Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
FORTALEZA
2014
2
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas (Orientador)
Universidade Federal do Ceará – UFC
___________________________________________
Profª. Drª. Alexia Carvalho Brasil
Universidade Federal do Ceará – UFC
___________________________________________
Prof. Ms. Shirley Mônica Silva Martins
Universidade Federal do Ceará – UFC
3
"olhos
Olhos
são
para
ver
e
serem
vistos
vendo"
(Rogério Duarte)
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Érica Magalhães e Eduardo Soares de Sousa, a quem devo eterna
gratidão pelo apoio incondicional e pelo incentivo à minha formação. À minha irmã, Naiana
Magalhães, que tanto me guia nos assuntos relacionados à arte. À toda a minha família, que
me acolheu com amor e carinho nos momentos difíceis.
Aos queridos amigos que me auxiliaram durante a realização desta monografia,
seja emprestando livros ou me fazendo manter o foco no que realmente importa. São muitos
aos quais devo agradecer por todas as conversas, todas as trocas, pelo ombro amigo e por todo
o divertimento. Não cabem todos aqui. Hercília Diniz, Milenna Cunha, Lúcia Evangelista,
Cláudio de Paula, Karina Scramosin, Darwin Marinho e Rayra Costa, vocês foram essenciais
para que eu chegasse até a reta final.
Agradeço imensamente aos meus dois orientadores, Prof. Dr. Gustavo Pinheiro e
Prof. Dr. Ricardo Jorge, pela disposição e por todo o conhecimento compartilhado. Por fim,
agradeço às professoras Alexia Brasil e Shirley Martins por terem aceitado fazer parte da
banca.
6
RESUMO
ABSTRACT
By observing the posters of O Cangaceiro (1953) and Black god, white devil
(1964), it is possible to immediately identify a profusion of stylistic and formal differences.
Both movies are internationally recognized and represent an important milestone in the path
of the genre cangaço in brazilian cinema as well as in the development of the national cinema
itself. This study aims to compare the two posters from a visual analysis that constantly
establishes relationships between the pictures and the film. Notions of poster-ad and cover-
poster were used as a support to set a degree of fidelity between the poster and the movie. The
analysis also takes into consideration the paratextual character of the movie poster and the
integration of a process of inter-semiotic translation in its genesis. In order to coordinate all
these currents of thought and reach specific goals, it was developed a particular methodology
for visual analysis, based on principles and elements which are specific to the graphic design
as a discipline.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 63: Cartazes de The Man from Monterey (1933), Randy Rides Alone (1934) e The
Desert Trail (1935)....................................................................................................................70
Figura 64: Cartazes de Hondo (1953), Stagecoach (1939) e Rio Grande (1950).....................71
Figura 65: Cartaz de King Kong (1933)...................................................................................72
Figura 66: Cartaz de Wizard of Oz (1939)................................................................................72
Figura 67: Cartaz de Gone with the wind (1939)......................................................................72
Figura 68: Cartaz de Casablanca (1942)...................................................................................72
Figura 69: Cartaz de Paul Rand para No way out (1950).........................................................73
Figura 70: Cartaz de Robert McGinnis para Breakfast at Tiffany's (1961)..............................73
Figura 71: Cartaz de Vertigo. Saul Bass, 1958..........................................................................74
Figura 72: Cartaz de The Man with the Golden Arm. Saul Bass, 1955....................................75
Figura 73: Cartaz de Anatomy of a Murder. Saul Bass, 1959...................................................75
Figura 74: Cartaz de La Notte. Giuliano Nistri, 1960...............................................................75
Figura 75: Cartaz de Le Mépris. Gilbert Allard, 1963..............................................................75
Figura 76: Cartaz de Metropolis. Heinz Schulz-Neudamm, 1926............................................76
Figura 77: Cartaz de The Man with the movie camera. Giorgii e Vladimir Sternberg, 1929...77
Figura 78: Cartaz de Mon Oncle. Pierre Étaix, 1958................................................................78
Figura 79: Cartaz de Jules et Jim. Christian Broutin, 1961......................................................78
Figura 80: Cartaz de À bout de souffle. Clément Hurel, 1959.................................................79
Figura 81: Cartaz checo de À bout de souffle. Jiří Hilmar, 1966..............................................79
Figura 82: Cartaz polonês de Vertigo. Roman Cieslewicz, 1963..............................................80
Figura 83: Cartaz polonês de Birds. Bronislaw Zelek, 1963....................................................80
Figura 84: Cartaz de Candido Aragonese de Faria para À La Conquête du Pôle (Georges
Méliès, 1912)............................................................................................................................81
Figura 85: Cartaz de Un Chien Andalou (Luis Buñuel e Salvador Dalí, 1929). Autor
desconhecido, 1968...................................................................................................................81
Figura 86: Cartaz de Humberto della Latta para Hei de vencer (1924)....................................84
Figura 87: Cartaz de Roberto Rodrigues para Barro Humano (1929)......................................85
Figura 88: Cartaz para Onde a terra acaba (1933)....................................................................86
Figura 89: Cartaz para Argila (1940)........................................................................................86
Figura 90: Cartazes de Aldo Calvo para filmes da Vera Cruz...................................................87
Figura 91: Cartaz de Bianchi para Tico-tico no fubá (1952)....................................................88
11
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................15
2 DESIGN GRÁFICO E CINEMA EM TERRAS TROPICAIS........................................19
2.1 História do cartaz..............................................................................................................20
2.1.1 Percursos técnicos...........................................................................................................22
2.1.2 Percursos estéticos..........................................................................................................36
2.1.3 O cartaz de cinema..........................................................................................................64
2.2 Design gráfico brasileiro e o cartaz do cinema nacional...............................................83
3 DO FILME AO CARTAZ: ANÁLISE VISUAL DE UM PARATEXTO........................92
3.1 Visão geral das afinidades teóricas..................................................................................93
3.1.1 A problemática da linguagem.........................................................................................93
3.1.2 Interseção entre semiótica e análise visual....................................................................95
3.2 O cartaz como paratexto do filme...................................................................................99
3.3 O panorama da tradução intersemiótica......................................................................105
3.3 Design gráfico e análise visual........................................................................................109
3.4.1 Grid................................................................................................................................112
3.4.2 Tipografia......................................................................................................................115
3.4.3 Cor.................................................................................................................................118
3.4.4 Forma............................................................................................................................122
3.4.5 Imagem..........................................................................................................................123
4 ANÁLISE DOS CARTAZES.............................................................................................126
4.1 Cangaço, Cinema Novo e Tropicalismo.........................................................................126
4.2 Grid, tipografia e estilo...................................................................................................130
4.2.1 Grid................................................................................................................................130
4.2.2 Tipografia......................................................................................................................149
4.2.3 Estilo..............................................................................................................................152
4.3 Cor, forma e expressão....................................................................................................155
4.3.1 Cor.................................................................................................................................155
4.3.2 Forma............................................................................................................................158
4.3.3 Expressão......................................................................................................................160
4.4 Ilustração, fotografia e representatividade...................................................................160
4.5 Discussão dos resultados obtidos...................................................................................162
14
5 CONCLUSÃO....................................................................................................................165
6 BIBLIOGRAFIA................................................................................................................167
15
1 INTRODUÇÃO
A busca pelo objeto de pesquisa desta monografia partiu da vontade de falar sobre
dois temas apaixonantes: o design gráfico e o cinema. Vontade essa que encontrou no cartaz
de cinema a interseção ideal. A partir daí, vários caminhos se apresentaram como alternativas
para um recorte mais específico, como por exemplo analisar a forma como se comportam
graficamente nos cartazes os diferentes gêneros cinematográficos (drama, ação, romance,
aventura, etc.) e estudar os cartazes de um diretor ou gênero específico. Por fim, prevaleceu,
junto à última opção, o desejo de se restringir geograficamente a um recorte regional.
Tratar do design e do cinema brasileiros se mostrou uma tarefa ao mesmo tempo
confortável, pela proximidade e maior identificação com o universo simbólico nacional, e
enobrecedora, por valorizar o que é produzido pelos nossos conterrâneos. Assim, chegamos ao
tema do cangaço1, e durante esse percurso, a leitura de autores como Ismail Xavier e Chico
Homem de Melo forneceu contornos mais precisos ao trabalho.
A intenção inicial de estudar como a linguagem gráfica interage com a linguagem
cinematográfica se uniu, no âmbito do design gráfico, à noção de cartaz-anúncio e cartaz-
capa2 proposta por Chico Homem Melo (2005), e, no âmbito do cinema, à relevância dos
filmes do gênero cangaço para o cenário nacional e internacional, mais especificamente de O
Cangaceiro (Lima Barreto, 1953) e Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1963/64).
Ismail Xavier, em especial, nos traz uma contribuição inestimável através da
profunda análise que realiza sobre esses dois filmes em seu livro Sertão Mar: Glauber Rocha
e a estética da fome3, onde esmiúça os pormenores do cangaço glauberiano através do estudo
de Deus e o diabo na terra do sol em comparação a O Cangaceiro. O caráter contrapositivo e
a atenção dispensada aos aspectos formais dos filmes são os aspectos de sua análise que mais
interessam aos fins desta pesquisa. Em Sertão Mar, o autor buscou, como ele próprio diz:
sobre a relação “entre seu diálogo com a herança modernista e os imperativos de uma
militância de efeito político imediato na conjuntura dos anos 1960” (XAVIER, 2007, p. 7),
questão que também acreditava ser central na experiência do Cinema Novo4.
Este movimento, do qual Rocha foi não só um expoente, como um de seus
principais articuladores5, surge numa época em que a “demanda pela inserção criativa na
reflexão de longo prazo sobre a sociedade e a cultura brasileira” se chocava com uma vontade
de intervenção direta na vida política (XAVIER, 2007). Confrontando O Cangaceiro e Deus e
o diabo na terra do sol, é possível imaginar que o filme de Lima Barreto tenha contribuído
para, senão influenciado diretamente, essa “reflexão de longo prazo” a que Xavier se refere,
visto que levou o país a repercutir internacionalmente6 uma década antes de Rocha.
O modo como a arte dá forma a questões político-ideológicas nos interessa aqui
na medida em que a comparação que se pretende fazer entre os dois cartazes se baseia na
análise estilística de seus filmes, buscando relações entre uma estética e outra. É importante
esclarecer que não há, neste trabalho, a ambição de se realizar análises fílmicas. Para tanto,
iremos nos servir de análises anteriores, sendo a obra de Ismail Xavier nossa principal
referência, pelos motivos já explicitados.
Por compreender que o desenvolvimento do cartaz de cinema acompanha os
próprios desdobramentos da arte cinematográfica, é nosso intuito desvendar como se dá essa
transformação no tempo, através da análise visual dos cartazes de filmes que pertencem a um
mesmo gênero, mas que se distanciam por uma década. A leitura de Sertão Mar aponta os
fatores que podem ter influenciado um possível amadurecimento no uso dessas linguagens,
bem como nos possibilita estabelecer níveis de fidelidade entre o cartaz e o filme que este
representa.
Na tentativa de caracterizar uma afinidade entre os estilos do cartaz e do filme,
procuramos também identificar em que ponto o cartaz adquire vida própria e se desvencilha
4 Movimento de cineastas brasileiros que se iniciou na década de 60. De vocação crítica, política e realista,
estava engajado na busca de uma originalidade formal para o novo cinema brasileiro.
5 Fernão Pessoa Ramos, em introdução ao livro de Alexandre Figueirôa (2004), menciona acerca do desafio de
se caracterizar a produção do cinema novo como movimento, que este tinha seu lado orgânico expresso “na
atuação de seus membros como grupo, sob a liderança de Glauber Rocha (na crítica francesa sucede um
breve, mas forte, período de destaque para Ruy Guerra)” (FIGUEIRÔA, 2004, p. 10). Já o autor deste mesmo
livro cita mais adiante que o grupo era comandado por Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. Ismail
Xavier (2001) nos esclarece quanto à presença dos três nomes entre a liderança do movimento, ao afirmar
que este teve seu momento pleno em 1963/64 com a realização da trilogia do sertão do nordeste: Vidas Secas
(Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1963/64) e Os Fuzis
(Ruy Guerra, 1964).
6 No ano de seu lançamento, O Cangaceiro recebeu o prêmio de melhor filme de aventuras com menção
especial para a música no Festival de Cannes, França.
17
do filme. Ele está mais inclinado para ser uma metáfora ou uma sinopse deste? A pergunta
conduz à outra aspiração deste trabalho: encontrar nesses cartazes elementos visuais capazes
de definir graficamente o cartaz-capa e o cartaz-anúncio.
Para tanto, a relação entre figura e fundo, a fotografia, a ilustração, as cores, os
contrastes, as texturas, a tipografia, o grid7, enfim, toda a configuração visual dos cartazes
fornece pistas que nossa análise irá seguir. Segundo Allen Hurlburt (2002)8, o layout da
página impressa é formado pelas relações entre estilo, forma e conteúdo. Dentro desta tríade
constitutiva do design, a atenção neste momento se volta à forma.
Sendo assim, a metodologia deste trabalho se consolida no encontro de diferentes
trajetos de análise que convergem para a solução de um problema mais abrangente: como a
linguagem gráfica traduz a linguagem cinematográfica? Que forças estão presentes no
processo de tradução de um filme de 125 minutos, rodado a 24 quadros por segundo, para um
quadro apenas, o do cartaz, quando recai ainda sobre ele um peso a mais, o comercial, de
atrair pagantes para a sala de cinema?
Buscando responder a essas perguntas, contextualizamos de início a história do
cartaz com a história do design gráfico, traçando o desenvolvimento de uma linguagem
gráfica própria que se deu em meio a evoluções técnicas e movimentos artísticos, desde a
revolução industrial até o pós-modernismo, passando então pela sua trajetória ao lado do
cinema e sua estética particular. Abordamos também o reflexo desses acontecimentos no
Brasil, enfocando movimentos que tiveram lugar exclusivamente no país, o que nos leva ao
Cinema Novo e o Tropicalismo9.
Em seguida, apresentamos os fundamentos teóricos e metodológicos que se fazem
necessários à análise que se pretende sobre o comportamento estético da visualidade e sua
tradução a partir de uma outra linguagem. O conceito de paratexto irá enriquecer o trabalho,
trazendo novos pontos de vista para que a análise extrapole o nível visual.
Por fim, passamos ao exame dos nossos objetos. A análise foi dividida em tópicos
que partem do design gráfico, a saber: grid, tipografia, cor, forma, ilustração e fotografia. Esta
7 Sistema de planejamento ortogonal que divide a informação em partes manuseáveis sob o pressuposto de que
as relações de escala e a distribuição entre os elementos informativos – imagens ou palavras – ajudam o
observador a entender o significado da mensagem. (SAMARA, 2007)
8 O livro de Hurlburt, Layout: o design da página impressa, foi originalmente publicado em 1986, entretanto a
referência se faz aqui à edição de 2002, publicada no Brasil pela editora Nobel.
9 Movimento ocorrido entre a segunda metade de 1967 e dezembro de 1968 cujo núcleo principal se
concentrava na música popular brasileira, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas que compreende um
conjunto de criações artísticas de impacto em diversas áreas (como no teatro, com José Celso Martinez
Corrêa, e nas artes plásticas, com Hélio Oiticica). Por ter surgido após o lançamento dos filmes analisados,
será tratado nesta monografia apenas em sua forma embrionária.
18
escolha se deu pelo fato de os cartazes serem as principais peças analisadas (FIGURAS 1-2),
de onde irão surgir correlatos no âmbito do cinema. Elas se relacionam com os conceitos de
estilo, expressão e figuratividade.
10 Fundado em 1963 inicialmente como Conselho Internacional das Associações de Design Gráfico, teve seu
nome modificado em 2011 sob influência da cultura digital. O termo design de comunicação foi então
adotado no lugar de design gráfico por refletir uma maior convergência de disciplinas em torno dessa área. A
sigla inicial, porém, foi mantida.
11 Uma sensível diferenciação entre cartaz e pôster pode ser comumente encontrada, em que se associa o cartaz
a um intuito mais propagandístico e o pôster a uma funcionalidade mais decorativa. Entretanto, adotaremos
aqui um como sinônimo do outro.
12 A referência a esse artigo, e a indicação de suas páginas, será feita através do livro Textos clássicos do design
gráfico, que o contém. Trata-se de uma coletânea de artigos organizada por Michael Bierut, Jessica Hefland,
20
função. Sontag o descreve como fruto do espaço público moderno e seus atributos técnicos e
estéticos como consequências, ou condições, dessa atuação. Para a autora, as características
do cartaz explicitadas por Hutchinson, como reprodução em massa, escala, decoratividade e
mescla de recursos linguísticos e pictóricos, têm origem no papel que ele desempenha no
espaço urbano.
Sontag situa o cartaz como forma de arte aplicada, pois este, além de apresentar
conteúdo funcional (no caso do cartaz de cinema, o de vender o filme), possui também valor
estético. Dessa maneira, o cartaz estaria extrapolando o nível informativo e o nível
publicitário que vimos em Hollis, alcançando singularidade entre as artes gráficas.
Quanto à nomenclatura, porém, existe um salto conceitual entre arte aplicada e
design gráfico. A comunicação visual direcionada para fins específicos existia mesmo antes de
Cristo e esse salto decorre justamente das mudanças no método de trabalho ocasionadas pelo
novo funcionamento da vida moderna, como veremos a seguir.
Embora ressalte as implicações do momento histórico para o desenvolvimento da
forma do cartaz, Susan Sontag não o reconhece como um produto de design. Vejamos melhor
adiante como se deu esse percurso de afirmação do design gráfico, que chega a se confundir
com a própria história do cartaz.
O cartaz, assim como a fotografia e o cinema 13, não figura no mundo pré-
moderno: ele só existe na época da reprodutibilidade técnica. Diferentemente da pintura, não
há a intenção de que ele exista como objeto único. O autor brasileiro Rafael Cardoso reforça o
cartaz como exemplo da especificidade da comunicação visual ao seu contexto social e
cultural, pois a sua existência só foi possível devido a um intercruzamento singular de
circunstâncias de ordem econômica e cultural com outras de natureza tecnológica e artística.
Steven Heller e Rick Poynor. O livro foi publicado no Brasil em 2010 pela editora WMF Martins Fontes.
13 Deixando de lado desenvolvimentos técnicos isolados, atribui-se ao francês Joseph Nicéphore Niépce a
produção da primeira imagem fotográfica permanente (c. 1826), e aos irmãos Auguste e Louis Lumière,
também franceses, a invenção do cinematógrafo, que teve sua primeira reconhecida projeção em 1895.
21
Para Walter Benjamin (1994)16, a xilogravura tornou pela primeira vez o desenho
em arte tecnicamente reprodutível, antes que a imprensa, reprodução técnica da palavra
escrita, prestasse a esta o mesmo serviço. Ao surgimento da xilografia, seguiu-se o da
litografia, ao qual o teórico alemão conferiu atenção especial:
acelerada (FIGURA 3), atingindo um alto nível de sofisticação da sua linguagem, o que não
ocorreu de maneira homogênea por todo o território europeu.
[...] ainda que a informação que ele traz diga respeito a grande número de pessoas, e
não a poucas ou apenas uma, o comunicado público não é a mesma coisa que o
pôster. [...] O objetivo do comunicado público é informar ou ordenar. O do pôster é
seduzir, exortar, vender, educar, convencer, atrair (SONTAG, 2010, p. 210).
Até então, durante a Idade Média, tanto as produções ocidentais como as orientais
eram manuscritas e ilustradas em pergaminho ou papel velino, mais duráveis que o papiro,
sendo ambos produzidos a partir da pele animal 19. Da preparação da tinta à do suporte, todo o
18 Movimento artístico do século XV que teve início na Itália e, como o nome sugere, trata de um
ressurgimento, no caso, da grandeza da arte greco-romana. Foi marcado pelo desenvolvimento da técnica da
perspectiva e sua aplicação na pintura, que, junto a um maior domínio da luz e da sombra, aumentou ainda
mais a ilusão de realidade (GOMBRICH, 1999).
19 O pergaminho era feito de peles tratadas de carneiro ou de cabra e substituiu o papiro como superfície para a
escrita por ser mais resistente e permitir o uso de seus dois lados. Já o papel velino era uma variação mais
24
A pintura evocou ilusões do mundo natural em superfícies planas por meios como a
fonte única de luz e a modelagem de claro e escuro, o ponto de vista fixo e a
perspectiva linear, e a perspectiva aérea. A tipografia criou um ordenamento
sequencial e repetível de informações e espaço (MEGGS E PURVIS, 2009, p. 106).
23 O termo fonte passou a ser utilizado como sinônimo de tipografia para designar um determinado ‘tipo de
letra’ utilizado em alguma aplicação específica. A escolha pelo termo se deu pela ausência de outro que
melhor traduzisse o termo inglês typeface, que significa literalmente ‘face de tipo’, ou "o desenho de um
conjunto alfanumérico coerente, independente de sua implementação enquanto ‘fonte’" (FARIAS, 2004).
26
móvel, começou a ocorrer numa escala global que transpunha tempo e espaço. A
invenção de Gutenberg [...] colocou em movimento, durante os trezentos anos
seguintes, os processos que levaram à Revolução Industrial (MEGGS E PURVIS,
2009, p. 106).
O anseio de ocupar momentos de folga deu origem a outra invenção da era moderna:
o conceito de lazer popular, que se desenvolveu em estreita aliança com a abertura
de uma infraestrutura cívica composta por museus, teatros, locais de exposição,
parques, e jardins. (CARDOSO, 2008, p. 47).
A vida cultural se torna mais agitada e, com uma maior presença dos impressos
nas cidades ocidentais no fim do século XIX, os cartazes acabam por se transformar em
“expressão da vida econômica, social e cultural, competindo entre si para atrair compradores
24 Refere-se, em sua essência, "à criação de um sistema de fabricação que produz em quantidades tão grandes e
a um custo que vai diminuindo tão rapidamente que passa a não depender mais da demanda existente, mas
gera o seu próprio mercado” (HOBSBAWM, 1964 apud CARDOSO, 2008, p. 26).
25 Técnica de reprodução fiel de imagens que será abordada em detalhes mais adiante neste trabalho pelo
impacto do seu uso nas vanguardas artísticas.
29
A atenção dos transeuntes era capturada pelo colorido 26 dos cartazes, que se tornou
possível graças ao desenvolvimento da impressão litográfica. As ilustrações
refletiam o estilo artístico da época e introduziram uma nova estética de imagens
econômicas e simplificadas, decorrentes dos meios utilizados para reproduzi-las
(HOLLIS, 2000, p. 5).
26 A litografia em cores, ou cromolitografia, foi criada pelo francês Godefroy Engelmann em 1837. Neste
processo, as lâminas eram separadas por cores e impressas uma por uma (MEGGS E PURVIS, 2009, p. 199).
30
imaginativas (FIGURA 11) e o uso de uma diversificada paleta de cores, que nunca haviam
sido disponibilizadas para a comunicação impressa.
Figura 15: Tipos modernos: fat face, extra condensada, egípcia e gótica
Esses tipos grandes e grossos ficaram conhecidos como tipos display, e a sua
dificuldade de fabricação levou a um retorno do uso dos tipos de madeira, mais leves e
baratos. Com isso, tinha-se acesso a tipos de diversos tamanhos, estilos e pesos, que no
momento da diagramação do cartaz deviam ser firmemente presos na prensa. (FIGURA 16)
Para Meggs e Purvis, essa formatação impôs uma “tensão horizontal e vertical” ao
design de cartazes que se tornou um princípio básico de sua organização, marcada também
pelo pragmatismo e pela praticidade:
Palavras ou textos compridos exigiam tipo estreito e palavras ou textos curtos eram
compostos em fontes largas. Palavras importantes recebiam ênfase pelo uso dos
maiores tamanhos de tipos disponíveis. Havia um lado prático para a grande mistura
de estilos nos anúncios comerciais, porque na oficina gráfica típica muitas fontes
podiam ser encontradas, mas cada uma com um número limitado de caracteres.
Podiam-se usar livremente tipos de madeira junto com tipos de metal (MEGGS E
PURVIS, 2009, p. 181).
30 Máquinas que permitiam a composição de linhas de texto pela fundição dos tipos móveis através do toque de
um teclado. Com isso, o compositor deixava de compor com as pontas dos dedos, um a um, os tipos
necessários para a formação do texto. No Brasil, até os anos 1920, eram exclusividade dos grandes jornais
das grandes cidades (CAMARGO, 2003).
31 Método em que a imagem fotográfica é gravada em uma chapa, entintada, transferida para uma manta
intermediária lisa e deposta na superfície da página. Nos seus primórdios, a tipografia era composta nas
máquinas de lino e monotipo e as provas eram feitas em uma prensa tipográfica, depois recortadas, coladas e
fotografadas (BRINGHURST, 2003).
36
desafios e produtos da vida moderna, daremos continuidade à sua jornada focando agora na
sua relação com as artes plásticas.
32 Movimento que rompeu de maneira definitiva com os temas e os procedimentos aceitos até o final do século
XIX por se interessar em "captar a impressão visual de uma cena", pintando o que o olho via em oposição ao
que o artista sabia. Por ter se dado majoritariamente na pintura, foi marcado pela prática de pintar ao ar livre,
ao invés do ateliê, o que permitia observar a interação entre a luz e as cores. Dessa forma, evitou temas
históricos ou alegóricos em prol dos momentos fugazes da vida moderna (DEMPSEY, 2010, p. 15).
33 Movimento marcado pela recusa de retratar a realidade objetiva e pela ênfase nas emoções subjetivas e nas
reações pessoais. O pintor austríaco Oskar Kokoschka (1886-1980) descreve: "ocorre um extravasamento de
sentimentos na imagem, a qual se torna a encarnação plástica da alma" (apud DEMPSEY, 2010, p. 72). Além
da distorção do desenho e de suas proporções, o contraste de cor e tom era frequentemente intensificado e o
conteúdo simbólico era muito importante. A tinta espessa, as pinceladas soltas e o traçado de contornos fortes
conferiam propriedades táteis às obras.
37
internacional, ganhou maior destaque na França. Não por acaso, o francês Jules Chéret (1836-
1933) é considerado o pai do cartaz moderno, tendo criado cartazes para produtos de uso
doméstico, bebidas, medicamentos, auditórios de música e teatro, atendendo assim à demanda
da área cultural tanto quanto às necessidades do comércio e da industria.
Dentro dessa produção, o pintor Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901) é outro
francês que se destaca, sendo reconhecido por retratar a vida noturna da Paris do final do
século XIX. Produziu inúmeros cartazes para os cabarés parisienses, nos quais suas formas de
linhas marcantes tornam-se símbolos, como neste para o famoso Moulin Rouge. (FIGURA 19)
Sucedendo o Art Nouveau, temos uma série de movimentos que estão mais
ligados à arte moderna do que ao design. O cubismo leva adiante as rupturas dos pós-
impressionistas34 e muda o curso da pintura abandonando o plano tridimensional e
recolocando nesta o plano bidimensional. (FIGURA 22) Além disso, a colagem, a montagem
e o uso livre das letras como elemento plástico foram recursos cubistas amplamente
incorporados pelo design gráfico. (FIGURA 23)
34 A afirmação do francês Paul Cézanne, pintor pós-impressionista, que defendia que o pintor deveria "tratar a
natureza sob as formas do cilindro, da esfera e do cone" (MEGGS E PURVIS, 2009, p. 317) é levada ao
extremo por Fernand Léger em sua percepção planificada e fragmentada das cores e das formas que
compõem o ambiente urbano.
42
Figura 32: Cartaz político inglês, Saville Figura 33: Cartaz para o 8º levantamento
Lumley, 1914. de fundos, Julius Klinger, 1917.
Fonte: MEGGS E PURVIS, 2009, p. 353. Fonte: MEGGS E PURVIS, 2009, p. 352.
velho lixo para preparar-se para a nova vida” (MEGGS E PURVIS, 2009, p.374).
Neste momento de conclamação e engajamento social, o cartaz torna-se
imprescindível e artistas como El Lissitzky (1890-1941) inovaram a sua linguagem ao
mesclar efeitos de fotomontagem e experimentações tipográficas para criar justaposições
impactantes e associações simbólicas. (FIGURA 35)
Até 1914, o cartaz era destituído de qualquer função política. O principal tema dos
cartazes políticos foi o patriotismo, mas com a iminência bélica ele adquiriu uma importância
estratégica e passou a ser usado pelos governos como ferramenta de manipulação para obter
aceitação popular. O cartaz de guerra, em particular, tinha o objetivo de recrutar e manter a
moral das tropas e também de fazer propaganda contra o inimigo.
Com o surgimento dos movimentos revolucionários pós-guerra, o cartaz político
ganha fôlego. O teor, e consequentemente a estética, dos cartazes que difundem a visão oficial
de um país eram diferentes dos que expressam valores insurgentes. Estes tem sua distribuição
restrita e um menor alcance, mas compartilham do mesmo objetivo dos cartazes oficiais, que
é o da mobilização ideológica.
O advento do cartaz político não significou um rompimento com a função original
do cartaz (promover o consumo). Como afirma Sontag (2010), as condições históricas que
deram origem ao cartaz primeiramente como publicidade comercial e posteriormente como
propaganda política são as mesmas: se o primeiro é fruto da economia capitalista, com sua
necessidade de induzir as pessoas a gastar mais dinheiro em bens não essenciais e espetáculos,
o cartaz político reflete outro fenômeno específico dos séculos XIX e XX. Entretanto:
Essa reflexão para a qual Sontag (2010) nos conduz, acerca da função social do
cartaz, é essencial para uma compreensão mais proveitosa dos percursos estéticos que estamos
tratando, pois, como a autora afirma, o cartaz nasceu do impulso estetizante: ele pretendia
transformar o ato de vender em algo "belo". Dessa forma, além do seu objetivo, sua função
última pode ser puramente decorativa.
Paralelamente a isso, sua tarefa inicial de vender bens marginais como cigarros,
licores, cabarés, teatros ou viagens de lazer, levou os primeiros cartazes a favorecerem um
"tom leve ou espirituoso" (FIGURA 36), "arrojado" e "surpreendente", com elementos de
exagero e de ironia, características estas que até mesmo os cartazes políticos souberam aliar
ao seu caráter mais violento.
52
No período entre guerras, tais aspectos são evidentes nos cartazes do modernismo
figurativo, como Plakatstil (FIGURA 37) e Sach Plakat (FIGURA 38), e do Art Déco
(FIGURA 39), que tinham em comum a necessidade de manter uma referência figurativa para
comunicar sua mensagem de maneira mais persuasiva e "caminhavam numa corda bamba
entre a criação de imagens expressivas e simbólicas, de um lado, e a preocupação com a
organização visual total do plano de imagem, de outro" (MEGGS E PURVIS, 2009, p. 344).
Esse mesmo dilema é tratado por Sontag em termos de eficácia:
O pôster eficaz – mesmo o que vende o mais modesto produto para o lar – sempre
expõe essa dualidade que é a própria marca da arte: a tensão entre a vontade de dizer
(explicitação, literalidade) e a vontade de calar (truncamento, economia,
condensação, evocação, mistério, exagero) (SONTAG, 2010, p. 215).
53
Figura 38: Cartaz para protetor solar, Figura 39: Cartaz para transatlântico,
Niklaus Stoecklin, 1941. A. M. Cassandre, 1935.
Figura 40: Cartaz para exposição, Bart van der Leck, 1919.
pela industrialização, outra importante questão tratada pela Bauhaus era a noção de linguagem
visual. Esse interesse se exemplifica, conforme Lupton e Miller (2008), através de uma
pesquisa realizada em 1923 por Wassily Kandinsky na escola alemã, em que o artista
combinou as formas e cores do mundo numa sentença essencial: triângulo amarelo, quadrado
vermelho e círculo azul. Este seria o núcleo de uma gramática visual muito mais poderosa,
rápida e direta do que que a linguagem verbal.
Além de Kandinsky, importantes artistas de vanguarda como Paul Klee (1879-
1940) e Johannes Itten (1888-1967), que tratavam forma, cor e espaço como prioridades em
suas obras e estudos, foram incorporados ao corpo docente da escola. Tal integração com as
artes plásticas conformou a estética decisiva para a herança do design moderno:
Se Kandinsky, Klee e Itten articularam uma linguagem visual por meio do conceito
de uma infância da arte, a Bauhaus tornou-se a infância do design. Forma
geométrica, espaço modulado e uso racionalista da tipografia têm sido ressaltados
como as principais lições da herança bauhausiana. (LUPTON E MILLER, 2008, p.
25)
A Bauhaus se caracteriza por duas fases. A primeira, entre 1919 e 1924, se deu na
cidade de Weimar e foi marcada pela influência do De Stijl e pelas ideias de integração entre
pintura, arquitetura e áreas afins na busca por uma estética universal. A segunda ocorreu entre
1925 e 1932 com a mudança de sede para a cidade de Dessau e, embora ainda mantivesse a
inspiração construtivista, estava preocupada em produzir um design autêntico de mobiliário,
produto, arquitetura funcional e tipografia. Em 1933, a escola fecha as portas em decorrência
do cerco nazista e seu o último diretor foi o arquiteto Ludwig Mies van der Rohe (1886-
1969), autor da frase emblemática "menos é mais".
O húngaro László Moholy-Nagy (1895-1946) foi responsável por impulsionar a
incorporação da tipografia e da fotografia nas experimentações da Bauhaus, onde lecionou.
De origens construtivistas, este artista acreditava que a integração entre ambas representava a
evolução do design de cartazes, por possibilitar a apreensão instantânea da mensagem através
da manipulação de imagens junto ao trabalho enfático das letras. (FIGURA 41) Em busca da
clareza absoluta, suas experimentações nesse âmbito envolviam técnicas de ampliação,
distorção, recortes, dupla exposição e montagem, e ficaram conhecidas como tipofoto:
Ele concebia o design gráfico, particularmente o cartaz, como algo que evoluía em
direção à tipofoto. A essa integração objetiva entre palavra e imagem para comunicar
uma mensagem de modo imediato ele chamou de “a nova literatura visual”
(MEGGS & PURVIS, 2009, p.406).
56
Tipografias clássicas, como Walbaum, Didot, Bodoni, não servem como tipos de uso
diário. Sua composição tem associações românticas que desviam a atenção do leitor
para determinadas associações emocionais e intelectuais que pertencem claramente a
um passado com que não temos conexão (TSCHICHOLD apud BOMENY, 2012, p.
35).
Max Bill (1908-1984) (FIGURA 45), que fora aluno da Bauhaus e diretor da
Escola de Ulm, e Josef Müller-Brockmann (1914-1996) (FIGURA 46) são expoentes desse
movimento principalmente na aplicação desses conceitos na criação de cartazes.
Figura 45: Cartaz de exposição, Max Bill, 1945. Figura 46: Cartaz de conscientização
pública, Josef Müller-Brockmann, 1960.
Fonte: MEGGS E PURVIS, 2009, p. 465. Fonte: MEGGS E PURVIS, 2009, p. 476.
37 Em nota do editor ao livro "Grid systems" (1961), do designer suíço Josef Müller-Brockmann.
38 Ambos encomendados para ser um aperfeiçoamento da família de tipos Akzidenz Grotesk (Fundição
Berthold, 1898-1906).
60
criados entre os anos 1920 e 1930, como Gill Sans (Eric Gill, 1928) e Futura (Paul Renner,
1927). Estes dois últimos (FIGURAS 47-48) possuem um estilo mais geométrico, pois foram
construídos matematicamente com instrumentos de desenho (MEGGS E PURVIS, 2009).
Figura 47: Família de tipos Futura, Figura 48: Família de tipos Gill Sans,
Paul Renner. Fundição Bauer, Eric Gill. Inglaterra, 1928-1930.
Alemanha, 1927-1930.
Figura 49: Cartazes para a Rural Electrification Administration, Lester Beall, c. 1937.
Já por volta dos anos 20, os Estados Unidos haviam passado por um momento
intenso de prosperidade econômica que elevou o país ao posto de maior potência mundial. O
consumo era uma maneira de as pessoas demonstrarem seu nacionalismo pois estariam
fortalecendo a economia. Nessa época, o modo de vida americano começa a se consolidar e,
com o declínio do cinema europeu após a Primeira Guerra, pode contar com ascensão de
Hollywood, um distrito criado em Los Angeles, na Califórnia, que passou a ser considerado a
capital mundial da indústria cinematográfica por abrigar grandes estúdios desde o início.
Após se reerguer de uma profunda crise em 1929 e, anos depois, de mais uma
grande guerra, os EUA já pouco se identificavam com o contexto social e industrial europeu.
Com seu ideal de democracia livre baseado na liberdade de expressão e na competitividade no
mercado de trabalho, o país por fim consolidou a cultura de massa.
Essa mudança se refletiu também na expressão gráfica e, a partir dos anos 40, a
originalidade do design americano começa a se sobressair. Seguindo com menos rigidez os
cânones teóricos, o design gráfico norte-americano aos poucos se desvencilhava da influência
europeia. Mais pragmático, intuitivo e menos formal, dedicava-se a solucionar problemas de
comunicação e a satisfazer a própria necessidade de expressão dos designers.
62
Figura 50: Fotografia de Herbert Matter. Figura 51: Capa da Esquire, Henry Wolf, 1958.
Harper's Bazaar, Alexey Brodovitch, 1940.
Fonte: MEGGS E PURVIS, 2009, p. 440. Fonte: MEGGS E PURVIS, 2009, p. 504.
Figura 52: Capa para The Anatomy of Figura 53: Capa para A Fine Frenzy.
Revolution. Paul Rand, 1956. Paul Rand, 1959.
Figura 54: Cartaz para ópera. Jan Figura 55: Cartaz político. Elena
Lenica, 1964. Serrano, 1968.
Fonte: MEGGS E PURVIS, 2009, p. 552. Fonte: MEGGS E PURVIS, 2009, p. 577.
64
Um último passeio pela produção norte-americana deve ser feito em prol do cartaz
psicodélico (FIGURAS 56-57), movimento crucial para compreendermos os embriões do pós-
modernismo, que aqui tratamos apenas sob a forma de citação devido a uma restrição
acadêmica imposta pelo recorte temporal do nossos objetos de estudo, que datam de 1953-64.
Figura 56: Cartaz de Bob Dylan. Figura 57: Cartaz para os Chambers
Milton Glaser, 1967. Brothers. Victor Moscoso, 1967.
para um grande público, em um evento pago. Dias antes da exibição, um cartaz tipográfico
teria sido afixado nas janelas do Grand Café, anunciando a projeção cinematográfica que se
tornaria um marco na história do cinema.
permite coletar, por meio de uma série de testes instantâneos, todos os movimentos
que, durante um determinado tempo, se sucedem perante a câmera, e em seguida
reproduzir esses movimentos, projetando, em tamanho real, diante de uma sala
inteira, suas imagens em uma tela.39
Todos os dez filmes exibidos naquele dia eram de autoria dos irmãos Lumière,
como La Sortie de l’Usine Lumière à Lyon, que mostrava a saída dos funcionários de uma
39 Tradução livre do original em francês: “permet de recueillir, par des séries d’épreuves instantanées, tous les
mouvements qui, pendant un temps donné, se sont succédé devant l’objectif, et de reproduire ensuite ces
mouvements en projetant, grandeur naturelle, devant une salle entière, leurs images sur une écran”.
66
Esses exemplos evidenciam a importância do cartaz para o cinema logo nos seus
primeiros anos, quando aquele se tornou não apenas o seu principal divulgador, como também
testemunha do modo como este se relacionava com a sociedade da época. Entretanto, mais do
que ecoar o desenvolvimento do cinema, o cartaz cinematográfico possui uma trajetória
própria, que reflete inclusive mudanças significativas na natureza do seu público.
Isso porque, como nos lembra Emily King (2003) os cartazes são, essencialmente,
publicidade, e como tal, a sua primeira função deve ser comunicar-se com o público nas ruas,
e não com as imagens na tela. A distribuição dos filmes, que a princípio estaria muito próxima
68
ao fim da etapa comercial de um esforço criativo maior, se vê dependente dele para atrair o
público para o momento final de sua exibição.
Ao passo que se desenvolvia a indústria cinematográfica, o público também se
sofisticava. Surgem, mais ou menos na mesma época, por volta de 1910, os longa metragens e
a demanda pela atuação recorrente das estrelas de cinema. Os estúdios de Hollywood então
consolidam esse padrão de filmes de 90 minutos com atores famosos. (POOLE, 2003) Os
cartazes dos maiores estúdios da época40 eram produzidos pelos próprios departamentos de
arte comercial mantidos por eles e utilizaram intensamente os rostos reconhecíveis que
haviam conquistado o público como uma fórmula de sucesso.
De acordo com o site Filmposters.com41, durante os anos 1920 e 1930, os grandes
estúdios desenvolveram cada um seu próprio estilo de cartaz, que refletiam o caráter da sua
produção. Os cartazes da MGM (fundada em 1924) eram conhecidos pelas paletas de cores
pastel sobre fundo branco, enquanto que os da 20th Century Fox (fundada como Fox em 1915
e fundindo-se com a 20th Century Corporation em 1935) usavam cores ricas e vibrantes para
promover seus musicais. A Paramount (fundada em 1930) aproveitou sua gama de
celebridades para produzir cartazes elegantes com um mínimo de texto. Por outro lado, a
Warner Bros. (fundada em 1923) adotou um estilo de cartaz mais marcante, muitas vezes
dominado por um projeto fotomontagem, de acordo com o seu forte catálogo de filmes de
realismo social. O Universal Studio (fundado em 1912), apesar de menor, é o estúdio mais
antigo, e seus cartazes eram notáveis pelas cores saturadas e composições dinâmicas ousadas,
com muito pouco espaço em branco. A crescente preferência do público pela qualidade na
fotografia colorida impulsionou o pioneirismo da Columbia Pictures (fundada em 1919) no
processo de colorização artificial das fotografias preto e branco, que logo foi adotado pelos
outros estúdios.
40 Os cinco maiores estúdios eram Metro-Goldwyn-Mayer, Paramount, Warner Brothers, 20th Century Fox e
RKO Studios. Outros três, United Artists, Universal e Columbia Pictures, eram de médio porte.
41 Disponível em: http://www.filmposters.com/vintage-posters/vintage-posters.asp
69
Figura 61: Cartazes de The Last Trail (1927), King Cowboy (1928) e Destry Rides Again
(1932).
Figura 63: Cartazes de The Man from Monterey (1933), Randy Rides Alone (1934) e The
Desert Trail (1935).
Tom Mix foi um astro do cinema mudo e, embora tenha feito muitos filmes, teve
uma carreira breve. Já Buck Jones era considerado um ator de filmes "b" 42. John Wayne foi
quem teve a carreira mais longa, participando da transição para os filmes coloridos e das
premiações, que da mesma forma que a novidade do som, também eram publicizados em
notas43 nos cartazes. É possível notar uma diferença entre os primeiros cartazes de western e
uma fase seguinte, em que os cartazes parecem dar mais importância a elementos narrativos,
integrando junto à imagem dos atores, cenas de ação e paisagem. Os nomes do elenco e
demais créditos começam a aparecer em uma ordem mais hierárquica. (FIGURA 64)
Figura 64: Cartazes de Hondo (1953), Stagecoach (1939) e Rio Grande (1950).
42 Assim como as outras indústrias, o cinema norte-americano também foi afetado pela Crise de 1929, sofrendo
uma forte queda no número de espectadores. Para contornar a situação, uma estratégia adotada pelos estúdios
na época foi exibir duas sessões pelo preço de uma: um filme "A", de grande produção com alto orçamento, e
um filme "B", de baixo orçamento e produção (MATTOS, 2003).
43 Como "His first talking movie!" no cartaz de Destry Rides Again, "ALL-TALKING" em Shadow Ranch,
"Collore della Warner Color" em Hondo e "Winner of 2 Academy Awards" em Stagecoach.
72
Figura 65: Cartaz de King Kong (1933). Figura 66: Cartaz de Wizard of Oz (1939).
Figura 67: Cartaz de Gone with the wind (1939). Figura 68: Cartaz de Casablanca (1942).
Fonte: Site Internet Movie Poster Awards. Disponível em: Fonte: Site Internet Movie Poster Awards.
www.impawards.com Disponível em: www.impawards.com
73
Embora seja um estilo que resistiu ao tempo – até os dias hoje, mesmo com a
fotografia e a computação gráfica, é comum encontrar cartazes que seguem essa mesma
estrutura clássica – essa preferência deixou de ser unânime por volta dos anos 1950, em parte
pela influência de designers Paul Rand e Saul Bass, como vimos anteriormente. Aos poucos
as cores e as formas se permitiam mais simbólicas, mesmo que aliadas a fotografias (FIGURA
69) e ilustrações (FIGURA 70).
Figura 69: Cartaz de Paul Rand para No Figura 70: Cartaz de Robert McGinnis
way out (1950). para Breakfast at Tiffany's (1961).
Figura 72: Cartaz de The Man with the Figura 73: Cartaz de Anatomy of a Murder.
Golden Arm. Saul Bass, 1955. Saul Bass, 1959.
Figura 74: Cartaz de La Notte. Giuliano Figura 75: Cartaz de Le Mépris. Gilbert
Nistri, 1960. Allard, 1963.
The Man with the movie camera (Dziga Vertov, 1929) é outro marco na história do
cinema. O filme documenta de maneira criativa e reflexiva o cotidiano da cidade russa,
associando o olho humano à lente da câmera através de metáforas visuais. Dziga Vertov
(1896-1954) defendia o compromisso do cinema com a verdade e considerava a ficção uma
traição ao meio cinematográfico, cuja vocação era documentar a realidade. Com seu irmão e
sua esposa formou o grupo cine-olho. Vertov, para quem a montagem era o motor do sentido
filme, foi um dos primeiros cineastas a explorar esse elemento a fundo, sendo responsável
pelo desenvolvimento de princípios fundamentais da linguagem cinematográfica.
A câmera é protagonista também no cartaz de O Homem com a câmera. Criado
pelos irmãos Sternberg, dois expoentes do construtivismo russo, o cartaz reflete a natureza
radical do filme. Dando continuidade ao estilo deste, ele rompe com imagens convencionais e
forma um conjunto integrado de fragmentos díspares. Além da representação literal do cine-
olho, a câmera que tudo vê, a ilustração mescla a imagem do cameraman e a foto de um
personagem aleatório (KING, 2003).
Figura 77: Cartaz de The Man with the movie camera. Giorgii e Vladimir Sternberg, 1929.
Décadas adiante, surgem na França produções que vão oferecer novos contornos
ao fazer cinema, novidade que transborda também para os seus cartazes, pois os diretores
passam a exigir e a confiar no talento de artistas para a criação destes (FIGURA 78):
Na década de 1950, o design dos cartazes franceses tinha se tornado tão bipolar
quanto a própria indústria do cinema francês – de um lado estavam os vívidos,
ativos e sedutores cartazes criados para os filmes de gênero popular e importados de
Hollywood, de outro, os projetos marcantes e simples para os mais seriamente
intencionados "filmes de autor" que estavam começando a emergir do cenário
comercial (SALAVETZ, DRATE, SAROWITZ E KEHR, 2008, p. 178).44
Figura 78: Cartaz de Mon Oncle. Pierre Étaix, 1958. Figura 79: Cartaz de Jules et Jim.
Christian Broutin, 1961.
44 Tradução livre do original: "By the 1950s, French poster design had become as bipolar as the French film
industry itself – on the one hand were the vivid, busy, seductive posters designed for the popular genre films
and Hollywood imports; on the other, the stark, and simple designs for the more seriously intended "films
d'auteur" that were beggining to emergefrom the commercial background".
45 Movimento do cinema francês dos anos 1960 motivado em transgredir as regras do cinema comercial.
79
Figura 80: Cartaz de À bout de souffle. Figura 81: Cartaz checo de À bout de
Clément Hurel, 1959. souffle. Jiří Hilmar, 1966.
O cartaz tcheco (FIGURA 81) para este que foi o primeiro longa-metragem de
Godard (n. 1930) permite uma outra interpretação. Jiří Hilmar (n. 1937) confere um denso
enfoque psicológico ao filme. Tanto pelo modo como expõe o rosto de Michel (Jean-Paul
Belmondo): em um ângulo similar ao de uma foto de ficha policial à qual se sobrepõem
46 Tradução livre do original: "Hurel makes the romantic encounter look like a fight for survival".
80
círculos em forma espiral, sugerindo o perfil de uma mente labiríntica sob análise. Como pela
escolha simbólica da cor: a aplicação da camada de azul, dotada de profundidade, e o modo
como esta interage com o vermelho, escurecendo-o. Nota-se uma influência do design suíço
na economia das formas geométricas e no emprego das cores, além da tipografia racional
empregada no título em caixa-baixa, que totalizam um grid assimétrico.
Ao utilizar a fotografia, Hilmar deixou de lado uma tradição de ilustrações
sombrias e viscerais, característica marcante também dos cartazes poloneses, como mostram
as versões alternativas criadas para os filmes de Hitchcock (FIGURAS 82-83).
Figura 82: Cartaz polonês de Vertigo. Figura 83: Cartaz polonês de Birds.
Roman Cieslewicz, 1963. Bronislaw Zelek, 1963.
Com a passagem da litografia para o offset, a tipografia nos cartazes foi ficando
mais formal, por uma limitação na oferta de estilos na época, e imparcial do que as ilustradas,
que cediam à tentação do ímpeto criativo de exprimir significado através do desenho das
letras. Quando ainda ilustradas, partiam de uma intenção mais consciente de sua função
dentro do layout, como a caligrafia ingênua e divertida de Pierre Étaix para Mon Oncle e os
tipos instáveis de Saul Bass.
A manipulação da fotografia lançou novas questões sobre a função do cartaz de
81
cinema. Ao contrário da ilustração, que por sua vez permitia criar cenas que não existiam no
filme ou exagerar sentimentos e situações (FIGURA 84), a fotografia está presa ao real, ao
registro de planos e personagens. O cartaz póstumo do curta surrealista Um cão andaluz
(FIGURA 85) leva ao extremo essa possibilidade. Ao utilizar stills do filme, inclusive as
cartelas iniciais, ele põe em cheque a contribuição do cartaz e as suas limitações. Seria essa a
função do cartaz cinematográfico, ser um espelho do filme, o relato de sua narrativa?
Figura 84: Cartaz de Candido Aragonese de Figura 85: Cartaz de Un Chien Andalou
Faria para À La Conquête du Pôle (Georges (Luis Buñuel e Salvador Dalí, 1929). Autor
Méliès, 1912). desconhecido, 1968.
Acerca dessa questão da fidelidade do cartaz ao filme, Emily King defende que
nem todo cartaz comunica a essência de seu filme e que na maioria das vezes o cartaz de
cinema adquire uma vida própria, pois segundo a autora:
Em alguns casos, cartaz e filme estão amarrados juntos e falam a uma só voz, o
primeiro resumindo o segundo. Em outros, eles estão totalmente separados, criados
por autores distintos e emitem mensagens semelhantes, mas não idênticas.
Instintivamente, a primeira situação parece mais satisfatória do que a segunda – na
82
Assim como King, o autor brasileiro afirma que nosso ímpeto natural é defender
um (no caso, o cartaz-capa) e demonizar o outro (cartaz-anúncio). A escolha por perpetuar um
padrão gráfico é quase incompreensível, ainda mais depois da rica e exaustiva exposição
histórica que apresentamos aqui. Entretanto, o autor pede cautela, pois ao mesmo tempo em
que as regras seguidas pelo cartaz-anúncio representam "camisas-de-força" para a linguagem
gráfica, elas representam também "a decantação de um saber emanado na prática", o que
requer um olhar tanto crítico quanto humilde.
O cartaz têm sido utilizado pelo cinema desde as suas primeiras projeções
públicas. Fora das salas de projeção, ele teve um início despretensioso enquanto listagem da
programação de filmes a serem exibidos, até que começou, no início do século XX, a
apresentar ilustrações de uma cena do filme ou de várias delas em imagens sobrepostas. Por
47 Tradução livre do original: "It is often said that movie posters communicate the essence of film. This isn’t
entirely true. In some cases poster and film are tied closely together and speak with one voice, the former
summarising the latter. In others, they are utterly separate, created by unallied bodies and sending out
related, but not identical messages. Instinctively the former situation would seem more satisfactory than the
latter - indeed I tend judge contemporary posters on their fidelity to cinematic style - but in the fullness of
time, the film poster takes on a life of its own."
83
fim, passou a apresentar ao público criações férteis e interpretações inventivas acerca dos
filmes e suas narrativas, vistos hoje através de uma infinidade de estilos.
Com esse panorama em vista, nos perguntamos: até que ponto o cartaz de cinema
se desvencilha do filme que representa e adquire vida própria? A indagação é o ponto de
partida para o trabalho: é o que rege a análise futura, bem como as escolhas teóricas tomadas
no capítulo seguinte. A seguir, um breve olhar para a trajetória do design brasileiro encerra
este primeiro capítulo histórico.
Existe um mito, de acordo com Rafael Cardoso (2005, p. 7), de que a história do
design gráfico brasileiro se inicia na década de 1960. Enquanto mito, o autor afirma, possui
um viés verdadeiro em meio à sua falsidade. A aplicação do termo "design" aos
acontecimentos anteriores a 1960 é decerto anacrônica, entretanto, a sua recusa implica em
não reconhecer como design tudo o que veio antes, e para Cardoso este é o aspecto mais
problemático dessa questão.
A primeira agência de cartazes do Brasil surge em 1888 (CAMARGO, 2003, p.
62), entretanto a sua circulação dependia da indústria. Só no final dos anos 1930 os cartazes
publicitários supercoloridos, de tipografia grande e espessa, começaram a marcar presença nas
cidades brasileiras, inclusive com formato específico para cartaz de bonde (idem, p. 95).
Segundo Melo (2011), na década de 20, existiam no Brasil cerca de setecentas
salas de cinema. Entretanto, como a maioria dos filmes exibidos era de origem estrangeira,
eles já vinham acompanhados de seus cartazes. Para o autor, diante desse cenário, o cinema
foi o responsável por impulsionar o cartaz brasileiro, forçando a mobilização da produção do
país. O cartaz de "Hei de vencer" (FIGURA 86) é um exemplar dessa época:
Hei de vencer rompe com a referência da pintura realista e assume uma linguagem
gráfica de cores chapadas e contornos bem definidos. O ponto de vista enfatiza o
olhar em perspectiva, acentuando as piruetas dos aviões. O contraste cromático do
laranja das aeronaves contra o azul-escuro do céu amplifica ainda mais a potência do
conjunto (MELO, 2011, p. 102).
84
Figura 86: Cartaz de Humberto della Latta para Hei de vencer (1924).
O fim da década de vinte seria marcado pelo fim do cinema mudo e pela criação
da Cinédia em 1930 no Rio de Janeiro, a primeira grande companhia de produção
cinematográfica. Barro Humano (1929) foi o primeiro e único filme dirigido por Adhemar
Gonzaga antes do surgimento da Cinédia. O filme adquiriu enorme sucesso de bilheteria e
demonstrou a capacidade do cinema brasileiro em absorver as características da linguagem
cinematográfica do cinema industrial (RAMOS, 1987). O cartaz (FIGURA 87), assim como o
de Hei de vencer, também exibe notável influência das vanguardas europeias, porém com
ilustração mais autêntica, elegante, e uma aplicação de cores tão econômica quanto
impecável. A tipografia decorativa dá o tom do espetáculo.
85
Em quatro anos, a Cia Cinematográfica Vera Cruz teve uma produção intensa,
produzindo 18 filmes de longa-metragem entre 1950 e 1954. Tico-Tico no Fubá (1952), o
primeiro filme de Anselmo Duarte na Vera Cruz, teve um lançamento grandioso, simultâneo
em 22 salas (RAMOS, 1987). O sucesso foi enorme e o cartaz transmitia a vivacidade musical
do romance com cores fortes e na expressão dos atores através de uma ilustração
preciosamente detalhada. (FIGURA 91) Os cartazes da Vera Cruz eram impressos pela
Brasilgráfica (CAMARGO, 2003) e sua alta qualidade de impressão remetiam ao alto padrão
de suas produções.
88
Na década de 1960, Ziraldo criou vários cartazes para o cinema nacional, entre os
quais: O assalto ao trem pagador (1962), Selva trágica (1963) e Os fuzis (1964). Comparando
esses três cartazes (FIGURA 93), podemos observar uma evolução em busca de um estilo
gráfico próprio na carreira de Ziraldo como cartazista.
Em 1964, Ziraldo chegou a criar um cartaz para Deus e o diabo na terra do sol,
mas foi rejeitado. (FIGURA 94) Seu estilo parecia estar já bem estabelecido. Tanto que levou
Rogério Duarte, autor do cartaz oficial, a referir-se ao cartaz de Ziraldo como um
"ziraldismo":
Quando ele (Glauber Rocha) me chamou para fazer o cartaz do Deus e o diabo na
terra do sol, já haviam dois cartazes prontos. E que tinham sido feitos exatamente
dentro daquela mentalidade que eu queria destruir. Um era do Ziraldo, com um
cangaceiro que repetia o seu estilo, que era um Ziraldismo. O outro do Calazans
Neto, que era uma gravura, um Calazansismo. Cada um havia colocado no cartaz o
seu ego, o seu estilo, e que não era o de Glauber (apud COHN, 2009, p. 199).
Um fato triste mas que não pode deixar de ser mencionado, é que quase tudo
aparecido entre nós em matéria de avanguardismo é decorrência de movimentos
estrangeiros. Mesmo o nacionalismo do período romântico ou de 22, são versões
tupiniquins de nacionalismos estrangeiros. A Europa grita: está na hora de amar a
pátria, e aí nos sentimos autorizados a amar a nossa pátria. Irrite-se ou não a glória
nacional, vamos afirmar que isto é muito natural quando se trata de países
subdesenvolvidos (DUARTE apud COHN, 2009, p. 37).
A pergunta que inaugura este trabalho, a qual buscamos responder, traz uma
prerrogativa que deve antes ser esclarecida. “Como a linguagem gráfica traduz a linguagem
cinematográfica” não quer dizer que o cartaz seja uma tradução, em termos literais, do filme.
Não. O cartaz não é sequer uma sinopse deste. Ele se vê impedido de sintetizá-lo a partir de
sua natureza imediata. Levando adiante essa despretensiosa comparação com a literatura, ele
estaria mais próximo de uma metáfora do que de uma sinopse, na medida em que assume a
sua incapacidade de resumir uma obra audiovisual em toda a sua complexidade e abraça o
infinito de possibilidades que se apresenta no ato de converter-se em uma outra obra, um
outro produto, tão comercial quanto aquele primeiro que lhe deu origem.
Portanto, a tradução é compreendida aqui como processo de transformação. Da
linguagem, e não da obra em si. Transformação de um conjunto de elementos audiovisuais em
94
uma única peça gráfica, pois estamos tratando de duas obras de finalidades distintas: o filme
nos conta uma história e o cartaz nos conta porquê devemos conhecê-la. Mais um motivo pelo
qual o cartaz não pode nos revelar essa narrativa, resumindo ou traduzindo-a, pelo contrário,
deve evitar o seu desfecho ao máximo, de modo a prolongar a expectativa por parte do
público.
Desvendar como se dá esse processo é saber, a nível de linguagem, que elementos
sobreviveram a essa mutação, que novas formas eles tomaram e porquê: eis o que move a
nossa análise. Mas porque falar de linguagem?
Um estudo mais rigoroso e pragmático interrogaria se o cinema e a imagem visual
são ou não linguagens. Com efeito, o fato de poderem ser investigados sob o ponto de vista da
significação não os torna uma linguagem. Entretanto, sempre existiu uma profunda
dificuldade em atribuir-lhes significado sem fazer qualquer relação com os domínios da
linguagem, pois a atribuição de sentido esteve durante muito tempo ligada ao discurso. Uma
compreensão alargada da linguagem, entendida como um sistema de signos, nos permite
assumir de maneira legítima a metáfora da linguagem cinematográfica e da linguagem gráfica,
pois existe aí uma troca sígnica evidente e é de nosso interesse compreender como ela se
processa.
Jacques Aumont discute a problemática do cinema enquanto linguagem no livro A
estética do filme, onde o autor põe em diálogo diversos teóricos que já se debruçaram sobre a
questão, como Christian Metz em seu A Significação no Cinema e Roland Barthes. O
panorama de Aumont nos põe em contato com a teoria do texto de Barthes, na qual se baseia
Gérard Genette na sua concepção de paratexto. Para Aumont (2009, p. 207), o "texto", no
sentido semiótico, é "uma noção estratégica com uma função polêmica e programática" a qual
uma nova teoria do texto estaria se opondo, com o apoio de Barthes:
Barthes afirma que todas as práticas significantes podem engendrar texto: a prática
pictórica, musical, fílmica etc. Já não considera as obras como simples mensagens,
ou enunciados, como produtos acabados, mas como "produções perpétuas,
enunciações pelas quais o sujeito continua a se debater"; esse sujeito é sem dúvida o
autor, mas também o leitor. A teoria do texto traz a promoção de uma nova prática, a
leitura, "aquela em que o leitor não é nada menos do que aquele que quer escrever
empenhando-se em uma prática erótica da linguagem" (Roland Barthes) (AUMONT,
2009, p. 208).
deste como paratexto daquele. Sua definição distingue ainda texto e obra, como esclarece
Jonathan Gray, que se utiliza da definição de paratexto de Genette para analisar materiais
promocionais de filmes48:
Barthes estabeleceu uma distinção a este respeito entre o texto e a obra. A obra,
explica ele, "pode ser segurada na mão", enquanto que "o texto é realizado na
linguagem, só existe no movimento de um discurso", e é "experimentado apenas em
uma atividade de produção". Pode-se segurar um rolo de filme [...] mas essa é a obra
sozinha - o texto só é experimentado no ato de consumo (GRAY, 2010, p.30).
O termo semiótica vem do grego semeion, que quer dizer signo, e hoje discrimina
a teoria geral dos signos. Sua definição como ciência dos signos, entretanto, não é aceita
unanimemente por todos os estudiosos da área. É uma ciência por se fazer, que foi e vem
sendo constituída com bases filosóficas, segundo Winfried Nöth, desde o inglês John Locke
(1632-1704), que em 1690 postulou uma “doutrina dos signos” denominada Semeiotiké em
seu livro Essay on human understanding. Já as investigações mais gerais sobre a natureza dos
signos, da significação e da comunicação, são ainda mais antigas, coincidindo com a própria
origem da filosofia através das ideias de Platão e Aristóteles (NÖTH, 1995).
Durante algum tempo de seu percurso, a semiótica enfrentou uma rivalidade
terminológica com a semiologia. Este termo ficou ligado à tradição semiótica fundada no
campo da linguística de Ferdinand de Saussure e continuada por semioticistas como Louis
Hjelmslev e Roland Barthes, se tornando o termo preferido nos países românicos, enquanto
autores anglófonos e alemães preferiram o termo semiótica. Logo distinções conceituais
começaram a ser elaboradas e, como nos explica Nöth, semiótica passou a designar “uma
ciência mais geral dos signos, incluindo os signos animais e da natureza, enquanto semiologia
48 Tradução livre do original: "Barthes drew a distinction in this respect between the text and the work. The
work, he explains, "can be held in the hand", whereas "the text is held in language, only exists in the
movement of a discourse," and is "experienced only in an activity of production". One can hold a roll of film
[...] but that is the work alone - the text is only experienced in the act of consumption".
96
49 O conceito hjelmsleviano de plano de expressão e plano de conteúdo, por exemplo, seria um caminho para
desvendar tal relação entre uma estrutura e seu significado.
97
reconhecimento essenciais para a interpretação de uma imagem, que também passa por
experiências culturais” (SOUZA E SANTARELLI, 2008, p. 148).
O modelo desenvolvido por Martine Joly se destaca pela atenção dispensada aos
elementos plásticos e à tipografia, pois a cor e o formato dos caracteres não tinham sido
considerados pelos modelos de análise da imagem publicitária desenvolvidos até então. Em
geral, a mensagem plástica tinha sido pouco explorada pelos modelos nascidos da semiologia,
no entanto, conforme explicam Souza e Santarelli (2008, p. 150), ela é essencial para a
construção de uma retórica da imagem no sentido barthesiano, que depende de um saber
sociocultural do espectador. Até o momento, as conotações carregadas de significados
socioculturais se restringiam aos significantes icônicos, já em parte reconhecidos na descrição
verbal da imagem. Ou seja, era apenas através da análise da mensagem icônica (ou figurativa)
que se chegava a estereótipos como virilidade e aventura.
Para Joly, a mensagem plástica é composta pelo conjunto de elementos visuais
que compõem a imagem, a saber: o seu suporte, a dimensão desse suporte, o quadro, o
enquadramento, o ângulo de tomada, a escolha da objetiva, a composição, as formas, as cores,
a iluminação e a textura. Após fazer essa divisão dos significantes plásticos do anúncio
publicitário, a autora gera um quadro que separa tais elementos dos seus significados, e
conclui que a significação global da mensagem visual é construída na interação entre signos
de diferentes origens, como ela mesma aponta: plásticas, icônicas e linguísticas.
Em nosso caso, o objetivo da análise não é explorar a significação de cada cartaz à
exaustão, mas descrevê-los a partir de sua visualidade até que seja possível relacioná-los de
maneira mais direta com os filmes, e posteriormente, compará-los entre si. Por esse motivo,
os modelos de análise desenvolvidos por Barthes, Eco e Joly, que se adequam especificamente
à imagem e à retórica publicitárias, não são inteiramente úteis aos pressupostos da nossa
análise, que se propõe mais abrangente.
Tendo em vista essa abrangência, guardamos mais afinidades com a teoria
semiótica de Peirce, tanto pelo seu caráter universal como por ser a base na qual se apoia a
teoria da tradução intersemiótica levada adiante por Julio Plaza, a ser elucidada ainda neste
capítulo e da qual nos utilizaremos num segundo momento da nossa análise. Por ora, cabe
esclarecer que o aprofundamento desses conceitos se dá na medida em que se recusa a
realização de uma análise semiótica e se opta pela análise visual, que vai buscar a significação
dos cartazes através de análises fílmicas preexistentes e da comparação entre os cartazes.
99
Dessa forma, acreditamos estar criando um método próprio de análise que melhor atende ao
nosso objetivo específico de lançar a perspectiva da tradução intersemiótica sobre a relação
entre cinema e design.
Para Genette, o paratexto não é apenas uma fronteira estanque mas representa um
limiar flexível, como uma orla ou um vestíbulo que permite entrar ou retroceder. É uma zona
intermediária entre o extratexto e o texto, entre o dentro e o fora, "sem limite rigoroso, nem
para o interior (o texto) nem para o exterior (o discurso do mundo sobre o texto)": uma "zona
indecisa [...] onde se misturam duas séries de códigos: o código social, em seu aspecto
publicitário, e os códigos produtores ou reguladores do texto" (GENETTE, 2009, p.10). O
paratexto, além de zona de transição, seria uma zona de transação, pois se caracteriza também
pela atribuição de comentários autorais ao texto, nem sempre legitimados pelo autor,
constituindo
[...] o público não é um conjunto ou a soma dos leitores. O público, ou como se diz
com mais precisão em inglês, a audience, de uma representação teatral, de um
concerto ou de uma projeção cinematográfica, é a soma das pessoas presentes e,
portanto, em princípio, dos espectadores e/ou ouvintes - em princípio, por que
algumas das pessoas presentes podem estar ali apenas fisicamente e, por razões
diversas, deixar de ver ou escutar (GENETTE, 2009, p. 71).
50 Segundo Genette, tais efeitos podem ser denominados conotativos "porque se referem à maneira pela qual o
título [...] exerce sua denotação" (GENETTE, p. 84).
51 Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0058006/
104
paratexts", no qual se utiliza da definição de paratexto de Genette para analisar toda sorte de
materiais de divulgação de filmes e séries de tv atuais.
O cartaz de cinema surge então como uma forma tangível do paratexto,
carregando consigo o poder de afetar a compreensão do filme, como defende o autor52:
Gray deixa de lado "o que é um texto" e dedica-se a "como o texto acontece". O
autor afirma que o paratexto é vital para a mídia e pontua características particulares ao cartaz
enquanto paratexto:
Apesar de raramente ser tão denso de significado quanto seus primos audiovisuais,
os trailers, os cartazes podem ainda desempenhar um papel fundamental para
delinear o gênero de um filme, a intertextualidade de suas estrelas, e o tipo de
mundo em que um suposto espectador está entrando (GRAY, 2010, p. 52).
52 Tradução livre do original: "A "paratext" is both "distinct from" and alike - or, I will argue, intrinsically part
of - the text. The book´s thesis is that paratexts are not simply add-ons, spinoffs, and also-rans: they create
texts, they manage them, and they fill them with many of the meanings that we associate with them. [...] a
paratext constructs, lives in, and can affect the running of the text".
53 Tradução livre do original: "those that control and determine our entrance to a text - entryway paratexts -
and those that inflect or redirect the text following initial interaction".
105
ou modifica a textualidade?"54 (GRAY, 2010, p. 23). Havendo introduzido essas questões, uma
resposta mais elaborada a elas se dará durante a análise e na discussão de seus resultados.
54 Tradução livre do original: "the secret to understanding paratexts lies in working out their relationship to
textuality: What is the paratext in relationship with the text? How does it contribute to the process of making
meaning? And how does it energize, contextualize, or otherwise modify textuality?".
106
Para Plaza, a tradução não oculta o original nem lhe ofusca, sendo portanto um
processo transparente. Entretanto, o autor acredita que os tradutores nutrem uma vontade
secreta de superar o original, seja complementando-o, ampliando sua significação ou
referenciando-o, ""para depois, de acordo com a lei da fidelidade na liberdade, continuar a
seguir o seu próprio caminho" que seria o da tradução criativa, isto é, icônica" (PLAZA, 1987,
p. 30).
O modo como compreendemos a Tradução Intersemiótica não é completamente
avesso à ideia de fidelidade como afirma Plaza, pois a pensamos como um processo que está
inserido em um primeiro, que é o da criação do cartaz. Ela é parte significativa do processo de
criação do cartaz, mas não ele próprio. Este, além da carga autoral do designer, é contaminado
também por intencionalidades financeiras que dele exigem um forte impacto advindo de
rápidas e numerosas visualizações. É preciso deixar claro mais uma vez que o cartaz é uma
peça de motivações diferentes das do filme, muito embora esteja à serviço deste. Não é o
filme que está sendo traduzido em cartaz, mas o cartaz que está sendo criado a partir de uma
obra anterior, à qual ele deve uma certa obediência, como vimos por sua condição paratextual,
e portanto se coloca na função de traduzir seus elementos de forma a cumprir um outro
objetivo.
Leitura, tradução, crítica e análise são operações simultâneas, embutidas e/ou
107
"via de acesso mais interior ao próprio miolo da tradução". Tradução como prática
crítico-criativa na historicidade dos meios de produção e re-produção, como leitura,
como metacriação, como ação sobre estruturas eventos, como diálogo de signos,
como síntese e recriação da história. Quer dizer: como pensamento em signos, como
trânsito de sentidos, como transcriação de formas na historicidade (PLAZA, 1987, p.
14).
Como vimos, no processo de tradução, o cartaz sofre certas limitações. Ele não
pode traduzir o filme integralmente, mas deve escolher alguns de seus elementos e adaptá-los
à sua finalidade. E são essas escolhas e transformações que nos são mais caras. Que
semelhanças essas duas obras irão guardar entre si após essa equação simbólica? Como ser
fiel ao filme em um sistema de signos distinto em tantos aspectos?
O processo se assemelha ao da adaptação de um livro para o teatro ou de uma
peça para o cinema: algumas características se perdem, muitas se ganham, poucas se mantém.
Tomando por base esta semelhança, David Bordwell faz uma distinção em seu Narration in
the fiction film, que nos ilumina na delimitação do nosso objeto de análise:
andaluz, (1968) por se tratar de um curta surrealista, subverte essa lógica. Não é possível
atribuir um sentido lógico mesmo quando se expõe as principais cenas do filme no cartaz, o
que poderia resultar diferente em um filme de narrativa clássica.
Nosso trabalho busca se restringir, desde seu título, à problemática da linguagem.
No entanto, vimos que elementos narrativos são signos que também passam por esse processo
de tradução, ainda que apenas em parte e não em sua totalidade orgânica. Logo, é de se
esperar que eles estejam presentes também no momento da análise, vez que essa segue um
fluxo que parte de elementos gráficos pré-estabelecidos em direção aos elementos
cinematográficos, sem que haja um controle maior destes que estão por surgir.
A aplicação da tradução intersemiótica nesta monografia se dá na tentativa de
identificação dos elementos cinematográficos, não específicos e específicos, que se camuflam
na articulação dos elementos gráficos no cartaz. No entanto, no decorrer do texto também nos
referimos à tradução enquanto parte do processo criativo do cartaz.
Compreendemos o pensamento como tradução intersemiótica, pois o pensamento
só existe por meio de signos. Dessa forma, podemos identificar de imediato, no que diz
respeito à transcriação de signos que habitam o universo do filme, em que passam a ter uma
forma exclusivamente visual e estática, dois percursos tradutores: a tradução que parte dos
designers e integra o processo de criação dos cartazes e a tradução que parte do público, a
nossa mesma. Uma gera sentido ao se debruçar sobre o filme, buscando relações deste com
elementos visuais; e a outra, num caminho oposto, gera sentido ao se debruçar sobre o cartaz,
buscando neste relações com os elementos do filme.
Um método simplificado, mas que facilita a compreender esse primeiro processo
seria a sua fragmentação. Imaginando que em seu estágio inicial ainda não exista cartaz,
apenas o filme: deste, da obra original, é como se fossem retirados a dimensão do tempo e o
som, intimamente ligados com a formação de seu ritmo. Assim, restaria apenas a sua narrativa
visual, que, tendo em mente que na maioria das vezes não é o intuito do cartaz abordá-la por
completo, pode ser facilmente representada através de ilustrações ou fotografias. Um dos
desafios que se coloca ao novo meio seria então o de suprir a ausência deste ritmo que a
relação entre som, tempo e imagem confere à obra e representá-lo de alguma maneira, mais
fiel ou abstrata, através dos demais elementos visuais não figurativos. Vejamos adiante que
elementos visuais serão levados em conta na nossa análise e de que maneira ela se dará.
109
A precisa definição de Paul Rand sobre o que é design remete a tudo o que já
discutimos até agora em termos de significação. O processo de criação e de tradução
representa um conflito que o designer deve resolver através da apreensão de conceitos, pré-
estabelecidos ou não, para em seguida dar-lhes forma. Ele é o "responsável pela vitalidade
intelectual e emocional da mensagem que ele transmite ao público. Sua tarefa é elevar a
experiência da mensagem além da banalidade da transmissão literal" (SAMARA, 2010, p.
06).
Em busca de um método prático de análise da linguagem visual, buscamos elencar
os principais elementos do design gráfico e agrupá-los em categorias de acordo com suas
afinidades. Acreditamos que os elementos escolhidos cumprem as necessidades paratextuais
do cartaz de cinema de maneira satisfatória, são eles: o grid, a tipografia, a cor, a forma, a
ilustração e a fotografia.
Classificação semelhante foi feita por Timothy Samara no livro Elementos do
design (Editora Bookman, 2010), nos capítulos: forma e espaço, cor, tipografia, imagem e
layout. As categorias que elencamos foram: estilo, expressão e representatividade. Esta
última, em Samara (2010), está sob a categoria "imagem", mas aqui gostaríamos de ser mais
específicos quanto à sua relação com a representatividade. O mesmo acontece com a categoria
layout, que aqui tratamos apenas em sua relação original com o grid, que é muito forte nos
dois cartazes analisados.
Visando tornar mais nítida a relação entre os elementos gráficos e
cinematográficos, buscamos elaborar um modelo próprio de análise que integrasse a análise
gráfica e a análise fílmica num mesmo discurso, evitando assim a burocracia que implicaria
fazer duas análises isoladas que só depois se confrontariam numa conclusão.
O modelo de análise elaborado deveria então servir igualmente aos dois
cartazes/filmes, para fins comparativos entre ambos, salvo mínimas adaptações. Sendo assim,
dividiu-se a análise em tópicos que partem do design gráfico, pois aqui são os cartazes as
110
principais peças a serem analisadas, de onde irão surgir correlatos no âmbito do cinema.
Partindo da decomposição dos elementos presentes nos cartazes dos dois filmes, chegamos ao
seguinte resultado:
1. Grid, tipografia e estilo. Neste primeiro tópico, as características do grid e da
tipografia de cada cartaz serão analisadas como as principais ferramentas de estilo;
2. Cor, forma e expressão. Aqui, a análise dará conta da expressividade da cor e da
forma em função do filme através dos cartazes;
3. Ilustração e Fotografia. O terceiro tópico trata enfim das formas de
representação distintas que predominam nos cartazes.
No decorrer da análise, estaremos nos remetendo constantemente ao que João
Gomes Filho (2004) denominou, em seu livro Gestalt do Objeto (2004), "Categorias
Conceituais Fundamentais": harmonia, equilíbrio e contraste. Estas seriam "poderosas forças
de organização formal nas estratégias compositivas". Já para Dondis, autora de A sintaxe da
linguagem visual (1997), contraste e harmonia são técnicas visuais que se opõem. Assim
como esta autora, consideramos o contraste a mais dinâmica das técnicas visuais e será então
a principal técnica a ser analisada, também pelo seu teor dialético.
Antes de nos debruçarmos sobre cada elemento visual elencado, cabe elucidar a
visão crítica de duas importantes autoras para a teoria do design contemporâneo sobre esse
assunto. Ellen Lupton e Jennifer Abbott Miller, no livro Design, writing, research: writing on
graphic design (1996) fazem uma crítica à pedagogia do design moderno difundida em livros
como A Linguagem da Visão (1944) de Gyorgy Kepes, Arte e Percepção Visual (1954) de
Rudolph Arnheim (1954) e A Sintaxe da Linguagem Visual (1973) de Donis A. Dondis. As
autoras afirmam que estes livros reproduzem princípios teóricos baseados na pintura abstrata
e na psicologia da gestalt55 que tem se demonstrado ineficiente em alguns aspectos. Lupton e
Miller (1996) acreditam que, para Kepes, Dondis e Arnheim, e para os demais teóricos que
seguem essa tradição, o design é "no fundo, uma atividade formal e abstrata; o texto é
secundário, acrescentado em função do domínio da forma" 56 (LUPTON E MILLER, 1996, p.
62).
Essa corrente moderna do design privilegia a percepção em detrimento da
interpretação. Na medida em que a percepção diz respeito às experiências subjetivas do
indivíduo abrigadas pelo corpo e pelo cérebro humanos, as teorias estéticas que nela se
apoiam "favorecem a sensação sobre o intelecto, a visão sobre a leitura, a universalidade
sobre a diferença cultural, o imediatismo físico sobre a mediação social" (LUPTON E
MILLER, 1996, p. 62). Seu aspecto mais problemático é a sugestão de que a faculdade da
visão é universal e comum a todos os seres humanos de todas os lugares e épocas, sendo
assim capaz de romper barreiras históricas e culturais.
Por outro lado, um estudo de design orientado para a interpretação sugere que a
recepção de uma certa imagem muda de acordo com o tempo ou espaço e seu significado
seria elaborado através de convenções de formato, estilo e simbolismo, e de sua associação
com outras imagens e palavras. Em poucas palavras: enquanto a teoria do design moderno
foco na percepção, uma abordagem histórica e culturalmente autoconsciente estaria focada na
interpretação.
A teoria do design que isola a percepção visual da interpretação linguística incentiva
a indiferença com relação aos valores culturais. Embora o estudo de composições
abstratas seja inquestionável, os aspectos linguísticos e sociais do design são
banalizados ou ignorados quando a abstração é o foco principal do estudo de design
(LUPTON E MILLER, 1996, p. 62).57
Para Lupton e Miller (1996), o termo "linguagem visual" não é apenas mais uma
metáfora comum aos livros de design modernos, mas uma contradição: é uma comparação
que segrega "visão" de "linguagem" pois situa dois termos como análogos, porém opostos.
Resulta que tais teorias defensoras da linguagem visual eliminam o estudo do significado
social e linguístico ao isolar a expressão visual dos outros modos de comunicação.
No que diz respeito a este trabalho, tendo já assumido anteriormente a utilização
do termo linguagem como metáfora e também aclarado a abordagem paratextual de nossa
análise, acreditamos que seja possível nos utilizarmos de um "vocabulário" de elementos
visuais, por sua vez organizados com base em uma "gramática" de contrastes, sem que
façamos de fato uma comparação direta com uma sintaxe linguística ou, menos ainda,
consideremos a expressão visual em seu viés puramente sensorial. Por fim, concordamos com
as autoras quando estas afirmam:
3.4.1 Grid
estético do ritmo. Assim como o ritmo sonoro é perceptível à audição, o ritmo visual também
seria perceptível à visão através do movimento do olhar pela página impressa, conduzido pelo
grid, e do contraste entre elementos (formas, cores, texturas, etc.). O grid permite hierarquizar
tais elementos, enfatizando ou minimizando seus efeitos, uma vez que determina a
proximidade entre eles. É, portanto, um meio de se conferir ritmo ao design através da
unificação ou segregação e da acentuação de contrastes.
3.4.2 Tipografia
texto como uma textura cinza62 na página". Portanto, o tom de um texto é conseguido através
do ajuste de quatro elementos interdependentes, como esclarece Bringhurst:
62 Sob a hipótese usual de texto em cor preta sobre fundo de cor branca.
63 Conjunto formado por uma fonte (em estilo normal ou regular) e suas variações (bold ou negrito, light,
itálico, versalete, etc.) (FARIAS, 2004, p. 3).
117
64 Conforme extrato do artigo "Ritmo" publicado na revista tipoGráfica nº 11 (agosto de 1990, Argentina).
Disponível em: http://www.gaittosabados.com.ar/fichas/apunte_01_2013.pdf
118
3.4.3 Cor
A cor não tem existência material: é apenas sensação produzida por certas
organizações nervosas sob a ação da luz – mais precisamente, é a sensação
provocada pela ação da luz sobre o órgão da visão. Seu aparecimento está
condicionado, portanto, à existência de dois elementos: a luz (objeto físico, agindo
como estímulo) e o olho (aparelho receptor, funcionando como decifrador do fluxo
luminoso, decompondo-o ou alterando-o através da função seletora da retina)
(PEDROSA, 1982, p. 20).
119
Fisicamente, o efeito emocional das cores sobre um indivíduo está ligado ao seu
efeito biológico. Cada cor, por sua qualidade de comprimento de onda energética, possui um
tamanho diferente e gera um efeito distinto no corpo. Ondas mais curtas como as do azul e do
verde, portanto cores frias, requerem menos energia corporal para serem processadas,
proporcionando efeitos calmantes ao passo que diminuem nossa taxa metabólica. Já cores
mais quentes, como o vermelho e o laranja, possuem longos comprimentos de onda, sendo
necessário maiores quantidades de energia para processá-las, o que provoca excitação.
65 "Ao misturar pigmentos estamos manipulando a luz indiretamente: quando a luz incide sobre a superfície
pigmentada, alguns comprimentos de onda são absorvidos e outros são refletidos. Os comprimentos de onda
refletidos determinam a cor que enxergamos. Portanto, o que chamamos de tinta vermelha é a tinta que
absorve luz verde e luz azul, enquanto a tinta verde absorve vermelho e azul."
120
Figura 98: Cores luz (mistura aditiva) e Cores pigmento transparentes (mistura subtrativa).
3.4.4 Forma
Para se perceber uma forma, é necessário que existam variações, ou seja, diferenças
no campo visual. As diferenças acontecem por variações de estímulos visuais, em
função dos contrastes, que podem ser de diferentes tipos, dos elementos que
configuram um determinado objeto ou coisa (GOMES FILHO, 2004, p. 42).
configuração, pode-se referir a duas propriedades visuais distintas dos objetos que
são: 1. A representação real dos objetos; 2. A representação esquemática dos objetos.
A representação real de objetos ou coisas de modo geral são os limites reais
traduzidos pelos pontos, linhas, planos volumes ou massas, ou seja, é o registro por
meio de fotografias, ilustrações e pinturas figurativas, bem como por meio de
esculturas, estátuas, monumentos, produtos em geral, e outros" (GOMES FILHO,
2004, p. 46).
3.4.5 Imagem
66 Segundo Jacques Aumont e Michel Marie (2003, p. 101): "Tal tipologia é bem flutuante, e variável de uma
língua para a outra. [...] Tal nomenclatura está sobretudo relacionada, implícita, mas univocamente, ao
tamanho de uma personagem filmada em pé de maneira que sua cabeça esteja dentro do quadro. O caráter
arbitrário dessa referência foi frequentemente salientado; ele foi visto, notadamente, como o traço de uma
ideologia antropocêntrica, que seria, aliás, a de todo o cinema narrativo clássico [...]".
125
Antes da análise visual em si, daremos uma breve passeio pelo contexto histórico-
cultural de cada filme, de modo a compreender melhor seu ambiente paratextual.
[...] é necessário que ele tenha o movimento rebelde ocorrido no sertão nordestino
como tema central, ou que contenha personagens que participaram desse contexto
histórico, influenciando diretamente a narrativa do filme em questão. [...] se o
127
cangaço não for o tema principal, mas o tema secundário, ele deverá influenciar a
narrativa diretamente de modo que a história narrada seja idealizada dentro desse
contexto. Filmes que tenham o cangaço ou personagens cangaceiros como
coadjuvantes, não resultando numa interferência ligada ao banditismo em que o
cangaço passa ao largo, não fazem parte do gênero. (DÍDIMO, 2010, p. 33)
[...] cria uma intriga de western americano no seio do cangaço. Para isto deturpa a
raiz social do fenômeno sertanejo e usa apenas os símbolos para servir à intriga de
western: chapéus grandes, paisagem agressiva, armas e cavalos (quando se sabe, por
exemplo, que cangaceiros andavam raramente a cavalo), música e dança folclóricas.
A intriga, todos se lembram, dividia os homens em bons e maus. Galdino era mau e
Teodoro era bom. Galdino, porém, como chefe, tinha sua grandeza, seus momentos
de humanidade. E Teodoro, mesmo nas teias do mal, não hesita em retomar o
caminho do bem, desde que se vê tocado por um misto de amor e piedade pela
professorinha raptada. Quando Teodoro foge com a professora, o filme assume a
espinha dorsal clássica e progressiva segundo muitos filmes de western. A ação se
divide entre os bons perseguidos e os maus perseguidores. No final, a professorinha,
o bem puro, escapa. Teodoro, que já tinha sido mau, não tem chance de ficar bom e
morre, num acesso de nacionalismo, beijando a terra. A técnica deste filme é
impostada segundo o modelo americano. Atores másculos e característicos,
fotografia romântica utilizando o pôr-do-sol e as nuvens pesadas, ritmo rápido,
descritivo. Em nenhum momento a câmera se detém para analisar: a câmera apenas
128
mostra os personagens, sem conflito mais profundo, que se movimentam uns atrás
dos outros (ROCHA, 2004, p. 128).
Quando publica sua coletânea de artigos nos livros Revisão crítica do cinema
brasileiro em 1963 e Revolução do cinema novo, com textos de vão de falar dessa
problemática da realidade, Rocha provoca uma interseção entre o cinema de autor e o
realismo. Sua crítica ao filme O Cangaceiro de Lima Barreto em seu Revisão crítica do
cinema brasileiro comprovar a hipótese formulada anteriormente de que o filme de Barreto
havia influenciado uma reflexão sobre a sociedade e a cultura brasileira.
Deus e o diabo na terra do sol (1964/65) é o segundo longa-metragem do diretor,
que antes já havia realizado dois curtas (Pátio e A Cruz na Praça, ambos de 1959) e o longa
de estreia Barravento (1962). O começo de sua carreira coincide, portanto, com o fim da
gestão desenvolvimentista de JK, período marcado por conflituosas transições políticas.
No início dos anos 1960, o país passava por um momento de luta por reformas
políticas e projetos nacionalistas, contando com a participação de uma geração ativa de
intelectuais e artistas cuja consciência histórica os alertava não somente para a política, mas
para o modo como esta se liga à cultura. O movimento do Cinema Novo surge como reflexo
dessa evolução política do país, que passava de um ideal de desenvolvimento simbolizado
pela construção de Brasília, a uma reforma das estruturas sociais. Glauber Rocha é um forte
representante dessa geração e sua obra surge então envolvida por esta atmosfera ideológica.
Segundo Alexandre Figueirôa (2004), o grupo via o cinema como instrumento de
conhecimento e de questionamento da realidade brasileira, e até de interferência nela, e
almejava sobretudo a independência cultural do filme brasileiro, o que significava não
somente tratar de temas nacionais, mas encontrar um cinema capaz de traduzir a realidade
nacional através de uma estética original autenticamente brasileira (FIGUEIRÔA, 2004). A
proposta do Cinema Novo era intervir na vida política do país por meio dos filmes, criando
condições para que o Brasil tivesse sua indústria cinematográfica, uma maneira de escapar do
colonialismo econômico e cultural ao qual estava submetido” (idem, p. 17).
Para Ismail Xavier, o Cinema Novo, em sua feição original, anterior ao golpe
militar de 1964, tem seu momento pleno em 1963/64, com a realização da trilogia do sertão
do nordeste: Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol e
Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964). Segundo o autor, o golpe militar atinge o cinema no momento
de sua plena ascensão, de sua explosão criativa, citando o ano de 1964 como apogeu do
129
A adaptação de O Rei da Vela feita por Corrêa, que influenciara Caetano Veloso a
pensar o movimento tropicalista, contava inclusive com uma canção do músico baiano. A
peça, de visualidade forte e agressiva, teve a montagem dedicada a Glauber Rocha, que pouco
antes havia lançado Terra em Transe (1967).
Essas relações evidenciam que a proliferação de propostas estéticas em vários
âmbitos artísticos convergiu, em determinado momento, para um mesmo território, o que
permitiria a compreensão do tropicalismo como um movimento mais abrangente.
Gilberto Gil, músico baiano que também articulou o movimento junto a Caetano
Veloso, faz uma distinção entre a Tropicália como utopia, “uma espécie de ilha, de território
idealizado”, e o tropicalismo como uma coisa momentânea, conforme denuncia o sufixo
(apud TROPICÁLIA, 2012). O que Rogério Duarte afirma, desta vez em entrevista concedida
a Sergio Cohn e Mariana Rosa no ano de 2002, parece reforçar esse caráter utópico e
inacabado proposto por Gil:
4.2.1 Grid
O grid articula a página como um campo de forças de modo que onde quer que se
posicione uma forma, esta será afetada pela sua estrutura. Partimos então do pressuposto de
que toda imagem possui uma complexa estrutura oculta que pode ser induzida.
Como as reproduções dos cartazes que iremos analisar são levemente precárias,
não foi possível chegar ao tamanho exato das suas medidas. Entretanto, foi possível
identificar através de uma modulação que ambos se tratam de retângulos de proporção 5:8
(0,625), o que mais se aproxima da razão áurea (0,618).
Tomando como base essas medidas, a análise se inicia na recomposição do grid,
num processo indutivo em que são traçados primeiramente as medianas vertical e horizontal e
as diagonais ascendentes e descendentes entre os vértices opostos do cartaz. Assim, obtemos
os quadrantes67 e oito triângulos proporcionais. (FIGURA 101)
Vemos que as diagonais que formam esses centros se cruzam em dois pontos. Ao
traçar linhas verticais partindo desses pontos, temos a divisão do cartaz em terços. (FIGURA
103) É dessa divisão que surge a famosa Regra dos Terços da fotografia, princípio que postula
133
que, para se obter uma composição equilibrada, os elementos importantes devem se situar
nesses pontos, sendo estes pontos de interesse do olhar, e que a divisão formal deve se dar na
relação de 2 para 1, por exemplo alinhando o horizonte de uma paisagem às linhas
horizontais.
Esses pontos são tidos como de interesse por se aproximarem dos pontos de
ouro68, que são encontrados no limite da linha da espiral áurea dentro do retângulo áureo
(FIGURA 106)69. A espiral áurea, por sua vez, pode ser encontrada na formulação do
retângulo áureo. (FIGURA 104) No retângulo áureo, fica visível também a sequência de
Fibonacci e sua aproximação com o retângulo 5:8. (FIGURA 105)
68 Essas convenções não são aleatórias. Elas foram estudadas de maneira empírica em diversas pesquisas que
comprovaram a preferência cognitiva do homem pelas proporções baseadas na seção áurea, como as
realizadas pelo psicólogo alemão Gustav Fechner no final do século XIX (ELAM, 2010).
69 O retângulo áureo é único porque, ao ser dividido, o seu retângulo recíproco é um retângulo proporcional
menor, e a área remanescente após a divisão é um quadrado (ELAM, 2010). A figura que apresentamos é uma
aproximação, pois se trata da aplicação das espirais áureas e seus respectivos pontos de interesse num
retângulo 5:8 e não num retângulo áureo.
135
No retângulo 5:8, é possível um outro tipo de relação entre suas partes. Ele pode
ser dividido interiormente em módulos proporcionais. (FIGURA 107)
136
Ao sobrepor esta malha à anterior, adicionando ainda círculos inscritos nos limites
dos módulos e centralizados na página, vemos nitidamente o campo de forças que se oculta na
estrutura do cartaz. (FIGURA 108) É interessante notar como todas as linhas parecem
137
Vejamos como os cartazes lida com o grid em suas composições. Aplicando essa
malha em três etapas, para facilitar a visualização, no cartaz de O Cangaceiro, temos num
138
momentos: a maior ocupando dois terços da página e a menor ocupando um terço da página
junto com os elementos textuais. (FIGURA 110)
Este outro enfoque do diagrama, nos mostra como o rosto do cangaceiro está
localizado exatamente no centro ótico do cartaz, e também como a ilustração se alinha com a
sua modulação, especialmente na parte inferior e no título, onde cada letra parece ter a largura
de um módulo. (FIGURA 111)
142
Com essa aplicação, fica evidente o quanto o cartaz de O Cangaceiro tem uma
estrutura sólida. O que antes aparentava ser apenas um cartaz agradável, agora se mostra
143
como produto de um trabalho intelectual de precisão matemática, que requer acima de tudo
isso criatividade e habilidade artística.
Há mais o que falar sobre o grid desse cartaz, agora que detalhamos sua estrutura.
Podemos concluir que seu grid tem uma ênfase triangular, mas não apenas pelo
direcionamento que se evidencia (FIGURA 112), como também pelo fato de essa forma
abrigar mais uma relação com a proporção áurea. Ao inscrevermos um círculo centralizado no
cartaz, e nele inscrevermos um pentágono, e dentro deste um pentagrama, chegaremos a um
triângulo de dois lados iguais. É neste triângulo que parece orientar-se o desenho do
cangaceiro montado no cavalo.
144
70 “Seita constituída de homens e mulheres que viviam em comunidade e se abstinham de todos os confortos,
dedicando-se apenas a uma vida de moderação e à prática da cura” (DOCZI, 1990, p. 7).
71 Doczi relaciona a citação de Pitágoras às propriedades do pentágono e do pentagrama, que, “como todos os
padrões, são definidos pelos seus limites”. Um pode gerar o outro infinitamente, este seria, para Doczi, “o
poder dos limites”, como intitula seu livro que nos serve de referência (DOCZI, 1990, p. 7).
145
Concluindo a análise deste grid, verificamos que a sua ênfase é dada ao formato
em “T” combinada à forma radial.
Com base nessa análise dos grids, podemos inferir um primeiro contraponto entre
os cartazes. O grid de um se permite mais evidente, é mais cru, e se afina à estética realista do
cinema novo, enquanto o outro trabalha melhor a fluidez e a sua camuflagem, o que se
assemelha à estética naturalista.
O grid do cartaz de Deus e o diabo na terra do sol é mais provocativo, propõe o
choque direto e gera uma tensão que convoca ao pensamento. Já o de O Cangaceiro, permite o
movimento constante do olho dentro do cartaz, procurando um encerramento em si mesmo.
Veremos adiante que esses aspectos são reforçados pela análise da fotografia e da ilustração.
Curiosamente, temos duas composições simétricas72, harmônicas e equilibradas,
que se comportam de maneiras distintas. Da dureza de um ao ritmo fluido do outro, da
uniformidade do estático ao movimento do dinâmico. Por fim, o que temos são dois grids bem
estruturados mas que parecem divergir quanto ao estilo. A tipografia, próximo tópico a ser
abordado, pode ajudar a compreender melhor essa questão.
4.2.2 Tipografia
72 Se divididos ao meio e rebatidos, por estarem ambos alinhados ao eixo vertical, os elementos dos cartazes
geram uma mesma forma dos dois lados. Esse é o ideal de simetria clássica, em que a forma se baseia num
eixo central, com um igual equilíbrio de elementos de ambos os lados.
150
Apesar de serem todos tipos modernos, este último destoa dos demais pelo seu
traço caligráfico, itálico, de eixo inclinado, forte transição grosso-fino e por estar em caixa-
baixa. Os outros três se assemelham entre si por serem condensados, entretanto, o que
identifica os atores possui uma transição grosso-fino mais acentuada e serifas finas, ao
contrário dos outros dois, que não possuem serifa. Estes são tipos góticos inspirados no
catálogo da da ATF (American Type Founders)73. (FIGURA 118) Além de serem tipos display,
eles estão mais destacados no cartaz através da cor, branco e amarelo, e por estarem em
escalas de tamanho maiores.
73 Fundição tipográfica de metal estadunidense, chegou a ser a maior da América do Norte. Fundada em 1892
pela união de companhias menores, lançou várias famílias góticas sem serifa do designer de tipos Morris
Fuller Benton (1872–1948), como a Alternate Gothic, a Franklin Gothic e a News Gothic. Esse estilo também
é conhecido como neogrotesco por ter sido derivado da alemã Akzidenz-Grotesk.
151
4.2.3 Estilo
74 O cinema clássico-narrativo se utiliza da montagem invisível para tentar naturalizar, aos olhos do espectador,
a ilusão de que este ocupa o mesmo espaço cênico que os personagens quando na realidade estão separados.
Essa ilusão se dá pelo emprego da técnica do campo/contracampo, que confere continuidade visual a imagens
desconexas Essas são algumas ferramentas específicas que o cinema clássico-narrativo desenvolveu com a
finalidade de parecer verdadeiro e gerar uma linguagem dominante, que se afirmasse como única realidade
fílmica possível sobre as demais.
75 Trata-se do momento em que Xavier expõe a visão dos primeiros críticos de cinema, das correntes naturalista
e realista, Vsevolod Pudovkin e Bela Balazs, podendo a definição estar contaminada neste sentido.
154
“na maneira como ele trabalha o material plástico do cinema, conferindo unidade
aos planos separados e agindo de modo claro sobre a consciência do espectador:
emocionalmente, pelo ritmo controlado das imagens e pela pulsação dos próprios
episódios mostrados; ideologicamente, pela força conotativa de seus
enquadramentos e pelo poder de inferência contido na montagem” (XAVIER, 2008,
p. 54).
76 O modernismo é aqui associado com uma erudição no sentido de que o cartaz e o cinema, como produtos
recentes da era moderna, estavam envoltos por uma legitimação teórica e crítica que resultava na criação de
diferentes estéticas. Portanto, lidar com o tema do cangaço através do mecanismo moderno do cinema
implicou na adoção do modelo de narrativa clássico, no caso de O Cangaceiro, e do modelo do cinema de
autor, no caso de Deus e o diabo na terra do sol.
155
choque musical entre a cultura erudita (Heitor Villa-Lobos) e a cultura popular (música de
cordel); no cartaz, o cangaceiro se vê moldado em uma estrutura moderna, sua complexidade
é posta de maneira econômica, convivendo ainda ao lado de uma tipografia suíça.
4.3.1 Cor
A cor, nos dois cartazes analisados, tem um papel muito importante na definição
do tom que se espera encontrar nos filmes. Isto porque ambos são inteiramente em preto e
branco e os cartazes lhes trazem a possibilidade da cor, auxiliando a reforçar a expressividade
pretendida pelos filmes.
No cartaz de O Cangaceiro, temos a forte presença do laranja e do verde, e
detalhes em azul, amarelo, branco e preto. O laranja é a cor que predomina neste cartaz. Cor
quente por excelência, em cor pigmento opaca resulta da mistura entre vermelho e amarelo
em equilíbrio óptico77, sintetizando assim as propriedades dessas duas cores. Quando ladeada
por cores mais frias, as áreas coloridas pelo laranja avançam ao olhar e parecem maiores do
que realmente são. Ao ser clareado com o amarelo, o laranja se ilumina, aumentando sua
vibração, mas perdendo consistência. Quando escurecido com o preto, suja-se em direção às
colorações terrosas (PEDROSA, 1982, p. 128).
Os tons de laranja e marrom dominam o cartaz e cumprem o papel de dar
fidelidade ao chapéu de couro, às roupas, ao tom de pele do nordestino, ao cavalo e ao pôr-do-
sol que se vê na ilustração. Representa muito fortemente a terra ao lado da outra cor
preponderante no cartaz, que é o verde. Este confere um aspecto dramático ao cartaz junto às
expressões dos rostos que colore. Para se obter um mesmo efeito dramático, o uso de outra
cor fria como o azul (complementar do laranja) serviria, mas não se relacionaria tão
fortemente à terra, questão importante para o filme, como vemos em seu desfecho:
[...] Teodoro agarra um punhado de terra e uma planta para declamar, pela última
vez, seu amor ao sertão. Morto o herói, a música sentimental, tema de Teodoro,
substitui o tom dramático da pontuação das agonias. Para intensificar o efeito, o seu
corpo funde-se à terra e desaparece numa trucagem que procura reiterar, pela
imagem, o discurso da personagem e do comentário musical. [...] O cangaceiro,
transformando em arquétipo, desfila diante da câmera para se compor a homenagem
final. Identificados começo e fim, completa-se a moldura e fecha-se o círculo dessa
incursão aventurosa e dramática no mundo das ações violentas e das paixões fortes
desses cavaleiros errantes. A imagem-emblema encerra o discurso para se fixar,
insistindo num traço essencial do retrato: o cangaceiro é a emanação da terra
(XAVIER, 2007, p. 166).
Neste cartaz eu utilizo toda uma nova concepção de cor, que é fruto de toda uma
pesquisa profunda. O offset se caracteriza pela pouca quantidade de tinta. Então, se
você pega uma fotografia, por mais bela que seja, e apenas a reproduz sem conhecer
direito as especificidades do offset, e se você só imprime o vermelho, fica
desbotado. Há uma perda muito grande. Então você tem que estudar o meio que
trabalha e tirar dele o máximo partido. E foi o que eu fiz. Por exemplo, no cartaz do
Deus e o diabo na terra do sol, era o vermelho que assustava. Para dar mais
colorido, conseguir uma cor mais forte, possibilitar que o espectador sinta a tinta, eu
formei o vermelho com seus componentes, utilizando a teoria da cor moderna.
Misturei o magenta com o amarelo, que são os componentes em termos de pigmento
para formar o vermelho. E aquilo causou um efeito muito forte. (COHN, 2009, p.
196).
78 Quando Lampião morreu, parte de seus objetos foi arrecadada e oficialmente declarada pelo Regimento
Policial Militar em um “Inventário dos objetos apreendidos, pertencentes ao famigerado Lampião” onde
constava “LENÇO – De seda vermelha, com bordados simples, apenas três ângulos, notando-se no quarto,
apenas o risco” (MELLO, 2010, p. 217).
157
O vermelho, tal como o imaginamos, cor sem limites, essencialmente quente, age
interiormente como uma cor transbordante de vida ardente e agitada. No entanto, ele
não tem o caráter dissipado do amarelo, que se espalha e se desgasta por todos os
lados. Apesar de toda a sua energia e intensidade, o vermelho dá prova de uma
imensa e irresistível força, quase consciente de seu objetivo. Nesse ardor, nessa
efervescência, transparece uma espécie de maturidade macho, voltada para si
mesma, e para qual o exterior não existe (KANDINSKY apud PEDROSA, 1982, p.
120).
4.3.2 Forma
Acerca dos limites do realismo no seu filme e sua relação com a “lenda” do
Figura 121: Cartaz de Aldemir Martins para Os três cabras de Lampião (1962).
81 Em 24 de março de 1964, às vésperas de viajar para a Europa, onde iria preparar a exibição de Deus e o
diabo na terra do sol no Festival de Cannes, Glauber Rocha participou de um debate sobre o filme,
patrocinado pela Federação de Clubes de Cinema do Brasil e conduzido por Alex Viany.
160
4.3.3 Expressão
"A expressão tanto significa um ato quanto seu resultado", afirma John Dewey em
Arte como experiência, de 1934. Aqui, buscamos analisar a expressividade da cor e da forma
dos cartazes em função dos filmes. Seguindo o pensamento de Dewey, a expressão pode estar
presente no ato criativo como no produto final. Pensamos que isso acontece inicialmente
quando estabelecemos a relação entre cor e forma com expressão e entre grid e tipografia com
estilo. Tal separação não exclui a relação do estilo, enquanto resultado, com a cor e a forma,
nem ao contrário, a relação do grid e da tipografia com a expressão.
Por exemplo, a escolha da utilização do vermelho no cartaz de Deus e o diabo,
além de toda a sua expressividade, também demonstra uma escolha estilística, afinada com os
princípios de economia da Bauhaus, que privilegiava o uso das cores primárias. Outro
exemplo, também no mesmo cartaz, diz respeito ao alinhamento. O fato de este pertencer aos
domínios do grid, não impede que este possa ser pervertido, como o foi, de modo a expressar
uma crítica aos cânones modernos, que rejeitavam o alinhamento centralizado.
Os dois cartazes são completamente diferentes em matéria de expressividade. A
paleta de cores d'O Cangaceiro é contrastante, a de Deus e o diabo é análoga. A primeira
busca a integração e a relação direta com a ambientação do filme. A segunda busca o impacto
através do simbolismo da camada uniforme de cor sobreposta à imagem. Quanto à forma,
também se utilizam da configuração esquemática de maneira diversa, um privilegiando o
figurativismo e o outro privilegiando o símbolo de maneira quase ritual.
tendência do cinema clássico da época, que a Vera Cruz seguia declaradamente, tinha também
um modelo clássico de divulgação. A ilustração de Francini vai seguir esse padrão gráfico
consagrado, de indiscutível similaridade com os cartazes de western americanos, que não
dispensam a representação fiel do protagonista em primeiro plano, integrada com as demais
representações de atores e cenas ou paisagens do filme. Dessa forma, o realismo almejado
pela ilustração está ligado à busca pela verossimilhança, e não da veracidade.
O filme impõe essa relação logo no início com o letreiro: "Época imprecisa:
quando ainda havia cangaceiros". Como observa Xavier:
Impelido pelo seu caráter fictício, o filme busca validar-se através dessa frase,
"assumindo-se enquanto retrato de um tipo humano real, o cangaceiro, tal como sugere o
título" (XAVIER, 2007). Intuímos daí a importância da caracterização da imagem do
cangaceiro no cartaz. Ele é peça chave para a autenticação do filme. Quanto mais detalhes,
quanto mais parecesse fiel à imagem institucionalizada do cangaceiro, melhor.
A ilustração, nesse caso, pode ser analisada de acordo com conceitos da fotografia
e do cinema. O cangaceiro é visto de baixo para cima, em uma posição enaltecedora. O
ângulo dá o tom romântico e dramático do cartaz, o mesmo que se verifica no filme. Sua
expressão corporal é ativa, seus braços parecem se movimentar ao tomar as rédeas do cavalo,
enquanto seu semblante se mantém sereno. Da mesma forma, expressão facial dos rostos ao
fundo confere dramaticidade ao cartaz, integrando o protagonista em uma complexa trama de
relações pessoais.
Abaixo do cangaceiro, a paisagem repousa como se este dela surgisse, ideia
reforçada pela unidade tonal da cor. A ilustração é uma reprodução fiel da cena inicial do
filme:
em plano geral, na linha do horizonte, silhuetas de cangaceiros compõem uma fileira
de cavaleiros que atravessam o quadro de forma lenta e ordenada, contra o fundo
imponente de um céu recortado de nuvens, massas dispostas em equilíbrio. O céu
majestoso sugere um princípio de ordem na natureza infinita; ordem que não exclui
162
essas figuras em silhueta, cujo recorte define a forma geral, nesse momento sem
rosto, do vagar cangaceiro. [...] O canto, o passo, a luz, a linha da encosta e a fileira
de cangaceiros compõem um todo harmônico, de serena integração homem-
natureza, de completa sintonia entre esse grupo humano característico e o meio em
que se move [...] Isolado, contra tal pano de fundo, o cangaceiro adere à paisagem
(XAVIER, 2007, p. 153).
Já no cartaz de Deus e o diabo na terra do sol, não há plano geral, como a vista do
horizonte do O Cangaceiro. A visão não é distanciada e a proximidade do plano médio frente
a Corisco se contrapõe à totalização do cangaceiro e de seu universo. O ambiente não aparece
e o foco está centrado na personagem, detalhando o seu corpo como se fosse um objeto de
análise, interessado na ação deste, no gesto que ele faz.
A utilização do still de um momento decisivo do filme estende ao a cartaz a mise-
en-scène teatralizante, característica da obra de Glauber Rocha. Na cena, o cangaceiro
Corisco, sabendo que irá encontrar Antônio das mortes, se benze com a adaga antes de partir
para o confronto e o vaqueiro Manuel pergunta à sua esposa Rosa qual caminho devem tomar:
seguir no cangaço com Corisco ou fugir. No cartaz, Corisco parece intimar o público com seu
olhar inquisidor de quem está ciente do próprio destino, como se nos convidasse a selá-lo ao
assistirmos o filme. Não inconscientemente, a adaga forma com o chapéu do cangaceiro uma
forma de cruz. A escolha pela fotografia também atesta o compromisso social do filme, que
mescla imagens de estilo documental com ficção. Da mesma maneira, o cartaz mescla
elementos simbólicos, o sol e a cruz, com a imagem fotográfica, o still do filme.
A escolha de um personagem que só aparece na segunda metade do filme para
figurar no centro do cartaz é também intrigante. Porque Manuel não está no lugar de Corisco,
já que ele é o único que segue como protagonista desde o começo até o fim do filme? Ao
optar pela figura de Corisco, sua voz se amplifica, e o seu discurso é o coração do filme.
caminho diferente. O primeiro se apega à essência do filme enquanto que o segundo se liberta
de sua estrutura, mas trilha um caminho análogo dentro de sua própria linguagem.
Chico Homem de Melo considera o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol uma
obra de Rogério Duarte e o cita como referência obrigatória entre os cartazes das artes visuais
e do cinema brasileiros dos anos 60. Vejamos o que o autor diz sobre ele:
Trata-se de uma crítica ao design modernista feita por quem o conhece por dentro
[...] A discussão colocada pelo cartaz é a da complexidade. Note-se que o diagrama é
quase clássico: alinhamento pelo eixo vertical, definido pelo cetro empunhado pelo
protagonista; dois blocos de texto no alto, o da esquerda alinhado a direita, o da
direita alinhado a esquerda, reforçando ainda mais o eixo vertical; no centro, um
círculo em torno da cabeça do protagonista, que se torna um sol graças aos raios
acrescidos em seu perímetro. A complexidade é criada por meio da superposição de
planos nesse centro irradiador e dinâmico: o cetro num plano, o rosto em outro, o
círculo em outro, o sol em outro; e ao mesmo tempo, todos os planos entrelaçados
uns nos outros. A simplicidade diagramática era necessária para permitir essa
complexidade de planos superpostos (MELO, 2006, p. 51).
Para Rogério Duarte, o que ele conseguiu com o cartaz de Deus e o diabo na terra
do sol foi “a concretização de toda minha pesquisa sobre design. E assim eu consegui que
meus trabalhos passassem a ser não mais uma referência de uma outra coisa, mas obras em si,
reais. O papel expressava” (COHN, 2009, p. 198). Com a palavra, Rogério Duarte:
“Há uma história interessante sobre esse cartaz, porque mesmo Glauber, com toda
sua clarividência, demorou pra sacar o que eu estava querendo. Ele dizia “Rogério,
você é bom, não tem que ficar fazendo cartazes”. E eu pensava, “pobre Glauber, não
sacou nada...” Depois eu pude brincar com ele e dizer: “Gostei do filme que você fez
para o meu cartaz...” E essa inversão é importante. Muita gente diz “o poster do
filme”. Não é o poster do filme, é o poster do próprio poster. Muita gente olha o
poster e não vai ver o filme. Então eu tenho um contato direto, estou falando com
quem está vendo esse pôster. E é o mesmo com as capas de discos. Ou seja, a capa
perde seu caráter puramente acessório, de ser uma cobertura cuja função seja apenas
proteger uma coisa, para se tornar uma mídia, um suporte” (COHN, 2009, p. 198).
165
5 CONCLUSÃO
A história do design gráfico nos ensina através de uma sucessão de rupturas que
sempre existirão padrões e vanguardas. Conhecer a pluralidade de estilos desenvolvidos a
partir de uma contextualização com essas rupturas de acordo com cada momento histórico,
político e cultural, possibilitou compreender as escolhas do presente. A história do cartaz de
cinema deixa isso claro. Os padrões criados no início da sétima arte se repetem até hoje,
passando por cima das especificidades do filme e até mesmo nacionais.
A relação entre o cartaz e o "seu" filme nos pareceu intrigante inicialmente por
dois aspectos: 1. O da sua independência em relação a este: Até que ponto o cartaz faz ver o
leque de interpretações que circunda o universo de uma obra cinematográfica mais do que as
encerra? Ele faz o público ir além ou se restringe ao “óbvio”? Como ele é capaz de alterar a
percepção do público sobre a obra?; 2. O da expectativa que o cartaz gera em torno do filme:
A utilização destacada de protagonistas tem sido recorrente na história do cartazes de cinema.
O que acontece quando a personagem central do cartaz é outra que não personagem central do
filme? No caso de Deus e o diabo na terra do sol, a personagem central do cartaz só é
desvendada ao público na metade da narrativa. Já em O Cangaceiro, o protagonista tem o
mesmo peso em ambos.
A problemática da linguagem e o pragmatismo teórico nos afastam de um
comprometimento mais profundo com a semiótica. Entretanto, é impossível falar de design e
de cinema sem falar de significação. O desenvolvimento de metodologias da análise da
imagem se mostrou desde sempre híbrido, o que nos leva a desenvolver também nós mesmos
a nossa própria metodologia de análise.
Dada a presença massiva e iminente do cinema e o seu impacto cultural, não se
pode chegar ao seu valor e significado isoladamente. A análise dos seus paratextos é um modo
de compreendê-lo através de suas proliferações no universo sígnico. Cada um de seus
desdobramentos tem, afinal, o potencial de transformar o seu sentido. Tanto pelo público,
como pelos seus editores, que recebem do autor a responsabilidade de editá-lo.
Essa transformação se evidencia nos processos de tradução intersemiótica. Eles
existem enquanto os compreendemos como parte do processo de criação do cartaz. A escolha
do designer por determinada configuração visual, transportando conceitos do filme para o
universo gráfico, passa inevitavelmente por esse processo. Os elementos constitutivos do
166
design possuem características que os tornam capazes de remeter com grandiosidade às suas
obras originais. A questão da fidelidade entre cartaz e filme se confirma, na nossa análise, pois
verificamos que ambos os cartazes são fiéis aos filmes, por isso mesmo são traduzidos de
maneiras totalmente distintas. Essa questão não seria um indicativo, portanto, de cartaz-capa e
cartaz-anúncio. Estes estatutos seriam provocados por uma outra relação, mais primitiva, de
subversão de valores e pensamentos.
A análise dos cartazes revelou que existem posições ideológicas de forte teor
histórico por traz de ambos, resgatadas através do trabalho fascinante que é mergulhar nos
aspectos formais de duas artes distintas, e estabelecer relações entre elas. O processo de
tradução na criação do cartaz implica, portanto, na escolha desse desvencilhamento,
independência, de um em relação ao outro.
É dizer que o design de Rogério Duarte traduz o cinema de Glauber Rocha até
mesmo em seu viés crítico frente aos padrões, do modernismo no caso de Rogério, e do
modelo clássico de cinema, no caso de Glauber Rocha, representando um pensamento, uma
ideologia, um movimento de ideias muito maior que contaminou na época todas as artes,
culminando no tropicalismo no Brasil, mas não se restringindo somente a ele, de viés pós-
moderno.
A arte, portanto o cinema, são fundamentalmente transgressores. A afinidade do
design com a arte o torna em alguma medida transgressor. Enquanto paratexto, o cartaz nos
prepara para o filme e o carrega de significado, nos oferecendo recursos para interpretá-lo e
discuti-lo. A problemática da fidelidade enfrentada pelo cartaz, como ser fiel ao filme em um
sistema de signos distinto em tantos aspectos, encontra resposta na complementaridade.
Este trabalho situou o cartaz de cinema dentro de uma relação frutífera entre o
design e o cinema, no que resta vislumbrar, para o futuro, uma maior integração dessas duas
áreas com a semiótica e o ramo da tradução intersemiótica.
167
6 BIBLIOGRAFIA
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo:
Editora Pioneira, 2000.
BARNICOAT, John. Los carteles: su historia y lenguaje. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli,
1972.
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1990.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. In: ---.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196. (Obras escolhidas, v. 1).
BRINGHURST, Robert. Elementos do estilo tipográfico. versão 3.0. Trad.: André Stolarski.
São Paulo: Cosac Naify, 2003.
CAMARGO, Mário de. (Org.) Gráfica : arte e indústria no Brasil : 180 anos de história.
São Paulo: Bandeirantes Gráfica, 2003.
CARVALHO, André Luís Pires de. Da película ao cartaz: uma análise do design do cartaz
de Deus e o Diabo na Terra do Sol. 2008. 191 f. Dissertação (Mestrado em Design) –
Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2008.
COHN, Sergio. (Org.) Rogério Duarte. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos: guia enciclopédico da arte moderna. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.
168
DEWEY, John. Arte como Experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
FRASER, Tom e BANKS, Adam. O essencial da cor no design. Trad.: Luís Carlos Borges,
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011.
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Trad.: Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2009.
GOMES FILHO, João. Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma. São Paulo:
Escrituras, 2004.
GRAY, Jonathan. Show sold separately: promos, spoilers, and other media paratexts.
Nova Iorque: New York University Press, 2010.
HOLLIS, Richard. Design gráfico: uma história concisa. Trad.: Carlos Daudt. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
HURLBURT, Allen. Layout: o design da página impressa. Trad.: Carlos Daudt. São Paulo:
Nobel, 2002.
169
KING, Emily. A Century of Movie Posters: from silent to art house. Barron's, 2003.
KROEGER, Michael (Org.). Conversas com Paul Rand. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LEMINSKI, Paulo. Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo:
Iluminuras, 1998.
LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
MATTOS, A. C. Gomes. A outra face de Hollywood: Filme B. Rio de Janeiro: Rocco Ltda,
2003.
MEGGS, Philip e PURVIS, Alston W. História do Design Gráfico. 4. ed. São Paulo: Cosac
Naify, 2009.
MELO, Chico Homem de. Signofobia. São Paulo: Ed. Rosari, 2005.
_____________ (Org.). O design gráfico brasileiro: anos 60. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Estrelas de couro: a estética do cangaço. São Paulo:
Escrituras, 2010.
METZ, Christian. A significação no cinema. 2. Ed., 3ª reimpr. São Paulo: Perspectiva, 2007.
MUNARI, Bruno. Design e comunicação visual. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.
PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. 3a. ed. Ed. Léo Christiano, Co-editora Univ.
Brasília: Rio de Janeiro, 1982.
POOLE, Ed e Susan. Learn About Movie Posters. Ed. IGuide Media, 2003.
PRIOSTE, Marcelo. “O design e o cartaz na terra do cinema”. In: MOURA, Mônica (org.).
Design, Arte e Tecnologia: espaço e trocas, 1. São Paulo: Rosari, PUC-Rio e Universidade
Anhembi Morumbi, 2005.
RAIMES, Jonathan; BHASKARAN, Lakshmi. Design retrô: 100 anos de design gráfico.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007.
RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro. Art Editora, São Paulo, 1987.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
SALAVETZ, Judith; DRATE, Spencer; SAROWITZ, Sam; KEHR, Dave. Art of the Modern
Movie Poster: International Postwar Style and Design. Chronicle Books LLC: 2008.
SALSI, Claudio (org.). Advertising & Art: International graphics from the affiche to pop
art. Milano: Skira, 2007.
171
SONTAG, Susan. Pôster: Anúncio, arte, artefato político, mercadoria. In: Textos clássicos
do design gráfico. BIERUT, Michael et al. (Orgs.) 1. ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2010.
VIANY, Alex. José Carlos Avelar (Org.) O processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 1999.
_____________. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify,
2007.