação
sociocultural que as produziram. A escolha humana que compromete a socialização e a
desta metodologia se deve à necessidade de se imaginação (AMA/SP, 2000). Observa-se, nes-
compreender, do ponto de vista sócio-histó- se quadro, isolamento extremo do indivíduo,
rico, o impacto do nascimento social de uma desapego do ambiente, boa potencialidade in-
criança “anormal” na família. telectual (Ajuriaguerra, 1980).
O nascimento de uma criança “anormal” 3) Psicose infantil – problema da persona-
é um desses acontecimentos inesperados que lidade relacionado a um transtorno ocorrido
põe à prova cada um de nós, pais, mães, ir- na organização do ego e intimamente ligado
mãos, avós, tios, amigos, professores, profis- à relação da criança com o meio ambiente.
sionais da saúde, pesquisadores, gestores da Comportamento inadequado face à realidade;
saúde e da educação. Convida-nos a buscar so- investimentos insuficientes ou exagerados no
luções e a entender que o desafio é de todos. campo cognitivo, afetivo e da atividade, oca-
No entanto, a família é o primeiro núcleo so- sionando comportamentos rígidos ou incon-
cial a ser intensamente “perturbado” por ele, sistentes; vida imaginária pobre; relação inade-
o primeiro a buscar respostas nos diversos se- quada com os outros (Ajuriaguerra, 1980).
tores da sociedade e o último a lidar com as Ao invés de um saber distante, aprisionado
conseqüências para toda a vida. Por isso, eu ao olhar da doença, procuro dialogar com o
me debruçarei sobre o que as famílias têm a objeto de reflexão, valorizando a capacidade
dizer. Farei uma descrição densa dos primei- das famílias de comunicarem sua experiência
ros momentos de descoberta da anormalida- de enfrentamento da anormalidade como
de mental infantil. Acredito que nossos sabe- aprendizado, luta e sabedoria de vida. Cada
res sejam muito “débeis” para compreender, família é uma unidade cooperativa que com-
do ponto de vista de quem vive, o desafio hercú- partilha expectativas e interesses complemen-
leo de se enfrentar uma anormalidade em nos- tares. Nesse acontecimento inesperado, a fa-
sa sociedade, por demais individualista e hos- mília é desafiada em seus laços de afeição e na
til às diferenças. solidariedade de sentimentos que mantém.
Tomo como base a pesquisa “A gramática Marcada por diferenças de gênero, geração,
da criança ‘anormal’ na narrativa familiar: um classe social, entre outras, a família se vê às
estudo etnográfico” (Cavalcante, 1996) que voltas com o difícil desafio de socializar uma
reuniu um rico material empírico sobre essa criança diferente, como veremos adiante (Lin-
situação na cidade do Rio de Janeiro. Retomo ton, 1987).
esse estudo principalmente para ampliar sua
análise. Esclareço que o uso da categoria “anor-
mal” se deve : 1) à tentativa de “escapar” às ter- Esculpindo a subjetividade na
minologias usuais e demarcar o olhar etno- linguagem: a gramática do significar
gráfico; 2) à escolha de uma categoria relevan-
te à etnologia; 3) ao modo como essas crian- Neste momento, me proponho a articular fer-
ças são vistas no senso comum, como aquelas ramentas teóricas que auxiliem a pensar a in-
que “não são normais”, portanto “anormais”. terface entre subjetividade e linguagem, for-
No presente estudo, a categoria “anormal” mando uma grade conceitual para a análise de
se refere aos casos descritos a seguir. dados que se dará a seguir. Pensar a subjetivi-
1) Deficiência mental – funcionamento in- dade ou as produções de subjetividade que te-
telectual bem inferior à média, com prejuízos mos forjado, neste homem recém-inventado
127

Ciência & Saúde Coletiva, 6(1):125-137, 2001


(Foucaut, 1995), exige um cuidado redobra- tos, sem analisar os objetos e as substâncias que
do. Um olhar que se debruça sobre os “cacoe- fabrica ou que manipula o oficiante; regras so-
tes” do nosso pensar e do nosso saber. ciais, independentemente das coisas que lhes cor-
O modo como olho para alguém, aquilo respondem (Lévi-Strauss,1990). A análise an-
que vejo, o que escuto, o que penso e o que fa- tropológica não pode ser dissociada do acon-
lo acerca dessa pessoa vai trazer conseqüên- tecimento, do lugar, da ocasião ou das pessoas
cias para a compreensão que tenho dela. Pre- nas quais o estudo se baseou. Qualquer gene-
tendo estudar o indivíduo não como uma “coi- ralização que se possa fazer nesse tipo de in-
sa em si”, natural, passível de ser desvendada. terpretação se deve muito mais à delicadeza
Longe de pensá-lo como essência, vejo-o co- das descrições do que à amplidão das abstra-
mo objeto inacabado, em construção, produ- ções. A antropologia oferece uma alternativa
to de suas condições e contradições históricas de pensamento complexo na medida que es-
(Foucault,1995). Usarei um caminho do pen- tuda o indivíduo ou a pessoa em seu contex-
samento que favoreça a compreensão, como o to histórico-cultural, articulando símbolo e
faz o chamado pós-estruturalismo, que se dis- signo. Nela o conhecimento se dá na intersub-
tancia de noções tais como forma, sistema, es- jetividade do jogo social.
trutura, trazendo mudanças epistemológicas Em Wittgenstein (1979), no segundo pe-
no campo da linguagem, da filosofia e das ríodo de sua obra, encontro uma caixa de fer-
ciências. Essa nova tendência oferece, a meu ramentas, sobre o estudo da linguagem, que
ver, ferramentas para revisão do modo indi- me permite “escutar” o homem nos moldes de
vidualista e unidimensional de se ver a subje- um pensamento complexo. Para ele, as pala-
tividade, redescrevendo-a em termos de pen- vras são como ferramentas de diferentes fun-
samento complexo e permeável a outros co- ções e o que as diferencia é o uso que fazemos
nhecimentos, como sugeriu Santos (1997). delas. O autor distingue a “gramática superfi-
Primeiramente, vou buscar na antropolo- cial”, aquela que corresponde à doutrina da
gia ferramentas para esculpir a subjetividade construção frasal correta, da “gramática pro-
sem esvaziá-la de seus atributos contextuais. funda”, aquela que vê as diferentes espécies de
Introduzo a idéia de “descrição densa” em con- emprego de frases (...), os diversos modos das
traste com a idéia de “descrição superficial”, frases que aparecem. Um mesmo radical de fra-
noção de Ryle, utilizada por Geertz (1989) pa- se pode estar associado a diversos modos ou atos
ra definir o campo da etnografia. A descrição dos discursos (Stegmüller, 1977). Para Witt-
superficial aproxima-se da descrição de um fe- genstein, os inúmeros atos dos discursos (pa-
nômeno propriamente dito, como por exem- lavras e proposições) são operados à seme-
plo, piscar o olho. A descrição densa diz res- lhança de um jogo de xadrez. Entendemos os
peito à intencionalidade que acompanhou o ges- significados das palavras se conhecemos as “re-
to: piscar porque entrou cisco no olho, ou piscar gras do jogo”. Cada uso diferente de palavras
para imitar alguém com um tique nervoso (...) corresponde a um jogo de linguagem diferente
A etnografia é uma descrição densa, na medida (Faustino, 1995). Seu estudo, contudo, não pri-
em que o que o etnógrafo enfrenta, de fato, é vilegia a idéia de representação mental, enfo-
uma multiplicidade de estruturas conceituais que que se baseia na relação entre significado e
complexas, muitas delas sobrepostas ou amar- objeto, ou seja, naquilo que “cola” as palavras às
radas umas às outras, que ele tem que, de algu- coisas que elas representam. Ao invés disso, ele
ma forma, primeiro apreender e depois apresen- privilegia a relação existente entre significado
tar (Geertz, 1989). e uso. A palavra adquire sua significação em
O olhar etnográfico não procura, contu- seu uso contextual. Por esta razão, a gramáti-
do, captar os fatos como se pudesse obter uma ca do significar não se confunde com a gramá-
máscara dos dados observados. Ele pretende tica do representar. Wittgenstein substitui a
esclarecer o que ocorre, reduzindo a perplexi- pergunta: o que é o significado de uma palavra,
dade do desconhecimento. Um ritual, um cos- pela pergunta: o que é uma explicação do sig-
tume, uma idéia ou um acontecimento deixa nificado de uma palavra. Isso traria a vanta-
sempre algo insinuado como informação de gem de afastar a tentação de procurar o signi-
fundo. Quaisquer que sejam os sistemas sim- ficado oculto das coisas (Faustino, 1995).
bólicos, é possível ter acesso empírico a eles, A análise wittgensteiniana da linguagem
por meio da observação. No entanto, não se não procura descobrir o pensamento que sub-
pode estudar deuses ignorando suas imagens; ri- jaz atrás do signo, desvendar o simbolismo
128
Cavalcante, F.

oculto, e nem desentranhar algum tipo de in- A noção de subjetividade foi introduzida no
tenção imperceptível. Ela focaliza as regras que estudo da linguagem por Benveniste. Para o
estão implicadas na produção, reprodução ou autor, é na linguagem e pela linguagem que o
invenção de significados (...), na exteriorização homem se constitui como sujeito; porque só a
de modelos de ação e dos padrões de comporta- linguagem fundamenta na realidade, na sua rea-
mento (...), no inter-subjetivamente compreen- lidade que é a do ser, o conceito de “ego”. A cons-
sível (Faustino, 1995). A gramática do signifi- ciência de si mesmo só é possível se experimen-
car interroga o que são as significações, exibe tada por contraste. Eu não emprego eu a não ser
a riqueza das possibilidades de uso da lingua- dirigindo-me a alguém, que será na minha alo-
gem, realça a diferença, a variedade, a multi- cução um tu. Essa condição de diálogo é que é
plicidade de explicações dos significados. A constitutiva da pessoa, pois implica reciprocida-
compreensão wittgensteiniana da linguagem de – que eu me torne tu na alocução daquele que
é demolidora de uma visão essencialista e por sua vez se designa por eu (Benveniste, 1974).
mentalista, na medida em que devolve à co- Toda fala entrelaça vozes de diferentes ins-
municação pragmática das pessoas, o poder tâncias sociais, reproduzindo uma espécie de
de construir significados. Que implicações es- agenda moral. Signo e situação social estão in-
se pensamento tem para se analisar uma teoria dissoluvelmente ligados (...) A palavra é o sig-
do sujeito? Ele se distancia da idéia de essência no ideológico por excelência; ela registra as me-
e da idéia de mente, como depositárias de re- nores variações das relações sociais (...) que se
presentações. O que se privilegia nesse enfo- exprime na vida corrente (Bakhtin, 1979). Os
que, não é o que está na cabeça da pessoa, mas contextos de enunciação variam e se mantêm
aquilo que sai da sua boca, ou seja, o que é di- tensos, em conflito o tempo todo, dialetica-
to no uso da linguagem. mente relacionados mediante uma coexistên-
Ganha destaque o dizer e o dito, ou seja, o cia conflituosa. Isso deve ser levado em conta
que foi dito, como foi dito e o contexto de na interpretação de contextos diferentes, no
enunciação em que a fala se deu, contexto aqui sentido de se considerar como um contexto de
entendido como o ambiente em que se produ- fala afeta o outro e qual o efeito de sentido do
ziu o discurso. Isto é, os diferentes modos de cruzamento de muitos contextos. O dialogis-
enunciação das palavras produzem diferentes mo de Bakhtin, o jogo de múltiplas vozes, re-
efeitos de sentido. Uma palavra não é o sentido mete à noção de jogo de palavras. Em resumo,
que ela toma num contexto, (...) enunciado não a língua é vista como o cenário de um jogo de
é a soma das significações, mesmo contextuais, palavras, um território de confronto entre sub-
das palavras.O efeito de sentido contextual de jetividades, o embate polifônico de diferentes
uma palavra é somente a mudança produzida instâncias sociais, a coexistência conflituosa
neste contexto pela introdução desta palavra, is- de vozes e efeitos de sentido.
to é, a modificação pela qual a palavra é respon- Em sintonia com esses autores e idéias da
sável no sentido global do enunciado (Ducrot, filosofia da linguagem, Costa (1994) nos apre-
1987). Isso amplia a idéia de contexto lingüís- senta uma concepção de sujeito, desenvolvida
tico para além do ambiente de uma palavra por Rorty (1994), na qual o sujeito não é pre-
numa frase, incluindo os fenômenos sociopsi- existente aos elementos lingüísticos constitu-
cológicos que aparecem no ato de enunciação. tivos de sua descrição. O sujeito, o eu, o ‘self ’
Não é apenas o enunciado que conta, mas so- são um efeito da linguagem. Dizer que o sujei-
bretudo o ato de enunciação. to é um efeito da linguagem é dizer que aprende-
Ducrot (1987) descreve a língua como um mos a falar do sujeito sem necessitar de outro
espaço de confronto de subjetividades, um ter- referente, exceto as palavras ou proposições que
ritório mediado pela polêmica. Qualquer fra- o definem. O sujeito, então, é o conjunto de enun-
se que se diga implica a exclusão de alguma ciados, atitudes, estados, condutas ou processos
coisa, qualquer coisa que se diga são muitos intencionais formados por termos lingüísticos
sujeitos falantes. Quando uma mensagem é elementares como sensações, sentimentos, emo-
transmitida, ela produz um efeito de sentido, ções, pensamentos, expectativas etc. (...) O su-
como resultado de um jogo de sentidos produ- jeito é uma rede de crenças e desejos (...) Cren-
zido pelo emissor, que será reinterpretado pe- ças são regras de ação seguidas conforme a tra-
lo destinatário. O enunciado cria juridicamen- dição ou inventadas conforme os contextos de
te uma situação nova, uma atribuição de poder vida (...) Crenças e desejos são, portanto, reali-
que pode ou não produzir o efeito esperado. dades lingüísticas.
129

Ciência & Saúde Coletiva, 6(1):125-137, 2001


O sujeito, para Costa, não se situa dentro mílias articuladas em sua vida social? Como
de uma concepção estruturalista, na qual fi- entender o papel da cultura familiar e social
caria implicado na busca do verdadeiro senti- na constituição do psiquismo do grupo fami-
do histórico de um evento inconsciente, do ver- liar? Como compreender o efeito de sentido
dadeiro sujeito estruturado como uma lingua- do filho “anormal” no contexto enunciativo
gem que corresponde ao ideal cognitivo chama- da família? Senti que deveria recorrer a outros
do por Rorty de “ideal da autopurificação”. O paradigmas de pensamento e enriquecer o
sujeito deve ser situado no “ideal do auto-enri- olhar Psi (jargão da área), para responder a es-
quecimento”, que nos afasta da idéia de que tu- sas questões, com maior profundidade. Para
do podemos conhecer. Tal ideal pode ser for- isso, busquei a perspectiva das ciências sociais,
mulado na máxima pragmática que diz: não da antropologia e da filosofia da linguagem.
pergunte o que realmente sou; qual o meu verda- Em 1996, fiz uma análise etnográfica de nar-
deiro eu. Pergunte como posso redescrever-me, rativas de famílias com filhos (crianças e ado-
de maneira a viver uma vida melhor e mais be- lescentes) portadores de distúrbios mentais
la (Costa, 1994). Afastando-se da idéia do “co- graves desde a primeira infância: deficiência
nheça-te a ti mesmo”, essa concepção situa o mental, autismo, psicose infantil. Foram feitas
sujeito sem a idéia de “sujeito verdadeiro”. Não 14 entrevistas individuais (7 histórias de vida
há o verdadeiro, na medida em que o sujeito e 7 estudos de caso clínico) e o registro etno-
poderá ser descrito de tantas maneiras quan- gráfico de atividades grupais com 45 partici-
to o seu sistema de crenças puder dar sentido. pantes (15 de dois grupos terapêuticos que fun-
Para conhecer o sujeito, diz o autor, precisa- cionaram por um ano; e 30 de duas atividades
mos de acordo, apenas, quanto ao julgamento grupais sem fins terapêuticos). A pesquisa foi
de seu valor pragmático. feita em duas instituições psicopedagógicas do
município do Rio de Janeiro, uma pública e
outra privada. Minha idéia, no momento, não
Inquietações e cuidados metodológicos é reproduzir a análise, previamente feita, em
no estudo da narrativa familiar dissertação de mestrado (Cavalcante, 1996).
Pretendo ampliar a análise anterior, a partir
As reflexões feitas anteriormente tiveram co- do quadro conceitual aqui desenvolvido.
mo objetivo fornecer ferramentas para se pen- Formulo a análise etnográfica das narrati-
sar a interface entre subjetividade e lingua- vas, que farei adiante, num enfoque pós-es-
gem. Cabe-me agora aplicá-las a uma pesqui- truturalista. Vimos, anteriormente, que o su-
sa concreta e ao conjunto de preocupações que jeito e a vida social são eventos centrados no
me acompanham como pesquisadora. discurso. O discurso, por sua vez, é uma dra-
Comecei a duvidar de minha “escuta”, en- maturgia de vozes, uma fala viva, de onde ex-
quanto trabalhava como terapeuta de família, traímos o sujeito e o cenário social a ele asso-
ao ouvir histórias de pais e mães de crianças e ciado. Estudos narrativos são meios para apre-
adolescentes portadores de deficiências ou dis- endermos algo sobre como as pessoas cons-
túrbios mentais. Passei a ter a sensação de que tróem o que sabem, sonham, como relembram
apesar de tudo o que me falavam, sobre sua ex- o passado e como descrevem entre si o que
periência com um filho “anormal”, eu não con- ocorreu. Portanto, mais do que focalizar tópi-
seguia efetivamente “ouvi-los”. Não se tratava cos ou temas, extraídos das histórias, nós po-
de um problema de audição, nem tampouco demos apreender o modo como as pessoas
da falta de esquemas conceituais para que eu pensam suas vidas (Basso, 1990). A história é
entendesse a família. A psicologia dispõe de um elemento de inteligibilidade social. A vida
vários recursos teóricos para a compreensão vai sintetizando eventos narrativos com uma
das famílias, na terapia familiar psicanalítica, base ética e moral. As emoções e o senso de
na terapia familiar sistêmica etc. Eu não sentia coerência do eu podem ser conhecidos como
falta de uma escuta psicológica, de um enten- uma subjetividade socializada (Gergen, 1994).
dimento psicodinâmico. Eu sentia falta de fer- No entanto, é preciso ter cuidado para não
ramentas sociais também para poder olhar e se tratar a história como se fosse um relato
escutar as famílias como pessoas totais, que coerente, um caminho, uma travessia, com “in-
enfrentam um desafio de conseqüências psi- tenção”, “projeto original”, ordenação lógica e
cossociais bem complexas, para o resto de suas noção de começo, meio e fim. O real é descon-
vidas, na maioria das vezes. Como ver essas fa- tínuo, formado de elementos justapostos, sem
130
Cavalcante, F.

razão, cheio de imprevistos. Por outro lado, tal, dizendo que ele se sentiu como um carro
numa entrevista oral, o eu costuma fazer uma que sai fora da estrada. O momento do diag-
apresentação oficial de si, uma apresentação nóstico produz um corte muitíssimo doloro-
pública, submetida a coações e censuras espe- so, marcado por um grande choque e uma pro-
cíficas. Nesse sentido, é bom relembrar Bour- funda sensação de desorientação. Um carro só
dieu, quando diz que se deve atentar para o fa- sai fora da estrada se estiver desorientado, ou
to de que a representação mais ou menos cons- no caso de uma colisão com outro veículo, em
ciente que o investigado fará da situação da face de uma forte pancada. A notícia de uma
investigação irá orientar todo o seu esforço de “anormalidade”, nos primeiros momentos, soa
apresentação de si, de produção de si, numa como uma pancada, um acidente, um baque,
espécie de ilusão biográfica (Bourdieu, 1996). um choque de grande proporção, que fere e
que machuca.
A psicóloga Silva (2000) fala que o mo-
Gramáticas do significar: o nascimento mento do diagnóstico tem a aparência de um
social de uma criança “anormal” machado que cai sobre a cabeça. Nos primeiros
instantes, é vivenciado como “mortífero”. Mui-
Podemos dizer que um bebê, ao nascer, desa- tos acreditam que não irão “sobreviver” a ele.
fia os estoques de conhecimento do continente Fica a sensação de despedaçamento. O pedia-
familiar que o recebe. E o que vem a ser isso? tra Aguiar (2000) esclarece que, no momento
Cada família possui um repertório de expe- do diagnóstico, o médico também pode estar
riências e situações vivenciadas que lhe serve em crise. Também é difícil para o médico trans-
de referência para interpretar o mundo e bali- mitir o diagnóstico mas é preciso entender o
zar suas ações (Schutz, 1971). Esse conheci- problema do ponto de vista dos pais. Leva-se
mento forma uma tessitura psíquica, social e o tempo de uma gestação para uma família
cultural que irá ancorar a chegada do bebê. É conseguir processar a perda, o luto do bebê
através desse estoque, construído na sucessão que foi sonhado, e elaborar o “nascimento”
de gerações, que a família irá dar à criança as psíquico de um filho “anormal”. Os nove me-
chaves de acesso ao mundo. Mas esse processo, ses de uma gestação correspondem ao timing
habitualmente complexo, pode se transformar que a natureza criou não apenas para se con-
num desafio muito maior, em circunstâncias ceber uma criança no interior do útero, mas
especiais. O nascimento de um bebê “anor- também junto à mãe, ao pai, aos irmãos e de-
mal” ou o surgimento de distúrbios mentais mais familiares que a esperam. É razoável que
na primeira infância produz uma perturbação a “gestação” psíquica de um filho portador de
que afeta toda a família. Distúrbios assim, tão deficiência, demore pelo menos mais 9 meses
precoces, interferem globalmente no desen- para ser processada (Aguiar, 2000).
volvimento da criança. A família se vê em pe- A palavra enigma salta aos olhos. Parece
rigo, uma vez que seus recursos tradicionais indicar que lidar com a “anormalidade” é al-
serão insuficientes para fazer face à anorma- go obscuro, misterioso, difícil de decifrar, di-
lidade. Um novo repertório deverá ser cons- fícil de compreender. Os estoques de conheci-
truído. Vejamos como isso ocorre, na narrati- mento da família não dão conta dessa situa-
va das famílias. ção. O psiquiatra Camargo (2000) diz que a
Foi difícil ouvir do médico, pela primeira família, quando descobre a deficiência, viven-
vez, que minha filha tinha uma deficiência, diz cia como se tivesse comprado um pacote de
um casal. Sua filha foi diagnosticada como viagem para ir a um lugar e acabasse chegan-
portadora de deficiência mental e deforma- do em outro lugar, inteiramente diferente. Um
ções físicas. Desse dia em diante, o casal se viu lugar que fala outra língua. Por essa razão, se-
frente a um “enigma”. A vida se tornou um ob- rão necessários anos e anos para se aprender
jeto de interrogação, onde o que parecia ser o a lidar com tudo isso. Aprender uma nova lín-
chão do cotidiano foge do campo de com- gua e num novo lugar nos leva a pensar na ne-
preensão. Foram tantos os especialistas a opi- cessidade, que a “anormalidade” impõe, do
narem, tantas orientações diferentes que as to- grupo familiar construir um repertório social
madas de decisões não deixaram de ser árduas inteiramente novo, um novo habitus (Bour-
e penosas. Muitos tratamentos, poucas respos- dieu, 1982). Essa situação requer uma adap-
tas. Outro pai descreveu o momento de sua tação afetiva e o aprendizado de regras de con-
descoberta da doença do filho, deficiência men- vivência que favoreçam a autonomia, a comu-
131

Ciência & Saúde Coletiva, 6(1):125-137, 2001


nicação, a socialização e a ocupação do porta- tá atenta em prover os espaços individualiza-
dor de deficiência, entre outras coisas (As- dos do pai.
sumpção Jr. & Sprovieri, 2000). Há descontinuidades e desencontro na fa-
A rotina familiar sofre abrupta mudança la deste próximo casal. Diferentes impressões
assinala outra mãe, ao descrever o impacto ini- se chocam: o pai conta que o médico decidiu es-
cial com seu bebê que apresentou sérias difi- tourar a bolsa e induzir o parto. A mãe acha que
culdades (diagnóstico de autismo): a gente já o bebê foi aspirado. O pai diz que foi retirado a
não tinha nem condição de dormir (...) já não fórceps. Ele acha que foi erro médico, no entan-
tinha tempo um para o outro (...) a gente se to, diz que esta suspeita não pode ser confirma-
olhava e se estranhava. A família inicialmente da. No contexto de enunciação dessa entrevis-
se ressente de tamanha interferência. Um cor- ta notei que o casal discordava na maioria dos
te se impôs na rotina do casal, perturbando pontos. O clima era tenso. Fiquei com a im-
sua vida íntima. O dia-a-dia alterado deixava pressão de que havia uma profunda cisão, mar-
um rastro de estranhamento. O clima era de cada por desencontros e diferenças na visão
espanto, surpresa, perplexidade e dava a im- de mundo, no modo como o casal se apresen-
pressão de perda de familiaridade. A vida a tava. Para se compreender esta narrativa, será
dois estava diferente. Algo fora do comum preciso fazer uma descrição densa, recorrendo
acontecia. Um já não reconhecia mais o outro, à memória dos elos de gerações.
o que trazia grande desconforto, assinalado O marido teve uma infância muito pobre.
como a coisa ficou feia. Sofreu uma séria ruptura familiar entre os pa-
Nas narrativas das famílias, observam-se rentes de sua família materna e paterna, aos
diferenças de gênero nas formas de adaptação, sete anos de idade, que culminou com a saída
como pode ser visto na descrição a seguir. A dele e de seus pais da fazenda onde moravam,
mãe havia acabado de se formar e tinha expec- para uma vida de extrema pobreza. Só foi co-
tativas de fazer um mestrado, investir profis- nhecer luz elétrica aos 16 anos. Aprendeu a ad-
sionalmente em si. O nascimento do filho mirar seu próprio pai, ágil carpinteiro e a des-
“anormal” levou-a a optar por fazer uma re- merecer sua mãe, descrita como uma pamo-
núncia de si, de seus sonhos, em prol dos cui- nha, de temperamento parado, professora que
dados com o filho. Tomou para si o ônus de não exercia a profissão. A idéia de família pa-
acompanhar cotidianamente o filho, inclusi- ra ele tem a marca de um profundo desgosto.
ve abrindo mão de deixá-lo com a avó mater- Ele ascendeu socialmente e se tornou enge-
na ou com uma empregada, o que seria possi- nheiro, superando o próprio pai. No entanto,
velmente uma opção a seu alcance, em seu pa- ainda hoje se sente como um bicho do mato. A
drão de vida de classe média : a bananosa tem esposa e seus irmãos sofreram abuso físico de
que ficar na minha mão mesmo. Há uma idéia seu próprio pai, na infância. Apanhava de cin-
de assumir a dor, o sacrifício instaurador, co- to, de fio, era colocada trancada em quarto es-
mo se fosse uma espécie de martírio aceito pe- curo. Em casa havia fila das crianças para apa-
la integridade interior de seu papel de mãe, nhar. Ela não podia comer fora de hora, o ba-
por uma boa maternagem, em benefício da fa- nho era regulado, para ver TV era preciso im-
mília como um todo. A bananosa é a situação plorar. Seus pais, apesar do ambiente confli-
de alguém que se embananou, ou seja, que se tivo em que viviam, só se separaram quando
envolveu com sérias dificuldades. Aqui, se re- ela já tinha 22 anos, o que trouxe melhora pa-
fere às complicações do filho que a mãe toma ra o relacionamento familiar. Sua mãe era uma
para si, com quem se apresenta para ser imo- pessoa boa, religiosa, trabalhadora, ajudava os
lada, assumindo uma ética da responsabilida- filhos a cumprir os deveres da escola. A espo-
de. A visão que compartilha de si, de seu mar- sa retém de semelhante à sogra a profissão de
tírio, é de quem está atada a limites rígidos que professora e, se diferencia dela, por exercer efe-
lhe impedem de ter uma vida “normal”. O pai, tivamente a profissão.
como militar, manteve seu papel de provedor O início do casamento deste casal é relata-
do lar, cooperando na divisão do tempo com o do por eles como sendo muito bom. Depois
filho mas reivindicando a garantia de seu es- foram surgindo as brigas, contam. Acham-se
paço, sobretudo quando traz um trabalho im- completamente diferentes. A esposa é perfec-
portante para terminar em casa. Ele nutre o cionista e o marido é prático. As diferenças se
gosto pela leitura e quer usufruir momentos acentuaram com o tempo. O marido não que-
de maior interioridade. A mãe, por sua vez, es- ria ter filhos, a esposa estava ambivalente a es-
132
Cavalcante, F.

se respeito. Então, uma gravidez pouco deseja- lia de minha esposa. O casal estava vivendo o
da, após quatro anos de casamento, tornou-se momento de adquirir seus próprios filhos, am-
um evento marcado pela ruptura de sentido, pliar a família, um momento intensamente so-
ruptura de consenso, pelo imprevisto. A lem- nhado e desejado. O parto transcorreu bem.
brança do parto deixou um efeito nebuloso, Os primeiros problemas começaram a apare-
turvo, sem propósito. Num ponto o casal con- cer aos nove meses. Com um ano e meio o be-
cordou: o problema todo é que nosso filho nas- bê recebeu o diagnóstico de autismo, acom-
ceu antes da hora. Com uma gravidez não pla- panhado do seguinte enunciado: autismo não
nejada, um parto difícil, nasce um bebê fora tem cura e nem tratamento. Um grande cho-
de hora que traz, como contraponto, um acú- que fazia seus sonhos ruírem: aí nessa hora deu
mulo de anormalidades. Na história da espo- um nó na cabeça. Uma crise se instala, uma per-
sa, a chegada de um filho com problemas pa- turbação, uma passagem muito dolorosa.
rece adicionar mais decepções a uma vivência A esposa tem lembranças traumáticas da
da existência já marcada pela dor que poten- convivência com seu pai. Ele era violento, be-
cializa as marcas e cicatrizes de sua história bia demais e jogava. Originário da Croácia,
pregressa de sofrimento. Foi o que abstraí de havia fugido de um campo de concentração,
sua narrativa, quando disse: tenho que me reta- logo após o final da guerra. Quando ela tinha
lhar muito para poder lidar com meu filho, por- dez anos, seus pais se separaram. Foi uma se-
tador de deficiência mental. paração difícil. O pai chegou a ameaçar a mãe
Na história do marido, o filho “anormal” com revólver. Os contatos com o pai, após a
materializa motivos para discriminação, rejei- separação, foram penosos, até que ela não quis
ção, reativando ressentimentos arcaicos de sua mais ver o pai. A mãe refez sua vida, casan-
infância, potencializando o reviver de uma do-se com um homem de descendência italia-
possível ruptura familiar já vivenciada. Para na. O padastro foi reconhecido como pai e seus
ele, família é uma fonte de ameaça: dentes que parentes integrados na família. Ele manteve
podem morder a nossa bunda. No senso comum uma convivência familiar muito alegre, crian-
se costuma usar a expressão “chute na bunda”. do no âmbito do lar, um clima de humor sau-
Ele usou, ao invés disso, o verbo morder, a ima- dável. Sua mãe era uma pessoa muito dura,
gem de um ataque que machuca, que fere, que muito pau-pau, pedra-pedra. Segundo ela, não
pode até arrancar pedaço. Por outro lado, ele gostava de falsidade mas fazia o que podia pa-
valoriza quando seu filho é gostado, como pos- ra lhe agradar.
sivelmente desejaria ter sido gostado na infân- O marido veio de uma família disfuncio-
cia, ao invés de ver sua família de origem ex- nal onde havia muita briga. O pai bebia mui-
pulsa, rejeitada, despedaçada, desmantelada. to e era agressivo com ele. Castigava-o com
A presença de um filho “anormal” numa famí- correia, chinelo e cabo de vassoura. Conside-
lia já marcada por cicatrizes da vida parece ter rava-se um saco de pancadas. Seus pais nunca
potencializado vulnerabilidades pessoais de chegaram a se separar. Ao construir sua pró-
cada um, deixando um rastro desagregador. pria família e conhecer a família da esposa, viu
O que chama a atenção na próxima família com entusiasmo a perspectiva de entrar para a
é o efeito de fratria. Tanto a esposa quanto o família dela e conhecer um ambiente de maior
marido ocupam o lugar do primeiro filho, em harmonia.
sua própria fratria. Eles estavam casados há A notícia do diagnóstico de seu primeiro
quatro anos quando decidiram ficar grávidos. filho instaurou grande perplexidade no casal.
Uma gravidez ótima, muito desejada, que da- Autismo não tem cura e nem tratamento foi o
ria lugar ao primeiro neto, primeiro filho, pri- enunciado que pai e mãe registraram na me-
meiro sobrinho, primeiro tudo. Depois de sedi- mória. A fala do médico fotografava a idéia de
mentar uma vida a dois, o casal estava ávido uma doença incurável, portanto a perspecti-
por responder socialmente àquilo que é espe- va de que a doença seria para toda a vida. Es-
rado de um jovem casal: gerar filhos sadios. se enunciado comum na fala médica vem de
Eles estavam aguardando o seu primogênito, um olhar que só vê a doença e só se limita a
aquele a quem era reservado o lugar do pri- falar dela. Ora, a criança não é a doença. A
meiro tudo. A família que nascia nessa união criança é um sujeito onde a doença se mani-
transcendia a visão de família que o pai reti- festa. Dizer que autismo não tem cura e nem
nha de sua infância e adolescência: só fui sa- tratamento produz a impressão de que não há
ber o que é família depois que conheci a famí- nada a fazer nem com a doença, nem com a
133

Ciência & Saúde Coletiva, 6(1):125-137, 2001


criança. Ignora a idéia da plasticidade do orga- te é um dos exemplos de como uma mãe con-
nismo humano que, ao se adaptar às doenças, cebeu em seu psiquismo o nascimento do fi-
pode gerar novas formas de vida (Canguilhem, lho “anormal”. Por dez meses lutou contra a
1990). Tal como foi dito, a informação soa co- enfermidade, e nessa luta foi conhecendo o
mo uma “sentença de morte” por duas razões. “novo” filho, a doença e seus próprios limites.
Primeiro, porque deixa de fora as capacida- Nesse embate nascia uma nova mãe e um no-
des auto-organizadoras da vida, da criança e vo pai. Mais de um luto estava sendo processa-
da família: os tratamentos existem. Segundo, do. O luto do filho idealizado, o luto da mãe
porque produz no sentimento dos pais, uma idealizada e o luto do pai idealizado. Dali pra
idéia de perda fatal, quando em seu imaginá- frente, o casal passou a filtrar melhor as infor-
rio a criança ainda era “normal”, sem lhes dar mações e aprendeu a discernir critérios para
qualquer possibilidade de vislumbrar uma saí- escolha dos tratamentos que considerava mais
da. E assim, numa relação de choque, a famí- eficazes para seu filho. O nó foi se desatando
lia percebe nova condição no ser da criança. na cabeça e na prática. A dor foi encarada, o
Essa circunstância produz um segundo nasci- que parece ter propiciado melhores condições
mento, o nascimento social de uma criança para sua elaboração. Um segundo filho saudá-
“anormal”, que se dá de forma negativa, está- vel nasceu alguns anos depois. A família cres-
tica e preconceituosa. ceu e continua cuidando do desenvolvimento
O momento de se informar o diagnóstico é de ambos os filhos, o mais velho com seis anos
muitíssimo importante e altamente delicado. e um bebê de dez meses. O casal ainda hoje é
Ele instaura um rito de passagem (Geertz, “flagrado” apaixonado. Marido e mulher não
1997) que produz simbolicamente a morte da abriram mão de se “curtir” e investir na famí-
criança idealizada e faz nascer uma nova crian- lia. Esse filho “anormal”, ao contrário do caso
ça, a ser concebida no imaginário dos pais. Es- anterior, produziu um efeito agregador na fa-
sa segunda “gestação” exige tempo, um tempo mília. A dor é um convite à transformação.
psíquico de pelo menos outra gestação. Uma Quando bem-elaborada, fortalece a família,
atitude profissional correta não deveria ser a vivifica os laços familiares, favorece um me-
de transmitir a notícia com indiferença. Pelo lhor desenvolvimento da criança “anormal”.
contrário, o médico deveria dar suporte emo- Vejamos como outra mãe descreve as crian-
cional aos pais, orientá-los sobre a doença e o ças “anormais”, tendo como base a experiência
tratamento, ajudar no discernimento das deci- com seu filho, portador de psicose infantil. Es-
sões a serem tomadas no acompanhamento sas próprias crianças assim com esses problemas
futuro da criança e no apoio à família. Deveria são um livro difícil de você tentar ler, entendeu?
favorecer o luto e a elaboração do nascimen- Você vê de uma forma as figuras, mas a escrita é
to de uma nova vida. totalmente diferente, é como se estivesse mos-
Depois de ouvir o diagnóstico sobre autis- trando uma violência (...) aquela mágoa toda. A
mo, o casal disse: nessa hora deu um nó na ca- escrita é totalmente uma poesia (...) Aquilo ali
beça. Foi difícil pôr a cabeça para processar não tem nada a ver com o que está escrito...
tanta dor. Deu um nó na cabeça. Foi difícil Aquele negócio que você vê assim, as aparências
pensar, foi difícil aceitar a doença, foi difícil enganam... Você está vendo a pessoa de um jei-
discernir que tipo de tratamento poderia ser to e aquela pessoa é totalmente diferente daqui-
feito. Inspirada em sua mãe, que via a vida pe- lo ali. Salta-me aos olhos, inicialmente, a pa-
la ótica do pau-pau, pedra-pedra, a esposa não lavra ‘violência’, palavra complexa e polissê-
se rendeu tão facilmente à sentença dada. Não mica. A imagem de uma criança “anormal” é
deixou por menos o desafio de enfrentar a marcada por uma violação de regras de con-
doença. Iria negá-la duramente até que a doen- duta e expectativas sociais. Uma violação que
ça lhe provasse o contrário.Tirou o filho de pode afetar a integração física, moral, mental
um dos seus primeiros tratamentos, feito com ou espiritual; que se mostra como agressivi-
equipe multiprofissional, e por dez meses ten- dade e produz conflito social; que altera os me-
tou ajudá-lo com as próprias mãos, receben- canismos de adaptação psíquica e psicobioló-
do instruções mensais para treiná-lo em nível gica; que produz insatisfação e confrontação,
psicomotor. Ao final, confirma ela, estava esta- e gera a necessidade de reconstrução de sen-
fada! Exausta! Não vencera a doença. Seria ne- timentos e emoções (Minayo & Souza, 1998).
cessário render-se a ela. Por mais que se esfor- O filho “anormal”, que inspirou esse enuncia-
çasse, não conseguiria recuperar seu filho. Es- do, encontrava-se numa fase muito difícil, com
134
Cavalcante, F.

condutas altamente desorganizadas e agressi- base, um certo estatuto de pessoa “normal” e


vas. Posteriormente, teve grande progresso em relaciona os elementos que se aproximam e se
seu tratamento e sua adaptação psicossocial afastam dele, assinalando aonde as coisas vão
melhorou sensivelmente. Mas esse período crí- bem e aonde não vão: a memória visual é óti-
tico e desagregador foi vivenciado pela mãe ma, boa firmeza nas mãos (...) sono agitado,
como um enigma difícil de decifrar. Diz ela, medo de sirene (...). Ora, é justamente esse es-
você vê uma figura, um rosto, uma face, um cor- tatuto de pessoa que está em jogo, um ideal de
po, uma expressão, mas a escrita é totalmente pessoa “equilibrada”.
diferente. O sentido dos gestos, das falas, dos O que é doença em uma cultura, pode não
atos, dos hábitos, das emoções é totalmente ser em outra. O que é sofrimento em um con-
diferente daquilo que se imagina, é algo ines- texto, pode não ser em outro. Mas em nossa
perado, é um vocabulário estranho, desconhe- sociedade ocidental, o mandato social da “nor-
cido. Esse enunciado produz um efeito de sen- malidade” mantém uma rédea, mais ou me-
tido cheio de descontinuidades, de fraturas do nos rígida, sobre os parâmetros de construção
pensamento frente a um real que se mostra de- de pessoas esperadas. E isso está tão entranha-
salinhado e às avessas.O tom emocional é de do em nosso imaginário social porque nele se
mágoa, de ressentimento, de algo que machu- projeta uma outra face dessa moeda submer-
ca e fere. A escrita é uma poesia ao mesmo tem- sa no mundo interno. Vejamos uma narrativa
po em que nada tem a ver com o que está escri- extraída de uma sessão de psicoterapia de fa-
to. O que fica retido dessa escrita é a perda de mília: temos a sensação de possuirmos ferra-
sentido, a ruptura com a significação e a per- mentas defeituosas que fabricam bebês defei-
plexidade. As aparências enganam, você vê a tuosos (...) Eu me surpreendo com o fato do meu
pessoa de um jeito e aquela pessoa é totalmente filho ser igual a todo mundo por fora e tão di-
diferente. A pessoa diferente confunde, enga- ferente por dentro (...) Meu bebê antes era nor-
na, choca, violenta. Aprender a traduzir esse mal. Tinha problemas que podiam ser melho-
vocabulário estranho, essa língua tão diferen- rados com o tempo. Depois o bebê virou um be-
te é um imenso desafio. Com o passar do tem- bê monstro – ele engana, ele parece que é boni-
po e o tratamento da criança, a dor tende a se to mas não é, eu sinto como se ele fosse um bebê
amenizar no momento em que se pode me- monstro. Ter a sensação de possuir ferramen-
lhor compreender e conhecer a criança, quan- tas “defeituosas” que produzem bebês “defei-
do se sente que é possível aprender a lidar com tuosos” representa a outra face da moeda,
ela no dia-a-dia, quando se descobre que a quando a cultura entranha no sujeito todo um
própria criança tem muito a nos ensinar a seu simbolismo de normalidade e rejeita o dife-
respeito. rente e o desigual. Mais que isso, num univer-
Vejamos, então, outro depoimento: Tem so individualista, o sujeito toma para si a cau-
algo de desequilibrado na cabeça dele, descon- sa e a origem da anormalidade. Uma mãe que
tinuidade. Ele tem ótima memória visual. Fala produz um bebê “defeituoso” é uma mãe que
muito explicado. Um pouco de descontrole nas se sente com um interior alterado, com um
pernas. Muita firmeza nas mãos, é muito agi- útero “anômalo”. Uma mãe que gera um bebê
tado e irrequieto. Quando entra em crise, se mor- “monstro” é uma mãe que também se sente
de, chora. Sono muito agitado. Medo de som, si- “monstruosa”. Um bebê que não é o que pare-
rene! Não se interessa por brinquedos. Leva tu- ce, é um bebê que engana, assusta, horroriza
do à boca. Repete as coisas. Não usa o pronome pois revela uma face “monstruosa” da nature-
‘eu’. Diz sempre ‘você’, ‘seu’. O diagnóstico ain- za humana.
da não está fechado. Há suspeita de autismo. Se o sentimento de um interior “defeituo-
Em poucas palavras, essa mãe consegue des- so” vem a ser uma das faces da moeda, de um
crever os sinais da anormalidade de seu filho, simbolismo que se encarna num indivíduo
em seus próprios termos, demonstrando fa- concreto, interiorizado, com um grau de re-
miliaridade com o jargão Psi. Quando diz há flexividade de si mesmo expandida, então co-
algo desequilibrado na cabeça dele, parece es- mo poderíamos ver a outra face dessa mesma
tar implícita uma pergunta: o que há de dese- moeda, na dimensão da sociedade? Essa outra
quilibrado na cabeça dele? Ela descreve os efei- narrativa nos dá uma pista nessa direção: Só
tos desse desequilíbrio na memória, na fala, que as dores que a gente sente mesmo, as dores
nas pernas, nas mãos, no comportamento, ao que ... na selva de pedra... quer dizer que é a ci-
dormir, ao sentir certas emoções. Toma, como dade, que é a rua, quando a gente sai de dentro
135

Ciência & Saúde Coletiva, 6(1):125-137, 2001


de nossa casa. Por mais humilde que seja, den- recém-construídos. Quando os muros da vi-
tro de nossa casa ... qualquer coisa que um filho da privada se ergueram, no princípio do sécu-
da gente fizer a gente consegue suportar e con- lo XIX, a criança ganhou uma importância afe-
tornar a situação, né? (...) mas quando saem na tiva outrora desconhecida. Intimidade e iden-
rua ... as pessoas não querem nem saber... a rua tidade passaram a ser marcas da família mo-
é uma selva de pedra, as pessoas estão queren- derna. Desde então, tudo o que ocorre com a
do sempre uma atropelar a outra (...) Por mais criança passa a atingir a família (Ariès, 1978).
que a gente tenha amor, tenha fraternidade, a A dor, experimentada por uma mãe no li-
gente não agüenta, a gente fica sobrecarregado dar cotidiano com a anormalidade, é posta em
(...) então fica difícil, sabe, muito difícil... E as palavras nesta narrativa: os pais dessas crian-
pessoas perguntam: Por que que ele é assim? Por ças (“anormais”) acabam virando um bicho de
que que ele está fazendo isso? Por que ele está sete cabeças e se tornando uma pessoa mais in-
fazendo aquilo? E eu nunca sei esse porquê... res- suportável do que os filhos (...) Eu estava con-
ponder a esse porquê... Eu também faço essas tribuindo para deixar ele pior, eu estava agin-
perguntas... O sofrimento instaurador aqui não do errado demais com ele. (...) Se a gente não se
é percebido no interior do sujeito, mas no in- cura dessa doença de dentro da gente primeiro
terior da sociedade. Esta representada como (...) que machuca muito... por dentro (...) pra
‘a selva de pedra’, a rua, o lugar em que as pes- depois tentar curar essa daí de fora, a gente pi-
soas estão querendo atropelar umas às outras, ra. Aqui nós temos um dentro e um fora, e
um lugar onde as pessoas se olham mas não uma dor que precisa ser gerenciada interna-
se vêem, se encontram mas não se reconhe- mente, na consciência de si e externamente na
cem. O lugar do trânsito, dos muitos rostos interação com o outro.
despersonalizados, perdidos na multidão, da Lá, de dentro do mundo interno, sai um
pressa, do corre-corre. O lugar onde as dife- bicho de sete cabeças. Anuncia um combate,
renças ganham visibilidade, são notadas, são um confronto, um grande perigo. Momento
anunciadas e denunciadas : “ Por que que ele é oportuno para se recorrer ao mito de Hércu-
assim? Por que que ele está fazendo aquilo? ” les (Brandão, 1989). Como a Hidra de Lerna,
Aqui a mãe não olha para seu interior. No en- serpente descomunal de sete cabeças, o mons-
tanto, ela também enxerga defeitos – os defei- tro interior se ergue do pântano da dor, da per-
tos dos recursos de que dispõe para lidar com plexidade, da falta de entendimento e apavora.
os desafios de seu filho nesse mundo de exi- Seu hálito pestilento é altamente destruidor
gências selvagens: por mais que a gente tenha como as palavras que saem desnorteadas e
amor, tenha fraternidade, a gente não agüenta, confusas, causando estrago. Quando cortada,
a gente fica sobrecarregado. A vivência de fra- cada cabeça renasce e se duplica, como as an-
casso é aqui sentida na interação social, do gústias que se multiplicam e atormentam ca-
mesmo modo que a “mãe-monstro” se sentia da vez mais. Enquanto o monstro vive, as ca-
fracassando naquilo que concebeu em seu in- beças renascem, assim como a desorientação
terior. Por outro lado, tanto o “bebê-monstro” produz e reproduz um desespero insuportá-
como o “menino-selvagem” da selva-de-pedra vel. O desafio é gigantesco. Com espada e fogo,
ganham visibilidade, notoriedade, por sua di- Hércules mata e cauteriza cada cabeça, levan-
ferença, “monstruosidade” ou “selvageria”, a do a serpente à morte. Como o herói mitoló-
depender do nosso ponto de vista. Se parece gico, é preciso enfrentar a dor e acabar com
monstruoso por dentro, ou selvagem por fo- aquilo que machuca e fere por dentro e por fo-
ra, são duas faces de uma mesma moeda. ra. Com a espada da determinação é preciso
A consciência de um eu que olha a si, numa persistir na busca de ajuda, até encontrá-la. Só
reflexividade, ou a consciência do olhar do ou- curando e cauterizando as feridas o monstro
tro sobre esse eu, em circunstâncias de anor- é vencido, o combate é bem-sucedido.
malidade, parece ter que assumir a força de Não se deve subestimar a complexidade da
uma intensa desmistificação: como demons- perturbação que afeta as famílias, a potência
trar que não se trata de um monstro, nem de e amplitude da dor. O desafio é hercúleo. As
um selvagem? A idéia de “besta endemonia- angústias podem ser avassaladoras e catastró-
da” que pairava sobre os “deficientes”, na épo- ficas devendo, por isso, ser seriamente conside-
ca da inquisição, parece persistir ainda hoje, radas e cuidadas. É de suma importância o
como um fantasma a assombrar os processos apoio à família, para que tenha melhores con-
de subjetivação da maternagem e paternagem dições de dar suporte aos filhos. Como diz
136
Cavalcante, F.

Winnicott (1982), a criança é uma organiza- alternativas e possibilidades de ajuda à crian-


ção em marcha e o mundo precisa ser apre- ça e à família.
sentado em pequenas doses. É preciso conhe- A rotina familiar se altera, alguém na fa-
cer cada criança “anormal” para descobrir um mília passará a ser mais exigido. Alguém, dali
modo, que mais lhe atenda, de lhe ensinar o pra frente, terá que se dedicar mais à criança,
mundo. É preciso muita tolerância para se en- dentro da família. Geralmente a mãe assume
tender que as respostas dessas crianças tam- a “bananosa”, por sua expectativa em prover
bém virão em pequenas doses. Vejamos como uma boa maternagem, em benefício de toda a
uma avó se gratifica com seu neto, portador família. Outras pessoas podem vir a assumir,
de autismo, nas pequeninas conquistas coti- ou a repartir esse “ônus”, a depender dos va-
dianas: lores, do contexto social e do significado que a
São pouquinhas coisas que ele aprendeu mas família constrói para o filho “anormal”. Dali
essas pouquinhas coisas, pra mim, são muito im- pra frente vai haver muito o que aprender,
portantes. Outro dia eu estava dando banho ne- muito o que entender, muito a se avaliar. Inú-
le, o sabonete caiu aí eu: “Pega F.”(neto)! Mas meras perguntas vão surgir, muitas respostas
esqueci de falar “o sabonete”. Aí ele falou: “sa- só virão com o tempo, com a experiência coti-
boete”. Então isso é uma coisinha muito peque- diana. Muita angústia, muita dor, muita per-
na para quem está ouvindo, mas pra mim isto plexidade terão que ser enfrentadas, na via cru-
é imenso, sabe! cis da busca de ajuda. Os vários especialistas e
as diferentes opiniões trarão a pesada angústia
da decisão. Como decidir, quando ainda é tão
Conclusão difícil entender a complexidade do que está
por vir? Como decidir, sem entender direito
A etnografia das narrativas familiares, como alguns especialistas, pouco preocupados em
se pôde ver, enfocou sobretudo as etapas ini- traduzir em palavras simples o problema da
ciais pelas quais a família passa quando des- criança, impacientes ao explicar, tão indispos-
cobre a anormalidade de seu filho. Pretendeu tos a ouvir ?
mostrar a densidade da experiência da famí- Será preciso desenvolver um novo estoque
lia num momento tão difícil de sua vida. A fo- de conhecimento na família. A quem recorrer?
tografia de algumas falas e a descrição de seu Por um lado, temos a herança das gerações
contexto enunciativo me permitiram explorar precedentes, com suas lições de vida, as histó-
a riqueza com que as famílias vivenciam esse rias de suas dores, explicitadas ou guardadas
desafio, sob o seu próprio ponto de vista. em segredo. Nessas histórias ou mitos fami-
O momento do diagnóstico é delicadíssi- liares (Prado, 1999) iremos encontrar ferra-
mo. As palavras que serão ditas terão efeito mentais psíquicos, valores, modelos de iden-
performativo, ou seja, irão se transformar em tificação que poderão nos auxiliar ou não. As
ato. O ato de dizer que aquela criança possui cicatrizes do passado podem nos fragilizar ou
uma deficiência na hora do diagnóstico irá nos fortalecer. Depende do que eu consegui fa-
transformar a criança “normal” numa crian- zer do que fizeram de mim (Sartre, 1980). Por
ça “anormal”. Irá instaurar um rito de passa- outro lado, temos a sociedade, com suas alter-
gem, muitíssimo doloroso, que requer tempo nativas. Pode-se recorrer a elas e/ou tentar in-
para ser processado: tempo para se recuperar ventar novas soluções, quando vários pais se
de um corte irreversível; tempo para se con- organizam por uma causa social comum.
ceber uma nova criança no psiquismo da fa- Não se pode subestimar a importância do
mília; tempo para se descobrir o que é ser pai apoio que deve ser dado à família. Este ponto
e mãe de uma criança com anormalidades é crucial. O desafio é hercúleo. A desorienta-
mentais tão precoces. A revelação do diagnós- ção, a confusão, o desespero podem produzir
tico não pode ficar restrita apenas a uma fala “bichos de sete cabeças”. É preciso dominar
informativa, indiferente de quem fala em re- esses monstros, e também aqueles que ainda
lação a quem escuta. Ela precisa ser feita a par- estão entranhados no imaginário social. Ao
tir de uma compreensão global da família e invés de ver nestas crianças diferentes “mons-
das dificuldades intrínsecas a esse momento. tros” ou “selvagens”, deveríamos procurar co-
As reações à dor serão inevitáveis. O acolhi- nhecê-las mais de perto, descobrir com elas a
mento, o apoio, uma orientação clara serão invenção de seu mundo e reinventarmos o nos-
fundamentais. É preciso mostrar quais são as so mundo, para que elas se tornem persona-
137

Ciência & Saúde Coletiva, 6(1):125-137, 2001


gens de nossas vidas. Este olhar estranho é re-
sultante de um olhar social, avesso às diferen-
ças, que acaba sendo reencontrado no interior
daqueles que sofrem o seu reflexo, que ficam
como espelhos dessas crianças na sociedade. Os
pais reencontram dentro de si o “monstro” ou
o “selvagem” quando recebem, na pele, toda a
carga da discriminação social. O que se preci-
sa dominar e combater com veemência é a ser-
pente da discriminação. Esta sim, é perigosa e
deixa um rastro de destruição por onde passa.

Referências bibliográficas
Aguiar MJB 2000. O profissional e a família. Curso para DSM-IV 1995. Critérios diagnósticos. Artes Médicas,
compreender a deficiência, Salgado MI & Valadares Porto Alegre, 340 pp.
ER (orgs.). Promovido pelo Centro de Extensão da Ducrot O 1987. O dizer e o dito. Ed. Pontes, Campinas,
Faculdade de Medicina da UFMG. 220 pp.
Ajuriaguerra J 1980. As psicoses infantis, pp. 665-722. Faustino S 1995. Wittgenstein, o eu e sua gramática. Edi-
Manual de psiquiatria infantil. Ed. Masson do Brasil, tora Ática, São Paulo, 120 pp.
Rio de Janeiro. Foucault M 1995. As palavras e as coisas.Ed. Martins
AMA/SP 2000. Você sabe o que é o autismo ? Revista dos Fontes, São Paulo, 407 pp.
Amigos. Uma publicação da Associação de Amigos do Gergen KJ 1994. Realities and relationships. Soundings
Autista 1(1): 22-24. in social construction. Harvard University Press,
Ariès P 1978. História social da criança e da família. Ed. Cambridge, Massachusetts, e Londres, 356 pp.
Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 279 pp. Geertz C 1997. O saber local. Ed.Vozes, Petrópolis.
Assumpção Jr. FB & Sprovieri MH 2000. Introdução ao Geertz C 1989. A interpretação das culturas. Ed. Guana-
estudo da deficiência mental. Memnon, São Paulo, bara, Rio de Janeiro.
164 pp. Lèvi-Strauss C 1990. Aula inaugural. In Guimarães AZ
Bakhtin H 1979. Marxismo e filosofia da linguagem. (org.). Francisco Alves Ed, Rio de Janeiro.
Problemas fundamentais do método sociológico na Linton R 1987. O homem: uma introdução à antropolo-
ciência da linguagem. Ed. Hucitec, São Paulo, 182 pp. gia. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 470 pp.
Basso, EB 1990. Native Latin American cultures through Minayo MCS & Souza ER 1998. Violência e saúde co-
their discurse. Indiana University Press, Blooming- mo um campo interdisciplinar e de Ação coletiva.
ton, 175 pp. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, IV(3): 513-
Benveniste E 1974. Problèmes de linguistique gènèrale. 531.
Gallimard, Paris, 413 pp. Pedro MCCA 1999. Destino e mito familiar: uma questão
Bourdieu P 1982. Les rites comme actes d`instituition. da família psicótica.Vetor, São Paulo, 226 pp.
Actes de la recherche en sciences Sociales: juin; 58-63. Rorty R 1994. A filosofia e o espelho da linguagem. Re-
Bourdieu P 1996. A ilusão biográfica, pp. 181-191.In lume-Dumará, Rio de Janeiro, 386 pp.
Ferreira MM & Amado J (orgs.). Usos e abusos da Santos BS 1997. Um discurso sobre as ciências. Edições
história oral. Ed. Fundação Getúlio Vargas, Rio de Afrontamento, Porto, 57 pp.
Janeiro. Sartre JP 1980. Questão do método em Sartre. Os pen-
Brandão JS 1989. Mitologia grega. Vol. I, III. Ed. Vozes, sadores. Ed. Abril Cultural, São Paulo, 191 pp.
Petrópolis. Schutz A 1971. Concept and theory formation in the
Camargo Jr.W 2000. Deficiência e educação (coord.). social sciences. Sociological perspective, Peguin Books.
Curso para compreender a deficiência, Salgado MI Middlessex.
& Valadares ER (orgs.). Promovido pelo Centro de Silva MGV 2000. Acompanhamento familiar: uma pro-
Extensão da Faculdade de Medicina da UFMG. posta institucional. I Mostra de Experiências de
Canguilhem G 1990. O normal e o patológico. Ed. Fo- Sucesso: trabalho com famílias. Prefeitura do Rio de
rense Universitária, Rio de Janeiro, 307 pp. Janeiro/SMDS.
Cavalcante FG 1996. A gramática da criança “anormal” Stegmüller, W. Filosofia II, pp. 430-524. A filosofia con-
na narrativa familiar. Um estudo etnográfico. Dis- temporânea: introdução crítica. Ed. USP, São Paulo.
sertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação Winnicott DW 1982. A criança e o seu mundo. Ed. Gua-
em psicologia e práticas socioculturais da UERJ, Rio nabara Koogan, Rio de Janeiro, 270 pp.
de Janeiro, 246 pp. Wittgenstein L 1979. Investigações filosóficas. Ed. Abril
Costa JF 1994. Pragmática e processo analítico: Freud, Cultural, São Paulo, 222 pp.
Wittgenstein, Davidson, Rorty, pp.9-60. In JF Cos-
ta (org.). Redescrições da psicanálise: ensaios prag-
máticos. Relume-Dumará, Rio de Janeiro.

S-ar putea să vă placă și