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A versão social é ainda mais especial. Ela foi criada especialmente para pessoas que não
possuem acesso a plataforma Kindle.
Peço que ao ler tenha em mente dois valores: empoderamente feminino e apoio às
mulheres. Porque? Para que depois você possa realizar o pagamento desta versão.
Como? São dois passos simples e muito importantes.
• Após a leitura, repense os aprendizados deste exemplo de mulher que é a minha amiga
Alice. E então, quando tiver oportunidade, ajude/doe/faça um gesto de apoio e
empoderamento a alguma mulher/menina em condição de vulnerabilidade social.
Pronto! Este o maior pagamento que poderei receber: a infinita corrente do bem, de
apoio e amizade feminina. Lembre- o apoio não precisa ser somente financeiro.
Amizade, olhar, uma frase. Estas atitudes irão reforçar o propósito deste livro.
• Após ler, me envie um email, ou me marque nas redes sociais, divulgue o livro para
amigas e amigos. Propague esta mensagem. E me ajude a levá-la para mais pessoas.
Obs: esta versão está em PDF e não conta com recursos melhores. Ao final você
encontrará meus contatos.
Duas malas e um novo caminho
Com uma mochila nas costas e duas malas, entrei no barco que me esperava,
acomodei entre o banco a bagagem que carregava com dificuldade e então olhei para trás para
me despedir da minha mãe que estava em pé na areia da praia acenando com as maõs. Era só
o começo. Eu seguiria sozinha por uma longa viagem que não possuia data de retorno.
Senti um tremor onde eu estava sentada e ouvi um som estridente, o que me fez
perceber que o motor do barco estava cada vez mais potente. Era mesmo a hora da partida.
Pela última vez, olhei para a areia da praia e acenei para minha mãe. Ao me virar para frente,
pude ver meu novo caminho mar adentro. O novo destino: uma ilha distante e habitada por um
ser muito especial.
Chegando na ilha, encontrei alguém especial que mudou minha vida completamente.
Não me lembro da minha primeira conversa com ela e não sou capaz de dizer qual foi a nossa
primeira aproximação. O que sei é que, quando dei por mim, já não conseguia me ver sem a
nossa amizade. Na maior parte do tempo, os nossos momentos mesclavam-se entre nossas
risadas, meu peito apertado e, por vezes, lágrimas contidas.
O nome dela é Alice. Ela tem uma grande curiosidade pelo mundo que existe fora
daquela ilha. Por isso, questionou-me inúmeras vezes sobre coisas que, para mim, eram
naturais e, para ela, eram descobertas fantásticas. E assim nossas conversas se resumiam em
trocar vivências: eu falava um pouco sobre a vida fora da ilha; ela falava sobre a vida por lá.
Alice, que até hoje não conhece outro país, nutre diariamente uma imensa curiosidade
sobre a vida fora da ilha. Eu falava sobre a minha vida e respondia a inúmeras perguntas que
ela fazia. Enquanto ouvia, Alice afirmava o quanto minha vida era interessante. A minha
curiosidade pela vida dela era proporcional, mas ouvir ela contar sua história me desconcertava
completamente.
A casa de Alice, na verdade, era a casa da Dona Glória: uma senhora de
aproximadamente 84 anos, que passou a vida toda a cuidar de meninas abandonadas,
violadas, sem proteção e desamparadas pelo Estado ou pela família. Por décadas, a casa
esteve lotada. Houve épocas em que mais de 22 meninas viveram na casa da Dona Glória. Um
grande lar, hoje, reduzido a um número de quatro meninas. Embora seja uma redução
significativa, as moradoras da casa ainda estão ali por um motivo: desamparo; tanto social
quanto familiar e econômico. Não é que os casos de abandono social tenham reduzido. A
verdade é que hoje, no auge de seus oitenta e tantos anos, Dona Glória não se atreve a
acolher mais meninas. Para ela, já deu o tempo. Fez tudo o que poderia ter feito. Agora,
procura gozar de paz e sossego. Justo.
O lar era composto por Alice, Áurea, Ana e Duda, além de Dona Glória, é claro. Na casa
de Alice, não havia laços de sangue. O elo que unia cada uma delas era infinitamente mais
forte do que a genética. Todas estavam unidas por necessidades e dificuldades que
encontraram ao longo da vida. Por meio do amor, cuidado e apoio mútuo, seguiam a vida, dia
após dia. Foi nessa família que, cada uma a sua maneira, ofereceu à outra o apoio necessário
para superar silenciosamente os obstáculos.
Estas linhas são para Alice, a mulher à qual dedico todo meu amor e todo meu
respeito. Estas linhas e todos os meus dias, agora, são tão e somente para ela. Agora,
distante, sem saber se a verei um dia, coloco no meu dia a dia uma única meta: ser um pouco
mais Alice e um pouco menos menina mimada que reclama da vida, do tédio; que se diz
feminista.
Não é que eu não esteja feliz com aquilo que sou. A verdade é que, ser mais Alice, me
faz ter mais vontade de viver. Ser mais Alice me faz compreender o verdadeiro sentido do
feminismo.
Antes de conhecê-la, eu vivia cercadas de rótulos, sonhos, planos. Hoje, descarto
todos, absolutamente todos, para me agarrar em somente um objetivo: ser mais Alice. Afinal,
alguém como ela não desiste. Avança, bate e apanha, mas avança. Talvez seja por isso que
busco diariamente ser mais Alice. Fraca que sou, já deixei há tempo de ter vontade de avançar,
de lutar, de viver. Bom. Desconsidere estas últimas linhas, por favor. Aquilo que penso não é
relevante. Falemos de Alice. A minha Alice.
Doce de branco
Um dia, Alice encontrou, na casa onde ela trabalhava, uma caixa repleta de tampões
higiênicos e ela imediatamente demonstrou que não sabia muito bem para que aquilo servia.
Quando questionou as moradoras da casa, elas imediatamente iniciaram a apresentação do
produto e, claro, falaram sobre o modo de uso. Com boas intenções, doaram à Alice uma caixa
de tampões higiênicos. Embora ela tenha achado estranho enfiar algo dentro de seu pipi, ela
aceitou a doação.
Talvez você não saiba, mas na casa de Alice, assim como na maioria das casas da
comunidade na qual ela vive, o processo durante o período menstrual era simples: usavam
toalhinhas ou panos para conter o fluxo e depois lavavam e guardavam para o próximo ciclo.
Enquanto estive por lá, não notei propagandas de produtos femininos para o período
menstrual. Tampouco vi uma variedade deste tipo de produto nas prateleiras. Então entenda
que, para Alice, a aula sobre o uso de um tampão higiênico, além de ser algo inédito, era algo
que jamais existiu em seu dia a dia. Ou seja: sim; até então, o produto era desconhecido em
sua cultura. Enquanto para muitos aquilo era só mais um produto, para a sua mente curiosa e
cheia de vontades de descobrir novas formas de viver, era uma novidade.
Mais ou menos uma semana após a aula sobre o uso de tampões femininos, Alice me
encontrou na sala. Começamos a conversar sobre menstruação e gravidez, o que trouxe a ela
uma memória que causou risos imediatos. Automaticamente, perguntei o que era e ela, sem
conseguir parar de rir, não respondia. As risadas altas e espontâneas aumentavam a minha
curiosidade. Alguns minutos se passaram, o riso cessou e ela continuou a história que, agora,
causaram boas risadas a mim. Alice começou dizendo:
— No ano passado, uma voluntária deixou uma caixinha linda, toda colorida. Dentro,
havia canudinhos grossos e curtos. Desembrulhei um canudinho e vi que ele era branco. Como
era uma caixa muito bonita, pensei que era doce! Comecei a chupar e não senti gosto de nada.
Era sem sabor algum. Sem graça! Chupei o que tinha embalagem amarela e pensei que devia
ter sabor de banana, mas, de novo, sem gosto. Escolhi outro, com uma embalagem verde.
Pensei que era de abacate ou de limão. Chupei, chupei e nada de gosto. Todas as cores
tinham o mesmo sabor. Horrível. Guardei o que sobrou na caixa e pensei comigo: “branco
inventa cada uma”. Doce sem sabor! Só faltava essa. Deve ser pra não engordar.
Com olhar surpreso, deitada na cama, ouvia ela narrar essa experiência gastronômica.
— Alice, sua louca – eu respondi - aquilo é tampão! Nós usamos quando estamos
menstruadas. Como você pensou que aquilo era doce? Não leu as instruções na caixa?
— Só descobri pra quê aquilo servia porque liguei para minha tia que vive fora da ilha.
Eu estava encucada e precisava saber porquê vocês comiam algo sem sabor. Quando mostrei,
ela, primeiro, riu da minha cara. Fiquei brava, porque ela não parava de rir de mim. Eu
querendo saber a verdade e ela rindo. Fiquei irritada e desliguei o celular.
— Tia Inês me ligou mais tarde e explicou o que era. Fiquei mais assustada ainda!
Como é que pode enfiar aquilo lá dentro? Assim?! Não tá certo isso, não.
Sugeri a ela que me deixasse explicar como se usava. Falei também que não achava
necessário que ela usasse aquilo no pipi, já que as toalhinhas serviam perfeitamente e tinham
o mesmo efeito. Pedi para que ela me mostrasse a caixa e ela, rindo novamente, me
surpreendeu mais uma vez dizendo:
— Não tenho mais. Depois que descobri que não era doce e que eu tinha chupado
aquele negócio, levei para casa, deixei a caixa em cima da mesa da sala e disse para as
meninas: “olha, tem um doce de branco aqui. Quem quiser experimentar...”. Saí e deixei elas
lá, comendo o doce e reclamando do gosto.
Perguntei:
— Mas você disse a verdade para elas?
— Não. E não precisa falar. Elas não gostaram e, por isso, não comeram mais — com
um sorriso que saia entre os cantos da boca, ela concluiu — elas aprenderam.
Ri novamente ao perceber que ela, com sua inocência, comeu os tampões e, quando
descobriu que não eram comestíveis, induziu as meninas para que elas passassem pela
mesma experiência.
Foi neste dia, após muitas risadas, que eu aprendi com ela sobre a nossa influência na
vida das pessoas e sobre a imposição de regras ou produtos em determinadas culturas, que
ainda que inconscientes, acabamos fazendo. Assim, passei a refletir: “em um lugar onde a
maioria da população desconhece estes itens, devemos apresentá-los? Será que incluir novos
itens de consumos é positivo? Será que influenciamos positiva ou negativamente na vida
destas pessoas?” De uma coisa tenho certeza: toda e qualquer doação deve ser
contextualizada ou, ao contrário do que esperamos, traremos impactos negativos.
Sim. Este é um exemplo engraçado. No entanto, nem todos são assim tão divertidos.
Semanas depois ela tentou usar o tampão. Enfiou dentro dela e não conseguiu retirar. Disse
que ficou mais de 2 horas com as pernas abertas enquanto, entre elas, as meninas iluminavam
com velas na tentativa desesperada de retirar o que, aparentemente, era inofensivo. E, sim;
com as velas entre as pernas de Alice, pois, naquela noite, a comunidade estava sem energia
e, por azar, o tampão entrou e não saiu.
Contou que Duda chorava muito, enquanto Ana e Áurea tentavam retirar o que ela
tentou usar sem sucesso. Concluiu a conversa dizendo categoricamente:
— É invenção de branco. Branco inventa demais! Isso não é para mim. E confesso que
fiquei com medo de ter que ir ao médico para retirar aquilo. O que eles pensariam de mim? Ia
ser a maior vergonha. Deus me livre! — repetia a frase e fazia o sinal da cruz, como quem se
protege de um mal.
Adverti novamente que não tentasse mais usar o objeto, explicando que muitas
mulheres não se adequam ao uso do produto e, por precaução, era melhor ela continuar
usando os paninhos higiênicos que todas usavam por lá. Depois do susto, ela pareceu
entender. Embora viva em numa comunidade distante, ela recebe muita informação de outras
culturas e, por isso, por mais bem-intencionadas que sejamos ao tentar ajudar ou compartilhar
conhecimento, não somos capazes de mensurar os impactos, sejam eles positivos ou
negativos. Pude confirmar isto quando ouvi Alice dizendo que, naquele momento de desespero,
pensou em enfiar uma tesoura dentro dela para retirar o tampão. Sim, uma tesoura.
E assim ela seguiu me explicando, com a voz calma, de criança que revela um segredo
e escolhe as palavras cuidadosamente:
— Quando era criança, eu sonhava em ter uma amiga brasileira. Pedia para Deus todas
as noites antes de dormir para que, um dia, ele me desse uma amiga brasileira. Era este meu
maior sonho! Quando nos conhecemos, fiquei com medo de você não gostar de mim. Agora,
Deus realizou meu sonho: tenho uma amiga brasileira e nunca vou esquecer você! Por isso,
quero que seja minha amiga para sempre.
Eu tinha que conhecê-la. Era este o principal objetivo de estar lá. Este momento estava
marcado para acontecer há muito tempo. Olhando para ela, fiz minha promessa e, sem saber
como a cumpriria, carrego-a comigo a cada dia. Não é um peso, é um presente: amigas para
sempre! Mesmo sem saber se um dia nos veremos novamente.
Pudim de Chocolate
Decidimos visitar uma fábrica de chocolate. Saímos de casa por volta das 10 horas e
seguimos rumo à capital. Foi um passeio muito animado e divertido. Durante o almoço, Alice
sentou ao meu lado e foi então que pude perceber que ela estava monossilábica. Não era a
pessoa espontânea e animada que encontrávamos todos os dias na nossa casa. Imaginei que
estivesse com vergonha e percebi que ela estava desconfortável, por isso sugeri sentarmos no
jardim, lá fora. Quando percebeu que estava distante do olhar de outras pessoas, Alice relaxou
e voltou a sorrir confiante.
Durante o período que estive na ilha, desenvolvi um projeto sobre equidade de gênero
e, claro, sabendo da realidade local e muito interessada no assunto, comecei a questionar
alguns pontos. E foi assim que a conversa fluiu rapidamente, afinal, ninguém melhor do que os
próprios moradores para tirar minhas dúvidas.
As informações e as percepções que recebi ainda estão sendo absorvidas por mim,
definitivamente não sei o que fazer com elas.
Foi sentada embaixo de uma grande e frondosa árvore, em um calor de
aproximadamente 33ºC, que eu recebi a mais importante aula sobre feminismo,
empoderamento, sororidade e acolhimento. Alice falou sobre esses temas que estão na moda,
em todos os países, mas que não são realidade para a grande maioria da população. Durante
horas, comentou sobre as dificuldades e, ouvindo-a, senti que suas palavras poderiam ser
referência em grandes universidades, locais públicos, Igrejas. Poderiam, mas não são e não
serão, porque quem tem voz nesses espaços, normalmente, não vive as dificuldades sociais
causadas pela sistema. O machismo respinga em muitas áreas, em muitas mulheres. Mas
sabe onde ele sangra mesmo? Na base. Sangra, corta e machuca cada menina, cada mulher
lá na base. E elas, infelizmente, não têm voz para falar sobre o que se vive. Quem está
sangrando se quer conhece todos estes termos e conceitos acadêmicos. O machismo
estrutural elimina as vidas e sonhos de incontáveis meninas e mulheres. Nós, na maioria das
vezes, não percebemos esta realidade. Me entristece pensar que, enquanto sangramos, muitas
são cortadas.
Naquele dia, embaixo da árvore, Alice teve voz. Eu a ouvi falar por longas horas e,
enquanto meus olhos estavam marejados, ela despejava tudo o que sentia, vivia e sofria. Não
falava dela, mas de todas e por todas. E assim, como quem conhece e vive a dor da
desigualdade, falou de uma forma que parecia que algo precisava ser feito. Mais do que isso.
Falou de seus passos, da sua luta e das suas dificuldades diárias para manter próximas,
protegidas e unidas cada uma de suas meninas. Falou como alguém que não esqueceu de
ninguém e relembrou cada dor, cada sofrimento de suas conhecidas e não conhecidas.
Naquele dia, embaixo daquela árvore, Alice estava fazendo, talvez, seu maior ato
revolucionário ao compartilhar com alguém de fora toda a vivência e toda a realidade nas quais
ela e todas nasceram, viveram e vivem. Foi também naquele dia que me senti ainda mais inútil
diante de sua luta. Uma luta que ela não chama de luta e sim de vida, porque, para ela, a vida
é mesmo assim e o que lhe cabe é seguir um dia por vez, protegendo e cuidando de cada
menina que chegue até seus braços.
Os cortes, são profundos e as marcas são impossíveis de serem esquecidas, há feridas
que não se curam nunca. Quem está sangrando, não tem muito espaço e tampouco voz para
falar sobre o que se vive. Quem está sangrando, se quer sabe que há nome para isto. Naquele
dia, ela foi ouvida e infelizmente pouca coisa mudou. Mas, quando relembro aquele dia, sei que
ela se sentiu importante, segura e confiante para falar sobre a sua realidade e sobre a
desigualdade que vive.
Alice carrega uma alegria enorme de viver apesar de ter vivido muitas dores. Ela tem
uma mania engraçada de dar novos nomes às coisas e os seios foram redefinidos por ela, que
agora são chamados de pudim. E existe uma coerente classificação para cada pudim, que é
mais ou menos assim: se os seios forem fartos é pudinzão e se forem miúdos, pudinzinho.
Mais tarde, após a degustação de chocolates, quando a encontrei dentro da fábrica,
Alice estava em um canto escondida e isolada. Percebi que ela estava com as mãos dentro dos
pudins. Muito curiosa com a cena, perguntei o que estava acontecendo e ela me pediu para
escondê-la, pois precisava retirar os chocolates de dentro dos pudins. Pensando que houvesse
caído chocolate acidentalmente, ofereci ajuda e ela, com toda naturalidade possível, me
respondeu:
— Fui eu que coloquei. É que decidi levar alguns para as meninas experimentarem.
Com toda minha brasilidade aflorada e inconformada por vê-la retirando uma pasta
derretida de chocolate de dentro do pudim direito, disse:
— Colocar chocolate na teta? Tá louca? Vai derreter!
Na casa da tia
Dona Glória é uma senhora muito simpática. Apesar de estar um pouco debilitada
fisicamente, ainda goza de uma mente ativa e de uma boa memória com histórias fantásticas.
Sentar ao seu lado é como abrir as portas de um baú histórico com diversas narrativas da sua
infância.
Um dia, Dona Glória me contou como foi curada de doenças que naquela época eram
fatais. Narrou cada detalhe sobre como sobreviveu e sobre como lutou para se recuperar de
uma doença terrível não identificada. Relembrou os fatos com vividez e narrou cada detalhe do
ritual no qual, aos 12 anos, vivenciou: devido à ausência de médicos e de poucos recursos, só
recebeu a cura após a mãe carregá-la pelos braços por mais de 22 quilômetros para encontrar
uma curandeira. A doença já se alastrava e o corpo padecia de uma dor insuportável. Ela
estava assustada e chorou muito durante o ritual no qual, em um determinado momento, foi
condicionada a levar chicotadas nas costas para limpeza e purificação de sua alma. Depois
disso, precisou tomar um banho de mar às 3h30 da manhã, sob a luz da lua e sozinha. Embora
para uma menina de 12 anos isto pareça assustador, ela afirma categoricamente estar viva
pelas graças de Deus e de sua mãe que a levou até aquela mulher. “A cura veio e é isto que
importa”, complementa.
Relembrando as diversas maneiras que encontrou para ganhar dinheiro e do
aprendizado que oferecera às muitas meninas que viveram em sua casa, Dona Glória tem
muitas histórias e fala com orgulho da vida que levou. Hoje, o tempo passa devagar para esta
querida tia que parece viver tranquila e bem cuidada ao lado das quatro meninas, que
compõem a sua família na ilha. A casa está sempre cheia, as meninas estão sempre ocupadas
com os afazeres domésticos: lavar roupa à mão na beirada do rio, cozinhar, limpar e organizar
toda a casa. O trabalho diário é feito com muito cuidado e com muito perfeccionismo por todas
elas. Com a ausência de oportunidades de trabalho formal, a renda da Alice veio por meio das
reduzidas porcentagens que recebia por vender sorvetes e cerveja. A casa vivia com
simplicidade e muito zelo e, quando o assunto era alimentação, não havia dúvida: a casa
estava muito bem representada, pois as meninas aprenderam a cozinhar muito bem; quanto à
menina mais velha, Dona Glória afirmava categoricamente: “as mãos dela são as melhores”.
Elas sempre agradecem a alimentação e jamais reclamam do prato que comem. E claro, fazem
questão de reforçar que os pratos da Alice são os melhores. Eu não me atrevo a contestar.
Passeio em família
Acordamos às 6h30 no sábado. O roteiro era um passeio para o sul da ilha. Quando
ficou sabendo que iríamos para um lugar distante, sem restaurantes ou bares, Alice
imediatamente sugeriu fazer o almoço para levarmos. Ela preparou tudo às 3 horas da
madrugada e, apesar de ter dormido pouco, estava animada com o passeio e feliz com a ideia
de levar a Duda, sua pequena caçula. E assim, todas prontas, com panelas, pratos e talhares
dentro do carro, partimos para a nossa aventura. Eu estava sentada ao lado esquerdo, com os
braços e o rosto parcialmente para fora da janela, a brisa forte batendo em meu rosto. Ao meu
lado direito, a Duda estava sentava e, em seguida dela, estava Alice. O caminho foi longo e
levamos mais de 3 horas para chegar à primeira praia. Boa parte do percurso se deu em
estradas esburacadas e com uma vista surreal para o mar. Confesso definitivamente não saber
o que tornou a viagem mais emocionante: as curvas ou os buracos que o carro encontrou pelo
caminho que beirava o mar.
O lado sul da ilha tinha praias lindas, muito verde por todos os lados, além das
pequenas comunidades que vivem a beira da estrada. Com o rosto encostado na janela do
carro, sentia a brisa percorrer meu corpo e, a cada curva, um longo período de reflexão se
instalava em minha mente. Refletia sobre tudo o que havia vivido naquele lugar, lembrei das
pessoas que deixei no Brasil, revi meus valores, questionei sobre os impactos sociais do
assistencialismo e pedi para que eu jamais esquecesse da lição mais importante que tive: a
simplicidade do ser. Entre tantos pensamentos e olhares curiosos que atravessaram a janela e
atingiam os lugares mais distantes possíveis, por um segundo, olhei para a pequena Duda e
senti que tudo o que eu precisava aprender estava ali. A pequena Duda, que aos doze anos de
idade encostava seu rosto nos ombros da Alice e repousava tranquilamente. Apesar das curvas
perigosas, do balanço constante do carro devido aos imensos buracos da estrada, das
comunidades movimentadas com músicas e conversas em alto tom, Duda dormia segura de
que estava protegida ao lado daquela que lhe dá o essencial: amor. Olhei para aquele
momento por longos minutos e só desviei o olhar quando meus olhos não aguentaram mais e
as lágrimas desceram sem controle. Lágrimas de felicidade, porque aquele rostinho me dizia
muitas coisas sem uma única palavra. A Duda não tinha noção do quanto o mundo pode ser
cruel, embora já tenha sofrido alguns exemplos desta crueldade. As dificuldades da vida não
importavam para aquele coração, pois ele encontrou ombros que representam o acolhimento
que merece.
Mar bravo
Enquanto arrumava minhas coisas na areia, olhei para o lado e vi as duas correndo
para a água, pulando como crianças em sua primeira visita à praia. De longe, acompanhava os
movimentos. Jogadas na areia da praia, elas eram constantemente levadas pelas ondas e não
se importavam com os tombos. Riam e gritavam a cada onda que as derrubavam. Após alguns
minutos e com menos empolgação, fui para a água sozinha e fiquei olhando aquele cenário
paradisíaco durante alguns segundos: a água azul, os coqueiros, a areia branca, uma ilha
deserta. E, em como toda ilha deserta, tudo era magnífico.
Na água, um pouco distante, as duas continuavam brincando. Elas acenaram para mim,
chamando para me juntar a elas. Caminhei com os pés na água e, quando nos encontramos,
fomos arrastadas pela força da água. As ondas eram muitas e eu nem conseguia pensar no
que estava acontecendo. Nossas mãos se encontraram e fomos arrastadas para a areia.
Quando conseguimos nos levantar, rimos muito e, antes que pudéssemos nos recuperar
daquele tombo, outra onda nos arrastou para dentro no mar. Isso se repetiu inúmeras vezes e,
a cada onda que nos acertava, ríamos ainda mais. Era tão divertido que, em vez de sairmos
dali, entramos em um clima de euforia, com gritos e risadas que se intensificavam com os
tombos pela areia. Por vezes, entre uma onda e outra, tínhamos os trajes de banhos removidos
pela força da água e constantemente nos revezávamos para levantar da areia, passar uma
onda e encontrar o traje de banho ou colocar os pudins para dentro da peça. Bebi muita água
do mar e fiquei com marcas no corpo devido aos arrastões na areia. Marcas que me lembraram
o quanto me diverti, não contei os minutos e tampouco lembrei de tirar fotos. Risadas,
inocência e alegria dentro e fora do mar. Aquele era o momento mais feliz ao seu lado. Até vir o
próximo.
Frustrada é uma palavra que ela usa para descrever alguém que faz coisas
engraçadas.
Enquanto disse isso, começou a tirar a roupa e eu imediatamente comecei a fazer o
mesmo. A Duda, que estava ao nosso lado, sorriu e tirou a roupa também. E assim passamos
o resto da tarde: dentro da água, sem roupa.
Entre muitas risadas, falamos de alguns sonhos e de alguns medos. Alice me contava
algumas histórias e, aos poucos, tocamos nos assuntos que no dia a dia não conseguíamos
falar. Quando falamos sobre o sonho dela de ter um restaurante, questionei sobre como seria
pois queria entender o quanto ela havia realmente pensado naquilo. Para minha surpresa, ela
já havia pensado em tudo.
Contou que já havia tentado uma vez, mas que não tinha dado certo pois, apesar de
vender toda a comida que fazia, o ambiente não era favorável: o restaurante era a calçada de
sua casa. Na ilha, havia muitos animais soltos, então, como você pode imaginar, alimentar-se
ao lado de cachorros, porcos, cabras e galinhas, não é e nem será uma das melhores
experiências culinárias da vida. Quem experimenta aquela comida logo diz que ela deveria ter
um restaurante.
Ouvi suas palavras na água calma e pude perceber que aqueles planos e sonhos
possuíam mais significados do que as próprias palavras revelavam. Ter um pequeno
restaurante não é um sonho e sim uma promessa para melhorar a vida. E não só a vida dela
que, embora não tenha filhos, aos 25 anos já tinha o coração de uma mãe. Alice já não
pensava em sua vida de maneira isolada. Sem parir, tornou-se mãe daquelas meninas. Todos
os passos visavam oferecer o máximo de segurança para sua família de coração.
Um pequeno restaurante traria mais do que conforto. Seria uma possibilidade de renda
para aquelas meninas, que poderiam trabalhar juntas para a manutenção do local. Talvez eu
não tenha mencionado o fato de que o crescimento e a possibilidade profissional feminina na
Ilha não são grandes - para não dizer que são mínimas. As meninas pouco frequentam a
escola e não há cursos profissionalizantes, o que torna o mercado de trabalho extremamente
informal. Não preciso dizer que isso impossibilita determinantemente a segurança e ascensão
social. Reforço aqui que, quando me refiro a ascensão social, não estou dizendo de alto poder
aquisitivo e sim sobre a possibilidade de atender a necessidades básicas: se alimentar,
comprar papel higiênico, pasta de dentes, produtos de higiene e até mesmo pagar as contas da
casa.
Eu me senti tão livre dentro daquela água. Não haviam roupas ou pessoas. Eu estava
sem as minhas amarras sociais, não havia preocupação com o mundo lá fora. Esse sentimento
foi diminuindo aos poucos após a nossa conversa. Talvez eu tenha me sentindo tão livre que
pude sentir as amarras nas quais Alice vivia. Não que eu já não tivesse percebido, mas ali
percebi as necessidades e o desejo de mudança por mais segurança, por uma vida com menos
dificuldades. Sim, eu pude sentir. Mas não fui capaz de fazer mais nada além de só sentir.
Contos de fada
Alice tem o dom de contar histórias. Não essas feitas para vender, que narram sempre
um final feliz. As longas narrativas são repletas de surpresas, aventuras, dramas, terror e até
muita comédia. O que para nós são histórias, para ela é vida. Há algo tão intrínseco naquelas
palavras que encantam e, ao mesmo tempo, assustam. Talvez seja o choque de saber que
cada frase revela fatos de uma vida tão diferente da minha, que por vezes chega a ser
inimaginável.
Uma vez, relembrou a infância e me revelou que sua mãe teve muitos filhos e um
marido sempre ausente - fato comum na ilha. Descobri que, quando Alice era criança, a família
viveu com a renda de um pequeno comércio de alimentos e frutas. Eram tempos seguros, de
uma razoável abundância, que acabaram devido a um incidente: a avó materna, em um surto,
ateou fogo no local e tudo foi perdido.
A consequência foi o tempo difícil que ficou marcado por choro de fome. Em uma rápida
análise, ela ponderou sobre o passado e o futuro. Afirmou que naquela época não era como
agora que os vizinhos se ajudam e doam pelo menos um prato de comida. Com a voz firme,
complementou:
— Aquilo era fome mesmo.
Não soube ao certo me dizer quanto tempo durou os tempos difíceis, mas afirmou com
muita convicção que aprendeu muito embora fosse só uma criança. Aprendeu a agradecer ao
alimento que tem e a nunca negar comida a alguém que precise, pois sabe a dor da fome.
Contou-me sobre quando virou mocinha, ou melhor: sobre como foi a sua primeira
menstruação. Sabemos que esta é uma situação não muito confortável para a maioria das
meninas, mas, ao ouvir seu episódio, tive a sensação de que não há nada mais desconfortável
do que a própria falta de conhecimento e de apoio.
Enquanto ainda era uma criança, Alice disse que não sabia o que significava ser uma
mocinha ou virar uma mulher, afinal jamais havia ouvido falar sobre tais coisas. Foi um susto
muito grande quando viu o sangue escorrendo entre as pernas. Entrou em desespero, pois
pensou que estava grávida e que o neném estivesse nascendo. Assustou-se ainda mais
quando percebeu que o sangue não parava, e assim seguiu narrando:
— Pensei que era um filho, tentei lembrar-me de como eu poderia ter engravidado. Na
época, aos 12 anos, eu ainda não sabia nada sobre gravidez, sexo, menstruação, nada. Fiquei
escondendo o sangue por dois dias. Passava a noite toda rezando, com a cabeça debaixo do
travesseiro. Rezava para que esse filho sumisse e para que ninguém descobrisse. Tinha medo
de ser mandada para rua e ficar sem casa novamente. Pedia para que a cegonha viesse
buscá-lo antes de que alguém descobrisse. Pedia perdão a Deus por todos os pecados,
tentava entender o que eu havia feito de errado para engravidar assim. Foi só no terceiro dia
que não consegui controlar meu desespero e procurei uma tia minha para pedir ajuda.
Perguntei a ela se comer o mesmo pão que um menino engravidava e ela, sem entender nada,
riu. Eu comecei a chorar dizendo que estava grávida e que tinha engravidado por ter comido o
pedaço de pão que meu amigo na escola havia me oferecido. Essa era a única explicação que
eu havia encontrado para o sangue que não parava de descer pelas minhas pernas.
Quando você ouve uma história dessas, a primeira coisa que vem a sua mente é sobre
a lei. É automático. Você imediatamente tenta resolver o problema por meio dela. Por isso,
perguntei para ela sobre a legislação do lugar e também sobre os cuidados que a menina
precisava receber. Questionei a respeito do psicológico, físico e da proteção para a vítima. Ela
respondeu:
— Aqui não tem nada disso. Talvez um dia, mas não tem, nunca teve. Atualmente o
aborto é legalizado e há uma clínica que dá suporte e apoio às mulheres antes, durante e
depois do procedimento. Embora seja gratuito e seguro, o serviço não chega às comunidades
periféricas, por isso usam outras técnicas para o procedimento.
Meu silêncio
Algo me impede de escrever. De repente, me senti fraca para o fazer. Embora ainda
exista, está ainda menor a vontade que tinha de colocar aqui todos os meus momentos com
Alice, de representar o ser único e grandioso que ela foi e é. A cada dia, diminui. Mas entenda:
o que fica menor não é o que sinto por ela ou por tudo o que vivemos; não é e jamais será a
importância dela em minha vida. O que diminui em mim é a esperança de que talvez algum dia
eu possa revê-la ou quem sabe ajudá-la de alguma forma. Fico sem esperanças e, por isso,
tenho evitado vir aqui escrever.
Hoje, ao abrir estas páginas, desejei sentir novamente a esperança e a confiança de
que, um dia, a verei novamente. Receio não conseguir cumprir a promessa da amizade eterna.
Na ilha que eu aprendi a acreditar no céu
Eu conheci uma guerreira e jamais me esquecerei das batalhas que ela venceu. Aos 20
anos, já havia sido estuprada três vezes e, como consequência destes estupros, havia feito três
abortos. Chorou ao me contar e não foram lágrimas de desespero. A dor que seus olhos
demonstravam era de um pesado fardo que carregava há tempos. Um peso que jamais será
aliviado, um peso que a justiça ou o tempo jamais será capaz de aliviar.
Contando a sua história, me surpreendeu com uma pergunta. E foi por meio desta
pergunta que puder perceber que não havia como ajudá-la com a dor, pois, ainda que o tempo
passasse, aquele choro jamais deixaria de existir.
Qual foi a pergunta?
Com a voz de uma criança que implora por um brinquedo, me questionou:
— Como conseguirei chegar ao reino dos céus se já tirei a vida de três seres? Como
Deus vai me perdoar por ser uma assassina?
Hoje, soa engraçado pensar que alguém, após tanta dor, se preocupa em conquistar o
reino do céu. Admito que, se fosse eu, talvez estaria preocupada em me vingar ou em causar a
mesma dor que senti. Como ouvinte, eu estava ciente de que jamais seria capaz de intervir
naquele caso e, por isso, naquele momento me apeguei ao que pude oferecer: uma conversa
amiga.
Quando entendi a preocupação com o reino do céu e percebi o profundo medo de não
ser merecedora de tamanha graça, questionei:
— Qual Deus está no céu?
Refletimos sobre a presença e existência de um Deus acolhedor, que ampara e ama a
todos e que tem um amor especial pelas mulheres. Desenhei um Deus para ela e para mim,
que permite que sejam amadas e acolhidas todas as meninas e mulheres que foram
maltratadas e violadas, que sofrem ou sofreram a dor do abuso sexual e do aborto. Neste
momento, por mais assustador que pareça, eu desenhei e desejei um Deus que já acolhe as
mulheres e meninas que ainda serão violadas. Desejei que todas elas, sem exceção, sejam
aceitas, amadas e acolhidas em seu reino. Logo eu, que não acredito na existência de um céu
da forma que as religiões desenham, que não acredito na ideia de um julgamento final e em um
céu exclusivo para os fiéis seguidores da palavra divina. Logo eu, orei baixinho naquele
momento, pedindo e crendo já ter recebido um céu onde todas possam habitar e onde as
vítimas destes crimes possam ao menos serem aceitas.
Foi com toda fé que pedi com avidez por este céu. Já que não se pode desejar ou
esperar por justiça e reparação social, já que meu papel e trabalho não é capaz de amenizar
este sofrimento, desejei ao lado dela que este lugar esteja pronto para receber a todas. Ao final
da conversa, ela pareceu acreditar em um céu que irá acolher a ela e suas amigas.
Um segredo
Mais tarde, quando ela já estava mais calma, ficamos sozinhas. Aos poucos, puxei
assunto e, aos poucos, ela respondeu minhas perguntas bobas. Depois de alguns minutos de
conversa fiada, ela me perguntou:
— Você quer saber porque eu estava chorando?
Respondi que se ela se sentisse confortável para responder, eu gostaria. E então ela foi
soltando as palavras enquanto puxava mais uma trança em meu cabelo:
— Eu fico muito triste porque você vai embora. Chorei porque eu sempre pedi uma
amiga brasileira e, agora que eu tenho uma, ela vai embora. Eu não quero nunca esquecer de
você, mas sei que a vida é assim, que essas semanas que passamos juntas precisam acabar e
que não posso ter você pra sempre. Doí muito. Não quero perder você.
Ouvi com lágrimas nos olhos. Claro que tudo o que eu queria era dizer a ela que
seríamos amigas para sempre e que, em breve, nos veríamos novamente. Só que eu sabia que
não podia reforçar ainda mais esta ideia. Não podia alimentar tanta esperança sem ao menos
saber se um dia poderia voltar. Gostaria de dizer das infinitas possibilidades da vida e que
poderíamos viajar, nos encontrar em qualquer canto do mundo. Sempre me despedi assim das
minhas amigas e, realmente, muitos reencontros aconteceram. Nestes casos, a esperança
sempre foi permitida, mas ali, naquele momento, não era bem assim. Eu não sabia quando e
como conseguiria voltar para aquele lugar. Aquela realidade era tão distante que seria cruel da
minha parte alimentar qualquer esperança ou fazer qualquer promessa. É claro que eu queria
voltar a vê-la. Aliás, isso é tudo o que o meu coração mais queria, mas quais eram as
possibilidades? Assim como em muitos momentos ela me deixou sem palavras, eu não tive
muitas para responder. Decidi mudar de assunto e, minutos depois, começamos a sorrir
novamente.
Porque ela fez a despedida ser uma grande festa
Com o passar do dia, as malas que estavam guardadas começaram a preencher a sala.
Pouco a pouco, a casa foi deixando de ter vida: os objetos pessoais foram removidos, os
lençóis das camas foram recolhidos, o varal que sempre estava repleto de roupas penduradas
ficou limpo e sem peças expostas para secar naturalmente ao sol. Aos poucos, cada pessoa se
preparou para a partida.
Ali, naquela casa, aconteceu uma profunda transformação pessoal em cada um. O
sentimento era de realização. Sentíamos empoderadas e preparadas para continuar a mudar o
mundo. Enquanto preparava minhas malas, Alice veio até meu ouvido e falou baixinho:
— Fica comigo lá em casa, querida. Vai pra lá quando terminar de arrumar suas coisas.
Quero você lá comigo.
Respondi que iria assim que terminasse de arrumar as malas e assim fiz.
Chegando lá, no quintal ao fundo da casa, estavam sentadas Alice, Duda, Ana e Áurea.
No chão de concreto, com grandes bacias entre as pernas, descascavam bananas e fruta-pão.
O processo era trabalhoso e o trabalho era em equipe: enquanto Ana e Áurea descascavam as
frutas, Alice picava cada uma delas e Duda separava as cascas. Durante a tarde toda, Alice fez
o trabalho mais difícil e orientou cada etapa do trabalho das meninas, avaliando criteriosamente
o que cada uma havia feito.
Enquanto tudo acontecia, eu fiz piadas com as meninas e ouvi as histórias que tia
Glória compartilhava comigo. As horas foram passando e o trabalho de ralar mais de 30 quilos
de banana e 15 quilos de fruta-pão estava chegando ao fim. Vale lembrar que descascar, ralar
e salgar é a primeira etapa. Após isso, é preciso fritar, deixar secar, separar cada fatia e, só
depois de frio, empacotar. Estava assustada com a quantidade de coisas que elas faziam.
Quando falei que era muito trabalhoso, elas negaram imediatamente dizendo que não era
trabalho nenhum fazer o pala-pala - nome dado às frutas fatiadas e fritas. Todas estavam
alegres e as músicas no rádio embalavam o trabalho. Como as meninas são muitos alegres e
divertidas, sem que percebêssemos, virou uma festa: amigos bebendo cerveja, conversando e
dançando.
Eu não esperava ouvir tanta verdade em uma fala tão espontânea e natural. Nós nos
acostumamos tanto a não falar muito de sentimentos, lutamos constantemente para escondê-
los e não parecermos fracos, que somos pegos de surpresa quando alguém nos revela algo.
Ana, assim como a Alice, não usava esta técnica inútil. Ela revela seus sentimentos de maneira
pura, clara e direta.
Me senti imensamente grata por suas palavras e fiquei vagando por um momento
naquela cena: o tom de voz doce, o quintal escuro em silêncio, o fogo assando a fruta ao nosso
lado e iluminando um pequeno pedaço daquele lugar. Parei e fiquei prestando atenção em
como o fogo era forte, em como o calor era capaz de produzir mudança no sabor e no aspecto
da fruta que antes possuía uma casca verde e agora estava preta. Por alguns instantes, refleti
sobre isso e confesso que foi o jeito mais fácil que encontrei para viver aqueles minutos ao lado
delas.
Vaguei em meus pensamentos por não saber o que responder ou que eu realmente
deveria dizer. Que também sentirei saudades? Sim, claro. Que adorei conhecê-las e que elas
são incríveis? Desejar toda felicidade do mundo? Era isso o que deveria dizer? Sim. E foi
exatamente o que disse, embora no fundo eu soubesse que aquele choro também trazia um
outro sentimento. Aquele choro e aquelas palavras revelavam que, no fundo, ela sofria pelo
abandono e por saber que minha presença não existiria mais. Daqui a pouco, eu seria somente
saudade e lembranças. Enquanto abraçava cada uma delas, falei:
— Se eu puder, um dia voltarei. Fui muito feliz aqui. A alegria que vocês possuem é
algo muito bonito. Cuidem da Alice enquanto eu não estiver.
Meu pedido foi mais uma forma de dizer: estejam sempre juntas. Espero que elas
tenham entendido. Limpei as lágrimas e retornei para cozinha, desta vez com muita alegria.
Dancei por muito tempo com Alice, ao lado das panelas.
Exausta, decidi me deitar no sofá da sala. Era um sofá preto, antigo mas bem
conservado e confortável; forrado com um lençol branco impecável, cheirando a sabão da ilha
e engomado com um ferro a lenha. Descansei enquanto a música, a dança e os passos
agitados aconteciam. Fechei meus olhos e, sem perceber, adormeci. Aquele cochilo foi o meu
primeiro cochilo no sofá da Alice e eu daria tudo para retornar a este dia e sentir aquela energia
mais uma vez.
Para tentar acalmar a situação, conversamos e decidimos que levaríamos Alice até a
casa dela. Assim, partimos ela, eu e quatro meninas. Ao chegar no portão, a mesma cena:
choro e abraços apertados. Enquanto o grupo a abraçava, eu estava parada olhando tudo,
engolindo o choro e tentando controlar meus sentimentos. Terminado o abraço coletivo, Alice
olhou para mim e pediu mais um abraço. Foi neste momento que reencontrei os braços que,
minutos atrás, eu havia pensado jamais rever. Me imaginei em um mundo onde pessoas
abraçadas não podem ser separadas, nunca. Queria permanecer ali por muito tempo, pois
sabia que provavelmente este seria o último abraço, a última presença física dela na minha
vida.
Compreendia que o sofrimento dela era maior do que o meu naquele momento e sentia
que o seu choro era um choro de abandono, um choro que representava o fim de dias felizes,
de esperança e da amizade. Ela sente a vida nova, a esperança, a amizade indo embora, a
vida dura chegando com a opressão de um sistema, as dificuldades financeiras, as poucas
oportunidades. Quando nossos corpos se distanciaram, ela voltou para realidade daquele povo
e claro, por mais feliz que ela fosse ali, ela sofria com as ausências. Quem não sofre?
Recuei os braços e agradeci por tudo:
— Obrigada, minha linda, por nadar pelada comigo e por tentar me ensinar a cozinhar.
Obrigada por cuidar de mim e por me mostrar que do outro lado do mundo tem alguém tão
doida quanto eu. Obrigada por ser minha amiga!
O som do silêncio
Ainda hoje, escuto os ecos das vozes de cada menina que me contou sua experiência e
relatou o que passaram. É ensurdecedor conviver com eles.
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