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ANAIS DO

AS MÚL-
TIPLAS Leituras a partir de

FACES DA
“Nunca deixe de
acreditar”,
um relato
autobiográfico de
uma adoção tardia

ADOÇÃO
internacional
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG)
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DA UFMG
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DA UFMG
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE MINAS
GERAIS (FAPEMIG)
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE MINAS GERAIS
COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE
NÍVEL SUPERIOR

ANAIS DO VII
CONGRESSO NACIONAL
DE PSICANÁLISE,
DIREITO & LITERATURA
Leituras a partir de “Nunca deixe
de acreditar”, um relato autobiográfico
de uma adoção tardia internacional

SÉRIE CONGRESSOS, N. 7
VII CONGRESSO
NACIONAL DE
PSICANÁLISE, DIREITO
& LITERATURA
Leituras a partir de “Nunca deixe
de acreditar”, Um relato autobiográfico
de uma adoção tardia internacional

REALIZADO NOS DIAS 20, 21 E 22 DE SETEMBRO DE 2018 - UFMG


CONGRESSO NACIONAL DE PSICANÁLISE, DIREITO E LITERATURA (7.: 2018:Belo Horizonte).

C749 a Anais do VII CONPDL, 19, 20e 21 de setembro de 2018, Belo Horizonte [recurso
eletrônico]: leituras a partir de “nunca deixe de acreditar” um relato autobiográfico de uma
adoção tardia internacional - as múltiplas faces da adoção / Coordenação geral por Fábio
Roberto Rodrigues Belo. [realização UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais] . Belo
Horizonte: Ami Comunicação & Design, 2018.

403p. Il. Serie Congressos, n. 7

Apoio da UFMG, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia,


CRP, FAPEMIG, CAPES.

Inclui Referências

ISBN: 978-85-68483-34-3

1. Adoção – múltiplas faces. 2. Adoção tardia internacional. 3. Adoção. 4. Psicanálise. 5.


Autobiografia. I. Belo, Fábio Roberto Rodrigues. II. Título

CDU 347.633
CDD 342.1633

Ficha elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB 6ª n. 1206


COORDENAÇÃO GERAL Bárbara Bastos Borges
Fábio Roberto Rodrigues Belo Carlos Rohrmann
Érica Silva do Espírito Santo
COMISSÃO ORGANIZADORA Fábio Roberto Rodrigues Belo
Alberto Luiz Rodrigues Timo Heloísa Moura Bedê
Ana Flávia de Almeida Silva Hellen Karlla de Campos
Bárbara Bastos Borges Izabela Dias Velludo Roman
Carlos Rohrmann Jhonatan Jeison de Miranda
Érica Silva do Espírito Santo Marcela Maria Santos
Fábio Roberto Rodrigues Belo Mariana Rúbia Gonçalves dos Santos
Heloísa Moura Bedê Marina Maciel Almeida
Hellen Karlla de Campos Michelle Aguilar Dias Santos
Izabela Dias Velludo Roman Paula de Oliveira Bezerra
Jhonatan Jeison de Miranda Paula Paim de Almeida Lana
Marcela Maria Santos Raissa de Matos Ribeiro
Mariana Rúbia Gonçalves dos Santos Thalita Rodrigues
Marina Maciel Almeida Vanessa Biscardi Matos
Michelle Aguilar Dias Santos Walef Batista Pereira
Paula de Oliveira Bezerra
Paula Paim de Almeida Lana APOIO
Raissa de Matos Ribeiro CRP-MG
Thalita Rodrigues FAPEMIG
Vanessa Biscardi Matos FUNDEP
Walef Batista Pereira CAPES
UFMG
PRODUÇÃO, DISTRIBUIÇÃO, INFORMAÇÕES
Fábio Belo REVISÃO DE NORMAS
E-mail: conpdl@gmail.com Letras e Normas - Revisão de textos e
Homepage: www.conpdl.com.br normalização (letrasenormas@gmail.com)

COMITÊ CIENTÍFICO PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Alberto Luiz Rodrigues Timo Amí Comunicação & Design
Ana Flávia de Almeida Silva

© 2018. Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Literatura


É permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.
APRESENTAÇÃO
As leitoras e os leitores têm agora acesso virtual e permanente aos Anais do VII Congresso
Nacional de Psicanálise, Direito e Literatura (CONPDL). O evento ocorreu no auditório do
CAD II, na Universidade Federal de Minas Gerais, nos dias 19, 20 e 21 de setembro de 2018.
O VII CONPDL teve como tema “As múltiplas faces da adoção: leituras a partir de “Nunca
deixe de acreditar”, um relato autobiográfico de uma adoção tardia internacional”.

Como nas versões anteriores, o VII CONPDL contou com a presença de pesquisadoras(es)
das três áreas que sustentam este projeto: a Psicanálise, o Direito e a Literatura. Os
textos aqui reunidos apresentam esta perspectiva interdisciplinar e possibilitam uma
leitura plural sobre um tema urgente em nosso país. Os vídeos com a apresentação de
alguns destes textos estão também de forma permanente, pública e gratuita no canal do
CONPDL no YouTube.

Nós, da comissão organizadora do CONPDL e também componentes do grupo de


pesquisa “Psicanálise e Política”, acreditamos que através de iniciativas dialógicas e
públicas como este evento podem fazer incidir, no um a um, de cada sujeito, a reflexão a
partir disso que a psicanálise sustenta sobre a adoção: somos todos, necessariamente,
adotadas(os) pelo outro. Diante da impossibilidade decorrente do desamparo originário,
é a partir da hospitalidade do outro a condição fundamental para existir enquanto
sujeito. A experiência de Christina Rickardsson e tantas outras crianças nos ensina que
é sempre a partir do desejo (contingencial, histórico e libidinal) de alguém que o trabalho
de adoção se articula.

Agradecemos pelo imprescindível apoio recebido nesta edição do CONPDL: à UFMG, à


Faculdade de Filosofia de Ciências Humanas, ao Departamento de Psicologia, ao CRP, à
FAPEMIG e à CAPES.

PROF. DR. FÁBIO ROBERTO RODRIGUES BELO


Professor de Psicanálise – Departamento de Psicologia – UFMG
Organizador geral do CONPDL
Coordenador do grupo de pesquisa CNPq – “Psicanálise e Política”
SUMÁRIO
15-31 A ADOÇÃO DE CRIANÇAS MAIORES E A CONSTRUÇÃO
DO VÍNCULO FAMILIAR
Anamaria Silva Neves
Fabiana Carolina de Souza Carvalho Dias

32-41
A ADOÇÃO VIVIDA COMO CISÃO: PROBLEMATIZAÇÕES A
PARTIR DE NUNCA DEIXE DE ACREDITAR, DE CHRISTINA
RICKARDSSON
Rafael Guimarães Tavares da Silva

42-47 A CHAMADA ADOÇÃO TARDIA E A PSICANÁLISE


LAPLANCHEANA: BREVES ANOTAÇÕES
Carolina Spyer V. Assad

48-56 A IMAGEM DO TRAUMA EM NUNCA DEIXE DE ACREDITAR


Izabela D. V. Roman
Alberto L. R. Timo

57-70 A LITERATURA E O IMAGINÁRIO SOCIAL RELATIVO À


ADOÇÃO: ANÁLISE DA HISTÓRIA INFANTIL JOÃO E
MARIA (HÄNSEL UND GRETEL)
Anamaria Silva Neves
Fabiana Carolina de Souza Carvalho Dias

71-89
A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E O
FRACASSO DA ADOÇÃO
Fabiano Siqueira
83-89 A REABERTURA DA SITUAÇÃO ORIGINÁRIA NO PROCESSO DE
ADOÇÃO E A POSSIBILIDADE DE ENGENDRAMENTO DO NOVO
Michelle Aguilar Dias Santos

90-97
ADOÇÃO E ANIMALIDADE: O CASO DE HELEN MACDONALD
E SUA AÇOR, MABEL
Fábio Belo
Marina Almeida

98-108 ADOÇÃO E RACISMO: QUESTÕES PARA A PSICANÁLISE


Thalita Rodrigues
Giovanna Brito Giannini
Joana Buschini Brentano

109-122
ADOÇÃO INTERNACIONAL E O ACOMPANHAMENTO
PÓS-ADOTIVO NO ESTADO DE MINAS GERAIS
Cristiane da Silva Sarmento Moreira

123-133 ADOÇÃO MESMO QUE TARDIA: CONSIDERAÇÕES


PSICANALÍTICAS SOBRE TRAUMA E BUSCA DAS
ORIGENS
Érica Espírito Santo

134-142
ANÁLISE DE FILME O CONTADOR DE HISTÓRIAS:
DESAFIOS NA ADOÇÃO DE CRIANÇAS COM
TENDÊNCIA ANTISSOCIAL
Lucas Teixeira Leandro
Marina Ruas Cardoso

143-148
AS TARTARUGAS NINJA: UMA NARRATIVA
SOBRE O DESEJO DE CUIDAR E A QUESTÃO DA
IDENTIFICAÇÃO ENTRE PAIS E FILHOS
Mariana Rúbia Gonçalves dos Santos
149-158
CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE
A ÉTICA DA ADOÇÃO: TRAUMA, CLIVAGEM,
HUMILHAÇÃO E HOSPITALIDADE
Daniel Kupermann
Bartholomeu de Aguiar Vieira

159-169 CRIANÇAS (IN)VISÍVEIS: O ESTATUTO DA ADOÇÃO


Maria Lidia Amoroso Anastacio da Silva

170-182
DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS ADOTADAS E
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nina Peiter Carballido Mendes

183-196 DIREITO À ENTREGA DA CRIANÇA À


ADOÇÃO: DA PROTEÇÃO DA ENTREGA E DA
RESPONSABILIZAÇÃO DO ABANDONO
Ana Carolina Costa Castro

197-204 DIREITO E PSICOLOGIA: A ADOÇÃO HOMOAFETIVA E AS QUESTÕES


DOS PAPÉIS PARENTAIS SOB A INTERFACE PSICANALÍTICA
Luan de Oliveira Antunes
Carla Bertoncini

205-218 E QUANDO A ADOÇÃO NÃO SE TORNA UMA POSSIBILIDADE?


DESAFIOS DE JOVENS INSTITUCIONALIZADOS
Mariana Alvarenga
Thalita Rodrigues

219-230
“ELE É OU NÃO É PAI PARA ESSE SUJEITO?”: UMA LEITURA
PSICANALÍTICA DE UMA DEMANDA POR RECONHECIMENTO DE
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
Caroline Assunção Duarte Silva
231-239
ENTREGA VOLUNTÁRIA DE BEBÊS: ASPECTOS INCONSCIENTES QUE
PODEM INTERFERIR NA ESCUTA DESSA AÇÃO ENQUANTO DESEJO
Mariana Rúbia Gonçalves dos Santos
Michelle Aguilar Dias Santos

240-247 ESTRUTURAS E FISSURAS: A NÃO ADOÇÃO DOS


ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA
Elisa de Santa Cecília Massa

248-253
HERANÇA, FILIAÇÃO E ADOÇÃO TEÓRICA EM
PSICANÁLISE: EFEITOS DA FORMAÇÃO DO ANALISTA
Luiz Eduardo de V. Moreira
Patrícia Mafra de Amorim
Daniel Kupermann

254-261 LEITURA LAPLANCHEANA DAS ENGRENAGENS DA ADOÇÃO A


PARTIR DE ​O FILHO DE MIL HOMENS​, DE VALTER HUGO MÃE
Hellen Karlla de Campo
Vanessa Biscardi Matos

262-270 MITO MATERNO: A IDEALIZAÇÃO DA FIGURA MATERNA NO


CONTEXTO DE CUIDADO EM SAÚDE DE MULHERES QUE DECIDEM
ENTREGAR SEUS FILHOS PARA ADOÇÃO
Michelle Karina Silva
Paula de Oliveira Alves

271-275 MITOS BIOLOGIZANTES, MITOS DA ORIGEM: EMPECILHOS OU


FAVORECEDORES DO PROCESSO DE ADOÇÃO?
Felippe F. Lattanzi

276-287
NOVAS RESPOSTAS A ANTIGOS DILEMAS NA
ADOÇÃO DE CRIANÇAS MAIS VELHAS
Jéssica Mara Oishi
Carla Alessandra Barbosa Gonçalves Kozesinski
Simone Trevisan de Góes
288-296
O ABORTO PELA VIA DA ADOÇÃO
Bárbara Bastos Borges

297-308 O ATO INCONSCIENTE NA ENTREGA DA CRIANÇA NO CONTEXTO


DE CUIDADO MATERNO INFANTIL EM SAÚDE
Michelle Karina Silva
Aline Rabelo Silva Pinho

309-315
O DESCONHECIMENTO DA SEXUALIDADE INFANTIL NO CONTEXTO
DE ADOÇÕES TARDIAS: UM COMPLICADOR PARA A RECONSTRUÇÃO
SUBJETIVA DA CRIANÇA NA NOVA FAMÍLIA
Deborah Lemos Lobato de Araújo

316-330 O JARDIM SECRETO DA ADOÇÃO: UMA ANÁLISE DAS TENDÊNCIAS


DO INSTITUTO À LUZ DO DIREITO COMPARADO
Bruna Di Fátima de Alencar Carvalho

331-341 O MENINO QUE SOBREVIVEU... PORQUE FOI


ADOTADO! – ADOÇÃO EM HARRY POTTER
Bárbara Bastos Borges

342-348 O QUE SEDUZ EM STEVE JOBS?


Raissa de Matos Ribeiro

349-366
OS VÍNCULOS FAMILIARES NA ADOÇÃO
INTUITU PERSONAE: CONSTRUÇÃO DE CASO
NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
Anamaria Silva Neves
Fabiana Carolina de Souza Carvalho Dias
367-376
RECUAR É POSSÍVEL? REFLEXÕES SOBRE A [IM]
POSSIBILIDADE DE DESISTÊNCIA NO PROCESSO DE ADOÇÃO
Ana Paula Avelar dos Santos
Flávia Jardim Camargos Fraga
Marilane Rodrigues Cunha
Viviane Andrade Pinheiro

377-385 REPERCUSSÕES DO MITO NEGRO NOS


PROCESSOS DE ADOÇÃO BRASILEIROS
Jôse Lane de Sales

386-396
VESTÍGIO E TRADUÇÃO NA EXPERIÊNCIA ADOTIVA
José César Coimbra

397-402 VÍNCULOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS NO EXERCÍCIO


DA PATERNIDADE/MATERNIDADE NA ATUALIDADE
Lucas Bondezan Alvares
Gustavo Henrique Dionísio

403-409 VIVER SEM A RAIZ: ADOÇÃO E OS SOFRIMENTOS


NARCÍSICOS-IDENTITÁRIOS
Marcela Ribeiro Lima Sant’Ana
SUMÁRIO

15 A ADOÇÃO DE CRIANÇAS
MAIORES E A CONSTRUÇÃO DO
VÍNCULO FAMILIAR

AUTORIA
ANAMARIA SILVA NEVES
Professora adjunta da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Doutora em Psicologia
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutora pelo Child and Woman Abuse Studies Unit
– CWASU, instituição vinculada à London Metropolitan University.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: anamaria.neves@ufu.br

FABIANA CAROLINA DE SOUZA CARVALHO DIAS


Psicóloga clínica Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM. Mestre em Psicologia
pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
CONTATO: fabiana.dias@uftm.edu.br

RESUMO
O desenvolvimento da relação entre pais e filhos não se restringe à concepção biológica
do vínculo, a filiação percorre uma via simbólica que torna possível inscrever uma criança
no desejo dos pais e permite que uma família não constituída biologicamente possa
desenvolver relações de parentalidade e filiação. Este trabalho buscou compreender
a construção dos vínculos familiares na adoção de crianças maiores segundo a
perspectiva da família adotante. Foi realizado recorte de pesquisa mais amplo que
se ancorou nos preceitos teóricos e metodológicos da Psicanálise valendo-se da
construção de caso como instrumento de investigação. A família que compõe o caso
inclui um casal com impossibilidade de gerar filhos consanguíneos e que adotou quatro
irmãos, todos com idade superior a 2 anos. Destacam-se a fragilidade dos vínculos em
construção, a inserção impactante de quatro filhos na dinâmica familiar, as mudanças
nas relações entre irmãos, as questões relativas à família de origem e a inter-relação de
aspectos inconscientes imbricados no desejo de adotar, que estão além do que pode
ser pensado e compreendido pela família. Discutiu-se o quanto questões relacionadas
16 com o narcisismo atacado pela infertilidade conduziram os pais da impotência ao
heroísmo, mudando os rumos do desejo que se delineava de início, sem que os próprios
protagonistas pudessem compreender. As reflexões feitas acenaram para a trama
complexa dos vínculos por adoção, em que as pulsões narcísicas se interseccionam em
busca de resolução como resposta à angústia do desamparo, tanto dos pais quanto dos
filhos. Tem-se clara a necessidade de explorar os aspectos inconscientes imbricados
na adoção a fim de superar preconceitos que sustentam pensamentos e práticas, visto
que a adoção é um dispositivo importantíssimo para que crianças de mais idade e
adolescentes possam desfrutar do direito de se desenvolverem em uma família.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção de crianças maiores; Vínculo; Família; Psicanálise.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


O desenvolvimento da relação pais e filhos não se restringe à concepção biológica do vínculo. A filiação
percorre uma via simbólica que torna possível inscrever uma criança no desejo dos pais e permite
17 que uma família não constituída biologicamente possa desenvolver relações de parentalidade e
filiação pelas vias da adoção. Esta pesquisa teve como objetivo compreender a construção dos
vínculos familiares na adoção de crianças maiores segundo a perspectiva da família adotante. Foi
realizado recorte de pesquisa mais ampla que se ancorou nos preceitos teóricos e metodológicos da
Psicanálise valendo-se da construção de caso como instrumento de investigação.

Por se tratar de pesquisa qualitativa, que não prioriza a quantidade de participantes, mas
explora a singularidade do caso estudado, estabelecemos contatos com o intuito de encontrar
alguma família que correspondia ao interesse da pesquisa. O contato com a família foi realizado
a partir de indicação de outra pesquisadora do tema, que os conhecia de trabalhos que realizou
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

na instituição de acolhimento onde as crianças haviam residido. Como se tratava de um caso,


descrito pela outra pesquisadora, de adoção múltipla de crianças maiores, o que correspondia ao

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


nosso foco de pesquisa, entramos em contato com a família a fim de convidá-la para participar
deste estudo. Antes de iniciar a análise pormenorizada do caso, apresentamos aspectos gerais
dessa construção ligados, sobretudo, às questões transferenciais.

Desde o contato com as primeiras informações sobre a família que compõe o caso, atraíram
atenção a singularidade e a dimensão pouco comum da adoção de quatro irmãos, todos com
mais de 2 anos de idade. Foram mobilizadas fantasias, em especial relacionadas à demanda e ao
impacto que tal adoção traria à família. Durante a entrevista, porém, poucos conflitos puderam
ser explicitados e o relato do casal fazia ecoar que as dificuldades surgidas de início haviam
sido transpostas. A história de adoção apresentava-se como descrição de fatos, com cisão dos
conteúdos afetivos. Não lhe dava a intensidade emocional ligada a uma situação tão peculiar.

Realizada a primeira entrevista somente com o casal, muitas foram as dificuldades nas tentativas
de agendamento para outros encontros com a família. Poucos eram os horários em que a
família se encontrava na residência e os números dos telefones celulares constavam como
inexistentes. Não conseguimos agendar outras entrevistas além da primeira. Nos momentos em
que conseguimos contatar a família via telefone, os pais citaram brevemente problemas como a
separação do casal e doença na família. Também alegaram impedimento para novos encontros,
destacando esses motivos como justificativa para não mais participar da pesquisa. Revelaram-se
na relação transferencial aspectos que apontavam a possibilidade de fracasso do processo de
adoção. Percebeu-se que, em momento de evidente fragilidade, a família tornou-se indisponível.
Apesar dos percalços no percurso do estudo com a família, foi possível pensar sobre elementos
do processo de adoção de crianças maiores que serão expostos a seguir.

A família estudada é composta pelo casal parental e quatro irmãos, que, na época em que foi
realizada a entrevista, tinham 8, 12, 14 e 16 anos de idade. O casal optou pela adoção por causa
da infertilidade e impossibilidade de fertilização artificial ante a falta de recursos financeiros para
arcar com procedimentos e a dificuldade de conseguir tal tratamento na rede pública de saúde.
18 O casal buscou os procedimentos legais para realizar a adoção. O período entre a inscrição como
pretendentes e o início da convivência com os filhos foi de quase um ano. Os irmãos vieram de uma
instituição de acolhimento – onde estavam havia quatro anos – situada em uma cidade vizinha
onde residia os pais por adoção. Na data da entrevista, as crianças já conviviam com o casal por
dois anos e meio.

“Precisava de loucura para fazer o que nós fizemos...”. Na primeira entrevista realizada com Frida
(37 anos) e Salvador (41 anos)1 , foi esta a descrição dada por eles sobre a decisão de adotar os
quatro irmãos: “uma loucura” (Frida). O desejo de exercer a parentalidade equipara-se à loucura,
como relata Frida: “precisava de loucura para fazer o que nós fizemos, não dava para ser muito
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

racional, precisava de loucura, mas uma loucura boa”.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


De início, o casal pretendia adotar duas crianças; mas, ao chegarem à instituição de acolhimento,
na primeira visita marcada para conhecê-las, foram surpreendidos com a existência de mais dois
irmãos, também aguardando adoção. Emocional e socialmente, pesava sobre esses futuros pais
uma decisão: adotar dois irmãos e deixar os outros dois; não adotar nenhum deles – embora tenha
havido afinidade inicial; ou “enlouquecer” e adotar os quatro.

De acordo com Ghirardi (2014), os adotantes, ao se depararem com a situação inesperada da


existência de irmãos da criança que pretendem adotar, podem sentir-se culpados por adotar um
e deixar os outros institucionalizados. A conduta da colocação de irmãos em famílias que não
desejam adotar várias crianças ao mesmo tempo, porém, pode levar à possibilidade de sentimentos
de rejeição e risco de novo abandono.

A sensação de “loucura” vivenciada reflete a impossibilidade do casal de compreender os


sentimentos que mobilizaram a decisão pela adoção, sendo impulso que resulta da fragmentação
do ego em partes incomunicáveis. A adoção dos quatro irmãos exigiu que Frida e Salvador
transcendessem a lógica e a racionalidade e adentrassem o campo dos afetos: “A gente decidiu
no impulso, não foi pela razão, foi só pelo coração. A gente não pensou na questão financeira, em
nada, a única coisa que a gente pensava era que queria os quatro, que não queria separar eles”
(Frida). A chamada loucura seria a aproximação da realidade psíquica inconsciente: “A gente não
queria fazer bonito para as pessoas, só sentia que devia fazer isso” (Salvador). O “sentir” descrito

1. Os nomes Frida e Salvador são fictícios para preservar o sigilo das identidades dos participantes da pesquisa. Os nomes foram
propositalmente escolhidos em alusão a Frida Khalo e Salvador Dalí, nomes do movimento estético surrealismo. Segundo Gomes
(1995), o surrealismo é estreitamente identificado com as ideias da psicanálise e tem como propósito transcender o real a partir
do impulso psíquico do imaginário e do irracional. Expressa manifestações do subconsciente e ausência de uma racionalidade
humana. Busca deliberadamente o bizarro e o irracional para expressar verdades ocultas, inalcançáveis por meio da lógica. Por
ser um movimento artístico que transcende o racional e o real, é recorrentemente equiparado à vivência da loucura.
por Salvador remete ao processo inconsciente que, com sua lógica própria, mobilizou o casal a um
movimento que não passaria pelo crivo da racionalidade, apresentando-se em forma de impulso
19 primitivo, sem que houvesse possibilidade de o sujeito compreendê-lo conscientemente.

Mannoni (1971) descreve que, para Freud, há uma lógica inconsciente para a loucura e esta não
corresponde à oposição da normalidade. A loucura já está de certa maneira no inconsciente em
cada um; os loucos simplesmente sucumbiram a ela. Com base nisso, pode-se pensar na “loucura”
de Frida e Salvador como forma de compensar o narcisismo ferido decorrente da impossibilidade
de gerar filhos. Adotar só os dois irmãos inicialmente pretendidos e deixar os outros dois na
instituição ou não adotar nenhum exacerbaria o sentimento de impotência já existente. Adotá-
los, portanto, poderia ser uma forma de responder à angústia provocada pela esterilidade e uma
tentativa de apaziguamento da ferida narcísica motivada pela incapacidade de gerar filhos.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Em outro ponto da entrevista é possível notar essa mesma dimensão afetiva, quando Frida

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


relata que Salvador não gostava de receber ajuda para conseguir manter os filhos, mesmo ante
a necessidade de auxílio naquele momento. Queria “dar conta” de sustentar a família. É possível
pensar que conseguir sustentá-los diminuiria a impotência angustiante vivenciada por Salvador,
visto que a infertilidade foi diagnosticada nele, fator que poderia intensificar tal sentimento.

Infere-se que os quatro filhos representariam para Frida e Salvador o resgate da potência e a
reparação do narcisismo ferido. Para Freud (1914/1996), o amor parental é o retorno e a reprodução
do narcisismo dos pais através da criança. O filho tem função reparadora e de resgate do narcisismo
infantil perdido atuando nas feridas narcísicas do psiquismo parental.

Isso possibilita pensar que, diante da mobilização emocional que subtraía a “razão” de Frida e
Salvador, adotar os quatro irmãos não seria uma opção, mas a única condição possível naquele
momento, pois ao serem colocados diante dos quatro irmãos, não adotá-los só intensificaria o
sentimento de impotência já vivenciado pelo casal. Em relação a isso, Peiter (2016) destaca que a
adoção baseada no desejo de cuidar do desamparo do outro pode encobrir possíveis identificações
dos adotantes com a condição de abandono; o que alude ao próprio sentimento de desamparo,
resquício de dolorosas feridas narcísicas que não encontram espaço para elaboração e fica
depositado neste outro. São defesas que protegem o indivíduo, negando suas próprias dores
através da onipotência.

Assim, a adoção neste caso pode estar servindo à negação de sentimentos penosos, tendo
sustentação em fragilidades relacionadas com conflitos narcísicos intensos que impulsionam o
sujeito a buscar a resolução ou o apaziguamento da angústia insuportável com idealização de
uma meta narcisista salvadora. Trata-se de uma dinâmica pertencente aos afetos, do inominável,
muitas vezes não acessada pelo próprio sujeito, pois é da ordem do indizível, de algo que carece de
representação e que embasa tanto a constituição de si em relação à alteridade quanto o discurso
pouco simbolizável.
20
O próximo ponto analisado deste caso refere-se à mudança enfática na configuração familiar,
nomeada neste trabalho como “De repente, seis: do casal sem filhos à família numerosa”. A
família de Frida e Salvador teve uma alteração radical com a inserção de quatro filhos de idades
diferentes, num mesmo momento. Isso exigiu uma capacidade elevada de adaptação de todos
os seus membros. O casal teria que se habituar a sua nova condição de família numerosa, e as
crianças, que já tinham vínculo entre si, teriam de se inserir em uma nova configuração familiar.

Para Ghirardi (2014), o desejo de construir uma família pode levar os pretendentes à adoção
a aspirarem a adotar mais de uma criança em um mesmo momento. A autora considera que o
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

fato de o grupo de irmãos ter convivido entre si e estar vinculado afetivamente pode facilitar os
vínculos posteriores e a integração familiar. As mudanças poderão ser compartilhadas entre os

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


irmãos, além das vivências e lembranças anteriores, estabelecendo pontes com o passado na
reconstrução da própria história.

Em contrapartida, é preciso haver preparação e acompanhamento dos adotantes e do grupo


de irmãos, considerando a singularidade de cada situação: encontro do desejo dos adotantes e
os filhos que serão adotados; suas idades diferentes e necessidades físicas e emocionais; e as
condições emocionais que os adotantes têm em relação à oferta de cuidados (que precisam estar
em consonância com as necessidades e o estado emocional das crianças, de modo que promova
o desenvolvimento emocional e a subjetivação). Será necessário abarcar as complexidades
das experiências que o grupo de irmãos traz. Compreender a dinâmica afetiva entre eles e os
significados intrínsecos contidos no laço fraterno, o que pode servir de balizador para a reinserção
familiar (Ghirardi, 2014).

O grupo de irmãos terá de se relacionar com vinculações diferentes para encontrar seu lugar no
novo grupo familiar. Situações em que o irmão mais velho assumia função parental em relação
aos irmãos mais novos pode encontrar, no estabelecimento dos novos vínculos familiares, certa
dificuldade em permitir ou transferir tal função aos pais por adoção. Podem ocorrer rivalidade e
competição entre os irmãos pela atenção dos pais, assim como o ciúme, o que torna mais complexo
o processo de integração e vinculação (Ghirardi, 2014).

Outro aspecto analisado em relação à dinâmica familiar refere-se ao período entre o momento em
que o casal conhece as crianças e o início da convivência em família, que foi de quase um mês —
presumivelmente, um período muito curto para aproximação afetiva.

Vidigal e Tafuri (2010) enfatizam que, quando o filho nasce, os pais precisam fazer uma passagem
psicológica entre a criança real e a imaginária. Quanto mais conflituosa for essa passagem, em
função dos traços reais que a criança apresenta, maior será a frustração e decepção por que
passarão os pais em relação ao imaginário produzido. A criança real pode provocar a desidealização
21 em relação ao imaginário criado pelos pais, que são portadores de uma história transgeracional,
consciente e inconsciente. Esse processo de desidealização do filho real pode provocar sofrimento
narcísico intenso, a ponto de trazer dificuldades para a relação.

Essa dinâmica pode ser ampliada para filiação por adoção, em que cabe considerar a existência
de vinculação pré-encontro entre pais e filhos. Somado a isso, existe o estranhamento comum às
relações por adoção, advindo de diferenças físicas, geracionais e culturais entre eles. Em relação
aos pais, é comum a vinculação inicial ser baseada em idealização e projeções de seu desejo.
Segundo Silva (2007), nos casos de adoção de crianças maiores, a criança já traz o seu nome e
significantes impressos que marcam a sua existência. Isso terá que ser articulado para abrir espaço
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

à construção de novos significantes e de uma história comum nessa nova relação familiar.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Assim, de acordo com Ghirardi (2014), torna-se necessário equacionar as necessidades da
criança com a construção psíquica dos adotantes sobre o filho. O narcisismo parental precisa ser
suficientemente flexível para permitir que ocorra o ajuste necessário entre a criança imaginada e
a criança encontrada. Também a criança pode construir expectativas extremadas acerca de sua
inserção em uma família; as quais necessitam ser reajustadas às dificuldades familiares cotidianas.

De acordo com Alvarenga e Bittencourt (2013), em muitas crianças/adolescentes que aguardam


a adoção é possível observar o desejo de ser adotadas. Mas este pode coexistir com alguma
idealização da família de origem, como uma forma defensiva de conservar sua imagem positiva.
Com isso, pode ocorrer certo nível de resistência ao vínculo com a família por adoção cuja função
é preservar laços com sua história de origem. O contrário também pode ocorrer: os filhos podem
se aproximar da família por adoção, assumindo precipitadamente uma nova identidade pelo receio
de não ser aceitos. Essa vinculação pode ser associada ao conceito de “falso-self” (Winnicott,
1990): o filho assume um conjunto de relacionamentos falsos por introjeção, busca preencher
expectativas e obter amor das figuras parentais, dominantes.

Essa forma de vinculação pode ser notada no relato do casal. Frida disse que, no dia seguinte ao
primeiro encontro com as crianças, quando ligaram na instituição para falar com elas, as menores
– que já sabiam da intenção de adoção – começaram a chamá-los de pai e mãe. Dois dias depois
ligaram novamente, e as duas crianças de mais idade – também já cientes da intenção do casal
de adotar os quatro irmãos – tiveram a mesma atitude. “Eu não ia forçar eles a nada, ia esperar a
vontade deles. Mas foi algo bem natural. Eles começarem a nos chamar de pai e mãe” (Frida).

A aproximação inicial entre eles não foi progressiva. Passou da não convivência para a convivência
total em pouco tempo. Isso pode ter colaborado para dificuldades de adaptação, para confrontos
bruscos de desejos, idealizações e fantasias ante o objeto de amor. O vínculo com os objetos de
amor menos idealizados foi sendo desenvolvido ao longo da convivência e do conhecimento mútuo.
Através do relato dos pais pode-se perceber que, de início, existiam fragilidades no vínculo entre
22 pais e filhos. Apareceram manifestações de insegurança. A mãe se angustiava quando os filhos
falavam da genitora. Ela disse que, mesmo que não falassem coisas boas da mãe consanguínea, só
de estarem se referindo a ela era sinal de que era significativa a eles.

Schettini Filho (2009) pontua que a decisão de adotar não conclui o processo de consolidação do
vínculo afetivo entre pais e filhos. Há um tempo pessoal para que essa consolidação aconteça.
A decisão de adotar é o movimento inicial de um processo infindável, daí que os vínculos não se
consolidam de forma instantânea. Exigem um tempo social e psicológico para que se desenvolva
uma segurança afetiva.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

As aproximações idealizadas entre pais e filhos nos casos de adoção parecem responder às
necessidades narcísicas e podem indicar a tentativa de tamponar a angústia. A falta sentida pelas

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


crianças em relação às figuras parentais pode levá-las a se vincularem adesivamente aos pais que
se apresentam, como no caso da família em questão; igualmente, o casal pode se apropriar dessa
função ante a angústia pela falta do filho e a possibilidade de aplacar essa falta nos possíveis filhos
que se lhe apresentam. Nesse tipo de vinculação, predominam fantasias relacionadas com o medo de
ficar só; e o vínculo serve como defesa, pois a separação é sentida como falta, inexistência. O sujeito
fica à mercê do mundo interno. Assim, o vínculo mantém-se pela idealização numa fusão imaginária.

Neste momento da análise busco enfatizar a construção do vínculo entre os membros da família
e destes com a instituição de acolhimento e intitulo esse ponto com uma frase dita por Frida “Eu
não gostaria que ele fosse embora, ia ser muito difícil para mim, mas se ele quisesse ir, eu não
ia impedir” – vínculos atados e vínculos ameaçados. As crianças já estavam institucionalizadas
no mesmo local – cabe frisar – por quase três anos; e, no dizer de Frida e Salvador, tinham bons
vínculos e boa adaptação. Alvarenga e Bittencourt (2013) apontam que, quando a instituição em
que a criança está é um local onde referências e vínculos afetivos foram construídos, a perspectiva
de adoção demanda trabalho de preparação da criança/adolescente para o novo rompimento
e a inserção em outro contexto – agora familiar. Há de considerar que já houve ruptura com
a família de origem e que podem existir marcas de apego a intermediários e/ou desconfiança
ante o desconhecido. Assim, a preparação deficiente da criança, tanto quanto postulantes mal
informados e preparados, dificulta o processo de construção do vínculo, gera sentimentos de
fracasso em todos os envolvidos.

Um momento descrito por Frida que pode representar tal dificuldade no processo de desvinculação
institucional refere-se à ocasião em que seu filho mais velho expressou que gostaria de retornar
à instituição de acolhimento. Frida relata que, nos primeiros meses de convivência familiar, ouviu
o filho conversar ao telefone com a equipe da instituição dizendo que queria retornar para lá. Ela
disse que, depois que o adolescente encerrou a ligação, o questionou sobre a razão de não querer
permanecer na família. Ele respondeu a ela que não tinha gostado da cidade (a instituição de
acolhimento em que permaneceram se localizava em cidade vizinha à cidade onde morava a família
23 por adoção). Ela se contrapôs, apontando que ele nem havia conhecido a cidade para saber se
gostava ou não, pois não tinha transcorrido tempo suficiente. Frida diz ao filho para pensar, porque
não gostaria que ele fosse embora – iria ser muito difícil para ela; mas também não o iria impedir.
O adolescente conversou com a equipe da instituição de novo, que lhe explicou que, apesar de lá
ser um local bom, não era igual a estar com uma família e que, lá, as pessoas não permaneciam.
Foi então que ele decidiu continuar com a família. “Eu acho que era saudade, porque ele era muito
querido lá, até ganhou uma vez uma viagem para a Disney por bom comportamento. Ele é muito
falante, e todos gostavam dele lá” (Frida). A compreensão da mãe por esta perspectiva parece ter
sido fundamental para ajudar o filho a lidar com as mudanças e inseguranças decorrentes de seu
novo contexto. A atitude do adolescente poderia ter sido interpretada pelos pais como rejeição
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

ou que estavam sendo insuficientes e incompetentes em suas funções. Acertadamente, os pais


conseguiram significar a fala do filho como expressão de saudade e dificuldade de adaptação e

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


não como ataque a eles. Isso facilitou a elaboração do conflito.

A adoção mobiliza sentimentos e conflitos intensos, conscientes e inconscientes. Por vezes, a


família encontra-se em estado de angústia e solidão. Nesses momentos, as redes de apoio podem
auxiliar, ou seja, oferecer certo modo de continência à família. A relação de apoio que a instituição
de acolhimento manteve com a família mostrou-se significativa em vários momentos de crise.
Além de disponibilizar a escuta para pais e filhos sobre as dificuldades por que estavam passando,
a equipe auxiliou com doação de alimentos.

Considerando a importância dessas relações de apoio à família, Kaës (1979 citado por Svartman,
2003) inaugurou a ideia de apoio múltiplo do psiquismo dizendo que o psiquismo, também, apoia-
se nos grupos e nas instituições. O autor afirma que toda formação psíquica tem múltiplos apoios
e que, quando fracassam, ocorrem rupturas psíquicas que ameaçam a integridade do ego e a
continuidade da existência subjetiva. Essa é uma reflexão ampliada que considera o vínculo
transubjetivo, que se refere à pertença do sujeito a uma cultura, ao macrocontexto no qual estão
inseridas as instituições.

Svartman (2003) explana que o apoio múltiplo do psiquismo refere-se aos vínculos com os grupos
diversos de pertença que são significativos na constituição do sujeito, da identidade e dos valores
culturais. A rede de apoio é um macroidentificatório e continente importante. A necessidade de
apoio não se restringe ao início da vida, quando o bebê se encontra em vulnerabilidade extrema; em
outras situações difíceis somos invadidos por emoções diversas (dores, angústias, medos, anseios
e outras) que reeditam o mecanismo precoce de utilizar outros reais externos como continentes
para os conteúdos psíquicos. A família é uma instituição complexa e carece de redes de apoio
externas constituídas de figuras ou instituições significantes da comunidade. Quando organismos
de assistência social, educação e saúde pública têm capacitação e dinamismo suficientes, oferecem
continência para que ela se desenvolva.
24
Outro aspecto importante refere-se à fragilidade dos vínculos familiares em construção. Segundo
relato de Frida e Salvador, em determinado momento, pensou-se na devolução de um filho, Bruno
(12 anos), que tinha dez anos à época da adoção. Sobretudo no início da convivência, estavam
acontecendo muitos conflitos com ele. A criança falava que os pais não gostavam dela porque era
negro, não aceitava ser frustrado nem corrigido, além de manipular os irmãos para brigarem com
os pais, segundo relatado na entrevista.

Frida falou sobre a situação em que se cogitou a devolução. Disse que estavam ocorrendo muitos
conflitos com Bruno, daí que ela ligou para a instituição de acolhimento para falar disso. Segundo
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relatou, os responsáveis pela instituição “falaram para fazer as malas e mandar ele de volta, que
ele não ia atrapalhar a adoção dos outros irmãos, que se ele não queria, era para ele retornar”.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Frida relata que seu filho mais velho ficou de novo desesperado com a possibilidade de se separar
do irmão: “ele chorava e gritava ao pensar que ia se separar do irmão, mas ele concordou porque
viu que o irmão estava realmente muito difícil e que não dava para continuar daquela forma. Eu
chorei muito e não tive coragem de mandar ele embora”. A mãe disse que hoje percebe que o filho
“testava” seu amor, para ver se não iam abandoná-lo, como ocorreu com a família consanguínea.
Com efeito, Ghirardi (2014) descreve que, nos casos de adoção de crianças maiores, o desejo de
ser incluído na família convive com a necessidade de se certificar da disponibilidade, do afeto e
dos limites dos adultos que se apresentam como novos pais.

Esse “teste” significaria uma forma da criança conhecer e confiar nesses adultos.
É compreensível, uma vez que ela já experimentou anteriores rompimentos
em seus vínculos originais. Porém, essa busca por um “amor incondicional”,
desafia os limites e as expectativas dos pais, gerando mal-estares iniciais e
intensificação de conflitos. É importante que os adotantes possam considerar
que essa adaptação inicial é passageira e até necessária para que adultos e
crianças estabeleçam entre si as bases dos novos vínculos. (Ghirardi, 2014, p. 6)

Ao não encaminhar o filho de volta para a instituição de acolhimento, mesmo com a sugestão
e anuência da equipe, a família demonstra para a criança que é capaz de ser continente em
relação às angústias projetadas. Isso alude à noção de “holding” da teoria de Winnicott (2005).
O holding psicológico oferecido pela família possibilitou um ambiente de confiança, estabilidade
e acolhimento de manifestações agressivas. A criança pôde, então, sobrepor a resistência e
a desconfiança no vínculo, advindas de rupturas sofridas antes. A função parental de holding
promoveu ambiente suficientemente bom e seguro e, nesta condição, os medos e a instabilidade
do vínculo puderam ser apaziguados, o que se mostrou, em momentos de crise, fundamental para
que as dificuldades não evoluíssem para a ruptura.
Em contrapartida, os responsáveis pela instituição, que teriam sugerido à família que fizesse a
devolução de uma das crianças a fim de não atrapalhar a adoção dos outros irmãos (versão da
25 família), não conseguiram, nessa situação, oferecer continência necessária; abriram a possibilidade
de romper o vínculo como forma de resolução dos conflitos. O holding para que a família pudesse
lidar com essa dificuldade foi edificado pelo atendimento psicológico, citado pela mãe como a
intervenção que deu sustentação às mudanças necessárias no vínculo. Alvarenga e Bittencourt
(2013) enfatizam que o acompanhamento técnico de profissionais, sobretudo psicológico, pode
ser imprescindível na intermediação durante o período de adaptação, pois ajuda os pais a elaborar
o que do vínculo se opõe ao desejo e a lidar com os ataques e rejeição da criança relativos à
ansiedade de abandono.

De acordo com Frida, o acompanhamento psicológico a ajudou a reconhecer que alguns de seus
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posicionamentos com relação à criança agravavam as dificuldades; logo, mudanças na maneira


como respondia às demandas e aos ataques agressivos poderiam alterar a composição conflitiva: “as

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


brigas eram pingue-pongue: ele falava, eu retrucava, ele falava, eu retrucava. Depois mudei o jeito
com ele, passei a não retrucar. Apenas colocava ele de castigo e não ficava discutindo. Ele melhorou
bastante depois que eu mudei com ele”. Frida relata que recebeu atendimento psicológico desde a
fase inicial da adoção, o que a auxiliou a entender a relação com os filhos. Bruno também se manteve
em acompanhamento psicológico desde o início da convivência. Tal acompanhamento e o apoio
profissional recebido pela família participante foram apontados como fundamentais para superar os
conflitos e as dificuldades apresentadas e embasar mudanças nos vínculos.

Brafman (1999) explana que cada membro da família desperta e reage a fatores inconscientes uns
dos outros e que os pais só conseguem ajudar seus filhos se não se identificarem com os conflitos
inconscientes deles. Se interpretarem, inconscientemente, o conflito da criança segundo suas
próprias angústias, os pais perdem a capacidade de ajudá-la. No exemplo dado por Frida, parece
que o infantil presente nela — ou seja, os modelos infantis que não tiveram suficiente elaboração
— repercutiam na relação com seu filho. Quando Frida conseguiu retomar a função materna,
reconhecendo o campo do infantil, o conflito entre ela e o filho é atenuado.

Silva (2007) destaca que a posição em que o adulto adotante se coloca ante a criança, na maioria
das vezes, é determinante da maneira como vai transcorrer a adoção. A criança (adolescente)
também está envolvida e se posiciona em relação à filiação que lhe é proposta. Ela espera se
inserir em um contexto familiar. Na maioria dos casos, as crianças disponíveis para a adoção estão
prontas para adotar uma família; salvo casos em que o luto pela separação da família de origem
não tenha sido elaborado inicialmente.

Atentando-se para não minimizar a complexidade da situação, essa autora defende que o bom
andamento da adoção depende fundamentalmente de como os pais assumem a criança que estão
adotando. Isso se contrapõe ao que, em geral, se justifica nos casos de adoções malsucedidas,
pois é comum haver uma responsabilização da/o criança/adolescente pelo fracasso da adoção.
Os pretendentes a pais por adoção parecem se eximir da sua responsabilização com relação à
26 criança e das funções paternas e maternas como resposta ao insuportável com que se deparam.
Parece haver uma inversão dos papéis: candidatos a pais se demitem da responsabilidade na
relação e a deslocam para a criança (Silva, 2007).

A construção do vínculo por adoção se dá na resolução de vários conflitos relacionados com o


narcisismo, a falta, o diferente, o estranho. Algumas vezes, tais conflitos tornam-se insuportáveis,
pois o vínculo espelha, reflete e denuncia aspectos do psiquismo parental que deveriam
permanecer recalcados, por estarem ligados às perdas intrínsecas que motivaram a adoção. O
filho pode ser aquele que, com sua presença, lembra o ausente, seja quanto à infertilidade ou ao
filho consanguíneo imaginário não concebido.
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Outro aspecto evidenciado na construção deste caso refere-se à “Família de origem e família

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


por adoção”. Momentos de vulnerabilidade podem ser experimentados quando se evidenciam
fantasias e angústias ligadas às origens do filho, que darão a ele um lugar de estrangeiro no
imaginário parental porque, com frequência, suscitam nos pais por adoção fantasias ligadas à
devolução. Segundo Ghirardi (2016a), a alteridade do filho por adoção pode ser sentida por seus
pais como exigência impossível de ser elaborada devido às diferenças entre eles que dificultam o
estabelecimento da parentalidade no nível simbólico.

Questões relativas à origem apareceram em formas diversas durante a entrevista; e os pais


parecem se sentir ameaçados e inseguros com a possibilidade de que os filhos tenham contato
com a família consanguínea, sobretudo com a genitora. Salvador relata que esta tentou fazer
contato com eles via redes sociais virtuais, mas que nem eles nem os filhos quiseram manter
contato com ela. Disse que, se os filhos desejassem visitá-la, não saberia o que fazer, pois sente
que não consegue lidar com isso. Frida, Salvador e os filhos mantêm contato com uma das irmãs
que ainda reside com a genitora. Esse vínculo é aceito por todos e não são relatadas dificuldades
em relação a isso.

De acordo Weber (2010), mesmo não existindo contato entre os filhos e sua família de origem, a
relação com a família consanguínea está sempre presente nos casos de adoção, seja no vínculo
real ou no nível da fantasia. No caso de adoção de crianças maiores, isso é algo ainda mais
presente, pois houve uma convivência inicial com a família de origem. A criança terá de lidar com
a tarefa complexa de pertencer a duas famílias, com suas alianças inconscientes e identificações;
e a família por adoção precisa lidar com essa demanda buscando a elaboração.

Em geral a relação com a família de origem é permeada por fantasias; e estão presentes aspectos
que mobilizam angústias, insegurança e incertezas na família por adoção. Dentre eles, cabe citar
a dor dos pais por adoção pela sua incapacidade reprodutiva; o temor da influência da família
consanguínea sobre o filho; a possibilidade de perderem o filho para os genitores; a crença de que
se os filhos não conhecerem sua história, as influências da família de origem não ocorram; medo de
27 perder o domínio sobre a construção da personalidade do filho; e a ideia de que a história do filho
possa começar no encontro com a família por adoção, como se fosse possível apagar uma parte da
sua história. Os pais por adoção, muitas vezes, buscam apoio na crença de que podem proteger o
filho de suas origens; porém, não se dão conta de que existem dinâmicas inconscientes — portanto,
não manejáveis — na relação do filho com sua dupla filiação (Weber, 2010). Segundo Reis (2014), as
experiências vivenciadas de desproteção e fragilidade ficam inscritas no psiquismo — apesar de a
criança não ter recebido informações sobre sua origem.

Schettini Filho (2009) argumenta que muitas dificuldades enfrentadas nos casos de adoção
são resultantes da ausência da incorporação do filho, de sentir, no seu todo, uma parte do todo
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familiar. No processo de construção vincular na adoção, algumas dificuldades no relacionamento,


inesperadas e contrárias ao desejo, podem ser atribuídas a uma hereditariedade patológica. Como

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


aponta Ghirardi (2016a), vários aspectos são atribuíveis ao “sangue ruim” herdado da família de
origem e que justificariam o indesejável da criança, aquilo que a distancia dos ideais traçados
pelos pais. Isso pode gerar a impossibilidade de incluí-la imaginariamente como filho. Sem poder
encontrar no filho o familiar, ele é visto como aquele que revela o que deveria ser omitido e
recalcado, um objeto heterogêneo.

Reis (2014) diz que os mecanismos de identificação e estranhamento interferem na construção dos
vínculos familiares por adoção. Os pais podem rejeitar a criança que apresenta comportamentos
que os perturbam e associar expressões de agressividade e/ou de sexualidade a problemas
advindos da família de origem, buscando na herança biológica justificativas para a angústia
provocada por não saber o que ocorre com seu filho; ou podem inferiorizar a imagem dos genitores
em uma tentativa de se afirmarem como pais verdadeiros.

Lidar com as questões relativas às origens, ainda que represente um desafio para as famílias por
adoção, pode funcionar como refúgio ou defesa, pois possibilita que os pais por adoção projetem,
na família de origem, seus sentimentos de incapacidade, culpa, insegurança e frustração; ou seja,
que atribuam tais sentimentos a algo externo a eles (Reis, 2014).

Com relação à ideia de herança patológica, destaco o momento em que Frida, em seu relato,
utilizou o mesmo termo para se referir à genitora das crianças e ao seu filho Bruno, dizendo, em
momentos distintos, que ambos tinham a característica de manipular as pessoas. Ela demonstrou
o temor de que ele seguisse os passos da família consanguínea, falando sobre um episódio em que
usou uma faca contra seus irmãos em uma briga: “Ele tinha muita dificuldade para perder. Uma
vez pegou uma faca para acertar o irmão. Cheguei a pensar: ‘meu Deus, será que ele vai seguir um
caminho ruim?’”.
De acordo com Ghirardi (2016b), os temores e fantasias dos adotantes relativos à origem interferem
nos modos como a relação com o filho será experimentada. O romance familiar é uma construção
28 imaginária que oferece referências sobre quem somos. Toda criança imagina ser advinda de
outros pais quando ocorrem os conflitos inconscientes decorrentes da sensação de estar sendo
negligenciado. A fantasia de ser adotado é parte intrínseca do desenvolvimento infantil. Nas
famílias por adoção, o romance familiar tem complexidade maior, uma vez que, de fato, o filho
por adoção tem suas origens em outro par parental. Ghirardi (2016a) esclarece que, desse modo,
a criança suscita reações ambíguas, pois, como estrangeira, traz uma alteridade radical. Com
frequência, a criança é estrangeira quanto às origens construídas pelas fantasias e pelos desejos
dos adotantes; ela traz consigo experiências singulares de tempo e lugares externos à família por
adoção. Assim, os pais podem ter dificuldade de acolher e aceitar a alteridade da criança e de se
identificarem com ela como filho ou filha.
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Para Reis (2014), há necessidade de a família por adoção lidar com sentimentos intensos a fim de

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evitar a atuação ou projeção de suas fantasias inconscientes e seus sentimentos de raiva sobre
o filho. Na base da maioria das adoções, existe uma história de rompimento precoce de vínculos
afetivos; e a criança necessita ter um tempo para aprender e se adaptar à nova família e, então,
autorizar-se a ser filho deles. Mendes (2007) aponta a necessidade de compreender as angústias
presentes relacionadas com a reatualização das perdas vividas antes, assim como das ansiedades
ante a inserção no novo ambiente familiar.

A maneira como a adoção de crianças maiores é vivenciada pode facilitar ou dificultar as


possibilidades de elaborar psiquicamente as mudanças significativas. Entender esse processo
é fundamental para que o filho por adoção possa integrar a filiação consanguínea e adotiva na
configuração de sua identidade e para que os pais venham contribuir na elaboração de traumas
decorrentes das rupturas anteriores através de uma base segura na nova família.

Com a apresentação do tema da adoção na lógica das construções vinculares, o objetivo de


pesquisa – compreender a construção de vínculos familiares na adoção de crianças maiores
(segundo a perspectiva das famílias participantes da pesquisa) – pôde ser alcançado, enquanto
a análise revelou pontos importantes. O caso analisado mostrou que mecanismos inconscientes
mobilizaram âmbitos da adoção: questões relacionadas com o narcisismo atacado pela infertilidade
conduziram os pais da impotência ao heroísmo, mudando os rumos do desejo que se delineava de
início, sem que os próprios protagonistas pudessem compreender. As reflexões feitas acenaram
para a trama complexa dos vínculos por adoção, em que as pulsões narcísicas se interseccionam
em busca de resolução como resposta à angústia do desamparo, tanto dos pais quanto dos filhos.

A busca do gozo, através da filiação, esbarra no estranho presente na relação e nas idealizações
existentes, expressando-se em dificuldades de investimento libidinal e intempéries na adoção
psíquica e simbolização da filiação. A dificuldade da adoção simbólica do filho o coloca como objeto
duplamente des-investido, sem registro simbólico na família de origem, sendo o filho que sobra.
Também não tem registro simbólico na família por adoção, a qual se vê impossibilitada de adotar
29 o estranho e inseri-lo na linha geracional.

No desenvolvimento deste trabalho, a importância da díade famílias–equipes — diretamente ligadas


ao processo de adoção — foi se anunciando de modo não periférico. Destacou-se a relevância
de reconhecer as exigências inconscientes e subjetivas que afetam os sujeitos e o processo de
adoção. Para tal, o apoio do psicólogo emerge como fundamental para que os fatores emocionais,
conscientes e inconscientes, possam ser considerados e dar à família condições de sobreviver
às ameaças de ruptura e pulsões agressivas, e de elaborar o estranhamento na constituição do
vínculo. Outras equipes de atenção à família igualmente foram consideradas fundamentais como
sustentáculos da família por adoção: equipe jurídica (juiz, psicólogos e assistentes sociais); equipe
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das instituições de acolhimento; profissionais da área da saúde e educação – numa palavra, toda
e qualquer instituição direta ou indiretamente ligada às famílias e à temática da adoção que se

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constitui na rede.

Por fim, a construção de uma nova cultura da adoção de crianças maiores é desafio que se funda
em aspectos variados. Apenas conhecer informações que esclarecem o tema não é suficiente para
superar preconceitos. Faz-se necessário explorar aspectos inconscientes imbricados, considerar
as representações relativas à adoção. Para tanto, são imprescindíveis outros estudos fundados
na psicanálise como método de investigação, pois revelam que conteúdos teóricos que podem ser
desvelados, expõem o que do tema ainda é impensado e carente de representação. A própria escuta
das famílias, propiciada pela pesquisa, favorece o contato dos participantes com suas fantasias
e concepções, e as teorias e discussões construídas podem gerar no leitor um posicionamento
reflexivo, o que favoreceria transformações progressivas no imaginário coletivo relativo à adoção.
Ainda, a rede de atenção às famílias precisa estar fortalecida e instrumentalizada para que possa
acompanhar a adoção em suas especificidades antes, durante e após o processo.

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AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


SUMÁRIO

32 A ADOÇÃO VIVIDA COMO CISÃO:


PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR
DE NUNCA DEIXE DE ACREDITAR,
DE CHRISTINA RICKARDSSON

AUTORIA
RAFAEL GUIMARÃES TAVARES DA SILVA
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários (Literaturas
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Clássicas e Medievais) pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre e


bacharel pela mesma instituição.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: gts.rafa@hotmail.com.

RESUMO
Partindo da hipótese de que uma cisão fundamental perpassa a autobiografia de
Christina Rickardsson – atravessando os mais diversos níveis de sua narrativa (ação
narrada e foco narrativo, chegando até à constituição da própria personagem-narradora)
–, pretendemos sugerir que essa estratégia busca problematizar alguns aspectos do
processo de adoção vivido pela autora. Tal como é típico de obras produzidas por pessoas
colocadas à margem da sociedade, o livro é capaz de assumir variadas perspectivas sobre
a questão, apresentando um quadro com múltiplas nuances sobre as ações. Ademais,
é possível afirmar que a própria narrativa aponta para certas vias por meio das quais a
cisão, ou antes, as várias cisões implicadas por todo processo de adoção possam vir a
serem desfeitas. As buscas pela mãe biológica, pela língua materna e pelo país natal
constituem algumas das vias sugeridas por essa autora, que nunca parou de caminhar.
PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia; Escrita de si; Desconstrução; Crítica literária;
Literatura brasileira.
Christina Rickardsson é a autora de uma autobiografia publicada em 2016 na Suécia com o título
de Sluta aldrig gå, expressão que poderia ser traduzida livremente para o português como “nunca
33 pare de caminhar”. Obra de estreia, o livro tornou-se um best-seller na cena literária da Suécia
(Wallin, 2017) e despertou um vivo debate acerca de muitos dos temas delicados trabalhados por
sua narrativa, como a problemática do abandono e da adoção, além das várias formas de opressão
vigentes num mundo de tamanha desigualdade social como o que é descrito na obra.

Traduzida para o português com o título de Nunca deixe de acreditar e lançada no Brasil pela
Editora Novo Conceito (com tradução de Fernanda Sarmatz Åkesson), a obra obteve ressonância
internacional – tendo recebido pouco depois uma tradução também para o inglês1 – e expandiu
ainda mais os horizontes dos debates em torno das problemáticas suscitadas por ela. Ao ser
escolhida como obra de referência de um evento da magnitude que tem o VII Congresso Nacional
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

de Psicanálise, Direito & Literatura (FAFICH-UFMG), intitulado, na sua edição de 2018, “As múltiplas
faces da adoção”, a narrativa de Rickardsson coloca-se num entroncamento de muitas vias para a

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


reflexão crítica acerca de questões sociais, literárias, linguísticas, psicológicas e jurídicas.

Sem pretender avançar um catálogo exaustivo dos tópicos que poderiam ser desenvolvidos a
partir dessa obra, gostaria de mencionar pelo menos os seguintes: de uma perspectiva social,
envolvendo ainda os campos da psicologia e do direito, as complexidades relacionadas a um
processo de adoção, bem como a perversidade das estruturas opressivas de uma sociedade
classista, machista e racista; de uma perspectiva literária, a questão da autobiografia, da memória
e da narração como vivência escritural (na linha do que é chamado por Conceição Evaristo de
“escrevivência”); de uma perspectiva linguística, a questão da língua materna (e da possibilidade
de privação dela), além da importância da aquisição linguística para a constituição do modo de
ver o mundo de cada pessoa e os problemas envolvidos por toda a problemática da tradução (ou
da intraduzibilidade). Como se vê, a multiplicidade de temas suscitados por essa obra é bastante
vasta e minhas observações aqui não têm a pretensão de constituir uma leitura sistemática do
livro de Christina Rickardsson em toda a sua complexidade, mas oferecer apontamentos que
suscitem algumas reflexões a partir de sua leitura.

Para colocar em poucas palavras e da forma mais direta, minha hipótese interpretativa é que
essa obra se estrutura sob o signo da cisão. Na sequência de meu argumento, pretendo modalizar
esse juízo inicial aparentemente tão peremptório – e o farei a partir da sugestão de que existe
algo que escapa à lei de formalização dessa estruturação básica –, contudo, por ora, gostaria
de deixar claro o que entendo quando afirmo que a obra se estrutura em torno de tal cisão. No
nível narratológico, isso é indicado pela alteração constante entre capítulos em que se assume

1. A tradução para o inglês, publicada pela AmazonCrossing, em 2018, foi feita por Tara F. Chace.
uma narrativa de fatos no presente da narradora na Suécia (isto é, a partir de 2015, quando
Rickardsson se decide por buscar as raízes de sua família biológica), mas também capítulos
34 em que se abordam as lembranças do passado no Brasil, desde a infância numa caverna nas
redondezas de Diamantina, passando pela vida nas ruas de São Paulo até a entrada num orfanato
e sua consequente adoção por uma família sueca (entre meados da década de 1980 e o início
da de 1990). No nível temático – envolvendo questões sociológicas e linguísticas, por exemplo
–, a realidade da criança brasileira, exposta às mazelas sociais de uma existência miserável,
ainda mais quando à opressão econômica somam-se ainda as de raça e gênero,2 contrapõe-se
a realidade da jovem sueca, crescendo num estado de bem-estar social, com relativo conforto
material. Nesse mesmo sentido, paradoxalmente, a mais viva impressão de pertencimento está
presente nas memórias da criança brasileira (independentemente de quão miserável sua infância
tenha sido), enquanto a experiência da jovem sueca é atravessada pelo constante sentimento de
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estar fora do lugar na nova família e no novo país (ambos tão bem estruturados). Outras formas
de cisão poderiam ser facilmente detectadas ao longo do livro, mas posso me dar por satisfeito

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


com um último exemplo bastante ilustrativo. No prólogo, a autora afirma: “Tenho duas pessoas em
mim: uma é a Christina de Norrland e a outra é a Christiana do Brasil. Nem sempre foi uma tarefa
fácil juntar essas duas” (Rickardsson, 2018, p. 6). Além disso, nos agradecimentos ao final do livro
a assinatura que consta é: “Christina & Christiana” (Rickardsson, 2018, p. 254).

O livro Nunca deixe de acreditar, portanto, é escrito sob o signo de uma cisão. Aqui é possível colocar
a seguinte pergunta: de onde vem tal cisão? A julgar pela estrutura do livro e por muito que afirma a
narradora, ela viria do próprio momento da adoção. Cisão constitutiva de todas as demais cisões, a
adoção surge da perspectiva da narradora – mesmo reconhecendo a posteriori o impacto positivo
que a mesma viria a ter para garantir sua sobrevivência e seu desenvolvimento futuro – sob a
forma de uma violência infligida às várias pessoas involuntariamente envolvidas no processo: em
primeiro lugar, às crianças, que – quando consultadas – são conduzidas inadvertidamente a fazer
a opção esperada delas; em segundo lugar, à mãe biológica, abertamente contrária à ideia de se
ver separada de seus filhos. A história infelizmente ainda é atualíssima, como indicam os recentes
casos de sequestros de bebês – separados de suas mães biológicas sob a alegação de que as
mesmas seriam inaptas à maternidade, dado um pretenso histórico como usuárias de drogas 3 . No
caso da mãe de Christiana, a acusação era de algum tipo de distúrbio mental que a impossibilitaria
de cuidar de seus filhos, mas – ainda que a própria narradora pareça enfim acreditar que a mãe

2. Para detalhes sobre a teoria da interseccionalidade, segundo a qual diferentes formas de opressão se combinam e se
potencializam, tal como demonstrado a partir da história sócio econômica dos E.U.A. Cf. Davis, 2016.
3. A título de exemplo, que se leve em conta a situação verificada em hospitais e maternidades públicas de Belo Horizonte
(Lagôa, 2017). Segundo a informação desse artigo: “O acolhimento compulsório em abrigos de BH começou em 2014, quando
o Ministério Público fez uma recomendação às maternidades públicas que indicassem as mães usuárias de drogas ao Juizado
de Infância e Juventude. Em julho de 2016, o juiz da Vara, Marcos Flávio Lucas Padula, estipulou o prazo de 48 horas para a
comunicação à Justiça.”
pudesse de fato ter apresentado algum tipo de desvio dessa ordem 4 – a verdade é que, tanto
num caso, quanto nos outros, o fator determinante parece ter sido a situação de desprovimento
35 material e, portanto, de vulnerabilidade social e jurídica dessas mulheres.

Levando em conta tais considerações, é possível afirmar que a violência do processo de adoção
se faz presente sobretudo da perspectiva dos que parecem não ter opção efetiva no que diz
respeito ao mesmo. Aqui vale a pena atentar para uma curiosidade linguística de valor bastante
sintomático: a palavra “adoção” provém de dois termos do latim ad e optio, já sendo usada entre
os romanos para nomear o processo por meio do qual um cidadão optava por acolher alguém no
seio de sua família, reconhecendo-o como membro dela (Ernout & Meillet, 1951, p. 854). No caso
do processo de adoção de Christina, a julgar pelo que é narrado no livro, os participantes mais
ativos no processo foram, por um lado, a diretora do orfanato, e, por outro, o casal sueco que viria
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a se tornar sua família adotiva. Vale notar que a narradora não salienta esse aspecto violentador
do processo – reconhecendo, inclusive, muitas vezes as boas intenções dessas pessoas e sua

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


dívida para com tudo o que lhe proporcionaram –, mas é inegável que a adoção é representada
como uma forma de violência responsável pela cisão que perpassa o livro e a própria vida da
autora5 . Suas consequências são tão profundas que – mesmo tendo vivido no Brasil até os oito
anos de idade e guardado muitas memórias vivas dessa época – Rickardsson (2017, p. 52) chega a
se esquecer da própria língua materna.

A cisão estrutural dessa obra, contudo, não é tão radical quanto poderia parecer a princípio.
Em primeiro lugar, os traumas de Christiana no Brasil acompanham-na durante toda a sua vida
na Suécia. Transbordando para muito além dos instantes imediatos em que foram vividos num
contexto de miséria, esses traumas – advindos de violência sexual, policial ou social – fizeram-
se constantemente presentes em sua “nova” vida, como indicam alguns dos problemas de
adaptação narrados por ela 6 . Muitas das questões trabalhadas por Christina em sua vida adulta

4. Nas palavras da autora: “Acima de tudo, acho que sempre desconfiei que o orfanato tinha razão em dizer que mamãe era
doente. Eu talvez tenha me negado, já adulta, a acreditar que ela fosse doente, simplesmente por lealdade a ela. Sei que com oito
anos de idade não tinha condições de entender toda a situação, mas, quanto maior eu ficava, mais me empenhava em negar a
condição de mamãe, apesar da minha intuição me dizer o contrário.” (Rickardsson, 2018, p. 224).
5. Isso fica evidente nas próprias palavras do Epílogo do livro: “Não posso dizer que me sinto zangada por ter sido adotada,
mas me sinto incomodada por nunca ter tido a oportunidade de me despedir, porque nunca me explicaram o que uma adoção
significava, antes que fosse tarde demais para que eu fizesse minha própria escolha. Fico zangada que a minha mãe não tenha
recebido qualquer tipo de ajuda, que tenha sido deixada nas ruas, à sua sorte.” (Rickardsson, 2017, p. 247).
6. As passagens em que se descrevem diferentes formas de violência são, por exemplo: pp. 27-28 (violência de ordem econômico
social); pp. 38-40 (pedofilia); pp. 44-8 (violência sexual e policial); pp. 72-82 (violência policial na prática do extermínio infantil).
Abordando a difícil questão da adaptação às novas circunstâncias em que se encontrava, a autora afirma o seguinte: “Tanta
coisa era diferente na Suécia. No meu novo país, meus pais me alertavam para não falar e não confiar em pessoas estranhas. No
Brasil, mamãe me alertava para ter cuidado com a polícia, pois nem todos policiais eram confiáveis. O problema era saber em
quem se podia confiar e de quem se devia fugir. Então, eu fazia o que achava mais lógico, corria de todos os policiais que eu via.”
(Rickardsson, 2017, p. 188).
são consequências das memórias que trazia dessas experiências da infância. A própria ânsia
apresentada por ela – e que é o fio condutor da narrativa e da ação – de recuperar o contato com
36 suas raízes também indica de que modo certa interseção entre essas realidades aí se insinua
pouco a pouco.

Além disso, um índice ainda mais característico do desejo expresso pela narradora de desfazer
tal cisão se dá a ver na própria escolha da palavra “mamãe”. Optando por mantê-la assim, em
português, em sua narrativa sueca – bem como em sua versão para o inglês –, a palavra torna-se
uma espécie de “nome próprio”, constituindo um elemento verdadeiramente intraduzível para o
português. Afinal, como marcar a diferença inscrita por essa opção ao longo de toda uma narrativa
em língua estrangeira, quando ela tem que passar sob certa indiferenciação na versão para o
português? A título de exemplo, comparem-se aqui esses dois trechos, narrando o início da vida
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dessa “menina da caverna”:

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Segundo a minha certidão de nascimento brasileira, eu nasci no dia 30 de abril
de 1983. Ao mesmo tempo em que o Rei Carlos Gustavo XVI comemorava seu
trigésimo sétimo aniversário, eu respirava pela primeira vez em Diamantina,
do outro lado do Oceano Atlântico, no Brasil. Quando eu era pequena, mamãe
costumava me contar que eu tinha nascido na floresta, que meu pai era um índio
e, portanto, eu era meio indígena. Se isso é verdade, não sei. (Rickardsson, 2017,
p. 14, tradução nossa) 7

O detalhe pode parecer trivial, mas na sequência de minha argumentação pretendo sugerir a
importância do significado construído pelo constante retorno dessa palavra estranha e estrangeira
– “mamãe”, escrita em português – no seio da narrativa em sueco ou em inglês. Além disso, esse
ponto poderia dar margem a certas considerações laterais, ainda que, a meu ver, imprescindíveis a
uma problematização criteriosa das questões de tradução colocadas por esse livro. Para ficar aqui
no mais evidente, que se pense no título da obra: Sluta aldrig gå, expressão que – como já disse
– poderia ser traduzida livremente para o português por algo como “nunca pare de caminhar”. A
tradutora para o inglês, Tara F. Chace, optou pela literalidade da expressão, Never Stop Walking,
enquanto a tradução brasileira – assinada por Fernanda Sarmatz Åkesson – adotou uma versão
mais interpretativa, com o título Nunca deixe de acreditar.

Aqui é importante considerar que as fórmulas em sueco e em inglês, cujo sentido conotativo
evidentemente traz uma mensagem positiva (de conteúdo motivacional), têm um sentido

7. No original: According to my Brazilian papers, I was born on April 30, 1983. That was also the thirty-seventh birthday of the
king of Sweden, on the far side of the Atlantic from Diamantina, Brazil, where I took my first breaths. When I was little, Mamãe
(the Portuguese word for mother) used to tell me that I was born in the woods, that my father was an Indian, so I was half-Indian.
I don’t know whether this is true. (Rickardsson, 2018, p. 18)
denotativo de importância inquestionável ao longo do livro: em certos trechos de sua narrativa,
Rickardsson fala da necessidade de continuar em movimento – no sentido literal da expressão – a
37 fim de que alguma chance de sobrevivência pudesse se dar8 . E mais: a narradora afirma que essa
lição lhe foi ensinada por sua “mamãe” desde a mais tenra idade. Tomo a liberdade de citar aqui
um trecho inteiro – o primeiro em que a lição da mãe é mencionada –, a fim de que se compreenda
a importância dessa passagem, em termos narratológicos e autobiográficos, para a definição da
própria obra:

É incrível o que o amor dos pais pelos filhos é capaz de fazer. Se não fosse por
mamãe, durante aquele período da minha vida, eu nunca mais sairia do estado
de apatia em que me encontrava. Provavelmente teria me transformado em um
fantasma extremamente frágil, vagando pelas ruas. Mamãe me beijou na testa,
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no rosto e chorou junto comigo.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


- Christiana, a vida é difícil e injusta muitas vezes, mas nunca fique parada. Siga
sempre em frente – ela me disse.

Lembro que quis saber o porquê e mamãe respondeu:

[...]

- Um dia você vai entender e, até que chegue esse dia, me prometa que sempre
vai seguir em frente, doa o que doer. Sempre em frente!

- Mas para onde devo ir, mamãe?

- Isso não tem importância. Só continue seguindo em frente, está bem? –


Mamãe se levantou, estendeu a mão para mim, que segurei, e fomos embora
dali. (Rickardsson, 2017, pp. 81-82).

Como se vê, a dimensão física da expressão tomada ao pé da letra é responsável por conceder ao
corpo e ao seu movimento uma importância inexistente em uma frase abstrata como “nunca deixe
de acreditar”. Nesse sentido, a tradução brasileira violenta uma faceta importante do pensamento
de Rickardsson ao adotar uma interpretação abstrata da expressão, abandonando assim seu
aspecto concreto, que é tão importante para a narrativa e tão sugestivo para as possíveis conexões
com um pensamento filosófico sobre o corpo e o caminhar9. Esse problema seria facilmente

8. Algumas dessas passagens seriam: p. 81; p. 229; p. 252.


9. Tomo a liberdade de citar trechos de textos filosóficos que me acorrem à memória e que reforçariam uma interpretação como
contornável, bastando que se optasse por uma tradução mais direta – e igualmente dotada dos
sentidos conotativo e denotativo – como: “nunca deixe de caminhar” ou “jamais pare de andar”.
38
Terminada essa digressão, acredito ser necessário abordar um ponto fundamental –ainda com
implicações sobre certas questões tradutológicas – que consiste na opção pela palavra “mamãe”
(ou “mãe”) em português, ao longo de todo o texto sueco, bem como de sua versão para o inglês.
Impulso afetivo de tentar se reapropriar daquilo de que fora privada – não apenas da mãe brasileira,
mas também de sua língua materna, isto é, da língua brasileira que ela veio a perder –, a decisão
de manter essa palavra assim, intrusa ao sueco, estrangeira e estranha, aponta já para o desejo de
dissolver a cisão – ou melhor, as cisões – de sua narrativa. Se a perda da mãe é constitutiva desse
relato autobiográfico, a perda da língua materna – igualmente constitutiva – aparece como fonte de
angústia em mais de um momento para Rickardsson, chegando, inclusive, a se revelar um dos maiores
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temores que ela vem a enfrentar na hora de se resolver a ir ao Brasil em busca de suas origens10 .

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


O retorno constante dessa palavra – estranhamente familiar ao ouvido daquela que a cultivara
em sua memória, embora tenha se esquecido do próprio idioma de que fazia parte – aponta para
o reencontro final que vai unir mais uma vez, ainda que sem plenitude, as várias partes cindidas
dessa narrativa: não apenas a filha à dona Petronilia (sua mãe biológica), ou Christina e sua língua
materna, mas também Christiana e sua mãe adotiva, bem como as diferentes temporalidades
narrativas da ação no presente e suas memórias sobre o passado. Da mesma forma, a reunião
das duas partes cindidas da narradora-personagem (Christina – Christiana) na assinatura aposta
ao final do livro é prova maior do efeito de espectralidade que se esconde por trás da recorrência
dessa palavra a um só tempo tão estranha e tão familiar que é “mamãe”.

a que aqui proponho: “Quando escrevo sentado, administro pensamentos, ideias, movimentos de pensamentos, que me ocorrem
sempre quando estou de pé, fazendo outra coisa, andando, dirigindo, correndo. Na época em que eu corria (parei agora), era
então que as coisas mais organizadoras, as ideias me ocorriam. Aconteceu-me sair para correr com um papel no bolso para
anotar. Em seguida, quando me sentava à minha mesa [...], eu administrava, explorava coisas furtivas, cursivas, algumas vezes
fulgurantes, que me ocorriam sempre na corrida. Logo tomei consciência disso, era de pé que aquelas coisas boas podiam me
acontecer.” (Derrida apud Peeters, 2013, p. 518); “A vida sedentária é justamente o pecado contra o santo espírito. Apenas os
pensamentos andados têm valor.” (Nietzsche, 2006, p. 12; Crepúsculo dos deuses, I.34); “O que mais lamento nos pormenores
da minha vida de que me esqueci, é não haver feito um diário das minhas viagens. Nunca pensei tanto, nunca vivi tanto, nunca fui
tanto eu, se assim ouso exprimir-me, como nas que fiz só e a pé. Andar tem qualquer coisa que me anima e aviva as ideias: quase
não posso pensar quando estou parado; preciso pôr o corpo em movimento para que o espírito o esteja também.” (Rousseau,
1964, p. 163).
10. A título de exemplo, que se leve em conta a seguinte passagem: “Tenho medo das consequências... é difícil reconhecer,
porque é um pensamento egoísta. Como o fato de ela estar viva afetará a minha vida? Como está mamãe? Onde ela mora? Em
que condições se encontra? Será que precisa de tratamento médico? Eu terei condições financeiras para ajudá-la, se for o caso?
Como faremos para tudo funcionar se ela vive no Brasil e eu tenho a minha vida na Suécia? Como vamos nos comunicar, quando
eu já não falo português e ela não sabe uma palavra em sueco? O que vai acontecer quando Rivia não estiver por perto para
traduzir? Imagine se o nosso reencontro não nos proporcionar sentimentos positivos, mas apenas negativos?” (Rickardsson,
2017, p. 52). Outros trechos seriam: p. 69; p. 168; p. 195; p. 221.
Vale ressaltar que, tal como sugeri acima, essas uniões nunca são colocadas como plenas. Em
primeiro lugar, porque a narradora ainda não se sente efetivamente confortável com a mãe
39 biológica e sua família ao fim da narrativa:

Sinto uma grande satisfação, mas muitos pensamentos giram na minha cabeça.
As coisas não são tão fáceis agora. Tenho plena consciência de que muitos
problemas foram solucionados com a viagem, mas sei que outros surgirão como
consequência. Como vou conseguir me comunicar com a minha mãe, se quero
ter mais contato com ela? Como vou mantê-la financeiramente? Será que a
família espera que eu faça isso? É isso o que espero de mim mesma? Como vou
manter contato com a família? A minha vida é aqui, na Suécia, pelo menos por
enquanto. (Rickardsson, 2017, p. 244).
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Além disso, o desejo de reaprender a língua materna não passa de um plano futuro11 . Seria possível

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


problematizar inclusive a forma como se dá a reconciliação entre a narradora e sua mãe adotiva,
posto que esse movimento só ocorre à beira de sua morte12 . Finalmente, cumpre ressaltar que
Christina e Christiana não se dissolvem numa espécie de síntese harmoniosa, pois conforme a
própria narradora:

Fico com a sensação de ter dois lares, pertencer a dois mundos e ser duas
pessoas que agora se entrelaçam em uma só. Eu não creio que a vida, realmente,
seja a arte de encontrar a si mesmo. Para mim a vida é a arte de criar a si mesmo,
cada um com a possibilidade de criar a sua própria realidade. Eu me questiono,
então: quem quero ser? (Rickardsson, 2017, p. 244)

Diferentes formas de tensão não resolvida, como cicatrizes impossíveis de serem apagadas ou
esquecidas, permanecem na superfície desse corpus. Eminentemente aporético, o livro não propõe
respostas fáceis às questões suscitadas e trabalhadas por ele, mas constrói uma narrativa em que
uma série de vislumbres interessantes se dão a ver, a partir dos quais os leitores passam a ocupar
uma posição de onde podem problematizar de forma mais nuançada e cuidadosa os diferentes
aspectos possivelmente envolvidos em realidades tão complexas quanto as que são aí descritas.

11. “No meio da refeição, fico pensando que estou ali com mamãe e com a minha família, mas não falo português. No mesmo
instante decido que vou começar a estudar o idioma assim que voltar para casa, pois é muito estranho que uma língua possa
simplesmente desaparecer da nossa mente.” (Rickardsson, 2017, p. 221). Após o reencontro com sua família biológica, a narradora
volta para a Suécia e, após um telefonema ao Brasil, afirma: “É inacreditável! Acabei de falar com a minha mãe no Brasil. É algo
que fantástico o que aconteceu, temos contato agora! Rivia sorri e me diz que está na hora de eu começar a estudar português.”
(Rickardsson, 2017, p. 244).
12. Tal como narrado no capítulo “Com mamãe na Cidade dos Anjos” (Rickardsson, 2017, pp. 208-216).
Nesse sentido, cumpre ressaltar um aspecto comum às obras artísticas realizadas por figuras
marginalizadas pelo sistema hegemônico de poder: a multiplicidade das perspectivas sociais
40 que elas podem assumir. Abordando esse conceito de “perspectiva social”, a estudiosa Regina
Dalcastagnè sugere que ele estaria relacionado ao fato de que a experiência, a história e o
conhecimento de pessoas ocupando diferentes posições sociais seriam radicalmente diferentes,
já que derivariam dessas posições num determinado arranjo econômico social.

Assim, mulheres e homens, trabalhadores e patrões, velhos e moços, negros e


brancos, portadores ou não de deficiências, moradores do campo e da cidade,
homossexuais e heterossexuais vão ver e expressar o mundo de diferentes
maneiras. Mesmo que outros possam ser sensíveis a seus problemas e solidários,
nunca viverão as mesmas experiências de vida e, portanto, enxergarão o mundo
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social a partir de uma perspectiva diferente. (Dalcastagnè, 2007, p. 21)

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As cisões que perpassam a autobiografia de Rickardsson constituem oportunidades para que a
narradora aborde as mais diversas situações dos mais diversos pontos de vista – não apenas
como a sueca educada e bem alimentada que ela veio a se tornar, mas também como a criança
brasileira, pobre e tantas vezes violentada, que ela havia sido (e, de certa forma, ainda era). De uma
dimensão retórica, esse aspecto da narrativa apresenta dois pontos fortes, embora a princípio
pudessem parecer mutuamente excludentes: trata-se de uma história autêntica, abordando
eventos vivenciados pela própria autora, que ocupa, portanto, o lugar de fala de uma vítima de
várias formas de opressão13; por outro lado, revela-se ainda uma narrativa com apelo também a
pessoas de classes sociais mais afortunadas, na medida em que aí estão presentes os elementos
capazes de levá-las a identificar-se com a situação de conforto econômico vivido pela narradora
num país de bem-estar social como é o caso da Suécia. Promovendo uma ponte entre as duas
realidades vivenciadas pela autora, essa narrativa multiplica as perspectivas de mundo a partir
das quais seus leitores podem vislumbrar sua realidade social e cumpre assim uma das principais
funções da literatura: revelar o mundo sob um olhar diferente.

Nunca deixe de acreditar é um livro que fala a muitas pessoas – adotando algumas das diferentes
perspectivas sociais necessárias à compreensão dos fatos narrados – e suscita profundas
reflexões sobre temas tão complexos e atuais como o abandono, a adoção, o preconceito, o
machismo, o racismo, a opressão e a hospitalidade. O livro destaca-se ainda como obra literária
que se preocupa com a importância de uma constante reflexão crítica, na medida em que evita
respostas fáceis e aponta as inevitáveis aporias a serem enfrentadas por quem queira percorrer

13. O conceito de “lugar de fala”, tal como sugerido por Djamila Ribeiro (2017, p. 86), pode ser entendido em sua relação com
uma “localização social” a partir da qual se torna possível “debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes
na sociedade”.
vias aparentemente tão inviáveis quanto as que são narradas por ela. A tais pessoas é preciso dizer,
aqui, na companhia de Chris, e reiterar constantemente: “siga sempre em frente!” (Rickardsson,
41 2017, p. 252).

REFERÊNCIAS

Dalcastagnè, R. (2007). A auto-representação de grupos marginalizados: tensões e estratégias na


narrativa contemporânea. Letras de Hoje, 42(4), 18-31.

Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. (H. R. Candiani, Trad.). São Paulo: Boitempo.

Ernout, A., & Meillet, A. (1951). Dictionnaire étymologique de la langue latine. Histoire des mots.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Paris: Librairie C. Klincksieck.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Lagôa, T. (2017). Mulheres protestam em BH contra medida judicial que tira bebês de mães usuárias
de drogas. Jornal Hoje em dia. Recuperado de https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/
mulheres-protestam-em-bh-contra-medida-judicial-que-tira-beb%C3%AAs-de-m%C3%A3es-
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Nietzsche, F. (2006). Crepúsculo dos ídolos ou Como se filos ofa com o martelo. (P. C. de Souza,
Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.

Peeters, B. (2013). Derrida: biografia. (A. Telles, Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando.

Rickardsson, C. (2017). Nunca deixe de acreditar: das ruas de São Paulo ao norte da Suécia.
(Fernanda Sarmatz Åkesson, Trad.). Ribeirão Preto: Novo Conceito Editora.

Rickardsson, C. (2018). Never stop walking: a memoir of finding home across the world. (Tara F.
Chace, Trad.). Seattle: AmazonCrossing.

Rousseau, J. J. (1964). Confissões. (Fernando Lopes Graça, Trad.). Lisboa: Portugália Editora.

Wallin, C. A menina pobre que viveu em caverna no Brasil e virou escritora de sucesso na Suécia.
BBC Brasil. Recuperado de https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39203681.
SUMÁRIO

42 A CHAMADA ADOÇÃO
TARDIA E A PSICANÁLISE
LAPLANCHEANA: BREVES
ANOTAÇÕES

AUTORIA
CAROLINA SPYER V. ASSAD
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMINAS,
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Estuda psicanálise.
CONTATO: caspyer@hotmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
Este trabalho investiga a chamada adoção tardia. O faz com propósito de coletar
possíveis elementos que contribuam para a dissolução da resistência de adultos
para que adotem crianças com mais tempo de vida, buscando esses elementos
através do estudo da formação do aparelho psíquico pela teoria laplancheana.
Ao fazê-lo, localiza nessa teoria a ausência de indicativos de que a adoção de
uma criança de mais de três anos seja um processo adotivo com menos chance
de sucesso. Finalmente, aponta o acompanhamento de uma equipe de suporte
à adoção como sendo elemento fortalecedor da qualidade do processo adotivo.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção tardia; Psicanálise laplancheana.
INTRODUÇÃO

43 Cerca de quarenta e três mil adultos, entre solteiros e casais, estão cadastrados para adotar um
ou mais filhos no Brasil. Paralelamente, menos de oito mil crianças e adolescentes aguardam para
constituírem uma família não biológica e, não raro, esperam por longos anos e seguem sem a
acolhida de uma família adotiva. Os dados causam espanto ao evidenciarem que, ainda que o
número de adultos aparentemente dispostos a realizar a adoção seja cinco vezes maior que o
número de crianças e adolescentes a serem adotados, crianças e adolescentes permanecem
sem uma família adotiva. A análise do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) explica parte desse
desarranjo pela variável idade. Isso por que

apenas 5% dos cerca de 43 mil candidatos a pai e mãe adotivos aceitam crianças
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de nove anos de idade ou mais. No entanto, é nesse grupo que estão mais de
60% das crianças aptas a serem adotadas em abrigos no Brasil. (Deutsche Welle,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


2018)

Diante dessa problemática, a chamada adoção tardia – adoção de filhos de mais de três anos
de idade – desponta como alvo de interesse desta pesquisa. A averiguação da existência de
uma forte aversão de pais e mães a adotarem crianças e adolescentes com mais tempo de vida
convoca-nos a buscar elementos que contribuam para a dissolução dessa resistência, mais
especificamente que contribuam para a discussão acerca do aspecto da idade mais avançada
de crianças e adolescentes como sendo um fator que, ao que parece, não seria apriorístico na
interferência no sucesso da adoção.

Rossato e Falcke (2017) fizeram um trabalho de revisão da bibliografia nacional e internacional


que trata da temática da devolução de crianças adotadas. Nesse estudo, a idade mais avançada
aparece mapeada como sendo um dos fatores que contribuiriam para ruptura ou dissolução da
adoção. Tendo em vista que esse apontamento, num primeiro momento, parece sugerir que a idade
mais avançada seria fator colaborador para o que se pode chamar de uma adoção fracassada e,
assim, fundamentaria a resistência que os adultos empreendem para adoção tardia, trata-se de
um registro que estimula a discussão que este trabalho propõe, posto que sugere justamente o
oposto do que tomamos como hipótese, isto é, o fato de que o adotado ter mais tempo de vida não
conduziria a priori ao insucesso da adoção.

Impelidos pelo estímulo do dado exposto por Rossato e Falcke (2017), propomos a realização de
uma análise da formação do aparelho psíquico, que se dá nos primeiros anos de vida, a fim de coletar
pistas a respeito da possibilidade dessa formação psíquica estar implicada ou não na qualidade da
adoção tardia. Isso porque, para se constatar que crianças de idade mais avançada e adolescentes
carregariam consigo problemas que prejudicariam o processo adotivo, seria necessário haver
alguma marca comum deixada em seus psiquismos que as tornassem menos aptas à adoção,
ou seja, algo universal a que estão submetidas que compromete exatamente seus processos
adotivos. Não havendo essa marca, por outro lado, seria possível dizer que a averiguação do
44 elemento idade mais avançada como causa para devolução de crianças e adolescentes adotados
dar-se-ia por razões outras que não implicam necessariamente no insucesso da adoção.

Para fazermos essa análise da formação do aparelho psíquico, utilizaremos do aporte teórico da
psicanálise laplancheana. Vejamos.

A TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA E A FORMAÇÃO DO APARELHO PSÍQUICO

Recorrendo à teoria psicanalítica de Jean Laplanche, chegamos à Teoria da Sedução Generalizada


– TSG. Para se entender os traçados gerais da TSG, parte-se da compreensão de que nós, seres
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humanos, nascemos com a necessidade de sermos cuidados. Logo após o nascimento, precisamos
necessariamente de alguém que nos dê alimento, que nos dê abrigo, que nos limpe, etc., de

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maneira tal que, para que um bebê sobreviva, ele estará, de alguma maneira, em uma relação de
cuidado com alguém, relação essa que Laplanche chama de situação antropológica fundamental.

A pessoa que cuida de um bebê, por sua vez, já está marcada pela sexualidade inconsciente, bem
como se encontra imersa na linguagem. Nesse sentido, há uma assimetria originária entre bebês
e adultos que cuidam desses bebês, de tal forma que os bebês apresentam-se em uma abertura
total aos estímulos que recebem de seu cuidador. (Lattanzio & Ribeiro, 2012).

Dada a diferença entre a situação do bebê e de seu cuidador, vê-se que o encontro entre a abertura
estimulável do bebê e as produções de estímulo da estrutura psíquica de quem o cuida faz com
que estímulos do cuidador sejam implantados no bebê. Referidos estímulos são carregados de
mensagens pré-conscientes e conscientes enviadas pelo cuidador, que chegam ao bebê já
marcadas por conteúdos sexuais que atravessam o psiquismo do cuidador. Trata-se de mensagens
que são lançadas para o bebê e que nele disparam um movimento de tentativa de tradução.

A tradução, no entanto, não se dá para todos os estímulos recebidos, restando mensagens que
não são simbolizadas pela criança e que, ficando como excesso, resíduo, constituiriam o objeto
fonte da pulsão. (Lattanzio & Ribeiro, 2012).

Esse primeiro recalque, no entanto, precisaria de um recalque secundário para se fixar:

os conteúdos desse primeiro nível inconsciente servem como elementos


de ancoragem que possibilitam o processo secundário, responsável pela
linguagem, pela comunicação e pela memória. O recalcamento, assim, mais do
que um esquecimento, é visto como a própria condição da memória. Tais buracos
negros no psiquismo, significantes coisificados gerados desde a inoculação do

45
sexual pelo outro, se tornam, assim, os objetos-fonte da pulsão. (Lattanzio &
Ribeiro, 2012, p. 510, grifos nossos)

Observar que o recalque originário e o recalque secundário estão comprometidos com os estímulos,
dotados de conteúdos sexuais inconscientes, que foram lançados para a criança pelo seu cuidador,
coloca esse cuidador como sujeito ativo na construção psíquica da criança. Essa atividade, por sua
vez, é atravessada por excessos e resíduos que provocam buracos negros do psiquismo.

Neste sentido, a construção psíquica reflete um laço entre cuidador e criança por ele cuidada.
Trazendo esse aspecto para a análise da chamada adoção tardia, poder-se-ia pensar que a
inexistência desse laço pretérito entre um adulto adotante e uma criança que já passou pela fase
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inicial de cuidado significaria uma perda de qualidade da relação familiar que se estabelece com
o processo adotivo.

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No entanto, o percurso pela TSG mostrou, também, que o laço entre cuidador e criança é marcado
por zonas de buraco negro que se constituem por excessos e resíduos, de tal forma que esse laço
não se trata de uma conexão límpida, direta, clara. Portanto, não se pode pressupor que, tendo
em vista que há uma influência entre cuidador e o psiquismo da criança, haveria entre ambos a
garantia de existência de afinidades, de uma relação recíproca de qualidade.

Assim, nota-se que as relações entre pais/mães e filhos, sejam elas fundadas no tempo que for,
contando ou não com o histórico de relação de cuidado no momento da situação antropológica
fundamental, estando as crianças/adolescentes, pois, com quaisquer idades, são sempre um
encontro com a alteridade que comporta riscos, estranhamentos e potenciais pontos de identificação.

A análise da formação psíquica, portanto, não nos traz elementos que sustentem uma fragilidade
apriorística da adoção tardia, não sendo possível dizer que a adoção de uma criança de mais de três
anos se trate de um processo adotivo com menos chance de sucesso. Nesse sentido, retomando
o dado trazido no trabalho de Jussara Glória Rossato e Denise Falcke (2017) sobre a idade mais
avançada como um dos fatores que levam à devolução de crianças e adolescentes adotadas, vê-
se que essa constatação reflete elementos passíveis de serem trabalhados e modulados, inclusive
fatores externos à criança/adolescente, não indicando que o fator idade interfira diretamente na
qualidade da adoção.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROCESSO ADOTIVO DE CRIANÇAS COM MAIS TEMPO DE VIDA


E DE ADOLESCENTES

De acordo com especialistas, um elemento que dificulta o processo adotivo é a idealização da


adoção pelos pais e mães que pretendem adotar. É possível notar esse aspecto pelas condicionantes
que esses adultos definem para realizarem a adoção, estando entre elas justamente a restrição de
46 idade (Deutsche Welle, 2018).

Essa idealização reflete o imaginário de que o sucesso da filiação estaria ligado às características
do adotado, que conduziriam uma espécie de cálculo de probabilidade para que a criança se ajuste
à família.

Para Ghirardi (apud Deutsche Welle, 2018), a expectativa reflexa à essa idealização dos pais
adotivos em relação às crianças é um dos principais fatores que geram devolução dessas crianças,
devendo a idealização ser trabalhada por equipes de suporte, por profissionais que acompanham
processos adotivos, antes, durante e após a adoção. Segundo ela,
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há uma importância cada vez maior de, ainda na preparação para a adoção, o

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adulto entre em contato com todas as dificuldades que deve encontrar quando
tiver uma criança adotada em casa. Isso é ainda mais relevante quando a adoção
é de jovens de mais idade, já adolescentes. (Ghirardi apud Deutsche Welle, 2018,
n. p.)

Referida afirmação traz à baila uma especificidade da adoção de jovens que, no entanto, não
coloca em cheque seu sucesso. A criação de vínculo de crianças com mais tempo de vida e de
adolescentes envolve dar conta de um histórico de abandono já vivenciado por mais tempo, daí a
importância de um acompanhamento profissional que seja fortalecedor dos vínculos que se criam
e que interferiram nas angústias que os acompanham. Trata-se de um suporte passível de ser
feito, que interferirá na qualidade da adoção.

APONTAMENTOS FINAIS

O presente trabalho, ao investigar o tema da chamada “adoção tardia”, utilizou da TSG laplancheana
como ferramenta que permitiu notar que o elemento idade não pressupõe certo tipo de qualidade
adotiva, não estando diretamente ligada ao sucesso ou insucesso da criação de vínculo familiar
e afetivo.

Com essa observação, coloca-se em cheque o próprio termo “adoção tardia”, que pressupõe a
existência de uma idade ideal para se adotar com qualidade – o que, como vimos, não é factível.

Não bastasse, o trabalho apontou para outro elemento capaz de favorecer o sucesso da adoção:
o acompanhamento de equipe profissional para orientar e fortalecer adotantes e adotados. Esse
sim elemento importante a ser levado bastante em conta no processo adotivo.
Nesse sentido, a adoção de crianças de mais de três anos não traz consigo a marca do insucesso
apriorístico. É possível falar, apenas, em interferências que atuam modulando a qualidade dessa
47 adoção, como é o caso da realização de um acompanhamento de equipe profissional à nova família
que se forma.

REFERÊNCIAS

Alves, L. (2018). A adoção de adolescentes ainda enfrenta preconceito, mas este cenário está
mudando. Recuperado de https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2018/01/
a-adocao-de-adolescentes-ainda-enfrenta-preconceito-mas-este-cenario-esta-mudando-
cjcj6on4v024701ph5uk0zpkm.html.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Deutsche Welle. (2018). O descompasso que trava a adoção no Brasil. Recuperado de https://
www.dw.com/pt-br/about-dw/reda%C3%A7%C3%A3o-dw-brasil/s-32444.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Lattanzio, F. F., & Ribeiro, P. de C. (2012). Recalque originário, gênero e sofrimento psíquico.
Psicol. Estud., 17(3), 507-517. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1413-73722012000300016&lng=en&nrm=iso.

Rossato, J. G.; & Falcke, D. (2017). Devolução de crianças adotadas: uma revisão integrativa
da literatura. Rev. SPAGESP, 18(1), 128-139. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702017000100010&lng=pt&nrm=iso.Lentemoditem eatiist
SUMÁRIO

48 A IMAGEM DO TRAUMA EM
NUNCA DEIXE DE ACREDITAR

AUTORIA
IZABELA D. V. ROMAN
Psicóloga e psicanalista, mestra e doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Atua no Projeto CAVAS/UFMG atendendo


crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: roman.izabela@gmail.com.

ALBERTO L. R. TIMO
Psicólogo e psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG.
CONTATO: albertolrtimo@gmail.com

RESUMO
A teoria e a técnica psicanalíticas encontram-se intimamente interligadas desde
os primórdios da psicanálise. A noção de “trauma” ocupou um importante papel
nessa práxis e, conforme temos visto nas discussões atuais, permanece como tema
fundamental no contínuo trabalho de construção e reformulação da metapsicologia
e da prática clínica da psicanálise. Se, por um lado, a proposição do novo dualismo
pulsional evidenciou os limites da representação psíquica, ou seja, lançou luz sobre
os conteúdos que escapam à simbolização em termos metapsicológicos, por outro
lado, não foi capaz de sustentar a necessária reformulação da técnica. A clínica do
traumatismo tem cobrado, com urgência, a resolução dessa tarefa uma vez que nós,
psicanalistas, nos deparamos com um alto número de pacientes que se encontram
reféns de conteúdos psíquicos que não puderam ser integrados ao psiquismo e que,
portanto, permanecem encapsulados no aparelho psíquico. A noção de “figurabilidade”
apresentada por Freud nos seus estudos sobre a interpretação dos sonhos tem exercido
importante papel no inevitável trabalho de elasticidade e adequação da técnica analítica
ao funcionamento psíquico singular de pacientes traumatizados. Considerando que
49 um processo de adoção pode ser potencialmente traumático, partimos da hipótese
clínica de que o trabalho da “figurabilidade” é fundamental para o processo de
elaboração e tratamento de algumas vivências envolvidas nesse processo. Através da
leitura de Nunca deixe de acreditar pretendemos demonstrar como alguns conteúdos
que não são captáveis e apreendidos no campo da palavra, ganham possibilidade
de representação através da sua apresentação numa linguagem sensorial, pictória,
sinestésica e auditiva, ou seja, a partir de outros campos da ordem do sensível. .
PALAVRAS-CHAVE: Trauma; Adoção; Figurabilidade; Representação.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


A teoria e a técnica psicanalíticas encontram-se intimamente interligadas desde os primórdios
da psicanálise. Desde então, a noção de “trauma” tem ocupado um importante papel nesta
50 práxis e, conforme temos visto nas discussões atuais, permanece como tema fundamental
no contínuo trabalho de construção e reformulação da metapsicologia e da prática clínica da
psicanálise. Se, por um lado, a proposição do novo dualismo pulsional evidenciou os limites da
representação psíquica, ou seja, lançou luz sobre os conteúdos que escapam à simbolização em
termos metapsicológicos, por outro lado, não foi capaz de sustentar a necessária reformulação
da técnica. A clínica do traumatismo tem cobrado, com urgência, a resolução dessa tarefa uma
vez que nós, psicanalistas, nos deparamos com um alto número de pacientes que se encontram
reféns de conteúdos psíquicos que não puderam ser integrados ao psiquismo e que, portanto,
permanecem encapsulados no aparelho psíquico.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Partindo desta consideração, de que a clínica atual tem sido caracterizada por um alto número de
pacientes marcados pelo excesso pulsional, acreditamos ser extremamente necessário revisitar

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a noção de “trauma” com o intuito de lançar luz sobre as especificidades de suas manifestações, a
fim de estimular a investigação e a produção de novas práticas clínicas capazes de escutar aquilo
que não é transmissível no campo simbólico. No entanto, neste trabalho, nosso objetivo restringe-
se a demonstrar, através da leitura de Nunca deixe de acreditar, de Christina Rickardsson, como
alguns conteúdos que não são captáveis e apreendidos no campo da palavra ganham possibilidade
de representação através da sua apresentação em uma linguagem sensorial, pictória, sinestésica
e auditiva, ou seja, a partir de outros campos da ordem do sensível.

Para tanto, partiremos de algumas considerações sobre a noção de “trauma” com vistas a
esclarecer alguns pontos sobre este campo tão revisitado na teoria psicanalítica. De uma maneira
geral, consideramos trauma como um afluxo pulsional excessivo que ultrapassa a capacidade
psíquica de ligação e elaboração, ou seja, conteúdos que extrapolam a representação psíquica.
Nas palavras de Laplanche e Pontalis (2004) trauma é um “Acontecimento da vida do sujeito
que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a
ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na
organização psíquica” (p. 522).

É importante retomarmos a discussão sobre a qualidade desse acontecimento no que se refere à


sua condição de realidade psíquica ou material para justificarmos a consideração de que algumas
vivências são potencialmente traumáticas, sem que isso represente um exagerado apego
à factualidade em detrimento do pulsional. Acreditamos que a realidade a ser considerada ao
pensarmos na condição do trauma é, em primeira instância, a realidade da mensagem sexual do
outro, ou seja, uma realidade que não se confunde nem com a realidade material, nem com a
realidade subjetiva, a fantasia.
A partir da Teoria da Sedução Generalizada, de Jean Laplanche (1992), o traumático define-se
como a mensagem sexual veiculada pelos cuidados que o adulto dispensa à criança, na medida
51 em que transmite a sexualidade inconsciente do próprio adulto. Essa sedução que a criança sofre
por parte do adulto, em decorrência de sua condição de passividade radical originária e universal
é a geradora do trauma interno, equivalente ao ataque pulsional, que irá constituir o psiquismo a
partir da primeira tentativa de tradução das mensagens sexuais e enigmáticas advindas do outro.
Assim, Laplanche (1992) retoma e enfatiza uma ideia já apresentada por Freud (1920/2006b) de
que toda situação traumática é habitada pelo pulsional, uma vez que a pulsão é o traumático em si
mesmo. Sendo assim, consideramos que um acontecimento é potencialmente traumático quando
ele expõe o sujeito, de maneira arrebatadora e impossibilitada de tradução, a uma situação de
desamparo radical que ameaça sua integridade física e, consequentemente, e de maneira ainda
mais incisiva, a integridade do eu. Nas palavras de Carvalho (2012):
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Face ao acontecimento traumático, o sujeito encontra-se completamente

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desamparado, o que reproduz necessariamente a situação de passividade
originária. [...] podemos dizer que o trauma é arrombamento extenso de um
invólucro e isto torna homólogos o acontecimento traumático atual e a situação
de sedução originária, ligados pela noção de perfurar, arrombar, penetrar, em
que se faz presente à penetração da mensagem sexual do outro na superfície
corporal da criança. (p. 496)

Figueiredo (2008) acrescenta que o trauma pode ser caracterizado por uma inversão de papéis,
na qual o impacto de um objeto excede em muito a capacidade de enfrentamento e domínio, seja
ele prático, seja simbólico, por parte do sujeito que é repentinamente apassivado. Portanto, “a
vontade do sujeito é submetida à sua sensibilidade, aos seus afetos; se a linguagem dos afetos
padece sempre da equivocidade, para se falar o trauma não há, rigorosamente, linguagem alguma
disponível” (Figueiredo, 2008, p. 15).

Ainda em consonância com esta concepção do trauma, Laplanche propõe, a partir da leitura da
Carta 52 (1897/2006a), uma teoria tradutiva do recalcamento a partir da qual se considera que
as sensações perceptivas (ou mensagens enigmáticas advindas do outro) exigem do aparelho
sucessivas traduções e transcrições, cuja eficácia será sempre incompleta, formando restos não
traduzidos que constituem o inconsciente. Porém, algumas dessas percepções extrapolariam a
capacidade tradutiva do aparelho e, portanto, não sofrendo a ação do recalcamento, formariam
marcas psíquicas, ou fueros, que permaneceriam encravados no aparelho psíquico sem acesso
à simbolização e à ligação com outros traços mnêmicos. Ou seja, determinadas percepções,
marcadas por conteúdos excessivos e disruptivos, permaneceriam como instantes congelados
fadados à descarga sem mediação egóica através da compulsão à repetição. Estes materiais
traumáticos não ganhariam, portanto, uma forma representacional sendo acessados, somente,
através da apresentação de sua forma figurada (Gaspar, Lorenzutti & Cardoso, 2006).
André Green (2002) descreve esses conteúdos como uma “memória amnésica”, uma vez que não
sucumbem à ação do recalcamento, não se tornam lembranças, instalando um presente contínuo,
52 um passado que não passa. No lugar da lembrança, existe a apresentação de impressões sensíveis,
de manifestações corporais. A memória traumática é, portanto, uma memória corporal, figurada
na linguagem sensorial, pictória, sinestésica e auditiva.

O sujeito se vê, assim, diante de uma tarefa paradoxal: narrar aquilo que é intransmissível, que
nunca existiu no campo da representação. Diante da impossibilidade de uma historicização, a vida
é cindida em duas partes: o antes e o depois do trauma. Ferenczi (1934[1931-1932]/1992), através
do conceito de “clivagem narcísica”, investigou a ocorrência dessa cisão psíquica como defesa
diante de uma vivência extrema traumática. Para Maldonado e Cardoso (2009),
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Diante da ameaça de morte psíquica, o ego, como estratégia de sobrevivência,


fragmenta-se em várias partes que não se comunicam entre si. Este mecanismo

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tem por objetivo manter separados certos conteúdos psíquicos que não irão se
vincular a uma cadeia representacional. (p. 54)

A integridade do ego, as ligações e associações provenientes do trabalho de recalcamento e


transcrições sucessivas, se desfazem como uma forma desesperada de manter “vivo” aquilo que já
havia sido construído até então e que morreria caso tivesse que se associar ao conteúdo traumático.

Com base nestas considerações teóricas, partimos para a leitura de Nunca deixe de acreditar
como possibilidade de ilustração de como alguns conteúdos permaneceram enquistados no
psiquismo, por serem oriundos de uma vivência extrema e traumática, tendo ganhado possibilidade
de alguma elaboração e narrativa a partir do aparecimento em sua forma figurada, sensível.
Antes, é importante destacar que as reflexões aqui apresentadas devem ser compreendidas
como interpretações limitadas ao conteúdo narrado pela autora, sem pretensões de alcançar as
possibilidades interpretativas de um acompanhamento clínico.

Christina começa o seu relato datando-o como início de 2015 e dizendo ter encontrado um limite:

Em um dia ensolarado, há três anos, acordei com medo; aliás, muito assustada
.... Tinha chegado à beira do abismo, ao meu limite. ... Na realidade, minha
vida estava um caos: a vida com a família, os relacionamentos, os amigos e
comigo mesma. Por essa razão, eu me dedicava àquilo que podia controlar.
Como se resolve algo como “eu tenho de viver e minha vida é um caos?” Seria
medo de sentir e me machucar? Medo de que aqueles com quem me importo
me deixassem ou morressem? Medo de que, se eu parasse para pensar, tudo
desabasse? Medo de mim mesma? ... Não suportava ser uma pessoa e sofrer
tanto. Estava passando por algo que nunca havia experimentado antes. O meu
corpo e o meu inconsciente tomaram conta de tudo e era como se a minha alma
houvesse decidido que era a sua vez de me controlar. (Richardsson, 2017, p. 7,
53 grifos nossos)

Claramente, podemos perceber que, se de alguma forma tenha sido possível viver a família, os
amigos, os relacionamentos amorosos e o trabalho na Suécia até aquele momento, tudo parecia
ter se desmoronado nos últimos três anos, um caos havia se instalado e a jovem parecia viver a
iminência de uma queda livre para um trágico fim. Parece que Christina percebeu que já não dava
mais para continuar vivendo à deriva da sua própria história, alheia ao seu passado, ignorante de
quem um dia foi.

Então, vieram os pesadelos. Eu tinha sete anos e corria risco de morte, tive
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esse sonho diversas vezes. Queria ter sonhado apenas com um terrível monstro
debaixo da cama, mas infelizmente era o que tinha acontecido na minha vida que

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


voltava à minha memória. Eu estava sonhando com o que havia me acontecido
quando ainda era criança. (Richardsson, 2017, p. 8)

Observamos, então, que Christina passa a produzir sonhos traumáticos: a cena repetitiva de um
acontecimento da vida na infância, em período anterior à adoção. A experiência do terror que
insistia em retornar não era da ordem da fantasia, de uma lembrança encobridora – o que para
outras crianças seria o monstro debaixo da cama, mas sim da ordem terrível e inenarrável do
horror da morte real. A imagem da menina de sete anos que corria risco de morte insistia em
retornar através de repetidos pesadelos que presentificavam o seu passado. Dando continuidade
à leitura do livro, deparamo-nos com a cruel realidade daquela menina de rua que, por mais de uma
vez, correu grandes riscos de morte. Christina, no entanto, não especifica qual destes momentos
retornava. Talvez o trabalho do sonho já estivesse operando, condensando as várias vezes em que
a criança Christina quase morreu de fome, de frio, picada por animais peçonhentos, atingida por
tiros de policiais, ou até na luta por um pedaço de pão. Neste momento, então, no inverno de 2015,
a jovem decide, pela primeira vez, procurar ajuda de verdade. Era necessário (re)viver sua história,
mas, para isso, era preciso antes, construí-la.

Adotada aos oito anos por um casal sueco, Christina ainda não tinha se interessado em conhecer
outros relatos sobre sua infância no Brasil até resolver viajar ao seu país de origem com o intuito
de retornar ao seu passado, de revisitar alguns lugares (a caverna, a favela, o orfanato) e conhecer
sua mãe e família biológicas. Até aquele momento, vinte e quatro anos após a adoção, Christina
parecia satisfeita com as memórias que havia guardado dos seus primeiros anos de vida, mas,
como ela mesma diz, “O que é fascinante nas memórias é que algumas ficam guardadas, outras
desaparecem para sempre e há aquelas que retornam” (Richardsson, 2017, p. 9). Algo havia
retornado, com a exigência de ocupar outro lugar. Acreditamos, no entanto, que o que havia
retornado não seria uma memória, mas a “imagem” de um trauma que não pôde ser integrada no
ego daquela criança.
54
Logo na introdução do texto, deparamo-nos com a seguinte afirmação: “Tenho duas pessoas em
mim: uma é a Christina de Norrland e a outra é a Christiana do Brasil. Nem sempre foi uma tarefa fácil
juntar essas duas” (Richardsson, 2017, p. 6). É inevitável reconhecer a existência de uma dissociação
egóica, uma clivagem defensiva adotada pela criança que foi arrancada à força dos braços da mãe.
Obviamente, estamos diante de uma construção narrativa construída a posteriori; enquanto a
clivagem opera, não se tem esta consciência clara de sua ação. Esta afirmação no momento de
apresentação do livro já nos sinaliza que a sua narrativa perpassa, antes de tudo, a tentativa de
junção dessas duas partes. Mas, o que teria despertado a urgência desse trabalho? Tentaremos
responder essa questão a partir de algumas hipóteses relativas ao período em que “essas duas” não
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podiam conviver juntas, com base nas proposições teóricas apresentadas até aqui.

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Atentamo-nos para a marcação temporal de uma das experiências vividas já tardiamente pela
autora que, a princípio, parece ter pouca importância diante do resgate da sua história original.
Trata-se do primeiro salto de paraquedas realizado no ano de 2011, curiosamente pouco tempo
antes dos pesadelos aparecerem, em 2012. Ao longo da descrição da realização deste sonho
– o primeiro salto –, Christina parece ter se interrogado sobre o desejo de saltar, o motivo de
querer se arriscar daquela maneira: “Para mim, tudo começou quando era criança, do outro lado
do Atlântico, enquanto vivia na minha pequena caverna” (Richardsson, 2017, p. 89). Não é por
acaso, portanto, que, ao longo da queda, ocorra de maneira marcante o aparecimento de algumas
memórias antigas: “a cada nuvem que atravessava, pensava que mamãe e Camile estavam ali
comigo” (Richardsson, 2017, p. 89), “fecho os olhos e vejo minhas pernas balançando no ar, acima
da caverna e junto de mamãe” (Richardsson, 2017, p. 85). Pensamentos despertados no momento
em que Christina se vê em uma queda desgovernada e fica “congelada” diante daquele imprevisto.

Acreditamos que, naquele dia, estando novamente diante da proximidade com a morte, Christina talvez
tenha experimentado o aparecimento da Christiana, que estava “perdida” desde o dia em que soube,
de maneira traumática, que não conseguiria sobreviver ao abrigo caso permanecesse sustentando
“ser” a pessoa que tinha sido até aquele momento. Cabe destacar o relato daquele momento:

Até ali, havia conseguido ser eu mesma, não importando se estava com mamãe,
com amigos ou na presença de desconhecidos. Sempre podia ser eu mesma,
mas, quando descobri que meus sentimentos, pensamentos e desejos deveriam
ser escondidos, foi uma sensação muito desagradável. Lembro-me, como se
fosse ontem, da sensação de uma neblina quente, úmida e pegajosa envolvendo
o meu corpo, como se estivesse sendo enrolada em um plástico. Apesar dessa
neblina ser desagradável, tinha suas vantagens. Tenho certeza de que já no
orfanato eu havia começado a construir uma fachada, mas cuidava do meu
verdadeiro eu dentro da neblina. Christiana estava perdida ali dentro, mas não
estava morta e, um dia, a neblina se dissiparia e ela se encontraria novamente.
(Richardsson, 2017, p. 145)
55
Naquele momento, já não havia mais no orfanato espaço para aquela menina que, mais uma vez,
corria risco de vida e precisava sobreviver. A separação da mãe e a constatação da sua “morte” foram
tão insuportáveis que uma ruptura se deu e a menina foi parar dentro da neblina: Christiana divide-
se em duas. Duas décadas depois, dentro da nuvem e enrolada em um plástico, Christina parece
encontrar Christiana, aquela outra parte perdida. Naquele momento, a luta pela sobrevivência foi
revisitada, agora de outro jeito, com a liberdade de não precisar ser. Nas palavras da autora, “Isto
significa que, nos sessenta segundos que o salto de paraquedas leva até se abrir, não tenho tempo
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de pensar no que já passou ou no que está para acontecer” (Richardsson, 2017, p. 88).

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No entanto, já em terra firme, o reencontro com aquela menina tem seus efeitos mortíferos:
Christina passa a viver na beira do abismo, a vida transforma-se no caos e os pesadelos repetitivos
e terríveis parecem lembrá-la da necessidade de sobreviver ao aparecimento daquilo que estava
por trás da neblina. A imagem daquela menina impõe uma tradução, uma narrativa de algo que
ainda não tinha palavras, que só podia aparecer, sem representação, no campo sensório. A
construção dessa narrativa se impõe de maneira tão forte que Christina escreve sua história e a
publica em um livro. Assim, ela pode contar, traduzir e reconstruir inúmeras vezes, nas palestras
que ministra sobre sua obra-viva, as suas (agora) memórias:

Minhas memórias são difusas, mas as que guardei comigo são muito claras.
Tomei muito cuidado para não perdê-las, recontando tudo a mim mesma,
fazendo anotações, para tentar me lembrar da pessoa que eu era antes. Criei
uma história, a minha história. (Richardsson, 2017, p. 5)

REFERÊNCIAS

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56
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mas necessárias. Psicologia Clínica, 21(1), 45-57.

Rickardsson, C. (2017). Nunca deixe de acreditar. Ribeirão Preto: Novo Conceito Editora.
SUMÁRIO

A LITERATURA E O IMAGINÁRIO
57
SOCIAL RELATIVO À ADOÇÃO:
ANÁLISE DA HISTÓRIA INFANTIL
JOÃO E MARIA (HÄNSEL UND
GRETEL)

AUTORIA
ANAMARIA SILVA NEVES
Professora adjunta da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Doutora em Psicologia
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pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutora pelo Child and Woman Abuse Studies Unit
– CWASU, instituição vinculada à London Metropolitan University.

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CONTATO: anamaria.neves@ufu.br

FABIANA CAROLINA DE SOUZA CARVALHO DIAS


Psicóloga clínica Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM. Mestre em Psicologia
pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
CONTATO: fabiana.dias@uftm.edu.br

RESUMO
A literatura expressa o que está presente no imaginário social e tem sido muito
utilizada nos estudos psicanalíticos, que a tomam como referência e dela se
enriquecem. As histórias como expressão artística fornecem elementos preciosos
para analisar manifestações inconscientes porque refletem a subjetividade e a
pulsão sublimada. Nessa perspectiva, percorremos brevemente algumas histórias
que remontam à temática da adoção. A maioria das crianças mitológicas que passou
pela angústia do abandono ou da morte dos pais consegue alcançar um destino de
heroísmo ou de poder. Esses mitos parecem significar que sobreviver a tal tragédia
e ser amado por outro faz com que a pessoa torne-se psicologicamente (ou até
fisicamente) muito forte. Por outro lado, a desvalorização das relações constituídas
pelas vias da adoção também pode ser percebida nas histórias mais comuns na
cultura ocidental que utilizam, frequentemente, a figura da madrasta e do padrasto
para simbolizar figuras negativas que maltratam, exploram e violentam seus filhos por
adoção. Para argumentar sobre essa questão e outros pontos de reflexão, elegemos
a história infantil João e Maria (originalmente Hänsel und Gretel), escrita pelos irmãos
58 Grimm, em 1812. Numa interpretação livre, destacamos que as figuras de cuidado
não consanguíneo da história — no caso, a madrasta e a senhora da casa de doces
— tinham uma relação de violência, exploração e competição com as crianças. É
possível ilustrar também através da história o mecanismo inconsciente da repetição
e o horror ao abandono, conceitos fundamentais na teoria psicanalítica. A psicanálise
aliada à literatura vem contribuir para a análise de questões relativas à adoção porque
se abre aos aspectos psíquicos aí imbricados e permite descortinar e transpor a
rotulação do imaginário social, contrapondo-se a pesquisas e estudos generalistas.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Histórias infantis; João e Maria; Psicanálise.
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A literatura expressa o que está presente no imaginário social e tem sido muito utilizada nos estudos
psicanalíticos, que a tomam como referência e dela se enriquecem. Em diversos momentos de sua
59 teoria, Freud recorreu às histórias mitológicas, como metáfora, alegoria ou como uma narrativa
construída, utilizando-as tanto para abordar e explicar as características do que ele observava
quanto para preencher lacunas teóricas, explicando uma realidade ao mesmo tempo em que a
criava (Winograd, 2012).

Nessa perspectiva, para abordar a temática da adoção percorremos brevemente algumas


histórias infantis comuns na cultura ocidental, aprofundando-nos na história de João e Maria,
originalmente Hänsel und Gretel (Grimm, 1812). A utilização dessas histórias, e a análise dos
“mitos” incutidos nas mesmas, nos permitem vislumbrar o imaginário que envolve o tema e assim
metaforizar alguns conceitos e teorias construídos em estudos sobre adoção.
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Na história de Mogli, o “menino-lobo”, de Rudyard Kipling, uma criança foi abandonada na floresta,

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cuidada por uma loba e educada por vários animais. Também na história de Tarzan, publicada pela
primeira vez em 1912, por Edgar Rice Burroughs, o abandono é superado pela adoção “interespécie”.
Estas são narrativas criadas a partir de histórias verídicas de crianças abandonadas em florestas
da Europa e da Índia e que cresciam “selvagens”. Ainda que tratem do acolhimento em grupos
de animais, Tarzan e Mogli são adotados, o que nos leva a reflexão acerca das famílias ideais e
daquelas que são possíveis. Tal ponto conecta-se com o conflito entre a família desejada e a
família real, que é bastante recorrente na construção dos vínculos por adoção (Prestes, 2008).

O filho por adoção vivencia situações frequentes de perda e rompimentos de vínculos afetivos que
podem afetar a constituição de novos vínculos familiares e demandar cuidados específicos que as
auxiliem na elaboração dessas experiências. É fundamental analisar a capacidade de adaptação
da criança e da família adotante. Podem existir dificuldades de aproximação entre pais e filhos por
causa da diferença entre aquilo que foi idealizado e a vivência real da adoção. As dificuldades de
adaptação podem provocar desgaste afetivo-emocional em todas as pessoas envolvidas e tornar o
estabelecimento do sentimento de confiança mútua um processo doloroso e frágil (Mendes, 2007).

De acordo com Ghirardi (2014), torna-se necessário equacionar as necessidades da criança com a
construção psíquica dos adotantes sobre o filho. O narcisismo parental precisa ser suficientemente
flexível para permitir que ocorra o ajuste necessário entre a criança imaginada e a criança
encontrada. Também a criança pode construir expectativas extremadas acerca de sua inserção
em uma família, as quais necessitam ser reajustadas às dificuldades familiares cotidianas.

Vidigal e Tafuri (2010) também enfatizam que, quando o filho nasce, os pais precisam fazer
uma passagem psicológica entre a criança real e a imaginária. Quanto mais conflituosa for
essa passagem, em função dos traços reais que a criança apresenta, maior será a frustração
e decepção por que passarão os pais em relação ao imaginário produzido. A criança real pode
provocar a desidealização em relação ao imaginário criado pelos pais, que são portadores de uma
história transgeracional, consciente e inconsciente. Esse processo de desidealização do filho real
60 pode provocar sofrimento narcísico intenso, a ponto de trazer dificuldades para a relação.

Essa dinâmica pode ser ampliada para filiação por adoção, em que cabe considerar a existência
de vinculação pré-encontro entre pais e filhos. Somado a isso, existe o estranhamento comum às
relações por adoção, advindo de diferenças físicas, geracionais e culturais entre eles. Nas histórias
de Mogli e Tarzan, essas diferenças aparecem extremadas ao propor uma família composta por
espécies diferentes, humanos e animais. O filho que foi adotado pelos animais torna-se também
“selvagem”, adquirindo características da família por adoção, ainda que tenha também resquícios
humanos preservados, que vem à tona principalmente após o contato com outros humanos.
Apesar das enormes e claras diferenças, Mogli e Tarzan vincularam-se à família possível.
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Em relação aos pais por adoção, é comum a vinculação inicial ser baseada em idealização e

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projeções de seu desejo. Essa idealização aparece já na preparação para a adoção, no momento
de escolher o perfil da criança a ser adotada. Como expõe Oliveira (2010),

O momento da escolha da criança a ser adotada é bastante importante,


pois emerge para a realidade os ambíguos sentimentos de desejar um filho
como objeto de amor. É nesse espaço que as frustrações, as limitações e as
idealizações adentram o campo real, convocando os sujeitos, pais, filhos e
demais familiares a reconhecerem no filho escolhido uma representação de si
mesmos. O sentimento de pertença, criado a partir da vinculação, permite a
incorporação de um novo membro no grupo familiar e toda uma rede de relações
aí implicadas. Na adoção, as idealizações do filho, do lar e da família emergem
como eixo fundamental e situam essa prática antiga enquanto dispositivo social
acionado diante do desejo de se ter filhos. (p. 20)

Os critérios de escolha são subjetivos e permeados pelos ideais imaginários dos adotantes. Essas
expectativas não são facilmente transformadas. É um trabalho de médio e longo prazo que precisa
promover reflexão dos adotantes em relação a si, além da busca de identificação dos seus limites
e possibilidades em relação ao outro (Weber, 2011).

A idealização do filho pela figura parental nos remonta à história de Pinóquio, de Carlo Collodi,
que apresenta uma adoção monoparental masculina, na qual o pai inventa e constrói o filho com
madeira. Segundo Prestes (2008), Pinóquio deseja ser um ‘menino de verdade’ e para tornar-se um
menino de verdade, ele precisa se educar, e é no processo de se tornar bom e educado que Pinóquio
finalmente se torna um menino de verdade. Esse autoengendramento nos lembra do conceito
winnicottiano de “falso-self”. Segundo Winnicott (1990), o falso-self alude ao mecanismo defensivo
no desenvolvimento da personalidade em que se estabelece um conjunto de relacionamentos
falsos por submissão e imitação a uma figura dominante através de introjeções, nas quais se busca
preencher expectativas e obter amor. Apresenta-se como tentativa de substituição da função
61 materna que falhou. O falso-self é organizado em níveis que vai da patologia à normalidade. Em
seu nível patológico, causa sensação subjetiva de vazio, futilidade e irrealidade.

De acordo com Alvarenga e Bittencourt (2013), os filhos podem se aproximar da família por
adoção, assumindo precipitadamente uma nova identidade pelo receio de não ser aceitos.
As aproximações idealizadas entre pais e filhos nos casos de adoção parecem responder às
necessidades narcísicas e podem indicar a tentativa de tamponar a angústia. A falta sentida
pelas crianças em relação às figuras parentais pode levá-las a se vincularem adesivamente aos
pais que se apresentam; igualmente, os pais pode se apropriar dessa função ante a angústia pela
falta do filho e a possibilidade de aplacar essa falta nos possíveis filhos que se lhe apresentam.
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Nesse tipo de vinculação, predominam fantasias relacionadas com o medo de ficar só; e o vínculo
serve como defesa, pois a separação é sentida como falta, inexistência. O sujeito fica à mercê do

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mundo interno. Assim, o vínculo mantém-se pela idealização numa fusão imaginária. Isso pode
acarretar confrontos bruscos de desejos, idealizações e fantasias ante o objeto de amor. O vínculo
com os objetos de amor menos idealizados precisa ser desenvolvido ao longo da convivência e do
conhecimento mútuo.

Schettini Filho (2009) pontua que a decisão de adotar não conclui o processo de consolidação do
vínculo afetivo entre pais e filhos. Há um tempo pessoal para que essa consolidação aconteça.
A decisão de adotar é o movimento inicial de um processo infindável, daí que os vínculos não se
consolidam de forma instantânea. Exigem um tempo social e psicológico para que se desenvolva
uma segurança afetiva. Para Prestes (2008), esse é um dos pontos de destaque da história de
Pinóquio: a descoberta que fazem Pinóquio e Gepetto, de que os exercícios da paternidade e da
filiação se constroem subjetivamente, no exercício da convivência. Os laços de afeto entre ambos
são construídos, assim como se constrói a humanidade do boneco.

Seguindo a apresentação de famosas histórias que traz em seu enredo o tema adoção, apontamos
com destaque o personagem Super-homem (Superman), considerado o símbolo da necessidade
de conhecer as origens e histórias vivenciadas antes da adoção. Super-homem tornou-se “super”
exatamente quando soube sobre suas origens (Weber, 2010).

De acordo com Schettini, Amazonas e Dias (2006), Weber (2010) e Abrão (2014), na adoção, mesmo
não existindo contato entre os filhos e sua família de origem, a relação com a família consanguínea
estará sempre presente, seja no vínculo real ou no nível da fantasia. A criança terá de lidar com a
tarefa complexa de pertencer a duas famílias, com suas alianças inconscientes e identificações; e
a família por adoção precisa lidar com essa demanda buscando a elaboração.
De acordo com Weber (2010), em geral a relação com a família de origem é permeada por fantasias;
e estão presentes aspectos que mobilizam angústias, insegurança e incertezas na família por
62 adoção. Dentre eles, cabe citar a dor dos pais por adoção pela sua incapacidade reprodutiva; o
temor da influência da família consanguínea sobre o filho; a possibilidade de perderem o filho para
os genitores; a crença de que se os filhos não conhecerem sua história, as influências da família
de origem não ocorram; medo de perder o domínio sobre a construção da personalidade do filho;
e a ideia de que a história do filho possa começar no encontro com a família por adoção, como se
fosse possível apagar uma parte da sua história. Os pais por adoção, muitas vezes, buscam apoio
na crença de que podem proteger o filho de suas origens; porém, não se dão conta de que existem
dinâmicas inconscientes – portanto, não manejáveis – na relação do filho com sua dupla filiação.

Na história do Super-homem, o contato com as origens é bastante enfatizado. Conhecer e


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entender a própria história e reconhecer suas diferenças com as pessoas com quem convive o faz
ter uma maior apropriação da sua missão. Apesar do contato direto com elementos do seu local

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de origem, a Kriptonita, ser descrito na história como algo que o enfraquece e diminui os seus
poderes, o entendimento sobre a própria história dá sentido à sua vida.

É perceptível que alguns temas se repetem com grande frequência perpassando várias histórias
clássicas infantis. Apesar da variação entre uma história e outra, é sempre possível detectar
a existência de certos matizes que se repetem, donde podemos colher fios de narrativa que
apontam para as mesmas temáticas: rejeição, redenção e acolhimento (Prestes, 2008). A maioria
das crianças mitológicas que passou pela angústia do abandono ou da morte dos pais consegue
alcançar um destino de heroísmo ou de poder. Esses mitos parecem significar que sobreviver
a tal tragédia e ser amado por outro faz com que a pessoa torne-se psicologicamente (ou até
fisicamente) muito forte (Weber, 2010).

Por outro lado, a desvalorização das relações constituídas pelas vias da adoção também pode ser
percebida nas histórias infantis mais comuns na cultura ocidental que utilizam, frequentemente,
a figura da madrasta e do padrasto para simbolizar figuras negativas que maltratam, exploram
e violentam seus filhos por adoção. De acordo com Prestes (2008) esse é um tema bastante
recorrente na literatura. Cinderela é órfã de mãe, assim como João e Maria, Branca de Neve e
vários outros personagens clássicos que sofrem agruras nas mãos de uma madrasta má.

Para argumentar sobre essa questão e outros pontos de reflexão, elejo a história infantil
João e Maria (originalmente Hänsel und Gretel), escrita pelos irmãos Grimm, em 1812. Numa
interpretação livre, destaco que as figuras de cuidado não consanguíneo da história – no caso,
a madrasta de João e Maria e a senhora da casa de doces – tinham uma relação de violência,
exploração e competição com as crianças. Eram figuras extremamente negativas. A penúria e
escassez de recursos materiais vividas pela família na história levam à decisão de abandonar as
crianças na floresta a própria sorte. A sugestão é da madrasta, com consentimento do pai. Ao
final, com o retorno das crianças para casa, o conflito entre ela e enteados teve como desfecho a
impossibilidade do vínculo. As crianças permaneceram com o pai; mas a madrasta havia morrido.
63 Eis a resolução apresentada. Vê-se aí a ideia de distanciamento, hostilidade e impossibilidade de
vínculos nas relações entre personagens sem laços consanguíneos.

Bettelheim (1980) aponta que isso possibilitaria à criança sentir raiva de seus genitores, sem
deixar de amá-los: tributando amor à mãe morta, e raiva a essa outra mulher que lhe substitui,
a criança poderia revoltar-se contra suas injustiças. Assim, numa visão psicanalítica, os contos
ajudariam às crianças a lidarem com sentimentos contraditórios em relação a seus pais, na fase
da vida em que passa a questioná-los. Em contrapartida, apontamos neste estudo, de que a
atribuição de características extremamente negativas à figura da madrasta ou padrasto pode
advir do conceito idealizado de que pais não têm sentimentos hostis pelos seus filhos; daí ser
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necessário projetar a hostilidade na figura de cuidadores não consanguíneos, em um movimento


de negação de sentimentos inaceitáveis. Além de ser algo que traz depreciação às relações por

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adoção e dissemina a ideia de que os vínculos estabelecidos por laços não consanguíneos, são
vínculos que não dão certo ou são permeados por conflitos caóticos e insuperáveis. Afinal, a
tragédia dos conflitos nas histórias infantis quase sempre resulta na ruptura do vínculo. Com isso,
essas histórias acabariam por reforçar ou construir ideias preconceituosas no imaginário social.

É possível ilustrar também outro conceito importantíssimo relativo ao tema da adoção através do
conto João e Maria: a repetição. João marca o caminho de volta pra casa com pedras brilhantes e
migalhas de pão depois de ouvir seu pai e madrasta conversarem sobre a pretensão de abandoná-
los na floresta. Quando caminhavam rumo à floresta João olha repetidas vezes para trás, para sua
casa e para o caminho de volta.

Em seguida, encaminharam-se todos rumo à floresta. Tendo caminhado um


certo trecho, Joãozinho parou e voltou-se a olhar para a casa; fêz isso repetidas
vêzes, até que o pai, intrigado, lhe perguntou:

- Que tanto olhas, Joãozinho, e por que ficas sempre para trás? Vamos, apressa-
te.

- Ah, papai, - disse o menino - estou olhando para o meu gatinho branco, que, de
cima do telhado, está acenando para mim.

- Tolo, não é o teu gato - interveio a mulher; - não vês que é o sol da manhã
brilhando na chaminé?

Mas Joãozinho não olhava para gato nenhum; era apenas um pretexto para,
tôdas as vêzes, deixar cair no caminho uma das pedrinhas brilhantes que trazia
no bolso. (Grimm, 1812, p.1)
Isso pode ilustrar a compulsão à repetição, possível de ser vivida nos vínculos por adoção. Existe
um caminho marcado no psiquismo que leva os filhos para a vivência anterior de família, marcas
64 que os levam “de volta para casa”. Mesmo estando na família por adoção, com outra configuração
e dinâmica familiar, existe um caminho psicológico marcado que faz a família por adoção ter
de retornar com recorrência a experiências anteriormente vividas na família de origem. Daí a
necessidade de integrar essas experiências anteriores para que seja possível construir os vínculos.

De acordo com Abrão (2014), a adoção está intimamente ligada à temática da repetição. A criança
atua, através da compulsão a repetição, vivências dos vínculos anteriores que foram reprimidas
dentro do novo vínculo que se constrói com a família por adoção. A repetição foi explorada por
Freud (1914/1996) em seu texto “Recordar, repetir e elaborar”. Ele ressalta que algumas lembranças
reprimidas e esquecidas são expressas pelo indivíduo através da atuação; manifestam-se como
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ação, e não como lembrança. Em vez de recordar, o indivíduo repete a experiência vivida e reprimida
sem saber que está repetindo. A compulsão à repetição relaciona-se com a transferência e a

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resistência. A repetição é a transferência de um passado esquecido para aspectos diversos
da situação atual do indivíduo, em cada atividade e cada relacionamento que tiver na ocasião.
Quanto maior for a resistência ao conteúdo reprimido, maior serão a atuação e repetição do que
foi recalcado. O indivíduo “[...] repete tudo o que já avançou a partir das fontes do reprimido para
sua personalidade manifesta — suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de
caráter. Repete também todos os seus sintomas” (Freud, 1914/1996, p. 167). Tem-se assim que a
repetição não é acontecimento passado; é uma demanda atual do sujeito.

No texto “Além do princípio do prazer”, Freud (1920/2006) teoriza a compulsão à repetição que
seria responsável por conduzir o sujeito a um destino maligno que o leva para o sofrimento e
para a dor, determinado por influências infantis primitivas. É uma recorrência perpétua da mesma
coisa que leva o sujeito de maneira passiva a ter o mesmo resultado em todas as suas relações, as
quais não têm influência consciente, mas o levam à repetição da mesma fatalidade. A compulsão
à repetição sobrepuja o princípio de prazer, sendo apoiada pelo desejo de elaboração do que foi
esquecido e reprimido, apresentando alto grau de caráter instintual.

De acordo com Paim Filho (2010), no processo de compulsão à repetição estão implicadas a pulsão
de morte e a pulsão sexual. O que determina o destino em compulsão à repetição é a ineficácia da
pulsão sexual para domesticar a pulsão de morte. Nesse sentido, a compulsão à repetição sofre
uma dicotomia: de um lado, uma compulsão impulsionada pelo princípio do prazer, centrada na
força do desejo e pontos de fixação; de outro, a compulsão impulsionada pelo além do princípio do
prazer, com a repetição do que nunca foi prazeroso, centrada na força do traumático.

Sousa, Seguim, Levisky, Rudge e Ungaretti (2016) destacam que a psicanálise enfatizou a
importância de a criança entrar em contato com sua história para dela ser sujeito, e não sujeitada.
Isso não se processa somente através do falar, pois as experiências vividas são “contadas”
recorrentemente através da repetição do trauma nos vínculos atuais, em situações em que as
65 palavras não dão conta de expressar a densidade do vivido. O que está silenciado, não dito, não se
limita aos fatos em si; antes, revela sentidos singulares que o sujeito atribui aos acontecimentos.
Para as autoras, é fundamental mobilizar o sujeito a ter acesso a essa rede de sentidos para
construir narrativas possíveis de ser pensadas, porque o que se repete na transferência é o que
não pode ser lembrado. É essencial, porém, respeitar o tolerável e o intolerável no processo de
ressignificação do vivido na relação transferencial.

Abrão (2014) postula que o não dito da história pregressa do filho por adoção se expressa nos
sintomas e que estes podem vir relacionados com a necessidade inconsciente de repetir
o abandono, a ruptura e conviver com o estranho-familiar. Sintomas como dificuldade de
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aprendizagem, sensação de rejeição, de que está sempre errado, de que é traído ou injustiçado,
dificuldades de relacionamentos e de orientação espacial, necessidade de identificação com

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grupos de baixa valoração, dificuldades psicomotoras, sensação de inadequação, de sentir-se
estranho e diferente: tudo é comum em situações de adoção.

A flexibilidade com que essas e outras questões são vivenciadas e enfrentadas pela família por
adoção permitirão exercitar a construção dos vínculos, seja como elemento de renascimento e
vitalidade, seja na forma de pseudo-reparação.

Prosseguindo a análise, muitas histórias infantis trazem uma ameaçadora floresta em seus enredos.
Segundo Prestes (2008), muitos heróis dos contos são submetidos aos perigos da “floresta
escura”, que precisam enfrentar até a sua redenção. Florestas escuras e estradas aparecem
constantemente em oposição à segurança da vida doméstica. As florestas escuras também
representam o doloroso processo de crescimento que conduz à vida adulta. Só enfrentando a
floresta e superando os seus perigos o jovem herói pode encontrar a redenção.

Em João e Maria, a floresta foi escolhida como o local de abandono das crianças, deixadas ali
a própria sorte. O horror ao abandono pode ser perfeitamente ilustrado através desta parte da
história. Quando se encontravam abandonadas na floresta, as crianças ouviam o barulho do galho
batendo no tronco da árvore, o que remetia a algo que lhes era familiar, pois o pai era lenhador.

Joãozinho e Margarida sentaram-se perto do fogo e, ao meio-dia, cada qual


comeu o seu pedaço de pão. Ouvindo os golpes do machado, julgaram que o pai
estivesse aí por perto; mas não era o machado, era simplesmente um galho que
êle havia amarrado a uma árvore sêca e que batia sacudido pelo vento. Ficaram
muito tempo sentados junto do fogo, depois, pelo cansaço, foram-se-lhes
fechando os olhos até adormecerem profundamente. Quando despertaram, era
já noite avançada. Margarida pôs-se a chorar com mêdo. (Grimm, 1812, pp. 1-2)

66 João acredita ser o barulho do machado do pai cortando madeira nas proximidades mesmo
sabendo de antemão que seriam abandonados ali, o que ilustra um mecanismo de negação da
realidade insuportável: o abandono, que o faz ter uma fantasia alucinatória da presença do pai nas
proximidades, indicada pelo barulho do galho batendo na árvore.

Diante da vivência do abandono, o estranho funciona como defesa em relação à morte e ao


sentimento de aniquilamento. É desejo e é ameaça. O horror ao abandono é repetido como sintoma;
e muitas vezes as crianças que foram adotadas têm necessidade de testar os pais. Para isso,
usam formas diversas de verificar se vão abandoná-las ou não. Podem agir de forma delinquencial,
podem buscar identificações negativas, numa dinâmica que, ao se ligar à insegurança dos pais
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por adoção, amplia e potencializa o estranhamento. Daí podem resultar patologias complexas no
vínculo e nos indivíduos (Abrão, 2014).

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Um ponto da história em que o estranho-familiar aparece é na alegoria da casa de doces habitada
pela velha bruxa. A casa de doces é a casa que alimenta e sacia a imensa fome. João e Maria
devoraram a casa despejando toda sua voracidade sobre ela. Casa esta que remete à família, que
sacia e ampara. A família interiorizada pelas crianças, porém, é uma família que também abandona
e desampara. Muito rapidamente a casa de doces que os alimentava se torna a casa da bruxa que
tortura. A família simbolizada é dissonante e ambígua. A casa que os fartava se tornou novamente
a casa que lhes submetiam faltas. A velha da casa, que a princípio se apresentou como uma boa
mãe, que cuidava e alimentava, logo se desmantelou revelando sua face perversa, em forma de
bruxa que pretendia os devorar.

- Ah, meus queridos meninos, quem vos trouxe aqui? Entrai e ficai comigo, aqui
nenhum mal vos acontecerá.

Pegou-os pela mão e levou-os para dentro da casinha. Aí serviu-lhes uma


deliciosa refeição, composta de leite e bolinhos, maçãs e nozes; depois foram
preparadas para êles duas lindas caminhas, muito limpas e alvas; Joãozinho e
Margarida, muito cansados, deitaram-se, julgando estar no céu. A velha fingia
ser muito boa, mas na verdade era uma bruxa muito má, que atraía as crianças;
para isso havia construído a casinha de pão-de-ló. E, quando caía em suas mãos
alguma criança, ela matava-a, cozinhava-a e comia-a, e êsse dia era para a
bruxa um dia de festa. (Grimm, 1812, p. 3)

A família que traz sustentação e falta, amparo e desamparo se encontra em todo e qualquer
ambiente familiar, porém em casos onde já se vivenciou abandono pregresso essa dinâmica pode
ser sentida de maneira mais intensa.
As vivências de crianças que são expostas às experiências de abandono e de desamparo desde o
estabelecimento dos primeiros vínculos produzem efeito sobre o narcisismo. As formas de relação
67 do sujeito com o outro e a contenção da angústia e da dor são observadas na sua experiência
vivencial, reafirmando a concepção inicial de que algumas marcas podem ser transcritas ou não.
Através da análise pode-se acessar o que não foi falado; mas ela leva a uma representação mal
localizada – como explana Maggi (2009).

Essa ruptura precisa ser elaborada para que o sujeito consiga estabelecer uma narrativa coerente
sobre si. Marin (1999) explica que a questão da subjetivação e do desamparo em crianças
precocemente abandonadas está mais relacionada com a impossibilidade de significar a situação,
falar da própria história e expressar a dor ligada a isso, do que com a real perda, falta ou separação
da família de origem. Permitir que a criança entre em contato com sua história dolorosa para que
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possa fazer seu luto simbólico e organizar-se é fundamental para a construção subjetiva.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


A demanda mais contundente, nos casos de adoção, é justamente propiciar um espaço, ou
continente psíquico, no convívio com a família por adoção para elaboração dessas vivências e
memórias. Como explana Costa e Rossetti-Ferreira (2007), é importante que os pais por adoção
tenham conhecimento do passado da criança e informações sobre suas rotinas, seus gostos e suas
histórias; isso – quando sabem que são adotadas –, é importante o diálogo sobre suas vivências,
pois provavelmente terá dúvidas sobre sua história. Os pais que favorecerem a conversa com a
criança sobre seu passado de modo aberto e não defensivo auxilia o filho a construir narrativas
sobre ele, preenchendo lacunas de situações não compreendidas.

Quando se fala dos primeiros tempos da constituição psíquica, abre-se a possibilidade para
pensar nos movimentos e nas falhas no ordenamento do desejo e no processo de subjetivação. A
reorganização ou transposição dessas falhas para a criança que foi adotada acontece quando ela
transforma os fragmentos mnêmicos dos primeiros tempos de vida em uma construção histórica.
Através do pictograma1 e das identificações primárias, um tempo não falado pode ser recapturado
pelo simbólico (Maggi, 2009).

Não obstante todos os impasses relacionados à construção dos vínculos por adoção, Levinzon
(2009) ressalta que mesmo crianças adotadas com mais idade apresentam capacidade de se
recuperarem das privações físicas, emocionais e sociais quando inseridas em família que lhe
ofereça suporte adequado. São capazes de retomar ou até iniciar o desenvolvimento de suas

1. Pictograma, de acordo com Zimerman (2008), é o pensamento primitivo de natureza pré-verbal relacionado com a construção
de imagens visuais sem que ainda haja ligação com as palavras. Como postula Aulagnier (1975), a representação pictográfica é
pulsional e inscreve, na psique do bebê, a imagem de uma experiência corporal e sensorial.
potencialidades, reconstruir suas representações de self, restaurarem-se narcisicamente e
interiorizar novas figuras parentais; mesmo quando ocorrem dificuldades nas relações entre
68 passado e presente: temor de um novo abandono com presença de hostilidade em relação a nova
família e regressões.

A digressão realizada neste trabalho em torno da literatura sugere que a arte faz emergir fantasias
e questões subjetivas; ou seja, a literatura como expressão artística fornece elementos preciosos
para analisar manifestações inconscientes porque reflete a subjetividade e a pulsão sublimada. A
psicanálise aliada à literatura vem contribuir para a análise de questões relativas à adoção porque
se abre aos aspectos psíquicos aí imbricados e permite descortinar e transpor a rotulação do
imaginário social, contrapondo-se a pesquisas e estudos generalistas.
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AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


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AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


62952012000200013&lng=pt&tlng=pt
SUMÁRIO

71 A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO
DE RUA E O FRACASSO
DA ADOÇÃO

AUTORIA
FABIANO SIQUEIRA
Psicólogo e psicanalista. Mestre em Psicossociologia pela Universidade Federal do Rio
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

de Janeiro – UFRJ. Analista de Políticas Públicas da Prefeitura de Belo Horizonte. .


CONTATO: psi.siqueira@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
No presente trabalho, proponho pensarmos a adoção enquanto um ato de
reconhecimento intergeracional, descendente, independente de laço consanguíneo.
Mas por que esta generalização; por que independente do laço consanguíneo?
Esta proposta deve-se ao fato de a adoção ocorrer (ou não) também nas relações
consanguíneas, o que se comprova nos casos de pessoas em situação de rua que
possuem família e tiveram que ir pra rua devido ao fracasso desse processo de adoção,
isto é, devido ao fato de não serem reconhecidas pelos seus pais naturais ou familiares.
Utilizarei o conceito de “reconhecimento” tal como proposto por Axel Honneth (2003), em
suas três dimensões: a afetiva, a jurídica e a social. E, para pensar o não reconhecimento
(ou o fracasso da adoção), recorrerei à teoria do trauma em Ferenczi (1934/2011), mais
especificamente ao conceito de desmentido. Veremos que o desmentido é o avesso
do reconhecimento e que efeitos traumáticos podem ocorrer quando uma pessoa não
é reconhecida na sua condição de sujeito. Por fim, apresentarei a política pública de
assistência social de Belo Horizonte, voltada para a população em situação de rua, e,
ainda com o auxílio de Ferenczi, tentarei mostrar que, mais do que uma contribuição
teórica, essa reflexão aponta para uma perspectiva de cuidado, estabelecendo uma
ética, uma postura frente a um sujeito traumatizado e até mesmo uma posição política.
PALAVRAS-CHAVE: População em situação de rua; Reconhecimento; Adoção;
Desmentido; Política pública de assistência social.
INTRODUÇÃO

72 O presente artigo tem por objetivo trazer algumas reflexões acerca do tema da adoção,
relacionando-o com o trabalho psicossocial que venho realizando na política de assistência social
de Belo Horizonte junto à população em situação de rua. E não posso começar esse trabalho sem
antes agradecer o convite da comissão organizadora, não só pela honra de ter sido convidado,
mas principalmente pelo interesse demonstrado em relação a essa parcela da população tão
marginalizada, inclusive no meio acadêmico, como bem mostrou Jessé de Souza, em A ralé
brasileira: quem é e como vive.

E é importante notar que, ao contrário do que o senso comum afirma, essa população não é
socialmente excluída, mas, sim, marginalizada, pois, uma vez que concordamos com Robert Castel
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(1998), segundo o qual o trabalho é a principal via de inserção social, não podemos afirmar que a
população em situação de rua seja excluída do mercado de trabalho, já que a grande maioria exerce

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


alguma atividade laboral. No entanto, a inclusão destes sujeitos dá-se através dos trabalhos mais
precarizados possíveis, nos quais não são observados os direitos trabalhistas e não há a menor
garantia ou segurança para o cidadão (Silva & Siqueira, 2018). São subempregos, atividades
marginalizadas por toda a sociedade, consideradas indignas, subalternas ou sem relevância para
a sociedade.

Tais informações podem ser verificadas no Terceiro Censo da População em Situação de Rua de
Belo Horizonte, realizado em 2013 pelo Centro Regional de Referência em Drogas da Faculdade
de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (CRR–UFMG), em parceria com a Prefeitura
de Belo Horizonte. Embora não sejam atuais, visto que o fenômeno da situação de rua é muito
dinâmico e aumentou sobremaneira nos últimos dois anos, tais dados são ratificados todos os dias
nos atendimentos a essa população. Em 2013, porém, o censo apontava que apenas 12,5% dessa
população tinham um trabalho formal, com carteira de trabalho assinada, e que 70% já haviam
trabalhado dessa maneira (PBH, 2014). Quanto à atividade exercida, a maioria (48%) trabalhava na
coleta de material reciclável, ou seja, recolhiam no lixo os resíduos que poderiam ser reinseridos
na cadeia produtiva, o que acredito ser muito simbólico e representativo da marginalização a que
estão submetidos. Outras atividades citadas são a de guardador de carros ou “flanelinha” (35,2%),
servente de pedreiro (35%), carregador de caminhão (32,6%), faxina (18,2%), prostituição (8,8%),
etc (PBH, 2014).

Mas como esses sujeitos chegaram à situação de rua? É na tentativa de responder a essa questão,
ainda que parcialmente, que levanto a hipótese do fracasso da adoção. Supomos, por óbvio, que
os motivos que levam um sujeito a viver nas ruas são vários, sendo essa uma questão multifatorial
e sobredeterminada. Por isso, a fim de delimitar nosso objeto de reflexão, detenho-me aqui nos
casos em que a situação de rua se apresenta como consequência do fracasso da adoção, isto
é, como efeito do não reconhecimento do sujeito pelas próprias famílias. Refiro-me aos casos
relativos às pessoas que foram expulsas da casa de seus pais ou familiares devido à sua orientação
73 sexual, à sua cor de pele ou, até mesmo, devido ao uso abusivo de álcool ou outras substâncias
psicoativas.

Considerando que nossa sociedade é homofóbica, racista e moralista, estamos aqui diante de
sujeitos em sofrimento ou, na melhor das hipóteses, em uma posição de grande vulnerabilidade. E é
justamente esse sofrimento ou essa vulnerabilidade que, na dinâmica familiar, não é reconhecida.
Em outros termos, o discurso deste sujeito sobre o seu sofrimento, sobre a sua vulnerabilidade,
ou simplesmente sobre sua condição de existência, é desmentido justamente por aquele que em
tese deveria acolher e zelar pelo seu cuidado. E o desmentido, apresentando-se como o avesso
do reconhecimento, possui efeitos tão ou mais traumáticos do que uma agressão homofóbica ou
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racista.

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Neste sentido, é de fundamental importância que esses sujeitos encontrem acolhimento na política
de assistência social, o que não significa apenas atender às demandas objetivas que porventura
possam ter. Antes disso, é o seu sofrimento, a sua condição de vulnerabilidade, a sua própria
existência que precisa ser reconhecida, acolhida e afirmada, não só para que o trabalho social da
política pública não repita o desmentido que esse sujeito enfrentou no âmbito familiar e privado,
mas também para que a política de assistência social não esteja a serviço da manutenção do
status quo social, restringindo-se a aplacar os ânimos de uma classe oprimida, sempre explorada
e marginalizada pela classe que detém os meios de produção.

O RECONHECIMENTO

O ponto de partida deste trabalho é a hipótese segundo a qual a adoção é considerada um ato de
reconhecimento. E, a fim de circunscrever o nosso entendimento a respeito do reconhecimento,
cabe dizer que o referencial teórico que norteou nossa reflexão foi a obra de Axel Honneth
intitulada “Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais”. Neste livro, Honneth
(2003) mostra que o reconhecimento é um conceito central na filosofia política do jovem Hegel,
que posteriormente veio a fundamentar a sua própria teoria social na Escola contemporânea
de Frankfurt. Ele percorre a trajetória deste conceito, desde Hegel, passando pela psicologia
social de George Herbert Mead, e contando também com as contribuições da teoria do apego
do psiquiatra e psicanalista John Bowlby e das observações da primeira infância do pediatra e
também psicanalista Donald Woods Winnicott.

A partir deste percurso, que não cabe aqui destrinchar, Honneth apresenta o reconhecimento
como a necessidade vital que todo indivíduo tem de ser visto, ouvido, aprovado e respeitado
pelas pessoas do seu meio social, de modo que este conceito atualmente está no centro das
reivindicações políticas, principalmente das lutas identitárias e dos conflitos socioculturais, como
os que dizem respeito às questões étnicas e de orientação sexual. O que está em jogo em todas essas
74 reivindicações é o reconhecimento dos indivíduos em sua condição de sujeitos, considerando-se
sua sensibilidade, suas preferências e gostos, suas necessidades e vulnerabilidades, a integridade
do seu corpo e a sua integridade psíquica, enfim, a seu modo próprio de existência (Honneth, 2003).

Honneth (2003) então nos apresenta três perspectivas do reconhecimento, a saber: o


reconhecimento afetivo, o reconhecimento jurídico e o reconhecimento social. O reconhecimento
afetivo, que se dá nas relações de amor e amizade, diz respeito à dedicação emotiva investida em
tais relações e contribui para a formação da autoconfiança do sujeito. O reconhecimento jurídico,
observado nas relações institucionais, onde o campo do Direito precisa ser observado, refere-
se ao respeito cognitivo e tem papel fundamental na formação do autorrespeito do sujeito. E o
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reconhecimento social, identificado nas relações de solidariedade, é concernente à estima social


e colabora com a formação da autoestima do sujeito.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Se Honneth propõe três modos de reconhecimento, propõe também, por outro lado, três maneiras
de recusá-lo. O primeiro seria o reconhecimento amoroso, vivenciado na relação de objeto
primário, sendo a ausência deste reconhecimento experimentado como violação; o segundo é o
plano jurídico, no qual o reconhecimento recusado se torna privação de direitos fundamentais;
o terceiro, finalmente, é o plano sociocultural, no qual a recusa de reconhecimento é vivenciada
como ofensa ou degradação incidindo sobre modos de vida (Honneth, 2003).

E quando nos referimos à população em situação de rua, estamos falando de sujeitos que, em
sua grande maioria, tiveram essas três perspectivas de reconhecimento negadas. Estamos neste
trabalho lançando luz sobre casos em que o não reconhecimento se deu no âmbito familiar, fato
este que não é conditio sine qua non para se estar vivendo na rua, afinal, há diversos casos em
que o sujeito foi amado e reconhecido por seus familiares, mas, devido a fatores relacionados
à questão social - como o desemprego crônico -, ele acaba indo buscar a sua sobrevivência
na realidade nua e crua da rua. Então, a fim de delimitar nosso objeto de estudo, interessa-
nos aqui focar nos casos em que o reconhecimento foi negado na esfera privada, familiar, até
mesmo porque o não reconhecimento dessa população, em seus aspectos jurídico e social, é
uma constante, não importando se em maior ou menor grau. Além disso, uma vez que o plano
amoroso do reconhecimento é considerado a base dos demais aspectos do reconhecimento e o
pressuposto para a constituição do sujeito de direitos, a compreensão desta dimensão afetiva
poderá contribuir sobremaneira para o entendimento das reivindicações políticas (Gondar, 2012).

O DESMENTIDO: FRACASSO DA ADOÇÃO

O reconhecimento é fundamental para a constituição do sujeito e aqui o entendemos como


equivalente ao processo de adoção. Em síntese, ser adotado é ter a sua existência reconhecida,
em todas as suas necessidades e vulnerabilidades. E desmenti-las significa justamente negar a
existência do sujeito, não reconhecê-lo como tal, de modo que o desmentido pode ser considerado
75 o avesso do reconhecimento. Ademais, na perspectiva de Sándor Ferenczi, efeitos traumáticos
podem advir quando alguém não é reconhecido em sua condição de sujeito (Pinheiro, 1995).

A contribuição de Ferenczi, psicanalista húngaro e discípulo de Freud conhecido por tratar de


casos clínicos difíceis, auxilia-nos sobremaneira a pensar a questão do fracasso da adoção, uma
vez que o conceito central da sua teoria do trauma é o “desmentido”, entendido como o avesso do
reconhecimento. Ao contrário de Freud, que trabalhou a sua teoria do trauma a partir da realidade
psíquica do sujeito, Ferenczi lidava com casos de abusos reais contra crianças e sustentou que
o trauma se dava mesmo num segundo momento, quando os responsáveis pelos cuidados do
infante não acolhiam e, mais do que isso, negavam o acontecido (Ferenczi, 1929/2011). Este
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

desmentido, imprescindível para que haja o trauma, é entendido então como a negação de que
algo de fato aconteceu com a criança.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Entendemos o desmentido então como o não reconhecimento e a não validação perceptiva e
afetiva do abuso sofrido por um sujeito vulnerável. Trata-se de um descrédito da percepção, do
sofrimento e da própria condição de sujeito daquele que passou por uma situação potencialmente
traumática (Pinheiro, 2016). Portanto, o que se desmente não é o evento, mas o próprio sujeito que
o vivenciou, o que pode trazer efeitos prejudiciais para a sua autoconfiança, o seu autorrespeito
e a sua autoestima, configurando assim o caráter traumático do desmentido, ou do descrédito,
termo preferido pela psicanalista Teresa Pinheiro, eminente estudiosa do psicanalista húngaro.

Embora Ferenczi não tenha sido uma referência para Honneth, ele pode perfeitamente ser
considerado um representante do que este autor chama de “teoria psicanalítica das relações de
objeto” e, assim como Winnicott, poderia muito bem ter contribuído para a sua “fenomenologia
das relações de reconhecimento”. Isto porque, ainda que Ferenczi (1922/2011) tenha partido de
histórias familiares envolvendo uma criança abusada, o que ele privilegia mesmo são as relações,
e não os personagens. Em Confusão de língua entre os adultos e a criança, por exemplo, isso
pode ser muito bem observado. A diferença entre a linguagem da paixão e da ternura na relação
abusiva entre um adulto e uma criança, de que trata Ferenczi (1933/2011), aponta justamente
para a questão das relações de poder, de dependência, de desvalorização, de desrespeito, ou seja,
aponta para tudo aquilo que é característico das relações políticas.

Admitimos, portanto, uma linha de continuidade entre o campo afetivo e o campo sociopolítico, de
modo que a noção de “desmentido” pode perfeitamente ser aplicada em situações mais amplas,
como as que dizem respeito a coletivos ou grupos populacionais (Gondar, 2012), como é o caso das
pessoas em situação de rua. O último censo da população em situação de rua mostra que, dentre os
motivos que os teriam levado a viver e morar na rua, mais da metade (52,2%) se refere a problemas
familiares, sendo este o motivo prevalente (PBH, 2014). Ainda que a pesquisa não especifique se
tais problemas dizem respeito ao desmentido de alguma vulnerabilidade, ao não reconhecimento
76 de um sujeito negro ou LGBT por seus familiares, nossa prática cotidiana comprova que não são
raros os casos em que um cidadão se vê obrigado a viver na rua devido ao desmentido de sua
condição de existência, seja esta a negritude ou a sexualidade.

A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DE BH VOLTADA PARA A POPULAÇÃO DE RUA

A assistência social é uma política pública muito recente, cujos marcos legais mais relevantes
são a Lei Orgânica de Assistência Social (Brasil, 1993), a Política Nacional de Assistência Social
(Brasil, 2004) e, mais especificamente, a Política Nacional para População de Rua (Brasil, 2009a)
e a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (Brasil, 2009b). Embora seja uma política
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

pública ainda desconhecida por grande parte da sociedade, ela teve uma grande importância para
o crescimento econômico e para o desenvolvimento social que o Brasil experimentou entre 2002

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


e meados de 2013.

Muitos atribuem esse salto do país no cenário internacional à política de transferência de renda,
representada, sobretudo, pelo Programa Bolsa Família. Entretanto, ignoram que os beneficiários
deste programa social, reconhecido e premiado internacionalmente pela sua eficácia, são
acompanhados pelos serviços socioassistenciais do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, e
que o acompanhamento psicossocial ofertado é o responsável pelo grande sucesso do programa.
Afinal, a redistribuição de renda é tão mais eficiente no combate às injustiças sociais quanto maior
for o reconhecimento destas injustiças e das vulnerabilidades decorrentes (Fraser, 2001).

Não é nosso objetivo analisar ou avaliar aqui a Política Nacional para População de Rua (ou a
municipal), mas, a fim de contextualizar o lugar de onde falo, apresentarei os equipamentos e
serviços voltados aos cidadãos em situação de rua no município de Belo Horizonte, para então
apresentar duas vinhetas de casos acompanhados por mim em um Centro de Referência
Especializado de Assistência Social – CREAS, no qual atuo como membro da Equipe Regional de
Referência para População de Rua.

A principal unidade pública de atendimento a essa população é o Centro de Referência


Especializado para Pessoas em Situação de Rua, conhecido simplesmente como Centro Pop
(Brasil, 2009b). Belo Horizonte dispõe de somente dois Centros Pop para adultos, que ofertam
o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, realizando atendimentos, oficinas e
atividades de convívio e socialização (Brasil, 2009b). Essas unidades também funcionam como
ponto de apoio para as pessoas que moram e sobrevivem nas ruas, promovendo o acesso a
espaços de guarda de pertences, de higiene pessoal, de alimentação e provisão de documentação.
O Centro Pop Centro-Sul funciona de segunda à sexta-feira, de 08 às 17h, e o Centro Pop Leste
funciona de segunda à sexta-feira, de 08 às 17h, e sábado, domingo e feriados, de 13h às 17h. Além
dessas duas unidades, o município conta também com o Centro Pop Miguilim, voltado às crianças
e adolescentes em situação de rua, que funciona de segunda à sexta-feira, de 08 às 17h, e sábado,
77 domingo e feriados, de 13h às 17h.

Além dos Centros Pop, Belo Horizonte conta com duas unidades de acolhimento institucional,
que são equipamentos onde a população pode pernoitar durante os dias da semana, além de
oferecer alimentação, local para higiene, guarda de pertences e atendimento socioassistencial
(Brasil, 2009b). São eles o Albergue Municipal Tia Branca, que conta com 400 vagas masculinas,
e o Abrigo São Paulo, que disponibiliza 200 vagas majoritariamente para homens, mas que atende
também mulheres e, quando necessário, famílias. É importante ressaltar que as unidades de
acolhimento institucional, segundo as normativas legais, deveriam ofertar no máximo 50 vagas
(Brasil, 2009b), mas o município vem encontrando dificuldades para se adaptar à tipificação
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

nacional. Outro ponto que não pode passar despercebido é que o Albergue Municipal Tia Branca
e o Centro Pop Leste compartilham o mesmo espaço físico, e um número expressivo de pessoas

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


passa a noite no Albergue e o dia no Centro Pop, de modo que estes equipamentos configuram-se
como uma instituição total, tal como os manicômios e prisões, ainda que de portas abertas.

Belo Horizonte conta ainda com sete unidades de acolhimento institucional na modalidade de
república, que oferecem moradia, alimentação e acompanhamento socioassistencial (Brasil,
2009b). A República Reviver e a República Fábio Alves dos Santos são voltadas para o público
adulto e masculino, oferecendo, respectivamente, 40 e 44 vagas. A República Anita Gomes
dos Santos foi inaugurada recentemente e também é destinada somente a homens, possuindo
duas unidades que, juntas, oferecem 119 vagas. A República Maria Maria é voltada para o público
feminino e possui 40 vagas. A fim de acolher as famílias em situação de risco e vulnerabilidade
social, a prefeitura disponibiliza os abrigos Pompeia e Granja de Freitas, que disponibilizam
respectivamente 22 e 20 cômodos.

A Prefeitura de Belo Horizonte disponibiliza ainda uma unidade de acolhimento institucional


pós-alta hospitalar, com 20 vagas para adultos, homens ou mulheres, que tenham passado por
alguma cirurgia ou tratamento de saúde. Há ainda o Serviço de Apoio ao Migrante, que realiza
atendimento ao cidadão em contexto de migração e oferta passagens para retorno às cidades de
origem, mediante critérios e avaliação da equipe técnica. E, garantindo a alimentação gratuita à
população em situação de rua, há em Belo Horizonte cinco restaurantes populares, que oferecem
três refeições diárias, mediante comprovação através de inscrição no Cadastro Único.

Por fim, a população em situação de rua conta também com os CREAS, ao qual o Serviço
Especializado em Abordagem Social está referenciado. Este serviço constitui-se em um processo
de trabalho planejado que inclui aproximação, escuta qualificada e construção de vínculo de
confiança com pessoas em situação de risco pessoal e social nos espaços públicos, com o objetivo
de atendê-las, acompanhá-las e mediar o acesso à rede de proteção social e demais políticas
públicas (Brasil, 2009b).
78
Além da Abordagem Social, que atua propriamente nas ruas, os CREAS de Belo Horizonte contam,
desde maio de 2017, com a Equipe de Referência para População de Rua. Esta equipe, que possui
em média dois técnicos por regional, atua de forma semelhante ao Serviço Especializado para
Pessoas em Situação de Rua, dos Centros Pop, mas com algumas especificidades. Ela não
realiza oficinas ou atividades de convívio e socialização, mas, por outro lado, recebe a demanda
espontânea dessa população, ofertando acolhida, atendimento e acompanhamento psicossocial,
além de articular a rede socioassistencial e as outras políticas públicas, tendo sempre em vista
a garantia de direitos dos cidadãos. E não é irrelevante o fato de o trabalho social desta equipe
ser o único executado diretamente pela Prefeitura de Belo Horizonte, sendo todos os outros
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executados por entidades parceiras. A relação de emprego e as condições de trabalho do servidor


público ainda lhe garantem uma proteção mínima frente à fragilidade do pacto social (Siqueira

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et al., 2008), o que não ocorre com os trabalhadores contratados pelas entidades, que atuam na
execução indireta da política pública de assistência social.

É na perspectiva de atuação desta Equipe de Referência para População de Rua que apresento
duas vinhetas de casos acompanhados, a fim de demonstrar brevemente o desmentido da
sexualidade e da negritude como um fator que pode ser determinante para a situação de rua.
São dois casos emblemáticos, na medida em que representam a realidade de diversas pessoas
acompanhadas por esta equipe de referência.

O primeiro caso é o do Bruno (nome fictício), um jovem de aproximadamente 20 anos, que morava
com sua mãe em uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte e que se viu obrigado
a viver nas ruas porque não era reconhecido enquanto sujeito pela sua família, devido à sua
homossexualidade. Já em situação de rua, Bruno certa vez estava próximo à casa da sua mãe,
quando uma pessoa conhecida da sua família, aparentemente sem motivo algum, deu-lhe um
tiro que atravessou a cabeça. Em consequência desse tiro, Bruno ficou cego e perdeu o olfato e
o paladar, o que motivou a sua vinda para Belo Horizonte a fim de conseguir tratamento médico
adequado. Na capital, o jovem instalou-se no Albergue Municipal Tia Branca, onde o desmentido
de sua sexualidade voltou a ocorrer, agora no plano jurídico e social. Não me refiro à homofobia
por parte dos outros usuários do Albergue, mas, sim, pelos próprios monitores do equipamento,
que provocavam e perseguiam Bruno e os demais homossexuais, a fim de causar alguma reação
ou flagrá-los em algum ato libidinoso que justificasse sua expulsão. Ao buscar a coordenação da
unidade para denunciar o ocorrido e reivindicar justiça, Bruno mais uma vez tem a sua subjetividade
negada, desmentida.

O segundo caso diz respeito ao desmentido da negritude. Júnior (nome fictício), um jovem de
pouco mais de 20 anos que se autodeclara negro, relata nos atendimentos que sempre se sentiu
discriminado por sua mãe, que, embora não fosse branca, não se identificava como sendo negra.
Quando ela casou-se novamente, com um homem que também não se autodeclarava negro, a
79 discriminação intensificou-se, sempre escamoteada pelos motivos mais banais. Os conflitos
familiares foram se tornando insuportáveis, até que Júnior foi expulso de casa, sob ofensas
racistas por parte do padrasto e da própria mãe. E vivendo nas ruas, a falta de reconhecimento
devido à negritude não foi diferente da sua experiência familiar, inclusive em instituições que
deveriam acolhê-lo nas suas inúmeras vulnerabilidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema do reconhecimento geralmente é relacionado às lutas identitárias, às reivindicações


políticas de grupos populacionais por respeito e consideração com as suas identidades, sejam
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estas étnico-raciais, LGBTs, ou qualquer outra considerada como minoria. E, de fato, o mote das
lutas políticas contemporâneas não tem sido tanto o interesse econômico ou de sobrevivência,

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mas o sentimento de injustiça que provém de experiências de recusa de reconhecimento (Fraser,
2001). Porém, se concordamos que o reconhecimento é, antes de tudo, o reconhecimento da
vulnerabilidade de um sujeito, devemos considerar que reconhecer a vulnerabilidade de alguém não
é apenas reconhecer a sua identidade, mas, antes disso, trata-se de proteger a sua possibilidade
de tornar-se algo que ainda não se sabe, nem mesmo o próprio sujeito.

E é justamente essa proteção que está em jogo no acompanhamento psicossocial ofertado


pelos serviços socioassistenciais da política de assistência social, pois a vulnerabilidade não é
um problema que possa ser reduzido à diferença sexual ou étnico-racial, mas, sim, uma questão
que afeta a todos nós que vivemos em sociedade, numa mesma comunidade. A partir desta ideia,
Ferenczi (1932/1990) propôs, no início da década de 1930, a ideia de uma parceria entre analista
e paciente, além da possibilidade de concebermos uma sociedade horizontal, constituída pela
vulnerabilidade de seus membros. No que diz respeito a essa ideia de “horizontalidade”, não se trata
de atribuir maior ou menor poder a este ou aquele grupo, mas de reconhecer a vulnerabilidade,
ainda que potencial, de todos os envolvidos nas relações sociais.

Em verdade, há uma série de contribuições teóricas e técnicas do psicanalista húngaro que


pressupõem a quebra da verticalidade e da hierarquia na relação analítica, tais como a ideia
de um diálogo entre inconscientes, a proposta de “sentir com”, a análise mútua, a denúncia de
uma “hipocrisia profissional”, a confissão dos próprios erros, a ênfase na atmosfera de confiança
(Ferenczi, 1928/2011, 1929/2011, 1931/2011, 1932/1990). Ferenczi (1932/1990) tinha plena noção
dos limites do saber psicanalítico e pregava a modéstia por parte dos analistas, de modo que a
sua maior proposição talvez tenha sido fundar as relações subjetivas – analíticas ou não – sobre
a vulnerabilidade de todos nós.
O pensamento de Ferenczi vislumbra, então, uma nova possibilidade de laço social, que não se
constitui em torno da autoridade e da promessa de garantias, mas, antes disso, apoia-se sobre
80 a ideia do comum, sobre uma mesma comunidade. As relações de poder, neste caso, dão lugar
às relações de solidariedade. E é interessante perceber como a violência e o estabelecimento de
hierarquias podem operar como um desmentido da vulnerabilidade comum a todos nós, presente
em todas as relações. E a relação que se estabelece no atendimento a uma pessoa em situação
de rua não escapa a essa lógica.

O mote deste trabalho, inclusive, foi justamente a prática psicossocial realizada na política de
assistência social junto à população em situação de rua, que nos questiona incessantemente e nos
conduziu aos conceitos utilizados. No entanto, mais do que uma contribuição teórica, a reflexão
proposta por este trabalho aponta para uma perspectiva de cuidado, estabelecendo assim uma
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ética, uma postura frente a um sujeito traumatizado e vulnerável, e até mesmo uma posição
política. Acolher e responsabilizar-se por um sujeito traumatizado, admitir a sua reivindicação

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


por justiça, reconhecer a sua necessidade de reparação, enfim, todo esse conjunto de atitudes
perante a vulnerabilidade do outro pode ser ampliado ao campo sociocultural, ao campo do direito,
contribuindo para uma efetiva melhoria das políticas públicas e para o fortalecimento do próprio
tecido social, a fim de evitar o fracasso da adoção.

REFERÊNCIAS

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Social e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Leis/
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e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2009/Decreto/D7053.htm

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81
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Ferenczi, S. (2011). A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In Obras completas Sándor
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VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Ferenczi, S. (2011). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In Obras completas Sándor

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82
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VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


SUMÁRIO

83 A REABERTURA DA SITUAÇÃO
ORIGINÁRIA NO PROCESSO DE
ADOÇÃO E A POSSIBILIDADE DE
ENGENDRAMENTO DO NOVO

AUTORIA
MICHELLE AGUILAR DIAS SANTOS
Psicóloga. Bacharel em Psicologia e Mestranda em Estudos Psicanalíticos pela
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.


CONTATO: michelleaguilar.dias@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
O presente trabalho visa discutir as contribuições da teoria da sedução generalizada,
proposta pelo psicanalista francês Jean Laplanche, para o estudo psicanalítico das
adoções, em particular a noção de “reabertura da situação originária”, entendendo-a
como presente em ambos os lados envolvidos no processo de adoção: adotantes e
adotados. Dessa maneira, tem-se como objetivo principal compreender tanto seu
potencial de engendramento de novos posicionamentos subjetivos e elaboração de
traumas como também a possibilidade de que tal reabertura possa colocar-se como
empecilho para o processo adotivo. Como objeto de análise e inspiração será utilizada a
série Anne With An “E”, baseada na obra Anne de Green Gables, de Lucy M. Montgomery.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Reabertura da situação originária; Teoria da sedução
generalizada; Psicanálise.
Ao estabelecer o que denominou como “teoria da sedução generalizada”, Jean Laplanche (1987) a
propõe como novo fundamento para a psicanálise, de modo que sua conceitualização apresenta
84 reverberações significativas na prática clínica e na produção teórica do campo psicanalítico.

O que nos interessa dessa formulação, no presente trabalho, são as relações entre enigma,
tradução e situação originária, sem as quais não se pode apreender sua proposta. É a partir do
enlaçamento desses três conceitos que proponho uma leitura do processo de adoção, buscando
compreender suas possíveis implicações subjetivas para ambos os lados envolvidos, adotantes e
adotados. Para tanto, utilizarei, como objeto de análise, a série Anne With An “E”, baseada na obra
literária de Lucy M. Montgomery intitulada Anne de Green Gables, publicada em 1908.

Para Laplanche (1987), a situação originária estaria relacionada, nas origens, à assimetria radical
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entre um adulto portador de sexualidade inconsciente e um bebê desprovido de inconsciente, que


ficaria à mercê das mensagens provenientes do adulto, mensagens essas que são perturbadas

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pelo sexual infantil e por seu inconsciente. Sendo assim, a sedução de que fala Laplanche refere-
se ao enigma, ou seja, ao fato de que as mensagens inoculadas na criança são desconhecidas e
desviantes não apenas para ela, mas, também, para o adulto que as emite: “O enigma, aquele cuja
origem é inconsciente, é a sedução por si mesma” (Laplanche, 1987, p. 134).

Essa situação antropológica fundamental de assimetria nas origens de cada sujeito humano
instaura uma situação que está fadada a reinstaurar-se permanentemente. Apesar de sermos
bebês desprovidos de inconsciente e de mecanismos de tradução apenas uma vez na vida, a
irredutibilidade dos enigmas originários permanece em nós e também no outro, o que mantém
a possibilidade de uma reabertura da situação originária. Por isso, Laplanche (1987) afirma que
esta não está restrita apenas aos começos, mesmo que se encontrem ali de forma abundante:
“O originário não é essencialmente o que acontece primeiramente, mas o que é fundamento. [...]
não é impossível que uma situação ulterior, a análise, reponha em jogo o originário na sua própria
essência” (Laplanche, 1987, p. 162).

É, então, em relação ao enigma, que o conceito de “tradução” aparece de forma sistemática. Para
o autor, o que conta “é o que faz o receptor com essa mensagem, isto é, precisamente, a tentativa
de tradução e o necessário fracasso da tradução” (Laplanche, 2015, p. 108). Tal fracasso dá-se
justamente por causa da irredutibilidade dos enigmas originários, que nos impelem a traduzi-los
incessantemente, enquanto, de outro lado, permanecem fazendo uma força de destradução e
descentramento.

Em decorrência desse movimento permanente, Laplanche (2016) postula a possibilidade de


reinstauração dessa relação originária com o enigma na análise e também no que chamou de
“inspiração”. Em ambas as situações, um encontro com o outro, seja o analista, seja o público –
no caso dos artistas –, faria com que, “em ressonância com o outro adulto originário, esse outro,
em momentos privilegiados, [venha] reabrir a ferida do inesperado, do enigma” (Laplanche, 2016,
85 p. 50). O que proponho no presente trabalho é que a adoção pode configurar-se como mais um
desses momentos privilegiados.

Ora, em muitos processos de adoção está em jogo a origem, muitas vezes desconhecida ou até
mesmo negada, da criança. O desconhecimento/apagamento dessa origem funciona como um
enigma, não só para a criança, como também para os adultos que se dispõem a adotá-la. Tendo
isso em vista, proponho a hipótese de que o encontro caracterizado pelo processo de adoção é
permeado pela interpelação enigmática recíproca – principalmente em adoções tardias, nas quais
as crianças já possuem uma história libidinal e aparelho psíquico constituídos –, provocando, assim,
reaberturas que exigiriam um esforço tradutivo de ambos os envolvidos. Essa reabertura pode,
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então, mostrar-se tanto como obstáculo para a adoção como a possibilidade de engendramento
do novo. E isto não só para a criança. Tais respostas irão depender da disponibilidade de se abrir ao

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


outro que virá surpreender, ou, ao contrário, da tentativa de redução de seu potencial alteritário
e surpreendente – e, portanto, traumatizante – a partir de projeções de imagos, fantasias e mitos
que visam a capturar e traduzir o enigmático do encontro de forma rígida e extremamente fechada.

Para fundamentar o argumento, analisarei o processo de instauração da adoção para os três


personagens principais da série: a menina, Anne, e os irmãos Cuthberts, Marilla e Matthew. Buscarei
demonstrar de que modo é possível reconhecer os diferentes momentos e maneiras em que essa
reabertura aparece para os três personagens e como esse encontro pôde se configurar como
a possibilidade de reelaboração de situações traumáticas, engendrando novos posicionamentos
subjetivos em cada um deles.

Matthew e Marilla são irmãos já em idade avançada, que moram sozinhos em Green Gabbles,
onde ele cuida da fazenda e ela dos afazeres domésticos. Por já sentir o coração dar sinais de
enfraquecimento, Matthew é quem sugere que adotem um menino órfão, para que tivesse
ajuda nas tarefas. O fato de morarem sozinhos, de nunca terem se casado, já se apresenta
como um enigma para nós que vemos a série, bem como para Anne, que confabula milhares de
possibilidades. Somente ao final da primeira temporada ficamos sabendo do evento traumático
que modifica radicalmente a vida dos dois: quando Matthew era criança e Marilla uma jovem, seu
irmão mais velho morre de maneira inesperada. As condições de sua morte não são explicitadas. É
notória a dificuldade para os dois de falarem sobre o assunto. Matthew abandona a escola e Marilla
sente-se forçada a desistir de seus desejos, inclusive uma relação amorosa, para ficar em casa,
já que sua mãe jamais se recupera da perda do filho mais velho. Assim, essa perda parece lançá-
los em um tempo paralisado, regido apenas pela repetição das atividades na fazenda, até que os
sinais da velhice exigem uma mudança. Eles só não esperavam que essa mudança fosse ser tão
profundamente intensa.
Quando chega na estação de trem para buscar o menino, Matthew fica atordoado e confuso com
o equívoco, ao ver uma garota de 13 anos, com tranças ruivas e grandes olhos claros, que não
86 conseguia parar de falar e gesticular. Mas o engano pareceu-lhe muito pequeno, diante do impulso
de “não deixá-la lá, não importa de quem tenha sido o erro”. No caminho para Green Gabbles, ele
escuta Anne despejar suas fantasias e expectativas em relação a ser adotada por eles, além das
milhares de coisas que fala de forma desesperadamente rápida. É ele quem, pela primeira vez,
diz a Anne que não se importa que ela fale, aliviando-a de sua existência esbaforida, que sempre
lhe causava reações violentas e repressoras por parte das pessoas com quem havia convivido. O
alívio que ele lhe proporciona não é somente por poder falar quando quiser; tem a ver com poder
existir como ela é: nas palavras de Matthew, como uma “pessoa interessante”.

O que parece que ele encontra em Anne é alguém com quem conversar. Ele, que só vibrava
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com as larvas que atacavam sua plantação de pepinos. Matthew parece ter uma capacidade de
reconhecer e acolher a alteridade de uma maneira mais espontânea. Muito mais que Marilla, como

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veremos. Em várias das situações que vão acontecendo ao longo da história, é ele quem, muitas
vezes, traz Anne para o centro da atenção, da preocupação, enquanto Marilla sempre se vê presa,
em primeiro lugar, à sua própria reputação, à utilidade que Anne poderia ter. Sobre esse último
ponto, em um diálogo sobre ficarem ou não com a menina, Marilla está decidida a devolvê-la, pois
não vê em que ela os ajudaria. É quando Matthew responde: “Nós podemos ajudá-la”.

Matthew é aquele que está sempre disposto a se doar: um botão da melhor camisa de domingo para
um amor do passado, o relógio de herança para ir em busca de Anne, e até mesmo a própria vida,
para que Anne e Marilla não viessem a perder Green Gabbles, ao final da temporada. Essa doação
quase sem limites, que chega a uma tentativa de suicídio, mostra um outro lado dele que talvez
passasse despercebido. Ele, que só era capaz de vibrar com as larvas, que se fazia uma presença
quase sempre silenciosa, talvez se considerasse menos importante. Longe de desmerecer sua
capacidade para se doar, é preciso reconhecer o fundo masoquista e até mesmo autodepreciativo
em que Matthew parecia colocar-se. Até que ele se percebe importante para alguém – para Anne
–, e isso o faz lutar pela vida e por Marilla e a menina com uma outra força. É como se o encontro
com Anne e a assunção do lugar de parent1 o recolocasse em um lugar de importância, que ele
pode ter sentido perder junto com a morte do irmão. Com uma mãe completamente enlutada, ele,
que era o mais novo, teve de abandonar a escola e a garota por quem era enamorado.

Contudo, foi justamente o doar-se sem reservas que possibilitou que ele acolhesse Anne de uma
forma genuína e paciente, o que fundou nela uma possibilidade de existência um pouco menos

1. A escolha do termo em inglês deve-se à tentativa de marcar a relação de cuidado e responsabilidade com relação à outra
pessoa a partir da adoção, indicando que a parentalidade não precisa, necessariamente, passar pelos lugares exclusivos de pai
e de mãe.
angustiada. Já não era preciso lançar mão da frase de Jane Eyre para se tranquilizar: “Se todo
mundo odiasse você e a considerasse perversa, mas sua consciência a aprovasse e a absolvesse
87 da culpa, você não estaria sem amigos”. Agora, havia um outro a fazer isso por ela.

O processo ocorre de maneira muito mais complexa com Marilla. Preocupada com o
desconhecimento da origem do órfão, ainda quando imaginava que seria um menino, Marilla
mostra-se rígida e desconfiada. Em vários momentos, pensa que Anne a está roubando. Essa
insistência do mesmo tema, o roubo, faz pensar se não haveria uma fantasia pressuposta. Talvez
o medo de ser roubada tivesse relação com a maneira como pode ter traduzido o que se sucedeu à
morte do irmão. O encontro com Anne, para Marilla, é então atravessado pelo medo de ser roubada,
pela preocupação com a utilidade que Anne poderia ter e, mais importante, pelo efeito enigmático
que Anne tem sobre ela: “Há algo nela que eu não entendo”. Efeito que provoca um movimento de
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tentar reduzi-lo a qualquer custo, abrindo pouco espaço à alteridade da menina.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


À medida que a história se desenrola, vamos percebendo a profunda identificação que Marilla
estabelece com Anne. Essa identificação aparece como um obstáculo, nesse primeiro momento,
que talvez remetesse ao que Freud (1996/1919) chamou de “estranho familiar”. Mas há algo em
Anne que desafia ainda mais: ela é radicalmente questionadora, dona de uma liberdade admirável,
tendo em vista suas condições de vida. Busca o prazer e o sentido nas coisas, dando a elas algo
de sua singularidade. Há uma profunda coragem nela, que Marilla admira, mas em relação à qual
se ressente. Coragem que lhe faltou quando se recusou a viajar o mundo com John, para ficar em
casa com sua mãe. “As obrigações podem ser uma prisão”, diz ela, ao reviver todas as lembranças
quando seu amor de juventude, que se casara com outra mulher, morre.

Um momento crucial da trama e também do processo de adoção é quando, depois de decidir não
devolver Anne ao orfanato e dar a ela uma semana “para lhe convencer a ficar com ela”, Marilla
vê-se novamente invadida pela fantasia de roubo, quando seu broche, herdado da avó, some,
depois de Anne ter brincado com ele. Ela força a situação até que Anne inventa uma história,
desesperada que estava, para que pudesse ficar com eles. Marilla exige dela a verdade. Não a
verdade da situação ou de Anne, mas a sua própria: de que a menina havia lhe tirado algo. Anne
não encontra alternativa e diz tê-lo perdido, esperando que a verdade a salvasse de mais um
abandono. Marilla vê-se tomada de ódio e ressentimento e a envia para o orfanato ao nascer
do sol. Na manhã seguinte, encontra o broche caído em sua poltrona, e se consome de culpa.
Matthew sai em uma busca demorada, que lhe custa o relógio de herança e um grave ferimento
na cabeça, enquanto Marilla esfrega o chão e assa pães e biscoitos obsessivamente.

Matthew encontra Anne e voltam para casa. Mas Marilla, ainda muito culpada, mal consegue se
aproximar dela. Somente quando Anne é insultada em um piquenique da cidade Marilla consegue
ir ao seu encontro, deparando-se com uma Anne ressentida pelo que havia passado, sem
compreender o porquê de Marilla tê-la recebido de volta, se não parecia gostar dela. É quando
Marilla pergunta-lhe se ela a perdoaria: “Quando o broche sumiu, julguei sem pensar. Mas o pior é
que eu a forcei a mentir. O que mais poderia fazer? Estremeço só de pensar. Sei o que passou por
88 minha culpa. Me espanta ter voltado. Se você puder, do fundo do seu coração, acreditar em mim,
me perdoar, então nós podemos começar de novo”. Vemos, aqui, o momento em que a identificação
com Anne ganha outro significado para Marilla: o de colocar-se no lugar, de reconhecer o dano
causado e, em última instância, a alteridade de Anne, que deixava de ser um duplo ameaçador.

No dia seguinte, Marilla pede que a menina chame-a pelo primeiro nome e diz que gostariam que
ela assinasse a Bíblia da família e recebesse o sobrenome deles. A cena é muito emocionante,
e Anne se empolga, assinando inúmeras vezes, com todos seus nomes, sobrenomes e nomes
imaginários. Mas é o que diz, enquanto assina, que nos traz um aspecto muito importante sobre a
adoção: “Com essa caneta, eu vos aceito, Matthew e Marilla Cuthbert, para ser minha família para
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sempre. Para chamá-los de meus e para ser sua. Para sempre”.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Essa fala nos indica que a adoção não é um processo unilateral, que provém apenas dos
adotantes. A criança também é ativa. É preciso que consinta, que aceite e que adote esta família.
Digo “família”, e não “pais”, pois essa fala de Anne aponta para esta outra direção significativa.
Há algo ainda mais fundamental no desejo de menina, que talvez nos faça pensar para além de
sua história: por mais que o desejo de ser filha e filho seja importante, o desejo de pertencer a
uma família mostra-se tão importante quanto. Isso nos abre uma via significativa para pensar as
diversas configurações familiares, como a dos Cuthbert, por exemplo.

É esse pertencimento, que se dá para todos os três, que vai abrindo novas vias de elaboração e
tradução dos efeitos traumáticos aos quais cada um via-se submetido. Marilla vai aprendendo a
ser amada, a sair da zona de conforto – e de defesa –, para conseguir acompanhar Anne, e nesse
processo descobre que não conhece a si mesma. Esse momento de muita angústia, que, em um
primeiro tempo, explode em raiva direcionada a Matthew, ganha uma possibilidade de elaboração
via identificação com Anne, quando Marilla diz a ela que deve decidir, ela própria, quem quer ser,
e se esforçar para alcançar isso. Assim, a questão do narcisismo dos pais projetado nos filhos,
proposta por Freud (1996/1914), instaura-se na relação das duas, fazendo com que algo que ficara
encrustado no ressentimento pudesse libertar-se em Marilla, e, desse modo, ela pôde libertar Anne.

O processo todo, para Anne, é profundamente angustiante, como já foi possível vislumbrar. Sua
empolgação inicial é rapidamente frustrada pela reação de Marilla e o conhecimento do engano. Não
a haviam desejado. Só podia ser um erro. Além disso, os obstáculos subjetivos de Marilla a fizeram
impor a Anne uma vivência de pura instabilidade e uma incerteza desesperadora, que provocaram
uma resposta de tentar provar-se adotável a qualquer custo. Esse esforço para ser aceita vai
se deslocando para a relação com os pares, na escola. Mas é quando a relação com Matthew
e Marilla vai se consolidando e tornando-se constante que Anne começa a poder estabelecer
outras relações com os colegas, fazendo verdadeiras amigas. Não só Matthew, mas também sua
amiga Diana, aceitam Anne como ela é. E essa nova forma de ser amada e reconhecida instaura,
89 paulatinamente, uma nova forma de amar, em que não era necessário ser outra ou prestar-se
completamente ao outro, por medo da rejeição.

Mas esse fantasma não a abandona. Em uma cena, depois de ter fugido da escola por ter sido
humilhada pelo professor, além de impedida de se relacionar com sua melhor amiga, Anne está
fantasiando ser uma princesa, quando é invadida, como vemos ocorrer em muitas cenas, por algo
que a imaginação não consegue recobrir: “Deve ser terrível estar a serviço de quem a negligencia
ou trata mal. Imagino que isso a faria se sentir bem pequena e inútil. E, às vezes, desesperada e
insegura. Será que esses sentimentos vão embora?”.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Talvez nunca irão, de fato, mas as novas possibilidades de tradução que vão sendo engendradas
pela relação familiar que se constrói, fundamentalmente marcada pelas inúmeras e incessantes

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


reaberturas, possibilitam a Anne dizer, ao final, que quer ser a heroína de sua própria história. Ela
já não precisa imaginar-se outra para fugir de sua realidade ameaçadora. Ela encontrou um lar, um
lugar e pessoas a quem pertencer. Isso a possibilitou que pudesse, de alguma forma, pertencer um
pouco mais a si mesma. É preciso pertencer a outro para que seja possível, apesar dos percalços
inevitáveis, pertencer a si mesmo. Ainda que nunca sejamos senhores de nossa própria casa,
podemos habitá-la com mais ou menos dificuldade. E Anne, Marilla e Matthew reencontram um
novo lar, uma nova família.

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1996). Introdução ao Narcisismo. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. (Jayme Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 75-110). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1914).

Freud, S. (1996). O ‘Estranho’. In Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. (Jayme Salomão, Trad., Vol. 17, pp. 233-270). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1919).

Laplanche, J. (1987). Novos fundamentos para a psicanálise. (J. Gama, Trad.). Lisboa: Edições 70.

Laplanche, J. (2015). A partir da situação antropológica fundamental. In Sexual: a sexualidade


ampliada no sentido freudiano 2000-2006. (V. Dresch e M. Marques, Trads. 103-115) Porto Alegre:
Dublinense.

Laplanche, J. (2016). Sublimação e/ou inspiração. Percurso, 56(57), 35-52.


SUMÁRIO

90 ADOÇÃO E ANIMALIDADE: O
CASO DE HELEN MACDONALD
E SUA AÇOR, MABEL

AUTORIA
FÁBIO BELO
Professor de Psicanálise na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Doutor em Estudos Literários pela UFMG.


CONTATO: fabiobelo76@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


MARINA ALMEIDA
Psicóloga. Mestre em estudos psicanalíticos pela UFMG.
CONTATO: mmacielalm33@gmail.com

RESUMO
A partir de uma breve análise do livro F de Falcão, discutimos a adoção e seus
diversos efeitos. Compreendemos que este tema pode suscitar a reflexão
sobre modos possíveis de tradução do trauma, especificamente o luto. Quando
a protagonista do livro adota um falcão após a morte de seu pai, experimenta
novas maneiras de lidar com a alteridade. Neste caso, a adoção aparece
como caminho possível para a tradução de vivências de passividade radical.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Alteridade; Luto
AUTOBIOGRAFIA, FICÇÃO E PSICANÁLISE

91 O objeto de análise deste trabalho é uma autobiografia chamada F de Falcão (Macdonald, 2016).
Analisaremos alguns trechos desta obra a fim de apontarmos algumas particularidades do
processo de adoção de um açor por Helen, uma filha enlutada. Diversas são as análises possíveis,
mas gostaríamos de enfocar, como bons psicanalistas, as associações que Helen faz ao longo do
livro entre a figura do animal e seu pai morto. O site da editora adverte: É uma “autobiografia nada
usual” (Editora Intrínseca, 2016). Ficou no ar, entretanto, a pergunta sobre o que seria isso. Sabendo
que nossas lembranças não são cópias fiéis do acontecido e que a fidelidade pouco importa para
a psicanálise, cabe outra pergunta: não seria toda narrativa, para a psicanálise, ficcional, já que o
que importa são os caminhos que o sujeito escolhe ao recontar a própria história? Não seria toda
escrita algo “nada usual”?
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Ao interpretarmos a história de Helen como fazemos com casos clínicos não estamos, em alguma

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


medida, recontando-a sob a lente de nossas próprias especulações, mesmo que elas assumam o
status de conceitos científicos? Pensando nisso, cabe fazermos aqui uma breve comparação entre
o tocante relato de Helen e a obra ficcional de Max Porter (2015), cujo livro de estreia, intitulado
Grief is the thing with feathers (ou, na edição portuguesa, Luto é a coisa com penas), trata da
chegada de um corvo em uma família devastada pela morte da mãe/esposa. Essa história tem 4
narradores sem nome: o pai, duas crianças e o corvo.

Uma noite, cinco dias após a morte da esposa, o pai ouve a campainha tocar e, ao abrir a porta, a
figura de um corvo invade a casa e recusa-se a sair até que o pai não precise mais dele. O pássaro
captura o pai e as crianças como quem resgata uma ninhada de filhotes abandonados. “Eu me
importo profundamente” (Porter, 2015, p. 16, tradução nossa), diz o corvo.

Acho os humanos entediantes, exceto no luto./ Há muito pouco na saúde, no


desastre, na fome, na atrocidade,/ no esplendor ou na normalidade que me
interessa,/ mas crianças sem mãe sim. Crianças sem mãe são corvos puros./
Para um pássaro sentimental, é delicioso invadir um ninho assim. (Porter, 2015,
p. 16).

No decorrer do livro, a narrativa do corvo mostrar-nos-á que ela mesma é fruto de um processo de
despersonalização do pai, que encontra na figura do animal um recurso (ainda que precário) para
proteger parte do eu da ameaça de fragmentação ocasionada pela morte da esposa.

O mesmo recurso da adoção do animal será usado na autobiografia de Helen: a açor (que
recebe o nome de Mabel) é adotada logo após a morte de seu pai. Quando traçamos o evento de
perda do objeto de amor como ponto em comum entre as duas histórias, também dissolvemos
algumas diferenças, em uma leitura psicanalítica, entre autobiografia e ficção. A invasão do corvo
trata de um processo de despersonalização vivido pelo pai. A relação com o animal é uma fábula
inventada pelo sujeito para que ele suporte a devastação do luto. Também a relação com a açor
92 Mabel é da ordem de uma invenção, já que não podemos ter certeza sobre as respostas do pássaro.
Eram respostas em grande parte inventadas por Helen.

Adotar um animal e ser adotado por um animal aparece nos textos como representação de algo
que precisa ser recuperado, como a função que um dia o pai desempenhou para Helen ou o lugar
que o pai ocupava na relação com a esposa morta.

ANIMALIDADE E ADOÇÃO

Belo (no prelo), ao analisar o bestiário de Clarice Lispector, lança a tese da qual também iremos
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

nos valer neste artigo: “os animais constituem um tipo de objeto libidinal através do qual o sujeito
simboliza aspectos da alteridade inconsciente que o habita” (p. 1). O esquema geral que o autor

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


propõe para pensar nossas relações com os animais é o seguinte:

1. olho o animal e projeto nele conteúdos recalcados;

2. o animal me olha e sinto vir dele mesmo os conteúdos inconscientes que


projetei nele;

3. sobra um resto dessa operação de tomar o animal como objeto libidinal alvo
de projeções:

a) reconheço a autonomia e a existência do animal aquém e além de minhas


fantasias (projetivas e identificatórias) sobre ele, acolhendo-o como alteridade,
não apenas um outro-parte-de-mim projetado, mas como alteridade e diferença,
ser vivente para sempre enigmático e distinto, impossível de ser reduzido aos
significados que imponho a ele;

i. estabeleço nova relação libidinal com o animal: amor, ódio, medo, mas
agora com o reconhecimento de que nem tudo nessa relação é apenas meu e
projetado, mas também do animal, imune às minhas operações psíquicas;

ii. destruo o animal na medida em que esta alteridade radical, agora


reconhecida como aquém e além das identificações projetivas, remete à
minha alteridade interna, insuportável e também fora do meu controle; como
tentativa final de controlar esta alteridade, destruo o animal e/ou reduzo-o à
homogeneidade da espécie, destituindo-o de qualquer identidade singular.
(Belo, no prelo, pp. 3-4)
Desligar-se do objeto perdido é, também, desligar partes de si mesma. Esse desligamento fragiliza
o Eu e uma forma possível de reconstruir-se é justamente através de outras relações objetais. É o
93 que Helen tenta estabelecer, ainda nos estágios 1 e 2 da relação libidinal com o animal: um vínculo
libidinal que passe radicalmente pela identificação:

Não havia alento maior para o meu coração em luto do que ver o açor atender
ao meu chamado. Porém, era difícil, agora, fazer qualquer distinção entre meu
coração e a ave. [...]. Isso me lembrava a trilogia de fantasia infantil de Phillip
Pullman chamada Fronteiras do universo em que cada pessoa tinha um daemon,
um animal que é uma manifestação visual da própria alma e a acompanha por
toda a parte. Quando as pessoas são separadas dos seus daemons, sentem dor.
Era um universo muito parecido com o meu. (Macdonald, 2016, p. 135).
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Apesar do esforço de Helen em manter o vínculo com o princípio de realidade, há, assim como

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


no livro de Max Porter, passagens que evidenciam um processo de identificação com o animal ao
estilo de uma despersonalização:

Tinha assimilado todas as características do açores descritas nos livros. Estava


nervosa, hipersensível, paranóica, propensa a ataques de pânico e raiva; me
alimentava avidamente ou não comia nada; fugia da sociedade, me escondia de
tudo; me encontrava vagando em lugares estranhos onde eu não tinha certeza
de quem ou o que eu era. Caçando com Mabel, dia após dia, eu assumira - em
minha imaginação, é óbvio, mas só podia ser assim - a perspectiva diferente
da ave, sua compreensão animal do mundo. Isso me trouxe algo semelhante a
loucura, e eu não compreendia o que tinha feito. Quando era pequena, achava
que me transformar em um falcão proporcionaria uma sensação mágica. O que li
em A espada na pedra me estimulou a pensar, também, que proporcionaria algo
bom e construtivo; uma aula de vida para uma criança que se tornaria um rei.
Mas agora a aula estava me matando. Não era a mesma coisa, de forma alguma.
(Macdonald, 2016, p. 206).

Certa vez, ao sair para caçar com o açor, Helen é confundida com um faisão por Mabel e recebe
um golpe de suas garras causando um corte profundo. Este instante marca a relação de Helen
com a ave no sentido de introduzir algo da diferença. Dias mais tarde, a autora discursa em uma
cerimônia de homenagem a seu pai. Há um reencontro com outro tipo de alteridade: é confortada
por amigos e familiares dele. Alguns contam a ela sobre a importância de seu pai em suas vidas.

As mãos servem para outras mãos humanas segurarem. Não deveriam ser
restritas a servir como poleiros para falcões. E a vida selvagem não é uma
panaceia para a alma humana; tempo demais no ar pode corroer nossa alma até
não sobrar nada. (Macdonald, 2016, p. 212)
94
De volta à casa, Helen admite a própria incapacidade em perceber que não estava alimentando
Mabel o suficiente. Quando constata o sofrimento do animal, ela reconhece sua existência para
além dos conteúdos projetados nele.

Este processo situa Helen no campo 3.a.i, isto é, ela tem uma relação com Mabel que ultrapassa
a simples identificação projetiva. Trata-se de acolher algo da alteridade mesma de Mabel. Nossa
tese é que tal acolhimento auxiliou Helen a elaborar o luto da perda de seu pai, pois, no luto, há
intensos processos de ataques ao Eu.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

SONHOS, LUTO E TRADUÇÃO

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Todo o complexo de sentidos que gira em torno do voar compõe a força tradutiva de Helen. Aviões,
céu, aves: todas essas associações parecem servir para ligar excitações arcaicas provenientes
de suas relações originárias, em especial à que teve com o pai. Uma memória banal, como aquela
na qual a autora lembra-se do pai apontando para o céu e insistindo na beleza ou na raridade do
fenômeno visto, ilustra bem a associação entre o complexo paterno e tudo que se relaciona ao voo:

Certa noite de inverno, ele chegou em casa do trabalho estranhamente abatido.


Perguntamos qual era o problema. “Vocês viram o céu hoje?”, rebateu. Ele
caminhara por um parque londrino, voltando de uma coletiva de imprensa. O
local estaria deserto se não fosse por um garotinho brincando perto de um lago
congelado. “Eu disse: ‘Olhe para cima, olhe aquilo ali. Lembre-se de que você viu
aquilo, pois nunca mais vai ver de novo’”. Acima dos dois havia um ornamento de
anéis de gelo e parélios em um desfocado céu de inverno. Um halo de inverno,
um arco circunzenital e um arco tangente superior, a luz do sol refratando e
cortando os céus em uma complicada geometria de gelo e ar e fogo. Mas o
garoto não parecia interessado. Papai ficou perplexo. “Talvez ele tenha pensado
que você era um daqueles homens esquisitos”, provocamos, rindo e revirando
os olhos, e ele pareceu constrangido e ligeiramente zangado. Mas ficou muito
triste com relação ao garoto que não quis ver nada. (Macdonald, 2016, p. 74)

Em um sonho, Helen vê seu pai ainda criança, em um local onde ele escalava com os amigos em
locais bombardeados:

Então o garoto se vira, olha para mim lá em cima de pé na casa em ruínas, e sei
que ele vai dizer algo. Mas não ouço palavras. Em vez disso, ele aponta com o
braço. Aponta para cima. Eu olho. Há um avião no alto, quilômetros acima de
nós, tão alto que a fuselagem e as asas estão iluminadas pelo sol poente. Não
95 há o ruído do motor, nenhum som, nada mais se movendo em nenhum lugar.
Apenas esse pequeno ponto de luz cruzando o céu até passar por cima de nós
e se perder nas sombras do mundo. Olho de novo para baixo e o menino que era
meu pai desapareceu. (Macdonald, 2016, p. 66)

A realização de desejo presente no sonho reproduz esse apontar para cima, um olhar para o alto,
para o mesmo lugar em direção ao qual o pai deseja olhar. Olhar como o pai, para onde o pai
olha. Podemos deduzir que esses elementos articulem-se na vida psíquica de Helen: o voo, o
olhar para o alto, o pai. É por esse encadeamento pré-consciente que excitações inconscientes
conseguem seu caminho de escoamento rumo à consciência. Tais excitações são provenientes
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

de representações-coisas, isto é, os restos de mensagens não traduzidas que compõem o


inconsciente e que insistem em ser traduzidas de alguma forma.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


É esta nossa hipótese: desejos inconscientes (restos dessignificados) encontram uma via pré-
consciente pela qual podem satisfazer-se: voo, gavião, avião, açor, pai. O açor aparece como mais
um elemento da equação simbólica pré-consciente de Helen. Dominar o açor é também dominar
a excitação inconsciente que se vale desse percurso do voo-gavião-avião-pai. Adotar Mabel foi
uma estratégia defensiva brilhante: metonímia da relação amorosa com o pai, o animal aparece
como um objeto transicional, isto é, não apenas representante do pai, mas um elemento que trazia
de volta a permanência de um espaço em comum entre ele e Helen. O desligamento libidinal do pai
torna-se cada vez mais possível na medida em que esta via – dominar o animal, estabelecer uma
relação de amor com ele – mantém vivo o objeto perdido, mas já em outro lugar. Vejamos como o
luto termina e como a adoção do animal tem a ver com isso.

ADOÇÃO E ALTERIDADE

Ao longo do relato de Macdonald, ela nos conta trechos do livro The Goshawk, de T. H. White.
Trata-se também de um relato autobiográfico de um autor e o muito mal sucedido treinamento
de um falcão chamado Gos. Temos um contraexemplo notável da relação entre Helen e Mabel.
White, através dos trechos relatados por Macdonald, é absolutamente incapaz de reconhecer a
alteridade de Gos: o animal é tratado como objeto servil, teimoso, às vezes um tipo sofisticado de
brinquedo cuja autonomia deveria ser controlada. Uma relação bem distante daquela que Helen
estabelece com Mabel: certa deferência, respeito e uma árdua tentativa de compreender o modo
de funcionamento de seu animal. Quase poderíamos dizer: a adoção como paciente tentativa de
compreender um suposto desejo do animal, um modo de ser diferente do nosso, mas, ainda assim,
compreensível, comunicável.
O final do processo de luto é marcado por essa distinção da alteridade de Mabel e de sua própria
alteridade:
96
Penso na lista de coisas de White e no final triste e esquisito. Juro a mim mesma,
com o livro aberto na mão, que nunca reduzirei minha ave a um hieróglifo, uma
figura histórica ou um avião esquecido. É claro que não vou fazer isso. Não posso.
Porque ela não é humana. De todas as lições que aprendi nos meses com Mabel,
esta é a mais importante de todas: há um mundo de coisas lá fora - rochas,
árvores, pedras, grama e tudo que rasteja, corre e voa. São coisas autônomas,
mas as tornamos sensíveis a nós lhes dando significados que reforçam nossas
próprias visões de mundo. No meu tempo com Mabel, aprendi como se sentir
mais humana após descobrir, ainda na imaginação, como é não sê-lo. E aprendi,
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

também, o perigo em confundir a característica selvagem que conferimos a


uma coisa com a característica selvagem que a inspira. Os açores são seres de

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


morte, sangue e vísceras, mas não são desculpas para atrocidades. Temos que
ter muito cuidado com sua falta de humanidade, pois o que fazem nada tem a
ver conosco. (Macdonald, 2016, p. 265)

O luto termina quando os restos associados ao objeto morto deixam de atacar o eu. A sombra do
objeto pode, finalmente, servir como abrigo, e não mais como ataque. Na passagem acima, fica
claro que os restos pré-conscientes associados ao pai serviram para manter Helen ligada a ele,
mesmo que sendo atacada. A distinção entre uma violência animal e uma outra, humana, pode
ser interpretada dessa forma. A violência animal pode ser distinguida da violência sofrida pelo eu
quando atacado pelo objeto perdido.

O acolhimento da alteridade do animal consolida o processo de adoção de Mabel. Ao alcançar


a posição 3.a.i do esquema que propusemos anteriormente, Helen reconhece a animalidade como
algo enigmático, distante dos conteúdos projetados por ela. Isso faz com que ela finalmente possa
cuidar de Mabel e, em seguida, separar-se dela. Quando abandonamos determinadas posições
dentro de um esquema psíquico, também há um processo muito semelhante ao luto. Quando
Helen se dispôs a adotar Mabel, teve condições de flexibilizar o sadismo implícito na atividade
de treinar um animal selvagem. Com isto, permitiu-se experimentar algo da passividade diante
deste outro enigmático, algo que a morte do pai talvez tenha perturbado profundamente. Adotar
Mabel possibilitou que Helen elaborasse a perda do pai e pudesse resgatar e incorporar elementos
transmitidos na relação com ele, algo que fica evidente nesta lembrança de sua infância:

Tinha nove anos de idade. Meu pai estava de pé, perto de mim. Estávamos
procurando gaviões-da-europa. [...] Quando se tem nove anos, porém, esperar
é difícil. Chutei a base da cerca com minhas galochas. Eu me contorci e me
remexi. Suspirei. Pendurei-me na cerca pelos dedos. E então meu pai olhou para
mim, meio irritado, meio entretido e me explicou algo. Ensinou-me o que era
paciência. Ele disse que era a coisa mais importante de todas para se lembrar,
97 dessa maneira: quando você desejava mais do que tudo ver algo, às vezes tinha
que ficar imóvel, parado no mesmo lugar, lembrar-se de quanto você queria
aquilo, e ser paciente. [...] Se você quer ver os falcões também tem que ser
paciente. Ele falou de forma séria e circunspecta, mas não irritada; o que ele
fazia era comunicar uma Verdade dos adultos, mas concordei com a cabeça,
amuada, e olhei para o chão. Soava como uma lição, não como um conselho
e não captei exatamente o que ele estava tentando me dizer. Você aprende.
Hoje, pensei, não mais aos nove anos e aborrecida, fui paciente e os falcões
apareceram. (Macdonald, 2016, p. 18)
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

REFERÊNCIAS

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Belo, F. (no prelo). O bestiário de Clarice Lispector: breve leitura a partir de Laplanche.

Macdonald, H. (2016). F de falcão. (M. C. Dias, Trad.). Rio de Janeiro: Intrínseca.

Porter, M. (2015). Grief is the thing with feathers. Minneapolis: Graywolf Press.

Editora Intrínseca. F de Falcão. Recuperado de https://www.intrinseca.com.br/livro/627/.


SUMÁRIO

98 ADOÇÃO E RACISMO:
QUESTÕES PARA A
PSICANÁLISE

AUTORIA
THALITA RODRIGUES
Psicóloga e psicanalista. Mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Gerais – UFMG. Doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.


CONTATO: thaalita.rodrigues@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


GIOVANNA BRITO GIANNINI
Graduanda em Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
CONTATO: giovanna.mbgiannini@gmail.com

JOANA BUSCHINI BRENTANO


Graduanda em Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
CONTATO: buschinijoana@gmail.com

RESUMO
A partir da articulação entre as temáticas da adoção, do racismo e da psicanálise,
este artigo busca compreender como o processo adotivo é impactado pelas
relações raciais no Brasil. Partindo dos dados da preterição de crianças negras,
investigamos como o processo da adoção é atravessado pelos códigos tradutivos e
pelas mensagens enigmáticas de designação de raça que, por sua vez, interferem
na vinculação entre adotante e adotado. Em um contexto em que incide o mito
da democracia racial, é necessário que atentemos para as influências do racismo
no decorrer do processo adotivo para que possamos transformar essa realidade.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Psicanálise; Racismo.
INTRODUÇÃO

99 A partir de um breve levantamento bibliográfico sobre as temáticas de adoção, racismo e


psicanálise, propomos uma reflexão que coloque esses três grandes temas em diálogo. As
estatísticas explicitam que grande parte dos adotantes prefere escolher a cor das crianças e
adolescentes a serem adotadas e que há prevalência por brancos1 . Tais pesquisas evidenciam a
preterição de crianças, adolescentes e jovens negros no processo de adoção. Essa preterição é
uma faceta do racismo brasileiro que estrutura as relações sociais e também opera nas dinâmicas
psíquicas (Rodrigues, 2018), conforme discutiremos a seguir.

O processo de maternagem e paternagem – que, é preciso pontuar, não se restringe a casais


heterossexuais ou mesmo a casais – é construído a partir de fantasias por parte daquelas/es
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

que desempenharão tais funções. Ou seja, ser mãe, pai, filha/o é um processo a ser construído e
que envolve investimento libidinal. Pensamos, assim, a partir da Teoria da Sedução Generalizada

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


(Laplanche, 1992; 2015), que essas relações não são naturais, mesmo quando pensadas em termos
de consanguinidade. Assim, partimos da proposição de que as relações familiares são sempre de
adoção, adota-se a/o filha/o que nasce e essa/e adota sua/seu respectiva/o mãe/pai. Ampliando
o conceito de adoção enquanto um processo de construção das relações entre mães-pais e filhas/
os, propomos uma reflexão acerca de como se dá tal processo a partir das relações raciais.

Como Freud explicita e Laplanche radicaliza, o narcisismo é fruto do investimento dos adultos
sobre os bebês e as crianças. Como tal investimento pode ser pensado a partir de relações que
hierarquizam determinados grupos sociais, colocando a população negra em um patamar de
inferioridade? Que fantasias estariam envolvidas nesse processo? Como tais questões emergem
na clínica e na psicanálise extramuros (aquela prática psicanalítica que se realiza fora do setting
tradicional, segundo Laplanche)? São algumas das reflexões que pretendemos desenvolver ao
longo deste trabalho.

A ADOÇÃO

De acordo com o Cadastro Nacional de Justiça – CNJ2 , o processo de adoção tem início quando o
indivíduo ou casal interessado procura a Vara de Infância e Juventude. Uma petição é preparada
por um defensor público ou advogado particular que dá início à inscrição para adoção. Para adotar,
é necessário participar de um curso de preparação psicossocial e jurídico, com duração de dois
meses e com aulas semanais. A/o candidata /o, após participar do curso, é submetido à avaliação

1. Dados pesquisados em 2018 no Cadastro Nacional de Adoção, disponível no site do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Cf:
http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf
2. Cf: http://www.cnj.jus.br
psicossocial com entrevistas e visita domiciliar feitas pela equipe técnica interdisciplinar. Neste
processo pode ser avaliada tanto a situação socioeconômica quanto a psicoemocional, da/o
100 candidata/o. Fatores como estilo de vida incompatível ou razões equivocadas (por exemplo,
aplacar a solidão ou superar uma perda) podem comprometer o processo. A idade mínima para
o processo é de dezoito anos, e deve haver uma diferença de dezesseis anos entre quem adota
e quem é adotada/o. Pessoas solteiras, viúvas ou de união estável podem adotar o que inclui a
adoção por casais homoafetivos que ainda não é estabelecida por lei, mas alguns juízes deram
decisões favoráveis.

Ao longo da avaliação psicossocial, especialmente durante a entrevista, a/o candidata/o


descreverá o perfil da criança desejada, como sexo, raça, faixa etária, estado de saúde, irmãos
(a lei prevê que, quando a criança possui irmãos, o grupo não será separado), etc. O resultado é
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

encaminhado ao Ministério Público e ao juiz da Vara de Infância. Após o laudo da equipe técnica
da Vara e do parecer emitido pelo Ministério Público, o juiz dará a sentença e, após o acolhimento

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


do pedido, o nome da/o candidata/o constará nos cadastros locais e nacionais de pretendentes à
adoção. Assim, a/o candidata/o aguardará uma criança e/ou adolescente com o perfil desejado.
Uma vez encontrada/o, o histórico de vida da criança e/ou adolescente será apresentado ao
candidato e, logo depois, ambas/os serão apresentadas/os. A criança/adolescente também
é entrevistada/o para saber se deseja continuar o processo. Se ambas as partes estiverem de
acordo, inicia-se o estágio de convivência, em que é permitido visitar o abrigo e realizar pequenos
passeios. Se o relacionamento fluir, a criança/adolescente é liberada e a/o candidata/o ajuizará
a ação de adoção. Na entrada do processo, a/o candidata/o receberá a guarda provisória que
terá validade até o fim do processo. A equipe técnica ainda visitará a/o candidata/o e a criança/
adolescente para apresentar uma avaliação conclusiva. Após o juiz proferir a sentença, há um
novo registro de nascimento com o sobrenome da nova família. Pode-se trocar o primeiro nome
da criança/adolescente, que terá todos os direitos de um/a filha/o biológica/o.

Não faltam casais para adotar, mas o perfil mais desejado (menina, branca e menor de quatro
anos) traz dificuldades para a adoção de crianças (CNJ, 2017). Um dos pontos cruciais na adoção
brasileira é a existência da família idealizada e da adoção clássica, que pressupõe “buscar a solução
de conflitos ou a satisfação das necessidades do adotante e não exatamente do adotado” (Costa
& Campos, 2003, p. 224). No processo de adoção clássica, há uma “maior procura por crianças
claras, semelhantes fisicamente aos adotantes, recém-nascidas/bebês e saudáveis” (Costa &
Campos, 2003, p. 224). Também há uma preferência para crianças do sexo feminino, sendo que
“as explicações para isto podem estar relacionadas aos estereótipos culturais de gênero que
relacionam o sexo feminino à docilidade, beleza e domesticidade” (Costa & Campos, 2003, p.
224). Costa e Campos (2003) acrescentam que uma possibilidade para tantas exigências seria a
tentativa de assegurar que uma semelhança biológica fosse possível o que atuaria no narcisismo
das/os adotantes bem como a tentativa de diminuir intercorrências que viessem a ocorrer devido
a história, origem e genética da/o adotada/o.
Segundo a pesquisa de Costa e Campos (2003), existem cinco dimensões importantes apontadas
que deveriam ser priorizadas no estudo psicossocial, sendo elas: a motivação; as condições
101 materiais e socioeconômicas; o amor e o vínculo como aspectos prioritários; a prioridade para os
casais sem filhos; e perfis compatíveis entre crianças e famílias adotantes. Também é tratada a
importância de contar à criança que ela é adotada, sendo que “O diálogo das famílias nos levou a
pensar que talvez se revele a verdade mais por medo de que algo saia errado, do que por acreditar
ser um direito da criança conhecer sua história de origem” (Costa & Campos, 2003, p. 227).

Podemos perceber que o processo de adoção é permeado por escolhas, algumas bem conscientes,
outras nem tanto, que dizem respeito às histórias libidinais daquelas/les que optam por tornarem-
se mães e pais. Como já explicitado, uma das escolhas diz respeito ao perfil da criança e/ou
adolescente a ser adotada/o. Tal escolha tem uma dimensão consciente e objetiva, mas também
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

dimensões que dizem respeito a como as relações raciais atuam no psiquismo. Desenvolveremos,
a seguir, algumas pontuações relacionando o debate racial e as relações libidinais com as relações

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


sociais brasileiras.

ADOÇÃO E RACISMO: CONSIDERAÇÕES E REFLEXÕES

Conforme apontado, as estatísticas explicitam que há uma disparidade entre o perfil de crianças
disponíveis e o perfil desejado pelas famílias adotantes. Ao adentrarmos o universo do Cadastro
Nacional de Adoção – CNA 3 e das estatísticas sobre a temática percebemos que o perfil não se
restringe, obviamente, à raça: há preferência por meninas, bebês de até dois anos de idade, uma
criança em detrimento de irmãos, dentre outras preferências. Contudo, nesse trabalho, focaremos
na questão racial.

Dados do CNA apontam que apenas 34% das pessoas adotantes se dizem indiferentes à raça
da criança/adolescente. Daqueles 66% que se importam com a raça, 92% prefere que a criança/
adolescente seja branco, 61% se dispõe a adotar pardas/os e 35% negras/os. Ou seja, há uma
prevalência pela adoção de crianças brancas (JusBrasil, 2017).

O discurso do mito da democracia racial (Gomes, 2005) tem construído uma postura diante da
história brasileira de que somos um país diferente: devido à miscigenação (advinda da colonização
e exploração europeia/branca, da escravização da população africana/negra e do extermínio da
população indígena), teríamos chegado a um patamar de convivência harmônica entre as raças.
O caráter violento do processo tem sido negado e diminuído a fim de que outra história seja
construída, mais harmônica e palatável. Um dos perigos de tal mito é a invisibilização da histórica

3. Cf: http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf
e violenta desigualdade social e racial que tem determinado possibilidades distintas a grupos
populacionais diferentes.
102
Quando falamos em raça, estamos utilizando-a no sentido sociológico (Guimarães, 1995; Munanga,
2004), uma vez que é sabido que não existem raças humanas. De acordo com Oracy Nogueira
(2006), haveria uma predominância do preconceito racial de marca no Brasil, sendo o fenótipo
ou a aparência racial um dos itens que caracterizariam tal discriminação. Ou seja, quanto mais
atributos físicos negroides, maior a chance de alguém sofrer discriminação racial. Quais seriam os
impactos disso para a subjetividade?

Neusa Santos Souza (1983) aborda tal questão no clássico Tornar-se negro: as vicissitudes do
negro brasileiro em ascensão social. Ao analisar diversas histórias, a psicanalista explicita como
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

a construção do mito negro, geralmente atrelado a estereótipos negativos (feio, sujo, animalesco,
sexualizado) afetam diretamente a constituição subjetiva da população negra. O Ideal de Eu

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


possível seria o branco, comprometido com o parâmetro ditado pela brancura. Souza explicita o
quanto tal construção imporia uma negação, o expurgo de quaisquer “manchas negras” (Souza,
1983, p. 34), que culminaria em uma rejeição e, em níveis mais desesperados, à violência ao
corpo. A construção do Ideal do Eu, da instância egóica, o próprio narcisismo, estariam, portanto,
diretamente relacionados ao corpo e às mensagens/discursos sobre ele. Se tais mensagens/
discursos são racializados, mais precisamente, racistas, Souza (1983) explicita que a construção
psíquica também o é.

Maria Aparecida Bento (2002) traz importantes contribuições para a compreensão da construção
das relações brasileiras ao dispor-se a tratar da temática do branqueamento e da branquitude: o
primeiro seria um processo histórico, político, social e psicológico de construção da branquitude
como parâmetro para formação identitária negra, com a finalidade de manter o controle sobre
essa população bem como os privilégios da população não negra. A branquitude, por sua vez,
seria o uso de si enquanto parâmetro social, processo similar ao que Freud nomeia enquanto
processo de narcisismo.

Franz Fanon (2008) também se dispõe a compreender os impactos do racismo e do colonialismo no


psiquismo da população da Martinica e de como estas relações forjam subjetividades amparadas
em ideais brancos, no caso, franceses, e a negação da negritude a fim de alcançar um estatuto
de sujeito.

Tais estudos e dados explicitam que o racismo, enquanto estruturante das relações sociais,
engendra também impactos subjetivos. Conforme Fanon (2008), Souza (1983) e Bento (2002)
explicitam, tais processos estão aquém de nossa volição e atuam nas nossas posturas cotidianas.
Ora, se a adoção é um ato que implica a escolha de tornar-se mãe/pai/cuidadora/cuidador;
se há o predomínio de escolhas marcadas pelo parâmetro da branquitude e a consequente
negação da negritude; se permanecem os fenômenos da família idealizada e da adoção clássica
(que pressupõe a satisfação das necessidades do adotante e não de quem é adotado) (Costa &
103 Campos, 2003), a preferência por crianças brancas tende a se manter. Tal tendência/atualidade
perpetua a atuação do racismo no cerne de uma instituição social – a família – fundamental
para a constituição do psiquismo individual, na medida em que as crianças negras continuarão
a receberem um endereçamento de mensagens de rejeição em relação ao seu corpo e a partir
da contínua negação de uma família. As crianças brancas, por sua vez, também perceberão a
realidade desse mecanismo, uma vez que são as escolhidas. Há uma dinâmica relacional, em que
branquitude e negritude conjugam-se na produção de experiências que são rejeitadas e outras
que são escolhidas, ou melhor, adotadas.

ADOÇÃO E PSICANÁLISE: ALGUMAS PROPOSIÇÕES


VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

A malha teórica da psicanálise apresenta muitos recursos para pensarmos a adoção.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Compreendendo que cada caso é singular, tentaremos entender as implicações de um processo
adotivo na vida psíquica dos sujeitos envolvidos nessa situação. Questões como a ausência da
consanguinidade, as fantasias conscientes e inconscientes e as expectativas dos pais em relação
aos filhos e ao seu próprio desempenho enquanto pais, como serão estabelecidos os laços libidinais
com a nova família e como será o luto da criança em relação às suas primeiras relações de afeto
serão analisadas a seguir.

A criança que é adotada tem que lidar com a separação no começo de sua vida. A maioria delas
já havia estabelecido laços libidinais em um primeiro momento de sua existência, mas agora
são convocadas a abandoná-los para recriá-los com outras pessoas em um novo ambiente
(Levinzon, 2016). Isso envolve um processo de luto que pode ser bem sucedido, ou então, não ser
satisfatoriamente assimilado, gerando sofrimento em sua vida psíquica e dificuldades nas suas
relações. Segundo Levinzon (2016), a criança adotada viveu um trauma de separação de sua mãe,
que adquire maiores ou menores proporções a depender de como se deu tal evento, podendo
acarretar cicatrizes de desamparo, abandono e feridas narcísicas profundas.

Por parte dos adotantes, pode haver diversas motivações que levam à escolha pela adoção. Dentre
elas, uma muito comum, segundo Levinzon (2016), é a esterilidade dos pais, que se veem frente ao
luto de não poderem gerar seus filhos. Tal situação pode ser um grande impasse em termos de sua
imagem narcísica e da continuidade de si. Quando não elaboradas, essas questões podem se apoiar
em justificativas, como a herança genética do filho adotivo, para os conflitos presentes na família.

Esse não-luto, no processo de adoção, pode gerar problemas na qualidade dos vínculos e das
identificações, como aponta Xerfan (2009). A autora diz que a criança é adotada quando pode ser
reconhecida como sujeito e isso implica “o estabelecimento de um laço emocional que lhe forneça
a possibilidade de encontrar uma identificação e o seu narcisismo” (p. 42). Enquanto ela não puder
ser reconhecida dentro daquela família em sua singularidade, investida narcisicamente e amada,
a identificação para com a mesma estará comprometida.
104
Pensando ainda nos processos de identificação e na questão da herança genética, Xerfan (2009)
exemplifica situações da clínica onde isso fica evidente, levando, por exemplo,

uma criança negra a sair do banho toda coberta de talco para se assemelhar
aos pais que são brancos ou a não tomar bebidas escuras (café, coca-cola, açaí)
para não escurecer mais e, assim, ficar ainda mais diferente de seus pais. Ou a
criança branca que se expõe ao sol sem proteção com a esperança de se tornar
morena ou negra. E, numa situação extremada, a criança que desenvolve um
quadro de vitiligo associado ao seu imenso desejo de “embranquecer” e, assim,
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

poder se “parecer” mais com seus pais. (p. 95)

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Outro fator que se faz presente na filiação é a imagem idealizada da criança, transposta na
expectativa dos pais em relação a ela. Como Freud (1914/1980) aponta, na criança é depositado
o anseio pela realização dos ideais narcísicos dos pais. O amor dos pais pelos filhos representa a
revivescência do próprio narcisismo infantil dos pais e a promessa de imortalidade do ego, antes
sentida em seu ideal de eu e agora depositada nos filhos através da possibilidade desses em serem
uma continuação de si (Freud, 1914/1980). Aqui é retomada a problemática do luto em relação à
transmissão genética, que mal elaborado, pode gerar consequências negativas no relacionamento
com a criança. Se os pais não reconhecem a criança como parte de si, um obstáculo é criado à
filiação e às identificações da criança, que dão contorno a seu tecido narcísico. Além disso, Levinzon
(2006) registra que a falta de laço consanguíneo pode gerar um medo constante de abandono,
como se a ausência de ligação genética não garantisse um vínculo sólido dos pais com a criança.

Sobre as identificações, Roudinesco e Plon (1998) escrevem que o sujeito vai se constituindo
enquanto tal à medida que constrói laços emocionais com outras pessoas, e é identificando-se
com elas que seu contorno de si vai sendo construído. Na cena adotiva temos, por um lado, uma
criança cujas primeiras identificações se deram no contato com sua mãe biológica (pai, demais
adultos) e que, posteriormente, veio a se separar desta, colocando-a em uma situação de luto
desse (s) primeiro (s) objeto (s) de amor. Por outro, há também pais adotantes com expectativas
idealizadas da criança e de sua relação com ela. É nesse campo que haverá o trabalho, por parte
da criança, de estabelecer novos vínculos que legitimem sua posição de sujeito, e, dos pais, em
se mostrarem modelos passíveis de identificação, esvaziando suas fantasias em relação à criança
para que ela possa apoderar-se de si sem estar submetida a uma obrigação de cumprimento
dessa demanda vinda dos pais.
ADOÇÃO, PSICANÁLISE E RACISMO: ARTICULAÇÕES

105 A Teoria da Sedução Generalizada auxilia na compreensão desse processo de articulação entre
adoção e racismo ao trazer a perspectiva de que a constituição do psiquismo é um processo
intersubjetivo construído a partir da relação, desigual, entre um adulto (portador de um psiquismo já
constituído e, portanto, de um inconsciente que ele mesmo desconhece) e uma criança. A sedução
originária que estaria apoiada nos cuidados de autoconservação exporia a criança a mensagens
enigmáticas (verbais, não verbais, comportamentais) impregnadas de significações sexuais
inconscientes. A implantação da pulsão e a instauração do inconsciente seriam um processo
de tentativas de tradução, pela criança, dessas mensagens enigmáticas advindas do adulto
(Laplanche, 2015). Propomos uma leitura que articule esse processo de sedução, implantação da
pulsão e instauração do inconsciente e do psiquismo a partir da noção de mensagens enigmáticas
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

de designação de raça:

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Pensemos as questões de raça também: as designações relativas aos códigos
raciais também estão sendo direcionadas, o bebê está sendo identificado pelo
adulto a partir de seu corpo, sua cor, seus traços, seu cabelo, de forma múltipla,
desorganizada e, em grande parte do tempo, com mensagens pré-conscientes.
Pensemos sobre o pacto social de silenciamento do racismo, do mito negro, da
branquitude/brancura e do branqueamento operando nos fantasmas do socius
que vê e cuida dos bebês. (Rodrigues, 2018, p. 194)

As mensagens enigmáticas de designação de raça estariam presentes nos cuidados que os


adultos destinariam às crianças, independente da vontade e decisão das/os cuidadoras/res em
emitir tais julgamentos. Retomemos o trecho de Xerfan (2009), no qual a autora dá exemplos
de como crianças adotadas e que estabelecem relações inter-raciais (filhas/os de casais com
identidades raciais diferentes da própria criança) comportam-se de forma a se “adequarem” aos
seus pais, independente disso ter sido solicitado e/ou verbalizado, chegando a casos extremos
de crianças desenvolverem vitiligo a fim de tornarem-se mais parecidas com os pais adotivos.
Nota-se que, pelo trecho citado, tais designações de raça operam tanto em crianças negras
que tentariam embranquecer quanto em crianças brancas que tentariam enegrecer. Essa é
uma dimensão importante que Rodrigues (2018) pontua: o caráter universal das mensagens
enigmáticas de designação de raça que operariam tanto na população negra quanto na população
branca. Contudo, como já apresentado anteriormente no item referente ao debate racial, o mito
negro (Souza, 1983) opera contribuindo para um processo de inferiorização de negras/os em
detrimento de brancas/os e o ônus do racismo recai, portanto, naquelas/es. Um exemplo de
como tal situação tem ocorrido na clínica da adoção: dialogando, por um lado, as proposições
apresentadas anteriormente acerca do luto tanto das/os adotantes pela não transmissão genética,
quanto das/os adotadas/os pela perda do vínculo familiar inicial/consanguíneo, com, por outro
lado, as adoções inter-raciais, faz sentido pensar sobre a atribuição da culpa dos conflitos dessa
relação familiar com o “mau sangue” que a criança negra herdaria de sua genética (mito negro).
Como Levinzon (2006) aponta, justificar o comportamento encarado como desviante através dos
106 atributos hereditários que a criança possui é comum na clínica. O “mito negro”, presente na nossa
sociedade como idealização e atribuição de características pejorativas às pessoas negras, vem
somar para que a criança negra seja colocada nesse lugar.

Com tais reflexões sobre as mensagens enigmáticas de designação de raça (Rodrigues, 2018) e
mito negro (Souza, 1983), gostaríamos de visibilizar que a questão racial é uma importante variável
a ser levada em consideração ao longo do processo de adoção. Conforme viemos explicitando,
ao longo desse texto, a interferência das relações raciais no processo de estabelecimento dos
vínculos familiares é muito menos consciente e deliberada do que imaginamos, embora os dados e
estatísticas evidenciem que a escolha pela criança/adolescente a ser adotada é, obviamente, uma
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

escolha racializada. Pretendemos, com esse trabalho, suscitar questões a serem incorporadas ao
processo de adoção como a perspectiva de que as crianças, desde muito novas, por receberem as

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


designações de raça do socius, iniciam processos de tradução a fim de metabolizar tais mensagens
enigmáticas (Laplanche, 1992, 2015). Isso torna tais crianças e adolescentes capazes de, com o
decorrer do processo que consiste na constituição do psiquismo, estarem atentas às diferenças
raciais que são, em nossa sociedade, desigualdades raciais. Tais mensagens enigmáticas de
designação de raça (Rodrigues, 2018) estão sendo emitidas pelo socius independente das/os
adultas/os assim o desejarem. Atentar-se para esse processo é importante a fim de desenvolver,
ao longo do processo de adoção, estratégias de trabalho tanto nas/os adotantes quanto nas
crianças para lidarem com as diferenças raciais. A proposta não é a de culpabilizar possíveis
adotantes por emitirem tais mensagens enigmáticas de designação de raça, até porque, todas/os
as/os sujeitas/os o fazem, mas, sim, visibilizar que as relações raciais (e mais especificamente, o
racismo) é uma constante em um país cuja história se pauta no mito da democracia racial e ainda
tem extrema dificuldade de reconhecer a existência do racismo.

(IN)CONCLUSÕES

Com esse trabalho, propomos um levantamento bibliográfico sobre as temáticas de adoção,


psicanálise e racismo a fim de pensar as intersecções destes três grandes temas.

O processo de adoção é demorado, burocrático e muitas vezes desgastante. Ao encarar essa


escolha, as/os possíveis adotantes precisam estar atentos sobre as motivações que os levam a
escolha pela adoção, bem como as dificuldades que lhe são inerentes. É preciso se haver com as
próprias expectativas em relação à criança a ser adotada, que certamente estarão carregadas de
fantasias conscientes e inconscientes. Tais fantasias, idealizações, o investimento libidinal para
a construção do processo de maternagem e paternagem são atravessados pelas mensagens
enigmáticas de designação de raça (Rodrigues, 2018). Considerar a variável racial é importante
a fim de que o processo de adoção seja cada vez mais democrático e contemple essas crianças e
adolescentes negras que são preteridas e constituem a maior parte da população institucionalizada
nos abrigos. E, mesmo para aquelas situações em que a adoção inter-racial torna-se uma realidade,
107 que esse processo seja favorecido, entendendo que os vínculos libidinais serão atravessados
pelas questões raciais. Ressaltamos que a proposta de visibilizar os atravessamentos raciais no
processo de adoção tem por intuito favorecer o debate de algo que é invisibilizado, porém real:
a dinâmica do racismo na vida social e psíquica. Que possamos continuar trabalhar a articulação
entre adoção, psicanálise e racismo a fim de que tenhamos processos menos discriminatórios.

REFERÊNCIAS

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das famílias adotantes. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 19(3), 221-230.

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realizadas em 2016. Recuperado de http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84325-cadastro-
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Freud, S. (1980). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição Standard das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. (Jayme Salomão, Trad). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1914).

Gomes, N. L. (2005). Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no
Brasil: uma breve discussão. In Brasil. Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal
nº 10.639/03. (pp 39-62). Brasília: MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e
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Guimarães, A. S. A. (1995). Racismo e anti-racismo no Brasil. Novos Estudos, 43, 26-44.

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de https://coad.jusbrasil.com.br/noticias/2999101/adocao-exigencia-quanto-ao-perfil-da-
crianca-e-o-principal-entrave.

Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. (Cláudia Berliner, Trad.). São Paulo:
Martins Fontes.
Laplanche, J. (2015). O gênero, o sexo e o Sexual. In Sexual: a sexualidade ampliada no sentido
freudiano 2000-2006. (José Carlos Calich et al, Trad.) (pp. 154-189). Porto Alegre: Dublinense.
108
Levinzon, G. K. (2006). A adoção na clínica psicanalítica: o trabalho com os pais adotivos. Mudanças
– Psicologia da Saúde, 14 (1), 24-31.

Levinzon, G. K. (2016). Adoção e Sofrimento Psíquico. Psicanálise, 18(1), 57-73.

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In . A. A. Brandão (Org). Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. (pp.15-34).
Niterói: Biblioteca da Universidade Federal Fluminense.
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Roudinesco, E.,& Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

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Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
social. Rio de Janeiro: Edições Graal.

Rodrigues, T. (2018). Há lugar para a raça em psicanálise? Reflexões a partir da Teoria da Sedução
Generalizada. In: Psicanálise e racismo: interpretações a partir de Quarto de Despejo. Belo
Horizonte: Relicário Edições.

Xerfan, C. C. (2009). A identificação na filiação por adoção: um estudo na clínica psicanalítica.


Dissertação (Mestrado em Psicologia), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Pará, Belém.
SUMÁRIO

109 ADOÇÃO INTERNACIONAL E


O ACOMPANHAMENTO PÓS-
ADOTIVO NO ESTADO DE
MINAS GERAIS

AUTORIA
CRISTIANE DA SILVA SARMENTO MOREIRA
Psicóloga da Comissão Estadual Judiciária de Adoção – CEJA/MG, do Tribunal de Justiça
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

do Estado de Minas Gerais. Especialista em Psicologia Jurídica pelo Conselho Federal de


Psicologia. Pós-graduada em Direito da Criança, Juventude e Idosos e em Direito de

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Família pela Universidade Cândido Mendes – UCAM.
CONTATO: ceja05@tjmg.jus.br

RESUMO
O presente trabalho busca refletir sobre a importância do acompanhamento psicossocial
realizado após a efetivação da adoção internacional de crianças e adolescentes no Estado
de Minas Gerais. Serão apresentados o conceito de “adoção internacional” e os requisitos
para o encaminhamento de crianças e adolescentes para essa modalidade de colocação
em família adotiva. Conclui-se que a realização de um acompanhamento psicossocial
adequado após a chegada da família no país de acolhida da/do criança/adolescente
é fator imprescindível para que essas adoções sejam bem-sucedidas. Outros fatores
intervenientes no êxito das adoções internacionais são a adequada preparação das/
dos crianças/adolescentes e dos pretendentes para adoção, além do acompanhamento
técnico do estágio de convivência – aspectos também abordados neste artigo.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Adoção internacional; Acompanhamento pós-adotivo.
O presente trabalho tem como tema o acompanhamento psicossocial nos processos de adoção
internacional, após a chegada das famílias ao país de acolhida da/do criança/adolescente, e aborda
110 as seguintes questões: Como é a avaliação realizada após a chegada da família no país de acolhida
da/do criança/adolescente? Quais recursos são oferecidos às famílias para o enfrentamento de
dificuldades? Qual é a importância do acompanhamento após a adoção internacional? Que fatores
interferem no êxito dessas adoções?

O significado da adoção internacional está envolto em falta de conhecimento de suas peculiaridades


e preconceitos que se referem a suposições com relação ao destino de crianças/adolescentes
brasileiros, à ruptura destes com suas origens e às dificuldades de adaptação que enfrentarão
em contexto cultural diverso, ao rompimento dos vínculos afetivos destes com os irmãos que
permaneceram no Brasil ou que foram adotados por diferentes famílias residentes no exterior.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Desse modo, urge a produção e a disseminação de conhecimento sobre complexo tema.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Neste contexto, o objetivo deste artigo é levar informações relevantes acerca da experiência
de acompanhamento psicossocial realizado após a efetivação das adoções internacionais aos
profissionais que atuam na área da infância e juventude e demais interessados no assunto.

ADOÇÃO INTERNACIONAL: CONCEITUAÇÃO E REQUISITOS

A adoção internacional é um instituto jurídico que visa garantir o direito à convivência familiar, por
meio da colocação, em família adotiva residente no exterior, de crianças e adolescentes órfãos ou
cujos genitores tenham sido destituídos do poder familiar, para os quais não houve a possibilidade
de adoção por pretendente(s) habilitado(s) residente(s) no Brasil.

Os pretendentes habilitados residentes no exterior podem ser brasileiros ou estrangeiros.


Conforme disposto no § 2º do art. 51 da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente
– ECA), “os brasileiros residentes no exterior terão preferência aos estrangeiros, nos casos de
adoção internacional de criança ou adolescente brasileiro” (BRASIL, 1990).

A adoção internacional somente terá lugar quando já foram esgotadas as possibilidades de


colocação em família adotiva em território nacional, conforme disposto no art. 51, caput e § 1º, inc.
I e II, da referida lei:

Art. 51. Considera-se adoção internacional aquela na qual o pretendente possui


residência habitual em país-parte da Convenção de Haia, de 29 de maio de
1993, Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção
Internacional, promulgada pelo Decreto no 3.087, de 21 junho de 1999, e deseja
adotar criança em outro país-parte da Convenção: (Redação dada pela Lei nº
13.509, de 2017)
§ 1º A adoção internacional de criança ou adolescente brasileiro ou domiciliado
no Brasil somente terá lugar quando restar comprovado: (Redação dada pela Lei
111 nº 12.010, de 2009)

I - que a colocação em família adotiva é a solução adequada ao caso concreto;


(Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017)

II - que foram esgotadas todas as possibilidades de colocação da criança ou


adolescente em família adotiva brasileira, com a comprovação, certificada
nos autos, da inexistência de adotantes habilitados residentes no Brasil com
perfil compatível com a criança ou adolescente, após consulta aos cadastros
mencionados nesta Lei (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017) (Brasil, 1990).
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Deve haver alguns requisitos para que a/o criança/adolescente seja encaminhada/o para adoção

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


internacional, a saber: 1) situação jurídica definida: criança/adolescente órfã/o ou cujos genitores
tenham sido destituídos do poder familiar; 2) inclusão dos dados da/do criança/adolescente
no Cadastro Nacional de Adoção – CNA1; 3) inexistência, no CNA, de pretendentes habilitados
residentes no Brasil com disponibilidade compatível com o perfil da/do criança/adolescente e que
manifeste interesse pelo acolhimento com vistas à adoção.

O encaminhamento de criança/adolescente para adoção internacional, cujos dados serão incluídos


no cadastro da CEJA/MG 2 , está previsto em lei e também no Código de Normas da Corregedoria-
Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais.

Conforme disposto no § 10 do art. 50 da Lei 8.069/1990:

Art. 50. § 10. Consultados os cadastros e verificada a ausência de pretendentes


habilitados residentes no País com perfil compatível e interesse manifesto
pela adoção de criança ou adolescente inscrito nos cadastros existentes, será
realizado o encaminhamento da criança ou adolescente à adoção internacional
(Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017) (Brasil, 1990).

O Provimento da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais nº 355/2018, de 18 de


abril de 2018, dispõe que:

1. Criado pela Resolução nº 54/2008 do Conselho Nacional de Justiça, de 29 de abril de 2008.


2. A CEJA/MG é a Autoridade Central em matéria de adoção internacional no Estado de Minas Gerais, conforme previsto no §
3º do art. 51 da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Foi criada como órgão permanente pela Resolução n°
239/1992, da Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – TJMG.
Art. 375. § 1º Caso não haja êxito na busca ativa por pretendentes residentes no
Brasil para a adoção nacional, o juiz de direito deverá, por ofício, solicitar a inscrição
112 de criança e adolescente na Comissão Estadual Judiciária de Adoção - CEJA, que
é a Autoridade Central Administrativa Estadual em Minas Gerais em matéria de
adoção internacional (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2018).

CARACTERÍSTICAS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ENCAMINHADOS PARA


ADOÇÃO INTERNACIONAL

As/os crianças/adolescentes encaminhados para adoção internacional geralmente têm a partir


de 8 (oito) anos de idade, 57,35% foram cadastrados juntamente com seus irmãos, em sua maioria
de cor de pele parda ou negra, em número discretamente maior do sexo masculino e podem
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apresentar problemas de saúde e/ou deficiências. 3

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Essas/esses crianças/adolescentes permaneceram por período prolongado em acolhimento
institucional: o primeiro acolhimento frequentemente ocorreu por motivo de negligência,
maus tratos e/ou abandono e, não raro, passaram por desligamentos e novos acolhimentos em
decorrência de tentativas de reintegração familiar e/ou de colocação em família adotiva nacional
sem êxito positivo. A maioria dessas/desses crianças/adolescentes vivenciaram rompimentos
de vínculos afetivos e perda de referências importantes e são marcados por intenso sofrimento
psíquico, fazendo-se imprescindível trabalho adequado de preparação para adoção.

A preparação da/do criança/adolescente para adoção deve compreender uma etapa anterior a
qualquer encaminhamento para família adotiva, a saber: da construção de sua história, sobretudo
com a elaboração do afastamento de sua família de origem. Somente após esse trabalho inicial
deve ser levada em conta a preparação propriamente dita, a fim de propiciar a abertura subjetiva
da/do criança/adolescente para a colocação em família adotiva.

PERFIL DOS PRETENDENTES HABILITADOS NA CEJA/MG

Os pretendentes que requerem habilitação na CEJA/MG são pessoas ou casais, brasileiros ou


estrangeiros, residentes no exterior, que se submeteram a avaliação psicossocial e obtiveram
autorização para adoção internacional perante a autoridade competente em matéria de adoção
internacional no país onde residem.

As características das/dos crianças/adolescentes disponíveis para adoção, mencionadas acima,


remetem à importância da preparação dos pretendentes, visto que estes devem estar aptos para

3. Dados obtidos do cadastro da CEJA/MG, em consulta em setembro de 2018.


acolhê-los considerando sua história de vida pregressa. A experiência estrangeira de preparação
psicossocial dos pretendentes habilitados para adoção internacional é anterior à preparação dos
113 pretendentes habilitados para adoção nacional, haja vista que esta passou a ser exigida pela Lei
nº 12.010/2009. No exterior, a preparação de pretendentes é realizada por agências de adoção
devidamente autorizadas e/ou pelos organismos credenciados 4 e ocorre durante o processo de
autorização e também durante o tempo de espera para a chegada da/do criança/adolescente. A
preparação tem um caráter informativo e de sensibilização, levando os pretendentes não somente
a conhecer os procedimentos administrativos, legais e jurídicos ou os aspectos psicológicos
e sociais, inclusive as características de crianças e adolescentes disponíveis para adoção
internacional. A preparação – por meio de dinâmicas, conhecimento de famílias que já adotaram
crianças estrangeiras, entre outros recursos utilizados – também possibilita um aprofundamento
da motivação inicial, resultando muitas vezes em ampliação da disponibilidade dos pretendentes,
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que passam a se sentir em condições de acolher crianças maiores e grupos de irmãos. Além disso,
os pretendentes conscientizam-se da importância da preservação das origens e da abertura

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ao diálogo sobre a história pregressa da/do criança/adolescente. Em sua maioria, declaram-
se disponíveis para manter contato entre seus filhos e irmãos adotados por diferentes famílias
estrangeiras ou irmãos que permaneceram no Brasil. Ademais, os pretendentes se mostram
dispostos a buscar ajuda profissional especializada, em caso de necessidade.

Pesquisa referente ao Cadastro Nacional de Adoção no ano de 2013 apontou que “a idade da criança
e/ou do adolescente apto à adoção é o principal motivo de desencontro entre as preferências do
pretendente e as características das crianças e dos adolescentes que aguardam por uma adoção
no Brasil” (Conselho Nacional de Justiça, 2013, p. 19). Conforme consulta ao CNA, realizada em
setembro de 2018, de um total de 44.443 pretendentes habilitados para adoção nacional, 22,28%
aceitam adotar crianças entre 7 (sete) e 10 (dez) anos de idade e 36,72% aceitam adotar irmãos.

Em consulta ao cadastro da CEJA/MG realizada no mesmo mês/ano, verificou-se que existem 41


pretendentes habilitados para adoção internacional5 . Do total, 68,29% aceitam adotar crianças entre 7
(sete) e 10 (dez) anos de idade e 56,09% aceitam adotar irmãos. A maioria dos pretendentes habilitados
para adoção internacional manifesta não ter preferências com relação ao gênero nem restrições
quanto à cor de pele e aceita acolher crianças que apresentem problemas de saúde tratáveis.

4. São organismos encarregados de intermediar pedidos de habilitação de pretendentes à adoção internacional, conforme
previsto nos §§ 1º a 7º do art. 52 da Lei nº 8.069/1990 (incluídos pela Lei nº 12.010/2009). Esses organismos são credenciados
na Autoridade Central Administrativa Federal – ACAF, cadastrados na Polícia Federal e habilitados nas Autoridades Centrais
Estaduais – CEJA.
5. Os dados circunscrevem-se ao âmbito estadual, ou seja, somente pretendentes habilitados para adoção internacional no
Estado de Minas Gerais. A consulta em âmbito nacional é inviável, no momento atual, visto que não são todos os Estados da
Federação que incluem dados relativos aos pretendentes habilitados para adoção internacional no Cadastro Nacional de Adoção
– CNA.
Considerando as informações contidas nos relatórios emitidos pela equipe técnica judicial da Vara
onde a/o criança/adolescente se encontra acolhida/o e/ou pela equipe técnica do programa de
114 acolhimento, a equipe técnica da CEJA/MG analisa a compatibilidade entre o perfil da/do criança/
adolescente e o perfil dos pretendentes habilitados para adoção internacional. Em se tratando
de grupo de irmãos, consideram-se as recomendações desses profissionais a fim de sugerir a
indicação para adoção internacional que melhor atenda aos interesses das/dos crianças/
adolescentes, visando à preservação dos vínculos afetivos.

ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

Segundo art. 46, §§ 3º a 5º, da Lei 8.069/1990, em caso de adoção por pessoa ou casal residente
ou domiciliado fora do país, o estágio de convivência será cumprido em território nacional por,
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no mínimo, trinta dias, e será acompanhado pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da
Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


da política de garantia do direito à convivência familiar (Brasil, 1990). Considerando que os
pretendentes já foram avaliados por equipes interprofissionais e devidamente autorizados pelas
autoridades competentes no país de acolhida, ressalta-se que os profissionais responsáveis pelo
acompanhamento do estágio de convivência têm primordialmente uma função de apoio tanto
para a/o criança/adolescente quanto para os adotantes, a fim de propiciar o início da constituição
dos vínculos afetivos e a elaboração dos conflitos e o enfrentamento das dificuldades inerentes
ao processo de filiação e de adaptação.

Destaca-se que a consolidação dos vínculos entre os adotantes e os adotandos será constatada
posteriormente, durante o acompanhamento pós-adotivo. Contudo, no estágio de convivência
é possível verificar indicadores de que a constituição dos laços afetivos vai se desenvolver, por
meio da observação de sinais de que a/o criança/adolescente passa, gradativamente, a se sentir
segura/o e estabelecer confiança na relação com os adotantes.

Ao final do estágio de convivência, a equipe interprofissional responsável pelo acompanhamento


apresentará laudo fundamentado que recomendará ou não o deferimento da adoção à autoridade
judiciária, conforme § 3º-A do art. 46 da Lei 8.069/1990 (Brasil, 1990).

ACOMPANHAMENTO PÓS-ADOTIVO

O acompanhamento pós-adotivo diz respeito ao atendimento realizado por profissionais


vinculados aos organismos credenciados ou aos serviços sociais e de saúde do local de residência
das famílias adotantes. Inicia-se aproximadamente seis meses após a chegada das famílias no
país de acolhida e tem duração de dois anos. Os organismos credenciados têm autonomia para
adotar a metodologia que avaliam ser a mais adequada. Geralmente, são utilizadas entrevistas,
visitas domiciliares, avaliação psicológica, análise de relatórios escolares e médicos, entre outros.
O acompanhamento pós-adotivo visa oferecer o apoio necessário para que a constituição da nova
115 família possa ser bem-sucedida.

Segundo Mendes, em sua dissertação de mestrado concluída no ano de 2007, não havia um
acompanhamento sistematizado das adoções internacionais:

Sobre o acompanhamento após a adoção internacional, não encontramos


muitos estudos científicos ocupando-se do assunto.

Em alguns países, como a Itália, os pais devem participar de um programa de


acompanhamento após a adoção, com duração de pelo menos um ano. Em
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uma adoção para a Alemanha, os pais ficam comprometidos a enviar relatórios


periódicos, nos prazos de 6 e 12 meses. Segundo depoimentos informais de

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


psicólogas do judiciário, não há um procedimento padrão, no acompanhamento
após a adoção, mas há muitos casos em que os pais mandam boas notícias e
fotos, deliberadamente. [...] (Mendes, 2007, p. 54).

Após as modificações no Estatuto da Criança do Adolescente pela Lei 12.010/2009, há a


obrigatoriedade de envio de relatórios semestrais às autoridades brasileiras, pelo período mínimo
de dois anos, conforme disposto no inc. V do § 4º do art. 52 da Lei 8.069/1990:

Art. 52. § 4º Os organismos credenciados deverão ainda:

V - enviar relatório pós-adotivo semestral para a Autoridade Central Estadual,


com cópia para a Autoridade Central Federal Brasileira, pelo período mínimo de 2
(dois) anos. O envio do relatório será mantido até a juntada de cópia autenticada
do registro civil, estabelecendo a cidadania do país de acolhida para o adotado
(Incluída pela Lei nº 12.010, de 2009) (Brasil, 1990).

A partir das entrevistas e visitas domiciliares, os profissionais elaboram relatório que será enviado
à Autoridade Central Administrativa Federal – ACAF e à CEJA. Grupo de trabalho do Conselho
das Autoridades Centrais Brasileiras sugeriu Roteiro para Elaboração de Relatório Pós-Adotivo,
aprovado em 28 de março de 2014, objetivando a padronização deste (Conselho das Autoridades
Centrais Brasileiras, 2014).

A equipe técnica da CEJA/MG analisa os relatórios semestrais, enviados com a respectiva tradução
juramentada, comumente acompanhados de fotografias. Os relatórios apresentam informações,
tais como: o processo de constituição de vínculos afetivos entre a/o criança/adolescente e os pais;
o relacionamento com a família extensa; a socialização; a adaptação ao contexto sociocultural;
a aquisição do idioma; a escolarização; a saúde; o desenvolvimento; a preservação dos vínculos
entre irmãos adotados por famílias estrangeiras diferentes, entre outras.
116
Após a chegada da família ao país de acolhida, primeiramente, prioriza-se a consolidação
dos vínculos afetivos no núcleo familiar pais-filho; gradualmente, a/o criança/adolescente é
apresentado à família ampliada e, por último, dá-se a inserção escolar.

O processo de consolidação dos vínculos afetivos entre a/o criança/adolescente e os pais é


considerado primordial e, sendo satisfatório, suplanta eventuais dificuldades de adaptação.
Ao se sentir amado e apoiado pelos pais, o adotado pode encontrar recursos internos para
enfrentar eventuais preconceitos no grupo escolar, por exemplo. De modo geral, as/os crianças/
adolescentes se adaptam gradativamente aos novos costumes e à alimentação, com o auxílio dos
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pais e de outras pessoas significativas que participarão de sua vida.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


A inserção escolar da/do criança/adolescente ocorre alguns meses após a chegada ao país de
acolhida. Geralmente, a/o criança/adolescente integra grupo correspondente à faixa etária,
mas segue programa educacional individualizado e é acompanhada por auxiliar pedagógico. Os
relatórios apontam que o processo de aprendizagem do adotado avança muito nos primeiros dois
anos, considerando as potencialidades e os limites que ela/ele apresentava anteriormente.

Na maioria dos casos, a aquisição do idioma não constitui problemas e a/o criança/adolescente
alcança um desenvolvimento linguístico surpreendente. Embora as famílias se esforcem por
preservar a cultura de origem do filho, é comum o esquecimento da língua portuguesa.

Vargas (1998) desenvolveu pesquisa, no âmbito da adoção nacional, com cinco grupos familiares
que estavam adotando crianças com idade acima de dois anos e meio, cujos genitores tinham sido
destituídos do poder familiar, e que permaneciam em instituições de acolhimento. Embora cada
experiência seja singular, a autora encontrou pontos de similaridade em todos os processos de
adaptação acompanhados, tais como: a) enfrentamento do preconceito social; b) necessidade de
preparação e acompanhamento específico; c) esforço da criança para se identificar com as novas
figuras parentais; d) comportamento regressivo; e) agressividade; f) ritmo de desenvolvimento
global da criança bastante acelerado se comparado aos padrões considerados normais (Vargas,
1998). Acerca deste último aspecto, a autora afirmou que:

A cada entrevista, observava-se, além do relato da família a respeito das


novidades apresentadas pelos filhos, um vasto repertório de aquisições e de
mudanças adaptativas de todas as crianças acompanhadas. As mudanças mais
visíveis, que se operavam no aspecto físico, ocorreram num ritmo muito acima
da média, o que era constatado no acompanhamento pediátrico realizado por
todas as famílias.
Quando a criança alcança, no novo ambiente familiar, a satisfação de suas
necessidades fundamentais para reconstruir sua trajetória a partir dos novos
117 modelos, ela, rapidamente, pode evoluir para estágios posteriores. Observamos
em todos os casos que realmente acontecia assim. Além do aspecto de estar
regredida emocionalmente, havia uma necessidade muito intensa para aprender
[…]. (Vargas, 1998, p. 147).

Nas análises dos relatórios, é possível verificar que o adotado, mesmo que tenha dificuldades e
limitações, ao serem atendidas suas necessidades afetivas, materiais e educativas, apresenta
progresso notável no desenvolvimento e na aprendizagem, muitas vezes superando as
expectativas anteriores à adoção.
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Outros aspectos apontados pela autora são o comportamento regressivo e a agressividade


comumente apresentados pelas/os crianças/adolescentes durante o período de adaptação.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Segundo Vargas (1998):

O comportamento regressivo e a agressividade são amplamente referidos como


parte do processo de adaptação, de acordo com o que aponta a literatura, e foram
objeto de discussão na orientação aos pais, preparando-os para a possibilidade
de os mesmos serem apresentados pela criança ou para trabalharem no
momento da ocorrência. [...]. Constatamos que os pais adotivos precisam ser
flexíveis para atenderem as necessidades mais regressivas em momentos
esperados e, ao mesmo tempo, firmes e refratários o bastante para suportarem
os ataques retaliadores da criança, frequentemente dirigidos às figuras que a
abandonaram, conforme apontado por vários autores. (Vargas, 1998, p. 146)

A preparação anterior à adoção possibilita que as famílias se sensibilizem com a história pregressa
dessas/desses crianças/adolescentes, marcada por experiências traumáticas e prolongada
institucionalização. Os pais conseguem identificar mais precocemente dificuldades que os filhos
possam apresentar; quando estas emergem, demonstram capacidade de acolhimento e de
aceitação e, se preciso, buscam ajuda profissional.

Os profissionais dos organismos credenciados oferecem apoio psicossocial às famílias para que
elas possam lidar melhor com os desafios e as dificuldades inerentes ao processo de adaptação e,
se necessário, também encaminham para profissionais especializados.

Quando as/os crianças/adolescentes apresentam dificuldades comportamentais, de


aprendizagem, ou problemas de saúde, geralmente há o envolvimento de todas as instituições
onde foram inseridas/dos (família, escola, etc.), bem como o apoio de profissionais especializados
(médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, entre outros), de acordo com a necessidade de cada
118 adotado, unindo-se esforços para a superação dos desafios. Com a acolhida, a aceitação e
o incentivo dos pais, as/os crianças/adolescentes manifestam o desejo de superar todas as
expectativas negativas e diagnósticos que pesavam sobre seus destinos durante o período de
acolhimento.

Quando se identificam problemas relevantes, especialmente no que tange à constituição


dos vínculos parentais, a equipe técnica da CEJA/MG sugere a solicitação de informações
complementares. Tal solicitação é encaminhada ao organismo credenciado e/ou à autoridade
competente do país de acolhida, visando verificar as providências que tenham efetivamente
tomado para prestar auxílio à/ao criança/adolescente e à família.
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Conforme nos aponta Silva (2017), em sua tese sobre as narrativas dos assistentes sociais judiciais

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acerca das devoluções nos processos de adoção nacional, os conflitos podem ser reconhecidos,
enquanto espaço concreto de possibilidades para o fortalecimento dos vínculos, sendo essencial
trabalhar com as famílias os sentimentos trazidos tanto pelos pais quanto pelos filhos.

Na maioria dos casos, as intervenções dos profissionais do país de acolhida da/do criança/
adolescente alcançam resultados satisfatórios, pois a abertura de um espaço de escuta muitas
vezes permite evitar o rompimento da convivência familiar.

No presente artigo, consideram-se insucesso nas adoções internacionais aqueles casos em que
houve a interrupção definitiva da convivência entre a/o criança/adolescente e os pais.

Deve-se destacar que a sentença de adoção é decretada por magistrado da Vara onde a/o criança/
adolescente se encontrava acolhida/o e, uma vez que a família tenha se deslocado para o país onde
residem, aquela sentença é transcrita para o registro civil da/do criança/adolescente, conferindo-
lhe a cidadania daquele país. Desse modo, caso a adoção seja malsucedida, sendo necessária a
retirada da/do criança/adolescente da convivência familiar, essa competência é do serviço de
proteção à infância do país de acolhida e a/o criança/adolescente é acompanhada/o até alcançar a
maioridade. Além do acompanhamento pela autoridade competente do país de acolhida, os casos
são também acompanhados pela Autoridade Central Administrativa Federal – ACAF.

Nos últimos dez anos de análises dos relatórios pós-adotivos realizadas pela equipe técnica
da CEJA/MG, durante o prazo legal, constata-se que houve somente um caso em que uma
adolescente foi retirada da família pelo serviço de proteção à infância e encaminhada para
instituição de acolhimento como cidadã daquele país. Posteriormente, a adolescente foi colocada
em nova família adotiva. A adolescente e a família são acompanhadas pelo Tribunal da Infância do
país de acolhida.
Após a conclusão do acompanhamento pós-adotivo pela equipe técnica da CEJA/MG, sugere-se
o encaminhamento de cópias dos relatórios, documentos e fotografias ao Juízo de origem – que
119 procedeu ao encaminhamento da/do criança/adolescente para adoção internacional.

No que diz respeito à manutenção de contato entre irmãos, consideram-se as seguintes situações:

Primeiramente, considera-se a adoção simultânea de irmãos por famílias estrangeiras diferentes.


Antes de propor a indicação dos pretendentes para adoção internacional do grupo fraterno, os
organismos avaliam o perfil destes para que efetivamente possam ter condições e disponibilidade
de incentivar o vínculo entre irmãos. As famílias se comprometem com a manutenção de contatos
pelos meios tecnológicos disponíveis e também através de encontros presenciais.
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Em segundo lugar, no que diz respeito ao contato com irmãos que permaneceram no Brasil, a
situação é avaliada caso a caso, por meio de diálogo entre as equipes profissionais responsáveis

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


pelas/os crianças/adolescentes que foram adotadas/dos e pelas/pelos crianças/adolescentes
que permaneceram acolhidos, para estabelecer como se dará o contato, a frequência, etc. Há
que se considerar também se os irmãos que não foram adotados já alcançaram a maioridade civil.
Essa avaliação é necessária, porque a situação do adotado muda muito com relação àqueles que
ficaram. Caso os irmãos que permaneceram no Brasil tenham sido adotados, basta que as famílias
manifestem interesse e disponibilidade em manter os contatos, conscientes da importância de se
preservar os vínculos afetivos entre os irmãos.

Por último, nos casos em que há demanda por adotados maiores de idade para o levantamento
da situação atual da família biológica, esse trabalho é realizado pelos organismos credenciados
juntamente com a família adotiva. Essa abordagem necessita da participação de psicólogo, tanto
para apoio e conscientização do adotado e de sua família, quanto para tratar e discutir a extensão
de eventual propósito diante da nova realidade que vier a ser conhecida e a adaptação a essa nova
realidade. Há casos em que a busca pela informação não prossegue até o acompanhamento do
adotado ao Brasil.

O acompanhamento pós-adotivo é recurso indispensável de apoio às famílias, pois possibilita a


identificação de eventuais dificuldades e conflitos e intervenção precoce, visando à busca de
soluções e/ou encaminhamentos que correspondam às necessidades da/do criança/adolescente.
Mesmo após o término do prazo legal, na maioria dos casos, as famílias consideram os profissionais
dos organismos credenciados como referências importantes e mantêm o contato por um período
maior que dois anos. Os profissionais, por sua vez, permanecem disponíveis para o acolhimento
das famílias a qualquer tempo, de acordo com o surgimento de novas demandas.
CONCLUSÃO

120 Deve-se envidar esforços para que as/os crianças/adolescentes órfãos ou cujos genitores
foram destituídos do poder familiar possam ter garantido o direito à convivência familiar em
território nacional, por meio da adoção. Entretanto, diante da constatação de critérios para o
encaminhamento para adoção internacional, deve-se providenciar o cadastro na CEJA/MG,
conforme previsão legal, a fim de ampliar as chances de que essas/esses crianças/adolescentes
possam crescer e se desenvolver em família, ainda que residente no exterior.

O acompanhamento pós-adotivo é obrigatório, por determinação legal, e sistematizado, ocorrendo


durante os dois anos posteriores à chegada da família ao país de acolhida. A documentação
remetida à CEJA/MG é encaminhada à Vara de origem, para conhecimento da situação do adotado.
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O acompanhamento pós-adotivo justifica-se pela complexidade do processo subjetivo de filiação.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


No caso da adoção internacional, a esse delicado processo soma-se a adaptação ao diferente
contexto social e cultural.

As análises realizadas pela equipe técnica da CEJA/MG constatam a importância de que


sejam realizadas intervenções precoces a fim de acolher as famílias e buscar soluções e/ou
encaminhamentos adequados para as dificuldades e eventuais conflitos que possam emergir na
fase de constituição das novas relações.

As famílias recebem apoio de profissionais qualificados, com quem estabelecem relações de


confiança e mantém contato mesmo após o término do prazo legal estipulado para essa finalidade.

Das análises dos relatórios de acompanhamento pós-adotivo, pode-se depreender que as/os
crianças/adolescentes, mesmo que tenham certas dificuldades e limitações, ao serem inseridos
em ambientes familiares estáveis, cujos pais se esforçam por atender suas necessidades materiais,
afetivas e educativas, apresentam extraordinário desejo de aprender e alcançam grau de
desenvolvimento superior ao que era relatado durante o período de institucionalização. Uma vez que
a consolidação dos laços parentais progrida satisfatoriamente, eventuais dificuldades de adaptação
ao contexto sociocultural e de aquisição da língua são superadas sem maiores obstáculos.

Salientou-se que, nos casos em que é inviável a colocação em uma mesma família adotiva, o
encaminhamento para adoção internacional visa, sempre que possível, à manutenção dos
contatos e, por conseguinte, à preservação dos vínculos afetivos entre os irmãos que foram
adotados por famílias diferentes. Nos casos em que há demanda de contato pelo adotado ou por
irmãos que permaneceram no Brasil, ou quando o adotado deseja conhecer a situação da família
biológica, a intermediação dos organismos credenciados é fundamental.
Das análises técnicas realizadas pelo corpo técnico da CEJA/MG, conclui-se que os casos de
insucesso são reportados como raros. Quando ocorrem, há acompanhamento desses casos pelas
121 autoridades, tanto no Brasil quanto no país de acolhida da/do criança/adolescente.

Portanto, o acompanhamento das famílias após a chegada ao país de acolhida é fundamental


para que essas adoções possam ser bem-sucedidas. Além do acompanhamento pós-adotivo,
consideram-se a preparação da/do criança/adolescente, a preparação dos pretendentes e
o acompanhamento técnico do estágio de convivência como fatores preponderantes para o
desfecho positivo das adoções internacionais.

REFERÊNCIAS
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Brasil. (2009). Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069,
de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992;

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras
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Brasil. (2017). Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a Lei no
8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e a Lei no10.406,
de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Recuperado de https://presrepublica.jusbrasil.com.br/
legislacao/523593766/lei-13509-17

Brasil. (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
LEIS/L8069.htm

Conselho das Autoridades Centrais Brasileiras. (2014). Roteiro para elaboração de Relatório Pós-
Adotivo, aprovado pelo Conselho em 28 mar. de 2014. Recuperado de http://www.justica.gov.br/
sua-protecao/cooperacao-internacional/adocao-internacional/arquivos/modelo-de-relatorio-
pos-adotivo-aprovado-em-28-03-2014.pdf

Conselho das Autoridades Centrais Brasileiras. (2013). Encontros e desencontros da adoção no


Brasil: uma análise do Cadastro Nacional de Adoção do Conselho Nacional de Justiça. Recuperado
de http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/pesq_adocao_brasil.pdf

Conselho Nacional de Justiça. (2008). Resolução 54/2008, 29 abr. de 2008. Dispõe sobre a
implantação e funcionamento do Cadastro Nacional de Adoção. Recuperado de http://www.cnj.
jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_54_29042008_20102016190300.pdf
Silva, A. G. da. (2017). Quando a devolução acontece nos processos de adoção: um estudo a partir
das narrativas de assistentes sociais no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Tese de Doutorado –
122 Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho, Franca, São Paulo.

Mendes, C. L. P. C. (2007). Vínculos e rupturas na adoção: do abrigo para a família adotiva. Dissertação
de Mestrado – Departamento de Psicologia Clínica, Universidade de São Paulo, São Paulo.

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Recuperado de http://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/servicos/adocao.htm#.W_nr9PZFxMs

Minas Gerais. Tribunal de Justiça. (2018). Provimento da Corregedoria-Geral de Justiça, nº


VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

355/2018. Institui o Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas


Gerais - CGJ, que regulamenta os procedimentos e complementa os atos legislativos e normativos

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


referentes aos serviços judiciários da Primeira Instância do Estado de Minas Gerais. Recuperado
de http://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/cpr03552018.pdf

Vargas, M. M. (1998). Adoção tardia: da família sonhada à família possível. São Paulo: Casa do Psicólogo.
SUMÁRIO

123 ADOÇÃO MESMO QUE TARDIA:


CONSIDERAÇÕES
PSICANALÍTICAS SOBRE TRAUMA
E BUSCA DAS ORIGENS

AUTORIA
ÉRICA ESPÍRITO SANTO
Psicanalista. Representante nacional do organismo de adoção internacional COFA-
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Cognac / Adoption et Parrainage de La Charente. Doutoranda do Programa de Pós-


Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestra em Estudos

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Psicanalíticos pela UFMG.
CONTATO: ericases@gmail.com

RESUMO
Nesse artigo trazemos a história de busca das origens de Christina Rickardsson,
menina brasileira adotada aos 8 anos por família sueca, a partir de suas
construções apresentadas no livro Nunca deixe de acreditar. Nosso objetivo
principal é trazer esse relato autobiográfico como possibilidade de, através
dele, perceber o que está em jogo na adoção tardia e internacional. Além disso,
trazemos uma breve discussão sobre o traumático e seus efeitos a porteriori
nos períodos pré-adotivos, no abrigamento, na adoção e na busca das origens.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Psicanálise; Busca das Origens; Trauma psíquico.
INTRODUÇÃO

124 A partir do relato autobiográfico de Christina Rickardsson (2017), em Nunca deixe de acreditar,
abordaremos algumas engrenagens da adoção tardia relativas às memórias e às reconstruções,
tão inevitáveis quanto irreversíveis.

Pensaremos a adoção, neste trabalho, como um novo destino, cujo passado presentifica-se não
pelo que na paisagem há de conhecido, mas exatamente pelo que há de estranho – fazendo
referência, aqui, à noção de “estranho-familiar”, de Sigmund Freud (1919/2010). O estranho familiar
da adoção seria aquilo que ela faz retornar, que ela possibilita ressignificar, mas, também, o ponto
em que é ela mesma traumatizante, por mostrar em suas veias abertas o que houve de violento a
partir de um toque delicado, do que houve de disruptivo a partir das novas ligações, do que há de
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mortífero nesse renascimento, e o que há de idealização necessária nessa busca contínua por um
feixe de luz.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


No livro Nunca deixe de acreditar: das ruas de São Paulo ao norte da Suécia, (Rickardsson, 2017),
traduzido em português por Fernanda Sarmatz Akesson, conhecemos a história de Christiana
Mara Coelho, ou a tentativa de Christina de contar a história de sua infância, quando tinha outro
nome e falava outra língua. Adotada aos oito anos por uma família da Suécia, aos trinta anos
conta sua história em sueco. Acreditamos que algo semelhante ao processo de soterramento da
língua de origem faz também efeito sobre as memórias da menina, ou seja, algo bem sucedido no
processo de adoção da criança faz com que ela mude de língua, reconfigure sua subjetividade, seja
transformada na filha de outra família, membro de outra comunidade e ser submetida aos cuidados
de novos pais/mães. Mas há algo desse passado que se presentifica e exige reconfigurações em
determinados momentos da vida desses sujeitos.

Christina Rickardsson (2017) relata o caminho de volta ao abrigo de São Paulo, depois de passados
aproximadamente vinte anos da adoção: “É difícil descrever, mas parece que já conheço essa parte
do mundo, ao mesmo tempo em que me é estranha.” (Rickardsson, 2017, p. 134). Essa passagem
ajuda-nos a delimitar tanto o objeto deste texto, qual seja, o relato autobiográfico de Christina
Rickardsson sobre a busca de suas origens, quanto o a posteriori intrínseco a essa busca.

A adoção no Brasil sofreu grandes transformações desde 1980, e o cenário atual é bastante
diferente do descrito por Christina em seu livro. Esse tema toca numa ferida aberta de nosso país:
o tratamento dado às crianças pobres, tornadas sujeitos destituídos de direitos fundamentais,
invisibilizados e submetidos repetidamente a processos de desumanização.

Atualmente há cerca de 5000 crianças/adolescentes disponíveis para adoção no Brasil, cujos


pais/mães biológicos foram destituídos do poder familiar1 . Além disso, se as crianças são incluídas
no Cadastro Nacional de Adoção – CNA, significa que já foram esgotadas todas as tentativas
125 de inserção na família extensa (Eidt, 2016). As famílias são todas de classe social baixa, muitas
vivendo em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade.

No que se refere à adoção internacional2 , entre o surgimento da adoção por estrangeiros no país
em 1960 e a efetiva regulamentação no início dos anos 1990, com a implementação do Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA, não havia entendimento ou acordo em relação ao procedimento
entre as autoridades brasileiras quando se tratava de adoção (Macedo, 2013).

Rickardsson (2017) lembra que há “uma grande diferença em não cuidar de próprios filhos e viver
em uma sociedade que não proporciona recursos necessários para os seus cidadãos, fazendo
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

com que eles não possam tomar conta dos próprios filhos” (p. 28).

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


A seguir, apresentaremos um resumo da história narrada no livro Nunca deixe de acreditar, que
trata de um caso de adoção internacional de uma menina brasileira aos oito anos por uma família
sueca, no início dos anos 90. É interessante constatar que, segundo Macedo (2013), a Suécia
representava, nas décadas de 1970 e 1980, um dos principais destinos de crianças adotadas
internacionalmente.

NUNCA DEIXE DE ACREDITAR: A VIAGEM QUE SE DÁ NO PASSADO

Rickardsson (2017) escreve sobre seu processo de busca das origens, testemunho raro de uma
“criança de rua” brasileira que sobreviveu à miséria, à fome e às chacinas tão comuns nas décadas
de 80 e 90. A autora conta sua história, que tem início na cidade de Diamantina, em Minas Gerais,
onde vivia com sua mãe, Petronília, até mais ou menos quatro anos de idade. Tempos depois, mãe
e filha mudaram-se para uma favela de São Paulo, onde suas condições de vida pioraram muito.
Quando Christiana tinha sete anos, foi levada pela mãe a um orfanato, juntamente com seu irmão
Patrique, ainda bebê. Um ano depois, ambos foram adotados por um casal sueco.

No livro, a autora conta em detalhes suas memórias, que dividiremos em quatro tempos de sua
vida: a caverna, a vida nas ruas, o orfanato e a adoção. Christina tinha um nome diferente antes da
adoção, Christiana, que usaremos quando nos referimos ao período anterior à adoção.

1. Cf. Cadastro Nacional de Adoção – CNA. Recuperado de http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf


2. “Quanto aos brasileiros residentes fora do Brasil a lei n 12.010/2009, considera que estes devem preencher todos os requisitos
do país de domicílio, passando pelos mesmos procedimentos dos candidatos estrangeiros, sendo incluídos no Cadastro Nacional
na categoria Residentes no exterior . Estes terão preferência aos candidatos estrangeiros na adoção de crianças ou adolescentes
brasileiros.” (Nabinger, 2010, p. 41)
A CAVERNA

126 Christiana Mara Coelho nasceu em 1983 e passou os primeiro quatro anos de sua vida “nas florestas
e cavernas de Diamantina” com sua mãe (Rickardsson, 2017, p. 14). Ao relatar sobre a vida entre
duas cavernas em que habitavam mãe e filha, a autora traz a imagem de uma mãe habilidosa, forte
e protetora, que abria caminhos na floresta, preparava alimentos e contava muitas histórias.

A autora fala do tempo da caverna como o mais feliz de sua vida e afirma que não guarda “nenhuma
memória daqueles anos que tenha se transformado em pesadelo.” (Rickardsson, 2017, p. 18).
Entretanto, Rickardsson (2017) relata que:

Nós lutávamos pela sobrevivência e, nas vezes em que fomos até Diamantina e
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

dormimos nas ruas da cidade, ficamos muito expostas, mas as cavernas eram
meu porto seguro. Lá eu brincava e me divertia, fazia de tudo para ajudar mamãe

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


e arranjar comida ou dinheiro quando necessário. (p. 20)

A luta pela sobrevivência e para arrumar dinheiro aos quatro anos de idade, não era um problema
segundo conta Christiana, pois ela não conhecia outra vida. Mas o cenário descrito pela autora
apresenta uma precariedade muito grande, pois não havia o suficiente para comer e era necessário
fazer caminhadas exaustivas “através da floresta até a cidade” (Rickardsson, 2017, p. 23), nas
quais a menina ia sem sapatos por cerca de vinte quilômetros. Às vezes, mãe e filha tinham que
passar as noites na rodoviária da cidade. Quando conseguiam juntar algum dinheiro, compravam
o necessário para comer e retomavam o longo caminho de volta à caverna.

Na última noite que passou na caverna, Christiana estava dormindo sozinha. Nessa noite, acordou
com a mãe sacudindo-a, muito nervosa. Logo entendeu que havia algo de errado. As duas
saíram correndo pela mata: estavam sendo perseguidas por homens e seus cães farejadores.
Conseguiram se esconder e despistar os homens e os cachorros, mas Christiana conta que ficou
tão cansada que teve um blackout e não se lembra de mais nada acerca da floresta após esse
acontecimento (Rickardsson, 2017).

Quando descreve o período que passou com a mãe na floresta – essa que poderíamos chamar
de mãe-da-caverna 3 –, relata situações de extrema precariedade e exposição, mas repete
diversas vezes que esse tempo foi o melhor de sua vida, pois se sente abençoada por ter tido o
amor materno. Essa parece ser a realidade psíquica da qual não pode abrir mão. Ela reconhece

3. Preferimos este termo ao clássico “mãe biológica”, para evitar esta marcação biologizante para um percurso altamente
pontuado pelas escolhas afetivas, possíveis e impossíveis, fazendo também uma alusão a esta “mãe das origens” ou “mãe original”
que a autora parece ter necessidade de reencontrar
posteriormente que foram tempos difíceis, porém bons, porque tinha amor. Ela não podia imaginar
quão pior seria o que viria depois. E que o que viria depois fez fixar o tempo anterior como o tempo
127 da caverna, com a mãe-da-caverna, uma espécie de tempo mitológico de fusão entre mãe e filha,
em que a ambivalência não tem lugar.

A VIDA NAS RUAS

Em São Paulo, no final dos anos 80, mãe e filha moraram nas ruas, em lugares improvisados sob
túneis, usando caixas de papelão como camas. A menina fazia muitas perguntas, para as quais a
mãe oferecia-lhe explicações, traduções e colaborava para a construção de um universo simbólico
mais elaborado. Além disso, a mãe falava muito sobre Deus. Christiana foi ficando mais velha e
curiosa e passou a questionar sobre a cor de sua pele, sobre as diferenças no tratamento que as
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

pessoas negras como elas recebiam. Começou a perceber o racismo, a pobreza e as condições de
violência às quais estavam submetidas. Tinha cinco ou seis anos de idade quando a mãe arranjou

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


um emprego de faxineira em uma fábrica, onde a menina ficava correndo e brincando.

Um dia, Christiana estava sozinha enquanto a mãe trabalhava. A menina corria pela fábrica,
quando um homem branco de meia idade ofereceu-lhe um pirulito e abusou sexualmente dela.
O relato no livro é alusivo, preservando-nos dos detalhes. A menina aproximou-se da mãe após o
ocorrido, estava diferente, e, quando Petronilia percebeu o que havia acontecido, carregou-a no
colo, abandonou o emprego e voltou às ruas.

Christiana resgata ainda a memória de uma briga na feira entre sua mãe e uma mulher branca.
Houve uma confusão com policiais e foram os três para a delegacia: a menina, sua mãe e seu
irmãozinho. A autora relata que não tem memória da mãe grávida. Na delegacia há uma nova cena
de abuso sexual, dessa vez sofrida por sua mãe. A autora não se lembra bem do que aconteceu,
sabe apenas que ficou cuidando do irmãozinho bebê dentro da cela enquanto a mãe demorava a
voltar. Christiana sentia culpa por tudo que estava acontecendo, e relata que gostaria de poder
fazer alguma coisa para ajudar a mãe e o irmão, mas tinha apenas seis anos. Nada podia fazer.

Nos anos que se seguiram, a menina foi crescendo e continuou sendo exposta a situações terríveis.
Testemunhou o assassinato de sua melhor amiga, colocada em fila junto com outras crianças.
Todas levaram um tiro na cabeça. Christiana estava presente, mas conseguiu fugir e assistiu de
longe à morte de sua amiga. A autora não explica onde estava sua mãe, nem seu irmãozinho, que
ainda era um bebê. À medida que vai recuperando a história, essa ausência materna vai ficando
mais presente em seu relato.

Aconteceram diversas outras situações que revelam a precariedade e desproteção às quais


Christiana estava submetida nas ruas, até que a mãe consegue um emprego numa casa de família
rica. Ela não pode levar os filhos para a casa onde vai morar e trabalhar, o que faz com que ela
procure um orfanato que possa cuidar dos dois. Primeiro leva Patrique, depois de um mês leva
Christiana. Vai visitá-los aos domingos.
128
O ORFANATO4

No final da década de 1980, Christiana é uma criança de rua brasileira. Sua história é um relato dos
horrores aos quais eram submetidas as crianças de rua nesse tempo. É importante lembrar que
foi apenas em 1990 que houve a implementação do ECA. É necessário ressaltar que, em nossa
história tão recente, a história de Christiana não é exceção, retrata a realidade da criança pobre
brasileira. O que há de exceção nessa história é a sobrevivência e publicação de um relato em
primeira pessoa. 5
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Quando Christiana passa a viver em um orfanato, tem a impressão de habitar com cerca de
duzentas outras crianças, de idades variadas. Embora relate cenas de brigas e mesmo de surras

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


que tomou de funcionários da instituição, parece que naquele espaço pôde começar a ser mais
protegida ou menos exposta. Ela é alfabetizada, não tinha mais que cuidar do irmão, que morava
em outro setor da instituição. A menina não passava mais fome.

Petronília ia visitar os filhos todo domingo até que, em certo momento, sem mais
explicações, ela foi proibida de ver os filhos. A autora relata em detalhes como foi dolorosa essa
separação de sua mãe: fala que a imagem de Petronília “chorando e tentando, desesperadamente,
chegar até mim também me fez ter pesadelos durante a minha vida toda.” (Rickardsson, 2017,
p. 141). Apesar disso, diz que “mil vezes melhor estar ali [no orfanato] do que viver nas ruas”
(Rickardsson, 2017, p. 147).

Ao longo de seu relato, passa a ser inegável que a mãe sofria de alguma questão mais severa de
sofrimento mental. Petronília perdeu a guarda dos filhos e a diretora do orfanato conversou com
Christiana sobre ser adotada por uma família sueca.

A ADOÇÃO

De repente bateram na porta. Duas pessoas entraram e eu já tinha encontrado


com elas no dia anterior, pela primeira vez. Elas sorriam e pareciam contentes,

4. Preferimos manter o termo como usado no texto original para reforçar a diferença entre esses locais e as atuais instituições
de acolhimento.
5. Outra história que retrata o efeito devastador das políticas de tratamento ao menor no Brasil nos tempos da ditadura militar
encontra-se no filme O contador de histórias, de 2009. Um menino pobre é levado para a FEBEM aos cinco anos por sua mãe que
acreditava na propaganda enganosa do governo ditatorial, e lá sofre todos os tipos de violência, inclusive tortura física. Quando
estava com treze anos e era considerado irrecuperável, Roberto Carlos foi adotado por uma pedagoga francesa.
mas um tanto nervosas. Falavam muito e alguém me mandou cumprimentá-las,
o que eu obedeci. A funcionária que estava segurando Patrick o entregou para
129 a mulher, que parecia ser a nossa nova mãe. Ela sorriu, pegando-o com cuidado.
[...] A diretora me pediu para ir abraçar meus novos pais. Eu fui, abracei minha
nova mãe e depois meu novo pai. [...] O portão abriu e o meu novo pai me pegou
pela mão, o que parecia ser muito estranho. Eu sabia cuidar de mim mesma,
sempre tinha cuidado e não precisava que ninguém segurasse a minha mão,
ainda mais um estranho. (Rickardsson, 2017, pp. 158-159)

Percebemos no relato de Christina que o primeiro encontro, para o qual não foi preparada,
representou muita surpresa e desconfiança de sua parte. A menina mal tinha entendido ainda o
que se passava com a mãe Petronilia e qual a razão de ter sido separada dela quando, de repente,
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já estava conhecendo sua nova família: uma mulher que parecia ser sua mãe e um homem que
pegou em sua mão causando estranhamento.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Embora orgulhosa, Christina diz que sentiu medo, sentiu pavor, mas não podia mostrá-lo. Ninguém
poderia saber disso, pois era sinal de fraqueza. A despedida das mulheres do abrigo, o afastamento
do portão que guardou na memória grande e amarelo, o momento da despedida, a separação são
vividos como uma agressão. Ao acessar essas memórias, finalmente a menina sente medo. Mais
ainda, sente pavor. Sentiu-se insegura, perdida e muito triste.

A SURPRESA DAQUILO QUE VOCÊ DEIXOU DE SER REVELA-SE NOS LUGARES ESTRANHOS,
NÃO NOS CONHECIDOS

Quando Christina é retirada da situação de exposição extrema podem aparecer medo, pavor,
tristeza e choro. No momento da partida do abrigo, do seu mundo conhecido, a menina é invadida
por afetos que, segundo seu relato, não tinha acessado antes. O relato de Christina e a maneira
como ela vai reconstruir sua narrativa sobre o passado a partir do reencontro com as situações
traumáticas, depois de adulta, leva-nos a propor que o que está em jogo nas novas situações de
cuidado é também algo relativo ao segundo tempo do trauma psíquico.

Considerando que é “preciso dois golpes para fazer um trauma psíquico” (André, 2015, p. 19),
tomaremos o que nomeamos de “período pré-adotivo” como um primeiro tempo traumático. O
segundo tempo do trauma desenvolve-se exatamente a partir das novas relações de cuidado,
quando Christina vai se dando conta da magnitude das violências que sofreu. Tudo se passa como
se, nesse caso, o segundo tempo pudesse operar numa espécie de negativo. Não por uma alusão
à cena original, por ser parecido com ela em alguma medida, mas por ser oposta a ela. Talvez não
no sentido desestruturante, mas reestruturante. De toda forma, é preciso cautela para cuidar de
uma criança que passou por tanto numa vida tão curta.
Christina diz-se autônoma, pois foi necessário que ela cuidasse de si muito cedo. De maneira
absolutamente precoce, foi obrigada a garantir a própria sobrevivência, tanto física quanto
130 psíquica, contando apenas com as bases oferecidas por sua mãe em seus momentos de presença,
por mulheres da favela, por amigos da rua.

O cuidado é traumatizante porque vai ter que abrir espaço para existir em Christina o que passou
antes, sofrer por isso, fazer o luto necessário para continuar seguindo sem ter mais que fingir ser
uma criança-adulta. A partir do enigma anunciado por esse outro que se interessa por ela, isso a
arranca de tudo o que conhece e oferece-lhe um recomeço, um renascimento.

Quando a exigência da realidade é ter sempre que seguir, parar parece ser um desafio. Dessa
exigência vem a impossibilidade de qualquer reflexão, pois não é permitido que nenhum tipo de
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luto seja realizado. Parar significa ter que pensar e sentir.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Embora a autora sustente ao longo do livro a memória de uma mãe amorosa, forte e protetora,
vai surgindo também certo estranhamento, uma incoerência dessa imagem com o que passou
a encontrar nos documentos a respeito de sua adoção. Isso permite uma abertura para a
representação da mãe menos idealizada, ou até mesmo da mãe sumida e os efeitos devastadores
desses sumiços. Rickardsson (2017) conta que, depois de muitos anos sem querer saber sobre o
que tinha se passado em seu processo adotivo, começou a interessar-se pelos documentos de sua
adoção. Segundo a autora, foi o surgimento de insistentes pesadelos que tornaram necessárias
as buscas. A angústia exigiu uma investigação, processos psíquicos que culminaram em seu
retorno ao Brasil. Os pesadelos denunciaram uma abertura nas defesas de Christina e faziam uma
exigência de tradução:

Então vieram os pesadelos. Eu tinha sete anos e corria risco de morte, tive esse
sonho diversas vezes. Queria ter sonhado com um terrível monstro embaixo da
cama, mas infelizmente era o que tinha acontecido na minha vida que voltava
à minha memória. Eu estava sonhando com o que havia me acontecido quando
ainda era criança. (Rickardsson, 2017, p. 8)

Era seu passado que se atualizava, insistentemente. Corria o risco de morrer. Além disso, ela diz
que o seu “corpo e inconsciente” tomaram conta de tudo, e era como se a alma tivesse decidido
que era tempo de assumir o controle (Rickardsson, 2017).

A autora passa a descrever o que se assemelha a um desmoronamento das muralhas defensivas,


que arruínam os artifícios anteriormente utilizados para superar a possibilidade de enfrentamento
do que insistia em retornar. Um pouco antes de ter os pesadelos, ela relata: “Eu trabalhava dia
e noite”, “me dedicava ao que podia controlar”, “estava tão cansada, exausta” (Rickardsson,
2017, p. 8). Ela parecia se colocar nessa posição de prontidão para seguir, para não parar, porque
parar poderia significar ter que se deparar “com algo que nunca havia experimentado antes”
(Rickardsson, 2017, p. 8).
131
O percurso de busca das origens permite a Christina encontrar, no estranhamento do retorno aos
locais da infância, em uma experiência histórico-estética, partes que faltavam de si mesma. Ela
reconhece o portão, porém bem menor do que lembrava e agora preto; reencontra alguma daquelas
mulheres presentes em sua despedida, agora mais velhas; ouve partes de sua história das quais
não tinha na memória. Tudo isso permitiu ressignificar sua história e reintegrar partes cindidas de
si, assim como reconsiderar o lugar que a doença mental de sua mãe Petronília ocupava.

ADOÇÃO E A POSTERIORI: O PASSADO DO VIAJANTE MUDA DE ACORDO COM O ITINERÁRIO


VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

A partir da noção de “a posteriori” podemos refletir sobre o que está em jogo na adoção tardia,
no sentido de uma ressignificação ulterior ao que ocorreu na infância. Mas também, no sentido

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


contrário, de como o que aconteceu na infância retorna no presente com uma exigência de tradução.

A palavra nachtraglichkeit, não tem um equivalente em língua portuguesa que preserve os


sentidos que traz na língua alemã, e retoma a ideia com a qual iniciamos esse texto, de que “após
a vivência do evento o sujeito irá carregá-lo e maturá-lo no curso da vida.” (Hanns, 1996, p. 81)
Posteriormente, o evento passado é rearranjado, pois quando a pessoa amadurece pode avaliar o
que ocorreu de forma diferente. O que Luiz Alberto Hanns (1996, p. 83) enfatiza, e que consideramos
uma parte preciosa do sentido da palavra, é o enfoque da “permanência de uma conexão entre
o agora e o momento de então, mantendo ambos interligados”. Dessa maneira, tanto é possível
“carregar para o passado uma nova visão” (o que leva a um retorno e a um acréscimo de algo que
faltava), quanto “trazer (carregar) do passado para o presente o evento mais antigo e acrescentar-
lhe algo, atualizando-o” (Hanns, 1996, p. 83)

Jacques André (2015), ao definir o conceito de après-coup (“no depois”, “a posteriori”) considera que
o “acontecimento deixará um traço, que contudo permanecerá durante muito tempo sem sentido
e inativo, como excluído no interior de Psiquê.” (André, 2015, p. 19). De nossa parte, encontramos
nas considerações do autor sobre esse traço sem sentido e inativo referência preciosa para nossa
análise do livro de Rickardsson, uma vez que o processo de busca das origens nas crianças adotivas
tem seu início no momento em que são reativados tais traços, excluídos no interior. Poderíamos
dizer que a exigência dessa reativação poderia ser ocasionada por novas situações traumáticas,
num segundo tempo do trauma, mas também pelo que denominamos “trabalho de adoção”. Ou
seja, aquilo que está em jogo quando uma nova relação de filiação e parentalidade se estabelece.
Trabalho que permite que essa relação seja boa o suficiente para restaurar na criança seu lugar
de sujeito, fornecendo um ambiente propício para que possa reconhecer e elaborar os efeitos da
exposição precoce a situações traumáticas.
No caso de Christina e de tantas adoções tardias, podemos supor que, com a inserção em um novo
mundo e o contraste absoluto entre a nova vida e a condição à qual estava submetida, é o trabalho
132 da adoção que tanto reabre a situação traumática quanto permite que, finalmente, possa haver
uma elaboração do que ocorreu no passado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando comparamos a situação de reabertura própria da análise com a situação de abertura do


trabalho adotivo, temos em mente que o que se intenciona na adoção não é exatamente a mesma
expectativa explícita no processo analítico, ou seja, a reabertura, o desligamento, o sacolejo das
traduções e ou seu desmantelamento. Tomamos a cena analítica de empréstimo, pois quando
se teoriza sobre isso fica mais explícita a inspiração, nos termos laplancheanos, ou seja, o ponto
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

em que o sujeito permanece aberto ao enigma do outro. (Laplanche, 2016) Dessa maneira,
encontramos uma forma de entender como pode funcionar a adoção tardia, mesmo mantendo

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


implícito nesse nome a ideia de um “tarde demais”.

Quando lemos e relemos o relato autobiográfico da Christina Rickardsson, podemos perceber


a dinâmica que está em jogo nos processos adotivos, em crianças que têm ou tiveram suas
vulnerabilidades extremamente desprotegidas. Jô Gondar (2015), numa articulação entre Ferenczi
e Butler, propõe “considerar que o grande problema da política contemporânea não reside no fato
de que alguns têm mais riquezas ou mais poder do que outros, mas no fato de que algumas vidas
têm sua vulnerabilidade protegida, enquanto que outras, não “(p. 223).

Embora fruto de falhas diversas por parte das estruturas que deveriam garantir cuidado, a adoção
internacional estabelece-se como uma conquista dessa posição, mesmo que tarde demais, de
proteção da vulnerabilidade da criança ou adolescente tão expostos em seus países de origem.

O trabalho com adoção tardia é necessário e fundamental, assim como a pesquisa em torno desse
tema. Esperamos ter contribuído para a compreensão de sua complexidade e da riqueza dessas
experiências. O pretendente brasileiro à adoção tem se diversificado, sensibilizando-se para a
adoção de crianças maiores, de crianças negras e de grupos de irmãos.

Esperamos que nossos próximos governos possam fortalecer ainda mais os direitos em torno da
infância e políticas públicas, de modo a romper com a ciranda que faz com que famílias abandonadas
acabem inevitavelmente abandonando seus filhos. Relatos como o de Christina são urgentes, pois
sua história nos faz perceber o quanto é importante continuarmos lutando para garantir os direitos
conquistados e por um cenário um pouco mais favorável para a criança brasileira.
REFERÊNCIAS

133 André, J. (2015). Vocabulário básico da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

Eidt, H. B. (2016). Avaliações de perda do poder familiar: práticas no contexto brasileiro e utilização
do Sistema de Avaliação do Relacionamento Parental (SARP). Dissertação (Mestrado), Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande
do Sul. Recuperado de https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/166079/001005427.
pdf?sequence=1

Freud, S. (2010). O inquietante. In Obras Completas. (Paulo César de Souza, Trad., Vol. 14). São
Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919).
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Gondar, J. (2015). Ferenczi como pensador político. In E. S. Reis, Com Ferenzi: clínica, subjetivação,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


política. Rio de Janeiro: 7 letras.

Hanns, Luiz Alberto. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago
Editora.

Laplanche, Jean. (2016). Sublimação e/ou inspiração. Percurso 56/57, 35-52.

Macedo, F. (2013). Filiação sem fronteiras: o Brasil na rota da adoção internacional de crianças,
1965-1988. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, 5(9), 37-53.

Nabinger, S. (2010). Adoção: o encontro de duas histórias. Santo Angelo: FURI.

Rickardsson, Christina. (2017). Nunca deixe de acreditar. (Fernanda Satmaz Akesson, Trad.).
Ribeirão Preto: Novo Conceito Editora.
SUMÁRIO

134 ANÁLISE DE FILME O CONTADOR


DE HISTÓRIAS: DESAFIOS NA
ADOÇÃO DE CRIANÇAS COM
TENDÊNCIA ANTISSOCIAL

AUTORIA
LUCAS TEIXEIRA LEANDRO
Graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

CONTATO: ltleandro1310@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


MARINA RUAS CARDOSO
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
CONTATO: psicmarinacardoso@gmail.com

RESUMO
Este trabalho propõe uma leitura da tendência antissocial em crianças e seus desafios
diante de uma adoção tardia, a partir da análise do filme O contador de histórias. Com
esse objetivo, utilizamos a teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal, passando
por conceitos como “trauma” e “deprivação”, para estabelecer o diálogo entre a
psicanálise e a película escolhida. De modo a organizar a escrita do artigo, detemo-
nos a analisar especialmente a relação dos personagens principais da trama (Roberto
Carlos e Margherit), a partir da seleção de pequenos fragmentos/cenas do filme.
Diante da história narrada pelo próprio protagonista, busca-se enfatizar a importância
dessa discussão em prol da manutenção dos ambientes suficientemente bons para
crianças que foram desvinculadas (por diversos motivos) de suas famílias biológicas.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Adoção tardia; Tendência antissocial; Winnicott
INTRODUÇÃO

135 O filme O contador de histórias (2009) traz a história real de Roberto Carlos Ramos, um mineiro
que passou boa parte da sua infância na antiga instituição Fundação Estadual para o Bem-Estar
do Menor – FEBEM, onde demonstrava indícios de tendências antissociais e delinquência, sendo
considerado “incorrigível” até o momento em que conhece a pedagoga francesa Margherit Duvas.
Tomando a cinebiografia e a teoria winnicottiana como base de análise, pretendemos discutir os
desafios encontrados na adoção (ou o acolhimento) de crianças nas condições supracitadas. Além
das dificuldades de uma adoção tardia, temos como foco de discussão as atitudes e recursos que
devem ser mobilizados na nova família para possibilitar o processo de adaptação a uma nova vida.

A TEORIA WINNICOTTIANA
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

A delinquência, antes de Winnicott, era, para a psicanálise, nada mais do que a culpa por uma

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


ambivalência inconsciente insuportável, sendo o ódio pela pessoa amada a origem das reações
violentas e destrutivas. Sem a possibilidade de encontrar saída pela sublimação ou pela reparação,
a alternativa restante era destruir o objeto para poder sentir culpa. Em resumo, o “xis da questão”
seriam os conflitos pulsionais intrapsíquicos do indivíduo, consistindo basicamente em uma luta
em seu mundo interno (Loparic, 2006).

Com a introdução da teoria do amadurecimento pessoal e a noção de “ambiente”, Winnicott


localiza a importância do cuidado nas primeiras fases da vida, influenciando posteriores
patologias do indivíduo. Antes de começar a falar sobre a tendência antissocial, é preciso que
se passe brevemente pela teoria do amadurecimento winnicottiana. Como lido em Dias (2012),
Winnicott queria postular uma teoria do desenvolvimento normal do indivíduo e, após extenso
trabalho como pediatra, propõe que o amadurecimento é um processo inato ao ser humano,
sendo intrinsecamente influenciado pelo ambiente. Vale ressaltar aqui que esse “ambiente” se
refere aos cuidados dedicados à criança, geralmente do cuidador principal nas primeiras fases
da infância e, com o passar do tempo, se estendendo ao restante da família e à esfera social do
infante. Segundo a autora, o caminho para a integração se inicia em uma percepção corporal
subjetiva (ainda não integrada, em relação de dependência com o mundo externo e incapaz de
se diferenciar deste). O bebê, que ainda não se enxerga como “Eu”, através da relação com o(s)
cuidador(es), começa a desenvolver uma noção de externalidade, do que é “Não-Eu”, entrando
na chamada fase transicional. Quando a criança compreende objetivamente o mundo externo,
podendo se perceber de forma independente, ela chega à integração, conseguindo se afirmar
como “Eu Sou”.

A fase transicional, que abordaremos com mais profundidade ao longo deste artigo, se caracteriza
pela “dependência relativa”: caso o ambiente tenha sido suficientemente bom e o bebê se
desenvolvido até este estágio, a criança começa a diferenciar seu Eu do que é Não-Eu. Nesse
estágio, há a desadaptação do cuidador ao filho e o início de um processo de desilusão, devendo
o cuidador “falhar” progressivamente. As “falhas” devem-se à impossibilidade do cuidador de
136 prover todas as necessidades do infante e a noção de “Não Eu” é essencial para que a criança
identifique de onde elas vem. Mas, caso a falha seja uma ausência por um período maior do que
a criança pode manter viva a lembrança da experiência positiva anterior, se instala a deprivação,
origem da tendência antissocial – esta é, para a criança, a perda definitiva do que já foi bom.

ROBERTO CARLOS RAMOS: DE “INCORRIGÍVEL” À “EXCEÇÃO”

No filme, de acordo com seu próprio relato, Roberto fala dos primeiros anos com muita alegria,
vivendo com a mãe e seus nove irmãos. Aos seis anos de idade, porém, há uma brusca ruptura com
a família biológica, retirando-o desse ambiente que ele considerava positivo e o transferindo para
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outro que a mãe pensava ser melhor. A deprivação ocorre, então, com a entrada do protagonista
na FEBEM. Consideramos as palavras de Winnicott (1984/1995, p 135) ao escrever: “na base

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


da tendência antissocial está uma boa experiência inicial que se perdeu. Sem dúvida, é uma
característica essencial que o bebê tenha atingido a capacidade de perceber que a causa do
desastre reside numa falha ou omissão ambiental”.

Roberto teve em sua infância uma mãe e um ambiente suficientemente bons e isso lhe foi retirado
na época em que, provavelmente, estaria entrando na dependência relativa. De fato, a condição
financeira da família não lhes garantia qualquer luxo, mas oferecia à criança recursos afetivos que
o satisfaziam. Persuadida pela propaganda da instituição, que anunciava uma realidade utópica
de educação e ascensão social, a mãe de Roberto acabou levando-o até a Fundação, acreditando
que ele teria um futuro melhor.

Quanto à institucionalização, o próprio Winnicott (1954/1997) mostra-se contrário quando diz:

A ideia de que um jovem ser humano pode ser criado numa instituição já foi
refutada há muito tempo. A tendência interna para o desenvolvimento e o
crescimento emocional muito complexo de cada bebê requer certas condições,
e estas condições não podem ser expressas em termos de bons cuidados
corporais. (p. 127)

Diz, ainda, que, caso não houvesse outra alternativa à institucionalização, esta deveria conter
poucas crianças e poucos profissionais, para que estes conseguissem dispender de tempo e
capacidade emocional na criação. A reparação da deprivação, que possibilita a cura, se dá quando
o ambiente compreende o que a criança deseja comunicar através do ato antissocial. Caso
contrário, as chances de que se torne uma delinquência são grandes. E a experiência de Roberto
na FEBEM foi definitivamente a segunda.
Winnicott (1965) também aponta que:

137 Severidade é essencial em tais casos, e se a isso se puder acrescentar alguma


humanidade, tanto melhor. [...] As crianças podem descobrir humanidade entre
elas próprias e podem chegar a dar valor à severidade, na medida em que implica
estabilidade [...]. É importante lembrar que, se o rigor do ambiente é a base, as
crianças sentir-se-ão desorientadas se em tal ambiente houve exceções e
escapatórias. Se é preciso haver um ambiente rigoroso, então que seja coerente,
confiável e justo, para que possa ter valor positivo. (p. 207)

“Severidade”, apontada como característica indispensável, se refere a uma rotina estrita e regrada,
que dê uma sensação de segurança e previsibilidade às crianças. Na FEBEM, essa palavra possuía um
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significado completamente diferente: as crianças não eram reconhecidas em sua individualidade


- muito pelo contrário, deviam se adequar às regras rígidas de comportamento, sob a ameaça

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


de castigos físicos e torturas. Além de grande descaso dos profissionais, que consideravam as
crianças como “delinquentes criminosos que devem ser punidos”, a superlotação da Fundação
piorava ainda mais qualquer possibilidade de cuidado. Não havia nenhuma humanização no
cuidado – se é que podemos utilizar a palavra “cuidado” nesse contexto –, e a brutalidade do
tratamento é evidenciada desde o primeiro dia: na noite em que chega, ainda acreditando que a
mãe o abandonou por ir embora sem se despedir, Roberto chora sua falta e é reprimido, tanto por
um dos colegas, quanto pelo bedel, que pergunta agressivamente: “Quem é que tá ‘miando’ aí,
hein?”.

Desse momento em diante, o filme mostra vários excertos exemplares do desenvolvimento da


tendência antissocial de Roberto: a mentira se inicia quando ele ganha biscoitos das psicólogas
a cada erro nos testes de cognição e piora quando descobre que as profissionais da cantina se
compadecem dele e lhe dão mais comida quando ele diz que tem alguma doença grave. Tempo
depois, ao passar para a ala dos meninos mais velhos, de 7 a 14 anos, descobre a fuga e o roubo,
iniciando a passagem para a delinquência “propriamente dita”.

Diz Winnicott (1968/2005):

Quando o menino ou menina ficam empedernidos pela falta de comunicação, o


ato antissocial não sendo algo em que se reconheça um SOS, ou quando ganhos
secundários tornam-se importantes, e já alcançou grande perícia em alguma
atividade antissocial, então fica mais difícil ainda enxergar (apesar de estar lá)
o SOS, que é um sinal de esperança no menino ou na menina antissocial. (p. 81)

O Roberto que encontramos no início do filme se reconhece pela forma como é cuidado, e é
a própria diretora da FEBEM quem diz que ele “foge toda hora” e “já rouba, já fuma, já cheira
cola”, sendo, portanto um garoto “problema”, “irrecuperável”. Essas palavras são ditas quando
ela mostrava o espaço da Fundação para Margherit, uma pedagoga francesa que veio ao Brasil
138 realizar uma pesquisa sobre crianças nessas instituições. E é a partir desse instante que o enredo
se desvela. Enquanto a superior tenta convencê-la a todo custo de que Roberto era um “caso
perdido”, é exatamente ele quem desperta a curiosidade e interesse da pesquisadora. Margherit
precisa fazer um esforço para se comunicar com ele e, para isso, usa seu instrumento de trabalho,
o gravador: ela grava a voz de Roberto e o repete para ele, tendo um efeito quase hipnótico sobre
o menino, que questiona se sua voz ficará gravada lá.

É interessante a fala de Roberto, em narração, com relação ao encontro dos dois: “Ninguém
nunca tinha me pedido ‘por favor’”. Ao deparar-se com o interesse genuíno de Margherit em
sua história e nele, Roberto sente o despertar da esperança, ainda que com bastante dúvida. É,
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como bem pontuado por Pasqualotto (2014, p. 56), esperança “de retornar ao estado anterior,
quando a criança se sentia segura, protegida e amparada em suas necessidades por um ambiente

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indestrutível e confiável”.

AS DIREÇÕES DA TENDÊNCIA ANTISSOCIAL

Segundo Winnicott, há duas direções da tendência antissocial: o furto/roubo (relacionado à


mentira, citada anteriormente) e a destrutividade. Deve-se, antes de tudo, entender esses
comportamentos como os recursos encontrados por essas crianças na resposta a tal mudança
do ambiente. Sobre elas, o autor diz: “A tendência antissocial caracteriza-se por um elemento nela
que complete o meio ambiente a ser importante. O paciente, através de pulsões inconscientes,
compele alguém a encarregar-se de cuidar dele.” (Winnicott, 1984/1995, p. 130).

No dia do primeiro contato, Roberto foge novamente da FEBEM. A francesa fica impossibilitada
de encontrá-lo em suas próximas visitas, até que ela o vê em uma praça de Belo Horizonte com
outros garotos de rua. Margherit, então, convida-o para ir à sua casa numa proposta de troca: eles
lancham juntos enquanto o menino compartilha sua vida com ela. Um ponto importante dessa
relação é a constante presença do gravador de voz que, de certa forma, provoca Roberto, ao
oferecer a possibilidade de contar sua própria história, conferindo importância ao registrar essa
voz que durante tanto tempo foi desacreditada e silenciada.

Ele aceita e, já em sua casa, a pedagoga tenta iniciar um diálogo novamente, mas Roberto passa a
“testar a paciência dela”, podendo ser traduzido como uma verificação ambiental. Comportando-
se de maneira inadequada, o garoto começa a avaliar a capacidade da francesa de “aturá-lo”:
cuspindo no prato, respondendo-a de forma atrevida, tratando-a mal, comportamentos que,
provavelmente, seriam dignos de punição se estivesse na instituição. Vendo que Margherit não
reage da mesma forma que seus superiores da FEBEM, ele se enfurece e tenta roubar o gravador,
fugindo logo depois.
Para discorrer sobre este momento, voltaremos a Winnicott (1984/1995):

139 Uma direção é representada tipicamente pelo roubo e a outra pela


destrutividade. Numa direção, a criança procura alguma coisa, em algum lugar,
e não a encontrando busca-a em outro lugar, quando tem esperança. Na outra,
a criança está procurando aquele montante de estabilidade ambiental que
suporte a tensão resultante do comportamento impulsivo. É a busca de um
suprimento ambiental que se perdeu, uma atitude humana que, uma vez que
se possa confiar nela, dê liberdade ao indivíduo para se movimentar, agir e se
excitar. (pp. 131-130)

Roberto conjuga as duas tendências, utilizando-as de acordo com sua relação com o ambiente.
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Logo depois de tentar destruir esse novo “local” de apoio (testando o ambiente/Margherit e
roubando o gravador), ele volta, buscando a estabilidade de um lugar onde pode sentir-se seguro

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


novamente. Essas idas e vindas do menino funcionam como se ele tentasse certificar-se de que
Margherit é capaz de cuidar dele.

Depois de testar a paciência da possível acolhedora e voltar para a rua, Roberto passa a enxergar
de forma diferente o ambiente hostil e perigoso, que anteriormente era o mais próximo de lhe
prover cuidado. Não que ele estivesse alheio às dificuldades de “viver na rua”, mas o contato com
Margherit lhe reacende uma esperança que ele mesmo provavelmente achava que já não possuía.
Essa dissimetria ambiental o afeta diretamente quando os meninos de rua nos quais se “inspirava”
oferecem a oportunidade de entrar na “gangue”, mentira que se revela uma emboscada para
humilhar e estuprar Roberto. Em momento de profunda vulnerabilidade, ele retorna à casa da
pedagoga. Ainda que assustada, Margherit consegue manejar bem a situação, lhe oferecendo
estadia, de início por uma noite e, depois, enquanto durar sua história - que ele finalmente aceita
contar para o gravador.

O ponto chave aqui é mostrar que, para a criança que saiu de um ambiente estável e perdeu a
confiança no ambiente deseja efetivamente retornar a um “lugar” confiável. Entretanto, o retorno
para esse “lugar bom” também é conflituoso, pois provoca desconfiança e medo de “render-se” e
acabar se enganando.

O PAPEL DO CUIDADOR

É importante também que o(s) cuidador(es) entenda(m) que seu papel de ambiente que provém
cuidado não pressupõe uma aceitação de qualquer tipo de comportamento, com medo de
repreender para não “assustar” a criança ou quebrar a atmosfera agradável já conquistada.
Estas são questões trazidas por Winnicott, quando ele fala sobre O Ódio na Contratransferência
(1947/1978) para tratar dos sentimentos de ódio e temor do analista direcionado aos pacientes,
sentimentos estes que podem ser estendidos aos casos de adoção (ele chega a citar no artigo
sua experiência pessoal de adoção de uma criança antissocial por um período de três meses). A
140 tendência antissocial, cujo objetivo é “agitar o ambiente”, acaba gerando ódio no(s) cuidador(es)
adotivo(s). Isso obedece a seu objetivo ulterior: testar o ambiente para checar se quem cuida é
capaz de odiar objetivamente. Para Winnicott (1947/1978, p. 287), “ao que parece, a criança poderá
acreditar que é amada somente depois de conseguir sentir-se odiada”.

No filme, há uma cena em que Roberto cheira cola na casa de Margherit e ela o reprime com
severidade, dizendo que em sua casa não seria tolerado tal tipo de comportamento, ao invés de
agir de forma docilmente falsa ou tomar alguma atitude extrema, como castigá-lo à maneira da
FEBEM. Ela expressa objetivamente o ódio pelo comportamento destrutivo dele, que existe junto
ao seu amor, como pode ser observado na cena seguinte, em que Roberto ameaça ir embora e ela
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diz “Se quiser ir embora então vai! Mas o azar é seu porque amanhã eu vou fazer coq-au-vin!”, uma
proposta que ele considera irrecusável e permite reatar a relação dos dois.

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Depois desse momento, percebe-se um estreitamento do laço entre eles e, consequentemente,
o gradual desaparecimento da tendência antissocial de Roberto. Esta dá lugar a uma afeição
profunda, que valoriza o cuidado e busca preservá-lo.

Mais ao final do filme, a relação dos dois estabiliza-se e a tendência antissocial diminui
progressivamente. Em um último momento, Roberto crê que Margherit se mudará para a França
sem ele, e o medo da revivescência do trauma faz com que ele aja violentamente mais uma vez,
e como se quisesse destruir a relação dos dois, mergulha o gravador e as fitas na banheira e
deixa a torneira escorrer até inundar a casa inteira, focando seu ódio nesses objetos simbólicos
ao invés de aplicá-lo diretamente na francesa. A chegada de Margherit traz a boa notícia de que
ele foi adotado e irá para a França junto com ela, mas também o castigo de ter que enxugar a casa
inteira, sobre o qual ele diz “eu nem liguei, foi o melhor castigo que eu já recebi”. Passados alguns
anos, Roberto, formado em Pedagogia (assim como Margherit) na Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG, retorna à FEBEM, dessa vez como professor.

Esse último ato de raiva de Roberto mostrado no filme denota como a deprivação e os maus
tratos deixam cicatrizes profundas nas relações dessas crianças “incorrigíveis”. E, ainda, que não
devemos esperar que elas não expressem seu ódio e medo, muito pelo contrário. A diferença entre
essas crianças e as ditas “normais” é que as últimas encontram a possibilidade de expressar seus
sentimentos negativos e lidar com suas consequências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O filme ilustra bem as dificuldades de se adotar crianças consideradas “difíceis”, mostrando como
a tendência antissocial pode ser erroneamente interpretada como ingratidão e má índole. É
importante pontuar que o próprio Winnicott diz que para curar a tendência antissocial, a resposta
não é a psicanálise, mas o provimento de cuidados à criança, que serão redescobertos por ela e
141 permitirão a expressão de seus impulsos do id e a localizá-los em sua relação com o ego (Justo,
2010). Portanto, é fundamental dedicar atenção à preparação de famílias para receber crianças
que passaram por deprivação, escolhendo lares que possibilitem certa constância no cuidado
(considerando a possibilidade de lares que permitam a coexistência do amor e ódio, como dito
anteriormente no artigo). Além disso, é preciso se atentar também para as crianças em situação
de vulnerabilidade que começam a apresentar sinais de delinquência, pois necessitam de cuidado
ao invés de punição e/ou institucionalização. Uma opção interessante, caso a adoção não seja
possível, é o acolhimento familiar, no qual uma família se responsabiliza temporariamente,
recebendo auxílio financeiro do governo e permitindo a dedicação integral do núcleo familiar a
uma criança que necessita de cuidado.
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O maior desafio da adoção, entretanto, é quebrar a ideia determinista que permeia a expressão

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


“irrecuperável”. Afinal, por que acolher um “delinquente”, quando se pode adotar uma criança
exemplar? Anterior ao processo de restauração da confiança da criança, é necessário deixar-lhe
mostrar quem verdadeiramente é, como Margherit fez com Roberto Carlos. As crianças como
ele, coagidas pela crítica insistente e desumanizada (baseada em padrões de comportamento
rigidamente obedientes, chegando a ser quase impossíveis de atingir), são aquelas que necessitam
mais do cuidado e acolhimento, dando-as oportunidade de serem vistas e ouvidas em sua
individualidade e potencialidades, não como um indivíduo em destaque por suas “transgressões”.

O filme ilustra, com sua história comovente, que não existe criança “irrecuperável” e sim um
estigma social que marca esses jovens, assim como aponta um modelo institucional falho (que,
não por acaso, iniciou seu declínio ainda na década de 90). E, embora a história de Roberto Carlos
seja vista como uma “exceção”, a partir de nossa análise da teoria winnicottiana, temos uma base
fundamental para repensarmos o manejo, não oferecendo formas prontas para o sucesso de
uma adoção ou de um acolhimento, mas sugerindo que nos atentemos para a individualidade da
criança e do cuidador, que criarão juntos uma relação saudável e, acima de tudo, possível.

REFERÊNCIAS

Dias, E. O. (2012). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. São Paulo: DWW Editorial.

Justo, J.; & Buchianeri, L. (2010) A constituição da tendência antissocial segundo Winnicott:
desafios teóricos e clínicos. Recuperado de http://www2.assis.unesp.br/revpsico/index.php/
revista/article/view/81/225

Loparic, Z. (2006). De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática. Winnicott


e-prints, 1(1), 1-29. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1679-432X2006000100004&lng=pt&tlng=pt

142 Vilaça, L; & Fraga, D. (Diretor/Produtor). (2009). O contador de histórias [Filme-vídeo]. São Paulo:
Warner Bros.

Pasqualotto, I. (2014). Função materna e tendência antissocial: uma análise do filme “O contador
de histórias”. SBPW. Sociedade Winnicott, 9(2). Recuperado de http://revistas.dwwe.com.br/
index.php/We-Prints/article/view/66/43

Winnicott, D. (1997). Duas crianças adotadas. In Pensando sobre crianças. (pp. 115-125). Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1954).
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Winnicott, D. (2005) A delinquência como sinal de esperança. In Tudo começa em casa. (pp. 81-
91). São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Trabalho original publicado em 1968).

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Winnicott, D.. (1978) O ódio na contratransferência. In Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas.
(pp. 277-287). Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1947).

Winnicott, D. (1995) Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original
publicado em 1984).
SUMÁRIO

AS TARTARUGAS NINJA: UMA


143
NARRATIVA SOBRE O DESEJO
DE CUIDAR E A QUESTÃO DA
IDENTIFICAÇÃO ENTRE PAIS
E FILHOS

AUTORIA
MARIANA RÚBIA GONÇALVES DOS SANTOS
Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais – (UFMG). Contato:
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

CONTATO: marianagsantos2@gmail.com.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
Os objetos de análise deste ensaio configuram-se como os dois últimos filmes da
franquia TMNT (Teenage Mutant Ninja Turtles), a saber: As Tartarugas Ninja (2014) e As
Tartarugas Ninja 2: Fora das Sombras (2016). Nele problematizamos o papel e os efeitos
do cuidado na história libidinal dos protagonistas; a capacidade das figuras masculinas
para o desempenho dessas tarefas e o potencial das narrativas ficcionais em nos fornecer
esquemas de tradução e interpretação para lidarmos com conflitos internos. Conclui-se
pelo incentivo a narrativas ficcionais que nos forneçam esquemas de papéis de gênero,
família e adoção alternativos aos comumente proporcionados pelas narrativas tradicionais.
PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Tartarugas Ninja; Identificação; Cuidado; Adoção.
As Tartarugas Ninja tiveram sua primeira aparição nos quadrinhos em 1984, ganhando, em seguida,
releituras para desenhos, filmes e jogos. Seus protagonistas? Bem, quatro irmãos adolescentes,
144 mutantes, tartarugas e ninjas que vivem nos esgotos de Nova York e protegem a cidade do vilão
Destruidor e de sua organização criminosa, o Clã do Pé, assim conhecidos por terem desenvolvido
o hábito de pisarem nas pessoas boas sem maiores questionamentos.

É certo que, de lá para cá, entre uma releitura e outra, o enredo original sofreu algumas alterações,
seja no curso da história em si, seja na função atribuída a este ou aquele personagem. De modo
que, a decisão de tomar como objeto de análise apenas os dois filmes mais recentes da franquia
-– As Tartarugas Ninja (2014) e As Tartarugas Ninja 2: Fora das Sombras (2016) -– obedeceramu
a critérios puramente subjetivos. Meu desejo em assistir tais produções, o fato de achá-las
particularmente leves e divertidas, e ainda uma memória afetiva das tardes passadas com meu
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irmão acompanhando as aventuras de Leonardo, Raphael, Donatello e Michelangelo pela TV


ou protagonizando-as, nós mesmos, por meio de um dos jogos para (o nosso saudoso) Super

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Nintendo. Não tenho dúvidas de que essas tardes, como tantas outras passadas entre jogos,
desenhos e animes configuraram-se como elementos essenciais de minha identificação com meu
irmão e, consequentemente, com o mundo nerd/geek.

O primeiro filme da série tem início quando, cansada de ser escalada para cobrir matérias
irrelevantes, a jovem jornalista April O’Neil decide investigar por si mesma o último ataque do Clã
do Pé, que já há alguns meses vinha espalhando o caos pela cidade de Nova York.

Na noite em que retorna ao local do último ataque da quadrilha em busca de provas, ela termina
por presenciar uma nova ação do grupo, que só não obtém êxito graças à ação de justiceiros
misteriosos que se valiam das sombras como aliadas para manter sua identidade oculta e
surpreender o inimigo.

Na corrida desenfreada por seu furo de reportagem, O’Neil termina flagrando mais uma ação
do grupo de justiceiros, e o primeiro contato com eles acontece. Esse contato com os irmãos
tartarugas e, em especial, a descoberta de seus nomes - que faziam referência a quatro artistas
da Renascença -, despertaram em April uma lembrança remota. Ao contrário do que imaginara
a princípio, aquele, definitivamente, não havia sido seu primeiro contato com os irmãos. April,
Leonardo, Raphael, Donatello e Michelangelo se conheciam de outra época. Uma época em que
April ainda era uma menina e os tartarugas cobaias no laboratório coordenado por seu pai.

A história, antes um tanto incerta e composta por vagas reminiscências, pôde ser confirmada
quando os irmãos a levaram até à toca a pedido do pai deles, Mestre Splinter. É o próprio Splinter
quem esclarece o ocorrido:
Splinter: Ouça com atenção, April. Não lembro da minha vida antes do laboratório.
Aquela noite fatal começou como outra qualquer. [Mas] . . . depois que os irmãos
145 dormiram, ouvi vozes altas. Havia um cheiro de fumaça. Os alarmes soaram.
O seu pai havia descoberto a verdade sobre o homem para quem trabalhava.
Ele incendiou o laboratório. O último suspiro dele foi tentando destruir o plano
do Destruidor. Eu estava aterrorizado. Mas aí você apareceu e nos colocou em
segurança. Eu não falava naquela época, mas lhe agradeço agora. Percorremos
os esgotos até acharmos este lugar. Foi quando o mutagênico injetado no nosso
sangue começou a nos mudar de forma milagrosa. Vi como o seu pai a amou
e sabia que devia demonstrar o mesmo amor pelas tartarugas. Me tornei o pai
deles e eles se tornaram os meus filhos. . . . Tudo que eles são e tudo que se
tornaram só foi possível pela coragem que você mostrou naquela noite fatal.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Temos aqui uma história de cuidado. Uma história que, ao envolver os protagonistas, permitiu

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


que Splinter se sentisse tocado diante do desamparo dos bebês tartarugas e, de alguma forma,
impelido à tarefa de cuidar. Atualizando, assim, o bonito caminho pulsional inaugurado em sua
história a partir do cuidado fornecido por April, que, por sua vez, havia sido cuidada por seu pai. A
nosso ver, estas seriam as forças internas que moveram Splinter à adoção dos irmãos.

Único responsável por uma família monoparental, Splinter não deixou a desejar no desempenho
de suas tarefas: encarregou-se dos cuidados primários e se manteve particularmente atento aos
processos internos e às necessidades de seus filhos da infância à adolescência.

Durante o primeiro longa, ele acompanha, orienta, impõe limites e se esforça para proteger os
filhos. Preocupado com os desafios que eles poderiam vir a enfrentar no futuro, quando deixassem
a toca, Splinter decide se dedicar ao estudo do Ninjutsu para, em seguida, ensinar-lhes uma
forma de se defenderem mental e fisicamente. Faz tudo a seu alcance para impedi-los de irem
atrás do Clã do Pé e do Destruidor, afirmando que ainda não estariam prontos. E os filhos, como
bons adolescentes, o desobedecem. Mas após algumas dificuldades, terminam vitoriosos em sua
empreitada. Ao retornarem à toca, encontram Splinter ainda debilitado pela luta com Destruidor,
momento em que tem lugar um diálogo significativo:

Leonardo: Desculpe, a culpa foi minha.

Raphael: Tinha razão, não estávamos prontos.

Splinter: Não. Eu é que não estava pronto para deixá-los partir. Vocês só
precisavam descobrir que seu verdadeiro poder está em acreditar uns nos outros.
Ainda nesse sentido, é interessante observar que a presença marcante de Splinter no primeiro
filme, dá lugar, no segundo, a aparições pontuais. Seus filhos cresciam. E nos parece que Splinter
146 teve a sensibilidade necessária para reconhecer o que estava se passando e permitir que eles
fizessem suas escolhas, tomassem suas decisões, elaborassem, a seu modo, soluções para os
desafios enfrentados, e tivessem espaço para, enfim, protagonizarem sua própria história.

Com suas atitudes, Splinter cumpriu ainda outra tarefa: proporcionou a seus filhos (e também aos
espectadores) um modelo bastante palpável de uma figura masculina forte e protetora ao mesmo
tempo em que cuidadosa, sensível e conectada com sua dimensão afetiva, demonstrando que
tais características nada possuem incompatíveis ou mutuamente excludentes.

Em As Tartarugas Ninja 2: Fora das Sombras (2016), os irmãos se veem novamente às voltas com
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os planos malignos do Destruidor que conseguira fugir da cadeia e retornava às ruas, agora mais
poderoso, pois aliara-se a Krang, um alienígena que desejava destruir a vida na Terra. As ações de

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Krang, Destruidor e seus dois novos capangas, Bebop e Rocksteady, aumentam a responsabilidade
em torno dos irmãos e os obrigam a deixarem as sombras e passarem a agir também sob a luz do
dia. Tais circunstâncias, bem como as ações que demandam por parte do grupo dão origem a
outros conflitos, esses de ordem interna.

A ênfase recai então sobre a temática da diferença que passa a se configurar como fonte de tensão
tanto entre os irmãos enquanto grupo quanto na relação desse grupo com o mundo externo, com
os humanos. No que tange a primeira situação, Leonardo, conhecido por sua parcimônia, sensatez
e racionalidade, protagoniza uma discussão acalorada após o fracasso do grupo em uma missão,
chegando a fazer o seguinte comentário: “Quer saber o que eu estou sentindo... Podemos ser
irmãos, mas não somos uma equipe”.

A segunda situação nos fornece um exemplo ainda mais dramático. Ao andarem na cidade sob a
luz do dia, os irmãos tiveram de lidar com a reação das pessoas a sua aparência. É então que Mikey,
o mais descontraído dos quatro, volta para casa e diz para Splinter, desolado: “Tinha que ver a cara
dos policiais. Eles não ficaram com medo. Ficaram com ódio. Com muito ódio”.

Diante da reação do mundo e das limitações que acreditavam relacionadas à sua condição, surge
então nos irmãos um desejo de aceitação, traduzido pela vontade de tornarem-se humanos.
O caminho para tal transformação é encontrado por Donatello que, ao modificar a substância
utilizada por Destruidor para transformar pessoas em animais antropomórficos, tornara-a capaz
de produzir o efeito inverso. E aqui, é novamente Splinter que intervém, lembrando aos filhos que
a força de um grupo ou equipe não se encontra na igualdade entre seus membros, mas sim na
diversidade dos sujeitos e dos seus pontos de vista, bem como no respeito às diferenças.
Em Longe da Árvore, Solomon (2012) investiga e descreve os conflitos e descobertas de pais
cujos filhos apresentam algum traço marcante que os difere de seus genitores, traços que, em
147 alguma medida, poderiam perturbar o processo de identificação com esses filhos. Nele, o autor faz
referência a uma fantasia bastante comum e mesmo essencial para entendermos essa afirmação.
Fantasia essa já mencionada por Freud (1914/1976) em seu texto dedicado ao narcisismo, a saber:
a ideia de que os filhos representariam a continuidade dos pais na Terra; constituindo-se, a um só
tempo, como meio de reforçar o narcisismo e a onipotência parental e estratégia capaz de burlar
a dimensão da transitoriedade, a qual todos estamos sujeitos.

Conforme nos explica Solomon (2012), enquanto a instalação e realização dessa fantasia seria
facilitada por crianças que compartilham características significativas com seus pais, aqui
entendidas como atributos e valores; ela poderia ser dificultada e mesmo frustrada por crianças
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que apresentam o que ele nomeia de identidade horizontal, ou seja, que expressem fatores
relacionados a genes recessivos ou divirjam dos pais em características por eles consideradas

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significativas, podem ser exemplos de identidade horizontal o autismo e a homoafetividade. O
autor nos lembra ainda da importância historicamente conferida à noção de laço de sangue na
definição tradicional de família.

As categorias e conceitos apresentados pelo autor nos parecem difíceis de ignorar, uma vez
que encontram-se presentes no meio social e, em maior ou menor medida, em nosso psiquismo.
Nesse sentido, o que dizer então do enredo de um filme que propõe a possibilidade da adoção e da
construção de uma relação afetiva entre indivíduos tão diferentes?

O que Splinter parece ter descoberto e saído das sombras para contar é que existem muitas
maneiras de realizar a fantasia infantil inconsciente de imortalidade através de nossos filhos. E
que a simples transmissão de parte de nosso pool genético à geração seguinte está longe de ser
a mais interessante, criativa ou recompensadora delas.

É certo que Splinter e seus filhos pouco ou nada compartilhem em termos de genótipos e fenótipos,
o que compartilham diz respeito a outra ordem de fenômenos. Desejos, afeto, valores. O desejo de
cuidar de Splinter, que motivou a adoção dos irmãos, e suas ações para com seus filhos permitiu
que ele fosse reconhecido não apenas como pai, mas também como mestre e modelo a ser seguido.

Em seu estudo dedicado à análise dos contos de fada, Corso & Corso (2006) informam que
essas narrativas ficcionais derivadas da tradição oral serviam tanto ao entretenimento quanto à
transmissão de esquemas gerais de tradução e interpretação presentes em uma dada sociedade.
No que diz respeito aos contos clássicos, ainda que tenham sofrido alterações ao longo do tempo
devido às transformações históricas, alguns deles haviam sido preservados e ainda hoje estariam
presentes nos livros infantis. Qual seria então o segredo dessa longevidade?
Os autores sustentam que se alguns desses contos sobreviveram enquanto outros sucumbiram
é porque nos tocaram de alguma maneira, seja devido à oportunidade de representar de forma
148 indireta conteúdos do inconsciente infantil, seja fornecendo esquemas tradutivos que auxiliariam
as crianças na elaboração de suas questões. Corso & Corso (2006, p.22) apontam ainda para a
significativa contradição entre a grande importância assumida pela infância e a quase falta de
crítica aos materiais ficcionais a elas fornecidos, para além das “interpretações catastróficas . . .
sob forma de alerta . . . denunciando os efeitos nefastos . . . gerados . . . pelos games e desenhos
animados violentos”.

Nesse sentido e tendo em vista o papel que as narrativas ficcionais possuem na estruturação
do psiquismo infantil através do fornecimento de esquemas de tradução e interpretação, nada
melhor do que investirmos na construção de novas narrativas e de releituras que funcionem como
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alternativas aos pontos de vista tradicionais. Narrativas como as apresentadas por este ensaio,
em que as figuras masculinas (como Splinter e o pai de April), além de se fazerem presentes na

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vida de seus filhos, desejam e assumem as tarefas de cuidado, e em que conceitos como os de
adoção e família levem mais em consideração os vínculos afetivos e as múltiplas possibilidades de
identificação entre os sujeitos, do que a simples semelhança física ou a transmissão de caracteres
genéticos.

REFERÊNCIAS

Bay, M., Form, A., Fuller, B., Walker, G., Mednick, S., Bryce, I.;, & Liebesman, J. (Produtores/Diretor).
(2014). As Tartarugas Ninja. Estados Unidos: Paramount Filmes.

Bay, M., Form, A., Fuller, B., Walker, G., Mednick, S.;, & Green, D. (Produtores/Diretor). (2016). As
Tartarugas Ninja 2: Fora das Sombras. Estados Unidos: Paramount Filmes.

Corso, D. L. & Corso, M. (2006). Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre:
Artmed.

Freud, S. (1976). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (M. A. M. Rego, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1914).

Solomon, A. (2012). Longe da árvore: pais, filhos e a busca da identidade. (D. M. Garschagen, L. A.
Araújo & P. M. Soares, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.
SUMÁRIO

149 CONSIDERAÇÕES
PSICANALÍTICAS SOBRE A ÉTICA
DA ADOÇÃO: TRAUMA, CLIVAGEM,
HUMILHAÇÃO E HOSPITALIDADE

AUTORIA
DANIEL KUPERMANN
Professor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo – USP.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Bolsista do CNPq - Brasil. Coordenador do psiA – Laboratório de pesquisas e intervenções


psicanalíticas.

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CONTATO: danielkupermann@gmail.com.

BARTHOLOMEU DE AGUIAR VIEIRA


Mestre em Psicologia Clínica (IP-USP), Especialista em Psicologia Clínica com crianças
(Puc-Rio).
CONTATO: bartholomeu.vieira@gmail.com..

RESUMO
Neste trabalho abordamos as problemáticas relativas ao trauma, à clivagem, à humilhação
e à hospitalidade como potencialidades inerentes à situação de adoção. Para isso,
tomamos como referência o livro de Christina Rickardsson, Nunca deixe de acreditar:
das ruas de São Paulo ao norte da Suécia com o objetivo de ilustrar nosso argumento
a partir de elementos presentes na narrativa. Inicialmente, identificamos a presença da
clivagem na experiência de adoção que, diferentemente da criança como representante
do sexual recalcado – característica do pensamento clínico de Freud – aponta para a
figura da criança traumatizada teorizada por Ferenczi. A seguir, indicamos como o afeto
da humilhação, efeito da falta de reconhecimento do sujeito pelo outro a quem recorre
em busca de uma solução para o seu desamparo, configura a dimensão potencialmente
desestruturante do trauma na experiência da adoção. Finalmente, no que concerne
às relações de cuidado propostas para a clínica da adoção, indicamos, inspirados
em Jacques Derrida, de que modo a ética da adoção implica a oferta da hospitalidade
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Trauma psíquico; Clivagem; Hospitalidade, Sándor Ferenczi.
Em primeiro lugar, gostaríamos de expressar nossa enorme satisfação de participar do VII
CONPDL, na UFMG. O evento é de extrema importância justamente por tocar na ferida de todos
150 nós – o tema do ano passado foi racismo, o deste ano é adoção. Parabenizamos os organizadores,
em especial o professor Fábio Belo, um importante interlocutor, com quem estabelecemos uma
parceria muito produtiva e uma amizade valiosa. Para essa fala, trabalharemos a partir do livro de
Christina Rickardsson, Nunca deixe de acreditar: das ruas de São Paulo ao norte da Suécia.1

A nossa experiência com adoção não é exatamente institucional – apesar de, recentemente,
nos últimos dois ou três anos, ter se tornado. De modo geral, ela é, como a da maior parte dos
psicanalistas, uma experiência clínica (ou seja, de consultório), em que adotamos... Desculpem:
em que “atendemos”. “Adotamos” é um ótimo termo. Vocês vão entender um pouco o porquê
desse ato falho. É no consultório que atendemos tanto crianças e adolescentes adotados quanto
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adultos adotados, e mesmo os pais adotivos dessas pessoas. É uma experiência restrita porque,
no consultório, o número de casos não é tão grande.

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Há alguns anos, temos um grupo que leciona na Escola Paulista da Magistratura que, por sua
vez, organiza vários cursos em várias áreas. Lá, esse grupo de psicanalistas, que tem inspiração
privilegiada na obra de Donald Woods Winnicott, vem trabalhando com os profissionais do Judiciário
(que é composto, em sua maior parte, por psicólogos, assistentes sociais e, eventualmente, um
ou outro juiz).

Nesses cursos, costumamos trabalhar o que Winnicott (1954/2000, 1975, 1975/1967, 1983) nomeia
de “desenvolvimento emocional infantil”. Recentemente, houve uma demanda, por parte dos
alunos, de supervisão institucional; ou seja, os psicólogos que trabalham no Judiciário trazem
os casos mais difíceis para serem discutidos no grupo, com a supervisão de um psicanalista.
Desse modo, temos tido um contato mais íntimo com as problemáticas da adoção, a partir dessa
experiência mais ampla – uma experiência “terceirizada”, por assim dizer.

Além disso, não gostaríamos de deixar de mencionar o livro da psicanalista Cynthia Peiter (que
está aqui na plateia): Adoção: vínculos e rupturas (2011), livro com o qual um de nós teve o prazer
de contribuir com a quarta capa. Uma importante pesquisa elaborada a partir de um caso clínico
de adoção. Então, percebe-se que não procuramos esse tema, fomos encontrados por ele. E,
assim, tentamos nos encontrar nele.

1. Este texto foi estabelecido a partir de uma adaptação da comunicação apresentada no VII CONPDL – As múltiplas faces da
Adoção, disponível no YouTube em: https://www.youtube.com/watch?v=9hZ9Tj6vnx4
DAS RUAS DE SÃO PAULO AO NORTE DA SUÉCIA: A CLIVAGEM

151 Vamos trabalhar agora o livro da Christina – ou a partir do livro, tomando-o como caso. Em
psicanálise, dizemos “caso” em uma referência etimológica, como “aquilo que cai”. Tomaremos
alguns pontos dessa história – que é uma epopeia vivida pela Christina – que consideramos
mais significativos, procurando, desse modo, ilustrar ou ressaltar alguns problemas cruciais
no processo de adoção. Faremos isso inspirados, sobretudo, na matriz de pensamento, que, na
psicanálise, chamamos de “pensamento das relações objetais”. Tomaremos dois autores como
referencial, sendo um deles o inaugurador desse pensamento, Sándor Ferenczi, contemporâneo
a Freud, e o outro, Winnicott, pediatra, psicanalista britânico e mais contemporâneo a nós. Este
último desenvolveu uma reflexão sobre os processos de chegada do humano ao seu ambiente, ao
seu contexto familiar e ao seu contexto sociocultural.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Gostaríamos de começar pinçando um característica do livro que parece atravessar tanto a sua

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forma quanto o seu conteúdo: a clivagem. Esse é um livro marcado pela experiência da clivagem.
Dizemos isso porque a autora, no Brasil, tinha o nome de Christiana e, na Suécia, recebeu o nome
de Christina: cai uma “a” (algo muito significativo, aliás, para a psicanálise de inspiração lacaniana).
Algumas outras clivagens importantes do livro são: Brasil e Suécia; moradora/menina de rua e
filha de uma família de classe média alta da Suécia; e, por último, a forma como Christina escolheu
apresentar a história dela: alternando capítulos em que fala sobre o seu período nas ruas de São
Paulo com capítulos em que fala do seu processo de adoção e da sua vida na Suécia.

A figura da clivagem é uma figura que atravessa forma e conteúdo, e o que isso indica para nós, a partir
da psicanálise, é que ambas as personagens, que poderíamos separar como as duas vidas da Christina,
são faces de uma mesma moeda. Há uma relação entre uma e outra, apesar de pouco evidente.

AS DUAS CRIANÇAS DA PSICANÁLISE

A partir disso, gostaríamos de propor a vocês a ideia de que, na psicanálise – e, aqui, estamos
ampliando o campo a partir da obra de Freud –, aparecem duas figuras de criança: uma é a criança
das origens da psicanálise, que chamaremos de “criança freudiana”: literalmente, poderíamos
dizer que esta criança é ilustrada pelo caso clínico do pequeno Hans. “Pequeno Hans”, que, em
alemão, seria como o nosso “Joãozinho”. Esse Joãozinho é um menino pequeno, que está no
auge do processo de Édipo; o Joãozinho tem sintomas fóbicos, tem medo de cavalos, e Freud, por
intermédio do que o pai do Joãozinho conta, ajuda a lidar com esses sintomas mostrando que o
cavalo é uma metáfora da figura paterna, trabalhando, assim, o complexo de Édipo.

Isso nos interessa porque a criança é aquela que permite que Freud adquira e formalize um
saber sobre a nossa vida psíquica, sobre a sexualidade, sobre a sexualidade infantil e sobre a
constituição da nossa vida emocional – falando de um modo mais abrangente. A ideia de Freud,
a partir da clínica da neurose, é justamente uma aproximação entre o neurótico, o infantil e o
primitivo, em que ele e a psicanálise escutam a criança presente e sobrevivente em cada um de
152 nós (Kupermann, 2011).

Desse modo, cada adulto – supondo que o somos –, tem uma criança que não nos abandona.
Só que essa criança é a responsável justamente pelas manifestações e pelas formações do
inconsciente, pelo desejo. A criança freudiana é o que nós poderíamos chamar de enfant terrible.
O que em francês significa “criança terrível”, o “Pimentinha”. No folclore brasileiro, essa criança
freudiana é aquela que denuncia a verdade recalcada pelas hipocrisias da vida social. Essa criança
é a que faz perguntas inconvenientes, que tira a roupa no meio da sala... é a criança que revela um
determinado saber a partir do qual, então, a psicanálise se constitui. Essa é a primeira criança da
qual falávamos.
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No nosso folclore, o Joãozinho é aquele que goza da postura da professora, que, por sua vez, é

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a representante da vida civilizatória. Já a figura da professora é aquela que pretende educar, e
o Joãozinho faz, o tempo inteiro, uma espécie de denúncia daquilo que não pode aparecer na
vida civilizatória, que é o sexual. As piadas do Joãozinho são eminentemente sexuais e colocam a
professora em constrangimento, assim como um ato falho na nossa vida psíquica.

Daremos um exemplo singelo. A professora dá um exercício para a turma, e as crianças devem


montar uma palavra com uma letra que ela sugere. Então ela diz a letra “g”, e aí a Mariazinha
fala “grão”; ela diz a letra “b”, e o Claudinho fala “banana”. Ela fica morrendo de medo da hora do
Joãozinho, se dirige a ele e diz: “letra ‘a’, Joãozinho”. O Joãozinho fala “anão”. A professora, ainda
suando, dá um suspiro de alívio, mas o Joãozinho, se contorcendo, completa, fazendo ainda um
gesto com as mãos: “Mas com um ‘trem’ deste tamanho!”. Essa é a criança freudiana, uma criança
vitalizada, pulsante. É a criança que, de alguma maneira, o processo de análise procura resgatar
no sujeito neurótico. A criança que sofreu a repressão da vida social.

A partir de certo momento, surge no campo psicanalítico outra criança, que não é mais a criança
do recalque, é a criança da clivagem. Essa criança vai emergir exatamente a partir do momento
em que alguns autores – e, aqui, o destaque é efetivamente para Ferenczi – começam a perceber
que há crianças que não brincam, que não se permitem brincar, que não conseguem brincar.
Essas crianças trazem os maiores desafios para a clínica psicanalítica, como diz Winnicott (1975)
em O brincar e a realidade.

O desafio com uma criança dessas é, antes de tudo, fazê-la brincar. Somente ao facilitar a
possibilidade de brincar será possível poder tratá-la. Mas o que é uma criança que não brinca?
Em uma resposta imediata, diríamos que seria uma criança traumatizada. E o que é exatamente
o trauma? Nós temos várias figuras de trauma que atravessam tanto a vida social quanto, por
exemplo, os profissionais que trabalham no Judiciário. O trauma sexual é um deles. Essa sempre
foi a figura privilegiada do trauma infantil. Eventualmente, uma segunda modalidade frequente –
dizemos “frequente” pensando na nossa vida social no Brasil – são as crianças vítimas de castigos
153 corporais, a violência física propriamente dita.

O que Ferenczi faz, de maneira genial, é apresentar uma terceira figura do trauma bem menos
visível que essas duas que mencionei, mas que pode ser mais nefasta do ponto de vista do
comprometimento do sujeito: o “terrorismo do sofrimento” (Ferenczi, 1993/2011). Aproximando
essa ideia ao argumento da Christina, poderíamos dizer que o terrorismo do sofrimento se dá
quando é a criança que precisa cuidar dos seus cuidadores. É essa inversão que é considerada a
matriz de toda e qualquer experiência traumática. Infelizmente não temos tempo aqui para nos
aprofundarmos na teoria do trauma, mas achamos que o que foi dito é suficiente para este ponto.
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Uma criança que não brinca é aquela que foi obrigada a cuidar daqueles que deveriam cuidar
dela ou, de outra maneira, a assumir responsabilidades que estão acima das suas capacidades

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


psíquicas. Para essas crianças, Ferenczi (1931/2011) elege uma figura metafórica, que é a figura
do bebê sábio. Esse é o bebê que, nos sonhos de alguns pacientes, já nasce falando; ou aparece
como uma cabeça dissociada do corpo. Quer dizer, como Winnicott iria apontar, sujeitos com um
hiperdesenvolvimento intelectual. Essa é a criança que amadurece rápido demais.

A criança que não brinca é aquela que se assemelha, segundo Ferenczi, a uma fruta bichada: por
fora, ela está madura, mas, por dentro, está destruída. A ideia dessa clivagem é, basicamente,
entre o sensível e o inteligível. É uma clivagem, poderíamos dizer, entre razão e emoção. Entre
uma parte que sabe tudo e outra que nada sente – ou que está muito escondida, muito protegida
de um mundo hostil. A parte que sabe tudo é a parte identificada com o agressor. Trazendo uma
passagem brevíssima de Ferenczi e, na sequência indo a Christina. Ferenczi (1931/2011) diz assim:

as crianças que muito sofreram, moral e fisicamente, [e o que eu quis ressaltar


para vocês foi o sofrimento moral mesmo: o terrorismo do sofrimento é moral],
adquirem traços fisionômicos da idade e da sabedoria. Também tendem a cercar
maternalmente os outros [...], estendem assim a outros os conhecimentos
adquiridos a duras penas [...] sobre o seu próprio sofrimento; tornam-se
indivíduos bons e prestimosos. (Ferenczi, 1931/2011, p. 89)

Nessa passagem, Ferenczi está apontando a criança que se torna o psiquiatra da família, o
enfermeiro, o psicólogo. São esses os sujeitos que assumem as funções de cuidado em relação
aos outros. Se nós recorrermos ao texto da Christina, vemos que ela ilustra de uma maneira
bastante explícita tanto a clivagem como o que está em jogo nesse fenômeno, a identificação
ao agressor. Como ela relata em seu livro, houve uma separação abrupta dela com a mãe. Existiu
uma incompreensão, por parte da autora, dos motivos que levaram à esquizofrenia da mãe. Em
algum momento ali no abrigo, a diretora a chama e inicia uma conversa perguntando se ela sabe
por que está vivendo na rua, e ela dá algumas respostas muito objetivas. Então a diretora comenta
154 que são respostas muito duras e acrescenta: “você parece ser bem esperta para a sua idade e foi
obrigada a crescer rápido demais, como tantas outras crianças” (Rickardsson, 2017, p. 116).

A PROGRESSÃO TRAUMÁTICA

Percebemos que tem algo desse processo de amadurecimento precoce que vai aparecendo na
Christina e que vai, de certo modo, corroborando algumas hipóteses da psicanálise que podem
nos ajudar a entender ou, pelo menos, a nos sensibilizar para a problemática da adoção. Mais
adiante, há uma pequena passagem em que Christina diz: “tenho certeza de que, já no orfanato,
eu havia começado a construir uma fachada, mas cuidava do meu verdadeiro eu dentro da neblina”
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(Rickardsson, 2017, p. 143). Aqui, ela está descrevendo algo da clivagem: uma fachada exterior e
um verdadeiro eu oculto. A casca e o núcleo – referência que podemos fazer ao conhecido livro

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


de Maria Torok e Nicolas Abraham (1995). Mais adiante, novamente no livro de Christina, temos a
seguinte passagem:

Christiana estava perdida ali dentro, mas não estava morta e, um dia, a neblina
se dissiparia, e ela se encontraria novamente.

Duas estratégias fundamentais para mim foram adquiridas no meu tempo no


orfanato. Tudo havia começado nas ruas, mas foi desenvolvido no orfanato.
Uma estratégia era a minha fachada, ou seja, a minha capacidade de me adaptar
e mentir. [Com isso, ela vai apresentando o problema da adaptação.] A outra
estratégia que me ajudou a sobreviver foi a capacidade de não me transformar
num fantasma, não perder a alegria e nem a beleza que eu tinha dentro de mim.
Essas estratégias, assim como todo o resto, tinham vantagens e desvantagens.
Foi isso que dividiu a minha alma e a minha pessoa em duas. Christiana ficou
escondida pela neblina, e uma nova pessoa surgiu, aquela que, em breve, seria
chamada de Christina. (Rickardsson, 2017, pp. 145-146)

Com isso, Christina apresenta o processo e o mecanismo da clivagem, além de colocar em cena
um problema de que iremos tratar em breve, isso é, o problema da adaptação. Antes disso, há uma
última passagem, que é importante comentarmos, e que nos remete ao problema daquilo que
tem potencial efetivamente traumático para crianças que vivem histórias próximas dessa que
Christina relata.

Esse potencial traumático, nomearemos de “humilhação”. Para nós, na leitura desse livro, o que se
destacou foi a maneira como a experiência da humilhação – e a humilhação, aqui, vamos entender
como um afeto tipicamente infantil, ou seja, privilegiado das crianças, que pode ter consequências
importantes, quantitativas e qualitativas – é relatada pela Christina nas vivências dela nas ruas.
155
HUMILHAÇÃO E RECONHECIMENTO

São duas experiências, basicamente, comentadas por Christina. Uma de amor, que é o que ela
encontra na mãe, e uma de humilhação, que é o que ela encontra no ambiente desprotegido
dessa mesma mãe. Do ponto de vista da psicanálise, a humilhação se daria quando o sujeito não
vê reconhecida sua humanidade frente ao outro. Ferenczi (1931/2011; 1932/1990) nomeia de
desmentido; aquilo que promove humilhação – eu conto uma experiência de dor, e o outro, para
quem eu expresso isso, não a reconhece. O outro destitui o sujeito de sua humanidade, no sentido
de segregá-lo da comunidade dos humanos.
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Há outra passagem importante a ser comentada a esse respeito. Passagem que entendemos

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como realidade, mas a partir da qual aproveitamos também para ressaltar a semelhança com
São Tomé por parte dos psicanalistas: duvidamos a priori da factualidade de algumas histórias.
De todo modo, em determinado ponto da narrativa de Christina, ela diz que estava morrendo de
fome e que se aproximou do lixo e, quando ela vai comer, aparece um menino mais forte e mais
velho que quer roubar o sanduíche que ela encontrou. Nesse momento, tem início uma briga, e ela
pega uma garrafa quebrada e mata o menino. Na sequência, ela come o sanduiche e vomita. Essa
é uma passagem das mais significativas, pois demonstra os efeitos da experiência da humilhação.

A humilhação é a mãe da violência. A humilhação é aquilo que, através de um espelhamento,


permite ao sujeito deixar de reconhecer o outro como humano. Trata-se de uma espécie de
caldeirão no qual a experiência de adoção, muito provavelmente, tem um solo. Humilhação como
efeito de alguma experiência de rejeição no momento em que um sujeito depende do acolhimento
da família, do ambiente, sempre tomando essas figuras no sentido mais amplo do que pai e mãe
biológicos. Então a adoção se faz sobre o solo de humilhação, e esse solo é potencialmente
traumático, no sentido de promover identificações com os agressores e clivagens narcísicas.

Christina fala com todas as letras – inclusive com a letra “a”, quer dizer, também como Christiana
– sobre a clivagem. O primeiro problema ao qual ela nos remete é o da adaptação. Na Suécia, ela
é acolhida por uma família, aparentemente muito boa, de pais amorosos, mas ela não se permite
amar esses pais porque amá-los implicaria trair a mãe da qual ela foi apartada de uma maneira
violenta. Ela inclusive comenta que a mãe adotiva morre precocemente de câncer, aos 50 anos, e
que isso é um impacto porque ela não pôde dizer que a amava.

Por outro lado, encontramos uma concepção de adaptação pela via da submissão. Isto é, a
Christiana se adapta a uma situação de violência em nome da sobrevivência e também por
impotência e, depois, se adapta na Suécia, mantendo certa clivagem – tanto que o português
desaparece. Isso é o que nós chamamos de uma adaptação que compromete a experiência do
infantil que nós esperávamos estar no interior de cada sujeito; quer dizer, o infantil que promove
156 e que proporciona o viver criativo. Apesar de tudo, Christina diz que preservou esse sentido em
algum lugar. Ela foi amada em um momento fundamental de sua vida, ainda que por uma mãe
esquizofrênica. Para concluir esse ponto, me parece que o livro oferece tanto uma matriz do que
seria a ética da adoção como também o bálsamo para a humilhação. Uma espécie de cura para a
humilhação. E como é possível curá-la?

Poderíamos dizer, de maneira simplória, que a humilhação é um afeto político que curamos pela
via do reconhecimento. É uma possibilidade. Na situação apresentada pelo livro, poderíamos dizer
que a humilhação se cura pelo amor, quer dizer, há reparação possível. Aparentemente, talvez não
em todos os casos, mas, em muitos deles, há reparação possível pelo amor.
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Na história da Christina, isso se dá de um modo belíssimo. Dá-se no regime que poderia caracterizar

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aquilo que Ferenczi (1933/2011) chama de “confusão de línguas”. A Christiana conhece um casal
sueco que não fala português, sendo que ela também não fala sueco. É nesse encontro sem
palavras – não bem sem palavras, porque cada uma das partes vai nomeando o mundo para a
outra –que se exige uma comunicação indireta. Quer dizer, existe uma disponibilidade sensível
para ter contato com o outro, a despeito de não falar a mesma língua.

Como se dizia em outros momentos (menos turbulentos) da história política do Brasil, isso poderia
ser “nitroglicerina pura”. Aqui, não explodiu; ao contrário, parece que houve a possibilidade de um
encontro. Essa possibilidade de encontro se deve ao que nós intitulamos um dos princípios da
ética do cuidado na psicanálise: a hospitalidade (Kupermann, 2017). Assim sendo, concluiremos
com um breve comentário sobre a hospitalidade.

CUIDADO E HOSPITALIDADE

Existe um pequeno livro do filósofo Jacques Derrida (2003), falecido há alguns anos, traduzido
para o português como Questão do estrangeiro: vinda do estrangeiro, em que ele se refere ao
julgamento de Sócrates, que, por sua vez, volta-se para o tribunal que o está julgando e diz não
falar a língua do tribunal, e sim a língua da praça pública. Nessa situação, Derrida comenta que o
estrangeiro é aquele que não fala a nossa língua. A hospitalidade seria, então, o acolhimento dessa
pessoa, desse estrangeiro – uma vez que, se o estrangeiro falasse a nossa língua, já não seria
estrangeiro. Temos, assim, um paradoxo. Se o estrangeiro falasse a nossa língua, compartilharia
de um ethos comum, e não seria propriamente estrangeiro.

A psicanálise diria para Derrida que é muito bela essa leitura sobre a hospitalidade; no entanto,
comentaria que a hospitalidade é constitutiva na vida de cada um de nós, afinal, quem é que não
fala? O infans, todos nós, no momento da sua chegada neste mundo. Essa é a experiência de
estraneidade radical. Nossa matriz é uma matriz de estraneidade. Ou seja, a hospitalidade é aquilo
que permite ao humano se constituir como tal; a hospitalidade é prévia ao nascimento. A criança
157 só vai falar se houver hospitalidade – e algumas crianças, como se sabe, se recusam a falar.

Concluímos com a proposição de que o tarefa da psicanálise é o trabalho constituir uma língua
comum entre duas pessoas que não falam a mesma língua. Afinal, nós até podemos falar português,
mas isso não quer dizer que haja encontro afetivo possível, e, talvez, na ética da adoção – ou no
centro do que seria uma ética da adoção – deveria estar a possibilidade de constituir uma língua
comum, aquilo que não está dado.

É claro que, se alguém adota um bebê, essa pessoa reproduz a situação de chegada mas, em
uma adoção tardia, mesmo que se fale a mesma língua, esse não é o signo da hospitalidade. A
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hospitalidade seria a criação de uma língua comum. Assim, o desafio para todos que trabalham
com adoção é exatamente essa criação de uma língua capaz de aproximar os estrangeiros.

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REFERÊNCIAS

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Derrida, J. (2003). Questão do estrangeiro: vinda do estrangeiro. (A. Romane, Trad.). In J. Derrida,
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Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931).

Ferenczi, S. (2011). Confusão de língua entre os adultos e a criança. (A. Cabral, Trad.). In Psicanálise
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158
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original publicado em 1967).

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VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

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psicanalítico. In Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. (D. Bogomoletz, Trad., pp. 374-392).

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1954).
SUMÁRIO

159 CRIANÇAS (IN)VISÍVEIS: O


ESTATUTO DA ADOÇÃO

AUTORIA
MARIA LIDIA AMOROSO ANASTACIO DA SILVA
Advogada. Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior. Pós-
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

graduada em Direito de Família e Sucessões pela Universidade Anhanguera. Associada


ao Instituto Brasileiro de Direito da Família – IBDFAM.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: lidiaamoroso.adv@gmail.com

RESUMO
Pretende-se, com este artigo, trazer à baila os aspectos jurídicos da adoção, como ocorre
e como está elencada no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que neste ano
completou 28 anos. Analisa-se os institutos da “adoção à brasileira”, a colocação em
família substituta, os conceitos de família extensa/ampliada, bem como o procedimento
legal para se efetivar uma adoção. O objetivo principal deste trabalho, entretanto, diz
respeito ao “Estatuto da Adoção” (Projeto de Lei nº 394 de 2017), que está em trâmite
no Senado Federal e que pretende revolucionar a adoção no Brasil, uma vez que ataca
os problemas existentes da invisibilidade das crianças que ficam nos abrigos até
completarem a maioridade e não são adotadas em virtude de prazos e dificuldades
jurídicas e políticas que fazem com que o processo de destituição do poder familiar e
consequente adoção demore muito. O Estatuto tem como objetivo excluir alguns requisitos
objetivos e subjetivos, além de regular de forma dinâmica essa colocação das crianças
em famílias substitutas. Desta maneira, o objetivo deste trabalho é justamente analisar
o novo Estatuto da Adoção, idealizado pelo Instituto Brasileiro de Direito das Famílias
– IBDFAM, que é de grande relevância social, uma vez que está em trâmite atualmente
e pode ser uma ferramenta transformadora na dinâmica dos processos de adoção.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; ECA; Estatuto da Adoção
INTRODUÇÃO

160 Pretende-se, com este artigo, fazer uma breve análise sobre o Projeto de Lei nº 394 de 2017,
intitulado de “Estatuto da Adoção”, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP),
idealizado pelo Instituto Brasileiro de Direito das Famílias – IBDFAM, que está em votação no
Senado, e que pretende dar maior celeridade aos processos de destituição do poder familiar,
além de trazer outras mudanças.

Desta forma, discorrer-se-á brevemente sobre a adoção em si e como ocorre seu procedimento
atualmente, bem como sobre seus requisitos, assim como a adoção à brasileira, adoção dirigida ou
personalíssima, além de trazer os principais pontos que o Estatuto pretende alterar.
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ADOÇÃO E O DIREITO DAS FAMÍLIAS

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


A adoção nada mais é do que um ato de amor e cuidado que garante a convivência familiar, que
se trata de um direito constitucional não apenas das crianças, mas de todos os seres humanos.
A adoção, juntamente com a convivência familiar, garante, ainda, o pleno desenvolvimento das
crianças e adolescentes através da afetividade, cuidado, educação, carinho, proteção.

Do ponto de vista jurídico, a adoção é, segundo Rosa (2016, p. 281), a “inclusão de uma pessoa
em uma família distinta da sua natural, de forma irrevogável, gerando vínculos de filiação, com
os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-a de quaisquer laços com pais e
parentes biológicos, salvo os impedimentos matrimoniais”.

Independentemente de qualquer coisa, o primordial em qualquer processo de adoção, e na verdade


em qualquer processo que envolve direitos de crianças e adolescentes, é se pautar pelo princípio
do melhor interesse da criança e do adolescente. O Direito das Famílias é um ramo muito peculiar,
não se adequando a certas regras que permeiam os outros ramos do Direito. Nos processos que
envolvem divórcios, guarda de filhos, pensões alimentícias e adoções, em que, literalmente cada
caso é um caso, os operadores do direito devem possuir sabedoria para compreender esse fato.

Segundo o ilustre presidente nacional do IBDFAM, o advogado e psicanalista Dr. Rodrigo da Cunha
Pereira, no Direito de Família a máxima jurídica “o que não está nos autos, não está no mundo”
se torna inaplicável. A realidade é necessariamente oposta, ou seja, na maioria desses casos o
que não está documentado e provado no processo torna-se muito mais importante, tais como
as relações, sentimentos e pensamentos das pessoas envolvidas, vez que todas essas variáveis
interferem sobremaneira no andamento processual.

Assim, faz-se necessário priorizar, sempre, o melhor interesse das crianças e adolescentes.
Primeiramente, cumpre ressaltar que não há distinção entre filhos adotivos e biológicos, todos
são iguais de acordo com a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA.
161
A adoção expressa verdadeiramente a paternidade consciente, uma vez que, por mais que os
pais biológicos possam programar o nascimento dos filhos, este nascimento pode muitas vezes
ocorrer de maneira não planejada, enquanto a adoção de modo geral é bem planejada e escolhida,
sendo consciente.

Neste sentido, a paternidade, ou melhor, a parentalidade socioafetiva, nada mais é do que


o parentesco instituído através de laços de afetividade, pela relação de cuidado e carinho
estabelecida, ao contrário dos laços consanguíneos.
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CONDIÇÕES GERAIS

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Para abordar o procedimento de adoção em si, é importante mencionar quem pode adotar e ser
adotado. O adotante – pessoa que adota –, deve ter dezoito anos ou mais, conforme o Art. 42
do ECA, além de manter uma diferença de idade de dezesseis anos para a criança/adolescente
adotado (Art. 42, §3º ECA). Conforme Rosa (2016), essa diferenciação tem a intenção de imitar a
existência de diferença de idade que ocorre na filiação biológica.

Os impedidos de adotar são os ascendentes, isto é, avós ou bisavós, e os colaterais de segundo


grau, ou seja, irmãos, conforme o Art. 42, §1º do ECA. Isto não significa que os avós ou irmãos não
possam utilizar-se de outras formas de família substituta, como a guarda ou tutela. Além destes,
segundo o ECA, estão impedidos de adotar, enquanto não derem conta de sua administração e
saldar o seu alcance, o tutor e o curador do pupilo e curatelado, respectivamente.

O adotando, de acordo com o Art. 40 do ECA, deve contar com no máximo dezoito anos até a data
do pedido, havendo apenas uma exceção, qual seja, quando ele completa a maioridade já estando
sob guarda ou tutela de determinada família.

Além disso, tem-se que os requisitos subjetivos para adoção são: idoneidade do adotante; motivos
legítimos/desejo de filiação e reais vantagens para o adotando, por ser medida excepcional. Já
os requisitos objetivos são: adotante maior de dezoito anos e diferença de idade de dezesseis
anos; estágio de convivência anterior determinado pelo juiz; prévio cadastramento no cadastro
de adoção; consentimento dos pais biológicos ou destituição do poder familiar e consentimento
do adotando, se ele for maior de doze anos.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, existem três modalidades de adoção, quais
sejam: unilateral, referente ao Art. 42; conjunta referente ao Art. 42, §2º ; e unilateral, referente
ao Art. 41, §1º.
O primeiro tipo de adoção, unilateral, diz respeito às pessoas solteiras, divorciadas ou viúvas, que
decidem adotar sozinhas.
162
A adoção conjunta trata-se de adoção por casal, e há a necessidade de comprovar a estabilidade
do relacionamento (Art. 42, §2º), a não ser que sejam divorciados, separados judicialmente ou ex-
companheiros que tenham iniciado o estágio de convivência na constância da união e, sobretudo,
possuam vínculo de afinidade e afetividade com a criança ou adolescente. Além disso, conforme o
artigo 42, §4º do ECA, é necessário que acordem sobre guarda e regime de convivência, atentando-
se para o fato de que a regra, hoje, é a modalidade da guarda compartilhada, além da prestação
de alimentos.

A terceira e última modalidade de adoção, também unilateral, diferentemente da primeira,


VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

ocorre quando o novo cônjuge ou companheiro deseja adotar o filho do relacionamento anterior,
ou seja, a adoção de seu enteado. Igualmente é possível, neste terceiro caso, proceder-se ao

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


reconhecimento da paternidade socioafetiva, ao invés da adoção, situação em que o nome do
novo cônjuge/companheiro será incluído no registro de nascimento do enteado, que passará a
conter o nome dos três genitores (dois biológicos e um socioafetivo), sem haver destituição do
poder familiar de nenhum dos genitores biológicos, como necessariamente ocorrerá na adoção.

Antes de adentrar no procedimento, é importante expor o conceito de família extensa. A família


extensa é composta por parentes consanguíneos, ou seja, que tenham o vínculo biológico, mas
que também possuam vínculo de afetividade e afinidade. Para exemplificar, trago a situação de
tios distantes de determinada criança. Por certo, esses tios fazem parte da família biológica, mas
não da família extensa, uma vez que não há laços de afinidade. Para a criação deste tipo de vínculo,
é necessário que os parentes tenham convivido com a criança/adolescente.

PROCEDIMENTO PARA ADOÇÃO

A Lei da Adoção (nº 12.010/09) definiu que o Estatuto da Criança e do Adolescente contém
todo o procedimento para adoção, sem necessidade de se recorrer ao Código Civil. Além disso,
substituiu o termo “pátrio poder” por “poder familiar”, que no novo Estatuto da Adoção é chamado
de “autoridade parental”.

Outrossim, em novembro de 2017 foi sancionada a Lei 13.509/2017, que além de reduzir alguns
prazos, trouxe algumas inovações quanto, por exemplo, à preferência na fila de adoção para
interessados em adotar grupos de irmãos. Também passa a ter prioridade quem quiser adotar
adolescentes com deficiência, doença crônica ou necessidades específicas de saúde.
Procedimento de habilitação

163 O primeiro passo para adotar crianças ou adolescentes no Brasil é o chamado “Procedimento de
Habilitação à Adoção”, que ocorre perante o Juizado da Infância e Juventude de cada comarca.

O objetivo deste procedimento é, na verdade, a inscrição dos adotantes no Cadastro Nacional


de Adoção (Art. 50 do ECA), sendo que sua convocação para adoção será feita de acordo com
a ordem cronológica de habilitação, ou seja, de acordo com a fila de adoção, e das crianças e
adolescentes disponíveis.

Um dos pontos mais importantes desta etapa é a participação dos futuros genitores em programa
de preparação psicológica, em que a equipe interprofissional realiza um estudo psicossocial, com
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

o intuito de, segundo Rosa (2016, p. 287), “aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para
o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos para adoção

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


(artigo 197-C ECA)”

Atualmente o prazo máximo previsto para esse procedimento é de 120 (cento e vinte) dias,
prorrogáveis pelo Juiz de forma fundamentada pelo mesmo período, conforme o Art. 197-F,
incluído pela nova lei de novembro de 2017.

Existem três possibilidades de dispensa desta prévia habilitação, quais sejam: quando o pedido
de adoção é realizado pela família extensa, conforme já explicitado, uma vez que não buscam
qualquer criança, mas sim a que possui os laços biológico e afetivo; quando a adoção é unilateral
pelo novo cônjuge ou companheiro, vez que ele procura adotar seu enteado, e não uma criança
em uma fila de adoção; bem como quando o pedido é feito por quem já detém a guarda ou tutela
do menor, maior de três anos de idade, conforme Art. 50, §13º do ECA.

Para ocorrer a adoção é necessário que haja consentimento dos pais biológicos ou representantes
legais (Art. 45 do ECA), ou então que haja a destituição do poder familiar, caso eles não concordem.
No caso de a criança ser maior de doze anos também será necessário o seu consentimento, nos
termos do Art. 45, §2º do ECA.

Portanto, se de um lado temos no Cadastro Nacional de Adoção a inscrição dos que desejam adotar,
que passaram pelo procedimento de habilitação (quando não dispensados), de outro temos as
crianças e adolescentes também incluídos no cadastro, depois de entregues ou quando destituído
o poder familiar, o que leva ao segundo passo, qual seja, a “Destituição do Poder Familiar”.
Destituição do Poder Familiar

164 Primeiramente cumpre salientar de forma concisa que o poder familiar, ou autoridade parental,
como afirma Araújo Jr. (2017, p.75) “é o conjunto de direitos e obrigações que os pais têm em face
dos filhos menores”, e, quando do procedimento de adoção, conforme já explicitado, é necessário
que haja a destituição deste poder, para que os novos genitores tenham total autonomia e
liberdade quanto à criação e educação de seus filhos.

O procedimento da destituição do poder familiar está regulamentado no Art. 155 e seguintes do


ECA e hoje possui o prazo máximo de duração de cento e vinte dias, conforme o Art. 163 do ECA,
alterado pela Lei 13.509/2017.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Este procedimento corta quaisquer laços com a família natural da criança/adolescente, para que
os pais adotivos, quando da adoção, conforme já explicitado, possam ter todas as obrigações e

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


direitos referentes aos seus filhos adotivos, passando-se a família adotiva a ser, com efeito, a
“nova” família natural.

Apesar de a Lei 13.509/2017 ter imposto o limite de cento e vinte dias para a finalização deste
procedimento, o que ocorre na prática, infelizmente, é muito diferente, seja em razão da
morosidade do judiciário brasileiro ou da lentidão para se encontrar membros da família extensa
para reinserção.

Por fim, cumpre ressaltar que este procedimento pode ser cumulado com a ação de adoção.

Ação de Adoção

Enfim, quando adotantes e adotandos encontram-se no Cadastro Nacional de Adoção, dá-se


início à ação propriamente dita, quando os pretendentes, liminarmente, passam a ter a guarda
provisória da criança/adolescente. Segundo Rosa (2016, p. 289) “tal medida, de imediato, obriga
a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a
seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais biológicos, se for o caso (Art. 33
caput ECA).”

Desta forma a criança ou adolescente também se torna dependente, para todos os fins e efeitos,
inclusive previdenciários (Art. 33, §3º do ECA).

O magistrado, em seguida, determina o tempo do “estágio de convivência” na provável nova família


pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por até igual período, mediante decisão
fundamentada da autoridade judiciária, conforme artigos 46, caput e 46 § 2o-A, ambos do ECA,
sendo esta a fase mais importante do processo de adoção.
Referido estágio deve ser acompanhado pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da
Infância e da Juventude e pode ser dispensado se a criança ou adolescente já estiver sob tutela ou
165 guarda legal do adotante, porém a guarda de fato não autoriza esta dispensa, por si só, conforme
o Art. 46, § 2º do ECA.

O vínculo da adoção se dá através de sentença judicial e sua posterior inscrição no registro


civil mediante mandado pelo qual não se fornecerá certidão, de acordo com o Art. 47 do ECA. O
mandado judicial cancelará o registro original do adotado, mas isso não quer dizer que ele não
tenha direito de conhecer sua origem biológica, bem como ter acesso ao processo, após completar
a maioridade.

A ação de adoção deve durar no máximo cento e vinte dias, podendo este prazo ser prorrogado
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

uma única vez pelo mesmo período, mediante decisão judiciária fundamentada, nos termos do
Art. 47, § 10 do ECA, incluído pela Lei 13.509/2017.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


ADOÇÃO À BRASILEIRA E ADOÇÃO PERSONALÍSSIMA

Após a análise do processo de adoção como ocorre hoje, antes da aprovação do PLS 394/2017,
é importante mencionar duas figuras consideráveis, quais sejam: adoção à brasileira e adoção
dirigida ou personalíssima (intuitu personae).

A adoção à brasileira é um mecanismo que burla o processo de adoção, uma vez que determinada
pessoa registra, como se fosse seu, filho de outrem, o que se configura crime contra o estado
de filiação. Porém por possuir motivação louvável, esta adoção tem sido reconhecida pela
jurisprudência brasileira, se constatada a parentalidade socioafetiva.

Este tipo de adoção não pode se confundir com a adoção personalíssima, que resumidamente
ocorre quando os pais biológicos “escolhem” para quem entregarão seu filho para adoção, ou
quando os pais adotivos escolhem a criança que irão adotar, mesmo sem estarem habilitadas no
Cadastro Nacional de Adoção, sem terem realizado procedimento de habilitação.

As únicas possibilidades, nos dias atuais, de que essa adoção ocorra, são aquelas contidas no Art.
50, § 13 do ECA e já mencionadas anteriormente, ou seja: se tratar-se de pedido unilateral (novo
cônjuge ou companheiro); realizado por membros da família extensa ou oriundo de quem já detém
a guarda ou tutela legal de criança maior de três anos ou adolescente.

Porém, em razão do princípio do melhor interesse da criança, alguns Tribunais têm flexibilizado
esta norma e permitido a adoção personalíssima.
NOVO ESTATUTO DA ADOÇÃO

166 Finalmente, apresenta-se agora uma breve análise sobre as principais mudanças que o novo
Estatuto da Adoção, idealizado pelo IBDFAM, traz.

O primeiro ponto de destaque é que a adoção será regulamentada totalmente pelo Estatuto,
sendo retirada do ECA tal regulamentação, porém sem deixar de se pautar pelos princípios
constitucionais de proteção à criança e ao adolescente, que estão elencados no capítulo I do PLS
394/2017 (Arts. 1º a 12).

Para a Dra. Maria Berenice Dias, em entrevista cedida à Revista do IBDFAM (2017, p.6), uma das
elaboradoras do projeto, “a Lei da Adoção é tão ruim, que não poderia ser consertada.” Faz-se
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

indispensável a criação de uma lei totalmente nova, com um novo olhar, recomeçando-se do zero,
que foi exatamente o que o Instituto Brasileiro de Direito das Famílias fez.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Um ponto de extrema importância do projeto diz respeito ao acolhimento institucional, na medida
em que diminui alguns prazos e o tempo de busca por parentes da família extensa, conforme
capítulos IV e V do PLS 394/2017.

Quando da institucionalização de uma criança ou adolescente, o Ministério Público deverá


ser informado imediatamente, e o Juiz realizará uma audiência para decidir se referido menor
permanecerá abrigado ou se já será encaminhado para os pretendentes do Cadastro Nacional de
Adoção.

Neste sentido, não cabe ao Estado buscar a família extensa, pois isso faz com que o procedimento
de destituição familiar demore sobremaneira, uma vez que o Estado não procura apenas a família
extensa, mas, sim, todos os parentes biológicos, que muitas vezes não tiveram o menor contato
com a criança ou adolescente.

Portanto, a proposta é que o poder familiar seja destituído de forma sumária enquanto a audiência
se realiza, o que tornará o procedimento mais célere.

De fato, o estatuto tem por objetivo dar visibilidade àquelas crianças e adolescentes que estão
abrigados e ainda não foram adotados, mas sem desrespeitar os preceitos de proteção da criança
e do adolescente presentes no ECA. Deve ficar claro que o estatuto não preconiza a adoção a
qualquer custo.

Da mesma forma, o estatuto prioriza sim a reinserção na família natural, apenas propõe
mecanismos que favoreçam a adoção quando isso não for possível.
Crianças são colocadas em abrigos enquanto o Judiciário busca persistentemente por parentes
distantes e a realidade cruel é que as crianças aguardam por muitos anos.
167
Nessa perspectiva, o Art. 23, § 1º do Projeto de Lei, elucida que caso o núcleo familiar ou a família
extensa não procure a criança ou adolescente institucionalizado ou em acolhimento familiar
dentro do prazo de quinze dias, este será entregue à guarda do primeiro da fila de adoção com o
perfil indicado, após o período de convivência.

Assim, o menor não ficará “eternamente” à espera de ser reinserido na família biológica, que
muitas vezes não tem o menor interesse em cuidar dele.

O terceiro ponto de maior importância que o PLS 394/2017 modifica é a possibilidade mais ampla
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

da adoção dirigida, ou personalíssima, pois, havendo a concordância dos pais de entregarem


o filho a uma família específica e determinada, a ação de adoção será cumulada com a ação

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


desconstitutiva da parentalidade, nos termos do artigo 179 do PLS.

Referida adoção personalíssima hoje não é permitida, conforme explicitado alhures, a não ser nas
três circunstâncias previstas no Art. 50, § 13 do ECA.

Cumpre ressaltar que o §4º do Art. 179 elucida que caso os pretendentes “escolhidos” não estejam
habilitados no Cadastro Nacional de Adoção, estes devem se submeter a estudo psicológico e
social efetuado pela equipe interdisciplinar.

Seguindo esta premissa, o Estatuto da Adoção inova ao também permitir a adoção pela família
acolhedora, nos termos do artigo 36 do projeto, sendo outra possibilidade de adoção dirigida.
Neste caso, a família acolhedora, que acolhe os abrigados provisoriamente, tem preferência em
adotar esta criança/adolescente, o que atualmente não é permitido.

Será necessário basicamente o cumprimento de três requisitos, quais sejam: que a criança ou
adolescente manifeste sua vontade de ser adotada pelos acolhedores; que haja estudo psicológico
e social pela equipe interdisciplinar da Justiça da Criança e Adolescente ou de outros órgãos de
apoio; e que, neste estudo, fique comprovada a constituição de vínculo de afetividade, além de
demais requisitos previstos na Lei (Art. 36, §1º, §2º e §3º do PLS 394/2017).

A adoção personalíssima por família acolhedora, ao meu ver, tem o escopo de dar à criança e ao
adolescente o papel de sujeitos, pois se o menor criou um vínculo de amor com esta família é de
se imaginar a frustração deste ao ter que voltar para a fila de adoção, para ser inserido em outra
família adotiva, como ocorre hoje.
Nestas situações a criança ou o adolescente parecem objetos que são realocados de acordo
com as leis atuais. Além de não ter fundamento, é cruel com os sentimentos desenvolvidos pela
168 criança, que já passou por duas famílias (a natural e a acolhedora) e agora tem que se ver em nova
família, a adotiva.

O Estatuto da Adoção ainda estimula o contato de pretendentes à adoção com crianças e


adolescentes institucionalizados, o que é de extrema relevância, uma vez que geralmente os
pretendentes idealizam determinada criança e querem adotar somente crianças com aquelas
características pré-determinadas, ou seja, com aquele perfil.

O que pode ocorrer, entretanto, é que em alguma das visitas os pretendentes se afeiçoem por
uma criança ou adolescente completamente diferente de seus conceitos prévios, inclusive mais
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

velhos, negros ou portadores de alguma deficiência, ou seja, os grupos que na maioria das vezes
não são escolhidos, por isso é tão importante criar mecanismos de aproximação.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Com efeito, o direito assegurado pela Constituição Federal à convivência familiar não se traduz,
necessariamente, em inserção na família biológica.

CONCLUSÃO

Acredito que, enquanto profissionais do Direito, da Psicologia, das Ciências Sociais e Humanas,
temos que nos esforçar para dar um lar a essas crianças e adolescentes, que têm um fator decisivo
contra elas, que é a unidade “tempo”.

O tempo delas diminui cada dia mais, e, a cada dia, elas ficam “apenas” mais um dia nos abrigos,
esperando uma saída. Quando dão por si, passaram-se anos, perderam suas infâncias e a
possibilidade de serem adotadas diminui, em razão desta ideia equivocada de que o lugar ideal
para a criança é, necessariamente, junto à sua família biológica.

O que ocorre, na realidade, o que se escancara à nossa frente, é que elas não são reinseridas na
família biológica, nem inseridas na família adotiva, mas, sim, tornam-se invisíveis nos abrigos do
país, motivo pelo qual o projeto de autoria do IBDFAM, “Crianças Invisíveis”, que criou o PL 394/2017
(Estatuto da Adoção), apesar de não ser um texto “perfeito”, é extremamente importante para
caminharmos no sentido da mudança dessa triste realidade do sistema de adoção no Brasil.

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Rosa, C. P. (2016). Curso de Direito de Família contemporâneo. Salvador: JusPODIVM.


SUMÁRIO

170 DEVOLUÇÃO DE
CRIANÇAS ADOTADAS E
RESPONSABILIDADE CIVIL

AUTORIA
NINA PEITER CARBALLIDO MENDES
Advogada. Bacharela em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

PUC-SP. .
CONTATO: ninapcm@hotmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
O objetivo do presente trabalho é analisar as questões jurídicas que envolvem a
devolução de crianças e adolescentes durante o estágio de convivência, período que
antecede a sentença que formaliza a adoção, e estudar a possibilidade de reconhecer a
responsabilidade civil dos adotantes pelos danos morais causados a criança ou adolescente..
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Devolução; Responsabilidade civil.
INTRODUÇÃO

171 A adoção de crianças e adolescentes é um tema de grande complexidade e tem sido estudado em
diferentes perspectivas. Trata-se de um tema interdisciplinar, que envolve questões do âmbito
jurídico, psicológico e social.

No presente trabalho, pretendo analisar, do ponto de vista jurídico, as questões relacionadas ao


insucesso da medida de colocação de crianças em famílias substitutas quando fatalmente leva
à devolução de crianças e adolescentes durante o estágio de convivência. Pretendo, além disso,
fazer um estudo sobre a viabilidade, a pertinência e a possibilidade de responsabilização dos
adotantes no âmbito civil pelos danos causados à criança em questão.
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O período do estágio de convivência é o ponto central quando se fala em devolução, pois é quando
os pais são confrontados com os desafios de criar o filho real e não mais o idealizado.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Quando se fala em devolução, é importante ressaltar que não existe previsão legal que autorize a
desistência de uma adoção concluída, pois a adoção é medida irrevogável, conforme previsto no
§ 1º, do Art. 39, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

Dessa forma, a devolução refere-se à situação em que os adotantes rejeitam a criança ou adolescente
e o convívio familiar torne-se inviável de tal modo que a equipe técnica da Vara da Infância e Juventude
opta por aceitar a devolução da criança durante o estágio de convivência ou até mesmo após a
consolidação da adoção, de forma que os pais adotivos têm o poder familiar destituído.

HISTÓRICO LEGISLATIVO: DA DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR PARA A DA


PROTEÇÃO INTEGRAL

Primeiramente, é preciso expor o contexto histórico das normas referentes aos direitos da criança
e do adolescente.

Os primeiros conjuntos de normas destinadas à assistência e proteção de crianças e adolescentes


eram os Códigos de Menores de 1927 e o de 1979. Ambos os códigos tinham viés higienista e
repressor, tendo como objetivo reprimir as condutas consideradas imorais dos menores
“delinquentes” ou “abandonados”. Vigoravam sob a doutrina da situação irregular, o que significava
que suas disposições só se aplicavam aos menores entendidos como em situação anormal, fora
da harmonia natural da sociedade e associava a pobreza à delinquência.

Finalmente, em 1990, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente por meio da Lei 8.069, de
13/07/1990, que extinguiu essa visão discriminatória da doutrina da situação irregular. Passou-se
a reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, devido a sua condição especial
de pessoa em desenvolvimento, e foi transferida para toda a sociedade a responsabilidade de
criar condições para tutelar esses direitos.
172
O Art. 4 do ECA representou um marco na história dos direitos da criança e adolescente, pois foi
quando passaram a entender a criança como sujeito de direitos, pessoa em condição especial de
desenvolvimento e titular do direito à proteção integral e à garantia de seu melhor interesse com
prioridade absoluta.

Para Ishida (2014), a condição peculiar da criança e do adolescente deve ser o norte de todas as
medidas aplicadas na Vara da Infância e Juventude e o juiz sempre deverá buscar a medida mais
adequada para proteger a criança ou adolescente. Quero acentuar especificamente a medida
de “proteção”.
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CONCEITOS DE “ADOÇÃO” E “IRREVOGABILIDADE”

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


A adoção é o procedimento pelo qual uma criança ou adolescente é colocado em nova família
substituta sem vínculo sanguíneo, extinguindo os laços de parentesco com seus genitores,
criando um novo vínculo de filiação com os adotantes. Para Paiva (2003), a adoção é o mecanismo
jurídico pelo qual uma criança privada de família é colocada em um lar substituto para que refaça
seus laços de filiação. Para Peiter (2011, p. 17), “adoção é uma forma de filiação instituída por lei,
que tem caráter irrevogável e coloca pais e filhos em condições jurídicas idênticas à filiação e à
paternidade biológica”.

As adoções sempre existiram nas civilizações humanas, conforme observado por Ghirardi (2015).
No entanto, após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do ECA em 1990, os interesses
da criança passaram a ser prioritários, vigorando a doutrina da proteção integral.

É nesse cenário atual, no qual vigora a doutrina da proteção integral e há foco no melhor interesse da
criança, que lançaremos luz sobre este tema e analisaremos as situações de devolução de crianças.

PROCEDIMENTO DA ADOÇÃO

Antes de prosseguir, é importante fazer um breve esclarecimento sobre o procedimento da


adoção. A pessoa que deseja adotar uma criança precisa passar por uma etapa de entrevistas
pela equipe de psicólogos e assistentes sociais.

Essas entrevistas são fundamentais para alinhar as expectativas dos adotantes com as
características reais das crianças ou adolescentes. Peiter (2011) afirma que muitos dos adotantes
ficam extremamente desconfortáveis e insatisfeitos com a ideia de seleção de candidatos, pois
para se tornar pai biológico não há necessidade de aprovação prévia, então na adoção esse
processo seria desnecessário.
173
Entretanto, esta autora destaca que essa preparação e seleção de candidatos e seu
acompanhamento é essencial para aumentar as chances de uma adoção bem-sucedida (Peiter,
2011). Como a criança já sofreu uma situação traumática é preciso ter cautela com a escolha dos
adotantes para evitar sua exposição a uma nova situação de rompimento e abandono psíquico.

Ocorre que, na prática, nem todas as Varas possuem psicólogos ou assistentes sociais em seus
quadros de funcionários “do que se pode concluir que alguns candidatos não estão sequer
sendo entrevistados antes de formalizar uma adoção”, conforme destaca Paiva (2003, p. 52).
A ausência da avaliação prévia dos candidatos é fato extremamente grave, pois provavelmente
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muitas adoções estão sendo formalizadas sem o devido preparo dos pais adotivos, possivelmente
contribuindo para os casos de devolução.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Posteriormente ao preparo dos candidatos, é feita uma aproximação gradativa da criança e dos
candidatos na instituição de acolhimento. Quando a equipe técnica entende que os adotantes
e o adotando já formaram certo vínculo afetivo, é autorizado que os adotantes levem a criança
ou o adolescente para viver com eles, de modo que é concedida a guarda provisória e inicia-se o
estágio de convivência, período mais crítico do processo de adoção por ser quando ocorrem as
devoluções das crianças e adolescentes.

Ao constatar que a criança já está suficientemente adaptada ao novo ambiente familiar, o juiz
profere a sentença constituindo o vínculo da adoção permanentemente, tornando-se irrevogável
(Art. 39, §1º, ECA).

A DEVOLUÇÃO

Muitas obras tratam do tema da adoção, mas pouquíssimos autores abordam o tema da devolução
de crianças e adolescentes, especialmente no âmbito jurídico. Para Ghirardi (2015), que aborda o
assunto do ponto de vista psicanalítico, o tema é tratado como um tabu pelos profissionais que
lidam com adoção, pois a devolução pode representar um fracasso do trabalho da colocação da
criança em adoção. Como bem aponta Carvalho (2017, p. 103-104), “não falar sobre devolução, não
fará com que o fenômeno deixe de existir”.

É importante observar que o termo “devolução” é inapropriado, pois traz a ideia de restituir algo ao
dono verdadeiro, como se o devolvido nunca tivesse pertencido àquele que o detinha. Segundo o
dicionário Aurélio, “devolver” significa mandar de volta algo que foi entregue, remetido, esquecido,
restituir algo ao dono, entregar de volta à origem ou entregar algo cuja apropriação foi indevida,
algo que não lhe pertence.
Em verdade, este é o termo utilizado pelos pais que desistem da adoção, pois reflete sua sensação
de que aquela criança nunca foi seu filho de fato. Entretanto, a devolução como desistência não
174 é direito dos adotantes, pois, iniciado o estágio de convivência, entende-se que o adotante já
tomou a decisão de adotar, restando apenas a adaptação da criança ao novo lar para que seja
formalizada.

Para Ghirardi (2015), os pais que devolvem evidenciam que não se sentem legitimados em relação
à paternidade e maternidade daquele filho, apesar da determinação judicial nesse sentido. O modo
de filiação não biológico é sentido pelos adotantes como algo ilegítimo, como se houvessem outros
pais – os ‘verdadeiros’ – que geraram a criança e que, portanto, os adotivos teriam fantasias de
haverem se apropriado indevidamente da criança.
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Esses elementos contribuem para que as tentativas de adoção sejam frustradas, pois os adotantes
se deparam com uma criança diferente da sonhada e não a aceitam como filha. Entretanto, os

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


motivos que levam os pais a devolver uma criança são de extrema complexidade e não é possível
determinar uma única causa, cabendo à psicologia analisar com mais profundidade os possíveis
motivos da devolução. No presente trabalho trataremos especificamente dos aspectos jurídicos
relativos do processo de adoção que resultam na devolução.

ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA: UM MOMENTO DECISIVO PARA O INSUCESSO DA ADOÇÃO

Segundo o Art. 46 do ECA1 , é preciso realizar um estágio de convivência entre os adotantes e


adotando por prazo determinado pelo juiz antes de deferir a adoção. O estágio de convivência é
um período complexo e delicado, pois é o momento em que o adotando passa a morar junto com
adotantes, inaugurando o contato e convivência.

Segundo Ghirardi (2015), o objetivo desse período é verificar a possibilidade de criar um vínculo
afetivo entre os adotantes e o adotado, no qual os adotantes possuem a guarda provisória da
criança ou adolescente. A guarda provisória representa um instrumento jurídico provisório para,
futuramente, regularizar a posse de fato. Segundo o Art. 5 do ECA, a guarda pode ser revogada a
qualquer tempo, por meio de decisão judicial, após a manifestação do Ministério Público.

Cabe ressaltar que o objetivo principal deste estágio é que a criança se adapte à família e não o
contrário. Neste momento, os adotantes já devem ter certeza que desejam adotar, pois a devolução

1. 2 “Art. 46. A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade
judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso. § 4o O estágio de convivência será acompanhado pela equipe
interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela
execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência
do deferimento da medida.” (Brasil, 1990).
só poderia ocorrer em casos absolutamente excepcionais, em que o adotando não se adaptou à
nova família.
175
Como o Art. 48 do ECA estabeleceu a irrevogabilidade da adoção, o único momento em que a
lei prevê a possibilidade de devolução é no estágio de convivência, pois, depois de proferida a
sentença, o vínculo da adoção será constituído permanentemente.

Para Ghirardi (2015), o ECA prevê a possibilidade de devolução no estágio de convivência


justamente por aceitar o fato de que existem muitas dificuldades em formar um vínculo afetivo
entre os adotantes e o adotando. Entretanto, há uma confusão quanto ao objetivo do estágio de
convivência, pois muitos dos adotantes entendem que se trata de um mero teste, como um “test
drive”, para que eles decidam se gostam ou não da criança e se desejam adotá-la ou não.
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Entretanto, as crianças em processo de adoção entendem que, no momento em que ela passa a

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


residir com aqueles adotantes, ela já foi adotada. No imaginário infantil

não existe esse período anterior à sentença que formaliza a adoção. Então, quando um casal
decide devolver a criança, ela recebe a situação como um novo abandono, uma nova rejeição.

A partir dessas observações, concluo que o estágio de convivência merece considerações, pois é
um período crítico no processo de adoção por dois motivos.

Em primeiro lugar, é o momento em que os adotantes se deparam com a realidade desafiante de


educar a criança real e não mais o filho idealizado.

Em segundo lugar, pois existe certa confusão quanto à finalidade desse estágio: os adotantes
costumam entender erroneamente que se trata de fase de adaptação para eles e que ainda existe
a possibilidade de desistir da adoção, uma vez que não houve um registro formal de novo vínculo
de filiação. Em verdade, é um período de adaptação para a criança, apenas, não havendo mais a
possibilidade de desistência pelos adotantes.

Entendo que a redação do Art. 46 do ECA não foi a mais apropriada na escolha do termo “precedida”
quando fala “adoção será precedida de estágio de convivência”, pois este termo não demonstra a
seriedade e comprometimento exigidos dos adotantes ao levar a criança para residir em sua casa.
A redação do artigo dá a entender que não existem vínculos formais com a criança ainda, pois a
adoção não foi concretizada oficialmente, então os adotantes ainda poderiam desistir. No entanto,
os adotantes só deveriam assumir a guarda provisória e levar a criança para morar consigo após
informar ao juiz que têm certeza absoluta da decisão de adotar.
Goes (2014) preocupa-se com estes mal entendidos sobre este período e entende que os candidatos
à adoção só deveriam iniciar o estágio de convivência após expressarem formalmente ao juiz a
176 sua adesão à adoção da criança. Os adotantes, portanto, precisariam informar, por meio de um
documento escrito, sua decisão acerca do desejo de adotar aquela criança, sendo exaustivamente
informados acerca da seriedade deste momento, além das consequências previstas para os casos
de desistência. Somente após esse comunicado dos adotantes e o pedido de iniciar o estágio de
convivência é que o juiz determinaria a concessão da guarda provisória.

Para Epaminondas da Costa, Promotor de Justiça do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a condição
de estágio de convivência também não poderia permitir tal desistência e muito menos servir para
legitimar justificativa para a desistência da adoção, com a subsequente causação, voluntária ou
negligente, de prejuízo psicológico à criança ou adolescente. Costa (2009) entende que nos casos
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em que há devolução da criança no estágio de convivência sem justificativa plausível, ou ainda


com absoluto desprezo aos sentimentos do adotando, há ofensa direta à dignidade da pessoa

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


humana e ao princípio da prioridade absoluta. Com isso, defende que é cabível a reparação por
dano moral e/ou material por meio de ação civil pública proposta pelo Ministério Público em face
dos adotantes.

Costa (2009) discute a necessidade de se definir a natureza jurídica do estágio de convivência,


previsto no Art. 46 do ECA, pois, como apresentado anteriormente, muitos dos adotantes
entendem ser um período de adaptação para eles diante da criança e não o contrário. Para o
autor (Costa, 2009, p. 5), o estágio de convivência é um “lapso avaliatório, judicial da formação
satisfatória do vínculo sócio afetivo”, entendendo “satisfatória” como correspondendo ao desejo
do adotando e aos fins sociais buscados pelo ECA. Assim, o estágio de convivência não se trata
de direito dos pais de avaliar se houve formação do vínculo para, em caso negativo, desistir da
adoção, mas de direito da criança.

Nesse sentido, não poderiam alegar os pais que estariam devolvendo uma criança por ser exercício
regular de direito, pois não possuem legitimidade para tanto. Com isso, a conduta de devolver de
forma insensível e injustificada pode ser classificada como ilícita, já que não se enquadra no Art.
188, I, do Código Civil2 .

Além disso, seria inadmissível a devolução injustificada até mesmo na hipótese em que o estágio
de convivência fosse direito dos adotantes de se adaptar e decidir se desejam desistir, pois o Art.
187 do Código Civil é expresso ao determinar que o titular de um direito comete ato ilícito quando
excede manifestamente os limites impostos pela sua finalidade, pela boa-fé e pelos bons costumes.

2. 3 “Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido.” (Código Civil, 2002).
Fica evidente a ilicitude do ato da devolução injustificada no estágio de convivência quando se
observa o conteúdo do Art. 186 do Código Civil. Segundo o artigo, a pessoa que, por ação ou
177 omissão, por negligência ou imprudência, violar um direito e causar dano moral ou material a
alguém, comete ato ilícito.

Ora, quando um casal assume a guarda provisória de uma criança para iniciar o estágio de
convivência, automaticamente se torna responsável pela prestação de assistência moral, material
e educacional do adotando (Arts. 32 e 33, ECA). Quando o adotante simplesmente devolve a
criança ao abrigo sem nenhum cuidado com os efeitos dessa rejeição e sem justificativa, após ter
se comprometido a tê-la como filho, é evidente que foram ultrapassados os limites da boa-fé, dos
bons costumes e principalmente do fim social do estágio de convivência.
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Portanto, não há como aceitar que essa conduta seja razoável, em especial, do ponto de vista da
já referida doutrina da proteção integral, pois o prejuízo emocional imensurável causado à criança

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


é absolutamente avesso a tais princípios.

RESPONSABILIDADE CIVIL EM CASO DE DESISTÊNCIA DA ADOÇÃO

Segundo a teoria geral do direito, a responsabilidade civil decorre de uma conduta voluntária (ação
ou omissão) do agente que viola um dever jurídico, ou seja, de uma prática que viola uma norma
jurídica. De acordo com o Art. 186 do Código Civil 3 , alguém que age de forma voluntária, por ação
ou omissão, e viola direito ou causa dano a alguém, ainda que apenas moral, estará praticando ato
ilícito e deverá indenizar quem sofreu o dano.

Também pratica ato ilícito aquele que abusa de seu direito (Art. 187, CC). Assim, a prática de um
ato ilícito gera a obrigação do agente de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado, conforme
disposição expressa do Art. 927, do Código Civil, e decorre da situação em que o agente infringe
um dever de conduta por meio de uma ação ou omissão, culposa ou dolosa, que gera dano para
outrem.

Segundo Diniz (2005),

Responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar


dano moral ou material causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma
praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela
pertencente ou de simples imposição legal. (p. 52)

3. 4 “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem,
ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” (Brasil, 2002).
Entendo que os conceitos relativos à responsabilidade civil são perfeitamente cabíveis quando se
fala de uma devolução, sempre injustificada, de crianças e adolescentes, pois todos os pressupostos
178 estão preenchidos: o adotante pratica o ato de devolver (ação ou conduta comissiva), gerando um
dano moral para a criança (dano e nexo causal entre a ação e resultado), pois, a criança vive traumas
psicológicos de difícil resolução, e que deixarão marcas psíquicas ao longo de toda sua vida.

Para Costa (2009), os adotantes estariam “enganando” a criança, pois lhe prometem um lar definitivo
e, após alguns meses de convivência familiar constante, simplesmente devolvem a criança ao
abrigo argumentando que a criança é excessivamente problemática e de comportamento difícil,
de modo que, para este autor, há evidente extrapolação dos limites da boa-fé.

Apesar de não existir expressa previsão de antijuridicidade da conduta de devolver a criança ou


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adolescente no estágio de convivência, a devolução configura uma conduta culposa lato sensu
(que engloba dolo e culpa stricto sensu) que causa prejuízo a terceiro, gerando responsabilidade

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


civil e o consequente dever de indenizar.

O direito civil divide a responsabilidade civil em objetiva e subjetiva. Com relação à responsabilidade
objetiva, o agente que causar dano a alguém por ação ou omissão deverá indenizar a pessoa que
sofreu o dano independente de culpa lato sensu (que engloba dolo ou culpa stricto sensu), mas
em razão da imposição da lei. No que se refere à responsabilidade subjetiva, a responsabilidade
decorre da existência de dolo ou culpa stricto sensu, que deve ser provada, aplicando-se a teoria
subjetiva. No entanto, independentemente dessa classificação, a devolução viola o dever jurídico
de não lesar a ninguém, expresso no supracitado Art. 186 do Código Civil.

Ainda que a devolução fosse entendida como direito do adotante e, portanto, ato lícito, sem a
necessidade de indenizar a criança devolvida, a situação configuraria abuso de direito pelo desvio
de finalidade do instituto da adoção e pelo sofrimento causado à criança.

Para Rodrigues (1975 apud Gonçalves, 2014), há abuso de direito quando um sujeito, atuando
dentro de suas prerrogativas concedidas pelo ordenamento jurídico, desconsidera a finalidade
social do direito subjetivo e causa dano a outrem. Todo aquele que extrapola os limites no exercício
de seu direito e causa prejuízo a alguém pratica ato ilícito e tem o dever de repará-lo, já que o dever
de não lesar ninguém limita os direitos subjetivos. No abuso de direito não há violação aos limites
objetivos da lei, pois o agente está agindo dentro deles, mas há um desvio quanto à finalidade
daquele direito, do fim social imposto por lei.

A devolução de uma criança no estágio de convivência é perfeito exemplo desta situação, em


que o agente se ampara na falta de um registro formal da adoção para justificar sua decisão de
devolver. Da interpretação fria da lei, não há restrição para a devolução de uma criança no estágio
de convivência, pois o Art. 39, §1º, do ECA, determina a irrevogabilidade somente da adoção, não
incluindo expressamente o estágio de convivência.
179
Entretanto, quando se faz uma análise sistêmica do Estatuto da Criança e do Adolescente, fica
nítido que a finalidade social do estágio de convivência é a adaptação da criança ao novo ambiente
familiar, não se tratando de direito de arrependimento dos adotantes. O direito de arrependimento
ou desistência fica adstrito ao direito do consumidor, pois a adoção evidentemente não é uma
relação de consumo. Aliás, este foi um dos argumentos usados pelos adotantes para justificar a
devolução da criança adotiva ao abrigo, conforme se verá a seguir.

A partir destas considerações, é possível afirmar que a devolução injustificada é ato ilícito, pois,
a devolução não é direito do adotante e, ainda que fosse, o adotante estaria manifestamente
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excedendo os limites impostos pelos fins sociais do ECA, conforme o Art. 187, do Código Civil4 .

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CASO PARADIGMÁTICO

Até recentemente, não havia uma mobilização do judiciário para enfrentar essas situações de
devolução e buscar alguma reparação. O promotor de justiça Epaminondas da Costa, sensibilizado
com a situação, foi responsável por significativa mudança quanto à visibilidade desta questão.

Costa (2009) defende que é cabível a reparação por dano moral e/ou material em sede de ação
civil pública ajuizada pelo Ministério Público em face de adotantes e pais adotivos que devolvam
crianças e adolescentes entregues para fins de adoção, pois demonstra absoluto desprezo com
os sentimentos do adotando e configura ofensa à dignidade.

Costa (2009) fundamenta seu posicionamento a partir de um caso concreto em que um casal de
adotantes devolveu uma criança de oito anos ao abrigo sem justificativa alguma após oito meses
de convivência familiar no estágio de convivência.

Diante da situação, foi ajuizada ação civil pública pleiteando indenização por danos morais e
materiais com pedido liminar de alimentos provisórios em favor da criança. O Promotor de Justiça
ressaltou que a devolução representou um segundo abandono sofrido pela criança e trouxe
impactos muito mais graves do que o abandono da família biológica. Foi proferida inovadora
decisão concedendo a antecipação parcial dos efeitos da tutela nesse sentido5 .

4. “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” (Código Civil, 2002).
5. Cf. Autos nº 0702 09 567849-7 – Comarca de Uberlândia – Prolatora: Édila Moreira Manosso, Juíza de Direito Titular da Vara
da Infância e da Juventude – Data: 01 de junho de 2009.
A decisão foi absolutamente acertada, pois se alinha à doutrina da proteção integral e ao princípio
do melhor interesse da criança ou adolescente. Além disso, a fixação de indenização punitiva
180 decorrente de responsabilidade civil serve como forma de prevenção (a partir da coação) e como
forma de punição pela prática de ato ilícito.

Em sua contestação, os adotantes inclusive alegaram, de forma absurda, que estavam exercendo
seu direito de desistência da adoção, como se a criança fosse um produto à sua disposição.

Em sede de agravo de instrumento, a decisão que concedeu a medida liminar foi reformada, porém, o
Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu pela condenação do casal pelos danos causados à criança.

Esta decisão foi um marco quanto à proteção dos direitos da criança e do adolescente, pois
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reconheceu a existência de enorme dano psicológico sofrido pela criança devolvida. Entretanto,
discordo da decisão quanto à afirmação de que o fato gerador do ilícito é somente a forma como

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


ocorreu a devolução, não a devolução em sua totalidade, pois não é possível conceber que uma
criança possa ser devolvida sem existir sofrimento algum.

Toda devolução praticada após o início do estágio de convivência é ato irresponsável dos pais
e afronta os direitos fundamentais da criança, pois, no momento em que assumem a guarda
provisória da criança ou adolescente, tornam-se titulares de todos os deveres inerentes a esse
vínculo. Qualquer que seja a forma da devolução, a criança passará por enorme sofrimento
emocional decorrente da ruptura do vínculo.

Outra importante consideração feita por Édila Moreira Manosso, Juíza de Direito Titular da Vara
da Infância e da Juventude, é que a previsão de revogação da guarda provisória busca tutelar os
interesses da criança e do adolescente, e não dos adotantes. Não seria concebível que um artigo
inserido no Estatuto da Criança e do Adolescente tenha finalidade contrária aos interesses dos
seus tutelados.

Com isso, reafirmo a possibilidade e a necessidade de imputar responsabilidade civil aos adotantes
que desistirem do processo de adoção e devolverem a criança ou adolescente sob sua guarda, pois
é um ato extremamente violento do ponto de vista psicológico e que causa imensurável dano moral.

A partir do momento em que os pais decidem prosseguir com a adoção e iniciar o estágio de
convivência, eles se tornam titulares dos deveres legais inerentes à situação de guarda provisória
e à expectativa de efetivação da adoção. Caso haja uma devolução, os adotantes deverão ser
responsabilizados pelos danos, além de serem impossibilitados de realizarem outra adoção pela
exclusão do Cadastro Nacional de Adoção.
Deste modo, entendo que a responsabilização civil dos adotantes tem uma dupla finalidade. A
primeira é o esforço de mitigar ou atenuar o dano causado à criança por meio de uma indenização.
181 Já a segunda, objetiva servir como um tipo de sanção aos agentes causadores do dano, buscando,
assim, uma medida jurídica preventiva, como uma forma de coação no sentido jurídico para evitar
que as devoluções continuem ocorrendo.

REFERÊNCIAS

Brasil. (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. (1990). Recuperado de http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/LEIS/L8069.htm.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Brasil. (2002). Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. (2002). Recuperado
de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm.

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Carvalho, F. A. de. (2017). Um estudo psicanalítico sobre adoção e devolução de crianças: a preparação
dos pretendentes, a fase de aproximação e o acompanhamento do estágio de convivência.
Dissertação de Mestrado – Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, São Paulo.

Costa, E. da. (2009). Estágio de convivência, devolução imotivada em processo de adoção de


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do Ministério Público/CONAMP, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Recuperado de http://www.
mpsp.mp.br/portal/page/portal/infanciahome_c/adocao/Doutrina_adocao/Tese%20-%20
Devolu%C3%A7%C3%A3o%20Imotivada.pdf.

Diniz, M. H. (2005). Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva.

Ghirardi, M. L. de A. M. (2015). Devolução de crianças adotadas: um estudo psicanalítico. São


Paulo: Ed. Primavera Editorial.

Gonçalves, C. R. (2014). Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo: Editora Saraiva.

Goes, A. E. D. (2014). (Des)caminhos da adoção: a devolução de crianças e adolescentes em famílias


adotivas. Dissertação (Mestrado), Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo.

Ishida, V. K. (2014). Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. São Paulo:


Editora Atlas.
Paiva, L. D. (2003). Adoção: contribuições da psicanálise à prática do psicólogo judiciário.
Dissertação (Mestrado), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
182
Peiter, C. (2011). Adoção – vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva. São Paulo: Editora Zagodoni.
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SUMÁRIO

DIREITO À ENTREGA DA
183
CRIANÇA À ADOÇÃO: DA
PROTEÇÃO DA ENTREGA E
DA RESPONSABILIZAÇÃO DO
ABANDONO

AUTORIA
ANA CAROLINA COSTA CASTRO
Vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

OAB/MG. Conselheira do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente – CMDCA/BH


pelo IBDFAM. Orientadora Jurídica do Centro de Referência Especializado de Assistência

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Social – CREAS de Belo Horizonte. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG. Especialista em Adoção e Direito das Famílias. Pós-graduanda em
Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC/MG.
CONTATO: adv.anacarolinacastro@gmail.com

RESUMO
Este artigo propõe um modelo de trabalho em rede e de conscientização para efetivação
da legislação vigente que reconhece o direito da mulher à entrega da criança à adoção,
rompendo com a herança cultural que nega o dever ser da norma. Baseia-se na análise
do mito do amor materno e no mito do abandono, aliando-se à evolução normativa
para superação destes mitos, que garante a proteção da entrega e responsabiliza o
abandono. O argumento central do trabalho é que o reconhecimento enquanto sujeitos
de direitos perante uma norma em vigor por mulheres e pelas crianças tem o potencial
de alcance a partir da atuação intersetorial dos agentes da política pública na oferta
dos serviços e da conscientização do direito para superação da cultura mitológica...
PALAVRAS-CHAVE: Direito; Entrega para adoção; Mito; Amor materno; Abandono.
INTRODUÇÃO

184 Se é indiscutível que uma criança não pode sobreviver e desenvolver-se sem atenção e cuidados
maternais, não é certo que todas as mães humanas sejam predestinadas a oferecer-lhe esse amor
de que ela necessita (Badinter, 1985, p. 17).

Esta sétima edição do Congresso Nacional de Psicanálise, Direito e Literatura traz como tema “as
múltiplas faces da adoção”, o que se revela de imensa valia para o debate e estudo de um tema
pouco abordado na Academia.

O presente trabalho, a partir da leitura da obra de Christina Rickardsson, Nunca deixe de acreditar:
das ruas de São Paulo ano norte da Suécia (2017), pretende analisar o direito à entrega da criança à
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adoção com base em uma pesquisa bibliográfica, estudo das experiências no Brasil e da evolução
normativa sobre o tema frente ao mito do amor materno e o mito do abandono.

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Atualmente no Brasil há um vasto, complexo e caro sistema de políticas públicas que acolhe
[recolhe] crianças em instituições, as mantém acolhidas para só depois trabalhar com a família
de origem, destituir o poder familiar para então decidir se ela será encaminhada para adoção. Ao
mesmo tempo em que prende, pune e/ou deixa morrer a mulher que não quer ser mãe.

Assim, será analisado o mito do amor materno e o mito do abando ao reconhecimento legal do
direito da mulher a entrega do filho à adoção a partir da evolução normativa no Brasil. Apresenta-
se as diferenças entre o abandono, a entrega ilegal, a adoção intuitu personae e a adoção “à
brasileira” e, como resultado deste estudo, propõe o trabalho em rede das políticas públicas,
utilizando-se do exemplo da experiência do Projeto Acolher de Pernambuco, para efetivação
da norma recentemente estabelecida como potencial transformativo da cultura dominante,
rompendo com os mitos culturais e morais.

MITO DO ABANDONO E RECONHECIMENTO DO DIREITO

As mulheres, as crianças e os adolescentes, até pouco tempo não eram considerados sujeitos
de direitos perante a lei. Axel Honneth (2003) afirma que um sujeito é capaz de se considerar,
na experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros
membros de sua coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação
discursiva da vontade.

As lutas dos movimentos feministas e o reconhecimento dos direitos humanos pela Declaração
Universal da ONU de 1948 estabeleceram a igualdade jurídica entre os gêneros e contribuíram
para o reconhecimento de mulheres, crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Durante
os séculos XIX e XX, no mesmo período em que as mulheres foram alcançando seus direitos
emancipatórios (voto, trabalho fora de casa, igualdade de gênero, etc.) e ocupando lugares
antes somente destinados e permitidos aos homens, as pesquisas acadêmicas enfatizaram
185 a importância do amor materno e a responsabilidades da mulher, enquanto mãe, de cuidar dos
filhos. para que estes tenham pleno desenvolvimento, mental, físico e emocional.

Badinter (1985) revela que a construção do mito do amor materno – aquele amor instintivo, inato e
compartilhado entre todas as mulheres – esteve atrelada às mudanças históricas e sociais a partir
do século VIII. Com a participação da mulher no mercado de trabalho e a sua emancipação social
e política, havia a necessidade de reforçar seu papel de procriadora e cuidadora dos filhos para
mantê-las em casa, no ‘ambiente familiar’.

Assim, conclui Badinter (1985) que


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ao se percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção de que o

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instinto materno é um mito. Não encontramos nenhuma conduta universal e
necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus
sentimentos, segundo sua cultura, ambições ou frustrações. [...] Tudo depende
da mãe, de sua história e da História. Não, não há uma lei universal nessa
matéria, que escapa ao determinismo natural. O amor materno não é inerente às
mulheres. É “adicional”. (p. 365)

Mesmo com a constatação do amor materno como mito, a cultura predominante ainda reforça
esta ideia como um suposto dever ser da mulher.

Já as crianças eram vistas como propriedade dos pais, objetos da hierarquia patriarcal, para
manter os legados familiares. Há dois séculos, os Elucidários distinguiam o que hoje denominamos
de “crianças abandonadas” do que os nossos antepassados identificavam como “enjeitados” ou
“expostos”. No século XVI, as leis alertavam para a criação dos enjeitados de modo que as crianças
não morressem por falta de criação (Venâncio, 1999).

A Roda dos Expostos foi o retrato do abandono de crianças no Brasil. O nome “roda” refere-se
a um artefato de madeira fixado ao muro ou janela do hospital, geralmente nas Santas Casas
de Misericórdia, no qual era depositada a criança, sendo que, ao se girar a roda, a criança era
conduzida para dentro das dependências, sem que a identidade de quem ali colocasse o bebê
fosse revelada. O cuidado e a responsabilidade dos “expostos” e “abandonados” não eram objetos
de política pública, mas, sim, da filantropia religiosa. O anonimato das mães era um pressuposto,
já que a atitude sempre foi (pre)julgada.

A Roda dos Expostos teve origem na Itália durante a Idade Média. No Brasil, as primeiras ocorreram
em Salvador (1726), Rio de Janeiro (1738), Recife (1789) e em São Paulo (1825) (Marcílio, 1997). O
Brasil foi o último país do mundo a abolir este sistema, em 1927, com o Código de Mello Mattos,
Decreto n. 17.943-A, que institucionalizou a entrega de crianças garantindo o anonimato das
186 mães. O Capítulo III deste Código tratava “dos infantes expostos”:

CAPITULO III - DOS INFANTES EXPOSTOS

Art. 14. São considerados expostos os infantes até sete annos de idade,
encontrados em estado de abandono, onde quer que seja.

Art. 15. A admissão dos expostos à assistencia se fará por consignação directa,
excluido o systema das rodas. (Brasil, 1927)
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O Código de Menores de 1979 criou a possibilidade de “delegação do pátrio poder”, no qual os pais
entregavam a criança na Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor – FEBEM e manifestavam

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a vontade de delegação do pátrio poder para prevenir a situação de situação irregular do menor.
Porém, não havia qualquer regulamentação ou garantias deste procedimento.

No direito brasileiro atual, essa problemática teve uma tentativa de solução: com a Constituição
Federal em 1988, com a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças de 1989, promulgada
no Brasil pelo Decreto n. 99.710 de 1990, e com a Lei n. 8.069/90 - Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, foi garantido o direito das crianças e dos adolescentes à convivência familiar,
sem distinguir a origem da filiação, e em 2009 com a Lei n. 12.010, foi garantido o direito da mulher
de ser, ou não, mãe.

A evolução dos Direitos das Famílias também contribuiu neste aspecto, ao reconhecer os vínculos
familiares a partir da socioafetividade, além do biologismo. Assim, o vínculo biológico não é mais o
único que condiciona o estado da filiação e dos vínculos familiares e a mulher agora tem, garantido
em lei, o direito de escolha pela maternidade.

Porém, mesmo com a conquista dos direitos, a cultura ainda é determinante na forma de agir das
pessoas e na execução das políticas públicas. Nesta evolução e conquista normativa, a cultura
se depara no conflito cultural entre o mito do abandono pelo mito do amor materno frente ao
direito de entrega da criança para a adoção e, consequentemente, o direito de livre escolha pela
maternidade, já que o aborto é proibido no Brasil.

Os direitos reconhecidos e garantidos são recentes, o que nos faz ter a impressão de sua ineficácia
em razão da herança histórica/cultural. O fato de a nova lei propor condições materiais muito
melhores que aquelas existentes é suficiente para a sua condenação como utópica, em um sentido
negativo que afirma a sua impraticabilidade pela ausência de recursos. Porém esta condenação
subestima tanto o caráter pedagógico em potencial da lei quanto sua condição de instrumento
decisivo na construção da cidadania, principalmente quando usada como ferramenta técnico-
187 política de mudança (Méndez, 2013).

Sobre esta utopia, afirma Habermas:

O projeto de realização do direito, que se refere às condições de funcionamento


de nossa sociedade, portanto de uma sociedade que surgiu em determinadas
circunstâncias históricas, não pode ser meramente formal. Todavia, divergindo
do paradigma liberal e do Estado social, este paradigma do direito não antecipa
mais um determinado ideal de sociedade, nem uma determinada visão de vida
boa ou de uma determinada posição política. Pois ele é formal no sentido de
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que apenas formula as condições necessárias segundo as quais os sujeitos de


direito podem, enquanto cidadãos, entender-se entre si para descobrir os seus

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problemas e o modo de solucioná-los. (Habermas, 1997, p. 189)

Os direitos reconhecidos tornam-se ineficazes em razão da herança cultural. O direito legalmente


estabelecido de entrega da criança à adoção é muito recente no contexto brasileiro e, na prática, ainda
não se aplica de forma uniforme no país em razão do mito do amor materno e do mito do abandono.

Raras são as pesquisas relacionadas ao tema da entrega da criança à adoção. Entretanto,


independente da cultura ou do momento histórico, os poucos estudos e a história oral nos trazem
evidências dos inúmeros ‘abandonos’ de filhos, que sempre eram realizados de forma velada,
anônima, sem demonstrar as razões pelas quais levaram às mães a praticarem ou o tratamento
dado a elas e às crianças após o abandono.

Assim, a partir deste contexto histórico e cultural, o paradigma de foco no amor materno inato
ainda faz parte da nossa cultura e cria os conflitos entre o ser mulher e o ser mãe. O desafio
colocado para sociedade é como agir de forma eficaz e legal, a partir da promulgação de uma
legislação que garante, expressamente, o direito da mulher a entregar voluntariamente a criança
para a adoção ao mesmo tempo em que garante o direito da criança ao convívio familiar.

DO DIREITO À ENTREGA DA CRIANÇA À ADOÇÃO

Conforme demonstrado, o direito da mulher à entrega da criança à adoção é recente. O ECA, em


sua redação original, não tratou deste tema de forma específica.

Em 2002, com o novo Código Civil, foi estabelecido que a adoção pressupusesse a autorização
expressa dos pais biológicos (Art. 1.621), exceto se estes forem destituídos do poder familiar. Deste
dispositivo podemos interpretar que, se mãe e pai biológicos podem autorizar expressamente
uma adoção, há uma prerrogativa na lei para que a mulher escolhesse entregar, voluntariamente,
o recém-nascido para a adoção.
188
Somente em 2009, com a Lei n. 12.010, que este direito da mulher foi expressamente reconhecido
na legislação brasileira. E somente em 2017, com a Lei 13.509, é que a legislação brasileira
regulamentou este procedimento. Como se pode perceber, a lei até então, não reconhecia
expressamente este direito à mulher, que tanto culturalmente quanto legalmente estava sob a
égide do mito do amor materno.

Este direito, agora, está expressamente previsto no Art. 13, §1º do ECA, que assim dispõe: “As
gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão
obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude”.
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A inclusão da expressão “sem constrangimento” reforça a necessidade dos profissionais da rede

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de atendimento e da sociedade a respeitarem essa mulher, não julgá-la e prover toda a atenção a
ela de direito.

A Lei n. 12.010 de 2009, também para garantir o respeito à decisão da mulher, tipificou no ECA,
em seu Art. 258-B, uma infração administrativa, com pena de multa de até três mil reais, para
os funcionários da rede de saúde e da rede socioassistencial que deixarem de efetuar imediato
encaminhamento à autoridade judiciária de caso de que tenha conhecimento de mãe ou gestante
interessada em entregar seu filho para adoção.

À gestante que manifestar sua vontade de entregar a criança para a adoção agora é assegurada
a assistência psicológica no período pré e pós-natal pelo SUS além do acesso aos programas e às
políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada,
atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-
natal integral no âmbito do SUS (Art. 8º do ECA).

Assim que manifestar esta vontade a mulher deverá ser encaminhada à Justiça da Infância e da
Juventude para ser ouvida e orientada pela equipe interprofissional, podendo ser encaminhada,
mediante sua concordância, à rede pública de saúde e assistência social para atendimento
especializado (Art. 19-A do ECA).

Diferente do anonimato da Roda dos Expostos, hoje a mulher tem direito ao sigilo sobre o nascimento
da criança (Art. 19-A, §9º do ECA), e aos genitores são garantidos sua livre manifestação de
vontade de entrega da criança (Art. 166, §3º do ECA). Anonimato e sigilo são conceitos diferentes,
na medida em que o primeiro não possibilita à pessoa que foi adotada saber de sua origem biológica
e o segundo permite o acesso das informações sobre sua origem, após atingir a maioridade e
garante a privacidade dos genitores, correndo o processo em segredo de justiça.
Apesar de o ECA prever a necessidade de busca pela família extensa ou ampliada, como direito da
criança à convivência familiar, o próprio Estatuto define esta família como aquela que se estende
189 para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com
os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade (Art. 25).

Considerando que a decisão pode ser tomada durante a gestação e confirmada logo após o
nascimento da criança, conclui-se que não há como considerar a manifestação de vontade da
família extensa que seja contra a decisão da mulher de entrega da criança para adoção, justamente
pela impossibilidade de se considerar a convivência e vínculos de afinidade e afetividade de um
recém-nascido.

Caso a gestante manifeste esse interesse de entrega a adoção e a Justiça determina a manutenção
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da criança na família extensa, esta mulher seria condenada à maternidade pela família, o que não
nos parece atender ao melhor interesse da criança: condicioná-la à convivência em uma família

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extensa biológica na qual sua própria genitora manifestou expressa vontade de entrega para uma
família substituta.

DO ABANDONO E DA ENTREGA ILEGAL

Conforme acima afirmado, a legislação somente reconheceu à mulher este direito de entrega
da criança em adoção em 2009. Porém, considerando os históricos registros de “abandono” de
crianças, esta prática de entrega ou de “abandono” ocorria por “arranjos” fora lei. Mesmo com a
previsão de entrega legal, em razão do paradigma cultural, a entrega ilegal e o abandono são ainda
verificados como práticas recorrentes no Brasil.

Abandonar uma criança significa desampara-la, deixa-la à própria sorte e não exercer o poder
familiar. Entregar a criança para adoção, ao contrário, é um direito da mulher que possibilita a
garantia do direito da criança à convivência familiar.

Importante ressalvar que o direito à convivência familiar, expresso na Convenção Internacional


dos Direitos da Criança (1988), na Constituição Brasileira e no ECA, não refere-se apenas à família
biológica. Conforme afirma Vieira (2016), este conceito

deve ser compreendido como um direito de toda a população infanto-juvenil,


independentemente de origem, etnia ou classe social (princípio da não
discriminação) à formação e manutenção de vínculos, buscando assegurar que
as crianças e os adolescentes façam parte de uma família. (p. 103)

Assim, a entrega para a adoção só é um exercício do direito à convivência familiar quando realizada
conforme a lei, uma vez que até poucos dias após o nascimento serão esgotadas as possibilidades
de integração na família de origem e/ou extensa e a família substituta acolherá a criança como parte
desta família, possibilitando o estabelecimento de vínculos e criação desde a primeira infância.
190
O abandono é um crime no Brasil, tipificado nos Arts. 133 e 134 do Código Penal como crimes de
“abandono de incapaz” e de “exposição ou abandono de recém-nascido”.

O crime de abando tipificado no art. 133 também se aplica a aqueles que adotaram uma criança
ou adolescente e, depois de finalizado o processo de adoção, ‘devolvem’ o filho ou filha para a
Justiça da Infância. Neste caso, aquele que foi abandonado também tem direito à indenização por
abandono afetivo, já que o dano moral, prejuízo que o afeta emocionalmente, desqualificando-o
em sua dignidade de ser humano, que o equipara a um bem de consumo como produto suscetível
de devolução, acarreta uma responsabilidade civil para os pais adotivos.
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Diferente do abandono, a entrega é ilegal quando se dá mediante transferência direta da criança

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a uma família substituta sem o devido processo legal, com ou sem pagamento ou recompensa. É
o caso da adoção “à brasileira” e da adoção intuitu personae.

A adoção intuitu personae é aquela na qual há intervenção dos pais biológicos na escolha da
família substituta, ocorrendo esta escolha em momento anterior à chegada do pedido de adoção
ao conhecimento do Poder Judiciário (Bordallo, 2014, p. 329).

A adoção “à brasileira” é aquela na qual o casal ou a pessoa registra em cartório o nascimento de


uma criança nascida de outra mulher como se fosse de sua origem biológica, sem passar pelo
processo legal de adoção.

Este modelo de “adoção” é uma prática histórica e ainda recorrente no Brasil, porém é tipificada
como crime nos Arts. 242 e 243 do Código Penal:

Parto suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de


recém-nascido

Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem;
ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente
ao estado civil: Pena - reclusão, de dois a seis anos.

Sonegação de estado de filiação

Art. 243 - Deixar em asilo de expostos ou outra instituição de assistência filho


próprio ou alheio, ocultando-lhe a filiação ou atribuindo-lhe outra, com o fim de
prejudicar direito inerente ao estado civil: Pena - reclusão, de um a cinco anos,
e multa.
Se a oferta ou entrega da criança é realizada mediante pagamento ou recompensa, as partes
envolvidas (exceto a criança) estão sujeitas a uma pena de reclusão de um a quatro anos, e multa,
191 conforme previsto no art. 238 do ECA.

A sociedade brasileira realiza tais procedimentos de forma velada, como se pode demonstrar pelo
livro de Rickardsson (2017), no qual a autora relata a história de sua mãe:

Mamãe teve mais um filho, depois de Patrick, e que um casal rico que não podia
ter filhos lhe ofereceu dinheiro para ficar com a criança. O casal pagou tudo
durante a gravidez dela e o levou embora após o nascimento. Quando mamãe
se arrependeu e quis devolver o dinheiro para ter seu filho de volta, já era tarde
demais. (p. 226)
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Importante ressaltar que isto ocorreu após 1990, quando a Constituição, o ECA e a lei penal que

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proibiam esta prática, já estavam em vigor.

Avalia-se que o direito legalmente estabelecido de entrega da criança à adoção não se aplica em
razão do mito do amor materno e do mito do abandono. Há um desconhecimento da população
sobre seus direitos e garantias e há um preconceito e prejulgamento, pela sociedade, das mulheres
quando tomam esta decisão. Assim, a desmitificação destes conceitos e a conscientização dos
direitos apresentam-se como saída para o exercício da autonomia da vontade pela liberdade de
escolha das mulheres pela maternidade.

DO TRABALHO EM REDE

O art. 86 do ECA prevê que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente
far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da
União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

O direito da mulher em entregar a criança à adoção com o seu necessário encaminhamento à


Justiça da Infância e Juventude e garantia de acolhida de equipe especializada, de acesso à
assistência psicológica e à rede de serviços da saúde e da assistência social implica um trabalho
articulado e capacitado desta rede de atendimento. A intersetorialidade, como forma de trabalho
em rede, está, portanto, expressamente prevista no ECA como forma de atingir os objetivos
previstos na lei.

Junqueira (1998) define a intersetorialidade como uma articulação de saberes e experiências


no planejamento, realização e avaliação de ações para alcançar efeito sinérgico em situações
complexas visando ao desenvolvimento social, superando a exclusão social. Esta nova forma
de ação supera a fragmentação das políticas e considera o cidadão na sua totalidade, nas suas
necessidades individuais e coletivas. A intersetorialidade possibilita que o aparelho estatal mais
integrado possa otimizar os recursos disponíveis no trato dos problemas da população no território
192 sob sua jurisdição.

Algumas experiências no país trazem iniciativas de como efetivar o trabalho intersetorial nessas
situações, de forma a garantir o devido acolhimento das mulheres gestantes, a escolha consciente
destas e o devido encaminhamento do bebê para adoção, como o Programa Mãe Legal e Programa
Acolher (Pernambuco), o Programa Entrega Legal (Mato Grosso), o Programa Entrega Responsável
(Rio Grande do Sul) e a campanha Entrega Voluntária (Espírito Santo).

Além da intersetorialidade, o compartilhamento de saberes e de experiências permitem aos


profissionais da rede a conhecerem não só a legislação como o contexto social de cada mulher atendida,
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possibilitando a oferta de atendimento, devidamente capacitado, de acordo com suas necessidades.

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O PROGRAMA ACOLHER

O Programa Acolher, de iniciativa do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), é o que se


destaca. Inspirado no Programa Mãe Legal de Recife de 2009, o TJPE instituiu em 2012, por meio
de um Termo de Cooperação Técnica, uma gestão pública entre Poder Judiciário, Poder Executivo,
Ministério Público, Defensoria Pública, Conselhos de Direito e Conselho Tutelar, o Programa
Acolher como forma de garantir a efetividade das novas disposições do ECA, permitindo que as
gestantes ou mães que manifestem a intenção de entregar seus filhos para adoção o façam sem
quaisquer constrangimentos perante a Justiça da Infância e Juventude (TJPE, 2017).

O Programa Acolher, que segue a lógica da nova Lei de Adoção (Lei n.


12.010/2009), além de objetivar a garantia do direito da criança à convivência
familiar e comunitária, promove um acesso de mão dupla, baseado em
parâmetros mais objetivos, estimulando a supressão dos preconceitos. Contribui
com a desconstrução do anonimato e da invisibilidade em que se encontram as
mulheres que desejam entregar/doar seu filho para adoção, que, ao longo dos
séculos, precisaram ocultar seu desejo de ser apenas mulher. Esse modelo de
entrega assistida tem um caráter democrático nas configurações e contextos
familiares, favorecendo a oportunidade e o espaço para o exercício da cidadania,
promovendo o acesso aos serviços de atenção e cuidado. A proposta vai além
da substituição de um modelo. (TJPE, 2017, p. 64)

Na publicação oriunda das experiências deste programa, os profissionais que atuam no atendimento
destas mães avaliam que “quando as mulheres recebem o atendimento adequado, conseguem
fazer uma escolha consciente, mas nem sempre o desejo de entrega é mantido” (TJPE, 2017, p. 24).
A experiência do Programa Acolher e os resultados demonstrados no estudo publicado refletem
que de 2012 até meados de 2017 apenas 30% das mulheres atendidas acabam efetivando a
193 entrega da criança para adoção e, nos outros 70%, temos a manutenção da criança no seio da
família natural ou extensa.

Assim, verifica-se que a integração efetiva por meio de trabalho intersetorial e com capacitação
continuada dos trabalhadores, permitem que a mulher tenha o devido acolhimento para manifestar
sua vontade de forma consciente e segura, garantindo ao recém-nascido uma possibilidade de
convivência familiar com uma família devidamente habilitada para adotá-lo ou em sua família biológica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Rickardsson (2017, p. 231) afirma em sua obra, a partir da sua história de vida: “Lamento que a
sociedade brasileira não seja como a sueca, que protege seus cidadãos”.

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Baratta (2013) afirma que o objetivo nas lutas para definir a implementação do direito é o
comportamento individual dos cidadãos ou trabalhadores e a manutenção ou transformação da
estrutura ideológica e material das relações sociais. A dificuldade na efetivação da democracia
está no fato de que em alguns processos de política do direito estão mais diretamente em jogo as
variáveis individuais do que as variáveis estruturais.

A mudança do paradigma pela legislação brasileira com o efetivo reconhecimento de crianças e


adolescentes como sujeitos de direitos e o reconhecimento do direito de mulheres pela escolha
da maternidade quebrou um ciclo excludente de quase cinco séculos no Brasil. No entanto, para
que haja uma execução do pacto social projetado pela Constituição e pela legislação em vigor
é necessária uma mudança do pensamento e do modo de agir da sociedade, incorporando a
doutrina da proteção integral e rompendo com a moral cultural.

Um direito legalmente previsto e reconhecido não é exercido, pois a cultura de uma crença
irracional, de um mito, iguala dois conceitos de direitos opostos: o do dever ser da entrega legal e a
proibição do abandono. A cultura predominante ainda compreende a entrega legal de uma criança
para a adoção como um abandono, impondo um mito como valor moral sobre uma ética individual,
que é reconhecida e garantida pelo direito brasileiro.

Neste ponto podemos, ainda, atribuir uma contribuição da psicanálise ao direito e à filosofia quando
a autonomia do desejo individual da mulher de não ser mãe encontra-se amparada na lei formal.

Quando a mulher determina-se por princípios de outros, de uma cultura imposta, seja por
obediência, por medo ou por acomodação ela acaba por atuar de forma imoral consigo e com
a criança, quase que se condenando a um destino de práticas ilegais, como no abandono, na
negligência e na violência. Se o desejo e a lei se encontram, por que as mulheres que não desejam
ser mãe acabam por transgredir sua lei moral interna e não recorre à lei positivada por obedecer
194 a uma moral externa?

A ideia da entrega legal ser julgada como uma forma de abando é, portanto, um julgamento moral
de uma decisão ética da mulher. Julgamento este que não corresponde ao direito garantido e
vigente no Brasil. A entrega legal é ética, no sentido da postura pessoal da mulher, que toma uma
decisão consciente, com liberdade de escolha, para sua vida e para garantia de uma vida digna e/
ou melhor para a criança que trouxe ao mundo sem planejar.

Para mudança desta realidade social, verifica-se a necessidade de implementação e exequibilidade


do que está previsto na lei a partir das políticas públicas e da conscientização da população sobre
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seus direitos, para reconhecê-los como tal, e para que, apesar do contexto cultural, as mulheres
tenham a oferta dos serviços públicos eficazes, seguros e acolhedores, para ter a confiança de a

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eles recorrer.

Para romper com os mitos, é necessária uma participação ativa dos trabalhadores das políticas
públicas, do investimento em pesquisas acadêmicas relacionadas ao tema e uma ampla divulgação
sobre estes novos direitos para cumprir o dever ser da lei, com a responsabilidade compartilhada
entre Estado, família e sociedade (art. 227 CF), transcendendo a normativa para executar a norma
legal conforme prevista para mudar valores construídos há séculos, os quais validam essas ações
ilegais pela manutenção de uma moral socialmente construída.

Assim como Christina Rickardsson, também lamentamos a falta de proteção aos cidadãos pela
sociedade brasileira, porém, com o conhecimento temos as condições necessárias para articular
a rede mudando o sistema, a fim de disseminar o reconhecimento do direito, proteger os cidadãos
e efetivar o pacto social legislado.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Nova Fronteira.
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SUMÁRIO

DIREITO E PSICOLOGIA: A
197
ADOÇÃO HOMOAFETIVA E
AS QUESTÕES DOS PAPÉIS
PARENTAIS SOB A INTERFACE
PSICANALÍTICA

AUTORIA
LUAN DE OLIVEIRA ANTUNES
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Pós-Graduando na Especialização de Direito Homoafetivo e de Gênero da Universidade


Santa Cecília – UNISANTA.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: luanoliveiraantunes@hotmail.com

CARLA BERTONCINI
Professora de Direito Civil (Direito de Família e Sucessões) das Faculdades Integradas
de Ourinhos – FIO e da Faculdade de Direito do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da
Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP. Doutora em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
.CONTATO: bertocinicarla@uol.com

RESUMO
A Constituição Federal de 1988 trouxe relevantes alterações para o Direito de Família no que
concernem aos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da isonomia, do
tratamento não discriminatório e da pluralidade das formas familiares. O presente trabalho
busca realizar leituras dos aspectos principiológicos analisando o quanto tais modificações
possibilitaram a inserção de um novo conceito de família e de parentalidade, baseada no afeto,
objeto de pesquisa deste trabalho. Nesse contexto, busca-se demonstrar que o exercício dos
papéis parentais independe do gênero e muito menos da sexualidade dos pais, apresentando
a adoção por casais homoafetivos como meio de se permitir o desenvolvimento da criança
em um ambiente familiar saudável, dando azo ao princípio do melhor interesse da criança.
PALAVRAS-CHAVE: Parentalidade Homoafetiva; Afeto; Desbiologização da Parentalidade.
INTRODUÇÃO

198 Historicamente, a família foi o principal vetor de concretização das relações humanas e a sua
concepção a mais branda forma de sanar o medo da solidão intrínseca no âmago da nossa alma.
A sua concepção histórico-social está num processo constante de reorganização no que condiz
ao seu formato e a sua forma de se impor perante a evolução da sociedade não sendo mais a sua
consideração baseada nos conceitos sacramentais.

Para atingir tal fluidez das novas concepções familiares a abordagem trazida no presente trabalho
limita-se a demonstrar a evolução dos conceitos familiares e a importância da constituição familiar
pelo afeto, sustentando que o bebê, a criança ou o adolescente adotado tem total condição
psíquica, social e psicológica de crescer e desenvolver-se de forma saudável e efetiva quando
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

adotado por uma família homoafetiva.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Nesse viés, vislumbra-se a adoção como uma forma de se constituir família demonstrando
através da ciência da psicologia e da psicanálise que os papéis parentais podem ser desenvolvidos
por qualquer indivíduo que tenha disposição e vontade de exercê-los independente de gênero e
orientação sexual.

Não se deve mesmo que insistentemente atribuir à função parental apenas a um vínculo biológico,
pois, a genética jamais conseguirá tornar pai e mãe aqueles que são apenas genitores.

A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA E SEUS DESDOBRAMENTOS HISTÓRICO-SOCIAIS NO


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A Constituição de 1988 considerou as transformações familiares na medida em que acentuou as


relações afetivas e sentimentais de seus membros, valorizando sua nova forma de se considerar
família. Tanto a família quanto o casamento adquiriram um novo perfil voltados para a importância de
seus interesses afetivos e sentimentais de seus integrantes, fossem eles pai, mãe e filho, pai e filho,
mãe e filho, pai, pai e filho, mãe, mãe e filho, avó, tio e filho, entre outros milhares de formatos familiares.

Porém, por mais que a Constituição Federal tenha assegurado novos princípios e buscado aceitar
novos conceitos familiares, a família homoafetiva só foi reconhecida em nosso ordenamento
jurídico em 05 de maio de 2011, com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277
pelo Supremo Tribunal Federal, corte constitucional de nosso País, dando as uniões homoafetivas
o status de entidade familiar estendendo a estas relações a mesma proteção destinada à união
estável prevista no Art. 226, § 3º da Constituição Federal e no Art. 1.723 do Código Civil.

Porém, por mais que não haja impedimentos legais para a adoção de crianças e adolescentes por
casais homossexuais, sabe-se que essa discussão é marcada por preconceitos e discriminações
fundadas em pensamentos retrógrados e visões conservadoras indiferentes ao estudo da ciência
psicológica, que demonstra que os papéis parentais exercidos na vida do indivíduo não perpassam
199 por questões de gênero, não havendo nenhum prejuízo à criança ou ao adolescente por serem
criados por casais do mesmo sexo ou pessoas homossexuais.

Conquistado, portanto, o direito das pessoas do mesmo sexo de constituírem família, o tema
pertinente à adoção por casais homoafetivos também adquiriu novos olhares e interpretações
por parte do judiciário, colocando em prática a primazia do melhor interesse da criança e do
adolescente no que concerne aos direitos dessas novas famílias a se habilitarem para o processo
de adoção.

Verifica-se que, após o reconhecimento das uniões homoafetiva, os tribunais têm se debruçado
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

nas questões concedendo a adoção por casais homossexuais:

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DO MESMO
SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora
da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com
características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir
família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes
possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente
em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a
qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas
e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e
atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura
de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada
aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal).
Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre
as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO.

UN NIME (Ap. Cível nº 70012801592 – Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos – julgado
em 05.04.2006).

Outro interessante apontamento é o Recurso Especial nº 889.852 – RS, de relatoria do Ministro Luís
Felipe Salomão, em que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu de forma unânime a
um casal homoafetivo a adoção de duas crianças:

Direito civil. Família. Adoção de menores por casal homossexual. Situação já


consolidada. Estabilidade da família. Presença de fortes vínculos afetivos entre
os menores e a requerente. Imprescindibilidade da prevalência dos interesses
dos menores. Relatório da assistente social favorável ao pedido. Reais vantagens
para os adotandos. Artigos 1º da lei 12.010/09 e 43 do estatuto da criança e do
adolescente. Deferimento da medida.
200
1. A questão diz respeito à possibilidade de adoção de crianças por parte de
requerente que vive em união homoafetiva com companheira que antes já
adotara os mesmos filhos, circunstância a particularizar o caso em julgamento.

2. Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem


fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde
a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em
conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal.
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3. O artigo 1º da Lei 12.010/09 prevê a “garantia do direito à convivência familiar


a todas e crianças e adolescentes”. Por sua vez, o artigo 43 do ECA estabelece

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


que “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando
e fundar-se em motivos legítimos”.

4. Mister observar a imprescindibilidade da prevalência dos interesses dos


menores sobre quaisquer outros, até porque está em jogo o próprio direito de
filiação, do qual decorrem as mais diversas consequências que refletem por
toda a vida de qualquer indivíduo.

5. A matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por casais


homossexuais vincula-se obrigatoriamente à necessidade de verificar qual é a
melhor solução a ser dada para a proteção dos direitos das crianças, pois são
questões indissociáveis entre si.

6. Os diversos e respeitados estudos especializados sobre o tema, fundados em


fortes bases científicas (realizados na Universidade de Virgínia, na Universidade
de Valência, na Academia Americana de Pediatria), “não indicam qualquer
inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais
importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em
que serão inseridas e que as liga a seus cuidadores”.

[...]

8. É incontroverso que existem fortes vínculos afetivos entre a recorrida e os


menores sendo a afetividade o aspecto preponderante a ser sopesado numa
situação como a que ora se coloca em julgamento.
9. Se os estudos científicos não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza
para as crianças, se elas vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao
201 mesmo tempo, assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que
se impõe.

10. O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica. Vale
dizer, no plano da realidade, são ambas, a requerente e sua companheira,
responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que a elas,
solidariamente, compete a responsabilidade.

[...]
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13. A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, desprendimento.


Quando efetivada com o objetivo de atender aos interesses do menor, é um gesto

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


de humanidade. Hipótese em que ainda se foi além, pretendendo-se a adoção de
dois menores, irmãos biológicos, quando, segundo dados do Conselho Nacional
de Justiça, que criou, em 29 de abril de 2008, o Cadastro Nacional de Adoção,
86% das pessoas que desejavam adotar limitavam sua intenção a apenas uma
criança.

14. Por qualquer ângulo que se analise a questão, seja em relação à situação
fática consolidada, seja no tocante à expressa previsão legal de primazia à
proteção integral das crianças, chega-se à conclusão de que, no caso dos autos,
há mais do que reais vantagens para os adotandos, conforme preceitua o artigo
43 do ECA. Na verdade, ocorrerá verdadeiro prejuízo aos menores caso não
deferida a medida.

15. Recurso especial improvido. (Grifos nossos)

A jurisprudência tem abarcado tal entendimento, acolhendo o posicionamento doutrinário


defendido por Maria Berenice Dias, que entende esta modalidade de família como gênero da união
estável, permitindo, assim, a adoção (Bordallo, 2010).

A identificação e o exercício do papel materno e paterno, tão importantes para o desenvolvimento


psicológico, social e estrutural da criança e do adolescente, independem de gênero, de relação
biológica e consanguínea. Necessitam da vontade e da pré-disposição dos indivíduos em exercer
tais papéis.

A identificação do indivíduo como homossexual nada mais é que o exercício de sua sexualidade.
Conceber a ideia de que o exercício da sexualidade dos pais poderá intervir no desenvolvimento
da criança e do adolescente adotado é o mesmo que julgar a capacidade e a competência da
pessoa por intermédio de sua escolha sexual. São apontamentos preconceituosos, infundados,
202 marcados por subjetivismos morais e mitos inexplicáveis.

A PARENTALIDADE CONSTRUÍDA PELO AFETO

Busca-se demonstrar que a chamada verdade biológica nem sempre é adequada, pois a certeza
absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, especialmente quando
esta já tiver sido constituída na convivência duradoura com pais socioafetivos ou quando derivar
da adoção. (Lôbo, 2015, p. 9).

Ao discutir a adoção, não se pode deixar de averiguar que se trata de crianças e os adolescentes,
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assim como os adotantes, os maiores interessados no processo de escolha e de estabelecimento


de relações vinculares.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


São as leis que regulamentam, legitimam e dão consistência ao vínculo, porém, se estas não
estiverem sintonizadas com as necessidades dos adotando e, principalmente, com as dos
adotantes, transformam-se apenas em meros instrumentos burocráticos que aprisionam tais
atores (candidatos a pais e filhos) em papéis estereotipados pouco coerentes com os fins aos
quais se destinam (Almeida, 2008).

Os contextos de filiação devem basear-se nas construções sociais e na forma com que a sociedade
adere aos princípios ordenadores que contemplam a sociedade humana, valorizando modelos que
deem vez as relações baseadas no afeto. Prevalecendo então o vínculo afetivo a verdade biológica
tornou-se um fantasma vencido. O DNA perdeu espaço para a construção do amor materno,
paterno e filial independente da percepção consanguínea, sendo a construção das relações pelo
afeto muito mais fortes que o vínculo biológico.

Tem-se, por fim, como principal objetivo, a afirmação de que o afeto é o princípio norteador e
determinante para uma verdadeira relação parental, independente de vínculos genéticos e
biológicos. Seguindo tal raciocínio, faz-se necessário a correta interpretação dos princípios
Constitucionais de nosso Ordenamento tendo em vista ser a parentalidade questão de relevância
imprescindível para a primazia e proteção dos interesses da criança e do adolescente.

O procedimento metodológico adotado foi o indutivo, analisando as diversas obras de Direito de


Família no que concerne ao princípio da afetividade, sendo ele uma extensão dos princípios da
dignidade e da igualdade da Constituição Federal referente à adoção por casais homoafetivos.
Analisou-se, também, bibliograficamente, o contexto psicanalítico das obras do pediatra e
psicanalista Donald Woods Winnicott e os conceitos psicanalíticos lacanianos no que diz respeito
ao desenvolvimento do bebê, da criança ou do adolescente adotados por famílias homoafetivas.
CONCLUSÃO

203 Freud, conhecido como o pai da psicanálise, já considerava desde a sua época serem as relações
familiares as mais complexas e confusas.

Essa resistência em aceitar a adoção homoafetiva decorre da falsa ideia de que são relações
promíscuas e que não oferecem um ambiente saudável para o bom desenvolvimento de uma
criança, alegando-se, também, a falta de referências comportamentais que poderiam acarretar
sequelas de ordem psicológica e dificuldade na identificação sexual do filho (Dias, 2016).

Em tese, pertencer a uma família heterossexual não é garantia de saúde, estabilidade,


segurança e nem mesmo da mesma orientação sexual dos pais. Para Winnicott, a filiação não
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

precisa necessariamente ser decorrente de um laço institucional e matrimonial, conservador e


heteronormativo (o casamento), mas, sim, baseada em laços afetivos que garantam ao bebê, à

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


criança ou ao adolescente um ambiente familiar saudável.

Para Lacan, a família não deve ser considerada como um grupo natural, mas, sim, cultural. Sua
constituição não deve ser definida pelos gêneros do homem, da mulher e dos filhos. Ela é, antes de
tudo, uma construção psíquica de todos os membros, em que cada um ocupará sua função e seu
papel emocional e afetivo, independente de suas características biológicas (Lacan, 1990).

Se, com efeito, a família humana nos permite observar, nas fases mais primevas
das funções maternas, por exemplo, alguns traços de comportamento instintivo,
identificáveis aos da família biológica, basta pensarmos no que o sentimento de
paternidade deve aos postulados espirituais que marcaram seu desenvolvimento,
para compreendermos que nesse domínio as instâncias culturais dominam as
naturais, ao ponto de não se poderem considerar paradoxais os casos em que
umas substituem as outras, como na adoção. (Lacan, 1990, p. 12)

A construção da parentalidade e do vínculo filial dar-se-á no cotidiano das relações dos pais, mães
e filhos. Seu fortalecimento estabilizar-se-á com o tempo, com o convívio e com o desenvolvimento
emocional e psíquico dos envolvidos.

Prevalecendo, então, o vínculo afetivo, a verdade biológica tornou-se um fantasma vencido. O DNA
perdeu espaço para a construção do amor materno, paterno e filial, independente da percepção
consanguínea, sendo a construção das relações pelo afeto tão fortes quanto o vínculo biológico.

Ao concluir que as relações parentais são construídas socialmente e legitimadas pelo Ordenamento
Jurídico, não há razão em negar a parentalidade às novas constituições familiares, sejam elas
homo ou monoparentais.
A Constituição Federal de 1988 defende a filiação adotiva, com a garantia da isonomia filial,
independente de questões biológicas ou sexuais, asseverando a prioridade absoluta dos interesses
204 da criança e do adolescente, conforme disposto no Art. 227 §6º. O papel da jurisprudência tem
sido essencial para a consolidação da luta das adoções por homossexuais. Portanto, enquanto
não existirem leis para a solução de tais conflitos, caberá ao Poder Judiciário fundamentar-se
nos princípios Constitucionais da paternidade/maternidade responsável, do melhor interesse
e proteção integral da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana, visando à
efetivação de tais direitos pelas famílias homoafetivas.

Zelar pelo melhor interesse da criança e do adolescente é garantir-lhes direito à vida, à saúde, à
alimentação, à convivência familiar, é possibilitar-lhes a inserção em um lar, até porque a adoção é
ato genuíno de amor, de humanidade, de entrega, de solidariedade, e não cabe ao Estado impedir
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ou dificultar, por razões hipócritas e desprovidas de fundamentação jurídica, que as crianças e


adolescentes colocados em adoção encontrem uma família.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


REFERÊNCIAS

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Winnicott, D. W. (2016). Tudo começa em casa. São Paulo: Editora Martins Fontes.
SUMÁRIO

205 E QUANDO A ADOÇÃO NÃO SE


TORNA UMA POSSIBILIDADE?
DESAFIOS DE JOVENS
INSTITUCIONALIZADOS

AUTORIA
MARIANA ALVARENGA
Psicóloga. Pós-graduanda em Política de Assistência Social pela Pontifícia Universidade
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Católica de Minas Gerais.


CONTATO: marianaalvarenga2@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


THALITA RODRIGUES
Psicóloga social e psicanalista. Doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG.
CONTATO: thaalita.rodrigues@gmail.com

RESUMO
A pesquisa teve como proposta investigar os desafios que os jovens acolhidos
institucionalmente vivenciam no processo de desinstitucionalização devido a maioridade.
Realizamos pesquisa bibliográfica, analisando principalmente as dissertações de
mestrado de Benetti (2012) e Silva (2010), que tratam do tema maioridade e desligamento
institucional. A partir dessa pesquisa, identificamos que, embora a medida de acolhimento
institucional seja provisória e excepcional, muitos jovens passam anos de suas vidas
institucionalizados, sendo desligados obrigatoriamente ao completarem a maioridade. O
CONANDA (2009) estabelece nas orientações técnicas, que o desligamento institucional
deve ser feito de forma gradativa, contribuindo com fortalecimento da autonomia.
Contudo, identificamos falhas no modo de conduzir esse processo. As Repúblicas
têm sido uma alternativa para os jovens que compreendem entre 18 e 21 anos de
idade, mas ainda não foram consolidadas em todo o país. O processo de desligamento
é vivenciado pelos adolescentes como um momento de angústia e desamparo, por
se depararem com a vida adulta, muitas vezes, sem auxílio de familiares ou do Estado.
PALAVRAS-CHAVE: Acolhimento Institucional; Desligamento
ADOÇÃO E DIREITOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES

206 As famílias ocupam lugar central no que se refere à garantia de direitos de crianças e adolescentes
no Brasil, sendo essas as responsáveis por promover um ambiente saudável e favorecedor ao
desenvolvimento dos filhos. Entretanto, muitas vezes, estas famílias não são capazes de assegurar
os direitos fundamentais, por diversos motivos, cabendo ao Estado promover tal proteção.

A criança é retirada da família quando esta é considerada como um fator de risco que consiste
em manifestar comportamentos que negligenciam os cuidados com a criança, como por
exemplo: abandono, abuso físico, psicológico e/ou sexual, uso abusivo de álcool e outras drogas.
Dessa forma, se a família coloca em risco o pleno desenvolvimento das crianças, estas serão
encaminhadas para instituição de acolhimento (Benetti, 2012).
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), toda criança tem o direito

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


de ser criada em sua família de origem e, excepcionalmente, em família substituta. Nos casos
em que não há possibilidade de manter a criança na família, esta será encaminhada para um
acolhimento institucional, o qual buscará resgatar os vínculos fragilizados com a família de
origem. A medida de acolhimento institucional existe para proteger a criança e ao adolescente,
retirando-os da situação que viola seus direitos. Contudo, para que uma criança seja retirada de
seu lar, é preciso antes esgotar todas as chances de integração na família de origem. As crianças
e adolescentes ficarão institucionalizados até que seja possível o retorno ao lar. Nos casos em que
não é possível esse retorno, serão encaminhadas para família substituta. Em teoria, todos que
estão institucionalizados, ou devem retornar para família de origem, ou devem ser encaminhadas
para família substituta. Na prática, muitas crianças completam a maioridade nas Instituições de
Acolhimento, por não ter sido possível realizar uma das opções.

Embora o ECA estabeleça a brevidade do acolhimento institucional, uma pesquisa realizada


pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA revelou que mais da metade das crianças
e adolescentes pesquisados (52,6%) estavam vivendo na instituição de acolhimento há mais de
dois anos – tempo máximo de institucionalização estabelecido pelo ECA – “sendo que, dentre elas,
32,9% estava nos abrigos por um período entre dois e cinco anos; 13,3%, entre seis e 10 anos; e 6,4%,
por um período superior a 10 anos” (Silva, 2004, p. 64). Esses dados demonstram que, ainda que
o ECA determine o tempo máximo de dois anos de institucionalização, a maioria ultrapassa esse
período, permanecendo por anos na instituição. A institucionalização prolongada causa prejuízos
ao desenvolvimento da criança e por isso deveria ser uma medida excepcional e com curta duração.
Esses dados apresentados pela pesquisa denunciam a não efetividade das diretrizes do ECA, que
não retornaram essas crianças para família de origem e nem as colocaram em família substituta,
tornando a instituição de acolhimento um lar definitivo até atingirem a maioridade.
Cuneo (2009 apud Benetti, 2012) afirma que as crianças institucionalizadas na grande maioria
são provenientes de famílias pobres, vivenciando diversas precariedades e são crianças que
207 apresentam muitas carências que podem se agravar caso permaneçam por tempo prolongado
na instituição. A instituição deve trabalhar para minimizar os danos acarretados pelo abandono,
desenvolvendo ações que as fortaleçam, uma vez que o acolhimento prolongado tende a levar a
alterações no estado físico e emocional (Benetti, 2012). O que demonstra o estudo de Taussing
e Culhane (2005 apud Salina, 2007), que apontam em sua revisão de literatura sobre abrigos em
Nova Jersey, que durante o período de abrigamento, as crianças apresentam dificuldades físicas,
mentais e problemas educacionais, sendo que, após o desligamento das instituições, os egressos
continuam a apresentar as mesmas dificuldades, acrescidas ainda de demais problemas como o
uso de drogas.
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Crawford (2006 apud Salinas, 2007) também versa sobre os possíveis efeitos da institucionalização.
Segundo a autora, os motivos que levam ao abrigamento são majoritariamente devido à

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


negligência ou abuso, condição que aumenta a probabilidade de futuras desordens emocionais,
comportamentais e psicológicos. Cita como exemplo de transtornos que atingem essa população,
a depressão, transtorno desafiador opositivo e transtorno de estresse pós-traumático que, com a
probabilidade de se estenderem para vida adulta, podem levar ao abuso de substâncias químicas
e criminalidade.

Importante ressaltar os motivos que levam essas crianças/adolescentes para as instituições


de acolhimento no Brasil. O levantamento nacional dos abrigos para crianças e adolescentes da
rede de serviço de ação continuada, realizado pelo IPEA (2004), revelou que a pobreza é o motivo
mais recorrente para o abrigamento, com 24,1% dos casos. Outros motivos são: o abandono
(18,8%); a violência doméstica (11,6%); a dependência química dos pais ou responsáveis, incluindo
alcoolismo (11,3%); a vivência de rua (7,0%); a orfandade (5,2%),prisão dos pais ou responsáveis
(3,5%) e o abuso sexual praticado pelos pais ou responsáveis (3,3%). Os dados demonstram a
pobreza como a principal causa de institucionalização, embora o ECA determine que esta não seja
condição suficiente para abrigar uma criança. Percebe-se então uma criminalização da pobreza,
na qual os pais são considerados incapazes de oferecer sustento aos filhos. Se uma família não
tem condições econômicas para suprir as demandas do sustento, ela deve então contar com
o auxílio das Políticas de Assistência Social como os equipamentos do Centro de Referência
de Assistência Social – CRAS, a fim de que orientem essa família e a inclua em programas de
complementação de renda. Nesse sentido, evidencia-se mais uma falha das políticas públicas,
que retira a criança da família de origem, sem dar condições sociais e econômicas para que ela
cumpra com sua função social de proteção. Nesse sentido, embora o ECA tenha reformulado a
maneira de se tratar a infância no Brasil, rompendo com a institucionalização indiscriminada de
crianças e adolescentes pobres, como aconteceu durante séculos, ainda carregamos resquícios
dessa história. Responsabilizamos a família como incapaz de educar e sustentar seus filhos, como
se as precariedades que estas vivenciam, não fossem fruto de uma desigualdade econômica que
compromete a garantia de direitos básicos das crianças e adolescentes.
208
A referida pesquisa do IPEA mostra ainda que a maioria dos institucionalizados tem família (86,7%),
sendo que 58,2% mantêm vínculos familiares e apenas 5,8% estão impedidos judicialmente de
contato com os familiares. Apenas 4,6% são órfãos e 6,7% têm situação de família desaparecida.
Percebe-se então que embora a maioria possua família, estão nas instituições, privadas do direito à
convivência familiar. Dessa forma, temos uma legislação que presa pela brevidade do acolhimento
institucional, uma vez que estudos demonstram que a institucionalização prolongada prejudica o
desenvolvimento e por entender que o melhor para uma criança ou adolescente é ser criado por
uma família, mas temos uma realidade em que na prática nem sempre é possível cumprir com a
excepcionalidade e brevidade.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

São diversos os motivos que impossibilitam ou prejudicam o cumprimento das diretrizes do

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


ECA. A pesquisa realizada pelo IPEA (2004), após entrevistas com dirigentes das instituições
de acolhimento, identificou que eles consideram que, mesmo fazendo esforços para seguirem
os princípios do ECA, encontram dificuldade em sua implementação. Foi citada a dificuldade de
retornar a criança/adolescente para família de origem, uma vez que é muito difícil romper com
os motivos que levaram ao abrigamento, sejam eles problemas financeiros, o vício, violação de
direitos, abandono, entre outros. Ou seja, é um trabalho difícil de reconstrução, muitas vezes sem
sucesso. A referida pesquisa identificou também que, no que se refere ao apoio à reestruturação
familiar promovido pelas instituições de acolhimento, estas não têm cumprido com todas as
exigências postas pelo Estatuto. A pesquisa buscou avaliar a reestruturação familiar por meio
de algumas ações que as instituições devem realizar, são elas: visitas domiciliares às famílias das
crianças e dos adolescentes sob sua responsabilidade; acompanhamento social das famílias;
organização de reuniões ou grupos de discussão e de apoio para os familiares dos abrigados e
encaminhamento das famílias para a inserção em programas oficiais ou comunitários de auxílio/
proteção à família. As instituições que realizam todas essas ações conjuntamente alcançaram um
percentual de apenas 14,1% do universo pesquisado. Percebe-se então que nem todos os deveres
estão sendo cumpridos pelas instituições para contribuir com a brevidade do acolhimento. O
levantamento do IPEA (2004) revelou que a grande maioria (83%) das crianças e adolescentes
pesquisadas estava judicialmente impossibilitadas de serem adotadas, uma vez que, suas famílias
não tinham interesse ou condição de ter sua guarda, mas ainda possuíam o poder familiar. Dessa
forma, a criança não pode ser encaminhada para adoção sem uma decisão judicial, uma vez que o
encaminhamento só pode ser feito quando os pais forem destituídos do poder familiar.

O IPEA (2004) cita os estudos do Comitê para o Reordenamento de Abrigos, que aponta
diversos motivos que contribuem para institucionalização prolongada, como por exemplo, a
falta de profissionais capacitados para realizar intervenções no ambiente familiar dos abrigados,
promovendo a reinserção deles, crianças abrigadas fora do município, o que dificulta o contato com
a família de origem, o entendimento equivocado por parte dos profissionais de que a instituição é
o melhor lugar para criança, entre outros (Silva, 2004).
209
Entre as ações que elas devem executar estão: o incentivo à integração em família substituta
sob as formas de guarda, tutela ou adoção1 , o envio de relatórios periódicos sobre a situação dos
abrigados e de suas famílias para as Varas da Infância e da Juventude (órgãos responsáveis pela
aplicação de quaisquer outras medidas de proteção, incluindo a colocação em família substituta);
e a manutenção de programas de apadrinhamento afetivo, alternativa de referência familiar para
as crianças e os adolescentes abrigados. Das 589 instituições pesquisadas pelo IPEA apenas
22,1% desenvolvem todos esses tipos de ação de incentivo à convivência dos abrigados com
outras famílias. Sobre a colocação em família substituta, que é uma forma de garantir o direito à
convivência familiar para as crianças e adolescentes cujas chances de retorno para suas famílias
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

de origem foram esgotadas, também se identificou que nem todos os esforços têm sido feitos.
A colocação em família substituta não depende apenas do trabalho das instituições, mas elas

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


podem desempenhar um papel fundamental nesse processo que incentive a convivência com
outras famílias.

A pesquisa do IPEA revelou também que os dirigentes das instituições de acolhimento têm
dificuldade de cumprir com o desligamento institucional dos jovens que atingiram a maioridade.
O ECA estabelece que o desligamento deva ser feito de forma gradativa, oferecendo programas
que visem o apoio psicológico e todas as demais garantias necessárias para sobrevivência do
egresso, como: renda, emprego, escolarização e a criação de vínculo, parental ou não, externo
a instituição. Os dirigentes apontam a dificuldade desse desligamento, uma vez que o jovem se
encontra desamparado e desprotegido mais uma vez.

Nesse sentido, tendo em vista que a pesquisa realizada pelo IPEA aponta a discrepância
existente entre a legislação e a realidade dos serviços de acolhimento institucional, resultando
em um número significativo de crianças e adolescentes que ficam institucionalizados por tempo
prolongado e tendo em vista que muitos jovens completam a maioridade nessas instituições, o
presente trabalho tem como objetivo explorar, a partir da literatura, os dilemas que os jovens em
processo de desinstitucionalização, devido à maioridade, vivenciam.

1. Importante ressaltar aqui a diferença entre guarda, tutela e adoção. “A guarda obriga a prestação de assistência material,
moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”
(Brasil, 1990, p. 33). Ou seja, o guardião é o responsável legal pela criança, cabendo a ele promover toda assistência necessária.
Contudo, a guarda não implica em suspensão ou destituição do poder familiar dos pais. A tutela implica o dever de guarda, mas
nesse caso os pais são destituídos ou suspensos do poder familiar. Já a adoção “atribui a condição de filho ao adotado, com os
mesmos direitos e deveres” (Brasil, 1990, p. 34).
POLÍTICA DE ACOLHIMENTO E DESLIGAMENTO PARA JOVENS NÃO ADOTADOS

210 O desligamento institucional gradativo embora seja uma medida muito importante e imposta
pelo Art. 92 do ECA (1990), ainda é pouco especificada no campo das políticas públicas e sociais.
Os profissionais das instituições também se preocupam com esse momento, que é tão ou mais
complexo que o ingresso na instituição. Muitos dos adolescentes que tiveram o acolhimento
prolongado têm a instituição de acolhimento como única referência e não foram preparados para
se desligarem e após o desligamento o Estado não oferece suporte até que ele possa se sustentar
(Benetti, 2012).

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA (2009) aponta que
é essencial a inclusão dos adolescentes acima de 16 anos de idade em programas de inclusão
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produtiva, bem como de seus familiares, uma vez que contribui significativamente para o
desenvolvimento da autonomia e acesso à renda. O trabalho realizado deve ser organizado de

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modo que o ambiente do acolhimento proporcione o fortalecimento gradativo da autonomia.
As ações devem ter como foco o desenvolvimento de habilidades, aptidões, capacidades e
competências das crianças e adolescentes. A busca pela independência dos abrigados deve
ser um trabalho constante, juntamente com a devida qualificação profissional e inserção no
mercado de trabalho. Com relação à autonomia, esta deve ser fortalecida com a participação nas
decisões a seu respeito, conhecimento de sua história de vida, situação da família e causas do
acolhimento, participação no convívio comunitário. Estimular a participação social, protagonismo
em conferências e assembleias que discutem os direitos das crianças e adolescentes.

O CONANDA (2009) prioriza que o desligamento das instituições de acolhimento se realize de forma
a minimizar o sofrimento ou angústia que possa surgir diante desse momento que muitas vezes é
vivenciado de forma dolorosa. Nesse sentido, tanto nos casos de reintegração à família de origem
quanto nos de encaminhamento para família substituta e desligamento devido à maioridade, deve
haver um preparo da criança/adolescente, proporcionando a despedida do ambiente, dos colegas,
dos educadores/cuidadores e dos demais profissionais, além do processo de emancipação e
fortalecimento da independência e autonomia no caso daqueles que atingiram a maioridade. É
importante que a instituição tenha um espaço de acompanhamento contínuo, no qual as crianças
e adolescentes possam se expressar e serem ouvidas sobre a dor da separação. Nos casos de
longa permanência no serviço de acolhimento, o desligamento demanda uma atenção especial
e deve ser realizado numa articulação permanente com a justiça, a fim de prevenir separações
abruptas e permitir a avaliação do momento mais adequado para a ocorrência do desligamento.
Como alternativa para os jovens que estão sendo desligados devido à maioridade e que não tenham
possibilidade de residir com a família de origem ou com a família extensa e que não têm condições
de se autossustentarem, existem as Repúblicas, que oferecem apoio e moradia subsidiada a esses
jovens que compreendem entre dezoito e vinte e um anos de idade. (CONANDA, 2009).
A República é um serviço destinado a apoiar a construção da autonomia, possibilitando
desenvolvimento da autogestão, autossustentação e independência (CONANDA, 2009). Ou seja,
211 esse serviço visa apoiar a qualificação e inserção profissional e a construção de projeto de vida,
sendo uma forma de transição entre o serviço de acolhimento para crianças e adolescentes e a
aquisição da autonomia e independência. Contudo, Silva (2010) aponta que o serviço de República
ainda não existe em todos os estados do país, cita como exemplo o Rio Grande do Norte. Nos
estados que não possuem Repúblicas a alternativa são as ruas ou os albergues para adultos. Os
albergues não oferecem serviço especializado para os egressos da instituição e abriga pessoas
em situação de rua.

E QUANDO A ADOÇÃO NÃO VEM? DESAFIOS DAS/OS JOVENS INSTITUCIONALIZADAS/OS


VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Como foi exposto até o momento, é esperado que as instituições de acolhimento se preparassem para
o desligamento institucional, exercendo ações que fortaleçam a autonomia, a profissionalização

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


e educação. De acordo com Silva (2010), o trabalho gradativo é o mais eficaz no processo de
desinstitucionalização, uma vez que sem preparo e apoio, os egressos das instituições podem se
submeter a situações de risco como a rua, tráfico e prisões. Além da dificuldade inerente a este
processo, ainda existe o preconceito e estigma relacionado ao jovem institucionalizado. Contudo,
ainda que a política determine um desligamento gradativo de jovens institucionalizados, na prática
muitas vezes a realidade é diferente. Benetti (2012) ao realizar uma pesquisa em São Carlos/
SP e entrevistar duas dirigentes de instituições de acolhimento, identificou que muitas vezes a
notificação e o desligamento acontecem simultaneamente. A preparação é feita basicamente pelo
diálogo, a dirigente conversa com o adolescente sobre o desligamento com intuito de prepará-lo.

Ainda segundo Benetti (2012), a entrevistada D1 (nome dado à primeira dirigente entrevistada
pela autora) aponta que o desligamento institucional é um momento difícil em qualquer situação,
seja por motivo de adoção, retorno a família substituta ou maioridade. Entretanto, afirma que,
quando se trata da maioridade, o momento é ainda mais doloroso. A entrevistada disse que sente
pena por ter que desligar o adolescente, que é traumático para quem dá e para quem recebe a
notícia. Afirma que esses adolescentes já não veem a instituição como um abrigo e sim como
seu lar, sendo muito difícil esse rompimento. Aponta também que no processo de desligamento
institucional não há um órgão específico ou profissional designado a acompanhar. A segunda
entrevistada, D2, considera que o desligamento, em sua instituição, é feito de forma gradativa. Os
adolescentes constroem caixas e quando vão embora colocam tudo que desejam levar na caixa,
constroem bilhetes, o que para a dirigente é uma forma das crianças levarem com elas o que tem
de mais importante, simbolicamente falando. O diálogo também é muito utilizado no processo
e os adolescentes sempre são comunicados e têm conhecimentos dos trâmites judiciais e são
preparados para as audiências. D2 enfatiza que deixa claro para as crianças, desde sua entrada
na instituição, que o acolhimento tem caráter provisório, que elas têm esse espaço para elas,
onde são amadas, mas não é um lugar para se morar para sempre. Acrescenta que no processo
de desligamento tudo é comunicado com antecedência e que os adolescentes participam da
212 elaboração do Plano Individual de Atendimento – PIA.

A pesquisa de Benetti (2012) também realizou entrevistas com seis adolescentes (dois do sexo
masculino e quatro do sexo feminino) que viveram em instituição de acolhimento por período
prolongado - tempo superior a dois anos que é o máximo previsto pelo ECA – e que foram
desligados da instituição por terem completado a maioridade. A pesquisadora selecionou dez
participantes de uma primeira instituição, mas nem todos puderam participar, pois dois desistiram,
dois estavam em sistema prisional e um estava em hospital psiquiátrico. Uma das desistentes era
parceira de uma pessoa considerada de alta periculosidade e acredita-se que esta foi proibida por
ele de participar. A outra participante que desistiu parecia não querer entrar com contato com o
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passado, pois a mesma evitava contato com todos relacionados à instituição. Ela selecionou ainda
para participar da pesquisa uma jovem de uma segunda instituição de acolhimento. A autora

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construiu a seguinte tabela para caracterizar os participantes:

TABELA 1 – Caracterização dos participantes

Identificação Idade Escolaridade Tempo de Com quem Profissão


institucionalização reside
P1 28 anos Ensino regular 4 anos Sozinho Mecânico de
completo moto
P3 27 anos Ensino regular 6 anos Sozinho Cortador de
completo roupa em fábrica
P4 25 anos Ensino médio 6 anos Com marido e Diarista
completo filho
P7 20 anos Ensino médio 8 anos Com a filha Não trabalha
completo bebê
P9 20 anos Primeiro ano 5 anos Com marido Não trabalha
do ensino
médio
P11 19 anos Primeiro ano 2 anos Com amiga Diarista e
do ensino garçonete
médio

Fonte: Benetti, 2012, p. 65.

A pesquisa identificou que, para todos os jovens, o momento de desligamento causa diversos
sentimentos, como medo, choque, insegurança e incertezas. Todos os participantes sugeriram
que o desligamento deveria ser iniciado com mais antecedência para se prepararem. Três
entrevistados afirmam que nenhum representante dos órgãos públicos acompanhou o processo.
213 Dois participantes contaram com apoio de Conselheiros Tutelares e um participante com o
apoio de psicóloga e assistente social da instituição de acolhimento que inclusive continuaram
o acompanhando após desligamento. Sobre o momento posterior ao desligamento, apontam a
dificuldade de adaptação, que em alguns casos ainda nem aconteceu. P4 apontou a dificuldade
financeira como a mais difícil. Para P1, a maior dificuldade foi a falta de apoio, de renda e
interrupção dos estudos. Para P11, foi a insegurança, se sentiu perdida e insegura para tomar
decisões. P3 compartilha desse mesmo sentimento e atribui isso ao fato de ter ficado muito tempo
institucionalizada. P7 aponta que a maior dificuldade foi a fome. P9 foi único que não apontou
nenhuma dificuldade de adaptação.
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O entrevistado P3 afirma que o desligamento é um momento muito triste “é triste, tem que sair
[...] é meio embaçado quando sai e não tem pra onde ir” (Benetti, 2012, p. 67). Esse entrevistado

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foi comunicado do desligamento três semanas antes e afirma que é necessário um tempo maior
para o desligamento. P1 relata “foi complicado, vamos dizer assim, um choque. Na hora você sente
medo. É como se você não tivesse na onde pisar, não tem chão mais. Você fica inseguro [...] não
sabe pra onde vai” (Benetti, 2012, p. 67). Acrescenta: “uma notícia que pega você de surpresa,
é cruel, assim, na hora, você sente medo [...] porque às vezes você não está preparado para
aquilo [...] é como se tivesse que dá um tiro no escuro”(Benetti, 2012, p. 67). Esse participante foi
avisado quatro meses antes do desligamento. P11 relatou a tristeza que sentiu com o momento da
notificação. Apontou o apoio dos profissionais da instituição como fundamental nesse processo,
que sempre buscavam apoiar e motivar:

não me sentia preparada pra ir de volta lá pro mundo, porque do portão pra fora
é mundo, né? Eles falavam, você vai conseguir, você vai ter sua casa, você vai ter
[...] pra me animar [...] e de tanto eles falarem isso, que eu saí lá fora e falei: ‘eu e
Deus agora’”. (Benetti, 2012, p. 69)

P11 relata que mesmo sabendo da obrigatoriedade do desligamento quando se completa a


maioridade, sentiu grande tristeza “você vai contando os dias, não pra você ir embora logo, mas
pra vê se você podia fazer alguma coisa” (Benetti, 2012, p. 69).

Todos os participantes tiveram que buscar uma fonte de renda e todos apontam a instituição de
acolhimento como uma referência positiva, uma proteção. Entretanto, consideram que deveriam
ocorrer mudanças na forma de conduzir o desligamento institucional, que precisa garantir
maior segurança e estabilidade para enfrentar a vida pós institucionalização. A maioria dos
participantes mantém vínculo afetivo com pessoas da instituição, apenas dois participantes não
têm contato com ninguém. P11 tem o vínculo muito forte com a instituição e os funcionários da
casa, considerando-os como família.
A pesquisa detectou que as expectativas para o futuro dos participantes são perpassadas tanto
por conotações positivas como negativas, emergindo sentimentos como medo, desapontamento e
214 felicidade. Todos citaram o medo e a insegurança quanto ao desconhecido, mas em contrapartida,
P9 se sentia feliz com a possibilidade de construir uma nova família, ou retornar para sua família
de origem.

Siqueira (1997 apud Salina, 2007) também denunciou a ineficácia dos programas de
ressocialização, analisando a trajetória de vida de 17 egressos de instituições. Identificou-se com
sua pesquisa que 24% dos adolescentes estavam presos em uma colônia penal, 35% estavam
mortos por envolvimento em crimes e 41% estavam livres, mas praticavam pequenos furtos, não
se profissionalizaram e sobreviviam com trabalhos informais. A referida autora aponta elementos
da literatura que abordam o que o abrigo poderia fazer para cumprir com a função de proteção.
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Ressalta as diretrizes do ECA e pesquisas de diversos autores. No que se refere a preservação


de vínculos, Prada (2002 apud Salina, 2007) ressalta a importância de analisar a causa do

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abrigamento, as condições em que vive a família de origem e a possibilidade de retorno para esta.
Maricondi (1997 apud Salinas, 2007) fala da importância da flexibilização das visitas de familiares,
que poderia contribui com uma maior participação e vinculação com a família.

Weber e Prada (2001 apud Salina, 2007) apontam a importância da preservação e desenvolvimento
da identidade, por meio de ações realizadas pela instituição, dentre elas, podemos citar: flexibilidade
na rotina para que os abrigados tenham liberdade, registrar momentos na instituição por meio
de fotos, manutenção de objetos trazidos da família de origem, dentre outros. Além de acessar
escola, lazer, cultura e saúde. Também seriam importantes discussões que levem a reflexão sobre
a história e realidade das crianças e adolescentes institucionalizadas/os, entender porque foram
abrigadas/os.

Silva (2010) também realizou pesquisa em Natal/RN sobre o desligamento das instituições de
acolhimento devido à maioridade, elaborando um estudo de caso com um jovem que nomeou
de José. Esse jovem teve uma trajetória de idas e vindas das instituições de acolhimento,
começando em 2005 e terminando sua última institucionalização em dezembro de 2019, quando
já tinha completado 19 anos. Não havia possibilidade de retorno ao lar uma vez que a mãe nunca
aceitou receber o filho, pois acreditava que o mesmo havia abusado sexualmente de crianças –
informação negada por João. A relação do jovem com a mãe ficou conflituosa quando ela começou
a se relacionar com um homem, que na concepção do participante, era agressivo e usuário de
crack. Segundo a referida autora, os anos na instituição não o prepararam para desvinculação. A
instituição visando fortalecer a autonomia, focava na preparação para o desligamento, entretanto,
foi possível identificar que os esforços estavam direcionados majoritariamente para a preparação
para o mercado de trabalho, desconsiderando outras ações importantes para o fortalecimento da
autonomia. João tinha um desejo muito forte de se tornar jogador de futebol e por isso demonstrava
pouco interesse, ou até mesmo abandonava, os cursos e oficinas que a instituição o colocava. O
jovem queixava-se com frequência por a instituição nunca ter o inserido em atividades esportivas,
215 que sempre foi de seu interesse. Para Silva (2010), se a instituição tivesse investido na articulação
com o esporte, poderia ter contribuído para sua reintegração social e para construir laços e rede
de apoio externo ao abrigo. A instituição planejava um futuro que João não escolheu, situação que
gerava angústia com relação a sua saída. Observou-se ainda, na referida pesquisa, que não havia
espaço de escuta da opinião e anseios do jovem em questão. Como mencionado, o investimento
na preparação para o mercado de trabalho não é suficiente para fortalecer a autonomia. Segundo
Silva (2010, p 101) “a autonomia está relacionada a hábitos da vida cotidiana do jovem dentro da
instituição, ao incentivo ao senso crítico, a serem mais ativos e conscientes do processo ao qual
estão submetido”. Ou seja, a autonomia acontece pela participação, pelo envolvimento do jovem
e pela estimulação diária.
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Goffman (1961 apud Silva, 2010) aponta que, entretanto, as instituições ainda funcionam com

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características presentes nas instituições totais:

horários rígidos, normas estritas, sem liberdade para ir e vir, dentre outras, que
acabam propondo uma relação de sujeição entre os usuários dos serviços e as
normas da instituição que os abriga. Essas atitudes dizem respeito ao seu melhor
funcionamento, em detrimento da construção de autonomia dos adolescentes.
Sobre isso, é possível afirmar que a instituição toma a face da população que
atende, ou seja, ao confrontar os problemas existentes na complexidade
institucional, a instituição tende a reproduzi-los, em vez de transforma-los – o
que seria sua função. (p. 102)

Na opinião de José a instituição que vivia era muito rígida com horários e com relação a saídas da
instituição. Silva (2010) constatou que o serviço se organiza de maneira prejudicial à autonomia
dos jovens, pois deveria ser mais maleável com as regras. Sobre o desligamento institucional,
Silva (2010) aponta que, para José, completar a maioridade é diferente de jovens que vivem
em outros contextos. Jovens que não estão institucionalizados têm uma passagem para vida
adulta gradativa e menos ameaçadora, contando com apoio social. O jovem institucionalizado
está imerso a normatizações cronológicas, pois ao completar dezoito anos, ele é considerado um
adulto, desprotegido pela lei e colocado diante de uma realidade difícil de ser enfrentada.

José apresentou mudanças em seu comportamento após completar a maioridade, se isolando


dos outros jovens da casa, mantendo contato apenas com sua namorada. Foi um momento de
muita angústia e insegurança. Um técnico da casa relatou uma ocasião em que o jovem chorava
muito, mas não se abria e nem sequer respondia. José ficou quatro anos institucionalizados e só
foi desligado aos dezenove anos de idade por pressão do Conselho Tutelar. A instituição, como
se viu pressionada a desligar o jovem, movimentou-se para alugar uma casa para José, que nos
três primeiros meses seria mantida pelo município e depois ele teria que sustentar sozinho. O
município também ofereceu emprego a José. Entretanto, essa foi uma situação excepcional,
216 pois o município de Natal não possuía medida de proteção para jovens maiores de dezoito anos.
Embora o poder público tenha “solucionado” o desligamento de José, Silva (2010) entende que as
atitudes que foram tomadas “possuem um viés paternalista e assistencialista por parte da rede de
atendimento social. Não há, nesse caso, garantia de direitos, mas sim o oferecimento de favores,
que rememora a maneira como a política de assistência social se configurava no início do século
XX” (Silva, 2010, p. 116).

Após o desligamento, José se endividou e teve problemas no trabalho. Recorreu ao abrigo quando
se viu em uma situação difícil no emprego e financeiramente, pois lá era sua referência. A técnica
do abrigo percebeu que o jovem também sentia falta da instituição. Após o desligamento, não é
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mais função da equipe do abrigo prestar orientação e apoio, por isso a necessidade de serviços
substitutivos, como as repúblicas.

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A família é o locus de referência para jovens que estão na passagem para a vida adulta, e nesse
caso, a instituição de acolhimento deveria substituir esse papel de orientação e preparação do
projeto de vida. No entanto, o serviço não cumpriu como deveria seu papel (Silva, 2010).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho objetivou pesquisar, a partir da literatura, os dilemas que jovens institucionalizados
enfrentam ao completar a maioridade. A partir da pesquisa, foi possível perceber que o Brasil tem
uma legislação que preza pelo direito à convivência familiar, que adota a medida de acolhimento
em casos somente excepcionais e que determina a brevidade do acolhimento institucional.
Contudo, vimos que a realidade ainda é discrepante das prerrogativas do Estatuto da Criança
e do Adolescente, pois é alto o número de crianças e adolescentes que ultrapassam o tempo de
dois anos nas instituições de acolhimento. Vários fatores contribuem para que essas crianças
permaneçam por tempo prolongado e verificou-se que nem todos os esforços estão sendo
realizados pelas instituições. Nesse sentido, entende-se que é importante o investimento na
capacitação desses profissionais que estão na ponta e em contato direto com os jovens.

O desligamento institucional, que deve ser realizado de forma gradativa, também apresentou
deficiências. O desligamento não é apenas um momento, ele é processo contínuo no qual
o adolescente é preparado para sua saída do abrigo. Nesse sentido, é imprescindível que seja
realizado da melhor forma, contando com apoio de uma rede de fortalecimento.

Outro ponto a ser considerado é o aspecto ainda presente na política de assistência social de
ações paternalistas e assistencialistas, no qual o serviço oferecido ao jovem egresso é feito como
um favor enquanto deveria ser um serviço obrigatório, entendido como um direito do egresso.
Pode-se identificar essa ação no caso de José, apresentado por Silva (2010), o qual teve uma
moradia cedida excepcionalmente pelo governo apenas durante três meses.
217
Através das leituras, identificamos que o desligamento é vivenciando pelos adolescentes como
um momento de angústia, incerteza e medo. A passagem para a vida adulta dentro de uma
instituição de acolhimento é marcada pelo tempo cronológico, como se da noite para o dia, esse
adolescente fosse capaz de se manter sozinho. As Repúblicas são uma boa alternativa nesse
processo de transição, mas ainda não foram consolidadas em todos os estados do país. Percebe-
se com essa pesquisa, a necessidade de investigar os resultados que o serviço de República têm
proporcionado a esses jovens.

Como discutido no texto, o momento do desligamento é difícil tanto para o jovem que está sendo
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desligado, como para os dirigentes, uma vez que estes se sentem mal por ter que comunicar
que, a partir de certa data, o jovem terá que deixar a instituição de acolhimento. Percebe-se que

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o sentimento de desconforto é de ambas as partes, pois o profissional também está envolvido
sentimentalmente. Pode-se confirmar isso na fala da dirigente entrevistada por Benetti (2012):

eles não tem para onde ir e a gente fica morrendo de dó, muita pena de ter que
chegar e falar: olha! A partir de tal dia, quando você fizer dezoito anos [...] pela
lei, você tem que estar deixando o abrigo [...] é realmente muito traumático, pra
quem faz e pra quem recebe a notícia, porque fica todo mundo perdido né? (p. 55)

Nesse sentido, a instituição tem conhecimento que desligará o adolescente, que, por sua vez,
também sabe que será desligado aos dezoito anos. Contudo, parece haver uma insegurança de
ambas as partes, dos jovens por se sentirem desamparados e com medo e dos dirigentes por
sentirem pena e temerem pelo futuro desses jovens, o que pode comprometer a forma de conduzir
esse desligamento, justamente por deixar esse assunto, em alguma medida, tamponado.

Importante ressaltar ainda a criminalização da pobreza, que responsabiliza a família pelo sustento
e educação dos filhos, como se o Estado não tivesse papel fundamental na garantia de direitos.
Nesse sentido, é necessário o investimento em políticas públicas que visem o apoio a família,
possibilitando seu acesso aos direitos sociais, uma vez que assim, ela terá maior possibilidade de
garantir os direitos fundamentais aos filhos.

REFERÊNCIAS

Benetti, D. S. (2012). Adolescentes em situação de acolhimento institucional prolongado: análise


do processo de desligamento. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de São Carlos, São
Paulo, Brasil.
Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
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SUMÁRIO

“ELE É OU NÃO É PAI PARA


219
ESSE SUJEITO?”: UMA LEITURA
PSICANALÍTICA DE UMA DEMANDA
POR RECONHECIMENTO DE
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

AUTORIA
CAROLINE ASSUNÇÃO DUARTE SILVA
Graduanda em Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

CONTATO: carolassuncaoduarte@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
Neste trabalho, pretendeu-se aproximar as produções no campo da clínica psicanalítica
da adoção com a discussão que se propôs frente a um caso cuja demanda conduzida
a juízo se referia a um pedido por reconhecimento de paternidade socioafetiva pós-
morte. Partindo-se da hipótese de que toda filiação é antes uma adoção, um caminho de
questionamentos foi aberto ao longo dos trabalhos com os sujeitos envolvidos no enredo
familiar, contribuindo para se pensar o processo de filiação não restrito à biologia. Assim,
trabalhou-se com fragmentos modificados do caso e, posteriormente, apresentaram-
se os indícios que se tornaram possíveis de se ouvir sobre o registro da função
paterna e as soluções encontradas para se haver, subjetivamente, com essa inscrição.
PALAVRAS-CHAVE: Paternidade socioafetiva; Filiação socioafetiva; Adoção; Psicanálise.
INTRODUÇÃO

220 Este trabalho surgiu a partir da experiência institucional enquanto estagiária de Psicologia atuante
no setor no Tribunal de Justiça, palco, sobretudo, das demandas das Varas de Família. A partir da
escuta dos sujeitos encaminhados ao local, cuja trama familiar se encontrava em cena, questões
foram lançadas no campo da psicanálise para se pensar as relações familiares e os desejos dos
sujeitos envolvidos.

Assim, a partir deste viés, situar-nos-emos na interface da Psicanálise com o Direito, buscando
avançar na discussão de um caso cujo pedido direcionado ao poder judiciário dizia respeito ao
reconhecimento de paternidade socioafetiva post-mortem, no qual se pleiteava ratificar um lugar
no desejo paterno que teria sido legítimo em vida. Ao longo dos atendimentos, vários campos de
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discussão se apresentaram, sendo necessário realizar um recorte para o trabalho que se segue.

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Partindo da tese proposta por Gina Khafif Levinzon (2009, 2013), na qual figura que toda filiação
é antes uma adoção, frente ao trabalho com esse núcleo familiar, emergiu a questão sobre se
houve adoção. A pergunta gerada na interlocução dos saberes mencionados pode apresentar-se
como “Ele é ou não é pai para esse sujeito?”, conforme aponta Silva (2011), permitindo-se uma
construção no campo subjetivo.

Pretendeu-se, portanto, aproximar os debates acerca da clínica psicanalítica da adoção com


a demanda por reconhecimento de paternidade socioafetiva ilustrada pelo caso que será
trabalhado, apresentando algumas questões que surgiram ao longo dos atendimentos, bem como
suas particularidades em relação às produções brasileiras sobre a adoção. Foi buscando atentar
para algumas dessas particularidades que se colocavam no caso que se trabalhou com alguns
aspectos que compuseram as indicações construídas ao longo dos atendimentos com o núcleo
familiar e a produção deste texto. Ressalta-se que, para exposição do caso, trabalhar-se-á com
fragmentos modificados deste.

Hipoteticamente, parte-se do princípio de que se trata de uma adoção cujas contingências não se
justapõem àquelas trabalhadas na literatura psicanalítica sobre o tema, que, na maioria dos casos
descritos, é marcada pela separação de ambos os genitores e por uma condição de abandono.
No entanto, a relevância da discussão, para além da elucidação do caso mediante os trabalhos
conduzidos no judiciário, situou-se na contribuição para se pensar no processo de filiação não
restrito à biologia.

O RECONHECIMENTO SOCIOAFETIVO

A possibilidade do reconhecimento filial mediado pelo afeto, partindo da história legislativa mais
recente, estabeleceu-se a partir da Constituição Federal de 1988 em sua proposição sobre o
princípio da dignidade da pessoa humana, bem como da irradiação desse princípio ao Direito de
Família. A partir desse momento, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e o Código Civil
221 (2002) também contribuíram para pensarmos as novas formas de filiação, acrescentando-se
às formas de parentesco civil, a possibilidade de se estabelecer uma relação de parentesco por
“outra origem”, senão a adoção, conforme aponta o art. 1593 do CC de 2002. Localiza-se, assim,
nesse lócus, a abertura do espaço jurídico para construção da filiação socioafetiva. Dessa forma,
embora o conceito de parentalidade socioafetiva não esteja presente na Constituição Brasileira,
ele vem sendo trabalhado por meio da doutrina jurídica e das jurisprudências atuais.

Atualmente, o reconhecimento de filiação socioafetiva, segundo o provimento nº. 63 do Conselho


Nacional de Justiça (CNJ, 2017), pode ser realizado perante os oficiais de registro civil das
pessoas naturais, ou seja, em um ambiente de cartório, não sendo necessário instaurar qualquer
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procedimento judicial, como ocorre nos processos de adoção, por exemplo. Para que isso aconteça,
segundo o provimento do CNJ, é necessário que haja uma manifestação voluntária dos genitores,

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e da criança, caso esta seja maior de doze anos, de forma que a referida portaria dispõe, em sua
seção II, sobre os aspectos que serão observados para o reconhecimento da paternidade ou da
maternidade socioafetiva.

Outro ponto importante a ser elencado sobre tal ato administrativo refere-se àquilo que a doutrina
jurídica entende como “posse de estado de filho”. Isso porque o art. 12 da referida norma declara:

Suspeitando de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida


sobre a configuração do estado de posse de filho, o registrador fundamentará
a recusa, não praticará o ato [reconhecimento socioafetivo] e encaminhará o
pedido ao juiz competente nos termos da legislação legal. (CNJ, 2017)

Isso posto, tem-se que para o reconhecimento socioafetivo será observada a presença de tal
instituição jurídica.

A posse de estado de filho, para além daquela decorrente do nascimento ou do ato jurídico da
adoção, terá como requisitos a caracterização de três elementos centrais: o “trato”, a “fama” e o
“nome” (Trindade, 2014). O primeiro estaria presente quando a pessoa é tratada na família como
filha e desfruta, como filha, do suporte filial materializado pelas relações de afeto, promoção de
educação, assistência material e emocional, por exemplo. A fama, por sua vez, estaria presente
por meio de um reconhecimento social de filha, ou seja, quando há uma notoriedade dessa
relação, não unilateralmente, mas reciprocamente entre os membros da filiação e também no
meio social em que se vive. Por fim, o nome estaria presente quando há uma transmissão do nome
(sobrenome) do sujeito parental identificado pelo parentesco para o filho/filha. No entanto, de
acordo com alguns juristas, os dois primeiros elementos seriam suficientes para a prevalência da
posse de estado de filho (Boeira, 1999).
Dessa forma, o reconhecimento filial socioafetivo passaria pela posse de estado de filho,
consolidada sem formalidades e não passando pelo vínculo sanguíneo, conforme nos indica
222 as produções do CNJ. No entanto, ainda que se estabeleça tal instituição, isso não equivale a
afirmar que exista perfilhação de filiação socioafetiva, tendo em vista que, para que a última seja
reconhecida, torna-se necessário percorrer um caminho, sendo uma de suas fases a verificação
da existência do desejo de ambas as partes de serem reconhecidas como pai/mãe e filho/filha.

APRESENTAÇÃO DO CASO

Clara constituía o polo ativo da provocação ao juízo e pleiteava o reconhecimento socioafetivo


ao seu padrasto, que falecera pouco tempo antes da entrada na justiça com a ação judicial. Ela
desejava, após pouco mais de 40 anos de convivência com o falecido, ser reconhecida legalmente
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como filha dele e gozar de seus direitos enquanto tal. O polo passivo, por sua vez, era representado
por sua mãe biológica e por seu irmão unilateral materno, filho biológico do falecido padrasto,

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João. Embora a genitora afirmasse reconhecer a existência de uma relação paterno-filial entre a
filha e o falecido marido, o irmão unilateral, João, se recusava a nomear tal filiação, entre a meia-
irmã e o falecido pai, como parental, como se configurava o dele.

Por meio dos atendimentos realizados com aquele núcleo familiar, apreendeu-se que o pai
biológico de Clara havia falecido quando ela contava com um ano e meio de vida e que, poucos anos
depois, ainda durante sua infância, sua mãe casou-se com outro homem cujo reconhecimento de
paternidade ela estava requerendo naquele momento. A partir do enlace conjugal entre a mãe e
aquele homem, Clara passou a desfrutar com ele de uma relação afetuosa, construindo sua vida
ao lado daquele novo núcleo familiar para ela. Algum tempo depois, o casal gerou um segundo
filho, João, que também passou a integrar a família e desfrutar, juntamente a Clara, da atenção,
do afeto e do investimento de seus genitores. A diferença de idade entre os irmãos contava de
significativos anos, de forma que, em seus relatos, ambos reiteravam as épocas diferentes de vida
o que os afastava e impedia que construíssem uma relação íntima.

Ao longo dos anos, o núcleo familiar em tela passou a compartilhar aquilo que conhecemos
culturalmente como “família”: a mãe dos irmãos e o falecido garantiam a ambos os mesmos
benefícios sociais, educando-os e incentivando-os em suas conquistas e aspirações. A família
trazia registros da convivência entre eles, citando as férias e as celebrações compartilhadas, a
presença dos outros membros familiares comuns em seus registros e os momentos que dividiram,
de alegrias e tristezas, durante esse longo período. No momento das entrevistas, cumpre salientar
que os irmãos já residiam fora da companhia do par parental, possuíam uma autonomia financeira,
eram casados e possuíam filhos que também já eram casados.

Após o falecimento do seu padrasto, Clara relata que passou por um momento que nomeou como
“depressivo”. Explicou que vivenciou um afeto de perda, perda do pai, que acabara de falecer;
bem como do irmão e também dos membros da família, com os quais teve os vínculos fragilizados
diante do conflito que se estabeleceu em juízo por meio do trâmite processual. Clara declarou
223 que o que a impulsionou a solicitar tal reconhecimento teria sido uma fala negativa de João ao
afirmar que ela não era filha do falecido padrasto, não a reconhecendo no mesmo nível de relação
entre eles, o que a tornaria com menos direito do que João em alguns aspectos que se discutia
no processo. Os relatos dos irmãos, embora contemplassem fatos semelhantes relacionados à
história de vida compartilhada entre eles, ou seja, os espaços sociais e familiares divididas por eles
e que, eventualmente, envolviam o falecido, divergiam, sobretudo, quanto à posição ocupada por
ambos no desejo desse homem e ao valor da herança simbólica transmitida a cada um deles, bem
como, aos seus filhos e a suas filhas.

Durante os atendimentos, soube-se que a mãe biológica já havia proposto diversas vezes ao marido,
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que ele regularizasse a adoção unilateral em favor de Clara. No entanto, em todas as vezes, ele
recusou tal iniciativa frente à justificativa de que a relação entre ele e a enteada era tão expressa

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e significativa que não era necessário tal regimento jurídico. Uma situação que fora mencionada
entre os envolvidos diversas vezes para ilustrar a posição do padrasto dizia respeito à ocasião
da festa de 15 anos de Clara, momento em que ela tivera que decidir qual nome colocaria em seu
convite no lugar destinado ao reconhecimento paterno. Naquele momento, a pleiteante optou por
colocar o nome do padrasto, o que, segundo os relatos, também foi incentivado e valorizado por
ele. Acrescentou, ainda, que, a partir dessa ocasião, seus vínculos, os quais já eram escassos, com
a família de seu pai biológico se tornaram ainda mais fragilizados e menos frequentes. Salienta-se
que, nesta narrativa, a mãe biológica ocupa um lugar central em asseverar essa relação, sendo
isto, inclusive, um motivo de conflito entre os irmãos.

Em nosso último encontro com Clara, ela relata que, diante de um determinado evento ocorrido em
sua vida, vivenciou um insight e compreendeu toda a situação em questão, mediada pelo processo
judicial. Após narrar o ocorrido, naquele último encontro, diferente dos outros em que tentava nos
convencer, e imaginariamente ao irmão do qual a palavra negativa teria ensejado aquele processo,
da paternidade desfrutada com o padrasto ao longo de sua vida, ela se apresenta convicta de sua
história com ele. Menciona que, diante da violência sofrida pelo irmão frente a essa negativa e
as implicações que isso teria causado aos membros daquela família, ela reconhece o que aquele
homem fora para ela, informando que o que está dentro dela ninguém poderia tirar. Apresenta
que o pai socioafetivo está nela e nos filhos dela por meio de sua palavra transmitida, palavra que,
segundo ela, marcou sua vontade de estudar, de cursar a faculdade e a forma de educar os filhos,
reiterando a relação do pai socioafetivo com seus filhos e acrescentando que, inclusive, um de
seus filhos exercia a mesma profissão do avô.
A PSICANÁLISE E A ADOÇÃO

224 Observou-se que, ao longo dos atendimentos, as condições características da posse de estado de
filho estiveram presentes na relação em questão. No entanto, interessava-se o registro subjetivo
vivenciado por Clara e, portanto, considerou-se, neste trabalho, que se tratava de uma adoção
unilateral psíquica, tendo em vista que o que se discute é, sobretudo, a existência de uma filiação
entre a requerente e seu padrasto.

A literatura psicanalítica da adoção aproxima-se daquela condição imposta à filiação socioafetiva


no que se refere ao desejo presente entre os sujeitos envolvidos para que se estabeleça essa
forma de parentesco. Ducatti (2003), por exemplo, propõe que, havendo um desejo dos pais em
adotar e um desejo apresentado pela criança em ser adotada, estabelece-se a possibilidade de
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constituição de uma realidade psíquica própria para essa criança a partir da adoção de um lugar
presente na inscrição dos primeiros [os pais].

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


No entanto, no enredo familiar apresentado, verifica-se que a ausência do padrasto, sobre o qual o
reconhecimento de paternidade socioafetiva tem sido demandado, configura-se como um enigma
ao desejo de filiação. Ilustra-se o mal-estar que resta, ao final, de que algo ainda permanece
inapreensível, uma vez que realmente há uma parte dessa história a qual nunca poderemos
acessar: o principal requerido não se encontra presente. Nessa medida, a escuta aos membros
daquela família se tornou a saída possível para elucidar o que particularizou o pedido de Clara em
ser reconhecida filha daquele pai.

Além da ausência do suposto pai socioafetivo, outro ponto relevante na história de Clara é o fato
de que sua separação de seu pai biológico fora atravessada pela morte deste que, em contraste
às produções no campo da adoção, segundo os relatos da família, ofereceu-lhe os cuidados
necessários, de forma zelosa e presente até os primeiros anos de sua vida. Não se incidiu, portanto,
a violência que colocasse aquela família e, consequentemente, a criança frente a uma experiência
aversiva, de violação de direitos, de abandono ou de risco que marcasse sua separação do pai.

Dessemelhante ao apontado por Silva, Bezerra e Belo (2016) – que, referindo-se ao contexto da
adoção, propõe que “desconsiderar a questão biológica constitui, por vezes, um ganho maior para os
envolvidos” (p. 68) –, no processo de trabalho frente ao caso buscou-se atentar para não corroborar
o descarte da linhagem biológica em oposição a, talvez, uma presença “naturalizada” operada pelo
padrasto, tendo em vista que, muitas vezes, esses lugares misturam-se nas famílias recasadas
(Soares, 20171), materializando-se, inclusive, em processos judiciais de adoção por cônjuge.

1. Cumpre salientar que a pesquisa realizada pela autora concentrou-se nos aspectos da família recasada após a separação
judicial, não envolvendo as questões do recasamento após a viuvez. No entanto, o que se buscou refletir a partir dos achados de
Soares (2017) foi o status ocupado pelo padrasto no enredo familiar.
Assim, questionou-se a influência do suposto investimento libidinal endereçado a Clara por parte
de seu pai biológico, bem como se haveria alguma influência dessa relação inicial, limitando-a,
225 na possibilidade da adoção psíquica pelo padrasto. Restou a pergunta: Seria possível sustentar
a filiação, a despeito dos aspectos apresentados? Se sim, a partir de quê? De forma que, fora do
traumático da violência, em suas múltiplas facetas e incidências, do ponto de vista psíquico, quais
os processos seriam essenciais operadores no estabelecimento de uma filiação, tomando-a como
um suporte libidinal que garanta a existência de um sujeito?

Diante das questões que se colocavam, foram retomadas as produções no campo da adoção
e da psicanálise a fim de se pensar as vicissitudes do universo subjetivo da criança frente ao
acontecimento que atravessa a adoção para abertura de uma nova possibilidade de filiação, ou
seja, da adoção vir a ser. As produções da clínica psicanalítica com as crianças adotadas indicam
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que tais possibilidades perpassam à elaboração das perdas, das fantasias em relação à família
biológica, dos medos frente a novas possibilidades de abandono, da reconstrução dos aspectos

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


importantes ao self, da forma em que se deu a experiência da separação, relacionando-se aos
eventos que antecederam a adoção (Ducatti, 2003; Levinzon, 2009, 2013; Silva, 2016), mostrando
que “a continuidade do laço entre pais e filhos depende [...] de uma possibilidade de ligação psíquica
profunda que inclui continência, sincronicidade e sintonia” (Levinzon, 2009, p. 171).

No enredo familiar em questão, ao que se fez ver, a separação com o biológico foi mediada
pela morte, sendo necessário, como aponta Freud (1917[1915]/2010), em Luto e Melancolia, um
trabalho desse luto, no qual a libido investida nesse objeto possa ser retirada dos investimentos
iniciais relativos a ele, permitindo ao ego estar novamente livre e desinibido. Assim, para operar
as possibilidades de estabelecimento de uma nova filiação, fez-se necessário um processo de
elaboração, tal qual no atravessamento de outras formas de separação com suas respectivas
particularidades. Desse modo, o que essas produções assinalam é que a inscrição a uma nova
filiação passa pela viabilidade de uma ligação, para além dos traumas e em seus infinitos registros
sobre o sujeito.

Durante os atendimentos, Clara não se prolongou em contar sobre sua relação com o pai biológico,
indicando somente que, naquele momento, vivenciava, em contrapartida, o luto em relação ao
padrasto. Compreendemos que a entrada com o processo judicial por parte de Clara se situou
em meio a esse luto, de forma que se observou um apego às possibilidades de manter o objeto
de amor - padrasto-, bem como, as representações a ele relacionadas. No entanto, ao final dos
trabalhos, como se fará ver, o pedido da mulher se localiza no mais além do luto, não sendo essa
condição àquela que a sustenta em seu pedido em juízo. Assim, partindo da hipótese de que se há
um desejo de filha gerada por parte de Clara em relação ao padrasto, houve uma abertura àquela
nova filiação; em um segundo momento, consideraram-se as formas de ligação psíquica que se
estabeleceram entre Clara e ele.
AS SAÍDAS

226 O cuidado exercido pelo padrasto foi recontado por Clara por meio da descrição da validação
operada por ele na expressão do seu ser; da relação de proximidade desfrutada entre eles
sustentada por uma íntima vinculação afetiva; da responsabilização que o padrasto perante a sua
existência, além de breves momentos em que se fizeram rapidamente presentes manifestações
sobre aquele cuidado inicial, da criança acolhida por um novo sujeito após a morte do pai biológico.

Nesse aspecto, retoma-se Silva, Bezerra e Belo (2016) ao propor a discussão entre “Natureza x
Criação”, tendo em vista que, ao recuperar aquilo que caracteriza os “filhos de criação”, os autores
indicam que o cuidado realizado pelos adultos, responsáveis por erotizar e libidinizar as crianças,
favorece a vinculação pela convivência e pelo afeto, mesmo sem o parentesco de sangue. São
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exatamente essas dinâmicas de cuidado que aparecem reiteradamente nas falas dos membros
familiares por meio de toda sorte de assistência prestada por esse padrasto a Clara. Nesse caso,

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identificamos que não se trata de um cuidado para sobrevivência, ou seja, para satisfação das
necessidades, mas um cuidado para existir, remetendo-se a Lacan (1901/2003b) quando este
propõe as funções materna e paterna como nomes que marcam uma particularidade do desejo da
criança, situando-os como instrumentos de inscrição do sujeito.

Compondo a função de cuidado, outro aspecto que pareceu primordial à Clara foi a transmissão de
uma constituição subjetiva operada pelo padrasto. Ela utiliza para tal o significante “palavra” para
nomear o que lhe foi transmitido por ele, posteriormente, elencando aspectos da influência do pai
que operou um sentido em sua vida, como uma representação de autoridade em sua infância, uma
inspiração para prosseguir em sua trajetória profissional e uma referência à educação dos filhos,
por exemplo, conforme descrito na apresentação do caso.

A manifestação que se segue por parte de Clara para descrever a transmissão da palavra do
padrasto, indicou-se que ele parece ter exercido a função paterna, tal qual proposta por Lacan.
Nos trabalhos teóricos do autor, a função paterna, enquanto uma função de transmissão,
estabelece-se pela relação do pai real, do pai simbólico e do pai imaginário, de forma que o que
constituirá tal função serão as respectivas incidências operadas por essas instâncias. Cumpre
salientar que o autor não vislumbra fazer uma discriminação no que concerne ao gênero, mas sim
uma diferenciação das funções de cuidado (Brousse, 2010).

Desse modo, no caso de Clara, a partir da solução própria enunciada por ela, depreende-se uma vez
que “é o ponto de incerteza que exige a nomeação do pai, isto é, que produz o efeito de referência,
de exceção do pai, sendo a construção da realidade psíquica ligada mais a função paterna do que
ao biológico” (Silva, 2011, p. 46). O lugar operado pelo padrasto, por intermédio das instâncias e
operações citadas, respondeu a uma nominação dessa função, trazendo efeitos na ordem de uma
transmissão da filiação, da lei e do desejo de forma singularizada.
Outro aspecto importante de ser pontuado se refere à entrada desse padrasto mediada por uma
concessão outorgada pela genitora de Clara, que fez uso do lugar ocupado pelo falecido marido.
227 Percebe-se isso por meio dos relatos da família, bem como da insistência ofertada pela mãe, ao
longo da criação dos filhos, para que o marido regulamentasse a adoção frente à filha mais velha,
sendo ela a única, até onde se fez ouvir, que tinha a abertura de questioná-lo nesse aspecto. É
possível dizer que a mãe possibilitou introduzir o padrasto à criança e, assim, proporcionou um
lugar a este ao apontá-lo como portador de algo a ser transmitido.

CONCLUSÃO

A conclusão do texto não passou por respostas àquilo que se apresentou como uma faceta das
múltiplas faces da adoção, exemplificada por meio do caso apresentado e de suas particularidades,
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conforme construído ao longo desta exposição. Deteve-se à apresentação das hipóteses e


considerações que foram possíveis levantar frente ao enredo em tela.

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A saída encontrada por Clara, mediante o percurso que traçou ao longo de um pouco mais de dois
meses de atendimento, indicou-se perpassar pela recordação daquilo que foi transmitido pelo
padrasto para recuperar o que a palavra do irmão havia feito titubear, que fez, em alguma medida,
invalidar a sua condição até aquele momento: a sua inscrição em um desejo particularizado do
primeiro. Tendo em vista que “não há, também, pelo mesmo caminho, como destituir ou anular uma
função e seus efeitos subjetivos no sujeito filho” (Silva, 2011, p. 28), foi possível considerar, a partir
dos atendimentos e das leituras realizadas, que a posição de Clara ao responder à possibilidade
dessa filiação assinala que, do outro lado, houve um desejo que se inscreveu, advindo em sua
condição de filha (Silva, 2011).

Pela impossibilidade de escutar o padrasto, o que se tornou possível, ao longo do recorte temporal
no qual trabalhamos com essa família, foi perceber como alguns operadores aparecem como
centrais para sustentar o significado dessa filiação para ela. Clara, por meio do ato de reviver de
sua história, contou que, muito além da resposta a ser recebida por meio daquele juízo em sua
sentença final, se sim ou se não, ela reconhecia aquele pai a partir de um registro, bem como as
consequências próprias disso em sua vida, e, para isso, ela não precisava de um aval mediado pela
justiça.

Ao final deste trabalho, considerou-se o ponto de vista de que, associada à função operada pelo
padrasto, localiza-se um uso desta feito pela requerente para organizar e conduzir sua vida. Isso
posto, a fala de Clara indica que, retomando Silva (2011), respondendo à pergunta lançada, a partir
da inscrição do sujeito no campo da linguagem talvez seja impossível uma destituição da função
paterna pelo campo da ciência e do direito.
Dessa forma, foi pelo caminho trilhado por Clara que algumas amarrações às perguntas colocadas
inicialmente foram sendo construídas. Resta a hipótese de que, neste caso, a despeito do papel
228 ocupado por seu pai biológico em seus primeiros momentos de vida e da ausência das situações
de risco que poderiam favorecer ou dificultar a adoção psíquica, em alguma medida, não houve
um impeditivo para o estabelecimento de uma nova filiação, remetendo-se a caracterização de
família apresentada por Lacan (1901/2003a) ao afirmar:

A função do resíduo exercida (e ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal


na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão – que
é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades,
mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que
não seja anônimo. (p. 373)
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Retomando França e Verticchio (2017), Clara continuará tendo dois pais que se vincularão em seu

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psiquismo, em termos afetivos e imaginários, nas mais diversas configurações. No entanto, as
formas de filiação envolvidas nas novas configurações familiares indicam que há outros arranjos
que possibilitam a transmissão do valor moral, das crenças, das identificações, da constituição
psíquica, da cultura, por exemplo, tais quais estão presentes nas famílias biológicas. Percebe-
se que essa transmissão subjetiva passa por outros lugares, não estritamente, pela vinculação
biológica, evidenciando as múltiplas possibilidades frente ao estabelecimento de uma filiação.

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VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

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SUMÁRIO

231 ENTREGA VOLUNTÁRIA DE BEBÊS:


ASPECTOS INCONSCIENTES QUE
PODEM INTERFERIR NA ESCUTA
DESSA AÇÃO ENQUANTO DESEJO

AUTORIA
MARIANA RÚBIA GONÇALVES DOS SANTOS
Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
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CONTATO: marianagsantos2@gmail.com

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MICHELLE AGUILAR DIAS SANTOS
Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestranda em Estudos
Psicanalíticos pela UFMG.
CONTATO: michelleaguilar.dias@gmail.com

RESUMO
O acolhimento a mães e gestantes que desejem entregar seus bebês para adoção
é um direito das mulheres garantido pela legislação brasileira. No entanto, tal ação
ainda parece encontrar resistência mesmo entre os profissionais de saúde, em
grande medida os responsáveis pelo acolhimento inicial dessas mulheres. O presente
trabalho se propõe a investigar as raízes inconscientes das dificuldades encontradas
por esses profissionais de garantir a implementação desse direito. Discutimos ainda o
papel do psicólogo nesse cenário, problematizando, a partir dos textos de Winnicott,
o referencial teórico disponível aos profissionais da psicologia para o embasamento
de sua conduta nos casos de entrega voluntária. Apontamos para o duplo papel que a
identificação dos profissionais com o bebê pode desempenhar: facilitando o acolhimento
da criança e dificultando a escuta das mães. Ressaltamos ainda o caráter limitador
de conceitos naturalizem o cuidado enquanto uma característica essencialmente
feminina ou materna, bem como seu impacto no manejo das demandas de entrega
voluntária e na criação de alternativas para o acolhimento dessas mães e seus bebês.
PALAVRAS-CHAVE: maternidade; entrega voluntária; adoção; desejo; psicanálise.
A escolha de ficar ou não com um filho é um direito garantido às mães e gestantes pela legislação
brasileira desde agosto de 2009, através da lei nº 12.010, denominada “Nova Lei Nacional de
232 Adoção”. Ela prevê não só acompanhamento psicológico e acolhimento judicial às mães e gestantes
que manifestam intenção de entregarem seus bebês, como também sanções aos profissionais
que descumprirem as regras de conduta no manejo desses casos (Brasil, 2009). Mas se, por um
lado, esses se configuram como direitos das mulheres previstos em lei, por outro, ainda hoje, uma
série de idealizações e imperativos encontram-se associados à maternidade, que derivam da
expectativa social sobre a conduta esperada de uma boa mãe.

Nesse imaginário coletivo, como demonstram Faraj et al (2016), o tema da renúncia da maternidade
ainda parece encontrar resistências, mesmo entre os profissionais de saúde, que são, em grande
medida, os responsáveis por fornecer o acolhimento inicial a essas mães e gestantes. Desse
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modo, as autoras localizam nas construções sociais relacionadas às atribuições de gênero e no


mito do amor materno (Badinter, 1985 apud Faraj et al, 2016) uma das raízes dessa dificuldade em

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escutar a decisão dessas mães enquanto um desejo legítimo, como também da resistência em
acolher o sofrimento advindo dessa escolha para muitas dessas mulheres, que acabam sofrendo
em silêncio (Faraj et al., 2016).

A partir desses relatos, começamos a nos indagar, então, acerca das possíveis motivações
inconscientes associadas a essas dificuldades que, ao se somarem aos fatores socioculturais já
ressaltados, tornariam ainda mais trabalhosa a tarefa de escutar essas mães de modo satisfatório.

Temos, portanto, como objetivo deste trabalho, a investigação das possíveis raízes inconscientes
da dificuldade demonstrada pelos profissionais responsáveis por garantir o direito dessas mães
de entregarem seus bebês para adoção. Partimos da hipótese de que uma profunda identificação
com esse bebê a ser entregue convoca afetos muito arcaicos e que podem dificultar a escuta
ética e cuidadosa dessas mulheres. Buscaremos ainda discutir as idealizações da maternidade
presentes em nossa sociedade, elencando fatores que contribuem para manutenção dessas
representações.

EM BUSCA DAS RAÍZES INCONSCIENTES DA DIFICULDADE EM ESCUTAR A DECISÃO DE


ENTREGA COMO DESEJO LEGÍTIMO

Diversos autores em psicanálise abordaram a total dependência da criança em relação ao


adulto que dela se ocupa durante os primeiros tempos de vida. São exemplos disso: o período da
dependência absoluta descrito por Winnicott (1957/1982), as formulações de Laplanche (1992)
sobre a Situação Antropológica Fundamental e, ainda, os textos de Ferenczi (1929/2011, s.d./2011)
que abordam o engendramento do trauma.
Tais formulações tornam compreensível o horror experienciado pela criança, durante parte
significativa dessa fase do desenvolvimento, diante da possibilidade do abandono e da perda
233 daquele ou daqueles responsáveis por sua sobrevivência e proteção. A intensidade desses
afetos e reações pode ser depreendida, por exemplo, da radicalidade das defesas capazes de
serem mobilizadas na criança como forma de preservar a imagem e o vínculo estabelecidos com
o adulto que organiza para ela as relações e o sentido do mundo (Gondar, 2017), como ocorre na
identificação com o agressor descrita por Ferenczi.

O que nos leva à seguinte pergunta: qual então o destino desses afetos e angústias próprios dos
primeiros tempos de vida no curso do desenvolvimento? Seriam eles extintos, ao fim deste período
inicial e tão logo nos engajemos no processo “rumo à independência” (Dias, 2012, pp. 95-96)? Ou
esses afetos e representações, como tudo mais que se configura como disruptivo e ameaçador à
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instância egóica, se encontrariam recalcados, à espera apenas de uma oportunidade para vir à tona?

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Mesmo Winnicott, que em sua obra parece conferir menor importância aos aspectos
metapsicológicos (Dias, 2012) e àqueles derivados da sexualidade (Loparic, 2005) quando
comparado a outros psicanalistas, concorda que, na saúde, elementos da experiência
primitiva e relacionados a outros estágios do amadurecimento podem, esporadicamente, ser
reexperimentados na vida adulta (Dias, 2012).

A análise dos autores citados parece então nos fornecer, de saída, três elementos importantes a
considerar: (1) a certeza de que tais afetos e angústias referentes ao abandono, bem como toda
sorte de fantasias e representações a eles associadas configuram-se como elementos comuns à
infância, tal como concebida e experienciada em nossa sociedade; (2) a intensidade e o potencial de
mobilização desses afetos e experiências; (3) a impossibilidade de nos desvencilharmos por completo
das impressões e vivências relativas à infância. Elementos que, uma vez permanecendo em nós,
por um lado, poderiam ser elencados entre aqueles que viabilizam a identificação e o acolhimento
do infans, mas por outro, poderiam funcionar como obstáculos ao reconhecimento e validação da
entrega voluntária e da renúncia da maternidade enquanto desejos e decisões legítimas.

Ao tratar da ambivalência na maternidade e considerar as dificuldades associadas à abordagem


da temática, Parker (1997, p. 22) afirma que “criancinhas ou mães, psicólogos ou políticos, ninguém
acha fácil aceitar de verdade o fato de que as mães possam odiar e ao mesmo tempo amar suas
filhas e filhos”. E a investigação conduzida por Faraj et al. (2016) acerca do manejo e da condução
de profissionais de saúde de hospitais públicos dos casos de mães que decidem entregar o filho
para adoção ilustra a pertinência dessa afirmação.
A partir da análise de entrevistas realizadas com setes profissionais da área da saúde1 ocupando
nos hospitais diferentes cargos e funções junto às mães e gestantes, este estudo apontou para a
234 existência nessas profissionais de crenças sobre a maternidade e o cuidado com crianças capazes
de influenciar e mesmo dificultar a escuta e o acolhimento da doação enquanto um desejo materno.
Nos relatos fornecidos por Faraj et al (2016) é possível identificar nas entrevistadas o sentimento
de tristeza diante da decisão da entrega, bem como o desejo, por vezes manifesto, de levar a
criança para casa; além da tentativa de fazer a mãe reavaliar a decisão e a satisfação consigo
mesma experimentada quando, a partir de conversas, a decisão da mãe ou gestante conseguia
ser revertida.

As autoras apontam, assim, para a existência de um despreparo da equipe de saúde dos hospitais
avaliados na abordagem da questão da entrega e doação de crianças, caracterizado pela “carência
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de respaldo teórico na prática [dos] profissiona[is]”, bem como pela forte influência de aspectos
derivados de sua “crença pessoal e [...] juízo de valores morais” (Faraj et al, 2016, p. 158) nas

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posturas assumidas diante desses casos.

É interessante observar que não houve participação de profissionais da psicologia nesse estudo
enquanto sujeitos de pesquisa. Considerando esse aspecto, bem como o duplo papel que o psicólogo
comumente assume nessas situações, configurando-se a um só tempo como principal responsável
por fornecer o apoio e acolhimento à mãe, e profissional de referência para atendimento das demandas
da equipe (Faraj et al., 2016), caberia perguntar sobre os embasamentos teóricos disponíveis a esses
profissionais no que tange a consideração da maternidade e da relação mãe-bebê.

Por tomarmos como base para esta avaliação o referencial informado pela teoria psicanalítica,
parece-nos pertinente considerar a sugestão feita por Laplanche sobre o modo como deveriam
ser lidos os textos em psicanálise. De acordo com o autor, o método de leitura por ele inaugurado
se configuraria como “problemático... analítico, se possível em todos os sentidos do termo”
(Laplanche, 1988b, p. 8), caminhando juntamente, passo a passo com o texto, tratando todos os
elementos discursivos apresentados com base no princípio da análise igualitária, atentando para
as contradições nele presentes e tornando-se, por fim, capaz de “colocar sobre o mesmo plano o
‘insignificante’ e a declaração de princípios continuamente reafirmada, da parte e do todo, etc.”
(Laplanche, 1988a, p. 29). Para o autor, a aplicação dessa regra metodológica à leitura dos textos
psicanalíticos permitiria a revelação de “outras redes de significações” (Laplanche, 1988a, p. 29)
neles presentes, marcas do inconsciente na produção teórica.

1. No trabalho em questão, todas as entrevistas foram concedidas por mulheres que exerciam as funções de técnica de
enfermagem, enfermeira ou médica. O tempo de trabalho de cada uma delas em maternidades variava de 5 meses a 23 anos.
Como recorte para o presente estudo, elegemos a análise da teoria desenvolvida por D. W. Winnicott,
importante psicanalista que se dedicou à investigação da relação mãe-bebê. A fim de avaliarmos
235 como são concebidas e apresentadas pelo teórico as questões referentes à maternidade e ao
cuidado com o infans, utilizaremos trechos extraídos de A criança e seu mundo, livro do autor
baseado em palestras concedidas à BBC e direcionado, especialmente, às mães e pais (Winnicott,
1957/1982).

Neste livro, Winnicott (1957/1982) propõe-se a abordar aspectos relativos ao desenvolvimento


da criança da infância à adolescência. Grande parte dos textos é dedicado às relações
desenvolvidas nesses períodos, sendo um enfoque especial concedido à relação mãe-bebê. Nos
capítulos iniciais, expressamente direcionados às mães, o tom adotado pelo autor parece ser o
de incentivo: buscando, de modo geral, estimulá-las a se engajarem na tarefa de cuidado bem
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como a confiarem em si próprias no julgamento do que seria o melhor para a criança. Por vezes,
porém, o tom otimista parece beirar a idealização das tarefas, como por exemplo, quando faz

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votos de que a mãe se divirta tanto com o enamoramento narcísico pelo filho, quanto ao “fica[r]
contrariada porque os gritos e prantos do bebê o impedem de aceitar o leite que [...] [ela] anseia
por dar com generosidade” (Winnicott, 1957/1982, p. 28). Ou quando após considerar a grande
carga de trabalho que o cuidado com uma criança implica e o sentimento de infelicidade que
podem experimentar algumas mulheres diante de uma gravidez, conclua seu raciocínio afirmando
que a mulher

À medida que vai ficando cada vez mais certa de que em breve se converterá
em mãe, começará a arriscar tudo numa só jogada. [...] Principiará a aceitar o
risco de preocupar-se com um só objetivo, o menino ou menina que vai nascer.
(Winnicott, 1957/1982, p. 20)

Outro ponto revelado pela análise e que nos parece digno de nota é a oscilação encontrada no
livro na descrição de aspectos relativos à maternidade e ao cuidado com a criança. Em que, por
vezes, estes são atribuídos a características naturais da mãe e, em outros momentos, à exposição
a situações que possibilitem a aprendizagem ou o aprimoramento das habilidades e tarefas de
cuidado. Como pode ser observado, respectivamente, por meio das seguintes citações: “Esse
período de tempo em que a mãe está naturalmente preocupada com uma criança não dura muito”
(Winnicott, 1957/1982, p. 27); e, “com efeito, é caso para indagar como poderia a mãe aprender
a ser mãe de qualquer outro modo que não assumindo a plena responsabilidade?” (Winnicott,
1957/1982, p. 26).

Como é possível notar, não há uma definição clara do autor a esse respeito. E a confusão sobre
esse ponto, parece-nos, termina por não ser de grande ajuda na orientação dos profissionais da
psicologia quanto ao posicionamento adequado frente aos temas da maternidade e do cuidado de
forma geral.
Já no que diz respeito ao prazer que pode ser obtido a partir da maternidade e do cuidado com
o bebê, encontramos em Winnicott (1957/1982, p. 28) a seguinte afirmação: “Esse prazer, que
236 surge naturalmente no processo normal, pode sofrer, sem dúvida, a interferência de outras
preocupações, e estas dependem muito da ignorância.” Ainda que associe o prazer à norma, o
autor parece ao menos considerar a possibilidade da existência de interferências no processo,
dentre elas, a possibilidade da ausência de prazer. Mas, a nosso ver, simplifica o aprofundamento
que a questão merece ao definir de antemão a ignorância ou o “medo” (Winnicott, 1957/1982)
como as principais causas dessa interferência.

Outro ponto que merece ser ressaltado, anteriormente destacado por teóricas feministas
(Chodorow, 1978; Doane & Hodges, 1992) e observado por meio de nossa análise, diz respeito
a uma aparente correspondência nas descrições do autor entre as necessidades do bebê e os
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interesses/desejos da mãe, são exemplos disso: de um lado, a necessidade do bebê de amor,


atenção e ajuda e, de outro, o anseio da mãe em “preocupar-se com o interior do círculo formado

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pelos seus próprios braços e no centro do qual está o bebê” , bem como sua “temporária perda de
interesse pelos assuntos do mundo” (Winnicott, 1957/1982, p. 27); ou ainda, a importância para
o bebê que a mãe sinta prazer no desempenho das tarefas de cuidado (Winnicott, 1957/1982), e
a descrição desse prazer sentido pela mãe como característica natural nos processos normais,
conforme ilustrado anteriormente.

Com essa breve análise da obra de Winnicott eleita para este trabalho, pudemos perceber duas
correntes de pensamento acerca das necessidades de um bebê e o papel desempenhado pelas
mães e suas próprias necessidades. De um lado, em acordo com a expectativa social, ainda há
um significativo rastro de naturalização da maternidade, que deposita nas mulheres a maior
responsabilidade pelo cuidado dos bebês, muitas vezes justificada por atribuições biológicas e
de gênero. De outro, no mesmo autor, percebemos a preocupação com a noção de cuidado como
uma construção e aprendizado, que necessita de uma rede de suporte e que pode ocorrer de
formas múltiplas, sofrendo interferências de diversas ordens.

Inferimos que a primeira corrente, bem como o que foi observado na pesquisa com os profissionais
de saúde, aponta para uma maior preocupação com o bebê, o que relega às mães um lugar
secundário. Tal preocupação com a criança é importante e alimentada, segundo defendemos,
por uma profunda identificação com seu estado de dependência e desamparo, que nós, adultos,
identificamos nela. Contudo, se tal identificação permite que nos envolvamos no cuidado e proteção
dessas crianças, acaba por fazê-lo, muitas das vezes, apenas por uma via muito restrita, a saber,
naturalizando que este cuidado deva ser ofertado prioritariamente por uma pessoa, a mãe.

Por outro lado, a segunda corrente que identificamos no pensamento winnicottiano, que busca
pensar o cuidado como construído e necessitando de uma rede de suporte para se estabelecer,
abriria espaço tanto para a compreensão de que o desejo de cuidar não surge naturalmente ou
de forma obrigatória em toda mulher que gera um filho, quanto para o reconhecimento de que
a criança necessita de cuidados primordiais. Viabilizando, assim, uma escuta que acolha o que
237 as mães possam trazer de conflitos, sofrimento e até mesmo ausência desses, sem julgamento
moral, ao mesmo tempo em que cria meios de atender às demandas da criança. Porém, para que
isso ocorra, é preciso permitir-se uma abertura ao outro que seja capaz de abrigar o confronto
com as próprias fantasias de abandono e desamparo, para que estas não interfiram no processo
de acolhimento dessas mães.

Nesse sentido, cabe trazer à discussão a experiência de Böing e Crepaldi (2004) que, ao
investigarem os efeitos do não estabelecimento ou da ruptura do vínculo afetivo com o cuidador
primário sobre o desenvolvimento psicológico dos bebês, contrapõem as formulações de Rutter
e Zannon àquelas apresentadas por Bowlby e Spitz. Argumentando que não se pode atribuir as
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perturbações no desenvolvimento da criança à separação ou ao rompimento do vínculo mãe-bebê


em si, mas a essa “separação aliada à ausência de condições favorecedoras” (Böing & Crepaldi,

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2004, p. 214) do desenvolvimento da criança, tais como: sua idade, a qualidade da relação que a
família estabeleceu com a criança, as condições de estimulação ambiental, bem como “a qualidade
do cuidado dispensado a ela durante o período de separação” (Böing & Crepaldi, 2004, p. 213).

A perspectiva apresentada pelas autoras nos parece promissora, pois, ao considerar a existência
tanto de fatores de risco (isto é, a ruptura ou o não estabelecimento do vínculo inicial com a mãe),
quanto a existência de mecanismos de proteção (representados por características da própria criança
e de seu entorno), ela abre a possibilidade para pensarmos em estratégias e alternativas capazes de
atender tanto às demandas das mães doadoras quanto dos bebês entregues para a adoção.

Foi com base nessa perspectiva e como forma de acolher a essas demandas que teve lugar no
hospital-escola da Universidade Federal de Santa Catarina o trabalho de maternagem realizado
pelo serviço de psicologia da maternidade (Böing & Crepaldi, 2004). Nessa instituição, diante da
manifestação do desejo de entregar seu bebê, tem início o acompanhamento psicológico da mãe
onde essa e outras questões são abordadas e o apoio emocional fornecido. Tão breve quanto
possível, têm início também a maternagem do bebê. A tarefa é delegada a uma estagiária em
psicologia que se dedica algumas horas por dia ao cuidado do bebê, nas palavras das autoras,
“tornando-se para ele uma figura constante e de referência até a passagem dos cuidados para a
mãe adotiva” (Böing & Crepaldi, 2004, p. 217).

A partir disso, perguntamo-nos: alternativas como essa, que garantem um bom acolhimento ao
bebê e também à mãe que o entrega, seriam um caminho possível para garantir a escuta dessas
ações como desejos legítimos e audíveis?
AINDA HOJE, O IDEAL MATERNO

238 Parker (1997) denuncia o caráter rígido, idealizado e normativo de que se revestem as nossas
representações culturais sobre a maternidade. Conforme demonstra a autora, por meio de
entrevistas e vinhetas clínicas, ainda que as respostas dadas aos ideais variem, não é possível para
as mulheres fugirem das “representações [...] públicas do bom e do mau exercício da maternidade”
(Parker, 1997, p. 14). E a influência desses ideais sobre os sentimentos das mulheres acerca da
condição materna não raro se mostra significativa.

Já no que diz respeito à responsabilidade pela imposição e manutenção dessas representações,


a autora nos instiga à reflexão ao afirmar que, em maior ou menor medida, “todos nós ajudamos a
mantê-las” (Parker, 1997, p. 18). Assumindo essa posição como verdadeira, estaria o reforço dado
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à manutenção dessas representações e ideais associados a nossos medos e fantasias infantis de


perda, desamparo e abandono?

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Para a autora, as receitas da maternidade perfeita, sempre mutáveis e contraditórias, estariam
intimamente relacionadas a nossa certeza da existência de impulsos imperfeitos e ambivalentes
em todas as mães (Parker, 1997). E, acrescentaríamos, ao horror que nos causam, convocando em
cada um de nós defesas bastante intensas, como a recusa e a projeção.

Parker (1997) argumenta ainda que nossos tabus referentes à maternidade têm a capacidade de
modular “as representações culturais da mãe e os dispositivos sociais da maternidade” (p. 42).
Pensando nisso, buscamos por meio deste texto explicitar algumas das raízes inconscientes
desses tabus e demonstrar como eles exercem sua influência, seja na elaboração teórica sobre
a temática, seja no acolhimento das demandas que chegam à clínica e às instituições, como no
caso da entrega voluntária de bebês. A reflexão bem como o reconhecimento de nossa implicação
na manutenção dessas representações e ideais nos parece importante, pois somente assim nos
tornamos aptos a reconhecer as demandas de entrega ou de não cuidar como desejos legítimos,
criando e fortalecendo alternativas teóricas, sociais e institucionais capazes de lidar com a
questão.

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SUMÁRIO

ESTRUTURAS E FISSURAS:
240
A NÃO ADOÇÃO DOS
ADOLESCENTES EM
CUMPRIMENTO DE MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA

AUTORIA
ELISA DE SANTA CECÍLIA MASSA
Psicóloga. Mestra em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

– UFMG. Doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.


CONTATO: elisamassa09@gmail.com

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RESUMO
Este trabalho discute o sistema socioeducativo, regulamentado a partir do Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA, de 1990, e do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo – SINASE, de 2012. Desde a promulgação do ECA, o Brasil se depara
com uma proposta jurídica específica para regular as ações do Estado em relação aos
adolescentes que cometem atos infracionais. As medidas socioeducativas estão previstas
pelo Estatuto que trata, além dos direitos da criança e do adolescente, das medidas cabíveis
juridicamente diante do cometimento de um ato infracional por um adolescente. A presente
discussão trata de alguns pontos de impasse, sobretudo em relação ao papel do Estado
enquanto executor da política e ao mesmo tempo como principal violador de direitos dos
adolescentes. O descumprimento da absoluta prioridade das crianças e adolescentes no
acesso a direitos, tal como preconizam a constituição Federal e o ECA, se traduz em efeitos
nefastos, de modo que muitas vezes adolescentes irão acessar direitos pela primeira vez
após serem apreendidos pelo cometimento de um ato infracional. Questiona-se, portanto,
o modo como as vulnerabilidades sociais às quais estes adolescentes estão expostos
termina por produzir argumentos que justificam o encarceramento e a violação de direitos.
PALAVRAS-CHAVE: Adolescência; Sistema socioeducativo; Violação de direitos;
Encarceramento
De que me vale ser filho da santa

241 Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta

(Cálice, Gilberto Gil e Chico Buarque)

Gostaria de começar com uma espécie de prefácio, propondo uma reflexão a partir da fala
inspiradora do Nego Bispo. Antonio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, líder quilombola do Piauí,
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relator de saberes e contracolonialista, em recente passagem por Belo Horizonte, nos ofereceu
uma reflexão importante na qual a questão da adoção indiretamente se colocava. Em seu relato,

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ele dizia sobre a forma como os povos originários e quilombolas organizam-se em relação à
responsabilidade da criação das crianças de uma comunidade. Bispo conta que um amigo, ao
receber a notícia da morte do pai de uma das crianças do quilombo onde vive, rapidamente
interrompeu uma importante viagem fazia para ir assumir a guarda da criança. Isso não lhe foi
solicitado ou imposto, e a criança não fazia parte de sua família consanguínea, mas, como era de
sua comunidade, ele naturalmente sabia que esta era sua responsabilidade. Sabemos, igualmente,
que as cidades pequenas e as favelas ainda preservam redes de solidariedade e apoio mútuo que
ainda parecem exóticas aos nossos ouvidos colonizados.

Dito isso, convido a pensar criticamente sobre a adoção, não apenas do ponto de vista da
relação entre filho e figuras parentais, mas, também, que possamos refletir sobre quais redes
de solidariedade, afeto e apoio, nós, como sociedade, estamos oferecendo para as crianças e
adolescentes do nosso país. Não considero possível dissociar a adoção do contexto social em que
ela se insere nesse nosso tempo: as negligências do Estado sofridas pelas famílias, a violência
imposta a estas mulheres que são mães sem o direito de decidir, o preconceito e o destino que
socialmente é imposto para as crianças que compõem a fila para adoção, se porventura elas não
tiverem uma adoção bem sucedida.

O SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

Ao longo de minha experiência no sistema socioeducativo, chamou-me a atenção uma realidade


que me era até então desconhecida: a recorrência, entre as histórias daqueles adolescentes, da sua
“devolução” por parte de pais adotivos que haviam desistido da adoção durante o processo. Essa
situação, que me era desconhecida até então, aparecia com uma recorrência desconcertante nas
histórias de vida de adolescentes que estava ali respondendo pelo cometimento de um ato infracional.
Para localizar minha fala, lançarei mão de um panorama breve sobre o sistema socioeducativo do
ponto de vista legal, do meu percurso como trabalhadora dentro deste sistema e de alguns números.
242
PRESSUPOSTOS LEGAIS DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

Desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990 (para nos determos


sobre a história recente do país), o Brasil se depara com uma proposta jurídica específica para
regular as ações do Estado em relação aos adolescentes que cometem atos infracionais. As
medidas socioeducativas estão previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que
trata, além dos direitos da criança e do adolescente, das medidas cabíveis juridicamente diante do
cometimento de um ato infracional por um adolescente.
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De acordo com o ECA, “considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção
penal” (Brasil, 1990), e adolescentes são aqueles indivíduos que possuem idade entre doze e

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dezoito anos. Uma vez verificada a prática do ato infracional, são aplicáveis as seguintes medidas
socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade;
liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento
educacional. Nos casos em que é aplicada a medida socioeducativa de internação, o adolescente
cumprirá a medida privado de liberdade.

Recorro aqui um comentário de Maria Cristina Vicentin, em sua tese acerca das rebeliões na FEBEM
nos anos 90. Para Vicentin (2005), não é possível passar pelo sistema socioeducativo “sem que nos
posicionemos ética e politicamente de um modo muito intenso” (p. 6). No período de 2011 a 2017,
trabalhei continuamente dentro do sistema socioeducativo de Minas Gerais, e ocupei diversos
cargos, desde psicóloga dentro de unidades, atendendo e acompanhando os adolescentes, até
como gestora responsável pela orientação metodológica do atendimento realizado no estado. Em
2015, ingressei no doutorado. Meu tema de pesquisa é a função do atendimento das psicólogas
para os adolescentes privados de liberdade. Esta pesquisa é orientada pela profa. Andréa
Guerra, e está situada no Núcleo de Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo – PSILACS, do
Departamento de Psicologia da UFMG.

BREVE PANORAMA

Os dados mais recentes (Brasil, 2018) revelam que em novembro de 2015 havia 26.868 adolescentes
em cumprimento de medida socioeducativa, sendo que destes, 26.209 em restrição ou privação
de liberdade. 18.381 adolescentes estavam em cumprimento de internação, ou seja, 68% dos
adolescentes em cumprimento de medida estavam privados de liberdade.

No ano de 2015 foi informada, pelas unidades da federação, a existência de 484 unidades de restrição
e privação de liberdade no país, considerando as modalidades de atendimento de internação,
internação provisória, semiliberdade, internação sanção e atendimento inicial. Nacionalmente, a
distribuição de unidades está concentrada na Região Sudeste, com 221 unidades (46%).
243
O estado de São Paulo concentra o maior número de unidades de atendimento socioeducativo (150)
e Minas Gerais ocupa o segundo lugar, com 34 unidades. Esses dados parecem-me importantes
nesse contexto, porque, ao pensarmos a adoção de crianças e adolescentes não estamos apenas
no campo do privado, mas também no campo da política. A maneira como o Estado escolhe acolher
ou encarcerar jovens com trajetórias de vida expostas sistematicamente a vulnerabilidades não
pode ser apartada da discussão sobre o lugar que é destinado às crianças e jovens no país. Não
me parece aleatório que haja uma recorrência de adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa com histórias de desistência de seus pais em relação a sua guarda e cuidado.
Se considerarmos ainda que a desistência familiar independe de uma adoção malsucedida, os
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números certamente seriam ainda mais altos. Quero dizer que faz parte da rotina dos profissionais
do sistema socioeducativo lidar com famílias que desistiram de seus filhos. Esse rompimento do

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vínculo, é preciso ressaltar, não está necessariamente atrelado ao cometimento do ato infracional,
mas acredito que se trate, na verdade, do contrário disso, quer dizer, muitas vezes é o rompimento
acontece primeiro.

CRIANÇAS E ADOLESCENTES MAL ACOLHIDOS PELA FAMÍLIA E PELO ESTADO

Nesse sentido, recorro rapidamente à elaboração de Sándor Ferenczi em um pequeno texto


intitulado “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”, em que o autor considera os percalços
na vida infantil ocasionados pela percepção da criança de que não é amada. Para o autor, “crianças
acolhidas com rudeza e sem carinho morrem facilmente e de bom grado. Ou utilizam um dos
meios orgânicos para desaparecer rapidamente ou, se escapam a esse destino, conservarão certo
pessimismo e aversão à vida.” (Ferenczi, 1929/1992, p. 49) O autor acrescenta, ainda, que os pais
devem levar a criança a se sentir acolhida e cuidada; caso contrário, suas pulsões de destruição
seriam fortemente acionadas, determinando definitivamente seu modo de ser na vida. Para
Ferenczi, as crianças percebem prontamente a hostilidade familiar, o que pode acarretar uma
quebra na vontade de viver e na capacidade de lidar com a adversidade, tornando-se adultos com
fortes tendências pessimistas e autodestrutivas. Não se trata, obviamente, de reduzir a complexa
questão das conexões entre juventude e violência a estes termos, e não se trata, sobretudo, de
ignorar a importância desta formulação.

A DESISTÊNCIA

Passemos, assim, à questão da desistência. Em termos legais, a adoção, depois de concluída, é


irreversível. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê um período de adaptação justamente
para que, estabelecido o contato entre as partes, seja avaliada a compatibilidade tanto por parte
dos pais adotivos quanto da criança.
Segundo Ghirardi (2008), na maioria dos casos a devolução acontece quando o adotante ainda
detém a guarda provisória, embora também possa acontecer, mais raramente, depois de encerrado
244 o processo. Não há estatísticas oficiais, no entanto, a Comissão Estadual Judiciária de Adoção de
Santa Catarina revelou, em 2011, que cerca de 10% das crianças abrigadas em situação de conflito
familiar no estado seriam oriundas de adoções que não deram certo.

Buscando informações acerca do tema da desistência da adoção, encontrei a atuação do Estado, do


ponto de vista jurídico. Um promotor da Vara da Infância e Juventude de Uberlândia acompanhou
de perto dois casos de desistência e propôs algo inédito até aquele momento: em 2009, ele entrou
com uma Ação Civil Pública contra um casal que devolveu uma menina de oito anos cujo pedido de
adoção já havia sido protocolado e a guarda provisória já havia sido concedida. Segundo a notícia,
no dia em que seria realizada a audiência final de adoção, oito meses depois de concedida a guarda
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provisória, o casal devolveu a criança sem dar maiores explicações aos profissionais da Vara. O
promotor exigiu então uma pensão para que sejam pagos os tratamentos psicológicos da menina.

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Em outra ação semelhante, movida pouco tempo depois, o promotor conseguiu, em primeira
instância, que o pai adotivo de um adolescente devolvido pague mensalmente 15% de seu salário
para que seja bancado o acompanhamento psicológico do menino, que havia sido adotado cerca
de um ano antes. Nesse caso, também não houve explicações sobre a motivação do ato, mas
existem indícios: pouco depois de concluir a adoção do adolescente, o casal conseguiu ter filhos
biológicos. Chama a atenção a saída judicializada e monetarizada para casos em que há tanta dor
envolvida. Não estou me posicionando contra a decisão do promotor, mas evidenciando a nossa
precariedade em construir outras soluções. E nos remeto, novamente, ao exemplo citado pelo
Bispo, com o qual abri minha fala.

A FAMÍLIA NA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

Tanto o ECA quanto a lei de execução do SINASE de 2012, que institui o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo, discorrem longamente acerca do trabalho que deve ser realizado
pelas equipes técnicas que acompanham o adolescente em cumprimento de medida socioeducativa
no que diz respeito às relações familiares e comunitárias de cada adolescente. Da mesma forma,
um dos princípios que rege o cumprimento de medida socioeducativa é o “fortalecimento dos
vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo” (Brasil, 2012), algo extremamente
complexo por inúmeras razões, dentre elas a precariedade do próprio sistema. Não é raro, por
exemplo, haver adolescentes que cumprem medida em cidades muito distantes da residência de
suas famílias.

O Plano Individual de Atendimento (PIA) é um instrumento obrigatório para registrar e


acompanhar o cumprimento da medida socioeducativa pelo adolescente. Ele será elaborado
sob a responsabilidade da equipe técnica do respectivo programa de atendimento, com a
participação efetiva do adolescente e de sua família, representada por seus pais ou responsável.
É um documento extenso, que abarca uma série de informações e planejamentos previstos para
245 o caso. Dentre estes registros, devem constar atividades de integração e apoio à família e formas
de participação da família para efetivo cumprimento do plano individual.

Contudo, na prática, são muitos os percalços que atravessam o trabalho com as famílias neste
contexto. Pais que não querem visitar os filhos, que não atendem ao telefone ao perceber que se
trata de uma ligação da equipe, mães cansadas, famílias vítimas de violências e expostas a muitas
vulnerabilidades sociais. Não é demais concluir que a inação do Estado tem seus efeitos sobre
a qualidade do laço que estas famílias podem estabelecer com seus filhos, e que os aspectos
observados comumente do ponto de vista subjetivo são atravessados por contingência políticas.
Tento aqui esboçar algo a respeito da pergunta que me foi feita com o convite para participar desse
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evento: o que está em jogo para os adolescentes que cumprem medida no sistema socioeducativo
em relação a suas histórias familiares? As respostas não são simples e nem únicas.

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Chamam a atenção, ainda, as tentativas dos adolescentes de suturar os rompimentos que
viveram em suas histórias. O primeiro exemplo de que me lembro foi quando, no período em que
trabalhei como psicóloga em uma unidade de internação, aos vinte e oito anos, recebi um cartão
emocionado de um jovem de dezoito anos no Dia das Mães. Outros exemplos reafirmam como
as figuras de referência rapidamente são convertidas em figuras parentais: um adolescente tido
como “cabuloso” que passa a ser chamado de “pai” pelos demais, o agente de segurança que
“adota”, quer dizer, que protege um adolescente dentro da instituição, os relatos de adolescentes
que dizem que encontraram no sistema socioeducativo “a família que nunca tiveram”. Ainda mais
doloridos são os relatos de crianças que, ao visitarem o irmão nessas instituições, perguntam se
podem ficar lá também, e das mães que dizem que ali seus filhos estão melhor acolhidos do que
em casa.

Há que se escutar, nesse contexto, a perversidade disso que poderíamos, a princípio, analisar pela
via da transferência. O agravante aqui é que o Estado se apresenta para estes adolescentes como
uma “figura parental” perversa, que se faz conhecer pela vertente da punição e do encarceramento.
Os adolescentes que não possuem melhor escolha se veem diante da obscenidade de ter que
escolher entre o acolhimento que aprisiona e viola ou as boas vindas que recebem da lei de ferro
do crime.

A repetição apresenta-se na forma como sistematicamente essas famílias são negligenciadas pelo
poder público, e aqueles que tiveram seus direitos violados seguem um caminho já determinado, e
de violados passam rapidamente à nomeação de violadores. É nesse lugar que são recebidos pelo
Estado, que completa o ciclo ao afirmar, repetidamente, que é função da medida socioeducativa
assegurar direitos.
Esta é um dos paradoxos do discurso protetivo que baliza as ações do sistema socioeducativo.
O viés da proteção, assegurado pelo ECA e reafirmado pela lei do SINASE, termina por sustentar
246 a ação coercitiva do Estado. Diante das vulnerabilidades sociais que estes adolescentes vivem,
produzem-se argumentos que justificam o encarceramento e a violação de direitos. Não é demais
ressaltar que muitos adolescentes têm acesso a direitos básicos pela primeira vez ao ingressarem
em uma medida socioeducativa. Isso quer dizer que a punição captura muitos adolescentes que
a proteção social não alcança. Ademais, o mesmo Estado que viola direitos e negligencia as
seguranças básicas que estas famílias deveriam acessar lança mão destas precariedades para
justificar sua ação, desta vez pelo viés punitivo.

Uma das grandes preocupações de toda política pública refere-se aos resultados que ela alcança,
que determinam sua eficiência e eficácia. No caso do sistema socioeducativo, a pergunta que
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sempre se repete é acerca do índice de reincidência dos adolescentes. O que se quer saber é se os
adolescentes “voltam para o crime” depois de serem acautelados. Contudo, dado esse contexto,

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penso que cabe afirmar que é o Estado quem reincide, muito antes dos adolescentes.

Para exemplificar esse quadro, retomo um relato que ouvi recentemente a respeito de um
adolescente que está em cumprimento de medida socioeducativa de meio aberto, e que foi
encaminhado ao Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional –
CIA-BH (uma espécie de delegacia especializada) por haver cometido um novo ato infracional
na escola. O ato infracional em questão: esse adolescente, no recreio, disse ao colega que ele
deveria lhe dar seu pacote de batatas. Assim, a escola, parte integrante do Estado, também recua
e aciona a segurança pública para a função educacional. É preciso relembrar, nesse momento,
as recomendações de Freud, em 1910, a respeito da importância dos professores como figuras
substitutas dos pais no contexto escolar, primeiro momento de inserção social fora da família.
Nessa série de negligências as quais crianças e adolescentes muitas vezes são submetidos, a mão
punitiva do Estado se apresenta como última, ou única possibilidade.

Em outra vertente do Estado, ainda mais cruel, é notória a política de extermínio de jovens negros,
moradores das periferias das cidades. A violência tem sido a marca do sistema de controle social,
a tal ponto que, como afirma o jurista Eugenio Zaffaroni, a projeção genocida dos nossos tempos
faria empalidecer a crueldade histórica dos colonialismos anteriores (Batista, 2015). A forma
como viemos construindo “políticas” para a juventude negra e pobre do país nos faz duvidar se
uma verdadeira solução está no horizonte destas ações, e não é possível destacar o sistema
socioeducativo do contexto que, como sociedade, apresentamos para estes jovens.

Parece que a contradição que o sistema socioeducativo expõe tem a ver com o lugar que está, de
fato, destinado à juventude negra e pobre. No contexto de Belo Horizonte, a sexta capital mais
populosa do país, o número de mortes de jovens negros é alarmante. A pesquisadora Rejane dos
Reis defendeu, em 2017, a dissertação onde apresenta estes dados. No período entre 2000 a
2014, 2.868 adolescentes foram assassinados em Belo Horizonte. Ao desmembrar os óbitos por
homicídios paras as faixas etárias de dez a quatorze anos e quinze a dezenove anos, observa-se
247 que a maior concentração de homicídios ocorre na faixa etária de quinze a dezenove anos, e no
mesmo período, chama a atenção o alto número de mortes que ocorreram entre dez a quatorze
anos: foram assassinados 193 meninos nesta faixa etária, entre a infância e a adolescência (Reis,
2017).

Miriam Debieux afirma que se trata de um suicídio social, já que historicamente é a juventude
quem promove as mudanças e transformações sociais. Vamos mal como sociedade e vamos mal
na tarefa de promover apoio e acolhimento para que os que estão chegando possam exercer sua
existência transformadora.
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REFERÊNCIAS

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Batista, V. M. (2015). A juventude e a questão criminal no Brasil. In J. L. Q. de Magalhaes, M. J. G.
Salum, & R. T. Oliveira (Orgs.), Mitos e verdades sobre a justiça infanto juvenil brasileira: por que
somos contrários à redução da maioridade penal? Brasília: CFP.

Brasil. (1990). Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l8069.htm

Brasil. Ministério dos Direitos Humanos (MDH). (2018). Levantamento anual SINASE 2015. Brasília:
Ministério dos Direitos Humanos. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2012/Lei/L12594.htm.

Ferenczi, S. (1992). A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In Obras Completas. Trad. (Á.
Cabral, Trad., Vol.1, pp. 47-51). São Paulo: Martins Fontes. (1ª ed.) (Trabalho original publicado em
1929).

Ghirardi, M. L. A. M. (2008). A devolução de crianças e adolescentes adotivos sob a ótica


psicanalítica: reedição de histórias de abandono. Dissertação de Mestrado – Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Reis, R. F. (2017). O genocídio dos adolescentes negros no município de Belo Horizonte – quem
importa?. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais. UFMG.

Vicentin, M. C. G. (2005). A vida em rebelião: jovens em conflito com a lei. São Paulo: Hucitec,
FAPESP.
SUMÁRIO

248 HERANÇA, FILIAÇÃO E


ADOÇÃO TEÓRICA EM
PSICANÁLISE: EFEITOS DA
FORMAÇÃO DO ANALISTA

AUTORIA
LUIZ EDUARDO DE V. MOREIRA
Psicólogo e psicanalista. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia
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Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo – USP (bolsa CAPES). Mestre
em Psicologia Social pela USP. Membro do psiA - Laboratório de pesquisas e intervenções

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psicanalíticas e do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise. Professor da Universidade
Anhanguera de São Paulo – UNIAN.
CONTATO: luiz.vasconcelos.moreira@gmail.com

PATRÍCIA MAFRA DE AMORIM


Psicóloga. Professora da Universidade Anhanguera de São Paulo – UNIAN.
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade
de São Paulo – USP. Mestre em Estudos Psicanalíticos pelo Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
CONTATO: danielkupermann@gmail.com

DANIEL KUPERMANN
Professor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade
de São Paulo – USP. Bolsista do CNPq - Brasil. Coordenador do
psiA - Laboratório de pesquisas e intervenções psicanalíticas.
CONTATO: danielkupermann@gmail.com

RESUMO
São várias as figuras teóricas da Psicanálise para pensar a parentalidade e sua contraface,
a filiação. São esses processos que estão no centro daquilo que na teoria freudiana tenta
dar conta da inscrição do indivíduo na cultura, a partir de um conjunto de interdições e da
história familiar. Não à toa é nas bordas dessa dinâmica que encontramos uma hipótese
para a constituição do aparelho psíquico e, especificamente, do supereu, o “herdeiro do
249 complexo de Édipo”. Não deveria escapar à comunidade psicanalítica que esse mesmo
conjunto de postulados muito rapidamente se rebate no estabelecimento da instituição
psicanalítica e das prescrições para a formação do/a analista, cujo exemplo primeiro será
o dispositivo da análise didática como meio garantidor de filiação, teórica e transferencial,
à família psicanalítica. Interessa-nos, com este trabalho, pensar os efeitos transferenciais,
sociais e institucionais da centralidade de um dispositivo clínico como garantidor da
formação para o exercício de um ofício representado por esse mesmo dispositivo. Está
em questão, assim, e a centralidade que a imago de Freud ocupa, lugar garantido pela
análise didática, em aparente contrassenso com uma das funções da própria análise, qual
seja, permitir ao sujeito falar sobre seu “romance familiar”. Num momento que alguns
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autores nomeiam como “pós-escola”, propomos a ideia de “analista órfão” como operador
para prensar os impasses das filiações teóricas e das adoções de teorias pelos analistas..

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PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise, instituição, formação
São várias as figuras teóricas da Psicanálise para pensar a parentalidade e sua contraface, a
filiação. São esses processos que estão no centro daquilo que, na teoria freudiana, tenta dar conta
250 da inscrição do indivíduo na cultura, a partir de um conjunto de interdições e da história familiar.
Não à toa, é nas bordas dessa dinâmica que encontramos uma hipótese para a constituição do
aparelho psíquico e, especificamente, do supereu, o “herdeiro do complexo de Édipo”.

Não deveria escapar à comunidade psicanalítica que este mesmo conjunto de postulados muito
rapidamente rebate-se no estabelecimento da instituição psicanalítica e das prescrições para
a formação do/a analista, cujo exemplo primeiro será o dispositivo da análise didática como
meio garantidor de filiação, teórica e transferencial, à família psicanalítica. Interessa-nos, com
este trabalho, pensar os efeitos transferenciais, sociais e institucionais da centralidade de um
dispositivo clínico como garantidor da formação para o exercício de um ofício representado por
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esse mesmo dispositivo.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Está em questão, assim, a centralidade que a imago de Freud ocupa, lugar garantido pela análise
didática, em aparente contrassenso com uma das funções da própria análise, qual seja, permitir
ao sujeito falar sobre seu “romance familiar”. Num momento em que alguns autores nomeiam
como “pós-escolas”, propomos a ideia de “analista órfão” como operador para pensar os impasses
das filiações teóricas e das adoções de teorias pelos analistas.

PSICANÁLISE E HERANÇA

A psicanálise pode ser entendida como algo que está às voltas com as heranças, tanto as que
recebemos quanto as que inventamos para nós mesmos. Talvez neurose seja um nome possível
para isso, e talvez devamos nos perguntar quais são as heranças que recebemos, sabendo ou não,
e também as que inventamos durante nosso percurso de formação em psicanálise. Por exemplo,
considerando o projeto de garantir a “pureza da técnica” que animou a instalação de um dispositivo
como a análise didática, suas instruções, prescrições e condições, fazendo com que pudéssemos
todos remontar à uma análise originária com Freud, não deveríamos também considerar o que
mais herdamos desse pai? E não seria à toa, portanto, que um psicanalista italiano já tenha dito
que está na hora de transformarmos Freud de pai em avô – será que o que recebemos de nossos
avós é um outro tipo de herança, mais leve, mais livre?

É nessa amarração de como a psicanálise pensa a si mesma a partir de Freud e como ela poderia
pensar, para, pensando com Derrida1 , não ser idêntica a si mesma, que pretendemos inscrever o
lugar de um “analista órfão” como um lugar de potencialidade criativa para o trabalho analítico,
uma vez que seria outro destino possível para nossas identificações com Freud.

1. Derrida diz que “o próprio de uma cultura é não ser idêntica a si mesma” (Derrida, 1991, p. 96).
Tomamos esse “não idêntico a si mesmo” como uma figura interessante para pensarmos toda
a dinâmica de identificações, desidentificações e, em última análise, amor e ódio envolvida na
251 dissolução do Complexo de Édipo, cujo resultado, em termos metapsicológicos, é o superego,
representante da tradição e dos valores familiares. Um dos motes para uma psicanálise, qualquer
que seja ela, é a retomada do fio desta história, desalienando o sujeito dos desejos nos quais
já nasce enredado e pelos quais pode se contar, num primeiro momento. A aposta é, aqui, que
quem se analisa pode passar a contar sua história de um outro modo, a partir da lida com um
desejo que não é o seu e das identificações que o alienam. Nesse sentido, analisar-se é ganhar um
grau de liberdade frente à sua própria história, perceber-se não idêntico ao romance familiar que
engendra sua própria história.

Aquilo que hoje em dia se convencionou chamar de “movimento psicanalítico” nem sempre foi um
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movimento, organizado e institucionalizado. Pelo contrário, a leitura das cartas trocadas entre
os “primeiros” psicanalistas, os textos publicados nas primeiras revistas, a programação dos

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primeiros encontros, documentos como as atas da Sociedade de Viena e do comitê secreto, a
leitura desse conjunto de documentos irá mostrar que a pluralidade de posições e a disposição à
experimentação eram a regra, e não a exceção.

Desde sempre encontramos também uma tensão entre essa pluralidade e certa direção ou diretriz:
a sociedade psicológica das quartas-feiras, as primeiras sociedades de psicanálise, a fundação
da associação psicanalítica internacional e logo em seguida de um comitê secreto, muito cedo
encontramos um conjunto de tentativas de estabelecimento de um arcabouço institucional, ao
mesmo tempo a resultante da legitimação da psicanálise e promotora dessa mesma legitimação.

A história de como a psicanálise, como método de tratamento dos males psíquicos, torna-se um
dispositivo de formação para os postulantes à prática da psicanálise acompanha essa curiosa
história de institucionalização do movimento psicanalítico – talvez não seria exagero conceber que
um dos motes dessa dinâmica tenha sido justamente fazer coincidir um tratamento psicanalítico
com o movimento psicanalítico.

É no início da década de 1910 que Jung propõe que só analisasse outrem aquele que tivesse sido
analisado em primeiro lugar com um “analista qualificado”. No final dessa década, no Congresso
de Budapeste, encontramos uma proposta para institucionalizar a necessidade da análise pessoal
como critério para se tornar analista, que não é aprovada. Seis anos depois, já com a experiência
do Instituto de Berlim e sua Policlínica, verdadeiro centro criativo da psicanálise à época, é que o
modelo defendido por Max Eitington para a formação analítica triunfa, colocando análise pessoal
e supervisão como condições para o exercício da psicanálise.
PSICANÁLISE E FORMAÇÃO

252 O que seria, então, considerar a formação psicanalítica no momento atual, no “pós-escolas” como
sugerimos? Aparentemente, o tripé sugerido por Eitingon persiste como dispositivo supostamente
garantidor do rigor na formação. No entanto, com a perda de força de representatividade que
tem acometido progressivamente as instituições de formação, seja pelo valor que cobram pelos
serviços, em muitos casos proibitivo, seja por insatisfação dos futuros analistas com os programas
ofertados, percebe-se que a habilitação de novos analistas tem sido feita por outros meios.

A inserção da psicanálise em programas de pós-graduação, assim como a multiplicação de


consultórios de psicanalistas pelo país parece coincidir - e talvez contribuir - para esse nomadismo
institucional (Kupermann, 2014), que pode ser bastante potente do ponto de vista da formação e
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da transmissão, sob a figura do “pluralismo teórico-institucional” (p. 183, grifo nosso):

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uma situação (que ainda persiste) de autêntico nomadismo institucional [...] na
qual se fazia análise com um analista de determinada instituição, supervisão
com um analista de outra, participava-se de um cartel vinculado a uma terceira,
frequentavam-se as jornadas de uma quarta... e ainda preparava-se uma tese
universitária sobre um tema psicanalítico. (Kupermann, 2014, p. 185-186)

Mas atenção: esse “novo arranjo” institucional que aparece como “transferência nômade”, uma
reação de “recusa do sistema totalizante” da psicanálise, não deveria ser compreendido como
autorização ao ecletismo teórico, que abre mão das “verdades mais incomodativas” da psicanálise
para que algo da disciplina subsista (encontramos o caso mais exacerbado das consequências
nefastas de uma tal abordagem ou apropriação, talvez, no modo como a “operação de salvamento”
da psicanálise foi conduzida na Alemanha nazista; cf. Cocks, 1985).

Se o modelo tradicional, no tripé proposto por Eitingon, leva à formação de um superego


institucional enrijecido e severo para o analista como resultado das contradições encontradas no
processo de uma análise didática, e como alternativa encontramos o dispositivo (no sentido que
Agamben dá ao termo2) das transferências nômades e seu correlato, o nomadismo institucional,
gostaríamos de propor que encontramos o complemento metapsicológico desta proposta na
figura do “analista órfão”.

2. “chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (Agamben,
2009, p. 40).
ORFANDADE E AUTORIA

253 De acordo com Kupermann (2003), Freud apresenta, em “Escritores criativos e devaneios”, a
figura do órfão que

a caminho de uma oportunidade de trabalho, imagina conseguir o emprego e


cair nas boas graças da família do novo patrão; este tem uma filha, que irá se
apaixonar por ele e, assim, nosso bem-aventurado órfão casa com a filha do
patrão é finalmente promovido, primeiro a sócio e depois a sucessor do sogro.
(Kupermann, 2003, p. 127)

Antes estivesse Freud fazendo uma parábola da própria história do movimento psicanalítico!
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Se é verdade que o órfão “não é [...] um iludido, muito menos um herói que crê que nada pode

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


lhe acontecer” e está “longe da idealização fálica daquele que acredita ser efetivamente o pai
idealizado”, poderíamos pensar que encontramos um bom modelo para a análise: o órfão “sabe-se
castrado e identifica-se apenas até certo ponto com o pai; o suficiente para a constituição de um
ideal do ego portador do signo da alteridade” (Kupermann, 2003, p. 127).

A expressão chave, aqui, é “até certo ponto”: uma identificação que permite a constituição de um
ideal do ego, sem que haja uma completa alienação em um ideal de eu à imagem e semelhança
dos pais. Se é verdade que poderíamos pensar numa dimensão política da psicanálise inspirada na
dimensão política do humor, talvez poderíamos também estender esta ideia para uma dimensão
política da psicanálise a partir desta metapsicologia do órfão, tomada como ideal (“até certo
ponto”) da formação de um analista, na medida em que promove a constituição de um aparelho
psíquico com espaço suficiente para a alteridade, não tomado por um eu ideal alienado no
narcisismo parental.

REFERÊNCIAS

Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos.

Cocks, G. (1985). Psychotherapy in the Third Reich: the Göring Institute. New York: Oxford
University Press.

Derrida, J. (1991). O outro cabo. In P. C. Duque-Estrada, Margens da filosofia. Campina: Papirus.

Kupermann, D. (2003). Ousar rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Kupermann, D. (2014). Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições.


São Paulo: Escuta
SUMÁRIO

254 LEITURA LAPLANCHEANA DAS


ENGRENAGENS DA ADOÇÃO
A PARTIR DE O
​ FILHO DE MIL
HOMENS​, DE VALTER HUGO MÃE

AUTORIA
HELLEN KARLLA DE CAMPO
Psicóloga. Mestranda em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

de Minas Gerais – UFMG. Especialista em Estudos Psicanalíticos pela


Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e em Saúde do Idoso pela UFMG.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: luiz.hellen.k.c@gmail.com

VANESSA BISCARDI MATOS


Psicóloga. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais
– UFMG. Especialista em Estudos Psicanalíticos e em Saúde do Idoso pela UFMG.
CONTATO: vanessabiscardi.psi@gmail.com

RESUMO
Objetivamos uma articulação entre as engrenagens da adoção e a teoria da sedução
generalizada de Jean Laplanche tomando como objeto de estudo o livro O filho de mil
homens, de Valter Hugo Mãe (2013). O romance é protagonizado por Crisóstomo, um
pescador de 40 anos com grande desejo de ter um filho, e por Camilo, um adolescente
bastante desejoso de um pai. A trama passa em um lugarejo com um pequeno
agrupamento de pessoas, contexto no qual, em meio à construção da relação entre
Crisóstomo e Camilo, bem como de outros interessantes personagens que os rodeiam, são
apresentadas diversas dinâmicas concernentes às inter-relações humanas entremeadas
por amor, culpa, desejos, preconceitos, etc. Tal cenário apresenta-se como um rico objeto
para análise a fim de fazer trabalhar a teoria da sedução generalizada no que diz respeito
aos processos de adoção tomando como aspecto fundamental o caráter relacional, não
baseado em hereditariedade ou biologismo para a constituição do psiquismo humano,
bem como para metabolizações de conteúdos enigmáticos ao longo da vida. Este trabalho
da teoria e sobre a teoria, aos moldes do que propõe Jean Laplanche, apresenta-se
pertinente tanto para a clínica psicanalítica, quanto pelas contribuições em âmbito social.
255
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Nesta breve comunicação, temos como objetivo principal analisar as engrenagens da adoção a
partir da teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, tomando como objeto de estudo o livro
256 O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe (2013). Este romance é protagonizado por Crisóstomo,
um pescador de 40 anos, descrito como um homem só com metade de tudo, marcado por uma
urgência de encontrar um filho e que, diante da ausência desse outro por ele tão desejado, caía
para dentro de si mesmo. “Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado
de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era
um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem
o homem caía.” (Mãe, 2012, p. 11). Dizia às pessoas que era um pai à procura de um filho. Valter
Hugo Mãe, a respeito de Crisóstomo, escreve: “Imaginava crianças sozinhas como filhos à espera.
Crianças que viviam como a demorarem-se na volta para casa por terem sido enganadas pela
vida. Acreditou que o afeto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

pertença. A grande forma de família.” (Mãe, 2012, p. 12).

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Já no primeiro capítulo, Crisóstomo encontra o seu filho: um menino de 14 anos de idade, negro,
também marcado pelo desamparo, em virtude da morte recente de seu avô, Alfredo, responsável
desde seu nascimento por sua criação. O menino ficara vinte dias fechado em casa, até que uma
vizinha veio ao seu socorro, prestando-lhe cuidados iniciais e incentivando-o a continuar a vida.
No seio de seu desamparo, Camilo é assim descrito:

Era um menino na ponta do mundo, quase a perder-se, sem saber como se


segurar e sem conhecer o caminho. Os seus olhos tinham um precipício. E ele
estava quase a cair olhos adentro, no precipício de tamanho infinito escavado
para dentro de si mesmo. Um rapaz carregado de ausências e silêncios. Seguia
na traineira quase com a promessa de quem podia chorar. Para dentro do rapaz
pequeno era um sem fim e pouco do que continha lhe servia para a felicidade.
Para dentro do rapaz o rapaz caía. (Mãe, 2012, p. 15)

Segue-se, então, a cena de adoção, na qual Crisóstomo pergunta a Camilo se poderia ser o seu
pai. Diante da aceitação do menino, ambos são descritos como completos em suas respectivas
solidões. Em meio aos outros pescadores da traineira, que também se afetavam diante do
testemunho da mútua adoção, os personagens principais, “subitamente, estavam como que
sozinhos, porque eram toda a companhia necessária. A verdadeira.” (Mãe, 2012, p. 17).

As demonstrações de cuidado de um para com o outro se apresentam de modo mútuo: Crisóstomo


incentivou que o filho voltasse aos estudos, ao passo que este, por sua vez, incentivou que o
pai encontrasse uma mulher para amar, de modo que nada lhe faltasse futuramente, quando
se casasse e seguisse seu caminho. “O Crisóstomo respondeu que não lhe faltava nada, estava
inteiro. E o rapaz pequeno disse-lhe que então ele devia passar a ser o dobro. Ser o dobro, disse.”
(Mãe, 2012, p. 18). Desta feita, o primeiro capítulo encerra-se com um encontro de Crisóstomo
com Isaura, uma mulher incompleta, sentada no mesmo local em que Crisóstomo havia se sentado
antes, rogando ao universo o encontro com seu filho.
257
Ao término da leitura deste capítulo, poderíamos julgar estar diante da possibilidade de formação
de uma família a partir do encontro das três personagens e diante da temática da adoção
exclusivamente enquanto processo ou ação judicial que se define pela aceitação espontânea de
alguém como filho ou filha. Nos capítulos seguintes, contudo, acompanhamos uma depuração
dos complexos fios da história pessoal desses personagens, sobretudo de Camilo e de Isaura.
Tal depuração nos deixa compreender as condições de possibilidade desses encontros e do
estabelecimento de vínculo afetivo entre os personagens.

A trama se passa em um lugarejo com um pequeno agrupamento de pessoas, contexto no qual,


VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

em meio à construção da relação entre Crisóstomo e Camilo, bem como de outros interessantes
personagens que os rodeiam, são apresentadas diversas dinâmicas concernentes às inter-

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


relações humanas entremeadas por sadismo, medo, culpa, inveja, amor, desejos, preconceitos, etc.
Ao observarmos a obra de Valter Hugo Mãe como um todo, deparamo-nos com cada personagem,
em algum ponto, fora de uma normatividade construída socialmente. A mãe de Camilo era uma
anã, tratada como pessoa anormal, como algo menos que gente, menos digna do desejo sexual
de um homem perante as demais mulheres da ilha por seu nanismo. Menos digna ainda, diziam as
outras mulheres que a cercavam, como que tomadas por um enigma sobre a anã, de ser objeto
dos amores de um homem. Negavam-lhe a sexualidade, tratando-a por vezes como “uma criança
que envelhece e não deixa de o ser” (Mãe, 2012, p. 25), necessitando, portanto, dos cuidados de
outrem. A anã, única personagem do enredo a não possuir um nome próprio, era tratada como
alguém reduzido a uma espécie de indignidade de reconhecimento enquanto ser humano e
enquanto mulher. Mas cabe ainda ressaltar que na obra, as mulheres, de modo geral, são tratadas
como dejeto:

O amor, sabiam todas por igual, era calhar em sorte o casamento e ficar a dois
para sempre, com beleza ou fealdade, higiene ou sujidade, conversa ou não, o
amor era casar e ter uma garantia contra a solidão. E depois pensavam na anã,
coitadinha, que não tinha amor, não tinha homem, não saberia como um homem
vasculha o interior de uma mulher. E pensavam que seria impossível. Porque um
homem dentro dela, se fosse um homem maduro, haveria de desarrumar-lhe até
os órgãos, a bater neles como se estropeasse à porta errada. Não fazia sentido
pensar que a anã, tão pequenina que era, pudesse ter-se disso, porque seria até
melhor que não soubessem do prazer, que não tivesse prazer, que não gostasse
do amor. Seria melhor que a anã tivesse um buraco para fazer xixi igual ao que
faz um prego na parede. Mais nada. Para fazer xixi. Mais nada. (Mãe, 2012, p. 24)
Não sabiam as mulheres da ilha que a anã era visitada secretamente por muitos homens do
vilarejo, até o dia em que ela engravidou. A dejetificação da mulher é reiterada na forma como os
258 homens a tratavam e, para além dessa insígnia, o sigilo das visitas dos vários homens para com
ela ter relações sexuais reitera também o seu corpo tomado como abjeto por sua condição de anã.

A anã suspirou. A verdade era que não tinha encontrado um cavalheiro e os


amores não lhe vinham nunca mais. Estava grávida sim, mas não era coisa do
amor, antes de uma rotina de solidão que enfraquecia a resistência e intensificava
as vontades. (Mãe, 2012, p.30)

A anã morreu assim que deu à luz a Camilo. A primeira figura paterna a adotá-lo foi um velho no
fim da vida, sozinho, o qual havia perdido a esposa. Tomado pelo luto proveniente da perda da
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

companheira e pela impossibilidade de terem um filho, acreditava que através daquela criança
encontraria uma forma de se compensar do amor. Acreditava que sendo o resto da anã, o menino

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


se transformava também no resto de sua esposa, seria uma pequena moeda a ganhar valor com
o tempo. Após a sua morte, Crisóstomo o adota, também ele um homem sozinho, para quem os
amores haviam falhado, com uma grande vontade de ser pai.

A companheira com quem Crisóstomo se casa no decorrer da trama traz marcas intimamente
vinculadas ao fato de ser uma mulher. Aos dezesseis anos de idade, tomada pela ideia de que era
necessário ser merecedora do amor de um homem e de que o caminho para a liberdade estava no
casamento e no meio das pernas – em sua ferida, como era nomeado seu órgão genital tanto por
seus pais quanto pelo namorado –, Isaura perde a virgindade com o jovem moço, mas percebe
que, ao final do ato, um e outro saíam diferentes.

O amor fazia com que um e outro ficassem diferentes. Não conseguia entender
tal coisa. Pensou que o rapaz tinha ido embora diferente dela. Não podia ser
que o amor tornasse as pessoas diferentes assim, a menos que não fosse amor
nenhum. (Mãe, 2012, p. 43)

Desprezada em seguida pelo namorado e tomada por ele continuamente apenas enquanto objeto
de seu prazer, acompanhamos a confirmação das traduções melancólicas sobre o que é ser uma
mulher, transmitidas a Isaura inicialmente por sua mãe.

A Isaura fechava a boca. Sentia-se feia, via-se feia. Lavava-se e sentia-se


suja, via-se suja. Adoçava-se e já não tinha como se prendar. Estava sempre
magoada e suja. A Isaura falava e ouvia-se mal, sentia-se burra. A Isaura fechava
a boca, sujava-se nos bichos, na terra, trabalha a sujar-se. Cortou o cabelo e
ficou feia, mesmo que já não se visse, mesmo que nunca mais quisesse olhar
para o espelho. Não comia, não queria mais ser gorda, ser rude, ser do campo.
Não queria ser ninguém. Queria diminuir até ser nada. Com o tempo, a Isaura
emagreceu até um graveto frágil e triste, a faltarem-lhe todas as hormonas de
259 ser mulher. A Isaura parecia um bocado de gente. A Isaura diminuíra. (Mãe, 2012,
p. 49)

Antes de Crisóstomo, a única pessoa que quis se casar com Isaura foi um gay, um maricas, como
é assim descrito na narrativa, o qual também é discriminado, chega a sofrer um espancamento, e
não se vê acolhido em sua diferença em relação à heteronormatividade nem mesmo por sua mãe.

Cientes da impossibilidade de apresentar em uma comunicação todos os personagens em suas


respectivas complexidades, nossa abordagem em relação à obra se dá a partir do seguinte
argumento: de que a adoção de Camilo por Crisóstomo e vice-versa, é apenas um preâmbulo para
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

as muitas outras adoções - secundárias, poderíamos dizer - que acontecerão ao longo do enredo.
A nosso ver, a noção de adoção nesta obra se apresenta de modo muito mais amplo, significando,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


em última instância, a possibilidade de nos posicionarmos de um modo cuidadoso e ético diante
da vulnerabilidade de uma pessoa, quando nos encontramos em condições de respeitar e manter
nossa própria vulnerabilidade frente a nossa alteridade interna. A vulnerabilidade do outro pode
trazer à cena a reabertura de uma situação originária, com seus restos anamórficos de mensagens
ainda por traduzir e a condição de possibilidade para a sua adoção reside no fato de que sua
passividade faz apelo à nossa própria passividade originária.

A adoção é possível, portanto, na medida em que eu e o outro somos, igualmente, sujeitos opacos,
incapazes de nos narrar de modo coerente e completo. Cientes de que conhecer a si mesmo e
o outro é um processo interminável, não passível de conclusão, é possível que estabeleçamos
uma relação ética de acolhimento ao outro, na medida em que nos reconhecemos igualmente
portadores de uma alteridade interna que nos descentra e que nos coloca continuamente a
trabalho. Para não cairmos para dentro de nós mesmos, é preciso que alguém nos adote a partir
de seu próprio enigma, alguém que nos acolha e nos autorize a tomá-lo por um outro, pois é capaz
de respeitar e manter sua própria alteridade interna.

Deparamo-nos com vários momentos em que os personagens são violentados de um modo que
associamos à uma incapacidade de adoção do outro. Associamos essa incapacidade de adoção do
outro manifestada por alguns personagens em relação às diferenças acima explicitadas, ao que
Butler (2015) nomeia como uma opacidade de si mesmo que incapacita conferir determinado tipo
de reconhecimento ao outro. Esse reconhecimento que poderíamos dizer seletivo, está relacionado
ao que Butler (2015) indica ser uma violência ética, “baseada na nossa cegueira comum, invariável
e parcial em relação a nós mesmos”, a qual ocorre diante do não reconhecimento de que somos, a
cada instante, variáveis e parciais em relação a nós mesmos (p. 60).
Laplanche (1998) auxilia-nos a refletir sobre este fenômeno ao abordar, em suas Problemáticas
II: Castração/Simbolizações, o modo como a instância egóica simboliza, lidando mais facilmente
260 com a polarização no campo das diferenças, das oposições binárias (como as que podemos ver
no livro em termos de diferenciações implícitas - mulher/homem, hetero/homossexual, normal/
anormal). Se no inconsciente não há contradição, se nesta instância é possível verificar um
funcionamento regido pela diversidade, no eu, por sua vez, trata-se de uma via facilitada de
elaboração um processo diferenciação, de categorização, sendo este muitas vezes enrijecido,
com grandes perigos de incorrermos naquilo que denominamos com Butler (2015) de violência
ética.

A insígnia não é a imagem de outra coisa, mas é a insígnia que cria aquilo que
simboliza. É a atribuição da insígnia que acaba por criar campos políticos e
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

não, forçosamente, campos políticos preexistentes que se dão uma insígnia


a título de sinal de reconhecimento. É o símbolo que tem aqui uma função

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


verdadeiramente criadora e que modela inteiramente uma distinção social e
política. Por conseguinte, é importante distinguir o atributo como qualidade e o
atributo como insígnia. (Laplanche, 1988, p. 45)

Ao trabalhar a temática do racismo embasado nas teorizações de Laplanche (1998), Belo (2018)
propõe haver uma operação de recalcamento-simbolização da diversidade humana para que
se produzam diferenças específicas entre grupos e/ou sujeitos. “Além da diferença sexual e de
gênero, há também a diferença de identidades grupais. Os códigos identitários se apoiam em
diferenças fenotípicas ‘criando’ tais diferenças como identidades” (Belo, 2018, p. 70). Consideramos
a presença desses códigos identitários perpassando a violência ética e as engrenagens que
inviabilizam a adoção do outro em sua alteridade nos personagens de Mãe.

Por outro lado, notamos como no enredo do autor, os personagens sofridos por violências atreladas
a um discurso normativo que marca seus corpos, conseguem se relacionar, fazer laços afetivos,
a partir de um ponto de exclusão. Eles se comunicam justamente a partir desse ponto de que não
estão na norma, de que são um referencial da diferença dejetificada à medida que a alteridade de
cada um evoca no outro (em um grupo de outros, mais precisamente falando) a necessidade de
simbolização, a qual quando realizada pelo viés binário enrijecido e norteado pela normatividade,
cria uma certa zona de pessoas abjetas. É a partir desses pontos em que cada um é um abjeto
que os vínculos de amor vão se constituindo entre eles. Alberto Manguel (2016), em prefácio da
segunda edição do livro, aponta que

Através de um desdobramento magistral de personagens estranhas e únicas,


Mãe oferece-nos uma espécie de catálogo da extraordinária variedade dos
elementos da nossa espécie e das admiráveis qualidades de cada um deles.
[...] Cada personagem, que num convencional romance de viés documental ou
sociológico seria um exemplo de injustiça social ou de transtorno psicológico, é
na obra de Mãe um símbolo de libertação e triunfo pessoal, uma demonstração
261 das infinitas possibilidades da alma e da imaginação humanas. (p. 12)

Concordamos com Alberto Manguel quanto à riqueza da trama e destacamos o tocante modo
como ela evidencia por meio das relações inter-humanas propostas por Mãe, a possibilidade de
adoção do estranho familiar vinculado à alteridade interna, presente em nós mesmos, e externa.
Ressaltamos esse ponto não como se por tais personagens serem “socialmente estranhos”,
eles pudessem estabelecer vínculos baseados nessa identificação caricatural. Mas por uma
identificação profunda com a familiaridade da estranheza singular de cada um e de todos. Perante
a vulnerabilidade do outro e da reabertura da situação originária, da identificação com uma posição
de passividade, a operação de recalcamento-simbolização da diversidade humana de um modo
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

mais engessado, produzindo diferenças específicas entre grupos e/ou sujeitos, dejetificando a
diferença, não é a única possibilidade frente à mensagem enigmática endereçada pelo outro. Aqui

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


nos referimos ao ponto de reabertura da situação originária frente à vulnerabilidade do outro de
um modo menos enrijecido, de forma que os processos de simbolização, ainda que perpassados
por categorizações, permitam o acolhimento das diversidades.

Nesse sentido, Crisóstomo estende o ensinamento destinado a seu filho também a nós, quando
assim lhe diz: “nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. O miúdo
perguntou: porque dizes isso, pai. O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu,
um dia, te sentires o dobro do que és.” (Mãe, 2012, p. 128).

REFERÊNCIAS

Belo, F. R. R. (2018). Raça como código tradutivo: uma leitura de Quarto de Despejo. In Anais do VI
Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Literatura. Leituras interdisciplinares sobre racismo:
Quarto de despejo. Recuperado de http://www.conpdl.com.br/anaisconpdl6.pdf

Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

Laplanche, J. (1998). Problemáticas II: Castração/Simbolizações. (A. Cabral, Trad.). São Paulo:
Martins Fontes.

Mãe, V. H. (2012). O Filho de Mil Homens. São Paulo: Cosac Naify.

Manguel, A. (2016). Prefácio. In V. H. Mãe, O filho de mil homens. São Paulo: Globo - Biblioteca Azul..
SUMÁRIO

MITO MATERNO: A IDEALIZAÇÃO DA


262
FIGURA MATERNA NO CONTEXTO DE
CUIDADO EM SAÚDE DE MULHERES
QUE DECIDEM ENTREGAR SEUS
FILHOS PARA ADOÇÃO

AUTORIA
MICHELLE KARINA SILVA
Psicóloga e Coordenadora do serviço de Psicologia no contexto hospitalar.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Bacharel em Psicologia e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade


Federal de Minas Gerais – UFMG. Doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFMG.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: michelle.psicologiaufmg@yahoo.com.br

PAULA DE OLIVEIRA ALVES


Psicóloga da saúde. Bacharel em Psicologia pela PUC Minas.
Especialista em Intervenção Psicossocial pelo Centro Universitário UNA.
CONTATO: paula.psicologiapuc@gmail.com

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar um relato de experiência do atendimento
psicológico no momento da decisão de puérperas que optam pela entrega dos filhos para a
adoção. Para tanto, será apresentado um caso clínico atendido no contexto hospitalar em uma
maternidade pública de Belo Horizonte. A partir da discussão do caso, serão problematizadas
as questões relacionadas ao cuidado em saúde materno-infantil, na tentativa de apontar
o desconforto da equipe de saúde nestas situações, nas quais valores e crenças emergem
como fatores de obstrução do cuidado. No intuito de levantar tal discussão acerca desses
elementos, busca-se o recurso das concepções teórico - conceituais de Elizabeth Badinter
sobre as construções sócio-históricas da imagem idealizada da figura materna. Em especial,
discute-se o contexto do cuidado materno-infantil utilizando o mito materno como um
operador de leitura do cuidado em saúde no contexto de entrega voluntária de bebês.
PALAVRAS-CHAVE: Entrega voluntária de bebês; Mito materno; Cuidado materno-infantil.
INTRODUÇÃO

263 Este trabalho tenta dar contornos à expressão de um fenômeno que parecer ter elementos
polissêmicos e multifacetados nos processos sociais de nossa cultura, com consequências
para as situações de assistência em saúde. Nesse sentido, identifica-se que as concepções
explicitadas por Badinter em relação ao mito do amor materno ganham expressões muito
especificas no cuidado em saúde ofertado a mulher. Para tanto, faz-se a exposição de um relato
de experiência sobre a resposta afetivo-clínica da instituição no cuidado da mulher que decide
doar seu bebê. Os fenômenos presentes nessa situação parecem repetir-se de forma inviabilizada
e insuficientemente problematizada na dinâmica do ato de cuidado materno infantil no hospital,
motivo pelo qual entendemos a importância de discuti-los nesse trabalho.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

RELATO DE EXPERIÊNCIA: A FRAGILIDADE PSÍQUICA DIANTE DO OLHAR DO OUTRO COMO


FORMA DE JULGAMENTO NO ATO DA DOAÇÃO DE BEBÊS

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Trata-se de Selma, filha única, casada há mais de 10 anos, mãe de um casal adolescente. Admitida
no pronto atendimento do hospital com queixas de dor abdominal, acompanhada do marido. Após
exames realizados, Selma e seu companheiro, Marcos, são informados do diagnóstico de gravidez
w sobre o início do trabalho de parto de gemelares de 36 semanas. Imediatamente, Selma é
transferida a maternidade do hospital já em período expulsivo da primeira criança, negando a
maternidade, dizendo desconhecer a gestação. O companheiro, já nesse momento, deixa o
hospital, chamando a mãe da paciente para acompanhar a filha.

Nesse momento, inicia-se um conflito afetivo significativo, pois Marcos havia realizado um
procedimento cirúrgico que o impedia de ter mais filhos. Após o nascimento das duas crianças,
Selma decide não ver as gêmeas, sendo as duas recém-nascidas encaminhadas à unidade
neonatal da maternidade.

O serviço de psicologia é acionado pela Enfermagem, solicitando atendimento à paciente diante


do anúncio de Selma de que não teria intenção de cuidar das crianças e que as deixaria para
adoção. O relato da equipe é de que, no momento do nascimento, a parturiente não teria querido
contato com as crianças.

Durante todo o período de internação de Selma no hospital, o companheiro Marcos não retorna,
cortando todas as vias de contato com a paciente, sua família e o hospital.

Em atendimento, com uma posição ofendida, a parturiente afirmava que o pai das crianças
seria o companheiro e que faria um exame de DNA para comprovação do fato, afirmando na
mesma sentença que o companheiro sofrera vasectomia há alguns anos. Ambivalente, conta de
crises na relação e da separação do casal no último ano. Essa situação forma comentada pela
paciente também com a equipe de enfermagem, sendo repetidamente retratada nos corredores
assistenciais após seu desligamento da situação hospitalar. O psiquismo de Selma parecia
264 denunciar, na repetição afirmativa da fala, o mal-estar internalizado, denunciando a fantasia de
ter a paternidade do outro questionada publicamente, num endereçamento neurótico de uma
formação reativa ambivalente e expositiva. Ainda em atendimento, Selma mostrava-se pouco
produtiva, dizendo pouco de suas vivências. Dizia da ambivalência do sentimento da maternidade,
uma vez que a gestação em questão não tinha sido planejada e tampouco desejada. Afirmava não
se ver mais como mãe, uma vez que seu desejo já se realizara com os outros filhos adolescentes.
Já no primeiro atendimento, Selma anuncia seu desconforto com a resposta subjetiva da equipe
de saúde que, com posturas invasivas e insistentes, quase indignadas, confrontavam a decisão
tomada de deixar as crianças para adoção: “Você tem certeza que não quer conhecê-las?”. Em
tom reativo, endereça a afirmativa sobre o lugar de direito de sua tomada de decisão.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

O início de uma postura mais indecisa diante de sua decisão inicial foi notada a partir do segundo

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


dia de internação. A ambivalência de Selma foi ganhando contornos mais evidentes diante do
confronto com o desejo da avó das crianças. A primeira visita na unidade neonatal para conhecer
as gêmeas aconteceu diante do “convite” reivindicatório da avó, Carmem, para o contato da
paciente com as crianças. Aparentemente associada ao desejo da avó das crianças, sua mãe a
convidava sempre a visitar as gêmeas na unidade neonatal, mesmo com o desconforto de Selma
ao realizar essas visitas, somada ainda às perguntas diárias dos profissionais da enfermagem
questionando sobre a certeza de sua tomada de decisão acerca da doação das crianças, fato
este que a incomodava consideravelmente, como se não tivesse o direito de escolha diante de
tal vivência. Selma menciona em vários momentos os olhares de desaprovação dos profissionais,
em momentos assistenciais. O nascimento da ambivalência e da “abertura” a outra possibilidade
decisória provocou a saída das gemelares da unidade neonatal para ficar no alojamento conjunto
com Selma, visando ao fortalecimento de vínculo de mãe e bebês. Mas os efeitos ambivalentes
produzidos pela insistência do outro em não entregar dos bebês para adoção naquele momento
não geraram maior acolhimento ou empatia, ao contrário disso, foram também objeto de uma
narrativa intolerante que banalizava a indecisão de Selma quanto ao fato.

Em atendimento, Carmen, mão de Selma, assume a posição ilegítima de adoção afetiva dos bebês,
não excluindo sua surpresa com a descoberta repentina da gestação da filha. Mãe solteira de
Selma, a avó relata um histórico de comportamento introspectivo, inibido e reservado da filha.
Afirmava categoricamente que a filha ficaria com as crianças em sua própria casa na continuidade
dos cuidados, repetindo e reservando ao sujeito, a filha, o lugar apagado e inibido. Como monitora
de bebês em outra maternidade, a avó deixa entrevisto sua não autorização à filha para recusa
da identidade de mãe para essas crianças. Percebe-se que, além da posição afetivo-clínica hostil
da equipe de saúde na acomodação da subjetividade da paciente na situação, a participação de
Carmem como alteridade mãe-mulher que desautoriza de forma mais primitiva outros modos de
subjetivação da filha foi decisiva para o nascimento da angústia em relação aos bebês. Parece
haver, nesse sentido, a intrusão de “mensagens-vereditos que o indivíduo deverá imperativamente
adotar sem que, para tanto possa fazê-las suas, metaboliza-las ou recalca-las” (Cardoso, 2000,
265 p. 34).

Ao passar os dias da internação diante da “abertura” de uma nova possibilidade decisória na


tentativa de um fortalecimento de vínculos entre mãe e bebês, a saber, o contato da paciente no
alojamento com as crianças, Selma narra sobre os sentimentos de ambivalência e a dúvida quanto à
decisão tomada, não sabendo o que fazer acerca da doação. Diz de forma contida, porém com muito
desconforto e hostilidade, sobre a postura de profissionais quanto à sua dúvida de deixar ou não as
crianças para a adoção. Esse conteúdo é repetido em quase todos os atendimentos realizados pelos
profissionais de Psicologia e Serviço Social. Nesse período de alojamento com as crianças, percebe-
se a criação de uma fantasia de reconhecimento do outro com recurso a suposta “torcida” e incentivo
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

da não doação dos bebês. Muito indecisa diante do ataque de afetos e representações da equipe,
repercussões psíquicas importantes são notadas. Selma estampa uma angústia transbordante,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


uma violação de seu processo de escolha, introjetando em sua fala um desejo de fora para dentro e
alheio, modulado em conteúdos psíquicos acusadores que trazem para sua fala uma interrogação
que associa o ato de doação ao ato de crueldade. É interessante notar que o psiquismo reage
internalizando a hostilidade opressora do outro, dando evidências da face de um agente psíquico
interno retratado por Freud como por “um lado... um representante da realidade; de outro, a de
um superego – instância que extrai das pulsões a sua força” (Cardoso, 2000, p. 27), indicando na
situação clínica, como a pulsão que nutre esse agente, criando assim dúvidas angustiantes que
se enraízam em sua realidade psíquica. Importante pontuar que, durante o período de internação,
Selma mostrou-se pouco produtiva, com choro constante, angustiada e transbordante.

Diante de um processo extremamente angustiante de sete dias de internação, com intenso


sofrimento, Selma faz a opção da doação das crianças e solicita à assistente social que encaminhe
o caso para a Vara da Infância e Juventude. Diante e tal decisão, Selma teve alta hospitalar, com as
crianças permanecendo no hospital até a conclusão do processo. No momento de sua alta, Selma
pede à assistente social que permaneça na sala da Psicologia e Serviço Social, aparentemente
solicitando, por mais um momento, a proteção de uma parede afetivo-simbólica, capaz de aliviar
seu desconforto diante da necessidade de sustentar seu desejo de ir embora sem “olhar para
ninguém”. No momento de sua saída do hospital, durante seu trajeto até o elevador, outras
parturientes saíram de seus quartos para testemunhar a cena.

Selma esteve na Vara da Infância e Juventude por duas vezes, por orientação do Serviço Social,
muito atuante nesses casos para esclarecimento dos direitos civis da mulher e criança. Na primeira
ocasião do encontro com a Justiça, estampava sua dúvida e sua angústia. Foi orientada, assim, a
pensar em sua decisão e retornar à Vara da Infância e Juventude em outra data. Já na segunda
audiência, Selma faz a decisão de doação das crianças.
Apesar de ser uma decisão já conhecida pela equipe, após a tomada de conhecimento do fato houve
a explosão de boatos na comunidade hospitalar. O gozo escandalizado fazia parte dos comentários
266 sobre os supostos motivos da doação. De acordo com relato de uma técnica de enfermagem, o
motivo da entrega das crianças seria uma suposta traição de Selma em seu casamento.

Na mesma época, outra mãe, usuária de crack, em vivência de miserabilidade, havia deixado
seu bebê no hospital, sem formalização da entrega da criança, apenas não retornando para
buscar o bebê, que nascera com complicações. Notadamente, o ato foi acolhido com tolerância
e naturalidade pela equipe, talvez com certo alívio, com o desejo de que a criança fosse poupada
dessa forma de maternidade.

Ressalto que, durante o processo de internação de Selma, houve uma vinculação à escuta da
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psicologia, com Selma endereçando seu pedido de continuidade do atendimento psicológico fora
do ambiente hospitalar em clínica social. Diante da demanda de Selma de dar continuidade ao

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


atendimento, este foi agendado por duas vezes, com ausência da paciente nas duas situações.
Em contato com Selma, percebeu-se que houve recuo de sua parte relacionado ao seu cuidado
psíquico, descrevendo vários motivos para o não comparecimento aos atendimentos de maneira
vacilante. Retomando, não conscientemente, nos aspectos não conhecidos da fala, o mal-
estar deixado pela experiência de exposição que é relatado pela paciente, os olhares afeto-
normativos hostis pela equipe de saúde e a conformação de que a demanda de sofrimento em
relação à doação das crianças sustentava-se somente na presença do outro opressor. Herança
transferencial “mal-dita” não oportunamente tratada para haver uma vinculação do sujeito a uma
escuta mais depurada da cena traumática de cuidado, não para uma continuidade de tratamento
de uma demanda inexistente, mas para sustentação de uma abertura possível para o caso de uma
elaboração e uma ressignificação traumática a posteriori.

A METAMORFOSE HISTÓRICA DO CONCEITO DE MATERNIDADE

Ao publicizar este caso, entende-se que há um viés que é sustentado pelo que Badinter (1985)
pontua acerca do mito do amor materno. Por que é tão difícil e desconfortável atender uma mulher
que faz a opção pela doação do bebê? O que há de tão escandaloso nos olhares e manejos de
profissionais quando ocorre tal situação? Para estes questionamentos, buscaremos em Badinter
(1985) como essa relação com a maternidade foi construindo-se ao longo de nossa história e de
nossa cultura. A autora ressalta que o sentimento de amor e devoção é bastante diverso entre as
culturas e que o instinto maternal foi idealizado historicamente, apontando que o sentimento de
amor à criança é inato às mulheres, mas que tal sentimento é vivenciado de maneiras distintas
por cada uma delas.

Badinter (1985) volta ao passado e cita que a configuração de família, com pai, mãe e filhos teve
sua origem no Oriente. A autora ressalta que a figura masculina era a de responsável por zelar
por seus membros, e, assim, o pai era o único responsável pela tomada de decisões perante a
sociedade. Observa-se, com isso, que o poder paterno era o único existente, não havendo, assim,
267 espaços para outros sentimentos. Desta forma, o direito preponderante do pai foi unânime até o
começo da Idade Média, com a entrada da Igreja e do Estado intervindo em seu poder soberano
sobre os filhos e a esposa.

A autora pontua, ainda, a visão a partir da qual a criança era contemplada: era vislumbrada como
algo ruim, que desagradava o pai e a mãe. Os filhos eram vistos como tediosos e que, por sua vez,
não dispensavam muitos cuidados. Badinter (1985) descreve que, ao nascerem, as crianças eram
enviadas geralmente ao campo, para os cuidados das amas-de-leite. Nesses locais, os cuidados
de higiene eram precários, o que muitas vezes acarretava nas mortes dessas crianças. Com isso,
para “resolver” essa questão, muitos pais cometiam o infanticídio, e outros preferiam a indiferença
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e um possível abandono, podendo este ser físico ou moral.

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Contudo, quando havia a rejeição da criança, o primeiro sinal de tal atitude era a recusa em dar-
lhe o seio, e as amas de leite eram convocadas para suprir sua necessidade biológica. Ainda
segundo Badinter (1985), até meados do século XVIII, os índices de mortalidade infantil eram
bastante elevados, o que acarretava nas mortes de muitas crianças antes de completarem um
ano de vida. Acerca da amamentação, a autora salienta que esta prática interferia diretamente
no relacionamento do casamento, uma vez que as relações sexuais eram proibidas durante a
gestação e o período de aleitamento. No momento do retorno destas crianças aos seus lares, por
volta dos cinco anos de idade, isso se dava nas seguintes condições: “frequentemente estropiada,
malformada, raquítica, enfermiça ou mesmo gravemente doente” (Badinter, 1985, p. 64).

Diante do caso de Selma, faz-se necessária uma reflexão acerca das representações que situam
a vivência da mulher em uma naturalização biologizante do ato de aleitamento, pois o que parece
é que pouco se avançou em relação à sabida realidade de que, já na Antiguidade e Idade Média,
a relação mãe-filho era marcada pela recusa alimentar, pela ausência de intimidade e pela
terceirização da intimidade pelas amas-de-leite.

Ainda hoje, estudos apontam que, mesmo o ato de aleitamento exclusivo, indicado por Badinter
como o pilar da construção do modelo de maternidade (Kalil & Costa, 2013), talvez o mais associado
ao imaginário da vivência de plenitude entre mãe-bebê, ocorre no Brasil e no mundo em taxas
muito abaixo do recomendável pela Organização Mundial de Saúde (Marques et al, 2011). Portanto,
os autores apontam a complexidade do ato do aleitamento materno, não sendo considerando
somente um ato biológico, e sim “uma prática fortemente influenciada pelo contexto histórico,
social e cultural (crenças e mitos) em que a mulher –mãe-nutriz vive” (Marques et al, 2011, p. 2).

Continuando a descrição histórica acerca da maternidade, Badinter (1985) ressalta que, em


meados do século XVIII, houve uma espécie de reviravolta no conceito de “maternidade”. O papel
de mãe começou a modificar-se, tendo em vista que inúmeras notícias começaram a circular
descrevendo a importância da amamentação e do cuidado por parte da mãe, e o conceito de “amor
268 materno” configurou-se como um sentimento. Essa nova ordem por parte de terceiros, entre eles,
o Estado, configurou-se como uma espécie de salvamento das crianças, buscando, assim, reduzir
a mortalidade infantil diante do nascimento do capitalismo, pois as crianças eram vistas como
riquezas e, assim, o ser humano ”converteu-se numa provisão preciosa para um Estado, não só
porque produz riquezas, mas também porque é uma garantia de seu poderio militar” (Badinter,
1985, p. 108).

Percebe-se, assim, que a mãe assume um papel de auxiliar do Estado, protegendo suas riquezas,
voltando para elas a função de amamentação e cuidado com seus filhos. Acontece uma nova fase,
a das provas de amor, sendo a primeira delas o próprio aleitamento, como fonte de segurança para
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a vida das crianças. Com isso, o papel da boa mãe ganha espaço com “novas” responsabilidades
referentes ao cuidado e à higiene da prole.

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É relevante pensar que o mito do amor materno emergiu de uma necessidade econômica e
demográfica, e, anteriormente a isso, as mães não despendiam cuidados efetivos com seus
filhos. Badinter (1985) posiciona-se no sentido de que as atitudes e cuidados maternos podem
manifestar-se ou não.

O CUIDADO DA EQUIPE DE SAÚDE NA MATERIALIZAÇÃO DO SUPEREGO

Faraj et al (2016) salientam que, no momento que há a decisão pela mulher de entregar a criança
para a adoção, a rede de significados que culturalmente instalou-se sobre a naturalidade do amor
materno se “quebra”. Assim, com esse rompimento, essas mulheres têm, diante do olhar do outro,
uma culpabilização pela decisão tomada, como se houvesse uma violação deste amor visto como
algo natural.

Diante das narrativas apresentadas pela equipe de saúde no caso em tela, entendemos que os
relatos compõem um cenário simbólico atacante e hostil. Nesse entendimento, Cardoso (2000)
aponta que

o ego teme a invasão do “mau”, essa sombra do objeto que, caindo sobre ele,
põe em perigo a eficácia de suas fronteiras. O paradigma aqui é a ameaça da
perda do amor, ameaça não somente de ser privado do objeto, mas também de
se achar exposto ao seu lado demoníaco. Ocupado por uma força radicalmente
estrangeira diante da qual não há sequer a possibilidade de uma formação de
compromisso, o ego é compelido a agir a partir de um imperativo “estrangeiro”,
modalidade paradoxal de defender-se, de “responder”. (pp. 34-35)
Pensando nas considerações de Cardoso (2000) e retomando o caso apresentado, vimos com
clareza como essa exposição do superego e a ameaça do outro localizar seu lado demoníaco se
269 manifesta na fala de Selma, que traz uma associação sobre o ato de doação das crianças ser um
ato de crueldade. Parece haver, nesse sentido, uma conexão entre a posição hostil da alteridade e
uma concepção mítica sobre o que é ser mãe. Essa junção compõe um cenário simbólico atacante
e opressor para Selma.

Percebemos claramente nesse relato de experiência que é de suma importância e necessidade o


trabalho com as equipes de saúde acerca dos manejos e atendimentos a pacientes que fazem a
opção em deixar os filhos para a adoção, de como essa representação do amor materno, somado ao
julgamento moral e de valores do outro, tem repercussões psíquicas importantes nesse processo.
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Assim, é essencial trabalhar com as equipes de saúde acerca dos atendimentos a essas mulheres,
pois, assim como descreve Badinter (1985), não há condutas universais de sentimentos e desejos

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dentro da maternidade. Tais sentimentos são únicos e cada mulher que se torna mãe vivencia
estes afetos e possíveis vínculos de maneira singular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos, neste trabalho, como o conceito de “maternidade” modificou-se ao longo da história, e que
o amor materno inato às mulheres configura-se na verdade como um mito. Badinter (1985), em
seu trabalho, apresenta as influências principalmente da Igreja e do Estado para que haja uma
mudança da função materna e de seus sentimentos. Apresentou-se, nesse percurso, mulheres
que rejeitavam seus filhos e terceirizavam funções, como a de aleitamento, função esta realizada
pelas amas-de-leite.

Diante da exposição do relato de experiência apresentado neste trabalho, sustentamos que tal
tema tem sua relevância e importância significativa dentro do cuidado materno-infantil e que
estas sejam levantadas e debatidas.

Nesse sentido, destaca-se como é essencial que as equipes de saúde apresentem uma mudança
de postura e que tais cuidados e manejos com estas mulheres sejam ofertados de uma forma
ética, sem julgamentos morais e de valores, respeitando a decisão tomada e, principalmente, não
sendo o outro opressor e escandalizado diante de uma situação que já se configura como geradora
de ansiedade, de renúncias e de sofrimento.

REFERÊNCIAS

Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Cardoso, M. R. (2000). O superego: em busca de uma nova abordagem. Revista Latinoamericana
de Psicopatologia Fundamental, 3(2), 26-41.
270
Faraj, S. P. et al. (2016). “Quero entregar meu bebê para adoção”: o manejo de profissionais da
saúde. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 32(1), 151-159.

Kalil, I. R.; & Costa, M. C. da. (2013). Entre o direito, o dever e o risco: olhares de gênero sobre
amamentação. Revista PerCursos. Florianópolis, 4(27), 7-32.

Marques, E. S.; Cotta, R. M. M.; & Priore, S. E. (2011). Mitos e crenças sobre o aleitamento materno.
Ciência & Saúde Coletiva , 16 (5), 2461-2468.
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SUMÁRIO

271 MITOS BIOLOGIZANTES, MITOS


DA ORIGEM: EMPECILHOS
OU FAVORECEDORES DO
PROCESSO DE ADOÇÃO?

AUTORIA
FELIPPE F. LATTANZIO
Professor do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da Universidade
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Federal de Minas Gerais – UFMG e do Curso de Graduação em Psicologia da


Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais – FEAD. Doutor em Psicologia.

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CONTATO: felippelattanzio@gmail.com

RESUMO
A partir da experiência do autor na condução de processos de habilitação para adoção
no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (o autor foi psicólogo judicial da Vara da
Infância e da Juventude por pouco mais de dois anos), propõe-se analisar as limitações e
potências de alguns mitos frequentes presentes nos pretendentes à adoção. Agruparemos
os mitos em quatro grandes grupos: mitos que buscam explicar elementos de caráter e
personalidade através de fantasias biologizantes/genéticas (p. ex.: “às vezes tenho medo
de que meu filho se torne um criminoso por causa da carga genética que herdou de seu
pai biológico”); mitos que buscam explicar caracteres de personalidade a partir do recurso
aos esquemas de gênero da normatividade social (ex.: “prefiro uma menina, pois acho que
é mais fácil de educar e moldar do que um menino”); mitos biologizantes que vinculam
e restringem a experiência de parentalidade a semelhanças de cor de pele e raça; mitos
que supervalorizam a influência das primeiras vivências na formação da personalidade
(muitas vezes próximos de um determinismo total das primeiras vivências sobre o caráter
da criança). A partir daí, analisaremos tais mitos a partir de um duplo viés: de um lado,
pensando as relações e cruzamentos entre categorias socialmente normativas e o
processo de adoção; de outro, entendendo o aspecto defensivo desses mitos, no sentido
de proteger da experiência de confronto com a alteridade propiciada pela adoção. Busca-
se compreender o impacto que tais questões têm nos processos de adoção. Ao mesmo
tempo, deve-se considerar que é justamente o ato de supor algo a respeito de um ser cuja
personalidade ainda não se formou que é, paradoxalmente, responsável pelo processo de
272 humanização, permitindo que um sujeito possa advir. Se considerarmos que tal suposição
frequentemente faz uso de certas categorias normativas (p. ex., nomear uma criança, dar
roupas e brinquedos com certas características...), cairemos num certo paradoxo sobre o
valor dos mitos. A partir dessa constatação, sugere-se que o manejo clínico em relação a
esses mitos atenda à complexidade desse paradoxo, buscando, de um lado, desconstruir
determinadas formas defensivas que impedem uma relação mais livre com a alteridade e,
de outro lado, deixando espaço para que algo dessa suposição fantasística sobre a criança
adotada possa ter lugar. Ao fim, advoga-se pela importância de se pensar no campo de
intervenções possíveis no momento das entrevistas de habilitação para a adoção..
PALAVRAS-CHAVE: Habilitação para adoção; Mitos biologizantes; Manejo clínico.
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As entrevistas com psicólogos judiciais são parte constitutiva do processo de habilitação para a
adoção. Nessas entrevistas, os pretendentes a entrar no cadastro de adoção são avaliados por
273 profissionais da psicologia no que concerne às suas motivações para adotar, às fantasias, aos
desejos... Mais do que propriamente um espaço de avaliação, tais entrevistas são oportunidades
muito ricas para trabalhar com os pretendentes questões relativas às suas expectativas, desejos
e mitos em relação à adoção e aos futuros filhos oriundos desse processo.

Como é frequente nos pontos de interseção entre a psicologia e o direito, os profissionais da


psicologia subvertem em grande parte a demanda avaliativa, transformando esses espaços
em possibilidades de intervenção e de construção. Logicamente, alguns casos convocam uma
postura avaliativa, possibilidade para o qual o psicólogo deve estar preparado.
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Pois bem, gostaria de trazer para discussão algumas percepções que obtive e construí durante
o período em que fui psicólogo judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – TJMG,

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atuando nos processos de habilitação para adoção. Trata-se de uma pequena e breve contribuição
para se pensar o universo de afetos e defesas mobilizados pelo contexto geral da adoção.

Nas entrevistas de habilitação, chamou-me atenção especial, entre outros aspectos, o relato de
algumas fantasias comuns que os pretendentes à adoção faziam a respeito da origem dos futuros
filhos adotivos, que, pela recorrência com que apareciam, fizeram-se relacioná-las à noção
de “mitos fundadores”. Antes de relatar o teor de algumas dessas fantasias, detenhamo-nos
rapidamente sobre a ideia de “mito”. Aproximemo-nos dela inicialmente pelas definições presente
no Dicionário Michaelis (2019):

1. Fábula que relata a história dos deuses, semideuses e heróis da Antiguidade


pagã. 2. Interpretação primitiva e ingênua do mundo e de sua origem. 3. Tradição
que, sob forma alegórica, deixa entrever um fato natural, histórico ou filosófico.
4. Exposição simbólica de um fato. 5. Coisa inacreditável. 6. Enigma. 7. Utopia. 8.
Pessoa ou coisa incompreensível.

O que podemos depreender em comum dessas diversas definições, para os propósitos que aqui
nos interessam? Ora, é o enigma, no sentido laplancheano do termo, que mobiliza a construção
do mito. Aquilo que é desconhecido tem força suficiente para exigir uma construção que o torne
inteligível, mesmo que recorrendo a explicações que extrapolem a da racionalidade. Pensemos,
assim, na função dos mitos no contexto de pais e mães que se colocam a pensar sobre uma
possível experiência de adoção, e que, portanto, encontram-se mobilizados pelos afetos, dúvidas,
fantasias, preconceitos e enigmas dessa situação.

Vejamos alguns mitos comuns que apareceram, explícita ou implicitamente, nas entrevistas de
habilitação que conduzi e que, acredito, tenham considerável recorrência no imaginário e nas
fantasias dos pretendentes à adoção. Enumerarei quatro mitos bastante comuns:

274 1. Mitos que buscam explicar elementos de caráter e personalidade dos futuros filhos através de
fantasias biologizantes e/ou genéticas (por exemplo: “às vezes tenho medo de que meu filho
se torne um criminoso por causa da carga genética que herdou de seu pai biológico”);

2. Mitos que buscam explicar caracteres de personalidade a partir do recurso aos esquemas de
gênero da normatividade social (por exemplo.: “prefiro uma menina, pois acho que é mais fácil
de educar e moldar1 do que um menino”);

3. Mitos biologizantes que vinculam e restringem a experiência de parentalidade a semelhanças


de cor de pele e raça, como se semelhanças nesses aspectos fossem imprescindíveis para o
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surgimento de um sentimento legítimo de parentalidade;

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


4. Mitos que supervalorizam a influência das primeiras vivências na formação da personalidade,
muitas vezes próximos de um determinismo total das primeiras vivências sobre o caráter da
criança.

A partir da escuta dessas recorrências, surge a indagação sobre a função desses mitos na
economia psíquica e fantasística desses sujeitos. Propomos, nesse sentido, duas funções
principais e igualmente importantes desses mitos.

Em primeiro lugar, ao criarem uma explicação na maioria das vezes a-histórica para aspectos
das relações, das personalidades e das subjetividades, os mitos desempenham uma clara função
defensiva. Mas servem para se defender do quê? Ora, da radicalidade de perceber que não
existe essência anterior do eu, que este se constrói nas relações intersubjetivas. A radicalidade
dessa percepção coloca em xeque o lugar de unificação falsa do próprio eu daquele que se
encontra mobilizado pela experiência de adotar. A construção essencializante e unificadora que
frequentemente fazemos de nosso próprio eu é colocada em xeque. Pensar na responsabilidade
radical frente ao processo de formação de outro eu, estando desamparado pelo outro mito
biologizante e onipresente na cultura da origem do mesmo sangue (por exemplo: “Fulaninho herdou
o caráter do avô”, “Ciclaninho é birrento como sua mãe”, “Mariazinha é esquentada como a tia”,
“Joãozinho puxou a hipocondria de seu pai”...), gera angústia, que por sua vez é tamponada pelos
mitos acima descritos. Estes adquirem, assim, função de defesa frente a esse desamparo, frente
à alteridade que se impõe, que se escancara por estar desatrelada do biologicismo onipresente na
lógica da herança. Não é surpreendente que essa defesa frequentemente se utilize de categorias
normativas (portanto preconceituosas) para dar forma aos mitos: questões de gênero, raça e

1. Note-se que a palavra “moldar” era usada com muita frequência pelos homens que se propunham a adotar.
outras são convocadas com frequência. Pensando no manejo clínico dessas questões no espaço
de intervenções proporcionado pelas entrevistas de habilitação (e também em outros contextos
275 possíveis de atendimentos clínicos de pretendentes à adoção), sustentamos que o combate a essa
atualização de preconceitos é fundamental, pela via da desconstrução e do apontamento das
incongruências e violências dessas falas. No entanto, é fundamental localizar a função defensiva
desses mitos, pois somente assim o sofrimento psíquico e a angústia subjacente a ele podem
aparecer, tornando as intervenções mais efetivas.

Ao mesmo tempo, e em segundo lugar, deve-se considerar que é justamente o ato de supor algo
a respeito de um ser cuja personalidade ainda não se formou que é, paradoxalmente, responsável
pelo processo de humanização desse ser, permitindo que um sujeito possa advir. Se considerarmos
que tal suposição frequentemente também faz uso de certas categorias normativas (por exemplo,
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nomear uma criança, dar roupas e brinquedos com certas características...), percebemos que
o ideal de reconhecimento pleno da alteridade é impossível, dado que implica num nível de

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


desligamento que não fornece a unificação necessária para o surgimento de um eu. Em termos
de manejo clínico, é possível aqui tentar deslocar os mitos do lugar pregnante de essencialismo
normativo para mostrar aos pretendentes à adoção que também nessa experiência de família é
possível a construção de mitos singulares, atrelados à história das famílias e dos sujeitos. Isso fica
evidente, por exemplo, logo nos primeiros meses de convivência entre a criança adotada e os pais,
que frequentemente também se permitem supor que a criança “puxou” ou herdou determinada
característica deles.

Frente a essa dupla função dos mitos, assim, faz-se necessário pensar no manejo clínico,
sempre particular, desses elementos. Tal manejo clínico deve atender à complexidade desse
paradoxo, buscando, de um lado, desconstruir determinadas formas defensivas que impedem
uma relação mais livre com a alteridade e, de outro lado, deixando espaço para que algo dessa
suposição fantasística sobre a criança adotada possa ter lugar. Nesse sentido, considero, enfim,
que o processo de habilitação é um campo rico para essas intervenções, e que não deve ser
excessivamente abreviado, podendo fazer uso (desde que descolado do caráter eminentemente
avaliativo) de várias entrevistas para tal.

REFERÊNCIAS

Mito. (2019). In Michaelis – Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Recuperado de http://


michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/mito/
SUMÁRIO

276 NOVAS RESPOSTAS A


ANTIGOS DILEMAS NA
ADOÇÃO DE CRIANÇAS
MAIS VELHAS

AUTORIA
JÉSSICA MARA OISHI
Psicóloga-Judiciária no TJSP. Graduada pelo Instituto de Psicologia da USP -
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

IPUSP. Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP.


CONTATO: jessica.oishi@uol.com.br

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CARLA ALESSANDRA BARBOSA GONÇALVES KOZESINSKI
Psicóloga-Judiciária no TJSP. Graduada pelo Instituto de Psicologia da USP – IPUSP.
Mestre em Psicologia Clínica pelo IPUSP. Formação em Psicanálise, Perinatalidade e
Parentalidade pelo Instituto Gerar.
CONTATO: carlaabgk@gmail.com

SIMONE TREVISAN DE GÓES


Psicóloga-Judiciária do TJSP. Graduada pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUCSP. Especialista em Psicologia Social pelo CRP/SP. .
CONTATO: Simone.trevisan@gmail.com

RESUMO
O artigo apresenta uma experiência realizada em 2017, pela equipe de Psicologia do
Fórum Regional I – Santana, de concretização de um trabalho de reavaliação bienal
dos pretendentes a adoção, inscritos no Cadastro Nacional de Adoção, no modelo de
grupo participativo e reflexivo, trabalhando-se aspectos relacionados à espera pelo
filho(a) adotivo(a) a abordando questões de sensibilização para adoções consideradas
difíceis. Observamos, nas entrevistas individuais de avaliação bienal obrigatória, que os
pretendentes a adoção apresentam angústias em relação à demora de terem seu projeto
concretizado, como apontado por Weber (2012), situação que gera um desestímulo com
relação ao processo de adoção, bem como a idealização excessiva do filho pretendido.
Várias iniciativas na mídia (TV e rede social) por parte dos Tribunais de Justiça e Ministério
Público de outros estados pretendem estimular a adoção “tardia”, chamando-nos a
277 atenção para a situação de desencontro e dissonância entre as expectativas daqueles
que aguardam por uma criança e aquelas crianças que, de fato, aguardam uma família.
Considerando a importância de um trabalho neste sentido, elaboramos a proposta de um
trabalho em grupo, nos quais propusemos discussões sobre temas relacionados à adoção,
avaliando o compartilhamento de experiências e sentimentos dos participantes envolvidos.
PALAVRAS-CHAVE: Cadastro Nacional de Adoção; Adoção tardia; Grupo reflexivo
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


INTRODUÇÃO

278 O presente artigo pretende apresentar a proposta de trabalho, que vem sendo desenvolvida
desde 2017 pelos técnicos psicólogos do Fórum Regional I – Santana/SP, de reavaliação dos
pretendentes a adoção já habilitados no Cadastro Nacional de Adoção no modelo de um grupo
participativo e reflexivo.

Iniciamos este artigo com uma reflexão sobre o termo “adoção tardia”. Não se trata de uma
definição jurídica e sim uma definição datada. Para Vargas (1989) a adoção tardia referia-se a
crianças maiores de dois anos, pois a preferência dos adotantes era por bebês. Ao longo do tempo,
o termo “adoção tardia” foi sendo utilizado, no senso comum, para se referir a crianças mais
velhas, acima de três anos, depois em torno de cinco anos. Nesse sentido, parece-nos que há uma
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correlação direta entre o que se costuma considerar “adoção em tempo” e a preponderância da


faixa etária desejada pelos pretendentes à adoção.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Escolhemos a expressão “adoção de crianças mais velhas” – e preterimos o termo adjetivado
“adoção tardia” – pois entendemos que ela carrega a ideia de que se trata de uma adoção fora de
um tempo ideal. A utilização da expressão é justificada por considerarmos que a psicodinâmica de
cada faixa etária carrega sua especificidade.

Esse preâmbulo já noticia uma das primeiras dificuldades a ser enfrentada por crianças mais
velhas que estão à espera de uma família, que é a idade de preferência dos pretendentes a adoção.
Os dados do Conselho Nacional de Adoção – CNA1 demonstram que a faixa etária da criança
desejada, para 86,03% dos pretendentes à adoção, é até seis anos. Temos que considerar ainda
que essa porcentagem é a soma bruta apenas dos dados relativos à faixa etária, entretanto ao
correlacionar com dados de sexo, grupo de irmãos e saúde, verificamos que o número de crianças
que estão fora do perfil pretendido preponderante entre os pretendentes aguardando por uma
família é maior do que 13,97%.

Temos visto muitas iniciativas dos tribunais de justiça brasileiros para promoção das chamadas
“adoções necessárias”, em que se inclui crianças mais velhas, com problemas de saúde e grupos
de irmãos – por exemplo, “Adote um Boa Noite”, em São Paulo; “Adote um campeão”, em Minas
Gerais; “Adote um pequeno torcedor”, em Pernambuco; “Esperando por você”, no Espírito Santo;
“Portal da Adoção”, no Rio de Janeiro; “Ado.t”, no Paraná; e “Deixa o amor te surpreender”, no Rio
Grande do Sul. Em nossa análise, essas iniciativas têm o foco na promoção de encontros entre os
pretendentes à adoção e as crianças/adolescentes, entretanto, a singularidade de cada processo
de adoção, em nossa prática, vêm demonstrando que as dificuldades que se apresentam na adoção
de crianças mais velhas não se limitam ao “pareamento” de pretendentes à adoção disponíveis.

1. Cf. http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf
Para Sampaio, Magalhães e Feres-Carneiro (2018, p. 312/313), as principais dificuldades na
adoção de crianças mais velhas estão relacionadas com o “o histórico de vivências anteriores,
279 as dificuldades no período de adaptação e a prerrogativa de escolha da criança”. As autoras
também fizeram levantamento da literatura da área e encontraram consenso de que há “diversas
especificidades e desafios tanto para os pais quanto para as crianças, sobretudo, no que diz
respeito ao período inicial de convivência (Ghirardi, 2009; Levinzon, 2000; Levy, Pinho, & Faria,
2009; Peiter, 2011)” (Sampaio, Magalhães & Feres-Carneiro, 2018, p. 313). Conforme analisou Oishi
(2013, p. 105), “a precocidade da filiação adotiva e a tenra idade da criança são apresentados [...]
como fatores que ampliam a perspectiva de sucesso da adoção, estabelecendo uma lógica da
adoção como um renascimento”.

Diante dessa realidade, e considerando que o poder judiciário é a instância presente e reguladora
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das diversas etapas relacionadas à concretização da adoção – destitui o poder familiar, determina
o acolhimento institucional, define sobre a adoção, coordena o andamento do cadastro, determina

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


a colocação em lar substituta e finalmente formaliza a adoção através de sentença judicial –,
e que, através do setor técnico da vara da infância e juventude (composto por psicólogos e
assistentes sociais), realiza tanto a preparação dos pretendentes e crianças/adolescentes, bem
como o acompanhamento dos estágios de aproximação e convivência nos processos de adoção,
formalizamos um projeto que visa a oportunizar a reavaliação dos pretendentes à adoção para a
criação de uma nova cultura da adoção.

Especificamente na experiência profissional das autoras junto à Vara de Infância de Juventude


(VIJ) do Fórum Regional I – Santana/SP, a atuação dos setores técnicos em relação aos processos
de habilitação para adoção ocorria, preponderantemente, na avaliação inicial dos candidatos à
adoção, por meio de intervenções juntos aos pretendentes no curso preparatório, entrevistas no
serviço social e psicologia e visitas domiciliares. Ao fim dessas intervenções e sendo proferida a
sentença que defere a inscrição dos pretendentes no CNA, estes entravam em uma espécie de
“período de latência”, ou seja, permaneciam com o processo ativo aguardando a “chamada” para
conhecerem a criança/adolescente, um tempo de espera em que geralmente não há trabalho
técnico, acompanhamento ou intervenção. Esse distanciamento ou silenciamento costuma
produzir sentimentos de solidão, desamparo e sensações de invisibilidade.

O Provimento 05/2006 da Corregedoria do TJSP2 , Art. 1, § 11, previa que este cadastro de pessoas
habilitadas para a adoção deveria ser atualizado, pelo menos, a cada dois anos. Posteriormente,
a Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017, que dispõe sobre adoção e altera a lei 8.069, de 13 de
julho de 1990 (Estatuto da Criança e Adolescente – ECA) no Art. 197 -E §2º prevê que a habilitação
à adoção deverá ser renovada no mínimo trienalmente mediante avaliação por equipe técnica.

2. Cf. https://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/pdf/provimento_05.pdf.
Assim, até o primeiro semestre de 2017, o setor técnico vinha realizando essas avaliações bienais
por meio de entrevistas individuais com os pretendentes habilitados, onde se buscava averiguar
280 mudanças na dinâmica e rotina familiares e/ou alteração do perfil da criança/adolescente
desejado. Além disso, procurava-se observar e discutir sobre os sentimentos envolvidos na espera
pelo filho(a).

De acordo com Weber (2012),

a espera pela chegada da criança tende a ser uma fase que desperta muitas
emoções aversivas nos pretendentes à adoção. Ao contrário da transição
para paternidade biológica que inclui a gravidez como um período limitado e
previsível de ajustamento, os adotantes aguardam seu filho por um período
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indeterminado, o qual pode se estender a meses, até anos. Esta ausência de


uma data prevista ou de indicativos concretos de que estão, de fato, esperando

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


um filho produz nos adotantes insegurança e angústia. (p. 110)

Corroborando a reflexão da autora, percebíamos, ao longo dessas avaliações, inúmeras


explicitações de sentimentos de angústia dos pretendentes e indignação frente à sensação de
demora na concretização do projeto adotivo e à sensação de invisibilidade de suas expectativas
e anseios. Em muitas ocasiões, identificávamos que não havia compreensão dos motivos que
embasavam as diversas atuações da Vara da Infância e Juventude no sentido de investir na
família biológica da criança, como preconizado pelo ECA, tampouco se compreendia a lógica
da prioridade da criança/adolescente, ou seja, de busca por uma família para uma determinada
criança. Muitos pretendentes acabavam ficando à mercê de notícias na grande mídia que criavam
expectativas de soluções burocráticas e administrativas para diminuir o tempo de espera. Esse
quadro, para a maioria dos pretendentes, aumentava ainda mais a hostilidade em relação ao
judiciário e a frustração quanto à espera, assim, assumiam uma postura de cobrança de uma
atuação mais célere e efetiva para que pudessem realizar o projeto de formar uma família.

Notava-se, também, que muitas vezes este tempo de espera não se constituía como um período
de preparação para chegada do filho adotivo, tampouco de aproximação dos dilemas e questões
particulares do universo da adoção, havendo escassas reflexões sobre os aspectos singulares da
motivação para adoção, para a escolha do perfil da criança desejada, para a vivência que tiveram
muitas das crianças que são colocadas em famílias substitutas via adoção, como situações de
abandono, negligência ou desamparo.

Portanto, nestas entrevistas, as mudanças frequentemente identificadas se restringiam ao


perfil da criança desejada, intencionando diminuir o tempo de espera e agilizar o processo, mas
nem sempre pautadas em reformulações quanto ao lugar destinado à criança no imaginário dos
pretendentes, necessitando maiores esclarecimentos, discussões e diálogos.
Como pontuamos acima, os dados do Conselho Nacional de Justiça demonstram essa dissonância
entre a expectativa dos candidatos à adoção e o perfil das crianças/adolescentes em condições de
281 serem adotados, indicando que o período de espera também estaria associado a este desencontro
entre pretendentes e a “realidade” do universo da adoção. Entretanto, sabemos que a mudança
de perfil da criança desejada, quando não pactuada de forma refletida e em consonância com a
modificação das expectativas e desejos, não garante a diminuição, de fato, do período de espera,
pois, muitas vezes, não se efetiva no real encontro entre criança/adolescente e pretendentes/
pais adotivos.

Assim, dentro das possibilidades de atuação dos setores técnicos do judiciário, pareceu-nos
que uma de nossas tarefas era de favorecer espaços de diálogo e reflexão sobre o universo da
adoção, promovendo um maior cuidado e atenção com os pretendentes, bem como contribuindo
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com o amadurecimento das escolhas e maior compromisso nas intenções adotivas, como afirmam
Rodrigues et al (2018):

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A inserção dos profissionais nessa espera-gestação possibilita a coparticipação
nela, acreditando que preparar os adotantes é primordial para o sucesso da
nova família, já que são eles os responsáveis pela acolhida da criança, que
dificilmente preencherá todos os requisitos do filho esperado e sonhado. (p. 83)

NOSSO CENÁRIO

A VIJ do Fórum Regional I – Santana/SP é uma das 13 VIJs da cidade de São Paulo. Essa
circunscrição atende um perímetro composto por sete regionais da prefeitura de São Paulo,
tendo aproximadamente 2.200.000 habitantes. Contamos com vinte serviços de acolhimento
institucional, havendo aproximadamente 370 crianças e adolescentes acolhidos. Atualmente,
há 242 pessoas ou casais habilitados no Cadastro Nacional de Adoção, aguardando serem
convocados para conhecer uma criança (não temos pretendentes habilitados que contemple
adolescente no perfil desejado) e dezoito crianças/adolescentes aptos para adoção aguardando
uma família substituta.

Destes habilitados, 40% não tem preferência em relação à cor, 29% preferem branca ou parda,
18% preferem branca, 4% preta ou parda e 3% branca, parda ou preta. Com relação ao sexo, 64%
aceitam crianças de sexo indiferente, 29% aceitam somente meninas e 7% somente meninos.
Quanto aos irmãos, 69% não aceitam grupo de irmão.

O Setor Técnico da VIJ de Santana tem onze psicólogos e dez assistentes sociais atuantes (mais
quatro que estão lotadas em outras varas, mas prestam serviços também em Santana, em função
da alta demanda). Nos primeiros oito meses do ano de 2018, esta equipe técnica atuou em trinta
e seis processos de colocação em lar substituto, tendo convocado casais/pessoas habilitadas no
CNA para iniciarem aproximação com uma criança/adolescente. Pode-se perceber, neste recorte,
que há um encadeamento dos processos em andamento na VIJ, entretanto, mesmo com este
282 volume de trabalho, temos um tempo médio de quatro anos de espera para que os pretendentes
a adoção concretizem o início do estágio de convivência.

NOSSA PROPOSTA

Propusemos que o momento de reavaliação dos pretendentes a adoção fosse efetivado no modelo
de grupo participativo e reflexivo. Cardoso e Baiocchi (2014, p. 55) colocam que “a preparação
em grupos multifamiliares pode gerar oportunidade aos participantes de se conectarem com
situações semelhantes e, juntos, descobrirem seus medos, angústias, dificuldades, preconceitos
e barreiras, assim como, desejos e idealizações”.
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Ainda segundo as autoras, “os grupos possibilitam o confronto com as realidades objetivas

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


e subjetivas que emergem nas dinâmicas grupais e são discutidas o tempo todo” (Cardoso &
Baiocchi, 2014, p. 55).

A partir dessa metodologia, objetivamos qualificar e aprimorar o trabalho de reavaliação


possibilitando outro modo de reflexão e sensibilização dos participantes, que possa:

a. proporcionar aos participantes um espaço de escuta e reflexão sobre este processo de


espera e de adoção, promovendo a minimização dos sentimentos de isolamento e sofrimento
recorrentemente manifestos, de forma a ressignificar conflitos e afetos relativos ao tempo de
espera;

b. abordar sentimentos e emoções despertados pelo processo de adoção (estágios de


aproximação e convivência), inclusive abordando questões relativas à espera da criança/
adolescente;

c. buscamos sensibilizar os participantes para aspectos relativos às adoções de crianças mais


velhas;

d. fortalecer uma cultura de adoção de crianças maiores e adolescentes, grupo de irmãos e


crianças portadoras de problemas de saúde e/ou deficiências e sensibilizar;

e. informar, através de fotos, aos participantes sobre as crianças e os adolescentes existentes


no cadastro de crianças disponíveis à adoção na VIJ do Fórum Regional I – Santana/SP, que,
atualmente, estão privados da convivência familiar e aguardam por uma família substituta.
Relativo a esse último item, entendemos e consideramos a importância de um trabalho neste
sentido, que possibilite a discussão de modalidades de adoções denominadas tardias e/ou
283 difíceis, entretanto, acreditamos que nossa atuação seja mais cautelosa se realizada dentro de um
ambiente restrito, envolvendo inicialmente somente pessoas já habilitada no Cadastro Nacional
de Adoção e, portanto, pessoas que já foram devidamente avaliadas e aprovadas, para que as
crianças/adolescente não sejam expostas indevidamente nem sejam gestadas expectativas
irreais que possam trazer novas frustrações. Este primeiro contato pode despertar o interesse
em alguns candidatos a adoção para conhecer pessoalmente essas crianças/adolescentes, o
que posteriormente, será encaminhado à juíza e avaliado pelos técnicos que acompanham o caso
daquela determinada criança/adolescente/grupo de irmãos.

Os grupos são organizados a partir da data da sentença de habilitação e são compostos


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por, no máximo, pretendentes relativos a quinze processos, com duração de quatro horas,
aproximadamente. Vale ressaltar, que observando a necessidade de maior aprofundamento há a

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possibilidade de agendamento de entrevista individual, o que foi realizado em duas ocasiões.

Vale ressaltar, que observando a necessidade de maior aprofundamento há a possibilidade de


agendamento de entrevista individual, o que foi realizado em duas ocasiões.

OS ENCONTROS

Para este artigo, compilamos os dados relativos a cinco encontros: três, em 2017 e dois, em 2018.
Foram convocados habilitados referentes a sessenta e dois processos, havendo o comparecimento
de quarenta e dois. Os encontros foram realizados em sala no Fórum de Santana e foi utilizado o
recurso de Datashow com slides referentes aos temas apresentados na metodologia.

As dúvidas e questionamentos que foram trazidos durante os encontros referiam-se à: os


procedimentos jurídicos para a destituição do poder familiar e a colocação de uma criança em
lar substituto, os procedimentos jurídicos de indicação dos pretendentes à adoção, estágios de
aproximação e de convivência, como é feito o encaminhamento das crianças/adolescentes para
os Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes – SAICAS, benefícios ou
prejuízos de visitas aos SAICAS, questões emocionais envolvidas na adoção de crianças mais
velhas, questões emocionais envolvidas no processo de tornar-se pai e mãe, importância dos
adotantes saberem da história das crianças, esclarecimentos sobre adoção intuito personae e
entrega voluntária.

Também conversamos muito sobre a atitude dos pretendentes durante o tempo de espera, as
ansiedades, expectativas e sentimentos despertados neste período, a importância de que
mantenham outros projetos pessoais em andamento, assim como medos e inseguranças
vivenciados seja em função da demora, seja devido à ausência de contato da VIJ após a sentença
de aprovação no cadastro.
284
Procuramos, ainda, investir na sensibilização dos pretendentes para casos de adoção consideradas
mais difíceis. Apresentamos as fotos de crianças/adolescentes que estão em nossos serviços de
acolhimentos institucionais de nossa circunscrição e com processos em andamento pelo Foro
Regional de Santana e que se encontram à espera de uma família. Buscamos discutir sobre essas
situações e promover o contato de pretendentes já habilitados com nossas crianças disponíveis
à adoção.

Nos três encontros em grupo que coordenamos no ano de 2017 e 2018, identificamos que
muitos pretendentes não sabiam exatamente qual o perfil que haviam definido e/ou tinham
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uma referência errada da idade que estipulada anteriormente. Dentre os quarenta e dois casais
habilitados participantes dos encontros, vinte e quatro modificaram o perfil da criança desejada,

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ampliando a idade ou modificando restrições quanto à cor ou sexo, sendo que vinte realizaram
alterações ampliando a faixa etária no perfil da criança desejada (aumentando a idade máxima);
três realizaram alterações quanto à cor da criança; três realizaram alterações quanto ao sexo da
criança pretendida e c dezoito não realizaram nenhuma alteração.

Houve um casal interessado em conhecer uma adolescente de treze anos (cuja foto e nome foram
apresentados no dia do grupo). Eles foram encaminhados às técnicas (psicóloga e assistente
social) que acompanham o caso da adolescente, foram avaliados pela equipe e deram início
(aproximadamente dois meses depois) à aproximação com esta adolescente. E outro casal,
que ampliou a idade de quatro anos para nove anos e passaram aceitar irmãos, foi chamado
subsequentemente para iniciar a aproximação com os dois irmãos.

Temos ainda que: dois habilitados encontram-se em estágio de convivência; dois em aproximação;
dois foram suspensos; dois mudaram de cidade; um excluído; um desistiu; trinta e dois foram
mantidos e estão no aguardo de serem chamados.

Na avaliação, voluntária, do projeto pelos participantes, estes mencionaram o quanto gostaram de


compartilhar experiências em grupo e ouvir diferentes histórias de vida com vivências similares,
pontuaram a importância da troca de informações, ansiedades e angústias relacionados ao
período de espera, afirmaram que foi interessante saber mais sobre a adoção de crianças maiores
e adoção de grupo de irmãos.

NOSSAS REFLEXÕES

Com relação aos pretendentes, entendemos que:


a. o grupo favorecer uma confiança na equipe técnica do judiciário, seja no trabalho que vem
sendo realizado, enquanto eles aguardam na fila do cadastro, seja na própria existência
285 de um controle e de uma fila, dando visibilidade aos pretendentes como também parte de
nossa clientela e ampliando canais de diálogo com estes que, acreditamos que possam ser
fundamentais no período de estágio de aproximação/convivência;

b. a troca entre eles favorece a diminuição do sentimento de solidão e desamparo;

c. a troca favorece a ampliação de repertório para lidar com as questões seja do tempo de espera,
seja quando da chegada da criança;

d. mais do que ampliar os números, observamos que os pretendentes aproveitam a oportunidade


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para refletir sobre a capacidade deles próprios em acolher uma criança, sentem-se acolhidos
e formam uma rede de apoio – aspectos esses necessários para o exercício da parentalidade,

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independente da forma com que o filho chegou. Por mais que não ampliem a faixa etária,
sensibilizam-se sobre o acolhimento às vivências da criança, necessidade de oferecerem
cuidado e não exigirem uma rápida adaptação ao ritmo de vida deles.

COM RELAÇÃO ÀS PROFISSIONAIS:

a. a. percebemos que houve maior diálogo na equipe sobre o universo da adoção, incentivada
pela experiência e participação no grupo, mobilizando a busca por outros modos de atuação,
junto aos pretendentes e crianças, e a busca por outros referenciais teóricos;

b. b. passamos a questionar modos de aproximação entre pretendentes interessados e


adolescentes, sugerindo que esta ocorra nos moldes do apadrinhamento, possibilitando
que o encontro seja pautado por menos expectativas e que a própria convivência/vivência
possa desenhar os modos de vinculação, deixando crianças adolescentes e adultos menos
engessados nos papéis de adotantes e adotandos;

c. c. fortalecemos nossas reflexões quanto à prática que construímos cotidianamente na VIJ


Santana, bem como verdades que cristalizamos neste fazer, retomando nossos “antigos
dilemas” e elaborando “novas respostas”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na última década, temos acompanhado (como técnicas da VIJ) efetivas mudanças seja do
números de pessoas que têm procurado a adoção como uma forma de filiação, seja nas reflexões
feitas quanto ao perfil da criança desejada, bem como ponderações sobre a revelação e como lidar
com a questão das origens. Ainda que se tenha garantido como direito da criança/adolescente
ter ciência de sua história de vida e acesso aos registros e documentos de sua trajetória (Lei
12.010/2009), ainda há muitos questionamentos sobre como integrar, de fato, a história de vida
286 das crianças quando estas são inseridas em uma família substituta e rompem-se os vínculos com
a família biológica.

Parece-nos que esta é uma das dificuldades presentes na adoção de crianças maiores, vivência
e experiências tão distintas das crianças e dos adotantes que não conseguem se comunicar e
compartilhar universos comuns.

Iniciativas que visam dar maior agilidade aos processos de colocação em lar substituto de
crianças e adolescentes, como o projeto de lei (Estatuto da Adoção), que está em tramitação,
parte de uma argumentação presente na modalidade discursiva contemporânea, que há demora
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na concretização das adoções no Brasil por razões restritas à burocracia, descontextualizando


questões de suma importância como os direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do

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Adolescente, bem como a efetividade de políticas públicas garantistas e das responsabilidades
do Estado no enfrentamento de desigualdades históricas e sociais.

Assim, entendemos que dentro do escopo de novas respostas ao complexo campo de que envolve
crianças mais velhas e adolescente que estão à espera de uma família adotiva, tanto as práticas no
sentido estrito da adoção devem ser repensadas - sendo a proposta que apresentamos nesse artigo,
uma resposta em construção a partir da demanda local -, como o alargamento de novas propostas,
que possam ir além da adoção, através da oferta de outras possibilidades para essas crianças e
adolescentes. A construção dessas respostas exige a real efetivação de políticas públicas já em
voga no âmbito da promoção de cuidados à infância e juventude, assim como a criação de outras
políticas públicas que possam favorecer outras e novas formas de vivência comunitária e familiar
aos jovens que não encontram família adotivas ou que não desejem ser adotados.

REFERÊNCIAS

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13 de julho de 1990. Presidência da República. Casa Civil. Recuperado de http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13509.htm.

Cardoso, V. L; & Baiocchi, A. (2014). Preparação para a adoção: o começo de uma nova família. In
C. Ladvocat; & S. Diuana (Orgs.), Guia da adoção: no jurídico, no social, no psicológico e na família.
São Paulo: Roca.

Ghirard, M. L. M. (2008). A devolução de crianças e adolescentes adotivos sob a ótica psicanalítica:


Reedição de histórias de abandono. Dissertação de Mestrado – Instituto de Psicologia, Universidade
de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Levinzon, G. L. K. (2000). A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica. São Paulo: Escuta.

287 Levy, L.; Pinho, P. G. R.; & Faria, M. M. (2009). “Família é muito sofrimento”: um estudo de casos de
“devolução de crianças”. Psico, 40(1), 58-63. Recuperado de http://revistaseletronicas.pucrs.br/
ojs/index.php/revistapsico/article/view/3730.

Oishi, J. M. (2013). A adoção e o adotável: do desbotar da memória à (des)construção da filiação.


Dissertação de Mestrado – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Peiter, C. (2011). Adoção: vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva. São Paulo: Zagodoni.

Rodrigues, A. L. R. et al. (2018). Possibilidades de contribuição da equipe técnica no percurso


VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

que envolve desde o cadastro de pretendentes até a adoção: reflexões sobre a habilitação e
o acompanhamento desenvolvidos na comarca de Presidente Prudente. In E. Borgiani; & L. M.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Macedo, L.M. (Orgs.), O serviço social e a psicologia no universo judiciário. Campinas: Papel Social.

Sampaio, D. S.; Magalhaes, A. S.; & Féres-Carneiro, T. (2018). Pedras no caminho da adoção tardia:
desafios para o vínculo parento-filial na percepção dos pais. Temas em Psicologia, 26(1), 311-324.
Recuperado de https://dx.doi.org/10.9788/TP2018.1-12Pt

Vargas, M. M. (1989). Adoção tardia: da família sonhada à família possível. São Paulo: Casa do
Psicólogo.

Weber, L. (2102). Pretendentes à adoção: características, perfil e bem-estar psicológico. In M. C. N.


Carvalho, Psicologia e justiça: infância, adolescência e família. Curitiba: Juruá.
SUMÁRIO

288 O ABORTO PELA


VIA DA ADOÇÃO

AUTORIA
BÁRBARA BASTOS BORGES
Psicóloga clínica e psicanalista. Graduada pela Universidade Federal de Minas
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Gerais – UFMG.
CONTATO: barbarabhastos@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
A afirmação de Levinzon (2004, p. 21), citando Mattei (1997), de que “toda filiação é, antes de
tudo, uma adoção” suscita-nos a desnaturalização generalizada dos vínculos afetivos em
relações de cuidado, implicando em desnaturalizar também vínculos parentais de origem
biológica e questionar o suposto amor incondicional nutrido entre pais biológicos e seus
filhos. Consequentemente, compreendemos o aborto induzido enquanto uma recusa por
parte da mulher em consolidar a adoção – recusa esta decorrente de uma miríade de fatores
de ordem psicológica, econômica e social. Com base nos relatos de interrupção da gravidez
expostos pelo projeto Eu Vou Contar, do Instituto Anis, compreendemos que os fatores
que levam as mulheres a abortar não residem na ausência de reconhecimento do embrião
em desenvolvimento enquanto um ser humano, mas predominantemente a situação de
desamparo em que se encontravam ou o desejo de não ter filhos naquele momento. Expor
o aborto induzido enquanto recusa em adotar expõe o caráter seletivo, afetivo e situacional
das relações humanas e propicia-nos compreender com profundidade o vínculo afetivo
entre gestante e embrião bem como propor direcionamentos clínicos e políticos mais
flexíveis, acolhedores e efetivos diante de um contexto cuja relevância do tema é notória,
tanto pela criminalização do aborto em virtude do Código Penal quanto pela reabertura do
debate sobre a descriminalização deste pelo Supremo Tribunal Federal em agosto de 2018.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Aborto; Psicanálise; Desamparo.
“Lembrou-se da manhã após o incidente do sonambulismo, o dia que se seguiu à morte de
Pascow. Chegou à enfermaria e foi direto para o banheiro olhar-se no espelho, convencido de
289 que devia estar com uma cara terrível. Mas tinha uma aparência perfeitamente normal. Não
podia deixar de imaginar quanta gente havia, andando por aí com segredos medonhos trancados
no peito.”

(Stephen King pelas lentes de Louis Creed em “O Cemitério”)

“É, essa é minha história. Parece de horror, não é? Eu sou uma mulher comum, com esse
segredo. Espero, de verdade, que um dia possamos escolher o que é melhor para nossas vidas,
sem nos arriscarmos, e com o apoio de um hospital nos ampare e nos dê tratamento necessário.
Eu falei tudo tão rápido, me desculpe pela pressa.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Eu queria contar. Obrigada por ter me ouvido.”

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


(Mulher, 22 anos, em Eu vou contar)

Quando começa uma vida humana? Uma pergunta aparentemente ingênua, simples e objetiva que
não compreende, à primeira vista, a complexidade por ela engendrada. Para início de conversa,
deveríamos definir o conceito de “vida” e também o de “humanidade”, para, então, eleger um marco
teórico localizado em um momento mítico que contemple as diversas facetas abarcadas por
esse tal conceito de vida humana, a saber: a genética, a embriologia, a neurologia, a ecologia e o
metabolismo, por exemplo. Em outras palavras, qual seria o marco a partir do qual estabelecemos
a constituição de um ser humano? Quando duas células haplóides fundem-se, culminando num
cariótipo similar ao de um humano de uma célula em franca expansão? Quando o organismo é
tão funcionalmente complexo que se assemelha àquele por nós reconhecido enquanto humano?
Quando é capaz de processar as excitações nervosas que denominamos dor? Quando é capaz de
sobreviver de maneira minimamente autônoma, configurando-se portanto um indivíduo distinto
daquele que o originou? Seria, a partir desse marco mítico, um sujeito de direito?

Além de escolhermos como abordar um problema dotado de tantas variáveis, deparamo-nos,


ademais, com a perspectiva de questionar a finalidade dessa pergunta. Em que implica determinar
um marco para o início de uma vida humana? Dotá-la de dignidade humana, de direitos, seria
uma das respostas plausíveis e pragmáticas a essa pergunta. Com efeito, os artigos de 124 a 128
do Código Penal (1940), consideram o feto no útero de uma mulher, independentemente de seu
estágio de desenvolvimento, uma vida humana intrauterina, consequentemente criminalizando o
aborto induzido pela gestante ou por terceiros. Desejo explicitar, nesse ínterim, o fato de que existe
uma discussão importante em Bioética sobre essa questão, dotada de múltiplos desdobramentos,
entre os quais destaco: a definição de vida humana, muito abordada por perspectivas religiosas
numa tentativa de humanizar o feto – sendo essas entidades contrárias à prática do aborto
induzido – e as consequências éticas, jurídicas e morais do tratamento que essa possível vida
humana seria digna de receber.
290
Algumas discussões, ao abordarem a descriminalização ou não do aborto induzido, trazem como
ponto central a dignidade da vida humana que é atribuída então ao feto, que passa a gozar da
posição de sujeito de direito.

Proponho falarmos da origem da vida humana enquanto sujeito psíquico fundado pela alteridade,
conforme teorizaram Jean Laplanche (1992) e Silvia Bleichmar (1994) em suas contribuições
para a psicanálise. Em outras palavras, esses autores atribuem psiquismo ao indivíduo a partir
de uma situação de desamparo fundamental suprida por um cuidado originário, isto é: todos nós
existimos porque alguém cuidou de nós, pois todo bebê é incapaz de cuidar-se sozinho, e essa
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situação de desamparo fundamental todos nós compartilhamos. Antes de sermos humanos,


fomos humanizados por alguém já humanizado que nos transferiu inconscientemente não

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apenas mensagens enigmáticas disruptivas como também a capacidade de traduzirmo-las. Essa
capacidade tradutiva que o outro, a figura cuidadora, oferece propicia a integração do sujeito
e o reconhecimento deste enquanto ser humano; as mensagens disruptivas constituem seu
estrangeiro interno, que o ataca de dentro – o inconsciente. Algumas dessas relações originárias
fornecem um leque mais sofisticado de capacidades tradutivas a esse indivíduo, que acaba
constituindo organizações egóicas defensivas mais robustas; em outras relações, há carência de
agentes tradutores, prevalecendo ataques disruptivos mais violentos e fragmentadores.

Quando Levinzon (2004, p.21), citando Mattei (1997), afirma que “toda filiação é, antes de tudo,
uma adoção”, podemos interpretar que somos trazidos à vida e tornados humanos quando somos
adotados por uma figura cuidadora. Essa adoção fundamental é o recurso facilitador da vida;
gosto de usar como metáfora para esse fenômeno a expressão “pegar o fio de Ariadne”, oriunda
da mitologia grega, referente ao cordão de que Teseu se utiliza para sair com êxito do labirinto
onde liqüidou o Minotauro. Para existirmos em meio ao caos da (in)existência e das mensagens
disruptivas que nos atacam, todos fomos inspirados, extraídos, guiados, conduzidos por um fio
condutor, que seria o cuidado fundamental, num momento mítico por nós recalcado e pelo qual
todos nós passamos inexoravelmente. Para existirmos, fomos seduzidos para a vida por alguém.
Como nas cosmogonias relatadas por diversas civilizações que vagaram por este planeta ao
longo dos séculos, do caos fez-se a luz, a ordem. Por esse cordão mítico que é o cuidado de um
adulto disponível, o indivíduo é tornado sujeito, tornado humano e inserido em uma relação. Basta
pensarmos nos primeiros meses de vida de um recém-nascido, em que há adultos ao redor dele
que vivem em função desse bebê, que falam apenas dele, que se encontram momentaneamente
impossibilitados de investir em outro objeto que não esse bebê, situação nomeada como
“preocupação materna primária” por Winnicott (1956).
Desloco a discussão, então, não no sentido de determinar o que pode ser considerado humano sob a
perspectiva alteritária de Laplanche e Bleichmar, mas de expor o fato de que, independentemente
291 de o material orgânico presente no útero da mulher constituir ou não uma vida humana, ele já recebe
mensagens da gestante – ele já é reconhecido enquanto humano por ela. O luto experimentado
por mulheres que vivenciam o aborto espontâneo ilustra esse fenômeno de reconhecer nesse
outro um ser humano, um alguém, um filho.

Lembro-me de uma reportagem de 2017 sobre uma jovem vítima de morte cerebral que foi mantida
viva no Paraná por aparelhos para dar à luz gêmeos. Para além do cuidado fisiológico de manter os
bebês vivos apesar de a mãe estar morta, o empenho da equipe médica e dos parentes dos fetos
foi no sentido de “fazer com que os bebês sentissem o afeto que a mãe não podia dar. Para isso,
família e equipe acariciavam a barriga, conversavam e cantavam para os bebês” (Garcia & Hamdar,
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2017, n.p.). O objetivo com esse exemplo não reside em eleger o marco cronológico do início da vida
humana, mas em resgatar uma noção de que a vida humana, tal como a conhecemos, depende

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imprescindivelmente de uma sedução à vida – uma adoção originária. Destaco a fala de um membro
da equipe responsável por cuidar dos bebês: “nós trouxemos canções para as crianças: canções
de crianças, canções improvisadas, canções que nós fizemos exclusivamente para elas. A UTI
ficou cheia de músicas de amor e afeto” (Garcia & Hamdar, 2017, n.p.); notamos nessa passagem
um trabalho que usualmente se inicia a partir do reconhecimento do feto enquanto ser humano
pelo adulto cuidador: oferecer dispositivos ligantes. As mensagens disruptivas inconscientes são
incluídas no pacote, porém o adulto que as endereça não se dá conta disso.

A segunda interpretação que depreendemos dessa situação originária na qual o sujeito psíquico é
constituído a partir do reconhecimento alteritário por meio do cuidado é a possibilidade de destituir
de qualquer inatismo biologizante vínculos afetivos em relações de cuidado. Colocamos, portanto,
em xeque, qualquer menção a um suposto amor incondicional nutrido entre pais biológicos e seus
filhos. Cuidado e adoção residem em uma escolha libidinal repleta de nuances afetivas – das mais
amorosas e ligantes às mais violentas e disruptivas.

Essas nuances afetivas, trazidas à tona no processo analítico, frequentemente camufladas


em discursos a favor do recalcamento que apregoam o amor incondicional de pais para filhos,
revelam-se em toda e qualquer relação de cuidado que envolva, por conseqüência, adoção. Se
considerarmos o fato de todos nós sermos oriundos de um útero – de uma mulher cis, de um
homem trans – pertencente a alguém mais psiquicamente constituído e humanizado do que nós,
em algum momento mítico fomos adotados para que pudéssemos inclusive nascer – um primeiro
vínculo parental de teor afetivo variável. Como mulheres cis (ou homens trans) se vinculam ao feto
que geram? Quais afetos e quais mensagens elas lhes endereçam? Não consideramos uma ausência
de mensagens, como se fosse possível ignorar a presença de um ser que progressivamente limita
o corpo e a vida da mulher. Apostamos, portanto, em um excesso afetivo transbordante, podendo
ser traduzido ou recalcado.
O xenomorfo, o famoso e temível alienígena antagonista da série cinematográfica Alien, pode ser
compreendido como uma alegoria à sensação, ao receio ou mesmo trauma de ser parasitado por
292 um alienígena. É um alienígena que inocula à força ovos no estômago de suas vítimas, de modo que
os ovos eclodam após algumas horas, e o alien, ao sair, explode o estômago e as costelas de seu
hospedeiro, levando-o à morte. Essa estética impregnada pelo horror ajuda-nos a figurar, traduzir
e elaborar o horror que é ser parasitado por dentro por algo desconhecido que adquire proporções
que nos incapacitam. Relatos semelhantes a essa narrativa fictícia surgem no setting terapêutico
quando o bebê é descrito como um “alienígena”, um “parasita” – literalmente nesses termos. Se,
de um lado, na fantasia, o feto ou bebê surge como um xenomorfo, de outro, ele ocupa, também
na fantasia, o receptáculo de expectativas, projeções e identificações altamente idealizadas de
seus cuidadores.
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Apresento, assim, uma interpretação para o aborto induzido não enquanto uma ação ou desejo
decorrentes da não humanização do feto. Compreendemos haver, por parte de quem o deseja e

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realiza, um investimento afetivo que humaniza, na fantasia da gestante, esse indivíduo biopsíquico.
O aborto induzido não é uma negação da humanidade do feto, mas uma conseqüência de uma
recusa em consolidar a adoção proveniente de uma miríade de fatores de ordem psicológica,
econômica e social. Nesse ínterim, introduzo o projeto Eu vou contar, uma campanha iniciada
pelo Anis – Instituto de Bioética para ouvir histórias reais de aborto, que estão disponibilizadas no
Tumblr do projeto1 .

Há vinte e três relatos2 de setembro de 2017 a maio de 2018 no Tumblr dessa campanha. Destaco
algumas semelhanças nas histórias relatadas, a despeito de suas variações: o fato de muitas
mulheres terem abortado quando eram muito jovens (14 a 24 anos de idade, mais ou menos); o
medo que essas mulheres sentiram do que as esperava, uma vez sendo essa decisão não só um
tabu como também um crime – o medo da dor, da morte, do colapso; em muitos casos, as temidas
dores física e emocional realmente aconteceram. Repete-se também a condição de desamparo,
solidão e abandono vivenciada por elas; o ódio e a retaliação que muitas relatam terem sofrido por
médicos, pela sociedade – tratamento perverso, humilhação, privação de direitos à dignidade e
até mesmo tortura física e psicológica. Reproduzem-se aqui os motivos que as levaram a abortar:
desamparo, abandono do parceiro e a certeza de que não estavam preparadas para assumir a
maternidade. Muitas engravidaram quando eram estudantes e não desejavam comprometer o
próprio futuro. Dez dessas mulheres são mães ou eram mães de crianças já nascidas quando
decidiram abortar.

O que surge em questão nas histórias relatadas não é o caráter humano do que é denominado pelo
Código Penal como “vida intrauterina”, mas a perspectiva de haver uma escolha, por parte dessas

1. Cf.: https://eu-vou-contar.tumblr.com/
2. Foram lidas as vinte e três histórias que haviam sido disponibilizadas no site até então.
mulheres, de propiciar ou não o nascimento desse bebê em condições tão adversas quanto as
agonias impensáveis de que nos fala Winnicott (1974) – condições de desamparo, de abandono
293 do parceiro, da família, de profissionais; de silêncio perante a decisão de abortar, e dos ataques
disruptivos direcionados contra essas mulheres. Não se trata de uma situação de vazio – nem o
silêncio é uma situação de vazio. O silêncio é um desmentido, uma negação do excesso libidinal e
não traduzido que engendra esse contexto e que possui, como consequência, desdobramentos
perversos e traumáticos.

Trago a hipótese de que o aborto induzido pode ser compreendido como uma escolha pela não
adoção ou uma recusa em consolidar o primeiro ato de adoção. Se é permitido a um indivíduo
previamente humanizado nascer, é porque alguém o adotou ao menos para que pudesse nascer,
nem que seja para entregá-lo à adoção, uma nova adoção. É necessário, antes de nosso nascimento,
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um vínculo adotivo principiado pela gestante que não é natural, não é inato, não advém de um
imperativo biológico; para que nasçamos, é fundamental um vínculo adotivo principiado por ela,

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e que pode ou não ser perpetuado por ela após o nascimento. Se ela não o mantém, pode haver
outra figura cuidadora a perpetuá-lo, inserindo o indivíduo numa rede de amparo e contenção que
lhe permita organizar-se egoicamente e existir “de forma quase independente” (Timo & Roman,
2015, p. 93).

O aborto induzido residiria, portanto, em uma recusa à adoção em decorrência de uma série de
fatores, conforme já mencionado. Ele denuncia a não naturalização desse vínculo primordial; ele
surge, ao menos em muitos relatos que nos são trazidos, em contextos altamente disruptivos
nos quais imperam a angústia e o desamparo – contextos em que essas mulheres revisitam a
situação de desajuda e de colapso com a qual todos nós nos deparamos em nossas origens, e se
encontram incapazes de ocupar o lugar de sujeitos cuidadores pelo período mínimo necessário
a uma entrega voluntária ideal. Em muitos relatos, aparece a certeza de terem feito a escolha
certa, de forma que elas lamentam não a decisão em si, mas a forma como foi realizada – tão
precária, insegura, perigosa, solitária. Algumas relatam pesar quando profissionais de saúde
emitiram comentários como “parece que havia mais de um aqui”, fazendo alusão de que havia não
apenas uma vida humana ali – mas duas, gêmeas –, e que essas mulheres as haviam destruído.
Elas haviam expelido de seus corpos, de forma precária, não um pedaço de carne, mas um filho,
ou até mais, e o sofrimento perpetrado por comentários desse teor levam-nos a depreender um
reconhecimento por parte destas de que eliminaram um sujeito – há, portanto, um luto inerente
a esse processo. Elas abortaram por se sentirem desamparadas, por se sentirem impossibilitadas
de assumir a maternidade, e também porque desejaram, mesmo em um contexto mais propício e
acolhedor, mais ligante e integrador, não serem mães nem durante a gestação.

A pergunta, portanto, que eu gostaria de fazer hoje reside em: podemos obrigar moral ou
eticamente uma mulher a adotar? Levinzon (2004) nos lembra de que o desejo de um filho surge
a partir de complexas relações identificatórias em meio às quais o sujeito ocupa o lugar de seus
cuidadores neste desejo, e que ele não se limita a um compromisso ou vontade de fazer o bem,
fazer o que é certo – não se trata de um compromisso moral ou um desejo altruísta. O vínculo
294 parental caminha no sentido da integração quando o desejo é de ter um filho, e isso é adotar.
Seria necessário que uma gestante adotasse essa posição identificatória, mantendo esse desejo
para alimentar esse vínculo, o que muitas acabam fazendo com outros filhos, antes ou depois de
induzir o aborto em si.

O objetivo deste trabalho, portanto, reside em deslocar o eixo pelo qual o aborto induzido é
abordado da questão de ser ou não ser vida humana – como o foi algumas vezes no Supremo
Tribunal Federal, em 2018, por entidades contrárias ao aborto –, e deslocar também o eixo da
pergunta – se seria ou não assassinato. Esse deslocamento aconteceria ao oferecermos o
reconhecimento, por parte da psicanálise, de que há um investimento afetivo atribuindo caráter
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de humanidade ao feto por parte da gestante de maneira a realocarmos o eixo da discussão para
o fato de a gestação – denominada aqui primeira adoção – consistir numa escolha. Longe de ser

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inata, longe de ser uma obrigação, por mais que os dispositivos jurídicos arcaicos assim façam
parecer, é e sempre foi uma escolha determinada por contingências, por desenlaces libidinais e
pragmáticos, e dominada por matizes afetivos. Há mulheres que abortam; há mulheres que adotam
até o nascimento e entregam o bebê; há mulheres que cuidam do bebê de formas diversas, desde
as mais psicotizantes às mais integradoras.

Antes de combater o aborto ou defender assiduamente um direito universal à vida, faz-se


necessário, sobretudo em um lugar e em uma cultura na qual esse tema é tão silenciado, acolher
essas mulheres que adotam ou abortam. Toda gestante revivencia o desamparo que vivenciamos
em nosso passado remoto e do qual impregna o nascituro. Se vivências disruptivas que beiram à
fragmentação em uma revivescência de colapso surgem em uma gestação desejada – planejada
ou não – e também nas relações de cuidado, podemos apenas imaginar que, em um contexto no
qual não há desejo de manter a gravidez e em que os dispositivos jurídicos e culturais tornam
ainda mais escassas as possibilidades de escoamento e integração de impulsos disruptivos e mais
fragmentador o desamparo, o acolhimento dessas mulheres é fundamental.

Finalizo com a provocação de que não somos fruto da certeza, nem mesmo do acaso, mas de
uma escolha que nos trouxe até aqui, uma escolha feita por uma mulher que poderia ter também
nos abortado. Suspeito, talvez de forma selvagem, que a mais tênue possibilidade de termos sido
abortados em nossas origens por nossas mães possa desestabilizar nossas organizações egóicas
e revolver os estrangeiros internos que nos habitam, obrigando-nos a traduzir e recalcar essas
mensagens angustiantes. Sob essa luz, talvez de maneira selvagem, compreendo por que é tão
difícil para algumas pessoas aceitar a descriminalização do aborto e o aborto induzido enquanto
escolha; talvez remeta à passividade originária da assimetria que nos constituiu, em que existimos
devido à escolha de outro alguém.
Todas as nossas decisões políticas são, antes, pulsionais.

295 De toda forma, independentemente de qual a nossa conduta ética com relação ao feto, talvez
o que esteja em jogo seja, em primeiro lugar, não defender a universalização do direito à vida
intrauterina ou ditar o que mulheres devam fazer com seus corpos, mas oferecer oportunidades
de acolhimento, escuta e cuidado a mulheres que já existem, que já adotam, que já abortam.

REFERÊNCIAS

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2(1), 41-55. Recuperado de https://periodicos.pucpr.br/index.php/pistispraxis/article/
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Bleichmar, S. (1994). A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito. Porto

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Alegre: Artes Médicas.

Brasil. Código Penal Brasileiro. (1940). Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


decreto-lei/Del2848compilado.htm

Diniz. D. (Diretora). (2017). Eu vou contar [Série documental]. São Paulo: Cine Brasil TV.

Garcia, K.; Hamdar, L. (2017, fevereiro 22). Com morte cerebral, jovem é mantida viva no Paraná
para dar à luz gêmeos. Recuperado de http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2017/02/com-
morte-cerebral-jovem-e-mantida-viva-no-parana-para-dar-luz-gemeos.html

Lambert, M., & Rubinstein, R. P. (Diretor/Produtor). (1989). Pet Sematery [Filme]. Hollywood, EUA:
Paramount Pictures.

Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Martins
Fontes.

Levinzon, G. K. (2004). Adoção. (Coleção Clínica Psicanalítica). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Scott, R.; Carroll, G; Giler, D; & Hill, W. (Diretor/Produtores). (1979). Alien [Filme]. Estados Unidos:
Brandywine Productions & 20th Century Fox.

Timo, A. L. R. T; & Roman, I. D. V. (2015). Moções assassinas em Íon: o desejo assassino dos pais. IV
Congresso Nacional de Psicanálise, Direito e Literatura: Leituras da Paternidade, Leituras de Íon,
de Eurípedes, Belo Horizonte, MG, Brasil, 90-95.
Winnicott, D. W. (2005). O medo do colapso. In Explorações psicanalíticas. (pp. 70-76). Porto Alegre:
Artmed. (Trabalho original publicado em 1974).
296
Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: obras
escolhidas. (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1956).
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SUMÁRIO

297 O ATO INCONSCIENTE NA


ENTREGA DA CRIANÇA NO
CONTEXTO DE CUIDADO
MATERNO INFANTIL EM SAÚDE

AUTORIA
MICHELLE KARINA SILVA
Psicóloga da Saúde. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFMG. Doutoranda
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em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. .


CONTATO: michelle.psicologiaufmg@yahoo.com.br

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ALINE RABELO SILVA PINHO
Psicóloga hospitalar. Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais
– UFMG.
CONTATO: alinercspsiufmg@yahoo.com.br

RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo apresentar um pouco da realidade de participação
das instituições de saúde materno-infantil no processo de adoção a partir da discussão
do serviço e da apresentação de uma construção de caso clínico. Normalmente o ato de
entrega voluntária do recém-nato (RN), chamados nos serviços de saúde de doação de
RN, é atravessado por um circuito de cuidado materno-infantil marcado por elementos não
traduzidos que agenciam discursos e não discursos mais ou menos violentos em relação
ao ato realizado pela mulher doadora do RN. A montagem do cuidado parece portar, não
raramente, a expressão afetiva de uma alteridade atacante, hostil e desorganizadora, pouco
tratada e visibilizada na assistência biomédica que inaugura a passagem dessas mulheres
nessas instituições. Partindo das contribuições da teoria laplancheana, busca-se avançar
no delineamento e visibilidade desses elementos com a apresentação da construção de
caso clínico e a problematização da cena de entrega voluntária do RN para adoção no
contexto de cuidado hospitalar materno infantil. Mais especificamente, trataremos de
um caso de repercussão midiática no qual o ato de doação ganhou contornos mortíferos
para o bebê, sendo qualificado pela sociedade como um ato de abandono e negligência.
298 PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Alteridade; Cuidado materno-infantil.
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CONSTRUÇÃO DO CASO M.

299 Uma criança recém-nascida é trazida à maternidade de um hospital pelas autoridades locais.
Segundo relato da equipe de saúde, o bebê fora encontrado despido, ainda preso ao cordão
umbilical, num “estábulo” localizado na região metropolitana da cidade, na qual ocorria o combate
a um incêndio. Dois dias depois uma mulher, M., 30 anos, acompanhada de amigos, apresenta-
se ao serviço social da unidade hospitalar afirmando ser a mãe da criança e solicitando a ação
institucional de convocação da Polícia Militar para que pudesse responder legalmente por seu
ato. Em momento oportuno, explica que sua intenção inicial era ir diretamente ao órgão policial,
mas que amigos convenceram-na a comparecer à unidade de saúde como forma de reconhecer
o sofrimento manifesto e buscar auxílio à sua dor. O relato, segundo a assistente social, era de
um sofrimento intenso por parte de M., com uma história composta de uma cadeia repetitiva:
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outras três gravidezes não planejadas, de parcerias amorosas diferentes, escondidas da família,
não acompanhadas em pré-natal, sendo o parto anterior ao atual em domicilio, sem assistência

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e com recusa de aleitamento dos bebês. Os outros três filhos de M., ainda em idades inferiores à
adolescência, a despeito de seu desejo em entregá-los à adoção, encontravam-se na mesma casa
em que M. residia com membros de sua família, mas todos sob a guarda legal de seu pai. Apenas
um dos pais biológicos participava com uma pequena quantia financeira no sustento do filho.

Abordada pelo serviço de Psicologia, M. não revelava nenhum histórico ou traço de sofrimento
mental mais evidente, sendo que os atendimentos da Psicologia e Serviço Social ocorrem fora
da unidade materno-infantil para preservação de M. em função da repercussão social e midiática
do caso, exaustivamente comentado na informalidade de contato entre profissionais da equipe
de cuidado. Diante da apresentação de M. ao hospital, foi-lhe questionado acerca do desejo de
visitação ao RN, o que foi recusado pela mesma, sustentando a decisão de não exercer qualquer
tipo de maternagem à criança. Entretanto, trazendo o fantasma de repetição familiar, M. afirmava
a crença sobre o desejo do próprio pai em cuidar do RN, mesmo este estando ausente da cena
hospitalar durante todo tempo de permanência da criança na unidade. M. afirmava também a
crença de que o pai biológico do RN teria interesse na guarda da criança.

Em um choro de transbordamento intenso, direcionava inicialmente à escuta da Psicologia a


demanda de perpetuação do impulso inconsciente mortífero, destacando a necessidade de ser
punida pelo ato de abandono de seu RN. Convidada a usar da palavra, reeditava de forma clara
e concisa, com detalhes proporcionais ao caráter violento do ato, as dores do trabalho de parto
iniciado quando estava sozinha em casa, além da busca frustrada por auxílio de amigos e o refúgio
encontrado em mata próxima à sua residência. Segundo relato da paciente, no mesmo lugar onde
cerca de um ano antes sua mãe teria cometido suicídio. Caberia a interrogação sobre a mensagem
que conecta o corpo materno auto-aniquilado ao corpo da criança: ele fora deixado para morrer?
Fora deixado para a mãe suicida?
Ambivalente, M. descrevia as tentativas de manter o bebê aquecido após seu nascimento e,
inclusive, da tentativa frustrada de amamentá-lo, ato de conexão pouco sustentado, ao que
300 parece, inclusive, com a história dos três outros filhos. Com a narrativa de um sentimento de
vergonha e o desejo de não inserir o RN no contexto de pobreza extrema em que se encontrava
junto do núcleo familiar, contava sobre o ato de tê-lo deixado numa manta dentro da mata. Há,
nessa fala, a denúncia de algum conteúdo estranhamente insuportável e terrificante no sócius
familiar, algo do que a paciente talvez tentara poupar a existência do outro, mas com o ato
ambivalente de entregá-lo a esse “estranho” familiar, uma vez que, em condições anteriores, os
filhos foram entregues justamente à guarda do pai.

Defensiva, angustiada, M. tentava reconstruir diante do outro o cuidado e os manejos realizados


para garantir que encontrassem o bebê de forma rápida e segura, mantendo-se escondida até que
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isso ocorresse, negando ter desejado, em algum momento, o mal à criança, daí nunca ter pensado
na possibilidade de um aborto. Contava que a gravidez não planejada surgira num contexto de um

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relacionamento afetivo de poucos meses com o namorado que era bem mais novo que ela e que,
segundo sua fala, afirmava o desejo de, um dia, ter filhos com ela, fazendo com que M. “desistisse”
do plano de realizar uma cirurgia de laqueadura da qual já possuía, em mãos, o formulário de
autorização. Na tentativa de exorcizar algo presente como elemento disruptivo em sua história
familiar, M. falava da idealização de construção de um lar no qual os filhos seriam criados e amados
pelo casal. Apesar disso, a revelação sobre a gestação ao namorado só se deu no quinto mês,
havendo o planejamento de estender o comunicado aos demais familiares. Contudo, diante da
negativa do pai do RN em assumir a paternidade, do rompimento do relacionamento afetivo e do
desemprego recente, M. passou a recusar a gravidez num aparente movimento de ruptura temporal
traumática que só ganhou contornos de realidade no momento em que se iniciaram as dores do
parto. O discurso, durante o atendimento, refletiu a lacuna temporal, deixando evidente que o
apagamento do período compreendido entre o quinto e o nono mês de gestação correspondia ao
apagamento do corpo, de si mesma e da criança, em uma repetição do ato inconsciente como uma
tentativa precária de elaboração dos conflitos vividos subjetivamente diante da maternidade.

A família de M. é narrada em sua fala sem conflitos, mas as críticas pelo não planejamento das
gravidezes e pelo desejo de entrega dos filhos à adoção são nomeadas. Assim, a família parecia
assumir, em sua fala, uma posição recriminadora, reivindicante de uma reparação moral do
ato. A repressão objetiva ocorreu também pela pressão exercida por amigos que a associaram,
estranhamente, à notícia midiática sobre o bebê encontrado na mata, obrigando-a a revelar à sua
família o ocorrido.

A escuta e a intervenção da Psicologia consistiram em proporcionar a M. um espaço de fala para


escoamento da angústia e para abertura da situação transferencial, fortalecendo uma posição
de legitimação de seu conflito e de seu sofrimento, e possibilitando o relato dos conteúdos
subjetivos associados ao ato numa relação de suspensão de censuras. Contudo, o contexto agudo
do momento e a repercussão da situação dificultaram que M. saísse do lugar de endereçamento
301 da demanda de autopunição, na qual o outro, quando não parceiro nessa demanda, era apenas
autorizado à posição de testemunha. Nem mesmo a oferta de cuidados ginecológicos foi aceita
por M. – uma forma de proporcionar-lhe assistência após parto natural ocorrido fora do ambiente
hospitalar, bem como cuidados com a mama diante da lactação. O pedido endereçado ao hospital
era apenas o de encontro com a instância punitiva. Quando convocada a um laço afetuoso na
relação de escuta, M. transbordava compulsivamente, agarrava-se ao afeto que lhe era direcionado
e apresentava a outra faceta inconsciente do sujeito que necessita, mais do que a punição sádica
da Lei, de um contorno amoroso para sustentação de outro caminho possível de subjetividade,
outros circuitos pulsionais, outras narrativas de legitimação de sua existência.
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Conforme seu pedido, após acolhimento pela Psicologia e pelo Serviço Social, M. foi conduzida
à presença de policiais militares, que compareceram ao hospital após serem chamados pela

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instituição de saúde apenas em função da insistência da paciente, e para que houvesse um
encontro com o poder policial mediado pelo hospital.

Em consulta ao sistema de prontuário da instituição hospitalar, observou-se a presença de M. no


hospital em duas gestações anteriores já no momento do parto. Nas duas situações, M. levantara
a demanda de doação dos bebês. Em especial, na segunda gestação, os dados de prontuário
informam que M. fora acolhida já em período expulsivo do RN, com idade gestacional incerta,
sem pré-natal e com desconhecimento familiar sobre sua gestação. M. afirmava estar confusa
quanto ao desejo de cuidar do RN, nomeando a possibilidade de deixá-lo para doação. Porém,
após conversa com familiares, afirmou querer cuidar do RN e que não o deixaria para adoção.
Já nessa época, revelava em atendimento psicológico a ausência de espaço em seu desejo para
uma nova vida e reeditava, simbolicamente, uma fantasia de rejeição em relação à mãe. Além do
mais, expressava o mal-estar no confronto com a maternagem, descrevendo a opressão vinda
do outro e dos esquemas narrativos de beatificação do exercício da maternidade, localizando a
família nesse circuito de fantasias. Importante ressaltar que, apenas após a chegada da família no
cenário hospitalar, a paciente recuara em sua opção de doação do RN.

Na terceira gestação, M. também fora acolhida no hospital, mas após parto domiciliar, já chegando
em companhia do Conselho Tutelar e após já ter nomeado o desejo de doação do RN. Contudo,
também nessa situação, os avós manifestaram o desejo de ficar com a criança. Nessa segunda
passagem pelo hospital, os relatos em prontuário se referem a um parto domiciliar no qual a
família teria acionado a Polícia Militar por perceber a “intenção” da parturiente. O registro sobre
qual seria esta intenção foi subtraído do prontuário, deixando o contorno do negativo como mal-
estar: intenção de abandonar? De tirar a vida do bebê? De doá-lo?
A presença de M. no hospital, dois dias após a admissão do RN, não foi de conhecimento de
nenhum agente de saúde, a despeito do movimento de circulação informal de narrativas que é
302 amplamente sabido e experimentado pelas autoras em anos de trabalho no campo da saúde.
Aliás, a experiência de construção do caso clínico nos mostra que é no campo das narrativas e
atos da informalidade que o inconsciente do cuidado se manifesta de forma mais crua. É lá que
o verdadeiro ethos afetivo do cuidado se mostra. Nesse circuito clandestino de falas, a presença
de um RN sem identificação, encontrado em condições “desumanas” e abandonado à morte foi
amplamente divulgado entre os agentes de saúde, mesmo em setores diversos à maternidade
do hospital. Inclusive, várias foram as visitas recebidas pelo RN de funcionários da instituição e
várias também foram as solicitações de orientação quanto à possibilidade de adoção da criança,
levando o Serviço Social a reforçar a informação com a equipe de saúde de que o hospital
não tinha participação no sistema de adoção e que processos de adoção competem à Vara da
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Infância e da Juventude. Outro movimento pulsional alteritário foi a patologização de M. como


única maneira de dar contorno para a justificação de seu ato. Nos registros do Conselho Tutelar,

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que acompanhava o caso, o relato da presença de sofrimento mental também foi identificado.
Necessário dizer que isso não foi observado em nenhum dos atendimentos psicológicos realizados
à mulher nas três passagens pela instituição, por três diferentes profissionais da Psicologia,
tampouco na construção das narrativas sobre as passagens de M. na rede de saúde locorregional
de seu município. Na fala familiar, nenhum elemento sugestivo desse sofrimento mental, já com
manifestações sintomáticas definidas, foi encontrado.

M. forneceu à instituição de saúde os contatos do pai biológico da criança que, posteriormente,


compareceu à unidade, junto a seus familiares, sustentando o desejo em exercer os cuidados
paternos ao RN. O bebê foi abrigado pelo Conselho Tutelar numa instituição conhecida por M. na
qual fora, no último ano, funcionária, o que possibilitara o conhecimento próximo da realidade da
história das crianças e genitores viventes nesse contexto.

A última notícia que o serviço de Psicologia teve sobre a paciente consistiu no anúncio de M.,
apoiada pelos familiares, do movimento em curso de solicitação da guarda do RN que ela
abandonara.

UM POUCO SOBRE A REALIDADE DO TRABALHO

Uma unidade hospitalar materno-infantil conta com equipes multiprofissionais, sendo obrigatória
a presença de assistentes sociais e de psicólogos. Em especial, nos casos de decisão por doação ou
entrega de bebês, o atendimento desses profissionais é essencial, inclusive tendo sua ocorrência
legal prevista em Portaria específica do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Portaria 40/2012).

Muito frequentemente, a experiência clínica das autoras tem mostrado que, considerando um
perfil mais genérico, também por isso sempre contestável, as mulheres, atendidas na maternidade
do hospital no qual o caso M. foi atendido, que decidem pela doação têm em seu histórico o conflito
com o parceiro amoroso como núcleo de sofrimento, havendo muitas vezes uma dependência
303 afetivo-financeira associada a isso. Normalmente, há um contexto de pobreza extrema e falta de
acesso a bens e serviços sendo que, muitas vezes, estas mulheres são mães muito desamparadas
no cuidado de outros filhos. É também comum que os vínculos sociofamiliares, sobretudo com
pais e irmãos, tenham características muito fragilizadas sendo descritos como distanciados
ou rompidos. O contexto de chegada à maternidade é solitário, resultante de uma gestação
ocultada da família e da comunidade, não raramente sendo fruto de relações amorosas rompidas,
ocasionais, extraconjugais ou de violência sexual.

Quase todos esses elementos estão presentes no caso M., em especial a pobreza, a falta de acesso
a bens e serviços e a vivência de relações amorosas sem a estabilidade desejada pelo sujeito,
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conforme a narrativa da própria M. Contudo, a experiência subjetiva cotidiana está bastante


mergulhada na vivência da família extensa, qual seja: pai, mãe e irmãs.

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Como apontado, das quatro gravidezes de M., três foram objeto de tentativa de doação da
criança, sendo a última realizada em um ato de desespero. Isso nos fez interrogar sobre o que
a maternidade revelava de tão insuportável para essa mulher sobre o conteúdo inconsciente da
cena de sedução familiar.

ALGUNS ELEMENTOS DE TEORIZAÇÃO SOBRE O CASO

A construção do caso M. deixa em evidência um circuito de repetição muito claro, dando


expressão a uma forma de funcionamento psíquico que repete o ato da maternidade como algo
que desconecta o sujeito de sua vivência amorosa com o parceiro, conectando-o de forma ainda
mais dependente à alteridade familiar, tendo a criança, no meio desse circuito, aparentemente
pouco espaço em seu desejo.

Para além do circuito sintomático de repetição da paciente, tentaremos tratar também de outro
elemento no caso que nos chama a atenção, voltando-nos para o ponto de intersubjetividade
produzido no encontro entre a narrativa singular da história do sujeito e os processos de
subjetivação da instituição, entendendo com Laplanche que “A psicanálise [...] nos ensina o
pluralismo, e mesmo a justaposição.[...] Aquela precisamente que reina no inconsciente, onde
tudo habita lado a lado, sem obrigação de síntese” (Laplanche, 1993, p. 754).

Nesse sentido, tentaremos refletir também sobre o papel da instituição no encontro com o ato
inconsciente do sujeito.
PUERPÉRIO, MATERNAGEM E ALTERIDADE NO CUIDADO EM SAÚDE MATERNO-INFANTIL

304 É essencial considerar que o puerpério é por si só uma experiência dessignificante e traumática. O
protótipo dessas características desprazerosas ganha contornos mais claros nos fenômenos das
psicoses puerperais. Em nossas pesquisas, já propusemos que esse quadro psicótico pode estar
associado ao confronto com

a passividade pulsional absoluta do neonato e, consequentemente, com o corpo


efractado da sedução originária. Situação que impõe à mãe fragilizada pelo
processo traumatizante do parto, por si só apassivador e invasivo, o encontro
com a situação originária e perturbadora do bebê. (Silva, 2012, p. 144)
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Se pensarmos a confrontação com a criança e o puerpério como um momento de recrudescimento


de conteúdos ignorados e enigmáticos para o adulto, como um reencontro com elementos da

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


sedução na cena primitiva, talvez seja possível entender que “ela só é traumática porque propõe,
impõe, seus enigmas que comprometem o espetáculo endereçado à criança” (Laplanche, 1993, p.
757). Mais especificamente, no caso M. esse encontro com o originário deflagraria algo do conteúdo
inconsciente da sedução aparentemente conectado a alteridade materna. Isso consistiria “no
fato de que os outros grandes cenários invocados como originários tem como núcleo a sedução,
à medida que também eles veiculam uma ou várias mensagens do outro, sempre no início no
sentido adulto-criança” (Laplanche, 1993, p 755).

Parece importante considerar no caso M. que a tentativa de doação era, até o suicídio materno,
a forma de tentativa de ruptura e afastamento da criança, e das fantasias de sedução, mas
também a tentativa de salvamento dela de algo terrificante presente na história familiar. Após o
suicídio-abandono materno, a resposta de doação é modulada para um ato mais radical e violento
com características mais próximas de um abandono não mediado pela instituição hospitalar e
fantasmaticamente ligado à cena de suicídio materno.

Nesse sentido, mãe e filha parecem ser conectadas pela tentativa de aniquilamento de algo
terrificante: a mãe, em um ato de auto-apagamento suicida, e a filha, no ato inconsciente e assassino
de tentar apagar algo em si pelas vias do apagamento do outro. Talvez ambas denunciando um ato
radical de resistência e tentativa tradutiva em relação ao elemento disruptivo, erótico e agressivo
da sedução presente no cuidado do outro, revelando aí um ponto do circuito inconsciente
envolvendo mãe e filha em uma “descoberta mais radical da alteridade – a descoberta pela
psicanálise da outra coisa em mim, e a ligação da outra coisa a outra pessoa” (Laplanche, 1993, p.
753).

Importante dizer que a situação puerperal é também uma expressão do originário ligado à sedução,
pensando com Laplanche que “a realidade da sedução é afirmar sua prioridade, sua primazia em
relação a outros cenários ditos originários” (Laplanche, 1993, p. 754). Inclusive para dizer que a
maternidade é uma resposta de tradução ao que do desejo e da sedução se mostra no puerpério,
305 resposta na qual a maternidade está presente como código mais ou menos violento, mais ou
menos desligante e que não há nela nenhuma garantia de salvamento e beatificação da mãe e do
bebê.

A maternidade poderia ser, a partir da teoria laplancheana, assim como a “cena originária,
castração, todas estas [...] imaginações [...] como cenários criados por mim [pelo eu] sob a pressão
da pulsão ou do desejo”(Laplanche, 1993, p. 754), isto é, a maternidade seria, também ela, uma
resposta tradutiva. Nesse sentido, poderia ser tomada como uma matéria simbólica composta
por representações ou esquemas narrativos do próprio sujeito, do sócius familiar e, sobretudo,
da cultura. Já o puerpério, comporia esta cena trazendo à tona a realidade da vivência pulsional
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de que, cito Laplanche (1993, pp. 756-757), “na mulher, uma gênese do desejo sexual [...] primeiro
desconecta este do desejo de filhos, para não estabelecer com ele [o filho] senão ligações

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


complexas, contingentes, individualmente muito variáveis”, e, por isso, não normativas.

Em nosso caso, tendemos a pensar que M. traduz em seu ato a presença de um par parental
originário, comprometido por conteúdos da sedução, com a face desligante e erótico-agressiva de
uma alteridade interna que, quando levada às últimas consequências da satisfação inconsciente,
faz a desconexão absoluta de suas contingências (reprodutivas/puerperais) em relação ao bebê.

É preciso pensar, contudo, que o ato vai sendo também alimentado e convocado pelo outro como
alteridade no sócius-familiar e na instituição de saúde. Duas foram as tentativas “civilizadas” da
pulsão de entregar o bebê, sendo elas barradas pelos esquemas narrativos afiançados entre a
família e a instituição hospitalar.

Não é difícil notar como a construção biomédica normativa de discursos e não discursos ao
entorno da maternidade, modulando formas de saber-poder sobre o comportamento materno
nas unidades hospitalares, faz sua produção violenta no campo da saúde. Isso tem sido discutido
em relação ao que se chama hoje de violência obstétrica (Zanardo, Calderón, Nadal & Habigzang,
2017)1 . A biomedicina tem produzido nas unidades materno-infantis seus meios de massificação
disciplinares “medindo, prevendo, calculando tais fenômenos, [criando com] o biopoder alguns
mecanismos reguladores que o permitam realizar tais tarefas como, por exemplo, aumentar a
natalidade e a longevidade, reduzir a mortalidade” (Pogrebinschi, 2004, p. 196). Isso tem se

1. No mesmo sentido, Venturini, Recamán e Oliveira (2010), em A mulher brasileira nos espaços público e privado, mostraram
que 25% das mulheres entrevistadas relataram ter sofrido algum tipo de violência nos serviços de saúde durante a atenção ao
parto, tanto públicos quanto privados.
apresentado, a nosso ver, também em programas sobre boas práticas2 da maternidade, que visam
justamente a humanização das práticas biomédicas.
306
Nessas unidades, o cuidado de saúde vem contaminado por esses código-esquemas narrativos
da mãe normatizada, beatificada. O efeito dessa matéria simbólica parece incidir como uma ação
recalcante e violenta sobre o psiquismo dessas mulheres. Desse ponto de vista, a narrativa clínico-
afetiva do cuidado, a narrativa familiar e a narrativa cultural fazem um composto simbolizante
massificante e silenciador. Eles tentam higienizar a cena psíquica da mulher de seus afetos
desprazerosos, hostis, mortíferos em relação à criança. Conteúdos que são objeto de uma ação
violenta de expulsão do eu, compondo um terreno psíquico clandestino e perigoso que aparece,
muitas vezes, por atos violentos e inconsequentes contra a criança por não encontrarem outras
formas mais razoáveis de narrativa tradutiva na cultura.
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Nossa impressão é de que a equipe cuidadora também não estaria livre desses conteúdos,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


uma vez que os atos de punição, difamação e ataque contra as mulheres e/ou mães por suas
“imperícias” maternas, por suas decisões de não maternidade são muito frequentes e disfarçados
pela tecnologia biomédica de cuidado.

Nesse contexto, o puerpério e o encontro com o corpo do bebê parecem deflagrar a relação
com o originário e o sexual infantil de uma forma antissimbolizante também para a alteridade
institucional. Isso a tal ponto que as boas práticas da maternidade, estratégias de cuidado da
humanização pautadas por entendimentos biomédicos sobre a saúde da materno infantil, estejam
se transformando em códigos de violência e modelos clínico-afetivos que normativizam o que é ser
“a boa mãe”. Talvez por isso não oferecendo elementos tradutivos suficientes, não potencializando
a expressão singular de composição das traduções de maternidade para cada sócius familiar, para
cada mulher, impondo que o sujeito na relação com a criança sofra no encontro com um ethos
afetivo de cuidado alienante e silenciador do sofrimento feminino.

PARA NÃO CONCLUIR

Consideramos que as exigências tradutivas encontradas nas cenas puerperais vividas por M. na
unidade hospitalar poderiam ter oportunizado “retomadas do processo de sedução [para] provocar
novas contribuições pulsionais” (Laplanche, 1992, p. 152). Seriam, talvez, rearranjos inconscientes
menos atacantes e disruptivos para M., inclusive facilitando a tomada de decisão pela doação da

2. Boas práticas são definidas por procedimentos que devem ser adotados pelas maternidades e equipes de saúde para
humanização do parto, quais sejam: parto com acompanhante; não episiotomia; parto normal natural; práticas não medicamentosas
de controle de dor; contato pele a pele na primeira hora mãe-bebê; não uso de bico; insistência no aleitamento exclusivo até 6
meses; prática canguru para pré-termo de baixo peso; não uso de ocitocina para aceleração do parto; não aminiotomia (ruptura
de membrana que envolve o feto); prática de posição livre da gestante no momento do parto (não litotomia).
criança e elaboração da posição de mulher para o próprio desejo.

307 Contudo, foi sobre esses conteúdos justapostos, conflitantes, erótico-agressivos e desligantes
da sedução na história do sujeito que os código-esquema narrativos do cuidado materno-infantil
foram se depositar em relação ao “que é ser uma mãe” e ao que é “ser uma mulher” para uma criança,
fazendo a tradução não menos violenta e prescritiva sobre a “boa maternidade” e o “amor materno
incondicional” e, nesse sentido, não oportunizando o tratamento dos conteúdos inconscientes
tão determinantes do ato de doação dos bebês. Por fim, talvez possamos dizer que os esquemas
narrativos do cuidado prestaram um desserviço, como aponta Laplanche (1992, p. 152),“aos
processos de simbolização [que] diminuem [...] [o] aspecto coercitivo” do objeto inconsciente, isto
é, de um movimento de pressão atacante da alteridade que é em mim sendo outro.
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Se é preciso admitir, com Laplanche, que os esquemas narrativos podem servir para diminuição da
exigência coercitiva de simbolização desses derivados inconscientes do objeto fonte da pulsão,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


é preciso interrogar também de forma pragmática se esses esquemas estão a este serviço como
ethos afetivos no cuidado nas instituições de saúde, em especial nas maternidades onde o ato de
doação de bebês é sempre uma possibilidade.

REFERÊNCIAS

Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. (C. Berliner, Trad.) São Paulo: Martins
Fontes.

Laplanche, J. (1993). Elaborações temáticas: Sedução, perseguição e revelação. Revista Brasileira


de Psicanálise, 27(4), 751-782.

Pogrebinschi, T. (2004). Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. LUA Nova, 63.
Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ln/n63/a08n63.pdf

Silva, M. K. (2012). A feminilidade originária nas psicoses. Dissertação de Mestrado – Faculdade de


Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Mimas Gerais.

Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG. Portaria 40/2012. Procedimento de encaminhamento


à Justiça da Infância e da Juventude de gestantes e mães que manifestem interesse de entregar
os filhos para adoção. Recuperado de http://www8.tjmg.jus.br/jij/pdf/portaria_40.pdf

Venturi, G.; Recamán, M.; & Oliveira, S. de. (Org.). (2004). A mulher brasileira nos espaços público
e privado. São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo. Recuperado de http://library.fes.de/pdf-
files/bueros/brasilien/05629-introd.pdf
Zanardo, G. L. P.; Calderón, M.; Nadal, A. H. R.;& Habigzang, L. F. (2017). Violência obstétrica no
Brasil: uma revisão narrativa. Psicologia & Sociedade, 29. Recuperado de http://www.scielo.br/
308 pdf/psoc/v29/1807-0310-psoc-29-e155043.pdf
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SUMÁRIO

O DESCONHECIMENTO DA
SEXUALIDADE INFANTIL NO
309
CONTEXTO DE ADOÇÕES TARDIAS:
UM COMPLICADOR PARA A
RECONSTRUÇÃO SUBJETIVA DA
CRIANÇA NA NOVA FAMÍLIA

AUTORIA
DEBORAH LEMOS LOBATO DE ARAÚJO
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Foi estagiária
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do Setor de Estudos Familiares da Vara Cível da Infância e da Juventude do Tribunal


de Justiça de Minas Gerais – TJMG. Atualmente é estagiária do Projeto CAVAS/UFMG.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: deborahlemos1295@gmail.com

RESUMO
As contribuições da psicanálise lançam luz às incompreensões a respeito das atividades
sexuais infantis, principalmente as masturbatórias, que não são vistas por muitos adultos
como parte do percurso do desenvolvimento psicossexual e, frequentemente, são
consideradas um sinalizador da “promiscuidade precoce” ou da “má índole” daquele pequeno
sujeito em construção. Trazendo recortes de um caso de adoção tardia acompanhado na
Vara Cível da Infância e da Juventude, este trabalho pretende discutir como manifestações
sexuais dessa ordem estimulam as fantasias negativas dos adotantes com relação à história
pregressa da criança e a sua personalidade no futuro, fragilizando o investimento parental
naquela relação. Essa situação muitas vezes revela a dificuldade dos pais adotivos em lidar
com a subjetividade daquela criança posta a sua frente, que, por sua vez, em virtude dos
desafios da adaptação à nova família, se encontra ainda em pleno trabalho de ressignificação
da sua história. A partir da elucidação de traços essenciais da sexualidade infantil segundo
a teoria freudiana e das contribuições de outros importantes autores, buscou-se sublinhar
como essas manifestações do “sexual” não se reduzem ao “genital” e como lidar com essa
questão toca o recalcado da própria sexualidade adulta, interferindo no processo de adoção.
PALAVRAS-CHAVE: Sexualidade infantil; Psicanálise; Adoção; Adoção tardia.
O trabalho desenvolvido com famílias adotivas e a literatura sobre o tema mostram que as
possibilidades de uma adoção realmente vir a se realizar relacionam-se a condições anteriores à
310 união entre os adotantes e o adotando. Parte do sucesso da adoção diz respeito aos elementos
que cada um traz de sua trajetória particular e como são elaborados até que se chegue o momento
do tão esperado encontro.

Sob a perspectiva dos adultos, narrativas diversas esclarecem os motivos que os levaram ao
projeto de adoção e descrevem o doloroso luto vivido pela impossibilidade de terem tido um filho
biológico. Aos que, ainda assim, preservam o sonho de serem pais, esse delicado processo os
auxilia a reservar um novo lugar no imaginário, a ser ocupado pela criança que virá pela via da
adoção. Como afirma Dolto (1981), inscrever a criança nesse curso desejante permite que ela
possa existir a partir de um espaço simbólico repleto de significados, e também dá a chance aos
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adultos de se tornarem pais pelo desejo.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Esse importante investimento libidinal dos adotantes no projeto de adoção remonta ao elemento
narcísico da parentalidade, como pontuado por Freud (1914/2006), que permite que o filho seja
concebido como uma continuidade de si e também facilita o processo identificatório com a criança
em adoção.

No entanto, em consequência dessa operação inconsciente, muitos adotantes valem-se de


excessivas idealizações em torno do filho que virá. Se, por um lado, isso os ajuda a aplacar as
inseguranças ligadas à decisão de adotar, por outro, pode gerar um abismo de incompatibilidades
em relação às características da criança real, sobrecarregando-a.

A criança a ser adotada tardiamente também enfrenta um processo de luto, que é relativo à
sua vivência com seus progenitores. Todo o sofrimento advindo da sua trajetória de violações
e separações atravessa a sua experiência subjetiva, gerando feridas narcísicas que influenciam
na sua autoimagem e na forma como ela se vincula aos outros, tal como aponta Levinzon
(2004). Amparada pelo trabalho dos profissionais da psicologia clínica, jurídica e do acolhimento
institucional, a criança realiza esforços para ressignificar a própria história e reconhece na adoção
a possibilidade de estabelecer novos laços significativos. Esse processo, contudo, não deixa de
ser extremamente trabalhoso para ela.

O temor de ser rejeitada ou abandonada novamente, agora pela família adotiva, muitas vezes
estimula a criança a comportar-se de forma correspondente ao que acredita que esperam dela.
O que o adotando demanda, na verdade, é uma aceitação incondicional daquilo que expressa
espontaneamente, para assim sentir que o vínculo com as novas figuras parentais é realmente
seguro e possível de ser estabelecido.
No entanto, para famílias adotivas que apresentam um enrijecimento dos ideais, qualquer
conduta imprevisível do adotando pode se opor à obtenção de satisfação narcísica dos pais e
311 gerar frustrações a todos. Quando essa conduta está relacionada à sexualidade infantil então,
pode-se esperar um cenário ainda mais complexo.

Segundo Freud (1914/2006), a manifestação da sexualidade na infância pode representar uma


afronta ao narcisismo parental, uma vez que, historicamente, é identificada pelos adultos como
um sinalizador da “promiscuidade precoce” ou da “má índole” daquele pequeno sujeito em
construção.

Embora a sexualidade infantil também seja um assunto comum a famílias com filhos biológicos,
foi percebido que, na vivência da adoção tardia, essa questão envolve elementos ainda mais
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desafiadores aos adotantes, que lidam com o desconhecido acerca da origem do próprio filho.
Essa compreensão pode ser corroborada a partir da hipótese desenvolvida por França e Verticchio

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


(2017, p. 190), que afirmam que “subjaz nas filiações adotivas uma fragilidade narcísica que pode
funcionar como um fator propício à formação de fantasias de não ligação com a criança adotada,
fantasias de descontinuidade narcísica e de estranhamento”.

No período em que trabalhei como estagiária na Vara Cível da Infância e da Juventude, tive a
oportunidade de acompanhar um determinado caso de adoção tardia que me despertou
preocupação pelo impacto que o elemento da sexualidade gerou no convívio familiar. Será este o
material a enriquecer esse trabalho.

No caso em questão, a criança, que já havia completado oito anos de idade e estava há poucos
meses em estágio de convivência para adaptação à família adotiva, manifestou comportamentos
sexuais que perturbaram muito os adotantes. Apesar de inicialmente eles terem expressado um
forte engajamento no processo, a equipe técnica percebeu que, após a ocorrência dos episódios,
houve uma significativa fragilização do investimento parental naquela relação. Destaca-se que
os adotantes, ao relatarem o problema, valiam-se de um discurso moralizador, que transmitia o
assombro diante da situação que enfrentavam e o sentimento de estarem sendo desrespeitados
por aquela criança.

Um dos cônjuges aparentava agarrar-se mais ao compromisso feito originalmente, tomando a


frente da continuidade do projeto. Porém, em virtude dessa assimetria, que evidenciou também
a diferença de disponibilidade emocional de cada um para continuar sustentando a adoção, eles
trouxeram para a discussão com os técnicos a possibilidade de separação conjugal, que revelou a
gravidade da questão para a manutenção daquela família.

Do meu ponto de vista, essa situação evidenciou não somente a dificuldade dos adotantes de
lidarem com a subjetividade daquela criança posta a sua frente, como também serviu como um
alerta para a importância dos pais, principalmente os de adoção tardia, adquirirem conhecimento
a respeito da sexualidade infantil que, de antemão, poderia facilitar a compreensão de que esse é
312 um elemento fundamental do desenvolvimento psíquico do sujeito e não deve ser repudiado por
uma avaliação moral.

Isto posto, devemos nos perguntar: por que muitos dos pais desconhecem o tema da sexualidade
infantil?

No segundo dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996), Freud afirmou que
havia uma negação em grande escala da existência da sexualidade infantil, que ficava ainda
mais sugestionada pela amnésia que incide sobre os primeiros anos da infância. Segundo ele, a
amnésia opera como um impedimento da consciência à própria sexualidade infantil, a partir do
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recalcamento, o que colabora para a manutenção do interdito que o social lança sobre as crianças
e explica por que não é dado valor ao período da infância no desenvolvimento da vida sexual.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Não obstante, é importante salientar que o recalcamento é um mecanismo fundamental para o
desenvolvimento e o equilíbrio psíquico.

França e Verticchio (2017) também auxiliam a compreender essa questão ao convocar o conceito
de Unheimlich, cunhado por Freud (1919/1996) em seu texto “O estranho”, que diz respeito à
sensação de inquietude do sujeito pelo retorno desse material recalcado. As autoras relacionam
esse fenômeno à experiência dos adotantes de lidarem com a erotização da criança adotada.
Para elas, o comportamento sexualizado da criança produz um efeito de ameaça ao aparelho
psíquico dos pais, pois traz o perigo do desmanche do recalcado, que fragiliza as suas estruturas
egóicas a ponto de demandar o afastamento daquele objeto que lhes provocou essas incômodas
sensações, neste caso, a criança. Ghirardi (2016) afirma ainda que esse sentimento de estranheza
relaciona-se inversamente com o sentimento de identificação e, por isso, a criança corre o risco
de não ser reconhecida mais enquanto filha.

Freud (1905/1996) também apontou a ocorrência de uma confusão, que eu trato como
epistemológica, entre o caráter “sexual” e o “genital” da sexualidade humana. Para isso, faz-se
necessário esclarecer, a partir da compreensão dos dois últimos tópicos dos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, que o “genital” diz respeito à forma “acabada” de sexualidade, inaugurada
somente na puberdade. Nesse período haverá um aperfeiçoamento do desenvolvimento
psicossexual, no qual as zonas erógenas estarão subordinadas ao primado da zona genital,
possibilitando a vivência de relacionamentos amorosos incrementados pela atividade sexual que,
segundo o autor, visa à reprodução.

Esse traço, contudo, não é o que caracteriza a sexualidade infantil, e, portanto, esta não se
trata de um adiantamento da sexualidade adulta. Desta forma, o termo “sexual” é o correto por
não haver ainda o primado da zona erógena genital. É também característica desse período a
expressão das pulsões parciais, que começam por funcionar de forma independente e, ao longo
313 do desenvolvimento, se unem nas organizações libidinais. Podem ser ligadas a determinadas
zonas erógenas mas também a toda a superfície do corpo, e, ainda, serem definidas pelo seu alvo.
Isso ilustra a incipiência desse fenômeno na infância.

Assim, o sexual da experiência infantil refere-se às primeiras descobertas de prazer da vida


humana, que são condicionantes da vida psíquica, residindo aqui a sua importância. Sabemos que
essa é uma vivência que se inicia desde o momento em que o bebê recebe investimentos libidinais
dos cuidadores, quando tem a oportunidade de inaugurar as pulsões sexuais através do apoio
nas funções somáticas vitais, como a alimentação. À medida que cresce um pouco mais e perde
esses objetos sexuais externos, como após o desmame, a criança recorre ao próprio corpo como
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via de satisfação das pulsões sexuais, caracterizando as manifestações autoeróticas. A partir


do autoerotismo, a criança pode explorar e inaugurar novas zonas erógenas no próprio corpo, o

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que não deixa de representar um aspecto da sua suposta onipotência, já que abre mão de outros
objetos externos.

Ao longo desse desenvolvimento, as pulsões parciais que se ligam mais consistentemente às zonas
erógenas principais, farão a criança notar que há partes do corpo capazes de lhe proporcionar
sensações prazerosas, despertando a necessidade de repeti-las. É nesse período que poderá
haver atividades masturbatórias, observáveis pelas pessoas que a cercam.

Algum tempo depois, contudo, as vinculações da energia sexual aos objetos são abandonadas
em função do período de latência e substituídas por identificações. Forma-se o núcleo do
superego, que internaliza as autoridades que cercam a criança, interrompendo temporariamente
a manifestação das atividades sexuais.

Nesse momento, torna-se interessante retomar o caso de adoção tardia acompanhado na Vara da
Infância e da Juventude, para explorar alguns aspectos das manifestações sexuais apresentadas
por aquela criança. O primeiro deles, e o mais significativo para os adotantes, foi o episódio em
que um dos cônjuges flagrou-a fazendo contato oral com a genitália de um estimado animal que
criavam em casa. Em outra ocorrência, esse mesmo cônjuge constatou que a criança havia tirado
a parte inferior do pijama e dormia com a genitália descoberta. Embora os adotantes soubessem
que era frequente a atividade masturbatória dela no seu período de institucionalização em
acolhimento, eles relataram que as situações lhe causaram as reações imediatas de susto e
repreensão da infante, além de terem provocado outros efeitos já mencionados anteriormente,
como a consideração da possibilidade de se separarem.

A preocupação com a ocorrência de novos episódios levou-os a pedir à criança que prometesse
nunca mais repetir tais atos, pedido que só operaria como uma proibição opressiva contra
impulsos sobre os quais ela, aparentemente, não seria capaz de exercer muito controle. Pelo
contrário, poderia estar vigente nesse caso uma compulsão à repetição que apenas buscaria uma
314 oportunidade de elaborar a quantidade de excitação em seu corpo.

De fato, a partir da perspectiva psicanalítica, é possível perceber que se tratavam de


comportamentos não correspondentes ao esperado para a idade daquela criança, e que exibiam
a marca do sexual transbordante, em um momento em que essas moções deveriam estar
submetidas às repressões do período de latência.

Apesar de ser esperado que ocorram comportamentos regressivos em contextos de adoção, o


reaparecimento da atividade sexual, por mais que seja um desvio previsto pela teoria freudiana,
pode ser considerado um sintoma a ser tratado em análise. Se partirmos da ideia de fixação de Karl
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Abraham (1913-25 apud Mezan, 1999), que defende que o traço psicopatológico está ancorado
em um momento do desenvolvimento psicossexual, podemos entender os comportamentos

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


dessa criança como uma manifestação de erotismo oral que permaneceu nas demais fases de
organização (anal e fálica) como resíduos da relação de objeto oral.

Como o contato que me foi possível ter com essa criança ocorreu a partir da psicologia no contexto
jurídico, e não da clínica psicanalítica, considero prudente não avançar mais nessa análise acerca
da natureza dessas atividades sexuais, cabendo formular apenas hipóteses. Da mesma forma,
não arriscarei relacioná-las à ocorrência de um abuso sexual vivido anteriormente à adoção, pois,
de antemão, esclareço que não foi encontrada nenhuma informação desse tipo nos registros do
processo judicial de medida de proteção.

O que nos resta enfatizar após todas as considerações ao longo deste trabalho é que a sexualidade
infantil não deve ser mais um fator a penalizar a criança em adoção. Em situações como essa, é
preciso reconhecer as suas vulnerabilidades e identificar em quais pontos se instalam, levando-
lhe um olhar de cuidado, e não de repúdio ou desistência por considerar que os danos das violações
seriam irreparáveis.

É fundamental levar em conta que o adotando vive com intensidade a reconstrução de sua subjetividade
nessa nova família, e que o que trouxe da experiência pregressa o confronta diversas vezes na
experiência atual, trazendo inseguranças quanto ao amor dos pais e temendo constantemente o
colapso da família, como aponta Levinzon (2004). Essa inconsistência, principalmente quando
intensificada por pais ambivalentes que transmitem a dúvida quanto à continuidade da adoção,
comunicam ao adotando que o seu lugar no mundo é incerto. Segundo a autora, essa perspectiva o
impossibilita de se haver com as particularidades da sua história, o que prejudica a constituição da sua
noção de Eu e o desenvolvimento de um sentido pessoal de “existência”.

Como orientação aos pais adotivos, França e Verticchio (2017) propõem que eles acolham a história
significante da criança e, diante dos transbordamentos sexuais, entendam que é seu papel ajudar
o filho a integrar os seus excessos, dando-lhe a chance de reconhecer novas formas de tocar e
315 de amar.

Para que isso seja possível, é de enorme importância que os adotantes se esforcem em procurar
orientação, tanto da equipe técnica especializada da Vara Cível da Infância e da Juventude, como
de psicoterapeutas ou psicanalistas, onde poderão expressar e compreender os efeitos que esses
conflitos familiares causam em cada um. Dessa forma, será possível tornar a relação familiar mais
sã e gratificante, oferecendo à criança um verdadeiro sentimento de adoção.

REFERÊNCIAS
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Dolto, F. (1981). “Prefácio”. In M. Mannoni. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro:


Campus.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


França, C. & Verticchio, R. (2017). Palavras por dizer: a enigmática devolução de crianças adotadas.
In C. P. França (Org), Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual. São Paulo: Blucher.

Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, Trad., Vol. 17, pp. 163-209). Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).

Freud, S. (1996). O estranho. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. (J. Salomão, Trad., Vol. 17, pp. 233-270). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1919).

Freud, S. (2006). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp.77-108). Rio de Janeiro :
Imago. (Trabalho original publicado em 1914).

Ghirardi, M. (2016). O que há de estranho na devolução de crianças adotadas?. In M. L. A. M. Ghirardi;


& M. P. Ferreira (Orgs), Laços e rupturas: leituras psicanalíticas sobre adoção e o acolhimento
institucional. São Paulo: Escuta.

Levinzon, G. (2013). Adoção. (Coleção Clínica Psicanalítica). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Mezan, R. (1999). O inconsciente segundo Karl Abraham. Psicol. USP, 10(1), 55-95.
SUMÁRIO

316 O JARDIM SECRETO DA


ADOÇÃO: UMA ANÁLISE DAS
TENDÊNCIAS DO INSTITUTO À
LUZ DO DIREITO COMPARADO

AUTORIA
BRUNA DI FÁTIMA DE ALENCAR CARVALHO
Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. .
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

CONTATO: bruna_gcc@hotmail.com.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
A família é uma associação humana de relevo socio-histórico. É, portanto, o primeiro núcleo
de desenvolvimento humano, de modo que o Direito zela por sua manutenção. Atento a isso
o instituto da adoção no ordenamento jurídico brasileiro é orientado pelo princípio do melhor
interesse da criança, e, portanto, o processo que a instrumentaliza deve ser orientado pelas
mesmas diretrizes. Assim cabe explorar as críticas quanto à burocratização e à efetividade
do processo em relação ao Cadastro Nacional de Adoção (CNA), a partir das perspectivas
relativas à efetivação do direito da criança e do adolescente no direito comparado no
intuito de evidenciar convergências e divergências capazes de oxigenar a tratativa jurídica
destinada à questão. Assim, a obra “O Jardim Secreto” do escritor Frances Hodgson
Burnett pode ser entendido enquanto uma metáfora aplicável ao processo de adoção,
visto que este pode-se mostrar tortuoso e promissor para a formação de uma nova família.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Comparado; Direito de Família; Estatuto da Criança e do
Adolescente; Adoção.
INTRODUÇÃO

317 Ao conceber o instituto da adoção como um jardim secreto, remete-se a um primeiro momento à
representação do jardim nos moldes expostos por Saldanha (1983, p. 105) como uma “porção de
espaço anexa à casa, habitualmente à sua frente”.

Perceba-se então o jardim como um espaço que não integra a casa propriamente dita, porém
essencialmente particular, embora guarde algum viés público em razão de sua visibilidade pelo
meio comunitário.

O jardim então é visto pelo imaginário social, mas apenas trabalhado de forma particular, e, por
conseguinte, guarda um viés de “segredo” em razão de seus desdobramentos íntimos, psíquicos,
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

etc. Nesse sentido, evoca-se também outro milenar arquétipo fincado em “um antagonismo/
complementariedade entre a vida humana como experiência pessoal e como estrutura grupal”

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


(Saldanha, 1983, p. 110).

Assim, utiliza-se no presente trabalho a imagem do jardim como uma metáfora em referência ao
instituto jurídico interdisciplinar da adoção.

Diante disso, cumpre destacar também que a análise proposta comporta abordagem de direito
comparado no sentido de que traçará as perspectivas dos ordenamentos nacionais sobre o instituto
da ação. Não se tratam, portanto, de considerações sobre panoramas da adoção internacional.

Oportunamente, soma-se então a possibilidade de ampliar a metáfora do jardim a partir de uma


obra literária correlata, O Jardim Secreto, do escritor, Frances Hodgson Burnett, na qual o instituto
da adoção desponta como o caminho de esperança de uma criança no bojo de uma nova família.

Na obra, Mary, uma criança proveniente de uma família abastada, perde seus pais na Índia após
um incisivo surto de cólera e é esquecida pelos criados em uma casa vazia, sendo resgatada dias
depois e enviada para morar com seu tio recluso em uma grande casa em um vilarejo na Inglaterra.
Em seu processo de ressocialização em um novo núcleo familiar, Mary encontra um jardim secreto
no qual passa a empregar o seu tempo a explorá-lo, de modo que ao longo do processo modifica a
si mesma, delineando novos contornos para o seu entendimento de mundo.

Nesses termos, a adoção propicia à criança a construção de um novo espaço de trocas materiais
e imateriais necessárias para o desenvolvimento do ser individual e, a posteriori, para o ser social.
No entanto, apresenta entraves que ainda permitem entender o instituto como imbuído de uma
opacidade, tendo em vista os problemas da práxis jurídica que dificultam a efetividade do princípio
do melhor interesse da criança, de modo que novas percepções a partir do direito comparado
podem apresentar uma oxigenação para o instituto de que se trata.
FAMÍLIA E FORMAÇÃO HUMANA

318 Uma vez que a família é uma associação humana histórica com fins de segurança e continuidade
de seus membros (Segalen, 1992), há de se destacar também que das sociedades ocidentais
modernas emerge, por sua vez, a família como uma instituição basilar de cuidado e desenvolvimento
humano, de forma que a ela se atribui um dos núcleos primários de socialização e fomento aos
processos de individualização (Singly, 2000).

A família é amplamente percebida como uma união de duas ou mais pessoas


unidas por laços de união, sangue, adoção ou uniões consensuais. É a unidade
básica da sociedade, atende às necessidades dos indivíduos e de outras
instituições da sociedade. O desenvolvimento humano, portanto, pode ser
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

melhor enriquecido pela vida familiar. (Agrawal, 2009, p. 19, tradução nossa)

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


1
Nesses moldes, pode-se entender a família da contemporaneidade como permeada por ideais
burgueses que orientam seus membros à realização individual. Isto posto, a família desponta
como uma associação voltada para o desenvolvido de cada um de seus componentes a partir de
uma afetividade que busca a construção de si enquanto unidade e, a posteriori, a construção de
si enquanto coletivo, parte de um aspecto macro, conforme explorado por Singly (2000) em sua
obra Família e individualização.

Nesses termos Souza et al (2008) destacam, a partir da referida obra de Singly (2000), a família
como uma instituição de caráter dicotômico, uma vez que compõe o público e o privado:

Os argumentos apresentados em seu desenrolar examinam algumas


características: a família contemporânea é relacional, é privada e pública, é
individualista e precisa de horizonte intergeracional – eixos norteadores através
dos quais explicita suas ideias.

A característica referente ao duplo movimento da família contemporânea de


ser privada e, ao mesmo tempo, pública, é destacada pelo autor, que apreende
a família como um espaço no qual os indivíduos acreditam proteger a sua
individualidade, ao tempo em que sofrem intervenção do Estado mediante o
apoio e a regulação sobre as relações dos seus componentes – como exemplo,
refere-se à criação de leis que objetivam limitar o direito da punição paternal.
(Souza et al, 2008, p. 623)

1. No original: “Family is broadly perceived as a union of two or more persons united by ties of marriage, blood, adoption or
consensual unions. It is the basic unit of society, it meets the needs of individuals and those of other societal institutions. Human
development, therefore, may be best enriched by family life.”
Outrossim, Agrawal (2009) ressalta a importância da família no processo de apreensão da cidadania,
de forma que o entendimento da criança e do adolescente sobre a necessidade de formação de seus
319 valores cívico-coletivos passa também pelo suporte familiar, seja quanto ao fornecimento do patrimônio
material quando ao imaterial, simbólico responsável pelo desenvolvimento biológico-psíquico:

A família deve ser considerada a menor democracia no coração de qualquer


sociedade civil. É um berço para nutrir valores democráticos. A importância do
direito da família no desenvolvimento de melhores relações sociais, portanto,
não pode ser subestimada. A compreensão da família é necessária para o
funcionamento de qualquer sociedade civil. (p. 19, tradução nossa). 2

Destarte, a manutenção do menor em uma instituição familiar a partir da presunção de que esta
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oferece bases hígidas de desenvolvimento passa a ser uma diretriz norteadora dos Direitos da
Criança e do Adolescente e, por conseguinte, justificante do instituto jurídico da guarda e adoção

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


(Dias, 2016).

Veja-se, então, que quando se trata da tutela jurídica direcionada ao menor, o sistema jurídico
brasileiro irá operar especialmente orientado pelo princípio do melhor interesse da criança ou do
adolescente. Note-se então que diante de conflitos de interesse no caso concreto que envolvam
aqueles, pais, tios etc. o magistrado deverá agir orientado a resguardar o bem-estar dos menores.

Feitas tais considerações, faz-se oportuno delinear de forma mais apurada os contornos do Direito
de Família brasileiro, bem como os aspectos concernentes à adoção.

O DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO E O INSTITUTO DA ADOÇÃO

A razão de ser do Direito remonta ao anseio socio-individual da criação de alguma ordem nas
relações e condutas humanas como forma de balizar as reflexões das ações humanas.

Nesse contexto, o Direito de Família presta-se a regular as condutas que possuam efeitos jurídicos
de cunho familiar assim como vincula-se ao contexto social de elaboração e aplicação da norma
(Segalen, 1992).

Veja-se ainda que, no que pese a mutabilidade da realidade social e muitas vezes a dificuldade dos
institutos jurídicos de traduzir de forma satisfatória no critério temporal as novas necessidades

2. No original: The family should be considered as the smallest democracy at the heart of any civil society. It is a cradle for
nurturing democratic values. The importance of family law in the development of better societal relations, therefore, cannot be
overemphasized. The understanding of the family is necessary for the functioning of any civil society.”.
da modernidade, o que ocasiona um direito positivo que muitas vezes não acompanha o fato
social, a regulação normativa imposta pelo estado possui força vinculante que merece atenção
320 (Santos, 2006).

Assim, há que se observar que o Direito de Família brasileiro se estrutura de forma consentânea
com os uma base principiológica fundada na Dignidade da Pessoa Humana, bem como nos
princípios da liberdade, da igualdade e respeito à diferença, da solidariedade familiar, do pluralismo
das entidades familiares e da proteção integral das crianças e adolescentes, bem como, na
contemporaneidade, passa a nortear-se pelo princípio da afetividade (Dias, 2016).

O direito ao afeto está muito ligado ao direito fundamental à felicidade. Também


há a necessidade de o Estado atuar de modo a ajudar as pessoas a realizarem
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seus projetos de realização de preferências ou desejos legítimos. Não basta


a ausência de interferências estatais. O Estado precisa criar instrumentos –

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


políticas públicas – que contribuam para as aspirações de felicidade das pessoas,
municiado por elementos informacionais a respeito do que é importante para a
comunidade e para o indivíduo. (Dias, 2016, p. 58)

Maria Berenice Dias (2016) grifa, então, que o afeto desponta na contemporaneidade como
elemento organizador da própria família, um elemento de coesão por meio do qual seus membros
buscam acolher-se mutuamente e criar as condições para uma convivência digna; ou seja, não se
trata mais a família como um agrupamento humano apenas com fins reprodutivos ou econômico-
patrimoniais. A finalidade da família nos moldes atuais – conforme advém, inclusive, da pluralidade
de arranjos familiares – é a promoção dos direitos da personalidade e do prestígio à afetividade,
do bem-estar humano.

É nesse viés que a adoção surge como integrada ao Direito de Família, de maneira que:

Já não é o indivíduo que procura o sucessor político, o sucessor de seu


patrimônio ou alguém que herde seu nome patronímico. Já não são os manes
dos antepassados que reclamam, com intransigência, as libações ou repastos
fúnebres. São todos os indivíduos, irmanados na comunhão denominada
sociedade, que, na adoção, enxergam um dos fatores de seu equilíbrio, de sua
felicidade. (Pereira, 1953, pp. 147-148)

Exsurge então a adoção, segundo Paulo Lobo como uma escolha afetiva com igualdade de
direitos nos termos do Art. 227, § 5.º e § 6.º da Constituição Federal, de ordem que, ao tutelar a
adoção e seus procedimentos, o Estado estabelece a igualdade entre os filhos e um procedimento
com vistas à promover a verificação das circunstâncias das crianças e dos adolescentes que se
enquadram nos critérios para serem adotados, bem como as circunstâncias dos adotantes e a
igualdade de condições entre os interessados (Lobo, 2004).
321
Na vida cotidiana, as relações familiares são os critérios básicos para a
formação de lares e para a realização de tarefas relacionadas à reprodução
biológica e social. No paradigma ocidental moderno, a expectativa social é
que os laços familiares sejam baseados no afeto e no cuidado mútuo, embora
considerações instrumentais, estratégicas e baseadas no interesse também
sejam incorporadas, tanto no curto prazo da vida cotidiana quanto em uma
perspectiva. longo prazo intergeracional. (Jelin, 2009, p. 136, tradução nossa) 3

Há então que atentar-se para o fato de que a adoção também se finca na orientação dos Direitos
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da Criança e do Adolescente sobre a importância de crescer em um núcleo familiar e, por


conseguinte, da própria convivência familiar em razão de seus processos psicossociais próprios

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


a entender-se filho (Dias, 2016).

Não obstante, deve-se lembrar que, embora a estrutura do Direito de Família no Brasil esteja
afeita à princípios gerais e abstratos como o princípio da dignidade da pessoa humana, a própria
instituição familiar ao ser situada dentro de uma cultura jurídica nacional guarda expressões
locais diferentes, de maneira que cabe atentar-se que a família “é uma organização social, um
microcosmo de relações de produção, reprodução e distribuição, com estrutura de poder própria
e fortes componentes ideológicos e afetivos” (tradução nossa) 4 (Jelin, 2009, p. 135, tradução
nossa), o que permite ainda uma leitura comparativa do Direito de Família nacional com outros
ordenamentos jurídicos nacionais.

UMA ANÁLISE DAS TENDÊNCIAS DO INSTITUTO DA ADOÇÃO À LUZ DO DIREITO COMPARADO

Diante do exposto, cumpre apresentar novas perspectivas para a adoção. Estas, por sua vez,
podem surgir a partir de uma abordagem de direito comparado.

3. No original: “En la vida cotidiana, las relaciones familiares constituyen el criterio básico para la formación de hogares y para el
desempeño de las tareas ligadas a la reproducción biológica y social. En el paradigma occidental moderno, la expectativa social
es que los vínculos familiares estén basados en el afecto y el cuidado mutuo, aunque también se incorporan consideraciones
instrumentales, estratégicas y basadas en intereses, tanto en el corto plazo de la vida cotidiana como en una perspectiva
intergeneracional de más largo plazo.”
4. No original: “Se trata de una organización social, un microcosmos de relaciones de producción, reproducción y distribución,
con su propia estructura de poder y fuertes componentes ideológicos y afectivos.”
Note-se então que por Direito Comparado pode-se entender:

322 Relativamente ao objetivo do Direito Comparado, reúne Sugiyama as diversas


escolas, ou tendências, em três categorias: a) as que visam estabelecer a
essência fundamental do direito, ou seja, as leis, ou ritmos de sua evolução; b)
as que têm por escopo investigar o direito positivo; c) as que porfiam em realizar
o progresso do direito positivo. (Leme, 1960, p. 64)

Outrossim, a adoção, quando observada à luz de outros ordenamentos jurídicos, evidencia


aspectos fundamentais de um dado sistema jurídico – e que, por conseguinte, pode assemelha-se
ou não ao sistema brasileiro –, de forma que apresenta tanto aspectos do direito positivo, o direito
posto, estatal, sobre determinado instituto, quanto as críticas afeitas ao melhoramento daquele
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

ordenamento jurídico em relação àquele.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


O instituto da adoção em nível de Brasil, quando analisado objetivamente em termos do estado
de coisas jurídico-prático, permite partir do princípio da igualdade entre os filhos e a orientação
da adoção como reinserção da criança no bojo de uma família substituta apenas quando não
possível a sua reinserção na família consanguínea, originária. Impõe-se, primeiro, as tentativas
de manutenção da criança no âmbito de sua própria família biológica e, apenas quando a família
extensa não a puder ou não quiser receber o menor, ou não for localizada, inicia-se a busca por
uma família substituta a partir do Cadastro Nacional de Adoção – CNA, momento que marca o
início de um longo e custoso período até a efetivação da adoção e acolhimento de fato da criança.
(Dias, 2016, p. 221)

A adoção atribui ao adotado a condição de filho para todos os efeitos, sendo


vedada qualquer designação discriminatória (CF 227 § 6.º). Assim, não deve
constar nenhuma observação no registro de nascimento do adotado sobre a
origem da filiação (ECA 47 § 4.º). O registro anterior é cancelado. No novo registro
deve constar, além do nome do adotante, também o de seus ascendentes (ECA
47 § 1.º). (Dias, 2016, p. 188)

Nesse sentido, Jelin (2009) atenta que, por ser a família uma instituição que carrega os ecos
de um passado histórico, deve-se lembrar que não se pode pretender uniformizar a expressão
e efetivação de suas questões fáticas com desdobramentos jurídicos: “As regras formais
incorporadas na Lei e os padrões de senso comum que às vezes podem contradizer as regras
formais são, ao mesmo tempo, um reflexo e um guia para as práticas sociais” (Jelin, 2009, p. 136,
tradução nossa) 5 .

5. No original: “Las reglas formales corporizadas en el Derecho y los patrones de sentido común que a veces pueden contradecir
las reglas formales, son al mismo tiempo reflejo de, y guía para, las prácticas sociales.”
Percebe-se, então, que a estrutura ideal e a real do Direito de Família possuem sua própria
dinâmica e que esta, por sua vez, reflete práticas sociais maiores.
323
Aqui, então, há de se fazer uma ressalva metodológica sobre uma abordagem de Direito Comparado.
Este, embora contemple autonomia científica, deve ser lido e interpretado com atenção de que
as práticas jurídicas também configuram práticas sociais e que por certo guardam contextos
próprios de formação e desenvolvimento. Assim, não há de se pretender a absorção integral da
práxis do instituto da adoção de outros países, tampouco de outros continentes, visto que cada
realidade cultural-histórica reclama sua própria prática social.

O intuito do Direito Comparado, então, além das considerações já feitas, é também a apresentação
de perspectivas de oxigenação do Direito, e estas, por sua vez, devem ser traçadas a partir de uma
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postura de descolonial, motivo pelo qual inclusive restringe-se os ordenamentos comparados


à América Latina e, dentro da América Latina, para uma análise específica, busca-se realizar

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


a comparação com a Argentina em razão de tal país guardar maior desenvolvimento jurídico-
conceitual sobre o instituto da adoção.

De maneira geral, e não coincidentemente, as nações podem ser divididas, em


relação à adoção, entre o grupo das que adotam e o daquelas cuja pobreza
leva ao último recurso de “exportar” as crianças órfãs, pobres e (ou) sujeitas à
violência para adoção por casais de outros países. No meio, estão aquelas que,
como o Brasil, têm muitas crianças aguardando por uma nova família, mas que,
ao contrário das muito pobres, podem contar com milhares de casais dispostos
a adotar [...]. (Senado Federal, 2013, p. 54-55).

O comum em termos de tratativa jurídica da adoção na América Latina é o pouco cuidado com os
trâmites burocráticos do processo de adoção, o que acaba por ser associado à pobreza econômica
de tais nações e à facilitação do processo em razão da capacidade monetária, de forma que se
afirma que “em muitos países, órfãos são tratados como commodities” (Senado Federal, 2013, p.
54).

Ainda assim, em termos gerais, sobre a adoção exsurge uma tendência de que o processo passe
pelo Estado; por seu turno, o que difere entre os países é o nível de zelo e transparência do
processo e, consequentemente, no tempo de duração dos trâmites legais.

Em grande parte dos países, as normas de adoção são menos exigentes e


detalhadas que as brasileiras, embora todas atribuam ao Judiciário a palavra
final. Outra diferença em relação à maioria é o veto à interveniência de agências
e advogados especializados no processo de adoção.
À primeira vista vantajosa, na medida em que facilita o trato com os órgãos
públicos e toda a burocracia e documentação envolvidas, a interveniência tem
324 também um lado obscuro, uma vez que os adotantes não acessam diretamente
os serviços públicos em todas as fases do processo e ficam à mercê da lisura do
trabalho das empresas. São frequentes as denúncias de corrupção e mercado
negro de crianças ligado à prestação de serviços. (Senado Federal, 2013, p. 57)

Feitas tais considerações, parte-se para as realidades contemporâneas da família argentina.


Dessa forma, Jelin (2009) discorre que:

A família nunca é uma instituição isolada, mas é uma parte orgânica de processos
sociais mais amplos, que incluem as dimensões produtivas e reprodutivas das
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sociedades, padrões culturais e sistemas políticos. Famílias e organizações


familiares estão ligadas ao mercado de trabalho e à organização de redes sociais,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


de modo que processos como a mudança nas taxas de fertilidade e divórcio, ou
o processo de envelhecimento, são, na verdade, parte das tendências sociais e
culturais mais vastas. Também estão sujeitos à políticas públicas. Como uma
instituição social básica, a família não pode ser alheia a valores culturais e
processos políticos de cada momento ou período histórico. (JELIN, 2009, p. 136,
tradução nossa) 6

Nesse contexto é importante destacar que a Argentina é um país de sistema jurídico híbrido, ou
seja, de tradição jurídica fincada no common e no civil law, enquanto o Brasil orienta-se apenas
pelo civil law.

Esse reflexo, por sua vez, é também expresso pela estruturação do Direito de Família argentino,
em especial na tratativa jurídica destinada à adoção de crianças e adolescentes. Na Argentina, de
maneira diversa do que ocorre no Brasil, não existe apenas um regime jurídico para a adoção, ou
seja, não existe apenas um “caminho” para que a adoção se realize.

A lei argentina de adoção é de 1997 e prevê dois tipos de adoção. A chamada


adoção plena, semelhante à brasileira, estende ao adotado todos os direitos do
filho biológico, em caráter irrevogável. Na adoção simples, o adotado não perde

6. No original: “La familia nunca es una institución aislada, sino que es parte orgánica de procesos sociales más amplios, que
incluyen las dimensiones productivas y reproductivas de las sociedades, los patrones culturales y los sistemas políticos. Los
hogares y las organizaciones familiares están ligados al mercado de trabajo y a la organización de redes sociales, por lo que
procesos tales como el cambio en las tasas de fecundidad y de divorcio, o los procesos de envejecimiento, son en realidad parte
de tendencias sociales y culturales más vastas. También están sujetos a políticas públicas. Como institución social básica, la
familia no puede estar ajena a valores culturales y a procesos políticos de cada momento o período histórico.”
os laços com a família biológica, podendo, inclusive, herdar bens e manter o
sobrenome, acrescentando apenas o sobrenome do adotante. Quem decide
325 entre uma e outra é o juiz, considerando todas as peculiaridades de cada
situação. No caso da adoção de irmãos por um mesmo casal, por exemplo, todas
as adoções têm que ser de mesmo tipo. Já a adoção do filho do cônjuge será
sempre simples. (Senado Federal, 2013, p. 57)

Observe-se que, na Argentina, os vínculos jurídicos entre os genitores biológicos e a criança


não necessariamente serão rompidos uma vez que existem duas espécies de adoção. A opção
ficará por conta da apreciação do caso concreto e pelas circunstâncias do adotado e do adotante,
nível de consensualismo, etc., de forma que se abre, inclusive, possibilidade para que, na adoção
simples, o adotado passe de pronto a possuir laços de multiparentalidade.
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A diferença reside, portanto, no fato de que, enquanto no Brasil a adoção possui apenas uma

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


via, na Argentina se admite uma tratativa jurídica híbrida e mais próxima da vontade das partes
envolvidas no processo de adoção. Diante disso, cumpre expor a ressalva de Faura (2009) sobre
a importância que se equacione os problemas familiares de forma atenta ao direito e à psicologia.

Pontua-se então que “Psicologia e Direito compartilham um interesse similar no entendimento,


previsão e categorização dos elos humanos e uma preocupação comum em reconhecer sua
complexidade e variância” (Faura, 2009, p. 121, tradução nossa) 7, de modo que advém que, no
campo da adoção, a criação de mais uma tratativa para um tema tão sensível, em especial por
lidar com direitos da personalidade e da efetivação de direitos de hipossuficientes, crianças e
adolescentes que requerem cuidados e rapidez na tutela de seus interesses, se mostra uma
perspectiva promissora.

Sobre a práxis jurídica da adoção, ou seja, sobre os liames do procedimento de adoção, etc., há
que se destacar que na Argentina:

O estágio de convivência começa com a concessão da guarda pelo juiz e deve


durar pelo menos seis meses e não mais de um ano. Os pais biológicos não são
consultados caso tenham abandonado a criança por mais de um ano, tenham
faltado com um mínimo de amparo moral e material, tenham perdido o poder
familiar ou tenham expressado a vontade de entregar a criança para ser adotada.
(Senado Federal, 2013, p. 57)

7. No original: “La psicologia y el Derecho comparten un interés similar por la comprensión, predicción y categorización de los
vínculos humanos y una inquietud común al reconocer su complejidad y variancia.”
No Brasil, por sua vez, a adoção possui caráter irrevogável e só se dá excepcionalmente, visto que a
regra é o esgotamento de todas as possibilidades de reinserção da criança em sua família biológica
326 extensa o que se dá, por sua vez, de forma demorada e custosa para a criança ou adolescente,
pois o processo de destituição do poder familiar é maçante e não possui certeza quando aos
rumos jurídicos que irá tomar, seja pelo comum não cumprimento dos prazos determinados para
as fases dos procedimentos, seja pela falta de estrutura institucional e do corpo técnico, etc.
(Senado Federal, 2013).

Percebe-se, então, que o menor encontra-se em uma situação de insegurança sobre os rumos de
seu futuro, momento especialmente inoportuno, visto que deveria poder direcionar sua atenção
para o desenvolvimento de suas potencialidades físico-intelectuais.
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A práxis do instituto da adoção parece encontrar-se distante da primazia do princípio do melhor


interesse da criança, bem como distante do princípio da convivência familiar em um lar hígido

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


como preconiza a orientação eudemonista do Direito de Família contemporâneo.

A busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade enseja


o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e
de preservação da vida. As relações afetivas são elementos constitutivos dos
vínculos interpessoais. A possibilidade de buscar formas de realização pessoal
e gratificação profissional é a maneira de as pessoas se converterem em seres
socialmente úteis. (Dias, 2016, p. 222)

Os danos advindos do presente panorama brasileiro possuem desdobramentos individuais e


gerais, pois o menor que possui prejudicado o seu direito à família como um núcleo de cuidado
e afetividade terá prejudicado processo de construção de si e, por conseguinte, o processo de
construção da própria cidadania.

CONCLUSÃO

Até uma menininha desagradável podia ser solitária, e a grande casa fechada,
o grande pântano vazio e os grandes jardins vazios fizeram-na sentir-se como
se não houvesse ninguém abandonado no mundo, exceto ela. Se fosse uma
criança afetuosa, se tivesse o costume de ser amada, aquilo teria partido seu
coração, mas ainda que fosse a “Dona Mary Toda ao contrário”, estava desolada,
e o pequeno pássaro de peito brilhante fez com que surgisse um olhar em sua
pequena e amarga face, que era quase um sorriso. Ouviu-o até que se escapuliu.
Não era com um dos pássaros indianos, e ela gostou dele, chegando a se
perguntar se ainda o veria novamente.
Talvez vivesse no misterioso jardim e conhecesse tudo sobre ele. (Burnett,
2013, p. 31)
327
O instituto da adoção contemporaneamente aparece alinhado com princípios norteadores de
um Direito de Família que contempla a pluralidade de arranjos familiares e, por conseguinte, a
diversidade das relações. Há então de se perceber que com o advento da modernidade as relações
passam a se formar e manter-se, de forma preponderante, pela afetividade.

Nesses termos, a adoção apresenta-se como uma oportunidade de expansão do afeto, tanto
para o adotado como para o adotante. Trata-se do desejo mútuo de estabelecimento de vínculos
orientados ao acolhimento e cuidados mútuos, busca-se a proteção e colaboração dos membros
com vistas ao desenvolvimento hígido das potencialidades individuais, perspectiva esta que é
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ainda mais preciosa ao menor dada a vulnerabilidade inerente à sua condição.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Assim, o ordenamento jurídico brasileiro estrutura-se com vistas à necessidade de que a criança e
o adolescente cresçam no bojo de uma família, uma vez a convivência familiar constitui uma etapa
importante para os processos de construção de si, bem como para os processos de socialização
afeitos ao entendimento do indivíduo enquanto ser social.

No entanto, na estrutura jurídico-normativa brasileira, a adoção aparece apenas como a última


opção para o menor, pois a inserção em família substituta só é cabível quando não encontrados
os pais biológicos ou família extensa ou quando estes não manifestem interesse em proceder na
adoção da criança e do adolescente em questão.

Somado a isso, tem-se os entraves práticos do processo de adoção, seja pela demora decorrente
da burocratização dos procedimentos, seja pela comum perda dos prazos estabelecidos para
cada etapa de averiguação das circunstâncias de cada caso, prazos de impugnação pelos pais
biológicos em caso de processo correlato de destituição do poder familiar etc. falta de estrutura
institucional, período de convivência e inserção gradativa do menor no novo lar e inúmeros outros
fatores que permitem estabelecer a metáfora da adoção como um jardim secreto.

Isto posto, uma abordagem de Direito Comparado permite avaliar os fundamentos de um


determinado instituto jurídico, bem como definir o estado de coisas que ele ocupa dentro do
direito positivo, o direito estatal e buscar criticamente formas de melhorá-lo, posturas que se
fazem especialmente promissoras quando se trata de uma ciência do dever ser e que se presta a
balizar a realidade a partir da regulação de condutas.

Dentro do Direito de Família, uma abordagem que compara ordenamentos jurídicos faz-se ainda
mais necessária, visto que este ramo do Direito é sensivelmente mais dinâmico e, muitas vezes, a
legislação vigente não acompanha o fato social que determina a realidade de núcleo familiar, além
de muitas vezes não absorver a complexidade da prática social, de maneira que, ao vislumbrar o
estado de coisas jurídico da adoção em outros ordenamentos jurídicos, o ordenamento nacional
328 oxigena-se, percebe a possibilidade – e necessidade – de mudanças.

Diante disso, a análise do instituto da adoção a partir da América Latina, de modo que se aponta
a tendência de uma adoção desburocratizada, mais rápida e com menos ingerência estatal nos
países com menor desenvolvimento econômico, embora a adoção passe necessariamente pelo
judiciário. Já no que toca a uma análise específica, a Argentina, por apresentar sistema jurídico
diverso, com características do civil law e common law, apresenta perspectivas jurídicas ricas
para a questão.

Destarte, a Argentina, por seu hibridismo de sistemas jurídicos, apresenta alternativas mistas
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para a criação de institutos jurídicos, o que comina em duas espécies de adoção, dois percursos
possíveis para o acolhimento de menores no bojo de uma nova família: a adoção simples e a

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adoção plena.

Enquanto a adoção plena seguiria os moldes brasileiros, no qual a sentença de adoção é irrevogável
e em regra rompe os vínculos do menor com a família biológica, etc. Já na figura da adoção simples
argentina, próxima de uma postura consensual entre os interessados mesmo que a decisão caiba
ao magistrado, o menor poderá manter os vínculos jurídicos com a família biológica ao passo que se
soma à outra família, o que configura, portanto, possibilidade de multiparentalidade prevista em lei.

Veja-se, então, que, em razão da sensibilidade necessária para tutelar uma adoção, ao Direito
Brasileiro far-se-ia útil a existência de mais de um caminho jurídico para tratar do problema,
seja pelo prestígio à afetividade dos interessados, seja pela diminuição dos danos à criança e ao
adolescente que só terão seu melhor interesse resguardado se tiverem efetivado o seu direito à
convivência em um núcleo familiar saudável.

O jardim secreto da adoção, então, também se delineia pelas implicações da própria adoção, que
é marcada por questões de relativas aos espaços de constituição da vida pública e privada, de
intimidade e de projeção social.

Tal trajeto é feito por Mary, protagonista da obra O Jardim Secreto, do escritor Frances Hodgson
Burnett, que, ao sentir-se acolhida no âmbito de uma família, começa a longa jornada de
desbravamento e cultivo do jardim que por muito tempo ansiou encontrar, e, em meio a tal odisseia
da descobrimento e desenvolvimento de vínculos, constrói a si e sua visão de mundo.

Nesses termos, cabe também observar a adoção como um percurso de esperança percorrido por
milhares de crianças e adolescentes, a busca por um encontro de pertencimento que um lar se
propõe a prover.
REFERÊNCIAS

329 Agrawal, K. B. (2009). Prefácio. In M. Herrera (Coord.), La Familia en el nuevo derecho. Santa Fe:
Rubinzal-Culzoni.

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Recuperado de http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

Burnett, F. H. (2013). O jardim secreto. São Paulo: Companhia das Letras.

Dias, M. B. (2016). Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais.
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Faura, N. L. (2009). Derecho y psicología: una articulación pendiente en los procesos de familia. In
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Jelin, E. (2009). La Familia en Argentina: Trayectorias Históricas y Realidades Contemporáneas. In
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AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


SUMÁRIO

331 O MENINO QUE SOBREVIVEU...


PORQUE FOI ADOTADO! –
ADOÇÃO EM HARRY POTTER

AUTORIA
BÁRBARA BASTOS BORGES
Psicóloga clínica e psicanalista. Graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
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CONTATO: barbarabhastos@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
Parte-se da hipótese de que Harry Potter é uma história sobre adoção e sobre a
assimetria das relações originárias que todos nós vivenciamos. Harry, longe de ser um
herói convencional que progressivamente adquire as habilidades de seu inimigo para,
enfim, derrotar o mal, é uma criança em desamparo dependente dos vínculos adotivos
que estabelece para sobreviver. Para demonstrar esse fato, retorna-se à noite em que
Voldemort marcou-o como igual, indicando o Poder da Adoção que salvou o menino;
além disso, exploraremos as diferenças entre Harry, a criança desamparada que enfrenta
agonias impensáveis, e Voldemort, o onipotente perverso que recusa a castração. Indicar-
se-á, ainda, como Dumbledore contribui para a proteção de Harry dos ataques disruptivos
de Voldemort de uma forma que, para nós, reside na alegoria da saga da criança adotada:
ter o passado, com sua história libidinal originária, legitimado enquanto encontra
novas formas de ser cuidada. Esse caminho – não de um herói, mas de uma criança em
desamparo – entre a legitimação do passado trágico e a esperança de um futuro promissor
em cuidados amorosos também representa uma das finalidades da análise no sentido
de propiciar aos sujeitos uma oportunidade de permitir, na relação terapêutica, uma
reconciliação com a própria história. Dessa forma, compreende-se que a presente saga
literária auxilia-nos na tarefa de elaborar, de forma lúdica, os percursos libidinais presentes
na história de cada um de nós e especialmente relevantes quando a adoção entra em cena.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Cuidado; Desamparo; Finalidades da análise.
Defendo que Harry Potter1 é, antes de mais nada, uma história sobre adoção. Quando o último livro
foi lançado, em 2007, muitos fãs criticaram o final porque, na batalha entre Harry e Voldemort,
332 ao final da Batalha de Hogwarts, Harry, contando então dezoito anos de idade – um adulto, para
os parâmetros do mundo bruxo –, mostra que nunca alcançou ou alcançaria a perícia técnica e
os talentos de Voldemort; ele jamais se iguala a Voldemort em poder e o derrota tão somente
porque recebeu ajuda e porque se utilizou de brechas deixadas pela arrogância de Voldemort. É
um herói que, em talento, nunca se iguala ou mesmo supera seu inimigo, ao contrário de Anakin
Skywalker (Star Wars), Son Goku (Dragon Ball Z) ou mesmo Tristan Thorn (Stardust). É, portanto,
aparentemente uma jornada do herói meio capenga. Isso acontece porque, a meu ver, nunca foi
uma história sobre o chamado do herói ou sobre derrotar os inimigos, mas sobretudo, antes de mais
nada, uma história sobre adoção. Antes de performar a arquetípica jornada do herói, o chamado
à aventura ou mesmo a criança divina, é uma história sobre a adoção, e é com essa perspectiva
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em mente que podemos analisar a relação dele com seu arqui-inimigo, Lord Voldemort. Para
desenvolver essa perspectiva, precisarei retornar à trágica noite de 31 de outubro de 1981, em

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que Harry James Potter teve os pais assassinados por Lord Voldemort. Guiado por uma profecia
a afirmar que aquele que poderia derrotá-lo nasceria no final de julho, Voldemort esgueira-se
resolutamente à casa dos Potter, e não fora por acaso que elegera Harry em detrimento do outro
bebezinho que nascera também no final de julho, Neville Longbottom. Neville, filho de Frank e Alice
Longbottom, era puro de sangue, enquanto Harry, filho de um bruxo de uma família tradicional,
James Potter, e de uma bruxa nascida trouxa, Lily Evans, encerrava em sua origem a mesma
natureza mestiça que Voldemort procurava de todas as formas negar em si mesmo.

Decidido a impedir que seu maior inimigo sequer atingisse uma idade em que pudesse defender-
se de forma apropriada, Voldemort invade a casa dos Potter, que, àquela hora, estavam
completamente vulneráveis. James Potter pede a Lily que leve Harry, enquanto ele mesmo
atrasaria o avanço do Lord das Trevas – contudo, em vão, afinal, como poderia defender-se sem
uma varinha? Como uma marionete, James cai em questão de segundos, e Voldemort ultrapassa,
sem dificuldade, a frágil barricada de cadeira e caixas de sapatos que Lily havia erguido em
desespero no andar superior da casa. Igualmente vulnerável, a Lily resta apenas proteger o bebê
com o próprio corpo, de forma que ela se interpõe inutilmente entre o filho e o assassino dele,
implorando que Voldemort a matasse no lugar dele. O que ela não sabe é que o Lorde das Trevas,
a um pedido especial de um servo leal – Severus Snape –, estava disposto a poupar a vida dela e
apenas eliminar aquele que ele havia eleito como seu igual – o bebezinho no berço à sua frente,
obstruído apenas pelo corpo de Lily. Voldemort oferece-lhe insistentemente a chance de viver,

1. O material de análise deste texto reside na saga literária Harry Potter, de autoria de J.K. Rowling, composta pelos sete livros
lançados no Brasil pela editora Rocco, a saber: Harry Potter e a Pedra Filosofal; Harry Potter e a Câmara Secreta; Harry Potter e
o Prisioneiro de Azkaban; Harry Potter e o Cálice de Fogo; Harry Potter e a Ordem da Fênix; Harry Potter e o Enigma do Príncipe;
Harry Potter e as Relíquias da Morte.
pedindo apenas que ela se afastasse para que ele fizesse o que intentara fazer desde que tomara
conhecimento da profecia, mas ela se recusa a abandonar o próprio filho à morte. Para Voldemort,
333 é um patético ato de fraqueza, como são ridículas e fracas as pessoas sujeitas à característica
mais humana de todas, que é a mortalidade. Demonstrando seu poder e ausência de misericórdia,
ele displicentemente a assassina bem ali, diante do bebê, a um gesto de apenas tirá-la do caminho,
e finalmente encontra-se diante daquele que ele mesmo elegera como igual. Aquele que, naquele
instante, estava em pé apoiado nas grades do berço, rindo e acenando com as mãos pequeninas,
ainda incapaz de compreender que sua mãe estava morta diante de seu berço e que o adulto à sua
frente, única pessoa viva que restara na casa, estava ali para matá-lo.

Como falar no chamado à aventura ou na jornada do herói a partir de uma cena (laplancheana)2 dessas?
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É importante lembrar que Voldemort já tinha quase sessenta anos de idade quando invadiu a
casa dos Potter para assassinar um bebê de um ano e dois meses de vida, visto por ele como

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sua maior ameaça, e sempre se destacou por sua perícia e seu talento inusuais, desde criança,
quando Dumbledore foi visitá-lo no orfanato onde residira. Ou seja: a assimetria entre Voldemort
e Harry sempre foi significativa demais para ser ignorada.

Aqui cabe uma digressão: Voldemort, ou Tom Riddle - seu nome de batismo - fora uma criança
estranha. Tinha poderes e talento superiores à média, mas, quando Dumbledore o visitou no
orfanato trouxa onde ele residia, percebeu que estava diante de uma criança peculiar; uma criança
que amedrontava os coleguinhas, uma criança sem amigos, cheia de segredos – portando um
“enigma” no nome (significado literal do termo Riddle) – que colecionava troféus dos momentos
desagradáveis em que ele intimidava as outras crianças (brinquedos sem valor real, porém
repletos de valor simbólico). Nessas cenas, ele não poupa nada e nem a ninguém: ao discutir com
um garotinho, por exemplo, ele usou seus dons para enforcar o coelhinho de estimação do garoto
nas traves do teto.

Mesmo acabando de descobrir que era bruxo, portanto integrante de um mundo desconhecido,
recusou a companhia de um adulto às primeiras compras de materiais escolares. Auto-suficiente
e vaidoso, acolheu a notícia de que era bruxo com uma irrefutável confirmação da convicção
por ele previamente nutrida de ser especial; tão especial que, ao descobrir que o lado bruxo de
sua família provinha de sua mãe, Mérope, que se permitira morrer de tristeza ao ser abandonada
pelo pai trouxa de Riddle – e que Tom Riddle era o mesmo nome de seu pai, trouxa e comum –,
Voldemort o matou, e matou também os avós paternos, eliminando toda a sua ascendência trouxa

2. É uma explícita referência a Jean Laplanche (1992) por se tratar de uma cena de radical e violenta oposição entre adulto e
criança, como é descrita pelo autor a cena originária que constitui o sujeito psíquico na Teoria da Sedução Generalizada.
e prevalecendo único, onipotente, dotado de uma máscara gerada por um nome de sua criação,
um nome à altura de sua condição ímpar: Lord Voldemort.
334
Como Dumbledore sempre lembra a Harry, é possível ouvir os Comensais da Morte a serviço de
Voldemort vangloriarem-se de gozar da plena confiança de seu mestre, sentirem-se próximos
dele, mas tudo não passava de ilusão: Voldemort era capaz de amar única e exclusivamente a si
mesmo – e a mais ninguém.

Onipotência, amor narcísico, sadismo, fetichismo: essa é cara da perversão. Lord Voldemort,
assim, é um perverso por excelência. Ele poderia ser a metáfora da criança onipotente, que não
vê um outro além de si, apenas fragmentos que lhe dão prazer ou desprazer, que a agradam ou a
ameaçam, os quais ela deve utilizar ou destruir – objetos parciais. Nas palavras de Dumbledore,
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Voldemort nunca compreendeu o amor, por isso o menospreza – e como poderia compreender se,
para se relacionar com o que chamamos, no jargão kleiniano 3 , de objeto total, ele precisa enfrentar

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a posição depressiva e o reconhecimento do outro? Essa é uma possibilidade que Voldemort
desconhece, pois ele apenas se relaciona com o mundo por meio de objetos parciais: ele sempre
vê o outro como uma ferramenta para satisfazer aos próprios desejos. Dumbledore confronta
essa característica quando diz a Voldemort: “Que é que você está procurando, Tom? Por que
não experimenta pedir abertamente uma vez na vida?” (Rowling, 2005). Aqui, ele é convocado,
simultaneamente, a reconhecer os limites das próprias possibilidades e a enxergar na alteridade
possibilidades de compartilhamento – uma forma de existir recusada por Voldemort.

Compreendem quem Voldemort já era quando se encontra parado diante do berço de um


bebezinho de um ano, que ria e acenava alegremente de seu berço, incapaz de entender que a
mamãe encontrava-se morta à frente dele e o papai igualmente sem vida no andar de baixo?

Portanto, desde o início, a relação entre Voldemort e Harry é marcada por uma assimetria absurda,
em que um adulto onipotente endereça ao bebê indefeso o mais sólido ímpeto de destruí-lo, a
inescapável maldição Avada Kedavra, que significa literalmente “desapareça com esta palavra”. É
essa a mensagem direta, literal e mortífera que Harry recebe.

O que Voldemort – bruxo mais poderoso e sedento de poder e conhecimento que possivelmente já
existira – negara-se a saber, embora seu conhecimento sobre as leis mais profundas e arraigadas
da magia fosse vasto, é que o último gesto de Lily Potter, que considerara inútil, débil e patético,
era, na realidade, impregnado do poder mais temível e mais antigo de todos, um poder que seria

3. As fases do desenvolvimento infantil, para Melanie Klein (1991), articula-se com a forma com que o bebê se relaciona com
objetos externos a ele, de objetos parciais a objetos totais, saindo de uma posição esquizo-paranóide para a posição depressiva.
sua ruína – um poder que o impediria de dar cabo do garotinho. Um poder que sobrevivera à morte
de Lily. Na saga, ele é denominado Poder do Amor, mas aqui eu gostaria de denominá-lo Poder da
335 Adoção.

Um ponto que muitos fãs da série criticaram quando os livros estavam sendo escritos é o fato de
Harry ser sempre tão vulnerável diante de Voldemort e quase sempre escapar por pura sorte, por
um triz, fato que o próprio personagem admite; não é uma história sobre um herói que adquire
progressivamente uma habilidade que o tornará tão poderoso quanto Voldemort e, portanto,
propenso a derrotá-lo – Harry nunca se equipara a Voldemort em perícia, limitando-se a escapar
repetida e sistematicamente dos ataques mortíferos dele. Inclusive, na cena fatídica onde ambos
se enfrentam, varinhas em punho, diante de todos no duelo final do último livro, Harry já com
dezoito anos e Senhor da Morte – uma cena que não aparece no filme – não é uma cena sobre
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um herói derrotando o mal. Ele obteve muita ajuda e até mesmo alguma sorte para estar ali,
derrotando Voldemort com um mero Expelliarmus, que significa literalmente “expelir armas”. Ele

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não derrota Voldemort, nunca, por perícia ou mérito próprio e, quando o derrota, é numa tentativa
de tão somente desarmá-lo. Quando Voldemort lhe diz, pela última vez, após tantas tentativas
frustradas, “desapareça com esta palavra”, é quase como se Harry respondesse: “Por favor, não
me machuque”.

“Não me mate.”

Que é tudo o que um bebê, em sua condição de desamparo, pode pedir quando um adulto o ataca.
Não é um herói que se equipara ao inimigo e nem um mártir que se entrega ao abate sem lutar. É
uma criança que resiste às investidas de um adulto. Uma criança revestida pelo Poder da Adoção.

É preciso salientar que não fora o fato de Lily Potter ser geneticamente, biologicamente, mãe e
progenitora de Harry Potter para consolidar a maior proteção da qual o bebezinho poderia gozar
naquela primeira cena, mas o fato de ela tentar inútil, desesperada e debilmente protegê-lo com
o próprio corpo, nem que tivesse de morrer para que ele pudesse viver. Portanto, a proteção
concedida a Harry, uma proteção entranhada em sua pele e vivificada em seu sangue, não era
fruto do sangue propriamente, mas de uma escolha – a escolha dela em lhe dar a vida nem que ela
mesma tivesse de morrer para que tal fato se consolidasse.

É aí que começa a saga do menino-que-sobreviveu. Quando Voldemort é arruinado em 1981, em


sua primeira tentativa de matar o bebê Harry, a sociedade bruxa logo espera que um bruxo tão
grandioso e principal opositor a Voldemort tomasse sob seus cuidados o menino-que-sobreviveu.
Mas os planos de Albus Percival Wulfric Brian Dumbledore são diferentes. Ciente do Poder da
Adoção que salvara o menino, um poder impregnado pela própria mãe e dos mistérios que cercam
os laços amorosos da humanidade, ele consolida esse encanto ao entregar o bebê aos cuidados
da única parenta viva de Lily – sua irmã amarga e invejosa, Petunia, que nunca aceitara ter uma
irmã bruxa e saber da existência do mundo bruxo sem dele poder participar devido à sua condição
336 trouxa. Os Potter não mantinham relações com a família dela, os Dursley, pois os Dursley fingiam
categoricamente que os Potter não existiam, por isso podem imaginar o espanto dessa mulher ao
encontrar, em uma quarta-feira comum, o bebezinho Potter e uma carta do diretor de Hogwarts,
solicitando que ela o acolhesse. E ela o acolhe – de má vontade. Na casa dos Dursley, adotado
por eles, Harry é maltratado, humilhado e privado inclusive de itens fundamentais para uma
vida minimamente digna, como uma boa alimentação e uma cama confortável. Com efeito, os
Dursley não poupam esforços para demonstrar cotidianamente, nos dez anos seguintes, o quanto
detestavam o sobrinho.

Uma adoção por outra – assim Harry sobrevive. Ainda que o aceitasse de má vontade, ainda que
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o maltratasse, ainda que impusesse condições que fariam de Dumbledore um bruxo sem coração
por expor o menino a tamanha privação, Petunia o aceitou e o acolheu em sua casa. Deu-lhe

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um armário sob a escada para chamar de quarto, roupas velhas e rasgadas, alguma comida e
muitas restrições, privações, descasos e maus-tratos. Harry cresceu carente, franzino, faminto,
desconfiado, constituindo para si uma visão de mundo na qual não poderia confiar em ninguém –
especialmente em nenhum adulto – pois ninguém nunca acreditaria nele. Harry cresceu esquivo,
entre a angústia, a culpa e a revolta.

Isto não está explícito no filme, mas Harry é uma criança raivosa e ressabiada. Ele tem profunda
dificuldade em se conectar com os próprios sentimentos, em revelar às pessoas o que sente ou
pensa, e é acometido por fantasias distorcidas da realidade, fantasias em que ele é abandonado
por todos, em que ninguém o compreende ou acolhe, em que ele permanece sozinho, sendo alvo
de ofensas, chacotas e rejeição. Suas agonias impensáveis 4 abrangem o pânico de ser deixado
para trás. Em todas essas fantasias, ele acaba sendo expulso de Hogwarts, preso em Azkaban,
abandonado pelos amigos e tendo decepcionado figuras adultas que ele ama e respeita, como
Dumbledore, os Weasley ou Hagrid. Várias vezes, embora aja escondido, Harry tem a convicção
obsessiva de que decepcionará Dumbledore. Ele vive entre a raiva, a culpa, o medo de abandono
e o desejo de ser amado e acolhido.

Mesmo após entrar em contato com adultos confiáveis, esse fantasma persegue Harry: várias
vezes ele tem a oportunidade de sanar suas angústias com um simples diálogo com o receptivo e
bondoso Dumbledore, que ama o menino e o convida a falar, mas Harry simplesmente não consegue
se expressar; repetidas vezes, ele é chamado ao escritório do diretor e questionado: “Há algo que
você queira me dizer?”. Tudo poderia ser resolvido ali; uma infinitude de questões atravessam

4. Na realidade, fantasias que tomam a forma das agonias impensáveis diante do colapso psíquico, conforme expõe Winnicott
(2005)
a mente de Harry, porém tudo o que ele consegue responder é: “Não, senhor”. E retorna para a
cama, angustiado, levando consigo seus medos e suas fantasias angustiantes que ele mesmo se
337 obriga a resolver à sua própria maneira subversiva e precária - como são as soluções de mundo
encontradas por uma criança que se defende contra ataques disruptivos em idade muito tenra.

Ambivalência, emoções cruas e reprimidas, raiva, culpa, frustração, maciças defesas contra
angústia de aniquilação: Harry é, por excelência, um neurótico obsessivo5 .

O sofrimento de conviver com os Dursley é aliviado quando Harry descobre sua condição bruxa
aos onze anos e ingressa em Hogwarts. É interessante, aqui, constatar o contraste entre a reação
do garoto e a de Voldemort – outrora Tom Riddle – ao lhe ser revelada, pelas palavras de um
desconhecido, sua condição bruxa por nascimento. Enquanto Tom Riddle prontamente adota
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essa sentença como confirmação de sua presença única e onipotente, Harry, em um primeiro
momento, recusa essa posição, pois lhe é simplesmente impensável que ele, um garoto comum e

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


desacreditado de todas as formas, pudesse ocupar uma posição tão extraordinária. Era, portanto,
fato que Hagrid – o guardião da revelação – houvesse cometido um engano e visitado o garoto
errado.

Ele é apresentado a esse novo mundo pelo meio-gigante Hagrid, que se torna um grande amigo
e também um guardião seu; ele faz amigos pela primeira vez na vida, Rony Weasley e Hermione
Granger, e é amado e cuidado por toda a família de Rony – os nove Weasley, bruxos de cabelos
ruivos. Com efeito, a Sra. Weasley, Molly, a mãe das sete crianças ruivas, interpela Dumbledore
repetidamente, solicitando a guarda do menino – afinal, os Weasley o amavam, e Harry também os
amava de volta, por que não? –, mas Dumbledore não lhe concede esse desejo. Ele determina que,
enquanto Harry fosse menor de idade, ele deveria retornar, mesmo que por um breve intervalo, à
casa dos tios, o suficiente para chamar aquele lugar de seu lar. Ele poderia passar uma parte das
férias com os Weasley, mas era imprescindível, antes, retornar anualmente à casa dos Dursley
durante as férias de verão. Harry e os Weasley não entendem essa determinação – por que Harry
deveria, masoquistamente, submeter-se anualmente, mesmo que por um breve período, à tortura
de viver em um lar onde ele era abertamente detestado?

O que eles não sabiam era que Dumbledore temia pela vida do menino, pois ele, de forma certeira,
nunca considerou Voldemort permanentemente derrotado. Embora Harry houvesse ingressado
em um mundo onde era famoso e considerado um herói, ele não estaria suficientemente seguro
mesmo em companhia de bruxos amáveis, poderosos e protetores como ele mesmo ou os Weasley.
Para que houvesse uma garantia de sobrevivência até atingir a maioridade – a vida adulta e,
assim, a capacidade se proteger por conta própria –, Dumbledore estava disposto a lançar mão

5. Farias (2013) descreve a neurose obsessiva a partir dessas características.


da proteção mais poderosa que o mundo bruxo poderia oferecer ao menino. Essa proteção era
manter vivo o Poder da Adoção que salvara Harry anteriormente. Quando Petunia Dursley, outrora
338 Petúnia Evans, aceitara Hary, ainda que contrariada, em seu próprio lar, ela reatualiza a proteção
iniciada e instaurada por Lily. Nas palavras do próprio Dumbledore, ela o aceitou de “má vontade,
enfurecida, contrariada, amargurada”, mas ainda assim o aceitou, selando o vínculo iniciado por
Lily e instaurando a proteção mais forte que o menino poderia ter – mais forte do que qualquer
proteção que o próprio Dumbledore poderia lhe oferecer diretamente. Ainda que fosse um vínculo
selado no sangue, ele não dependia apenas do sangue, mas de uma escolha para se consolidar,
uma escolha que ambas as irmãs fizeram, cada qual à sua maneira, oferecendo o que havia em
sua disposição para guardar o menino. Lily ofereceu-lhe um cuidado generoso e a proteção do
próprio corpo diante da morte; Petunia ofereceu-lhe uma casa para morar em um cuidado sádico.
Ambas, de maneiras diferentes, ofereceram seu corpo, uma fortaleza para abrigar e esconder o
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menino – literalmente o corpo de Lily e metaforicamente o corpo de Petunia – e uma chance para
que ele permanecesse vivo.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


É esse Poder da Adoção, reanimado e atualizado quando Harry é adotado de má vontade pela sua
tia Petunia, que propiciará Harry chegar à maioridade, aos dezessete anos, e enfrentar Voldemort
nessa batalha final. É retornando anualmente à casa dos Dursley e chamando aquele de seu lar,
apesar de os Weasley terem adotado Harry desde a primeira vez em que o viram, que fez com que
o menino fosse totalmente protegido, blindado contra o mal. Vejam bem: não bastava Harry ser
adotado de forma amorosa e genuína por Dumbledore e pela família Weasley para sobreviver às
investidas constantes do mal, simbolizado por Voldemort; ele necessitava do Poder da Adoção
remanescente no cuidado sádico de sua tia Petunia.

A condição para o vínculo de proteção iniciado por Lily funcionar e a solução estabelecida por
Dumbledore de permitir a Harry passar uma parte do verão na casa dos Weasley contanto que
a casa dos Dursley continuasse a ser seu lar é uma metáfora da condição da criança adotada.
A primeira interpretação, e possivelmente a mais superficial, que poderíamos depreender desse
caso é de que o vínculo de sangue, ainda que isento de amor, é mais poderoso e importante que o
vínculo afetivo não-biológico entre Harry e os Weasley. No entanto, ofereço outra leitura.

Os dois riscos que experimentamos ao falar sobre adoção é assumir uma posição parcial nessa
relação, ora superestimando os laços de sangue e de progênie, quando o fator biológico predomina;
o outro risco que encontramos é o do apagamento das origens da criança a ser adotada. Esse
apagamento pode surgir quando os adotantes recusam-se a adotar crianças mais velhas, “que já
têm uma história”, ou crianças traumatizadas, que foram perversamente tocadas pelos cuidadores
anteriores, muitas vezes os cuidadores primordiais. É possível supor que prevalece, em muitos
adotantes que priorizam recém-nascidos, a fantasia de serem eles o primeiro vínculo parental
daquela criança, em encontrar em instituições uma criança tão sua quanto aquela que teria saído
de seu ventre. Esse conflito pode surgir também em casos de divórcio e recasamento, quando
a mãe ou o pai da criança se casa novamente e, confundindo conjugalidade com parentalidade,
afirma ter arranjado um novo pai (ou mãe) para aquela criança, numa tentativa de apagar seu
339 vínculo parental original. Longe de limitar Harry a estabelecer vínculos amorosos apenas com os
tios sádicos, a determinação de Dumbledore vai no sentido de propiciar a Harry novas relações de
amor, contanto que não se esquecesse da própria história. Metaforicamente, numa história sobre
um mundo mágico, dizemos que o vínculo que o protege das trevas enquanto ainda é menor de
idade é sustentado quando ele chama a casa dos tios de seu lar. Ou seja: a existência enquanto
continuidade somente é possível, de forma plena, quando um sujeito pode encontrar novas e mais
saudáveis formas de amor ao passo que se reconcilia com a própria história. Por sinal, esta pode
muito bem ser uma das finalidades da análise.

Winnicott (1975) falava de um cuidado suficientemente bom para que a criança sobrevivesse,
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

mas descobrimos, em análise, que frequentemente nossos cuidadores, em muitos aspectos,


foram insuficientes e pouco confiáveis. Em algum momento, no ambiente acolhedor da análise,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


onde o tempo funciona mais enquanto Kairós do que enquanto o devorador Kronos da roda-viva
externa à tina analítica 6 , deparamo-nos com o fato de que nossos cuidadores em muito falharam,
fracassaram, mas que, ainda assim, eles nos constituíram, e não há como apagar isso.

Por mais que amasse Harry de todo o coração, talvez tanto quanto os pais de Harry um dia o amaram,
e por mais que cuidasse dele desde o primeiro momento em que o conheceu, Molly Weasley jamais
conseguiria, poderia ou mesmo deveria apagar a história carregada de sofrimento que constituíra
Harry em seus dez anos de infância. Essa limitação, metaforizada por uma alternância de Harry
entre a casa dos tios e a casa dos Weasley durante as férias é uma alegoria à nossa impossibilidade
de apagar registros de nossas origens, por mais desafortunadas que elas sejam.

Não há como substituir nossas figuras originárias. Em algum momento, nós nos reconciliamos com
nossa própria história e admitimos, pela primeira vez com alguma paz de espírito, que, embora
insuficientes, eles foram nossos cuidadores e fizeram o melhor que puderam.

Não é preciso dizer quão insuficiente pode acabar sendo o cuidado das figuras parentais originárias
de crianças institucionalizadas e o quão difícil possivelmente é assumir isso e o quão tentador,
imagino, possa ser passar uma borracha nesse calvário e reiniciar tudo, com uma família disponível
e desejosa de acolher a criança “órfã” – quase como formatar um computador. É uma tentação, mas
também um perigo, quando não compreendemos que, mesmo sob o calvário mais aterrorizante,
ainda há amor, e, mesmo sob o amor mais incondicional, não existe incondicionalidade nenhuma,
mas bem pode haver – e certamente há – algum traço de sadismo.

6. Expressão utilizada por Laplanche (1998) para referir-se à análise.


Essa ambivalência que se apresenta nas relações humanas aparece quando Harry se reconcilia
com o primo de sua idade, Dudley Dursley. É verdade que os tios Dursley não poderiam encontrar
340 uma forma mais gentil de amá-lo, mas o primo encontra seu caminho. Uma vez adulto, ao perceber
que finalmente está para se separar do primo, que, sob conivência e incentivo dos tios, tanto
oprimira, Dudley descobre nutrir por Harry um tipo de amor que os tios nunca conseguiram nutrir.
Sabemos que, uma vez adultos, autônomos, constituindo uma nova família cada um, Harry e
Dudley passam a se corresponder e até a se visitar. Essa pode ser uma metáfora de que é possível
encontrar, mesmo em relações originárias mais perversas, alguma forma de amor.

O epílogo da saga, tão aguardado pelos leitores e um dos primeiros capítulos escritos pela autora
– muito antes dos seis livros que se sucederam ao primeiro –, demonstra o desfecho merecido
por Harry Potter; ao finalizar sua jornada contra as trevas que o oprimem desde bebê. Ele não
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é recompensado com a glória eterna de um herói ou com a memória de um mártir no altar do


sacrifício; ele não adquire poder ou riquezas diante de toda uma sociedade bruxa. Ele consegue

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


justamente aquilo que ele desejou mais profundamente desde sempre, e que testemunhamos
desde o primeiro livro, quando ele, um menino franzino de onze anos, encontra-se diante do
Espelho de Ojesed, aquele “que não mostra o seu rosto, mas o desejo em seu coração”: uma
família. Ele, que passara anos embarcando no trem rumo a Hogwarts mal tendo alguém de quem
se despedir na estação – alguém que pudesse acenar para ele do lado de fora do trem, enquanto
seus amigos e colegas tinham seus familiares –, finalmente pode, uma vez adulto, levar os próprios
filhos à estação e acenar para eles, vendo-os sumir no horizonte rumo à Hogwarts.

É esse o herói que Harry encarna: um jovem que jamais adquire, por mérito próprio e inatismo, a
perícia de seu rival a ponto de se equiparar a ele em duelo, mas que abraça o colapso e a passividade
para sobreviver e, se possível, resistir por aqueles que ama. É um herói que que somente é marcado
como o grande inimigo de Voldemort porque Voldemort projetou nele todas as limitações que
se recusava a ver em si mesmo. Voldemort, ao eleger Harry como seu igual, marcou a criança
com tudo aquilo ao qual ela é suscetível, que a perversão recusa: o desamparo, a assimetria, as
agonias impensáveis e a morte. E Harry enfrentou tudo isso: o desamparo constante, as relações
assimétricas, as agonias impensáveis e até mesmo se permitiu literalmente morrer para então
retornar como o Senhor da Morte. E, mesmo Senhor da Morte, ele não poderia ser tão onipotente
quanto Voldemort, pois ser Senhor da Morte, na história, somente se torna possível quando se
assume para si mesmo que é possível morrer. Que é possível perder. Que é possível ser atacado
de maneira disruptiva e até ser destruído. Que um colapso de fato aconteceu e que foi possível
sobreviver a ele - uma constatação que pode também ser uma das finalidades da análise!

Harry Potter não é uma história de um herói a ser idolatrado, mas de uma criança comum, em
constante desajuda e assimetria que precisa repetidamente ser cuidada, protegida, adotada
por adultos que, desde sempre, a atacam. É a história de todos nós, sobreviventes a ataques
constantes quando ainda éramos muitos novos; sobreviventes de um colapso que já aconteceu.
Sobreviventes pelo amor, pelo cuidado, pela adoção.
341
REFERÊNCIAS

Farias, C. (2013). Domínio e culpa na neurose obsessiva: marcas da destrutividade. Tese de


Doutorado - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Klein, M. (1991). Inveja e gratidão, e outros trabalhos (E. M. da Rocha & L. P. Chaves, Trads.). Rio de
Janeiro: Imago..

Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Martins
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Fontes.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Laplanche, J. (1998). A tina: a transcendência da transferência. (P. Neves, Trad.). São Paulo:
Martins Fontes

Rowling, J.K. (2005). Harry Potter e o Enigma do Príncipe (L. Wyler, Trad.). Rio de Janeiro: Rocco.

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e realidade. (J. O. de A. Abreu & V. Nobre, Trads.). Rio de Janeiro:
Imago.

Winnicott, D. W. (2005). O medo do colapso. In Explorações psicanalíticas (pp. 70-76). Porto Alegre:
Artmed.
SUMÁRIO

342 O QUE SEDUZ EM


STEVE JOBS?

AUTORIA
RAISSA DE MATOS RIBEIRO
Psicóloga clínica. Graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Estudos Psicanalíticos pela UFMG. .


CONTATO: raissamribeiro@gmail.com

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


RESUMO
Abordamos, neste artigo, uma parte da história de vida do empresário Steve Jobs, tal como
apresentada no filme Steve Jobs (2015) e, também, na biografia na qual esta obra foi baseada.
O fato de Jobs ter sido adotado, além de alguns pontos marcantes sobre como esta adoção
ocorreu, são significativos para uma interpretação que empreendemos sobre os efeitos de
fascínio e de rejeição provocados por Jobs em suas relações pessoais e profissionais, uma
vez que nos parece que esta dupla de afetos faz parte de uma tradução privilegiada que
este personagem produziu sobre a própria vida. Finalmente, recorremos a elaborações
laplancheanas sobre a sublimação para propor que parte dos efeitos provocados pela
pessoa e pelas criações de Jobs podem ser relacionados com uma forma específica de
relação com os enigmas vinculados à situação originária que parece ter marcado sua vida.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria da sedução generalizada; Tradução; Sublimação; Steve Jobs
POR QUE STEVE JOBS?

343 Steve Jobs foi um empresário cujo legado tem gigantesca influência sobre a sociedade.
Cofundador da empresa Apple, foi parte fundamental da difusão dos computadores pessoais,
nos anos 80, e, no início dos anos 2000, protagonizou uma nova revolução na comunicação a
partir do lançamento do IPhone, um smartphone que se tornou o modelo deste tipo de tecnologia.
Sua participação em tais inovações não foi, porém, de modo algum técnica, e é tema de diversas
controvérsias – pode-se dizer que o empresário não foi uma figura bem vista afetivamente por
grande parte daqueles que se aproximaram dele. Ainda assim, seu falecimento, em 2011, causou
uma comoção mundial de proporções impressionantes, algo que geralmente observamos com
eventos da vida de grandes artistas ou figuras políticas. Daí a pergunta que elucido no título, de
forma provocativa: o que seduz em Steve Jobs?
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Neste trabalho, irei tomar Steve Jobs como um personagem da cultura pop. A sua contribuição para

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


o modo como nos comunicamos atualmente e a ampla produção cultural sobre sua vida justifica
tal leitura. O objetivo será investigar possíveis relações entre o fato de Jobs ter sido adotado,
focando alguns aspectos dessa adoção, e o modo como ele estabelecia relações libidinais e o que
pôde produzir a partir disso. Tomarei como material o filme Steve Jobs (2015), por ter sido baseado
na biografia de mesmo título escrita por Walter Isaacson (2011), à qual também recorrerei. Esta
é a biografia oficial de Jobs, o que significa que foi realizada com sua autorização, e contou com
inúmeras entrevistas concedidas por ele. Ressalto que tomar o filme como material principal me
parece importante para a tentativa de trabalhar com este empresário como um personagem, sem
qualquer proposta de aprofundamento em sua história real.

DESEJO E REJEIÇÃO: ALGUNS ASPECTOS IMPORTANTES DA ADOÇÃO DE STEVE JOBS

Será necessária uma passagem por alguns aspectos do enredo do filme antes que empreendamos
nossa argumentação principal. Este filme começa com uma reportagem sobre como os
computadores mudariam nossa vida, e, em seguida, vemos um auditório cheio de cadeiras
vazias, as quais descobrimos que serão preenchidas pela plateia de Jobs – em 1984, aos 28 anos,
ele já mobilizava grandes audiências. A seguir, temos uma cena em que ele discute com dois
colaboradores próximos, com bastante grosseria, em virtude de uma funcionalidade que queria
para a apresentação mundial do Macintosh não estar funcionando adequadamente. Os funcionários
tentam argumentar que a apresentação não perde nada com esta parte subtraída, mas Jobs
sequer escuta. O motivo do impasse é bastante curioso: o empresário exigia que a computador
falasse “olá” para a audiência, ao seu comando. Esta não era a única exigência exagerada, que beira
o absurdo: ele solicita, por exemplo, por questões estéticas, que os avisos luminosos de “saída”
sejam apagados, contrariando as regras de segurança estipuladas pelas autoridades.
Por fim, a solução que é oferecida ao impasse do “olá” passa longe dos parâmetros éticos
compartilhados socialmente: o funcionário responsável, sob extrema pressão de Jobs, faz com
344 que outra máquina execute a função desejada, enquanto aquela que estava sendo apresentada
no dia era colocada como a executante. Uma clara fraude, que visa a enganar a audiência para
acreditar que a máquina apresentada, o Macintosh, fazia algo que ainda não estava em condições
de fazer.

Diante de sua extrema grosseria com todos ao seu redor, sua assessora o confronta: “Se você
continuar alienando as pessoas, não sobrará ninguém para escutar o seu ‘olá’”. Ela recebe como
resposta de Jobs uma explicação acerca da importância do lançamento para a humanidade –
uma vez que, caso algo desse errado, seria uma empresa desprezada por Jobs que iria assumir
a liderança. Após mais uma sequência de comportamentos exagerados e egocêntricos, vemos
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Jobs defender a expectativa de que venderia 1 milhão de computadores dos primeiros 90 dias,
contra qualquer argumentação racional que lhe fosse apresentada. E, sabemos adiante, ele

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


acabou vendendo apenas 35 mil unidades.

Jobs já se encontrava bastante nervoso quando se soma a isso mais um fator: uma mulher e
uma criança, que estavam sentadas na plateia, vão ao seu encontro. A mulher exige que ele
pague pensão para a menina, já que um exame de DNA apontou que esta era sua filha – 94%
de compatibilidade genética. Ele nega veementemente esta conclusão, também contrariando
qualquer argumentação racional, ainda que logo adiante tenhamos a notícia de que sua empresa
havia lançado há alguns anos um computador chamado Lisa – o mesmo nome da menina. Jobs
sustenta, inclusive diante da criança de 5 anos, que tratava-se de uma coincidência, e que o nome
do computador devia-se a uma sigla. Essa tensa passagem do filme encerra-se com a menina
usando o Macintosh para fazer um desenho, o que impressiona Jobs e faz com que ele, por fim,
aceite pagar o que deve – ainda que sustentando que não era o pai de Lisa.

A próxima cena, e aqui eu encerro este recurso mais próximo ao enredo do filme, apresenta
um homem mais velho, Jhon Sculley, convidando Jobs, de forma confiante e com grande ar de
experiência, para tomar um vinho sofisticado enquanto o empresário aguardava seu momento de
entrar no palco. Debatem a música de Bob Dylan que será tocada na apresentação, e, de modo
bastante inesperado, Sculley lança a pergunta: “Por que as pessoas adotadas se sentem rejeitadas,
e não escolhidas?”. Jobs fica desconcertado e resistente, e Sculley explica que a música remetia
de alguma forma à ideia de uma rebeldia com relação aos pais, e que ele havia sido avisado sobre o
risco de encarnar uma figura paterna para Jobs. Este, bastante contrariado, acaba por responder
a pergunta da seguinte forma: “É não ter controle. Descobrir que você estava por fora quando os
eventos mais cruciais de sua vida foram colocados em andamento”. Parece-nos bastante claro
que o filme segue uma linha narrativa que atribui a necessidade de controle de Jobs sobre todos
ao seu redor e sobre tudo o que produz a uma resposta a tal angústia.
Aqui encontramos os gancho para explorar um pouco mais a história da adoção de Jobs e seus
possíveis efeitos, tomando a teoria da sedução generalizada de Laplanche (1992), como ponto de
345 apoio. Este viés de leitura é particularmente promissor, pois engendra o destaque às respostas
produzidas pelo sujeito diante do que lhe acontecia enquanto ele “estava por fora”, como vemos
na passagem acima. Além disso, nos permite pensar que a comunicação dos adultos com o
infante sempre é marcada por enigmas e conflitos inconscientes para estes, fazendo com que as
respostas da criança não correspondam propriamente ao que foi veiculado de modo mais explícito
– ponto levantado por Sculley em sua interpelação mencionada anteriormente.

Podemos afirmar, com Laplanche (1992), que a mensagem de escolha presente na adoção pode de
fato fazer parte do que é conscientemente veiculado pelos pais, mas junto com ela vem toda uma
carga de enigmas, como em qualquer mensagem recebida por um infante, que ainda não dispõe
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de códigos tradutivos para apropriar-se dela. Tomando alguns elementos trazidos na biografia
supracitada (Isaacson, 2011), podemos construir uma situação originária marcada por alguns

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


pontos centrais: uma mãe jovem, às voltas com seu desejo de ser bem sucedida profissionalmente,
avançando em seu curso universitário, engajada em uma relação afetiva reprovada por seu pai,
com o filho de imigrantes sírios, um rapaz também jovem e estudante universitário. A decisão de
entregar o filho, fruto desta relação, para a adoção ocorre em grande parte por exigências das
famílias de ambos, o que nos parece confirmado pelo fato de que o jovem casal vem a ter outra
filha alguns meses depois de entregar Steve Jobs para a família adotiva, tão logo o pai da mãe
biológica morre.

Estes pais biológicos parecem manter um laço marcadamente ambivalente com a adoção, ditando
regras para ela pudesse ocorrer, num movimento de trazer impedimentos para sua concretização:
os pais adotivos do bebê deveriam ser ricos, formados em curso superior e católicos. De qualquer
forma, um casal com tais características se apresenta, chega até o final do processo de adoção,
mas desiste, deixando o bebê às voltas com o que Jobs irá considerar posteriormente, segundo
o filme, como uma rejeição, uma devolução. Finalmente, surge outro casal que não atendia às
exigências da mãe biológica de Jobs, mas que se compromete a cumprir alguns combinados para
ficar com o bebê. Há, porém, um período de dúvida, em que Jobs já estava sob a responsabilidade
de tal casal, mas estes ainda não sabiam se a adoção de fato ocorreria. Jobs diz, no filme, que nesse
período a mãe se esforçou para não amá-lo, preparando-se para uma possível retirada do bebê –
o que parece remeter à sua própria recusa quanto a firmar vínculos afetivos. Por fim, a situação
se resolve com os pais adotivos de Jobs assinando um compromisso de que iriam iniciar naquele
momento uma poupança para pagar pela educação universitária do filho, que, curiosamente, não
teve qualquer interesse em concluir um curso superior.

Temos, então, o bebê Steve Jobs passando por três possíveis pares de cuidadores, sendo querido e
rejeitado por todos, cada um a seu modo. Podemos supor uma mensagem ambivalente de extrema
força, unindo a rejeição e o desejo, que me parece intimamente relacionável com o efeito sedutor
que Jobs seguiu criando nas pessoas ao longo de sua vida, uma repetição que se relaciona com
este que seria um dos grandes enigmas de suas vivências mais precoces.
346
Este é o primeiro ponto ao qual chego com o recurso à teoria da sedução generalizada, que não vai
muito além daquilo que o filme engenhosamente propõe nas entrelinhas: temos Jobs, um homem
que traz consigo uma narrativa de rejeição e abandono, dedicando a vida a criar um público que
o ame, e que deseje aquilo que ele faz, mesmo que ainda não saibam o que é. Ao ser indiferente
conscientemente ao amor do outro, consegue suportar o fracasso e a rejeição de modo singular,
insistindo nas próprias ideias em momentos em que a grandíssima maioria das pessoas recuaria
em prol de manter-se ao alcance do amor de seus pais, mantendo-se, fantasmaticamente, mais
próximo do lugar de “sua majestade, o bebê” (Freud, 1914/2006b). A ferida narcísica que parece
acompanhar Jobs a partir de sua narrativa de abandono o faz colocar-se diante dos outros
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como alguém que não precisa do amor deles, porque, afinal, em algum nível crê que nunca o
teve, e precisa inventar para si mesmo o próprio trono – com uma convicção quase delirante de

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


que conseguiria produzir algo impar, único e necessário para a humanidade. Tudo isso, como
poderíamos supor, é apresentado no filme, de modo bastante clichê, como uma artimanha para
esconder suas fragilidades, o que admite para a filha dizendo: “eu sou mal feito”.

TRADUÇÃO, SUBLIMAÇÃO E OS EFEITOS DA OBRA CRIATIVA

Tentando dar um passo além do que narrativas cinematográficas da vida de Jobs já contemplam,
interpelou-me a ideia de que a reflexão sobre como um trauma pode ser de alguma forma motor
para a produção de algo importante culturalmente nos leva às proposições de Freud sobre
a sublimação. Ao retomar o texto de Freud mais evocado a este respeito, Leonardo da Vinci
(1910/2006a), deparei-me com um informação da qual não me lembrava: Leonardo da Vinci, o
caso tomado por Freud para embasar o estudo de tal conceito, também foi adotado1 , e isto é
apontado pelo autor como um dos motivos para que o artista renascentista fosse especialmente
afetado pelo enigma das origens dos bebês, se lançando na investigação científica e na produção
artística a partir de tal ponto.

Laplanche (2016) prossegue com a reflexão freudiana sobre Leonardo, procurando diferenciar
três destinos da mensagem enigmática de acordo com o modo como são metabolizadas pelo
psiquismo do infante. Apenas a título de apresentação, podemos sintetizar que a mensagem que
não é traduzida, que não encontra representações possíveis, para Laplanche se localiza como

1. Segundo Freud (1910/2006a, p. 39), Leonardo da Vinci foi filho ilegítimo; passou os primeiros anos de sua vida com a mãe,
e posteriormente foi levado pelo pai para ser criado junto à sua família, vez que sua esposa não podia ter filhos. Entendemos
que a adoção aqui ocorre principalmente por parte da esposa de seu pai biológico, mas também por este pai, vez que ele
aparentemente só teve contato com seu filho tardiamente.
uma mensagem persecutória, ou superegóica – algo que podemos colocar como correlativo a
uma desorganização psíquica mais grave, como uma psicose.
347
Em um segundo destino, a mensagem pode ser traduzida, gerando um resto de tradução que
será recalcado e mantido fora do alcance do eu – criando uma narrativa egóica que podemos
parafrasear, a partir de Laplanche (2016, p. 48) nos seguintes termos: “sei do que recebeu
tradução, e prefiro não saber do que não sei, daquilo que não foi traduzido”. Finalmente, temos o
último destino, e aqui vem o ponto de nosso interesse, em que há uma manutenção da dimensão
do enigma, que para Laplanche é o que Freud considera que existe em Leonardo, suscitando sua
abundante produção. Laplanche (2016, p. 48) resume tal relação com o enigma de um jeito que
me parece muito interessante, e que o cito: “eu sei [algo foi traduzido]; e do que não sei, nada
quero saber sobre seu conteúdo [é inacessível, pois há recalque operando]; mas, mesmo assim,
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

pressinto – para sempre – que não sei”.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Seguindo em sua discussão sobre o efeito de sedução que a alteridade produz sobre o bebê, e como
isso suscita respostas neste, Laplanche chega à proposição de que é preciso falar de “inspiração”
para dizer daquilo que engendra a criação, dando ênfase ao fato de que esta é produzida pelos
efeitos do outro sobre aquele que cria. A este respeito, novamente o cito: “o movimento ptolomaico
narcísico da criação é inegável. Mas, além dele, e justamente com ele, produz-se uma inversão:
é a espera do público, ela mesma enigmática, que é o agente provocador do trabalho da obra”
(Laplanche, 2016, p. 51). Assim, apesar de Jobs ter estruturado uma narrativa de autossuficiência
e egocentrismo, traduções inclusive muito facilitadas pela cultura em que estava inserido,
podemos lembrar, com Laplanche, que a narrativa em 1a pessoa é sempre insuficiente, e a criação
está sempre impregnada pelos efeitos apassivantes da intervenção do outro no início da vida dos
bebês, e deste momento em que, como ele mesmo diz, ele não estava lá para se defender do que
ocorria com ele.

A título de conclusão, retomando a pergunta-título deste texto, faço a proposição de que, assim
como Da Vinci produz uma obra que seduz, com suas representações dos sorrisos enigmáticos
que suscitam debates ao longo dos séculos, Steve Jobs produz um legado cultural que tem a ele
mesmo como um dos componentes. Tornou-se, assim, parte da própria obra, evocando o não-
traduzido que nos habita a todos, e com o que, como vimos com Laplanche, aqueles que nos
impactam mais profundamente a nível social muitas vezes parecem ter uma relação de maior
abertura.

REFERÊNCIAS

Boyle, Danny (Diretor). (2015). Steve Jobs [Filme]. Universal Pictures.


Isaacson, W. (2011). Steve Jobs. (Bottmann, D; Maia Soares, P. &Vargas, B., Trads.). São Paulo:
Companhia das Letras.
348
Freud, S. (2006a). Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância. In Edição Standard das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XI). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1910).

Freud, S. (2006b). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição Standard das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).

Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, Trad.). São Paulo:
Martins Fontes.
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Laplanche, J. (2016). Sublimação e/ou inspiração. Percurso, 56/57, 35-52.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


SUMÁRIO

349 OS VÍNCULOS FAMILIARES NA


ADOÇÃO INTUITU PERSONAE:
CONSTRUÇÃO DE CASO NA
CLÍNICA PSICANALÍTICA

AUTORIA
ANAMARIA SILVA NEVES
Professora adjunta da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Doutora em Psicologia pela
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Universidade de São Paulo. Pós-Doutora pelo Child and Woman Abuse Studies Unit – CWASU,
instituição vinculada à London Metropolitan University. .

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


CONTATO: anamaria.neves@ufu.br

FABIANA CAROLINA DE SOUZA CARVALHO DIAS


Psicóloga clínica. Graduada pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM. Mestre
em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
CONTATO: fabiana.dias@uftm.edu.br

RESUMO
As primeiras tentativas para legalizar a adoção no Brasil eram constituídas de leis que
deixavam claro o valor superior atribuído aos laços biológicos e aos privilégios dos filhos
consanguíneos em detrimento daqueles que foram adotados. Somente com o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, essa discriminação entre filhos por adoção
e consanguíneos foi atenuada no âmbito legal, com a equiparação de direitos. Apesar
dos esforços referentes aos avanços legais na adoção, ainda é bastante frequente a
adoção irregular no Brasil. Diante dessa realidade faz-se necessário compreender as
especificidades desde tipo de adoção, o que constitui o propósito deste trabalho. Como em
qualquer família, naquelas constituídas por adoção há, fundamentalmente, a singularidade
do encontro entre os sujeitos. Por isso, abordamos o tema na lógica das construções
vinculares, estabelecendo a família como menor unidade de estudo e de análise. Trata-se
de recorte de pesquisa mais ampla que tem na construção do caso sua instrumentalização
metodológica e na teoria psicanalítica sua base teórica e analítica. Para esta apresentação
foi eleito o caso de uma família constituída por um casal e dois filhos consanguíneos
adultos, que acolheu duas irmãs de 5 e 7 anos em uma adoção clandestina. Foi realizada
350 análise de cinco atendimentos psicológicos familiares e uma entrevista voltada aos
interesses da pesquisa. A construção do caso inclui questões como a insegurança
vivenciada pela família ante a clandestinidade da adoção, a relação com a família de
origem, o lugar simbólico das irmãs nas famílias, as relações fraternas e a repetição de
padrões no funcionamento familiar. Estabelece-se o pacto denegativo, que impede o
acesso ao irrepresentável das pulsões e a implicação dos sujeitos em seu sofrimento.
Com as análises realizadas, emerge a importância de que sejam explorados os aspectos
inconscientes imbricados nos vínculos da adoção intuitu personae, e ainda, que discussão
ampla desta temática favoreça transformações progressivas no imaginário social..
PALAVRAS-CHAVE: Adoção intuitu personae; Vínculo; Família; Psicanálise.
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As primeiras tentativas para legalizar a adoção no Brasil eram constituídas de leis que deixavam
claro o valor superior atribuído aos laços biológicos e aos privilégios dos filhos consanguíneos em
351 detrimento daqueles que foram adotados. Somente com o Estatuto da Criança e do Adolescente
– ECA, de 1990, essa discriminação entre filhos por adoção e consanguíneos foi atenuada no
âmbito legal, com a equiparação de direitos. Apesar dos esforços referentes aos avanços legais
na adoção, ainda é bastante frequente a adoção irregular no Brasil. Diante dessa realidade faz-
se necessário compreender as especificidades desde tipo de adoção, o que constitui o propósito
deste trabalho.

Considerando a complexa trama da construção da parentalidade e da filiação por adoção,


especificamente na adoção clandestina, algumas dificuldades tomam relevo. Menezes (2008) se
refere às adoções irregulares e aponta que os chamados filhos de criação — aqueles entregues
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pela família consanguínea a terceiros sem formalidade legal — encontram-se em situação de


vulnerabilidade extrema. Afinal, não têm garantia jurídica de sua condição de filho. O vínculo de filiação

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é exclusivamente socioafetivo e instável, pois vivem na iminência de ruptura, de perda da criança.

Dentre as adoções ditas irregulares, focalizamos neste trabalho a adoção Intuitu Personae.
Segundo Sousa (2013), a denominada adoção Intuitu Personae não se confunde com a adoção à
brasileira. Esta última se refere à situação em que alguém realiza o registro do nascimento de uma
criança como seu genitor, sem sê-lo de fato. A primeira modalidade se refere à conduta em que
os pais biológicos escolhem os adotantes e, sem a chancela do Poder Judiciário, entregam o filho
para que os adotantes exerçam a guarda de fato. Na adoção Intuitu Personae não há registro do
nascimento da criança em nome dos adotantes e a entrega da criança ocorre sem contraprestação
de qualquer natureza pois, do contrário, pratica-se crime.

Do ponto de vista jurídico, não há empecilho na legislação para a adoção Intuitu Personae, mas ela
é aceita em caráter de exceção na lei (Sousa, 2013). As adoções “irregulares” estão previstas no
Estatuto da Criança e do Adolescente, no Art. 50, § 13 e § 14. A excepcionalidade dessa modalidade
de adoção visa a garantir a proteção integral efetiva de crianças e adolescentes, além de dificultar
a ocorrência de práticas que os coloquem em risco de traumas psicológicos, revitimização advinda
de novo abandono, possibilidade de ser vítima de tráfico de pessoas, aliciamento, exploração
sexual ou laboral e outros (Lima & Dombrowski, 2011).

Os mesmos autores ressaltam que, em casos específicos, embora a adoção Intuitu Personae se
configure irregular e de exceção, quando as famílias buscam regularizar a situação, por vezes, a não
observação do cadastro de adoção torna-se a melhor providência a ser tomada. Há circunstâncias
em que o ato de afastar a criança ou adolescente da família com a qual nutre laço afetivo seria
meramente exaltar um falso respeito à legalidade, causaria revitimização e sentimento de perda
ao afastá-los dos que têm como família. Bordallo (2017) ressalta que a adoção Intuitu Personae
não deve ser considerada de antemão como de má-fé, já que essa postura pode colaborar para
o afastamento e o medo das pessoas de comparecer às Varas da Infância e da Juventude para
regularizar a situação das crianças que estão irregularmente sob seus cuidados.
352
Exploradas algumas vertentes teórico-conceituais que enredam o tema, segue a perspectiva
metodológica e a análise do caso trabalhado.

Como em qualquer família, naquelas constituídas por adoção há, fundamentalmente, a


singularidade do encontro entre os sujeitos. Por isso, abordamos o tema na lógica das construções
vinculares, estabelecendo a família como menor unidade de estudo e de análise. Trata-se de recorte
de pesquisa mais ampla que tem na construção do caso sua instrumentalização metodológica e
na teoria psicanalítica sua base teórica e analítica. Para esta exposição foi eleito o caso de uma
família constituída por um casal e dois filhos consanguíneos adultos, que acolheu duas irmãs de
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5 e 7 anos. Foi realizada análise de cinco atendimentos psicológicos familiares e uma entrevista
voltada aos interesses da pesquisa. A família foi atendida no serviço-escola do curso de Psicologia

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de uma universidade pública.

ANÁLISE DO CASO

Família consanguínea e por “adoção”: duas famílias, algum pertencimento?1

Sobre a família, após o primeiro contato, a questão da irregularidade/clandestinidade da “adoção”


toma a cena, pois os vínculos geravam demandas relativas às famílias de origem e por “adoção”,
com notório sentimento de insegurança pela falta de respaldo legal. A fragilidade suscitou, na
relação transferencial, sentimentos intensos de impotência, desamparo, insegurança e medo. As
crianças tinham convivência com a família por “adoção” e com a consanguínea e transitavam
precariamente entre dois núcleos familiares divergentes. Nos relatos, emergia o dualismo em sua
efervescência: a “boa família”, que acolhe, cuida, alimenta, ensina e busca tratamento; e a “família
ruim”, que não cuida adequadamente, manipula, explora, suscita conflitos, rejeita e confunde.

Renata e Bárbara 2 tinham 7 e 5 anos de idade, respectivamente, à época do início dos atendimentos.

1. A palavra “adoção” pode ser questionada nesse caso porque a adoção legal não ocorreu; porém, em alguns momentos uso
o termo família por adoção para facilitar a referência a uma família ou à outra, porém usarei o termo entre aspas para enfatizar
que não se trata de adoção formal. Essa dificuldade de definir e nomear a relação estabelecida pela família revela o quanto as
relações ainda carecem de representação e afetam a construção dos vínculos familiares.
2. Todos os nomes são fictícios a fim de preservar o sigilo da identidade dos participantes da pesquisa. Foram escolhidos em
alusão a aspectos percebidos durante os atendimentos. Renata significa “renascida” ou “nascida pela segunda vez” e alude ao
retorno da criança, pela segunda vez, à convivência da família que a acolheu. Bárbara significa “estrangeira”, “forasteira” ou “a
estranha”. Foi escolhido para a outra filha que entrou na família como condição para que Renata pudesse retornar. Não era
desejo inicial da família tê-la como filha. Gislene foi atribuído à mãe que acolheu as irmãs e significa “afável”, “acolhedora refém”,
As irmãs chegaram até a família por meio “da entrega direta das crianças” pela genitora. A mãe
consanguínea trabalhava no mesmo local onde Gislene (atual responsável pelas meninas) também
353 trabalhava anos atrás. Foi nesse contexto que se conheceram.

A genitora é descrita pela família que acolheu as crianças como alguém que “usa as filhas para
obter sustento através de pensões e que não considera as necessidades das meninas”. A família
argumenta que a genitora interfere no bem-estar emocional, psicológico e familiar delas com
atitudes de manipulação, mentira, promessas, negligência no cuidado e ameaças, a ponto de
falar que vai retirar as irmãs da família em que estão quando são frustradas suas intenções de
manipulação. Ela reside a cerca de 300 quilômetros de distância de onde moram as crianças e
tem contato com elas através de ligações telefônicas esporádicas, e quando as leva para sua casa
em alguns dias durante o ano, sobretudo no período de férias escolares, isso ocorre quase sempre
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sem avisar e com mobilizações significativas no grupo familiar.

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Essa situação afeta os vínculos e traz insegurança e temor para a família por “adoção”, tal é a iminência
constante de ruptura. A história é complexamente montada nos relatos que foram envolvidos com
certa apreensão ante a revelação da condição, proibida e obscura, que a permanência das crianças
na família envolve. As falas eram revestidas de medo de que aquilo que fosse narrado pudesse
desestabilizar ou interferir na situação delicada em que eles se encontravam.

Com isso, o primeiro movimento da família foi se certificar de que aquilo que seria falado em sessão
não resultaria em perda do convívio com as crianças; o que, de certa forma, colocava-me em
situação de cumplicidade quanto à situação de vulnerabilidade que as crianças se encontravam
— melindre ético importante. Os discursos traziam a todo tempo o temor da ruptura. Quando se
tocava em questões como legalização ou se apontavam riscos da situação vivenciada, a família
defensivamente ressaltava a impossibilidade de mudar o cenário. Apesar dessa atitude defensiva,
a família sinalizou o desejo, mesmo que inconsciente, de compartilhar tal vivência quando buscou
atendimento psicológico, o que acena uma possível necessidade de mudança.

O caso desta família aponta para os melindres do intercurso da adoção em circunstância ilegal
ou irregular. Neste caso, a regularização da situação de adoção é interditada pela genitora das
crianças que, apesar de não se responsabilizar pelo cuidado das mesmas, também não permite
que a família por “adoção” as assuma integralmente.

A história do encontro da família com as irmãs inicia-se quando Renata, aos 6 meses de idade,
foi entregue pela genitora aos cuidados de Gislene para que pudesse trabalhar. Diferentemente

que aponta para a repetição em seu histórico de acolher crianças a seu cuidado. (Cf. https://www.dicionariodenomesproprios.
com.br/)
do esperado, a genitora deixou a criança e ficou algum tempo sem retornar ou entrar em contato.
Muitos dias depois, a genitora voltou à casa da família que acolheu a criança e deu orientações
354 sobre o cuidado com ela – pois a menina estava tendo dificuldades para se alimentar. Mas não a
levou de volta.

Renata conviveu com a família por “adoção” dessa maneira dos 6 meses aos 2 anos de idade
quando, de maneira abrupta e sem maiores explicações, a mãe consanguínea retomou os cuidados
da criança, o que trouxe sofrimento à família por “adoção” e à criança, segundo relatos. Gislene
manteve o contato com a menina no período em que esta esteve com a família consanguínea e
sempre a buscava para passar o fim de semana e datas comemorativas.

Renata permaneceu com a família consanguínea dos 2 aos 6 anos de idade aproximadamente, até
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que a genitora propôs o retorno da menina à família por “adoção”. Sugeriu que Renata voltasse
a morar com Gislene e justificou dizendo que sua casa não era um ambiente adequado para

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crianças, porém impôs a condição de que sua outra filha – Bárbara, que na época estava com
3 anos – também fosse morar com eles. A princípio Gislene não queria a irmã de Renata em sua
casa, mas acabou aceitando a proposta a fim de ter Renata de volta aos seus cuidados. As duas
irmãs já residiam há quase 1 ano e 10 meses com a família por “adoção” no momento em que
os atendimentos se iniciaram. A única documentação que a família possuía era uma procuração
assinada pela genitora.

Renata estabeleceu com a família por “adoção” vínculo de filiação, porém, o vínculo com a família
consanguínea evocava ainda certa permanência. A relação de Bárbara com a família se estabelecia
de maneira diferente, com resistência e intolerância, como analisado mais adiante. A família por
“adoção”, no momento da pesquisa, assumia integralmente o cuidado das crianças: despesas,
funções educativas e afetivas, mas a família consanguínea detinha os direitos legais sobre as
garotas e mantinha contatos esporádicos por telefone.

No caso analisado, a convivência com as famílias apresenta-se conturbada, discrepante nos


hábitos, nas rotinas, nos cuidados, na condução da educação das irmãs sobretudo, com uma
evidente relação conflitiva entre as famílias. O pai por “adoção” relata que a tia consanguínea (que
mora ao lado da casa da mãe consanguínea) teria dito para Bárbara não voltar para casa deles.
Segundo ele, a tia “fala pra Bárbara pirraçar a gente, quando a gente vai buscar elas; a tia dá show
lá na porta” para não levar as meninas. A coexistência de dois núcleos familiares, consanguíneo e
por “adoção”, está presente no imaginário dos diferentes sujeitos envolvidos nos casos de adoção
regular, mas, em geral, a criança não convive com as duas famílias concomitantemente.

Ao se pensar na dinâmica do caso, questões relacionadas com o processo de subjetivação de


Bárbara e Renata vêm à tona. O processo identificatório da criança adotada, de acordo com Abrão
(2014), é mais complexo, pois ela tem dois grupos parentais distintos como modelo, mesmo que
o processo de adoção transcorra dentro da legalidade e se tenha a garantia de preservação das
relações de parentesco e de direitos da criança e da família. No caso relatado, não existe essa
355 “garantia” da preservação das relações e as crianças transitam entre uma e outra família, que
perfazem modelos identificatórios distintos. Se tal processo, para a criança legalmente adotada,
já é bastante complexo, na situação apresentada, a construção da identidade e subjetivação das
irmãs parece se tornar ainda mais árduo.

Desde o primeiro contato por telefone, realizado a fim de agendar os atendimentos, houve
confusão quanto às figuras parentais. A família por “adoção”, que buscou atendimento para
Renata, informou na ficha de inscrição do serviço-escola o nome da mãe consanguínea. Com isso,
quando tentei falar com a responsável pela criança ao telefone, citei o nome da genitora, e não
da mãe por “adoção”. Em contrapartida, o número do telefone descrito na ficha de inscrição da
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criança era o de Gislene, que informou, ao telefone, que não tinha pessoa com o nome pelo qual
eu procurava e perguntou do que se tratava.

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Logo no início do primeiro atendimento, outro momento revelou a angústia em relação à situação
de indefinição e incerteza. Ao falar sobre a pesquisa, perguntei se Gislene autorizava a utilização
das informações dos atendimentos, e ela ficou bastante receosa. Desculpou-se e explicou não ter
a guarda das crianças e temer que a pesquisa pudesse prejudicá-los de alguma maneira. Expliquei
sobre o compromisso de sigilo assumido em relação às identidades dos participantes e então
Gislene autorizou.

Rocha (2009) explana que na adoção ilegal os pais podem ficar permanentemente com medo, o que
gera situação de extrema insegurança para todos os envolvidos. De acordo com Bochnia (2008),
a insegurança da adoção irregular pode deixar a criança exposta a riscos de ruptura da filiação
socioafetiva já configurada e suscetível à perda repentina da família com que tem vínculo afetivo,
além da possibilidade de revitimização advinda da reinserção da criança na família consanguínea,
com retorno à situação de vulnerabilidade.

Com efeito, a ruptura repentina dos laços afetivos ocorrera na família estudada. A família por
“adoção” relata que Renata foi para a casa deles aos 6 meses de idade e que, aos 2 anos, a genitora
a levou para morar de novo com ela. Gislene enfatiza que “quase morreu de tristeza”; mas não
pôde impedir que isso ocorresse porque não tinha documento algum, e a mãe consanguínea tinha
o “poder de decidir sobre a permanência ou não da criança” na família por “adoção”. Durante o
período em que Renata esteve com a família de origem, a família por “adoção” manteve o vínculo
com a menina. Nota-se que a dinâmica das famílias se inverte: a família por “adoção” passa a
conviver com a menina de modo semelhante à família consanguínea anteriormente.

A insegurança vivida pela família por “adoção” do caso estudado produz sintomas significativos. A
família buscou atendimento psicológico para Renata trazendo como queixa sintomas depressivos
e intolerância à frustração, com comportamentos agressivos e choro quando frustrada, “ela
chora quando não quer ir dormir, fala que eu gostava dela e que agora não gosto mais” (Gislene).
356 Após o retorno da menina para a família por “adoção”, aos 6 anos de idade, houve um período em
que Renata apresentou dificuldades para se alimentar e perdeu muito peso. Gislene caracteriza
Renata como uma criança muito boa, “não dá trabalho, onde coloca ela, ela fica”. Diz que a criança
não fala sobre os momentos em que está com a família consanguínea e acredita que a genitora
faça ameaças. A apatia e o silêncio igualmente puderam ser percebidos em Bárbara na única
sessão em que ela estava presente. Ela ficou quieta e calada no atendimento. As poucas palavras
pronunciadas, eram em tom muito baixo, incompreensível. Gislene diz que a menina gagueja,
mente muito e inventa histórias, “ela fala que cuida de um bebê, que achou escorpião, esse tipo de
coisa. As colegas da escola não gostam dela” (Gislene).
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Percebe-se que a condição de indefinição e insegurança vivida pela família se reflete na forma
como as crianças interagem com o ambiente e as pessoas. Mostram-se apáticas, destituídas de

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vontade, emudecidas nos vínculos e vulneráveis às frustrações e à imposição de renúncia aos
seus desejos.

Em uma das sessões, Renata fez um desenho para sua mãe. Havia um chão na base da folha, duas
figuras humanas do sexo feminino sorrindo, com características e dimensões semelhantes (uma
em cada canto da folha), nuvem e sol no canto superior direito do desenho. A mãe pergunta o que
ela havia desenhado, e ela responde que desenhara Gislene e ela. A mãe pergunta, então, o que
elas estavam fazendo no desenho, e Renata responde que estavam passeando. Daí, Gislene fala:
“a gente tá muito longe uma da outra”. O desenho fazia alusão aos aspectos positivos da vida e da
relação com a mãe; porém, demonstrava a distância, física ou afetiva, que parecia ser vivenciada
ou temida pela criança.

Em outro momento dos atendimentos, Renata produziu outros dois desenhos. Um para Gislene,
outro para mim, bem semelhantes. Desenhou contornando peças do dominó. Quando Gislene
perguntou o que ela havia desenhado, respondeu que era uma casa de pedra. A casa de pedra

Figura 1 - Desenho que Renata


entregou a mim. A criança
acrescentou o nome dela
(ocultado com tarja preta)
e o meu.
fazia referência a um lar com estrutura robusta, o que parecia sugerir necessidade de estabilidade
e proteção, porém a casa ainda estava fragmentada em várias partes, o que sugeria indicar a
357 situação da criança, de inconstância no âmbito familiar.

As reflexões apontam de forma repetida para a relação conflituosa entre as famílias e como tal
condição produz sintoma nas crianças, com fragmentação dos dois modelos familiares.

A Renascida e a Forasteira: o lugar simbólico das irmãs nos vínculos familiares

Um aspecto relevante expresso nos atendimentos foi a entrada de Bárbara, a mais nova das irmãs,
na família. A família por “adoção” declarou não querer acolher Bárbara, mas, para ficar com Renata,
aceitou tal condição. Nos atendimentos, Gislene disse que ficou muito angustiada ao pensar na
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possibilidade de Renata ser adotada por outra família e, em decorrência disso, perder de vez o
contato com ela. Assim, resolveram acolher as duas irmãs.

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Levinzon (2009) destaca que é essencial que o filho consanguíneo ou por adoção tenha lugar na
subjetividade familiar. A relação com a criança e a interpretação dessa relação serão baseadas na
estrutura subjetiva existente antes mesmo da inserção dela na família. É importante, portanto, que
a filiação se construa pela ordem do desejo; não da necessidade de tamponar alguma angústia.
O lugar que Bárbara ocupa na família por “adoção” é o de instrumento/condição para que Renata
esteja de volta, mantendo-se “entre” os sujeitos do grupo familiar, em um vínculo ambíguo: o
desejo de filiação não tem Bárbara como objeto, mas a irmã.

Como apontam Rosa e Lacet (2012), os pais buscam resgatar o narcisismo perdido através dos
filhos e não basta ter o filho para que se institua a parentalidade. São necessários processos
concomitantes que a instituam e possibilitem à criança, além da vida biológica, se constituir
um ser político-social-libidinal. O vínculo da criança com a família pode fornecer um lugar de
existência na singularidade ou, contrariamente, um meio com impasses, desamparo e até violação
dos direitos.

No caso analisado, Renata parece assumir um lugar no desejo dos pais por “adoção”. As sessões
com a família eram sempre mobilizadas por preocupações com bem-estar de Renata. Assim,
Bárbara foi levada para atendimento uma única vez. Além disso, a família fez inscrição para
atendimento psicológico no serviço-escola somente para Renata, apesar de as duas crianças
estarem na mesma situação de vulnerabilidade.

Existia também, por parte da família por “adoção”, um movimento inicial de distanciamento de
Bárbara, de não a conhecer e de não envolvimento. Gislene chega a expressar certa aspereza
ao se referir a Bárbara durante as sessões: “A Bárbara parece boazinha. Quando ela vier no
atendimento, você vai olhar pra ela e pensar: ‘Nossa, que menina linda, boazinha’. Mas ela não
é nada disso. Ela é o contrário. Ela é muito ruim. Ela é... como fala? Psicopata, né? Que parece
boazinha, mas é o contrário”.
358
O pai por “adoção”, apesar de não estar presente em todas as sessões e ter uma participação menor
nos relatos da família, parece se posicionar de maneira distinta em relação a essa conflitiva. Ele
expressa em suas falas, e durante a sessão em que a menina esteve presente, uma proximidade
maior de Bárbara e não avalia a menina tão negativamente quanto Gislene, manifestando sua
discordância em relação à mãe por “adoção”, exercendo função de mediação.

Em contrapartida, segundo relatos, na família consanguínea também há diferença clara de


tratamento entre as irmãs. Há predileção por Bárbara. Gislene disse que na casa da genitora não
há nenhum pertence da Renata, roupa ou brinquedo, pois só há objetos de Bárbara. Disse também
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que a mãe consanguínea conversa com as meninas ao telefone de maneira muito distinta: “daí a
Renata atende o telefone, e ela começa a falar, ‘Oi, meu amorzinho! Minha linda! Tudo bem com

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você? Mamãe morre de saudade, chora todo dia de saudade de você’. Aí a Renata responde: ‘Mãe,
é a Renata’. Aí ela fala: ‘Ah... tudo bem com você?’, e fala totalmente diferente com ela”.

As relações estabelecidas entre as irmãs e as famílias, consanguíneas e por “adoção”, parecem


reverberar no vínculo fraternal. De acordo com Goi (2014), vários fatores podem dificultar ou
facilitar o vínculo fraternal, tais como gênero, diferença de idade, intervenções parentais e
temperamento infantil. A relação entre irmãos funciona como um laboratório para expressão
e compartilhamento de sentimentos legítimos que a vida impõe na relação com o outro. As
disputas versam sobre perdas e ganhos, apontam limitações e modos de superação, promovem
alianças, ensinam a dividir, compartilhar, solidarizar-se e a postergar. Além do ensinar e aprender
recíprocos, permite a descarga moderada de agressividade. Assim, o complexo fraterno exerce
função estruturante. Sobre o irmão, recaem a idealização e o desdobramento narcisista; o irmão é
um semelhante demasiado similar, a primeira aparição do estranho na infância.

Na filiação por adoção, a dinâmica psíquica é semelhante. Conforme discorrem Otuka, Scorsolini-
Comin e Santos (2009), o lugar que os pais asseguram a cada filho contribuirá para que seja
reconhecido como sujeito de direito. Em se tratando de irmãos, é importante que os pais possam
diferenciar cada um como um ser único e insubstituível. No caso analisado, as diferenças no manejo
afetivo, tanto na família por “adoção” quanto na família consanguínea, promovem ambiente de
insegurança em relação à pertença e ao amor parental.

Segundo relato da família, a rivalidade entre Renata e Bárbara é bastante acirrada. Gislene diz que,
“Quando elas estão juntas, elas brigam demais, elas se batem; e, às vezes, a Renata fica nervosa
e implica até da Bárbara olhar para ela e de gaguejar. Ela fala assim: ‘Olha, como essa menina fala!
Não sabe nem falar direito’”. Gislene relata ainda que Bárbara “faz as coisas erradas escondido,
belisca a Renata disfarçado pra ninguém ver”. Ela contou um episódio, no início, quando vieram
para sua casa: “Fui lavar louça e, para não deixar elas sozinhas, chamei elas pra me ajudar. Falei:
359 ‘Eu vou lavar, e vocês me ajudam a secar a louça’. Daí eu tava lavando a louça e conseguia ver as
meninas, apesar de estar de costa. Daí vi a Bárbara pegando uma faca e fazendo assim (gesto
como se quisesse acertá-la) na direção da Renata”.

Com efeito, Kehl (2000) destaca que, quando pais e educadores incitam rivalidade entre irmãos,
conscientemente ou não, incentivando que só existe um lugar para o amor parental, a permanência
da rivalidade acirrada da fraternidade pode se perpetuar até a idade adulta. No caso estudado, a
falta de um lugar afetivo que demarque zelo e cuidado, tornam o ambiente familiar trágico.

“Família hospedeira”: a compulsão à repetição nos vínculos familiares


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Um ponto relevante na análise desse caso refere-se à dinâmica vincular que enseja a repetição

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na família, que assume a função de “família hospedeira”; repetidamente, em situações de adoção
irregular ou de cuidado de crianças, sem a assunção formal do vínculo parental. Além da história
atual com Renata e Bárbara, a família estudada já vivenciou relação semelhante com dois outros
irmãos que “abrigaram” por três anos. Eram filhos de uma pessoa conhecida da família. A garota
chamava Gislene de “mãe”, mas o vínculo entre eles foi rompido radicalmente após um tempo,
pois a genitora buscou as crianças para passar o fim de semana e não retornou, nem entrou em
contato. Tempos depois, Gislene soube que a família havia mudado da cidade e ela não pôde rever
as crianças.

A expressão “família hospedeira” foi criada neste estudo e se refere à característica observada
nos relatos durante os atendimentos, uma família que “hospeda”: acolhe, cuida, exerce as funções
parentais, mas sem conseguir assumir o vínculo familiar no âmbito formal, condição que se
configurou uma repetição do padrão vincular na família.

No texto “Além do princípio do prazer”, Freud (1920/2006) teoriza que a compulsão à repetição
seria responsável por conduzir o sujeito a um destino maligno que o leva para o sofrimento e
para a dor, determinado por influências infantis primitivas. É uma recorrência perpétua da mesma
coisa que leva o sujeito de maneira passiva a ter o mesmo resultado em todas as suas relações, as
quais não têm influência consciente, mas o levam à repetição da mesma fatalidade. A compulsão
à repetição sobrepuja o princípio de prazer, sendo apoiada pelo desejo de elaboração do que foi
esquecido e reprimido, apresentando alto grau de caráter instintual.

De acordo com Paim Filho (2010), no processo de compulsão à repetição estão implicadas a pulsão
de morte e a pulsão sexual. O que determina o destino em compulsão à repetição é a ineficácia da
pulsão sexual para domesticar a pulsão de morte. Nesse sentido, a compulsão à repetição sofre
uma dicotomia: de um lado uma compulsão impulsionada pelo princípio do prazer, centrada na
força do desejo e pontos de fixação; e de outro, aquela impulsionada pelo além do princípio do
prazer, com a repetição do que nunca foi prazeroso, centrada na força do traumático. Este se trata
360 de repetição da vivência de dor, e o que era, até então, motivo de repulsa, vira polo de atração.

Ao apontar a presença da repetição na dinâmica da família, Gislene não consegue compreendê-la


e ressalta que nunca buscou estar em nenhuma dessas situações, em que as pessoas chegam
até ela com as crianças pedindo para cuidar. Ela considera tais ocasiões como missão que Deus
lhe concedeu. A dinâmica é inconsciente, e, assim, a família se coloca nesse vínculo permeado por
dificuldades, rupturas e sofrimento. Os sujeitos não conseguem escapar dessa forma inequívoca
de vinculação que parece funcionar como resposta ao desamparo, como se fosse uma modulação
afetiva alternativa para aliviar a tensão pulsional. Desse modo, inconscientemente, a família
também resiste à mudança, se angustia e permanece impotente e paralisada no que diz respeito
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à regularização da adoção. A capacidade de enfrentamento e transposição das resistências foi


sendo construída no decorrer do acompanhamento psicológico por meio do apoio à família.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Essa dinâmica familiar engendra ainda o pacto denegativo que, para Kaës (2005), configura um
mecanismo defensivo, uma aliança inconsciente, que tem o objetivo de reprimir um conteúdo
comum ao grupo, ou seja, que faz com que não seja possível pensar alguma dinâmica psíquica
compartilhada. É uma forma de manter o vínculo, mas só é possível na medida em que algo seja
negado em conjunto. Os pactos denegativos são necessários para a sobrevivência do vínculo no
campo interpsíquico, assim como os mecanismos de defesa são necessários intrapsiquicamente.

O pacto denegativo está na origem e no fundamento da família, do grupo social, das leis e do
sujeito singular e se apresenta através de duas polaridades: uma organizadora e outra defensiva.
Ao mesmo tempo em que assegura a satisfação de necessidades dos envolvidos, impõe limites e
expulsa certos elementos da construção vincular. A face defensiva do pacto denegativo relaciona-
se com apagamentos, rejeições, recalcamentos, com um conjunto de aspectos não significáveis,
não transformáveis que mantém o sujeito alheio à sua história. Encontra-se ainda fortemente
relacionado com as identificações alienantes e a transmissão psíquica transgeracional através dos
efeitos nocivos que as alianças inconscientes provocam na capacidade de pensar (Kaës, 2005).

O funcionamento como “família hospedeira” não é acessado conscientemente pelos membros


da família. Não aparecem nos relatos oposição ou questionamento sobre isso, mesmo que se
reconheça o sofrimento envolvido. Tal funcionamento familiar deixa os pais por “adoção” sob os
desmandos da genitora das crianças. O pacto denegativo emerge nesta família defensivamente,
mantém aspectos não significáveis, não transformáveis, o que a deixa alheia à própria história,
sustentando o destino do recalcamento e da repetição.
Algumas questões éticas

361 Considerando a situação irregular da “adoção” das irmãs e o ambiente familiar conflituoso
estabelecido entre as duas famílias, convém pontuar questões éticas importantes relacionadas
com o caso estudado. Inicio a reflexão a partir da peculiaridade da “adoção” realizada pela
família; porém, a discussão-chave levantada se relaciona com o dilema do pesquisador ante o
compromisso de sigilo em oposição às situações no percurso da investigação.

A condição da “adoção” da família, ainda que irregular, não configura prática criminosa; porém,
a família apresenta receio extremo de tentar regularizar a situação das meninas com temor de
perdê-las. A ambivalência afetiva assombra e paralisa a família, que assim permanece resistente a
qualquer tentativa de intervenção e apontamento da necessidade de mudança da condição atual
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

por gerar medo e ansiedade.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Essa resistência da família quanto ao enfrentamento da situação vivenciada colocava-me em
posição difícil. De fato, houve garantia de sigilo em relação a informações da família, e assumi o
compromisso de que a pesquisa não resultaria em prejuízo aos participantes, mas não poderia
deixar de me posicionar ante a situação em que crianças estavam tendo seus direitos violados.
Apesar de não ser uma prática criminosa, a circunstância em que as crianças se encontravam
gerava sofrimento psíquico pela inconstância familiar e de cuidados, além das situações de risco
quando estavam sob os cuidados da família consanguínea.

Segundo relato da família por “adoção”, havia suspeita de possíveis situações de abuso sexual.
Gislene conta que Bárbara falava sobre um homem, que ela chamava de “tio”, “que passa a mão
nelas, que elas dormem com ele e ele dá balas”. A família acreditava até que, quando mais velhas,
as crianças seriam levadas para casa da genitora, que iria explorá-las. Mesmo com a gravidade
desse fato, a família via-se impotente, se limitando “a rezar para que Deus faça um milagre”, a
genitora desaparecesse e ficassem todos “livres dessa situação”. Episódios de violência física
e psicológica também foram descritos. Bárbara contou para os pais, em outro momento, que a
genitora ameaçava “cortá-las com tesoura e que a mãe já correu atrás delas com faca”, além de
ficar alcoolizada e deixá-las sozinhas em casa. Há relatos de que a genitora ameaçava as crianças
quando faziam algo que a desagradava. Dizia que iria buscá-las na casa de Gislene e obrigá-las a
“comer capim”. Gislene conta que “elas sempre falam uma com a outra ‘para de fazer isso, senão
a mãe vai buscar a gente e a gente vai comer capim’”. Segundo relato da família por “adoção” as
idas para casa da genitora envolviam extremo sofrimento, sobretudo para Renata. Dizia que a
criança não tinha vontade de ir. A menina contava que ia porque, do contrário, a genitora batia
nela. A soma dos vários melindres éticos nesse contexto mobilizava o questionamento sobre
minha postura como pesquisadora no caso.
A família por “adoção”, paralisada, mantêm a condição de risco e vulnerabilidade. É uma vinculação
com características perversas no qual o silêncio diante dos abusos se constitui uma violência.
362 Nesse contexto, a família por “adoção” me coloca como espectadora de uma cena perversa. Ao
escutar sobre tais fatos, me sentia igualmente implicada e responsabilizada por aquela e outras
conjunturas narradas.

Segundo Kehl (2002), a ética da psicanálise é a ética da investigação, da dúvida que contesta as certezas
imaginárias que estão a serviço das defesas narcísicas. Trata-se de se colocar em disponibilidade
para questionar as certezas e implicar o sujeito em seu sintoma, deslocando-o da posição de
vítima. Nessa perspectiva, quando a família apresentava as certezas de suas impossibilidades, seria
necessário que eu apresentasse outras formas de perceber e acessar a situação.
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Assim, fez-se necessário transpor os limites e objetivos da pesquisa e dialogar com as instituições
de amparo à infância para compreender a demanda que surgiu no percurso do trabalho. Entrei em

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


contato com uma assistente social da Vara da Infância e Juventude a fim de receber orientações
sobre as possíveis condutas, e ela indicou a continuidade do acompanhamento psicológico e o
encaminhamento da família à Vara da Infância e Juventude para atendimento, para que pudessem
ser esclarecidas as possibilidades de legalização. Esgotadas essas alternativas, a assistente social
indicou a denúncia anônima para que não houvesse interferência no vínculo terapêutico.

De acordo com as diretrizes sobre ética em pesquisa com seres humanos – Resolução 466 de
12 de dezembro de 2012 e Sistema CEP/CONEP –, existe a prerrogativa da não utilização de
informações da pesquisa em prejuízo de pessoas e/ou comunidades que dela participaram.
Guerriero (2006) aponta que, quando se realiza uma pesquisa qualitativa com seres humanos,
entra em discussão a necessidade de reciprocidade entre pesquisador e informante. Uma vez
que este colabora fornecendo informações, existe a preocupação de que o estudo possa lhe ser
benéfico, sobretudo que a relação entre ambos seja de respeito mútuo profundo. Com isso, a
aplicação das diretrizes éticas e resoluções não se efetiva diretamente; mas inclui a subjetividade
do pesquisador, que precisa fazer a reflexão sobre aspectos éticos como atividade intrínseca
à pesquisa. Muitas situações que se lhe apresentam suscitam o questionamento se ele deve
manter a confidencialidade ou não quando se depara com algo tão alarmante que a ética o obriga
a quebrá-la.

No caso da família estudada, foi firmado o acordo de confidencialidade quando da apresentação


dos objetivos da pesquisa e do termo de consentimento; porém, a situação de risco em que as
crianças se encontravam levou-me a repensar em tal pacto, pois este me faria conivente com a
situação que feria os direitos das crianças participantes deste estudo.

Indiscutivelmente, a quebra de sigilo no campo da pesquisa e da psicologia é uma temática que


gera inúmeras discussões. Apesar de a confidencialidade ser uma premissa tanto na pesquisa
com seres humanos quanto na atuação do psicólogo, a própria resolução do Conselho Federal de
Psicologia, CFP 010/2005, que se refere ao Código de Ética Profissional do Psicólogo, considera
363 a quebra de sigilo (Art. 10), baseada na busca pelo menor prejuízo, um imperativo em situações
em que exista conflitos com a lei, como o caso de maus-tratos contra crianças e adolescentes,
de acordo com determinações do ECA (Brasil, 1990). Longe de ser uma decisão fácil, a quebra de
sigilo pode ser questionada porque não se pode prever se a denúncia ajudará o participante da
pesquisa ou paciente a estar em uma condição melhor; nem se pode garantir que, após a quebra
de confidencialidade, ele terá seus direitos preservados, salvo de negligência, discriminação ou
outro tipo de violência.

Decidi continuar o atendimento da família em psicoterapia a fim de que pudesse acompanhá-la


em busca de fortalecimento dos vínculos e encaminhá-la para a Vara da Infância e Juventude
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para receber orientações da assistente social. No momento que conversei com eles sobre a
necessidade de procurar Vara da Infância e Juventude, a família apresentava-se frágil e insegura.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


A genitora havia procurado a família há poucos dias com o intuito de levar as crianças. Sem mais
alternativas e diante da ameaça de ruptura, a família dirigiu-se à Vara da Infância e Juventude
mobilizada pelos atendimentos psicológicos. Bárbara foi levada pela genitora no meio do semestre
letivo, rompendo todas as rotinas da criança bruscamente. A família por “adoção” conseguiu
manter Renata temporariamente, buscando apoio do pai consanguíneo da criança. Procuraram e
encontraram o genitor de Renata e contaram a respeito da intenção da genitora de levar a criança
com ela. Este, que nunca teve contato anterior com a menina, devido a impedimentos impostos
pela genitora, se interessou pela aproximação e união junto à família por “adoção” pela disputa
da guarda. Posteriormente, o pai consanguíneo entrou com pedido de guarda, porém recebeu a
negativa por parte do juiz devido ao pouco tempo de convivência com a menina. Atualmente o
processo está em andamento. Continuo com o acompanhamento psicológico da família buscando
apoiá-los no enfrentamento da disputa de guarda com a genitora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas análises apresentadas, é possível considerar que os vínculos familiares por adoção
são construídos na confluência de vários aspectos e intensos atravessamentos. Neste trabalho,
emerge a adoção irregular como recorte.

No âmbito legal, a inscrição e a avaliação no processo de adoção realizam-se de modo sistematizado


e o Cadastro Nacional de Adoção é o principal instrumento de aproximação entre os pretendentes
à adoção e seus futuros filhos. Apesar disso, a adoção clandestina ainda é bastante comum no
Brasil, o que demonstra que o processo de adoção legal ainda é evitado por muitos que desejam
adotar, seja na busca da simplificação do processo, ao se apartar de procedimentos burocráticos
e avaliações, seja por temor de romper vínculos já estabelecidos ao solicitar a legalização.
Diante dessa realidade, as instâncias jurídicas carecem de lidar com as especificidades desses
casos que estão à margem da lei e se instrumentalizar para intervir, se aproximando da realidade
364 e das demandas dessas famílias. Parece urgente pensar na transposição de lacunas existentes
entre a legalidade e a clandestinidade na filiação por adoção. Ampliar o entendimento quanto aos
casos de adoção clandestina contribui para a diminuição do receio das famílias que vivenciam tal
situação, além de poder incentivá-las a procurar as Varas de Infância e Juventude em busca da
regularização, o que resultaria em melhor acompanhamento das filiações socioafetivas.

Na análise da construção dos vínculos familiares na adoção irregular, que corresponde ao objetivo
deste trabalho, destaca-se a relevância de se reconhecer as exigências inconscientes e subjetivas
que afetam os sujeitos e a construção dos vínculos por adoção. Para tal, o apoio das equipes
institucionais, em especial o psicólogo, emerge como fundamental para que os fatores emocionais,
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conscientes e inconscientes, possam ser considerados, dando à família condições de sobreviver


às ameaças de ruptura e pulsões agressivas e de elaborar o estranhamento na constituição

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


do vínculo. Ante essa necessidade, a rede de atenção às famílias precisa estar fortalecida e
instrumentalizada para que possa acompanhá-las em suas especificidades antes, durante e após
o processo de adoção; e fazê-lo mediante um trabalho de escuta e acompanhamento que auxilie
de fato a construção dos vínculos.

Por fim, a construção de uma nova cultura da adoção é desafio que se funda em aspectos variados.
Faz-se necessário explorar aspectos inconscientes imbricados, considerando as representações
relativas à adoção. Para tanto, são imprescindíveis outros estudos que favoreçam a escuta
da família e demarquem o território da adoção como campo fértil para o desbravamento de
preconceitos danosos ao processo.

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SUMÁRIO

367 RECUAR É POSSÍVEL?


REFLEXÕES SOBRE A [IM]
POSSIBILIDADE DE DESISTÊNCIA
NO PROCESSO DE ADOÇÃO

AUTORIA
ANA PAULA AVELAR DOS SANTOS
Advogada. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

PUC Minas. Mestranda em Direito – PUC Minas.


CONTATO: anapaulaavelar@adv.oabmg.org.br

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


FLÁVIA JARDIM CAMARGOS FRAGA
Assistente Social do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Bacharel em Serviço Social
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas.
CONTATO: flaviajardim77@gmail.com

MARILANE RODRIGUES CUNHA


Coordenadora da Casa Lar Renascer, Município de Esmeraldas. Graduada em Psicologia
pela Universidade Newton Paiva.
CONTATO: marilanecunha@gmail.com

VIVIANE ANDRADE PINHEIRO


Graduada em Psicologia pela Universidade FUMEC. Mestre em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas.
CONTATO: vivianepinheiro151@hotmail.com

RESUMO
Este estudo, realizado por equipe psicossocial e jurídica atuante em cursos preparatórios
para adoção, aborda reflexões acerca da possibilidade de desistência na preparação para
adoção. Destarte, os então pretendentes participam do curso preparatório organizado
pela equipe que o ministra em quatro módulos discutindo os seguintes temas: motivações
para adoção; aspectos jurídicos; incentivo a adoções tardias e adoções especiais; mitos da
adoção: idealização e realidade, segredo e revelação e estágio de convivência e adaptação.
368 Considera-se que o curso preparatório para a adoção constitui parte essencial do processo,
pois é nesse momento que os futuros adotantes têm a possibilidade de refletir sobre o desejo
de construir ou não maternidades e paternidades. Seu objetivo foi analisar que em algum
momento a desistência pode ser vista como fato natural e dispensável de culpa. Para o
enfoque analítico, serviu de base a jurisprudência até então construída – eis que no Brasil não
há lei que versa especificamente sobre o tema. Orientadores básicos foram os doutrinadores
do ramo da Psicologia, do Serviço Social e do Direito. A pesquisa constatou que no momento
pré-processual, ou seja, durante o curso preparatório – e tão somente – recuar é possível.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Preparação; Equipe multidisciplinar; Desistência.
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AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


De tudo ficaram três coisas
A certeza de que estamos sempre recomeçando...
369 A certeza de que precisamos continuar...
A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...
Portanto devemos fazer da interrupção um caminho novo...
Da queda, um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro...

(Sabino, 1956)
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INTRODUÇÃO

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


No Brasil, não há norma que proíba os adotantes de desistirem da ação no curso do processo,
sendo claro que a irrevogabilidade da adoção é efeito da sentença transitada em julgado.

Ocorre que, na prática, situações de desistência no curso do processo (ou mesmo na fase pré-
processual) de adoção têm ocorrido e seus reflexos diretos se voltam para a criança ou adolescente
adotando, sendo, portanto, a análise psicossocial e jurídica dessas consequências, o ponto de
partida deste trabalho.

O CURSO PREPARATÓRIO PARA ADOÇÃO

Os pretendentes à adoção devem se submeter a um curso preparatório, ministrado por equipe


psicossocial e jurídica, tal colocação consta no Art. 50 da Lei de Adoção (Brasil, 2009). A
importância dessa atuação multidisciplinar é muito bem explicada por Lídia Almeida Prado (2003):

A interdisciplinaridade amplia a potencialidade do conhecimento humano,


pela articulação entre as disciplinas e o estabelecimento de um diálogo entre
os mesmos, visando à construção de uma conduta epistemológica. [...] A
interdisciplinaridade é considerada como a mais recente tendência da teoria
do conhecimento, decorrência obrigatória da modernidade, por se tratar de um
saber oriundo da predisposição para um “encontro” entre diferentes pontos de
vista (diferentes consciências), o que pode levar, criativamente, à transformação
da realidade (Prado, 2003, p. 3).

Constata-se, pois, uma união de saberes, o que é louvável para se tratar de tema tão sensível
como a adoção.
Motivações para adoção

370 A responsabilidade em ter um filho, seja de qual forma for, é a mesma. Para adotar, faz-se
fundamental dispor-se a um ato importante de doação e amor, assim como devem ser as
maternidades e paternidades biológicas. Existe, então, o chamado processo de fertilidade e
gestação afetiva e, para que tal empreitada seja bem sucedida, os pais necessitam considerar a
adoção em aspectos multifacetados, a saber: legais, psicológicos, financeiros, familiares e sociais.

No curso de preparação para a adoção são trabalhadas as motivações para adoção. Segundo
Souza (2006), as seguintes questões devem ser abordadas: “Por que realmente quero adotar?
Por frustração de não ter filhos, para preencher a lacuna da maternidade/paternidade, não querer
gestar, idade mais avançada, doenças genéticas na família, aumentar o número de filhos já
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existentes são os motivos mais frequentes” (p. 86). Somente com a segurança da decisão chega
a hora certa, o tempo será de cada um.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Esperar um filho para adoção envolve questionamentos, sensações e sentimentos que são mesmo
diferenciados de uma gestação biológica. Adotar exige consciência clara do papel de pai e mãe e
se faz necessário considerar ainda que a adoção é construída, na maioria das vezes, pela via das
impossibilidades: uma mulher ou um homem que não podem por algum motivo gestar seu filho e
uma criança ou um adolescente que não pode ser cuidada por quem a gestou (Brasil, 2015).

Trindade-Salavert (2010) nos lembra de que “não se criam vínculos afetivos por encomenda. É
transformação, é conquista entre semelhanças e diferenças” (p. 28).

Aspectos jurídicos

Não há vedação legal sobre a desistência de adotar destinada aos pretendentes/adotantes no


curso do processo de adoção. Aliás, a própria Lei de Adoção faz referência ao chamado “estágio
de convivência”, que existe exatamente para que se possa avaliar “a conveniência da constituição
do vínculo”, segundo consta no Art. 46 da referida Lei (Brasil, 2009).

Ocorre que a consequência imediata da desistência nos processos de adoção é a devolução


de crianças e adolescentes, que são pessoas, e não coisas. E mais: esses seres humanos,
provavelmente, já criaram a expectativa de serem adotados ou, mais do que isso, já criaram com
os adotantes um vínculo afetivo durante estágio de convivência previsto na Lei.

A equipe multidisciplinar traz à reflexão dos pretendentes: ainda que legalmente possível desistir
no curso do processo de adoção, considerando, pois, que danos podem ser causados a essas
crianças e adolescentes que experimentam a devolução, é possível a responsabilização civil dos
adotantes nesses casos?
É possível identificar, nas ações movidas pelo Ministério Público em defesa dos interesses das
crianças e adolescentes, pedidos de indenização em face dos adotantes, motivados, em síntese,
371 na responsabilidade civil, pelos danos que a devolução causa a esses seres. A base legal apontada
encontra arrimo no Art. 186 do Código Civil (Brasil, 2002).

Tem-se observado, ademais, a condenação à prestação de alimentos, inclusive, para custear


tratamento psicológico para as crianças e/ou adolescentes devolvidos. Essa construção
jurisprudencial ainda é tímida e a doutrina ainda é silente.

Os pretendentes à adoção são, a todo tempo, durante o curso de preparação para adoção, alertados
quanto às possíveis consequências jurídicas do ato de desistir, mas, principalmente, quanto aos
danos psicológicos que seus atos podem causar às crianças e adolescentes adotandos.
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Interessante analogia que se tem feito nos cursos ministrados diz respeito à comparação do período

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


destinado ao curso preparatório para adoção ao período gestacional: os pretendentes estão, ali,
gerando uma expectativa, diga-se de passagem, a mesma que a criança ou adolescente gera ao
ser inserido no Cadastro Nacional de Adoção. Todavia, uma diferença há de ser ponderada: os
pretendentes, como o próprio nome diz, não estão ainda habilitados e, portanto, não cadastrados.

Destarte, a equipe multidisciplinar vem desenvolvendo um trabalho no sentido de orientar os


pretendentes quanto ao momento em que a desistência é considerada natural, em que é possível
não mais desejar ser pai ou mãe – que é nesse período “gestacional” ao qual se compara o curso
preparatório. Vale dizer: antes de se habilitar, pode-se abortar.

Incentivos a adoções tardias e especiais

Relacionar-se do ponto de vista do humano requer esforços mútuos e consequentes desafios.


Adotar uma criança maior ou um adolescente traz dificuldades, pois relacionar-se com alguém que
não foi “criado” e, portanto, “moldado”, traz importante desacreditação por parte dos adotantes.

Na adoção tardia, o investimento na construção e reconstrução de vínculos afetivos são


necessários e, por isso, o estágio de convivência não deve ser apressado, com o intuito de
adotantes e adotados conhecerem-se melhor. E, assim, quando as dificuldades surgirem poderão
ser trabalhadas de forma delicada e especial. Há a possibilidade, nesse período, dos adotantes
questionarem se realmente estão dispostos a enfrentar as dificuldades que de certo existirão
(Campos, 2016).

A equipe multiprofissional que acompanha a família nesses casos deve estar atenta e orientar
que crises certamente acontecem e que a partir dela surgem novas oportunidades, crescimentos
e evoluções. Agressividade, comportamentos regressivos, hiperatividade, enfrentamento de
preconceito social, construção de vínculos de filiação com atropelamentos de etapas, sentimentos
ambivalentes de culpa, impotência e vulnerabilidade por parte dos adotantes e adotados surgem
372 no curso do processo e devem ser escutados e trabalhados pelos profissionais responsáveis pelo
acompanhamento.

Vargas (2006) enfatiza que, independente da idade, sexo e origem, as crianças e adolescentes
que vivem em abrigos e casas lares desejam ter uma família. A autora ainda destaca que a família
constitui a melhor forma desses sujeitos desenvolverem-se de maneira plena.

A família, com suas múltiplas configurações, ainda se constitui o meio relacional básico para as
revelações do sujeito com o mundo. E a complexidade de tais vínculos necessita de olhares e
atenções multidisciplinares, no sentido de cuidar para que a criança e o adolescente possa ocupar
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um lugar de legitimidade de seus direitos e necessidades como filho.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Uma dificuldade significativa citada por Vargas (2006) é que nos abrigos e Casas Lares existem
muitas crianças e adolescentes, porém o número de candidatos supera a quantidade de abrigados
disponíveis para adoção. Dessa feita, chega-se à conclusão que os adotantes desejam uma
criança conforme o que idealiza: “a preferência da maioria dos postulantes à adoção por bebês de
pele clara e sexo feminino, apontado na maioria das pesquisas, pode estar revelando que ainda se
procura um bebê idealizado no imaginário dos contos de fada” (Vargas, 2006, p. 155).

Mitos da adoção: idealização e realidade, segredo e revelação e estágio de convivência e adaptação

Observa-se, na prática, a importância do curso preparatório para nortear e esclarecer todos


os mitos e preconceitos que envolvem a adoção. Um dos temas abordados é a idealização e a
realidade, fundamental para que adoção possa ser construída de forma saudável.

Ao adotar, acolhe-se um sujeito já composto por uma complexa dinâmica psíquica, recheada de
muitas significações que ao longo de sua trajetória foram inscritas de forma diferente daquelas
que os adotantes muitas vezes idealizaram.

Nesse sentido, a ressignificação desse novo momento deverá transitar de forma tranquila, tanto
para aqueles bem pequeninos, tanto quanto para os tardiamente adotados. Pois, quem garante
aos adotantes que aquele recém-nascido será uma criança brilhante? Quem garante que os
traumas poderão estar nos adotantes e não nos adotados?

Várias são as reflexões propostas no curso de preparação, embora experimentadas algumas


desistências logo no início. Sobre isso Soraya Pereira, Presidente da ONG Aconchego, nos alerta:
O filho ideal existe em nós, existe em nossa perfeição e nessa não há lugar para corte, alinhavo e
muito menos ajustes. É aí que mora o perigo. É aí que entra a insegurança e a falta da certeza que o
373 outro vai desempenhar corretamente o papel que escolhi para ele. Esse filho ideal não existe, não
tem vida, é um obstáculo que crio para me satisfazer e muitas vezes me proteger do ‘se não der
certo’. É preciso amadurecer o querer, o desejar e, dizer bem-vindo ao filho/filha real. É com esse
filho, é com as incertezas, é com a construção de uma linguagem própria e de uma cumplicidade
que o papel de cuidador vai nascer. É no meu querer, na minha disponibilidade de ir, de investir
na relação familiar, no vínculo afetivo que o meu filho/ filha real virá, aparecerá e ganhará espaço
interno e depois externo, é no contexto social que esse filho real mostrará que existe e criará seu
caminho e mundo. (Brasil, 2015)

Assim, conclui-se que o curso preparatório propõe uma análise de como foi construído o desejo
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de adotar e quais os fundamentos que sustentam esse desejo.

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A IMPORTÂNCIA DO CURSO PREPARATÓRIO

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, desde 2008, 130 crianças foram devolvidas
por pais adotivos, dados esses lançados a partir da criação do Cadastro Nacional de Adoção – CNA.

A estatística refere-se a crianças devolvidas durante o estágio de convivência, ou seja, no curso


do processo de adoção. Vale ressaltar que não há proibição quanto à desistência da ação, sendo a
irrevogabilidade do ato de adotar um efeito da sentença transitada em julgado.

Destarte, partindo preliminarmente para uma pesquisa jurisprudencial, nota-se que, em regra,
esses casos não chegam a motivar uma demanda judicial. E mais: quando demandado, a construção
que se tem ainda é limitada, quer pela ausência de norma sobre a devolução de crianças no curso
da ação de adoção, quer pelo acanhamento doutrinário acerca do tema.

Todavia, há de ser considerada a consequência imediata da desistência no curso de uma ação de


adoção, que é a devolução de uma criança e/ou adolescente, uma pessoa que já experimentou
o abandono dos pais biológicos, e que, uma vez inseridas no Cadastro Nacional de Adoção,
naturalmente, criam a expectativa de serem adotadas e, obviamente, esperam ansiosos por esse
momento; crianças e adolescentes que já tiveram seus direitos violados e, portanto, foram-lhe
aplicados a medida extrema do abrigamento; crianças e adolescentes que já passaram por um
processo de destituição do poder familiar, enfim, crianças e adolescentes que, inegavelmente,
merecem um olhar especial. Destaque-se que essas crianças e adolescentes são inseridos no
Cadastro Nacional de Adoção quando nenhum familiar se dispõe ou possui aptidão para cuidar, ou
seja, quando não há mais opção – medida excepcional e irrevogável.
Os pretendentes, por sua vez, cadastram-se por livre e espontânea vontade e tem acesso prévio
ao perfil da criança que pretendem ter como filho: sexo, idade, cor da pele, se aceitam irmãos ou
374 não, com ou sem doença, enfim, podem escolher.

Pertinente ainda destacar que, antes de serem habilitados, os pretendentes, necessariamente,


devem se submeter a um curso preparatório, ministrado por equipe psicossocial e jurídica, a teor
do disposto no §3º do Art. 50 da Lei 12.010/2009, a Lei de Adoção (Brasil, 2009).

Merece destaque, também, o §4º do supracitado artigo, que assim dispõe:

Sempre que possível e recomendável, a preparação referida no § 3º deste artigo


incluirá o contato com crianças e adolescentes em acolhimento familiar ou
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institucional em condições de serem adotados, a ser realizado sob a orientação,


supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude,

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com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento e pela
execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.
(Brasil, 2009)

Em situações anteriores, os pretendentes à adoção simplesmente habilitavam-se. Com a previsão


da preparação psicossocial e jurídica, extrai-se, da própria literalidade da lei, a importância de se
preparar as pessoas para a adoção.

Tão importante quanto à preparação é a regulamentação da forma de contato com as crianças – o


que guarda relação estreitíssima com tudo que vem sendo dito até então, pois, a partir do momento
em que uma equipe preparada orienta, supervisiona e avalia o contato entre os pretendentes e as
crianças e adolescentes aptos para adoção, evitam-se as já citadas expectativas que podem ser
futuramente frustradas, tanto nos pretendentes, mas, principalmente, nas crianças e adolescentes.

Depreende-se, pois, da intenção do legislador, também uma preocupação em não gerar sofrimentos.

Considera-se, a partir das experiências de cada profissional envolvido, que o curso preparatório para
a adoção constitui parte essencial do processo, pois, é nesse momento que os futuros adotantes
têm a possibilidade de refletir sobre o desejo de construir ou não maternidades e paternidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando-se o exposto até aqui, somadas às não raras situações de devoluções que têm
ocorrido, mesmo após os pretendentes já terem sido considerados aptos, ou seja, já tendo cursado
a preparação técnica da Justiça, ressaltar esse assunto durante os quatro módulos ministrados
durante o curso tem sido uma preocupação da equipe.
A todo instante, os profissionais envolvidos asseguram a possibilidade da desistência nesse
momento inicial como fato natural e dispensável de culpa. Decerto, a adoção necessita ser antes
375 de tudo psíquica, na medida em que reconheçam o filho como seu e se reconheçam como pais.
Recuar é então uma possibilidade.

Todavia, a equipe multidisciplinar tem levado à reflexão que o recuo deve acontecer durante o
curso – e tão somente, sob pena de causar aos adotantes frustrações e outros danos. Tal fato
tem sua constatação na medida em que os participantes do preparatório reavaliam as suas reais
motivações para adotar.

REFERÊNCIAS
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Brasil. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. (2002). Recuperado de http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm.

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Brasil. Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de
13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992;
revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá
outras providências. (2009). Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2009/Lei/L12010.htm

Brasil. (2015). Programa de Formação para os núcleos de preparação para adoção e


apadrinhamento afetivo. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Campos, N. M. (2016). Adoção tardia: características do estágio de convivência. Recuperado de


https://www.tjdft.jus.br/institucional/infancia-e-juventude/textos-e-artigos/adocao-tardia/view

Goes, A. E. D. (2014). (Des) Caminhos da adoção: a devolução de crianças e adolescentes e famílias


adotivas. Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Prado. L. A. (2003). O juiz e a emoção. São Paulo: Milenium, 2003.

Sabino, F. S. (1956). O encontro marcado. São Paulo: Civilização Brasileira.

Souza, H. P. (2006). Preparando os candidatos para adoção. In L. S. Filho; & S. S. Schettini (Orgs),
Adoção: os vários lados dessa história. Recife: Bagaço.

Trindade-Salavert, I. (Org.). (2010). Os novos desafios da adoção: interações psíquicas, familiares


e sociais. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

376 Vargas, M. M. (2006). Adoção de crianças maiores. In L. S. Filho; & S. S. Schettini (Orgs), Adoção: os
vários lados dessa história. Recife: Bagaço.
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SUMÁRIO

377 REPERCUSSÕES DO MITO


NEGRO NOS PROCESSOS DE
ADOÇÃO BRASILEIROS

AUTORIA
JÔSE LANE DE SALES
Psicóloga da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Mestre e doutora pelo
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programa em teoria psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.


CONTATO: jose.lane@hotmail.com

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RESUMO
O mito negro e o seu correlato, o mito da brancura, encontram-se fortemente presentes
no imaginário dos brasileiros, alimentando uma série de preconceitos e processos de
discriminação, segregação e exclusão à população negra. O irracional, o feio, o ruim, o
macaco, são exemplos de figuras representativas do mito negro, o qual visa reduzir o sujeito
à instância biológica, negando sua condição de humano. Em paralelo a este mito, como
outro lado da mesma moeda, encontra-se o mito da brancura, no qual o branco e a brancura
estão idealizados, associados às características positivas e valorizadas socialmente. Dados
do Cadastro Nacional de Adoção (CNJ, 2018) apontam que as crianças brancas são aceitas
por quase todos os candidatos à adoção, ao passo que as negras são preteridas. Não seria
esse fato um efeito do mito negro e do seu correlato? Apoiando-se no princípio de que a
psicanálise não deve apartar as questões sociais de suas reflexões, a presente publicação
visa justamente pensar os impactos desta mitologia nos processos de adoção brasileiros.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Mito negro; Racismo; Sofrimento psíquico.
INTRODUÇÃO

378 Uma das exigências feitas aos candidatos à adoção no Brasil é o preenchimento de um formulário
de preferências, no qual é preciso indicar o perfil da criança ou do adolescente que desejam adotar.
Entres as características listadas, está a raça1 . De acordo com os dados obtidos a partir desse
formulário no Cadastro Nacional para Adoção (CNJ, 2018), em março de 2018 havia no Brasil um
total de 8874 crianças e adolescentes cadastrados aptos a serem adotados. Desse total, 48,73%
enquadrados na categoria de raça parda; 33,72% na raça branca; 17,12% na raça negra 2; 0,28% na
raça indígena; e 0,16% na raça amarela. Segundo esse mesmo cadastro, há 43881 pretendentes
à adoção; desse total 92,22% aceitam crianças brancas, mas somente 53,87% aceitam negras.

O que esses números, mais precisamente a diferença entre a porcentagem de candidatados


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dispostos a adotarem crianças e/ou adolescentes negros e dispostos a adotarem crianças e/


ou adolescentes brancos, sinalizam? Que as crianças e os adolescentes negros são preteridos

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nos processos de adoção. Conforme destacam Botelho, Cavalcante, Silva e Fernandes (2018), o
processo de adoção desse grupo populacional apresenta entraves e dificuldades particulares que
se somam a um contexto mais amplo relacionado ao histórico de pobreza e institucionalização
precoce e prolongada.

Embora o debate em torno dessa problemática venha crescendo no âmbito jurídico, envolvendo
assistentes sociais e psicólogos, ainda é incipiente ante a importância e urgência da questão. A
pertinência deste trabalho ancora-se justamente nessa problematização. Partimos do princípio
que a prática psicanalítica, seguindo os ensinamentos freudianos, não deve apartar as questões
sociais de suas reflexões.

REFLEXÕES PARA A PSICANÁLISE

Entre os motivos que levam as pessoas a tornarem-se adotantes, a impossibilidade de gerar seus
próprios filhos é um dos mais proeminentes. Mas, ao dar início ao processo de adoção, em geral,
o desejo não é simplesmente ter um filho, mas ter um filho semelhante a si. As considerações
freudianas acerca do narcisismo mostram-nos que a maternidade e a paternidade constituem um
dos meios de se experimentar novamente a completude narcísica desfrutada na infância. Freud
(1914/1996) observou que os pais enxergam o filho da mesma forma que um dia já se imaginaram,

1. O termo “raça” não se sustenta mais enquanto um conceito biológico, contudo, ele ainda está presente no imaginário dos
brasileiros e difunde-se através dos mitos racializantes. Por isso, esse termo permanece sendo usado como um constructo
sociocultural capaz de favorecer a observação e a descrição de particularidades que perpassam as relações étnico-raciais nos
mais variados contextos.
2. Cabe destacar que a classificação racial proposta pela Cadastro Nacional de Adoção difere da Classificação racial proposta
pelo IBGE. Esta última considera negro a soma das categorias pardo e preto.
atribuem a ele apenas a perfeição. Desse modo, o investimento materno e paterno ancora-se em
um ideal com o qual se identificam (Sales, 2013). Portanto, é compreensível que homens e mulheres
379 que optam por viver a paternidade e a maternidade por meio da adoção desejem encontrar na
criança adotiva algo de si mesmo.

Com base nesse entendimento, podemos apressadamente concluir que não cabe problematizarmos
a discrepância entre aqueles que se disponibilizam a adotar crianças/adolescentes brancos e
crianças/adolescentes negros, já que a maioria dos pretendentes cadastrados para a adoção
não são negros. Podemos equivocadamente encerrar as discussões entendendo que a rejeição
pelas crianças negras se deve ao fato desse grupo, por não encontrar representatividade
entre os pretendentes, não fornecer aos futuros pais semelhanças capazes de promover uma
mínima identificação. Porém, esse tipo de argumentação, além de restringir as possibilidades
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de identificação à cor da pele, desconsiderando a presença de outras caraterísticas (inclusive


aquelas que não são físicas) nos processos identificatórios, negligencia os impactos do racismo

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na subjetividade dos brasileiros.

Moreira e Marafon (2017), refletindo acerca da supervalorização da cor da pele nos processos de
adoção, problematizam o que no contexto psicojurídico da adoção é chamado de “lugar do desejo”
dos pretendentes. As autoras comentam que muitos candidatos declarados brancos que não se
habilitam a adotar crianças negras afirmam que desejam uma criança parecida com eles, mas
marcam nos formulários todas outras definições raciais. Nesse contexto, as autoras interrogam
se uma criança oriental ou indígena teria semelhanças físicas com tais indivíduos.

De acordo com Rufino (2003), essa busca por crianças semelhantes e a dificuldade de aceitar
aquelas que não se encaixam nos padrões vigentes de estética são aspectos incorporados ao
interior das práticas judiciárias e evidenciam a intolerância às diferenças raciais e a negação da
diversidade étnico-cultural brasileira.

No entanto, se perguntarmos aos candidatos à adoção se eles se consideram racistas,


provavelmente, como a maioria dos brasileiros, responderão que não3 . Porém, ser racista no
Brasil não passa necessariamente por uma escolha deliberada e consciente. Conforme sublinha
Almeida (2016), o racismo em nosso país pode ser compreendido como um fenômeno estrutural
que constitui as relações sociais nos seus padrões de normalidade, envolvendo as dimensões
econômica, política e subjetiva. Dito de outra forma, somos todos atravessados e constituídos por
um racismo estrutural, estejamos cientes disso ou não.

3. Em 1998, a antropóloga Lilia Schwarcz (2010) apurou que 97% dos entrevistados de sua amostra declararam não possuir
preconceito racial; entretanto, 99% afirmaram conhecer alguém preconceituoso, e, por fim, a pesquisa concluiu que os brasileiros
consideram-se uma ilha de democracia racial, cercada de racistas por todos os lados.
Sendo assim, é pertinente interrogar o que do racismo estrutural presente na cultura brasileira
é atualizado nos processos de adoção. Por que a categoria raça está presente nos formulários?;
380 por que ela se configura como algo tão determinante na escolha dos candidatos?; qual o lugar
que as crianças negras ocupam no imaginário dos pretendes à adoção?; esse lugar difere daquele
ocupado no imaginário da população brasileira? Essas são algumas das perguntas que instigam
a produção do presente trabalho. Longe da intenção de esgotá-las, partimos da hipótese de
que subjacente à rejeição das crianças negras no processo de adoção encontra-se, mais do que
pessoas declaradamente e sabidamente racistas, sujeitos atravessados e marcados pelo mito
negro e o seu correlato, o mito da brancura. Mas que mitos são esses?

O MITO NEGRO
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Antes de exploramos a concepção de mito negro, convém pontuar que os mitos sempre ocuparam
um lugar de prestígio na psicanálise. Freud recorreu a eles por diversas vezes a fim de embasar e

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explicar suas ideias. Entre os variados textos nos quais o autor se serve dos mitos, destaca-se A
interpretação dos sonhos, no qual aconselha os psicanalistas a estudarem mitologia, destacando
a ambiguidade dos sonhos e dos mitos e a necessidade de eles serem interpretados. Além disso,
enfatiza que ambos dizem respeito à projeção de desejos inconscientes (Freud, 1900/1996).

Na obra Nunca deixe de acreditar, encontramos diversas passagens nas quais Christina Rickardsson
(2017) revela ideias depreciativas a respeito de si mesma vinculadas ao tom da sua pele, ao fato de
se perceber negra. Ainda criança, na época que vivia com a mãe em São Paulo, indagava a Deus
por que as pessoas possuem cores diferentes e por que a sua cor é marrom, caracterizada por ela
como “cor de cocô” (p. 35). Na Suécia, distante da pobreza e da miséria vividas no Brasil, ser negra
permaneceu sendo fonte de sofrimento. Christina narra as dificuldades encontradas na escola e
seu desejo de ser aceita pelos colegas. Em suas palavras:

faria o possível e o impossível para que me aceitassem, para me integrar e ter


amigos. Isso até parecia simples, mas não era. Cada vez que alguém me chamava
de nêga ou algo parecido, doía mesmo. Era a intenção que vinha acompanhada
da palavra que me magoava, pois o que eles estavam dizendo era que eu não era
um deles, não tinha o mesmo valor como pessoa e, por mais que eu tentasse,
nunca seria um deles, porque sempre seria negra, de olhos negros e cabelos
crespos. (Rickardsson, 2017, pp. 197-198).

Essas narrativas deixam explícitas as marcas do mito negro sobre Christina, tais como a
associação entre a sua cor de pele e o pior de todos os excrementos, os sentimentos de rejeição,
desvalorização e não pertencimento.
O mito negro vem sendo trabalhado por alguns autores que pensam o racismo a partir da ótica
psicanalítica. Entre estes, destacam-se dois autores que, além da pesquisa acadêmica, utilizaram
381 suas próprias experiências como negros em contextos diferentes para abordar tal questão: Fanon
(1952/2008) e Neuza Santos Souza (1983).

Ele, psiquiatra nascido na Martinica, se deparou com o racismo ao ter que residir em Lion na França
a fim de prosseguir com seus estudos e fez desse tema objeto de sua tese de doutorado. Fanon
(1952/2008) buscou compreender os impactos do colonialismo e do racismo na subjetividade
dos negros e dos brancos, dando especial relevo aos processos de construção de estereótipos.
A partir de diversos indícios presentes na França dos anos 50, vislumbrou a presença de um mito
solidamente enraizado nas sociedades colonizadas, que vincula o negro invariavelmente a algo
extremamente negativo, ao carrasco, ao diabo, às trevas, à sujeira física e moral, ao lado ruim da
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personalidade, à miséria, à morte, à guerra, à fome. Por outro lado, constatou que o branco dizia
respeito à inocência, à luz, à paz. Desse modo, Fanon (1952/2008) concluiu que “na Europa, o Mal

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é representado pelo negro” (p. 160), ele é o bode expiatório para a sociedade branca.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Souza (1983) também percebeu a presença do mito
negro no Brasil nos anos 1980. Entre as figuras representativas desse mito, a autora destacou o
irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente e o exótico. Tais figuras são expressas
por meio de falas que buscam sustentar algo de linear em uma suposta “natureza negra” e rejeitam
as múltiplas determinações formadoras das subjetividades em geral. Nessa perspectiva, sublinha
Souza (1983), o negro como elo entre o macaco e o homem branco é uma das falas míticas mais
comuns, cujo objetivo é reduzir o sujeito, cristalizá-lo à instância biológica.

Em paralelo ao mito negro, como outro lado da mesma moeda, existe o mito da brancura, que idealiza
o branco e a brancura, associando-os às características positivas e valorizadas socialmente. Nessa
perspectiva, comenta Costa (1983), a brancura invariavelmente representa a pureza, o belo, o
bom, o justo, o verdadeiro. Imaculado, o mito da brancura se desenvolveu no imaginário coletivo
– em oposição ao mito negro – como herdeiro do progresso humano, representante legítimo da
cultura, da civilização, enfim, da humanidade.

Neste ponto, ainda que brevemente, cabe expor a ideia de mito de Lévi-Strauss (1958/2008).
Influenciado em parte pela visão psicanalítica, o autor ressaltou a importância dos mitos na
formação da sociedade e dos sujeitos. Lévi-Strauss demonstrou que os mitos, quando analisados,
são capazes de revelar as atitudes da sociedade que os concebem com relação ao mundo e aos
problemas existenciais enfrentados, bem como seus hábitos e costumes. Nesse viés, os mitos
refletem a estrutura dos grupos sociais e a forma como os bens de dominação e doutrinação são
produzidos e, até mesmo, as relações entre seus membros.
Com base nesse entendimento, podemos afirmar que o mito negro e o mito da brancura dizem muita
coisa a respeito da sociedade brasileira. Ademais, as produções e os efeitos dessas mitologias não
382 só atingem diversos espaços cotidianamente como fazem parte dos processos de constituição
subjetiva. Somos todos atravessados e marcados por ambos os mitos, eles influenciam a percepção
que temos sobre nós mesmos e os outros, nossas escolhas, nossos desejos. Porém, dados os
efeitos de outro mito, o mito da democracia racial4 , com raras exceções, não estamos atentos a
eles e nem problematizamos os seus efeitos (Sales, 2018). Sendo assim, estejamos cientes ou não,
essa mitologia repercute sobre os processos e instituições inerentes a nossa sociedade, inclusive
os processos de adoção. Portanto, as escolhas e preferência dos adotantes não escapam dos
efeitos desses mitos. Estranho seria se elas expressassem algo diferente daquilo que as pesquisa
sobre as particularidades da discriminação racial no Brasil mostram: o racismo é combatido na
esfera pública, mas tolerado no âmbito privado.
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EXPRESSÕES DO MITO NEGRO NOS PROCESSOS DE ADOÇÃO

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Em uma pesquisa realizada na Vara da Infância e da Juventude de Vila Velha, no Espirito
Santo, foram entrevistadas 21 pessoas interessadas em adotar, com o objetivo de conhecer as
características desejadas nos filhos adotivos. Em relação à cor da pele, 14 sinalizaram algum tipo
de preferência e 7 não sinalizaram preferência alguma. Dentre as 14 pessoas entrevistadas que
sinalizaram preferência pela cor da pele, 11 afirmaram disponibilidade para receber crianças de
cor branca, 9 para as de cor parda e apenas uma para as de cor negra (Amim & Menandro, 2007).

Essa mesma pesquisa traz um relato merecedor de destaque. Trata-se de um casal cuja preferência
assinalada foi por criança de cor de pele branca ou parda. Ao serem chamados para conhecer uma
criança de cor de pele parda, avaliaram a criança como sendo negra e desistiram da adoção (Amim
& Menandro, 2007). Observa-se aí uma característica bastante interessante da questão racial no
Brasil. Um mesmo sujeito pode ser considerado negro ou não dependendo de quem o observa e
do contexto. Nesse caso, ficou evidente o peso da atribuição racial negra na vida dessa criança,
atribuição que a impediu (ao menos naquele momento) de se inserir em um ambiente familiar
substituto.

Silveira (2009), assistente social que atua diretamente na Vara da Infância, apresenta outros
relatos bastante ilustrativos. Ela observou que muitos pretendentes, ao expressarem sua
preferência relativa à cor da criança, salientam que desejam um bebê saudável de pele clara.
Notamos aí uma correlação direta entre os adjetivos saudável e claro, como se um bebê saudável
só pudesse ter uma pele clara. Na visão de Silveira (2009), o fenótipo da cor aparece como se

4. O mito da democracia racial ancora-se na crença de que as relações raciais no Brasil foram mais humanas do que as
encontradas em outros países (Santos, 2009).
fosse um mal, uma doença com a qual é difícil conviver. A percepção da autora corrobora o que já
fora apontado, a força do mito negro e do seu correlato, o mito da brancura, no imaginário social
383 brasileiro. Lembremos que de acordo com essas mitologias, o negro está atrelado ao ruim, ao
impuro, ao passo que o branco, ao belo.

Moreira e Marafon (2017) comentam o caso de um candidato à adoção negro que manifestou
preferência por crianças brancas ou pardas, alegando que queria uma criança parecida com ele
ou com a esposa, que era branca. Ele assinalou todas as definições raciais, menos a negra. O que
chamou a atenção das autoras foi o fato desse homem não se perceber como negro. Episódio que
não nos surpreende e que pode ser considerado uma defesa desse sujeito ante os sofrimentos
imputados pelo racismo. Como postulou Souza (1983), uma das piores consequências do mito
negro é o fato de os negros tomarem as sentenças do mito como verdade absoluta e passarem a
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se ver com os olhos da cultura que os subjuga e os inferioriza. Provavelmente para não sucumbir
aos enunciados do mito, que em última instância o fixa no lugar de não humano, esse homem

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construiu uma imagem de si a qual a cor de sua pele precisou ser negada. Ademais, o casal inter-
racial, tal como todos os outros casais, também deseja aquilo que é apontado socialmente como
tendo valor, a criança branca.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se os desejos humanos não são neutros, são produzidos em determinado momento histórico
e cultural, é necessário então a problematização dos desejos em relação à filiação por meio da
adoção, tendo em vista a sociedade altamente racista na qual eles são produzidos (Moreira &
Marafon, 2017). Nesse sentido, Abdel Al e Medeiros (2016) defendem que os profissionais que
atuam na esfera da adoção devem fomentar uma mudança de mentalidade, em que a cor da pele
deixe de ser motivo de exclusão na inserção de um novo ambiente familiar. Contudo, Silveira (2009)
pontua que, no interior do judiciário, a matéria racial ainda é pouco aprofundada, contribuindo
para que práticas discriminatórias, como a busca por crianças semelhantes e a dificuldade em
aceitar aquelas que fogem dos padrões estéticos vigentes, continuem sendo reforçadas. A autora
sublinha que, inclusive, alguns agentes institucionais defendem que é melhor encaminhar os
adotandos a seus próprios grupos raciais. Tal modo de pensar, segundo Silveira (2009), tende a
contribuir para a manutenção da relação desigual entre descendentes de brancos e não brancos.

Apostamos que a modificação do quadro aqui descrito – a rejeição de crianças/adolescentes


negros por pretendentes à adoção – só será possível por meio de um trabalho que extrapole o
interior das práticas judiciais de adoção que reconheça a força do mito negro e do mito da brancura
em toda sociedade. Assim, cabe interrogar não somente os profissionais do judiciário, mas a todos
nós, em particular aos psicólogos e psicanalistas a quem me dirijo em especial. Nossas práticas
nos mais variados contextos estão considerando a existência dos mitos aqui trabalhados? Estão
contribuindo para enfraquecê-los ou reforçá-los?
O caminho de enfraquecimento dessa mitologia passa necessariamente pelo reconhecimento das
suas três dimensões apontadas por Souza (1983): os elementos em jogo na composição do mito
384 negro; o poder de determinar expectativas e exigências com relação ao negro enquanto objeto
da história; e o desafio imposto especificamente aos negros. Nesse sentido, entre outras coisas,
tal como descreveu Fanon (1952/2008), é necessário retirar os negros do universo prefixado pelo
mito negro. Precisamos, por exemplo, adotar uma vigilância constante e um esforço incansável
para ir na contramão da difusão de conceitos, imagens e valores negativos referentes aos negros.
Essas atitudes precisam extrapolar os muros do judiciário e envolver a todos, principalmente os
profissionais que no quesito formação de subjetividade são privilegiados, tais como psicólogos e
psicanalistas, escritores, artistas, advogados, professores etc.

REFERÊNCIAS
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Abdel Al, M., & Medeiros, G. S. (2016). Adoção inter-racial: ainda existe preconceito. Anais do XIII

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Seminário Internacional de Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea.
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SUMÁRIO

386 VESTÍGIO E TRADUÇÃO NA


EXPERIÊNCIA ADOTIVA

AUTORIA
JOSÉ CÉSAR COIMBRA
Professor do curso de Especialização em Psicologia Jurídica (PUC-Rio/CCE). Psicólogo
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

no Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Memória Social pela Unirio.
CONTATO: arcoim@yahoo.com.br

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RESUMO
Os testemunhos de adultos adotados sobre a busca de informações de seu passado são
frequentes em outros países. O que eles significam e por que se apresentam usualmente
revestidos de uma dimensão vital, descrevendo a urgência da procura de um tempo do
qual, por vezes, não há mais do que raras reminiscências? Parte-se do livro de Christina
Rickardsson relacionando-o às narrativas de Kiko Goifman e Sophie Brédier a fim de
se realizar a investigação. Analisa-se a denominada “busca das origens”, com base em
bibliografia das ciências humanas e sociais. Evidencia-se a possibilidade de reconfiguração
do parentesco propiciado pela adoção, destacando-se os processos de identificação e o
papel da memória, a relação entre família natural e substituta. Os testemunhos descrevem
experiências de tradução na qual vestígios mostram-se impossíveis de serem assimilados à
família adotiva, expressando a divisão subjetiva do adotado e exigindo dele a reinvenção de si.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção; Memória autobiográfica; Identificação.
Este ano, na feira do livro de Bogotá, uma autora chamou a atenção: Carolina Skyldberg1 . Ela
mostrou à Colômbia, em seu livro, a jornada de adotada quando criança por casal sueco até adulta
387 que buscava por sua mãe biológica: Adoção, deixar curar a alma [Adopción, dejar sanar el alma].
Colômbia e Suécia não são países quaisquer no universo da adoção. O primeiro tem uma alta taxa
de envio de crianças para o exterior (Instituto Colombiano de Bienestar Familiar, 2017); o segundo,
em termos relativos, é o país que mais as recepciona (Yngvesson, 2010).

Ao se olhar para a Europa e para os EUA, são incontáveis as narrativas produzidas por adultos
que foram adotados quando crianças, oriundos de países que não aqueles em que acabaram por
crescer. Existe, de fato, uma verdadeira economia transnacional, definindo países como emissores
ou doadores de crianças e outros como receptores delas. Isso acaba por desenhar no globo uma
rede de fluxos de origem e destino relativos à adoção. Em maio deste ano, no Consulado Geral do
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Brasil, em Paris, ocorreu a Jurnée des adoptés du Brésil (Jornada dos adotados do Brasil), na qual
os temas da busca das origens e do testemunho sobre a adoção tiveram destaque.

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Diversos testemunhos de adultos adotados encontram expressão na literatura e em produtos
audiovisuais. Dentre essas narrativas, aquelas que descrevem uma busca das origens, um retorno
ao país natal, a necessidade imperiosa de encontrar alguém ou algo do passado, muitas vezes um
tempo quase desconhecido, são bastante frequentes. Carolina Skyldberg e Christina Rickardsson,
a última tendo ocupado lugar de destaque no VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito e
Literatura, compartilham experiência comum: a busca das origens e o mesmo país de destino. O
que Christina diz em seu livro? Ela fala de si, de dois países, de como se divide entre Christina de
Norrland e Christiana do Brasil, apontando haver duas pessoas nela. Christina fala também de
justiça e injustiça social ou mesmo de legalidade e ilegalidade do processo judicial relativo à sua
adoção (Rickardsson, 2017, p. 126). O que se transmite no testemunho de Christina?

Tanto no testemunho de Christina como nos demais de mesmo gênero, são recorrentes os
comentários sobre certo mal-estar, sobre uma instabilidade vital, pesadelos, desconforto que
deixa marca na vida e na memória, a despeito do amor e da inserção na família e na comunidade
adotiva. Ou, ao menos, a expressão de curiosidade sobre o que se passou, sobre o por que da
adoção. Acerca disso, é interessante notar que Patrick, irmão de Christina, teria tido curiosidade
sobre o passado dele, mas não se lançou à aventura de investigá-lo; Christina nega a curiosidade,
mas fala sobre a “coragem de retornar ao Brasil para procurar pela [...] mãe biológica e para
encontrar alegria na vida” (Rickardsson, 2017, p. 98). Seguir em frente ou se deter talvez não seja
mera questão de escolha ou curiosidade nesses casos. A esse respeito, aliás, a tradução do livro
de Christina utilizada em outras edições é Nunca deixe de caminhar.

1. Cf. Colombiana adoptada por suecos convirtió su historia en una exitosa novela. Recuperado de https://youtu.be/
MoHrcTnIVwA
Estariam os dramáticos relatos sobre a busca das origens determinados por certa “biologização”
da vida social e mesmo pelo enquadramento legal que separa estritamente família natural e
388 adotiva? (Fonseca, 2010; 2015). Ou esses testemunhos apontariam para outros sentidos?

O objetivo aqui é o de analisar o significado da busca das origens, tendo por ponto de partida
o testemunho de Christina Rickardsson em seu livro Nunca deixe de acreditar. A narrativa
propiciada por ela será relacionada a outras duas: a de Kiko Goifman, em seu filme 33, e a de
Sophie Brédier, que tem uma trilogia de documentários na qual trata de sua experiência adotiva.
Em um desses filmes, ela mostra seu retorno à Coreia do Sul (Brédier & Aziza, 2000). Nesses
testemunhos observa-se que a prática adotiva envolve a experiência de se traduzir segundo
novas coordenadas, inventando-se, mas, ao mesmo tempo, esse processo não é realizado sem
a existência de vestígios, restos que compõem a subjetividade do adotado. A adoção reconfigura
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o espaço do parentesco, complica a ideia de identidade nacional, fabrica uma nova genealogia,
deixando notar sua dimensão idiomática, da qual retira sua plasticidade e força, tal como entendido

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por Yngvesson (2007): a língua criando, simultaneamente, formas de pertencimento e resistência.

ADOÇÃO E TESTEMUNHO: AS NARRATIVAS DO PASSADO

Nunca deixe de acreditar apresenta a reinvenção de Christiana e a busca por sua mãe natural,
vinte e quatro anos depois de sua adoção por casal sueco, sua indignação e dúvida sobre as
circunstâncias que envolveram a destituição do poder familiar de sua genitora, o fascínio com
que desvela o desejo dos pais e suas interrogações acerca de si mesma.

Em 33, Kiko Goifman registra a tentativa de encontro de sua mãe biológica. Ele conclui: tornar
“pública uma busca que é muda [...] nem sempre foi bom” (Goifman, 2004, grifo nosso). Goifman
diz que procura por sua mãe biológica, sem que isso abale a singularidade do lugar de sua mãe
adotiva. Ele diz ainda que sua busca diz respeito à possibilidade de encontrar o “buraco” de onde
teria nascido ou a dona do “buraco” de onde teria vindo. Não seria essa imagem exatamente a da
falta de uma representação ou memória, “o buraco”? A esse respeito, Safatle (2004, grifo nosso)
afirma que “Filmar a própria procura pela mãe biológica é também uma maneira de tentar inscrever
simbolicamente algo de si mesmo que ficou para trás, uma história apagada na origem”. Poderia
estar aí uma pista para o desejo de investigar os vestígios do passado? Esse desejo é acompanhado
pela culpa diante de sua mãe e irmã adotivas, que se manifesta desde o início do projeto. Quase
que imediatamente, Goifman começa a perceber o peso da fala que um dos detetives consultados
dirige a ele: “Você está preparado? [para realizar o que se propõe?]”.

Uma voz dirige-se exatamente nos termos acima à Christina, que também expressa culpa em
muitos momentos de sua jornada, tendo contado igualmente com o auxílio de um detetive em
sua busca: “Você está preparada agora?” (Rickardsson, 2017, p. 598). Essa pergunta ecoa a
advertência feita por Petronilia Maria Coelho, mãe de Christiana, em algum momento da vida que
ambas compartilhavam: “nunca se sabe o que se esconde no fundo das coisas” (Rickardsson,
389 2017, p. 258).

O clima noir construído para o documentário 33, que ressalta a busca como um jogo de sombras
no qual nada se revela completamente, é acompanhado da afirmação de que no documentário
teria havido algumas mentiras. A principal: utilizar sempre a primeira pessoa do singular. Dentre
os motivos dessa afirmação, tem-se que as lembranças que Goifman tenta ratificar ou encontrar
só existem a partir da articulação com a narrativa das memórias de outras personagens que seu
testemunho agencia. Além disso, a realização do filme contou com a participação de diferentes
companheiros. Algo a mais talvez se insinue aí.
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Sophie Brédier vai da França à Coreia do Sul na tentativa de responder à pergunta: quem sou eu?
Vinte e cinco anos após sua adoção, Brédier busca pistas sobre seu passado, apresentando um

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pouco mais do que os resultados de uma investigação pessoal: é a história da Coreia que se revela
em suas palavras, das diversas divisões que se impõem aos coreanos, como aquelas advindas
da adoção e da guerra. Suas interrogações têm por base a tentativa de entendimento sobre a
separação e o abandono, sobre o que teria sido determinante para que ela não permanecesse
junto à sua família natural 2 . Diferentemente de Christina, Brédier nutre a certeza de ter sido
abandonada. Ao entrevistar pessoas que entregaram os filhos à adoção ressente-se de que
praticamente ninguém assuma responsabilidade pelo ato realizado.

No retorno ao país natal, do qual não maneja a língua, Brédier se encontra impossibilitada
inicialmente de reconhecer alguém que lhe seja semelhante. Tenta, com aqueles que poderiam
compartilhar com ela uma experiência similar, compreender o que ocorreu. Nos lugares que
visita, busca pontos de contato entre o presente e a lembrança de sua infância, forjando nessa
impossibilidade sua narrativa, estranhando não haver equivalência entre um cenário e outro.

Os testemunhos de Christina, Goifman e Brédier colocam em perspectiva a passagem entre


família natural e família adotiva, ou entre passado e presente, para buscar sinais de ao menos um
vestígio. Eles revelam a impossibilidade de uma tradução integral do passado no presente, resto
que acaba por ser o motor das buscas empreendidas e que se expressa como culpa, ressentimento,
curiosidade, tudo apontando para os rastros a serem perseguidos.

Christina adverte que não tinha como ser ao mesmo tempo Christiana, uma precisando se
sobrepor à outra (Rickardsson, 2017, p. 2134). Essa constatação, que tem relação com a memória

2. “Família natural” e “família substituta” são classificações do Estatuto da Criança e do Adolescente utilizadas para diferenciar
a família de origem e a família adotiva.
e o esquecimento, significaria que “Não se pode pertencer [...] a duas famílias”? (Halbwachs,
1994, p. 170, tradução nossa). Ou atestaria que “A continuidade da família não é nada mais que
390 uma ficção”? (Halbwachs, 1994, p. 170, tradução nossa). Christina, Goifman e Brédier aparentam
perguntar por que a inclusão na nova família, o pertencimento assim selado, teria ocorrido à custa
da família natural. Por que aquela exclusão primordial, quase que condição para a inclusão que se
seguiria?

Goifman e Brédier procuram, e Christina igualmente, por personagens que poderiam ter sido:
nomes, datas de nascimento, parentes. Ao mesmo tempo, a busca empreendida assinala a criação
de formas e lugares que permitam lidar com o passado e com o presente, com a família adotiva
e com a família natural. A busca permite exprimir a dúvida do que persiste do passado em cada
adotado: “Sou uma mulher independente e adulta, mas tenho dúvidas se algum dia realmente
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deixei de ser aquela criança” (Rickardsson, 2017, p. 157).

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Christina, Goifman e Brédier tratam do verso e do anverso de uma mesma questão: todos se
interrogam sobre o outro que habita a busca realizada. Outro que se traduz na permanência de
questões associadas à travessia entre família natural e família adotiva. Travessia que revela e
encobre, ao mesmo tempo, as causas de sua razão de ser e que conota questões relacionadas ao
pertencimento, à inclusão, à assimilação a um grupo ou comunidade, à identidade, à identificação.

O modo mais insistente com que Brédier aborda sua adoção sugere que essa inscrição guarda
elementos que se mostram não só ocultos, mas também plenos de efeitos. Não é ela mesma que
se pergunta, em Corpo Estranho (Corps Étranger), por que motivos não consegue dizer à sua mãe
que está grávida? Ela revela em seguida que se sente uma traidora, culpada de vir a dar à luz um
filho, sublinhando que precisa saber sobre seu passado para se tornar, agora, ela própria, mãe.
Ao mesmo tempo, é nesse filme, mais explicitamente do que nos demais da trilogia que realizou,
que Brédier transmite a dimensão do “corpo estranho” que representa para a comunidade que
a acolheu: fenotipicamente distinta dos demais, sem saber os motivos pelos quais seus pais a
escolheram, nem mesmo por que sua mãe jamais voltou à Coreia do Sul depois de sua adoção.
Ou ainda, por que razão, sendo francesa, como a adoção permite, precisa buscar no Ministério
das Relações Exteriores informações sobre suas origens. Como aponta Carvalho (2004), Brédier
sente-se estrangeira na França e, quando vai à Coreia do Sul, sente-se igualmente estrangeira.

TRADUTOR, TRAIDOR: AS QUESTÕES DO PRESENTE

É o passado que se reatualiza em algum momento como questão na vida do adotado e que se
apresenta como eixo para a memória e seu testemunho. O passado que se atualiza como questão
cria um hiato no presente do adotado. Esse hiato traduz-se no estranhamento que a inserção
na família adotiva suscita. A inserção familiar aparenta existir enquanto marcada por alguma
incompletude ou inconsistência. A crença em uma identidade de uma vez por todas definida, acaba
por se revelar impossível. A esse respeito, Yngvesson (2007) comenta acerca da experiência de
adoção internacional na Suécia: “A ideia de que uma criança adotiva poderia ser transformada
391 em uma ‘completamente sueca’ foi desmentida à medida que a primeira geração de adotados
chegava à maturidade” (p. 121). Todavia, não se pode entender com essa afirmação que a autora
aponta para uma essência do adotado que preexistisse à adoção, muito pelo contrário.

Que a adoção traduza a experiência de viver entre dois mundos é algo que, com ou sem percalços,
mostra-se à exaustão. A adoção internacional revela com mais agudeza o que é manifesto
também na adoção nacional: dois mundos expressos em duas famílias e em uma travessia, que
pode ou não ocorrer. Dois mundos que por vezes são percorridos em uma jornada na própria
família adotiva: do “como se” ao como “como foi”. Isto é, exigência que se impõe ao adotado
relativa ao deslocamento da família “como se fosse natural” à família “como foi” constituída.
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Nesse movimento, algo ultrapassa a família adotiva, impondo ao adotado saber o que se passou
(Gesteira, 2015; Yngvesson, 2007; 2010).

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A conjugação de dois lugares e de travessia presentes na adoção é particularmente evidente
quando Jacobson (2008) descreve o conceito de “preservação cultural” (culture keeping):
processo de socialização da criança adotada no qual são mantidas relações com a cultura de
origem, a fim de não aliená-la de seu passado. Em não raras vezes esse processo envolve viagens
ao país natal e outras estratégias de aproximação. Pode-se indagar se as práticas associadas à
preservação cultural levariam à conclusão de que crianças adotadas não conseguem desenvolver
uma identidade híbrida, resultante dos dois mundos que habitam, tornando-se adultos que
existem à margem de duas culturas possíveis.

Jacobson (2008) observa que as famílias que optam pela adoção internacional aparentam tratar
de modo estático a relação da criança com a cultura de origem e a de destino. Nesse sentido,
atividades propostas aos adotados transnacionais são apresentadas como sendo, por exemplo,
“americanas” ou “chinesas”. Esse dualismo estende-se aos próprios adotados os quais seriam
vistos, ocasionalmente, como “americanos” ou “chineses”, isto é, como havendo duas identidades
possíveis e independentes ao alcance da mesma criança. Jacobson assinala que raramente ouviu
um pai adotivo falar de seu filho como “chinês-americano” ou “russo-americano”. Ela descreve o
crescimento de práticas que denomina “exploração do passado” (past tours) ou “descoberta do
legado” (heritage tours). Jacobson sinaliza com isso que o acesso ao suposto acervo do passado
étnico do adotado poderia ser uma via para atenuar eventuais dificuldades na inserção dele na
nova cultura. Contudo, esse recurso não seria imune a alguns efeitos colaterais. Dentre eles, a
produção de um passado que reforça a linha demarcatória com o presente da família adotiva.

O reforço da linha entre passado e presente duplicaria a divisão experimentada pelo adotado,
segundo Yngvesson (2012). Nesses casos, estaria em jogo a crença na existência e proeminência
de uma cultura “real”, pré-adotiva, em contraposição à pura assimilação à cultura do país de
destino. Yngvesson afirma que a separação entre origem e destino, entre país e família de origem
e país e família adotivos, produz um sujeito que terá sempre um lugar para onde regressar, uma
392 origem a que virtualmente pertence. Nesse sentido, o dispositivo judicial, pautado usualmente no
regime de filiação substitutiva, de ruptura limpa, exclusivista, acabaria por criar não apenas a nova
família para o adotado, mas, retroativamente, a família de nascimento como originária.

Yngvesson (2010) insiste que cada vez mais a adoção traduz-se como um tipo de encadeamento de
vínculos múltiplos, e não como fixação em algum tipo de identidade que necessite ser reafirmada
como exclusiva, associada à família substituta ou à de origem. A autora encontra na adoção a
certeza de que essa prática social apresenta questões radicais sobre o que quer que se entenda
por identidade e identificação. A primeira traduzindo a fantasia do fechamento definitivo, chave
de um dado ontológico recuperado, construção acabada do indivíduo; a segunda, expressando o
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inacabamento da constituição subjetiva, reiterando a divisão que acompanha o discurso do sujeito.

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Yngvesson (2012) se interroga se a experiência da adoção e, em particular, da adoção internacional,
significaria um tipo de liberação do que se entende por identidade e família, culminando em novos
padrões. Ou se, ao contrário, apontaria para a hegemonia de uma visão ocidental sobre isso. Essa
dúvida tem por base o fato de que a adoção e seus procedimentos, paulatinamente, acabam por
se moldar a diretrizes e formulações legais que, em grande medida, têm o Ocidente e a sua própria
experiência de filiação como centro.

É dessa forma que ela analisa as legislações internacionais relativas ao tema, como a Convenção
de Haia e a Convenção sobre os Direitos da Criança e seus efeitos sobre os países signatários.
Yngvesson sinaliza que restaria nesses documentos um primado da identidade e da origem do
adotado, antes que da multiplicidade de vínculos que a adoção constitui. Ela critica fortemente as
diretrizes de exclusividade e substituição que norteiam a adoção naquelas referências legais, as
quais se apoiariam no entendimento de que seria possível o rompimento definitivo com o passado.
Não por acaso, Yngvesson (2010) refere-se às crianças adotadas como “transnacionais” (border-
crossing children), valorizando a noção de “parentesco idiomático” (idiomatic kinship), proposta
pela antropóloga Laurel Kendall (Yngvesson, 2007).

REALIDADE E FICÇÃO: DOS VESTÍGIOS AO FUTURO

Um ponto importante do trabalho de Yngvesson é a análise que realiza sobre as “adoções abertas”
(Fine, 2000) 3 , nas quais há acesso variado e recíproco a informações pessoais relativas a uma
e outra família, existindo também opção de contato entre essas partes, e que teve por base a
própria adoção que realizou (Kim, 2011). É a partir daí que ela procura mostrar que as “adoções

3. Uma tradução informal do artigo pode ser encontrada em: http://bit.ly/2F4m62h


fechadas”, a título de reforçar os vínculos do adotado com a família adotiva, facilitando certo
apagamento de seu passado com a família de origem, acabariam por produzir o efeito contrário,
393 o de um desejo pelo encontro com o “real” que só poderia estar fora do universo adotivo. Um
aspecto dessa análise é que esse “real” seria efeito colateral da ficção adotiva produzida pela lei
que quer fazer da família adotiva a “verdadeira” família. O “real” nessa construção seria produto da
operação simbólica de constituição dos vínculos adotivos. Ele equivaleria a um resto inalienável
que encontra no testemunho do adotado e na busca das origens que empreende vias de expressão.

Yngvesson (2010) sublinha que as ficções legais que suportam a filiação adotiva, as quais se
baseiam (i) na doutrina do melhor interesse, (ii) no consentimento dos pais naturais para adoção,
(iii) no estatuto de abandono da criança e (iv) na redefinição da genealogia do adotado na nova
certidão de nascimento, reafirmam a centralidade dos vínculos “de sangue” diante de qualquer
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outra possibilidade de pertencimento. Dessa forma, a estrutura da adoção internacional acabaria


por provocar o desejo pelo “real” pré-adotivo. Assim, a busca das origens empreendida pelos

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adotados, que se traduz na tentativa de contato com integrantes da família natural ou com o
país de nascimento, parte da promessa de um tipo de fechamento, de resposta às questões que
a adoção suscita.

Yngvesson sugere que a criança originária não existe desde sempre, a jornada realizada pelo
adulto adotado revelando, não raramente, questões para as quais não há respostas, criando, assim
mesmo, a lente a partir da qual o passado será interpretado. Tal como formulado por Halbwachs
(1994, p. 95, tradução nossa) “não é a criança que sobrevive a si mesma; é um adulto que recria,
nele e em torno dele, todo um mundo desaparecido, e ele entra neste quadro mais de ficção que de
verdade”. Esse hiato entre o adulto e a criança intensifica a força de perguntas que acompanham
os testemunhos de Christina, Goifman e Brédier. Todos se interrogam sobre o desejo dos pais na
adoção: “por que, dentre tantos, fui adotado”? Christina interroga-se também sobre seu próprio
desejo na colocação em família substituta: “Como eu poderia ter dito não? Que escolha eu tinha?”
(Rickardsson, 2017, p. 2265). Ela deixa ainda transparecer dúvidas sobre a legalidade do processo
judicial na imposição do afastamento sem palavras de sua mãe Petronilia: “O que realmente
aconteceu quando fui adotada? Por que foi tudo tão rápido e por que mamãe e eu não pudemos
mais nos encontrar?” (Rickardsson, 2017, p. 2364). A esse respeito, Yngvesson (2012) frisa que a
adoção situa-se, sempre, na fronteira entre legalidade e ilegalidade.

Carsten (2007a; 2007b) pergunta se os adultos que buscam informações de seu passado não
sofreriam de um tipo peculiar de ausência de memória que teria como contrapartida a busca que
visaria ao preenchimento das lacunas do passado. Ela igualmente afirma que a busca pelo passado
é uma das formas pelas quais os adultos adotados “construiriam uma continuidade narrativa que
teria por alvo estabilizar o senso de si” (Carsten, 2007b, p. 110, tradução nossa). E acrescenta:
buscar um parente “é uma das formas de remendar a ausência de memória” (Carsten, 2007b, p.
113, grifo e tradução nossos).

394 Remendar, costurar, verbos que fazem ver a fissura que se pronuncia nos casos comentados.
Christina escreveu mais de uma vez: “Eu me sentia dividida” (Rickardsson, 2017, p. 2857, 3251) e,
ainda, “tenho duas pessoas em mim (p. 93); “algumas cicatrizes nunca desaparecem” (p. 646);
“Christiana está indo para casa, mas Christina está saindo de casa” (p. 703); “Eu espero poder
encontrar a minha mãe...Há algo que não parece verdadeiro naquilo que escrevi” (p. 726). Tal como
Christina, Homes (2007), escritora que narra em livro o encontro com sua genitora, escreveu:
“Ser adotada é ser adaptada, ser amputada e costurada de novo. Mesmo se todas as funções
forem recuperadas, sempre restará uma cicatriz” (p. 60, grifo nosso). Nessa mesma linha, Deann
Borshay Liem, cineasta sul-coreana adotada por americanos, disse: “Fui adotada aos oito anos de
idade e ainda estou me recuperando” (Haruch, 2014, n.p.).
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Se, por um lado, Christina encontrou a mãe que procurava e apaziguamento relativo para os

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afetos que a mobilizavam, o mesmo não ocorre com Goifman e Brédier. Eles se deparam apenas
com alguns indícios, pistas, sinais, questões. O roteiro apresentado mostra o passado ou a origem
de modo diferente do que se poderia imaginar correntemente. Menos um ponto de chegada ou
início de tudo; mais o deslocamento que coloca em xeque concepções essencialistas. Escreve
Esposito (2010): “A origem está sempre fora de si mesma” (p. 68, tradução nossa), “sempre em
algum outro lugar [...] já e sempre irrecuperável” (p. 106). Ele continua: a subjetividade é uma
“cadeia de alterações que não pode ser fixada em uma nova identidade” (Esposito, 2010, p. 138,
tradução nossa). Origem e subjetividade, definições que se firmam praticamente nos mesmos
termos utilizados por Yngvesson.

A EXPERIÊNCIA ADOTIVA ENTRE VESTÍGIO E TRADUÇÃO

Os testemunhos vistos aqui apontam para certo deslocamento da origem, relançamento da


jornada no momento mesmo em que ela poderia estar terminada. A busca traduz uma fricção
na assimilação do adotado à família adotiva com reverberações no modo como se elaboram
identidade e pertencimento. O “real” da família de origem adquire seu estatuto a partir da ficção
adotiva sancionada pelo aparato legal, notadamente em função da exclusão que realiza da família
natural. Nessa cena, o adotado vislumbra no passado algo de si que também é produto dessa
mesma operação simbólica: só que sob a forma daquilo que permanece fora da família adotiva. É
esse real, essa lacuna, que reaparece no discurso dos adotados que testemunham sobre a busca
das origens.

Yngvesson (2012) salienta que aqueles que passaram pela experiência da adoção revelam o espaço
entre universos distintos, como o da miséria e o do consumo, o do Norte e o do Sul, o do Ocidente
e o do Oriente, o do subdesenvolvimento e o do desenvolvimento excessivo. Ela reconhece que
não se pode servir de ponte entre esses universos incomensuráveis, embora se possa esperar
que o testemunho dos adotados traduza a tensão entre eles: o sentido estará sempre em falta,
nunca sendo suficiente para responder às questões colocadas. É na fresta que se instaura entre
395 esses universos, na margem da lei que acolhe com exclusividade uma única origem, que se pode
assumir a posição de recolher o testemunho que chega como vestígio de uma longa jornada. Ali, a
distância que separa passado e presente é a mesma que revela o comum que aproxima, a adoção
dizendo respeito a todos nós, interrogação sobre o desejo que nos faz humanos, coincidência
impossível entre o adulto que sou e a criança que permanece em mim.

REFERÊNCIAS

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SUMÁRIO

397 VÍNCULOS E RELAÇÕES


INTERSUBJETIVAS NO EXERCÍCIO
DA PATERNIDADE/MATERNIDADE
NA ATUALIDADE

AUTORIA
LUCAS BONDEZAN ALVARES
Professor do Curso de Psicologia da UNOESTE. Mestre em Educação na Saúde pela PUC-
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SP. Doutorando em Psicologia pela UNESP-Assis.


CONTATO: lucasalvares@unoeste.br

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GUSTAVO HENRIQUE DIONÍSIO
Professor no Departamento de Psicologia Clínica da UNESP-Assis. Membro do EBEP-SP.
CONTATO: gustavo.h.dionisio@unesp.br

RESUMO
Este trabalho busca refletir os vínculos e as relações intersubjetivas entre pais
e filhos na atualidade. Serão apresentadas aqui, a partir da apresentação no
Congresso Nacional de Psicanálise, Direito e Literatura – CONPDL e das discussões
que ocorreram durante a apresentação, problematizações e articulações
teóricas com a teoria psicanalítica dos vínculos. O trabalho apresentará relatos
observados durante o trabalho dos profissionais, que o conduziu à construção
desse trabalho que reflete sobre as relações entre pais e filhos na atualidade.
PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Vínculos; Relações Intersubjetivas; Parentalidade.
PROBLEMATIZAÇÃO

398 Foi através da observação e de estudos sobre o desenvolvimento, a construção de vínculos e


da subjetividade que surgiu o interesse pela temática apresentada. Hamad (2002) apresenta
significativa reflexão sobre o contexto do desejo envolvido na parentalidade. Segundo o autor,
essa questão fica quase sempre como um ponto enigmático, necessitando um trabalho mais
aprofundado relacionando a história e a estrutura inconsciente da pessoa. Quase sempre se lida
apenas com a demanda da criança, porém precisamos olhar como esse pedido se encaixa numa
história. Serão apresentados alguns relatos e experiências que foram cartografados ao longo da
trajetória do desenvolvimento do tema que ilustram a problemática.

RELATO 1
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

Durante roda de conversa para pais de crianças acompanhadas pelo serviço de psicologia

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de uma Unidade Básica de Saúde – UBS, foi proposto ao pai e às mães que participavam do
grupo que, durante a semana, passassem um momento que poderia ser assistindo um filme,
jogando, brincando, etc. com seus filhos. A proposta era para vivenciassem aquele momento e
compartilhassem com o grupo o que surgiria, e que existisse de fato a presença real do outro
como propõe Rene Kaes.

Chama-nos a atenção que nenhum integrante do grupo conseguiu passar um momento com os
filhos, e disseram: “Eu não tenho tempo para mim, como vou ter para meu filho”, “Não deu tempo”,
“Fiquei muito cansado”.

RELATO 2

No mesmo grupo, em outro encontro, uma mãe é encaminhada pela psicóloga que acompanha
a criança, cujo filho chega à UBS com um possível diagnóstico de TDAH. Relata no primeiro
encontro todo o histórico “patológico” de seu filho de sete anos. Na outra semana, ela retorna
com a seguinte fala: “Eu não tenho queixa e nem problema, o problema é meu filho, mas agora que
começou a tomar Ritalina ele está bem”. Esta mãe não mais retorna.

RELATO 3

Na brinquedoteca de uma enfermaria pediátrica, durante o trabalho lúdico realizado por estagiários
de psicologia, é bem comum que mães e acompanhantes deixem as crianças desacompanhadas.
Certa manhã, ao estimular as crianças para que fizessem um desenho referente à hospitalização,
uma delas, de oito anos, desenhou um celular e disse: “Minha mãe não sai do celular”.
RELATO 4

399 Na mesma enfermaria, uma jovem de doze anos fica mais de dez horas diariamente sozinha no
hospital, sem acompanhante, pai ou mãe. No fim da tarde, recebe visita de uma tia que permanece
cerca de quinze minutos e vai embora. Como é bem comunicativa e “aparentemente amadurecida”,
outras mães pedem para que ela fique com seus bebês. Ela aceita e as mães das outras crianças
saem da enfermaria e retornam geralmente depois de quatro horas.

RELATO 5

Em uma escola, crianças, ao iniciar o Pré-Escolar II, têm uma hora semanal de parque, ou seja,
mais ou menos com seis anos a escola começa a inserir atividades, tarefas extensas e provas, e
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

paralelamente existe um programa denominado “Líder em Mim”, que promove o empreendedorismo


e a competição. O momento lúdico e do brincar são restringidos quando as crianças vão ao pátio

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aguardar seus pais irem buscá-las. Os pais por sua vez fazem uma fila de carros e passam pela
entrada da escola, uma funcionária chama a criança pelo microfone e outro abre a porta do carro,
colocando a criança no banco, e todos partem. Tal dinâmica é denominado carinhosamente pela
escola por drive thru. Em um grupo de Whatsapp, uma mãe questiona o grande número de tarefas
e a falta do brincar, que tão repentinamente e violentamente foi retirado, e as seguintes falas
surgem no grupo: “Eu acho bom”, “Já estão na hora de conhecer responsabilidades”, “Seis anos é
hora de pegar pesado”, “Eu não ligo, é bom para saber como é o mundo”.

RELATO 6

É aniversário de seis anos de uma criança, seus amiguinhos da escola são convidados para passar
alguns momentos juntos, com brincadeiras, doces e pipoca. Uma mulher de aparentemente
sessenta e oito anos deixa uma criança com sua babá e vai embora. A babá, como uma guardiã,
fica durante todo o tempo acompanhando a criança: se ela vai brincar, a babá vai junto, se vai para
fora da casa, a babá a segue. Passam-se duas horas e a mulher retorna, leva a babá embora e deixa
uma segunda babá. A mãe do aniversariante, curiosa com a cena, pergunta à senhora o que havia
acontecido, e ela responde: “Está tudo bem, não é nada não. Vim trazer a babá do turno da noite”.

RELATO 7

Clínica Escola de Psicologia em uma Universidade no interior de São Paulo, uma criança de sete
anos é encaminhada pela escola para acompanhamento com o possível diagnóstico de Transtorno
Opositor Desafiador – TOD. Durante a entrevista devolutiva de psicodiagnóstico a estagiária do
caso relata que a criança vem sofrendo por questões amplas, que envolvem inclusive as relações
familiares, e que a psicoterapia poderia ajudá-la, mas que não se confirma o TOD. A mãe responde,
retirando a criança do processo terapêutico: “Se ele não está doente, então não precisa vir aqui;
esse menino nasceu com problema, eu não tenho culpa de ele ser assim”.
400
Através desses sete relatos, iniciamos algumas reflexões necessárias para falar sobre o
desenvolvimento dos pais. Este trabalho está voltado exatamente para o complexo fenômeno que
é o “nascimento” dos pais. Percebemos que a vinda do filho produz nos pais uma nova condição
psíquica, e que o bebê proporcionará a eles um novo lugar e novas condições subjetivas para
desenvolverem seus papeis e suas funções. A psicanálise salienta e se debruça sobre o quanto é
importante esse momento para a constituição psíquica da criança.

Moro (2005) aponta a parentalidade como um conjunto de ingredientes íntimos e coletivos na


constituição psíquica de tornar-se pai/mãe, caracterizando assim os vários elementos psíquicos e
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sociais no processo da parentalidade. Para a autora, será a própria criança que transformará seus
genitores em pais. Observamos que esse movimento pode também não ocorrer naturalmente,

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


ou seja, o filho pode tornar seus genitores em pais devido ao novo lugar psíquico a se constituir.
Tal fato não é transmitido automaticamente e, sim, dentro de um complexo enredo de vivências,
atualizações e construções. Este trabalho objetiva investigar, portanto, a implicação parental
como um conjunto de fatores, implicações subjetivas e disponibilidades internas que possibilitam
aos genitores tornarem-se pais, caminho esse não automático e muito menos simples, ainda mais
na modernidade imediatista, do sucesso e da não tolerância à frustração.

A sociedade ainda insiste na naturalização e no mito do amor materno, e persistimos na cobrança


sobre a mulher em relação aos cuidados com as crianças. Isso se agrava no momento atual da
nossa sociedade marcada por conservadorismo, machismo e enfraquecimento dos vínculos
(Badinter, 1980). Porém, a psicanálise, em especial as teorias vinculares, entendem a importância
dessas relações para a constituição do sujeito. Compreendemos a importância dos primeiros anos
de vida, da primeira infância e de todo o desenvolvimento do sujeito dentro de seu ambiente e de
suas relações com os cuidadores e com a sociedade.

Outra característica atual observada nas vinhetas relaciona-se com a qualidade dos vínculos.
Kaes (2014) reflete sobre a estabilidade e a durabilidade dos vínculos atuais diante do aumento
do tempo das crianças em escolas e creches integrais, e com as cuidadoras (babás), atividades
extracurriculares, cursos, colônia de férias, tablets e celulares. É necessário trabalhar, e muito,
a tal ponto que as férias dos filhos tornam-se uma importunação para os pais, que passam a
recorrer a colônias de férias. Nesses contextos, mais uma vez reflete-se sobre a disponibilidade
dos pais em estarem com seus filhos.

Rene Kaes (2014) procurou ampliar a constituição do inconsciente também pelo campo da cultura,
sendo esse um campo interconstitutivo do inconsciente pessoal. Tentou compreender o quanto
vivemos em um momento que o transubjetivo (correr, trabalhar, “vida 4g”, não parar, ter sucesso,
“você pode fazer tudo”, “você pode tudo”, redes virtuais) influência o intrassubjetivo.
401
As teorias vinculares em psicanálise investigam a qualidade das relações e as internalizações de
objetos como produtoras de subjetividade, e tais fatores favorecem os processos de subjetivação.
Porém, nesse mesmo campo teórico, o vínculo caracteriza-se pela relação real, inclusive física,
desconsiderando, por exemplo, o vínculo virtual. Vínculo é encontro, é relacional e feito de alianças.

A psicanálise, subsidiada por Freud (1913/1996) e pelos psicanalistas contemporâneos como Kaes,
fundamentaram essas problematizações. É evidente a importância da qualidade das relações
entre pais/mães e seus filhos para a constituição psíquica de todos envolvidos. Desse contexto
surgem alguns questionamentos, que foram debatidos durante o encontro.
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• Como estão nascendo os pais?

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• Como os pais vem exercendo suas funções psíquicas na criação de seus filhos?

• Podemos entender que a sociedade do consumo, do culto ao corpo e do narcisismo produziriam


sujeitos vazios de simbolização?

• Como estariam atualmente a presença e a estabilidade das relações entre pais e filhos?

• Estariam os pais implicando-se na parentalidade?

• Estariam eles possibilitando o espaço “do Eu pode advir”?

• Estaríamos passando por um momento de um abandono simbólico ocasionado pela falta de


vínculo?

A parentalidade ocorre no campo intersubjetivo existente entre pais e filhos, sendo esse “lugar”
atravessado pelo que os pais evocam em seus filhos e no que seus filhos evocam em seus pais. Ou
seja, não há um campo neutro: filhos afetam seus pais e pais afetam seus filhos.

Sendo assim, precisamos pensar sobre os “lugares” que os bebês vão construindo e tomando nas
dinâmicas familiares, “lugares” esses marcados por enredos subjetivos que se tornam importantes
na compreensão dos fenômenos da parentalidade. Esse campo será também atravessado por
aspectos culturais que delineiam expectativas e perspectivas das formas de ser pai e mãe. Será
nesse campo que precisaremos construir novas investigações científicas.
Com tais questionamentos apresentados buscou-se a compreensão dos enredos no exercício
da parentalidade na atualidade, encontrando possibilidades interventivas no campo do
402 exercício da paternidade e da maternidade. Buscou-se, neste artigo, identificar as fragilidades
e potencialidades nos vínculos e alianças entre os pais e mães, podendo encontrar elementos
ou falhas nas transmissões, auxiliando futuras pesquisas e intervenções clínicas e grupais para
psicanalistas, instituições, comunidade científica e pais.

Diante do nosso momento histórico e cultural, buscou-se aqui identificar os olhares e formas
de entendimento sobre o fenômeno do exercício da paternidade/maternidade, refletindo sobre
estruturas pós-modernas de terceirização do cuidado, tendo como exemplo o crescente número
de escolas infantis integrais, crianças cada vez mais cedo nas escolas, excesso de atividades para
as crianças, falta de limites, turnos de babás, “espaços kids” entre outras situações que podem
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estar sobrecarregando as crianças e afastando os pais do exercício da parentalidade, colocando


essas funções para terceiros que podem não possibilitar as alianças e os vínculos necessários para

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


seu desenvolvimento, como supõe os pressupostos psicanalíticos das funções da parentalidade.

REFERÊNCIAS

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SUMÁRIO

403 VIVER SEM A RAIZ: ADOÇÃO


E OS SOFRIMENTOS
NARCÍSICOS-IDENTITÁRIOS

AUTORIA
MARCELA RIBEIRO LIMA SANT’ANA
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Técnica de
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medidas socioeducativas em meio aberto no município de Contagem/MG.


CONTATO: marcelarlsantana@gmail.com

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RESUMO
Esse trabalho visa a demonstrar, através da análise de caso clínico, como a não adoção psíquica
pode estar relacionada às patologias narcísicos-identitárias. Trata-se de caso acompanhado
nas Medidas Socioeducativas de um município da região metropolitana de Belo Horizonte,
cuja jovem fora entregue à adoção após o nascimento e devolvida pela família adotiva
durante a adolescência. Nesse caso, as relações intersubjetivas primordiais resultaram
em identificações primárias insuficientes para a boa constituição do narcisismo primário.
PALAVRAS-CHAVE: Sofrimentos narcísicos; Psicanálise; Adoção; Adolescência
A prática no Serviço de Medidas Socioeducativas1 em meio aberto constitui rica experiência para
a compreensão dos fenômenos da adolescência, além de colocar em evidência a relevância do
404 contexto de vida em que estão inseridos os jovens autores de atos infracionais. Norteados por uma
“concepção econômica-dinâmica, que valoriza a noção de funcionamento psíquico e em particular
a de defesa” (Chagnon, 2008, p. 121), em detrimento da noção de estrutura, consideramos que
com frequência a passagem ao ato revela-se enquanto um arranjo defensivo diante de angústias
narcísicas que emergem na puberdade.

Dentre a diversidade de histórias de vida acolhidas no Sistema Socioeducativo, chama a atenção o


considerável número de casos de adolescentes em contexto de adoção. Em sua maioria, trata-se de
arranjos intrafamiliares ou intracomunitários, onde familiares e/ou vizinhos assumem os cuidados
de crianças após morte ou abandono dos pais. Uma leitura apressada poderia estabelecer uma
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

relação causal perversa, onde o ato infracional do jovem seria facilmente associado à sua condição
de adotado. Todavia, o que a clínica indica é que os laços sanguíneos, por si só, não garantem a

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


parentalidade, e que filhos de sangue e filhos de criação precisam ser adotados psiquicamente.

A inscrição do filho no desejo dos pais será sempre atravessada pela história libidinal desses
sujeitos que, na ficção traçada para o filho esperado, depositarão suas projeções e idealizações.
Quando a adoção psíquica não ocorre, o objeto primário dificilmente será capaz de “fornecer a
antecipação da palavra para que a criança possa situar-se num registro de existência de um corpo
e, portanto, de uma subjetividade” (Maggi, 2009, p.143). Nesse sentido, as angustias narcísicas,
que predominam em determinados casos e relacionam-se ao ato infracional, poderiam estar
relacionadas à não adoção psíquica. Esta, por sua vez, é passível de acontecer tanto em casos de
parentalidade consanguínea quanto em casos de adoção.

Este trabalho visa a demonstrar, através da análise de caso clínico, como a não adoção psíquica
pode estar relacionada às patologias narcísicos-identitárias. Trata-se de caso, acompanhado
nas Medidas Socioeducativas de um município da região metropolitana de Belo Horizonte/MG,
cuja jovem fora entregue à adoção após o nascimento e devolvida pela família adotiva durante
a adolescência. Para proceder a essa análise, porém, faremos um percurso pelo conceito de
sofrimentos narcísicos-identitários.

SOFRIMENTOS NARCÍSICOS IDENTITÁRIOS

A questão dos sofrimentos narcísicos-identitários tem sido trabalhada por diversos autores
(Cardoso, 2007; Gôndar, 2014; Minerbo, 2009), o que se justifica pela crescente presença de

1. O adolescente autor de ato infracional é responsabilizado por determinação judicial a cumprir medidas socioeducativas.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, as medidas socioeducativas podem acontecer em liberdade, em meio
aberto ou com privação de liberdade, sob internação.
pacientes com tais modos de subjetivação nos consultórios de psicologia. Minerbo (2009), em
seu livro Neurose e Não Neurose, nos lembra que “a psicanálise não descobre novas patologias:
405 reconhece novas formas de ser e de sofrer e lhes dá um nome, para que passem a fazer parte
do campo da psicopatologia psicanalítica” (Minerbo, 2009, p. 31). Nesse sentido, os sofrimentos
narcísicos identitários não correspondem a uma entidade psicopatológica bem definida, mas
agrupam “modos de ser e de sofrer que se caracterizam por uma ausência de coesão subjetiva”
(Gôndar, 2014, p. 119).

Nesse modo de subjetivação, a existência de um contorno egóico frágil, herdeiro de experiências


traumáticas muito primitivas, culmina em um funcionamento subjetivo instável (Gôndar,
2014). Minerbo (2009) marca que a instância egóica exerce uma importante função de acionar
mecanismos de defesa diante de situações de angústia. Enquanto na neurose há a predominância
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da angústia de castração, nos sofrimentos narcísicos identitários predominariam as angústias de


aniquilamento, de fragmentação e de intrusão. No caso do sujeito neurótico, a principal defesa

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


diante da angústia é o recalque. Nos casos de modos de subjetivação em que o sujeito lida com
angústias mais primitivas, este lança mão, primordialmente, de defesas de clivagem egóica,
negação, reparação maníaca e recusa (Minerbo, 2009).

O manejo clínico desse sujeito consiste em um desafio para o analista, uma vez que a interpretação,
enquanto modelo condutor do processo analítico clássico, é ferramenta para lidar com a dinâmica
do recalque\retorno do recalcado (Salztrager, 2014). Como então lidar com aqueles pacientes
em que o recalque não aparece como principal operador defensivo? Pacheco-Ferreira e Herzog
(2014) apontam para o fato de que o próprio Freud (1937 apud Pacheco-Ferreira & Herzog, 2014)
tenha lidado com essas questões no fim de sua vida, o que o levou à proposta do conceito de
“construção”: “Enquanto a interpretação se aplica a algum elemento isolado do material, tal como
uma associação ou ato falho, a construção diz respeito à apresentação por parte do analista de um
fragmento esquecido da história primitiva do paciente” (Pacheco-Ferreira & Herzog, 2014, p. 29).
Essa construção dar-se-á a partir da relação transferencial e exigirá do analista uma ampliação da
atenção flutuante que não se reduza à escuta e que seja “capaz de apreender pequenos gestos e
atos que [...] seriam um índice de impressões que não se registram como traços, mas que, todavia,
buscam um caminho para se manifestar” (Gôndar, 2001, p. 34).

Nessa perspectiva, a relação analítica poderia criar as condições para que os fragmentos de
impressões que não puderam ser assimilados – provavelmente por uma falha entre as relações
precoces do sujeito e o meio-ambiente – possam ser apropriados no sentido de se organizar em
uma narrativa (Pacheco-Ferreira & Herzog, 2014). “Com isto, o analisando poderá construir um
sentido para sua história, seu corpo, sentimentos e anseios, diferenciando-se do outro e podendo
até mesmo esboçar uma postura singular no mundo” (Salztrager, 2014, p. 205).
RELATO DE CASO

406 Ao relatar um caso clínico, o psicanalista vê-se desafiado a transpor para a língua escrita a riqueza
de elementos não verbais que atravessam a cena analítica. Cientes desse desafio, optamos
no presente estudo por trazer Tillandsia 2 para a primeira pessoa. O seguinte relato é fruto do
que foi construído nos meses em que a adolescente foi acompanhada no Serviço de Medidas
Socioeducativas. A medida aplicada foi prestação de serviço à comunidade, pelo prazo de seis
meses, em oito horas semanais. O ato infracional ocorreu em 2016, no município de Belo Horizonte.

VIVER SEM RAIZ

“Meu nome é Tillandsia. Estou aqui respondendo a um ato infracional que cometi há pouco mais
VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Liretatura

de um ano. Tenho dezessete, mas por tudo que já vivi parece é que tenho mais. Quando eu tinha
menos de um ano, minha mãe, que já tinha seis filhos, me entregou para a Karla. Por que ela fez

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


isso? Bem, vai saber. Dizem até que ela era prostituta. Ela diz que não tinha condições financeiras
para me criar, mas eu acho que quando a mãe quer mesmo, ela dá um jeito. De todo modo, ela não
tinha conseguido criar nenhum dos seus filhos. O meu pai, ela diz que nem sabe quem é.

Depois de mim, minha mãe engravidou mais uma vez e entregou esse filho à Karla. Já não bastava
os outros três filhos que a Karla tinha? Mas tudo bem, era de mim que ela gostava mais. Eu não
desgrudava dela. Queria o amor dela todo para mim e quase sempre conseguia. Os outros filhos, os
biológicos, é que não gostavam muito. Me chamavam de rebelde, de mal-educada e não perdiam
a chance de jogar na minha cara que eu era filha de criação. Eu ficava com muito ódio.

Acho que teria ficado tudo bem se a filha da Karla não tivesse resolvido engravidar. Eu odiei aquele
bebê desde que soube da notícia. Eu tinha dez anos e sabia que daquela vez perderia o amor
da minha mãe Karla. Fiquei cega de ódio e disse a todos: quero o bebê morto dentro da barriga.
Merda, eu sei que exagerei. Mas será que ninguém viu que eu era uma criança? Sei é que fui
ficando cada vez mais violenta. Não tolerava nenhuma repreensão, havia sempre uma resposta
na ponta da língua.

Nesse tempo todo eu sempre visitava minha mãe biológica e até que a achava legal. Mesmo assim,
não queria me separar da Karla. Eu previa que o caldo ia entornar. Eu era a intrusa naquela casa
e só fazia causar tumulto. Não me deixavam nem chegar perto do bebê. Mas a Karla não ia ter

2. A Tillandsia é uma planta do gênero de Bromélias que tem grande capacidade de sobrevivência. Não precisam de solo para
cumprir seu ciclo de vida, ou seja, não precisam de terra para sobreviver. Há espécies que podem crescer em rochas, telhados,
fios, cabos de telefone, postes, grades e onde mais desejarem.
coragem, ia? Não sei. Não paguei para ver. Quando as ameaças de devolução se tornaram diárias,
eu mesma arrumei minhas malas. Para não ser abandonada, abandonei.
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Sabe o que eu preferia? Eu queria era ter nunca conhecido a Karla. Me arrancaram de lá com a raiz.
Aliás, com a raiz não, quem dera fosse. A raiz ficou lá. Você sabe o que é isso? Você sabe o que é
viver sem raiz?

Nessa época, eu já tinha treze anos e fui direto para a casa da minha mãe biológica. E eu achando
que já tinha vivido de tudo. Ficava só deitada no quarto, não queria comer, não ia para escola.
Foi tão estranho. Aquela era a minha mãe, mas parecia que ela não me enxergava. Acho que eu
tive aquela coisa que vocês psicólogos chamam de depressão. Mas tinha como piorar. Meu irmão
também foi devolvido e a casa virou um inferno. Eu odeio aquela mulher. Ela só sabe tratar bem os
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filhos homens. Com as mulheres ela compete. Acredita que ela vive dizendo que eu estou gorda,
com celulite e que meu cabelo é de preto? Eu não ia aguentar aquilo.

AS MÚLTIPLAS FACES DA ADOÇÃO


Eu tinha uma amiga, sabe? A mãe dela era maravilhosa, tipo mãe de verdade. Dessas que te escuta,
dá conselho, faz carinho. Só tinha uma coisa, ela era traficante. Minha amiga não concordava com
aquilo, foi até morar com o pai dela. Eu nunca tinha pensado em traficar antes, mas a Sônia me
deixou morar com ela. Me dava amor. Comecei devagar, mas me sentia tão poderosa junto a ela.
Até o dia em que a polícia chegou. Mas tudo bem eu assumir o flagrante, né? Era de menor, dava
nada pra mim. Só não dava mais para ficar no barraco. Fomos para outra cidade, nada longe,
região metropolitana. Era uma casa grande, parecíamos família.

Estava tudo muito bom, a Sônia é uma mulher incrível. Mas eu gosto de baile funk. Saí com o cara
que eu estava namorando. A polícia entrou na casa, levou tudo. Era muita droga. Ela foi presa, ainda
está. Sei que não faz sentido, mas às vezes penso que se eu não tivesse saído naquele dia talvez
as coisas tivessem sido diferentes. E eu sou menor de idade, né, nunca pude visita-la na cadeia.

Depois disso fui obrigada a voltar para a casa. Aquela mulher não é mãe, é parideira. Sabe fazer
filho, mas não sabe ser mãe. Eu fico na rua porque não suporto ficar na casa com aquela mulher.
A gente só briga. Outro dia ela defendeu meu irmão. Fiz um bolo, ia levar um pedaço para o meu
namorado. Meu irmão chamou minha mãe e disse que eu estava levando tudo. Ela defendeu ele,
entrou no meio. Peguei uma colher e na hora da briga rasguei a boca dele. Eu sou assim, sou
estourada, não sei ser de outro jeito.

Esse namorado, o do bolo, eu realmente gostei dele. Mas não deu certo. Ele era bom, gostava de
mim. Mas eu não suportava a mãe dele. Não suportava a família toda, nem os amigos. Mas eu não
gosto de falar disso. Sabe qual é o meu problema?! Quando eu amo eu dou tudo de mim, me dou
toda e quero tudo. Aí a pessoa me abandona e me joga toda fora. Já percebi que quando eu amo
muito alguém eu ataco todas as pessoas que ela ama. É como se não fosse sobrar amor para
mim. Estou cansada de fazer isso. Mas não tem jeito. Quando eu vi já estressei, já joguei todas as
408 verdades na cara da pessoa. E olha, eu sei onde dói, sempre acerto.

Falar nisso, decidi que não vou mais à creche em que você me colocou para prestar o Serviço
Comunitário. Tem uma mulher na cantina que olha estranho para mim. Eu vou dar na cara dela.
Tem também as crianças pequenas. Gosto delas, mas é muito difícil lidar com quem não sabe
comunicar o que quer. Isso me deixa louca. Todas aquelas crianças querendo atenção, colo e eu
não posso dar. Quer saber?! Não suporto mais essa Medida. Eu já entendi que tenho é que ficar
sozinha, isolada. Não tenho paciência com ninguém. Comigo é bateu, levou. Que se dane todo
mundo, não estou nem aí para ninguém. Agora eu aprendi, nunca mais vou me entregar, nunca
mais vou sofrer.”
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A NÃO ADOÇÃO PSÍQUICA E OS SOFRIMENTOS NARCÍSICOS IDENTITÁRIO

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Não é incomum que as vivências traumáticas de crianças que são expostas a experiências de
abandono e de desamparo desde o estabelecimento dos primeiros vínculos atravessem a
constituição de seu narcisismo. Para Green (1988 apud Minerbo, 2009), a internalização do objeto
bom é fundamental para que o psiquismo opere a função objetalizante. Ao ser internalizado como
estrutura enquadrante interna, “o psiquismo pode produzir objetos substitutos (metafóricos) do
objeto primário internalizado. [...] A falha do objeto primário faz com que ele não seja internalizado
e passe a ser buscado, concreta e compulsivamente, no mundo externo” (Minerbo, 2009, p. 291).

No caso em questão, Tillandsia passou por diferentes experiências que denunciam uma não
adoção psíquica por parte de diferentes figuras de cuidado. A jovem parece viver em busca de seu
objeto primário, sustentando a ilusão de que o encontro com esse objeto bom lhe preencheria.
A cronicidade de sua angústia de abandono se externaliza pelo ódio continuamente presente
em seu relato. Como defesa, Tillandsia lança mão da cisão e de projeção. Com baixas reservas
narcísicas, há um baixo limiar de frustração e recurso constante à passagem ao ato. Observa-se
um movimento de compulsão à repetição que reinscreve, a todo momento, a marca do abandono.
Assim, a narrativa de Tillandsia nos coloca frente a um modo de subjetividade marcado pelo
sofrimento narcísico identitário.

O analista, diante de Tillandsia, reconheceu a urgência em promover na análise um processo


de construção de sua história, que a princípio apresentava-se fragmentada e dispersa. O
acompanhamento foi atravessado por questões institucionais e, conforme relatado, seu desfecho
foi mais um rompimento na história da adolescente. Ainda assim, acreditamos que o objeto analista,
em posição de catalisador de sentido, acompanhou Tillandsia em construções que no a posteriori
poderão remeter a um sentido capaz de produzir maior integração narcísica e que já ao longo do
acompanhamento resultaram em uma diminuição das atuações e maior espaço para as palavras.
REFERÊNCIAS

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