RESENHA DO LIVRO “CAETANA DIZ NÃO” DE SANDRA LAUDERDALE
GRAHAM
“Caetana diz não” de Sandra Lauderdale Graham, lançado em 2005 pela
Companhia das Letras, trata-se da história de duas mulheres no contexto escravista do Brasil do século XIX. A localidade explorada em ambas as histórias é o Vale do Paraíba, dentro de um contexto rural de produção cafeeira e escravismo. Por meio de uma perspectiva de micro história a autora revela, através das duas protagonistas, papéis muito diferentes dentro do contexto escravista brasileiro, ou seja, variações dentro de uma mesma cultura. O livro é dividido em duas histórias, a primeira - que dá nome à obra - é intitulada “Caetana diz não: o patriarcado perturbado”, já a segunda trata-se de “A última vontade de dona Inácia: o patriarcado confirmado”. Cada história é subdivida em capítulos que tratam de tópicos que permeiam o acontecimento geral tratado na secção correspondente. Tem-se um estudo de gênero, realizado a partir de uma exploração minuciosa das fontes, estas sendo – em termos centrais – uma petição eclesiástica de anulação de casamento e um testamento. A obra busca mostrar, portanto, como as relações de gênero e escravidão podiam ser incomuns. A primeira história toma forma em 1835 e trata de noivos em situação escravizada. O local dos acontecimentos é a fazenda Rio Claro, localizada em Paraibuna, Vale do Paraíba. A escrava Caetana, protagonista da primeira história, se recusou a consumar o casamento com o também escravo Custódio, que fora arranjado pelo proprietário da fazenda e de ambos os personagens, capitão Tolosa. Além da autoridade do senhor de escravos em questão, a situação ainda era agravada pela atuação do tio de Caetana, que apoiava o casamento e também exercia a sua autoridade sobre ela. Obstinada em se recusar a ser esposa do escravo Custódio, Caetana se dirige ao seu senhor em uma busca por apoio e este aceita a proposta, abrindo um processo de anulação de casamento em prol da escrava. O processo jurídico de anulação se arrastou por anos, demorando de 1836 até 1840 para ser julgado, tratando-se, ademais, do principal documento analisado pela autora para a produção desse estudo. Apesar dos documentos não esclarecerem os motivos pelos quais Caetana se recusou a consumar o casamento ou pelos quais o seu senhor aceitou entrar com o pedido de anulação, permitem que a autora os amplie para explicar um contexto maior: a economia e os costumes por exemplo. A autora realiza um levantamento de hipóteses através da documentação e consegue analisar muitos pontos, como a posse de terra naquela época, a importância da cafeicultura pra essa região, as relações entre o público e o privado (clientelismo, apadrinhamento, favorecimento, hierarquias), a rotina da vida na fazenda, a moradia dos escravos casados, as vantagens e desvantagens para o senhor no caso de casamento de escravos e também o debate historiográfico acerca das condições dos escravos ao formarem famílias. Em suma, em detrimento da ordem de dois homens: seu senhor e seu tio, a recusa de uma mulher (negra e escravizada) mostra a conturbação da ordem vigente hierarquizada e patriarcal, onde o poder dos homens era grande, porém, não era geral. A segunda história toma forma em 1857 e também tem como contexto o Vale do Paraíba. A protagonista é Dona Inácia Delfina Werneck, uma senhora branca que pertencia à uma das famílias de fazendeiros mais tradicional e abastada do Vale do Paraíba. A questão gira em torno do testamento da protagonista, o qual deixa uma série de provisões para com uma família de escravos. Segundo a autora, a morte do senhor representava para os escravos um momento de grande incerteza em suas vidas. Porém, as intenções da dona do testamento chocam-se com as de seu sobrinho e acabam por não serem efetivamente cumpridas. A hipótese levantada pela autora é que o desconhecimento de sua situação financeira e das leis brasileiras por parte de Dona Inácia resultaram nesse descumprimento de suas vontades após a sua morte. Esse era mais um traço do patriarcado brasileiro, onde a mulher que não contraía matrimônio (como era o caso de Dona Inácia, que aos 86 anos de vida não havia se casado) acabava por necessitar da tutela de um parente homem para tomar a frente em alguns assuntos por falta de preparação prévia para tratar disso, como era frequentemente vetado às mulheres em sua formação. Assim como a primeira história, a situação de Dona Inácia permitiu que a autora explorasse assuntos diversos dentro do contexto mais amplo, como por exemplo as condições familiares. Uma questão debatida é que os casamentos entre famílias abastadas representavam a manutenção de fortunas nas mãos de um mesmo grupo. Além disso, foram exploradas as relações de parentesco, pois Inácia permaneceu durante toda a sua vida dependendo do pai, posteriormente do cunhado e por fim de seu sobrinho para tratar da administração de seus bens. Outros pontos abordados foram a questão de propriedade (sesmarias, questões de heranças, arrendamentos de terra), os rituais fúnebres do século XIX (velórios, missas, enterros), a escolarização feminina, a questão de filhos ilegítimos e também a prática de alforria. Portanto, o livro mostra o funcionamento por vezes ambivalente de uma sociedade patriarcal e escravista, onde os poderes patriarcal e senhorial por vezes permitiam brechas de resistência. Os documentos jurídicos, que foram largamente utilizados na construção do estudo, permitem o conhecimento das ações e consequências, porém nem sempre mostram as motivações. Na reflexão final a autora trata da metodologia por ela utilizada, a de micro história, trazendo debates historiográficos relevantes em relação à isso. Tratando os personagens históricos com a profundidade merecida, Sandra Lauderdale Graham realiza um estudo notável acerca das relações de gênero no Brasil oitocentista, as histórias de resistência, contestação e liberdade trazem para o público reflexões primorosas acerca daquele contexto, contribuindo profundamente para a produção historiográfica acerca do tema.