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TEORIA GERAL

DO DIREITO
Jean-Louis Bergel
Professor da Universidade de Direito,
de Economia e de Ciências de Aix-Marseille

Tradução «H
C
MARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVÃO \j

1037338 CEUT

Martins Fontes
São Paulo 2006
Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título
THÉORIE GÉNÉRALE DU DROIT, por
Éditions Dalloz, Paris, 31-35 rue Froidevaux,
75685 Paris cedex 14, França.
Copyright © 1989, Éditions Dalloz.
Copyright © 2001, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1» edição 2001
2* edição 2006

Tradução
MARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVÃO

Revisão técnica
Gildo Sá Leitão Rios
Revisões gráficas
Renato da Rocha Carlos
Ana Maria de O. M. Barbosa
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

O Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

TO \ Bergel, Jean-Louis
Teoria geral do direito / Jean-Louis Bergel; t r a d u ç ã o Ma-
ria Ermantina de Almeida Prado Galvão. - 2 a ed. - São Paulo
- Martins Fontes, 2006. - (Justiça e direito)
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22. Título original: Théorie générale du droit.
zo CO ' Bibliografia.
ISBN 85-336-2176-0
•O1
1. Direito - Filosofia 2. Direito - Teoria I. Título. II. Série.

O í n d i c e s para catálogo sistemático:


1. Direito : Teoria 340.11
§1 2. Teoria geral do direito 340.11

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


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Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
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índice

INTRODUÇÃO XV

Seção I - Objetivo da teoria geral do direito XVII


1. DISTINÇÃO ENTRE A TEORIA GERAL E A FI-
LOSOFIA DO DIREITO XVIII
2. CONTEÚDO DA TEORIA GERAL DO DIREITO XXI

Seção II - Necessidade da teoria geral do direito XXIV


1. NECESSIDADE CONCEPTUAL XXV
2. NECESSIDADE PRÁTICA XXVII

PRIMEIRA PARTE
O FENÔMENO DO DIREITO

TÍTULO I - OS FUNDAMENTOS DO DIREITO 3

CAPÍTULO 1 - A definição do direito 5

Seção I - As definições substanciais


1. O PENSAMENTO JURÍDICO 9
A. A filosofia idealista 10
B. As doutrinas positivistas 15
Positivismo jurídico e positivismo científico 15
Positivismo científico e positivismo sociológico... 18

2. AS FINALIDADES DO DIREITO 21
A. Justiça ou utilidade 23
B. Individualismo e coletivismo. 29
O debate ideológico 30
A questão dos direitos subjetivos 32

Seção II - A definição formal do direito 37

1. DEFINIÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS 38


A. Os elementos característicos de todas as pres-
crições jurídicas 39
A noção de prescrição jurídica 39
A diversidade das prescrições 43
B. As regras gerais e abstratas 44

2. A ESPECIFICIDADE DAS REGRAS JURÍDICAS .. 46


A. Regras jurídicas e regras morais 47
B. Regras jurídicas e outras regras sociais 50

CAPÍTULO 2 - As fontes do direito 53

Seção I - A heterogeneidade das fontes de direito ... 56

1. A ESCOLHA DAS FONTES 58


A. Regra espontânea e regra ordenada: o fenômeno
sociológico 59
B. Regra legal e regra pretoriana: o fenômeno técnico.. 64
2. CONHECIMENTO DO DIREITO E DOCUMEN-
TAÇÃO JURÍDICA 69
A.. A documentação clássica 71
B. A informática documental 73
Seção II - As relações entre as diferentes fontes do
direito 75
1. AS INTERAÇÕES 76
A. A lei da doutrina
B. A lei da jurisprudência 81
C. A lei da prática 85
2. AS AFINIDADES 90
A. As relações de natureza 90
B. A relação de função 93

CAPÍTULO 3 - Os princípios gerais do direito 101

Seção I - O lugar dos princípios gerais na hierar-


quia das normas 103

1. A DEFINIÇÃO DOS PRINCÍPIOS GERAIS 105


A. As fontes dos princípios gerais 106
B. A noção de princípios gerais 109
2. O ALCANCE DOS PRINCÍPIOS GERAIS 112
A. Princípios gerais e princípios fundamentais do
direito 112
B. O valor dos princípios gerais na escala das
normas 115

Seção I I - A importância dos princípios gerais na


multiplicidade das normas 117

1. A IMPORTÂNCIA FUNCIONAL DOS PRINCÍ-


PIOS GERAIS 118
A. A função fundamental dos princípios gerais 118
B. A função técnica dos princípios gerais 121
2. A IMPORTÂNCIA MATERIAL DOS PRINCÍPIOS
GERAIS 124
A. Diversidade dos princípios gerais 125
B. Tentativa de classificação dos princípios gerais... 127
TÍTULO II - O MEIO AMBIENTE DO DIREITO 131

CAPÍTULO 1 - O direto e o tempo 133

Seção I - O direito no tempo 135


1. A EVOLUÇÃO DO bIREITO NO TEMPO 136
A. O tempo, fator de solução e de continuidade do
direito 137
B. A utilidade de umi metodologia histórica com-
parativa 144
2. A APLICAÇÃO DA .EI NO TEMPO 147
A. A duração de apliiação da lei 148
B. A não-retroatividale da lei 150

Seção II - O tempo no Jireito 152


1. AS ÁREAS EM QUEO DIREITO LEVA EM CON-
SIDERAÇÃO O TE1VPO l53
A. Sujeição ao tempo 153
a) O instante 153
b) A duração 155
B. O tempo administndo 157
2. VALORES E ESTRATÉGIAS JURÍDICAS DO
TEMPO 159

CAPÍTULO 2 - O direito e o espaço 165

Seção I - O direito no tspaço 1


1. A RELATIVIDADE DO DIREITO 167
A. A territorialidade io direito 168
B. Grandes sistemas le direito e metodologia jurídi-
ca comparativa ..... 1^1
2. A COORDENAÇÃO DAS ORDENS JURÍDICAS.... 176
A. A unificação legislativa 177
B. O solucionamento dos conflitos de leis e de juris-
dições 181

Seção II - O espaço no direito 183


1. O LUGAR DE SITUAÇÃO 183
A. Lugar de situação e direito substancial 184
B. Lugar de situação e direito processual 186
2. A DISTÂNCIA E A EXTENSÃO 187
A. Sujeição ao espaço 188
B. O espaço administrado 190

CAPÍTULO 3 - O direito e os fatos sociais 195

Seção I - As relações entre o direito e os fatos sociais. .. 197


1. A RELAÇÃO DE NATUREZA 198
A. A relação essencial 198
B. A relação substancial 203
2. UMA RELAÇÃO DE FILIAÇÃO? 206

Seção II - A sociologia jurídica 209


1. O OBJETO DA SOCIOLOGIA JURÍDICA 211
A. O campo da sociologia jurídica 213
B. A utilidade da sociologia jurídica 215
2. OS MÉTODOS DA SOCIOLOGIA JURÍDICA 217

SEGUNDA PARTE
A APLICAÇÃO DO DIREITO

TÍTULO I - OS INSTRUMENTOS DO DIREITO ... 227

CAPÍTULO 1 - As instituições jurídicas 229

Seção I - Uma noção única 230

/
1. A UTILIDADE DAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS.. 231
2. A DEFINIÇÃO DAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS . 233
3. A ESPECIFICIDADE DAS INSTITUIÇÕES JU-
RÍDICAS 238

Seção II - Uma realidade múltipla 242


1. AS INSTITUIÇÕES-ORGANISMOS 244
2. AS INSTITUIÇÕES-MECANISMOS 246

CAPÍTULO 2 - Conceitos e categorias jurídicas 251

Seção I - Determinação dos conceitos e das catego-


rias jurídicas 254
1. A DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS 255
A. O aspecto substancial da definição 255
B. O aspecto formal da definição 263
2. A DETERMINAÇÃO DAS CATEGORIAS 265
A. A admissão das categorias jurídicas 266
B. Os critérios de determinação das categorias 270

Seção II - Categorias jurídicas e método das classi-


ficações 274
1. OS CARACTERES DAS CATEGORIAS JURÍ-
DICAS 274
A. A flexibilidade das categorias jurídicas 274
B. Tipologia das classificações 277
a) Categorias cumulativas e categorias alterna-
tivas 277
b) Categorias equivalentes e categorias hierarqui-
zadas 278
2. CONJUNÇÃO DAS CATEGORIAS E INVESTI-
GAÇÃO DO REGIME JURÍDICO 279
A. As conseqüências c/as qualificações múltiplas ... 280

B. Os corretivos para o método das classificações 282

CAPÍTULO 3 - A linguagem jurídica 289

Seção I - A terminologia jurídica 292


1. AS FUNÇÕES PRÓPRIAS DO VOCABULÁRIO
JURÍDICO 293
A. A qualidade da regra de direito 293
B. A comunicação da regra de direito 295
2. O PARTICULARISMO DO VOCABULÁRIO JU-
RÍDICO 298
A. As origens do vocabulário jurídico 298
B. A estrutura do vocabulário jurídico 301

Seção II - A fraseologia jurídica 304


1. A CONTRUÇÃO FRASEOLÓGICA 305
A. A enunciação jurídica 305
B. O significado jurídico 307
2. A APRECIAÇÃO DA LINGUAGEM JURÍDICA.. 310
A. Tecnicidade e linguagem específica 311
B. Inteligibilidade e linguagem corrente 312

TÍTULO II - A APLICAÇÃO DO DIREITO 317

CAPÍTULO 1 - A letra e o espírito 319

Seção I - A letra e o espírito: princípios de interpre-


tação dos textos 321
1. A INTERPRETAÇÃO DA REGRA DE DIREITO... 322
A. O método exegético 325
B. A contestação da exegese 329
C. Os métodos atuais de interpretação 331
2. A INTERPRETAÇÃO DOS ATOS JURÍDICOS.... 333
A. O princípio de métodos subjetivos de interpre-
tação.:. 334
B. O ressurgimento de métodos objetivos de inter-
pretação 337

Seção II - A letra e o espírito: princípios de aprecia-


ção dos comportamentos 338

1. O ABUSO DE DIREITO 339


2. A FRAUDE 343

CAPÍTULO 2 - Os raciocínios jurídicos 351

Seção I - A estrutura dos raciocínios 353


1. TIPOLOGIA DOS RACIOCÍNIOS E RACIOCÍNIO
JURÍDICO 356
A. Análise e síntese, dedução e indução 356
B. Lógica formal e dialética 360
2. O PARTICULARISMO DOS RACIOCÍNIOS JURÍ-
DICOS 368
A. A argumentação jurídica 368
B. A natureza mista dos raciocínios jurídicos 371

Seção II - A escolha das proposições 373


1. AS PROPOSIÇÕES FILOSÓFICAS 373
A. As proposições fundamentais 374
B. A dissociação das noções 377

2. AS PROPOSIÇÕES TÉCNICAS 379

CAPÍTULO 3 - O fato e o direito 387

Seção I - A apreensão do fato pelo direito 388


1. O ESTABELECIMENTO DOS FATOS 389
A. O objeto da prova 392
B. Prova direta e presunções 395
Introdução

1. - Depois de obras como as de P. Roubier, J. Dabin, J.


Haesert, C. du Pasquier, P. Pescatore ou M. Virally1, pode pa-
recer pretensioso aventurar-se numa nova obra de teoria geral
do direito. Mas, apesar de raras obras recentes 2 , muitos juris-
tas, que se abeberam em regulamentações e soluções pontuais
e efêmeras, parecem desinteressados dos grandes princípios e
dos aspectos metodológicos do direito. Ora, o jurista deve ser
um regente de orquestra, apto a dominar e coordenar todos os
instrumentos do direito: a solução jurídica não pode provir do
som, por vezes discordante, de uma disposição isolada, mas
depende para sua compreensão, para sua aplicação e sua exe-
cução dos princípios, das instituições, dos conceitos e dos pro-
cedimentos técnicos da ordem jurídica geral. O jurista não
pode ser nem um mero autômato, condenado à aplicação servil
de uma regulamentação exageradamente meticulosa, nem um
aprendiz de feiticeiro que desencadeia conseqüências desorde-
nadas e imprevistas por ignorar a dependência e a inserção da
regra de direito em seu contexto.

1. P. ROUBIER, Théorie general e dudroit, 1951; J. DABIN, Théorie généra-


le du Droit, T. ed„ 1969; J. HAESERT, Théoriegénérale du droit, Bruxelas. 1948; C.
DU PASQUIER, Introduction à la Ihéorie générale et à la philosophie du droit,
Delachaux et Niestlé, 6? ed., Neufchâtel); P. PESCATORE, Introduction à la science
du droit, Luxemburgo, 1960, reimpressão e atualização, 1978; M. VIRALLY, La pen-
sée juridique, 1960; ver também H. KELSEN, Théoriepitre du droit, Ch. Eisenman,
1962. (Trad. bras. Teoria pura do direito. Martins Fontes, São Paulo, 1985.)
2. Ver M. VAN HOECKE, Wkxl is Legal Theory, Leuven, 1985.
XVI TEORIA GERAL DO DIREITO

Uma concepção global do direito é indispensável ao estu-


do e à elaboração das normas jurídicas; são requeridos méto-
dos específicos para utilizá-las. Parece necessário, numa época
de exagerada regulamentação, de dirigismo levado ao extremo,
de reviravoltas técnicas, humanas e sociais e, de modo mais es-
pecial, na hora da informática, lembrar que é preferível para um
jurista "uma cabeça bem-feita a uma cabeça repleta" e que o co-
nhecimento puro, para o qual a memória humana é suplantada
pelo computador, nada é sem uma concepção geral do direito,
sem um raciocínio e um método apropriados. Portanto, nosso
objetivo aqui é, dentro de uma perspectiva metodológica, des-
tacar os elementos essenciais que dominam a elaboração do di-
reito e exumar os instrumentos e os raciocínios indispensáveis
à sua utilização.
Não se poderia então pretender inovar nem atingir verda-
des definitivas, nem sequer ser exaustivo. Uma vida não seria
suficiente para tanto. Outros, bem mais qualificados, tentaram
fazê-lo sem consegui-lo. Mas, correndo o risco de parecer te-
merário, não será melhor enfrentar uma tarefa difícil do que se
furtar a ela por medo de ser demasiado imperfeito? O método
seguido aqui se pretende, portanto, puramente impressionista.
Trata-se, com alguns temas mais significativos ou menos co-
nhecidos, de suscitar com sucessivas pinceladas impressões de
que o próprio leitor atento deverá tirar sua imagem. Tentar-se-ão
esboçar fôrmas permanentes da construção jurídica nas quais
se moldam as exigências e as aspirações variáveis de cada so-
ciedade, conforme as épocas, as latitudes e as escolhas ideológi-
cas ou técnicas. Para tanto, muito será extraído das obras alheias,
mas sem pretender esgotar-lhes as riquezas e com a consciên-
cia de imensas lacunas. Tentar-se-á fazer a teoria geral viver me-
diante ilustrações no final de cada capítulo.
Com essa convicção de sua importância primordial para
todos os juristas, estudantes, profissionais e acadêmicos, e do
interesse que ela apresenta também para os não-juristas, cum-
pre, antes de mais nada, definir o objeto da teoria geral do di-
reito (Seção I) e salientar sua necessidade (Seção II).
INTRODUÇÃO XVII

SEÇÃOl
Objetivo da teoria geral do direito

2. - A palavra "direito" não pode ser aqui entendida ex-


clusivamente nem, dentro da perspectiva dos moralistas, filó-
sofos ou teólogos, como sinônimo de justiça, nem no sentido
puramente formal de regras de direito positivo. Claro, nenhu-
ma dessas acepções pode ser desprezada; mas é como disci-
plina normativa destinada ao estabelecimento de regras de
conduta c à organização das relações sociais que o direito será
examinado.
O direito objetivo é o conjunto das regras que regem a
vida em sociedade e cujo respeito é garantido pelo poder pú-
blico. Costuma-se ter tendência a identificá-lo com o direito
positivo, ou seja, com o conjmtixdas_regra&jurídicasjdgentes
num d a d o j n o m e n t o numa dada sociedade. Mas essa visão é
eitríta demais, pois o estado do direito num país e num deter-
minado momento é apenas a expressão momentânea das múl-
tiplas soluções possíveis, suscetíveis de serem aplicadas nos
inumeráveis campos que o direito deve reger. Ele não pode dis-
sociar-se de fenômenos mais amplos, nem ser isolado de suas
fontes ou de seu contexto. Depende da história, do meio huma-
no, social, econômico etc., das escolhas ideológicas.
A despeito da identidade dos termos utilizados, não pode-
ríamos confundir o direito objetivo e as prerrogativas reconhe-
cidas aos indivíduos ou aos grupos de indivíduos, ou seja, os
direitos subjetivos que o direito objetivo consagra em proveito
das pessoas jurídicas e que lhes conferem poderes sobre bens
ou relativamente a outrem. Os direitos subjetivos correspon-
dem a um dos conceitos principais da construção jurídica e não
serão ignorados nesta obra. Mas a teoria geral do direito se re-
fere, com maior largueza, ao direito objetivo, sendo nesse sen-
tido que a palavra direito é nela empregada.
Há que definir a teoria geral do direito e distingui-la de ou-
tras disciplinas, especialmente da filosofia (§ 1), antes de lhe de-
terminar o conteúdo (§2).
XVIII TEORIA GERAL DO DIREITO

1. Distinção entre a teoria geral e a filosofia do direito

3. - A teoria geral do direito, oriunda do sucesso das ciên-


cias positivas no final do século XIX, era então concebida
como o meio de ir além da simples descrição do direito, liber-
tando-se ao mesmo tempo das teorias do direito natural; ela se
fundava na idéia de que o direito pode constituir "um objeto
científico positivo". Depois da Segunda Guerra Mundial, foi
compreendida, por reação antipositivista, mais como a investi-
gação dos valores, das normas e das ideologias não-jurídicas,
subjacentes à aparente neutralidade dos conceitos, das regras e
das teorias jurídicas. A noção de teoria geral do direito mostra-
se então ambivalente, até mesmo ambígua, pois é, para uns,
uma emanação da filosofia do direito e, para outros, uma abor-
dagem científica, próxima da "dogmática jurídica", ou seja, da
parte da ciência do direito consagrada à interpretação e à siste-
matização das normas. Conquanto ela não pareça ter adquirido
verdadeira autonomia, nos países anglo-saxões, onde o termo
"jurisprudência" significa "a ciência do direito", a teoria geral
foi definida como a ciência cujo objetivo é a exposição dos
princípios, das noções e das distinções que são comuns aos
diversos sistemas de direito 3 .
Consideraremos aqui que a teoria geral do direito tem o
objetivo de apreender o fenômeno jurídico mediante o estudo
de sua razão de ser, de suas finalidades, de seus conceitos fun-
damentais, de sua utilização, de seus instrumentos, de seu mé-
todo etc. Em suma, estuda a ordem jurídica em sua globali-
dade, através de seu "por quê? e de seu "como? ". E uma cons-

3. H-L. A. HART, The Concept ofLaw, Oxford, 1961, pp. 366-7, tradução
francesa de M. Vau de Kerchove, Bruxelas, 1976. Sobre essas definições, ver
Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociotogie du droit. Paris, L.G.J.;
sob a direção de A. J. ARNAUD, Théorie générale dudroit, Bruxelas, 1988, 2' ed.
Ver também: LORDE LLOYD of HAMPSTEAD e M . D. A. FREEMAN, Uoyi's
Introduction toJurisprvJence, Stevens, 5? ed., Londres, 1985. Para uma bibliogra-
fia sobre a teoria do direito, ver Current Legal Theory, International Journal for
Documentation ou LegalTheery (Bibliography, Abstracts, Reviews), Leuven, Acco.
vol. 4/2, 1986.
INTRODUÇÃO XIX

trução intelectual metódica e organizada fundamentada na


observação e na explicação dos diversos sistemas jurídicos e
destinada a definir os grandes eixos da construção e da apli-
cação do direito. Seu estudo não poderia deixar de lado os as-
pectos essenciais da metodologia jurídica4.
Constata-se, segundo o antigo adágio ubi societas, ibijus,
que todas as sociedades foram sempre e em toda parte dotadas
de umlTórcfem jurídica. Sem dúvida, essa ordem jurídica varia
muito segundo as organizações sociais, as épocas, os sistemas
de pensamento: não há muitas semelhanças entre povos primi-
tivos que vTvem da caça e da pesca e submetidos a ritos mági-
cos ou místicos e as sociedades refinadas, industrializadas e
dotadas da tecnologia avançada dos países desenvolvidos do
século XX.
E legítimo perguntar-se se existem regras sociais univer-
sais. A antropologiajurídica, cujo objetivo é o conhecimento
da j u ri d i cl dadé .'"HcTp e n s a me n t o e da atividade lündica nas di-
versas tormãs dc civilizações e de tradições culturais, pode efi-
cazmente proporcionar respostas a essa questão 5 . Existe, po-
rém, entre essas sociedades um elemento em comum: regras
obrigatórias dc conduta c uma organização das relações sociais
objetivamente sancionada. (A teoria geral do direito devejrôr
e m e vídencía^olTeleme ntos constantes e as principais variantes
dos diversos sistemas^ Ainda que só possa fundamentar-se no
"estudo de uma pequena parte dos sistemas jurídicos passados
ou presentes, ela pode, com essa amostragem, descobrir sob a
diversidade deles uma plataforma em comum composta de cer-
to número de constantes, como o poder ou a sanção, e de uma
estrutura de pensamento em comum.

4. Ver p. ex. F. BYDLINSK.I, Juristische Methodeniehre unil Rechtsbegriff,


ed. Springer Verlag, Viena-Nova York, 1982; P. DELNOY, Initiation aux métho-
des d'application du Droil.ed. Presses Universitaires de Liège, 1989-90; X. DIJON.
Méthodologie juridique - L 'application de ta norme, ed. Story scientia, 2? ed., 1996;
V. PETEV, Metodologia y ciência jurídica en el umbral dei siglo XXI, Universidad
Externado de Colombia, 1996.
5. J. F. PERRIN, Por une théorie de ia connaissance juridique, ed. Droz.
Genebra. 1979, pp. 71 ss.; N. ROULAND, Anthropologie juridique, Paris, P.U.F..
Col. "Droit fondamentai", 1988.
XX TEORIA GERAL DO DIREITO

A teoria geral do direito é duplamente geral. Ela o é so-


bretudo por se dedicar ao significado da norma jurídica me-
diante uma análise de sua finalidade e de sua função e median-
te uma reflexão sobre a estrutura, os procedimentos e o mé-
todo do pensamento jurídico. É igualmente geral no sentido de
estudar o direito em seu conjunto e não simplesmente um sis-
tema jurídico particular ou um ramo especial do direito, mes-
mo que o direito nacional e a especialidade de cada autor o in-
centivem inevitavelmente a extrair deles grande parte de sua
inspiração.
—£ 4. - A teoria geral do direito se distingue então nitidamen-
te da filosofia do direito, concebida como uma metafísica ju-
rídica. A teoria geral parte da observação dos sistemas jurí-
dicos, da investigação de seus elementos permanentes, da ar-
ticulação deles, para extrair-lhes os conceitos, as técnicas, as
principais construções intelectuais... A filosofia do direito^
por sua vez, é mais filosofia do que direito. Tende a despojar o
direito de "seu aparelho técnico a pretexto de melhor atingir
sua essência para descobrir seu significado metajurídico", os
valores que ele deve perseguir, seu sentido com relação a uma
visão total do Homem e do mundo... Por certo, grandes filó-
sofos como Platão, Aristóteles e, sobretudo, Kant ou Hegel
se interessaram pelo direito, mas se preocuparam mais com o
que ele deve ser do que com o que é. A teoria geral do direito
não ignora a importância da filosofia do direito e deve referir-
se com freqüência aos fundamentos e às diversas finalidades
do direito, mas a filosofia não é seu objeto principal. Para ela,
trata-se de estudar o direito tal como é e não como deveria ser
e de nunca perder de vista os sistemas jurídicos transcenden-
do-os em valores absolutos. •
Noutras palavras, se em teoria geral do direito, como em
filosofia do direito, tenta-se compreender "o que é o direito,
por que ele é reconhecido, quais são seus objetivos e seus fun-
damentos", a teoria geral o faz mais a partir do direito e para
dominar sua aplicação, ao passo que a filosofia do direito é em
geral uma filosofia do direito, que parte da filosofia para subli-
mar o jurídico em metafísica.
INTRODUÇÃO XXI

Cumpre ainda distinguir a teoria geral do direito da epis-


temologia jurídica 6 . A epistemologia é um estudo crítico dos
princípios, dos postulados, dos métodos e dos resultados do co-
nhecimento do direito. Consagra-se apenas ao estudo dos modos
d^cóYihêcimento do direito e é destinada a dirigir o pensamen-
to jurídico, afastando-se das realidades da vida e das necessi-
dades perceptíveis para só considerar as jioçõesjpuras^ ordená-
las nelas mesmas, isoladamente dos interesses concretos que
elas representam, a chegar a uma construção jurídica unica-
mente pelos esforços do pensamento 7 . A epistemologia 8 é, pois,
também mais orientada para o que o direito deveria ser do que
para o que ele é. A teoria geral do direito é mais próxima da fe-
nomenologia do direito 9 , ou seja, de um método consistente
em "voltar às próprias coisas", em observá-las em sua realida-
de concreta sem idéia preconcebida.
Mas qual é, então, o conteúdo da teoria geral do direito?

2. Conteúdo da teoria geral do direito

5. - Apesar das divergências relativas à definição do di-


reito, pode-se admitir que o direito tende a estabelecer uma
ordem social harmoniosa e a reger as relações sociais com o
cuidado de nelas promover, em graus diferentes conforme os
casos, uma certa ordem moral, a segurança jurídica ou o pro-
gresso social. Os fins perseguidos e a técnica utilizada variam
segundo os sistemas jurídicos e, às vezes, num mesmo siste-
ma, segundo os ramos do direito. Mas, quanto ao essencial, os
modelos oferecidos são em número limitado; as escolhas feitas
pelos diversos sistemas de direito em geral não são bem defini-

6. C. ATIAS, Epistémologiejuridique, ed. P.U.F., Col. "Droit fondamental",


1985; C. ATIAS, Epistémologie du droit, ed. P.U.F., Col. "Que sais-je?", vol.
2840. 1994; M. MIAILLE, Une introduction critique au droit, ed. Maspero, 1976,
pp. 31 ss.
7. F. GENY, Science et technique en droitprivépositif, 1913,1.1, n?s 35 a 56.
8. C. ATIAS, op. cit., n?s 35 s.
9. P. AMSELEK, Méthode phénoménologique et théorie du droit, 1964.
XXII TEORIA GERAL DO DIREITO

das nem exclusivas, mas procedem por dominantes ou por pe-


quenas variações. Por conseguinte, é possível, no seio de uma
teoria geral, extrair do estudo dos principais sistemas os grandes
problemas comuns, as escolhas possíveis, as noções e as insti-
tuições fundamentais, os processos intelectuais e os meios ma-
teriais ou formais de toda organização jurídica e de lhes apre-
ciar a aplicação por uma determinada ordem jurídica.
—O direito é, por outro lado, uma disciplina dinâmica. Os
juristas, partindo das soluções estabelecidas pelos textos, pela
tradição judiciária ou pela prática, vinculam-nas a princípios
gerais dos quais se podem deduzir depois outras soluções para
resolver problemas novos, novas formas de atividades, novas
relações jurídicas etc. O aparecimento de necessidades e de re-
lações novas às vezes exige reformas ou novas construções ju-
rídicas; mas estas nunca se estabelecem ex nihilo e sempre es-
tão relacionadas, por equilíbrios diferentes, com modelos, com
conceitos e aspirações já conhecidos. A transformação cons-
tante do direito, ainda que possa não ser uniforme, procede
mais por evolução do que por revoluções porque, em profundi-
dade, toda convulsão acaba por acalmar-se com as exigências
do sistema jurídico e social em que ocorre. Grandes autores
franceses, como G. Ripert e R. Savatier, evidenciaram "as for-
ças criativas" e "as metamorfoses" do direito. Outros, como G.
Gény, indagaram-se se o direito é "dado ou construído" para
admitir que, embora o dado seja impregnado pela ciência e
"ofereça variedades", ele é "por demais abstrato em compara-
ção com as realidades tangíveis e deve ser aplicado por meio
de uma 'técnica' jurídica, feita de procedimentos plásticos (for-
mas, categorias etc.) ou intelectuais (conceitos, ficções etc.)
caracterizados pelo artifício de uma série de meios adaptados
ao objetivo próprio do direito e que modelam as coisas" 10 .
Aí está a teoria geral! E, quando se faz a pergunta habitual
de saber se o direito é uma ciência ou uma arte, todos acabam
por convir que é uma arte consistente em melhorar as relações

10. F. GÉNY, Science el technique en droit prixé positif, em especial t. IV,


1924, n? 302.
INTRODUÇÃO XXIII

sociais formulando regras justas e aplicando-as de maneira


eqüitativa, mas que também é uma ciência, pois o direito não
se atém a estabelecer regras, a interpretá-las e a resolver situa-
ções litigiosas: tem também a tarefa de classificar os fatos jurí-
dicos, de construir teorias, de elaborar princípios. Mas, para ex-
plicar e resolver as_aspirações e as relações sociais, o direito
"nãcTpòde ficar afastado das outras disciplinas sociais, da filoso-
tia, dá história, da sociologia, da economia, da antropologia, da
política etc. 11 , ainda que alguns autores, como H. Kelsen, pre-
guem uma "teoria pura do direito" depurada de toda ideologia
política e de todos os elementos dependentes da "ciência".
6. - Ora, "toda elaboração jurídica é dominada por opera-
ções intelectuais e por uma metodologia, baseadas nos princí-
pios da lógica comum, com certa flexibilidade, comandada
pela natureza própria do objeto a ser penetrado" 12 .
A metodologia jurídica, disseram13, tem o objetivo de ela-
borar as normas aplicáveis às relações sociais, de distinguir
as regras que permitem, consoante as metas perseguidas em
dada sociedade e a coerência de seu sistema jurídico, atingir o
resultado almejado da maneira mais eficaz e mais econômica,
com o cuidado constante de garantir a segurança jurídica. Ca-
be-lhe dirigir a elaboração dos textos, pôr em evidência os
princípios de interpretação e de aplicação do direito positivo,
garantir-lhes a harmonia evitando contradições ou distorções,
estabelecer-lhes a formulação, facilitar-lhes o funcionamento,
fazer a crítica deles, dominar-lhes a evolução...
Mas, para esses fins, o procedimento intelectual não é sem-
pre e em toda parte o mesmo. Nos principais sistemas contem-
porâneos, distinguimos as formas de raciocínios dedutivos esta-
belecidos a partir de princípios indutivos de um conjunto nor-
mativo, que dominam nos direitos romano-germânicos, e o ra-
ciocínio analógico que prevalece nos direitos de common law,
fundamentados principalmente nos "precedentes" judiciários.

11. H. LÉVY-BRUHL, Aspects sociologiques du droit, 1955, pp. 33 ss.


12. F. GÉNY, ibid.
13. E. S. DE LA MARNIERRE, É/éments de méthodologiejuridique, 1976.
XXIV TEORIA GERAL DO DIREITO

De outro lado, mesmo num determinado direito, como em


direito francês, o método não é idêntico quando se trata de
apreciar o direito em comparação com seu meio ideológico e
material ou quando se faz metodologia legislativa, metodolo-
gia judiciária ou redação de certidões, ou ainda conforme se
trate de metodologia da prova, da interpretação, da formula-
ção, ou mesmo quando se trata de direito civil, de direito co-
mercial, de direito penal, de direito constitucional ou adminis-
trativo. Mas, seja qual for a atividade jurídica praticada, devem
ser empregados elementos comuns tais como a definição do
direito, as fontes do direito, os princípios gerais do direito, a
regra de direito, o meio geográfico, temporal e social do pro-
blema jurídico, as instituições, os conceitos e as categorias, a
linguagem jurídica, a relação entre o fato e o direito, o juiz, o
processo, certos tipos particulares de raciocínio etc. A teoria
geral do direito deve, assim, ser apreendida dentro de uma
perspectiva metodológica e tem como objetivo estudar essas
grandes questões.

SEÇÃO II
Necessidade da teoria geraI do direito

7. - Situando-nos no plano "macrojurídico" do conjunto de


um sistema de direito, até mesmo de uma instituição, ou no
plano "microjurídico" de uma regra ou de uma situação parti-
cular, a elaboração, a compreensão e a aplicação do direito exi-
gem respostas a certas perguntas: Por quê? Quando? Como?
O "porquê" do direito permite detectar-lhe a finalidade e
o espírito que tem de ser respeitado para a interpretação, a evo-
lução e a aplicação das normas, a fim de que não sejam desvia-
das de seu objeto e de que a coerência do sistema não seja cor-
rompida. A pergunta "quando?" determina o campo de aplica-
ção e os limites de um sistema, de uma instituição ou de uma
regra. A resposta que lhe é dada define um campo limitativo,
subordinado à reunião de condições estritas, ou residual, sem-
pre suscetível de extensão. Ela expressa o caráter geral ou es-
INTRODUÇÃO XXV

pecial, de direito comum ou derrogatório, de um regime ou de


uma dada norma. A pergunta "como?" corresponde ao caráter
imperativo ou supletivo das disposições ou dos estatutos consi-
derados, a possibilidade de derrogá-los, a força obrigatória de-
les, o tipo de sanções aplicáveis etc.
O recurso a uma teoria geral metodológica do direito é,
portanto, uma necessidade conceptual (§ 1) e prática (§ 2).

1. Necessidade conceptual

8. - No plano conceptual, a teoria geral é necessária para


optar entre uma concepção substancial e uma concepção for-
mal do direito ou, mais provavelmente, para conciliar essas
duas abordagens.
Na percepção substancial do direito, concentramo-nos na
razão de ser, na origem, na justificação, na finalidade do di-
reito. Privilegiamos seus grandes princípios, independente-
mente das formas que a norma assume e da lógica formal do
sistema jurídico. O fenômeno jurídico é então abordado princi-
palmente por seu "por quê?" e tratado dentro da perspectiva da
justiça que ele deve assegurar ou das realidades sociais a que
deve satisfazer ou do progresso social que deve realizar...
Na abordagem formal do direito, a segurança jurídica e
as regras de direito positivo dominam o sistema de direito que
parece expressar sobretudo a vontade e a ação do poder públi-
co, parecendo primordial a sua coerência. O ápice, dentro des-
sa ótica, parece ter sido atingido por H. Kelsen, ^ u e j e d u z j )
direito a um encadeamento de normas hierarquizadas, sendo
que cada uma tira sua força obrigatória apenas de sua confor-
midade com a norma superior. Assim, apenas o elemento nor-
mativo é considerado, ao passo que a razão de ser e o conteúdo
das normas são abandonados a outras disciplinas que não o
direito.
O erro dos juristas é em geral o de se contentar Gam_a-sim-
plestéçníca j urídica, reduzindo o direito a uma regulamentação
especializada ou, inversamente, denegrindo o positivismo, o de
XXVI TEORIA GERAL DO DIREITO

desprezar a técnica e as exigências concretas. Quanto ao racio-


cínio jurídico, aqueles que o estudam dividem-se entre os parti-
dários de uma lógica da argumentação mesclada de romantis-
mo e os seguidores incondicionais da lógica formal.
--=ví)ra, o direito é um sistema organizado de valores, de prin-
cípios, de instrumentos técnicos etc, expresso por regras preci-
sas das quais não se podem desprezar os fundamentos nem as
manifestações concretas ou formais. A análise do direito en-
quanto sistema, ou seja, como "um conjunto de elementos em
interação, que constituem uma totalidade e manifestam uma cer-
ta organização", pode ser resumida na afirmação simples, mas
fundamental, de que em direito "tudo é interdependente".
A "sistêmica" ou "ciência dos sistemas", por desenvolver
métodos de modelização dos fenômenos complexos, parece
aplicar-se perfeitamente ao direito, permitindo-lhe estudar os
elementos constitutivos e as relações entre esses elementos e o
meio exterior. Importa pouco, então, saber se o direito é um
sistema em si ou um simples subsistema social global, como a
política, a moral a religião etc., e de qual tipo de sistema se trata.
A análise sistêmica do direito não contradiz nem sua abertura,
nem seu dinamismo, nem sua complexidade, nem sua flexibili-
dade, nem seus vínculos com outros sistemas... Ela permite
evidenciar-lhe a especificidade, a coerência global, a lógica, as
inspirações, as finalidades, sem, por isso, abstrair realidades
das quais ele emana e às quais se aplica, sem ocultar os subsis-
temas múltiplos dos quais se compõe, sem paralisar sua evolu-
ção... A abordagem sistêmica é particularmente útil à concepção,
ao estudo e à aplicação do direito, pois se trata mesmo de um
"conjunto organizado e dinâmico de práticas, de métodos e de
instituições que formam a um só tempo uma construção teórica
e um método prático" 14 .

14. Sobre a aplicação da abordagem sistêmica e da noção de sistema ao


direito, ver em especial: "Le système juridique", Areii. de philo. du droit, t. 31,
1986; J. L. LE MOIGNE, La théorie générale des sysíèmes, Paris, P.U.F., 1978;
"Les systèmes juridiques sont-ils passibles d'une représentation systémique", Rcv.
rech. juridique, Droit Prospectif, 1985-1. pp. 155 ss.; P ORIANNE. Introducricn
INTRODUÇÃO XXVII

O raciocínio jurídico não é nem uma demonstração mate-


mática nem simples retórica. É feito de controvérsias, de dialé-
tica no sentido aristotélico do termo, mas também recorre à
lógica formal. Inspira-se ao mesmo tempo em princípios abs-
tratos e em realidades concretas, com um vaivém constante do
dirêitü ãos fatos.
Por conseguinte, deve-se combinar a abordagem pura-
mente substancial do direito e suas expressões formais. O pen-
samento jurídico conduz geralmente a equilíbrios ou escolhas
entre imperativos contrários dos quais uma das resultantes é a
solução. As regras ou os princípios podem nele acumular-se
esquematicamente, excluir-se ou conciliar-se. É necessário,
para a apreensão e para a aplicação do direito, estudar pela teo-
ria geral os princípios, os conceitos, as instituições, os meca-
nismos etc. que comandam o pensamento jurídico e são por ele
empregados.

2. Necessidade prática

9. - No plano prático, para a elaboração e, mais amiúde,


para a aplicação concreta do direito, os juristas devem impera-
tivamente recorrer à teoria geral para descobrir, interpretar,
executar as soluções possíveis.
Para estabelecer uma relação jurídica, defender interesses,
resolver um litígio, bem como para reger uma série de situa-
ções de direito, cumpre inventariar as normas e os interesses
em causa, articulá-los, empregar diversas instituições, instru-
mentos jurídicos, comparar os fatos e o direito, pesar os resul-

au système juridique, ed. Bruylant, Bruxelas, 1982; G. TIMSIT, Thèmes et systè-


mes de droit, P.U.F.. Paris, 1986, Col. "Les voies du droit"; M. VAN DE KER-
CHOVE e F. OST, Le système juridique entre ordre et désordre. P.U.F., Paris.
1988, Col. Les voies du droit; F. J. PEINE, Das Recht ais System, Berlim, 1983;
J. WROBLEWSKI, "Systems of norms and legal system", Rivista interna:ionale
difilosofia deldiritto, tomo 49, 1972, pp. 224 ss.; N. BOBBIO, "Nouvelles réfle-
xions sur les normes primaires et secondaires", in La règle de droit. Estudos publi-
cados por Ch. Perelman, ed. Bruylant, Bruxelas, 1971. pp. 104 ss.
XXVIII TEORIA GERAL DO DIREITO

tados possíveis, integrá-los num sistema jurídico, econômico,


político, social etc. Cumpre qualificar as situações jurídicas,
descobrir seus diversos aspectos, pesquisar os textos e a juris-
prudência aplicáveis, mediante distinções ou assimilações dar-
lhes novas aplicações, solucionar as contradições eventuais
entre as normas, comparar-lhes o alcance, fixar-lhes a área de
aplicação... Tudo isso exige que se refira à teoria geral do di-
reito, ao espírito dos textos, à linguagem jurídica, à definição
dos conceitos, às categorias jurídicas, à hierarquia dos textos,
aos diversos métodos de raciocínio, aos princípios de interpre-
tação da lei, aos mecanismos da prova, da organização judiciá-
ria, do processo...
Como o senhor Jourdain, personagem de Molière, fazia
prosa sem saber, o jurista faz a todo momento teoria jurídica
sem perceber. Mas por isso necessita disciplinar seu pensa-
mento, confrontando os elementos de fato e os dados do siste-
ma jurídico.
Essa necessidade ficou mais imperiosa hoje. Na maioria
dos sistemas de direito, ao que parece, a crescente intervenção
dos poderes públicos em todos os setores de atividades, em
nome de uma tendência geral a mais dirigismo, redunda em
multiplicar os textos 15 que ficam cada vez mais minuciosos e
técnicos. A regulamentação do pormenor, por mais acurada
que seja, não pode entretanto prever tudo, ao passo que princí-
pios gerais podem abrigar múltiplas situações novas e impre-
vistas. Ela conduz a vazios jurídicos ou, inversamente, a con-
tradições entre demasiados textos que se sobrepõem. Cumpre,
para preencher essas lacunas e solucionar essas contradições,
assim como para fazer frente às múltiplas situações novas cria-
das pela evolução social e técnica ou pela multiplicação dos
intercâmbios, recorrer ainda mais do que outrora aos princí-

15. Ainda que "a inflação legislativa", denuncia.da.com tanta freqüência, seja
às vezes mais ilusória do que real: ver C. A. MORAND, "La croissance norrnative
- Comment faire face à. une masse de droit considérable?", Schweizeriches Zeu-
tralblat fúr Staats und Gemeinde, Verwaltund-87, 1986-8, pp. 337 ss.; W. L1NDER,
S. SCHWAGER, F. COMANDINI, L'inflation législatixe, Lausanne, 1985.
INTRODUÇÃO XXIX

pios gerais, aos grandes conceitos, aos diversos métodos de ra-


ciocínio... O jurista não pode, como quando só tem de aplicar
regras gerais a situações particulares, contentar-se em ler e em
interpretar a lei.
10. - Desde sempre, foram feitos esforços, voltados para
uma teoria geral, consistente ao menos em um inventário dos
princípios fundamentais.
Um título inteiro do Digesto 16 formulava os princípios e
máximas do direito. A doutrina do Antigo Direito, mais espe-
cialmente em Loysel e Domat, empenhou-se em inventariar
"as máximas e institutos consuetudinários" e em apresentar "as
leis civis em sua ordem natural", noutras palavras, numa or-
dem lógica.
Assim também, na Inglaterra, quando o common law pa-
receu por demais desordenado e inadequado, nos séculos XV e
XVI, recorreram à equity para dar ênfase aos princípios do
direito. A doutrina alemã moderna, dentro da tradição aristoté-
lica e daquela dos "tópicos jurídicos" de outrora, esforçou-se
para aprofundar o raciocínio específico dos juristas 17 .
A obra fundamental de J. Dabin ou de Ch. Perelman, na
Bélgica, a de autores franceses tão prestigiosos como Gény, Du-
guit ou Roubier evidenciam a estreita dependência das manifes-
tações concretas do direito em relação à sua teoria geral.
Uma boa formação dos estudantes deveria ser mais bem
nutrida de teoria geral e menos entulhada de meros conheci-
mentos acumulados. A elaboração legislativa precisaria ser do-
minada graças a mais método e reflexão jurídica. Os profissio-
nais do direito sairiam ganhando com uma melhor utilização
dos instrumentos que a técnica jurídica comporta. As decisões
jurisdicionais poderiam apoiar-se em geral em escolhas mais
bem esclarecidas e em uma redação mais límpida se se abe-
berassem mais nos recursos da teoria geral do direito. Cumpre

16. Título 50, De diversis regulis júris antiqui.


17. Th. VIEHWEG, Topik und Jurisprudenz, 1953; G. STRUCK, Tapische
Jurisprudenz, 1971; CH. PERELMAN, Logique juridique - Nouvelle rhétorique
(trad. bras. Lógica jurídica, Martins Fontes, São Paulo, 1998).
PRIMEIRA PARTE

O fenômeno do direito

11. - O direito será um fenômeno espontâneo que nasce


da reunião dos homens em grupos e se impõe por si só a toda
vida social ou será apenas um conjunto de regras impostas
pelo poder público aos membros de uma sociedade e destina-
das a organizar as relações deles?
Gény distinguia, de um lado, "o dado", vindo das realida-
des dc fato ou dos princípios essenciais à ordem geral do mundo
que comporta uma certa permanência e se nos impõe, do outro,
"o construído", conjunto de elementos artificiais, variáveis e
contingentes, que tiram seu valor e sua eficácia da vontade hu-
mana e constituem os meios necessários para dar efeito às dire-
ções gerais fornecidas pelos fundamentos da sociedade.
Noutros termos, trata-se de saber quais são os fundamen-
tos do direito (Título I) e se este constitui um fenômeno ine-
rente a toda sociedade ou é só um conjunto normativo artificial
oriundo das decisões dos órgãos sociais. Mas o fenômeno jurí-
dico é essencialmente relativo: sua concepção e suas manifes-
tações variam no tempo e no espaço, conforme os sistemas de
direito, e são, portanto, dependentes de seu meio ambiente (Tí-
tulo II).
TÍTULO I

Os fundamentos do direito

12. - Os fundamentos do direito se identificam com todas


as suas raízes. Determinam tanto sua própria definição e as
diversas concepções que se podem ter dele (Capítulo 1), quanto
as fontes formais de que procede o direito objetivo (Capítulo 2)
e os princípios gerais que rodeiam seu desenvolvimento, domi-
nam seu conteúdo e inspiram sua evolução (Capítulo 3).
Capítulo 1
A definição do direito

13. - Definir o direito de uma maneira homogênea e defi-


nitiva parece impossível 1 . O termo "direito" é entendido pelos
moralistas, pelos religiosos e por certos filósofos, no sentido
de "justo" e de "justiça" enquanto, para os juristas, significa
"regra de direito". Para uns, é um ideal; para os outros, é uma
norma positiva. Alguns só vêem nele uma "disciplina de ação
destinada a instituir ou preservar certo estado da sociedade",
portanto uma simples disciplina social; outros buscam nele
um conjunto de regras de boa conduta. Para alguns, o direito é
apenas um aspecto dos fenômenos sociais, como a sociologia
ou a história. Para outros, é "um sistema de representações in-
telectuais que se edificam segundo princípios que lhe são pró-
prios, de modo totalmente independente dos fenômenos socio-
lógicos ou históricos". Alguns pensam que sempre é apenas "o
resultado provisório da luta secular travada pelas forças sociais
e das alianças de interesses que podem, em certos momentos,
operar-se entre elas". Outros rejeitam a idéia de que o direito
procede apenas de uma evolução histórica e de um determinis-
mo material e sustentam que o direito resulta apenas da vonta-
de e da atividade humana 2 .

1. Ver "Définir le droit", Revue "droits ", 1989-1, n? 10 e 1990-2, n? 11.


2. M. VIRALLY, Lapensée juridique, ed. L.G.D.J., 1960. Sobre as dificul-
dades da constituição de uma ciência jurídica: M. MIAILLE, Une introduction cri-
tique au droit, ed. Maspero, 1976, pp. 37 ss.
6 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

A busca de uma definição só pode apoiar-se nas diversas


teses assim sustentadas, mesmo que aqui só se possa fazer uma
evocação muito sumária delas. Ora, essa busca é forçosamente
difícil e incerta em razão da heterogeneidade das ordens jurídi-
cas, conforme as épocas e conforme os países, e das vicissitu-
des da determinação dos limites do direito em comparação com
outras regras sociais.
Pode-se provisoriamente admitir, porém, que o direito é
uma disciplina social constituída pelo conjunto das regras de
conduta que, numa sociedade com maior ou menor organização,
regem as relações sociais e cujo respeito é garantido, quando
necessário, pela coerção pública.
O direito, em si, é então, provavelmente, ao mesmo tempo
o produto dos fatos e da vontade do homem, um fenômeno
material e um conjunto de valores morais e sociais, um ideal e
uma realidade, um fenômeno histórico e uma ordem normati-
va, um conjunto de atos de vontade e de atos de autoridade, de
liberdade e de coerção... São suas diversas expressões que são
parciais e expressam mais ou menos, conforme os sistemas ju-
rídicos e conforme as matérias, ora a ordem social ou os valo-
res morais, ora o individualismo ou o coletivismo, ora a autori-
dade ou a liberdade...
A regra de direito é o produto da vida social, mas é tam-
bém criada por uma vontade sem a qual ela seria apenas virtual
e sem efeito. Procede de atos individuais ou se lhes aplica, mas
só pode impor-se comumente porque é reconhecida ou impos-
ta por uma autoridade social. A regra de direito se distingue
então da lei científica pois, contrariamente a esta que expressa
a constante e necessária sucessão de certos fenômenos, ela or-
ganiza comportamentos que nem sempre são observados. O di-
reito fornece modelos variáveis. Não produz automaticamente
efeitos constantes. Mas o direito é a um só tempo o fundamen-
to do que é exigível do homem que vive em sociedade e o con-
junto das regras que regem as relações dos homens entre si. É
ao mesmo tempo a ordem moral e social e as regras dc direito
positivo. A regra de direito, pela qual se exterioriza a ordem
jurídica e que assim é apenas seu elemento formal, não pode
O FENÔMENO DO DIREITO 7

ser apartada do fundo do direito, noutras palavras, dos funda-


mentos e das finalidades do sistema jurídico. Por conseguinte,
toda definição do direito supõe ao mesmo tempo o estudo do
fenômeno jurídico e o da regra de direito, do fundo e da forma.
Investigaremos, pois, as definições substanciais do direito (Se-
ção 1) e sua definição formal (Seção II).

SEÇÃO I
As definições substanciais

14. - Conquanto possamos dar-lhe múltiplas definições e


cada grande filósofo tenha sua própria concepção dela, a filo-
sofia pode ser definida como "o conjunto dos estudos e das
investigações que visam apreender as causas primeiras, a reali-
dade absoluta assim como os fundamentos dos valores huma-
nos e examinam os problemas em seu mais alto grau de gene-
ralidade" 3 . Assim, ela domina todas as ciências das quais é, de
certo modo, "o pastor". É indispensável ao estudo do direito,
pois deve determinar-lhe o campo em relação à moral, à políti-
ca e à economia: deve permitir defini-lo, compreender "o que
ele é, por que se reconhece, quais são suas metas e seus funda-
mentos" 4 .
Conquanto costume haver hesitação em saber se a filoso-
fia do direito deve partir da filosofia ou do direito, ela tem o
objetivo de "penetrar a natureza do direito positivo" e de com-
preender o real mediante a reflexão 5 . Para isso, deve em geral e
principalmente examinar o direito em seu conteúdo 6 . Certos

3. Petit Robert, Dicionário, verbete Philosophie.


4. C. ATI AS, Epistémologie juridique, P.U.F., 1985, n° 33; H. BATIFFOL,
Problèmes de base de philosophie du droit, L.G.D.J., 1979, p. 8; M. VILLEY,
Philosophie du droit, t. I, Définitions et fins du droit, Précis Dalloz, n" 1; ver "La
philosophie du droit aujourd'hui", Arch. dephilo. du droit, t. 33, Sirey, Paris, 1988;
Philosophie juridique europèenne, dir. de J. M. TRIGEAUD, Les institutions, ed.
Japadre, 1988.
5. J. DABIN, Théoriegénérale du droit, ed. Dalloz, 1969, n° 8.
6. C. ATI AS, ibidem.
8 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

filósofos, Kant e Hegel em especial 7 , consagraram à filosofia


do direito um tratado sistemático. Mas deve-se tomar cuidado
para não desnaturar o direito em um conceito puramente filo-
sófico despojando-o de seu aparelho técnico, a pretexto de
melhor atingir-lhe a essência. "A filosofia do direito é o ramo
da filosofia que se ocupa do direito." 8 O direito tem sua filoso-
fia particular, distinta da filosofia geral, bem como da filo-
sofia social e política. Ela não deve ser dissociada de seu obje-
to imediato 9 . Deve-se então adotar um "método fenomenológi-
co" 10 consistente em observar as realidades concretas, fora de
qualquer idéia preconcebida, e abordar o direito sob "seu as-
pecto fenomênico" de normas objetivamente submetidas ao
exame, em vez de o apreender através do prisma deformante
de um "a priori". Mas não se deve desprezar nem "o estudo
crítico dos princípios, dos postulados, dos métodos e do co-
nhecimento do direito", portanto "a epistemologia jurídica" 11 ,
nem a reflexão sobre o que o direito deveria ser.
Para além das manifestações tangíveis do direito que as
leis, as sentenças, os atos jurídicos etc. são, existem concep-
ções absolutas do direito, uma metafísica jurídica que pode
ser eterna e universal. Mas a metafísica do direito é variada,
pois cada qual pode ter sua concepção dela e cada sistema faz,
entre as diversas doutrinas, uma escolha particular para fun-
damentar suas próprias regras. Todo ordenamento jurídico re-
pousa na busca dos "valores sociais" que se trata de apreen-
der: a justiça, a segurança jurídica, o progresso social etc. As
doutrinas diferem consoante os valores que elas respectiva-
mente enfatizam, noutras palavras, conforme as finalidades que
perseguem 12 . E assim, através das diferentes tendências do

7. KANT, Príncipes métaphysiques de Ia philosophie du droit, 1797;


HEGEL, Fondements de la philosophie du droit, 1821.
8. G. DEL VECCHIO, Philosophie du droit, 1953, p. 13.
9. J. DABIN, op. cit., n? 9.
10. P. AMSELEK. Méthodephénoménologicjue et théorie du droit, 1964-. A
fenomenologia nasceu por influência de Edmond Husserl (1859-1938).
11. C. ATIAS, op. cit., especialmente n? 35 ss.
12. P. ROUBIER, Théorie générale du droit, T. ed., 1951, n? 36.
O FENÔMENO DO DIREITO 9

pensamento jurídico (§1), que se delineiam as finalidades do


direito (§ 2).

I. O pensamento jurídico

15. - As variações do pensamento jurídico são inumerá-


veis. Não caberia corrermos o risco de fazer aqui um estudo
detalhado e exaustivo dele. Podemos apenas evocar sumaria-
mente as principais tendências da filosofia do direito que po-
dem inspirar as escolhas fundamentais dos diversos sistemas
jurídicos.
Certos autores distinguem as "escolas formalistas", que
privilegiam a segurança jurídica graças à forma exterior da
regra de direito, as "escolas idealistas", que perseguem um
ideal de justiça e fazem da ordem jurídica uma ordem moral, e
"as escolas realistas", centradas no progresso social 13 . Mas a
maioria dos autores mostra, em toda a história das idéias sobre
os fundamentos e as finalidades do direito, duas grandes cor-
rentes14 cuja distinção traduz uma escolha fundamental entre
tendências idealistas (A) e tendências positivistas (B).
O antagonismo via de regra demonstrado entre essas
abordagens parece inexato e nefasto, a menos que se pretenda
impor uma determinada escolha ideológica com fins puramen-
te militantes, independentemente de qualquer preocupação
científica. Por si só, nenhuma das teses, idealista ou positivis-

13. P. ROUBIER, op. cit., n? 37; comparar, num sentido diferente: J. P.


SCHOUPPE, Le réalisme juridique, ed. Story-Scientia, 1987.
14. J. CARBONNIER, Droit civil, introduetion - Lespersonnes, P.U.F.. 11 ?
ed., n° 9; J. GUESTIN e J. GOUBEAUX, Traité de droit civil, introduetion géné-
rale, L.G.D.J., 2Í ed., n os 7 ss.; C. LARROUMET, droit civil, Introduetion à
Tétude du droitprivé, Economica, 1984, n?s 58 ss.; A. PIEDELIÈVRE, Introduetion
à Tétude du droit, ed. Masson, 1981, pp. 19 ss.; F. TERRÉ, Introduetion générale
au droit, Dalloz, 4? ed., n? 145; C. DU PASQUIER, Introduetion à la théorie
générale et à la philosophie du droit, Delachaux et Niestlé, Neufchatel, 6? ed.,
n™ 219 ss.; L. LLOYD OF HAMPSTEAD E M. D. A. FREEMAN, Lloyd's In-
troduetion toJurisprudence, Stevens, 5a ed., Londres, 1985; S. GOYARD-FABRE
e K. SEVE, Les grandes questions de la philosophie du droit, P.U.F., 1986.
10 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

ta, traz resposta suficiente à questão da definição do direito.


Em vez de opô-las para rejeitar uma ou outra, cumpre tentar
conciliar idealismo e positivismo. Sua complementaridade pre-
valece sobre sua pretensa incompatibilidade. Para além de qual-
quer exclusão, a definição do direito se abebera nas duas fon-
tes a um só tempo...

A. A filosofia idealista

16. - Para além da diversidade das teses a ele vinculadas,


o idealismo jurídico corresponde às doutrinas do "direito natu-
ral" e à afirmação de que existe um ideal de justiça superior ao
direito positivo que se impõe ao poder e ao próprio legisla-
dor 15 . As diversas tendências "jusnaturalistas" têm em comum
certas idéias essenciais: a afirmação de que o direito natural
procede da natureza, a existência de princípios não-escritos su-
periores ao direito positivo e que se lhe impõem, a primazia da
busca da justiça sobre o respeito à legalidade, a permanência
de certos valores que prevalecem sobre aqueles consagrados
pelos homens do Estado 16 .
Segundo essa doutrina, os homens poderiam subtrair-se às
regras que infringem os princípios superiores do direito ideal.

15. Sobre o direito natural, ver notadamente, Dijon (X) Doit nalurel, Les
questions du droit, 1.1, P.U.F., Thémis, 1998; J. FINNIS, Natural Law, 2 vols. Nova
York, Aldashot, Nova York, Darthmouth Press, Univ. Press, 1991; J. HERVADA,
Introduetion critique au droit naturei, Bordeaux, Bière, 1991; M. RODR1GUEZ
MOLINERO, Derecho natural e historia en el pensamiento europeo contemporâ-
neo, Madri, 1973; A. SÉRIAUX, Le droit naturei, P.U.F., "Que sais-je?", 1993; M.
VILLEY, "Abrégé du droit tiaturel classique", in Archnes de philosophie du droit,
1961, pp. 25 ss.; P. KAYSER, "Essai de contribution au droit naturei à 1'approche
du troisième millénaire", R.R.J., P.U.A.M, 1998, pp. 387 ss.
16. L. INGBER, "Jea.ii Bodin et le droit naturei", in Actes du colloque in-
terdisciplinaire d'Angers, 1984, Presses Univ. d'Angers, pp. 279 ss.; "Des thèories
du droit naturei", Cahiers de philosophie politique et juridique, Publications de
1'Université de Caen, 1988; para uma bibliografia completa sobre o direito natural,
ver Introduetion bibliographique à Thistoire du droit et à iéthnologie juridique,
B/11 de P. Foriers, L. Ingber e P. F. Smets, Éd. de l'Université de Bruxelles, 1982.
O FENÔMENO DO DIREITO 11

Essa filosofia expressa pelo Antigono de Sófocles 17 ou pelo


"De republica" de Cícero na famosa máxima "Summum jus,
summa injuria", foi retomada pelos teólogos da Idade Média,
depois pela "escola do direito da natureza e das gentes". Ela
inspirou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789 e o Código de Napoleão. O artigo 1? do anteprojeto de
Código Civil, redigido no ano VIII, precisava: "Existe um direi-
to universal e imutável, fonte de todas as legislações positivas, é
simplesmente a razão universal na medida em que governa os
homens." Foi objeto de diversas redefinições pelas correntes
idealistas que ressurgiram desde o final do século XIX.
Esquematicamente, a filosofia idealista se desenvolveu na
Antigüidade, na Idade Média, nos séculos XVII e XVIII e
na época moderna, conforme conteúdos diferentes 18 .
Para Platão, o direito é destinado a descobrir o que é justo
entre os homens e na consciência individual, de modo que se
impõe uma harmonia entre a justiça e o direito. Segundo Aris-
tóteles, o direito deve ser inferido da harmonia da ordem natu-
ral. O que é justo é o que é conforme a essa ordem natural e se
deduz da observação das coisas, dos seres e das sociedades
humanas, cuja finalidade e essência devem ser tiradas para
determinar o que o direito deve ser. O método aristotélico ex-
trai, portanto, o direito natural de uma abordagem realista e
maleável do mundo, mas também implica o estabelecimento,
para cada cidade, de uma lei humana destinada a completá-lo e
a aperfeiçoá-lo. Outras correntes de pensamento, a escola es-
tóica em especial, mais dirigidas à moral do que ao direito,
deviam, por sua vez, tornar mais claras as diferenças entre o
direito natural e o direito positivo. Cícero reafirma mais tarde,

17. "Eu não pensava que ele tivesse força suficiente, o teu edito, para dar a um
ser mortal o poder de violar as divinas leis não-escritas que ninguém pode abalar."
18. J. CARBONNIER, op. cit., n?s 9-10; J. GHESTIN e G. GOUBEUAX,
op cit., n°s 8 ss.; A. WEILL e F. TERRE, Introduction générale au droit civil, n?s
1.16 e 145; M. VILLEY, Leçons d'histoire de la philosophie du droit, 1962; ver,
finalmente, Ph. JESTAZ, "L'avenir du droit naturel ou le droit de seconde nature",
/«Vi tr. dr. civ., 1983, pp. 233 ss.
12 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

para além do direito positivo, a existência de um direito ideal,


imutável e intemporal.
A doutrina cristã foi expressa por Santo Agostinho, que
distinguiu da lei profana a "primazia" da justiça e da moral
oriunda da Santa Escritura, e sobretudo por Santo Tomás de
Aquino, para quem a lei natural é um reflexo da lei divina eter-
na que ordena o mundo. Para Santo Tomás, o direito natural se
situa entre a lei eterna e a lei positiva. O direito natural proce-
de da lei divina expressa na Santa Escritura e perceptível pela
razão e pela inteligência humana. Mas ele evolui e oferece
apenas diretrizes que o direito positivo deve completar e espe-
cificar. A lei humana deve, por conseguinte, ser justa e desti-
nada ao bem comum dos povos que ela rege para dever ser
observada. Já não tem, ao contrário, de ser respeitada se ela se
opõe aos interesses de Deus e da razão.
A essa doutrina de inspiração religiosa, opõe-se a da Es-
cola do direito natural que, nos séculos XVII e XVIII, se de-
senvolveu a partir do pensamento de Grotius 19 e que é uma
doutrina laica. A idéia do direito natural serviu então de base
para o "direito das gentes", noutras palavras, para o direito in-
ternacional público: "a razão natural" mostrou-se o único meio,
na ausência de autoridades superiores aos Estados, de reger
suas relações de um modo que não fosse pela força. O direito
natural então já não procede de Deus, mas da natureza social
do homem da qual a razão humana extrai os princípios de um
direito natural universal e imutável, feito de regras indepen-
dentes do tempo e das civilizações e de uma absoluta rigidez.
Grotius admitia também, além desse direito racional, a exis-
tência de um direito voluntário oriundo do consentimento do
povo e que consagra regras assentes na vontade concordante
dos indivíduos.
Isso evoca a teoria do "contrato social", desenvolvida mais
tarde por Locke e Rousseau, centrada no homem em estado de
natureza e não no mundo e orientada para leis naturais deriva-

19. Hugo DE GROOT, conhecido comoGiotius (1583-1645): Do direita da


guerra e da paz, 1625.
O FENÔMENO DO DIREITO 13

das do ser humano, de sua liberdade e de sua vontade 20 . No


pensamento de Rousseau, o indivíduo não pode subtrair-se à
vontade geral, uma vez que é por ela que se exprime sua pró-
pria vontade.
A filosofia dominante no século XVIII exalta, portanto, a
natureza humana e vincula os valores essenciais ao ser huma-
no. Conduz então a promover os direitos subjetivos: os direitos
do indivíduo são direitos naturais.
17. - As doutrinas do direito natural foram objeto de vivas
críticas, especialmente, no século XX, da parte da escola histó-
rica alemã que sustentava, com seu líder, Savigny, que o direi-
to é apenas o produto da evolução dos povos e que, longe de
ser universal, é peculiar a cada nação.
Essa abordagem é certamente muito excessiva. Mas podem-
se censurar as doutrinas idealistas clássicas de ser ao mesmo
tempo irrealistas ou inexatas e absolutas demais ou vagas
demais.
Não se pode sustentar que o direito é universal e intempo-
ral. Basta observar a diversidade e a evolução dos sistemas
jurídicos para se convencer da relatividade do direito. Quando
muito pode-se almejar uma certa constância dos princípios que
o inspiram, a conformidade destes com uma certa idéia de jus-
tiça e a consciência de que o direito não pode limitar-se a rati-
ficar servilmente os fenômenos humanos, políticos, sociais,
econômicos ou técnicos e deve também dirigi-los de acordo
com finalidades essenciais da ordem jurídica. Pode-se igual-
mente pensar que o direito positivo é o resultado da inserção
de elementos essencialmente variáveis em âmbitos materiais e
intelectuais constantes. Ademais, embora os autores sempre te-
nham sido prudentes a esse respeito, as teorias do direito natu-
ral implicam que o legislador deve conformar-se ao direito
natural e que, se falha nesse dever, os cidadãos, até mesmo os
juizes, podem desobedecer às leis injustas. Na realidade, se
acontece, como em direito francês, na Declaração dos Direitos

20. J. GUESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n° 14.


14 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

do Homem repetida pelas Constituições de 1791, de 1946 e de


1958, que seja reconhecido o direito de resistência à opressão,
ele se torna então conforme ao direito positivo e não procede
do direito natural. O próprio Portalis escrevia: "sem sanção, a
justiça natural que dirige sem coerção seria vã para a maioria
dos homens, se a razão não se exibisse com o aparelho do po-
der para... apoiar com os mandamentos da autoridade as inspi-
rações honestas da natureza... Isso a que chamamos o direito
natural não seria portanto suficiente; eram necessários manda-
mentos ou preceitos formais e coercivos" 21 . Apenas quando
são consagradas pelo direito positivo é que as regras de direito
natural se impõem efetivamente. No caso contrário, não se
pode imaginar que o legislador autorize os cidadãos a furtar-se
à sua própria lei a pretexto das leis naturais que ele descartou,
nem que renuncie a impor aos cidadãos o respeito ao direito
positivo, ainda que contrário ao direito natural. Quase que só a
revolta e a força é que podem então derrubar a ordem positiva
e, conquanto elas possam ser necessárias em certos casos
extremos, são negações do direito e da organização social cuja
legitimidade é sempre incerta e cujos perigosos objetivos não
se podem ignorar.
As doutrinas idealistas costumaram dar ao direito natural
um conteúdo preciso e imutável que as realidades desmentem.
A escola do direito da natureza e das gentes considerava que a
obrigação alimentar, o casamento, o poder paterno, a proprie-
dade etc. eram instituições definitivas, ao passo que outras ins-
tituições, como a adoção, eram apenas momentâneas e artifi-
ciais. Certos autores, como Stammler na Alemanha ou Saleilles
na França, sustentaram, em compensação, "a teoria do direito
natural com conteúdo variável" segundo a qual o direito natu-
ral se limita a alguns princípios essenciais, como o respeito à
palavra dada ou a reparação dos danos causados injustamente,
e varia conforme as épocas e os países. Foi-se levado então,

21. Exposição <los motivos do projeto de lei intitulado "Titulo preliminar", in


J. E. M. PORTALIS, Ecrits et discours juridiques et politiques, P.U.A.M., Aix en
Provence, 1988, p. 66.
O FENÔMENO DO DIREITO 15

como Gény, Planiol, Colin e Capitant, a reduzir o direito natu-


ral a algumas diretrizes gerais e vagas cuja necessidade não
parece deixar dúvida, mas que não têm valor positivo e que,
para muitos juristas atuais, se atenuam diante das concepções
positivistas do direito.

li. As doutrinas positivistas

18. - Toda definição do positivismo é sumária e pode ser


inexata. Às vezes é difícil qualificar uma doutrina. Assim, a
teoria do contrato social pode, conforme os casos, vincular-se
ao positivismo ou ao idealismo. A heterogeneidade das doutri-
nas positivistas torna mais aleatória ainda a busca de um crité-
rio geral do positivismo. Não obstante, podemos caracterizar
as tendências positivistas pelo fato de rejeitarem qualquer me-
tafísica jurídica, qualquer justiça transcendente e qualquer idéia
de direito natural, mas se louvam apenas no conhecimento da
realidade positiva, jurídica ou científica.
Sua diversidade provém das diversas "realidades positi-
vas" às quais se vinculam. Em geral opõem-se o positivismo ju-
rídico e o positivismo sociológico 22 ou o positivismo jurídico e
o positivismo científico 23 . Aqui, distinguiremos primeiro o po-
sitivismo jurídico e o positivismo científico (a) para distinguir
depois o positivismo sociológico das outras formas de positi-
vismo científico (b).

Positivismo jurídico e positivismo científico


1 9 . - 0 positivismo jurídico consiste em reconhecer valor
unicamente às regras de direito positivo e em reduzir todo o
direito às regras vigentes em dada época e em dado Estado,
sem se preocupar em saber se é justo ou não. O direito mostra-
se então uma disciplina autônoma que se identifica com a von-
tade do Estado do qual é a expressão. Não poderia, portanto,

22. J. CARBONNIER, op. cit., n? 9; A. WEILL e F. TERRÉ, op. c.it., n°31.


23. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n?s 20 ss.
16 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

haver conflito entre o direito e o Estado que é sua fonte única e


cuja evolução ou cujas mutações acarretam variações corres-
pondentes do direito. O direito se reduz a um fenômeno esta-
tal e amiúde à arbitrariedade do poder ou à política da força.
Essas doutrinas tiveram em geral como origem as incertezas
geradas pela diversidade dos direitos positivos e pela impres-
são de que toda idéia imutável e universal do justo é, em con-
seqüência, artificial.
Essa doutrina foi encarnada por todos os autores de ten-
dência absolutista inspirados ou não pelo pensamento cristão.
Assim, no século XVI, Jean Bodin, teórico da monarquia ab-
soluta e, no XVII, Bossuet, panegirista do poder dos reis, liga-
ram o direito à soberania monárquica, mesmo submetendo esta
ao respeito às "leis divinas e naturais". Ao contrário, Maquia-
vel, antes, sustentara que o Estado e o direito positivo não são
em absoluto sujeitos ao direito natural nem à moral e que,
assim que está em causa o interesse do Estado, o príncipe não
deve hesitar sobre os meios que o sucesso justifica a posterio-
ri. Hobbes, mais tarde, associou a noção de contrato e a de po-
der absoluto: pelo efeito de um contrato social destinado a
garantir a ordem, os homens reconhecem o poder de legislar a
um monarca absoluto cujas leis só podem ser justas porque
destinadas ao interesse geral, ainda que sejam contrárias à von-
tade divina.
O positivismo estatal foi em seguida afirmado no século
XIX na obra de Hegel. Tentando reconciliar as contradições
entre a história e a unidade da razão e solucionar a oposição en-
tre o real e o pensamento mediante a dialética, Hegel 24 procu-
rou identificar o racional com o real, consagrou a suprema-
cia do Estado e explicou o direito pelo fato consumado e pela
força, identificando-se o direito com o Estado. Da mesma for-
ma, o jurista alemão Ihering25 via 110 Estado a única fonte do

24. Fundamentos ia filosofia do direito.


25. IHERING <1818-92), A luta pelo direito (1872) e A meta no direito
(1878). Ver P. COULOMBEL, "Force et but dans le droit selon la pensée de
Ihéring", Rev. tr. dr. c/v., 1957, pp. 609 ss.
O FENÔMENO DO DIREITO 17

direito: prendendo-se à coerção inerente à regra de direito, ele


só reconhecia o direito positivo cujo respeito o Estado pode
impor. Afirmava então que o direito é a "política da força" e
que é "apenas uma arma nos conflitos da força". O direito re-
sulta assim, segundo ele, da luta constante dos indivíduos, dos
grupos e dos interesses. Voltamos a encontrar aqui a célebre
frase de Pascal: "Não podendo fazer que o que era justo fosse
forte, fez-se que o que é forte fosse justo."
20. - Mas percebemos os perigos de tal reinado do Estado
e da força. Os piores abusos e os mais atrozes excessos pode-
riam assim ser legitimados. A arbitrariedade, o desprezo pelo
homem, todas as barbaridades e todas as injustiças, os totali-
tarismos mais sanguinários poderiam, dentro dessa perspecti-
va, ser consagrados pelo direito. Não se pode resignar-se a
isso a pretexto de uma construção intelectual rigorosa, do culto
da autoridade nem do mito da eficácia. Existem equilíbrios
sociais e forças morais que dominam os fenômenos de produ-
ção do direito. Se o direito tem necessidade da coerção pública
para ser imposto àqueles que o ignoram, não se pode imaginar
sem um calafrio que o direito se identifique com a força: quan-
tos crimes seriam então legitimados!
Por conseguinte, não se pode de modo algum reduzir o
direito a um simples sistema de normas hierarquizadas, sendo
que cada uma delas recebe sua força obrigatória de sua confor-
midade com a norma superior, remontando assim até a Consti-
tuição, como propôs Kelsen 26 . A escola normativista examina
a organização jurídica em si mesma, sem sequer ver nela uma
criação do Estado, que se despersonaliza e fica apenas uma
palavra cômoda que expressa a unidade dessa organização. No
entanto, é verdade que toda essa construção é dominada por
uma "norma de origem" bastante "misteriosa", a "norma fun-
damental" 27 . Mas, para Kelsen, cumpre ater-se à "teoria pura do

26. H. KELSEN (1881-1973), Théoriepure du droit, trad. fr. Ch. Eisenmann,


ed. Dalloz, 1962.
27. J. CARBONNIER, ibidem; J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit.,
n"23.
18 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

direito", abstraindo-se toda ideologia política, filosófica ou


moral e "todos os elementos relacionados com as ciências da
natureza". Essa concepção do direito apartada de qualquer
consideração de sociologia, de política, de história ou de eco-
nomia se opõe, portanto, àquelas que se prendem ao positivis-
mo científico.
Segundo as doutrinas vinculadas ao campo do positivis-
mo científico, o direito é oriundo dos fatos, da história, da eco-
nomia ou da sociologia e deve ser estudado conforme os méto-
dos científicos correspondentes. Deixa então de ser o produto
do poder mais ou menos arbitrário do Estado e se torna um
produto social criado, segundo as doutrinas, pela história, pela
economia ou pela sociedade, à margem de qualquer idéia de
justiça transcendente. Segundo o positivismo sociológico, o
direito "traduz o querer-viver da sociedade" 28 . Lembramo-nos
então do pensamento empirista e positivista dos utilitaristas in-
gleses como Bentham, Austin ou Stuart Mill. Segundo Ben-
tham, a moral e o direito eram fundamentados no útil, mais
precisamente nas "idéias de prazer, de abundância e de segu-
rança" canalizadas pela simpatia entre os homens e pelo temor
de represálias que o egoísmo suscita 29 . Mas o pensamento in-
glês foi marcado também pela análise evolucionista das socie-
dades humanas desenvolvida por Darwin e Spencer. A aborda-
gem científica e sociológica dos fenômenos jurídicos está rela-
cionada, assim, com doutrinas muito díspares cujas tendências
dominantes temos de esquematizar.

Positivismo científico e positivismo sociológico


21. - Para alguns, o direito é um produto da história. E
tornado maduro pelo povo; expressa a alma das nações e refle-
te a evolução dos povos. E o produto de suas forças interiores e
silenciosas, mas não procede de uma idéia imutável e universal
do justo. Foi essa tese que a escola histórica alemã, com Sa-
vigny, erigiu em sistema.

28. J. CARBONNIER, ibidem.


29. F. TERRÉ, op. cit., n° 27.
O FENÔMENO DO DIREITO 19

Para outros, como o inglês Bentham, no início do século


XIX, o direito procede largamente da economia: "a arte jurídi-
ca é anexada à economia política, sob a ditadura do útil" 30 .
Mas foi sobretudo com o pensamento de Marx, de Engels
c de seus discípulos que foi sustentada a importância do fator
econômico na produção do direito. O direito positivo mostra-
se neles "a expressão dos interesses econômicos da classe do-
minante", dos capitalistas nas sociedades burguesas e do pro-
letariado quando ele estabelece sua ditadura. O direito é então
a "superestrutura" da realidade econômica ligada à evolução
das relações de produção e o instrumento de coerção da classe
dirigente. Essa coerção é necessária para garantir a ditadura do
proletariado; mas, depois de uma fase transitória em cujo cur-
so devem abolir-se as oposições de interesses e transformar-se
as mentalidades, o direito deve desaparecer ao mesmo tempo
que o aparelho de coerção do Estado. Partindo do "materialis-
mo histórico" segundo o qual o direito procede da economia e
se explica por relações de força, Marx prevê sua evolução que
termina com seu desaparecimento.
Se bem que seja difícil ser fiel ao pensamento marxista
numa apresentação tão elementar e não possamos analisar aqui
a diversidade das tendências e das interpretações a que ele deu
origem, essa abordagem sumária mostra, em todo caso, que
cm nenhum lugar a realidade confirmou essa abordagem. Ela
parece não só irrealista e abstrata, mas também incompleta e
parcial. Embora os vínculos entre a economia e o direito não
sejam muito discutíveis, eles não bastam para o pensamento
jurídico e não explicam, por si sós, o fenômeno jurídico; este
não ignora os antagonismos nem as relações de força, mas
não se reduz a eles e comporta também relações de coopera-
ção e convergências de interesses.
22. - Portanto, já não seremos seduzidos por uma aborda-
gem sociológica do direito cuja verdadeira origem, apesar de
raízes mais antigas, se encontra nos cursos de filosofia positi-

30. M. VILLEY, "Leçon d'histoire de la philosophie du droit", op. cit., p. 73,


e J. GHESTIN e G. GOUBEUAX, op. cit., n? 24.
20 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

va de Auguste Comte 31 . Segundo ele, o indivíduo e a humani-


dade, em sua evolução intelectual e social, passam sucessiva-
mente por uma fase teológica e militar, depois metafísica e
legista, para atingir enfim a fase positiva e industrial, em que
os homens se contentam em descobrir as leis efetivas que re-
gem os fatos mediante a observação e o raciocínio. As socie-
dades e o Estado têm então "o amor por princípio, a ordem por
base e o progresso por objetivo". O direito pode, assim, ser
objeto de uma ciência positiva, pois procede essencialmente
dos fenômenos sociais submetidos ao determinismo 32 . As leis
da vida em sociedade podem ser estabelecidas de forma expe-
rimental e podem ser descobertas "pela sociologia apoiada na
história, na etnologia, na estatística, na economia política" 33 .
Nessa concepção, a regra de direito decorre dos fatos sociais e
não da vontade dos governantes. Essa abordagem foi enrique-
cida pelo filósofo inglês Spencer, que tenta conciliar a coope-
ração social com a liberdade individual, e sobretudo pelo
sociólogo francês Durkheim, que afirma a especificidade dos
fatos sociais e a do objeto e do método da sociologia. O víncu-
lo entre o direito e a sociologia foi particularmente bem esta-
belecido por Léon Duguit 34 .
O positivismo sociológico é a concepção segundo a qual o
direito se reduz ao direito positivo, tal como ele existe em dado
momento e em dado território, extraindo-se a regra de direito
da análise dos fatos sociais35. Essa análise tem o mérito de lan-
çar luzes na relatividade do direito no tempo36 e no espaço37
assim com a in fluência dos fatos sociais38. Mas tem o inconve-

31. Auguste COMTE (1798-1857), Cours de philosophie positive, 1830-42;


Opuscules de philosophie sociale, 1819-29.
32. J. CARBONNIER, op. cit.
33. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n° 24.
34. L. DUGHIT (1859-1928), L État. le droit objectif et la loi positive,
1901; Les transformations générales du droit prive depuis le Code Napoléon,
1912; Les transformations du droit public, 1913.
35. A. W E I L L e F. TERRÉ, op. cit., n? 28.
36. Ver infra, n°s<)7 ss.
37. Ver infra. nca 124 s.
38. Ver infra, af 149 ss.
O FENÔMENO DO DIREITO 21

niente de limitar o direito a um reflexo servil dos fatos, mesmo


dos mais condenáveis, ao passo que ele também pode dominá-
los, e de consagrar um determinismo inquietante e em geral
inexato quando a vontade humana pode impor suas escolhas.
Se as diversas escolas de pensamento nutrem em si mes-
mas seus próprios excessos e não chegam, consideradas isola-
damente, a uma definição completa e satisfatória do direito,
esta só pode proceder de uma certa conjunção das teorias em
questão, cuja apreciação depende das finalidades que reconhe-
cemos no direito. Existe, para além das posições extremas,
uma abordagem intermediária, que repousa na busca das fina-
lidades alternativas e concilia as respectivas contribuições das
diversas doutrinas ao mesmo tempo que as purga de seus ex-
cessos partidaristas 39 .

2. As finalidades do direito

23. - E por demais freqüente deixar de lado o estudo das


finalidades do direito. Para descobrir e utilizar o direito positi-
vo, preferem concentrar-se nas realidades concretas e ocupar-
se apenas com a eficácia imediata das soluções. Quanto à teo-
ria geral do direito, tentaram renunciar ao exame dos valores
que o direito persegue e consagra, de tão múltiplos, diversos,
fugidios e subjetivos que são, temendo mascarar os elementos
essenciais, constantes e permanentes, do pensamento e da téc-
nica jurídica.
No entanto, cumpre observar que certos valores funda-
mentais se expressam nas regras de direito, na doutrina e na
jurisprudência, noutras palavras, que eles inspiram a elabora-
ção, a aplicação e a evolução do direito. Nem os profissionais
nem os teóricos podem abstrair-se das finalidades do sistema
jurídico ou das regras de direito para lhe compreender o senti-

39. F. OST e M. VAN DE K.ERCHOVE, Jalons pour une ihéorie critique


iJu droit. Travaux et recherches, n" 9, Publ. das Facultés Universitaires Saint-
l.ouis, Bruxelas, 1987.
22 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

do, guiar-lhe a interpretação, orientar-lhe a aplicação oupre-


ver-lhe a evolução. A idéia que se faz "de uma solução social e
moralmente aceitável em dado meio não é uma consideração
extrajurídica". O raciocínio jurídico não se reduz a uma mera
dedução formal e lógica, mas é um constante confronto entre o
valor de uma solução e sua coerência com o sistema jurídico 40 .
Todavia, as finalidades do direito são múltiplas e as opi-
niões a esse respeito são tão díspares, contraditórias, apaixona-
das ou incertas que é desconcertante sua dissonância.
Há, porém, que inventariá-las e reagrupá-las por afinidades.
Segundo os autores, o direito deve tender para "a justa
partilha, a boa conduta dos indivíduos, para a utilidade, a segu-
rança, o bem-estar deles"... ou para "a potência da nação, o
progresso da humanidade, o funcionamento regular do orga-
nismo social" 41 ... Outros evocam, além das finalidades tradi-
cionais que a justiça, a ordem, a segurança ou o progresso são,
finalidades políticas, como a famosa trilogia da liberdade, igual-
dade e fraternidade ou garantias mais especialmente econômi-
cas e sociais materializadas pelas aspirações atuais do direito
ao trabalho, à saúde, à solidariedade etc. ou a proteção con-
temporânea do meio ambiente, da qualidade de vida. dos con-
sumidores 42 ... Ao diversificar assim as finalidades do direito,
corre-se o risco de perdê-las de vista e de confundi-las com
simples regras técnicas que não passam de suas manifestações.
Assim, como M. Villey43, podemos conceber para o direito
quatro grandes finalidades: a justiça, a boa conduta, o serviço
dos homens e o serviço da sociedade. Essas diversas perspecti-
vas não se excluem necessariamente umas às outras. Parece
mesmo bom conciliá-las. "Nossa concepção do direito visa
combinar numa idéia de justiça considerações tiradas da moral

40. Ch. PERELMAN, Logique juridique - Nouvelle réthorique, 2" ed.,


Dalloz, n? 44; M. Virally. op. cit., pp. 24 ss. Ver infra, n?s 244 ss.
41. M. VILLEY, "Philosophie du droit - définitions et fins du droit", op.
cit., n? 24, p. 51.
42. A. WEILL e F. TERRÉ, op. cit., n° 32.
43. M. VILLEY, op. cit., nos 25 ss.
O FENÔMENO DO DIREITO 23

c da eqüidade e considerações de utilidade social e de eficácia


material. A autonomia do direito é ligada àquela de um equilí-
brio, que julgaremos necessário, entre essas duas ordens de
considerações." 44
Parece, na realidade, que os diversos sistemas jurídicos
sempre estão confrontados com duas grandes alternativas: a
justiça ou a utilidade de um lado (A), o individualismo ou o
coletivismo do outro (B).

A. Justiça ou utilidade

24. - Na esteira de filósofos ingleses tais como Bentham 45


e depois J. Stuart Mill (1806-73) e consoante uma importante
corrente atual do pensamento americano, "o útil" é o princípio
de todos os valores no campo do conhecimento bem como no
da ação. Trata-se, via de regra, de alcançar a "maximização do
prazer" do maior número de pessoas possível num grupo
social e de evitar a dor e o sofrimento. O direito tem então o
objetivo de estabelecer as regras capazes de conduzir "à maior
felicidade do maior número". Para conjugar a felicidade pes-
soal com a felicidade geral, o utilitarismo se nutre de um crité-
rio moral consistente em apreciar a qualidade de uma ação de
acordo com suas conseqüências sobre a vida individual e so-
cial. Embora individualista e liberal, J. Stuart Mill pregou a
intervenção do Estado em favor da classe deserdada, uma mo-
dificação do direito de propriedade, as cooperativas, a libera-
ção política da mulher... O utilitarismo valoriza o espírito em-
preendedor, a competição, o crescimento, assim como procura
corretivos para os abusos individuais ou coletivos. Reprovam-
lhe cm geral ignorar os fins que é preciso perseguir e ao que é
preciso ser útil: por que a produção, por que o progresso? se-

44. R. DAVID, "Le dépassement du droit et les systèmes juridiques contem-


porains", Arch. de philosophie du droit, t. VIII, 1963, p. 19.
45. J. BENTHAM (1748-1832), Introduetion aux príncipes de la morale et
de la législation, 1789; Traité des peines et des recompenses, 1811.
24 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

riam, segundo M. Villey, perguntas que os utilitaristas omitem


de formular 46 .
Opuseram aos utilitaristas aqueles que pensam que o di-
reito não é "uma fábrica de produzir a ordem social" mas uma
arte caracterizada pelo fim que persegue e que, seguindo as
pegadas de Aristóteles ou de Santo Tomás, "o fim do direito é
o justo"; disseram que a função , do direito consiste então "em
determinar a proporção mais justa entre interesses" 47 .
Mas essa abordagem supõe definir primeiro o que é "jus-
to". Segundo Gény, "as regras de direito visam necessariamen-
te e... exclusivamente realizar a justiça, que concebemos pelo
menos sob a forma de uma idéia, a idéia do justo... No fundo,
o direito só encontra seu conteúdo, próprio e específico, na
noção do justo, noção primária, irredutível e indefinível que
implica essencialmente... não só os preceitos elementares de
não fazer mal a ninguém... e de atribuir a cada qual o que lhe
compete, mas o pensamento mais profundo de um equilíbrio
que se deve estabelecer entre os interesses em conflito, com o
fito de assegurar a ordem essencial à manutenção e ao progres-
so da sociedade humana..." 48 .
É verdade que a justiça é definida de modo diferente
pelos moralistas e pelos juristas 49 . Para uns, é "a vontade cons-
tante e contínua de dar a cada um o que lhe cabe" 50 : essa é a
definição de Cícero, depois de Santo Agostinho e de Santo To-
más de Aquino. A justiça não se limita então a um dever aban-
donado à consciência de cada qual; traz em si mesma sua pró-

46. M. VILLEY, "L'utile et le juste", in Arch. philosophie du droit, t. XXVI,


1981. Prefácio, pp. 6 e 7.
47. M. VILLEY, op. cit., p. 10; ver também J. M. TRIGEAUD, "Humanisme
de la liberté et philosophie de la justice", Bibl. de philosophie comparée, ed. Brière,
1985; Essais de philosophie du droit, Studio Ed. di Cultura, Gênova, 1987.
48. F. GÉNY, Science et technique en droit privépositif, t. I, n? 16.
49. P. ROUBIER, op. cit., n° 23. Comparar M. A. FRISON ROCHE e W.
BORANÈS, De 1'injuste aujuste, ed. Dalloz, Col. "Théines et commentaires". 1 997.
esp. p. 57.
50. F. SENN, De la justice et du droit, 1927, p. 2, citado por P. ROUBIER,
ibidem.
O FENÔMENO DO DIREITO 25

pria exigibilidade no sentido de que se impõe por si só ou por


intermédio de certas pessoas ou de certos órgãos. Para outros,
a justiça é "um equilíbrio mediante a concordância efetiva das
pretensões de uns com os deveres dos outros" 51 . Numa outra
abordagem, "a idéia da justiça é a idéia de uma ordem superior
que deve reinar no mundo e que assegurará o triunfo dos inte-
resses mais respeitáveis" 52 . John Rawls, querendo substituir a
idéia utilitarista por uma teoria da justiça superior, tentou re-
centemente restaurar a teoria tradicional do contrato social.
Ele se fundamenta no princípio da igualdade na atribuição dos
"direitos e dos deveres básicos" e na idéia de que desigualda-
des socioeconômicas são justas apenas "se produzem, em com-
pensação, vantagens para todos e, em particular, para os mem-
bros mais desfavorecidos da sociedade". A justiça é assim con-
cebida principalmente como a eqüidade, e a injustiça, como as
desigualdades que não beneficiam a todos 53 .
Não poderia tratar-se aqui de estudar os respectivos méri-
tos das múltiplas concepções possíveis da justiça. Deve-se
simplesmente constatar a incerteza delas e observar "que exis-
te uma justiça que não é necessariamente a justiça das leis" 54 .
Ao lado do dever moral de justiça, existem orientações mais
especificamente sociais que dizem respeito a aspectos particu-
lares da vida em sociedade e impõem prescrições especiais. O
equilíbrio que a justiça supõe entre os interesses em conflito
corresponderá a um meio exato objetivo, ao equilíbrio matemá-
tico deles, ou o que é devido a cada qual será apreciado de manei-
ra subjetiva consoante as qualidades dos interessados?
Há que admitir que existem várias acepções da justiça e
que, conforme os casos, o direito se relaciona com uma ou

51. G. GURVITCH, "Droit naturei et droit positif intuitif', Arch. de


philosophie du dr. et de soc.jur., 1933 (3-4), p. 70.
52. P. ROUBIER, ibidem.
53. J. RAWLS, Théorie de la justice, trad. fr. de C. Audard, Ed. du Seuil,
1987; ver também M. VAN QU1CKENBORNB, "La justive selon CH Perelman et
John Rawls", in Justice et argumentation. Essais à la mèmoire de Ch. Perelman,
Éd. de 1'Univ. de Bruxelles, 1986.
54. J. DABIN, op. cit., n°301.
26 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

com a outra. A análise feita outrora por Aristóteles, depois


por Santo Tomás de Aquino, parece ainda a melhor. Haveria
então três espécies de justiça "segundo o gênero de alteridade
dos sujeitos confrontados". Quando estes são pessoas inde-
pendentes uma da outra, a justiça que as une é chamada comu-
tativa. Quando os sujeitos confrontados são uma coletividade
e seus membros, em especial o Estado e os cidadãos, a justiça
é chamada distributiva para o que é devido pela coletividade a
seus membros, legal para o que é devido pelos membros à
coletividade 55 .
A "justiça comutativa" é a que implica uma igualdade
aritmética nas trocas. Assim, certos contratos supõem presta-
ções objetivamente equivalentes da parte dos co-contratantes.
A "justiça distributiva" tem, ao contrário, como objetivo a me-
lhor distribuição possível dos bens, dos direitos e dos deveres
entre os homens, e isto, eventualmente, a despeito do equilí-
brio objetivo das prestações. Assim, a distribuição das presta-
ções sociais segundo as necessidades de cada qual em vez de
consoante cotizações pagas, o benefício dos serviços públicos
concedido aos cidadãos independentemente do montante dos
impostos pagos por eles, a proteção dos locatários, a dos assa-
lariados etc. exprimem a influência da idéia de justiça distribu-
tiva no direito positivo. A "justiça legal" corresponde à obriga-
ção de todos os membros do corpo social de contribuir para o
bem comum respeitando os direitos da comunidade à qual per-
tencem. Isso se exprime pelos deveres dos cidadãos para com
o Estado de contribuir para a sua defesa com o serviço militar,
para seu funcionamento com o imposto ou com a participação
nas funções públicas etc. Para os governados, trata-se de "obe-
decer às leis e às ordens legítimas da autoridade"; para os go-
vernantes, isso implica um cumprimento fiel e regular de suas
funções. Em suma, trata-se para cada qual, inclusive para o
Estado, de cumprir "seu dever social" e de se sujeitar às exi-
gências do bem público 56 .

55. J. DABIN, op. cit., n05 31 1 ss.


56. J. DABIN, ap. cit., nos 320 ss.
O FENÔMENO DO DIREITO 27

Todavia, a definição do bem público e do dever social é


sempre incerta e subjetiva. A escolha entre justiça comutativa
e justiça distributiva é infalivelmente instável, até mesmo arbi-
trária. Observa-se, ademais, que as atitudes do direito em face
da justiça são diversas e que podemos'distinguir esquematica-
mente três delas 57 .
25. - Em certos casos, o direito é indiferente a qualquer
idéia de justiça: as regras e instituições puramente técnicas,
tais como as do estado civil ou da publicidade dos registros
imobiliários, não têm vínculo direto com a idéia de justo.
Noutros casos, em que o direito consagra a igualdade dos cida-
dãos ou proíbe a usura por exemplo, o direito expressa o senti-
mento e a necessidade de justiça. Ocorre, enfim, que o direito
repila qualquer finalidade de justiça em proveito da ordem, da
segurança, da paz... E o que se dá quando a lei sacrifica os
direitos de uma parte lesada em um contrato à segurança das
transações ou, mediante a prescrição, os direitos do credor ou
do proprietário em proveito do devedor que não pagou ou do
usurpador que possuiu um bem etc.
O direito se inspira portanto, alternada ou simultaneamen-
te, ao mesmo tempo no útil e no justo.
Em seu discurso preliminar, Portalis observava que "a li-
berdade de contratar só pode ser limitada pela justiça, pelos
bons costumes, pela utilidade pública" 58 , marcando assim as
respectivas influências da justiça e da utilidade. Em matéria
contratual, se o princípio do efeito obrigatório do contrato é
oriundo do direito natural, as intervenções do Estado se inspi-
ram no interesse geral e na utilidade pública dos quais se pode
esperar que reflitam também um ideal de justiça. Mostraram
muito bem 59 que o contrato é obrigatório porque é útil às par-
tes e sobretudo à sociedade, mas que só é obrigatório se é jus-

57. A. WEILL e F. TERRÉ, op. cit., n? 8.


58. LOCRE, Législalion civile, criminelle et commerciale de la France,
1827-32, t. IV, p. 302, nf 84, citado por J. GUESTIN, "L'utile et le juste dans le
ilroit des contrats", Arch. philo. du droit, t. XXVI, pp. 35 ss.
59. J. GHESTIN, art. cit.; Traité de droit civil, Les obrigations, le contrat:
/ormation, 2" ed., L.G.D.J., 1988, "Apresentação".
28 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

to: o princípio da boa-fé contratual ou a proibição atual das


cláusulas abusivas, em direito francês, alemão e inglês, e a im-
portância da lesão em certos direitos o deixam bem claro. Ob-
serva-se também em matéria econômica e social e, em especial
no que tange à formação do contrato, que se firma atualmente
uma distinção difícil mas real entre a ordem pública de direção
e a ordem pública de proteção. Se a ordem pública de dire-
ção tem o objetivo de impor "uma certa concepção do interes-
se geral, da utilidade pública, por exemplo a regulamentação
dos intercâmbios ou da moeda nacional", a ordem pública de
proteção, destinada a proteger certas categorias de contratan-
tes particularmente frágeis, tem a meta de estabelecer a justiça
contratual 60 .
Em matéria penal, o debate clássico entre a função dissua-
siva e a função retributiva da pena corresponde à alternativa
entre o justo e o útil: nela a dissuasão evoca a utilidade; a retri-
buição expressa a justiça 61 . A evolução do direito penal sob a
influência da escola de defesa social, até mesmo da nova defe-
sa social, e a luta contra "a desviância" e pela reintegração dos
desviados na sociedade se inspiram na idéia de utilidade.
No campo dos direitos do homem, a análise semântica e
conceptual dos textos e dos debates relativos à Declaração de
1789, contudo oriunda da ideologia do direito natural, mostra,
ao que parece 62 , uma preponderância absoluta da idéia de utili-
dade sobre a de justiça.
Ora, como decidir-se numa oposição inelutávcl entre o
justo e o útil? Temos tendência a tachar de utilitarismo aqueles
que assimilam o justo ao útil e de idealismo aqueles que sujei-
tam o útil a ser justo. O positivismo, por sua vez, fundiu "o
justo" e "o útil" no "real" 63 . É verdade que a utilidade bem

60. Ibidem.
61. P. PONCELA. "Parla peine, dissuader ou rétribuer", Arch. philo. du dr.,
t. XXVI, 1981, pp. 59 ss.
62. P. DELVAUX, "L'utile et le juste dans les droits de l'homme révolu-
tionnaires", Arch. philo. ctudr., t. XXVI, 1981, pp. 223 ss.
63. P. ARNAUD, "Juste et utile - Deux attributs de 'ordre réel' qui n'en
font qu'un", Arch. philo. du dr., t. XXVI, 1981, pp. 167 s.
O FENÔMENO DO DIREITO 29

como a justiça são noções inevitavelmente relativas, moventes


e subjetivas. Mas o útil e o justo podem perfeitamente coinci-
dir. A força obrigatória do contrato, as sanções penais ou civis,
o respeito aos direitos do homem etc. são a um só tempo justos
e úteis. As considerações de justiça e de utilidade nas modali-
dades técnicas das quais são dotados pelo direito positivo de-
pendem então de escolha entre outras finalidades possíveis do
direito. Tratar-se-á de justiça individual ou coletiva ou de uti-
lidade particular ou geral?

li. Individualismo e coletivismo

26. - Opõem sempre, com paixão, individualismo e coleti-


vismo. O individualismo, fundamentado na doutrina filosófica
que afirma a realidade própria dos indivíduos em detrimento
dos gêneros e das espécies, expressa-se pelas teorias que vêem
no indivíduo o valor essencial no plano político, econômico e
moral e implica o desenvolvimento dos direitos e das respon-
sabilidades do indivíduo. O coletivismo, ao contrário, concen-
tra-se na doutrina e no regime social fundamentados na pro-
priedade coletiva dos meios de produção e de troca e nos pode-
res do Estado.
O confronto entre o individualismo e o coletivismo eqüi-
vale ao antagonismo tradicional entre o capitalismo e o socia-
lismo ou entre o liberalismo e o dirigismo. Trata-se então, aci-
ma de tudo, de análises políticas. Mas isso se traduz direta-
mente no campo jurídico, pois não se podem ignorar os víncu-
los que unem o direito e a política. Alguns autores, como G.
Hurdeau64, salientam que a política procura justificar-se pelo
direito, como o próprio Estado, e cria regras de direito para
servir ao seu objetivo, de modo que existem tensões constantes
entre o direito e a política, com um desenvolvimento constante
do domínio do direito. Hesita-se então em analisar o direito

64. G. BURDEAU, Traité de science politique, 1? ed., 1949.


30 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

como um instrumento a serviço da política ou, ao contrário, em


subordinar a política ao direito65. Mas o direito pode, talvez,
definir-se como "a dialética entre a política e a ética" e mostrar-
se uma "mediação" entre a política e a moral66. O debate ideo-
lógico entre individualismo e coletivismo (a) determina então,
no terreno jurídico, a questão dos direitos subjetivos (b).

O debate ideológico
27. - Aqui não podemos aprofundar esse debate e temos de
limitá-lo a uma abordagem jurídica.
No pensamento individualista, a pessoa humana constitui
o fim supremo do direito e as regras de direito só podem ser
estabelecidas em função do próprio homem. "A sociedade é
que é feita para o homem e não o homem para a sociedade." 67
O Estado e a sociedade devem assegurar a dignidade da pessoa
humana e a liberdade, pois são apenas "construções" que per-
mitem ao homem fazer valer seus direitos e exercê-los. Como
a regra de direito deve impor a todos respeitar os direitos indi-
viduais de cada um, ela implica limitações recíprocas desses
direitos e associa à idéia de direito uma idéia de obrigação.
Assim, para Kant, o direito é "o conjunto das condições" que
permitem a coexistência "das liberdades" individuais e a da fa-
culdade de agir de cada qual com a dos outros. A liberdade
parece ser o bem supremo e o "direito inato" do homem que o
Estado tem como função de proteger 68 . O direito objetivo é
então "um sistema de direitos subjetivos, provido de seus ins-
trumentos, ou seja, das leis que definem, medem, limitam e
garantem os poderes dos indivíduos" 69 . Essa concepção triun-

65. H. BATIFFOL, "Problèmes de frontières: Droit et politique" "Le droit


investi par la politique", inArch. philo. du dr., t. XVI, pp. 1 ss.
66. J. FREUND, "Droit et politique - Essai dc définition du droit", in Arch.
philo. du dr., t. XVI, pp. 15 ss.
67. P ROUBIER, op. cit., n° 25.
68. E. KANT, Príncipes métuphysiques premiers de Ia doctrine du droit,
1796, trad. fr. Tissot, pp. 43 ss.. citado por P. ROUBIER. ihidem, e M. VILLEY,
Philosophie du droit, op. cit., r£ 82.
69. M. VILLEY, ibidem.
O FENÔMENO DO DIREITO 31

fou na França sob a Revolução; mas permitiu os abusos de um


liberalismo desenfreado e suscitou, por reação, a afirmação de
doutrinas sociais e coletivistas.
O pensamento coletivista contemporâneo se apóia sobre-
tudo no de Hegel e de Marx. Na obra de Hegel 70 , o direito tem
como única finalidade, ao termo do encaminhamento dialético
do autor, o serviço da comunidade; o "direito do Estado" pre-
valece sobre todos os direitos subjetivos dos particulares. As-
sim, "o indivíduo é imolado à coisa pública". O Estado já não
ò um instrumento a serviço dos indivíduos mas uma realidade
autônoma "em si e para si" 71 .
Na obra de Karl Marx, sabemos 72 que o direito, conjunto
de meios pelos quais a classe burguesa garante sua dominação
econômica segundo seus interesses coletivos, deve tornar-se
um instrumento do proletariado em sua luta contra a antiga
classe dominante até que, na sociedade comunista, seu desapa-
recimento acompanhe a decadência do Estado.
Dentro dessa perspectiva, a sociedade é o valor supremo
que se deve proteger e o direito deve estabelecer-se em função
do grupo social, não do indivíduo. Isso redunda facilmente no
"socialismo de Estado" 73 em que o direito se torna um conjun-
to de meios pelos quais um grupo humano protege suas condi-
ções vitais de desenvolvimento e em que as relações jurídicas
se apoiam em instituições com finalidade coletiva, não no con-
trato. Isso leva ao mesmo tempo à apropriação coletiva das
riquezas e à sujeição do indivíduo à coletividade.
Em última análise, a doutrina individualista prega a supre-
macia dos direitos inatos da pessoa humana e dá ao direito a
missão de protegê-los. As doutrinas sociais afirmam a superio-
ridade da sociedade sobre o homem e confiam ao direito a or-

70. G. W. F. HEGEL', Traits fondamentaux de la philosophie du droit, 1821.


71. M. VILLEY, op. cit., n? 96.
72. Ver supra, n° 21.
73. P. ROUBIER, op. cit., n? 27; ver também E. LÉVY, Le socialisme juri-
dique, 1928.
32 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

ganização da disciplina à qual os indivíduos devem conformar-


se em nome do interesse geral.
Mas, assim como já não parece muito possível abandonar
as relações sociais à total liberdade dos particulares, o que
conduz a ignorar os deveres dos homens para com a sociedade
e a permitir insuportáveis abusos e trágicos sacrifícios, o cole-
tivismo tem aspectos irrealistas e opressores inadmissíveis. A
sujeição do indivíduo, o absolutismo de um poder central con-
centrado demais, apoiado em meios de coerção às vezes abusi-
vos, não levam a enriquecer o corpo social: por falta de moti-
vações individuais, o estímulo da produção e da atividade é
insuficiente e a economia deficiente. Vemos então desenvolver-
se, notadamente na Europa ocidental, fórmulas intermediárias
que associam a proteção do indivíduo com as exigências da
sociedade. Mas, nessa supressão do antagonismo habitual en-
tre o interesse individual e o interesse geral, como ficam os di-
reitos subjetivos?

A questão dos direitos subjetivos


28. - O problema dos direitos subjetivos é primordial para
qualquer jurista. Para a escola do direito natural, a consagração
e o fecundo desenvolvimento dos direitos subjetivos eram dedu-
zidos da essência do homem. Alguns desses direitos foram de-
clarados inalienáveis e sagrados por ocasião da Revolução Fran-
cesa e da independência americana. Ora, foram justamente uns
adeptos do direito natural clássico que formularam, como os
positivistas, numerosas críticas à teoria do direito subjetivo.
O problema dos direitos subjetivos é, portanto, complexo
no plano filosófico e no plano técnico. Foi objeto de numero-
sos e prestigiosos estudos 74 mas dá azo a eternas controvérsias.

74. Ver notadamente: J. DAB1N. Le droit subjectif, 1952; P. ROUBIER.


Droits subjectif- et situations juridiques, 1963; Archives de philosophie du droit, t.
IX, 1964. "Le droit subjectif en question" em especial, M. VILLEY, Lagenèsedu
droit subjectif chez GuiüaumedVccam, pp. 97 ss.; M1CHAELIDES-NOUAROS,
"L'évolution récentede la notion de droit subjectif", Rev. tr. dr. civ., 1966, pp. 216
ss.; G. MARTY e P. RAYNAUD, Traité de droit civil, "Introduetion générale",
n?s 133 ss.; H. L. e J. MAZEAUD por M. DE JUGLART, Leçons de droit civil,
"Introduetion à 1'étude du droit", n''s 155 ss.
O FENÔMENO DO DIREITO 33

Mesmo a definição dos direitos subjetivos é incerta. Para o


alemão Winscheid, o direito subjetivo é "uma potência de von-
tade ou um poder de vontade concedido pela ordem jurídi-
ca" 75 : é um "poder de querer" 76 . Para Ihering, em compensa-
ção, "os direitos subjetivos são interesses juridicamente prote-
gidos" 77 . Segundo J. Dabin, "o direito subjetivo é essencial-
mente pertencer-dominar". Apresenta-se como "uma relação
de pertencer entre o sujeito e uma coisa"; mas o pertencer
"causa e determina o dominar". Para este autor, a relação entre
o objeto do direito e seu sujeito gera um campo reservado ao
titular graças à oponibilidade do direito aos terceiros e à sua
proteção jurídica. Isso caracteriza a noção de direito subjetivo
c o poder de agir como dono que daí resulta 78 . Para Roubier,
não se trata de negar a existência de prerrogativas individuais,
lemos de trazê-las de volta a seu lugar certo. Os direitos subje-
tivos só englobam "as hipóteses em que existe uma prerrogati-
va apropriada para a maneira de um bem: prerrogativa que é
em princípio transmissível e normalmente comporta a possibi-
lidade, para seu beneficiário, de renunciar a ela. Essas prerro-
gativas são dotadas de proteção judiciária pelo canal de uma
ação na justiça..." 79 . Os direitos subjetivos, dentro dessa pers-
pectiva, implicam uma vantagem para seu beneficiário, ou seja,
um bem do qual pode dispor alienando-o ou renunciando a ele
c que é garantido por uma ação na justiça. Assim, para Rou-
bier, o direito de propriedade, o direito do credor, o direito de
propriedade literária ou artística são verdadeiros bens subjeti-
vos, ao passo que o direito à vida ou à integridade física ou as
liberdades, aos quais não podemos renunciar, não o são: "A fa-
culdade de renúncia é inerente ao direito subjetivo" 80 . Este au-
tor combateu, portanto, os abusos que, segundo ele, os juristas

75. Pandektenrecht, 8? ed., 1900.


76. J. CARBONNIER, op. cit., n? 40.
77. L 'esprit du droit romain, trad. fr. Meulenaere, 3? ed., 1888, t. III.
78. J. DABIN, op. cit.
79. P. ROUBIER, Droits subjectifs et situations juridiques, op. cit., p. 38,
citado por J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n? 183.
80. P. ROUBIER, op. cit., pp. 118-9.
34 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

fazem do conceito de direito subjetivo, do qual é preciso banir


uma visão demasiado larga. "Os direitos subjetivos não englo-
bam todos os casos em que um individuo pode ter razão peran-
te os tribunais": o direito objetivo protege também "situações
jurídicas", que são "complexos de direitos e de deveres" nos
quais o elemento do dever é predominante 81 .
Em última análise, constata-se que as controvérsias sobre
os direitos subjetivos se desenvolveram em torno de duas ques-
tões: a de saber se os direitos subjetivos são definidos pelo re-
conhecimento do poder da vontade ou pela proteção dos inte-
resses dos indivíduos e a de saber se os direitos subjetivos exis-
tem por si sós ou são apenas conseqüências do direito objetivo.
Destacam-se dessas questões vários elementos caracterís-
ticos dos direitos subjetivos: são prerrogativas atribuídas a
indivíduos ou grupos de indivíduos, reconhecidas e protegidas
pelo direito objetivo e que lhes conferem certos poderes que
lhes permitem preservar seus interesses numa área reservada,
impondo aos outros o respeito ao direito deles. Na ausência de
interesse e de vontade do titular do direito, na ausência de pro-
teção organizada pelo direito positivo ou na ausência de oponi-
bilidade do direito aos outros, os direitos subjetivos seriam só
miragens. O que os caracteriza é o poder reconhecido aos indi-
víduos pelo direito objetivo, sob a proteção dos órgãos sociais.
Mas é justamente aí que convergem as críticas que umas
escolas de pensamento geralmente opostas dirigem aos direi-
tos subjetivos. Para alguns jusnaturalistas, os direitos subjeti-
vos consagram "o egoísmo individual", que "tende a captar em
seu proveito, deformando-o, o que fora edificado somente vi-
sando a justiça e o bem comum" 82 . As doutrinas sociais objeta-
ram que o direito não pode ter por objetivo apenas a satisfação
dos interesses individuais, mas a dos interesses gerais, de mo-
do que cumpriria insistir mais nos deveres do que nas prerro-
gativas de cada um e os pretensos direitos seriam apenas "fun-

81. Ver a apresentação desta doutrina por J. GHESTIN e G. GOUBEUAX,


op. cit., n?s 183 ss.
82. M. VILLEY, art. já citado, Arch. philo. du dr„ t. IX, p. 109.
O FENÔMENO DO DIREITO 35

ções sociais" para serem cumpridas. Salientaram que os direi-


tos subjetivos comportam um absolutismo e um poder discri-
cionário inadmissíveis porque só consagram prerrogativas e
ignoram as obrigações que se impõem aos seus titulares. Cum-
priria então, pelo contrário, concentrar-se nas "situações jurí-
dicas" dos indivíduos para estudar os complexos de direitos e
de deveres que refletem melhor as exigências da vida social 83 .
As críticas de Duguit, dos positivistas, das doutrinas sociais ou
coletivistas, até mesmo de autores que, como Kelsen, negaram
a própria existência dos direitos subjetivos, não bastaram para
suprimi-los de numerosos sistemas de direito, notadamente do
direito francês.
29. - A resistência dos direitos subjetivos às críticas de que
sAo objeto é considerável. Ripert 84 , salientando que nenhum
direito é absoluto, já que é determinado pela lei ou pelo contra-
to, mas que é "por sua própria natureza egoísta", porque desti-
tuído a satisfazer os fins pessoais do homem, concluía que
"nada de duradouro poderia ser estabelecido com base no sa-
i rifício injusto de direitos legítimos". O conceito de direitos
subjetivos está profundamente arraigado nas mentalidades.
Jean Carbonnier mostrou que "a subjetivação é, para o di-
rcito, um meio de realizar-se mais perfeitamente, dispondo, em
lorno da norma, inumeráveis alarmes, muito sensíveis, prontos
ii disparar à menor transgressão" 85 . A idéia de direito subjetivo
sc expressa naturalmente na linguagem corrente: "eu tenho o
direito" ou "você não tem o direito" são expressões corriquei-
his. Seria impossível, sem dúvida, expor e explicar o direito
objetivo sem recorrer à idéia de direito subjetivo. Trata-se de
um instrumento indispensável de técnica jurídica, mesmo para
aqueles que criticam essa noção. A consagração dos direitos
Mihjetivos pelas declarações dos direitos do Homem, sobretu-

H3. Ver, sobre essas críticas, A. WEILL e F. TERRÉ, op. cit., n? 69; J. GHES-
t IN c ti IIOUBEUAX, op. cit., nos 165 ss.
K4. Ci. RIPERT, Le déclin du droit, 1949, n?s 61 ss.
J. CARBONNIER, "Théorie sociologique du droit subjectif', in Flexi-
hlr droit, 5" ed., p. 150.
36 TEORIA GERAL DO DIREITO

do, converteu-os em "meios de defesa dos indivíduos contra o


despotismo", de modo que parecem ser "o produto de um mo-
vimento de ideologia democrática e liberal tendente a proteger
o indivíduo contra os excessos do absolutismo estatal" 86 . Os
direitos subjetivos são igualmente sentidos como um aguilhão
do espírito de iniciativa e de responsabilidade dos cidadãos.
Propuseram reconstruir seu conceito fundamentando-se na
"necessidade" 87 . Constata-se mesmo que os direitos dos indi-
víduos se multiplicaram com o reconhecimento dos direitos de
propriedade literária ou artística, de propriedade industrial, dos
direitos sociais, dos direitos da personalidade etc. Vê-se mes-
mo o Estado comportar-se como cidadão e exercer "um grande
número de faculdades individuais, praticando o comércio ou
dirigindo-o" 88 .
Mas, embora os direitos subjetivos tenham conservado
tamanho vigor apesar das críticas que lhe são dirigidas, já não
são concebidos como absolutos. A influência das doutrinas so-
ciais não foi desprezível. Admite-se que os direitos subjetivos
"não são reconhecidos ao indivíduo unicamente para a satisfa-
ção de sua liberdade e de suas necessidades egoístas" e com-
portam "corretivos e deveres correspondentes" 89 .
Doutrina e jurisprudência mostraram que os direitos são
conferidos apenas para interesses legítimos e não para prejudi-
car a outrem, e que o exercício deles se torna repreensível se
são desviados de sua finalidade. Cumpre então confrontar o
objetivo perseguido por seus titulares e a finalidade dos direi-
tos envolvidos. Certos direitos têm por objeto o interesse de
seu titular, outros são destinados à proteção de outras pessoas.

86. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n° 70; MICHAÉLIDÍ S


NOUAROS, op. cit., p. 221; comparar o liberalismo pregado por F. A. Hayck
"Droit, législation et liberté, une nouvelle formulation des príncipes libéraux de
justice et d'économie politique", trad. fr. de R. Audouin, P.U.F., t. I, 1980, t, II.
1982, t. III, 1983; ver também Ph. NEMO, La société de droit selou F. A. Hayck.
P.U.F., 1988, e F. RANGEON, L'idéologie de 1'intérêt général, ed. Economicn
Paris, 1986, as doutrinas dirigistas.
87. A. SAYAG, Essaisur le besoin créateur de droit, Thèse, Paris, 1969
88. E. BERTRAND, L esprit nouveau des fois cis ilcs, 1984, p. II.
89. F. TERRÉ, op. cit., n" 70.
O I I.NÓMENO DO DIREITO 37

da criança por exemplo; outros são inspirados pelo interesse


geral; outros têm ao mesmo tempo uma função individual e
uma função social, como o direito de propriedade. Os tribunais
Mincionam, por conseguinte, o abuso de direito, a fraude da lei,
0 desvio de poderes 90 ...
O legislador interveio para proteger a organização social e
os interesses coletivos ou particulares que o uso abusivo dos
direitos e desequilíbrios muito gritantes poderiam ter ameaça-
do A maior descoberta de nossa época "é decerto a dc certas
ordens jurídicas novas, essencialmente econômicas" 91 . Multi-
plicaram-se os textos para impor aos indivíduos, em contrapar-
tida de seus direitos, deveres importantes. Também modelaram
1 oinplexos jurídicos organizados, destinados a reger interesses
i olclívos permanentes. Ao lado das instituições ou dos estatu-
iu1. clássicos do direito, aliás profundamente modificados, sur-
kilrain muitos outros. O casamento, a tutela, a empresa, o ar-
HMulamcnto rural, o estatuto social dos assalariados, a família,
ii propriedade, a co-propriedade, o crédito, o comércio, o arte-
nunato etc., todas elas instituições e estatutos citados assim a
• >.inot mostram o cerco dos direitos individuais por exigências
|iil)iiidus superiores. A multiplicação das instituições e dos es-
Miulos legais é o fenômeno jurídico mais marcante da época
iiiiiul Mas, sejam quais forem a ideologia e a técnica consagra-
da*, i' preciso, para reger os direitos (subjetivos) pelo direito
(ii|i|clivo), recorrer a regras que correspondam a uma defini-
i, iii i Idrmal do direito.

l«, An ||
I ih flniçâo formal do direito

Ml. - As concepções substanciais traduzidas pelas diversas


i"u oIhs dc pensamento c que se ordenam em torno das finali-
iliiili . que ele persegue não bastam para definir o direito. Este
i *|>ir .sii por regras que são suas manifestações formais.

IM V i r tn/>ii. n'.* 2.19 ss.


«I I III K I K A N I ) . <>/' ' il., p. 16
38 TEORIA GERAL DO D I R E / T O

O direito objetivo é via de regra definido como o conjun


to das regras de conduta que regem as relações suscetíveis d
se estabelecer numa sociedade com maior ou menor organiza
ção. As normas jurídicas sempre correspondem a prescriçõe
destinadas a ordenar relações sociais impondo determinada
comportamentos cujo respeito é assegurado pela autoridade pú
blica. A definição da norma jurídica (§ 1), assinala sua especi-
ficidade em comparação às outras normas sociais (§ 2).

1. Definição das normas jurídicas

31. - As normas jurídicas expressam o "padrão concreto'


ou a "formação abstrata" daquilo que deve ser nas relações ju
rídicas. A lei, em seu sentido mais geral, apresenta-se como t
descrição de uma relação necessária entre uma hipótese e sui
conseqüência. Mas, para o jurista, as leis são imperativas oi
"prescritivas", e não somente "descritivas". Todavia, o direit»
não é apenas a lei. Há que distinguir cuidadosamente as dispo
sições legais do conjunto das normas de direito.
E legítimo admitir que as normas jurídicas são aquelas qut
são produzidas de uma certa maneira por certas fontes deter-
minadas e são dotadas de qualidades específicas e providas
notadamente, de uma coerção jurídica. A juridicidade parect
ser uma referência a certa técnica de produção de instrumento;
com vocação para constituir modelos que devem ser "obrigato
riamente realizados" 92 . Mas "existem duas grandes categoria;
de normas: as que ordenam uma única relação jurídica e as qut
podem ordenar uma pluralidade infinita delas" 93 . Ora, confor
me os sistemas de direito, as normas jurídicas se apresentan

92. Ver em particular J. F. PERRIN, Pour une théorie de la connaissanc


juridique, Ed. Droz, Genebra, 1979, em especial pp. 25 s. e 78 s.; P. AMSELEK
op. cit., em especial pp. 285 s.; ver também "La philosophie à 1'épreuve du phéno
mène juridique: Droit de loi", 5? Colóquio de Associação Francesa de Filosofia d<
Direito, Aix en Provence, maio de 1985, Ed. P.U.A.M.. 1987.
93. M. V1RALLV, op. cit., p. 49.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 39

de modo diferente. Em geral contrapõem-se os direitos de tra-


dição romanista, que repousam essencialmente na "lei, noutras
palavras, em regras gerais e abstratas, e os direitos de Common
law que foram formados por juizes que estatuíam sobre litígios
particulares e são, portanto, oriundos de soluções concretas e
especiais. Existem, entretanto, entre as normas desses diversos
sistemas, traços em comuns característicos de toda prescrição
jurídica (A) que devemos destacar antes de nos concentrar no
exame das regras gerais constituídas pelas leis e regulamenta-
ções (B).

A. Os elementos característicos de todas


as prescrições jurídicas

32. - As prescrições jurídicas são ordens formuladas pelo


direito e cujo respeito é imposto pela autoridade pública. Mas,
sob essa noção geral (a), abrigam-se normas de formas e de
conteúdos diferentes (b).

A noção de prescrição jurídica


33. - Toda prescrição jurídica é caracterizada por um man-
damento e por uma sanção. E uma regra de conduta imposta
nas relações sociais para ordenar a sociedade. Consiste em pres-
crever ou proibir certos comportamentos criando obrigações,
legitimando certas atitudes, conferindo poderes etc. O conteú-
do desses mandamentos pode, assim, variar ao infinito. Esque-
maticamente, podem-se distinguir ordens positivas pelas quais
o direito impõe ou autoriza certos atos determinados (obriga-
ção de serviço militar, de pagar alimentos etc.) ou obriga a su-
portar certos comportamentos ou os efeitos de certos direitos,
e ordens negativas consistentes em proibições (proibição de
construir, de perturbar a vizinhança etc.). Esses diversos tipos
de mandamentos podem visar todos os aspectos da vida social,
trate-se de interesses particulares ou coletivos, privados ou pú-
blicos, relativos às pessoas ou aos bens etc., seja qual for o tipo
de fenômenos ou de atividades envolvidas. Quanto à força do
40 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

mandamento jurídico, ela é igualmente variável. Há prescri-


ções imperativas que não podem ser eludidas por aqueles a
quem elas se aplicam. Há também supletivas as quais se po-
dem derrogar e só se impõem aos interessados à míngua de
vontade contrária da parte deles. Há umas cuja aplicação su-
põe uma grande liberdade de "descodificação" e de interpreta-
ção. Certas prescrições abrem simples faculdades, meras pos-
sibilidades de opção, ao passo que outras criam obrigações às
quais é possível fazer respeitar mediante a coerção.
34. - Chegamos então ao segundo elemento constitutivo
das prescrições jurídicas: a sanção. A questão de saber se a
sanção ou a idéia de coerção pública é um dos critérios das
prescrições jurídicas suscitou uma importante controvérsia en-
tre os positivistas e os jusnaturalistas 94 . Entende-se aqui por
sanção uma sanção socialmente organizada, ou seja, definida
pelo direito, ligada a uma conduta contrária àquela imposta
por uma norma jurídica e que comporta geralmente um poder
de coerção. Essa definição, por demais abstrata e indiferencia-
da mas que especificaremos mais adiante, distingue a "san-
ção" da "coerção". Toda regra de conduta obrigatória compor-
ta uma sanção no sentido lato, sem, por isso, comportar o poder
de coerção que parece inerente ao direito. Existem sanções
naturais como a reprovação pública, ou morais e religiosas que
não implicam coerção objetiva.
Mas, enquanto os positivistas sustentam que não há obri-
gação jurídica sem sanção organizada, os partidários do direito
natural o contestam, sustentando que existem regras de direi-
to sem sanção coercitiva e que, insistindo demais na coerção
social, subordina-se demais o direito à ação dos poderes públi-
cos, no que concerne tanto à sua definição quanto ao seu con-
teúdo ou à sua efetividade.

94. J. DABIN, op. cit., n?s 37 ss.; P. ROUBIER, Théoríe générale du Droit,
n?s 5; M. V1RALLY, op. cit., pp. 67 ss. Ver também Ph. JESTAZ, "La sanction ou
1'inconnue du droit", D. S. , 1986,1, pp. 197 s.; "L'obligation et la sanction: à la
recherche de 1'obligation fondamentale", in Mélanges offerts à P. Raynaud, Paris.
1985, pp. 273 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 41

Cióny sustentou exatamente que, contestando o elemento


eoercivo dos preceitos jurídicos, "desnatura-se a idéia de justi-
ça humana, afogando-a num oceano de deveres de consciência
em que ela perde sua individualidade: por isso mesmo, supri-
mem-lhe a precisão e a força" 95 .
Com efeito, se não há dúvida de que as prescrições jurídi-
cas são o mais das vezes observadas espontaneamente sem que
ueju necessário recorrer a meios de coerção, é essencial que o
recurso à coerção seja possível a fim de poder impor aos recal-
i ltrantes respeitar os preceitos jurídicos. A necessidade de
meios coercivos para o respeito das obrigações jurídicas pare-
ce evidente.
Por certo, pode haver regras jurídicas sem sanção direta
por meios de coerção: dá-se isso em direito internacional pú-
blico. Mas isso não exclui meios de coerção indireta e prejudi-
ca a efetividade das regras envolvidas, por vezes até desnatu-
rnndo-as.
De modo mais geral, existem sanções; mas sua intensida-
de e suas formas são variáveis. As sanções praticadas nas so-
ciedades primitivas em que o próprio indivíduo fazia justiça
loram substituídas por formas de justiça pública.
Ksquematicamente, contrapõem-se dois grandes tipos de
sunções: algumas consistem em uma reparação do prejuízo
• ausado quer pela execução forçada das prestações não-execu-
ladas ou por uma reparação em espécie do dano, quer pelo for-
necimento de um equivalente, geralmente em forma de indeni-
zação. Outras consistem em uma repressão sob a forma de
uma pena, noutras palavras, de um sofrimento imposto ao
autor de uma infração em forma de castigo corporal, de priva-
- l o da liberdade ou de direitos, de multas 96 .

95. F. GÉNY, Science et technique en droit prive positif, t. II, n? 158.


96. Sobre o problema da sanção penal, na doutrina contemporânea, ver em
. ipecial: M. CUSSON, Pour quoipunir?, ed. Dalloz, Paris, 1987; J. P. DOUCET,
/ >/ loi pénale, ed. Litec, Paris; M. VAN DE KERCHOVE, Le droit sans peines.
iv/ifcts de la dépénalisation en Belgique et aux Etats-Unis, ed. Facultés Universi-
liilrcs Saint-Louis, Bruxelas, 1987.
42 TEORIA GERAL DO DIREITO

Mostraram muito bem que "de uma obrigação violada ou


não-executada vai nascer uma obrigação nova e assim por dian-
te" e que "vão forjar-se cadeias de obrigações... até que o re-
sultado buscado ou um resultado equivalente tenha sido atingi-
do" 97 . Em matéria civil, quando uma prescrição jurídica foi vio-
lada ou total ou parcialmente inexecutada, aparece uma outra
obrigação, de dar (juros de mora ou perdas e danos) ou de fa-
zer (execução forçada ou repor a coisa no estado anterior),
conforme os casos. Assim também, em matéria penal, o autor
de uma infração é passível de uma pena que pode ser uma obri-
gação de sujeitar-se (um encarceramento, por exemplo) ou de
pagar uma multa. Claro, existem outras sanções que atingem
atos irregulares e não pessoas: é o caso da anulação. Observa-
se que esta, por seu efeito retroativo, tem como conseqüência
quer dispensar da execução de uma obrigação que se supõe
nunca ter existido, quer obrigar os interessados a restituições.
Observa-se também que diferentes sanções podem acumular-
se. Certos desconhecimentos de prescrições jurídicas dão azo a
uma obrigação de fazer e de dar a um só tempo (repor a coisa
no estado anterior e perdas e danos, por exemplo) ou a uma san-
ção penal e uma sanção civil ao mesmo tempo, a uma repres-
são e uma reparação.
Mas nota-se que, em todos os casos, a violação de uma
prescrição jurídica tem o efeito de substituir a obrigação inicial
por outra obrigação 98 . Daí resulta que "a coerção só penetra no
direito sob forma de execução forçada de uma obrigação ou de
uma pena".
Não obstante, não se poderia confundir execução e san-
ção: "O direito de pronunciar uma sanção não se confunde
com o de proceder à execução... A sanção é um meio de pôr a
força a serviço da ordem jurídica." 99 Mas a coerção pública
não é inerente à idéia de sanção propriamente dita: existem
anulações de atos ou perdas de direitos que não requerem a

97. M. VIRALLY,o,p. cit., p. 69.


98. Ibidem.
99. Ibidem.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 43

intervenção da força pública... Em compensação, não há pres-


crição jurídica sem sanção, pelo menos indireta.

A diversidade das prescrições


35. - As normas jurídicas são de naturezas muito variáveis.
( ertos autores, como H. L. A. Hart, contrapõem "regras pri-
márias", que ordenam ou proíbem certas atividades, e "regras
secundárias", que indicam o modo de cumprimento dos atos
legislativos e dos diversos atos jurídicos atribuindo direitos,
poderes e competências. Z. Ziembinski distingue, pelo contrá-
rio, "as normas de competência", que atribuem uma compe-
tência para realizar um ato jurídico, até mesmo competências
legislativas, e "normas de comportamento", ou seja, regras que
determinam um comportamento ou um tipo de comportamen-
to a ser realizado, que são disposições "permissivas", inúteis
quando esses comportamentos não são proibidos, mas úteis
para restringir o campo de uma regulamentação ou fixar exce-
ções a um princípio geral 100 .
Para além da infinita diversidade do conteúdo possível
das prescrições jurídicas e das diferentes origens de que elas
procedem 101 , temos de distinguir as regras gerais e as prescri-
ções particulares.
As regras gerais e abstratas são destinadas a aplicar-se a
um número indeterminado de relações jurídicas e de pessoas,
todas as vezes que as condições das situações que elas têm por
objeto reger estão reunidas. Em compensação, as prescrições
particulares só têm vocação para reger uma única situação ju-
rídica, e o efeito delas é limitado a uma ou a determinadas pes-
soas. Assim, as decisões judiciais têm, em princípio, apenas uma
autoridade relativa, limitada às partes 102 , e, em direito francês

100. H. L. A. HART. The Concept of Law, Oxford, 1961, pp. 77 ss.; Z.


/.IEMBINSK.I, "Le eontenu et la strueture des normes concédant les compéten-
ith", in Normative Structures of lhe Social World, ed. Giuliano di Bernardo, Ams-
lerdam, 1988.
101. Ver infra, n?s 42 ss.
102. Não se deve confundir a autoridade e a eventual oponibilidade delas.
I in direito administrativo, a decisão em matéria de recurso por excesso de poder
Icm, o que lhe é próprio, uma autoridade absoluta.
44 TEORIA GERAL DO DIREITO

pelo menos, "é vedado aos juizes pronunciar por via de disposi-
ção geral e regulamentar sobre as causas que lhes são submeti-
das" (art. 5 do Cód. Civil). Assim também, os atos jurídicos, ma-
nifestações de vontade destinadas a produzir efeitos de direito e
que trazem uma modificação à organização jurídica, têm um
efeito relativo, limitado aos interessados. Os atos administrati-
vos individuais são destinados a produzir seus efeitos apenas
em proveito ou contra um ou vários destinatários determinados.
Mas o direito contemporâneo multiplicou as modifica-
ções do princípio da relatividade dos efeitos dos atos jurídicos.
Há cada vez mais atos jurídicos concernentes a interesses cole-
tivos familiares, patrimoniais, profissionais etc. e que, embora
emanem apenas de certos representantes desses interesses, se
impõem a todos os membros de uma coletividade, até mesmo
de um ramo de atividade, e assumem assim um caráter regula-
mentar. São atos-regras dos quais a convenção coletiva de tra-
balho, estabelecida por organismos profissionais para ser apli-
cada a todos os membros de uma profissão, talvez seja o me-
lhor exemplo. Esses atos-regras são, por conseguinte, interme-
diários entre as disposições gerais e abstratas e as prescrições
particulares. Ora, se, em certos sistemas, como em direito fran-
cês, o direito procede essencialmente de regras gerais e abs-
tratas emanantes de autoridades públicas especialmente inves-
tidas do poder de legislar e de regulamentar, em outros siste-
mas as regras de direito foram principalmente estabelecidas a
partir de decisões individuais da autoridade judiciária.

B. As regras gerais e abstratas

36. - Tende-se a identificar a regra de direito à lei e a con-


siderar que ambas se definem como as regras de conduta que
regem as relações sociais, sancionadas pelo direito e dotadas
de um caráter permanente, geral e abstrato"' 3 .

]03. P. LOUIS-LUC/VS, La loi, I).. 1964,1, p. 197.


O FENÔMENO DO DIREITO 45

A generalidade da lei parece proveniente de sua natureza


e não de uma opção constitucional, dentre outras. Santo Tomás
de Aquino definia a lei "como uma prescrição da razão refe-
rente ao bem geral", e J.-J. Rousseau proclamava que "o objeto
das leis é sempre geral" 104 . Isso significa que a regra visa toda
uma categoria de pessoas postas nas condições estabelecidas
para sua aplicação e definidas de maneira abstrata. Dirige-se,
sc não a todos os cidadãos, pelo menos a categorias bem am-
plas deles para satisfazer seu objetivo de harmonização das
relações sociais.
Assim, a lei pode reger indistintamente todos os membros
ilc uma sociedade ou concernir apenas a uma categoria de pes-
soas determinada de matéria abstrata, segundo critérios objeti-
vos mas variados, tais como o sexo, a idade, a profissão, a fun-
çlo etc. E por ser a lei geral, abstrata e impessoal e por se apli-
cai a todos os que preenchem suas condições, de sua entrada
Cltt vigor à sua ab-rogação 105 , o que depende de sua permanên-
i ia, que a lei é penhor de imparcialidade 106 . A impessoalidade
da lei é de fato uma garantia contra a arbitrariedade, já que não
r feita pró ou contra determinada pessoa. Representa assim
uma fonte dc segurança e de igualdade para os cidadãos.
A categoria por ela visada pode ser muito restrita. Pode
nu Niilo só englobar, em dado momento, uma única pessoa: um
loxto que só visa o Presidente da República fica geral, já que
di/ respeito a todos os presidentes, presentes ou futuros, sejam
i>lci quem forem.
M. - Mas, nesse sentido de disposição permanente, geral
• abstrata, a regra de direito, ou a lei, é definida por um crité-
imi material, independentemente do órgão público de que ela
«Hliaiui Segundo o art. 6 da Declaração dos Direitos do Homem
di 17Kl), "a lei é a expressão da vontade geral". Ora, esta pode
'"'i expressa por diferentes autoridades investidas de potência
publica Num regime parlamentar, a lei emana das assembléias

|(M t Iludo por IV I . O U I S - I . U C A S , ibiiU-m.


IIH Sobre nua iipliciii;ilo no tempo, ver infra, n " 108 ss
IIKi Sobre o» outros méritos, ver infra. »" 47
46 TEORIA GERAL DO DIREITO

legislativas. Mas aconteceu com freqüência que o Parlamento


delegasse algumas de suas prerrogativas ao Poder Executivo.
A Constituição francesa de 4 de outubro de 1958 reconheceu
ao Presidente da República e ao governo o poder de expressar
essa vontade geral, concorrentemente com o Parlamento. O art.
34 da Constituição enumera as matérias reservadas a este, sen-
do todas as outras confiadas ao poder regulamentar do Executi-
vo. Assim, a lei no sentido formal, ou seja, o conjunto das dis-
posições emanantes das assembléias legislativas, se limita daí
em diante a uma área de atribuição fixada pela Constituição.
Ela não engloba todas as regras de direito que são ao mesmo
tempo escritas e permanentes, gerais e abstratas, ou seja, isso a
que chamamos "a lei" no sentido material e inclui igualmente
as regulamentações 107 .
Lembraremos finalmente que as regras de direito têm uma
função, uma origem, uma sanção e caracteres próprios que as
distinguem das outras regras que regem as sociedades humanas.

2. A especificidade das regras jurídicas

38. - A definição formal do direito, encarado como o con-


junto das prescrições jurídicas, pode dar a impressão de uma
visão estreita demais por se concentrar apenas no direito posi-
tivo e limitar este a um legalismo articulado somente em torno
do Estado, que promulga a regra e a sanciona. E verdade que
"o direito só pode ser positivo pela decisão de uma autoridade
que o estabelece e o impõe como uma verdade objetiva"10*.
Mas também é verdade que a regra de direito não é nem im-
provisada nem arbitrária e que procede de uma profusão de
fatores materiais e morais, sociológicos e ideológicos, históri-
cos e atuais... O direito não se reduz a um conjunto formal dc
regras que são apenas sua expressão em dado momento em

107. Sobre a hierarquia dos textos, ver infra, nf" 70 ss.


108. S. AH AS, "Quelle positivité? Quelle notion de droit?", Arch philo du
droit,t XXVI], pp.209 ss., n" IX
O FENÔMENO DO DIREITO 47

dada sociedade. Tais regras não são todo o direito do qual cons-
tituem apenas o principal instrumento. Mas formam uma cate-
goria muito específica dentre as regras que governam os ho-
mens, especialmente em relação às regras morais (A) e às ou-
tras regras sociais (B).

A. Regras jurídicas e regras morais

39. - Desde sempre, filósofos e juristas se preocuparam


com as relações entre o direito e a moral 109 . Atualmente ainda,
eminentes autores pensam que "o direito natural é no fundo o
direito puro e simples... o direito em si", correspondente à "na-
tureza que a humanidade quis conferir a si" e a "uma física
social elementar" 110 . Dentro da perspectiva tradicional das
doutrinas do direito natural, a distinção entre o direito e a mo-
ral é incerta: a lei tem o objetivo de realizar a justiça, e o justo em
geral procede da revelação divina. Esse era o pensamento de
Santo Agostinho, e o direito canônico procede ainda bem larga-
mente das "regras reveladas". O direito islâmico, que mescla
logras religiosas ou morais com regras positivas, é oriundo do
Alcorão, coletânea da palavra de Deus e de sua revelação pelo
profeta. O direito hindu é igualmente marcado pela influência
ila religião bramanista e das verdades reveladas 111 .
Mesmo em sistemas jurídicos fundados essencialmente
cm regras positivas oriundas dos órgãos de poder público,
i's|icra-se do direito que ele consagre ao máximo as soluções
i|iio julgamos justas. Dentro da margem de indeterminação que
.1 lei deixa, em sua interpretação ou em sua aplicação aos fatos,
i itda qual se empenha em consegui-lo. A eqüidade é uma no-

l(W Ver supra, n'." 16 ss., 24 ss., e ver em especial também Ph. JESTAZ,
1'iMIVolt Juridique el pouvoir moral". Me Gill Law Journal, vol. 32, set. de 1987,
|i|i H II v, , V PITEV, "Wie moralisch ist das Recht?", Archiv für Rechts und
ÜilHuIllhlliHOfihle, l.XXIV. 3, 1988, pp. 348 ss.
I I I I Ph Jl S I AZ, art. citado, Rev. tr. dr. civ., 1983, pp. 233 ss.
III V n . pof exemplo, (i MARTY e P. RAYNAUD, op. cit., n" 5; ver
•ii|iit>tiiilii "Dimensiona religicuscs du droit", Arch philo du droit, I. XVIII, 1973.
48 TEORIA GERAL DO DIREITO

ção moral que cada um tenta, quando pode, levar em conta. O


legislador incentiva a isso ou às vezes autoriza o juiz a fazê-lo,
conquanto isso ainda seja raro em direito francês 112 . G. Ripert
não pensava que houvesse diferença de natureza ou de objetivo
entre a regra de direito e a regra moral e sustentava que o direi-
to, mesmo em suas partes mais técnicas, é sempre dominado
pela lei moral" 3 . Josserand excluíra até qualquer fronteira en-
tre o direito e a moral, pois o direito não era, segundo ele, senão
"a moral na medida em que ela fica suscetível de coerção" 114 .
Ao contrário, Kant115, negando o fundamento metafísico
de todas as morais transcendentes, tira a regra moral da von-
tade autônoma dos homens. Assim, segundo ele, a moral pro-
cede apenas da "voz interior" de cada qual e não de um manda-
mento exterior, enquanto o direito é uma regra de vida traçada
e aplicada sob a coerção social. Do mesmo modo, para Kant, o
direito se interessaria apenas pelas ações, pelo "foro exterior",
e não pelos móbeis que as inspiram, ao passo que a moral só
se concentraria nas intenções e nos motivos do homem, em
seu "foro interior" e não em suas ações. Vê-se o excesso dessa
análise.
Parece preferível, acompanhando Ripert 116 , admitir que é
preciso fundar a autoridade do direito numa concepção positi-
va, mas é necessário recorrer à moral na elaboração da ordem
jurídica, ainda que não seja possível contentar-se com uma
idéia geral e vaga de justiça. Pode-se, sem contradição, ficar
convencido das relações entre os fatos sociais e o direito117 <•
do papel das autoridades públicas e almejar ardentemente a
necessária convergência entre o direito e a moral.

112. Exemplo, arts. 565, 1135 ou 1244 do Cód. Civ., enriquecimento sem
causa etc.; Ci. VI AR TV e P RAYNAUD. op. cit., n? 127; ver. sobre a eqüidade, P
SANZ DE ALBA, Qitelqves aspects de l 'équité. Tese Aix, 1980.
113. G. RIPERT. La règle morale dans les obligations civiles, 1949
n " 13-8.
114. JOSSERAND. De I'esprit des droits et de leur relativité, 1927. n'.' 254
115. Ver P. ROUBIER, op. cit., n" 6.
116. G RIPE ItT, íbidem.
117. Yer infra, n. 148 ss
O FENÔMENO DO DIREITO 49

Roubier considerava, com toda a razão, "que não há opo-


sição de princípio entre o direito e a moral", mas que, como o
direito tem em vista a ordem na sociedade enquanto a moral
persegue a perfeição individual, a apreciação jurídica é "obje-
tiva e bilateral", ao passo que a apreciação moral é "subjetiva e
unilateral". Daí ele deduz incontestáveis e importantes dife-
renças entre direito e moral" 8 .
40. - Direito e moral se distinguem mormente por suas
fontes. Enquanto a moral procede de mandamentos religiosos,
da ética social, de considerações sociológicas ou biológicas ou
da consciência individual, a regra de direito é oriunda das pres-
crições das autoridades públicas habilitadas e se supõe que re-
presente a vontade do povo.
Direito e moral perseguem f inalidades diferentes. A mo-
lal visa a perfeição do homem, ao passo que o direito tende
apenas a uma boa organização da vida em sociedade. Enquanto
.i moral se concentra nos deveres do homem para consigo mes-
mo. para com suas idéias, para com sua religião, para com seu
próximo, e se interessa pelo foro interior, o direito se preocupa
npenas com comportamentos dos homens no âmbito da vida
cm sociedade. Seu julgamento não emana do "tribunal da cons-
i icncia" mas das salas de audiência dos tribunais.
Opõem sobretudo, embora isso seja às vezes discutido" 9 ,
11 sanção do direito e a da moral. O respeito ao direito é garan-
tido pela previsão de uma sanção socialmente organizada; a
moral é sancionada só pela consciência do indivíduo, por um
hipotético além ou pela reprovação dos outros. Essa diferença
nAo pode ser suprimida pelo fato de que, nas sociedades tradi-
i lonalistas, as violações das regras morais acarretavam rea-
t,i>i". sociais e, vice-versa, a repressão jurídica pode consistir
> m iiiiui ação popular, em uma reprovação social, até mesmo,
. in certas sociedades, em excomunhões ou outras sanções reli-
|mu\,is Assim que o direito positivo consagra tais sanções, elas
ii' tornam sanções jurídicas porque são organizadas pelo corpo

IIK P. ROUHIHK, ihidvm.


I p) M V I R A I I.Y, «/'. ei/., p. 77; ver também supra, n'.' 14.
50 TEORIA GERAL DO DIREITO

social. Enfim, diferenças técnicas opõem o direito e a moral.


Esta é por demais subjetiva, incerta e instável e muito carente
de virtude coerciva, de precisão e de realismo para permitir uma
organização satisfatória das relações sociais e para estabelecer
a segurança jurídica requerida pela vida de toda sociedade
humana.
Mas as regras de direito, embora assegurem essa organi-
zação das relações sociais, não são as únicas regras que contri-
buem para isso.

B. Regras jurídicas e outras regras sociais

41. - A vida coletiva impõe aos membros da sociedade


certos comportamentos necessários à coexistência dos homens.
Estes se expressam por "regras de costumes" que se impõem
sob a pressão do grupo mas não constituem regras de direito.
Essas outras regras sociais são muito diversas: são usos de
decoro ou de polidez; são também regras oriundas da cultura tais
como as regras de higiene e de terapia, "as técnicas de ofici-
nas, de fábricas, de lojas, de escritórios, disciplinadas e unifor-
mizadas desde sempre pelo costume", "a linguagem", "as nor-
mas corporais" ou as "técnicas do corpo" (predominância da
mão direita, maneira de sentar-se) etc. Está estabelecido que
tudo isso não é somente instintivo mas "secretamente regula-
do" 120 . Se se lhe acrescenta a moral e a religião, constata-se
que todas essas regras correspondem a fenômenos de psicolo-
gia social, resultantes de uma pluralidade de sistemas normati-
vos no seio de uma sociedade em cujo espaço social uns se pro-
duzem no espaço social e os outros se instalam na consciência
individual.
Durante muito tempo, ativeram-se a distinguir o direito e
os costumes. Depois, dissociaram a religião e a moral dessa
classificação para limitar a categoria dos "costumes" às práti-

120. J. CARBONNIER, Essais surtes tois, 1979. pp. 251 ss.; A. Wl II I c


F. TERRÉ, op. cit., r? I I.
O FENÔMENO DO DIREITO 51

cas não-espirituais. Sociólogos americanos opuseram então en-


tre elas as folkways, noutras palavras, as maneiras de viver do
grupo (maneira de se vestir ou de se alimentar, p. ex.) e os mo-
res, que designam comportamentos mais próximos daqueles
que interessam ao direito, cujo desconhecimento causa prejuí-
zo a outrem e suscita reações sociais diferentes daquelas do
direito (obrigação para o sedutor de assumir certos deveres para
com a moça seduzida, p. ex.). Mas outras tipologias também
foram estabelecidas.
Observamos simplesmente aqui que, embora existam múl-
tiplas regras sociais que não são as regras jurídicas, o direito
tem como particularidade "poder apropriar-se de qualquer ou-
tra regra social que seja". Fala-se então da "neutralidade da re-
^ra jurídica". Toda regra social é suscetível de se tornar regra
de direito. A regra de direito é, em si, um "frasco transparente"
correspondente a certos critérios 121 . Mas ela recebe, conforme
om sistemas, conteúdos apropriados aos objetos a que deve
xutisfazer, consoante valores e coerções da sociedade que de-
ve reger. Certos direitos são reticentes ao "governo pelas leis",
demasiado abstratos para se adaptar às variações exatas da vida
v ilos casos particulares: dizem 122 que o direito chinês tradicio-
nal reside mais "no sentido do decoro e dos ritos" e no senso
• Ir outrem do que em verdadeiras normas. Inspira-se então mui-
to no costume.
Mas isso mostra a que ponto as fontes do direito podem
nci diversas.

121. Ihldem.
122 <1 M A R T Y c l\ R A Y N A W I ) , <</> cit., n" 5.
Capítulo 2
As fontes do direito

42. - Como "fontes do direito" designamos tanto as fontes


substanciais como as fontes formais do direito 1 .
As regras de direito não são arbitrárias e sem causas e pro-
cedem de certo número de dados profundos. São os mais di-
versos princípios morais, religiosos, filosóficos, políticos, so-
ciais, ideológicos etc. que dirigem e inspiram os direitos posi-
tivos e se relacionam com a filosofia do direito2. São também
os múltiplos fatos sociais3 e as exigências do meio temporal 4 ,
espacial 5 e técnico do direito que lhe impõem a orientação e o
conteúdo. Em suma, são mormente "as forças criadoras do di-
reito" 6 que constituem suas fontes substanciais pois fornecem
às normas a matéria delas.
As fontes do direito também se entendem como "modos
de formação das normas jurídicas, ou seja, procedimentos e
atos pelos quais essas normas atingem a existência 'jurídica', in-
serem-se no direito positivo e adquirem validade" 7 . São então

1. Sobre esta distinção, ver P. ROUBIER. "L'ordre juridique et la théorie


des sources du droit", in Le droit prive au millieu du XX' siècle, Estudos ofereci-
dos a G. RIPERT, ed. L.G.D.J., Paris, 1950,1.1, pp. 9 ss.
2. Ver supra, n?* 15 ss.
3. Ver infra, n os 148 ss.
4. Ver infra, n?s 94 ss.
5. Ver infra, n?s 123 ss.
6. G. RIPERT, Les forces créatrices du droit, L.G.D.J., 1955.
7. M. VIRALLY, Lapensée juridique, L.G.D.J., 1960, p. 149.
54 TEORfRIA GERAL DO Dl RE! Ti >

as fontes formais do direito, cujo "pequenao número implica que


se encontrem em todas as ordens jurídicaas e se prestem à siste
matização" 8 . É unicamente dessas fontesis formais que tratare
mos neste capítulo. Embora a importânccia e a autoridade res
pectivas delas variem conforme os sistemnas políticos, as épocas
e os países, podemos agrupar entre essasis fontes a lei, o costu
me, a jurisprudência e a doutrina. Em gçeral contrapõem-se as
"fontes escritas", como a lei, às "fontes nãoo-escritas", como o cos
tume, ou as "fontes diretas", como a lei ( e o costume, às "indi
retas", como a doutrina e a jurisprudêncbia, que seriam mesmo,
segundo eminentes autores, apenas autonridades e não fontes do
direito francês 9 , ou ainda as "fontes ofícbiais" que geram regras
formais, que a lei e a jurisprudência sãão, às "fontes não-ol i
ciais" que dão origem apenas a regras nnão-formais, tais como
o costume e a doutrina 10 .
Sem nos atardar aqui nessas difeferentes classificações,
temos de salientar que o reconhecimentcto das fontes formais do
direito e do caráter obrigatório das regraras que delas se origina-
ram supõe um "estado de direito". Isso c deveria implicar que os
poderes públicos respeitam honestamennte as regras estabeleci-
das sem cogitar em utilizá-las como biciombo para a arbitrarie-
dade". A teoria das fontes do direito éé conseqüentemente su-
bordinada ao que se denominou o due p process of laxv para que
o direito possa cumprir sua função de í submissão "da conduta
humana ao governo das regras" 12 .
43. - Devem-se eliminar das fonte es de direito os atos que
criam só regras individuais? A questão o é ligada ao próprio con
ceito de regra de direito cuja generalicidade parece ser um dos

8. Ibidem\ ver "Sources du droit", in Arch. piphilo. du dr., t. XXVII, 1982.


9. J. CARBONNIER, Droit civil - Introduciction les personnes, P.U.F., I I'
ed., n?s 22 ss.
10. J. DABIN, Théorie générale du droit, <, ed. Dalloz, 1969, n?s 26 ss.; I'
ROUBIER, Théorie générale du droit, ed. Sirey, 1 1951, n? 2.
11. Ch. PERELMAN, Logique juridique — nouvelle rhétorique, Dalloz, 2"
ed , 1979, nf 76.
12 I.ON FUI.LF.R, The Morality of Lawjv, New Haven, Yale University
Pr*M, IWM. |)|1 18 c 81 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 55

iiirihutos essenciais. A lei é geral porque é suscetível de diri-


gir - sc a qualquer pessoa que preencha as condições que ela
prescreve, e não somente a uma determinada pessoa. O princí-
pio da generalidade da lei permite então distinguir a ordem
individual e a regra geral.
No entanto, certos autores, em especial da escola austría-
ca, classificam regras puramente individuais entre as regras de
direito e as situam embaixo da hierarquia das regras jurídicas.
I verdade que as decisões judiciais, as decisões administrati-
vas, as convenções particulares... valem apenas por sua vincu-
lação a regras mais gerais e que os atos jurídicos são procedi-
mentos que permitem criar normas concretas, regras indivi-
duais que se impõem a seus autores ou a seus destinatários... É
exato também que a época moderna viu proliferar "atos-regras",
"contratos de adesão", "contratos-padrão", os contratos de as-
sociação ou de sociedade, as convenções coletivas etc. dos quais
procedem normas aplicáveis a toda uma categoria ou a toda
uma coletividade de pessoas. Inversamente, toda regra geral
lom a vocação de se individualizar pois, se é "geral em seu
enunciado abstrato, é necessariamente individual em sua apli-
cação" a determinadas pessoas 13 . Portanto, não se pode negar
i|iie os atos individuais geram para os interessados regras no-
vas e modificam assim a organização jurídica, nem que as re-
gras gerais só se realizam por suas aplicações particulares.
No entanto, não parece que as sentenças, contratos ou de-
cisões administrativas que criam prescrições individuais pos-
sam em si mesmos ser qualificados dc fontes do direito, pois
não criam normas capazes de reger uma série ilimitada de ca-
sos. Esses atos têm apenas um efeito relativo na medida em que
só se impõem a seus autores ou a seus destinatários, ainda que
essa relatividade sofra às vezes exceções. São sobretudo sim-
ples intermediários deliberados entre as regras de direito e as
prescrições individuais. As disposições gerais, as verdadeiras
regras de direito, se impõem logo à primeira vista, automatica-

13 J. DABIN, op. cit., n? 81.


56 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

mente, às pessoas que visam, em geral sem a intermediação de


um ato jurídico particular. Em compensação, o aparecimento
das prescrições individuais supõe um determinado ato, em ge-
ral complexo, ao qual são subordinados certos efeitos e cuja
validade depende de sua conformidade com o direito positivo14.
Por conseguinte, o efeito criador de direito dos atos individuais
não é autônomo: é apenas a aplicação do sistema jurídico e a
sombra lançada pelas regras de direito no terreno dos fatos.
Não se poderia ignorar a importância de novas formas de
atos jurídicos dotados de certa generalidade e que podem pare-
cer ser fontes subsidiárias do direito. Mas quase só se podem
qualificar de fontes do direito os modos de formação das regras
gerais, trate-se da criação imediata da regra em sua generalida-
de abstrata, como para a lei, ou de sua gestação progressiva pe-
la repetição de comportamentos análogos ou de decisões seme-
lhantes, como para o costume ou para a jurisprudência.
Constata-se então que a heterogeneidade das fontes de di-
reito (Seção I) não exclui relações de complementaridade entre
elas (Seção II).

SEÇÃO I
A heterogeneidade das fontes de direito

44. - Se admitimos que o direito não passa da expressão


da vontade coletiva de uma sociedade, essa vontade coletiva,
sejam quais forem seus modos de expressão, é a única verda-
deira fonte do direito15. Dentro dessa concepção sociológica, a
origem das regras de direito e as modalidades de suas manifes-
tações são apenas procedimentos técnicos de produção do di-
reito16. Distinguindo classicamente as quatro fontes formais do

14. Nesse sentido, J. DABIN, n?s 81 ss., M. VIRALLY, op. cit., p. 155.
15. H. LEVI-BRUHL, Aspects sociologiques du droit, Lib. M. Rivière et
Cie, 1955, pp. 47 ss.
16. Ver. J. F. PERRIN, Pour une théorie de la connaissance juridique, ed.
Droz, Genebra, 1979, pp. 103 s.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 57

direito, que são o costume, a lei, a jurisprudência e a doutrina,


observa-se que elas correspondem a modos de formação dire-
to ou indireto do direito. Em certos casos, a regra de direito
originou-se só de comportamentos, de decisões ou de opiniões
que não tinham o fito de criar regras gerais e abstratas. A regra
resultou deles apenas fortuita e progressivamente graças a um
raciocínio lógico que conduziu a apreendê-la e a formulá-la.
Assim, o costume surge dos fatos; a jurisprudência, das deci-
sões judiciais; a doutrina, dos autores. Em outros casos, o di-
reito procede de atos deliberados cuja meta era estabelecer
normas com um conteúdo determinado e uma formulação pre-
cisa. Trata-se então de um modo de formação direta do direito
correspondente a fontes escritas, sendo a lei amiúde considera-
da em certos sistemas de direito como a principal, até mesmo a
única fonte de direito. Neles ela é consagrada em nome do Es-
tado e enquanto expressão da vontade geral 17 .
Nota-se então que a lei e a jurisprudência emanam de
órgãos oficiais e especializados, ao passo que o costume e
mesmo a doutrina normalmente não são originários de institui-
ções dotadas de um poder criador de direito. Admite-se que a
regra a ser seguida precisa ser conhecida de todos; como a lei
pode ser publicada, sua publicação permite informar todos os
interessados, de modo que se supõe que ninguém a ignora nem
pode furtar-se a ela. A publicação da lei parece, assim, justifi-
car a superioridade do direito escrito sobre o direito consuetu-
dinário 18 . Uma parte da doutrina considera, porém, que o direi-
to perde sua elasticidade assim que é redigido, ao passo que o
costume conserva a fluidez necessária à sua perpétua adapta-
ção. Haveria então "um inevitável antagonismo entre o direito
c sua formulação, reflexo de um conflito mais grave entre duas
necessidades profundas dos homens: a justiça e a segurança ,,1 ' ) .
Diante de tal debate, o jurista deve aplicar-se à escolha das fon-
tes (§ 1) ao mesmo tempo que ao conhecimento do direito (§ 2).

17. R. CARRÉ DE MALBERG, La loi expression de la volonté general.


Paris, Sirey, 1931, reedição Economica, Paris, 1984, prefácio G. BURDEAU.
18. G. RIPERT, op. cit., n° 125.
19. H. LÉVI-BRUHL, op. cit., p. 55.
58 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

í. A escolha das fontes

45. - Nas sociedades primitivas, não existiam regras de


direito redigidas nem sequer princípios transmitidos oralmen-
te, mas somente sentenças e decisões divinas. Na Grécia anti-
ga, os "tesmótetas" diziam o direito que a divindade lhes dita-
va. Em Roma, só no século III antes de Cristo é que apareceu
um direito separado da religião. O Alcorão comporta cerca de
quinhentas suras com um caráter jurídico correspondente a
sentenças dadas por Maomé segundo as revelações de Alá. No
direito israelita antigo, o profeta anuncia ao povo as sentenças
de Deus 20 . Não há dúvida sobre a inspiração religiosa do
direito hindu 21 ... É apenas numa fase de civilização relativa-
mente avançada que se vêem aparecer verdadeiras regras de
direito, ainda que compilações de forma legislativa tenham
aparecido bastante cedo, como o código de Hamurabi entre os
babilônicos, o Decálogo entre os hebreus ou a lei das XII Tá-
buas entre os romanos. Mas o conhecimento do direito foi por
muito tempo reservado a sacerdotes e depois monopolizado
pelos chefes, de modo que o direito, diretamente produzido
por fontes místicas e saído da vida social, foi abocanhado pela
autoridade. Foi com o desenvolvimento da vida social que,
para limitar os efeitos desses monopólios opressivos, se fez
sentir a necessidade de conhecer de antemão o que era o direi-
to e que foram publicadas e conhecidas as regras jurídicas, se-
jam elas espontâneas ou ordenadas (A). Ora, com o desenvol-
vimento do Estado, as fontes oficiais se tornaram predominan-
tes, sendo a origem legal ou pretoriana delas (B) ligada a pro-
blemas técnicos.

20. E. ANTONELLI, "Le droit institution sociale", in Mélanges Roubier,


Dalloz Sirey, 1961, t. I. pp. 7 s., nota, pp. 23 s.
21. R. DAVID, Les grands systèmes de droit contemporains, ed. Dalloz. 8a
ed. de C. Jauffret-Spinosi, nos 448 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 59

A. Regra espontânea e regra ordenada: o fenômeno sociológico

46. - A determinação das fontes do direito é ligada à ma-


neira pela qual o direito é sentido como fenômeno social e às
condições sociológicas de sua gestação. O direito surge da von-
tade coletiva de grupos diversos, não só no seio de uma nação
mas também no plano infranacional ou supranacional. Sofre a
influência de grupos socioprofissionais, de famílias espiri-
tuais, de grupos de pressão diversos...; procede de interesses
econômicos, políticos, sociais etc. Mas, conforme os casos, a
regra de direito é espontânea, porque diretamente destilada
pelo grupo social, ou ordenada, quando emana de um órgão
oficial e especializado e é gerada por um ato voluntário de
urna autoridade social, o legislador ou o juiz.
Na primeira hipótese, a regra de direito provém do costu-
me: é oriunda de um uso geral e prolongado e de precedentes
que refletem uma prática constante adquirida com o consenso
dc todo o grupo social e percebida geralmente como conforme
ao direito. Assim, o costume é j,[m modo popular e impessoal
dc formação do direito. E uma fonte objetiva e não-organizada
do direito que se apóia numa tradição consciente ou incons-
ciente do grupo social, e não num ato voluntário de uma auto-
ridade. Assim, é intuitiva e espontânea, o que explica que não
seja expressa e precisamente formulada sob forma de manda-
mentos e de regras. Observa-se, porém, que os costumes em ge-
ral acabam sendo redigidos e repertoriados a fim de ser divul-
gados e aplicados. Na França, Carlos VII ordenou, em 1453, me-
diante a ordenação de Montil-Iés-Tours, que os costumes fos-
sem redigidos por escrito. Existem compilações de costumes
locais que foram redigidas por ordem do Ministério do Interior
no decorrer da segunda metade do século XIX.
Em compensação, quando a norma procede de atos deli-
berados da autoridade pública destinados a consagrá-la, a for-
mulá-la, a divulgá-la e a impô-la, ela resulta de um modo de for-
mação ordenado do direito. Emanante de fontes oficiais, lei ou
jurisprudência, o direito então é imposto unilateralmente aos
cidadãos de maneira autoritária e centralizada. Nos sistemas
60 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

liberais, o direito positivo é repleto de precauções destinadas a


enquadrar a ação do Estado em condições e limites capazes de
impedir-lhe o abuso. A distinção entre Constituição, lei e regu-
lamentação e, nas estruturas federais, entre as competências do
estado central e dos Estados-membros, não é puramente for-
mal, mas corresponde a uma limitação e a um equilíbrio mate-
riais dos poderes 22 . A lei é então, no sentido lato, toda regra es-
crita, geral e permanente promulgada em forma de mandamen-
to pelos poderes públicos. Certos sistemas judiciários, como o
direito francês sob o domínio da Constituição de 4 de outubro
de 1958, comportam uma distinção entre os textos emanantes
do Parlamento e os que são originários do Poder Executivo. Mas
essa distinção entre a lei e a regulamentação especifica ainda
mais modalidades de expressão das regras de direito oriundas
das fontes oficiais e deliberadamente estabelecidas pelas auto-
ridades sociais. A legislação comporta, assim, traços caracte-
rísticos: é expressa e redigida por uma formulação definitiva.
É, por conseguinte, fixada com firmeza pelos termos dessa re-
dação até sua eventual modificação por uma outra lei.
47. - Percebem-se, em conseqüência, as respectivas vanta-
gens e inconvenientes do costume e da lei.
A lei, por ser explicitamente formulada, comporta uma se-
gurança que o costume, mais difuso, mais movente e mais
incerto, não pode atingir. Seus modos de elaboração, em geral
complexos, procedem de uma técnica muito elaborada, de ins-
pirações diversas de ordem histórica, ideológica, científica, so-
cial, econômica etc. confrontadas em debates organizados se-
gundo procedimentos democráticos, ao longo de todo o pro-
cesso legislativo 23 . Isto permite à lei oferecer garantias particu-

22. M. VIRALLY, op. cit., pp. 150 ss.


23. Sobre o processo legislativo e a ciência da legislação, ver, p. ex.: P. ANSE-
LEK (dir.), La science de la législation, Trabalhos do Centro de Filosofia do
Direito da Universidade de Paris II, ed. P.U.F., 1988. J. CARBONNIER, Essais
sur les lois, ed. Rep. du Notariat Defrénois, 1979; A. PIZZORUSSO (dir.), Law in
the making, ed. Springer Verlag, 1988; A. VIANDIER, Recherche de lègistique
comparée, ed. Springer Verlag, 1988; C. LAMBOTTE, Technique législative et
i > I ENÔMENO DO DIREITO 61

lares, tanto sobre o mérito quanto do ponto de vista formal, a


despeito de suas freqüentes imperfeições. Assim, a lei pode
atravessar o tempo e os acontecimentos sem ser modificada,
ainda que sua interpretação às vezes evolua muito. Por conse-
guinte, a lei é facilmente publicada e conhecida por todos. Mas
também pode ser ab-rogada de um dia para outro porque tal
modificação é necessária ou porque o legislador é atingido por
tensões sociais que apresentam o risco de gerar efeitos nocivos.
Assim as fontes escritas, pela rigidez de sua expressão, são em
princípio fatores de segurança e de estabilidade do direito, mas
também podem permitir rupturas brutais da ordem estabeleci-
da, se bruscas mudanças afetam os poderes públicos. Ademais,
a fixidez da lei constitui um freio para sua adaptação à evolução
social. Apresenta o risco de suscitar um divórcio entre o direito
e os fatos. Já em sua promulgação, a lei começa a envelhecer e
perde a validade. A jurisprudência tenta então manter-lhe a
atualidade, às vezes com acrobacias ou com artifícios.
O costume, ao contrário, que se elabora ao sabor do nú-
mero e da constância dos precedentes da vida social e jurídica
e repousa num consenso geral, amolda-se à plasticidade dos
fatos e absorve a fluidez das relações sociais. O valor do prece-
dente não depende em princípio de uma vontade dos poderes
públicos. O costume parece, portanto, ser um modo de criação
contínua do direito. Ele só se mantém na medida em que os
fatos expressam-lhe a realidade. Cada nova aplicação é um novo
precedente, e cada forma nova modela-lhe a substância. Se ele
deixa de ser aplicado, cai em desuso. Em contrapartida dessa
plasticidade, o costume tem o inconveniente de ser incerto,
difícil de conhecer e de enunciar. Seu conteúdo se manifesta
mediante indução de fatos concretos mas muitas vezes impal-
páveis. O direito consuetudinário pode, entretanto, ser inventa-
riado e redigido, até mesmo agrupado em compilações, como

codification, ed. Story Scicntia, 1989; U. KARPEN e P. DELNOY (dir.), Contri-


butions to the Methodologv of the Creation ofWritten Law, ed. Nomos Verlagsge-
sellsehaft, Baden-Baden, 1966. Ver também, B. OPPETIT, Es sai sur la codifica-
tion, col. Droit-éthique-société. P.U.F.. 1998.
62 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

foi feito outrora em muitos sistemas jurídicos e ainda é feito no


que toca aos usos comerciais e profissionais, por exemplo.
Mas, assim que é formulado, o costume se cristaliza e começa
a parecer-se, por sua expressão se não por sua origem, com a
legislação.
48. - Fica claro então que "o conceito de direito consuetu-
dinário não é inconciliável com as idéias de sociedade organi-
zada e de juridicidade" 24 . Constata-se, não obstante, que, nas
sociedades modernas, diante do crescimento do papel do Estado,
o costume recua, ao passo que as fontes oficiais do direito, a lei
e a jurisprudência não param de se desenvolver 25 .
O aparecimento do Poder Legislativo é relativamente tar-
dio no desenvolvimento das sociedades 26 . Os povos primitivos
viveram sob regimes de direito consuetudinário. Algumas tri-
bos da África, da Oceania e da Ásia até hoje só conhecem cos-
tumes, ainda mais respeitados por conservarem um caráter
sagrado. Toda a Europa Ocidental, a partir do fim do Império
carolíngio, conheceu o direito consuetudinário que foi depois
redigido e, portanto, fixado em suas grandes linhas. Foi sobre-
tudo na França, no século XIX, que, com a codificação napo-
leônica, a lei se tornou a fonte essencial e quase exclusiva do
direito 27 . Esse movimento de codificação estendeu-se a nume-
rosos sistemas jurídicos no mundo. A consagração e o aumen-
to dos poderes do Estado e de seus órgãos legislativos e juris-
dicionais leva inevitavelmente a reprimir o costume em provei-
to da lei ou do direito pretoriano instilado por esses órgãos.
Isto não exclui totalmente o costume das fontes do direito. Mas
o costume não conserva muito mais do que um papel reduzido
e puramente supletivo.
Em direito francês contemporâneo, o legislador se reporta
em certos casos ao costume, de maneira expressa ou implicita-

24. J. DABIN, op. cit., n os 24 e 32.


25. J. DABIN, op. cit., n° 33.
26. M. VIRALLY, p. 153; ver, p. ex. sobre as fontes do direito africano, N.
ROULANT, Anthropologie juridique, ed. P.U.F., 1988, n?s 117 ss.
27. H. LÉVY-BRUHL, op. cit., pp. 64 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 63

mente, por exemplo por referência aos "bons costumes". O


costume e os usos se impõem às vezes também de maneira au-
tônoma praeter legem, como complementos da lei ou em face
da lei supletiva. Admite-se em geral que ele não pode ser apli-
cado contra legem2*. Ninguém contesta que a lei possa abolir o
costume e que este só se impõe sob a autoridade dos tribunais.
O costume só conserva portanto, em teoria, o lugar e o papel
que as fontes oficiais lhe concedem.
A lei e a jurisprudência, por sua vez, supõem uma fase de
civilização relativamente avançada. Quanto mais se estrutura
uma sociedade, mais se organizam seus poderes, mais inexora-
velmente se impõem as fontes oficiais do direito. Nota-se mui-
to amiúde, porém, que a lei se apóia no costume e nele se ins-
pira. O Código napoleônico extrai boa parte de suas disposi-
ções dos antigos costumes. O "costume erudito" evidenciado
pelos juristas, feito de sentenças, de máximas, de princípios ge-
rais, de receitas, de prática etc. sempre desempenhou um gran-
de papel 29 . A doutrina, na França já no século XVI, estudou os
costumes e provocou a evolução deles. Dumoulin, d'Argentré,
Guy Coquille, Loysel etc. deixaram sua marca no antigo di-
reito francês. Pothier, no século XVIII, e sobretudo Domat no
século XVII exerceram profunda influência sobre o direito e
inspiraram o legislador napoleônico.
Constata-se então, em todas as sociedades modernas, uma
mutação sistemática do direito espontâneo, de caráter con-
suetudinário, direcionada ao direito ordenado, de fonte ofi-
cial. A evolução jurídica é, assim, paralela à evolução socio-
lógica.
Mas, entre as fontes oficiais, a alternativa entre a lei e a ju-
risprudência depende de fenômenos essencialmente técnicos.

28. J. CARBONNIER, op. cit., n° 28.


29. Ibidem.
64 TEOR]A GERAL DO DIREITO

B. Regra legal e regra pretoriana: o fenômeno técnico

49. - Independentemente dos particularismos dos diversos


direitos nacionais e, em cada pais, das diferenças entre as épo-
cas e as matérias consideradas, os sistemas jurídicos da famí-
lia romano-germânica são marcados pela preponderância da
lei escrita que, sem ser a fonte exclusiva do direito, teve e con-
serva uma enorme importância neles. Isso decorre de sua tra-
dição de direito escrito e da influência do direito romano. Essa
tendência se apóia também nos princípios da democracia 30 e
na idéia de que a lei constitui a melhor técnica para estabelecer
regras de direito suficientemente claras, precisas e conhecidas.
Procede, enfim, do movimento de codificação que se desen-
volveu no século XIX e no XX, como na França com os códi-
gos napoleônicos ou, mais antigamente, nos países escandina-
vos. Os países continentais europeus não são os únicos que são
dominados por esse sistema que se espalhou pelo mundo intei-
ro, principalmente na América do Sul, em numerosos países da
África, no Oriente Próximo e até em certos países do Extremo
Oriente 31 . A jurisprudência desempenhou, não obstante, um
papel essencial em todos esses países, ainda que sua importân-
cia varie segundo os sistemas jurídicos e, num mesmo sistema,
conforme as épocas e as matérias: todas essas ordens jurídicas
conhecem a um só tempo uma hierarquia comparável dos tex-
tos e uma diversificação análoga das fontes do direito.
50. - Outros sistemas de direito, denominados de common
law, cujo modelo é o direito inglês, são essencialmente direitos
jurisprudenciais. Na Inglaterra, a autoridade do direito romano
nunca foi reconhecida; ali não existe Constituição escrita. Nela

30. R. CARRÉ DE MALBERG, La loi, expression de la volonté générale,


ed. Sirey. 1931, reedição Economiea, col. "Classiques", 1984, prefácio de G.
Burdeau.
31. R. DAVID e C. JAUFFRET-SPINOSI, op. cit., nos 25 ss. Sobre os méto-
dos de codificação, J. L. BERGEL, "Principal Features and Methods of Codi-
fication", Louisiana Law Review, vol. 48-5-1988, pp. 1073 ss.; "Les méthodes de
eodification dans les pays de droit mixte", in Laformation du droit national dans
les pays de droit mixte, Aix-en-Provence, P.U.A.M., 1989, pp. 21 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 65

a lei mostra-se classicamente apenas uma fonte secundária do


direito, atendo-se a proporcionar "uma série de emendas e de
adendos ao corpo principal do direito inglês, constituído pelo
direito jurisprudencial" 32 .
Os direitos anglo-saxões são, assim, fundamentalmente
case laws. O common law foi criado pelos tribunais régios de
Westminster. O conjunto de regras que constituem a equity é
oriundo, sobretudo nos séculos XV e XVI, da jurisdição do
chanceler e destinado a completar, até mesmo a revisar, o siste-
ma do common law, tornado então insuficiente e defeituoso 33 ;
a equity se refere aos próprios princípios da justiça quando esta
fica em conflito com o direito formal. Apesar da "fusão entre o
common law e a equity" realizada pelas Judicature Acts de 1873
e 1875, sua distinção permanece um fato. Na ausência de um
sistema de direito escrito auto-suficiente, o papel da jurispru-
dência, na Inglaterra, não foi somente o de aplicar mas tam-
bém o de criar as regras de direito que se encontram em the
reasons, a ratio decidendi, das decisões prolatadas pelos tribu-
nais superiores. Assim, a regra de direito resulta tradicional-
mente, em direito inglês, da espécie por ocasião da qual foi
evidenciada e da qual foi a sustentação necessária da decisão
prolatada 34 .
As decisões judiciárias têm então uma autoridade particu-
lar nos direitos anglo-saxões porque as regras que elas estabe-
lecem devem ser seguidas a fim de não comprometer a firme-
za e a unidade do sistema jurídico. A obrigação de respeitar as
regras estabelecidas pelos juizes, de respeitar os precedentes
judiciários (stare decidis), está na lógica de um sistema de
direito jurisprudencial": foi no século XIX que a "regra do pre-
cedente" se impôs com rigor para assegurar a coesão da juris-
prudência britânica. Mas apenas os precedentes obrigatórios
são constituídos pelas decisões dos tribunais superiores, em

32. R. DAVID e C. JAUFFRET-SP1NOSI, op. cit., n os 342 ss.


33. R. DAVID, op. cit., por C. JAUFFRET-SPINOS1, n os 296 ss.
34. Em oposição ao obter dictum correspondente a declarações não estrita-
mente necessárias à solução do litígio que sempre podem ser contestadas.
66 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

outras palavras, pela i Supreme Court of Judicature e pela Câ-


mara dos Lordes35.
O sistema do copmmon law se estende, para além do direi-
to inglês, a praticamnente todos os países de língua inglesa e
desempenha um pape>el importante em todos os países que foram
ou ainda são politiccamente associados à Inglaterra. Assume
uma importância mnuito especial com o direito dos Estados
Unidos, cuja filiaçãão e analogias com o direito inglês são es-
senciais, apesar de d i f e r e n ç a s profundas ligadas principalmente
à distinção entre o ddireito federal e o direito dos Estados. Ade-
mais, como os Estaados Unidos são dotados, desde a indepen-
dência americana, dde uma Constituição federal acompanhada
de uma declaração < dos direitos que constitui o fundamento dc
suas instituições e ddas liberdades públicas, a lei escrita ganhou
bem depressa em diüreito americano uma importância não habi-
tual nos sistemas dele common law,.ao passo que a regra do pre-
cedente foi flexibililizada pelas Cortes Supremas.
Na realidade, < embora em todos os países anglo-saxões as
regras legislativas íainda pareçam insólitas e só sejam assimila-
das completament&e com a interpretação e a aplicação que lhes
é dada pelo juiz, oo papel delas desenvolveu-se continuamente
nesses sistemas coom a emergência do fenômeno dirigista. Um
intenso movimentto legislativo manifestou-se neles na época
contemporânea, esspecialmente depois da Segunda Guerra Mun-
dial: atualmente oo statute law ocupa em todos os direitos an-
glo-saxões um luggar comparável ao do common law. O Parla-
mento exige que ; as leis que votou sejam aplicadas, e o Poder
Judiciário controlía essa aplicação.
Se pensamoss na importância considerável da jurisprudên-
cia para aplicar, iínterpretar, completar e rejuvenescer a lei e no

35. R. DAVID, , op. cit., por C. JAUFFRET-SPINOSI, n?s 333 ss.; M. ZAN-
DER, The Law Makinng Process, ed. Weidenfeld & Nicolson, Londres, 1985; V
PETEV, Methodenfrafgen in Englischen Rechts, Reehts théorie, 1984, s. 213. 214,
ver também, sobre os>s méritos da regra do precedente: B. N. CARDOZO, The
Natureof the Judicial 1 Process, New Haven e Londres, Yale University Press, 2' ed..
1949, pp. 142 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 67

"poder normativo" que lhe é reconhecido agora em muitos sis-


temas romano-germânicos, observamos que o fosso que sepa-
rava esses sistemas jurídicos e os direitos anglo-saxões tende a
sumir. Ambos transformam agora lei e jurisprudência em fon-
tes concorrentes ou complementares do direito; ainda que essa
qualificação nem sempre lhe seja unanimemente reconhecida,
cia expressa bem a importância concreta desses fenômenos na
formação e na evolução do direito nos diferentes países.
51. - Todavia, não se poderia ignorar a situação específica
conhecida pelos países ditos "socialistas", submetidos a regi-
mes comunistas totalitários, da Revolução de 1917 (ou no
pós-guerra mundial para os países-satélites da URSS) ao fim
dos anos 1980. A maioria desses países é de tradição roma-
nista. Independentemente das profundas diferenças ideoló-
gicas c substanciais que os opuseram aos direitos ocidentais,
cies são oriundos principalmente da lei, como todos os direitos
da família romano-germânica. Mas neles a lei teve um papel
muito mais exclusivo. A doutrina do Estado e do direito rejei-
tou o princípio da separação dos poderes em proveito daquele
da unidade do poder. As Constituições definiam as missões
doN tribunais que tinham em quase toda parte a tarefa de "pro-
teção do regime político e social do Estado" 36 . Ali a jurispru-
dência tinha uma missão estrita de aplicação da lei e era des-
provida dc qualquer papel criador. A Corte Suprema da URSS
publicava, não obstante, diretrizes e emitia circulares obrigató-
nas para todas as jurisdições, destinadas a guiá-las na aplica-
ção das leis. Apesar de certas diferenças técnicas, observava-
'.e também nas outras repúblicas populares essa subordinação
das autoridades judiciárias ao poder estatal. Segundo a doutri-
na marxista-leninista, "toda interpretação corretiva" é contrá-
ria ao princípio da legalidade socialista e à supremacia da lei.
I sse postulado não bastou, todavia, para apagar os particula-
msinos e as tradições próprias dos países-satélites da URSS.

36. Há que assinalar aqui o particularismo da Iugoslávia, onde o juiz não re-
i »bc expressamente esta missão.
68 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

Na Polônia, na Hungria, na Checoslováquia, na Iugoslávia, os


juizes sempre foram verdadeiros juristas e os tribunais con-
servaram competências mais específicas. Seria inexato negar-
lhes qualquer poder inovador, mesmo que este tenha sido mui-
to limitado.
52. - Constata-se em última análise que, em todos os paí-
ses evoluídos, o direito procede essencialmente, se não unica-
mente, de fontes oficiais, a lei e a jurisprudência. Se o respec-
tivo papel do legislador e do juiz varia conforme os sistemas
jurídicos e, dentro de um mesmo sistema, conforme as épocas
e as matérias, isso se deve a razões técnicas. As origens roma-
nistas de certos direitos, sua ideologia política e constitucional,
sua confiança na lei escrita implicam a predominância da lei.
A ausência de um corpo de direito escrito suficiente, nos direi-
tos anglo-saxões, uma outra tradição histórica e o prestígio dos
tribunais régios geraram ali um direito jurisprudencial. Em di-
reito francês deu-se o mesmo quando o juiz administrativo,
tendo-se subtraído ã aplicação do direito privado, teve de criar
um direito pretoriano, por falta de um sistema de direito tex-
tual suficiente. Os direitos socialistas deduziram da doutrina
da onipotência do Estado a soberania absoluta da lei e a sujei-
ção da jurisprudência a esta. O desenvolvimento das tendên-
cias dirigistas e as exigências da coerência do sistema jurídico
levaram os direitos anglo-saxões a reconhecer um papel cres-
cente à lei. A evolução social e jurídica e a pulverização dos
textos gerais por regulamentações especiais e heterogêneas
suscitaram nos sistemas de direito escrito um verdadeiro direi-
to pretoriano. O acesso à vida jurídica de certas comunidades
internacionais produz um direito novo, que atenua as fronteiras
normativas e vai além delas. O direito da União Européia tor-
nou-se uma fonte do direito dos países-membros. A Corte de
Justiça das comunidades européias o proclama, ao mesmo
tempo que o princípio do efeito direto do direito comunitário:
"a comunidade constitui uma nova ordem jurídica de direito
internacional em cujo proveito os Estados limitaram... seus di-
reitos soberanos e cujos sujeitos são não só os Estados-mem-
bros mas igualmente seus cidadãos; ... portanto, o direito co-
O FENÔMENO DO DIREITO 69

munitário, independente da legislação dos Estados-membros,


assim como cria ônus para os particulares é também destinado
a gerar direitos que entram no patrimônio jurídico deles" 37 . Es-
sa aplicabilidade direta concerne não somente a disposições
dos tratados, mas também a regulamentações e diretrizes. E
acompanhada da primazia do direito comunitário sobre as le-
gislações internas nacionais: a ordem jurídica própria da União
Européia, "integrada ao sistema jurídico dos Estados-mem-
bros... impõe-se a suas jurisdições". A preeminência do direito
europeu "não teria alcance se um Estado pudesse unilateral-
mente aniquilar seus efeitos mediante um ato legislativo opo-
nível aos textos comunitários" 38 . Assim, a escolha das fontes
que é ligada a fenômenos sociológicos depende também de da-
dos puramente técnicos. Mas a conjunção desses imperativos
conduz a tamanha diversificação das fontes que o conheci-
mento do direito fica ao mesmo tempo mais imperioso e mais
difícil que outrora.

2. Conhecimento do direito e documentação jurídica

53. - Os juristas, sejam quais forem a habilidade intelec-


tual e a qualidade dos reflexos que tenham recebido de sua for-
mação e de sua experiência, não sabem tudo. O espírito jurídi-
co é mais uma aptidão qualificativa do que um conhecimento
quantitativo. Todo jurista, legislador, profissional ou acadêmi-
co deve portanto proceder a duas operações diferentes: a inves-
tigação da documentação necessária para resolver um proble-

37. C.J.C.E., 5 de fevereiro de 1963, N. V. Algemene Transport en Expé-


ditie Onderneming Van Gend & Loos c/ Adm. fiscal neerlandesa, Proc. 26/62,
Rec. p. 1; ver também L. DUBOU1S e G. GUEYDAN, Grands textes de droit
communautaire, ed. Dalloz, Paris, 1996; ver também P. BONASSIES, "Une nou-
velle source doctrinale du droit français: la jurisprudence de la Cour de justice des
communautés", in Éludes Kayser, t. 1, pp. 43 ss.
38. C.J.C.E., 15 de julho de 1964, M. Flamínio Costa c/ E.N.E.L., Proc.
6/64, Rec. p. 1141.
70 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

ma e "a reflexão pessoal para adaptar essa documentação" às


exigências próprias da questão que deve tratar39.
Mas o campo das pesquisas varia conforme seu objeto.
Quando se trata de uma pesquisa geral destinada a operar uma
modificação, mesmo sobre um ponto muito especial do direito
positivo, as investigações que o legislador deve fazer são mui-
to diversificadas. Supõem, ao lado da documentação jurídica
própria para inventariar as soluções existentes, agrupar todos
os dados humanos, sociológicos, filosóficos, políticos, econô-
micos, sociais, históricos, científicos etc. do problema posto.
Em compensação, quando se trata apenas de uma pesquisa de
direito positivo, com o objetivo de trazer a melhor solução ju-
rídica para uma situação concreta consoante o direito positivo,
a documentação necessária é mais limitada: é quase sempre
exclusivamente jurídica e consiste na reunião dos elementos
do direito existentes sobre o problema por resolver.
Sejam quais forem o objeto e a amplitude de uma pesqui-
sa, impõem-se dois procedimentos intelectuais: a análise da
documentação e a síntese40. Alguns procedem primeiro, me-
diante um estudo documental completo, à análise dos proble-
mas. Outros, por privilegiar sua intuição ou sua inspiração,
começam considerando uma solução para somente depois ve-
rificar sua exatidão mediante a documentação. Mas, indepen-
dentemente da organização da reflexão propriamente dita, a
exploração dos dados supõe esquematicamente dois métodos
diferentes: um método empírico e um método dogmático.
O método empírico, fundamentando-se no uso exclusivo da
experiência e não numa teoria geral, consiste na busca das solu-
ções já dadas, na lei, nos precedentes judiciários, até mesmo na
doutrina, a situações idênticas. Supõe um cotejo com situações
comparáveis e o exame das conseqüências previsíveis de cada
uma das soluções possíveis para escolher a mais adequada.

39. A. DUNES, Documentation juridique, ed. Dalloz, 1977, pp. 1 ss.; Y.


TANGUY, La recherche documentaire en droit, ed. P.U.F., col. "Droit fondamen-
tal", 1991.
40. Ver também infra, n°s 248 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 71

O método dogmático se apóia, ao contrário, não na expe-


riência que só intervém de modo subsidiário, mas numa teoria
geral, por referência às diversas escolas de pensamento, à his-
tória do direito, ao direito comparado, aos princípios gerais, às
categorias jurídicas etc. Inspira-se muito na doutrina.
Concentrando-nos por ora apenas na documentação jurí-
dica, medimos a imperiosa necessidade, para todo jurista, de
uma pesquisa minuciosa das fontes do direito que supõe meios
documentais importantes e seguros. Mas essa pesquisa da do-
cumentação costuma parecer ingrata e representa grandes per-
das de tempo. Cumpre então melhorar a documentação clássi-
ca (A) recorrendo à informática jurídica (B).

A. A documentação clássica

54. - A estrutura da documentação clássica é evidentemen-


te ligada à escolha das fontes operada pelo sistema jurídico em
questão.
Nos países anglo-saxões, as compilações de jurisprudên-
cia é que são tradicionalmente essenciais. Na Inglaterra, as prin-
cipais compilações de jurisprudência são os Law Reports que
comportam várias séries segundo as jurisdições, a coleção dos
Ali England Law Reports e a dos Weekly Law Reports. As leis
inglesas são publicadas na série statutes dos Law Reports ou
no Halbury 's Statutes of England e o Halbury s Statutory Ins-
truments. De modo mais geral, a jurisprudência e a legislação
inglesas são principalmente publicadas nos Law Reports, en-
quanto a exposição sistemática do direito inglês se encontra na
coleção dos Halbury s Laws of England. Nos direitos áa famí-
lia romano-germânica, apesar da preponderância da lei, esta
não pode bastar para o conhecimento deles. Toda documenta-
ção séria implica pesquisas de jurisprudência e de doutrina.
Na França, a documentação jurídica se dirige às diferentes
fontes do direito: a legislação no sentido lato que compreende
os textos regulamentares e as circulares, a jurisprudência, a
doutrina, até mesmo as outras fontes, tais como as convenções
72 TEORIA GERAL DO DIREITO

coletivas, as respostas ministeriais, as sentenças arbitrais, as cer-


tidões típicas da prática, os modelos de contrato etc. A imensi-
dade do corpus geral e as exigências da especialização levam
também a multiplicar as fontes de documentação por discipli-
nas, até mesmo por matérias numa ótica pluridisciplinar: a ten-
dência atual é, então, de lhe mesclar as diferentes fontes do di-
reito. Opera-se assim uma diversificação dos instrumentos da
documentação jurídica entre edições gerais, sob forma de enci-
clopédias ou de revistas, e edições especializadas por setores 41 .
A concepção, o conteúdo e a apresentação das obras jurídicas
depende então dos tipos de edição e da finalidade da informa-
ção jurídica. Esta pode reduzir-se a documentos oficiais: tex-
tos legislativos e regulamentares, decisões das diferentes juris-
dições, com ou sem comentários. Pode consistir também em
uma apresentação sistemática do direito positivo por discipli-
nas, por matérias ou por instituições ou questões. O jurista o
mais das vezes recorre a todas essas formas de documentação
conjuntamente. Refere-se aos códigos, aos ementários, às re-
vistas oficiais 42 ou do setor privado, gerais ou especializadas.
Consulta as obras acadêmicas ou profissionais, as publicações
de fundo ou os formulários 43 .
Mas o corpus documental fica então colossal. Quanto
mais melhora e mais completo fica, maior é o risco de ser inu-
tilizável por causa da complexidade e da duração das pesqui-
sas que impõe, mesmo que elas tenham sido previamente cen-
tradas por uma determinação precisa dos problemas postos,
dos conceitos envolvidos, das palavras-chave do tesauro, das
fontes de documentação por consultar. Na época atual, o esco-
lho não é o de uma insuficiência de documentação, mas o da
superabundância dos elementos de informação. E aqui que
aparece a necessidade de recorrer à informática 44 .

41. A. DUNES, op. cit., n?s 72 ss.


42. Journal officiel, Bulletins dc la Cour de Cassation, Recueil des décisions
du Conseil d'Etat etc.
43. Sobre os tipos de edição, ver A. DUNES, op. cit., n'.'s 118 ss.
44. Sobre os diversos aspectos das relações entre o direito e a informática,
ver Droit et informatique - L'hermine et la puce, prefácio de J. Carbonnier, ed.
Masson, Col. Inst. Fredrik R. Buli n?s 11-1992.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 73

B. A informática documental

55. - "Por suas capacidades de memória..., pelo número e


pela multiplicidade de seus acessos, pela velocidade de pes-
quisa, o computador enriquece a informação e multiplica-lhe a
eficácia." 45 A despeito das experiências concludentes de certos
pioneiros, tais como na França E. Bertrand, P. Catala e H.
Cosnard, e do desenvolvimento, tanto na França como no exte-
rior, nos países de tradição romanista (Alemanha Federal, Itá-
lia, Bélgica) ou de common law (EUA, GB, Canadá), de im-
portantes bancos de dados, muitos juristas ainda manifestam
hesitação diante da informática jurídica. Isso se deve às vezes
a uma má percepção do fenômeno informático. O computador
não é um rival do homem. Não passa de um instrumento que está
se tornando indispensável. Receiam às vezes um empobreci-
mento do trabalho de análise para os juristas, uma substituição
da qualidade de documentação por sua quantidade, um risco
de esclerose... Mas a informática documental é apenas um meio
de nutrir as análises com uma documentação mais fácil cuja
exploração continua entre as mãos do jurista. Não é um fim em
si. Seus desempenhos atuais progredirão depressa graças à
melhoria do corpus dos bancos de dados e à evolução técnica.
Sua banalização e sua generalização estão em curso. Constitui
um instrumento precioso para os juristas que devem tirar parti-
do dela. Os espetaculares desenvolvimentos de instrumentos
novos como os CD-Roms e a telemática facilitam o acesso de
todos a todas as informações.
A utilização satisfatória dos bancos de dados, especialmen-
te em matéria jurídica, pressupõe certa concentração das infor-
mações documentais ou uma distribuição coerente de suas res-
pectivas áreas, pois imperativos econômicos se opõem a uma
multiplicação de bancos de dados rentáveis e de qualidade, mes-
mo em países como os Estados Unidos.
Isso explica que, na França, um decreto de 24 de outubro
de 1984, "relativo ao serviço público das bases e bancos de

45. A. DUNES, op. c/f., n? 31.


74 TEORIA GERAL DO DIREITO

d a d o s jurídicos", tenha tentado organizar o processamento c a


difusão da documentação jurídica informática e estabelecei
entre os bancos de dados uma complementaridade e uma coe-
são satisfatórias, notadamente para constituir um "fichário na-
cional de jurisprudência" 46 .
56. - As dificuldades com que se confronta a informática
documental são conhecidas 47 . "A finalidade da informatização
num sistema documental consiste em encontrar o mais rápido
e o mais pertinentemente possível as informações nele arma-
zenadas." 48 É preciso, para consegui-lo, superar certos obstá-
culos à entrada da documentação e à consulta.
A entrada dos documentos supõe primeiro sua seleção ob-
jetiva segundo critérios definidos, constantes e conhecidos, vin-
culados ao interesse jurídico, fatual, estatístico etc. dos proble-
mas tratados, quando se trata de situações individuais. Nenhu-
ma triagem prévia parece concebível, ao contrário, para as fon-
tes legislativas e regulamentais. O método de coleta dos dados
documentais é, ademais, essencial. Pode tratar-se do método
do texto integral que exclui qualquer arbitrariedade e qualquer
omissão mas integra no computador as ambigüidades do esti-
lo, as noções parasitas, as impropriedades verbais ou substan-
ciais... Pode-se utilizar também o método de indexação que su-
põe uma análise prévia dos documentos para extrair deles os
elementos fundamentais em forma de palavras-chave ou de re-
sumos ou a um só tempo de palavras-chave e de resumos. Esse
método supõe um importante trabalho de processamento jurí-
dico dos dados mas evita, se feito por um pessoal qualificado,
os inconvenientes do texto integral. Este se impõe para as leis

46. Dec. n? 84-940 de 24 de outubro de 1984, J. O. de 25 de out., p. 3396.


Circ. de 11 de fevereiro de 1985, J. O. de 7 de março de 1985, p. 2823; H. MAN
ZANARÈS e Ph. NECTOUX, L'informalique au service du juriste, ed. Litec,
Paris, 1987, pp. 129 ss. Ver sobretudo: P. CATALA, Le droit à Vépreuve numéri
que -Juz ex machina, ed. P.U.F., col. "Droit-éthique-société", 1988.
47. Ver p. ex. J. P. BUFFELAN, Introduction à 1'informatique juridique, Lib
Joum. Not., 1975; A. CHOURAQUI, L 'informatique au service du droit, P.U.F., 1974
X. LINANT DE BELLEFONDS, L 'informatique et le droit, P.U.F., col. Que sais
je?, 1981. Não se trata aqui das obras referentes ao direito da informática.
48. X. LINANT DE BELLEFONDS, op. cit., p. 76.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 75

c regulamentações. O método da indexação parece preferível,


com um resumo suficiente, para a jurisprudência e a doutrina a
fim de evitar os "ruídos" e os "silêncios" ligados a uma densi-
I ícação desses dados às variações maiores de sua terminologia
c de seu estilo.
A especificidade da linguagem e da terminologia jurídi-
ca'1'' constitui outro escolho. A eficácia do sistema documental
informático tem ligação especial com a qualidade do tesauro
adotado. O "tesauro" é "um léxico hierarquizado que compreen-
de uma rede de interconexões, de exclusões, de discriminações
c de proximidades semânticas sob a forma de listas de substi-
tutos, de contrários, de termos vizinhos ou genéricos..." 50
A elaboração e a evolução do tesauro, que supõe uma per-
feita definição dos conceitos e uma grande precisão de termi-
nologia, constitui a dificuldade essencial. Ela condiciona a exa-
tidão da pesquisa dos documentos significativos que supõe
uma identidade entre a formulação da pergunta feita e a codifi-
cação das palavras introduzidas no computador. Toda similitu-
tle inexata, ambígua ou artificial e toda diferença injustificada
« litro a linguagem e a substância na introdução dos dados ou
mi consulta comprometem gravemente a qualidade do sistema
documental informático. A solução dessa dificuldade supõe
encontrar a linguagem substancial adaptada a todas as fontes
do direito cuja integração simultânea no corpus documental é
necessária à qualidade deste. Mas a complementaridade das
diversas fontes de direito permite facilmente essas interferên-
cias terminológicas e documentais.

NEÇÂO II
I v relações entre as diferentes fontes do direito

57. - A heterogeneidade das fontes do direito e das razões


•itrcladas a seu respectivo desenvolvimento no seio dos diver-
ti* sistemas jurídicos não poderia dissimular suas interferên-

49. Ver infra, n?s 209 ss.


50. X. LINANT DE BELLEFONDS, op. cit., p. 84.
76 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

cias na produção do direito. Não parece haver ordem jurídica


que privilegie exclusivamente uma das fontes e ignore as ou-
tras, mas somente sistemas em que uma fonte prevalece sobre
as outras. O direito só se cria realizando-se. A lei, o costume, a
jurisprudência e a doutrina contribuem todos para essa realiza-
ção. A inspiração de cada uma das fontes pelas outras e a com-
plementaridade das fontes do direito procedem, apesar de sua
diversidade, de certas similitudes entre sua natureza e sua fun-
ção. Com uma apresentação com muita freqüência isolada dc
cada fonte do direito, corre-se o risco de ignorar suas intera-
ções (§ 1) e suas afinidades (§ 2).

1. As interações

58. - Seja qual for a fonte dominante de um sistema de di-


reito, ela é fruto de inspirações diversas; as regras de direito,
qualquer que seja a origem delas, sempre necessitam ser inter-
pretadas; suas contradições devem ser suprimidas e suas lacunas
preenchidas; as disposições existentes sempre necessitam ser es-
tendidas, restringidas, adaptadas ou ab-rogadas... Ninguém pode
imaginar que o juiz seja indiferente à lei, à doutrina ou à prática,
nem que o legislador ignore a doutrina ou a jurisprudência, nem
que a doutrina se desinteresse da lei ou da jurisprudência... Exis-
te uma comunidade jurídica que, para além de suas diferenças in-
ternas, colabora para a criação, para a aplicação e a evolução do
direito e em cujo seio se exercem influências recíprocas. Não se
pode, para estudar a criação do direito, desconhecer essas intera-
ções entre as diversas fontes do direito. Expressam-se em ações
de umas sobre as outras ou em reações de umas contra as outras
e procedem, conforme os casos, de um diálogo ou de um duelo
entre os autores, os juizes, o legislador, os atores da vida jurídi-
ca. A regra de direito, a "lei" no sentido mais lato desse termo,
não é somente a do legislador: é em muitos aspectos "a lei dos
doutores" (A), "a lei do juiz" 51 (B), "a lei dos atores" (C).

51. J. L. BERGEL, "La loi du juge - Dialogue ou duel?", in Études kaiser,


1979. pp. 21 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 77

A. A lei da doutrina

59. - A doutrina, o pensamento dos autores em matéria ju-


rídica, expressa no conjunto das obras jurídicas, é um conceito
ambíguo. Não há uma doutrina, mas autores de direito cuja li-
berdade favorece a diversidade de seus pensamentos. Noutras
palavras, "doutrina não constitui um corpo de pensamento or-
ganizado cujas tendências e cujos sentimentos poderíamos ex-
por de maneira coerente. Ela depende dos autores, dos gêneros
literários, da matéria", do sistema estudado 52 . Para além da di-
versidade dos gêneros literários utilizados, das opiniões emiti-
das, das tendências e da autoridade dos autores, pode-se defi-
nir a doutrina como "uma opinião escrita e científica que serve
tio regra" 53 .
A doutrina é geralmente tratada entre as fontes do direito
ou a respeito delas; mas seu lugar em relação ao costume, à lei
e á jurisprudência não é bem determinado, ainda que ninguém
conteste que "o direito necessita de uma reflexão permanente",
baluarte essencial contra "a arbitrariedade" 54 , e ninguém dis-
corde que lhe cabe esse papel. Um certo enfoque sobre a teoria
das fontes do direito leva a privilegiar a lei e a jurisprudência e
ii reduzir a doutrina, "mero reflexo das fontes verdadeiras", a
um papel secundário 55 .
A doutrina foi às vezes uma verdadeira fonte do direito.
I ra assim no direito romano, no qual as opiniões de certos ju-
i isconsultos se impunham aos juizes, e na Idade Média, depois
do renascimento do direito romano, quando a communis opi-
nlo doctorum desfrutava grande autoridade. O papel da doutrina

52. Ph. MALAURIE. in Les réactions de Ia doclrine à Ia création du droit


Ikii lesjuges, Travaux Assoc. H. Capitant, t. XXXI, 1980, p. 83
53. P. BELLET, Rapport de svnthèse, in Travaux Assoc. H. Capitant, 1980,
I X X X I , já citado, p. 11
54. C. ATIAS, La mission de la doclrine universitaire en droit prive, J. C.
I', 19X0,1, 2999, n? 1; Théorie contre arbitraire, P.U.F., col. "Les voies du droit",
Poria. 1987.
55. C. ATIAS, Réflexions sur les méthodes de la science du droit. D., 1983,
I. 145, n° 10; Epistémologie juridique, P.U.F., 1985, n? 53.
78 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

na unificação do direito, sob o Antigo Regime, foi considerá-


vel para o estudo dos costumes e para a elaboração de um
direito nacional. Domat foi o primeiro que parece ter apresen-
tado o direito em uma ordem lógica. O direito alemão do sécu-
lo XIX, com a Escola chamada dos Pandectistas, foi, antes da
codificação de 1896, um "direito de professores". Essa influên-
cia determinante da doutrina permanece em certos países onde
os contatos entre os juizes e os professores de direito são favo-
recidos pela lei e pelo costume. No Brasil e em Portugal, "a
sentença só modifica as regras escritas quando há a esse res-
peito uma concordância da comunidade jurídica que abrange
os juizes, os professores e os advogados" 56 . Na França, "o cos-
tume de origem erudita", feito de adágios, de brocardos, de prin-
cípios gerais, de receitas etc. coligidas pelos juristas no decor-
rer do tempo e que estruturam o direito, marcam a importância
positiva da doutrina. Mas na maior parte dos casos, em espe-
cial em direito francês contemporâneo, a doutrina não é uma
fonte de direito, pois as opiniões enunciadas pelos autores, em
geral díspares ou contraditórias, não têm o menor caráter obri-
gatório para o juiz 57 . Exerce mesmo assim importante influên-
cia sobre o legislador e os tribunais.
60. - Fica claro que a influência da doutrina sempre foi
maior nos sistemas em que ainda não existia direito constituí-
do ou estruturado. Seu apogeu se situa na França e na Alema-
nha antes das grandes codificações do início e do final do sé-
culo XIX. Depois da codificação, a doutrina se atém a comen-
tar e interpretar os textos como fez no século XIX, na França,
a Escola da Exegese. Assim também, é antes que a jurispru-
dência esteja formada que a doutrina tem mais influência
sobre a solução de um determinado problema. O vazio legisla-

56. A. WALD, Rapport Brésilien, in Travaux Assoc. H. Capitant, 1980, l


XXXI, op. cit.. pp. 53 ss., n? 34.
57. J. CARBONNIER, op. cit., n? 35; J. GHESTIN e G. GOUBEAUX,
Traité de droit civil. Introduction générale, n? 227; H. L. e J. MAZEAUD por M
Juglart, Leçons de droit civil, 1.1, vol. 1, n° 99; A. WEILL e F. TERRÉ, Droit civil
Introdution générale, n? 228.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 79

livo e regulamentar é de certo modo o paraíso dos juristas. Só


é possível desbravar em terrenos virgens. Nele todas as cons-
truções intelectuais são possíveis, ao passo que uma legislação
c uma jurisprudência abundantes deixam apenas pouco espaço
li inovação. Isto explica, neste mundo de "super-regulamentação",
0 recuo do papel da doutrina.
A multiplicidade dos textos, a desordem de uma regulamen-
tação detalhada e minuciosa, as contradições, as ambigüidades
e as insuficiências que disso resultam impõem, no entanto,
redescobrir os princípios embaixo da mixórdia da regulamen-
tação, restaurar os métodos de interpretação da lei, reconstituir
métodos de raciocínio etc. Compete à doutrina desempenhar
esse papel eminente. É a ela, de fato, que cabem a síntese do
direito, a reflexão crítica e construtiva, a sistematização inter-
disciplinar das regras de direito, a busca de mais coerência e,
umiúde, a inspiração de soluções novas58.
Na realidade, a doutrina é ora espectador, ora ator.
(i apenas espectadora no direito inglês em que a doutrina
tlAo tem escolha porque as regras básicas são regras pretoria-
iimn que ela só pode aceitar e analisar. A crítica delas seria até
lilútil em geral, já que os tribunais são por sua vez amarrados
pelos precedentes. A doutrina inglesa tem, por conseguinte,
tendência a limitar-se a uma análise, a uma exegese, até mesmo
uma mera reprodução da jurisprudência 59 .
Em toda parte, a doutrina tem um papel de aclaramento e
de organização do direito, de apresentação sistemática do sis-
ttfllia jurídico e das soluções por ele consagradas e que lhe com-
pele integrar progressivamente.
Mas, de outro lado, a doutrina transforma-se muitas vezes
1 ni iilor ao ditar sua lei ao legislador e ao juiz.

M. VAN DE KERCHOVE e F. OST, Le système juridique - entre ordre


rdre, P.U.F., col. Les voies du droit, Paris, 1988, pp. 117 s.; C. LARROU-
Ml I Droit civil. Introduetion à 1'étude du droit prive, ed. Economica, 1984, n?s
III M.
59. D. PUGSLEY, Rapport britannique, in Travaux Assoc. H. Capitant,
l''H0,t XXXI, op. cit., pp. 97 ss.
80 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

A influência da doutrina sobre o legislador é em certas


épocas considerável. Pothier inspirou diretamente o Código de
Napoleão. A reforma contemporânea do direito de família e
dos incapacitados é muito amplamente devedora a Carbonnier.
Os autores estão com muita freqüência associados à prepara-
ção das leis novas. Seus comentários e suas críticas sobre o di-
reito positivo às vezes suscitam úteis reformas.
A influência da teoria sobre a jurisprudência é mais fla-
grante ainda, pelas soluções que lhe propõe ou pelas aprova-
ções e críticas que faz. Em direito público, estabeleceu-se uma
estreita cooperação entre os autores e os juizes. Pôde-se dizer
que nele a doutrina "nasceu sobre os joelhos da jurisprudên-
cia". O interesse da doutrina para a jurisprudência se exprime
nas ementas de acórdãos publicadas, já no final do século XIX,
com os célebres comentários de Labbé, Saleilles, Esmein, Pla-
niol etc. A doutrina inspirou, com Saleilles e Josserand a for-
mação da jurisprudência sobre a responsabilidade do fato das
coisas; propôs, com Demogue, a distinção entre obrigações dc
meios e obrigações de resultado... Em certos casos, fortalece a
jurisprudência com suas aprovações, sobretudo quando a pre-
parou. A consagração da ação de in rem verso pela jurispru-
dência que faz do enriquecimento sem causa uma fonte de
obrigação é particularmente significativa. Fundamentada no
princípio de eqüidade oriundo dos pandectistas alemães e de-
pois de Aubry e Rau, a jurisprudência consagrou a própria
fórmula desses autores. Por vezes, uma sucessão de ações e
de reações marca um combate frutuoso entre a doutrina e a
jurisprudência. A proibição pretoriana da "cláusula comer-
cial" nos contratos de casamento, inspirada por Henri Capi-
tant, foi fustigada pela quase totalidade dos autores, até que a
lei de 1965 tivesse validado essa cláusula no art. 1390 do Có-
digo Civil 60 .
Por certo a doutrina não é uma fonte direta do direito. 1
uma "autoridade" 61 , ou melhor, uma fonte indireta. Mas é es-

60. Ph. MALAURIE, op. cit., n os 23 ss.


61. J. CARBONNIER, ibidem.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 81

scncial, pois a jurisprudência só pode constituir uma fonte efe-


tiva do direito "se a doutrina a conheceu", pois toda jurispru-
dência não-publicada ou publicada de maneira confidencial é
desprovida de valor normativo 62 .

H. A lei da jurisprudência

6 1 . - 0 poder criador do juiz é uma das questões que mais


dividem os sistemas e o pensamento jurídicos 63 . A jurispru-
dência é a fonte, primeiro exclusiva e depois principal, dos di-
reitos anglo-saxões 64 . Ela foi na França, no tempo em que os
parlamentos pronunciavam arestos de regulamentação, um
germe importante do direito do Antigo Regime. Certos direi-
los modernos, embora alheios ao common law, concedem ao
juiz um poder paralegislativo. Assim, o art. 1 do Código Civil
suíço dispõe que "na falta de uma disposição legal aplicável, o
juiz. pronuncia de acordo com o direito consuetudinário e, na
falta de um costume, de acordo com as regras que ele estabele-
ceria se tivesse de praticar ato de legislador. Inspira-se em so-
luções consagradas pela doutrina e pela jurisprudência". Mas,
embora durante os trinta ou quarenta anos que se seguiram à cria-
çílo do código a jurisprudência atendesse a essa missão suple-
tiva do juiz, o tribunal federal, após severas admoestações da
doutrina, reduziu consideravelmente o poder criador do juiz 65 .
Em direito francês, conquanto segundo o art. 4 do Código
( ivil o juiz não possa recusar julgar "a pretexto do silêncio, da
ohscuridade ou da insuficiência da lei", hesita-se em ver na
jurisprudência uma verdadeira fonte de direito. Objeta-se que

62. Ph. MALAURIE, ibidem, n° 17.


63. "Nature et rôle de la jurisprudence dans les systèmes juridiques", Actes
illl Congrès de 1'Association de Méthodologie Juridique, Rabat, 1993, ed.
IMI.A.M., RRJ, 1993-4, Cahier de méthodologie juridique n? 8; F. ZÉNAT1, La
lurl.iprudence, Dalloz, col. "Méthodes du droit", 1991.
64. B. N. C A R D O Z O , op. cit.', M. ZANDER, op. cit.
65. P. ENGEL, Rapport suisse, in Travaux Assoc. H. Capitant, op. cit., t
XXXI, pp. 173 ss.
82 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

isso seria contrário ao princípio da separação dos poderes, à


proibição feita ao juiz "de pronunciar por meio de disposição
geral e regulamentar sobre as causas que lhe são submetidas"
(art. 5 do Cód. Civ.) e à autoridade relativa da coisa julgada.
Eminentes autores contestam que a jurisprudência seja uma
fonte de direito, mas vêem nela uma autoridade considerável
do direito 66 . Outros a qualificam de fonte do direito 67 .
Fala-se mesmo da doutrina da Corte de Cassação 68 . É ver-
dade que as decisões judiciais não são regras juridicamente
obrigatórias para além das partes do processo, ainda que, por
causa da hierarquia dos tribunais, precedentes possam ter uma
autoridade determinante e impor-se, de fato, às jurisdições in-
feriores 69 .
Não se poderia negar, todavia, que, seja qual for o sistema
examinado, as soluções jurisprudenciais acabam por impor-se,
mais além das partes do processo, ao conjunto da comunidade
jurídica e a todos os cidadãos. Esse processo de transformação
de simples decisões judiciais em verdadeiras normas jurídicas
repousa ao mesmo tempo num fenômeno de generalização das
soluções jurisprudenciais e num fenômeno de sedimentação da
jurisprudência que procedem a um só tempo de argumentos de
analogia e de autoridade implicados pelas soluções particular-
mente significativas ou inovadoras.
Há mesmo, atualmente, uma espécie de ressurgimento
oficial dos arestos de regulamentação em razão da instituição

66. J. CARBONNIER, op. cit., n? 32.


67. J. MAURY, Observations sur la jurisprudence en tant que source du
droit, in Etudes Ripert, L.G.D.J., 1950, pp. 28 ss.; ver, notadamente, sobre esse
ponto: "La jurisprudence", Arch. dephilo du droit, t. 30, Sirey, Paris, 1985; Rich
terliche Rechtsfortbildung. Erscheinungsformen, Aufrag und Grenzen, obra publi
cada pela Faculdade de Direito de Heidelberg para o 6? centenário da Univer-
sidade Ruprecht-Karl, Heidelberg, C. F. MULLER, 1986; comparar F. MICHAULT.
Le rôle créateur du juge selon l 'école de la 'Sociological jurisprudence' et le mou
vement réaüste américain le juge et la règle de droit, R.I.D.C., 1987, pp. 343 s.
68. "L'image doctrinale de la Cour de cassation", Actes du colloque des 10
et 11 décembre 1993, La documentation française, 1994.
69. W. F1KENTSCHER, "Etat de la doctrine de la force obligatoire des pré-
cédentes en droit privé allemand", in Journées de la société de législation compa-
rée, 1984, pp. 189 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 83

dc mecanismos de "recurso para parecer" ou de questões pré-


judiciais de interpretação junto das jurisdições superiores. Na
Krança, a lei n? 87-1127 de 31 de dezembro de 1987 (art. 12) e
0 artigo L. 151-1 do Código da Organização Judiciária permi-
tem às jurisdições da ordem judiciária e às jurisdições admi-
nistrativas, "antes de estatuir sobre um pedido que levanta uma
questão de direito nova, apresenta uma dificuldade séria e se
levanta em inúmeros litígios", solicitar mediante uma decisão
não passível de recurso "o parecer" da Corte de Cassação ou
do Conselho de Estado. Assim também, o artigo 177 do Tra-
tado de Roma instituiu a possibilidade para as jurisdições na-
cionais de solicitar à Corte de Justiça das Comunidades Euro-
péias que estatua sobre a interpretação do tratado, por "ques-
tões pré-judiciais em interpretação".
Em direito público, desde que o célebre aresto Blanco 70
liberou o juiz administrativo da aplicação das regras de direito
privado, este foi levado a elaborar um direito pretoriano. Teve
de consagrar os princípios gerais e criar o direito. Efetivamente,
as regras mais importantes do direito administrativo foram
colocadas pelo juiz 71 . O estatuto da função pública foi elabora-
do pelo Conselho de Estado, e o legislador só interveio poste-
1 iormente. A doutrina muitas vezes evidenciou ou denunciou
esse "poder normativo" da jurisprudência administrativa 72 . O
direito constitucional jurisprudencial deveria assumir a esse
respeito uma importância primordial.
Em todas as matérias, o papel do juiz é essencial para
aplicar a lei, interpretá-la, preencher as lacunas, mas também
para rejuvenescê-la, vivificá-la ou atenuá-la, até mesmo igno-
rá la ou combatê-la... Conquanto tenha a missão de se subme-
ter à lei e de a aplicar, o juiz, que é o intermediário necessário

70. T. C„ 8 de fevereiro de 1873, D. 1873, III, 17 e S. 1873, 153 concl.


Davíd.
71. G. VEDEL e P. DEVOLVÉ, Droit administratijP.U.F., 7a ed., 1980,
pp 105 ss.
72. M. WALINE, "Le pouvoir normatif de la jurisprudence", in Mélanges
<1 Scelle, 1950, t. II, pp. 613 ss.; O. DUPEYROUX, La jurisprudence source abu-
Wir de droit, in Mélanges Marty, 1978, pp. 463 ss.
84 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

entre a promulgação da regra de direito e sua efetividade, pode


na realidade combatê-la. As relações entre o legislador e o juiz
às vezes são tempestuosas.
62. - Sustentou-se que "o antagonismo entre o legislador e
a jurisprudência é um fenômeno inevitável da formação do di-
reito" 73 . Mas podem existir entre um e a outra tanto relações de
colaboração como relações de oposição 74 . E uma evidência o
fato de o legislador ter uma ação sobre o juiz que, nos sistemas
de direito escrito, tem a missão de aplicar a lei. Mas há que
precisar, em compensação, a ação do juiz sobre o legislador e a
reação do legislador contra o juiz 75 .
Os tribunais, defrontados com realidades concretas, preen-
chendo os vazios legislativos, interpretando e adaptando as leis,
descobrindo continuamente remédios novos, em geral inspi-
ram o legislador que consagra então as soluções pretorianas
com a lei. Assim, a lei de 17 de julho de 1970 legalizou ajuris-
prudência sobre a proteção da vida privada 76 ; a lei de 3 dc
janeiro de 1972 introduziu no direito de filiação muitas regras
de origem pretoriana; dá-se o mesmo em direito societário, em
direito da construção com a lei Spinetta... Essa colaboração do
legislador com o juiz agora está organizada na França no plano
institucional. Segundo o código da organização judiciária, o Pri-
meiro Presidente e o Procurador-Geral podem, por ocasião do
relatório anual da Corte de Cassação, "chamar a atenção do Mi-
nistro da Justiça para as constatações feitas... por ocasião do
exame dos recursos e informar-lhes melhorias que lhes pare-
cem capazes de remediar as dificuldades constatadas". Tais ob-
servações e sugestões sobre o direito positivo, embora faculta-
tivas, são de prática sistemática. Foi assim que a lei de 16 de
julho de 1971, que fixou em cinco anos, em vez de seis meses.

73. Ph. MALURIE, "La jurisprudence combattue par la loi", in Mélanges


Savatier, 1965, pp. 603 ss.
74. J. L. BERGEL, op. cit, in Etudes Kayser, pp. 21 ss.
75. Ver L interprétation par le juge des règles écrites, Travaux Assoc. II
Capitant, t. XXIX, 1978.
76. P. KAYSER, La proteetion de la vie privée, Economica, 1984.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 85

a prescrição em matéria de salários, e a lei de 9 de julho de 1975,


sobre as cláusulas penais que lhes permitem a revisão judiciá-
ria, por exemplo, foram suscitadas por esses altos magistrados.
Ocorre mesmo que as autoridades judiciárias, como outrora,
quando da redação do Código Civil, sejam consultadas sobre
projetos de textos. Foi isso que se deu, especialmente, na refor-
ma do Código de Processo Civil. Essa colaboração é geralmen-
te muito frutífera. Não exclui, todavia, certas tensões.
O legislador nem sempre presta ao juiz ouvidos tão aten-
tos. Recusou-se até aqui a estabelecer e especificar a obrigação
in solidum consagrada pela jurisprudência entre co-autores de
um mesmo delito. Acontece também que o legislador derrube
certas soluções dos tribunais, como ocorreu em questão de res-
ponsabilidade do dirigente de empresa em caso de acidentes do
trabalho devidos à inobservância de um regulamento de higiene
ou de segurança ou no tocante à cláusula comercial 77 . Mas os
tribunais nem sempre consentem em se inclinar. Sua reserva em
aplicar a lei de 7 de novembro de 1922, que exige a prova de
uma falta em matéria de responsabilidade civil em caso de co-
municação de incêndio e destinada a anular a jurisprudência do
"caso das resinas", ilustra, dentre outras coisas, os enfrenta-
mentos em que às vezes se defrontam o legislador e o juiz.
Para dizer a verdade, todos os atores da vida jurídica con-
tribuem de certa maneira para criar o direito. A "prática" tam-
bém impõe amiúde sua lei.

( A lei da prática

63. - O direito contemporâneo consagra, de fato, a influên-


i ia da prática, das organizações profissionais e das administra-
ções públicas na formação do direito. Os tabeliães, os profis-
sionais ou os usuários do direito, os funcionários públicos, os
meios profissionais, graças à sua experiência e ao seu conheci-

77. Lei de 6 de dezembro de 1976; J. L. BERGEL, op. cit., p. 36, art. 1390
doCód. Civil (lei de 13 de julho de 1965).
86 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

mento das necessidades e das lacunas do direito vigente, po-


dem sugerir utilmente as reformas almejáveis. No mundo con-
temporâneo, o legislador se preocupa ciosamente com proble-
mas econômicos, sociais, técnicos. Legislando sobre tudo, a
regulamentação fica tão precisa que quase já não pode ser feita
e compreendida senão por especialistas, e o legislador não pode
dispensar o auxílio dos técnicos, Estes já nem sequer se con-
tentam em ser "os auxiliares" dos "juristas"; "pretendem ser
seus substitutos" 78 .
Os usos e os métodos dos profissionais participam igual-
mente da vida e da evolução do direito e servem com freqüên-
cia de complemento para as leis e as regulamentações. Podem
até derrogá-las todas as vezes que a lei é apenas supletiva e
permite assim aos interessados se subtraírem a ela e se subme-
terem a outras disposições voluntariamente decididas por eles.
É o que se dá muitas vezes em matéria contratual. A derroga-
ção de uma lei facultativa é algo normal. Mas, quando se repete
com freqüência nos mesmos termos por uma prática profissio-
nal constante, esta é que acaba constituindo o direito efetivo.
Essa "ordem espontânea" se torna a ordem jurídica 79 . Assim
como contribui para a formação do direito, a prática costuma
participar de sua interpretação; as circulares administrativas e
as respostas ministeriais 80 , embora não possam impor-se ao
juiz e sejam emitidas apenas "sob reserva da apreciação sobe-
rana dos tribunais", têm uma grande importância de fato nos
meios envolvidos e assinalam o papel crescente da tecnocracia
na interpretação e na aplicação do direito positivo.
Ocorre até que a prática proceda a uma condenação da lei.
Isso pode parecer paradoxal se pensamos que a lei tem um ca-
ráter obrigatório e que, quando é imperativa, impõe-se aos in-
teressados que devem conformar-se a ela quer queiram, quer

78. G. RIPERT, op. cit., n° 147.


79. P. ROUBIER, "L'ordre juridique et la théorie des sources du droit", art.
cit., pp. 17 ss.
80. B. OPPETIT. Les réponses ministérielles aux questions écrites des par-
lementaires et Vinterprétation des lois, D. 1974-1, 107.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 87

não. Mas "a luta das forças sociais" prossegue depois da entra-
da em vigor da lei. O meio jurídico pode reagir contra a regra
imposta. "Para que uma lei viva, ela tem de ser acatada no meio
jurídico" e tem de ser aplicada pelos jurisdicionados. Quando
uma lei não consegue impor-se, quando deixa de ser observa-
da, quando a prática forceja para contorná-la, o legislador é
levado, muito amiúde, a adaptá-la em vez de reprimir suas vio-
lações81...
Assim, conforme os casos, os poderes públicos ou as pro-
fissões impõem sua lei criando, interpretando ou rejeitando
regras de direito. Embora não sejam verdadeiras fontes de
direito, a contribuição deles para a edificação da ordem jurídi-
ca tornou-se muito importante. O papel da prática pode então
relacionar-se com o costume quando se trata de usos conven-
cionais, com a jurisprudência quando se trata da prática judi-
ciária ou com a lei quando ela inspira sua elaboração ou sua
modificação.
64. - Para além de seus poderes regulamentares naturais,
os poderes públicos intervém cada vez mais amplamente no
estabelecimento da ordem jurídica. Em direito comercial ou
empresarial, constata-se a importância prática considerável
dos comunicados ou instruções da Secretaria Geral da Receita,
das cartas do Ministério da Economia e das Finanças, dos pa-
receres ou recomendações de diversos conselhos ou comis-
sões. As circulares administrativas, demasiado numerosas, em
geral de má qualidade e pouco acessíveis, deveriam ser consi-
deravelmente limitadas, segundo a própria opinião das autori-
dades superiores do Estado 82 , se bem que sejam em princípio
para uso puramente interno das administrações públicas e juri-
dicamente desprovidas de força obrigatória por parte dos ad-
ministrados. Desempenham de fato um papel capital na inter-
pretação e na aplicação efetiva das leis e regulamentações,

Kl. G. RIPERT, op. cit., n? 166; J. Ph. LÉVY, "Les aetes de la pratique,
eupression du droit", Rev. hist. de dr. français et étranger, 1988-2-151.
K2. Circular de 15 de junho de 1987, relativa às circulares ministeriais, J. O.,
11 dc junho, p. 6460.
88 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

pois dominam as relações entre a administração e os adminis-


trados. Seu alcance prático, em matéria econômica e social ou
em direito civil, também é importante; o direito da repressão
das fraudes ou das retiradas de órgãos, por exemplo, prova
isso83. Quanto às respostas ministeriais às questões escritas
formuladas pelos parlamentares, elas se destinam apenas a for-
necer uma interpretação pré-judiciária mas oficial dos textos.
Se são uma ilustração do domínio crescente da administração
pública sobre a elaboração das regras de direito, à imagem dos
"rescritos" romanos, são sentidas pelos profissionais, inquie-
tos com a abundância, a anarquia e a confusão de certos textos
contemporâneos, como um remédio para a insegurança jurídi-
ca e uma proteção contra a responsabilidade profissional de-
les. Essa interpretação administrativa é, portanto, via de regra,
seguida pela prática.
O papel das profissões no estabelecimento do direito po-
sitivo é ainda mais diversificado. Elas contribuem para a for-
mação do direito profissional e inspiram a legislação que lhes
rege a deontologia 84 . As convenções coletivas de trabalho se
tornaram uma das fontes mais importantes do direito do traba-
lho. Visando a determinação das relações coletivas entre em-
pregadores e assalariados, elas procedem de um acordo contra-
tual fechado entre um empregador ou um grupo de emprega-
dores e uma ou várias organizações sindicais de assalariados,
de modo que suas disposições se aplicam aos contratos de tra-
balho, realizados pelos empregadores a elas vinculados, salvo
cláusula mais favorável aos assalariados nos contratos indivi-
duais. Mas o processo de extensão torna as convenções coleti-
vas obrigatórias para todos os empregadores que entram no
campo profissional e territorial delas, ainda que não perten-
çam às organizações patronais signatárias ou aderentes (art. L
133-8 do C. do Trabalho). Elas adquirem assim a força obriga-

83. Ver, p. ex., A. WEILL e F. TERRÉ, op. cit., n? 183.


84. Droit et déontologies professionnelles, sob a direção de J. L. Bergel, ed
Libr. Univ. Aix en Provence, col. Ethique et déontologie, Aix-en-Provence, 1998
ver também N. DECOOPMAN, "Droit et déontologie, contribution à 1'étude des
modes de régulation", in Les usages sociaux du droit, ed. P.U.F., 1995.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 89

tória de um ato regulamentar, se bem que suas disposições con-


servem uma natureza contratual.
O desenvolvimento atual dos contratos-padrão, ou seja, de
modelos que servem de regra e que as partes se limitam a preen-
cher para individualizar a convenção, leva à "padronização" de
numerosas operações jurídicas. O alcance geral desses modelos
faz com que tomem o lugar das leis supletivas e até, quando são
estabelecidos por um organismo profissional ou pela adminis-
tração pública, a reconhecer-lhes um caráter imperativo. "Os
redatores dos contratos-padrão exercem assim um poder regu-
lamentar de fato." 85 A tendência a uma negociação coletiva dos
contratos-padrão e condições gerais dos contratos entre sindi-
catos profissionais e organizações de consumidores acentua ain-
da mais esse fenômeno. Acordos internacionais, em direito ma-
rítimo por exemplo, ficam no lugar das regras legais. Os peri-
gos inerentes aos contratos-padrão e aos contratos de adesão
provocaram reações do legislador no intuito de proteção dos
interessados. Quanto aos formulários utilizados pelos homens
da lei, especialmente pelos tabeliães e pelos procuradores, eles
dão provas da criação de usos convencionais pela prática. Os
interessados acabam por se referir a eles sistematicamente, e es-
ses instrumentos oriundos da liberdade contratual acabam por
ficar no lugar da lei. Estão às vezes até na origem da legislação.
A importância da prática cartorial é a esse respeito notável. Os
contratos de casamento, as escrituras de sociedade, o direito
imobiliário o mostram bem.
As múltiplas interações das diferentes fontes do direito e
o desenvolvimento das fontes subsidiárias da ordem jurídica
resultam na realidade da unidade fundamental das diversas fon-
ics do direito.

85. J. GHESTIN, Trailé de droit civil, t. II, Les obligations - Le contraí,


n " ti2 ss.; J. LÉAUTÉ, "Les contrats-types", Rev. trim. dr. civ., 1953-429; A. RIEG,
i onlrat-type et contrat d'adhésion", in Trav. et rech. inst. dr. comp. de Paris, t.
XXXIII, 1970, p. 109, n? 10; A. PIROVANO, "Introduetion critique au droit
i iimmcrcial contemporain", Rev. trim. dr. com., 1985, pp. 242 ss.
90 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

2. As afinidades

65. - A primazia da lei no direito positivo implica que o


juiz se submeta a ela. Mas, na maioria dos sistemas de direito
escrito, a lei já não constitui o direito e o papel do juiz não se
limita "ao de uma boca pela qual fala a lei" 86 . Ele possui o
poder complementar de aplicação, de interpretação e de adap-
tação dos textos que se assimila a certo poder normativo, mes-
mo quando não é, como nos países de common law, o criador
principal do direito. As regras formais impostas pelas autori-
dades públicas, em conformidade com suas atribuições, são
sempre insuficientes porque as autoridades públicas não po-
dem prever de antemão todas as regras necessárias. Cumpre,
por conseguinte, apelar para regras não-formais que não são
mandamentos expressos dos poderes públicos, mas se apoiam
na "autoridade da experiência", como o costume, ou na "auto-
ridade da razão", como a doutrina 87 . As diversas fontes do di-
reito, por contribuírem juntas para a construção da ordem so-
cial, acrescentam assim a essa relação de função (B) relações
de natureza (A).

A. As relações de natureza

66. - Contrapõem-se em geral o costume e a doutrina, mo-


dos não-organizados de formação do direito, à lei e à jurispru-
dência que constituem suas fontes oficiais. E verdade que o
costume, fonte espontânea, objetiva, não-voluntarista do direi-
to, e que a doutrina, díspar e desprovida de efeito obrigatório,
parecem profundamente opostos à lei e à jurisprudência.
Na realidade, sói acontecer que o próprio direito consue-
tudinário seja produzido pelas autoridades estatais 88 que se-
guem, em seu funcionamento e sua ação, uma prática constan-

86. Ch. PERELMAN, op. cit., n° 87.


87. P. ROUBIER, op. cit., n? 2.
88. J. DABIN, op. cit., n° 32.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 91

te tida por elas como obrigatória. Mesmo no plano da Consti-


tuição e das mais altas instituições, o costume existe e se im-
põe, com uma autoridade superior à lei89. O costume é mesmo
a fonte exclusiva das regras fundamentais do Estado na Grã-
Bretanha. O direito constitucional francês não ignora a refe-
rência ã "tradição" republicana ou constitucional. O costume é
uma fonte importante do direito internacional público.
Mesmo em direito privado, em que o costume emana do
grupo social e não dos poderes públicos, sua autoridade é inti-
mamente ligada à da lei e da jurisprudência. Ocorre que a lei re-
meta expressamente ao costume. O Código Civil se refere aos
costumes e aos usos em matéria de propriedade imobiliária, na
área contratual e quanto à capacidade pessoal dos menores.
Algumas das noções evolutivas que ele utiliza, como a de bons
costumes ou de bom pai de família 90 , extraem sua substância
do costume. Os usos comerciais têm uma importância conside-
rável em direito comercial.
O costume e os usos constituem então um complemento
da lei. De modo mais geral, o costume, mesmo que seja elabo-
rado sem o concurso dos poderes públicos, só se impõe real-
mente por intermédio deles. É pelos tribunais que é aplicado e
consagrado. Não pode, em compensação, contradizer leis im-
perativas. Para penetrar efetivamente no direito positivo, o cos-
tume somente necessita ser aceito pela autoridade pública.
Mas sabe-se que, inversamente, a efetividade da lei é, na
realidade, subordinada à sua "recepção", sua aceitação pelo
grupo social e pela comunidade jurídica... Quanto à doutrina,
oriunda do material legislativo, jurisprudencial ou consuetudi-
nário que ela explora ou critica, ela própria só adquire valor
positivo quando é consagrada no costume, na lei e na jurispru-

89. R. CAPITANT, "Le droit constitutionnel non écrit", e C. GIROLA, "Les


coutumes constitutionnelles", in Recueil Gény, t. III, pp. 1 s. e 9 s.; J. DABIN,
ihidem.
90. Ver "Les standards dans les divers systèmes juridiques", Atas do 1? Con-
gresso da Associação Internacional de Metodologia Jurídica, Aix-en-Provence,
1988, Cahier de méthodologie juridique, n? 3, RRJ 1988-4, P.U.A.M.
92 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

dência, noutras palavras, quando o legislador e o juiz apro-


priam-se dela.
Em última análise, todas as fontes de direito, no sentido
lato, procedem direta ou indiretamente da autoridade pública c
são por natureza o produto da organização social.
67. - Observa-se, por outro lado, que a formação do direi-
to é sempre um fenômeno progressivo 91 . O costume nasce da
generalização de fatos particúlares, de sua repetição em núme-
ro suficiente durante um período suficientemente longo; é um
uso geral e prolongado. A jurisprudência também procede dc
atos individuais. Quando o juiz, como em direito francês, se vê
proibido "de pronunciar por via geral e regulamentar" (art. 5 do
Cód. Civ.), sua sentença não é fonte de direito. E a repetição
dos precedentes que constitui a jurisprudência. A autoridade e
a constância de uma solução depende largamente das regras
técnicas que governam a organização e o funcionamento do
aparelho judiciário. A hierarquia dos órgãos jurisdicionais e a
autoridade das cortes supremas conduz, ao menos na prática, a
impor aos tribunais o respeito às regras pretorianas 92 . Mesmo
nos países de common law, "a jurisprudência só pode ser a
fonte essencial do direito mediante o fortalecimento da regra
do precedente".
As opiniões isoladas raramente servem de regra. A doutri-
na propriamente dita, às vezes qualificada de dominante, re-
sulta da multiplicidade, da constância e da autoridade das opi-
niões que a alimentam. A jurisprudência bem como a doutrina
tendem a se cristalizar por uma consagração legislativa. Todas
as jurisdições, sejam elas quais forem, mesmo as jurisdições
internacionais, são instituídas pelos Estados. Os tribunais mi-
nistram a justiça e dizem o direito em nome do Estado. Con-

91. M. TARUFFO. "Note sui modi delia giuridificazione"; Política dei dirit-
toa. 18-4, 1987, pp. 581 ss.
92. J. L. BERGEL, "Le processus de transformation de décisions de justice
en normes juridiques", in Nature el role de la jurisprudence dans les systèmes
juridiques, Atas do 3? Congresso da Associação Internacional de Metodologia
jurídica, op. cit., pp. 1055 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 93

trapõe-se às vezes o poder jurídico dos tribunais ao poder polí-


tico do legislador e do executivo, parecendo o juiz mais impar-
cial c livre das paixões partidárias 93 . Mas os tribunais, que pro-
cedem da lei e do Estado e julgam em seu nome, que às vezes
até criam o direito, participam da função política no sentido
lato, ao passo que os poderes Legislativo e Executivo, forjando
o direito, exercem um poder jurídico. O costume, expressão
das aspirações populares, é também uma forma privilegiada da
expressão democrática. A doutrina, por fim, às vezes engaja-
da, sempre preocupada com a organização social, participa,
mais além do pensamento jurídico, do pensamento político.
Se todas as fontes do direito têm, definitivamente e apesar
de sua diversidade, uma natureza similar, é porque assumem,
em profundidade, a mesma função.

li, A relação de função

68. - A ordem jurídica é oriunda da conjunção das regras


promulgadas pelas autoridades públicas, das soluções habi-
tualmente aplicadas pelos tribunais, dos comportamentos pra-
ticados e aceitos pelo corpo social e das proposições e explica-
ções de doutrina. Todos esses modos de formação do direito
contribuem para a organização das relações públicas e priva-
das, individuais e coletivas que toda sociedade instila.
Lei, jurisprudência, costume e doutrina são os diversos
meios de realização de uma mesma finalidade: uma organiza-
ção social satisfatória. Seus respectivos papéis a esse respeito
não podem ser percebidos de maneira estática. Não só variam
conforme os sistemas de direito e as grandes famílias de di-
reitos, apesar da acentuação atual das convergências entre es-
sas famílias, mas também evoluem dentro de um mesmo siste-
ma jurídico. O lugar que a lei concede às outras fontes do di-
reito, em direito francês, depende da evolução da técnica legis-

93. J. DABIN, op. cit., nf 31.


94 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

lativa. A Constituição de 1958 deu um grande espaço de escolha


ao regulamento. Quando a lei estabelece princípios, ela cria o
direito comum e abre caminho às derrogações que os textos es-
peciais lhe trarão. Quando aprofunda a regulamentação no por-
menor, incita a doutrina e a jurisprudência a descobrir seus prin-
cípios gerais. Numerosos textos dão expressamente ao juiz a
missão de arbitrar os interesses confrontados, noutras palavras,
uma missão de eqüidade.
O próprio legislador contemporâneo suscita reações so-
ciais capazes de inspirá-lo. A importância da experimentação
legislativa e da "avaliação" legislativa no processo de elabora-
ção legislativa na época atual o demonstra claramente 94 . As-
sim, a lei de 17 de janeiro de 1975, sobre a interrupção volun-
tária de gravidez, se atribuiu uma duração experimental de cin-
co anos. A lei n? 78-23 de 10 de janeiro de 1978 instituiu uma
comissão destinada a desencavar as "cláusulas abusivas" nos
contratos assinados pelos consumidores e habilitou o governo
a tomar por decreto as medidas suscetíveis de lhe serem assim
recomendadas. Tais exemplos mostram as mutações que se ope-
ram nos modos de criação do direito cuja complementaridade
parece prevalecer sobre a diversidade.

94. L. MADER, L 'évaluation législative, ed. Payot, Lausanne, 1985, prefá-


cio C. A. Morand; C. A. MORAND (dir.), Évaluation législative et lois expéri-
mentales, P.U.A.M., Aix-en-Provence, 1993, prefácio J. L. BERGEL; A. DEL-
CAMP, J. L. BERGEL e A. DUPAS, Controle parlementaire et évaluation, ed.
"La documentation française", 1955, prefácio R. MONORY.
O FENÔMENO DO DIREITO 95

ILUSTRAÇÃO

A. PLANO DAS PRINCIPAIS REVISTAS


JURÍDICAS FRANCESAS

I.Doutrina.
II.Jurisprudência.
III.Textos.
IV. "Sumários", "informações rápidas", "quadros de juris-
prudência", respostas ministeriais, bibliografias, infor-
mações etc.
V. índices anuais da doutrina, da jurisprudência e dos textos.

B. A JURISPRUDÊNCIA EM DIREITO INGLÊS

Exemplo de uma decisão recente da câmara da família da


"High Court" (tribunal de primeira instância da Suprema
Corte)
Fam D 376 LL England Law Reports |1988| 2 Ali ER
Thompson v Thompson

FAMILY DIVISION
EWBANK J
15 JANUARY 1988

Divorce - Financial provision Jurisdiction - Whether court


having power to dismiss one party 's claim for financial relief by
consent and at same time make order for financial relief in res-
pect of other party - Matrimonial Causes Act 1973, s 23 (1).

Since a party's right to apply for financial relief unders 23 (1 )95


of the Matrimonial Causes Act 1973 is a right which can be

95. Section 23( 1), so far as material, provides: "On granting a decree of di-
vorce, a decree of nullity of marriage or a decree of judicial separation or at any
96 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

dealt with on its own irrespective of other claims by either party,


the court has power to dismiss a party's claim for financial relief
by consent and at the same time, to make an order for financial
relief in respect of the other party (see p. 377 f g j, post).
Dictum of Ormrod LJ in Dipper v Dipper [1980] 2 ALL
ER at 732 considered.

Notes
For the courts power to make financial provision in matrimonial
cases, see 13 Halsbury's Laws (4th edn) paras 1051-1054.
For the Matrimonial Cases Act 1973, s 23, see 27 Halsburys
Statutes (4lh edn) 724.

Cases referred to in judgment


Dipper v Dipper [ 1980]2 ALL ER 722, [ 1981 ] Fam 31, [ 1980]
3 WLR 626, CA.
Minton v Minton [1979] 1 Ali ER 79, [1979] AC 593, [1979] 2
WLR 31, HL.

Application
Following the grant of the decree nisi, the parties negotiated an
agreement in respect of financial provision whereby the peti-
tioner husband undertook, inter alia, to transfer the former
matrimonial home, to pay a lump sum and to make periodical
payments to the respondcnt wife, that his claim for maintenan-
ce pending suit, periodical payments and secured payments
should be dismissed and that he should not be entitled to any
further application in relation to the marriage for an order under
s 23 of the Matrimonial Causes Act 1973. The matter came
before Mr Registrar Turner on 22 December 1987 for the ma-
king of a consent order embodying the terms of the agreement.
The registrar transferred the matter to a judge of the Family Di-

time thereafter... the court may make any one or more (specified orders for finan-
cial provision in favour of either party to the marriage or for the benefit of a child
of the marriage)."
i > I ENÔMENO DO DIREITO 97

vision on the question whether the husband's claim for finan-


cial provision could be dismissed notwithstanding that the hus-
band had a continuing obligation to make periodical payments
to the wife. The application was heard and judgement was
given in chambers. The case is reported by permission of
I wbank J. The facts are set out in the judgment.
Miss Kim Beatson, solicitor, for the husband.
I )avid Bodey for the wife.

I 1 ' , W B A N K J . I have before me an application which was refer-


lúd to the High Court by Mr Registrar Turner on 22 December
1987. The parties in the suit were married in 1962. They have
three children. They separated in 1973. The husband filed a
pclition for divorce in 1986. The ground for divorce was two
ycars separation with consent. In due course a decree nisi was
pronounced.
The wife has filed an application under s 10 of the Ma-
trlmonial Causes Act 1973, holding up the decree absolute pen-
iling the determination of her financial and property rights. The
pinlies'legal advisers negotiated and came to an agreement.
I lie agreement has been reduced to minutes of order and those
minutes of order were put before the registrar on 22 December
1987. The minutes of order record that the agreement is in full
mui final settlement of the wife's claims for capital.
The husband undertook to transfer to the wife the former
matrimonial home and it was agreed that the husband should
pay Io the wife maintenance at the rate of £ 25,000 a year. It was
uIno agreed that the husband should pay to the wife a lump sum
i d i 10,000. There was additionally provision for the maintenan-
11' ol lhe only child of the family who is not grown up.
Il was agreed that, subject to the transfer of the house and
lli< payment of the lump sum, the applications of each party
loi lump sum and property adjustments should stand dismis-
ied So far, it appears, the agreement was in the usual form.
I lowcvcr, the agreement goes on the provide that the husband's
i lainu for financial relief from the wife should be dismissed
and il is this provision which concerned the registrar.
98 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

I am told that the registrars at the Principal Registry have


been concerned whether there is power to dismiss the claims of
one party but not the claims of the other. The wife's claim for
financial relief remains alive, indeed, it is provided that she
should have maintenance at the rate of £ 25,000 a year. The
registrars are concerned whether it is proper, in those circums-
tances, to dismiss the husband's claim. The concern arises
chiefly from the consideration of the principies of "clean break"
in financial affairs. The registrar was concerned about the pro-
visions in s 25A of the 1973 Act as inserted by the Matri-
monial an Family Proceedings Act 1984.
In my judgment, however, the power of the court under s
25A to impose terms of duration on financial provision and if
necessary, to bring an end to the financial obligations of one
spouse have, no relevance to the matter before me. The hus-
band has a right to apply for financial relief under s 23 of the
1973 Act. That right is quite irrespective of any rights that his
wife may have. His claim can be dealt with on its own without
reference to other claims by either him or her. If he wishes his
claim to be dismissed then, unless there is authority for the
contrary, there is no reason why it should not be dismissed.
There is no authority to the contrary.
In Dipper v Dipper [1980]2 Ali ER 722, [1981] Fam 31
the question arose whether the court had power to dismiss an
application for maintenance without the consent of the party
concerned and the Court of Appeal decided that the court did
not have that power. It was never suggested in that case that the
power was not available if the party concerned consented; on
the contrary, as Ormrod LJ said ([1980]2 Ali Er 722 at 732,
[1981] Fam 31 at 47):
"... the fourth is to dismiss the application [for periodical
payments], provided the consent of the applicant is forthco-
ming."
When the House of Lords considered Minton v Minton
[1979] I Ali ER [1979] AC593, the House of Lords approved
the practice of dismissing claims for maintenance provided the
agreement had been brought before the court and an order of
the court had been obtained embodying the terms.
Capítulo 3
Os princípios gerais do direito

69. - Uma genealogia aproximativa talvez permitisse re-


portar os princípios gerais do direito aos "Tópicos" de Aris-
tóteles ou às máximas do "Digesto" 1 ou ainda "aos primeiros
princípios de todas as leis" do Tratado das leis de Domat 2 . Mas
temos de distingui-los a um só tempo dos "lugares-comuns",
dos princípios sobrenaturais, teológicos ou filosóficos e até dos
princípios do direito natural. Os princípios gerais do direito não
são exteriores à ordem jurídica positiva: fazem parte dela.
Sua consagração é, porém, relativamente recente. Eles
apareceram, em direito Internacional Público, no tempo da So-
ciedade das Nações; o art. 38 do estatuto da Corte Inter-
nacional de Justiça, anexado à Carta das Nações Unidas, reco-
nhece como fonte de direito "os princípios gerais do direito
reconhecidos pelas nações civilizadas". Portanto, pode-se pen-
sar que se trata de princípios vigentes em todos os sistemas
jurídicos, ainda que a doutrina soviética estimasse antigamente
que a divisão ideológica da sociedade internacional exclui
qualquer possibilidade de princípios comuns aos diversos sis-
temas jurídicos 3 . Numerosos princípios gerais, presentes nas

1. Ch. PERELMAN. Logique juridique. nouvelle réthorique, Dalloz, 2? ed..


n " 46 ss.
2. J. BOULANGER. "Príncipes généraux du droit et droit positif", in Etudes
offertes à G. Ripert. L.G.D.J., 1950, t. 1, pp. 51 ss., n? 2.
3. J. BOULOUIS, "Les príncipes généraux du droit (Aspects de droit inter-
national public)", Rev. internalionale de d. compare, 2° vol., 1980, pp. 263 ss.
102 TEORIA GERAL DO D IRE/TO

cartas ou convenções internacionais, são consagrados pela


maioria dos países.
Mesmo que já se encontrem alguns traços seus na juris-
prudência anterior, parece que os acontecimentos da época do
nazismo e o menosprezo de princípios fundamentais sob o
regime de Vichy, depois na Libertação, levaram a jurisprudên-
cia francesa a afirmar a existência dos "princípios gerais do di-
reito aplicáveis mesmo na ausência de um texto" 4 . Tratava-se,
com esse procedimento técnico, de garantir a concepção libe-
ral e a ética social tradicional invocando expressamente princí-
pios até então subentendidos, mas que se estavam tornando pe-
ças essenciais das construções jurisprudenciais 5 . Foi sobretudo
o Conselho de Estado que recorreu aos princípios gerais do
direito em direito administrativo, mas também em direito pe-
nal, em direito judiciário privado. Mais recentemente, o Con-
selho Constitucional e a Corte de Justiça das Comunidades
Européias se referiram a eles. Esta proclama que "o respeito
dos direitos fundamentais faz parte dos princípios gerais do
direito cujo respeito é garantido pela Corte de Justiça" 6 . Os tri-
bunais judiciários também recorreram a eles. Assim como a Corte
Suprema dos Estados Unidos, também os tribunais de inúmeros
países, como a Alemanha, a Itália, a Bélgica etc., reconheceram
a importância dos princípios gerais. O Código Civil italiano até
recomenda ao juiz estatuir em caso de ausência de texto à luz
dos princípios gerais do direito. Mas, na França, o preâmbulo
da Constituição de 1946 reafirmou os direitos e as liberdades
consagradas pela Declaração dos Direitos do Homem de 1789 e

4. C. E. Ass. 26 de outubro de 1945, Aramu et autres Rec. p. 213; D. 1946 11


158, nota G. MORANGE; C. E. 22 de maio de 1946, MAILLOU S„ 1946 III 52;
R. CHAPUS, Droit administratif général, t. I, 4? ed., Montchrestien, Paris, 1988.
n?s 96 ss.
5. J. RIVERO, Le juge administratif français: un juge qui gouverne?, D.,
1951,1, pp. 21 s.
6. Corte de Justiça das Comunidades Européias, 15 de outubro de 1969,
Comissão das Comunidades Européias c/ Governo da República italiana Gaz. Pai,
1970,1, 69; 17 de dezembro de 1970, Internationale Handelsgessellschaft mb/H...,
Proc. 11/70, Rec. p. 1125.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 103

"os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da Re-


pública". O Conselho Constitucional apoderou-se deles para
declarar inconstitucionais leis que derrogavam esses princípios
fundamentais.
Mas os princípios fundamentais e os princípios gerais do
direito serão a mesma coisa? Isso levanta o problema da defi-
nição e do lugar dos princípios gerais na hierarquia das normas
(Seção I). A aplicação dos princípios gerais do direito a todas
.is matérias e sua utilização nos diversos sistemas de direito le-
vam também a indagar-se sobre a importância deles na multi-
plicidade das normas jurídicas (Seção II).

SI (,'ÀO I
It lugar dos princípios gerais na hierarquia das normas

70. - As normas que regem uma sociedade devem, para


constituir um sistema coerente, ser organizadas entre si, segun-
do uma determinada ordem que atribui a cada uma delas seu
lugar entre as outras. Parece, apesar da diversidade de estrutura
ilos diferentes sistemas de direito, que sempre houve uma hie-
iitiquia entre as diferentes regras que eles comportam. Essa
hierarquia às vezes é apresentada como a peça mestra da cons-
trução jurídica. Assim, Kelsen descreveu a ordem jurídica
como uma pirâmide de regras hierarquizadas, sendo que cada
uma dessas regras tira sua força obrigatória apenas de sua con-
formidade com a norma imediatamente superior. No topo des-
..I pirâmide, depois de uma misteriosa norma fundamental, há,
lõgundo ele, a Constituição, depois, descendo os sucessivos
i m alóes, encontram-se a lei e o costume, os regulamentos, os
aloN jurídicos infralegislativos etc.7 A hierarquia das normas é
entilo considerada somente em relação a problemas de valida-
ili Seu interesse essencial é determinar a validade de cada re-

7 II. KELSEN, Théorie pure du droit, trad. fr. C. Eisenmann, Dalloz,


IMfti, it"" .14-5; M. MIAILLE, Une introduetion critique au droit, ed. Maspéro,
l«?f>, pp. .153 ss.
104 TEORIA GERAL DO D I R E I K >

gra, "devendo as regras inferiores, num mesmo setor de compe-


tências ou de matérias, ser conformes com as regras superio-
res, ainda que o controle jurisdicional dessa conformidade,
num conjunto satisfatório, às vezes permaneça ainda incom-
pleto" 8 . Mostrou-se, porém, que tal escala hierárquica é insa-
tisfatória, pois só concerne às normas de direito escrito, en-
quanto a jurisprudência e o costume não podem se integrar a
ela por não resultarem de um ato jurídico determinado. Ela
tampouco permite explicar, em direito francês atual, a superio-
ridade da lei sobre a regulamentação, pois nesta o poder regu-
lamentar é oriundo da Constituição e não da lei.
Deve-se então salientar que "a hierarquia real não se esta-
belece imediatamente de norma a norma, mas, ao contrário,
pela mediação de atos" e que "a norma superior é aquela que
confere o poder em virtude do qual o ato gerador da norma é
estabelecido" 9 . Cumpriria admitir que a conformidade de uma
regra com uma norma superior não basta para a sua validade,
mas que sua não-conformidade com essa norma a condena: a
superioridade da lei sobre a regulamentação ficaria assim ex-
plicada 10 . Seria então a força jurídica de uma norma em compa-
ração a uma outra que lhes marcaria a hierarquia. Assim, seja
qual for o poder criador da jurisprudência, o juiz deve observar
a lei. Deve também respeitar a vontade das partes no contrato
Ninguém ousaria pretender, entretanto, que as partes são supe-
riores ao juiz delas, nem que os contratos privados são superio-
res às decisões judiciárias. Ao invés de deduzir de uma hierar-
quia rígida a validade de cada norma, é preferível, pois, tirar
essa hierarquia da autoridade de uma norma sobre a outra.
Atinge-se assim uma hierarquia material das normas em vez
de se contentar com uma hierarquia simplesmente formal. O
interesse prático que se lhe vincula se fortalece com isso, pois
então fica possível apreciar a validade de todas as disposições
jurídicas e não somente de algumas delas.

8. P. PACTET, Institutions politiques - Droit constitutionneL A. Colin, 17'.'


ed., 1997, p. 524.
9. M. VIRALLY, Lapensée juridique, L.G.D.J., 1960. p. 173.
10. Ibidem.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 105

Esse interesse é ainda maior em nossos dias, pois a ordem


jurídica parece transformar-se e renovar-se por causa da imbri-
cação crescente dos diversos sistemas jurídicos locais, nacio-
nais ou federais e do alcance de certas regras internacionais.
Em particular, a Convenção Européia dos Direitos do Homem
c, mais ainda, os tratados das Comunidades e da União euro-
péias instituíram ordens jurídicas supranacionais que se im-
põem aos sistemas internos dos países-membros. Com a ressal-
va de uma margem nacional de apreciação de maior ou menor
extensão, existe de agora em diante uma subordinação da or-
dem nacional à ordem supranacional. A importância da juris-
prudência da Corte de Justiça das Comunidades Européias, até
mesmo a da Corte Européia dos Direitos do Homem, e o desen-
volvimento atual da justiça constitucional, principalmente na
Europa e em especial na França", alimentam e complicam a
organização interna da ordem jurídica, assim como a configu-
i ação da escala das normas.
Levanta-se portanto a questão de saber, no que tange aos
princípios gerais do direito, se a lei e a regulamentação devem
scr-lhes conformes ou se podem derrogá-los. Cumpre, para res-
ponder essa questão, definir os princípios gerais (§ 1) e deter-
minar-lhes a força (§ 2).

I A definição dos princípios gerais

71. - Embora haja referência corrente aos "princípios ge-


iitls ilo direito", essa noção permanece obscura e sua natureza
incerta (B) em razão da própria incerteza de suas fontes (A).

11 L. FAVOREU, "La modernité des vues de Charles Eisenmann sur la


Imihr constitutionnelle", in La pensée de Charles Eisenmann, Economica e
IM i A . M . . 1'aris, Aix-en-Provence, 1987, pp. 85 s.; M. CAPPELLETTI, Necessite
.1 Mglllmllé de la justice constitutionnelle, R.I.D.C., 1981-625; D. TURPIN,
i iiiitrntlimx constitutionnel, P.U.F., col. "Droit fondamental", Paris, 1986; B
ItI NP.VOlS, La jurisprudence du Conseil Constitutionnel - Príncipes directeurs,
..I I II . Paris, 1988.
106 TEORIA GERAL DO DIREI K >

A. As fontes dos princípios gerais

72. - Foi o Conselho de Estado que, parece que desde


1945, consagrou expressamente os princípios gerais "aplicá-
veis mesmo na ausência de textos", segundo uma fórmula, tor-
nada clássica, do acórdão Aramu de 26 de outubro de 1945.
Houve ali uma inovação, pois, até então, o Conselho de Estado
fundara exclusivamente suas decisões quer em textos, quer em
regras cuja origem ele não explicava, mas que eram de criação
pretoriana. No direito privado, a existência de um arsenal mui-
to completo de regras escritas deixa menos espaço para princí-
pios gerais não-escritos do que no direito público no qual, por
causa do repúdio do direito privado pelo acórdão Blanco, exis-
tia "uma espécie de no man s land jurídica" 12 e no qual o juiz
deveria procurar os princípios em uma certa representação das
relações entre o homem e o poder 13 . Os princípios gerais do
direito têm, não obstante, seu lugar nele. Certos textos do Có-
digo Civil 14 comportam uma referência aos princípios gerais
de uma determinada matéria. A Corte de Cassação, já no sécu-
lo XIX, invocou os princípios, o "princípio de eqüidade" por
exemplo, para fundamentar soluções pretorianas, tais como o
enriquecimento sem causa e o reconhecimento da "ação de in
rem verso"15. Acórdãos mais recentes empregam precisamente
o termo "princípios gerais" 16 . A Corte de Cassação erigiu
ainda, desde 1994, um novo "princípio geral", o princípio se-
gundo o qual ninguém deve causar aos outros um transtorno
que exceda os inconvenientes normais de vizinhança que ela

12. G. VEDEL e P. DELVOLVÉ, Droit administratif.\ P.U.F., 1980, col


Thémis, p. 379.
13. J. RIVERO, art. cit.
14. Arts. 1584, 1196,2021 do Código Civil.
15. Req. 15 de junho de 1892 D. P. 1892 I 596; S. 1893-1. 281 nota Labbé;
ver também Req.21 de julho de 1862 D. 1862 1 154 sobre a natureza confidencial
das cartas endereçadas a terceiros.
16. P. ex. Civ. 25 de julho de 1938 D. H. 1938-531; Crim., 12 de junho de
1952 JCP 1952 II 7241 obs. BROUCHOT (sobre os direitos da defesa); Civ. Ia 10
de dezembro de 1985, Buli. Civ. I n° 339, p. 305; D. 1987 II 449, nota G. PAIRE
i > I ENÔMENO DO DIREITO 107

visa como tal, em vez de visar um texto de lei17. O Conselho de


l istado, embora seja o verdadeiro inventor dos princípios ge-
rais do direito, no sentido estrito, já não tem hoje "o monopó-
lio da elaboração e da utilização deles". O Conselho Consti-
tucional emprega agora essa teoria no exercício do controle de
constitucionalidade das leis18. Há então que constatar que os
princípios gerais do direito podem tanto existir na ausência de
textos quanto expressos na Constituição ou na lei.
Os preâmbulos das Constituições de 1946 e 1958 fazem
lelerêneia aos "princípios fundamentais".
O princípio da responsabilidade civil tem sua fonte nos
in ts. 1382 ss. do Código Civil. O novo Código de Processo Ci-
vil enuncia "os princípios diretores do processo". Textos re-
i entes proclamam imprudentemente sua própria filosofia: a lei
n" 82-526 de 22 de junho de 1982 consagrava num título I seus
"princípios gerais" e em seu art. 1? o "direito fundamental ao
hahltat", a lei n? 83-8 de 7 de janeiro de 1983, no art. L 110 do
< I irb., dispõe que "o território francês é o patrimônio comum
iln nação"...! Portanto, não se poderia contestar o valor positi-
vn dos princípios gerais. Mas, para determinar-lhes a força
litlldica, deve-se investigar de que fonte eles a tiram. Oriundos
mi nrto da lei, conforme os casos, a origem deles é incerta.
Podemos encontrá-la no direito escrito, no costume e na juris-
imidència 19 .
7.V - Os princípios gerais podem de início parecer ser "a
li adiante, a síntese de textos legislativos esparsos" e a formu-
liivflo de regras contidas implicitamente em todo um conjunto
l< plnliilívo", de modo que o princípio geral extrairia "sua força

I ' < lv 1", 23 de novembro de 1994, Rachez c/ Andréani, inédito; Civ. 3 a ,


MI ,i. itululiro de 1995, Consorts Forget c/ Brimont, inédito; Civ. 2f, 28 de junho
4» !•'•'•• Mui! Civ., n? 222; D. 1996, som. 59, obs. A. Robert; RD Imm., 1996, p.
IM .iIl I I Ucrgel.
IN A dc l.AUBADÈRE, Traité de droit administratif, 1.1, 8? ed., 1980, n°
4/1 II CIIAPUS.op. ríf.,n.°110.
I'i li II ANNF.AU, "La nature des príncipes généraux du droit en droit
hmtvDK liuviiux et reeherehes de VInstitut de droit eomparé de L université de
fW I XXIII, 1962, pp. 203 ss.
108 TEORIA GERAL DO DIREI K >

da própria lei". O juiz se ateria assim a "interpretar a vontade


difusa do legislador e não seria em absoluto o autor dos princí-
pios que evidencia" 20 . Os princípios gerais seriam então extraí-
dos da lei "por indução amplificadora, pois a jurisprudência
utiliza a sistematização operada pela doutrina e as idéias mes-
tras que ela discerniu dos textos" 21 . Esta explicação pode pare-
cer insuficiente. Certos princípios, como o da continuidade
dos serviços públicos, não podem ser simplesmente deduzidos
das leis existentes; a vontade do legislador é incerta e maleável
demais para fornecer um suporte suficiente ao juiz. Tampouco
podemos encontrar-lhes um fundamento claro no preâmbulo
da Constituição e na Declaração dos Direitos do Homem, pois
nem todos os princípios gerais resultam delas e a jurisprudên-
cia não invoca tal fonte.
Os princípios gerais do direito terão então origem na tra-
dição e a autoridade deles se alimentará naquela do costume'!
Numerosos princípios expressos por regras ou máximas tradi-
cionais incitam a acreditar nisso, mas muitos outros são apenas
idéias difusas enquanto os juizes não os formulam claramente.
Ademais, enquanto o costume existe e pode impor-se ao pró-
prio juiz, os princípios gerais não têm por si sós nenhuma exis-
tência própria: "compete ao juiz dar-lhes força e vida" 22 .
Pode-se admitir igualmente que o juiz "governa" quando,
como agora, na França, o Conselho Constitucional, como a
Corte Suprema dos Estados Unidos, pode impor sua lei ao
legislador 23 . O fato de, segundo a doutrina atual do juiz consti-
tucional francês, suas decisões deverem apoiar-se em disposi-
ções textuais precisas decerto enfraquece essa asserçào. Isso
implica que o Conselho Constitucional "não se estima dono
das fontes do direito constitucional", o que garante a estabili-
dade de sua jurisprudência 24 . Isso também permite distinguir a

20. Ibidem, p. 205.


21. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, Traité de droit civil, "Introdução ge-
ral", n? 449; R. CHAPUS, op. cit.. n? 97.
22.B. JEANNEAU, op. cit., p. 208.
23. J. RIVERO, art. cit., D. 1951,1, 23.
24. G. VEDEL, "Le précédent judiciaire en droit publie français", R.I.D.C
1984-6, pp. 293 s.; ver também R. CHAPUS, op. cit., n os 110-1.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 109

natureza dos princípios de valor constitucional, que são princí-


pios de direito escrito "incluído" nos textos constitucionais, e
aquela dos "princípios gerais do direito", que são aplicáveis
mesmo na ausência de textos".
Mas, em direito francês, a norma é acima de tudo a lei.
Nos outros sistemas jurídicos, quando a lei existe, ela se impõe
lantlxSm ao juiz. Este não tem liberdade de criar ou de rejeitar
cites ou aqueles princípios gerais. Estes são fruto de aspira-
sfieN latentes do corpo social ou a expressão do "espírito das
leis" 1'ortanto, impõem-se ao juiz que se limita a extraí-los do
dado filosófico, moral e jurídico existente. É o que explica a
Kcncralidade, a permanência e a transcendência dos princípios
i"mis do direito e lhes define o conteúdo.

11 I noção de princípios gerais

74. - Os princípios gerais são regras de direito objetivo,


n.lo de direito natural ou ideal 25 , expressas ou não nos textos
IHitN aplicadas pela jurisprudência e dotadas de um caráter su-
I a icnle dc generalidade.
Não sendo necessariamente enunciados por regras de di-
tfito positivo, são menos rígidos e menos precisos do que as
pipxcriçftcs de textos formais. Formulados ou não pelo juiz,
«iimportam uma autoridade, um rigor e uma aplicabilidade que,
N III isso. a vontade do legislador, que eles exprimem e concre-
ll/iini, mio teria. No entanto, dentre todas as regras que a juris-
piudOuciu aplica "sem texto", nem todas são princípios gerais
do diioito. Muitas são apenas soluções formuladas pelo juiz
piihi icinediar os silêncios ou as obscuridades e contradições
da li i I ssas soluções não são assaz "fundamentais" para im-
|iin ' ao poder regulamentar e, menos ainda, para pretender
li i um valor constitucional qualquer. Na dúvida, apenas a lei-
liini dns acórdãos permite dizer se tal princípio é considerado
In um princípio geral do direito 26 .

(I VlíDEL e P. DEVOLVÉ , op. cit., p. 378.


•f. A Dl 1 AUBADÈRE, ibidem.
110 TEORIA GERAL DO DIREI K >

75. - No vocabulário filosófico, denominam-se princípios


"o conjunto das proposições diretoras às quais todo o desen-
volvimento posterior é subordinado" 27 . Conquanto isso pareça
um pleonasmo, é a generalidade dos princípios gerais do direi-
to que melhor marca a definição deles e os distingue das sim-
ples regras de direito. "Existe entre um princípio e uma regra
jurídica não só uma desigualdade de importância, mas uma di-
ferença de natureza." Claro, toda regra jurídica é, por defini-
ção, geral; mas a generalidade da regra jurídica não é entendi-
da no mesmo sentido que a de um princípio. Uma regra é
geral, pois é "estabelecida por um número indeterminado de
atos ou de fatos". Isso não a impede de ser, de outro ponto dc
vista, especial, regendo apenas "estes ou aqueles fatos" corres-
pondentes a seu objeto. Um princípio, ao contrário, é geral
"pelo fato de comportar uma série indefinida de aplicações".
Assim, J. Boulanger 28 deu dois exemplos dessa diferença. O
art. 725 do Cód. Civil, a contrario, que admite que a criança
simplesmente concebida se beneficie de uma sucessão, só
enuncia uma regra referente à devolução sucessória. O velho
conceito do Digesto segundo o qual a criança simplesmente
concebida é considerada nascida quando o que está em jogo é
de seu interesse rege, em compensação, todas as questões, co-
nhecidas ou não, relativas ao começo da personalidade. Assim
também, o art. 2277 do Código Civil, que enuncia curtas pres-
crições, só estabelece regras. A possibilidade de extinção de
todos os créditos por prescrição corresponde a um princípio
geral. Assim fica claro que "os princípios dominam o direito
positivo", ao passo que as regras jurídicas são apenas aplica-
ções ou exceções 29 . Dessa forma, os princípios gerais vão além
dos limites dos diferentes ramos do direito. O princípio da igual-
dade de todos perante a lei e os encargos públicos, o do enri-

27. Vocabulaire technique et critique de la philosophie, de LALANDE, ver-


bete "Príncipe", citado por J. BOULANGER, art. cit., n? 5.
28. Art. cit., n?s 5-6; ver também J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit.,
n? 447.
29. J. BOULANGER, ibidem
i > I ENÔMENO DO DIREITO 111

quecimento sem causa, o do contraditório etc. interessam tanto


no direito público quanto ao direito privado. Sem chegar a afir-
mar que existe um corpo único de princípios não-escritos que
comandam a um só tempo todas as matérias, podemos dizer
que c no plano dos princípios gerais do direito que as diferen-
ICN matérias da ordem jurídica e os diversos sistemas jurídicos
encontram sua unidade 30 . Esses princípios gerais são, por con-
«cguinte, os princípios congregantes do direito.
76. - O que caracteriza, enfim, os princípios gerais do di-
te ito é a aplicação deles pela jurisprudência. Mais exatamen-
te. a jurisprudência, sem os criar do começo ao fim, os "extrai
ilu lei ou do costume, com a ajuda da doutrina" 31 . Estão "em
nimpcnsão" dentro do espírito do direito 32 , e o juiz ali os iden-
tifica I raro, de fato, que o legislador proclame grandes prin-
i Ipios, a não ser, como na Declaração dos Direitos do Ho-
itii in, por ocasião de grandes mudanças políticas e sociais.
I'i> ocupa-se mais em fazer "obra concreta" promulgando re-
i'hi jurídicas ligadas diretamente à realidade e imediatamen-
te aplicáveis 33 . Um legislador esclarecido deve mesmo abster-
tle decorar a lei com declarações de princípios que difun-
dem ns imprecisões filosóficas no campo da precisão técnica
• insulam a incerteza quando se deve procurar a segurança ju-
iidi.,1 O legislador napoleônico soube separar do Código
• l\ li todo discurso preliminar. Portanto, é ao intérprete que
• "impele discernir os princípios de que procedem as regras ju-
i idt< iis e inspirar a compreensão, a aplicação e a evolução de-
l.n Mas, se os princípios gerais são as regras que inspiram o
dllfllo objetivo, cumpre apreciar-lhes o alcance para medir-
llit". ii importância.

Ill II JI .ANNEAU, art. cit., p. 204.


tl I (IIII S I'IN e G. GOUBEAUX, op. cit., n? 447; G. MARTY e R. RAY-
Na I li Diillt' i/c droit civil, "Introdução geral", n? 126.
i ' I ( AKIIONNIER, Droit civil-Introduetion - Lespersonnes, n? 29.
ti I HOUl.ANGER, op. cit., n? 7.
112 TEORIA GERAL DO DIREI K >

2. O alcance dos princípios gerais

77. - Desde que a Constituição de 1958 instituiu na Fran-


ça o Conselho Constitucional, o Conselho de Estado já não
domina sozinho a teoria dos princípios gerais do direito. Essa
teoria é de fato utilizada agora tanto para o controle da consti-
tucionalidade das leis como para o da legalidade dos atos ad-
ministrativos. Por conseguinte, é mister interrogar-se sobre a
distinção entre os princípios gerais, os princípios e regras com
valor constitucional, e os princípios fundamentais do direito
(A) antes de determinar-lhes o valor na escala das normas (B).

A. Princípios gerais e princípios fundamentais do direito

78. - Até que fosse instituído na França, pela Constituição


de 1958, o Conselho Constitucional, havia menos interesse em
saber se os princípios gerais do direito ou alguns deles tinham
valor constitucional, se bem que a Constituição de 1946 já ti-
vesse consagrado "princípios fundamentais reconhecidos pe-
las leis da República" e o Conselho de Estado já tivesse quali-
ficado assim a liberdade de associação 34 . A lei, ainda que con-
trária à Constituição, não podia ser contestada, por falta de sis-
tema de controle de sua constitucionalidade 35 .
A intervenção da Constituição de 1958, ao criar um poder
regulamentar autônomo 36 no campo não reservado à lei, levan-

34. C. E., Ass., 11 de julho de 1956, Amicale des Annamites de Paris. Rec
C. E. 317.
35. O Conselho de Estado quando muito recusara admitir que certas leis
tivessem infringido certos princípios, tais como o direito de fazer que se respeite a
legalidade mediante a possibilidade de recurso contra os atos administrativos ((
E. 17 dc fevereiro de 1950, Dame Lamotte R.D.P. 1951, p. 478 concl. DELVOVI
nota M. WAL1NE).
36. O particularismo dos regulamentos autônomos é contestado por certos
autores; R. CHAPUS, op. cit., n?s 108 ss.; L. FAVOREU, "Les règlements autono-
mes n'existent pas", Rev. fr. de dr. adm., 1987, 871. Acontece que. se esses decretos
se situam no mesmo nível que os outros, a fonte da validade deles se situa direta
mente na Constituição.
i > I E N Ô M E N O DO DIREITO 113

loti o problema de saber se a validade das regulamentações


iiutônomas era subordinada ao respeito dos princípios gerais
do direito. O Conselho de Estado decidiu que o poder regula-
mentar autônomo obrigava-se ao respeito dos princípios gerais
do direito que, resultantes especialmente do Preâmbulo da
('«instituição, impõem-se a qualquer autoridade regulamentar,
mesmo na ausência de disposições legislativas" 37 . Sustentara-
se então que existiam duas categorias de princípios gerais, uns,
IIN mais importantes, correspondentes às regras de fundo,
• mundos da Declaração de 1789 e do Preâmbulo de 1946, com
valor constitucional, e os outros, tendentes apenas a paliar as
intui iciências do aparelho legislativo e regulamentar, e apenas
i oin um valor legislativo ou infralegislativo 38 .
() ( onselho Constitucional, por sua vez, admitiu em segui-
da que "os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da
l't pública c solenemente reafirmados pelo Preâmbulo da Cons-
llluiçflo" têm valor constitucional, de modo que a lei que os der-
IO|ia pude ser declarada inconstitucional 39 . Da mesma maneira
i|iir nos listados Unidos, em 1803, o Acórdão Marbury v. Ma-
diMin consagrara o poder de controle do juiz sobre a cons-
iiiui tonalidade da lei, o Conselho Constitucional francês se
•tinlim o direito de censurar o legislador em nome dos "princí-
p i o fundamentais". Assim, certos princípios gerais mudam de
IMIUIC/JI e de valor ao mesmo tempo, pois a força deles já não
pitucdc ilo poder normativo do juiz ou do costume, mas da
' mi diluição, e prevalece sobre a autoridade do legislador.
7'). - Salientou-se então o perigo, "se não do governo dos
|ttl/i pelo menos de conflitos entre o Parlamento e seus cen-

i M I 21 de junho de 1959, Synd. des ingénieurs-Conseils, R.D.P. 1959,


IINM i um I K HJRNIER; D. 1959 II 541, nota L'HUILLIER; S. 1959-202, nota
M UMAUU
IH I iilicl I OURNIER já citada; P. LE MIRE, La jurisprudence du Consei!
ÊtmillhilInHnrl et les príncipes généraux du droit, Mélanges R. E. CHARLIER,
l«»l ftl 171 M.
• •• t ( on»t. 16 de julho de 1971, D. 1972 II 685; J. RIVERO, Les prin-
II, hiiiihimrntaux reconnus par les lois de la Republique: une nouvelle caté-
0wh , imnHIMItmnelle? D. 1972 I 265 ss.; G. VEDEL e P. DEVOLVE, op. cit.,
pi I í* »« i">|n'i inlmente p. 383.
114 TEORIA GERAL DO DIREI K >

sores". Receou-se também que o texto do Preâmbulo de 1946,


"arranjo político repleto de equívocos" que "não foi elaborado
para fornecer uma base ao controle da lei", se impusesse pela
vontade do juiz a "aqueles que exprimem a vontade da nação",
sob a aparência de uma norma constitucional: a França não
tem, como a Alemanha ou a Itália, uma formulação precisa de
suas liberdades fundamentais no início de sua Constituição 40 .
Também se denunciou, antes que fosse consagrado o controle
da constitucionalidade das leis em nome dos princípios funda-
mentais, uma certa confusão na jurisprudência do Conselho de
Estado entre o alcance de uma regra que lhe competia apreciar
e a categoria dela cuja apreciação lhe escapava, já que era sub-
metido à lei fosse ela qual fosse 41 .
Contudo, parece difícil agora, diante da jurisprudência
do Conselho Constitucional 42 , constatar que existem mesmo
duas, até três categorias de princípios gerais, sendo que uns
deles com valor constitucional ou mesmo com caráter funda-
mental se impõem ao próprio legislador e, a fortiori, ao poder
regulamentar, ao passo que os outros, princípios gerais sim-
ples, pode-se dizer, só se impõem ao poder regulamentar, mas
não ao legislador 43 . Cumpre então admitir que todo princípio
fundamental é, com mais forte razão, ao mesmo tempo um
princípio geral, mas que, inversamente, nem todo princípio
geral é, por isso, um princípio fundamental. Essa análise per-
mite determinar o lugar dos princípios gerais na escala das
normas.

40. J. RIVERO, art. cit., p. 268.


41. R. CHAPUS, De la valeur juridique des príncipes généraux du droit et
des autres règles jurisprudentielles du droit adminstratif, D. 1966,1, p. 99.
42. Ver também, p. ex., C. Const. 16 de janeiro de 1982, D. 1983 II, p. 169,
nota L. HAMON; .1. L. MESTRE, Le Conseil Constitutionnel, la liberté d'entre
prendere et la proprieté, D. 1984 I, pp. 1 ss., que consagra o valor constitucional
da liberdade de empreender e da propriedade.
43. P. LE MIRE, op. cit., p. 177; no mesmo sentido, L. FAVOREU e L
PHILIP, Les grandes décisions du Conseil Constitutionnel, Sirey, 1975, p. 251.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 115

H. O valor dos princípios gerais na escala das normas

80. - Com sua decisão 71-44 DC de 16 de julho de 1971 44 ,


0 próprio Conselho Constitucional reconheceu a existência de
"Princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da Repú-
blica", tais como a liberdade de associação, cujo número é
muito limitado e que não devem ser confundidos com os
outros "princípios e regras com valor constitucional" que pare-
cem corresponder à Constituição em sua globalidade, ou seja,
isso a que chamam "o bloco de constitucionalidade" 45 . São
princípios oriundos da legislação republicana anterior à entra-
da cm vigor do Preâmbulo da Constituição de 1946 (27 de ou-
tubro de 1946), no decorrer de um "período republicano" e aos
quais nenhuma lei jamais fez exceção 46 . São também princí-
pios considerados suficientemente fundamentais e dotados de
IIIIIII constância absoluta, até de uma antigüidade suficiente,
paia terem valor constitucional, ainda que não resultem ex-
piessamente da Constituição. Esses princípios fundamentais
ilcvcm ser evidenciados pelo juiz constitucional, em princípio.
M.is não fica excluído que o possam ser igualmente pelo juiz
ordinário, administrativo ou judiciário 47 , mesmo que nada
possa então coagir o Conselho Constitucional a lhes garantir o
ii spcito. As discussões doutrinais relativas aos princípios ge-
iiici do direito e aos princípios ditos fundamentais talvez pro-
1 eiliim de uma confusão entre o valor jurídico e a função deles.
I'i i ante o Conselho Constitucional, trata-se de apreciar a cons-
iiiui tonalidade das leis segundo sua conformidade com as nor-

Rec. 29; RJC I 24; GD Cons. Conslil., 8? ed. n° 19.


4J I» MATHIEU e M. VERPEAUX, "La reconnaissance et 1'utilisation
.li • |niiu ipcs fondamentaux reconnus par les lois de la République par le juge", D.
I<W' 1 |ip 219 ss., em especial p. 219. Ver também, Decisão n? 97-315 DC de 30
ri» Iiulubro de 1997, J.O., 31 de dezembro de 1997.
4fi Decisão 88-244 DC de 20 de julho de 1988, Rec. 119, RJC I, p. 334; L.
I \ V I »«l 11 c L. PHILIP, GD Cons. Conslil., 8a ed. nos 19-30; B. MATHIEU e M.
VI Pl'1 AtJX, art. cit., p. 221.
i Nrssc sentido, C. E., Ass. 3 de julho de 1996, Koné, D. 1996 II, p. 509,
I Jlllien-Laferriére; JPC, 1996, II, 22720, obs. X. Prévost; B. MATHIEU e
M V I K 1*1 AIJX, art. cit., em especial pp. 220 s.
116 TEORIA GERAL DO DIREI K >

mas constitucionais. Essa alta jurisdição só pode, portanto, re-


ferir-se aos princípios gerais que têm valor constitucional e de-
ve distinguir os outros deles. Em compensação, para o juiz ad-
ministrativo, a distinção entre as duas categorias de princípios
gerais é secundária: para ele trata-se apenas de apreciar a lega-
lidade dos atos regulamentares e não a validade da lei que se
impõe a ele48. Enquanto os princípios fundamentais têm a fun-
ção de medir a constitucionalidade da lei, os princípios gerais
têm o papel de medir a legalidade das disposições regulamen-
tares, sendo que todos admitem hoje que as prescrições regula-
mentares, trate-se ou não de regulamentações autônomas do
art. 37 da Constituição, estão submetidas ao conjunto dos prin-
cípios gerais do direito e, a fortiori, dos princípios e regras
com valor constitucional e dos princípios fundamentais.
81. - Por conseguinte, pode-se admitir que as decisões do
Conselho de Estado têm um valor "infralegislativo e suprade-
cretal" 49 . As do Conselho Constitucional têm, por sua vez,
"valor supralegislativo e infraconstitucional" 50 . Essa inserção
da jurisprudência no seio da hierarquia dos textos fica contes-
tável se nos atemos à hierarquia formal deles. Fica exata se
admitimos a idéia de hierarquia material 51 . Ela tem pelo me-
nos o mérito de mostrar que os princípios gerais do direito
têm valor legislativo e estão situados, na escala das normas,
acima dos atos administrativos do grau mais elevado. Assim.
eles se impõem ao poder regulamentar, salvo se tiverem ape-
nas um valor supletivo 52 , ao passo que a lei pode derrogá-los.
Mas, a respeito do controle da constitucionalidade das leis
pelo Conselho Constitucional, os princípios gerais que, proce-
dentes da Constituição ou "dos princípios fundamentais reco-

48. A. DE LAUBADÈRE, op. cit., n? 423, in fine, G. VEDEL e P. DEVOL-


VE, op. cit., p. 384.
49. R. CHAPUS, ibidem-, G. VEDEL e P. DEVOLVE, ibidem.
50. G. VEDEL e P. DEVOLVE, ibidem-, R. CHAPUS, op. cit., n™ 110-1.
5 L. Ver supra, n? 70.
52. De modo que as regulamentações poderiam então derrogá-los e se apli-
cariam apenas na ausência de texto contrário; ver concl. BRA1BANT em C.E. 2 de
março de 1973, DUe Arbousset, R.D.P., 1973-1066.
01 ENÓMENO DO DIREITO 117

nhecidos pelas leis da República ", são ao mesmo tempo ver-


dudeiras disposições constitucionais têm, como tais, um valor
superior ao da lei5i.
Para que a integração, em seu nível na hierarquia das nor-
mas, dos princípios fundamentais com valor constitucional
scju perfeita e realmente efetiva, cumpriria, entretanto, que o
|III/ indiciário e o juiz administrativo ou o tribunal dos confli-
tos, na França, se submetessem à jurisprudência constitucional
i" uplicassem-lhe as decisões. Ora, a despeito de uma tímida e
hipotética evolução nesse sentido 54 , não parece ser esse o caso,
por ora...
A autoridade assim reconhecida aos princípios gerais do
illrcíto leva a indagar-se sobre a importância deles entre as
nuiltiplas regras do direito objetivo.

S I A í > II
I Importância dos princípios gerais
Hu multiplicidade das normas

82. - Trata-se aqui de cotejar de novo os princípios com


a* simples regras jurídicas, sendo estas apenas aplicações ou
. oçõcs daqueles 55 . Constata-se então que os princípios têm
iiiii papel essencial (§ 1) em toda construção jurídica. Mas
iim presença nos diversos ramos do direito e sua grande di-
M isidmle levam também a avaliar a importância quantitativa
.1.>*(§ 2).

S1 P PACTET, op. cit., p. 524.


M Ver nesse sentido L. FAVOREU, "L'application des décisions du
I MIM il KiiiNlituüonnel par le Conseil d'État et le Tribunal des conflits", Rev. Fr.
l'i AtIm . 1987, p. 264; "L'effet des décisions du Conseil Constitutionnel à
I 4• <•.I du |ugc administratif", Rapport français aux 13'' jouraées juridiques fran-
n lliilli miii"., 1987: ver R.l.D.C. 1988-1, pp. 267 ss.; "La décision de constitution-
MLLL* L< I IX '., 1986-2, pp. 611 ss., esp. pp. 628 s„ ver contra: R. CHAPUS, op.
>11 II" 112,
" Ver supra, n° 75.
118 TEORIA GERAL DO DIREI K >

1. A importância funcional dos princípios gerais

83. - A importância funcional dos princípios gerais do di-


reito está ligada à autoridade que lhes é reconhecida e graças à
qual eles se impõem ao juiz, ao poder regulamentar, até mes-
mo muitas vezes ao legislador. Além de suas eventuais finali-
dades morais e filosóficas, os princípios gerais assumem no
seio da ordem jurídica uma dupla função, fundamental (A) e
técnica (B).

A. A função fundamental dos princípios gerais

84. - Os princípios gerais constituem a base de toda cons-


trução jurídica. As regras de direito não podem ser promulga-
das e evoluir senão consoante princípios gerais aos quais de-
vem amoldar-se ou que, às vezes, podem derrogar.
A submissão das autoridades administrativas aos princí-
pios gerais do direito e a multiplicação dos princípios consa-
grados pelo Conselho de Estado redundam em enriquecer o
conteúdo da legalidade e em reduzir proporcionalmente o po-
der discricionário da administração pública 56 . Também em di-
reito privado, a consagração dos princípios gerais pela juris-
prudência (seja ela expressa, como em matéria de enriqueci-
mento sem causa ou de promessa de casamento, ou mais difusa,
como outrora, para condenar as cláusulas de inalienabilidade
perpétua) os torna uma fonte de direito. Sua força obrigatória
se vincula àquela da lei e a Corte de Cassação assegura-lhe o
respeito bem como o da lei. Ela censura, assim, as decisões
que não respeitam as máximas ou os brocardos que expressam
princípios gerais 57 . Sabe-se sobretudo que, quando existe um
controle da constitucionalidade das leis, o próprio legislador
tem de respeitar princípios fundamentais.

56. G. VEDEL e P. DEVOLVÉ, op. cit., p. 373.


57. J. GHESTIN e G. GOBEAUX, op. cit., n?s 449-50 e as referências
citadas.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 119

Há mesmo que admitir, parece, que existe, para além das


constituições, princípios fundamentais que devem primar so-
bre as disposições constitucionais.
Uma decisão do Tribunal Constitucional da Baviera admi-
tira, em 1950, que há "disposições constitucionais que expres-
sam de um modo tão elementar e tão intenso um direito pree-
HIntente à Constituição, que elas amarram o próprio legislador
i onstituinte e acarretam a nulidade de outras disposições cons-
tltucionais que não são do mesmo grau hierárquico e lhes são
contrárias". A Corte Suprema dos Estados Unidos, com uma
interpretação extensiva da cláusula constitucional de due pro-
• i \ v oflaw, foi igualmente levada a apreciar a constitucionali-
iltule ilas leis em relação aos princípios supraconstitucionais do
"direito natural", no sentido dos princípios fundamentais de
liberdade e de justiça que constituem a base das instituições da
v lila privada e política dos americanos 58 . A autoridade de cer-
Iiin princípios fundamentais consagrados e protegidos por con-
venções internacionais, como a Convenção Européia dos Di-
i eilos do Homem ou os tratados das Comunidades Européias,
• niilere-lhes também um caráter supranacional que, excetuan-
iln -.o certas margens de indeterminação, os próprios consti-
tuintes dos países signatários não deveriam ignorar. A Corte de
lunllça das Comunidades Européias admite claramente que o
dlieito comunitário tem um efeito superior às constituições
mu lonuis 59 . Ademais, o princípio pada sunt servanda, ao qual
ii i i HiNclho Constitucional reconhece um valor constitucional 60 ,
illtpllcu que os tratados ratificados prevalecem sobre qualquer

1H liuy Verf. GH, 24 de abril de 1950, Verw Rspr. 2, 273 (279); G. MIT-
h in H i (is, "Problèmes de la validité du droit", in Studi in onore di Enrico
fW/l" ' li'hmtm, cd. (iiuffré, 1979, vol. 1-303, n?s 8 ss. e as referências citadas; ver
Mtiil»'iii i in ir de Apelação de Atenas, Acórdão n? 118/75 (citado por M. MITSO-
il l i >S) i|iir udmite a existência "de princípios pré-constitucionais e supercons-
I H t t I I I I I I I U ilr pisiiça que formam a garantia de valores irrevogáveis na consciên-
•ti' K>-iiil uri rssários para estear o Estado em fundações seguras..."
"'M li I 17 de dezembro de 1970, International Handelsgesellschaft, já
Hlmtii
(.0 | ) n inflo 92-308 DC, Peliles affiches, 1992, n? 77; B. GENEVOIS, "Le
|f*iii .in I I nitin curopéenne et la Constitution, RFD adm., 1992, p. 373.
120 TEORIA GERAL DO DIREI K >

norma de direito interna, e a Constituição de 1958 consagra a


superioridade do tratado sobre a lei61.
Assim, os princípios gerais, no sentido lato, constituem o
arcabouço do pensamento jurídico e desempenham importante
papel na interpretação da lei. O juiz se refere a eles para deter-
minar o sentido dos textos obscuros ou ambíguos. Se a regra é
analisada como uma derrogação do princípio, ele deve dar-lhe
uma interpretação estrita. Mas a incidência dos princípios ge-
rais é ainda maior quando se trata de preencher um vazio jurí-
dico. O art. 4 do Código Civil impõe ao juiz julgar, sob pena de
denegação de justiça, as situações jurídicas que lhe são subme-
tidas. Em caso de silêncio ou de insuficiência da lei, é à lu/
dos princípios gerais que ele descobre a solução. Mas, uma vez
consagrados e aplicados pela jurisprudência, em geral agui-
lhoada pela doutrina, os princípios gerais e as soluções estabe-
lecidos servem de sustentação para outras construções jurídi-
cas e participam da criação de novas regras de direito, portan-
to da evolução do sistema jurídico 62 .
85. - Os princípios gerais do direito parecem, assim, ser
um dos melhores fermentos da evolução do direito. Gény des-
crevera perfeitamente o processo dessa constante regeneração:
pega-se um texto ou um conjunto de textos; extrai-se deles um
princípio; deduzem-se desse princípio novas aplicações con-
cretas 63 ; consagram-se essas soluções em novas regras de di-
reito... E aí que melhor se expressa a rejeição da rigidez formal
dos exegetas e que mais se justifica a famosa "livre pesquisa
científica".
A liberdade dessa pesquisa é, porém, mais relativa do que
Gény pensou. A evolução do direito também tem suas leis, c
essas leis da evolução jurídica dirigem os esforços inovadores
dos mais audaciosos juristas. Há, por certo, grandes revoluções
políticas, econômicas e sociais que suscitam princípios novos

61. Nesse sentido. B. MATHIEU e M. VERPEAUX, art. cit.. p. 224.


62. J. BOULANGER, op. cit., n?s 15 ss.
63. F. GÉNY, Méthodes d interprétation et sources en droit prive posilit. 2:'
ed., 1919, t. I, nos 20 ss.; J. BOULANGER, op. cit., n° 16.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 121

c atingem os princípios tradicionais. Assim, os princípios po-


líticos, econômicos e morais podem ser abalados, mas os prin-
i ipíos técnicos asseguram então, não obstante, uma certa con-
tinuidade da ordem jurídica. De modo mais geral, a longo
prazo, constata-se uma simples evolução no equilíbrio dos
diversos princípios jurídicos, ao passo que as regras de direito
pastam por mudanças mais profundas. Com efeito, enquanto
0 desaparecimento ou a modificação de uma simples regra o
IIIIIIS das vezes só tem um "caráter episódico", a eliminação
ou a subversão de um princípio "apresenta o risco de causar
um profundo transtorno no ordenamento jurídico, porque a
norte de numerosas regras jurídicas está em jogo" 64 . Assim, os
• n dndeiros princípios gerais, os que não são somente o ele-
mento eongregante de uma instituição particular 65 , mas tocam
no próprio fundo do sistema jurídico, têm uma grande longe-
v Idade e, servindo para interpretar as leis novas que são assim
inlcgrudas e adaptadas à ordem jurídica, constituem um fator
de estabilidade do direito, permitindo ao mesmo tempo sua
1 voluçilo. Existem também efeitos reflexos das leis novas so-
LNC OS princípios. Novas disposições podem modificar certos
piiiu ipios e suscitar novos. É raro, porém, que uma situação
|III (dica seja inteiramente dominada por um único princípio.
\ v ul.i jurídica está sempre submetida à influência conjugada
ILI v .11 IOS princípios diferentes que têm, uns em relação aos ou-
imv papéis técnicos determinantes para a solução jurídica
i|in deve resultar deles.

M I função técnica dos princípios gerais

No. - A conjugação de princípios gerais diferentes no seio


situação ou de uma dada matéria jurídica opera-se con-
«oiiiile o respectivo papel desses princípios uns em relação aos
tHttrn* < laro que é difícil apreender o jogo sutil das interações

M I IIOULANGER, op. cit., n? 26.


• Ver In/ra. n°' 165 ss.
122 TEORIA GERAL DO DIREI K >

entre os diversos princípios gerais, e aqui qualquer sistemati-


zação é perigosa e aleatória.
Não obstante, pode-se constatar que em todas as matérias
se encontram simultaneamente princípios que comandam a
regra ou a solução jurídica e princípios destinados a corrigir os
excessos ou as anomalias das soluções legais.
Assim, os princípios gerais podem ser, conforme os casos,
princípios diretores ou princípios corretores.
Certos princípios são por si sós princípios diretores por-
que a ordem social depende deles: assim, o princípio de que
"supõe-se que ninguém ignora a lei", o da autoridade da coisa
julgada, o princípio de igualdade perante a lei e perante os
encargos públicos, as liberdades fundamentais, o princípio de
não-retroatividade da lei, o princípio de legalidade dos delitos
e das penas etc. são incontestavelmente vigas mestras de todo
o edifício jurídico.
Outros princípios são por natureza princípios corretores
de soluções legais que, sem eles, poderiam mostrar-se injustas
ou inadaptadas. Assim, o princípio fraus omnia corrumpit, se-
gundo o qual a fraude é exceção de todas as regras, ou o prin-
cípio dito nemo auditur..., segundo o qual ninguém pode ale-
gar sua própria torpeza, de modo mais geral o princípio de
boa-fé são, incontestavelmente, dessa natureza.
Mas numerosíssimos princípios são alternadamente prin-
cípios diretores ou princípios corretores conforme as situações
em que são invocados e os outros princípios com que são con-
frontados: então só têm um papel diretor ou corretor relativo. O
princípio enunciado no art. 6 do Código Civil, segundo o qual
"não se podem derrogar mediante convenções particulares as
leis que interessam à ordem pública e aos bons costumes", é um
princípio diretor no sentido de traduzir as exigências da ordem
social e a superioridade desta sobre as vontades individuais e os
interesses particulares. É também um princípio corretor, pois
constitui uma atenuação do princípio da autonomia da vontade.
A lei civil não tem em princípio efeito retroativo, salvo quando
a ordem pública está em jogo: a superioridade da ordem públi-
ca sobre os direitos individuais permite, assim, proporcionar
um corretivo ao princípio de não-retroatividade da lei.
i > I E N Ô M E N O DO DIREITO 123

l'ode ocorrer que o próprio direito positivo qualifique os


princípios que ele consagra. Assim, o novo Código de Proces-
iit ( ivil enuncia os "princípios diretores do processo"; a Cons-
tituição consagra em seu Preâmbulo "os princípios fundamen-
tais reconhecidos pelas leis da República". Entretanto, o mais
das vezes, é ao intérprete que compete detectar a respectiva na-
tiiuva dos princípios em questão.
87. - Os critérios de qualificação dos princípios não estão
definidos em parte alguma. É difícil sua determinação. Pode-
><>• dc início admitir que existe entre os diversos princípios ge-
tulN do direito uma hierarquia de valor. Assim, tudo o que toca
ii urdem social prevalece sobre os interesses particulares. Isto
eiplica que, entre a ordem pública e a não-retroatividade da
lei. ti autonomia da vontade ou a propriedade individual..., se-
lam as exigências da ordem pública as predominantes. Assim
lambem, as liberdades fundamentais prevalecem normalmente
«tubro qualquer outra consideração. Dessa forma, a não-retroa-
n\ idade da lei penal não pode, em nome das liberdades indivi-
duais e ile seu valor constitucional, sofrer derrogação. Parece,
Imm outro lado, que, entre os princípios gerais, o postulado se-
Umidn o qual as regras especiais derrogam as regras gerais
peimlle solucionar as interferências. Assim, os princípios limi-
iiidn'1 ,i certas matérias especiais se aplicariam de preferência
MON princípios gerais cujo campo é mais vasto. Em seu campo,
• it. pi inclpios das obrigações de resultado são exceção da regra
.ii turl Incumbi! probatio do art. 1315 do Código Civil; assim
lambem, os princípios da transmissão dos direitos e obrigações
.in. .in essores das partes fazem exceção ao princípio do efeito
l*lnllvo dos contratos. A conjugação dos princípios gerais en-
iii -.1 depende portanto, em parte, de seu respectivo grau de es-
pi. iidiiladc e de generalidade. Mas todo raciocínio puramente
liiimal deve ser excluído aqui. Os métodos que acabam de ser
. lie. são apenas indicativos, e deve ser reservado um lugar
impiMiiuitc às escolhas oportunas.
(Miiervar-sc-á, contudo, que da multiplicação das exce-
.... ani pi ineípios estabelecidos resultam novos princípios ou
124 TEORIA GERAL DO DIREI K >

a modificação dos princípios clássicos, até mesmo seu desapa-


recimento. Assim é que dos abusos do liberalismo nasceu o
dirigismo e que os excessos permitidos pela liberdade geraram
a proteção da vida privada, a proteção do consumidor, a dos di-
reitos das vítimas, o direito ao emprego, o direito ao habitat...
que foram progressivamente erigidos em princípios gerais...
Paralelamente, a autonomia da vontade amorteceu-se em no-
me do desenvolvimento tentacular da ordem pública; o con-
sensualismo foi atenuado por um renascimento do formalis-
mo... Assim também, as exigências da liberdade individual
progridem à custa da indisponibilidade do estado das pessoas à
medida que o legislador consagra o realismo no direito de fa-
mília contra a solidariedade desta. A multiplicação e a evolu-
ção dos princípios gerais do direito incentivam então a investi-
gar-lhes a importância quantitativa, e não mais somente quali-
tativa, no direito positivo.

2. A importância material dos princípios gerais

88. - Qualquer apreciação da importância material dos


princípios gerais comporta uma parte de arbitrariedade. É difí-
cil distinguir os princípios gerais de simples regras de direito,
de proposições puramente técnicas, de diversos instrumentos
materiais do direito: a regra actori incumbit probatio será um
princípio geral ou uma regra técnica? O formalismo poderá
constituir um verdadeiro princípio geral ou será sempre apenas
um instrumento? Mesmo que se conseguisse circunscrever bem
os princípios gerais, como aplicação dos critérios já consigna-
dos 66 , não se poderia elaborar uma lista exaustiva ou definitiva
deles, pois a matéria está em constante evolução. Pode-se, não
obstante, constatar a diversidade deles (A) e tentar classificá-
los (B).

66. Ver supra, nos 74 ss.


i > I ENÔMENO DO DIREITO 125
A / diversidade dos princípios gerais

8'). - Os princípios gerais são muito heterogêneos quanto


ii forma e quanto ao fundo. Alguns assumem a forma de máxi-
mas, cm geral de locuções latinas. Certos brocardos foram ex-
pressamente transcritos nos textos. O art. 2279 do Código Ci-
\ li enuncia assim "que, em questão de móveis, a posse tem va-
li n ile título". Certos princípios estão expressos nos textos; ou-
LI IIS são formalmente consagrados pela jurisprudência; outros,
i nlun, são implícitos mas reconhecidos. Quanto ao fundo, cer-
tos princípios gerais parecem extraídos da moral, da eqüidade
mi do direito natural: o princípio de boa-fé, o brocardo fraus
nmnlu corrumpit são, com evidência, de inspiração moral.
• «litro» princípios gerais, tais como o princípio "supõe-se que
ninguém ignora a lei" ou os princípios que governam a combi-
iiiMo ou a interpretação dos textos ou ainda o direito da prova,
Iflm somente uma finalidade técnica e são destinados à coesão
tlii ordem jurídica ou à aplicação satisfatória do direito. Outros
|IIIIU ipios têm um significado político. É o que se dá com as
liberdades individuais, a liberdade de empresa, a de proprieda-
de cli Assitn, os princípios gerais explicam-se por considera-
ções variáveis. Alguns são princípios tradicionais da filosofia
ile I IHl) liberdades individuais, igualdade dos cidadãos, sepa-
MçAn dos poderes etc. Outros, inerentes à ordem jurídica, fo-
Htin extraídos do direito privado ou do processo civil e estendi-
di, du direito público: não-retroatividade das regras de direito,
h i,|i.»n*abilidade e direito à reparação das vítimas de um dano,
autoridade da coisa julgada, princípio do contraditório. Há,
i iiliin princípios que se reportam às necessidades da vida em
«H letlade ou à "lógica interna das instituições, como o da con-
lltiiildiide tio serviço público, enquanto outros se vinculam a
t eiln éliea, como o respeito pelo interesse geral ou a regra ne-
mn win/M/r..."67
0(1, - Assim, os princípios gerais têm uma importância ca-
pllal em todas as matérias jurídicas. Em direito internacional

t,' V»t J R1VERO, art. cit.. D, 1951, I, p. 22.


126 TEORIA GERAL DO DIREI K >

público, os princípios gerais são consagrados como tais68. O


direito internacional privado recorreu com freqüência a prin-
cípios gerais como o princípio de "reciprocidade". Em direito
constitucional, consagraram-se os princípios e regras com va-
lor constitucional e os princípios fundamentais que, sabemos,
se impõem até ao legislador 69 . A importância dos princípios
gerais em direito administrativo é ainda mais evidente pois é
ao Conselho de Estado que cabe o mérito principal de ter-lhes
elaborado a teoria. Essa alta jurisdição consagrou assim, além
das diversas expressões das liberdades individuais e coletivas,
do princípio de igualdade ou da segurança dos administrados,
os princípios que regem os serviços públicos e a ação adminis-
trativa70. Ela também conservou princípios essenciais em direi-
to penal, anulando, por exemplo, no acórdão Canal, a insti-
tuição em 1962 de uma corte militar de justiça em razão dos
atentados "contra os princípios gerais do direito penal" que
isso comportava 71 . Também proclamou ou consolidou os prin-
cípios diretores do direito processual, trate-se dos direitos dc
defesa ou do princípio contraditório 72 , por exemplo. Mas as ju-
risdições judiciárias, a Corte de Cassação em especial, também
assinalaram a importância dos princípios gerais em matéria
penal e no conjunto do direito privado.
Na área penal, trate-se da criação ou da aplicação do direi-
to criminal, o respeito dos princípios penais, por garantirem os

68. J. BOULOUIS, art. cit.


69. Ver supra, n? 78; ver também A. DE VITA, "I valori costituzionali
come valori giuridici superiori nel sistema francese", in L influenza dei valori
costituzionali sui sistemi giuridici contemporanei, ed. Giuffre, 1985, t. II, pp
1161 ss.
70. B. GENEVOIS, "Les príncipes généraux du Droit (Aspects de droil
administratif)", Rev. Internationale de Droit compare, 1980, 2? vol., pp. 279 ss
ver R. CHAPUS, op. cit., n?s 98 ss.; quanto às liberdades públicas, ver em espe
ciai J. MORANGE, Libertes publiques, P.U.F., col. "Droit fondamental". Paris
1985.
71. C.E., 19 de outubro de 1962, Canal Rec., Cons. d'État, p. 552; A.J.D.A.
1962, p. 612, nota J. DE LAUBADÈRE; JCP, 1963, II, 13068, nota C. DEU
BASCH.
72. C.E., 12 de outubro de 1979, Rass. des nouveaux Avocats de Francc, I)
1979, II, p. 606, nota BÉNABENT.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 127

direitos c as liberdades essenciais do indivíduo, é particular-


mente sensível73. Embora, segundo René Rodière, "a categoria
dos princípios gerais não exista em direito privado"74, o que
provém de um problema de definição, e embora o lugar deles
seju aí menos aparente por causa da densidade da legislação, o
direito civil, o direito comercial, o processo civil... repousam
em princípios essenciais; os textos os expressam às vezes; dou-
trina e jurisprudência os exumam amiúde do amontoado das
disposições legais e regulamentares para reunir em um conjun-
to coerente todas as contribuições legislativas de inspiração
diversa. Os princípios gerais do direito civil se dispersam ine-
\ iliivclmente em outras matérias mais especializadas, em direi-
to do trabalho, por exemplo 75 , onde o Conselho de Estado e a
( orle dc Cassação reconheceram a existência de princípios
Heilis. Estes são, conforme os casos, derivados do direito co-
mum da propriedade, da liberdade de empresa ou do contrato,
nu provém da especificidade do direito do trabalho, de seu
i niAtci coletivo e de seus métodos de negociação, até mesmo
dii ordem pública e das particularidades do recurso à lei e às
luiisdiçÔes no campo social. Poderíamos prosseguir ainda, no-
Imlamonte em direito fiscal ou em direito europeu, a enumera-
ç f t o das Arcas de eleição dos princípios gerais cuja importância
• verificada em toda parte, mas cuja extrema diversidade im-
peilc um inventário completo.

11 /. 7itativa de classificação dos princípios gerais

Ml. - Ioda tentativa de classificação supõe um critério sa-


imliiiorio de distinção. Diferentes bases de classificação po-
di m '.et avançadas. Sugeriremos três delas, respectivamente

11 M l'UI ( II, "Les príncipes généraux du droit (Aspect penal)", Revue


IHhIiiulhniali-1Ir droit compare, 1980, vol. 2, pp. 337 ss.
' I l< KODIERE, "Les príncipes généraux en droit privé français", Rev.
nu* •himiiii/r ,/c droit compare. 1980, vol. 2, pp. 309 ss.
"• II I YON-CAEN, "Du rôle des príncipes généraux du droit civil en
In ihivnil", R.T.D. Civ., 1974. pp. 229 ss.
128 TEORIA GERAL DO DIREI K >

fundamentadas em um critério de autoridade, na inspiração e


na função dos princípios gerais.
A distinção dos princípios e regras com valor constitucio-
nal, dos princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da
República e dos outros princípios gerais tem o incontestável
mérito de se apoiar na diferença das fontes de que procedem e
de corresponder a duas espécies de princípios com um alcance
diferente, impondo-se uns ao próprio legislador, ao passo que
os outros só se impõem ao poder regulamentar e ao juiz 76 . Essa
classificação é escolhida por uma parte da doutrina que distin-
gue mesmo, dentre os princípios gerais simples, aqueles que só
têm um valor supletivo, só se aplicam à míngua de textos con-
trários e os quais as regulamentações podem derrogar 77 daque-
les que se impõem à administração pública mas podem ser der-
rogados pela lei78.
92. - Por referência à inspiração deles, também foi pro-
posto distinguir, em direito administrativo francês, duas gran-
des categorias de princípios, uns vinculados à filosofia política
e os outros limitados a enunciar regras de técnica jurídica 79 . Os
princípios de filosofia política seriam então os que se referem
à tradição liberal (princípios de igualdade e liberdades indivi-
duais e coletivas), à lógica das instituições e da vida social e
aos direitos sociais fundamentais. Os princípios de técnica ju
rídica seriam os que regem a ação administrativa e a atividade
das jurisdições 80 . Esta distinção parece transponível ao con-
junto do direito positivo: os princípios da autonomia da vonta-
de, da indisponibilidade do Estado ou ainda da propriedade
individual etc. seriam princípios de filosofia política, ao passo
que o princípio da derrogação dos textos gerais e o do contra-

76. Ver supra, n?s 80 ss.


77. P. ex.: princípio segundo o qual um organismo colegiado só pode deli
berar se pelo menos a metade de seus membros está presente.
78. G. VEDEL e P. DEVOLVE, op. cit., p. 385; R. CHAPUS, op. cit., n'.'s
114 ss.
79. R. ODENT, Contentieux administratif, 1980, p. 1708.
80. B. GENEVOIS, op. cit., pp. 285 ss.
i > I E N Ô M E N O DO DIREITO 129

illtório pelos textos especiais seriam apenas princípios de téc-


nica jurídica. Essa classificação, embora apresente um incon-
ICNtávcl interesse intelectual, tem o imenso inconveniente de
*ei por demais imprecisa e de não ter na prática conseqüên-
cias reais.
Por conseguinte, pode-se preferir a ela a distinção já ex-
porta ilos princípios diretores e dos princípios corretores81
que. embora tampouco ela seja absoluta e possa parecer em
i ei lus aspectos incerta, tem o interesse de evidenciar o papel dos
pi nu Ipios gerais na organização jurídica e pode completar util-
inente a classificação dos princípios segundo o alcance deles.
Mas, seja qual for o modo de classificação adotado, os
pi 11u Ipios gerais do direito são o reflexo da inspiração perma-
nente e universal do direito que, mesmo que ela se resuma a
«lyumas grandes idéias, não é contestável. Esses fundamentos
iln iliieito instilam, porém, sistemas jurídicos variáveis de acor-
•li' i mil as exigências de seu meio ambiente.

<1 \ tufim, nV 86.


TÍTULO II
O meio ambiente do direito

93. - A despeito da permanência e da universalidade de


suas diversas finalidades e de grande número de seus ingredien-
tes, o fenômeno jurídico se desenvolve e evolui em um contex-
to temporal, geográfico e social de que não podemos dissociá-
lo. Mesmo aqueles que formam uma concepção puramente
voluntarista do direito ou que, rejeitando qualquer determinis-
mo, sublimam o direito como uma metafísica inspirada em
princípios absolutos, intemporais e universais, admitem a in-
fluência do tempo, do espaço e dos fatos sociais sobre o di-
reito. Inversamente, o direito objetivo deve reger esse meio am-
biente, até mesmo tentar modelá-lo.
As interações que se estabelecem assim entre o direito e
seu meio ambiente devem, pois, ser estudadas. Concentrar-nos-
emos sucessivamente nas relações entre o direito e o tempo
(Capítulo 1), entre o direito e o espaço (Capítulo 2) e entre o
direito e os fatos sociais (Capítulo 3).
< iipllulo I
< > direito e o tempo

<M Uma parte da eternidade, uma das quatro dimen-


• i leinpo, entidade representativa da mudança contínua
ti" uniu i 10, tem para o jurista um valor essencial. Observa-
I. IOIUI luilo que o fenômeno jurídico se situa no tempo. Re-
gtH "i ml i regra de direito existiu nas mais rudimentares
- ides e nio pára de se modificar com as sociedades de
mil» e que rege. Inspirado em idéias morais, influen-
l lado i>ni diversos fatores sociológicos, econômicos, técni-
m- políticos etc., o direito é o reflexo da sociedade à qual
• i' h uplii i e sofre uma evolução paralela à dessa sociedade.
Imi.i in.iiii.i jurídica é "uma tentativa de estabilização das
ffldtOi« «u i.iis em perpétuo devir, e toda ordem jurídica é
iMM . 1. il lo no tempo, um esforço de conservação do estado
•gt 1*1 qiii ela estabelece. E no entanto o direito, construção so-
jil i ii iiiii de representações intelectuais, não tem condi-
-I. . il mu ficar a evolução das sociedades. Deve adap-
«t i iiiiliiiuiimentc para conservar sua efetividade em face
ImnuloimaçÔes sociais. Melhor, pode preceder... os mo-
MMU MI.I , históricos, orientá-los e canalizá-los... com o fito
di. ,ii i mii.ii unia ordem nova. Estabelece-se assim, em toda
<ff> imi idii n, uma tensão entre forças de conservação e for-
trt. 'I. mudança, cujo resultado é tal que essa ordem não
Imuliili/iii eternamente as normas que a constituem e
i • o leiiovar-sc integralmente de um dia para o outro:
153
TEORIA GERAL DO DIREI K >

essa transformação permanente é o que se denomina a conti-


nuidade do direito" 1 .
O fenômeno jurídico coincide então muito nitidamente
com a expressão do tempo sugerida por Gaston Berger, isto é,
"um ajuste entre uma exigência transcendental e uma resistên-
cia natural", já não sendo o tempo então "o âmbito em cujo
interior nos julgamos fechados, mas uma das maneiras possí-
veis de nos figurar nossa presença no mundo" 2 .
O direito de hoje se fez com o direito de ontem como o de
amanhã será oriundo do direito de hoje. Não será ele então,
segundo a expressão de Jean-Jacques Rousseau, apenas "a ima-
gem móvel da imóvel eternidade"?
95. - Mas, se considerarmos o tempo em sua duração e na
sucessão de seus períodos ou de seus instantes, o direito se
esforçará igualmente em ordenar o tempo ou, pelo menos, em
apreender suas dimensões fundamentais: o passado, o presente
e o futuro.
O tempo legal estabelecido relativamente aos fusos horá-
rios, a consagração das unidades de medição do tempo, o ca-
lendário civil já são manifestações elementares de como o
direito leva em conta o tempo.
O direito não pode nem ignorar a realidade do tempo, ou
seja, o momento ou a duração de uma situação jurídica, nem se
omitir de reger ou de organizar as relações entre o tempo e os
diversos elementos da vida jurídica. Os efeitos do tempo sobre
os acontecimentos sociais não são uniformes. Segundo Berg-
son, "o erro de Kant foi o de tomar o tempo por um meio ho-
mogêneo", ao passo que as variações do tempo vivido pelas di-
versas sociedades ou pelos indivíduos e as coisas são protei-
formes e podem ser rápidas ou lentas, regulares ou discordan-
tes, antecipadas ou atrasadas 3 ... O tempo, que é o suporte de

1. M. VIRALLY, Lapensée juridique, ed. L.G.D.J., 1960, p. 188.


2. Gaston BERGER, "L'originalité de la phénoménologie", Étudesphilosu-
phiques, 1954, pp. 249 ss., esp. p. 259.
3. P. HÉBRAUD, "Observations sur la notion du temps dans le droit civil",
Études offertes à Kayser, ed. Presses Universitaires d'Aix-Marseille, 1979, t. II,
pp. 1 ss.
154
i > I E N Ô M E N O DO DIREITO

Ioda atividade humana, não lhe é dissociável. Sua ação pode ser
timplcsmente gravada pela regra de direito que então se atém a
Ht iii ns conseqüências disso. Mas o direito também pode orga-
nizar o futuro, prolongar a situação presente no futuro, recon-
duzir o passado ao presente ou, ao contrário, atualizá-lo...
')(>. - Assim, não se pode compreender o direito atual sem
o cotejar com o direito anterior, nem prever o direito futuro
wm extrapolação do direito atual. Tampouco se saberia tratar
ili situações jurídicas sem lhes apreender as fontes e lhes pre-
vei .IN conseqüências futuras, devendo a regra de direito reger
aO mesmo tempo o passado, o presente e o futuro delas.
As relações entre o tempo e o direito concernem, pois, a
um só tempo, ao estudo do direito no tempo (Seção I) e ao
luviii do tempo no direito (Seção II).

M(, AOI
11 direito no tempo

•>7, - O direito se transforma continuamente no ritmo da


hiNlótni cuja evolução ele segue, refreia ou incentiva, de ma-
ih H.i que traduz as condições de seu tempo e traz os estigmas
• Iet i poea cm que se formou. Certas doutrinas, de modo muito
ptiilicular a escola histórica alemã e seu líder Savigny 4 , admiti-
iiiiii que "a matéria do direito é dada pelo passado inteiro da
M H, iio" c que o direito, resultante do tempo, evolui com ele.
^iiuximamo-nos aqui do "discurso preliminar" do Código Ci-
> il riu que Portalis proclamava: "os códigos dos povos se fazem
• mu o tempo; para falar a verdade, não os fazemos". Lem-
Im uiio nos também, dentro de outra perspectiva, de Montes-
i|iui ii ao ligar as leis "ao gênero de vida dos povos... ao grau de
llheuladc que a constituição pode tolerar, à religião de seus
hitlMliiiitCH, às suas inclinações, às suas riquezas, ao seu núme-
iii in sou comércio, aos seus costumes, às suas maneiras".

I 11 ('li DE SAVIGNY (1779-1860). De la vocation de notre temps pour


(h I, uid.illiw ei la science du droit, Heidelberg, 1814.
155
TEORIA GERAL DO DIREI K >

Constatamos igualmente que o direito se modifica com o tem-


po e que a ordem jurídica de um dado país está em perpétua
mutação. A constante mutabilidade do direito, sua relatividade
no tempo, è um de seus traços característicos.
Mas a evolução do direito que implica a modificação ou o
desaparecimento de certas normas e a intervenção de novas
regras levanta o problema do campo de aplicação da lei no
tempo.
Portanto, temos de examinar sucessivamente a evolução
do direito no tempo (§ 1) e a aplicação da lei no tempo (§ 2).

1. A evolução do direito no tempo

98. - Mostrou-se muito bem "por que o direito é necessa-


riamente variável conforme os tempos e os lugares" 5 .
O direito muda segundo a variação das matérias que de-
vem ser regulamentadas e a das exigências do "bem público"
já evocadas por Santo Tomás de Aquino e que constituem a
norma fundamental, mas em perpétua transformação, de todo
sistema jurídico. A modificação do direito também depende
das variações da opinião pública a respeito das regras que ele
dita que, por serem efetivas e praticáveis, devem ser compreen-
didas e aceitas e devem adaptar-se à consciência popular. As-
sim, o direito torna-se mais, ou menos, rural ou urbano, co-
mercial ou individual, mais, ou menos, liberal ou autoritário,
mais, ou menos, geral ou especializado... conforme a evolução
das sociedades que rege.
Nenhum ramo do direito pode escapar a essas mutações,
mesmo as instituições mais fundamentais do direito público ou
do direito privado; mas os fundamentos são mais duradouros
do que suas manifestações superficiais 6 , e as revoluções jurídi-
cas são raras, pois o equilíbrio das múltiplas forças conserva-

5. J. DABIN, Théorie générale du droit, ed. Dalloz, 1969, n?s 271 ss.
6. Ihidem; J. L. BERGEL, "La relativité du droit?", Rev. rech.jur., 1986-3.
pp. 13 s.
156
i > I ENÔMENO DO DIREITO

doras e criadoras do direito impede, mesmo em momentos de


crise, as subversões duradouras e favorece simples oscilações.
A relatividade do direito no tempo mostra assim que o
tempo é ao mesmo tempo um fator de evolução e de estabilida-
de (A) e enfatiza a utilidade de uma metodologia jurídica com-
purativa e histórica (B).

A O tempo, fator de evolução e de continuidade do direito

4
)9. - O costume, regra de direito oriunda de um uso geral
i prolongado, é provavelmente a melhor manifestação do pa-
pel criador do direito que se possa reconhecer ao tempo. Para
passar do "precedente", que só tem um caráter individual, ao
> ustume, que deve ser geral, é preciso que se realize todo um
ptocesso dc formação da norma. Esta repousa no número dos
piecodentes e no tempo que consagram o "consenso" do grupo
mu ml Disseram que o costume é "direito constituído pelo
hrtbito", que é a "memória da nação" 7 .
() costume é um fenômeno de criação contínua do direito:
nu .ciclo de um consenso materializado por atos de aplicação, o
i ii lume só se mantém enquanto subsiste". Se o costume deixa
di m i aplicado, desaparece 8 . O tempo é também uma dimensão
IU<i c.sária do aparecimento e da evolução do costume 9 .
() direito legislado estará igualmente sob o domínio do
(piiipo?
100. - Encontramos aqui o problema de saber se o direito
• dado ou construído" como, no início do século, Gény se in-
iliiiiou1". A questão continua a ser debatida: trata-se de saber se
«'« niiteúdo do direito é simplesmente recebido, independente-

I I C ARBONNIER, Droit civil, 1.I, n?s 3 e 5.


N M VIRALLY, op. cit., pp. 158 ss.
9 I ('ARBONNIER, ibidem.
III I < i l N Y , Science et technique en droit prive positif, t. I, n™ 33 e 34; t.
II i III I IV. Ver também a abordagem crítica de M. MIAILLE, Une introduc-
iímm , i in,/i/i- au droit, ed. F. Maspéro, 1976, pp. 119 ss.
157
TEORIA GERAL DO DIREI K >

mente de qualquer elaboração humana, da realidade concreta,


da história, dos fatos sociais etc., ou se é elaborado e produzi-
do pela ação do homem.
Para Duguit, convém determinar em que sentido e com
que intuito intervirá a regra jurídica, de acordo com o que ele
denomina o "dado legislativo" 11 . Esse dado é formado por to-
dos os elementos da situação que deve ser regulamentada,
oriundos a um só tempo da ordem moral, da ordem social, da
ordem econômica... Para Gény, "trata-se... de reconhecer, no
vasto universo que nos envolve, o dado total do direito positi-
vo, isento... de qualquer artificio e impondo-se por si só ao
homem, por algumas potências que ele possa apreender, quer
graças a uma investigação propriamente científica, quer por
meio de forças mais obscuras, tais como as quiserem designar,
subconsciente, crença, intuição, sentimento..." 12 . Assim, "o da-
do" serve de "matéria-prima" para o jurista e cumpre reconhe-
cer quatro aspectos principais na base de qualquer sistema jurí-
dico: "dados reais ou estritamente naturais (as condições de
fato físicas ou morais da humanidade), dados históricos, dados
racionais e dados ideais, devendo todos contribuir juntos para
sugerir as direções capitais do direito positivo" 13 . O dado his-
tórico é oriundo dos fatos da vida humana ou social que lhe
determinaram uma certa regulamentação. "Desse conjunto de
forças concorrentes, completado... pelo trabalho misterioso
que a própria evolução do mundo acompanha, resulta um acer-
vo de preceitos, que servem de contexto para a conduta da
humanidade" que pesa sobre ela e influi em sua evolução. Gé-
ny usa assim o exemplo da união dos sexos, mormente do
casamento, cujo estado atual é, segundo ele, "o resultado evi-
dente de uma 'duração' que, trabalhando sobre a natureza, acres-
centou-lhe uma potência nova" 14 . Mas reconhece que o dado
histórico não basta para gerar o direito e que "o passado, que

11. L. DUGUIT, Droit constitutionnel, 2a ed., Paris, 1923, t. II.


12. F. GÉNY, op. cit., t. II, n° 161.
13. F. GÉNY, op. cit., t. II, n° 166.
14. F. GÉNY, op. cit., t. II, n? 168.
158
i > I E N Ô M E N O DO DIREITO

As vezes esclarece maravilhosamente o presente, não poderia


estreitar o futuro de modo que detesse qualquer progresso" 15 .
Observa-se com muita justeza que "o direito, se quer
exercer sua missão de mediação, necessita de tempo, tanto no
sentido da duração necessária para a reflexão quanto no senti-
do de pôr em perspectiva e tomar recuo, os únicos meios de
levur em conta uma história social de longo prazo. Quando o
(empo jurídico se reduz ao curto prazo ou se deixa prender na
aiapuca do instantâneo, torna-se, ao contrário, aleatório e con-
tingente... A amnésia acerca do passado acrescenta-se então a
ntlopia acerca do futuro; reina sozinha, soberana, a atualidade.
I't ivada de recordação e de projeto, desprovida de remorso e de
esperança, a sociedade vive o dia-a-dia'" 6 .
101. - Na realidade, há muitas maneiras de compreender
que o direito é um produto da história. Pode-se pensar que o
direito é completamente determinado pela evolução histórica
on tio contrário, limitar-se a constatar que a ordem jurídica
• oinporta, dentre outras, uma dimensão histórica na medida
i in que está sujeita ao cunho do passado.
Não parece possível aceitar o princípio, exposto pela es-
• ">l,i histórica alemã e por Savigny, segundo o qual o direito é
• •lua do tempo, produto de uma ação contínua, silenciosa e
< "I" tiv.» A parte do "construído" no direito positivo é conside-
hoel O direito não poderia ser o puro produto de um determi-
nismo social, mas edifica-se sempre consoante uma margem
ntaioi ou menor de liberdade de escolha: a vontade humana
ili st mpenha um papel predominante para fixar concretamente
n i oiiteúdo das regras de direito que é, conforme os casos, o
t|iu convém às autoridades públicas ou a obra coletiva do gru-
po social.

h 1 OÉNY, op. cit., t. II, n? 169.


I li I OS r, "Mémoire et pardon, promesse et remise en question. La décli-
MIMIII " lhlt|lie iles temps juridiques", in Le temps et le droit, Actes du 4C Congrès
,Ih i \ kiit idtlun Internationale de Méthodologie juridique, Montreal, 1995, ed. Y.
nu,. |«MM, pp. 30-1.
159
TEORIA GERAL DO DIREI K >

Mas, se o direito é então uma ordem normativa que proce-


de da vontade pública tanto em suas fontes históricas, que por
sua vez foram em grande parte construídas, quanto em sua
evolução atual, a contribuição do dado histórico em sua forma-
ção não poderia ser desprezada. O direito atual se alimenta na
fonte do passado. O direito francês da época napoleônica se
abeberou nos costumes do Antigo Regime e na substância do
direito romano; edificou-se sobre a tradição cristã e rural da
França e se inspirou no movimento social e de idéias que o
século XVII1 conhecera. Ainda que como reação, o direito é
sempre em grande parte oriundo do passado, embora submeti-
do à ação voluntária de um povo ou de seus órgãos.
Não podemos limitar-nos, como Kelsen 17 , a uma "teoria
pura do direito", depurada de qualquer ideologia política e de
qualquer consideração de sociologia, de moral, de direito natu-
ral... O direito, encadeamento de regras hierarquizadas na or-
ganização jurídica, seria, segundo ele, uma disciplina autôno-
ma. Mas o próprio Kelsen reconhecia que, ao lado dessa "ciên-
cia do direito", o estudo da "política jurídica" seria útil para
determinar "como o direito deve ser ou ser feito". Não se pode
então desinteressar-se das causas, das origens do direito atual
para lhe apreciar a qualidade, explicar-lhe o significado, con-
trolar-lhe a aplicação, prever-lhe a evolução. Ora, na base da
construção de uma ordem jurídica, existe um "dado", uma rea-
lidade jurídica anterior, que impõe estudar o direito à luz de
seus desenvolvimentos históricos.
Mas a história, suporte do desenvolvimento do direito, é
ao mesmo tempo a testemunha de sua evolução e o penhor de
sua continuidade.
102. - A ordem jurídica passa geralmente por uma cons-
tante evolução sem revolução. Embora, segundo Bergson, "a
vida social pareça-nos ser um sistema de hábitos" 18 e o direito.

17. H. KELSEN, Théorie pure de droit, trad. fr. de Ch. Eisenmann, 2f ed„
Dalloz, 1962.
18. H. BERGSON, Les deux sources de la morale el de !a religion, 16? ed.,
1934, p. 2.
160
i > I ENÔMENO DO DIREITO

mais que qualquer outra ciência, necessite de estabilidade para


garantir às relações humanas a segurança necessária, ninguém
cogita em negar que o direito evolui e que esta evolução se pre-
cipita na época contemporânea com a aceleração da história.
I in lace das transformações sociais, a efetividade do direito e
mui indispensável adaptação às necessidades da sociedade su-
põem que ele próprio esteja sujeito a uma transformação per-
manente. A evolução científica, a mudança dos costumes, o
progresso social, as coerções variáveis da economia etc. de-
voin ser levadas em conta pelo direito, que as registra median-
te a arbitragem dos poderes públicos entre "as forças conser-
vadoras que tentam manter o direito existente e as forças re-
li amadoras que querem modificá-lo ou transformá-lo" 19 .
Mas, se o direito é assim uma ciência dinâmica, em per-
pétuo movimento, sua evolução se insere, o mais das vezes, no
icio da ordem jurídica estabelecida. Falar de evolução implica
i|iui o essencial permaneça. Modificar o alcance de uma regra
lurldica para estendê-la ou limitá-la consoante considerações
in>\ 111 eqüivale a conservá-la adaptando-a e não a destruí-la. O
i Npliíto de reforma não exclui o espírito de conservação e,
i miiio salientou Ripert, "reparar o velho edifício significa im-
petlli que desabe" 20 .
103. - Uma certa estabilidade do direito é inerente à sua
hmçiU). <) direito é acima de tudo "um instrumento de seguran-
ça e, por isso, de liberdade". Apenas se puder prever as conse-
i|(lí»ueitts que se vincularão a seus atos é que o homem poderá
<li i idir cientemente empreender uma atividade, poderá organi-
- •»• um trabalho, fundar uma família, esperará conservar o que
Hdqiilic Ioda previsão é fundamentada nas regras existentes;
tini octturunça supõe uma certa fixidez das instituições jurídi-
' i ' nus quais ela se fundamentou.

I'» <i KII'i:RT, Les forces créatrices du droit, ed. L.G.D.J., 1955, reim-
(HCMH Kin I W 4 .
ill (I HIIMiRT, op. cit., n?2.
'I (I KIIMiRT, op. cit., n? 1; R. SAVATIER, Les métamorphoses économi-
meto/r* du droit civil d'aujourd'hui, ed. Dalloz, 3? ed., 1964, n? 11.
140 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Mas, se o direito é então uma ordem normativa que proce-


de da vontade pública tanto em suas fontes históricas, que por
sua vez foram em grande parte construídas, quanto em sua
evolução atual, a contribuição do dado histórico em sua forma-
ção não poderia ser desprezada. O direito atual se alimenta na
fonte do passado. O direito francês da época napoleônica se
abeberou nos costumes do Antigo Regime e na substância do
direito romano; edificou-se sobre a tradição cristã e rural da
França e se inspirou no movimento social e de idéias que o
século XVIII conhecera. Ainda que como reação, o direito é
sempre em grande parte oriundo do passado, embora submeti-
do à ação voluntária de um povo ou de seus órgãos.
Não podemos limitar-nos, como Kelsen 17 , a uma "teoria
pura do direito", depurada de qualquer ideologia política e de
qualquer consideração de sociologia, de moral, de direito natu-
ral... O direito, encadeamento de regras hierarquizadas na or-
ganização jurídica, seria, segundo ele, uma disciplina autôno-
ma. Mas o próprio Kelsen reconhecia que, ao lado dessa "ciên-
cia do direito", o estudo da "política jurídica" seria útil para
determinar "como o direito deve ser ou ser feito". Não se pode
então desinteressar-se das causas, das origens do direito atual
para lhe apreciar a qualidade, explicar-lhe o significado, con-
trolar-lhe a aplicação, prever-lhe a evolução. Ora, na base da
construção de uma ordem jurídica, existe um "dado", uma rea-
lidade jurídica anterior, que impõe estudar o direito à luz de
seus desenvolvimentos históricos.
Mas a história, suporte do desenvolvimento do direito, é
ao mesmo tempo a testemunha de sua evolução e o penhor de
sua continuidade.
102. - A ordem jurídica passa geralmente por uma cons-
tante evolução sem revolução. Embora, segundo Bergson, "a
vida social pareça-nos ser um sistema de hábitos" 18 e o direito.

17. H. KELSEN, Théorie pure de droit, trad. fr. de Ch. Eisenmann, 2a ed.
Dalloz, 1962.
18. H. BERGSON, Les deux sources de Ia morale et de la religion, 16í ed.
1934, p. 2.
i > I E N Ô M E N O DO DIREITO 141

mais que qualquer outra ciência, necessite de estabilidade para


yuruntir às relações humanas a segurança necessária, ninguém
• licita em negar que o direito evolui e que esta evolução se pre-
< ipitu na época contemporânea com a aceleração da história.
I iii fuce das transformações sociais, a efetividade do direito e
mm indispensável adaptação às necessidades da sociedade su-
piVni que ele próprio esteja sujeito a uma transformação per-
manente. A evolução científica, a mudança dos costumes, o
Iuugresso social, as coerções variáveis da economia etc. de-
vi III «cr levadas em conta pelo direito, que as registra median-
ia ,i arbitragem dos poderes públicos entre "as forças conser-
s-UiIihvs que tentam manter o direito existente e as forças re-
i<» mmlonis que querem modificá-lo ou transformá-lo" 19 .
Mas, se o direito é assim uma ciência dinâmica, em per-
petuo movimento, sua evolução se insere, o mais das vezes, no
» lu «Ia ordem jurídica estabelecida. Falar de evolução implica
i|iii n essencial permaneça. Modificar o alcance de uma regra
lundu .1 para estendê-la ou limitá-la consoante considerações
imv ttü eqüivale a conservá-la adaptando-a e não a destruí-la. O
v*plillo de reforma não exclui o espírito de conservação e,
• nino mlientou Ripert, "reparar o velho edifício significa im-
I- >lü que desabe" 20 .
103. - IJma certa estabilidade do direito é inerente à sua
hmslio, O direito é acima de tudo "um instrumento de seguran-
«,•» I |»II isso, de liberdade". Apenas se puder prever as conse-
<|iiriu i.c. que se vincularão a seus atos é que o homem poderá
IMM lilii cientemente empreender uma atividade, poderá organi-
• h um liahalho, fundar uma família, esperará conservar o que
|ili|iiii> Ioda previsão é fundamentada nas regras existentes;
•ti.i (Miiiinça supõe uma certa fixidez das instituições jurídi-
| i t " iiii". quais ela se fundamentou.

I'< (I RUM RT, Les forces créatrices du droil, ed. L.G.D.J., 1955. reim-
l'»'M
|n II KIIMiRT.op. c/7., nf 2.
í I •) ltll'l K I, op. cil., n? 1; R. SAVAT1ER, Les métamorphoses économi-
•I hil,'\ iln droil civild'aujourd'hui, ed. Dalloz, 3? ed., 1964, n? 11.
142 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Por conseguinte, os homens estão presos à manutenção


das regras que garantem as situações estabelecidas. E nesse
sentido que se pode dizer que todo jurista é um "conservador",
pois é cioso da segurança e da estabilidade das relações entre
os homens, mesmo quando critica a ordem estabelecida. A re-
gra de direito, ainda que só pelo tempo necessário à sua forma-
dura e sua formulação, comporta um tempo de reflexão que
modera o arrebatamento dos fatos. Constata-se facilmente que
leis elaboradas com exagerada precipitação não são assimilá-
veis pelo próprio corpo social e que é o próprio corpo social
que opõe a uma legislação prematura demais uma força de
inércia. Mostrou-se, assim, quanto as profundezas da vida so-
cial encerram raízes secretas e continuidade inconsciente rela-
tivamente aos epifenômenos 22 .
Ademais, toda ordem jurídica constitui um conjunto hie-
rarquizado e solidário de normas diversas, mas que se relacio-
nam umas com as outras, interferem entre si ou se excluem, de
modo que toda regra incompatível com o sistema se encontra
neutralizada ou eliminada por outras. A coerência, a interde-
pendência dos elementos de todo sistema jurídico o impedem
de digerir os corpos estranhos. Os fenômenos de rejeição que
se operam então impõem que todo elemento novo do direito se
reporte a elementos preexistentes: a personalidade moral tem
afinidades com a personalidade física; as técnicas novas do
direito social ou do direito comercial se abeberaram na fonte
da velha noção de contrato; o valor econômico dos monopó-
lios de exploração foi atrelado ao conceito ancestral de pro-
priedade. Em matéria jurídica, como na vida ou na natureza,
"nada se perde; nada se cria; tudo se transforma".
104. - Como escreveu G. Vedei23, "nunca há revolução
absoluta. Toda revolução é ao mesmo tempo uma ruptura com
a tradição e uma utilização dessa tradição". Independentemen-
te da simples revolução política que se atém a mudar a perso-
nalidade dos governantes, a verdadeira revolução jurídica é a

22. R. SAVATIER, op. cit., n° 14.


23. G. VEDEL, Droit constitutionnel, ed. 1949, p. 51.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 143

que substitui a ordem jurídica existente por uma ordem jurídi-


ca nova. Esta de modo geral extrai sua seiva da tradição: se a
Revolução Francesa de 178924 aboliu os direitos senhoriais
que entravavam a livre propriedade, consagrou o absolutismo
do direito de propriedade abeberando-se na fonte do direito
romano. Se a Revolução Soviética de 1917 quis suprimir a pro-
priedade privada, foi para proclamar a propriedade coletiva co-
nhecida pelas sociedades primitivas.
A experiência mostra que as revoluções profundas demais
se chocam com tamanha resistência do corpo social que não
podem durar ou se atenuam inevitavelmente.
Após os excessos da Revolução Francesa de 1789, os códi-
gos napoleônicos operaram uma harmoniosa composição entre
d direito revolucionário e o antigo direito. Depois que, na Tur-
quia, Mustafá Kemal, nos anos 1920, substituiu brutalmente o
Alcorão pelo Código Civil suíço, nem por isso o direito turco se
mclamorfoseou efetivamente 25 . Existem, por certo, crises do
direito em cujo decorrer os valores sociais são contestados em
i a / | o da guerra externa, por causa da guerra civil, das revolu-
t,iVs políticas ou dos golpes de Estado. O abalo da vida social,
mui lais circunstâncias, condena à impotência todos os valores
habituais, paralisa o progresso social, entrava o funcionamento
ila ludtiça, ameaça a segurança jurídica. Em suma, tais períodos
mau am uma regressão do direito. Mas essa obra destruidora,
apoiada em textos e em poderes de exceção, quase não pode
M
| M petunr-se sem ela própria atribuir-se uma nova legitimidade
ou pelo menos, uma aparência de legitimidade, consistente em
i> Ninurar o direito. Ora, constata-se que, se as revoluções "deca-
pjiiiiu de certo modo a ordem jurídica", em geral deixam "sub-
ii du. ao menos por uns tempos, as camadas inferiores" 26 .
Por conseguinte, a obra estritamente perturbadora das re-
\ oluçAes muito amiúde é apenas efêmera, e o estado de direito,

'I "L« Révolution et l'ordre juridique privé. Rationalité ou scandale?",


i, i,, ( iilliique d'Orléans des 11-13 sepl. 1986, P.U.F., 1988.
K SAVATIER, op. cit., n? 12.
'i, M VIRALLY, op. cit., p. 192.
144 TEORIA GERAL DO DIREI K >

fundamentado nas exigências do contexto social e da tradição


dos povos, acaba em geral ressurgindo. Assim, os períodos de
crises e as revoluções jurídicas constituem acidentes da histó-
ria: a trajetória do direito então já não é uniforme; a linha que-
brada que a figura nem por isso elimina a continuidade do di-
reito, e as mudanças mais profundas às vezes manifestam ape-
nas os sobressaltos de uma realidade social que o direito esta-
belecido ignorara. Claro, não se pode omitir que certos regi-
mes duradouros se instalam com base na força e indiferentes
ao direito. Não obstante, enfeitam-se dos mais nobres princí-
pios e dão-se ares de liberdade e de democracia. Não se pode
conceber que possam resistir indefinidamente às ebulições
provocadas por sua opressão...
Observa-se, porém, que existem também "revoluções pela
lei" que podem ser mais profundas do que a revolução "consu-
mada pela violência". Evoca-se então às vezes a "revolução"
tranqüila do "direito intervencionista" que, em nossos dias,
sob a influência do "Estado providência", marcaria a passagem
de um direito individualista para um direito coletivista 27 .
Mas as revoluções também têm suas causas, sua história,
suas conseqüências que balizam a história do direito, de modo
que a compreensão e o conhecimento do direito pressupõem
uma metodologia histórica comparativa.

B. A utilidade de uma metodologia histórica comparativa

105. - Já no início do século XIX, na Alemanha, Savigny


sustentara que o trabalho científico do jurista devia fundamen-
tar-se em considerações históricas. O jurista tinha, segundo
ele, de lançar luzes nas circunstâncias históricas que determi
naram o aparecimento de uma regra de direito.
Em nossa época, em que já ninguém sustenta que o direi
to positivo possa ser um produto puro da história, há que atri

27. C. A. MORAND, "Le droit de l'État providence", Revue de droil .vh/v.m-.


1988, pp. 527 ss.
01 E N Ó M E N O DO DIREITO 145

Imii ,10 método histórico do jurista um objeto bem definido e


itrto i'onl\indir a metodologia jurídica e a metodologia históri-
• l»nt ,i um nirista, importa pouco saber "como os compilado-
i. do Digesto mudaram quatro palavras, mesmo essenciais,
• mi um texto de Papiano" 28 . Também importa-lhe pouco pes-
• 11'' ii inl tato preciso relacionado com a história geral ou as
t iniilii.ui". dc acesso de Napoleão ao poder. O que lhe interes-
«»i > in i ompensação, é a obra legislativa da época napoleônica
h i in in .i que deixa no direito contemporâneo. Para ojurista, a
i" i|hi>,i histórica está a serviço do conhecimento jurídico,
MI.i . li mio se preocupa muito com a contribuição que o direi-
iH mitigo forneceu ao conhecimento histórico.
i .lhe ao jurista, segundo os casos, conceber, apreciar, in-
HHpit i.ii ou aplicar regras de direito. Para isso, necessita retra-
yi<, lln » ,i origem, compará-las com as regras que as precede-
Hmi m i niiHlruir o pensamento do legislador ou do juiz da épo-
• n i uiiipic lhe então reconstituir a imagem que os autores do
iltiMiii iintciior faziam da situação social que tinham de reger.
t » i niudo histórico é "um meio de abordagem e, portanto,
ily mil li|n ni ia" do fenômeno jurídico 29 , pois a história marca
m» t Mu iilux do direito com todos os dados sociais. "Ela ensina
nu leu lutador os limites de seu poder, ao juiz e ao doutor os
MMtgim 'li uma lógica implacável." 30 Ora, sabe-se que o direi-
iii i um iixpccto da vida social da qual é o contexto e o produto
it mu tempo.
tuii Inteligência das regras, sentimento da contingên-
i ln ilni ur.ii nuis, eis o que o historiador pode dar ao jurista." 31
^I»íiii ,i hi-itória deve constituir um dos termos do método ju-
iMini i iiiiiparalivo. A história é para ojurista "um instrumen-
to il» . iinipuiaçAo e a iniciação a uma gênese" 32 .

. jll N 'iAVA 1II K. /.C.V métumorphoses économiques et sociales du droit


« • y nu/ luil. oil. Dalloz, 1959,1.1, n° 315.
I UAI IH Ml I. "F.tudesjuridiques et culture historique". Arch. dephi-
HptffTAi ./i.>it,l IV, 1959,p. 15.
III I UAI DI MI I', op. cit., p. 17.
II I UAI'Dl Ml I. ihidem.
• it- II HAVAÍII M.op cit., nf 319.
146 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Tanto como instrumento de compreensão do direito quan-


to como método de pesquisa, de crítica, de melhoria do sistema
atual, quanto como método de articulação das diversas ordens
jurídicas entre si, a comparação entre direitos anteriores e o
direito atual tem as mesmas virtudes que a dos diversos siste-
mas jurídicos contemporâneos.
Direito comparado no tempo, a história do direito contri-
bui para o conhecimento e o enriquecimento do direito nacio-
nal e dos direitos estrangeiros.
Mas na história do direito figura também a trajetória da
evolução do direito, as rejeições e as assimilações que ela ope-
rou, as resistências e os estímulos que a marcaram. Alimenta
assim a pesquisa do campo de aplicação das instituições, a da
interpretação das regras do direito. Permite antecipar a evolu-
ção previsível do direito... A pesquisa jurídica descobre assim
na história as raízes do direito atual e o sentido que convém
dar-lhe, já que se sabe que, deixados de lado alguns pontos de
ruptura, a evolução do direito é geralmente lenta e se caracteri-
za por sua continuidade, ou seja, pela sobrevivência da regra
antiga na regra nova.
Foi com essa dupla função de instrumento de comparação
e de iniciação à gênese que o direito romano, o antigo direito
ou o direito revolucionário foram ensinados nas faculdades de
direito. É dentro dessa dupla perspectiva que o método históri-
co deve alimentar a pesquisa jurídica. Mas cumpre então que,
empregando as técnicas tanto do direito comparado quanto da
sociologia, privilegiem-se no tempo e na matéria estudada os
traços mais significativos.
107. - Isso implica uma definição dos "fatos históricos"
considerados, à maneira de Henri Lévy-Bruhl33. Apenas os acon-
tecimentos passados "reconhecidos pela consciência social"
merecem ser qualificados de fatos históricos, o que exclui os
fatos puramente individuais ou inconscientes. Contam apenas
as ações que encontraram eco num meio social. O fato históri-

33. H. LÉVY-BRUHL, Aspecls sociologiques du droit, ed. Libraire Mareei


Rivière et Cie, Paris, 1955, pp. 175 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 147

co é acima de tudo, para o jurista bem como para o sociólogo,


um fato social. Importa pouco, então, que ele proceda de sim-
ples aparências, de documentos falsos, de imposturas etc., se
produziram conseqüências no meio social: as políticas e as re-
ligiões, independentemente de seus méritos ou de seus funda-
mentos, são, assim, fatos históricos.
Essa observação genérica tem uma importância conside-
rável sobre a cronologia, ou seja, sobre a localização dos fenô-
menos históricos e jurídicos no tempo. Segundo H. Lévy-Bruhl,
por exemplo, já no início do século XV, existia em Gênova um
banco, o banco de São Jorge, que apresentava os traços carac-
terísticos da sociedade por ações; mas foi somente no início do
século XVII que apareceu e prosperou na França, na Holanda,
mi Inglaterra, certo número de sociedades por ações, com o
nome de "companhias". Enquanto o historiador dataria prova-
velmente o aparecimento das sociedades por ações no século
\V. o autor mostra que o sociólogo o datará do século XVII,
pois não se atém a um fato isolado sem inegável influência
sobre os outros, mas ao surgimento de um fenômeno mais
geral.
Assim também, o jurista, embora não seja insensível ao
pieccdente específico, ao plano anedótico, só se concentrará
iculmente na emergência social do fenômeno jurídico. O nas-
i imcnto de uma instituição procede quer de sua geração es-
pontânea por um grupo social, quer de um ato voluntário da
uiloridade pública. Mas sua consagração marca uma mudança
no direito positivo e levanta o problema da entrada em vigor da
lei nova.

! \ aplicação da lei no tempo

108. - O problema da aplicação da lei no tempo é essen-


cial, porém clássico. Está exposto nos tratados e manuais de
introdução ao estudo do direito aos quais o leitor se reportará.
l'oiliinto, aqui não faremos um estudo técnico completo; limi-
iiii nos-emos a uma apresentação sumária de algumas linhas
148 TEORIA GERAL DO DIREI K >

diretrizes das duas grandes questões resolvidas a esse respeito


pelo direito positivo: a duração de aplicação da lei (A) e a
questão da não-retroatividade da lei (B).

A. A duração de aplicação da lei

109. - O princípio geral parece ser uma tautologia: aplica-


se a lei de sua entrada em vigor à sua ab-rogação. "Sua conti-
nuidade é um dos postulados do direito dogmático": perma-
nente e geral, a regra de direito é "um sol que nunca se põe" 34 .
A entrada em vigor da lei marca o momento a partir do
qual ela adquire força obrigatória para todos os que a ela são
sujeitos. Portanto, supõe um procedimento particular enuncia-
do no art. 1? do Código Civil e num decreto-lei de 5 de no-
vembro de 1870. Torna-se executória graças a um mando au-
têntico do poder estatal: a promulgação pela qual o Presidente
da República atesta a existência e a regularidade da lei, ordena
a sua publicação e dirige uma ordem de execução a todos os
que a ela estão submetidos 35 . A data de promulgação determina
a data da lei. A lei em seguida é publicada, mediante inserção
no diário oficial, a fim de ser posta à disposição do público
Um breve prazo de informação precede o momento em que a
lei fica obrigatória, supondo-se que todos tenham tomado co-
nhecimento dela, o que evidentemente é apenas uma ficção.
Na prática, o legislador prevê cada vez mais, de maneira
expressa, as condições da entrada em vigor da lei, seja subor-
dinando-a à intervenção de outros textos necessários à sua apli-
cação, seja recuando-lhe a data, seja ainda por medidas transi-
tórias, quer dizer, um regime intermediário e temporário dife-
rente tanto do regime antigo quanto do novo.
110. - A ab-rogação da lei, ou seja, a supressão, para o fu-
turo, de uma disposição legislativa ou regulamentar, põe fim à

34. J. CARBONNIER. Plexible droit, Nocturne, 6' ed.. L.G.D.J., p. 51


35. J. CARBONNIER, Droit civil - Introduction - Les personnes, n° 23.
i > I E N Ô M E N O DO DIREITO 149

«ua força obrigatória. A ab-rogação expressa por um texto no-


vo de um texto anterior hierarquicamente equivalente não cria
dificuldade. Em compensação, a ab-rogação tácita que resulta
tlc uma incompatibilidade da lei antiga com uma lei nova é
tcnipre mais incerta e só intervém se fica patente a impossibi-
lidade de conciliar os textos contrários.
A questão de saber se a lei pode ser ab-rogada por desuso
ou mesmo por substituição de seu dispositivo por um costume
i unitário é ainda mais controvertida 36 . A doutrina dominante
nfto parece admiti-lo, conquanto, depois de Santo Tomás de
Nquino, numerosos autores o tenham sustentado. Se a lei é o
irllexo de uma necessidade social, pode-se pensar que ela
i i".ne quando cessem suas causas. Mas "a perpetuidade está na
vontade da lei", e o princípio parece ser o de que ela não pode
i fkNiir sem ab-rogação certa. Observou-se que tanto o desuso
t|tmnto o costume contrário supõem a inobservância da lei e
t|iit' admitir que esta possa achar-se ab-rogada pela desobe-
dit iu ia prolongada e generalizada das pessoas que lhe são sub-
mh lulas seria um incentivo à desobediência 37 . Mas fez-se
illiialmcntc, com toda razão, uma distinção entre os textos su-
|il> tivos que podem ser legitimamente derrogados, de modo
i|in ,i derrogação generalizada de suas disposições pode signi-
lii iii ,i ab-rogação deles, e os textos imperativos cuja inaplica-
yln «upòc a um só tempo a desobediência dos sujeitos de direi-
»«• a lei deles e "a inércia premeditada e prolongada" das auto-
tiilailcincumbidas de aplicá-la 38 . Para estes últimos, a ab-
ktio por desuso seria portanto teoricamente inconcebível,
HIM na prática, a impossibilidade de os aplicar ou a paralisia
••»-1*"> leva quase ao mesmo resultado.
Mas, durante o tempo em que a lei está em vigor, a quais
|MUHI,IVS deverá aplicar-se?

u< 1 / I I MBINSKJ, "Problèmes méthodologiques de la désuétude", in Le


M'"i < ii h ilrnll, Actes du 4C Congrès de 1'Association Internationale de Métho-
I I . . . . liirldiquc, np. cii., pp. 45 s.
W J DABIN, op. cit., n? 39.
IN I DAlilN, op. cit., n? 40.
150 TEORIA GERAL DO DIREI K >

B. A não-retroatividade da lei

111. - Trata-se, mais precisamente, de saber se, por ocasião


de sua entrada em vigor, a lei nova deve aplicar-se a atos, fatos
ou situações jurídicas nascidas sob o domínio da lei antiga,
mas cujos efeitos se prolongam no tempo.
Três soluções podem ser consideradas: pode-se admitir
que a lei nova se aplique completamente a esses atos, fatos e
situações, o que eqüivale a conferir à lei nova um efeito retroa-
tivo. Pode-se, ao invés, recusar qualquer aplicação da lei nova
às situações em curso e aos atos ou fatos que lhe são anterio-
res, o que corresponde a uma não-retroatividade absoluta da
lei nova. Pode-se, enfim, optar por uma solução intermediária,
consistente em submeter à lei antiga os efeitos já adquiridos
dos atos, fatos ou situações envolvidos e à lei nova seus efeitos
vindouros; é isso que pregava P. Roubier 39 em sua teoria deno-
minada do "efeito imediato da lei nova".
A questão da retroatividade ou da não-retroatividade da
lei toca a um debate de fundo. A não-retroatividade da lei é um
fator de ordem e de segurança jurídica, pois protege os direitos
subjetivos contra as intervenções do legislador, impedindo pôr
em discussão os direitos adquiridos e os atos anteriores à lei
nova40; é bom, de outro lado, conduzir com prudência transi-
ções, e a discussão do passado, às vezes materialmente impos-
sível, é em geral socialmente perigosa. Mas, contrariamente às
doutrinas individualistas favoráveis à não-retroatividade da lei.

39. P. ROUBIER, Le droit transitoire (conflits de lois dans le temps), 2.' eil
1960. Comparar: J. HERON, "Etude structurale de l'application de la loi dans li
temps", Rev. Tr. Dr. Civ., 1985, pp. 277 s.; J. HÉRON, Príncipes du droit transito/
re, ed. Dalloz, 1996; P. A. COTE, "La position temporelle des faits juridiques ei
1'application de la loi dans le temps", Rev.jur. thémis, vol. 22-2, 1988, pp. 207 ss
(Fac. de Direito Univ. Montreal). Ver também P. A. COTE, "Le moment de 1'cntriV
en vigueur de la loi et le moment de sa prise d'effet: faut-il distinguer?". in Le tcni/n
et le droit, Actes du 4C Congrès de 1'Assoeiation Internationale de Métfaodologic
Juridique, op. cit., pp. 153 ss.
40. Ver, p. ex., J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, Traité de droit civil. In
troduction générale", n? 339.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 151

ns doutrinas sociais salientam que se supõe que a lei nova é


mais satisfatória do que a antiga e que há interesse em reco-
nhecer-lhe a mais larga aplicação possível: elas se pronunciam
t in favor do efeito imediato da lei nova, até mesmo, em certos
< usos, por sua retroatividade. Admitir-se-á especialmente que,
i|imndo está em jogo a ordem pública, ela ordena que se apli-
que a lei nova imediatamente. Constata-se então que, quanto
mais liberal é um sistema jurídico, mais consagra com força o
principio de não-retroatividade da lei.
112. - Em direito francês, o princípio de não-retroativida-
ili- da lei é enunciado pelo art. 2 do Código Civil, segundo o
t|Unl "a lei só dispõe para o futuro, ela não tem efeito retroati-
vn" Mas ele não tem valor constitucional, salvo no que tange
i liii penal. Com efeito, o Preâmbulo da Constituição de 1958
mi' refere à Declaração dos Direitos do Homem de 1789 que só
i milícia a não-retroatividade da lei penal. Em matéria não-
i> 1'irssiva, o legislador pode, portanto, derrogar o art. 2 do Có-
illyo Civil que é apenas uma lei ordinária e declarar uma lei
nMio.itíva. Poderia até ab-rogar o princípio de não-retroativida-
ili tlii lei civil. Em compensação, no estado atual, nenhum
tVMto hierarquicamente inferior à lei ordinária pode subtrair-se
•tM piiitcipio.
Se, exceto em matéria penal, o princípio de não-retroativi-
ilmlt da lei não se impõe ao legislador, impõe-se, em compen-
í»i" " >. ao juiz e ao poder regulamentar: segundo a Corte de
t Hnniçflo, "o legislador pode... derrogar a regra ordinária de
iitln H iioatividade, tendo em vista um interesse superior de or-
ilfin pública, mas, se não manifestou nitidamente sua vontade
Mmtt «ontido na lei nova, esta deve ser aplicada pelo juiz, em
i nnl'11 inidade com o art. 2 do Código Civil" 41 .
Mim o direito positivo é influenciado pela doutrina do
iMcliti Imediato da lei nova segundo a qual não é contrário ao
•Ml ! do < ódigo Civil aplicar a lei nova aos efeitos futuros das
IMWNSIVM om curso por ocasião de sua entrada em vigor, pois o
§> • ' |irn(bc somente modificar as conseqüências que essas si-
«|á produziram.

II I Civ 7 de junho de 1901,D. 1902 1 105.


152 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Esquematizando muito, pode-se dizer que, na prática, to-


das as vezes que os interesses superiores da pessoas jurídicas
não são atingidos, a lei nova é considerada, à míngua de dispo-
sições especiais, de aplicação imediata. Outrossim, quando a
ordem pública está em jogo ou, em matéria penal, quando a lei
nova é mais favorável ao réu 42 , a lei será declarada retroativa.
Mas, por exceção à regra do efeito imediato das leis novas, os
contratos firmados anteriormente à intervenção delas lhes es-
capam e, mesmo para suas conseqüências futuras, ficam inte-
gralmente submetidos à lei sob cujo domínio foram firmados,
salvo quando a lei nova é de ordem pública.
Por conseguinte, a correlação entre o tempo e a vida das
situações jurídicas necessita das soluções aos conflitos de leis
no tempo: o tempo deve apreender a vida do direito. Mas o di-
reito também deve apreender o tempo. Cumpre então procurar
como e em que áreas o direito positivo regula a influência do
tempo nas situações jurídicas.

SEÇÃO II
O tempo no direito

113. - Raros foram os que se interessaram pelos métodos de


apreensão do tempo no direito positivo. O problema se coloca
em todas as áreas do direito43, mas o direito civil apresenta pro-
vavelmente suas manifestações mais profundas e mais diversas

42. "Retroatividade in mitius" das leis que suprimem uma infração ou a pu


nem de modo menos severo.
43. E. GIRAUD, "La notion de temps dans les relations et le droit interna
tional public", Mélanges Perassi, 1.1. p. 461; "Le temps dans la procédure", Col In
ques des I. E. J. Clermont-Ferrand 1983, Annales Fac. de Dr. et de Sc. Po. de ('lei
mont. 1983, fase. 20, em especial S. GUINCHARD, Le temps dans Ia procéilitn
civil. pp. 21 ss.; M. DAGOT, "Le temps et la publicité foncière, in Mélanges o/lcm
à P. Hébraud, Toulouse, 1981, pp. 219 ss.; Actesdu 3C Colloque de 1'Assoc. l i ilt
Philo. du Dr., Le droit et le futur. Paris, P.U.F., 1984, e, notadamente, A SI
RIAUX, Le futur contractuel, pp. 77 s.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 153

Devemos a Pierre Hébraud uma magistral apresentação 44 à qual


cumpre referir-se continuamente aqui. Depois de descrever e
analisar as áreas nas quais intervém a noção de tempo em direi-
to civil (§ 1), o autor investigou nelas o valor e a política do
tempo (§ 2). Observaremos o mesmo procedimento.

I. As áreas em que o direito leva em consideração o tempo

114. - Como toda atividade humana ou social, a vida jurídi-


i a se desenvolve no tempo e não pode ignorar esse suporte cujo
inexorável curso não se pode evitar mas cujos efeitos se pode ten-
lill dominar. O direito positivo deve, pois, constatar o domínio do
tempo sobre o homem e ao mesmo tempo permitir um "domínio
«» homem sobre o tempo": preocupa-se assim, de um lado, com
ii maneira pela qual se é sujeito ao tempo (A) e, de outro, com a
maneira pela qual ele pode ser administrado (B).

A Sujeição ao tempo

115. - A noção de tempo pode ser abordada relativamente


.i i lonoinctria ou à cronologia. Em sua cronometria, ele repre-
»• iii.i unia "duração" (b); em sua cronologia, corresponde a
um.! Miecssão de pontos assinaláveis por referências à anterio-
iiil.iili e à posteridade respectivas deles, de modo que permite
apn entler "os instantes" (a).

it» i> instante


• •*».-<> instante é um ponto de referência essencial da vi-
«(•* imitiu n, pois marca o momento do nascimento ou da extin-
ydti .li. pessoas jurídicas e dos direitos, o do início ou do fim
ttn* MiuaçtVs jurídicas, o da intervenção dos fatos jurídicos.

II 1' III IIRAIII), "Observations sur la notion du temps dans le droit civil,
Pr > ..(í. t/•'» ii /' Kayser, t. II, pp. 1 ss.
154 TEORIA GERAL DO DIREITO

Ele materializa o ponto inicial de um prazo e determina, por-


tanto, o momento de sua expiração.
Assim, o direito civil se preocupa com a data de nasci-
mento da criança, com o momento de sua concepção, com o
momento do falecimento do indivíduo, a fim de conhecer sua
filiação, determinar seus direitos sucessórios ou conhecer os
que têm direito à sua sucessão... Tenta paliar com presunções
as incertezas que cercam esses eventos. E o que se dá, por
exemplo, ao estabelecer o momento da concepção graças à
presunção de duração de gravidez e ao critério do interesse da
criança e ao do falecimento graças a instituições como a au-
sência ou o desaparecimento e à teoria dos comorientes. O
direito civil, o direito comercial e o direito público se interes-
sam pelo momento do aparecimento da personalidade moral
O direito civil e o direito penal se concentram na data do fato
ilícito danoso. O direito privado e o direito público procuram a
data de formação dos contratos. A determinação do momento
desses acontecimentos repercute em seus efeitos.
Mas o instante em que intervém os acontecimentos na vida
jurídica assume uma importância primordial desde que a suces-
são ou a simultaneidade deles acarrete conseqüências de direi-
to. Assim, em caso de falecimento de várias pessoas de uma
mesma família durante uma mesma catástrofe, a determinação
de suas respectivas sucessões supõe estabelecer uma ordem,
com a exatidão de instantes, entre os falecimentos ocorridos: a
teoria dos comorientes se dedica a isso. Em caso de pluralidade
de atos jurídicos relativos a um mesmo objeto, seus efeitos são
ligados à anterioridade de uns em relação aos outros ou da pu-
blicação deles: em matéria de publicidade imobiliária, a oponi
bilidade dos atos é determinada pela data da publicação deles,
prevalecendo o primeiro publicado sobre o publicado depois,
mesmo que este tenha sido estabelecido antes.
Aliás, a lei impõe às vezes uma ordem obrigatória entre
fatos; o contrato de casamento deve ser anterior ao casamento
e o casamento civil ao casamento religioso. A homologação de
um ato tem de ser posterior ao ato sujeito à homologação.
Ocorre mesmo que a lei opere certas intervenções quando
a inversão da ordem das coisas não macula a proteção necessá
i > I E N Ô M E N O DO DIREITO 155

i in das pessoas ou quando isso favorece interesses respeitáveis:


I"h isso, enquanto a filiação legítima pressupõe que o casa-
mento dos pais seja anterior à concepção da criança, o direito
positivo declara legítima a criança nascida durante o casamen-
i" mas concebida antes. Permite também certas regularizações
ili «tos jurídicos cujas formalidades prévias foram omitidas
HMei de sua conclusão.

hl I duração
117. - A apreciação da duração de uma ação ou de uma
iiim.iio c a determinação legal de prazos são o mais das vezes
«h illnndas a "controlar o ritmo da vida jurídica", incentivando
UM ii nçAo e protegendo os outros contra uma ameaça. A dura-
Vltii pixle igualmente constituir um dos elementos essenciais de
iiiiHi operação jurídica 45 . Para garantir a segurança jurídica,
. iimpic que a ordem estabelecida não possa ser contestada in-
w i uMilcmcntc e que as simações jurídicas ou de fato adquiram
.in . iiliii dc certo tempo uma estabilidade suficiente. Passados
M» j a u / m necessários para permitir aos interessados reivindicar
n ii . ilucitos ou contestar as simações estabelecidas, as coisas
Mu i.i.ini ficar cristalizadas. Assim, a lei estabelece prazos cuja
|HoltM'i vAneia implica a prescrição dos direitos, ou a perda
ilult M e de ações na justiça, ou prazos em cuja expiração certas
tHtlNçflc* deixam de poder ser contestadas e certos direitos são
çniixidi lidos adquiridos 46 . Assim também, a fim de evitar o
|iiiilini|.,imcnto nefasto de simações precárias, a lei impõe, para
•i • ..ii iiiiiiiiçilo de certas formalidades ou para o desenrolar dos
!*»••« ( .'.d ., prazos destinados a ritmar-lhes o curso.

f. I' MflMRAUD, op. cit., n?s 10 e 13.


4ft Vi i nolída mente, sobre os diversos tipos de prescrições: M. BAU-
tif -.1 In ihiture juridique de la prescription extinetive en matière civile, ed.
M | i " i m i i ( , IWHfi, prefácio de P. Raynaud; M. BRUSCHI, La prescription en
WH' •<> >/""!Hibllllc civile, ed. Economica, 1997, prefácio de A. Sériaux; M.
H h i ; 1 ' III I .in d'iinc lypologie des prescriptions en droit privé", in Le tempes
H h N. i'» du 4' Congrès de 1'Association Internationale de Méthodologie
B H ^ t w ../. i II, pp .'Kl ss.
156 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Esses prazos, utilizados nas mais diversas instituições,


são calculados em dias, em meses, em anos ou mesmo de hora
em hora, conforme os casos. Se a determinação deles depende,
em grande parte, da arbitrariedade legislativa, os prazos refle-
tem, não obstante, "as condições sociais e técnicas nas quais
eles funcionam" 47 . Fixados com muita largueza no início do
século XIX, a duração deles pode parecer hoje excessiva em
face da aceleração da vida moderna, da rapidez das comunica-
ções e dos progressos da técnica. A tendência é encurtá-los
assim, os prazos de processos são abreviados, o campo da
prescrição trintenária de direito comum restrito, a duração das
"curtas prescrições" limitado. Mas a natureza, o fundamento, o
modo de computação dos prazos são igualmente modulados
consoante exigências diferentes.
Paralelamente, com um intuito de proteção, o direito con-
temporâneo cria novos prazos, prazos de reflexão ou de arre-
pendimento, ou, mais raramente, estende prazos preexistentes
para facilitar ações que o legislador outrora quisera limitar,
como, por exemplo, a negação de paternidade.
A duração também pode constituir o suporte necessário
de uma operação jurídica: é esse principalmente o caso dos
contratos sucessivos que implicam para sua execução o escoa-
mento de certo tempo, seja porque suas prestações foram esca-
lonadas, seja porque existe entre as partes uma relação contí
nua de obrigação, como nas locações e arrendamentos ou no
contrato de trabalho. Tais contratos são de duração determina-
da ou indeterminada. Em direito penal, instituições como cer-
tas penas ou o sursis, e em direito público o mandato eletivo
supõem igualmente a fixação de uma duração.
118. - Mas nem sempre o tempo é, em direito, uma noção
homogênea. A vida jurídica tem suas arritmias. Constatou-se
que "a vida social está ligada ao dia", que "o direito é diurno e
que a noite para ele é apenas um vazio" em cujo curso as pe
nhoras, as buscas etc. não podem ser operadas 48 . Mostrou-se

47. P. HÉBRAUD, op. cit., n?s 10 e 13.


48. J. CARBONNIER, "Noctume", Flexible droit, ed. L.G.D.J., 1983, p. 5 1
i > I ENÔMENO DO DIREITO 157

lambém que há momentos em que o tempo corre mais depres-


..I c que seu escoamento é mais perigoso: há então urgência e
• hIu urgência justifica que se infrinja uma regra jurídica, que
»e sacrifique um direito a outro ou que se consinta um proces-
ii» expeditivo. A necessidade de prover a uma necessidade
imediata justifica medidas provisórias à espera de uma decisão
ilH initiva. Inversamente, pode acontecer que o tempo se imo-
bilize c que o direito confirme sem limite uma situação estabe-
li i ida. Esse fenômeno ocorre por ocasião de certos direitos
ifiif. dos quais a perpetuidade é uma característica: assim, o
ilncito de propriedade é perpétuo e não se perde pelo não-uso.
Mas a perpetuidade, negação da vida e da mudança, é proi-
Imlll com mais freqüência do que consagrada; o direito positivo
|»IH|IH' organizar situações perpétuas. Essa proibição se prende
ynlAo às condições de administração do tempo pelo direito.

II (I hmpo administrado

IIV. - O direito deve fornecer ao homem os meios de


ni^iiii/ai a existência, a adaptação e a vida das relações jurídi-
i Ki nu tempo. Deve permitir-lhe, assim, dominar os efeitos do
iiiii|ni sobre as situações jurídicas prevendo-as e remedian-
tlti i Muitos são os campos em que, na vida jurídica, domesti-
M> m u passado mediante a retroatividade, atualiza-se o futuro
IMPiliiinlc a antecipação, prolonga-se o presente mediante cláu-
HIIm d' prorrogação ou de revisão... O direito econômico, o
ilin nu biincério, o direito do crédito, o direito dos seguros etc.
•An * * Mr.imites manifestações disso. O tempo por vezes é, como
Hp Mitilltpropriedade49, um dos objetos do direito concedido. Em
dtiHiii civil. I lébraud mostrou a importância da previsão no direi-
N «(nitratos e no da responsabilidade.
1'iiivavelmcnte é no contrato que o tempo pode ser mais
Hihhili 'iimiientc administrado. Hauriou definia o contrato como

Cl Mi num' (Ic propriedade coletiva em que cada proprietário usufrui seu


IP P>i- I. i. Humildo período do ano. (N. da T.)
158 TEORIA GERAL DO DIREI K >

"o empreendimento mais ousado... para estabelecer a domina-


ção da vontade humana sobre os fatos, integrando-os de ante-
mão num ato de previsão" 50 . A causa do contrato, necessária
para a sua formação, é precisamente estabelecer uma situação
nova geralmente destinada a perdurar. A execução dos contra-
tos pode ser disciplinada pelas cláusulas de revisão de preço
ou por leis promulgando suas majorações. As sanções de sua
eventual inexecução podem ser adrede preparadas por cláusu-
las penais ou resolutórias, por prescrições, pela lei etc. A reno-
vação do contrato no futuro pode ser estipulada pelas partes ou
decidida pela lei. Quando nem o legislador nem as partes pre-
viram as conseqüências, sobre a manutenção ou sobre a modi-
ficação do contrato, do transtorno das condições econômicas
que lhe presidiram a formação, levanta-se a questão de sabei
se o juiz tem o direito de o reequilibrar. Alguns direitos estran
geiros reconhecem ao juiz o direito de remediar "a imprevi
são" 51 . Em direito francês, o direito administrativo admite a
teoria da imprevisão, enquanto o direito privado a rejeita cm
princípio, o que é uma pena.
Mas, se o direito positivo permite assim disciplinar o tem-
po nas situações jurídicas, não autoriza negar-lhe o curso com
a conclusão de compromissos perpétuos, pois isso seria pernn
tir às pessoas jurídicas alienar para sempre sua liberdade: as
locações perpétuas são proibidas; o contrato de trabalho ou de
sociedade só pode ser acertado por tempo limitado; os contra
tos de duração indeterminada podem ser rescindidos unilate
ralmente pelas partes...
Em outros casos, a lei limita mais estritamente a duração
possível dos compromissos, para proteger liberdades particu
lares, liberdade do comércio ou do trabalho (cláusulas de ex
clusividade ou de não-concorrência) ou liberdade de dispoi
(cláusulas de inalienabilidade), por exemplo.

50. HAURIOU, Príncipes de droit public, 1? ed., p. 206, citado por III
BRAUD, op. cit., n° 20; A. SÉRIAUX, op. cit.
51. D. M. PHILIPPE, Changement de circonstances et bouleversemcnt
Téconomie contractuelle, ed. Bruylant, Bruxelas, 1986.
i <\ll NO 1X1 DIREITO 159

120, - Dentro de todas essas perspectivas, o direito positi-


ii iiiiIi/ii um número limitado de técnicas simples.
Mediante a antecipação, ele antecede os fatos futuros, pro-
ii mihIh o futuro no presente: as liberalidades antecipam a devo-
IuvAh .in cssória do disponente; os móveis por antecipação são
iiiiini i. t|iie o direito trata como móveis como previsão de sua
«< pmiMo futura do imóvel ao qual são incorporados.
Mi diante a retroatividade, reportam-se ao passado a exis-
tem I,I i iis conseqüências de uma situação nova: a anulação ou
4 ihmiIih.,10 dc um ato, por seu efeito retroativo, anula os efei-
TO*» I | I H i s-tc ato já pudera gerar. O efeito declarativo da parti-
iti.i at^iiilica que se supõe que cada comparte era proprietário
iltP ti H quinhão desde a origem da indivisão.
V I NO a que ponto a antecipação e a retroatividade tomam
tMiipii ,titdo da ficção por razões de comodidade jurídica. Mas
RI A h m I v p I evitar a ficção impondo à formação das situações
|liiiilii iin um itinerário progressivo.
\ /• K inação progressiva dos direitos, das pessoas e das si-
fcci, mi põe que eles se constituem por graus sucessivos até
|hh pi i luivrto e que só ao termo desse processo é que se criam
ItmlitH nu Nos casos em que essa gênese não chega a seu ter-


i • i,ip«s intermediárias são apagadas e os atos consuma-
•tlniiidus de caducidade. Os direitos eventuais podem as-
ti miliiit de uma situação jurídica em formação. O termo ou
|yiiiiilu.iiii '.in instrumentos que permitem fazer depender de
i$lt l.iin futuro a perfeição de uma situação embrionária. Mas,
«Mtíii „nliiilii ou administrado, o tempo que o direito incorpo-
i| Vtidiidciiiimente a si mesmo vê-se atribuir valores diferen-
te v pi m li piimitir estratégias jurídicas diferentes.

I VüIhm «* mtratégias jurídicas do t e m p o

i 1 1 Os escopos normativos da utilização do tempo pelo


tt.t |in idu o são muito diversos e podem caracterizar-se de
• nii maneiras.
I tu punlo de vista ético, a regulação jurídica do tempo te-
f|A É" • '«mln lidos essenciais, o perdão e a promessa. O per-
160 TEORIA GERAL DO DIREI K >

dão, no sentido lato, expressaria a capacidade da sociedade "de


saldar o passado", de superá-lo "quebrando o infindável ciclo
da vingança e do ressentimento". A promessa traduziria a ca
pacidade da sociedade "de creditar o futuro" e "de entrar nele
mediante antecipações normativas que daí em diante lhe bali-
zarão o desenrolar". Seria assim que a sociedade ficaria dona
de seu futuro garantindo-o contra o imprevisível 52 . Hébraud,
por sua vez, distinguiu sucessivamente os valores atribuídos ao
tempo e as estratégias que ele pode permitir.
Psicologicamente, o tempo é, conforme os casos, causa de
apaziguamento ou de perturbação. E fator de apaziguamento
em direito penal, quando intervém a anistia ou a reabilitação
no processo, quando a lei prevê um sursis ou uma fase de con
ciliação, em questão de divórcio, por exemplo... Gera a segu
rança com os prazos de reflexão ou de arrependimento impôs
tos pelo direito do consumidor. É pacificador quando põe fim
à possibilidade de recurso ou de contestação. Mas o tempo
também é fonte de perturbação quando entrava a ação humana
com prazos longos demais ou com as lentidões da justiça ou da
administração pública.
Tecnicamente, o tempo é fator de criação, de conservação
ou de destruição. Consolida situações de fato quando sua esta
bilidade confere ao concubinato uma certa força jurídica, quan
do transforma a simples posse de bens imobiliários em pro
priedade, quando dá valor jurídico ao costume... Então ele cria
o direito.
De modo mais geral, a expiração do tempo acarreta a ex
tinção dos direitos; a prescrição extintiva das ações na justiça c
um exemplo manifesto disso.
Mas o tempo também é utilizado pela lei ou pelas pessoas
jurídicas para prolongar situações em curso e para conservar as
prerrogativas estabelecidas.
122. - Por conseguinte, o direito pode conceber o tempo c
utilizá-lo essencialmente como um freio ou um acelerador da
evolução social e da vida jurídica. Hébraud lhe vinculou altei

52. F. O ST, op. cit., p. 18


i > I E N Ô M E N O DO DIREITO 161

Mtivumente dois tipos de políticas possíveis: "o estabilismo e


o iiiobilismo" 53 . O tempo permite, seja como for, ritmar a evo-
LU., \O das situações jurídicas conciliando, conforme as necessi-
dades sociais, morais e práticas, a estabilidade das situações e
um mutação: a duração mínima que a lei impõe às locações
Imobiliárias possibilita, assim, conjugar a estabilidade do ha-
hiiiii ou da empresa com o direito dos proprietários de assegu-
nii n mobilidade de seu patrimônio.
No plano mais geral, o tempo é concomitantemente senti-
iln i iimo um fator de mudança imposto pela natureza e como
um i utrave para a evolução social sobrecarregada com o peso
lia liadlçrto. Ora, o legislador pode tanto utilizar o tempo para
a consagração jurídica dos fatos quanto para favo-
h ' ei lhes o dinamismo. Disseram muitas vezes que a codifi-
imobiliza o direito. Mas o direito poder estar atrasado ou
rtiliiini.ido em comparação a seu tempo.
lodo sistema jurídico utiliza alternativamente a estratégia
dliiiinui ,i ou estática; faz parte do temperamento de cada siste-
in.t luiidico utilizar diferentemente, conforme suas necessida-
de» i mias aspirações, os diversos equilíbrios que então podem
(niiiMccer-se.
I nmi diversidade dos sistemas jurídicos implica também a
H»lrtii\ ulade do direito no espaço.

IV' <11, li " 32 ss.


162 TEORIA GERAL DO DIREITO

ILUSTRAÇÃO

A CORRELAÇÃO ENTRE O TEMPO E O DIREITO

A idade da maioridade

A maioridade é a idade fixada pela lei para ficar apto para


exercer seus direitos civis e políticos.

• Evolução do direito no tempo


Em Roma, a idade da maioridade era fixada em vinte e
cinco anos. Foi essa idade a escolhida igualmente pelo direito
do Antigo Regime. A Revolução (lei de 20 de setembro de
1792) e depois o Código de Napoleão, em 1804, abaixaram a
idade da maioridade para vinte e um anos. A lei de 14 de dezem-
bro de 1964 manteve esta idade mas atribuiu largos efeitos à
emancipação. A lei de 5 de julho de 1974 fixou em dezoito anos
a idade da maioridade.
A história mostra a permanência da necessidade de prote-
ção dos menores e da consagração de uma idade mínima para
adquirir a capacidade jurídica plena. Constata-se uma evi lu-
ção constante porém lenta no sentido de abaixar a idade da
maioridade. A lei de 1974 foi justificada pela idéia de que os
jovens adquiriram maior maturidade com o prolongamento da
escolaridade e a informação possibilitada pelos meios atuais
de comunicação e pelo fato de que o direito positivo já reco-
nhecera direitos e obrigações estendidos às pessoas de meios
de vinte e um anos. Ademais, numerosas leis estrangeiras já
haviam adiantado a idade da maioridade.

• Aplicação da lei no tempo


A lei de 5 de julho de 1974 não contém disposição especial
sobre a data de sua entrada em vigor. Foi publicada no Journal
Officiel de 7 de julho: portanto, tornou-se aplicável em l\iris
em 9 de julho e, noutros lugares, um dia corrido após a chegada
do Journal Officiel ao centro administrativo distrital.
Capítulo 2
O direito e o espaço

123. - O fenômeno jurídico se desenvolve no espaço, nu-


ma determinada superfície da Terra e mesmo, na época atual,
na extensão do ar e no meio extraterrestre. Mas ele necessita
«obre tudo ser localizado no espaço num determinado lugar.
Mas, se ele traz à baila elementos sediados em lugares diferen-
les. deve levar em conta a distância que os separa. Ora, o
mundo é dividido em Estados soberanos e independentes, de
modo que as relações jurídicas podem desenrolar-se no inte-
i ior de um mesmo Estado ou se atar de um país ao outro. Como
i ada Estado dispõe de uma ordem jurídica que lhe é própria,
que ò aplicada em seu território e difere daquela dos outros
países, a localização das situações jurídicas tem o efeito de
«ubmetê-las ao direito aplicável no local onde se desenvolvem.
No plano geral, na escala "macrojurídica", a disparidade
dos sistemas jurídicos impõe situar o direito no espaço (Seção
! i e resolver os problemas ligados à confrontação dos diferen-
ii • sistemas jurídicos. Mas, no plano "microjurídico", quando
nos concentramos em situações jurídicas específicas, a locali-
zação delas, a proximidade ou o afastamento de seus elemen-
lo* constitutivos ou os deslocamentos que elas comportam
i'i iam conseqüências que o direito positivo deve domesticar.
i iida sistema de direito deve, por conseguinte, reger os proble-
iii,r, ligados ao espaço nas relações jurídicas; temos de abordar
«uns manifestações, ainda que o lugar do espaço no direito
(Si ç;1o 11) não pareça muito ter sido estudado até então.
166 TEORIA GERAL DO DIREI K >

SEÇÃO I
O direito no espaço

124. - A multiplicidade e a diversidade das ordens jurídi-


cas são uma evidência vinculada à heterogeneidade das socie-
dades humanas que o direito tem por função ordenar. Atendo-
se ao que os sociólogos denominam as "sociedades primárias",
de caráter político, que são os estados que agrupam em si mes-
mos numerosas coletividades administrativas, há pelo menos o
mesmo número de ordens jurídicas que de Estados soberanos.
Uma ordem jurídica completa é um conjunto de regras que re-
ge a vida em sociedade que dispõe de suas fontes do direito
originais, das quais ele extrai sua própria validade, e de seus
aparelhos de controle e de execução forçada, de modo que ele
não é dependente de nenhum outro para a criação nem para a
aplicação das normas que o compõem 1 .
Pode-se, fundamentalmente, indagar-se se a multiplicida-
de das ordens jurídicas corresponde a um pluralismo verda-
deiro, com cada ordem tirando de si mesma sua própria vali-
dade e desenvolvendo-se de maneira autônoma, ou se a diver-
sidade aparente dos sistemas de direito não deriva de uma or-
dem jurídica global da qual eles não passam de manifestações
particulares.
Mas a autonomia e a diversidade concreta dos direitos na-
cionais cria um incontestável movimento de dissociação do di-
reito no espaço, com cada sistema eliminando os outros no to-
cante às relações jurídicas situadas em seu foro de competência.
Ora, os direitos positivos, embora consagrem soluções diferen-
tes, podem constituir universos fechados ou mundos abertos e
dar provas, com respeito aos direitos estrangeiros, quer de uma
impermeabilidade completa, quer de uma grande abertura, har-
monizando suas respectivas legislações, firmando tratados, to-
lerando em seu território a aplicação de leis estrangeiras ou de
decisões judiciais emanantes de outros países. A interdependén-

1. M. VIRALLY, Lapensée juridique, op. cit., p. 200.


i > I ENÔMENO DO DIREITO 167

cia internacional atual incita a tal movimento de coordenação.


Na relatividade fundamental do direito ( § 1 ) pode enxertar-se
uma busca voltada para a universalidade (§ 2).

1. A relatividade do direito

125. - A natureza estatal e nacionalista das ordens jurídi-


cas foi fortalecida pelo grande movimento de codificações na-
cionais que a Europa conheceu no século XIX e exportou para
outros continentes. Sob a dupla influência do direito romano e
do direito canônico, a ciência jurídica fora até então de inspira-
ção universal, pelo menos na escala do mundo mediterrâneo 2 .
Graças às conquistas militares de Roma e depois ao seu
renascimento no século XI, o direito romano havia outrora
marcado com seu cunho toda a Europa ocidental e nivelado os
diversos costumes na França, na Bélgica, na Holanda, na Itália,
nu Alemanha, na Espanha... Por outro lado, com a civilização
cristã, o direito canônico regeu em toda a Europa importantes
matérias jurídicas e, particularmente, o direito de família. A
expansão do direito romano e do direito canônico foi ainda fa-
vorecida na época pela utilização nos diversos países de uma
linguagem em comum, o latim, de modo que o direito tinha en-
tfto uma vocação inequívoca para o universalismo.
Assim também, o exemplo das codificações napoleônicas
na França foi exportado para outros lugares da Europa e da
América do Sul e transferido com a colonização, notadamente
paia a África. O direito inglês, transposto para a América do
Norte, influenciou igualmente os direitos do imenso império
i olonial britânico.
Portanto, apenas na época recente é que vimos os sistemas
jurídicos se fecharem em si mesmos, ainda que suas respecti-
\.ií tradições e conteúdos sempre tenham impresso entre eles

2. R. RODIÈR.E, Introduclion au droil compare, ed. Précis Dalloz, 1979,


Af I,
168 TEORIA GERAL DO DIREI K >

diferenças profundas que inspirações em comum não podiam


realmente desfazer.
Mas o direito comparado, ao pôr em evidência a profunda
diversidade das organizações jurídicas atuais, permite cotejá-
las, destacar suas convergências e, com o exemplo extraído dos
direitos estrangeiros, melhorar as leis nacionais. A territoriali-
dade dos direitos nacionais (A) implica, para poder compreen-
der o sistema jurídico em seu todo, estudos de direito compa-
rado (B).

A. A territorialidade do direito

126. - Cumpre citar aqui o célebre "pensamento" de Pas-


cal: "Esquisita justiça que um rio demarca; verdade de um lado
dos Pireneus, erro do outro." Mas o direito é necessariamente
variável no tempo e no espaço por causa da mudança corres-
pondente das circunstâncias.
A diversidade dos direitos provém de múltiplas razões ju-
rídicas e extrajurídicas. São de início fatores naturais e geográ-
ficos que criam condições e necessidades diferentes conforme
a situação insular, marítima ou continental de cada país, seu
relevo, sua vegetação, sua hidrografia, seu clima: as regras de
direito são em parte ditadas pela natureza; o direito de proprie-
dade e o regime jurídico das águas não poderiam ser idênticos
no âmago da África e no âmago da Europa. A influência das
tradições populares, da religião, dos dados lingüísticos, das
reações da opinião pública, mais, ou menos, receptiva ou hos-
til à regulamentação, é ademais indubitável: as sociedades pri-
mitivas e as sociedades desenvolvidas não têm nem a mesma
organização nem as mesmas leis. Os recursos, as necessidades
e as estruturas econômicas são igualmente determinantes: não
se regem da mesma maneira uma sociedade rural e uma socie-
dade urbana e industrial. Não se deve desprezar a influência da
história dos paises, modelados pelas dominações estrangeiras
e pela implantação dos sistemas jurídicos correspondentes e
pela inspiração ideológica de suas revoluções.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 169

Os dados políticos orientam o direito. O direito alemão ou


0 direito americano são, em boa parte, fruto da história e da
organização política deles. Os direitos socialistas, notadamen-
te o da URSS, foram modelados à imagem da doutrina marxis-
ta leninista.
127. - Mas os fatores jurídicos de determinação são, tam-
bém eles, essenciais. Expressam-se no Estado, pessoa moral
titular da soberania de um país. Ora, o Estado é no plano socio-
lógico "a espécie particular de sociedade política resultante da
1'ixução num determinado território de uma coletividade huma-
na relativamente homogênea, regida por um poder instituciona-
lizado que comporta o monopólio da coerção organizada" 3 .
Uma importante escola do pensamento jurídico que rejei-
tava, diante da diversidade dos direitos positivos, qualquer idéia
imutável e universal do justo, identificou o direito à lei e, por-
tanto, à vontade do Estado: foi o positivismo jurídico ou esta-
tal, oriundo da teoria do poder absoluto do príncipe sustentada
por diversas razões por Bossuet, Maquiavel e Hobbes 4 .
A identificação do direito apenas à vontade do Estado,
independentemente de todas as profundezas de suas raízes, é
dificilmente admissível, certamente inexata e extremamente
pnigosa. Ainda assim, não se pode negar que os órgãos quali-
1 mulos do Estado, em virtude dos poderes que o próprio direi-
to positivo lhes atribui, estabelecem escolhas entre as opções
que a sociedade por eles governada lhes oferece e que lhes com-
pete exprimir as normas novas do edifício jurídico.
Ora, como a soberania é, na doutrina clássica, o atributo
i iscncial dos Estados, cada qual dispõe de um poder de direito
original c supremo e só pode ser subordinado a seus próprios
4 ompromissos, sem nenhuma ingerência externa. Como essa
nibcrania se limita a um determinado território, segue-se que a
uidem jurídica de um país se limita enquanto tal ao território

I H. (iUILLIEN e J. VINCENT, Lexique de termes juridiques, Dalloz,


IVUN. verbete "Estado"; T. FLEINER-GER.STER, Théoriegénéralede I'État, trad.
li I I Hroillard, P.U.F., Paris, 1986.
•I Ver JTK/WVJ, n? 19.
170 TEORIA GERAL DO DIREI K >

no qual se exerce a soberania de seu Estado. A territorialidade


do direito é, pois, de sua essência e implica a variedade das di-
versas ordens jurídicas.
128. - Na França, depois do longo processo de união con-
sumado pelo poder monárquico, foi com a Revolução de 1789
e depois com os códigos napoleônicos que se consumou a uni-
ficação do direito e foi consagrado o princípio de sua generali-
dade de aplicação sobre o conjunto do território nacional.
A regra segundo a qual a lei francesa é aplicada a todo o
território nacional mas apenas a esse território comporta, po-
rém, exceções: certas situações consumadas na França compor-
tam elementos de estraneidade que justificam que uma lei es-
trangeira lhes seja aplicada; inversamente, a lei francesa pode
ser aplicada no estrangeiro, por exemplo a franceses ali residen-
tes. Ademais, os departamentos do Baixo Reno, do Alto Reno e
da Mosela conservaram um direito local, oriundo da aplicação
do direito alemão na Alsácia-Lorena durante sua anexação à
Alemanha entre 1871 e 1918. Mas, apesar dessa legislação es-
pecial, todas as leis posteriores à lei de 17 de outubro de 1919
são de pleno direito aplicáveis nessa região, exceto quando se
referem a matérias regidas pelo direito local. Portanto, apenas
em certas matérias bem determinadas, por exemplo a proprie-
dade imobiliária, é que a Alsácia-Lorena conserva um direito
particular. Encontram-se também disposições particulares à
Córsega. Enfim, nos departamentos de Ultramar, a despeito do
princípio de aplicação da lei metropolitana desde 1946, conti-
nuam possíveis umas adaptações locais; os textos anteriores a
1946 que ali foram objeto de uma extensão são, além disso, os
únicos aplicáveis. Por fim, os Territórios de Ultramar dispõem
de uma legislação própria: apenas em virtude de disposições ex-
pressas é que as leis francesas podem ser neles aplicadas.
129. - Se, por causa da territorialidade dos direitos nacio-
nais e da soberania dos Estados, os direitos dos diversos países
do mundo são diferentes, a amplitude e o objeto de suas dife-
renças são muito variáveis 5 .

5. R. RODIÈRE, op. cit., n°4.


i > I ENÔMENO DO DIREITO 171

Podem existir entre as diversas ordens jurídicas divergên-


cias no "espírito das regras de direito": assim, certos países
consagram e protegem uma sociedade liberal e os direitos sub-
jetivos, ao passo que outros são fundamentados na preponde-
rância do setor público e na coletivização completa dos bens
de produção sob forma de propriedade e de empresas de Es-
tado e de empresas cooperativas.
Certas diferenças entre os sistemas jurídicos se referem às
fontes de direito. Assim, contrariamente ao direito francês, es-
sencialmente de expressão legislativa, de direito escrito e de
princípios, os direitos anglo-saxões continuam, apesar do re-
cente desenvolvimento do direito escrito que neles constata-
mos, fundamentados no case law extraído dos precedentes ju-
diciários, referindo-se os juizes a um fundo consuetudinário, o
('ommon law, e a regras de eqüidade.
Existem enfim, entre os diversos direitos positivos, dife-
renças, mais ou menos sensíveis, de direito substancial. Essas
variações concernem, conforme os casos, a verdadeiros pro-
blemas de fundo, tais como os princípios do direito de família,
.1 importantes problemas técnicos, como o direito da publicida-
de imobiliária, ou a simples regras de detalhe, como a duração
de um prazo ou a competência de uma jurisdição.
Mas, conforme esses critérios, podemos agrupar os diver-
sos sistemas de direito em grandes famílias caracterizadas por
traços em comum e, mediante comparação, descobrir neles
nlinidades e exemplos para reduzir suas dessemelhanças e me-
lhorar a qualidade dos direitos nacionais.

11 í irundes sistemas de direito e


metodologia jurídica comparativa

130. - Todas as classificações são inevitavelmente esque-


miilicas6, porque operadas com grandes traços, e incompletas,
pois desprezam grupos sociais que são julgados secundários.

(> J. CONSTANTINESCO, La science des droits compares, ed. Econo-


niu ». Piris, I 9SJ
172 TEORIA GERAL DO DIREI K >

São arbitrárias, pois pode ocorrer que vários direitos sejam


aplicados juntamente num mesmo Estado e que, inversamente,
comunidades não-estatais também tenham seu direito: o direi-
to canônico, o direito corânico, o direito judaico ou o direito
hindu são seus principais exemplos. Conforme tomemos ou
não todos esses direitos em consideração e conforme a impor-
tância conferida a estes ou àqueles valores e a este ou àquele
critério, será diferente a classificação operada entre os direitos.
Certos autores se atêm a distinguir três grandes grupos de di-
reitos: os sistemas ocidentais, os sistemas coletivistas e os sis-
temas religiosos 7 . Outros, baseados em mais critérios, inventa-
riam até oito famílias: os direitos romanistas, nórdicos, socia-
listas, o grupo de direito alemão, o do common law, o de direito
islâmico, o de direito hindu e os direitos do Extremo Oriente 8 .
Na França, René David primeiro distinguiu cinco sistemas
jurídicos de acordo mais com a ideologia que os animava do
que com suas técnicas 4 ; depois, aperfeiçoando sua classifica-
ção, conservou 10 , segundo critérios ideológicos e técnicos, qua-
tro grandes famílias de direitos: os direitos romano-germâni-
cos, os direitos socialistas, os direitos de common law e os di-
reitos religiosos e tradicionais, sendo este último grupo um pouco
um quarto de despejo, há mesmo que admitir.
131. - Tudo depende, na realidade, da finalidade das clas-
sificações operadas. A mera constatação da diversidade das re-
gras entre os sistemas de direito não tem globalmente nenhum
interesse, pois o que conta, no direito, é o âmbito permanente
no qual são ordenadas regras instáveis, os métodos utilizados
para lhes fixar o sentido e harmonizá-las, o "dado" a partir do

7. F. DE SOLA CANIZARES, Iniciacion al derecho comparado, Barcelo-


na. 1954; acerca de um esboço dos direitos ocidentais, ver M. T. CALAIS-AU-
LOY, Le droit à loccide/itale. D, 1989, p. 155.
8. ZWEIGERT e K.OTZ, Einfürhung in die Rechtsvergleichung auf dem
Gebietedes Privatrechts,t. 1, 1971; t. II, 1969.
9. R. DAVID, Trailé élèmentaire de droit compare, 1950.
10. R. DAVID. Grantls systèmes de droit contemporains, Précis Dalloz, 7?
ed., 1978; ver também M. FROMONT, Les grands systèmes de droit contempo-
rains, ed. Dalloz, Paris. 1987.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 173

qual são estabelecidas, a civilização que refletem. Se nos ate-


mos a esses elementos fundamentais e estáveis, dois eixos de
classificação principais parecem essenciais: o fundamento ideo-
lógico e a técnica jurídica.
Mas a essa comparação entre os princípios superiores das
civilizações acresce-se a necessidade de pesquisas mais espe-
cíficas referentes aos ramos particulares do direito ou às insti-
tuições especiais, tais como o divórcio, os sindicatos, as san-
ções penais, as cortes supremas etc. A comparação das regras
entre direitos ideológica ou tecnicamente aparentados ganha
então o maior interesse, ainda que aí os princípios permane-
çam sempre mais importantes do que as regras de pormenor.
Globalmente, se nos limitamos às diferenças e às seme-
lhanças essenciais, conservaremos, segundo a doutrina de R.
David, a distinção entre direitos "romano-germânicos", de
common law e "religiosos e tradicionais". A categoria dos
"direitos socialistas", muito empobrecida desde o desapareci-
mento da União Soviética e dos regimes comunistas do Leste
europeu, não desapareceu no mundo. Mas assume agora for-
mas tão heterogêneas segundo os países ainda inspirados pela
doutrina marxista-leninista que é difícil identificá-lo com um
modelo comum.
A família romano-germânica, na qual se situa o direito
francês, agrupa os sistemas jurídicos formados com base no
direito romano, fundamentados principalmente na lei escrita,
em geral na codificação e, reflexo da civilização cristã, inspi-
lados em regras de conduta ligadas à moral judaico-cristã e à
lustiça. Nela encontramos sobretudo os direitos da Europa oci-
dental continental e da América Latina. Apesar de suas origi-
nal idades, a inspiração, a ideologia e a técnica desses direitos
RAO similares.
O sistema jurídico anglo-saxão, que abrange o direito da
Inglaterra e dos países-membros do Commonwealth, o direito
n landes e o direito americano, é, ao contrário, no fundo, muito
semelhante aos direitos romano-germânicos: é oriundo da mes-
ma civilização cristã, liberal e individualista e se aplica a uma
utpnização social comparável. Em compensação, opõe-se a
174 TEORIA GERAL DO DIREI K >

eles por suas fontes e por sua técnica, pois se trata principal-
mente de um case law, de um direito oriundo dos precedentes
judiciários, ele próprio tirado de um fundo consuetudinário ori-
ginal e inspirado em considerações de eqüidade, mais do que
em regras gerais e abstratas. As classificações e os conceitos
utilizados são igualmente muito diferentes daqueles dos direi-
tos romano-germânicos. Ainda assim, o desenvolvimento atual
da lei escrita nos direitos anglo-saxões tende a aproximá-los
dos direitos romano-germânicos. A participação da Grã-Breta-
nha na União Européia implica que ela se submeta cada vez
mais a um sistema de direito escrito de tipo "continental".
Ao lado dessas famílias que influenciaram os sistemas
jurídicos do mundo inteiro, existem no mundo muçulmano, na
África, na índia, no Extremo Oriente, sistemas de direito oriun-
dos dessas civilizações e de inspirações religiosas e tradicio-
nais que, embora penetrados pelos direitos de origem européia,
conservam sua originalidade fundamental. Assim, conquanto
numerosos países muçulmanos tenham adotado sistemas de
codificação ou modelado seus direitos pelo common law, o
direito do Islã, fundamentalmente teológico, conserva neles
grande importância, notadamente no que diz respeito ao esta-
tuto pessoal e familiar 11 . O direito hindu, de inspiração consue-
tudinária e também religiosa, continua a reger as matérias pes-
soais e familiares na maior parte da índia. O direito chinês,
embora tenha enveredado uns tempos pela via do direito escri-
to e codificado, continua apegado ao costume e a uma tradição
de comportamentos sociais e de ritos adaptados mais aos casos
particulares do que à autoridade de regras abstratas.
Não se deve menosprezar, de outro lado, a importância dos
direitos mistos que combinam regras e instituições oriundas de
sistemas jurídicos diferentes entre os quais ocorrem constantes
interações. Essa natureza mista reflete ou produz com freqüên-
cia um verdadeiro pluralismo jurídico. Essas interações se ma-

11. L. MILLIOTe F. P. BLANC, Introduction à I'elude du droit musulman,


2? ed., Sirey, Paris, 1987.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 175

nifestam especialmente entre direitos ocidentais e direitos tra-


dicionais ou entre os direitos de common law e os direitos de
civil law12.
132. - A confrontação dos diferentes sistemas juridicos, a
determinação das correntes do pensamento humano e das rela-
ções do pensamento com as instituições oriundas dos diversos
dados espirituais e materiais passados e presentes dos povos
são, para o jurista, de inestimável valia. Por conseguinte, o di-
reito comparado, cujo objetivo é operar essa confrontação per-
manente, deve ter ao mesmo tempo uma função documental e
uma função normativa.
Por sua função documental, ele deve permitir um melhor
conhecimento dos direitos estrangeiros no momento em que a
interdependência política, econômica, social e cultural do mun-
do contemporâneo multiplica as relações entre os países e as
civilizações. Possibilita aos usuários, aos advogados militan-
tes, aos juizes e aos legisladores apreender melhor os proble-
mas criados por essas trocas. Mostra-se assim um "instrumen-
to de inteligência e de progresso do direito". Suscitando inter-
rogações e críticas a respeito do direito estrangeiro ou do direi-
to nacional, pode inspirar melhorias do direito positivo.
A função normativa do direito comparado consiste em
acarretar a criação contínua do direito graças aos frutos da ex-
periência alheia. Nenhuma reforma pode ser validamente pro-
posta sem estudo prévio dos direitos estrangeiros: uma imita-
çío racional de suas leis e de suas instituições deve inspirar a
lei nova, de acordo com o meio ao qual deve ser aplicada.
Isso mostra a importância, a necessidade, de uma metodo-
I< i r ia jurídica comparativa que pressupõe abordar os proble-
nms dc direito, tanto para lhes centrar as dificuldades quanto
paia lhes esclarecer as soluções, à luz do direito comparado. A
utilidade deste é variável segundo se coteje o espírito dos siste-

12 M ASAJ1 Chiba (dir.), Asian Indigeneous Law in Interaction witk Recei-


i vil I nw, K.IVI., Londres e Nova York, 1986; "La formation du droit national dans
Ira |iuy> dc droit mixte", Actes du colloque de 1'AUPELF, P.U.A.M., Aix-en-
fhivrnco, 19X9.
176 TEORIA GERAL DO DIREI K >

mas jurídicos ou se limite ao estudo de uma instituição ou de


uma regra particular. 0 estudo de regras específicas ou de por-
menor nos direitos estrangeiros tem um interesse quase que só
documental para a solução de uma dificuldade particular nos
países considerados com o fito de inspirar-se neles em seu pró-
prio país. Torna-se mesmo desprezível quando se trata apenas
da aplicação específica de regras internas bem estabelecidas e
perfeitamente conhecidas.
Mas, todas as vezes que o método comparativo se impõe,
deve ser observada uma disciplina mínima 13 . A comparação
entre os sistemas cotejados não deve limitar-se aos códigos e
às leis, mas deve abarcar todas as fontes de direito. Os termos
da comparação só têm valor se são recolocados no conjunto ju-
rídico de que dependem e em seu contexto histórico, socioló-
gico, político, econômico e cultural. Enfim, a oposição de por-
menor de originalidades técnicas, isolada dos princípios de
que procede, não tem significado nem utilidade. Se se atém a
esse método, o direito comparado permite igualmente desco-
brir as instituições para as quais pode ser elaborada uma unida-
de supranacional ou, pelo menos, uma aproximação das legis-
lações e entre quais nações essa obra pode ser empreendida.
Tendo partido da constatação de uma dissociação dos sis-
temas jurídicos, o método comparativo conduz assim a coorde-
nação deles.

2. A coordenação das ordens jurídicas

133. - O direito comparado permite distinguir, para além da


variedade dos direitos nacionais e da disparidade dos sistemas
jurídicos, um "fundo em comum dos sistemas jurídicos" 14 . O
direito comparado revela as necessidades permanentes da vida
social e os fenômenos de compensação que nela se operam.

13. R. RODIÈRE, op. cit., nos 81 ss.


14. R. B. SCHLESINGER e P. BONASSIES, Rev. inter. dr. compare, 1963.
pp. 501 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 177

Quando uma regra ou uma instituição necessária a uma socie-


dade nela não é consagrada, manifesta-se sob a aparência de
outras instituições que ela deforma. Assim, as legislações que
ignoram o divórcio facilitam a anulação do casamento ou esten-
dem a separação de corpos. Os sistemas jurídicos comportam,
assim, em geral uma afinidade de princípios e de instituições
que lhes mascaram as aparentes disparidades. Pode-se então
discernir no fundo das coisas uma espécie de "direito comum"
dos países civilizados que facilita os fenômenos de unificação.
Assim, a Assembléia Geral da ONU adotou em 1948 a
"Declaração Universal dos Direitos do Homem" que reconhece
aos indivíduos certo número de direitos e de liberdades: direi-
to à vida, direito de cada qual ao reconhecimento de sua perso-
nalidade jurídica, direito à nacionalidade, direito à liberdade
de pensamento, de consciência, de religião, direito à proprie-
dade etc. Claro, esse documento só tem um valor de recomen-
dação e não é observado em toda a parte. Mas tem valor de
princípio universal e foi fortalecido pelos "pactos internacio-
nais dos direitos do homem" relativos, um aos direitos civis e
políticos, o outro aos direitos econômicos e sociais.
Assim também, no âmbito do Conselho da Europa, "a Con-
venção européia de salvaguarda dos direitos do homem e das
liberdades fundamentais", assinada em Roma em 4 de novem-
bro de 1950, estabelece um sistema de controle original e real-
mente supranacional dos atos dos órgãos estatais pela "Corte
européia dos direitos do homem".
A coordenação das ordens jurídicas, para além de seus
pnrticularismos, é desde então possível, em direito internacio-
nal, seja mediante procedimentos de unificação das legisla-
i,ócs (A), seja mediante um sistema de solucionaniento dos
i uiillitos de leis (B).

A A unificação legislativa

134. - Apesar da grande difusão de certas obras legislati-


\ as, como o Código Napoleão ou o Código Civil alemão, e da
178 TEORIA GERAL DO DIREI K >

influência de afinidades profundas entre certos povos, como,


por exemplo, os escandinavos, a unificação legislativa mun-
dial é uma quimera, e a unificação geral das legislações de
dois ou vários Estados soberanos sem a unificação política de-
les, um mito.
Em compensação, a unificação, limitada a matérias espe-
ciais, das legislações de vários países, é possível e freqüente. Se
ela pode operar-se mediante a prática e por intermédio de orga-
nismos profissionais, fenômeno manifesto em direito maríti-
mo, realiza-se mormente com acordos entre Estados, com tra-
tados internacionais. Os tratados impõem-se aos países signa-
tários e prevalecem sobre suas leis nacionais: os Estados são os
sujeitos do direito internacional. São, ademais, sujeitados pelo
efeito obrigatório das convenções que aprovaram. Essa superio-
ridade do tratado sobre a lei interna é, aliás, consagrada na
França pelo art. 55 da Constituição de 4 de outubro de 1958.
Ora, a extensão e o alcance das convenções internacionais
são muito variáveis. Ao lado das cláusulas concernentes às
relações entre os Estados contratantes, os tratados comportam
em geral regras de direito substancial. Distinguimos "tratados-
contratos", nos quais os Estados estipulam prestações recípro-
cas, e "tratados normativos", cujo objetivo é estabelecer regras
de direito, situações jurídicas objetivas. A própria intensidade
dos efeitos dos tratados é diversa, chegando alguns até a "inte-
gração" quando uma organização internacional dispõe de ór-
gãos "superestatais" dotados de poderes de decisão verdadei-
ros que lhes permitem estabelecer normas obrigatórias para os
Estados.
As convenções internacionais podem, assim, estabelecer
organizações supranacionais, tais como a ONU, cujos poderes
são determinados e limitados pelos Estados signatários. Aliás,
pode tratar-se de jurisdições internacionais, tal como a Corte
Permanente de Justiça Internacional sediada em Haia.
Elas determinam às vezes uma lei internacional diferente
das leis nacionais dos países signatários e destinada a reger as
relações internacionais. As convenções internacionais deixam
então subsistir as diversas leis nacionais, mas consagram uma
i > I ENÔMENO DO DIREITO 179

lei nova à qual são submetidos os litígios de ordem internacio-


nal: a França e a Alemanha, signatárias da Convenção de Ber-
na sobre o transporte ferroviário internacional, conservam suas
legislações internas sobre os transportes ferroviários mas, em
caso de transporte ferroviário entre a França e a Alemanha, o
direito da Convenção de Berna é que deve ser aplicado.
Enfim, os tratados podem ter a meta de promover a uni-
formização das leis nacionais dos países signatários, obrigan-
do cada Estado contratante a substituir seus textos nacionais
por disposições novas, idênticas nos países envolvidos: um
exemplo importante disso é fornecido pelo direito cambial em
que convenções, assinadas em Genebra em 1930, sobre a uni-
formização dos direitos de letras de câmbio e ordens de paga-
mento e do cheque acarretaram a promulgação nos países sig-
natários, dentre eles a França, de novas leis internas.
135. - Essa obra de organização internacional e de harmo-
nização das legislações é ilustrada de modo muito particular
pelo direito das comunidades européias.
O direito comunitário, oriundo dos tratados de Roma assi-
nados em 25 de março de 1957 e dos tratados subseqüentes,
tais como o de Bruxelas de 8 de abril de 1965, "o Ato Único
liuropeu" assinado em 17 e 22 de fevereiro de 1986, "o Tratado
sobre a União Européia" assinado em Maastricht em 7 de feve-
reiro de 1992 e o tratado de Amsterdam assinado em 2 de ou-
tubro de 1997, apresenta a originalidade essencial "de tender
para uma ordem jurídica interna por meio de técnicas jurídicas
cuja base é o tratado internacional. Mas o tratado é ao mesmo
tempo a Constituição da comunidade, donde decorre a distri-
buição das competências, e se acha no topo da hierarquia das
regras comunitárias" 15 .
Os tratados organizam uma transferência de competência
e de soberania para os órgãos comunitários e favorecem em
importantes áreas a unificação das legislações. Está previsto
no tratado que "o Conselho... decide diretrizes para a aproxi-

15 J. GHESTINe G. GOUBEUAX,o^. cit., "Introduction générale", n?290.


180 TEORIA GERAL DO DIREI K >

mação das disposições legislativas, regulamentares e adminis-


trativas dos Estados-membros que têm uma incidência direta
sobre o estabelecimento ou o funcionamento do mercado co-
mum" (art. 100, al. 1). De outro lado, o art. 189 do Tratado de
Roma permite ao Conselho e à Comissão determinar "regula-
mentos" e "diretrizes", tomar "decisões" e formular "recomen-
dações" e "pareceres". Os "regulamentos" são textos de alcan-
ce geral, obrigatórios em todos os seus elementos e diretamen-
te aplicáveis em todo Estado-membro. As "diretrizes" amarram
"todo Estado-membro destinatário quanto ao resultado a ser
atingido, deixando ao mesmo tempo às instâncias nacionais a
competência quanto à forma e aos meios": assim, diretrizes le-
varam os Estados-membros a harmonizar em muitos pontos
seus direitos das sociedades comerciais.
O direito comunitário "derivado", ou seja, as normas euro-
péias oriundas dos órgãos comunitários e não dos próprios trata-
dos, adquiriu uma importância considerável em numerosíssimas
matérias e consagra a integração do direito da União Européia
na ordem jurídica interna de cada um dos Estados-membros.
A Corte de Justiça das Comunidades Européias decidiu
que, "diferentemente dos tratados internacionais comuns, o tra-
tado da CEE instituiu uma ordem jurídica própria integrada ao
sistema jurídico dos Estados-membros por ocasião da entrada
em vigor do tratado e que se impõe às suas jurisdições" 16 . Na
França, a Corte de Cassação, já em 1975, no processo Jacques
Vabre17, admitiu que o tratado de Roma instituiu "uma ordem
jurídica própria integrada à dos Estados-membros" e que "a
ordem jurídica que ele criou é diretamente aplicável aos cida-
dãos desses Estados e se impõe às suas jurisdições". O Conse-
lho de Estado depois afirmou igualmente a primazia do direito
comunitário original e derivado sobre as normas internas 18 .

16. C.J.C.E., 15 de julho de 1964, Proc. 6/64, Rec. 1141.


17. Cass. Câmara mista, 24 de maio de 1975, JCP, 1975, II 18-180 bis; D.
1975 II 497 Concl. Touffait.
18. C. E. Ass. 20 de outubro de 1989, Nicolo, D. 1990 II 135, nota P. Sa-
bourin; JCP 1989 II 21.371 Concl. P. Frydman; C.E. 24 de set. de 1990, Boisdet,
i > I ENÔMENO DO DIREITO 181
Por causa da aplicação direta dos tratados e dos textos
derivados nas ordens jurídicas internas dos Estados-membros e
da primazia das regras comunitárias sobre os textos nacionais
anteriores ou posteriores 19 , o direito comunitário parece ser um
sistema bastante excepcional de unificação do direito.
Mas, por mais aperfeiçoado que seja, o direito internacio-
nal 20 não tem, por falta de sanção garantida ligada a meios de
coerção absolutos, a plenitude das outras regras jurídicas. Isso
é ainda mais verdadeiro quando, na ausência de harmonização
dos direitos positivos, é o caso de solucionar conflitos de leis
nacionais.

B. O solucionamento dos conflitos de leis e de jurisdições

136. - Os conflitos de leis aparecem quando as legislações


de dois ou vários países têm cumulativamente vocação para
reger uma questão de direito. Devem-se aproximar os conflitos
de jurisdições referentes à competência dos tribunais nacionais
nos litígios internacionais assim como o procedimento aplicá-
vel a esses litígios e o efeito que as ordens jurídicas estatais
vinculam às sentenças estrangeiras 21 .
Os conflitos de leis ou de jurisdições supõem que duas ou
várias ordens jurídicas não-unificadas estejam implicadas em
relações que comportam um elemento estrangeiro. É o que se
dii cm situações que envolvem pessoas de nacionalidades dife-
rentes ou nas quais o ato ou o fato gerador da relação jurídica
em questão se situa num país estrangeiro. Em caso de acidente

Roc 251; RFDA 1991. 172 nota L. Duboais; C. E„ Ass. 28 de fevereiro de 1992.
Huthmans Int. France, JCP 1992 II 21859 nota G. Teboul; Gaz Pai 1992 II 741,
i uni Mine Laroque.
19. Salvo se ferem os direitos fundamentais reconhecidos e garantidos pelas
t itiuliluiçSes desses Estados.
20. Vcr"Le droit international", Archives dephilo. du droit, Sirey, t. 31, 1987.
21. l.OUSSOUARN e BOUREL, Droit internationalprivé, Précis Dalloz,
IWüfi, P, MAYER, Droit international privé, ed. Montchrestier. 2' ed.. 1983,
m* 77 ii.
182 TEORIA GERAL DO DIREI K >

de trânsito ocorrido a franceses em território estrangeiro, colo-


ca-se a questão de saber se a responsabilidade civil deve ser
apreciada segundo a lei do Estado onde ocorreu o acidente ou
segundo a lei nacional dos interessados e se ela será da compe-
tência do tribunal estrangeiro em cujo foro deu-se o acidente
ou daquela do tribunal francês em cujo foro é domiciliado o
demandado. Numa época em que "a superação do Estado pela
sociedade civil internacional" 22 ocorre em todas as áreas, espe-
cialmente em matéria econômica e nas relações da vida priva-
da, a solução metódica desses problemas assume uma impor-
tância primordial.
Mas, em cada sistema jurídico, as fontes e as sanções das
regras de direito internacional privado são, salvo exceção, fon-
tes e sanções nacionais. Há, assim, um direito internacional
privado francês que tem algumas regras oriundas da lei e o es-
sencial da doutrina e da jurisprudência. Por conseguinte, pode-
se pensar que o direito internacional privado é apenas "a proje-
ção, no palco internacional, de um ramo particular dos direitos
nacionais que reúnem as regras que se aplicam às situações
afetadas por um elemento estrangeiro" 23 . Não obstante, os di-
versos sistemas de direito internacional privado contribuem, a
despeito de sua heterogeneidade, para uma boa regulação das
relações internacionais e em geral facilitam o solucionamento
dos conflitos de leis e de jurisdições. Ainda há que salientar
que convenções internacionais ou o acordo das partes determi-
nam amiúde a ordem jurídica competente e a competência ju-
risdicional e que os direitos nacionais determinam as condi-
ções de eficácia dos julgamentos estrangeiros dispostos por
convenções bilaterais ou multilaterais 24 .
O solucionamento dos conflitos de leis e os problemas de
competência territorial das jurisdições ilustram não só os esco-

22. R. MASPÉTIOL, Artigo em Archives dephilo. du droit, t. XVII, 1972,


pp. 318 ss.
23. R. LEGEAIS, Clefipour le droit, ed. Seghers, 1973, p. 136.
24. Notadamente Convenção de Bruxelas de 27 de setembro de 1968 firma-
da entre os Estados-membros do Mercado Comum.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 183

lhos que o direito encontra no espaço mas também o fato de


que o direito positivo comporta instituições e regras destinadas
a resolver as dificuldades ligadas à intervenção do espaço nas
relações jurídicas.

SEÇÃO II
O espaço no direito

137. - Todas as relações jurídicas, todas as situações de


direito comportam, pelo menos de maneira acessória, uma di-
mensão geográfica ou espacial. A localização das pessoas e
dos bens permite-lhes a individualização; a da intervenção dos
eventos voluntários ou involuntários da vida jurídica influi so-
bre suas conseqüências.
Mas existem situações jurídicas que têm como objeto essen-
cial uma fração do espaço que constitui sua base, sua área ou sua
origem. Assim, o direito de propriedade imobiliária ocupa certa
superfície, ou melhor, certo volume; a proximidade ou o distan-
ciamento das pessoas e dos bens uns em relação aos outros susci-
ta certos problemas; o direito da organização do território ou do
urbanismo rege a administração do espaço; o direito dos trans-
portes tem o objetivo de transpor, e portanto de dominar, as dis-
tâncias que separam lugares diferentes; agora apreende até o
espaço aéreo e, cada vez mais, o espaço interestelar.
Portanto, o espaço ocupa no direito um lugar importante e
em geral ignorado, tanto no que toca aos problemas de locali-
zação pontual (§ 1) quanto no que diz respeito às situações ju-
rídicas (§ 2).

I. O lugar de situação

138. - A localização das pessoas, dos bens, dos atos e dos


latos no espaço acarreta certo número de conseqüências refe-
t entes ao fundo do direito (A). Mas também são-lhe vincula-
das incidências de ordem processual (B).
184 TEORIA GERAL DO DIREI K >

A. Lugar de situação e direito substancial

139. - A individualização das pessoas físicas e morais su-


põe que estejam ligadas a um determinado lugar. A localização
delas traz conseqüências sobre o exercício de seus direitos ci-
vis e públicos, especialmente políticos e eletivos. Em direito
internacional privado, a lei aplicável em caso de conflito de
deles às vezes depende do domicílio 25 .
Toda sociedade cuja sede está situada no território francês
está submetida às disposições da lei francesa (art. 1837 do Cód.
Civ. e art. 3, al. 1 da lei de 24 de julho de 1966). De modo geral,
a Corte de Cassação e, no tocante ao direito fiscal, o Conselho
de Estado declaram francesas as sociedades com sede social
real na França.
O domicílio do devedor constitui, salvo convenção con-
trária, o lugar de pagamento das dívidas (art. 1247 do Cód. Civ.)
e, se o credor recusa receber o pagamento, o devedor fará ofer-
tas no domicílio do credor (art. 1258, 6? do Cód. Civ.). A loca-
lização das pessoas físicas determina igualmente a sede de
atos importantes referentes à pessoa ou à família delas: o lugar
da celebração do casamento, o lugar de adoção, a abertura e a
centralização das operações de tutela etc.
Mas a mobilidade das pessoas jurídicas e suas constantes
locomoções conferem a essa localização uma parte de artifí-
cio. Daí resulta uma diversificação da localização por freqüen-
tes recursos a ficções jurídicas e uma espécie de hierarquia en-
tre as diversas localizações de uma mesma pessoa.
A ficção está expressa no art. 102 do Código Civil segun-
do o qual "o domicílio de todo francês, quanto ao exercício de
seus direitos civis, fica no lugar onde ele tem seu principal
estabelecimento". Ora, a lei às vezes impõe às pessoas físicas
um domicílio cujo lugar não é escolhido livremente, presumin-
do que têm ali seu principal estabelecimento. Assim, os meno-
res não-emancipados são legalmente domiciliados no domicí-

25. Y. LOUSSOUARN e P. BOUREL, op. cit., n os 156 ss.


i > I ENÔMENO DO DIREITO 185

lio de seus pais; certos funcionários públicos e oficiais minis-


teriais o são no lugar de suas funções; os barqueiros, os ambu-
lantes e nômades são obrigados a escolher um domicílio numa
comuna de vinculação. Enfim, para as necessidades de certas
situações jurídicas, as pessoas jurídicas podem ou devem ele-
ger domicílio num lugar onde geralmente não têm nenhuma
amarra real. Noutros casos, porém, o legislador assinala sua
desconfiança acerca das vinculações fictícias. Assim, se os ter-
ceiros podem prevalecer-se da sede estatutária das sociedades,
estas não lhas podem opor.
Mas o direito recobra a realidade quando leva em conside-
ração outras expressões da localização das pessoas jurídicas. A
"residência", ou seja, o lugar onde se encontra de fato uma
pessoa, por vezes substitui o domicílio e pode produzir certos
efeitos juntamente com ele. O direito positivo se refere a ela
cada vez mais em detrimento do domicílio, ainda que este con-
tinue preponderante. Quanto às pessoas morais, o direito atual
se contenta às vezes com a sua administração central ou com o
seu principal estabelecimento, independentemente da sua sede
estatutária (art. 58 do Tratado de Roma) ou com qualquer um
de seus estabelecimentos, desde a jurisprudência dita das "es-
tações principais". Ocorre, enfim, que se concentre ao simples
"domicilio aparente" ou, segundo os casos, aos diversos luga-
res nos quais uma mesma pessoa se estabelece.
140. - Assim como a das pessoas, a localização de certos
bens é essencial. Assim, a fixidez dos imóveis implica que se-
jam individualizados ao menos por sua situação geográfica;
si\o, pois, necessariamente corpos certos. Por conseguinte, a
venda deles acarreta em princípio transferência imediata da
propriedade e dos riscos. Em caso de inexecução contratual, a
resolução eventual da venda pode assumir toda a sua força
com a restituição efetiva do imóvel ao vendedor. A fixidez e a
localização fácil dos imóveis os tornam um instrumento privi-
legiado de crédito pela segurança a eles vinculada. Elas permi-
lom a organização de um regime de publicidade imobiliária
ei iciiz para a informação dos terceiros e necessária para a opo-
lllbilidade dos atos jurídicos relativos aos bens imobiliários.
186 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Assim também, um certo número de bens móveis são sub-


metidos a um regime jurídico que os aproxima dos imóveis,
especialmente quanto a seu regime de publicidade, à transfe-
rência de propriedade e à oponibilidade dos atos que se lhes
referem. Dentre os móveis por natureza, alguns há que são
submetidos à matrícula administrativa e que, por isso, são con-
siderados situados no lugar dessa matrícula; trata-se dos na-
vios, dos barcos fluviais, das aeronaves. Certas universalidades
mobiliárias, como o fundo de comércio, são igualmente sub-
metidas a um regime comparável.
Mas o interesse dessas técnicas de localização surge so-
bretudo em direito processual.

B. Lugar de situação e direito processual

141. - O "domicílio" ou a "sede" das pessoas jurídicas


tem a função geral de vinculá-las ao foro geográfico das auto-
ridades de que dependem. Com efeito, por razões de ordem e
de boa administração, as autoridades não podem exercer suas
prerrogativas de maneira ilimitada no espaço e recebem uma
competência territorial limitada a certo foro, de modo que as
pessoas vinculadas a esse foro o são às autoridades correspon-
dentes. Essa vinculação assume uma importância muito parti-
cular em matéria judiciária: as jurisdições territorialmente ali
competentes são, em princípio, as do lugar onde mora o de-
mandado (art. 42 do Novo Código de Processo Civil). Em geral
é por ocasião de uma ação judiciária que se mostra indispensá-
vel conhecer o lugar onde uma pessoa reside ou é domiciliada.
Depois, ao longo de todo o processo, cumpre saber como e
onde chegar às partes. Isso implica certa rigidez na determina-
ção do domicílio, ainda que o direito processual contemporâ-
neo, que consagra a ruptura do princípio clássico da unidade
do domicílio, dê um lugar importante à residência, aos estabe-
lecimentos secundários, à eleição do domicílio etc. Mas, para
uma boa administração da justiça, esse rigor é necessário: há
que evitar que o homem possa, com sua mobilidade, escapar
ao sistema judiciário.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 187

Quanto aos bens, é o lugar de situação do imóvel que de-


termina o tribunal territorialmente competente em questão de
ações reais imobiliárias.
142. - Mas o local onde ocorrem os diversos aconteci-
mentos da vida jurídica tem igualmente um efeito determinan-
te sobre a competência territorial. No tocante às ações sucessó-
rias, o tribunal competente é o do lugar da abertura da suces-
são, noutras palavras, o do derradeiro domicílio do de cujus:
trata-se aí de uma competência exclusiva até a partilha. Em
matéria delituosa e quase delituosa, os textos permitem ajuizar
no tribunal onde o fato danoso ocorreu ou naquele em cujo
foro o dano foi sofrido; esses dois lugares coincidem em prin-
cípio, apesar de importantes controvérsias jurisprudenciais.
Km processo penal igualmente, a jurisdição competente é, para
as contravenções, exclusivamente aquela em cujo foro a infra-
ção foi cometida. Para os delitos e os crimes, o lugar de come-
timento da infração acarreta também, mas não de maneira ex-
clusiva, a competência das jurisdições do foro correspondente.
Em matéria contratual, o demandante tem a faculdade,
conforme os contratos, de ajuizar na jurisdição à sua escolha
além daquela do lugar onde mora o demandado, a jurisdição
tio local da entrega efetiva da coisa ou do lugar da execução da
prestação de serviço.
Em todos os casos, a determinação das jurisdições com-
petentes é inspirada em considerações práticas relacionadas
com a instrução do processo.
Mas essas diferentes situações jurídicas não têm somente
como sede um ponto geográfico único. A localização de seus
diversos elementos em pontos diferentes implica problemas de
distância e até, para a base dos direitos reais, de extensão.

2. A distância e a extensão

143. - A distância e a extensão podem suscitar dificulda-


de t processuais. Certos imóveis situados simultaneamente em
dois ou vários distritos, de um lado e do outro de seus limites,
188 TEORIA GERAL DO DIREI K >

dão azo a dificuldades suplementares de determinação das ju-


risdições competentes. Assim também, a lei admite ainda, em
raros casos, um aumento dos prazos processuais por causa do
distanciamento das partes relativamente à jurisdição compe-
tente (arts. 643 s. do NCPC).
Mas é sobretudo por razões de mérito que há interesse
pela distância e pela extensão, seja para levar em conta o espa-
ço material estabelecido (A), seja para gerar voluntariamente
certas relações jurídicas (B).

A. Sujeição ao espaço

144. - A delimitação da propriedade imobiliária foi por


muito tempo concebida como a de uma superfície no solo. Essa
representação é incompleta: a mera superfície do solo é inutili-
zável se o proprietário não pode também apropriar-se do que
está acima e abaixo do solo. O art. 552 do Código Civil prevê,
aliás, que "a propriedade do solo traz a propriedade do subsolo
e do espaço aéreo", o que permite construir nele, fazer planta-
ções e escavações, tirar seus produtos. O imóvel corpóreo é, por
conseguinte, um bem com três dimensões: corresponde, assim,
a um volume. A técnica moderna, que permite construir e ex-
plorar mais alto e mais fundo, impõe recorrer ainda mais a essa
noção de volume; os juristas de hoje apelam, para o estatuto de
certos imóveis coletivos, à idéia de propriedade de volumes,
despojada daquela do solo, do teto e das paredes. Seja como
for, o espaço horizontal e vertical ao qual se aplica traduz a
base, a consistência material do direito de propriedade. O direi-
to positivo se preocupa com isso tanto para a designação do
imóvel quanto para a sua delimitação pela demarcação, quanto
para o direito do subsolo e do espaço aéreo a ele vinculados.
Todos os direitos reais e pessoais relativos ao imóvel são domi-
nados por essa consistência, trate-se de direitos locativos, de
desmembramentos da propriedade ou de seguranças reais.
Por outro lado, a maior ou menor proximidade, até mes-
mo a contigüidade das propriedades, implica entre elas e en-
i > I ENÔMENO DO DIREITO 189

tre seus titulares ou seus ocupantes inevitáveis relações jurí-


dicas.
145. - O direito de vizinhança é constituído pelas relações
reais e pessoais oriundas da proximidade dos fundos.
No plano real, ele impõe limitações do direito de proprie-
dade no interesse das propriedades vizinhas. A lei enuncia as-
sim diversas servidões, em geral recíprocas e cuja existência
limita o conteúdo do direito de propriedade. De outro lado, as
servidões propriamente ditas que procedem da ação do homem
constituem um desmembramento excepcional de um fundo, o
fundo serviente, em proveito do fundo dominante para permi-
tir e melhorar o uso ou a utilidade deste. Embora as servidões
concirnam o mais das vezes a fundos contíguos, nem sempre é
esse o caso. Algumas se aplicam mesmo a um número consi-
derável de propriedades reciprocamente oneradas e beneficiá-
rias, por exemplo nos loteamentos, de modo que expressam de
certo modo uma comunidade de vizinhança.
É sobretudo na área da responsabilidade civil dos vizi-
nhos que se manifesta essa extensão do direito de vizinhança.
Tanto sobre o fundamento da falta constituída pelo abuso de
direito quanto sobre o da responsabilidade objetiva implicada
pela superação dos inconvenientes normais de vizinhança,
constata-se atualmente uma dispersão geográfica considerável
das relações de vizinhança: as poluições, notadamente do ar,
das águas, da vegetação etc. que a época moderna conhece em
razão dos incômodos industriais, às vezes se espalham a muito
longe e multiplicam as responsabilidades consecutivas.
Mas a superfície das propriedades, as exigências de certas
explorações, as responsabilidades geradas pelos incômodos
daí resultantes são ainda afetadas agora por considerações de
interesse geral. Assim, o direito positivo e os poderes públicos
se interessam pelo remembramento imobiliário ou pelas acu-
mulações de explorações agrícolas, ou seja, pela dimensão das
propriedades. Trata-se então de gerir o patrimônio imobiliário
e as atividades humanas.
190 TEORIA GERAL DO DIREI K >

B. O espaço administrado

146. - Trate-se, no plano internacional, do solucionamen-


to de questões territoriais entre Estados, da delimitação das
águas territoriais, da utilização do espaço aéreo ou mesmo in-
terestelar ou, no plano nacional, da organização do território, o
sistema jurídico deve fazer frente aos problemas levantados
pela administração do espaço.
De modo mais particular, o direito da organização do ter-
ritório designa os princípios e os meios jurídicos que regem a
busca de uma utilização econômica e humana mais racional do
espaço geográfico nacional 26 . O direito de urbanismo abrange
o conjunto das medidas jurídicas que tendem a realizar um de-
senvolvimento ordenado das aglomerações consoante as ne-
cessidades a que se deve satisfazer. A administração do espaço
expressa-se nele principalmente pelo recorte dos solos em zo-
nas destinadas a utilizações determinadas, naturais, urbanas,
de habitação, de atividades etc. Ela se manifesta também pela
previsão das obras públicas a serem desenvolvidas ou criadas,
pela fixação da densidade, da altura e do volume das constru-
ções, pelo estabelecimento dos meios destinados à realização
dessas prescrições... As servidões de urbanismo ou as enuncia-
das em nome do direito do meio ambiente podem chegar à
proibição de construir e esterilizar bens importantes; os direi-
tos de preempção das coletividades públicas limitam a própria
substância da propriedade.
1 4 7 . - 0 deslocamento dos bens e das pessoas é também o
objeto principal de relações jurídicas específicas regidas pelo
direito dos transportes. A travessia das distâncias e a interven-
ção do homem por ocasião das múltiplas operações que isso
implica suscitaram uma diversificação das regras nacionais ou
internacionais, das contingências ligadas aos modos de trans-
portes (terrestres, marítimos, aéreos), dos contratos utilizados,

26. J. DE LANVERSIN, La région et Vamenagement du territoire, ed.


Litec.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 191

do contrato de transporte ao contrato de comissão, ao fretamen-


to ou ao carregamento etc. Tanto em direito público como em
direito privado, no plano do contrato como no da responsabili-
dade e da reparação, a norma jurídica está, portanto, onipre-
sente para organizar a dominação das distâncias pelas ativida-
des humanas.
Assim, o desenvolvimento da vida e da atividade humana
no espaço e os problemas de localização, de extensão e de dis-
tância contidos nas situações jurídicas ocupam no direito posi-
tivo um lugar importante do qual mostramos algumas manifes-
tações. Mas o desenvolvimento da técnica, o surto e o aperfei-
çoamento dos meios de comunicação, a conquista pelo homem
do espaço interestelar abrem ainda novas perspectivas para a
apreensão do espaço pela vida jurídica.
192 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ILUSTRAÇÃO

CORRELAÇÃO ENTRE O ESPAÇO E O DIREITO

Conseqüências particulares do caráter internacional


de uma relação jurídica

Um exemplo tirado de um processo que deu ensejo a nu-


merosíssimas decisões judiciárias tanto no exterior como na
França mostrará a complexidade ligada à disseminação no es-
paço dos diversos elementos de uma situação jurídica (Pro-
cesso Patino relatado por P. Mayer, Droit international prive,
2a ed., n? 1; Civ. 15 de maio de 1963. Clunet 1963. 1016 nota
P. Malaurie; J.C.P. 1963 II 13 365 nota H. Motulsky; Rev. Crít.
1964-532 nota P. Lagarde):
"Um boliviano se casa em Madri com uma espanhola. Es-
ta se torna boliviana pelo casamento; o casal vive ora nos
Estados Unidos, ora na França. Após vários anos de casamen-
to, o marido requer e obtém o divórcio no México. Enfim, a
mulher requer a separação de corpos na França."

• O DIREITO NO ESPAÇO
Os diversos direitos nacionais têm a respeito do divórcio e
da separação de corpos concepções e soluções técnicas diferen-
tes. O divórcio era, na época dos fatos, admitido na França e no
México, mas não em direito espanhol. A separação de corpos
era conhecida pelo direito francês e pelo direito espanhol, mas
não pelo direito boliviano. Essas diferenças se manifestam, po-
rém, entre sistemas de direito bastante próximos tanto pela ori-
gem como pela organização social dos países envolvidos e tam-
bém (salvo para o direito americano) por sua técnica.
Há, portanto, problemas de conflitos de leis para resolver.
O fato de o casamento ter sido realizado na Espanha poderia
justificar a aplicação da lei espanhola. A nacionalidade das par-
tes designaria a lei boliviana. Enfim, como o tribunal em que a
mulher ajuizou um pedido de separação dc corpos era francês,
poder-se-ia pensar na lei francesa.
Capítulo 3
O direito e os fatos sociais

1 4 8 . - 0 homem, ser "sociável" segundo Aristóteles, viven-


do em sociedade, acha-se inevitavelmente envolvido num con-
junto de "relações necessárias que derivam da natureza das coi-
sas'". Desde que existe a vida humana, existe uma organização
jurídica porque não pode haver sociedade sem direito. Mesmo
as fases primitivas da vida em comum supõem uma afirmação
da personalidade de cada qual e um reconhecimento da alheia,
portanto uma relação "transubjetiva" cujo desenvolvimento oca-
siona instituições que se aplicam a um número maior de pes-
soas e a novas formas de atividades 2 .
As contribuições da etnologia e da antropologia jurídica
são, a esse respeito, fundamentais. Tendo como objeto o estudo
do homem "com referência a seu meio social e cultural" e
como objetivo conhecer as formas de civilizações arcaicas, o
pensamento e a atividade jurídica delas, essas disciplinas
permitem discernir um fundo comum elementar natural e es-
tudar os fundamentos e os caracteres da juridicidade nas di-
versas tradições culturais 3 . Mais amplamente, a antropologia

1. MONTESQUIEU, O espirito das leis, livro 1, cap. 1.


2. G. DEL VECCHIO, "Mutabilité et étemité du droit", Arch. de philosophie
du Droit, t. III, p. 139.
3. Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit, sob a
direção de A. J. Arnaud, ed. L.G.D.J. e Story-Scientia, Paris-Bruxelas, 1988, 2?
ed , 1993, verbete "Anthropologie juridique et pluralisme juridique"; N. ROU-
I AUD, Anthropologie juridique, ed. P.U.F., col. "Droit fondamental". Paris, 1988.
196 TEORIA GERAL DO DIREI K >

jurídica 4 estuda não só os principais mecanismos jurídicos


das sociedades tradicionais, mas também as experiências das
sociedades modernas. Observa-se, segundo a teoria do "plu-
ralismo jurídico", que toda sociedade pratica uma multiplici-
dade hierarquizada de organizações jurídicas diferentes que
se aplicam em geral conjuntamente a situações jurídicas idên-
ticas. Podem-se deduzir daí certos vínculos entre as particu-
laridades das sociedades estudadas e as regras que as regem.
Pode-se, claro, contestar que essas regras sejam todas elas
regras de direito e pretender que o aparecimento do direito não
ocorreu, em todas as civilizações, na mesma fase de desenvol-
vimento. Assim, a China teria rejeitado a idéia de lei que, por
seu caráter abstrato e rígido, não levaria em conta a variedade
das situações; o Japão teria manifestado a mesma hesitação
diante da uniformidade que o direito supõe 5 . Mas a maioria
das civilizações concede desde a origem um lugar preponde-
rante ao direito, concebido como "o conjunto das regras que
determinam as relações humanas", que constituem um "siste-
ma de obrigações" acompanhadas de sanções 6 . Por conseguin-
te, o direito é por si só um fato social tal como o definia Durk-
heim, ou seja, um "fenômeno espontâneo que nasce da reunião
dos homens em grupos dotados de uma certa permanência e de
uma certa consistência" 7 .
Ninguém contesta o vínculo entre a regra de direito e o
meio social no qual ela nasce, se exerce e se extingue. "Sob
pena de praticar obra vã, a regra de direito deve ser estabeleci-
da levando em conta dados da ordem social. Portanto, é neces-
sário ter um conhecimento aprofundado desse estado social."8

4. L. J. POSPISIL, Anthropology of Law, Nova York, 1971; N. ROULAUD,


Anthropologie juridique, ed. P.U.F., col. "Droit fondamental", 1988; N. ROU-
LAUD, L 'anthropologie juridique, ed. P.U.F., col. "Que sais-je?", 1990.
5. R. MASPÉTIOL, "Le droit et la politique...", Arch. de philosophie du
droit, t. XVI, p. 37.
6. H. LEVY-BRUHL, Aspects sociologiques du droit, ed. M. Rivière, 1955,
p. 12.
7. Ibidem.
8. P. ROUB1ER, Théorie générale du droit, 2a ed., n° 22.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 197

Já que existem assim relações estreitas entre o direito e os


fatos sociais (Seção 1), a sociologia, estudo científico dos fatos
sociais humanos num alto grau de generalidade, parece ser um
dos elementos essenciais que concorrem para a elaboração, a
aplicação e a evolução do direito positivo. Embora a sociologia
jurídica (Seção II) não possa proporcionar tudo ao direito, con-
tribui para seu desenvolvimento e sua compreensão.

SEÇÃO I
As relações entre o direito e os fatos sociais

149. - Segundo Ihering, "as regras de direito são deduzi-


das mediante abstração das relações da vida; são feitas para
lhes expressar e lhes fixar a própria natureza". Embora a lei
seja criada pela vontade dos governantes, "a soberania do po-
der deles é, na realidade, bastante teórica... Sob todos os regi-
mes, o ato criador deles é determinado por causas anteriores à
manifestação da vontade deles". Portanto, não é de espantar a
mobilidade do direito que é, nos regimes democráticos, "a
conseqüência fatal do jogo livre das forças sociais" 9 . Assim,
Roubier discernia três grupos de "fatores de produção do direi-
to": os fatores econômicos que são constituídos por interesses,
os fatores religiosos ou morais que representam tradições,
enfim os fatores políticos e sociais ligados sobretudo a ideolo-
gias10. Mas isso implicará um determinismo completo segundo
o qual o direito seria apenas o produto da ordem social oriundo
passivamente dessas forças criadoras, independentemente de
qualquer vontade autônoma e de qualquer livre escolha do le-
gislador? Noutras palavras, se existe entre o direito e os fatos
sociais uma relação de natureza (§ 1), tratar-se-á também de
uma relação de filiação (§2)?

9. G. RIPERT, Les forces créatrices du iroit, L.G.D.J., 1955, n° 54


10. P. ROUBIER, op. cit., n° 22.
198 TEORIA GERAL DO DIREI K >

1. A relação de natureza

150. - Regra de conduta humana, engendrada por múlti-


plos dados profundos mas expressa pela vontade do Estado
que lhe confere força coerciva, a regra de direito é por essência
um fenômeno social, conquanto difira de outras regras sociais,
tais como a moral, o decoro ou os mandamentos religiosos.
Mas os costumes e o estado da civilização evoluem, e essa evo-
lução se precipita continuamente na época moderna, devendo
a aceleração da história acarretar importantes mutações do
direito: entre o consulado, de que datavam as instituições da
França contemporânea ou o Código Civil, e a nossa civilização
atual, as diferenças são infinitamente maiores do que entre es-
se consulado e a civilização romana que inspirou boa parte do
direito napoleônico". Assim, o direito é, por essência, vincu-
lado aos fatos sociais (A). Mas o próprio conteúdo do direito,
suas regras, suas instituições, seus conceitos têm um caráter
social, de modo que ele também é, por sua substância, vincu-
lado à vida social (B).

A. A relação essencial

151. - "Os homens de antigamente puderam considerar


que o direito era estável porque a civilização material não
mudava"... As eras de civilização são agora eras de vinte anos...
São designadas pelas descobertas cientificas: era do vapor, era
da eletricidade, era do motor "a explosão", era da força atômi-
ca, era do espaço.
Melhor do que ninguém, Ripert mostrou que a ordem jurí-
dica imposta hoje pelo progresso reexamina o direito clássico
e será por sua vez rejeitada amanhã por um novo progresso 12 .
Salientou o quanto o Código Civil, inspirado em 1804 pelo

11. C. A. COLLiARD, La machine et le droit prive eontemporain, Études


Ripert, 1.1, p. 115.
12. G. RIPERT, Les forces créatrices du droit, op. cit., not. n?s 11 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 199

Corpus júris civilis e pelo costume de Paris, pode parecer ina-


daptado ao mundo atual no qual um direito que vigia e dirige
todas as ações humanas dentro do interesse superior da socie-
dade ficou no lugar de um direito fundado na iniciativa indivi-
dual, na liberdade das convenções, na responsabilidade por
falta. É verdade que o direito de propriedade absoluto, a liber-
dade contratual, a estabilidade ilimitada do contrato, o domí-
nio pelas partes do contrato de trabalho ou do contrato de loca-
ção, a hierarquia e a solidariedade familiar submetidas ao po-
der marital e paterno são agora coisa do passado. Não há dúvi-
da de que quando nascem elementos novos são necessárias
novas regulamentações jurídicas; o direito aéreo, o direito da
seguridade social ou o direito do consumidor foram instilados
pela evolução tecnológica e pelas transformações sociais con-
temporâneas.
Mas foi á sombra das grandes instituições clássicas que
esses novos direitos prosperaram e que se operaram as muta-
ções jurídicas. A plasticidade das noções e a flexibilidade das
normas jurídicas permitem abrigar em seu seio muitas realida-
des novas. Assim, a noção de contrato pôde acolher as conven-
ções coletivas e a economia dirigida; a de propriedade absor-
veu os monopólios de exploração intelectual, industrial ou co-
mercial. A personalidade moral coroou a concentração dos ca-
pitais e dos bens na grande indústria. O direito de propriedade
estática do imóvel se deslocou para a propriedade dinâmica da
empresa, e o direito da empresa privada hoje está próximo da-
quele da empresa pública. Assim, a plasticidade das regras e
das noções gerais permite certa estabilidade do direito a des-
peito das mutações sociais por ele registradas.
"As coisas sempre são apenas os objetos dos direitos, e a
mudança no dado material só poderia interessar ao direito na
medida em que a regra jurídica depende da natureza do obje-
to."13 A constante mutabilidade dos epifenômenos jurídicos ex-
pressos pelas regulamentações técnicas não afeta a perma-
nência das instituições fundamentais.

13. G. RIPERT, op. cit., n? 13.


200 TEORIA GERAL DO DIREI K >

152. - Embora o grau de civilização material se projete


nos costumes e as transformações dos acontecimentos huma-
nos determinem a evolução do direito, porque o direito não
pode apartar-se da vida, é apenas com certa defasagem que a
evolução dos fatos sociais é decalcada na evolução jurídica. O
direito, aliás, nem sempre se atém a seguir passivamente a evo-
lução dos fatos. Denuncia-se às vezes "o mito da adaptação do
direito ao fato", que suporia um conhecimento perfeito dos fa-
tos e a exclusão das escolhas de uma política jurídica 14 . Acon-
tece-lhe precedê-los quando previne com o seguro obrigatório
o efeito dos riscos da sociedade moderna. Combate-os quando,
diante das coerções da civilização industrial e os efeitos da
crise demográfica, favorece as estruturas familiares e incentiva
o desenvolvimento da natalidade.
Mas, sobretudo, pertence ao mundo jurídico extrair do
dado social uma regra imposta aos homens. Para penetrar no
direito, os fatos precisam ser "conceituados", ou seja, ser sub-
metidos a um tratamento intelectual particular que extrai deles
o significado jurídico para lhes vincular determinados efeitos.
Cumpre depois que, vinculando a esses fatos as prescrições que
os devem reger, o direito os apreenda, o que por vezes supõe
longas pesquisas, difíceis arbitragens, longo esforço de formu-
lação. Por conseguinte, a formação do direito é uma obra mui-
to demorada. Daí resulta que a projeção dos fatos no palco
jurídico é infalivelmente retardada, refletida, às vezes defor-
mada. Não se podem ignorar "as metamorfoses do direito" 15 ,
mas tampouco se pode pretender que sejam a imagem instantâ-
nea, fiel e constantemente renovada do caos dos fatos sociais.
O direito precisa de estabilidade pois, a não ser que se subme-
ta o homem a uma lei ignorada por ele, como no Processo de
Kafka, a segurança que o direito tem a função de estabelecer

14. C. ATIAS e D. LINOTTE, "Le mythe de 1'adaptation du droit au fait",


D. S. 1977. 1-251.
15. R. SAVATIER, Les métamorphoses écunomiques et sociales du droit
Civil d aujourd hui, 3? ed., Dalloz, 1964; Les métamorphoses économiques et
sociales du droit prive d aujourd 'hui, ed. Dalloz. 1959.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 201

pressupõe a permanência das regras jurídicas. Mas também


cumpre apreender a evolução dos fatos a partir das fundações
do sistema estabelecido. As matérias novas são mais sensíveis
à influência dos fenômenos sociais, ao passo que o empirismo
fica mais fraco diante dos princípios gerais das disciplinas tra-
dicionais. Em última análise, lenta e progressiva para os prin-
cípios, mais rápida e caprichosa para a simples técnica, a evo-
lução do direito sob a ação dos fatos sociais é uma realidade
inerente à matéria jurídica cuja efetividade depende de sua
adequação às necessidades da vida social.
153. - Esse vínculo essencial entre o direito e os fatos so-
ciais se desenvolve sob a influência das múltiplas forças conti-
das pela vida social.
Nas primeiras sociedades humanas, as normas que rege-
ram os homens eram preceitos religiosos. Foi o que se deu na
aurora da Antigüidade. A influência do cristianismo e do direi-
to canônico sobre o direito das civilizações ocidentais, durante
séculos, modelou as instituições e dominou o direito de família,
fundado na indissolubilidade do casamento. Os direitos dos
países islâmicos e o direito canônico ainda assinalam, em gran-
de parte do mundo, a marca da religião sobre o direito positivo.
Assim, a moral cristã, por exemplo, foi transposta para a legis-
lação civil. A laicização do direito civil, ou seja, a eliminação
da influência da religião na criação do direito, data na França da
Revolução, manteve-se no Código Civil e se prolongou em
1905 pela separação entre a Igreja e o Estado. Ela se impôs em
todas as civilizações modernas. No entanto, apesar do incontes-
tável declínio da religião na consciência dos povos mais desen-
volvidos, a força religiosa ressurge quando a lei quer atingir a
organização do culto e a atividade da Igreja. A questão da esco-
la privada na França, a força conservada pela religião nos países
socialistas como a Polônia, o integrismo islâmico etc. mostram
quanta força conservadora ou revolucionária a religião ainda
comporta, conforme os casos, e qual influência ela continua a
exercer sobre a sociedade e os sistemas jurídicos.
Ripert denunciou, em geral com um excessivo conserva-
dorismo, a ação anárquica das forças criadoras do direito no
202 TEORIA GERAL DO DIREITO

mundo contemporâneo que faria o direito rolar, como o barco


ébrio de Rimbaud, rumo a um oceano desconhecido 16 . Mas a
multiplicação dos grupos ideológicos ou socioprofissionais
(cujas reivindicações, sustentadas por manifestações, pela uti-
lização da mídia e por importantes meios financeiros, são em
geral ratificadas pelos poderes públicos) é um fator de evolu-
ção, por vezes desordenada, do direito. O poder sindical e o
das associações são o reflexo das forças coletivas liberadas
pela sociedade para manifestar suas aspirações. Para além de
suas manifestações amiúde divergentes, a opinião pública, que
a técnica moderna das "pesquisas de opinião" permite apreen-
der melhor, traduz a vontade de um povo e as necessidades de
uma sociedade. Por conseguinte, ela é uma força de proposi-
ção para a evolução do direito, ainda que nela se costumem
constatar tendências muito conservadoras.
Mas a compatibilidade da lei com as aspirações dos gru-
pos interessados e da opinião pública é também a condição de
sua efetividade, pois a lei só penetra na ordem jurídica real se
os interessados se submetem a ela e se os poderes públicos a
aplicam. Claro, "a efetividade" da lei, o fato de ser efetivamen-
te aplicada, jamais é absoluta. Pode, por outro lado, ser útil,
para proteger certos valores e limitar a ação dos fatos, preser-
var regras não-efetivas. Mas, quando uma norma fica desprovi-
da de efetividade, é porque as relações sociais às quais é diri-
gida obedecem efetivamente a normas diferentes. Isso supõe
que o Poder Executivo não aplica essa norma e tolera outras, que
o Poder Judiciário não sanciona suas violações e que os interes-
sados se recusam a submeter-se a ela. Então, a regra de direito
fica letra morta porque o conjunto do corpo social a rejeita.
Sem idolatria excessiva pela realidade dos fatos, só podemos
concluir que a discordância entre a lei e os fatos conduz à mor-
te da lei e que a efetividade da ordem jurídica depende de sua
compatibilidade com os fatos sociais que ela deve reger. En-
fim, na "análise econômica do direito", certas teses subordi-

16. R1PERT, op. cit., n os 34 ss.; ver também Le déclin du droil, L.G.D.J.,
1949.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 203

nam as soluções jurídicas à apreciação de sua eficácia e de sua


boa adaptação 17 . Cumpre então verificar que a relação de natu-
reza que une o direito aos fatos sociais está mesmo transposta
para o conteúdo do direito positivo.

B. A relação substancial

154. - Pode-se pensar que o direito positivo é o melhor


espelho das aspirações dos povos e das relações de forças que
se desenvolvem no país e na civilização que ele rege. Seria o
fato social por excelência, pois mais global do que a religião, a
linguagem ou a arte que só abarcam aspectos particulares da
vida humana. O direito expressaria assim, melhor do que qual-
quer outra ciência social, as reações do corpo social, já que sua
função é fixar as relações entre seus membros.
Henry Lévy-Bruhl mostrou que a substância do direito
consiste em um sistema de obrigações que, sendo ditadas pela
coletividade, têm um caráter social 18 . Atentou que certos bro-
cardos esclarecem nitidamente o caráter social do direito. A
regra "supõe-se que ninguém ignore a lei" seria assim ligada
ao fato de a lei emanar do grupo social inteiro e, portanto, de
cada um de seus membros, de modo que ninguém pode preten-
der ignorar a lei, obra sua.
O brocardo error communis facit jus, que quer que um fato
mesmo errado seja considerado válido se está difundido no
meio social, é significativo e comporta numerosas aplicações,
dentre as quais o usucapião, o casamento putativo, a teoria da
aparência são dignos de nota. Assim também, uma instituição
como a personalidade moral repousaria não numa pura ficção,

17. Sobre a análise econômica do direito ver, por exemplo: R. A. POSNER,


Economic Analysis of Law, Little, Brown and C., 3f ed., 1985; R. COASE, "The
Problem of Social C o s t J o u r n a l ofLaw and Economics, 1960, vol. 3, 1; E. MAC-
K.AAY, Analyse économique du droit, 1985 (Coletânea de textos), A.E.D., Univ.
de Montreal, 1985-1986; "L'analyse économique du droit", Rev. Rech. Jur., 1987-2,
P.U., Aix-en-Marseille.
18. H. LÉVY-BRUHL, op. cit., pp. 16 ss.
204 TEORIA GERAL DO DIREI K >

mas na constatação de que, já que os grupos se portam como pes-


soas, são pessoas coletivas. Assim, a lei é querida pelo Estado,
pessoa moral que constitui um todo diferente das partes que o
compõem, portanto pelo corpo social inteiro19. Por conseguin-
te, a lei repousa na vontade coletiva, não em vontades indivi-
duais. A evolução da interpretação de inúmeras fórmulas le-
gislativas, cujo sentido se afasta do pensamento de seus cria-
dores para se adaptar às condições novas da vida, mostra bem
que a lei é um fenômeno social.
A demonstração não deixa de ter artifício. Guardaremos,
porém, que, tanto por sua origem como por sua formação e sua
finalidade, o direito tem inegavelmente um caráter social: ele
emana do corpo social, de suas aspirações e de suas necessida-
des; é confeccionado por ele, diretamente ou por seus órgãos;
tem por objetivo organizar as relações sociais. É ainda o víncu-
lo entre a evolução da sociedade e a do direito que constitui a
melhor demonstração das relações entre o direito e os fatos
sociais.
O progresso das técnicas renovou incessantemente as as-
pirações e as condições de vida do homem. O direito teve de se
adaptar a isso e reger as novas áreas e as novas formas da ativi-
dade humana para promovê-las ou limitá-las, conforme os ca-
sos. Os exemplos dos meios de transporte, das novas técnicas
de comunicação, da biologia e da medicina são probatórios.
Ao desenvolvimento da aviação, o direito respondeu com o
direito aéreo; aos riscos gerados pelo uso generalizado das má-
quinas, ele contrapôs a responsabilidade objetiva e as técnicas
de seguro. Da informática 20 , o direito retirou frutos preciosos
para melhorar a própria técnica jurídica e suas próprias pesqui-
sas, brandindo ao mesmo tempo as liberdades individuais con-

19. R. CARRE DE MALBERG, La loi, expression de la voíonté générale,


ed. Sirey, 1931; nova edição, Eeonomica, Paris, 1984, prefácio de G. Burdeau.
20. "Ordre juridique et ordre technologique", sob a direção de D. BOUR-
CIER, Cahiers science-technologie-société, n? 12, Paris, ed. do C.N.R.S., 1986.
Ver também "Droit et science", Archives de philosophie du droit, t. 36, ed. Sirey,
1991.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 205

tra os perigos que ela pode conter. Da biologia, ele retirou no-
vos meios de prova em matéria penal, no campo da filiação e
no de responsabilidade civil.
Os progressos da medicina levaram o direito francês a re-
conhecer e reger os transplantes de órgãos mas a rejeitar, ao
menos por ora, o transexualismo ou as associações de "mães
de aluguel". Deve-se tomar cuidado com os possíveis assaltos
das ciências da vida contra os direitos do homem, A ordem ju-
rídica deve controlar as vicissitudes da genética ou da procria-
ção assistida, assim que o homem ficar ameaçado por elas em
sua existência ou em sua dignidade. Dever-se-á legislar para
esse fim ou será melhor confiar na consciência dos cientistas,
nas comissões de ética ou nos recursos do sistema jurídico
atual? Essa questão se coloca agora no mundo inteiro 21 .
Na França, o legislador resolveu intervir para garantir o
respeito pelo corpo humano, para limitar as investigações gené-
ticas sobre as pessoas e em matéria de procriação assistida 22 .
A sociedade ocidental moderna e a evolução jurídica co-
nheceram a promoção da pessoa humana, o declínio da família
legítima, o esfacelamento da noção tradicional de contrato no
dinamismo econômico e social e a coletivização das relações
jurídicas, a socialização do direito dos bens... O direito moder-
no consagrou a emergência de novos conceitos e "de ordens
jurídicas novas, essencialmente econômicas", e conheceu uma
transformação considerável da função jurisdicional. A passa-

21. Ver notadamente J. L. BAUDOUIN e C. LABRUSSE-RIOU, Produire


1'homme. De quel droit? Etude juridique et éthique des procréations urtifieielles,
P.U.F., Paris, 1987; F. TERRÉ, fen/ant de 1'esclave, Génétique et droit, ed.
Flammarion, Paris, 1987; Sciences de la vie, de I'éthique au droit, Estudo do Con-
selho de Estado, "Notes et études documentaires", La documentation française,
1988; L 'homme, la nature et le droit, textos apresentados por B. EDELMAN e M.
A. HERMITTE, ed. C. Bourgeois, Paris, 1988, em especial C. LABRUSSE-RIOU,
"Servitude, servitudes", pp. 308 ss.; J. F. MATTEI, "La vie en question: pour une
éthique biomédicale", Relatório ao Primeiro-M inistro. La documentation françai-
se, 1994.
22. Lei n? 94-653 de 29 de julho de 1994 "relativa ao respeito pelo corpo hu-
mano (J.O., 30 dejulho de 1994).
206 TEORIA GERAL DO DIREI K >

gem da ordem individual à ordem coletiva e o desenvolvimen-


to de novas instituições como a empresa ilustram perfeitamen-
te a amplitude dessas mutações 23 . Mas essas transformações
não passam do reflexo dos fatos sociais e da demonstração de
que, substancialmente, o direito é um fenômeno social e a re-
gra de direito uma regra social.
Inversamente, nem todas as regras sociais são regras de
direito. A moral também é uma resultante da sociedade, mas,
por demais subjetiva e desprovida de sanções objetivas, ela é
totalmente diferente do direito. O direito difere também pro-
fundamente da religião, dos usos de decoro, das regras de cos-
tumes 24 etc. Se, em seu particularismo, o direito é, natural e
substancialmente, de natureza social, levanta-se a questão de
saber se ele é apenas obra dos fatos sociais.

2. Uma relação de filiação?

155. - Tudo depende de saber se o direito é, quanto ao seu


conteúdo, "dado" pelos fatos sociais independentemente de
qualquer elaboração humana ou se é construído pelo homem;
"se é dado ou construído", conforme os termos em que Gény
formulou o problema do método jurídico 25 .
Segundo a Escola Sociológica que, no século XIX, se de-
senvolveu em especial na França com a corrente cientificista,
o direito entra essencialmente nos fenômenos sociais submeti-
dos ao determinismo. Por conseguinte, ele pode ser objeto de
uma ciência positiva da observação dos fatos fora de todos os
princípios metafísicos, pois não depende da vontade dos go-
vernantes aos quais se impõe a realidade sociológica. Inspira-
da pela obra de Auguste Comte e preparada pela obra do filó-
sofo inglês Herbert Spencer, é sobretudo das teses de Durk-

23. E. BERTRAND, L esprit nouveau des lois civiles, ed. Economica, 1984.
24. D. ALLAND, "Les mceurs sont-elles solubles dans le droit?", in "Droit
et moeurs", Revue droits, 1994, n? 19, pp. 3 ss.
25. Ver supra, n° 100.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 207

heim que essa teoria extrai sua fonte. Copiando das ciências
físicas e naturais o método indutivo fundado na observação
dos fatos, a escola sociológica constata fenômenos e procura
reportá-los a antecedentes que lhes servem de causa. Con-
vencida, por essa observação dos fatos, da influência prepon-
derante da pressão social sobre os destinos do homem, ela vê
no direito o conjunto dos meios pelos quais um grupo humano
se protege contra os transtornos que lhe atingem a conservação
ou lhe entravam o desenvolvimento. Admite-se então que "as
regras de direito sempre se limitam a expressar relações so-
ciais tais como o grupo as imagina. Segue-se daí que a fonte de
uma regra jurídica está bem menos na vontade individual de
seu autor do que na necessidade a que ela é destinada a satisfa-
zer" 26 . O direito, segundo Durkheim, se prende à consciência
coletiva.
Para uns juristas, como Duguit, ele procede da massa das
consciências individuais. Na esteira da escola sociológica, Du-
guit, descartando toda concepção metafísica para concentrar-
se apenas nas realidades positivas, reconhece, porém, na regra
de direito todo um conjunto de normas que ele considera supe-
riores e que ficam alheias às realidades e aos fatos 27 . Essa con-
cepção foi ainda mais ampliada por Hauriou que alia a obser-
vação dos mecanismos sociais aos métodos jurídicos de solu-
cionamento dos interesses em conflito e a consideração das
finalidades universais da humanidade aos fenômenos sociais 28 .
Vemos assim destacar-se uma doutrina intermediária que, sem
fazer dela um fim em si, utiliza a sociologia como meio de
pesquisa, de realização e de explicação do direito.
156. - De fato, a sociologia não parece suficiente para de-
finir a regra de direito, norma coerciva que impõe e não se con-
tenta em refletir fatos sociais, que é precisa e não inconstante

26. H. LÉVY-BRUHL, "Droit et sociologia", Árch. de philo. du droit et de


soe. juridique, 1973-4, p. 22.
27. L. DUGUIT, L 'Êtat, le droit obfectif et la loi positive, Paris, 1901, pp.
15-19, 20, 80-137.
28. M. HAURIOU, La science saciai traditionnelle, Paris, 1896; Philoso-
phie du droit et science social, R.D.P., 1899, 2' ed., t. 12, pp. 462-76, p. ex.
208 TEORIA GERAL DO DIREI K >

como são os fatos sociais. O positivismo repousa, ademais, nu-


ma espécie de fatalismo que identifica a meta a ser atingida ao
sentido do movimento social pelo qual o direito se deixaria em-
balar. Por conseguinte, ele não fornece uma direção suficiente à
vida. Sob esse aspecto, essa doutrina é perigosa. Ela justifica
todas as complacências e todos os desvios, enquanto o direito,
cuja função é ordenar, conjuga com os dados reais considera-
ções psicológicas, morais, religiosas, econômicas, políticas e
busca aí a organização desejável das relações sociais. Assim,
acrescenta aos dados reais um idealismo necessário.
Segundo Duguit, "a consciência, na massa dos indivíduos
de um dado grupo, de que tal regra... é essencial para a manu-
tenção da solidariedade social, a consciência de que é justo
sancioná-la" são os dois elementos principais da formação e
da transformação da regra de direito. Por conseguinte, o traba-
lho do jurista é duplo. Comporta "um trabalho realmente cien-
tífico", em que não entra nenhuma filosofia nem nenhuma me-
tafísica, que consiste em "descobrir sob os fatos sociais a regra
de direito". Implica também um "trabalho de arte técnica: pre-
parar a regra... construtiva tendente a determinar o alcance e a
garantir a realização da norma" 29 .
Cumpre por certo ir mais longe e admitir que o direito não
tem a única função de colocar em forma normativa o dado so-
cial. Isso seria desconhecer a autonomia da consciência huma-
na e a existência de um fundo de verdades morais e econômi-
cas que se vinculam à idéia do justo, do bem, do útil etc. e co-
mandam certas direções.
Deve-se convir que a parte do construído no direito posi-
tivo é enorme. As fontes do direito, seus modos de expressão,
grande parte de seu conteúdo são "construídos" 30 . Mas todos
admitem que na base da construção, "explicitado e desenvolvi-
do por ela mas vindo a nutri-lo", existe um "dado", realidade
jurídica anterior que alguns autores encontram no positivismo
e outros numa metafísica, no "direito natural".

29. L. DUGUIT, Traité de droit constitutionnel, 3a ed., t. I, §§ 11 e 15.


30. J. DABIN, Théorie générale du droit, n° 145.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 209

Portanto, se o método sociológico não pode fornecer sozi-


nho uma definição e um método do direito, tem o grande méri-
to de discernir na observação científica dos fatos sociais as
realidades da vida que o direito deve tratar, as necessidades a
que deve satisfazer, as aspirações que convém acolher ou com-
bater. Por conseguinte, a sociologia, embora não seja a mãe
nutriz do direito, é um dos elementos essenciais da elaboração
da regra jurídica, de sua evolução, de sua apreciação, de sua
explicação 31 .
A sociologia jurídica, cujo objeto é a análise dos fatos ju-
rídicos considerados como fatos sociais, concorre, pois, para a
elaboração, a aplicação e a transformação do direito positivo.

SEÇÃO II
A sociologia jurídica

157. - O problema aqui não é o de procurar o que ojurista


pode proporcionar ao sociólogo, mas o que o sociólogo pode
proporcionar ao jurista. Este necessita saber quais são as re-
gras por estabelecer, "tanto relativamente ao fim que se deve
perseguir quanto segundo a eficácia dos meios aptos para lhe
atender". A sociologia pode então guiar os juristas, mediante o
estudo das estruturas sociais atuais, para descobrir aquelas que
eles têm de normalizar com regras de direitos; pode também
ajudá-los a detectar as reações previsíveis do corpo social às
diversas prescrições possíveis, especialmente conforme seu ca-
ráter imperativo ou supletivo 32 .
Constatando que o direito manteve-se muito tempo afas-
tado das outras disciplinas sociais, H. Lévy-Bruhl preconizou
estudar os fatos jurídicos em si mesmos e sem preocupação

31. Ver J. F. PERRIN, Sociologie empirique du droit, ed. Helbing e


Liehtenhahn, Basiléia e Frankfurt, 1997, Prefácio de J. Carbonnier.
32. F. GÉNY, Science et technique du droit privé, t. I, n° 32; R. SAVA-
TIER, Les métamorphoses économiques et sociales du droit privé d aujourd hui,
1.1, n?s 108 ss.
210 TEORIA GERAL DO DIREI K >

prática, segundo um método científico e não só de um ponto


de vista técnico. Essa ciência do direito a que chamou "a jurís-
tica" devia concentrar-se nas "instituições" sob seus diversos
aspectos em todos os grupos sociais, e não, em princípio, em
tal direito nacional particular, devendo o método ser a um só
tempo jurídico, histórico, comparativo e sociológico 33 . Deve-
se, de fato, distinguir a sociologia jurídica daquilo a que cha-
mam "o direito dogmático". Este se refere às regras de direito
em si mesmas, na gênese e na aplicação delas, enquanto fatos
normativos obrigatórios e coercivos. A sociologia jurídica in-
vestiga as causas sociais que produziram essas regras e os efei-
tos sociais que elas produzem sem se prender à autoridade das
normas. A sociologia jurídica é então esse ramo da sociologia
geral que se interessa pelos fenômenos sociais no sentido lato,
ou seja "por todos os fenômenos sociais nos quais está com-
preendido um elemento de direito, ainda que esse elemento
neles se encontre misturado e não no estado puro". Ela englo-
ba ao mesmo tempo os "fenômenos jurídicos primários", os
que se identificam ao direito ou criam direito (a lei, a sentença
etc.) e os fenômenos secundários" ou "derivados", tais como a
família, a propriedade, o contrato, a responsabilidade etc.34 A
sociologia jurídica se distingue também da filosofia do direito:
atém-se às aparências, sem se aplicar a uma transcendência
qualquer dos fatos; utiliza métodos empíricos, "a observação
de massa" ou a experimentação 35 .
Assim, a sociologia jurídica efetua "pesquisas de evolu-
ção" para descobrir as grandes correntes que governam as
transformações do jurídico. Faz também "pesquisas de estrutu-
ra" que estudam a regra relativamente à realidade que a produz
e a recebe e determinam as relações entre diversos fenômenos
jurídicos (contrato, casamento, divórcio, sucessão, processo,
etc.) ou próprios de um fenômeno particular. Assim, a sociolo-

33. H. LÉVY-BRUHL, Aspects sociologiques du droil, pp. 33 ss.


34. J. CARBONNIER, Sociologie juridique, ed. Presses Universitaires de
France, 1978, pp. 17 ss.
35. J. F. PERRIN, Sociologie empirique du droit, op. cit.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 211

gia jurídica tem uma função documentária e normativa, teórica


ou prática. Desse modo, temos de especificar seu objeto (§ 1)
e abordar seus métodos (§ 2).

1. O objeto da sociologia jurídica

158. - A sociologia jurídica perseguiu objetivos diferentes


conforme as escolas de pensamento; nós nos referiremos aqui
à obra de sociologia jurídica de J. Carbonnier.
Durkheim, que estabeleceu o vínculo entre a sociologia e
o direito, dedicou-se a temas diversos: instituições, regras, sis-
temas, evolução penal. Seus discípulos se debruçaram sobre a
gênese e a evolução do direito, através da exploração das so-
ciedades primitivas e da história. O estudo da criminalidade
ensejou, por outro lado, muitos estudos sociológicos, da esco-
la italiana com Ferri e sobretudo Lombroso, que baseavam a
criminalidade numa antropologia, à escola francesa com Tar-
de, que se concentrava mais na psicologia. Constitui a origem
da criminologia moderna.
Costuma-se considerar que o verdadeiro fundador da so-
ciologia do direito é o jurista austríaco E. Ehrlich, enquanto
alguns autores negam-lhe essa qualidade, encontrando em sua
obra apenas um método de interpretação do direito positivo,
dentro da "abordagem do direito vivo". O "pluralismo jurídi-
co", segundo o qual vários sistemas jurídicos independentes e
concorrentes podem coexistir num mesmo momento dentro de
um mesmo espaço social, foi desenvolvido na França por Gur-
vitch, que inventariou nas sociedades contemporâneas inume-
ráveis centros geradores de direito além do Estado: organiza-
ções internacionais, sindicatos, cooperativas, empresas etc. Na
França, os comparatistas, os historiadores do direito, com H.
Lévy-Bruhl, os economistas, os juristas, os publicistas com
Duguit e Hauriou, ou privatistas, de maneira mais difusa até a
época presente, e sobretudo Carbonnier, foram dedicando-se
progressivamente à sociologia jurídica ou, pelo menos, abor-
daram o direito dentro de uma perspectiva evolucionista. Na
Alemanha, Max Weber e Theodore Geiger deixaram uma obra
212 TEORIA GERAL DO DIREI K >

considerável de sociologia geral. Weber36 enriqueceu com ela


sua doutrina de sociologia jurídica que se empenha em desco-
brir a essência do jurídico, em oposição aos costumes ou à
moral. As normas jurídicas são, segundo ele, designadas pela
presença de um pessoal do direito (o chefe, o juiz, o jurista
etc.) encarregado de lhes assegurar o respeito e as sanções da
violação delas. Existe uma "lei de Weber" segundo a qual "o
progresso do direito se realiza no sentido de uma racionaliza-
ção, portanto de uma especialização e de uma burocratização
constantes". Geiger qualificou sua doutrina de "realismo do
direito": recusando as idéias já prontas oriundas do "direito
dogmático" e apoiando-se em fatos tirados da etnologia, da
história, da prática jurídica atual, ele formaliza suas conclusões
com símbolos de tipo algébrico. A escola americana da "so-
ciological jurisprudence", na esteira de Roscoe Pound apre-
sentou a teoria sociológica do direito sob uma ótica dupla,
científica e prática. Cientificamente, nela encontramos um es-
forço constante para ligar o direito aos outros fenômenos so-
ciais, mormente inserindo o direito na categoria social mais
geral do "controle social", que abrange o conjunto dos meios
de todos os tipos (educação, arte, costumes, ética etc.) com os
quais a sociedade assegura sua coesão e cujo instrumento prin-
cipal seria o direito. Na prática, apoiando-se na idéia de que a
evolução do direito não procede da lógica mas da experiência,
essa doutrina preconiza substituir a dedução pela indução na
elaboração da jurisprudência, devendo o juiz investigar sobre-
tudo, em cada caso, quais efeitos concretos terá sua decisão, o
que lhe confere grande liberdade para interpretar os textos e
criar o direito. Enfim, numerosas sociologias jurídicas se fun-
damentam em abordagens psicológicas e, notadamente, nas
teorias americanas de psicologia social.
Em última análise, abstraindo essas diferentes correntes,
um estudo global da sociologia jurídica mostra seu dualismo:

36. M. WEBER, Sociologie du droit, trad. fr. J. Grosclaude, prefácio de P.


Raynaud, ed. P.U.F., Paris, 1986; "Max Weber - Réception, diffusion de sa so-
ciologie du droit - Le droit comme activité sociale", Droit etsociété, 9, 1988, pp.
165 ss.
i > I ENÔMENO DO DIREITO 213

de um lado, a sociologia teórica se apóia na reflexão a partir de


livros e de documentos; do outro, a sociologia empírica proce-
de mediante pesquisa de campo 37 . Mas a estratégia atual parece
ser a de passar da sociologia jurídica especulativa para a socio-
logia aplicada. Isso permite à sociologia jurídica abrir-se em
toda parte para um setor prático, sobretudo em áreas como a
família, as fontes de direito e, agora, o conhecimento da lei, a
imagem da justiça entre o público, o processo e seus prazos etc.
Mas conserva um setor teórico. Assim, o campo da sociologia
jurídica (A) põe em evidência sua utilidade (B).

A. O campo da sociologia jurídica

159. - Repetindo ainda a apresentação do deão Car-


bonnier 38 , podemos dizer que a sociologia jurídica versa sobre
"os fenômenos jurídicos" e "o sistema jurídico".
O "fenômeno jurídico" corresponde, em sociologia, ao que
se chama "o direito" em direito dogmático. Mas nela o fenô-
meno jurídico está pulverizado em diversas classificações. Dis-
tinguem-se assim dos "fenômenos jurídicos primários", aque-
les de que derivam todos os outros descendo do geral ao parti-
cular, os "fenômenos secundários", ou seja, todos os que são
seus derivados. Os fenômenos primários são fenômenos de
autoridade, de poder (um texto de lei ou os termos de uma sen-
tença), enquanto os fenômenos secundários só representam seu
conteúdo ou sua aplicação, o contrato ou um contrato particu-
lar. Essa distinção serve para delimitar o conteúdo da sociolo-
gia jurídica em comparação à sociologia geral. Contrapõe-se
também aos "fenômenos de poder", pondo-nos do lado dos
governantes, os "fenômenos sob o poder", se nos pomos do
lado dos governados, dos sujeitos de direito, tais como o direi-
to subjetivo, os fenômenos de obediência ou de desobediência,
a imagem do direito que os indivíduos têm. Isso abre o cami-

37. J. F. PERRIN, Sociologie empirique du droit, op. cit.


38. J. CARBONNIER, Sociologie juridique, op. cit., pp. 157 ss.
214 TEORIA GERAL DO DIREI K >

nho para múltiplas investigações sobre "o processo de juridici-


zação" do homem na sociedade, os caminhos que ele toma
(família, escola etc.), sua progressão segundo a idade, o sexo,
as camadas sociais... Distinguem-se ainda "os fenômenos-ins-
tituições" que são compostos de regras, dos modelos, como o
casamento por exemplo, e "fenômenos-casos" que são apenas
aplicações particulares, tal como um casamento particular. Mas
esses fenômenos podem ser "fenômenos individuais" conside-
rados em seu particularismo próprio ou agrupados em "fenô-
menos coletivos" (os casamentos num determinado país) dos
quais só conservamos os caracteres comuns.
Estudaremos "os fenômenos-instituições" pelo "método
histórico-comparativo", os fenômenos coletivos de maneira
quantitativa pela estatística e pesquisa de opinião, os fenôme-
nos individuais pelo estudo de casos. Há que discernir também
os fenômenos contenciosos e não-contenciosos.
Mas se lembramos que, ao passo que todo fenômeno jurí-
dico é um fenômeno social, nem todos os fenômenos sociais
são fenômenos jurídicos, temos de caracterizar a regra de di-
reito relativamente às outras regras de conduta, ou seja, desco-
brir os critérios da juridicidade. A distinção entre "o jurídico"
e "o social não-jurídico" alimentou continuamente a reflexão
dos juristas, dos filósofos, dos sociólogos... Os critérios intrín-
secos, tirados do objeto ou do conteúdo da regra, não refletem
sua especificidade: "não matarás" é ao mesmo tempo uma re-
gra de moral, um mandamento religioso e uma regra de direi-
to. Portanto, temos de investigar o critério da regra de direito
no exterior, posteriormente a esta. Encontramo-lo, segundo as
diversas teorias, na "coerção" por cujo efeito ela será aplicada
ou, ao contrário, na "contestação" por cujo efeito ela poderia
ser transgredida, sob o controle de um órgão (o juiz).
A sociologia jurídica versa também sobre "o sistema jurí-
dico". Estuda então "o direito de uma sociedade global", em
geral um direito nacional, ou seja, o todo dos fenômenos jurí-
dicos "que se situam num mesmo espaço e num mesmo tempo
da sociedade" e que "são unidos entre si por relações de soli-
dariedade que delineiam um sistema". Esse conceito traduz que
i > I ENÔMENO DO DIREITO 215

todo sistema de direito é um conjunto cujos elementos consti-


tutivos não são fortuitamente reunidos, mas ligados por rela-
ções necessárias e interdependentes, de modo que esse conjun-
to é distinto de seus componentes e mais duradouro do que
eles. O sistema jurídico se delimita por um espaço mais huma-
no do que geográfico (os nômades não têm território, mas po-
dem ter um sistema jurídico) que se expressa por agrupamentos.
Vários sistemas jurídicos superestatais, estatais e infra-estatais
podem nele coexistir e competir entre si. Enfim, os sistemas
jurídicos têm uma dimensão temporal na qual se transformam,
de modo que é preciso estudar-lhes o sentido e as modalidades de
sua evolução bem como as relações entre essa evolução e as
outras mudanças sociais. Mas todo sistema jurídico concorre
para constituir uma cultura, para formar uma nação, para pro-
vocar outros fenômenos psicossociais; destila suas fraquezas,
suas faculdades de adaptação; sofre as agressões exteriores
(guerra, por exemplo). Cumpre então estudar a capacidade de
resistência que lhe possibilita sobreviver a suas transforma-
ções ou deixá-lo morrer, como estão mortos os costumes gau-
leses, sem deixar vestígios no direito francês.

B. A utilidade da sociologia jurídica

160. - A utilidade da sociologia jurídica reside em sua du-


pla função científica e prática 39 .
A função científica à qual corresponde a sociologia jurí-
dica "pura" consiste em atingir a realidade cuja intuição o ju-
rista às vezes tem mas cujo conhecimento exato, cuja medida
e composição amiúde complexa ele tem de ter. Não basta, por
exemplo, perceber o declínio do casamento em proveito da
união livre na sociedade contemporânea. É preciso verificá-lo
por fatos estabelecidos e quantificados, até mesmo desmentir
a amplitude imaginada do fenômeno. Cumpre determinar a

39. J. CARBONNIER, op. cit., pp. 335 ss.


216 TEORIA GERAL DO DIREI K >

quem ele concerne, quais meios sociais, quais faixas etárias,


quais tipos de indivíduos (solteiros, divorciados, viúvos). Cum-
pre investigar o grau de estabilidade do concubinato... Por-
tanto, há que apreender a realidade profunda para além de suas
manifestações superficiais. Assim, a sociologia jurídica pro-
porciona não só o conhecimento dos fenômenos mas também a
explicação deles. No tocante aos "fenômenos-instituições", é a
comparação da sua gênese nos sistemas jurídicos diferentes
que permite deixar evidentes suas leis de evolução. No que
tange aos "fenômenos-casos", é reunindo-os num conjunto co-
letivo, segundo critérios comuns e objetivos que podemos es-
tudá-los. Então é possível apreciar a parte de determinismo e a
parte de vontade, "de arbitrariedade", que entram nos fatores
de evolução ou de reforma do direito e deduzir desses estudos
verdadeiras "leis científicas" cm sociologia do direito.
A função prática da sociologia do direito parece concen-
trar-se ao redor da decisão jurídica: a declaração de vontade
contratual, a sentença, a lei são decisões jurídicas. A sociolo-
gia do direito pode enriquecer-se com a experiência dos espe-
cialistas da decisão e pode, inversamente, cooperar com a ma-
temática, a informática e a psicologia para orientar as escolhas
que comandam as decisões, depois da análise dos múltiplos
elementos das situações envolvidas. É então um dos fatores
determinantes das escolhas racionais de que dependem as de-
cisões. Pode contribuir para a formação do contrato (escolha
dos co-contratantes e do conteúdo da convenção) e para seu
funcionamento. Pode também concorrer utilmente para a deci-
são do juiz, não só em áreas como a autoridade paterna ou a
assistência educativa em que a perícia sociológica melhoraria
as pesquisas atuais, mas também para a prova dos usos profis-
sionais em direito comercial ou em direito do trabalho e, en-
fim, para circunscrever noções essenciais do direito positivo
como, por exemplo, a de "bons costumes".
Pode-se também pensar, entretanto com mais reserva em
razão do risco de desvio político, na utilidade que a sociologia
pode ter para a interpretação da lei pelos tribunais. A sociolo-
gia permite, enfim, avaliar a importância real das instituições
i > I ENÔMENO DO DIREITO 217

no contencioso e, portanto, conhecer, sob esse aspecto, sua


importância prática.
Mas é sobretudo para o trabalho legislativo que se mani-
festa a utilidade prática da sociologia jurídica. A sociologia
jurídica pode mormente servir de auxiliar ao legislador para
fazer a opinião pública assimilar a lei, seja preparando esta
para uma reforma, seja divulgando melhor a reforma operada.
Trata-se então de uma psicossociologia, por certo útil mas que
às vezes beira a propaganda. Sobretudo, a sociologia jurídica,
por permitir apreender a realidade social, é essencial para o
trabalho de preparação legislativa, trate-se de incentivar o le-
gislador a intervir ou simplesmente orientar-lhe as escolhas.
Conquanto tenha sido nos Estados Unidos, por volta de 195040,
que o interesse dessa utilização da sociologia pareça ter sur-
gido, parece ter sido na França, no que tange à lei de 14 de
dezembro de 1964 sobre a tutela dos menores e à reforma dos
regimes matrimoniais de 13 de dezembro de 1965, que foi em-
pregada as primeiras vezes. O método sociológico, fundamen-
tado em pesquisas de opinião, notadamente por iniciativa do
Ministério da Justiça, é agora de uso corrente 41 .

2. Os métodos da sociologia jurídica

161. - Para poder examinar bem a realidade social do di-


reito, a análise sociológica extrai certas técnicas de investiga-
ção do estado das práticas e dos comportamentos jurídicos 42 .
Inspirados nos métodos da sociologia geral, aqueles da socio-
logia jurídica são variados. Podem reportar-se tanto à observa-
ção, global ou caso por caso, quanto à experimentação. Não há
por que atardar-nos aqui nisso.

40. Relatório Kinsey sobre o comportamento sexual dos americanos.


41. Dentre os numerosos exemplos de utilização desse método em ciência
legislativa, podemos citar, além da reforma do divórcio pela lei n? 75-617 de 11 dc
julho de 1975 (ver infra, "ilustração"), a introdução da mediação penal em direito
Irnncês pela lei de 4 de janeiro de 1993 (art. 4] doCPP).
42. J. F. PERRIN, Sociologie empirítfue du droit, op. cit., pp. 65 s.
218 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Mas, seja qual for o método empregado, a pesquisa socio-


lógica pressupõe uma definição precisa de seus objetivos, de
seus materiais, de seus critérios de aplicação... Comporta ge-
ralmente, de início, uma análise qualitativa, ou seja, um recen-
seamento de todos os sinais significativos, de todos os docu-
mentos ou fatos analisados, qualquer que seja sua qualidade,
ainda que sejam aberrantes. Pressupõe também, o mais das ve-
zes, uma análise quantitativa que permite medir os fenôme-
nos, os fatos ou os documentos e que leva a "estatísticas" 43 . Os
dados assim coletados devem ser por fim explorados. Em so-
ciologia jurídica, em que a realidade dos fenômenos supõe cer-
ta generalidade, a quantificação é primordial, pois é a repeti-
ção das constatações que, por indução, autoriza uma conclusão
geral. Mas os métodos sociológicos exigem todos a objetivida-
de do pesquisador, apartado de sua experiência pessoal e tra-
tando os fatos sociais como coisas, segundo a doutrina de
Durkheim. Todos eles privilegiam a materialidade dos fatos e
não a idéia que se tem deles. Todos eles pressupõem uma per-
feita neutralidade do pesquisador, isento de qualquer precon-
ceito técnico, moral, filosófico, político, religioso ou outro.
Os métodos da sociologia jurídica variam também confor-
me as fontes utilizadas. Distinguimos então a pesquisa baseada
em documentos e a pesquisa dos fatos 44 . A pesquisa basea-
da em documentos jurídicos, notadamente pela análise de ju-
risprudência ou de fórmulas e de atos jurídicos, ou em docu-
mentos não-jurídicos, como a análise da imprensa, associa cada
vez mais análises quantitativas e as técnicas modernas, tais co-
mo a informática. Quanto à pesquisa dos fatos, ela deve operar-
se in loco e se fundamenta, conforme os casos, na pesquisa mo-
nográfica ou na pesquisa por inquirição. Esta só tem valor em
função de uma determinação adequada de seu objeto (inquiri-
ção de conhecimento ou de opinião), da qualidade do questio-

43. Ph. BONFILS, "L'outil statistique et son utilisation dans les seiences
juridiques", in "Méthodologie de la recherche juridique", Cahiers de méthodolo-
gie juridique, n? 11, R. R. J., 1994-4, P.U.A.M., pp. 1129 ss.
44. J. CARBONNIER, np cit., pp. 248 ss.
O FENÔMENO DO DIREITO 219

nário, das modalidades da inquirição (por correspondência ou


por entrevista).
Acontece que, apesar de seu método científico, a sociolo-
gia jurídica não pode proporcionar tudo ao direito e não pode
levar a conclusões legislativas categóricas. Só pode e deve ser
um método de investigação da realidade social que propicia
uma preciosa ajuda à decisão jurídica: embora seja muito difí-
cil passar da observação sociológica para a conclusão normati-
va, a utilização pelo direito do método sociológico tornou-se
uma necessidade imperativa.
220 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ILUSTRAÇÃO

UM EXEMPLO DA CONTRIBUIÇÃO DA PESQUISA


SOCIOLÓGICA PARA A REFORMA LEGISLATIVA
E DA SOCIOLOGIA JUDICIÁRIA PARA O ESTUDO
DA APLICAÇÃO DA LEI

- O divórcio na França -

A "divorcialidade" foi objeto de diversos estudos por


parte dos sociólogos e dos demógrafos a partir dos registros
do estado civil e das estatísticas judiciárias (ver Ministério da
Justiça, "Le divorce en France", ano 1970, Sociologie juridi-
que, recherches et statistiques). A reforma do divórcio na
França pela lei n? 75-617 de 11 de julho de 1975 foi prepara-
da principalmente por importantes pesquisas sociológicas
empreendidas em colaboração entre o Instituto Nacional de
Estudos Demográficos e o Laboratório de Sociologia Jurídica
da Universidade de Direito de Paris. Essa pesquisa compor-
tou duas pesquisas por inquirição: uma, realizada sobre uma
amostragem de novecentos divorciados, tinha o objetivo de
conhecer a experiência do divórcio, tal como é vivida do inte-
rior pelos jurisdicionados. A outra, referente a uma amostra-
gem nacional de duas mil, cento e quarenta pessoas, tinha o
objetivo de conhecer a atitude dos franceses diante dos pro-
blemas do divórcio {Le divorce et les français, P.U.F., 1974 e
1975,2 vols.; J. Carbonnier, "La question du divorce", D. 1975,
I 115). Tais investigações foram prosseguidas depois da lei
de 1975.

I - Esses estudos mostraram, no que tange ao período consi-


derado, uma progressão constante do número total dos divór-
cios na França:
i > I ENÔMENO DO DIREITO 221

Ano Número total Ano Número total


de divórcios de divórcios
1884 1.657 1972 45.900
1910 14.261 1973 50.975
1938 23.377 1975 62.332
1960 30.182 1980 91.805
1966 36.732 1984 108.010

Eles assinalam o reduzido número de separações de corpos


pronunciados e sua estagnação:

1973:4.136 1980:4.088 1984: 4.005

A porcentagem dos divórcios em comparação aos casamentos


não parou de aumentar:

Ano Número para 100 casamentos


1900 -de 6
1940 9
1970 12
1979 24,2
1984 29,1

A duração média do casamento dos casais em instância de di-


vórcio era de doze anos em 1975. Mais da metade dos casais
divorciados ficaram casados menos de dez anos e mais de um
quarto, menos de cinco anos:
222 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Duração do casamento em %

Depois de 0 a 2 anos: 6
2 a 5 anos: 20,3
5 a 10 anos: 28
10 a 15 anos: 17,1
15 a 20 anos: 11,9
20 anos e mais: 16,7

58% dos casais em instância de divórcio não têm filhos ou só


um. 32% esperaram um filho antes de se casar.
- 1% somente das tentativas de conciliação são bem-sucedidas.
As causas do divórcio observadas nas decisões judiciais foram:

Violências, ameaças e injúrias graves: 37,4% dos casos.


Adultério: 28,5% dos casos.
Abandono do domicílio conjugai: 22,8% dos casos.

II - Quanto à opinião dos franceses sobre o divórcio, as pes-


quisas feitas para preparar a reforma de 1975 mostraram:

Que 48% da opinião pública era favorável a uma liberaliza-


ção do divórcio e que 20% das pessoas interrogadas, embora ape-
gadas ao principio da indissolubilidade do casamento, admitiam
o divórcio em situações concretas. Somente 32% das pessoas
interrogadas desejavam a manutenção das soluções anteriores.

Sobre os casos de abertura do divórcio:


89% das respostas eram favoráveis ao divórcio consensual.
90% das respostas eram favoráveis ao divórcio por sepa-
ração de fato prolongada.
SEGUNDA PARTE

A aplicação do direito

162. - Sejam quais forem o valor de sua inspiração e de


suas fontes e sua adequação a seu meio ambiente, a razão de
ser de qualquer ordem jurídica é medida por "sua efetividade".
Não se pode contentar com o estabelecimento das regras de
direito pelo órgão competente. O direito precisa ser efetiva-
mente aplicado para existir realmente, conquanto ocorra que
textos, mesmo inaplicados, conservem sua utilidade. Alguns
estudos de sociologia jurídica lançaram luz sobre todas as va-
riações da efetividade e da não-efetividade da regra de direito.
Seria inexato dizer que a não-efetividade de um texto eqüivale
a uma ausência de texto. Mas pode-se considerar que o direito
só assume sua função essencial quando é efetivamente posto
em prática. Sua aplicação (Título II) pressupõe certos instru-
mentos (Título I).
TÍTULO I

Os instrumentos do direito

163. - O emprego do direito passa por conceitos bem de-


finidos e uma linguagem clara e precisa. O jurista sempre exe-
cuta seu trabalho com qualificações, assimilações e distinções.
Deve alternadamente ir do geral ao particular e do particular
remontar ao geral. Uma situação ou uma regra específica se
relaciona sempre com simações e com regras mais amplas
cujos caracteres e conseqüências toma emprestado. Para esse
constante vaivém entre as realidades concretas e a ordem jurí-
dica, os juristas utilizam especialmente alguns instrumentos
polivalentes essenciais que possibilitam o agrupamento das
regras e das noções ao redor de certo número de elementos co-
muns. Necessitam igualmente de uma linguagem apropriada.
É mister estudar sucessivamente as instituições jurídicas (Ca-
pítulo 1), os conceitos e as categorias (Capítulo 2) e a lingua-
gem jurídica (Capítulo 3).
Capítulo 1
As instituições jurídicas

164. - As instituições jurídicas são "conjuntos de regras


de direito organizadas em torno de uma idéia central, que for-
ma um todo sistematicamente ordenado e permanente" 1 . De-
signam-se assim pessoas e coisas tão diversas quanto o Estado,
as associações, as sociedades, os sindicatos, a família, o casa-
mento, a propriedade, os procedimentos técnicos, tais como a
representação, a instância, as vias de recurso etc. Por isso foi
possível dizer que a palavra "instituição" é "uma palavra cô-
moda por ser vaga" 2 . Conquanto essa noção tenha sido muito
estudada no século XX 3 , não está perfeitamente clara, ainda
que seus critérios e seus caracteres sejam agora conhecidos.
Assim que se trata de explicar as realidades que ela abrange,
surgem importantes desacordos.
Contestou-se às vezes a própria idéia de instituição redu-

1. J. BRETHE DE LA GRESSAYE, Rep. Civ., Dalloz, ver instituição n? 2.


2. R. SAVATIER, Les métamorphoses économiques et sociales du droit
civil d'aujourd'hui, n? 95.
3. Ver sobretudo M. HAURIOU, "L'institution et le droit statutaire". Re-
cucíl de Vacadémie de législation de Toulouse, 1906; "La théorie de 1'institution
Cl dc Ia fondation, essai de vitalisme social", Cahiers de la nouvelle journée, IV,
1925: "Príncipes de droit publique", 1910; G. RENARD, La théorie de iinstitu-
thm. essai d'ontologie juridique, 1930; La philosophie de 1'institution, 1939; A.
Dl S(JUEYRAT, L'institution, le droit objectif et Ia technique positive, Tese,
Pltrí», 1933; J. DELOS, "La théorie de 1'institution", Archives dephilo. du droit et
ilo sociologie juridique, 1931.
230 TEORIA GERAL DO DIREI K >

zindo-a a "romantismo jurídico" 4 . Não obstante, o recurso à


teoria das "instituições" permite "um remembramento racional
das regras corrigindo o que a divisão do direito em ramos po-
deria ter de superficial ou de demasiado absoluto" 5 . Portanto, é
para pôr em evidência a coesão necessária do sistema jurídico
que se deve tentar apreender-lhe as estruturas e, para além da
definição de uma noção única (Seção I), apreender a realidade
múltipla (Seção II) das instituições.

SEÇÃO I
Uma noção única

165. - A ambigüidade da noção de instituição deve ser li-


gada à percepção diferente que os historiadores, os sociólogos
e os juristas têm dela. Para os historiadores, trata-se da descri-
ção de fenômenos sociais tais como se manifestaram e se de-
senvolveram no passado de uma dada sociedade e que depen-
dem do direito e dos costumes ao mesmo tempo: estudam as
classes sociais, a família, o Estado, a Igreja, a economia etc.
como a expressão de uma época e da evolução de uma civiliza-
ção. Os sociólogos observam os fatos sociais humanos em seu
conjunto. O direito parece-lhes ser uma instituição social, e as
instituições designam para eles grupos humanos organizados
segundo as regras que instilam e impõem a seus membros por
intermédio da autoridade. Para os juristas, as instituições são
não corpos sociais, mas "corpos de regras" organizados em
torno de uma idéia mestra, por exemplo a organização da famí-
lia, da propriedade, do Estado 6 etc. São necessárias para a coor-
denação das regras de direito e para a continuidade da ordem
jurídica (§ 1). Correspondem a um conceito bem determinado
(§ 2) ligado à especificidade delas (§ 3).

4. J. BONNECASE, "La science du droit civil", Rev. gén. de droit, 1931, p.


175; "Une nouvelle mystique, Rev. gén. de droit, 1933, p. 241.
5. J. DABIN, Théorie générale du droit, 1969, nf 89.
6. J. BRETHE DE LA GRESSAYE, op. cit., n? 2.
A APLICAÇÃO DO DIREITO 231

1. A utilidade das instituições jurídicas

166. - As regras de direito não são normas dispersas e in-


dependentes umas das outras. Ordenam-se entre si, agrupam-
se, hierarquizam-se.
A organização jurídica de um fenômeno social como o
Estado ou a família se traduz por um estatuto que lhe fixa as
condições de existência, a composição, o funcionamento. O re-
gime da propriedade determina-lhe o conteúdo e os limites, os
modos de aquisição, de exercício e de transmissão, as sanções.
Assim, as regras de direito devem ser agrupadas em conjuntos
organizados que constituem a organização jurídica de um certo
tipo de relação social em torno de uma idéia diretriz, de uma
inspiração comum.
As instituições jurídicas correspondem então a esses con-
juntos orgânicos e sistemáticos de regras de direito que regem,
consoante uma meta comum, uma manifestação permanente e
abstrata da vida social. Entre as regras assim articuladas, exis-
tem encadeamentos lógicos e materiais e "uma hierarquia cuja
chave é fornecida pela finalidade da instituição e pelo grau de
proximidade do meio ao fim, sendo o meio mais distante su-
bordinado ao meio mais próximo e assim por diante" 7 . As ins-
tituições são verdadeiros corpos jurídicos. Ihering escrevia:
"As regras encontram nesse objetivo em comum seu ponto de
reunião: circundam-no como os músculos circundam os ossos.
A relação da vida assim traduzida em forma jurídica pode
estar, por sua vez, numa relação de dependência com uma ou-
tra relação com a qual é conexa... Destarte, as diversas relações
da vida que... podem ser objeto de um exame separado se reú-
nem em torno de algumas grandes unidades sistemáticas: as
instituições jurídicas que... representam a ossatura do direito à
qual se une sua substância inteira composta das regras de direi-
to"" As instituições jurídicas se coordenam efetivamente entre

7. J. DABIN, op. cit., n° 87.


8. IHERING, L 'esprit du droit romain, trad. fr., de Meulenaere, I, pp. 36 ss.,
Vlttdo por P. ROUBIER, Théorie générale du droit, 1951,n?3.
232 TEORIA GERAL DO DIREI K >

si. Assim é que a obrigação alimentar e o casamento se unem


para formar com outras uma instituição jurídica mais vasta, a
família.
Todas as instituições jurídicas se articulam ainda entre si
para formar juntas a ordem jurídica 9 . O próprio direito é a ins-
tituição por excelência. "A instituição jurídica, no singular, se-
ria o direito inteiro, ou seja, teoricamente, a soma e a síntese
das instituições jurídicas particulares que compõem o direito"
de um país 10 .
167. - Percebe-se, por conseguinte, a utilidade do concei-
to de instituição jurídica. Ele possibilita reunir em torno de um
interesse comum e de uma mesma inspiração regras dispersas
sob rubricas diferentes nos textos ou nos códigos, mas que são
complementares pela finalidade e pelo espírito que as animam.
O recurso à teoria da instituição permite, em conseqüência, in-
ventariar todos os elementos díspares de um mesmo fenômeno
jurídico. Reúnem-se assim as regras civis, fiscais, sociais, co-
merciais do casamento; reúnem-se todos os seus aspectos
pessoais e os seus aspectos patrimoniais; agrupam-se suas obri-
gações e suas sanções civis e penais... Apenas o conceito de
instituição jurídica permite absorver num mesmo complexo
jurídico as múltiplas facetas de um fenômeno social, portan-
to conhecê-lo bem.
Isso também possibilita reunir os aspectos comuns de fe-
nômenos diferentes. A idéia de posse, por exemplo, diz respei-
to a uma coisa, assim como a um direito, a um território, ao
estado das pessoas, à nacionalidade etc.; a de constituição não
concerne só ao Estado; interessa a todos os grupos públicos ou
privados, internos ou internacionais...
Dentro de uma perspectiva global, o recurso à teoria das
instituições permite descobrir os grandes vetores do direito
positivo, para além dos diversos ramos do direito. Esclarece
também o alcance exato das regras de direito. Estas não são ar-
bitrárias, e seus dados profundos procedem das finalidades que

9. J. CARBONNIER, Droit civil, introduction, les personnes, n" 1.


10. J. DABIN, op. cit., n? 85.
A APLICAÇÃO DO DIREITO 233

animam as instituições. A idéia geral é de que os direitos e os


interesses privados são subordinados aos fins que a instituição
é destinada a satisfazer 11 . Assim revela-se "o porquê", a razão
de ser do direito positivo e, para além da letra deles, o espírito
dos textos 12 . A teoria das instituições orienta, pois, a interpre-
tação da lei... Mas, com a permanência ou a evolução dos fun-
damentos que elas permitem descobrir e dentro da perspectiva
de um direito coerente, as instituições jurídicas fornecem tam-
bém ao legislador as linhas diretrizes que ele deve respeitar.
Contribuem assim para a confecção harmoniosa do direito.
168. - A sistematização das regras no seio das instituições
jurídicas é, porém, entravada às vezes por imperfeições do di-
reito positivo que comprometem a utilização delas para o co-
nhecimento, a explicação, a aplicação ou a melhoria do siste-
ma de direito. Pode ocorrer que certas instituições comportem
lacunas e contradições internas, que textos de circunstâncias
lhe desnaturem a unidade ou lhe dissimulem as linhas de força.
Isso em geral resulta de uma evolução desordenada, da acumu-
lação de derrogações dos princípios, de iniciativas puramente
ideológicas que não levam em conta o meio ambiente jurídico.
O direito francês das locações imobiliárias, o da responsabili-
dade civil ou o estatuto dos assalariados perderam parte de sua
unidade nos múltiplos retoques que sofreram repetidamente.
Para apreender a substância das instituições, cumpre en-
tão circunscrever mais ainda sua noção.

2. A definição das instituições jurídicas

169. - A instituição se define como "um composto de re-


gras de direito que abarca uma série de relações sociais ten-
dentes aos mesmos fins" 13 . E um conjunto jurídico correspon-

11. Traité élémentaire de droit civil de PLANIOL, RIPERT e BOUBLAN-


(JER, 1942, n° 315.
12. Ver infra, n?s 228 ss.
13. J. CARBONNIER, ibidem.
234 TEORIA GERAL DO DIREI K >

dente a uma parte da organização social, apropriado para cer-


tas finalidades e que adquiriu um desenvolvimento próprio.
Depreendeu-se esse conceito em reação contra a extensão abu-
siva dada pela doutrina dominante no século XIX à noção e ao
papel do contrato nos diversos ramos do direito. Reconhecida
por sociólogos como Gurvitch e por juristas, publicistas sobre-
tudo como Michoud, Jèze, Duguit e Hauriou, mas também
especialistas em direito privado como Saleilles e Brethe de la
Gressaye, a instituição é amiúde identificada ao estatuto legal
e regulamentar de um tipo de relações sociais.
É sobretudo a Hauriou que cabe o mérito de ter construí-
do a teoria geral da instituição. Ele percebeu que a palavra
"instituição" pode ter um sentido muito amplo e significar "to-
da organização criada pelo costume ou pela lei positiva, ainda
que seja um simples meio da técnica jurídica; nesse sentido, a
ação possessória ou a ação de reivindicação ou o recurso por
excesso de poder são instituições" 14 . Opunha assim a institui-
ção ao contrato pois, segundo ele, "a instituição é feita para
durar, ao passo que o contrato não é feito para durar". Mas, em
contraste às "instituições-coisas" que "são da categoria das
coisas inertes" 15 e correspondem à noção larga de instituição
jurídica, que engloba a regra de direito e suas diversas prescri-
ções, ele distinguiu as "instituições-corpos", ou "instituições-
pessoas", que "se orientam para a individualidade viva e a pes-
soal-moral" 16 .
Foi sobretudo nestas, que são "elementos da organização
social e não somente meios da técnica do direito", que Hauriou
concentrou sua pesquisa. Embora a individualidade institucio-
nal não suponha necessariamente a personalidade moral e pos-
sa aplicar-se a corpos não-personalizados, tais como ministé-
rios, por exemplo, as instituições corporativas e personificadas
comportam todas elas três elementos: uma idéia da obra que
será realizada no grupo social, um poder orgânico e "manifes-

14. M. HAURIOU, Príncipes de droit public, op. cit., p. 126.


15. Op. cit., p. 126.
16. Ibidem.
A APLICAÇÃO DO DIREITO 235

tações de comunhão que ocorrem dentro do grupo social a res-


peito da idéia e de sua realização" 17 .
Alguns autores, mais recentemente, também concentra-
ram a atenção nas instituições-pessoas, chegando às vezes,
como M. Waline, até a definir toda instituição como uma "so-
ciedade organizada" que dá origem a regras de direito. Outros
prosseguiram a análise de Hauriou. P. Cuche 18 contrapôs "a
instituição-regra", mera limitação imposta à atividade humana
fora de qualquer base contratual por uma atividade orientada
para uma meta de interesse coletivo, à "instituição-organismo",
grupo de indivíduos cujas atividades são coordenadas e que
cm geral é personificada, e à "instituição-mecanismo" que cor-
responde a uma combinação de regras de aplicação sistemática
destinadas à satisfação de um interesse geral ou coletivo.
Ficou clássico distinguir as "instituições-órgãos", agrupa-
mentos cujo estatuto e funcionamento são regidos pelo direito,
como o Parlamento ou a família, e as "instituições-mecanismos",
que são feixes de regras que regem uma instituição-órgão ou
uma determinada situação jurídica da vida social.
Guardaremos aqui essa dupla acepção das instituições ju-
rídicas. Se se tratasse apenas de organismos, as diversas ex-
pressões da personalidade jurídica permitiriam explicá-los; se
se tratasse apenas de simples regras de direito, a lei, o ato indi-
vidual ou o contrato etc. deveriam bastar para expressá-las.
Mas nem órgãos, nem prescrições isoladas do direito positivo
expressariam suficientemente a organização coerente e siste-
mática de um conjunto de regras e de técnicas, manifestado ou
não por órgãos específicos, em torno de uma aspiração e de
uma finalidade em comum. São as instituições jurídicas que
realizam essa operação característica do direito. Correspondem
então a toda construção jurídica de conjunto - organismo ou
mecanismo - formada de um complexo duradouro de regras e
destinada a governar certo tipo de situações jurídicas de acor-
do com determinada finalidade e inspiração.

17. G. MARTY, "La théorie de 1'institution", Ann. fac. de droit et des sc.
ico. de Toulouse, t. XVI, fase. 2, 1968, p. 39.
18. Na semana social de Lyon, 1925, pp. 349 ss.
236 TEORIA GERAL DO DIREI K >

170. - As instituições jurídicas se caracterizam, de fato,


tanto por sua durabilidade quanto por seu sistematismo.
A instituição jurídica pressupõe a princípio certa duração.
Claro, as instituições não são eternas. Mesmo as instituições
fundamentais das civilizações desaparecem: o feudalismo e a
escravidão sumiram das sociedades civilizadas de nossa época.
Mas as instituições implicam certa permanência. A família, a
empresa, as instituições políticas estão instaladas na duração a
ponto de "se os homens mudam, de modo geral, a instituição
permanece"' 9 . Esse elemento de duração costuma ser o critério
que contrapõe as instituições a situações de direito de natureza
acidental e passageiro, tais como, para certos autores, a res-
ponsabilidade ou os contratos dos quais às vezes se diz que
adquirem um caráter institucional assim que comportam certo
grau de duração ou de estabilidade 20 . Mais exatamente, a so-
brevivência das instituições não é ligada à continuidade do
consentimento dos interessados; resulta simplesmente da apli-
cação do direito objetivo. É favorecida pela maleabilidade de-
las, pois o direito procura adaptar as instituições às condições
econômicas e sociais ou ideológicas. Esse é ainda um aspecto
pelo qual as instituições são contrapostas à pretensa rigidez
dos contratos, cuja relatividade é alheia à noção de instituição.
O sistematismo das instituições jurídicas é ligado à organi-
zação duradoura de que o direito objetivo as dota. Trata-se de
um conjunto vivo de regras que constitui o âmbito dado pelo
direito ao desenvolvimento de um elemento da vida social21,
por exemplo ao poder público, à família, à empresa, à proprie-
dade privada etc. Isso é verdade para as "instituições-coisas"
bem como para as "instituições-pessoas". "Como as pessoas
morais aderem ao redor de uma regra, as regras de direito ade-
rem ao redor de uma idéia."22 Os elementos constitutivos dos

19. R. SAVATIER, Les métamorphoses économiques et sociales du droit


civil d'aujourd'hui, 3? ed., 1964, n? 103.
20. P. ROUBIER, op. cit., nf 3.
21. Ibidem.
22. J. DABIN, op. cit., n? 85.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 237

corpos de direito, as instituições, são, conforme os casos, as pes-


soas e as regras jurídicas que elas reúnem. São estes corpos e
estes órgãos estáveis que permitem ao direito coordenar as ati-
vidades jurídicas no plano sociológico, filosófico, político,
econômico, social etc. São eles que lhe permitem reger median-
te um estatuto um determinado tipo de manifestação social.
Assim, as instituições supõem, para sua organização, a um
só tempo um espírito congregante e uma hierarquia. A idéia
diretriz que as anima, condição da coerência e da homogenei-
dade delas, transparece na distinção de Duguit 23 , entre "as
regras jurídicas normativas" e "as regras jurídicas construtivas
ou técnicas", designando as regras normativas o princípio dire-
tor que inspira as regras construtivas cujo conjunto constitui
uma instituição. O direito dos incapacitados é dominado pela
idéia de proteção dos incapazes, a publicidade imobiliária pe-
la de proteção dos terceiros, o Estado pela de poder e de sobe-
rania, a família pela de solidariedade, de comunhão de vida e
de interesse ou de célula social..., a sociedade pela de busca de
benefícios em comum e de realização de um interesse coletivo.
Mas a finalidade das instituições impõe também uma organi-
zação hierárquica dos elementos que a compõem.
E essa finalidade que constitui a chave da hierarquia ao
redor da qual se articulam os órgãos e as regras que as institui-
ções reúnem. As regras jurídicas se agrupam em torno dos
princípios diretores que elas aplicam ou derrogam. As institui-
ções por elas formadas se reúnem também dentro de perspecti-
vas mais vastas até constituir juntas a própria ordem jurídica: o
juiz e o processo se unem para formar a Justiça, que por sua
vez é apenas um dos poderes que, apesar do princípio da sepa-
ração deles, são definidos e regidos pela Constituição para se
fundir nessa pessoa moral titular de soberania que é o Estado.
A proteção dos incapazes, menores ou maiores, é modulada
nos regimes relativamente estruturados consoante a fragilidade
dos interessados e a segurança de seu ambiente. Eles são, con-

23. L. DUGUIT, Traité de droit constitutionnel, 3a ed., 1.1, §§ 10 e 21.


238 TEORIA GERAL DO DIREI K >

forme os casos, salvaguardados, assistidos ou representados


sob o controle de maior ou menor rigor do juiz, até mesmo do
conselho de família. É para proteger o incapaz que o adminis-
trador ou o tutor deve agir como bom pai de família. É para
garanti-lo que o tutor deve mandar proceder ao inventário de
seus bens, na abertura da tutela, e prestar conta de sua adminis-
tração, por ocasião de sua cassação... A hierarquia estabelecida
entre as regras e os órgãos é então material e formal ao mesmo
tempo: a hierarquia das regras em geral corresponde à hierar-
quia das estruturas e àquela dos órgãos de que elas emanam.
Essa hierarquia inerente às instituições é por vezes apre-
sentada como uma outra diferença fundamental em compara-
ção ao contrato que é teoricamente submetido ao princípio de
igualdade das partes.
A instituição jurídica não é um dado direto da vida e dos
fatos. É estabelecida pelo direito. Contrapõe-se a um só tempo
aos fatos instilados pela vida, ao passo que ela é produzida pela
ordem jurídica, e às organizações oriundas unicamente da von-
tade dos particulares sem proceder da regra de direito. Assim,
a definição das instituições jurídicas possibilita afirmar a es-
pecificidade delas.

3. A especificidade das instituições jurídicas

171. - A permanência e a hierarquia interna das instituições


opostas à instantaneidade e ao igualitarismo teóricos do con-
trato, o fato de que este emana em princípio apenas da vontade
das partes, enquanto a instituição procede do direito positivo,
dão a esta uma incontestável especificidade com relação ao
contrato.
Por muito tempo, o direito privado e o direito público ex-
plicaram pelo contrato todas as manifestações da vida social.
Todas as relações estabelecidas entre a administração pública e
os particulares, a situação dos servidores públicos, os tratados
internacionais, o casamento, as sociedades e as associações ou
os sindicatos profissionais, o regulamento interno ou de oficina
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 239

na empresa etc. eram classicamente fundados na idéia de con-


trato, a despeito das relações de autoridade ou do estatuto legal
nos quais se apoiam.
Foi como reação contra essa extensão abusiva do contrato
que nasceu a teoria da instituição. Ainda gostam de confrontar
o Estado e a doutrina do "contrato social", de contrapor a con-
cepção contratual e institucional do casamento, de discutir so-
bre a realidade ou a ficção das pessoas morais... O valor expli-
cativo, exploratório, ideológico, prospectivo de tais debates
não é contestável, conquanto estejam um tanto ultrapassados.
O contrato já não é somente a convenção livremente negociada
e determinada pelas partes. As relações humanas e econômi-
cas já não repousam unicamente em acordos bilaterais, mas
com freqüência em relações coletivas. Já não procedem so-
mente da vontade individual, mas de todo o aparelho social
manifestado por exigências permanentes e por uma estrutura,
uma organização duradouras. Elas já não resultam simples-
mente de um ato jurídico único, mas de grupos de contratos
concentrados numa mesma operação e de todo um feixe de
disposições legislativas e regulamentares. Inversamente, sabe-
se agora, em direito de contratos, que as intervenções legislati-
vas nem sempre são "o remédio adequado para a desordem e
para a injustiça do contrato... e que, do livre ajuste dos interes-
ses particulares, pode sair o direito, mesmo que não seja um
Mandamento da lei" 24 . Há, segundo o deão Carbonnier, "um
debate, que está longe de se extinguir, entre a liberdade e a au-
toridade, menos abstratamente entre a força obrigatória do con-
trato e o poder de intervenção da lei" 25 , e "a teoria geral conti-
nua a tirar proveito das contribuições do direito especial" 26 .
Por conseguinte, a contraposição entre o contrato e a ins-
tituição ficou, em larga medida, artificial. O deão Roubier

24. Ph. RÉMY, "Droit des contrats: questions, positions, propositions", in


Le droit contemporain des contrats, dir. L. CADIET, ed. Economica, 1987, prefá-
cio de G. Cornu, p. 274.
25. J. CARBONNIER, "Introduction", in "L'évolution contemporaine du
droit des contrats", Journées René SA VATIER, ed. P.U.F., 1986, p. 33.
26. Ph. RÉMY, op. cit., p. 275.
240 TEORIA GERAL DO DIREI K >

contrapunha, pelo caráter acidental e passageiro deles, a res-


ponsabilidade e os contratos à instituição 27 . Mas, embora tal
contrato ou tal fato danoso particular seja evidentemente coisa
muito diferente de uma instituição, o contrato e a responsabili-
dade, em geral, são instituições, ou seja, segundo a própria de-
finição de Roubier, conjuntos organizados "que contêm a re-
gulamentação de um dado concreto e duradouro da vida so-
cial" e constituída "por um nó de regras jurídicas dirigidas para
um objetivo em comum" 28 .
O direito positivo está cada vez mais imperativo, garantin-
do assim "a supremacia dos interesses coletivos e da organiza-
ção social sobre os interesses puramente individuais". Quando
as obrigações impostas pela lei ao titular de um direito são
importantes, designa-se o conjunto de suas prerrogativas e de
seus deveres com a expressão "estatuto legal"; há o estatuto de
esposo, de locatário, de proprietário, de empregador, de assala-
riado etc. Quando esse conjunto de direitos e de deveres satis-
faz interesses coletivos permanentes, fala-se "de instituições" 29 .
Mas os vocábulos instituição e estatuto legal são muito próxi-
mos, ainda que a instituição designe a coisa, a pessoa ou o
corpo de regras, e o estatuto legal o regime jurídico ao qual ela
é submetida.
172. - A instituição também se distingue da regra de direi-
to e dos princípios gerais. A regra de direito, regra de conduta
geral, abstrata e obrigatória, cuja sanção é assegurada pelo po-
der público, geralmente só rege aspectos particulares de uma
relação social. Assim, a regra de direito penal é apenas a san-
ção de outras regras de direito público ou de direito privado
por ela pressupostas e que, às vezes, nem sequer são expressa-
mente formuladas pelos textos, como a obrigação de respeitar
a integridade corporal ou a vida alheia. As regras fiscais pres-
supõem atividades jurídicas e econômicas das quais expressam
apenas os modos de imposição. As regras de processo concer-

27. Op. cit., n? 3.


28. Ibidem.
29. A. WEILL e F. TERRE, Introduetion générale au droit civil, n? 71.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 241

nem só às formas nas quais uma pretensão é submetida a um


juiz e só expressam um aspecto das instituições judiciárias.
Assim, as regras de direito não passam de elementos par-
ticulares do conjunto constituído pelas instituições e que estas
reúnem, apesar de suas diversidades, ao redor de uma inspira-
ção em comum.
As instituições se dividem em instituições mais especiais
ou se agrupam em instituições mais vastas. A família se divide
cm família legítima, família natural e adotiva; abrange o casa-
mento, a filiação, o pátrio poder, a obrigação alimentar etc.;
interessa ao direito das pessoas, ao direito social, ao direito fis-
cal, ao direito patrimonial etc. Inversamente, pode-se abordar a
filiação para agrupá-la com o casamento, a adoção, o pátrio
poder... até atingir a família.
Mas, em qualquer nível que nos coloquemos, a regra de
direito se distingue, por sua especificidade e seu caráter isola-
do e parcial, da instituição que é sempre, mais do que uma sim-
ples regra de direito, um complexo sistemático de regras orga-
nizado em torno de um objetivo e de um espírito comuns.
173. - Os princípios comuns de que procedem as regras de
direito tampouco devem confundir-se com as instituições por
eles animadas. Embora sejam sua idéia mestra e sua finalidade,
não constituem nem sua substância concreta nem sua expressão
técnica. O princípio de autoridade, a separação dos poderes, a
hierarquia dos órgãos do Estado etc. não são o Estado...
Mas esses princípios comuns que constituem o núcleo
estável das instituições ao redor do qual gravitam seus elementos
tampouco se confúndem com "os princípios gerais do direito"30.
Estes, conquanto "comumente aceitos nos países civilizados" 31
e "subjacentes às regras legislativas e jurisprudenciais", são
apenas soluções de direito e, mesmo sendo fundamentais e de
aplicação comum a numerosas matérias, não formam por si
sós um sistema. O princípio de não-retroatividade da lei ou o
da legalidade dos delitos e das penas não são instituições. Po-

30. Ver supra, n?s 69 ss.; J. DABIN, op. cit., n? 91.


31. No sentido do art. 38 do estatuto da Corte Internacional de Justiça.
242 TEORIA GERAL DO DIREI K >

dem quando muito coincidir com as idéias diretrizes de certas


instituições.
A despeito de uma ambigüidade muitas vezes denuncia-
da, a utilidade das instituições e a determinação do que elas
são e do que não são permitem circunscrever-lhes a noção e os
caracteres em comum. Entretanto, mais além da unidade do
conceito, a diversidade das realidades abrangidas pelas insti-
tuições não deve esbater-se sob uma uniformidade artificial.

SEÇÃO II
Uma realidade múltipla

174. - Apesar do perigo de uma exagerada sistematização


do direito e do formalismo excessivo que consiste em ver nele
apenas um conjunto de procedimentos ou de processos, de me-
canismos e de instrumentos, é mister, para deixar evidente a
coerência do sistema jurídico, dominar-lhe a diversidade ten-
tando classificar as instituições, por afinidades ou por diferen-
ças, em categorias satisfatórias.
Dentro da perspectiva da divisão tradicional entre direito
público e direito privado, pode-se pensar de início numa dis-
tinção fundamental entre instituições públicas e instituições
privadas32. Contraporíamos então instituições privadas como a
família, o casamento, a propriedade, as sociedades comerciais
etc. e instituições públicas como o Estado, as comunas, o voto
universal, as empresas públicas, o tratado etc. Mas essa distin-
ção é, se não ultrapassada, pelo menos insuficiente. Já não se
pode sustentar que as instituições públicas são regidas apenas
pelo direito público e que as instituições privadas só o são pelo
direito privado, pois o direito público penetrou no campo das
instituições privadas, ao passo que o direito privado invadiu o
das instituições públicas. Será verdade dizer que a propriedade

32. E. P. SPILIOTOPOULOS, La distinclion des institutions publiques et


des institutions privées en droit français, prefácio de Ch. Eisenmann, L.G.D.J..
1959.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 243

e a família são instituições privadas quando o interesse geral


inclui-se nelas? As empresas podem ser públicas ou privadas,
mas as empresas públicas se dedicam a atividades comerciais
ao passo que existem empresas privadas de interesse público e
sociedades de economia mista. Os contratos podem ser públi-
cos ou privados...
Pode-se então pensar numa distinção fundada no objeto
das instituições e contrapor as instituições políticas e as ou-
tras, as instituições patrimoniais e não-patrimoniais... As ins-
tituições políticas seriam então "as instituições relativas ao
poder no Estado" (Presidência da República, Primeiro-minis-
tro, Parlamento, eleições etc.), nos países estrangeiros ou em
certas organizações ou convenções internacionais. Mas, ao lado
das instituições oficiais, estabelecidas pelas Constituições ou
por outros textos jurídicos, existem "instituições de fato", como
os partidos políticos e os grupos de pressão 33 ... Não é certo,
porém, que se possa fazer uma triagem clara entre as institui-
ções, as que são políticas e as que não o são, nem que essa tria-
gem, ainda que possível, tenha um interesse jurídico real. A
distinção das instituições patrimoniais e «ão-patrimoniais se-
ria igualmente artificial: os direitos não-patrimoniais, como as
liberdades, o direito à filiação ou à integridade do corpo huma-
no têm, ao menos indiretamente, repercussões patrimoniais,
ainda que para reparar a violação deles 34 . Grande número de
instituições reúnem em si aspectos patrimoniais e aspectos
não-patrimoniais: a família é um bom exemplo disso.
Por conseguinte, como as instituições são conjuntos de re-
gras relativas a um mesmo objeto, constituem um todo ordenado
ao redor de uma finalidade e se impõem aos sujeitos de direito,
é no pensamento de Hauriou que se encontra a classificação
mais satisfatória. Existe uma diferença fundamental entre as
"instituições-pessoas" e as "instituições-coisas", ou, de modo
mais geral, entre os organismos (§ 1) e os mecanismos (§ 2).

33. M. DUVERGER, Institutions politiques et droit constitutionnel, P.U.F.,


col. Thémis, 15? ed., 1.1, pp. 22 ss.
34. Perdas e danos, alimentos, direitos sucessórios, por exemplo.
244 TEORIA GERAL DO DIREI K >

1. As instituições-organismos

175. - Hauriou concentrou essencialmente sua atenção nos


"corpos sociais", noutras palavras, nas "organizações sociais
correlacionadas com a ordem geral das coisas, cuja permanên-
cia é assegurada pelo equilíbrio interno de uma separação dos
poderes e que realizou em seu seio uma situação jurídica" 35 .
Conservaremos daí a idéia de um conjunto individualizado, se
não dotado da personalidade moral, de uma organização inter-
na que se equilibra por sua vez de maneira objetiva e em con-
formidade com o direito positivo, de sua inserção na ordem
geral das coisas e da criação de uma situação jurídica perma-
nente. Esses elementos constitutivos permitem levar em consi-
deração, além das pessoas morais de direito público e de direi-
to privado, corpos não-personalizados que constituem elemen-
tos da organização social, política, econômica e que se conser-
vam independentemente da renovação contínua das pessoas
humanas. Assim, a empresa, a família, um ministério etc. são
instituições. Mas as instituições jurídicas têm tendência natu-
ral a constituir pessoas morais, ou seja, grupos de pessoas e de
bens que, tendo a personalidade jurídica, são titulares de direi-
tos e de obrigações. Ora, segundo a jurisprudência francesa, "a
personalidade moral não é uma criação da lei; pertence em
princípio a todo grupo provido de uma possibilidade de ex-
pressão coletiva para a defesa de interesses lícitos, dignos em
conseqüência de serem reconhecidos e protegidos pela lei... Se
o legislador tem o poder de privar da personalidade tal catego-
ria de grupos, reconhece-lhe, ao contrário, implícita mas ne-
cessariamente a existência em consideração de organismos
criados por ele mesmo atendendo à missão de administrar cer-
tos interesses coletivos..."36
176. - As instituições-organismos de direito público37 abran-
gem uma infinita diversidade de órgãos: instituições políticas

35. Ver G. MARTY, op. cit., p. 37.


36. Civ. 2" Seç. Civ. 28 de janeiro de 1954 D. 1954 II 217, nota G. LEVAS-
SEUR; J.C.P. 1954 II 7978 Conel. LEMOINE.
37. Ver, por ex., P. PACTET, Les institutions françaises, P.U.F., col. "Que
sais-je?"
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 245

ou constitucionais, administrativas, jurisdicionais, internacio-


nais, estabelecimentos públicos administrativos ou industriais
e comerciais etc. Assumem a forma de coletividades territo-
riais (Estado, comunas etc.), de organizações internacionais
(ONU, CEE etc.), de estabelecimentos públicos (universida-
des, academias etc.), de fundações, de sociedades, de asso-
ciações etc. Representam a organização do poder político:
presidente da República, assembléias parlamentares, primeiro-
ministro, governo, ministérios etc. Materializam também a
organização administrativa, estruturas centrais ou organiza-
ção territorial dos serviços do Estado nas regiões, os departa-
mentos ou as comunas com a desconcentração que ela impli-
ca. Mas trata-se igualmente das instituições econômicas e fi-
nanceiras (Banque de France, Fazenda Pública, Comissariado
Geral do Plano, INSEE etc.). É mister ainda evocar os órgãos
ligados à descentralização... e este afresco mesmo assim está
muito incompleto.
As instituições-organismos de direito privado também são
muito diversas. São grupos socioeconômicos não-personaliza-
dos, como a família ou a empresa, ou pessoas morais. Tendem
a multiplicar-se à medida que a ordem individual clássica vai
sendo substituída por uma "ordem coletiva" 38 . Assistimos en-
tão, para personificar melhor esses grupos, a uma multiplica-
ção das pessoas morais sob as quais se abrigam os mais diver-
sos interesses. O desenvolvimento contemporâneo do movi-
mento associativo é a prova constante disso. As instituições de
direito privado dotadas da personalidade moral usam, para pôr
cm prática as mais heterogêneas aspirações, uma paleta bas-
tante limitada de estruturas conhecidas: sociedades, associa-
ções, sindicatos. As formas novas criadas pela evolução eco-
nômica e social (grupos de interesse econômico, grupos agrí-
colas, grupos de proprietários ou de co-proprietários etc.) não
passam de expressões particulares suas. Assim, entidades não-
pcrsonalizadas ou verdadeiras pessoas morais, as instituições

38. E. BERTRAND, L 'esprit nouveau des lois civiles, ed. Economica, 1984,
especialmente pp. 49 ss.; 91 ss.; 109 ss.
246 TEORIA GERAL DO DIREI K >

traduzem no palco jurídico os múltiplos fenômenos da vida so-


cial. A empresa econômica, agrícola, artesanal, liberal, comer-
cial ou industrial pode ser considerada uma instituição, seja
qual for sua forma jurídica 39 ; empresa individual, sociedade de
pessoas ou de capitais, cooperativa etc., ela é sempre "uma uni-
dade econômica que implica o emprego de meios humanos e
materiais de produção ou de distribuição das riquezas baseada
numa organização preestabelecida" 40 .
Mas todas essas expressões jurídicas das realidades da
vida supõem o emprego apropriado de mecanismos técnicos
que também constituem instituições.

2. As instituições-mecanismos

177. - As instituições-mecanismos, conjuntos organizados


de regras criadas pelo direito objetivo, constituem "uma espé-
cie de âmbito que é dado pelo direito ao desenvolvimento de
um elemento da vida social" 41 . As instituições mostram-se en-
tão instrumentos que o direito objetivo se propicia para sua
aplicação. A instituição por excelência é o direito inteiro. A
regra de direito no sentido lato é o instrumento supremo de sua
criação e o denominador comum de todas as instituições jurí-
dicas. Mas as fôrmas nas quais o direito objetivo permite mol-
dar as realidades da vida são extremamente diversas e se so-
brepõem numa infinidade de estruturas possíveis. Os órgãos
de que procedem as regras de direito são por sua vez regidos
por regras; o fundo do direito se modela em formas variáveis.
Qualquer recenseamento das instituições jurídicas é por-
tanto, se não impossível, pelo menos arbitrário, pois depende
do grau de aperfeiçoamento que se procura atingir. Qualquer
enumeração seria fastidiosa. Numerosíssimas classificações

39. J. BRETHE DE LA GRESSAYE, op. cit., n os 582 ss.


40. R. GUILLIEN e J. VINCENT, Lexique de termes juridiques, verbete
"Entreprise".
41. P. ROUBIER, op. cit., n? 3.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 247

são, aliás, concebíveis. Pode-se avaliar, não obstante, que sem-


pre se trata da organização e da sanção das relações sociais
públicas e privadas.
178. - Quanto às instituições relativas à organização das
relações sociais, podemos esquematicamente distinguir meca-
nismos de proteção e mecanismos de ação.
Trata-se sobretudo da proteção das partes por instituições,
tais como os incapacitados ou o formalismo. A proteção dos
terceiros é garantida por mecanismos de publicidade, por exem-
plo. A do interesse geral é salvaguardada pelos mecanismos
constitucionais ou administrativos, pela ordem pública etc.; a
das pessoas, pelas liberdades públicas e pelos direitos indivi-
duais, políticos ou sociais. A paz social é mantida com os pra-
zos, as prescrições, a autoridade da coisa julgada...
Agruparemos em seguida, no que se pode chamar de meca-
nismos de ação, todas as instituições que podem sustentar uma
atividade social particular: são as pessoas jurídicas, os direitos
subjetivos, os bens, os atos jurídicos, a moeda, o crédito etc.
179. - As instituições relativas à sanção das relações so-
ciais são igualmente muito diversas. Independentemente dos
órgãos jurisdicionais ou constitucionais investidos de um poder
de sanção, encontramos sobretudo corpos de regras destinados
à apreciação e à aplicação das sanções do direito objetivo. Ci-
taremos a esse respeito apenas a ação judicial, a instância, a sen-
tença, as vias de recurso. Não omitiremos as provas de que ne-
cessitam a justificação das pretensões e o estabelecimento da
verdade e sem as quais não é concebível sanção alguma.
São sobretudo as próprias sanções que importam; são san-
ções penais, cíveis, administrativas, disciplinares etc. Podem con-
sistir em responsabilidade, em reparação, em nulidade, em pe-
nas pecuniárias, corporais, privativas de liberdade... Podemos
evocar também as penhoras, as expulsões etc.
Cumpre sobretudo distinguir a estrita reparação do dano
causado ou do prejuízo sofrido, noutras palavras, "a justiça re-
paradora", restituitória ou indenizadora, e as penas, ou seja,
sofrimentos impostos àquele que está errado, por razões de
ordem pública, pela "justiça sancionadora", ficando entendido
248 TEORIA GERAL DO DIREI K >

que esses dois tipos de sanção podem acumular-se. Nas socie-


dades primitivas, as sanções se apresentavam sob forma de
penas privadas aplicadas por urna justiça privada. Nas socieda-
des evoluídas, apesar de raras sobrevivências, o desapareci-
mento da justiça privada acarretou o da pena privada 42 .
Mas a sanção manifesta a originalidade da regra de direi-
to. A sanção mediante coerção social está, por essência, incluí-
da em toda regra de direito cujo respeito supõe um possível
recurso à coerção. Trata-se de um mecanismo e de instituições
inerentes ao sistema jurídico e empregado por seus órgãos.
As instituições são, porém, muito diversificadas; podem
ser isoladas ou agrupadas em níveis diferentes de especializa-
ção ou de generalização; toda classificação delas rígida demais
é aproximativa.

42. P. ROUBIER, op. cit., n? 5.


Capítulo 2
Conceitos e categorias jurídicas

180. - O direito não pode consistir numa mera justaposi-


ção de regras díspares. Se não fosse possível vincular os diver-
sos elementos dele a um conjunto coerente, ele comportaria
inevitavelmente tamanhas contradições que ficaria incompreen-
sível e toda reforma satisfatória sua seria impossível. Ademais,
nunca se pode prever e regulamentar tudo; à míngua de princí-
pios e de conceitos gerais, existiriam tantas zonas de vazio ju-
rídico que o direito falharia em sua missão de organização da
ordem social. Portanto, o direito constitui inevitavelmente um
sistema organizado em torno de certo número de princípios, de
noções fundamentais, de procedimentos técnicos cujo empre-
go pressupõe certos métodos.
As regras jurídicas são oriundas da "associação de maior
ou menor número de conceitos", e todo sistema de direito se ca-
racteriza por uma organização específica das relações existen-
tes entre seus diversos elementos 1 . As grandes orientações do
direito necessitam, para ser postas em prática e para que a or-
dem jurídica atinja seu objetivo final e concreto, de toda uma
construção intelectual baseada em conceitos. Às vezes identi-
ficou-se o espírito jurídico ao "reino do conceito, isolado dos
interesses que ele representa, que se organiza conforme sua

1. Ver supra, n? 8; R. GASSIN, "Système de droit", Rev. recherche juridi-


que - droitprospectif, 1981, III, p. 353.
252 TEORIA GERAL DO DIREI K >

natureza própria e se combina com outros conceitos de mes-


mo tipo para formar uma pura construção jurídica, edificada
totalmente em abstração e unicamente pelos esforços do pen-
samento" 2 .
Mas todo sistema conceptual implica distinções e compa-
rações entre as noções que utiliza e as realidades ou os fenô-
menos que encontra. Assim, os juristas são conduzidos a esta-
belecer categorias jurídicas, ou seja, conjuntos de direitos, de
coisas, de pessoas, de fatos ou de atos que têm entre si traços
comuns característicos e obedecem a um regime comum 1 . As
categorias jurídicas são "os rudimentos da ciência do direito"
cuja "matéria elementar" é formada por elas.
O direito, "embasado por uma rede de conceitos que lhe
confere sua organização intelectual", opera mediante classi-
ficações dos fatos, das circunstâncias, das noções etc. con-
soante as semelhanças e a vinculação deles com modelos, de
modo que basta qualificar uma situação jurídica relativa-
mente a estas ou àquelas categorias para lhe aplicar o regime
delas 4 .
O vocabulário jurídico de Capitant define a qualificação
como "a determinação da natureza de uma relação de direito
cujo efeito é classificá-la numa das categorias jurídicas exis-
tentes". Antes de dizer de um objeto que ele deve ser, para ad-
mitir sua existência, ou que não deve ser, para condená-lo, de-
ve-se mesmo começar por procurar o que ele é. "A translaçâo
de um bem das mãos de uma pessoa para as de uma outra deve
ser qualificada de venda, de doação ou de roubo, antes de apli-
car à situação considerada o regime correspondente que o
direito prescreve. Portanto, sempre se deve tentar proceder à
exata qualificação de cada fato para determinar as regras que

2. F. GÉNY, Science et technique en droit prive positif, t. I, n? 40.


3. J. L. BERGEL, Différence de nature égale différence de regime, R.T.D.
Civ., 1984, p. 255, n°3.
4. G. CORNU, Droit civil, introduction - Les personnes - Les biens, ed.
Montchrestien, 1980, n? 186; J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, Traitè de droit
civil, introduction générale, n° 43.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 253

se lhe aplicam 5 . Todo jurista procura, por conseguinte, caracte-


rizar uma situação, de modo que a faça entrar numa categoria
jurídica 6 . Este esforço impõe-se ainda mais desde que a infor-
mática forçou os juristas a um rigor quase matemático, tanto
para a pesquisa documental quanto para o estabelecimento de
certidões informatizadas.
Mas eminentes autores, como Gény e Duguit, haviam de-
nunciado os perigos inerentes a esses procedimentos de técnica
jurídica, ligados ao "caráter artificial e quase mecânico deles" 7 .
Sustentou-se que a utilização sistemática deles conduziria a
desnaturar as realidades moventes dos fatos com construções
puramente intelectuais e imprimiria no direito "um dogmatis-
mo e uma inflexibilidade incompatíveis com a complexidade
da realidade e a maleabilidade da vida" 8 .
Se existem, esses riscos não devem ser exagerados. A téc-
nica jurídica não se resume ao método das classificações. Não
deve mascarar as realidades objetivas e deve tolerar corretivos
apropriados para a função e a finalidade do direito: os resulta-
dos a que ela chega só são válidos na medida de seus vínculos
com a vida real e com os princípios superiores. Mas o próprio
Gény reconhecia então o valor desses procedimentos para fe-
cundar a ciência e as soluções jurídicas e ampliar as institui-
ções 9 . Basta para isso que os conceitos e as categorias jurídicas
sejam bem determinados (Seção I) e que o método das classi-
ficações seja bem definido (Seção II).

5. O. CAYALA, "La qualification ou la vérité du droit", in "La qualifica-


lion ", Revista Droils, n" 18, 1993, pp. 3 ss. De modo mais geral, sobre a qualifi-
cação, ver esta obra.
6. M. WALINE, "Empirisme et conceptualisme dans la méthode juridique:
Faut-il tuer les catégories juridiques?", Mélanges Dabin, Sirey, 1963, t. I, p. 363.
7. F. GÉNY, op. cit., t. III, n™ 179 a 191.
8. L. HUSSON, "Les apories de la logique juridique", Annales fac. droit et
sc. eco. de Toulouse, t. XV, fase. I, 1967, p. 63.
9. F. GÉNY, op. cit., n os 277 e 302.
254 TEORIA GERAL DO DIREI K >

SEÇÃO I
Determinação dos conceitos e das categorias jurídicas

181. - Os conceitos, ou seja, "as representações mentais


gerais e abstratas dos objetos" 10 , só podem ser determinados,
em matéria jurídica, em função do direito positivo e das realida-
des sociais. O processo intelectual que leva a eles parte da
observação da lei, da jurisprudência, da prática jurídica etc. Ele
é particularmente difícil, pois se apóia em regras inconstantes e
em geral contraditórias e na extrema variabilidade dos compor-
tamentos humanos e dos fenômenos de ordem psicológica, so-
cial, econômica, ética...11 Os resultados dessa observação e os
critérios que dela se destacam são traduzidos em conceitos por
meio de indução, mas geram apenas hipóteses e são suscetíveis
de evolução. Procura-se, assim, estabelecer uma tipologia dos
fenômenos observados de maneira que, por comparação, se
manifestem semelhanças e dessemelhanças que permitam ope-
rar grupos entre eles. Acaba-se então arrumando os fenômenos
e as noções jurídicas de mesma natureza em categorias às quais
se prendem, por encadeamento causai, certas regras próprias.
Essa categorização repousa em traços constantes.
A representação intelectual geral e abstrata dos fenôme-
nos jurídicos por conceitos indispensáveis ao conhecimento
deles e à respectiva apreensão pelo direito positivo diz respeito
tanto às pessoas como às coisas, aos fatos, aos atos, aos direi-
tos, aos procedimentos técnicos, às instituições etc. Aplica-se
tanto a um objeto determinado em si mesmo, a uma noção,
quanto a classes de objetos agrupados por analogia. A concei-
tuação interessa, pois, aos fenômenos jurídicos específicos e
às categorias jurídicas a um só tempo. Kant identificava, aliás,
a categoria ao conceito fundamental do entendimento. Mas,
para definir um conceito, deve-se considerá-lo em si mesmo,
ao passo que, para determinar uma categoria, devem-se soltar os

10. Dicionário Robert, verbete "Concept"; C. ATIAS, Epistémologie juridi-


que, P.U.F., 1985, n? s 81 ss.
11. E. S. de la MARNIERRE, Eléments de méthodologie juridique, n? 60.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 255

laços que unem, entre eles, os elementos que a compõem e os


traços que os distinguem de outros fenômenos. A definição de
um conceito se opera, portanto, com relação a ele mesmo (§ 1);
a de uma categoria é feita por referência a uma outra (§ 2).

1. A definição dos conceitos

182. - A definição de um conceito, cuja importância em


direito romano, no Digesto, já era muito grande, consiste em
dar o sentido da palavra que o designa segundo os elementos
que o constituem. É ao mesmo tempo um aspecto substancial
(A) e um aspecto formal (B). Mais exatamente, expressa a
consistência material de um conceito: é o fundo; e enuncia o
sentido do termo que o designa: é a forma.

A. O aspecto substancial da definição

183. - Foi possível dizer que "o fator primeiro da praticabi-


lidade do direito consiste numa definição suficiente. Um direi-
to insuficientemente definido não é praticável porque sua apli-
cação dará azo a hesitações e a controvérsias geradoras de inse-
gurança jurídica". Às vezes também dizem que toda noção abs-
trata é "uma cilada", pois corre o risco de englobar objetos em
que os autores da definição não haviam pensado 12 . Embora a
preocupação com o conceito não deva prevalecer nem sobre "a
consideração dos interesses vivos" nem sobre os valores pro-
fundos da ordem social, o direito não pode dispensar um apare-
lho conceptual suficiente 13 . Alguns autores, porém, sustentam
que o direito não pode dispor "de um estoque completo de con-
ceitos exatamente determinados" e que costuma utilizar concei-
tos copiados do uso corrente que ele se abstém de definir 14 .

12. Ph. JESTAZ, Le droit, 2a ed., p. 82.


13. J. DABIN, Théorie générale du droit, ed. Dalloz, 1969, n? 232.
14. L. HUSSON, op. cit., pp. 54 ss.
256 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Mas essa objeção ligada a uma abordagem matemática não é


adaptada ao espírito e à realidade do direito. Para garantir a se-
gurança jurídica, é mister que todo conceito jurídico seja susce-
tível de uma definição fundamentada nos atributos que ele
comporta e nas relações específicas entre seus diversos elemen-
tos. Uma definição deve representar um modelo que permite
uma comparação a fim de que possamos vincular-lhe as situa-
ções produzidas pela vida jurídica.
Sói acontecer que a definição dos conceitos figure numa
fonte do direito positivo. Pode-se até pensar que ela só tem efe-
tividade real se é dada pela lei ou pela jurisprudência.
Certas legislações, de tipo anglo-saxão sobretudo, fazem
uso sistemático de definições gerais, no início de cada lei15. Os
tratados internacionais, o mais das vezes, definem expressa-
mente os termos que utilizam. Em direito francês, as definições
legais são mais raras, mas foram recenseadas mais de umas
cem no Código Civil e umas trinta no novo Código de Pro-
cesso Civil. Existem inumeráveis no Código Penal e em outros
códigos e nos textos especiais 16 .
Mas, quando os textos não comportam definições ou dão
apenas definições insuficientes, é ao juiz que cabe, em nome
de seu poder de interpretação das leis e regulamentações, fixar
o sentido das palavras e dar definição aos conceitos 17 . Esse pa-
pel criador do juiz é essencial em direito administrativo. Os
conceitos de via de fato, de serviço público, de obras públicas

15. Ver p. ex„ em direito inglês, "The interpretation act", 1978, anexo I:
"Words and expressions defined"; "Consumer safety act", 1978 (art. 9: interpre-
tação); Code de commerce uniforme des Etats-Unis, livro I, "Disposições gerais",
art. 1.201, col. U, prefácio Tunc; no Québec, lei de 14 de julho sobre a proteção do
consumidor.
16. G. CORNU, "Les définitions dans la loi", Mélanges J. Vincent, ed
Dalloz, 1981, pp. 77 ss.; "Les définitions dans la loi et les textes réglementaires",
Cahiers de méthodologie juridique, nf 1 e 2, R. R. J., 1986-4 e 1987-4, P. U. Aix-
Marseille; M. VAN HOECKE, "Définitions légales et interprétation de la loi",
Droit et société, 1988-8, pp. 93 s.
17. Ch. EISENMANN, "Quelques problémes de méthodologie des défini-
tions et des classifications en science juridique", in "La logique du droit", Arch. de
philosophie du droit, t. XI. 1966, pp. 25 ss., n" 4.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 257

e muitos outros são oriundos da obra pretoriana do Conselho


de Estado, em geral à custa de uma difícil gestação.
O juiz é ajudado pela doutrina que, com seus esforços
para explicação do direito positivo, com sua obra de síntese,
com sua força de proposição, evidencia os conceitos e sugere
suas definições. O jurista de doutrina às vezes é conduzido a
criar ele próprio conceitos destinados ao conhecimento e à
análise sistemática do direito, que não são oriundos das fontes
formais do direito e não têm, portanto, valor obrigatório, mes-
mo que fiquem de uso corrente. O direito público comporta
um grande número de conceitos desse gênero: soberania, de-
mocracia, ditadura, oligarquia, Estado, uniões de Estados, Esta-
do unitário. Estado federal 18 . Dá-se o mesmo em direito priva-
do; as obrigações de meios e de resultado o mostram bem.
Alguns desses conceitos são, aliás, em seguida consagrados
pelas constituições, pelas leis e regulamentações. Em seu tra-
balho científico, o jurista se confronta com freqüência, notada-
mente na jurisprudência, com um vocábulo conceptual que
não emana de nenhum texto legislativo e que os utilizadores
usam sem o definir. Ele deve então tirar desse conjunto de qua-
lificações de objetos concretos os conceitos nos quais elas po-
dem repousar e cuja aplicação fazem. Ele determina assim, por
indução, novos conceitos 19 . Ao lado dos conceitos deduzidos
do direito positivo, aparecem conceitos induzidos. Mas tanto
uns como os outros só têm valor e utilidade reais se o signifi-
cado exato deles se expressa por uma definição satisfatória.
184. - A definição de um conceito jurídico deve descrever
sua substância e revelar seus critérios distintivos. Assim, ela
deve identificar os elementos constitutivos do conceito consi-
derado e caracterizar as relações que os unem.
Portanto, ela deve de início enunciar os elementos que sem-
pre estão reunidos nele, por exemplo este elemento material e
aquele elemento intencional destinados à realização deste ob-

18. Ch. EISENMANN, op. cit., n° 6.


19. Ch. EISENMANN, op. cit., n° 5.
258 TEORIA GERAL DO DIREI K >

jeto e empregado por aquele meio nas relações entre esta e


aquela pessoa. Definir-se-á a posse como o domínio de fato so-
bre uma coisa corpórea e correspondente, na intenção do pos-
suidor, ao exercício de um direito real. Mas a definição exclui
também certos elementos cuja ausência caracteriza o conceito
definido, por exemplo, a ausência de casamento dos pais para
a filiação natural. Cumpre então que à definição dada só possa
corresponder um único conceito. Se se atribui uma mesma
qualificação, uma vez por causa da ausência ou da presença
dos elementos E1 + E2, e uma outra daquela dos elementos E3
+ E4, isso significa quer que essa qualificação corresponde a
dois conceitos distintos, quer que se aplica a um único concei-
to (El + E2 + E3 + E4), mas que não é todas as vezes que é
insuficientemente definido 20 .
Quanto às relações existentes entre os elementos constitu-
tivos, elas são muito variáveis. Pode tratar-se de um acúmulo
(elemento material e intencional), de uma alternativa (opção),
ou de uma exclusão (cláusula de não-concorrência).
Pode ser uma relação de causalidade (fato gerador do dano
na responsabilidade), de reciprocidade (contrato sinalagmáti-
co), de dependência (vínculo de preposição), de condição etc.
Encontramos ainda relações qualificativas (erro substancial)
ou quantitativas (lesão) etc.
Mas, embora os procedimentos de definição utilizados
pelo direito sejam variáveis e de maior ou menor minúcia, os
juristas têm tendência de usar simplificação e de desprezar, nas
definições, os casos excepcionais e as pequenas variações para
se concentrar melhor no aspecto exterior e sensível das coi-
sas21. Enquanto o médico, o psicólogo e o moralista se concen-
tram nas diversas causas suscetíveis de alterar a vontade, o ju-
rista se contenta com a alienação mental, com a alteração física
ou mental (arts. 238,488 s. do Cód. Civil, p. ex.), com a demên-
cia (art. 64 do antigo Código Penal), com a coação moral, com
determinados vícios do consentimento (arts. 1109 s. do Cód.

20. Ibidem.
21. J. DABIN, op. cit., n? 253.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 259

Civil) etc. O art. 122-1 do novo Código Penal, que prefere uma
descrição ao enunciado de um conceito, distingue agora os dis-
túrbios psíquicos ou neuropsíquicos que aboliram o discerni-
mento de uma pessoa ou o controle de seus atos e aqueles que
se limitaram a alterá-lo ou a entravá-lo.
A despeito dos métodos contemporâneos de abordagem
científica, no campo da psicologia ou da biologia por exemplo,
sustentou-se que a definição jurídica fica em geral "mais ou
menos aproximativa, expeditiva e sumária"... porque a tarefa
do jurista "não é estabelecer definições cientificamente corre-
tas, mas elaborar regras aplicáveis, e a praticabilidade do direi-
to requer definições relativamente simples, aptas ao mane-
jo" 22 . Essa observação deve ser matizada. A definição tem de
ser clara e exata para poder ser aplicada, mas nem todas as
variações de um conceito têm de entrar em sua definição, pois
lhe obscureceriam o sentido. Outras noções, outros mecanis-
mos e a apreciação dos fatos permitem, por outro lado, levar
em conta particularidades de cada situação jurídica.
Todavia, embora nem todas as formas suscetíveis de afe-
tar um conceito devam sobrecarregar sua definição, esta deve
abranger todos os elementos e todas as interações implicadas
nesse conceito e cuja reunião é necessária e suficiente para
identificá-lo. Assim, pode revelar-se muito útil recorrer a cri-
térios quantitativos, numerados, ou a qualidades objetivas. Ain-
da é preciso, entretanto, que o conceito assim definido tire de
seus elementos constitutivos e da entidade por eles realizada
uma especificidade real. Sustentou-se, por exemplo, que o con-
trato de adesão não era uma noção jurídica porque os traços
que lhe são reconhecidos não eram suficientes para convertê-
lo numa realidade específica, mas somente uma aplicação do
contrato. Portanto, não se poderia nem caracterizar o contrato
de adesão nem considerar uma definição sua, nem vincular-lhe
conseqüências próprias 23 . Deve-se guardar desse parecer, sem
julgar aqui o mérito da opinião que ele expressa, que todo con-

22. Ibidem.
23. E. S. de la MARNIERRE, op. cií., n? 24.
260 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ceito pressupõe uma certa especificidade que deve justamente


ser determinada por sua definição. As boas definições impli-
cam traços reveladores e comodamente identificáveis. Signifi-
caria isso que toda noção jurídica implica necessariamente cri-
térios precisos que permitam apreciar-lhe o conteúdo de ma-
neira perfeitamente objetiva? E claro que não.
185. - Ao lado de noções rigorosamente definidas de ma-
neira precisa e objetiva, o direito recorre a noções flexíveis,
suscetíveis de uma apreciação subjetiva e evolutiva. Falou-se
às vezes, a propósito delas, de "conceitos-válvula", de "pará-
grafos-borracha" 24 , de "noções com conteúdo variável", maleá-
vel, indeterminado 25 . O legislador muitas vezes introduz, deli-
beradamente, tais noções nos textos para deixar ao juiz ou às
autoridades públicas uma maior liberdade de apreciação. Dá-
se o mesmo nos tratados internacionais, em particular no direi-
to das comunidades européias ou na Convenção Européia dos
Direitos do Homem. A técnica legislativa moderna, graças a
essas noções indeterminadas, procede a verdadeiras "delega-
ções normativas" às autoridades de decisão e dosa o nível de
indeterminaçâo dessas noções maleáveis de acordo com o po-
der que se pretende efetivamente delegar.
Mas indeterminado não quer dizer indeterminável: "para
inserir-se num sistema de direito, a noção dita indeterminada
deve ficar determinável. A diferença com as regras precisas e
unívocas é somente a de que a determinação do sentido não é
intrínseca ao texto jurídico, mas remete ao contexto, ou seja, a
outros conjuntos de normas cujo conteúdo, extrajurídico, será
integrado pelo intérprete ao trabalho de determinação do senti-
do da norma" 26 . Tais noções só se realizam com a "descodifi-

24. P. ROUBIER, Théorie générale du droil, T. ed. Sirey, 1961, n° 13 e as


referências citadas.
25. "Les notions à contenu variable en droit". Estudos publicados por Ch.
PERELMAN e R. VANDER ELST, Travaux du Centre National de Recherches
de Logique, ed. Bruylant. Bruxelas, 1984; Ch. PERELMAN, "Le raisonnable et le
déraisonnable en droit. Au dela du positivisme juridique", ed. L.G.D.J., Bibl. de
philo. du Dr., vol. 29, Paris, 1984, pp. 132 ss.
26. M. DELMAS-MARTY, Pour un droit commun, ed. du Seuil, 1944,
pp. 121 s.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 261

cação controlada" que é operada com elas na interpretação e na


aplicação das normas que as utilizam. O caráter de maior ou
menor obrigatoriedade dessas normas é medido pela liberdade
de descodificação deixada aos intérpretes. Pensa-se então numa
"lógica maleável" que se substituiria à lógica binária e linear,
de tipo aristotélico27. Dizem que "muitas coisas são mais bem
compreendidas se não são definidas" e que é o que ocorre com
a expressão das noções morais, econômicas ou políticas 28 .
Trata-se, principalmente, de noções que escapam a uma
definição abstrata precisa, que se referem a comportamentos
humanos e implicam uma comparação com a realidade nor-
mal. E o que os anglo-saxões designam pelo termo standard.
Encontramos isso, parece, em todos os sistemas de direito. Os
standards, conceito mais estrito que o de noção maleável, cor-
respondem a "critérios fundamentados no que parece normal e
aceitável na sociedade no momento em que os fatos devem ser
apreciados". São "instrumentos de aferição dos comportamen-
tos e das situações, empregados por verdadeiras regras de direi-
to" que permitem integrar na ordem jurídica realidades e valo-
res sociais do momento e modular assim o alcance da regra de
direito29.
Quanto ao direito francês, ele faz um uso importante des-
sas noções maleáveis. As noções de eqüidade, de interesse ge-
ral, de ordem pública, de urgência, de bons costumes, de boa
fé, de bom pai de família, de falta, de negligência etc. atestam
isso30. Esses conceitos elásticos são indispensáveis ao direito

27. M. DELMAS-MARTY, Le fiou du droit, ed. P.U.F., col. Voies du droit.


Paris, 1986; "Vers une autre logique juridique: à propos de la jurisprudence de la
Cour Européenne des droits de l'homme", D. 1988, I, 221; G. TIMSIT, "Sur
1'engendrement du droit", Rev. dr. public, 1988, pp. 39 ss.; ver infra. nos 251 ss.
28. J. DABIN, op. cit., n° 244; F. GÉNY, op. cit., t. III, nus 258 ss.
29. "Os standards dans les divers systèmes juridiques", Actes du ler Con-
grès de 1'Association Internationale de Méthodologie juridique, Aix-en-Provence,
setembro de 1988, Cahiers de méthodologie juridique, n? 3, R.R..I., 1988/4. pp.
805 ss.; S. RIALS, Le juge administratif français et la technique du standard
(Essai sur le traitement juridictionnel de l idée de normalité), ed. L.G.D.J., Bibl.
de Dr. Pub., t. 135, prefácio de P. Weil, Paris, 1980.
30. Ver infra, nf 277.
262 TEORIA GERAL DO DIREI K >

que, instituído para disciplinar a matéria viva, é obrigado a


amoldar-se à plasticidade da vida e só o pode fazer graças à
existência de definições amplas, não de noções indefinidas,
como às vezes se diz. A maleabilidade dessas definições "per-
mite ao mesmo tempo abarcar todos os casos, previsíveis ou
não, e atribuir a cada um deles o tratamento apropriado" 31 . Por
conseguinte, essas noções são úteis para "manter o equilíbrio
entre a ordem jurídica e o meio social" 32 e para evitar a fratura
que a evolução das realidades não deixaria de provocar numa
ordem jurídica completamente rígida. Dão mais flexibilidade
ao sistema jurídico integrando-lhe as realidades da vida e uma
certa dose de eqüidade. Permitem introduzir princípios corre-
tores ao lado dos princípios diretores que dominam toda ordem
jurídica: a boa-fé permite modificar o rigor do efeito obrigató-
rio do contrato; a conformidade aos bons costumes e à ordem
pública limita o princípio da autonomia da vontade...
Esses conceitos não são indefiníveis, mas a definição de
que são objeto comporta certos elementos variáveis deixados à
apreciação do juiz de acordo com os fatos e cuja compreensão
depende do contexto social e ideológico do lugar e do momen-
to: os bons costumes são as regras impostas pela moral social
em uma época e em dado lugar e cuja violação é suscetível de
provocar certas punições; trata-se, em conseqüência, de nor-
mas gerais, de caráter obrigatório e passíveis de sanções; sua
inspiração moral e sua relatividade as distinguem de outras re-
gras de direito; sua relatividade é um dos elementos de sua de-
finição e determina as condições de sua aplicação.
Assim, as definições jurídicas têm grande diversidade e
vão da "definição geométrica" à "definição empírica" 33 , dedu-
zida da conformidade aproximativa ao estado de coisas exis-
tente. Essa diversidade de fundo é ainda mais acentuada pela
diversidade das técnicas formais de definição.

31. J. DABIN, op. cit., n? 545.


32. P. ROUBIER, ibidem.
33. F. GÉNY, op. cit., 1.1, n? 52.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 274 263

B. O aspecto formal da definição

186. - Contrariamente às legislações de tipo anglo-saxão


que sistematicamente fixam na lei, mediante definições, o sen-
tido técnico das palavras nelas empregadas, o legislador fran-
cês se abstém com muita freqüência de fazê-lo, talvez lem-
brando-se dos preceitos do Digesto: omnis definido periculosa
est. Censuram-se as definições de cristalizar conceitos evoluti-
vos e de acabar desnaturando-os. Talvez isso só dependa da
qualidade das definições, pois boas definições podem resistir
por muito tempo à evolução social 34 . A definição legal tem
então a vantagem de "eliminar o equívoco e de introduzir cla-
reza e precisão na aplicação de uma regra ou de um corpo de
regras" 35 .
Constata-se, entretanto, uma grande heterogeneidade das
definições legais expressas ou implícitas, cujos enunciados
vão da determinação geral e abstrata de uma noção à enumera-
ção puramente material das situações representadas por uma
palavra.
Diante da diversidade dos procedimentos e das formula-
ções, fica-se tentado a estabelecer uma tipologia das defini-
ções jurídicas. O deão Cornu mostrou que se impõe uma dis-
tinção capital "entre as definições que incidem sobre o grão
das coisas e aquelas que incidem sobre a palha das palavras...,
entre a definição direta das coisas e aquela das palavras", entre
"as definições reais" e "as definições terminológicas" 36 .
187. - A definição real consiste numa determinação subs-
tancial dos elementos e dos atributos específicos do conceito
considerado. Por seu caráter geral e abstrato, ela desenha para

34. M. WALINE, op. cit., p. 369.


35. G. CORNU, "Droit civil - Introduction. Les personnes. Les biens", op.
Cit., ní" 212; "Les définitions dans la loi et les textes rcglementaires", op. cit., espe-
cialmente J. L. BERGEL, Cahiers de méthodologie juridique, n? 2, pp. 1117 ss.
36. G. CORNU, art. cit., "Les définitions dans la lois", n? 8; "Les défini-
tions dans la loi et les textes réglementaires", op. cit., Cahiers de méthodologie
juridique, n? 2, p. 1179.
264 TEORIA GERAL DO DIREI K >

um conceito o modelo de comparação que possibilita cotejar-


lhe situações concretas graças aos traços que o caracterizam.
Esse tipo de definição que descreve uma noção com crité-
rios associados se distingue da enumeração de uma série de ca-
sos específicos. Ele constitui uma regra de direito. Corres-
ponde à técnica dogmática do direito francês e pode aplicar-se
aos mais diversos conceitos: pessoas, direitos, órgãos, meca-
nismos, atos jurídicos, coisas etc. Abrange, em direito positi-
vo, tanto entidades jurídicas, direitos reais principais (direito de
propriedade: art. 544 do Cód. Civil, servidões, art. 637 do Cód.
Civil), contratos (venda: art. 1582 do Cód. Civil; troca: art. 1702
do Cód. Civil; sociedade: art. 1832 do Cód. Civil etc.), meios
de defesa em processo... tanto coisas do mundo real como os
móveis, os imóveis ou os acontecimentos da vida... Claro, o
conceito corresponde então a uma palavra ou a uma expressão
curta que é a sua representação na linguagem, de modo que a
definição do conceito é a um só tempo a da palavra pela qual o
designamos. Mas, nesse tipo de definição material, o essencial
é a determinação substancial dos critérios. A operação de defi-
nição "redunda numa palavra. Não parte dessa palavra". A de-
nominação do conceito é apenas um rótulo que serve para o
designar 37 .
188.-/1 definição terminológica corresponde mais ao mo-
delo pragmático anglo-saxão, conquanto outros direitos, tais
como o direito francês, também recorram a ela e, vice-versa,
encontrem-se igualmente definições conceptuais nos direitos
anglo-saxões. A definição então é apenas a indicação do senti-
do determinado de um termo empregado num texto. Nos tex-
tos anglo-saxões, existe em geral um capítulo preliminar de
definições o mais das vezes anunciadas por uma frase liminar
ritual: "Na presente lei, a menos que o contexto indique um
sentido diferente, as seguintes expressões e palavras signifi-
cam..." 38 O art. 1-201 do Código Comercial uniforme dos Es-
tados Unidos, por exemplo, comporta assim quarenta e seis

37. G. CORNU, art. cit.. n'.'s 9 ss.; Ch. EISENMANN, op. cit.. n'.' 2.
38. G. CORNU, art. cit., n"s 15 ss.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 265

definições de termos. Mas essas definições, embora possam


corresponder a um conceito de ordem jurídica, não têm preten-
são conceptual. O sentido de uma palavra só é dado ali para
um texto determinado, ao qual ele se limita, para lhe fornecer
uma pré-interpretaçào e lhe incorporar um comentário. Por
conseguinte, o significado de cada termo pode ser livremente
estabelecido, já que não depende de um sistema conceptual
geral e não tem de se vincular ao conjunto do sistema jurídico.
Pode tomar a forma de uma descrição material, de uma enume-
ração, de uma assimilação, de uma avaliação quantitativa, de
uma exclusão etc.
Assim, a definição terminológica só constitui um elemen-
to acessório da lei que a enuncia, e não um elemento essencial
da ordem jurídica à qual a lei se refere e que a domina. Ela cor-
responde mais a um impressionismo jurídico, a uma casuística,
do que a um sistema de direito homogêneo, hierarquizado e or-
ganizado. Tem a vantagem de dar ao texto um sentido próprio
e maior certeza, mas apresenta o risco de lhe cristalizar exage-
radamente o alcance e de lhe limitar a adaptabilidade.
A utilização dessa técnica de definição nas convenções
internacionais parece impor-se para paliar as diferenças lin-
güísticas e a heterogeneidade dos sistemas jurídicos e instaurar
regras com significados idênticos em todos os países envolvi-
dos. Parece mais perigosa em direito interno, pois deixa de
lado a necessária coerência de qualquer ordem jurídica e as
interações que ela comporta. Isto parece ainda mais flagrante
quando se trata de conceitos correspondentes a categorias jurí-
dicas e não simplesmente a noções particulares.

2. A determinação das categorias

189. - A definição dos conceitos se prolonga, de fato, na


categorização deles. Então já não se trata de estudar cada fenô-
meno jurídico em si, mas de compará-lo aos outros para apro-
ximá-los ou dissociá-los deles. Cumpre agrupar numa mesma
categoria, submetida a determinado regime, as entidades mais
266 TEORIA GERAL DO DIREI K >

profundamente semelhantes e separar em categorias diferen-


tes, dotadas de regras diferentes, entidades essencialmente des-
semelhantes. A vinculação de uma situação jurídica a uma ca-
tegoria tem o efeito de submetê-la às regras de direito que
regem esta. O direito opera assim por classificações para inse-
rir as realidades que ele trata na organização do sistema jurídi-
co. Mas a admissão das categorias jurídicas (A) repousa na
determinação de seus critérios (B).

A. A admissão das categorias jurídicas

190. - O estudo dos conceitos jurídicos só pode ser bem-


feito cotejando-os uns com os outros para aproximar as diver-
sas espécies do mesmo gênero e contrapô-las a situações dife-
rentes. Para tanto, há que se referir a séries de conceitos que se
caracterizam "pela reunião de elementos constantes e necessá-
rios" 39 . Assim, as noções e as situações jurídicas são agrupa-
das em categorias segundo seus caracteres em comum, e as
diversas categorias se distinguem umas das outras pelas dife-
renças entre os traços em comum dos elementos que as com-
põem e os das outras categorias. As relações jurídicas de direi-
to privado são fundadas no princípio de igualdade entre as par-
tes, enquanto as relações de direito público são dominadas pela
desigualdade implicada pela hierarquia dos órgãos de poder
público ou pela predominância dos interesses públicos sobre
os direitos privados. Os direitos patrimoniais são, por natureza,
diretamente avaliáveis em dinheiro; os direitos não-patrimo-
niais não o são e não têm, portanto, valor de troca. Os atos jurí-
dicos são manifestações de vontade destinadas a produzir efei-
tos de direito; os fatos jurídicos são acontecimentos suscetíveis
de produzir efeitos de direito não desejados pelos interessa-
dos... Frisou-se que "essas categorias podem ser comparadas
aos tipos biológicos que também repousam em simples seme-

39. G. CORNU, op. cit.. n° 187.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 278 267

lhanças e são analisados como conjuntos organizados de traços


complementares articulados entre si" 40 . Salientou-se também
quanto a heterogeneidade das situações jurídicas resiste à in-
serção delas nas categorias gerais e precisas a um só tempo e
quanto nelas encontramos, com mais freqüência que na nature-
za, híbridos: a locação-venda não é nem uma venda nem uma
locação.
As categorias jurídicas não têm outro valor além daquele
que lhes conferem as realidades que elas pretendem traduzir;
trata-se apenas de um procedimento intelectual, de um artifício
técnico de emprego das realidades jurídicas, que nunca deve,
por um excesso de rigidez, permitir desnaturá-las. O estabele-
cimento das categorias jurídicas deve partir dos próprios obje-
tos que é preciso agrupar segundo seus caracteres comuns. A
definição das categorias deve proceder por indução a partir de
dados conhecidos. Tem o objetivo não só de estabelecer uma
ordem intelectual nos conceitos jurídicos, mas sobretudo,
revelando suas semelhanças e suas dessemelhanças, "de per-
mitir ao direito positivo um emprego judicioso e seguro da
analogia" 41 .
Mas, fazendo a realidade entrar nos âmbitos destinados a
precisá-las e a melhorar a adaptação do direito à vida, as cate-
gorias jurídicas não devem ser desviadas de sua finalidade. Os
esforços dos juristas, perante uma situação original, para fazê-
la entrar nas categorias existentes não devem levar a "violentar
inutilmente a realidade... Cumpre então sair... dos âmbitos
conhecidos e provados" 42 . É aos juristas que compete fazer
isso. As categorias jurídicas não são meros dados do real, nem
sequer do direito positivo. Não preexistem à intervenção dos
juristas ou à ciência do direito. São, ao contrário, a sua obra
constante 43 . São suas construções intelectuais destinadas a um

40. J. GHESTIN e G. GOUBEUAUX, op. cit., n° 43.


41. F. GENY, op. cit., t. I, n? 52; para uma apreciação crítica das classifi-
cações jurídicas: M. MIAILLE, Une introduction critique au droit, ed. Maspéro,
1976, pp. 159 ss.
42. P. ROUBIER, op. cit., nf 3.
43. Ch. EISENMANN, op. cit., n° 11.
268 TEORIA GERAL DO DIREI K >

melhor conhecimento, a uma melhor aplicação do direito, ao


melhoramento do sistema jurídico. Procedem, portanto, de es-
colhas intelectuais, ainda que estas sejam orientadas pela ob-
servação dos fatos e pelo estudo do direito objetivo. Portanto,
as categorias só valem o que valem as escolhas que elas ex-
pressam e a utilidade que representam.
191. - O recurso às categorias jurídicas permite fortalecer
a racionalidade e a coerência do direito; permite também faci-
litar-lhe a aplicação.
O sistema das categorias jurídicas possibilita disciplinar a
desordem e a incerteza dos fatos sociais apreendendo-os com
mais facilidade sob uma qualificação clara e regras determina-
das. Poder moldar em "fôrmas testadas pela experiência" os
fatos e atos da vida social com caracteres comuns e aplicar-
lhes um regime conhecido e objetivamente determinado cons-
titui uma garantia de imparcialidade e de segurança jurídica.
As categorias jurídicas constituem também um fator de simpli-
ficação do direito. Como a justiça é individual, cada caso par-
ticular deveria teoricamente receber sua solução particular.
Mas são necessárias regras gerais capazes de se aplicar aos ca-
sos particulares que se presumem conformes ao caso regido
pela lei44. Ora, não se pode tentar prever tudo sem risco de
lacunas ou de contradições e sem sobrecarregar tanto o direito
positivo que ele ficaria inutilizável.
Para apreender todos os aspectos da vida com um número
razoável de regras jurídicas, é mister integrá-los em "classifi-
cações taxativas com alcance exaustivo", de modo que serão si-
tuados obrigatoriamente em uma ou umas categorias conheci-
das e sofrerão suas conseqüências. Assim, os bens são móveis
ou imóveis; as pessoas jurídicas são físicas ou morais; as pes-
soas morais, públicas ou privadas; as pessoas físicas, capazes
ou incapazes; os participantes de uma infração são autores ou
cúmplices... Se classificações simples demais geram um direi-
to inadequado e se é preciso deixar mais flexíveis os modos de

44. J. DABIN, op. cit., n?5 260 ss.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 269

categorização "para aproximar o direito da vida que é toda em


gradação", "a maleabilidade do direito" se opõe a uma multi-
plicação excessiva das rubricas que acabaria arruinando a coe-
rência do sistema jurídico e a eficácia das categorias 45 .
A adaptação do raciocínio à realidade e a elaboração das
soluções se operam em seguida pela conjunção das conseqüên-
cias das diversas categorias às quais se reporta uma mesma
situação 46 e mesmo, pelo subterfúgio de exceções que permi-
tem escapar a uma categoria, mantendo-a ao mesmo tempo
dentro do princípio.
A qualificação das pessoas, dos direitos, dos bens, dos
atos, dos fatos, das instituições, das infrações, das sanções, por
sua vinculação a categorias jurídicas, permite sobretudo deter-
minar-lhes o regime.
192. - A qualificação de um ato, de um fato, de um fenô-
meno jurídico consiste em reportá-lo a uma categoria jurídica
existente porque ele tem sua natureza e segue, portanto, seu
regime47. A recusa de integrá-lo noutra categoria significa que
ele tem uma natureza diferente desta e obedece a um regime
jurídico diferente. Cumpre estabelecer como princípio que
toda identidade de natureza implica uma identidade de regime
c que toda diferença de natureza implica uma diferença de
regime48.
Assim, o jurista opera com qualificações para descobrir as
categorias às quais se reportam os casos concretos que lhe são
submetidos e para determinar as regras que se lhes aplicam.
São qualificados de fato ou de ato jurídico para conhecer seus
modos de prova, de falta civil ou penal para lhes aplicar esta ou
aquela categoria de sanções... A distinção entre as pessoas físi-
cas e as pessoas morais implica diferenças de regime: ao passo
que as pessoas físicas têm uma capacidade própria de decisão.

45. Ibidem.
46. Ver infra, n?s 203 e 204.
47. Ver "La qualifícation", Revista Droits, 1993, nf 18.
48. J. L. BERGEL, art. cit., n? 3; Th. 1VAINER, "L'interprétation des faits
dl droit", J.C.P., 1986,1, 3235.
270 TEORIA GERAL DO DIREI K >

de expressão e de ação, as pessoas morais não podem decidir,


expressar-se e agir senão por seus representantes, o que impõe
uma organização jurídica particular. A oposição entre móveis
e imóveis, baseada na mobilidade daqueles e na fixidez destes,
supõe que estes últimos, identificáveis somente por sua situa-
ção geográfica, implicam uma grande segurança dos direitos
de que são objeto e obedecem a regras próprias: a propriedade
dos imóveis se estabelece por título e é submetida á publicida-
de imobiliária; a dos móveis se estabelece por sua posse.
Mas uma mesma situação jurídica se reporta geralmente a
várias categorias jurídicas simultaneamente; tal obrigação, por
exemplo, é ao mesmo tempo contratual, patrimonial, civil e in-
ternacional; tal pessoa é a um só tempo uma pessoa jurídica,
capaz, de nacionalidade francesa, comerciante e casada. Obe-
dece então a um regime jurídico básico que resulta da conjun-
ção dos regimes inerentes às diferentes categorias às quais ela
se vincula. Ademais, uma mesma pessoa, um mesmo bem, um
mesmo ato, um mesmo fato etc. se reportam não só a uma mes-
ma categoria geral, mas também a uma ou a várias subcatego-
rias suas: um contrato é ao mesmo tempo sinalagmático, a título
oneroso, comutativo e consensual. Seu regime jurídico se de-
duz, portanto, ao menos em parte, dessas diferentes naturezas 49 .
Essa abordagem é por certo esquemática e deve ser com-
pletada ou corrigida por outras considerações. Constitui mes-
mo assim uma parte importante do raciocínio jurídico. Mostra
bem a importância das categorias jurídicas e a de seus critérios
de determinação.

B. Os critérios de determinação das categorias

193. - Devem-se poder reconhecer com sinais claros as ca-


tegorias utilizadas pelos juristas. Portanto, é preciso, no tocante
a cada categoria, descobrir os traços comuns a todas as situa-

49. Para os modos de determinação desse regime, ver infra, n° 204.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 271

ções que ela reúne, independentemente das diferenças que elas


podem comportar. Os critérios de determinação das categorias
jurídicas expressam a presença de certos elementos particula-
res, até mesmo a ausência de outros elementos, e os laços que
unem entre eles os elementos constitutivos da definição delas.
Os critérios distintivos de uma categoria jurídica devem dese-
nhar um modelo que permita uma comparação. São os elemen-
tos de fundo e de forma que imprimem em cada categoria suas
características e a separam das categorias vizinhas. Cumpre
assim que, graças a esses critérios, nenhum dos fenômenos
que se reportam a uma categoria considerada possa ser excluí-
do dela e que nenhum daqueles que não lhe correspondem se
encontre abrangido nela. Cumpre, enfim, que os efeitos jurídi-
cos que daí resultam sejam aplicados ao conjunto das hipóte-
ses que ela abrange e se distingam daqueles das categorias
vizinhas.
Em outras palavras, a determinação dos critérios das
categorias jurídicas consiste em isolar ao mesmo tempo os tra-
ços comuns a todas as espécies que elas agrupam e os carac-
teres pelos quais todas as espécies das diferentes categorias se
distinguem das outras. Distinguiremos assim os imóveis por
destino dos imóveis por natureza, porque não têm a fixidez
destes, e dos móveis, porque são indissociáveis de um imóvel
por natureza. Supõem ao mesmo tempo uma relação de desti-
no com o imóvel por natureza ao qual são destinados ou uma
ligação definitiva e uma identidade de proprietário. Pode ocor-
rer, entretanto, que a determinação dos critérios se preste à dis-
cussão. Hesita-se assim em incluir ou não a soberania entre os
atributos necessários dos Estados, ao passo que a personalida-
de moral deles jamais é contestada. Trata-se não só de precisar
os contornos de uma categoria jurídica, mas também de a dis-
tinguir de outras séries de fenômenos, de outros bens ou de
outras coletividades públicas, no caso em foco.
Assim, todo esforço de determinação das categorias jurí-
dicas pressupõe examinar o conjunto dos fenômenos conheci-
dos para classificá-los em grupos por comparação, segundo
critérios de ligação que unem os diversos elementos de cada
272 TEORIA GERAL DO DIREI K >

categoria e segundo critérios de dissociação que permitem


contrapor as categorias entre si. Os critérios de ligação consis-
tem na detecção das semelhanças características, os critérios
de dissociação naquela das diferenças significativas. O papel
da vontade é o critério de ligação dos diversos atos jurídicos,
pois é em torno dele que se opera a analogia entre todas as for-
mas de atos jurídicos. É a reciprocidade das obrigações que
constitui o critério de ligação a cujo redor se determinam os
contratos sinalagmáticos. Mas as diferenças entre as diversas
categorias se assinalam, ao contrário, pela ausência numas dos
elementos característicos das outras ou, melhor, pela existên-
cia do critério inverso. As responsabilidades subjetivas impli-
cam uma falta; as responsabilidades objetivas são responsabi-
lidades sem falta. Os processos contenciosos supõem um lití-
gio; os processos graciosos, a ausência de litígio...
194. - Assim, os critérios de similitude entre todas as enti-
dades de uma mesma categoria e os critérios de disparidade
entre estas e aquelas da categoria oposta devem ser precisa-
mente estabelecidos. Deve-se, num mesmo grau de distinção
categorial, referir-se apenas a um único e mesmo traço que
opõe uma categoria à outra, que opera entre elas uma diferen-
ça de natureza à qual é ligada uma diferença de regime.
Os juristas são então conduzidos a distinções bipartites.
Uma situação é internacional se comporta um elemento de es-
traneidade; é interna se não comporta. Um bem é móvel ou
imóvel. É corpóreo ou incorpóreo. Uma pessoa é capaz ou
incapaz... Claro, um mesmo objeto é suscetível de ser simulta-
neamente reportado a várias categorias, segundo seus diversos
traços que podem servir de princípio a uma classificação: um
mesmo bem é a um só tempo um bem corpóreo, um móvel, um
corpo certo, um bem comum dos esposos etc. Mas, se nos con-
centramos apenas num de seus traços característicos, o fato de
pertencer a uma categoria exclui que possa ser situado na cate-
goria oposta. Não se pode ser ao mesmo tempo uma coisa e
seu contrário. Esse bem não pode ser simultaneamente corpó-
reo e incorpóreo, nem móvel e imóvel, nem corpo certo e coisa
de gênero, nem comum e próprio. Em compensação, uma mes-
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 273

ma entidade pode ser reportada ao mesmo tempo a uma cate-


goria e a algumas de suas subcategorias: um bem é conjunta-
mente um imóvel e um imóvel por natureza.
"Num mesmo grau ou plano, a distinção dos diversos ter-
mos da classificação deve depender de um único e mesmo
traço; não é admissível estabelecer, em consideração anuncia-
da de um mesmo traço, ou seja, de um mesmo princípio de
classificação, uma divisão tripartite." 50 Uma classificação dos
atos da autoridade pública que distingue as leis, as regulamen-
tações e os atos individuais seria inexata, ela misturaria dois
critérios diferentes discernidos em pontos de vista diferentes:
o que distingue, entre as disposições gerais e abstratas do po-
der público, as que emanam do Parlamento e as que emanam
do poder regulamentar e, de outro lado, o que contrapõe os
atos individuais às disposições gerais e abstratas. Seria errado
também classificar os fenômenos jurídicos em fatos jurídicos,
atos jurídicos e contratos, pois os contratos não passam de uma
variedade de atos jurídicos. Pode-se, enfim, basear uma divi-
são tripartite na presença de elementos heterogêneos agrupa-
dos numa mesma situação. Os direitos intelectuais, tais como o
do autor de uma obra literária e artística, são híbridos que se
reportam ao mesmo tempo aos direitos patrimoniais e aos
direitos não-patrimoniais, pois comportam a um só tempo um di-
reito patrimonial e um direito moral; portanto, não correspon-
dem a uma categoria básica e seria inexato estabelecer entre os
direitos uma distinção tripartite entre direitos patrimoniais, di-
reitos não-patrimoniais e direitos intelectuais 51 .
Fica bem claro, por conseguinte, que as distinções jurídi-
cas são fundamentalmente bipartites e que as classificações
tripartites ou multipartites procedem de um erro de método na
escolha dos critérios de determinação das categorias.
Não se poderia, todavia, por simplismo excessivo ou rigi-
dez intelectual abusiva, forçar as realidades concretas para

50. Ch. EISENMMANN, op. cit., n? 16.


51. J. L. BERGEL, art. cit., n? 9.
274 TEORIA GERAL DO DIREI K >

integrá-las nas categorias existentes a ponto de quebrar a ne-


cessária adequação do direito à vida. A utilização das catego-
rias jurídicas implica certa metodologia.

SEÇÃO II
Categorias jurídicas e método das classificações

195. - A aptidão das categorias jurídicas para traduzir os


fenômenos reais está ligada a certos caracteres particulares
sem os quais elas não poderiam absorver a diversidade e a evo-
lução da vida jurídica e social (§ 1). Ora, um mesmo fenômeno
geralmente se reporta ao mesmo tempo a diversas categorias
cuja conjunção suscita dificuldades, mas é necessária para des-
cobrir o regime ao qual é submetido (§ 2).

1. Os caracteres das categorias jurídicas

196. - A necessária adaptabilidade das categorias jurídi-


cas às realidades concretas implica que essas categorias não
sejam rígidas nem imutáveis. Uma certa flexibilidade das cate-
gorias (A), embora permita uma qualificação melhor das situa-
ções jurídicas, não basta para traduzir a complexidade de nu-
merosos fenômenos heterogêneos que se reportam simultanea-
mente a várias categorias. Ora, a compatibilidade ou a incom-
patibilidade dessas diversas categorias só pode ser apreciada
graças a um estudo mais geral da tipologia das categorias jurí-
dicas (B).

A. A flexibilidade das categorias jurídicas

197. - A flexibilidade das categorias jurídicas é a condi-


ção de sua adaptação à evolução social. Incessantemente, sur-
gem situações novas, relações jurídicas novas, bens novos, téc-
nicas novas etc. O direito deve integrá-los na ordem jurídica
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 275

existente graças às instituições estabelecidas, às vezes corri-


gindo-as ou completando-as. Os redatores do Código Civil
ignoravam o automóvel e a energia nuclear!
A capacidade de integração de fenômenos novos pelas ca-
tegorias jurídicas existentes está ligada à definição deles.
Tratando-se de distinções bipartites e de classificações rigoro-
sas, com alcance exaustivo, não pode tratar-se de categorias
fechadas. Entre as duas categorias antitéticas correspondentes
a uma distinção, cumpre que haja pelo menos uma que seja
suficientemente aberta para poder acolher novas entidades ou
novas noções: ê preciso que, em cada classificação, se uma
das categorias é limitativa, a outra seja residual. Assim, o art.
516 do Código Civil dispõe que "todos os bens são móveis ou
imóveis". Admite-se que os móveis constituem a categoria
aberta na qual entram todos os bens que não podem rigorosa-
mente definir-se como imóveis. Bens incorpóreos novos, sur-
gidos depois do Código Civil e com um importante valor eco-
nômico, tais como as clientelas, os fundos de comércio, as
partes e ações de sociedades etc., foram classificados entre os
móveis. Enquanto os móveis correspondem a uma categoria
residual, os imóveis constituem uma categoria limitativa: tudo
o que não é imóvel é móvel. Assim também, segundo o art. 34
da Constituição francesa de 1958, a lei é uma categoria limita-
tiva e a regulamentação uma categoria residual. Dir-se-á ainda
que a responsabilidade contratual é limitativa e a responsabili-
dade delitual ou quase delitual, residual, ou que os incapazes
formam uma categoria limitativa, ao passo que as pessoas ca-
pazes constituem a categoria geral e residual.
Mas existem também distinções entre duas categorias igual-
mente abertas ou, o que é perigoso porque rígido demais,
igualmente fechadas. Às vezes é difícil pronunciar-se sobre
os respectivos caracteres das categorias em causa. Distinguem-
se os direitos patrimoniais e os direitos não-patrimoniais. Os
participantes de uma infração são autores ou cúmplices. Os in-
teresses são públicos ou privados... Quais são as categorias
limitativas e as categorias residuais? A resposta a esta questão
depende em geral da determinação do princípio e de suas exce-
276 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ções, correspondendo o princípio à categoria residual e as ex-


ceções à categoria limitativa. Mas essas próprias noções evo-
luem. Com a multiplicação das exceções, elas acabam por tor-
nar-se o princípio. Na sociedade liberal do século XIX, os inte-
resses privados eram a regra. Na sociedade mais dirigista atual,
tornam-se a exceção!
198. - A proliferação e a heterogeneidade das situações
novas às vezes resistem à classificação destas nas categorias
existentes. A pressão dos fatos e as orientações novas do direi-
to podem levar a repensar as categorias estabelecidas. Estas
não são imutáveis e pode impor-se um certo deslocamento dos
critérios de distinção. A evolução e o crescimento das prerro-
gativas dos locatários abalam a distinção tradicional entre os
atos de administração e os atos de disposição, ou aquela entre
os direitos pessoais e os direitos reais. A evolução técnica re-
voluciona velhas distinções do Código Civil, como a das servi-
dões contínuas e das servidões descontínuas: as servidões con-
tínuas já não são somente "aquelas cujo uso é ou pode ser contí-
nuo sem ter necessidade do feito atual do homem" (art. 588 do
Cód. Civil), mas também "aquelas que podem exercer-se por si
sós de maneira contínua por meio de obras permanentes opera-
das para isso, ainda que seu uso seja apenas intermitente e
comporte para sua suspensão ou sua retomada uma interven-
ção humana". A evolução contemporânea das relações sociais
suscitou o aparecimento dos "atos-regras", de atos "coleti-
vos"... Estes são apenas exemplos da plasticidade das catego-
rias jurídicas que deve permitir manter a necessária adequação
do direito às realidades moventes da sociedade.
Essa adequação também é obtida pela possibilidade de re-
portar simultaneamente um mesmo fenômeno às diversas cate-
gorias com as quais ele comporta analogias. A multiplicidade
das combinações possíveis permite então traduzir bem o parti-
cularismo da maior parte das situações, desde que os critérios
das diversas qualificações permitam uma ampla compatibili-
dade das categorias jurídicas entre si.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 277

B. Tipologia das classificações

199. - A determinação das categorias jurídicas, tal como


foi estudada até aqui, só foi operada dentro da perspectiva de
classificações simples, monovalentes, consistentes em só qua-
lificar uma situação consoante critérios que permitam integrá-
la numa determinada categoria ou na categoria oposta. Mas,
quando se tenta qualificar um fenômeno heteróclito sob seus
diferentes aspectos que podem então servir, todos eles, de prin-
cípio para uma classificação, deve-se classificá-lo ao mesmo
tempo em várias categorias cumulativas e não-alternativas (a).
Tais classificações complexas, plurivalentes, conjugam, con-
forme os casos, categorias equivalentes ou categorias hierar-
quizadas (b).

a) Categorias cumulativas e categorias alternativas


200. - Como cada classificação é uma divisão bipartite en-
tre duas categorias que se opõem pela existência e pela ausên-
cia de um elemento particular ou por dois caracteres antinômi-
cos, essas duas categorias se excluem reciprocamente: são ca-
tegorias alternativas. Assim, um bem não pode ser ao mesmo
tempo um bem corpóreo, suscetível de apreensão material, e
um bem incorpóreo, ou seja, imaterial como o são os direitos
que não têm consistência física. Como o art. 516 do Código Civil
dispõe que todos os bens são móveis ou imóveis, um mesmo
bem não pode ser simultaneamente móvel e imóvel. As catego-
rias resultantes de uma mesma classificação são, portanto, ne-
cessariamente exclusivas uma da outra.
Se acontece que uma mesma situação possa reportar-se a
um só tempo a duas categorias opostas, é porque se trata de
uma situação compósita, de um "híbrido", que mescla elemen-
tos díspares que conservam cada qual a natureza e o regime
próprios deles e permanecem dissociáveis conquanto estejam
justapostos: este é o caso do direito patrimonial e do direito
moral do autor de uma obra literária e artística ou do título e da
finança dos oficiais ministeriais.
Em compensação, um fenômeno jurídico pode pertencer
simultaneamente a várias categorias relacionadas com classi-
278 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ficações diferentes, pois essas categorias são normalmente com-


patíveis entre si. Falar-se-á de categorias cumulativas. Um
bem pode ser a um só tempo um bem corpóreo e um bem
móvel ou um bem corpóreo e um bem imóvel. Uma pessoa
pode ser a um só tempo uma pessoa de direito privado, uma
pessoa física, uma pessoa capaz, um comerciante etc. Ela não
pode, em compensação, ser ao mesmo tempo uma pessoa ca-
paz e um menor, pois os menores constituem uma categoria
entre os incapazes, portanto uma subcategoria oposta àquela
das pessoas capazes. Cumpre, de fato, levar em conta também
a hierarquia interna das diversas classificações.

b) Categorias equivalentes e categorias hierarquizadas


201. - Para qualificar sob seus diversos aspectos uma pes-
soa, um bem, uma situação, uma instituição etc., temos de dis-
cernir seus diversos traços suscetíveis de reportá-la às catego-
rias jurídicas conhecidas. Observaremos assim que uma situa-
ção jurídica é puramente voluntária e se entabulou entre duas
pessoas de direito privado com nacionalidades diferentes e do-
miciliadas em países diferentes: diremos que se trata de um ato
jurídico, internacional e de direito privado. Chegamos assim a
várias qualificações principais nas categorias cujo acúmulo
expressa a originalidade global dessa situação, mas entre as
quais não existe hierarquia. São categorias equivalentes por-
que nenhuma delas é habitualmente uma subcategoria da ou-
tra, referindo-se cada uma delas a um caráter independente das
outras.
Em compensação, quando as classificações aplicáveis a
um mesmo objeto são operadas por sedimentação, indo do ge-
ral ao particular, e classificando sucessivamente a mesma si-
tuação numa categoria e depois em suas subcategorias, em suas
sub-subcategorias e ainda nas subcategorias destas, a qualifi-
cação se realiza por vinculação a categorias hierarquizadas
entre si. O ato jurídico será um contrato, variedade de ato jurí-
dico, e um contrato sinalagmático, espécie particular de con-
trato. Uma das partes é uma pessoa física e capaz. Mas, entre
as pessoas físicas, ela é também uma pessoa casada e, entre as
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 279

pessoas casadas, é casada sob um regime convenciona] e, mais


especialmente, com separação de bens. Se acrescentamos que
é também comerciante e de nacionalidade francesa, o particu-
larismo da situação em questão, que também poderíamos figu-
rar por seu objeto, delineia-se pela acumulação de todas essas
pinceladas de cores, correspondentes às diversas categorias
equivalentes principais e às diversas subcategorias sucessivas
de cada uma delas. Nessa representação "impressionista", a
hierarquia das categorias entre si nem sempre depende de uma
escala perfeitamente objetiva e constante.
Conforme o objetivo que ele persegue, ou seja, o proble-
ma a que tenta responder, o jurista escolhe os elementos nos
quais baseará suas classificações 52 . Independentemente do le-
que e da hierarquia das categorias consagradas pelo direito
positivo e pela doutrina, o tratamento de cada situação depende
de certa focalização sobre uma das categorias concernidas em
vez de outra, conforme o problema levantado: para conhecer o
estatuto de um comerciante estrangeiro, insistir-se-á mais na
qualidade de estrangeiro porque ela derroga o regime geral dos
comerciantes. Trata-se então a categoria dos estrangeiros como
uma subcategoria daquela dos comerciantes porque a lei espe-
cial derroga uma lei geral e porque existem certos efeitos refle-
xos do regime sobre a natureza jurídica, ainda que seja a que,
no princípio, comanda aquele 53 .

2. Conjunção das categorias e


investigação do regime jurídico

202. - O método das classificações permite, graças à con-


junção entre as diversas categorias às quais se reporta uma
mesma situação e as conseqüências jurídicas que essas qualifi-
cações complexas acarretam, descobrir seu regime jurídico.

52. Ch. EISENMANN, op. cit., n° 18.


53. J. L. BERGEL, art. cit., n° 14.
280 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Mas essa descoberta não resulta unicamente dos efeitos da


qualificação (A). Depende também de certos corretivos (B).

A. As conseqüências das qualificações múltiplas

203. - Toda vinculação de uma situação, de uma pessoa, de


uma coisa, de uma instituição etc. a uma categoria jurídica tem
o efeito de submetê-la a certas regras ligadas a essa categoria.
Um direito não-patrimonial, por exemplo, será incessível e im-
penhorável. Mas as classificações complexas, consistentes na
classificação simultânea de um mesmo objeto em diversas
categorias, criam dificuldades, pois nem todas as regras corres-
pondentes podem sempre justapor-se ou somar-se. Pode ocor-
rer que elas não se conciliem bem ou que sua combinação seja
delicada. Convém, entretanto, discernir os princípios essen-
ciais que dominam essa conjunção.
Cumpre então distinguir conforme as categorias em ques-
tão sejam alternativas ou cumulativas. Quando se trata de cate-
gorias alternativas, equivalentes entre si, ou das quais um é
uma subcategoria da categoria oposta da outra 54 , o princípio é
que a qualificação numa das categorias exclui a aplicação da
outra e a das regras que lhe são próprias. E mister, portanto,
escolher entre uma e outra.
Se advém que uma situação se reporte mesmo assim às
duas categorias simultaneamente, noutras palavras, se se trata
de um híbrido, tal como o direito autoral de uma obra, a pro-
priedade literária e artística por exemplo, devem-se levar em con-
ta elementos díspares que a constituem. Então são concebíveis
três tipos de soluções. Na primeira, procedendo por disseca-
ção, separamos os elementos de naturezas opostas, para aplicar
a cada um deles, de maneira distributiva, o regime próprio da
categoria à qual ele pertence: o direito moral do autor será
incessível e impenhorável; seu direito patrimonial será cessí-

54. Por exemplo, um contrato unilateral e um fato jurídico.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 281

vel e penhorável. Na segunda, por uma abordagem global,


consagramos uma universalidade jurídica dotada de um regi-
me próprio: o fundo de comércio é dotado de um regime origi-
nal por causa da disparidade de seus elementos constitutivos e
de suas importantes funções particulares. Na terceira, opera-
mos uma deformação dos atributos de uma das categorias por
certos aspectos da categoria oposta: o caráter de direito pessoal
da situação dos locatários de imóveis é atualmente alterado
pelas prerrogativas de inspiração real que o direito contempo-
râneo consagra em beneficio dos locatários; trata-se sempre de
um direito pessoal, este está agora colorido de realidade, mas
os textos especiais limitam-se a derrogar as regras gerais sem
lhes contestar a existência.
Quando se está diante de categorias cumulativas, um acú-
mulo aritmético das regras correspondentes fica perfeitamente
concebível.
204. - Entre categorias cumulativas, distinguir-se-á con-
forme as categorias às quais se reporta um mesmo fenômeno,
sejam equivalentes ou hierarquizadas.
Quando as diversas categorias em causa são hierarquiza-
das, ou seja, quando umas são subcategorias das outras, as re-
gras particulares de cada uma delas devem em principio acu-
mular-se, com a condição de que, em caso de conflito, uma
regra especial prevaleça sobre uma regra geral. A venda, ato
jurídico, é voluntária ou ao menos judiciária. É um contrato
submetido às regras habituais sobre o consentimento das par-
tes, sobre o efeito obrigatório etc. É um contrato sinalagmático
ao qual se aplicam, pois, os princípios do originário duplo, da
cláusula resolutória implícita, da exceção de inexecução etc.
Trata-se também de um contrato a título oneroso do qual estão
excluídas as regras de capacidade, de poder, de forma dos con-
tratos a título gratuito. Contrato comutativo, a rescisão por
causa de lesão é aí admitida em certos casos. É, enfim, uma
venda que supõe um acordo sobre a coisa e sobre o preço e que
ainda se pode especificar, para conhecer seu regime, por seu
objeto, pela qualidade das partes, pela natureza das obrigações
que gera... O fato de que a coisa vendida seja um corpo certo,
282 TEORIA GERAL DO DIREI K >

em particular um imóvel, e que uma das partes seja um comer-


ciante, por exemplo, implica diversas conseqüências.
Quando as categorias em causa são equivalentes, as re-
gras inerentes a cada uma delas devem também, em princípio,
somar-se. Assim, uma pessoa física, capaz, casada e comer-
ciante é submetida a um só tempo ao direito das pessoas físi-
cas, ao da capacidade jurídica, às regras matrimoniais e ao es-
tatuto dos comerciantes. Mas esse acúmulo nem sempre è arit-
mético, pois podem surgir incompatibilidades entre as regras
próprias das diversas categorias. Sua conjunção opera-se en-
tão mais consoante situações concretas do que em razão de
classificações intelectuais. É dominada pela especialidade de cer-
tas regras em comparação às outras e pelos imperativos que
dominam a matéria em questão, por exemplo, entre o direito
das pessoas, com as indisponibilidades por ele implicadas, e o
direito dos bens.
Constata-se então que o método das classificações, embo-
ra seja inerente à técnica jurídica, não lhe basta e esta supõe
trazer-lhe certos corretivos.

B. Os corretivos para o método das classificações

205. - A complexidade e a fluidez das realidades concre-


tas, assim como a multiplicidade, a elasticidade e a imprecisão
de certos conceitos e de certas categorias jurídicas, muitas ve-
zes dão ensejo a qualificações diferentes ou opostas e à aplica-
ção de regimes diferentes. A mera dedução cega das conse-
qüências desta ou daquela natureza jurídica pode conduzir a
resultados absurdos ou injustos. A aplicação rígida da força
obrigatória do contrato e do direito de cada parte de exigir da
outra a sua aplicação estrita leva a ignorar a erosão monetária e
a repelir a teoria da imprevisão: a Corte de Cassação recusou,
três séculos depois, revisar o tributo de irrigação devido pelos
usuários do canal de Craponne e fixado em três soldos em
1560 e 1567, ao passo que o Conselho de Estado admitiu a
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 283

revisão do contrato de concessão 55 . Para não deixar de lado as


realidades da vida, cumpre, pois, corrigir a aplicação pura e
simples do método das classificações com o raciocínio ou com
escolhas ocasionais.
206. - A aplicação de corretivos racionais pode proceder
dos mais diversos métodos ou princípios do raciocínio jurídi-
co: do raciocínio por analogia, a contrario ou a fortioriib das
exigências da hierarquia dos textos... Mas trata-se sempre de
corrigir o raciocínio pelo raciocínio.
Partindo da idéia de que um mesmo fato é suscetível de
qualificações opostas e, portanto, de ser submetido a regras di-
ferentes, a doutrina propôs recorrer sistematicamente ao racio-
cínio dialético, implicando o método dialético "que nenhum
princípio, em nenhuma matéria, seja proclamado ou aceito
sem a aceitação simultânea do princípio contrário" 57 . Cumpre
então, depois de ter qualificado um fato, um ato, uma institui-
ção, uma pessoa ou uma coisa, e de ter-lhes deduzido o regime
jurídico, referir-se à qualificação oposta para lhe deduzir o re-
gime jurídico correspondente. Isto serve de contra-raciocínio,
de "prova dos nove", e permite confirmar, infirmar ou atenuar
a solução obtida. Assim, qualificaremos sucessivamente a mes-
ma pessoa de simples sócio e de dirigente de fato de uma so-
ciedade para deduzir sua responsabilidade. Trataremos tal con-
trato como contrato de empresa, como contrato de trabalho ou
de mandato, depois como contrato civil e comercial, para apre-
ciar as respectivas conseqüências dessas qualificações e sua
adequação à situação em pauta.
Esse método orienta a escolha definitiva das classifica-
ções e das regras selecionadas e permite descartar soluções por
demais inadaptadas ou não-eqüitativas. Pode também levar a
aplicar distributivamente as conseqüências de duas qualifica-

55. Cass. Civ. 6 de março de 1876 D. 1876 I 193 nota GIBOULOT; C.E. 30
dc março de 1916 Gaz. de Bordeaux D. P. 1916 III 25; S. 1916 III nota HAU-
RIOU, concl. CHARDENET.
56. Ver n? 255.
57. E. BERTRAND, Le rôlede la dialectique en droilprivéposilif, D. 1951,
I 151; ver infra, n°253.
284 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ções diferentes a aspectos diferentes de uma mesma situação,


às suas condições e aos seus efeitos, à sua forma e à sua subs-
tância... Assim, a natureza dupla mais ou menos contratual e
mais ou menos institucional do casamento possibilita apreciar
o direito do casamento e do divórcio. Mas as soluções selecio-
nadas dependem também de escolhas empíricas.
207. - Perante a complexidade das realidades, as contradi-
ções ou as lacunas do direito positivo, a influência dos princí-
pios morais, políticos, sociais ou econômicos, impõem-se es-
colhas ocasionais para corrigir os termos do raciocínio ou os
resultados aos quais conduz.
O legislador, o juiz, ojurista de doutrina, o advogado mi-
litante modulam constantemente seu raciocínio consoante es-
colhas empíricas que lhes são inspiradas por considerações
práticas ou ideológicas. Mostrou-se tanto a utilidade quanto
os perigos desse processo que pode ser animado pelos mais
nobres ou mais negros desígnios, pelas mais justas ou mais fal-
sas idéias: "É fácil demais condenar reféns como espiões." 58
Ora, a qualificação é "o alvo preferido" dos corretivos59,
pois permite excluir as conseqüências geradas pela vinculação
de situações equívocas a categorias jurídicas utilizando outras
classificações. Em face dos transplantes de órgãos, da insemi-
nação artificial, da esterilidade, das modificações de identidade
sexual que a ciência moderna permite, os princípios dos direi-
tos não-patrimoniais, da indisponibilidade do Estado, da prote-
ção intangível do corpo e da pessoa humana conduzem o direi-
to a uma recusa, enquanto a referência ao contrato, à autonomia
da vontade incentiva a admissão de numerosas intervenções.
A escolha entre as abordagens possíveis não se operará,
em última análise, segundo perspectivas idealistas ou positi-
vistas, entre concepções morais ou religiosas e um cientificis-
mo objetivo? As soluções escolhidas, acerto "político" entre
esses procedimentos antinômicos, não se inserirão na ordem
jurídica graças a vinculações a classificações, a princípios e a
análises preexistentes?

58. G. CORNU, op. cit., n? 196.


59. Ibidem.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 285

ILUSTRAÇÃO

I. Tipologia d a s d e f i n i ç õ e s

• Definição real:
Ex.: art. 544 do Cód. Civ. "A propriedade é o direito de usu-
fruir e dispor das coisas da maneira mais absoluta, contanto
que não se dê a elas um uso proibido pelas leis ou pelas regu-
lamentações T
Art. 25 do novo C.P.C. "O juiz estatui em matéria graciosa
quando, em ausência de litígio, é incumbido de uma demanda
da qual a lei exige, em razão da natureza do processo ou da qua-
lidade do requerente, que ela seja submetida a seu controle."
- Definição do processo gracioso = procedimento no qual
o juiz estatui na ausência de litígio por um pedido do qual a lei
exige, em razão da natureza do processo ou da qualidade do
requerente, que ele seja submetido a seu controle.

• Definição terminológica:
Ex.: arts. R. 111-25 s. do C. Constr. e hab.
Art. R* 111-25 - Para a aplicação dos artigos 1792 e
2270 do Código Civil, na redação anterior à entrada em vigor
da lei n? 78-12 de 4 de janeiro de 1978, à construção de edifi-
cações para uso de habitação ou de características similares, as
obras de grande porte e as obras menores são definidas segun-
do as disposições a seguir.
Art. R* 111-26 As obras de grande porte são:
a) Os elementos de sustentação que concorrem para a
estabilidade ou para a solidez da edificação e todos os outros
elementos que lhes são integrados.
b) Os elementos que asseguram o fechamento, a cobertu-
ra e a vedação com exclusão de suas partes móveis.
Estes elementos abrangem notadamente:
- os revestimentos das paredes com exclusão da pintura e
dos papéis de parede;
- as escadas e assoalhos assim como seu revestimento em
material duro;
286 TEORIA GERAL DO DIREI K >

- os tetos e as divisórias fixas;


- as porções de canalizações, tubulações, condutos ou lu-
vas de todo tipo embutidas no interior das paredes, tetos ou
assoalhos, ou presas dentro da massa do revestimento, com ex-
clusão das que são somente chumbadas;
- as estruturas fixas dos elevadores e monta-cargas;
- os caixilhos e batentes de portas, janelas e vidraças.
Art. R* 111-27 - As obras menores são os elementos da
edificação afora as obras de grande porte, modelados, fabrica-
dos ou instalados pelo empreiteiro.
Esses elementos abrangem notadamente:
- as canalizações, radiadores, tubulações, conduítes, luvas
e revestimentos de todos os tipos que não os que constituem
obras de grande porte;
- os elementos móveis necessários ao fechamento e à co-
bertura, tais como portas, janelas, persianas e venezianas.

II. T i p o l o g i a d a s c l a s s i f i c a ç õ e s

Supõem-se duas classificações diferentes, por exemplo a


dos móveis e dos imóveis (A//B) e a dos bens corpóreos e dos
bens incorpóreos (C//D).
Cada uma das categorias em pauta comporta subcatego-
rias ( a l / / a l \ b l / / b l ' , c l / / c l d l / / d l ' ) e sub-subcategorias
(a2//a2\ b2//b2' etc.).

A // B c // D

al / / a i ' bl //b> 1 * cl//cl' dl//dl'

/I A /I A /I A /I A
a2//a2' a 2 ' 7 / a 2 " ' b2//b2' b2"//b2"' c2//c2' c2"//c2"' d2//d2' d2"//d2"'

Categorias alternativas: A e B, se A é o contrário de B, ou


A e bl que é uma subcategoria de B (ex. móveis e imóveis ou
móveis e imóveis por natureza).
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 287

Categorias cumulativas'. A e C, se A e C pertencem a


classificações diferentes e são suscetíveis de se acumular (ex.
móveis e bens corpóreos; móveis e móveis por natureza).
Categorias equivalentes: A e C, categorias pertencentes a
classificações diferentes se nenhuma das categorias é habitual-
mente uma subcategoria da outra (ex. móveis e bens corpóreos).
Categorias hierarquizadas: A (ato jurídico), al (contrato),
a2 (contrato sinalagmático)...: categoria e suas subcategorias
específicas ou subcategorias e suas categorias genéricas.

III. C o n j u n ç ã o d a s c a t e g o r i a s e i n v e s t i g a ç ã o d o r e g i m e ju-
rídico (R) d e u m a situação (S) q u e s e r e p o r t a m simul-
taneamente a essas categorias

1. Categorias alternativas
• Em princípio, uma situação (S) não pode reportar-se ao
mesmo tempo a duas categorias alternativas e, portanto, a seus
respectivos regimes. Ela se reporta, pois, somente a uma ou à
outra e copia o regime de uma ou da outra:

(S = A ou A = B mas S * A + B e RS * RA + RB)

• Não obstante, ocorre que umas situações se reportem a


um só tempo a duas categorias alternativas: são híbridos para
os quais são possíveis três casos de figura:
- Decomposição da situação em seus diversos elementos
e atribuição a cada um deles de seu regime (ex. direito autoral
de uma obra literária e artística).
(S = A + B -> RS = RA + RB)
- Abordagem global e regime próprio (ex. fundo de co-
mércio).
(S = (A + B) -> RS = RA + RB)
- Deformação dos respectivos atributos e regime das cate-
gorias confrontadas (ex. direitos do locatário de imóvel = defor-
mação dos direitos pessoais sem consagração de um direito real).
(S = (AB) -> RS = R (AB))
Capítulo 3
A linguagem jurídica

208. - A linguagem jurídica tem má reputação entre o pú-


blico: "é uma língua arrevezada" 1 .
Claro, "o discurso jurídico" não interessa somente, como
outros discursos científicos, a um grupo limitado de iniciados.
Dirige-se potencialmente a todos os cidadãos. Para ser-lhes
acessível, ele teoricamente deveria identificar-se à linguagem
corrente. Mas deve também ser mais preciso e não escapa às
exigências técnicas dos conceitos, dos mecanismos, das pres-
crições e dos raciocínios jurídicos.
Sua especificidade conduz os lingüistas a estudá-lo. A de-
finição da língua como um "sistema de signos" e a da semióti-
ca como uma "teoria dos signos" abriram caminho à "semió-
tica jurídica" que se orienta, segundo as Escolas, para "a for-
malização lógica das proposições ou enunciados relacionados
com o direito" ou para "a construção de uma gramática do di-
reito, enquanto conjunto de regras que regem a produção e a
interpretação dos discursos e das práticas sociais com valor
jurídico" 2 . Não se trata somente do estudo das palavras, mas

1. R. LINDON, Le stvle et l 'éloquence judiciaire, ed. Albin Michel, pp. 9 ss.


2. Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit, sob a
direção de A. J. ARNAUD e outros, ed. L. G. D. J. e Story-Scientia, Paris-Bruxe-
las, 1988, verbete "semiótica jurídica"; Actes du Colloque international de sémio-
tique juridique, Aix-en-Provence, março de 1985. Rev. rech. jur., P.U.A.M.,
1986-2; A. J. GRE1MAS e J. COURTES, Dictionnaire raisonné de la théorie du
langage, ed. Hachette, Paris, 1979; A. J. GREIMAS e E. LANDOWKI, "Pragma-
290 TEORIA GERAL DO DIREI K >

também daquele das estruturas conceptuais das linguagens do


direito.
A linguagem do direito tira suas particularidades da espe-
cificidade das mensagens transmitidas a seus destinatários, que
implica ao mesmo tempo palavras e enunciados que lhe são
próprios, como o são seus conceitos e seus métodos. O direito
pressupõe uma "lingüística prática" e especializada que exige
um esforço particular para a escolha dos termos, para a clareza
e a precisão dos textos, para sua estrutura e sua composição de
conjunto, sua apresentação formal, suas divisões internas, sua
aptidão para a indexação... Portanto, há uma lingüística jurídi-
ca, auxiliar da ciência fundamental do direito e vetor de sua ex-
pressão, cujo estudo científico se mostra essencial para a com-
preensão não só das regras de direito, mas também dos pró-
prios fenômenos jurídicos. Esse estudo, atualmente prossegui-
do por alguns eminentes autores 3 , é lingüístico e jurídico ao
mesmo tempo. Ele fica ainda mais complexo porque a própria
linguagem jurídica é diversificada por causa da pluralidade de
suas funções: os discursos da lei, das sentenças, das conven-
ções, da administração pública, da doutrina etc., a despeito de
seu fundo comum, são forçosamente muito diferentes uns dos
outros. Sem aprofundar tanto o estudo da linguagem jurídica, é
possível especificar-lhe a originalidade e a diversidade.
No campo jurídico, em que a certeza e a precisão das re-
gras se mostram uma garantia de segurança, "a palavra e a fór-
mula são agentes indispensáveis" da expressão dos conceitos e
das regras de direito4. Os textos legislativos e regulamentares,
as decisões judiciais, os documentos contratuais estão repletos
de termos e de expressões herméticas para o profano, mas cujo
sentido jurídico é bem determinado e que os juristas não po-
dem dispensar. "A palavra que expressa o conceito, a fórmula

tique et sémiotique", Actes sémiotiques, Documents, V, 50, 1983; R. CARRION-


WAM, "Semiotico jurídica", in D. Carzo e B. S. Jackson (eds.), Semiotics, Law
and Society, Reggio-Roma, Gangemi, 1985.
3. G. CORNU, Linguistique juridique, ed. Montchrestien, 1990.
4. F. GENY, Science et technique en droit prive positif, 1.1, n? 51.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 291

que lhe traduz o arranjo e a combinação com outros conceitos


para fazer dele um conjunto mais completo" 5 são os instru-
mentos necessários da comunicação das noções, das normas e
dos raciocínios jurídicos. A importância do vocabulário na téc-
nica jurídica não pode, pois, ser desprezada. Para além dessas
necessidades e, às vezes também, de obscuridades inúteis, le-
vanta-se a questão de saber se existe uma linguagem específi-
ca do direito, ou seja, um modo especial de expressão do pen-
samento e da realidade jurídicas que comporta usos particula-
res da língua comum e elementos alheios a esta. Se é esse o
caso, a análise e o comentário dos diversos textos jurídicos
pressupõem métodos particulares 6 .
Embora costume ser difícil separar o pensamento de sua
tradução verbal, a distinção deles é essencial. A concepção da
regra de direito, a gênese e o desenvolvimento de seus concei-
tos se prendem à ciência do direito; a língua não é mais que o
instrumento formal que os traduz e os veicula: ela procede da
técnica jurídica, sendo apenas um instrumento. Claro, a língua
já não tem, em nossos dias, o poder simbólico e plástico que
outrora fizeram dela a peça essencial do formalismo e do po-
der jurídico. Mas, embora possamos discernir e isolar da lín-
gua comum uma linguagem técnica adaptada às finalidades e à
aplicação do direito, o particularismo dessa linguagem já não
suscita a crítica, mesmo que ela seja um tanto inacessível ao
leigo. Seria mais perigoso, a pretexto de vulgarizar o direito,
alterar-lhe a precisão e a coerência. Como toda ciência, o di-
reito tem seus métodos, seus princípios e seus conceitos. Por
conseguinte, ele não pode dispensar uma linguagem apropria-
da. Para determinar exatamente a parte da linguagem na elabo-
ração e na aplicação do direito, cumpriria agir como jurista, fi-
lósofo, gramático e lingüista ao mesmo tempo. Isto foi feito 7 .

5. Ibidem.
6. J. L. SOURIOUX e P. LERAT, Le langage du droit, P.U.F., 1975, n°s 1 ss.
Ver também: J. L. SOURIOUX e P. LERAT, L 'analyse de texte, Dalloz, 4" ed.,
1997; ver também A. SÉRIAUX (dir.) e outros, Le commentaire de textes juridi-
1/Uf.i, Arrêts etjugements, 2 vols., ed. Ellipses, 1997.
7. J. L. SOURIOUX e P. LERAT, op. cit.; ver também Archives de philoso-
phie du droit, t. XIX, 1974: "Le langage du droit", prefácio de M. VILLEY.
292 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Por conseguinte, limitar-nos-emos aqui a um estudo superfi-


cial da linguagem do direito apenas dentro da perspectiva das
exigências da técnica jurídica. Deve-se, pois, refletir sobre a ter-
minologia (Seção I) e sobre a fraseologia (Seção II) jurídicas.

SEÇÃO I
A terminologia jurídica

209. - A terminologia é o conjunto das palavras técnicas


pertencentes a uma ciência ou a uma arte. A necessidade de
uma terminologia exata impõe-se ao legislador, ao juiz, ao ad-
vogado militante, ao intérprete... Para compreender o sentido
dos textos, para prever a solução de um problema de direito, as
palavras têm de corresponder a conceitos que tenham um con-
teúdo preciso e certo. Cumpre que todo conceito jurídico seja
suscetível de uma definição e seja designado por um termo
próprio. A definição do conceito é então a um só tempo a do
sentido de uma palavra. Os termos jurídicos devem, assim,
designar conceitos "à maneira de um rótulo ou de um sinal al-
gébrico" 8 . A semântica jurídica supõe que a cada palavra pró-
pria se prenda uma idéia particular. Assim, uma palavra copiada
da linguagem corrente pode redundar, por uma série de aper-
feiçoamentos, num sentido específico ou ser suprimida da lin-
guagem jurídica em proveito de um termo técnico próprio des-
ta. Assim como a definição jurídica fica ainda mais perfeita
quando analisa mais completa e apuradamente uma noção, os
termos jurídicos ficam mais adequados quando expressam ape-
nas uma noção. Atualmente, essas exigências ficam ainda mais
imperiosas porque o desenvolvimento da informática obriga os
juristas a um rigor quase matemático na elaboração e na utili-
zação dos "abstratos" que figuram nos "tesauros" 9 . Assim, para

8. Ch. EISENMANN, "Quelques problémes de méthodologie des défini-


tions et des classifications en science juridique, in Arch. de philo. du droit, t. XI,
1966, pp. 25 ss„ n?s 2 ss.
9. Sobre este ponto, ver notadamente: P. CATALA, Le droit à 1'épreuve du
numérique -Jus ex machina, ed. P.U.F., col. Droit, éthique, société, 1998, em es-
pecial pp. 128 s.; ver também pp. 89 s. e 101 s.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 293

assumir as funções que lhe são próprias (§ 1), o vocabulário ju-


rídico teve de adquirir um particularismo exato (§ 2).

I. As funções próprias do vocabulário jurídico

210. - O vocabulário jurídico tem a função de atender a


certas exigências ligadas à qualidade da regra de direito (A) e
ã sua comunicação (B).

A. A qualidade da regra de direito

211. - Como é uma proposição destinada a impor uma


regra de conduta sob a coerção social, a regra de direito deve
ler certas qualidades essenciais: a unidade, a ordem, a precisão
e a clareza. Portanto, deve ser composta de palavras com um
sentido claro, preciso, exato. Se comporta conceitos jurídicos
equívocos ou insuficientemente definidos, a regra fica incerta;
então fica impossível prever a solução de um eventual litígio,
pois o sentido da noção evocada e o significado da norma en-
volvida dependem da apreciação subjetiva do juiz. Portanto,
sempre é preciso traduzir os fatos em linguagem jurídica para
buscar a solução de direito aplicável a uma determinada situa-
ção dc fato e, vice-versa, a terminologia deve ser adaptada à
qualificação apropriada das situações de fato que o sistema ju-
rídico deve reger.
Mas, para que uma palavra seja suscetível de uma defini-
ção, tanto a realidade que ela expressa quanto o alcance e os
efeitos que lhe são vinculados têm de ser conhecidos, o que su-
põe que ela expresse apenas um conceito cuja substância está
estabelecida ou seja objeto de uma definição. A palavra "com-
promisso", que designa ao mesmo tempo um pré-contrato de
venda, uma convenção com o objetivo de submeter um litígio à
arbitragem e um acordo entre Estados, é inadequada, pois não
corresponde a um conceito único.
A certeza da linguagem por vezes é mais importante do
que sua adequação às pequenas variações da realidade. Assim,
294 TEORIA GERAL DO DIREI K >

o princípio nullum crimen sine lege seria de fato ignorado se a


lei fosse redigida em termos tão vagos que coubesse ao juiz
determinar o fato punível ou a natureza da pena 10 . A incerteza
do direito é um mal grave, pois aumenta a desordem dos com-
portamentos que se querem evitar, a desordem na norma. Foi pos-
sível dizer que é preferível uma ausência de regra ou uma regra
criticável a uma regra incerta". A segurança do direito pressu-
põe um aparelho conceptual e uma terminologia relativamente
rígidos. Ela não pode satisfazer-se com a "livre descoberta do
direito" pregada outrora na Alemanha e deve rejeitar qualquer
"existencialismo jurídico", fundamentado num "direito de si-
tuação" mais do que num direito normativo. Assim, conquanto
as palavras da linguagem comum mudem de sentido e se per-
vertam ao acaso da vida, os termos jurídicos devem ter um
sentido uniforme e estável. Os termos jurídicos limitam-se a
traduzir noções pelas quais se expressam realidades. Novas
realidades devem incorporar-se a noções preexistentes e ser
expressas por termos conhecidos. Se isto é impossível, cumpre
consagrar novas noções e novos vocábulos. Mas a desnatura-
ção das noções e dos termos é perigosa. A evolução do voca-
bulário jurídico deve ser racional; não pode ser anárquica.
Também é preciso, em princípio, que o vocabulário seja
preciso, noutras palavras, que as palavras empregadas tenham
um sentido bastante apurado para ser reconhecíveis e permitir
identificar o que designam. A denominação de uma pena ou a
de um comportamento, da usura por exemplo, necessita ser pre-
cisa. Quando falta a precisão, os juristas forcejam para desco-
bri-la mediante conceitos e termos especificadores. Atrás da
falta, pesquisam catálogos de atos faltosos.
Ocorre, porém, que se seja obrigado a renunciar a qual-
quer definição precisa em face dos conceitos puramente quali-
ficativos que são mais bem compreendidos se não estão defi-
nidos. A injúria grave, antigamente causa de divórcio, os bons
costumes, o bom pai de família etc. enunciam mesmo noções

10. J. DAB1N, Théorie générale du droit, nf 249.


11. J. DABIN, op. cit., nf 232.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 295

jurídicas, mas não têm um sentido preciso; a plasticidade deles


é a expressão daquela das noções que eles designam e que o di-
reito quer maleáveis para poder aplicar a todos os casos, mes-
mo imprevisíveis, um tratamento apropriado.
Afora essas noções, voluntariamente vagas e maleáveis,
que uma excessiva precisão do vocabulário trairia, a termino-
logia tem de ser bastante exata para designar a espécie para
além do gênero e para marcar as diferenças de natureza e de
regime que a ordem jurídica registra ou prescreve. Importa
pouco então que o leigo não apreenda o sentido de cada termo.
I • mais importante que cada termo tenha um significado pró-
prio: o público não distingue o sinal e as arras, mas o jurista
detecta neles conceitos e regimes diferentes que não seria bom
confundir.
Assim, a lei parece, mais do que qualquer outra fonte de
direito, garantir a correção da linguagem jurídica, graças à sua
generalidade, à sua força coerciva, à sua estabilidade e aos
seus modos de elaboração. Mas ela também tem, mais que as
outras expressões do direito, necessidade de ser comunicada.

I). A comunicação da regra de direito

212. - Como toda linguagem, a linguagem jurídica é um


instrumento de precisão e de comunicação dos pensamentos.
Mas é apenas o intermediário, o meio de suscitar naqueles a
quem se dirige um pensamento análogo ao de quem a empre-
ga 1 '. O problema então é saber se o direito deve empregar a
linguagem corrente ou uma terminologia especial. Pode pare-
cer bom redigir a lei na linguagem corrente para pô-la ao
ulcance do cidadão médio. Mas a inevitável complexidade da
tegra de direito torna ilusória a idéia de que o cidadão médio
possa, sem formação jurídica, compreender os textos à sua me-
ia leitura, independentemente de seus vínculos com o conjunto
do sistema jurídico. Pode-se mesmo chegar à pior das confu-

12. F. GÉNY, op. cit., t. III, n° 256.


296 TEORIA GERAL DO DIREI K >

sões quando uma palavra comum é utilizada pelo direito num


sentido particular. Portanto, deve-se chegar a um acordo: a lin-
guagem corrente é preferível por razões de comodidade e de
clareza, quando é suficiente; mas, se apresenta o risco de gerar
ambigüidades, deve ser substituída por uma terminologia espe-
cífica 13 . O juiz extrai da linguagem comum o meio de transmi-
tir mais facilmente a regra de direito para a vida social. Tira
dela até as expressões necessárias para explicar o sentido pro-
fundo e particular dos conceitos jurídicos. Isso gera "uma lin-
guagem técnica, que se apóia na linguagem comum, mas espe-
cificando-lhe os termos ou as formas, às vezes desnaturando-
os, quando necessário até mudando totalmente a aplicação, de
modo que se obtenha um idioma especialmente adaptado ao
objetivo perseguido e que finalmente lhe assinale seu lugar
distinto no meio das confusões, das obscuridades e dos equívo-
cos da língua vulgar" 14 .
A linguagem é então um instrumento essencial para a
aplicação do direito positivo; deve permitir fazer as regras de
comportamento prescritas pelo direito passar para a prática.
São as palavras e as frases que tornam compreensíveis os pre-
ceitos jurídicos. Estes são difundidos pela linguagem. A enun-
ciação dos conceitos e das regras é a condição da "factibilida-
de" do direito. Esse papel técnico da linguagem está expresso
em todos os níveis da aplicação do direito, trate-se da legisla-
ção, da jurisprudência, da prática ou da doutrina. Para o legis-
lador, cumpre incorporar a regra num texto cuja redação é
capital a fim de comunicá-la àqueles a quem ela se dirige.
Essas questões de legística formal são essenciais 15 . Mas, con-
forme a regra deva ser mais rígida ou mais maleável, mais ou

13. R. HOUIN, "De lege ferenda", in Mélanges Roubier, Dalloz, 1961, t. I,


pp. 272 ss., nota p. 286.
14. F. GÉNY, ibidem.
15. C. LAMBOTTE, Technique législative et codification, ed. Story Scien-
tia, 1989, espee. pp. 42 s.; J. L. BERGEL, "The Drafting of the Norm", in Contri-
butions to the Methodology of the Creation of Written Law, U. KARPEN e P.
DELNOY, dir., EAL, Liège, 1993, ed. Nomos Verlagsellschaft, Baden-Baden,
1996, pp. 39 ss.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 297

menos adaptável às diversas situações particulares, mais geral


ou mais pontual, mais estável ou mais evolutiva etc., a termi-
nologia deve ter maior ou menor precisão ou imprecisão.
Isto levanta o problema das relações entre o legislador e o
juiz. Um texto preciso gera a segurança nas relações jurídicas
mas pode abafar a realidade de certas situações individuais.
Um texto mais impreciso confere menos segurança aos cida-
dãos, mas permite ao juiz descobrir uma solução mais bem
adaptada aos fatos. Seja como for, nos sistemas cuja fonte es-
sencial do direito é a lei (no sentido lato), o juiz deve ser en-
quadrado por ela. Sua generalidade e sua permanência impli-
cam garantias que os estados de espírito de certos magistrados
não poderiam assegurar: demasiados exemplos fantasiosos o
demonstram. Os magistrados são apenas homens ou mulheres,
mesmo que se possa sonhar que todos eles sejam modelos de
competência, de clarividência, de imparcialidade e de serieda-
de, de tão eminente que é o papel deles. Se muitos o são, nem
todos o podem ser. Para estabelecer uma boa justiça, cumpre
acima de tudo boas leis que compete ao juiz respeitar e aplicar
• IOS fatos que lhe são submetidos e que ele não possa transgre-
díi O grau de precisão das palavras utilizadas restringe ou
aumenta a liberdade de apreciação do juiz. Palavras como "ter-
ceiro", "falta" ou "guarda" o atestam. Mas parece que se im-
põe uma definição prévia quando o sentido técnico das pala-
vras não é absolutamente claro 16 . O próprio juiz deve então,
em sua aplicação da regra geral aos casos particulares, enun-
ciar sua decisão em termos claros e exatos. Assim também, o
advogado militante deve expressar a vontade ou a argumenta-
çrto das partes numa linguagem técnica precisa e sem equívocos.
( abe à doutrina investigar o conteúdo substancial das palavras
e elaborar, se necessário, a terminologia capaz de traduzir os
conceitos. Os laços naturais entre o direito, sua interpretação e
sua aplicação impõem, a despeito das variantes da prática pro-
le.sional, uma unidade da terminologia jurídica. E mister que
iodos os juristas falem a mesma linguagem.

16. R. HOUIN, op. cit., pp. 286 ss.


298 TEORIA GERAL DO DIREI K >

2. O particularismo do vocabulário jurídico

213. - A unidade necessária do vocabulário jurídico e a


especificidade de suas funções explicam seu particularismo
que procede de seu modo de formação (A) e se expressa em
sua estrutura (B).

A. As origens do vocabulário jurídico

214. - A linguagem corrente é o fundo comum no qual se


alimenta qualquer língua técnica. Esta se desenvolve progres-
sivamente com o uso que, conforme as necessidades e os hábi-
tos, conserva o vocabulário corrente, às vezes precisando-o ou
pervertendo-o, ou cria termos particulares. Distinguiram-se
duas espécies de vocábulos jurídicos. Aqueles que designam
meios técnicos seriam obra dos juristas e pertenceriam mais à
língua erudita (ato jurídico, ato translativo, sucessor, presun-
ção, usucapião, anatocismo etc.). Aqueles que servem para de-
signar as instituições seriam, ao contrário, mais próximos da
língua leiga (casamento, divórcio, contrato etc.)17. Mas esta
distinção é artificial. É difícil distinguir nitidamente os meios
técnicos e as instituições. Existem palavras tiradas da lingua-
gem corrente que foram desviadas de seu sentido leigo (ausên-
cia, desaparecimento, posse, privilégio, servidão etc.). Existem
outras que adquiriram um sentido específico (boa-fé, motivo
legítimo, direito moral etc.) ou cujo sentido evolui de maneira
autônoma na linguagem jurídica (propriedade, empresa etc.).
Existem, enfim, termos jurídicos que se vulgarizaram na lin-
guagem corrente.
Na realidade, o direito tira mesmo seu vocabulário da lín-
gua comum mas separa seus termos mais aptos para expressar
com a precisão necessária as noções jurídicas. Mas, no seu sen-
tido habitual, essas palavras não podem bastar para as necessi-

17. P. ROUBIER, Théorie générale du droit, 2? ed., 1951, nf 13.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 299

dades da técnica jurídica e para a representação de conceitos


próprios do direito. Portanto, elas perdem na linguagem jurídi-
ca o sentido geral que têm correntemente e nela adquirem um
sentido determinado. As palavras "servidão", "ato", "título",
"privilégio", "partes", "terceiro", "solidariedade", "obrigações"
etc. têm na linguagem jurídica um sentido diferente daquele da
linguagem corrente de que são oriundas. O jurista parte de fato
da massa infinita das noções correntes e sem caracteres pró-
prios como, por exemplo, o nascimento, a morte, o uso das coi-
sas etc. Depois, essas noções corriqueiras se transformam em
noções propriamente jurídicas pelo efeito específico que o di-
reito lhes vincula. O nascimento e a morte se tornam fatos de
estado civil com múltiplas conseqüências; o uso das coisas se
precisa, em detenção, em fruição, em posse 18 . As noções jurí-
dicas, assim formadas e denominadas de maneira particular,
tiram sua substância das regras do sistema jurídico. Ora, os
laços que este mantém com outros sistemas e outras ciências
implicam que o vocabulário jurídico lhes copie também a ter-
minologia.
215. - Assim as terminologias morais, econômicas, políti-
cas, matemáticas, físicas, biológicas etc. penetram no vocabu-
lário jurídico: o crédito, a circulação de bens, o mercado, os
bons costumes, a ordem pública, a administração pública, o exa-
me serológico, o transplante de órgãos, o decibel etc. entram
na língua dos juristas. Costumou-se assinalar os perigos que
pode apresentar a introdução no direito dos termos tirados de
outras linguagens técnicas. Essas noções e esses vocábulos re-
•.istem mais do que outros "à precisão rígida postulada pela
ordem jurídica e conservam, a despeito de sua adaptação ao
direito, a imperfeição técnica" que têm nas ciências de que de-
rivam19. Assim, o termo administração utilizado em muitos
textos de direito privado e de direito público não tem neles um
sentido uniforme. Os termos valor, empresa, capital, crédito
carecem de precisão para o jurista. Não obstante, encontram-se

18. F. GÉNY, op. cit., t. III, n° 258.


19. Ibidem.
300 TEORIA GERAL DO DIREI K >

na linguagem jurídica três tipos de palavras: as extraídas do


vocabulário corrente, as que são oriundas de outras disciplinas
e os termos especificamente jurídicos.
A terminologia jurídica em geral tem origem grega ou
latina. Parte considerável do vocabulário institucional é oriun-
da do grego (democracia, monarquia, oligarquia, política etc.)
ou do latim (República, Constituição, legislatura, regime, Se-
nado etc.) Essas inspirações encontram-se em grande número
em todos os ramos do direito: anatocismo, anticrese, quirogra-
fário, enfiteuse, hipoteca, ato, alienação, capacidade, codicilo,
contrato etc. A influência do direito romano foi determinante.
O vocabulário jurídico às vezes também é oriundo de línguas
vivas estrangeiras. Tirou do italiano termos financeiros e co-
merciais usuais, tais como ágio, aval, banco, bancarrota, balan-
ço, aduana etc. e do inglês palavras como budget, cheque, co-
mitê, júri, warrant. Mas estas palavras foram integradas na lín-
gua francesa 20 .
Outras, em compensação, foram diretamente introduzi-
das na prática sob sua forma estrangeira. E o caso de facto-
ring, leasing, lockout, know-how e muitas outras. Inquietos
com essa penetração, os poderes públicos franceses reagiram
publicando em condições previstas por um decreto de 7 de ja-
neiro de 1972, relativo ao enriquecimento da língua francesa,
listas de palavras e de expressões das quais certo número inte-
ressa ao vocabulário jurídico. Uma lei de 31 de dezembro de
1975 impôs em numerosas circunstâncias o emprego da lín-
gua francesa e vetou as expressões estrangeiras quando exis-
tem termos franceses equivalentes. A palavra affacturage subs-
titui então factoring; deve-se empregar a palavra crédit-bail
[crédito-aluguel] e não leasing... Embora esse esforço seja
louvável, não se pode procurar simplificar excessivamente a
linguagem jurídica, correndo-se o risco de lhe alterar a preci-
são e a exatidão.

20. J. L. SOURIOUX e P. LERAT, "Le langage du droit", op. cit., pp. 15 ss.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 301

M. A estrutura do vocabulário jurídico

216. - A linguagem jurídica comporta sobretudo substan-


tivos de ações (ex. demarcação do verbo demarcar) e substanti-
vos de agentes (parte, pleiteante, juiz, contratante etc.)
Um estudo técnico recente da "linguagem do direito", do
qual extrairemos os desenvolvimentos a seguir, mostra que o
vocabulário juridico comporta "palavras-bases", "derivadas" e
"compostas" 21 . As "palavras-bases" são as numerosas palavras
jurídicas simples que constituem o fundo do vocabulário jurí-
dico e que, designando instituições, atos, agentes, instrumen-
tos técnicos etc., provêm do grego e do latim, da linguagem
corrente, de termos estrangeiros. "As derivadas" são oriundas
das "palavras-bases", acrescidas de prefixos ou de sufixos.
< >ra, a derivação evolui diferentemente na língua comum e na
linguagem jurídica, de modo que o particularismo desta au-
menta. O direito conserva quase todo o seu vocabulário antigo,
ao passo que, na linguagem corrente, as tendências da deriva-
çílo das palavras evoluem muito em nossos dias. Embora o
sufixo erudito "ação", freqüente em todas as disciplinas, não
seja alheio ao direito (privatização), outros sufixos são-lhe es-
pecíficos. O recuo na língua corrente de certos sufixos (-iso,
ílncia, -ência, -(i)tude, -eza, -ura, -cria, -is, -ório) não se obser-
va no vocabulário jurídico em que as palavras terminadas em
ório (absolutório, cominatório, possessório etc.), em -ura (can-
dldatura, fatura, primogenitura etc.), em -ato (concubinato,
mandato etc.), em -ário (fiduciário, referendário, comanditário
ele,), em -ivo (adotivo, aquisitivo, executivo, legislativo etc.), e
.1 utilização de substantivos derivados de verbos* (beligerante,
adotante, comitente etc.) ou de particípios passados (acusado,
condenado, detento etc.) permanecem constantes. Assim tam-

21. J. L. SOURIOUX e P. LERAT, op. cit., G. CORNU, Linguistique juri-


iliquc. op. cit., pp. 57 ss.
* Km português, o sufixo -ante procede das terminações do particípio pre-
•ciUtf latino; em francês, o particípio presente é utilizado como substantivo (p. ex.
hi'lhgèranl, adoptant, commettant). (N. da T.)
302 TEORIA GERAL DO DIREI K >

bém, a prefixação das palavras jurídicas é caracterizada pelo


uso de elementos pouco usuais noutras áreas como os prefixos
co (co-autor, co-herdeiro etc.), contra (contradita, contrafação,
contraprotesto), não (não-incidência, não-retroatividade), sub
(sublocação, submandato etc.), sobre (sobrelanço, sobrestadia,
sobrenome etc.) ou pré (pré-aviso, prenotação, prescrição etc.).
As "palavras compostas" do vocabulário jurídico também
têm particularidades morfológicas e sintáticas. Algumas se
caracterizam pela mistura lingüística (apelação à mínima*,
ação in rem verso, tutor ad hoc...), "por uma base não-produti-
va" (adiantamento de legítima, a portas fechadas**...) ou por
"formações regressivas", consistentes em um complemento
que precede a palavra completada (jurisdição, litispendência
etc.). As particularidades de sintaxe consistem na elisão de cer-
tas conjunções (dommages-intérêts***) ou na sucessão de um
adjetivo e de um substantivo ou de um determinante e de um de-
terminado (blanc-seing****, amiable-compositeur*****). Com
maior freqüência, as palavras compostas são formadas segun-
do as características habituais dos vocabulários técnicos: subs-
tantivo e adjetivo de relação (assistência educativa, herdeiro
reservatário etc.), dois substantivos ligados pela palavra "de"
(fundo de comércio, curador de órfãos, edital de citação, chefe
de Estado etc.) ou "seqüências estratificadas" (atentado contra
a segurança do Estado, recurso por excesso de poder, interesse
de agir etc.).
Essas estruturas terminológicas diversas procedem da na-
tureza dos mecanismos jurídicos. A utilização do sufixo -ório,
por exemplo, marca que se formam instrumentos (ação posses-
sória); os prefixos co-, contra-, sobre-, sub- expressam as rela-

* Em francês, appel a mínima. (N. da T.)


** Em francês, avancement d hoirie, sendo hoirie um vocábulo arcaico que
significa herança; huis cios, termo também arcaico para portas fechadas, não aber-
to ao público. (N. da T.)
*** Perdas e danos. (N. da T.)
**** Assinatura em branco. (N. da T.)
***** Árbitro encarregado pelas partes de conciliar uma contenda com
eqüidade sem ser obrigado a decidir consoante as regras de direito.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 303

ções de cooperação, de oposição ou de hierarquia que caracteri-


zam a matéria jurídica. As palavras compostas traduzem noções
técnicas. A terminologia jurídica também se caracteriza, como
qualquer linguagem técnica, por conjuntos fechados (conven-
cional/legal, ascendente/descendente) constituídos por pares, ou
abertos, que podem acolher a evolução do direito (Tribunal de
Apelação/de Júri/de Cassação/de Contas etc., mandato de soltu-
ra/de prisão/de busca e apreensão/de citação etc.)
Notar-se-á, porém, que a linguagem jurídica não escapa a
dois inconvenientes freqüentes que são a "homonímia" e a "po-
lissemia". A homonímia supõe duas palavras idênticas cujas
definições não têm nada em comum: a palavra parquet* nada
tem em comum no direito e fora do direito. A polissemia con-
siste no fato de um mesmo termo corresponder a várias defini-
ções tendo uma coisa em comum. Ora, há casos em que mes-
mos termos jurídicos têm vários significados diferentes apesar
de um elemento comum de definição (ausência, depósito, com-
promisso etc.). Mas essas dificuldades se solucionam graças à
utilização de dicionários ou de léxicos jurídicos cuja necessi-
dade é imperiosa, não só para os leigos mas até para juristas
experientes, tanto para a leitura como para a redação satisfató-
ria dos textos jurídicos. Além dos léxicos especializados, em
francês não há muito mais que "o vocabulário jurídico" de Ca-
pitant, agora magistralmente atualizado sob a direção de Gé-
rard Cornu 22 , e o "léxico de termos jurídicos" de Guillien e
Vincent23. Isso torna almejáveis a conclusão de trabalhos que
estão sendo feitos na França e no exterior e a elaboração de
dicionários bilíngües, até mesmo multilíngües. As exigências
da informática jurídica, atualmente, impõem trabalhar nesse
sentido. O particularismo do vocabulário jurídico é ainda mais
ampliado pelo da fraseologia.

* Parquet, em direito, designa o Ministério Público e, na linguagem corrente,


lem muitas outras significações, entre elas, barra do tribunal, assoalho etc. (N. da T.)
22. G. CORNU, Vocabulaire juridique, P.U.F., Paris, 1987.
23. Ver também P. N1COLEAU, Dicojuris, Lexique de droitprivé, ed. Ellip-
«ci, 1996. e a coleção "Lexique" (por matérias), ed. Dalloz.
304 TEORIA GERAL DO DIREI K >

SEÇÀO II
A fraseologia jurídica

217. - A linguagem jurídica não é homogênea. Alimenta-


se na linguagem do direito romano, na linguagem comum, na
formulação erudita dos juristas, nas diferentes técnicas, agora
nas exigências da informática etc. E imposta pela tradição e
pelas exigências sempre crescentes da comunicação; mas, como
qualquer linguagem técnica, sempre pressupõe uma articula-
ção global cujas estruturas não podemos modificar livremente.
Constatamos, porém, formulações e estilos diferentes confor-
me os textos jurídicos e os meios profissionais envolvidos, so-
bretudo conforme se trata da produção de atos normativos ou
da aplicação do direito, ainda que essa distinção seja transpo-
nível para os sistemas de common law. Distinguimos também
as linguagens do legislador, do juiz, do fórum, dos tabeliães
que são respectivamente influenciadas pelas tradições profis-
sionais diferentes e pelas considerações práticas. O estilo da
lei, o da doutrina, o das sentenças e o das certidões cartoriais
têm cada um deles suas particularidades 24 .
Podemos então almejar uma unidade de linguagem; mas é
difícil determinar objetivamente qual é a melhor linguagem ju-
rídica. Podemos, quando muito, destacar certos traços constan-
tes na construção fraseológica (§ 1) e tentar uma apreciação do
estilo jurídico (§ 2) a fim de enfatizar seus méritos e inconve-
nientes e descobrir sua evolução desejável.

24. P. MIMIN, Le style des jugements, ed. Librairies Techniques, 1962; R.


LINDON, op. cit.; G. KALINOWSKI, "Sur les langages respectifs du législateur,
du juge et de la loi", in Arch. de philo. du droit, t. XIX, 1974, pp. 63 ss.; F. M.
SCHROEDER, Le nouveau style judiciaire, ed. Dalloz, 1978. Uma classificação
um pouco diferente é dada por J. WROBLEWSK1, "Les langages juridiques: une
typologie", Droit et société, 1988, n" 8, pp. 13 s. Sobre o estilo da lei, ver L. P.
PIGEON, Rédaction et interprétation des lois, Ed. officiel du Quebec, 1978; M.
SPARER e W. SCHWAS, Rédaction des lois: rendez-vous du droit et de la cultu-
re, Ed. officiel du Québec, 2? tiragem, 1980. G. CORNU, Linguistique juridique,
op. cit., pp. 209 s.
A APLICAÇÃO DO DIREITO 305

I. A construção fraseológica

218. - As fórmulas em geral são consideradas a parte prin-


cipal da língua jurídica. Mesmo sem lhes atribuir o papel míti-
co, há que lhes reconhecer o interesse de uma tradução ade-
quada da substância jurídica que se deve expressar: a boa reda-
ção das fórmulas contribui para o valor das regras que elas têm
o objetivo de enunciar. A formulação da regra de direito é, em
princípio, direta e expressa em uma forma impositiva. As ve-
zes é também o reflexo formal da regra que enuncia: a expres-
são das presunções é um bom exemplo disso 25 . Tomando so-
bretudo a lei como referência, podemos então concentrar-nos,
como Sourioux e Lerat 26 , na "enunciação jurídica" (A) e na
"significação jurídica" (B).

A. A enunciação jurídica

219. - A enunciação jurídica, ou seja, o emprego da língua


jurídica num ato, revela a atitude que seu autor toma para com
seu enunciado e a linguagem de ação, característica da lingua-
gem do direito.
220. - As atitudes possíveis do autor para com seu texto
formam um leque limitado e se exprimem pela impessoalida-
de. negação, situação e regra de conduta que a lingüística situa
por meio de "marcas" diferentes 27 .
A enunciação normativa é de fato impessoal, sendo o
sujeito do verbo um conceito jurídico e não uma determinada
pessoa. Utiliza-se então para a construção gramatical da frase
uma forma passiva (ex.: "a boa-fé é sempre presumida...", art.
.'2()8 do Cód. Civil) ou de sentido passivo (ex.: "toda obriga-
ção ile fazer ou de não fazer redunda em perdas e danos...", art.

25. P. ROUBIER, op. cit., n° 13.


26. Op. cit., pp. 44 ss.
27. J. L. SOURIROU e P. LERAT, ibidem. Sobre o "discurso legislativo",
ver l i CORNU, Linguistique juridique, op. cit., pp. 266 s.
306 TEORIA GERAL DO DIREI K >

1142 do Cód. Civil) ou ainda uma locução impessoal consisten-


te em um sujeito aparente seguido de um verbo passivo, encon-
trando-se essa formulação sobretudo nos textos modernos e
nas fórmulas da prática (ex.: é estabelecida uma autuação...).
A formulação negativa é igualmente freqüente para o enun-
ciado de princípios (ex. "supõe-se que ninguém ignora a lei") e
torna-se restritiva quando a norma comporta a um só tempo a
regra e sua exceção (ex. "ninguém pode ser adotado por várias
pessoas, a não ser por dois esposos", art. 346 do Cód. Civil).
A situação ou a localização no texto é um procedimento
freqüente na lei e nas certidões para marcar as referências liga-
das à coerência delas evitando ao mesmo tempo sacrificar-lhes
a concisão 28 . Assim, os textos jurídicos assinalam-se por ex-
pressões tais como "abaixo", "adiante", "acima designado",
"já citado", "abaixo assinado" etc.
A regra de conduta é, enfim, sem dúvida, de uso constan-
te. Só pode consistir num elenco restrito de orientações: pode
ser uma obrigação (ex.: "os esposos se devem mutuamente fi-
delidade, proteção e assistência", art. 212 do Cód. Civil), uma
proibição ("o proprietário do fundo devedor da servidão não
pode fazer nada que tenda a lhe diminuir o uso...", art. 701 do
Cód. Civil), uma permissão ("... um esposo pode ser autoriza-
do...", art. 217 do Cód. Civil) ou uma faculdade ("... o juiz pode
moderar ou aumentar a pena...", art. 1152, al. 2, do Cód. Civil).
221. - A linguagem jurídica é, por outro lado, uma lingua-
gem de ação. Consiste então em compromissos, em constata-
ções ou em decisões executórias. Os compromissos pessoais
enunciados pelo autor se caracterizam pela utilização do pro-
nome pessoal da primeira pessoa seguido de certos verbos sig-
nificativos no indicativo presente: "eu lego...", "eu prometo...",
"eu reconheço...". Devem-se assimilar-lhes as expressões tais
como "lido e aprovado"*. Essas simples proposições compor-

28. Ver "La législation par référence", Cahiers de méthodologie juridique.


n? 12, R.R.J., 1997-4, P.U.A.M, 1997.
* Em francês usa-se a fórmula lu et approuvé, escrita a mão, antes da assi-
natura.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 307

tam um compromisso porque emanam do autor desse compro-


misso, quando ele o subscreve.
Quando se utiliza o pronome pessoal da terceira pessoa,
seguido de verbos que marcam um ato jurídico, um compro-
misso por exemplo, trata-se de uma constatação estabelecida
por uma autoridade jurídica qualificada para proceder à cons-
tatação relatada: assim X... "declarou...", "aceita...", "reconhe-
ce...", "votou...", "tomou posse...".
As decisões executórias são igualmente formuladas na
terceira pessoa ou pelo "nós" oficial que representa a expres-
são de um sujeito único que age autorizado por seu título. Os
verbos utilizados, em número relativamente restrito, variam
conforme se trate de leis ou de textos regulamentares ou este-
ja-se diante de decisões judiciárias. Assim, encontramos: "O pre-
sidente da República decreta...", "A Corte... cassa...", "Nós,
presidente do tribunal de... autorizamos..." 29 . Se a enunciação
jurídica tem, assim, suas regras que podemos esquematizar e
sc apóia num determinado vocabulário, é lógico pensar que o
sentido dos textos judiciários pode ser facilmente descoberto
graças aos procedimentos lógicos e lingüísticos que servem
para a sua elaboração.

M O significado jurídico

222. - A investigação do sentido dos textos jurídicos se ba-


seia numa análise que não pode ser nem "introspectiva" nem
"Intuitiva", mas para a qual nenhuma metodologia global uni-
forme parece consagrada, embora lhe reconheçam tanto "as-
pectos lógicos" quanto "aspectos sociolingüísticos" 30 .

29. Ver J. L. SOURIOUX e P. LERAT, op. cit., pp. 50 ss.


.10. J. L. SOURIOUX e P. LERAT, op. cit., pp. 56 ss.; ver também A. SÉ-
HIAUX (dir.) e outros, Le commentaire de textes juridiques, op. cit.', F. PEYCHE-
lll (cd.), La découverte du sens en droit, Assoc. Française de Philosophie du
I Imit (colóquio de 5 de abril de 1991), ed. F. Steiner Verlag, Stuttgart, 1992; P.
AMSliLEK (dir.) e outros, Interprétation et droit, ed. Bruylant e P.U.A.M, 1995;
I" A CÔTÉ, Interprétations des lois. Ed. Y Blais Inc., 1990, 2? ed.; D. Neil Mac
i oillllck e R. S. Summers (eds.), Interpreting Statutes a Comparative Study, ed.
I Milmouth, 1991. Ver também infra, n?s 228 ss.
308 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Os aspectos lógicos seriam mormente ligados ao "univer-


so do discurso jurídico", ou seja, ao conjunto das pressuposi-
ções que determinam a interpretação das palavras. Portanto,
trata-se em primeiro lugar de descobrir o sentido das palavras,
o que, para o leigo inexperiente das noções jurídicas, é ainda
mais difícil porque o sentido de uma mesma palavra varia às ve-
zes de uma matéria jurídica para outra ("obrigação" ou "com-
promisso", por ex.). Eles dependem em seguida da "extensão
jurídica", ou seja, da categoria de entidades à qual se refere a
linguagem empregada. Ora, a regra de direito se caracteriza
por sua generalidade epor sua permanência, explicando estes
dois caracteres formulações particulares.
Assim, por causa de seu caráter geral, a norma se expres-
sa com a ajuda de indefinidos tais como "todo" ("todo fato
qualquer do homem...", art. 1382 do Cód. Civil; "todo conde-
nado à morte terá a cabeça cortada", antigo art. 12 do Cód. Pe-
nal), "nenhum" ("nenhuma ação é aceita...", art. 311-4 do Cód
Civil), "cada qual" ("cada qual é responsável...", art. 1383 do
Cód. Civil), "ninguém" ("supõe-se que ninguém ignora a lei"),
"qualquer um" ou "aquele que", freqüentes em matéria penal
("qualquer um que, por imperícia, imprudência, desatenção...".
art. 319 do Cód. Penal; "aqueles que tiverem mobilizado ou
mandado mobilizar tropas armadas...", art. 89 do Cód. Penal,
por ex.).
A permanência da regra de direito se expressa o mais das
vezes pelo emprego do presente, às vezes do futuro, mas esses
dois tempos geralmente são utilizados com um valor intempo
ral e significam que se trata de verdades gerais, de definições
ou de máximas ("as leis são executórias...", art. 1!' do Cód
Civil; "a lei só dispõe para o futuro...", art. 2? do Cód. Civil; "o
contrato é uma convenção...", art. 1101 do Cód. Civil). O pre
térito perfeito e o imperfeito, ao contrário, não têm lugar ne
nhum na lei. Apenas o pretérito composto* intervém em corre-
lação com o presente ("quando o sacador inseriu na letra dc

* Em francês há dois pretéritos perfeitos, o passé simpte e o passé campa\•


sendo este mais ligado a uma ação do presente. (N. da T.)
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 309

câmbio..., o título não é transmissível...", art. 417, al. 2 do Cód.


( omercial) e o futuro anterior com o futuro.
223. - "Os aspectos sociolingüísticos" referem-se às rela-
ções entre a língua utilizada e os diferentes parâmetros da comu-
nicação, noutras palavras, "a comunicação jurídica" e a maneira
pela qual a linguagem jurídica é recebida pelo público 31 .
Como toda comunicação lingüística, "a comunicação
jurídica" consiste na transmissão de uma mensagem por um
"emissor" a um "receptor", do legislador ao cidadão, do juiz às
partes, do professor ao estudante, do autor ao leitor... Ora, essa
mensagem é transmitida por um "canal" e com um "código".
() "canal" consiste no suporte oral ou escrito das mensagens e
nas circunstâncias específicas que o acompanham. Ora, a co-
municação jurídica utiliza, alternada ou simultaneamente, o
escrito c o oral. Nota-se, aliás, que as marcas do escrito preva-
lecem tanto mais sobre o oral quanto mais técnica é a matéria.
Ademais, há que observar que, cada vez mais, insiste-se na
no essidade de uma expressão inteligível e legível da regra de
direito para que ela seja mais bem compreendida. Uns textos
çxigem a informação do consumidor, a menção de cláusulas
I III caracteres aparentes etc.
Mas a compreensão continua ligada ao "código lingüísti-
»o" ou seja, à terminologia particular necessária para a ex-
pirssflo das noções técnicas, de modo que não se pode disso-
i lai um termo, a noção que ele traduz e os valores aos quais
•"iia noção se vincula. Existem expressões corriqueiras na apa-
lOncia cuja compreensão supõe o conhecimento do direito
ativo; assim "os bons costumes", "o bom pai de família", "o
|tU'jnl/o moral" etc. abrangem realidades essenciais. Há um
* iiu ulo entre o fundo do direito e a evolução de sua lingua-
tii mi A substituição de "o pátrio poder" por "a autoridade pa-
ii in.i no direito contemporâneo tem um sentido profundo e
tlAo e puramente formal. Mas, se a linguagem jurídica não é

II 1 I SOURIOUXe P. LERAT, op. cit., pp. 63 ss. J. L. SOURIOUX e P.


I T M V I I inuilvw de texte. Méthode générale et applications au droit, ed.
IMII I Míthodcs du droit, 4? ed.
310 TEORIA GERAL DO DIREI K >

apenas a expressão formal de uma disciplina particular, como


é recebida pelo público?
À míngua de estudos sistemáticos, só podemos referi-nos
a impressões gerais. A linguagem jurídica tem uma predileção
acentuada pelas fórmulas na lei, nas decisões judiciais, nas
certidões cartoriais, na doutrina. As fórmulas têm o mérito da
concisão, da precisão, da autoridade e da universalidade. As-
sumem a forma de máximas, com freqüência até de brocardos
latinos {pater is est..., nemo plus júris..., fraus omnia corrum-
pit, Nemo auditur...) cujas primeiras palavras bastam para cris-
talizar para os iniciados princípios, problemas complexos ou
instituições, sem terem necessidade de ser traduzidos de um
país para outro, e são, portanto, muito cômodos. Os profissio-
nais perpetuam também fórmulas estereotipadas tiradas dos
séculos passados que os fenômenos de codificação legislativa
contribuem para enraizar. Encontramos então expressões como
";7 échet de..." ou "i/ est loisible de..." que se poderiam evitar
dizendo "é permitido..." ou "convém...". Tudo isso dá ao públi-
co uma impressão de arcaísmo, de jargão especial, de herme-
tismo deliberado, corporativista e protecionista. Que será exa-
tamente?

2. A apreciação da linguagem jurídica

224. - Não se podem ignorar aqui nem as exigências de uma


linguagem precisa e segura, cuja necessidade é ligada às fun-
ções essenciais do direito, nem os artifícios e as obscuridades
de certos abusos da linguagem jurídica. Se podemos desonerá-
la dos arcaísmos inúteis que às vezes a estorvam e deixá-la mais
inteligível (B), não podemos, sem criar insegurança e anarquia
social, despojá-la de seus aspectos específicos, ligados a con-
siderações técnicas (A). A vontade de vulgarização, geralmen-
te demagógica, compromete a segurança do público enfraque-
cendo mecanismos que o protegem e dando-lhe a ilusão peri-
gosa de poder defender-se sozinho: é perigoso, a pretexto de
vulgarizar a medicina, incentivar o doente a tratar-se sozinho.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 311
A. Tecnicidade e linguagem específica

225. - A importância da fraseologia jurídica reside na qua-


lidade necessária da expressão do direito. Este deve "ressaltar
em fórmulas plenas, densas, que fecham a porta a qualquer
escapatória, as injunções implicadas pela regra de direito" 32 .
I logiaram-se os incomparáveis méritos do Cours de droit civil
français de Aubry e Rau e o Lehrbuch des Pandektenrechts de
Windscheid, no que tange à doutrina alemã 33 . A força do estilo
consegue sozinha coligir em frases rigorosamente estruturadas
os preceitos da ordem jurídica. O estilo do Código de Napo-
leflo, apresentado como exemplo, e a formulação precisa e la-
cônica dos grandes acórdãos da Corte de Cassação e do Con-
selho de Estado são a prova incontestável das exigências a que
.1 linguagem jurídica deve satisfazer. Os textos atuais e a juris-
prudência contemporânea têm, por improvisação ou diante dos
imperativos de excessiva rapidez, exagerada tendência a sacri-
ficá-las.
No tocante aos termos técnicos, "sua tradução em francês-
pudrào levantaria os mesmos problemas que a de 'molécula'
ou de 'estratosfera'" 34 . A especialidade da linguagem jurídica
está ligada à sua inelutável tecnicidade porque deve designar
conceitos que a linguagem corrente não tem de apreender. As
próprias máximas latinas, tão amiúde depreciadas, têm uma uti-
lidade insubstituível, pois não se pode, sem elas, explicar com
lanta brevidade e exatidão o significado delas.
Entretanto, é possível limitar a utilização dessa linguagem
especifica aos textos jurídicos que têm em si mesmos uma au-
loridade própria (atos jurídicos, decisões judiciais, autoriza-
ções oficiais, leis e regulamentações) e às relações entre pro-
t issionais do direito.

32. F. GÉNY, op cit., t. III, n° 260.


33. thidem.
34 J. L. SOURIOUX e P. LERAT, "Le langage du droit", op. cit., p. 75.
312 TEORIA GERAL DO DIREI K >

B. Inteligibilidade e linguagem corrente

226. - Mas, para deixar o direito mais inteligível ao públi-


co, pode-se imaginar simplificar certas formas de comunica-
ção dele e utilizar mais a linguagem corrente. Mesmo no "mundo
do direito", pode-se, sem sacrificar a ordem e a certeza da fra-
seologia nem a precisão da terminologia, rejuvenescer e acla-
rar a língua jurídica. Há expressões que não se traduzem por
noções específicas e são apenas sobrevivências do passado.
Podem perfeitamente ser substituídas por seus equivalentes
usuais. Pode-se dizer "convém..." em vez de "échet de..." e "pa-
rece que..." em vez de "appert". Pode-se escrever "Senhor" ou
"Senhora" X em vez de "le sieur" ou "/a dame" X. Pode-se fa-
lar "deste tribunal" em vez do "tribunal de céans" e do imóvel
"situado em..." em vez de "sis «...".
As jurisdições francesas estão agora fazendo um esforço
para simplificar a forma de suas decisões, tradicionalmente or-
ganizadas em uma única frase, seja qual for seu comprimento,
de modo que as qualidades, os fatos, as pretensões das partes,
os motivos com todos os seus incidentes e o dispositivo se fun-
dissem num magma ininteligível para o leigo e por vezes até
para o jurista. Cada vez mais, as qualidades são isoladas do
corpo da decisão; os fatos da causa e o procedimento são apre-
sentados em forma comum e cm estilo direto; as pretensões e
meios das partes são expostos em estilo corrente e despojado;
os considerandos já quase não aparecem senão para caracteri-
zar os motivos da decisão cujo dispositivo fica depois bem des-
tacado. Tal esforço de aclaramento da fraseologia é muitíssimo
louvável desde que não se caia no excesso de uma supressão
da motivação à qual se prende a segurança da justiça e não se
comprometa assim a qualidade da aplicação do direito.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 313

ILUSTRAÇÃO

O DEBATE SOBRE O ARCAÍSMO DA LINGUAGEM


JURÍDICA E AS EXIGÊNCIAS LINGÜÍSTICAS DA CIÊNCIA
JURÍDICA É MUITO AMIÚDE DESNATURADO POR
CONSIDERAÇÕES DE PURO OPORTUNISMO

Um autor apresentou como um exemplo de hermetismo a


seguinte frase, atribuída ao tabelião encarregado de acertar uma
sucessão, dirigindo-se à viúva e aos filhos de um agricultor
falecido:
"Uma vez que o de cujus morreu ab intestat, vamos pri-
meiro liquidar a comunhão, estabelecer as restituições e as re-
i ompensas e, com o resultado dessa primeira operação, proce-
deremos a uma partilha, com tornas sem dúvida, mas que será
fueilitada pela ausência de adiantamentos da legítima, de qual-
quer legado e, conseqüentemente, pela inutilidade de calcular
o quinhão disponível" (R. Lindon, Le style et 1 'éloquence judi-
claire, p. 20).

Menção a toda caricatura!


Esta "tirada" é por certo incompreensível para um leigo.
Isso se deve ao fato de que, por si só, ela expõe uma situação
jurídica complexa e qualifica seus elementos constitutivos. Is-
so provém também da concentração, em algumas palavras, da
descrição de uma pluralidade de operações técnicas difíceis
que escapam naturalmente ao não-jurista. A descrição em tão
poucas palavras do desenrolar técnico de uma intervenção ci-
rúrgica ou do diagnóstico e da reparação de uma avaria mecâ-
nica seria igualmente inacessível para um leigo.
O particularismo dos termos utilizados está ligado a exi-
gências técnicas e traduz conceitos precisos. A concisão do es-
tilo permite dizer muito em poucas palavras. Assim, essa lin-
guagem parece insubstituível para profissionais, como o mos-
train algumas definições a seguir (Lexique des termes juridi-
ques, R. Guillien e J. Vincent).
314 TEORIA GERAL DO DIREI K >

de cujus: "primeiras palavras do brocardo de cujus successio-


ne agitur (aquele cuja sucessão está pendente); utilizada para
designar o falecido autor da sucessão".
ab intestat: "sem testamento". "Diz-se de uma sucessão cujos
bens são atribuídos aos herdeiros segundo as regras legais
quando o falecido não deixou testamento ou quando, tendo
redigido um testamento, este é nulo ou caduco."
liquidar: "proceder às operações de liquidação, ou seja, ao
conjunto das operações preliminares à partilha de uma in-
divisão... A liquidação consiste em pagar o passivo com os
elementos de ativo, em converter em dinheiro... tudo ou
parte desses elementos a fim de que a partilha possa ser
efetuada. Permite apurar o ativo líquido e conservá-lo até a
partilha".

comunhão: (entre cônjuges) (atenção à polissemia): "regime


matrimonial em virtude do qual uma parte dos bens de que
os cônjuges dispõem é comum e partilhada após a dissolu-
ção do regime...".
restituições: "operação efetuada durante a liquidação da co-
munhão, pela qual cada cônjuge retoma, antes da partilha
dos bens comuns, seus bens próprios que se encontram em
bens por ocasião da dissolução".
recompensa: "indenização devida, por ocasião da liquidação
da comunhão, pelo cônjuge a essa comunhão, quando, em de-
trimento desta, o patrimônio pessoal enriqueceu-se, devida
pela comunhão ao cônjuge quando os bens próprios deste
serviram para aumentar a massa comum".
partilha: "operação que dá fim a uma indivisão substituindo
os direitos indivisos sobre o conjunto dos bens por uma plu-
ralidade de direitos privativos sobre bens determinados".
torna: "soma de dinheiro que deve ser paga por um aquinhoa-
do ou um permutador às outras partes, quando os quinhões
ou os bens permutados têm valor desigual".
TÍTULO

A aplicação do direito

227. - Costuma-se ter tendência, entre o público, a identifi-


car a aplicação do direito à solução dos litígios pelos tribunais e
a acreditar que esta só depende da aproximação da situação liti-
gíosa a uma regra preexistente e perfeitamente adequada.
li uma visão incompleta e inexata. A aplicação do direito
Ni} opera o mais das vezes de maneira nâo-contenciosa; a lei
liSo pode prever tudo e sempre necessita ser interpretada; a
vinculação do fato ao direito ou do direito ao fato é geralmen-
te complexa, e toda solução jurídica, contenciosa ou não, pres-
supõe um raciocínio particular ligado a determinados métodos
Intelectuais.
A letra e o espírito dos textos (Capítulo 1), os raciocínios
jurídicos (Capítulo 2), o fato e o direito (Capítulo 3), o juiz e o
processo (Capítulo 4) parecem ilustrar de modo muito especial
passagem do fenômeno jurídico para as relações concretas da
vida social.
Capítulo 1
A letra e o espírito

228. - Quando foi decidida a consagração de uma regra


jurídica nova, quando foram feitas as escolhas que ela implica,
é preciso traduzi-la por uma fórmula que lhe expresse o con-
teúdo e lhe respeite o sentido e o objetivo, consoante motiva-
ções que a inspiraram. Se abstraímos os problemas de compe-
tência dos diversos órgãos do Estado para deixar inequívoca
esst formulação, esta fica apenas com um aspecto puramente
técnico. Trata-se, nos textos legislativos e regulamentares, de
expressar o conteúdo da regra da maneira mais clara e mais
precisa possível. Mas essa é uma tarefa difícil, cuja metodolo-
gia e cujo estudo dependem da legística.
Se o enunciado da regra deve ser conciso e gramatical-
mente exato, deve ser também suficientemente preciso. Toda
regra legal se insere num sistema jurídico: não se podem igno-
iiii as repercussões que deverão resultar dela, as modificações
i|iic convém fazer em outras regras existentes, as ab-rogações
de outros textos que a regra nova impõe. Tudo isso é necessá-
ilo para não criar contradições nem ambigüidades no sistema
lurldico, pois este perderia então um pouco de sua coesão e de
Mia segurança1. Os conflitos entre textos e a incerteza deles são
«einpre ninhos de processos. Ora, sói ocorrer que os textos, em

I E. S. de la MARNIERRE, Éléments de méthodologie juridique, Lib.,


JiHim Not. e t A v . , 1976, prefácio de G. VEDEL, n?s 514 ss.
320 TEORIA GERAL DO DIREI K >

si mesmos ou por cotejo com outros, redundem em conseqüên-


cias práticas diferentes daquelas que foram buscadas ou susci-
tem diversas interpretações possíveis.
A questão essencial é então saber se é preciso interpretá-
los "à letra" ou segundo "seu espírito", se é preciso concentrar-
se apenas no sentido estrito das palavras que compõem os tex-
tos ou investigar-lhes o sentido profundo, especialmente atra-
vés do pensamento do autor. O constante esforço de especifi-
cação que o jurista busca, passando do geral ao particular, do
direito ao fato, do princípio à sua aplicação, sempre comporta
uma parte de interpretação dos textos; não se pode, ao que pa-
rece, ignorar o espírito deles a cada vez que as palavras os
traem ou, por inadequação ou contradição, não bastam para
expressar uma solução segura.
A questão não é então saber se o intérprete deve ser "mé-
dium ou cientista", se pratica obra jurídica ou política 2 , nem se
a interpretação participa da criação ou da aplicação das nor-
mas jurídicas 3 . Isso depende somente da liberdade que se lhe
reconhece ou da fidelidade que se lhe impõe com referência ao
direito positivo. Observa-se, por certo, que a lei só adquire um
sentido com a aplicação que lhe é dada e que "o poder assim
reconhecido ao intérprete atesta a fragilidade da ordem norma-
tiva: nenhum preceito da lei", diz-se ainda, "recebe seu sentido
de um âmago legislativo; torna-se significativo com a aplica-
ção que lhe é dada e graças à interpretação que esta implica" 4 .
Mas a segurança jurídica, finalidade essencial do direito que
supõe que este seja respeitado, veda ao intérprete afastar-se
dele, ao passo que deve extrair do próprio direito o sentido da
regra, quando este é incerto.
Ora, as regras não se apresentam no estado isolado, na
vida social; são dependentes da regulamentação geral da insti-

2. A. J. ARNAUD, "Le médium et le savant" in L'interprétation dans le


droit, Arch. de philosophie du droit, t. XVI1. 1972, pp. 165 ss.
3. J. F. PERRIN. Pour une théorie de la connaissance juridique, ed. Lib.
Droz, Genebra-Paris, 1979, pp. 153 ss.
4. F. RIGAUX, "Le juge, ministre du sens", in Justice et argumentation,
(Essais à la mémoire de Ch. Perelman), ed. de l'Univ. de Bruxelles, 1986, p. 92.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 321

tuição de que participam. Essa própria instituição é ligada a


outras instituições que se agrupam numa determinada ordem
lurídica, animada por finalidades particulares. As próprias di-
ferentes ordens jurídicas são apenas fragmentos do direito por
inteiro e são portanto, por sua vez, dependentes dos fins supe-
i íores da ordem social que ele procura garantir 5 . Por conseguin-
tc, investigar o espírito de uma regra de direito não é somente
investigar a intenção de seu autor; é também referir-se ao espí-
rito da instituição de que ela depende, ao da ordem jurídica à
qual se reporta e ao do direito inteiro.
Ora, ao passo que o direito clássico via na pessoa humana
o nos direitos individuais o fim supremo do direito objetivo, as
doutrinas ditas "do direito social" viam sua finalidade na pró-
pria sociedade e as doutrinas ditas "do direito transpessoal co-
locam o direito a serviço da civilização" 6 . Por conseguinte, os
> omportamentos sociais devem, para ser conformes ao direito,
tei conformes aos fins superiores que ele persegue. Não basta
que respeitem a letra dos textos. Noutras palavras, quando res-
peitani a letra dos textos mas ignoram-lhes o espírito ou o do
«lucilo inteiro, os comportamentos sociais devem ser punidos.
Por conseguinte, a letra e o espírito dos textos, das insti-
tuições e do direito em geral orientam ao mesmo tempo a in-
terpretação dos textos (Seção I) e a apreciação dos comporta-
11 tentos sociais (Seção II).

NI «.'At) 1
I letra e o espírito: princípios de interpretação dos textos

229. - As pessoas jurídicas podem comprometer-se por


' onvenção ou, sem convenção, pela aplicação da lei no sentido
lato Como a lei, os atos jurídicos oriundos da vontade delas
ilt vem ser interpretados quando não são claros e precisos. Mas,
no passo que a interpretação das regras de direito (§ 1) deve

5 I' ROUBIER, Théorie générale du droit, n° 25.


A Ihldem.
322 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ser essencialmente objetiva porque se impõe um certo respeito


do significado aparente delas, para a segurança jurídica dos ju-
risdicionados que devem pautar-se por elas, a interpretação
dos atos jurídicos (§ 2) deve ser acima de tudo fiel à intenção
de seus autores que só se comprometeram dentro dos limites
em que quiseram. Se o espírito da lei procede, para além da
intenção específica de seu autor, de todo um contexto jurídico,
filosófico e material, o dos atos jurídicos é essencialmente li-
gado à vontade própria de seus autores.

1. A interpretação da regra de direito

230. - A regra de direito é entendida aqui no sentido de


toda regra jurídica imposta mediante autoridade incluindo
nesta, ao lado da lei propriamente dita e das regulamentações,
a Constituição, os tratados, o costume e mesmo, com o risco de
ser herético, as regras de origem pretoriana.
Em geral é mister interpretar os textos para dissipar-lhes a
ambigüidade, preencher-lhes a insuficiência, precisar-lhes o
sentido exato, determinar-lhes o alcance temporal, espacial,
material ou jurídico. A aplicação da regra de direito, por defi-
nição geral e abstrata, supõe freqüentemente de fato, na passa-
gem do geral ao particular, uma etapa intermediária de inter-
pretação 7 pela própria lei, pelas autoridades públicas, especial-
mente a administração pública, pelo costume, pela jurisprudên-
cia, pela doutrina, pela prática etc.
Claro, Kelsen sustentou que a interpretação da regra de
direito não depende do conhecimento do direito positivo e não
é um problema de "teoria do direito", mas um simples proble-
ma de "política jurídica". No encadeamento de normas e de re-

7. Sobre a necessidade da interpretação dos textos, ver: B. N. CARDOZO,


The Nalure of the Judicial Process, New Haven and London Yale University
Press, 1921, e 2? ed., 1949, em especial pp. 14 s.; C. du PASQUIER, Introduction
à la théorie générale et à la philosophie du droit, ed. Delachaux et Niestlé, 6? ed.,
Neufchatel, Paris, 1988, n?s 192 ss.; M. ZANDER, The Lawmaking Process,
Weidenfeld and Nicolson, 2? ed., Londres, 1985, pp. 72 s.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 323

gras hierarquizadas que, segundo ele, constitui o ordenamento


inrídico, apenas a interpretação por um órgão de aplicação do
direito é "autêntica". Ora, tal interpretação cria por si só o di-
reito, enquanto "a interpretação puramente intelectual" de uma
norma, para lhe precisar o sentido ou lhe preencher as preten-
siiH lacunas, não pode conduzir a uma interpretação "exata" ou
"verdadeira" 8 . Mas não se pode, sem identificar o direito à
"política da força" e negar sua própria essência, seguir Kelsen
em sua "Teoria pura do direito". Por conseguinte, a hermenêu-
tica se impõe ao jurista para aplicar a regra de direito, todas as
vezes que ela não está clara.
Entretanto, para moderar os ardores imperialistas demais
dos intérpretes que, a pretexto de interpretação, correriam o ris-
i o de modificar a regra que só têm a missão de aplicar, cumpre
excluir qualquer idéia de interpretação quando os textos estão
claros. Os textos claros e precisos só têm de ser diretamente
aplicados. Não têm de ser interpretados. Essa "doutrina do sen-
tido claro" não está, porém, ao abrigo das críticas, ainda que
i onserve importantes funções práticas 9 e certos textos, como o
a tino 13 do Código Civil da Louisiana, a consagrem expressa-
mente. Ainda cumpre não ser rigoroso demais na apreciação
ilc.sa clareza. Existem textos aparentemente claros cuja aplica-
çflo à letra conduz a absurdos. Há regras claras em si que outros
elementos do sistema jurídico contradizem. Existem textos cla-
II>'. que utilizam cientemente noções maleáveis ou vagas, úteis
pina a adequação entre o direito e os fatos e para a evolução
|in Idica, mas que devem sempre ser precisados 10 .
( umpre então, para interpretar a regra de direito, apreciar
"MUI letra e seu espírito" 11 e, para isso, discernir o método e os

K H. KELSEN, Théorie pure du droit, n™ 45 ss.


') M. Van de KERCHOVE, "La doetrine du sens clair des textes et la juris-
li ncc dc la Cour de cassation de Belgique", in L 'interprétation en droit - Appro-
i hi /ilundisciplinaire, sob a direção de M. Van de Kerchove, Bruxelas. 1978.
III A. WEILL e F. TERRE, Introduction générale au droit civil, Précis
HHIIO/,, n" 175; ver supra, n° 185.
11 H. VONGLIS, La lettre et l 'esprit de la loi dans la jurisprudence classi-
ifiit et la rhêtorique, 1968.
324 TEORIA GERAL DO DIREI K >

princípios de sua interpretação. Os princípios que regem a in-


terpretação dos textos são às vezes determinados pela própria
lei, mormente nos países anglo-saxões 12 . Mas a interpretação
do direito levanta problemas complexos que suscitaram uma
farta doutrina 13 . Não se pode negar a necessidade e a realidade
de teorias da interpretação jurídica cujo conceito, processo e
especificidade justificam uma importante reflexão 14 . Geral-
mente estudados dentro da perspectiva da aplicação das leis,
esse método e esses princípios também se aplicam, quanto ao
fundo se não quanto às competências para pô-los em prática, à
interpretação dos textos regulamentares e das regras jurispru-
denciais ou consuetudinárias.
Podemos assim distinguir diversos métodos de interpreta-
ção que se concentram menos ou mais no espírito ou na letra
dos textos. São eles quer métodos de interpretação intrínseca,
fundamentados nos próprios textos interpretados, quer méto-
dos de interpretação extrínseca, baseados nos elementos exte-
riores aos textos interpretados. "O método exegético"(A), que,
durante a maior parte do século XIX, foi utilizado pela doutri-

12. P. ex., na Grã-Bretanha, Interpretation Acts de 1889 e de 1978; Cana-


dian interpretation Act 1967-8; Australian Acts Interpretation Act, 1901.
13. P. ex. "L'interprétation dans le droit", Arch. de philo. du droit, t. 17,
1972; "L'interprétation par le juge des règles écrites", Travaux de l'Association
Henri Capitant, t. 29, 1978; P. A. COTÉ, Interpretation des lois, ed. Y. Blais,
Quebec, 1982, 2a ed., 1990; R. CROSS, Statutory Interpretation, 2a ed. de J. Bell
e G. Engle, Butterworths, Londres, 1987; J. C. CUETO-RUA, JudicialMethods of
Interpretation of the Law, L.S.U., Paul M. Hebert Law Center of Civil Law Stu-
dies, 1981; F. GENY, Méthodes d'interpretation et sources en droit privé positif,
2 vols., 2a ed., L.G.D.J., Paris, 1919; M. Van de K.ERCHOVE (dir.), L 'interpreta-
tion en droit, approche pluridisciplinaire, Publ. des Facultés Univ., de St. Louis,
Bruxelas, 1978, op. cit:, R. J. VERNENGO, La interpretacion literal de la ley y
sus problemas, ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1971; La interpretacion jurídi-
ca, Universidad Nacional Autonoma de México, 1977. Ver também: F. PEYCHE-
RE (ed.), "La découverte du sens en droit", Actes du colloque de l'Assoc. françai-
se de philosophie du droit du 5 avril 1991, ed. F. Steiner Verlag, Stuttgart, 1992;
D. Neil Mac Cormick e R. S. Summers, Interpreting Statutes. A Comparative
Studv, Darmouth Publ. Cy„ 1991; P. AMSELEK (dir.) e outros, Interpretation et
droit, ed. Bruylant e P.U.A.M, 1995.
14. Y. PADOT, Recherche sur I 'interpretation juridique, Tese datilografa-
da, Paris, 1988, em especial pp. 370 s.
I Al'I.IC'AÇÃO DO DIREITO 325

na c pela jurisprudência e repousa no princípio da vinculação


tio texto, é agora contestado (B).

A ü método exegético

231. - Logo depois da promulgação do Código Civil, em


IK04, apareceu a chamada Escola da Exegese, que pretendia
"reduzir o direito à lei e, mais particularmente, o direito civil
no Código de Napoleão" 15 . Dentro da perspectiva do princípio
de separação dos poderes e da filosofia da Revolução France-
III. o legislador era a única expressão da soberania nacional e
dtt lei, expressão da vontade geral 16 , a única fonte de direito.
Ademais, a codificação napoleônica representava uma obra
legislativa sem precedentes e consagrava a unificação do direi-
to francês e uma ordem social nova a um só tempo. Tamanho
monumento legislativo reclamava um estudo e um comentário
• diante da admiração que provocou, é normal que os juristas
da época tivessem o culto da lei. Aubry proclamava em 1857:
Toda a lei, em seu espírito bem como em sua letra, com uma
l.uga aplicação de seus princípios e o mais completo desenvol-
\ intento das conseqüências dela decorrentes, mas nada além
do lei, essa foi a divisa dos professores do Código de Napo-
leão."17 E verdade que são englobadas na Escola da Exegese
opiniões muito diversas 18 .
Ao método exegético puro que reduzia a tarefa do jurista a
um comentário do Código artigo por artigo, contrapunha-se "o
método dito dogmático ou sintético, ilustrado por Aubry e
Ktiu, que, para penetrar melhor seu sentido, aplicava-se a siste-
matizá-lo". Houve também uma evolução importante da exe-

15. Ch. PERELMAN, Logique juridique - nouvelle rhétorique, Dalloz, 2?


.'.I. »"• 16 ss.; V. J. BONNECASE, L école dei exegese en droit civil, 2" ed., 1924.
16. R. CARRE DE MALBERG, La loi, expression de la volonté générale,
nl Sircy, Paris, 1931, reed. Economica, Paris, 1984, prefácio G. Burdeau.
17. Citado por L. HUSSON, "Analyse critique de la méthode de 1'exégèse, in
I Interprétation dans le droit, Arch. de philosophie du droit, t. XVII, 1972, p. 116.
18. J. BONNECASE, L 'école de 1'exégèse en droit civil, 2a. ed.. 1924.
326 TEORIA GERAL DO DIREI K >

gese no decorrer do século XIX; distinguem-se três fases suas,


"uma fase de instauração" até cerca de 1840, "uma fase de apo-
geu" até 1880 e "uma fase de declínio" até 1899 quando Gény
anunciou-lhe o fim com sua obra intitulada Méthode d'in-
terprétation et sources en droit privé positif(Método de inter-
pretação e fontes em direito privado positivo), que preconizava
"a livre pesquisa científica". Mas todos os juristas do século
XIX tiveram a mesma concepção de sua tarefa, e suas obras
comportam, para além das diferenças, um denominador co-
mum 19 . A doutrina deles se define com duas proposições: "O
direito está inteiramente contido na lei escrita; o jurista deve
somente extraí-lo dela pesquisando a vontade do legislador."20
Se os textos não podem visar todas as situações concretas, se a
lei pode ser obscura ou ambígua, se ela pode comportar con-
tradições ou antinomias, em suma, se a solução buscada não é
discernida por simples leitura, não se pode contestar que se
deva interpretar a lei. Mas, admitindo essa necessidade, a Es-
cola da Exegese, partindo do postulado de que tudo está, ao
menos implicitamente, na lei, considerava que o intérprete só
tem o poder de lhe escrutar o texto para nele descobrir o pensa-
mento do legislador. Noutras palavras, "fazer a exegese dos
textos é buscar o significado e o alcance deles, mediante a sim-
ples análise desses próprios textos, com a ajuda, quando neces-
sário, dos trabalhos preparatórios" 21 .
232. - Cumpre então especificar as técnicas da interpreta-
ção exegética.
Para descobrir a vontade do legislador, cumpre primeiro
investigá-la nos trabalhos preparatórios que são publicados e

19. L. HUSSON, ibidem.


20. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, Traité de droit civil - Introduetion
générale, n? 142 ss. c 4a ed. com a colaboração de M. Fabre-Magnan, 1994, nf
151 ss.
21. B. STARCK, Droit civil - Introduetion générale, ed. Litec, n?s 129 ss.
Ver também Ph. RÉMY, "Éloge de l'exégèse". Revista Droits, 1985-1, pp. 115 s.
Ver a esse respeito sobre o processo atual da elaboração legislativa: P. AVRIL e J.
GICQUEL, Droit parlementaire, ed. Montchrestien; J. C. BÉCANE e M. COU-
DERC, La loi, col. "Méthodes du droit", 1994.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 327

que comportam uma exposição dos motivos, dos pareceres e


ilos debates parlamentares suscetíveis de esclarecer os textos
obscuros e de lhes revelar o intuito. Retraçando toda a gesta-
silo tios textos finalmente adotados, eles permitem descobrir a
iiiiio legis, sem se limitar a meras especulações sobre a prová-
vcl inspiração dos autores dos textos. Nem todos os trabalhos
picpuratórios têm, contudo, o mesmo valor indicativo. Os pro-
l»Mos ou propostas de leis, com suas exposições dos motivos,
RAO os documentos mais significativos, mas apresentam o risco
tle deixar de ser exatos no fim do processo de elaboração dos
Ir* tos cuja própria concepção pode ter evoluído. Os pareceres
il.e, comissões, se são bastante explícitos e bastante claros, o
M . I I S das vezes enunciam as intenções perseguidas pelos textos

em questão. Os debates parlamentares, em compensação, são


«cialmente muito contraditórios e disparatados para descobrir
neles o verdadeiro "fermento" dos textos.
Desde que seja circunspecto, o intérprete pode, pois, en-
contrar nos trabalhos preparatórios indicadores preciosos so-
lne nu suas finalidades. Mas a referência à intenção do legisla-
• lui não deixa de ter artifício. Em geral é apenas a expressão
momentânea e inconstante de vontades discordantes que se
,i limitaram no seio de um órgão coletivo e perde progressiva-
in. nie seu significado e seu alcance. O respeito da intenção do
It (ir.lador é não obstante imposto, em numerosos países, pelo
pmprio direito positivo (art. 18 do Cód. Civil da Louisiana; art.
12 l ód. Civil Baixo Canadá; art. 1156 do Cód. Civil francês,
nplii «do à interpretação da lei...). Também é mister referir-se
No» precedentes históricos que inspiraram a lei.
I sobretudo mediante o emprego de certo número de pro-
11 ilimentos lógicos que se descobre o sentido de um texto com
o leiència ao seu próprio conteúdo, à sua própria formulação,
Mo '1111 contexto.
I Itilizam-se então diversos raciocínios 22 . Os raciocínios a
fHlil, a contrario e a fortiori são as melhores ilustrações das in-

Ver n°" 247 ss.


328 TEORIA GERAL DO DIREI K >

terpretações dos textos pelos textos. O raciocínio a pari, por


analogia, consiste em deduzir de uma semelhança uma outra
semelhança: diante da ausência de regra que reja uma situação,
estendemo-lhe a regra ditada por uma situação semelhante. O
raciocínio a fortiori tem o objetivo de utilizar uma proposição
para um objeto diferente do seu, porque a razão que a justifica
se lhe aplica melhor ainda: assim, a sanção prevista contra uma
falta simples será aplicada com maior razão a uma falta inten-
cional, ainda que não esteja expressamente prevista. Assim
também, "quem pode o mais, pode o menos". O raciocínio a
contrario deduz de uma oposição nas hipóteses uma oposição
nas conseqüências. Se uma regra é subordinada a certas con-
dições, a regra inversa deve aplicar-se quando essas condições
não estão reunidas. Assim, o art. 6 do Código Civil, prevendo que
"não se podem derrogar com convenções particulares as leis
que interessam à ordem pública e aos bons costumes", signifi-
ca a contrario que se podem convencionalmente derrogar as
leis que não interessam nem à ordem pública nem aos bons
costumes. Esses argumentos de textos são, porém, às vezes
perigosos. O argumento por analogia é excluído pela exigên-
cia de uma interpretação estrita, em matéria penal ou quando
se trata de exceções. O argumento a contrario só vale para
descartar uma disposição excepcional e voltar ao princípio ou
como argumento suplementar, como complemento de outros
argumentos.
Outros raciocínios repousam no postulado de uma articu-
lação racional entre os diferentes textos. No cotejo entre um
texto de alcance geral e um texto especial que o derroga, é o texto
especial que deve ser aplicado ao problema especial que ele
rege e que então prevalece sobre o texto geral. Mas, assim que
os limites estritos do campo de aplicação da exceção são trans-
postos, o texto geral retoma seu domínio, salvo quando o texto
especial tem um valor primordial porque expressa interesses
superiores. Trata-se aí do princípio specialia generalibus dero-
gant e do princípio de interpretação estrita das exceções. As-
sim, o novo Código Penal francês enuncia expressamente, no
título de seus princípios gerais, que a lei penal é de interpreta-
A A PL1CA ÇÂO DO DIREITO 329

çâo estrita (art. 111-4). A mesma fidelidade aos textos conduz


a limitar os poderes do intérprete vedando-lhe introduzir con-
dições ou distinções quando a lei não as comporta (ubi lex non
dislinguit nec nos distinguere debemus).
Ao lado desses diversos argumentos de textos e da inter-
pretação gramatical da letra deles, a consideração do espírito
deles intervém também no método exegético. Não é somente o
objetivo da lei, já revelado por seus trabalhos preparatórios,
que deve inspirar o intérprete e vedar-lhe a aplicação dos tex-
tos a situações em que não haveria razão de serem aplicados,
IIIIIS é também o espírito de toda uma instituição, de toda uma
matéria, até mesmo de todo um sistema jurídico que deve orien-
tar a interpretação. Devem-se então comparar e cotejar diver-
sos textos para descobrir a idéia geral deles, com um raciocínio
Indutivo, e depois, partindo dessa idéia, encontrar com um ra-
i locinio dedutivo outros casos particulares que obedecem ao
mesmo princípio.

11 I contestação da exegese

233. - Esses diversos procedimentos técnicos de interpre-


Uição foram às vezes contestados. Sustentou-se com toda a ra-
flo que o valor dos trabalhos preparatórios não é absoluto. Ne-
le* encontram-se opiniões divergentes, sendo às vezes difícil
determinar entre elas as que foram finalmente escolhidas. So-
l>n tudo, o interesse deles esmaece com o tempo enquanto a lei
I a i antiga e se aplica a um contexto e a circunstâncias diferen-
i• daquelas de sua elaboração. Censurou-se também os argu-
mentos por analogia, a fortiori e a contrario, assim como o
nu iocínio indutivo, de levar a resultados incertos ou contradi-
iôiIon conforme os termos de comparação selecionados. Mas
liii sobretudo o "fetichismo da lei escrita e codificada" que foi
• nin ado. No final do século XIX, o contexto social, econômi-
' o e político da França se tornara muito diferente daquele de
1 hii-I Já não parecia possível se ater à intenção do legislador
iiiipoleônico para aplicar o direito positivo.
330 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Numa obra fundamental publicada em 1899, François Gé-


ny23 denunciou o artifício da idéia segundo a qual a lei previu
tudo, consistindo a impostura em atribuir ao legislador inten-
ções que nunca teve nem pôde ter, na esterilização do dinamis-
mo do direito pela mera investigação da intenção do legislador
de outrora. Preconizou, ao contrário, o método da "livre inves-
tigação científica" segundo o qual, embora a lei deva ser apli-
cada, se deva, quando ela é insuficiente ou antiquada, investi-
gar livremente as soluções que convém às dificuldades em
pauta. A divisa de Gény se tornava assim: "Pelo Código Civil,
mas além do Código Civil."
Se parecia-lhe legítimo investigar e respeitar a vontade do
legislador, era com a condição de que essa determinação não
fosse falaciosa nem arbitrária e que não se reportasse a fenô-
menos posteriores à lei que seus autores não pudessem ter con-
siderado. Quando ocorre isso e quando a lei nada previu, o in-
térprete, mormente o juiz, deve, segundo Gény, passar da inter-
pretação para a investigação científica livre para edificar - não
arbitrariamente, mas consoante a história, os dados sociais e as
idéias do momento - a solução conveniente à eqüidade e às ne-
cessidades em questão.
Essa doutrina espalhou-se na Europa, especialmente na
Alemanha com a Escola do Freirecht, e nos Estados Unidos
com a Escola da Sociological jurisprudence de B. N. Cardozo
e R. Pound, por exemplo, e o movimento realista americano.
Esse método que podemos qualificar de sociológico 24 , já que
se funda no conhecimento dos fatos sociais e tende para a
satisfação das necessidades sociais, é por certo indispensável à
elaboração legislativa. Mas, para além das diversas concep-
ções que se podem ter da interpretação sociológica, cumpre
lembrar que, em nosso sistema jurídico, o juiz deve apoiar-se
na lei, e recear que, em razão dessa forma de interpretação, o
juiz passe da ciência para a política e aprecie de maneira sub-

23. F. GÉNY, Mélhode d interprétation el sources en droit prive positif, já


citado.
24. Ver n?s 157 ss.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 331

jetiva demais a referência ao interesse social. A teoria de Gény


não foi seguida pela jurisprudência. O juiz não se constituiu
cm legislador, ainda que lhe tenha ocorrido muitas vezes tomar
grandes liberdades com os textos. Os tribunais aderiram assim
ao preceito de Saleilles: "Além do Código Civil, mas pelo Có-
digo Civil."25

(Os métodos atuais de interpretação

234. - Mesmo admitindo o princípio de certa liberdade do


|iu/ que nem sempre pode contentar-se com uma simples de-
dução a partir dos textos, devemos acima de tudo concentrar-
nos nos textos e remontar à intenção que lhes guiou a redação.
A meta perseguida pelo legislador conta mais do que a letra da
In Mas o juiz também deve inspirar-se, para além do espírito
da lei, no espírito do direito tal como se expressa em outros
lentos26.
Por conseguinte, o método exegético não foi eliminado,
mas combinado com outros métodos. Os procedimentos lógi-
i !>•. por ele utilizados, tais como o raciocínio por analogia, a
i ontmrio ou a fortiori, o raciocínio indutivo ou dedutivo, os
|»lincipios de conciliação dos textos conforme a natureza deles
«oiltinuam as ferramentas principais da interpretação. A im-
portAncia das reformas contemporâneas, o rejuvenescimento
do* velhos códigos, a abundância dos textos provocaram um
ir nascimento da exegese e uma recrudescência do interesse
prln i trabalhos preparatórios, pois a novidade das regras faci-
lita e justifica a investigação da vontade do legislador. A exe-
| « r c moderna progrediu graças ao alargamento de seus modos
dt investigação e à multiplicação de suas fontes. Ademais, ex-
• i in,uido-se os limites impostos ao juiz pelo caráter normativo
du Interpretação ligado à hierarquia jurisdicional, é-lhe reco-
lilun ida uma certa liberdade de apreciação.

K SALEILLES, prefácio para a obra já citada de F. GÉNY.


tl< Ch. PKRELMAN, op. cit., n?s 31 ss.
332 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Por trás da interpretação gramatical e lógica dos textos


com referência à redação e ao contexto deles no direito positi-
vo, ao lado do respeito do espírito deles cujo conhecimento
pressupõe uma interpretação psicológica da vontade de seus
autores, há que admitir um método teleológico e um método
histórico ou evolutivo21. O método teleológico fundamentado
na análise da finalidade da regra, no seu objetivo social, faz seu
espírito prevalecer sobre sua letra, ainda que sacrificando o
sentido terminológico das palavras 28 . O método histórico ou
evolutivo se baseia na idéia de que o direito é uma criação con-
tínua da sociedade cujos textos não passam da expressão pro-
visória que deve evoluir com o meio social. Portanto, podem
apartar-se da vontade inicial do legislador e adquirir um senti-
do novo para adaptar-se às exigências novas29. O sentido de um
texto pode, portanto, mudar com o tempo e as circunstâncias.
Se o dinamismo do direito não deve ser sacrificado, sua
interpretação, por razões de segurança jurídica, não pode ser
livre. Ela deve inserir-se, com base nos textos, no espírito do
sistema jurídico de que procedem. É por isso que deveria pre-
valecer um método de interpretação sistemática, fundamenta-
do no contexto imediato das disposições a serem interpretadas
ou na inserção delas no conjunto de uma instituição, até mes-
mo no conjunto do sistema jurídico ao qual pertencem. Esta in-
terpretação dos textos pode perfeitamente harmonizar-se com
considerações relacionadas com a ratio-logis e com os objeti-
vos perseguidos num determinado sistema de direito.
Essa interpretação é em geral deixada mais complexa por
exigências internacionais, quando se trata da interpretação dos
tratados. Esta por vezes é confiada a uma jurisdição suprana-
cional: é o que se dá notadamente com a interpretação do Tra-
tado de Roma, segundo seu art. 177. Nos outros casos, ao pas-
so que, em muitos países, reconhece-se aos tribunais internos

27. A. WE1LL e F. TERRÉ, op. cit., n?s 175 ss.


28. J. L. BERGEL, "La découverte du sens en droit par la finalité", in La
découverte du sens en droit, op. cit., pp. 67 s.
29. Ibidem.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 333

o poder de interpretar os tratados, a jurisprudência francesa fica


Irndicionalmente no sentido contrário: na França, é ao governo
que cabe em princípio interpretar os tratados, se não se impõe
nenhum mecanismo diferente. Mas, independentemente da
autoridade competente e do procedimento que se deve seguir,
cumpre admitir que, no tocante aos "tratados-leis", é, como no
que tange a qualquer outra regra de direito, pela exegese e con-
soante princípios extraídos do conjunto do texto, até mesmo da
intenção de seus autores, que a interpretação deles deve ser
conduzida. Quando se trata, em compensação, de "tratados-
contratos", é, como com toda convenção, mais consoante a in-
tenção comum das partes contratantes que se deve apreciar-
lhes o sentido.

A interpretação dos atos jurídicos

235. - O ato jurídico é, seja qual for o ramo do direito con-


nderado, o ato que traz uma modificação ao ordenamento jurí-
dico ( onforme os casos, ele repousa na vontade ou nas vonta-
des concordantes de seu ou de seus autores. Pode ser unilate-
inl, porque emana da vontade de uma única pessoa, como o
ICNlamcnto, ou bilateral ou multilateral, quando procede da
* onladc de duas ou várias pessoas, como um contrato. Por con-
neguinte, a interpretação dos atos jurídicos deve repousar es-
'.eiu iiilmente na investigação da intenção de seu ou de seus
autores. Portanto, trata-se aqui de uma interpretação subjetiva,
hindumentalmente diferente daquela das regras de direito, para
ai quais a segurança dos jurisdicionados e a necessidade de que
|Miv.,un prever a solução aplicável à situação deles exigem uma
Interpretação fundamentada não em introspeções individuais,
III.I» em dados concretos do sistema jurídico.
Mas a investigação da intenção das partes não exclui toda
i v y o s e nem o recurso a argumentos lógicos (A). Aliás, há que
«inalar o ressurgimento dos métodos objetivos de interpreta-
i Io (B) perante o desenvolvimento atual de novas técnicas con-
ii ninais e em direito público.
334 TEORIA GERAL DO DIREI K >

A. O princípio de métodos subjetivos de interpretação

236. - O conceito de ato jurídico 30 é abordado de maneira


diferente pelas doutrinas liberais e pelas doutrinas sociais.
Para as doutrinas liberais, o indivíduo é ao mesmo tempo o
fundamento e a finalidade do direito e o ato jurídico procede
da vontade individual, que basta para a sua formação e determi-
na-lhe livremente o conteúdo. Segundo o princípio da autono-
mia da vontade que o Código Civil consagrou em 1804, o sen-
tido do ato jurídico só pode ser o fruto da vontade concordante
de seus autores, e o juiz deve, para determinar o conteúdo do
ato jurídico, ater-se a investigar a intenção deles. Para as dou-
trinas sociais, a fonte dos atos jurídicos se encontra, ao contrá-
rio, no direito objetivo que traduz as necessidades sociais. Sem
eludir completamente o papel da vontade, elas fundamentam o
ato jurídico na conformidade da vontade de seus autores com
as necessidades sociais e com a lei que as expressa. Reconhe-
cem então ao juiz amplos poderes de interpretação dos atos em
conformidade com numerosas considerações extrínsecas.
Mas o direito francês continua, apesar de sua importante
evolução, fundamentado no princípio da autonomia da vonta-
de. Conquanto este tenha enfraquecido consideravelmente,
diante do renascimento atual do formalismo e da progressão
da ordem pública, permanece o princípio de que a lei das par-
tes é feita pela vontade delas e de que o juiz é apenas o seu ser-
vidor. Isso implica um método de interpretação subjetiva e
rejeita a interpretação dos atos jurídicos no campo do fato, que
depende do poder soberano dos juizes da causa e escapam ao
controle da Corte de Cassação. Por conseguinte, ao passo que
a interpretação da lei é essencialmente objetiva e constitui a
missão natural da Corte de Cassação, a dos atos jurídicos é es-
sencialmente subjetiva e lhe escapa. Mas o juiz não tem o po-
der de modificar os atos jurídicos. Se eles não são ilícitos nem
ambíguos e se foram aceitos validamente pelas partes, o juiz

30. Ver "L'acte juridique", Rev. droits, P.U.F., n° 7, 1988.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 335

deve ater-se a aplicá-los. Como no caso da lei, não cabe inter-


pretação dos atos ou das cláusulas que, na letra e no espírito
deles, são claros e precisos: qualquer interpretação seria então
uma desnaturação que a Corte de Cassação sanciona.
237. - Foi a propósito do contrato que o Código Civil esta-
beleceu princípios de interpretação e que a jurisprudência teve
de intervir mais. O princípio fundamental está então expresso
pelo art. 1156 do Código Civil: "Deve-se nas convenções in-
vestigar qual foi a intenção comum das partes contratantes, em
vez de deter-se no sentido literal dos termos."
Depois de proclamar a prevalência do espírito sobre a le-
lia das convenções, os arts. 1157 a 1164 do Código Civil enun-
ciam certo número de máximas destinadas a guiar o juiz na
interpretação dos contratos, mas a jurisprudência admitiu que
»• 1.is não têm caráter imperativo e que o desconhecimento delas
nrto pode por si só dar azo à cassação.
Assim, os termos das convenções não têm valor sacra-
mentai. A exegese pura é excluída pelo postulado que "a in-
lenção prevalece sobre a fórmula" 3 1 . O juiz deve investigar a
intenção das partes por todos os meios, mesmo extrínsecos ao
ato, e raciocinar segundo o espírito de boa-fé e os usos. As-
sim, o que é ambíguo é interpretado pelo que é de uso nos paí-
rcn onde o contrato foi firmado (art. 1159 do Cód. Civil). De-
\ em-se abranger no contrato as cláusulas que são usuais nele,
mesmo que nele não figurem expressamente (art. 1160 do Cód.
• (vil). Assim também, na dúvida, "os termos suscetíveis de
t l o t s sentidos devem ser tomados no sentido que mais convém
•i matéria do contrato" (art. 1158). Quando uma cláusula é
Miicctfvel de dois sentidos, deve-se entendê-la naquele com o
qual ela pode ter um efeito e não naquele em que ela seria inú-
til (arl. 1157). Na dúvida, interpreta-se a convenção no senti-
do mais favoráveJ ao devedor (art. 1162). Se acrescentamos
que ns cláusulas manuscritas prevalecem sobre as cláusulas
impressas e que as "cláusulas de estilo", estipuladas pelo há-

11 J. CARBONNIER, Droit civil - Les obligations, n° 6.


336 TEORIA GERAL DO DIREI K >

bito e não realmente desejadas pelas partes, são inoperantes,


contata-se o domínio determinante da vontade das partes so-
bre o sentido de seus compromissos. O reinado do espírito do
contrato é ainda mais ressaltado no art. 1161, segundo o qual
"todas as cláusulas das convenções são interpretadas umas pe-
las outras dando a cada uma delas o sentido que resulta do ato
inteiro". Isto quer dizer que é o espírito do contrato, e não só o
de cláusulas particulares equívocas, confusas ou contraditó-
rias, que deve ser investigado.
Mas a descoberta da intenção das partes não consiste so-
mente numa introspeção puramente arbitrária. Pode apoiar-se
em elementos objetivos. Para descobrir a vontade das partes, o
intérprete pode lançar mão de todos os tipos de elementos ex-
teriores ao ato mas apropriados para lhe esclarecer o sentido: o
comportamento das partes por ocasião das negociações, da
formação do contrato, de sua execução, de algumas medidas de
instrução pode determinar o juiz. A esse respeito, a letra dos
atos também tem sua importância. Embora ela não possa pre-
valecer sobre o espírito deles, quando está em contradição com
ele, pode também expressá-lo ou indiretamente revelá-lo. A
exegese conserva então sua importância. A análise gramatical
e lógica do texto permite determinar-lhe o alcance e apreciar-
lhe a articulação. Embora "a intenção prevaleça sobre a fórmu-
la", ela não a exclui e a fórmula nem sempre trai a intenção.
Com freqüência, ela a revela, e é o que lhe conserva toda a sua
importância.
O postulado do consensualismo impõe apreciar o pensa-
mento verdadeiro das partes por ocasião da formação dos
atos. Não podemos apreciá-los colocando-nos no contexto
atual deles sob pena de modificar o conteúdo que as partes
quiseram dar-lhes. Não podemos referir-nos à época do lití-
gio para detectar a vontade dos autores de um ato, quando de
sua formação. Não obstante, essa concepção essencialmente
civilista e clássica tende a matizar-se atualmente em diversos
campos.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 337

li, O ressurgimento de métodos objetivos de interpretação

238. - Sustenta-se em direito público que o juiz deve, ao


contrário, interpretar as cláusulas obscuras dos atos "colocan-
do-se na data do litígio" e a jurisprudência administrativa se
refere à situação de fato atual 32 . Esse método de interpretação
dos atos regulamentares ao sabor da evolução do interesse
geral tem a vantagem de apartá-los da vontade inicial, às vezes
caduca, de seu autor, para manter a adequação deles ao interes-
so geral que justifica os atos da autoridade pública.
O direito privado conhece também novas técnicas contra-
tuais 11 nas quais os co-contratantes não tiveram relação direta
ou, pelo menos, não negociaram pessoalmente nem elabora-
hini a convenção. A prática moderna mostra o importante de-
senvolvimento dos "contratos de adesão" que são obra exclusi-
v n dc uma das partes, economicamente mais poderosa do que a
oulra, cuja única escolha é aderir ao conteúdo desse contrato
mi não contratar. As cláusulas do contrato nem sequer são obra
dc uma das partes nos "contratos-padrão" redigidos pelos agen-
les do Estado ou pelos organismos profissionais, de modo que
n concurso de vontade das partes agora é apenas a condição da
submissão delas a um estatuto obrigatório. O direito moderno
i nnhcce ainda "contratos coletivos" que, firmados por duas ou
algumas pessoas, ligam as coletividades ou os membros de
giupos às vezes muito consideráveis. As convenções coletivas
«>u outros acordos profissionais são as constantes ilustrações
deles, Enfim, muitos contratos são estabelecidos com base em
liirmulas preestabelecidas, sendo cada vez mais praticado o
emprego de formulários por profissões diversas, notadamente
pelos tabeliães. Para a interpretação de tais contratos, a exege-
ie retoma grande importância, pois é mais sobre um texto do

32, P. ex., C.E., 28 de janeiro de 1977, Agopyan A.J.D.A., 1977, p. 148; 20


ili lunciro de 1978, Roehn-Beretta, D., 1978, II, pp. 653 s.
IV "L'évolution contemporaine du droit des contrats", Journées René Sa-
• .oii7, 1985, ed. P.U.F., 1986; L. CADIET (dir.) e outros, Le droit contemporain
,h i. imlrats, ed. Economica, 1987, prefácio G. CORNU.
338 TEORIA GERAL DO DIREI K >

que sobre dados concretos e expressos por elas que as partes


chegaram a um acordo. A confiabilidade desse texto, elabora-
do e redigido por técnicos do direito, é maior e permite-lhe
impor-se.
Ocorre enfim que contratos sejam incompletos. Surge en-
tão a questão de saber se o juiz deve completá-los, o que con-
duz a ir além da vontade das partes e não mais somente servir
a ela e aplicá-la. Claro, o Código Civil prevê que "as conven-
ções obrigam não só ao que nelas está expresso, mas ainda a
todas as seqüências que a eqüidade, o uso ou a lei dão à obriga-
ção segundo sua natureza" (art. 1135). A jurisprudência recor-
re amiúde à noção de boa-fé. Mas hesita em afirmar nitidamen-
te que pode interpretar o contrato fora da intenção presumida
das partes. Todavia, segundo as doutrinas sociais, o juiz não
tem então de investigar o que as partes poderiam ter desejado;
deve interpretar o contrato como o fariam as partes, ou mesmo
terceiros imparciais, se tivessem de resolver a questão levanta-
da por ocasião do litígio. A jurisprudência civil francesa que,
salvo quando a lei lho prescreve, recusa, por outro lado, adap-
tar o contrato ao contexto atual e notadamente consagrar, na
ausência de texto, a teoria da imprevisão, fica muito reticente
diante dessa extensão dos poderes do juiz, ao passo que o juiz
administrativo, que leva em consideração a imprevisão contra-
tual, é mais audacioso e mais permeável a métodos objetivos,
evolutivos e teleológicos de interpretação dos atos jurídicos.
Mas pode acontecer que os atos jurídicos expressem com-
portamentos que, mesmo sendo conformes à letra da lei, traem-
lhe o espírito e em face dos quais o direito positivo deve reagir.

SEÇÃO II
A letra e o espírito: princípios de apreciação
dos comportamentos

239. - Casos há nos quais pessoas obedecem ao direito,


dando às suas ações todas as aparências da regularidade jurídi-
ca, mas em que, na realidade, utilizam seus direitos, certas re-
i An.lCAÇÂO DO DIREITO 339

grus ou certas instituições dentro de um objetivo contrário


àquele visado pelo direito objetivo. Respeitam assim a letra do
direito mas lhe violam o espírito. Então, é sempre o espírito
do direito que se deve levar em consideração, em razão das
I inalidades naturais nas quais é fundado todo sistema jurídico:
0 direito não pode proteger sua violação; os textos não podem,
com sua letra, legitimar nem absolver o desconhecimento de
sou espírito e de sua razão de ser. As punições reclamadas por
essas maquilagens de ilegalidade sob aparências enganosas de
legalidade se apoiam em princípios gerais que, referindo-se à
liinção social dos direitos, foram instilados pelo direito positi-
vo, sob a inspiração da idéia de boa-fé e a influência das dou-
Irinas sociais. Elas nulificam a doutrina clássica do absolutis-
ino dos direitos subjetivos.
Lisses comportamentos que, em nome do espírito dos di-
urnos ou do direito, devem ser punidos embora respeitem o
direito objetivo ao pé da letra, se relacionam principalmente
com noções de abuso de direito (§ 1) e de fraude (§ 2).

I. O abuso de direito

240. - "Se, sem ultrapassar seus limites materiais, um in-


divíduo se serve de seu direito para prejudicar a outrem; se,
mesmo respeitando-lhe a letra, viole-lhe o espírito, dir-se-á que
ele abusa, não mais que usa seu direito, e esse abuso não pode-
tta ser juridicamente protegido." 34 "Summum jus, summa in-
liiria", dizia Cícero. A aplicação cega da regra de direito traz o
1 isco de conduzir a conseqüências iníquas. A técnica jurídica,
pela combinação das regras e utilização delas, corre o risco de
sei exercida com prejuízo das finalidades do sistema jurídico.
A teoria do abuso de direito constitui o instrumento principal
ilo controle da conformidade do exercício dos direitos com a
liinçáo deles. E oriunda do abandono do absolutismo dos direi-

34. J. CARBONNIER, Droit civil - Introduction - Lespersonnes, nl' 45.


340 TEORIA GERAL DO DIREI K >

tos e da afirmação da relatividade deles, por influência das dou-


trinas sociais para as quais o direito e os direitos têm acima de
tudo uma "função social".
Assim, postos de lado alguns direitos absolutos e discri-
cionários cujo uso nunca seria abusivo, o exercício de todos os
direitos pode ser objeto de um controle judiciário do abuso.
Este só é excluído nos casos em que se pode presumir firme-
mente a licitude de uma ação, tratando-se de prerrogativas in-
dividuais, para manifestações da personalidade humana (direi-
to de resposta em matéria de imprensa) ou de funções discri-
cionárias (direito de oposição dos pais ao casamento de meno-
res). Foi a jurisprudência que, já em meados do século XIX,
fez aplicação dessa teoria. Mas o legislador francês, a despeito
de algumas alusões, não enunciou nenhum princípio de con-
junto e não consagrou expressamente, de maneira geral, a teo-
ria do abuso de direito. Esta, porém, adquiriu grande repercus-
são tanto na França como no exterior. Embora às vezes tenha
inquietado a doutrina clássica porque o juiz, como dizia Planiol,
"é obrigado a escrutar as consciências, a conhecer e pesar os
motivos e o lado psicológico fica dominante", ela é unanime-
mente aceita. A discussão se limita à investigação do critério
do abuso de direito: será a intenção de prejudicar a outrem ou o
desvio do direito de sua função social? 35 Os dois critérios cos-
tumam coincidir e, no caso contrário, parece que tanto um co-
mo o outro basta para caracterizar o abuso de direito.
Quando, no final do século XIX, Saleilles tentara elaborar
uma teoria do abuso de direito, os partidários do individualis-
mo clássico, sobretudo Planiol, criticaram seu princípio. Mas
Josserand mostrara que um ato pode ser consumado dentro dos
limites de um direito subjetivo "mesmo sendo contrário ao di-
reito considerado em seu conjunto... ou seja, enquanto corpo
de regras sociais obrigatórias. Pode-se perfeitamente ter para si
tal direito determinado e entretanto ter contra si o direito intei-
ro". Isso significa, sem contrapor os direitos subjetivos ao di-

35. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n os 693 ss.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 341

rei to objetivo, que "o direito acaba onde começa o abuso" e


que, mais além dos "limites externos dos direitos", existem "li-
mites internos" fundamentados nos princípios gerais e no "es-
pirito do sistema jurídico" 36 . Assim, Josserand elaborou uma
teoria "finalista" ou "teleológica" do abuso de direito cujo su-
cesso, na França e mormente no exterior, foi considerável 37 :
todos os direitos têm uma finalidade, uma meta de ordem so-
i tal. Só podem ser legitimamente utilizados em conformidade
com essa finalidade. Qualquer outro uso é abusivo. Essa con-
cepção, apesar das objeções que pôde suscitar, parece explicar
bem a noção de abuso de direito. Reflete a idéia segundo a
qual o abuso de direito é um erro no exercício de um direito e
engloba aquela que vê aí uma intenção de prejudicar. A idéia
de função social dos direitos está, ao menos em filigrana, in-
cluída nos textos e na abundante jurisprudência que sanciona o
abuso de direito.
2 4 1 . - 0 campo de aplicação do abuso de direito é muito
diversificado. Aplica-se às matérias essenciais do direito pri-
vado substancial. Nascida a propósito do abuso de proprieda-
de imobiliária em processos tornados clássicos e estendida
nos desmembramentos do direito de propriedade, a teoria do
abuso de direito invadiu o direito contratual, notadamente a
tespeito da rescisão unilateral de um contrato de duração in-
determinada ou da exigência pelo credor de uma estrita exe-
i ução do contrato. Ela penetrou até no direito de família, apesar
dos direitos discricionários que nele encontramos, a propósi-
to do abuso de poderes dos cônjuges sobre os bens quando
i oinprometem o interesse da família, da emancipação abusi-
va. da recusa abusiva de consentimento à adoção... A teoria do
abuso de direito penetrou também no direito comercial, prin-
i ipalmente com a sanção do abuso de maioria no direito de
sociedades e no direito social com o licenciamento abusivo e
u abuso do direito de greve.

36, Ihidem.
17. De l esprit des droits el de leur relalivité, 1927. Prolonga-se em L 'abus
./• /wiiwirs ou de fonetions, Travaux de 1'Association Capitant, t. XXVIII, 1977.
342 TEORIA GERAL DO DIREI K >

O direito processual também conhece o abuso de direito


quando, em ação judicial, em defesa ou pelo exercício das vias
de recurso, os litigantes desviam as vias de direito da função
delas, por exemplo, só as exercendo com fins protelatórios.
Assim, perante as jurisdições repressivas, segundo o art. 91 do
Cód. de Processo Penal, o autor de uma queixa com constitui-
ção de parte civil, julgada abusiva ou protelatória, pode ser
condenado a uma multa civil e a perdas e danos em proveito da
pessoa processada ou de qualquer outra pessoa visada na quei-
xa, se a queixa redunda em improcedência. Diante das jurisdi-
ções civis e comerciais, uma abundante jurisprudência sancio-
na os procedimentos abusivos, se bem que, para não atentar
contra o direito fundamental de agir em juízo, a Corte de Cas-
sação defina aí o abuso por um critério intencional. Mas, ou-
trossim, o art. 32-1 do Novo Código de Processo Civil sancio-
na com uma multa civil "aquele que age em juízo de maneira
protelatória ou abusiva". Disposições análogas foram instituí-
das pelo Decreto de 20 de janeiro de 1978 perante as jurisdições
administrativas, pelo Código de Processo Civil para o abuso
do direito de apelação e para os recursos de cassação abusivos.
O direito administrativo, enfim, dá grande espaço ao "des-
vio de poderes" que consiste no fato de uma autoridade admi-
nistrativa usar seus poderes visando um objetivo diferente da-
quele para o qual eles lhe foram conferidos 18 . Os casos de des-
vio de poderes são numerosos e correspondem principalmente
às hipóteses em que o agente não perseguiu um objetivo de in-
teresse público, mas um interesse pessoal ou um móbil político;
trata-se também das situações nas quais o autor do ato perse-
guiu um objetivo de interesse público, mas alheio àquele que
estava autorizado a perseguir (prefeito utilizando seu poder de
polícia para garantir a execução de um contrato, por ex.). Assina-
laremos afinal o desvio de procedimento que consiste em subs-
tituir um procedimento regular por um outro procedimento,
mais expeditivo porém inaplicável à operação em pauta.

38. Por ex. G. VEDEL e P. DEVOLVÉ, Droit administratif, P.U.F., col


Thémis, 7 a ed., 1980, pp. 769 ss.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 343

Todas essas situações ignoram o espírito do direito con-


quanto sejam conformes à sua letra. Como o espírito prevalece
sobre a letra, o direito as sanciona segundo procedimentos di-
versos, sendo o mais freqüente deles a responsabilidade civil do
autor de um abuso de direito, mas que também podem consistir
cm sanções penais, multas civis, nulidades ou indenizações...
O necessário respeito das finalidades do sistema jurídico
c o princípio de boa-fé implicam também sancionar a fraude.

2. A fraude

242. - "A fraude consiste em eludir uma regra obrigatória


pelo emprego intencional de um meio eficaz, que torna esse
resultado inatacável no terreno do direito positivo. O problema
da fraude só surge... quando o meio empregado pelo sujeito...
para se subtrair à regra é eficaz tanto no plano jurídico como
no plano material, ou seja, quando permite atingir o resultado
proibido sem incorrer em sanção, pelo menos em sanção sus-
cctivel de comprometer esse resultado." 39 Com efeito, a utili-
zação de um meio ilícito pode ser reprimida em si e sem recor-
rer á noção de fraude. A utilização de um meio ineficaz não
permite atingir o resultado proibido buscado, não sendo, por-
tanto, nefasta.
Como a teoria do abuso do direito, a teoria da fraude é um
mecanismo de autodefesa do direito que lhe permite corrigir
os desvios aos quais pode conduzir o emprego das regras jurí-
dicas. Como aquela, esta corresponde à idéia de que o direito
não pode tolerar que instituições jurídicas sejam desviadas de
sua finalidade e que a letra das instituições seja utilizada em
detrimento de seu espírito. Mas, constituindo dois meios de al-
i ançar um mesmo resultado, a fraude e o abuso de direito têm

39. J. VIDAL, Essai cTune théorie générale de la fraude en droit français,


eil Dalloz, 1957, prefácio de G. MARTY, p. 341; L. JOSSERAND, Les mobiles
.Aim les actes juridiques de droit privé, ed. Dalloz, Paris, 1928, reed. C.N.R.S.,
Pirln, pp. 214 s.
344 TEORIA GERAL DO DIREI K >

áreas diferentes. Enquanto o abuso de direito supõe o exercício


de prerrogativas preexistentes, a fraude em geral não é o mau
exercício de um direito já reconhecido, mas o desvio de uma
regra jurídica para adquirir um direito do qual se é privado 40 .
Os glosadores foram os primeiros que formularam os traços
específicos da fraude e de sua sanção. Cujas, no século XVI,
integrou-a numa fórmula geral. Já no início do século XIX, a
Corte de Cassação estabeleceu como princípio que "a fraude
faz exceção a todas as regras". Essa regra foi depois enunciada
pela máxima fraus omnia corrumpit. Assim, a fraude propor-
ciona um corretivo ao funcionamento comum das regras jurí-
dicas. O meio empregado para eludir uma regra obrigatória
fica privado de sua eficácia; isto permite aplicar a lei à qual o
agente tentou escapar. "O ato fraudulento só é atingido de ine-
ficácia na medida em que redunda num resultado julgado con-
trário ao direito: a eliminação mediante astúcia de uma regra
obrigatória." 41 A ineficácia do meio utilizado é limitada ao que
transgride a regra que o agente procurou eludir. E uma mera
"inoponibilidade" das conseqüências da fraude; não é, em prin-
cípio, uma ineficácia total do ato.
243. - A utilidade de tal sanção é, portanto, limitada às frau-
des que justificam "uma exceção a todas as regras". Assim,
certas manobras desleais, ardis ou embustes que são engloba-
dos no sentido lato sob o vocábulo fraude, mas são sancio-
nados por outras regras legais, não têm de ser incluídos na
noção estrita de fraude. Há que admitir aqui que a fraude con-
siste somente "em fazer uma regra de direito intervir para dis-
torcer uma outra regra de direito" 42 , noutras palavras, em tentar
eludir uma regra obrigatória mediante um meio teoricamente
eficaz e com uma intenção fraudulenta.
Foi em direito internacional privado que a teoria da frau-
de mais se desenvolveu. Consiste em modificar com artifícios

40. J. GUESTHIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n? 765. Sobre a fraude, ver


op. cit., n?s 741 ss.
41. J. VIDAL, op. cit., p. 391.
42. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, n? 745.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 345

as circunstâncias de fato segundo as quais é determinada a re-


gra de conflito. Trata-se então de evitar a aplicação da lei fran-
cesa para ficar sujeito a uma lei estrangeira ou, vice-versa, ten-
tar escapar a uma lei estrangeira para ser regido pela lei france-
sa. Ora, o direito francês, por não ter os meios de se precaver
contra as possibilidades abertas pelas leis estrangeiras, neces-
sita de um mecanismo de proteção contra elas, assim como
deve poder evitar que o direito francês seja abusivamente apli-
cado a situações às quais não tem de ser. Em direito internacio-
nal privado, trata-se da "fraude contra a lei" 43 , ou seja, "a utili-
zação de regras legais para escapar à lei e consumar um ato
que ela proíbe". "Fraudar a lei" "é eludir a aplicação da lei...
normalmente aplicável, porque essa lei vem atrapalhar os inte-
resses e as vontades" 44 . A evicção do direito francês ou de uma
lei estrangeira pela fraude é um atentado contra a ordem jurídi-
ca, por exemplo, para obter o divórcio com a aplicação de uma
lei estrangeira quando se está sujeito a uma lei que o proíbe.
Em direito interno, fala-se mais de "fraude contra os direi-
tos de terceiros", que consiste em manobras destinadas a causar
um prejuízo a determinadas pessoas, pelo menos na consciên-
cia que se tem de causar um dano a outrem. É sobretudo no direi-
to das obrigações, com a fraude sancionada pela ação pauliana,
que a fraude aparece. Mas encontramo-la também no direito de
família, em caso de ocultação de nascimento, de abandono de fi-
lho, de comunhão entre cônjuges e, no direito comercial, em
caso de fraude contra os direitos dos credores.
Costumou-se contrapor a fraude contra a lei à fraude con-
tra os direitos de terceiros, mas essa distinção é artificial e
principalmente terminológica 45 . A fraude contra os direitos de
terceiros é geralmente também uma fraude contra a lei. A frau-
de contra a lei é comumente uma fraude contra os direitos de
terceiros ou pelo menos contra a ordem jurídica. A distinção

43. B. AUDIT, La fraude à la loi, Bibl. de dr. int. privé, ed. Dalloz, 1974.
44. G. R1PERT, La règle morale dans les obligalions civiles, ed. L.G.D.J.,
1949, n" 173.
45. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n?s 746 ss.
346 TEORIA GERAL DO DIREITO

fundamentada num critério psicológico é inevitavelmente arbi-


trária. Teria o único interesse de determinar quem pode aplicar
a sanção da fraude. O próprio princípio dessa sanção marca o
triunfo do espírito do direito sobre a letra dos textos, quando se
trata de apreciar os comportamentos jurídicos, bem como quan-
do se trata de interpretar textos. Apenas varia a concepção que
se tem do espírito: vontade do autor dos textos, finalidade de
uma regra ou de uma instituição, coerência de um sistema jurí-
dico ou fins superiores do direito.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 347

ILUSTRAÇÃO

I . A i n t e r p r e t a ç ã o d o s t e x t o s , d a s r e g r a s d e d i r e i t o o u a t o s ju-
rídicos só se justifica q u a n d o eles n ã o s ã o claros e precisos.

Cassação Civil 15 de abril de 1872


(D. P. 1872, I, 1976; S. 1872,1, 232)
(Grands arrêts de la jurisprudence civile, 1 Of ed., n? 92)
(Foucauld e Coulombe C. Pringault)

Não é permitido aos juizes, quando os termos de uma


convenção são claros e precisos, desnaturar as obrigações
dela resultantes e modificar as estipulações nela contidas.

A C Ó R D Ã O

"A Corte; - Visto o art. 1134 do Cód. Civil; - Considerando


que nos termos deste artigo 'as convenções legalmente forma-
das são consideradas lei para aqueles que as fizeram'; - Que não
é permitido aos juizes, quando os termos dessas convenções
são claros e precisos, desnaturar as obrigações delas resultan-
tes e modificar as estipulações que elas contêm; - Consideran-
do que a cláusula, invocada pelos réus em cassação para recu-
sar o pagamento das gratificações reclamadas por Pringault
cm execução de um cartaz afixado na fábrica da Société veuve
foucauld et Coulombe, traz em termos expressos que 'fica
bem claro que, para qualquer caso que seja, a gratificação per-
manecerá facultativa'; - Que esta cláusula pela qual a referida
sociedade estipula que ela não poderá ser forçada ao pagamen-
to da gratificação é formal e válida em todos os casos para os
operários da fábrica; - Que em vão, para não aplicar às lides
submetidas à sua jurisdição, a Justiça do Trabalho de Flers se
baseia, de um lado, no fato de Pringault ter efetuado seu traba-
lho conforme ao cartaz em questão e, do outro, no fato de ter
precedentemente recebido gratificações; - Que de fato os réus,
efetuando o pagamento dessas gratificações, como depois re-
348 TEORIA GERAL DO DIREI K >

cusando concedê-las a Pringault, usaram da faculdade que ti-


nham reservado para si, pela cláusula supracitada, de fazer ou
não fazer uso, conforme a vontade deles; - Daí se segue que
condenando a Société veuve Foucauld et Coulombe a pagar as
gratificações reclamadas por Pringault, a sentença atacada vio-
lou formalmente as disposições do art. 1134 do Código Civil;
- Por esses motivos, cassa..."

Art. 1156 do Código Civil

Art. 1156. Deve-se nas convenções investigar qual foi a


intenção em comum das partes contratantes, em vez de deter-
se no sentido literal dos termos.

Art. 12 do Código Civil do Baixo Canadá

Art. 12. Quando uma lei apresenta dúvida ou ambigüida-


de, deve ser interpretada de maneira que ela cumpra a intenção
do legislador e atinja o objeto para o qual foi passada.
O preâmbulo que faz parte do ato serve para explicá-lo.

II. A apreciação dos comportamentos

Extraído de "Leçons de droit civil", 1.1 de H. L. e J. Mazeaud


por M. de Juglart, n." 50.
50. - A socialização dos direitos: a teoria do abuso dos
direitos. - Do direito da propriedade, a jurisprudência esten-
deu ao exercício de quase todos os direitos a teoria do abuso
dos direitos: ela decidiu, por exemplo, que podia haver abu-
so do direito de ruptura do contrato (jurisprudência confirma-
da pelo legislador), abuso do direito de greve, uso abusivo das
vias de direito, ou seja, da possibilidade de intentar um processo
ou de se defender na justiça. Portanto, não basta, para escapar
a qualquer recurso, entrincheirar-se por trás do fato de que se é
Capítulo 2
Os raciocínios jurídicos

244. - Para caracterizar o direito, afirmaram às vezes seu


irracionalismo, pretendendo que a solução prática é intuitiva-
mente tirada dos fatos e procede do particularismo deles. Só
contariam as realidades concretas, independentemente de qual-
quer sistema, e a regra de direito poderia consistir apenas num
mandamento arbitrário da autoridade social. Esse "existencia-
lismo" jurídico está em contradição com toda idéia de seguran-
ça jurídica, que pressupõe a certeza e a precisão das regras de
direito organizadas em um sistema coerente e exclui a mera
apreensão desordenada da massa mole e inconsistente dos fa-
los. Pode-se, inversamente, procurar deduzir a solução de toda
situação jurídica de um arsenal de regras jurídicas claramente
definidas, das quais ela resultaria necessariamente, pelo sim-
ples efeito de um raciocínio puramente lógico. Mas esse proce-
dimento formal leva ao afastamento progressivo dos fatos, até
ao desconhecimento deles. Ora, assim que o direito se distancia
das realidades concretas que deve reger, já não serve para nada.
A influência do positivismo habituou outrora as mentes a
identificar a lógica jurídica com uma espécie de lógica formal
cujos abusos e limites Gény denunciou no início deste século 1 .

I. F. GÉNY, Méthodes d 'interprétation et sources en droit privé positif, 2?


i il , 1919 e "nova tiragem" L.G.D.J., 1954; Science et technique en droit privé po-
<1111 (1914-24). Ver M. MIAILLE, Une introduction critique au droit, ed. F.
Mir.péro, 1976, pp. 201 ss. (lógica e alógica jurídica).
352 TEORIA GERAL DO DIREI K >

As concepções modernas do direito, tais como se desenvolve-


ram depois da última guerra mundial, assinalam, ao contrário,
uma reação contra a concepção analítica e dedutiva do direito e
um ressurgimento das tendências do direito natural.
Entre o frio rigor matemático e o existencialismo desen-
freado, existem muitas atitudes intermediárias. Gény não pre-
tendia subtrair a técnica jurídica à razão. Admitia que "toda ela-
boração jurídica... é dominada por operações intelectuais e por
uma metodologia baseadas nos princípios da lógica comum,
com certa flexibilização comandada pela natureza própria do
objeto que deve ser penetrado: as regras jurídicas (variedade
das normas morais)" 2 . O jurista deve, para empregar os da-
dos objetivos do direito, procurar os meios de atingir o objeti-
vo geral que lhe é proposto. Ora, segundo Gény, "se a relação
de meios com fim é mesmo, em si, um princípio racional, os
meios, por sua vez, são variáveis; vários podem às vezes con-
duzir ao objetivo; trata-se de escolher entre eles. A vontade é a
única que pode fazer essa escolha" 3 . Não se pode negar que o
direito seja uma ciência, ou seja, "um conjunto de conheci-
mentos ordenados de acordo com princípios" 4 , e que comporte
seus modos de raciocínio e toda uma série de procedimentos
técnicos. Para conhecer os métodos do direito e aplicá-lo te-
mos de tentar caracterizar os raciocínios jurídicos, descobrir-
lhes a trama e definir-lhes as particularidades.
245. - O "raciocínio" se define como "uma seqüência de
proposições ligadas umas às outras segundo princípios deter-
minados e que resulta numa conclusão" 5 que deve ser, ao mes-
mo tempo, bem fundamentada com relação às normas jurídi-
cas aplicáveis, racionalmente aceitável e razoável, ou seja, adap-
tada às particularidades das situações por resolver 6 .

2. F. GÉNY, Science et technique en droit prive positif.\ t. IV, n? 302.


3. Op. cit., t. III, n? 183.
4. LALANDE, Vocabulaire technique et critique de la philosophie, verbete
"Science", sentido C. Trad. bras. Vocabulário técnico e crítico da filosofia, Martins
Fontes, São Paulo, 1990).
5. Dicionário P. Robert.
6. C. M. STAMATIS, Argumenter en droit - Une théorie critique de
1'argumentation juridique, ed. Publisud, 1995, pp. 152 s.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 353

O raciocínio jurídico consiste no processo intelectual sus-


cetível de levar à solução dos problemas jurídicos, graças a
certo número de meios racionais.
Caracterizar os raciocínios jurídicos significa determinar
os métodos que permitem encontrar essa solução.
Se bem que, para afirmá-lo, cumprisse ter estudado todos
os sistemas jurídicos e, diante da impossibilidade de consegui-
lo, devamos contentar-nos com amostragens para emitir uma
hipótese simplesmente verossímil, podemos pensar que exis-
tem, em direito, modos constantes de raciocínio. Cumpre en-
tão descobrir "a estrutura do pensamento jurídico que, subja-
cente a todos os sistemas de direito, não é aparente em ne-
nhum", porque enfurnada profundamente "sob as instituições
que dão a cada qual seu relevo próprio" 7 . Trata-se de pôr em
evidência a trama dos raciocínios jurídicos na qual se aplicam
.is diversas relações sociais que devem ser regidas conforme as
épocas e conforme os países, as diversas finalidades persegui-
das, conforme os sistemas de direito considerados, e os diver-
sos meios utilizados, conforme as ordens jurídicas.
Para descobri-la, convém distinguir a estrutura dos racio-
cínios (Seção I) da escolha das proposições (Seção II).

siçAoi
I estrutura dos raciocínios

246. - Raciocinar consiste em inferir uma proposição de


•na ligação com outras proposições já estabelecidas ou, vice-
v cisa, em demonstrar uma dada proposição procurando as pro-
posições que podem justificá-la logicamente. O raciocínio con-
• isie, conforme os casos, em uma inferência ou uma demons-
naçáo. E uma operação discursiva que se distingue da intuição,
"ii seja, da apreensão imediata e global de um objeto de pensa-
mento. Assim, aqui devemos excluir dela atitudes puramente

7 M. VIRALLY, La pensée juridique, ed. L.G.D.J., 1960, La science du


di,>11, XXXV.
354 TEORIA GERAL DO DIREI K >

individuais e subjetivas, tais como as tornadas célebres do


"bom juiz" Magnaud que, no final do século XIX, pretendia
motivar "a aplicação da lei com considerações humanas e so-
ciais, com a exclusão de qualquer espírito profissional...". Gé-
ny constatou que a elaboração independente do direito redun-
dava "fatalmente na incerteza e na instabilidade das soluções
positivas, portanto numa espécie de anarquia jurídica, que abo-
le qualquer freio nas sentenças, arruina qualquer segurança
nos processos" 8 . Claro, para descobrir o encadeamento e a uni-
dade dos elementos de um raciocínio complexo, é preciso,
como pensava Descartes, uma parte de intuição, ainda que se
possa denunciar, à maneira de Leibniz, a insegurança da intui-
ção e do sentimento da evidência e assegurar o rigor do racio-
cínio reduzindo-o a um cálculo a partir dos sinais. Mas o raciocí-
nio jurídico se situa certamente no meio do caminho entre a
intuição e o cálculo simbólico, pois não opera por reflexo de-
sorganizado nem por simples formalização abstrata. Ele serve
tanto para demonstrar proposições existentes como para delas
inferir novas. Intervém tanto no campo da pura especulação
intelectual, com fins teóricos, quanto para resolver problemas
da vida, dentro de uma perspectiva prática.
Os juristas modernos se interrogaram sobre a lógica jurí-
dica. Alguns identificam a argumentação com uma inferên-
cia, no sentido de uma dedução segundo regras lógicas prees-
tabelecidas 9 . Outros estimam que "a lógica jurídica é uma ló-
gica material, que deve fazer-nos refletir sobre o que convém
fazer quando, dentro dos limites do possível, quer-se chegar a
julgamentos jurídicos verdadeiros ou pelo menos corretos" 10 .
Há outros, enfim, que pensam que há apenas uma lógica, mas
que, "dentre as diferentes aplicações das leis ou regras lógicas
universais, algumas há que são feitas por juristas no campo de
um saber jurídico qualquer" e que é interessante e útil "anali-

8. F. GÉNY, Méthode d 'interpretation et sources en droit prive positif, t. II,


pp. 287 ss.
9. U. KLUG, Juristische Logik, 1966, p. 7.
10. K. ENGISCH, Einfuhrung in das Juristische Denken, 1956, p. 5.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 355

snr as diferentes aplicações, nos diversos campos dos saberes


jurídicos, das leis e das regras lógicas universais". Sustentam
então que é "vão estudar uma lógica jurídica no sentido pró-
prio do termo, pois esta não existe" 11 , ainda que não se pos-
sam negar a importância das inferências dedutivas em direi-
lo, o lugar das leis lógicas nos raciocínios jurídicos e a utili-
zação que se pode fazer da lógica dedutiva no campo do di-
reito 12 . C. Perelman considera que, embora se identifique a
lógica pura e simples com a lógica formal, "é ridículo falar
dc lógica jurídica como seria ridículo falar de lógica bioquí-
mica... quando se utilizam regras da lógica formal num trata-
do de bioquímica..." 13 .
Reteremos, por conseguinte, que os raciocínios jurídicos
que podem, como qualquer raciocínio, ter maior ou menor ri-
gor, obedecem, com as transposições necessárias, às leis da
lógica tradicional, mas apresentam certas particularidades cujo
estudo hoje é o objeto de uma "lógica deôntica" própria das
proposições normativas. Essa lógica aplicável às regras de con-
duta foi particularmente abordada pelo finlandês Von Wright
i\ na França, por Kalinowski 14 . Os raciocínios jurídicos são,
portanto, apenas conjunções e transposições particulares das
lot mas gerais de raciocínio. O estudo da tipologia dos raciocí-
nios (§ 1) põe, entretanto, em evidência o particularismo do ra-
i iocinio jurídico (§ 2).

11. G. KALINOWSKI, "Y a-t-il une logique juridique?", Logique et analy-


«r, 1959, p. 53.
12. G. KALINOWSKI, La logique déduetive, ed. P.U.F., col. "Droit, éthi-
i|iii ri nociété", 1996.
13. Ch. PERELMAN, Logique juridique - nouvelle rhétorique, 2' ed.,
|M79, n" 4.
14. "Introduction à la logique juridique", tese, Paris, 1965; "De la spécifici-
M (Ir I» logique juridique", Areh. philosophie du droit, 1966, p. 7; "Logique for-
m»lle et droit", Ann. Fac. Droit et Sc. Eco., Toulouse, 1967, I, 197. G. KALI-
N O W S K I , La logique déduetive, op. cit.-, ver também J. GHESTIN e G. GOU-
lll 11AX, Traité de droit civil — Introduction générale, 4" ed., com a colaboração
i l i M Inbre-Magnan, n? 44.
356 TEORIA GERAL DO DIREI K >

1. Tipologia dos raciocínios e raciocínio jurídico

247. - Faz parte da natureza do direito só concentrar-se


nas soluções jurídicas com uma certeza meramente relativa. Se
algumas há que comportam uma certeza suficiente, outras há,
fundamentadas em opiniões mais, ou menos, prováveis, que
podem ser contestadas 15 . Ora, a análise dos raciocínios no "ór-
ganon" de Aristóteles distingue os raciocínios analíticos que,
partindo de premissas necessárias ou indiscutivelmente verda-
deiras, resultam mediante inferências em conclusões igual-
mente necessárias ou verdadeiras, e os raciocínios dialéticos
que, fundamentados na argumentação, conduzem argumentos
a uma decisão e não implicam uma passagem obrigatória das
premissas à conclusão, que então é apenas provável. Ao passo
que a lógica formal se concentra num raciocínio necessário, a
lógica da argumentação implica apenas um raciocínio verossí-
mil (B). Mas essas duas lógicas podem ser utilizadas para a
análise ou a síntese (A).

A. Análise e síntese, dedução e indução

248. - A inferência da conclusão a partir das premissas


pode corresponder a dois movimentos opostos, conforme se
parta do princípio para deduzir dele a conseqüência ou, inver-
samente, partindo de uma conseqüência observada, procure-
se induzir dela o princípio de que ela pode depender. Essa dua-
lidade das operações intelectuais é apenas uma expressão da
oposição muito geral entre a síntese e a análise 16 .
A síntese é o processo mental que vai de proposições cer-
tas a proposições que são sua conseqüência necessária 17 , por

15. J. DABIN, Théoriegénéraie du droit, 1969, n° 270.


16. R. B„ Encyclopaedia universalis, verbete "Raciocínio".
17. O termo significa de modo mais geral a operação que procede do sim-
ples ao composto ou a operação intelectual pela qual se reúnem os elementos de
conhecimento em um conjunto coerente.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 357

dedução. A análise, ao contrário, é o método de raciocínio re-


gressivo que remonta da conseqüência aos princípios reconhe-
cidos como verdadeiros e dos quais se poderá depois deduzi-la.
O método dedutivo, a síntese, caracteriza sobretudo a ló-
gica matemática em que, a partir de proposições básicas, todas
ns outras proposições se deixam demonstrar como teoremas 18 .
() raciocínio indutivo parte dos fenômenos observados para
deduzir deles, por hipóteses provisórias, princípios cuja exati-
dão se verificará em seguida deduzindo as diversas conseqüên-
cias suas. Este método é utilizado pelas ciências naturais ou
experimentais que verificam as conseqüências dos princípios
induzidos pela experimentação, para confirmar ou infirmar es-
ses princípios.
Então é essencial caracterizar o raciocínio jurídico relati-
\ amente a esses dois métodos.
249. - Por muito tempo pensou-se que a dedução se redu-
zi. i ao silogismo que Aristóteles definia como "um discurso tal
que, estando expostas certas coisas, alguma outra coisa resulta
necessariamente delas, pelo único fato de que as primeiras es-
1.(0 expostas". Costumou-se apresentar 19 o silogismo como o
suporte mais geral de qualquer aplicação do direito. Nesse ra-
i locínio que, da relação de dois termos, "as premissas" (a maior
i' a menor), deduz uma "conclusão", a regra de direito seria a
maior c o caso individual dado, a menor. A "conclusão" con-
trairia no julgamento que admite ou rejeita a aplicação ao caso
••in pauta do efeito da regra de direito concernida.
Essa concepção certamente é exata para o raciocínio judi-
. uirio quando o juiz deve aplicar o direito aos fatos 20 . Entre-
lillilo, seu procedimento consiste num encadeamento de silo-
1'IMUOS sucessivos e deve ser mais diversificado, pois, em di-
u r n o , o efeito, a pena por exemplo, não segue necessariamente

IH R. BLANCHE, "L'évolution de la logique mathématique contemporaine",


in (mi fui. droit et s. écon., Toulouse, 1967, t. XV, fase. 1, pp. 13ss.,notap. 18.
19, II. MOTULSK.Y, Príncipes d'une réatisation méthodique du droit
l«in . lese Lyon, 1948.
2». Ver infra, n?s 267 s.
358 TEORIA GERAL DO DIREI K >

a causa, notadamente o delito. O fato não produz por si só seus


efeitos de direito que precisam ser aplicados segundo certas
regras, por certos mecanismos (ações judiciais, juiz, processo,
prova, decisão, execução etc.) para operar-se. No encadeamen-
to de proposições puramente jurídicas, o silogismo é igualmen-
te essencial. Partindo dos princípios da hierarquia dos textos e
da superioridade da lei ou regulamentação, deduzir-se-á que
uma regulamentação não pode derrogar a lei. São numerosos
os exemplos de tais raciocínios.
Mas a lógica matemática comporta uma fase de apresen-
tação axiomática que exige uma definição explícita e rigorosa
de todas as noções e proposições utilizadas pelas demonstra-
ções 21 . A organização sob forma axiomática repousa aí "na es-
colha feita livremente de um número determinado de defini-
ções e de axiomas, expostos como hipóteses, independente-
mente da sua relação com a realidade e dos quais todo o sistema
é em seguida deduzido logicamente" 22 . Claro, o direito compor-
ta conceitos múltiplos, determinados e precisamente defini-
dos; não ignora os axiomas. Mas o jurista não é livre para es-
colher os conceitos que utiliza e os axiomas em que se apóia,
pois é obrigado a respeitar o direito positivo. Ele não é aparta-
do da realidade; ao contrário, nunca deve perdê-la de vista; se
conceitos e princípios são distinguidos por abstração dos inte-
resses que representam, o encadeamento deles não pode con-
tentar-se com a ausência de contradição ou de incompatibilida-
de interna. O direito não pode limitar-se apenas aos esforços
do pensamento: deve permitir satisfazer as exigências concretas
da vida social. Enfim, os conceitos e as regras jurídicas nunca
formam um conjunto completo de elementos em números de-
terminados. A evolução social sempre implica regras e noções
novas que se juntam, às vezes com contradições, ao conjunto
existente; o encadeamento das proposições jurídicas não con-

21. J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n° 39.


22. P. HEBRAUD, "Rapport introductif du colloque sur la logique judiciai-
re", in Trav. et rech. fac. droit et sciences éco.. Paris, 1969, pp. 23 ss., em especial
p. 36.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 359

iluz, como na matemática, a uma conclusão necessária porém,


0 mais das vezes, simplesmente provável.
250. - A indução permitirá então caracterizar o pensamen-
to jurídico? Pode-se conceber que a ciência jurídica, a partir da
observação das ordens jurídicas existentes, induza dos princí-
pios que se lhe aplicam em seguida, tirando conseqüências
lógicas deles. O método jurídico parece então muito próximo
do método experimental. Mas há que notar que os fenômenos
observados são fenômenos intelectuais e não materiais e que é
apenas de uma maneira indireta que são objeto de observação:
devem primeiro ser interpretados em forma lógica e traduzidos
em conceitos. Os juristas procuram então estabelecer uma ti-
pologia dos fenômenos jurídicos distinguindo suas constantes
e reduzindo-as a categorias jurídicas submetidas a um determi-
nado regime 23 . Essas categorias são comparáveis aos tipos bio-
lógicos que também repousam em semelhanças e dessemelhan-
t e . em relação a "conjuntos organizados de traços complemen-
ta es articulados entre si"24. Mas as categorias jurídicas têm,
porém, a particularidade de serem em número indeterminado e
«ciem suscetíveis de uma constante renovação 25 .
Portanto, embora o raciocínio jurídico se aparente com o
nu iocínio indutivo das ciências experimentais, ele tem uma
1 inalidade diferente. O direito não tende somente a constatar e
explicar fatos. Seu objetivo é uma ação ligada a um juízo de
valor e à realização de um objetivo, não sendo esses valores e
eiatc objetivo "abandonados à pesquisa científica do jurista",
ma» "acatados por uma sociedade e por aqueles que nela exer-
i em o poder" 26 .
Assim, o método jurídico, em geral oriundo de proposi-
ções experimentais que são as suas premissas, não redunda ne-

23. J. L. BERGEL, "Différence de nature égale différence de régime", Rev.


li im ile dr. civ., 1984, pp. 255 ss.; ver supra, n?s 189 ss.
.'4. Sobre as relações entre o direito (especialmente o juspositivismo) e as
. irm li» sociais, ver V. VILLA, La science du droit, trad. fr. O. e P. Nerhot, ed.
»luiy Ncicntia e L. G. D. J., 1990, especialmente pp. 50 s., 79 s. e 185 s.
25. J. GHESTIN e G. GOUBEUAX, op. cit., n° 43.
J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n? 42; ver supra, n° 198.
360 TEORIA GERAL DO DIREI K >

cessariamente numa lei natural que é sua conclusão. Ele proce-


de também de uma finalidade preestabelecida para a qual se
procura orientar os fenômenos sociais ou de uma regra de con-
duta previamente imposta da qual se deduzem as conseqüências.
Por conseguinte, trata-se de um procedimento híbrido que não
é totalmente uma síntese, por dedução, nem uma análise, por
indução, e cuja especificidade pode proceder do confronto en-
tre a lógica formal e a lógica da argumentação.

B. Lógica formal e dialética

251. - Aristóteles distingue, no "órganon", os raciocínios


analíticos e os raciocínios dialéticos.
"Os raciocínios analíticos são aqueles que, partindo de
premissas necessárias, ou pelo menos indiscutivelmente verda-
deiras, resultam, graças á inferências válidas, em conclusões
igualmente necessárias ou verdadeiras..." O raciocínio analíti-
co típico era, para Aristóteles, o silogismo21. A validade de tais
raciocínios é independente da exatidão das proposições que
neles utilizamos. Sua correção não depende de seu conteúdo
mas somente de sua forma pois, se neles substituímos proposi-
ções materiais por variáveis simbólicas independentes de todas
proposições verdadeiras ou falsas, o esquema de inferência
obtido é válido porque permite inferir a terceira fórmula a títu-
lo de conclusão das duas primeiras, tomadas como premissas.
Se todo A é B e se C é A, então C é B. Esses esquemas lógicos
são "fôrmas de raciocínios". Se, num desses esquemas, substi-
tuímos as variáveis A, B e C por termos concretos, o raciocínio
será correto, já que obedece a uma lei lógica 28 . Garantem que a
conclusão será verdadeira, se as premissas são verdadeiras; a
validade deles é, pois, puramente formal. Existem outros ra-
ciocínios analíticos, tais como as relações transitivas, que per-
mitem as inferências em cadeia; se P tem como conseqüência

27. Ch. PERELMAN. op. cit., n? 1.


28. R. B„ op. cit.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 361

Q, e Q como conseqüência R, então R é também uma conse-


qüência de R Mas essa relação é orientada e não é simétrica: a
verdade dos princípios acarreta a da conseqüência, de modo
que, se a conseqüência é falsa, é porque um princípio é falso;
em compensação, a verdade da conseqüência não garante a dos
princípios, pois o verdadeiro pode ser deduzido do falso.
Os raciocínios dialéticos repousam num conjunto de meios
empregados na discussão com o fito de demonstrar, refutar,
trazer a convicção. Aplicam-se não às demonstrações científi-
cas, mas às deliberações e às controvérsias. Consistem não em
proceder por dedução coerciva a partir de regras preestabeleci-
das, mas, sob forma de debate, utilizando todos os meios de
persuasão e de convicção, de crítica e de justificação das diver-
sas teses possíveis, em investigar verdades simplesmente pro-
váveis, mediante um acordo tão amplo quanto o possível das
opiniões confrontadas 29 . Os raciocínios dialéticos não excluem
o silogismo. Mas então já não se trata do silogismo analítico
que escapa por sua mera forma a qualquer discussão e conduz
a uma conclusão necessária. Trata-se do "entimema", ou seja,
de uma forma abreviada do silogismo na qual se subentende
uma das duas premissas ou a conclusão 30 . O silogismo dialéti-
co se apóia, por outro lado, em premissas que são apenas ve-
rossímeis ou plausíveis, mas comporta a mesma estrutura do
silogismo analítico. A discussão versa então mais sobre a per-
tinência desta ou daquela premissa do que sobre a estrutura do
raciocínio, que já não é mais do que uma formalização rigoro-
sa da passagem dos diversos argumentos para uma conclusão.
('onduz geralmente a uma decisão; a passagem das premissas
li conclusão não é coerciva: se o fosse, não haveria escolha,
portanto não caberia uma decisão.
252. - O raciocínio jurídico poderá identificar-se a uma ló-
gica formal? Todo sistema jurídico tende a fornecer às pessoas
por ele regidas a segurança de que necessitam e, para isso, deve

29. Ch. PERELMAN, op. cit., n? 2; J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op.


cit.. n? 45.
30. Exemplo: o célebre entimema de Descartes: "Penso, logo existo."
362 TEORIA GERAL DO DIREI K >

permitir a cada qual conhecer de antemão a regra à qual será


submetido. Isso supõe uma estabilidade suficiente das regras e
uma coerência interna do sistema, baseada numa organização
específica das relações entre os elementos que o compõem, de
modo que cada um desses elementos depende dos outros, não
pode ser apreciado ou utilizado independentemente de seu con-
texto e, inversamente, influencia o que o circunda. Isso milita
em favor de uma análise sistêmica do direito que parece indis-
pensável para explicar interações que ele comporta 31 . Há inu-
meráveis exemplos disso. O regime fiscal de uma operação só
tem significado relativamente a seu regime civil que por sua
vez se refere ao estatuto fiscal; a modificação deste não pode
intervir sem se preocupar com problemas, tais como a aplica-
ção da lei no tempo, os modos de sanção das infrações, a noção
de boa-fé, os processos contenciosos, as vias de execução etc.
O direito não poderia conviver com a improvisação ou com a
anarquia de suas regras. Estas devem completar-se e corrigir-
se, ser adaptadas umas às outras, ser elaboradas umas con-
soante as outras. A diversidade do direito positivo pode redu-
zir-se a certo número de estruturas elementares que podemos,
como fazem os estruturalistas, tentar enumerar e pôr em evi-
dência.
Fica então tentador, diante do prestígio e do progresso
atual das matemáticas, investigar a contribuição que a ciência
jurídica pode esperar da teoria dos conjuntos, da teoria dos
jogos, da teoria da decisão, daquela de complementaridade etc.
e, diante do desenvolvimento do computador, conjugar o direi-
to com a linguagem da informática e a fórmula matemática 32 .
Já Descartes pretendia aplicar a todas as ciências a linguagem
matemática e Leibniz, que seria o precursor da "lógica deônti-
ca" antes da existência do termo 33 , empenhava-se em demons-

31. G. T1MSIT. Thèmes et systèmes de droit, ed. P.U.F., col. Les voies du
droit, 1986; M. Van. de KERCHOVE e F. OST, Le système juridique - entre
ordre et désordre, ed. P.U.F., col. Les voies du droit, 1988.
32. G. KALINOWSKI, La logique déductive, op. cit.. em especial pp. 161 s.
33. Ibidem.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 363

Irar o direito a partir de definições, de axiomas ou de uma se-


qüência de teoremas 34 . Pode-se sonhar com uma regra de direi-
to que se deduziria de um raciocínio estritamente lógico, gra-
ças a uma terminologia rigorosa, à hierarquia das regras consa-
gradas pelo direito positivo e à possibilidade de extrair as solu-
ções particulares de certo número de axiomas indiscutíveis.
Pode-se almejar que um dia, pelo menos em certos ramos do
direito, a fórmula matemática possa reger a lógica jurídica. A
identificação do raciocínio jurídico com uma lógica formal lhe
conferiria o rigor e a certeza que em geral lhe faltam e pode ser
percebida como um bem.
Mas a redução do direito a equações é um engodo. Es-
barra em insuperáveis dificuldades de métodos e na finalidade
de todo sistema jurídico.
A lógica matemática supõe não só uma apresentação axio-
ntática e uma formalização dedutiva mas também a simboliza-
çflo, que substitui o raciocínio sobre idéias pelo cálculo sobre
signos, do modo que a dedução de tipo matemático é de uma
feeundidade infinita. Ora, esse método é inconciliável com o
método jurídico. O direito é repleto de violações das soluções
lógicas deduzidas de um axioma. Essas exceções resultam de
outras preocupações, de outros princípios e de outros axiomas,
euja multiplicidade, cujos enredamento e intensidade, maior ou
menor, tornam impossível uma expressão do direito positivo
em forma matemática. Como traduzir que a convenção só tem
eleito entre as partes, mas que se pode estipular para outrem,
que certas obrigações podem transmitir-se aos sucessores aces-
inriamente à coisa que é seu objeto, que se pode contratar por
iepresentação? 35 Como explicar múltiplas conjunções entre to-
das as deduções diferentes que conduzem progressivamente às
koluções jurídicas? Isso fica ainda mais ilusório porque o le-
gislador contemporâneo multiplica, oportunamente, as exce-

34. Ver J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n° 37; M. VILLEY, "His-


tolir (lc la logique juridique, in Ann. fac. de droit et sc. éco., Toulouse, 1967, t.
XV, ftwc. t , p . 69.
IV li. S. de la MARNIERRE, Éléments de méthodologie juridique, n? 91.
364 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ções aos princípios e porque o fenômeno de especialização


acentuada das diversas matérias jurídicas desenvolve a casuís-
tica em detrimento dos princípios gerais. Ademais, nem todos
os conceitos jurídicos são suscetíveis de uma definição preci-
sa; há alguns, como a ordem pública ou os bons costumes, que
desempenham o papel de elementos corretores e de fatores de
adaptabilidade da regra de direito aos fatos e cujos contornos
são deliberadamente incertos 36 , de modo que agora se fala da
"flexibilidade do direito" ou de "lógica flexível", até mesmo
de lógica formal ou dedutiva "polivalente" 37 .
A regra de direito positivo não procede unicamente da ra-
zão lógica. Deriva de escolhas filosóficas, morais, técnicas. E
fruto da arbitragem constante entre interesses opostos. E larga-
mente determinada pelos fenômenos sociais, pelo estado ante-
rior do direito e por seu meio ambiente jurídico atual. Assim, o
conteúdo da regra de direito e as técnicas que ela utiliza depen-
dem das escolhas ou das dosagens operadas entre valores di-
versos, esquematicamente da "trilogia: segurança, justiça e pro-
gresso social" 38 . Não se pode abstrair a heterogeneidade, até
certas incoerências e certas contradições dos textos. O direito
resiste assim a qualquer sistematização geral e a qualquer for-
malização algébrica.
A redução do direito a uma lógica formal seria, aliás, con-
trária à finalidade essencial de todo sistema jurídico. O direito
tem a função de reger a vida social e não pode ignorar as reali-
dades concretas nem o movimento dos fatos e das aspirações.
Mostrou-se quanto a passagem do concreto ao abstrato "traz

36. V e m " 185.


37. M. DELMAS-MARTY, Le fiou du droit, ed. P.U.F., col. Les voies du
droit. Paris, 1986; Vers une autre logique juridique: à propos de la jurisprudence
de la cour européenne des droits de Thomme, D.S., 1988,1,221; G. KALINOWS-
KI, La logique floue vers la logique formelle? ou plaidoyer en faveur d un enseig-
nemenl de logique aux étudiants de droit, D.S., 1988,1, 297 (especificando e criti-
cando essa distinção).
38. B. TABBAH, "La trilogie: sécurité, justice et progrès social", in Mé-
langes Roubier, 1.1, pp. 459 ss.; P. ROUBIER, Théorie générale du droit, ed. Si-
rey, 1951, nf 37.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 365

11 risco de triturar cegamente as realidades..." e quanto a lógi-


ca formal traz o risco de imprimir no direito um dogmatismo e
lima rigidez incompatíveis com a complexidade da realidade e
com a maleabilidade da vida19. A dinâmica dos fatos não segue
o ritmo e o sentido das deduções da lógica formal. O direito
não pode deixar-se fascinar pelo mito do rigor até trair a reali-
dade. Ademais, "seja qual for a técnica de raciocínio utilizada
cm direito, este não pode desinteressar-se da reação das cons-
ciências perante a iniqüidade do resultado a que chegaria esse
raciocínio". C. Perelman mostrou que "nada se opõe a que
o raciocínio judiciário seja apresentado... sob a forma de um
silogismo, mas essa forma não garante em absoluto o valor da
conclusão. Se esta é socialmente inaceitável, é porque as pre-
missas foram aceitas levianamente" 40 . Assim, ele privilegia
uma "lógica da aceitabilidade" para rejeitar o que é "desarra-
Aiudo". Para ele, a questão essencial é então a seguinte: "a ló-
gica deverá limitar-se ao estudo dos raciocínios demonstrati-
vos... ou deverá igualmente analisar os mais variados raciocí-
nios que apresentam argumentos em prol desta ou daquela
escolha, desta ou daquela decisão? Raciocinar será unicamen-
te inferir, calcular e demonstrar ou será também fornecer ra-
zões pró ou contra uma dada tese?" 41 . "O esforço dos juristas...
procurou conciliar as técnicas do raciocínio jurídico com a jus-
tiça. ou pelo menos a aceitabilidade social da decisão." Pe-
ichnan mostrou muito bem que "essa preocupação é suficiente
puta salientar a insuficiência, em direito, de um raciocínio pu-
tamente formal que se contentaria em controlar a correção das
inlerências, sem fazer um juízo sobre o valor da conclusão" 42 .
253. - O raciocínio jurídico será então um raciocínio dia-
lético? Mostraram que os juristas da Antigüidade e da Idade

39. F. GÉNY, op. cit., t. III, notadamente n os 213 e 222; L. HUSSON, "Les
ii|ioiics de la logique juridique", Ann. fac. de droit et se. eco., Toulouse, 1967,
tuai l , p . 63.
40. Ch. PERELMAN, op. cit., n? 98.
41. Ch. PERELMAN, "Le raisonnable et déraisonnable en droit", ed. L.G.D.J.,
fílhl de philo. du droit, vol. 29, Paris, 1984, p. 94.
42. Ch. PERELMAN, op. cit., "Logique juridique...", n? 8.
366 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Média, tanto os talmudistas quanto os gregos e os romanos e de-


pois os glosadores italianos, procediam não por dedução coer-
civa a partir de regras preestabelecidas, mas por controvérsias
que conduziam, graças à retórica e à dialética no sentido aris-
totélico, a conclusões simplesmente verossímeis fundamenta-
das na argumentação 43 . A controvérsia tinha como efeito, pri-
meiro, excluir certos argumentos ao mostrar que não eram perti-
nentes, depois, eliminar certas soluções por serem desarrazoadas,
sem com isso impor necessariamente um gênero de argumen-
to e uma única solução obrigatória. "Para chegar à decisão
buscada, devia-se inserir o problema controverso numa tradi-
ção atestada por uma autoridade civil ou religiosa, pôr em evi-
dência a similitude do caso a ser julgado com uma decisão
anterior reconhecida ou subsumi-la sob um texto legal que tra-
tasse dos casos de mesma espécie." A justificação da decisão,
por sua inserção numa ordem jurídica constituída pelos prece-
dentes, até mesmo pelo legislador, explica tanto o procedimen-
to dos direitos de common law quanto o dos direitos romano-
germânicos 44 . Reencontramos a utilização desse método que
usa a controvérsia na dialética hegeliana que une as contradi-
ções da tese e da antítese numa categoria superior, a síntese.
Impulsionados por Perelman, os trabalhos do Centre National
de Recherches de Logique da Bélgica mostraram que ainda é
essa lógica baseada na argumentação que inspira o raciocínio
jurídico e judiciário 45 .
Destacou-se igualmente o papel da dialética em direito
positivo 46 através da dupla natureza do direito do proprietário,
do direito do locatário, da propriedade incorpórea dos valores

43. M. VILLEY, op. cit., pp. 72 ss.; J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op.


cit., n° 45; Ch. PERELMAN, op. cit., n° 7.
44. Ch. PERELMAN, op. cit.; ver também William Twiriiiig (ed ). Legal
Theory and Commori Law. Basil Blackwell, Nova York, 1986; G. SAMUEL. The
Foundations of Legal Reasoning, ed. Maklu, 1994, em especial jip. 137 s.
45. Ch. PERELMAN, op. cit:, Ch. PERELMAN e L. OLBREC HTS-TYTE-
CA, La nouvelle rhélorique. Traité de Vargumentation, 21 ed., 1970. (Trad. bras.
Tratado da argumentação. A nova retórica. Martins Fontes, São Paulo, 1996.1
46. E. BERTRAND, Le rôle de la dialectique en droit prive positij.D.,
1951,1, pp. 151 ss.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 367

mobiliários ou do fundo de comércio, nos quais coexistem duas


premissas contrárias mas complementares que têm, cada uma
delas, sua área própria de aplicação.
Para dar conta dessa dualidade, deve-se generalizar um
método de raciocínio dialético que implica "que nenhum prin-
cípio, em nenhuma matéria, seja proclamado ou aceito sem a
aceitação no mesmo momento do princípio contrário". Mas,
segundo E. Bertrand, a dialética jurídica deve ser "centrada na
justiça": "a determinação do princípio a ser aplicado, em vez
de seu contrário, não é fruto da arbitrariedade, mas conseqüên-
cia de uma escolha ou de um movimento necessário, de acordo
com o objetivo visado ou com regras de justiça ou de moral ou
ainda com a proteção necessária de certo interesse em vez de
um outro" 47 . Entre a aplicação exclusiva de cada um dos prin-
cípios, são possíveis todos os matizes, consistentes em dar a
cada um deles uma parte de aplicação. Cada princípio pressu-
põe a coexistência do princípio contrário. Esse dualismo às
vezes se opera na história: todo regime individualista contém
uma parte de coletivismo, e todo coletivismo traz o individua-
lismo em germe. O estado do direito sempre é apenas uma eta-
pa da alternância contínua entre o individual e o social e, de
modo mais geral, um dos variados pontos de equilíbrio possí-
veis entre os diferentes imperativos em causa.
O silogismo continua então a ser o suporte geral do racio-
cínio, mas a escolha das premissas supõe todas as vezes uma
controvérsia. Nenhuma premissa pode ser aceita sem aceitar
no mesmo momento a premissa contrária, de modo que nenhu-
ma conclusão pode ser admitida sem ter considerado a conclu-
são contrária e sem ter operado uma escolha entre as duas con-
clusões possíveis: se o direito do locatário é um direito pessoal,
não deve transmitir-se com o bem locado; se se trata de um di-
reito real, transmite-se com ele. A proteção do contrato e do

47. Ver também, G. HAARSCHER e L. INGBER, Justice et argumentation.


Essais à la mémoire de Chain Perelman, Ed. de PUniversité de Bruxelles, 1986,
cm especial H. Batiffol, "La justification en droit dans la pensée de Ch. Pe-
relman", pp. 153 ss.
368 TEORIA GERAL DO DIREI K >

locatário requer que seu direito siga a coisa durante o período


da locação, embora o locatário ainda tenha apenas um direito
pessoal, porque um outro silogismo requer que a locação pros-
siga até seu termo. A influência da dialética sobre o raciocínio
jurídico não exclui, portanto, toda intervenção da lógica for-
mal. Isso implica certa natureza mista dos raciocínios jurídicos
que marca seu particularismo.

2. O particularismo dos raciocínios jurídicos

254. - É mister precisar aqui os principais argumentos que


estruturam a argumentação jurídica (A) antes de destacar a na-
tureza híbrida do raciocínio jurídico (B).

A. A argumentação jurídica

255. - Os argumentos que caracterizam a lógica jurídica


são numerosos, mas podemos tentar estabelecer uma lista sim-
plesmente indicativa deles. Costumam-se distinguir "argumen-
tos impositivos" e "argumentos de razão" que se mesclam nos
raciocínios jurídicos 48 .
Existem mormente argumentos impositivos deduzidos da
força obrigatória da lei, dos precedentes judiciários, dos pare-
ceres da doutrina ou da interpretação administrativa. O jurista
então é levado a qualificar as situações que lhe são submetidas
para aproximá-las ou distingui-las das noções e das categorias
conhecidas e submetê-las ou subtraí-las às regras que lhes são
aplicáveis. Nesse esforço de qualificação e de classificação,
ele deve essencialmente utilizar argumentos a pari, afortiori e
a contrario, utilizados igualmente para a interpretação dos tex-

48. "Arguments d'autorité et arguments de raisori en droit", Travaux du cen-


tre national de recherches de logique, sob a direção de G. HAARSCHER, L. ING-
BER e R. Van der ELST, ed. Nemesis, Bruxelas, 1 ?88. C. M. STAMATIS, op. cit.,
esp. pp. 152 s.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 369

tos e já estudados a esse respeito 49 . Os argumentos por analo-


gia, a fortiori e a contrario são provavelmente os mais empre-
gados, mas foram enumerados dentro desse espírito, funda-
mentado na hipótese de que a lei é coerente e racional, treze
tipos de argumentos 50 . O argumento psicológico se refere à ra-
zão da lei, à intenção do legislador discernida nos trabalhos
preparatórios; o argumento teleológico se apóia na meta perse-
guida pela lei tal como se discerne em seu próprio texto; o ar-
gumento histórico, oriundo de uma presunção de continuidade
do direito, raciocina com as contribuições do direito anterior; o
argumento "a completudine" conclui, da ausência de disposi-
ção própria de certas pessoas ou de certos comportamentos,
que estes obedecem a uma regra geral, pois, como se presume
que o direito é completo, ele deve comportar uma regra geral
concernente a todos os casos que não são regulados por dispo-
sições específicas. Assim também, o argumento "a coheren-
tia" parte da idéia de que um legislador racional não pode
regulamentar uma mesma situação de duas maneiras incompa-
tíveis e que, em caso de incompatibilidades de duas normas,
existe uma outra regra que permite descartar uma delas. O ar-
gumento sistemático, oriundo da idéia de que a ordem jurídica
é um sistema coerente, conduz a interpretar cada elemento dela
consoante o seu contexto. O argumento denominado "apagó-
gico" corresponde ao raciocínio pelo absurdo, consistente em
fazer que apareça a inexatidão de uma solução mediante as
conseqüências absurdas que dela resultariam. O argumento
denominado "econômico" consiste em excluir toda interpreta-
ção de uma disposição que a deixaria supérflua.
256. - Observamos que todos esses argumentos não depen-
dem da lógica formal, pois dizem respeito à natureza dos ra-
ciocínios, ao estabelecimento das premissas, ao fundo do direi-
to, e não simplesmente à forma; não conduzem a uma solução
necessária que se imporia de maneira obrigatória.

49. Ver supra, n? 232.


50. TARELLO (volume complementar, Congresso de Bruxelas, 1971), Die
juristische argumentation, 1972, pp. 103 ss.; Ch. PERELMAN, Logique juridi-
que, op. cit., n? 33.
370 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Com muita freqüência, um mesmo texto pode ser racio-


nalmente invocado em apoio de duas teses contrárias, seja por
analogia, seja a contrario. Se a lei diz somente que o roubo é
punido com aprisionamento, o argumento a pari conduz a pu-
nir também outras formas semelhantes de desvio, ao passo que
o argumento a contrario tende a excluir da repressão qualquer
outro ato não visado especialmente. Para resolver essa contra-
dição, recorrer-se-á ao espírito da lei ou ao argumento a com-
pletudine que deduz, da ausência de disposição especial, que
se deve aplicar uma disposição geral. Se isto não permite che-
gar a uma solução, o argumento a coherentia conduzirá a bus-
car a regra que conduz a excluir uma das proposições contradi-
tórias. O princípio de legalidade dos delitos e das penas e da
interpretação estrita das leis penais deveria ser suficiente... a
não ser que isso conduza a conseqüências absurdas...
Mas percebe-se também que argumentos tirados da lógica
formal permitem verificar a correção da argumentação ou pelo
menos de uma parte desta. A patologia do raciocínio aparece
quando este, mesmo correto, é empregado fora de propósito,
como no caso do esquizofrênico que raciocina com uma lógica
irrepreensível para justificar afirmações desarrazoadas. Mas
existem também raciocínios errados, independentemente do
uso que lhes é dado, porque não estão de acordo com as leis ló-
gicas. E o que se dá com o paralogismo, que é um raciocínio
errado feito de boa-fé, e com o sofisma, raciocínio errado a
despeito de sua aparente correção e que em geral supõe a má-
fé. A verificação da regularidade formal do silogismo ou da re-
lação transitiva permite muitas vezes pôr em evidência a con-
tradição ou a identificação de certos encadeamentos de propo-
sições. O pretenso devedor, processado para reembolso de um
empréstimo, não pode, sem ruptura do raciocínio, pretender ao
mesmo tempo que não tomou emprestado e que reembolsou
seu empréstimo, para sustentar que nada deve. A formalização
de seu raciocínio permite evidenciar a contradição de seus ar-
gumentos. Ora, o raciocínio jurídico o mais das vezes consiste
em deduzir uma conclusão da comparação de diversas propo-
sições. A comparação do fato com o direito é sua melhor ilus-
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 371

tração 51 . Portanto, ele segue constantemente a via do silogismo


e da relação transitiva.
Por conseguinte, a dialética e a lógica formal convergem
nos raciocínios jurídicos, e essa convergência traduz a nature-
za mista deles.

ü. A natureza mista dos raciocínios jurídicos

257. - Investigando os fatores de criação do direito, Gény


distinguia "o dado", contexto elástico formado de algumas di-
reções gerais, oriundas das realidades ou dos princípios essen-
ciais à ordem jurídica do mundo, e "o construído", composto
dos procedimentos de aplicação, de combinação, de adapta-
ção... que permitem pôr em prática o direito.
Toda operação jurídica é dominada por operações intelec-
tuais e por uma metodologia baseadas nos princípios gerais da
lógica com certas flexibilizações ligadas às particularidades da
matéria. O dado, por demais abstrato em comparação com as
realidades concretas, necessita ser efetuado por uma técnica
em geral artificial e quase mecânica que consiste em meios
adaptados ao objetivo próprio do direito e necessários para
permitir-lhe atingir seu objetivo. Esses princípios gerais da ló-
gica prevalecem sobretudo nas "partes descritivas e demons-
trativas" do direito 52 . Essa metodologia, diz Gény 53 , pressupõe
a observação das realidades para discernir os problemas e pre-
parar a solução deles. Ela implica também postulados para ser-
vir de base às inferências e "uma predominância da dedução, a
única apta para fecundar os princípios e para dar-lhes pleno va-
lor". Enfim, ela comporta, mais raramente porém e para con-
trolar os resultados dos raciocínios lógicos, uma experimenta-
ção e hipóteses conceptuais, até mesmo teorias, para dar aos
princípios uma firmeza que lhes aumenta o alcance dedutivo.

51. Ver infra, n?s 267 ss.


52. F. GÉNY, op. cit., notadamente t. IV, n?s 301 ss.
53. F. GÉNY, op. cit., t. i, nos 35-67.
372 TEORIA GERAL DO DIREI K >

A metodologia jurídica corresponde, em suma, a "um pro-


cesso extremamente complexo e variado, totalmente penetrado
de casuística e de dialética, mescla constante de análise e de
síntese, em que os procedimentos a posteriori, que fornecem
as soluções adequadas, supõem direções a priori, propostas
pela razão e pela vontade" 54 . Mas vimos que as técnicas de ar-
gumentação fornecem todo um arsenal de razões que, de um
mesmo ponto inicial, conduzem a conclusões diferentes, até mes-
mo opostas, e que devem ser examinadas todas, pois o método
dialético impõe não adotar princípio algum sem aceitar no
mesmo momento o princípio contrário. E nesse método dialé-
tico e no interior do campo reconhecido a cada princípio que
deve aparecer a lógica formal.
258. - Assim, os raciocínios jurídicos repousam no cotejo
de diversos silogismos estabelecidos de modo paralelo e em ca-
deia. Primeiro, trata-se, de acordo com princípios gerais prees-
tabelecidos pelas autoridades sociais (a lei, por exemplo) ou
oriundos da observação da ordem social e jurídica ou com pos-
tulados ideológicos, de discernir as diversas premissas admis-
síveis. Depois, cumpre, com cada uma das premissas escolhi-
das, aproximar, por silogismos ou relações transitivas sucessi-
vas, as conseqüências suscetíveis de se deduzir delas a fim de
poder confrontá-las e, graças aos diferentes métodos de argu-
mentação que foram apresentados, escolher as que serão apli-
cadas e o respectivo alcance delas.
Os raciocínios jurídicos combinam, portanto, a dialética
e a lógica formal. Neles a lógica formal è apenas um instru-
mento a serviço da dialética, nutrida pela argumentação. Mas
ela proporciona ao raciocínio a precisão, o rigor, a certeza e a
objetividade necessárias. Entretanto, ela não deve imprimir-
lhe um dogmatismo hermético ás realidades que se afastaria
do objeto do direito, da vida dos homens em sociedade e da
edição de regras de conduta. Portanto, ela depende de esco-
lhas racionais e deve sempre ser orientada ou corrigida con-

54. F. GÉNY, op. cit.,X. l,n° 67.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 373

soante critérios racionais ou empíricos. As soluções instiladas


pelos raciocínios jurídicos dependem, por conseguinte, da es-
colha das proposições empregadas.

SEÇÃO II
A escolha das proposições

259. - A estrutura dos raciocínios jurídicos assim evi-


denciada parece universal e permanente. O que muda, con-
forme os sistemas de direito, é somente a natureza ou o con-
teúdo das proposições escolhidas nas diferentes etapas de
raciocínios intrinsecamente análogos. Ora, sabe-se que os ra-
ciocínios jurídicos dependem primeiro de uma escolha entre
proposições filosóficas (§ 1) que constituem suas premissas
fundamentais e, somente depois, a fim de permitir-lhes a apli-
cação, de proposições técnicas (§ 2). É o cotejo dessas propo-
sições filosóficas e técnicas com os fatos que leva à solução
concreta.

1. As proposições filosóficas

260. - Todo sistema de direito repousa numa escolha fun-


damental entre os raros princípios suscetíveis de dominar um
sistema jurídico e de lhe definir a inspiração e o objetivo (A).
Se é possível ocorrer que, em determinada sociedade e em dado
momento, um desses princípios pareça plenamente realizado
num contexto particular, observa-se que, na realidade, nenhum
jamais é exclusiva e absolutamente consagrado. Há, quando
muito, dominantes. A proclamação de uma proposição sempre
é temperada por uma outra. Isso ilustra ainda o papel da dialé-
tica e o constante dualismo entre "o dado" e "o construído".
('umpre então analisar essas opções fundamentais e proceder a
uma espécie de dissociação das noções (B).
374 TEORIA GERAL DO DIREI K >

A. As proposições fundamentais

261. - Se observamos as grandes opções filosóficas, polí-


ticas e econômicas que, em todos os tempos e sob formas di-
versas, inspiraram as sociedades humanas, constatamos que, a
despeito da diversidade delas e das variações ligadas a seus
graus de desenvolvimento, os sistemas encontrados se reduzem
esquematicamente a um número muito pequeno de modelos.
As classificações comportam necessariamente um tanto de ar-
bitrariedade e variam segundo seus autores.
Concorda-se às vezes em distinguir três princípios, respec-
tivamente qualificados de conservador, de liberal e de socialista55.
Roubier, em sua "teoria geral do direito", classificava as dou-
trinas e os valores sociais segundo uma trilogia baseada na se-
gurança, na justiça e no progresso social 56 . Ater-nos-emos aqui
a essas duas distinções, das quais uma concernente à inspira-
ção dos sistemas jurídicos e a outra ao objetivo deles.
262. - "O princípio conservador é o que presume a supe-
rioridade do que existe, das tradições e costumes aceitos, das
regras e instituições reconhecidas, daí a importância que se atri-
bui aos precedentes na vida social e no direito."57 "A vida so-
cial", dizia Bergson, "parece-nos ser um sistema de hábitos", e
qualquer inovação parece suspeita. Costumou-se dizer que o
jurista é um conservador. Não obstante, mostrou-se que o di-
reito evolui com a conjunção que se estabelece entre as forças
conservadoras que querem mantê-lo tal como é e as forças re-
formadoras que tendem a modificá-lo ou transformá-lo 58 . O
equilíbrio que se opera entre elas, se bem que diferente confor-
me os períodos e as sociedades em questão, impede a um só
tempo o imobilismo e a subversão total do direito e o mais das
vezes possibilita sua evolução sem revolução 59 .

55. Ch. PERELMAN, op. cit., n? 63 e os autores citados, notadamente P.


DAY.
56. P. ROUBIER, op. cie., n° 37; B. TABBAH, art. cit.
57. Ch. PERELMAN, op. cit.
58. G. RIPERT, Les forces créatrices du droit, L.G.D.J., 1955, n? 31.
59. M. VIRALLY, op. cit., pp. 188 ss.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 375

O princípio liberal afirma que é preferível deixar os ho-


mens livres em suas decisões a constrangê-los. Já não é a segu-
rança que conta: é a liberdade expressamente consagrada ou
presumida que domina o sistema. Juridicamente, isto significa
que tudo o que não é proibido é permitido e que qualquer limita-
ção da liberdade é de interpretação estrita e deve ser justificada.
Enfim, o princípio socialista postula um sistema social
destinado a fazer o bem geral prevalecer sobre os interesses
particulares por meio de uma organização combinada. Funda-
menta-se na idéia de que "a igualdade não exige razão e que
apenas a desigualdade deve fornecê-la". Em geral sustentado
por meios autoritários, ele se opõe ao liberalismo.
Todos esses princípios fundamentais são aparentemente
evidentes e parecem dever impor-se. Mas são contraditórios, e
nenhum deles pode ser completamente consagrado sem excluir
os outros. Todo sistema de direito deve, por conseguinte, esco-
lher entre eles ou combiná-los. Não é muito concebível que um
deles possa realizar-se duradouramente de maneira completa,
excluindo os outros, sem provocar uma revolta dos fatos contra
o direito. Há em toda ordem jurídica uma constante coexistên-
cia desses princípios contraditórios cuja dosagem faz a origi-
nalidade de uma sociedade e que só expressa finalmente um
momento de equilíbrio dialético no qual se desenvolvem todo
pensamento e toda construção jurídica.
263. - Todo sistema de direito é igualmente dominado pe-
los objetivos que lhe são atribuídos. Os diversos valores funda-
mentais que o direito pode pretender, em vez de se excluírem,
geralmente se combinam no seio de uma mesma ordem jurídi-
ca, ao sabor das forças contrárias cujo equilíbrio se transforma
sem cessar. Mas o direito positivo de dado país, em dado mo-
mento, traduz as tendências dominantes da constante dialética
entre segurança, justiça e progresso social.
A segurança60 é vinculada à própria idéia de direito: espe-
ra-se do direito que ele garanta a segurança, de modo que se pos-

60. R. DEMOGUE, Les notions fondamentales du droit privé - Essai criti-


que, ed. A. Rousseau, Paris, 1911, pp. 63 s.
376 TEORIA GERAL DO DIREI K >

sa prever a solução das situações jurídicas e contar com ela,


graças a meios de coerção que garantam a realização dos direi-
tos. Por conseguinte, a segurança jurídica é vinculada à impor-
tância das fontes formais do direito, sobretudo da lei, que per-
mitem conhecer com certeza a regra aplicável, e àquela das
formas destinadas a fixar as situações jurídicas ou informar o
público das suas modificações. A segurança é então ligada ao
formalismo. Surgida nas sociedades primitivas, essa tendên-
cia formalista leva a fundamentar a regra de direito na "vonta-
de do príncipe". Está na base do ensinamento dos sofistas gre-
gos; encontra-se em Roma e continua a inspirar o pensamento
hegeliano, que liga o direito ao Estado, e a escola normativista
de Kelsen 61 .
Mas o direito não pode contentar-se em ser um sistema
formal. Precisa de um fundamento mais profundo, de modo
que para além do jurídico apareça o que é justo, ou seja, "o que é
conforme a uma ordem superior dos interesses humanos" 62 . O
direito deve então conformar-se a um ideal de justiça.
Essa doutrina foi sustentada pelas escolas idealistas que
afirmam a existência de uma justiça ideal, superior ao direito
positivo e à qual o homem deve tender e pode recorrer: o direi-
to natural. Cícero escrevia: "Existe uma lei verdadeira, razão
reta conforme à natureza, presente em todos, imutável, eterna;
por seus mandamentos chama o homem ao bem e por suas
proibições desvia-o do mal... Não é permitido invalidá-la por
meio de outras leis, nem derrogar um só de seus preceitos; é
impossível ab-rogá-la por inteiro..."63 Esta filosofia é também
a dos teólogos do cristianismo, especialmente de Santo Tomás
de Aquino, e, nos séculos XVII e XVIII, da escola do direito
da natureza e das gentes. Conhece no século XX um renasci-
mento inconteste. A idéia segundo a qual a justiça seria o prin-
cipal valor se traduz tecnicamente por um importante poder de

61. P. ROUBIER, op. cit., n?s 11 e 37.


62. P. ROUBIER, ibidenr, ver supra, nos 15 ss.
63. Cícero, De Republica, 1. III, XXII, 33, citado por Cb. PERELMAN, op.
cit., n? 10; ver supra, n? 16ss.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 377

apreciação do juiz, poder de eqüidade e de ordem moral, e pela


importância dos princípios gerais do direito.
As escolas denominadas "realistas" sustentam, por sua
vez, que o direito deve ser orientado para o desenvolvimento e
o progresso da sociedade. Elas não se prendem a uma ordem
legal, como no sistema formalista, nem a uma ordem moral,
como no sistema idealista, mas a uma ordem social. A autori-
dade do direito vem então das necessidades sociais, e sua fina-
lidade é o progresso social, o da sociedade. Tecnicamente, pre-
ferem a regra consuetudinária à lei e à codificação, que apre-
sentam o risco de imobilizar a evolução social; transpõem para
o plano jurídico as ideologias políticas e sociais do momento,
consagram os usos, as necessidades do comércio e regulamen-
tam em complexas regras jurídicas "as instituições concretas",
dentro da idéia permanente de manter a correspondência entre
as instituições e a realidade 64 . Essas doutrinas recentes têm ori-
gem na escola histórica alemã de Savigny, na escola utilitarista
de Bentham e na escola positivista de Auguste Comte.
A confrontação e a combinação dos princípios diretores
dos sistemas jurídicos e de suas finalidades essenciais são in-
dispensáveis para evidenciar o sentido geral de um sistema
jurídico ou de uma instituição e para inspirar as escolhas polí-
ticas e filosóficas comportadas por sua elaboração ou por sua
aplicação. Não bastam, porém, para sua aplicação, que supõe
traduzir suas respectivas influências por uma técnica de disso-
ciação das noções.

B. A dissociação das noções

264. - Partindo da contraposição da realidade à aparência,


1'erelman mostrou a propagação de distinções estabelecidas
pelos filósofos e que traduzem pela linguagem "pares filosófi-

64. P. ROUBIER. ibidem. Ver, por exemplo, J.-C. MERLE, Justice et pro-
grès - Contribution à une doctrine du droit économique et social, ed. P.U.F., col.
Droit, éthique, société, 1977 (a propósito da questão do direito de propriedade).
378 TEORIA GERAL DO DIREI K >

cos", segundo uma técnica de dissociação das idéias e das no-


ções 65 . Retomando então as distinções operadas por Aristóte-
les, Platão e Spinoza, Perelman cita certo número dessas opo-
sições. Muitas delas traduzem os aspectos diferentes de uma
mesma noção ou de um mesmo princípio jurídico. Ora, sabe-
mos que a confrontação de princípios, de finalidades, até mes-
mo de conceitos e de regras antinômicas, leva geralmente a
combiná-los e implica concretamente reconhecer a cada uma
das proposições contraditórias mas complementares um cam-
po de aplicação próprio 66 . A resultante dessa confrontação re-
presenta, conforme as matérias, conforme as épocas e confor-
me as ordens jurídicas, todos os pontos de equilíbrios e todas
as pequenas variações concebíveis, podendo ir da evicção pura
e simples de uma das proposições à sua nítida predominância,
à sua modificação ou a toda dosagem imaginável. Mas a distri-
buição da respectiva influência das proposições em conflito no
seio de um sistema jurídico, de uma instituição, de um estatu-
to, de uma operação etc. se expressa o mais das vezes confor-
me as distinções às quais as técnicas modernas da informática
com movimento binário proporcionam uma riqueza, uma utili-
dade e uma justificação novas. Daremos desses "pares", desses
binômios, a título indicativo, apenas alguns exemplos particu-
larmente significativos do pensamento jurídico: imobilidade/
movimento, subjetivo/objetivo, relativo/absoluto, abstrato/con-
creto, linguagem/pensamento, letra/espírito, essência/substân-
cia, particular/geral, individual/coletivo, aparência/realidade,
parte/todo, forma/fundo, ato/pessoa, poder/dever, duração/per-
petuidade, coerção/liberdade, interno/externo, teórico/prático,
direito/obrigação, pessoas/bens etc.
Assim, no conflito entre a segurança do casamento e a
liberdade individual dos cônjuges, o direito contemporâneo
francês liberaliza as condições do divórcio mas lhe regula-
menta o procedimento. E a dialética entre conservadorismo
e liberalismo que consagra o liberalismo sobre o fundo, mas

65. Ch. PERELMAN, op. cit., n° 69.


66. E. BERTRAND, op. cit., p. 153.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 379

ainda manifesta um certo conservadorismo garantido pela


forma.
Esse procedimento serve de transição entre a filosofia do
direito e sua aplicação, entre as premissas fundamentais e as
premissas técnicas.

2. As proposições técnicas

265. - O mesmo processo de dissociação prossegue quan-


do se progride para a aplicação técnica do direito para condu-
zir o raciocínio do jurista e determinar as articulações de seu
pensamento. Distinguimos então a validade e a oponibilidade,
o direito substancial e o direito processual, as relações entre as
partes e as relações com os terceiros... Recorremos igualmente
ao método das classificações e às categorias jurídicas 67 . Mas é
preciso, para descobrir a solução efetiva de um problema con-
creto, vincular seus elementos constitutivos aos conceitos pre-
cedentemente discernidos que constituem a fôrma, os elemen-
tos pré-fabricados, do método de aplicação do direito.
A vinculação a esses conceitos, a essas distinções, a essas
categorias etc. domina a fase final do raciocínio, pois ela jun-
ta-lhe conseqüências lógicas e necessárias que, à parte últimas
escolhas e últimos corretivos, marcam o lugar da lógica formal
no raciocínio jurídico: o divórcio litigioso acarretará uma res-
ponsabilidade do cônjuge culpado; o divórcio consensual terá
os efeitos de uma convenção. Mas, consagrados por uma sen-
tença, ambos serão acompanhados dos efeitos de uma decisão
judicial. Afetando as pessoas e os bens, terão simultaneamente
efeitos pessoais e efeitos materiais...
Por conseguinte, as proposições técnicas resultam mais de
procedimentos de ligação que de procedimentos de dissocia-
ção. Essas "técnicas de ligação" foram estudadas pela escola de
Ch. Perelman 68 . Elas consistem em argumentos quase lógicos

67. Ver supra, n?s 195 ss


68. Ch. PERELMAN e L. OLBRECHTS-TYTECA, op. cit., pp. 251-74;
Ch. PERELMAN, op. cit., p. 126.
380 TEORIA GERAL DO DIREI K >

que recorrem a uma definição ou a uma análise e se apoiam


numa identidade ou numa incompatibilidade. Deduzem-se de
relações de causa e efeito ou da evicção, segundo uma hierar-
quia das normas ou dos valores, da proposição mais fraca pela
mais forte. Inspiram-se na apreciação pragmática das conse-
qüências possíveis de uma solução. São acompanhadas de uma
avaliação da intenção do agente ou da normalidade de seu com-
portamento. Nutrem-se da argumentação por exemplos, por
analogias, devendo a escolha entre os exemplos e as analogias
possíveis ser justificada pelas mais diversas considerações, mas
implicando que, aceitando uma analogia, aceitam-se as conse-
qüências dela.
266. - Assim, depois de tentar definir a estrutura dos racio-
cínios jurídicos e de constatar sua diversidade, sua complexi-
dade e seu ecletismo, vemos que se tratava de uma lógica da
argumentação que se alimenta nos recursos da lógica formal e
utiliza alternadamente a indução e a dedução.
Essa estrutura global de raciocínio parece permanente e
universal. Pode acolher todas as espécies de proposições funda-
mentais ou técnicas. A escolha dos elementos empregados é que
muda conforme os sistemas de direito. Inspirados, conforme os
casos, em princípios conservadores, liberais ou socialistas, orien-
tados para a segurança, a justiça ou o progresso social, eles mo-
dulam, cada um à sua maneira, essas diversas aspirações: utili-
zam também instrumentos diferentes, notadamente fontes di-
ferentes, fundamentando-se uns na autoridade da lei, os outros
sobretudo nos precedentes judiciários e no costume...
Toda tentativa de abordagem global dos raciocínios jurídi-
cos é presunçosa e aleatória. Esta não tem a ambição de esca-
par à crítica e pode, por certo, ter suas falhas. Ela visa somen-
te destacar os fenômenos mais marcantes do pensamento jurí-
dico e dar-lhes uma apresentação coerente.
A A PUC A ÇÃO DO DIREITO 3 81

ILUSTRAÇÃO

ESQUEAAA SIMPLIFICADO DE UM RACIOCÍNIO

A. Exemplo: o direito atual do divórcio na França

| PROPOSIÇÕES FUNDAMENTAIS |

princípio conservador princípio liberal princípio socialista


(estabilidade do (liberdade do divórcio)
casamento) !

(possibilidade de divorciar em certas condições)

FINALIDADES ESSENCIAIS

segurança justiça progresso social


(formalismo do divórcio) (conformidade entre o
direito e a realidade socialista)

(respeito dos direjtos dos cônjuges)

(admissão do divórcio em vários casos,


principalmente por consenso, mas
com o controle do juiz e por decisão judicial)

DISSOCIAÇÃO DAS NOÇÕES E DOS PRINCÍPIOS

Forma Fundo
condições —H—— efeitos
liberdade —H— controle
(limples declaração) (processo judiciário) subjetiva -th objetiva pessoas - - bens
(não) (sim) (acordo) (causa o b j e t i v a ) v —

PROPOSIÇÕES TÉCNICAS
..-•- x
uto unilateral - / / - convenção convenção — / / — julgamento
convei
e julgamento

> >
processo gracioso - contencioso
' I
certos efeitos efeitos das decisões
convencionais judiciais
382 TEORIA GERAL DO DIREI K >

B. Questão: uma lei poderá retroativamente instituir uma


sanção disciplinar?

PROPOSIÇÕES FUNDAMENTAIS

princípio conservador princípio liberal princípio socialista


(estabilidade da lei antiga) (aplicação da lei nova suposta
conforme ao interesse geral)

não-retroatividade da lei,
salvo se é de ordem pública,
mas não-retroatividade absoluta de sanções
não previstas por ocasião do ato reprimido

FINALIDADES ESSENCIAIS

segurança justiça progresso social


(não-retroatividade não-aplicação de sanções (aplicação da
da lei) - não previstas por ocasião dos fatos lei nova)

aplicação imediata mas não retroativa

DISSOCIAÇÃO DAS NOÇÕES E DOS PRINCÍPIOS

Lei civil - lei penal:


Art. 2 do Cód. Civil: "A lei dispõe apenas para o futuro, ela não
tem efeito retroativo."
Mas a não-retroatividade da lei penal tem valor constitucional.

PROPOSIÇÕES TÉCNICAS
Hierarquia dos textos e classificação dos textos.

CONSEQÜÊNCIAS
Em matéria civil: uma lei ordinária pode derrogar o art. 2 do
Cód. Civil que também é uma lei ordinária.
Em matéria penal: uma lei ordinária não pode derrogar um
texto de valor constitucional.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 383

BUSCA DA SOLUÇÃO

—» A instituição de uma sanção disciplinar dependerá da maté-


ria civil ou da matéria penal? Problema de classificação vincu-
lado à lógica da argumentação:
1 0 raciocínio: por analogia, cumpriria admitir que, como as
sanções penais, as sanções disciplinares não
podem ser instituídas retroativamente.
2" raciocínio: a contrario, as sanções disciplinares, por não
dependerem da lei penal, podem ser instituídas
retroativamente por uma lei.
3? raciocínio: a fortiori, o princípio de legalidade dos delitos
e das penas não se aplica às infrações discipli-
nares. A fortiori, o princípio de não-retroativi-
dade da lei não deve ser aplicado a elas (?).
4" raciocínio: argumento prático: na França, o juiz não tem o
controle da constitucionalidade das leis e deve
aplicá-las ainda que não sejam conformes à
Constituição.
Portanto, se uma lei que institui retroativamente uma sanção
disciplinar interveio sem ter sido sancionada pelo Conselho
Constitucional, a instância disciplinar tem de aplicá-la.
(Apreciaremos a natureza e o valor retroativo das diferentes
etapas do raciocínio.)

DEDUÇÃO - INDUÇÃO

Lógica Lógica método


matemática experimental
(síntese ou (análise ou indução)
dedução) menor-
premissas
maior- princípios
princípios A
conclu-
T são conseqüências
conseqüências (observação)
384 TEORIA GERAL DO DIREI K >

LÓGICA FORMAL
Esses esquemas de raciocínio sempre são formalmente
exatos, mesmo que uma das proposições seja falsa (mas a solu-
ção então será, no fundo, inexata).
A substituição de signos por elementos permite uma utili-
zação infinita desses raciocínios cuja fecundidade é ilimitada.

SILOGISMO
Exemplo de um silogismo formalmente exato mas com
uma proposição errada: a conclusão é, pois, errada:
Suponhamos que A = 4, B = 3 x 2 , C = 4

se todo A é B: A = B A = B - > 4 = 3 x 2 (errado)


e se CéA : C=A c =A 4 = 4 (certo)
então Cé B : C=B C = B H > 4 = 3 X 2 (errado)

RELAÇÃO TRANSITIVA
se P->Q tomei emprestado 1000F(P) —> devo 1000
F(Q)
e se Q R devo 1000 F (Q) tenho de pagá-los (R)
então P —» R tomei emprestado 1000 F (P) —» devo pa-
gá-los (R)

Argumentação do réu processado para reembolso que


pretende não ter tomado empréstimo:

• Raciocínio exato
Não tomei emprestado (P) —> não tenho de reembolsar (Q)
Não tenho de reembolsar (Q) —> não devo nada (R)
Não tomei emprestado (P) não devo nada (R)

• Contradição
Não tomei emprestado (P) —> não tenho de reembolsar (Q)
Reembolsei (Q) —> não devo nada (R)
Não tomei emprestado (P) —» não devo nada (R)
Capítulo 3
O fato e o direito

267. - O caráter normativo da regra de direito a distingue


dos fatos, ou seja, dos acontecimentos, das circunstâncias ma-
teriais particulares invocadas pelas partes para apoiar suas pre-
tensões jurídicas. Mas, mesmo opondo o direito e o fato, não
se pode ignorar o que os liga. Há entre eles uma relação dupla 1 .
De um lado, há uma "relação de criação": o direito nasce, ao
menos em parte, dos fatos: segundo o brocardo bem conheci-
d o , ^ ex facto oritur. Mas as relações entre direito e fatos so-
ciais já não têm de ser estudadas aqui 2 . Do outro lado, há entre
eles uma relação de aplicação: o direito se realiza nos fatos. A
missão dos juristas, mormente a do juiz, é aplicar aos fatos as
regras de direito que os regem.
Portanto, deve-se investigar como se pode passar de uma
determinada situação de fato para a regra de direito ou, vice-
versa, da regra de direito para situações de fato que lhe são
submetidas. Há aí um constante vaivém do direito aos fatos,
lendo os fatos vocação de ser regidos pelo direito e sendo o di-
reito destinado a reger os fatos. Isso explica que o direito e o
fato sejam isolados um do outro em numerosos mecanismos
jurídicos, como a prova o princípio dispositivo, o controle de

1. M. VIRALLY, La pensée juridique, ed. L.G.D.J., 1960, pp. II ss.; ver


lambem G. MARTY, "La distinction du fait et du droit", tese, Toulouse, 1929.
2. Ver supra, n™ 148 ss.
388 TEORIA GERAL DO DIREI K >

cassação etc. e que sejam mesmo assim constantemente con-


fundidos, na realidade, quando se trata de apreender situações
concretas no sistema jurídico.
Na via traçada pelos juristas da Antigüidade e da Idade
Média, o raciocínio juridico, ao menos o raciocínio judiciário,
continua fundamentado no silogismo. Costumou-se apresen-
tar3 o silogismo como o suporte mais geral de qualquer aplica-
ção do direito. Ainda que essa análise seja insuficiente, é ver-
dade que a sentença forma um silogismo. A maior é a regra de
direito. A menor consiste no caso individual dado. A conclu-
são, oriunda da comparação da maior com a menor, constitui a
sentença pela qual se aceita ou se rejeita a aplicação, no caso
considerado, do efeito jurídico implicado pela maior 4 .
A determinação das regras de direito aplicáveis aos fatos
considerados pressupõe sobretudo que esses fatos estejam esta-
belecidos e qualificados para poder ser apreendidos pelo siste-
ma jurídico (Seção I). Seus efeitos jurídicos expressam a reação
do direito positivo à situação que eles representam (Seção II).

SEÇÃO I
A apreensão do fato pelo direito

268. - No raciocínio jurídico, a dificuldade essencial resi-


de na determinação das premissas. Feito isso, deduz-se delas a
conclusão de maneira essencialmente lógica. A passagem do
fato ao direito opera-se então segundo um mecanismo aparen-
temente muito simples: a lei leva em consideração um fato, um
leque de circunstâncias no qual é colocado o homem, para daí
tirar as conseqüências de direito. O fato primeiro é um ato hu-

3. H. MOTULSKY. Príncipes d une réalisatien méthodique du droit prive,


tese Lyon, 1948, reed. Dalloz, 1991.
4. G. G. MITSOPOULOS, "Considératiotis sur la distinction du fait et du
droit", in Sludi in onore di An/imio Segni. Milão, 19Í7, pp. 405 ss.; ver também J.
GHESTIN e G. GOUBEAUX. Traité de droit civil. Jntreduction générale, rí" 46 ss.
Ver infra "ilustração".
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 389

mano ao qual se prendem, por um vínculo de causalidade, efei-


tos de direito que, conforme os casos, foram deliberadamente
buscados ou, ao contrário, não foram desejados. Assim, a lei
prevê que quem tiver voluntariamente matado alguém será pu-
nido com a reclusão criminal: se é estabelecido o homicídio,
seu autor é passível dessa pena. Assim como para a aplicação
de uma lei física, a realização de um efeito de direito supõe em
geral a reunião de numerosas e complexas condições. Mas, con-
trariamente ao que se passa com os fenômenos físicos, o efeito
Jurídico que se prende a essas condições não é automático: o
vínculo de causalidade entre o fato e o direito opera-se "apenas
110 plano das representações intelectuais".
Encontramos aqui a diferença fundamental entre lei cien-
tífica e regra de direito. Na vida jurídica, o efeito não segue
inevitavelmente a causa: o homicida nem sempre é descoberto,
preso e condenado, conquanto seja passível de uma pena. Ade-
mais, o fato não produz por si só efeitos de direito. É mister,
para que os produza, que exista uma regra jurídica que aplique
a tais fatos tais efeitos e constitua a maior do silogismo; é mis-
ter também que uma autoridade determine a regra aplicável a
esses fatos e tire as conseqüências dele5.
Por conseguinte, o estabelecimento das premissas levanta
duas espécies de dificuldades: para determinar a menor, a si-
tuação de fato tem de ser estabelecida (§ 1). Para detectar a
maior, deve-se identificar essa situação a noções, regras e ins-
tituições jurídicas, ou seja, conceituá-la (§2).

I. O estabelecimento dos fatos

269. - A primeira vista, a prova parece ser um mecanismo


lógico que permite verificar a realidade de um fato ou de uma
iilcgação. Essa concepção da prova, embora seja exata, é não
obstante incompleta, pois despreza o contexto e o objetivo da

5. M. VIRALLY, bc. cit.


390 TEORIA GERAL DO DIREI K >

prova judiciária que a diferenciam da prova científica. Em di-


reito, a investigação da verdade é por vezes ocultada por impe-
rativos de segurança jurídica. Em matéria judiciária, o objetivo
da prova é mais o de convencer o juiz do que o de estabelecer a
verdade objetiva. É investigada na paixão do processo e não na
serenidade de um laboratório. É administrada dentro dos limi-
tes de um prazo razoável necessário à intervenção de uma
decisão e deve ser considerada suficiente ou insuficiente, já
que o juiz não pode, sob pena de denegação de justiça, abster-
se de julgar. Ela não é, como a prova científica, obra de um
mesmo pesquisador que a faz e a recebe; resulta do concurso
de várias pessoas, o juiz e as partes 6 . Assim, propuseram uma
análise "crítica" do direito da prova, fundamentada no efeito
das técnicas jurídicas da prova e não nas finalidades do direito
da prova, e que se concentra mais na legitimidade dos meca-
nismos de prova do que na investigação da verdade objetiva. A
exigência de provas pré-constituídas e a determinação do ônus
da prova podem assim contribuir para legitimar as decisões
judiciais, ainda que a verdade judiciária muitas vezes só possa
ser uma verdade relativa. Isso traduz pelo menos a coerência
do sistema jurídico 7 .
Tendo como objetivo essencial a criação de uma convic-
ção no juiz, a prova judiciária foi por muito tempo, pelo menos
em matéria penal, uma "prova mística". Nas sociedades primi-
tivas, a prova é um apelo aos poderes sobrenaturais para lhes
pedir que designem o culpado; consiste em ordálios, ou seja, em
provas impostas aos suspeitos para conhecer a verdade e consi-
deradas "o julgamento de Deus": aquele que triunfa nesses tes-
tes prova, assim, que Deus o designou como quem diz a verda-
de ou defende a causa justa. Praticados no Ocidente até o Con-
cilio de Latrão (1215), os ordálios o são ainda em certas socie-
dades primitivas. O juramento inspira-se no mesmo espírito.

6. H. LÉVY-BRUHL,/lí/iecíí sociologiques chi droit, ed. M. Rivière etCie,


1955, pp. 113 ss.
7. X. LAGARDE, Ré/lexion critique sur le droit de la preme, ed. L.G.D.J.,
Bibliothèque de droit privé, t. 239, 1994, prefácio J. GHESTIN.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 391

Nas sociedades evoluídas, alguns sistemas de provas ra-


cionais se substituíram progressivamente ao sistema de provas
místicas. A abolição da tortura e a rejeição do papel primordial
da confissão em direito penal marcaram essa progressão.
Os progressos científicos e o recurso a técnicas de labora-
tório mostraram, tanto em matéria penal quando na área civil,
a fragilidade dos depoimentos, o valor dos indícios, a qualidade
de novos modos de prova que já não visam somente convencer
o juiz, mas também estabelecer a realidade objetiva. Duas con-
cepções de prova continuam, porém, possíveis, conforme nos
atemos à convicção do juiz baseada no conjunto das informa-
ções que lhe puderam ser dadas ou exigimos verdadeiras provas
materiais, diretas e objetivas, segundo modos pré-constituídos.
Mas, de qualquer maneira, o problema da prova é fundamental,
em geral isento de toda contestação e, mais ainda, em caso de
litígio. Em toda matéria, não basta ter razão, ser titular de um
direito ou achar-se em certa situação jurídica; é preciso pro-
vá-lo; na falta de provas, tudo se passa como se o direito ou a
situação invocada não existisse ou como se a pessoa estivesse
errada.
O direito e a prova são noções distintas cuja independên-
cia se firma ainda mais quando a liberdade de prova se restrin-
ge e a prova é difícil de fazer. Portanto, pode-se pensar que,
quanto mais maleável é o direito da prova, mais a prova permi-
tirá aproximar-se da verdade. Há, porém, que pensar que a li-
berdade favorece excessos, atrasos e falsas provas: falsos teste-
munhos, falsificação de documentos, contrafação de procedi-
mentos de registros etc. Portanto, não há lei geral. Cumpre,
conforme os particularismos das matérias, modular o direito
«Ias provas e levar em conta notadamente a aptidão ou a resis-
tência dos fatos à prova, conforme a natureza deles. Certos fa-
tos se furtam à prova, à míngua de meios de investigação sufi-
e ientemente seguros. Outros lhe escapam porque ocorrem sem
testemunhas, não deixam vestígios, são cobertos pelo sigilo
profissional de uma testemunha, não se prestam bem a uma es-
timativa, colidem com a consciência individual... Quando a
392 TEORIA GERAL DO DIREI K >

prova é impossível ou difícil demais, o direito renuncia à prova


ou recorre a presunções (B) cuja utilidade depende do objeto
da prova (A).

A. O objeto da prova

270. - O problema do objeto da prova é clássico. A prova


que cabe às partes versa somente sobre os elementos de fato.
"As partes não têm de provar a existência ou o alcance das
regras jurídicas aplicáveis a esses elementos": supõe-se que o
juiz conhece o direito8 e, se as partes invocam certas regras, é
apenas para sugerir a aplicação delas, e não para provar-lhes a
existência. Segundo o antigo brocardo latino bem conhecido,
Da mihi factum, dabo tibi jus. Incumbe às partes estabelecer
na justiça os fatos necessários ao sucesso de suas pretensões 9 , e
o juiz não pode, em princípio, fundamentar sua decisão nos
fatos que não estão no debate 10 , ao menos nos sistemas acusa-
tórios. Mas é o juiz que diz o direito". Ele dispõe, a esse res-
peito, de largos poderes de iniciativa e de qualificação.
Com efeito, as pretensões das partes se fundamentam em
dois tipos de elementos. Os elementos de fato, "o edifício do
direito", dependem das partes, com uma participação menos
ou mais ativa do juiz, segundo os sistemas. Eles são constituí-
dos pelos fatos e atos jurídicos que servem de base a uma pre-
tensão, e deles depende o desfecho do processo. Os elementos
de direito são as regras jurídicas suscetíveis de ser aplicadas a
esses fatos. A distinção entre o fato e o direito fica, porém.

8. A. WEILL e F. TERRÉ, Introduction générale au droit, nos 3 I ss.; vei


também J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n c s 5 7 0 ss.
9. Ver, p. ex., em processo civil francês, NCPC, art. 9; ver também NCPC.
art. 6: "Para sustentar suas pretensões, as partes têm o ônus de alegar os fatos pró-
prios para fundamentá-las."
10. Ver NCPC,art. 7.
11. NCPC, art. 12: "O juiz dirime a lide conforme as regras de direito que lhe
são aplicáveis. Ele deve dar ou restituir a exata, qualificação delas aos fatos e a.tos
litigiosos sem se deter na denominação que as partes Lh.cs teriam proposto..."
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 393

abalada quando se trata de aplicar leis estrangeiras, regras con-


suetudinárias ou usos. A presunção de conhecimento do direi-
to pelo juiz francês deixa então de intervir, e o juiz não tem de
investigar o conteúdo da regra de direito estrangeira, nem dos
usos. Compete às partes que os invocam estabelecer a existên-
cia e o conteúdo deles. Elas mesmas devem a princípio preva-
lecer-se do direito estrangeiro quando as regras de conflito de
leis prescrevem a aplicação dele. Devem demonstrar seu teor
por todos os meios de prova, principalmente por "certificados
de costume" emanantes de jurisconsultos ou de autoridades
oficiais estrangeiras. Atualmente, a Convenção Européia de 7
de junho de 1968 põe à disposição das autoridades judiciárias
meios de informação sobre os direitos estrangeiros. Quanto aos
usos e aos costumes, o teor deles deve igualmente ser estabele-
cido por todos os meios, por quem se prevalece deles. Embora
seja abusivo tratar o direito estrangeiro e os usos ou o costume
como elementos de fato, ainda assim aproximam-se deles quan-
to ao objeto da prova.
271. - Quais são então os fatos que se devem provar? São
somente os fatos contestados. "Um fato reconhecido ou não-
contestado não necessita ser provado" 12 : é tido como verdadei-
ro. Isso pode suscitar deformações da realidade objetiva, mas
admite-se, em geral, que as partes devem ter o domínio do "edi-
fício de fato" de seu processo e que, afora o caso de fraude
combinada dos litigantes, o juiz civil não tem de controlar de
otlcio as situações de fato sobre as quais estão de acordo.
Por outro lado, a prova de direito deve versar apenas sobre
latos pertinentes e admissíveis. A admissibilidade da prova de-
pende de sua conformidade com o sistema de direito. De um
lado, o sistema jurídico às vezes proíbe certas provas em nome
ile valores essenciais ou da ordem pública: a autoridade da coi-
sa julgada proíbe contestar o que foi definitivamente julgado;
por muito tempo, o direito francês proibiu o estabelecimento
du filiação adulterina.

12. H. MOTULSKY, op. cit.; J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit.


n:"* 574 ss.; art. 6NCPC.
394 TEORIA GERAL DO DIREI K >

De outra parte, o direito da prova pode. tanto reportar-se a


um sistema de liberdade no qual as partes têm, sem hierarquia
de princípio, livre escolha dos procedimentos de prova, quanto
consistir num sistema de prova legal, que limita a prova a certos
procedimentos e impõe-lhes o alcance: os outros modos de pro-
va são então inadmissíveis. Os direitos anglo-saxões compor-
tam ainda numerosas exclusionary rules, a despeito da im-
portância que reconhecem aos depoimentos. Eles reservam ao
direito da prova (evidence law) um lugar considerável que se
deve a razões históricas e técnicas a um só tempo, pois é verda-
de que, em direito inglês, foi perante o juiz que foram conquis-
tadas as liberdades e que se forjou o sistema jurídico. Neles o
adjective law conserva uma importância preponderante. Isso
repercute no direito da prova de países de direito misto, como o
Canadá, em matéria penal, até civil, mesmo no Quebec 13 . Co-
mo o direito francês consagra um sistema intermediário, exis-
tem matérias em que modos de provas não são admissíveis.
Mas importa sobretudo notar que a prova de um fato só
deve ser produzida se sua demonstração é útil ao desfecho do
processo. A pertinência da prova, medida de economia proces-
sual, supõe uma adequação de seu objeto ao objeto do litígio.
Os fatos alegados devem estar em relação direta com a espécie
que será julgada, e a prova deles deve levar a uma demonstra-
ção apropriada. Assim, o juiz só admite a prova dos fatos nos
quais as partes fundamentam suas pretensões e dos elementos
aptos para justificá-los. Os juizes de primeira instância têm em
princípio um poder soberano de apreciação quanto à pertinên-
cia dos fatos oferecidos como prova, mas a Corte de Cassação,
na França, controla a natureza dos fatos suscetíveis de justifi-
car uma pretensão: a natureza dos fatos que a regra jurídica
apreende fica então uma questão de direito. Em outros países,
da América Latina especialmente, os tribunais se abstêm, ao
contrário, de controlar a pertinência da prova, o que avoluma o
processo e favorece as manobras protelatórias.

13. Sobre essa questão: ver J. C. ROGE R, La preuve civile, 2? ed., Y. B lai s
inc., 1995.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 395

A apreciação da pertinência do oferecimento de prova


depende, enfim, daquela do vínculo entre os fatos alegados e os
fatos cuja prova é oferecida, quando estes não coincidem com
os fatos a serem provados, mas permitem, através do raciocínio,
deduzir deles a realidade. Tudo depende então de saber se é
possível substituir a prova direta dos fatos por presunções.

II. Prova direta epresunções

272. - A presunção é um modo de raciocínio jurídico em


virtude do qual se induz, do estabelecimento de um fato, um
outro fato que não está provado. O art. 1349 do Código Civil de-
fine as presunções como "as conseqüências que a lei ou o ma-
gistrado tira de um fato conhecido para um fato desconhecido".
O Código Civil distinguiu assim as presunções legais,
ligadas por uma lei a certos atos ou a certos fatos, e que consis-
tem num deslocamento do objeto da prova, e as presunções de
fato, ou "presunções do homem", que são modos de prova
pelos quais o juiz induz livremente os fatos a serem provados
dos indícios e circunstâncias que os tornam prováveis. Num
sistema de liberdade de prova, o juiz tira então sua íntima con-
vicção da livre apreciação dos indícios e das circunstâncias.
Deles deduz os fatos cuja prova é procurada mas não é direta-
mente obtida. Legais ou de fato, as presunções correspondem
a situações de resistência dos fatos à prova. Consistem em
inferir fatos desconhecidos de fatos conhecidos.
273. - As presunções legais permitem deduzir uma verda-
de da existência de um outro fato, mais fácil de demonstrar.
Algumas delas têm um caráter "antejudiciário" e se limitam a
atribuir o ônus da prova a um dos litigantes. Assim, a presunção
de boa-fé impõe a quem alega a má-fé prová-la (art. 2268 do
Cód. Civil); a presunção de inocência, em direito penal, prote-
ge as pessoas contra a arbitrariedade; a presunção de legalida-
de da coisa decidida pela administração pública facilita o exer-
cício da função pública. Tais presunções, fundamentadas na
situação mais verossímil ou na idéia de que, se não fossem pre-
396 TEORIA GERAL DO DIREI K >

sumidos, certos fatos seriam impossíveis ou muito difíceis de


estabelecer, constituem vantagens em geral decisivas que a lei
concede a uma das partes em nome de considerações de políti-
ca jurídica e de certos valores que ela tende a proteger. Simples
procedimentos técnicos utilizados com fins superiores que su-
peram a busca da verdade objetiva ou da segurança jurídica,
essas presunções legais só valem o que vale o objetivo que per-
seguem 14 . Interessam tanto ao fundo do direito quanto ao direi-
to da prova. São dispensas de prova ou modos de deslocamento
do ônus da prova. Quando a lei presume que a criança nascida
durante o casamento tem como pai o marido, ela dispensa a
criança de estabelecer que é oriunda do marido, o que seria
difícil de fazer. Desloca assim o objeto da prova, pois, em vez
de ter de estabelecer a filiação da criança, ela só impõe estabe-
lecer o nascimento durante o casamento da mãe e daí deduz a
filiação a propósito do pai. Enfim, essa presunção favorece a
família legítima.
Mas o alcance dessas presunções varia conforme se trate
de presunções simples ou irrefragáveis. As presunções simples
ou júris tantum podem, contrariamente às presunções irrefra-
gáveis, denominadas também "presunções absolutas" ou pre-
sunções júris et de jure, ser combatidas pela prova contrária.
Elas se atêm, pois, nos casos limitativos em que o direito posi-
tivo as prevê, a facilitar a tarefa das partes em cujo favor são
enunciadas, do juiz ou do administrador público, sem impedir
a descoberta da verdade mediante outros elementos de prova.
Então, é a quem pretende contestar a situação estabelecida pela
presunção que compete fornecer a prova contrária dela. Quan-
to mais o progresso técnico facilita a prova, mais fácil é o res-
tabelecimento da verdade. Os progressos da biologia, que per-
mitem agora estabelecer a realidade ou a inexatidào de uma
filiação, ajudam a pôr em xeque a presunção de paternidade
quando esta trai a verdade.
A melhoria dos modos de prova atenua, portanto, o artifi-
cio das presunções simples, mas pode também esbater sua efi-

14. F. GÉNY, Science et lechnique en tlroiiprivépcsitif, t. III, n! s 23C ss.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 397

cácia de política jurídica. Esta se encontra, ao contrário, per-


feitamente salvaguardada, às vezes em detrimento da realida-
de, pelas presunções irrefragáveis contra as quais "nenhuma
prova é aceita" e que fundamentam a lei quando esta "anula
certos atos ou denega a ação judicial". As verdadeiras presun-
ções absolutas que não podem ser infirmadas, mesmo pela
confissão ou pelo juramento, são fundadas em considerações
de ordem pública. Esse é o caso da presunção de autoridade da
coisa julgada que garante a segurança jurídica necessária às de-
cisões judiciais tornadas definitivas.
274. - As presunções de fato são, em compensação, ape-
nas meros modos de prova. Ao passo que, no tocante às provas
legais, a passagem do conhecido ao desconhecido pode ser jus-
lificada por motivos de política jurídica e não necessariamente
pela probabilidade dos fatos que deles se induzem, as presun-
ções produzidas pelo homem repousam na descoberta de fatos
prováveis a partir de circunstâncias e de indícios conhecidos.
('olocando-se apenas no terreno probatório, o juiz utiliza-as
somente para forjar sua convicção. As presunções de fato são,
pois, inumeráveis e se aplicam a todos os tipos de fatos, ao
passo que as presunções legais devem ser especialmente pre-
vistas. Elas sc apoiam nos mais diversos indícios que as cons-
tatações materiais, as perícias ou os pareceres podem fornecer
em profusão: do comprimento das marcas de freada, por exem-
plo, o juiz induzirá o excesso de velocidade do veículo. Mas o
juiz dispõe, no que tange às presunções de fato, de plena liber-
dade de apreciação. Com efeito, admite-se que os textos que
prescrevem aos juizes aceitar apenas "presunções graves, pre-
cisas e concordantes" constituem somente um simples conse-
lho de prudência e não lhes alteram a liberdade. As presunções
produzidas pelo homem só são, porém, admissíveis nos casos
em que a lei admite a prova testemunhai. Portanto, elas não
têm um campo de aplicação perfeitamente geral.
Em última análise, o estabelecimento dos fatos, embora
tenda a descobrir a realidade à qual deve aplicar-se a regra de
direito, é enquadrado pelo sistema jurídico que, para levar em
conta necessidades ou impossibilidades materiais, outros princí-
398 TEORIA GERAL DO DIREI K >

pios referentes ao fundo do direito, considerações de políticas


jurídicas, exigências puramente técnicas..., às vezes deforma a
imagem da realidade. Esses diversos "fatores de distanciamen-
to" são ampliados mais ainda porque a apreensão do fato pelo
direito pressupõe que, uma vez estabelecidos os fatos e consu-
mada a descrição deles, eles recebem uma qualificação jurídica.

2. A conceituação dos fatos

275. - Para penetrar no direito, os fatos necessitam ser con-


ceituados. Cumpre subsumi-los sob os termos da lei ou da con-
venção, ou seja, qualificar a situação com relação aos fatos aos
quais o direito positivo vincula conseqüências jurídicas. Cum-
pre, assim, confrontar os fatos estabelecidos com casos de figu-
ra, com conceitos, regidos por regras de direito, para conhecer
aqueles aos quais se identificam e, portanto, as regras jurídicas
que lhes devem ser aplicadas. Um fato não pode produzir efei-
tos jurídicos por suas qualidades intrínsecas. É preciso que uma
norma jurídica lhe atribua uma qualidade que lhe falta, ou seja,
atribua-lhe um significado particular, certos efeitos de direito,
ao mesmo tempo que ela o designa 15 . É porque normas jurídi-
cas sancionam a falta com a reparação civil dos danos dela re-
sultantes e certas faltas específicas com penas que as faltas
consideradas são passíveis dessas sanções. Mas, quando o com-
portamento de um indivíduo é estabelecido de fato, a aplicação
dessas sanções supõe que esse comportamento seja qualificado
de falta. Ora, a necessidade de qualificação jurídica dos fatos
(A) implica incertezas (B) em face de certas noções maleáveis.

A. A qualificação jurídica dos fatos

276. - Trata-se de saber mormente se os fatos estabeleci-


dos podem "receber uma qualificação correspondente à pre-

15. M. V1RALLV, op. cit., p. 17.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 399

sunção que figura na regra que se pretende aplicar" 16 . Para


tanto, devem-se considerar todas as circunstâncias; a qualifica-
ção é uma apreciação na qual intervém ao mesmo tempo ele-
mentos de direito e de fato. Como o físico e o médico só se
concentram em certos elementos porque estes confirmam ou
infirmam uma hipótese, o jurista só se detém naqueles que
permitem ou impedem aplicar determinada regra de direito,
em princípio, em direito continental, uma lei ou uma prescri-
ção convencional 17 .
Contudo, a facilidade da conceituação aumenta ou dimi-
nui segundo a maneira pela qual o direito designa os fatos aos
quais ele vincula conseqüências jurídicas. Para fatos simples,
essa designação pode limitar-se à denominação da linguagem
corrente deles, sem definição especial, mas certas incertezas
podem resultar daí. Por isso, é mais certo que o direito positi-
vo, ao mesmo tempo que o designa, atribua a cada fato um sig-
nificado particular e especifique o conteúdo e os efeitos jurí-
dicos que lhes são vinculados. Todas as coisas necessitam de
uma representação intelectual para poder ser percebidas 18 . Mas,
como o próprio direito expressa valores, ordens, proibições,
obrigações, faculdades, prerrogativas, sanções etc., é em nome
dessas normas que ele apreende os fatos para lhes conferir um
sentido. O significado jurídico que as coisas e os comporta-
mentos revestem impõe, pois, que sejam perfeitamente defini-
dos a fim de que os fatos particulares possam lhes ser depois
claramente identificados.
E o que ocorre quando um texto legal está formulado na
linguagem comum e quando contém elementos quantitativos
determináveis por um procedimento inconteste 19 : a passagem
da descrição à qualificação fica então fácil e segura. A repres-

16. J. GHESTIN e G . GOUBEAUX, op. cit.. n? 52. Sobre a qualificação, ver


também supra, n?5 180 s.
17. Ch. PERELMAN, Lefaitet le droit, 1961, p. 271, Logique juridique -
nouvelle rhétorique, n™ 23 e 89 ss.
18. Sobre as definições, ver supra, nos 182ss.
19. Ch. PERELMAN, ibidem.
400 TEORIA GERAL DO DIREI K >

são da embriaguez no volante, que se reporta a uma determina-


da taxa de álcool no sangue do motorista que se pode medir
com muita precisão, não deve comportar séria dificuldade de
qualificação. A maioridade civil, fixada aos dezoito anos, não
levanta problema de apreciação. Mas, caso se trate de um es-
trangeiro residente na França e cuja lei nacional fixe a maiori-
dade noutra idade, a questão de saber quando ele é maior pres-
supõe também determinar se é a lei francesa ou sua lei nacio-
nal que lhe é aplicável, sendo o princípio que é sua lei nacional
que deve intervir a esse respeito. A qualificação das situações
de fato em relação aos mais simples conceitos fica, portanto,
muitas vezes complexa dada a conjunção dos elementos díspa-
res de uma mesma situação.
Mas, com muita freqüência, a passagem da descrição à
qualificação é entravada pela complexidade das noções sob as
quais devem ser subsumidos os fatos. E o que se dá quando a
qualificação dos fatos passa pela determinação de um conceito
resultante de uma definição prévia. Assim, como a lei pune
mais gravemente o roubo noturno, a questão de saber se um
roubo foi cometido à noite será uma questão de fato ou de di-
reito? Ela dependerá de saber se o roubo ocorreu entre o cre-
púsculo e a aurora ou entre esta ou aquela hora corresponden-
te a uma definição jurídica da noite? É sobretudo a aplicação
de noções qualitativas que traz dificuldades porque supõe um
juízo de valor e uma apreciação subjetiva. Algumas delas aca-
bam adquirindo uma certa precisão graças à multiplicidade das
apreciações jurisprudcnciais de que foram objeto e aos crité-
rios que acabaram por ser extraídos delas. A noção de fraude
ou de abuso de direito é, assim, bem conhecida 20 . As coisas se
complicam ainda mais em face dos conceitos qualitativos e
evolutivos que ficam sempre imprecisos.

20. Ver supra, i? 5 240 ss.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 401

B. A flexibilidade de certas qualificações

277. - O direito necessita de certo número de noções ma-


leáveis21, com conteúdo variável, como a falta, a negligência, a
imprudência, o interesse geral, a eqüidade, a urgência, os bons
costumes, o bom pai de família etc. No presente, elas são in-
dispensáveis para apreender in concreto a plasticidade dos
comportamentos humanos sob normas adequadas. No tempo,
permitem a adaptação das qualificações jurídicas e, portanto,
da aplicação das regras correspondentes à evolução da socie-
dade: a noção de bons costumes é essencialmente evolutiva e
não tem em 1998 um conteúdo igual ao de 1804! Substancial-
mente, permitem apreciar a conformidade dos fatos ao direito
positivo, seja diretamente, seja corrigindo a intervenção de ou-
tros princípios. Funcionalmente, desempenham, diante das no-
ções rígidas, o papel de uma junção de dilatação ou de uma
terra de asilo para situações de fato novas que elas permitem
acolher. Ajudam o juiz a guardar apenas os fatos correspon-
dentes à qualificação que rege a aplicação de uma determinada
regra. A qualificação se torna então uma operação complexa.
É a qualificação dada pelo juiz, e não pela lei, que delimita
aqui o campo de aplicação da norma: "Cada qualificação nova
provê o conceito legal de um caráter; o que até então estava
apenas em potencial existe daí em diante em ato."22
A imprecisão desses conceitos jurídicos gera, pois, uma
grande flexibilidade das qualificações. Esses conceitos se defi-
nem não em si mesmos, mas em comparação aos valores acei-
tos na sociedade. Já não se trata simplesmente do direito im-

21. J. DABIN, Théorie générale du droil, ed. Dalloz, 1969, n?s 245 ss.; S.
RIALS, Lejuge adminstratiffrançais et la technique du standard - Essai sur le
Iraitement juridictionnel de Tidée de normalité, L.G.D.J., 1980; Actes du ler
Congrès de 1'Association Internationale de Méthodologie Juridique, "Les stan-
dards dans les divers systèmes juridiques", Aix-en-Provence, 1988, "Cahiers de
méthodologie juridique", n? 3, R.R.J., 1988-4, pp. 805 ss., e em especial Ph.
Jcstaz, Rapporl de svnthèse, pp. 1181 ss.; ver supra, n" 185.
22. Th. IVAINER, "L'interprétation des faits en droit", J.C.P., 1986, I,
3235, n? 18; L interprétaúon des faits en droit, ed. L.G.D.J., Bibl. de philo. du
droit, t. 30, prefácio J. Carbonnier, Paris, 1988, em especial n?5 169 s.
402 TEORIA GERAL DO DIREI K >

posto pelo legislador, mas do ajuste entre esse direito e o que


é considerado eqüitativo ou razoável 23 . Podem-se então distin-
gir "conceitos normativos", como a falta ou a negligência em
comparação ao comportamento do bom pai de familia, pelos
quais se apreciam as condutas, e "conceitos descritivos", que
evoluem lentamente por ser mais objetivos. Em face dos con-
ceitos maleáveis, a apreciação do juiz é mais flutuante, por-
quanto seus critérios de aplicação não podem ser dissociados
do contexto social e de uma percepção subjetiva dos fatos. A
noção de bons costumes, por exemplo, que os direitos positi-
vos de todos os países parecem conservar, tem um significado
variável não só no tempo e no espaço, mas também num mes-
mo lugar e num mesmo momento, conforme o problema a
cujo propósito ela intervém (validade de uma convenção ou
repressão penal de publicações pornográficas) e conforme a
apreciação pessoal do juiz incumbido de apreciá-la. Cumprirá
então considerar que a aplicação desses conceitos é apenas
uma questão de fato, submetida à apreciação soberana dos jui-
zes da causa, o que pode gerar sentenças arbitrárias? Cumpri-
rá, ao contrário, que a jurisprudência, sob o controle da Corte
de Cassação, se unifique com o risco de impor critérios por
demais abstratos? As duas soluções se sustentam. Mas a se-
gunda apresenta o risco de entravar a necessária adequação do
direito aos fatos.

SEÇÃO II
A resposta do direito aos fatos

278. - A regra de direito é um mandamento que a ordem


jurídica dirige ao homem. Para além da obrigação, da autoriza-
ção e da proibição que ela comporta, conforme os casos, a
norma jurídica pode comportar muitas prescrições intermediá-
rias e complementares. A antítese entre o fato e o direito seria

23. Ch. PERELMAN, ibidem.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 403

a do ser ou dever ser, empregando a linguagem de Kelsen, do


Sein e do Sollen. Mas os juristas são precipitados ao contrapor
o fato e o direito, pois a missão do direito é justamente reger os
fatos. As reações do direito positivo (§ 1) são então concretiza-
das pela apreciação do juiz (§ 2).

1. A reação do direito positivo

279. - Considerando o homem numa situação real, o direi-


to positivo define, de acordo com situações de fato estabeleci-
das, os comportamentos que devem ser observados. A não ser
que se atenha a uma passividade contrária à sua essência, o di-
reito não pode ser neutro diante dos fatos. Observa-se então
que ele pode adotar esquematicamente duas atitudes opostas:
atendo-se à realidade, ratifica o fato (A) ou, preferindo a fic-
ção, rejeita-o (B).

A. A recepção do fato pelo direito

280. - A recepção do fato pelo direito é um fenômeno pro-


teiforme. Ora se trata de apreciar o processo de criação ou de
evolução da regra de direito e a influência dos fatos sociais
nesse processo: este problema já foi estudado 24 . Ora investiga-
se em que medida a regra de direito acolhe no palco jurídico
simples situações de fato para consagrá-las em direito: este é o
problema exposto aqui. Consiste em como a lei ou a jurispru-
dência levam em consideração uma realidade vivida à margem
das normas jurídicas existentes, às vezes até contra elas. Mas,
com o risco de sacrificar um pouco o ideal moral, não se pode
ignorar a cristalização operada pelo tempo, a irreversibilidade
do fato consumado em certos casos, e a segurança jurídica que
deve prender-se à crença legítima dos terceiros. É essa submis-

24. Ver supra, n?s 149 ss.


404 TEORIA GERAL DO DIREI K >

são relativa do direito aos fatos que a teoria da aparência 25 tra-


duz e à qual se prendem outras instituições, tais como as pos-
ses que são, em última análise, apenas "aparências tranqüilas".
Em certos casos, a paz pública comanda uma proteção jurídica
de fatos contrários ao direito; as situações de fato às vezes fa-
zem presumir o direito 26 .
A aparência, em direito assim como na linguagem corren-
te, designa o que é manifesto mas também o que é ilusório e
enganador. Há situações de fato ostensíveis que fazem acredi-
tar em situações jurídicas que não existem realmente. É nor-
mal que o direito leve em conta situações ostensíveis quer em
si mesmas, quer porque são reveladoras de direitos. Ele rege o
destino dos vícios aparentes, registra os atos pelos quais o pos-
suidor se comporta como proprietário, atém-se à forma apa-
rente dos efeitos de comércio etc. e deduz então imediatamen-
te efeitos jurídicos da aparência. Mas esta é a manifestação con-
creta de direitos que sem ela não têm expressão material e cuja
existência ela serve para provar.
Ora, pode acontecer, a esse respeito, que a aparência seja
enganosa. Nesses casos em que a realidade aparente não tra-
duz uma realidade jurídica, em que há uma distorção entre a
aparência concreta e o fundo do direito, levanta-se a questão
de saber se è preciso atribuir efeitos jurídicos a situações de
puro fato. Alguns textos esparsos o admitiram em direito civil
(arts. 1240, 1321, 2005, 2006, 2008 do Cód. Civil), em direi-
to comercial (art. 369, lei de 24 de julho de 1966), em direito
internacional privado (art. 26 do Código da Nacionalidade
Francesa, lei de 9 de janeiro de 1973) etc., vinculando a situa-
ções jurídicas puramente aparentes os efeitos de situações jurí-
dicas reais: os terceiros de boa-fé se beneficiam então das con-
seqüências normais da situação em que puderam crer legitima-

25. J. GHESTIN e G. G O U B E A U X , op. cit., N? 770 s. e as referências ci-


tadas, notadamente J. C A L A I S - A U L O Y , £ í . ç o t . w - / i í « o ? / o « d'apparence endroil
commercial, tese, Moitpellier, 1959; L. LEVENEUR,Silvation defait et droitprívè,
ed. L. G. D. J., Bibliotlièque de droit privé, vol. 2 12, 1 990, prefácio M. Gakert.
26. J. CARBONNIEH, Droit civil, introduetion-Les personnes, n°40.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 405

mente, o que eqüivale a eclipsar a verdadeira situação de direi-


to. Generalizando esses fenômenos particulares, a "teoria da
aparência" estabelece como princípio "que a crença errônea
fundamentada na realidade visível pode prevalecer sobre a ver-
dade jurídica"21. A negligência ou a falta do verdadeiro titular
do direito que está na origem da aparência enganosa justifica
às vezes que ele seja sacrificado à proteção dos terceiros, mas
tal falta não ê necessária para a consagração jurídica da apa-
rência. A crença errônea dos terceiros de boa-fé gera efeitos do
direito. Assim, uma pessoa pode ficar comprometida com ter-
ceiros a partir do fundamento de um mandato aparente, mesmo
na ausência de falta de sua parte, se a crença dos terceiros na
extensão dos poderes de um mandatário aparente é legítima.
Esse princípio atende a uma "necessidade de segurança das re-
lações jurídicas" 28 . Mas ele supõe que a situação aparente pos-
sa ter causado da parte de terceiros um erro "comum" ou legí-
timo. E a máxima error communis facit jus; o erro comum é
um erro "invencível" ou, pelo menos, razoável ou legítimo.
A teoria da aparência tem, por conseguinte, um campo de
aplicação ilimitado. Não está excluída de nenhuma matéria do
direito privado e se estende a numerosos setores do direito pú-
blico29. Todavia, ela tem um caráter apenas subsidiário, pois
não pode prevalecer sobre outras disposições precisas e ade-
quadas à situação considerada. A aparência aplica-se então à
propriedade, ao mandato, ao direito das pessoas, à qualidade
de comerciante, ao direito de sociedades, à responsabilidade
civil, à nacionalidade... 30 . Cria em proveito dos terceiros direi-
tos que eles não recebem da aplicação normal das regras jurí-

27 J. GHESTIN e G. GOUBEAUX, op. cit., n°s 780 ss.; ver também M. N.


JOBARD-BACHELLIER, L 'apparence en droit internationa! prive: Essai sur le
ròle des représentations itidividuelles en droit inter/iational prive, ed. L.G.D.J.,
Bibl. de Dr. Privé, t. 178, Paris, 1984.
28. Ibidem, n°781
29. JOUVE, "Recherche sur la notion d'apparence en droit administratif
français", Rev. Dr Public, 1968, 283.
30. J. GHESTIN e G. GOUBEUAX, op. cit., n?s 788 ss. e 4a ed., com o con-
curso de M. Fabre-Magnan, n™ 838 s.
406 TEORIA GERAL DO DIREI K >

dicas e que são oponíveis ao verdadeiro titular dos direitos 31 .


Mas, para além da teoria da aparência, o direito costuma atri-
buir efeitos a meras situações de fato.
281. - Nós nos ateremos aqui a alguns exemplos significa-
tivos. A posse dos bens é o domínio de fato que uma pessoa
exerce sobre uma coisa corpórea e que corresponde em seu es-
pírito ao exercício de um direito real. É apenas uma situação
de fato, mas coincide amiúde com o próprio direito. O possui-
dor é geralmente o proprietário. Mesmo no caso contrário, ele
é protegido pelo direito enquanto o verdadeiro proprietário não
estabeleceu sua qualidade. Além disso, a posse prolongada
permite ao possuidor adquirir a propriedade dos bens possuí-
dos por usucapião, transformando, pois, uma situação de fato
em situação de direito. No direito das pessoas, a posse de esta-
do, ou seja, a aparência de um dado estado, o exercício de fato
das prerrogativas de um estado (de cônjuge, de filho legítimo,
natural etc.) independentemente de saber se é realmente seu
titular, permite estabelecer a filiação legítima e natural e resol-
ver os conflitos de filiação.
O direito contemporâneo reconhece importantes efeitos
jurídicos ao concubinato, que continua, porém, uma simples
situação de fato, com exceção dos direitos reconhecidos aos
concubinos por diversos textos recentes e da provável consa-
gração próxima de um estatuto jurídico específico; ele aproxi-
ma a união livre do matrimônio quando ela lhe toma as aparên-
cias, em especial a estabilidade e a notoriedade. Assim, as exi-
gências da proteção jurídica conduzem a fazer o fato triunfar
sobre o direito, portanto a corrigir os efeitos normais deste, em
circunstâncias em que a ordem social o exige. Mas acontece
também que, para a sua coerência técnica ou para a proteção
de certos valores ou de certas instituições, a ordem jurídica,
em vez de acatá-las, rejeite as realidades concretas.

31. Ibidem.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 407

B. A rejeição do fato pelo direito

282. - E muito freqüente o direito substituir a realidade


pela ficção. A ficção jurídica é um procedimento de técnica
jurídica pelo qual se considera como existente uma situação
manifestamente contrária à realidade e que permite deduzir dela
conseqüências jurídicas diferentes daquelas que resultariam
da simples constatação dos fatos. Assim, no direito de suces-
sões, a ficção da continuação da pessoa do falecido pela dos
herdeiros permite evitar toda ruptura na propriedade dos bens
sucessórios. Assim também, o filho natural legitimado ou o
filho adotado, em caso de adoção plena, é apresentado como
um filho legítimo; supõe-se que ninguém ignora a lei; o filho
concebido é considerado como nascido quando é do seu inte-
resse, o que lhe possibilita adquirir direitos já em sua concep-
ção... Portanto, a ficção, consiste em submeter uma realidade
social ao poder da mente, absorvendo-a num conceito de maior
ou menor artificialidade. É "uma alteração voluntária do real",
um artifício jurídico destinado 32 a produzir resultados úteis.
Falseando deliberadamente a realidade das coisas, as ficções
redundam em sujeitar a vida social a preceitos julgados dese-
jáveis 33 .
Por conseguinte, é mister determinar as funções designa-
das às ficções jurídicas de que os mais avançados sistemas ju-
rídicos fazem larga utilização e que o direito romano usara am-
plamente. Reconheceram-lhe classicamente uma função histó-
rica e uma função dogmática. Em sua função histórica, a fic-
ção teria permitido introduzir na vida social regras de direito
novas. Seria um procedimento de extensão do direito existente.
Em vez de legislar criando uma categoria nova, preferiram re-
ferir-se a uma categoria existente, pois isso permite salvaguar-
dar a coerência geral do sistema jurídico, em vez de inserir,
num sistema de conceitos, conceitos novos que não coincidem

32. G. CORNU, Droit civil - Introduction - Les personnes, les biens, 8" ed.,
n? 208 s.; Ch. PERELMAN e outros, Lesprésomptions et les fictions de droit, 1974.
33. F. GÉNY, op. cit., t. III, n?s 240 ss.
408 TEORIA GERAL DO DIREI K >

com os primeiros. Fazem então "violência à realidade nova


para reduzi-la a uma idéia já aceita e torná-la mais acessível".
O direito une assim o futuro ao passado. As ficções apresen-
tam então a vantagem de "manter o estatismo do direito". "Pe-
lo jogo das presunções de responsabilidade, foi possível passar
da falta ao risco." "Pela ficção da personalidade moral das so-
ciedades, a propriedade dos bens pertencentes à sociedade pôde
ser considerada uma propriedade individual." A ficção é uma
espécie "de homenagem prestada aos princípios jurídicos" 34 .
Servindo para enquadrar as soluções jurídicas no sistema de
direito positivo considerado um conjunto fechado, as ficções
também teriam, portanto, uma função dogmática permanente.
E incontestável que as ficções tenham essa dupla função histó-
rica e dogmática.
De modo mais geral, as ficções cumprem funções de téc-
nica jurídica, por sua utilidade dogmática e mecânica (a re-
troatividade, por exemplo), e funções de política jurídica, con-
forme os casos, de naturezas histórica e teleológica 35 . Por sua
função teleológica, elas tendem a proteger ou promover certas
instituições, certos princípios, certos valores. A adoção ou a
naturalização dão bons exemplos disso. Se, até a lei de 3 de ja-
neiro de 1972, a presunção de paternidade do marido era quase
irrefragável, era para proteger a família legítima, considerada
então a única célula básica da sociedade. As ficções podem,
assim, contribuir para represar a deriva dos fatos sociais e para
salvaguardar valores julgados essenciais.
Mas as ficções são artifícios do direito que deformam, às
vezes até a negação delas, as realidades de fato. Portanto, po-
demos indagar-nos legitimamente sobre seus benefícios ou seus
malefícios. A doutrina alemã mostrou, com Savigny e Ihering3*',
os preciosos serviços que as ficções prestaram ao direito ro-

34. Ibidem; G. RIPERT. Les forces crêatrices du droit, L.G.D.J., 1955, tS


144; J. CARBONNIER, op. cit., t. I, n° 7.
35. J. L. BERGEL, "Le lõle des fictions dans le systéme juridique", Mc Gili
Law Journal, vol. 33-2, 1988, pp. 357 s.
36. P. ex., R. VON IHER.ING, Geist des romisc>ten Rechts, trad. de Meule-
naere, 3?ed. 1888, t. IV, § 68.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 409

mano. A história do direito inglês também mostra a importân-


cia de sua contribuição 37 . Sustentou-se às vezes que as ficções
já não oferecem maior interesse em nossos dias, em que se in-
troduzem livremente no direito positivo as reformas e as novi-
dades cuja necessidade aparece. A utilidade desse instrumento
permanece, porém, e se deve às suas funções. Importantes au-
tores alemães, como Ihering 38 e Windscheid, ou franceses,
como Saleilles e Demogue 39 , reconheceram-lhe um lugar im-
portante na elaboração do direito. Gény mostrou que, embora a
ficção deva ser rejeitada quando se trata de descobrir "o dado",
ela conserva um papel importante de instrumento terminológi-
co e deve-se mesmo conservá-la no terreno conceptual 40 .
Salientou-se, porém, que se deve saber evitar seus exage-
ros quando a deformação do real ultrapassa as necessidades
sugeridas pela vida. Ripert sustentou também que é preciso
desconfiar de uma habilidade técnica grande demais que per-
mite dissimular a violação dos princípios e introduzir no direi-
to elementos artificiais que lhe modificam o sentido e o alcan-
ce. Assim, as ficções não podem ser aprovadas se são "apenas
um procedimento contrário ao bom senso" 41 . "A factividade
material" do direito, sua "praticabilidade" 42 pressupõem evi-
tar um divórcio muito sério entre o direito e os fatos. Nossa
época rejeita os tabus e sente, com a aceleração da história,
importantes abalos que não se podem ignorar, a não ser que se
provoque essa "revolta dos fatos contra o direito" que arruina-
ria toda efetividade do direito e consagraria a anarquia ou pro-
vocaria o totalitarismo. Mas, na necessária "continuidade do
direito" que não exclui sua evolução, no ajuste que se impõe
entre o positivismo sociológico e o idealismo, dentro da pers-

37. H. SUMNER MAINE, Uancien droit, trad. Courcelle Seneuil, 1894,


pp. 25 ss.
38. Ibidem.
39. P. ex. R. SALEILLES, De la persormalitè juridique, Paris, 1910. pp.
(>03 ss.
40. F. GÉNY, ibidem.
41. F. GÉNY, ibidem-, G. RIPERT, ibidem.
42.1. DAB1N, op. cil., n os 230 ss.
410 TEORIA GERAL DO DIREI K >

pectiva da coerência dos sistemas jurídicos, as ficções conti-


nuam uma ferramenta preciosa se são apenas um instrumento
dentre outros e não invadem indevidamente a ordem jurídica.
Todavia, é pela apreciação dos tribunais que se opera melhor a
conjunção do fato com o direito.

2. A apreciação do juiz

283. - A apresentação da lide pelo juiz supõe ao mesmo


tempo a constatação dos fatos e a aplicação da regra de direito.
Embora o cotejo dos fatos e do direito seja inelutável, a distin-
ção deles é particularmente nítida nos direitos fundamentados
na lei, como os direitos romano-germânicos. Ela é mais difusa
nos países de "common law", pois os direitos jurisprudenciais
confundem mais o fato e o direito na regra do precedente. A
Câmara dos Lordes ou a "Court of Appeal" da "Supreme
Court", na Inglaterra, estatuem no mérito, criam o direito e não
se contentam em aplicá-lo; o sistema de cassação com envio
do processo ao juiz da causa não existe ali. Não obstante, nos
países de common law onde o júri e os juizes não-togados são
muito difundidos, a divisão entre a apreciação dos fatos e a
aplicação das soluções de direito é essencial.
O sistema de eleição dos juizes e a participação de asses-
sores populares haviam mesmo conduzido o direito soviético a
descartar o princípio de apelação. A faculdade, para uma ins-
tância superior, de reformar, sobre questões de fato, uma sen-
tença emanante de jurisdições populares pareceria "antidemo-
crática". Recursos fundados no erro de direito cometido pelos
juizes são, portanto, os únicos ali admitidos. Isso leva a uma
distinção nítida entre o fato e o direito, como se faz na França,
por outras razões, a propósito do poder de controle da Corte
de Cassação. Na maior parte dos direitos romano-germânicos,
razões práticas imperiosas levaram a limitar ao direito o con-
trole da Corte Suprema. Se existem em certos países, corno a
Suécia, a Islândia, a Dinamarca e a Finlândia, uma jurisdição
suprema única que constitui um terceiro grau de jurisdição, ou-
tros países, como, por exemplo, a Suíça, os Países Baixos, a
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 411

Espanha, a Grécia, a França etc. restringem o papel de sua ju-


risdição suprema ao controle da legalidade das decisões que
lhes são trazidas 43 .
Na França, a distinção entre fato e direito a esse respeito só
é, aliás, geral e absoluta no que tange ao contencioso judiciário.
284. - Enquanto as jurisdições de primeira instância e de
apelação conhecem todo litígio, no tocante ao fato e ao direito,
a Corte de Cassação deve ter como acatados os fatos soberana-
mente apreciados pelos juizes da causa na decisão atacada. O
recurso de cassação só pode ser fundamentado nos meios de
direito, não nos meios de fato. A Corte de Cassação se atém a
verificar que os juizes da causa fizeram uma aplicação exata
da regra de direito e, caso contrário, cassa-lhes a decisão. Essa
limitação da função da Corte de Cassação não deixa de lado o
interesse dos litigantes que, o mais das vezes, já tiveram suas
pretensões examinadas em duas ocasiões. Um terceiro exame
dos fatos seria difícil: o afastamento dos jurisdicionados e dos
elementos do litígio veda à Corte de Cassação novas investiga-
ções úteis ou as torna muito onerosas. A distinção entre o fato
e o direito atende também a necessidades práticas: limitar o
número dos recursos e o sobrecarregamento da Corte de Cas-
sação. Na França, a Corte de Cassação e sua unicidade se jus-
tificam, enfim, pela proteção do interesse público. Ela tem a
missão de assegurar a unidade do direito e de sua aplicação em
todo o país.
A distinção entre o fato e o direito é, porém, artificial em
certos casos. A interpretação dos contratos, considerada uma
questão de fato, parece ser uma questão de direito para contra-
tos de adesão ou cláusulas-padrão que as partes não negocia-
ram. Tratar a lei estrangeira como uma questão de fato é con-
testável. Esse artifício talvez ateste a indissociabilidade essen-
cial entre o fato e o direito 44 .

43. Ver G. MITSOPOULOS, "La distinction du fait et du droit en procédu-


re de eassation", Reme hellénique de droit International, 1968, pp. 3 s.
44. F. RIGAUX, "La notion de fait en science juridique", Annales de droit
de Louvain, t. 48, 1988-1, pp. 3 s.
412 TEORIA GERAL DO DIREI K >

ILUSTRAÇÃO

A PASSAGEM DO FATO AO DIREITO:


O SILOGISMO JURÍDICO

Exemplo: silogismo "sobre a mortalidade de Sócrates":


"Todos os homens são mortais (maior); ora, sou um
homem (menor), portanto sou mortal (conclusão)"
(Dicionário Petit Robert, verbete "Silogismo").

CASO PRÁTICO:
X, circulando, dentro de um parque, no volante de seu veículo,
esmagou o cachorro de Y, que atravessava normalmente a pis-
ta. A velocidade era limitada nesse local a 20 km/h. O veículo
de X deixou na pista 40 metros de marcas de freada.

O silogismo jurídico que se decompõe o mais das vezes em vá-


rios silogismos sucessivos será decomposto aqui em três silo-
gismos:

• Silogismo n.° 1
Premissas - maior: A velocidade era limitada a 20 km/h =
Direito.
- menor. X transitava com muita velocidade (Pro-
va por presunção de fato: o comprimento das
marcas de freada permite induzir delas uma ve-
locidade considerável) = Fato.
- Conclusão: X não respeitou a limitação de velo-
cidade.

• Silogismo n? 2
Premissas - maior: A violação de uma regulamentação é
urna falta = Direito.
- menor: X violou um regulamento = Fato.
- Conclusão: X cometeu uma falta.
Capítulo 4
O juiz e o processo

285. - Tratando-se de definir a regra de direito em contras-


te com as outras regras sociais não-jurídicas, Jean Carbonnier 1
observa em última análise "que é jurídico o que é próprio para
provocar um julgamento, o que é suscetível de processo, de-
pendente dessa atividade muito particular de uma terceira per-
sonagem a que chamamos árbitro ou juiz".
Isto não significa que a realidade do direito se confunde
com o contencioso, pois o contencioso é apenas o direito pato-
lógico e não o direito normal. O mais das vezes, a vida jurídi-
ca se desenrola sem processo, pelo acordo dos interessados ou
pelo respeito espontâneo da lei e dos direitos aos quais se vin-
cula em filigrana a ameaça de coerção do Estado que caracte-
riza a regra de direito. Mas, quando há litígio ou infração à
regra, já que o direito veda aos indivíduos fazer justiça por si
sós e tira-lhes o direito de recorrer à força, o recurso a um ter-
ceiro não envolvido pela contenda e com autoridade sobre as
partes é o único meio juridicamente adaptado de superar o con-
flito. Assim o juiz, com o chefe militar e o feiticeiro, é prova-
velmente a primeira autoridade social que a humanidade tenha
conhecido 2 .
Mas o ato jurisdicional supõe um controle prévio da situa-
ção de fato e de direito que o justifica. Sem menosprezar a

1. J. CARBONNIER, Flexible droit, 5 a e d , 1983, p. 22.


2. M. V1RALLY, La pensée juridique, ed. L.G.D.J., 1960, p. 104.
417
T E O R I A GERAL DO DIREI K >

importância da arbitragem privada, é o Poder Judiciário que é


investido da função de julgar, noutras palavras, de assegurar a
repressão das violações de direito e de dirimir, com base no
direito, com força de verdade legal, as contestações que se le-
vantam a propósito da existência ou da aplicação das regras
jurídicas 3 .
286. A ação judicial é o poder reconhecido às pessoas
jurídicas de dirigir-se à justiça para obter o respeito de seus
direitos e de seus interesses legítimos 4 . Agora está aceito que a
ação não se confunde, como se sustentou outrora, com o direi-
to subjetivo que ela tende a proteger, pois essa ação e esse di-
reito não vão necessariamente de par. Mas o contencioso nem
sempre tem o objetivo de assegurar a proteção dos direitos in-
dividuais dos particulares. Ao lado desse contencioso subjeti-
vo, existe um contencioso objetivo cuja única meta é assegurar
o respeito da legalidade abstrata para sancionar penalmente as
infrações, anular um ato administrativo ilegal ou obter a defesa
dos interesses coletivos das pessoas morais... Então é difícil
analisar a ação judicial em um direito subjetivo autônomo e
preferível qualificá-la de poder legal reconhecido a todas as
pessoas físicas ou morais, públicas ou privadas, francesas ou
estrangeiras, de dirigir-se a uma jurisdição para obter o respei-
to de seus direitos ou de seus interesses legítimos ou a repara-
ção da violação deles 5 . O art. 30 do Novo Código de Processo
Civil define a ação como "o direito, para o autor de uma pre-
tensão, de ser ouvido sobre o mérito desta a fim de que o juiz a
diga bem ou mal fundada" e "para o adversário... de discutir a
legitimidade dessa pretensão".
A ação judicial tem, em conseqüência, o objetivo de pro-
vocar uma decisão judicial. Mas há que observar que o de-
mandante não tem necessariamente adversário: o juiz pode ser

3. R. GUILLIEN e j . VINCENT, Lexique de termes jurídiques, verbete "Ju-


diciaire (pouvoir)".
4. J. VINCENT e S. GUINCHARD, Procédure civile, Précis Dalloz, 24?
ed.. 1996. t T 17 ss.
5. J. VINCENT, S. GUINCHARD, G. MONTAGNtER e A. VARINAR.D,
Lu justice et ses inslilutions, Précis Dalloz, 4? ed., 199b, i»° 720.
3 418
A APLICA ÇÃO DO DIREITO

incumbido "na ausência de litígio" de um "pedido sobre o qual


a lei exige... que seja submetido ao seu controle" (art. 25 s.
Novo Código de Proc. Civil), no que toca a uma adoção, por exem-
plo. Por conseguinte, a decisão judicial pode intervir em maté-
ria não só contenciosa, mas também graciosa, sendo então a
questão saber se ela tem ou não um caráter jurisdicional. De
todo modo, a ação é um meio de dirigir-se ao juiz (Seção 1)
para obter uma decisão judicial no final de um processo (Se-
ção II).
Mas a segurança e a qualidade da decisão judicial depen-
dem das garantias dadas ao jurisdicionado, tanto no tocante aos
seus juizes quanto ao desenrolar de seu processo. Indepen-
dentemente das regras técnicas que regem a organização judi-
ciária ou os diversos procedimentos e que não vêm a propósito
aqui, convém examinar os grandes princípios de que procedem
essas garantias.

SEÇÃO 1
O juiz

287. - O juiz, no sentido genérico, designa aqui todos os


órgãos que exercem a função judiciária. Mas a justiça é apreen-
dida globalmente em dois níveis: no nível constitucional, ela
designa um poder ou, pelo menos, uma "autoridade"; no nível
administrativo, ela designa uma organização 6 . Os princípios
que determinam o papel do juiz (§ 1) e a organização judiciá-
ria (§ 2) presidem ao exercício de uma das funções essenciais
do Estado, pois a justiça é um dos elementos que constituem a
soberania.

6. H. RO LAN D e L. BOYER, Les institutionsjudiciaires, L'Hermes, 2"ed„


1983, p. 9; ver Th. S. RENOUX e A. ROUX, L'administration de la jusliee en
France, P.U.F., col. "Que sais-je?", vol. 2.816, 1994; E. GUIGOU e outros, Le
lervice public de la justice, ed. Odile Jacob, 1998.
419
TEORIA GERAL DO DIREI K >

1. O papel do juiz

288. - Como a justiça é um direito regalengo, ela procede,


na França, de um monopólio do Estado, desde a abolição das
jurisdições senhoriais pela Revolução. Mas, noutros países, de
estrutura federal, existem concorrentemente jurisdições esta-
duais e jurisdições federais. As relações entre umas e as outras
são variadas. Em certos casos, as jurisdições federais só se
acham no topo da hierarquia. Noutros, como nos Estados Uni-
dos, embora o princípio seja o da competência das jurisdições
estaduais que julgam cerca de 95% dos processos, as jurisdi-
ções federais são às vezes competentes já na primeira instân-
cia, em razão da natureza da lide ou da pessoa dos demandan-
tes, quando a Constituição ou uma lei do Congresso lhes atri-
bui essa competência.
Em direito francês, apenas as cortes e tribunais instituídos
pelo Estado têm o poder de emitir decisões com autoridade da
coisa julgada e força executória. Embora as partes possam
convir em submeter sua contenda a um ou a vários árbitros,
elas continuam submetidas ao controle do Estado, pois as sen-
tenças arbitrais só adquirem força obrigatória com "o exequa-
tur" de um juiz de Estado e são normalmente suscetíveis de
apelação diante das jurisdições judiciárias.
Mas o poder do Estado de administrar a justiça comporta
o dever de julgar: o art. 4 do Cód. Civil prevê que "o juiz que
recusar julgar, a pretexto do silêncio, da obscuridade ou da
insuficiência da lei, poderá ser processado como culpado de
denegação de justiça". Também se admite agora que ele pres-
supõe a igualdade de todos perante o serviço público da justiça
e, para que o princípio de igual acesso de todos à justiça não
seja ilusório, a gratuidade da justiça. Desde a Revolução, os
pleiteantes já não têm de pagar seus juizes (lei de 16-24 de
agosto de 1790). Sobretudo, desde uma lei de 30 de dezembro
de 1977, certo número de custas judiciais já não são assumidas
por eles, mas estão a cargo do Estado. Continuam, porém, a ar-
car com a remuneração dos auxiliares da justiça, oficiais mi-
nisteriais e técnicos que concorrem para seu processo. Por-
3 420
A APLICA ÇÃO DO DIREITO

tanto, não sendo completa a gratuidade da justiça, os jurisdi-


cionados mais modestos podem beneficiar-se da "ajuda juris-
dicional", que lhes permite ser parcial ou totalmente desonera-
dos das custas do processo pelas quais normalmente os plei-
teantes são responsáveis.
Administrar a justiça supõe dois poderes oriundos da au-
toridade do Estado: o poder de dizer o direito e, por conseguin-
te, de pôr fim a uma contestação (jurisdictio) e o poder de
mando (imperium), consistente em injunções destinadas à exe-
cução das decisões. Essa dupla função põe em causa a defini-
ção e o campo do "ato jurisdicional", pois existem autoridades
administrativas que dizem o direito e jurisdições que praticam
atos de administração, ao passo que certas garantias, ligadas à
idéia de contestação, não se lhes impõem. A incerteza da no-
ção de ato jurisdicional, a despeito das importantes conse-
qüências que lhe são vinculadas, imporá deter-se nela (B) de-
pois de ter definido a missão do juiz (A).

A. A missão do juiz

289. - A missão do juiz, relacionada com considerações


históricas e ideológicas, não é a mesma em todos os sistemas
jurídicos. O direito inglês continua a ser, apesar do desenvolvi-
mento contemporâneo da lei e da regulamentação, um direito
jurisprudencial (case law). Cabe ao juiz inglês a função de se
pronunciar sobre uma espécie concreta levando em conta
"precedentes" e, talvez, de descobrir assim a legal rule nova
que será aplicada à espécie. Assim, o common law foi criado
pelas Cortes Reais de Westminster. As decisões enunciadas pelas
Cortes superiores, ou seja, pela Supreme Court of Judicature e
pela Câmara dos Lordes, têm valor de precedentes obrigató-
rios: as jurisdições inferiores devem ater-se a elas e respeitar as
regras expostas pelos juizes (stare decisis). Assim, contraria-
mente aos direitos romano-germânicos, os princípios do direi-
to não resultam, em direito inglês, de uni corpo de regras prees-
tabelecido, mas da jurisprudência, cujo papel é de evidenciar
421
TEORIA GERAL DO DIREI K >

as regras de direito e não de aplicar princípios pré-constituí-


dos. Dá-se o mesmo em direito americano, ainda que ali a le-
gislação (statute law) tenha maior importância e a estrutura fe-
deral dos Estados Unidos leve a diversificar e flexibilizar a
regra do stare decisis, de modo que as reviravoltas de jurispru-
dência da Corte Suprema dos Estados Unidos e das cortes su-
premas dos diferentes Estados permitem uma evolução maior
e uma uniformização relativa do direito. No sistema soviético,
em que o direito era estreitamente ligado à política dos diri-
gentes, a jurisprudência era, ao contrário, confinada a um pa-
pel estrito de interpretação da lei à qual eram submetidos os
juizes (art. 112 da Constituição soviética) e que constituía, na
ausência de qualquer órgão de controle de sua constitucionali-
dade, a regra suprema. O papel dos tribunais se limitava por-
tanto, na URSS, a aplicar textos, sem ter de criar, de adaptar ou
de fazer o direito evoluir 7 .
290. - O direito francês repousa numa concepção interme-
diária. Os revolucionários de 1789, lembrando-se das resistên-
cias que a monarquia encontrara nos parlamentos, desconfia-
ram dos tribunais e lhes denegaram o poder de criar o direito.
A separação dos poderes tornou-se, sob a influência de Mon-
tesquieu, o dogma do direito público francês: ela implica que o
Poder Legislativo pertença apenas ao Parlamento que repre-
senta a vontade geral, ao passo que, segundo a lei de 16-24 de
agosto de 1790, "os tribunais não podem ter, direta ou indireta-
mente, nenhuma participação no exercício do Poder Legislati-
vo, nem impedir ou suspender a execução dos decretos do cor-
po legislativo sob pena de prevaricação".
Portanto, se o art. 5 do Cód. Civil veda "aos juizes pro-
nunciar por via de disposição geral e regulamentar sobre as
causas que lhes são submetidas" e, proibindo assim o ressurgi-

7. R. DAVID, Les grands systèmes de drrnl contemporain, 8? ed. de C.


Jauffret-Spinosi, n" 223 ss. Quanto ao direito inglês, vei n?s 330 ss.; sob a direção
de J. A. JOLOW1CZ, Droit atiglais, Précis Dalloz, 2? ed., 1992, n" 53 s. No tine
tange ao direito americano, ver E. A. FARNSWORTH. Introduetion au système
juridique des Etats-Ur\is,iA. L.G.D.J., Paris, 1986, pp. 61 s.
3 422
A APLICA ÇÃO DO DIREITO

mento dos "arestos de regulamentação", limita a autoridade


das sentenças aos processos sobre os quais eles estatuem, já
não se trata de reduzir o papel do juiz ao de uma "boca pela
qual fala a lei"8. A lei já não é todo o direito. Ela escapa, du-
rante sua vida, "à dominação de seu criador" e, se guia o juiz,
penetra no meio jurídico mediante o Poder Judiciário incumbi-
do de aplicá-la, de fazê-la viver9.
Costumou-se evocar "o poder de rejuvenescimento" que
pertence ao Poder Judiciário e a necessidade, ainda que à custa
de uma reviravolta, "de poupar aos jurisdicionados os inconve-
nientes de um direito envelhecido". Não se pode atualmente
recusar seriamente à jurisprudência, portanto aos juizes, um
papel criador de direito. No entanto, essa concepção dinâmica
e sadia da missão do juiz não pode levar a reconhecer-lhe o
direito de fazer da justiça um instrumento de transformação da
sociedade antecipando as eventuais reformas ou favorecendo
certas categorias de jurisdicionados.
No início do século, uns magistrados se propuseram, me-
diante uma interpretação dos textos, a introduzir um tipo de
socialismo jurídico. Em nossos dias, alguns proclamam que a
função de julgar é um "ato político". Ora, isto é um contra-sen-
so, uma desnaturação de nossas instituições segundo as quais
as escolhas essenciais de sociedade dependem unicamente dos
órgãos políticos eleitos, responsáveis perante o sufrágio uni-
versal e aos quais nenhum corpo, ainda que seja o corpo judi-
ciário, tem o direito de se substituir: isso seria contrário ao
princípio da separação dos poderes, à Declaração dos Direitos
do Homem de 1789 e ao princípio de "neutralidade do juiz"
consagrado pela Convenção Européia dos Direitos do Homem
(art. 61).
Os deveres do juiz são tão importantes quanto os seus po-
deres: o poder de julgar obriga o juiz. Nos sistemas romano-

8. Ch. PERELMAN, Logique juridique - Nonvelle rhétorique, ed. Dalloz,


1979, n° 87.
9. G. RIPERT,LesJòrces créatrices du droit, ed. L.G.D.J., 1955, n? 165.
423
TEORIA GERAL DO DIREI K >

germânicos, o juiz tem a missão de aplicar a lei. Não poderia


impunemente ignorá-la. nem desconhecê-la. Tampouco pode-
ria fazer prevalecer seus impulsos, seus sentimentos ou suas
concepções pessoais que apresentam o risco de ser incertos ou
arbitrários. Os jurisdicionados devem ser preservados de todo
desvio de poder do juiz e de todo abuso do direito de julgar. Os
litigantes devem poder prever ao que se expõem e não pode-
riam ficar entregues às eventualidades dos caprichos de certos
juizes. Trata-se aí da segurança jurídica elementar a qual têm o
direito de pretender. Para tanto, são necessários juizes sérios,
competentes e serenos, e não pseudojusticeiros.
A satisfação dessas exigências está ligada a problemas
difíceis, tais como o da formação e do recrutamento dos magis-
trados ou o da responsabilidade deles. É quase inconcebível
que sejam irresponsáveis, mas a responsabilidade deles não
deve minar-lhes a autoridade, nem lhes paralisar a ação... As-
segurar da melhor forma a qualidade de todos os profissionais
do direito é uma imperiosa necessidade. Seja como for, o direi-
to deve enquadrar a administração da justiça: o sistema jurídi-
co poderia ser um sistema de regulação social quase perfeito,
ainda que isso possa parecer utópico, ao passo que a justiça
comporta uma parte incompreensível de incerteza e de imper-
feição ligada a inevitáveis carências materiais e humanas. Por
isso, cumpre que tanto o próprio processo como todos os seus
atores, os pleiteantes bem como o juiz, fiquem sujeitos a prin-
cípios e mecanismos claros, apropriados e incontornáveis.
291. - A separação dos poderes Legislativo, Executivo e Ju-
diciário, concebida de maneira estrita, quase não sobreviveu às
utopias da Constituição de 1791. A autonomia do Poder Judi-
ciário fora, aliás, concebida, sob a Revolução, como um meio
de lhe limitar as prerrogativas, e a Constituição de 1958, de
maneira significativa, utiliza em seu título VIII o vocábulo
"Autoridade judiciária" e não mais "Poder" Judiciário.
Ocorre que, para assegurar as liberdades essenciais, o juiz
deve ser independente. O exercício de sua missão depende das
relações que mantém não só com o Poder Legislativo, mas so-
bretudo com o Poder Executivo.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 424

A proteção do juiz relativamente ao Poder Legislativo su-


põe que este não possa impor a procedimentos em curso novas
regras legais nem modificar os efeitos de decisões anterior-
mente emitidas. O princípio de não-retroatividade da lei10 evita
lais invasões prejudiciais à segurança do litigante, apesar de
algumas atenuações ou exceções ligadas à adoção de leis inter-
pretativas ou de validação. Em face do Poder Executivo, a inde-
pendência do juiz supõe que ele esteja ao abrigo de qualquer
pressão dos poderes públicos. Segundo a Convenção Européia
dos Direitos do Homem, "toda pessoa tem direito a que sua
causa seja ouvida eqüitativa, publicamente e dentro de um pra-
zo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabe-
lecido pela lei..." (art. 6-1).
Na França, como o juiz profissional é um funcionário
público, com a exceção da eletividade dos membros de certas
jurisdições profissionais, é o estatuto da magistratura que deve
assegurar "a independência da autoridade judiciária" garanti-
da pelo Presidente da República, segundo o art. 64, al. 1, da
Constituição. Esse estatuto constitui os magistrados em um cor-
po especial que, salvo exceções, é impermeável aos outros
corpos da função pública; ele organiza, sob a égide de orga-
nismos consultivos independentes, o desenrolar da carreira
dos magistrados e, para os magistrados da ordem judiciária,
consagra a irremovibilidade dos juizes togados que impede
removê-los sem seu consentimento. A composição e as atri-
buições do Conselho Superior da Magistratura foram mais
uma vez modificadas em 1998, para aumentar-lhe a indepen-
dência e fornecer aos magistrados togados e, daí em diante
mesmo aos membros do ministério público, garantias estatu-
tárias reforçadas. A independência dos juizes, proclamada sob
todos os regimes (art. 112 da Constituição soviética, por exem-
plo), mas amiúde ilusória, é na França uma realidade, a des-
peito das controvérsias às vezes facciosas e das raras imper-
feições que ela ocasionou.

10. Ver supra, n os 111-2.


425
TEORIA GERAL DO DIREI K >

Mas, se o juiz necessita de garantias de independência, é


porque sua função essencial é dirimir litígios pronunciando
sentenças cuja imparcialidade está ligada à liberdade de seu
autor, que estatui segundo regras de forma protetoras do equi-
líbrio e da segurança jurídica das partes. Daí resulta uma espe-
cificidade dos atos jurisdicionais à qual se reportam importan-
tes conseqüências.

B. Os atos jurisdicionais

292. - Os atos jurisdicionais são revestidos da autoridade


da coisa julgada e acompanhados de vias de recurso. Implicam
em princípio a perda de competência do juiz de que emanam.
Portanto, é essencial investigar-lhes o critério, se bem que se
trate de uma noção sutil e incerta. Cumpre primeiro observar
que nem todos os modos de solucionamento dos litígios são
jurisdicionais e, vice-versa, que os tribunais costumam praticar
atos não-jurisdicionais. Certas lides terminam com uma conci-
liação das partes, com uma transação ou uma mediação e, em
direito administrativo, com um recurso gracioso ou hierárqui-
co: as partes entendem então, por diferentes razões, terminá-lo
de um modo diferente que não seja uma solução puramente
jurídica imposta por um tribunal.
Por outro lado, os tribunais judiciários e administrativos
costumam ter atividades não-jurisdicionais. Os juizes têm de
decidir numerosas medidas destinadas a assegurar o bom fun-
cionamento do serviço da justiça e correspondente à adminis-
tração de um tribunal (inscrição dos processos na pauta das
audiências ou organização do serviço dos magistrados) ou à
administração dos procedimentos (fixação do calendário das
operações). Trata-se então de simples "'atos de administração
judiciária" que não constituem julgamentos e não ensejam
recursos.
As "decisões graciosas" têm uma natureza muito mais
ambígua: por definição, o juiz só estatui em matéria graciosa
em "ausência de litígio" nascido e atual; mas sua intervenção
3 426
A APLICA ÇÃO DO DIREITO

supõe uma petição "da qual a lei exige, em razão da natureza


do caso ou da qualidade do requerente, que seja submetida ao
seu controle" 11 . Apesar de certas afinidades, é difícil assimilar
os atos graciosos aos atos jurisdicionais: os "princípios direto-
res do processo" são eludidos em matéria graciosa; os efeitos
dos atos jurisdicionais são esbatidos ou excluídos para os atos
graciosos. A decisão graciosa está, em última análise, no meio
do caminho entre o ato administrativo e o ato jurisdicional 12 .
A atividade propriamente jurisdicional do juiz consiste
em dirimir uma lide cujo solucionamento supõe um mecanis-
mo complexo, protetor de todos os interesses envolvidos e por
hipótese contraditórios. O juiz tem, dentro dessa perspectiva,
um poder duplo: o poder de dizer o direito (jurisdictio) ao de-
clarar, dentre as pretensões em conflito, a que é conforme ao
direito em vigor e o poder de ordenar a execução de sua deci-
são (imperium), eventualmente pela força pública.
293. - Etimologicamente, "o ato jurisdicional" é, pois,
aquele pelo qual um juiz "diz o direito". Mas, para além da
aparente simplicidade dessa definição, em geral é difícil quali-
ficar os atos dos juizes civis, repressivos ou administrativos.
As controvérsias doutrinais relativas ao conceito e aos critérios
do ato jurisdicional são inesgotáveis, tanto entre os especialis-
tas do direito público como entre os do direito privado.
Muito esquematicamente, os autores geralmente aderem a
duas séries de critérios, critérios formais e critérios materiais.
Se nos atemos aos critérios formais, devemos qualificar de ju-
risdicionais os atos emanantes de tribunais especializados, hie-
rarquizados e independentes (critério orgânico) e que aplicam
o direito seguindo regras particulares de processo (critério pro-
cessual). Mas tais critérios são insuficientes; as jurisdições ad-
ministrativas, sobretudo, têm importantes atividades não-juris-

11. Art. 25 NCPC; ver também J. L. BERGEL, La juridiction gracieuse en


droit français\ D. L983.1, pp. 153 s. e Juridiction gracieuse et matière contentieu-
se, D., 1983,1, pp. 165s.
12. H. SOLUS e R. PERROT, Droit fitdiciaire prive, ed. Sirey, 1961, t. I,
n? 484.
427
TEORIA GERAL DO DIREI K >

dicionais, como organismos consultivos do governo e das ad-


ministrações notadamente; inversamente, alguns órgãos admi-
nistrativos às vezes têm uma atividade jurisdicional. Cumpre
então referir-se a critérios materiais.
Os critérios materiais são igualmente diversos, conforme
os autores. Alguns enfatizam a idéia de contestação; outros se
concentram na estrutura do ato; outros, enfim, em sua finali-
dade. Segundo o critério de finalidade, o ato jurisdicional se
caracterizaria pela meta que o juiz persegue, que é a de zelar
pelo respeito à ordem jurídica, ao passo que o administrador só
visaria o bom funcionamento dos serviços públicos dentro do
interesse geral. Para uma parte da doutrina, o ato jurisdicional
teria uma estrutura própria, pois, consecutivamente a uma pre-
tensão, o juiz lhe constata o direito e infere-lhe a conseqüência
com uma decisão. Certos autores chegam a reduzir o critério
do ato jurisdicional à fase de constatação do direito. Esses cri-
térios são maleáveis demais, sutis demais ou extensivos de-
mais para ser satisfatórios. É mais realista definir o ato jurisdi-
cional como aquele que tem a função de dirimir um litígio, no
sentido lato, ou seja, de estatuir sobre um conflito entre preten-
sões contrárias.
Mas a doutrina e a jurisprudência atual têm tendência a
combinar os diferentes critérios formais e materiais.
294. - Pode-se sustentar que, perante as jurisdições admi-
nistrativas, os critérios formais ficam mais manifestos e que,
vice-versa, os critérios materiais prevalecem perante as jurisdi-
ções judiciárias. Mas, sendo o objetivo da função jurisdicional
verificar situações jurídicas, os órgãos de que emanam os atos
e as formas processuais de que são acompanhados 13 são indi-
cadores, não podendo nenhum deles ser desprezado. Certos
atos são, de fato, jurisdicionais no sentido material, mas não
no sentido formal, tal como a anulação por ilegalidade feita por
um funcionário de um ato de um de seus subordinados; outros,
tais como sentenças que ordenam um inquérito, emanante de

13. J. VINCENTe S. GUINCHARD, Procédure atile, n? 83.


3 428
A APLICA ÇÃO DO DIREITO

uma jurisdição, são jurisdicionais do ponto de vista formal, mas


não o são no sentido material.
Por conseguinte, pode-se admitir que um ato é jurisdicio-
nal se emana de um órgão jurisdicional, segundo regras parti-
culares de processo a fim de verificar a regularidade de uma
situação jurídica 14 . Pode-se, de modo mais simples ainda, esta-
belecer em principio que "o ato jurisdicional é aquele que de
um lado emana de uma jurisdição e que, do outro, dirime um
litígio entre dois adversários" 15 . É apenas para esse tipo de ato
c dentro da perspectiva do solucionamento de um litígio que se
justificam o regime e os efeitos específicos dos atos jurisdicio-
nais. Com efeito, é de acordo com a idéia de litígio que o ato
jurisdicional deve ser motivado, que ele só se concebe com uma
contradição prévia, que, uma vez pronunciado, já não pode ser
modificado senão no âmbito estrito das vias de recurso e que
tem a autoridade de coisa julgada e força executória 16 .
Mas esses diferentes princípios quase só são concebidos
no âmbito das instituições judiciárias estruturadas e organiza-
das segundo alguns princípios essenciais.

2. Princípios gerais da organização jurisdicional

295. - Para além dos particularismos dos diferentes siste-


mas de direito quanto ao estatuto dos juizes, eleitos num país,
como nos Estados Unidos (em quarenta estados), funcionários
noutro, como na França, recrutados entre os advogados ou
outros juristas experientes alhures (Grã-Bretanha, países do
Commonwealth, juizes federais e jurisdições de certos estados
nos Estados Unidos), quase todos os países procuram com sua
organização jurisdicional conciliar a imparcialidade e a apti-

14. J. VINCENT, S. GUINCHARD, G. MONTAGNIER e A. VARINARD,


La justice et ses instilutions, n? 854.
15. R. PERROT, /nstitutions judiciaires, ed. Montchrestien, 1983, n?s
568 ss.
16. Ibidern.
429 TEORIA GERAL DO DIREI K >

dão técnica dos juizes com a rapidez, a economia e a comodi-


dade do processo para o jurisdicionado. A esse respeito, cada
ordem jurídica nacional estabelece seu próprio ponto de equi-
líbrio "consoante suas tradições históricas, o temperamento de
seu povo, sua ideologia política e... coerções de seu orçamen-
to" 17 . Mas, em todos os países, a qualidade da justiça, buscada
através da organização jurisdicional, se cristaliza em torno de
três grandes problemas: a competência das jurisdições (A), a
hierarquia e as vias de recurso delas (B), a questão do colegia-
do ou do juiz único (C).

A. A competência das jurisdições

296. - A competência de uma jurisdição pode ser definida


como a extensão do poder de julgar que lhe é atribuído. A fun-
ção jurisdicional é, de fato, repartida em uma profusão de ór-
gãos, sendo que cada um deles só pode exercer essa função
num campo determinado.
A competência das jurisdições depende de dois parâme-
tros correspondentes à sua competência de atribuição e à sua
competência territorial (a). Mas a competência de atribuição
das jurisdições é dominada pelo problema da unidade ou da
dualidade das jurisdições judiciárias e administrativas (b) e pelo
do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis (c).

a) Competência de atribuição e competência territorial


297. - A "competência de atribuição" das jurisdições de-
termina os tipos de causas que elas têm o poder de julgar de
acordo com a natureza ou com o objeto das relações jurídicas
em questão, com a importância do litígio ou com a qualidade
pessoal das partes. Com efeito, os diversos sistemas jurídicos
contemporâneos não atribuem a um órgão único a universali-
dade das competências, mas comportam em graus variáveis

17. H. ROLLAND e L. BOYER, op. cit., p.33.


3 430
A APLICA ÇÃO DO DIREITO

uma diversificação dos órgãos jurisdicionais ou parajurisdicio-


nais entre os quais eles dividem as competências a fim de rea-
lizar uma boa adequação do juiz à lide18. A "competência ter-
ritorial" determina, entre todas as jurisdições de igual catego-
ria distribuídas no território, aquela perante a qual uma causa
deve ser levada. Os diversos sistemas jurídicos consagram as-
sim, em graus diversos e segundo imperativos geográficos ou
considerações de estrutura política e jurisdicional, uma "dis-
persão geográfica das causas de mesmo gênero entre os múlti-
plos exemplares de um mesmo tipo de jurisdição". A distribui-
ção territorial das causas depende então dos vínculos que as
prendem à alçada das diversas jurisdições, conforme a locali-
zação de um dos litigantes ou do objeto do litígio.
Assim, a primeira questão que todo demandante deve re-
solver é a de saber perante qual jurisdição, material e territorial-
mente competente a um só tempo, deve dirigir seu processo.
298. - Na França, por exemplo, tratando-se de uma causa
dependente da competência do tribunal de grande instância, o
demandante deve determinar, dentre os cento e oitenta e um
tribunais de grande instância existentes, o que é competente
para julgar sua causa. A regra geral então é, salvo disposições
contrárias próprias dos tipos de determinadas causas, que é o
tribunal do lugar onde reside o demandado que é territorial-
mente competente.
Mas a dispersão geográfica dos tribunais tem maior ou
menor importância conforme a natureza e o grau deles. O prin-
cípio é que se passe da multiplicidade à unidade e da descon-
centraçào à concentração, à medida que se vai elevando na hie-
rarquia das jurisdições. Assim, na França, existem quatrocen-
tos e setenta tribunais de instância, mas somente cento e oitenta
e um tribunais de grande instância, depois trinta e sete tribu-
nais de apelação que conduzem a uma jurisdição suprema úni-
ca na ordem judiciária, a Corte de Cassação. Na ordem admi-
nistrativa, para trinta e cinco tribunais administrativos, sete tri-

18. H. ROLLAND e L. BOYER, op. cit.. pp. 35 ss.


431
TEORIA GERAL DO DIREI K >

bunais administrativos de apelação e vinte e quatro câmaras


regionais de contas, só existe, no nível superior, uma única juris-
dição administrativa, o Conselho de Estado, e uma única jurisdi-
ção financeira, por sua vez submetida ao controle de cassação
do Conselho de Estado, o Tribunal de Contas.
A organização judiciária inglesa é caracterizada, ao con-
trário, por sua concentração em Londres, traduzida por uma
única jurisdição superior, a "Supreme Court of Judicature",
sobre a qual se exerce o controle muito excepcional da Câmara
dos Lordes. Ora, a "Supreme Court of Judicature" à qual po-
dem, em princípio e em todos os casos, recorrer diretamente os
pleiteantes, não conhece então, na prática, os processos e os
envia a um tribunal inferior. Ela pode, inversamente, avocar a
si qualquer lide em curso noutro tribunal. Mas, para além des-
sa concentração de princípio, 90% das causas cíveis são julga-
das pelos tribunais de condado, 95% das infrações penais
maiores são submetidas às "Magistrates'courts" ou às "Crown
courts"; a grande maioria dos litígios administrativos é solu-
cionada por diversas comissões. A desconcentração em maté-
ria de equity se opera graças a dois tribunais situados em
Durham e em Manchester; em matéria de common law, ela é
realizada por visitas de "júris" à província dos juizes da Corte
Suprema ("Queen's bench division" ou family division da
"High Court of Justice"); em matéria de divórcio, commissio-
ners exercem permanentemente nas cinqüenta e três cidades as
funções reservadas aos juizes da Corte Suprema.
Nos Estados Unidos, seguindo a estrutura institucional, a
organização judiciária é dominada pela distinção entre as ju-
risdições federais e as jurisdições estaduais. Mas, entre as cor-
tes federais, distinguem-se, no grau inferior, uns cem tribu-
nais distritais, ao passo que existem onze "U. S. Circuit Courts
of Appeals". Ademais, suas audiências são desconcentradas
nas subdivisões dos distritos e nas principais cidades de sua
alçada 19 .

19. R. DAV1D, Les gromds systèmes de droit conternporain, 10? ed., de C,


JAUFFRET-SPINOSI, n° 390.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 432

299. - No plano da competência de atribuição, a distribui-


ção entre as diversas jurisdições das diferentes categorias de
causas por julgar se apóia na distinção entre jurisdições de
direito comum e jurisdições de exceção. As primeiras têm uma
competência de princípio para conhecer de todos os litígios
que não são especialmente atribuídos por um texto particular a
uma jurisdição de exceção: a competência delas é residual. As
jurisdições de exceção têm, em compensação, uma competên-
cia limitativa, que lhes é expressamente atribuída por um texto
especial, que derroga a competência geral das jurisdições de
direito comum, de acordo com a natureza do litígio, a sua im-
portância ou a qualidade das partes.
Assim, na França, na ordem judiciária, o tribunal de gran-
de instância é juiz de direito comum, ao passo que os tribunais
de comércio, a justiça do trabalho, os tribunais paritários de
arrendamentos rurais etc. são jurisdições de exceção. Na ordem
administrativa, ao lado da jurisdição de direito comum que o
tribunal administrativo é, encontram-se diversas jurisdições de
exceção, tais como o Conselho de Estado, as câmaras regio-
nais de contas, a Corte de Disciplina Orçamentária, as câmaras
de disciplina das ordens profissionais etc. Mas a diversidade
das jurisdições e de suas competências materiais quase só exis-
te no plano das jurisdições de primeiro grau. A unidade orgâ-
nica, com a exceção de divisões internas, se restabelece nos
escalões superiores da hierarquia, ou seja, no plano dos tribu-
nais de apelação e da Corte de Cassação e, no que tange às ju-
risdições administrativas, do Conselho de Estado.
Encontramos, nos outros países, fenômenos idênticos. Na
Inglaterra, existe também uma grande variedade de jurisdi-
ções inferiores com uma competência material particular: as
"County courts" têm uma larguíssima competência; em maté-
ria penal, são as "Magistrates'courts" e as "Crown courts" que
o mais das vezes estatuem; em matéria administrativa, existem
diversos órgãos: "Boards", "Commissions" ou "Tribunais". Mas
apenas os juizes da "Supreme Court of Judicature" e da "Câ-
mara dos Lordes" são verdadeiramente depositários do poder
judiciário, e apenas a Corte Suprema detém uma competência
433 TEORIA GERAL DO DIREI K >

geral para todas as causas. Ora, a Corte Suprema é juiz em


apelação dos tribunais inferiores e dos órgãos competentes em
matéria administrativa. Ela tem a plenitude de jurisdição para
todas as causas. Nos Estados Unidos, existem, além dos tribu-
nais federais de direito comum, tribunais federais especiais
com competência em matérias particulares, mas sempre é pos-
sível apelar contra as decisões deles perante os tribunais fede-
rais de direito comum. Quanto às jurisdições dos Estados, cuja
organização é variável, elas comportam, ao lado das Cortes Su-
premas ou jurisdições análogas, jurisdições dc exceção muito
variadas.
300. - A distribuição das causas segundo as regras que re-
gem a competência de atribuição das jurisdições desconhece
às vezes a heterogeneidade dos diversos aspectos de uma mes-
ma causa que são suscetíveis de reportá-la a dois juizes dife-
rentes. Tais dificuldades são o mais das vezes resolvidas gra-
ças à "plenitude de jurisdição" dos tribunais que lhes confere
uma competência virtual para estatuir sobre questões normal-
mente alheias à competência deles; isso permite, por exemplo,
ao próprio juiz penal apreciar a legalidade de um ato regula-
mentar quando este rege a aplicação dc uma pena. O art. 111.5
do novo Código Penal francês prevê agora expressamente que
as jurisdições penais são competentes para interpretar os atos
administrativos, regulamentares ou individuais e para apreciar
sua legalidade quando desse exame depende a solução do pro-
cesso penal que lhes é submetido.
Mas cumpre observar que, em princípio, apenas as juris-
dições de direito comum podem ter plenitude de competên-
cia, já que as jurisdições de exceção têm apenas uma compe-
tência limitativa. Ainda c preciso que elas não colidam com a
competência exclusiva de outro juiz que as obriga, diante de
uma questão prejudicial, a diferir estatuir até que este último
tenha dirimido a dificuldade. Mas em geral é entre jurisdi-
ções judiciárias e jurisdições administrativas que surge esse
problema.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 434

b) Unidade ou dualidade das jurisdições


judiciárias e administrativas
301. - Em direito inglês e em inúmeros direitos estrangei-
ros que nele se inspiraram, tal como o direito indiano, não
existe distinção entre direito público e direito privado. Neles
reconhece-se ao juiz o direito de exercer um controle sobre
todo o contencioso, seja o autor de uma violação um particular
ou a administração pública. Por conseguinte, apesar de nume-
rosas comissões administrativas no grau inferior, não existe, na
Inglaterra, uma hierarquia de jurisdições administrativas dis-
tinta daquela das jurisdições ordinárias, nem jurisdição supe-
rior especial para o contencioso administrativo.
Nos sistemas de direito romano-germânicos, muitos paí-
ses ignoram os tribunais administrativos; é o que se dá na Di-
namarca, na Noruega, no Brasil, no México ou na Venezuela;
outros, como a Espanha, a Suíça, Cuba e muitos Estados afri-
canos de língua francesa, submetem em último recurso os pro-
cessos administrativos a uma câmara especial da corte supre-
ma deles. Existe, em compensação, certo número de direitos
europeus (Alemanha. Bélgica, França, Itália, Suécia, Finlân-
dia) e sul-americanos (Colômbia, Panamá, Uruguai) que com-
portam uma hierarquia especial de jurisdições administrativas.
Na França, é do sacrossanto princípio da separação dos
poderes que procedem a instituição de jurisdições administra-
tivas e a dualidade das ordens de jurisdições. A lei de 16-24 de
agosto de 1790 proibiu aos juizes "perturbar, de qualquer ma-
neira que seja, as operações dos corpos administrativos" e "ci-
tar diante deles os administradores em razão de suas funções".
Isso levou a excluir a competência dos tribunais judiciários
para conhecer os atos da administração pública e a criar pro-
gressivamente órgãos consultivos, depois jurisdicionais, pró-
prios do contencioso, administrativo e tornados hoje indepen-
dentes da administração pública. A autonomia das jurisdições
administrativas, dos tribunais administrativos, das cortes ad-
ministrativas de apelação e do Conselho de Estado permitiu o
desenvolvimento de um direito administrativo autônomo, de
origem essencialmente pretoriana, de modo que cada ordem de
435
TEORIA GERAL DO DIREI K >

jurisdição aplica agora as regras de fundo que lhe são próprias.


Mas a dualidade das ordens jurisdicionais se atenuou na medi-
da em que as jurisdições administrativas aplicam as regras de
direito privado quando a aplicação de regras específicas não se
impõe, assim como os tribunais judiciários às vezes aplicam o
direito administrativo. O Tribunal dos Conflitos tem a missão
de solucionar os conflitos de competência entre as duas ordens de
jurisdições e de estatuir no mérito, em caso de contrariedade en-
tre sentenças dadas num mesmo processo pelas jurisdições da
ordem judiciária e da ordem administrativa.

c) O controle da constitucionalidade das leis


302. - O controle da constitucionalidade das leis pode, se
se privilegia a garantia dos direitos dos cidadãos, ser apenas
um aspecto do controle jurisdicional da licitude das situações
jurídicas. Se, em compensação, concentramo-nos mais na idéia
de segurança jurídica, para evitar que a validade das leis possa
ser questionada por muito tempo, convém dissociar o controle
da conformidade das leis à Constituição do resto do contencio-
so, submetendo-o a uma jurisdição especial num prazo limi-
tado, até mesmo eludir todo controle de constitucionalidade.
Na França, por causa da hostilidade do legislador revolu-
cionário contra qualquer risco do governo dos juizes e da sobe-
rania da lei, herdada do "contrato social" de Rousseau e trans-
posta no art. 6 da Declaração dos Direitos de 1789, o direito
positivo clássico descartara qualquer controle da constitucio-
nalidade das leis pelos tribunais.
Ao inverso, o direito americano é o campo privilegiado do
controle jurisdicional de constitucionalidade, uma vez que nos
Estados Unidos não só a Corte Suprema mas todas as jurisdi-
ções podem verificara conformidade da lei à letra e até ao es-
pírito da Constituição. Todo demandante pode, no decorrer de
um processo, levantar uma exceção de ilegalidade de um texto.
Conquanto a lei julgada inconstitucional não seja então anula-
da, mas somente descartada para o processo em curso, a decla-
ração da inconstitucionalidade de uma lei por uma jurisdição
com autoridade tem, dada a regra do precedente, um efeito não
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 436

só sobre a jurisprudência posterior, mas também sobre o pró-


prio legislador que é levado a corrigir essa lei. Assim também,
toda decisão judiciária contrária a uma regra prescrita pela
Constituição dos Estados Unidos pode ser anulada 20 .
O controle de constitucionalidade pode assumir as mais
diversas formas. Pode ser confiado a uma assembléia política,
a juizes togados ou a um órgão misto com composição diversi-
ficada e dotado de poderes jurisdicionais, como na França
atualmente. Pode-se conceber permitir esse controle, por via
de ação ou por via de exceção, à petição dos particulares ou so-
mente de pessoas, de órgãos ou de grupos determinados, den-
tro de um prazo limitado ou não... Contrariamente ao sistema
americano, haveria um "modelo europeu de justiça consti-
tucional" 21 .
Mas existem em diversos países, como a Alemanha e a
Itália, sistemas intermediários de controle de constitucionali-
dade por uma jurisdição especializada. Foi esse exemplo o se-
guido, na França, pela Constituição de 1958 que, por outro
lado, consagrou um nítido declínio da lei e do poder parlamen-
tar. Ela criou um órgão especial, o Conselho Constitucional,
que, de ofício ou chamado por certas autoridades, é, até a pro-
mulgação delas, juiz da constitucionalidade das leis, sem com
isso depender da autoridade judiciária. Não se tratando de uma
Corte Suprema, ele não constitui o topo da hierarquia judiciá-
ria. O sistema francês, destinado no início a assegurar um con-
trole mínimo de constitucionalidade, desenvolveu-se conside-
ravelmente agora. O Conselho Constitucional tem daí em dian-
te uma função política que se junta à sua função jurisdicional.
Não somente ele anula textos inconstitucionais, mas também
preconiza certas interpretações ou exclui outras, para garantir

20. H. J. ABRAHAM, The Judicial Process, 5a ed., Oxford University


Press, 1986; R. PIZZO-RUSSO, Lan m the Making., ed. Springer-Verlag. Berlim,
Heidelberg, Nova York..., 1988, pp. 159 s.; C. CADOUX, Droil constitutionnelet
institutionspolitiijues, i. I, 2? ed. Cujas, Paris, 1980, pp. 140 s.
21. L. FAYOREU, Les cours constitutiormelies, ed. P.U.F., eol. "Que sais-
je?", Paris, 1986.
436 TEORIA GERALDO DIREITO

a conformidade à Constituição do sentido dado a certos textos


que ele se abstém de censurar. Não parece, contudo, que as
jurisdições civis e administrativas se submetam realmente a
essas diretrizes...

B. Hierarquia das jurisdições e vias de recursos

303. - A idéia de hierarquia pode parecer insólita em ma-


téria judiciária na qual a independência do juiz é a condição de
uma boa justiça. A hierarquia das jurisdições tem nela um sen-
tido particular: ela não afeta a liberdade de decisão do juiz
mas, sabendo que nunca ele é infalível, permite somente ao
pleiteante provocar um novo exame de seu processo por uma
jurisdição superior àquela que o dirimiu. Portanto, ela constitui
uma garantia essencial de boa justiça ao permitir a um juiz de
posição mais elevada, dotado de maior autoridade e de mais
longa experiência e mais bem instruído graças ao trabalho de
investigação e de aclaramento de primeira instância, retificar
os erros eventuais dos primeiros juizes.
Por conseguinte, o reconhecimento de uma faculdade de
recurso perante jurisdições hierarquicamente superiores, con-
cebida sob o Antigo Regime como um meio político de impor
a todos a justiça do rei, não é um fenômeno novo nem peculiar
da França. Em todos os sistemas de direito da família romano-
germânica, a organização judiciária é concebida como uma
hierarquia que comporta, com importantes variantes, jurisdi-
ções de primeira instância distribuídas em todo o território de
um país, depois, em número mais restrito, jurisdições de apela-
ção e, enfim, no topo, uma (até mesmo duas) jurisdição supre-
ma cuja função, de apelação, de superapelação ou de cassação,
varia conforme os países. Os direitos anglo-saxões comportam
igualmente uma organização hierárquica de suas jurisdições e,
nos Estados Unidos, uma dupla hierarquia, no interior da ordem
federal e da ordem interna dos estados. Na Inglaterra, a "Su-
preme Court of Judicature" é composta, no primeiro grau, da
"High Court of Justice" e, no segundo grau, da "Court of Appeal"
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 438

que julga igualmente os recursos contra as decisões das juris-


dições inferiores e das comissões administrativas. As decisões
da "Court of Appeal" podem mesmo, excepcionalmente, ser
objeto de um recurso perante a Câmara dos Lordes, jurisdição
suprema não só da Inglaterra mas também de todo o Reino
Unido, e que tem igualmente de conhecer dos recursos contra
os arestos das cortes supremas dos Estados da Commonwealth.
Assim, existe uma trama de princípios comuns a todos os sis-
temas jurídicos referente ã organização judiciária dos diferen-
tes países.
304. - O sistema francês atende largamente a esses princí-
pios mas apresenta importantes particularidades. Conhece de
início uma dupla hierarquia de jurisdições por causa da duali-
dade das jurisdições judiciárias e administrativas com, no topo
da ordem judiciária, a Corte de Cassação e, no topo da ordem
administrativa, o Conselho de Estado, ainda que esta jurisdi-
ção seja, conforme os casos, juiz de primeira instância, juiz de
apelação ou juiz de cassação.
O princípio "do duplo grau de jurisdição" se traduz con-
cretamente pela possibilidade de interpor apelação contra as
decisões emanantes das jurisdições do primeiro grau. Mas
esse princípio não tem a mesma força em todos os contencio-
sos. Muito geral em matéria civil, na qual é apenas muito rara-
mente afastado em razão da modicidade da lide, ele comporta
mais exceções em matéria penal, na qual os arestos dos tribu-
nais de júri não eram tradicionalmente suscetíveis de apelação
pelo fato da soberania do júri popular e na qual certas senten-
ças dos tribunais de polícia são dadas em última instância.
Esbate-se sobretudo no contencioso administrativo no qual o
Conselho de Estado, cada vez que estatui no primeiro grau, o
faz em última instância e no qual existem jurisdições de exce-
ção únicas na França, o que veda a introdução de uma facul-
dade de apelação.
Enfim, o mecanismo do recurso de cassação, cujo objeto
se limita a submeter ao controle da Corte de Cassação a legali-
dade das decisões atingidas por ele, não constitui um terceiro
grau de jurisdição, pois a alta jurisdição só aprecia os meios de
439
TEORIA GERAL DO DIREI K >

direito e não tem de julgar de novo o conjunto da causa. A


Corte de Cassação só pode rejeitar o recurso ou cassar a deci-
são atacada por não-conformidade à regra de direito e remeter
então a causa a outra jurisdição do mesmo grau e de mesma
natureza daquela de que emanava a decisão cassada. Esse me-
canismo de cassação com remissão, ignorado por certos direi-
tos, notadamente pelo direito inglês, pode ser alegado nas hi-
póteses particulares em que a lei acreditou poder, sem risco e
por mais comodidade, admitir cassações sem designação de
outra jurisdição e em que a Corte de Cassação se torna excep-
cionalmente um terceiro grau de jurisdição.
A hierarquia das jurisdições é, portanto, ligada às princi-
pais vias de recurso consagradas pelo direito positivo. Há que
observar, porém, que existem outras vias de recurso que, tra-
tando-se de "vias de retratação", conduzem a um reexame das
causas, pela própria jurisdição que prolatou a decisão em-
preendida (oposição, recurso de revisão, oposição de terceiro),
e não por uma jurisdição superior. Cumpre notar também que
apenas as "vias de recurso ordinários" são normalmente sus-
pensivas de execução e fornecem assim, concreta e plenamen-
te, todas as garantias aos litigantes.

C. Colegiado ou juiz único

305. - Segundo Perelman, "não basta que a decisão pareça


eqüitativa; é necessário ainda que seja conforme ao direito em
vigor e aceitável como tal por aqueles que a examinarão. E
este último aspecto que é favorecido pelo sistema que organiza
os tribunais em colegiados, aos quais, tanto no cível quanto no
penal, são submetidos os litígios mais importantes, pois a deci-
são deverá resultar não da tomada de posição de um só, mas da
unanimidade ou... da maioria que se formará" 22 . O colegiado é
geralmente apresentado, de fato, como uma melhor garantia de

22. Ch. PERELMAN, ap. cit., n? 87.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 440

justiça, esclarecida pela deliberação dos juizes, imparcial pela


neutralização dos eventuais preconceitos e independente gra-
ças à liberdade de decisão gerada pelo anonimato. Mas, à luz
do exemplo anglo-saxão, o juiz único também tem seus defen-
sores segundo os quais, ao passo que o anonimato da sentença
dilui o senso das responsabilidades, o sistema do juiz único o
desenvolve e incentiva o magistrado a elaborar melhor sua de-
cisão. Há, além disso, em todos os países, um aumento consi-
derável da massa do contencioso que leva a reduzir o campo
do colegiado.
Toda posição peremptória é aqui perigosa. O juiz tem
missões heterogêneas: o colegiado é uma garantia na ativida-
de jurisdicional; a unicidade favorece a eficácia se só se trata
de tomar medidas urgentes, de exercer uma tutela ou de seguir
o processo. A escolha entre colegiado e juiz único está ligada
ao modo de recrutamento dos magistrados, pois o sistema do
juiz único pressupõe, mais ainda, uma grande experiência,
uma perfeita imparcialidade, uma total serenidade e uma for-
mação de altíssimo nível dos magistrados. Cumpre também
levar em conta o temperamento dos povos: conforme eles têm
maior ou menor respeito ou reservas perante as autoridades e
a justiça, o juiz único tem melhor ou pior aceitação. Enfim,
tudo depende do grau de jurisdição examinado e da forma de
colegiado utilizada.
Mesmo nos países tradicionalmente apegados ao juiz úni-
co, como a Inglaterra e o Canadá, o sistema do juiz único só é
mantido para as jurisdições do primeiro grau; os partidários do
juiz único não contestam que o colegiado seja necessário no
plano das jurisdições superiores que procedem a um novo
exame das causas: "A censura postula um cotejo dos pontos de
vista que reclama necessariamente a pluralidade." 23
Enfim, o colegiado reveste diversas formas cujos méritos
variam com a natureza dos litígios. Pode tratar-se de jurisdi-
ções homogêneas exclusivamente compostas de magistrados

23. H. ROLAM) e L. BOYER, op. cit., pp. 40 ss.; ver também R. PERROT,
op. cit., n'.* 267 ss.
438 TEORIA GERAL DO DIREI K >

direito e não tem de julgar de novo o conjunto da causa. A


Corte de Cassação só pode rejeitar o recurso ou cassar a deci-
são atacada por não-conformidade à regra de direito e remeter
então a causa a outra jurisdição do mesmo grau e de mesma
natureza daquela de que emanava a decisão cassada. Esse me-
canismo de cassação com remissão, ignorado por certos direi-
tos, notadamente pelo direito inglês, pode ser alegado nas hi-
póteses particulares em que a lei acreditou poder, sem risco e
por mais comodidade, admitir cassações sem designação de
outra jurisdição e em que a Corte de Cassação se torna excep-
cionalmente um terceiro grau de jurisdição.
A hierarquia das jurisdições é, portanto, ligada às princi-
pais vias de recurso consagradas pelo direito positivo. Há que
observar, porém, que existem outras vias de recurso que, tra-
tando-se de "vias de retratação", conduzem a um reexame das
causas, pela própria jurisdição que prolatou a decisão em-
preendida (oposição, recurso de revisão, oposição de terceiro),
e não por uma jurisdição superior. Cumpre notar também que
apenas as "vias de recurso ordinários" são normalmente sus-
pensivas de execução e fornecem assim, concreta e plenamen-
te, todas as garantias aos litigantes.

C. Colegiado ou juiz único

305. - Segundo Perelman, "não basta que a decisão pareça


eqüitativa; é necessário ainda que seja conforme ao direito em
vigor e aceitável como tal por aqueles que a examinarão. E
este último aspecto que é favorecido pelo sistema que organiza
os tribunais em colegiados, aos quais, tanto no cível quanto no
penal, são submetidos os litígios mais importantes, pois a deci-
são deverá resultar não da tomada de posição de um só, mas da
unanimidade ou... da maioria que se formará" 22 . O colegiado é
geralmente apresentado, de fato, como uma melhor garantia de

22. Ch. PERELMAN, op. cit., n° 87.


A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 439

justiça, esclarecida pela deliberação dos juizes, imparcial pela


neutralização dos eventuais preconceitos e independente gra-
ças ã liberdade de decisão gerada pelo anonimato. Mas, à luz
do exemplo anglo-saxão, o juiz único também tem seus defen-
sores segundo os quais, ao passo que o anonimato da sentença
dilui o senso das responsabilidades, o sistema do juiz único o
desenvolve e incentiva o magistrado a elaborar melhor sua de-
cisão. Há, além disso, em todos os países, um aumento consi-
derável da massa do contencioso que leva a reduzir o campo
do colegiado.
Toda posição peremptória é aqui perigosa. O juiz tem
missões heterogêneas: o colegiado é uma garantia na ativida-
de jurisdicional; a unicidade favorece a eficácia se só se trata
de tomar medidas urgentes, de exercer uma tutela ou de seguir
o processo. A escolha entre colegiado e juiz único está ligada
ao modo de recrutamento dos magistrados, pois o sistema do
juiz único pressupõe, mais ainda, uma grande experiência,
uma perfeita imparcialidade, uma total serenidade e uma for-
mação de altíssimo nível dos magistrados. Cumpre também
levar em conta o temperamento dos povos: conforme eles têm
maior ou menor respeito ou reservas perante as autoridades e
a justiça, o juiz único tem melhor ou pior aceitação. Enfim,
tudo depende do grau de jurisdição examinado e da forma de
colegiado utilizada.
Mesmo nos países tradicionalmente apegados ao juiz úni-
co, como a Inglaterra e o Canadá, o sistema do juiz único só é
mantido para as jurisdições do primeiro grau; os partidários do
juiz único não contestam que o colegiado seja necessário no
plano das jurisdições superiores que procedem a um novo
exame das causas: "A censura postula um cotejo dos pontos de
vista que reclama necessariamente a pluralidade." 23
Enfim, o colegiado reveste diversas formas cujos méritos
variam com a natureza dos litígios. Pode tratar-se de jurisdi-
ções homogêneas exclusivamente compostas de magistrados

23. H. ROLAND e L. BOYF.R, op. cit.. pp. 40 ss.; ver também R. PERROT,
op. cit., n'.'s 267 ss.
440 TEORIA GERAL DO DIREI K >

profissionais, sendo esse o caso, na França, de todas as jurisdi-


ções judiciárias e administrativas de direito comum. Pode ser
também uma jurisdição homogênea composta de juizes oca-
sionais ou constituída, com base na "almoçataria", a um só
tempo de magistrados de carreira e de juizes ocasionais, tendo
todos eles as mesmas prerrogativas e contribuindo todos eles
com direitos iguais para a sentença. Enfim, podemos conceber
jurisdições compostas de duas categorias de juizes bem distin-
tos e dotados de poder diferentes, uns, magistrados profissio-
nais, e os outros "jurados" ocasionais que apreciam só os fatos
e não o direito.
Por fim, há que distinguir do verdadeiro colegiado a sim-
ples pluralidade de juizes que o direito inglês conhece: neste
cada qual opina ou manifesta seu voto dissidente, em vez de
integrar-se pelo sigilo numa verdadeira decisão colegiada.
306. - Em direito francês, conquanto o colegiado tenha
classicamente valor de princípio, ele sempre teve exceções.
Diante do aumento constante do contencioso, ele atualmente
está cm nítida regressão, ainda que, como nos outros países,
encontre-se juiz único, na organização judiciária francesa,
quase que só no primeiro grau. Nela o juiz único ocupa, aliás,
um lugar variável. Totalmente excepcional na ordem adminis-
trativa, ele existe tradicionalmente, em matéria penal, no to-
cante ao juiz de instrução e ao tribunal de polícia e se desen-
volveu recentemente em matéria correcional. É sobretudo em
matéria cível que progride: ao lado da unicidade clássica do
tribunal de instância, aparecem novos juizes únicos especiali-
zados. Mormente, o tribunal de grande instância pode a partir
de agora, salvo em certas matérias ou em caso de desacordo de
uma das partes, estatuir com juiz único.
O considerável desenvolvimento dos procedimentos de
medidas cautelares e a extensão dos poderes do juiz de medi-
das cautelares, se permitem remediar parcialmente o atulha-
mento e a lentidão da justiça, comportam ainda assim utn risco
manifesto de decisões precipitadas, irrefletidas ou mesmo ten-
denciosas... Isso fica ainda mais perigoso quando as decisões
são executórias liminarmente e podem ter conseqüências gra-
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 441

ves e irreversíveis quando, muito tempo depois, são censura-


das por uma jurisdição superior.
Em matéria de organização jurisdicional, as intervenções
do legislador contemporâneo são em geral determinadas por
simples razões de economia. Mas os expedientes são aí perni-
ciosos e, mesmo a pretexto de eficácia, a qualidade da justiça
não pode tolerar concessões sem arruinar a credibilidade de
todo Estado de direito e, portanto, comprometer a ordem social.

SEÇÃO II
O processo

307. - E mister reduzir o custo e a duração do processo


para favorecer o acesso à justiça, remediar o atual desinteresse
dos cidadãos pela justiça e restituir à sanção judiciária toda a
sua eficácia 24 . Embora tenham se realizado progressos notá-
veis na França no tocante à gratuidade da justiça, a lentidão
dos processos é inquietante em razão do atulhamento das juris-
dições. Mas não se pode acelerar o processo sem se arriscar a
comprometer certas garantias fundamentais suas, necessárias
ao equilíbrio das relações entre os litigantes e daquelas que se
estabelecem entre os litigantes e o juiz.
Ora, as soluções técnicas variam no tempo e no espaço
conforme a concepção que se tem da função judiciária. "O
processo está situado na encruzilhada do direito público e do
direito privado. Para as partes, o processo é um instrumento de
satisfação dos direitos privados. Mas, para o Estado, é uma
forma de realização do direito." 25 Tudo depende de saber se a
ênfase é dada mais à satisfação dos interesses das partes, con-
cepção individualista e liberal, ou à soberania do direito e da
justiça, concepção mais objetiva. A orientação escolhida deter-

24. Ver "Justice and effíciency", 8th WorldConference on Procedural Law,


ed. W. Wedeking, Kluwer, Haia, 1989.
25. COUTURE, "Le procès comme institution", Rev. int. dr. comp., 1950,
p. 276.
442 TEORIA GERAL DO DIREI K >

mina tanto os caracteres do processo (§ 1) como os princípios


gerais que o regem (§2).

1. Os caracteres gerais do processo

308. - Se admitimos que a única função do processo é


resolver o litígio entre as partes, o juiz não passa de um sim-
ples árbitro e o processo não é mais que a coisa das partes. Se,
em compensação, consideramos o processo como o instrumen-
to de uma aplicação justa e socialmente útil do direito positivo,
o juiz deve ter poderes extensos. A importância respectiva da
liberdade dos litigantes e do cargo do juiz varia, assim, confor-
me o processo é acusatório ou inquisitório.
O procedimento acusatório é aquele no qual as partes têm
um papel preponderante no desencadeamento e na condução
do processo assim como na investigação das provas, ficando o
juiz reduzido a um papel passivo de árbitro sem iniciativa e de
completa neutralidade, zelando pelo respeito às regras do jogo
e dirimindo com sua decisão as pretensões dos litigantes. O
procedimento acusatório, já conhecido das sociedades primiti-
vas, corresponde ao princípio dispositivo segundo o qual as
partes, donas do processo, são livres para desencadeá-lo e ter-
miná-lo, para circunscrever-lhe o objeto e regular-lhe o ritmo;
corresponde em princípio a um procedimento oral, público e
contraditório.
O procedimento inquisitório é aquele em que o juiz tem o
poder de conduzir a instrução, de investigar as provas e de diri-
gir o desenrolar do processo, para fazer surgir a verdade, mes-
mo contra a vontade das partes. Corresponde ao princípio de
indisponibilidade do processo que retira das partes o direito
de terminá-lo e tende para um procedimento escrito, secreto e
não-contraditório, no qual o juiz aprecia as provas segundo sua
convicção íntima.
Cada um desses sistemas apresenta a um só tempo vanta-
gens e inconvenientes; não é concebível consagrar um ou o ou-
tro de maneira exclusiva e absoluta. A história e o direito com-
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 443

parado revelam apenas dominantes acusatórias ou inquisitórias,


conforme as épocas e os países. As variações do direito proces-
sual se expressam mais por matizes do que por contrastes. Mas,
mesmo em direito francês contemporâneo, as soluções adota-
das são diferentes conforme o contencioso considerado.
309. - O processo administrativo é nitidamente inquisitó-
rio: a matéria contenciosa, referente à administração pública,
interessa ao serviço público; existe um desequilíbrio entre as
partes, ficando o demandante em geral desarmado em face de
uma administração pública poderosa que detém sozinha as do-
cumentações e as provas. O juiz deve ter poderes suficientes
para restabelecer o equilíbrio. Por conseguinte, ele manda no
processo desde a petição inicial e detém no plano da prova lar-
guíssimos poderes de iniciativa e de coerção. Mas a adminis-
tração pública é, não obstante, sujeita ao princípio dispositivo,
pois o requerente, com liberdade de iniciar ou não seu proces-
so, pode também livremente desistir ou transigir. Ademais, o
procedimento é nitidamente contraditório.
O processo penal também tem um caráter muito híbrido.
A fase de instrução é nitidamente inquisitória. Embora a ini-
ciativa das ações pertença normalmente ao Ministério Público,
este deixa de dispor delas assim que são entabuladas. O juiz de
instrução dispõe de uma completa iniciativa na busca das pro-
vas. Nele o procedimento é escrito e, em larga medida, sigilo-
so. Mas, para garantir melhor as liberdades, fortaleceram-se
continuadamente os direitos da defesa, cuja importância fun-
damental corrige o caráter inquisitorial do processo que a de-
fesa da ordem social exige. O procedimento acusatório ressur-
ge, aliás, por ocasião da fase de julgamento que, contraditória,
oral e, em princípio, pública, aproxima o processo penal fran-
cês daquele dos países anglo-saxões.
Quanto ao processo civil, classicamente acusatório na tra-
dição liberal dos códigos napoleônicos, por causa da matéria
contenciosa puramente privada e do equilíbrio teórico das par-
tes, ele direcionou-se progressivamente para o inquisitório. A
experiência das manobras protelatórias e dos abusos gerados
pela plena liberdade dos pleiteantes, as incitações da doutrina
444 TEORIA GERAL DO DIREI K >

a um fortalecimento dos poderes do juiz e o exemplo de nume-


rosos direitos estrangeiros levaram a um declínio progressivo
do procedimento acusatório. Esse movimento, iniciado com o
decreto-lei de 30 de outubro de 1935, ampliado em 1965 com
o aparecimento do juiz da mise en état*, cristalizou-se no novo
Código de Processo Civil de 1975. Se a iniciativa, a delimita-
ção e o cessação do processo continuam à mercê das partes, a
condução do processo deixou de lhes caber e o juiz dispõe
agora de poderes mais extensos sobre a administração da pro-
va. Não obstante, o processo continua a ser globalmente acusa-
tório e apenas laivado de inquisitório. Permanece submetido
aos princípios da contradição, da publicidade e da oralidade.

2. Os princípios gerais do processo

310. - Como especifica o art. 1" do Novo Cód. de Pro-


cesso Civil, "Apenas as partes introduzem a instância, afora os
casos em que a lei dispõe de outra maneira". As partes, o
demandante cm matéria civil, o Ministério Público em proces-
so penal, o administrado no contencioso administrativo têm a
iniciativa da instância e, salvo certas áreas (penal notadamen-
te) que interessam à ordem pública, o direito de dar-lhe fim. O
âmbito do processo é então delimitado assim que a instância é
vinculada e soberanamente fixado pelas partes. A fim de ga-
rantir a lealdade dos debates, o princípio de imutabilidade do
litígio requer que os termos do litígio não mais sejam modifi-
cados. Esse princípio se impõe aos plciteantes e ao juiz que
não pode modificar nem o objeto nem a causa da demanda,
nem estatuir infra ou ultra petita. Ele tem um alcance geral e
abrange todos os contenciosos. Consagrado pelo art. 4 do Novo
Código de Processo Civil e pelo art. 80 do Código de Processo
Penal, é no contencioso administrativo que ele parece mais
rigoroso: "Quanto mais o processo evolui, mais ele se cristali-

* Juiz encarregado da informação e do acompanhamento processual tias ins-


tâncias cíveis. (N. da T.)
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 445

za."26 Essa regra tem o objetivo de descartar as petições novas


em apelação, salvo exceção legal, e meios novos de cassação.
Ela não impede, se há conexão, a apresentação, nos processos
cíveis, de petições adicionais, reconvencionais ou em interven-
ção, pois são as respectivas pretensões das partes e não só a
petição inicial que fixam o debate. Mas a lealdade do processo
é garantida sobretudo pelo princípio contraditório (A) e pelas
formas de processo (B).

A. O princípio do contraditório

311. - Consagrado por todos os direitos ocidentais, o prin-


cípio do contraditório, ao qual já faziam referência Aristóteles
e Sêneca, é ligado à própria noção de justiça que é uma obra de
confrontação. É tão primordial que lhe é consagrada uma ru-
brica particular nas disposições liminares do novo Código de
Processo Civil, entre os princípios diretores do processo, e é
considerado um princípio geral do direito27. Esse princípio quer
que nenhuma parte possa ser julgada sem ter sido ouvida ou
citada (art. 14 do Novo Cód. Proc. Civil) e implica que cada
uma das partes em causa tenha condições de discutir e de con-
tradizer as pretensões, os meios, os argumentos e os elementos
de prova que lhe são opostos.
Ele se impõe às partes, mas também ao juiz que deve em
todas as circunstâncias fazer que se observe e observar ele
mesmo o princípio de contradição (art. 16 do Novo Cód. de Proc.
Civil). O juiz não pode, assim, estabelecer de ofício meios,
mesmo de direito puro, sem convidar previamente as partes a
apresentar suas observações. Implica que o adversário seja
sempre informado da existência de todo procedimento dirigido
contra ele, que prazos para comparecer sejam-lhe outorgados,
que todos os meios invocados e todos os elementos de prova

26. Ch. DEBBASCH, Contentieux adminislratif, n? 378.


27. C.E. 12 de outubro de 1979, Rass. des nouveaux avocats de France D.
1979, p. 606, nota BÉNABENT.
446 TEORIA GERAL DO DIREI K >

produzidos sejam objeto de comunicações recíprocas entre as


partes para que cada uma delas tenha condições de organizar
sua defesa.
Este princípio é respeitado em todos os processos conten-
ciosos e perante todas as jurisdições cíveis, penais, administra-
tivas e disciplinares. É provavelmente em matéria penal que
assume a importância mais fundamental, dados os interesses
em jogo e o respeito necessário das liberdades individuais que
os direitos de defesa protegem.
Mas o próprio respeito do contraditório é garantido pelos
princípios relativos às formas processuais.

B. Os princípios relativos às formas processuais

3 1 2 . - 0 processo, conquanto proteiforme segundo os con-


tenciosos, é sempre dominado por um certo formalismo cujo
objetivo é assegurar a segurança jurídica das partes. A oralida-
det a publicidade dos debates, ainda que de importância mais
contingente e de aplicação menos geral, contribuem para asse-
gurar a lealdade do processo.
O formalismo processual28 costuma ser apresentado de
maneira pejorativa, ao passo que é, desde que seja bem dosado,
uma garantia de boa justiça e o escudo dos direitos da defesa
contra a arbitrariedade do juiz. A forma dos atos e as menções
que neles são exigidas permitem ao adversário ajustar sua de-
fesa; a das notificações evita as medidas por surpresa; os pra-
zos preservam os interesses dos litigantes e estimulam a ins-
tância. Se o formalismo às vezes foi excessivo, hoje em dia per-
deu muito de seu rigor. Não pode ser reduzido a além de um
mínimo incompreensível, a não ser que se amputem gravemen-
te as garantias dos litigantes.
Em processo civil, as reformas recentes tiveram o objetivo
de deixar mais leve o formalismo e atenuar suas sanções. Os

28. Ver notadamentc J. L. BERGEL, "Formalisme et proeédure: rratpérien-


ce française", in Mélanges Mitsapoulos, Atenas. 1993, t. 1, pp. 33 s.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 447

vícios dc forma agora só acarretam a nulidade dos atos se as


irregularidades são assim sancionadas pela lei ou afetam for-
malidades substanciais ou de ordem pública e se está estabele-
cido que são danosos; a regularização posterior dos atos vicia-
dos é, aliás, possível. O processo penal também é doravante
submetido à regra "nulidade sem prejuízo não opera". Enfim,
o processo é pouco formalista perante o juiz administrativo, e
aí a jurisprudência admite a regularização das irregularidades
referentes às formas acessórias. Contata-se, ademais, um mo-
vimento de unificação internacional: o processo civil francês
se pauta por convenções internacionais, como a convenção de
Haia, relativa à notificação e à citação dos atos, e a de Bruxelas,
relativa à competência e aos efeitos das sentenças no mercado
comum.
Outrora administrada em Roma no fórum, a justiça preci-
sa ser pública porque sua clandestinidade lançaria uma dúvida
sobre sua imparcialidade. Assim, a publicidade da justiça,
sempre considerada essencial, é consagrada pela Declaração
Universal e pela Convenção Européia dos Direitos do Homem.
As épocas e os países em que não foi respeitada são nódoas na
história judiciária.
Não obstante, o princípio de publicidade não se impõe
uniformemente em todas as fases do processo. Para a instrução
do processo, a publicidade é geralmente inútil ou, em matéria
penal, nefasta para a descoberta da verdade, ainda que o prin-
cípio do sigilo da instrução seja em geral ignorado e agora
controvertido. Para a deliberação dos juizes, a publicidade com-
prometeria sua necessária serenidade. Em compensação, a pu-
blicidade dos debates parece indispensável para garantir-lhes a
lealdade, pois a presença ao menos virtual do público serve de
testemunha ao respeito das formas, à imparcialidade do juiz e
à regularidade dos debates. A publicidade da audiência consti-
tui, por conseguinte, um princípio geral do direito 29 . Enfim,
para adquirir uma existência jurídica, as decisões contenciosas

29. C. E. 4 de outubro de 1974, Dame David, Rec. Lebon, p. 464; R. PER-


ROT, op. cit., n?s 552 ss.
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ILUSTRAÇÃO
f Cassação 1
Atividade das jurisdições cíveis da ordem judiciária - Número de jurisdições cíveis 1 Tribunais de apelação 34-
30

[ Tribunais de 1° grau 1 680


£
Corte de cassação
1 715 o
b
Cív. 1? O
Cív. 2? b
£
5 câmaras cíveis Cív. 3?
Com. e Fin.
m
Soe. 3
18 049 processos cíveis

34 tribunais de a p e l a ç ã o
(30 m e t r ó p o l e s - 3 nos D e p a r t a m e n t o s
de U l t r a m a r - 1 em N o u m é a )
171 082 p r o c e s s o s cíveis

181 tribunais de 473 tribunais 229 tribunais de 270 tribunais do 113 tribunais dos 413 tribunais paritários
grande instância de instância comércio trabalho processos de dos arrendamentos
475 775 processos seguridade social rurais
588 126 processos 2 6 6 3 0 5 processos 161 128 processos
cíveis 103 050 processos 6 042 processos

Jurisdição de Jurisdições de exceção do primeiro grau


direito comum
do primeiro grau O número de processos tratados por uma jurisdição é o do ano de 1992.
(extraído do Anuário Estatístico da Justiça, edição de 1995) •u
-fc.
o
30. Existe também um tribunal superior de apelação em Saint-Pierre-et-Miquelon.
Atividade das jurisdições penais
o

NÚMERO DE CONDENADOS OU DOS PROCESSOS TRATADOS

Tipos de jurisdições Jurisdições 1984 1985 1986 1987 1988 1992

Tribunal de júri 2 987 2 363 2 566 2410 2 886 2 562

Tribunais correcionais 491 516 526 558 523 224 413 884 303 316 420 481

Jurisdições de sendo condenados pelas


direito comum Câmaras de Apelações
correcionais 29 097 31 0 0 9 33 278 33 389 25 730 30 976

Tribunais de polícia 7 974 798 10 3 6 6 0 3 4 10 3 4 0 2 7 8 9 609 296 5 079 637 10 8 8 4 8 8 6

Tribunais marítimos
comerciais 64 53 40 154

Jurisdições de Tribunais dos exércitos 919 1 329 1 971 1 984 1 310 1 761
3
exceção Juizados das crianças 30 689 30 254 28 559 21 170 8 804 16 9 8 5 §
Tribunais das crianças 27 336 30 698 28 592 22 597 8 759 22 594

244 198 226 194 187


o
Tribunal de júri de menores... 155

Processos submetidos à câmara criminal 6 020 6 735 6918 7711 7 678 6 880 t>
ü
0
(1) Os desvios significativos do ano de 1988 resultam da lei de anistia.
1
Estes números foram extraídos do Anuário Estatístico da Justiça para o ano de 1988 e daquele para 1988-92 publicado em 1995.
§
2

Evolução da massa do contencioso da Corte de Cassação


C â m a r a s cíveis 1", 2\ 3" câmaras, c â m a r a comercial e c â m a r a social C â m a r a criminal
34 000
8 000

£
%
o
b
O
<5
E2
3

- Processos restantes - Processos restantes — Processos — Processos


- Processos
em 31 de dezembro em 31 de dezembro recebidos terminados
terminados

Extraído do boletim do início dos trabalhos solenes da Corte de Cassação, Extraído do boletim da seção solene de início dos trabalhos da Corte de
em 12 de j a n e i r o de 1996, Doc.fr., 1996. Cassação, em 12 de j a n e i r o de 1996, Doc.fr., 1996.
1989 - Organização sumária e atividade das jurisdições administrativas

•fc.
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K)

§
I
t-
o
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5

s
Kontes: - Tribunal de disciplina orçamentária e financeira: Anuário Estatístico da Justiça, 1987:
Tribunal de Contas. Câmaras Regionais de Contas: Relatório de M. Manet. n° 85 de 1990, Senado, sobre o projeto de lei de finanças para 199T
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454 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Brethe de la G r e s s a y e (J.), 169. Conselho de Estado, 69 ss., 77 ss.,


B u r d c a u (G.), 26. 90, 1 8 3 , 2 9 8 , 299, 304.
C o n s e r v a d o r i s m o , 261, 262.
C C o n s t i t u i ç ã o dc 4 de o u t u b r o de
1958, 3 7 , 4 6 , 68, 69, 72, 77,
C a p i t a l i s m o , 26 ss. 78 ss., 112, 197, 2 9 1 , 3 0 2 .
C a p i t a n t (H.), 17, 20, 180. C o n s t i t u i ç ã o , 17, 20, 37, 50. 51,
C a r b o n n i e r (J.), 29, 60, 158, 6 5 , 6 9 , 70, 72, 78, 167, 2 3 0 ss„
302.
159, 285.
C o n t r a d i t ó r i o (princípio do),
C a r d o z o (B. N.), 233.
89, 9 0 , 3 1 1 .
C a s a m e n t o , 133, 160, 164, 167,
C o n t r a t o coletivo, 238.
171, 174, 206.
C o n t r a t o de adesão, 64, 184,
Catala (P.), 55.
238,284.
C a t e g o r i a s jurídicas, 163, 174,
C o n t r a t o social, 16, 1 7 1 , 3 0 2 .
180, 189 ss., 250, 2 6 5 , 2 8 2 . C o n t r a t o , 24, 25, 43, 64, 70, 103,
C í c e r o , 16, 24, 263. 112, 117, 119, 142, 147, 151,
C i r c u l a r e s a d m i n i s t r a t i v a s , 63, 154, 157, 169, 170, 171, 174,
64. 184, 185, 187, 192, 194, 204,
C l a s s i f i c a ç õ e s , I 7 4 s s . , 180, 181, 205, 206, 207, 2 2 9 , 2 3 2 , 235 ss.,
189 ss., 2 5 5 , 265, Ver Método 241,243,284.
das classificações. C o n t r a t o , i n t e r p r e t a ç ã o , 235 ss.,
C o d i f i c a ç ã o , 48, 49, 59 ss., 122, 284.
125, 131, 134, 231. Contrato, redação e
C o e r ç ã o , 13, 19, 2 0 , 2 1 , 3 4 , 39, f o r m u l a ç ã o , 208 ss.
159, Ver Sanções. C o n t r a t o - p a d r ã o , 64, 238, 284.
C o i s a j u l g a d a ( a u t o r i d a d e da), C o n v e n ç ã o coletiva, 64, 151,
6 1 , 8 6 , 89, 178, 2 7 1 , 2 7 3 , 2 8 8 , 238.
292, 294. C o n v e n ç ã o E u r o p é i a dos
Direitos do H o m e m , 70, 84,
C o l e g i a d o , Ver Organização
133, 1 8 5 , 2 9 0 , 2 9 1 , 3 1 2 .
jurisdicional - Colegiado.
C o q u i l l e (G.), 48.
C o l e t i v i s m o , 13, 26 ss, 129, 131,
C o r n u (G.), 186.
154, 253.
C o r t e de C a s s a ç ã o , 72, 2 3 6 , 283,
C o l i n ( A . ) , 17.
284, 298, 299, 304.
C o m p e t ê n c i a , Ver Jurisdição.
C o r t e de Justiça das
C o m t e (A.), 22, 1 5 5 , 2 6 3 . C o m u n i d a d e s E u r o p é i a s , Ver
C o n c e i t o , 180, 181 ss., 208 ss., Direito europeu.
249, 265, 2 7 5 ss., 282, Ver C o r t e P e r m a n e n t e de Justiça
Noções jurídicas. Internacional, 134.
C o n c e i t u a ç ã o , 152, 1 8 1 , 2 7 5 ss., C o s n a r d (H. D.), 55.
Ver Qualificação. C o s t u m e , 42 ss., 61, 63, 65 ss.,
C o n s e l h o c o n s t i t u c i o n a l , 69 ss., 70, 72, 73, 99, 121, 131, 2 3 0
77 ss., 302. ss., 263, 270.
ÍNDICE ALFABÉTICO 455

C o s t u m e s , 41. Direito c o m e r c i a l e dos


C r i m i n o l o g i a , 158. negócios, 64, 66, 90, 116, 119,
C u c h e (P.), 169. 134, 1 6 0 , 2 0 1 , 2 4 1 , 2 4 3 .
C u j a s , 242. Direito c o m p a r a d o , 125, 130 ss.
Direito constitucional, 69 ss., 90.
D Direito da o r g a n i z a ç ã o do
território, 137, 146.
D ' A r g e n t r é , 48. Direito do t r a b a l h o , 64, 90, 160,
D a b i n (J.), 1, 10, 28. 168, 241.
D a r w i n , 20. Direito do u r b a n i s m o , 137. 146.
D a v i d (R.), 130, 131. Direito dos t r a n s p o r t e s , 134,
D e c a d ê n c i a , 117, 119. 137, 147.
Decisões judiciais, 35, 43, 69, Direito e u r o p e u , 52, 69, 70, 84,
157, 1 7 9 , 2 5 3 , 2 6 7 , 286, 288. 90, 135, 185, 2 3 4 , 3 1 2 .
292. Direito fiscal, 90, 172.
D e c i s õ e s judiciais, f o r m u l a ç ã o ,
Direito internacional privado,
208 ss. 90, 128, 136, 139, 201, 243,
D e c l a r a ç õ e s dos Direitos do
270, 276.
H o m e m , 16. 1 7 . 2 5 , 3 7 , 6 9 ,
Direito internacional público,
70, 7 3 , 7 8 ss., 112, 1 3 3 , 2 9 0 ,
34, 5 2 , 6 6 , 69, 90, 134 ss., 146.
302,312.
Direito m a r í t i m o , 134.
Defesa social, 25.
Direito natural, 16 ss., 28, 34,
D e f i n i ç ã o , 182 ss., 2 0 9 ss., 276.
3 9 ss., 69, 84, 89, 156, 244,
D e f i n i ç ã o , m é t o d o s , 182 ss.
263.
D e f i n i ç ã o , tipologia, 186 ss.
Direito objetivo, 2, 27, 28, 29,
Délais, 117, 121. 129, 1 7 8 , 2 6 9 ,
3 0 ss., 170, 171. 177, 228 ss.,
311,312.
307.
D e m o g u e , 60, 282.
Direito penal, 25, 34, 69, 87, 90,
Descartes, 246, 252.
112, 116, 121, 154, 172, 183,
Desvio de p o d e r , 29, 241.
Dialética aristotélica, Ver 1 9 1 , 2 1 1 , 2 6 8 , 269, 273.
Raciocínios jurídicos Direito positivo, 2, 19 ss., 38, 53,
dialética. 279, 308.
Dialética hegeliana, 19, 253. Direito p r i v a d o , 66, 69, 72, 90,
Direito (antigo), 1 0 , 6 1 , 106. 116, 119, 136, 171, 172, 174,
Direito a d m i n i s t r a t i v o , 52, 61. 176, 190, 238, 2 4 1 , 2 9 3 , 3 0 1 .
69, 70, 90, 92, 119, 1 8 3 , 2 4 1 , Direito profissional, 64, 299.
292, 301. Direito p ú b l i c o , 60, 61, 66, 69,
Direito aéreo, 151. 154. 72, 116, 117, 171, 172, 174,
Direito, a p l i c a ç ã o , 167 ss. 176. 183, 1 9 0 , 2 3 8 , 2 9 0 , 2 9 3 ,
Direito c a n ô n i c o , 39, 125, 130, 301.
153. Direito r o m a n o , 45, 59, 69, 106,
Direito civil, 34, 69, 7 2 , 9 0 , 116, 125, 131, 1 8 2 , 2 5 3 , 2 8 2 .
160, 183. Direito t r a n s p e s s o a l , 228.
456 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Direito, c a m p o de a p l i c a ç ã o no D o c u m e n t a ç ã o j u r í d i c a , 53 ss.
e s p a ç o , 127, 128, 284. D o m a t , 10, 48, 59, 69.
Direito, c a m p o d e a p l i c a ç ã o Domicílio, 139, 141.
no t e m p o , 97, 108 ss. Doutrina, 42 ss., 53, 54, 56, 59 ss.,
Direito, d e f i n i ç ã o , 5, 8, 13 ss., 65 ss., 1 8 3 , 2 1 2 .
148, 165, 166, 174. D o u t r i n a s liberais, 236.
Direito, e f e t i v i d a d e , 152, 153, D o u t r i n a s sociais, 27, 28, 228,
162, 282. 236, 238, 239, 240.
Direito, e v o l u ç ã o , 85, 97, 98 ss., Duguit (L.), 10, 22, 28, 100, 155,
122, 151, 152, 154, 156, 158, 156, 158, 169, 170, 180.
1 6 8 , 2 3 0 , 234, 262, 277. D u m o u l i n , 48.
Direito, finalidades, 23 ss., 40, D u r k h e i m , 22, 148, 155, 158,
167, 170, 1 7 3 , 2 0 7 , 228, 232, 161.
234, 239, 2 4 0 ss., 245, 250,
255, 2 6 0 ss., E
Direito, fontes, 40, 42 ss., 72 ss.,
129, 131, 158, 2 3 1 , 2 5 7 , 263, E c o n o m i a , 2 0 , 2 1 ss., 149.
290. Ehrlich (E.), 158.
Direito, praticabilidade, 183, E m p r e s a , 151, 154, 170, 171,
184, 191. 174, 175, 176.
Direito, r e l a t i v i d a d e , 17, 97, Engels, 21.
125 ss. E p i s t e m o l o g i a , 4, 14.
Direito, u n i f o r m i z a ç ã o , 134 ss. E q ü i d a d e , 10, 23, 39, 50, 60, 68,
Direitos da d e f e s a , 90, 309, 311. 72, 89, 129, 131, 1 8 5 , 2 3 3 ,
Direitos da p e r s o n a l i d a d e , 28, 252, 263, 277, 298.
29, 2 4 0 , 3 1 2 . E s m e i n (P.), 60
Direitos do h o m e m , 25, 133, Ver E s p a ç o (Direito e), 123 ss.
Declarações dos Direitos do Espírito d o s textos, 167, 170,
Homem. 172, 173, 228 ss., 2 3 9 ss., 302,
Direitos intelectuais, 194. Ver Lei, interpretação.
Direitos p a t r i m o n i a i s e E s t a d o federal, 183, 288, 289,
n ã o - p a t r i m o n i a i s , 174, 190, 298, 299.
194, 197, 2 0 0 , 2 0 3 , 207. E s t a d o unitário, 183.
Direitos pessoais, 198, 203. Estado, 19 ss., 25, 26, 27, 45 ss.,
Direitos reais, 145, 187, 198. 51, 123, 124, 127, 134, 154,
Direitos subjetivos, 2, 27, 28 ss., 164, 165, 166, 167, 170, 171,
111. 117, 133, 178, 181 ss., 191, 173, 174, 176, 183.
194, 2 2 8 , 2 4 0 ss., 286, 307. Estado, s o b e r a n i a , 123, 127,
Dirigismo, 26 ss., 151. 170, 183, 1 9 3 , 2 3 1 , 2 8 7 .
Distinções, 180, 181, 189 ss., Estatutos legais, 29, 166. 169,
264, Ver Classificações. 171,238.
Divórcio, 131, 1 3 3 , 2 0 6 , 2 1 1 , Estóicos, 16.
264, 265. E s t r u t u r a l i s m o , 252.
ÍNDICE ALFABÉTICO 457

Etnologia j u r í d i c a , 148. G
E x c e ç õ e s (aos p r i n c í p i o s ) , 167,
191, 197, 252. G e i g e r (Th.), 158.
E x e g e s e , 60, 231 ss. G é n v (F.), 5, 10, 17, 24, 34, 85,
100, 155, 180, 2 3 1 , 2 3 3 , 244,
F 2 4 6 , 257, 282.
G l o s a d o r e s , 2 4 2 , 253.
Ealta, 185, 192, 1 9 3 , 2 1 1 , 2 1 2 , G r o t i u s , 16.
275, 2 7 7 , 2 8 0 . G r u p o s , 153, 167, 175, 176, V e r
Kamília (e d i r e i t o de), 116, 125, Pessoas morais.
129, 139, 151, 153, 154, 157, G u r v i t c h (G.), 158, 169.
158, 160, 164, 165, 166, 169,
170, 172, 174, 175, 176, 241,
H
243,273,281,282.
Fato e direito, 2 6 7 ss.
H a r t ( H . L. A ) , 35.
Fato, 2 6 7 ss.
H a u r i o u ( M . ) , 119, 155, 158,
Fato, a p r e c i a ç ã o do juiz, 2 8 3 ss.
169, 174, 175.
Fato, p r o v a , V e r Prova.
H é b r a u d ( P . ) , 113, 119, 121,
F a t o s j u r í d i c o s , 142, 181 ss.,
122.
190, 191.
H e g e l , 4, 14, 1 9 , 2 7 .
Fatos sociais e direito, 48 ss.,
H í b r i d o s , 190, 2 0 0 , 203.
1 9 1 , 2 0 7 , 2 3 3 , 2 3 6 , 250.
H i e r a r q u i a d o s textos, 43, 70 ss.,
F a t o s sociais, 1 3 , 2 0 , 2 2 , 100,
112, 134, 166, 170, 206, 249.
107, 148 ss., 1 6 5 , 2 8 0 .
H i s t ó r i a , 1 3 , 2 0 , 2 1 , 2 2 , 9 9 ss.,
F a t o s sociais, fato histórico, 107,
158.
165.
H i s t ó r i a , escola histórica, 16,
F e n o m e n o l o g i a , 4, 14, 159, 165,
166, 167, 181. 2 1 , 9 7 , 101.
F i c ç ã o , 109, 139, 282. H o b b e s , 19, 127.
Filosofia do direito, 4, 14, 15 ss.,
92, 157, 164. I
F o n t e s do Direito, V e r Direito,
fontes. I d e a l i s m o , 13, 15, 16 ss., 156,
F o r m a l i s m o , 87, 178, 208, 2 3 6 , 2 6 3 , 282.
263,312. Ihering, 1 9 , 2 8 , 149, 1 6 6 , 2 8 2 .
Formalismo, escolas I m ó v e i s , 140, 143, 187, 192, 193,
f o r m a l i s t a s , 15, 263. 197.
F o r m u l á r i o s , 64, 238. l m p r e v i s ã o , 119, 2 0 5 , 238.
F ó r m u l a s , 2 0 8 ss„ 2 3 8 . I n c a p a c i d a d e s , 170, 178, 197.
F r a s e o l o g i a j u r í d i c a , 2 1 7 ss. I n d i v i d u a l i s m o , 1 3 , 2 6 ss., 131,
F r a u d e , 29, 86, 89, 2 4 2 ss. 154, 253.
F u n d o de c o m é r c i o , 140, 197, I n f o r m á t i c a j u r í d i c a , 55 ss.,
203. 154, 161, 180, 2 0 9 , 2 1 6 , 2 1 7 ,
2 4 9 , 264.
458 TEORIA GERAL DO DIREI K >

Instância, 164, 179. J u r i s d i ç ã o graciosa e


Instituições, 29, 103, 151, 154, c o n t e n c i o s a , 286, 292.
159, 164 ss., 181 ss., 1 9 1 , 2 3 9 , J u r i s d i ç õ e s , 295 ss., Ver
242. Organização jurisdicional.
I n s t r u m e n t o s do direito, 163 ss., Jurisdições, competência
169, 177 ss. territorial, 141 ss., 143, 297 ss.
Interesse coletivo, 35, 154, 169, J u r i s d i ç õ e s , c o m p e t ê n c i a , 129,
170, 171, 176, 286. 141 ss., 2 9 6 ss.
Interesse geral, 25, 169, 174, Jurisdições, jurisdições de
178, 185. 190, 238, 2 4 1 , 2 6 2 , direito c o m u m e de exceção,
277, 286, 307, 308. 299, 305.
Interesse particular, 190, 197, J u r i s p r u d ê n c i a , 42 ss., 53, 54,
2 4 1 , 2 6 2 , 286, 3Q7, 308. 56, 59 ss., 61 ss., 65 ss., 69,
I n t e r p r e t a ç ã o ( m é t o d o de), 70, 72 ss., 158, 1 8 3 , 2 1 2 ,
i n t e r p r e t a ç ã o da lei e d o s
2 3 0 ss., 289, 290.
textos, 2 2 9 ss., 255, 262.
Jurística, 157.
I n t e r p r e t a ç ã o ( m é t o d o de),
Justiça (conceito), 13, 14, 15,
m é t o d o s subjetivos e
16 ss., 23, 2 4 ss., 34, 3 9 ss.,
objetivos, 2 2 9 ss., 2 3 6 ss.
44, 50, 131, 156, 179, 191,
I n t e r p r e t a ç ã o ( m é t o d o s de),
252, 2 5 3 , 2 6 1 , 2 6 3 .
228 ss.
Justiça (instituição), 158, 170,
I n t e r p r e t a ç ã o ( m é t o d o s de),
179, 2 8 5 ss., Ver Decisões
exegese, Ver Exegese.
judiciais, Organização
I n t e r p r e t a ç ã o ( m é t o d o s de),
jurisdicional.
i n t e r p r e t a ç ã o dos atos
jurídicos, 2 3 5 ss., 284.
K

K a l i n o w s k i (G.), 246.
J è z e , 169. Kant, 4, 14. 2 7 , 3 9 , 9 5 , 181.
J o s s e r a n d (L.), 39, 60, 240. K e l s e n (H.), 5, 8, 20, 28, 70, 101,
Juiz, 170, 2 8 5 , 2 8 6 , 2 8 7 ss. 230, 263, 278.
Juiz, d e v e r e s e p o d e r e s , 61 ss.,
65 ss., 70, 72 ss., 91, 158, 183, L
231 ss., 240, 2 6 3 , 2 6 9 ss., 2 8 3
ss., 288 ss., 308, 309. L a b b é , 60.
Juiz, estatuto da m a g i s t r a t u r a , L e g a l i d a d e dos delitos e d a s
291,295,303. penas, 173, 256, Ver
Juiz, i n d e p e n d ê n c i a , 291, 303. Princípios gerais do direito.
Juiz, j u i z único, Ver Lei, 36 ss., 42, 43 ss., 53, 54, 56,
Organização jurisdicional - 5 9 ss., 65 ss., 70, 72 ss., 86,
Colegiado. 89, 157, 160, 169, 183, 194,
Juiz, papel, 288 ss., Ver 197,211,290.
Interpretação. Lei, a b - r o g a ç ã o , 110.
ÍNDICE ALFABÉTICO 459

Lei, c o n s t i t u c i o n a l i d a d e , 72, 189 ss., 265, Ver


77 ss., 302. Classificações.
Lei, d e f i n i ç ã o , 37. M é t o d o de decisão, 160.
Lei, f o r m u l a ç ã o , 208 ss. M é t o d o d e d e f i n i ç ã o . Ver
Lei, i n t e r p r e t a ç ã o , 61, 62, 63, Definições - métodos.
64, 8 4 , 8 5 , 154, 158, 167, 183, M é t o d o dialético, Ver
1 8 8 , 2 1 2 , 2 2 8 ss. Raciocínios jurídicos -
Lei, lei injusta, 17. dialética.
Lei, n ã o - r e t r o a t i v i d a d e , 86, 89, M é t o d o sociológico, 106, 157 ss.,
111 ss., 119, 120, 1 7 3 , 2 9 1 . 233.
Lei, r e c e p ç ã o , 63, 64, 66, 103, M é t o d o teleológico, 234.
160. M e t o d o l o g i a c o m p a r a t i v a , 132,
Lei, t r a b a l h o s p r e p a r a t ó r i o s , 157, 159.
232,233. M e t o d o l o g i a histórica, 105 ss.,
157, 1 5 9 , 2 3 4 , 2 5 5 , 2 6 3 .
Leibniz, 2 4 6 , 2 5 2 .
M e t o d o l o g i a j u r í d i c a , 6, 105,
Leis u n i f o r m e s , 134.
157, 2 4 4 , 2 5 7 .
Letra dos textos, 228 ss.
M é t o d o s de i n t e r p r e t a ç ã o , Ver
L é v y - B r u h l , (H.), 107, 154, 157,
Interpretação (método de).
158.
M é t o d o s de investigação, Ver
Liberalismo, 26 ss., 261, 262, 307
Investigação jurídica.
L i b e r d a d e (s), 13, 27, 79, 86, 87,
M é t o d o s de ligação e de
8 9 , 9 0 , 92, 103, 119. 133, 154,
d i s s o c i a ç ã o , 189 ss.
174, 178, 291.
M é t o d o s de raciocínio, Ver
L i n g u a g e m j u r í d i c a , 163. 187,
Raciocínios jurídicos.
188, 208 ss. Ver Fraseologia
M é t o d o s e x p e r i m e n t a i s , 161.
jurídica, Terminologia jurídica.
M é t o d o s quantitativos, 159,
L o c k e , 16. 160, 161.
Lógica, Ver Raciocínios jurídicos M i c h o u d , 169.
- Lógica jurídica e Lógica Mill (J. Stuart), 20, 24.
formal, Lógica flexível. M o n t e s q u i e u , 97, 290.
Loysel, 1 0 , 4 8 . M o r a l , 13, 23, 26, 39 ss., 89, 131,
L u g a r de situação, 137, 139 ss., 149, 154, 1 7 9 , 2 0 7 .
297 ss. M ó v e i s , 140, 187, 192, 197.

M N

M a q u i a vel, 19, 127. N o ç õ e s j u r í d i c a s , 151, 154, 163.


M a r x (K.), 2 1 , 2 7 . 180 ss., 2 1 1 , 2 7 6 .
M a r x i s m o , 21, 27, V e r N o ç õ e s jurídicas, d i s s o c i a ç ã o ,
Coletivismo. 264.
M e c a n i s m o s , 177 ss., 2 4 9 , 259, Noções jurídicas, noções
292. maleáveis, Ver Bons
M é t o d o das classificações, 180, costumes, Boa-fé, Padrões.
460 TEORIA GERAL DO DIREI K >

N o r m a , 20, 69 ss„ 151, 170, Ver P e n s a m e n t o j u r í d i c o , 15 ss.


Regra de direito. Perda d o s direitos, 117.
N o r m a , validade, 70. P e r e l m a n (C.), 10, 2 4 6 , 252, 253,
N o r m a t i v i s m o , 20, 70. 264, 267, 305.
N u l i d a d e , 34, 179, Ver Sanção. P e r s o n a l i d a d e (direitos de), Ver
Direitos da personalidade.
O P e s q u i s a j u r í d i c a , 53 ss.
Pesquisa jurídica, documentação,
O b r i g a ç õ e s , 3 4 , 6 0 , 87, 167, Ver Documentação jurídica.
183, Ver Contrato, P e s q u i s a j u r í d i c a , livre
Responsabilidade. pesquisa, 85, 231, 233, 234.
O N U , 69, 134. P e s q u i s a j u r í d i c a , m é t o d o s de
O p i n i ã o pública, 98, 153, 160. p e s q u i s a , 53.
O r d e m j u r í d i c a , 124, 166, 170,
P e s s o a h u m a n a , 27 ss., 75, 116,
2 6 3 , 2 7 8 , 281.
154.
O r d e m pública, 25, 33, 86, 87,
Pessoa j u r í d i c a , 178, 187, 191,
111, 112, 1 8 5 , 2 3 2 , 2 3 6 , 2 7 1 ,
192, 194, 197, 200, 204, 282.
312.
Pessoa j u r í d i c a , pessoa
O r d e n a m e n t o j u r í d i c o , 164 ss.
m o r a l , 103, 116, 139, 141,
O r g a n i s m o s , 1755 ss.
151, 154, 164, 169, 170, 171,
O r g a n i z a ç ã o j u r i s d i c i o n a l , 287
175, 176, 191, 1 9 2 , 2 8 2 .
ss., Ver Corte de Cassação,
Pessoal jurídica, pessoa física,
Conselho de Estado.
103, 139, 141, 164, 169, 191,
Organização jurisdicional,
192.
C o l e g i a d o , 305 ss.
Planiol (M.), 17, 60, 240.
Organização jurisdicional,
Platão, 4, 16, 264.
H i e r a r q u i a das j u r i s d i ç õ e s ,
P l u r a l i s m o j u r í d i c o , 148, 158,
6 1 , 2 9 8 , 303 ss.
Organização jurisdicional, 159.
Jurisdições administrativas P o d e r e s , 3, 169, 170, 174.
e j u d i c i á r i a s , 292, 294, 298, Poderes, P o d e r E x e c u t i v o , 37,
299, 3 0 1 , 3 0 4 . 67, 291.
Organização jurisdicional. Poderes, Poder Judiciário, 42 ss.,
Princípios gerais, 295 ss. 61 ss., 67, 9 1 , 2 8 5 , 287, 288 ss.
O r g a n i z a ç õ e s internacionais, Poderes, Poder Legislativo, 36 ss.,
134, 158, 174, 176. 46, 4 8 , 6 7 , 9 1 , 2 9 0 , 291.
Poderes, p o d e r político, 170,
P 174, 176, 2 4 4 , 2 9 0 .
Poderes, poder regulamentar
Padrões, 185, 211, 230, 252, 277. 3 7 , 4 6 , 64, 70, 78 ss., 9 1 , 2 4 9 .
Pandectistas, 59, 60, 225. Poderes, s e p a r a ç ã o dos p o d e r e s ,
Pascal (Blaise), 19. 5 1 , 6 1 , 8 9 , 173, 1 7 5 , 2 3 1 , 2 9 0 ,
Penas, Ver Sanções penais. 291,301.
ÍNDICE ALFABÉTICO 461

Política jurídica, 230, 273, 274. P r o f i s s õ e s jurídicas, 63 ss.


Políticas, 19 ss., 26, 126, 174, 290. P r o g r e s s o social, 14, 15, 252,
Portalis, 25, 97. 261,263.
Positivismo, 13, 18 ss., 25, 28, P r o g r e s s o técnico, 151, 1 5 4 , 2 0 7 ,
34, 156, 244. 273.
Positivismo, p o s i t i v i s m o P r o p r i e d a d e (direito de), 28, 29,
científico, 20. 8 9 , 9 2 , 103, 104, 117, 118,
Positivismo, p o s i t i v i s m o 128, 129, 137, 144, 145, 146,
j u r í d i c o , 19, 127. 151, 157, 164, 165, 166, 170,
Positivismo, p o s i t i v i s m o 174,214, 2 4 1 , 2 5 3 , 2 8 1 , 2 8 2 .
sociológico, 21 ss., 263, 282. P r o p r i e d a d e literária e
Posse, 25, 89, 121, 154, 167, 184, artística, 28, 29, 194, 200, 203.
180,281. Prova, 8 7 , 8 8 , 89, 154, 179, 192,
Pothier, 48, 60. 2 6 9 ss., 308, 3 0 9 , 3 1 1 .
P o u n d (R.), 158, 233. Psicologia social, 158.
Prática profissional, 63 ss., 134, P u b l i c i d a d e imobiliária, 128,
158, 112, 238.
129, 140, 170.
P r e s c r i ç ã o , 25, 75, 117, 121, 178,
281.
P r e s u n ç õ e s , 278 ss.
Q
Princípios diretores d o
Q u a l i f i c a ç ã o , 163, 180, 181, 190
p r o c e s s o , 7 2 , 8 6 , 292, 3 1 0 ss.
ss., 2 5 5 , 265, 2 7 5 ss.
Princípios f u n d a m e n t a i s
do direito, 69 ss., 91, 112.
R
Princípios gerais do direito, 61.
68, 69 ss., 172, 1 7 3 , 2 3 9 , 240,
R a c i o c í n i o s j u r í d i c o s , 6, 8, 23,
252, 263, 3 1 0 ss.
53, 180 ss., 232, 2 3 4 , 2 4 4 ss.,
Princípios gerais do direito,
267.
Classificações, 86, 91 ss., 185.
Raciocínios j u r í d i c o s , análise,
Procedimentos técnicos, 180,
181 ss., 265 ss., 2 7 3 , 2 8 2 , Ver 5 3 , 2 4 8 , 251.
Instrumentos do direito, Sistema Raciocínios j u r í d i c o s ,
jurídico. Técnica jurídica. a r g u m e n t a ç ã o , 206, 232, 233,
P r o c e s s o a d m i n i s t r a t i v o , 309, 2 3 4 , 2 5 5 ss.
3 1 0 ss. Raciocínios j u r í d i c o s ,
P r o c e s s o civil, 72, 117, 121, 183, classificações, Ver
309, 3 1 0 ss. Classificações.
P r o c e s s o penal, 142, 2 6 9 , 304, Raciocínios jurídicos, dedução,
309, 3 1 0 ss. 158, 1 9 1 , 2 3 2 , 234, 2 4 9 , 2 5 7 .
Processo, 90, 141 ss., 158, 170, R a c i o c í n i o s j u r í d i c o s , dialética,
172, 187, 1 9 3 , 2 4 1 , 2 5 8 , 307 ss„ 2 0 6 , 2 5 1 ss.
Ver Princípios diretores do Raciocínios jurídicos, escolha das
processo. p r o p o s i ç õ e s , 2 5 9 ss.
462 TEORIA GERAL DO DIREI K >

R a c i o c í n i o s jurídicos, i n d u ç ã o , R e g r a s sociais, 1 3 , 3 0 , 4 1 , 154,


158, 161, 181, 183, 1 9 0 , 2 3 2 , 158, 159, 179, 285.
234, 250. R e g u l a m e n t a ç ã o , 37, 69 ss., 112,
Raciocínios jurídicos, lógica 194, 197, 2 3 0 ss. 249, Ver Lei,
dcôntica, 246. Poderes, poder regulamentar.
Raciocínios jurídicos, lógica Regras de direito.
flexível, 1 8 5 , 2 5 2 . Religião, 3 9 , 4 1 , 4 5 , 149, 153,
Raciocínios jurídicos, lógica 154, 179, 207.
f o r m a l , 244, 2 4 6 , 2 5 1 ss„ 256, R e p a r a ç ã o , 34, 89, 179, Ver
258, 265. Responsabilidade.
Raciocínios jurídicos, silogismo, R e p r e s e n t a ç ã o , 164.
249, 2 5 1 , 2 6 7 . R e s p o n s a b i l i d a d e , 60, 72, 89,
Raciocínios jurídicos, síntese, 119, 142, 145, 154, 157, 168,
53,258.
170 ,171, 179, 193, 197, 212,
R a w l s (J.), 24.
275, 282.
R e a l i s m o , 15, 25, 158, 257, 263,
R e s p o s t a s ministeriais, 63, 64.
2 8 0 ss.
R e t r o a t i v i d a d e , I 19, 120, Ver
Recursos, Ver Vias de recurso.
lei-não-retroatividade.
Ação judicial.
Ripert (G.), 5, 29, 39, 102, 151,
Regime jurídico (determinação
153, 282.
do), 180, 191, 192, 1 9 5 , 2 0 1 ,
R o d i è r e (R.), 90.
202 ss.
R o u b i e r (P.), 1, 1 0 , 2 8 , 3 9 , 111,
Regras de direito, 13, 30 ss., 42,
149, 1 7 1 , 2 6 1 .
58 ss., 6 9 ss., 150, 156, 159,
R o u s s e a u (J.-J.), 16, 36.
165, 166, 169, 170, 171, 172,
177, 179, 187, 2 6 7 , 2 7 8 , 285.
Regras de direito, f o r m a ç ã o ,
Ver Direito, fontes.
Regras de direito, f o r m u l a ç ã o , Saleilles, 1 7 , 6 0 . 169, 2 3 3 , 2 4 0 ,
208 ss., 228. 282.
Regras dc direito, interpretação, S a n ç ã o , 3, 33, 34, 40, 167, 179,
Ver Lei, interpretação. 1 9 1 , 2 3 9 ss., 2 7 5 , 3 0 7 , 3 1 2 .
Regras de direito, r e g r a s S a n ç ã o , s a n ç õ e s civis, 24. 241.
especiais, 35, 43, 68, 87, 194, S a n ç ã o , s a n ç õ e s penais, 25, 34,
2 0 1 , 2 0 3 , 2 0 4 , 232, 2 5 5 , 2 5 6 . 117, 131, 1 7 2 , 2 1 1 , 2 4 1 .
Regras de direito, r e g r a s gerais, S a n t o A g o s t i n h o , 16, 24, 39.
35 ss, 43, 68, 69 ss., 87, 201, S a n t o T o m á s de A q u i n o , 16, 24,
203, 204, 232, 255, 256. 36, 98, 110, 263.
Regras de direito, r e g r a s Savatier (R.), 5.
imperativas, 33, 63, 64, 91, S a v i g n y , 16, 21, 97, 101, 105,
110, 171. 263,282.
R e g r a s de direito, r e g r a s S e g u r a n ç a j u r í d i c a , 14, 1 5 , 4 4 ,
supletivas, 33, 63, 64, 91, 110. 47, 102, 103, 111, 117, 121,
ÍNDICE ALFABÉTICO 463

140, 183, 1 9 1 , 2 0 8 , 2 1 2 , 2 2 8 , S i s t e m a s de direito, direitos


2 3 4 , 2 3 5 , 2 4 4 , 248, 2 5 2 , 2 6 1 , r o m a n o - g e r m â n i c o s , 6, 31,
262,263,273,280, 291,302. 49, 54, 55, 125, 130, 131, 253,
S e g u r a n ç a social, 251. 283,301,303.
S e g u r a n ç a s , 119, 152, 154. S i s t e m a s de direito, direitos
S e m i ó t i c a j u r í d i c a , 208. socialistas, 51, 54, 126, 129,
S e r v i ç o público, 89, 90, 183. 130, 1 3 1 , 2 8 3 , 2 9 5 .
S i l o g i s m o , Ver Raciocínios S i s t e m a s de direito, E U A , 50,
jurídicos, Silogismo. 69, 78, 131, 1 8 8 , 2 8 8 , 2 8 9 ,
Sindicatos, 131, 153, 158, 164, 2 9 5 , 298, 299, 302, 303.
S i s t e m a s de direito, s i s t e m a s
171, 176.
diversos, 4 5 , 5 9 , 6 1 , 6 9 , 79,
S i s t e m a jurídico, 8, 13, 70 ss.,
130, 131, 148.
159, 164 ss., 174, 177, 1 8 0 s s „
S i s t e m a s de direito, U R S S , 51,
214, 234, 2 4 5 , 2 6 6 , 2 8 2 .
54, 283, 289, 295, 302, 303.
S i s t e m a j u r í d i c o , finalidades,
S i t u a ç õ e s j u r í d i c a s , 28, 29, 122,
13,234.
123, 137 ss., 190, 194.
Sistema jurídico, fundamento,
Soberania, Ver Estado, soberania.
13, 131.
S o c i a l i s m o , 26 ss., 129, 261, 262.
S i s t e m a jurídico, s i s t e m a t i s m o ,
S o c i e d a d e s , 135, 139, 141, 164,
170, 188, 255.
170, 171, 174, 176, 197, 206,
S i s t e m a jurídico, técnica
241.
j u r í d i c a , 131, 180 ss.
Sociologia, 1 3 , 2 0 , 2 1 ss., 148,
S i s t e m a s de direito (diversos),
155, 156.
31, 68, 69, 123, 124, 125 ss.,
Sociologia, sociologia jurídica,
130 ss., 2 4 5 , 2 5 9 s s . , 2 6 6 , 270.
157 ss.
S i s t e m a s de direito, direito
S o n d a g e n s , 153, 159, 161.
a l e m ã o , 5 9 , 6 0 , 6 9 , 7 9 , 130, S o u r i o u x (J. L.) e L e r a t (P.),
301,302. 208 ss., 218.
S i s t e m a s de direito, direito S p e n c e r (H.), 20, 22, 155.
c h i n ê s , 4 1 , 131, 148. S p i n o z a , 264.
S i s t e m a s de direito, direito de S t a m m l e r , 17.
Common law, 6, 10, 31, 50,
54, 5 5 , 6 0 , 6 1 , 6 7 , 125, 129, S u c e s s õ e s (direito de), 116, 142.
130, 131, 183, 186, 188, 253,
283,303,305. T
S i s t e m a s de direito, direito
h i n d u , 3 9 , 4 5 , 130, 131, 301. T é c n i c a j u r í d i c a , 208, 244, 257,
Sistemas de direito, direito inglês, 259, 2 6 5 ss., 282.
66, 1 3 1 , 2 8 2 , 2 8 3 , 2 8 9 , 295, T e m p o (direito e), 94 ss., 170,
298, 299, 3 0 1 , 3 0 3 , 3 0 5 . 2 3 3 , 2 7 7 , 280, 282.
S i s t e m a s de direito, direito T e o r i a geral d o direito
islâmico, 39, 45, 130, 131, 153. ( d e f i n i ç ã o ) , 2 ss., 5 ss., 7ss.,
60, 230, 261.
464 TEORIA GERAL DO DIREI K >

T e o r i a pura do direito, 5, 20, V i a s de recurso, 164, 179, 241,


230. 283, 292, 303 ss.
T e r m i n o l o g i a jurídica, 180, 187, Villev (M.), 23, 24.
1 8 8 , 2 0 8 , 2 0 9 ss. Viraily (M.), 1.
T r a t a d o s i n t e r n a c i o n a i s , 134, V i z i n h a n ç a , 145.
135, 136, 171, 174, 183, 188, V o c a b u l á r i o j u r í d i c o , Ver
2 3 0 ss., 234, 2 7 0 , 3 1 2 . Linguagem jurídica.
V o n t a d e , 1 3 , 2 2 , 39, 44, 46, 101,
U 155, 1 9 3 , 2 2 9 , 232, 235 ss.

U r g ê n c i a , 118, 1 3 5 , 2 7 7 . W
Usos, 237, Ver Costume.
Utilidade pública, 25, 29. W a l i n e (M.), 169.
Utilidade, 24 ss. W e b e r (M.), 158.
Utilitarismo, 20, 21, 24 ss., 263. W i n d s c h e i d , 28, 282.
W r i g h t (Von), 246.
V
Z
Vedei (G.), 104.
Vias de e x e c u ç ã o , 118. Z i e m b i n s k i (Z.), 35.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 413

• Silogismo n.*3
Premissas - maior. Art. 1382 do Cód. Civil, "toda ação do
homem que causa a outrem um dano obriga o
autor da falta a repará-la" = Direito.
- menor: X causou um dano a Y com sua falta =
Fato.
- Conclusão: X deve reparar o dano sofrido por Y.
(Notar-se-á a jurisdicização progressiva do fato, acompanhan-
do o encadeamento dos silogismos.)

• Simbolizarão do silogismo jurídico:


Premissas - maior: Regra de direito: A > B: a falta (A)
obriga seu autor à reparação ( •> B).
- menor: Circunstância de fato: C = A: X (C) co-
mete uma falta (=A).
- Conclusão: C > B: X (C) deve reparação
( > B).
Um recurso de cassação contra a decisão em última ins-
tância que condenasse X não poderia ser fundamentado numa
contestação da velocidade do veículo (fato), mas poderia sê-lo
na qualificação da falta ou na interpretação do art. 1382 do
Código Civil (direito).
A APLICAÇÃO DO DIREITO 3 85

A atribuição de duas significações diferentes a um mes-


mo elemento do raciocínio Q revela a contradição da argumen-
tação.

—> A lógica formal é necessária para garantir o rigor de certas


etapas do raciocínio jurídico e pode ajudar eventuais contradi-
ções internas a uma fase desse raciocínio.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 349

titular de um direito; ainda é preciso não abusar desse direito,


pois aquele que abusa dele deve reparar o prejuízo que causa a
outrem. Os direitos do indivíduo não são, portanto, absolutos;
cada qual deve, no exercício deles, levar em conta o interesse
social ao lado de seu interesse próprio. Atenuação considerável
ao individualismo do Código Civil e ao egoísmo, o princípio
novo socializou o direito inteiro permitindo à jurisprudência
exercer um controle do exercício de quase todos os direitos.
Pelo menos nossos tribunais sabiamente recusaram ir lon-
ge demais nessa via; quiseram admitir um critério seguro do
abuso: a falta cometida pelo titular do direito.
Para o direito soviético, o critério é diferente: é abusivo o
ato consumado contrariamente à "destinação econômica e so-
cial" dos direitos, ou, para o direito polonês (art. 5 do Cód. Civil
de 1964), ao "fim social ou econômico" deles ou aos "princí-
pios da vida em sociedade na República Popular da Polônia".
Isso é ir longe demais na socialização do direito, pois é perigo-
so deixar o juiz determinar o sentido da destinação dos direi-
los, que pode então achar-se modificada conforme a política
do dia; o indivíduo já não tem a menor segurança no exercício
tle seus direitos; o interesse individual é sacrificado ao interes-
se social tal como o concebe o juiz no instante em que estatui.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 15

adiantamento da legítima: "doação feita a um herdeiro e que


se imputa sobre sua parte sucessória".
legado: "direito reconhecido a certas pessoas de retirar, antes
de qualquer partilha, uma soma de dinheiro ou certos bens
da massa que será partilhada".
quinhão disponível: "porção do patrimônio de uma pessoa de
que ela pode dispor livremente por doação ou testamento pe-
rante herdeiros legítimos (ascendentes ou descendentes)..."
288 TEORIA GERAL DO DIREITO

2. Categorias cumulativas
• Categorias cumulativas e equivalentes: os regimes das
categorias se acumulam em princípio
(S = A + C RS = RA + RC)
mas, em caso de dificuldade de acúmulo dos regimes jurídicos,
a regra especial exclui a regra geral ou as duas regras se combi-
nam.
• Categorias cumulativas e hierarquizadas = as regras par-
ticulares de cada uma delas devem em princípio acumular-se
(mas, em caso de conflito, a regra especial prevalece sobre a
regra geral).
(S = A + al + a2'—» RS - RA + Ral + Ra2')
(Ex.: o regime de determinado contrato comporta as re-
gras específicas de todo contrato, as dos contratos sinalagmá-
ticos e as dos contratos consensuais etc.)

3. Corretivos
Esses princípios só correspondem a esquemas básicos de
raciocínios baseados no método das classificações. Não são
nem rígidos nem intangíveis e devem ser completados por cor-
retivos diversos, racionais e empíricos ou ocasionais.
A APLICA ÇÃO DO DIREITO 3 249

ILUSTRAÇÃO

REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DAS INSTITUIÇÕES


NO SISTEMA JURÍDICO

A coesão do sistema jurídico é assegurada pelas intera-


ções entre os elementos que o compõem.
As instituições (II, 12, 13...) podem ser representadas em
comparação ao conjunto do sistema jurídico como as diferen-
tes moléculas de um corpo. Mas, como a molécula é uma reu-
nião de átomos, idênticos ou diferentes conforme o corpo em
questão mas ligados entre si, a instituição (II) agrupa outras
instituições (il, i2, i3).
Toda instituição, seja ela um organismo (il) ou um meca-
nismo (i2, i3), é, como o átomo, elemento constitutivo da
matéria, formada de um núcleo, ou seja, de uma idéia mestra,
de uma finalidade comum (F, F') em torno da qual são organi-
zados as diversas regras e os diversos elementos (R).
Assim, podemos figurar as instituições segundo o seguin-
te esquema:
O FENÔMENO DO DIREITO 223

Paralelamente, observavam-se tendências muito conser\'adoras\


85% das pessoas interrogadas pensavam que era preciso
melhorar e não suprimir a tentativa de conciliação.
83% das pessoas interrogadas estimavam que em caso de
divórcio por culpa recíproca as crianças com menos de dez
anos deviam ser confiadas à mãe.

III. Aplicação da lei de 11 de julho de 1975:

Conforme "a carta da Chancelaria" de I o de junho de


1979, em 1978:
Os pedidos de divórcio consensuais representavam 38%
do total dos pedidos.
Os pedidos de divórcio litigioso representavam 60% do
total dos pedidos.
Os pedidos de divórcio por ruptura da vida em comum
representavam 2% dos pedidos.
Nota-se, porém, desde 1976, uma nítida progressão do
número de divórcios consensuais e uma diminuição correlativa
dos divórcios litigiosos e por ruptura da vida em comum.
O FENÔMENO DO DIREITO 193

Quanto ao efeito na França da sentença de divórcio for-


mulada no México, ele depende da autoridade vinculada por
um sistema jurídico às decisões judiciais estrangeiras. Enfim,
a competência de um tribunal francês está ligada à solução de
um conflito de jurisdições.

• O ESPAÇO NO DIREITO
A incidência da localização dos elementos constitutivos
de uma situação jurídica tanto sobre o mérito do direito quanto
sobre o direito processual é importante.
O lugar de celebração do casamento pode servir para a
determinação da legislação aplicável. O domicílio e as resi-
dências dos esposos também podem determinar a lei aplicável
ao divórcio ou à separação de corpos deles (art. 310 do Cód.
Civil francês). A residência da família ou dos esposos permite,
enfim, determinar o tribunal territorialmente competente (art.
1070 s. doNCPC).
O FENÔMENO DO DIREITO 163

A capacidade das pessoas então com a idade de dezoito a


vinte e um anos se aplicará aos atos anteriores à entrada em
vigor da lei ou somente aos atos posteriores? "Os direitos que
deviam ser exercidos antes da chegada da maioridade, como,
por exemplo, a faculdade de repudiar ou declinar a nacionali-
dade francesa... poderão ainda sê-lo? Os prazos cujo ponto ini-
cial está na maioridade serão calculados a contar do momento
cm que os interessados haviam atingido a idade de dezoito
anos ou daquele em que atingirão vinte e um anos, ou ainda da
entrada em vigor da lei nova a respeito daqueles tornados
maiores por esta? A suspensão das prescrições que beneficiam
os menores... deverá ser reputada decidida a contar do momen-
to em que o beneficiário atingiu a idade de dezoito anos, ou da
entrada em vigor da lei nova, ou então ele conservará seu bene-
lleio até vinte e um anos?..." (J. GHESTIN e G. GOUBEAUX,
u/> cit., "Introduction générale, nf 330).
Na ausência de disposições específicas da lei que resol-
vam essas questões, sua solução dependeria da aplicação do
principio de não-retroatividade da lei.

• I > tempo no direito


I ssas diferentes questões mostram algumas manifesta-
i,im •, do Icmpo no direito: o instante (a idade da maioridade), os
pi a/os, o efeito extintivo do tempo (a prescrição), sua heteroge-
iii idade (os períodos em que corre e aqueles em que é suspensa:
>n i do Cód. Civil), o efeito de refreamento ou de acelera-
>,<i" du vida jurídica com a utilização do tempo pelo direito...
130 TEORIA GERAL DO DIREITO

ILUSTRAÇÃO

A HIERARQUIA DAS NORMAS EM DIREITO FRANCÊS

Constituição e textos princípios fundamentais


com valor constitucional.

(Constituição e Preâmbulo princípios e regras


e normas às quais ele re- com valor constitucional
mete, leis orgânicas).

Tratados e acordos inter-


nacionais.

Leis e textos com valor le- princípios gerais Costume


gislativo (leis ordinárias; de- simples
cretos ratificados art. 38; e
decisões art. 16 em matéria
legislativa). Jurisprudência

Regulamentações
(decretos art. 38 ainda não
ratificados, decisões em
matéria regulamentar, art.
16, decretos regulamenta-
res, portarias regulamen-
tares dos ministros, comis-
sários da República e pre-
feitos etc.)
O FENÔMENO DO DIREITO 99

Accordingly, in my judgment, it is appropriate to dismiss


lhe claim of one party for financial relief by consent and, at the
same time, make an order for financial relief in respect of the
othcr party.
I have to say that, having regard to s 25 A of the 1973 Act,
I can envisage circumstances when it would be possible to do
lhe same thing without the consent of the party concerned.
Order accordingly.
Solicitors: Russell-Cooke Potter & Chapman (for the hus-
band); Beckman & Beckman (for the wife).

Bebe Chua Barri ster.

< ibservações:
( om base na forma dos julgamentos ingleses, deve-se assina-
lar que a decisão, stricto sensu, limita-se a um simples disposi-
tivo, que enuncia a solução dada pelo juiz à lide. Teoricamente,
on juizes ingleses não são obrigados a motivar suas decisões.
Na realidade, explicam-na de uma forma discursiva. Sua ratio
dccidendi, que é a sustentação necessária de sua decisão (ex-
cluindo-se os obter dieta), tem valor de regra jurisprudencial.
Perante as jurisdições superiores, onde há uma pluralidade de
|iil/.es (quando não um verdadeiro colegiado), cada um deles
emite seu "voto", que é reproduzido na decisão.
XXX
TEORIA GERAL DO DIREITO

ILUSTRAÇÃO

Doutrinas Doutrinas positivistas Justiça * utilidade Individualismo *


idealistas * (positivismo jurídico I \ coletivismo
ou sociológico)
/
\ /
\ /
1 Y
1 /

DIREITOS SUBJETIVOS INSTITUIÇÕES ESTATUTOS LEGAIS...


XXX TEORIA GERAL DO DIREITO

entãoJipegar-se à essência do direito para poder apreender-lhe


a substância, pois a execução do direito é indissociável de uma
boa compreensão do fenômeno jurídico.
Neste ensaio de teoria geral, começaremos por estudar "O
fenômeno do direito" (Primeira Parte). Concentrar-nos-emos a
seguir nos elementos principais de "A aplicação do direito" (Se-
gunda Parte).
2. A CONCEITUAÇÃO DOS FATOS 398
A. A qualificação jurídica dos fatos 398
B. A flexibilidade de certas qualificações 401

Seção II - A resposta do direito aos fatos 402


1. A REAÇÃO DO DIREITO POSITIVO 403
A. A recepção do fato pelo direito 403
B. A rejeição do fato pelo direito 407

2. A APRECIAÇÃO DO JUIZ 410

CAPÍTULO 4 - 0 juiz e o processo 415

Seção I - O juiz 417


1 . 0 PAPEL DO JUIZ 418
A. A missão do juiz 419
B. Os atos jurisdicionais 424
2. PRINCÍPIOS GERAIS DA ORGANIZAÇÃO JU-
RISDICIONAL 427
A. A competência das jurisdições 428
a) Competência de atribuição e competência ter-
ritorial 428
b) Unidade ou dualidade das jurisdições judi-
ciárias e administrativas 433
c) O controle da constitucionalidade das leis 434
B. Hierarquia das jurisdições e vias de recursos 436
C. Colegiado ou juiz único 438

Seção II - O processo 441


1. OS CARACTERES GERAI S DO PROCESSO 442
2. OS PRINCÍPIOS GERAIS DO PROCESSO 444
A. O princípio do contraditório 445
B. Os princípios relativos às formas processuais 446

índice alfabético 453

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