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identidades ambivalentes

Monica Grin
Michel Gherman

identidades ambivalentes
Desafios aos estudos judaicos no Brasil
© 2016 Monica Grin e Michel Gherman Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos
Prefácio – Dr. David Lehmann9
Produção Editorial
Ana Cecília Menescal Identidades ambivalentes:
Rodrigo Fontoura
Estudos judaicos no Brasil e seus dilemas 21
Revisão Monica Grin
Léa Lessa Michel Gherman

apoio:
tradição e religiosidade
Programa de Pós-Graduação em História Social da Política e religião em Israel e na diáspora:
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ppghis/ufrj) o caso do fundamentalismo judaico 31
Michel Gherman
Monica Grin

Deus e Diabo na Terra Santa: pentecostalismo brasileiro em Israel 51


Michel Gherman
cip-brasil. catalogação na publicação
sindicato nacional dos editores de livros, rj
holocausto
g876i

Grin, Monica
Jean Améry e o direito ao ressentimento 77
Identidades ambivalentes : desafios aos estudos judaicos no Brasil / Monica Grin, Monica Grin
Michel Gherman. – 1. ed. – Rio de Janeiro : 7 Letras, 2016

isbn: 978-85-421-0540-7
Educar Pós-Auschwitz 89
1. Judeus – Historia. 2. Judeus – Identidade – História. 3. Judaísmo – História.
Michel Gherman
I. Gherman, Michel. II. Título.
judeus no brasil
17-39939cdd: 305.8924 cdu: 316.347(=411.16)
Setor judeu do Partido Comunista:
memórias de Judeus de Esquerda no Rio de Janeiro 103
Michel Gherman
2016
Viveiros de Castro Editora Ltda. Modernidade, identidade e suicídio: o “judeu” Stefan Zweig
Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320 – Ipanema
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902 e o “mulato” Eduardo de Oliveira e Oliveira 137
Tel. (21) 2540-0076 Monica Grin
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Racismo e Etnicidade:
encontros e desencontros entre negros e judeus no Brasil 153
Monica Grin

Judaísmo e o Censo de 2010 165


Monica Grin
Michel Gherman

O soldado e o sobrevivente:
desafios do estudo da Shoá no Brasil 177
Michel Gherman

sionismo, palestinos e o conflito árabe-israelense


Valsa com Bashir e o massacre de Sabra e Chatila:
entre a amnésia política e a responsabilidade da memória 195
Michel Gherman

Entre a Nakba e a Shoá:


usos políticos de catástrofes em narrativas nacionais 207
Michel Gherman

sobre os autores229

Para Jaime S.

Para meus pais, Milton e Renata


Prefácio
Dr. David Lehmann
Cambridge University

Interpretações acerca do significado da presença judaica em qualquer país


são uma questão complexa, tanto para os próprios judeus como para os não
judeus. Esse quadro se explica porque as populações judaicas são variadas e
seus múltiplos segmentos se relacionam entre si de formas variadas. Além
disso, deve-se considerar a forma como cada um desses segmentos se rela-
ciona com a população em geral e com seus diversos segmentos. Como
resultado, deve-se tratar o tema da presença judaica a partir de múltiplas
perspectivas, sob diferentes pontos de vista, que leve em conta influências
externas, mantendo uma abordagem aberta e cosmopolita.
Ao se buscar uma interpretação do lugar ocupado pelos judeus em
um determinado contexto, há que se ter algumas perguntas em mente:
Em que os judeus diferem de outros subgrupos definidos por religião ou
por etnicidade? Eles apresentam relações mais complexas e multifacetadas
entre si ou com os outros, não judeus?
As respostas a essas perguntas dificilmente serão simples: escrito-
res, artistas, músicos, políticos e acadêmicos judeus produziram um rico
conjunto de fontes e argumentos sobre seu lugar no mundo e na história
e sobre suas relações intracomunitárias e com os outros. Quanto mais
diversificada, quanto maior as discordâncias e tensões, mais difícil será
responder àquelas perguntas; o reconhecimento do caráter complexo e
multifacetado da interação em questão já é um bom começo.
O livro de Monica Grin e Michel Gherman é, nesses termos, um
bom começo; eles escolheram uma variedade de tópicos, muitos dos
quais devem provocar surpresas em leitores esperando um guia para o
judaísmo brasileiro. Eles evitam termos que seriam óbvios na Europa ou
na América do Norte, tais como ortodoxia versus observância liberal (ou

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não observância), sefarditas versus ashkenazitas, ou diferentes atitudes em Os casos de Zweig e de Oliveira e Oliveira indicam, de forma indi-
relação à política israelense e ao sionismo. Embora a população judaica do reta, os desfechos possíveis que surgem ao lado, ou melhor, à sombra, da
Brasil apresente menor complexidade política comparada a outros países, famosa receptividade brasileira. Refiro-me à aceitação no Brasil de raças
devido em grande medida ao seu pequeno número (pouco mais de cem e nacionalidades de todo o mundo, como aparece em citação do livro de
mil), e também ao seu discreto perfil político-eleitoral, as características Zweig: Brasil: país do futuro. Entretanto, como ocorre em qualquer país,
específicas do Brasil no campo da religião e das relações étnico-raciais por mais sincero que seja o seu abraço, pessoas de fora acabam por ter
colocam a presença judaica numa perspectiva muito interessante. que enfrentar um escudo ou uma tela de proteção. No Brasil e na América
O livro investiga temas usuais, tais como: a estagnação ou mesmo o Latina a receptividade é mais evidente no contexto das relações familia-
declínio da população judaica brasileira, devido à baixa taxa de natalidade res, que são, para grande parte das pessoas, uma prioridade em termos de
e aos casamentos mistos; a crescente conscientização pública a respeito uso de tempo e recursos. Aniversários, casamentos, funerais, almoços de
do Holocausto, ocorrida através de projetos educacionais e de eventos domingo e churrascos são muito importantes e frequentes.
comemorativos; a influência da ultraortodoxia, em grande parte através Não são apenas os estrangeiros que podem se sentir sozinhos ou dei-
do doutrinamento habilidoso da seita chassídica Lubavitch-Chabad,1 na xados de lado; há também os que não se “encaixam”. Entre esses, como se
contracorrente de um declínio na observância religiosa de forma geral. observa em muitos países, estão também os imigrantes que tiveram alguma
Os autores reservam atenção valiosa a temas menos comuns, como: mobilidade social, e que graças a seu talento intelectual, sua dedicação ao
o fascínio por Israel pela vasta população evangélica do Brasil (cerca de trabalho ou sua perspicácia para negócios, encontram-se em ambientes
quarenta milhões, ou vinte por cento da população) e o papel de destaque sociais alheios, onde nem eles nem os demais se sentem completamente
desempenhado pelos judeus no tradicional Partido Comunista (Stalinista confortáveis. Embora os judeus sejam muito acostumados a esse tipo de
ou imediatamente pós-Stalinista), quando este tinha ainda força política situação, aqui esse desconforto é identificado em Eduardo de Oliveira e
considerável dentro da comunidade judaica. Neste contexto, o presente Oliveira, um homem negro batendo à porta da universidade numa época
livro aborda uma variedade de assuntos debatidos por intelectuais judeus em que rostos negros eram raramente percebidos entre estudantes e, menos
no Brasil e em outros lugares, além de contar também com outros temas ainda, entre professores universitários (ele se mata em 1980).
raramente tratados. Eduardo de Oliveiura e Oliveira foi um dos primeiros a defender
Os autores apresentam considerações a respeito dos judeus e do certo essencialismo negro, que acabou por se tornar bastante popular nas
judaísmo no Brasil com artigos sobre temas clássicos e contemporâneos últimas décadas. Seu suicídio é lembrado por poucas pessoas pertencen-
ligados ao interminável conflito Israel/Palestina. Além disso, há no livro tes ao que podemos chamar de “geração dos anos 60”. Como exemplo,
reflexões filosóficas a respeito do Holocausto – tema amplamente discutido podemos trazer o trecho de uma entrevista recente feita com o historiador
no Brasil que conta com crescente número de publicações, tanto originais Thomas Skidmore que assim descreve Eduardo de Oliveira e Oliveira: ele
como traduzidas. Monica e Michel também incluíram na obra mais tragé- era extremamente angustiado, odiava o termo “mulato”, e aqueles que o
dias pessoais do que se poderia esperar: do Brasil, o artigo sobre os dilemas cercavam na comunidade sociocientífica sentiam-se bastante desconfor-
da raça tanto para Stefan Zweig e sua esposa, quanto para o sociólogo negro táveis em relação a ele, à insistência em sua condição de vítima de discri-
Eduardo de Oliveira e Oliveira; da Europa surgem as histórias de Primo minação e à sua provável condição depressiva (Dávila e Morgan, 2008).
Levi e de Jean Améry, autores de pensamentos profundos e contrastantes Vinte anos depois, no contexto atual de conquistas do movimento negro,
a respeito do Holocausto, ou seja, do seu significado e suas consequências. é possível imaginar que Eduardo de Oliveira e Oliveira encontrasse um
1 A seita Lubavitch tem o nome da cidade natal de seu rabino fundador (ou Rebbe na sua nicho, um ambiente de pertencimento.
atual forma em ídiche). É também conhecida como Chabad, um acrônimo composto por Zweig por sua vez tinha apenas coisas positivas a dizer sobre o Brasil,
três palavras de ordem em hebraico: Chochmá (sabedoria), Biná (compreensão) e Daat
(discernimento). para onde viajou em 1940 saindo de Nova York, retornando numa segunda

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viagem e ainda em uma terceira, esta definitiva, quando se estabeleceu no A diferença é que Améry fala sobre si mesmo e sobre o sofrimento
país. Sua estadia no Brasil acabara por ser breve, já que ele e sua esposa se pessoal que o atingiu diretamente, mas que também atingiu a milhões
suicidaram em Petrópolis no ano de 1942. de outras pessoas. As atuais demandas por justiça racial certamente têm
Sua carta de suicídio, de escrita cuidadosa e em tom racional, falava origem na condição de vítima, ou seja, dos que são vítimas de discrimi-
do Brasil de forma esfuziante; apesar disso, Zweig deixou registrado em nação. Cabe indagar, no entanto, o quanto as pessoas responsáveis por
sua carta que não tinha forças, aos sessenta anos, para começar uma nova essa demanda são elas próprias vítimas. Essa é uma variável importante.
vida. Importante notar que a carta não mencionava sua esposa, que mor- Eduardo de Oliveira e Oliveira sentiu sua própria condição de vítima de
reu ao seu lado. A carta de despedida de Stephan Zweig é uma afirmação forma dolorida e profunda. Isto não era apenas uma questão de estatística.
de um homem para quem a vida privada não era suficiente: em um novo Hoje, aqueles que demandam justiça racial no Brasil são, entre outros, pes-
país, cuja língua ele não falava, Zweig dava sinais de que não seria possível soas que sofreram humilhações na própria pele, pessoas impedidas de pro-
vislumbrar um lugar para si, mesmo tendo recebido muitas manifestações gredir por causa de uma desvantagem transmitida por gerações, e pessoas
públicas de admiração. Além disso, Zweig parece ter pouco interesse na que demandam uma reparação pelas injustiças e violência cometidas con-
comunidade judaica local, embora essa tivesse de várias maneiras valo- tra seus antepassados durante a escravidão. O ressentimento dos descen-
rizado a sua presença; ao invés de ir para os bairros com maior presença dentes das vítimas em relação aos descendentes dos malfeitores é bastante
de judeus do Rio de Janeiro daquela época, ele escolheu viver na cidade comum no Brasil, como em outras partes do mundo. Se é correto afirmar
imperial de Petrópolis – talvez mais saudável, mas não muito receptiva à que existem meios racionais, quase burocráticos, de realizar a reparação, é
presença de um refugiado mittel-europäisch.2 também correto dizer que tais meios não logram lidar com a dimensão do
Tanto Oliveira e Oliveira quanto Zweig, cada um ao seu modo, “não sofrimento, profundamente emocional, presente nessas demandas.
se encaixaram”, e Oliveira e Oliveira era obsessivamente ressentido, outro O ressentimento pode alimentar a institucionalização do lugar da
tema explorado neste livro por Monica Grin. A discussão sobre Jean Améry vítima. Alguns intelectuais ligados ao Movimento Negro no Brasil pro-
(nascido Hans Mayer em Viena), que também envolve Hannah Arendt e movem a consciência negra para pessoas que não têm “assumido” a sua
Primo Levi, traz novamente a questão do ressentimento, mas, aqui, no negritude. Relacionam, ademais, o acúmulo de sofrimento ao reconheci-
contexto do Holocausto. Durante a Segunda Guerra Améry foi capturado, mento da vitimização herdada, demandando que se reparem as injustiças
torturado e levado a diferentes campos de concentração. Entretanto, ele perpetradas pela discriminação racial. As injustiças são reais e não está em
conseguiu escapar algumas vezes e sobreviveu. Améry começou a publicar questão que os governos precisam reduzir a exclusão racial e promover a
suas reflexões tardiamente. punição a todo e qualquer ato discriminatório.
Enquanto Arendt e Levi observam o ressentimento como uma ati- Isto nos conduz à difícil questão dos limites da vitimização: o sentido
tude autodestrutiva, Améry justifica seu direito ao ressentimento e sua do ressentimento e da vitimização contribui para a promoção da pressão
recusa em perdoar ou em esquecer. Essa questão acerca do ressentimento política que é necessária se algo é para ser feito em defesa das pessoas que
surgiu no Brasil, nos últimos anos, quando a discussão pública abrigou estão verdadeiramente em desvantagem em razão da herança da escravi-
questões raciais como nunca havia ocorrido antes, mas como vinha sendo dão ou da exclusão racial. Em algum momento, com a passagem do tempo
registrado em muitos outros países desde meados do século XIX. e das gerações, a perpetuação da retórica da vitimização pode se tornar
injustificável e talvez contraprodutiva. Não são poucas as pessoas – com
boas ou más intenções – que falam isso a propósito da memória da Shoá.
2 N.T.: Mantido no idioma usado no texto original. O termo alemão Mittel-europäisch, para Temos que lembrar constantemente – como os clássicos trabalhos de
além do significado literal de “originário da Europa Central”, possui uma conotação polí-
tica. O termo remonta ao século XIX e está associado aos projetos políticos ligados à união
Richard Sennett e William Julius Wilson nos advertem – que as injúrias de
pan-germânica. classe são reais e também são herdadas (Wilson, 1987; Cobb and Sennett,

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1993 [1972]; Sennett, 1999). De um certo ponto de vista, as classes sociais política de identidade ligada à vitimização. Se para as lideranças negras
parecem exercer menos poder sobre o imaginário popular do que raça, isso parece simples, para os judeus a situação parece bastante distinta.
etnicidade e religião; mas, de um outro ponto de vista, elas continuam Populações judaicas não podem ser definidas como vítimas de discri-
a promover uma preocupante reação por parte daqueles que dizem que minação sistemática ou de preconceito no Brasil, e mesmo que tenham
também sofreram injustiças, mas que são ignorados e deixados para trás sido convidados, surpreendentemente junto a palestinos e outros, para
em favor das demandas relativas à raça e ao reconhecimento. participar de órgãos governamentais de combate ao racismo (a SEPPIR –
Michel Gherman contrasta esse tipo de desafio com um outro, o da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, estabelecida em 2003), eles,
educação após o Holocausto, assumindo a recusa de Adorno em mencio- ao mesmo tempo, fazem parte da população branca brasileira, e em mui-
nar os judeus em seu Educação após Auschwitz. A proposta de Adorno tos aspectos, da elite branca. Isso se aplica até mesmo ao grande número
era defender a relevância universal do Holocausto e evitar, pode-se dizer de judeus sefaraditas no Brasil.
de forma quase obsessiva, a sua particularização, ao ligá-lo tão profun- Monica Grin sugere que os representantes da comunidade judaica
damente aos judeus. Escrevo isso alguns dias após o presidente dos EUA, que assumiram posições firmes contra o racismo podem ter se equivo-
Donald Trump, ter sido criticado por não mencionar os judeus em seu cado. Ao contrário de apenas manifestarem solidariedade aos movimen-
discurso no “Dia da Lembrança do Holocausto”, e por ter se recusado a tos negros contra a discriminação racial, eles participam de órgãos do
corrigir a omissão – o que ilustra a atual controvérsia acerca da questão. governo que buscam garantir os direitos coletivos de grupos raciais na
Para Adorno, e de fato para Michel Gherman, a tarefa da educação para o suposição de que são tão vítimas como os negros, ou que assim são vistos
Holocausto não é a de reconhecer os judeus como merecedores de reco- no Brasil. Esta seria uma atitude semelhante à que levou esses mesmos
nhecimento especial,como herdeiros daquele sofrimento, e sim de imbuir representantes judeus a participar da inauguração do Templo de Salomão
as novas gerações de uma consciência que garantirá que algo assim não se da Igreja Universal, em 2014.
repita. (Pode-se acrescentar que em breve falemos sobre “educação após A população negra brasileira ainda sofre as consequências da exclu-
Aleppo, após Mosul ou Palmyra...”). são de seus antepassados, assim como enfrenta padrões atuais de estereo-
Questão similar surge no caso daqueles grupos que falam em nome da tipagem racial amplamente velada, além de atos de discriminação racial
população negra do Brasil. Tais grupos exigem o reconhecimento enquanto (principalmente nas mídias sociais), enquanto que a população judaica,
vítimas e propõem políticas que visam desfazer o padrão de discriminação neste momento, possui outros problemas. A participação da Conib na
que os impede de avançar. E como diz Michel Gherman, o desenvolvi- Secretaria de Promoção da Igualdade Racial ilustra novamente a diferença
mento da História da África no currículo escolar deveria reduzir a posição entre o Brasil e outros países, em muitos dos quais seria improvável encon-
de primazia que a escravidão ocupa como instituição fundamental para a trar organizações judaicas aderindo a estas iniciativas em pé de igualdade
formação da identidade negra, dando lugar a uma ancestralidade menos com negros e outras minorias.
humilhada. Auschwitz, não devemos esquecer, não é “apenas mais um Como se não bastassem ironias, conforme observaremos a seguir, é
caso” de discriminação racial, justamente porque constituiu-se em genocí- considerado de bom gosto no Brasil que pessoas se declarem descenden-
dio, ou seja, em tentativa deliberada de pôr um fim a todo um povo. Ainda tes dos marranos, os convertidos à força que foram expulsos de Portugal
assim, a história da discriminação contra negros e outros grupos é tão uni- no século XVI e se uniram à colonização do Brasil, tomando parte em
versal quanto a necessidade de se educar depois de Auschwitz. empreitadas sanguinárias, como descreveram Nathan Wachtel e Anita
Ambos os autores discutem separadamente no livro a relação entre Novinsky (Novinsky, 1972; Wachtel, 2009). Além disso, como descrito a
judeus e a questão negra no Brasil. Falo sobre “questão negra” porque seguir, enquanto a maior parte das pessoas fala disso de forma especula-
Monica e Michel não argumentam que haja qualquer tensão entre judeus tiva, quase jocosa, essas afirmações são feitas com seriedade absoluta por
e negros. Monica tem plena consciência da tensão ocasionada por uma alguns evangélicos.

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Para completar, as atuais comunidades judaicas “oficiais” descendem poucas conexões com o judaísmo; no entanto algumas igrejas evangélicas
de imigrantes do século XX, enquanto os descendentes dos marranos acreditam que é de grande importância se estabelecerem na terra.
“colonizadores” fazem parte do restante da população. Imagine se alguém Tais grupos pentecostais conseguiram realizar a conversão de um
levantasse essa bandeira, acusando os judeus de serem autores dos massa- pequeno número de judeus israelenses. Estes novos convertidos passam
cres de indígenas brasileiros... a ser úteis, já que conhecem a língua e podem viver legalmente no país.
Tanto Monica Grin como Michel Gherman evitam questões espi- Para além disso, seu judaísmo parece ter pouco valor. As Igrejas evangé-
nhosas a respeito das atitudes dos brasileiros em relação às políticas do licas brasileiras em Israel parecem ter como alvo principal os imigrantes
governo israelense, que por vezes ganham espaço na mídia. Acho que eles russos, especialmente aqueles com dificuldades financeiras. Eu mesmo
têm razão, pois isso os arrastaria para o terreno estéril e por vezes amargo participei de serviços em russo no espaço da Igreja Universal, no bairro
das falsas dicotomias que assolam essas discussões. No entanto, eles ofe- pobre próximo ao terminal rodoviário de Tel Aviv.
recem capítulos referentes à política israelense. Em um deles, os autores Diferentemente de algumas congregações judaicas messiânicas no
descrevem o poder da ultraortodoxia como uma ilustração do caráter Brasil, que adotam cada detalhe da liturgia judaica, reunindo entre seus
heterogêneo e de fato conflitante da atual política israelense e da política seguidores muitos que se dizem descendentes de marranos, as igrejas
religiosa judaica. Dada a dificuldade de se explicar estas complexidades, evangélicas mantêm as suas próprias liturgias, especialmente no caso da
que são frequentemente um mistério para um público formado por não Igreja Universal do Reino de Deus. Embora essa Igreja tenha construído
judeus, espera-se que esse livro ganhe ampla difusão no Brasil. recentemente um suntuoso “Templo de Salomão” em São Paulo (2014),
Michel também retoma o tema da complexidade da sociedade e embora ela encoraje seus pastores a usar itens da indumentária judaica
israelense na sua descrição da plateia em uma projeção do filme Valsa como barba, xales de reza e solidéus, ela não demonstra nenhum interesse
com Bashir – uma animação de grande sucesso – na cidade de Bersheba, na liturgia judaica em si. Além disso, os brasileiros que frequentam os seus
espaços em Israel são, na descrição de Michel Gherman, bastante ignoran-
cidade de baixa renda cuja população se imaginaria tendendo à direita no
tes em relação ao judaísmo, por vezes falando sobre israelenses em duros
espectro político israelense. Com base em material documental, o filme
termos, reminiscentes de estereótipos que é melhor nem lembrar. Ainda
aproxima o espectador do terrível massacre nos campos de refugiados
assim, há pastores e bispos da Igreja que aprenderam hebraico de forma
em Sabra e Shatila, que ocorreram durante a invasão do Líbano em 1982,
excepcional durante sua estadia em Israel.
mostrando como o massacre fora facilitado pelas tropas israelenses e com
Podemos ver nos parágrafos acima como os temas judaicos penetra-
a cumplicidade de Ariel Sharon, então Ministro da Defesa. O público no
ram nas áreas mais recônditas da cultura popular brasileira. As sinagogas
cinema lotado ficou emudecido, e permaneceu preso aos assentos mesmo
messiânicas atraem a classe média e baixa advindas mais de cidades peque-
após o fim da projeção, como a se recuperar da experiência.
nas do que das grandes capitais, e se esforçam bastante para penetrar nesse
De todos os relatos do livro a respeito da relação entre brasileiros e
espírito do “outro” que é o judaísmo. Elas desenvolveram uma subcultura
a cultura judaica, a parte mais intrigante e original se encontra na descri-
própria, que seria destruída caso eles se convertessem oficialmente, ou,
ção dos brasileiros evangélicos em Israel. A fixação evangélica no Velho
pior ainda, se imigrassem para Israel. Por outro lado, a Igreja Universal
Testamento, nas caminhadas épicas dos filhos de Israel e nos profetas con- tem milhões de seguidores pelo mundo e uma presença política e midiá-
clamando a ira divina sobre um povo eternamente errante (“de duro cerviz”, tica de destaque no Brasil, onde se encontra a sua base; seus espaços em
como diz a Bíblia) e que se desvia de seus comandos é algo bem consolidado, Israel, embora sejam motivo de orgulho, não possuem um status significa-
bem como o suporte evangélico ao Estado de Israel. Mas hoje as igrejas e tivo. Na portentosa cerimônia de inauguração de seu templo em São Paulo,
seus seguidores vão além, e no Brasil esta relação ocorre de diversas for- lideranças da comunidade judaica estiveram presentes e foi realizada uma
mas. Elas possuem relações superficiais com a sociedade israelense e muito recepção especial para os representantes do “povo escolhido”. No entanto o

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ato teve pouco sentido religioso. O objetivo maior provavelmente foi o de referências bibliográficas
consolidar seu status como instituição nacional, o que ela de fato é.
COBB, Jonathan; SENNETT, Richard. The Hidden Injuries of Class. New York:
A presença judaica na vida intelectual brasileira é bastante significa- Norton, 1993 [1972].
tiva, e é representada aqui lateralmente pelo relato fascinante de judeus no
DÁVILA, Jerry; MORGAN, Zachary. Since Black into White: Thomas Skidmore on
antigo Partido Comunista durante o período entreguerras. Eu digo “late- Brazilian Race Relations. The Americas, 64(3): 409-423, 2008.
ralmente” porque o partido era uma organização predominantemente de
NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972.
classe média com ligações com os sindicatos e com círculos de operários
SENNETT, Richard. A Corrosão Do Caráter. São Paulo, Record, 1999.
e trabalhadores. Os judeus comunistas eram o que pode ser chamado de
WACHTEL, Nathan. A fé na lembrança, EDUSP, 2009.
intelectuais populares.
Não é por acaso que a sua organização fundadora foi uma biblioteca WILSON, William Julius. The Truly Disadvantaged: the inner city, the underclass
and public policy, Chicago University Press, 1987.
nomeada em homenagem ao famoso escritor ídiche Sholem Aleichem.
Por um tempo os judeus tiveram até mesmo uma seção separada, embora
isso parecesse ocorrer por razões de segurança. Os judeus também paga-
ram um alto preço durante o período da repressão de Vargas, perdendo
diversas pessoas na ofensiva/ataque da Praça Onze em 1935. Importante
lembrar que isso é parte de um padrão de imigração judaica: os partidos
comunistas dos EUA, da Argentina e da África do Sul tiveram uma pre-
sença judaica significativa composta de imigrantes do leste europeu e seus
filhos. Que eu saiba, havia poucos judeus da Europa Ocidental entre eles.
Entre os filhos daquela geração – não apenas as pessoas de esquerda –
encontram-se muitos membros de destaque da elite acadêmica brasileira.
Finalmente, em seu capítulo sobre o censo de 2010 – e que é muito
mais abrangente do que o título sugere – Monica Grin e Michel Ghrerman
delineiam as muitas correntes e tendências que coexistem na pequena
comunidade judaica “oficial” – isto é, sem considerar os judeus messiânicos
que eu mencionei acima. Para além das divisões comuns no judaísmo, os
autores observam, novamente aqui, uma tendência particularmente bra-
sileira de misturar tradições cabalistas com a “cultura carioca”, o que deve
estar ligado às práticas espíritas que há mais de um século ocupam um
espaço significativo na cultura urbana brasileira em todos os níveis sociais.
O artigo também observa um alto grau de tolerância aos casamentos mis-
tos, o que permite que não judeus tornem-se membros de comunidades
formais e informais. Ao lado da presença excêntrica de igrejas evangélicas
brasileiras, e de congregações messiânicas no Brasil, esta é mais uma ilus-
tração das características locais distintas da presença judaica no Brasil.

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Identidades ambivalentes:
Estudos judaicos no Brasil e seus dilemas
Monica Grin
Michel Gherman

introdução
A presente coletânea é uma mostra representativa de uma década de refle-
xão individual e coletiva, mobilizada por experiências bem concretas:
salas de aula, cursos regulares na graduação e na pós-graduação, edição
de periódico (a Revista Digital do NIEJ), cursos de extensão, laboratórios,
Jornadas de Estudos judaicos e grupos de estudos. Todas elas abrigadas,
desde 2008, na nossa mais dileta criação: o Núcleo Interdisciplinar de
Estudos Judaicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIEJ/UFRJ).
O NIEJ foi criado em 2008, no Instituto de História da UFRJ, em res-
posta às demandas de estudantes, cada vez mais interessados nos temas
relacionados ao campo dos estudos judaicos, especialmente Holocausto,
Judeus no Brasil e Oriente Médio. Pode-se dizer que a experiência do NIEJ
tem sido bem-sucedida, levando-se em conta as dificuldades das universi-
dades públicas no Brasil. É claro que grande parte dos esforços pela manu-
tenção das atividades do NIEJ, deve-se às ações de seus coordenadores,
pesquisadores associados e estudantes. Desde a sua criação, o NIEJ está
presente na graduação e na pós-graduação em História da UFRJ; já for-
mou vários alunos de graduação; tem dois mestres, dois doutores, além
dos atuais mestrandos e doutorandos no Programa de Pós-graduação
em História Social da UFRJ que realizam dissertações e teses em estudos
judaicos. Todos, sem exceção, obtiveram bolsas de estudos de agências de
fomento brasileiras.
O NIEJ representa, ademais, o começo de algo diferente no Rio de
Janeiro. Em 8 anos, já é possível traçar um perfil do nosso alunado e pesqui-
sadores associados que, entre outros, apresentam bom repertório conceitual

21
e metodológico com criteriosa pesquisa histórica. O cuidado em não ser apresentação da coletânea
paroquial, parcial ou ideológico, em não ser obsessivo em relação à pre-
sença do antissemitismo no Brasil, ou em dar excessiva centralidade acri- Se há uma motivação comum à nossa reflexão no NIEJ, esta pode ser defi-
nida como a de um forte interesse pelo tema da ambiguidade. De uma forma
tica a temas ligados a Israel e ao sionismo, já é marca perceptível em nossas
ou de outra, as nossas pesquisas na área de estudos judaicos tratam fenôme-
abordagens e produção. Os estudos judaicos no Rio de Janeiro, à exceção
nos e trajetórias que transpõem, não raro, as abordagens binárias, próprias
do trabalho pioneiro da Prof. Helena Lewin na UERJ, nunca contaram com
aos dilemas do judaísmo europeu, cuja ênfase encontra-se quase sempre no
uma institucionalidade acadêmica, universitária e pública que permitisse a
fenômeno do antissemitismo em qualquer que seja o contexto da diáspora.
formação em graduação e em pós-graduação, com ênfase em estudos judai-
Nas Américas, destinos de imigrantes, de deslocados, de sobrevi-
cos e contando com orientação específica e laboratórios de pesquisa na área.
ventes, novos desafios societários passam a demandar a reinvenção dos
A coletânea que ora apresentamos é resultado dessa experiência ins-
judeus. Esses desafios vão muito além das promessas universalistas que no
titucional. Ela reúne trabalhos inéditos ou que já foram publicados em
Velho Mundo mostraram-se trágicas e ilusórias. No Brasil, a identidade
periódicos, e mesmo em outras coletâneas, e refletem, em seu conjunto,
judaica já se insinua como fenômeno multicultural e altamente ambíguo
temas e abordagens diversos no campo dos estudos judaicos. Através de
desde as primeiras ondas de imigração no século XIX. Contrária a essa
trabalhos individuais e em coautoria, a presente coletânea se estrutura
percepção, há ainda forte tendência dos estudos judaicos e da comunidade
em quatro partes: Tradição e Religiosidade; Holocausto; Judeus no Brasil;
judaica em destacar, especificar e individualizar esse grupo do conjunto
Israel, Palestinos e o Oriente Médio. Era nosso desejo poder reunir em um
da sociedade brasileira e dos desafios que ela impõe às formas como essa
mesmo livro trabalhos que, de outro modo, permaneceriam dispersos e,
identidade étnica vem se constituindo e se autorrepresentando no Brasil.
em alguns casos, desconhecidos de nosso público-alvo.
Se os desafios da sociedade mais ampla, a nosso ver, dizem muito da
Os estudos judaicos no Brasil, em comparação ao que se realiza em
maneira como os judeus se autodefinem, como não atentar para o fenô-
outros contextos internacionais (nos referimos a centros universitários meno do racismo em uma sociedade pós-escravista como a brasileira?
europeus, norte-americano e israelense), pode-se dizer, ainda engatinha. Como reivindicar o lugar de vítima de preconceitos para os judeus sem
Esses centros de estudos fazem parte de redes poderosas que possuem estar atento à sociedade brasileira cuja maioria da população descende de
aporte financeiro significativo em instituições acadêmicas bastante presti- escravos? Como se reinventar como judeu no Brasil, quando se é identifi-
giosas. Possuem fortes associações de estudos judaicos e produzem muito cado como “branco”? Como ter os benefícios da branquitude e ao mesmo
sobre temas os mais variados. Importante notar, entretanto, que esses cen- tempo se sentir vítima da mesma discriminação que os negros sofrem?
tros também tiveram uma trajetória de luta pela legitimidade dos estudos Como ser “branco” no interior de uma comunidade judaica diversa, plu-
judaicos frente aos departamentos já consolidados nas universidades. Para ral e polifônica, irredutível às definições identitárias rígidas e essenciais?
que se tenha uma ideia, a Associação Americana de Estudos Judaicos só Essas são algumas das indagações acerca das identidades judaicas que nos
surge em 1969. De lá para cá impressiona como esta área de estudos se motivam a refletir sobre o fenômeno do multiculturalismo e das ambigui-
consolidou no contexto universitário e acadêmico norte-americano. dades identitárias presentes no contexto brasileiro.
No Brasil, a impressão é que estamos em uma fase inicial no desen- Essas, acreditamos, são questões inescapáveis quando se trata de pes-
volvimento dos estudos judaicos em universidades. Aqui não temos ainda quisar a trajetória histórica e as circunstâncias sociológicas de interação e
associações nacionais e os centros de estudos pouco interagem, infeliz- integração dos judeus no Brasil. A presente coletânea está dividida em qua-
mente. Acreditamos, assim, que esta coletânea possa contribuir de alguma tro partes que trazem diferentes eixos temáticos. Tais eixos buscam abarcar
forma para uma maior articulação de interesses e para o desenvolvimento grande parte das reflexões presentes no NIEJ nos últimos 8 anos. São eles:
de pesquisas e projetos conjuntos entre centros universitários com ênfase Tradição e Religiosidade; Holocausto; Judeus no Brasil; Israel, Palestinos e
em estudos judaicos. Oriente Médio.

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tradição e religiosidade representativo das chamadas “descontinuidades narrativas”, em geral
negligenciadas pelos historiadores, mas obviamente presentes no recalca-
No primeiro capítulo, “Política e Religião em Israel e na Diáspora: o caso mento dos que viveram e sobreviveram à violência da Guerra.
do fundamentalismo judaico”,1 de autoria de Michel Gherman e Monica
Grin, pretende-se compreender as conexões entre violência pública e a
judeus no brasil
aproximação de setores da tradição judaica com o fundamentalismo reli-
gioso e seus usos políticos no contexto israelense. Os dois primeiros capítulos da unidade “Judeus no Brasil”, de autoria de
No segundo capítulo, “Deus e o Diabo na Terra Santa: pentecosta- Monica Grin: “Modernidade, identidade e suicídio: o ‘judeu’ Stefan Zweig e
lismo brasileiro em Israel”,2 de autoria de Michel Gherman, discute-se a o ‘mulato’ Eduardo de Oliveira e Oliveira”4 e “Racismo e identidade: encon-
influência de um dos mais interessantes fenômenos transnacionais dos tros e desencontros entre negros e judeus no Brasil”,5 dão ênfase ao tema
estudos religiosos, o pentecostalismo brasileiro, em suas manifestações no do racismo. Ambos discutem os desafios e ambiguidades de ser judeu no
contexto político e social israelense. Brasil em dois desenhos societários: o primeiro, no qual a miscigenação, o
hibridismo e principalmente o racismo confundem-se com a própria iden-
holocausto tidade nacional e desafiam a imaginação de negros e judeus; e, o segundo,
no qual a agenda multiculturalista mais recente se impõe, reestruturando
O capítulo “Educação Pós-Auschwitz”,3 de autoria de Michel Gherman, as relações entre negros e judeus. Vale notar que os estudos judaicos no
dedica-se a refletir sobre como ensinar a Shoá no mundo de hoje. Neste Brasil carecem ainda de uma maior dose de sensibilidade para o debate
capítulo, pretende-se discutir os equívocos de “usar” Auschwitz para a sobre racismo e racialização cuja densidade historiográfica contribuiria
afirmação de identidades particularistas, ao contrário de se estudar a Shoá efetivamente para melhor se investigar a diáspora judaica no Brasil.
como um fenômeno cujo “dever de memória” e cujo legado dizem res- Ainda como parte da reflexão sobre as ambiguidades de ser judeu no
peito à humanidade. Brasil, destacamos o artigo de Michel Gherman “Setor judeu do partido
O outro capitulo, “Jean Améry e o direito ao ressentimento”, de auto- comunista: memórias de judeus de esquerda no Rio de Janeiro”.6 Neste
ria de Monica Grin, é um ensaio no campo da história dos sentimen- artigo, busca-se tratar as relações entre a identidade judaica de imigrantes
tos morais, sobre um relato pouco convencional de um sobrevivente do judeus e comunistas, francamente particularistas, no interior das estru-
Holocausto, Jean Améry, que após 20 anos de silêncio decidiu externar turas abertamente universalistas do Partido Comunista Brasileiro. Outro
seu profundo ressentimento contra os que violaram seus direitos e a sua artigo a se destacar nessa unidade, intitula-se “O soldado e o sobrevivente:
dignidade sob o Terceiro Reich. O ressentimento aqui é um ato de pro- desafios do estudo da Shoá no Brasil”.7 O foco aqui se concentra nas come-
testo individual (ele não fala em nome das vítimas do Holocausto) contra morações pelo cinquentenário do fim da II Guerra Mundial utilizando
todas as formas de esquecimento e em defesa do passado que para ele duas personagens da comunidade judaica brasileira: um sobrevivente de
não deve passar, até que o perpetrador da violência seja criminalizado. O campos de extermínio e um judeu veterano de guerra. Trata-se de explorar
seu relato pode ser tomado, frente a outros relatos de sobreviventes, como
1 Publicado originalmente em Gherman, M.; Grin, M. “Política e Religião em Israel e nas
Diásporas: Caso do Fundamentalismo Judaico”. In: Brito, Paulo César; Silva, Sandra Célia 4 Este artigo foi originalmente publicado na revista Topoi, n. 5, 2002. pp. 201-220.
Coelho Gomes de (Org.). Diversidade Religiosa no Brasil Contemporâneo. 1. ed. Goiânia: 5 Este artigo resulta de uma comunicação apresentada no Encontro Internacional
Kelps, 2015, v. 2: 65-93. “Comunidades Judaicas na América Latina, organizado pelo Dahan Center da Bar Ilan
2 Originalmente publicado na Revista WEB Mosaica, n. 1, 2009. University realizado na USP em setembro de 2012.
3 Publicado originalmente nos cadernos da VI Jornada sobre o Ensino da História do 6 Versão anterior desse artigo foi publicada no Boletim Informativo – Arquivo Histórico de
Holocausto em Defesa da Democracia e da Cidadania, sob o título Holocausto – Múltiplos São Paulo, fev. 2002:19-27.
Olhares, Porto Alegre, setembro de 2015. 7 Originalmente publicado na Revista de Estudos Estratégicos (REST), n. V, jul.-dez. 2015.

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duas narrativas distintas: uma cujo tema prioritário é a Shoá e outra cujo No segundo capítulo dessa unidade, “Entre a Nakba e a Shoá: usos
tema é a II Guerra Mundial. políticos de catástrofes em narrativas nacionais”,11 busca-se debater como
O capítulo “Judaísmo e o Censo de 2010”,8 escrito em coautoria, ana- palestinos e israelenses disputam suas respectivas memórias de dor e
lisa os dados estatísticos da religiosidade judaica no Brasil em perspectiva sofrimento a fim de se empoderar politicamente.
sociológica. O Brasil deve ser vislumbrado como uma malha de diferen-
tes diásporas, de culturas situacionais, que se posicionam e se entrelaçam desafios aos estudos judaicos
estrategicamente diante de certas situações, sejam elas sociais, culturais ou em tempos de multiculturalismo no brasil
políticas.9 Tratar a diáspora judaica no Brasil significa também decifrar o
Se nos termos do multiculturalismo acadêmico os estudos judaicos se
Brasil, suas culturas, suas linguagens, seus enigmas, para compreender a
pautam em larga medida pelo legado da memória do Holocausto – que
historicidade das formas de integração dos judeus à sociedade brasileira.
legitimaria a narrativa de vitimização em um cenário composto por gru-
pos, vítimas de violação de direitos (negros, mulheres, indígenas, etc.) –,
israel, palestinos e oriente médio
em contextos políticos e sociais parece difícil identificar uma agenda polí-
Essa coletânea, como sugere o próprio título, é uma tentativa de realçar tica comum que revele afinidades entre esses grupos. Tal tarefa não é sim-
dilemas identitários em situações de ambiguidade. E o contexto israelense ples e impõe aos estudos judaicos um olhar mais sociológico e crítico que
nos convida igualmente a esta reflexão. O pouco esclarecimento sobre a permita ao analista transpor uma historiografia que de modo geral con-
complexa história do sionismo, da sociedade israelense, sua religiosidade, centra suas abordagens em histórias autorreferidas ou de antissemitismo.
diversidade, ambiguidades e paradoxos, acaba contribuindo para a repro- Tal fato tem merecido nossa reflexão e a presente coletânea é uma
dução de visões maniqueístas e mitificações de uma sociedade extrema- tentativa de se pensar a partir de um cenário de multiculturalismo crítico
mente diversa que, como qualquer outra, merece ser estudada em seus para o qual não há identidades rígidas e monolíticas dentro12 e fora des-
próprios termos. ses grupos. O diálogo político, nesses termos, torna-se muito mais com-
Nessa unidade são apresentados dois capítulos, de autoria de Michel plexo. As narrativas de alteridade que definem esses grupos identitários
Gherman, que tentam dar conta das facetas do fundamentalismo em em cenário multicultural, podem promover contingentemente formas de
Israel. Trata-se de compreender os conflitos na região, os dilemas da socie- solidariedade, visões de justiça, agendas comuns e criativas, mas também
dade israelense e os tensionamentos entre movimentos nacionais judaicos tensões, desacordos e, no limite, conflitos. Se, por um lado, o encontro
e palestinos, de forma a trazer ao público brasileiro um cenário mais com- contingente com outros grupos pode enriquecer a solidariedade, por
plexo e diversificado que desafia as versões mais comuns sobre o conflito outro, pode estimular seu fechamento, indiferença e ortodoxia.13
palestino-israelense. O primeiro capítulo, “Valsa com Bashir e o Massacre O conjunto de trabalhos aqui reunidos qualifica-se pela diversidade
de Sabra e Chatila: entre a amnésia política e a responsabilidade da memó- de focos e questões que convidam os leitores à crítica e à reflexão. São
ria”,10 trata a recepção do filme Valsa com Bashir no contexto israelense. textos de tempos diversos, de dois autores que se uniram em empreitadas
Aqui, a ênfase encontra-se no papel da memória política em uma socie-
dade marcada por conflitos, violência e morte. 11 Artigo publicado originalmente na Revista História, v. 33, jul.-dez. 2014.
12 Em nenhum sentido a comunidade judaica é homogênea. A definição de judeu tem sig-
nificados múltiplos e muitas vezes contraditórios: há judeu ortodoxo, secular, reformista,
8 Originalmente publicado no livro O Censo de 2010 e as religiões no Brasil, em 2013. askenazita, sefaradita, progressista, conservador, homens, mulheres, gays. Essa lista pode
9 Cf. Vieira, Nelson. “Estudos culturais judaico-brasileiros e latino-americanos: uma abor- ser quase inesgotável.
dagem para mapear o híbrido-diaspórico”. In: Grin, Monica; Vieira, Nelson. Experiência 13 SORJ, Bernardo. “Diáspora, Judaísmo e Teoria Social”. Grin, Monica; Vieira, Nelson.
Cultural Judaica no Brasil: recepção, inclusão e ambivalência. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004. Experiência Cultural Judaica no Brasil: recepção, inclusão e ambivalência. Rio de Janeiro:
10 Artigo publicado originalmente na Revista Prometeica, n. VII, 2013. Topbooks, 2004.

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institucionais e intelectuais bastante desafiadoras. É nosso desejo que esta
coletânea promova um diálogo, além do paroquial, entre as experiên-
cias dos judeus, a sociedade na qual eles se inserem e os estudos judai-
cos. Ficaremos altamente recompensados se de alguma forma a presente
coletânea for capaz de contribuir para que os estudos judaicos no Brasil
transformem-se em objeto de desejo e de inspiração para estudantes e pes-
quisadores das universidades brasileiras e para o leitor em geral.

Tradição e religiosidade
Rio de Janeiro, 1o de dezembro de 2016.

Monica Grin
Michel Gherman

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Política e religião em Israel e na diáspora:
o caso do fundamentalismo judaico
Michel Gherman
Monica Grin

No dia 30 de julho de 2015, durante a Parada Gay de Jerusalém, uma


menina de 16 anos, estudante do ensino médio na parte ocidental da
cidade, foi esfaqueada até a morte por um judeu ultraortodoxo. Além dela,
mais seis pessoas ficaram feridas no episódio. Na noite do dia seguinte,
em 31 de julho de 2015, um grupo de extremistas religiosos ateia fogo a
uma casa palestina na aldeia de Duma. Em seu interior uma família inteira
dormia. Um menino de um ano não resistiu aos ferimentos. Alguns dias
depois sua mãe também morreu no hospital.
Para quem se interessa pelo crescimento dos movimentos fundamen-
talistas judaicos, os dias 30 e 31 de julho de 2015 constituem momentos
emblemáticos. De fato, é possível dizer que estas datas marcam mais um
“momentum” do que se convencionou chamar a “ascensão da ameaça fun-
damentalista em Israel” (ELIZUR; MALKIN, 2012: 16-18). Justamente nesses
dois dias, que coincidem com o auge do verão em Israel, ocorrem dois ata-
ques perpetrados por diferentes grupos de judeus religiosos contra alvos
distintos. Apesar de se tratar de diferentes perpetradores e de distintas víti-
mas, podemos afirmar que nos dois casos o fundamentalismo religioso teve
enorme importância. Abaixo, uma pequena descrição de ambos os ataques.
O primeiro deles ocorreu na já tradicional “Parada Gay de Jerusalém”
(GHERMAN, 2012: 61-63). Neste caso, é importante notar que a manifes-
tação pela diversidade sexual ocorre desde 2004 nas ruas da cidade e tem
sido alvo habitual de ameaças provenientes dos grupos mais tradicionalis-
tas. Em 2005, já havia ocorrido o esfaqueamento de um manifestante, pro-
duzido pelo mesmo indivíduo que voltou a atacar agora, dez anos depois.
Reeditava-se a tensão em torno da “Parada Gay”.

31
As ameaças que surgem, no atual cenário, de forma ainda mais con- É importante notar que no contexto deste ataque qualquer dimen-
tundentes, são provenientes de uma aliança estabelecida entre grupos con- são nacional ou étnica está em segundo plano, sendo pouco con-
servadores e religiosos. De fato, a coalizão contrária à realização de uma siderada tanto pelos instigadores quanto pelo perpetrador. Neste
manifestação pela liberdade sexual em Jerusalém é formada por religiosos sentido, cabe perceber que tanto as vítimas como os algozes são
de várias linhas e correntes. Há entre eles desde ultraortodoxos (não sio- não somente judeus, mas também israelenses. A disputa, nesse caso, se
nistas) até nacionalistas religiosos (sionistas) dissidentes do antigo Partido dá justamente por referências comportamentais, ideológicas, teológicas e
Nacional Religioso.1 políticas, presentes no público judaico de Israel. Para quem promove o ata-
Apesar de os ultraortodoxos e os sionistas religiosos divergirem em que, os verdadeiros inimigos não são, por exemplo, os palestinos, mas são
muitos aspectos políticos, religiosos e teológicos, a defesa de Jerusalém judeus que ameaçam seus modus vivendi, a própria santidade da cidade e
como “uma cidade santa” acaba por transformá-los em aliados táticos. a moral que eles consideram correta e justa, qual seja, a de que a vida na
Neste sentido, há, entre eles, a impressão de que os judeus tradiciona- Terra Santa deve ser orientada pelas halachot (leis religiosas judaicas).
listas se encontram diante de um cenário de binarismos: “guerra entre O autor do ataque na Parada Gay de Jerusalém é um judeu charedi3
profanos e santos”, entre “infiéis e crentes”, entre “seculares e religiosos” que age sozinho em uma manifestação pública. O que vai relacioná-lo ao
(WASSERSTEIN, 2002: 12-36), e que o silêncio dos segundos poderia signi- campo fundamentalista israelense, entretanto, não é somente sua afiliação
ficar a “terceira”2 queda da cidade. Esta queda seria compreendida a par- religiosa (LIMONCIC, 2000: 201-204), mas suas perspectivas político-re-
tir de perspectivas escatológicas presentes na tradição judaica e serviria ligiosas. Neste caso, o terrorista judeu assume a responsabilidade por seu
como elemento mobilizador de movimentos políticos e de ações violentas ato, que teria sido motivado por uma leitura bastante específica dos textos
contra a “lassidão moral” (YERUSHALMI, 1992: 14-18). bíblicos e de outras fontes judaicas, segundos os quais não se deve tolerar
Como resultado desta aliança entre religiosos, costuma haver em ambientes marcados por modos seculares de comportamento civil, por
Jerusalém, na véspera da “Parada”, um ambiente de incitação à violência, outras moralidades e por outros vieses políticos.
fomentado por discursos de ódio e pela mobilização de diversos grupos Apesar do choque causado pelo ataque e pela morte de uma menina
religiosos em oposição à mobilização dos grupos LGBTs na cidade. Com na Parada Gay de Jerusalém, em poucas horas a sociedade israelense seria
efeito, no dia 30 de julho ocorre um ataque, este já dentro da “Parada Gay”, sacudida por outro ato de extrema violência, também surgido desde um
no qual seis pessoas foram feridas e uma menina de 16 anos assassinada. contexto religioso e político bastante específico.
O perpetrador do ataque foi um judeu ultraortodoxo (como já dissemos, O segundo ataque, ocorrido durante a noite na cidade de Duma, loca-
o mesmo que havia agido 10 anos antes). Está claro que ele agiu sozinho, lizada na Cisjordânia, de população palestina e sob ocupação israelense,
mas nas circunstâncias apresentadas acima está igualmente claro que suas foi realizado por perpetradores distintos, com vítimas distintas e produ-
motivações não eram solitárias. zido por motivações outras que não aquelas presentes no atentado perpe-
trado nas circunstâncias da Parada Gay. Se no caso anterior a vítima era
1 Para uma discussão mais aprofundada sobre as várias correntes religiosas na sociedade judia e o perpetrador um judeu ultraortodoxo, no presente caso as vítimas
israelense ver: Eldar, Akiva; Zertal Idith. Lords Of the Land: The War Over Israel Settlements eram palestinas e os autores do ataque eram judeus sionistas religiosos.
in the Occupied Territories. Nation Books: New York 2007.
2 O conceito aqui de terceira destruição está relacionado às duas destruições anteriores. Na
Neste contexto, é importante notar que nos últimos anos cada vez mais
narrativa tradicional, o templo de Jerusalém teria sido destruído duas vezes, a primeira por grupos israelenses, ligados à extrema-direita sionista e religiosa,4 têm se
Babilônios (no ano de 626 AEC) e a segunda por Romanos (70 EC) em ambas, as causas rela-
cionavam-se às questões de comportamento dos próprios judeus. Neste sentido, este motivo 3 Judeu ultraortodoxo, que crê seguir de forma estrita os mandamentos divinos, assumindo
retorna na perspectiva religiosa (fundamentalista) contemporânea. A culpa pela potencial de forma literal os mandamentos da torah oral e escrita. O termo charedi é tirado da bíblia,
destruição de Jerusalém, pela terceira vez, seria o comportamento sexual inadequado de em Isaias 22:3, e significa temente a Deus.
seus habitantes. Ver: Stadler, Nurit. Yeshiva Fundamentalism: Piety, Gender, and Resistance 4 Referimos aqui ao movimento que surge pela inspiração do rabino americano-israelense
in the Ultra-Orthodox World. New York: New York University Press, 2009:1-33. Meir Kahane (morto em 1982). Kahane acreditava que Israel deveria combater cristãos e

32 33
especializado em realizar ataques em represália5 (chamados de tagmechir) No último ano, as ações destes grupos extremistas alcançaram resul-
a cristãos e muçulmanos, tanto em Israel como nos territórios palestinos. tados ainda mais graves em Israel. Para além de habitantes não judeus
De fato, os casos de profanação de mesquitas, de cemitérios e de igre- presentes no Estado de Israel, a extrema-direita passa, efetivamente, a ata-
jas foram muito numerosos. Da mesma forma, o número de ataques a car também setores da esquerda judaica, identificados como “os maiores
aldeias árabes, pichações com ofensas religiosas, invasão a terrenos pales- traidores do povo judeu”. Com relação aos palestinos, é notório o aumento
tinos e a consequente destruição de plantações tem crescido de maneira da intolerância e da violência dos ataques.
vertiginosa em Israel. Este foi o caso do ataque à cidade de Duma, na Cisjordânia. Grupos
Aqui, a lógica tem sido quase sempre a mesma: a partir de uma pers- extremistas judeus decidem colocar fogo em casas palestinas da aldeia.
pectiva teológica muito específica e militante, grupos de sionistas reli- Como resultado, dois mortos e quatro feridos. Além disso, surgem picha-
giosos têm atacado alvos palestinos ou israelenses progressistas que são ções nas paredes das casas deixando claras as intenções dos perpetradores
considerados potenciais traidores de Israel. Ademais, as posições religio- do ataque.
sas e políticas destes grupos não contemplam para o futuro messiânico Mais do que descrever os ataques de fundamentalistas judeus em
a presença de “não judeus” na “Terra Santa”.6 Assim, para a geografia da Israel, gostaríamos, neste artigo, de utilizar essas referências a fim de dis-
extrema-direita religiosa israelense, tanto judeus de esquerda7 como ára- cutir o fundamentalismo judaico como fenômeno histórico e sociológico.
bes palestinos aparecerão no mapa dos ataques como inimigos potenciais. Neste caso, os ataques de Duma e a Parada Gay de Jerusalém nos servem
Estes grupos são oriundos do campo sionista e acreditam que o estabele- como exemplos emblemáticos de como os radicalismos vêm se desenvol-
cimento do Estado judeu é parte de um plano divino que culminará com vendo em Israel.
a redenção e a volta do messias. No que se segue, pretendemos fazer um pequeno mapeamento de tal
fenômeno no interior da tradição judaica. Trata-se de discutir as origens e
muçulmanos que viviam em seu território e era contrário a qualquer concessão aos palesti- as relações construídas por grupos vinculados às perspectivas fundamen-
nos. Influenciado por movimentos direitistas europeus e americanos, Kahane defendia ati-
tudes de violência contra os “inimigos” e investia em práticas de autodefesa, independentes. talistas dentro do judaísmo. Da mesma forma, gostaríamos de debater as
Ver: Eldar, Akiva; Zertal Idith. Op. cit., p.183-245. relações entre o fundamentalismo judaico israelense e seus congêneres
5 Importante notar que na perspectiva destes grupos as “represálias” não precisam ser em fora de Israel.
referência a um ataque terrorista perpetrado por palestinos. Elas podem ocorrer em relação
a uma declaração de políticos árabes, ou mesmo a uma discussão mais áspera ocorrida entre Por fim, nos interessa discutir e analisar a influência de grupos funda-
colonos e seus vizinhos. Como a extrema-direita religiosa israelense funciona a partir de mentalistas judeus em estruturas políticas do Estado de Israel (e da diás-
uma lógica teológica bastante definida e conta com lideranças rabínicas carismáticas, tam-
bém a pregação de um destes rabinos pode servir como gatilho para ataques de represália pora judaica) hoje. Neste sentido, entendemos que para além de se consti-
ou vingança. Neste sentido, não se pode atribuir o ataque de Duma a alguma ação palestina tuir como referência religiosa e espiritual, o fundamentalismo judaico, em
mais específica, ao contrário, a dinâmica de ação e represália pode ter relação com questões
internas tão específicas que seriam não compreensíveis para qualquer observador externo.
suas várias versões, logra, nos últimos anos, tornar-se força política pode-
6 Aqui se utilizam de interpretações muito específicas sobre leis religiosas de idolatria, algu- rosa, chegando a determinar decisões internas e externas de um Estado
mas das quais exigem atitudes dramáticas e violentas contra praticantes de “ritos desconhe- no qual, de um ponto de vista numérico, esses grupos representam apenas
cidos” na terra de Israel. Ver: Ezequiel 14:1-9.
uma força minoritária.
7 Utilizamos aqui a referência de israelenses de esquerda a partir de uma definição bastante
geral. Tomando em conta os grupos que apoiam a parada gay em Jerusalém, entendemos
que para além de bandeiras mais específicas (intervenção maior do estado na economia, fundamentalismos judaicos e a modernidade
luta pela solução pacífica do conflito palestino-israelense, ou ainda a separação total de
Estado e Religião em Israel) há uma coalizão de setores progressistas que participam e
apoiam manifestações como esta. Assim, adotamos, neste sentido, as definições “esquerda”
Para um debate mais aprofundado sobre o fundamentalismo judaico, os
e “direita” no artigo. Importante notar que elas serão referências também nos discursos da dois casos descritos na introdução deste artigo devem ser analisados com
extrema-direita israelense. Ver: Bobbio, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de
uma distinção política. São Paulo: Unesp, 2001.
prudência. Se é possível afirmar, em uma primeira análise, que os dias 30

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e 31 de julho de 2015 foram marcados por ataques praticados por “funda- O judaísmo rabínico e autônomo aos poucos perdia força e desapare-
mentalistas judeus em Israel”, é preciso também entender perpetradores e cia, ao contrário do que ocorria em anos e séculos anteriores, razão pela qual
vítimas com todas as suas distinções e historicidades. Neste sentido, clas- os judeus que viviam no limiar da modernidade podiam (ou deviam), pela
sificar os ataques apenas como “fundamentalistas” pode esconder impor- primeira vez na sua história, optar por novas formas de identidade judaica:
tantes distinções e diferenças que marcam os atentados da Parada Gay de O judaísmo moderno, ao nível individual, foi vivido como uma crise de
Jerusalém e de Duma. identidade entre tradição e modernidade, entre lealdade aos laços primários
O cenário das identidades religiosas é altamente complexo e explo- e ao conjunto entre o privado e o público, entre sentimento e razão. (GRIN;
sivo. Há, entre vítimas e perpetradores, tanto judeus como muçulmanos, SORJ, 1991: 11).

há também seculares e religiosos, e entre os religiosos, ultraortodoxos Ademais, estruturas rabínicas rígidas e autoritárias perdiam, tam-
judeus e nacionalistas religiosos judeus. É importante relativizar a própria bém pela primeira vez em séculos, a possibilidade de controle quase total
identidade política dos perpetradores dos atos. Em primeiro lugar, deve- sobre as suas comunidades. Instituições comunitárias e relações de poder
-se notar que se o ataque de Duma é praticado por jovens ligados a uma controladas por eles deixavam de ter o sentido que possuíam nos últimos
extrema-direita sionista, e o atentado em Jerusalém por um judeu ligado a séculos e passaram a disputar espaço com o poder estatal, que entrava nas
grupos ultraortodoxos e não sionistas. vilas e aldeias judaicas, que acelerava processos de integração e assimila-
Neste contexto, para melhor entendimento do fenômeno como um ção nas cidades. Aos judeus, portanto, restava negociar níveis de autono-
todo, cabe aqui uma relativização do próprio conceito de “fundamenta- mia relativos diretamente aos Estados nacionais.
lismo judaico”. Algumas perguntas são necessárias: Há, entre os setores Nesse contexto (e aqui o tema do fundamentalismo religioso come-
charedim de Jerusalém e os kahanistas da Cisjordânia, características çará a ter importância), novas identidades judaicas passam a ser incluídas
comuns para que eles sejam incluídos no mesmo campo político-religioso? em um novo cardápio político típico da modernidade. Se agora judeus
Ou, ao contrário, estes grupos possuem natureza a tal ponto distinta que podem, por um lado, iniciar processos de integração em diversos países
inviabilizaria a inclusão em um mesmo grupo para efeito de análise? europeus, eles também podem, por outro, decidir por uma dinâmica de
Acreditamos que sem responder a essas questões, o conceito de autoexclusão da própria modernidade Europeia:
“fundamentalismo” serviria pouco para uma reflexão acerca do próprio
A procura de absorção, integração e legitimação do judaísmo nos valores
fenômeno do radicalismo religioso judaico. De fato, categorias tão gerais, modernos, mostra que o judaísmo é capaz de conviver com valores univer-
abertas e generalizadoras podem, aqui, mais atrapalhar do que ajudar, aca- sais. [...] De certa forma, todos os judaísmos modernos foram estratégias de
bando por não definir de maneira correta os objetos de que se trata. assimilação. Ainda que esse tema tenha sido utilizado pelos judeus menos
O fundamentalismo, neste sentido, seria mais uma daquelas cate- assimilados para classificar os outros, a assimilação é o traço fundamental
geral do judaísmo moderno (op. cit., p. 10).
gorias “guarda-chuva” que no afã de classificar fenômenos distintos com
definições semelhantes, acabam por privilegiar perspectivas diacrônicas e Aqui, nesta fase, podem ser encontradas diversas propostas de dinâ-
simplificadoras e acabam por deixar de lado, como no caso mencionado, micas identitárias judaicas. Há desde setores convencidos da possibilidade
toda a rica diversidade conceitual, política e teológica que marca, por de inclusão completa na realidade europeia (o movimento assimilacio-
exemplo, grupos religiosos judeus. O processo de emancipação na Europa nista é um deles),8 até grupos que defendiam a criação de um movimento
exigiu que os judeus recriassem suas identidades, matizassem suas rela-
ções com o mundo e decidissem como se inserir em uma nova realidade
que abria suas portas e que exigia dos judeus novos compromissos e for- 8 Alguns destes grupos chegam a propor a conversão dos judeus ao cristianismo europeu. Ver:
Mendelsohn, Ezra. Zionism in Poland: The Formative Years. New Haven: Yale University,
mas de inserção na sociedade mais ampla. 1981. pp. 1-37.

36 37
nacionalista judaico próprio (referimos aqui ao sionismo que surge com nacionais parecia ser uma forma interessante de combater fenômenos não
diversas correntes e propostas desde o século XIX). desejáveis da modernidade.
Há ainda tendências mais tradicionalistas que sugerem que a moder- Citamos aqui, à guisa de exemplo, o grupo ligado ao Agudat Israel
nidade representava uma ameaça à própria identidade judaica (referimos (União de Israel), criado na cidade de Kattowitz em 1912 (FRIEDMAN,
a perspectivas ortodoxas), devendo ser evitada e combatida. No interior 1971: 12-14). Este grupo é responsável pela criação de uma admirável rede
destes grupos havia também grande diversidade de posições. Destacamos de escolas ortodoxas (MENDELSOHN, 1981: 186-223), além de promover o
aqui desde referências antimodernas radicais, que imaginavam ser possí- surgimento de diversos centros de estudos rabínicos. Para o Agudat Israel,
vel e necessário promover uma ruptura com a modernidade, e um conse- ortodoxo e antissionista, a modernidade deveria ser entendida como um
quente retorno a organizações tradicionalistas e pré-modernas, até aqueles dado da realidade e judeus religiosos deveriam adaptar-se a ela para que o
que buscavam dialogar, de maneiras bem específicas, com as conquistas judaísmo não perdesse força em um futuro próximo.
da modernidade. Apesar de serem profundamente tradicionalistas e conservadores e
Entre os primeiros, destacamos grupos místicos judaicos, oshas- de manterem leituras estritas das fontes judaicas, os membros do Agudat
sidim.9 Estes tinham claras desconfianças em relação às demandas con- Israel, na Europa, na Palestina e em Israel (após a criação do Estado Judeu,
temporâneas. Para eles, a modernidade poderia ser considerada como o em 1948)11 não devem ser considerados fundamentalistas religiosos, visto
grande inimigo. Assim, adaptar suas formas de agir às exigências do novo que dialogavam de maneira positiva e pragmática com perspectivas da
tempo representaria um risco, e por que não dizer, uma traição. Além modernidade. De fato, o programa de atuação deste grupo constitui-se no
disso, estes grupos mais tradicionalistas percebiam os judeus vinculados esforço de garantir benefícios e verbas para a manutenção de seus projetos
ao iluminismo (maskilim),10 também como inimigos. Resistir a eles e com- sociais e educacionais. Deste modo, a modernidade e os Estados nacio-
bater as tendências inovadoras da modernidade torna-se parte fundamen- nais, uma espécie de mal necessários, são vistos apenas como objetos para
tal, a raison d’etrê destes setores. a concretização de seus projetos sociais, comunitários e educacionais.
De outro lado, havia grupos ortodoxos menos radicais. Estes perce- Por fim, no leque de denominações existente no interior da ortodo-
biam que era possível e necessário conciliar elementos da modernidade xia judaica, destacamos um grupo minoritário e bastante polêmico. Entre
com a existência de um judaísmo que fosse relacionado ao estrito cum- as perspectivas ortodoxas mais estritas dos grupos hassídicos europeus
primento dos mandamentos sagrados. Tais grupos defendiam a possibili- e a mais flexível representada pela Agudat Israel, surge um grupo que
dade de estabelecer, por exemplo, centros de ensino ortodoxo, academias pretende criar sínteses entre o sionismo político (francamente secular e
rabínicas renovadas, além de um novo desenho comunitário nas cidades antirreligioso) e a ortodoxia moderna (francamente antissionista e anti-
europeias. Assim, a necessidade de ter direitos políticos pelos estados nacionalista), trata-se aqui do Partido Mizrahi.12 Este grupo é percebido
com desconfiança por sionistas e ortodoxos e chega a promover, desde sua

9 Trata-se do movimento criado por Israel Bem Eliezer (Baal ShemTov), que vivera entre as 11 A relação do grupo com o movimento sionista era ambivalente e crítica. Apesar de se
regiões da Polônia e Ucrânia entre os anos 1700 e 1760. Baal Shemtov foi o idealizador do declararem antissionistas e se colocarem contrários ao estabelecimento do Estado Judeu
hassidismo, movimento de inspiração cabalista e mística que se opunha as elites talmudista na Palestina, os membros do partido emigram para a Palestina e para Israel. Geralmente
tradicionais e propunha uma teologia mais popular e menos racionalista. O hassidismo o fazem sob justificativas religiosas. Por outro lado, o Agudat Israel recebe apoio e finan-
recuperava também a ideia de intermediário entre Deus e o povo (Rebe) e acabou criando ciamento do Movimento sionista e, posteriormente, do Estado de Israel. Neste contexto, o
várias seitas por todas as regiões da Europa oriental. Em fins do século XIX, o hassidismo partido ligado ao grupo já foi membro de diversas coalizões em governos israelenses, tanto
foi uma da forças que mais se opuseram à haskala (modernidade judaica), denunciando de esquerda como de direita. Ver: Friedman A. In: Patai, R. (Org.). Encyclopedia of Zionism
seus adeptos como inimigos do judaísmo. Ver: Armstrong, Karen. Em Nome de Deus: O and Israel. New York: Herzl Press/McGraw-Hill, 1971: 12-14.
Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo. São Paulo: Companhia das 12 A palavra Mizrachi seria uma corruptela das palavras Merlaz Ruchani (centro espiritual).
Letras. 2009: 142- 159. Além disso, significa “oriente”, que na tradição religiosa judaica era uma referência clara à
10 Termo usado para definir o iluminismo judaico. cidade de Jerusalém.

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origem, uma espécie de nova teologia judaica. Esta teologia permitia, ao De outro modo, a relação dos sionistas religiosos com a moderni-
contrário das referências mais tradicionais, que judeus ortodoxos se com- dade não é negativa. Ao contrário, este setor está comprometido, em
prometessem com a criação do Estado Judeu na Palestina (ou na Terra termos táticos, com valores modernos. Trabalham com judeus seculares
de Israel, conforme sua narrativa). Nesse contexto, desde sua origem na na redenção da terra, estabelecem escolas modernizadas, criam partidos
cidade de Vilna, no ano de 1902, o grupo se declara sionista, para a sur- que possuem pautas democráticas. Em última análise, o Partido Mizrachi
presa de setores mais tradicionalistas. (e seu sucessor, o Partido Nacional Religioso)14 passa a se constituir por
Na consolidação desta nova teologia judaica, algumas referências agrupamentos bastante modernizados e adaptados às perspectivas demo-
importantes devem ser notadas. Para os rabinos do Mizrachi, a “Torah de cráticas exigidas pelos estados nacionais.
Israel” somente faria sentido se cumprida pelo povo de Israel na Terra de Há no interior do Partido Nacional Religioso uma certa aproximação
Israel” (GOLDSHAG, 1971: 794-796). Ao contrário dos hassidim e de grupos com o messianismo. De fato, eles querem garantir, em um futuro distante,
ortodoxos mais tradicionais, os sionistas religiosos consideravam que a uma revolução que restabeleça os reino dos céus na terra, em um processo
emigração massiva para a Palestina (Terra de Israel) seria fundamental que faça o Messias chegar. Estas dimensões, sob influência de uma teologia
para o melhor cumprimento dos mandamentos. Neste sentido, os sionis- política bastante definida e inovadora, são, entretanto, pouco perceptíveis
tas religiosos vinculavam suas posições políticas à prática religiosa. Uma e no cotidiano da política do Mafdal. Pode-se dizer que os agrupamentos
outra estavam vinculadas e eram, para eles, indissociáveis. sionistas religiosos são modernos em termos táticos, mas “restaurado-
Este posicionamento estabelecia, ademais, que a chegada do povo res”15 em uma dimensão estratégica futura e, ademais, pouco palpável.
judeu à Terra de Israel representaria o “início da redenção”, ou seja, repre- Ocorre – e este é um elemento importante no sentido de entendermos o
sentaria o “primeiro florescer da vinda da redenção” (reshittsimcahtgehu- “fundamentalismo Judaico” em Israel – que, dentro dos setores sionistas
lateinu – Sanedrim: 98a). Estas perspectivas messiânicas e redentoras aca- religiosos, são justamente estas as tendências que gradativamente se forta-
bavam por transformar os sionistas religiosos em uma espécie de exceção lecem, tornando setores do partido mais messiânicos e radicais.
na teologia judaica, já que debates em relação à “redenção” e as referências Em um contexto de radicalização e de messianismo, a figura mais
práticas à vinda de Messias eram um tema tabu na tradição judaica, para importante seria a do Rabino Avraham Isaac Kook (1865-1935). O Rabino
a qual constituiria um erro (ou um pecado) calcular quando o Messias se Kook emigra em 1904 para a Palestina, onde passa a ser o rabino chefe da
revelaria, ou mesmo fazer um esforço para promover a sua vinda.13 cidade de Jaffa. Já em 1919 ele é escolhido para ser o rabino chefe ashkenazi da
Assim, o Mizrachi, ou o sionismo-religioso, representava uma rup- Palestina. Após sua chegada, inicia um diálogo importante com o sionismo
tura dramática com a tradição judaica mais religiosa. Para eles, não apenas secular e entende, através de lógicas teológicas muito específicas, que a
era importante falar em Messias, mas trabalhar para a sua chegada den- missão histórica dos não religiosos era a da redenção da Terra de Israel.
tro de um movimento político, que era constituído majoritariamente por Kook promove o surgimento de uma nova perspectiva religiosa judaica
judeus seculares. onde “em alguns momentos deve-se deixar de lado alguns mandamentos

13 A teologia judaica tradicional pratica uma espécie de interdição em relação ao tema do


Messianismo. Isso se explica pelo fato de o tema ter causado interpretações polêmicas em 14 O Partido Nacional Religioso foi criado, em Israel, em 1958, da fusão de seu braço kibutziano
momentos distintos da história judaica e mesmo em relação às narrativas bíblicas mais tra- e sindical (hapoelhamizrachi) com seus setores mais conservadores e rabínicos (Mizrachi).
dicionais. Como exemplo, pode-se citar a rebelião judaica de Bar Kochva, quando o Rabino Em 1959 o Partido nacional Religioso (Mafdal) concorre às eleições e conquista 12 cadeiras
Akiva, líder da rebelião, considerava-se a encarnação do Messias, o que causaria fragorosa no parlamento. Ver: Goldschlag, op. cit., p. 794.
derrota e morticínio dos judeus; ou ainda o caso mais recente da onda de falso Messias, 15 Os restauradores adotam perspectivas regressistas contidas nas posições messiânicas.
como ocorre no século XVIII com Shabetai Hatsvi, que após considerar a si próprio o salva- Como exemplo, o messianismo judaico defende a restauração do Templo de Jerusalém e
dor, arregimenta milhares de seguidores, e depois converte-se ao islamismo. ARMSTRONG, o governos dos sacerdotes. Uma das referências mais usadas nesta teologia sionista-reli-
Karen. Em Nome de Deus: O Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo. giosa-messiânica é o trecho do livro de Eicha (De luto por Jerusalém) que pede a Deus que
São Paulo: Companhia das Letras: 142-190. “renove os dias como eles eram antes” (chadeshyamenukekedem) (Eicha 5:11).

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da torá” em nome da “caminhada messiânica”, que “levaria a um objetivo Basta dizer, por exemplo, que nas coalizões governamentais de 1949
de completude e felicidade” (ARMSTRONG, 2009: 258-259.). até 1967 (todas lideradas pelo trabalhismo), os partidos sionistas religiosos
Com estas reflexões o Rabino Avrham IsaacKook se aproxima da indicaram ministros de assuntos religiosos, ministros do interior e minis-
posições sionistas mais secularistas, se afasta de perspectivas mais tradi- tros para assuntos sociais (ver GOLDSHAG, 1971: 794-796). Estes eram
cionais e ortodoxas, lançando as bases para uma teologia que irá elevar a considerados moderados e tinham poucas relações com orientações mais
sacralização da Terra de Israel a níveis nunca antes vistos. messiânicas, redentoras e radicais.
Aqui um dado importante: o Rabino Kook morre antes da criação Note-se, ainda, nos ministérios citados acima, a ausência de assun-
do Estado de Israel, em 1935. Em realidade, neste momento não há muitas tos relacionados ao estabelecimento de colônias sionistas (ministério da
divergências entre sionistas religiosos e seculares sionistas. Não se falava infraestrutura ou da habitação) ou a perspectivas mais gerais, como por
ainda em termos de divisão da Terra, não se falava em acordos de paz. exemplo o Ministério da Educação. O sionismo religioso, até o ano de
Enfim, a criação do Estado Judeu na Terra de Israel era ainda um sonho 1967, tinha funções menos ousadas e mais setoriais, sempre vinculadas ao
na cabeça de alguns, que determinava que questões particulares e menores interesse de populações judaicas mais tradicionalistas ou religiosas. Esta
fossem adiadas. realidade vai ser completamente alterada a partir da chamada “Guerra dos
Pode-se, portanto, apenas conjecturar sobre quais seriam as posições Seis Dias”. Desde então, grupos mais radicais dentro do Mafdal passam a
do Rabino Kook em relação às novas demandas políticas que a complexa pressionar o partido e toda a sociedade para direções bastante distintas e
realidade política local apresentaria anos à frente. De outro modo, pode-se desafiadoras, conforme veremos a seguir.
imaginar que após a criação do Estado as demandas messiânicas ganha- Se por um lado o sionismo religioso contava com uma liderança
riam outras tonalidades. mítica e carismática na fase anterior à criação do Estado de Israel, vide
Enfim, mais do que conjecturar qual seriam as atitudes do Rabino o já citado Rabino Avraham Isaac Kook, pode-se afirmar, por outro, que
Kook, é possível verificar quais as posições políticas tomadas por seus suas referências passam a ser mais burocráticas e sistêmicas após o esta-
herdeiros políticos, quais sejam, alguns membros do Partido Nacional belecimento do Estado Judeu. De fato, havia no interior do Mafdal grupos
Religioso, fundado após a criação do Estado Judeu, em 1948. Note-se que de jovens rabinos, o Gahelet,16 que tentavam alterar a direção das coisas,
justamente a corrente mais adaptada à modernidade dentre os grupos reli- impondo agendas mais radicais e “restauracionistas” ao partido, sem,
giosos judaicos será a mais importante no empreendimento de um funda- entretanto, lograr muito sucesso.
mentalismo judaico, como veremos a seguir. Esta realidade vai ser alterada completamente após a esmaga-
dora vitória do exército israelense sobre os exércitos árabes, em 1967.
fundamentalismo judaico e política no pós-1967 Descortinava-se, pela primeira vez em anos, a perspectiva de “retorno” de
judeus crentes a territórios que teriam valor sagrado. É possível afirmar
Enquanto nos períodos anteriores ao estabelecimento do Estado Judeu e algo mais: para estes setores da ortodoxia sionista, a conquista destes terri-
nas duas primeiras décadas de existência de Israel era possível estabelecer tórios marcava o início de uma outra fase no desenvolvimento messiânico.
alguns vínculos entre propostas messiânicas restauradoras e as propos- A figura central deste pensamento era o rabino Tzvi Yehuda Kook, filho do
tas políticas do sionismo religioso, é correto dizer que, em sua maioria, antigo rabino chefe da Palestina, rabino Avraham Isaac Kook.
elas eram apenas referências incipientes. De fato, os representantes políti-
cos das posições defendidas pelo Rabino Avraham Issac Kook, tal qual o
16 Trata-se aqui de um grupo de elite chamado de Gahelet (Garin Halutz Toranit – o Núcleo
Mizrachie o Mafdal, funcionavam, em grande medida, como linhas auxi- Pioneiro da Torah, criado em 1964), criado pelo filho do Rabino Avraham Isaac Kook,
liares do sionismo trabalhista e tentavam garantir ganhos pontuais para o o rabino Zvi Yehuda Kook, que chegava a falar em reconquistar faixas de territórios da
Cisjordânia (Judeia e Samaria). Ver: Lustick, S. Ian. For the Land and the Lord. Jewish
que chamavam de “definição judaica do Estado de Israel”.
Fundamentalism in Israel. New York: Council of Foreign Relations Books. 1988. p. 17-42.

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O rabino Tzvi Yehuda (nascido na Lituânia em 1891 e morto em sozinho. Naquelas primeiras noites eu não estava disposto a aceitar o que
Jerusalém em 1982) havia sistematizado uma tese teológica-política bas- havia sido feito. As terríveis noticias eram verdadeiras, então. Minha Terra
havia sido dividida; Onde estava Hevron? Onde estava nossa Schem (Nablus)
tante ousada sobre o processo de restauração e o desenvolvimento histó-
e nossa Jericó. Toda Cisjordânia havia sido esquecida? [...] Cada parte da
rico do Estado de Israel. Para ele, haveria três fases na ordem messiânica. Terra pertence a Deus, é santa e nós não temos poder de abrir mão de nada,
A primeira estaria vinculada ao início “reunião dos exilados” (Kibbutz mesmo de um milímetro dela.17
Galluiot) (DEUTERONÔMIO 30: 1-5). Esta fase, dirigida ainda pelos judeus
seculares, seria a concretização da promessa bíblica da reunião das diás- Naquele momento, a prédica do rabino surpreende seus estudantes.
poras na Terra de Israel. Pela primeira vez, uma autoridade rabínica se refere, em público, à par-
A segunda fase seria a própria criação do Estado de Israel, que signi- tilha da Palestina e à criação do Estado de Israel como um momento de
ficaria o início do “florescimento da redenção” (reshittimchatgehulateinu). tristeza e depressão. Na sua fala, ele informava uma nova agenda política:
A terceira fase, esta a última antes da chegada efetiva do Messias, deve- era importante romper com o consenso sionista. Era importante dar sen-
ria surgir quando da completa conquista da terra de Israel (Eretz Israel tido à dimensão messiânica. Até que as cidades santas fossem “libertadas”,
Hashlema) (GENESIS: 15: 18-21). a restauração não estaria completa. Neste aspecto, de que servia Tel Aviv
Em realidade, esta formulação teológico-política havia conquistado se Israel não tinha Jericó? Aqui Tzvi Yehuda apontava para uma nova dire-
poucos adeptos mesmo no interior do sionismo-religioso, tendo ficado ção: a Terra de Israel deveria estar contida no plano messiânico. Era essa
restrita a estudantes do rabino Zvi Yehuda Kook que se reuniam na yeshivá a agenda política de um fundamentalismo religioso e político que nessa
dirigida por ele próprio, o Merkaz Harav Kook. Esta yeshivá (um centro ocasião saía do armário.
de estudos religiosos), criada em 1964 na cidade de Jerusalém (LUSTICK, Se o discurso do rabino fora pouco compreendido quando feito, em
1998: 19-20), pretendia preparar uma nova elite rabínica para uma nova pouco tempo ele passa a ser ressignificado e é percebido pelo público
fase de Israel. como uma espécie de “profecia auto realizada”. Após a Guerra dos Seis
O pequeno número de estudantes na yeshivá se justificava, pois havia, Dias o discurso messiânico militante, antes periférico e pouco potente,
então, poucos jovens que se interessavam em trocar centros mais impor- recoloca-se no centro do sionismo religioso em Israel. Agora, mais do que
tantes por uma yeshivá tão exótica e radical, que em última instância, nunca, o messianismo passa a ter sentido político e o fundamentalismo
falava em conquista de territórios e reconstrução da Terra de Israel na passa a ter uma agenda de ação.
terceira fase da Era Messiânica. Afinal, quem poderia, antes de junho de Cada vez mais judeus sionistas e religiosos entendem a conquista de
1967, acreditar nas conquistas de cidades como Hevron, Nablus ou Jenin? cidades da Judeia e Samaria como o início da terceira fase da redenção.
Essas cidades estavam, desde 1948, deve-se dizer, sob domínio jordaniano. Agora, a atenção deve estar virada para este território. O messianismo
Ao que parece o próprio rabino acreditava no “retorno às cidades san- sionista entende a prédica de Tzvi Yehuda como um sugestivo “mito de
tas” e estava disposto a conceder a isso significado político e ideológico. fundação” e passa a perceber o rabino como uma espécie de “profeta da
É o que indica a prédica feita por ele próprio na comemoração do dia da redenção judaica”. (ARMSTRONG, 2009: 258).
Independência de Israel, em 15 de maio de 1967 (três semanas antes do Com a vitória israelense na “Guerra dos Seis Dias” e a consequente
início da Guerra dos Seis Dias). Em um culto em homenagem a data, o ocupação de territórios na Cisjordânia, há o fortalecimento de perspecti-
rabino Tzvi Yehuda Kook surpreende toda uma audiência que, perplexa, vas mais radicalizadas dentro do sionismo religioso. Se até então os políti-
escuta um sermão inesperado: cos mais tradicionais eram hegemônicos dentro do Partido “Mafdal”, esta
realidade passa a se alterar a partir de 1967. Nesse contexto, perspectivas
Dezenove anos atrás na noite em que as Nações Unidas decidiram criar o
Estado de Israel, todo povo se alegrou e dançou. Eu estava impossibilitado
então de me juntar à euforia nacional. De fato, eu me sentei deprimido e 17 Lustick, S. Ian.Op. cit., p. 18.

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restauracionistas ganham destaque entre jovens lideranças messiânicas e Por fim, o governo cede e é obrigado a criar uma primeira colônia no
passam a ocupar espaços dentro da burocracia partidária. norte da Cisjordânia, Elon Moreh, próxima a Nablus. Elon Moreh passa a
Além da mudança de poder no interior das estruturas formais dentro ser o símbolo maior do sionismo messiânico e da derrota de um sionismo
do sionismo religioso, surgem também novas organizações que passam a de esquerda, que afetava e tentava impedir a marcha em direção a reden-
ser referência no âmbito desse judaísmo sionista e redentor. Uma delas, a ção do “povo de Israel na Terra de Israel”.
já citada Gahelet, Núcleo Pioneiro Religioso. Esta entidade, apesar de ter Se os fundamentalistas judeus acumulam vitórias no período pós
sido criada alguns anos antes da Guerra, em 1964, altera seu modelo de Guerra dos Seis Dias, quando o Partido Trabalhista está no poder, a situa-
atuação a partir de 1967. Visando criar novos centros de ocupação no inte- ção apenas se aprofunda por ocasião da vitória do partido direitista Likud,
rior das “cidades sagradas”, a Gahelet passa a tentar estabelecer colônias em 1977. O Likud é herdeiro do sionismo revisionista, que, apesar de hege-
ilegais nos territórios ocupados. Este é o caso da cidade de Hebron, que monicamente secular, é maximalista territorialmente. Nesta fase, os sionis-
já recebia uma população de colonos religiosos menos de um ano após a tas religiosos do Gush Emunim se tornam parceiros políticos de Menacham
Guerra dos Seis Dias. Begin (primeiro-ministro) e de Ariel Sharon (ministro da agricultura).
As perspectivas messiânicas dos colonos vão ser motivo de tensio- Para os sionistas religiosos, ambos funcionavam como auxiliares no
namento, tanto em relação ao governo trabalhista de então (contrário à processo messiânico de redenção. Foi justamente neste primeiro governo
colonização dos territórios ocupados) quanto em relação às populações do Likud que surgiu grande parte das colônias na Cisjordânia. Constituídas
palestinas locais. Os sionistas religiosos percebiam estas como adversárias hegemonicamente por sionistas religiosos, por membros do Gus Emunim
e obstáculos no processo de busca da redenção que agora avançava. Os e de outros grupos mais radicalizados, as colônias se transformariam em
palestinos deveriam ser derrotados e dominados, pois não passavam de um dos grandes obstáculos para qualquer acordo com os palestinos, além
obstáculos à vinda do Messias, enquanto que os líderes sionistas secula- de se tornarem tema central na política israelense. Depois de 1977 seria
res eram vistos como traidores da própria causa, pois não entendiam que impossível ignorar centenas de milhares de colonos que ocupavam terri-
agora a redenção avançava diante de seus olhos. tórios palestinos com justificativas teológicas e políticas.
A tensão entre governo e colonos chega a níveis mais altos quando da A partir desse período, o fundamentalismo judeu está entalado na
criação da Organização Gush Emunim (Bloco dos Fiéis). Fundado em 1974 garganta do Estado de Israel. A noção de que a colonização dos territó-
por jovens rabinos e por antigos membros do Mafdal, o Gush Emunim se rios palestinos é parte de um plano messiânico marca profundamente a
especializou em ocupar territórios e produzir novas colônias, por vezes no política nacional e afetará quaisquer acordos futuros na região. Ademais,
coração de territórios palestinos (LUSTICK, 1998: 32-34). Mais uma vez, as fortalece-se a perspectiva de que judeus e palestinos contrários à ocupação
justificativas eram de ordem teológica, política e ideológica. dos territórios estão, de fato, impedindo o estabelecimento da era messiâ-
Como exemplo, temos a tentativa de ocupação da vila de Sebastia, nica e que deveriam, por isso, ser punidos:
próximo a Nablus. Aqui, os membros do Gush Emunim mesclavam pers-
Os fundamentalistas não vêm [sua] luta como uma batalha política con-
pectivas religiosas (ishuveretz Israel – Ocupação da Terra de Israel), com
vencional e sim como uma guerra cósmica entre forças do bem e do mal.
visões messiânicas (ocupação da cidade de Nablus, onde havia sinais bíbli- Temem a aniquilação e procuram fortificar sua identidade sitiada atavés de
cos importantes a “serem recuperados”, como o túmulo de José, o patriarca) doutrinas e práticas do passado. (ARMSTRONG, 2009: 11).
e dimensões sionistas clássicas (o conceito de pioneirismo e colonização
era utilizado da mesma forma como sionistas seculares faziam no período A situação torna-se ainda mais complexa com a chegada de outro
anterior ao estabelecimento do Estado de Israel). personagem à trama. Em 1971 o Rabino Meir Kahane (nascido em Nova
Estas três referências eram muito mobilizadoras. Durante semanas, York em 1932 e assassinado em Nova York em 1990) chega a Israel e funda
“jovens pioneiros religiosos” enfrentam a polícia e as forças do exército. um novo partido de extrema direita, o Kach. O Kahanismo dá um passo

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além dos sionistas-religiosos na perspectiva messiânica. Para eles a ideia se tornam mais visíveis e relevantes em um quadro de constante avanço e
de redenção deve ser estabelecida com a expulsão de todos os palestinos radicalização.
da Terra Santa. Pode-se dizer, assim, que partes consideráveis da população
O conceito de “autodefesa” trazido por Kahane, nesse contexto, é uti- israelense se tornam reféns de agendas e bandeiras messiânicas e restau-
lizado em seu sentido mais lato. Assim, atacar palestinos também significa racionistas defendidas pelo fundamentalismo. Tal realidade aponta para o
defender Israel. Desse modo, a violência contra a população palestina se crescimento do poder de grupos religiosos radicalizados e isolacionistas.
torna constante e há cada vez mais casos de agressão e assassinatos perpe- Ademais, do outro lado do conflito, grupos palestinos fundamentalistas
trados por colonos kahanistas (tal qual aquele citado na introdução deste também se fortalecem e ameaçam, a seu modo a estabilidade da região.
texto em Duma). É possível afirmar que entre palestinos e judeus surge uma espécie
Após a morte de Meir Kahane, vários grupos incorporam seus prin- de diálogo tangenciado justamente pelo fundamentalismo religioso. Tal
cípios e formam gangues violentas que combatem palestinos e judeus diálogo está comprometido com uma pauta de dominação do outro e de
progressistas com igual violência.18 Estas gangues extrapolam o sionismo exclusão. Desta forma, é correto afirmar que o fortalecimento de grupos
religioso e acabam incorporando grupos específicos no interior da ultraor- fundamentalistas judeus contribui para o empoderamento do extremismo
todoxia, que também adotam perspectivas messiânicas e restauracionistas. islâmico e vice-versa. Este quadro pode levar à perpetuação de um grave
circulo vicioso de ódio, exclusão e fanatismo, transformando aqueles
conclusão exemplos de violência na parada gay e na cidade de Duma em atos alta-
mente recorrentes na sociedade israelense.
Hoje pode-se dizer que o fundamentalismo judaico, violento ou não, está
deveras baseado no uso político da redenção e da vinda do Messias. Nesses
referências bibliográficas
termos, a coalizão de fundamentalistas é grande e abarca desde sionistas
religiosos de extrema-direita até grupos antissionistas, mas que, entre- ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: O fundamentalismo no judaísmo, no cris-
tanto, mantém uma visão teológica que valoriza orientações messiânicas. tianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
O modus operandi do fundamentalismo judaico privilegia uma racio- BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: Razões e significados de uma distinção polí-
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nalidade política que não prescinde, por exemplo, da participação em
eleições parlamentares, ao mesmo tempo em que critica a democracia e ELDAR, Akiva; ZERTAL, Idith. Lords of the land: The war over israel settlements in
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apoia entidades radicalmente religiosas que não aceitam, por vezes, a pró-
pria existência do Estado de Israel. O fundamentalismo judaico, portanto, ELIZUR,Yuval; LAWRENCE, Malkin. The war within: Israel’s ultra-orthodox threat
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possui lógicas próprias que podem ou não estar em consonância com as
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Neste sentido, é preciso notar que a formação e o fortalecimento de Número 6:61. Disponível em: <http://www.niej.org.br/>. Acesso em: 4 de março
grupos fundamentalistas judeus constituem, efetivamente, um grande de 2013.
risco para a estabilidade democrática das relações entre palestinos como GOLDSTEIN, Yosi. De Kehilá Comunidad: Enfoques acerca de la vida comunitaria
de israelenses. De fato, nos últimos 48 anos, ou seja, desde que a ocupa- judíaenla Argentina y el Brasil Hacia Fines del Siglo XX. Judaica Latinoamericana,
ção dos territórios palestinos se inicia, grupos fundamentalistas israelenses Jerusalem, v. 5.
18 O Kahanismo recupera uma dos mandamentos mais controversos da bíblia judaica como LUSTICK, S. Ian. For the land and the lord. Jewish fundamentalism in Israel. New
referência de atuação “Lembrem-se da lembrança de Amalek”, que considera os Amalekitas York: Council of Foreign Relations Books, 1988
maiores inimigos dos filhos de Israel e exige seu extermínio (Exodus 17:14). Em alguns dos
seus usos políticos, os Kahanistas consideram os Palestinos descendentes dos Amalekitas.

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do surgimento de um novo movimento religioso dentro das fronteiras do
Estado de Israel, o pentecostalismo brasileiro. Vivendo em Israel desde
2002, começo a perceber com cada vez mais frequência símbolos evangé-
licos em português nas ruas de Jerusalém. Neste mesmo período, passo a
constatar maior presença típica de fiéis brasileiros circulando pelas ruas
da cidade, não mais em grandes grupos de turistas, como antes; agora os
vejo em pequenos grupos, os vejo em supermercados, na feira, nos pontos
de ônibus, em práticas típicas de habitantes da cidade e não de turistas que
apenas estão de passagem.
A percepção destes novos movimentos que ocorrem no interior do
Estado Judeu me levou a reflexões relacionadas aos processos de aceitação e
exclusão social de um grupo minoritário dentro de um estado com relativa
definição confessional e religiosa e grande diversidade cultural. Tais refle-
xões estão relacionadas a questões religiosas, mas também passam por refe-
rências políticas. Importante lembrar que movimentos evangélicos no Brasil
frequentemente usam símbolos judaicos e sionistas e se postulam defenso-
res do Estado de Israel e, de forma muito generalista, da causa sionista.
Paralelo a questões religiosas e políticas, o estudo da formação de
Igrejas evangélicas em Israel aponta para possibilidades de reflexão acerca

1 O título original desse artigo, “God and the Satan in Holy Land”, consiste aqui em uma refe-
rência ao clássico filme dirigido por Glauber Rocha no ano de 1964. Ao trocar, também em
português, a expressão “do Sol” para “Terra Santa”, pretendia falar no texto de uma procura
mística e espiritual de pentecostais brasileiros na Terra Santa, o Estado de Israel.

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da consolidação de grupos religiosos em um mundo cada vez mais fragmen- modernizadores3 e fortes doses de encantamento e ritos de exorcismo
tado e diversificado, como o caso da sociedade israelense dos anos 2000.2 durante seus cultos. Em Israel, a Igreja Universal do Reino de Deus pode
ser considerada a representante dessa terceira onda.
igrejas pentecostais brasileiras em israel É importante notar que essa tipologia não é excludente, e aqui podem
ser encontrados elementos de diferentes fases influenciando diferentes
Existiam então duas igrejas pentecostais brasileiras funcionando em Israel. congregações e Igrejas. Em Israel, onde estão presentes representantes da
Ambas pertencem a uma fase específica do pentecostalismo brasileiro e primeira e da terceira onda do pentecostalismo brasileiro (a Congregação
possuem, cada qual, sua história institucional própria. De acordo com Cristã do Brasil e a Igreja Universal do Reino de Deus), há uma cons-
alguns autores, o pentecostalismo brasileiro pode ser dividido em dife- tante migração de fiéis de uma igreja para outra, o que facilita ainda mais
rentes fases. Freston (1993:14) e Mariano (1999:28) apontam três “ondas” mútuas influências entre as duas congregações.
no desenvolvimento pentecostal no Brasil. Cada uma dessas “ondas” traz A Congregação Cristã do Brasil (CCB) e a Igreja Universal do Reino
consigo perspectivas e inovações que transformam o cenário institucional de Deus (IURD) tiveram desenvolvimento similar no seu estabelecimento
das igrejas pentecostais. no Estado de Israel. A expansão do pentecostalismo brasileiro em Israel
A primeira fase, chamada de pentecostalismo clássico, está marcada pode ser considerada parte de um processo capitaneado por diversas
pelo isolamento e por uma demanda e ascetismo e renúncias materiais. denominações pentecostais brasileiras, o “Expansionismo Transnacional
Nesta “primeira onda” do pentecostalismo brasileiro é dada grande impor- do Pentecostalismo brasileiro” (ORO, 2004: 4). Nesse processo, diversas
tância para o dom de glossolalia (dom de falar em línguas), considerado Igrejas alcançaram outros países na América do Sul, do Norte e na Europa,
como um segundo batismo – o batismo no Espírito Santo no pentecosta- estabelecendo-se nesses territórios. Dentre a veemente expansão do pen-
lismo. A manifestação de tal dom vai ser de fundamental importância nas tecostalismo brasileiro, o Estado de Israel pode se considerado um dos
hierarquias dessas igrejas. Em Israel a Congregação Cristã do Brasil pode lugares onde o movimento apareceu e até mesmo prosperou.
ser considerada a representante dessa fase do pentecostalismo brasileiro. Ainda que seja um número reduzido, sua presença na Terra Santa
A segunda onda do pentecostalismo, denominada de “Onda Neoclás- não pode ser considerada menos importante. Aron, um dos fundadores
sica”, tem como principal representante no Brasil a Igreja do Evangelho da IURD em Yafo, explica alguns pontos que ele crê justificam a relevância
Quadricular. Nesta fase há uma ênfase maior no dom de curas divinas. da presença pentecostal em Israel. Ele diz:
Esta segunda etapa traz poucas inovações doutrinárias, mas acaba por
influenciar profundamente as duas outras fases do pentecostalismo brasi- Foi muito importante para o Bispo Macedo, o fundador da Igreja Universal
do Reino de Deus, abrir a IURD em Israel. Você pode ver no belíssimo livro
leiro. Em Israel nenhuma das Igrejas brasileiras existentes pode ser consi-
publicado em diversas línguas e países para comemorar o aniversário de 25
derada representante desta fase do pentecostalismo. anos da Igreja que o Bispo Macedo afirma que se estabelecer em Israel foi um
A terceira onda, a fase do neopentecostalismo, traz uma série de dos projetos mais importantes e audaciosos já feitos pela IURD.
inovações para o pentecostalismo brasileiro. Entre elas pode-se notar
3 Como exemplo de tais elementos modernizadores está a Teologia da Prosperidade. A teo-
uma forte utilização da mídia de massa, usos de elementos teológicos logia da prosperidade teve sua origem na década de 1940 nos Estados Unidos, apesar de ter
se consolidado no meio evangélico a partir da década de 70 do século XX. Tal teologia traz
um forte cunho de autoajuda e valorização do indivíduo, agregando crenças sobre cura,
2 Na pesquisa que deu origem a este artigo utilizei dois métodos complementares de chegada prosperidade e poder da fé através da confissão da “Palavra” em voz alta. Na dinâmica da
ao campo, a observação participante e entrevistas com frequentadores das igrejas a par- Teologia da Prosperidade, trocas diárias com ganhos e perdas vão ser efetivadas a partir do
tir da proposta de trajetória de vida. Meu período de observação participativa foi de dois modelo de lucro e investimento das grandes empresas. No Brasil a Igreja Universal baseia
anos. Como via de regra estava presente a cultos nas igrejas semanalmente, duas vezes em na teologia da Prosperidade suas práticas cotidianas, onde Deus e o Fiel fazem parte de
cada uma delas. Somente frequentava os cultos, pois nunca cheguei a ser convidado para um jogo econômico e têm funções especificas. Enquanto o segundo investe para ganhar, o
as atividades sociais das igrejas. Entrevistei ao total 20 pessoas, 10 membros de cada igreja, primeiro dá recompensas ou punições de acordo com o tamanho do investimento ou das
utilizando como referência o método de trajetória de vida. habilidades do investidor.

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A importância do pentecostalismo brasileiro em Israel pode ser “renascimento” preenche junto ao fiel uma nova etnicidade (RAMAGEN,
explicada por diversos fatores simbólicos, teológicos, políticos e sociais. 2001: 12), que dá ao recém-convertido uma nova impressão de poder.
Simbolicamente, Israel é um elemento presente na atuação dessas Igrejas Além da força individual dada pela participação diária nos cultos, em uma
já no Brasil, onde, conforme citado acima, símbolos sionistas juntamente dimensão coletiva, os fiéis brasileiros também se sentem mais fortes. De
com alguns elementos da tradição judaica aproximam tais Igrejas do agora em diante, são parte do “Povo Escolhido”. Como Sonia Ramagen
Estado de Israel, já que sua identificação com a Terra Santa é fortemente (2001: 18) diz, “Ao se afiliarem ao ‘Estado de Israel’, as classes baixas da
sentida. Conceitos como “Terra Prometida” e “Povo Escolhido” são repeti- sociedade brasileira se identificam com o imaginário do ‘Reino de Israel’
dos diversas vezes pelos pastores em sermões e rodas de oração. O Estado do qual são [ou querem ser] sujeitos.”
de Israel se torna assim um exemplo de bênção divina e uma importante Num processo similar, os fiéis pentecostais também convertem os
referência nos cultos das Igrejas brasileiras. judeus modernos e o moderno Estado de Israel a uma perspectiva bíblica.
Nesta perspectiva, o “Povo de Israel” e o Estado de Israel passam Nesta dimensão, signos sionistas modernos e membros das comunidades
por um processo de santificação dentro das igrejas pentecostais, o que judaicas brasileiras são entendidos, em uma perspectiva religiosa e mís-
pode explicar o grande número de fiéis brasileiros que vai para Israel a tica, como membros de uma suposta identidade religiosa comum. Assim,
cada ano, adquirindo e levando diversos objetos de volta para o Brasil. o uso de objetos religiosos judaicos são vistos como parte de um processo
Posteriormente, tais fiéis utilizam estes objetos em ritos religiosos ou de “autoconversão de conversão do outro”.
mesmo fora dos templos, em suas casas, dando a eles um tipo de proprie- Desta forma, o fiel pentecostal se insere em um imaginário judaico e
dade mágica e uma forma de vínculo imaginário e místico com Israel e “sionista”, da mesma forma que, a seu ver, insere os judeus e o Estado de
com o judaísmo. Israel em uma fronteira comum. Usando os mesmos objetos e tendo as
mesmas referências, o cristão destas igrejas se judaiza, ao mesmo tempo
em que “cristianiza” o judeu e Israel. Em suas fronteiras imaginárias, os
a identidade judaica:
judeus e os cristãos de denominações neopentecostais estão nos mesmos
produzindo fronteiras no pentecostalismo brasileiro
limites e compartilham identidades próximas e complementares.
A figura do judeu é muito comum na narrativa pentecostal brasileira. A
presença do judaísmo pode ser sentida nos cultos pentecostais através de pentecostalismo brasileiro em israel:
palavras e canções em hebraico ou a partir de símbolos sionistas ou judai- inauguração e desenvolvimento das igrejas em israel
cos encontrados dentro das Igrejas. Diferentemente de outros grupos cris- As duas igrejas pentecostais brasileiras chegaram ao Estado de Israel
tãos brasileiros, que mantêm uma relativa distância de elementos judaicos durante o mesmo período. Conforme visto anteriormente, há fortes vín-
ou do Estado de Israel, algumas igrejas pentecostais brasileiras transmitem culos entre a realidade social, política e religiosa de Israel e do pentecosta-
um sentimento de forte afinidade para com Israel. Esta afinidade traz resul- lismo brasileiro, o que transformou a chegada dessas igrejas à Terra Santa
tados econômicos e políticos, como o vigoroso incremento de turismo do em um evento complexo e interconectado.
Brasil para Israel e o aparente apoio político dado a Israel (ao governo de Para uma melhor compreensão da atuação do pentecostalismo bra-
Israel) pelos políticos ligados a algumas das Igrejas pentecostais. sileiro em Israel, é importante entender dois processos paralelos e espe-
Importante notar que os fiéis pentecostais passam por uma conversão cíficos que determinaram o surgimento dessas igrejas neste país. Tais
coletiva. Além da nova identidade do recém-convertido, ele deve se tornar processos consistem na inauguração das igrejas em Israel e nas primeiras
parte de um novo tipo de “nação”. Nessa nova identidade, o fiel convertido conversões de israelenses ao pentecostalismo brasileiro. Ambas as igrejas
se aproxima da imagem dos judeus e de Israel. Cada convertido entende que operam em Israel, CCB e IURD, têm entre seus primeiros fiéis conver-
seu processo de conversão como uma mudança em sua biografia; esse tidos pessoas com identidades judaicas religiosas muito específicas.

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É importante compreender a importância dos judeus convertidos nas O fato de que eu era judeu e parte da tradição sacerdotal sempre esteve pre-
Igrejas pentecostais brasileiras em Israel. Para isso, analisaremos o caso de sente na Igreja. Na tradição pentecostal, a experiência da conversão trans-
forma o fiel em uma espécie de profeta. Por isso era importante para eles ter
dois judeus convertidos. Os dois estão entre as primeiras pessoas a serem
um Cohen na comunidade...
convertidas ao pentecostalismo em Israel. Em ambos os casos eram judeus
que acharam respostas para suas aflições no pentecostalismo brasileiro. Como membro de outra Igreja Pentecostal, a CCB (Congregação
Aaron e Levy eram judeus religiosos, um tradicionalista e o outro Cristã do Brasil), Levy conta que sua aliyah já fazia parte de sua busca por
ortodoxo, que moravam em Israel e estiveram muito envolvidos com os Deus. Ele explica sua emigração dizendo:
primeiros passos das igrejas pentecostais em Jerusalém e Tel Aviv. Aaron
Mesmo sendo membro de um grupo Lubavitcher em São Paulo, eu decidi
e Levy foram convertidos durante uma visita ao Brasil, onde tiveram seus emigrar para Israel. Eu estava procurando por algo... eu acreditava que Israel
primeiro contatos com o pentecostalismo brasileiro. era a Terra Santa para mim. Eu me casei e fui morar em Kfar Chabad. Nesse
Importante notar que a chegada de ambos a Israel, em anos anteriores, período fui abençoado por Deus e me tornei um homem muito rico.
estava vinculada a perspectivas religiosas e políticas judaicas. Em ambos
É interessante perceber que no caso de Levy, não tive permissão de
os casos, suas aliyot (emigração para Israel) significavam importantes pas-
gravar minhas entrevistas. Ele explicou sua decisão através de uma pro-
sos na consolidação de suas identidades judaicas. Nenhum dos dois tinha
fecia que recebeu alguns dias antes do nosso primeiro encontro. Nessa
qualquer identificação com o cristianismo ou, mais especificamente, com
profecia ele entendeu que se tornaria um líder muito importante na CCB e
o pentecostalismo brasileiro.
por causa disso seria um risco que gravassem suas entrevistas.
Aaron, um membro da Igreja Universal do Reino de Deus, conta sua
Levy e Aaron justificam a aliyah como o primeiro passo para suas
história:
conversões. Eles chegaram à Terra Santa em algum tipo de processo reli-
Somos uma família judaica com origens sacerdotais; somos parte da tribo gioso. O processo se completou no ato da conversão. Aaron diz:
dos Cohen. No Brasil, éramos parte da comunidade de Porto Alegre. Íamos
às cerimônias da sinagoga, mas não conhecíamos o verdadeiro Messias. Depois da minha primeira visita a Israel, quando eu tinha 13 anos, visitei
Quando eu completei 13 anos, recebi uma bolsa da Alyat Hanoar para estu- Israel por mais 25 vezes e finalmente decidi morar aqui. Algo me empurrava
dar em Israel. Nesse momento eu iniciei a emigração da minha família para na direção de Israel, alguma missão que eu não sabia exatamente o que era.
a Terra Santa.
Além do fato de ambos estarem de passagem no Brasil na ocasião
É notório nesse caso a centralidade da definição judaica como parte de sua conversão, Levy e Aaron, que podem ser considerados dois dos
de sua identidade pessoal. No trecho acima pode ser notada a tentativa de pioneiros do pentecostalismo em Israel, também compartilhavam uma
Aaron em ligar a “moderna identidade judaica” a uma identidade bíblica e situação econômica similar antes de suas conversões. Aaron descreve que
clássica. Além de ser parte de uma “comunidade judaica” em Porto Alegre, sua situação financeira ruim o trouxe para o Brasil, onde teve seu encontro
onde frequentava a sinagoga e tinha outros vínculos comunitários, Aaron com o pentecostalismo. Ele diz:
afirma que ele é parte de uma tradição sacerdotal, se ligando à figura de
Depois de alguns anos em Israel, eu estava em uma terrível situação econô-
Aaron, o irmão de Moisés. mica e voltei ao Brasil para encontrar respostas nos caminhos espirituais...
Sua identificação com a tribo dos Cohen, entretanto, não é só ligada conheci Jesus através de um programa de TV da Igreja Universal. Nesse pro-
aos rituais oficiados na sinagoga. De fato, esta tal identidade carrega mais grama, o pastor disse ‘Venha, venha, pois Jesus vai te ajudar.’ Então eu fui
significados na sua segunda fase, já convertido à Igreja; esta referência a uma das igrejas. Uma das primeiras perguntas que fiz foi: ‘Pastor, eu sou
sacerdotal é parte de uma identidade pentecostal diária que está presente judeu. Quero me converter, mas estou assustado. Não acha que todo meu
povo vai se virar contra mim?’ Ele disse, ‘Se você fizer, vai se tornar o vence-
dentro e fora da Igreja. A tradição sacerdotal de Aaron determina sua pre-
dor’. Então eu me converti e muitas coisas boas aconteceram na minha vida.
sença na Igreja. Ele continua dizendo:

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Levy também estava em uma séria crise econômica em Israel e por Depois de seu retorno para Israel, Levy descobriu a existência de fiéis
isso foi visitar sua família no Brasil. Lá ele encontrou algumas respostas da CCB em Israel e iniciou seu processo de conversão. Ele conta:
para suas perguntas. Ele me disse:
Quando eu voltei para Israel, eu quis renovar minha carteira de motorista.
Eu era um homem de negócios importante. Eu viajava todo mês para os Era um dia muito quente e eu procurava por um lugar para beber algo depois
Estados Unidos por causa do meu negócio. Um dia descobri que alguns dos de terminar o que tinha que fazer. Fui a um bar e lá Deus me enviou a CCB
meus sócios, também judeus chassídicos, tentavam causar minha bancar- como um presente. O homem que veio me servir a bebida disse, ‘Aqui está,
rota. Fiquei tão assustado e com tanta raiva que fui visitar minha família no meu irmão’. Eu olhei para ele e vi um pôster em português que dizia ‘Deus
Brasil. No Rio de Janeiro, enquanto esperava por um táxi, me deram o papel é Amor’. Contei minha história para ele e começamos a chorar. Ele me disse
de uma igreja evangélica. Eu nem o aceitei, mas pude ver o nome da Igreja. ‘Irmão, estamos abrindo uma Igreja perto daqui, você está convidado’. Desse
Quando entrei no táxi, o motorista me deu o mesmo folheto da Igreja. Então momento em diante, a CCB se tornou minha casa; meu lar espiritual.
me preocupei e pensei, ‘O que está acontecendo aqui?’ Dias depois eu estava
no outro lado da cidade e o mesmo homem me deu o mesmo folheto. Foi Levy explica sua escolha por se converter em uma igreja brasileira:
então que decidi que deveria visitar a Igreja. Entrei no táxi. Você sabe o que o
motorista perguntou? ‘Você vai à Igreja, não vai?› Eu disse: ‘Aleluia!’ Quando Está claro para mim que não escolhi Jesus, mas que ele me resgatou. Eu
cheguei na Igreja, obviamente tirei meu kipá, fiquei do lado da entrada e a entendo que exista uma razão para que minha conversão tenha ocorrido no
Igreja estava cheia de fiéis. O pastor disse do púlpito: ‘Ó Glória! Você veio! Brasil. Primeiro de tudo, a força da fé no Brasil é incrível. O tipo mais simples
Nós estávamos esperando por você, mas era Jesus quem queria falar com de pessoa que você encontra manifesta a força do Espírito Santo. [...] Você vê,
você. Ele disse que você não pode acreditar nos homens de preto que usam por exemplo, que a palavra ‘ateu’ quase não existe no Brasil. Eu tenho certeza
chapéus. Eles te roubam, e vão te fazer um homem pobre’. Eu achei que ele que a segunda vinda de Jesus atingirá Israel como seu mais importante des-
falava comigo. Saí assustado, mas logo vi que o pastor falava a verdade. tino, mas também me é claro que a segunda vinda de Jesus virá do Brasil.

Levy não entende sua conversão como total ruptura com seu judaísmo.
conversão na terra santa:
Na verdade, ele a vê como parte de sua experiência judaica. Ele me explica:
pentecostalismo como parte de uma experiência judaica
Quando eu era um judeu chassídico, eu sempre recebia mensagens do Rebe
Levy e Aaron, ambos nascidos no Brasil e atualmente vivendo em Israel, Lubavitcher. Ele geralmente vinha em meus sonhos e me pedia para voltar
tiveram seus primeiros contatos com o pentecostalismo através de pro- para o caminho certo. Agora eu entendo, como um fiel judeu, qual é o cami-
vas espirituais, que ocorreram coincidentemente no mesmo período de nho certo.
tempo. Outro ponto compartilhado por vários outros novos convertidos
Levy tenta conectar algumas de suas experiências judaicas como
foi a fase difícil que cada um passou, ligada a problemas financeiros.
judeu ortodoxo com sua conversão para o pentecostalismo brasileiro.
Em Jerusalém, Tel Aviv e outras cidades de Israel, há uma grande
Levy era o único ex-judeu ortodoxo entre os fiéis da CCB no seu processo
população de trabalhadores estrangeiros oriundos da América do Sul,
de fundação em Israel.
legal ou ilegalmente estabelecidos. Alguns desses trabalhadores têm raízes
O processo de inauguração de ambas as igrejas pentecostais brasi-
religiosas nas Igrejas pentecostais. Até a segunda metade dos anos 1990 a
leiras em Israel segue estágios similares que são ligados a contatos espiri-
existência de poucos fiéis pentecostais não assegurava a efetiva fundação
tuais específicos e determinados por decisões políticas e práticas. Nos dois
do pentecostalismo brasileiro em Israel. Até esse momento, existiram ape-
casos, distintos personagens receberam, de maneira diferente, mensagens
nas algumas tentativas frustradas de fundar igrejas.
do Espírito Santo, que ordenou a eles que tomassem a tarefa de abrir igre-
Aaron e Levy decidiram retornar para Israel e se envolveram na fun-
jas pentecostais brasileiras em Israel.
dação de duas diferentes igrejas pentecostais. Aaron trouxe a ideia de fun-
A primeira pessoa ligada à CCB em Israel foi o ancião Florestan, que
dar a Igreja Universal do Reino de Deus e Levy procurou insistentemente
foi tocado por uma mensagem do Espírito Santo. Florestan nunca morou
por qualquer igreja pentecostal quando voltou do Brasil.

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em Israel, mas começou a vir diversas vezes ao ano para ajudar no estabe- Era importante para que ele [Bispo Macedo] abrisse a Igreja em Israel. Eu
lecimento da Igreja. Florestan explica que fundou a Igreja através de uma recebia os fundos através de uma agência de viagens em Tel Aviv e organi-
zava os cultos em minha casa, em Nestziona. Muitos fiéis tiveram seus pri-
revelação que experimentou:
meiros encontros com a IURD na minha casa. Fiéis israelenses e brasileiros.
Eu estava em Israel como turista em 1991, pela primeira vez. Quando voltei
para o Brasil, o Espírito Santo foi apresentado a mim e disse que eu deve- O primeiro estágio de desenvolvimento no tocante ao pentecosta-
ria voltar para Israel e abrir uma Igreja. Eu pedi por mais provas e durante lismo brasileiro em Israel é sua base em revelações e signos do Espírito
um culto, em Minas Gerais, um membro que eu não conhecia apontou para Santo, o que fez da fundação algo não oficial. O segundo estágio, por sua
mim e disse: ‘Ouça a voz de Deus, vai para onde ela diz para você ir’. Então vez, incorpora intervenção oficial dos representantes das igrejas. Aqui,
eu decidi vir para Israel e iniciar a construção da Igreja. templos oficialmente substituíram casas e pregações nas ruas. As reve-
lações do Espírito Santo determinaram quais investimentos os fiéis ou a
Em relação à IURD, a primeira pessoa envolvida com sua fundação
Igreja deveriam fazer para desenvolver seus projetos locais.
em Israel foi Aaron. Depois de se converter, percebeu que deveria trazer
A segunda fase da CCB em Israel se liga a outra revelação do Espírito
a Igreja para Israel. Quando lhe perguntei a motivação, ele me explicou:
Santo. Outro membro da igreja, chamado Índio, recebeu um tipo de pro-
A Igreja Universal tinha se tornado meu lar espiritual. Eu ia a seus cultos fecia. Índio era um homem muito rico que morava no Rio de Janeiro. O
duas vezes por dia, todos os dias. Então Jesus começou a me guiar de volta ancião Florestan conheceu Índio e o resultado foi a peça fundamental no
para Israel. Ele disse que minha missão era de pregar a verdade para o meu
desenvolvimento da Igreja em Israel.
amado povo da Terra Santa.
O contato de Índio com a CCB em Israel começou anos depois de sua
Os primeiros fiéis e convertidos se reuniam nas ruas ou em residên- conversão. Ele explica:
cias particulares. Como Florestan explica: Eu estava viajando de uma reunião de negócios em São Paulo para minha
casa no Rio. Não sei por quê, nesse dia decidi ir para São Paulo de carro. Eu
No início, os cultos eram nas ruas. O povo de Deus foi mandado para nós.
estava muito cansado e queria chegar no Rio o mais rápido possível. Comecei
Algumas pessoas ouviam a pregação nas ruas em português, se interessavam
a ouvir vozes estranhas. Elas me pediram para parar e ouvir a voz de Deus.
e depois queriam se converter. Deus glorioso, era uma fase maravilhosa!
Eu não queria parar porque estava muito cansado, mas as vozes aumenta-
ram. Elas se tornaram uma só, que me ordenou que abrisse a Bíblia. Eu tinha
O caso da IURD foi diferente. Ainda que Aaron não fosse membro
uma Bíblia no carro e, quando eu a abri, comecei a ler sobre a morte de Sarah
oficial da Igreja, foi o primeiro fiel em Israel e fez grandes esforços para e seu enterro em Hebron. A voz era muito alta e eu podia ouvir ‘Jerusalém’.
estabelecer uma Igreja. Ele diz: Bom, eu ouvi, graças a Deus, e continuei viajando em direção ao Rio. Depois
de alguns metros, a voz me mandou parar. Eu abri a Bíblia na passagem onde
Bem, eu voltei para Israel três meses após minha conversão, mas eu me sen- Lot recebe a visita dos dois anjos que anunciam a destruição de Sodoma.
tia muito isolado pois ninguém partilhava da fé de Jesus. Então eu escrevi Nesse ponto, eu entendi a mensagem. Eu tinha que construir uma igreja em
para a Igreja e expliquei que era judeu, agora convertido, e que queria abrir Jerusalém, no caminho para Hebron, e mandar fiéis em pares, como os anjos
uma Igreja em Israel. Alguns meses depois recebi uma resposta do Bispo, que vieram para Lot, para manter o trabalho de Deus na Terra Santa. Glória
dizendo que se orgulhava da minha conversão e que eu teria o necessário a Deus! Eu não podia parar de pensar em como começar. Dias depois recebi
para abrir uma Igreja Universal em Israel. a ligação de Florestan e começamos a trabalhar juntos.

Depois de contatar a Igreja, Aaron se tornou o primeiro representante Após manifestar seu dom profético, Índio alugou um apartamento
oficial da IURD em Israel, pois o Bispo Macedo queria abrir uma Igreja no em Jerusalém, onde os cultos começaram a acontecer de verdade. Eram
país. Nesse estágio, Aaron usou sua casa na cidade de Nestziona como o conduzidos por um par de fiéis que eram enviados do Brasil em épocas
primeiro tempo da Igreja na Terra Santa. Ele diz: diferentes. Enquanto isso, Florestan e Índio vinham a Israel para construir
uma Igreja forte.

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Ainda que tivesse cidadania israelense, fosse brasileiro, tivesse dons primeiros fiéis locais e os primeiros lugares de adoração. Nesse estágio,
proféticos e falasse em línguas, Levy não teve papel importante na cons- experiências espirituais têm importância fundamental.
trução da Igreja em Israel. Florestan preferiu enviar fiéis originais e confiá- O segundo estágio marca a transformação de estrutura orgânica para
veis da congregação do Brasil. uma estrutura mais forte e estável. Aqui, os primeiros membros de cada
Um processo similar ocorreu com a fundação da Igreja Universal em Igreja são enviados do Brasil para desenvolver suas respectivas congre-
Israel. Era claro para Aaron que a vinda da IURD para Israel era um passo gações. Nesse estágio, os judeus convertidos locais gradualmente perdem
necessário. O grande líder da Igreja, Bispo Macedo, concordou em ajudar sua importância em cada Igreja e são substituídos por membros ativos
Aaron monetária e legalmente. Durante os três primeiros anos, os cultos vindos do Brasil para colaborar.
foram na casa de Aaron em Neztsiona. Em 2003, o número de fiéis ultra- O terceiro estágio marca a transferência de cada Igreja para um
passou o que poderia ser suportado pela casa. Ele explica: espaço físico de culto maior, ou ao menos a intenção de se tornar uma
Minha casa era muito pequena para tantas pessoas, então tivemos permissão importante instituição religiosa em Israel. Nesse estágio, os fiéis são parte
de alugar uma casa em Tel Aviv. Ao fim de 2003, um novo bispo foi enviado de uma comunidade grande, que tem sólido contato com o Brasil. Este
do Brasil. Nessa época, os cultos ainda eram na minha casa, mas logo a Igreja estágio é marcado pelos esforços de construir novos prédios em locais
foi inaugurada em uma bela casa em Tel Aviv. Ao contrário de outros prédios centrais, geralmente nas cidades mais importantes de Israel.
no mundo, esse era muito discreto. Tinha o coração clássico, que é símbolo
da IURD, mas era pequeno. O bispo era um imigrante ilegal, assim como a
Igreja, então éramos muito preocupados com a situação. os membros: judeus, árabes e cristãos
se tornam pentecostais brasileiros em israel
A vinda de representantes oficiais para Israel se seguiu ao processo
de fundação da Igreja. Apesar de seus esforços e cidadania israelense, A posição do pesquisador nas igrejas pentecostais brasileiras em Israel é
os membros oficiais tomaram o lugar de Aaron para construir a Igreja ainda mais complicada e restrita do que no Brasil. Além da perspectiva
Universal em Israel: da neutralidade (um conceito não familiar entre os pentecostais brasilei-
ros), que é uma característica da posição de observador, em Israel existem
O Bispo Marcos me ligou do Brasil para saber das notícias em Israel. Me outras questões que fazem a coleta de informações ainda mais difícil. A
disse que estava estudando hebraico. Bom, depois da fundação da nova
identidade do pesquisador (nesse caso, visitante) em Israel é verificada em
igreja em Yafo eu disse que estava orgulhoso de ser o primeiro obreiro da
IURD em Israel. Ele me disse: ‘Você ainda não é obreiro da Igreja’. Depois do sua primeira visita à Igreja a partir de perguntas como “Você é judeu?” e
Bispo, veio outro pastor. Eu notei que não tinha nenhuma função na estru- outras perguntas classificatórias.
tura da Igreja. O sentimento de isolamento que os fiéis cristãos em Israel experi-
mentam é muito importante para compreender as primeiras reações de
Como na CCB, o segundo estágio da IURD substituiu os fiéis locais
alguns fiéis face aos visitantes judeus nas igrejas pentecostais brasileiras.
por membros vindos do Brasil. Aaron ainda afirma que essas mudanças
Outros crentes não veem somente o pesquisador, mas qualquer judeu não
são sinais claros da importância da Igreja em Israel. Ele diz: “O alto salário
convertido e até mesmo os judeus convertidos com suspeição. Existe um
do bispo e os altos custos com questões legais e aluguéis demonstram a
sentimento de contradição referente aos judeus que se converteram ao
grande importância da IURD de Israel.”
pentecostalismo em Israel. Por um lado, eles vão aos cultos e a outros pro-
Em ambos os casos de igrejas pentecostais em Israel, o processo de
gramas sociais e são recebidos como membros plenos nas comunidades
inauguração pode ser dividido em três estágios. Conforme visto anterior-
pentecostais, mas por outro, muitas dúvidas pairam sobre os mesmos. Os
mente, os dois primeiros estágios estão ligados como um período tem-
poral específico da construção de cada Igreja na sociedade israelense. O judeus, majoritariamente os não convertidos, são geralmente vistos como
primeiro estágio está ligado à chegada das Igrejas em Israel e inclui os “estranhos” nas Igrejas.

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As suspeitas manifestadas pelos membros são menos ligadas às posi- da América Latina, formam o principal desses grupos. Alguns deles já
ções oficiais das igrejas pentecostais no Brasil do que à composição social eram pentecostais em seus países de origem, enquanto outros se converte-
das comunidades pentecostais brasileiras em Israel. Nelas, imigrantes ile- ram em Israel. Há nas comunidades uma tensão aparente entre imigran-
gais sul-americanos e africanos convivem com imigrantes legais que rece- tes legais e ilegais. Um dos membros judeus conta: “Quando eu os ouço
beram sua cidadania pela Lei do Retorno.4 falando coisas ruins sobre judeus, fico muito nervoso e peço, por favor,
Em Israel, os membros judeus representam, para alguns fiéis, a maio- não se esqueçam que estão em Israel e sou judeu também”.
ria no Estado de Israel, o mesmo Estado que lhes nega a definição de Jesus Um membro que ouviu outro expressando seus sentimentos sobre os
Cristo como o Messias e não lhes garante cidadania israelense. A identi- judeus disse: “Eu o ouvi falando (outro fiel) que: ‘Eles (judeus) são porcos!
dade judaica de alguns membros pentecostais então assume uma posição Eles são imorais e impuros! ‘ e eu disse, ‘Você sabe onde está? Cuidado,
assustadora que ameaça a paz intracomunitária. pois eu também sou judeu!’”
No País, cerca de trezentos fiéis frequentam as Igrejas mencionadas, a Os familiares de judeus convertidos também são parte da tensão
CCB e a IURD. Essas pessoas podem ser divididas em três categorias sociais entre judeus convertidos e não convertidos. É importante notar que são
em relação a seu status legal em Israel: legais, ilegais e membros oficiais de imigrantes legais que se casaram com judeus e receberam cidadania
Igrejas brasileiras que vêm para Israel. Uma quarta categoria, de cidadãos israelense. Por causa de sua cidadania eles podem trabalhar e ter direi-
israelenses nascidos em Israel, se torna cada vez mais relevante. As posi- tos sociais. Sua distinta situação econômica os transforma em aliados dos
ções de cada uma dessas categorias perante o Estado de Israel e os judeus judeus convertidos contra comentários pretensamente antijudaicos. Esse
são muito distintas e não raro criam conflitos dentro das igrejas. foi o caso do seguinte membro, casado com uma fiel judia convertida:
Muitos dos imigrantes ilegais vêm para Israel procurando por traba-
Eu vi minha esposa chorando e perguntei a ela, "O que aconteceu?" Ela disse
lho e tentam manter as mesmas práticas religiosas que tinham no Brasil. que veio à Igreja e ouviu membros fazendo piadas sobre judeus. Fui reclamar
Por causa de seus contatos com cidadãos e autoridades israelenses, eles com o Bispo, ele me assegurou que não era a intenção dos fiéis. Tudo está
manifestam uma posição muito crítica ao Estado e, consequentemente aos bem agora.
judeus brasileiros e israelenses. Nas palavras de um fiel:
Dois grupos ainda podem ser encontrados entre os imigrantes legais:
Explique pra mim por que deixamos os judeus virem para o Brasil? Eles os árabes-israelenses e os membros oficiais das igrejas. Os primeiros são
compram prédios e bairros; fazem muito dinheiro por lá. Qual é o problema parte de um diminuto grupo em ambas as igrejas. São muito ativos nas ati-
de nos deixar vir aqui abrir nossa Igreja e fazer nosso trabalho?
vidades das congregações, não demonstram interesse no status do Estado
Na fala de outro membro, são usados elementos de um antissemitismo de Israel e não fazem comentários sobre a identidade judaica. Entre eles
popular e pouco sofisticado para descrever Israel, o lugar onde ele mora: há um alto grau de manifestações do Espírito Santo como exorcismos, o
“falar em línguas” e/ou profecias. Geralmente nasceram no Brasil e vieram
Aqui em Israel é muito comum que judeus não paguem salários para os
com suas famílias para morar em Israel ou nos territórios palestinos.
empregados não judeus. É sempre o mesmo; nós trabalhamos e os judeus
não pagam. Você não percebe a escuridão nos olhos deles? Esse tipo de O outro grupo, os representantes oficiais da estrutura da Igreja, pos-
judeus nunca aceitarão Jesus, e são a maioria. suem diferentes características de cada um dos grupos. Na CCB, eles vêm
de três em três meses, ficando em Israel por todo o período de três meses.
Diversos grupos que têm cidadania israelense formam a outra cate- Esses membros mostram grande solidariedade com os imigrantes ilegais.
goria, de imigrantes legais. Judeus, ou seus parentes, que fizeram aliyah A identidade brasileira (brasilidade) é um elemento muito impor-
tante, não somente na sociabilidade dos imigrantes, mas também como
4 Lei que concede cidadania israelense para judeus, descendentes de judeus ou cônjuges de algo essencial para a religião. Membros das igrejas pentecostais brasileiras
judeus.

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acreditam que a sociedade brasileira está em vias de um processo de reve- Por outro lado, alguns dos imigrantes legais (judeus e parentes) se
lação espiritual. Alguns fiéis veem o Brasil como a nova “Terra Prometida” conectam com Israel através do messianismo:
e o povo brasileiro como os novos profetas. Nas palavras de um membro
O que você acha que faço aqui? Você sabe que testes eu passei em Israel?
da Igreja Universal: Eu passei sete dias na praia, nas ruas, nas praças. Depois de sete dias eu
Assim como o povo Hebreu foram os profetas da Bíblia, o povo brasileiro é me ajoelhei perante Adon Yehoshua, ‘Se é teu desejo que eu me assente em
quem traz os novos profetas do hoje. Você não vê o que se passa no Brasil? Israel, para seguir o que está escrito na Bíblia, então mude a minha vida
Tem uma Igreja nova todo dia! Em diversos países as pessoas rezam em por- como mudou a água em vinho. Você não é Deus? Eu não orarei para um
tuguês! Você não vê as pessoas rezando em português?! Aleluia, somos os Deus de ferro ou um Deus morto, então me dê uma visão, pois não vim aqui
novos profetas! Os novos profetas falam português! só para sofrer’.

O entendimento do Brasil como a nova nação de profetas e os bra- O membro que fez esta afirmação diz que está pronto para os últimos
sileiros como o novo “Povo Escolhido” transforma os judeus convertidos dias que estão chegando, tempos difíceis, que cairão sobre Israel:
em membros que passam por uma dupla conversão espiritual, primeiro ao Você sabe que os cavaleiros brancos estão aqui, eles vieram da Rússia. Estão
pentecostalismo e depois para a “brasilidade”. Em ambas as experiências aqui. Você não vê que têm tudo que querem? São os cavaleiros da morte
de conversão, referências ao Povo Escolhido podem ser notadas. Segundo que vêm do Norte. Têm tudo e não são judeus, somente alguns são. Vai
acontecer que nem na Bíblia, eles dominarão Israel e marcarão nos judeus
as palavras de Levy: “Tenho certeza que a segunda vinda de Jesus é o des-
o número da Besta. Somente os marcados com o 666 virão para Israel. E o
tino maior de Israel, mas também me é claro que a segunda vinda de Jesus Estado não percebe isso. Não vai ser fácil. Vai ser uma grande tribulação
virá do Brasil.” pelo mundo. Ein hehabel Adon Yehoshua, dhan ahalan (começa a chorar)
Através da sensação de “dupla conversão”, o judeu convertido experi- ifalan fifalan...
menta a dimensão do “Povo Escolhido” e se sente quase como um profeta.
Continuou por três minutos falando em línguas. Outro membro da
A experiência traz alguma tensão dentro das igrejas, como pode ser visto
IURD viu a retirada de Gaza como outro sinal: “Israel não vai sair de Gaza.
na entrevista de um judeu convertido que frequenta cultos pentecostais:
Está escrito na Bíblia. É proibido sair da Terra Santa, de qualquer pedaço.
É certo que a experiência do fiel não judeu não é completa na nossa Igreja, Deus vai mandar um sinal e Jesus voltará.”
pois são pessoas muito simples e ignorantes. É interessante Deus ter deci- É possível entender, em Jerusalém e Yafo, a posição dos fiéis pente-
dido começar Seu trabalho com pessoas tão ignorantes.
costais brasileiros perante Israel depois de uma análise de suas origens e
A importância de Israel para os imigrantes legais e ilegais é distinta. situação legal. Estas divisões de imigrantes legais e ilegais ou judeus con-
Para os imigrantes ilegais, morar em Israel é importante, são certos de que vertidos e seus parentes e não judeus sempre causa conflitos dentro das
é a Terra Santa, uma noção que geralmente era recebida em uma profecia igrejas, o que se torna o desenvolvimento do pentecostalismo brasileiro
juntamente com o mandamento para vir a Israel. É então claro, ao falar em Israel uma tarefa difícil e complexa.
com eles, que a vinda do messias, para eles, não está tão próxima:
Eu recebi o mandamento para vir para Jerusalém durante um culto. Eu não
acreditei, então vim para o culto em outro lugar. O pastor então perguntou,
‘Alguém já comprou seu tíquete para Israel?’ Então eu vi que era um real
mandamento […] você pode ver a bruteza do judeu em Israel. Como eles
gritam, como eles falam, eles ainda não têm Jesus em seus corações. Ainda
faltam anos para que Ele volte.

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em israel o satã também é brasileiro Para ilustrar tal preocupação com a influência das religiões afro-brasilei-
ras na sociedade israelense, eu demonstro um encontro pessoal, que ocor-
É comum no Brasil possuir a opinião de que os evangélicos são “mera- reu durante meu processo de observação na CCB:
mente outra versão da religião afro-brasileira” (LEHMAN, 1996: 143). No
Brasil, a infiltração das entidades afro-brasileiras (a maioria da umbanda Depois de receber uma ligação de um Irmão da Congregação, no caminho
para o Seder de Pessach (Jantar Ritual da Páscoa), eu levei minha esposa para
e candomblé) em Igrejas evangélicas é considerada um perigo real. Tal
visitar a congregação, pois os irmãos queriam conhecê-la. Quando entramos
preocupação é transportada para outros países (Israel, por exemplo) onde na Igreja, o sorriso do Irmão que nos recebeu desapareceu. Sentamos do lado
o pentecostalismo brasileiro é ativo. Em ambas as Igrejas, a CCB e a IURD, de fora e falamos muito, mas ele mal olhava para a minha esposa. Depois
existem constantes suspeitas sobre pessoas “sob influências maléficas” de dos primeiros minutos de conversa ele finalmente olhou para ela, continuou
entidades (espíritos) especificas. Essas preocupações podem ser vistas na olhando fixamente e passou a dizer coisas estranhas. Ele começou a falar que
ela tinha dois contratos e deveria cancelar um deles, pois não poderia servir
constante verificação da presença de “espíritos ruins” nas Igrejas.
a dois. Ele disse que Deus a aceitaria de volta. Depois de alguns minutos sem
Algumas práticas sociais e outros rituais dentro das Igrejas pentecos- entendimento, notamos que ele falava do colar de minha esposa, que era
tais brasileiras reproduzem formas de “narrativas culturais” (BOTELHO, muito similar a um colar usado nos rituais de Umbanda.
2001: 28) originalmente encontradas nas Igrejas pentecostais no Brasil.
Essas narrativas têm uma linha discursiva que liga configurações brasilei- Em momentos de crise, se vê claramente como elementos das reli-
ras à sociedade israelense, onde permanências e rupturas vão influenciar giões afro-brasileiras são usados como chaves interpretativas. Como nos
as práticas dos fiéis e pastores que vão aos cultos das Igrejas. Aqui há uma terreiros de umbanda, onde os conflitos entre os membros sempre têm um
interessante transposição cultural de entidades brasileiras, ou afro-brasi- ponto inicial de acusação (MAGGIE, 2002: 33), o mesmo acontece no pen-
leiras, para Israel. tecostalismo brasileiro em Israel. As acusações são sempre ligadas a ques-
A preocupação com “forças malignas” é uma característica do pen- tões espirituais nas quais as entidades estão envolvidas. Para ilustrar os
tecostalismo brasileiro, que cria conflitos com outros grupos religiosos, conflitos, usarei dois casos distintos. O primeiro está ligado à construção
primariamente as religiões afro-brasileiras. Estas forças têm as mesmas de um novo prédio da Igreja em Jerusalém, sendo importante relembrar
estratégias, modelos e personagens que se encontram no Brasil. Nas pala- o ato de construir um prédio em Israel como marcador de um novo está-
vras de um fiel: gio no pentecostalismo na Terra Santa, de “institucionalização da religião”
(SWENSON, 1999: 14).
Sabe, de vez em quando ele é o fiel mais crente, sabe muito sobre a Bíblia, Este estágio trouxe vários conflitos para ambas as Igrejas. Na CCB,
chora durante os cultos […] mas ele é o Exu, ou tem o Exu dentro dele.
o conflito foi fortemente sentido quando os grupos de imigrantes legais
Bem, se ele é o Exu, temos que expeli-lo da Igreja. Se ele só estiver amarrado,
temos que tirar o Exu dele. se confrontaram com os imigrantes ilegais e os representantes da Igreja.
Neste momento o Estado não dá permissão para construir uma nova
Os conceitos de Exu e amarrado são muito comuns na narrativa pen- igreja, e então Israel é visto por membros da Igreja como “o Estado Judaico
tecostal brasileira. O Exu é uma das entidades dos cultos afro-brasileiros, que nega Cristo pela segunda vez”.
que são entendidos como representação do Diabo em certas igrejas pen- Algumas acusações ocorreram durante entrevistas e conversas infor-
tecostais. Enquanto amarrado basicamente indica uma conexão com Satã. mais. Essa assertiva mostra como os fiéis veem os ‘Exus’ e ‘Pombas Giras’
É interessante notar que no pentecostalismo brasileiro em Israel, o Diabo como parte do conflito: “Você pode não conhecer todos eles, mas boa parte
é sempre representado em termos religiosos afro-brasileiros; em outras dos judeus aqui [judeus convertidos] são Exus com máscaras de fiéis. Quem
palavras, até em Israel Satã é brasileiro. mais seria contra o desenvolvimento da CCB na Terra Santa? Só o Exu...”
Mais do que uma preocupação fora do lugar, o uso da “representação Outro membro vê algumas relações entre os membros como sinais da
brasileira de Satã” é um sinal típico das igrejas transnacionais pentecostais. presença de Satã:

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Você não viu que um dos homens que veio ajudar na construção tentou conclusão
seduzir uma menina jovem? Seus pais não viam, então eu decidi me levantar
no culto e falar que sabia da presença dos Exus e Pombas Giras entre nós. Eu Essa primeira pesquisa sobre o pentecostalismo brasileiro intentou estabe-
também disse que não temia, pois Jesus iria derrotá-los como Ele sempre faz. lecer uma melhor compreensão de específicas comunidades pentecostais
No dia seguinte, o homem escapou como um ladrão. Glória a Deus...
que chegaram em Israel nas últimas duas décadas. São dois fenômenos
Outro caso ocorreu na IURD em Yafo. Aqui também a igreja passou paralelos que marcam a migração destas Igrejas para Israel. De um lado,
por um processo de institucionalização. Durante esse processo, foi aberta elas têm fortes permanências e são conectadas por laços sociais e culturais
uma livraria em Yafo e alugou-se outro prédio para a abertura da Igreja. com os signos brasileiros, mas por outro buscam se expandir na socie-
Os bispos decidiram converter alguns fiéis em obreiros, que iriam oficiar dade israelense, abandonando o espectro limitado dos imigrantes cristãos
os cultos. Eram parte de um grupo de imigrantes ilegais e estava claro que latino-americanos.
estes novos obreiros se tornariam os próximos pastores. O grupo de imi- Diferentemente de outras Igrejas latino-americanas em Israel, estas
grantes legais viu isso como traição. tentam desenvolver uma cultura pentecostal autônoma. Nesse processo,
Um membro da Igreja decidiu questionar o poder e a liderança do a Igreja tende a passar uma identificação primordial com o sionismo
bispo na Igreja. Ao mesmo tempo, coincidentemente, iniciou uma relação somente para ser aceita como parte legítima da sociedade israelense. Na
romântica com uma menina brasileira, que era imigrante legal e igual- verdade, o processo cultural legitimador aponta para o entendimento da
mente da IURD. O bispo “retaliou”, não aceitando seu relacionamento e sociedade israelense como multicultural, onde os fiéis pentecostais brasi-
negando sua bênção. Para se justificar, disse que acreditava que o mem- leiros seriam vistos como israelenses que defendem Israel, acreditam na
bro estava amarrado. Só se podia livrar-se do demônio passando por um santificação e são cristãos.
processo de exorcismo. Somente ao fim do processo ele seria aceito nova- Duas perspectivas podem ser notadas com os resultados de tais con-
mente na comunidade. tatos sionistas-brasileiros pentecostais com o Estado de Israel e a socie-
Um debate como esse, entre o jovem fiel e o bispo, se tornou público. dade israelense. O primeiro é a desconstrução das posições pró-sionistas
A congregação inteira sabia sobre cada passo de cada um dos dois. Quando originais. Depois dos primeiros contatos, uma reação radical é sentida
o membro se recusou a ser exorcizado, foi exilado da Igreja. Durante o dentro das comunidades quanto à compreensão mítica do judaísmo e de
conflito, o bispo explicou sua posição no púlpito: Israel frente ao “Israel real”. Assim, é gradualmente sentido um antissemi-
tismo, que causa fortes reações dentro de cada comunidade que conta com
Mais do que Israel, a Universal se prepara para Jerusalém, e em Jerusalém fiéis judeus que seguem o pentecostalismo brasileiro em Israel.
vamos comprar algo, não só algo mas um prédio grande, pois Jerusalém
é um símbolo e temos que nos preparar. Como nos preparamos? Se vou É interessante notar que as reações são contraditórias. De um lado o
para um encontro importante, tenho que estar pronto em diversos aspec- desenvolvimento das igrejas aponta para um parcial apoio do Estado, e ao
tos. Temos que estar prontos espiritualmente e financeiramente. Eu não vou mesmo tempo existem diversas regras impostas pelo Estado durante seus
sujo para um encontro, tenho que estar limpo. Estamos limpando a Igreja, processos de estabelecimento. A incompleta adaptação dos fiéis em Israel
e acima disso, limpando a comunidade. O Exu não vai vencer porque já o aponta para os limites dos signos multiculturais na sociedade israelense.
derrotamos. Estamos limpos, amém.
Em uma sociedade “etnonacional”, nem uma identidade política nem reli-
Como visto acima, o pentecostalismo em Israel importa diversos ele- giosa garante uma adaptação completa.
mentos da cultura brasileira. As religiões afro-brasileiras são importadas Outro ponto importante na pesquisa foi o processo de “dupla con-
para ter a função do inimigo. Aqui há um processo de deslocamento da versão” que ocorre no movimento. A compreensão do “Povo Escolhido”
cultura brasileira para a sociedade israelense, que pode ser visto clara- também é encontrada entre os fiéis, não somente restrito ao caráter reli-
mente nas disputas internas do pentecostalismo brasileiro. gioso, mas também à brasilidade. Essa dupla conversão é verdadeiramente

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presente através da adoção de elementos culturais brasileiros. Durante o MAGGIE, Yvonne. Guerra de Orixá – Um estudo de eitual e conflito. Rio de Janeiro:
processo de se tornar um fiel do pentecostalismo brasileiro em Israel, o Zahar, 1977.
recém-convertido é convertido ao “brasilianismo”. As representações de MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil.
Deus se transformam em dimensões brasileiras, as datas comemorativas São Paulo: Edições Loyola. 1999.
se ligam às perspectivas brasileiras e, é claro, o Satã (uma personagem ORO, Ari. A presença religiosa brasileira no exterior: o caso da Igreja Universal do
muito presente nas Igrejas pentecostais) também é brasileiro. Reino de Deus. Estudos Avançados, São Paulo v. 18, n. 52, p. 139-155, dez. 2004.
Finalmente, devo lembrar mais um ponto. A análise da atuação do RAMAGEM, Sonia. 2001. Jews as percieved by Neo Evangelicals in Brazil. In:
pentecostalismo brasileiro em Israel faz possível a condução de um estudo judaica Latino Americana, Jerusalem: Universidad Hebrea, 2001.
sobre a institucionalização religiosa. É importante perceber que os pro- SWENSON, Donald.1. Society, spirituality and the sacred: A social scientific intro-
duction Peterborough, Ontario: Broadview Press, 2006.
cessos externos de institucionalização influenciam o desenvolvimento
interno de tais igrejas. Existe uma clara mudança da fase carismática para
o estágio institucionalizado nas igrejas brasileiras.
No início do desenvolvimento do pentecostalismo brasileiro em
Israel, diversos de seus líderes eram judeus brasileiros convertidos. Na
segunda fase, houve diversos confrontos entre os representantes oficiais
e estes convertidos. Durante o terceiro estágio de desenvolvimento, a ins-
titucionalização foi completada. Agora, membros oficiais controlam as
comunidades e os primeiros líderes (judeus brasileiros convertidos) foram
contidos na estrutura ou expulsos sob a acusação de conluio com o Diabo.
O entendimento dos estágios de desenvolvimento do pentecostalismo
brasileiro em Israel pode ser considerado uma importante contribuição
para os estudos do desenvolvimento religioso.

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LEHMANN, David. Struggle for the spirit: Religious transformation and popular cul-
ture in Brazil and latin America. Cambridge: Polity, 1996.

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Holocausto
Jean Améry e o direito ao ressentimento
Monica Grin

Em seu ensaio “O intelectual em Auschwitz”,1 Primo Levi contrapõe


sua experiência no lager à de Jean Améry, sobrevivente como ele de
Auschwitz, em duas direções: a primeira na qual reflete sobre o maior
sofrimento do intelectual que, dotado de cultura, lógica e moral, deses-
pera-se diante de uma realidade ilógica e imoral que ele não consegue
decifrar e atormenta-se por um agudo sentimento de humilhação e de
destituição (p. 80); e a segunda quando identifica, em Améry, a expressão
da moralidade do “dar o troco”.
sua moral, pela qual pagará um preço muito alto em termos materiais
e espirituais... pelo menos simbolicamente, consiste em “dar o troco” [...]
Admiro-a: mas devo constatar que esta escolha, que se prolonga por todo
o seu período pós-Auschwitz, o conduziu a posições de uma tal severidade
e intransigência que ele se tornou incapaz de encontrar alegria na vida, ou
melhor, de viver: quem briga com o mundo todo reencontra a sua dignidade,
mas paga-a a um preço altíssimo, porque está seguro de ser derrotado (pp.
78, 82, 83).

No prefácio à edição de 1977 de seu mais conhecido livro, At The


Mind’s Limits,2 o sobrevivente do Holocausto Jean Améry (1912-1978),
referindo-se a Auschwitz após anos de silêncio, expressa um juízo moral
que delimita, de modo muito próprio, o território do mais radical incon-
formismo, da recusa ao esquecimento, do ressentimento, da incompreen-
são, do dever de “dar o troco”,3 em relação àqueles que promoveram, direta

1 Primo Levi, “O Intelectual em Auschwitz”. In: Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1990.
2 Versão em inglês de seu livro Jenseits von Schuldund Sühne (1966). Há uma versão em por-
tuguês que saiu recentemente pela editora Contraponto. AMÉRY, Jean. Além do Crime e
Castigo: tentativas de superação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
3 Em seu Afogados e Sobrevivente” (1990), Levi refere-se a Jean Améry como adepto da mora-
lidade de “dar o troco”, expressão do seu sentimento de vítima do lager.

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ou indiretamente, violações de natureza política e racial perpetradas sobre protesto contra o esquecimento, um protesto contra a representação social
seu corpo, sua mente, sua alma, durante o Terceiro Reich. da realidade tratada como um “processo fisiológico de cicatrização de feri-
Este ensaio tem um objetivo muito preciso: refletir sobre o tema das” (AMÉRY, 1980: 72; BRUHOLM, 2008) e também um protesto contra a
do ressentimento, à luz da experiência de um sobrevivente da Shoá, impunidade e o não reconhecimento do alcance transgeracional da dor
Jean Améry, para quem esse sentimento moral, advindo de situações de das violações perpetradas no passado por organismos de estado.
extrema violência, longe de uma patologia ou de uma moralidade fraca, A chamada “era dos testemunhos” convida-nos a uma tradução ambi-
deve ser considerado uma espécie de ato de protesto contra a mais direta e valente sobre o ressentimento: ao mesmo tempo em que realça, através da
dolorosa experiência de vítima de tortura, humilhação e injustiça. Trata-se urgência universal da memória, a dor inefável da violência e da crueldade,
aqui de explorar o tema do ressentimento em chave contraintuitiva, ou propõe no passo seguinte, a fim de superar o ressentimento, o seu antídoto:
seja, propor um olhar alternativo ao mainstream intelectual e moral que, o perdão, a reconciliação, a reparação e o esquecimento (RICOUER, 2007).
de modo geral, reforça versões negativas sobre esse sentimento.4 O que se segue é que nas circunstâncias do pós-holocausto (quer nos
Jean Améry, cujo verdadeiro nome era Hans Mayer, nasceu em julgamentos, nas audiências públicas, nos arquivos da memória), em que o
Viena em 1912. Filho de pai judeu e mãe católica, veio de um ambiente papel do testemunho é potencializado e a sua dor ecoada, impõe-se, para-
familiar bastante assimilado. Depois de passar sua infância na região do doxalmente, a necessidade da pacificação, da reconciliação, como valores
Tirol, regressou a Viena, onde estudou literatura e filosofia, militando na “humanamente” aceitáveis, como garantia da pacificação da ordem social
esquerda. Sua formação católica e a integração de sua família à sociedade ou da comunitas. Trata-se de um tipo de véu de normalidade em que se
austríaca o distanciaram da comunidade judaica, do judaísmo e mesmo de valorizam narrativas de superação, de recomeço, de perdão, de dissipação
uma possível identidade judaica. Não se considerava judeu e nada sabia da de traumas e ressentimentos, através da fala de testemunhos, cuja neces-
língua hebraica ou do ídiche. sária missão é legar ao futuro a não repetição do passado.
Exilou-se em Bruxelas em 1938, ocasião em que a Áustria foi anexada. O que se sugere aqui é a possibilidade de que o ressentimento possa
Foi capturado pelo exército alemão em 1940, conseguiu fugir mais de uma ser tomado como um direito individual de vítimas de extrema violência e
vez, juntou-se a uma organização no movimento de resistência belga e, em violações, que não querem deliberadamente aderir às convenções de paci-
1943, foi capturado pela Gestapo. Identificado como judeu, foi enviado para ficação social; que não se submetem às teleologias redentoras que vislum-
o campo da empresa I. G. Farben, em Auschwitz-Monowitz, vulgarmente bram o futuro como a ocasião de um novo tempo reconciliado; ou que
designado “Buna”, depois para Auschwitz, para Buchenwald, e por fim, em não acreditam na possibilidade da representação do inefável, da “morte
fevereiro de 1945, para Bergen-Belsen, onde foi libertado. Ele é autor de sete não morrida”, ou do que não se pode sequer nomear (LEVI, 1990; AMÉRY,
volumes de ensaios e de duas novelas. Em 1974 Améry tentou o suicídio, e 1980; AGAMBEM, 2008). O ressentimento aqui é um “re-sentir” necessário
quatro anos depois, em 17 de outubro de 1978, o consumou, aos 66 anos, e deliberado do qual não se quer escapar; é um protesto contra o esqueci-
mento; é um eterno retorno ao mesmo evento, obsessiva e repetidamente
em um quarto de hotel perto de Salzburg (LEVI, 1990; BRUDHOLM, 2008).
(AMÉRY, 1980). O significado moral do ressentimento, portanto, é que ele
Ao contrário de afirmar confortavelmente a longa tradição de crítica e
é um marcador de resistência, inclusive ao niilismo moral das próprias
desconforto com o tema do ressentimento (seja a versão do ressentimento
vítimas (BRUDHOLM, 2008).
como a moralidade própria do escravo, em Nietzsche, ou o diagnóstico
da psicologia que trata o ressentimento como distúrbio e patologia),5 o
que se pretende aqui é trazer para a nossa reflexão uma abordagem que significados do ressentimento
considera o ressentimento uma virtude moral, capaz de comunicar um A maioria dos estudos sobre o ressentimento, desde as teses de Nietzsche
4 NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Cia. das Letras, [1887], 1998. em Genealogia da moral, vem considerando esse sentimento como mani-
5 Cf. KEHL, Maria Rita, Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. festação dos fracos, das maiorias despossuídas, dos oprimidos, das vítimas,

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ou seja, como expressão da moralidade escrava frente à moralidade aris- ameaça seu status “natural” na ordem social. A essa ameaça Elias associa o
tocrática, “para quem a verdadeira reação, a da ação, é proibida, e que só ressentimento dos estabelecidos.
encontram compensação numa vingança imaginária” (NIETZSCHE, 1998).
Esse ressentimento surge quando um grupo outsider socialmente inferior,
Esta é a face moral do homem do ressentimento. (ZAWADZKI: 368). desprezado e estigmatizado, vê-se pronto a exigir a igualdade não apenas
Visto desde uma perspectiva coletiva, o efeito agregado do ressen- legal, mas também social, quando seus membros começam a ocupar na
timento promoveria revoltas, revoluções, guerra civil, especialmente sociedade majoritária as posições que lhes eram antes inacessíveis, ou seja,
quando os “ressentidos” percebem seus valores como moralmente mais quando começam a entrar diretamente em competição com os membros da
justos. Essa percepção, para Nietzsche, não passaria de uma inversão de maioria enquanto indivíduos socialmente iguais (ELIAS, 2001: 136).
valores promovida pela tradição judaico-cristã, para a qual a moral do De modo geral, para os autores até aqui ativados, o ressentimento é
sacerdote, a moral do ressentido, se sobrepõem à moral aristocrática, uma emoção coletiva, ditada pela memória coletiva e com impacto deses-
altiva, superior, potente (NIETZSCHE, 1998). tabilizador para a vida pública.
O ressentimento, nessa perspectiva, é tomado mais como uma emo- O ressentimento como fenômeno social explosivo já é uma preocupa-
ção coletiva do que individual, que produziria impacto negativo e per- ção desde o século XIX (LEIS, 2002; FERRO, 2009). No século XX, marcado
turbador para o mundo público. Hannah Arendt compreende o ressenti- por guerras e revoluções, o tema do ressentimento adquire uma nova dra-
mento como um sentimento que inviabiliza a comunidade política, que, maticidade. Seria ele um fenômeno universalizável no contexto da moder-
para existir, precisa estar baseada na ideia da reciprocidade. Para ela, o
nidade? Seria ele um fenômeno sociológico? Moral? Suas manifestações
ressentimento orientado para a vingança inviabiliza a capacidade de “estar
individuais e coletivas teriam o mesmo significado?
e agir com outros” (ARENDT, [1958], 2011: 301).
Há, entretanto, uma espécie de consenso quanto à natureza negativa
Sabemos apenas que não podemos punir nem perdoar essas ofensas [o mal desse fenômeno, desde um ponto de vista moral. E na tradição historiográ-
radical] e que, portanto, elas transcendem o domínio dos assuntos humanos fica não parece ser diferente. Isto vale tanto para a sua versão coletiva quanto
e as potencialidades do poder humano, os quais são destruídos radicalmente
para a sua versão individual. Em sua versão coletiva, o ressentimento seria
sempre que [as ofensas] surgem (ARENDT, [1958], 2011: 301).
negativo por possuir um componente potencialmente explosivo, represen-
Para esta autora o ressentimento, ou ausência de perdão, é um ele- tando uma ameaça à estabilidade da ordem social (FERRO, 2009). Em sua
mento que ameaça as condições políticas que, em tese, permitem a coexis- versão individual, o ressentimento encontrar-se-ia ainda submetido a juí-
tência humana. O perdão é o que garante a longevidade da vida em comu- zos morais altamente implacáveis, pois revela o egoísmo, a intransigência, a
nidade. Conforme Arendt, tanto o perdão quanto a promessa estabilizam incapacidade de perdoar, de esquecer, de dar a volta por cima. Há um leque
as incertezas do futuro. extenso de sentimentos negativos associados ao ressentimento.
As duas faculdades formam um par, pois a primeira delas, a de perdoar, serve O contexto do pós-guerra, que paulatinamente define e torna público
para desfazer os atos do passado, cujos “pecados” pendem como a espada os crimes contra a humanidade perpetrados durante a guerra e as mais
de Dâmocles sobre cada nova geração; e a segunda, o obrigar-se através de recentes experiências de justiça de transição em países da América Latina
promessas, serve para instaurar no futuro, que é por definição um oceano de e especialmente na África do Sul,6 vem impondo uma lenta mudança nas
incertezas, ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade, sem
formas de se tratar o ressentimento. Por um lado, uma maior atenção às
falar na durabilidade de qualquer espécie, seria possível nas relações entre os
homens (ARENDT, [1958], 2011: 295). manifestações mais localizadas e mesmo individuais do ressentimento

Para Elias (2001), o ressentimento, visto ainda em perspectiva cole- 6 As comissões de verdade em vários países da América Latina que tornam públicos os crimes
cometidos por ditaduras civil-militar, os protestos das Mães da Praça de Maio, os relatos das
tiva, é um problema que está na relação entre estabelecidos e outsiders, vítimas do apartheid na Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul, são alguns
sobretudo quando o grupo estabelecido é desafiado pelo outsider, que exemplos que reforçam a positividade do ressentimento.

80 81
– neste caso, a moral do ressentimento em Jean Améry, vítima da violência A escolha de Améry se dá porque seus escritos a propósito do res-
do Terceiro Reich, é emblemática –; por outro, o advento de circunstân- sentimento nos convidam a refletir sobre os fundamentos morais desse
cias históricas marcadas por violações de direitos humanos, por violência sentimento e sobre a necessidade de resistir ao fácil perdão (DERRIDA,
contra civis ou contra minorias cuja memória individual, familiar ou de 2001). Convida-nos, ademais, a refletir sobre como o ressentimento pode
grupo, abriga não raro o ressentimento como resultado de injustiças, de ser uma virtude moral, um protesto contra toda e qualquer forma de
feridas não cicatrizadas. submissão a agendas políticas que muitas vezes pressupõem o perdão, a
Nessa direção, relativiza-se pouco a pouco o juízo corrente de que o reconciliação e a resiliência como prioridade moral e como condição de
ressentimento é um sentimento moralmente condenável e o perdão (sua estabilidade psíquica e social.
contraface) moralmente desejável, em qualquer circunstância (DERRIDA; O ressentimento, sobretudo quando se tratam de crimes inomináveis,
2001; BRUDHOLM; 2008; JANKÉLÉVITCH, 1996). como é o caso do Holocausto, é o sentimento lógico que resulta da cons-
A falência ética da modernidade depois de Auschwitz retorna como ciência do que é inexpiável, ou seja, do que não é passível de perdão. Para
questão não resolvida, não superada e prevalente ainda hoje, permitindo Hannah Arendt, a dificuldade de lidar com crimes bárbaros, como os per-
uma nova tradução do ressentimento, só que agora como ato de protesto e petrados pelos nazistas, é que:
resistência contra todas as formas de superação e esquecimento de viola- At the time the horror itself, in its naked monstrosity, seemed not only to
ções perpetradas sob a égide de governos autoritários, racistas e, mesmo, me but to many others to transcend all moral categories and to explode all
de exceção. Nessas novas circunstâncias é dada outra inscrição ao res- standards of jurisdiction; it was something men could neither punished ade-
sentimento, à culpa e mesmo aos rituais de punição e perdão. A ênfase quately nor forgive. And in this speechless horror, I fear, we all tended to
mais recente na precária validação ética dos modos de punição dos per- forget the strictly moral and manageable lessons we had been taught before.
(ARENDT, 2009).
petradores de crimes contra a humanidade e nas recorrentes violações de
direitos no contexto do pós-guerra, abriga uma crescente aceitação do res- O capítulo intitulado “Resentments”, presente no livro de Améry de
sentimento como ato legítimo de protesto e resistência. As vítimas dessas 1966 e que foi traduzido em 1978 para o inglês com o título At The Mind’s
modalidades de violência encontram-se diante da tentação de explicitar Limits, é a versão mais bem acabada de como o ressentimento deve ser
abertamente seu ressentimento contra tudo e contra todos. preservado indefinidamente, e como um sobrevivente, como ele, não pode
e não deve se desvencilhar do passado no momento mesmo em que se
Man has the right and the privilegie to declare himself to be in disagreement
with every natural occurrence, including the biological healing that time vive o presente. Inquieta a esse autor observar que o tempo presente a que
brings about. What happened, happened. This sentence is just as true as it is ele se refere como sobrevivente e vítima é o tempo em que a Alemanha se
hostiletomoral san dintellect (AMÉRY, 1980: 72). reabilita da guerra, experimenta progresso material, com um povo feliz,
orgulhoso de si, e que não quer mais voltar a sentir o passado.
Como, então, fundamentar moral e afirmativamente o ressenti-
Apontar a culpa coletiva dos alemães era uma obsessão para Améry
mento frente à tradicional valorização do perdão, do esquecimento e da
tanto quanto para outros sobreviventes do Holocausto. Primo Levi, res-
superação?
pondendo às cartas que lhes foram enviadas entre os anos de 1961 e 1964, a
Jean Améry, cuja obra não tem sido devidamente reconhecida, pro-
propósito da edição em alemão de É isto um homem?, diz o seguinte:
duz uma versão contundente e corajosa do ressentimento; para ele o res-
sentimento revelado pode recriar o mundo, colocando o perpetrador ine- ... Serei sincero com o senhor: na geração que superou os 45 anos, quan-
xoravelmente diante do seu próprio crime. Afirma uma posição resistente, tos sãs os alemães verdadeiramente conscientes de tudo o que ocorreu na
Europa em nome da Alemanha? A julgar pelo resultado desconcertante de
na primeira pessoa; posição da vítima individualizada cuja história de vio-
alguns processos, temo serem poucos: junto com vozes amarguradas e pie-
lências sofridas não pode em hipótese alguma ser esquecida, tampouco dosas, ouço outras, divergentes, agudas, demasiado orgulhosas do poder e
seus perpetradores perdoados (AMÉRY, 1980). da riqueza da Alemanha de hoje. (LEVI, 1990: 113).

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Para Améry, os crimes nazistas entraram em sua consciência como representar o que vivenciaram nos lager, era um fato e um problema para
ações coletivas do povo alemão. Claro, existiam os que tentaram ajudar, as próprias vítimas. Como em um pesadelo recorrente, achavam que nin-
manifestaram compaixão, mas esses nunca foram numerosos o suficiente guém daria ouvidos ao terror inefável da experiência-limite dos lager, cuja
para alterar a balança que pendia fortemente para os que, por ação ou representação poucos conseguiam elaborar.
omissão, promoveram e permitiram a morte de milhões (AMÉRY:73). Mas Com o julgamento de Eichmann, duas décadas após o fim da guerra,
tudo o que ele quer é estar preso e sentir exaustivamente esse passado. Tal as vozes dos sobreviventes tornam-se audíveis e ecoam com inédita reper-
como ele, para Jankélévitch,7 outro sobrevivente da Shoá, o ressentimento cussão pública. Seus relatos adquiriram maior dramaticidade naquele
can be the renewed and intensely lived feeling of the inexpiable thing: contexto, à medida em que reforçava-se a ideia de que o genocídio era
it protests against a moral amnesty that is nothing but shameful amne- um evento judaico e não um crime contra a humanidade. Hannah Arendt
sia; it maintains the sacred flame of disquiet and faith to invisible things. denunciou, em seu Eichmann em Jerusalém, o uso do Holocausto como
(JANKÉLÉVITCH, 1996: 572). capital simbólico pelo Estado de Israel:
O tema da culpa coletiva dos alemães, ao contrário do que pensavam Assim como todos em Israel, ele [Hausner, o promotor] acreditava que só
os sobreviventes, era para Hannah Arendt um sentimento deslocado. um tribunal judeu poderia fazer justiça aos judeus e que era tarefa dos judeus
julgar seus inimigos. Daí a hostilidade quase generalizada em Israel contra a
[…] the cry ‘We are all guilty” that at first hearing sounded so very noble and simples menção de uma corte internacional que pudesse acusar Eichmann
tempting has actually only served to exculpate to a considerable degree those não de crimes contra o “povo judeu”, mas de crimes contra a humanidade
who actually were guilty. Where all are guilty, nobody is. (ARENDT, 2009). perpetrados no corpo do povo judeu. (ARENDT, 2008: 17).

Jean Améry, cuja experiência de ressentimento assumido e cultivado Para Hausner, promotor no julgamento de Eichmann, os aspectos judi-
em relação à Alemanha foi compreendida como uma fraqueza moral, uma ciais do julgamento não eram os únicos a serem realçados. O julgamento
vontade de imputar culpa coletiva aos alemães, um sentimento doentio de deveria comunicar algo mais educativo, ou que falasse mais ao coração,
vingança, ocioso, egoísta e autodestrutivo, é uma das poucas vozes que desa- ou que tivesse desdobramentos morais. Colocar os testemunhos no cen-
fiou a normalização retórica dos sobreviventes/testemunhos. Estes passam tro do julgamento, mais do que pilhas de frios documentos burocráticos,
a incorporar um certo padrão de relato influenciados pela disseminação como se deu no Tribunal de Nuremberg, conferia maior eficácia pedagó-
do tema do holocausto nas mídias, na televisão, nos arquivos e museus e se gica. Tratava-se não apenas de garantir um completo registro histórico do
tornam objeto de interesse crescente, tanto quanto seus relatos.8 passado, mas principalmente dirigir-se aos jovens e fazê-los compreender a
Como Wieviorka bem observa, no imediato pós-guerra o silencia- mais completa verdade do que aconteceu, para evitar que tal horror pudesse
mento dilacerante dos sobreviventes, que não conseguiam comunicar ou ocorrer novamente. Era uma lição dirigida ao jovem israelense para que ele
7 Vladimir Jankélévitch nasceu em 31 de agosto de 1903 em Bourges e faleceu em 6 de junho de
rompesse com a mentalidade submissa dos judeus da diáspora, que, como
1985, em Paris. Foi um filósofo e musicólogo francês. Jankélévitch era filho de pais russos que frequentemente se dizia em Israel naqueles dias, “let themselves be led like
haviam emigrado para a França para fugir do antissemitismo de seu país de origem. Em 1922 sheep to the slaughter”.9 (WIEVIORKA, 2006: 68-69).
ele começou a estudar filosofia na École Normale Supérieure, em Paris, onde conheceu e teve
aulas com Bergson. De 1927 a 1932, foi professor no Institut Français em Praga, onde fez seu Inaugura-se também, no Julgamento de Eichmann, a figura do his-
doutorado sobre Schelling. Retornou à França em 1933, onde foi professor na Lycéedu Parc em toriador como perito, em um cenário no qual as vozes dos sobreviventes
Lyon, e em muitas outras universidades, incluindo Toulouse e Lille. Na França de Vichy, perde
sua nacionalidade francesa. Em 1941, aliou-se à Resistência Francesa. Após a guerra, em 1951, ecoavam no Tribunal. Salo Baron,10 convocado pela promotoria, empres-
foi nomeado para a cadeira de Filosofia Moral da Sorbonne, onde lecionou até 1978. Disponível
em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Jankélévitch>. Acessado em: 10 ago. 2012. 9 Deixam-se levar como ovelhas para o abate.
8 Cf. Peter Novick, The Holocaust in American Life. Boston: A Mariner Book, 2000. Jeffrey 10 Salo Wittmayer Baron nasceu em 1895 e morreu em 1989. Era de origem polonesa austríaca e
Alexander. “Holocaust and Trauma: Moral Universalism in the West”. In: Trauma a social um dos mais importantes historiadores de História Judaica. Ensinava na Columbia University
Theory. Cambridge, Uk.: Polity Press, 2012. de 1930 até 1963, quando se aposenta. Em 1961 Baron é chamado para testemunhar, com o

84 85
taria suas credencias de historiador para garantir um tom positivista, em Os dilemas que nascem das dificuldades do historiador para conci-
meio às vozes emocionadas, ressentidas, depressivas e raivosas que preen- liar questões de natureza subjetiva e moral com as convenções formais da
chiam com enorme dramaticidade aquele cenário de relatos horripilantes. própria disciplina não são facilmente contornáveis. Entretanto, quando a
Esperava-se do historiador a precisão dos fatos, a objetividade dos aconte- vítima e o perpetrador se reencontram em nome do passado, o que estará
cimentos, garantindo também ao julgamento a pretensão de verdade e de em jogo para o historiador é o passado. O ressentimento, nesses termos, é
legitimidade narrativa frente ao “caos” das vozes fragmentadas, desarticu- talvez o melhor indicador de um passado que não quer passar, de feridas
ladas e emocionadas dos sobreviventes. que não querem cicatrizar, de emoções que não se dissipam, de histórias
Annette Wieviorka tem chamado a atenção – especialmente em que não querem se frustrar, não querem ser engolidas nos desvãos do
seu trabalho The Era of the Witness, de 1998 (traduzido para o inglês em esquecimento e do fácil perdão.
2006) – para os ruídos entre testemunhos e historiadores, entre autenti- Um dos objetivos deste breve ensaio foi o de explorar o lugar que os
cidade e interpretação, entre relato e narrativa. Pode-se dizer que o que sentimentos morais, no caso o ressentimento, têm ocupado no mainstream
se passa com testemunhos e historiadores, especialmente quando se tra- acadêmico e da necessidade de observar as manifestações do ressentimento,
tam de eventos de extrema violência, os chamados eventos-limite, é uma especialmente em circunstâncias de extrema violência, não como uma
luta surda pelo monopólio da verdade. Rivalidades, desmentidos públi- ameaça à paz social ou como patologia individual, mas como ato de protesto
cos, conflitos de abordagem, tudo isso tem colaborado para tornar sensível cujas razões morais são plenamente legítimas e merecem ser identificadas.
uma linha muito tênue que separa essas duas vozes. Alguns testemunhos
Os ressentimentos como dominante existencial são, para os meus pares, o
acusam os historiadores de tomá-los como simples documentos: êxito de uma longa evolução pessoal e histórica... Meus ressentimentos exis-
I heard historians declare that former camp inmates were documents to tem para que o delito se torne realidade moral para o criminoso, para que seja
them […] I expressed my surprise. They replied with a friendly smile “living confrontado com a verdade do seu malfeito... Nos dois decênios dedicados à
documents”. I suddenly saw myself transformed into a strange animal caged reflexão sobre o que me aconteceu, acredito ter compreendido que a remissão
in a zoo with other rare species. Historian came to examine me, told me to e o esquecimento provocados por uma pressão social são imorais... O sentido
lie down, turned me over and over as you turn the pages of a document, and natural do tempo encontra realmente suas raízes no processo fisiológico de
asked me questions, taking notes here and there… The term used at the con- cicatrização das feridas e passou a fazer parte da representação social da reali-
ference seemed to me infinitely shocking. One can go from being a “former dade. Precisamente por tal motivo, ele tem um caráter não apenas extramoral,
inmate” to a “witness”, then from “witness” to “document”. So then, what are mas antimoral. É direito e privilégio do ser humano não se declarar de acordo
we? What am I? (BULAWKO, Henry apud WIEVIORKA, 2006). com todo acontecimento natural e, por conseguinte, nem mesmo com a cica-
trização biológica provocada pelo tempo. O que passou, passou: tal expressão
Por outro lado, alguns historiadores do holocausto se recusam a é, ao mesmo tempo, verdadeira e contrária à moral e ao espírito... O homem
moral exige a suspensão do tempo; no nosso caso, encravando o malfeitor no
colher testemunhos de vítimas por considerá-los imprecisos, não confiá-
seu malfeito. Dessa maneira, cumprida a inversão moral efetuada pelo tempo,
veis, incapazes de reportar fatos objetivamente. Lucy Dawidowicz expressa ele poderá ser comparado com a vítima enquanto seu semelhante. (AMÉRY,
uma opinião compartilhada por grande parte de seus colegas: Unintelectualle a Auschwitz, 1987. In: AGAMBEM, 2008: 105-106).
The transcribed testimonies I have examined have been full of errors in
dates, names of participants, and places, and there are evident misunder- referências bibliográficas
standings of the events themselves. (DAWIDOWICZ, 1981: 177).
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo Editorial,
2008.
historiador, sobre o contexto histórico do genocídio. Sua fala gerou alguma polêmica, pois ALEXANDER, Jeffrey. Trauma: a social theory. Cambridge, Uk: Polity Press, 2012.
em sua preleção no tribunal lançou mão de exemplos do extermínio dos judeus de Tarnów
na Galícia e da morte de quase toda a sua família naquela cidade. Disponível em: <http:// AMÉRY, Jean. At the Mind’s Limits. Bloomington: Indiana University Press, 1980.
en.wikipedia.org/wiki/Salo_Wittmayer_Baron. Acesso em: 10 ago. 2012.

86 87
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. (8a. Edição). São Paulo: Cia. das
Letras, 2008.
Educar Pós-Auschwitz1
______. A condição humana (11a. Edição). Rio de Janeiro: Forense Universitária,
Michel Gherman
2011.
______. Essays in understanding (1930-1954): Formation, exile, and totalitarianism.
New York: Schoken Books, 1994.
______. Responsibility and judgment. New York: Schoken Books, 2009. (Kindle
edition)
BRUDHOLM, Thomas. Resentment’s virtue: Jean Améry and the refusalto forgive.
Philadelphia: Temple University Press, 2008. educar no campo
DAWIDOWICZ, Lucy. The Holocaust and the historians. Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1981. Gostaria de aproveitar o aniversário dos 70 anos de libertação de
Auschwitz, bem como do fim da própria II Guerra Mundial, para lidar,
DERRIDA, Jacques. On cosmopolitismand forgiveness. London: Routledge, 2001.
neste pequeno artigo, com um tema mais específico, relacionado com a
ELIAS, Norbet. Norbert Elias por ele mesmo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
dimensão educativa e escolar da Shoá. Assim, é minha intenção de tratar
FERRO, Marc. O ressentimento na história. Rio de Janeiro: Agir Editora, 2009. o que o filósofo alemão Theodor Adorno chama de “educação depois de
HAYNER, Priscilla. Unspeakable truths: Facing the challenge of truth commissions. Auschwitz.” (ADORNO, 1995: 119-138).
New York: Routledge, 2002. Convém de início informar que pretendo neste espaço fazer uma
JANKELÉVITCH, Vladimir. “Should We Pardon Them?” Trad. Ann Hobart. Critical espécie de reflexão inicial sobre casos por mim mais conhecidos, quais
Inquiry 22(3): 1996: 552-572. sejam, algumas das propostas de “educação sobre a Shoá” existentes no
LACAPRA, Dominick. Historyand its limits: human, animal, violence. Ithaca: Brasil de hoje. Dessa forma, me concentrarei notadamente na cidade do
Cornell University Press, 2009. Rio de Janeiro, onde tenho trabalhado nos últimos seis anos. Imagino,
______. Writing history, writing trauma. Baltimore: John Hopkins University entretanto, que o caso carioca deva guardar similaridades também com o
Press, 2001. que ocorre em outros locais e outras realidades no país.
______. Representing the Holocaust: History, theory, trauma. Ithaca: Cornell Inicio minha análise desde o campo da minha própria experiência
Uniersity Press, 1994. pessoal, no caso, como acompanhante de grupos que participaram de pro-
LEIS, Hector Ricardo. “Sobre o Ressentimento dos Argentinos”. Caderno de pes- jetos de “educação para a Shoá”. Neste contexto, eu participei com gru-
quisa interdisciplinar em ciências humanas, n.30, 2002. pos de alunos em roteiros das chamadas “Marchas da Vida”. Apesar de ter
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. estado em campos de concentração e extermínio nazistas diversas vezes,
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, atuando com públicos de idades bastante distintas e origens bastante
2009. diversas, trago aqui um caso específico que para mim parece importante
NOVICK, Peter. The holocaust in american life. Boston: A Mariner Book, 2000. no sentido de discutir formas de lidar com projetos que pretendem educar
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora jovens “para o holocausto”.
Unicamp, 2007. Aqui, é importante notar que a situação a ser analisada em breve
WIEVIORKA, Annette. The era of the witness. Ithaca: Cornell University Press, ocorre justamente em uma destas viagens que colégios judaicos fazem
2006.

1 Esse artigo é a adaptação de uma palestra proferida na Jornada de Estudos do Holocausto


realizada para professores da rede municipal na cidade de Porto Alegre

88 89
aos “lugares de memória”2 da Shoá, localizados no continente europeu, varia de escola para escola) anterior à viagem, que apesar de possuir um
mais especificamente na Europa do leste, aqui, circunstancialmente, na modelo, guarda diferenças nos roteiros das diversas instituições.
Polônia. Ademais, adianto que esta viagem ocorre como parte de um pro- Pois bem, é justamente em uma dessas viagens que uma aluna do
grama maior, a “Marcha da Vida”,3 do qual participam milhares de jovens ensino médio, que tinha por volta de 15 anos, apresenta para mim, um edu-
de diversas partes do mundo, a maioria de origem judaica. cador que tentava intermediar a relação de alunos com lugares de memó-
Dada a descrição acima, quero afirmar que não trato, aqui, com refe- ria tão poderosos, uma questão chave acerca do ensino do holocausto nas
rências periféricas e muito específicas, o que poderia ser considerado algo escolas brasileiras. Tratarei desta questão nas próximas linhas deste artigo.
excepcional e, por isso, pouco relevante; ao contrário, lido aqui com um No ano de 2010, em um frio mês de abril, um grupo de cerca de vinte
programa que acontece de forma sistemática em colégios judaicos do estudantes encerra um longo dia de visita a campos de extermínio nazis-
Rio de Janeiro. Além disso, é importante saber que nestes colégios judai- tas. No caso, a visita se dá em Auschwitz-Birkenau, o que representa o
cos do Rio de Janeiro (bem como acontece em outras cidades, como São momento auge dos programas “Marcha da Vida”. No término da visitação
Paulo e Porto Alegre) o programa ocorre em uma série específica (no caso guiada, que durara praticamente um dia inteiro, estávamos nos afastando
citado, no 2º ano do ensino médio). Neste ano, os alunos são convidados do que restou dos fornos crematórios auschwitzianos e caminhávamos em
a participar de uma viagem a Polônia e Israel,4 onde visitarão campos de direção à saída, onde um ônibus nos esperava. Na imensidão do Campo
extermínio nazistas, guetos, além de sinagogas e instituições judaicas que de Extermínio e nas baixas temperaturas de então, isso significava andar
restaram da II Guerra. alguns bons quilômetros sob um frio sofrível. Além disso, vínhamos de
Na prática, no caso da Escola analisada do Rio de Janeiro, a grande uma experiência complexa, onde fizemos uma espécie de radiografia da
maioria dos alunos (cerca de 90%) decide tomar parte do programa (cuja maior fábrica da morte já produzida. O frio, o cansaço e os pensamentos
participação, apesar de não ser obrigatória, é estimulada pela escola). nos faziam andar lentamente em direção ao ônibus.
Para tanto, os estudantes tomam parte de um processo preparatório (que Pois foi justamente nesse momento que uma das alunas me chamou
pelo nome me pedindo que esperasse alguns instantes. Apesar do frio
que me fazia bater os dentes, esperei. A estudante se aproximou e trouxe
2 Utilizo aqui o conceito do historiador Pierre Nora, como forma de apontar para “constru- um importante ponto. Com uma voz baixa, porém pungente, ela afirmou
ções da memória”, onde a história – ou a historiografia, melhor dizendo – se apropria de
lugares para sedimentar e consolidar “laços entre o presente e o passado, transformando
como quem refletia sobre o tema há muito tempo: “Mais difícil do que
em monumentos da memória (nacional, local ou universal) sítios específicos. Ver: NORA, entrar em Auschwitz é sair de Auschwitz”.
Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, Ao ouvir a frase, busquei uma saída mais simples, mesmo descon-
n.10, dez. 1993: 7-28.
3 Programa criado pela comunidade judaica americana nos anos 80 (a primeira marcha acon-
fiando que a resposta seria negativa, quis saber se ela se referia às dificul-
teceu em 1988). Alguns anos depois, o programa se transformou em uma parceria entre o dades físicas, o frio, a distância e o cansaço, enfim, as dificuldades físicas
Estado de Israel e as comunidades judaicas da diáspora. A viagem inclui destinos na Europa
(na maior parte das vezes Polônia) e Israel. A marcha tem como um de seus interesses
compartilhadas por todos nós após um dia intenso como aquele, ao que
“fortalecer a identidade judaica de jovens de todo o mundo”, através “do contato com suas ela contestou de forma ainda mais segura:
raízes”. Ver:<http://motl.org/international-march-of-the-living/>.
4 Não são poucas as polêmicas em torno de tais programas, principalmente relacionadas ao Não, me refiro à dificuldade que temos em entender que o mundo não é
trecho israelense da viagem. Autores e educadores apontam para o risco de tais viagens Auschwitz, mas que para que não seja Auschwitz, a gente tem que se com-
se transformarem em construtores identitários excludentes e nacionalistas, baseando-se prometer a lutar contra o que nos levou a Auschwitz. Pra isso tudo, temos
somente em referências de perseguição e ódio, a partir do binário destruição (Polônia) e que sair de Auschwitz, não nos deixar convencer que lá fora é tudo tão claro,
salvação (Israel), o que fortaleceria posições políticas especificas, localistas e particularistas,
em detrimento de perspectivas mais inclusivas e universalistas. Um dos maiores críticos des- bons e maus, pretos e brancos, judeus e nazistas, essa é a lógica de Auschwitz
tes programas educacionais é o filósofo israelense Avraham Burg, que assume publicamente e não a nossa. Essa seria a vitória de Auschwitz, dos nazistas, de Hitler. Se a
oposição ao que ele chama, de forma irônica, de “Auschwitz trips”. Ver: BURG, Avraham. The gente não sair de Auschwitz não vamos fazer nada. Por incrível que pareça
Holocaust is Over We Must Rise From Its Ashes. Nova York: Pallgrave MacMillan, 2008.

91
aqui tem um lugar de conforto. Lá fora é mais complexo; para evitarmos radiofônica no ano de 1965, que será publicada em sua cidade natal dois
Auschwitz, temos que sair de Auschwitz. Você tem que nos ajudar a sair anos depois, Adorno tenta dar respostas para a necessidade de o mundo se
daqui, senão vamos ficar presos no campo e não vamos lá pra fora.5
recriar após o holocausto. Mais do que uma questão pontual, mais do que
A reflexão da jovem, feita justamente na caminhada para a saída uma referência imediata, Auschwitz, para Adorno, personificava a barbá-
do campo de extermínio, me fez pensar sobre a dificuldade inerente do rie humana. Em sua perspectiva, os crematórios de Auschwitz, a cidade
educador em lidar com um tema tão importante. A aluna tinha razão: a da morte e da desesperança criada pelos nazistas, constituíam a expressão
dificuldade aqui era essa, não se deixar seduzir com perspectivas mera- total da distopia humana, que gerada no coração da Europa “civilizada”
mente memorialistas e positivistas. Não ganhávamos nada se visitás- produzira a maior destruição conhecida pelo ocidente.
semos o campo e não saíssemos dele; ao contrário, poderíamos perder. O texto de Adorno é deveras claro em alguns pontos. Dentre eles, há
Correríamos o risco de tentar reconstruir, de maneira quase literal, a expe- o chamado por uma educação pós-Auschwitz. O autor tem certeza de que
riência aushwitizana sem nos preocupar com as referências que sedimen- para “sobreviver à barbárie” e não reproduzi-la novamente, deveríamos
taram o caminho para Auschwitz. educar nossas crianças de forma diferente. Auschwitz, ou melhor, o pós-
Urgia, pois, que saíssemos do campo depois de conhecê-lo, justa- -Auschwitz, demandava que produzíssemos outra educação, outro edu-
mente para evitá-lo. Afinal Auschwitz foi concebido, planejado e cons- car, outra relação entre professor e aluno. Nesta perspectiva, tínhamos que
truído por um mundo sem Auschwitz. Era para esse mundo estávamos “inventar uma nova educação”.
voltando. Eu, como educador, deveria tirar, sacar, fazer sair estes jovens do Aqui, depois desta análise introdutória sobre o texto de Adorno, me
Campo – só assim a experiência de visitar Auschwitz faria sentido. permito apresentar algumas questões. A primeira delas se refere às pro-
Foi, pois, a provocação de uma jovem de 15 anos que me fez voltar a postas de “educação sobre”. Estas propostas são relativamente comuns hoje
um texto que me chamara atenção em meus anos de estudante de gradua- no Brasil (veremos adiante algumas delas são garantidas por lei inclusive)
ção. De fato, foi a observação da citada aluna, feita em tom de urgência e podem ser encontrados em diversas iniciativas educacionais no país.
e em um momento propício, que me fez resgatar a reflexão de Adorno Parte delas está, entretanto, em contradição ao pensamento do autor
que se debruça menos sobre Auschwitz e sobre a Shoá, e faz avançar o acima citado. Explico: Em seu texto, “a educação depois de Auschwitz”,
debate sobre o mundo pós-Auschwitz para o mundo de depois da Shoá. Adorno está menos preocupado com educar “sobre Auschwitz”, e conse-
Para Adorno, um mundo que insiste em existir depois da tragédia neces- quentemente, sobre a Shoá. Sua preocupação fundamental no texto está,
sita de educadores que pensem depois da tragédia. A única resposta para justamente, na direção contrária. Para Adorno, urge que saibamos da
um mundo que vê Auschwitz seria uma educação pós-Auschwitz. Seria necessidade de educarmos depois da Shoá. O filósofo insiste que deve-
essa a garantia de que o mundo poderia continuar a existir (e não somente mos nos preparar para saber “como educar”, depois da Shoá e depois de
subsistir) depois do holocausto. Auschwitz. Devemos, portanto, nesta perspectiva, educar contra a barbárie,
e não sobre a barbárie. Mais do que radiografarmos campos, mais do que
auschwitz no retrovisor ou como deixar auschwitz decorarmos seus mapas, devemos entender, na educação pós-holocausto,
para trás, sem esquecê-lo? as estradas que levaram à construção de Auschwitz, de Treblinka e Sobibor.
Se a expressão do soldado da SS nazista pode nos parecer estranha,
O filósofo Theodor Adorno nasceu na cidade de Frankfurt no ano de 1903. pode nos soar “monstruosa”, nós devemos olhar justamente, por mais
Ao produzir seu texto “A educação após Auschwitz”, produto de uma aula absurdo que possa parecer, para sua humanidade. A sistematização do
terror não transformou pessoas em monstros, apenas fez com que pessoas
5 Comentário de uma aluna do segundo ano do ensino médio da Escola Eliezer-Max do Rio
de Janeiro. Mantenho a natureza e o espírito da fala da jovem, apesar de fazer algumas adap-
tações para a linguagem escrita.

92 93
normativas se ocupassem de tarefas monstruosas.6 Nosso dever, como edu- última instância, percebo que aqui se educa sobre Auschwitz e, pratica-
cadores, seria, portanto, menos o de dissecar os atos de monstruosidade mente, não se educa para depois de Auschwitz.
de homens envolvidos no processo de exterminação de outros homens, e Claro, estamos ainda em uma fase de explicar, para a maior parte da
mais o de pensar esse processo de desumanização coletiva, onde vítimas e população, que Auschwitz existiu, de apresentar a Shoá como fenômeno
algozes se constroem (e se desconstroem) mutuamente. histórico, mas creio que devemos entender isso em uma perspectiva
Esta é a contradição entre a proposta do filósofo e da maioria dos pro- estratégica, como uma tarefa momentânea e não como nossa principal
jetos realizados hoje no país. Se para alguns deles é importante saber o que missão. Acredito sim que educar contra a violência, hoje, deve ser educar
ensinar sobre Auschwitz, para Adorno o essencial é saber como ensinar pós-Auschwitz; educar contra o racismo, hoje, também deve ser educar
depois de Auschwitz. O horror da Shoá deve ter, portanto, para a educa- pós-Auschwitz; educar contra a homofobia também deve ser educar con-
ção, papel fundamental e fundacional. Depois de Auschwitz outra educa- tra Auschwitz; educar contra o antissemitismo também deve ser educar
ção, outra dinâmica educacional, passa a ser necessária. Na perspectiva contra Auschwitz.
de Adorno a educação depois do horror deve ter compromissos claros: Aqui recupero a fala de minha aluna, que desde o interior de Auschwitz
educar para a autonomia, educar contra a indiferença, e educar para que a tinha o afã de sair do campo, de deixar claro que esta é nossa tarefa prin-
civilização não produza incivilizações. cipal. Proponho, a partir de uma releitura do texto de Adorno, que ao nos
Neste contexto, educar contra Auschwitz deve ser educar de maneira concentrarmos em projetos “sobre Auschwitz”, corremos um risco conside-
radical e profunda, deve ser educar contra o horror, deve ser confrontar rável, de termos uma espécie de “sedução mórbida”, de lidarmos com deta-
o horror, qualquer forma de horror, para que a experiência aushcwitziana lhes do processo de assassinato e de perdermos o contexto que nos conecta
não se repita, em nenhuma versão. Para Adorno, portanto, educar depois a explicações gerais relacionadas ao mundo que produziu Auschwitz.
de Auschwitz deve constituir-se em uma tarefa antidiscriminatória, uma Se ao entrar em Auschwitz suas vítimas não tinham a mínima ideia
tarefa que desqualifique qualquer forma de preconceito, já que o compro- do que aquilo significava,7 depois disso, depois da libertação de Auschwitz
misso de educar, em si, deve ser colocado como um antídoto contra tudo e, principalmente, 70 anos depois de ter seus portões abertos, devemos
que levou Auschwitz a acontecer. usar o campo para combatermos preconceitos, atos de discriminação e de
Pois bem, aqui recoloco a questão anterior: quando tratamos, no desumanização que são encontrados e reproduzidos cotidianamente até
Brasil de hoje, de educação pós-Auschwitz, geralmente estamos falando os dias de hoje.
de educação sobre Auschwitz, sobre a Shoá e, permitam-me introduzir Para tanto, é importante que, ao estudar a Shoá, saiamos dos cam-
aqui um segundo ponto ao qual retornaremos a seguir, estamos também pos, dos guetos, das covas coletivas do leste da Europa. Urge que lembre-
falando sobre suas maiores vítimas, os judeus. mos, como lembrou a menina da escola do Rio, que o mundo que criou
Auschwitz estava fora do campo e que era um mundo bastante parecido
Em um quadro de grande ignorância sobre o tema e a partir das con-
com o nosso. Assim, proponho que Auschwitz esteja em nossos radares,
figurações políticas locais, estes são os cardápios possíveis: dados técnicos,
que saibamos nos referir a ele, que tenhamos noção do que ele foi, que
descrições de campos e guetos, enfim, aulas que privilegiam a perspec-
conheçamos relativamente bem suas estruturas, mas que ele seja uma
tiva conteudista, que tragam detalhes sobre a fábrica da morte nazista. Em
imagem no retrovisor em nossas viagens para frente.

6 Aqui faço uma referência ao polêmico testemunho do autor Yehiel Dinur no julgamento de 7 Como referência, o trecho da obra É isto um Homem?, de Primo Levi, onde o autor descreve
Eichmann. Em um momento de extrema tensão, frente ao dirigente nazista, Dinur (reba- a chegada ao Campo: “Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: e nós
tizado de Katzenik – habitante do campo – em seus livros) afirma, antes de desmaiar, que cansados, de pé diante de uma torneira gotejante, mas que não tem água potável, esperando
Auschwitz ficava “em outro planeta”. Ver: Arendt , Hannah. Eichmann em Jerusalém: um algo certamente terrível, e continua não acontecendo nada [...]”. Ver: Levi, Primo. É Isto Um
relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Homem? Rio de Janeiro: Rocco. 1988, p. 20-21.

94 95
auschwitz e suas vítimas gostaria de iniciar uma pequena reflexão sobre a história da educação
sobre a Shoá no país.
Nesta altura, gostaria de tratar de uma segunda questão, já citada breve- Como vocês devem saber, o Brasil é hoje um país politicamente divi-
mente acima: as vítimas de Auschwitz. Aqui, cabe notar que um dos pon-
dido. Desde 1998 dois partidos políticos se alternam no poder, o PSDB,
tos mais interessantes no artigo “Educação após Auschwitz”, consiste no
tendo iniciado o ciclo, e o PT, tendo assumido o poder nos últimos 12
fato de que em nenhum momento, em nenhum trecho sequer, seu autor se
anos. Percebe-se que afora em questões econômicas, poucos são os cam-
refere às suas maiores vítimas, os judeus.
pos onde há continuidade na política desses dois partidos. Quero dizer
Ao que parece, isto se deve a uma agenda de Adorno ao tratar da Shoá.
que poucas são as chamadas “Políticas de Estado” implementadas tanto
Está claro, neste sentido, que o crime não pode ser debitado, de forma
pelo PSDB como pelo PT.
alguma, na conta de suas vítimas mais definitivas. Importante notar: não
Pois bem, justamente um desses casos tem relação com o tema que
me refiro, aqui, a uma responsabilização jurídica direta, onde sinais de
aqui tratamos, a educação sobre Auschwitz. Explico: desde os anos 90
“crime e punição”8 são fundamentos importantes no discurso tanto das
os debates sobre racismo e sobre a questão negra são pautas constantes
vítimas quanto dos algozes; busco ir além disso.
na política brasileira. Desde o primeiro governo de Fernando Henrique
A meu ver, a ausência de judeus em um texto que lida de maneira tão
Cardoso há ensaios de projetos sobre ação afirmativa, sobre discriminação
direta sobre a educação depois de Auschwitz tem relação com a forma com
positiva e sobre o lugar do racismo na sociedade brasileira. Importante
que Adorno pretende pensar o legado da Shoá. Neste contexto, judeus não
lembrar que até esse momento o paradigma brasileiro seguia o modelo de
podem ser assim responsabilizados por sua memória (ou seja, pela memó-
Gilberto Freyre,9 que entendia que no Brasil havia uma democracia racial,
ria de seu extermínio). Assim como os gays, os ciganos, ou qualquer outro onde referências raciais eram muito pouco importantes, havendo inclu-
grupo específico. Desta forma, optar por não citar as maiores vítimas do sive possibilidades de ascensão racial, casamentos mistos, enfim, uma
nazismo no texto, o autor parece indicar que educar no pós-Shoá precise sociedade onde o racismo era praticamente inexistente.
ser, de fato, uma tarefa universal e não uma missão para suas vítimas dire- O marco de câmbio na sociedade brasileira se deu em 2001, quando
tas, ou mesmo para seus perpetradores. delegados brasileiros participaram da conferência de Durban e assinaram o
A Shoá aconteceu neste mundo, foi promovida por grupos políticos documento contra a discriminação, o racismo, a xenofobia e discriminações
diversos, gente de nacionalidades diversas, pessoas com idiomas diversos, correlatas e pelo ressarcimento das vítimas do racismo. O efeito de tal con-
proveniente de contextos socioeconômicos distintos. Importante notar: ferência foi tão grande e importante que, já ao retornarem, representantes
foram eles, foram os algozes, que elegeram suas vítimas. Em nenhum do movimento negro exigem mudanças estruturais ao governo brasileiro.
momento os judeus, ou quaisquer membros de outro grupo envolvido Em 2002, se funda a Secretaria de Promoção de Políticas de Integração
no extermínio, foram parte desta decisão. Auschwitz não foi fundada por Racial (SEPPIR). Esta, uma secretaria federal com status de ministério, tem
judeus, mas por seus assassinos. Esta realidade transforma a Shoá não em como objetivo principal promover políticas contra o racismo e de valori-
um monumento judaico, mas justamente ao contrário, em uma referência zação da cultura negra. O SEPPIR pode ser considerado, pois, o início de
importante de horror, uma grande estrutura criada para aniquilar as víti- um novo paradigma: o Brasil deixava o “modelo freyriano” e caminhava
mas escolhidas por eles. em direção ao multiculturalismo, onde políticas de identidade e de raça
Dizer isso parece uma obviedade, mas ao analisarmos a educação passam a ser referências importantes.
sobre a Shoá no Brasil teremos impressão de que nada é tão obvio. Aqui, Em pouco tempo a SEPPIR, entretanto, deixaria de ser uma secretaria
exclusiva de populações negras e passaria a ter representação de vários

8 Remeto esse debate à reflexão sobre formas de testemunho trazidas pelo autor Agamben. 9 Como referência máxima do modelo freyriano, cito o livro Casa Grande e Senzala. Ver:
Ver: Agambem, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo. 2008: 25-49. Freyre, Gilberto. Casa-grande & Senzala. São Paulo: Global, 2004.

96 97
grupos vítimas de discriminação, entre eles estavam: judeus, mulheres, judaicas tendem a ser substituídas, no currículo escolar, pela história do
ciganos, palestinos... Enfim, uma série de grupos fazem parte da secreta- extermínio dos judeus.
ria. A partir desse momento passam a se desenvolver projetos em várias Este quadro parece ser justamente o inverso do que Adorno propõe
áreas, vinculados a grupos étnicos distintos. quando se refere de “educação pós-Auschwitz”. Há indícios de que no
Em princípio, entidades ligadas aos afrodescendentes propõem que Brasil caminhamos para uma “educação sobre Auschwitz” produzida e
nas escolas seja estudada a história da África, já que esses consideravam vinculada, quase que exclusivamente, pelos descendentes de suas vítimas
que, até então, a educação brasileira somente entendia o negro brasileiro diretas, os judeus.
como escravo, não considerando sua origem pregressa como referência Para que Auschwitz tenha sentido hoje, é importante notar que seu
importante.10 Alguns anos depois, a comunidade judaica, representada legado11 esteja em vários lugares e não somente em um passado terrivel-
pela Confederação Nacional Israelita do Brasil, propõe que seja aprovada mente ideal. Conforme já discutido acima, onde há discriminação, deve
e lei de ensino do holocausto, o que já acontece em várias cidades a partir haver educação pós-Auschwitz. Onde há racismo, deve haver educação
de 2010 (Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo etc.). pós-Auschwitz. A Shoá não deve, portanto, ajudar a fortalecer identidades
A meu ver, aqui está uma armadilha que a comunidade judaica fez específicas, sob o risco de ganhar um sentido mórbido e injusto. Auschwitz
para si própria. Para além de questões práticas (quem estuda, preparação deve nos ajudar a constituir uma identidade humana e inclusiva, essa deve
de professores etc.) a Shoá passa a ser vista como uma espécie propriedade ser a função da educação pós-Auschwitz.
de suas vítimas, como um assunto relacionado aos maiores afetados, no Por fim, acho que essa é a única forma de resgatarmos, de fato, a
caso os judeus. Auschwitz é, assim, quase um tema comunitário, quase memória das vítimas do holocausto nazista. Como referência, trago a
que tem caráter particularista. Qual o risco? Dentre outros, o de disputar história do menino Hurbinek, descrito por Primo Levi como “ninguém,
com outras comunidades e não ser uma referência fundamental para o como filho da morte” (LEVI, 2003: 16-18). Hurbinek, cujo nome fora dado
debate a qualquer discriminação. por outros prisioneiros, morre em Auschwitz depois de sua libertação.
Aqui o caso de história da África pode ser um contraponto importante. Era uma criança de três anos, paralisada da cintura pra baixo, e com um
Ao determinarem, no currículo das escolas, que estudantes sejam expostos número tatuado em seu braço minúsculo. Sem pais, sem sotaque, quem
à memória e à cultura de um grupo importante na formação cultural bra- era Hurbinek? Era judeu? De onde?
sileira, a lei foge da referência da escravidão como marco fundacional do Não nos importa: essa criança foi uma vítima da maior barbárie da his-
negro no país. Antes de serem escravos, os negros (que aqui chegaram for- tória da humanidade. Creio que educar pós-Auschwitz deva ser educar para
çados) tinham culturas, línguas e costumes que a escravidão tentara apagar; todos e sobre todos, creio que Hurbinek pode e deve ser resgatado do esque-
ao travarem contatos com estes conteúdos, os estudantes brasileiros, negros cimento, a partir dessa perspectiva mais universal e inclusiva. Se tentarmos
ou não, passariam a compreender que, para além da escravidão, há outras descobrir de fato a identidade do menino, podemos estar cometendo um
possibilidades de construção histórica para as populações negras no país. grande erro, podemos estar dando sentido à sua deportação, podemos dar
No caso dos judeus, a dimensão parece distinta. Em um esforço para sentido à sua morte, podemos dar sentido ao número em seu braço; enfim,
trazer a cultura judaica para o novo caldeirão multicultural brasileiro, a podemos enviar Hurbinek de volta às trevas, e com ele todos nós.
comunidade judaica mira em Auschwitz, túmulo do judaísmo europeu. Acho fundamental que escutemos as palavras da estudante do início
Neste contexto, não se ensina judaísmo, mas a tentativa de seu extermínio. do texto, e que para falar de Auschwitz saiamos do campo. Aqui, podemos
Em contraponto à lei de história africana, a origem, a cultura e as tradições

11 Refiro-me aqui ao conceito de legado da Shoá segundo a proposta de Hayes. Ver: Hayes,
Peter. Lessons and Legacies. The Meaning of the Holocaust in a Changing World. Northwestern
10 Essa medida é aprovada como a lei 10. 639, em 2003. University Press: Evanston. 1991, pp. 1-11.

98 99
ter como símbolo Hurbinek, a criança sem nome e sem origem, que “mor-
reu livre apesar de não estar redimida” (op. cit., p. 29-30).
A melhor homenagem a esse menino e a milhões de outras vítimas
deve ser nosso compromisso com a construção de um mundo onde o sur-
gimento de outros Auschwitzes simplesmente não seja possível.

referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz In: Educação e emancipação. São
Paulo: Paz e Terra. Judeus no Brasil
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschivitz. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BURG, Avraham. The holocaust is over we must rise from its ashes. Pallgrave
MacMillan: Nova York. 2008.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. São Paulo: Global, 2004.
LEVI, Primo. A trégua. Companhia das Letras: São Paulo. 2003.
______ . É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco. 1988.
HYES, Peter. Lessons and legacies. The meaning of the holocaust in a changing
world. Northwestern University Press: Evanston. 1991.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto
História, São Paulo. n. 10, dez. 1993.

Sites:
http://motl.org/international-march-of-the-living

100
Setor judeu do Partido Comunista:
memórias de judeus de esquerda no Rio de Janeiro
Michel Gherman

introdução
Nosso interesse nesse artigo é iniciar uma análise acerca do setor judeu
do Partido Comunista Brasileiro. Criado por judeus imigrantes da Europa
Oriental nos anos 1920, o “Setor Judeu” teve atuação destacada nas décadas
seguintes e tornou-se referência importante de sociabilidade e integração
para os judeus do Rio de Janeiro nos anos 20, 30 e 40 do século passado.
Foi nesse período que surgiram entidades judaicas de esquerda, vin-
culadas ao setor progressista da comunidade judaica, que chegaram a
disputar a hegemonia política no interior da coletividade judaica carioca.
Judeus progressistas com vínculos, diretos ou não, ao Partido Comunista
têm importante influência no campo da educação, da cultura e da política.
É a partir desse setor que um número expressivo de judeus (imigrantes
e filhos de imigrantes) se integram à sociedade brasileira e estabelecem
relações com uma identidade judaica mais universalista e secular.
Assim, a história do Setor Judeu do PCB está profundamente ligada ao
aumento da imigração judaica ao Brasil. É somente a partir da década de
1920 que o país torna-se, de fato, um dos alvos preferenciais de imigrantes
judeus da Europa: “Os imigrantes judeus do leste europeu [...] expandiram
a população judaica de 15 mil em 1920 para aproximadamente cinco vezes
mais duas décadas mais tarde [...].” (LESSER, 1995:29). Antes disso, em fins
do século XIX e primeira década do século XX, os judeus não eram atraí-
dos pelo Brasil. Até esse momento, as notícias que chegavam aos judeus
davam conta de que o país “se assemelharia a uma grande selva, atrasado
e sem indústrias, o que dificultaria o grande sonho das massas judaicas de
ascensão social e de enriquecimento” (CHOR, 1990: 42).
O Brasil começa a receber imigrantes judeus, de maneira sistemá-
tica, a partir do fim da I Guerra Mundial, com efetivo aumento a partir

103
da década de 1920. Este aumento pode ter tido como origem as políti- estados e seus populações judaicas
cas de restrição em curso em países tradicionalmente abertos à imigração
judaica, como os Estados Unidos, Canadá e Argentina, o que não deixava Distrito Rio Grande
Ano São Paulo Rio de Janeiro
ao imigrante muitas alternativas de escolha. Porém, para Jeffrey Lesser: Federal do Sul

Houve diversas razões para que a imagem do Brasil começasse a melhorar 1900 226 25 0 54
na década de 20; uma delas foi a sua localização. Para aqueles que desejavam
se estabelecer na bastante conhecida Argentina, constituindo uma parada 1940 20.379 1.920 19.473 6.619
intermediária em seu rumo de saída da Europa oriental. Ainda que um sig-
nificativo número de imigrantes planejasse mudar-se para outros locais, a 1950 26.443 2.209 25.222 8.048
relativamente forte economia brasileira era atraente. Instituições comuni-
tárias e religiosas formadas recentemente forneciam assistência social aos
recém-chegados [...]. O Brasil já não era uma terra de macacos, mas uma
terra de prosperidade e poucos conflitos religiosos. (LESSER, 1995: 60-62). É também nesse momento que surgem as primeiras entidades judai-
cas no Rio de Janeiro. Na gênese das estruturas comunitárias judaicas
As tabelas abaixo demonstram o quadro das imigrações judaicas no da cidade, podemos encontrar associações de ajuda aos imigrantes, de
Brasil:1 préstimo aos recém-chegados e, também, organizações de caráter cultu-
imigração judaica para as américas ral e político, reproduzindo, em certo sentido, questões pertinentes aos
ambientes de origem, na Europa oriental. Aqui, lançamos mão das memó-
País 1925 1930 1935 rias de um típico imigrante do leste europeu, chegado ao Brasil ainda no
início do século XX, Abraham Jose Schneider. Schneider nasce na região
Polônia 802 1.168 1.130 de Lvov-Lemberg, no ano de 1913. Ele nasce austríaco. Ainda durante sua
permanência, Lemberg passa a pertencer à Polônia. Hoje faz parte da
Alemanha 0 0 357
Ucrânia. Schneider chega ao Brasil no ano de 1933:
Rússia 225 0 0 Eu cheguei ao Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 4 de julho de 1933. Quando
cheguei tinha uma irmã, que morava na Rua do Santana, que ela que me
Romênia 220 0 144 trouxe [...]. Irmã mais velha, ela praticamente que me criou, quando eu che-
guei aqui, já estava com mais ou menos 18 a 19 anos.
[...] Na mesma época, chegavam da Europa, cada dia, imigrantes fugindo do
portos de chegada de judeus no brasil
medo dos nazistas que tomaram o poder na Alemanha, e o slogan deles era:
‘A morte dos judeus onde eles estiverem, nós vamos atacar’ [...] vinha muita
Ano Rio de Janeiro Santos Bahia Pernambuco gente da Polônia Lituânia Romênia, Alemanha etc. 2

1925 1.804 820 não consta não consta Ao chegar ao Brasil, Schneider vai frequentar uma associação judaica
de esquerda, ou progressista, como era aqui chamada, a Biblioteca Sholem
1927 2.940 1.227 não consta não consta Aleichem (BIBSA). Neste momento, a BIBSA serve, antes de tudo, como
1930 2.274 1.231 33 30
referência cultural e de sobrevivência. Ela passa a ser, neste sentido,
mais um elemento na “rede” de solidariedade que norteava a vida da

1 Nas tabelas aparecem apenas os imigrantes judeus do leste europeu; não estão aqui compu-
tados os imigrantes do norte da África. 2 Depoimento de Abraham Jose Schneider concedido a Michel Gherman, em dezembro de 1999.

104 105
comunidade judaica do Rio de Janeiro, concentrada nestes anos na “Praça me abandonaram. Os outros garotos, os alfaiates mesmo diziam ‘ vai com
Onze”,3 onde se localizava a própria Biblioteca: os ricos’. Eu fui pra cidade de Lemberg-Lvov e comecei a trabalhar como
alfaiate, ajudante, porque não é fácil aprender o ofício, e eu queria ser um
Quando eu cheguei aqui, nós morávamos na Rua Santana 77. Eu disse que bom profissional. O único meio que eu tinha era o de entrar no BUND. E
queria uma escola, na Praça Onze tinha uma escola, a escola Benjamim posso dizer que só saí quando cheguei aqui.”
Constant.
Quando eu cheguei lá de noite, de dia eu trabalhava [eles] me viram um de Podemos perceber, no trecho do depoimento acima, algumas questões
cabelo vermelho e olhos azuis, não sabendo falar uma palavra de português. pertinentes ao cotidiano dos judeus da Europa do leste. Primeiramente,
Eles começaram a falar, eu não entendia nada. A escola era de alfabetização, é possível notar o aprofundamento da distinção social entre os judeus.
tinha cada indivíduo grandalhão lá que não sabia escrever. A moça chegou
Paralelo a este aprofundamento, percebemos certa tensão social entre os
e viu que eu não compreendia nada do que ela falav,a me deu um livro e me
disse com gestos: você sabe escrever? judeus enriquecidos e as camadas empobrecidas da comunidade. Fica
E eu sempre fui muito bom em letra, quando comecei caprichar, escrever claro que a transformação de jovens estudantes em proletários (mormente
no quadro negro e ela me viu escrevendo, chegou perto de mim, me deu um em pequenas fábricas, especializadas na produção de bens de consumo),
abraço um beijo e disse: é uma estratégia de sobrevivência às modificações estruturais que ainda
‘Meu filho, aqui é lugar de analfabeto, vai procurar uma escola que é pra ocorrem nesse momento.4
você, você é muito bom’. A família de Schneider era religiosa, seu pai, um judeu ortodoxo,
Aqui, então. Só me sobrou a Biblioteca Sholem Aleichem. Ficando lá como começa a ter problemas econômicos, o que ocorre, de forma generalizada,
sócio, eu pagava muito pouco por mês. Comecei a estudar, não demorou
entre os judeus da Europa do leste neste período. O sustento da família
muito tempo entrei na diretoria [...], na parte cultural e política, sempre fui
progressista. começa a ficar dificultado:
Meu pai era um judeu religioso, eu cheguei a frequentar uma yeshivá.5 Depois
Ao desembarcar na Praça Mauá, Schneider já tem uma formação meu pai disse que tava tudo bem, mas que eu tinha que procurar uma profis-
“progressista”. Esta formação se dá ainda na Polônia e é resultado das são, que não dava pra viver, pra me sustentar, não dava nem pra ele.
mudanças ocorridas em seu ambiente de origem. Até sua emigração, a
militância em organizações de esquerda serve, ao mesmo tempo, como Neste sentido, organizações e partidos de esquerda, como é o caso do
elemento de ruptura com suas formas tradicionais de vida e como ponto BUND, servem como real alternativa ao núcleo familiar e tradicional:
de aglutinação, sob perspectiva da “nova identidade judaica”: A única coisa que eu tinha que funcionava bem era a cuca, que até hoje eu
tenho uma cabeça boa, modéstia à parte. Então o BUND me botou na escola
No princípio, antes de vir pra cá [Brasil] eu comecei a trabalhar[...]. Quando
para aprender literatura judaica e comecei com os maiores professores lá
tinha, mais ou menos, 14, 15 anos, meu pai disse que não podia mais me
tomando aulas e quando eles viram que eu estava progredindo me tiraram,
sustentar, então me botaram como alfaiate para aprender o ofício, minha
eu precisava continuar estudando, e me botaram como professor dos mais
profissão até aqui.
novos do que eu. Eu nunca vou esquecer, porque se eu aprendi a ser uma
Então lá, eu pertencia ao BUND, porque na escola éramos 62 alunos, no pessoa certa foi graças a eles. [...] Depois que os filhos dos ricos me abando-
último ano, 7o ano. Dos 5 garotos ‘ídisches’ os outros 4 eram filhos de mais naram me chutaram, eu não tinha pra onde ir, eu podia sair pra ser moleque
ou menos bem de vida, o quinto que era eu. Me botaram pra ser alfaiate, não sei onde, mas eles viram que eu tava trabalhando e eu tinha um amigo,
eles acharam que a profissão era muito vil para que eles se dessem comigo, já do partido, um rapaz pobre [ele me levou], e entrei no BUND.

3 Trata-se da Praça Onze de Junho. Há que se ter clareza, porém, que “esta denominação não 4 Tais mudanças já estão em estágio avançado nos anos de 1920, podemos detectar isto, no
se referia somente à própria praça, mas também aos seus arredores ruas Senador Eusébio depoimento, a partir do pequeno número de alunos judeus (6, sendo que 5, à exceção de
e Visconde de Itaúna, que começavam na Praça da República e se estendiam até as proxi- Shneider, com posição social privilegiada) na sala de Schneider, em uma região com grande
midades da Praça da Bandeira)”. Ver: MALAMUD, Samuel. Recordando a Praça Onze. Rio de população judaica.
Janeiro: Kosmos, 1988, p. 17-22. 5 Centro de estudos religiosos.

106 107
Lá era outra coisa, em Lemberg. Eu tinha saído da casa dos meus pais, sem para uma crescente industrialização. Desta forma, entre os imigrantes
dinheiro, sem nada, e lá quem era garoto e trabalhava que ganhava pouco, (não judeus) recém-chegados, a tendência era de se orientar pelas ofertas
eles davam comida. Eu tinha por volta de 16 anos. Eles davam comida, a
do mercado de trabalho. Neste sentido a proletarização, nos grandes cen-
gente pagava só a entrada, o BUND fazia tudo por nós.
tros urbanos, era uma possibilidade bastante plausível para tais imigran-
Foi, neste momento que o jovem alfaiate Schneider, já aqui envolvido, tes. Podemos confirmar tal tendência quando verificamos os números do
em todos os sentidos, com a militância socialista no BUND, tem a real censo de 1920. Neste censo, nota-se que 39,2% dos empregados na indús-
possibilidade de emigrar: tria são imigrantes (GRIN, 1990: 145).
As estratégias de adaptação, sobrevivência e inserção no mundo do
Um dia eu estava lá trabalhando, e recebi uma carta da minha mãe, que
minha irmã estava me mandando a chamada, isso era antes de ‘pessach’.6 Eu trabalho se dão de maneira distinta entre os imigrantes judeus do leste
já não podia sair porque já estava quase na hora de servir o exército. Eles me europeu, no início do século. Longe de apostar em atividades industriais,
deram licença pra ficar aqui (no Brasil) um ano, depois me mandaram per- como outros imigrantes, os judeus vão se concentrar em “atividades autô-
guntar pra saber se eu ia voltar, se não, ia perder a nacionalidade. Eu nunca nomas e essencialmente urbanas”, afastadas, porém, de atividades vincu-
mais quis saber deles.”7
ladas com o mercado formal. Se em princípio pode parecer pouco pro-
Como já vimos acima, chegando ao Brasil, Abraham Jose Schneider vável a possibilidade de subsistência em atividades localizadas à margem
se dirige à Praça Onze, local de moradia e trabalho de grande parte da do mercado formal (para uma população ainda não adaptada à ordem
comunidade judaica nos anos 1920, 30 e parte dos 40. Em realidade, mais social brasileira), cabe lembrar a experiência regressa dessas populações
do que referência profissional e de endereço, a Praça Onze serve como (de judeus), que desaconselhava a opção da proletarização como possibi-
referência de vida para a comunidade judaica, nestes anos. Lá, Schneider lidade de acúmulo de bens e capital.
encontra abrigo, auxílio e possibilidade de desenvolver atividades sociais e Desta forma, formam-se as “redes” de ajuda mútua que auxiliam o
ideológicas na Biblioteca Sholem Aleichem. Da mesma forma, numerosos imigrante, no dia a dia, em seu processo de adaptação. Assim, se desenvol-
imigrantes que desembarcavam no Brasil iam, gradualmente, construindo vem no interior da comunidade judaica “fronteiras” que vão intermediar
organizações comunitárias, clubes, bibliotecas e jornais na região. as atividades dos judeus com a sociedade maior, facilitando, desta forma
A presença comunitária ia se fortalecendo à medida que o número de a assimilação gradual de seus códigos sociais.8 As atividades dos judeus
imigrantes aumentava e a comunidade judaica se incrementava : estavam concentradas no pequeno comércio e no setor de serviços. Havia
ainda o pequeno artesanato judeu funcionando, principalmente, nas tra-
(...) [Na Praça Onze] viviam centenas de famílias judias, funcionavam
vessas da Praça Onze. Lá podiam ser encontrados carpinteiros, alfaiates,
dezenas de casas comerciais e pequenas oficinas exploradas por judeus de
várias procedências da Europa oriental e onde funcionavam a maioria de sapateiros, barbeiros e pintores, que possuíam pequenas lojas e casas
suas instituições filantrópicas, culturais, sociais, recreativas e religiosas. comerciais. Além dessas atividades artesanais de comércio e serviço, havia
Naquele bairro estavam também localizadas as redações e tipografias dos a ocupação de prestamistas, vendedores à prestação, chamados em ídishe
vários órgãos de imprensa que, então, apareciam no Rio em ídishe [...]. de clientéltchiques.
(MALAMUD, p. 17)
A maioria vendia casimiras e aviamentos para alfaiates, mas havia também
No campo profissional, os judeus da Europa oriental tinham um perfil os comerciantes de roupas prontas e de cama e mesa [...]. De terno e gravata
diferenciado em relação aos imigrantes não judeus chegados ao Brasil nas [...] nossos patrícios andavam pelos subúrbios, de casa em casa, oferecendo,
primeiras décadas do século XX. O cenário da economia brasileira aponta
8 Cabe colocar que as experiências históricas do leste europeu acabam por determinar um
6 Páscoa judaica. “comportamento autolimitado”, de isolamento do grupo e uma interdependência de seus
7 SCHNEIDER, Abraham. Ibdem. Op. cit. pares. Ver: GRIN, Monica, 1990. Op. cit., p. 146.

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à prestação, de tudo o que as famílias brasileiras desejassem comprar: ternos, Diferentemente da Argentina e dos EUA, não houve um movimento ope-
sapatos, roupa de cama e mesa e até joias.”9 rário judaico no Brasil. [...] Em assembleia do Centro Operário Morris
Vinchevnky, uma das organizações do campo judaico comunista, um de
seus representantes procurava analisar as dificuldades de se criar um movi-
a esquerda judaica e o progressismo comunitário mento operário judaico no Brasil, afirmando que ‘o problema está [em que]
Enquanto o perfil social e profissional dos judeus do leste europeu podia o operário judeu sonha em transformar-se um vendedor ambulante (clien-
téltchique) [...] Falta neles consciência proletária e devemos levar isso em
ser claramente definido, suas tendências políticas e ideológicas eram conta. (CHOR, 1999: 232).
extremamente matizadas. Estes judeus, que tinham suas atividades profis-
sionais e comerciais durante o dia, exerciam atividades políticas e sociais Além da localização social, a própria formação e desenvolvimento
no interior da comunidade. As entidades comunitárias podiam ser dividi- da militância “progressista” judaica no Brasil guarda suas questões espe-
das, neste momento (estamos falando de meados dos anos 1930), em três cíficas. No final da década de 1920, parte da comunidade judaica já está
tendências políticas distintas: As sionistas, as religiosas e as progressistas. comprometida com campanhas financeiras, de arrecadação de fundos,
O setor “progressista” da comunidade judaica aglutinava, principal- para o Partido Comunista. Neste momento não é difícil notar, inclusive,
mente, judeus provenientes dos países do leste europeu. Já nos anos vinte, a existência de vários nomes tipicamente judaicos entre militantes do
começam os indícios de relação entre judeus e a esquerda. Alguns judeus Partido. Entre os grupos vinculados, de alguma maneira, com propostas
imigrantes já vinham de seus países de origem roiters,10 e se aglutinavam a de esquerda, podemos encontrar, entre os imigrantes judeus, desde comu-
partir da militância no Brasil. nistas até os sionistas de esquerda, passando por organizações socialis-
Aqui, convém observar uma definição sobre as organizações progres- tas (como os militantes ligados ao BUND). Neste artigo, nós nos detemos,
sistas, feita pela própria polícia, na intenção de localizar política e social- porém, no caso dos judeus vinculados, ideologicamente, ao comunismo.
mente estes judeus: Numericamente representativos, no universo da comunidade judaica,
os comunistas não vão militar de forma homogênea em todos ambien-
[...] A outra parte dos judeus mais fiéis às suas opiniões políticas do que suas
tradições religiosas, dividiam-se em duas partes, [uma] de tendência comu- tes sociais. Dessa forma, utilizaremos a definição de Marcos Chor para
nista e outra sionista. A de tendência marxista, ou melhor, comunista, é cons- compreendermos as distinções no interior da militância comunista entre
tituída por um grupo de judeus que na maioria não tiveram o êxito financeiro os judeus. Para Chor, tal militância se divide em duas perspectivas. Uma,
que os outros tiveram no Brasil; ambulantes fracassados, pequenos artesãos, com militantes mais vinculados às estruturas gerais do partido, chamados
empregados que de um modo geral são tidos com pouco apreço pelos demais. por Chor de “comunistas-judeus”. E outra, que tinha militância ligada às
De um modo geral já vinham de seus países de origem com ideias comu-
nistas, embora aqui no Brasil se abstivessem de participar das atividades do organizações no interior da comunidade, os “judeus-comunistas”. A sim-
PCB [...]. Estes elementos são de um modo geral concentrados na Biblioteca ples colocação do termo “comunista”, adjetivando ou sendo adjetivado
Sholem Aleichem, mantendo ainda um Colégio Sholem Aleichem.11 pela palavra “judeu”, nos revela onde está o essencial na militância de cada
um desses dois grupos. Ambos ligados, de alguma maneira, à ideologia
Esta militância tem características específicas. Em primeiro lugar, na
comunista e ao Partido Comunista do Brasil.
condição social e profissional do judeu. Já que, em realidade, não existia
A partir desta definição, Chor tenta colocar uma profunda discussão,
um operariado judaico no Brasil:
presente no marxismo desde sua gênese como instrumento teórico de prá-
tica revolucionária: a discussão sobre papel das identidades particulares na
9 SCHNEIDER, Abraham. Histórias da BIBSA 13. Boletim da ASA. Janeiro/fevereiro, n. 62, p. 8.
construção de uma sociedade socialista. A relação entre identidade judaica
10 Vermelhos, em ídishe, como eram vulgarmente conhecidos os militantes do judaísmo
progressista. e marxismo sempre foi rica em tensões deste tipo. Como podemos obser-
11 Ministério da Justiça e Negócios Interiores Documento do Setor Israelita – Fundo DPS var, elas também ocorrem na realidade brasileira. Ainda segundo Chor:
Boletim Reservado- pasta 39, n. 25.6/2/1953.

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Para os [comunistas-judeus], a opção assimilacionista contida na utopia locais.13 O congresso que deu origem ao I.K.U.F. foi realizado em Paris,
marxista seria a principal possibilidade de ação política. Neste sentido, é no ano de 1937. Este congresso levou o nome de “I Congresso Mundial de
comum observar–se o pleno engajamento de judeus no projeto de revolução
Cultura Israelita.” Em atenção ao aparecimento do perigo nazista, ativis-
socialista, sem que sua identidade étnica fosse realçada. (...). Já os judeus-co-
munistas, apesar de terem importantes afinidades político-ideológicas com tas de todo mundo se reuniram para traçar estratégias de defesa da cul-
os comunistas-judeus (...), sempre viveram a tensa relação entre a singula- tura judaica em cada país onde houvesse entidades progressistas judaicas.
ridade da condição judaica e a proposta universalista do projeto comunista. Antenado com a política soviética das Frentes Populares Anti-Nazistas, o
Neste sentido, os judeus-comunistas seriam uma expressiva parcela do povo I.K.U.F tenta articular o mundo judaico na resistência política e cultural
judeu, que tiveram expressiva participação nas comunidades judaicas de contra o fascismo:
diversos países, inclusive no Brasil, e que consideravam que a possibilidade
de preservação histórica cultural do povo judeu dependeria das transfor- (...) reuniu-se o I Congresso Mundial de Cultura Israelita no qual foi fun-
mações econômicas, sociais e políticas em direção à sociedade socialista. dado o I.C.U.F.. Intelectuais e trabalhadores culturais de 22 países discutiram
Estiveram presentes em diversos partidos [comunistas], criando inclusive meios de defender a cultura popular judia da agressão (...). A fundação do
estruturas próprias [como foi o caso do Brasil] (...) (CHOR, 1999: 240). I.C.U.F. reforçou a frente popular antinazi.14

Assim, os judeus “Roiters” vão se reunir em organizações denomina- A partir do Congresso de Paris, que passa a funcionar como marco
das, como já dissemos, de progressistas. Esta denominação, em primeiro fundador do movimento judaico-progressista em nível internacional, as
lugar, está vinculada às demandas da III internacional Comunista, que “a bases do progressismo estavam estabelecidas em quatro pilares: Defesa dos
partir de uma certa tradição iluminista, em consonância com a Revolução direitos do Homem, coexistência pacífica, justiça social, laicisismo. Nesse
industrial” (CHOR, 1990: 42), propunha a criação de partidos que lutassem contexto, as entidades judaico-progressista brasileiras incorporam as pers-
pelo “progresso e a independência” do proletariado. pectivas internacionais do progressismo judaico e adotam como autodefini-
Além da vinculação ideológica com as perspectivas da III ção o tripé: humanismo, pacifismo e laicisismo (GOLDBERG, 1990: 2).
Internacional, cabe aqui outra perspectiva que justifica a utilização da A Biblioteca Sholem Aleichem pode ser considerada a entidade pio-
denominação “progressista” pelas organizações judaico-comunistas no neira do progressismo judaico no Rio de Janeiro. Em realidade, na época
Brasil. Estrategicamente, era fundamental a utilização de um termo que de sua fundação, a BIBSA não era abertamente progressista. A partir de
possibilitasse a não identificação imediata com propostas comunistas. 1915, a Biblioteca desenvolve atividades socioculturais que congregam
Isto ocorria visando a manutenção das atividades em períodos autoritá- grande parte da comunidade judaica. Em um primeiro momento, como,
rios, afastando, assim, a censura política e a repressão policial. Ao mesmo ela conta com a participação do setor sionista em suas atividades. No
tempo, era interessante não afastar das organizações progressistas, em um interior da Biblioteca começam a surgir desentendimentos e acusações
primeiro momento, possíveis “simpatizantes”, que não estavam estrita- entre o setor sionista15 e os militantes progressistas da entidade. As ques-
mente ligados à ideologia comunista. Neste sentido Jose Schneider lembra tões ideológicas acabam tornando inviável a manutenção de atividades
que: “(...) A massa [dos militantes] era de simpatizantes, progressistas, se em conjunto, até que ao final da década de 1920 ocorre a saída do grupo
escutam [a palavra] comunista vão querer sair”.12
Internacionalmente, as organizações judio-progressistas, brasileiras e 13 A seção nacional do I.C.U.F. (União Cultural Israelita Brasileira) foi fundada em1950, com a
I Convenção Nacional de Cultura Judaica, realizada na Biblioteca Sholem Aleichem, no Rio
de todo mundo, estavam vinculadas, a partir de 1937, com o Iddishe Kultur de Janeiro.
Ferband (I.K.U.F). O I.K.U.F. era uma federação de entidades progressistas 14 Doc.- 28,29,30 /07, Belo Horizonte- I Conferência da Juventude Progressista Judio Brasileira.
de diversos países, que acabou por possuir seções nacionais em muitos (Mimeo) p. 3.
15 Em realidade não se pode compreender o Setor sionista da comunidade judaica como um
bloco homogêneo, havia entre os sionistas perspectivas extremamente matizadas que abar-
12 Depoimento de Abraham Jose Shneider concedido a Michel Gherman, em dezembro de cavam desde propostas vinculadas a posicionamentos de esquerda até posições revisionis-
1999. tas, francamente próximos a posições direitistas

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sionista da Biblioteca, que passava a estar, definitivamente vinculada ao vida associativa e cultural judaica local, combatendo, portanto as tendên-
progressismo.16 Mais do que o papel de pioneira, a BIBSA exerceu o papel cias assimilacionistas locais. (GOLDBERG, 1983: 16)
de aglutinadora e formadora de gerações de militantes progressistas do Na década de 30 os ativistas judeu-progressistas se deparam com uma
Rio de Janeiro: “[...] ela não tinha como objetivo isso, mas indiretamente, conjuntura diferente da dos anos anteriores. As dificuldades econômicas
pelas suas realizações, pelos contatos que ela tinha, ela ajudou a formar ou somadas ao clima de repressão policial e autoritarismo político por pouco
aglutinar, pessoas de esquerda.”17 não inviabilizam as atividades em uma das principais entidades progres-
Além da Biblioteca Sholem Aleichem, havia outras entidades de cará- sistas, a Biblioteca Sholem Aleichem:
ter progressista na cidade do Rio desde a década de 1920. Entre eles, o
A crise geral de 1930 deixou a Biblioteca com sérias dificuldades: com as
Centro Obreiro Brasileiro Morris Wintschevsky foi criado por intelectuais dívidas, muitas publicações não mais chegavam; não mais podíamos pagar
e operários simpatizantes da União Soviética. Outra instituição progres- o aluguel do salão da rua Senador Euzébio, transferiu-se a sede para local
sista atuante durante a década de 1930 foi a União de Judeus Poloneses. inadequado, situado na rua Visconde de Itaúna; vinte sócios presentes na
Fundada em 1928, esta organização, em seu início, não possuía um cará- sede foram detidos pela polícia permanecendo por dois dias na delegacia.19
ter ideologicamente definido, porém com o tempo ela – da mesma forma As novas conjunturas, tanto internacional (com Hitler no poder),
que a BIBSA – foi hegemonizada pelos ativistas progressistas. A União de como nacional (com o governo Getúlio) demandavam das organizações
Judeus Poloneses mantinha ainda uma publicação anual em ídishe, de cir- progressistas judaicas novas formas de militância e estratégias de sobre-
culação nacional, Der Polisher Id (O Judeu Polonês). Nesta publicação eram vivência. A incidência cada vez mais frequente de detenções e o medo da
frequentes a exaltação da situação de comunidades judaicas da República deportação para a Europa, já neste momento sob efetiva ameaça de Hitler,
Popular da Polônia e nas outras “democracias populares” do leste europeu. precipitam estas estratégias:
Também em 1928, o setor progressista da comunidade carioca, prin-
cipalmente os ativistas da BIBSA, fundam o Colégio Israelita Sholem Nós tínhamos a biblioteca na Rua Senador Eusébio I° andar, um andar daqui
até lá [...]. Era a ditadura e havia um turco, assim nós chamávamos filho de
Aleichem, que cultivava a preservação da língua e cultura ídishe, congre-
libaneses, que era detetive, que tomava conta da gente. Nunca fez mal a nin-
gando correntes políticas de esquerda, com tendências laicas e não sio- guém, nunca prendeu ninguém, mas um dia ele chegou e disse assim: ‘Quero
nistas. Em certo sentido, o colégio Sholem Aleichem funcionaria como ter uma reunião com vocês... . Olha eu vou ser afastado, vem outro no meu
elemento formador e reprodutor do progressismo judaico no interior da lugar, que é até segredo. Vem um patrício de vocês, que veio da Romênia,
comunidade, a partir dos filhos de imigrantes já nascidos no Brasil. 18Aqui chama-se Nicolau Fridman, e fora disso é um mau elemento.’
De repente sumiu um some outro, primeiro o canalha chegou como mili-
cabe expor alguns dos princípios e objetivos dos colégios de linha pro-
tante, depois se abriu como policial. Não pode falar ídishe, não pode falar
gressista, definidos no “I Congresso de Professores e Ativistas do Ensino aquilo’, e ele que mandava. Conclusão, quando os primeiros foram presos,
Progressista Judaico”, realizado em 1950: “O ensino tem por objetivo fami- nós não tínhamos dinheiro pra advogado, pra outra coisa qualquer pros
liarizar o aluno com o melhor da cultura judaica brasileira, O ensino do nossos companheiros, então a gente usa o Socorro Vermelho, que pedia
ídishe deve ser reforçado [...]. Considera importante [...] a manutenção da dinheiro pra simpatizantes. [...].20

Desta maneira, as formas de arrecadação financeira passam a se tor-


16 Fato marcante nesta disputa, entre sionistas e progressistas, ocorre quando da visita de nar imprescindíveis para a própria sobrevivência física dos ativistas pro-
Albert Einstein ao Brasil. Os progressistas foram impedidos de integrar o comitê de recep- gressistas, assim surgem estratégias que possibilitam esta arrecadação:
ção a Einstein. Os sionistas que participavam da Biblioteca foram acusados de se omitir em
relação ao apoio aos progressistas, o que acabou precipitando o rompimento.
17 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 5/ 12 /99.
18 A concretização do projeto de criação de um colégio com propostas progressistas ocorre neste 19 ACSELRAD, Carlos. ACSELRAD, Henri. Boletim da ASA. (S.D).
momento como resposta à fundação do colégio Hebreu Brasileiro, por ativistas sionistas. 20 SCHNEIDER, J. Abraham. (Depoimento) Ibidem. Op. cit.

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Na Rua Visconde de Itaúna foi construído um prédio de três andares, e o Neste momento as entidades progressistas, principalmente a BIBSA,
Socorro Vermelho continuava, estava em andamento, então veio uma ideia que era a mais visada, começam a tomar medidas para burlar a repres-
muito fabulosa de um companheiro, que disse: ‘- Vamos alugar aquele pré-
são e evitar novas prisões. Assim se faz necessário encontrar pessoas, que
dio e fazer “an arbeter kherr”, uma cozinha para operários’. Naquela época
a Praça Onze tinha muitos imigrantes e quase todos eram judeus, e cada não estejam sob suspeita, para representar legalmente a Biblioteca. Desta
um tinha seu trabalho, um era sapateiro, alfaiate, carpinteiro, outro vendia forma é escolhido presidente um remanescente dos primeiros tempos da
a prestação, e fazíamos almoço e janta. A cidade toda ia lá almoçar e jantar. BIBSA, Saadio Lozinski. Lozinski era um homem religioso, bastante vin-
Fizemos bons negócios lá, porque nós cobrávamos somente as despesas e culado ao sionismo, que nutria simpatias por um “socialismo idealizado,
alguma coisa pra sobreviver, e entrava dinheiro para o Partido. ”21
extraído dos profetas bíblicos” 23Aqui Schneider explica como se deu a
A “Cozinha Operária” funciona a partir de fins de 1934. Em 1935 ela escolha de um homem aparentemente “não progressista” para a presidên-
movimenta um número grande de fregueses e uma arrecadação razoável cia da BIBSA:
para o Partido. O Partido Comunista do Brasil tinha em andamento, neste (...) a polícia tinha confiança nele [Lozinski], apesar de chateá- lo várias
momento, o movimento de insurreição comunista, conhecido na historio- vezes chamando pra depor. Nós não tínhamos presidente, porque o presi-
grafia oficial como “Intentona Comunista”, ocorrido em novembro de 35. dente tinha que ser legalmente conhecido, podia ele ser da esquerda ou não.
Em realidade, os “judeus-comunistas” não tiveram nenhuma participação A gente não. Eu ou outra pessoa com mais capacidade não podia ser porque
a gente era conhecido como comunista.24
no movimento, porém logo depois de fracassada a insurreição, ocorrem as
prisões e o fechamento da “cozinha operária”: Desta forma a partir da segunda metade da década de 30, quando
(...) quando veio, em 35, o levante da praia vermelha (que nós só viemos eram inclusive proibidos de realizar atividades em ídishe, os sócios da
a tomar conhecimento depois pelos jornais), dois dias depois, cercaram a BIBSA e seus ativistas concentram esforços contra a infiltração policial e
Praça Onze. A cozinha era número 155, eu trabalhava no número151, numa a repressão. Podemos confirmar os sucessos de tais esforços a partir de
alfaiataria, quando eu desci um senhor me perguntou: alguns relatórios policiais, como este:
– ‘Onde você vai?’
A Biblioteca Sholem Aleichem(...) congrega em seu seio todos elementos
– ‘Vou lá pra escutar sobre os negócios’, tinha uma reunião que em sua maio-
simpatizantes do comunismo. Não obstante, suas atividades são de cará-
ria eram lá. Ele disse:
ter puramente cultural por ser tratar [seus sócios] de elementos muito
– ‘Não vai que estão prendendo todo mundo’. prudentes.25
Lá no restaurante acontecia que o Nicolau chegou lá, e começava apontar
qual era e qual não era. Ele sabia quem era e quem não era do partido. Ao Confirmando tal relatório da polícia, Schneider, uma de suas vítimas,
todo foram presos 18 companheiros, 2 morreram logo. No fim só se salvaram afirma que “(...) a BIBSA pra nós era uma coisa sagrada, pra não ser quei-
dois, um morreu na França no ano passado [1998, o Valdemar. Ele ia ser mada. Chegava muitas vezes polícia, detetives, e nós fazíamos o impossí-
deportado, mas foi liberado na França, e outro, Moises Lipes que quis ir à
vel pra ficar tudo limpinho.” 26
Guerra Civil Espanhola, onde foi morto.22

O evento de repressão ocorrido na Cozinha Operária marca uma nova


fase da relação entre os judeus-comunistas e a repressão. Agora o perigo era
real, a polícia já tinha dado mostras suficientes que não teria uma atitude
diferenciada com relação aos comunistas da comunidade judaica. 23 SCALLER, Milton.‘Saádio Lozinski, Meu Avô’. In Boletim da ASA n° 48. Setembro / Outubro
– 1997.
24 Schneider, Abraham. (Depoimento) Ibidem. Op. cit.
21 Schneider, Ibidem. Op. cit. 25 Fundo DPS – Pasta 8 – Agremiações Israelitas do Rio de Janeiro. 8/03/1948.
22 Idem. Ibdem. Op.cit. 26 SCHNEIDER. Abraham. (Depoimento.). Op. cit.

116 117
‘prudentes e ativos’- o setor judeu e o partido comunista Era uma ordem do Partido, que precisava de finanças. Eles não tinham, nós
ajudávamos muito, então eles isolaram a gente pra tratar desse assunto. De
Já tratamos, de maneira resumida, das diferenças ideológicas entre os modo que nós não íamos à fabrica fazer propaganda a favor do comunismo,
judeus-comunistas e os comunistas-judeus que acabaram por se localizar havia alguns que foram e se isolaram, foram assassinados dentro da cadeia,
se negando a delatar.
em locais distintos na dinâmica de militância. Enquanto os comunistas-
-judeus se ligavam diretamente às estruturas gerais do Partido Comunista, A relação dos militantes do “Setor Judeu” com as estruturas delibe-
os judeus-comunistas tinham uma militância vinculada de forma não rativas do Partido não era direta. As decisões eram tomadas no interior
direta ao Partido. Neste sentido, a militância no interior das sociedades do Setor e levadas posteriormente para o Partido. Assim, os militantes da
progressistas intermediava a relação dos ativistas com o próprio Partido comunidade estavam fora das tarefas de agitação e propaganda na socie-
Comunista. Tal forma de militância específica privilegiava certos pontos dade maior. O que não significa que não houvesse militantes comunistas
de atuação em detrimento de outros, neste sentido diz Schneider: de origem judaica neste trabalho:
Nós tínhamos contato com o Comitê Central, tudo era ligado, então se (...) nas fábricas tinham muitos [judeus] comunistas que não eram do Setor
pegassem algum judeu ‘comuna’ e não ele não fosse brasileiro, ele seria Judeu. Aqueles nós não nos misturávamos com eles, por causa do medo e do
expulso, nesta época Hitler já estava no poder (...). Com medo que nos vão cuidado com as famílias. Não íamos às fábricas organizar operários de massa.30
denunciar, saiu uma lei no partido. O núcleo de imigrantes faria uma célula
com seus patrícios, [os] judeus tinham uma separadamente, tudo para evitar A relação do Setor com o Partido tinha como intermediários secretá-
denunciantes. Aí que começa o Setor Judeu, isso mais ou menos em 34, 35.27 rios que eram “responsáveis” pelas atividades do Setor, além de represen-
tantes do Partido que frequentavam regularmente as reuniões:
O “Setor Judeu”28 do Partido Comunista do Brasil nasce sob o signo
da repressão. A preocupação de seus militantes, em sua maioria imigran- As células tinham um secretário que era responsável pelo seu grupo e em
tes de primeira geração, em manter atividades partidárias no interior da cada seis meses um indivíduo era escolhido pra fazer uma espécie de con-
gresso. Vinha um do Comitê Central, vinha Maurício Grabois, Marighela. E
comunidade acompanhava a necessidade de arrecadação de fundos para uma vez por ano tinha assembleia geral, nós alugávamos uma casa, sempre
o Partido. Em realidade, como já pudemos ver, desde meados da década uma casa particular, a BIBSA era lugar sagrado, para não estragar a legalidade.
de 1920 partes da comunidade judaica têm uma relação com o Partido Depois do Nicolau [delator] nós sabíamos que só podíamos ser nós, judeus.
baseada nas campanhas financeiras, para realização de atividades e apoio (...) Nós brigávamos muito, mas mesmo assim trabalhávamos muito e cada
a projetos. A criação do Setor acaba por formar uma estrutura para esta um dava conta do recado, E assim continuou por vários anos (...).”31
ligação financeira, ao mesmo tempo em que cria uma militância judaico-
A década de 1930 marca, neste sentido, o aparecimento do o
-comunista no interior das entidades judio-progressistas.
Setor Judeu como uma estrutura independente no interior do Partido
Neste sentido, o “Setor Judeu” nasce vinculado ao Setor de Finanças.29
Comunista. A consolidação do Setor revela uma política de extremo prag-
Segundo Schneider:
matismo por parte da direção do PCB. Devemos notar, neste sentido, que
o “Setor Judeu” era vinculado ao Setor de Finanças, visando manter a tra-
dicional arrecadação de fundos dos doadores da comunidade judaica, ao
27 SCHNEIDER. Abraham. (Depoimento.). Ibidem. Op.cit.
mesmo tempo em que prestigiava suas entidades.
28 Encontramos em alguns textos e documentos das organizações progressistas a tentativa de
comparar a criação e o funcionamento do setor judeu no Partido Comunista do Brasil com Se a década de 1930 foi, para os judeus progressistas, marcada pelo
a criação e desenvolvimento da Yevesktia, a seção judaica do Partido Comunista Soviético, autoritarismo político e por uma crescente repressão, principalmente após
criada após a instauração do poder bolchevique na Rússia. Acreditamos, porém que esta
comparação serve mais como referência do que como real influência, devido às condições
históricas profundamente distintas dos dois países. 30 SCHNEIDER, J. Abraham. (Depoimento). Op. cit.
29 GOLDBERG, M. Luis. O P.C.B. e a Comunidade Judaica Brasileira (Mimeo). 08/12/90. 31 SCNEIDER, J. Abraham. (Depoimento). Op. cit.

118 119
a tentativa do golpe comunista de 1935, a década seguinte está marcada por estratégias de adaptação. Vindo de uma grande cidade, Goldberg tem em
características distintas. Estas características são produtos de cortes geracio- seu ambiente de origem uma relação com a identidade judaica e socialista
nais (com novas gerações de judeus aparecendo na militância progressista), profundamente diferenciada daquela vista no depoimento anterior. As
de mudanças de conjuntura interna (arrefecimento da ditadura getulista) suas referências ideológicas e “nacionais” eram tênues e individualizadas:
e externa (derrota de Hitler e o conhecimento dos crimes do holocausto).
[...] uma criança de 14 anos não tem ideologia, mas eu gostava muito dos
Para iniciar uma sucinta análise do progressismo judaico carioca na (antes de vir pra cá estava lendo os) escritores soviéticos novos. Por incrí-
década de 1940, lançamos mão das memórias de um importante ativista vel que pareça, chegando aqui, estava lendo [na Polônia] um livro, que na
deste período, Luis Mendel Goldberg. Luis Goldberg pode ser compreen- Biblioteca [Sholem Aleichem] tinha.
dido como um emblema da primeira mudança geracional pela qual passa
Com relação à identidade judaica, Goldberg nota que:
a militância judaico-comunista na cidade. Goldberg nasce em Varsóvia,
capital da Polônia, em 1920. Contrastando com as condições de Abraham [...] A minha [família] não tinha nem ligação com nenhuma sociedade
Jose Scneider, Luis vem de uma família pequeno-burguesa, residente em [judaica], pelo menos eu não percebi, e nem sequer religiosa. Tanto assim que
seja por falta de religiosidade ou por questões financeiras, meus irmãos mais
uma grande cidade e com uma identidade judaica difusa. Assim Goldberg
velhos frequentaram escolas como as nossas escolas judaicas daqui, faziam
resume sua origem: [...] [as matérias] normalmente, mas tinham matérias judaicas. História,
Sou filho de uma família pequeno burguesa, meu pai tinha um pequeno Literatura, Língua etc. Eu, quando eu cresci, meus pais já não tinham capaci-
negócio, uma espécie de chapelaria. De 1929 até 1934, data em que saímos da dade financeira pra me botar em uma escola dessas, eu fui fazer escola pública.
Polônia, ele viu seu futuro como comerciante destruído pelo antissemitismo Então não aprendi o ídishe, nem religião nem nada de cultura, dentro de casa
nascente no país que visava, principalmente, o pequeno comércio nas cida- ou dentro de uma escola desse tipo. [...] Na Polônia dessa época havia escolas
des. Com a situação econômica agravada, não podendo mais sustentar seu públicas judaicas e católicas [...] Como era uma escola pública judaica, era
negócio, ele se viu forçado a emigrar e veio para o Brasil em 1933. O resto da obrigatório o estudo de noções de judaísmo, era dado por um professor de
família veio no ano seguinte.32 História, não por um rabino, então era mais laica do que religiosa.33

Como grande parte dos imigrantes judeus das décadas de 20 e 30, Chegando ao Rio, Luis Goldberg busca complementar os estudos
Luis Mendel Goldberg vai morar na Praça Onze. É na mesma Praça Onze iniciados na Polônia e começa a trabalhar na intenção de “se sustentar”
onde Luis começa a desenvolver sua vida profissional e social: durante esse período. O jovem Luis Goldberg vivia, no Brasil, como ele
já definiu, em um ambiente quase exclusivamente judaico e foi neste
A adaptação não foi tão difícil porque desde o princípio nós moramos na ambiente que tem início sua vida social e comunitária:
Praça Onze, em um meio exclusivamente judeu. Comecei a trabalhar como
artesão em pequenas fábricas e oficinas de artesanato. Logo passei a frequen- Eu era pessoa que adorava livros e quando vim pra cá andei junto com arte-
tar um curso noturno, equivalente ao supletivo, onde após um bom desem- sãos, um que era fabricante de pastas de couro, outro fabricante de guarda-
penho foi-me proposto fazer um concurso para um banco. Assim, com 17 -chuvas, a qualquer hora de lazer tentava continuar lendo, mas não podia
anos de idade comecei a minha vida como bancário, que durou até 1945. comprar livros. Aí soube da existência da Biblioteca Sholem Aleichem, que
Ainda neste período, consegui concluir a minha faculdade de contabilidade era na Senador Eusébio, na Praça Onze, então mais ou menos desde os anos
40 comecei a frequentar a Biblioteca, conheci todo o pessoal de lá, os jovens
É possível perceber, a partir dos trechos acima, algumas característi- que conviviam lá em busca de leitura, de divertimento... Aí em 1942 criamos
cas na adaptação de Luis Goldberg que o diferenciam fundamentalmente o Departamento de Juventude.34
dos primeiro imigrantes judeus do leste europeu de uma geração anterior.
Estas diferenças podem ser observadas já nas condições de chegada e nas
32 Goldberg, M. Luis. Entrevista e Depoimento. De Varsóvia à Praça Onze – Fala de um 33 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 5/12/99.
Pioneiro. 08/89. 34 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg. Op. cit.

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Quando Luis Goldberg começa a participar, como ativista, da preocupação dos antigos ativistas com a formação de novos militantes. É
Biblioteca Sholem Aleichem, as sociedades progressistas ainda estão assim que elementos infiltrados da repressão avaliam o criação do depar-
sofrendo as consequências do governo autoritário de Getúlio. Desta forma, tamento juvenil da BIBSA:“(...) Esta agremiação [a Biblioteca] tem procu-
em lugar de uma expansão das sociedades e entidades, nota-se uma certa rado atrair a juventude para seu meio, havendo, para realizar tal objetivo,
estagnação do setor judaico-progressista deste período. criado uma seção juvenil.”37
Além da própria BIBSA, do Colégio Sholem Aleichem e da União dos Ambos os centros de juventude criados no início da década de 1940
Judeus Poloneses, a única sociedade de caráter progressista que surge na têm como objetivo fomentar o congraçamento e a formação de quadros
primeira metade dos anos 1940 é o Clube de Juventude dos Cabiras. O para a juventude progressista na cidade. Porém o “Cabiras” e a juventude
“Setor judeu”, desta forma, continua vinculado às atividades financeiras da BIBSA têm frequentadores e atuação de perfil diferenciado, o que acaba
e restrito a uma atuação limitada, ocasionada pela existência de poucas justificando o funcionamento em separado dos dois centros.
sociedades progressistas judaicas, seu principal local de atuação. O ano de Os jovens da BIBSA eram fortemente influenciados pelo ambiente que
1942 marca a entrada de Luis Mendel Goldberg na diretoria da Biblioteca os rodeava. Eles eram participantes ativos das atividades promovidas pela
Sholem Aleichem. A entrada do jovem Goldberg na diretoria marca Biblioteca e acabavam se vinculando às propostas esquerdistas circundan-
a criação do Departamento de Juventude na Biblioteca. A eleição desta tes. Esta juventude era formada em parte por jovens brasileiros de pri-
nova diretoria, de 1942, se dá após a demissão da diretoria anterior. Abaixo meira geração (nascidos no Brasil, filhos de imigrantes da Europa oriental,
podemos confirmar tal processo eleitoral a partir de um relatório policial: muitas vezes vindo já militantes progressistas da Europa), em parte for-
mada por jovens imigrantes que saíram de seus países de origem pouco
Para substituir a diretoria que coletivamente solicitou demissão, a BIBSA,
em sessão hoje realizada, sob a presidência de Leão Seimberg e secretariada antes da eclosão da II Guerra Mundial.
(todos os nomes marcados) pelos Leile Zeitel e Schaia Assemberg, elegeu Quanto às diferenças entre o perfil social da juventude do “Cabiras”
os seguintes membros: Salomão Kirscembau (secretário), Rosa Cimermam e da BIBSA, nos adianta Luis Goldberg, diretor do Departamento de
(tesoureira), Sara takair, Jose Lipski, Riva Pscibomag ,Wolf Gilbaum, Mendel Juventude da Biblioteca de então:
Griner, Rubin Oigman, Jose Hermelin, Shaia Aizemberg. Foram criados
também os Departamentos Juvenil, a cargo do Snr. Luis Goldberg, e Ensaios A Biblioteca era a Sociedade que congregava e reunia [...] os jovens mais
Dramáticos, de Luis Lando.35 pobres da comunidade, da Praça Onze e dos subúrbios. Os judeus que enri-
queciam já iam morar na zona sul, seus filhos já tinham curso superior,
O surgimento de um Departamento de Juventude no interior da cujos pais já enriqueceram, viviam na zona sul. [Os jovens do Cabiras] Eram
Biblioteca Sholem Aleichem acontece próximo ao aparecimento do Clube também progressistas, vinculados ao Setor (judeu do Partido Comunista
dos Cabiras,36 que pode ser considerado a primeira sociedade de juven- Brasileiro) e tudo, mas eram outro tipo de juventude de certa maneira.38
tude com vínculos políticos e culturais com o judaísmo progressista no Para um dos jovens que participou do processo de fundação do
Rio de Janeiro. O aparecimento de dois locais que serviriam como refe- Cabiras, David Lerner, estavam claras as distinções de frequência entre o
rência da juventude progressista judaica nos anos de 1941 e 42 indica Cabiras e a juventude da BIBSA; o que não parece claro são suas motiva-
uma tendência de renovação dos quadros de ativistas destas sociedades. ções. Abaixo Lerner começa a tratar do processo de criação do Cabiras:
Neste sentido, os esforços para a criação de um clube de juventude e um
departamento juvenil dentro da Biblioteca pode mostrar também uma [...] A juventude judaica já tinha naquele momento um número de jovens
já nascidos no Brasil. O pessoal que veio da escola [Sholem Aleichem], nós
35 APERJ; Fundo DGIE, Série Diversos; Pasta n° 39; Dossier Biblioteca Sholem Aleichem; p. 2. 37 APERJ; Fundo DGIE; Série Administração; Pasta n°1/H referente a 1942 – Apresentado ao
36 Na tentativa de caracterizar o clube como uma entidade brasileira, visando fugir da repres- major Orlando Dennis – Delegado Especial de Segurança Pública pelo Chefe da Seção de
são do Estado Novo, o Cabiras recebes um nome indígena, apesar de ser uma sociedade Segurança Social Serafim Braga, p. 45.
judaica. (N. A.) 38 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 5/12/99.

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criamos um clube juvenil chamado Cabiras [...], foi um clube que come- Não comparecem às assembleias, onde só comparecem elementos comunis-
çou na escola Sholem Aleichem, na Ribeiro Guimarães, depois nós estive- tas que elegem invariavelmente parte da diretoria. A maioria não se inte-
mos na Conselheiro [...], depois nós tivemos sede na Senador Dantas. O ressa pelas atividades subterrâneas, que chegam a ceder o salão para bai-
Cabiras [...] Tinha um grupo de pessoas, de jovens que tinham sido alunos les cuja verbas vão reverter para o PCB, e conferências revestidas de cunho
do Sholem Aleichem, mas como o Sholem só tinha curso primário [...], veio comunista. [...] Não obstante, apesar do caráter marxista, é curioso notar
um jovem professor do seminário de Vilna, o Tabak. Ele procurou recons- que somente elementos judeus ou filhos de judeus são sócios, isso indica
truir o Sholem [que havia passado por sérias crises na década de 1930], a que apesar de parecer tratar-se de elementos assimilados, não conseguiram
partir de um grupo de alunos que já era adolescente [...]. O Tabak teve a perder o caráter puramente judaico da organização. Consta que de vez em
inteligência de chegar perto deste grupo que havia sido aluno do colégio, quando, para agradar os pais, realizam festas de caráter israelita, isto é, em
eram todos com influência progressista, mas não eram do Partido [...], e ele ídishe, que a maioria embora não fale e compreenda apenas do lar. [...]41
criou o curso noturno, quer dizer, ele procurou agrupar as pessoas que tendo
vindo da Escola Sholem Aleichem estavam todos agora ou no Pedro II, ou no Neste sentido, sobre as atividades do Clube dos Cabiras, David Lerner
Lafayete, pra constituir um grupo de estudos. lembra que:
Nós íamos à tarde, sábado e domingo, para a Rua Ribeiro Gimarães [...],
[...] Nós funcionávamos como uma organização de massas, não como
nós íamos, alguns assistíamos às aulas, mas gostávamos mais era de jogar
um setor partidário. Na origem foi esse grupo que veio da Escola Sholem
futebol. Quando chegou ao final da década de 30, início da década de 40,
Aleichem, depois o Cabiras se ampliou de tal forma que cooptou muitos
resolvemos fundar um clube. O Cabiras veio desse pessoal, éramos todos
outros jovens [...]. O que o Cabiras fez para atrair os jovens foram bailes
brasileiros natos.39
maravilhosos. Ele chegou a atrair dois mil jovens. Quanto às atividades cul-
A respeito das relações com a juventude da BIBSA, David Lerner lem- turais, havia um grupinho mais politizado que chamou o Maurício Grabois
pra fazer uma palestra. Aí já era o grupo comunista dentro do Cabiras [...],
bra que:
tinha realmente uma série de jovens comunistas no Cabiras. Tanto que
O Cabiras alcançou uma dimensão de dois mil sócios, éramos próximos [da depois acabou [o clube], porque eles sectarizaram tanto o Cabiras que os
BIBSA], mas era outro grupo, eles não eram muito expressivos, os jovens da outros jovens caíram fora. Eu vou te dizer uma coisa, os pais ajudavam o
BIBSA [...], não sei te dizer o que era [...]. Vou te explicar: o Luis Goldberg Cabiras porque as moças podiam casar com judeus, era um ambiente judaico
e outros que eram da BIBSA, nós não tínhamos nada contra eles, mas era [...]. A maioria não era de comunistas, tinha sim uma base comunista que
outro compadrismo, nós éramos do Sholem Aleichem, vínhamos da Escola teve a capacidade de fazer coisas de massa [...].42
Sholem Aleichem, éramos amigos desde a infância, e o pessoal da BIBSA era
teoricamente da mesma ideologia, mas tinha outra trajetória.40 David Lerner vai ser um nome importante no interior do progres-
sismo judaico a partir da segunda metade da década de 1940. Em deter-
O Clube dos Cabiras alcançou uma participação incomparável no minado momento ele se afasta das entidades judaico-comunistas e vai se
setor progressista judaico e de difícil comparação no interior da comuni- vincular diretamente ao Partido, sem, no entanto, abandonar definitiva-
dade judaica como um todo. Em um relatório policial, um agente repres- mente as bases judaico-comunistas, como veremos posteriormente. Em
sivo tenta definir o Cabiras: realidade David Lerner, que já nasce no Brasil no ano de 1922, é parte da
Fazem parte do grupo comunista os que estão reunidos no Clube dos segunda geração de militantes progressistas em sua família. Seu pai Tulli
Cabiras. Sociedade de cunho recreativo que há vários anos está na mão do Lerner é um típico exemplo de militância progressista judaica no Rio do
grupo comunista. Os seus elementos são filhos de imigrantes nascidos aqui, início do século. Tulli Lerner é um imigrante da Rússia que chega ao Brasil
cerca de 2.000, sendo que a maioria só se interessa por atividades recreativas. entre os anos de 1908 e 1910. Chegando ao Brasil ele vai se notabilizar

39 Depoimento concedido a Maria Paula Nascimento Araújo e Michel Gherman por David
Lerner em maio de 2000. 41 Ministério da justiça e negócios interiores. Documento do Setor Israelita – Fundo DPS:
40 Depoimento concedido a Maria Paula Nascimento Araújo e Michel Gherman por David Boletim reservado número 25 6/2/1953.
Lerner em maio de 2000. 42 Depoimento concedido a Michel Gherman por David Lerner em maio de 2000.

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como um dos fundadores da Biblioteca Sholem Aleichem e grande con- década traz às sociedades progressistas uma nova conjuntura política,
tribuinte do Partido: produto do processo de democratização do país. Desse modo, a partir de
1945 surgem novas sociedades que vão estar vinculadas com perspectivas
Um exemplo interessante de militância é Tulli Lerner, que nasceu na Besserábia
e chegou ao Brasil no início do século XX. Foi um dos fundadores da BIBSA judaico-progressitas, e percebe-se o efetivo fortalecimento das sociedades
e, nos anos 20, presidente do Brazcor, o socorro vermelho judaico. Era amigo já existentes.
de Astrogildo Pereira, dirigente do P.C.B., e contribuía regularmente para o A Associação Feminina Israelita Brasileira Vita Kemper,44 fundada
Partido. Em 1928, foi um dos fundadores da Escola Sholem Aleichem. Parece em 1947, tinha como objetivo auxiliar as crianças vítimas de guerra que
que Tulli Lerner nunca foi filiado ao P.C.B. (CHOR, 1999: 239-140).
chegavam ao Brasil e adultos que se encontrassem em “campos de des-
O próprio David Lerner lembra que a aproximação de seu pai com as locados” na Europa depois da Guerra. Suas atividades se concentram
perspectivas progressistas do judaísmo e sua consequente ruptura com o em empreendimentos sociais e culturais em “prol das crianças israelitas”
judaísmo tradicional: (GOLDBERG, 1983, p. 16). Esta entidade chega a alcançar grande dimen-
são em nível nacional, criando sedes em vários locais (São Paulo, Belo
Meu pai já era um livre pensador, embora meu avô fosse extremamente
Horizonte, Salvador, Curitiba, Santos, Niterói, Recife e Porto Alegre) e em
ortodoxo [...]. Ele já era dos emancipados, da intelligentsia, que não queria
mais seguir a ortodoxia religiosa, tanto que ele foi pra Odessa estudar e tinha nível municipal possuindo filiais em vários pontos da cidade (Copacabana,
muito orgulho disso. Ele não tinha curso, não tinha título, mas eu diria que Flamengo, Tijuca, Praça Onze, São Cristóvão, Madureira, Leopoldina,
ele já era um intelectual. Ele já falava da Revolução de 1905, mas não era um Méier, Nilópolis).
participante da luta revolucionária, apenas ele tinha um reconhecimento e Surge em 1947 o jornal “Nossa Voz – Unzer Shtime”. Apesar de não ser
um conhecimento dessas coisas. [...] [Chegando ao Brasil] Meu pai foi um
propriamente uma sociedade progressista, o jornal Nossa Voz vai servir
militante comunitário [...] um dos orgulhos do meu pai foi que ele foi contri-
buinte do Partido desde que ele foi fundado, [...] ele dava uma contribuição como referência da imprensa progressista no Brasil. Surgido primeira-
ao Astrogildo Pereira, que vinha pegar a contribuição na loja dele, não eram mente em São Paulo, o jornal contava com redações em várias cidades e
todos que faziam isso, até porque tinham receio. [...] Aliás, um dos episódios tinha circulação nacional. O Unzer Shtime era publicado em ídishe, apesar
da nossa vida é que em 39, tempo da repressão aqui, ele continua dando a de conter uma parte em português, e congregava em seu seio expoentes
contribuição pra um sujeito [...] que foi preso e torturado e denunciou que
da esquerda judaica do país inteiro. Entre seus colaboradores podemos
meu pai dava contribuição. Então meu pai foi preso, só que ele tinha um
cliente [em sua loja de móveis] que era gente importante no DOPS, então ele encontrar importantes nomes do Setor Judeu do Partido Comunista e de
deu um dormitório pro sujeito e foi liberado, mesmo porque ele não era um importantes ativistas do progressismo judaico, tais quais o chefe de reda-
militante, era apenas um simpatizante.43 ção Horácio Scechter, Jose Lipsky, Zelman Meler, Abraham Jose Shneider
e Luis Mendel Goldberg, entre outros.
Assim podemos perceber que a participação de David Lerner no
A importância de um órgão como o Nossa Voz transcendia o fato
Clube dos Cabiras representa a segunda geração familiar de ativistas pro-
de ser a referência da imprensa judaico-progressista no Brasil; ela servia
gressistas vinculados ao Partido Comunista. Cada uma com característi-
como referência política das sociedades progressistas do país: [“A Nossa
cas próprias e especificidades determinadas pelas contingências políticas
Voz” era o] meio de comunicação que trazia à comunidade progressista a
das épocas em que viviam.
palavra de ordem, a interpretação e o noticiário que coordenavam e unifi-
Enquanto na primeira metade da década de 1940 pode-se notar uma
cava o nosso trabalho (GOLDBERG, 1983: 16).
certa estagnação das sociedades progressistas, ainda produto da política
repressiva do primeiro governo Getúlio Vargas, a segunda metade da
44 O nome da Associação posteriormente foi alterado, retirando-se o nome de Vita Kemper,
43 GOLDBERG M. Luis. ‘Fixação dos Judeus no Brasil’. In: Criação e Evolução das sociedades heroína judaica na luta contra o nazismo. Consta que o pedido partiu da família da própria
progressistas no Brasil. (Mimeo). 4/11/1983. homenageada.

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O crescimento das sociedades progressistas faz com que o Partido Eu não fui eleito [...], mas cheguei a ter 3 mil votos da coletividade judaica,
comunista modifique em alguns aspectos sua política com relação às esses 3 mil permitiram eleger os outros, os votos se somavam. Eu não fui
eleito [...] mas os outros foram eleitos.47
sociedades progressistas judaicas. A existência de um clube com grande
frequência de sócios em uma época de abertura política, quando o Partido Outra característica deste período é a mudança de comportamento
vai experimentar uma inédita experiência de legalidade, cria condições do Partido Comunista em relação à política do “Setor Judeu”. Se até então
para que o P.C.B. tente aprofundar sua influência na comunidade judaica. o Setor estava vinculado ao “Setor de finanças”, a partir de então ele passa
Neste momento o Partido lança o nome de um militante comunista-ju- a estar ligado ao Setor de Massas. O Setor Judeu havia se consolidado a
deu do Clube Cabiras para ser o candidato da comunidade nas eleições partir do final da década de 1930 como corpo do Setor de finanças. Neste
de 1947. O jovem David Lerner, como já pudemos notar, tinha profundas sentido, ele possuía secretários e assistentes indicados pelo comitê central.
influências do progressismo judaico. Estas influências familiares e sociais Alguns nomes importantes participaram como assistentes do Setor, como
criavam, de certa maneira, um vínculo entre Lerner e a esquerda judaica. Leôncio Basbaum, Carlos Marighela, Barata Ribeiro.
Foi somente após entrar na faculdade, porém, que ele se vinculou ao Quando em meados da década de 1940 o “Setor Judeu” se vincula ao
Partido Comunista: “Setor de Massas”, as sociedades progressistas passam a funcionar como
Eu era da célula do Partido na Escola de Engenharia, que não era judaica, organizações de massas que têm linha política discutida no interior da
embora tivesse vários judeus, mas não só judeus [...]. A célula de engenharia estrutura partidária. Neste contexto, utilizaremos trechos do depoimento
foi, na reconstituição do Partido, na legalidade foi uma das [...] [primeiras].45 de Luis Godberg, que é convidado a participar do Setor em 1945:
Foi justamente por conta desta dupla participação que o Partido, Existia cada sociedade e ao mesmo [havia] partidários que eram membros
visando aproveitar os votos da comunidade judaica, decidiu lançar seu da diretoria [...]. Os assuntos eram discutidos e havia de uma certa maneira
uma opinião de unidade, que era levada para organizações de massas. Nossas
nome como candidato a vereador:
organizações de massa tiveram o privilégio de crescer através dessa maneira
O Partido queria participar, como participou da eleição para a câmara de de trabalho. Então numa organização de massas havia dez ou vinte pessoas,
vereadores, em que elegeu [...] dezoito vereadores. Então, por alguma razão, podiam haver quinze opiniões diferentes, mas tinham cinco ou seis partidá-
eu acho que foi o [Diógenes] de Arruda [...], então eles decidiram lá entre rios que já tinham discutido o assunto antes.48
eles que havia condições de botar um candidato a vereador deste grupo e
foi uma manobra política inteligente, porque realmente tinha uma votação. Esta política do Setor no interior das organizações de massas deveria
Então um belo dia [...], foi num comício que eles anunciaram, [...] então eles permanecer restrita aos seus integrantes, porém no cotidiano das socie-
– agora já são minhas opiniões – decidiram que deveriam botar um jovem dades os ativistas não partidários tinham conhecimento da política do
judeu pra candidato a vereador. Então eu estou em um comício do Partido e Partido: “[Esta política] era e não era [clandestina], porque havia gente de
o [Diógenes] Arruda, lendo a lista de candidatos, diz: David Lerner. Nem me massa que era muito boa ou simpatizante até, e já sabia quem pertencia [ao
perguntaram. Era aquela coisa da direção autoritária.46
setor] [...], houve até críticas do tipo: ‘Vocês do Partido estão querendo isto
Com esta estratégia o Partido consegue ao mesmo tempo aumentar ou aquilo...’ [...]”.49
seu número de votos e ganhar espaço nas sociedades judaico-progressis- O “Setor Judeu”, a partir de seu funcionamento como setor de mas-
tas. Neste sentido lembra Lerner: sas, tinha uma estrutura de funcionamento própria. Nesta estrutura os

45 Depoimento concedido a Maria Paula Nascimento Araújo e Michel Gherman por David 47 Depoimento concedido a Maria Paula Nascimento Araújo Michel Gherman por David
Lerner em maio de 2000. Lerner em maio de 2000.
46 Depoimento concedido a Maria Paula Nascimento Araújo e Michel Gherman por David 48 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 0 5/ 12 /99.
Lerner em maio de 2000. 49 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 05/12/99.

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militantes do Setor alcançavam uma resolução unitária internamente e ten- Enquanto o vínculo das sociedades progressistas com o setor de mas-
tavam implementar a linha política partidária nas organizações de massa. sas indica o reconhecimento de estruturas e de questões específicas entre a
As organizações de base judaicas, como parte integrante do Partido, tinham
comunidade judaica, ele aponta para uma estratégia partidária que busca
suas tarefas e reuniões partidárias independentes das organizações de massa. o aprofundamento da influência do P.C.B. e um consequente aumento da
Vinham das plenárias com suas influências. arrecadação de fundos para o Partido. Neste sentido, nota Goldberg:
As organizações de massa judaicas constituem, no seu conjunto, o setor
Não existe Setor Português, não existe Setor Italiano, mas nossa situação é
judaico dirigido por um secretariado judeu e assessorado por dirigentes do
peculiar porque nós dirigimos organizações de massa, diferente dos outros
Partido. De seus assessores, recebia o Setor Judeu tarefas partidárias relacio-
[...]. Até isso é diferente, a comunidade judaica sempre teve mais organi-
nadas com a vida política e de finanças, arregimentação de militantes, estudo
do marxismo-leninismo etc. Os partidários trabalhavam nas instituições de zações de massa do que qualquer nacionalidade ou agrupamento nacional
massa, ainda de acordo com o ponto de vista do Setor.50 aqui no Brasil [...].
Se a gente funcionava como setor de finanças, cada um dos membros tinha
A transformação do Setor Judeu em setor de massas aponta para uma sido simpatizante então teoricamente [...] a gente tinha linha uma linha
anomalia estatutária sem precedentes no Partido: política.
[...] E ela ia funcionar nas organizações de massa que, não importa se a massa
Eu sei que houve uma reunião para se discutir este assunto com Luís Carlos era grande ou pequena, havia condições muito maiores se a gente fazer uma
Prestes no qual foi colocado este problema de passar o setor de organizações palavra de ordem, se a gente criar uma ideologia, se a gente defender uma
de finanças para setor de massa. Ele até levantou o problema, que do ponto linha política.
de vista legal e estatutário isto não existe [setor “nacional” vinculado ao setor
de massas], mas ele até concorda que a gente seja organização de massa e que E mais, havia muito mais possibilidades de ter simpatizantes para obter
ele ia [até] mandar outro tipo de assistente.51 finanças [...], chegaram a esta conclusão. Não estou lá para definir, mas estou
lhe mostrando como eram bastante espertos neste sentido.
O perfil social do Setor Judeu não diferia muito das organizações de
massa de primeira geração de imigrantes. Neste sentido lembra David [...] [Eles diziam assim:]
Lerner, que posteriormente vai ser assistente do Setor: “O Setor judeu não ‘Vocês continuam arranjando dinheiro, mas fora disso, logicamente, tentem
divulgar a linha do Partido na medida do possível’ [...].
era de jovens [...]. Ele era de imigrantes, havia jovens que eram imigrantes
[...] A esquerda judaica é diferente de todas as outras por isso, é de organi-
também [...]”52 Do outro lado, Luis Goldberg, que era dirigente de uma
zações de massa, não é proletária [...] e aí todas as sociedades vão precisar
organização de massas, a Biblioteca Sholem Aleichem, concorda que havia alguma vez [...] do apoio, da iniciativa, ou do trabalho intensivo desses parti-
um perfil limitado a imigrantes da primeira geração entre os militantes do dários que vinham escolados preparados quase que unânimes, sem violar as
Setor. Ele, porém, atribui esta limitação a uma política do Partido: organizações de massa, para nos ajudar com sua prática escolada.54

Tínhamos até brigas homéricas, com dirigentes do Partido, reclamando que Para David Lerner, que havia sido candidato bem votado a vereador
a gente não conseguia arrumar o Setor. Porque nós pedíamos para nos man- pelo Partido Comunista e dirigente partidário do Setor Judeu, as realiza-
dar os jovens que militavam no Partido e eles diziam que não, que o trabalho
deles é mais vinculado ao Partido pelo Partido do que ao Setor, então deter-
ções do Setor eram importantes, porém o Partido tinha mais interesse na
minado grupo de jovens continuou pertencendo ao Partido diretamente e tradicional arrecadação de fundos das sociedades progressistas, agora no
não ao Setor.53 setor de massas. Neste contexto, Lerner faz uma avaliação da política do
Partido com relação ao Setor:
50 Op. cit.
51 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 5/12/99. Em 45 me botaram como candidato a vereador e eu não fui eleito. [...] E eu
52 Depoimento concedido a Maria Paula Nascimento Araújo e Michel Gherman por David militei no bairro durante anos, cheguei a ser secretário no distrital centro-sul
Lerner em maio de 2000.
53 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 05/12/99. 54 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 05/12/99.

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[...]. Então a minha militância foi no bairro, por alguns anos [...] O tesoureiro conclusão
do Partido era o Agildo Barata, com quem eu me dava muito, pessoalmente
[...] Eu não sei se foi o Arruda ou o Mauricio Grabois, eles resolveram que o Este artigo trouxe algumas conclusões a respeito do processo de forma-
Setor Judeu tinha que ter um assistente do Partido, porque como eu disse, eu ção de uma militância de esquerda judaica no Rio de Janeiro. Em primeiro
sei das coisas mas eu nunca pertenci ao Setor judeu do Partido [...], claro que
lugar, a imigração de judeus da Europa oriental foi fundamental para a cria-
a gente tinha conhecimento, mas não militância conjunta.
ção de entidades judaico-progressistas. Neste sentido, as referências sociais
Então eu fui designado como assistente do Setor Judeu. Agora vou te dizer, o
tempo passou, a direção, a posição dessa direção do Partido era muito safada. ideológicas e políticas das entidades da esquerda judaica no Rio de Janeiro
Porque eles não estavam interessados nos problemas dos judeus daquele estão vinculadas a referências políticas e ideológicas da Europa do leste, ou
tempo, eles estavam interessados no dinheiro, porque havia muitos judeus seja, com o movimento operário judaico nascente na Europa oriental.
que contribuíam pro Partido. (...) O Setor Judeu não era de brasileiros, era de Assim, podemos dizer que a identidade comunista destes judeus
senhoras, o Abraham Schneider e outros militantes. Então, embora fosse na imigrantes está profundamente relacionada com sua identidade judaica.
legalidade, não brasileiros não podiam ter atividade política, então precisava
de uma pessoa de confiança do Partido e dessas pessoas... Agora, claro que O fortalecimento desta identidade judaica não enfraquece a militância
tinham algumas realizações, mas as coisas importantes eram as contribui- comunista; ao contrário, visto que a origem da primeira está vinculada ao
ções, e ficou-se nisso. desenvolvimento pleno da segunda. Enquanto na Europa oriental os sig-
Olha entre os militantes judeus havia muitas mulheres, eram de uma fideli- nos fundamentais da militância socialista-judaica estão vinculados com a
dade, de uma honestidade, eles tinham trazido isto da Europa.55 posição social ocupada pelas massas judaicas proletarizadas, na realidade
socioeconômica brasileira as relações são de outra ordem. Aqui a quase
Ainda que as atividades de massa do Setor Judeu fossem dirigidas
ausência de um operariado judaico não determina o fim da esquerda
pelo Partido de forma utilitarista, nota-se um desenvolvimento das socie-
judaica. Como pudemos observar, ela existe e mantém importância comu-
dades progressistas impulsionadas pelas atividades do Setor. Neste sen-
nitária durante décadas. Neste sentido, o que vai fundamentar a existência
tido, lembra Luis Goldberg: “Apesar de todas as críticas de estalinismo,
de uma militância judaica-comunista no Brasil são as referências políti-
disso, daquilo, as nossas sociedades que, chegaram à pujança na da década
cas e culturais europeias. O idioma ídishe, a literatura judaica e o teatro
de 50, foram criadas a partir dessa maneira de trabalho.”56
judeu vão servir de elementos aglutinadores de ativistas judeus vinculados
Na década de 1950 as organizações de massa do Rio de Janeiro chegam
à militância comunista.
a um momento de grandes atividades, contando com a participação de
Assim, podemos dizer que a história do judaísmo-progressista no
grande número de militantes e ativistas da comunidade. Neste momento
Brasil se encontra entre duas “ortodoxias”. Por um lado, os comunistas
em que surgem diversos congressos nacionais de entidades progressistas,
observavam os ativistas judeus como resquícios de uma sociedade de
aqui também há o surgimento do I.C.U.F. nacional, congregando todas as
classes e identidades particulares que em breve desapareceriam. De outro
sociedades progressistas do Brasil.
lado estava a comunidade judaica formada por organizações sionistas e
Novas questões são colocadas para as organizações de massa e o Setor
religiosas. Esta comunidade judaica observa o progressismo com receio.
Judeu. As notícias vindas da União Soviética, fazendo conhecer os crimes de
Os judeus progressistas são “os outros”, ligados a uma outra estrutura
Stalin, e o surgimento do Estado de Israel vão polarizar as discussões no inte-
comunitária. Inevitavelmente perdidos para o judaísmo, eles deveriam ser
rior das sociedades e do Setor, que permanecem em grande parte fechados
contidos em sua ânsia proselitista de transformação ideológica e social
com as posições soviéticas, apesar das críticas no interior da comunidade.
da comunidade judaica, comprometendo definitivamente o futuro do
judaísmo na cidade.
55 Depoimento concedido a Maria Paula Nascimento Araújo e Michel Gherman por David No centro desta dupla desconfiança estão os judeus-comunistas.
Lerner em maio de 2000.
Atuando no interior da comunidade judaica, eles tinham uma militância
56 Depoimento concedido a Michel Gherman por Luis Mendel Goldberg em 05/12/99.

132 133
específica dentro do Partido Comunista. Afastados da liderança comuni- ______. “Repensando o Estado Novo”. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas,
tária, os judeus se constituíam como caso único no interior do Partido. 1999.
O Partido aceita a existência do “Setor Judeu” em seu interior, com uma SORJ, Bernardo; GRIN, Monica. (Org.). Judaísmo e modernidade: Metamorfoses
perspectiva pragmática e utilitarista, reforçando a imagem do judeu como da tradição messiânica. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
figura ligada à arrecadação de fundos para o Partido. SORJ, Bila (Org.). Identidades judaicas no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Pode-se dizer que o P.C.B. traduz o judeu, de acordo com o antigo Imago, 1997.
estigma judaico que via no imigrante judeu do leste europeu eficiente VELTMAN, Henrique. História dos judeus no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
arrecadador de finanças e doações para o Partido. Enquanto isso, a estru- Expressão e Cultura, 1998.
tura partidária espera e opera pela “assimilação” dos jovens judeus, (filhos
destes imigrantes judeus, mas já nascidos no Brasil) às estruturas gerais FONTES
partidárias, onde estariam diretamente ligados ao Partido, não mais sendo
Depoimentos e Entrevistas:
intermediados pelo “Setor Judeu”. As atividades de entidades progressistas-
-judaicas acabam por polarizar a vida da comunidade judaica a partir da Depoimento de Abraham Jose Schneider concedido a Michel Gherman em
dezembro de 1999.
década de 1930, mostrando sinais de fortalecimento nas décadas seguintes.
GOLDBERG, M. Luis. Entrevista e Depoimento de Varsóvia à Praça Onze – Fala de
um Pioneiro. Agosto de 1989.
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Jornais e periódicos Monica Grin
Jornal Nossa Voz (abril de 1947 a maio de 1951).
Boletim da A. S. A.

“Se isso é verdade, a história do mundo é a história, não de indivíduos,


mas de grupos, não de nações, mas de raças [...]”.
W.E.B. Du Bois, 1897

“Holocaust survivor Konrad Latte, whose story was told recently in the New York
Times Magazine, shocked Israeli journalists when he told them that he did not consider
himself to be a Jew. His only felt connection to Jewishness was to have been persecuted as
a Jew. He did not want to grant Hitler the authority to determine his identity, to tell him
with whom to associate even in the wake of the Shoah: “I can’t let the Nazis have the last
word. I can’t let them tell me, ‘You are a Jew, you belong in this corner, this drawer’”.
David Hollinger, 1999

O objetivo deste ensaio é sugerir um contraste entre os dilemas de identidade


da modernidade do contexto europeu, cuja premissa classificatória se pauta
pelo mal-estar da “condição ambivalente” frente ao ideário nacionalista2 e
os dilemas de identidade da “modernidade brasileira”, que, contrariamente,
naturalizam a ambivalência em sua expressão étnico-racial, como “marca”
de identidade nacional. Trata-se de uma reflexão sobre os limites da univer-
salidade do projeto moderno de emancipação e assimilação dos judeus nos
séculos XIX e XX, bem como dos negros em sociedades pós-escravistas.3

1 Artigo originalmente publicado na Revista Topoi, n. 5, setembro de 2002. pp 201-220.


2 ZygmuntBauman trata densamente esses dilemas identitários da modernidade europeia. Ver
Bauman, Zygmunt, Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
3 O impacto da modernidade para os judeus europeus e para a chamada diáspora negra não
se constitui ainda em objeto de diálogos sistemáticos entre estudiosos desses dois grupos.
Paul Gilroy tem chamado a atenção para a importância crucial desse diálogo, especialmente
para uma melhor compreensão da dimensão trágica da modernidade, tanto para judeus
quanto para negros. Gilroy, Paul. The black Atlantic: modernity e double consciousness.
Cambridge: Harvard University Press, 1993. p. 47. Esse diálogo nos Estados Unidos parece
mais evidente. Neste caso, ver Lerner, Michael.West, Cornel. Jews and blacks: a dialogue on
race, religion and culture in America.New York: Plume, 1996; Salzman, Jack, West, Cornel

136 137
Sugiro, neste ensaio, que a construção simbólica da ambivalência étnica, de uma perspectiva unilinear, generalizada e ubíqua, para uma pers-
racial presente na modernidade brasileira, sobretudo a partir dos anos pectiva na qual respostas culturais alternativas são construídas socialmente
1930,4 não apenas promove um contradiscurso alternativo ao purismo sob o impacto de uma agenda comum de questões. Não se trata da velha
racialista presente nos contextos europeu e norte-americano, mas abriga oposição entre tradição e modernidade, entre atraso e modernização, ou
também uma dimensão sociológica perversa. entre hierarquia e igualdade. Trata-se de entender os arranjos simbólicos,
Dois personagens suicidas, o escritor “judeu” Stefan Zweig e o soció- as acomodações imaginativas e as mesclas de diferentes valores e projetos
logo “mulato” Eduardo de Oliveira e Oliveira, trágicos por razões opos- individuais e sociais que a modernidade em suas versões locais incita.
tas, serão aqui considerados como exemplos de deslocamentos identi-
tários produzidos quer pelo imperativo moderno da não ambivalência, a tragédia de stefan zweig
quer pela reificação da ambivalência ou, se preferirmos, da mistura racial.
Pretende-se propor que os dois casos representam, in extremis, expres- Fevereiro de 1942. O famoso escritor Stefan Zweig, “europeu-austríaco-ju-
sões de libertação aos desafios impostos por diferentes imperativos iden- deu”, suicida-se com sua mulher Charlotte6 em Petrópolis. Curiosamente
titários, e que o entendimento da dinâmica racial no contexto brasileiro o faz em país por ele considerado o último refúgio para os perseguidos
impõe-se, comparativamente, como importante chave para uma melhor do racialismo ariano, paraíso da ambivalência, ou país dos contrastes em
compreensão das antinomias da modernidade. precioso equilíbrio, como ele definia o Brasil em seu polêmico Brasil, País
Os diálogos comparativos entre processos de emancipação e assimila- do Futuro,7 de 1941.
ção em diferentes contextos vêm mobilizando recentemente maiores esfor- O que separa com hostilidade e desconfiança nos outros países, aqui se com-
ços analíticos5 — especialmente por deslocarem o foco de entendimento bina livremente. Quantas raças encontramos nas ruas: o preto de casaco roto,
da modernidade em suas construções de raça, nacionalidade e identidade o europeu com terno bem talhado, o caboclo de olhar grave e cabelos pretos
e lisos; em centenas e milhares de matizes, as mesclas de todos os povos
(Ed.). Struggles in the promised land: toward a history of black-jewish relations in the United e de todas as nacionalidades: mas todos não como em Nova York ou em
States. Oxford: Oxford University Press, 1997. outras cidades, separados em bairros, aqui negro, ali brancos, acolá mesti-
4 Os anos 1930 são considerados, sobretudo a partir da obra de Gilberto Freyre, um divisor de ços, mais adiante italianos, irlandeses ou japoneses. Todos aqui se misturam,
águas entre uma versão pessimista sobre as possibilidades civilizatórias da nação brasileira, e a rua, pela grande variedade das fisionomias, se torna um quadro constan-
cujo estoque racial, ademais miscigenado, a tornava inviável e estéril, e uma outra, que, par- temente cambiante. Que habilidade se torna necessária aqui para atenuar os
tindo justamente da constatação da miscigenação racial, vislumbraria de modo otimista um
processo civilizatório autêntico e alternativo para a nação brasileira. Ver Skidmore, Thomas.
Black into white: race and nationality in Brazilian thought. London: Duke University Press, 1993; 6 Embora o suicídio de Stefan Zweig e de sua mulher, Elisabeth Charlotte Altmann Zweig,
Araújo, Ricardo Benzaquen. Guerra e paz, Casa grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre sugira uma espécie de pacto de morte do casal, nenhuma linha ou carta foi deixada por ela.
nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994; Schwartz, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, Na declaração deixada por Zweig, nenhuma referência ao suicídio da mulher. Como chama
instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. a atenção Spitzer em seu Lives in between, ela permaneceu até na morte uma “mulher silen-
5 Cf. Gilroy, Paul. Op. cit. Gilroy, Paul. Race ends here. Ethnicand Racial Studies, Special ciosa”. Cf. Spitzer, Leo. Lives in between: assimilation and marginality in Austria, Brazil, West
Issue, v. 21, n.1: 838-847, 1998; Appiah, Kwane A. Na casa de meu pai: a África na Filosofia da Africa 1780-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 1989 e Dines, Alberto. Morte no
Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997; West, Cornell. Race matters. New York: Vintage paraíso: a tragédia de Stefan Zweig. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. Há um mal-estar rela-
Books, 1993; Birnbaum, Pierre and Katznelson, Ira (Eds.). Paths of emancipation: Jews, states, tivo ao significado moral do suicídio de judeus, vítimas do nazismo. Thomas Mann teria dito
and citizenship. Princeton: Princeton University Press, 1995; Anderson, Benedict. Imagined sobre o suicídio de Stefan Zweig: “Could he concede the archenemy such a triumph?” Hannah
communities: reflections on the origin and spread of nationalism. Revised edition. London: Arendt considerava o suicídio dos refugiados do nazismo como “abnormally a social and
Verso, [1983], 1994. Galchinsky, M. e Heschel, S. Insider/outsider: American Jews and multicul- unconcerned about general events”, exemplos de insensível “kind of selfishness”. Considerando
turalism. Berkeley: University of California Press, 1998. As contribuições das Ciências Sociais esse tipo de suicídio imoral, ela escreve em “We refugee”: “We are the first non-religious Jews
para o tratamento do fenômeno racial como constitutivo da modernidade têm sido mais fre- persecuted and we are the first one who, not only in extremis, answer with suicide”. Hannah
quentes. A pesquisa histórica, de modo geral, não tem promovido debates desvinculados do Arendt. We Refugees. In: The Jew as pariah. New York: Grove Press, 1944: 58-60
mainstream dos estudos sobre escravidão. Quanto aos estudos históricos sobre racismo nos 7 Conta-se que esse livro teria sido sugerido por Getúlio Vargas, numa espécie de troca pela
EUA, ver Holt, Thomas. Explaining racism in American History. InMolho, Anthony, Wood, permanência do escritor no Brasil. Seus biógrafos, contudo, negam essa versão. Ver Dines,
Gordon (Eds.). Imagined histories. Princeton: Princeton University Press, 1998: 107-119. Alberto, op. cit.

138 139
contrastes, sem destruí-los, para conservar a variedade sem a preocupação No quarto em que ele se suicidou com sua mulher Charlotte, foi encon-
de ordená-la e organizá-la à força! Que essa cidade conserve tal habilidade! trada uma carta, escrita em alemão, intitulada, em português, “Declaração”,
Que não seja acometida do delírio geométrico das avenidas retas, dos níti-
na qual ele se justificava para os amigos e se despedia do Brasil:
dos cruzamentos, da horrenda ideia da excessiva regularidade das moder-
nas cidades grandes, que sacrificam à simetria da linha e à monotonia das Antes de deixar a vida por minha livre e espontânea vontade e em pleno
formas, precisamente o que é sempre o incomparável de toda cidade: suas domínio de minhas faculdades, sinto-me impelido a cumprir uma última
surpresas, seus caprichos e suas angulosidades e sobretudo seus contrastes obrigação: fazer um sincero agradecimento a esta esplêndida terra do Brasil,
entre o velho e o novo, entre a cidade e a natureza, entre rico e pobre, entre que proporcionou a mim e ao meu trabalho um repouso tão generoso e
trabalhar e flanar, contrastes que aqui se gozam em sua harmonia.8 hospitaleiro. Meu amor por este país aumentou dia após dia, e em nenhum
outro lugar eu teria preferido reconstruir uma vida nova, hoje que o mundo
As ambições totalizadoras do projeto moderno que assolaram a da minha língua desapareceu para mim e que meu lar espiritual, a Europa,
Europa, sobretudo sob os fascismos, com seus princípios de ordem, de destruiu a si mesmo. Mas, depois de sessenta anos, é preciso ter uma força
classificação, de taxonomia e de identificação de grupos e indivíduos, tive- incomum para fazer um começo inteiramente novo. A que possuo esgotou-
-se nos longo anos de perambulação sem teto. Assim, julgo melhor concluir,
ram para Stefan Zweig sabor amargo e trágico.9 Classificado como “judeu”,
em tempo hábil e de cabeça erguida, uma vida na qual o trabalho intelectual
nos modos da obsessão racialista, quando não necessariamente pautava representou a mais pura alegria, e a liberdade pessoal, o bem mais precioso
seus interesses, valores, cultura, língua, crença e identidade segundo ape- da Terra. Saúdo todos os meus amigos! Possam eles ter a graça de ainda ver
nas esse marcador identitário, Zweig viu-se excluído do ambiente euro- a alvorada depois da longa noite! Eu, impaciente demais, sigo na frente.10
peu, particularmente o de língua alemã, que ele, como muitos outros
“judeus” de sua geração, acreditava se tratar de civilização vocacionada a tragédia de eduardo de oliveira e oliveira
para o cosmopolitismo, expressão de culturas sem fronteiras rígidas, lugar SãoPaulo, 1980. O sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira,11 “mulato e
de acolhimento e de universalismo. brasileiro”, é encontrado morto em seu apartamento em completo estado
Diante do obstáculo racista europeu, sobretudo sob o nazismo, de inanição autoinfligida.12 Reconhecido pelos seus colegas como talentoso
o Brasil funcionaria para Stefan Zweig como uma espécie de utopia de e polêmico, Eduardo de Oliveira e Oliveira deixou parco material escrito,
mundo “desracializado”, “paraíso” dos que se querem sem lugar racial fixo. uma peça de teatro encenada, e morreu praticamente desconhecido.13
A plasticidade e a estética do “povo” brasileiro, capturadas pela sensibili- No país da “mestiçagem”, da “ambivalência” racial, da “mulatice”,
dade do “refugiado”, produziriam neste autor acalento simbólico mais do não haveria lugar para os que desejam a solidez de uma identidade pura,
que propriamente sociológico, e um vislumbre de que a “civilização” no
Brasil exercitaria, ao contrário da europeia, a arte dos contrastes, da mis- 10 Apud Spitzer, Leo. Vidas de entremeio. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, 2001:195.
tura e da tolerância. Todavia, ele se mata no Brasil.
11 Peter Fry relatou-me a história trágica desse professor de sociologia da Universidade de São
Carlos e estudante de Otávio Ianni na USP, a quem ele havia conhecido na década de 1970.
8 Zweig, Stefan. Brasil: país do futuro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1941: 231-232. Em nossas conversas, Peter Fry lembraria o crescente afastamento dos amigos de Eduardo
de Oliveira (seu verdadeiro nome) diante de sua obsessão pela má consciência dos que não
9 Do círculo de amigos de Stefan Zweig que viviam na Europa central e escolheram o sui-
assumiam a “raça” como identidade.
cídio como “solução final” para a perseguição nazista da qual eram vítimas preferenciais,
temos: Egon Friedell, Otto Pick, Ernst Weiss entre outros. Os números relativos a suicídios 12 Baseio-me em depoimentos de Peter Fry e José de Souza Martins, que conheceram mais
de judeus na Europa antes e durante a Grande Guerra são bastante reveladores. Segundo diretamente Eduardo de Oliveira e Oliveira. Saliento, todavia, que a referência a Eduardo de
Lucy Dawidowicz, “Among some Jews who had stacked their whole existence on identity with Oliveira e Oliveira não tem pretensões de resgate biográfico. A referência a seu suicídio é de
Germany, despair led to suicide. Between 1932 and 1934, nearly 350 Jews commited suicide, a ordem simbólica. Interpreto-o, livremente, como exemplo trágico em mundo de obsessão
rate 50 percent higher than in the rest of the population.” Depois da famosa Kristallnacht em racial. Não me ocupo em desvendar as “reais” razões de seu suicídio. O desconforto com
1938, conta-nos Hannah Arendt, “suicides accounted for more than half the Jewish burials”, a mulatice que busco explorar aqui em dimensão subjetiva me é sugerido por seu texto “O
cf. Dawidowicz, Lucy. The war against the Jews, 1933-1945. New York: Holt, Rinehart and mulato: um obstáculo epistemológico”. Argumento, jan. 1974.
Winston, 1975, pp. 232, 264 e 292, e Arendt, Hannah. The Jew as pariah. New York: Grove 13 Um modesto acervo que reúne cartas, alguns escritos acadêmicos, peças de teatro e objetos
Press, 1978. pp. 58-59 apud Spitzer, Leo. Lives in between. Op. cit., p. 236. está na Universidade Federal de São Carlos.

140 141
definida e diferenciada. No país das mesclas, não convém ser só “negro”, inexprimível relação com o mundo branco. Fanon acrescenta: “sentimento
ou só “branco”. O mulato, que é regra, que é normalidade no Brasil mis- de inferioridade? Não. Sentimento de inexistência”.18
cigenado, representa para Eduardo de Oliveira e Oliveira o trânsfuga –
metáfora de indeterminação, de indefinição em mundo para ele mais do ambivalência e racialização
que racialmente diferenciado, racialmente desigual. Para este sociólogo,
As razões que tornam insuportável ao “mulato” Eduardo de Oliveira e
o mulato é o “obstáculo epistemológico”, a barreira simbólica que impede
Oliveira viver em um mundo que o queria racialmente ambivalente são
a clareza de um mundo social cuja história de escravidão e opressão dos
as mesmas que garantiriam existência confortável ao “judeu” Zweig, caso
não brancos deveria revelar-se determinada por critérios de pertenci-
elas existissem na modernidade europeia, ambiente do qual ele nunca
mento “racial”. Em chave política, para este sociólogo, o mulato é o trai-
desejou se retirar.
dor dos polos “branco” e “negro”; é quem ameniza, desqualifica e dilui a
A lição histórica desses desencontros “civilizatórios” é que, em ambos
consciência e o conflito raciais.
os casos, a obsessão racial, quer para afirmar a existência de “raças” em sua
Conta-se que Eduardo de Oliveira e Oliveira repetia frequentemente
pureza, taxonomia e rigidez, quer para afirmar a sua não existência, anar-
uma frase que seu pai, um dirigente sindical, sussurrava ao seu ouvido
quizando a exatidão das categorias binárias raciais que separam indiví-
quando passeavam de carro pelo cais do porto do Rio de Janeiro: “Não
duos ou grupos, encontra-se enraizada na mesma modernidade. Pode-se
se esqueça nunca, meu filho: tudo que você é, ou poderá ser, deve a essa
dizer, nessa perspectiva, que a modernidade inventa a taxonomia racial,
negrada”, referindo-se aos estivadores do cais do porto, em sua maior
tal como inventa o sujeito de sua perversão: o miscigenado, o ambivalente,
parte negros.14
o híbrido. Um não existe sem o outro. A obsessão racial, entretanto, é o
Em seu mais conhecido trabalho, “O mulato, um obstáculo epis-
que alimenta recorrentemente esse jogo.19
temológico”,15 na verdade uma resenha crítica ao livro de Carl Degler,
Os projetos modernos de engenharia social mobilizaram, ainda que
NeitherBlack, NorWhite,16 de 1971, Eduardo de Oliveira e Oliveira expressa
em modos diferenciados, versões de sociedades futuras cujas utopias
toda sua discordância e mal-estar em relação à proeminência com que o
“raciais” dariam o tom de suas respectivas técnicas e planejamentos em
mulato, “válvula de escape”, aparece na argumentação de Degler a propó-
direção à “boa sociedade” ou até mesmo à “boa civilização”. Stefan Zweig
sito das relações raciais no Brasil comparadas aos Estados Unidos. Ao final
pertencia, à sua revelia, a uma “raça” que fora sentenciada pelos nazistas
de sua crítica a Degler, referindo-se a Franz Fanon,17 assim ele conclui:
ao isolamento e à morte sem que lhe fosse dada a alternativa de conversão
Mas, afinal, o que todos os homens negros, além do fato de terem dei-
à nacionalidade alemã, ao Geist do volk alemão.20 A recusa de pertencer a
xado a África (ou terem ficado lá), têm realmente em comum? Perguntava-se
uma “raça” a ele destinada, ou seja, ser exclusivamente “judeu”, colocava
Fanon em 1956 no Congresso de Pensadores e Artistas Negros em Paris. E
Zweig, da perspectiva da “pureza” ariana, em um não lugar “racial”, vale
a resposta: ‘todo homem negro (e aqui pensamos no amplo spectrum em
dizer, lugar dos indefinidos, dos ambivalentes, dos híbridos, em contraste
que ele pode colocar-se ou ser colocado) tem em comum sua precária, sua
com as “raças legítimas”, “apolíneas”, cujo “valor” fundamental repousava
na sentença da superioridade racial.
14 Depoimento de José de Souza Martins, amigo e contemporâneo na USP de Eduardo de
Oliveira e Oliveira. Se na Europa o ambivalente fica relegado ao limbo, no Brasil ocupava
15 Eduardo de Oliveira e Oliveira. O mulato: um obstáculo epistemológico. Argumento, jan. 1974. lugar legítimo. Entretanto, Eduardo de Oliveira e Oliveira se recusou a
16 Degler, Carl. Neither black, nor white: slave and race relations in Brazil and the United State.
Madison: The University of Wisconsin Press, 1971. 18 Oliveira, Eduardo de Oliveira e. O mulato: um obstáculo epistemológico. Argumento, jan.
de 1974: 73.
17 Franz Fanon (1925-1961), psicanalista e filósofo social, nasceu na Martinica, estudou na França
e trabalhou em vários países na África. Fortemente influenciado por J. P. Sartre e Aimé Césaire, 19 Bauman, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
Fanon é mais conhecido por seus escritos sobre racismo e colonialismo. Seus trabalhos mais 20 Bauman, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
conhecidos são Peau noire, masques blancs, de 1952, e Les damnés de la terre, de 1961. 1998: 88.

142 143
ocupar o lugar normalizado do miscigenado na “civilização mestiça”. Nem “metafísica racial”, a modernidade ocidental tem capitulado de forma
sequer extraiu conforto dessa situação. Uma espécie de sensação de emba- inescapável em mundo cuja ordem social pretende estar pautada por
raço ético revela-se em seu trabalho quando reconhece ser o mulato um essencialismos, racialismos e pelos lugares fixos das identidades.
“constructo social”, um híbrido, que reforça a reprodução da hierarquia A pergunta que se segue a esse diagnóstico de obsessão racial que
social e das desigualdades raciais no Brasil. Ademais, o “mulato” desmo- nasce com a modernidade ocidental é: em que medida os dilemas identi-
biliza o conflito ao “borrar” as “fronteiras” raciais e sociais entre os polos tários da modernidade, em sua versão brasileira, expressariam uma dinâ-
“negro” e “branco”, estes sim sociologicamente factíveis para Eduardo de mica simbólica e social alternativas àqueles da modernidade dos contex-
Oliveira e Oliveira.21 tos centrais?
O impacto muitas vezes trágico que a racialização e as raciologias
tiveram para o destino de coletividades e de indivíduos cujas identida- nação, miscigenação e o conforto da ambivalência
des expressariam em seus países de “origem” algum tipo de “ambivalên- A década de 1930, sobretudo a partir do governo Vargas, promoveu um
cia” (inadequação a lugares raciais definidos ou classificáveis conforme acerto de contas com diagnósticos contundentes, baseados em princípio
o padrão da cultura ou nação) parece ser uma das marcas perversas da racista, segundo os quais o estoque racial miscigenado do povo brasileiro
modernidade ao longo de dois séculos: escravidão, Jim Crow, holocausto, tornava essa nação dos trópicos inviável devido à ausência de uma inte-
Armênios, Tutsis, apartheid. Eis algumas das tragédias dos racialismos. gridade genética, vale dizer, racialmente ariana, que pudesse garantir o
O suicídio, nesse contexto, transmuta-se em alegoria da expressão sub- progresso intelectual e social do país.
jetiva de autonomia da vontade, de fuga e de libertação perversa da “norma- Um contradiscurso que operaria em chave antirracialista desloca da
lização racial” que assolou o Ocidente nos últimos dois séculos. O revival da identidade racial para a identidade nacional as bases de refundação da
“raça”, não obstante, vem se revelando pressuposto eficaz e legítimo de sujei- nova nacionalidade brasileira. Nessa perspectiva, o passado deixaria de
tos de direitos em sociedades multirraciais. A luta pelo reconhecimento da determinar a origem étnica ou racial dos que devem se integrar a essa
“raça” como recurso de resgate de memória histórica e cultural de comuni- nova nacionalidade e o futuro torna-se, com efeito, o lugar de uma brasi-
dades que se querem diferenciadas, mas também como categoria analítica, lidade mestiça imune às ameaças de diferenciação, de segregação e, vale
política e ética, impõe-se crescentemente no imaginário “pós-moderno”.22 dizer, obsessivamente heterofóbica.24 O mito da democracia racial, a bra-
Trata-se, nesses novos tempos, de fértil emergência de comunidades silidade como congraçamento, como acolhimento e assimilação dos que
de pertencimento que podem se autodefinir racialmente em modos essen- desejam a ela se integrar e, ademais, o ideal universal de unidade do que
cialistas ou contingentes, transformando, com efeito, o espaço público originalmente é diverso, de inspiração iluminista, revelariam enorme efi-
– espaço de visibilidade, de afirmação – em arena de “acerto de contas” cácia simbólica no Brasil.25
com injustiças, exclusões e opressões do passado que se fundamentavam Ainda que os ideólogos dessa nova nacionalidade utilizassem um
igualmente na “raça”. É como se pudéssemos já traçar, particularmente léxico “racial” tão comum àquela conjuntura intelectual, o fundamento
em relação às identidades “raciais”, uma história da “metafísica racial”, de suas teses é, em certo sentido, antirracialista. Entretanto, a esse ideal
como sugere Paul Gilroy, que vai do racismo biológico ao nacional, depois de homogeneidade identitária não se seguiria necessariamente uma
o cultural e mais recentemente o racialismo genótipo.23 Em nome dessa aposta na igualdade social, tampouco na quebra das hierarquias sociais.
24 Costa, Sérgio. A construção sociológica da raça no Brasil. 2001 (mimeo).
21 Oliveira, Eduardo de Oliveira e. Op. cit.
25 Sérgio Costa resume apropriadamente esse ponto: “Parece evidente que o desejo de sobre-
22 Taylor, Charles. Multiculturalism: examining the politics of recognition. New Jersey: Princeton por a força do progresso sobre o passado opressivo e a construção de uma identidade vol-
University Press, 1994; Gilroy, Paul. The black Atlantic: modernity and double consciousness. tada para o futuro próprios ao iluminismo francês e não a ênfase na ancestralidade comum
Cambridge: MA, Harvard University Press, 1993. dos românticos alemães que marcam a reconfiguração da nação brasileira a partir dos anos
23 Gilroy, Paul Race ends here. Ethnic and Racial Studies, Special Issue, v. 21, n.1: 838- 847, 1998. 30”. Idem, p. 7.

144 145
A indiferença moral e sociológica com os sujeitos da desigualdade social, termos, seriam “‘confissões’ [...], na verdade bisbilhotices disfarçadas em
muitos dos quais negros, não se traduziria necessariamente em mácula investigação sociológica”,30 de indivíduos nascidos entre as últimas déca-
aos ideais dos que acreditavam ser o Brasil o país do futuro, vocacionado das do século XIX e os nascidos no início do século XX, no sentido de
para uma verdadeira democracia racial. 26
… surpreender nos brasileiros da época sob análise, as relações da comuni-
É neste cenário brasileiro de congraçamento identitário e de forte dade, urbana ou rural, em que nasceu ou cresceu o indivíduo, com o passado
contraste social que o refugiado Zweig ingressa. E é este cenário que o sur- brasileiro, com o nacional, com a América, com a Europa, com o mundo
preende. Como ele se considerava um estranho, um hóspede, um deslocado contemporâneo; as relações entre o mundo pessoal e o impessoal dentro do
sem lugar no mundo, o Brasil era apenas um lugar de repouso, um vislumbre qual se formou o mesmo indivíduo; sua simbiose com os espaços pelos quais
se estendeu sua vida de brasileiro ou sua atividade ou sua imaginação, numa
de civilização futura, que ele julgava estaria livre das obsessões da moderni-
época de transição como foi em nosso País, o fim do século XIX alongado no
dade europeia, entre elas a obsessão racial. Para ele, o Brasil era “uma dádiva princípio do XX.31
nesta nossa terra [...] único lugar onde não existe questão racial”.27
A condição ambivalente da qual Zweig não podia escapar em seu Nessa pesquisa, Freyre elabora um capítulo particular dedicado a sur-
contexto de origem perderia no Brasil sua carga negativa a ponto de se preender as atitudes dos brasileiros de então com as “raças” diferentes da
recompor harmonicamente em uma nação dos trópicos pronta a anar- sua, pedindo a cada “autobiografado”, como ele chama os entrevistados,
quizar os imperativos das classificações raciais rígidas e impenetráveis. que fixasse essa atitude. Eles em geral respondiam não “alimentar precon-
Contudo, esse “paraíso” terrestre, essa plasticidade “dionisíaca” não che- ceito algum nem de raça, nem de cor”. Uma outra pergunta lhes era, então,
gou a espantar seus demônios íntimos. Ele se mata no Brasil. dirigida: “como receberia o casamento de filho ou filha, de irmão ou de
O conforto da ambivalência identitária como importante substrato irmã, com pessoas de cor mais escura?” As repostas a essa segunda questão
de uma identidade nacional simbolicamente acolhedora, para alguns um expressavam, ao contrário da primeira, sentimentos, segundo Freyre, forte-
exemplo de tolerância e harmonia raciais, não seria objeto de interven- mente “etnocêntricos” em face de uniões conjugais de filhos ou netos com
ção sociológica até os anos 50.28Entre as décadas de 40 e 50 do século XX, pessoas de cor, por condição étnica mais do que cultural ou econômica.32
os aspectos ambivalentes do imaginário racial não significavam ainda um A ambivalência de atitudes e percepções relativas ao cenário racial
campo de disputas no cenário intelectual brasileiro. Nessas décadas afir- presente na pesquisa realizada por Gilberto Freyre em Ordem e progresso,
mava-se ainda os aspectos singulares, por vezes ambíguos, das percepções aliás de outro modo presente, sob a forma de etnografia histórica, em Casa
raciais no Brasil, motivados, não raro, pela comparação com o dramático grande & senzala e em Sobrados e mucambos, não é, todavia, considerada
cenário das relações raciais nos EUA. por ele expressão de patologia, de incômodo ou mesmo de atraso. Ele vai
Gilberto Freyre, em seu ainda pouco explorado Ordem e progresso,29 ainda mais longe. A base de seu interesse para o entendimento da socie-
realiza uma pesquisa na qual aplica um questionário aberto que, em seus dade patriarcal e da transição desta para a sociedade “moderna” parece
repousar exatamente nesse aspecto — a “ambivalência” — a tal ponto que
26 Idem.
a sua metodologia de pesquisa em Ordem e progresso longe de desafiar a
27 Carta a Friderike Zweig de 26 de agosto de 1936. In: Zweig, Stefan and Friderik. Their corres- ambivalência, ajusta-se conscientemente a ela.
pondence, 1912-1942. Nova York, 1954, p. 290. apud Spitzer, Leo. Op. cit., p. 194.
28 O programa de pesquisas sobre relações raciais no Brasil, patrocinado pela Unesco nos anos
em Sobrados & mocambos (1936). O trabalho que ele não pôde completar, e que seria tam-
1950, pode ser considerado um marco de desconstrução de um Brasil ainda autoindulgente
bém incluído, é Covas rasas & jazigos.
com sua dinâmica de relações raciais. Sobre esse tema, ver Maio, Marcos Chor. O Projeto
Unesco e a Agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de 30 Freyre, Gilberto. Ordem e progresso. Rio de Janeiro: José Olympio. 1959, p. xxi.
Ciências Sociais, v..14, n. 41, out. 1999. 31 Idem, pp. xxx-xxxi..
29 A obra de Gilberto Freyre, Ordem e progresso (1959), escrita no final da década de 1950, é, 32 O capítulo “A República de 89 e o progresso da miscigenação no Brasil”, de Ordem e pro-
segundo o autor, parte da trilogia que começa com Casa grande & senzala (1933) e continua gresso, é o que trata mais diretamente essa questão.

146 147
Daí, também, a quase nenhuma rigidez de fronteiras entre os próprios capí- manifestações são tais que se impõe o reconhecimento de uma diversidade
tulos do ensaio quando se propõem, uns a surpreender do quase meio século quanto à natureza [e não quanto à intensidade].37
de passado social do Brasil considerado nas suas páginas, as expressões de
constância nesse passado, devorador de um futuro messiânico; outros os Oracy Nogueira define o preconceito racial no Brasil como de marca, ou
seus aspectos dinâmicos ou, no sentido apenas sociológico da palavra, pro- seja, “quando se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pre-
gressivos. Relativamente progressivos. Sem que se atribua a tais aspectos a texto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia,
realização ou sequer a manifestação de um processo verdadeiramente mes-
siânico de desenvolvimento nacional; ou exemplo do que um darwinista, os gestos, o sotaque”.38 Já o preconceito racial nos EUA, Nogueira define como
aplicando marxistamente sua biologia à sociologia, chamaria “evolução”.33 de origem, ou seja, “quando basta a suposição de que o indivíduo descende de
certo grupo étnico, para que sofra as consequências do preconceito”.39
A ambiguidade das atitudes e percepções dos brasileiros em face da Com efeito, o seu tratamento do preconceito de marca, quando con-
questão racial revela-se em Freyre um habitus de nossa “civilização”, que, trastado ao preconceito de origem, acaba por ressaltar a natureza subjetiva,
longe de produzir soluções, sínteses ou superações temporais em registro mediada, intermitente, miscigenada, estética, individual, circunstancial e
teleológico, “esmera-se” em superpor diferentes temporalidades, diferentes
de preterição social do negro, para o caso brasileiro, em contraposição à
tradições, diferentes atitudes e diferentes culturas em “equilibrada” articula-
natureza rígida, racializada, de classificação racial implacável, de exclusão
ção. Desde Casa grande & senzala (1933), Gilberto Freyre já revelava a sin-
do negro, segregada, grupal, obsedante e emocional, para o caso norte-
gularidade de sua abordagem acerca da formação social brasileira e das con-
-americano. Ao final, Oracy Nogueira conclui que o preconceito racial
tribuições do português, do negro e do índio, abordagem na qual a obsessão
deve ser visto como “elemento cultural intimamente relacionado com o
com um futuro messiânico, com o progresso e com a civilização ocidental
‘ethos’ social, isto é, com o modo de ser culturalmente condicionado”.40 O
seria “substituída por uma interpretação que desse alguma atenção à híbrida
acento na cultura, pode-se dizer, permite alguma relativização quanto à
e singular articulação de tradições”.34 Pode-se dizer que, em sua abordagem,
percepção do preconceito em perspectiva comparada. Neste caso, o des-
a afirmação de um Brasil e de uma identidade nacional, cujas características
conforto com a ausência de um ponto de fuga “universal” não se manifesta
se mostram originais, ambivalentes e específicas, nutre-se de uma subenten-
em Oracy Nogueira.
dida, quando não direta, comparação com os Estados Unidos.
A manifestação de desconforto sociológico com dualismos e ambi-
Em Oracy Nogueira,35 a comparação com os Estados Unidos tor-
na-se explícita conforme “Relações raciais entre negros e brancos em valências, quer do “sistema” de relações raciais, quer das atitudes “raciais”,
São Paulo”,36 trabalho apresentado no XXXI Congresso Internacional de aparece de forma inaugural e, ademais, contundente, na sociologia de
Americanistas, realizado em São Paulo, em 1954. Nesse trabalho, Oracy Florestan Fernandes. Para ele, “a confusão não procede do ‘negro’, mas das
Nogueira cria uma tipologia pela qual é capaz de identificar os modos ambiguidades de nosso sistema de relações raciais e do próprio padrão
através dos quais brasileiros e americanos exercitam diferentemente atitu- assistemático, dissimulado e confluente, assumido pelo preconceito e
des preconceituosas. Ele defende a tese de que pela discriminação raciais na sociedade brasileira”.41 Florestan Fernandes
inauguraria, por assim dizer, uma tradição de estudos raciais, segundo a
(...) embora, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, não se possa negar a
qual a resolução dos dilemas sociais devido (a) às barreiras à incorpora-
existência de preconceito racial, as diferenças que ocorrem nas respectivas
ção da população de cor na ordem social competitiva e (b) às resistências
33 Freyre, Gilberto. Op. cit., p. xxiv.
37 Idem, p. 284.
34 Araújo, Ricardo Benzaquen. Op. cit., p. 30.
38 Idem, p. 285.
35 Oracy Nogueira (1917-1996), antropólogo, aluno de Donald Pierson na Escola Livre de
Sociologia e Política de São Paulo e doutor pela Universidade de Chicago. Participou da 39 Idem, p. 285.
pesquisa da Unesco no início dos anos 1950. Seu acervo encontra-se hoje no IFCS/UFRJ. 40 Idem, p. 298.
36 Nogueira, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Anhembi, 1955, 41 Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática,
p. 195. 1978, p. 408.

148 149
em admitir-se o negro ou mulato em pé de igualdade com os brancos na obstáculo epistemológico que impede que se veja o mundo tal como ele
sociedade brasileira” passariam a ser vigorosamente enfatizados,42 reve- realmente deveria ser: preto e branco. O mulato é aquele que impede o
lando seu incômodo com as ambiguidades das interações e representações acerto de contas com uma história de escravidão e opressão. O mulato
raciais. Conforme Florestan Fernandes, desmobiliza e impede a consciência racial e desqualifica a necessária
indignação moral contra o persistente racismo à brasileira.
Enquanto tal dilema subsistisse, mesmo o padrão de democracia inerente à
sociedade de classe numa economia capitalista seria impraticável. Ocorria uma Contudo, muito provavelmente, Eduardo de Oliveira e Oliveira, um
perversão insidiosa do regime, que trazia consigo riscos potenciais para a dife- de nossos personagens, encontraria hoje um Brasil mais próximo de suas
renciação e o equilíbrio da ordem social competitiva. Enfrentar os dois dilemas pretensões. O Brasil de hoje vem alterando suas formas de perceber e tra-
era algo historicamente crucial, pois nenhuma sociedade pode ficar imune, inde- tar a dinâmica das relações raciais. Hoje, as pesquisas de opinião revelam
finidamente, às consequências perturbadoras de inconsistências tão graves.43
que os brasileiros (90% da população) reconhecem haver discriminação
racial no Brasil;45 a denúncia pública do racismo não é apenas exceção;
o desconforto subjetivo da ambivalência
hoje, o governo assume haver discriminação racial no Brasil;46 o Programa
Algumas décadas depois, esse Brasil é outro. De paraíso desracializado para Nacional de Direitos Humanos reserva boa parte de suas cláusulas à dis-
alguns, transforma-se em inferno para outros. O Brasil da década de 1970 criminação racial e à promoção da população negra na sociedade; a lin-
se encontrava sociologicamente desvendado. País do futuro era somente guagem da mídia, dos meios intelectuais, acadêmicos e culturais expres-
um label da ditadura militar. A modernização já havia deixado suas per- sa-se sob o imperativo moral do “politicamente correto”. Hoje, num certo
versas pegadas. A desigualdade social agravada, transfigure-se também em sentido, o Brasil estranha a ambivalência identitária da sua modernidade
desigualdade racial, evidência dos diagnósticos estatísticos que associavam e caminha em direção aos imperativos das rígidas classificações raciais. O
os não brancos aos mais pobres na pirâmide social brasileira.44 desconforto com as ambiguidades do mundo social e mesmo com fenô-
Da democracia racial desmistificada emergiriam novos atores menos que desafiam tanto o cartesianismo sociológico quanto as estatís-
“raciais”, cuja maior reinvindicação era a afirmação e valorização da negri- ticas ordenadoras de subjetividades, impõe-se efetivamente às agendas
tude como fundamento na luta contra o racismo e contra a desigualdade normativas da intelligentsia e dos movimentos sociais.
racial. Renasce o Movimento Negro, cuja ênfase na diferenciação, na As trajetórias trágicas de nossos dois personagens no Brasil eviden-
racialização, representaria uma ameaça real ao congraçamento da mis- ciam diferentes sentimentos sobre a condição da ambivalência. Contudo,
tura. Nesse novo contexto de afirmação racial, o mulato, de ícone da bra- ela permanece sendo uma chave das mais sugestivas para se compreen-
silidade, de evidência a um só tempo real e simbólica da mistura, transfor- der o impacto que as cosmologias raciais modernas ainda hoje pro-
ma-se no elemento desagregador que impede a luta dos negros em direção duzem nas formas como indivíduos e grupos desejam construir suas
a uma visibilidade que estaria além dos tons cromáticos da pele. autorrepresentações.
A condição ambivalente do mulato Eduardo de Oliveira e Oliveira
é tudo o que ele quer negar. Em sua “reflexividade” racial, o mulato é o conclusão

42 Embora Discriminação e desigualdades raciais, de Carlos Hasenbalg, represente um Este pequeno ensaio é apenas uma tentativa de trazer ao debate historio-
momento de inflexão na historiografia dos estudos raciais por sua discordância de Florestan gráfico o desafio de se enfrentar o fenômeno do racismo e dos racialismos
Fernandes quanto ao preconceito racial como resquício da escravidão, em outra perspec-
tiva eles partilham a mesma aversão ao que consideram o culturalismo freyreano. Ver
Hasenbalg, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 45 Turra, Cleusa, Venturi, Gustavo. Racismo cordial. Folha de S. Paulo/Datafolha. São Paulo:
43 Fernandes, Florestan. Op. cit., p. 7. Ática, 1995.
44 Ver Hasenbalg, Carlos, Silva, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo: 46 Cardoso, Fernando Henrique. Construindo a democracia racial. Brasília: Presidência da
Vértice/Iuperj, 1988. República, 1998.

150 151
constitutivos da modernidade através do imaginário racial brasileiro Racismo e Etnicidade: encontros e desencontros
desde os anos 1930. Para este fim, sugeri que a apreensão da ambivalên-
cia identitária no Brasil vem se constituindo em importante alternativa
entre negros e judeus no Brasil1
para se compreender as especificidade da modernidade brasileira em face
dos imperativos identitários da modernidade europeia e norte-americana.
Monica Grin
Tentou-se mostrar que o conforto comparativo da condição ambivalente
frente ao arianismo racial esgota-se quando ela é defrontada com os dile-
mas de integração dos negros na sociedade brasileira pós-emancipação.
De modo geral, pode-se dizer que o campo dos estudos históricos
sobre racismo e relações raciais no Brasil pós-emancipação permanece
ainda hoje aprisionado pela “herança da escravidão.” As ciências sociais,
A homenagem ao Dia Internacional em Memória das Vítimas do
sobretudo através dos trabalhos pioneiros de Carlos Hasenbalg e Nelson do
Holocausto realizada no ano de 2012 em Salvador,2 na Bahia, trouxe uma
Valle e Silva (1979, 1988 e 1992), vêm propondo uma dissociação estrutural
nova atmosfera para um dos eventos mais representativos da comunidade
entre escravidão e modernidade com implicações bastante sugestivas para
judaica mundial e brasileira. Salvador é a cidade brasileira reconhecida
o entendimento do fenômeno do racismo no Brasil. Já nas pesquisas histó-
como a que possui a maior população negra do Brasil. Esta gira em torno
ricas, as análises sobre as origens “escravistas” do racismo parecem abun-
de 745.000 pessoas. Já a população de judeus em Salvador, grupo que pro-
dantes se contrastadas com os estudos de como esse fenômeno se reprodu-
moveu essa homenagem na cidade, gira em torno de no máximo duas
ziu historicamente na sociedade brasileira no pós-abolição, ou seja, com
mil pessoas. Um evento em homenagem ao Holocausto realizado em uma
que novas representações, com que novas dinâmicas de interação.
cidade cuja população majoritária é descendente de escravos, justifica-se
Talvez o maior desafio que estudiosos da história social contemporâ-
por um argumento que os organizadores da homenagem – a Confederação
nea enfrentem para a apreensão histórica do fenômeno do racismo seja o
Israelita do Brasil e o Governo do Estado da Bahia – consideraram imba-
da própria naturalização social e cultural desse fenômeno. Sua expressão
tível: tanto negros como judeus foram e são vítimas emblemáticas do pre-
está de tal forma imbricada no processo mesmo de construção da identi-
conceito racial. O evento em Salvador contou com uma mesa composta
dade nacional, nos hábitos cotidianos e nas percepções ordinárias que o
pela presidente da república, Dilma Rousseff, pelo governador da Bahia,
seu tratamento exigiria, não raro, um redobrado esforço de deslocamento
Jacques Wagner, por representantes da CONIB e por um historiador, Luis
epistemológico, de diálogos interdisciplinares e de criatividade metodo-
lógica. No Brasil o desafio é imenso. Tratar um fenômeno cuja expres-
são ambivalente muitas vezes convida o analista a sobrepor abordagens
1 Este texto é uma adaptação de uma comunicação realizada no Encontro Internacional
materialista e simbólica, objetiva e subjetiva, individual e social, histórica, “Comunidades Judaicas na América Latina”, USP-Dahan Center da Bar Ilan University, rea-
sociológica e antropológica reveste-se muitas vezes em um obstáculo a lizado em São Paulo, de 3 a 6 de setembro de 2012.
mais para o seu enfrentamento. 2 O evento em Salvador foi matéria em vários jornais da grande imprensa e de jornais da
comunidade judaica. O mais curioso nesse evento é que a mesa que se formou para a home-
Por fim, o recurso à história comparada do fenômeno racista e racia- nagem ao Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, na cidade majorita-
lista em diferentes contextos históricos da modernidade ocidental pode riamente negra de Salvador, foi composta apenas por brancos. Em seu discurso, a presidenta
Dilma destacou a escolha de Salvador para a realização do evento, por esta possuir a maior
ser, com efeito, uma boa estratégia para desnaturalizar a própria reflexivi- população de afrodescedentes fora da África, além, de ter sido palco de lutas históricas que
dade racial da historiografia brasileira. levaram à própria abolição da escravidão. Dilma reafirmou o compromisso de jamais nos
omitirmos ou silenciarmos diante de genocídios como o Holocausto. A presidenta lembrou
que o Brasil é signatário de todos os tratados internacionais de combate à discriminação. Cf.
<http://www.youtube.com/watch?v=NkZoOsqV0UY>.

152 153
Edmundo Mendes.3 Para os mais atentos, contudo, parecia estranho não À primeira vista, o paradigma multiculturalista parece muito sedutor,
haver negros na mesa em se tratado de um evento que buscava articular especialmente para as lideranças judaicas, por sugerir que a afirmação da
dois grupos, negros e judeus, associados em tese por serem vítimas histó- diferença e o seu reconhecimento político pelo Estado, 1) colabora para a
ricas de preconceito racial. manutenção da identidade judaica na diáspora; e 2) viabiliza um cenário
A narrativa da vitimização transformou-se no Brasil em um capital político cuja crença é: todos são iguais, porém diferentes.
simbólico dos mais eficientes para sensibilizar o governo brasileiro, desde Entretanto, o multiculturalismo em um país altamente miscigenado,
a presidência de Fernando Henrique Cardoso. Tanto é assim que a pre- como é o caso do Brasil, leva à introdução de uma norma de diferenciação
sidente Dilma, dando continuidade a tradição de governos sensíveis a racial, não necessariamente reconhecida por largos segmentos da popula-
causas étnicas e raciais, esteve presente nesse evento e, em seu discurso, ção brasileira. A divisão “racial” na sociedade brasileira, entre brancos e
enfatizou a vitimização racial como chave de aproximação entre negros não brancos, ou entre eurodescendentes e afrodescendentes pode se tor-
e judeus. A vitimização histórica tem sido argumento predominante no nar, no cenário multiculturalista, uma forma de congelamento de identi-
governo, na militância negra e entre algumas lideranças judaicas, como dades, a despeito do pluralismo cultural e identitário presente na socie-
é o caso da Conib (Confederação Israelita Brasileira). Todos buscando se dade brasileira e no interior desses grupos. Se a tendência parece ser essa,
ajustar a um cenário de valorização, reconhecimento e afirmação da “raça” o caso dos judeus torna-se especialmente interessante. Nesse novo cenário
como novo sujeito de direitos, ou seja, se adequando aos princípios do de divisão racial, eles em tese se transformariam em brancos ou em euro-
paradigma multiculturalista cada vez mais influente na maneira pela qual descendentes, em oposição aos negros ou afrodescendentes.
os grupos étnicos ou “raciais” se autorrepresentam no Brasil.4 As lideranças das comunidades judaicas no Brasil, através da CONIB
O objetivo do presente ensaio é trazer à nossa reflexão a trajetória e das federações israelitas nos estados, vêm adotando uma estratégia de
pouco comum de aproximação e de buscas de afinidades entre negros e busca de afinidades com os negros a fim de transpor os limites da dife-
judeus no Brasil. renciação racial que o multiculturalismo promove. A aliança desses dois
O tema da etnicidade judaica no contexto contemporâneo brasileiro grupos tem sido construída com ênfase na luta comum contra o racismo
desafia os analistas não pelos dilemas de sobrevivência da identidade e o antissemitismo, garantindo aos judeus no Brasil um lugar diferenciado
judaica, mas sim pelos desafios mais recentes que o paradigma multicul- frente aos brancos em geral: neste caso, os judeus seriam brancos, todavia
turalista impõe às formas de representação identitárias no Brasil. Diante vítimas de discriminação. O preconceito transforma-se, então, em forte
de recentes e relevantes fatos, como a aprovação pelo Congresso Nacional denominador comum a reunir negros e judeus em uma sociedade que,
do Estatuto da Igualdade Racial e da aprovação pelo Supremo Tribunal pela lógica atual da diferenciação racial, os manteriam separados.
Federal das cotas raciais nas universidades públicas, consolida-se no Brasil Cabe, entretanto, a questão: como tem sido a história de interação
uma clara mudança de paradigma identitário. Hoje o cenário das repre- desses dois grupos no Brasil?
sentações étnico-raciais pauta-se normativamente pelos princípios do A história da interação entre negros e judeus no Brasil desde a che-
multiculturalismo, ou seja, pela afirmação das diferenças e pelo reconhe- gada de levas de imigrantes nas primeiras décadas do século XX não tem
cimento da “raça” como sujeito de direitos. Tal mudança de paradigma mobilizado nenhum grande diálogo político ou cultural, mas também
coloca um desafio interessante que se reflete na representação dos judeus nenhum grande conflito.5
como ator politicamente atuante em suas estratégias de aliança com outros O contexto de aproximação política entre judeus e negros, pode-se
atores que se autorrepresentam como atores étnicos ou raciais. dizer, é um fenômeno bastante recente. Coincide com o processo de rede-
mocratização do país, que se consolida com a elaboração de uma nova
3 Nesta ocasião, o historiador Luis Edmundo Mendes fez uma comunicação sobre as vítimas
negras da violência nazista durante o Terceiro Reich.
4 Cf. GRIN, Monica. Raça: Debate Público no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2010. 5 LESSER, Jeffrey. Welcoming the Undesirables. Berkeley: University of California Press, 1995.

154 155
Constituição em 1988, após mais de duas décadas de governo militar. A nos centros urbanos. Apesar das restrições à entrada de judeus refugiados
nova Constituição promove a expansão dos direitos civis, políticos, sociais, de guerra, especialmente nos anos 1930 e 1940, esse grupo de modo geral
inaugurando um vigoroso cenário de mobilização por direitos coletivos pôde experimentar uma expressiva mobilidade social que o coloca hoje
(particularmente de indígenas e de negros). Nesse cenário de redemocra- como grupo de origem imigrante de padrão socioeconômico dos mais
tização, o racismo, nos termos da Constituição de1988, transforma-se em bem-sucedidos no Brasil. Neste cenário de relativo impacto do antissemi-
“crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos tismo, as primeiras gerações de grupos imigrantes puderam se beneficiar
da lei”. Essa nova linguagem constitucional reforçaria a visibilidade polí- do processo de modernização que marcaria a emergência de uma classe
tica de grupos cuja memória coletiva fundamenta-se na perseguição e no média, especialmente a partir dos anos de 1950.7
racismo (incluindo aí o antissemitismo). Nos anos de 1990, os judeus encontram-se plenamente integrados.
Talvez por esta razão, nas últimas décadas o Brasil tem observado uma Na Pesquisa Mensal de Emprego realizada em 1998, por exemplo, a renda
significativa transformação nas expressões políticas de grupos étnicos e média mensal dos judeus é a mais alta quando comparada com outros
raciais prontos a denunciar manifestações de preconceito e a demandar ao grupos de origem imigrante. Do ponto de vista político, a atuação das ins-
estado políticas públicas particularistas e de reparação. A agenda do movi- tituições de representação da comunidade judaica junto à sociedade bra-
mento negro vem orientando a adoção pelos últimos governos de políticas sileira vem, desde final dos anos 1940, pautando a sua agenda basicamente
públicas dirigidas especialmente aos negros, tidos como vítimas preferen- por dois objetivos: 1) combater qualquer manifestação de antissemitismo;
ciais a serem reparadas por séculos de escravidão e preconceito racial. e 2) defender a imagem do Estado de Israel e do sionismo. Nesses termos,
A hipótese que gostaria de explorar aqui é a de que no presente con- o princípio da pouca visibilidade pública demarcava, até recentemente, a
texto de promoção da “raça” negra, os judeus experimentam um curioso trajetória dos judeus no Brasil.
paradoxo: quanto mais eles lutam pela consolidação de uma sociedade Já na trajetória histórica dos negros no Brasil não se observa percurso
etnicamente plural e tolerante, cujo fundamento é, não raro, a memória semelhante. Saídos da condição de escravos no final do século XIX, pas-
coletiva da perseguição e do racismo, tanto mais eles podem ser identifica- sam a integrar o já significativo contingente de homens pobres em uma
dos pelos negros brasileiros como pertencentes à “raça” branca, no limite sociedade culturalmente patriarcal, racista e politicamente omissa à cres-
como pertencentes à “elite branca”. Em que condições, portanto, negros cente desigualdade social.
e judeus poderiam definir suas bases de afinidade? Trata-se aqui de um Tornava-se quase impossível para os segmentos mais pobres da
equilíbrio altamente precário. Vejamos por quê. população, entre os quais pretos e mestiços, experimentarem algum tipo
Historicamente as circunstâncias de aproximação política entre de mobilidade social, sobretudo na ausência de políticas públicas dirigidas
negros e judeus foram bastante raras. Em um país marcado por enormes às populações pobres.
desigualdades sociais, esses dois grupos experimentaram trajetórias bas- Isso explica em parte que as chances de que negros e judeus pudessem
tante diferenciadas. Enquanto os negros, ex-escravos, foram vítimas dire- ter alguma forma de contato mais igualitário, quer competindo no mer-
tas de preconceito na sociedade, encontrando enormes obstáculos para se cado de trabalho, quer partilhando as mesmas redes de sociabilidade, fos-
integrar ao mercado de trabalho logo após a emancipação da escravidão, sem praticamente mínimas. Até os anos 1950, a atuação política do movi-
muitos dos quais permanecendo nas áreas rurais,6 os judeus imigrantes mento negro orientava-se fundamentalmente para a busca de integração
que chegavam ao Brasil, especialmente a partir dos anos 20 do século pas- à sociedade brasileira. A persistência da luta dos negros pela integração à
sado, abraçavam atividades comerciais, concentrando-se majoritariamente nação sofreria visível transformação com o fortalecimento do movimento

6 RIO, Ana Lugão e MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro.Rio de Janeiro: Civilização 7 CYTRYNOWICZ, Roney. “Cotidiano, imigração e preconceito: a comunidade judaica nos
Brasileira, 2005; GOMES, Flavio e DOMINGUES, Petrônio (Org.). Políticas da Raça. São Paulo: anos 1930 e 1940.” In: GRINBERG, Keyla (Org.). Os Judeus no Brasil: inquisição, imigração e
Selo Negro Edições, 2014. identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

156 157
negro após a Segunda Guerra Mundial, sob influência das lutas de liber- A grande novidade deste processo deveu-se, em parte, ao surgimento
tação do domínio colonial na África. Nessa conjuntura, a denuncia do de uma aliança política inédita entre negros e judeus. Os esforços para
racismo ao final da Segunda Guerra, ganha uma visibilidade nunca antes se pensar em uma democracia da diversidade étnico-cultural no Brasil,
vista no Brasil, pela qual promulga-se a primeira lei contra a discrimina- transforma-se na bandeira dos judeus a partir desse episódio. Pela pri-
ção racial, a chamada Lei Afonso Arinos.8 meira vez os judeus se pronunciavam politicamente sobre questões nacio-
A partir dos anos de 1990, todavia, a agenda do movimento negro se nais, aliando-se a outros grupos e propondo uma sociedade mais plural
torna mais diversificada. Trata-se de dar ênfase à luta por reparação, por e tolerante. Alguns líderes comunitários buscariam os caminhos da polí-
justiça distributiva, por maiores oportunidades no mercado de trabalho e tica formal, elegendo-se deputados em pleitos democráticos. As entida-
na educação. Pode-se concluir então que, consideradas as trajetórias his- des representativas da comunidade judaica, nessa conjuntura, trocaram o
tóricas desses dois grupos no Brasil, nada sugeria maiores afinidades entre lugar submisso e marginal das negociações silenciosas, tornando-as visí-
negros e judeus na sociedade brasileira. veis e propositivas no espaço público democrático.
O início da década de 1990, entretanto, pode ser considerado como O que de mais importante ficou dessa experiência é que as alianças
um ponto de inflexão nas relações entre negros e judeus no Brasil. O políticas entre negros e judeus realçavam o que eles possuíam em comum,
contexto no qual essa aproximação mostrou-se visível seria marcado por ou seja, uma história de perseguições, preconceitos raciais e a necessidade
denúncias de ondas de antissemitismo e racismos explícitos, cujo impacto de luta permanente contra o racismo. Se para os judeus, essa aliança garan-
foi igualmente sentido por negros e judeus. Essa onda de racismo não tia uma proximidade com um grupo numericamente significativo no Brasil,
seria retórica. Protagonizada por neonazistas, os skinheads, suas ações para os negros significava a aproximação com um grupo cujo capital social
resultaram em formas de violência racial raras no Brasil.9 garantiria a possibilidade de apoio às suas bandeiras por oportunidades.
Manifestações de antissemitismo como a profanação de cemitérios Contudo, e essa é a minha hipótese, essa página de uma aliança his-
judaicos, pichações de sinagogas e escolas, e leituras revisionistas da his- tórica entre negros e judeus contra o preconceito racial, que nasce nos
tória do holocausto, são alguns exemplos do preconceito exibido por esses anos 1990, tem sido mais ou menos desafiada pela crescente sedução que
grupos contra os judeus. Seus principais alvos foram negros, judeus, nor- o multiculturalismo vem impondo a relevantes segmentos do movimento
destinos e homossexuais, alguns dos quais atacados fisicamente. Tais even- negro. Senão, vejamos:
tos produziram uma inédita mobilização antirracista da sociedade civil e, A III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao
pela primeira vez observa-se uma visível aliança política entre negros e Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata ocor-
judeus no Rio de Janeiro e em São Paulo. rida em Durban, África do Sul, em 2001, dá início a um novo momento
As respostas dos governos locais a esses eventos racistas resultaram de luta do movimento negro no Brasil. Mais organizado, esse movimento
na criação da Delegacia Especializada de Crimes Raciais, em São Paulo, passa a pressionar o governo democrático a assumir posições nítidas e
em 1993, e do Centro de Referência Nazareth Cerqueira contra o Racismo eficazes em relação às demandas por reparação.
e o Antissemitismo (CERENA) no Rio de Janeiro, em 2000. Esses tornaram Uma das iniciativas mais expressivas do governo, além dos tratados e
exemplos emblemáticos de que o diálogo político entre negros e judeus acordos internacionais para a diminuição das desigualdades raciais, foi a
poderia produzir antídotos institucionais na luta contra o racismo. criação de uma Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial, cujas estratégias de ação estariam basicamente focadas nas deman-
8 GRIN, Monica e MAIO, Marcos Chor. “O antirracismo da ordem e do bom senso no pensa- das por promoção da raça negra, através de ações afirmativas e cotas
mento de Afonso Arinos de Melo Franco”. Topoi, Revista de História, v. 14, n. 26, jan./jul. raciais.10
2013, pp. 33-45.
9 MAIO, Marcos Chor (1993). “Negros e Judeus no Rio de Janeiro: um ensaio de movimento
pelos direitos civis”. Revista Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 25, pp. 161-188. 10 GRIN, Monica. “Raça”: debate público no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2010.

158 159
Nesse sentido, adota-se, por exemplo, cotas raciais em algumas uni- que cientistas dessa comunidade venham ao Instituto Científico Weizman
versidades públicas. Exige-se, ademais, a inclusão da categoria “raça” nos para investigar uma enfermidade particular da raça negra e para a qual ainda
não existe cura. E que venham outros profissionais para conhecer a absorção
censos escolares de ensino fundamental, médio e superior. No Legislativo
dos imigrantes etíopes em Israel. Estamos programando a viagem de 20 líde-
observa-se a aprovação de leis favoráveis às cotas raciais e de um “Estatuto res comunitários negros para que possam conhecer o país.12
da Igualdade Racial” cujo objetivo é constituir uma sociedade que se per-
ceba de maneira birracializada, ou seja, uma sociedade dividida entre Nesses termos, há uma clara preocupação da Confederação Israelita
brancos e afrodescendentes, a fim de legitimar políticas públicas que do Brasil em cooptar os negros para uma aproximação maior com Israel,
tenham na “raça negra” o seu alvo preferencial. afirmando ser esse país importante polo de cooperação para os interes-
Nesse processo em que o governo brasileiro propõe políticas orien- ses do movimento negro. Ou seja, trata-se fundamentalmente do fortale-
tadas para a promoção racial sob demanda do movimento negro, a cimento da imagem de Israel e do sionismo junto aos negros brasileiros
Confederação Israelita do Brasil (CONIB), órgão de representação nacio- em contraponto à simpatia que a militância negra devota mais esponta-
nal da comunidade judaica do Brasil, é convidada, como tantas outras neamente à causa palestina e terceiro-mundista. Em outras palavras, a
instituições representativas de minorias, como ciganos, indígenas, pales- Confederação Israelita do Brasil, ao participar do Conselho da Seppir, uma
tinos, etc., a participar do Conselho da Secretaria de Políticas Especiais secretaria de Estado, reconhece o valor da “raça” como sujeito de direitos,
de Promoção da Igualdade Racial. O presidente da Conib na ocasião, em troca da aceitação de Israel e do sionismo pela militância negra.
JacksTerpins, se manifestaria nos seguintes termos nesse momento em A despeito dessas manifestações de afinidades entre negros e judeus,
que o estado assume as reivindicações dos negros: tal como sugere o ex-presidente da Conib, o que se vê na II Conferência
Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação
No momento em que o Brasil começa, hesitantemente, a procurar o ainda
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata ocorrida em Durban, África do
difícil caminho para a supressão das terríveis injustiças que assolam nossos
afrodescendentes, faz-se imprescindível que toda a sociedade brasileira se Sul, em 2001 e em outros Fóruns Mundiais, foi uma clara manifestação de
levante a cerrar fileiras contra o racismo, contra a barbárie nazista que tem se apoio à luta dos palestinos contra Israel e o sionismo. O lema adotado era:
fortalecido e ameaça ressurgir. Ataques a homossexuais, agressões a judeus, “Todos nós somos palestinos”.
vandalismo contra sinagogas, panfletagem racista e antissemita, difusão A observação de um documento elaborado pela Secretária de Políticas
de livros nazistas, formação de quadrilhas nazistas paramilitares, pregação
Especiais de Promoção Racial em 2005 mostra, claramente, a inclusão dos
incessante do racismo pela Internet, pesada propaganda nazista visando à
juventude, ataques contra instituições representativas do Movimento Negro, palestinos, que também são denominados como categoria étnico-racial,
teses nazistas difundidas por professores de História, reverberadas em uni- ao lado de árabes tão somente, judeus, ciganos e indígenas. Nesse docu-
versidades públicas e defendidas em artigos e cartas na imprensa – eis a ser- mento – um relatório final da I Conferência Nacional de Promoção Racial,
pente a chocar seu pavoroso ovo, novamente, em nosso País.11 realizada em 2005 – tanto judeus quanto palestinos aparecem dezenas
E, a propósito da criação da Secretaria de Política de Promoção da de vezes, ora como vítimas de racismo, ora como etnias que no Brasil
Igualdade Racial, assim ele se manifesta: se comportam fraternalmente e que buscam a paz. No capítulo sobre
Política Internacional do Estatuto da Seppir, encontramos um item cujo
No Brasil foi criado um Ministério de Integração Racial. Estão representados título é “Questão Israel-Palestina”. Em seus subitens temos as seguintes
cinco grupos étnicos: índios, negros, ciganos, judeus e palestinos. Na quali-
proposições do documento: 1) “Reivindicar o direito do povo palestino
dade de representante dos judeus, mantenho contatos com as demais comu-
nidades. Cooperamos com os delegados negros para reforçar as estruturas a um Estado soberano convivendo em paz com Israel, em fronteiras jus-
comunitárias que eles querem desenvolver. Vislumbramos a possibilidade de tas e reconhecidas internacionalmente, de acordo com a resolução 242 da
11 Depoimento retirado do Boletim Edição n. 14 – 06/09/2006, da Confederação Israelita
Brasileira. 12 GRIN, Monica. Idem.

160 161
ONU” e 2) “Efetivar atuação política em defesa do diálogo pela paz entre MAIO, Marcos Chor. “Negros e Judeus no Rio de Janeiro: um ensaio de movi-
Israel e o povo palestino que contemple os direitos de ambas as partes.” mento pelos direitos civis”. Revista Estudos Afro Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 25,
1993, p. 161-188.
Logo a seguir, em outro item denominado “Imigrantes e Refugiados”, o
documento declara: “Consolidar a relação política com a diáspora pales- MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil
dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41. São Paulo,
tina com total apoio ao direito de regresso dos refugiados palestinos a sua
outubro de 1999.
terra natal”.13
RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro. Rio de Janeiro:
Por fim, pode-se dizer que nos anos 1990 foi interessante para o Civilização Brasileira, 2005.
Movimento Negro a aliança com os judeus a fim de enfrentar o racismo
SORJ, Bernardo. “Sociabilidade brasileira e identidade judaica” In: BONDER, N. e
dos skinheads. Agora, sob a égide do multiculturalismo, são os judeus que SORJ, B. Judaísmo para o século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
precisam ganhar o apoio dos negros, no plano da política de estado, para
SORJ, Bernardo. “Diáspora, judaísmo e teoria social”. In: GRIN, Monica; Nelson
blindar o sionismo e o Estado de Israel das críticas, especialmente vindas VIEIRA. Experiência cultural judaica no Brasil: recepção, inclusão e ambivalência,
da esquerda com suas bandeiras pró-Palestina. Rio de Janeiro, Topbooks, 2004.

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13 I Conferência Nacional de Promoção Racial, 2005: 116-117.

162 163
Judaísmo e o Censo de 2010
Monica Grin
Michel Gherman

Os Jardins e Higienópolis são bairros paulistanos cujas ruas comportam


de modo cada vez mais visível judeus ortodoxos, vestidos de preto, de cha-
péus pretos, com suas esposas vestidas de modo austero e carregando filhos
em cada uma das mãos. O bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, abriga em
uma mesma rua uma sinagoga ortodoxa (Beit Lubavitch) e um Centro de
cultura judaica, o Midrash. Pode-se também observar nesse bairro uma
atmosfera religiosa na qual judeus ortodoxos de ternos pretos e longas
barbas, cruzam nas calçadas com os despojados habitantes do Leblon.
O Censo de 2010, que conta 107 mil adeptos do judaísmo, número
acima dos 90 mil quantificados pela própria comunidade judaica, poderia
ser um espelho a refletir uma tendência de crescimento de adeptos da reli-
gião judaica no Brasil. Nesse caso pode-se dizer que a visibilidade daque-
les judeus ortodoxos nos dois maiores centros urbanos do Brasil não seria
aleatória, mero acaso, mas revelaria tendência de crescimento da religiosi-
dade judaica. Podemos, no entanto, associar os números do Censo de 2010
relativos ao judaísmo a uma definição identitária de tipo religiosa?
Diríamos que sim e não. Por um lado, o olhar orientado para o cená-
rio da religiosidade judaica no Brasil pode descortinar uma atmosfera de
práticas rituais surpreendentemente plurais, cujo poder de sedução vem
tornando cada mais confortável se declarar judeu nos termos do Censo
sobre religião do que há uma ou duas décadas atrás. Por outro lado, a iden-
tidade judaica não se esgota nos limites da religião e a sua complexidade
é de tal ordem que qualquer tentativa de definição rígida da identidade
empobrece suas ricas formas de manifestação. Não é à toa que o tema da
identidade quando tratado da perspectiva do judaísmo, tem se revelado
altamente complexo.1

1 Sorj, Bernardo e Grin, Monica (Org.). Judaísmo e Modernidade: metamorfoses da tradição


messiânica.Rio de Janeiro: Imago, 1991; Jonathan Webber, “Modern Jewish Identities”. In:

165
Pode-se dizer, nesse início do século XXI, que interessantes desafios Como em quase todas as comunidades judaicas da Diáspora, o número de
vêm se impondo à manutenção da identidade judaica no Brasil. Diríamos nascimentos entre os judeus brasileiros é bastante baixo. Mais pessoas mor-
rem na comunidade do que nascem. Também, como o Brasil tem uma tra-
que duas tendências paralelas vem sendo observadas no cenário das repre-
dição multicultural, há muitos casamentos mistos e bastante assimilação. O
sentações dos judeus brasileiros: a primeira, uma tendência centrípeta, de número de judeus brasileiros tende a diminuir, mas não é algo dramático.
retorno ao centro, aos fundamentos do judaísmo mais ortodoxo que curio- Podemos até considerar a população judaica do Brasil estável, se comparar-
samente ganha adeptos nos grandes centros urbanos brasileiros, especial- mos com outras comunidades do mundo.2
mente na comunidade judaica de São Paulo. (TOPEL, 2008). Marta Topel,
Em estudos demográficos mais recentes, esse autor identifica o Brasil
em seu interessante estudo sobre a “conversão” ou o chamado retorno
como a segunda maior comunidade judaica das Américas Central e do Sul
(tshuvá) de judeus seculares, liberais, ou os chamados judeus “perdidos,
e os números do Censo de 2000, por ele analisados, revelam uma comu-
ao estrito estilo de vida do judaísmo ortodoxo e ultraortodoxo, sugere que
nidade judaica estável:
o judaísmo no Brasil é mais multifacetado em suas manifestações do que
apenas uma religião monoteísta e de fronteiras tradicionalmente fechadas In Brazil, the second largest Central and South American Jewish community,
à conversão de não judeus. Há, é certo, uma tendência aos apelos do fun- the 2000 Census indicated a rather stable Jewish population of 86,828, up from
86,416 in 1991.89 Considering the possible omission of persons who did not
damentalismo religioso, que podem ser observados em diferentes contex-
answer the Census question on religion, we assessed Brazil’s Jewish population
tos religiosos no ocidente e dos quais a religião judaica também é parte. at 97,000 in 2003 and, allowing for moderate emigration (444 persons went to
O renascimento do judaísmo ultraortodoxo, especialmente em sua variante Israel in 2008-2009), at 95,600 in 2010— the world’s tenth largest Jewish com-
leste-europeia, nos sessenta anos que se seguiram à Segunda Guerra, desa- munity.3 (DELLAPERGOLA, 2010: 45).
fia as suposições das teorias sociológicas dominantes durante a maior parte
daquele período. Contrariamente à tendência de secularização, à tendência O perfil sociológico dos adeptos do judaísmo, conforme o Censo
de criação de famílias menores, à tendência de uma cultura em que o status de 2010, confirma o que já se observava em censos anteriores: os judeus
social é determinado predominantemente pelos recursos financeiros, con- se concentram em grandes centros urbanos, possuem alta escolaridade,
trariamente à miscigenação racial, contrariamente à sociedade permissiva, renda per capita bem acima da media e um dos maiores Índices de
contrariamente, contrariamente, contrariamente... Esta é uma comunidade,
ou melhor, uma cultura, na qual o lema parece ser “a qualquer proposta
Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. De modo geral, são brancos,
de mudança diga ‘não’; em qualquer questionamento a respeito da aplica- de origem europeia e com formação superior.
ção de uma lei fique sempre com a alternativa mais rigorosa (LEHMANN & Entretanto, se há uma homogeneidade socioeconômica dos judeus no
SIEBZEHNER, 2011: 51). Brasil, o mesmo não se pode dizer das definições identitárias do grupo: há
O que torna mais complexa essa evidência é pensá-la em meio aos uma considerável pluralidade de matrizes religiosas, culturais e políticas
apelos de uma segunda evidência, presente marcadamente no contexto que opera no interior desse grupo, promovendo, relativamente ao tama-
brasileiro: a dos casamentos mistos (hoje em torno de 60%) que podem nho do grupo, altíssimo grau de renovação interna. Para os que olham de
resultar, de modo contrário ao primeiro caso, em afastamento do núcleo fora, tem-se não raro a impressão de que se trata de um grupo fechado
duro da religiosidade judaica. Entretanto, formas alternativas e criativas e conservador. Entretanto, um olhar intragrupo pode desvendar um
de manutenção da identidade judaica vêm se impondo frente aos desa- 2 Disponível em: <http://culturahebraica.blogspot.com.br/2008/08/as-opinies-de-dellaper-
fios dos casamentos mistos. Em seu estudo sobre mapas demográficos gola-demgrafo-do.html>. Acesso em: 6 out. 2012. Cf. anexo II.
3 No Brasil, a segunda maior comunidade judaica das Américas Central e do Sul, o Censo de
nas comunidades judaicas da diáspora, o professor da Universidade de 2000 indica uma população judaica estável de 86.828, acima dos 86.416 do Censo de 1991.
Jerusalém, Sergio Dellapergola, assinala: Considerando a possível omissão de pessoas que não respondem a questão sobre religião
no Censo, nós estimamos a população judaica de 97.000, em 2003, com uma emigração
Webber, Jonathan (Org.), Jewish Identities in the New Europe. London: Litman Library of moderada (444 pessoas foram para Israel em 2008-2009), a 95.600 em 2010 – a décima
Jewish Civilization, 1994; Daniel Boyarin and Jonathan Boyarin, (1993); Bernardo Sorj (2010). maior comunidade judaica no mundo. (Tradução nossa).

166 167
dinamismo raramente observado em comunidades pequenas. Conforme judeus sefaraditas, de maneira geral, têm formação mais tradicional no
Bila Sorj, “Se, para um olhar exterior, os judeus são definidos basicamente que diz respeito à religião judaica (FALBELL: 343-344.). Os ritos religiosos
como membros de um grupo religioso, internamente prevalecem inúme- e as formas tradicionais de judaísmo tem muito peso na definição de sua
ras modalidades de autopercepção e coesão grupal” (SORJ, 1997: 59). identidade que é constituída por elementos típicos de suas origens étnicas.
Vejamos então as dificuldades de se compreender as complexas facetas No que se refere à outra origem dos judeus brasileiros, a de judeus ash-
do judaísmo brasileiro que, mesmo referido como religião em série histó- kenazitas, temos uma imigração contínua desde os anos 1920, momento em
rica de censos desde 1940, não pode ser tomado apenas pela rubrica reli- que se observa a formação de institucionalidades judaicas diferentes das dos
giosa, ou seja, os que se definem “adeptos do judaísmo” não podem ser imigrantes sefaraditas. Judeus de origem polonesa, húngara e da Bessarábia,
considerados judeus exclusivamente pelas suas práticas religiosas. Um dos ou seja, das mais diversas origens europeias, desenvolveram uma vida comu-
mais importantes aspectos a ser ressaltado é que aqueles que se declaram nitária que buscava inicialmente reproduzir, de maneira adaptativa, a vida
judeus, quando respondem ao Censo, não são necessariamente “pratican- judaica tal como era em seus lugares de origem. Importante notar é que as
tes do judaísmo”. Em uma escala, estes podem ser desde praticantes mais identidades judaicas e suas respectivas instituições (principalmente no caso
ou menos fervorosos dos preceitos da religião judaica até judeus fortemente de judeus ashkenazitas), não são necessariamente religiosas, sendo algumas
seculares, e mesmo ateus, cuja definição identitária encontra-se ora na cul- delas abertamente seculares. Nesse sentido, ao lado de sinagogas ortodoxas
tura, ora na etnicidade, ora na identificação com a história do povo judeu. ashkenazitas, que remontam à práticas originais na Europa, há também ins-
Hoje podemos observar uma renovação da perspectiva religiosa que tituições judaicas de natureza não religiosa, mas culturais e políticas, que,
vai além das práticas religiosas presentes na matriz tradicional do judaísmo vale dizer, também reproduzem a cultura judaica secular europeia.
no Brasil que inclui – desde as ondas de imigração dos judeus para o Brasil A vinda mais significativa de judeus alemães para o Brasil, especial-
no século passado, vindos do leste europeu e da Europa Central – tanto mente a partir dos anos de 1930, promoveu uma institucionalidade reli-
o judaísmo reformista, quanto o conservativo e o ortodoxo. O perfil reli- giosa não ortodoxa e de grande atração para a segunda geração de judeus
gioso dos judeus no Brasil pode ser descrito a partir de algumas variáveis, no Brasil, em franca mobilidade social e cada vez mais integrada à socie-
o que revela um quadro diversificado e interessante de definição religiosa. dade brasileira. Os judeus alemães renovam as instituições e rituais judai-
Em primeiro lugar, devemos considerar a questão da origem. Os cos no Brasil, alargando o leque de possibilidades de práticas religiosas no
judeus brasileiros, de modo geral, possuem duas origens distintas: os que âmbito da própria religiosidade judaica e garantindo formas de adaptação
vieram basicamente do leste europeu (ou da Alemanha, no caso dos que condizentes com a ascensão de judeus de classe média. As sinagogas refor-
chegaram às vésperas da II Guerra e depois), os chamados judeus ash- mistas4 (referimo-nos mais especificamente à CIP em São Paulo e a ARI no
kenazitas; e os que vieram do Oriente médio e do norte da África, das
regiões do Magrebe e do Levante, os chamados judeus sefaraditas. Os 4 As correntes judaicas começam a se consolidar como referências efetivas e alternativas reais
judeus sefaraditas podem ser divididos ainda em dois grupos: o primeiro, para identidade judaica a partir das possibilidades de integração dos judeus em meio à
modernidade europeia. Assim, judeus influenciados por mudanças em outros grupos reli-
originário de uma imigração minoritária decorrente de regiões afetadas giosos, acabam incorporando elementos da reforma cristã em suas práticas rituais. Por
pelos resultados da I Guerra Mundial, que chegam ao Brasil nos anos de exemplo, podemos citar as propostas do filósofo judeu alemão Moses Mendelsohn (1729-
1786), que acabam recriando perspectivas doutrinárias mais ou menos coerentes como pro-
1920. Formaram instituições comunitárias neste período, como no caso postas de práticas judaicas. Tendo como referência fundadora o Rabino Abraham Geiger
das comunidades de Manaus e de Belém. A segunda onda de imigração (1810-1874), em Berlim, o judaísmo reformista via na integração judaica e no comprometi-
mento com o comportamento moral e com o monoteísmo sua razão de existência. Como
sefaradita, majoritária, ocorre em finais dos anos 40 e início dos 50 do resultado destas propostas reformistas, surgem reações que se vinculam mais com os textos
século XX. São judeus que imigram do Oriente Médio, desde países como talmúdicos e com as leis estritas dos livros sagrados. A ortodoxia judaica surge em meados
do século XIX como reação moderna às praticas inovadoras do judaísmo reformista. Ver:
Líbano, Egito e Síria, por questões políticas na região, não raro decorren- Birnbaum, Pierre; Katznelson, Ira. Paths of Emancipation: Jews, States and Citzenship. New
tes da criação do Estado de Israel em 1948. Importante notar que estes Jersey: Princeton, 1995, pp. 10-82.

168 169
Rio de Janeiro) são bastante frequentadas e as mais tolerantes em relação liberais e místicas do judaísmo. Saídos das sinagogas liberais mais consoli-
aos matrimônios mistos e às conversões. dadas, no caso a CIP (Congregação Israelita Paulista) em São Paulo e a ARI
(Associação Religiosa Israelita) no Rio, a Shalom e a CJB (Congregação
O crescimento e consolidação desta sinagoga no Rio de Janeiro [Associação
Religiosa Isrelita – ARI] é uma expressão da mobilidade ascendente e da Judaica Brasileira) avançam interessantes sínteses entre a cultura judaica e
prosperidade alcançada por boa parte dos descendentes de imigrantes nas a brasileira, misturando tradições cabalistas com referências conservativas
últimas décadas. Tendo como origem um núcleo de imigrantes alemães, e reformistas. O Rabino Nilton Bonder, do Rio de Janeiro, é um exem-
pouco a pouco sua clientela se estende para os descendentes de imigrantes plo sugestivo de leituras rituais que trazem aspectos da cultura carioca e
vindos de outras localidades, na medida em que a origem geográfica e cultu-
brasileira como elementos para se refletir sobre a tradição judaica e vice-
ral perde peso na identificação dos judeus brasileiros.5
-versa, em um saudável exercício de interpretação persuasiva da religião e
A divisão entre ashkenazitas e sefaraditas, historicamente marcadas da espiritualidade em uma linguagem que atrai religiosos e seculares a um
por diferentes perspectivas religiosas e étnico-culturais, é cada vez menos só tempo (BONDER & SORJ, 2001).
destacada e podemos observar hoje atividades seculares e religiosas que Outro importante aspecto a ser considerado e já tocado anterior-
concentram judeus de várias origens. Do ponto de vista religioso, isso mente é o aumento dos casamentos mistos à medida em que as novas
pode ser visto entre os judeus ultraortodoxos do BeitLubavitch, que apesar gerações se tornam crescentemente mais integradas à sociedade brasileira
de serem claramente ashkenazitas, desde a origem, concentram em suas (SORJ, 1997). Os matrimônios mistos chegam a ultrapassar 50% de todos
atividades de ordem litúrgica e religiosa judeus de todas as origens étnico- os casamentos comunitários e apontam para fenômenos interessantes: a
-culturais. O mesmo pode ser visto em sinagogas de origem alemã, con- flexibilidade nos casos de conversão (principalmente no que se refere à
servativas ou reformistas, que atraem pessoas das mais variadas origens comunidades não ortodoxas) e as intensas trocas culturais que permitem e
judaicas e mesmo os convertidos. consolidam a experiência judaica no Brasil, resultando em baixa incidên-
Há também comunidades mais inovadoras, fortemente influencia- cia de antissemitismo no caso brasileiro. (SORJ,1997)
das por práticas religiosas típicas do New Age, onde há um diálogo reli- Mas há hoje também a consolidação de uma tendência, observada
gioso entre culturas judaicas e referências religiosas às tradições místicas, sobretudo desde os anos de 1980, nos grandes centros urbanos, notada-
à exemplo do movimento da Cabala em uma versão popularizada que mente no Rio de Janeiro e em São Paulo, de crescimento do judaísmo
ganha cada vez mais adeptos no Brasil (ALTGAS, 2010).6 ortodoxo. Ao longo desse período, o número de instituições ortodoxas
Pode-se dizer, portanto, que o Censo de 2010 talvez revele uma espé- cresce sob influência de processos de fortalecimento de dimensões religio-
cie de maturidade do judaísmo brasileiro, se consideramos sua capacidade sas conservadoras em curso tanto nos Estados Unidos, quanto em Israel.
de crescimento e de renovação religiosa em meio aos apelos da secula- O processo da “tshuvá” (retorno à práticas religiosas) de judeus afastados
rização presentes nas últimas décadas. Desde uma perspectiva liberal, da vida religiosa judaica, vem ensejando o aumento no Brasil dos cha-
o aumento de pessoas que se autodefinem como praticantes da religião mados judeus ortodoxos ou Haredim (literalmente, aqueles que temem a
judaica, pode estar na razão direta do aumento de casamentos mistos e Deus). (TOPEL, 2008; LEHMANN & SIEBZEHNER, 2011).
da necessidade de tolerância ritual a fim de incorporar os que desejam a Nesse processo, sinagogas askenazitas e sefaraditas que mantinham
conversão. Nesse campo, pode-se observar o fortalecimento de referências práticas religiosas conservativas, passam, de maneira gradual, a incorpo-
rar elementos do judaísmo ortodoxo em seus rituais. É o que acontece
5 Sorj, Bila. “Conversões e Casamentos “Mistos”: A produção de “Novos Judeus no Brasil”.
In: Sorj, Bila. Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Imago Editora, em São Paulo, onde sinagogas tradicionais dos imigrantes que chegaram
1997. p. 72. nas primeiras décadas do século XX, iniciam uma aproximação com os
6 O Rabino Lemle tem adotado uma perspectiva autonomista em sua leitura e interpretação
da Cabala. Ele sugere que a sabedoria da Cabala deva ser objeto de socialização e não um
movimentos ortodoxos, principalmente aqueles ligados ao grupo ameri-
mistério, ou um segredo, restrito a poucos. Cf. <http://www.kabbalahcentre.com.br>. cano BeitLubavitch, que seguem os ensinamentos de uma corte hassídica

170 171
(movimento místico do judaísmo), liderada pelo rabino Menachem Mendel da religiosidade oficial inicia-se a partir do final dos anos 1940 e nos anos
Schneersohn, conhecido como o Rebe de Lubavitch (cidade da Rússia 1950, quando a comunidade judaica no Brasil constrói uma instituciona-
Branca). Desde os anos de 1930 o Rabino e o Movimento se estabeleceram lidade representativa de tipo centralizada: as chamadas federações esta-
em Nova York. Nos anos de 1980 a influencia desse grupo começa a ser duais e a Confederação Israelita do Brasil (criadas as do Rio e de São Paulo
sentida na comunidade judaica de São Paulo e depois no Rio de Janeiro. no final dos anos 1940). Mas será a partir da década de 1960, portanto, que
iremos observar a emergência de movimentos capitaneados pela Igreja
No que diz respeito à comunidade ortodoxa paulistana, não há dúvidas de
que seu número, visibilidade e força foram substancialmente incrementa- Católica e por grupos liberais dentro do judaísmo brasileiro. Tratava-se da
das nos últimos anos como consequência do grande poder de convocatória promoção de um diálogo mais estreito entre católicos e judeus. O surgi-
de rabinos ortodoxos prós-elitistas, a maioria deles vindos do exterior. O mento da Fraternidade Judaico-Católica possibilitou um discurso comum
aumento de novos adeptos – provenientes do judaísmo secular e liberal – e de combate à intolerância religiosa e ao antissemitismo. Importante notar
seu grande apelo entre judeus laicos que não almejam tornar-se observantes
que esse diálogo se inicia no campo quase exclusivamente religioso a fim
redundaram numa reestruturação da comunidade como um todo, que rapi-
damente mudou seus referentes identitários seculares para adotar aqueles de propor uma diminuição das diferenças entre a fé católica e a fé judaica.
que caracterizam as comunidades ortodoxas e ultraortodoxas.7 Deve-se salientar que os grupos judaicos envolvidos nos debates e proje-
tos de diálogo com outras religiões, são sempre grupos religiosos de linha
Na segunda metade dos anos de 1990, há ainda o fortalecimento de liberal, como é o caso da Congregação Israelita Paulista, de São Paulo, e a
outro grupo ortodoxo entre os sefaraditas, judeus de origem oriental, em Associação Religiosa Israelita, do Rio de Janeiro.
resposta ao processo de “ortodoxização” dos judeus askenazitas. Neste Nos anos 1990 surge o diálogo teológico e político, entre judeus e cris-
caso, a influência vem do modelo do Rabino OvadiaYossef de Israel, cuja tãos (católicos e protestantes), alargando o arco de alianças na luta con-
proposta é a de um judaísmo ortodoxo de tipo étnico que articula o con- tra formas de discriminação e “intolerância religiosa”.8 Neste período, a
texto da tradição sefaradita com uma liturgia estritamente ortodoxa. Nos comunidade judaica além de buscar o diálogo para fortalecer a luta contra
anos 1980, com apoio de mecenas e com o fortalecimento de grupos étni- a “intolerância religiosa”, envolve-se, gradualmente, no debate interétnico
cos em Israel (CHETRIT, 2005: 27-48) (em Israel é criado, por exemplo um (GRIN, 2007), deslocando-se desde o campo exclusivo da religiosidade para
Partido Ortodoxo Sefaradita), há o surgimento de figuras rabínicas impor- o campo da representação política, no caso com a efetiva participação das
tantes que fortalecem as dimensões étnicas das práticas religiosas, recu- Federações Israelitas, principalmente a do Rio Janeiro e a de São Paulo.9
perando e reinventando tradições a partir da origem geográfica e étnica, A dimensão de diálogo teológico passa a coexistir com proposições
onde hábitos alimentares e de endogamia são recuperados. (SOHAT,1999: políticas através das quais o movimento negro e a comunidade judaica se
5-20). Hoje os judeus de origem sefaradita possuem uma rede de sina- unem pelo combate à discriminação, ao racismo e ao antissemitismo, em
gogas ortodoxas, figuras rabínicas importantes e escolas que funcionam uma militância comum e com manifestações públicas anuais no Rio de
a partir da tradição judaica síria ou libanesa, ou ainda, das tradições de Janeiro de combate à intolerância religiosa, unindo religiões de todas os
cidades específicas como Alepo, na Siria, ou Beirute, no Líbano. matizes, inclusive as afrodescendentes, capitaneadas pelo Babalorixá Ivanir
Curioso notar que a despeito do pluralismo religioso e cultural que dos Santos, do Centro de Apoio às Populações Marginalizadas (CEAP).
se observa no interior do judaísmo que se pratica no Brasil, há tentativas
de se veicular à comunidade judaica uma representação política cuja retó-
rica abriga uma versão homogênea e oficial do judaísmo frente à outras 8 Kuperman, Diane. “Judeus e Brasileiros: Parceiros de Primeira Hora”. In: Gualberto M.
Alexandre Marcio. Mapa da Intolerância Religiosa no Brasil. Disponível em: <www.defenso-
confissões religiosas presentes no Brasil. Essa pretensa cara homogênea ria.sp.gov.br>.
9 A Confederação Nacional Israelita do Brasil (CONIB) tem assumido cada vez mais esse lugar
7 Marta F. Topel. Jerusalém & São Paulo: a nova ortodoxia judaica em cena. Rio de Janeiro: de representante da Comunidade Judaica junto a outras comunidades e junto ao governo
Topbooks, 2005: 194. federal.

172 173
Por fim, podemos concluir que a paisagem plural da identidade referências bibliográficas
judaica que, como vimos, não se restringe ao judaísmo tradicional, evi-
dencia um relativo aumento dos que se declaram judeus, conforme o ALTGLAS, Veronique. (Editor) of Religion and globalization: Critical concepts in
Censo religioso de 2010, sobretudo se comparado aos Censos desde 1940 social studies. four volumes. London: Routledge, 2010.
(conferir tabela abaixo). Ao contrário, das tendências que apontavam BIRNBAUM, Pierre; KATZNELSON, Ira. Paths of emancipation: jews, states and cit-
para fatores de erosão da identidade judaica devido à crescente assimi- zenship New Jersey: Princeton, 1995.
lação, à baixa fecundidade e aos casamentos mistos,10 o que se observa é BONDER, Nilton; SORJ, Bernardo. Judaísmo para o Século XXI. Rio de Janeiro:
um curioso florescimento e rearticulação da religiosidade em versões que Jorge Zahar, 2001.
vão desde as correntes ultraortodoxas até as mais liberais garantindo um BOYARIN, Daniel; BOYARIN, Jonathan. “Diaspora: Generation and the ground of
cenário de sobrevida e renovação em meio aos apelos de uma sociedade jewish identity”, critical inquiry, v. 19, n. 4 (Summer, 1993), pp. 693-725.
também vigorosamente secular e altamente assimilativa. Acreditamos que CHETRIT, S. Sami. “The Mizrachi Stuggle in Israel: Between Oppression and
o próximo passo analítico deva ser dado em direção a uma melhor com- Liberation, Indentification and Alternative.” – 1948-2000. AmOved/ Ofakim:
preensão da renovação religiosa vis a vis o mapa mais amplo das religiões TelAviv, 2005.
no Brasil. Mas essa é uma tarefa para outra ocasião. DECOL, René. “Judeus no Brasil: explorando os dados censitários”, Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v.16, n. 46, junho de 2001.
anexo i: DELLAPERGOLA, Sergio. “WORLD JEWISH POPULATION, 2010”, North American
Jewish Data Bank, n.2, 2010. Disponível em: <http://www.jewishdatabank.org/
Reports/World_Jewish_Population_2010.pdf>.
brasil – população judaica, de acordo com os censos
(números ajustados)11 FALBEL, Nachman. Judeus no Brasil: Estudos e notas. São Paulo: Humanitas/
EDUSP, 2008.

1940 1950 1960 1980 1991 2000 2010 GRIN, Monica. “Jews, Blacks, and the Ambiguities of Multiculturalism in
Brazil”. In LIWERANT, BEN-RAFAEL, GORNY, REIN (Org.). Identities in an Era of
56.000 70.000 97.000 92.000 86.000 87.000 107.000
Globalization and Multiculturalism: Latin America in the Jewish World. Boston:
Brill, 2008.
KUPERMAN, Diane. “Judeus e Brasileiros: Parceiros de Primeira Hora.” In:
Gualberto M. Alexandre Marcio. Mapa da Intolerância Religiosa no Brasil.
Disponível em: <www.defensoria.sp.gov.br>
LEHMANN, D.; SIEBZEHNER, B. “Poder, Fronteiras e Instituições: Casamento no
10 Um dos raros e mais importantes estudos sobre os judeus no Brasil e os censos foi reali- Judaísmo Ultraortodoxo, Revista Digital do NIEJ.Ano 3, n.5, 2011.
zado por Decol (2001). Ao tratar o que parece ser uma tendência inarredável à assimilação SOHAT, Ella. “The Invention of the Mizrahim”. Jornal of Palestinian Studies, XXIX,
dos judeus no Brasil, Decol, no momento em que escreve seu artigo, (em 1999) deixa em
aberto a possibilidade de que processos de contrassecularização em sociedades moderni-
no 1 (Autumn 1999), pp. 5-20.
zadas poderiam no futuro diminuir esse risco da assimilação crescente. “Claro que estas SORJ, Bernardo. Judaísmo para todos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
tendências podem ser revertidas por um movimento de ordem cultural, que revalorize a
identidade religiosa. Embora esta seja uma possibilidade, e embora se verifiquem processos SORJ, Bernardo; GRIN, Monica (Org.) Judaísmo e Modernidade: metamorfoses da
de contrassecularização nas sociedades modernas e em modernização, como é o caso da tradição messiânica. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
brasileira, estes movimentos são posteriores ao período em estudo. Se este movimento já se
fez sentir ao nível da dinâmica demográfica da comunidade judaica, é algo que só o censo SORJ, Bila. “Conversões e Casamentos ‘Mistos’- A Produção de ‘Novos Judeus’ no
do ano 2000 poderá revelar”. p. 158 Brasil”. In: Sorj, Bila. Identidades judaicas no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:
11 Essa tabela é retirada do artigo de René Decol (2001) e complementada com dados do Imago Editora, 1997.
Censo de 2000 e 2010.

174 175
TOPEL, Marta F. Jerusalém & São Paulo: a nova ortodoxia judaica em cena. Rio de
Janeiro, Topbooks, 2005.
O soldado e o sobrevivente:
WEBBER, Jonathan. “Modern Jewish Identities”. In: Webber, Jonathan (Org.).
desafios do estudo da Shoá no Brasil
Jewish Identities in the New Europe. London, Litman Library of Jewish Civiliza-
tion, 1994. Michel Gherman

introdução
Estudos da Shoá como periferia da II Guerra
O aniversário de 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, coincide, e
não por casualidade, com o aniversário de 70 anos de liberação de Aushwitz.
No Brasil e no mundo ocorreram diversos eventos e debates sobre a sep-
tuagésima data do fim do maior conflito mundial. Pode-se afirmar que as
ocasiões para debates sobre o tema foram numerosas e abertas. Tais debates
contaram com perspectivas interdisciplinares que propiciavam oportuni-
dades de diálogo entre diversos campos de conhecimento que represen-
tando uma produção acadêmica bastante variada, rica e diversa.
Não há dúvidas de que o conflito ocorrido entre os anos de 1939 e 1945
produz novas relações, estabelece uma nova economia e apresenta novas
fronteiras em uma nova era de embates políticos e ideológicos. Da mesma
forma, parece difícil imaginar qualquer debate mais contemporâneo (um
debate pós-pós guerra mundial12) sobre política internacional, economia,
ou matérias afins, que não leve em consideração o conflito que se encer-
rava, no continente europeu, em maio de 1945.
Em paralelo, é de se destacar a dimensão periférica que o septuagená-
rio aniversário de liberação do maior campo de extermínio nazista (ocor-
rido em janeiro de 1945) recebeu. Para além dos debates acima propostos,
os resultados humanos da perseguição nazista aos judeus, no que pode-se

12 Utilizo aqui o conceito proposto por Tony Judt, de mundo pós-pós II Guerra. Ver: JUDT,
Tony. Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, pp.
692-698.

176 177
chamar de “uma guerra contra os judeus” (WASSERSTEIN, 2014, pp. 394-398) mais tradicionais, como os Estados Unidos, a Grã Bretanha e os antigos
acabara por ficar em segundo plano, durante os festejos do fim da guerra. países socialistas (a Polônia é um bom exemplo), a situação no Brasil não
Afora debates, estudos e conferências ocorridas em âmbitos mais vai ser diferente. Ao contrário, aqui ela pode ser ainda mais pungente. No
internos, vinculados de maneira direta com os chamados “estudos judai- contexto brasileiro, a Shoá parece estar relegada a “estudos de área”, flu-
cos”,13 pouco se disse sobre o holocausto, ou mesmo sobre a liberação de tuando sobre temas mais duros e centrais como os já citados acima.
Auschwitz no contexto de estudos da Segunda Guerra Mundial. Assim, são poucas as conexões entre, por exemplo, as leis de
Assim, pode-se notar que, de maneira geral, a reflexão sobre a Shoá Nuremberg e a invasão alemã a Polônia, a noite dos cristais e anexação
está conectada a dois campos de pesquisa distintos, ou em debates sobre da Áustria pelos nazistas, ou mesmo o processo de “guetoização dos
genocídios e direitos humanos, ou está, fundamentalmente, no marco dos judeus” poloneses (KASSOW, 2009: 122-186) e os acordos de Rbentrop-
chamados “estudos judaicos” e se encontra, em grande medida, desconec- Molotov, assinados entre União Soviética e a Alemanha. Nesta conjun-
tada dos estudos sobre Segunda Guerra Mundial.14 tura, há percepção de uma espécie de afastamento entre as vítimas judias
Neste contexto, se as pesquisas feitas sobre II Guerra Mundial levam (ou classificadas como judias) da Shoá (judeus que pereceram em cam-
em conta reflexões sobre relações internacionais, história militar, história pos de extermínios, guetos ou assassinados na Operação Barbarossa, de
econômica, debates sobre história da diplomacia, enfim tudo aquilo que 1941) (BELLAMY, 2007) e as vítimas não judias II Guerra Mundial (aqui me
se convencionou chamar de historiografia política, enquanto isso, os estu- refiro principalmente a soldados e vítimas militares).
dos sobre Shoá se concentram em uma zona periférica e parecem apontar Tal desconexão produz duas historiografias distintas e paralelas, aqui
para uma relação de autonomia entre o extermínio dos judeus na Segunda surgem análises diferenciadas e autônomas. Uma relacionada a guerra (no
Guerra e a própria Segunda Guerra Mundial. caso a II Guerra Mundial) e outra ao genocídio (no caso o Holocausto),
De fato, poucos são as pesquisas e os trabalhos que se propõem a uma do conflito e outra do extermínio, uma dos confrontos militares e
discutir shoá e guerra, guerra e Shoá.15 Da mesma forma, Poucos são as estratégicos e outra da evacuação e do desaparecimento e do assassinato
investigações que vinculam os desenvolvimentos militares da II Guerra de populações inteiras.
com as perseguições da Shoá. Se esta é a situação em centros de estudos Como resultado, há pouco diálogo entre estudos da “II Guerra
Mundial” e reflexões a respeito da “Guerra contra os judeus”. Apesar de
13 Em algum sentido, o reconhecimento, nos anos 1950, da extensão dos crimes nazistas contra haver clareza no uso de um aparato industrial militar para o extermínio de
populações judaicas europeias, acaba por fundar um campo de pesquisa vinculado ao estudo elevados contingentes civis, esta dimensão é vista de maneira isolada no
de genocídios, ou aquilo que se convencionou chamar, desde 1948 (tendo como referência a
Declaração Universal dos Direitos Humanos), de crimes contra a humanidade. Ver: BAUMAN, contexto do confronto internacional. Como efeito, uma espécie de “histó-
Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 147-152. ria das vítimas” é escrita por seus descendentes, ou por seus descendentes
14 Para além do trabalho já citado de Baumann, Modernidade e Holocausto, cito dois trabalhos imaginários (ANDERSON, 2008).16
que são referência no campo de estudos da Shoá e mantêm separação entre “as duas guer-
ras” já discutidas acima: HILBERG, Raul. The Destruction of the European Jews: Revised and Desta forma, versões de uma espécie de “lugar de fala” (ORLANDI,
Definitive Edition. Nova York: Holmes & Meier, 1985; FRIEDLANDER, Saul. Nazi Germany 2002: 39) surgem em textos sobre a Shoá. Aqui, para além da desconexão
and the Jews: The Years of Persecution, 1933-1939. New York: Harper Collins, 1997.
acima discutida, ganham força discursos das vítimas diretas do genocídio,
15 Mesmo em obras referências sobre o tema, a separação analítica entre os estudos sobre a Shoá
e sobre a Guerra se mantém. Cito Aqui, alguns autores, que fazem estudos sobre holocausto além disso se fortalecem discursos de grupos que falam em seus nomes,
como uma aproximadamente desta forma: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto.
Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1998; HILBERG, Raul. The Destruction of European Jews.
New York: Holmes & Meier, 1985; FRIEDLANDER, Saul. The Years of Extermination: Nazi 16 Utilizo aqui a ideia de “comunidades imaginadas” de Benedict Anderson. Nesse sen-
Germany and the Jews, 1939-1945. Neste caso, pode-se afirmar que Arendt foge à regra e tido, judeus hoje (descendentes ou não das vítimas diretas do holocausto) constituem-se
tenta fazer conexões entre decisões políticas de uma guerra e os resultados de outra. Ver: enquanto uma comunidade imaginária, onde todos seriam parte de uma grande comuni-
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém, um Relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: dade de vítimas da Shoá. Ver: ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: Reflexões
Companhia das Letras, 1999. Sobre a Origem e a Difusão do Nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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sejam seus familiares ou membros das chamadas “comunidades das víti- acontece em países que contam com fortes coletividades judias na diás-
mas”. Ainda, ganham legitimidade historiadores, cientistas sociais e auto- pora, mas também acontece no Estado de Israel, onde projetos que estão
res que pretendem, em sua escrita, “recuperar”, como eles mesmo dizem, inseridos em programas de educação pública e estatal. Nesse contexto, o
a memória das vítimas. filósofo Avraham Burg, analisa o caso do estudo (e do ensino) da Shoá na
Neste processo, a memória e o testemunho de homens e mulheres que sociedade israelense, através da análise das comemorações dos 60 anos da
foram, como afirma Primo Levi “afogados” na experiência da Shoá (LEVI, liberação de Auschwitz:
1990)17 passam a substituir perspectivas históricas mais consolidadas ou
Enquanto o aniversário de 10 anos de liberação de Aushwitz quase não foi
centrais. Neste contexto, diários, cartas e toda uma gama de fontes primá- comemorado, o quinquagésimo aniversário foi patético, o sexagésimo foi,
rias encontradas no pós-guerra passam a reconstruir o antes e o depois do repentinamente, feito com cerimônias extravagantes, shows pirotécnicos
dilúvio nazista. Famílias inteiras que desapareceram passam a ser conhe- e festas ao estilo hollywoodiano, que comemoravam, pasmem, 60 anos de
cidas por estas investigações. Histórias de campos de concentração, até nossas mortes. (BURG, 2008: 13).
então desconhecidas, de pessoas “tragadas na noite espessa do extermí- No trecho acima, Burg se refere a “comemorações” e “festas” exclusi-
nio” (WIESEL, 2010) passam a ser contadas e conhecidas. Repentinamente, vamente dedicadas a “libertação de Aushwitz”. Aqui está o já citado “uso
a experiência historiográfica passa a constituir-se em uma experiência de político” da Shoá. Para além de ser tema de estudos judaicos ou de estudos
arquivista, que deve, e esse é seu maior esforço, colecionar histórias, dores e de genocídio, o estudo do holocausto se estabelece (principalmente nos
sentimentos contados por testemunhos de experiências quase incontáveis. últimos anos) como referência de fortalecimento de identidades, no caso
Este “império da memória” passa a disputar espaço com uma “outra identidades judaicas entre judeus.
produção historiográfica”. Testemunhos orais passam a se estabelecer no Assim, as investigações da Shoá estariam não somente concentrados
lugar da leitura cansativa e demorada de documentos. Com o tempo, os no campo dos estudos judaicos, mas estariam ainda relacionadas a políticas
relatos de sobreviventes passam a ocupar o espaço de uma produção his- do Estado Judeu e a estratégias de fortalecimento da identidade judaica
toriográfica mais tradicional. Como resultado, para além da desconexão estabelecidas por comunidades judaicas da diáspora. Neste contexto, os
entre guerra (mundial) e extermínio (dos judeus), há um e espaço de sobreviventes reinariam de forma absoluta e inatacável. Aqui, a memó-
desenvolvimento político bastante específico. Neste contexto, o estudo da ria passa a ser a grande referência da escrita histórica. A historiografia se
Shoá, que constituiu-se em algo periférico e descentralizado em relação ao baseia em testemunhos dos sobreviventes da tragédia do povo judeu. Neste
estudo da guerra, passa servir, ainda, para um certo fortalecimento identi- contexto, os porta-vozes do massacre servem de matéria-prima, de fonte
tário. Ou seja, o estudo do holocausto pode se estabelecer como referência para e escrita de uma história que os tem como referências principais.
de construção de identidades específicas.18 Neste caso, identidade das víti- Pode-se afirmar que nos últimos anos há o renascer do interesse
mas, construídas em oposição em relação aos seus algozes. sobre o holocausto, que permanece divorciado do cerne dos estudos sobre
Estes processos ocorrem no mundo inteiro. Em vários países existem a Segunda Grande Guerra. Para além disso, entretanto, ele passava a fun-
há anos programas de estudos da Shoá direcionados especificamente ao cionar como uma função bastante específica, qual seja, a construção (e o
fortalecimento da identidade judaica de alunos de escolas judaicas. Isso fortalecimento) de identidades. Neste campo, e este era o grande risco,
17 Utilizo aqui a definição lapidar de Levi para se referir aos mortos a aos que resistiram à
os estudos da Shoá não estariam restritos apenas aos estudos judaicos e
catástrofe nazista. Ver: LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: Os delitos, os castigos, as de genocídios, mas passavam a ser produzidos no interior das comunida-
cenas, as impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. des judaicas, ou em estruturas acadêmicas vinculadas a tais comunidades.
18 Me refiro aqui a projetos sobre o estudo da Shoá no Brasil, como o caso do programa Marcha
da Vida, iniciado nas escolas judaicas no Rio de Janeiro em 2008. Ver: GHERMAN, Michel. O
Neste sentido, a Shoá passaria a ser um “tema de judeus”.
sionismo e o uso político9pedagógico9da9memória9da9Shoá. Disponível em: <http://semina-
riomemoriatraumaereparacao.weebly.com/uploads/1/4/8/8/14881944/ghermmanmichel.pdf>.

180 181
Debate sobre a Shoá no Contexto Brasileiro participação dos soldados judeus brasileiros na II Guerra Mundial, tam-
bém são relativamente poucas as homenagens e eventos sobre o assunto,
No Brasil há semelhanças com os quadros citados acima. No contexto local
seja no interior da comunidade judaica, seja a interação comunitária com
há uma relevante produção acerca de estudos sobre a imigração judaica,19
a sociedade maior.
existe um debate bastante numeroso sobre a fuga de judeus da Europa
Aqui, é interessante notar que mesmo no interior da área de estudos
ameaçada pelo nazismo20 e podem até ser encontradas importantes publi-
judaicos, há pouquíssimas pesquisas sobre, por exemplo, biografias destes
cações (acadêmicas e didáticas) sobre testemunhos de sobreviventes da
judeus brasileiros que serviram na Força Expedicionária brasileira na Itália,
Shoá que se estabeleceram no país.21
as impressões de soldados de origem judaica ao serem convocados para lutar
Pode ser desnecessário atentar sobre o interesse político e acadêmico
conta seus mais duros inimigos, ou mesmo a sociabilidade destes jovens
que biografias de sobreviventes, livros e pesquisas sobre a Shoá tem por
que retornam da guerra para o seio de famílias judias e de suas respectivas
aqui. Porém, para demonstrar tal interesse bastaria notar o sucesso de
comunidades. Enfim, as possibilidades temáticas poderiam ser variados e
vendas que tem tido livros sobre o tema e grande número de cursos e
pungentes, mas elas, em grande medida, não garantiram muitas pesquisas e
de pesquisas sobre a Shoá realizados no país.22 Por fim, vale destacar os
reflexões sobre a ida de judeus soldados para a guerra na Europa.
esforços políticos protagonizados pela comunidade judaica, no sentido de
Como exceção, cito o livro de Israel Blajberg, “Soldados que Vieram
transformar a temática escolar.23
de Longe” (BLAJBERG; CAMPELO, 2014), que mapeou e organizou os
Por outro lado, é interessante analisar uma espécie de silêncio sobre
nomes de judeus que se juntaram a Força Expedicionária Brasileira. Para
outro tema importante, qual seja, a participação de soldados judeus na
além do livro cima citado há um imenso deserto, um quase silêncio sobre
Força Expedicionária Brasileira (FEB). Dentre os mais de 25 mil soldados
o assunto.
brasileiros enviados à Europa, havia cerca de 40 judeus presentes. Apesar
Este quadro pode fazer crer que mesmo entre pesquisadores de temas
disso, pode-se notar que a produção sobre a participação judaica na FEB
afins, há uma “preferência” por estudos da Shoá (bastante numerosos no
é relativamente pequena. Além disso, é pequena também a visibilidade
Brasil) em relação a estudos, por exemplo, sobre a participação judaica-
comunitária e social do assunto. Para além de haver poucas obras sobre a
-brasileira na II Guerra Mundial, que, como tentei demonstrar acima, eram
19 Algumas referências do debate acerca da questão da imigração judaica: GRIN, Monica. bastante escassos nos contextos intelectual e comunitários do brasileiros.
Etnicidade e Cultura Política no Brasil – O Caso de Imigrantes Judeus do Leste Europeu. Aposto também em outras possibilidades políticas de se compreender
Revista Brasileira de Ciências Sociais n. 28; GRINBERG, Keila (Org.). Os Judeus no Brasil. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; FRIDMAN, Fania. Paisagem estrangeira. Memórias o contexto de produção proposto acima. O genocídio dos judeus marca a
de Um Bairro Judeu no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj, CNPq, Casa da Palavra. 2007. “excepcionalidade” da situação judaica na II Guerra Mundial (KRAUSZ,
20 Como exemplos de produções acerca deste debate: TUCCI, C. L. Maria. O anti-semitismo na 2009: 111),24 nesse sentido ele também pode iluminar perspectivas excep-
Era Vargas. São Paulo: Brasiliense, 1885; LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica. Rio de
Janeiro: Imago, 1995; KOIFMAN, Fabio: Quixote nas Trevas: O Embaixador Souza Dantas e os cionais em um contexto onde os judeus, como grupo minoritário, neces-
Refugiados no Nazismo. Rio de Janeiro. Editora: Record. Data: 2002. sitam de uma “cartas de entrada” para a sociedade brasileira. Acredito que
21 Aqui, apenas como exemplo cito dois entre os vários livros publicados por sobreviventes esse processo se torne mais relevante no quadro social e político que o
ou sobre sobreviventes, no Brasil. A temática desses livros é, via de regra, a experiência de
sofrimento e humilhações de sobreviventes do holocausto durante a II Grande Guerra. Ver: Brasil apresenta a partir dos primeiros anos do século XXI.
LAKS, Alexander; SENDER Tova. O sobrevivente: Memórias de um brasileiro que escapou de
Auschwitz. Rio de Janeiro: Record. 2014; BEN ABRAHAM. Izkor. São Paulo: Parma. 1979.
22 Aqui podemos destacar, por exemplo, o Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da 24 O debate sobre excepcionalidade judaica é estabelecido a partir dos estudos sobre excep-
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, referência cionalidade americana e ganha outro viés pelo debate sobre Israel e o Sionismo. A ideia
em estudo da Shoá e seu arquivo digital, Arqshoá, grande sucesso de acessos mensais. de acerca da categoria de nação dos judeus contribui para a dimensão de excepcionali-
23 Aqui destaco os programas de Marcha da Vida nas escolas judaicas e os projetos de lei que dade desterritorializada em uma Europa nacionalizada do século XX. Ver: KRAUSZ, Luiz.
visam incluir o holocausto como matéria no programa de ensinos das escolas publicas bra- Uma Viagem aos Judeus, pp. 111-115..Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/webmosaica/
sileiras. Disponível em: <http://www.bnai-brith.com.br/>. article/viewFile/11986/7127>.

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Durante os anos 2000, o país parece caminhar para um projeto de Pretendo agora fazer iniciar uma reflexão sobre o lugar político da “memó-
modelo claro de multiculturalismo, onde, em contra partida a uma “brasi- ria da Shoá” no contexto da comunidade judaica brasileira.26 Procurarei dis-
lidade” geral e compartilhada, cada grupo cultural e étnico busca trazer e cutir esta possível “política de identidade” a partir de duas figuras bastante
construir novas identidades “hifenizadas” (LESSER, 2008) e complementa- conhecidas do público brasileiro em geral, quais sejam: Salomão Malina,
res. Aqui, referências à África (e a escravidão) passam a ser fundamentais tenente do 11º regimento da FEB (e posterior dirigente do Partido Comunista
na construção das novas identidades dos negros brasileiros. Tais negros Brasileiro) e o Sr. Aleksander Laks, recentemente falecido a quem conven-
passam agora a ser reconhecidos como afro-brasileiro. Desta mesma forma, cionou-se chamar somente de “sobrevivente do holocausto”. Este título se
referências a invasões e às formas de genocídio passam a ser fundamentais explica pelo fato de Laks ter-se dedicado, principalmente nas últimas déca-
na consolidação da identidade dos povos indígenas do país. das de vida, a contar, nos mais variados ambientes educacionais, sua história
Neste cenário multicultural em formação, referências similares (sem- pessoal, de carga dramática indescritível, durante os anos da Shoá.
pre positivas e de superação) estabelecem um novo discurso identitário Antes, cabe aqui lembrar que este debate, longe de ser restrito e
brasileiro. Aqui, o japonês vira nipo-brasileiro; o chinês, sino-brasileiro; o local, é, como dito anteriormente, conhecido em outros ambientes fora
árabe, árabe-brasileiro e por aí vai. Neste contexto, sofrimento, persegui- do Brasil. Como já debatido, a participação judaica na guerra constitui-se
ção, luta e superação são elementos a ser considerados e valorizados. de um fenômeno complexo e bastante diversificado. Para além de alguns
Neste momento, o judeu sobrevivente da Shoá se transforma em milhares de soldados russos, americanos, poloneses, palestinos, britâni-
referência importante. Mais do que apenas um elemento na construção cos, brasileiros etc., a presença judaica no conflito foi muito maior quando
de identidade judaica, a condição de “sobrevivente da Shoá” (ou de seus lavamos em conta os milhões de civis mortos em campos de extermínios,
descendentes), pode garantir ao judeu um lugar privilegiado nesta nova guetos e fuzilamentos no continente europeu.
“brasilidade em gestação”.25 Assim, acredito que para além de ser apenas Na memória coletiva judaica (RICOUER, 2010: 134), e na percepção
preferência pessoal de investigadores e da comunidade judaica brasileira, mundial sobre o conflito, foi justamente o que Hilberg (HILLBERG, 1985)
a hiperpresença de temas ligados ao Shoá pode indicar, no Brasil, produto chama de “destruição dos judeus da Europa”, que marcará, o papel que
de uma nova política de identidades que vai privilegiar experiências dra- o judaísmo europeu terá no conflito. Para além de soldados em campos
máticas de rupturas e tragédias, ou mesmo de trabalho e superação entre de batalha, os judeus foram participantes ativos daquela “outra Segunda
as “etnias” estabelecidas no país. Guerra Mundial”. Nesta “guerra”, cabe lembrar, eles participaram somente
Se para os indígenas as referências de genocídios passam a ser funda- como vítimas, sem armas nas mãos, foram gazeados, fuzilados e mortos
cionais neste discurso, se a escravidão passa a ser a grande referência para de todas as formas. Neste contexto, proponho que discutamos aqui o lugar
os afro-descendentes. No caso dos judeus-brasileiros, a Shoá, a experiên- político que o sobrevivente tem no discurso produzido hoje no país. Aqui,
cia do holocausto quase que se impõe. Neste contexto, o sobrevivente e a academia e a própria comunidade judaica se juntam a demandas polí-
não o soldado, passa a ser a referência a ser politicamente utilizada.
ticas específicas contemporâneas que contribuem para eclipsar o soldado
judeu como referência de “participação judaica” na guerra.
Como já notado acima, o soldado brasileiro de origem judaica que
o sobrevivente e o soldado integra a Força Expedicionária Brasileira não teve lugar político ou grada-
tivamente perde este espaço, seja em produções acadêmicas ou em ativi-
dades produzidas pela própria coletividade judaica brasileira. Este espaço
25 Este debate tem relação com a constituição da Secretaria de Proteção e Promoção da
Igualdade Racial, criada em 2002 pelo Governo Federal. Tal Secretaria passa a contar com é perdido para o “sobrevivente”, a vítima por excelência de duas guerras
representantes de diversos grupos étnicos e culturais, que demandam a inclusão de suas nar-
rativas culturais nos programas educacionais brasileiros. Ver: <http://www.seppir.gov.br/>. 26 Me refiro aqui a federações judaicas no Brasil

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que acontecem em paralelo na Europa e que ganha visibilidade e poder que os pais do primeiro tiveram de emigrar, logo após a I Guerra Mundial
no “discurso comunitário”. É, pois o sobrevivente que fala “em nome dos para o Brasil. Enquanto isso, em última análise, os pais do segundo decidi-
judeus”. É o sobrevivente que representa a comunidade judaica, é o sobre- ram não sair de Lodz, o que parece ter determinado a dolorosa experiência
vivente que estabelece conexão com a sociedade brasileira. O sobrevivente de ser vítima dos nazistas, ter sido encarcerado no gueto e, posteriormente
passa a encarnar o papel de “herói” na II Guerra. deportado para Auschwitz.
Com o lema de “holocausto nunca mais”, o sobrevivente acaba Malina teve na infância uma profunda sociabilidade judaica, vivia
tomando o espaço político e social dos soldados judeus, gradativamente no Bairro da Praça 11, que contava com grande concentração judaica na
relegados ao plano de integrantes da FEB, de soldados, de brasileiros e, cidade. Nesta ambiência, ele se envolvera com um judaísmo progressista,
eventualmente, no discurso hegemônico, de heróis do exército. Para além típico da esquerda judaica europeia. Bastante integrado à realidade bra-
disso, poucos se lembram de que alguns membros do exército, que em sileira, Malina foi matriculado no Colégio Pedro II, onde se aproximou,
última instância combateram os nazistas com armas na mão, eram judeus. muito jovem da militância na esquerda e se integrou, ainda estudante aos
De fato, judeus ashkenazitas (de origem europeia) membros reconhecidos quadros do Partido Comunista do Brasil.
da “comunidade judaica” que ao retornarem ao seu país de origem foram Malina, junto com companheiros de partido, fez parte das mobili-
considerados mais heróis pelo país pelo qual lutaram e menos heróis pela zações pela entrada do Brasil na II Guerra Mundial. Depois do colégio,
comunidade judaica local. Para os judeus brasileiros, a grande referência Malina se alistou no Exército Brasileiro, servindo no Centro de Preparação
de heroísmo era vinculada, e hoje está cada vez mais assim é, aos sobrevi- de Oficiais da Reserva do Rio de Janeiro, de onde saiu Aspirante-a-Oficial
ventes do genocídio, da tragédia, da Shoá. da Arma de Infantaria.
Neste contexto, o sobrevivente não só ganha voz, como ele passa a ser Na FEB foi incorporado ao 11º. Regimento de Infantaria de São João
uma espécie de importante recurso político. Dessa forma ele será usado e d’El Rey, hoje o 11º. Batalhão de Infantaria de Montanha, tendo coman-
reutilizado, visando o ganho de legitimidade no cenário nacional. No Brasil,
dado o Pelotão de Minas, função natural para quem havia sido enviado a
o sobrevivente passa a ser apresentado, admirado e ouvido. Em vários
fazer, antes da Guerra, um curso de especialização nesta área, nos Estados
lugares, o sobrevivente ganha um novo status social, se transformando
Unidos. Pela participação na Guerra, Malina foi condecorado com a maior
em categoria política importante e empurrando para a periferia social as
condecoração do Exército Brasileiro, a cruz de combate de primeira classe.
experiências que poderiam também ser privilegiadas, como a dos soldados
Apesar de ser uma espécie de símbolo de sucesso, heroísmo e bravura
regulares que lutaram em guerras e conflitos armados tradicionais.
em uma guerra que produzira milhões de vítimas judas civis na Europa,
Como demonstrativo deste quadro, tomamos as biografias de dois
poucas, são as referências acadêmicas e políticas a Malina nos estudos
judeus envolvidos diretamente com as experiências, respectivamente,
judaicos ou na política interna da comunidade. De fato, para além de
de soldado regular e de sobrevivente do holocausto. Salomão Malina e
algumas homenagens e do já citado livro de Israel Blajberg, não há muitas
Alexander Laks. Ambos são membros da geração que foi mais duramente
publicações ou usos políticos da figura de um judeu condecorado na II
atingida pela Segunda Guerra Mundial. Malina, nascido em 1922, na
Guerra Mundial.
cidade do Rio de Janeiro, e Laks, ou “Seu Laks”, como era carinhosamente
chamado, nasceu na cidade de Lodz, na Polônia em 1926. Por outro lado, Alexander Laks se transforma, desde os anos 1990,
Além da dimensão geracional, havia uma proximidade político-geo- no símbolo maior da experiência judaica na guerra, além de personificar
gráfica entre ambos, se Laks nascera em Lodz, os pais de Malina eram ori- a identidade judaica de maneira mais pungente, perante a comunidade.
ginários da mesma cidade. Assim, em um irresponsável exercício de his- Importante notar que Laks chega a representar a coletividade judaica em
tória contrafactual, podemos afirmar que o que determinara a experiência
de vida do soldado Malina e a do sobrevivente Laks, poderia ser a decisão

186 187
solenidades e homenagens diversas, nem todas ligadas diretamente ao Outro ponto importante, a força do testemunho e do trauma incorpo-
holocausto ou a II Guerra Mundial.27 rados nas falas de Laks devem ser entendidos a partir do seu já citado uso
Laks vai ser internado em um gueto da cidade de Lodz aos 13 anos. político. Nesse contexto, todas as escolas, clubes e entidades que recebiam
Vivendo sobre a tirania de Chaim Rumkovski, líder judeu no gueto (diri- o “sobrevivente”, dentro e fora da “comunidade”, acabavam por entendê-lo
gente do Judenrat- Conselho Judeu do Gueto), Laks permanece lá pratica- como referência máxima do judeu, ou seja, a vítima ultimativa era o judeu
mente até sua eliminação, em 1944. De lá ele é deportado para Auschwitz por excelência. Auschwitz assim pavimentava o caminho para um lugar polí-
passando pelas marchas da morte, no inverno de 1945. tico muito determinado em um Brasil novo que se desenhava no horizonte.
Ao contrário de Malina as narrativas de Laks são utilizadas até as O mesmo não ocorria com Malina, ou com nenhum outro dos vete-
náuseas pela comunidade judaica. Ele se transforma em uma espécie de ranos judeus da FEB. Os veteranos eram soldados, como outros soldados.
máquina de contar a história do gueto e dos campos de extermínio pelos Sua identidade judaica não havia determinado (a princípio) seu alista-
quais passou. A apresentações que ele faz em escolas, sindicatos, universi- mento e nem sua vitimização. Ademais, não há nada de excepcional em
dades, clubes, no exército, em partidos políticos e em tantos outros lugares ser soldado.
são explicadas como o compromisso do judeu com a “memória” da tragé- Aqui, está claro que para a comunidade judaica, a figura chave do
dia. Como resultado desses encontros, Laks torna-se conhecido na cidade judeu deve ser a Aquela de Laks e não a de Malinas, a referência deve estar,
e no país, é inúmeras vezes recebe prêmios e condecorações, além de ser com o sobrevivente do holocausto e com o veterano da II Guerra.
tema de teses dissertações, livros e pesquisas. Para além da chamada excepcionalidade judaica, a experiência de
No Brasil, o papel do judeu soldado judeu na guerra, é praticamente Laks é enormemente importante, como já dito anteriormente, na consoli-
desconsiderado nos usos políticos da comunidade judaica. No contexto dação de uma memória judaica no panteão de vitimas do nascente multi-
nacional temos impressão que apenas a experiência do sobrevivente culturalismo brasileiro. Aqui ao lado do genocídio indígena, da escravidão
parece importante. Não há encontros entre soldados e sobreviventes, os negra, os anos 1990 marcam a entrada do excepcional sofrimento judaico
soldados judeus que combateram o nazismo não são convidados para na Shoá, o que criará formas de diálogo e força política na nova realidade
palestras em escolas ou universidades, os veteranos não são chamados a brasileira. Neste sentido, nada mais adequado do que ter um sobrevivente
prestar depoimentos em dias festivos e raramente são temas de disserta- talentoso e comprometido para guardar sua chave, aqui Laks deixa de ser
ções e teses acadêmicas. É o sobrevivente que se torna a “figura do judeu”, somente “O sobrevivente”, ele passa a ser a imagem de judeu para a comu-
seja nos marcos comunitários, seja fora deles. O soldado, em contrapar- nidade brasileira.
tida, apenas incorpora a referência do heroísmo brasileiro, seu judaísmo e
sua identidade judaica são raramente mencionadas. conclusão
Aqui me pergunto quais são as motivações para que isso ocorra. Em
um primeiro momento, me parece que para além de vínculos com mili- Este artigo pretendeu servir de reflexão inicial acerca da construção da
tares de outros contextos (me refiro aqui ao contexto de Israel e os confli- identidade e da memória dos judeus no Brasil. O fato de ter o fim da II
tos com seus vizinhos) não há na comunidade judaica brasileira maiores Guerra Mundial ter sido pouco lembrado por membros da comunidade
relações com soldados judeus heróis de guerra. Neste sentido, a referência judaica brasileira e dos centros de estudos judaicos no Brasil abriu um
fundamental parece ser Shoá. É ela que cria identidades e fortalece víncu- questionamento acerca do significado deste quadro. Por outro lado, enti-
los de destino entre judeus e judeus. dades judaicas, centros de estudos acadêmicos judaicos e grupos próximo
de federações israelitas organizaram uma série de atos de lembrança em
27 Me refiro aqui a eventos ligados a Independência de Israel, a educação e a contatos com relação a liberação de Aushwitz, maior campo de concentração nazista. O
escolas e entidades de ensino judaico. Como exemplo, a manifestação contra a perseguição
que isso significava?
dos Bah’ai. Ver: <http://www.owurman.com/blog/index_17_05_10.htm>.

188 189
Tentei apresentar no artigo a ideia de que em cenários políticos deter- BEN ABRAHAM. Izkor. São Paulo: Parma. 1979.
minados, a Shoá e os sobreviventes do holocausto podem servir para BLAJBERG, Israel; CAMPELO, Rui. Soldados que vieram de longe: Os 42 heróis
incorporar a imagem do judeu, perseguido e indefeso. Por outro lado, sol- judeus brasileiros da Segunda Guerra Mundial. Rezende: AHIMTB, 2014.
dados regulares, que lutam de arma na mão servem pouco a interesses BURG, Avraham. The holocaust is over we must rise from its ashes. Pallgrave
específicos, sendo alijados, ou quase alijados do discurso comunitário. MacMillan: Nova York. 2008.
O conceito chave nessa situação tem a ver, a meu ver, com excepcio- FRIEDLANDER, Saul. Nazi Germany and the jews: The years of persecution, 1933-
nalidade. Nada menos distante de uma situação excepcional do que a luta 1939. New York: Harper Collins, 1997.
regular em exército regulares em exércitos regulares. Ao contrário disso, a FRIDMAN, Fania. Paisagem estrangeira: memórias de um bairro judeu no Rio de
análise e a biografia de “soldados judeus”, na II Guerra Mundial, apontaria Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj, CNPq, Casa da Palavra. 2007.
para exemplos de integração bem-sucedidos e de heroísmo clássico. GHERMAN, Michel. O Sionismo e o uso político pedagógico9da9memória-
Em contrapartida, a figura do judeus “sobrevivente” pode apontar 9da9Shoá. Disponível em: <http://seminariomemoriatraumaereparacao.weebly.
com/uploads/1/4/8/8/14881944/ghermmanmichel.pdf>.
para uma situação “especial”, “fora de série” que permita a percepção do
judeu como vítima de último grau, o que vai garantir que ele se coloque ao GRINBERG, Keila (Org.). Os judeus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.
lado de outras “vítimas brasileiras”, sejam os escravos, ou índios ou outros
GRIN, Monica. Etnicidade e cultura política no Brasil: O caso de imigrantes judeus
grupos que para cá imigraram (ou foram transportados). Meu interesse
do Leste Europeu. Revista Brasileira de Ciências Sociais n. 28.
no artigo foi entender como a memória da Shoá pôde servir a interesses de
HILBERG, Raul. The Destruction of the European Jews: Revised and Definitive
uma comunidade judaica em uma situação de construção do multicultu-
Edition. Nova York: Holmes & Méier, 1985.
ralismo brasileiro. Neste contexto, sofrimento é poder e muito sofrimento
JUDT, Tony. Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro:
é muito poder.
Objetiva. 2007.
O debate sobre as biografias de dois judeus imigrantes para o Brasil,
KASSOW, Samuel. Quem escreverá nossa história? São Paulo: Companhia das
Malina e Laks, pretendeu iniciar uma discussão sobre o lugar diferenciado
Letras. 2009.
que a memória do Shoá e da II Guerra tem hoje no Brasil. Pretendi fazer tal
KOIFMAN, Fabio: Quixote nas trevas: O embaixador Souza Dantas e os refugiados
discussão analisando seus usos políticos e usos da memória, Finalmente no Nazismo. Rio de Janeiro. Editora: Record. Data: 2002.
a superexposição de Laks (e de outros sobrevivente da Shoá) e o silencia-
KRAUSZ, Luiz. Uma Viagem aos Judeus. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.
mento comunitário apontam para preferência e tendências de uso político br/webmosaica/article/viewFile/11986/7127>.
e imagem.
LAKS, Alexander; SENDER Tova. O sobrevivente: memórias de um brasileiro que
escapou de Auschwitz. Rio de Janeiro: Record. 2014.
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190 191
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Fontes
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http://www.bnai-brith.com.br/.
http://www.owurman.com/blog/index_17_05_10.htm.
http://www.haaretz.com/jewish/news/.premium-1.639023
Sionismo, palestinos
e o conflito árabe-israelense

192
Valsa com Bashir e o massacre de Sabra
e Chatila: entre a amnésia política e a
responsabilidade da memória
Michel Gherman

O presente artigo pretende debater a memória israelense a respeito da


Guerra do Líbano de 1982, bem como os esquecimentos e as lembranças
da sociedade israelense em torno do massacre no Campo de Refugiados
palestinos de Sabra e Chatila ocorrido no mesmo ano. Essa reflexão será
feita através do filme Valsa com Bashir, de 2008. Pretende-se também exa-
minar a recepção do filme pela sociedade israelense quase 30 anos após
o evento. Ao discutir a “memória nacional” de Israel, o filme faz uso das
vozes de soldados combatentes, que são parte importante da elite social,
cultural e política desta sociedade e que, no decorrer do filme, criticam
duramente o uso político da estrutura militar de Israel, ousando propor
comparações desafiadores entre a memória social acerca do massacre e
outras questões que estão no consenso da sociedade israelense.

a fonte, o decodificador e a autonomia da obra


A experiência de assistir filmes em salas de cinema lotadas pode consistir
em um evento especial, permitindo análises interessantes. A mim parece
importante observar a reação do público em momentos em que há muita
gente compartilhando o mesmo local, sendo testemunha de um espe-
táculo que já foi exibido antes (muitas vezes), que é protagonizado por
atores e atrizes que não estão presentes no ato da exibição e que, inde-
pendentemente do comportamento da plateia, não alterarão, em nenhum
momento, sua forma de atuar.
Esse isolamento entre a plateia e a obra pode colorir a exibição de
filmes em espaços públicos com cores de uma estabilidade conservadora,
uma percepção de inatingibilidade da obra, uma soberania do produtor

195
em relação ao receptor que impediria, de todas as formas, a atuação ou o Como propõe Hall (1996) em suas dialéticas de usos culturais contra-
protagonismo da audiência. -hegemônicos, há três possibilidades de usufruir de produções culturais:
Por essas questões, é sedutora a experiência de ver filmes em que a
a) Uma posição dominante ou preferencial, quando o referencial está na mão
plateia “não respeita as regras do jogo” (BOURDIEU, 1996:16), em que há do decodificador primeiro, do autor, do diretor ou de quem pensa deter a
a desconsideração de que a “produção” está “pronta”, em que acontecem referência de construção.
manifestações durante a exibição do filme. Assim, demonstrações espon-
b) Recepção dialógica ou negociada, quando o sentido da mensagem entra em
tâneas, aplausos em relação a cenas específicas, vaias e comentários em negociação e em diálogo com condições particulares dos receptores.
salas de cinema reavivam e dão outra função a uma plateia que tem como
“papel original” estar “morta”, inerte, consumindo de forma assimétrica o c) Recepção de oposição, quando o receptor entende a proposta original, mas a
interpreta segundo uma referência alternativa.
produto cultural que, no caso, é o filme no cinema.
É claro que há manifestações individuais, um riso mais alto, um Enfim, quando a apropriação de uma obra artística é dialógica ou
lágrima que cai durante uma cena mais triste ou romântica, mas estas são capaz de alcançar tal ponto de autonomia que seu reuso é explícito, que
práticas que não alteram a experiência do público como um todo. Tais sua releitura ocorre de forma aberta através de manifestações claras na
reações não recriam a dinâmica de recepção e produção de imagens, não plateia, temos uma experiência em que a análise deve ser considerada
contaminam o “assistir o filme”: a maioria das pessoas presentes não vai também do lado de cá da tela: do lado da recepção, dos espectadores,
sentir e compartilhar o “uso do filme”, enquanto as manifestações forem daqueles que deglutem e transformam a significação original por meio
exclusivamente individuais. da audiência, consumindo de maneira criativa uma obra que passa a ser
As vaias, os aplausos e quaisquer outras manifestações coletivas no aberta, exumada, disposta sobre a mesa, a serviço dos interesses da plateia
cinema, têm, por outro lado, a força de alterar a dinâmica de “recepção (BOAVENTURA, 1985), uma obra a ser dissecada em público.
hegemônica” de um filme. Utilizo aqui o termo “recepção hegemônica”
nos termos do que Hall chama de “formas hegemônicas” nas experiências valsa com bashir:
culturais: “ser perfeitamente hegemônico é fazer com que cada significado o campo, os campos e a amnésia coletiva
que você9quer9comunicar9seja9compreedido pela audiência somente
daquela maneira pretendida” (HALL, 2003: 366). Quando reflito sobre o filme Valsa com Bashir (Ari Folman, Israel, 2008),
A quebra, a ruptura da autonomia do “codificador”, e também de seu não posso deixar de trazer minha experiência como espectador dessa
poder e de sua hegemonia, significam, em grande medida, que a obra pro- obra em plateia de sala de cinema. Vi Valsa com Bashir em Israel, em Beer
posta, a forma de obra original, seja revista, ressignificada (ou de-signifi- Sheva, cidade localizada no deserto do Neguev, uma digna representante
cada), reutilizada. Enfim, transformada pela audiência. da periferia social israelense. O cinema estava completamente lotado. Em
Existem, nesta lógica, ordens, possibilidades e níveis de estabeleci- Israel, as pessoas falavam incessantemente antes do início da exibição de
mento e limites da “contaminação” de obras de arte e de produtos culturais Valsa. Comentava-se sobre “supostas posições anti-israelenses do filme”,
pelo público: há trabalhos, peças e filmes que são herméticos e fechados sobre a possibilidade do Oscar e, eventualmente, sobre experiências pes-
em relação à assistência, que não dão possibilidade de aproximação crítica soais na Guerra do Líbano.
da plateia, e são assim absolutamente autônomos e invariáveis em relação Diálogos despretensiosos continuavam a ocupar a sala de cinema até
a quem os assiste. Outras obras permitem alguma negociação e diálogo o início do filme. Quando as primeiras cenas de Valsa saltaram na tela,
com quem assiste. E, finalmente, há trabalhos que se deixam ser degluti- senti como se uma tremenda cortina de silêncio tivesse baixado sobre a
dos, des-significados e reutilizados pela interpretação de quem os vê, os plateia. Esse silêncio acompanhou todo transcurso da exibição do filme e
assiste e os toca. se estabeleceu de maneira definitiva após seu final.

196 197
Durante longos minutos, ninguém se levantava ou comentava algo. ambas se transformava em memória quando o significado do esqueci-
Nada. As informações técnicas do filme passavam na tela, acompanha- mento era posto à mesa.
das pela música, indicando que não haveria mais continuidade na narra- Ary Folman, Boaz (seu amigo que pede ajuda por não entender um
tiva. Apesar disso, não se percebia movimento e ninguém se encaminhava sonho com 26 cachorros), Karmi Kaanan, (seu amigo de futuro promissor
para a saída. Quando finalmente a luz se acendeu, as primeiras pessoas se que se transforma em um vendedor de falafel...), a plateia toda em Beer
levantaram, mas a grande maioria permanecia sentada, se entreolhando, Sheva e, porque não dizer, todo um país, revisitam o lugar mais distante
se redescobrindo e se enxergando. de Beer Sheva, de Tel Aviv, de Jerusalém; na memória coletiva israelense,
Na tela, a animação autobiográfica Valsa com Bashir servira como todo um país revisita o Campo de Refugiados de Sabra e Chatila, no dia
um grande espelho, a realidade ditada por desenhos que eram dotados do massacre no dia 14 de setembro de 1982, a partir da história de Folman
de movimentos irreais que faziam com que a plateia pudesse ver, ou rever, e seus amigos.
páginas da memória coletiva que, pintadas com cores de chumbo, não Esta experiência traz em sua narrativa a referência do que não pode
combinavam com as cores alegres e inusitadas mostradas no filme. ser dito facilmente. Na memória coletiva da sociedade israelense, a reali-
Acredito que o que pode explicar mais ainda a reação silenciosa da dade dos campos de refugiados palestinos em Beirute ocidental está dis-
plateia depois do final da exibição de Valsa esteja relacionado à última cena tante das cidades israelenses (de hoje e mesmo de 1982), como as cenas do
do filme. Após horas de animação e cores, o filme apresenta, de maneira filme mostram muito bem; porém, está presente na memória, ou no “lugar
inapelável, as chocantes cenas verdadeiras do massacre de Sabra e Chatila, de memória” da consciência israelense. Ainda, os campos Sabra e Chatila
evento em torno do qual a narrativa do filme gira. Aqui, a animação abre dialogam com Auschwitz no campo da representação e da memória.
espaço, da forma mais repentina possível, para quadros da realidade do É este o silêncio que cai sobre a sala do cinema em Beer Sheva: a
massacre: crianças mortas e mulheres desesperadas são vistas, não mais compreensão do massacre a partir desse ponto de vista faz com que última
cena do filme sugue toda a plateia para a tela. Somos agora todos Folman e
por intermédio da estratégia de animação que mantém o espectador a
Boaz, somos agora todos soldados que sofremos com amnésia de Guerra.
certa distância; agora, elas são notadas a partir de um convite claro para a
Assistir o filme Valsa com Bashir, em um cinema em Israel, foi uma
observação direta do morticínio.
experiência contra hegemônica, de apropriação criativa das mais radicais
Depois de uma busca constante por uma memória “apagada”, o per-
que eu já tive.
sonagem principal do filme, soldado que “interpreta” o próprio diretor do
filme, Ary Folman, encontra respostas para esta sua (sua? nossa? Coletiva
ou individual?) amnésia. Seu terapeuta e amigo, que é consultado algumas
da guerra e do massacre:
memória de lembranças e esquecimentos
vezes durante a narrativa de “Valsa”, o leva a fazer a mais terrível das rela-
ções e a, finalmente, recuperar a memória. Diz ele a Ary: “quando você O filme Valsa com Bashir não é um filme de guerra, muito menos um filme
pensa no campo de refugiados [de Sabra e Chatila], diz ele, você não está sobre a Guerra do Líbano. Ao contrário, Valsa trata de memória, e não de
pensado somente neste campo. Seus pais são sobreviventes dos campos história, e o centro dessa memória é justamente a referência ao esqueci-
nazistas, não? Então você está pensando naqueles campos”. mento. Ary e seus companheiros de farda “sabiam” terem estado nos cam-
A recuperação do massacre de Sabra e Chatila, em 1982, ocorre a par- pos de Sabra e Chatila, “sabiam” terem estado de alguma maneira envolvi-
tir de outro massacre. O processo do filme faz Ary, o ex-soldado, filho de dos no massacre em setembro de 1982, mas não se “lembravam” dele.
sobreviventes, dar sentido à experiência do Líbano a partir da narrativa A construção da memória de três dos protagonistas do filme (Ary,
pessoal, familiar e nacional da Shoá. O filme mostra uma memória que Boaz e Carmi) passa pelo mesmo canal, usa o mesmo esquema e trabalha
estava apagada pela outra memória. A incapacidade de representação de com a mesma dinâmica. Os três acima se referem ao massacre como algo

198 199
“que não está no meu sistema”. Essa afirmação aponta para a impossibi- valsa com bashir: do centro da cultura israelense à
lidade que a memória tem de lidar com um evento fora de padrões de periferia da guerra
comportamento cotidiano.
Em filmes de guerra, a audiência pode acompanhar o desenvolvimento de
Ser soldado e participar de batalhas contra inimigos armados fazem
histórias de bravura ou sofrimento, vitimização ou heroísmo, a partir de
parte do sistema dos três personagens acima; porém, estar envolvido em
transformações físicas e espirituais de seus protagonistas. Soldados com-
um massacre contra inocentes e dar suporte a assassinos sem questionar
batentes sofrem, como consequência da guerra, mudanças em seu corpo
ordens superiores, não. A memória funciona de maneira diferente aqui,
e em seu comportamento. Essa metamorfose é vista como referência fun-
transformando-se em esquecimento.
damental do cinema de guerra. O “espetáculo” sangrento do homem que
O filme lida de maneira direta com a história de soldados que, como
se metamorfiza em uma máquina de guerra é fundamental no cinema que
partes do serviço militar obrigatório, são enviados primeiro para o sul do
gira em torno de confrontos armados.
Líbano e, depois, para Beirute ocidental; lá, em algum momento, eles par-
Nas palavras do autor Neeman (2008: 2), “o visual da ferida aberta é e
ticipam do massacre em campos de refugiados palestinos. Aqui, nenhum
sempre foi um espetáculo de paixão e terror, o corpo marcado por cicatri-
deles consegue lidar com essas memórias.
zes; os órgãos internos que saem do corpo aberto consistem em um visual
As histórias da guerra são terríveis: “assassinatos de civis, guerra con-
que atrai espectadores que tem seus corpos inteiros”.
tra crianças, morte de companheiros de farda, enfim, estas são lembran-
O filme Valsa com Bashir não é, como dito acima, exatamente um
ças doloridas, porém presentes” (YOUSEF, 2008: 8). Em relação ao dia do filme de guerra; não é sequer um filme antiguerra, como é o caso de alguns
Massacre, há esquecimento. Memória de esquecimento. clássicos do gênero. Valsa é mais do que isso, é um filme sobre memórias
De maneira indireta, o filme fala sobre a “memória coletiva” da guerra. da guerra, é um filme sobre o lidar com o presente a partir das “marcas que
Da mesma forma que, individualmente, a guerra do Líbano é lembrada a o passado deixou”. O filme de Folman é urbano e se insere, sem dúvida, no
partir dos combates e das batalhas, como é o caso dos três soldados, no contexto do lado de cá da fronteira, mas recupera experiências de quem
coletivo também há memória das vitórias militares, das derrotas do exér- nunca conseguiu sair totalmente do Líbano.
cito de Israel em batalhas específicas, enquanto há enorme dificuldade de O início da animação é arrebatador e potente. Vinte e seis “cachorros
se lidar com a memória do massacre. loucos” correm pelas ruas de Tel Aviv e se prostram abaixo do aparta-
Aqui, há um diálogo direto com a audiência. A lembrança e o esque- mento de Boaz, antigo combatente no Líbano. O prédio do ex-soldado
cimento são compartilhados, de parte a parte. É importante notar que está localizado na Avenida Rotshild, centro da boêmia e da burguesia libe-
memória não se refere ao passado, mas sim a um presente que lida com o ral da cidade mais progressista e cosmopolita de Israel. Desconsiderando
passado, com um presente que reconstrói, a partir de suas possibilidades, tal fato, os cães passam por bares e quiosques onde pessoas bebem, con-
o passado. versam e se encontram. Elas são atropeladas pelos cachorros descontrola-
Nas palavras de Ricoeur (RICOEUR, 2007: 413), “a memória é sempre dos que, além de afetarem a agradável rotina da metrópole, incomodam o
atual, uma experiência que vive o presente eterno”. Assim, ao entender- sono de Boaz, já que ladram sob a janela de onde ele dorme.
mos lembrança e esquecimento como elementos constitutivos da memó- Na segunda cena, somos levados a entender que o “ataque dos cachor-
ria, e a memória como uma referência ao tempo presente e não ao tempo ros loucos” (clavim hameshugaim) é na realidade, um sonho recorrente
passado, podemos ver o filme Valsa com Bashir como um debate sobre que Boaz tem desde que voltou da Guerra do Líbano, em 1982. Assim,
memória (em que o esquecimento é referência fundamental) e sobre as Boaz convida o diretor o filme, Ary Folman, para uma conversa em um
formas de como a sociedade israelense lida com temas como o massacre bar no porto ao localizado ao norte de Tel Aviv.
de Sabra e Chatila hoje. Essa segunda cena mostra o encontro de dois ex-combatentes do
exército de Israel, novamente em um dos importantes centros de vida

200 201
noturna da cidade de Tel Aviv. A conversa de Boaz e Ary não deixa dúvida trauma é uma barreira na consciência causada por referências que incapa-
do perfil sociocultural dos protagonistas. Expressões muito específicas citam a reflexão sobre determinado tema, a partir de questões morais, de
marcam o hebraico dos dois: é uma linguagem informal e recheada de consciência ou de sofrimentos.
gírias que mesclam expressões árabes modernizadas e a forma de comu- Assim, Raz (RAZ, 2008: 6-8), em seu artigo sobre memória e história
nicação típica de antigos companheiros de farda efetivamente aponta para no cinema israelense, explica que “o trauma é uma experiência que não
a origem dos interlocutores. pode ser representada, sendo assim ele retorna o tempo todo, sem desa-
São judeus ashkenazitas,1 seculares, homens e ex-combatentes que, parecer, mas sem ser representado. O trauma é uma crise da memória e
provavelmente, votam em partidos de centro esquerda em Israel. Eles são da consciência.
o que o historiador Kimmerlig (2001) chama de “núcleo duro da israe- O início da jornada de Ary o transforma: de cidadão que pertence ao
lidade”, ou seja, figuras centrais na construção ideológica do Estado de núcleo duro de Tel Aviv, ele passa a ser alguém que toma consciência de
Israel, produtos finais da “normalização judaica” produzida pelo sionismo. seu trauma, que, de alguma maneira, o remete a uma identidade menos
A conversa entre dois judeus seculares, progressistas e ashkenazi- central, mais periférica, retorna a lugares de origem e tenta entender sua
tas em um bar, durante uma noite chuvosa em um bar no norte de Tel experiência no Líbano. Essa viagem à memória se inicia com a experiência
Aviv, deveria fortalecer o estigma de “elite cultural, social e econômica” de outra figura central-periférica: um soldado combatente que não pode
do quadro acima. Porém, isso não é o que ocorre. Lentamente, Boaz e Ary
atirar em pessoas.
mostram elementos mais periféricos do que centrais em suas identidades
O filme traduz a impossibilidade de representação das memórias da
israelenses de ex-combatentes (kravim): ambos não conseguem lidar com
guerra, usando a linguagem da animação (apesar de as vozes serem reais):
as memórias da guerra.
Folman dá forma ao não pensável, representando a realidade não com
Boaz, apesar de ser um combatente treinado e estar na guerra, não
“formas reais”. Essa estratégia fica clara quando, ao entrevistar seu amigo
conseguia atirar em seres humanos. Por isso, recebeu do seu comandante
Karmi, que vive desde muitos anos na Holanda, Ary questiona se pode
uma tarefa específica: silenciar os cachorros antes da entrada das tropas.
desenhá-lo. Karmi responde: “contanto que você não fotografe, não há
Foram ao todo 26 cães mortos dos quais ele “se lembra com clareza de
problema”. Aqui vemos mais um dos antigos companheiros de Ary que
todos, de todas as cicatrizes e de todos os ruídos que fizeram ao morrer.”
Ary, ao ser perguntado por seu amigo sobre as memórias do Líbano, per- apresenta dificuldade em lidar com a realidade. A animação se parece,
cebe que também não sabe como digerir esta experiência; está claro que, mas não é a realidade da guerra: para ele, também algo ainda irrepresen-
“depois de embarcar para o Líbano, em 1982”, Folman perdeu a memória. tável, impensável e da qual não tem memória.
Assim, para recuperá-la, sai em uma “cruzada contra a amnésia”.
Valsa com Bashir é um filme sobre os traumas que a guerra causou memória do massacre: responsabilidade e consciência
em Boaz, Ary e em uma nação inteira. Aqui, nos interessa discutir o papel
A “cruzada da memória” de Ary Folman se transforma em uma tarefa
do trauma na memória israelense, o trauma da Guerra do Líbano e prin-
obsessiva; ele entrevista várias pessoas sobre a guerra, sobre a experiência
cipalmente, o trauma do massacre de Sabra e Shatila na narrativa nacional
no Líbano. Além disso, decide conversa também com terapeutas sobre a
israelense.
dimensão da memória e o trauma. Um de seus interlocutores é seu grande
Um trauma se caracteriza por ser produto de uma experiência irre-
amigo, Uri Siwan. Folman recupera memórias da guerra, lembra ilusões
presentável, de questões sobre as quais não podemos falar ou pensar. O
no aeroporto de Beirute, do dia do assassinato de Bashir Gemayel, aliado
1 O termo askenazita se refere aqui aos judeus de origem europeia. No trecho acima, há refe-
de Israel no conflito e de outros momentos do conflito; porém, a memória
rências às “elites políticas ideológicas e econômicas de Israel”, ou seja, aos judeus idealiza- do massacre continua inalcançável para Folman.
dores do sionismo, presentes nas duas primeiras imigrações (aliót) para Israel (Kimmerling,
Da mesma maneira, isto ocorre seus antigos companheiros. Não há
2001: 18-52).

202 203
entre eles a memória do dia do massacre: é como se o apoio a assassinato de você se sentiu identificado com os assassinos, você se sentiu a função dos
inocentes não estivesse, como dissemos anteriormente, “nos seus sistemas”. nazistas, em sua pele”.
Poucos são os entrevistados do filme que não estiveram no exército, Aqui, Folman, o neto dos sobreviventes da Shoá,2 consegue “recupe-
com ou sem Folman, ou mesmo que não fossem conhecidos do diretor. rar” sua memória ao entender que a identificação com o seu próprio algoz
Um dos ex-soldados do que participaram da guerra, e que estiveram pre- histórico, com o nazismo, com os nazistas e seus cúmplices.
sentes no massacre, conta que viu cristãos entrando no campo de Sabra e O filme trata da superação do trauma a partir de uma estratégia radi-
Chatila; por ter sido um dos soldados que atiravam foguetes de ilumina- cal. Em uma passagem cruel, a animação cede lugar a cenas reais do mas-
ção para ajudá-los no massacre, entendeu que estava efetivamente partici- sacre: mães choram a morte de filhos aos olhos do soldado Folman, que
pando de uma matança em que cristãos se vingavam de muçulmanos com observa tudo. O filme Valsa com Bashir transforma o tema da amnésia
o suporte de soldados de Israel. individual do soldado em uma metáfora para a falta de memória nacio-
Outra figura importante do filme, em realidade uma das poucas figu- nal. O “esquecimento” do massacre pode e deve ser superado pela respon-
ras públicas a ser entrevistada, é Ron Ben Ishay. Ben Ishay é um famoso sabilização sobre ele. Ao entender as consequências de sua indiferença,
jornalista israelense, que cobria a guerra do Líbano. Aqui o filme traz uma Folman demanda da sociedade israelense um compromisso com a memó-
perspectiva de responsabilização fundamental: Ishay afirma que informou ria, no caso a memória da guerra do massacre, o que poderá levar a outras
a Ariel Sharon sobre notícias de um massacre que acontecia nos campos responsabilidades sobre outros atos do ontem e de hoje.
de refugiados palestinos. Encerramos o artigo com as palavras de Raz:
A imagem de Sharon recebendo o telefonema do jornalista em sua
O filme nos obriga a ver o que não queremos ver, o que pedimos para esque-
fazenda no sul de Israel, sem interromper sua refeição, é o símbolo da cermos, e obriga a assumir a responsabilidade ética sobre o terror do massa-
indiferença e da irresponsabilidade com relação ao que acontecia no cre. (RAZ, 2008: 8).
Líbano. Lideranças políticas são postas em xeque, ao “utilizarem” jovens
soldados para testemunhar e apoiar massacres, tarefas para os quais estes referências bibliográficas
não estavam prontos.
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo
Por outro lado, Folman recupera aos poucos a capacidade de memó-
Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
ria, supera o trauma e se aproxima de Sabra e Chatila: ao escutar informa-
BOAVENTURA, Maria. E. A vanguarda antropofágica. São Paulo: Ática,1985.
ções de soldados e de testemunhas sobre suas funções, o diretor entende
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Cia. Das Letras, 1996.
que estava muito próximo dos campos na hora do massacre.
Ben Ishay conta que ao entrar no campo após a matança, vira uma GUEDES, Olga M. O conceito marxista de ideologia nos Estudos de Mídia britâni-
cos. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 5,pp. 35-43.
menina com cabelos encaracolados, muito parecida com sua filha e da
mesma idade, à época. A proximidade física e humana possibilita que o HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
Humanitas, 2003.
diretor visite seus “lugares de esquecimento”.
Em conversa com seu amigo terapeuta Uri Siwan, Folman diz que KIMMERLING, Baruch. The End of Ashkenazi Hegemony. Jerusalem: Keter, 2001.
(Hebrew).
está muito próximo, assim sente, de se “lembrar do massacre”. Aqui, Siwan
propõe que a indiferença com que havia participado desses episódios e ______. The Invention and Decline of Israeliness: State, Society, and the Military.
London: UCLA Press. 2001.
com que o exército havia apoiado o assassinato de inocentes era insu-
portável para ele. Na perspectiva de Siwan, Folman teria incorporado a 2 Termo hebraico que indica catástrofe. Shoá é usado, desde a obra documentária de Calude
Lanzman (Shoá: 1985) como uma forma alternativa à palavra holocausto, vista por parte
prática dos assassinos, já que a atitude de indiferença o aproximou deles: da historiografia como um termo de cunho religioso, que se referia a vítimas passivas
“você afastou o massacre de sua memória porque com a idade de 19 anos (Agamben, 2008:18-41).

204 205
NEEMAN, Jad. Feridas como presentes de guerra: Marcas e memória no corpo do
combatente. Israel , 14 , 2008.2 pp.2-22. (hebraico)
Entre a Nakba e a Shoá: usos políticos
NORA , Pierre (Org.). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard. 1984
de catástrofes em narrativas nacionais
RAZ, Yosef. Perspectiva visual: História e memória no cinema israelense. Israel 14.
2008 -1 pp. 1-16 (hebraico). Michel Gherman
RICEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp. 2007.

Este artigo tem como objetivo discutir usos políticos de duas tragédias
coletivas, a Nakba (termo utilizado pela historiografia árabe para se referir
à derrota palestina no conflito com Israel, de 1947 a 1949) e a Shoá (referên-
cia ao genocídio judaico perpretado por nazistas entre 1941 e 1945),1 por
dois distintos projetos nacionais: o sionismo e o nacionalismo palestino.2
Desde o início do século XX, sionistas e palestinos disputam a hegemo-
nia e o pertencimento sobre um mesmo território, denominado respectiva-
mente de Eretz Israel e Phalistin. Segundo correntes hegemônicas nos dois
projetos nacionais, esse território guardaria um sentido histórico coerente

1 O uso da palavra Shoá (que significa tragédia, em hebraico) é produto de uma série de pro-
cessos e mudanças ocorridas desde o reconhecimento do morticínio de milhões de judeus
europeus. Se nos fins da década de 1940 os judeus se referiam às suas tragédias usando a
categoria “destruição” (chorban), já em inícios dos anos 1960 ela se mostra insuficiente e
é gradualmente substituída pela palavra holocausto. Popularizada por Elie Wiesel, “holo-
causto” tem um representação mística e sacrificial, que leva a questionamentos sobre sua
utilização. Gradativamente, a expressão Shoá passa a ocupar o espaço e a ser uma referên-
cia para determinar o genocídio judaico na Europa. Nos anos 1980, o documentário Shoá,
de Claude Lanzmann, contribui e fortalece essa tendência. Neste artigo, optamos pelo uso
do conceito Shoá, utilizando a palavra holocausto apenas perifericamente. Ver: DANZIGER,
Leila. Shoah ou Holocausto: a Aporia dos Nomes. Arquivo Maaravi: Revista Digital de
Estudos Judaicos da UFMG. v. 1, n. 1, 2007.
2 Tanto o sionismo como o nacionalismo palestino são movimentos ideologicamente diver-
sificados e com enorme amplitude. É possível encontrar em ambos desde grupos radical-
mente seculares até agremiações profundamente religiosas, tendências mais à esquerda,
bem como correntes mais conservadoras, movimentos mais democráticos ou aqueles com
referências mais autoritárias. Apesar disso, esse projeto se concentra nos grupos hegemôni-
cos, tanto no nacionalismo judaico quanto no movimento nacional palestino. Entre os
anos 1950 e 1990, entendemos que em ambos os lados os movimentos mais secularizados e
esquerdizantes dominavam as estruturas de poder palestinas e sionistas. Cf. STERNHELL,
Zeev. The Founding Myths of Israel. Princeton: Princeton University Press, 1998 & KHALID,
Rhashid. Palestinian Identity: The Construction of Modern National Consciousness. New
York: Columbia University Press, 1997.

206 207
e exclusivo, o que faz com que ambos os grupos acionem narrativas que político) podem também reconfigurar e alterar o uso das “memórias fun-
tentam justificar, informar e argumentar que o domínio completo sobre o dantes” de tragédias e desastres. Por fim, em Algumas abordagens contem-
território deva estar sob o mandato de somente um dos dois coletivos nacio- porâneas da Shoá e da Nakba, propomos uma reflexão sobre usos mais
nais, palestinos e sionistas (ou israelenses, em arranjo identitário posterior). contemporâneos da Shoá e da Nakba nas sociedades palestina e israelense.
A Shoá e a Nakba são fenômenos com naturezas claramente distintas. Aqui interessa-nos travar um debate apenas inicial sobre as novas aborda-
No caso da Shoá, há tentativa deliberada de extermínio de uma popula- gens do tema nos dois cenários.
ção inteira por critérios raciais (HILBERG, 2003), enquanto a Nakba marca
um processo de expulsões, fugas e exílios de parte de uma população hanakba e hashoá como marcos de identidade
autóctone – no caso, árabes habitantes de regiões da Palestina, no bojo de
disputas nacionais e coloniais (MORRIS, 2004). Acreditamos que, apesar Ao analisarmos o uso político de “tragédias coletivas” vividas por pales-
dessas distinções, seus respectivos usos políticos podem ser comparados tinos e israelenses, é importante notar que referências à Nakba e à Shoá
em ambos os cenários nacionais acima descritos. Assim, pretendemos passam a estar mais presentes em discursos públicos nas duas sociedades
entender em que medida HaShoá e HaNakba são incorporados pelos res- nas décadas de 1960 e 1970. Naquele momento, tanto israelenses quanto
pectivos projetos nacionais, que ambicionam, em última instância, garan- palestinos passam a utilizar de forma mais regular, constante e clara a ideia
tir maior legitimidade, poder e capital político para sustentar agendas de de “tragédia” (Shoá ou Nakba) para justificar estratégias ou práticas políti-
domínio territorial. cas cotidianas (ACHCHAR, 2011).
A despeito de se tratarem de eventos ocorridos em meados do século Seria, entretanto, um equívoco imaginar que essas categorias eram
XX (portanto em anos imediatamente anteriores ou posteriores à decisão desconhecidas ou estavam, até então, ausentes por completo do cenário
das Nações Unidas pela partilha do território palestino em dois Estados, político na região. Tanto entre israelenses (para quem, já na declaração
um árabe e um judeu), pode-se afirmar que há mudanças na gradação, na de independência, há referência à “catástrofe3 e ao massacre de milhões
tonalidade, na frequência e na forma de utilização política da Shoá e da de judeus na Europa” – ACHCHAR, 2011) quanto entre palestinos (já em
Nakba por sionistas e palestinos. 1948, em importante e conhecido trabalho, o intelectual árabe Contantine
Neste artigo, pretendemos analisar como se desenvolveram os usos Zurayk afirma que “mais que um pequeno retrocesso, o que aconteceu na
políticos de ambas as “tragédias coletivas” nas quais palestinos e judeus Palestina em 1948 foi uma catástrofe.” – ACHCHAR, 2011) há referências
foram vitimizados. Para tanto, é importante entender e historicizar como importantes às tragédias coletivas vividas pelos dois grupos. O que ocorre
palestinos e judeus lidaram com a Nakba e a Shoá em seus respectivos nos anos de 1960 e 1970 é que esses usos deixam de ser esporádicos, ou até
cenários nacionais durante as últimas seis décadas.
mesmo periféricos, passando a constituir-se em referências fundamentais
Assim, na primeira parte deste artigo, HaNakba e HaShoá como mar-
e bastante comuns dos nacionalismos palestino e judaico (BURG, 2008;
cos de identidade, dá-se início a uma reflexão acerca de como as duas tra-
LUGHOD, SAID, 2007).
gédias coletivas, de palestinos e judeus, se transformaram, em momentos
Pode-se afirmar que, nesse período, elementos externos e internos
distintos e com dinâmicas diferentes, em efetivos marcos identitários nas
alteram a dinâmica das duas sociedades e acabam fazendo com que, em
duas sociedade. Depois, em Desconhecer o outro como forma de política,
ambos os lados, a noção de “tragédia coletiva” passe a ser potencializada e
busca-se conectar o debate sobre tragédias coletivas e seus usos políticos
a ganhar mais espaço entre palestinos e israelenses. Essa situação torna-se
a referências históricas mais amplas nos dois projetos nacionais que dis-
ainda mais premente e complexa por se tratarem de grupos em permanen-
putam um mesmo território e buscam, de parte a parte, deslegitimar e
esvaziar posições concorrentes. tes e prolongados conflitos.
Na terceira parte do trabalho é discutido como certas vicissitudes
políticas locais (que no caso levam a mudanças de fronteiras e domínio 3 Churban, em hebraico.

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Assim, não é raro notar que discursos de “essencialização” eram acio- Na perspectiva israelense (e sionista), a tragédia da Shoá é apropriada
nados para informar a atuação de conjuntos específicos em relação aos como um evento de ruptura definitiva com a “diáspora” e o “exílio” judai-
“adversários”. As “características inatas” ou “funções históricas determi- cos. Tal evento deveria marcar o momento de “construção nacional” e
nadas” passam a ser referências constantes, fixas e reproduzíveis. Desta de fundação de um Estado Judeu na Terra de Israel. Para os palestinos, a
forma, a noção de identidade de grupo passa a funcionar não apenas Nakba é apresentada justamente como a tragédia nacional que marcaria a
como um modo de autodefinição, mas também como definição (e desle- expulsão, o exílio e o início da “diáspora palestina”, da “desconstrução de
gitimação) do outro coletivo em disputa. uma nação” desapropriada de sua “pátria histórica” (SAID, 2007). Nesse
Elementos em conflito produzem memórias em confronto. Quando sentido, análises do conflito palestino-israelense consistem em um inte-
tais conflitos têm características “nacionais” e prolongadas, identida- ressante desafio em que estratégias narrativas e discursivas de tragédias e
des diversas esforçam-se por parecer homófonas; grupos extremamente traumas coletivos têm função nacional e fundacional, de lado a lado.
plurais adotam “uma” narrativa homogeneizadora e coletiva. Aqui, os
usos políticos de “tragédias coletivas” são bastante comuns e passam por desconhecer o outro como forma de política
processos de reificação de memórias de grupo, pela consolidação de hie-
rarquias sociais e pelo abrandamento de tensões internas. Na realidade, Apesar do compartilhamento de um mesmo território durante os últimos
memórias das “grandes catástrofes” nas quais as vítimas são (ou se pre- 60 anos e de evidentes paralelos históricos entre palestinos e israelenses
tende que sejam) grupos específicos podem servir como referências para (aqui podemos citar que além de demandas sobre o mesmo território,
“novos inícios” (ARENDT, 1988), nos quais coletivos nacionais, religiosos eventuais diálogos e utilização de simbologia compartilhada, o naciona-
ou étnicos transformam-se em “comunidades de vítimas” que “comparti- lismo palestino e o sionismo surgem e se constituem politicamente em
lham lembranças e dores conhecidas de todos” (BAUMANN, 2003). períodos muito próximos),4 há, efetivamente, pouco conhecimento mútuo
Assim, o sinal de “tragédia” assume um lugar fundacional de unifica- entre as sociedades. Se por um lado é possível afirmar que os dois grupos
ção, em que todos passam a compartilhar referências e sentidos semelhan- têm trajetórias complementares e que guardam consideráveis semelhanças
tes. Nesse contexto, surgem esforços para enfraquecer e superar quaisquer entre si, pode-se ao mesmo tempo dizer que as relações entre ambos têm
identidades que ameacem desmontar ou mesmo dividir o coletivo. Aqui, sido distintas e conflituosas. Demonstrações de desconhecimento mútuo
passa a importar apenas “um” sinal e “uma” identidade que tornam pos- entre palestinos e israelenses (ou em relação ao movimento sionista) estão
sível unificar e incluir todos os indivíduos do mesmo “coletivo”. Tal dis- presentes em diversos momentos, em várias reações e posicionamentos
curso político afirma que “aqueles (de nós) que estiveram lá foram vítimas, dos dois grupos nacionais.
não importando subcategorias ou subidentidades assumidas por este ou No interior do movimento sionista, por exemplo,5 o debate a respeito
aquele grupo ou indivíduo”. da existência de um nacionalismo concorrente na Palestina/Terra de Israel
Esse pode ser o caso das relações entre palestinos e sionistas, grupos é por demais pontual, eventual e periférico. De fato, para além das esporá-
que permanecem em conflito mais ou menos aberto e constante desde dicas referências nas quais alguns líderes sionistas tratam da questão dos
finais do século XIX. A partir dos anos 1960, mudanças territoriais e políti- árabes da Palestina,6 é a conhecida frase de Israel Zangwill, dirigente do
cas (a derrota na Guerra de 1967, para os palestinos, ou a vitória na Guerra
4 Ver: KIMERLING, Baruch; MIGDAL, S. Yoel. The Making of a People. Jerusalem: Keter, 1999.
de Seis Dias, para os sionistas) transformam e potencializam a apropria-
5 Refiro-me aqui ao Movimento Sionista, cujas atividades eram anteriores à criação do Estado
ção das tragédias, de grupo a grupo. Assim, ambas as narrativas objetivam de Israel.
estabelecer a ideia de que um dos dois lados constitui, de forma constante 6 Como é o caso de Ahad Haam (dirigente do sionismo cultural, que criticava a política
geral de colonização e era favorável à criação de uma cultura judaica sionista), que escreve,
e repetida, o papel da vítima, relacionando ao outro, sempre, a função de em 1891,o texto “A Verdade sobre a Terra de Israel”, ou mesmo de Zeev Jabostinsky (líder
algoz. do sionismo revisionista, setor conservador do Movimento Sionista, que fazia oposição a

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sionismo territorialista,7 que se referia à Palestina como uma “terra sem Nos anos posteriores à fundação de Israel, o Estado Judeu também
um povo, onde existiriam, no máximo, acampamentos de árabes nôma- continua a ser um desconhecido para grande parte dos palestinos. Como
des” (MASALHA, 2001), que constitui evidência mais importante da rela- prova disso, Edward Said, em seu estudo sobre as raízes históricas dos
ção que o sionismo tem com a “questão palestina” e com os árabes da refugiados palestinos, afirma que:
região à época.
[...] Israel era para a maioria dos árabes – e para os palestinos – um zero,
Após a fundação do Estado Judeu, as relações entre os governos de algo inexistente, sua língua era desconhecida, sua sociedade inexplorada,
Israel e os palestinos não mudam de maneira significativa. Os dirigen- seu povo e a história de seu movimento basicamente era estampada em slo-
tes israelenses continuam enxergando os árabes, principalmente, através gans, frases de efeito e negação. (SAID, 2003).
de lentes de controle e segurança e suspeição. Nesse contexto, são a eles
Nesse contexto de desconhecimento mútuo e de profunda ignorância
negados direitos nacionais mais amplos, seus direitos coletivos à memória
em relação às respectivas demandas nacionais de seus adversários, pales-
não são efetivamente reconhecidos e, finalmente, sua narrativa política e
tinos e israelenses mantêm contatos esporádicos e pouco constantes na
histórica é ignorada e desconsiderada (COHEN, 2010).
região de Ertez Israel/Palestina. Em realidade, a partir de 1948, com a fun-
Do lado palestino, as referências mais elaboradas sobre os sionistas,
dação do Estado de Israel, há um processo de radicalização e piora dessas
o movimento sionista e o próprio Estado de Israel também são apenas
(não) relações.
eventuais e muito marginais. Há alguns raros exemplos que podem ante-
Nesse período, a narrativa nacional palestina passa a se apresentar
cipar futuras posições palestinas quanto ao projeto sionista e ao Estado de
não apenas como mais um alvo do expansionismo europeu, mas como
Israel. Um desses casos pode ser o discurso de Ruhi Al Khalidi, represen-
vítima coletiva e direta de um projeto colonial que é responsável pela des-
tante da Palestina no Parlamento Otomano, que em 1911 afirma:
truição de sua sociedade, pela expulsão e pelo exílio de milhares de pes-
Os judeus são um grande povo e o país pode se beneficiar de seus vários soas. Segundo essa narrativa palestina, sua tragédia teria sido ocasionada
talentos, de seu sistema de saúde, de suas escolas e de seu conhecimento, mas pelo invasor europeu-sionista.
eles deveriam se estabelecer em outras partes do império e adotar a naciona-
Aqui, além de lutar contra o “colonialismo”, os palestinos lutam por
lidade otomana. (KHALID, 1997).
uma agenda mais específica, qual seja, pelo retorno à terra de seus pais
Com efeito, o nacionalismo palestino se forma e se constitui em forte e antepassados. Nessa construção discursiva, os palestinos se veem como
oposição ao sionismo. Aos olhos das lideranças palestinas, os judeus sio- vítimas mais notórias de uma forma mais cruel de imperialismo. Dessa
nistas são apenas “usurpadores europeus” desejosos, somente, de ocupar maneira, seu sofrimento adquire “excepcionalidade”8 quando comparado
terras palestinas, em um movimento característico do clássico colonia- com outros nacionalismos árabes. Mais do que vítimas de um modelo geral
lismo europeu. Nas décadas de 1920 e 1930 não houve esforços significati- do expansionismo europeu, os palestinos acreditam estar resistindo a uma
vos por parte dos palestinos para o entendimento das especificidades do forma específica e mais cruel de invasão: o sionismo. Para eles, esse modelo
nacionalismo judaico, compreendido apenas como mais uma expressão não é apenas de exploração da terra, mas de ocupação efetiva do território,
do imperialismo e da expansão europeia. com consequente expulsão e exílio da população que ali habitava.

qualquer concessão aos britânicos ou aos árabes) que publica, em 1929, o livro The Iron Wall.
Cf. SACHAR, M. Howard. A History of Israel – From The Rise of Zionism to our Time. Nova 8 Utilizo aqui o conceito de excepcionalidade para descrever a questão palestina; da mesma
York: Alfred Knopf, 2010: 66-96. forma, autores utilizam este conceito como referência de análise do sionismo. Assim, assumo
7 Territorialismo é um movimento criado por Israel Zangwill, em 1905. Zangwill é justamente que o confronto entre dois projetos nacionais que se percebem mutuamente como vítimas
um defensor de soluções territoriais como a de Uganda. Ele se retira da OSM com seus segui- de desgraças e tragédias monumentais incorpora uma demanda por reconhecimento de
dores e funda a Organização Territorialista Judaica, em 1904. Cf. LAQUEUR, Walter, op. cit., especificidades e de dinâmicas excepcionais. Ver: Alam, S. Mohamad. Israeli Exepcionalism:
pp. 84-106. The Destabilizing Logic of Zionism. New York: Palgrave-Macmilan. 2009.

212 213
Nesse contexto, surge um dos elementos mais importantes e mais Assim, HaNakba e HaShoá (não por acaso os dois fenômenos são,
comuns do movimento nacional palestino: a experiência da expulsão e da frequentemente, precedidos por artigos definidos)10 passam, com diver-
desapropriação territorial. Segundo essa referência discursiva, é o exílio sas vicissitudes e variações durante os anos, a ser importantes peças nos
(e as demandas por retorno) que marca a excepcionalidade e as especifi- tabuleiros políticos de movimentos nacionalistas que disputam o mesmo
cidades da tragédia palestina. Ao se considerarem duas vezes vítimas (do território, com narrativas e justificativas distintas.
colonialismo e do sionismo), nacionalistas palestinos reafirmam a neces- Se para judeus sionistas os campos de extermínio nazistas da Europa
sidade de derrotar o sionismo ao mesmo tempo em que continuam a des- são apontados como a justificativa maior da necessidade de “retorno à
conhecer suas referências de história e de memória. terra de seus antepassados”, palestinos mostram os campos de refugiados
O mesmo pode ser dito em relação ao movimento sionista e às suas em países árabes como símbolo das injustiças às quais sofreram nas mãos
demandas de retorno à “terra de seus antepassados.”9 Para o sionismo (ao do colonialismo europeu11 e clamam pelo retorno à terra de seus pais. Nos
menos para as correntes hegemônicas do movimento), a noção de diás- dois casos, referências absolutas e reificadas de destruição e perda tornam-
pora é extremamente negativa e remonta a experiências de “dor e deses- -se potentes elementos políticos nas duas sociedades.
pero”. A vida judaica no “exílio” era “frágil e inviável” e deveria, a bem da Aqui, o embate entre as memórias da Shoá e da Nakba, que se forta-
própria “sobrevivência física do povo judeu”, ser superada historicamente, lece nas últimas décadas de confronto entre palestinos e sionistas, guarda
sendo sobreposta por referências exclusivamente nacionais e territoriais, referências conhecidas nas duas narrativas. Ao desconsiderar ou diminuir
nas quais a formação de um Estado Nacional substituiria identidades a importância da Shoá para os sionistas, palestinos apenas mantêm uma
judaicas mais tradicionais e clássicas (BEN GURION, 1965). espécie de coerência ideológica. Reconhecer essa excepcionalidade pode-
Pode-se afirmar que, se por um lado o sionismo possibilita o “retorno ria enfraquecer sua própria demanda por reconhecimento. Do lado sio-
dos judeus à Palestina”, para a narrativa palestina ele explica e causa o exí- nista, a mesma dinâmica pode ser encontrada. Ao ignorar a Nakba e os
lio desse território. Ao mesmo tempo, é possível dizer que para os judeus sofrimentos causados pelo exílio, israelenses mantêm-se em uma posição
sionistas o retorno à terra de Israel não poderia ser impedido por outro de vítimas excepcionais, na qual eles (e não os palestinos) são os maiores
grupo nacional, étnico ou religioso que lá estivesse. No imaginário sio- sacrificados da história europeia. Aqui, o uso de ambas as tragédias cole-
nista, os árabes-palestinos encarnavam apenas mais um tipo de adversá- tivas apenas fortalece lógicas excludentes presentes nos dois movimentos
rio, como aqueles com quem tiveram que lidar na Europa. nacionalistas.
Se no continente de seus pais, na diáspora, fora da “Terra de Israel”,
os inimigos eram russos, poloneses, alemães ou quaisquer outros, na hanakba e hashoá:
Palestina dos anos 1940 e 1950 o algoz é árabe (sequer palestino). Nessa usos e vicissitudes entre palestinos e israelenses
narrativa, entretanto, a luta, importante marcar, continua sendo contra o
Conforme já discutido, as memórias da Shoá e da Nakba são, para pales-
exílio, contra o “destino de seus antepassados” e, portanto, contra a pró-
tinos e sionistas, referências incorporadas nos discursos nacionais.
pria diáspora (BEM-GURION, 1965).
Sofrimentos, perseguições, expulsões e assassinatos são entendidos como
Dessa forma, as duas tragédias paralelas, a palestina e a judaica, con-
capital político a ser utilizado como elemento de mobilização social, polí-
solidam narrativas paralelas e contraditórias que fortalecem e ressignifi-
tica e ideológica.
cam os respectivos movimentos nacionais: um clamando pelo retorno do
exílio e o outro pelo retorno da diáspora.
10 Refiro-me aqui ao prefixo “Ha”, que funciona tanto no árabe quanto no hebraico como
artigo definido à frente de um substantivo.
9 Refiro-me aqui a uma estratégia discursiva do sionismo, que relaciona o território da 11 ABU-LUGHOD, Lila; S’ADI, AHMAD. Palestine, 1948 and The Claims of Memory. Nova York:
Palestina a Eretz Israel, que seria a terra de seus antepassados. Columbia Press, 2007: 2-23.

214 215
Nesse cenário, as respectivas “fronteiras da nação” têm oposições movimentos nacionais, duas tragédias nacionais conectadas e não relacio-
claras e pungentes – elas são a diáspora e o exílio. Sionistas e palestinos nadas, a Nakba e a Shoá, refundam e marcam profundamente, pelas próxi-
veem-se, a si próprios, como sobreviventes de situações de desterro e debi- mas décadas, a memória e as realidades políticas de israelenses e palestinos.
lidade. No caso do sionismo, o “exílio” teria sido abreviado com o advento A fundação do Estado Judeu na Palestina, sua consolidação e as rela-
quase pedagógico da Shoá. Nada mais claro, pois, do que a inviabilidade ções criadas entre Israel e seus vizinhos acabam por moldar também as con-
de vida judaica fora de Eretz Israel, depois de tamanha tragédia. Nessa dições para relações entre israelenses e palestinos. Nesse contexto, há que
perspectiva, HaShoá havia decretado a necessidade de se pôr fim, de uma se notar que mais do que relações de dois projetos nacionais distintos, um
vez por todas, à experiência da diáspora judaica. largamente vitorioso (o sionismo) e outro, em grande medida, derrotado
Da mesma forma, na sociedade palestina as referências à diáspora (o nacionalismo palestino), a dinâmica entre os dois nacionalismos guarda
são fundamentais para a construção e a consolidação de uma identidade profundos vínculos com o conceito de tragédia. Aqui, palestinos e israelen-
nacional. Ao contrário da narrativa sionista (que se refere a uma diáspora ses dialogam e justificam suas posições a partir da ideia de que foram víti-
duradoura e com início longínquo), a diáspora palestina é um fenômeno mas de enormes injustiças históricas que podem ser superadas e vencidas
desconhecido até o ano de 1947. É somente nesse momento, após a decisão apenas a partir do apoio incondicional aos respectivos projetos nacionais.
da ONU pela criação de dois Estados na Palestina, um judeu e um árabe, Seria, entretanto, um equívoco acreditar, como indicamos já no início
que ocorre grande deslocamento, fuga e expulsão de milhares de palesti- deste artigo, que em ambos os lados o uso político das tragédias judaica
nos de suas casas e cidades.12 (HaShoá) e palestina (HaNakba) são constantes e contínuas desde os anos
As frequentes referências ao exílio e às dores da Palestina podem 1940 e 1950. Ao contrário, nas respectivas narrativas nacionais o uso da
muito bem ser comparadas, nos campos ideológico e discursivo, às refe- tragédia e do trauma coletivo guardam dinâmicas específicas e uma histo-
rências sionistas de perda da pátria e ao sofrimento do exílio. É impor- ricidade que altera as relações de ambos os grupos, com suas respectivas
tante, entretanto, levar em conta uma espécie de “fuso horário”, uma des- memórias de destruição e sofrimento.
continuidade temporal entre palestinos e sionistas. Para esses dois grupos, No caso do nacionalismo palestino, o uso político do exílio e da diás-
as categorias de diáspora e exílio passam a fazer (mais) sentido de um lado pora palestina é reinterpretado a partir de um conceito chave, a catego-
justamente quando passam a perder sentido para o outro. ria de “Al HaNakba”. Este conceito se fortalece em substituição à ideia
A partir de 1945 e, principalmente, a partir da decisão da partilha, de Hijra Al Filastinya (êxodo da Palestina).13 Se a ideia de “êxodo” remete
em 1947, milhões de judeus, muitos deles sobreviventes da catástrofe na somente à “saída de palestinos de seu território”, a categoria de Nakba traz,
Europa, acabam por inundar o território da Palestina em busca de abrigo e por sua vez, de forma mais clara, a noção de expulsão, de ruptura e desen-
salvação. Em última instância, os sobreviventes judeus da Europa surgem raizamento. Aqui, a ideia de “tragédia” e “catástrofe” consolida a narrativa
na Palestina paralelamente aos refugiados árabes palestinos. Em sinais de que a sociedade palestina passou por um processo de esvaziamento e
invertidos, o final da II Guerra Mundial representa para uns o início da destruição. É justamente a partir dessa noção que o nacionalismo pales-
“salvação”, enquanto para outros inaugura uma era de sofrimentos. tino passa a se basear. É a partir daí que se reestrutura a necessidade de
Em um encontro não casual, duas catástrofes humanas estabelecem reconstrução de um Estado (no território de onde saíram), que deveria
resultados nacionais distintos. Enquanto judeus formam “seu Estado” crescer a partir da dor do exílio, a partir da experiência da diáspora.
sobre o dilaceramento quase completo do judaísmo europeu, esse mesmo Para o nacionalismo palestino, a resistência às expulsões e às desapro-
dilaceramento justifica e explica o início de outra tragédia nacional – o priações deveria se concentrar na esperança do retorno à pátria (PAPPE,
exílio palestino. Se a ocupação do mesmo território caracteriza os dois
13 SAYIGH, Rosemary. Woman’s Nakba Stories: Between Being and Knowing. In: ABU-
LUGHOD, Lila; SA’DI, Ahmad (eds.). Nakba: Palestine, 1948, and the Claims of Memory. New
12 KHALIDI, Rashid. Op.cit., pp. 35-63. York: Columbia University Press, 2007: 142-144.

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2004).14 Esta esperança permanecia viva no próprio compromisso com a (SAID, 2013). Também a “nova ocupação israelense” tem importância fun-
memória da Nakba. Nesse sentido, a ideia de Nakba redesenha e refunda damental para o revigoramento do nacionalismo palestino e para maiores
a noção de derrota palestina. Ao deslocar a categoria de “êxodo” (Hijra) usos políticos da Nakba. A partir de 1967 a entrada israelense em territórios
para a ideia de “catástrofe” (Nakba), a narrativa palestina particulariza e da Cisjordânia (até então domínio jordaniano) e da Faixa de Gaza (sob
radicaliza seu drama nacional. Mais do que referências a saídas coletivas, domínio do Egito) faz com que mais palestinos, localizados em locais de
imigrações forçadas ou grandes deslocamentos, fenômenos existentes e sua pátria histórica, sejam vítimas do mesmo “colonialismo sionista”.17
comuns no Oriente Médio do século XX, a Nakba se estabelece com nome Nessa perspectiva, os palestinos passam a se encontrar, em condições
próprio, apresentando-se assim como um fenômeno “único e excepcio- distintas, sob o domínio do mesmo algoz, justamente aquele que levara à
nal” (ALAM, SHAHID, 2009). Dessa forma, ao classificar a derrota de 1948 Nakba em 1948. Essa situação acaba por fazer com que memórias de tra-
não somente como uma simples contingência, mas como uma tragédia gédia e de trauma sejam resgatadas e passem a dar sentido à luta contra o
de poucos precedentes, o nacionalismo palestino dá sentido e fortalece o “expansionismo e a ocupação sionista”:
ethos de resistência palestina:
[...] Não houve escapatória, aqueles que fugiram para cidades da Cisjordânia
A Guerra de 1948, que levou à criação do Estado de Israel, também resultou e de Gaza se tornariam reféns da ocupação militar israelense e de seu con-
na devastação da Palestina. Ao menos 80% dos palestinos que viviam em trole administrativo. Assim, cerca de vinte anos depois da tragédia de 1948,
territórios onde Israel se estabelecera, cerca de 77% da palestina histórica, Israel passava a dominar as regiões que sobraram da Palestina Histórica.18
se transformaram em refugiados [...]. Para os palestinos, a Guerra de 1948
constituiu-se em uma “catástrofe”. Uma sociedade desintegrada, um povo Da mesma forma que a Nakba se transforma em uma referência cen-
disperso e mudanças complexas e insuperáveis na vida comunal palestina. tral ao movimento nacional palestino, a Shoá passa, a partir da fundação
A Nakba se tornou, assim, para a história e para a memória palestina, uma de Israel, a representar importante capital político para o Estado Judeu.
linha demarcatória. Depois de 1948, a vida palestina mudou de forma irre- No contexto de descoberta dos crimes nazistas observa-se uma hegemo-
versível e dramática.15
nização do sionismo na estrutura comunitária judaica das diásporas e sua
HaNakba funda o compromisso do nacionalismo palestino com o legitimação e consolidação em fóruns e cenários internacionais. Esforços
retorno à terra perdida e com a excepcionalidade de sua tragédia. Essa para a criação e o fortalecimento do Estado de Israel significavam, no “cál-
ideia de tragédia nacional, entretanto, como já mencionado, se consolida culo dos que sobreviveram ao Holocausto”, uma consequência lógica para
apenas tardiamente, e vai ocorrer junto à potencialização e ao fortaleci- os efeitos devastadores da II Guerra Mundial.
mento do próprio nacionalismo palestino. Entre os anos de 1948 e 1967 Assim, o novo judeu que emigra para kibutzim19 na Palestina, o pio-
a noção de “êxodo” ainda é hegemônica e o conceito de Nakba é apenas neiro (chalutz), é parte do mito de fundação sionista,20 que vê o novo
pontualmente utilizado. É apenas na segunda metade dos anos 1960 que Estado Judeu como a possibilidade de “normalização” e secularização da
o nacionalismo palestino passa por um revigoramento, e a ideia de “catás- identidade judaica, que fora, nessa perspectiva, empobrecida, “arrasada”,
trofe” passa a ter maior significado político na narrativa nacional. esvaziada durante sua longa experiência diaspórica.
Interessante notar que a derrota árabe de 1967, que enfraquece os proje- A Shoá se consolida, então, como a prova da inviabilidade da vida
tos pan-árabes de libertação da Palestina, acaba por fortalecer perspectivas judaica fora de Israel, apontando para a necessidade da existência de um
mais especificamente palestinas para a libertação de seu próprio território16 Estado Judeu. Dessa forma, a Shoá é usada politicamente como referência

14 PAPPE, Ilan. A History of Modern Palestine- One Land Two People. Cambridge: Cambridge 17 Ibid., pp. 63-64.
University Press, 2004: 24-44. 18 ABU-LUGHOD, Lila; SA’DI, Ahmad. Op.cit., pp. 78-79.
15 ABU-LUGHOD, Lila; SA’DI, Ahmad. Op.cit., p. 3-4. 19 Fazendas coletivas de inspiração socialista.
16 SAID, Edward. A Questão da Palestina. São Paulo: Unesp, 2013: 162-180. 20 STERNHELL, Zeev. Op.cit., pp. 22-28.

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ideológica no interior do Estado de Israel e em entidades sionistas nas significar, para setores políticos em Israel dos anos 1960 e 1970, não retor-
várias instituições judaicas. Para os que viam Auschwitz tão de perto, a nar a Auschwitz, não retornar à diáspora e às suas velhas ameaças, ou seja,
imagem de jovens pioneiros morenos, queimados de sol, trabalhando não voltar à Shoá.
manualmente a terra de Israel, era difundida no mundo judaico como Nesse novo contexto, Shoá e Nakba são recuperadas e reutilizadas
sendo a única resposta possível pós-holocausto. A constante ameaça do como referências a políticas tanto israelenses quanto palestinas. A Guerra
antissemitismo, que criara (na perspectiva sionista) um ponto final para de 1967 funciona, assim, em uma dinâmica contraditória, como capitaliza-
a experiência judaica europeia, poderia ser personificada e resumida pelo dora das referências de tragédia de parte a parte. Para os palestinos, o revés
fenômeno da Shoá. de junho (de 1967) significa não apenas a continuidade, mas o aumento da
Em Israel, nas décadas seguintes, a memória e os usos da Shoá passam ocupação e do expansionismo sionista. Esse quadro acaba por potencia-
por transformações e tomam novas formas e direções distintas. Nos anos lizar e fortalecer os usos da Nakba em uma sociedade que volta a experi-
de 1960 e 1970 o sionismo passa a tratar a memória da Shoá de maneira mentar, cerca de 20 anos depois, traumas e abalos bastante significativos.
ainda mais constante e regular do que antes. A partir de então, em sua Por outro lado, para os sionistas a histórica vitória na Guerra dos Seis
nova cartilha política, os árabes deixam de ser figuras invisíveis e quase Dias e suas consequentes conquistas militares significam garantia defini-
sem importância e passam a encarnar, em uma nova apropriação da expe- tiva contra a ameaça, sempre constante para os judeus-israelenses, de uma
riência do holocausto, os “algozes sempre presentes”. nova tragédia, de uma nova Shoá. Assim, em uma dimensão discursiva e
Aqui, principalmente depois da vitória na Guerra dos Seis Dias, em política, a potencialização dos usos da tragédia judaica passam a garantir a
1967, os árabes palestinos passam a representar a eterna ameaça existen- manutenção dos territórios ocupados, bem como impedem avanços mais
cial aos judeus. Em uma perspectiva coletiva e nacionalista, depois da ousados no campo dos acordos de paz com seus vizinhos. Para a Israel
Shoá os judeus-sionistas deveriam se ver como vítimas potenciais de um dos anos 1960 e 1970, as vitórias em junho de 1967 sepultaram, de forma
mundo hostil e perigoso. Assim, em um imaginário político hipersensível, definitiva, os medos e traumas da diáspora, simbolizada por sua maior
os palestinos acabam por assumir o papel dos “adversários” mais temidos tragédia, HaShoá.
da história judaica. Nesse contexto, a Shoá determina decisões políticas Enfim, se a Nakba é invisível para a narrativa sionista, a Shoá passa
de governos que usam a tragédia nacional como bússola para agendas e pelo mesmo processo na narrativa palestina. Em um cenário de constante
programas cotidianos. uso político nacional de tragédias coletivas, palestinos e sionistas colocam
Para a narrativa sionista clássica e hegemônica, a Nakba não pode- em relevo cada vez maior suas próprias memórias, ao mesmo tempo em
ria fazer sentido algum. Ao contrário, depois das ameaças constantes de que tentam apagar e deslegitimar as memórias concorrentes.
“jogar os judeus ao mar”21 na Guerra de 1967, a “vitória milagrosa” deve-
ria representar a garantia de sobrevivência judaica. Assim, a alternativa às novos usos da hashoá e da hanakba
novas fronteiras nacionais não são um acordo de paz com os árabes, mas
o retorno aos próprios “portões de Auschwitz”, como afirmou o ministro Se é correto afirmar o fortalecimento, entre palestinos e sionistas, do
Abban Eban ainda em 1967.22 O uso político da Shoá passa a determinar uso da HaShoá e da HaNakba como discurso de legitimação política
atitudes e percepções políticas dos governos e da sociedade israelense. durante os anos 1960 e 1970, é importante notar que nas décadas seguintes
Não retroceder às fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias passa a esses usos passam por transformações. Nos anos 1990 e 2000, HaShoá e
HaNakba ainda estão no centro dos discursos políticos de ambos os proje-
21 ACHCHAR, Gilbert. The Arabs and the Holocaust: The Arab-Israeli War of Narratives. Londres: tos nacionais. Nessa fase, a excepcionalidade, a dimensão e a envergadura
Saqui, 2011: 188. das duas tragédias nacionais são marcadas e ainda justificam práticas e
22 BEN-AMI, Shlomo. The Scarf of War, Wounds and Peace – The Israeli-Arab Tragedy. Nova
intervenções políticas e discursivas de lado a lado. Apesar disso, deve-se
York: Oxford, 2006: 85-115.

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notar que há, dos dois lados da contenda, mudanças e transformações que que concreta, mais diversa do que homogênea, mais individual do que
não devem ser ignorados. coletiva. Essas dimensões, nascidas nos anos 1990 e 2000, acabam por
No cenário político palestino podem-se notar novos usos da HaNakba refundar a experiência palestina, fortalecendo seu ethos de resistência ao
que se afastam das referências mais coletivas e nacionais, típicas dos anos colonialismo europeu, encarnado, na sua percepção, pela longa ocupação
1960 e 1970, e passam a incorporar elementos mais individualizados, ino- sionista, cada vez mais violenta e menos tolerada.
vadores ao lidar com a memória da tragédia e do trauma palestinos. Nesse Em vários sentidos, transformações similares ocorrem também na
caso, gerações mais jovens, que compartilham as experiências de trauma e sociedade israelense. Também no sionismo a “tragédia nacional” con-
perda das gerações anteriores, produzem suas “memórias sobre a tragédia” tinua, nos anos 1990 e 2000, a ocupar papel central e preponderante.
a partir de dimensões menos coletivas, mais individuais e mais autorais. Importantes autores israelenses trazem, em suas obras mais contemporâ-
Esse fenômeno pode ser percebido em produções literárias e artísti- neas, reflexões acerca da formação de identidades e do uso da memória do
cas de jovens autores palestinos que se conectam a perspectivas da Nakba Holocausto no discurso público israelense. Por exemplo, o escritor Amós
a partir de lógicas geracionais distintas, e por vezes contraditórias, daque- Oz (que é de uma geração anterior à de Shehadeh, tendo vivido, portanto,
las feitas pelas gerações anteriores. Nascidos após a derrota de 1948 e sob de forma mais diretas as experiências da Shoá e da Nakba), que a partir de
a ocupação israelense de 1967, jovens autores palestinos usam a literatura suas memórias registra a relação no cotidiano de Jerusalém nos anos 1940:
e as memórias pessoais para tratar da experiência de perda e destruição
Depois de aguardar mais um pouco, meu pai supunha que o diretor dos cor-
vivida por gerações anteriores. reios ou o Sr. Neshaashivi havia terminado sua ligação, e novamente erguia o
Alguns exemplos estão nas obras de Raja Shehadeh, autor palestino fone e dizia: “Perdão, minha senhora, creio que havia solicitado uma ligação
nascido em Israel. Shehadeh aciona elementos de “imaginação e criação” para Tel Aviv, 648”. E ela dizia: “Está anotado aqui senhor, favor aguardar”.
para falar de memória da tragédia, da memória da Nakba: Meu pai dizia então: “Estou aguardando, minha senhora, claro que estou,
mas na outra ponta da linha também há pessoas aguardando”. Desse modo
Em nossa vinculação com a Palestina da Nakba, a memória de nossos
ele insinuava que éramos pessoas tolerantes, mas que havia limite para nossa
pais e avós deve ser evitada. Não queremos uma memória nostálgica, mas tolerância – aquela história de que todo mundo podia maltratar os judeus
uma memória imaginada e doce, vinda das histórias que nossos pais nos à vontade e fazer com eles o que lhes desse na telha, aquela história tinha
contavam. E não aquelas que queríamos ter vivido. A memória nostálgica acabado de uma vez por todas.25
pode afetar aos palestinos que vivem na Palestina de hoje, fazendo-nos
Acima, Oz traz referências à Shoá que estavam presentes em peque-
sentirmos estrangeiros na terra em que vivemos.23
nas atitudes cotidianas, inclusive em uma tentativa de conseguir ligações
Essa nova perspectiva da Nakba reconfigura a ideia de resistência
telefônicas entre Tel Aviv e Jerusalém. Nesse sentido, era importante que
palestina a partir da reinvenção de uma memória una e coletiva. Nos últi-
o telefonista (não judeu) soubesse que do outro lado da linha estava um
mos anos, ao contrário, as referências às tragédias de 1948 (e também de
“novo judeu”, e não um daqueles judeus da diáspora que se deixou levar
1967) estão longe de ser homogêneas e similares. Elas se constroem “não
ao matadouro.
pelas perspectivas icônicas das velhas gerações, mas por uma Palestina
Se por um lado a identidade judaica flertava com o Holocausto nas
fragmentada, heroicamente colocada junta. Aqui refazemos sua história
perspectivas clássicas do sionismo, a história era diferente quanto às lem-
garantindo seu triunfo e não lamentando sua derrota”.24
branças dos sobreviventes nos primórdios de Israel. Se a memória do
Assim, se a nova memória da Nakba pretende usar politicamente suas
Holocausto era primordial na definição de uma identidade israelense, as
referências de tragédia nacional, ela o faz de maneira mais imaginada do
vozes das memórias dos sobreviventes eram pouco ouvidas e seus relatos
23 JOHNSON, Penny; SHEHADEH, Raja. Seeking Palestine: New Palestinian Writing on Exile and pouco tolerados pelos “novos judeus” em Israel. Como relata Amós Oz:
Home. Massassuchets: Olive Press, 2013:10.
24 Ibid, p. 12. 25 OZ, Amós. De Amor e Trevas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2005: 17.

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[...] Afora todos esses havia ainda os refugiados e maápilim, os salvos por anos a valorização das vítimas em uma dinâmica de individualização de
milagre, os sobreviventes, trapos humanos, e para esses eram reservados suas histórias e seus testemunhos.
geralmente compaixão e certa repulsa: pobres coitados, refugos do mundo
Uma amostra disso está nos programas de estudos do Museu do
com toda sua cultura e inteligência, quem mandou ficarem esperando por
Hitler em vez de virem pra cá? E por que deixaram se conduzir como um Holocausto de Jerusalém, o Yad Vashem. Fundado em 1953, o Museu passa
rebanho para o matadouro ao invés de se organizarem com armas na mão? a contar com uma Escola para o estudo da Shoá somente na década de
Que parem de uma vez por todas de se lamuriar em ídishe e não venham 1970. Nos anos 1990 e 2000, a Escola do Yad Vashem já é referência em
nos contar tudo que fizeram lá com eles. Nós aqui estamos voltados pro educação da Shoá em Israel e nas diásporas judaicas. Para além de pers-
futuro e não para o passado, e já que estamos falando do passado tem muitos
pectivas claramente nacionais e sionistas de estudo do holocausto,27 há nos
episódios edificantes de heroísmo judaico, dos tempos do tanach, os maca-
beus, por exemplo, e não há nenhuma necessidade de lembrar esse judaísmo últimos anos um processo de recuperação da história dos indivíduos, das
deprimente todo ele só tzarot e sofrimento e mais tzarot. Entre os sobrevi- vÍtimas e dos testemunhos.
ventes refugiados havia, por exemplo, um Sr. Licht que os meninos da vizi- Mais do que contar sobre a tragédia coletiva dos judeus, a Escola do
nhança chamavam de ‘milion crianzas’. Yad Vashem forma educadores para contar e trazer para o debate público
Alugou um cubículo na Rua Malachi onde ia dormir sobre um colchão que a história do indivíduo, se possível a biografia de cada uma das vítimas,
mantinha enrolado durante o dia e mantinha um negócio chamado lavagem
ou, nas palavras do próprio museu: “A perspectiva individual pode fazer
a seco – passamos a vapor. Estava sempre cabisbaixo, com uma expressão de
eterno desprezo e repulsa profunda. Ficava sentado na porta de sua lavande- a diferença”.28
ria e ao ver uma criança do bairro, dava uma cuspida pro lado e resmungava Outra referência educacional de extrema importância nos últimos
entre os lábios enrugados: ‘Milion crianzas eles mataram! Assassinos, não anos está relacionada às “Marchas da Vida”. Criadas em 1985 pela comuni-
dizia com tristeza, mas com ódio profundo, como se nos xingasse.26 dade judaica norte-americana, as viagens de estudantes secundaristas para
a Polônia, para os campos de extermínio e para guetos, passam a fazer
Novamente, processos similares ocorrem na sociedade palestina e
parte do currículo israelense nos anos 1990 e hoje são quase obrigatórias
israelense. Enquanto nos anos 1940 e 1950 há uma supervalorização das
nas escolas judaicas do país. Ainda sob a perspectiva “individual”, conhe-
“lições da Shoá” em termos nacionais (negação da diáspora, o antisse-
cendo detalhes das vítimas judaicas do Shoá, jovens judeus-israelenses
mitismo como referência constante e judaísmo diaspórico como eterno
viajam anualmente a Polônia para lá “fortalecer suas identidades judaicas
martírio), a memória pessoal do sobrevivente é radicalmente negligen-
e sionistas”, ou, nas palavras de Avraham Burg: “Quanto mais eu reflito,
ciada. Como podemos verificar, há nas lembranças de Amós Oz registros
mais certo estou de que o holocausto se tornou um dos pilares teológicos
de um profundo desprezo pelos sobreviventes (ou, como ele se refere, aos
da identidade judaica e sionista”. (BURG, 2008: 14).
“trapos humanos”) que renegam a tradição de resistência do sionismo e
Longe de serem menos relevantes hoje do que eram em décadas ante-
que se deixaram levar pelos matadores. A experiência memorialística de
riores, HaShoá e HaNakba passam por um processo de ressignificação nas
Amós Oz é um indicador da forma como se construiu e se sedimentou e
sociedades israelenses e palestinas. Indivíduos e sobreviventes ganham
se modificaram as maneiras de se lidar com a memória da Shoá em Israel.
voz e passam a determinar os discursos públicos sobre as tragédias cole-
Como exemplos das mudanças do uso político da memória do holo-
tivas. Entre palestinos e israelenses, essas são mudanças que justificam
causto na sociedade israelense, podemos utilizar referências do campo
e reconfiguram, sem descartar, a utilização das memórias da Shoá e da
educacional. Neste sentido, também o ensino da Shoá (tal qual a Nakbá
no caso palestino) passa por novas abordagens e perspectivas. Ao contrá-
rio da valorização exclusiva do fenômeno e da desvalorização exaustiva 27 Entrevista de Mario Sinay a Michel Gherman e Monica Grin. Revista Eletrônica do NIEJ/
das vítimas (conforme visto no texto de Amós Oz, acima), há nos últimos UFRJ. Ano I, n. 3. 2010. pp. 11-13.
28 Disponível em: <http://www.yadvashem.org/yv/en/education/newsletter/08/main_article.
26 Ibid., pp. 19-20. asp>. Acesso em: 20 nov. 2016.

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Nakba em ambos os projetos nacionais que disputam ainda hoje o mesmo empoderamento, fortalecimento e maior capital político de suas próprias
território, a partir de narrativas distintas e concorrentes. agendas políticas e nacionais. Nos dois lados, pois, o bloqueio e a deslegi-
A Nakba e a Shoá estão perfiladas, hoje e ontem, como uma espécie timação da dor e do sofrimento alheio são parte integrante de importan-
de monumento à justeza histórica do sionismo e do nacionalismo pales- tes estratégias políticas. Nesse sentido, tanto a Shoá quanto a Nakba estão
tino. Testemunhos de vítimas e exposições das tragédias são usadas para embasadas mais em percepções nacionais (e não universais) e mutua-
provar a centralidade que ambos projetos nacionais devem ter na agenda mente excludentes.
internacional hoje. Sofrimentos excepcionais e tragédias únicas (e é assim No presente artigo, pretendeu-se travar uma discussão acerca da his-
que sionistas e palestinos se referem à Shoá e à Nakba) devem demandar toricidade dos usos de duas tragédias nacionais por palestinos e israelen-
formas únicas de intervenção. Assim, mais do que uso político interno, as ses. Aqui, foi possível notar mudanças e transformações nas formas como
tragédias judaica e palestina são, não raro, usadas como recurso político a Shoá e a Nakba se inserem nos diversos momentos e contextos políticos
também para o público externo, para captar a opinião pública mundial. dos dois grupos. Apesar disso, não se pode, nas últimas décadas, perceber,
em nenhum momento, o descarte das citadas tragédias como importante
conclusão recurso político e ideológico, por israelenses e palestinos. Ao contrário, é
possível afirmar que, nos dois contextos nacionais, tanto a Nakba quanto a
No imaginário político do conflito palestino-israelense, a Nakba e a Shoá Shoá permanecem referências potentes e ativas em várias configurações e
passam a servir como referência constante de legitimação de posições manifestações políticas, intelectuais e sociais.
políticas próprias. Na narrativa sionista, os usos diversos da “memória da
Shoá” buscam demonstrar e reafirmar constantemente o quão necessário e
referências bibliográficas
inexorável havia sido a criação do Estado de Israel. Mais que isso: ao inse-
rir o Holocausto na disputa política cotidiana, o sionismo estabelece que ABU-LUGHOD, Lila; S’ADI, Ahmad. Palestine, 1948 and The Claims of Memory.
a imagem dos campos de extermínio nazistas permaneçam no horizonte Nova York: Columbia Press, 2007.
de expectativas do “povo judeu”, possibilitando reafirmação de referências ACHCHAR, Gilbert. The Arabs and the Holocaust: The Arab-Israeli War of
Narratives. Londres: Saqui, 2011.
antidiaspóricas e nacionalistas para a questão judaica. Assim, a ruptura
com a diáspora deve não somente ser definitiva, mas também constante. ALAM, S. Mohamad. Israeli Exceptionalism: The Destabilizing Logic of Zionism.
Nova York: Palgrave-Macmillan, 2009.
Do lado palestino, a Nakba também se torna a referência central no
discurso nacional. Nas configurações políticas palestinas, a reafirmação ARENDT, Hanna. Da Revolução. Brasília: UnB-Ática, 1988.
da tragédia de 1948 constitui elemento de legitimação e reafirmação da BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – A Busca de Segurança no Mundo Atual. Rio
injustiça à qual palestinos foram expostos e deveriam ser ressarcidos e de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
reconhecidos. BEN-AMI, Shlomo. The Scarf of War, Wounds and Peace – The Israeli-Arab Tragedy.
Nova York: Oxford, 2006.
Nesses dois contextos nacionais, usos político de tragédias coleti-
vas concorrem, buscando garantir fortalecimento público e legitimação BEN GURION, David. The Facts of Jewish Exile. Harper’s Magazine. September,
1965.
social. Assim, ignorá-los, acentuá-los ou deslegitimá-los passa a ser parte
fundamental das estratégias políticas israelenses e palestinas. BURG, Avraham. The Holocaust is Over We Must Rise From Its Ashes. Nova York:
Pallgrave MacMillan, 2008.
Importante notar que as profundas diferenças existentes entre os dois
COHEN, Hillel. Good Arabs – The Israeli Agencies and Israeli Arabs, 1948-1968.
fenômenos políticos, a Shoá e a Nakba, não devem inviabilizar compara-
California: UCLA, 2010.
ções em seus respectivos usos sociais. Aqui, tanto as narrativas palestinas
quanto a sionista investem em suas respectivas tragédias para garantir

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DANZIGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi:
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Sobre os autores
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Exile and Home. Massassuchets: Olive Press, 2013.
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MONICA GRIN é historiadora e professora de História Contemporânea
KIMERLING, Baruch; MIGDAL, S. Yoel. The Making of a People. Jerusalem: Keter, da UFRJ. Coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e
1999. Árabes da UFRJ (NIEJ) desde 2008. É autora de Raça: debate público
LAQUEUR, Walter. A History of Zionism: From the French Revolution to the no Brasil (Mauad, 2010) e coautora, com Bernardo Sorj, de Judaísmo e
Establishment of the State of Israel.New York: Shoken Books, 2003. modernidade (Imago, 1992), e, com Nelson Vieira, de Experiência cultural
MASALHA, Nur-eldeen. The Historical Roots of the Palestinian Refugee Question.
judaica no Brasil: recepção, inclusão e ambivalência (Topbooks, 2004).
In: ARURI, Naseer (ed.). The Palestinian Refugees: The Right of Return. London:
Pluto Press, 2001. MICHEL GHERMAN formou-se em História pela UFRJ, é mestre em
MORRIS, Benny. The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited. Cambidge: Antropologia e Sociologia pela Hebrew University of Jerusalem (Israel)
Cambidge Press, 2004. e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ.
Atualmente é bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD),
OZ, Amós. De amor e trevas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2005.
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, e
PAPPE, Ilan. A History of Modern Palestine – One Land Two People. Cambridge: co-coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes
Cambridge University Press, 2004. (NIEJ) na mesma instituição.
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_______. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
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