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© 2014 Giorgio Agamben

Direção editorial:
Paulo Roberto da Silva
Capa:
Leonardo Gomes da Silva
Editoração:
Carla da Silva Flor
Revisão:
Heloísa Hübbe de Miranda

Ficha Catalográfica
(Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de
Santa Catarina)

A259c Agamben, Giorgio


Categorias italianas : estudos de poética e literatura / Giorgio Agamben ;
tradução Carlos Eduardo Schmidt Capela, Vinícius Nicastro Honesko ; tra­
dução das passagens e citações em latim Fernando Coelho. - Florianópolis :
Editora da UFSC, 2014.
245 p.
Inclui índice.
1. Literatura italiana. 2. Poesia italiana. 3. Giorgio Agamben. I. Título.

CDU: 850

ISBN 978.85.328.0706-9

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá


ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou
forma sem prévia permissão por escrito da Kditora da UFSC.
Impresso no Brasil
Sumário

Nota dos tradutores.................................................................... 7


Advertência à presente edição................................................... 9
Prefácio......................................................................................13
1. Comédia....................................................................................15
0 problema...........................................................................15
Culpa trágica e culpa cômica................................................ 25
Pessoa e natureza.................................................................. 30
Pessoa e comédia.................................................................. 37
2. CORN: da anatomia à poética.................................................45
História................................................................................45
Alegoria................................................................................50
Tropologia............................................................................ 53
Anagogia.............................................................................. 57
Seu sensus mysticus.............................................................. 61
Epílogo.................................................................................65
3. O sonho da língua.................................................................... 69
4. Pascoli e o pensamento da voz................................................89
5. O ditado da poesia...................................................................103
6. Desapropriada m aneira...................... 115
7. O “logos erchomenos” de Andréa Zanzotto......................... 131
8. Heráldica e política................................................................ 139
9. O torso órfico da poesia......................................................... 149
10. Paródia....................................................................................159
11. A festa do tesouro escondido................................................. 171
12. O fim do poem a......................................................................179
Apêndice..................................................................................187
Um enigma da Basca...........................................................187
A caça da língua................................................................. 193
Interjeição em cesura.......................................................... 196
A cidade e a poesia..............................................................199
Os justos não se nutrem de luz............................................200
Ronda dos con-versos..........................................................203
A anti-elegia de Patrizia Cavalli..........................................206
A despedida da tragédia......................................................209
Nota aos textos.................................................................... 213
Posfácio - Língua nova, língua minguante..........................215
índice de nom es..................................................................... 237
Conforme a “Nota aos textos” com que Giorgio Agamben
encerra as Categorias italianas (na p. 213 desta tradução), os
ensaios reunidos na primeira edição da coletânea foram, salvo o
então inédito “Corn”, publicados entre o final da década de 1970
e meados da década de 1990. A estes, a segunda edição do livro,
aqui traduzida, incorporou originais escritos ou editados pela
primeira vez nas décadas de 1990 e 2000. A essa dispersão temporal
soma-se a diversidade de modelos e propósitos a que respondem os
textos: parte deles são de caráter rigorosamente ensaístico (como
“Comédia” ou “Corn”, por exemplo), outros apareceram a princípio
como prefácios (caso de “Desapropriada maneira” ou “Heráldica e
política”), e outros, ainda, foram preparados para serem apresentados
oralmente, em congressos ou encontros acadêmicos (“A festa do
tesouro escondido” ou “O ‘logos erchomenos’ de Andréa Zanzotto”).
É natural, portanto, e isso na medida em que Giorgio Agamben não
se preocupou com a uniformização dos textos, que estes não sigam
um padrão ou uma formatação fixa. Que o leitor não se espante, e
tampouco se incomode, com esta dispersão de formas e modalidades,
de estilos e maneiras. A presente tradução, de todo modo, procurou
ser o mais fiel possível aos textos tais como apareceram na segunda
edição de Categorias italianas (o recurso a itálicos, negritos, caixas-
altas, aspas, hífens e outros sinais gráficos, por vezes em desacordo
com as normas estabelecidas, obedecem assim às opções do autor).
As notas de nossa responsabilidade acrescentadas aos ensaios estão
todas assinaladas com a sigla (N.T.), “Nota dos tradutores”. Por
fim, queremos deixar manifesto nosso sincero agradecimento a
Fernando Coelho, que prontamente se dispôs a traduzir as diversas
passagens em latim transcritas nos originais.

C.E.S.C. - V.N.H.
Categorias italianas
00
f \

vavertencia a
presente edição

O livro, cuja primeira edição saiu pela Marsílio, em 1996, e aqui


republicado, é, pelo número e importância dos textos acrescentados,
substancialmente novo. Os oito textos mais recentes, todavia, de
tal modo se deixam inscrever sem esforços no projeto originário,
cristalizado no título Categorias italianas, que, em acordo com o
editor, o autor decidiu deixá-lo inalterado. Será o leitor que deverá
verificar se as duplas dialeto/língua, no ensaio sobre Zanzotto,
hino/elegia, no estudo sobre o Torso órfico da poesia, ou, ainda, as
bifurcações da paródia, no ensaio homônimo, são pertinentes à
atitude categorial em cujo cruzamento o livro se propunha colher
as estruturas de suporte da cultura literária italiana. Inédita é, ao
contrário, em relação ao projeto inicial, a preocupação - advertida
hoje também pela crítica mais jovem - de redesenhar os mapas
deturpados da poesia do Novecentos.
Os estudos aqui reunidos são obra de um filósofo a quem não
são estranhos interesses filológicos em sentido técnico. A situação
do saber e da sua organização no nosso tempo é tal, no entanto,
que esse simples fato parece demandar a necessidade de algumas
justificações. Enquanto parecería ao menos cortês supor que, na
nossa sociedade escolarizada, todos saibam tudo, lodo especialista
assume hoje, ao contrário, que os outros ignoram a sua disciplina tão
ingenuamente como ele ignora as demais. E, de resto, não é possível
ver todos os dias, confirmando implicitamente essa presunção,
filósofos lerem textos literários sem a mínima cautela filológica, e
filólogos, por sua vez, fornecendo edições de textos em relação aos
quais não estão à altura de entender a espessura semântica? No mais,
o preconceito especialista parece ter alguma boa razão, ainda mais
em um tempo como o nosso, em que as competências profissionais
parecem apagadas para a exclusiva vantagem do estatuto midiático
do seu detentor, e em que “um banqueiro canta, um advogado
torna-se informante da polícia, um ator governa... um cozinheiro
disserta sobre os tempos de cozimento como momentos essenciais
da história universal”.1
Na verdade, a relação entre filosofia e filologia (como aquela
entre sentido e som na linguagem) é um tanto mais complexa quanto
Categorias italianas

essas considerações deixam ver. Os filósofos e os filólogos sobre os


quais se comentou pecam não tanto por excessiva especialidade
quanto por cegueira em relação à própria disciplina: maus filólogos,
porque não amam suficientemente a palavra para exaurir-lhe o
significado; filósofos péssimos, que amam tão pouco a verdade ao
ponto de deixar a outros o cuidado da sua demora na língua. Uma
o

vez que o princípio segundo o qual não há filosofia sem filologia


por certo responde à mais genuína intenção platônica (Fedro,
89d), também é verdade que uma filologia puramente glossolálica
(isto é, que não tivesse cuidado com o sentido dos textos com que
se ocupa) é simplesmente impossível. Não só, como é óbvio, som
e sentido jamais são separáveis, mas eles nem mesmo podem
coincidir perfeitamente em algum enunciado linguístico. O jogo -
o agio2 - entre eles constitui o momento poético da linguagem, que
0 filólogo e o filósofo devem, cada um a seu modo, custodiar. A

1 Aqui, assim como em alguns dos ensaios reunidos em Categorias italianas,


Giorgio Agamben não fornece a fonte de algumas das passagens citadas, opção
essa que foi por nós respeitada (N.T.).
2 Agio, em italiano, pode significar tanto uma vantagem auferida quanto o bem-
estar, o conforto advindo de uma situação específica. Prefiriu-se manter o
termo original, em itálico, na medida em que esse nomeia um conceito-chave
do pensamento de Giorgio Agamben (N.T.).
advertência nietzschiana, segundo a qual é preciso sentir o que os
outros chamam forma “como o conteúdo, como a própria coisa”,
vale para ambos - com a condição de que ela seja tida também em
sentido inverso.

Janeiro de 2010.
D
retacio

Entre 1974 e 1976 regularmente me encontrava, em Paris,


com ítalo Calvino e Cláudio Rugafiori para definir o programa de
uma revista que, nas nossas intenções, deveria ter sido publicada
pela editora Einaudi. O projeto era ambicioso e nas conversas
seguiam-se, às vezes sem contraponto, os motivos dominantes e
os ecos abafados dos trabalhos de cada um. No entanto, a respeito
de uma coisa estávamos todos de acordo: uma seção da revista
devia ser dedicada à definição do que, entre nós, chamávamos
“categorias italianas”. Tratava-se de identificar, por meio de uma
série de conceitos polarmente conjugados, nada menos do que
as estruturas categoriais da cultura italiana. Cláudio havia de
imediato sugerido arquitetura/vagueza (isto é, o domínio da ordem
matemático-arquitetônico adjacente à percepção da beleza como
coisa vaga); ítalo já sistematizava obsessivamente imagens e temas
sobre as coordenadas velocidade/leveza; eu (então trabalhando no
estudo sobre o título da Comédia, que abre esta coletânea) propunha
explorar as oposições tragédia/comédia, direito/criatura, biografia/
fábula.
Por razões que não é aqui o lugar de esclarecer, o projeto
não se realizou. No mais, retornando à Itália, lançamo-nos todos,
mesmo que de modo diverso, na reviravolta política que se preparava
e que teria impressa sua forma obscura nos anos oitenta [1980]: não
era tempo, evidentemente, de definições programáticas, mas de
resistência e êxodo. Do projeto comum, além de um amplo conjunto
de esboços que permaneceram entre as cartas de ítalo, é possível
^çncontrar alguns ecos nas suas Lições americanas,3 Da minha parte,
tentei fixar-lhe a fisionomia, antes que em definitivo se apagasse,
no “programa para uma revista”, publicado in limine em Infância
e história.4 (Quem tiver vontade poderá encontrar nessas páginas
o elenco provisório das categorias restituídas ao seu contexto
problemático).
A seu modo, os oito estudos aqui reunidos (o primeiro
da mesma época do projeto, o último terminado em 1995)
permaneceram fiéis àquele programa. No decorrer do tempo outras
categorias agregaram-se às primitivas, desenvolvendo-as em direção
à relação entre a literatura italiana e a sua língua: língua materna/
língua gramatical, língua viva/língua morta (esta última inventada
em âmbito humanístico), estilo/maneira. Cada um dos ensaios
Categorias italianas

procura assim definir uma dupla categorial aproximando-as em um


caso exemplar: as razões do título da Comédia dantesca e a obstinada
intenção anti-trágica da cultura italiana (ainda ativa no caso de todo
especial de Elsa Morante); a língua da poesia como língua morta em
Polifilo e em Pascoli; a relação entre poesia e biografia (poetado e
vivido) em Delfini; a dialética do estilo e maneira em Caproni; e, por
fim (orientando a oposição arquitetura/vagueza para uma filosofia -
ou uma crítica - da métrica ainda não existente), o significado da
arquitetura métrica em Dante e Arnaut Daniel e o fim do poema
como estrutura poética em todos os sentidos fundamental.
O programa inicial de uma grade sistemática das categorias
portadoras da cultura italiana permaneceu, não obstante, em
aberto, e o livro não oferece nada mais do que um torso da ideia
que nos cabe agora entrever. Ele é dedicado, portanto, mais do que
à memória do grupo, à lembrança daquele de nós que não está mais
presente para dar-lhe vida e testemunho.

3 Há uma edição brasileira publicada com o título: Seis propostas para o próximo
milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 (N.T.).
4 Na edição brasileira: Infância e história: destruição da experiência e origem
da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
p. 159-170 (N.T.).
Comédia

O problema

1. O objetivo deste ensaio é discutir a situação crítica de um


evento que, cronologicamente cumprido no início do século XIV,
exerceu sobre a cultura italiana uma influência a tal ponto profunda
que é possível dizer que ele ainda não deixou de acontecer. Trata-
se da decisão de um poeta de abandonar o próprio projeto poético
“trágico” em prol de um poema “cômico”. Essa decisão se traduz
em um célebre incipit, que uma carta do autor enuncia deste modo:
Incipit comoedia Dantis Alagherii florentini natione non moribus.5
A mudança, de que essas palavras dão conta, é em tão pouca medida
uma questão interna da crítica dantesca que se pode afirmar que
nela toma forma, pela primeira vez, a figura de um dos traços mais
característicos da cultura italiana: a sua essencial pertinência à
esfera cômica e a sua consequente refutação da tragédia.
O fato de as razões da titulação cômica parecerem, para os
mais antigos comentadores, problemáticas e incoerentes6já poucos

5 “Começa a comédia de Dante Alighieri, florentino de nascimento e não de


costumes” (N.T.).
6 A incapacidade de fornecer uma explicação mesmo que apenas coerente do
título do poema é comum a quase todos os antigos comentadores, de Pietro
Alighieri a Jacopo delia Lana e ao Anônimo Plorentino. Como observou
Auerbach, é no entanto proeminente em relação a todos, por sua argúcia,
anos após a morte do autor, testemunha o quão secretamente esteja,
nessa mudança, guardado um nó histórico, cujo recalque não se deixa
restituir com facilidade à consciência. Um tanto mais surpreendente
é a pobreza da moderna literatura crítica sobre o assunto. Que um
estudioso atento como Rajna tenha podido chegar a conclusões
claramente insuficientes, tais como aquelas que fecham o seu estudo
sobre o título da Comédia7(que influenciou largamente as pesquisas
sucessivas), é algo de que nem mesmo a escassa fluidez da relação
mantida pela cultura italiana com suas origens consegue dar conta.
Mesmo Auerbach, a quem se devem considerações penetrantes

Benvenuto da Imola, a quem se deve a primeira formulação do argumento,


com frequência retomado pelos modernos, segundo o qual o poema de Dante
é, quanto à matéria, ao mesmo tempo tragédia, sátira e comédia (“hic est
tragoedia, satyra et comoedia...”) [“aqui está a tragédia, a sátira e a comédia”],
mas deve o seu título a razões estilísticas (“dico quod auctor voluit vocare
Categorias italianas

librum Comoedia a stylo ínfimo et vulgari...”) [“digo que o autor quis chamar
o livro Comédia em razão do estilo baixo e vulgar”]. Cf.: Benvenuti Rambaldis
de Imola, Comentum super D.A. Comoediam, edição de Lacaita, t. I, Firenze,
1887, p. 18-19.
7 “Não sei dar conta dos fatos a não ser supondo que a escolha da titulação deve
ter sido tomada por Dante muito cedo. Uma narração poética em alto estilo
era então para ele, e continuou sempre a ser, Tragédia; e a nenhuma obra
0\

competia, portanto, melhor designação do que ao poema virgiliano. Diante


de Virgílio, porém, Dante sentia-se tomado por sentimentos de reverência e
admiração, que atribuiu no Purgatório a Sordello e a Stazio. Se, desse modo,
a obra de Virgílio era uma Tragédia, a sua própria não podia ser senão uma
Comédia. Por outro lado, era nele muito firme o propósito de escrever em
vulgar. Assim, estou convencido de que se ele não tivesse ainda o vulgar
em tão alta estima, como no Convívio, mesmo que já tivesse ultrapassado a
concepção estreita da Vida Nova” (P. Rajna, “II titolo dei poema dantesco”, in
Studi danteschi, t. V, 1921, p. 35). Causa desgosto ver reproduzida em primeira
linha uma indicação tão inconsistente na recente Enciclopédia dantesca, s.v.
Commedia. Sobre o problema do título da Comédia, ver também: M. Porena, II
titolo delia Commedia, Rendiconti delTAccademia nazionale dei Lincei, 6-IX-
1933; F. Mazzoni, Uepistola a Cangrande, Studi Monteverdi, Modena 1959
(agora em Contributi di Filologia dantesca, Firenze, 1966); M. Pastore-Stocchi,
“Mussato e la tragédia”, in Dante e la cultura veneta, Firenze, 1966. Sobre o
“estilo cômico” de Dante, ver A. Schiaffini, “A proposito dello stile comico di
Dante”, in Momenti di storia delia lingua italiana, Roma, 1953, e, sobretudo, as
observações de G. Contini in Unintcrprctazionc di Dante e Filologia e esegesi
dantesca, ambos agora reunidos cm Vnidca di Dante, Torino, 1976.
sobre o estilo de Dante, não consegue descrever o motivo do incipit
do poema em termos satisfatórios. “No mais - escreve a propósito
da relação de Dante com a antiga teoria da separação dos estilos
ele jamais se libertou desses conceitos, caso contrário não teria
chamado ‘comédia’ o seu grande poema, em clara contraposição à
definição de alta tragédia’ dada à Eneida de Virgilio”. E, a propósito
da carta a Cangrande:

[...] é difícil acreditar que ele, após ter encontrado essa


fórmula (a definição da própria obra como poema sacro) e ter
terminado a Comédia, tenha ainda se exprimido de modo tão
escolástico acerca de sua obra, como faz na passagem citada
da carta a Cangrande, de cuja autenticidade, de fato, muito
se duvidou, mas de outro lado deve-se pensar no quanto
a ele se impusesse a reverência à tradição antiga, naquele
tempo ainda obscurecida por um pedante sistematismo, e
pela tendência de estabelecer classificações absurdamente
teóricas para nosso juízo . 8

1. Comédia
Num certo sentido, no que diz respeito à inteligência dos
motivos da escolha cômica de Dante, a crítica moderna não foi
muito além das observações de Benvenuto da Imola, ou daquelas de
Boccaccio, que, após ter elencado as razões pelas quais “parece [...]
não ser conveniente a este livro o nome de comédia”, concluía assim
o seu comentário sobre o título do poema:

O que então diremos sobre as objeções feitas? Creio, embora


cultíssimo homem fosse o autor, não ter ele tido atenção às
partes que a comédia contém, mas ao todo, e, desse modo,
ter o seu livro denominado, figurativamente falando. O
todo da comédia é (por aquilo que de Plauto e de Terenzio,
que foram poetas cômicos, pode-se compreender): que a
comédia tenha princípio turbulento, pleno de rumores e
de discórdias, e então a última parte dela termine em paz
e em tranquilidade. O que é otimamente conforme ao livro

8 E. Auerbach, Mimesis, Berna, 1948 (Edição italiana: Mimcsis, Torino, 1956,


p. 20. (Edição brasileira: Mimesis: a representação da realidade na literatura
ocidental, 2. ed. São Paulo: Perspectiva, I97<>).
presente: pois ele começa com dores e turbações infernais e
termina no repouso e na paz e glória, as quais têm os beatos
na vida eterna. E isso deve ser suficiente para fazer que,
assim feito, o nome possa com razão convir a esse livro. 9

O princípio metodológico a que vamos nos ater, neste estudo,


é o de que a nossa ignorância a respeito das motivações de um autor
pão autoriza nenhuma ilação quanto a sua incoerência ou falha.
Até prova adversa, nós sustentamos que Dante, como “cultíssimo
homem”, não pode ter escolhido o seu incipit de modo leviano ou
superficial. O fato de a titulação cômica parecer discordante em
relação a tudo quanto nós conhecemos de suas idéias, e daquelas de
seu tempo, deve, pelo contrário, levar-nos a presumir que ela tenha
sido atentamente meditada.

2. Um estudo acurado dos escritos nos quais Dante fala da


Categorias italianas

comédia e da tragédia mostra que essa presunção é textualmente


fundada.
Sabemos que, aos olhos de Dante, o projeto poético do qual
nasceram as grandes canções das Rimas aparecia como em eminência
trágico. No De vulgari Eloquentia ele afirma de modo explícito que
o estilo trágico é o mais alto dos estilos, e o único apropriado para
00

aqueles objetos principais da poesia que são Salus, Amor e Virtus;1012


um pouco adiante ele define a canção, gênero poético supremo,
como aequalium stantiarum sine responsorio tragica coniugatio, ut
nos ostendimus cum dicimus “Mulheres que possuem intelecto de
amor”. Quod autem dicimus tragica coniugatio, est quia cum comice
fia t hec coniugatio cantilenam vocamus per diminutionem.iUl2 A
titulação cômica do poema implica assim, antes de tudo, uma ruptura

9 G. Boccaccio, II commento alia Divina Commedia e gli altri scritti intorno a


Dante, edição de D. Guerri, Bari, 1918, v. 1, p. 115.
10 De vulgari Eloquentia, II, IV, 8.
11 “junção trágica de instâncias iguais, sem responso, como mostramos quando
dizemos “Mulheres que possuem intelecto de amor”. Porque, porém, dizemos
junção trágica, é em razão de que, como se faça comicamente esta junção,
chamamos de canção por diminuição" (N.T.).
12 De vulgari Eloquentia, II, VIII, 8.
e uma mudança com respeito ao passado e ao próprio itinerário
poético, uma verdadeira “reviravolta categórica” que, como tal, não
pode ter sido decidida sem uma motivação consciente e vital. É essa
consciência das razões de sua escolha que uma passagem da carta a
Cangrande parece implicitamente afirmar. A uma definição que em
termos formais repete lugares-comuns da lexicografia medieval,131456
Dante ali apresenta uma consideração que não se encontra em
nenhuma das suas presumíveis fontes. Et est comedia - escreve ele -
genus quoddam poetice narrationis ab omnibus aliis differens.111-
O privilégio conferido ao gênero cômico, que não possui nada de
homólogo nem nas fontes medievais nem naquelas tardo-antigas,
pressupõe por parte de Dante a intenção de um investimento
semântico no termo “comédia”, cuja mira, por certo, aponta para
muito além daquele alvo no qual a crítica moderna acreditou acertar.
Nessa perspectiva, o fato de Dante definir explicitamente,
em um verso do Inferno,'6 a Eneida como “alta tragédia”, é tão
significativo e problemático quanto à titulação cômica de seu “poema

1. Comédia
sacro”, e isso não apenas porque ele chega assim a opor a Comédia
à obra daquele que considera o mestre, de quem retira “o belo estilo
que me fez honorável”,17mas também porque a definição da Eneida
como tragédia não resulta coerente com o critério do “início calmo”

vo
e do “fim fétido”, indicado na carta a Cangrande.
Já se disse, para o que uma das metades do problema foi
utilizada como explicação da outra, que a Eneida, como narração
poética em estilo alto, só podia ser para Dante uma tragédia. Na
verdade, a Eneida, segundo uma tradição que tem sua origem

13 As fontes lexicográficas de Dante foram indicadas por Paget Toynbee (Dante


Studies and Researches, 1902) e por Rajna, no estudo já citado. Buscar as fontes
de Dante apenas em obras lexicográficas e gramaticais é, no entanto, no nosso
entender, uma das razões que impediram uma mais profunda compreensão do
problema da titulação cômica do poema.
14 “E a comédia [...] é um gênero de narração poética diferente de todos os outros”
(N.T.).
15 Ep. a Cangrande, 29.
16 In/, XX 113.
17 “lo bello stile che mi ha fatto onore” (N.T.).
em Diomedes, mas que é ainda bem viva em Isidoro,1819figura nos
tratados medievais como exemplo não tanto de tragédia quanto
daquele gênero de narração poética definido como genus commune,
porque nesse tomam a palavra tanto o autor como as personagens.
É curioso que tenha sido raramente observado o fato de que, na
tratadística medieval, a classificação dos três estilos, cujo protótipo
estava na Rhetorica ad Herennium,'9e aquela relativa aos gêneros de
narração poética, não são necessariamente coincidentes. Comédia e

18 Diomede in H. Keil, Grammatici latini, 1,482. A distinção entre genus activum


(isto é, sinepoetae interlocutione), genus enarrativum (no qual somente o poeta
fala) e genus commune encontra-se em Isidoro (Etym. VIII, 7,11: “Apud poetas
autem tres characteres esse dicendi: unum, in quo tantum poeta loquitur, ut
est in libris Vergilii Georgicorum; alium dramaticum, in quo nusquam poeta
loquitur, ut est in comediis et tragediis; tertium mixtum, ut est in Aeneide. Nam
poeta illic et introductae personae loquuntur”) [“Na poesia, contudo, há três
modos de dizer: um, no qual apenas o poeta fala, como é o caso das Geórgicas
de Virgílio; outro, dramático, em que nenhum poeta fala, como acontece nas
comédias e tragédias; o terceiro é misto, como na Eneida. Pois aí tanto o poeta
quanto as personagens introduzidas falam”]. Sobre essa classificação, vejam-se
as observações de Curtius no excursus V (dedicado aos estudos literários tardo-
antígos) de Europãische Literatur und lateinísche Mittelalter> Berna, 1948.
(Edição brasileira: Literatura européia e Idade Média latina, 2. ed., Tradução:
Paulo Rónai e Teodoro Cabral São Paulo: USP, Hucitec, 1996.).
19 Rhet. ad Her., IV, 8: “Sunt [...] tria genera, quae genera nos figuras
appellamus, in quibus omnis ratio non vitiosa consumitur: unam gravem,
alteram mediocrem, tertiam extenuatam vocamus. Gravis est, quae constat
ex verborum gravium magna et ornata constructione; mediocris est, quae
constat ex humiliore, neque tamen ex ínfima et pervulgatissima verborum
dignitate; attenuata est, quae demissa est usque ad usitatissimam puri
sermonis consuetudinem” [“São três os gêneros, os quais chamamos figuras,
nos quais todo argumento não vicioso é empregado: chamamos um de grave,
outro de medíocre e o terceiro de baixo. Grave é aquele composto de palavras
graves, em construção grandiloquente e ornada; medíocre é aquele que
ostenta um valor mais humilde, porém não ínfimo e extremamente vulgar;
baixo é aquele que é baixo ao ponto de empregar o usadíssimo costume da
linguagem simples”]. Para o desenvolvimento medieval dessas idéias (dentre
as quais um exemplo é a teoria dos três modi dicendi em Isidoro, Etym., II, 17)
e sobre suas ligações com a distinções enlre comédia e tragédia, vejam-se: W.
Cloetta, Beitrãge zur Literaturgcschichte des Mittelalters und der Renaissance,
Halle, 1890,1.1, p. 24-25, e E. Faral, I.es uris poctiqucs du XIP et duXIII‘ siècle,
Paris, 1962, p. 86 et seq.
tragédia, que jamais perderam por inteiro sua conotação dramática,
eram comumente elencadas, ao lado da sátira e da mímica, no genus
activum ou áramaticon (no qual falam somente personagens, sem
intervenção do autor); e, por outro lado, a enumeração dos estilos
sempre implicava ao menos uma referência à elegia,20 e não podia
se exaurir na contraposição tragédia/comédia. A radicalidade com
que a carta a Cangrande toma essa dupla classificação nos termos
de uma antinomia entre tragédia e comédia - ao mesmo tempo
estilística e substancial -, em relação aos quais os outros gêneros
poéticos são sumariamente postos à parte,21 é por si só um índice
suficiente da acepção consciente e forte dos dois termos.

20 No De vulgari Eloquentia (II, IV, 5), Dante se atém ainda à tripartição


prevalente e, ao lado da tragédia e da comédia, elenca também a elegia. No
Ars versificatoria de Matteo di Vendôme (Faral, Les arts poétiques, cit., p.
153), a comédia aparece como terceira, depois da tragédia e da sátira, e antes
da elegia: “Tertia surrepit commoedia, cotidiano habitu, humiliato capite,
nullius festivitatis praetendens delicias” [“A comédia vem como terceira, com

. Comédia
vestes cotidianas, cabeça baixa, não pretendendo os prazeres de nenhuma
festividade”]. Também os mais antigos comentadores de Dante conhecem
quatro estilos poéticos. A carta a Cangrande assinala, nessa perspectiva, uma
passagem de uma tripartição (ou quadripartição) a uma justaposição para a
qual não é fácil encontrar precedentes.

N>
21 “Sunt et alia genera narrationum poeticarum, scilicet carmen bucolicum, elegia,
satira, et sententia votiva, ut etiam per Oratium patere potest in sua poetria;
sed de istis ad praesens nihil dicendum est” [“Há também outros gêneros de
narrações poéticas, a saber, o canto bucólico, a elegia, a sátira, a oração votiva,
como também pode ficar evidente na obra de Horácio, em sua poesia: mas
dessas, presentemente, nada há para dizer”]. (Ep. a Cangrande, 32). Na Poética
aristotélica, tragédia e comédia não são colocadas expressamente em oposição.
A única passagem em que Aristóteles de maneira explícita contrapõe os dois
gêneros surge em De gen. et cor. (315b), onde se lê que “com as mesmas letras
é possível fazer tanto tragédias quanto comédias”. No comentário a tal trecho,
Tomás de Aquino observa: “Et ponit exemplum in sermonibus quorum prima
principia indivisibilia sunt litterae: ex eisdem autem litteris, transmutatis
secundum ordinem aut positionem, fiunt diversi sermones, puta comoedia,
quae est sermo de rebus urbanis, et tragoedia, quae est sermo de rebus bellicis”
[“E dá como exemplo discursos, cujos primeiros princípios indivisíveis são as
letras: dessas mesmas letras, mudadas segundo a ordem ou a posição, se fazem
os diversos discursos, como a comédia, que é um discurso das coisas urbanas, e
a tragédia, que é um discurso das coisas bélicas"|. (N. 'Ihoinne Aq. Opera omnia,
Roma, 1886, t. III, p. 273).
A écloga a Giovanni dei Virgílio constitui, sob esse viés,
uma ulterior comprovação. Aqui Dante alude ao seu poema com
a expressão cômica verba.22 A interpretação dessa passagem foi
falseada por uma glosa boccacciana que explicava “cômica, id
est vulgaria” e cuja influência foi tão tenaz que, ainda na recente
Enciclopédia dantesca, pode-se ler que Dante, na primeira écloga,
teria resolutamente identificado “o cômico no vulgar”. Desse
modo, um texto que podia lançar alguma luz sobre a escolha
cômica de Dante tornava-se, ao contrário, irrelevante, porque
a identificação entre estilo cômico e língua vulgar é claramente
insustentável.23 Uma leitura atenta da carta em versos de Giovanni
mostra que as censuras que o humanista bolonhês lança a Dante
não têm simplesmente como objeto o uso do vulgar ao invés do
latim, mas muito mais a escolha da comédia no lugar da tragédia.
A expressão sermone forensi, com a qual Giovanni qualifica a
Categorias italianas

escritura dantesca, não alude ao vulgar, mas corresponde, ao


contrário, ao sermone pedestri da passagem de Horácio que Dante
cita na carta a Cangrande, e ao cotidiano sermone das poéticas
medievais;24ou seja, ela se refere a uma escolha não de língua, mas
de estilo. Essa interpretação é confirmada na sequência da carta,
na qual Giovanni, especificando as suas objeções, convida Dante a
cantar com um “carme vatisono”25 os grandes fatos da história do

22 “Cômica nonne vides ipsum reprehendere verba...” [“Acaso não o vês repreender
palavras cômicas...?”]. (Ecl., 1,52).
23 Vejam-se a propósito as observações de Auerbach (Mimesis, cit., p. 202)
que mostram como a expressão “locutio vulgaris, in qua et muliercule
communicant” [“fala vulgar, em que também as mulherzinhas se exprimem”],
que Dante usa na carta a Cangrande, não pode referir-se ao uso da língua
italiana: “Não se pode atribuir tal ideia a Dante, que defendeu a nobre dignidade
do vulgar desde o De vulgari Eloquentia, que iniciou nas suas canções o estilo
ilustre da língua vulgar, e, no tempo da carta a Can Grande, tinha já terminado
a Comédia”.
24 A expressão de Giovanni é: “Praeterea nullus, quos inter es agmine sextus /
nec quem consequeris coelo, sermone forensi / descripsit” [“Ademais, nenhum,
entre os quais és o sexto do grupo, nem a quem seguirás no céu, descreveu
com discurso forense”] (cf. La corrispondcnza poética di Dante e Giovanni di
Virgílio e Vecloga di Giovanni al Muasatlo, edição de G. Albini, Bologna, 1963).
25 “Canto de um vate” (N.T.).
seu tempo, isto é, a matéria heróica e “pública” da tragédia em vez
dos eventos “privados” da comédia.
No centro do debate com Giovanni dei Virgílio, que pertencia
ao círculo cultural do qual nascería a primeira tragédia moderna,
a tragoedia Ecerinis de Mussato, não está tanto a oposição latim/
vulgar quanto tragédia/comédia, e isso testemunha ainda uma
vez que a titulação cômica do poema tem, para Dante, o valor não
contingente nem fragmentário de uma afirmação de princípio.

3. Se isso é verdade, ainda mais decepcionante é o título da


Comédia não resultar coerente com o conjunto das definições que
Dante fornece sobre a oposição trágico/cômico, e que essas não se
deixem, por sua vez, reduzir a um sistema unitário.
Essas definições, como é notório, articulam-se sobre dois
planos distintos: um estilístico-formal (o modus loquendi) e um
material-conteudístico (a matéria ou sententia). No De vulgari
Eloquentia (em que prevalece o aspecto estilístico do problema,

1. Comédia
e cuja incompletude faz com que não tenhamos nessa obra um
verdadeiro tratamento temático do cômico), o estilo trágico é
definido, segundo os princípios da tripartição clássica dos estilos,
como o estilo mais elevado (superiorem stilum), em harmonia com

N>
OJ
a altura da matéria que lhe é reservada (os três grandes magnalia:
Salus, Amor e Virtus). Na carta a Cangrande, em que a articulação
conteudística é preponderante, a oposição trágico/cômico é ao
invés caracterizada, quanto ao plano material, como oposição
de princípio e fim: princípio brusco “admirável” e “calmo” e fim
“fétido” e “horrível” na tragédia, princípio “horrível” e “fétido” e
fim “próspero”, “desejável” e “grato” na comédia; e, sobre o plano
estilístico, como oposição entre um modus loquendi elevado e
sublime em um caso, “resignado” e “humilde” no outro (temperado,
no entanto, por uma referência a Horácio, que licentiat aliquando
comicos ut tragedos loqui).26
Uma confrontação mesmo superficial dessas definições
mostra que, segundo os critérios do De vulgari Eloquentia, o título
da Comédia não se justifica sem contradições, enquanto que a Eneida

26 “Permite que falem às vezes os cômicos às vozes os Irá^iios" (N.T.).


pode ser provavelmente definida como tragédia; segundo os critérios
da carta a Cangrande, no entanto, enquanto a qualificação trágica
da Eneida parece infundada, a Comédia, por sua vez, tem seu título
suficientemente justificado. Na verdade, a única coisa que se pode
afirmar com certeza é que Dante, no De vulgari Eloquentia, tem em
mente um projeto poético trágico, articulado sobretudo sobre o plano
estilístico, enquanto na carta a Cangrande se atém a justificar uma
opção pelo cômico definido em termos prevalentemente materiais,
sem que seja possível identificar as razões dessa mudança. O
único elemento novo que aparece na carta a Cangrande é, de fato,
a contraposição princípio calmo/princípio fétido, final fétido/final
próspero, isto é, justo o que aparece aos nossos olhos como uma
repetição maneirista de estereótipos lexicográficos extremamente
superficiais. Isso é verdade tanto para qualquer dos comentadores
mais antigos quanto, e de modo quase unânime, para a crítica
Categorias italianas

moderna, já que todos preferiram atentar para motivações estilístico-


formais, mesmo que insuficientes, ao invés de aceitar a ideia de que
Dante tivesse podido escolher o título de seu poema com base em
considerações pouco significativas, como o início “fétido” do Inferno
(ia principio horribilis et fétida est, quia Infernus)27e o final “grato” do
Paraíso (infine prospera, desiderabilis et grata, quia Paradisus).2*’29
ts>
4^

27 “No começo é horrível e fétido, porque é o Inferno” (N.T.).


28 “No fim é próspero, desejável e agradável, porque é o Paraíso” (N.T.).
29 “[...] di questa commedia, id est istius operis, quod auctor vocavit comoediam
non tam ratione materiae, quam ratione styli vulgaris humilis” [“desta
comédia, ou seja, desta obra, que o autor chamou de comédia, não tanto
em razão da matéria, quanto em razão do estilo vulgar humilde”] (cf.
Benvenuti Rambaldis de Imola, Comentum, cit„ p. 556). Contini, a quem se
devem considerações magistrais sobre o estilo “cômico” de Dante, admite
implicitamente a insuficiência das motivações formais, retomando a tese
benvenutiana da “denominação do plano ínfimo”: “Nesse lugar a que assomam
todas as tradições, nesse instituto extraordinário de misturas temáticas e
tonais [...] o golpe de gênio intelectual foi o de denominar-se a partir do nível
mais baixo” (Contini, Uríidea di Dante, cít., p. 104). Sobre o estilo cômico de
Dante ver também o estudo de Schiaffini (A proposito dello stile cômico di
Dante, cit.), que mostra como, do ponto de vista lexical, os idiotismos (como
introcque) e as palavras “humildes” (como mamrna, gregge, femmina, corpo)
são, em suma, de pouca importância.
É lícito no entanto indagar, neste ponto - a partir do
momento em que nenhuma das razões até agora adotadas elimina
integralmente as contradições se as argumentações “materiais”
fornecidas por Dante na carta a Cangrande não devem, ao contrário,
ser levadas a sério, e se em sua aparente superficialidade elas por
acaso não escondem uma intenção cuja explicitação é incumbência
da crítica como sua tarefa específica. Talvez a opinião segundo a qual
a Idade Média não teria tido nenhuma experiência do trágico e do
cômico que fosse além de uma contraposição puramente estilística,
ou daquela, grosseiramente descritiva, que os distingue segundo o
final feliz ou triste, derive da nossa relutância em admitir que essas
categorias, em cuja oposição a modernidade - de Hegel a Benjamin,
de Goethe a Kierkegaard - projetou os seus mais profundos conflitos
éticos, possam ter a sua origem remota na cultura medieval.

Culpa trágica e culpa cômica

1. Comédia
1. A definição dada pela carta a Cangrande à oposição trágico/
cômico foi até agora considerada de modo isolado, sem ter sido
colocada em relação com seu contexto. Posto que essa definição,
no que nos interessa, concerne à “matéria” (Nam si ad materiam

tv>
Ul
respiciamus...), o contexto imediato ao qual ela deve ser restituída é
o subiectum da obra. Dante a princípio define esse “sujeito” nestes
termos:

Est ergo subiectum totius operis, litteraliter tantum accepti,


status animarum post mortem simpliciter sumptus; nam
de illo et circa illum totius operis versatur processus. Si
vero accipiatur opus allegorice, subiectum est homo prout
merendo et demerendo per arbitrii libertatem iustitie
premiandi et puniendi obnoxius est. 30,31301

30 “É pois o assunto de toda a obra, apenas iiteralmente aceito, o estado das almas
após a morte tomado de modo simples; pois disto e em torno disto versa o
percurso de toda a obra. Mas se se aceitar a obra alegoricamente, o assunto é
o homem enquanto é sujeito, por mérito ou demérito do seu livre-arbítrio, à
justiça que premia e pune” (N.T.).
31 Ep. a Cangrande, 24-25.
O final “próspero” ou “fétido”, cômico ou trágico, adquire
então o seu significado próprio somente se referido ao seu “sujeito”:
isto é, ele diz respeito à salvação ou à danação do homem, ou, em
sentido alegórico, à sujeição do homem, no seu pessoal livre arbítrio,
à justiça divina (homo prout merendo et demerendo per arbitrii
libertatem iustitie premiandi et puniendi obnoxius est). Longe de
representar uma escolha insignificante e arbitrária, com base em
estereótipos lexicográficos vazios, a titulação cômica implica, ao
contrário, uma tomada de posição com respeito a uma questão
essencial: a culpa ou a inocência do homem perante a justiça divina.
Que o poema dantesco seja uma comédia e não uma tragédia, que
o início seja “brusco” e “horrível” e o final “próspero, desejável e
agradável” significa: o homem, que na sua sujeição à justiça divina
é o subiectum da obra, aparece no início como culpado (obnoxius
iustitie puniendi) mas, ao término de seu itinerário, ele se encontra
Categorias italianas

inocente (obnoxius iustitie premiandi). Enquanto “comédia”, o


poema é, em outras palavras, um itinerário da culpa até a inocência
e não da inocência até a culpa: e isso não apenas porque a descrição
do Inferno precede materialmente no livro àquela do Paraíso, mas
porque cômico e não trágico é o destino do indivíduo de nome
Dante e, em geral, do homo viator que ele representa. Dante assim
vo
rt

realizou, na carta a Cangrande, a conjugação das categorias trágico/


cômico com o tema da inocência e da culpa da criatura humana, em
uma perspectiva na qual a tragédia aparece como a culpabilização do
justo e a comédia como a justificação do culpado.
Essa formulação, de aparência tão moderna, não é algo de
estranho à cultura medieval, como se aqui se tentasse projetá-la à
força sobre esta. A pertinência do cômico ou do trágico em relação
ao tema da inocência e da culpa é sancionada, com efeito, no texto em
que se funda direta ou indiretamente toda concepção medieval dessas
duas esferas: a Poética de Aristóteles. Nela, o centro da experiência
trágica, bem como aquele da experiência cômica, é expresso por
uma palavra que não é outra senão o próprio termo com o qual o
Novo Testamento exprime o pecado: hamartía. É curioso que essa
coincidência terminológica, em virtude da qual tragédia e comédia
podiam aparecer como os dois gêneros poéticos da antiguidade em
cujo centro estava a experiência de um peccatum, não tenha sido
levada em consideração pelos estudiosos, que preferiram dirigir sua
atenção aos gramáticos tardo-antigos (como Donato e Diomedes) e
aos lexicográficos (como Papia e Uguccione), enquanto nós sabemos,
hoje, que o texto da Poética era acessível em latim tanto parcialmente,
pela tradução feita por Ermanno o Alemão do Comentário médio
de Averróis, como integralmente, na tradução de Guglielmo de
Moerbeke.32 Se aqui o peccatum cômico era caracterizado uma
turpitudo non dolorosa et non corruptiva,33 a essência da disputa
trágica era definida como uma inversão da prosperidade em
desventura, não por uma radical culpa moral (propter malitiam et
pestilentiam), mas por um peccatum aliquod, enquanto o mostrar a
passagem de um culpado (pestilens) da desventura à prosperidade
(ex infortúnio in eufortunium) era apresentado como o procedimento
mais antitrágico (intragodotatissimum).M

Ermanno, o Alemão, havia tentado, antes de 1250, traduzir ao latim a Poética


a partir da versão árabe; mas, em 1256, declarava falida a tentativa em razão
das grandes dificuldades, preferindo traduzir o Comentário médio de Averróis
(“tantam inveni difficutatem propter disconvenenciam modi metrificandi
in greco cum modo metrificandi in arabico et propter vocabulorum
obscuritatem...”) [“encontrei tanta dificuldade em razão da incongruência
entre o modo de metrificar em grego e o modo de metrificar em árabe e em
razão da obscuridade dos vocábulos...”]; cf. E. Franceschini, La poética ái
Aristotele nel sec. XIII, in A tti delVIstituto veneto di scienze, lettere e arti, 1934­
1935. A tradução latina de Guglielmo di Moerbeke foi por sua vez terminada
em 1278, e está reproduzida no volume XXXIII do Aristóteles latinus, edição de
E. Franceschini e L. Minio-Paluello, Bruges, Paris, 1953.
” “Komodia autem est, sicut diximus, mutatio peiorum quidem, non tamem
secundum omnem malitiam, sed turpis est quod risile partícula; nam risile est
peccatum aliquod et turpitudo non dolorosa et non corruptiva...” [“A comédia
é, porém, como dissemos, uma vicissitude das coisas piores, não, contudo,
segundo qualquer maldade, mas torpe é o que é em parte risível; pois risível é
um erro e uma torpeza não dolorosa e não corruptora...”] (Aristóteles latinus,
cit., p. 8).
1,1 Ibid., p. 16. É nessa passagem da Poética aristotélica (52b, 35) que presu­
mivelmente vem sendo buscada a origem remota da caracterização medieval
da tragédia e da comédia segundo a oposição início feliz/final infeliz e vice-
versa. Deve-se notar que Aristóteles não diz que a inversão infortúnio/fortuna
seja cômica, mas apenas antitrágica (atragodotalon, que ( iuglielmo transforma
em intragodotatissimum).
Na paráfrase de Averróis, a estraneidade de uma personagem
subjetivamente culpada (improbum) em relação à tragédia é
dirigida no sentido de identificar a essência da situação trágica
como procedente ex imitatione virtutum aã imitationem aáversae
fortunae, in quam probi lapsi sint.35'36378O paradoxo da hamartía
trágica grega - o conflito entre inocência subjetiva do herói e uma
culpa objetivamente imputada - é assim interpretado tendo em seu
centro a desventura de um “justo” (probus). Com uma estupefaciente
sensibilidade, que antecipa em sete séculos a exemplificação
kierkegaardiana em Temor e tremor, Averróis, na história de Abraão,
indica assim a situação trágica por excelência: et ob hoc illa historia,
in qua narratur preceptum fuisse Abrae, ut iugularet filium suum,
videturesse maxime metum atque moerorem afferens.37,38Em sentido
oposto, a representação de um vitium em uma perspectiva não
completamente negativa é de modo explícito incluída por Averróis
Categorias italianas

na comédia.39

2. É sobre o fundo dessa concepção da culpa trágica e da


culpa cômica que o título da Comédia adquire todo o seu peso e
se revela, ao mesmo tempo, perfeitamente coerente. O “poema
sacro” é uma comédia porque a experiência que constitui o seu

00

centro - a justificação do culpado e não a culpabilidade do justo -

35 “Da imitação das virtudes à imitação da adversidade, na qual os homens bons


caíram” (N.T.).
36 Arístotelis stagiritae omnia quae extant opera cum Averróis cordubensis [...]
commentariis [“Todas as obras que constam de Aristóteles o Estagirita com
comentários de Averróis de Córdoba”]. Venetis, 1552, v. II, p. 91.
37 “E daí, com aquela história, na qual se conta ter sido ordenado a Abraão
que degolasse o seu filho, parece surgir um grande medo, trazendo também
tristeza” (N.T.).
38 Ibid., p. 91-92.
39 “Aliqui tamen introducunt in illis scenis tragicis imitationem vitiorum et
scelerum simul cum rebus laudabilis, cum habeant quid peripetiae. Verum
vituperare vitia est potius comoediae proprium quam tragoediae” [“Alguns,
contudo, introduzem naquelas cenas trágicas a imitação dos vícios e dos
crimes juntamente com as coisas louváveis, quando lonham alguma peripécia.
Mas vituperar os vícios é mais próprio da tragédia rio que da comédia”].
(Ibid., p. 91).
é decididamente antitrágica. Já a Eneida, cujo protagonista é um
“justo”4041*por excelência, do ponto de vista do status animarum
post mortem, que ao final acabará, entretanto, excluído da iustitia
premianãi (Dante encontra Eneias no primeiro círculo, ao lado das
almas que, sem serem culpadas, não puderam ser salvas), só pode ser
uma tragédia. Eneias, como Virgílio, representa aqui a condenação
do mundo pagão pela tragédia, assim como Dante representa a
possibilidade “cômica” que a paixão de Cristo abriu ao homem.
Uma passagem do De vulgari Eloquentia, cuja conexão
essencial com o problema do título da Comédia não tinha sido até
agora notada, e que pode ser vista como o sinal secreto com o qual
o poeta trágico das Rimas anuncia inconscientemente a reviravolta
da Comédia, confirma a decisiva pertinência do início calmo ou
triste de todo discurso humano à esfera da culpa. Aqui Dante,
a propósito da primeira palavra de Adão no Paraíso, escreve:
sicut post prevaricationem humani generis quilibet exordium
sue locutionis incipit ab “heu”, rationabile est quod ante qui fu it
inceperit a gáudio.41,42 Se, antecipando a sucessiva evolução do
pensamento de Dante, colocamos essas palavras em relação com
as motivações “materiais” da carta a Cangrande, elas significam:
depois da queda, a linguagem humana não pode ser trágica, antes
da queda não pode ser cômica. Neste ponto, o problema crítico
do título da Comédia muda de aspecto e deve ser reformulado
nestes termos: como é possível que Dante tenha mantido até certo
ponto um projeto trágico? Isto é, após a queda e depois da paixão
de Cristo, como continua possível a tragédia? E, ainda, como é
possível saldar a impossibilidade da tragédia com a possibilidade
da comédia, o exordium ab heu de todo discurso humano com o
“fim próspero” do discurso cômico?

40 “poeta fui, e cantai di quel giusto...” [“fui poeta, e cantei daquele justo...”]
(H , I 73).
41 “como após a prevaricação do gênero humano, o início da sua fala começou
com um “Ai!”, sendo razoável que aquele que existiu antes começasse com
alegria” (N.T.).
42
De vulgari Eloquentia, I, IV, 4-5.
Pessoa e natureza

1. Os estudiosos modernos têm com frequência repetid


que um conflito trágico não é propriamente possível no âmbito
do universo cristão. Kurt von Fritz, a quem se deve a eficaz
caracterização da culpa trágica como separação de uma culpa
subjetivamente imputável e uma hamartía entendida objetivamente,
viu na concepção cristã do mundo uma visão antitrágica radical,
que exclui a possibilidade de uma tal separação.43
Essa afirmação, em substância exata, é todavia demasiado
peremptória. Uma concepção trágica da culpa está de fato presente
no cristianismo, por meio da doutrina do pecado original e da
distinção entre natureza e pessoa, culpa natural e culpa pessoal,
elaborada pelos teólogos para reforçar-lhe a razão.
Pois o pecado de Adão não foi simplesmente uma culpa
Categorias italianas

pessoal, mas com ele pecou a própria natureza humana (“Vossa


natureza, quando toda pecou / no sêmen seu...”,44 Par., VII 85),
que decai desse modo da justiça natural que Deus lhe tinha
atribuído.45Enquanto culpa natural e não pessoal, que se transmite
a cada homem por intermédio de sua própria origem (peccatum
quod quisque trahit cum natura in ipsa sui origine),46-47 o pecado
u>
o

original é um equivalente perfeito da hamartía trágica. Pode-se

43 K. von Fritz, Antike und Moderne Tragoedie, Berlin, 1962; trad. it. in La tragédia
greca. Guida storica e critica, Roma-Bari, 1974, p. 285.
44 “Vostra natura, quando peccò tota / nel seme suo...” (N.T.).
45 Sobre a distinção entre justiça natural e justiça pessoal, vejam-se as agudas
observações de C. Singleton in Journey to Beatrice, Cambridge, 1958; trad. it.
Viaggio a Beatrice, Bologna, 1968, p. 249 et seq. A distinção entre culpa natural
e culpa pessoal elaborada pelos padres da Igreja corresponde àquela de von
Fritz entre culpa objetiva e culpa subjetiva.
46 “A culpa que cada um traz da natureza na sua própria origem” (N.T.).
47 “Fuit enim peccatum Adae in homine, quod est in natura; et in illo qui
vocatus est Adam, quod est in persona. Est tamen peccatum quod quisque
ecc.” ["Houve, com efeito, uma culpa de Adão para a humanidade, que está na
natureza; e naquele que é chamado Adão, que está na pessoa. Há, contudo, uma
culpa que cada um etc.”]. (San!'Anselmo, /><• comeptu virg. et de orig. peccato,
P. L. 158,433).
dizer, assim, que exatamente na tentativa de explicar, por meio da
distinção entre pecado natural e pecado pessoal, o paradoxo de uma
culpa que se transmite independentemente da responsabilidade
individual, a teologia cristã coloca as bases das categorias pelas
quais a cultura moderna interpretou o conflito trágico. O pecado
original não é concebido pelos padres como um pecado atual e
subjetivamente imputável - tanto é verdade, observa São Tomás,
que ele está presente também nas crianças, a quem falta o livre-
arbítrio48 -, mas como uma marca objetiva e independente da
vontade. A disputa entre traducionistas, que sustentavam que em
Adão toda a humanidade tinha pecado personaliter, e não apenas
naturaliter, e a corrente ortodoxa, que defendia o caráter natural da
culpa original, ilustra bem a formação dessa concepção “natural”
da culpa na teologia cristã.
É a confirmação do caráter natural da culpa original que
a exegese dos padres da Igreja encontra na passagem de Gênesis
(III, 7), na qual a vergonha pela própria nudez é apresentada como

1. Comédia
a primeira consequência da culpa. Assim, no De civitate Dei de
Santo Agostinho, se a perda da justiça original e o nascimento da
concupiscência, que retiram os membros genitais do controle da
vontade, são dramaticamente vistos como imediatas consequências

CO
penais da queda, a vergonha aparece, na mesma perspectiva, como
o sinal do caráter “natural” da queda:

Pudet igitur huius libidinis humanam sine ulla dubitatione


naturam, et mérito pudet. In ejus quippe inobedientia, quae
genitalia corporis membra solis suis motibus subdidit, et
potestati voluntatis eripuit, satis ostenditur quid sit hominis
illi primae inobedientiae retributum: quod in ea maxime

18 “Ergo in eis [sc. pueris] est aliquid peccatum. Sed non peccatum actuale, quia
non habent pueri usum liberi arbitri, sine quo nihil imputatur homini ad
peccatum [...]. Necesse est igitur dicere quod in eis sit peccatum per originem
traductum” [“Logo, neles (isto é, nos garotos) há alguma culpa. Mas não a culpa
atual, porque os garotos não têm o uso do livrc-arbítrio, sem o qual nenhum
homem é imputado de culpa [...]. É preciso, de lato, dizer que neles há uma
culpaprovinda da sua origem”]. (Divi 'Ihomac Aq. |...| Stunnui contragentiles,
Roma, 1927, p. 639).
parte oportuit apparere, qua generatur ipsa natura, quae illo
primo et magno in deterius est mutata peccato. . . 49,50

É esse obscuro fundo “trágico” que a Paixão de Cristo altera


de maneira radical. Satisfazendo a culpa que o homem jamais
teria conseguido expiar, ela opera uma inversão das categorias
de persona e natura, transformando a culpa natural em expiação
pessoal, o inconciliável conflito objetivo numa disputa pessoal.
“Do vínculo do pecado - continua a supracitada passagem de
Agostinho - ninguém pode ser liberado, a menos que o que fora
perpetrado em comum quando todos eram um só, e em seguida
vingado pela justiça divina, não seja expiado, por graça de Deus,
nos indivíduos singulares”. Desse modo, invertendo o conflito
entre culpa natural e inocência pessoal na cisão entre inocência
natural e culpa pessoal, a morte de Cristo liberta o homem da
Categorias italianas

tragédia e torna possível a comédia.


Mas se o homem não é mais “filho da ira”,49501ele não readquire,
entretanto, a sua condição edênica original e, com essa, a coincidência
entre natureza e pessoa, própria da justiça natural. A salvação que
Cristo trouxe aos homens não é natural, mas pessoal:

Effluxus salutis a Christo in homines non est per naturae


CO
<N

propaginem, sed per studium bonae voluntatis qua homo


Christo adhaeret; et sic quod a Christo unusquisque
consequitur est personale bonum; unde non derivatur ad

49 “Aquela voluptuosidade envergonha, sem dúvida, a natureza humana, e


envergonha merecidamente. Na desobediência dela, com efeito, que submeteu
os membros genitais do corpo às suas sós paixões, e arrancou ao poder da
vontade, assaz se mostra qual é a retribuição à primeira desobediência daquele
homem: que naquela parte conveio aparecer maximamente, na qual se gera
a própria natureza, a qual foi transformada em algo pior em razão daquela
primeira e grande culpa... ” (N.T.).
50 De civit. Dei, XIV, 20.
51 “Si de illo peccato non fuisset salisfacInin per inorieni ( ihristi, adhuc essemus
filii ire natura, natura scilicel depravaln" ["Se paia aquela culpa não tivesse
havido resgate pela morte de (áisio, ale agm.i sei íamos filhos da ira por
natureza, uma natureza depravada"|. (Ii.inir, /V iimiiim hiu, 2,11,2-3).
posteros, sicut peccatum primi parentis, quod cum naturae
propagine producitur. 52,53

Além disso, exatamente na concupiscência, que tinha sido a


primeira consequência da culpa, e na qual uma corrente exegética
via a tradução mesma do pecado, continuam a agir os efeitos penais
da queda. A perfeita submissão da parte sensível à razão e à vontade,
que tornava possível a beata impassibilidade edênica e o uso dos
membros genitais sem libido,5253456permanece interdita ao homem
mesmo depois da morte de Cristo. Como escreve São Tomás, sem
notar a contradição que deixava sobreviver no interior do universo
redimido um traço da vetustas adâmica:

[...] manet post baptismum et necessitas moriendi et


concupiscentia quae est materiale in originali peccato.
Et sic quantum ad superiorem partem animae participai
novitatem Christi; sed quantum ad inferiores animae vires,
et etiam ipsum corpus, remanet adhuc vetustas quae est ex

1. Comédia
Adam . 55,56

52 “A transmissão da salvação de Cristo para os homens não é por propagação


da natureza, mas pela aplicação da boa vontade, pela qual o homem adere a
Cristo; e assim, aquilo que cada um obtém de Cristo é um bem pessoal; donde
não deriva aos pósteros, como é o caso da culpa dos primeiros pais, que é
transmitida pela propagação da natureza” (N.T.).
53 Divi Thomae Aq. [...] Summa controgentiles, cit., p. 657.
54 Os padres da Igreja por tempos se colocaram o problema da sexualidade
edênica. No De genesi ad litteram (VIII, X-XI) e no De civitate Dei (XIV, 19­
24), Santo Agostinho tinha resolvido a questão admitindo uma sexualidade
edênica plenamente voluntária e não acompanhada de concupiscência.
55 “(...) permanece, após o batismo, tanto a necessidade do moribundo, quanto a
concupiscência, que está na culpa material original. E assim, no que diz respeito
à parte superior da alma, participa da boa vontade de Cristo; mas quanto às
forças inferiores da alma, e também do próprio corpo, permanece até a velhice
o que vem de Adão” (N.T.).
56 São Tomás, De maio, 9.4, a.6, ad 4. É contra essa contradição da teologia cristã,
que mantém viva após a redenção uma culpa natural, ainda que sob forma de
poena, que se insurgem os movimentos heréticos de tipo adamita, os quais, a
partir do século XIII, predicam o amor livre c a impecabilidade do perfeito
cristão.
2. Agora talvez possamos compreender por que, aos olhos d
poetas de amor e também para o Dante de De vulgari Eloquentia,
o amor fosse uma experiência trágica. Na medida em que
circunscreve o único âmbito no qual, por meio da concupiscência,
conserva-se o caráter “natural” da culpa original, o amor é assim
a única experiência trágica possível no universo cristão-medieval.
Raramente foi observado que a introdução do amor na esfera trágica
por parte dos poetas constituiu uma novidade difícil de explicar.
Segundo uma tradição que é claramente expressa numa passagem do
comentário de Sérvio à Eneida,57e ainda viva em Walter di Châtillon
) (século XII), que inclui a Veneris copula entre os ridícula, o amor
era considerado pelos gramáticos tardo-antigos como o assunto
cômico por excelência. É justo o conflito entre a culpa natural
da concupiscência e a inocência pessoal da experiência amorosa
que torna possível a ousada inversão polar que transfere Eros da
Categorias italianas

esfera cômica à trágica; e é esse conflito, cuja raiz alimenta aquele


caráter obstinadamente contraditório da poesia amorosa provençal
e estilonovista, que, assim, com frequência divide os intérpretes
modernos, para os quais ela aparece, ao mesmo tempo e na mesma
medida, como a transcrição de uma experiência baixa e sensual e
como o lugar de um exaltado itinerário soteriológico. A tentativa de
ro

superar esse conflito trágico no projeto de uma reaquisição integral


da justiça original edênica, isto é, na experiência de uma “perfeição
do amor”58a um só tempo natural e pessoal, constitui o legado ainda
ilibado que a poesia erótica do século XIII deixou como herança à
cultura ocidental moderna.59 Colocada nessa perspectiva, a escolha

57 “Est autem paene totus in affectione, licet in fine pathos habeat, ubi abscessus
Aeneae gignit dolorem. Sane totus in consiliis et subtilitatibus est: nam paene
comicus stilus est: nec mirum, ubi de amore tractatur” [“É, com efeito, quase
todo de afeto, embora no fim tenha um pathos, na parte em que a partida de
Eneias causa tristeza. E quase todo de conselhos e sutilezas: pois o estilo é quase
cômico; e não é de se admirar, pois se trata de amor”]. (Sérvio, a propósito do
livro IV da Eneida, cf. Servianorum in Víti;. ( larmina Com., editio harvardiana,
Oxford, 1965, v. II, p. 247).
58 “finamors” (N.T.).
59 Sobre a essência do amor cortês c a ivlai1ao de banle com ele, vejam-se as
agudíssimas observações de K. Iti.igoMolli. /.V/i/mk/c iír l:mncesca selon la
“cômica” de Dante adquire um peso ainda maior. Em relação ao
projeto “trágico” dos poetas de amor, a titulação cômica do seu poema
constitui uma verdadeira “inversão categórica”, que faz novamente
girar o amor da tragédia à comédia. Na teoria do amor que ele expõe
pela boca de Virgílio, no canto XVII do Purgatório, a experiência
erótica, o conflito “trágico” entre inocência pessoal e culpa natural,
torna-se conciliação cômica de inocência natural e culpa pessoal.
Enquanto, de um lado, ele pode desse modo afirmar que “o natural
é sempre sem erro”,60 desmente, de outro, a reivindicação da “gente
que assevera / todo amor em si como louvável coisa”,61 e - em
oposição à teoria cavalcantiana segundo a qual o amor implicava a
impossibilidade de um juízo reto (“para a saúde - manter o juízo”)62-
funda o caráter pessoal da responsabilidade amorosa em uma “inata
virtude que aconselha / e do assentimento deve manter o limiar”.63
O amor assim se dissipa no obscuro fundo trágico da culpa natural
e torna-se uma experiência pessoal imputável ao arbitrium libertatis
de cada um e, como tal, expiável in singulis.

1. Comédia
3. A teoria da vergonha - que Dante desenvolve no canto
XXXI do Purgatório - é o fulcro em torno do qual se cumpre esse
giro da culpa natural trágica a uma culpa pessoal cômica. Aqui a

co
in
expiação do pecador Dante, antes da imersão nas águas do Lete,
cumpre-se por intermédio de um processo de humilhação “cômica”,
que tem no seu centro a experiência da vergonha. Se a aparição de
Beatriz, com a sua severa apóstrofe, já aprofunda Dante na vergonha
(“tanta vergonha gravou-me a fronte”),64 a necessidade purificadora
da vergonha é reafirmada logo após Dante confessar o seu pecado

convention courtoise, in A ux frontiers du language poétique, in “Romanica


Gandensia”, v. IX, 1961.
60 “lo naturale è sempre senza errore”; Pur., XV11 94.
61 “gente chaw era / ciuascun amor in sé laudabil cosa” (N.T.).
62 “for di salute - giudicar mantene” (N.T.).
63 “innata virtú che conciglia / e de 1’assetiso de’ u-iut Ia soglia". Pur., XVIII
34-69.
64 “tanta vergogna mi gravò la fronte” (N X ).
(“porque minha vergonha carrego / do teu erro...”)-65 O cume dessa
humilhação “cômica” surge no ponto em que Beatriz se dirige a
Dante, a quem a vergonha tornou similar a uma criancinha (“assim
como as criancinhas envergonhadas, mudas...”),66 com as palavras:
“levante a barba”.67 O sentido dessa brincadeira cruel se esclarece
caso ela seja confrontada com a teoria da vergonha que Dante tinha
desenvolvido no Convívio, em que se pode ler que a vergonha, como
“castigo” infantil, é “boa e louvável” “nas mulheres e nos jovens”,
enquanto “não é louvável nem está bem nos velhos e nos homens
estudiosos”;68 mas, sobretudo, levando-se em conta a passagem em
que Édipo, o herói trágico por excelência, é descrito como aquele
que “arrancou os olhos, porque sem eles a vergonha interna não
aparece fora”.69
A contraposição entre o personagem “cômico” Dante, que
se purifica da culpa pessoal mostrando até o fim a sua vergonha,
Categorias italianas

e Édipo, o herói trágico que, enquanto pessoalmente inocente, não


pode nem confessar sua culpa nem aceitar a vergonha, não poderia
ser mais clara. Assim, aquilo que era para os padres da Igreja o
sinal da culpabilidade natural da criatura, da qual o herói trágico
não podia sair, torna-se aqui, através da humilhação penitencial,
o instrumento da reconciliação entre a culpa pessoal do homem
CO
'O

e a sua inocência criatural.70 Logo depois a imersão no Lete apaga


inclusive a lembrança da culpa.
Mas exatamente porque a escolha cômica de Dante significa
acima de tudo a renúncia da reivindicação trágica à inocência
e a aceitação da fratura cômica entre natureza e pessoa, ela deve,

65 “perché mo vergogna porte / dei tuo errore...” (N.T.).


66 “quali i fanciulli vergognando, muti...” (N.T.).
67 “alza la barba”. Pur., XXXI 68.
68 “non è laudabile né stá bene ne li vecchi e ne li giovani”. Conv., 4, XIX, 9-10.
69 “si trasse li occhi, perché la vergogna deenlro non paresse di fuori”. Ibid., 3,
VIII, 10.
70 Sobre a concepção da prática da humilhação penitencial no século XII, e acerca
de sua influência sobre a teoria juridienl do delito como pecado, vejam-se as
considerações de M. Dal Pra, in P. Abelardo. < o/msW lc slcsso o Etica, edição de
M. Dal Pra, Firenze, 1976, p. 86 87.
ao mesmo tempo, abandonar a tentativa dos poetas de amor
de ter novamente acesso à justiça original na joi perfeita de um
inocente amor edênico. Não é por acaso que Arnaut Daniel e
Guido Guinizelli, como representantes por excelência do projeto
erótico-poético trovador e estilonovista, sejam postos por Dante
no limite da montanha do Purgatório, exatamente sobre o limiar
intransitável do Éden. Matilda, a “mulher apaixonada” que Dante
lá encontra é, de fato, como mostram os convincentes argumentos
de Singleton,71 o símbolo da justiça natural da condição edênica; ao
mesmo tempo, porém, ela é a cifra do objeto impossível da poesia
e do eros trovadoresco e estilonovista: por isso, verdadeiro senhal,
ela é apresentada por Dante em termos estilizados e impessoais, e
por isso, como foi notado,72 todo o episódio lembra tão de perto a
“pastorella” provençal e cavalcantiana.
A justiça original e o “doce jogo” do inocente amor
edênico, em que natureza e pessoa voltam a coincidir, permanecem
inacessíveis, para Dante, à condição humana. Na cultura ocidental,

1. Comédia
a alegria do amor está, trágica ou comicamente, cindida.

Pessoa e comédia

OJ
1. A decisão de Dante de chamar “Comédia” o seu poema
representa, portanto, um momento importante na história
semântica de duas categorias cuja oposição permitiu a nossa
cultura trazer à consciência um dos seus “pensamentos secretos”.
O giro antitrágico, que nela se manifesta, não é, contudo, e de
modo algum, um evento novo e isolado, mas representa, em certo
sentido, o último ato de um processo ao qual a tardo-antiguidade

71 Singleton, Viaggio a Beatrice, cit„ p. 231-247. F, curioso que Singleton, que


identificou em Matilda a justiça natural que o homem gozava no Paraíso, não
tenha tirado as consequências dessa identificação no que diz respeito à teoria
do amor. Se Matilda é a justiça natural, ela não significa simplesmente a tríplice
sugestão da natureza à razão, mas é necessariamcnle lambem a figura do
amor edênico, isto é, do voluntaries usus sinc nnloris ilhrcbroso slimulo [“uso
voluntário sem o cativante estímulo do ardor"].
72 Cf. J. Barnes, Dantes Matelda. Fact or Fbliont, m "lialí.m Sludies”, XXVIII,
1973.
tinha confiado uma das suas intenções mais profundas. Isso
porque, como de maneira eloquente mostra a crítica platônica da
tragédia, a cisão do espetáculo trágico grego, em cuja perspectiva
sacrificial tragédia e comédia formavam ainda um todo coerente,
já era um fato cumprido no século IV a.C. Mas não é por meio
da crítica platônica, mas sim da estoica, que o mundo tardo-
antigo transmite à Idade Média a sua tendência antitrágica. A
crítica estoica da tragédia é desenvolvida por meio da metáfora
do ator, em cujo âmbito a vida humana aparece como um recital
dramático e os homens como atores aos quais é consignado um
papel (um prósõpon, uma máscara). Trágica, para os estoicos, não
é a máscara em si, mas a atitude do ator que se identifica com
ela, seja porque esteja por ela fascinado ou porque pretenda, ao
contrário, refutá-la.73 Em uma passagem dos Discursos (na qual é
talvez possível identificar a origem imediata da insistência com
Categorias italianas

a qual os gramáticos tardo-antigos e medievais contrapõem as


humiles personae da comédia aos reges, duces, heroes da tragédia),
Epiteto identifica a essência da situação trágica - exemplificada
em Édipo - na confusão entre ator e personagem:

Recordes que é entre os ricos, os reis e os tiranos que têm


oo
OJ

lugar as tragédias; nenhum pobre nelas toma parte, a não


ser como corista. Os reis começam com a prosperidade:
“Ornamentai os palácios!”, mas depois, no terceiro ou
quarto ato: “Ai, Citerone, por que me acolheu?” Escravo,
onde estão as coroas e os diademas? Os guardas do coro não
te servem mais? Quando tu encontras um deles, lembres que

73 Epict. Ench., XVII: “Recordes que tu és como um ator na parte que o autor
dramático quis consignar-te: breve, se é breve, longa, se é longa. Se ele quer que
tu recites um papel de mendigo, recita-o convenientemente. Faça o mesmo para
uma parte de aleijado, de magistrado, de simples privado. Pois de ti depende
recitar bem o personagem que te foi designado; mas escolher compete a um
outro”. Epict. Diss., I, XXIX, 39: “Está talvez em teu poder escolher o tema?
Foi-te designado um certo corpo, certos genitores, certos irmãos, uma certa
pátria, um certo estatuto. E eis que tu vens me dizer: troque me o tema”. Diss.,
I, XXIX, 41: “Chegará logo o dia em que os atores acrcdilurun que a sua máscara
e os seus costumes sejam eles mesmos”.
tu encontras um herói trágico, não um ator, mas o próprio
Édipo.74

O sábio, ao contrário, é aquele que, embora aceitando sem


discutir o papel (a “máscara”) que a sorte lhe designa, por humilde
que seja,75 recusa entretanto a se identificar com ela e limita-se a
bem representá-la. Nessa perspectiva, o termo prósõpon muda de
significado e, contrapondo-se à “pessoa” em sentido teatral, começa
a designar a “personalidade moral” de um homem, a potência que
fornece o critério da ação e permanece superior a todos os possíveis
atos que pode ele produzir.
É sobre essa dúplice herança semântica do termo “pessoa”
(de um lado a “máscara” teatral, do outro a noção nascente de
personalidade moral, às quais se deve acrescentar a noção jurídica
de pessoa, que aparece já formada numa passagem da paráfrase de
Teófilo às Instituições de Justiniano, na qual se diz que “os servos,
enquanto não têm pessoa [aprósõpoi óntes], são caracterizados
[icharactêrízontaí] pela pessoa do patrão”) que vai sendo formada,

1. Comédia
por obra dos padres da Igreja, a noção teológico-metafísica de
pessoa.
No Contra Eutychen de Boécio essa ambiguidade pode ser

C\
CO
percebida na sua indivisa coerência original. Boécio é, de fato,
ainda perfeitamente consciente do significado teatral do termo
“pessoa”, mas procura, por outro lado, convertê-lo numa categoria
filosófica, fazendo dele o equivalente do grego hypóstasis, no
sentido de naturae rationabilis ináividua substantia. Numa
passagem em que a pertinência da tragédia e da comédia ao
estatuto da pessoa tem a sua legitimação originária, a dificuldade
dessa crucial mutação semântica aflora à sua consciência como
uma “falta de palavras”:

74 Epict. Diss., I, XXIV, 16-18.


75 Cf. Simplicio, Comment. inEnch., XXXVII: “Moliorcnim hislrioet in comoedia
et in tragoedia qui servum bene repracscnl.il, quain is qui domini aut regis
personam male agit” [“De fato, melhor c o aior, i.mlo na comédia quanto na
tragédia, que representa bem um escravo, que .u|iiclc que desempenha mal o
papel de um senhor ou de um rei”].
O nome persona parece ser derivado de uma origem diversa,
isto é, das máscaras [personis] que, nas comédias e nas
tragédias, representavam os homens de que se tratava [...].
Também os gregos chamam essas máscaras prósõpa, pelo
fato de que são colocadas diante dos olhos para cobrir
o rosto: parà toü pròs toús ópas títhesthai. Mas desde o
momento em que, como dissemos, os atores representavam
com máscaras [personis inductis] os homens singulares
sobre os quais se tratava nas comédias e nas tragédias,
como Ecuba, Medeia, Simone ou Cremete, por esse motivo
também os outros homens, que podem ser identificados de
maneira precisa por seus rostos, foram chamados personae
pelos latinos e prósõpa pelos gregos. Muito mais claramente
os gregos chamam, no entanto, a substância individual de
uma natureza racional com o termo hypóstasis, enquanto
nós, por falta de palavras, conservamos o termo que nos foi
legado, e chamamos pessoa àquilo que os gregos chamam
Categorias italianas

hypóstasis.76

Mas também para Boécio a noção de pessoa remete


sempre a uma natura que lhe é subiecta e sem a qual ela não pode
subsistir.77 A noção moderna de pessoa como sujeito inalienável da
consciência e da moral não existe na cultura medieval que, ainda
Tf<
O

atenta à originária sonoridade teatral do termo, considera-a como


o conjunto das propriedades individuais que se acrescentam à
simplicitas da natureza humana. Apenas em Adão (e em Cristo)
natureza e pessoa coincidiram perfeitamente, e um pecado pessoal
pôde contaminar a inteira natureza humana. Após a queda, pessoa e
natureza permanecem cindidas, trágica ou comicamente, e somente
tornarão a coincidir no “último dia” da Ressurreição da carne. E
justo porque natureza e pessoa não coincidem na criatura, a vida
humana pode ser vista pelos padres da Igreja, relomando a antiga

76 Boécio, Contra Eutychen, III, 9-23 (in Moelliiiis, ítn-oloyjml Tmclates, London-
Cambridge 1973, p. 86).
77 “Nam illud quidem manifestam csl peisnnar sulaei l.nn esse naturam nec
praeter naturampersonam posse predii a n " |'Tcus. m m eleiio. é manifesto que
a natureza está sujeita à pessoa, e (|tie a pessoa nao p o, l e se i pr e d i c ad a além da
natureza”]. (Boécio, Contra Eiitychen, i il , p M’>
metáfora estoica, como uma fabula, uma comoeáia ou tragoedia
mundana. At si nostra têmpora propheticus spiritus concepisset - lê-
se no Policraticus de Giovanni de Salisbury - dicetur egregie quia
Comoeáia est vita hominis super terram, ubi quisque sui oblitus,
personam exprimit alienam.71

2. É também sobre esse fundo que se deve situar a titulação


cômica do poema dantesco. A distância antitrágica entre ator e
“pessoa” torna-se aqui cisão “cômica” entre natureza humana
(inocente) e pessoa (culpada). A dualidade entre o indivíduo
histórico Dante e o homem em geral, da qual Singleton traçou
uma prova gramatical na contraposição entre a “nossa vida” e o
“encontrei-me” do início do poema (e na qual Contini vê uma sanção
institucional na oposição entre sentido literal e sentido alegórico),
tem, na realidade, o seu fundamento na divagem entre inocência
natural e responsabilidade pessoal que está no centro da concepção
“cômica” de Dante. Isso porque o conceito moderno de pessoa não

1. Comédia
surgiu completamente acabado na cabeça do homem ocidental, mas
formou-se por meio de um fastidioso processo em relação ao qual
a oposição tragédia/comédia não permaneceu estranha (desde esse
ponto de vista pode-se dizer que a pessoa-sujeito moral da cultura
moderna nada mais é que um desenvolvimento da relação “trágica”
do ator que se identifica completamente com a própria “máscara”.
Por isso, enquanto a comédia - que negava a identificação com o
prósõpon, tanto mais que essa tinha no seu centro a figura do servo,
ou seja, do aprósõpos por excelência - conservou na cultura moderna
a máscara, a tragédia, ao contrário, teve que necessariamente
desembaraçar-se dela). Quem termina a viagem da Comédia não é
um sujeito, um Eu no sentido moderno da palavra, mas uma pessoa
(o pecador de nome Dante) e, ao mesmo tempo, a natureza humana (a
specificata proprietas, segundo a definição de Boécio, que é subiecta
a essa pessoa). E é essa unidade-dualidade entre natureza e pessoa
que funda a peculiaridade do estatuto do protagonista da Comédia78

78 “Mas se um espírito profético tivesse concebido o nosso tempo [...] dir-se-á


egregiamente, porquanto a comédia é a vida do liomein .sobre a Terra, onde
cada um, esquecido de si, ostenta uma pessoa alheia" (N.T.).
em relação àquele dos poemas alegóricos medievais, do De plancto
naturae de Alan de Lille ao Roman de la rose. Porque a alegoria,
longe de ser na verdade uma “personificação”, exprime ao contrário
exatamente a impossibilidade da pessoa: ela é a cifra através da qual
a natureza petrificada na culpa dá voz ao seu “pranto” e procura,
sem o conseguir, superar a culpa trágica num destino pessoal.79
Nesse sentido, o protagonista da Comédia é a primeira “pessoa” da
literatura medieval: mas que essa pessoa tenha olhado para si mesma
como para uma personagem cômica mais do que como um herói
trágico não é, por certo, uma circunstância privada de significado.
Que o nome Dante, sinal por excelência da pessoa, seja “gravado de
necessidade”80 sobre o limiar do Éden no momento da confissão e
da expiação da culpa pessoal, confirma a renúncia do poeta a toda
pretensão trágica em nome da inocência natural da criatura.
Mais uma vez é essa concepção “cômica” da culpa e da pessoa
Categorias italianas

que permite explicar a ligação de Dante com o direito. Porque o


direito, que na tragédia é a expressão da sujeição à culpa da natureza
humana, da qual o herói, na sua inocência moral, não pode sair,
torna-se na comédia o instrumento da salvação pessoal. A pessoa é
a “máscara” que a criatura assume e abandona nas mãos do direito
para purificar-se. Por isso Dante, no De monarchia, concebe a
redenção da humanidade por meio da Paixão de Cristo nos frios
termos de um processo jurídico, que termina simplesmente na
punitio infligida por um index ordinarius; e, na Comédia, a relação
entre culpa e expiação sempre se cala nos símbolos e na linguagem
do direito. O minucioso edifício jurídico da Comédia, no qual
dificilmente a consciência ética moderna se reconhece, nada mais
é que o corpo de que se serve a inocência natural da criatura para
realizar a sua expiação pessoal. Mas a “pessoa”, que é o lugar dessa

79 É com base na passagem em que Boecio (Ibitl., |>. H.!) explica que os acidentes
não podem se tornar pessoas (“vidcmus porson.im m accidenlibus non posse
constitui: quis enim dicat ullam albcdinis vel nigredinis vel magnitudinis esse
personam?”) [“vemos que uma pessoa ii.it» pode m nsiiiuii se nos acidentes:
quem, com efeito, dirá que uma brannii.i, um.i uegmi.i ou mna grandeza é
uma pessoa?”], que a alegoria medieval, solue a qual lanlo se di.si ul iu, encontra
a sua situação própria.
80 “registrato di necessità”. Pur., XXX o
expiação, não é nem uma alegoria nem o sujeito moral que a ética
moderna fará o centro inalienável do homem, mas um prósõpon,
uma máscara, a “pessoa estranha” e a risilis facies turpis aliqua et
inversa sine doloremdo direito e da comédia.
É essa concepção “cômica” da criatura humana, cindida
em natureza inocente e pessoa culpada, que Dante deixou como
herança à cultura italiana. É certamente possível ver na sua escolha
uma confirmação daquela posição historicamente atrasada sobre a
qual tanto se insistiu. Isso porque, para além do projeto trágico dos
poetas de amor que ele tinha compartilhado, na cultura do seu tempo
já estavam em ação os fermentos, dos quais na Itália se fez intérprete
Mussato, que teriam levado, com base na descoberta do caráter
trágico da história, à reafirmação da tragédia na Idade Moderna.
Mas se essas tendências, que foram lentamente prevalecendo na
cultura moderna até a presunção trágica do século que observou a
sua própria Weltanschauung como aquela na qual apenas o trágico
podia encontrar um desenvolvimento coerente,8182 permaneceram na

1. Comédia
Itália singularmente inativas, e se a cultura italiana de modo mais
tenaz do que qualquer outra permaneceu fiel à herança antitrágica
do mundo tardo-antigo, isso se deve também ao fato de que, nos
limiares do século XIII, um poeta florentino decide abandonar a
reivindicação trágica da inocência pessoal em nome da inocência
natural da criatura, o íntegro amor edênico pelo amor humano
comicamente cindido, a personalidade inalienável da moral pela
“pessoa estranha” do direito, os “altíssimos voos” do gavião “sobre
coisas tão vis” pelo “voar baixo” da andorinha .83 A severa “maschera

81 “risível face algo torpe e invertida sem dor” (N.T.).


82 Sobre essa tese de Võlkelt, vejam-se as observações de W. Benjamin em
Ursprung des deutschen Trauerspiels, Berlin, 1928; edição italiana: II drama
barrocco tedesco, Torino, 1971, p. 97. (Edições brasileiras: Origem do drama
barroco alemão, Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; São Paulo: Brasiliense,
1984; e Origem do drama trágico alemão, Tradução de João Barrento, Belo
Horizonte: Autêntica, 2011.)
83 “Meglio sarebbe avoi comerondinevolaro basso, che come nibbio altissime rote
fare sopra cose vilissime” [“Melhor seria a vós voar baixo como as andorinhas
do que, como os gaviões, fazer altíssimos voos sobre coisas lão vis”] (Conv.,
IV 6, 20).
grifagna\Si que uma superficial hagiografia devia consignar a uma
tradição que em um primeiro instante quase não conseguiu mais
entender as razões do título da Comédia, é, nesse sentido, uma
máscara cômica: comicus noster, portanto, como Filippo Villani,
logo no início de sua biografia, com lucidez definiu Dante.
Categorias italianas
rf».

84
Máscara de grifo (N.T).
da anatomia à

Fabulari paulisper lubet, sed ex re.85


Ângelo Poliziano

História

Dois manuscritos do século XIII, talvez italianos, conservaram


a seguinte razo:

Raimons de Durfort e N Turc Malec si foron dui cavallier de


Caersi que feiren los sirventes de la domna que ac nom ma
domna n’Aia, aquella que dis al cavallier de Cornil quella no
1 amaria si el no la cornava el cul.
Et aqui son escritz los sirventes.86

85 “Apraz contar histórias por um tempo, mas a partir da realidade” (N.T.).


8fi “Raimons de Durfort e Sr. Turc Malec foram dois cavaleiros de Quercy que
compuseram as sirventes sobre a senhora chamada n'Aia, aquela que dizia ao
cavaleiro de Cornil que ela não iria amá Io se ele nau a t ornoas.se no cu. / E aqui
estão escritas as sirventes” (N.T.).
Nas duas sirventes,87 todavia, como naquela mais tensa de
Arnaut Daniel,8889que intervém no gap, o termo que indica o objeto
do cornar, não é cu, mas com. Além disso, segundo a intenção
preciosa que caracteriza o impenetrável formalismo do “miglior
fabbro” (“melhor criador”), o com se inscreve aqui no centro de uma
constelação de vocábulos obscuros e raros que forneceu aos filólogos
o pretexto para exercícios interpretativos nem sempre edificantes.
Para resumir, abramos o dossier:

1 . Canello, 1883:
Cornar, com o significado de “usar sodomiticamente”,
que aqui está em questão, assim como com por “traseiro”, não
são registrados nem pelo Lexicon nem pelo Glossário; mas o
traslado de “corno” como “traseiro” era comum, como mostra
o Barbariccia do Inferno (XXI, 141) dantesco, que fez “do cu
Categorias italianas

trombeta”. E o comentário, muitíssimo claro, que há na segunda


sirvente de Raimons de Durfort, e na sua vida: “Si el no la cornava
el cul”.m

2. Lavaud, 1910:
vo

Com: Rayn distingue com, II, 485, “cor, clairon”, de corn, II,
486, “corne, coin, angle, canal, tuyau”. Levy réunit tous ces sens sous
le même article, I, 369, et y ajoute celui de “derrière, anus”, daprès
Arnaut Daniel, ici et Turc Malec (ou plutôt Raimon de Durfort,
selon Canello et moi...). Lanus est comparé dans toute cette pièce
à une trompette, un clairon ou un cor [...]. Au vers 6 cornar a son

87 Sirvente, por vezes grafado servente, designa uma estrofe de três versos
hendecassílabos dotados de uma mesma rima, seguidos do um verso de rima
irrelata, usualmente de cinco sílabas, <|ue introduz, a rima principal da estrofe
seguinte (N.T.).
88 O texto crítico de Arnaut aqui utilizado é o de M I uscbi, Arnaut Daniel. 11
Sirventese e le Canzoni, Milano, IdHd (do qual me al.r.ioi somente com respeito
ao nome Ayna, em vez de Etui).
89 U. A. Canello, La vita e le opera tlrl iiovuioir l I Kiuulln. Il.dle. IS83, p. 187.
sens ordinarie (cf. R., II, 486) de “corner, sonner de la trompete ou
du cor”.90'91

3. Toja, 1960:
Cornar. A fantasiosa interpretação de Canello (p. 187):
“usar sodomiticamente” foi com facilidade corrigida por Lavaud
como “corner, sonner de la trompete ou du cor”, portanto “soprar”,
deduzido do ordinário significado de com (cf. SW, I, 368, que reúne
as vozes do Lexicon, II, 485: cor, clairon e de II, 486: corne, coin, angle,
canal, tuyau, a eles acrescentando o significado de ânus, traseiro).
Lavaud, desdramatizando a exegese de Canello, compreendeu

2. CORN: da anatomia à poética


melhor o espírito cômico e realístico da pièce de Arnaut.
Sobre com {= cu) não restam dúvidas, após a leitura da
biografia de IK e as alusões de 397,1,15-16, 23-24 e 447,1, II, 14, 42.
Parece que se trata, portanto, de um obsceno exercício com o
“buraco” que não tem a ver com práticas contra a natureza.92

4. Perugi, 1978:
Estamos longe de ressuscitar a improvável interpretação
sodomítica proposta por Canello: além disso, com a melhor das boas
vontades e com toda a nossa fantasia, não conseguimos imaginar em 47
que esse “exercício com o buraco” devia consistir, e como, em suma,
representá-lo concretamente (honni soi qui mal y pense). Após um
atento exame da questão, e firmemente convictos de que os homens
(e as mulheres) de então não deveríam apresentar substanciais
diferenças em relação aos de hoje, nem na estrutura física nem nas

90 “Com: Rayn distingue com, II, 485, ‘chifre, corneta’, de com, II, 486, ‘corno,
canto, ângulo, canal, tubo’. Levy reuniu todos esses sentidos no mesmo artigo,
I, 369, e a eles acrescenta o de ‘traseiro, ânus’, seguindo Arnaut Daniel aqui
e Turc Malec (ou sobretudo Raimon de Durfort, de acordo comigo e com
Canello...). O ânus é comparado em toda essa peça a um trompete, uma corneta
ou um chifre [...]. No verso 6 cornar tem seu sentido ordinário (cf. R., II, 486) de
‘cornar, soar o trompete ou o chifre’” (N.T.).
91 R. Lavaud, Lespoésies d ’ Arnaut Daniel, réediclion critique dápròs Canello, in
“Annales du Midi”, 22,1910 e 23,1911 (Cenc-vr, 1971). p. 9.
92 G. Toja, Arnaut Daniel. Canzoni, ed. crítica, liicn /e, |9<,o, p. IH2.
atitudes e hábitos sexuais a tal estrutura inevitavelmente conexos,
acreditamos que todos os estudiosos - de Canello em diante -
enganaram-se sobre a parte do corpo a ser focalizada em relação ao
exercício requerido. [...]
Antes de apresentar as peças de apoio para nossa interpretação,
vejamos mais precisamente quais são os traços pertinentes do com
encontráveis com base nas sirventes a nossa disposição. Raimons
de Durfort fala genericamente de trauc sotiran (I 16) e de um
misterioso raboi (III 41: Contini interpreta “traseiro”, conforme a
explicação por ele sustentada para toda a tenção).93 Arnaut Daniel
é mais abundante nos particulares: localiza o com nelVefonil /
entre Veschine-l penchenil (cf. v. 41-42: o particular topográfico
corresponderá sem dúvidas ao vago III 14 Cornatz mayssi sobre-l
reorí), e se alonga em ilustrar (cf. v. 12-15) que-l corns esfers epelutz
/ que sta preonz dinz la palutz... e neül jom no stai essutz. Agora,
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sem ir além, bastariam esses particulares para nos fazer duvidar da


interpretação comum: fers, e estamos de acordo; maspe/wfz? E como
explicar essutz com alguma verossimilhança?

[...] procuramos traduzir a complicada metáfora. Com é


assimilado à torneira [spina] de um barril: sabemos que
se encontra no “funil” entre a espinha [spina] dorsal e
00

o púbis (Arnaut Daniel, I 41-42), que se encontra preso


num pântano coberto de pelos e que está constantemente
úmido (Arnaut Daniel, I 12-15); Raimon de Durfort diz
mais genericamente que se coloca sobre-l reon (III 14), mas,
sobretudo, faz uma distinção de grande precisão anatômica
e de vital importância exegética quando formula a ditologia
de III 11 Si-m mostrava’l com e-l con. O com, portanto, é
próximo ao con, ainda que sem se identificar com ele. Pelo
tipo da metáfora continuada por Arnaut Daniel e pelas
conotações a ela atribuídas, a resposta só pode ser uma: o
com é o clitóris.94

93 No domínio da poesia provençal, tenção refere-se a uma cantiga recitada por


um ou dois trovadores, cujo tema é uma questão de amor (N.T.).
94 M. Perugi, Le Canzoni di Arnaut Daniel, eil. crítica, Milano e Napoli, 1978,
t.2,p.4-10.
5. Lazzerini, 1983:
A opinião corrente, no entanto, encontrou agora um ferrenho
adversário no último editor de Arnaut Daniel que, aventurando-
se sem orientação nas obscuras cavidades da anatomia feminina,
expôs em um pequeno tratado (para)ginecológico o resultado dos
seus voluntariosos reconhecimentos, com a intenção de demonstrar
como e de que modo o corn não é o que se acreditava, mas sim algo
completamente diverso (e mais picante). Digamos que essa saída
surpreendente, essa espécie de scoop sensacionalista perpetrado às
custasde na Ena, é capaz de deixar alguém perplexo [...]. Narealidade,
esticando a soma de argumentos, percebe-se que não fazem sentido.
Eliminado a princípio um trauc em favor do outro, Perugi acaba

2. CORN: da anatomia à poética


por descartar os dois, uma vez que não vê qual abertura possa ser
atribuída ao órgão por ele apontado com tanta peremptoriedade [...].
Além das dúvidas já assinaladas, há problemas em um outro ponto
crítico (Arnaut Daniel, vv. 24-25):

que, si-1 venguesdamonlorais,


tot-11’ echaufera-1 col e-1 cais,

porque não vemos como um rais possa ameaçar d ’amon o cavaleiro


de Cornhil ocupado com um clitóris. Acontece, de fato, que os 49
traucs femininos estão todos inequivocamente colocados abaixo da
zona erógena identificada por Perugi como o corn...95

6 . Eusebi, 1984:
A questão sobre o que é o corn não deveria ser repetida se não
tivesse sido proposta por Perugi (II, p. 3-10) uma interpretação que
deve ser refutada. Em substância, esta se apresenta assim: o corn não
pode ser o ânus porque épelutz e jamais essutz (p. 5); “o (seu) campo
semântico coincide quase perfeitamente com aquele do v. 47 dosil”
(p. 8); posto que Raimon de Durfort, III, 11, diz Si- m mostrava’l corn
e-l con, “o corn é próximo ao con, ainda que sem se identificar com
ele” (p. 9); portanto “o corn é o clitóris” (p. 9). Ora, (1) não se pode
por certo sustentar-se que o orifício anal não possa ser circundado

95 L. Lazzerini, Cornar lo corn: sulla tenzonc trn liainnui ilc Durjorl, 'iruc Malec e
Arnaut Daniel, in “Medioevo romanzo”, 8, l‘)HI W M4.
de pelos, nem que o reto não tenha seu muco ou que outras secretas
viscosidades (sangue menstruai?) não possam banhar o ânus, que
é colocado com os órgãos sexuais na mesma palut, e o todo em
medida congruente com o efeito desagradável que se quer produzir;
(2) o citado verso de Raimon de Durfort, III, 11, prova que o corn
não é o con, assim como o que se lê logo em seguida, 14, cornatz
mayssi sobre-l reon, coloca o corn no traseiro [...]. Além disso, o que
é sugerido por essa inversão paródica, como exato oposto da boca?
E cornar será naturalmente compreendido como “levar a boca ao
corno”: e no taing que mais sia drutz/ cel que sa bocal corn conáutz
(vv. 17-18).96

Alegoria

Os Minnesãnger chamavam Korn “um verso desemparelhado


Categorias italianas

no interior da estrofe, que rima, entretanto, com o membro


correspondente das estrofes sucessivas”.97 O fenômeno é notório:
é a rima parcialmente irrelata, que os provençais chamam rim
estramp ou dissolut e Dante, no De vulgari Eloquentia II, XIII, 4, 6 ,
clavis (Sunt etenim quidam qui non omnes quandoque desinentias
carminum rithimantur in eadem stantia, sed easdem repetunt, sive
LT)
O

rithimantur, in aliis [.„]).98910


Nos dicionários alemães (por exemplo, com uma clara
compreensão da função do Korn na estrutura estrófica da canção,
em Lexer: bei den Meistersingern verstand man unter Kõrner die
Verbindung zweien Strophen, dadurch dass ein Vers der einen zu einen
der andem reimt)"'m o termo vem elencado entre as acepções de Korn
= grão, dentre as quais ele permanece decididamente inexplicável. De
outra parte, ainda que a derivação desse instituto métrico da técnica

96 Eusebi, Arnaut Daniel, cit., p. 1-2.


97 A. Heusler, Deutsche Versgeschichte, Berlin, 1956, t. 2, p. 332.
98 “Pois há alguns que não rimam todas as desinências dos cantos nas mesmas
estâncias, mas as repetem, ou ainda as rimam, em outras” (N.T.).
99 “entre os Meistersingern, entende-se por Korn a ligação entre duas estrofes, de
modo que o verso de uma rime com o verso de outra” (N.T.).
100 M. Lexer, Mittelhochdeutsches Hanãwõrterbuch, Stuttgart, 1979, p. 1681.
poética dos trovadores seja certa,un o termo occitânico com não
está registrado com essa acepção em nenhum léxico, e, assim, um
empréstimo por parte dos provençais não parece documentável.
Ao menos essa era a situação até quando Maria Careri,
trabalhando na sua edição do cancioneiro provençal H, defrontou-
se por duas vezes com uma glosa em que, para assinalar a falta de um
verso, marcava: aici manca us cor[n]s (cors com traço de abreviação
sobre o o, que Careri lê como corns).
“Cors - escreve a editora - indica seguramente verso, unidade
métrica. Não está claro se a palavra corresponda etimologicamente
a CURSUS ou a CORNUS. [...] É de se notar que, tanto neste caso
como naquele assinalado na glosa Db2 - relativa a uma canção de

2. CORN: da anatomia à poética


Guiraut de Calanso [aqui na forma: i■cors i-faill] -, o verso faltante
em H seja um quadrissílabo que rima com o verso imediatamente
sucessivo (também ele quadrissílabo em Arnaut Daniel, hexassílabo,
no entanto, em Guiraut de Calanso): não se pode portanto excluir
que o termo cor[n]s designa um verso de tipo particular”.101102 (Deve-
se acrescentar, em nome da precisão, que na canção de Arnaut em
questão, os dois versos quadrissílabos, que não são tecnicamente
Kõrner, lembram, entretanto, meta-estroficamente, os dois versos
correspondentes da cobla precedente).

m
O escritor de H conhece, portanto, um sentido inédito de
com, que remete não à anatomia feminina, mas à poética, e que
de agora em diante será oportuno arquivar virtualmente entre os
significados do lema correspondente de Levy. Que não se trate de
um hápax descuidado está confirmado pelo próprio H: no primeiro
verso da tornada de L’aur'amara ele recita, ao contrário do vulgar
Faitz es Vacortz / quel cor remir (Lavaud: “cet accord est conclu”;103
Perugi: “estipulado está o acordo”), Faits es lo cors quel cor remir, isto
é, “feito está o verso” (ou melhor, por sinédoque, “o poema”), com
sentido, dada a situação em tornada, decididamente mais satisfatório
(a prova é que Eusebi acaba por interpretar por conta própria acort

101 Heusler, Deutsche Versgeschichte, cit., p. 331.


102 M. Careri, II Canzoniere provenzale H. Slnilluru, l oiiicinilo cfonti, Modena
1990, p. 284.
103 “este acordo está concluído” (N.T.).
como “rima”: “terminadas estão as rimas”). (Quanto à grafia cor
ou cors por com, esquecendo-se mais ou menos intencionalmente
do sinal de abreviação, Eusebi a confronta nos manuscritos, entre
outros, exatamente com o v. 47 da nossa sirvente).104
Parece supérfluo sublinhar a capacidade inovadora dessa
recuperação lexical em relação ao corpus da lírica cortês. O jogo
homofônico cor/cors, tão importante para os trovadores (como a
aliteração cuer/cors no espaço occitânico), será então complicado por
um terceiro termo, que nele insere um elemento autorreferencial no
qual a anatomia do corpo de amor encontra um estreito correlato na
coesão métrica do poema. Que o poema pudesse, em âmbito cortês,
ser assimilado a um corpo está implícito, de resto, tanto nas metáforas
anatômicas que se acumulam na terminologia métrica (os “pés”, a
“cabeça” e a “cauda” da estância; a “cabeça-cauda” da cobla capcaudada;
a rima estrampa (“mutilada”); os versos ventrini do Laborintus) quanto
Categorias italianas

na equação entre gramática e nostra dona, figuras gramaticais e figuras


eróticas, que está na base das Leys damors e, em seguida, da sua paródia
obscena.105Mas a assimilação é explícita em Dante, quando, para definir
a canção, ele procede segundo o paradigma alma/corpo; e também nos
Minnesànger, que chamam frequentemente Leich (ou seja, “corpo”) o
seu supremo instituto poético.
Tomemos três únicos exemplos, dentre os muitíssimos
possíveis apenas na seara danielina. Na Canso do-ill será necessário
restaurar, no verso 54, trocando mos jois, de acordo com a lição de
IKNSSg, por: per que mos cors (isto é, cor[n]s) capduelha, “o meu
verso atinge o vértice” (indiretamente confirmada por R, que traz
mos chans). Analogamente em XI, 25-26:

Bona doctrina e suaus


e cors clars, suptils e francx
manda-m er al ferm condug106

104 Eusebi, Arnaut Daniel, cit., p. 9.


105 Dois exemplos flagrantes podem ser vistos em P. Bec, Burlesque et obscénité
chez les troubadours, Paris, 1984, p. 127-130, em particular Que’m mostrès son
conjunctiu.
106 “Boa e doce doutrina / e um cors radiante, gentil e franco / manda-me para a
borda do amor” (N.T.).
a interpretação “versos preciosos (H e R têm, em vez de clars, cars),
sutis e francos” troca a improvável vangloria da pessoa do poeta pelo
louvor a sua poesia, com sentido muito mais coerente.
Imagine-se, por fim, a complicação semântica que o
“estupendo artifício” da sextina recebería da restituição de um
arquétipo:

*Lo ferm voler qu’el corn intra


no-m pot ges becs escoissendre ni ongla...107

O firme querer penetra aqui não no coração do amante


(quem tem alguma familiaridade com a função de fonte que

2. CORN: da anatomia à poética


possui o coração, na psico-fisiologia medieval, antes esperaria
que o querer dele saísse como de seu manancial) mas no poema;
reencontraremos, além disso, tomado dessa vez em chave séria, a
aproximação becs/corn tão característica da sirvente. E se um pouco
adiante, nos versos 30 e 32, caso o que jamais deixaria a mulher fosse
não o coração, mas o poema, a aguda conjectura de Eusebi (segundo
a qual “o verdadeiro sujeito da entrada na cambra” é o canto: son...
qu’apres dins cambra intra)108resultaria confirmada.
Quanto ao étimo, não será necessário acabar com cursus; bastará
obtê-lo de um dos significados principais de corn bem atestados nos 53
léxicos: bout, extremité, coin, angle:10910como o verso traz o seu nome
do ponto em que ele se volta (versus, de verto, étimo do qual as Leys
são perfeitamente conscientes: girar ou virar),1'0 assim também corn
indica a parte final de um verso, aquela que traz a rima irrelata.

Tropologia

A legitimidade de uma hipótese teoricamente admissível deve


ser, antes de mais nada, verificada através de sua função no contexto

107 “A firme vontade que em meu corn entra/dem im não pode ser tirada por bico
ou unha...” (N.T.).
108 Eusebi, Arnaut Daniel, cit., p. 128.
109 E. Levy, Petit dictionnaireprovençal-français, I leidclberp,, 1906, p. 96.
110 C. Di Girolamo, Elementi di versificazionc firovciwalr, N.ipoli, 1079, p. 116.
específico. Se voltarmos, portanto, à sirvente de Arnaut, toda a
polêmica em torno do com de «Ayna sairá do âmbito do sentido
literal obsceno para tornar-se uma questão de técnica poética, de
um problema de conveniência anatômica para uma disputa métrica.
À equação corpo da mulher = corpo da poesia, que por certo não
é óbvia e tampouco inesperada na lírica cortês, será contraposta
àquela entre corn orifício corpóreo e com ponto de ruptura da
coesão métrica da estrofe. O corpo “por ligação musaica [musaico]
harmonizada” do poema é rompido em um ponto, assim como a
integridade do corpo feminino é quebrada no trauc sotiran. Mas
o que muda, com relação a uma melhor leitura do texto, com essa
rotação semântica que transforma uma brincadeira sexual em um
quesito poético? Em primeiro lugar, a presença, de outro modo
improvável, do mestre do gradus constructionis excellentissimus
em uma tenção obscena encontra agora uma explicação pontual.
Categorias italianas

Ocorre que o próprio problema da rima irrelata na estrofe está no


centro da técnica danielina, tal como Dante, em primeira mão,
observou a propósito da estância sine rithmo: “et huiusmodi stantiis
usus est Arnaldus Danielis frequentissime, velut ibi, Semfos Amor
de joi donar”ul (De vulgari Eloquentia, II, XIII, 2). Arnaut, de fato,
não apenas se serve frequentemente do com1112 como também elege
LH

a rima dissoluta como novo cânone compositivo, segundo uma


intenção meta-estrófica que marca profundamente o seu canto.
Já Diez tinha inventariado essa peculiar inclinação do Lied
danielino, que constitui a premissa lógica da invenção da sextina:

Em vez de conjugar, como de costume, as rimas na mesma


estrofe, de modo que esta constitua por si só um texto
harmônico, uma espécie de pequeno Lied, ele as conjuga
somente na estrofe seguinte e deixa que toda rima deva
esperar, antes de encontrar a sua companheira, a duração
de uma estrofe inteira, assim debilitando fortemente o efeito
da rima. Essa ordenação das rimas, cujos exemplos isolados
podem ser encontrados também em outros trovadores,

111 “e desse modo o uso nas estâncias por Arnaut Daniel é frequentíssimo, como
aqui, Semfos Amor de joi danar" (N.T.).
112 Veja-se o elenco em Toja, Arnaut Ihinii l. <iurtuii, i ii., p. •! I.
torna-se em Arnaut a regra a que ele concede apenas raras e
insignificantes exceções. Era para ele fácil, daí, a passagem
à sextina...113145

Caso se queira, em suma, definir em um único traço pertinente


o estilo de Arnaut, que tem o seu vértice na sextina, poder-se-ia
dizer que ele é o poeta que trata todos os versos como “corns” e, desse
modo, rompendo a fechada unidade da estrofe, transforma a rima
irrelata em princípio de uma relação superior. É o que implicitamente
afirmam, com límpida intuição, as Leys (III, 330), individualizando
na rima irrelata [rima estrampa] o princípio compositivo da sextina
danielina: E per que entendatz que vol dire quaysh engaltatz de

2. CORN: da anatomia à poética


sillabas am bela cazenza, podetz ayssi penre per ysshemple la canso
quefe Arnaud Daniel can dish: lo ferms volers que-1cor m’intra [...].
Et aytals rimas apelam comunamen estrampas.niMS
Nessa perspectiva, o paralelismo corpo da mulher/corpo da
poesia, que constitui o tema secreto da sirvente, revela - ao menos
num primeiro nível - a sua plena inteligibilidade. Se o com é um ponto
de fratura na unidade estrófica, então a laceração, caso não se queira
destruir-lhe irremediavelmente a coesão métrica (com a consequente
expulsão desordenada de/um, glutz e rais), deve vir com precauções
particulares, conjugando estreitamente as rimas irrelatas numa nova

un
m
unidade formal meta-estrófica. Isso nada mais é do que aquilo que
Arnaut de modo expresso reivindica em Doutz braitz:

e doncas ieu, qu’en la gensor entendi,


dei far chanso sobre totz de tal obra
que no- i aia mot fals ni rimestrampa116

113 F. Diez, Leben und Werke der Troubadours, Leipzig, 1882, p. 286.
114 “E para entender o que quer dizer esse próximo enlace de sílabas com tão
bela cadência, podeis também tomar como exemplo a canção que fez Arnaut
Daniel e que assim se inicia: lo ferms volers que- 1cor m intra [...]. E a tais rimas
comumente chamamos irrelatas” (N.T.).
115 Las Flors dei gay saber (= Leys), Toulouse, edição de l;. (íatien-Arnoult, 1841­
1843, III, p. 330.
116 “e portanto eu, que procuro pela mais bela / devo lazer uma canção que será tão
refinada / que não haverá palavra falsa nem rima irrclala" (N.T.).
(com a advertência, sugerida por Di Girolamo, de que Arnaut chama
aqui rima estrampa “o que as Leys damours iriam depois denominar
rims espars ou brut, vale dizer, rimas de todo ir relatas” ).117189Dessa
maneira, apenas se as rimas estiverem unidas num nível meta-
estrófico será lícito expor, sem perigo (e até mesmo beijar), o corpo
da mulher-poema (assim lemos, com base no paralelismo restituído
com a tornada de L’aur’amara, e em contiguidade com o cornar- l
com da sirvente, os versos 39-40: que- l sieu bel cors baisan, rizen
descobra / e que-l remir contra-l lum de la lampa).ns
O tema obsceno e jocoso da sirvente reconecta-se, portanto,
segundo a mais pura intenção trovadoresca, perfeitamente
àquele seríssimo “teorema da preponderância da harmonia
sobre a melodia”, no qual, nos passos de Dante, Contini tinha
peremptoriamente compendiado a lição danielina .” 9 Teorema
severo - na medida em que coloca em primeiro plano na composição
poética um cânone perceptível, no limite, apenas através da
escritura -, pois ele prepara o definitivo afastamento do canto (isto
é, do elemento que Dante, ao modo grego, chama de meios) do
texto poético, algo que em pouco tempò iria caracterizar a história
ulterior da lírica europeia. Se é verdade que podemos supor, em
âmbito occitânico, uma correspondência entre divisão estrófica,
assinalada por rimas regulares, e divisão melódica, é também certo
que o com - ou rima irrelata - marca um ponto de ruptura nesta
correspondência. E a nova técnica inaugurada por Arnaut, que
eleva essa fratura ao supremo paradigma compositivo, significará
então uma metamorfose tão radical do corpo da poesia a ponto de
justificar a tempestuosa fermentação alquímica que parece vir no
corpo de rz’Ayna. No ponto em que a rasa correspondência entre
frase métrica e frase melódica se rompe, instaura-se uma nova e
mais complexa correspondência, na qual o verso irrelato, ligando-
se ao seu companheiro na estrofe sucessiva, tece uma superior e,
por assim dizer, silenciosa partitura.

117 Di Girolamo, Elementi di versificaziom\ d l., p. 4 1.


118 “e o seu belo corpo beija, risos descobre / como ao olhar contra a luz da
lâmpada” (N.T.). ,
119 G. Contini, Varienti e altra linguistini. 'Ibrino, !•>'/(), p.
A mutação da estrutura do canto em direção à oda continua
e à instrumentação anti-melódica não significa, portanto, apenas
uma escolha musical, mas prenuncia uma crise radical na relação
do texto com a sua execução oral. Nesse sentido, a sextina danielina
é o primeiro movimento de uma partida secular que terá no Coup áe
dés mallarmaico o seu xeque extremo, e no qual a aposta em jogo é a
emancipação do texto poético não somente do canto, mas, em geral,
de toda execução oral: la page [...] mise pour unité comme Vest autre
part le vers ou ligne parfaite120 - em outras palavras: a poesia como
ser essencialmente gráfico. Essa autossuficiência do texto escrito era,
no mais (e apesar do “amoroso canto / que me costumava acalmar
em mim todos meus desejos”1211234de Purgatório, I I 108), perfeitamente

2. CORN: da anatomia à poética


clara para Dante, dado ele não ter dúvidas quanto ao fato de que
numquam modulatio dicitur cantio122 e de que etiam talia verba
in cartulis absque prolatione iacentia cantionem vocamus.123,124 A
reprimenda de Bonagiunta a Guinizelli, de “trair a canção por força
da escritura” (na qual “por força de escritura” deve ser lida, segundo
a sugestão de Gorni, como um sintagma),125 será então enquadrada
no contexto dessa transição acabada de um cânone compositivo
ainda fortemente oral para outro no qual a escritura tornou-se por
inteiro autônoma. Decisiva e arriscada é a partida que se joga no

cn
corpo de «Ayna.

Anagogia

Nas indagações modernas sobre as estruturas métricas, o


escrúpulo da descrição raras vezes vem acompanhado de uma

120 “a página [...] tomada como unidade, como o é, em outra parte, o verso ou a
linha perfeita” (N.T.).
121 “Famoroso canto / che mi solea quetar tutte mie voglie” (N.T.).
122 “a modulação nunca é dita canção” (N.T.).
123 “também tais palavras escritas em papéis e fora dc seu proferimento nós
chamamos canção” (N.T.).
124 De vulgari Eloquentia, II, VIII, 5-6.
125 G. Gorni. II nodo delia lingua e il verbo damorc. Stiuli sn Ihinte e altri
duecentisti, Firenze, 1981, p. 41.
adequada inteligência do seu significado na economia global do
texto poético. À parte alguns acenos de Hülderlin (da teoria da
cesura na Anmerkung à tradução de Édipo), de Hegel (a rima como
compensação do domínio do significado temático), de Mallarmé
(a crise de vers que ele deixa como herança à poesia europeia do
Novecentos) e de Kommerell (o significado teológico - ou melhor,
ateológico - dos Freirhythmen), uma filosofia da métrica falta, de
resto, quase que totalmente em nosso tempo. É possível extrair da
anatomia especial do corpo de nAyna alguma ideia nesse sentido?
Em todo caso, é certo que a consciência de um poeta não pode ser
indagada sem que se leve em conta suas escolhas técnicas.
Já vimos que o com, como ponto de ruptura do corpo poético,
assinala uma desconexão entre a tessitura harmônica e a tessitura
melódica, e entre a oralidade e a escritura. Mas não podemos
compreender o seu sentido - como, em geral, de qualquer instituto
Categorias italianas

métrico - se não o situarmos sobre o fundo de uma outra opção


formal: aquela entre som e sentido, entre segmentação métrica e
segmentação sintática. É a consciência do estatuto eminente dessa
oposição que possibilitou aos estudiosos modernos identificar na
possibilidade do enjambement o único critério distintivo, e preciso,
da poesia com relação à prosa (a poesia será então definida como
00
m

o discurso no qual é possível opor um limite métrico a um limite


sintático, e prosa, por sua vez, como o discurso em que isso não
é possível). Ou seja, o enjambement marca tematicamente aquela
“fratura ”126 entre pausa métrica e pausa sintática que (como mostram
as análises de Lote sobre a pauza suspensiva e a pauza plana)127
caracteriza, ainda que em menor medida, também a cesura e a
rima. De fato, o que é a rima senão um descolamento entre evento
semiótico (a repetição dos sons) e evento semântico, que faz com que
a mente procure uma analogia de sentido onde, desiludida, por fim
só pode constatar uma correspondência de sinal? (A questão, quase
insolúvel de facto, da gênese desses institutos na poesia moderna
resolve-se de iure sem dificuldades, caso ela seja sempre restituída
ao agio entre som e sentido que define o próprio lugar da poesia.)

126 Di Girolamo, Elementi di versifuaziottc, i i(., p. 2<P


127 G. Lote, Histoiredu vers /rançais. Paris, I. 1, j>. 167-172.
Não apenas os tratadistas medievais mostram ter consciência
dessa oposição,128129*mesmo que tenha sido preciso esperar Nicolò Tibino
para se chegar a uma perspicaz definição do enjambement (multociens
enitn accidit quod, finita consonantia, adhuc sensos orationis non
est finitas),™-'30 mas ainda um atento reconhecimento mostra que
Dante possui perfeita consciência do seu significado fundamental.
No momento exato de definir a canção em relação a seus elementos
constitutivos, ele opõe a cantio, como unidade de sentido (sententid),
à estância, como unidade puramente métrica (ars):

Et circa hoc sciendum est quod hoc vocabulum [stantia]


per solius artis respectum inventum est, videlicet ut in in

2. CORN: da anatomia à poética


qua tota cantionis ars esset contenta, illud diceretur statia,
hoc est mansio capax sive receptaculum totius artis. N am
qu em adm odu m cantio est grem ium totius sententiae,
sic stan tia totam artem ingremiat; nec licet aliquid artis
sequentibus adrogare, sed solam artem antecedentis
induere.131

Dante concebe a estrutura da canção como fundada sobre


a relação entre uma unidade global essencialmente semântica

128 “Et devetz saber que nos cossiram pauza en dos manieras, la una cant
a la sentensa: e segon aquesta maniera en tot loc dei bordo pot estar pauza
suspensiva, plena o finais [...] en autra manera cossiram pauza en quant que la
prendem por una alenada”. [“E deveis saber que neste tipo de poemas a pausa se
dá de duas maneiras: uma quanto à sentença: e segundo essa maneira em todo
lugar do verso pode estar uma pausa suspensiva, plena ou final [...] na outra
maneira a pausa se dá quando é tomada por um suspiro”] (Leys, I, p. 130).
129 “frequentemente, de fato, acontece que, uma vez acabada a consonância, o
sentido da oração ainda não acabou” (N.T.).
IJ" Lote, Histoire du vers français, cit., p. 252.
131 “E aqui tu deves saber que esse vocábulo [estância] foi cunhado somente em
relação à discussão da técnica poética, de modo que o objeto a que toda a arte da
canção foi consagrada deveria ser chamado estância, isto é, um armazém capaz
ou um receptáculo para a arte em sua totalidade. Pois, assim como a canção é
cobertura da totalidade de suas sentenças, assim a cslância engloba a totalidade
de sua técnica; e as ulteriores estâncias do poema nunca doveriam aspirar a
englobar algumas novas técnicas, mas deveriam apenas veslit se com o mesmo
traje da primeira” (N.T.). De vulgari Eloquciiliu, II, IX. 2 i (grilo nosso).
e unidades parciais essencialmente métricas; e é singular que
ele exprima esse contraste exatamente através de uma imagem
corpórea: o ventre feminino, com implícita assimilação (retomada
também logo abaixo: de ipso corpore, II, X, 1) da canção a um corpo
constituído por órgãos métricos (e o verbo ingremiare, recolher no
ventre, poderá também, como o correspondente insinuare, ter um
sentido equívoco).
Nessa perspectiva, o verso irrelato (ou corrí) não aparece
mais apenas como um instrumento votado a realizar um vínculo
formal meta-estrófico, mas também e acima de tudo como o lugar
de fronteira per superexcellentiam entre unidade métrica e unidade
semântica. Torna-se então compreensível porque Dante, adotando
uma improvável sugestão, chame o verso desacompanhado de
clavis (chave, mas também prego, justamente o duplo significado
do termo, que corresponde, de resto, à originária unidade da coisa;
Categorias italianas

veja-se o jogo entre os dois sentidos em Paraíso, XXXII 125-126: “le


chiavi / coi chiavi”). Enquanto abre (ou fecha: clavis quod claudat et
aperiat,132Isid., XX, 13,5) o fechado ventre formal da estância, a rima
irrelata (o corní) constitui um limiar de passagem entre a unidade
métrica da ars e a superior unidade semântica da sententia. Por
isso, nas habilidosas mãos de Arnaut, ela evolui com naturalidade,
vo
o

por assim dizer, em palavra-rima que estrutura a composição da


sextina: a palavra-rima - é importante sublinhar - é, de fato e acima
de tudo, um paradoxal ponto de indecidibilidade entre um elemento
eminentemente assemântico (a consonância) e um elemento por
excelência semântico (a palavra). No ponto em que a rima atestava a
desconexão entre som e sentido, entre a inteligência e o ouvido, está
agora isolada uma pura unidade semântica, que desmente a espera
da consonância somente para em seguida despertá-la e cumpri-la
onde é quase impossível ouvi-la (senão apenas em silêncio, “por
força de escritura”).
O corpo da poesia aparece assim percorrido por uma dupla
tensão (que tem no com o seu cume): uma que tende a separar, ao
máximo e de qualquer maneira, som e sentido, e a outra, inversa, que
visa a fazê-los coincidir; uma que procura distinguir pontualmente

132
‘chave que fecha ou abre” (N.T.).
os dois ventres, e a outra que gostaria de colocá-los em impossível
confusão. No limite, não atingível por nenhuma exaustão, está a
glossolalia, na qual o sentido se esfumaça no som ou este naquele:
o babariol, babarial, babarian de Guilherme IX ou o Raphel may
amèch zahi almi do Nembrot dantesco, ambos “além ou aquém”133
do discurso significante.

Seu sensus m ysticus

É sob essa luz que será então preciso colocar-se para tratar
da persistente evocação do verso irrelato no De vulgari Eloquenti.
Ali Dante, quase a sublinhar (não sem desdém) a importância do

2. CORN: da anatomia à poética


termo, ao invés de procurar na tradição trovadoresca do instituto
(entre outros, nos exemplos de Arnaut a ele familiares), remete à
comunicação oral de um ignoto Gotto de Mântua (que talvez seja
conveniente ler não como um improvável nome próprio, mas como
“um alemão de Mântua”, isto é, não tanto um Minnesânger quanto
um judeu, segundo atesta o mais refinado conhecedor dos cabalistas
que escrevem na Itália no século XIII, Moshe Idel, com base no
frequente Alemanno = Ashkenazi).
Em páginas como sempre pertinentes, Gorni notou o uso

0\
caracterizador, para os estilonovistas, das rimas irrelatas, que
Guinizelli, no soneto Caro padre meo, parece opor explicitamente,
como ligação frágil (debel’ vimi), à rima como “nó canônico” da
composição poética134 (é significativo que o arquétipo negativo de
Dante, Guittone, nas suas canções tenha extremo cuidado em evitar
a irrelação).
Com base na recuperada dignidade do verso-chave (ou
prego) na economia poética cortês, será talvez possível ler de
maneira menos ingênua (ou, no mínimo, menos contraditória)
o ápice da própria definição da poética “estilonovista” no canto
XXIV do Purgatório. A leitura trivial prejudica romanticamente o
tema dantesco, interpretando-o no sentido de uma mais “segura”

133 R. Dragonetti, Dante face à Nemrod (Babel inémoiiv el mimir de VEden), in


“Critique”, 387-388,1979, p. 705.
134 Gorni, II Nodo delia lingua, cit., p. 29.
[stretta] adesão, em relação ao núcleo guittoniano entre sentido e
som, entre ditado e texto poético (a mitológica “sinceridade de
inspiração” ridicularizada por Contini). Opõe-se a tal leitura, em
meio a outras, a objeção duríssima da teoria da enunciação poética
exposta por Dante no livro III do Convívio (VIII, 13-IV, 3), que
convém restituir ao seu estatuto propriamente programático. Aqui
Dante define o evento poético não como uma convergência, mas
como uma desconexão entre intelecto e língua, que dá lugar a uma
dupla “inefabilidade” na qual o intelecto não consegue apreender
(“terminar”) aquilo que a língua diz, e esta não é “completamente
seguidora” daquilo que a inteligência compreende:

Pois arrazoando'sobre ela meus pensamentos, muitas vezes


querendo concluir coisas sobre ela que eu não podería
entender, eu estava tão confuso que parecia quase alienado
[...]. E esse é um inefável aspecto do que eu tomei por tema;
Categorias italianas

e consequentemente narro a outra [...] e digo que os meus


pensamentos - que são palavras de amor - soam tão doces
que a minha alma, isto é, meu afeto, arde de poder narrar
isso com a língua; e porque dizê-lo não posso [...] essa é a
outra inefabilidade; isto é, que a língua não é completamente
seguidora daquilo que o intelecto vê [...]. Digo, então, que
62 a minha insuficiência procede duplamente, assim como
duplamente transcende a grandeza das mulheres, no modo
como é dito. Pelo que me convém deixar de lado muito daquilo
que é verdade sobre ela pela pobreza do intelecto, e que quase
na minha mente brilha, como um corpo diáfano aquilo
recebe, não o terminando: e isso digo na seguinte cláusula:
E certo é que me convém deixar de lado. Então, quando digo:
E do que se entende, digo que minha incapacidade se estende
não só àquilo que o meu intelecto não sustém, mas até mesmo
àquilo que não entendo suficientemente, porque a língua
minha não é tão fecunda a ponto de poder dizer aquilo que
no meu pensamento dela se pensa...

É justo demorar sobre essa densíssima passagem, na qual


Dante expõe nada menos do que uma concepção inédita e ainda
não completamente delibada do ato poético. Tomemos, em Tomás
de Aquino, o trecho que constitui o exemplo imediado para ela:
In quibusdam locutio causat intellectum, sicut in his quae
per disciplina discuntur: unde contingit quod intellectus
addiscentis non pertingit ad virtutem locutionis; et tunc
potest loqui e aquae audit, sed non intelligit [...]. Quandoque
autem intellectus est causa locutionis, sicut in his quae per
inventionem sciuntur; inde in his intellectus locutionem
excedit, et multa intelligantur quae proferri non valente (I
Sent. d. 37).135

Aqui o filósofo com agudeza situa o processo do aprendizado


num dúplice descarte entre intelecto e locução, no qual a língua
excede o intelecto (fala sem entender) e o intelecto supera a língua
(entende sem falar). Enquanto Tomás se limita, no entanto, a

2. CORN: da anatomia à poética


contrapor dois modos distintos e de todo separados do aprendizado
(por disciplina e por invenção), o gênio de Dante está em que ele o
transforma num duplo, mas sincrônico, movimento que percorre o
ato poético, no qual a invenção se inverte em disciplina (em escuta) e
a disciplina - em virtude, por assim dizer, da própria insuficiência -
em invenção. O que resulta disso não é nem uma anacrônica poética
da íntima conjugação entre som e sentido, inteligência e palavra,
tampouco uma frágil, e não menos anacrônica, retórica do inefável:
o lugar da poesia é aqui definido por uma desconexão constitutiva

as
entre a inteligência e a língua, na qual, enquanto a língua (“quase
por si mesma iniciada” )136 fala sem poder entender, a inteligência
entende sem poder falar.
Por isso Dante pode apresentar essa insuficiência constitutiva
(“a debilidade do intelecto e a inadequação do nosso falar”) como
“uma culpa pela qual não deixo de ser culpado” e que o motiva
a acusar-se e, “simultaneamente”, escusar-se. Dados, no ato de
palavra (ou de escuta), os dois processos sincrônicos e inversos,

135 “Em alguns casos o discurso é a causa do intelecto, como nas coisas apreendidas
por disciplina: e assim acontece com o intelecto do aprendiz que não apreende
o poder da fala; e o intelecto pode então escutar, mas não compreender as
coisas faladas [...]. Mas quando o intelecto é a causa do discurso, como naqueles
conhecidos pela invenção: em seguida o intelecto excede o discurso e muitas
coisas são compreendidas não sendo possíveis de piolciir" (N.T.).
136 “quasi da se stessa mossa” (N.T.).
aquele da língua em direção à inteligência e aquele da inteligência
em direção à palavra, ambos comunicam, por assim dizer, através
de seus defeitos, de modo que (como Dante dirá pouco depois) a sua
imperfeição coincide, na verdade, com a sua perfeição (3, XV, 9).
Se tal é a estrutura do ditado poético, então os tercetos de
Purgatório XXIV 49-63 devem ser relidos. Antes de tudo a dupla
escansão spira / noto e detta / vo significando (como também
a duplicação f / un) corresponde ao duplo excesso e à dupla
inefabilidade do Convívio que, adquirida em definitivo como feliz
princípio poético, delimita agora o espaço no qual, na verdade,
segundo a intenção tópica de Dante, a invenção pode inverter-se em
escuta (e transcrição) e a escuta em invenção. O mover-se “seguro”
[stretto] da pena “em obediência àquele que dita” não poderá,
deste modo, significar uma simples adesão; de fato - enquanto a
pena adere ao ditado exatamente por meio da sua insuficiência -,
Categorias italianas

ao “seguro” [stretto] deverá ser restituído o sentido de “impedido,


em dificuldade” que o adjetivo tem constantemente na Comédia
quando se refere ao ato de palavra (vale para todo o Purgatório,
XIV 16: “tem a nossa razão todo o discurso seguro” [stretto]). Mas
também a rima nodo / ch’i’odo, que retorna na Comédia muitas
vezes, e sempre em contextos significativos (Paraíso, VII 53-55;
Purgatório, XXIII 13-15; Purgatório, XVI 22-24), não será casual,
podendo nela distinguir-se sem esforços uma evocação apenas
cifrada daquele “prego” (ou chave) que vimos assinalar no De
vulgari Eloquentia a conexão-desconexão (a quase irrelata relação,
por meio do prego [chiodo], portanto) entre som e sentido (enquanto
o “núcleo” [“nodo”] assinalará inversamente a arrogante tentativa
de fazer coincidir som e sentido, como em Marcabru: la razon e-l
vers lassar efaire). E não o desvela, de resto, pouco depois Guinizelli
de maneira mais aberta, quando diz, quase citando as palavras de
Bonagiunta: “Tu lasci tal vestígio / per quel ch’i’odo, in me, e tanto
chiaro / che Leté nol può trarre né far bigio (Purgatório, XXVI,
106-108)?137 O episódio de Bonagiunta dramatiza assim, em termos
quase cavalcantianos (as “penas consternadas”), aquela mesma feliz

137 “Tu deixas tal vestígio / por aquilo que ouço, em mim, e tão claro / que Lete
não pode trazer nem tornar opaco”; ou, caso se tome “ch’i’odo” como cifra: “Tu
desconexão que o Convívio enuncia no plano da doutrina e que se
recompõe somente na mente divina, quando intendente e intelecto
se identificam, enquanto toda pretensão humana de superá-la perde
de vista a distância que separa os dois “estilos” (a escritura da língua
que excede o intelecto e aquela da inteligência que excede a língua):

e qual piü a gradir oltre si mette


non vede piü da l’uno a 1’altro stilo.138

E, no entanto, não é isso que acontece em todo autêntico


enunciado poético, no qual o discorrer da língua em direção ao
sentido é como que atravessado por um outro discurso, que vai da

2. CORN: da anatomia à poética


inteligência à palavra, sem que nenhum dos dois jamais cumpra o
seu inteiro trajeto para descansar um na prosa e o outro no puro som?
Em vez disso, em um ponto decisivo da troca, é como se os doisfluxos,
encontrando-se, invadissem cada um o trajeto do outro, de modo que
a língua se encontra ao final reconduzida à língua e a inteligência
remetida à inteligência. Esse quiasma invertido - e nada mais - é
o que chamamos poesia; e é ele, para além de toda vagueza, o seu
árduo cruzamento com o pensamento, a essência pensante da poesia
e aquela poetante do pensamento. E de tal ponto de cruzamento
(onde, como em toda esquina, é sempre possível a catástrofe) o

vo
LT)
“prego” (ou chave) constitui o mecanismo de troca, assim como o
com marca o seu traço no corpo delirante de n’Ayna.

Epílogo

Mas quem é n’Ayna, este ser feito ao mesmo tempo de palavra


e de carne, de inteligência e de som, de quem exploramos até onde
era possível a amorosa anatomia? Exatamente ela, tão brusca, viva e
quase casta no seu despudor, apresenta-se como uma figura inversa

deixas tal vestígio / por aquele prego, em mim, e lão claro / que Lete não pode
trazer nem tornar opaco” (N.T.).
138 “e quem mais a desejar além se coloca / não vê m.lis nem iiiii nem outro estilo”
(N.T.).
da domnagenser que no say dir,m dos trovadores, e daquela “senhora
inteligência” eleita pelos poetas de amor como fonte e, ao mesmo
tempo, destino de seu canto. Como tal, ela poderá trazer à mente a
“mulher gaga” de Purgatório, IX 7-15, a sereia da língua demasiado
solta, em cujo ventre tem lugar uma exibição igualmente indecente
e na qual se pode ver, com razão, uma figura do “não-canto”.139140 Mas
também aqui a inversão se complica e, por assim dizer, inverte-se
por sua vez.
Acreditamos ter identificado o arquétipo disso em uma
passagem das glosas de Erigena sobre Marziano Capella, um texto
decerto não ignorado pela cultura cortês. Aqui lemos, a propósito
do nome de uma das Musas:141

ANIA, intelligentia. NIA enim intelligentia, ab eo quod est


NOYS dicitur. A apud Grecos multa significai. Per vices
enim negat, per vices implet, sicut in hoc nomine ANIA: ibi
Categorias italianas

enim auget sensum.142

Ayna é exatamente o inverso de Ania; mas como, para


Erigena, o “A” não é privativo, mas intensivo, então a inversão da
inteligência em nAyna não é simplesmente negativa, mas vai até o
ponto (que o ato do cornar exprime em termos paródicos) no qual
vo
vo

a inteligência torna-se opaca [opacizza]143 em palavra e a palavra


emudece em inteligência. O seu onírico corpo, na medida em
que leva o brasão integral do com, é o lugar oferecido pelo poeta
à relação irrelata e à recíproca catástrofe de som e sentido que

139 “mulher que brilha e não sabe dizer” (N.T.).


140 Gorni, II Nodo delia lingua, cit., p. 20.
141 E. Jeauneau, Quatre thèmes érigéniens, Montréal, 1978, p. 112.
142 “ANIA, o intelecto. NIA o intelecto, portanto é dita NOYS. “A” significa muitas
coisas para os gregos. Às vezes denota a negação, às vezes uma implementação,
como neste nome ANIA: aqui ele acrescenta sentido” (N.T.).
143 Vale a pena observar que, no verso do Purgatório há pouco citado, “Tu lasci
tal vestígio / per quel chTodo, in mc, e tanto chiaro / che Leté nol può trarre
né far bigio”, o termo final “bigio", “pardo”, cm sentido mais literal (como no
provérbio: “a noite todos os gatos são pardos” |“al buio tutti igatti sono bigi”]),
foi traduzido como “opaco” (N.T).
define a experiência poética. Que ela figure no No say que s’es de
Raimbaut d’Aurenga, isto é, numa composição poética cuja inaudita
novidade consiste no seu manter-se ao mesmo tempo na poesia e
na prosa, não aparecerá, a esta altura, como incongruente. Lugar de
cumprimento e de uma impossibilidade, de uma perfeição possível
somente através da imperfeição mesma, w’Ayna é, talvez, de modo
mais puro que qualquer outro senhal feminino, a cifra última do
projeto trovadoresco, flor envesa que desabrocha exatamente no
limiar daquele paraíso terrestre no qual somente Matilda (“Matelda”,
também um nome invertido: ad letam)Ui pratica sua dança inocente.
E somente depois de ter devolvido esse sonho à sua identidade
anagráfica podemos então dele nos despedir.

2. CORN: da anatomia à poética


vo

144
‘Aquela que conduz à beatidude” (N.T.).
0 sonho da língua1"

a Giovanni Pozzi e a Cario Dionisotti


que abriram o caminho
a toda leitura do Polifilo

1. As considerações que seguem procuram situar uma obra


célebre, mas certamente pouco lida, no lugar próprio de uma leitura,
isto é, restituí-la a uma dimensão na qual o seu teor coisal e o seu
conteúdo de verdade (ou melhor, retomando a tese medieval dos
vários sentidos das Escrituras, poderiamos também dizer o seu
sentido literal e o alegórico-moral) voltam a compor-se em unidade.
Se é verdade que toda leitura de uma obra deve necessariamente
medir-se com a crescente distância que o tempo insere entre os seus
diversos níveis de significado, é também verdade que uma leitura se
dá apenas no ponto no qual parece recompor-se aquela viva unidade
que, na origem, tinha sido conferida à composição.
Essa tarefa se choca, no nosso caso - ou seja, o caso do
anônimo incunábulo impresso em Veneza, em 1499, com o título
Hypnerotomachia Poliphili -, com um problema particular. Às dificul­
dades próprias de uma obra de nós distante mais de cinco séculos e
proveniente de um ambiente - o Humanismo quatrocentista - que145

145 As citações do Hypnerotomachia remetem à edição >rilicn de (i. Pozzi e L. A.


Ciapponi, 2 v., Padova, 1968.
jamais conseguiu ganhar um público moderno, o incunábulo, fechado
na sua perfeita vestimenta aldina,146147parece acrescentar uma superação
tão extrema entre os seus elementos a ponto de para nós apresentar-
se, desde o início, como uma espécie morta, sem precedentes nem
descendentes, uma espécie de emblema no qual - para usar a
terminologia dos tratados de impressões e brasões que com frequência
nele se inspiraram - a engenhosa vontade do autor tenha cindido e
tornado para sempre incomunicáveis a “alma” e o “corpo”. Também
as belíssimas ilustrações, que foram tão úteis à sorte do livro, decerto
contribuem para reforçar essa impressão hieroglífica e, em suma,
lapidar. O Hypnerotomachia, contudo, embora dedicado a um problema
de morte, não era um simples exercício pedante substancialmente
estranho à parte viva da nossa tradição literária, mas exprimia, ao
contrário, e de maneira exemplar, a crise de uma das suas intenções
mais profundas. Talvez a obsessão filológica e o exacerbado amor pela
língua, que caracterizam o Humanismo quatrocentista, assim como o
bilinguismo que nele está em questão (e que, de diversas formas, está
presente em toda nossa história literária), escondam um problema mais
essencial do que aquele que estamos habituados a pensar. A modesta
divisa que Poliziano confiava ao prólogo da Lamia (grammaticus,
non philosophus), e que um texto não distante daquele que aqui nos
ocupa formulava no escrúpulo de aparecer “filosofastro” em vez de
comentador (ne philosophaster magis viáear quatn commentator147 - são
as palavras de Beroaldo), deve então sugerir que, neste âmbito, quanto
mais uma obra parece concentrar-se sobre problemas filológicos e
linguísticos, mais denso arrisca ser o seu conteúdo de verdade. Talvez
exatamente aqui o crítico não deva temer o risco do pensamento, nem
o comentador de parecer filosofastro.

2. Qualquer leitura do Polifilo tem como princípio necessário


uma análise da sua língua. O efeito de estranhamento que esta
produz desorienta a tal ponto o leitor que ele literalmente não sabe

146 O termo aldino faz referência a Aldo Manuzio, consagrado editor e tipógrafo
italiano que no início do século XVI (entre 1500 e 1515) inovou no modo de
fazer e compor livros. Foi o responsável pelo projeto gráfico e pela impressão
do Hypnerotomachia Poliphili (N.T.).
147 “que não pareça mais filosofastro que comentador” (N.T.).
em que língua está lendo, se em latim, em vulgar ou em um terceiro
idioma - talvez aquele que uma precoce paródia quinhentista
define como lingua poliphylesca. Não se trata apenas de um efeito
resultante da distância temporal do texto. A consciência desse efeito
era tão primária para o autor e para os imediatos destinatários da
obra que a encontramos claramente enunciada, in limine, no próprio
incunábulo. Na epístola em latim de Leonardo Crasso que abre o
texto, de fato lemos: Res una in eo miranda est, quod, cum nostrati
lingua loquatur, non minus ad eum cognoscendum opus sitgraeca et
romana quam tusca et vernacula (I, IX).14e Aqui está perfeitamente
apreendido o que ainda desorienta o leitor moderno, mesmo se
não esteja de todo claro o que se deve entender por “nostrati”, se
conforme ao latim no qual escreve Leonardo ou ao vulgar do texto.
A elegia anônima ao leitor, que segue logo abaixo, reafirma
esses conceitos falando de nova lingua novusque sermoli9 (I, X). E o

3. O sonho da língua
carme de Matteo Visconti, acrescentado à cópia da Staatsbibliothek
de Berlim, afirma, de maneira ainda mais explícita, sobre Polifilo:
novum propemodumque divinum eloquium nactus1481950 (II, 36).
Os estudiosos modernos analisaram a língua de Polifilo,
mesmo se ainda não de modo exaustivo. Os resultados aos quais
chegaram confirmam aquilo que já aparece numa primeira leitura: a
língua do livro é um unicum monstruoso, no qual a estrutura vulgar
sofre uma vigorosa inserção lexical latina. Nas palavras de um
estudioso, que dedicou ao Hypnerotomachia cuidados exemplares,
o texto é “uma tentativa de resolver com uma fórmula prática a
querela humanística entre vulgar e latim, conservando de um a
realidade fonética e morfológica e do outro a nobreza lexical”.151
Não se trata apenas de uma intrusão de vocábulos puramente
latinos (e também gregos) no léxico vulgar, segundo um processo
de crescimento que por certo caracteriza a história do vulgar no

148 “A única coisa aqui maravilhosa é que, embora ele fale a nossa língua, um
trabalho considerável é necessário para reconhecer se está em grego, latim,
toscano ou língua vernácula” (N.T.).
149 “nova língua e novo discurso” (N.T.).
150 “tendo encontrado uma nova e quase divina linguagem" (N.T.).
151 M. T. Casella - G. Pozzi, Francesco Colomui. Uioem/io e opere, 2 v., Padova,
1959, v. II, p. 79.
século XV; antes, têm-se aqui inumeráveis neo-formações feitas por
meio da transposição isolada de temas e sufixos latinos, que dão
vida a palavras gramaticalmente possíveis mas que, na verdade,
jamais existiram e cuja vida, na maior parte dos casos, permanece
confinada à sua aparição única no sonho de Polifilo.
Não se entende, entretanto, o sentido dessa operação no
elemento lexical caso ela não seja colocada em relação coma particular
estrutura gramatical e sintática da prosa do Hypnerotomachia.
Esta acolhe, por um lado, a longa e complexa sintaxe do modelo
de Bocaccio, e, por outro, complica-o e o onera com uma série de
dilações e anomalias,152 cujo resultado final é o de deixar sobressair
de modo ainda mais claro a rígida estraneidade do elemento lexical
sobre o fundo discursivo das proposições.
Um intento do gênero - aliás, conscientemente perseguido, foi
observado por Mallarmé,153154no qual a infinita complicação sintática
Categorias italianas

da escritura tende a fazer ressaltar as palavras no seu isolamento,


suspendendo nelas o nexo semântico com aquilo que ele definia
como um isolement de la parole. Desse modo, escreve Mallarmé,
as palavras, mantidas em “vibrátil suspensão”, são percebidas pela
mente independentemente de sua conexão sintática ao contexto,
numa espécie de puro espelhamento autorreferencial:
to

Les mots, deux mêmes s’exaltent à mainte facette reconnue la


plus rare ou valant pour 1’esprit, centre de suspens vibratoire;
qui les perçoit indépendamment de la suíte ordinaire,
projétés, en parois de grotte, tant que dure leur mobilité ou
príncipe, étant ce qui ne se dit pas du discours...154,155

152 O elenco foi feito em ibid., v. II, p. 117-126, integrado em Pozzi-Ciapponi (ed.
critica de), Hypnerotomachia, cit., v. II, p. 33-35.
153 Remetemos à análise de K. H. Stierle, Linguaggio absolute e linguaggio
strumentale in Mallarmé, em “Metaphorein”, 3, marzo-giugno 1978, p. 17-34.
154 “As palavras por si mesmas se exaltam em diversa faceta reconhecida a mais
rara ou valendo para o espírito, centro de suspensão vibratória; que as percebe
independentemente da sequência ordinária, projetadas, em paredes de grutas,
enquanto dura sua mobilidade ou princípio, sendo aquilo que não se diz do
discurso...” (N.T.).
155 S. Mallarmé, Oeuvres completes, edição de H. Mondor-J. Aubry, Paris, 1945,
p. 386.
É esse jogo entre o elemento lexical e o sintático-gramatical
que produz em Polifilo o efeito de imobilidade e de rigidez quase
pictórica notado pelos intérpretes, cujas ilustrações parecem
multiplicar-se como em um espelho. Isto é, encontramo-nos diante
de uma língua em que o elemento lexical parece estar em agio em
relação ao elemento sintático-gramatical, uma língua agramatical,
como também foi dito. De modo mais preciso, não se trata de um
discurso agramatical, mas de uma linguagem na qual a resistência
dos nomes e das palavras é de imediato solta e tornada transparente
pela compreensão do sentido global, de maneira que o elemento
lexical permanece isolado e suspenso por alguns segundos, como
um material morto, antes de ser articulado e dissolvido no fluido
discurso do sentido.
A língua de Polifilo é, portanto, um discurso em vulgar que
arrasta dentro de si, como um obstáculo, o esqueleto lexical dos

3. O sonho da língua
nomes latinos, sem conseguir deles se livrar de modo integral,
deixando-os ao contrário aparecer, heraldicamente e por um átimo,
no próprio ventre (grembo). Podemos dizer que nos encontramos
diante de um texto em que uma língua - o latim - reflete-se em
uma outra - o vulgar - numa recíproca deformação. O que o vulgar
contém em si sem dizer - o que resta não dito no discurso - é, neste
caso, uma outra língua, o latim.
Daí a impressão defestina lente, de uma retardada excitação e
de uma respiração hesitante nessas páginas, cujo ritmo é como que
incessantemente refreado desde o seu interior. Daí aquela “incerteza
insolúvel entre elementos do humanismo e do Trezentos” com que
Dionisotti resume à perfeição o caráter de Polifilo. Por isso, enfim,
o efeito de sepulcral e sonhadora rigidez de uma prosa na qual o
discurso não vale por aquilo que diz, mas por aquilo que nele parece
permanecer não dito e contudo presente: como em um sonho,
portanto, ou como em um acróstico, do mesmo modo que o nome
do autor e o da amada, num entrelaçar amoroso, estão secretamente
transcritos em latim nas iniciais de cada capítulo: Poliam frater
Franciscus Columna peramavit.

3. Caso o teor coisal de uma obra nao possa ser separado de


seu conteúdo de verdade, nem a língua com a qual ela foi escrita
indiferente aos seus conteúdos reais, essas considerações sobre a
língua devem agora nos guiar na leitura do / lypnerotomachia. O
livro é o relato de um sonho: mas no centro desse sonho está uma
figura de mulher, Polia, por quem o amor é a tal ponto único, o
obsessivo tema da obra, que o protagonista masculino não tem outra
realidade do que aquela prenunciada no nome Polifilo: o amante de
Polia. E todos os acontecimentos se deixam descrever como uma
“viagem nas amorosas chamas de Polia” 156 (I, 113). Quem é Polia?
As respostas a essa pergunta orientaram-se principalmente em
direção à identificação histórico-anagráfica da mulher real que seria
celebrada com esse nome (por exemplo, a sobrinha de Teodoro de’
Lelli, bispo de Trento), ou em direção à decifração do seu significado
alegórico (por exemplo, a antiguidade). Ê evidente que tais pesquisas,
ainda que preciosas, podem oferecer escassa compreensão da obra
até o momento em que não sejam confrontadas com aquilo que
Categorias italianas

constitui a particularidade textual do Hypnerotomachia.


O que sabemos de Polia? Antes de mais nada, aquilo que
nos diz o seu nome. Por mais que possa parecer supreendente,
Polia (do grego, poliòs, polia) significa simplesmente “a grisalha, a
velha”, e Polifilo não é outro senão “aquele que ama a velha”.157 Uma
leitura dos textos liminares (alguns dos quais presumivelmente
escritos pelo próprio autor) permite acrescentar a esse dado -
em si não transparente - algumas determinações significativas.
Antes de tudo, a dedicatória do livro nos informa que Polia, única
proprietária e destinatária da obra, é também quem a “pintou”
[“depincto”] e “fabricou” [“fabricato”]: “o qual [livro]”, aqui lemos,
“tu industriosamente nell amoroso core cum dorate sagitte in quello
depincto et cum la tua angélica effigie ínsignito et fabricato hai,
che singularmente padrona il possedi” (I, 2).158 Polifilo limitou-se
a traduzir o livro do “primeiro estilo” [“principiato stilo”] àquele
presente, de modo que Polia, “ótima operadora e libertadora da

156 “viaggio nelle amorose fiamme di Polia” (N.T.).


157 “colui che ama la vecchia” (N.T.).
158 “tu industriosamente no amoroso coração com dourada flecha nele pintaste
e com tua angélica efígie selaste-o e o fabricaste, daí que proprietária ele
singularmente possui” (N.T.).
mente” [“optima operatrice e clavigera dela mente”], não pode ser
acusada por suas falhas.
O carme de Andréa Bresciano nos informa, ademais, que
Polia, cujo nome indicava ser velha, está na verdade já morta, e
enquanto morta só revive graças ao sonho de Polifilo, que a faz
despertar nos lábios dos doutos:

O quam de cunctis felix mortalibus una es,


Polia, quae vivis mortua, sed melius:
Te, dum Poliphilus somno iacet obrutus alto,
Pervigilare facit docta per ora virum (I, XV).159

Nos dois epitáfios que fecham o livro, a morte de Polia


(ou melhor, o seu viver morta) é reforçado de modo ainda mais
explícito: Polia “vive sepulta” (“Felix Polia, quae sepulta vivis...”;
I, 460) e Polifilo a faz despertar de seu sono. E nas palavras que

3. O sonho da língua
Polia mesma professa desde a tumba, que fazem com que o livro
pareça apresentar-se como o seu mausoléu, Polia é apenas uma flor
seca, condenada a jamais reviver, e que em vão Polifilo procurou
reanimar: “Heu Poliphile / desine / fios sic exsiccatus / nunquam
reviscit” (ibid.).160
Polia, o objeto da amorosa e onírica procura do autor, é assim

Ol
uma velha e ainda uma morta que somente o sonho faz viver, e para
quem todo o livro é, a um só tempo, obra e mausoléu. Por quê? O
que significa a morte de Polia? Todos esses dados, à primeira vista
impenetráveis, tornam-se perfeitamente límpidos se os ligarmos
não com uma presumida realidade referencial, mas, restituindo-
os à viva unidade da leitura, com tudo que antes observamos a
propósito da língua de Polifilo e de seu caráter autorreferencial.
Polia - podemos agora avançar uma primeira hipótese - é a (língua)
velha, a (língua) morta, ou seja, o latim que a inaudita redação de
Polifilo reflete, na sua arcaica rigidez lexical, no discurso vulgar,
em um recíproco e sonhado espelhamento. E Polifilo - aquele que

159 “Oh Polia, que é a única feliz dentre os mortais, / Voa" vive na morte, mas vive
melhor: / Enquanto Polifilo jaz em seu sono proluiulo, / l;a/.e-a ficar acordada
nos lábios dos doutos” (N.T.).
160 “Infelizmente, Polifilo, / desista, / uma lloi sei a / i.mi.os irá reviver” (N.T.).
ama Polia - é uma figura do amor pelo latim: amor impossível ou
sonhado, porque amor por uma (língua) morta, e que tenta fazer
reviver a flor ressecada transplantando-a para os membros vivos do
vulgar. Nos próprios membros, caso Polifilo, aquele que ama o latim,
seja por isso mesmo figura de um falar materno daquele separado, e
cujo amor é necessariamente, segundo as palavras da primeira carta
a Polia, um ser todo vivo no outro e todo morto em si mesmo (1,439).
Isso porque as palavras latinas mortas, suspensas em seu isolamento,
ressurgem e voltam ainda vivas no final, caso seja verdade que nós
compreendemos, em última instância e embora com dificuldades, o
texto de Polifilo. A reflexão de uma língua na outra não permanece
inerte, não é apenas o espelhamento de duas realidades separadas,
mas, como em qualquer discurso humano, aqui alguma coisa morre
e alguma coisa vive. A língua do Hypnerotomachia contém assim
uma implícita mas articulada reflexão sobre a linguagem, uma
Categorias italianas

teoria das relações entre vulgar e latim que deve ser trazida à luz.
O acróstico não revela apenas o nome do autor, mas também o
essencial e insolúvel bilinguismo, cuja circularidade está já inscrita
na passagem do título do texto do latim ao vulgar e no retorno ao
latim do epitáfio final.
Essa hipótese - provisória - sobre a identidade de Polia, não
ON

apenas conduz o texto na direção de uma possível leitura como, ao


mesmo tempo, ainda o restitui ao contexto histórico - o Humanismo
quatrocentista e a fratura de sua retórica entre latim e vulgar - em
que ele nasceu. Isso inclusive porque, segundo um paradoxo apenas
aparente, foram exatamente os humanistas, na sua apaixonada
reivindicação do latim, os primeiros a enunciar a ideia de uma vida,
de uma senescência e de um renascimento - mas também, e por isso
mesmo, de uma morte - da língua, e a conceber o objeto do seu mais
vivo amor como uma língua morta e renascida.

4. A reconstrução do nascimento do conceito de língua morta


em ambiente humanístico já foi feita por Klein.161 Bastará aqui
apenas recordar que se deve a Lorenzo de’ Mediei - naquele Comento
sopra alcuni de’ suoi sonetti que antecede em cerca de 15 anos a

161 H. W. Klein, Latein und Volgarc in llulirii, Miiiulien, 1957.


impressão do Hypnerotomachia - a primeira tentativa de comparar
o desenvolvimento de uma língua com o de um organismo vivo,
estabelecendo um paralelo entre as idades do homem e as idades
da língua. “Máxima até agora - ele escreve - pode-se dizer ser a
adolescência dessa língua, porque ela está se tornando cada vez
mais elegante e gentil. E poderia finalmente na juventude e na idade
adulta vir-lhe ainda maior perfeição...”. Logo em seguida, falando da
morte da mulher a quem são dedicados os sonetos, Lorenzo enuncia
o princípio (que devia mais tarde ser textualmente transferido à
língua em um célebre diálogo de Varchi) segundo o qual “é sentença
dos bons filósofos que a corrupção de uma coisa seja a criação de
uma outra”.
Muitos anos antes, num texto que constitui a primeira
história da literatura latina, os Scriptorum illustrium latinae linguae
libri XVIII, de Sicco Polenton, a analogia língua/organismo vivente

3. O sonho da língua
foi expressa pela metáfora não da morte e do renascimento, mas de
um sono e de um despertar da língua. A propósito da renovação
da cultura latina na época de Dante, Sicco descreve com delicioso
realismo o acordar das musas latinas após um sono de mil anos:
“naquele tempo, como costumam fazer as pessoas ainda envoltas
no sono, elas começaram a mover os membros, a esfregar os olhos e
a esticar os braços [hoc vero tempore, ut somnolenti solent, membra
movere, oculos tergere, brachia extenáere coeperunt]”.162163No prefácio
aos seis livros das Elegantiae, no entanto, quando enuncia o seu
apaixonado programa de restauração da língua latina, Lorenzo
Valia fala já de uma morte (de uma quase morte) das letras latinas,
que deverão então despertar para a nova vida (ac paene cum litteris
ipsis áemortuae, hoc tempore excitentur ac reviviscant).m
Quando, muitos anos depois, o debate humanístico toma,
a partir de Bembo, a forma de uma “questão da língua” e de um
contraste entre Humanismo vulgar e Humanismo latino, será
exatamente a ideia de uma morte da língua - que tinha sido já

162 S. Polenton, Scriptorum illustrium latinae linguae libri XVIII, edição de B. L.


Ullmann, Roma, 1928, p. 129.
163 Lorenzo Valia, Elegantiarum libri, in 1’rosnlot i Imini dei (Jnatlroee.nto, edição
de E. Barin, Einaudi-Ricciardi, Torino, 1977, p. VM,
forjada com vistas a uma reivindicação do latim - que irá fornecer
as armas para os partidários do vulgar. No Diálogo das línguas, de
Sperone Speroni (que é de 1542, ou seja, mais de quarenta anos após
o Hypnerotomachia e quase vinte anos após as Prosas da língua
vulgar), crescimento e morte do latim são, de fato, um fenômeno
natural, comparável ao ciclo vital de uma planta: “porque assim
quer a natureza, que deliberou que esta árvore, logo depois de
nascer, floresça e dê frutos, e tão logo envelheça e morra”. O vulgar,
em oposição, é uma “virgem” que ainda não alcançou o pleno
florescimento: “Eu vos digo que essa língua moderna, por mais
velha que seja, é ainda uma jovem e delicada virgem que ainda não
floresceu totalmente e tampouco produziu os frutos que ela é capaz
de dar”. E, nos lábios do cortesão, que se faz porta-voz das razões do
vulgar, a superioridade deste sobre o latim é então a superioridade
do vivo sobre o morto: “Querer mantê-la (a língua latina) na boca
Categorias italianas

assim morta como está, a vós é lícito poder fazê-lo: mas falai entre
vós as vossas mortas palavras latinas; e a nós idiotas deixai-nos falar
em paz, com a língua que Deus nos deu, o nosso vivo vulgar”.164
Quando as teses de Bembo tinham vencido a batalha,
setenta anos depois do Hypnerotomachia, no Ercolano, de Varchi,
os conceitos de língua morta e língua viva constituem um límpido
00

instrumento de classificação linguística para nós perfeitamente


familiares (“das línguas, algumas são vivas e outras são não vivas.
As línguas não vivas são de duas maneiras: uma que chamaremos
morta de fato e a outra meio viva”). No mesmo espaço de tempo, o
problema, arduamente debatido entre os humanistas, de ser a língua
vulgar “uma nova língua por si, ou uma antiga língua defeituosa
e corrompida”, é resolvido no sentido de uma relativa mas forte
autonomia do vulgar (“desse modo, essa língua é estimada nova,
ainda que edificada sobre os fundamentos da latina” ).165 Também
aqui, as mesmas idéias que tinham servido às primeiras gerações
humanistas (convictas da substancial estraneidade do vulgar em
relação ao latim, a ponto de não admitirem a derivação etimológica
do latim sem a mediação do grego ou de uma língua bárbara) para

164 S. Speroni, Dialogo delle lingue, Lanci.mo 1912, p. 54-58.


165 Cláudio Tolomei, cit. in Klein, Latcin miil Volgair, cit., p. 82.
fundar a superioridade do latim, servem agora para explicar a
excelência do vulgar.
Dionisotti com justiça observou que os historiadores
modernos, com frequência e facilidade demasiadas, tentam explicar
a passagem do Humanismo latino para o vulgar como o êxito normal
de um conflito entre língua morta e língua viva.166 Um simples olhar
às datas dos textos citados mostra que, nos anos em que foi escrito o
Hypnerotomachia, a ideia de uma morte da língua não havia ainda
adquirido o significado moderno, que nasce somente em estreita
unidade funcional com a polêmica contra o latim. Isso não significa
que essa ideia não estivesse já presente, mas apenas que ela não tinha
o mesmo significado aquém ou além do divisor de águas assinalado
pelas Prose delia volgar lingua: por um lado, condição de um
renascimento e de uma restauração, por outro, definitiva saída do
uso falado. Se queremos verificar o sentido e a consistência da nossa

3. O sonho da língua
identificação de Polia com a língua velha e a língua morta, devemos
agora procurar medir exatamente essa diferença, e adentrar uma
zona em que a crise da língua entre o século XV e o século XVI
ainda não assumiu a forma - determinante para a nossa tradição
cultural - de uma “questão da língua”.
5. Para medir a novidade da ideia do latim enquanto língua
morta é preciso não subvalorizar a inversão que ela implicava
com respeito às concepções do século XIV. Ainda no De vulgari
Eloquentia e no Convívio, a língua morta e perecível por excelência
é o vulgar, enquanto o latim, “perpétuo e não corruptível”, e
porquanto lingua gramatica, possibilita frear o movimento que leva
à caducidade das línguas. Vale frisar que o bilinguismo de Dante e
o bilinguismo dos séculos XV e XVI de modo algum recobrem o
mesmo fenômeno. O primeiro corresponde menos à oposição entre
duas línguas que entre duas experiências diversas da linguagem, às
quais Dante denomina língua materna e língua gramática. O vulgar
é, de fato, uma experiência da palavra absolutamente primordial
e imediata (prima locutio - De vulgari Eloquentia, I, IV, 21; “um

166 In Nicolò Liburnio e la cultura cortigiana. in "l.rlline ll.dumo”, XIV, 1962,


p. 38.
só está primeiro na mente”,167 “aquilo que está só e primeiro na
mente”168 - Conv., I, XII, 5-7), anterior não somente em relação a
qualquer outra linguagem mas também a toda ciência e a todo saber,
para os quais constitui a condição necessária (“foi este meu vulgar
que me introduziu no caminho da ciência, que é a última perfeição,
e com ele eu entrei no latim e por ele o latim me foi mostrado...” 169
- Conv., I, XII, 5). Essa sua primordialidade - que é na verdade algo
como a demora do logos no princípio da teologia joanina - é, diz
Dante, “causa geradora de amor”,170 isto é, fundamento daquele
“perfeitíssimo amor pela própria língua” 171 para ele tão importante.
Todavia, em função de sua primordialidade, ou seja, porque de
imediato coincide com a iluminação da mente da qual emana a
consciência e faz experiência da “inefabilidade”172 (Conv., III, IV, 1)
que nela é implícita, o vulgar pode somente seguir sendo “uso” e não
“arte”, e é por isso necessariamente caduco e imerso numa incessante
Categorias italianas

morte. Falar em vulgar significa justamente fazer experiência desse


movimento de incessante morte e renascimento das palavras, de que
nenhuma gramática pode dar completa conta (por isso, em Conv.,
II, XIII, 10, Dante diz que “os raios da razão” 173 não podem “acabar-
se”174 na linguagem, “especialmente na parte dos vocábulos”;175 com
efeito, “certos vocábulos, certas declinações, certas construções têm
00
O

agora um uso que antes não tinham, e muitas já tinham antes um


uso que ainda terão outra vez”.176

167 “uno e solo è prima ne la mente” (N.T.).


168 “quello che è solo prima in tutta la mente” (N.T.).
169 “questo mio volgare fu introduttore di me ne la via dela scienza, che è ultima
perfezione, in quanto con esso io entrai ne lo latino e con esso mi fu mostrato...”
(N.T.).
170 “cagione d’amore generative” (N.T.).
171 “perfettissimo amore alia própria loquela” (N.T.).
172 “ineffabilitade” (N.T.).
173 “li raggi de la ragione” (N.T.).
174 “terminarsi” (N.T.).
175 “in parte spezialmente de li vocuboli" (N.T.).
176 certi vocaboli, certe declinazioni, ceiio <osim /im ii sono in uso che già non
furono, e molte giàfurono che ancor s.n .mno" (N.T.).
A lingua gramatica é, ao contrário, a língua do saber, locutio
secundaria, que pressupõe sempre o falar materno e é aprendida,
através deste, por regra e estudo, sendo por isso inalterável e
perpétua (daqui a aparente contradição pela qual a maior nobreza
do latim não exclui o primado genético do vulgar).
Somente a recondução do bilinguismo dantesco ao contexto
dessa dúplice experiência da palavra, possível apenas no breve
período de tempo entre a aparição da primeira consciência literária
do vulgar nos poetas de amor e a construção das primeiras gramáticas
das línguas românicas (as Leys d ’amors são dos primeiros decênios
do século XIV e o Donat proensal com certeza mais precoce; mas
para a gramática italiana será preciso esperar pelas Regole de
Fortunio, em 1516), possibilita entender o projeto de Dante, que
consiste justamente em uma tentativa de dar estabilidade ao vulgar -
constituído como língua da poesia - sem contudo transformá-lo

3. O sonho da língua
numa língua gramática.
O bilinguismo entre os séculos XV e XVI recobre, ao
contrário, uma relação regulada e instrumental com a linguagem
que é, nos dois casos, em substância homogênea. A luta entre o
latim ciceroniano e o vulgar do século XIV - assim como Bembo a
concebe - é, do ponto de vista de Dante, uma luta entre duas línguas

00
gramaticais: ambas renunciam à experiência da primordialidade do
evento de linguagem e parecem inconscientemente pressupor um
saber e um pensamento pré-linguístico que, na realidade, como
foi sugerido pelos pensadores latinos da alta Idade Média, poderia
coincidir com o vernáculo, singularmente à sombra nos debates
sobre a língua. A crise da língua que se consuma entre os séculos
XV e XVI não é, então, apenas o contraste entre uma língua morta
(ou semiviva) e uma língua viva que naturalmente a sucede (como
as mentes mais lúcidas de pronto compreenderam, também o vulgar
do século XIV proposto por Bembo era uma língua morta, que “não
se fala, mas se aprende como as línguas mortas nos três escritores
florentinos”, afirma Bernardo Davan/.ati),177 mas, muito mais, o
definitivo ocaso da experiência de linguagem da qual nascera a
lírica românica e a mutação radical dos termos do bilinguismo.

177 Cf. B. Migliorini, Storia delia lingua ilaliuna. N.insoni, l iicii/o, 1960, p. 94.
A antítese dantesca entre vulgar e gramática - ou seja, entre
experiência do estatuto primordial ou secundário do evento de
linguagem (ou, ainda, entre amor da palavra e saber da palavra) -
será então substituída - com uma transformação decisiva na
cultura europeia - por aquela entre língua viva e língua morta,
que a dissimula e, ainda, inverte o seu significado. O bilinguismo
essencial da palavra humana acaba assim resolvido, de modo
diacrônico, com a separação e o lançamento de um de seus termos
para trás, enquanto “língua morta”. No entanto, a língua que morre -
o latim - não é aquela língua gramática imperecível de Dante, mas
uma língua materna de novo gênero, é já a lingua matrix da filologia
seiscentista, a língua original da qual as outras derivam e cuja morte
torna possível a inteligibilidade e a gramaticalização das outras.
Com efeito, somente a configuração do latim como língua morta
permitiu a transformação do vulgar em uma língua gramática. E
Categorias italianas

foi exatamente a ideia de língua morta, recolhida pela linguística


romântica, que possibilitou o nascimento da moderna ciência
da linguagem. Pois não é o indo-europeu - em cuja reconstrução
culminou o edifício da moderna gramática comparada - nada mais
que a ideia de uma língua morta, necessariamente já sempre pre-
suposta a toda língua, e que, presente no seu ser morta, sustenta o
00
CS

parentesco e a inteligibilidade sistêmica das línguas?


Desse ponto de vista é possível dizer que as primeiras
gerações do Humanismo, que haviam feito a experiência
apaixonada da corrupção e do renascimento do latim, transferiram
ao latim exatamente a experiência de linguagem que tinha sido
originariamente do vulgar. Elas assim experimentavam de modo
radicalmente novo o latim ressurgido, que não era mais a imóvel
língua gramática da Idade Média mas uma língua viva e, por isso
mesmo, corruptível e mortal. Essa nova experiência do latim não
foi recolhida pela prática do Humanismo ciceroniano, mas pela
corrente da filologia humanística que - da Poliziano a Beroaldo,
e a Pio - havia concentrado a sua atenção lexicográfica nas facies
arcaica, e ao mesmo tempo tardia, de uma latinidade que a vitória
das teses de Bembo devia enrijecer num cânone. Na práxis dessa
filologia aparentemente pedante, c o m as suas obsessivas escavações
I
de vocábulos raros e obsoletos, o latim era não uma língua
instrumental (não importa se viva ou morta), mas uma experiência
na qual, como no vulgar dos poetas de amor, estavam em jogo
de modo incessante uma morte e um renascimento. Somente
recuperando toda a complexidade dessa problemática linguística é
possível situar no seu contexto real a língua do Hypnerotomachia.
E é nessa perspectiva que devemos agora olhar para aquela que é
decerto uma das suas intenções mais singulares, qual seja, que o
abandono, no texto, do vulgar do século XIV, em favor de uma
paixão lexical de caráter humanístico, acompanha a recuperação
das instâncias e dos conteúdos que haviam sido atribuídos ao vulgar
pela lírica amorosa.

6. A afinidade entre o caso de amor narrado por Polifilo e


os temas da lírica estilonovista e dantesca foi notada várias vezes.

3. 0 sonho da língua
“Polifilo e Polia” foram vistos “como Dante e Beatriz”, e foi ainda
observado que, sob as vestes da ninfa do século XV, Polia retoma a
função soteriológica e domesticadora da mulher da lírica amorosa,
enquanto Polifilo, por sua vez é “humilhado e treme como os
amantes do dolce stil novo”.m É essa sólida referência à poesia de
amor e à recuperação da figura feminina da lírica estilonovista que

00
CO
nos permite verificar e aprofundar a nossa hipótese sobre Polia. Na
medida em que a singularíssima prática linguística de Polifilo traz
implícita uma reflexão sobre a língua, por detrás da teoria provençal
e estilonovista do amor está, então, uma reflexão tão radical sobre a
palavra poética que apenas a pseudocientificidade de uma tradição
hermenêutica, obstinada por séculos em privilegiar os dados
referenciais em detrimento dos elementos textuais, pode impedir de
dimensionar sua novidade e sua importância.
A inteligência daquilo que, no texto poético, aparecia como
instância de um nome e de uma figura feminina foi removida pelo
gesto aparentemente desatento com o qual Boccaccio, referindo-
se a uma pretensa brincadeira familiar, identificava Beatriz com a
filha de Folco Portinari, mais tarde esposa de Simone de’ Bardi. A
compreensão desse gesto, que para a poesia Irovadoresca já havia
sido cumprido naquelas noveletas germinais que são as vidas e as
razos provençais, somente é possível caso ele seja entendido na sua
estreita solidariedade com aquele com o qual Boccaccio cria a novela
florentina. A experiência amorosa que era, tanto nos provençais
como nos estilonovistas, experiência da absoluta primordialidade
do evento de palavra sobre a vida, do poetado sobre o vivido, inverte-
se então na ideia de que todo poetar é, ao contrário, sempre poetar
um vivido, um colocar em palavras - narrar - um evento biográfico.
Observando-se bem, no entanto, tanto Boccaccio quanto os ignotos
autores das vidas trovadorescas nada mais faziam, na realidade, que
levar às extremas consequências a intenção dos poetas de amor:
construindo uma anedota biográfica para explicar uma poesia,
eles inventavam o vivido a partir do poetado, e não vice-versa. Se a
experiência dantesca da absoluta originariedade da palavra era uma
“vida nova”, assim como no evangelho de João está dito que aquilo
Categorias italianas

que se gera na palavra é vida, então verdadeiramente, num certo


sentido, Beatriz era uma criancinha florentina.
O próprio Bocacio já havia sugerido que a sua indicação
não deveria em caso algum ser lida em um sentido meramente
biográfico-referencial. Respondendo em um soneto à acusação de
ter revelado os mistérios da poesia aos não iniciados, ele escrevia:
oo
4^

Io ho messo in galea senza biscotto


1’ingrato vulgo, et senza alcun piloto
lasciato l’ho in mar a lui non noto,
benché sen creda esser maestro e dotto179,180

Por cinco séculos o ingrato vulgar dos italianistas, repetindo


a historieta de Bice Portinari, continua a vagar sem piloto em um
mar ignoto, acreditando-se mestre e douto. Não será, por isso, por
certo intempestivo revelar o que todo estudioso inteligente explícita
ou implicitamente sempre soube: que Beatriz é o nome da amorosa
experiência do evento de palavra que está em jogo no próprio17980

179 “Pus numa galera sem biscoito / o ingrato vulgar, e sem nenhum piloto /
deixei-o num mar para ele ignoto / ainda que sc acredite mestre e douto” (N.T.).
180 Curtius já chama a atenção dos estudiosos para este texto, no capítulo 17 do seu
Europãische Literatur und lateinischcs Milhiiilltr, Herna, 1948.
texto poético. Nome e amor da língua, portanto, mas da língua
compreendida não como uma língua gramática, mas, no sentido
que se viu, como absoluta demora no princípio da palavra, o surgir
do verso do puro nada (de dreit nien, segundo o incipit do vers de
Guglielmo IX). É exatamente essa absoluta originariedade da palavra
que a constitui como causa e objeto supremo do amor, no próprio
momento em que sanciona sua caducidade e sua perecibilidade.
Nessa perspectiva, a morte de Beatriz, como momento essencial
da experiência dantesca da palavra, e a instância da perdida língua
edênica no primeiro livro do De vulgari Eloquentia, adquirem todo
o seu significado: após ter procurado - em uma práxis poética,
não em uma gramática - conferir estabilidade e duração ao vulgar,
retirando-o da confusão babélica, Dante tinha terminado por
aceitar sem reticências, na Comédia, a irremediável perecibilidade
de toda língua materna, afirmando, pela boca de Adão, que já antes

3. O sonho da língua
da construção da torre a língua edênica estava “toda extinta” 181 (Par.,
XXVI124-129).
No Hypnerotomachia, a exigência de um estatuto primordial,
de uma vetustas edênica da palavra, insere-se não na firme oposição
entre falar materno e língua gramática, mas numa situação na qual
o vulgar está se tornando uma língua gramática e o latim uma

00
LO
língua morta. Por isso a sua língua não é coerentemente definível
nem como língua materna, nem como língua gramática, nem como
língua viva, nem como língua morta, mas é todas essas coisas ao
mesmo tempo. Reduzindo de modo drástico os vários níveis do
bilinguismo a um único plano, ela nos apresenta a língua como um
campo de uma luta e de um contraste entre exigências inconciliáveis.
Essa luta é, no entanto, segundo o modelo da lírica, uma batalha e
uma ãottanza amorosa, um combate de eros [erotomachia] em que
tem lugar, em um recíproco estranhamento, uma incessante troca
de vida e de morte entre vulgar e latim. Se a discórdia era, na lírica
provençal e estilonovista, aquela forma poética em que as diversas
línguas maternas, na sua babélica discórdia, eram chamadas a
testemunhar o amor pela única língua distante, podemos então
dizer que o Hypnerotomachia é um desacordo de tipo novíssimo,

181
‘tutta spenta” (N.T.).
no qual as diversas línguas penetraram-se umas nas outras e
mostram, assim, a íntima discórdia de toda língua consigo mesma,
o bilinguismo implícito em toda palavra humana.
A esta altura, podemos ainda ver em Polia - a língua velha -
simplesmente uma figura do latim? Aqui um primeiro e ulterior
indício nos é oferecido por uma obra que, segundo as análises de Pozzi
e Ciapponi, foi amplamente consultada pelo autor. Nas Etimologias
de Isidoro de Sevilha (IX, I, 6), o pensamento medieval, unindo uma
precoce consciência histórica a uma consideração meta-histórica
dos fatos linguísticos, havia individualizado quatro idades ou quatro
figuras da língua latina. No elenco de Isidoro, a primeira recebe o nome
de Prisca e dela se diz que vetustissimi Italiae sub lano et Saturno sunt
usi, incondita, ut se habent carmina saliorum.1S2 Prisca, a antiga, é o
latim, não como língua do saber mas sim como língua desconhecida da
Idade de Ouro, equivalente à língua pré-babélica da tradição bíblica, da
| qual se diz terem incompreensivelmente sobrevivido os fragmentos dos
1 poemas de Salii, os sacerdotes de Marte. Na experiência dessa recôndita
| dimensão originária da língua, a figura de Polia se atém à prática da
B> filologia humanística chamada pedante. Mas, ao mesmo tempo, por
§ meio de sua intrusão no contexto vulgar, o amor de Polia e Polifilo
pode se tornar figura daquela perfeita autorreferencialidade da língua,
^ pela qual o objeto da amorosa procura do livro coincide com a própria
língua em que o livro é escrito. Essa língua - Polia, a velha - não é,
como vimos, nem o latim nem o vulgar, nem uma língua morta nem
uma língua viva, mas - se o livro é um sonho - uma língua sonhada,
0 sonho de uma língua ignota e novíssima, que existe apenas enquanto
para ela dura a realidade textual. Sonho da língua, em que o genitivo
da tem certamente valor objetivo (no sentido em que aqui é sonhada
uma língua desconhecida), mas também valor subjetivo, caso, como
está dito na dedicatória, o livro tenha sido feito pela própria Polia. (E,
de resto, todo sonho não implica sempre um problema de bilinguismo?
Não é o sonho, sempre, uma dimensão não além das línguas, mas
entre as línguas e que, como tal, precisa de uma interpretação e de uma
DeutungT)182

182 “os mais antigos italianos, sob Jano e Sal u rno, usaram os cantos desordenados
dos Sálios como seus” (N.T.).
Nessa sua perfeita autorreferencialidade, o livro realiza
totalmente - seja apenas por intermédio de seu particularíssimo
bilinguismo - o projeto de uma absoluta demora da palavra
no princípio que os estilonovistas e Dante haviam tentado em
sua poesia. Porém, enquanto Beatriz, a língua de Dante, com o
desaparecimento da sua originária contraposição a uma gramática,
entrou, mesmo se por meio de desentendimentos de todo gênero,
em uma história linguística em cuja fratura ainda nos movemos,
Polia, depois de cinco séculos, jaz ainda incólume e, desse modo,
morta e inextinguível no seu fechado sonho como no momento em
que o autor - quem quer que tenha sido - entregou-a às páginas do
incunábulo. Mas, na verdade, esse sonho, de nenhum modo inatual,
volta a ser sonhado toda vez (e não faltaram as ocasiões na nossa
também recente história literária, das glossolalias e xenoglossias
pascolianas, dos arcaísmos e neologismo de Gadda até as intrusões

3. O sonho da língua
sempre mais frequentes do dialeto no corpo da língua) que, por meio
da restauração do bilinguismo e da discordância implícita em toda
língua, procura-se evocar na sua transparente autorreferencialidade
aquela pura língua que, faltante em toda língua instrumental, torna
possível a palavra dos homens.
O sonho da velha - o sonho da língua - ainda dura. Como

oo
■vj
seria possível, por fim, despertá-la, de que modo poderiamos nós,
os falantes, acordar do sonho da língua e sair de uma vez por todas
da ilusão do bilinguismo - isto é, se fosse possível uma palavra
humana unívoca e radicalmente subtraída a todo bilinguismo -, isso
permanece fora do âmbito desta comunicação, que se mantém nos
limites do tema da conferência, qual seja, a “linguagem do sonho”.
n
'ascol e o
pensamento da voz

a Gianfranco Conlini

1. Foi Gianfranco Contini o primeiro a identificar na poética


de Pascoli, para além de seu artesanato poético em latim, a aspiração
de operar com uma língua morta. Seguindo a ambição de trabalhar
em uma língua inédita, comum a todos os grandes decadentes
europeus (mas que na Itália possui, talvez, uma descendência mais
tenaz), Pascoli teria se colocado diante da linguagem como diante
de uma “reserva de objetos poéticos que foram vivos e aos quais
se restitui a vida”.183 Daí o fato de ele anexar à língua normal as
línguas especiais (“até aquelas especialíssimas que são as sequências
fonéticas dos nomes próprios” );184 daí, também, o recurso obstinado
àquela língua agramatical ou pré-gramatical que é a onomatopéia (a
“presença insuportável dos pássaros”, que tanto aborrecia Pintor).
Seria aqui supérfluo reafirmar a precisão desse diagnóstico.
Observamos, de todo modo, que Contini poderia ter citado um outro

183 G. Contini, II linguaggio ái Pascoli, in Id., Variunli r allra linguística, Einaudi,


Torino, 1970, p. 238.
184 Ibid., p. 237.
texto pascoliano no qual a poética da língua morta é explicitamente
formulada. Numa passagem dos Pensamentos escolásticos [Pensieri
scolastici], polemizando contra a proposta de abolir o ensinamento
do grego nas escolas, ele escreve: “a língua dos poetas é sempre uma
língua morta”, e acrescenta, logo em seguida: “curioso de se dizer:
língua morta que se usa para dar maior vida ao pensamento”.
Tomemos os movimentos dessa última frase para prosseguir
a reflexão sobre a relação entre língua morta e poesia, ou seja, para
interrogar a poesia de Pascoli em uma dimensão na qual não está
mais simplesmente em questão a sua poética, mas o seu ditado: o
ditado da poesia, se indicamos com esse termo (que retomamos
aqui do vocabulário poético medieval, mas que jamais deixou de ser
familiar à nossa tradição poética) a experiência do acontecimento
originário da palavra. A poesia - diz Pascoli - fala em uma língua
morta, mas a língua morta é aquilo que dá vida ao pensamento. O
Categorias italianas

pensamento vive da morte das palavras. Pensar, poetar, significaria,


nessa perspectiva, fazer experiência da morte da palavra, proferir (e
ressuscitar) as palavras mortas. Contini observa que o problema da
morte das palavras angustiava Pascoli tanto quanto aquele da morte
das criaturas. Mas de que modo e em que sentido uma língua morta
pode dar vida ao pensamento? De que modo a poesia cumpre essa
SD
O

experiência das palavras mortas? E o que é - pois é disso que se trata -


uma palavra morta?

2. Em uma passagem do De Trinitate (X, 1,2 ) - que constitu


um dos primeiros lugares em que se apresenta na cultura ocidental
a ideia, hoje para nós familiar, de uma língua morta - Agostinho
conclui uma meditação sobre uma palavra morta, um vocabulum
emortuum. Suponhamos - diz ele - que alguém ouça um sinal
desconhecido, o som de uma palavra cujo significado ignora, por
exemplo, a palavra temetum (um termo obsoleto para vinum).
Certamente, ignorando o que isso quer dizer, desejará sabê-lo.
Mas, para isso, é necessário que ele saiba que o som que ouviu
não é uma voz vazia (inanctn voccm), o mero som te-me-tum, mas
um som significante. De oulro modo, aquele som trissilábico seria
já conhecido plenamente no momenlo em que é percebido pelo
ouvido:
o que mais seria necessário nele procurar para melhor
conhecê-lo, a partir do momento em que todas as suas
letras e a duração de cada som são conhecidas, se não se
soubesse ao mesmo tempo que é um sinal e não nos movesse
o desejo de saber o que significa? Portanto, quanto mais a
palavra é notória, mas sem o ser plenamente, tanto mais a
alma deseja saber aquele resíduo de conhecimento. Se, de
fato, conhecesse somente o existir dessa voz e não soubesse
que ela significa algo, não procuraria mais nada, uma vez
percebido com a sensação, pelo que era possível, o sensível
som. Mas uma vez que já sabe que não apenas há uma voz,
mas também um sinal, quer dele ter perfeito conhecimento.

4. Pascoli e o pensamento da voz


Mas não se conhece perfeitamente nenhum sinal se não se
sabe de quê ele é sinal. Daquele que com ardente zelo procura
saber e, aceso pelo estudo, persevera, pode-se dizer que seja
sem amor? O que ama então? Certamente não é possível
amar algo que não é conhecido. Nem ama essas três sílabas,
que já conhece. Dir-se-á, então, que ama nelas o saber que
significam algo?

Nessa passagem, a experiência da palavra morta se apresenta


como experiência de uma palavra proferida (de uma vox) que não
é mais mero som (istas tres syllabas) mas ainda não é significado,

as
isto é, experiência de um sinal como puro querer-dizer e intenção
de significado, antes e além de todo concreto acontecimento de
significado. Essa experiência de um verbo desconhecido (verbum
incognitum) na terra de ninguém entre som e significado é, para
Agostinho, a experiência amorosa como vontade de saber: à
intenção de significar sem significado corresponde, de fato, não a
compreensão lógica, mas o desejo de saber (qui scire amat incógnita,
non ipsa incógnita, seá ipsum scire amat; isto é, o amor é sempre
desejo de saber). Importante é relevar, entretanto, que o lugar dessa
experiência de amor, que mostra a vox na sua pureza original, é uma
palavra morta, um vocabulum emortuum: temetum.
(Notemos aqui, de passagem, que não é possível compreender
a teoria provençal e estilonovista do amor caso não seja posta
outra vez em questão exatamente essa passagem de Agostinho: o
amor de lonh é, portanto, a aposta de que seja possível um amor
que jamais se transforme em saber, um amare ipsa incógnita, isto é,
uma experiência da palavra - também aqui, e não por acaso, palavra
obscura e rara: cars, bruns e tenhz motz - que jamais se traduz em
experiência lógica de significado.)

3. No século XI, antes ainda da poesia, a lógica medieval


retoma a experiência agostiniana da voz ignota para fundar sobre ela
a dimensão de significado mais universal e originária: aquela do ser.
Na sua objeção ao argumento ontológico de Anselmo, Gaunilone
afirma a possibilidade de uma experiência de pensamento que
não significa ainda e tampouco remete a uma res, mas demora
na “solitária voz” [“sola voce”}. Reformulando o experimento
agostiniano, ele propõe um pensamento que pense

não tanto a própria voz, que é uma coisa de algum modo


verdadeira, isto é, o som das sílabas e das letras, quanto o
Categorias italianas

significado da voz ouvida; não, no entanto, como é pensado


por quem conhece o que frequentemente se significa com
aquela voz, mas sobretudo como é pensado por quem
não lhe conhece o significado e pensa somente segundo
o movimento da alma ao ouvir aquela voz, procurando
representar para si o significado da voz percebida.
ON
(N

Não mais mero som e não ainda significado lógico, esse


“pensamento da voz solitária” (cogitatio secundum vocem solam)
abre ao pensamento uma dimensão inaudita que se sustenta sobre
o puro sopro da voz, sobre a pura vox como insignificante vontade
de significar.

4. Em I Cor., 14, 1-25, Paulo expõe a sua meticulosa crítica da


prática linguística da comunidade cristã de Corinto:

Aquele que fala em glossa [o lalõn glõssê, qui loquitur lingua,


mal interpreta Jerônimo] não fala aos homens, mas a Deus;
de fato, ninguém entende, mas em espírito fala mistérios
[...] quem fala em glossa cdifica a si mesmo, quem profetiza
edifica a igreja [...] agora, irmãos, se eu for até vós falando em
glossa, em que vos ajudaria se nao vos falasse em revelação,
ou em consciência, ou em profecia, ou em doutrina? [...]
Assim também vós se através das glossas oferecésseis um
discurso bastante significante, como se conhecerá aquilo
que é dito? Será como se falásseis ao vento [...] se não
conhecésseis o valor semântico da voz, sereis, para aquele
que fala, um bárbaro e aquele que fala em mim será um
bárbaro [...] por isso quem fala em glossa rogue por poder
interpretar, pois se rogo em glossa o meu espírito roga, mas
o meu intelecto está sem fruto [...]. Irmãos, não vos torneis
criancinhas em relação ao juízo...

De que modo devemos entender o lalein glõssê do texto?

4. Pascoli e o pensamento da voz


Glõssa - como já está bem estabelecido pela hermenêutica neo-
testamentária - significa “palavra estranha à língua de uso, termo
obscuro do qual não se entende o significado”. Esse é o significado
que a palavra possui já em Aristóteles; mas mesmo Quintiliano fala
de glossemata como voces minus usitatae185 que pertencem à lingua
secretior, quam Graeci glõssas vocant.185186A glossolalia não é, portanto,
um puro proferir de sons inarticulados, mas um “falar-em-glossa”,
isto é, em palavras cujo sentido não se conhece, exatamente como o
temetum de Agostinho. Se eu não conheço a dynamis (também esse
um termo gramatical que significa valor semântico) da palavra -

OJ
vo
diz Paulo - serei, com respeito a quem fala, um bárbaro, e aquele
que fala em mim será um bárbaro. A expressão “aquele que fala
em mim” (o lalõn en emoí) coloca um problema que a Vulgata
contorna interpretando en emoí como mihi, por (para) mim [per
me\. Mas o en emoí do texto só pode significar “em mim”, e aquilo
que Paulo entende é perfeitamente claro: se eu pronuncio palavras
cujos significados não entendo, aquele que fala em mim, a voz que as
profere, o princípio mesmo da palavra em mim, será algo de bárbaro,
algo que não sabe falar e tampouco sabe o que diz. Assim, falar-
em-glossa significa fazer experiência, em si mesmo, de uma palavra
bárbara, palavra que não se sabe; experiência de um falar “infantil”
(“irmãos, não vos torneis criancinhas em relação ao juízo”) no qual
o intelecto permanece “sem fruto”.

185 “sons menos usuais” (N.T.).


186 “línguas misteriosas, que os gregos chamam glossas” (N.T.).
5. O que é, para Pascoli, a experiência da língua m
como “língua dos poetas”? É possível encontrar também na sua
poesia uma dimensão de linguagem que, apresentando-se com
as características que acabamos de esboçar para o “pensamento
da voz solitária” e para a glossolalia, tenha o seu lugar entre o
sair do mero som e o acontecimento do significado? E, se assim
fosse, seria possível interpretar de modo novo e, ao mesmo tempo,
reconduzir à unidade tanto a poética da língua morta quanto a
onomatopéia e o fonossimbolismo pascoliano? Diante dos textos de
Pascoli sempre nos sentimos como o “bárbaro” que não conhece a
dynamis das palavras. “Existem palavrinhas que mal se entendem”
e que - não obstante o glossário que fecha (não abre!) os Cantos
de Castelvecchio - não querem, na realidade, ser interpretadas, sair
do puro querer-dizer do falar-em-glossa. Contini já havia notado o
valor puramente fonossilábico de “zillano” em A amorosa jornada
Categorias italianas

[.Vamorosa giornata]; mas a observação poderia ser estendida a


“schilleta”, “sericcia”, “accia”, “gronchio”, “grasce”, “stiglie”, “astile”,
“palestrita”, “stiampa”, “sprillo”, “tarmolo”, “strino”, “legoro”,
“cuccolo”, “guaime” e outras inumeráveis glossas, como também às
xenoglossias de Italy e The Hammerless Gun (disseminadas, estas
últimas, entre as onomatopéias ornitológicas).
4*.
so

Pascoli conta com um leitor que não conheça todas as palavras


que utiliza; como diz o “poeta de língua morta” do homônimo texto
pascoliano, a poesia, como a religião, tem necessidade “das palavras
que velam e por isso obscurecem o seu significado, das palavras,
entendo, estranhas ao uso presente” 187 (e que são empregadas,
entretanto, “para dar mais vida ao pensamento”). Glossolalia e
xenoglossia são a cifra da morte da língua: elas representam a saída
da linguagem da sua dimensão semântica e o seu retornar à esfera
original do puro querer-dizer (não mero som, no entanto, mas sim
linguagem e pensamento da voz solitária). Pensamento e linguagem,
diriamos hoje, dos puros fonemas: pois o que pode significar advertir
uma intenção de significado distinta do mero som e, todavia, ainda
não significante, senão reconhecer os lônemas de uma língua, esses

187 G. Pascoli, Un poeta di Ungim intuiu, in l<L, /V/is/rn c discorsi, Zanichelli,


Bologna, 1907, p. 166.
entes negativos e puramente diferenciais que - é o que nos diz a
linguística moderna - são privados de significado e, entretanto,
tornam possível a significação?
Trata-se, portanto, não propriamente de um fonossimbo-
lismo, mas de uma esfera, por assim dizer, aquém ou além do som,
que não simboliza nada porém indica apenas uma intenção de
significado, isto é, a voz na sua pureza originária; indicação que
não tem o seu lugar no mero som e tampouco no significado, mas,
poderiamos dizer, nos puro grammata, nas puras letras, portanto,
que apontam para aquela “semente negra” da linguagem que, no
Piccolo aratore das Myricae, floresce em um mundo sonoro e

4. Pascoli e o pensamento da voz


vivente; essas mesmas letras que, recolhidas em “mannelle” (outra
glossa!), no Piccolo mietitore, entre os dentes falam “como nós, ou
melhor, de nós”.

6. Também as onomatopéias pascolianas devem ser com­


preendidas de modo análogo: os siccecé, uid, videvitt, scilp,
zisteretetet, trr trr terit, fru, sii sii, aqueles “scricchiolettii”, “ffulli”
e “sgrigiolii” que tumultuam os versos dos Cantos e das Myricae e
que o poeta mesmo assimila, a propósito da língua das andorinhas,
a uma língua morta “que não é mais conhecida”. É costume

vo
cn
caracterizar a onomatopéia como linguagem pré-gramatical ou
agramatical (“essa linguagem - escreve Contini - não tem nada a
ver, enquanto tal, com a gramática” ).188 Na introdução aos Princípios
de fonologia, Trubeckoj, a propósito da imitação vocal dos sons
naturais, escreve: “Se alguém conta uma aventura de caça e, para
tornar vivo o seu relato, imita um grito animal ou qualquer outro
rumor natural, ele deve, nesse ponto, interromper o relato: o som
natural imitado é, então, um corpo estranho que se situa fora do
discurso representativo normal”.
Mas é de fato seguro serem as onomatopéias pascolianas uma
linguagem pré-gramatical? E, antes de mais nada, o que significa
“linguagem pré-gramatical”? Tal linguagem - uma dimensão não
gramatizada da linguagem humana - é de algum modo pelo menos
pensável?

188 Contini, II linguaggio di Pascoli, cit., p. 222.


Os gramáticos antigos começavam pela voz (fõné) a sua
exposição sobre o tema. A voz, enquanto puro som natural, não entra
contudo na gramática. Esta de fato começa com a distinção entre
a “voz confusa” dos animais {fõné synkechyménè ou agrámmatos,
e os latinos traduzem vox illitterata, quae litteris comprehendi non
potest,m que não se pode escrever, como o equorum hinnitus189190 e a
rabies canum191) e a voz humana passível de ser escrita (engrámmatos)
e articulada. Uma classificação mais sutil, de origem estoica,
distingue a voz, entretanto, de maneira mais imprecisa.

Deve-se saber - lê-se na Téknè grammatikê de Dionísio


da Trácia - que, das vozes, algumas são articuladas e
passíveis de ser escritas [engrámmatoi], como as nossas;
outras inarticuladas e não passíveis de ser escritas, como o
crepitar do fogo e o rumor da pedra ou da madeira; outras
inarticuladas e, todavia, passíveis de ser escritas, como as
imitações dos animais irracionais, como o brekekéks e o
koí; tais vozes são inarticuladas porque não sabemos o que
significam, mas são engrámmatoi, pois podemos escrevê-
las...

Debrucemo-nos sobre estas vozes inarticuladas e, no


entanto, “gramatizadas”, sobre esses brekekéks e koí, tão similares
às onomatopéias pascolianas, e perguntemo-nos: o que acontece
à confusa voz animal para se tornar engrámmatos, para ser
compreendida nas letras? Entrando nos grammata, escrevendo-se,
ela se destaca da voz da natureza, inarticulada e não passível de ser
escrita, para mostrar-se, nas letras, como um puro querer-dizer cujo
significado é ignoto (nesse ponto, totalmente similar à glossolalia
e ao vocabulum emortuum de Agostinho). O único critério que
permite distingui-la da voz articulada é, de fato, que “não sabemos
o que significa”. O gramma, a letra, é, portanto, a cifra, em si não
significante, de uma intenção de significado que se cumprirá na
linguagem articulada; o brekekéks, o koí e as outras imitações das

189 “som iletrado, que não pode ser compreendido por loiras” (N.T.).
190 “relincho dos cavalos” (N.T.).
191 “raiva dos cães” (N.T.).
vozes animais colhem a voz da natureza no ponto em que esta, não
tendo ainda se tornado linguagem significante, emerge do mar
interminável do mero som.
Devemos agora olhar para as onomatopéias pascolianas
à luz de tais considerações. Não se trata de meros sons naturais
que simplesmente interrompem o discurso articulado; não há
- nem poderia haver - na poesia pascoliana, como em nenhuma
linguagem humana, presença da voz animal, mas somente um traço
de sua ausência, do seu “morrer” gramatizando-se em uma pura
intenção de significado. Como a “schilletta” de Caprona (nos Cantos
de Castelvecchio), esses sons não pertencem a nada de vivente, são

4. Pascoli e o pensamento da voz


um sino pendurado no pescoço de uma “sombra”, de um animal
morto, e que agora continua a soar nas mãos de uma “criancinha”
que “não fala”. A voz - como na poesia homônima dos Cantos - é
sentida “somente no ponto em que morre ”,192 como um querer-dizer
(“para dizer tantas coisas e outras mais” )193 que, enquanto tal, não
pode dizer e significar nada mais que o “sopro” de um nome próprio
(.Zvani). Nessa perspectiva, a voz morta decerto equivale à língua
morta das andorinhas em Adeus: linguagem, no entanto, não pré-
gramatical, mas sim pura e absolutamente gramatical, no sentido
mais estrito e originário da palavra:/õnê engrámmatos, vox litterata.

^4
VO
7. A letra é, portanto, a dimensão em que glossolalia e
onomatopéia, poética da língua morta e poética da voz morta,
convergem em um único lugar, no qual Pascoli situa a experiência
mais própria do ditado poético: aquela em que ele pode apreender a
língua no instante em que se aprofunda, morrendo, na voz, e a voz no
ponto em que, emergindo do mero som, transpassa (isto é, morre) no
significado. Na poesia de Pascoli, glossolalia e onomatopéia falam de
um mesmo lugar, mesmo se parecem percorrê-lo em dois sentidos
opostos. Daí o caráter exemplar dos versos em que a onomatopéia
extrapola em linguagem articulada, e a linguagem articulada em
onomatopéia:

192 “solo nelpunto che muore” (N.T.).


193 “per dir tante cose i poi tante” (N.T.).
Finch... finché nel cielo volai
V’è di voi chi vide... vide... videvitt
Anch’io anch’io chio chio chio.194

Daí também, na poesia pascoliana, o estatuto particular


do nome próprio (dessa palavra cuja esfera de significado coloca
problemas quase insuperáveis aos linguistas, e sobre a qual
Jakobson diz que não tem propriamente significado, mas que apenas
proporciona o reenvio do código a si mesmo) que, no limite entre
onomatopéia e glossolalia, parece constituir um obscuro ponto de
transpasse entre voz e língua. Se Zvani é o “sopro” da voz “no ponto
em que morre”, em Lapide, por sua vez, o nome próprio inscrito
sobre o túmulo de uma criança é explicitamente definido como “o
pensamento” que o vivente, morrendo, exala na linguagem:

Lascia argentei il cardo al leggiero


Categorias italianas

tuo alito i pappi suoi come


il morente alia morte un pensiero
vago, ultimo: 1’ombra di un nome.195

E, nas séries onomásticas de Gog e Magog, que lembram a


babélica língua do Nembrot dantesco,
o>
00

di Mong, Mosach, Thubal, Aneg, Ageg,


Assur, Pothim, Cephar, Alan, a me!196

a pura língua dos nomes, na qual se inscreveu a voz morta, degrada


e se confunde com a glossolalia das palavras que “velam e inserem
o seu significado”.
A experiência desse “transpasse” - que constitui o lugar do
ditado poético pascoliano - é uma experiência de morte. Com efeito,
somente morrendo na letra a voz animal se destina como puro

194 “Enquan... Enquanto no céu voei / Há dentre vós quem viu... viu... viuvitt /
Também eu também eu bémeu bémcu bénieu” (N.T.).
195 “p)eixe argentado cardo ao ligeiro / leu hálito os papos seus como / o moribundo
à morte um pensamento / vago, último: a sombra de um nome” (N.T.).
196 “de Mong, Mosach, thubal, Aneg, Ageg. / Assur, 1’othim, Cephar, Alan, a
mim!” (N.T.).
querer-dizer à linguagem significante, e somente morrendo a língua
articulada pode retornar ao confuso seio da voz do qual brotou. A
poesia é experiência da letra, mas a letra tem o seu lugar na morte:
morte da voz (onomatopéia) ou morte da língua (glossolalia), ambas
coincidentes nas breves fulgurações das grammata.

8. Nessa dimensão podemos também melhor entender aquela


teoria da criancinha com a qual Pascoli procurou expor a experiência
da poesia nos termos de um ditado (a criancinha “dita dentro”, como
o amor em Dante). Se, diante do texto pascoliano, o leitor sente-se
amiúde como o bárbaro paulino que não conhece a dynamis das
palavras, a pretensão característica da experiência pascoliana do

4. Pascoli e o pensamento da voz


ditado é que também “aquele que fala” no poeta seja um bárbaro, que
fala sem saber aquilo que diz, isto é, que fala proferindo a palavra no
seu estado nascente, como puro querer-dizer e língua dos nomes.
Coerente com esses princípios, o ditado da criancinha é cultivado
preferencialmente em termos de voz (“ele confunde a sua voz com
a nossa [...] se sente uma só batida, um grito e um ganido [...] agudo
toque como de sino [...] dele ouvir a tagarelice” ),197 aparecendo como
“o Adão que primeiramente nomeia”.198 Decisivo, no entanto, é
que nas poesias do Retorno a São Mauro, que concluem os Cantos,
a sua figura se revele como figura sepulcral, perfil sombreado de
um morto que esfumaça e quase se confunde nos traços daquela
outra morta que é a mãe. Todas as poesias do Retorno a São Mauro
iluminam-se de maneira singular caso as leiamos como um diálogo
com a língua morta (a mãe) e com a voz morta (a criancinha), que
assim denunciam a sua secreta unidade. Em Minha mãe, a voz
infantil demora, com efeito, próxima à mãe morta:

Tra i pigolii dei nidi


io vi sentii la voce
mia di fanciullo...199

197 “egli confonde la sua voce con la nostra [...] si sente un palpito solo, uno strillare
e un guaire [...] tinnulo squillo di campanello |...| urdire il chiacchiericcio”
(N.T.).
ííis “1’Adamo che per primo mette i nomi” (N.T.).
199 “Entre os chilreios dos ninhos / eu senti a voz / minha de criancinha...” (N.T.).
e, em Giovannino, a criancinha habita o limite do cemitério e é, então,
claramente equivalente, na sua função poética, à figura materna. E
é essa visão sepulcral que está no centro da poesia em que Pascoli
cultivou no modo para ele supremo a própria experiência do ditado:
A tecedora, que encerra em um diálogo, entre o poeta e a voz, o
terrível evento da palavra poética.
Aqui - no coração do ditado - não se ouve “o som de uma
palavra”, a moldura que prende a tela da língua “não soa [...] mais” e
tudo é apenas “aceno silencioso”. Até que, à interrogação duas vezes
repetidas, “por que não soa?”, a virgem vocal (criancinha e musa,
voz e língua materna) revela a sua irremediável morte:

E piange, e piange - Mio dolce amore,


non t’hanno detto? Non lo sai tu?
Io non son viva che nel tuo cuore.
Categorias italianas

Morta! Si, morta! Se tesso, tesso


per te soltanto...200

Assim, A tecedora diz a verdade que A criancinha ainda


tinha velada: que não há criancinha, que a voz infantil que dita a
poesia é uma voz morta, assim como é uma língua morta a única
que lhe apreende o ditado. (Daí a inadequação das críticas tão
O
o

frequentemente dirigidas ao Criancinha - que teria “confundido a


criancinha natural e a criancinha poesia”: aqui não está apenas em
questão uma “voz da natureza” ou uma poética determinada, mas a
articulação, puramente negativa, entre vivente e linguagem, na qual
voz e língua confundem-se na morte.) Podemos colocar esse traço
pascoliano entre aqueles arraigados com maior profundidade na
fisionomia cultural italiana: a vontade e a consciência de operar em
uma língua morta, ou seja, individual e artificiosamente construída,
glossolálica no sentido antes visto, com ou sem “promessa de
interpretação” [“preghiera di interpretazione”]. Não se pense aqui
somente nos nomes que pela primeira vez vêm à mente entre os

200 “E chora, e chora - Meu doce amor. / nuo le lalaram? não o sabes? / Eu só
sou viva no teu coração. // Morla! Sim, mm Ia! Se leço, teço / para ti apenas...”
(N.T.).
escritores do Novecentos - Gadda e Maganelli, Pasolini, Noventa,
Zanzotto mas também naqueles escritores que operam em uma
área aparentemente diversa: Longhi, por exemplo, cujas “scandelle”,
no ensaio sobre Serodine, dão à frase um sombreado pascoliano. Tal
é a difícil e enigmática relação desse povo com a sua língua materna,
que só pode nela se encontrar caso consiga senti-la morta, e somente
fraturando-a em fragmentos e pedaços anatômicos pode ele amá-la
e fazê-la sua. A morte de Beatriz condiciona - também aqui - toda
a nossa tradição literária, e Laura (a aura [Vaura]) de Petrarca nada
mais é que o sopro da voz - e esse, por fim, apenas “aura morta”.

9. A linguagem humana, para Pascoli, é sempre “linguagem

4. Pascoli e o pensamento da voz


que não mais soa nos lábios dos viventes”,201 no duplo sentido em que
ela é necessariamente uma língua morta ou uma voz morta, mas,
em todo caso, jamais voz viva do homem, palavra de um vivente.
Pascoli - poderiamos dizer - desceu como Fausto ao Reino das Mães,
dessas deusas que custodiam “aquilo que há muito tempo já não
existe”,202 nas quais devemos ver uma figura das línguas maternas,
das matrices linguae de Scaligero; e, como Fausto, descobriu que
elas estão mortas, que ao redor de suas cabeças flutuam apenas
imagens “móveis, mas sem vida”203 (mesmo se é possível, com um
encantamento, animá-las com música e fazê-las cantar). E, com 101
elas, inatingível e morta é também a voz da natureza. (E não é talvez
verdade que toda nossa palavra é “letra morta”, língua morta que
nos é enviada pelos mortos e que jamais pode provir de algo vivo?
Como é possível, então, que essas palavras sem vida tornem-se, de
uma vez, a nossa viva voz e que, por um átimo, no coração do poeta,
as letras mortas cantem e vivam?)
Falar, poetar, pensar agora só pode significar, nesta
perspectiva, fazer experiência da letra como experiência da morte da
própria língua e da própria voz. Isso significa ser “homem de letras”,
tão séria e extrema é para Pascoli a experiência das letras. Pascoli,
“ele que, visto de costas, parecia um fazendeiro”, ele que escreveu

2111 “linguaggio che piü non suona su labbra cli viventi” (N.T.).
202 “ciò che da lungo tempo piü non esistc” (N.T.).
203 “mobili, ma senza vita” (N.T.).
“um número incrível de feias poesias” é, então, na verdade, “o mais
europeu dos nossos poetas de fim de século”.204 Poeta da metafísica
na época de seu ocaso, ele cumpre até o extremo a experiência do
mitologema original dela característico: o mitologema da voz, da
sua morte e da sua memorial conservação na letra.
Por isso mesmo, no ponto em que registramos a coerência e o
rigor da sua lição, devemos, no entanto, também colocar a pergunta
que deve - aqui - permanecer provisoriamente sem resposta: é
possível uma experiência da palavra que não seja, no sentido que foi
visto, experiência da letra? É possível falar, poetar, pensar, além da
letra, além da morte da voz e da morte da língua?
Categorias italianas
to
o

204 Giaime Pintor, 11 sangue d ’Huroi>u, líinaiuli, Turim, l‘)65, p. 57.


ditado i u
U poesia

1 . 0 problema da relação entre poesia e vida ensejou equívocos


tão duros que acabou por cair, com justiça, em descrédito. A sua
legitimidade, entretanto, possui títulos ao menos tão antigos quanto
a própria definição do homem como o “vivente que tem a linguagem”.
A problemática ali anunciada coincide com a dificuldade que
essa fórmula, em aparência trivial, jamais deixou de colocar ao
pensamento. O que significa, para um vivente, falar? A linguagem
é, como parece óbvio, uma criação e uma expressão do vivente
homem, ou, de fato, como até hoje estamos em demasia inclinados
a crer, o contrário? Vida e palavra constituem uma unidade bem
articulada ou, ao invés, permanece aberta entre elas uma diferença
que nem a existência individual nem o desenvolvimento histórico
da humanidade conseguiram por inteiro colmatar?
E nessa área acidentada que primeiro a teologia e, mais tarde,
a psicologia e a biologia criaram seu canteiro de obras. Quando a
crítica literária e a estética enfim chegaram a formular, em relação à
obra de arte, o problema da relação entre vivido e poetado, o terreno
sobre o qual tal problema podería ter sido corretamente colocado já
estava coberto e para sempre alterado.

2. É desse território que seria preciso antes de tudo traçar


uma sumária estratigrafia. Com efeito, trabalhos de escavação na
direção aqui indicada faltam quase que por completo. Aos olhos
do pesquisador, aquele que deveria ser o lugar mais próprio da
obra poética se apresenta, ao contrário, como um vasto campo
semi-submerso no pântano psicológico do qual despontam aqui e
ali impotentes ruínas e torsos teológicos. Sobre esse solo incerto,
e em pouco contato com ele, estão suspensas as finas estacas da
investigação literária. As estruturas da obra literária, que a moderna
ciência do texto começou a trazer à luz, já há alguns decênios, em
última instância não se fundam sobre um terreno diverso. O fecundo
trabalho de análise que tal ciência empreendeu só foi possível em
razão de uma epochê que colocou rigorosamente entre parêntesis
qualquer elemento psicológico e vivido. Aquilo que, desse modo,
vinha em primeiro plano nas pesquisas do formalismo, sem todavia
chegar claramente à consciência era, no entanto, um pressuposto
puramente teológico: a demora do logos na archê, ou seja, o estatuto
absolutamente primordial da linguagem. Essa inquestionada
Categorias italianas

persistência de um fundamento teológico se manifesta no fato de


que a estrutura original da obra poética permanece assinalada
por uma negatividade: a primordialidade do logos torna-se assim
rapidamente um primado do significante e da letra, e a origem se
revela como traço. (Sobre este a fábrica desconstrucionista fixa seu
domicílio).
o

3. No prólogo do Evangelho de João, o cruzamento de vida


(zoe) e palavra (logos) é expresso na fórmula:

Tudo foi gerado por ele [o Logos] e sem ele nada foi gerado
daquilo que foi gerado; nele estava a vida, e a vida era a luz
dos homens.

Ao final do século IV, contudo, quando o texto foi alterado


para combater a heresia ariana, e, depois, por um longo tempo, nos
comentários dos primeiros padres e na versão latina que precede
a Vulgata, ele se apresenta com uma escansão diversa, que altera
sensivelmente seu sentido:

Tudo foi gerado por ele, e sem ele nada foi gerado, e aquilo
que foi gerado nele era vida, e a vida era a luz dos hom ens.
Comentando esse versículo, o gnóstico Tolemeo escreve:
“Tudo foi gerado pelo Logos, mas a vida foi gerada nele. Esta, que
foi gerada nele, é-lhe mais íntima [oikeiõtéra] do que aquilo que
foi gerado por ele; essa vida faz unidade com ele e frutifica através
dele”. No mesmo sentido, Orígenes escreve: “A própria vida se
gera sobrevivendo à palavra [epiginetai tõ lógõ] e, uma vez gerada,
permanece inseparável [achõristos} dela”.
A vida é aquilo que se gera na palavra e nela permanece
inseparável e íntima. Esse nexo ilibado de palavra e vida é a herança
que a teologia cristã transmite a uma literatura que ainda não se
tornou inteiramente profana.

4. A relação vida-linguagem, na tradição teológica que nasce


do prólogo de João, corre em sentido oposto em relação à convenção
que domina o conceito moderno de biografia. Aquela tradição era

5. O ditado da poesia
de tal maneira autorizada, contudo, que não apenas impediu por
longo tempo o constituir-se de um cânone biográfico, em sentido
moderno, como também influenciou, em larga medida, o modo
pelo qual, nas origens da lírica românica, os poetas conceberam sua
relação com o vivido.
A retórica antiga denominava ratio (ou ars) inveniendi

O
LT)
(distinta da ratio iudicandi, que concernia à verdade e à correição
dos discursos pronunciados) a técnica que assegurava ao orador
ou ao poeta o acesso ao lugar da palavra (daí o termo tópica), que
ali encontravam o argumentum de que por vezes precisavam. A
tópica antiga, na medida em que tinha como objetivo, sobretudo, a
necessidade do orador de ter sempre à disposição os “argumentos”
de que devia tratar, com o passar do tempo degenera-se em uma
mnemotécnica que concebia os “lugares” da palavra como imagens
mnemônicas, cuja maestria assegurava ao orador a faculdade de
argumentar seu discurso. Os primeiros germes de uma mutação
dessa concepção pagã da inventio, em consequência do novo estatuto
arquetípico do logos joanino, já estão no De Trinitate de Agostinho,
em que a inventio é interpretada, com uma figura etimológica, como
in id venire quod quaeritur.205Ou seja, o homem encontra a palavra

205
:deparar-se com o que busca” (N.T.).
somente por meio de um appetitus, um desejo amoroso, de modo
que o evento de linguagem se apresenta como um cruzamento
inextricável de amor, palavra e conhecimento: cum itaque se mens
novit et amat, iungitur ei amore verbum eius. Et quoniam amat
notitiam et novit amorem, et verbum in amore et amor in verbo,
et utrumque in amante et dicente (“e enquanto a mente se ama e
conhece, junta-se a ela, através do amor, a sua palavra. E posto que
ama o conhecimento e conhece o amor, a palavra está no amor e
o amor na palavra, e ambas no amante e no falante”, De Trin. IX,
10,15).
No curso do século XII, a tópica e a sua ratio inveniendi foram,
nos passos de Agostinho, interpretadas de maneira radicalmente
nova pelos poetas provençais, advindo dessa reinterpretação a
origem da lírica europeia moderna. A ratio inveniendi torna-se,
para os poetas, razo de trobar, e eles retiram dessa expressão o seu
Categorias italianas

nome (trobador e trobairitz). A nova experiência da palavra aqui em


questão remonta de modo decisivo para além da inventio clássica: os
trovadores não querem recordar argumentos já consignados a um
topos, mas querem sobretudo fazer experiência do evento mesmo da
linguagem como topos original, que tem lugar em uma inextricável
proximidade entre amor, palavra e conhecimento. A razo, que
o
VO

fundamenta a poesia e constitui aquilo que os poetas chamam o


ditado (dictamen), não é desse modo nem um evento biográfico nem
um evento linguístico, mas, por assim dizer, uma zona de indiferença
entre vivido e poetado, um “viver a palavra” enquanto inexaurível
experiência amorosa. Amor é o nome que os trovadores dão a essa
experiência da demora da palavra no princípio, e, portanto, amor é
para eles a razo de trobar por excelência.

5. Entre os séculos XIII e XIV, os menestréis e “escrivães


(como eles se definem nos cancioneiros provençais que compilam)
Uc de Saint Circ e Miquel de la Tor compõem em provençal os
primeiros exemplos de biografia em âmbito românico. Nessas
germinais noveletas (algumas delas serão reencontradas transpostas
no Novellinó), que se referem brevemente à vida dos trovadores e aos
episódios que deram origem a suas poesias, ocorre uma inversão na
relação poesia-vida que definia a experiência poética trovadoresca:
aquilo que, para os trovadores, era um viver a razo - isto é, fazer
experiência do evento de linguagem como amor, como estreita
unidade de vivido e poetado - torna-se agora um arrazoar o vivido,
isto é, colocar em palavras eventos biográficos.
As coisas, todavia, não são assim tão simples. Tome-se a razo
da célebre canção de Bernart de Ventadorn, Quan vei la lauzeta
mover:

E ele [Bernart] foi para perto da duquesa da Normandia,


que era jovem e bem entendida em honra, mérito e belas
palavras. E muito lhe agradaram os versos e as canções de
Bernart, e ela o acolheu com calor junto de si. Demorou
tanto tempo na sua corte e se apaixonou por ela, e ela por
ele, e ele fez muitas belas canções. E a chamava “Alauzeta”
[cotovia], por causa de um cavalheiro que a amava e que

5. O ditado da poesia
ela chamava “Rai” [razão], E um dia o cavalheiro veio para
junto da duquesa e entrou em seu quarto. A mulher, que o
viu, levantou então a barra do seu manto e o levou até o seu
colo, caindo sobre o leito. E Bernart viu tudo, pois uma serva
da dama lhe mostrou tudo discretamente: e por essa razo fez
a canção que diz: Quan vei la lauzeta mover...206

Basta um olhar para a canção de Bernart para de imediato

ov i
dar-se conta de que o autor da razo (que, como mais tarde Boccaccio
fará para a Beatriz de Dante, diz registrar uma brincadeira familiar),
nada mais faz, na realidade, do que levar às últimas consequências
o procedimento trovadoresco: no intento aparente de referir-se
à anedota biográfica que deveria explicar a poesia, ele a inventa
inteiramente (e, na verdade, desajeitadamente) a partir dos primeiros
três versos da canção (Quan vei la lauzeta mover / de joi sos alas
contra-l rai/ que s’oblid’es laissa chazer...).207Ele, portanto, constrói o
vivido a partir do poetado e não vice-versa (como deveria acontecer
segundo o paradigma biográfico com o qual nós, modernos, estamos
acostumados).

206 As inserções na citação são de Giorgio Agambcn (N.T.).


207 “Quando vê a cotovia mover-se / as asas do alegria contra a razão / que se
esquece e se deixa caçar...” (N.T.).
Não é por acaso que as vidas e as razos tenham sido escritas
(como demonstram os italianismos que se espalham pelo léxico)
em ambiente italiano, ou para um público italiano. Isso na medida
em que exatamente ali, segundo um cânone que tem na Vita
nuova e na Comédia os seus momentos tópicos, a vida é concebida
essencialmente como fábula (isto é, fabula segundo o étimo, algo
que tem a ver essencialmente com a palavra, com ofabulari). Aquilo
que, no prólogo de João, era demora inseparável da vida no logos
torna-se agora fábula, comédia, vida-na-palavra (Ficino: “não a vida,
mas a fábula da vida”). Em área românica - é bom não esquecer -
a narrativa (ao menos no sentido da novela) nasce como razo da
lírica. É graças à inenarrável demora da palavra poética in principio
que algo como um vivido pode ser gerado para o narrador. Essa é a
“novela” que ele se limita a exemplificar.

6. Delfini, em 1956, ao acrescentar uma introdução à segunda


edição dos seus contos, escreveu, para II ricordo delia Basca, a mais
longa razo que um poeta jamais havia composto para uma de suas
obras. Como já havia acontecido com as biografias provençais,
porém, também nesse caso a razo arrisca desviar a atenção do leitor.
Ela, com efeito, aponta na direção do vivido do autor, mas de um
vivido que (autêntico ou não) não se esgota em nenhum caso nos
eventos biográficos que o escandem. E isso não porque um futuro
biógrafo não possa eventualmente verificar que, num dia de verão
de certo ano, uma garota de 15 anos, que não falava italiano, tenha
aparecido ao jovem artista nas ruas de Lerici, assim como está isento
de dúvidas o fato de ele ter escrito as Poesie delia fine dei mondo
após ter encontrado em Parma uma senhora a quem é muito fácil
fornecer a identidade. O certo é que em Delfini, como talvez em
nenhum outro escritor do Novecentos, a indeterminação de vivido
e poetado é tão absoluta que vida é verdadeiramente apenas o que
se gera na palavra. Nesse sentido, ele é o herdeiro mais autêntico
da tradição trovadoresca e estilonovista, e toda a sua obra pode ser
vista como uma singular promissória que retorna depois de sete
séculos para a cultura que produziu as biografias provençais.
Por isso, pouco antes de p a r i ir p a r a sua última estada em
Roma, quando entrega sua c a r i a de a m o r a Ugo e Michin Guanda,
confuso por ter em suas mãos um “documento de amor” tão
íntimo, Delfini se apressa em especificar com sobriedade de que
“se tratava, no fim das contas, de uma oferta editorial”. A “escritura
psicológica no espelho”, que, segundo uma genial anotação de
Kafka no penúltimo dos seus cadernos, dá a impressão de que os
homens estejam incessantemente ocupados em consolidar a própria
vida com escrituras e justificações a posteriori, é aqui retificada
com um gesto decidido de mostrar, contra toda leitura psicológica,
que “na realidade o homem erige a sua vida sobre as próprias
justificações”, uma vez que “ninguém aqui cria nada mais do que a
sua possibilidade de vida espiritual”. É sobre esses arquétipos que,
em todo caso, tanto Delfini quanto Kafka construíram suas vidas.
Suas falências biográficas (ou, ao menos, o que nos aparece como tal
na escritura invertida da psicologia) deveriam testemunhar acerca
da autenticidade teológica da escritura (do seu colocar-se na arche),

5. O ditado da poesia
e não esta justificá-las.

7. O pior equívoco em que poderia incorrer o leitor das Poesie


delia fine dei mondo seria, portanto, lê-las como uma transcrição
imediata do vivido de Antonio Delfini (uma “vingança privada”,
como foi sugerido de modo inoportuno). A nota que fecha a
coletânea não deixa dúvidas quanto à colocação in principio dessa

o
escritura, avisando de modo inequívoco ao leitor de que “antes que o
poeta escrevesse não apenas não existia uma realidade, mas a assim
chamada realidade do público não teria sido possível nem mesmo
chegar a ser formulada”. A pretensão de antepor ao texto um vivido
(a “assim chamada vida real”) pertence “àqueles que não sabendo e
não podendo viver [subentenda-se: na palavra], não deixam viver,
pretendendo que oficialmente se diga que vivem”. (São os fantasmas
sinistros dos pequenos nomes obscenos que comparecem tão amiúde
no texto, no qual têm a mesma função que, nas canções provençais,
compete ao lauzengier, ao maledicente).
O mundo e a vida nascem, em Delfini, com a palavra e pela
palavra. Por que, então, o título fala com (amanha clareza de um
“fim do mundo”, como de algo que inconsleslavel mente já aconteceu
(ou que está, de algum modo, acontecendo)? ( ',omo pôde acontecer
que a palavra não esteja mais à altura de gerar a vida e de mantê-
la de si indissociável? E como a palavra da poesia não inaugura
aqui uma vita nova, mas um cataclisma cósmico-poetológico sem
precedentes?
Um dos títulos que figura como variante do autor entre as
notas por ele deixadas, Dio cè, ma il mondo no, indica implicitamente
o quanto Delfine estava consciente das implicações teológicas,
por assim dizer, dessa situação. Não se poderia exprimir de modo
mais drástico a quebra do nexo vida-poesia e logos-cosmos que
caracterizava tanto o prólogo joanino quanto o ditado estilonovista.
No outro título possível, arquivado nas notas, Scene scatenate delia
vita di província, o adjetivo “desencadeada” [“scatenate”] qualifica
uma vida que rompeu o vínculo que a unia à palavra e torna-se
agora unicamente “vida assim chamada real”, que em verdade não
vive mas pode somente “pretender” que se diga que vive.
Categorias italianas

8. A catástrofe que se cumpre nessas poesias é, portanto, nada


menos do que a quebra da razo poética, o romper-se irremediável
do ditado delfiniano. Essa laceração, que abandona a vida à sua
“verdadeira má sorte”, reverbera, entretanto, e de modo imediato,
na própria poesia, tornada agora “má poesia” que, todavia, o poeta
não pode não escrever (“é meu dever escrever a má poesia”,208
o

recita o incipit de um dos poemas-chave da coletânea). Ou seja, o


poeta deve - e é esse, na catástrofe, o evento mais atroz - romper o
próprio ditado: “destacar o teu horrível pensamento da caneta / e do
papel é o que se quer e se descreve”209 - com o que cumpre a tarefa
exatamente contrária daquela que Dante, no Purgatório, pela boca
de Bonagiunta atribuía aos poetas de amor (“as vossas penas / vão
logo atrás de quem dita” ).210 Por isso o poeta se apresenta, no prefácio,
como “um assassino”: ele é condenado a matar sua “senhora”, isto é,
a sua própria vida e a sua própria poesia, a sua vida-poesia (“o único
caminho possível é a morte ” ).211

208 “è mio dovere scrivere la mala poesia” (N.T.).


209 “distaccare il tuo orribile pensicro dalla pena / e dalla carta è quanto qui si
vuole e si descrive” (N.T.).
2,0 “le vostre penne / di retro al diflalor sen va uno sl relte” (N.T.).
211 “1’unica via possibile è la morle” (N.T.).

L
Daí a preliminar inversão da figura feminina, a quem os
poetas de amor entregavam a imagem mais íntegra do seu ditado.
A senhora (a Basca, inscrita na tradição dos senhal estilonovistas e
provençais, entre Beatriz, Giovanna, Miellz de Domna, Dezirada,
Bon Vezi), que levava a cifra da unidade de poetado e vivido, da vida
na língua, agora extraída à força da caneta e da palavra, inverte-se
em vida nua, símbolo horrível e obscuro “da fraude, da traição, do
pecado”.212 Em uma célebre sirvente (que por sua violência verbal
nada tem a invejar das invectivas delfinianas), Arnaut Daniel evoca
a figura de seu próprio ditado como uma mulher (dita w’Ayna) cujo
corpo está quebrado em um ponto (o corn, que com descuido os
filólogos tentam em vão identificar a algum orifício ou ao esfíncter
feminino) do qual, em uma espécie de tempestade alquímica, toda
vida está ameaçada de escapar em forma de segredo viscoso, fétida
fumaça e chorume fervente. Na senhora dos muitos nomes, na

5. O ditado da poesia
“torpe, imunda criatura” ou “infame, sujo fantasma”, a quem são
dedicadas as Poesie delia fine dei mondo, Delfini vê diante de si essa
vida (a vida da mulher e, portanto, também a sua vida) no ato de
separar-se em definitivo da palavra, de tomar irrevogavelmente
distância da poesia para tornar-se “vida real”. Essa despedida, essa
incurável reificação, é o tema das poesias.

9. Compreende-se então porque Delfini, no prefácio em que


as apresenta, define as Poesie delia fine dei mondo como um “anti-
cancioneiro”. Entendida literalmente, essa definição contém uma
indicação preciosa não apenas sobre a tradição literária em que a
coletânea se situa, mas também sobre a experiência poética que nela
se cumpre.
Na Vita nuova, Dante conscientemente joga com o título
da obra, de modo que nela seja impossível decidir de uma vez por
todas entre o vivido e o poetado, entre o livro da memória (no qual
está escrita a rubrica Incipit vita nova) e o libelo, no qual o poeta
transcreve aquilo que o leitor lerá. A rubrica Vita nova delimita um
indecidível entre vivido e poetado. Considere-se, ao contrário, o
título autógrafo do cancioneiro de Pctrarca: Pranceschi Petrarchae

212 “delia frode, dei tradimento, dei peccato" (N.T.).


laureati poetae rerum vulgarium fragmenta2" (no autógrafo de
Chigi:fragmentorum liber). Aqui o autor, recolhendo as poesias na
antologia que estamos habituados a considerar impropriamente
como “a aventura orgânica de uma alma”, com um decidido gesto
apotropaico as distancia do vivido: trata-se apenas de “fragmentos
em língua vulgar”. Não seria possível dizer de modo mais claro
que o universo poético do qual havia nascido o projeto provençal e
estilonovista fora já rompido, e tornara-se para sempre distante (ao
termo fragmenta, que soa tão moderno, deverá ser restituído o seu
sentido original de fragmento, de restos de uma unidade perdida,
como em Isidoro de Sevilha XX, 2, 18-.fragmenta, quia dividitur, ut
fracta).213214 Afastado em definitivo o ditado trovadoresco, a vida está
agora de um lado, e a poesia, de outro, é apenas literatura, luto pela
irremissível morte de Laura.
As Poesie deliafine dei mondo são um anti-cancioneiro porque
Categorias italianas

é justo esse afastamento que Delfini não consegue sob nenhuma


circunstância aceitar. Daí a furiosa guerra que o poeta, com as
suas últimas forças, desencadeia contra a “realidade”, luta que é
em igual medida pela poesia, para impedir que as Poesie delia fine
dei mondo possam se tornar um cancioneiro. Por isso ele mobiliza,
contra a pluri-heterônoma “senhora”, cruel senhal da vida nua, a
<N

cifra luminosa da vida integral: a criança com a rosa inflamada,


filha, naturalmente, de Guido Cavalcanti (que aqui representa com
autoridade a tradição dos poetas de amor).
Tal é a visão apocalíptica (que, como todo apocalipse,
carrega um índice histórico: um dos méritos não secundários da
coletânea é o de ter fixado para sempre a facies infernal dos anos
cinquenta em seu ocaso) evocada pelas Poesie delia fine dei mondo,
e ao mesmo tempo por elas esconjurada com um desprezo atroz:
que a vida saia para sempre da palavra (a contígua escritura da
poesia de vanguarda dos anos sessenta estava prestes a registrá-
lo à sua maneira, não sem inconsciência) e pretenda que se diga
oficialmente que vive. Elas nos apresentam a experiência, talvez
única neste século, de um poeta que não pode aceitar que o seu

213 “Do laureado poeta Francisco IVtrarca Irapinemos de coisas vulgares” (N.T.).
214 “fragmentos, porque se dividem, como cm pedamos" (N.T.).
vivido se torne biografia, que ele exista inexoravelmente fora da
palavra como um fato real.
Por isso a visão mais desumana testemunhada pelo poeta
(“grande foi minha coragem!” )215 seja a de que a “senhora” (isto
é, a sua vida) esteja a observá-lo “enquanto [ele] morre ”.216 Aqui,
como em certos rasgos imprevistos no tecido da Basca, desenha-
se incerta, febril e como decaída, a figura de uma experiência do
ditado poético que jaz além tanto do cânone joanino e estilonovista
quanto daquele de Petrarca, e cuja fruição está reservada às gerações
poéticas futuras.

5. 0 ditado da poesia
CO

215 “grande è stato il mio coraggio!” (N.T.).


216
“mentre [egli] muore” (N.T.).
Desapropriada
maneira

1. No momento de sua morte, em 22 de janeiro de 1990,


Giorgio Caproni preparava uma coletânea de poesias a respeito da
qual havia antecipado, em várias ocasiões, em público ou em privado,
o título e o conteúdo temático, bem como o nexo com a coletânea
anterior. Terminada a versão definitiva do poema Res amissa (pouco
antes de 2 de janeiro de 1987,217 isso se não naquele dia mesmo), ele
anotava no manuscrito:

Este poema será o tema do meu novo livro (se é que


conseguirei compô-lo), seguido de variações, como no
Conte di K. o tema é a Besta (o mal) nas suas várias formas e
metamorfoses. Todos recebemos como doação algo precioso
que em seguida perdemos irrevogavelmente. (A Besta é o
Mal. A res amissa [a coisa perdida] é o Bem).

Entretanto, ainda no primeiro rascunho do poema (não


datado, mas com certeza posterior aos, ou coetâneo dos, primeiros
dias de novembro de 1986, data da estada de Caproni em Colônia,

217 Data da carta a Gianni D’Elia, diretor de “l.in|\ii.i", <|uc ;u ompanha a expedição
da quarta e definitiva versão do poema.
durante a qual acontece o episódio que dá ensejo à poesia), uma
outra anotação, a princípio datilografada e a seguir nervosamente
continuada à caneta, recita: “Todos (sem recordar de quem) /
recebemos um dom precioso / e o guardamos tão ciosamente que
não lembramos mais onde e, por fim, de que dom se trata Res amissa
O contrário do Conde Centro a perda”.218
Mais tarde, na entrevista a Domenico Astengo (Corriere dei
Ticino, 11/2/1989), Caproni confirmava:

Um pequeno poema, Generalizzando, que, com efeito,


generalizando, gostaria que fosse um pouco a didascália, ou
a concentração, de um livro em que estou pensando e ao qual
gostaria de dar o título, caso consiga compô-lo, Res amissa.
A ideia me veio de um fato muito banal, mas que seria muito
longo expor aqui. Pode acontecer a qualquer um guardar
tão ciosamente uma coisa preciosa a ponto de depois perder
a memória não apenas do lugar onde foi colocada, mas
também da natureza precisa de tal objeto. É um tema, na
sua aparente elementaridade, muito ambicioso, disso estou
convencido, em especial pelas “variações” que pode gerar.
Seria, dessa vez, não mais a caça à Besta, como no Conte di
Kevenhüller, mas a caça ao Bem perdido. Um Bem de todo
deixado ad libitum do leitor, talvez identificável, por um
crente, com a Graça, visto que existe uma “Graça amissível”.
Com a Graça ou com algo qualquer do gênero. (De todo
modo, este último não é o meu caso, creio.)

A sugestão, para Caproni, de uma variação tão “ambiciosa”


(como testemunha uma anotação em um dos folhetos do manuscrito),
pode ter sido dada apenas pelo verbete de um dos dicionários de
que ele habitualmente se servia, o Palazzi: “Palazzi Amissível (do
latim amittere) que se pode perder: graça amissível”. Tanto mais
surpreendente é a velocidade com que esse lacônico lema bastou
para introduzir a reformulação de um dos mais árduos problemas
teológicos e éticos (mas quem leve nas mãos um dos exemplares

218 “Tutti (senza ricordare da chi) / riecviamo mi dono prc/.ioso / e lo riponiamo


cosi gelosamente da non ricordare pin dove. <\ pcrlino di qual dono si tratti Res
amissa II contrario dei Conte Ccnlm l.i pmlii.i" ( N.T.).
da Comédia pertencentes a Caproni, repletos de marginalia e
gastos pela assídua frequentação, não terá dificuldade de imaginar
quanta teologia poderia ser neles veiculada, sem prejuízo de
leituras ulteriores). Com efeito, o tema da amissibilidade da Graça
encontra-se pela primeira vez precisamente em um autor caro a
Caproni: Agostinho, quando da disputa que o opõe a Pelágio, no De
natura et gratia.21920É notória a posição de Pelágio, uma das figuras
mais íntegras entre aquelas que a ortodoxia dogmática relegou às
margens da tradição cristã: à natureza humana é inerente, de modo
inseparável (e é a propósito disso que Agostinho cunha o adjetivo
inamissível),2Z0 a possibilidade de não pecar (impeccantia), e não há
necessidade, por isso, da intervenção de uma graça ulterior, pois
a natureza humana é ela mesma obra imediata da graça divina.

6. Desapropriada maneira
Com a sua costumeira acuidade, Agostinho intui as consequências
últimas dessa doutrina e diante dela retrocede, amedrontado: a
impossibilidade de distinguir entre a natureza humana e uma
graça tornada inamissível e, portanto, a ruína da própria noção de
pecado. Por isso a Igreja constantemente condenou o pelagianismo
e sustentou, contra todas as correntes extremistas, e em favor da
necessidade da intervenção da Graça, o seu caráter essencialmente
“amissível”, isto é, a sua perda por meio do pecado (Concilio de

vi
Trento, sessão VI, c. XV: “Se alguém afirma que o homem, uma
vez que tenha sido justificado, não pode mais pecar, nem perder a
Graça... anátema”).
A tese de Caproni é uma espécie de pelagianismo levado ao
extremo: a Graça é um dom infundido de modo tão profundo na
natureza humana que permanece sempre incognoscível, é sempre já
res amissa, sempre já inapropriável. Inamissível porque desde sempre
perdido, e perdido por força de ser - como a vida, como, portanto,
uma natureza - demasiado e intimamente possuído, demasiado e

219 É o mesmo tema que Kafka discute, nos anos da grande guerra, com o amigo
Felix Weltsch, autor de um livro sobre Gnadc und Vrciheit (Graça e liberdade):
“Quem era Pelágio? Sobre o pelagianismo já li muita coisa, mas não me lembro
de nada” (carta de Kafka a Weltsch, de dezembro de 1917).
220 “Quamquam inseparabilem habere possibilil.ilem id est, ut ita dicam,
inamissibilem” [“Apesar de ter inseparável a p o ssib ilid a d e , ou seja, como direi,
inamissível”]. (De natura et gratia, I.I, 59).
“ciosamente” (irrecuperavelmente) guardado. Por isso, explicando
a Domenico Astengo o sentido do “espinho da nostalgia” na poesia
Generalizzando, Caproni especificava: “o conteúdo ou objeto de tal
nostalgia é a própria nostalgia”. O bem que aqui é dado não é, de
fato, algo que tenha sido conhecido e depois esquecido (o depois
de Generalizzando não remete a uma cronologia, mas é puramente
lógico); ao contrário, o dom recebido é desde o início e para sempre
incognoscível. O dele [ne\ anafórico que abre Res amissa (“Dele
não encontro traço” )221 permanece para sempre privado do termo
anaforizado, que apenas poderia fornecer-lhe seu valor denotativo.
Ao identificar drasticamente, na figura da res amissa, graça
e natureza, Caproni, com um gesto característico, torna caducas as
distinções categoriais sobre as quais se fundam a teologia e a ética
ocidentais - ou, antes, complica-as e as desloca para uma dimensão
em que seu sentido muda de modo radical. Seria possível repetir,
Categorias italianas

para Caproni, a boutade com a qual Benjamin definia a própria


relação com a teologia, comparando-a àquela entre o mata-borrão
e a tinta: por certo o papel está de todo impregnado desta, mas,
se dependesse dele, da tinta não restaria nem mesmo uma gota. A
fórmula “teologia negativa” (contra cujo abuso o poeta mesmo se
protege), portanto, não é aqui nem útil nem adequada: antes, será
00

preciso notar como em Caproni chega ao seu êxito extremo - ao seu


colapso: será preciso notar como em Caproni a tradição da ateologia
poética (Caproni diz também “patoteologia) da modernidade chega
ao seu êxito supremo - ao seu colapso. Dessa tradição (admitindo-se
que se possa falar em uma tradição), a poesia de Caproni representa
algo como uma estação de Astápovo: um ponto de parada casual,
mas na verdade sem retorno, de uma viagem direta para lugar
algum, ainda que em fuga para além de toda figura familiar do
humano e do divino.

2. Da ateologia poética da modernidade pode-se indicar, com


boa aproximação, a data de nascimento: é o dia, na aurora do século
XIX, em que Hõlderlin corrige os últimos dois versos do poema
Dichterberuf ÇVòcação de poeta), cuja primeira versão rezava:

221
[Non ne trovo traccia” (N.T.).
Und keiner Würden brauchts, und keiner
Waffen, Solange der Gott nicht fehlet.
E [o poeta] não precisa de nenhuma dignidade, de nenhuma
arma, porquanto o Deus não falta.
Hõlderlin retifica:
Und keiner Waffen brauchts, und keiner
Listen, so lange, bis Gottes Fehl hilft.222
E não precisa de nenhuma arma, de nenhuma
astúcia, porquanto a falta de Deus ajuda.

O que aqui tem início (sem remeter, em sentido próprio, a


nenhuma tradição, mas, por assim dizer, ricocheteando de poeta
em poeta) não é uma nova teologia, ainda que negativa (que define

6. Desapropriada maneira
o ser puro retirando todas as propriedades reais e as essências),
tampouco uma cristologia ateia (como em certa teologia social
contemporânea), mas um arruinar sonambúlico de divino e
humano rumo a uma zona incerta e sem sujeito, achatada sobre o
transcendental, e que não pode ser definida de outra maneira senão
a partir do eufemismo hõlderliniano: “traição de espécie sagrada”
(“de tal modo”, lê-se na Nota à tradução do Êdipo de Sófocles, “o
homem esquece de si e do deus e procede, mas de modo sagrado,
como um traidor. No limite extremo do sofrimento não subsiste
nada além das condições do espaço e do tempo”). Pois o que é
próprio da ateologia poética, em relação a toda teologia negativa,
é a singular coincidência de niilismo e prática poética, por meio da
qual a poesia se transforma no laboratório em que todas as figuras
conhecidas são desarticuladas para dar lugar a novas criaturas para-
humanas ou subdivinas: o semideus hõlderliniano, a marionete
de Kleist, o Dionísio nietzschiano, o anjo e a boneca em Rilke, o
Odradek kafkiano, até a “cabeça de medusa” e o “autômato” de
Celan e o “traço de madrepérola do caracol” de Montale. (Nesse
sentido, a ateologia era já começada quando a lírica provençal e
estilonovista tinha feito da poesia a estância em que uma absoluta
experiência de desubjetivação e de desindividuaçüo acompanhava

F. Hõlderlin, Sãmtliche Werke, ed. de F. Heissiu-r. Siuli^ui, llFi3, v. II, p. 388.


pari passu a germinação cerimonial de figuras delirantes: a mulher-
anjo e os espíritos de amor dos estilonovistas, e os corpos parciais
dos trovadores, tudo sob a insígnia da equação paradoxal: poesia =
corpo feminino.)
Todas as figuras da ateologia chegam, em Caproni, à
sua despedida. A despedida é de fato a hora tópica do segundo
Caproni (compreendendo como segunda a estação já anunciada
pelo Congedo dei viaggiatore cerimonioso, 1965); mas enquanto a
infidelidade hõlderliniana zelava precisamente para que “a memória
dos celestes não terminasse”, aqui domina uma sóbria e lígure
“decisão de menosprezo”, na qual também o pathos ateológico é em
definitivo colocado de lado e a memória dos divinos e dos humanos
se eclipsa, abrindo campo para uma paisagem agora de todo vazia
de figuras. Por isso Caproni conseguiu, talvez mais do que qualquer
outro poeta contemporâneo, exprimir sem sombra de nostalgia ou
Categorias italianas

de niilismo o ethos e, quase, a Stimmung da “solidão sem Deus” de


que fala o lnserto do Franco cacciatore (“Irrespirável para a maioria.
Dura e incolor como um quartzo. Negra e transparente [e cortante]
como a obsidiana. A alegria que ela pode dar é indizível. É o ádito -
rompida de toda esperança - a todas as liberdades possíveis. Incluída
aquela [a serpente que morde sua cauda] de crer em Deus, mesmo
to
o

sabendo - definitivamente - que Deus não há e não existe” ).223 Mas


à “cerimônia” infinita da despedida, que já tinha se completado no
Franco cacciatore e no Conte (e será então de fato possível, como foi
agudamente observado,224 ler no Rifiuto delVinvitato algo como uma
Última Ceia de toda imemorável), agora se insinua um despedir-se
da própria despedida, para adentrar em regiões onde desde sempre
demora a mais extrema desapropriação entre o homem e Deus.
Nesse sentido, é decisivo que tanto o Conte quanto Res amissa
tenham no seu centro uma figura da impropriedade. A Besta do

223 “Irrespirabile per i piü. Dura e incolore come un quarzo. Nera e transparente
[e tagliente] come 1’ossidiana. I 'allegria eh essa può dare è indicibile. È 1’adito -
troncata netta ogni speranza a lutie Ic liberta possibili. Compresa quella [la
serpe che si morde la coda) di crederc iu I >io, pur sapendo - definitivamente -
cheD ionon c è e n o n esiste” (N.T.).
224 Por F. Milana, Invoca il non iiivocnliilc, em "A/ione sociale”, n. 5, 1990.
Conte é, por excelência, algo que com efeito não pertence a ninguém
0a. fera bestia é, na exemplificação jurídica, o tipo mesmo da res
nullius), enquanto o bem que está em questão na última coletânea
é uma res amissa, não no sentido da res derelicta (que, segundo
os juristas romanos, torna-se outra vez objeto de propriedade
no instante em que alguém a recolhe), mas no modo de algo que
permanece para sempre inapropriável. E na medida em que a Besta
do Conte não era tanto uma alegoria do mal (de modo igualmente
legítimo seria possível nela vislumbrar, segundo uma equivalência
tipicamente caproniána, uma cifra da vida e da linguagem), quanto
da sua radical impropriedade, resulta que o único e verdadeiro mal
não era, no fundo, outro que a implacável e ao mesmo tempo vã
tentativa humana de capturá-la e fazê-la própria, de tal modo que a

6. Desapropriada maneira
res amissa não é senão a inapropriabilidade e a infigurabilidade do
bem (seja isso, por sua vez, natureza ou graça, vida ou linguagem -
ou, como se lê no primeiro esboço do poema, a liberdade). A Besta
e a res amissa não são portanto duas coisas, mas as duas faces
de uma mesma desapropriação do único dom - ou, antes, a res
amissa é apenas a Besta tornada definitivamente inapropriável, a
despedida de toda caça e de toda vontade de apreensão (segundo
uma indicação comum também ao último Betocchi: “O mal e o

N>
bem são dois espelhos / da mesma ilusão: que é aquela / de viver
donos do ser próprio...” ).225 Nesse sentido, será preciso entender a
estreita correspondência que Caproni intui entre as duas últimas
coletâneas: juntas, elas constituem as tábuas de um díptico no qual
se compendia o prefácio do novo ethos, isto é, da nova morada dos
“desabitantes” da Terra.

3. Por que nos importa a poesia? O modo como se configuram


as respostas a essa interrogação dá a medida da sua absoluta não
trivialidade, visto que o âmbito dos que a ela respondem se reparte
exatamente entre aqueles que afirmam a importância da poesia
apenas com a condição de confundi-la por inteiro com a vida,
e aqueles para os quais sua importância é, ao contrário, função

225 “II male e il bene sono due specchi / delia .stcss.i illusioni': i br è quella / di viver
padroni dellessere proprio... ” (N.T.).
exclusiva do fato de dela isolar-se. Ambos os campos desmentem
assim seu intento aparente: os primeiros porque sacrificam a poesia
à vida em que a resolvem; os segundos porque sancionam, em
última análise, a sua impotência em relação à vida. Tão vazios como
o romantismo e o estetismo, que confundem poesia e vida em todos
os pontos, são o classicismo olímpico e o laicismo, que, mantendo-
as divididas em todos os pontos, destinam a humanidade a deixar
como legado um patrimônio sacrossanto, mas inútil, justamente
em razão da exigência [istanza] que em toda ordem deveria resultar
decisiva.
Contra essas duas posições está aquela que é atestada pela
experiência do poeta: a afirmação de que poesia e vida, mesmo
no caso de elas divergirem infinitamente no plano da biografia e
da psicologia do indivíduo, voltam a confundir-se sem resíduos
no ponto de sua desubjetivação recíproca. E elas - nesse ponto -
Categorias italianas

se unem não imediatamente, mas em um meio [medio], Esse meio


[medio] é a língua. Poeta é aquele que na palavra gera a vida. A vida,
que o poeta gera na palavra, é subtraída tanto ao vivido do indivíduo
psicossomático quanto à indecidibilidade biológica do gênero.
Nas origens da poesia italiana, essa unidade de vivido e
poetado, no meio [medio] da língua, num ponto singular mas sem
to
to

sujeito, foi enunciada como tarefa própria do poeta no terceto em


que Dante define o Estilonovo:

Ed io a lui: ‘T mi son un che, quando


Amor mi spira, noto, e a quel modo
Ch’e’ ditta dentro vo significando.226

O eu do poeta é desde o início desubjetivado em um genérico


um, e é esse um (algo mais - ou menos - do que o “exemplar universal”
de que fala Contini) que, no ditado de amor, faz a experiência da
indissolúvel unidade de vivido e poetado. A unidade de poesia e
vida não tem, neste nível, caráter metafórico: ao contrário, a poesia
nos importa porque o indivíduo singular, que no meio [medio] da

226 “E eu a ele: ‘Eu sou um que, quando / Amor mc inspira, noto, e daquele m odo/
Quele me dita vou significando’" (N.T.).
língua experimenta tal unidade, cumpre, no âmbito de sua história
natural, uma mutação antropológica a seu modo tão decisiva quanto
foi, para o primata, a liberação da mão na posição ereta, ou, para o
réptil, a transformação dos membros que o converteu em pássaro.
Tome-se o lendário ciclo dos Versi livornesi para Annina
Picchi no Seme dei piangere\ quem quer que não esteja de todo
surdo para os problemas da tradição poética ficará surpreso
diante desse inaudito ressurgimento da cançoneta siciliana e
da balada cavalcantiana, para celebrar a “esplêndida invenção”
(Mengaldo) de uma relação de amor com a mãe-jovenzinha. Mas
não se compreende a tarefa poética aqui realizada enquanto tais
versos forem vistos desde a perspectiva psicológica e biográfica
da sublimação incestuosa da relação mãe-filho; isto é, caso não se

6. Desapropriada maneira
compreenda a mutação antropológica que neles se cumpre. Isso
porque não há aqui nenhuma figura da memória e tampouco o
amor de lonh, mas o amor, em uma sorte de xamanismo temporal
(e não simplesmente espacial, como nos estilonovistas), encontra
pela primeira vez o seu objeto em um outro tempo. Por isso não
pode haver traço de incesto: a mãe é de fato moça, “uma ciclista”,
e o poeta “enamorado” literalmente a ama à primeira vista. Nesse
sentido, o homem de Caproni pertence a um outro phylon com

cs
CO
respeito ao homem do Édipo: saltando de uma vez as lúgubres
ordens cronológicas da estirpe, o édito dos Versi livornesi sanciona
o fim do Édipo e da família incestuosa; e quem, diante dele, ainda
se obstinasse a falar em termos de incesto e de psicologia, faria
o papel exemplar do crítico que se perdeu no beco sem saída de
um trilho morto da antropologia poética. Daí a terrível reunião
das duas figuras ad portam inferi, quando a jovenzinha volta a
confundir-se com a mãe edípica e procura em vão as chaves e o
anel que não pode possuir. O limiar infernal aqui não assinala
tanto a passagem entre o reino dos vivos e o dos mortos, quanto,
na viva fornalha da fantasia poética, o ponto de fusão em que
transitam, uma contra a outra, as duas forças que se enfrentam: a
morte de Annina Picchi, assim como a de Beatriz, não é a morte
de um indivíduo, mas o gigantesco choque entre dois mundos
inconciliáveis.
Não “poemas familiares”,227 portanto, mas muito mais, como
no poema ao filho Attilio Mauro, no Muro delia terra, inversão
temporal e troca filogenética nas quais as hierarquias familiares
tornam-se irreconhecíveis. Caproni, em outras palavras, conseguiu
realizar aquilo que Pascoli talvez tenha tentado, mas não pode
fazer: confundir e transfigurar eroticamente os muros da domus
e da família para nelas encontrar as criaturas que aí moravam,
integralmente renascidas para si mesmas e para os outros. Por isso
não será inútil confrontar a jovenzinha dos Versi livornesi com a
Tessitrice de Pascoli. Assim como Cavalcanti e os estilonovistas (no
limiar epocal de uma mutação antropológica que havia deslocado
pela primeira vez a sexualidade para além dos confins da reprodução
da espécie) haviam animado em uma figura viva, por meio de seus
“spiritelli”, a separada imagem siciliana da mulher pintada na mente,
do mesmo modo a muda pantomima da recordação, que aprisiona
Categorias italianas

a “virgem” pascoliana, é solta por Caproni no gesto hilário da


bordadeira e na viva corrida sonora da ciclista. A transfiguração da
família edípica, falida em São Mauro, consegue cumprir-se de modo
feliz, em Livorno, no experimento caproniano, em que a valência
da “antropologia progressiva”, que Schlegel e os românticos de Jena
atribuíam à poesia, mostra toda sua verdade. (Por uma coincidência
N>
4^

singular, que aqui se registra apenas a título de curiosidade, Caproni


é também o nome do médico que, em Barga, assiste o moribundo
Pascoli.)

4. Às mutações antropológicas correspondem, na língua,


mutações poetológicas. Essas são tanto mais difíceis de registrar à
medida que não representam simplesmente evoluções estilísticas
ou retóricas, mas colocam em questão as próprias fronteiras entre
as línguas. O linguista Ernst Lewy, que foi professor de Benjamin
em Berlim, publicou, em 1913, uma breve monografia com o título
Zur Sprache des alten Goethe. Ein Versuch über die Sprache des
Einzelnen (Sobre a língua do velho Goethe. Ensaio sobre a língua
do indivíduo). Lewy havia observado, como já muitos antes dele, a

227 Segundo a feliz fórmula do Cosare Gurholi cm Pascoli, Poesie famigliari,


edição de C. Garboli, Milano, llW>.
evidente transformação da língua goethiana nas últimas obras; mas,
enquanto os críticos obviamente a tinham registrado em termos
de estilemas intralinguísticos e de artifícios senis, ele, glotologista
experiente e especialista nas línguas uralo-altaicas, nota que, no uso
do velho Goethe, o alemão evoluía da morfologia própria das línguas
indo-europeias para formas próprias das línguas aglutinantes,
como o turco, por exemplo. Entre essas mutações, ele elencava: 1) a
propensão para o uso de compostos adjetivais bastante inusitados; 2 )
a prevalência da frase nominal; 3) a tendência à supressão do artigo.
Conhecemos apenas um outro exemplo de uma análise desse
tipo em relação à obra de um escritor: o “breve guia” de Contini às
Paginette de Pizzuto.228 Na obstinada elipse do verbo, naquela “sua
espécie de ablativos absolutos”, nas concordâncias deslocadas ou

6. Desapropriada maneira
alternadas (mais bem imagináveis numa língua com flexão de casos),
Contini reconhece uma tendência da língua de Pizzuto não apenas
em direção ao indo-europeu arcaico, com o seu estilo nominal, mas
também “para além das fronteiras reconhecidas no indo-europeu”,
em direção às línguas monossilábicas (o chinês, por exemplo).
Não é nada surpreendente que o ensaio de Lewy tenha
suscitado o entusiasmo de Benjamin. Porque a língua do indivíduo
torna-se aqui o lugar de uma mutação experimental e de um

<N
LD
deslocamento que atesta aquela “pura língua” (Dante falava, em
sentido não demasiado distinto, de um “vulgar ilustre”) que,
segundo Benjamin, está entre as línguas naturais sem coincidir com
nenhuma delas (e cuja sede própria ele indicava na tradução).
Tensões e extremismos do gênero, não raro encontrados na
obra dos artistas velhos (basta pensar, para a pintura, no Michelangelo
ou no Tiziano tardios), são com frequência catalogadas pelos críticos
como maneirismos. Já os gramáticos alexandrinos observavam que
o estilo de Platão, tão límpido nos diálogos juvenis, torna-se, nos
últimos, obscuro, afetado e demasiado paratático; e considerações
semelhantes (ainda que aqui amiúde se fale menos de senilidade
quanto de loucura) foram feitas e podem ser feitas para o Hólderlin
de depois das traduções de Sófocles, dividido enlre a técnica áspera

19 Agora reeditado em G. Contini, Variiwli c ulim linyjiisliai, Torino, 1970,


p. 621-625.
dos hinos e a doçura estereotipada das poesias assinadas com o
heterônimo Scardanelli. De maneira análoga, nos últimos romances
de Melville (pensemos em Pierre, or the Ambiguities ou em The
Confiáence-Man), maneirismos e divagações proliferam a ponto
de quebrar a própria forma do romance, deportando-a para outros
gêneros menos legíveis (o tratado filosófico ou a coletânea erudita).
A caracterização em termos de “maneira” aproxima-se da
verdade, isso na medida em que verifica o caráter irresolúvel do
fenômeno em um procedimento de evolução estilística. Aqui, de
todo modo, será conveniente inverter ou abandonar a costumeira
relação hierárquica entre estilo e maneira, e ler de outro modo a
sua conexão. Esses conceitos nomeiam duas realidades correlatas,
mas irredutíveis: se o estilo assinala, para o artista, seu traço mais
próprio, a maneira registra um processo inverso de desapropriação
e de não-pertencimento. Ê como se o poeta velho, que encontrou
Categorias italianas

seu estilo e, neste, atingiu a perfeição, agora o deixasse de lado para


ostentar a pretensão singular de caracterizar-se apenas por meio de
uma impropriedade. Nos âmbitos nos quais o conceito de maneira
foi definido com maior rigor (a história da arte e a psiquiatria),
ele designa, de fato, um processo polar: é, ao mesmo tempo, uma
exagerada adesão a um uso ou a um modelo (estereotipia, repetição)
e um absoluto excesso em relação a eles (extravagância, unicidade).
<
\0
N

Assim, na história da arte, o maneirismo “pressupõe o conhecimento


de um estilo ao qual se crê aderir, mas que, ao contrário, procura-se
inconscientemente evitar” (Pinder) e, para os psiquiatras, o modo
de ser do maneirista comporta “a impropriedade no sentido de
não ser si mesmo” e, em concomitância, a vontade de ganhar, com
isso, um terreno e um status próprios (Binswanger). Observações
análogas poderiam ser feitas no que diz respeito à relação do escritor
com a sua língua: e é oportuno não esquecer que uma corrente não
secundária da literatura italiana (valha por todos o nome de Gadda)
se caracteriza, por assim dizer, exatamente pela distância tomada
em relação à língua, por meio de uma excessiva e maneirada adesão
a ela (como se o escritor se eximisse da língua em que escreve por
nela mergulhar em demasia).
Somente na sua recíproca relação estilo e maneira adquirem
o seu verdadeiro sentido para além do próprio e do impróprio. Eles
são os dois polos em cuja tensão vive o livre gesto do escritor: o estilo
é uma apropriação desapropriante (uma negligência sublime, um
esquecer-se no próprio), a maneira uma desapropriação apropriante
(um pressentir-se ou um recordar-se no impróprio). E não apenas
no poeta velho, mas em todo grande escritor (Shakespeare!) há
sempre uma maneira que toma distância do estilo, um estilo que se
desapropria em maneira. No seu fastígio extremo, aliás, a escritura
consiste exatamente no intervalo - ou ainda, no ágio - entre eles.
Isso, talvez, em qualquer âmbito, mas com certeza na língua, na
qual todo uso é um gesto polar: de uma parte apropriação e hábito,
da outra expropriação e não-identidade. E usar (daqui a amplidão
semântica do termo, que tanto quer dizer servir-se de quanto estar
habituado) significa um oscilar perpétuo entre uma pátria e um

6. Desapropriada maneira
exílio: habitar.

5. Acerca dessa divaricação, a última poesia de Caproni


é, porventura, o testemunho mais exemplar. Em primeiro lugar
porque nela se encontram ao menos dois traços observados por
Lewy e por Contini: a tendência para compostos adjetivais anômalos
(apenas na poesia Res amissa: brancoflautado, flautasumida) e o
estilo nominal (o caso extremo é Invenzioni: sete frases sem verbo,

to
oi
em oito), e também porque possibilita, nesse sentido, justificar a
boutade de Pasolini (repetida por brincadeira pelo poeta) segundo
a qual Caproni não fala italiano, mas uma outra língua, o capronês.
O essencial, entretanto, é que tal maneira transgressiva é exercida
sobretudo no elemento que caracteriza mais ciosamente a poesia:
o metro. Isso na medida em que o poeta, que atingira a excelência
tanto na técnica áspera e quase pedrosa de Passagio d ’Enea, quanto
naquela doce229 de Seme dei piangere, em dado momento demite
seu canto e, repetindo em outro plano o gesto juvenil - quando,
certa noite, sendo membro de uma orquestra em Livorno, ao ser
chamado a fazer o spalla quebrou seu violino -, agora desfaz e
desagrega o seu precioso instrumento poético. Caproni, retomando

No sentido forte de “partição polar do estilo lírico" c|iie essas expressões,


retiradas da retórica helenística (harmonia uuslrní, litimioniu i;laphyra), têm
nos comentários hõlderlinianos de Nobcrl von I I c l . i t li.
uma expressão dantesca, chama o nexo formal aqui dissolvido - ou
melhor, suspenso - de “ligação musaica”. Na entrevista a Astengo,
a passagem do Convívio (I, VII, 14: “nada que por ligação musaica
é harmonizado pode a partir de sua fala ser transmutado sem que
seja rompida toda sua doçura e harmonia” )230 é citada a propósito
da impossibilidade de tradução. E a tradução (em particular a de
Céline, de quem talvez Caproni retire as reticências, mas também,
em direção oposta, a de Wilhelm Busch) é o laboratório em que é
preparada a “transmutação” que assinala o giro tópico da última
poesia de Caproni, a sua progressiva desapropriação da “ligação
• ».
musaica
(Seja aqui permitida uma digressão. A poesia italiana do
Novecentos é a que mormente se manteve fiel à necessidade do
fechamento métrico do discurso poético. Enquanto a lírica alemã
conhecia já há mais de um século os freie Rhythmen [aqueles,
Categorias italianas

entenda-se, dos Hinos à noite, de Novalis, e das Elegias de Duíno,


de Rilke] e a francesa, com o Coup de âés, de Mallarmé, havia em
definitivo voltado as costas para sua tradição métrica, o Novecentos
assinala, na Itália [apesar do verso livre de D’A nnunzio - mas
veja-se, a propósito, as observações de Lucini!], um dos vértices da
versificação musaica, absolutamente sem comparação nas outras
<N
00

línguas europeias. Daí a sua intraduzibilidade. Rilke, profundo


nos conteúdos, permanece, quanto ao ritmos, prisioneiro de uma
musicalidade mórbida, o que justifica a definição benjaminiana
de poeta do Jugendstil. Pascoli, às vezes francamente insípido nos
temas, não tem rivais, na Europa, no controle da ligação musaica.
Por isso a tradução de Jaime Pintor dos Neue Gedichte nos modos
dos Poemas conviviais é igual, se não superior, ao original, enquanto
nenhuma tradução, não apenas de Pascoli, mas tampouco de Penna
ou de Caproni, conseguirá dar uma ideia, ainda que vaga, do
original.)
Já foi observado como se articula, nas últimas coletâneas
de Caproni, essa progressiva transfiguração da ligação musaica: a
medida tradicional do verso é contraída de maneira drástica e as

230 “nulla cosa per legame musaico armouiz/.ala si può de la sua loquela in altra
trasmutare senzarompere Uilta sua doccz/a e ai monia” (N.T.).
reticências (que Caproni compara ao pizzicato que, no quinteto
de Schubert op. 63, intervém para quebrar o desenvolvimento da
frase melódica) assinalam a impossibilidade de levar a termo o tema
prosódico. O verso é assim reduzido aos seus elementos-limites: o
enjambement (se é verdade que ele é o único critério que permite
distinguir a poesia da prosa) e a cesura (que já Hõlderlin definia
“antirrítmica” e que aqui se dilata patologicamente até devorar o
ritmo por completo).231
Não será possível, portanto, falar de verso livre ou de verso
tipograficamente quebrado, mas de aprosódia (no sentido em que os
neurologistas, que falam de afasia para caracterizar os distúrbios do
aspecto lógico-discursivo da linguagem, definem como aprosódia
as alterações do seu aspecto tonal e rítmico); e de uma aprosódia,

6. Desapropriada maneira
como é óbvio, pacientemente calculada e obsessivamente ordenada
(os editores conhecem a atenção quase maníaca do último Caproni à
partitura tipográfica), mas nem por isso menos destrutiva.
Segundo o já comentado caráter polar da escritura poética,
essa desafeição do elemento prosódico produz, todavia, um
resíduo contrário: os versículos do Contracaproni. É possível se
perguntar de onde provém a invasiva proliferação desse contracanto
(metricamente trivial) que está ao lado do canto quebrado das

vo
to
últimas poesias, quase um cantarolar e um assovio no meio do
hino mais tenso, e que dá consistência ao paradoxo de um poeta
que vive em união pessoal com um contrapoeta. Os versículos são a
escória - o demasiado próprio - que se estilhaça devido ao implacável
trabalho de desapropriação que caracteriza a maneira suprema de
Caproni.
Nesse sentido, Res amissa contém, de fato, a razão última da
sua poesia, uma vez que a própria poesia tornou-se, para o velho
poeta, a res amissa em que é impossível distinguir entre natureza
e graça, hábito e dom, possessão e expropriação. Na oscilação,

231 A multiplicação das rimas internas (que um atento exame dos manuscritos
mostra que foi conscientemente procurada) é um outro sinal (ambíguo, como
também os precedentes) dessa tendência de colocar em questão a unidade do
verso (implícita já no projeto mallarmaico de substituir, através dos espaços em
branco, o verso como unidade rítmica pela página).
numa espécie de mímica transcendental, entre a aprosódia do canto
interrompido e os versículos demasiado harmônicos, Res amissa
atingiu assim uma região para sempre situada além do próprio e do
impróprio, da salvação e da ruína. Essa é a herança irresgatável que
a desapropriada maneira de Caproni lega à poesia italiana, e que
nenhum benefício de inventário permitirá eludir. Como um animal
que de súbito tenha sofrido uma mutação que o leva para fora dos
limites da espécie, sem que seja possível inseri-lo em algum outro
phylon, e tampouco jamais saber se conseguirá transmitir a outros
tal mutação, a poesia, a um só tempo irreconhecível e demasiado
familiar, tornou-se agora para nós definitivamente res amissa. Por
isso, de todos os livros de poesia que continuam e continuarão por
certo a ser publicados, é impossível dizer se algum deles poderá estar
à altura do evento que aqui se cumpriu. Podemos somente dizer que
aqui algo termina para sempre e alguma coisa tem início, e que isso
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que começa, começa apenas naquilo que termina.


O
CO
7

O "logos
erchomenos" de
Andréa Zanzottcr

Entre as cartografias da poesia italiana do Novecentos há uma


que goza de prestígio particular, porque foi desenhada por Gianffanco
Contini. A característica essencial desse mapa é o fato de estar centrado
sobre Montale e sobre a linha “elegíaca”, por assim dizer, que culmina
na sua poesia. Como signo dessa “longa fidelidade” ao amigo, o mapa
se articula por meio de silêncios e exclusões (vale para todos o silêncio
sobre Penna e Caproni, significativamente ausentes do Arquivo de
1978), marginalizações (exemplar a crítica destruidora [stroncatura]
de Campana e a redução “lombarda” de Rebora) e, por fim, listas
explícitas nas quais o parâmetro de medida é, mais uma vez, o autor dos
Ossos de sépia. Uma dessas listas diz justamente respeito a Zanzotto,
que o prefácio a Galateo in bosco rubrica sem reserva como “o mais
importante poeta italiano depois de Montale” (mas o estratégico
Arquivo já enunciava, no mesmo sentido, como “o melhor dos poetas
italianos nascidos neste século”; Montale nasceu cm 1896).

232 As citações de Zanzotto são extraídas do volume dos Mcridiani: A. Zanzotto,


Lepoesie eprose scelte, Mondadori, Milano, 1W).
Minha insatisfação não diz respeito tanto à curiosa designação,
“o mais importante depois” (em que a ênfase recai evidentemente
no depois), quanto à cursiva caracterização que a acompanha.
Retomando um aceno de Montale que, na recensão de La beltà,
havia falado de “pré-expressão que precede a palavra articulada”,
de “sinônimos rimados de modo infantil” [filastrocca] e “palavras
que se reagrupam apenas por afinidades fonéticas”, a poesia de
Zanzoto é definida no Arquivo com os termos privativos e genéricos
de “perda da identidade racional” das palavras e de “balbucios e
evocações fonéticas puras”; já a silhouette “afável poeta ctônico”, que
conclui o prefácio, é, no melhor dos casos, uma caricatura.
As simplificações com frequência alcançam fortuna, de
maneira que da estratégia cartográfica de Contini é possível
encontrar ecos - e até mesmo premonições - na não obstante
variada recensão do poeta. Segundo a leitura que introduz a popular
Categorias italianas

antologia da edição Mondadori, a poesia de Zanzotto, ao menos a


partir de La beltà, seria definida pelo divórcio entre significante
e significado, no qual o significante “apenas elabora um vazio
de sentido” e se adensa em “grunhidos desordenados de sílabas”,
em “gagueiras e silêncios” que inauguram um verdadeiro “reino
do significante”233 (formulação quando menos curiosa para uma
CO
(N

poesia, como é a de Zanzotto, insolitamente rica em significados).


Contra o estereótipo de um “Senhor dos Significantes”, em que não
é fácil integrar a “rugosa realidade” dos referimentos históricos - e
geográficos, pois se sabe agora, como talvez sempre se soube, que
a história é de imediato geografia - tão presentes na sua poesia
(e não somente em forma de ossários), recentemente reagiram
críticos mais jovens, que tentaram delinear uma nova e, creio,
mais fiel cartografia zanzottiana, na qual o primado intemporal do
significante cede lugar a uma singular e quase política contração
do tempo histórico em tempo pessoal.
Dessa antinomia na recensão, que corresponde de algum
modo a uma aparente dualidade presente na obra, gostaria de propor
uma interpretação que remete à particular espessura teológica da
língua de Zanzotto, que me parece não ter sido notada. E isto embora

233 Andréa Zanzotto, Pocsic, cdu,.i<> <lc S. A|',osli, Mondadori, Milano, 1973, p. 20.
os motivos e as citações bíblicas (não somente neo-testamentárias)
na sua poesia serem explícitas e constantes. Qual é o sentido - para
começar com uma constatação tanto óbvia quanto excepcional -
da contínua e quase obsessiva recorrência do termo “páscoa” nessa
poesia - desde a “Páscoa ventosa que sobe aos crucifixos”234 de
Dietro il paesaggio (1951) até k “páscoa mutante”235 de Fosfeni (1983),
passando pela coletânea homônima de 1973, na qual a Páscoa deve
ser entendida “com todas as suas implicações”236 (p. 1160)? Será

7. O "logos erchomenos" de Andréa Zanzotto


com efeito suficiente se contentar com a nota liminar retirada de
um dicionário (que remete à etimologia “do grego Pascha” e do
hebraico Pesah, “passagem” - p. 455)? E o que dizer do fato de que
o celebérrimo texto da Pasqua a Pieve di Soligo é escandido com
as letras hebraicas que articulam a recitação das lamentações de
Jeremias nos ritos da Semana Santa (como no canto litúrgico das
“Lições das trevas”)? E que, além do mais, porventura definindo a
função da poesia, apareça o sintagma que compendia a boa-nova em
|oão 6 , 68 : zõê aiõnios, vida eterna?
Ainda deve ser feito um catálogo das citações bíblicas,
explícitas e implícitas, na poesia de Zanzotto - tanto em grego quanto
cm latim e hebraico mas posso já antecipar que tal catálogo pode
ser conspícuo e, em todo caso, mais próximo aos percentuais de um
autor medieval como Dante do que àqueles de um moderno. Isso
necessariamente não significa que estejamos diante de uma poesia
religiosa, assim como a recorrência a lemas e nomes extraídos da
mitologia grega ou chinesa, nos Cantos, não significa que Pound
seja um poeta pagão ou taoísta. A espessura teológica que evoquei
refere-se a algo ainda mais específico, que diz respeito à própria
poética de Zanzotto e que procurarei agora mostrar por intermédio
da análise de uma citação cuja relevância estratégica está acima de
qualquer dúvida, pois é o próprio poeta que a sublinha. Trata-se do
sintagma grego logos erchomenos, que aparece pela primeira vez em
Filò:

2J'' “Pasqua ventosa che sali ai crocifissi” (N.T.).


235 “pasqua mutevole” (N.T.).
236 “con tutte le sue implicazioni” (N.T.).
(fursi che speta un sposo tan eterno
cofà éla - e che l’è éla - logos erchomenos)237 (p. 528).

A nota do autor comenta:

O dialeto é sentido como proveniente de lá onde não é


escritura (esta que tem apenas milhares de anos) nem
gramática: lugar então de um logos que permanece sempre
‘erchomenos’, que jamais se congela em um corte de evento,
que permanece ‘quase’ infante ainda que no seu dizer-se,
que é, entretanto, distante de qualquer trono (p. 542-543).

A segunda ocorrência está em Fosfeni, na qual erchomenos é


substituído pela tradução “proveniente” [veniente]:

In nome dei LOGOS veniente...238 (p. 701).


Categorias italianas

(Em uma entrevista de 1979, que retoma a nota a Filò,


erchomenos é entendido como “em sobrevivência”: “manifestação de
um logos que permanece sempre erchomenos, em sobrevivência, que
permanece quase infante...” - p. 1230.)
O atento editor da antologia da Mondadori, Stefano Agosti, na
nota a Fosfeni, registra a relação entre o “logos proveniente” e o logos
CO

erchomenos de Filò, mas não indica a proveniência do sintagma grego.


O fato é que erchomenos, “aquele que vem”, é tanto no texto grego
da Septuaginta quanto no Novo Testamento o termo técnico para o
Messias. Assim, na visão de Daniel (7, 13), ercheto ho erchomenos,
“venha aquele que vem”, foi constantemente interpretado, tanto pela
tradição rabínica quanto pelos exegetas cristãos, como uma profecia
messiânica. Em Mateus 11, 2 (conforme também Lucas, 7, 8), João
Batista se dirige a Jesus com estas palavras: “Sy ei ho erchomenos
“es tu aquele que vem (isto é, o Messias)?”. Em João 1,15, João Batista
dá testemunho de Jesus (isto é, do Logos) dizendo: “Aquele que vem
(ho erchomenos) depois de mim, é antes de mim”. Também no início

237 “(talvez que espera um esposo lao eterno / como ela - e que é ela - logos
erchomenos)” (N.T.).
238
“Em nome do I.O( l( )S proveniente..." (N.T.)-
ilo Apocalipse (um texto que o nosso poeta evoca diversas vezes)
<>Senhor é definido “aquele que é, que era e que vem”: “Eu sou o
Alfa e o Ômega, diz o senhor Deus, aquele que é, que era e que
vem (erchomenos)” (Ap. 1 , 8) (esse contexto escriturai explica, entre
•Mitras coisas, por que em Filò a referência teológica esteja ainda
mais explícita pela imagemdQ“esposo eterno” (Cristo) e por que a
nota sinta a necessidade de especificar - contra a proximidade entre
11 Messias e o trono que, no Apocalipse, simboliza o Reino - que o

7. 0 "logos erchomenos” de Andréa Zanzotto


logos em questão está “distante de todo trono”).
Reunindo o termo grego logos com o particípio erchomenos
(ao que me parece, a conjunção é um hápax inventado pelo poeta),
Xa nzotto enuncia certamente a sua poética, mas o faz inscrevendo-a
i in um contexto messiânico, o que certamente não pode ser
indiferente; e é, portanto, o significado dessa contextualização,
iia qual uma declaração de poética toma a forma incomum de um
llicologoumenon, que pretendo aqui interrogar.
Logos erchomenos, segundo o que sugere o autor, nomeia
uma experiência particular da linguagem, aquela do dialeto,
língua “materna” na sua íntima e incessante relação com a língua
".ilta” e “paterna”. Se Zanzotto prefere falar de “diglossia” e não de
bilinguismo, e alude a uma “fraterna co-presença do dialeto e da

cn
in
língua nacional” (p. 1229), isto é porque o dialeto não é, para ele,
simplesmente uma outra língua, menor e não (ainda) escrita, que
precede a língua maior; ao contrário, como ele escreve na sua obra-
prima de filosofia da linguagem, que é a longa nota a Filò, comparável
.ms pontos mais altos do De vulgari, dialeto é o nome da experiência
mais própria e profunda do “fato linguístico”, ou seja, “a metáfora -
<■c para um certo verso a realidade - de todo excesso, de qualquer
inimaginável, do superabundar nascente ou do estagnar ambíguo
•Io fato linguístico na sua mais profunda natureza” (p. 542). O “fato
linguístico” (que não é a língua, mas o que os linguistas chamam o
luctum loquendi, o mero fato, inacessível ao saber, de que os homens
l.ilam) apresenta-se como uma estrutura dupla ou, melhor dizendo,
>nmo um campo de forças percorrido por duas tensões conjugadas
c opostas, que de modo incessante se tocam, habitam-se, nutrem-se
i- se descartam: o dialeto e a língua, “málria” c “pál ria”, lisse tocar-se
deve ser compreendido de modo quase físico, pois nessa experiência -
que é algo como uma “violentíssima deriva” histórica, “cheia da
vertigem do passado” - o falante “foca, com a língua (nas suas duas
acepções, como órgão físico e sistema de palavras) o nosso não saber
de onde a língua vem, no momento em que vem, sobe como o leite...”
(Ibid.). Isso significa que a língua tem lugar em um não-lugar, isto é,
no não ter lugar do dialeto. Assim, isso que chamamos dialeto nada
mais é do que a experiência desse não ter lugar da linguagem, logos
que está sempre “no princípio”, sempre sobrevivente em nenhum
lugar (gnessulogo, que é o “intraduzível pendant negativo de ‘por
toda parte’” - p. 645); nesse sentido, como advertia a passagem
supracitada, “lugar então de um logos que permanece sempre
erchomenos’, que jamais se congela em um corte de evento, que
permanece ‘quase’ infante no seu dizer-se”.
Nessa paradoxal temporalidade do fato linguístico, que
Categorias italianas

acontece sem ter lugar, a escolha de uma terminologia teológica faz-


se perspícua. Se o Messias é “aquele que vem”, isto ocorre porque
o tempo messiânico, como a língua, é sempre duplo, cindido entre
um “já” e em um “ainda não”, um “em breve” que jamais é “um
presente” (p. 1270). Contrariando um preconceito difundido, o
messiânico não é apenas escatologia, fim do tempo; é, sobretudo,
'sO
CO

tempo do fim , tempo kairológico que de modo operativo urge no


tempo cronológico, transformando-o desde seu interior sem jamais
ter lugar nele, sem jamais ser identificável em um segmento dado de
tempo. Se o dialeto, enquanto logos erchomenos, não é uma língua,
mas a própria estrutura do fato linguístico, o messiânico não é um
tempo, mas apropria estrutura do tempo histórico. E como o dialeto
precede a língua que, na verdade, sobrevêm, assim também o Messias
(que, segundo a lenda rabínica, foi criado antes do mundo) precede
o tempo em que se mantém proveniente, sem jamais congelá-lo
em um evento. Por isso, segundo a profunda parábola kafkiana, o
Messias não vem no dia da sua chegada, mas no dia seguinte, não no
último, mas no ultimíssimo dia.
Nessa perspectiva, que é aquela em que Zanzotto situa a sua
experiência poética, estrutura tia linguagem e estrutura do tempo
messiânico coincidem. A linguagem, o logos, é assim o elemento
messiânico por excelência, sempre erchomenos, sempre emergência
c anúncio de si, qpe sempre sobrevêm em um não-lugar. Mas isso
significa que a cisão, a dupla estrutura que divide e, ao mesmo
irmpo, articula oNfato linguístico, deve ser declinada também
historicamente, seguíhda_.a~ língua, segundo um típico gesto
/nnzottiano, ao longo dos “mega-séculos” nos quais esta “estirou-se,
mliltrou-se, dividiu-se, recompôs-se e em que morreu e ressurgiu”
111. 542). A oralidade (a oracularidade) a que remete o dialeto no seu

7. O “logos erchomenos” de Andréa Zanzotto


I>iovir “de onde não é escritura” (Ibid.), é também a cifra do destino
*111c condena as escrituras a se tornar, no fim, ilegíveis: “destinadas
assim a se tornar ilegíveis, a ser reconduzidas dignamente ao grau
Iclliado e definitivo do detrito-enigma” (p. 1251). O dialeto não é
•ipenas in-escrevível, segundo a representação comum que também
/..mzotto (“língua que não pode e não deve jamais ser escrita” -
I’. 1230) evoca (Filò e o florescer de poesia escrita em dialeto no
Novecentos mostram que o dialeto pode ser escrito, ainda que de
modo incongruente e fatigante); ele é, ao contrário, o ilegível da
hnyua, a assinatura do seu provir do ilegível e terminar no ilegível
(mino não pensar, segundo a doutrina que quer que o Messias
<mnpra e desative todos os sinais, em 1 Cor. 13, 8 : eite glossai,
1'niisontai, “se existem línguas, cessarão”?).

CO
E este é, talvez, o momento de falar da especial “ilebigilidade”
ô.i poesia de Zanzotto, isto é, daquilo que induziu os críticos, ao
menos a partir de La beltà, a falar de uma dificuldade, de um gaguejar,
‘Ir uma “insignificância” e quase de uma “afasia” dessa poesia. Por
<ri to o fato linguístico, enquanto lugar messiânico, é para Zanzotto
lugar de esfacelamento e de catástrofes no qual a experiência do
■lialeto (mas também do latim, “garganta aberta a devorar o seu
11mpido rejeton, o italiano”239 - p. 1131) age desagregando e dividindo
i Iíngua, obrigando o poeta a quebrar aprosodicamente o seu canto
(<nino nos últimos hinos hòlderlinianos, tão caros a Zanzotto). Mas
i ilegibilidade que está aqui em questão provém de um lugar ainda
mais profundo; o poeta não está em dificuldades nem balbucia, ao
>mitrário, soletra e escande em sílabas o ilegível, faz-se leitor (ou,
■obretudo, ouvinte - cf. Jacó 1 , 22 ) daquilo que não pode ser lido, não

' ' “fauce aperta a divorare il suo limpido rejeton, l'ilali.mo" (N.T.).
somente e não tanto porque não foi escrito, mas porque, sobrevindo,
erchomenos, urge e trabalha, na língua, para expor a ilegibilidade
que lhe é constitutiva.
Daí, em Zanzotto, a peculiar e indissolúvel unidade entre
a prática poética e a reflexão sobre a língua. A tradição da poesia
italiana se abre com um tratado que um poeta escreve sobre a
língua vulgar, no momento em que se propõe a escrever em uma
língua que não pode ser escrita. É arriscado sugerir que a escritura
de Zanzotto fecha essa tradição com um outro “tratado”, misto de
prosa e “linhas cortadas” (não “versos”! - p. 1231), longuíssima glosa
sobre o que, na poesia, dá-se e só pode dar-se como ilegível? O que
será a poesia (a língua) italiana após Zanzotto não é algo sobre o
qual eu deva me pronunciar. É certo, entretanto, que esse poeta nada
afável, não balbuciante nem afásico, absolutamente não confinado
no significante, marca para a leitura da poesia um limen histórico
Categorias italianas

com o qual o logos que vem não poderá deixar de acertar as contas.
oj
00
A sorte póstuma de Giorgio Manganelli apresenta aspectos
singulares. De um escritor que tinha deixado um tão imponente
e volumoso conjunto de obras (27 volumes e 1.669 publicações
em vida registradas na bibliografia de Graziella Pulce) teria sido
possível no máximo esperar resíduos e resquícios secundários,
torsos e fragmentos preciosos, mas que nada teriam acrescentado
à grandeza do escritor. Ao contrário, escrivaninhas e prateleiras
foram, nesse caso, excepcionalmente pródigas. La palude definitiva
(1991) e La notte (1996), ambos póstumos, representam com grande
probabilidade o ápice da obra manganelliana, o êxito supremo e
quase a decantação do seu maneirismo, que de modo decisivo se
inscrevem entre as escrituras máximas do Novecentos.
O opus postumum aqui publicado,240 cuja radical hetero-
geneidade impede de definir como menor, não é, obviamente, dessa
ordem. Mas o seu caráter heteróclito - trata-se de uma tese de láurea
em ciência política - permite por certo formular uma hipótese
inédita, e talvez não impertinente, sobre a gênese e as características
da escritura manganelliana. Se não estivermos equivocados, um fio
secreto une esse ensaio juvenil às obras máximas, o nada ingênuo
jovem politólogo de 23 anos ao inquieto vidente do fim.1

111 Informações mais precisas sobre este ensaio, bom i omo solno os demais, são
fornecidas no final deste volume, na “Nola aos loxios", p. I .V
Abra-se o romance - ou, sobretudo, o rolo apocalíptico - que a
editora intitulou, com felicidade, Lapalude definitiva. Uma acusação
infamante leva o protagonista eu-narrador a fugir, montando um
improvável ‘corcel’, para um pântano infindável, onde se estabelece
como em um ‘reinado clandestino’, sem esperança nem desejo de
êxodo. Todo o livro é apenas a minuciosa e alucinada contemplação
desse pântano definitivo, que preenche ‘compacto e sem forâmen’
o horizonte com as suas águas mortas e seus Iodos e é, todavia,
animado por uma vida ‘repelente e inexaurível’. Até que, pouco a
pouco, da mais profunda das visões noturnas surge no solitário
monarca a ideia - ou o presságio - de ser parte de uma diarquia, de
que na extremidade do pântano exista um seu companheiro, diarca
do fogo e dos vulcões, em direção ao qual ele ao final se move como
em direção a sua ‘danação’ ou ‘iluminação suprema’.
O que é o pântano definitivo? A tentação da interpretação
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alegórica é tão forte que o próprio narrador sente, em certo


momento, a necessidade de colocar em guarda quem quisesse ver
“naquele honesto líquido” uma alegoria, fazendo com que o pântano
de algum modo se tornasse “uma incumbência que a nós diz respeito
e já não nós a ela” (p. 61-62).241A precaução é para ser levada a sério,
pois no universo de Manganelli não há lugar para as alegorias. O
seu cosmos - como o de Alfred Jarry - não é nem simbólico nem
alegórico, mas heráldico, e o brasão - que lhe constitui o arquétipo -
é precisamente o lugar no qual as imagens, os sinais e os corpos não
significam nem a si mesmos nem a nada além de si mesmos; como
o esfíncter (outro topos caro a Manganelli), o brasão é um limiar
perfeitamente indecidível entre o fora e o dentro.
Será mais interessante falar, sobre o pântano, não apenas
de alegoria, mas, com um típico gesto manganelliano, de alegoria
ao quadrado. Isto é, se definimos alegoria ao quadrado aquela em
que a alegoria coincide com exatidão à letra do texto, seria possível
dizer que o pântano definitivo não é senão a língua, a própria
língua com que La palude foi escrita. E que, desse modo, o livro
materializa pontualmente a intenção mais própria de toda alegoria

241 As citações - aqui e nas duas páginas sucessivas - remetem a G. Manganelli, La


palude definitive, Adelplii, Milano,
ao quadrado, qual seja, a de tornar impossível a distinção entre
alegoria e tautegoria. A língua - como o pântano - não é a mesma
e nem é outra, nem diz a si mesma nem diz além de si mesma: é
completamente alegórica no seu ser integralmente tautegórica. Todo
leitor atento deve admitir que essa zona de indistinção define o lugar
essenciaf da escritura de Manganelli, e traça a cifra indelével da sua
geografia mental.
Como todo grande visionário, Manganelli vê e contempla
acima de tudo a língua; mas como o ser é sempre ser da língua,
assim a língua é, para ele, sempre a língua do ser. Essa é a raiz
barroca da sua mens, já que barroco é o universo em que ser e
língua, natureza e história, sono e vigília, matéria profana e rumor
leológico estão implicados em uma prega de dobra que, como aquelas
que encrespavam a veste estática da beata Ludovica Albertoni,242 é
impossível desfazer ou dirimir.
A lógica do barroco não é teológica, mas política: a sua cifra
não é a transcendência, mas a exceção. O que é uma exceção? É
uma dobra do fora e do dentro, da transcendência e da imanência.
Não está incluída na regra, tampouco desta é simplesmente
excluída; ao contrário, nela está incluída por meio de sua própria
inelusão. Por isso a exceção é o conceito-chave da teoria barroca da
soberania, daquela perpetua et absoluta potestas que, saída dos seus
fundamentos teológicos, só pode fundar-se e aprofundar-se em si
mesma; e o soberano - isto é, aquele que decide a exceção - é o
emblema fosco e supremo do barroco.
Aqui a intimidade entre Manganelli e a cultura barroca
encontra uma sanção ulterior. Se um dia os filólogos colocarem
as mãos nos registros monumentais do Lexicum manganellianum
ficarão estupefatos com a frequência de lemas pertencentes ao
cerimonial político: monarca (mundarca), diarca, tirano, dinasta,
iei, majestade, soberano, trono, coroa, cetro, tiara papal, império,
usurpador, brasão, insígnia, decreto - mas também carrasco, agente,
escabino, justiceiro, questor, condenação, pira, guerra, conflito,
escaramuça, rendição, armistício, estratégia, complô, conjuração...

Referência a uma conhecida escultura de Giovanni Bernini (1598-1680),


exposta na Basílica de San Francesco a Ripa, em Roma (N.T.).
O léxico de Manganelli é político (ou teológico-político), como
o de Kafka é jurídico (jurídico-teológico). Em todo caso, isso é
sem dúvida verdade para La palude definitiva. Creio, de fato, que
a narração se ilumine aqui apenas se lida nessa chave, e caso seja
projetada sobre a cena imaginária do theatrum politicum barroco.
Isso é o autor mesmo que sugere, em um ponto decisivo da
narração, quando o pântano, revelando sua natureza heráldica,
compõe-se aos seus olhos em forma de brasão bipartido, ou, melhor
ainda, de escudo bélico, do qual emana “uma mensagem de guerra e
de catástrofes”243 (p. 68 ). O pântano interminável se revela assim, de
maneira secreta, animado por uma luta intestina, cheia de ‘máquinas
bélicas e estratégias ferozes’, e cujos contendores são a cidade e o
próprio pântano, a frágil sociedade humana, com seu ‘impotente
poder’ e a sua ‘comovente eloquência’, e a impenetrável, silenciosa
natureza. Não importa que nessa luta a cidade esteja condenada
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a sucumbir. O relevante para o narrador é que de qualquer modo


se mantenha a possibilidade de distinguir entre a cidade e o
pântano onde aquela se localiza, e de custodiar a todo preço uma
independência da cidade, ainda que ínfima e rudimentar. Pois o
que o pântano não pode tolerar é “que exista, nos próprios confins,
já que os confins do pântano estão por toda parte, e a cidade não
to

pode transportar-se a lugares onde tais confins não cheguem - que


exista, dizia, uma cidade que, porquanto pobre, exausta, perturbada
e desgastada pelas doenças, seja de algum modo independente,
mesmo se sua independência seja a de morrer a própria morte e
nada mais. Essa cidade, esse arruinar, seria para sempre o outro do
pântano e, mesmo que não tenha nenhuma possibilidade combativa,
não é possível negar que em uma dessas casas poderia ainda sempre
espreitar um satirista, um analista, um politólogo, um polemista
capaz de descrever o pântano em termos que o pântano acharia
intoleráveis” (p. 71-72).
Frise-se bem: não somente a diferença entre estado de
natureza e de cultura - a possibilidade de distinguir cidade e
pântano - assinala aqui, como em Hobbes, a possibilidade da
política; mas o espaço dessa polis estabelecida no pântano, e por

243 “un messaggio di guerra <■dl i .ii.ist mli" (N.T.).


ele assediada, coincide com o espaço da escritura. A pergunta
“há diferença entre cidade e pântano?” - ou seja: “existe ou não
a política?” - é para Manganelli, portanto, a pergunta decisiva,
uma vez que ela traz em si a própria possibilidade da literatura. Se
não fosse a política, o espaço do discurso seria devorado, por um
lado, pelas proposições sempre verdadeiras da teologia, por outro,
pelas fórmulas também sempre verdadeiras da ciência natural. Em
ambos os casos o pântano se fecharia nos estreitos muros da cidade,
e engoliría para dentro de si também a infalsificável mentira da
literatura. Daí o elogio do servilismo (“Doçura, langor do extremo
servilismo!”,244 p. 73), último estratagema para afastar o pântano
identificando-se com ele (“eu sou o pântano e nada mais que o
pântano, e serei eu enquanto tal a ocupar a cidade”,245 Ibid.); daí, em
um livro precedente, a tese singular segundo a qual o encômio do
tirano é o único possível fundamento do Discurso. Por isso, no fim

8. Heráldica e política
do livro póstumo, cidade e pântano parecem entrar em uma zona
de indiferença paradoxal, na qual a monarquia cede lugar a uma
diarquia, e o pântano se identifica com a história (“esse pântano
de algum modo é dotado de história ”,246 p. 95); e o diarca narrador,
verdadeiro ‘espírito do mundo a cavalo’, segundo a célebre imagem
de Hegel, move-se ao encontro do Senhor do fogo em uma final
ecpirose messiânica. A política, como a literatura, é uma diferença
interna do pântano (da língua), que tende ao infinito a anular-se,
mas que se mantém indefinidamente por meio da escritura do
próprio desastre.
Retrocedamos agora de um opus postumum a outro, de um
extremo ao outro do itinerário criativo de Manganelli: à tese de
láurea cujo título diz de modo contido Contributo critico alio studio
delle dottrine politiche del’600 italiano [Contribuição crítica ao
estudo das doutrinas políticas do Seiscentos italiano ]. Antes de tudo,
de que autores se trata, de quais doutrinas? Uma primeira surpresa
espera aqui o leitor não afeito à história do pensamento político.

244 “Dolcezza,languore dellestremo servilismo!” (N.T.).


245 “io sono lapalude, e nientaltro che palude, e sarò io, in quanto tale a occupare
la città” (N.T.).
246 “codesta palude in qualche modo è dotata di storiu" (N T).
A política em questão não é, como se poderia esperar, aquela da
tradição maquiavélica, para a qual de preferência foi dirigida, no pós-
guerra, a atenção dos historiadores da política, sobretudo na Itália,
mas uma tradição diversa, se não oposta, embora ligada à outra por
um fio subterrâneo. Trata-se dos teóricos anti-maquiavélicos da
razão de Estado - isto é, o mesmo âmbito no qual trinta anos depois
Michel Foucault iria instalar a sua fecunda pesquisa. O problema de
Maquiavel era o de compreender como reforçar o poder do príncipe,
as estratégias por meio das quais ele podia conquistar ou defender
o poder. O problema dos teóricos da razão de Estado, de Botero a
Zuccoli, de Paruta a Settala, é de todo outro: não se trata de entender
e reforçar o poder do príncipe, mas de compreender e consolidar
o próprio Estado. A despeito das reservas com que esses autores
avançam sobre a ratio status, em nome da moral ou da religião, é nas
suas obras que o Estado adquire pela primeira vez uma existência
Categorias italianas

e uma racionalidade autônomas. O referente desta “nova arte de


governar” (como a chamará Foucault) não é mais, como na teoria
medieval, a sabedoria de Deus nem, como em Maquiavel, a razão
do príncipe, mas a natureza e a racionalidade próprias do Estado.
Não estarão mais em questão a legitimidade e a estrutura jurídica
do poder soberano, mas as tecnologias através das quais o Estado se
4*
4*.

conserva e consegue integrar os indivíduos na própria racionalidade.


O jovem Manganelli revela-se perfeitamente consciente
dessas transformações. Ele em grande parte depende, por certo, do
livro de Meinecke, de 1924, sobre a Idea delia ragion di Stato nella
storia moderna [Ideia da razão de Estado na história moderna ] (que
na nota introdutória ele define, sem nomeá-lo e não sem artifícios,
como “o mais genial livro sobre pensamento político do 1500 em
diante”). Aqui encontramos todos ou quase todos os autores que
ele examina (falta apenas Firmiano Strada; por outro lado, Botero,
inventor do terminus technicus, está ausente da tese por razão de
data: seu tratado Delia ragion di Stado é de 1589); mas a lucidez
com que o laureando de 23 anos vê emergir a nova figura pós-
maquiavélica do Estado moderno, não mais ligado aos pequenos
senhorios guerreiros, mas aos grandes organismos totalizantes
de administração e governo que são hoje tão familiares, não é
por isso menos notável. Já no primeiro capítulo, a propósito do
veneziano Paruta, ele encontra fórmulas que parecem antecipar
as definições foucaultianas do bio-poder moderno: “As ordens
de um Estado são por ele reconduzidas à concepção orgânica
(pensa-se em um organismo preocupado em eliminar disfunções,
mais do que em externar sua força vital)... Invertida a posição do
Estado, não mais guerreiro, mas educador e governador... Não
mais conquistar será a finalidade do Estado, mas criar também
fora do seu limite territorial as condições que favoreçam a máxima
duração e conservação” (p. 34).247248E na breve Nota introdutória um
categorema de sabor crociano adquire, por sua vez, um significado
que pode evocar o conceito foucaultiano de subjetivação (“a
política é, mesmo nas suas formas mais esquemáticas, parte do
mundo interior do homem, e de infinitas interioridades em relação
recíproca”, p. 26).

8. Heráldica e política
Mas do conceito de razão de Estado decorre ainda uma
outra consequência que não podia deixar de fascinar o jovem
Manganelli. A ratio status, enquanto “novidade de meios aptos
a fundar, conservar e ampliar o domínio sobre os povos”, carrega
consigo a ideia, barroca e ao mesmo tempo moderna, de um arcano
constitutivo do Estado, isto é, de medidas secretas que, segundo a

Ui
lógica da exceção, derrogam o direito ordinário em vistas do bem
comum. Podemos imaginar o prazer com que o laureando terá
consultado, com base em Mainecke (que os cita amplamente), os
teóricos dos arcana imperii (um termo que também aparecerá no
léxico do escritor): antes de tudo o tratado de Clapmar, De arcanis
rerum publicaram libri VI (1605), em seguida a Dissertatio de arcanis
rerum publicaram, de Besold (1614), bem como a obra de Kessler
de 1678, de título inacreditavelmente manganelliano, Detectas ac a
fuco politico repurgatus candor et imperium indefinitum, vastum et
immensum Rationis Status boniprincipis.24SA política, no momento2478

247 As citações - aqui e nas páginas sucessivas remetem a G. Manganelli,


Contributo critico allostudio delle dottrinc polilichc ilcl '600 italiano, Quodlibet,
Macerata, 1999.
248 “A clareza descoberta e sem artifício políliio r o império infinito, vasto e
imenso da Razão, do Estado e do bom príncipe" (N.T.).
mesmo em que adquire plena autonomia e se torna moderna (isto é,
biopolítica), faz-se arcana, onipresente e totalitária.
É no capítulo sobre Tariano Boccalini - autor de Ragguagli ái
Parnaso, no qual literatura e política estão intimamente entrelaça­
das - que Manganelli registra essa tendência invasiva da política
barroca, ao mesmo tempo autônoma e totalizante: “A vida política
não é para ele de modo algum estranha à consequência e à unidade
do espírito humano; desenvolve-se com leis próprias, como algo
de tecnicamente característico, mas o juízo a que deve se submeter
é um juízo único com o qual se investe toda a vida. Na política o
mal e o bem do espírito se projetam em plenitude; ela é suscetível
de ser a mais execrável criação e também a mais alta e profunda
humanidade [...] assim como a política pode ser soberana arte do
espírito humano, faculdade da convivência segundo as suas íntimas
leis” (p. 110). Aqui a política é, para o estudante, aquilo que será a
Categorias italianas

literatura para o escritor; uma pura intensidade insubstancial, mas


co-extensiva ao universo; como a literatura, ela “não tem lugar, mas
penetra em toda parte, mesmo na preciosa forma da ausência”.249
Podemos agora avançar uma hipótese não trivial. A concepção
de política que o jovem Manganelli registra nos autores indagados
na tese é, de algum modo, o modelo em miniatura da concepção
Tt<
vo

da literatura do Manganelli maduro: na absolutização barroca da


razão de Estado ele encontrou, pela primeira vez, o paradigma da
sua razão literária. Não é por um acaso, portanto, que o encontro
precoce com a severa prosa política do barroco tenha de imediato
cristalizado as primeiras características estilísticas da sua futura
maneira: “a aridez mística” do pensamento da Contra-reforma (p.
46); o Renascimento que, nos limiares do século, “se entristece em
uma profunda crise” (p. 45); Giovanni delia Casa, “homem capaz
de deboches humilhantes e de ânsias místicas” (p. 46); a “forma de
pirâmide [...] saindo através de desníveis rapidíssimos” do Estado
absoluto (p. 69); Boccalini ofendido “não pela qualidade de homem”,
mas pelo seu “extinguir-se em u m escu ro de interioridade labiríntica”
(p. 105). Até mesmo os crassos erros de digitação parecem prefigurar
os caprichos do seu futuro instrumento de escrever, que ele chamava

249 G. Manganelli, Labariosc inr. ir. ( l.u /.mli, Miluno, 1986, p. 151.
Patrizia (pense-se, para todos, no misterioso ainda que límpido
“teotéricos” [“teoterici’’], em vez do banal “teoréticos” [“teoretici”]
do manuscrito - p. 35).
Mas é sobretudo na concepção da subjetividade que a analogia
política-literatura vai ainda mais além. É sabido que as “infinitas
interioridades em relação recíproca”, no teatro político do barroco,
jogam não apenas entre os indivíduos, mas também no interior de
cada sujeito, que assim está preso em uma infinita cisão. Considere-
se a definição canônica do escritor em Laboriose inezie (elaborada,
não por acaso, a propósito de um outro grande escritor seiscentista,
não alheio a preocupações políticas, Torquato Accetto), segundo a
qual escritor é “quem é chantageado pelas palavras”.250 Pois bem,
essa chantagem é, in nuce, um genuíno ato político, é a chantagem
que o homem de antemão faz a si mesmo pelo fato de ter se tornado
falante (ou escrevedor). O ingresso na linguagem (na escritura) não

8. Heráldica e política
é, com efeito, um gesto neutro, mas introduz no sujeito um princípio
de divisão infinita, do qual não há reparo nem saída. Tu escreves, tu
falas: portanto, és dividido de ti mesmo, estás empenhado em uma
angustiante contenda política contigo mesmo, obrigado a guerrear
e a sofrer contigo e com os outros. O axioma teológico-político de
Gregorio de Nazianzo, “o Uno está em guerra civil consigo mesmo”
(to hen stasionzon pros heauton), define o cânone do eu literário,
e é notório que a dogmática trinitária não seja mais do que uma
intrépida especulação sobre o ato de palavra: o falante, o verbo,
o sopro da voz. Algo de similar, em suma, àquilo que o último
Manganelli chamará, em uma brincadeira terrivelmente séria,
“pseudônimo ao quadrado”. Não apenas aqui, segundo a advertência
rimbaudiana e keatsiana, eu é um outro, mas esse outro pretende
não ser outro, e identificar-se com eu, coisa que eu só pode negar.
Nessa alternada e vertiginosa dessubjetivação, experiência política e
experiência literária coincidem sem restos.
Manganelli, então, escritor político? O sentido e as cautelas
com que se deverá entender essa pergunta estão implícitas no
próprio lugar arquetípico de sua escritura. Reflita-se: não é talvez a
heráldica, com as suas “armas” e os seus “campos", as suas “bandas”

250 Id„ p. 147.


e as suas “insígnias”, o hieróglifo mais imperfectível e congruente
da política? E a divisão heráldica dos campos de fundo [campiture]
não é talvez o gesto político originário: amigo-inimigo, direita-
esquerda, escuro-claro - sem razão ou substância: frivolidade pura
e inexorável: literatura?
Categorias italianas
00
9.

0 torso órfico
Ia poesia

Foi Mario Luzi que diagnosticou o caráter elegíaco da


poesia italiana do Novecentos, subtraindo então dessa “ortodoxia
novecentista”, toda tecida sobre o “pressuposto antropológico da
felicidade negada ou tornada impossível”, e sobre a “privação”,251
a vistosa exceção que é Dino Campana. Já na titulação “órfica” a
poesia de Campana remete, com efeito, a uma tradição não elegíaca,
mas hínica (os “hinos órficos”, ainda que em um sentido diverso
daqueles homéricos, são cantos de honra aos deuses). Generalizando
a antítese, é possível dizer que o hino - cujo conteúdo é a celebração -
e a elegia - cujo conteúdo é o lamento - são os dois opostos polares
que definem o campo de tensão da língua da poesia. Isidoro de
Sevilha, que tinha às suas costas o grande desenvolvimento da
hinologia cristã, de Ambrósio a Sinésio, fixou o cânone do hino
através da tríplice determinação do conteúdo (a ode), do objeto
(Deus) e da forma (o canto): “O hino é o canto daquele que louva, e
em grego significa ode [Iode], pois é um carme de alegria e de louvor.
Mas são hinos em sentido próprio apenas aqueles que contêm o

251 M. Luzi, Al di qua e al di là deU’elcj’iii. prrl.ic i<> >lc I >. ( lampim», Canti orfici,
edição de E. Falqui, Firenze, 1973, p. IX.
louvor [Iode] a Deus. Se há louvor [Iode], mas não a Deus, não é um
hino; se há louvor [Iode] a Deus, mas não é cantado, não é um hino.
Se é em louvor [Iode] a Deus e é cantado, então é um hino”. A partir
do final da Idade Média, a hinologia cristã entra em um processo de
irreversível decadência. A Laude delle creature franciscana, ainda
que não por completo pertencente à tradição dos hinos, constitui
para ela o último grande exemplo e, ao mesmo tempo, confirma o
seu ocaso. A poesia moderna, embora com exceções (para a poesia
italiana, além dos Inni sacri de Manzoni, ao menos Campana e
Rebora), é, no geral, mais elegíaca do que hínica. Mas os dois polos
devem estar, em alguma medida, presentes em ambos, sob pena de
um distanciamento do campo de tensão da língua (e não é impossível
que, tomando-se o exemplum de Montale, a progressiva exclusão do
polo hínico, que lhe trouxe a glória precoce, deverá talvez um dia
descontar a tendencial carência do tonos a partir de Satura).
Categorias italianas

Uma análise mais atenta revela que a grande poesia do


Novecentos se define sobretudo por meio de uma estratégia de
contaminação entre as duas polaridades. Um caso exemplar é o de
Rilke. Ele travestiu uma inconfundível intenção hínica na forma da
elegia e do lamento. É a essa contaminação, a essa espúria tentativa
de apreender uma forma poética morta que, provavelmente, deve-
ui
o

se a aura de sacralidade quase litúrgica que circunda as Elegias de


Duíno. O seu caráter hinológico, em sentido técnico, é evidente
desde o primeiro verso, que coloca em causa as hierarquias
angelicais (“Quem, se eu gritasse, me escutaria das ordens / dos
anjos?” ),252253isto é, justo aqueles que, segundo a tradição hinológica,
deveriam partilhar com os homens o canto de louvor. Nos Sonetos a
Orfeu, que Rilke considerava quase uma espécie de exegese esotérica
das Elegias, ele anuncia com clareza a vocação hinológica (ou seja,
celebrativa) da sua poesia: Rühmen, das ists! “Celebrar, é isso!”. O
soneto VIII fornece a chave da titulação elegíaca dos seus hinos: a
lamentação (Klage) pode existir apenas na esfera da celebração (Nur
in Raum der Rühmung darfdie Klage gchn).-’5! Esse deslocamento do
lamento no hino só pode significar que aquilo que a elegia lamenta253

252 “Chi, s’io gridassi, mi udiebbc dagli imlini / degli angeli?” (N.T.).
253 “Apenas no espaço da celebras ao p o d e n in ie i .1 lamentação” (N.T.).
é a impossibilidade do hino, o seu não poder proferir nomes divinos
e palavras, mas somente lamento - isto é, segundo a aguda fórmula
de Scholem, a linguagem instável [labile Sprache] por excelência,
linguagem que perdeu toda consistência e todo sentido, não-
linguagem.
O inverso simétrico das Elegias rilkeanas é a poesia tardia de
Hõlderlin que, composta entre 1800 e 1805, pertence de pleno direito
à poesia do Novecentos, pois sua recensão começa somente com a
edição de von Hellingrath (1913). Essas poesias são tradicionalmente
inscritas sob a rubrica “hinos”, pois seu conteúdo diz em essência
respeito aos deuses e semi-deuses (estes últimos tomam ali o lugar
dos anjos). Com um deslocamento decisivo, todavia, aquilo que esses
hinos celebram não é a presença dos deuses, mas o seu afastamento.

9. O torso órfico da poesia


Enquanto as Elegias rilkeanas são hinos travestidos de elegias,
Hõlderlin escreve elegias em forma de hinos. Essa sóbria inversão,
essa irrupção da elegia em um contexto estranho, assinala-se na
métrica, que quebra o ritmo do canto. A particular fragmentação
prosódica característica dos hinos hõlderlinianos não escapou à
atenção dos críticos. Exatamente para sublinhar essa ruptura da
estrutura sintática, Adorno intitulou Parataxe a sua leitura da última
produção poética de Hõlderlin. Von Hellingrath a tinha registrado ao

m
seu modo, tomando emprestado da filologia alexandrina a oposição
poetológica entre harmonia austêrà (conexão áspera, que tinha
Píndaro como campeão) e harmonia glaphyra (conexão lisa). O que
define a articulação áspera (ou dura, como traduz von Hellingrath)
não é tanto a parataxe quanto o fato de que nela as palavras singulares
(ou algumas delas) tendem a isolar-se do seu contexto semântico
até constituir uma espécie de unidade autônoma (Mallarmé tinha
falado no mesmo sentido de um isolement de la parole,254cujo êxito
máximo é o Coup de dés), enquanto na articulação lisa, ou plana, o
contexto semântico subordina e conecta ao mesmo tempo palavras
e frases. “A articulação dura”, escreveu von Hellingrath, “faz tudo
para exaltar a própria palavra, imprimindo-a no ouvido de quem a
escuta e extraindo-a na medida do possível do contexto associativo

254
‘isolamento da palavra” (N.T.).
das imagens e dos sentimentos a que pertencia”.255 É como dizer que,
no hino, age uma tensão anti-semântica que faz colapsar o sentido
para atingir a pura palavra, o nome separado de toda conexão
sintática. A leitura dos versos é assim apenas um suceder-se de
cesuras e de distanciamentos, uma fragmentação da qual emergem
lemas e também, às vezes, apenas adjetivos ou conjunções (como,
no último Hõlderlin, o feroz e absoluto isolamento da conjunção
adversativa aber, “mas”).
Torna-se então possível definir a língua da poesia moderna
como um campo de tensões percorrido por duas correntes opostas,
a da harmonia austêrà e a da harmonia glaphyra, em cujos
extremos polares estão, de um lado, o hino, que celebra e isola o
nome, e, do outro, a elegia, que lamentando a impossibilidade do
hino mantém os nomes no discurso significante. O que de fato se
dá na contaminação das duas tensões é, entretanto, de um lado, a
Categorias italianas

tentativa de dizer o lamento, que acaba na conversa à toa, e, de outro,


a de lamentar - também no sentido jurídico de “acusar” que tem
o termo alemão Klage - o dizer, que acaba no silêncio. Essa dupla
impossibilidade define a poesia do Novecentos.
A identificação de uma linha elegíaca dominante na poesia
italiana do Novecentos, que tem o seu cume em Montale, é obra de
Contini. Dessa paciente estratégia, que se desenvolve com coerência
em uma série de ensaios e artigos de 1933 a 1985, a execução
sumária de Campana, o redimensionamento “lombardo” de Rebora
e o obstinado silêncio sobre Caproni e Penna são os corolários
táticos. Nesse implacável exercício de fidelidade, o crítico nada mais
fazia que seguir e levar ao extremo uma sugestão do amigo, que
justamente na Riviere, a poesia que fecha os Ossos de Sepia, tinha
compendiado na impossibilidade de “mudar em hino a elegia”, a
lição - e o limite - de sua poética. Daí a conclusão de Contini: se a
poesia de Montale implicava a renúncia ao hino, bastava expurgar
da tradição do Novecentos qualquer componente hínico (ou, ainda,
anti-elegíaco) para que aquela renúncia não aparecesse mais como
um limite, mas assinalasse a isoglossa a lém da qual a poesia decaía em
idioma marginal ou estranho vernáculo. Isso a despeito de Boine -

255 N. von Hellingrath, Hõlderlin Vrninu litm\. Mumlicn, 1936, p. 23.


provável fonte do verso citado de Riviere - ter ao invés identificado
com segurança, na recensão de 1914 sobre a Riviera ligure, o caráter
peculiar dos Fragmentos líricos em uma impossibilidade de decidir
entre o hino e a elegia (“quase todo verso que está aqui não sabe se é
elegia oupeã da vida breve e dolorosa...”)- Contra a redução estratégica
de Contini será conveniente, portanto, retomar a sugestão de Boine,
e reformular a oposição, entre uma linha “órfica-sapiencial” (que
de Campana conduz a Luzi e a Zanzotto) e uma linha chamada
“existencial”, proposta por Mengaldo,2562578na polaridade entre uma
tendência hínica e uma tendência elegíaca, salvo se verificado que
elas jamais se dão em absoluta separação.
Nesse campo de tensões, a poesia de Francesco, que aí transita
quase in limine como um meteoro, em 1996, com Genere, opera uma

9. O torso órfico da poesia


inédita hibridação. Por certo que a coletânea, como os Cantos de
Campana, está a tal ponto fora da “linha oficial”, baixa e elegíaca da
poesia italiana do Novecentos que, não obstante a aguda apresentação
de Michele Ranchetti, ela escapou sem perdão da recente e até
demasiado exaustiva reunião de “sessenta e quatro poetas italianos
entre os dois séculos”.257258O caráter específico da harmonia austera
de Nappo repousa não no isolamento da palavra, mas no domínio
de um uso impenetrável do sintagma nome-adjetivo que, como uma

CO
m
sorte de kenning,2SS ameaça e quebra a inteligibilidade do sentido.
Como na kenning dos escaldos, um nome especifica um outro de
maneira a distorcer-lhe o sentido, produzindo uma impressão de
obscuridade que mantém o leitor em suspenso. Em Nappo, deste
modo, o adjetivo por assim dizer devora o sentido do substantivo,
perfura-o e modifica a “substância” (Ranchetti observa que “o
adjetivo traspassa o nome”). Uma vez que essa kenning singular
se encontra quase em toda poesia, às vezes em todos os versos,
bastará aqui alguns exemplos: “céu isósceles”, “errante clausura”

256 P. V. Mengaldo, La tradizione dcl Noveeenlo. Nitove serie, Vallecchi, Firenze,


1987, p. 19.
257 Parolaplurale, edição de A. Cortellessa et al„ Koma, âOOS.
258 O kenning é uma figura poética usual na lileralura germânica medieval, pela
qual determinado nome é expresso por i nml>m.n,oe-, de lermos que guardam
com ele relações apenas indiretas e nao imrdi.il.i-. ( NI )
“coisas indefectíveis”, “sangue coevo”, “defectivo fulgor”, “gótica
promessa”, “instável janeiro”, “avulsa festa”, “pêssegos sagazes”... O
que define, no entanto, a valência hínica da kenning nappiana não é
tanto a dificuldade da aproximação quanto o fato de que, no limite,
a poesia tende a apenas ser constituída por uma lista de sintagmas
nome-adjetivo em função de frases nominais. A parataxe hínica se
faz absoluta e a pulsão nomeadora, levada ao extremo, resolve-se em
algo que não é mais nome.
Valha como exemplo a abertura programática de Genere:
aquilo a que (ou, talvez melhor, por meio do que) o poeta diz o seu
amor - talvez a sua própria poesia - é definido por uma quádrupla
kenning:

Argomento di voce,
notte anteriore,
cantica terza e
dubitata effigie, per te
dico il mio amore.259

Ou, sempre em Genere, a inserção lapidar

Inferta gemma,
splendore attribuito.260

E o moralizante quarteto:

Imperfectio santíssima,
difettivo fulgore,
sonno dei poveri,
sogno dei signori.261

Ou, ainda, na segunda coletânea, o incipit de Sorelle:

259 “Argumento de voz, / noite anterior, / cantiga terceira e / duvidada efígie, para
ti / digo o meu amor” (N.T.).
260 “Infligida gema / esplendor atribuído." (N.T.).
261 “Imperfectio santíssima, / drlethvo fulgm. / sono dos pobres, / sonho dos
senhores” (N.T.).
r

Dasiatiche novizie
straniato stuolo, errante
clausura. 262

Ou os quatro versos que buscam formar um único nome sem


fratura de verbo, em Al ponte delia pérsica:

Policroma serra irrecinta,


vivíssima ombra migrata
da pievi deserte di canti,
la terra confusa e clemente...263

O extremar do impulso nomeador, em todos esses casos,


dilata a tal ponto os contornos da coisa nomeada que chega a colocar

9. O torso órfico da poesia


em questão o próprio poder denotador da língua.
Uma séria história da referência órfica da poesia moderna
ainda está por ser feita. Foi Mallarmé, na carta a Verlaine de 16 de
novembro de 1885, que em definitivo inscreveu o orfismo na agenda
do poeta moderno: “Lexplication orphique de la Terre, qui est le seul
devoir du poète et le jeu littéraire par excellence...”;264 e é singular
que a passagem prossiga colocando em paralelo o livro que dele
resulta com a sua equação hínica: “car le rythme même du livre,
alors impersonnel et vivant, jusque dans sa pagination, se juxtapose
aux équations de ce rêve, ou Ode”.265
Mais do que verificar as fontes mais ou menos espúrias
dessa vocação órfica da poesia moderna, na qual incunábulos da
filologia românica, como o Aglaophamus sive de theologiae mysticae
Graecorum causis, de Lobeck, cruzam-se com esoteristas diletantes
como Eliphas Lévy, V. E. Michelet e Schuré, é importante interrogar-
se sobre as razões e, sobretudo, sobre as funções poetológicas desse

262 “D’asiáticas noviças / estranhada multidão, errante / clausura” (N.T.).


263 “Policroma serra incindida / vivíssima sombra migrada / das igrejas desertas
de cantos, / a terra confusa e clemente..." (N.T.).
264 “A explicação órfica da Terra, que é o único dever du poela e o jogo literário por
excelência...” (N.T.).
265 “pois o próprio ritmo do livro, então impessoal e vivo. alé mesmo na sua
paginação, justapõe-se às equações desse ........ <>de" (N.T.).
incongruente ressurgimento religioso. É certo que esta vocação
coincide, no Novecentos, com a redescoberta do orfismo por parte
dos filólogos e dos historiadores das religiões: mas Campana está
claramente adiantado, pois a sua titulação órfica antecede não
somente a publicação dos Orphicorum fragmenta, de Kern (1922,
talvez Rilke tenha tido tempo de lê-los para os seus Sonetos), mas
também a edição das estupendas Lamellae aureae orphicae, de
Olivieri (1915). E também a publicação de Orpheus. Histoire générale
des religions (1909), de Salomon Reinach, que apenas dedica poucas
páginas ao orfismo, o nome do mítico poeta tendo se tornado
sinônimo de religiosidade e de paixão soteriológica (como Dionísio,
ele sofre o sparagmos e a homofagia ritual).
Caso se queira continuar a fazer uso dessa categoria decerto
pouco transparente, será necessário especificar que o orfismo não
é um conteúdo da poesia, mas, como o hermetismo, ele se joga por
Categorias italianas

inteiro sobre o vivo tecido da forma poética, como um enxerto que


procura dar novamente vida àquele polo hínico cujo eclipse tinha
sido assinalado pela modernidade. Portanto, ressurreição não
apenas da harmonia austêrà contra a harmonia glaphyra, da tensão
em direção ao nome contra a plenitude hipotática, mas também
negação do “pressuposto antropológico” da poesia moderna em
'O
ln

favor da afirmação de um “pressuposto teológico”, com tudo o


que isso implica quanto ao “desaparecimento elocutório” do eu do
poeta. Spinoza definia o seu gesto filosófico com o axioma lapidar:
Cartesium incepisse a mente, se incipere a Deo:266da linha hínica da
poesia italiana contemporânea, de Rebora (pensando sobretudo nos
Canti anonimi raccolti da Clemente Rebora) a Campana e Nappo, é
preciso ainda dizer que ela não começa pelo homem, mas por Deus
(mas também isso deverá ser entendido não tanto no plano dos
conteúdos quanto como princípio formal: a estratégia expressiva da
linguagem poética aqui não se move do eu para o mundo, mas do
mundo para o eu).
Nesse sentido, no caso de Nappo é preciso inverter a imagem
heideggeriana segundo a qual o homem está “a caminho da
linguagem” para perguntar se: em direção a quem e a quê está a

266 “Descartes começou a partir tl.i nii-nlr, rir a partir ile Deus” (N.T.).
caminho a língua? Isso com a condição de especificar de imediato
que a viagem aqui cumprida pela língua vai ao além-túmulo, e que
a língua da poesia de Nappo é, segundo o denso dogma pascoliano,
uma língua morta. Desde quando Pascoli apresentou nos Pensieri
scolastici, quase com descuido, a sua implacável denúncia, a grande
estação da poesia italiana do Novecentos, de Montale a Penna e
Caproni, fez com que os críticos se esquecessem da sua pertinência.
Mas os poucos e lúcidos poetas da geração de Nappo (do que
testemunha a língua “arruinada” e “seca” de De Signoribus) sabem
que aquela estação não protege mais a sua língua, o que faz com
que tenham de confrontar-se outra vez com a morte da língua. Nas
lamelas áureas encontradas nos tympanoi órficos, o morto implora
obstinado: “Dipsai ã ’eim’ayos, morro de sede, dá-me de beber a

9. O torso órfico da poesia


água gélida que vem do lago de Mnemosyne”.267 As poesias de
Nappo são as lamelas órficas depositadas sobre a língua morta da
poesia, que a acompanham na sua viagem para o além do humano
(mas não em direção a Deus, de quem, antes, provêm). Língua
interrompida e espectral, com sede de memória, que parece no
entanto continuamente esquecer o que recorda (como a “recordação
que não se recorda de nada” em Campana). Por isso as estupendas
inserções dialetais (Galactotrofusa, I nomi, ’A chianca e cavalló)

en
não são a insurgência de algo vivo em um contexto sepulcral, mas o
urgir na língua morta de um idioma ainda mais espectral, relicário
infinita e memoravelmente remoto.
É apenas nesse sentido que se pode falar de uma “religiosidade”
da poesia de Nappo. Ranchetti tinha observado que a dedicatória
de Genere ao marechal soviético suicida contém uma memória da
também intempestiva dedicatória dos Cantos órficos a “Guilherme
II, imperador dos Alemães” (que o autor depois tentou apagar
nos exemplares que tinha conseguido encontrar). O comunismo
evocado na dedicatória de Genere, como a religiosidade “do povo
iliterato de Nápoles” que fornece o título à segunda coletânea, Requie
materna, tem aqui primeiramente uma função poetológica (como
o catolicismo em Rebora, antes que, com a conversão, colapsasse

267 “Dipsai cTeimáyos, brucio di sete, dalcini da Ix-n- l'.u <|ii.i gelida clu* vienc dal
lago di Mnemosyne” (N.T.).
na redação dos hinos no sentido estrito do termo, que assinalam
o fim da sua estação poética). A escatologia messiânica concerne
primeiro à língua. Pois a sua particular tensão hínica dá à poesia de
Nappo aquela consistência de pedregulho errático que faz dela um
fenômeno único na instabilidade da língua poética do Novecentos.
Contra a “filosofia implícita da destronação” (uma provável flechada
em Montale) de que falava Luzi no ensaio citado, Nappo não celebra
novas coroações, mas eleva na língua a sua tênue ethoimasia tou
thronou, na qual, como nos mosaicos das basílicas bizantinas, as
asas dos serafins circundam um trono rigorosamente vazio. Nela,
hino e elegia chocam-se com um impacto surdo mas enorme, no
qual o hino fecha a boca da elegia, e o lamento apaga a pretensão
nomeadora do hino. O indecidível de celebração e lamento daí
resultante deixa um campo de ruínas em que desponta algo como
um torso órfico da poesia, o prólogo epilogal de uma nova língua
Categorias italianas

poética, isso caso seja verdade que a poesia italiana não poderá
mais por longo tempo continuar a roer a amarga casca elegíaca da
“felicidade negada”.
01
00
Paródia

Na Ilha de Arturo, Elsa Morante escondeu uma meditação


sobre a paródia que, na verdade, parece também conter uma
indicação decisiva sobre a sua própria poética. O termo “Paródia”
(em maiúscula) aparece de maneira imprevista no livro, como
epíteto em aparência injurioso, da personagem talvez central do
livro, Wilhelm Gerace, ídolo e pai de Arturo, a voz narradora. Este,
ao ouvir pela primeira vez a palavra (mais ainda, ao traduzi-la da
linguagem secreta dos silvos que ele acreditava ser o único a dividir
com seu pai), não entende muito bem o seu significado e repete-a
mentalmente para não a esquecer. Quando retorna para casa
consulta um dicionário e encontra a seguinte resposta: “Imitação
de um verso de outrem, na qual aquilo que antes era sério é tornado
ridículo, cômico ou grotesco”.
A intrusão desta definição de manual de retórica em um texto
literário não pode ser casual. Ainda mais porque o termo reaparece
pouco antes do final do romance, no episódio que contém a revelação
última, que o levará à separação do pai, da ilha e da infância. Tal
revelação soa assim: “Teu pai é uma Paródia!” Desta vez, Arturo,
recordando a definição do dicionário, em vão procura, na figura
magra e graciosa do pai, aqueles aspectos cômicos ou grotescos que
poderiam justificar o epíteto. Até que compreende, pouco depois,
que o pai está enamorado do homem que o insultou. () nome de um
gênero literário é aqui a cifra de uma inversão que uno diz respeito à
transposição do sério ao cômico, mas ao objeto do desejo. A mesma
razão possibilitaria dizer, no entanto, que a homossexualidade da
personagem é a cifra de seu ser nada menos que o símbolo de um
gênero literário pelo qual a voz narradora (que, óbvio, é também
a voz do autor) está enamorada. Segundo uma intenção alegórica
especial, da qual não é difícil encontrar precedentes nos textos
medievais, porém quase única em um romance moderno, Elsa
Morante fez de um texto literário - a paródia - o protagonista de seu
livro. A Ilha de Arturo aparece, nessa perspectiva, como a história
do desesperado amor infantil da autora por um objeto literário que
a princípio parece seríssimo e quase legendário, mas que ao final se
revela acessível apenas em forma paródica.
A definição de paródia no dicionário consultado por Arturo
é relativamente moderna. Ela provém de uma tradição retórica
cuja cristalização exemplar encontra-se no final do século XVI, em
Categorias italianas

Scaligero, que dedica à paródia todo um capítulo da sua Poética. A


definição que ali se lê constituiu um modelo que serviu de base, por
séculos, para a tratadística sobre o tema: “Como a Sátira deriva da
Tragédia e o Mimo da Comédia, assim também a Paródia deriva
da Rapsódia. Quando, com efeito, os rapsodos interrompiam
sua recitação, entravam em cena aqueles que, por amor ao jogo e
VO
o

para estimular o ânimo dos ouvintes, invertiam tudo aquilo que


havia lhes precedido [...]. Por isso estes cantos foram chamados
paroidous, porque junto a outros argumentos sérios eles inseriam
coisas ridículas. A Paródia é portanto uma Rapsódia invertida que
transforma o sentido em ridículo trocando as palavras. Era alguma
coisa similar à Epirrema e à Parábase”.
Scaligero era uma das mentes mais agudas de seu tempo, e
sua definição contém elementos, como a referência à recitação dos
poemas homéricos (a rapsódia) e à parábase cômica, aos quais iremos
logo mais retornar. De qualquer maneira, os dois traços canônicos
da paródia são fixados: a dependência de um modelo pré-existente,
transformado de sério em cômico, e a manutenção de elementos
formais nos quais são inseridos conteúdos novos e incongruentes. A
partir daqui, a passagem ale as definições dos manuais modernos,
das quais deriva aquela que tanto d eu o que pensar a Arturo, é breve.
As paródias sacras medievais, como a Missae potatorum e a Coena
Cypriani, que introduzem conteúdos grosseiros na liturgia da missa
ou no texto da Bíblia, são nesse sentido um exemplo perfeito de
paródia.
O mundo clássico no entanto conhecia, acerca da “paródia”,
uma única - e mais antiga - acepção, que remetia o termo à esfera da
técnica musical. Tal concepção indica uma separação entre canto e
palavra, entre meios e logos. Na música grega, de fato, a melodia devia
originalmente corresponder ao ritmo da palavra. Quando, na recitação
dos poemas homéricos, este nexo tradicional se rompe e os rapsodos
começam a introduzir melodias que são percebidas como dissonantes,
diz-se que estes falam parà tên õidén, contra o canto (ou ao lado do
canto). Aristóteles nos informa que o primeiro a introduzir nesse
sentido a paródia na rapsódia foi Hegemone de Thaso. Sabemos, de
seu modo de recitar, que provocava nos atenienses risadas irrefreáveis.
Sobre o citarista Oinopas é dito que introduz a paródia na poesia
lírica, separando também aqui a música da palavra. A dissensão - ou,

10. Paródia
melhor, a indiferença - entre canto e linguagem aparece completa em
Callia, que compõe um canto no qual as palavras cedem seu posto à
soletração do ABC (beta alfa, beta eta, etc).
Disso resulta que a paródia, segundo esta mais antiga acepção

MD
do termo, designa o rompimento do nexo “natural” entre a música e a
linguagem, o afastamento do canto em relação à palavra. Ou ainda, ao
inverso, da palavra em relação ao canto. É este afrouxamento paródico
do vínculo tradicional entre música e logos que torna possível, com
Gorgia, o nascimento da prosa artística. O rompimento do vínculo
libera um parà, um espaço ao lado, no qual a prosa se instala. Mas isso
significa que a prosa literária traz em si o signo de sua separação do
canto. O “canto obscuro” que segundo Cícero se escuta no discurso
em prosa (est antem etiam in dicenão quidam cantus obscurior),26S
nesse sentido, consiste em um lamento pela música perdida e pelo
desaparecimento do lugar natural do canto.
Decerto não é novidade que a paródia constitui a chave
estilística do universo morandiano. Falou-se, quanto a isso, de
“paródia séria”.268

268 “há, com efeito, no dizer um canto mais o I>m iu o " (N.T.).
O conceito de “paródia séria” é obviamente contraditório,
não por que a paródia não seja uma coisa séria (é, inclusive, por vezes
seríssima), mas por que ela não pode pretender se identificar com a
obra parodiada, não pode negar o seu estar necessariamente ao lado
do canto (pará-õiáên) e o seu não ter lugar próprio. Sérias podem
ser, todavia, as razões que terão levado o parodista a renunciar a
uma representação direta de seu objeto. Para Morante elas são tão
evidentes quanto substanciais: o objeto que ela deveria descrever
- a vida inocente, ou seja, fora da história - é a rigor inenarrável.
A precoce explicação que Elsa fornece em um fragmento de 1950,
tomada de empréstimo ao mito hebraico-cristão, é para sua poética
definitiva: o homem foi expulso do Éden, perdeu seu lugar próprio e
foi lançado, em companhia dos animais, em uma história que não lhe
pertence. O objeto mesmo da narração é, nesse sentido, “paródico”,
ou seja, posto fora, e o escritor pode apenas repetir e imitar a íntima
Categorias italianas

paródia. E na medida em que pretende evocar o inenarrável, deverá


necessariamente recorrer a meios pueris e, como sugere a autora
no final do livro, num dos raros momentos em que rouba a voz de
Arturo, a “vícios romanescos”. Elsa se vê assim forçada a contar
com leitores experientes, capazes de suprir o insuportável caráter
estereotipado e paródico de muitas de suas personagens que, como
Useppe e o próprio Arturo, parecem ter saído de um livro ilustrado
infantil, metade Coração [Cuore] metade A ilha do tesouro [L’isola
dei tesoro], metade fábula e metade mistério.
Que a vida possa, na literatura, apresentar-se apenas nos
termos de um mistério é, para Elsa, um teorema evidente (“Assim
a vida continua então um mistério”,269 constata Arturo antes da
última despedida). Sabemos que nos mistérios pagãos os iniciados
assistiam a ações teatrais nas quais compareciam brinquedos: piões,
jogo das panelas de barro [pigne], espelhinhos (puerilia ludicra,
como os define um informante de má índole). É útil refletir sobre
aspectos pueris de todo mistério, sobre a íntima solidariedade com
que ele se liga à paródia. Somente paródia pode ser feita do mistério:
qualquer outra tentativa de evocá-lo cai no mau gosto e no enfático.
Nesse sentido, paródica é a rcpresrnlaçiio por excelência do mistério

269 “Cosi dunque la vita ò rimasl.i un (N.T.).


moderno: a liturgia da missa. Testemunhas disso são as inumeráveis
paródias sacras medievais, nas quais estão a tal ponto ausentes
intenções profanatórias que elas foram conservadas pelas mãos
devotas dos monges. Diante do mistério a criação artística nada
mais pode senão fazer-se caricatura, no sentido em que Nietzsche,
no lúcido limiar da loucura, escrevia a Burckhardt: “sou deus, fiz
esta caricatura; prefiriria antes ser professor na Basiléia que deus,
mas não posso ir tão longe em meu egoísmo”. É em razão de uma
espécie de probidade que o artista, consciente de não poder levar seu
egoísmo até o ponto de querer representar o inenarrável, assume a
paródia como a forma mesma do mistério.
A instituição da paródia como forma do mistério define
porventura o mais extremo entre os contratextos paródicos do
Medievo, que revolve na mais desenfreada escatologia a aura
mistérica que está no centro da intenção cavalheiresca. Trata-se do
Audigier, um poemeto em francês antigo composto por volta do final
do século XII e conservado em um único manuscrito. A genealogia e

10. Paródia
a existência do anti-herói (que é o protagonista) estão desde o início
inscritas em uma constelação de caráter decisivamente cloacal.
Turgibus, seu pai, é senhor de Cocuce, “um país pantanoso / onde a
gente está com a merda até o pescoço. / Por um riacho de esgoto lá
cheguei nadando: / não é possível jamais sair por outro buraco”.270
Sobre este nobre senhor, de quem Audigier se revela digno herdeiro,
sabemos que “quando cagou até encher o capuz / enfia seus dedos
na merda, e depois os chupa”.271 O verdadeiro núcleo paródico do
poema, porém, está na contrafação do cerimonial cavalheiresco
do adoubement, realizado em uma estrumeira e, sobretudo, nos
repetidos embates com a enigmática velha Grinberge, que sempre
acabam em uma espécie de zombaria sacramentária escatológica,
conhecida pelo “verdadeiro cavalheiro” [“vero gentiluomo”]
Audigier:

270 “un paese molle / dove la gente st a nclla m e rd a li no al eolo. / Per un rivolo di
fogna ci arrivai anuoto: / non ne potei mai useire p e r a llro Imco” (N.T.).
271 “quando ha cacato da riempire il cappuei io / In <a i dili nella m e r d a , e poi li
ciuccia” (N.T.).
Grinberge a decouvert et cul et con
et sor le vis li ert a estupon;
du cul li chiet la merde a grant foison:
Quans Audigier se siet sor un fumier envers,
et Grinberge sor lui qui li froie les ners.
ii. foiz li fist baisier son cul ainz qu’il fust ters...
Grinberge descobriu o cu e o grelo
e sobre seu rosto se abaixou;
do cu caía merda aos borbotões.
Quando Audigier sentou sobre o esterqueiro
Grinberge sobre ele lhe roçou os tendões.
Duas vezes o fez lamber o cu antes que ficasse limpo...272

Aqui não se trata tanto, como foi sugerido, de uma regressão


uterina ou de uma prova iniciática sobre as quais poderiam ser
encontrados precedentes no folclore, mas, sobretudo, de uma
Categorias italianas

inversão audaz do próprio colocar em jogo na quête cavalheiresca


e, mais em geral, do objeto do amor cortês, que desde a esfera
prestigiosa do sacro é reconduzido de maneira brusca para aquela
profana da estrumeira. É assim possível que o ignoto autor do
poemeto, desse modo, nada mais faça que cruamente explicitar uma
intenção paródica já presente na literatura cavalheiresca e na poesia
CTs

amorosa: confundir e tornar duravelmente indiscernível o limiar


que separa o sacro e o profano, o amor da sexualidade, o sublime
do ínfimo.
A dedicatória poética posta no princípio da Ilha de Arturo
institui uma correspondência entre a “ilheta celeste” que é o lugar
do romance (a infância?) e o limbo. A correspondência contudo
possui uma cláusula amarga, assim anunciada:/ora do limbo não há
elísio.273Amarga porque implica que a felicidade pode apenas existir
de forma paródica (como limbo, não como elísio, ainda uma troca
de lugar).

272 “Grinberge ha messo a mulo culo e fregna / e sulla faccia gli si è acciambellata;
/ dal culo le cade merda a prol iisioue. / 111 onlc Audigier sopra un letemaio sta
riverso, / e sului Grinberge i lie li s l m p u < 1.11 leiulini. / Due volte gli fecebaciare
il culo prima che fosse lorso..." (N.T.).
273 “fuori dei limbo non v'r elisu" ( NI )
A leitura dos tratados teológicos sobre o limbo revela, sem
sombra de dúvidas, que os padres da igreja concebiam o “primeiro
círculo” como uma paródia ao mesmo tempo do paraíso e do
inferno, tanto da beatitude como da danação. Do paraíso, na medida
em que este abriga criaturas - crianças mortas antes do batismo
ou pagãos justos que não puderam conhecê-lo - que são, como os
beatos, inocentes, e todavia trazem consigo o pecado original. O
elemento mais ironicamente paródico, entretanto, diz respeito ao
inferno. Segundo os teólogos, a punição aos habitantes do limbo
não pode ser uma pena aflitiva, como aquela aplicada aos danados,
mas somente uma pena privativa, que consiste na perpétua carência
da visão de Deus. Esta carência, que constitui a primeira das penas
infernais, não provoca dores, à diferença do que ocorre com os
danados. À medida que possuem apenas a consciência natural e
não a sobrenatural, derivada do batismo, a falta do bem supremo
não causa neles o menor pesar. As criaturas do limbo transformam
assim a pena maior em alegria natural, que por certo é uma forma
extrema e especial de paródia. Daí também o véu de tristeza que,
no entanto, “como algo cinza”, cobre, aos olhos de Morante, a ilha
inviolada. A “casa dos rapazes” (“casa dei guaglioni”) que evoca,
com o seu próprio nome, o limbo infantil, contém, com a memória
dos festins homossexuais de Amalfitano, uma paródia da inocência.
Em um sentido particular, toda a tradição da literatura
italiana está sob o signo da paródia. Gorni mostrou como a
paródia (ainda que na forma séria) é um constituinte essencial do
estilo dantesco, que busca produzir um duplo com quase a mesma
dignidade em relação às passagens da Sagrada Escritura que
reproduz. Mas a presença de uma instância paródica na literatura
italiana é ainda mais íntima. Todos os poetas são enamorados pela
sua língua. Amiúde, porém, algo lhes é revelado através da língua,
que os rapta e ocupa por inteiro: o divino, o amor, o bem, a cidade,
a natureza... Com os poetas italianos - ao menos a partir de um
certo momento - verifica-se um falo singular: eles são enamorados
somente de sua língua, e ela lhes revela somente a si mesma. E isso
é causa - ou, talvez, consequência de um oul ro làlo singular, qual
seja, que os poetas italianos odeiam a sua lingua na mesma medida
em que a amam. Por isso, no seu caso, a paródia não procede apenas
inserindo conteúdos mais ou menos cômicos em formas sérias, mas
parodiando, por assim dizer, a própria língua. Ela introduz (ou, o
que é o mesmo, descobre) na língua (e, assim, no amor) uma cisão.
O obstinado bilinguismo da cultura literária italiana (latim/vulgar
e, mais tarde, com o progressivo declínio do latim, língua morta/
língua viva, língua literária/dialeto) tem nesse sentido por certo uma
função paródica. De maneira poeticamente constitutiva, como é, em
Dante, a oposição gramática/língua materna; em formas elegíacas
e pedantes, como no Hypnerotomachia, ou desbocadas como em
Folengo. O essencial, em todo caso, é que seja possível instaurar na
língua uma tensão e um desnível, sobre os quais a paródia instala
sua central elétrica.
É fácil mostrar os êxitos dessa tensão na literatura do
Novecentos. A paródia não é aqui um gênero literário, mas a própria
Categorias italianas

estrutura do meio linguístico em que a literatura se exprime. Aos


escritores que promovem o dualismo como uma sorte de discórdia
interior à língua (Gadda e Manganelli) se opõem escritores que, em
verso ou em prosa, celebram parodicamente o não-lugar do canto
(Pascoli e, de modo diverso, Elsa Morante e Landolfi). É de resto e
de todo evidente que se cante - e se fale - apenas ao lado (da língua
CT\
CS

e do canto).
Se a pressuposição da impossibilidade de atingir seu objeto é
essencial para a paródia, então a poesia trovadoresca e estilonovista
contém uma indubitável intenção paródica. Isso explica o caráter
ao mesmo tempo complicado e pueril de seu cerimonial. O amor
de lohn é uma paródia que garante o caráter não aproximável
[;inavvicinabílità] daquilo a que procura unir-se. Isso também é
verdadeiro no plano linguístico. Preciosismo métrico e trobar
clus inserem na língua desníveis e polaridades que transformam
a significação em um campo de tensões destinadas a permanecer
inesgotáveis.
Tensões polares no cnlanto afloram também no plano
erótico. Desde sempre causa espanto a presença de uma pulsão
lasciva e burlesca ao lado da mais refinada espiritualidade, com
frequência convivendo na mesma pessoa (o caso exemplar é Arnaut,
cuja sirvente obscena não cessa de preocupar os estudiosos). O
poeta, obsessivamente ocupado em afastar o objeto do amor, vive
em simbiose com um parodista, que pontualmente inverte suas
intenções.
A poesia de amor nasce na modernidade sob a insígnia
ambígua da paródia. O Canzoniere de Petrarca, que de maniera
decidida volta as costas à tradição trovadoresca, é a tentativa de
salvar a poesia da paródia. A sua receita é tão simples quanto eficaz:
monolinguismo integral no plano da língua (latim e vulgar são
separados até se tornarem incomunicáveis, os desníveis métricos
abolidos); eliminação do caráter não aproximável [inavvicinabilità]
do objeto de amor (não em sentido realístico, por certo, mas
transformando o não aproximável [inavvicinabile] em um cadáver -
ou melhor, em um espectro). A “aura” [Vaura] morta é, então,
o objeto próprio e imparodiável da poesia. Exit parodia. Incipit
litteratura.
A paródia reprimida reaparece, porém em formas patológicas.

10. Paródia
O fato de a primeira biografia de Laura dever-se a um antepassado
de Sade, que a inscreve na genealogia familiar, não é apenas uma
coincidência irônica. Ela anuncia a obra do Divino Marquês como
a subversão mais implacável do Canzoniere. A pornografia, que

o\
mantém inatingível o próprio fantasma no mesmo gesto com que,
de modo imperceptível, dele se aproxima, é a forma escatológica da
paródia.
Fortini estendeu a Pasolini a fórmula da “paródia séria”
morantiana. Ele aconselha ler o último Pasolini em estreito diálogo
com Morante. Tal sugestão pode ser ulteriormente desenvolvida.
Até certo ponto Pasolini não apenas dialoga com Morante (que
nas poesias é com ironia chamada Basilissa) mas dela fornece
uma paródia mais ou menos consciente. Além disso, o próprio
Pasolini começara com uma paródia linguística (as poesias
friulanas, o uso incongruente do romanesco). Mas nos passos de
Morante, e com a passagem ao cinema, ele desloca a paródia para
os conteúdos, carregando-a de um significado metafísico. Como
a língua, também a vida traz consigo uma cisão (a analogia não
surpreende, pois é ajusta equação leológiia enlre vida e palavra
que marca profundamente o universo cristão). O poeta pode viver
“sem os confortos da religião”, mas não sem aqueles da paródia. Ao
culto morantiano de Saba contrapõe-se agora o culto de Penna, à
“longa celebração morantiana da vitalidade” a trilogia da vida. Aos
angélicos jovens que devem salvar o mundo, responde a santificação
de Ninetto. Como fundamento da paródia, em ambos os casos, está
um irrepresentável. E, por fim, também aqui a pornografia aparece
com uma função apocalíptica. Não seria ilegítima, nessa perspectiva,
a leitura de Salò como uma paródia da Storia.
A paródia entretém relações especiais com a ficção, que desde
sempre constitui a contra-senha da literatura. À ficção - de que
Morante sabe ser mestra - é dedicada uma das mais belas poesias de
Alibi, que ao modo de um compêndio anuncia o tema musical: “de
ti me cinjo, ficção, fátua veste...”.274 E a própria língua de Morante,
como notou Pasolini, é uma pura ficção (“[Ela] finge que o italiano
Categorias italianas

exista” ).275 Mas a paródia, na verdade, não apenas não coincide com
a ficção como constitui o seu oposto simétrico. Isso porque a paródia
não coloca em dúvida, como a ficção, a realidade de seu objeto -
este é tão insuportavelmente real que se trata, aliás, de mantê-lo a
distância. Ao “como se” da ficção, a paródia opõe o seu drástico
“assim é demais” (ou “como se não”). Por isso, se a ficção define a
vo
00

essência da literatura, a paródia se situa, por assim dizer, no limiar


daquela, estendida com obstinação entre realidade e ficção, entre a
palavra e a coisa.
Porventura, em parte alguma seja possível apreender a
afinidade e, ao mesmo tempo, a distância entre esses dois polos
simétricos de qualquer criação como na passagem de Beatriz a
Laura. Ao fazer morrer seu objeto de amor, Dante, com certeza,
dá um passo além da poesia trovadoresca. O seu gesto, entretanto,
ainda permanece paródico; a morte de Beatriz é uma paródia que,
separando o nome da criatura mortal que o traz, dela recolhe a
essência beatificante. Daí a absoluta ausência de luto, daí o triunfo
final não da morte mas do amor. A morte de Laura, ao contrário, é
a morte da consistência paródiea do objeto de amor trovadoresco e

274 “di tefinzione mecingo, tatua v<v.l<\ . (N.T.).


275 “[Essa] finge che 1’italiann i i m.i” (N í )
estilonovista, o seu tornar-se quase apenas “aura”, apenas um flatus
voeis.
Os escritores se distinguem, nesse sentido, segundo a sua
inscrição em uma ou oqtra dessas duas classes: a paródia e a ficção,
Beatriz e Laura. Soluções intermediárias são todavia possíveis:
parodiar a ficção (é a vocação de Morante), ou ficcionalizar a paródia
(é o gesto de Manganelli e Landolfi).
Se, prosseguindo a vocação metafísica da paródia, leve-se ao
extremo o seu gesto, é possível dizer que ela pressupõe, no ser, uma
tensão dual. À cisão paródica da língua deverá necessariamente
corresponder uma reduplicação do ser, à ontologia uma para-
ontologia. Certa vez Jarry definiu o seu benjamim, a patafísica, como
a ciência daquilo que se agrega à metafísica. Será possível dizer, no
mesmo sentido, que a paródia é a teoria - e a prática - daquilo que
está ao lado da língua e do ser - ou do estar ao lado de si mesmo de
qualquer ser e de qualquer discurso. E como a metafísica, ao menos
para os modernos, é impossível a não ser como abertura paródica

10. Paródia
de um espaço junto à experiência sensível, que deve, entretanto,
permanecer vazio com todo rigor, assim também a paródia é um
terreno notoriamente impraticável, no qual o'\najante amiúde colide
com limites e aporias que não pode evitar, e dos quais tampouco
consegue encontrar uma rota de saída.
Se a ontologia é a relação - mais ou menos feliz - entre
linguagem e mundo, a paródia, enquanto para-ontologia, exprime
a impossibilidade de a língua alcançar a coisa, e a impossibilidade
de a coisa encontar o seu nome. O seu espaço - a literatura - é então
necessário e teologicamente assinalado pelo luto e pelo escárnio
(como o da lógica é marcado pelo silêncio). Desse modo, todavia,
ela é testemunha daquela que parece a única verdade possível da
linguagem.
Na sua definição da paródia, Scaligero, em certa passagem,
menciona a parábase. Na linguagem técnica da comédia grega, a
parábase (ouparekbasi) designa o momento em que os atores saem
de cena e o coro se dirige diretamente aos espectadores. Para fazer
isso, para poder falar ao público, ele se desloca (/mmibanõ) à parte
do proscênio dita logeion, lugar do discurso.

(
No gesto da parábase, quando a representação se interrompe,
e atores e espectadores, autor e público, trocam os papéis, a tensão
entre cena e realidade se atenua, e a paródia conhece talvez a sua
única dissolução. A parábase é uma Aufhebung - uma transgressão
e um cumprimento - da paródia. Por isso Friedrich Schlegel,
como sempre atento a toda possível superação irônica da arte, vê
na parábase o ponto no qual a comédia vai além de si mesma em
direção ao romance, a forma romântica por excelência. O diálogo
cênico - íntima e parodicamente dividido - abre um espaço ao
lado (representado em termos físicos pelo logeion) e torna-se apenas
colóquio, conversação simples e humana.
No mesmo sentido, em literatura, o voltar-se da voz narrativa
para o leitor, assim como os famosos apelos do poeta ao leitor, são
uma parábase, uma interrupção da paródia. Nessa perspectiva,
convirá refletir sobre a função eminente da parábase no romance
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moderno, de Cervantes até Morante. Convocado e deportado para


fora de seu lugar e de sua posição, o leitor tem acesso não àqueles
ocupados pelo autor, mas a uma sorte de entre-mundo. Se a paródia,
a cisão entre canto e palavra e entre linguagem e mundo, comemora
na realidade a ausência de lugar da palavra humana, aqui, na
parábase, essa inquietante atopia por um instante se aplaca, anula-
se em pátria. Como diz Arturo, da sua ilha: “prefiro fingir que não
tenha existido. Por isso, até o momento em que não se vê mais nada,
será melhor que não olhes para lá. Nesse momento, avisa-me”.276

276 “preferisco fingere chc non si.i csistii.i. IVn iò, (inn al momento che non se ne
vede piü niente, sarà mcglio i h<- non gu.udi l.i. Tu avvisami, a quel momento”
(N.T.).
esta do
tesouro

Tenho o exemplar da Ética de Spinoza que pertencera a Elsa


Morante - ganhei-o de Cario Cecchi, como lembrança da autora.
Trata-se da edição nos Clássicos da filosofia Sansoni, de 1963, que
reproduz o texto latino e as notàrda edição organizada em 1915 por
Giovanni Gentile para a Laterza, acrescentado da tradução italiana
de Gaetano Durante. A particular veneração de Elsa por Spinoza
é testemunhada, como se sabe, pela sua posição no topo da árvore
genealógica da Canzone degli F. P. e degli I. M., em companhia de
Simone Weil, Giordano Bruno, Gramsci, Rimbaud, Mozart, Joana
DArc, Giovanni Bellini, Platão e Rembrandt. Transcrevendo esse
elenco, percebo que os filósofos são a maioria, e que isso poderia
ser o ponto de partida para uma investigação sobre as relações, de
nenhum modo estabelecidas, de Elsa com a filosofia, mas que, no
entanto, não é meu propósito iniciar.
Não é motivo de surpresas, então, que o exemplar da Ética
em questão contenha várias marcas marginais de Elsa, em forma
de estrelas, linhas, pontos de interrogação e exclamação alternados
e, por fim, em um único caso .significa li vo, de uma verdadeira
anotação de leitura. É dessa última marginalin em sentido técnico
que gostaria de brevemente lhes lalar. pois ela testemunha um
desacordo brusco e não episódico que projeta, parece-me, uma luz
singular sobre certas tenazes convicções filosóficas de Elsa.
Olhemos, primeiro, para as marcas precedentes. A primeira,
em forma de uma bela estrela vermelha, acompanha as definições
que abrem o livro primeiro da Ética, em particular a sexta, isto é, a
célebre definição de Deus: “Entendo por Deus um ser absolutamente
infinito, isto é, uma substância constituída por uma infinidade
de atributos, cada um dos quais exprimindo uma essência eterna
e infinita”. Elsa sublinhou a explicação que segue imediatamente:
“Digo infinito absolutamente, e não infinito no seu gênero, porque
de tudo aquilo que é infinito somente no seu gênero podemos negar
uma infinidade de atributos; mas pertence, ao contrário, à essência
daquilo que é absolutamente infinito tudo o que exprime uma
essência e não implica nenhuma negação.”
Algumas páginas depois, uma dupla linha vermelha circunda
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a margem do escólio à proposição X, onde se lê: “Se alguém agora


pergunta de qual signo podemos então reconhecer uma diversidade
de substâncias, leia as proposições seguintes, que mostram que
na natureza não existe senão uma única substância, e que esta é
absolutamente infinita, e por isso tal signo seria procurado em vão”.
É fácil intuir como a ideia spinozista da unicidade da substância
divina, constituída por uma infinidade de atributos, cada um dos
quais exprimindo uma essência eterna e infinita, poderia fascinar
Elsa. E não será por certo surpreendente ver assinalado ainda por
uma estrela vermelha o importante corolário da proposição XXV,
que diz: “As coisas particulares não são nada além de afecções dos
atributos de Deus, isto é, os modos mediante os quais os atributos
de Deus são expressos em uma determinada maneira”. Que todas as
coisas e todos os seres viventes não sejam nada além dos modos em
que os atributos divinos se explicam e se exprimem, eis uma outra
ideia que devia resultar particularmente congenial a Elsa e, mais,
constituir uma das suas convicções mais profundas.
A partir desse ponto, as marcas se fazem mais raras até
desaparecerem completamenle justo no livro terceiro que, com a sua
tratativa das paixões, devia interessar i mensamente Elsa. As marcas
retornam inesperadamente no esiólio I cia proposição XXXVII
da quarta parte, em que uma dupla série de pontos de exclamação
e interrogação alternados marca tanto o texto latino quanto a
subsequente tradução e introduz, na margem inferior do livro, esta
consideração bruscamente discordante:

Oh, Baruch! Lamento por você, mas aqui você não


ENTENDEU277
A passagem de que essas palavras tomam distância é a
seguinte:

[...] onde se pode ver que a lei que proíbe de não matar os
animais é fundada mais sobre uma vã superstição e uma

11. A festa do tesouro escondido


feminina compaixão do que sobre a sã razão. O ditame
da razão, de procurar o nosso útil prescreve, por sua vez,
estreitar relações de amizade com os homens, mas não com
os animais ou com as coisas, cuja natureza é diversa da
natureza humana; nós, ao contrário, por força de tal ditame,
temos sobre os animais o mesmo direito que eles têm sobre
nós. De fato, já que o direito de cada um é definido pela
virtude ©uqrotência de cada um, os homens têm sobre os
animais um direito maior do que estes têm sobre os homens.
E todavia eu não nego que os brutos sintam; mas nego que por

u>
essa razão não seja lícito prover a nossa utilidade, servir-nos
deles ao nosso prazer e tratá-los como melhor nos convém,
uma vez que eles não concordam por natureza conosco, e os
seus afetos são por natureza diversos dos afetos humanos.

As razões do desacordo de Elsa são extremamente evidentes.


De resto, a tese de Spinoza choca de algum modo a nossa
sensibilidade e evoca um episódio da biografia do filósofo que para
muitos se mostra em contraste com a sua imagem: “Ele procurava -
diz Colerus - rãs que colocava em combate umas contra as outras,
ou moscas que jogava na teia de aranha; e observava essas batalhas
com tanto prazer, que às vezes desatava a rir”.
Devo debruçar-me sobre esse ponto não exatamente para
esclarecer um problema de exegese spinozista nem para defender

277 “O Baruch! me nedolgo per te, ma qui In min li.u ( AN I t >" (N.T.).
a coerência do filósofo, mas para lançar uma luz sobre as razões do
desacordo de Elsa, que podem ser muito menos óbvias do que pode
parecer à primeira vista.
No final da passagem que acabo de citar, Spinoza remete ao
escólio da proposição LVII da terceira parte.

Daqui segue - lemos aí - que os afetos dos animais ditos


irracionais (não podemos, de fato, duvidar de que os animais
sintam, após termos conhecido a origem da mente) diferem
tanto dos afetos dos homens quanto a sua natureza difere
da natureza humana. O cavalo e o homem são certamente
arrastados pelo desejo de procriar; mas aquele por um
desejo equino e este, ao contrário, por um desejo humano.
Assim, também os desejos e os apetites dos insetos, dos
peixes e dos pássaros devem ser diversos uns dos outros.
Desse modo, mesmo que todo indivíduo viva contente com
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a natureza de que é formado e dela goze, tal vida de que cada


um é contente e tal gozo nada mais são, todavia, do que a
ideia ou a alma desse indivíduo, e, por isso, o gozo de um
difere tanto do gozo do outro quanto a essência de um difere
da essência do outro.

O fato é que, para Spinoza, todos os seres viventes, sem


distinção, exprimem de determinada maneira os atributos de Deus.
Mas a essa absoluta proximidade ontológica, não somente entre
homens e animais, mas entre todos os indivíduos de cada espécie,
choca-se o seu divergir no plano da ética. Justo porque estão sob o
mesmo título, enquanto modos da única substância, podem eles
conviver ou não conviver segundo a diversidade das suas naturezas.
O maior direito do homem sobre os animais não exprime, portanto,
uma supremacia hierárquica ou ontológica, mas corresponde à
diversidade geral das naturezas viventes. Se houvesse, por hipótese,
um homem cuja potência fosse acrescida da existência da aranha
ou da mosca, e que conseguisse estabelecer amizade com elas, esse
homem faria bem, segundo Spinoza, em colocar todo seu cuidado
para preservar a vida dessas criaturas.
Se voltarmos agora a Klsa e considerarmos com mais atenção
as suas idéias sobre os animais c as razoes do seu desacordo com
Spinoza, estamos arriscados a ter uma surpresa. Qual é, de fato,
para Elsa, a razão da especial dignidade do animal que Spinoza
não “entendeu”? É simples: os animais são a única testemunha da
existência do paraíso terrestre e, por isso, também a única prova
do perdido estatuto edênico do homem. Essa tese absolutamente
séria é enunciada com irreverência nos dois fragmentos de 1950,
sobre o Paradiso terrestre e sobre o Vero re degli animali, em que
Elsa fala “da extrema prova de misericórdia que, mesmo na sua
severidade, o Pai Eterno dá ao homem, deixando-o a companhia
dos animais, os quais não tinham, como ele, comido o fruto da
ciência”. Essa é uma convicção presente, ao menos até certo ponto,
em toda a sua obra. Nos Diários, Kafka (o único autor de quem
Elsa jamais confessara ter sofrido influência) diz que “haviam três
diferentes modos de punir o pecado original: o mais suave, aplicado
efetivamente, é a expulsão do paraíso terrestre; o segundo era a
destruição do próprio paraíso; o terceiro - e esta teria sido a pena
mais dura - a proibição do acesso à vida eterna, deixando todo o
resto como antes”. Elsa começa aceitando a primeira possibilidade:
o hçtmem obteve a ciência do bem e do mal e, por isso, foi expulso do
Éden; os animais, imunes a esta sombra, permaneceram no Jardim.
Mas esse privilégio negativo abre entre eles e o homem um abismo
incolmatável, que os divide ainda mais do que a diversidade das
naturezas que os separa em Spinoza. A cisão, a ferida que atravessa
a obra de Elsa, não é simplesmente, como em Spinoza, a lacuna das
formas de vida, a pluralidade discordante dos diversos modos de
exprimir a única substância. É uma fratura que passa ao interior da
própria vida e a cinde em duas como uma lâmina finíssima segundo
o seu ter permanecido no Éden ou não, ter sido contaminada ou não
pela sombra da consciência. A pura vida animal (que é, obviamente,
também a vida natural do homem) e a vida humana, a existência
edênica e a consciência do bem e do mal, a natureza e a linguagem:
eis as margens da ferida que a herança judaico-cristã assinalou no
pensamento de Elsa, e que a separa dos seus amadíssimos gatos bem
mais do que Spinoza fora separado das suas aranhas e dos outros
“brutos”, ditos “irracionais”.
Mas se isso é verdade, se aquilo que Haruch não tinha
entendido é essa fratura irreparável, como cnl.m é que o nome do
filósofo, com uma escolha que os manuscritos mostram meditada,
figura no alto da árvore genealógica das Canzone, com a legenda “a
festa do tesouro escondido”? Com frequência me questionei sobre
qual poderia ser o significado dessa singular fórmula. De que festa
se trata? E qual é o tesouro escondido? E por quais vias Elsa chegou
a reconciliar-se com Baruch?
Alguns indícios para uma resposta estão contidos no escrito
sobre o Beato Angélico, no qual se fala da relação entre a luz e os
corpos. “As cores - escreve Elsa - são um presente da luz, que se
serve dos corpos [...] para transformar em epifania terrestre a sua
festa invisível [...]. Sabe-se que ao olhar dos idiotas (pobres ou
ricos) a hierarquia dos esplendores culmina no sinal do ouro. Para
aqueles que não conhecem a verdadeira e íntima alquimia da luz,
os minérios terrestres são o lugar do tesouro escondido”. A “festa
do tesouro escondido” é, portanto, o fazer-se visível, nos corpos,
Categorias italianas

da alquimia da luz. E essa alquimia é, na mesma medida, um


espiritualizar-se da matéria e um materializar-se de luz. E é essa
“festa” que a consciência do terceiro gênero revelou a Spinoza sub
quadam aeternitatis specie.2™
O encontro tardio com o Beato coincide então com o
momento “spinozista” em que Elsa depõe os seus “prejuízos” trágicos
e a sua mitologia edênica para mover-se em direção da sua visão
suprema, que, como a inteligência em Spinoza, é mais desesperada
que qualquer tragédia e mais alegre que qualquer comédia. Essa
reconciliação com Spinoza é importante porque faz contrapeso
a uma tentação que foi certamente forte em Elsa. Toda grandeza
contém uma íntima ameaça, com a qual está em luta incessante e
diante da qual, por vezes, sucumbe. E toda compreensão da obra que
não leve em conta essa parte de sombra (que não é absolutamente de
ordem psicológica) corre o risco de cair na hagiografia. Para Elsa,
essa parte de sombra coincide com a mitologia trágico-sacrificial
que identifica na vida nua da criatura a mais absoluta inocência e a
culpa mais extrema, a santidade e a maldição, a luz e a obscuridade,
e na qual os dois aspectos são indiscerníveis, segundo o ambíguo
significado (que de modo errôneo se prelonde original) do adjetivo278

278 “sob certa aparência de eternidade” (N.T.).


sacer. É uma concepção do mesmo gênero que leva Simone Weil a
evocar, nos Cahiers, a figura do bode expiatório, em cujo sacrifício,
inocência e culpa, santidade e abjeção, vítima e carrasco, fundem-se
em função catártica. É preciso reconhecer, em Morante e em Weil,
essa tentação por aquilo que é, pesquisando nas suas próprias obras
os antídotos que elas contêm, o momento em que ambas recusam a
tentação do espírito do deserto.
Esse momento, no qual Elsa abandona a primeira e a terceira
das hipóteses kafkianas, para se apropriar da segunda, aquela da
destruição irreparável e retroativa do paraíso, coincide com a
mudança assinalada pela segunda metade dos anos sessenta (ou
ainda, por uma espécie de irônica cifra histórico-epocal, do sessenta

11. A festa do tesouro escondido


e oito), mudança que Garboli com agudeza reconstruiu em termos
psicológicos, e que de modo diverso gostaria aqui de tentar entender
em uma perspectiva filosófica.
Na coletânea de aforismas composta por Kafka em Zurau entre
1917 e 1918 - pomposamente intitulada por Max Brod Considerações
sobre o pecado, a dor, a esperança e a verdadeira vida -, figura no
/número 62 esta singular afirmação, que me parece conter, por assim
dizer, o epítome ou a imprensa heráldica da mudança em questão:

-a
O fato de que exista somente o mundo espiritual nos tolhe a
esperança e nos dá a certeza.

Jírí Langer, nas Nove porte, sustenta que essa seja a “mais bela
doutrina chassídica”:

O ensinamento chassídico mais belo de fato é aquele sobre


a espiritualidade de toda a matéria. Segundo a concepção
chassídica, toda a matéria é plena de centelhas espirituais da
santidade divina, e as expressões puramente físicas da vida
humana, como o comer e o beber, o banho e o sono, a dança
e o ato amoroso, são pelo chassidismo desmaterializadas e
transformadas nos mais nobres exercícios religiosos.

É provável que Elsa conhecesse esse lex Io. Mas, na perspectiva


kafkiana que ela de todo pari ilha, essa mais bela das certezas
é também aquilo que tolhe a esperança. A perda da esperança (e
mesmo daquela esperança retrospectiva que é a nostalgia do Éden) é
o terrível preço que a mente deve pagar no momento em que atinge
o ponto incandescente da certeza. Por isso a festa spinozista é “festa
do tesouro escondido”. O tesouro está escondido não por que alguém
ou algo o tenha enterrado ou escondido, mas por que agora ele está
exposto, além tanto da tragédia quanto da comédia, na absoluta e
desesperada ausência de qualquer segredo. O conhecimento do bem
e do mal, que tinha tão profundamente marcado com sua sombra a
lenda morantiana, ao final revela ser, nas sóbrias palavras de Spinoza,
nada mais que conhecimento da tristeza e da alegria, e agora diz
respeito tanto às “angélicas bestas” quanto aos “cavaleiros ferozes”,
tanto aos humanos quanto aos felinos. O definitivo afastamento
do Éden perdido é, nesse sentido, o ponto mais amargo e difícil da
aventura criadora de Elsa. Ele é a hora tópica que, na “noite celeste
sem ressurreição”, o Adeus [Addio] inscreve exatamente sobre o
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limiar do “Mundo salvo”.


00
O fim do ooema

O meu propósito, como podem ver de modo sucinto no título


que lhes apresento, é definir um instituto poético que permaneceu
até agora sem identidade: o fim do poema.
Deverei, para tanto, partir de uma tese que, sem ser trivial,
/parece-me todavia evidente, qual seja, de que a poesia só vive na
tensão e na separação (e também, por conseguinte, na interferência
virtual) entre o som e o sentido, entre a série semiótica e a série
semântica. Isso significa que tentarei especificar, em alguns aspectos
técnicos, a definição de Valéry, comentada por Jakobson nos seus
estudos de poética: “Le poème, hésitation prolongée entre le son et
le sens”.279 O que é uma hesitação, caso seja ela retirada de qualquer
dimensão psicológica?
A consciência da importância dessa oposição da segmentação
métrica em relação à semântica levou alguns estudiosos a enunciar
a tese (por mim compartilhada) segundo a qual a possibilidade do
enjambement constitui o único critério que permite distinguir a
poesia da prosa. Pois o que é o enjambement senão a oposição entre
um limite métrico e um limite sintático, uma pausa prosódica e uma
pausa semântica? Deve ser dito poético, portanto, o discurso em que
essa oposição é possível, ao menos virtual mente, e prosaico aquele
em que ela não pode acontecer.

279
‘O poema, hesitação prolongada entre o som r n sentido" (N.T.).
Os autores medievais parecem ter perfeita consciência do
estatuto eminente dessa oposição, ainda que tenha sido preciso
esperar até Nicolò Tibino (século XIY) para que se chegasse a uma
nítida definição do enjambement: Multociens enim acciãit quod,
finita consonantia, adhuc sensus oratonis non estfinitus.2*0
Todos os institutos da poesia participam dessa não
coincidência, desse cisma entre som e sentido: a rima não menos
que a cesura. Pois o que é a rima senão o descolamento entre um
evento semiótico (a repetição de um som) e um evento semântico,
que induz a mente a exigir uma analogia de sentido na qual nada
pode encontrar além de uma homofonia?
O verso é o ser que se situa sobre esse cisma, ser feito de murs
etpaliz, como queria Brunetto Latini, ou être de suspens, segundo as
palavras de Mallarmé. E o poema é um organismo fundado sobre
a percepção de limites e terminações que definem, sem jamais
Categorias italianas

coincidir completamente, e quase em alternada disputa, unidades


sonoras (ou gráficas) e unidades semânticas.
Dante mostra-se perfeitamente consciente disso quando, no
De vulgari Eloquentia (II, 9), ao definir a canção por meio de seus
elementos constitutivos, opõe o canto (cantio), como unidade de
sentido (sententia), às estâncias (stantiae), como unidades puramente
00
O

métricas:

Et circa hoc sciendum est quod hoc vocabulum [stantia]


per solius artis respectum inventum est, videlicet ut in quo
tota cantionis ars esset contenta, illud diceretur stantia,
hoc est mansio capax sive receptaculum totius artis. Nam
quemadmodum cantio est gremium totius sententiae,
sic stantia totam artem ingremiat; nec licet aliquid artis
sequentibus adrogare, sed solam artem antecedentes indure.m2801

280 “Acontece frequentemente que a consonância termina sem que o sentido da


oração tenha terminado” (N.T.).
281 “E aqui deves saber que essa palavra |eslância| foi cunhada somente com o
intuito de discutir a arte poética, de maneira que todo conteúdo a que a arte
da canção foi dedicado deveria m i • li.nu.ido estância, isto é, uma habitação
ou ventre para a arte como um todo l’oe,, <mtio a canção é o ventre de toda
sentença, a estância aliaria toda a aite poétii a; e as estrofes finais do poema
Isto é, ele concebe a estrutura da canção como fundada
sobre a relação entre uma unidade global essencialmente semântica
(“ventre de todo o sentido”) e uma unidade essencialmente métrica
(“recolhe no ventre toda a arte”).
Uma primeira consequência dessa situação do poema em uma
disjunção essencial entre som e sentido (marcada pela virtualidade
do enjambement) é a importância decisiva do fim do verso.
Podem-se contar as sílabas e os acentos, verificar elisões e cesuras,
registrar anomalias e regularidades: mas o verso é, em qualquer
caso, uma unidade que encontra o seu principium individuationis
somente no fim, que se define somente no ponto em que termina.
Em outra oportunidade propus chamar versura, do termo latino
que indica o ponto no qual o arado volve ao chegar ao final do
sulco, esse traço essencial do verso que, talvez porque demasiado
evidente, permaneceu não nomeado entre os modernos. Os tratados

12. O íim dc poema


medievais, ao contrário, assinalam pontualmente sua relevância. O
livro quarto do Laborintus registra, com efeito, finalis terminatio
lentre os elementos essenciais do verso, ao lado de membrorum
distinctio e sillabarum numeratio. E o autor da Ars de Mônaco não
confunde o fim do verso (que denominapausatió) com a rima, mas,
ao contrário, define-o como a sua nascente ou sua condição de

00
possibilidade: est autem pausatió fons consonantiae.2S2
Apenas nessa perspectiva é possível compreender o singular
prestígio, na lírica provençal e estilonovista, daquela especial
instituição poética que é a rima irrelata, que as Leys chamam
rimestrampa e Dante clavis. Se a rima assinalava um antagonismo
entre som e sentido em virtude da não correspondência entre uma
homofonia e uma significação, aqui, por sua vez, e na medida em
que falta onde era esperada, ela deixa as duas séries por um átimo
interferirem na aparência de uma coincidência. Digo aparência
pois, se é verdade que o ventre da arte parece aqui quebrar o seu
fechamento métrico para sinalizar para o ventre do sentido, a rima
irrelata remete contudo a um rhymcjdlow na estrofe sucessiva28

não deveríam aspirar a acrescentar nenhuma nova arte poética, mas deveríam
somente trajar-se do mesmo modo t|iu- as antci olontrs." (N.T.).
282 “a pausa é a fonte da consonância” (N.T.).
e, portanto, não faz mais que deslocar a estrutura métrica para
um nível metaestrófico. Por isso, nas mãos de Arnaut, ela evolui
quase naturalmente para palavra-rima, engendrando o estupendo
mecanismo da sextina. Uma vez que a palavra-rima é acima de tudo
um ponto de indecidibilidade entre um elemento por excelência
a-semântico (a homofonia) e um elemento por excelência semântico
(a palavra), a sextina é a forma poética que eleva a rima irrelata a
supremo cânone compositivo e procura, por assim dizer, incorporar
o elemento do som no próprio ventre do sentido.
Mas é tempo de confrontar-me com o tema anunciado e de
tentar definir essa prática desconsiderada nos estudos de métrica
e de poética: o fim do poema, enquanto última estrutura formal
perceptível de um texto poético. Existem pesquisas sobre os incipit
da poesia (mesmo se, talvez, ainda insuficientes), mas, ao contrário,
investigações sobre seu fim faltam quase por completo.
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Vimos como o poema tenazmente perdura e se sustenta na


tensão e na diferença entre o som e o sentido, entre a série métrica e
a sintática. Mas o que acontece no ponto em que o poema termina?
Que a oposição entre um limite métrico e um limite semântico não
é mais, de modo algum, aqui possível, é uma evidência que resulta,
sem contraste ulterior, do simples fato de que o enjambement não
é pensável no último verso de uma poesia. Algo trivial, por certo,
mas que implica uma consequência não menos embaraçosa do
que necessária. Pois se o verso é definido pela possibilidade do
enjambement, segue-se daí que o último verso de uma poesia não
é um verso.
Isso significa que o último verso se transgride em prosa?
Deixemos por enquanto essa pergunta sem resposta. Gostaria, no
entanto, de pelo menos salientar o significado novíssimo que adquire,
nessa perspectiva, o No say que s’es de Raimbaut dAurenga. Aqui
o fim de toda estrofe - e especialmente do inteiro e inclassificável
poema - é distinto da inesperada irrupção da prosa e assinala, in
extremis, a epifania não contingente de um indecidível entre prosa
e poesia.
De pronto se esclarece a íntima necessidade daqueles insti­
tutos poéticos, como a lonithlu nu <>afastamento, que parecem desti-
nados apenas a notificar e a quase anunciar o fim do poema, como
se este tivesse necessidade deles, como se o fim implicasse para a
poesia uma catástrofe e uma perda de identidade tão irreparável que
chega ao ponto de exigir um desdobramento dos meios métricos e
semânticos efetivamente particulares.
Não é aqui o lugar de inventariar esses meios, nem para dar
início a uma fenomenologia do fim do poema (penso, por exemplo,
na intenção particular com que Dante assinala o fim de todos os
cantos da Comédia através da palavra stelle [estrelas], ou nas rimas
que, nos versos brancos das canções leopardianas, intervém para
evidenciar o fim da estrofe ou do canto). O essencial é que os poetas
parecem conscientes de que há aqui, para o poema, algo como uma
crise decisiva, uma verdadeira crise de vers, na qual está em jogo a
sua própria consistência.
Daí o aspecto não raro decadente e quase abjeto do fim do

poema
poema. Proust certa vez observou, a propósito dos últimos versos
das poesias das Fleurs du mal, que o poema parece de modo brusco
arruinar-se e perder o fôlego (“il tourne court - escreve ele - tombe
presque à plat [...] il semble malgré tout qu’il y ait là quelque chose
d’écourté, un manque de soufflé”.283 Pensemos em Andromaque, c\j
essa composição tão vigorosa e heróica que termina com o verso:
18.
Aux captifs, aux vaincus, à bien dautres encor.284

Sobre uma outra poesia baudelairiana, Benjamin notou que


ela “se interrompe bruscamente, o que dá a impressão, duplamente
surpreendente para um soneto, de algo fragmentário”. O desarranjo
do último verso é índice da relevância estrutural e não contingente,
na economia poética, do evento que denominei “fim do poema”.
Como se o poema, enquanto estrutura formal, não pudesse e
não devesse terminar, como se a possibilidade do fim lhe fosse
radicalmente subtraída, já que implicaria aquele impossível poético
que é a coincidência exata de som e sentido. No ponto em que o

283 “ele encurta e decai quase ao plano |...| parece, apesar de tudo, que houve aí algo
encurtado, um a perda de fôlego” (N.T.).
284 “Aos cativos, aos vencidos, a muitos outros ainda" (N.
som está prestes a arruinar-se no abismo do sentido, o poema busca
uma saída suspendendo, por assim dizer, o próprio fim em uma
declaração de estado de emergência poética.
É à luz dessas reflexões que gostaria de agora examinar uma
passagem do De vulgari Eloquentia, em que Dante parece colocar, ao
menos implicitamente, o problema do fim da poesia. A passagem se
encontra no livro III (XII, 7-8), em que o poeta trata da disposição
das rimas na canção. Após ter definido a rima irrelata (que alguém
sugeriu denominar clavis), o texto diz: Pulcerrime tamen se habent
ultimorum carminum desinentiae, si cum ritmo in silentium
cadunt,285286O que é essa queda do poema no silêncio? O que é uma
beleza que cai? E o que resta do poema depois de sua ruína?
Se a poesia apenas vive na inexaurível tensão entre a série
semiótica e a série semântica, o que acontece no momento do fim,
quando a oposição das duas séries não é mais possível? Há aqui,
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finalmente, um ponto de coincidência, no qual o poema, enquanto


“ventre de todo sentido”, acerta suas contas com o elemento métrico
para transitar definitivamente à prosa? As místicas núpcias do som
e do sentido poderíam, então, ter lugar.
Ou, ao contrário, o som e o sentido estão agora para sempre
separados, sem contato possível, cada um perpetuamente em
00

sua parte, como os dois sexos na poesia de Vigny? Nesse caso, o


poema deixaria atrás de si somente um espaço vazio, no qual
verdadeiramente, segundo as palavras de Mallarmé, rien naura eu
lieu que le lieu.m'
Tudo se complica pelo fato de que no poema não há, para
ser exato, duas séries ou duas linhas de fuga paralelas, mas uma
só, percorrida ao mesmo tempo pela corrente semântica e pela
semiótica; e, entre os dois fluxos, a brusca parada que a mechanê
poética se empenha obstinadamente em manter. (O som e o sentido
não são duas substâncias, mas duas intensidades, dois tónoi da
única substância linguística.) E o poema é como o catéchõn da
carta de Paulo aos Tessalonicenses (II, 2 , 7-8): algo que freia e285*

285 “Belíssimas são as term inardes dos últimos versos, se caem, com as rimas, no
silêncio” (N.T.).
286 “nada terá lugar senão o lugar" (N.T.).
retarda o advento do Messias, isto é, daquele que, cumprindo o
tempo da poesia e unificando os dois éons, destruiría a máquina
poética precipitando-a no silêncio. Mas qual pode ser o fim dessa
conspiração teológica sobre a linguagem? Por que tanta obstinação
em manter a todo custo uma separação que consegue garantir
o espaço do poema somente ao custo de subtrair-lhe qualquer
possibilidade de um acordo durável entre o som e o sentido?
Releiamos agora o que escreve Dante sobre a maneira mais
bela de finalizar um poema, ali onde os últimos versos caem,
rimados, no silêncio. Sabe-se que se trata, para ele, quase de uma
regra. A título de exemplo, pensemos na tornada da pedrosa Cosi
nel mio parlar volgio esser aspro.2il O primeiro verso termina com
uma rima em absoluto irrelata, que coincide (com certeza não por
acaso) com a palavra que nomeia a intenção suprema do poema:
dorma [mulher], Essa rima irrelata, que parece antecipar um ponto

12. O fim do poema


de coincidência entre som e sentido, é seguida por quatro versos
.ligados dois a dois pela rima definida pela tradição métrica italiana
|como “baciata” [beijada],2 78
728
28

Canzon, vattene dritto a quella donna


che m’ha ferito il core e che m’invola

oo
in
quello ond’io ho piü gola,
e dalle per lo cor duna saetta;
ché bellonor sacquistain far vendetta.289

Tudo transcorre como se o verso, que no fim da poesia estava


já de modo irreparável desmoronando no sentido, estreitamente
se ligasse ao seu rhyme-fellow, optando assim por junto com ele
precipitar-se no silêncio.
Isso significaria que o poema cai assinalando ainda uma vez a
oposição entre o semiótico e o semântico, assim como o som parece
para sempre consignado ao som e o sentido entregue ao sentido.

287 “Assim no meu falar quero ser áspero” (N.T.).


288 Modalidade de rim a que em português nomeia se “emparelhada” (N.T.).
289 “Canção, parte certeira àquela dama / que mc lei in <>i nraçim e mc anula / onde
tenho eu mais gula, / e dê para o coraçao uma laiu,a: / que bela honra se colhe
em vingança” (N.T.).
A dupla intensidade que anima a língua não se atenua em uma
compreensão última, mas se aprofunda no silêncio, por assim dizer,
em uma queda sem fim. Desse modo, o poema revela o escopo da
sua orgulhosa estratégia: que a língua consiga no fim comunicar a si
mesma, sem permanecer não dita naquilo que diz.
(Wittgenstein escreveu certa vez que “a filosofia propriamente
se deve apenas poetá-la” [“Philosophie dürfte man eigentlich nur
dichten”]. Talvez a prosa filosófica, na medida em que faz como se
o som e o sentido coincidissem no seu discurso, arrisque cair na
banalidade, isto é, arrisque-se à falta de pensamento. Quanto à poesia,
seria possível dizer, ao contrário, que está ameaçada por um excesso
de tensão e de pensamento. Ou, talvez, parafraseando Wittgenstein,
que “a poesia propriamente se deve apenas filosofá-la”.)
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Os
oo
Anêndice

jm enigma
da 3asca~

No prefácio (ou, melhor, na longuíssima razó) acrescentado


em 1956 à segunda edição do Ricordo delia Basca, depois de ter
definido o relato como “um pastiche que ninguém entendeu”,
Delfini põe em alerta o leitor contra a tentação de perguntar: “Por
que a Basca? Quem é? O que quer dizer?”.
O ponto de máxima obscuridade do relato é decerto o poema
em uma língua desconhecida que fecha, como um último selo, o
trobar clus das últimas páginas do relato:

Ene izar maitea


ene charmagarria
ichilik zure ikhustera
yten nitzaitu leihora;
koblatzen dudalarik,
zande lokharturik:
gabazko ametsa bezala
ene kantua zaitzula.

2,0 As citações do Ricordo delia Basca sao tia edição da (larzanti: A. Delfini, I
racconti, Milano, 1963.
A hipótese de que esses versos incompreensíveis possam
esconder algum indício para uma resposta à pergunta do inoportuno
leitor é sugerida não apenas pela posição estratégica deles, in fine,
mas também pelo fato de que na razo o autor, relatando (não sem
uma consciente analogia com a passagem da Vita nuova em que
Dante se refere à epifania de Beatriz) o primeiro encontro com a
menina de 15 anos, “por mim chamada Basca” [p. 95], caracteriza-a
justamente por uma alusão a sua língua: ela conversava com o irmão
“em uma língua de tal tocante doçura que o meu coração, ao ouvi-la,
pareceu querer parar o próprio batimento para deixar as coisas para
sempre suspensas naquele átimo” [p. 92]. (Mais adiante, o autor quer
entender as palavras das duas crianças, e para tanto se aproxima até
“quase tocá-las” [p. 94]; mas consegue apenas apreender a palavra
entonces - em castelhano “então”, que é aqui o exato in illo tempore
do mito). A Basca entra em cena através da doçura de uma língua
ignota e dela sai no murmúrio inapreensível de uma glossolalia.
Quem é a Basca? E por que essa obstinada caracterização por
intermédio de um impenetrável “falar em língua”?
Uma primeira resposta está implícita na natureza glossolálica
dos versos em questão. Se a Basca, segundo uma indicação outras
vezes repetidas no relato, é aquilo tão íntimo e presente a ponto de
não poder ser de modo algum lembrado (“eu queria que me fosse
tão próxima que qualquer esforço de recordação não poderia dar-
me nem mesmo a imagem” [p. 2 10 ]), o que é, então, o mais íntimo
e imemorável de uma glossolalia, isto é, de uma língua na qual o
espírito de imediato se confunde com a voz, sem a mediação do
significado (cf. I Cor., XIV: “aquele que fala em língua não fala aos
homens, mas a Deus; ninguém, de fato, entende, mas em espírito
fala mistérios”)?
Seguindo uma tenaz intenção trovadoresca e estilonovista,
que faz de um senhal feminino o símbolo da língua da poesia, a
Basca seria a cifra desse originário e imediato estatuto da língua, no
qual ela, como o “falar materno” de Dante, é aquilo que “uno e só
está primeiro na mente”, e em relação ao qual não é possível nenhum
saber e nenhuma gramática. Na medida em que faz experiência
dessa demora imediata da língua no princípio, o poetâ não pode
“dizer nada que tivesse algo a dizer” [p. 2 1 1 ], está absolutamente sem
palavras diante da língua.
Se a Basca é a figura desse evento imediato da língua, por que,
então, o relato se intitula, ao contrário, Ricoráo delia Basca? E por
que a Basca não somente está perdida, mas é, de fato, um “eterno
desaparecimento” (p. 206)?
Contradizendo-se desse modo, Delfini sinaliza com discrição
para a outra Basca da literatura italiana do Novecentos, que
constitui seu exemplar verossímil: Manuelita Etchegarray, a crioula
de Dualismo nos Canti orfici, cujo nome traz uma inconfundível
origem basca. Contra a ingênua crença em uma nativa imediatez da
poesia, Campana (que formula aqui, como observou Contini, a sua
poética) faz valer o dualismo e a diglossia que constituem para ele
a experiência da poesia: a memória e a imediatez, a letra e a voz, o
pensamento e a presença. Entre uma impossibilidade de pensar (“eu
nao pensava, nao pensava em voce: eu jamais pensei em voce ) e um
poder apenas pensar (“eu lhe perdia então Manuelita [...]. Entrava,
lembro, na biblioteca...”), entre uma incapacidade de lembrar

Apêndice
na perfeita e amorosa adesão ao presente e à memória que surge
precisamente na impossibilidade desse amor, está sempre dividida
a poesia, e essa íntima divergência é o seu ditado. Como na canção

oo
co
do trovador Folquet de Marselha, o poeta só pode recordar no canto
aquilo que, no canto, gostaria apenas de esquecer (“Cantando me
ocorre lembrar daquilo que, cantando, procuro esquecer...”).
Daí, para Delfini, “a irremediável tragédia dessa lembrança” (p.
2 1 1 ): a experiência da língua poética (ou seja, do amor) é inteiramente
compreendida na cisão entre uma presença imemorial e um poder
apenas lembrar. A língua da poesia não é, portanto, uma perfeita
glossolalia, na qual a cisão se sutura, assim como nenhuma língua
humana, em que pese a sua tensão em relação ao absoluto, jamais
pode, ultrapassando a mediação do sentido, resolver-se sem resíduos
em um “falar em língua”. O desaparecimento da Basca é eterno, pois
ela eternamente falta na língua dos homens, na qual se afirma somente
através da babélica discordância dos múltiplos idiomas.
Se isso é verdade, então o poema que conclui o relato não
pode ser simplesmente uma glossolalia, devendo porém, de algum
modo, testemunhar essa radical diglossia da experiência poética.
Um reconhecimento conseguido graças à cortesia de uma amiga
especialista em basco confirma essa hipótese. Ele permitiu verificar,
além de qualquer dúvida, que o poema, longe de constituir uma
invenção glossolálica (como em certos contos de Landolfi) é, na
verdade, uma cobla em puríssima língua basca.

O poema - informa a amiga - está escrito em um basco do norte


perfeitamente compreensível. Não é por certo um basco que respeita as
normas atuais estabelecidas pela Real Academia vasca; apresenta, por
exemplo, o uso do conjuntivo e de outras formas gramaticais que na
atualidade não estão mais em uso. O único traço que se pode definir
incorreto é a grafia ichilik no verso 3, que deveria ser corrigida para ixilik;
também o termo koblatzen (verso 5) não está mais em uso para significar,
na “copia”, “encontrar” (“trovare”), isto é, “compor poesia”. Com base em
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tais características é possível datar o poema entre os séculos XVII e XVIII.

E eis a tradução, baseada na tradução literal em castelhano


fornecida pela amiga:

Minha estrela amada


minha encantadora
VO
O

emudecido venho olhar-te


saia para mim à janela;
quando encontro uma poesia
tu estás te adormentando:
como o sonho da noite
seja para ti o meu canto.291

É evidente, neste ponto, que as linhas, no relato imediatamente


precedendo o poema, fazem dele uma sorte de paráfrase, e que
Delfini devia, portanto, conhecer-lhe o significado, mesmo que
dificilmente possa ter sido o seu autor. De que maneira ele teria
alcançado o texto e a competência linguística suficiente para

291 “Mia stella amata / mia iiuanlal i ii r / aimnulolilo venjj» a guardarti / esciper
me alia finestra; / quando Irovo nn.i poesia / l u Ii slai adormentando: / come il
sogno delia notte / sia per le il m io i a n io " (N.T.).
entendê-lo é um problema que deixamos aos biógrafos futuros.
Basta, por ora, ter trazido algumas contribuições à compreensão de
um enigma (ou, melhor, de um “pastiche”) que permanece ainda
firmemente fechado.
***

Em março de 1993, depois que esse artigo foi publicado no


número da revista “Marka” consagrado a Delfini, recebi de Bernard
Simeone, talentoso italianista francês, a carta cujo essencial aqui
reproduzo.

Tive a oportunidade de ler as páginas do seu texto Um enigma


da Basca na companhia de um amigo basco de Ustarritz, que de pronto
reconheceu o poema citado por Delfini: trata-se de um texto do “visconde
de Belzunce”, escrito no fim do século XVI ou no início do século
seguinte. A tradução é um pouco diferente daquela sugerida pela sua
jmiga especialista em basco. Seria:

Minha estrela amada


minha encantadora
em silêncio para vos contemplar
aproximo-me da janela
quando o poema nasce de meus lábios
permaneceis dormindo:
que meu canto vos seja
como um sonho na noite.292

Os versos 4 e 6 assumem um sentido diverso e mais coerente nessa


possível versão: é o poeta que se dirige à janela e o sexto verso é uma
exortação (imperativo). Esse poema, tornado quase canto popular, encontra-
se em diversas antologias bascas, que poderei indicar caso lhe interesse.

Ocorre que o poema ainda permanece como uma peça


importante no puzzle da poética delfiniana, não somente pela

292 “Mon étoile aimée / ma charmeuse / eu silence pour vous contempler /


japproche delafenêtre; / quandle poénu' no il sm nu-s lèvres / restez endormie:
/ que mon chant vous soit / comme un réve d.ms l.i nuil" (N.T.).
equação poesia/sonho nele contido, mas também e sobretudo
pelo jogo entre língua real e língua imaginária que sugere. Mas
ele arrisca lançar uma luz nova também sobre certas invenções de
Landolfi (como a ininteligível - exceto para seu autor - composição
que está no centro do Dialogo dei massimi sistemi, cuja consistência
real é preciso agora verificar; naqueles anos, Delfini e Landolfi
eram companheiros nos cafés florentinos, e é notória a paixão
do jovem Landolfi pelas línguas exóticas) e abrir, portanto, uma
rubrica historiográfica inédita sobre a diglossia na poética italiana
do Novecentos. Em particular, as teses levantadas pela personagem
do Dialogo indicado como Y assumiriam, nessa perspectiva, um
inconfundível timbre delfiniano (sem prejulgar aqui a questão das
prioridades: o Dialogo é de 1935).
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vo
to
Na Bíblia, o caçador por excelência é o gigante Nemrod, o
mesmo a quem a tradição atribui o projeto da torre de Babel, cujo
cimo deveria tocar o céu. O autor do Gênesis o define “robusto
caçador diante de Deus” (10.9) (e ainda “contra Deus”, segundo a ,D
versão latina mais antiga, chamada Vetus Latina [ítala]), e esta sua H
qualidade venatória era essencial a ponto de ter se transformado em u
provérbio (“daqui nasce o provérbio: como Nemrod robusto caçador
frente a Deus”). 193
No Inferno XXXI, Dante pune Nemrod, pelo seu “pensamento
doentio”,293 com a perda da linguagem significante ("que assim
está para ele qualquer linguagem / como a sua para os outros, a
ninguém é conhecida” ):294 ele pode apenas proferir sons privados de
sentido (“Raphél may améch zabi almi”) ou, como caçador, tocar a
corneta (“[...] alma estúpida / mantém contigo a corneta e com ela
te desabafes” ).295
O que Nemrod caçou? E por que a sua caça é “contra Deus”? Se
a punição de Babel foi a confusão das línguas, é provável que a caça
de Nemrod tivesse a ver com um aperfeiçoamento artificial da única
língua dos homens, que devia abrir à razão um poder sem limites. Isso

293 “mal coto” (N.T.).


294 “che cosi è a lui ciascun linguaggio/ cnnu- I sim ,ul altmi, ch a nulloè noto” (N.T.).
295
“[...] anim a sciocca / tienti col corno, c nm i|ncl li (lisloga” (N.T.).
ao menos deixa entender Dante, quando, para caracterizar a perfídia
dos gigantes, fala do “argumento da mente”296 (Inf., XXXI55).
É um mero acaso o próprio Dante ter apresentado, no
De vulgari Eloquentia, a sua pesquisa do vulgar ilustrando-a
constantemente através de imagens de uma caça (“caçamos a
língua”,297 1, XI, 1; “aquilo que caçamos”,298 1, XV, 8 ; “as nossas armas
de caça”,2991, XVI, 2 ), e que a língua assim perseguida seja assimilada
a uma besta feroz, a uma pantera?
Nas origens da nossa tradição literária, a pesquisa de uma
língua poética ilustre se coloca assim sob o inquietante signo de
Nemrod e da sua caça titânica, quase significando o risco mortal
implícito em toda pesquisa sobre a linguagem que queira de algum
modo restaurar o esplendor originário.
A “caça da língua” é a um só tempo arrogância insolente anti-
divina, que exalta o poder de raciocínio da palavra, e amorosa busca que
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quer, ao contrário, reparar a presunção babélica. Todo sério empenho


humano na palavra deve sempre se confrontar com esse risco.
Na poesia do último Caproni, esses dois temas se aproximam
até coincidir na ideia de uma caça obsessiva e feroz cujo objeto é a
própria palavra, e que une em si a desconfiança do gigante bíblico
sobre os limites da linguagem e a piedosa veneração dantesca. Os
dois aspectos da linguagem humana (a nomeação de Nemrod e a
amorosa busca do poeta) tornaram-se então indistinguíveis, e a caça
é de fato uma experiência mortal, cuja presa - a palavra - é uma
besta que, diz Caproni, “vivifica e mata”,300 e que, “mansa e atroz”,301
talvez volte uma última vez a vestir o manto pintado da pantera
dantesca (mas uma “pantera nebulosa” e “suicida”).
A palavra retorna então à sua própria potência lógica, diz si
mesma, e, nesse extremo gesto poético, apreende somente a própria
insensatez, aparece apenas no seu desaparecer. O “trompete” que se

296 “argomento delia mente” (N.T.).


297 “cacciamo la língua” (N.T.).
298 “ciò che cacciamo” (N.T.).
299 “le nostre armi dacaccia” (N.T.). ^
300 “vivifica e uccide” (N.T.). '
301 “mansueta e atroce” (N.T.).
ouve vibrar “em eco” na música interrompida do último Caproni é a
última e abafada ressonância da “alta corneta” delirante de Nemrod,
do “robusto caçador diante de Deus”.
Pier Paolo Pasolini foi o primeiro a notar a especial
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importância das interjeições na poesia de Caproni. A propósito da


“natureza exclamativa” da matéria poética caproniana, Pasolini
identificava o specimen mínimo no verso que abre a primeira poesia
das Stanze delia funicolare (1952): “Os carrinhos do leite ai enquanto
o sol”,302 no qual “uma interjeição pura [...] dá movimento à música
tão vibrante, ressentida e carrancuda dessa coleção de estâncias e
CT\
vo

sonetos”.303A observação pode ser desdobrada de maneira proveitosa.


No verso citado, de fato, a interjeição ai aparece no ponto exato
em que no hendecassílabo a maiore deveria encontrar-se a cesura,
que lhe seria, assim, singularmente complicada. Definindo-a seja
como uma pausa ou como uma inflexão melódica, a cesura (que
acontece aqui entre leite e ai, numa fusão em sinalefa) representa
em todo caso (como o enjambenient e a rima) uma disjunção, ao
menos virtual, entre a série semiótica e a série semântica. No verso
em questão, todavia, esse efeito suspensivo ou assemântico acaba
duplicado pelo fato de que a cesura coincide com o ponto em que
se inicia a interjeição, isto é, com uma fratura radical do decurso
sintático. É como se a silenciosa pausa virtual da cesura de pronto
se fizesse grito, quase a arranhar, n o Icchado complexo métrico
_________________ ")
302 “Le carrete dei latte ahi nicnire il sole" ( N . I ).
303 P. P. Pasolini, P a ssio n e e ideologia, Mil.ino, ra>u, p. i.ri.
das Stanze, algo como uma rachadura. Essa “cesura gritada”, que
decerto está entre as mais extraordinárias invenções métricas do
Caproni “pedroso”,304 assinala o estado de tensão máxima da energia
prosódica do verso.
Na nota final a Passaggio d’Enea, o próprio poeta fala, a
respeito desses poemas, de uma “desesperada tensão métrica”.
Essa definição deve ser compreendida ao pé da letra, no sentido de
que aqui nos encontramos diante de uma exasperação puramente
tensiva da métrica, cujo aspecto extensivo e computável cede lugar
àquele intensivo e contínuo, no limite imperceptível à execução. A
interjeição ai não substitui aqui o verbo (como sustentava Pasolini),
mas opera sobretudo como um tensor que leva a segmentação
métrica para um ponto de deflagração. No limite, o poema inteiro
aparece como um único campo de intensidade variável: daí a sua
característica andadura exclamativa, como se os quatorze versos
formassem uma só interjeição, da qual a interjeição técnica ai
constitui o modelo em miniatura, contido en abyme no texto.
A interjeição em cesura - ou cesura gritada - tem, no entanto,
ainda outro aspecto, no qual não mais opera como índice métrico-
formal, mas, por assim dizer, como índice histórico-profético. A
crítica costuma distinguir duas fases na poesia de Caproni: uma
primeira, dominada por um forte e fechado complexo métrico,
e outra, mais tardia, na qual o poeta parece quebrar seu precioso
instrumento métrico para dar lugar aos versos interrompidos e à
aprosodia das últimas coletâneas. A cesura interjetiva funciona como
uma espécie de precursor obscuro que, no interior de uma estrutura
métrica ainda intacta, anuncia a fratura da “ligação musaica”305 que
II franco cacciatore e II conte di Kevenhüller registrarão por meio da
sempre mais maciça introdução dos pontos de exclamação.
Le biciclette - talvez a obra-prima da poesia caproniana da
metade dos anos quarenta - pode então ser lida como a hora tópica
na qual uma profética tensão deflagrante aflora ameaçadoramente
de dentro da dura partitura métrica do primeiro Caproni. Com
perfeita lucidez, esse aparecimento tio precursor é rubricado no

304 “petroso” (N.T.).


305
“legame musaico” (N.T.).
final das primeiras sete estrofes como uma irrevogável “divisão do
tempo”:

nem agora nem mais


há socorro àquele tempo já dividido306

até que, na oitava e última estrofe, no calar do “pé melódico” do


poema, o precursor emerge como

um a mais
no tempo ainda intacto e indiviso.307

É o poeta mesmo quem sugere, na nota conclusiva da


coletânea, que esse “tempo dividido” é o de “toda uma geração de
homens”, tomada na dissolução tanto da pessoa privada quanto “de
todo um mundo de institutos e mitos”. Mas que ele seja também, e
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na mesma medida, o de um primeiro e precoce esmagamento dos


institutos métricos capronianos não é, decerto, irrelevante para
a crônica da oficina poética desse “melhor ferreiro” da prosódia
italiana do Novecentos.
vo
00

306 “né ora né piü / v’è soccorso aqud k-in|><> omni diviso” (N.T.).
307
“un d ip iíi/ nel tempo ancora inlatlo cd indiviso” ( N.T.).
Caproni é o mais cidadão dos poetas italianos do Novecentos.
Em nenhum outro como nele a poesia vive integralmente da cidade
e na cidade. Montale e Penna, nos quais também vibra uma tensa
atmosfera metropolitana, permanecem indissoluvelmente ligados,
um à concisa paisagem lígure e o outro ao doce campo úmbrio.
A poesia de Caproni é, ao contrário, inexoravelmente cidade. E
não apenas Gênova (“eu sou feito de Gênova!” )308 e Livorno, mas
também, de modo mais submerso e quase sufocado, a nunca
nomeada Roma - não a Roma monumental e histórica, mas aquela
semiperiférica e impura dos bairros onde o poeta por muito tempo
viveu: Monteverde (nas duas contíguas variantes ditas “velho” e
“novo”). E quando, justo no fim, um desabitado campo começa a
aparecer sempre mais áspero e noturno na sua poesia, isso acontece
pari passu com o rompimento da maravilhosa tessitura do metro
caproniano. É a sua própria poesia que se desfaz e se perde nas
angustiantes paisagens do Conte e de Res amissa. Assim, Caproni
viu exemplarmente, depois do juvenil sonho genovês, o ocaso da
cidade na fase do capitalismo começada nos últimos anos da década
de setenta, e que estamos ainda, sem visíveis êxitos, vivendo.

308
io sono fatto di Gênova!” (N.T.).

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Em maio de 1960, em Zurique, Paul Celan encontra pela


primeira vez Nelly Sachs. Era o dia da Ascensão e, enquanto os dois
poetas conversavam diante da catedral (“falamos do teu Deus e eu -
escreve Celan - falei contra ele”), pareceu-lhes que uma luz dourada
<N
O
O

irradiava-se da água em que se refletia a fachada. Poucos meses


depois, os dois amigos se reencontram em Paris, na casa de Celan.
“Enquanto conversávamos pela segunda vez sobre Deus em minha
casa, do teu Deus, aquele que te espera, a luz dourada brilhava na
parede”.
Anos depois, anunciando à amiga a iminente publicação
de Fadensonnen (1968), Celan escreve: “Que tu sejas agradecida
pelas tuas linhas, pela lembrança daquela luz. Sim, aquela luz. Tu
a encontrarás nomeada na minha próxima coletânea, que sai no
outono, nomeada - denominada com um nome hebraico”. O poema
em questão é o que começa Nah, irn Aortenbogen:

Próxim o, no arco da aorla,


no sangue de clareza: )
palavra de clareza.
Mãe Rachel
não chora mais.
D eslocado
tudo o que foi chorado
Imóvel, nas coronárias,
desatada:
Ziw, aquela lu z . 3 0 9

Ziw, para os cabalistas, é o termo que nomeia o esplendor


da Shekinah, isto é, da manifestação divina. É dessa luz, Ziw ha-
shekinah, que se nutrem os justos no mundo por vir.
Dois anos depois, a imagem da luz volta como palavra-chave
da coletânea sucessiva, Lichtzwang. Desta vez, entretanto, trata-se
de uma “luz coagida”, que impede as criaturas humanas, perdidas e
como que acocoradas numa selva, de se tocar:

Jazíamos
, no profundo da m ancha, quando
/ no fim te avizinhaste
rastejando.

Apênd
Também não podíam os
nos ultraobscurecer a ti:
em poder de
um a coação de lu z . 310

Em janeiro de 1991, quando compõe a série Belliche, Eugênio


De Signoribus evoca ainda algo como uma fagulha, uma luz. A
“forma-luz”, que segundo uma tradição ainda viva em Dante se
identifica com a substância divina e é a cifra da perfeita transparência
da inteligência que, entendendo a si mesma, entende qualquer coisa,
é agora (há quanto tempo?) cindida em um “farol hipócrita” que
ilumina a noite e a cujo serviço estão os “portadores de ouropéis”,311

309 “ V icj n0) nellarco dellaorta, / nel sangue di chiarità: / parola d i chiarità. //
Madre Rachele / non piange piü. / Dislocato / lu tto ciò che è stato pianto. /
Im m obile, nelle coronarie, / slegala: / Ziw, quella lute." (N.T.).
310 “ Giacevamo / nel profondo delia ínanhia, i|iiaiulo / ala fine ti avvicinasti /
strisciando. / Pure non potevanio / o llito s í u ia ri i a le: / in balia di /una
coazione di luce.” (N.T.).
311 “portatori diorpelli” (N.T.).
os “pregadores-predadores”312 cuja língua se irrita “para parabo-
lizar / o bem comum ”,313 e uma “luz desamparada, irredimida”, que
procura às apalpadelas os seus irmãos no mundo inóspito:
Luz desamparada, irredimida luz
que queima no mundo inóspito
entre os sulcos celerados e as cancelas
fixadas pela mente criminosa...
no ângulo cego ou no vazio das estâncias
tu és, ou no choro do luzidio campo...
o farol hipócrita ilumina as bandas
mas tu existes, e procuras os teus irmãos.314

A voz exterior, que diz essa luz já completamente profana,


parece provir de lugar nenhum - ou de uma televisão que alguém
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se esqueceu de desligar e que mostra as casas destruídas no chão, o


Iraque em chamas, o “olhar fulminado” das crianças. Perdida, sub -
ou além - humana, como aquela de um justo que aprendera a abster-
se de Ziw, ela realizou o profético presságio de Assassinii:

Sobre a sua cabeça d iv id id a


possam pássaros e vermes fa la r.315
<N1
O
<N

Com essa voz que, “na noite do século”,316 soube nomear a


“oblíqua face do mundo ”317 e da qual - tão ausente a ponto de não
poder ser reconhecido, tão forte a ponto de ser unicamente audível -
fala talvez o maior poeta civil da sua geração, a poesia italiana
que vem - aquela que, por certo, deverá abster-se da luz - voltará
incessantemente a se confrontar.

312 “pregatori-predatori” (N.T.).


313 “ per parabolare / ilbene comune” (N.T.).
314 “ Luce inerme, irredenta lucc / che Im ici nel mondo inospitale // tra i solchi
scellerati e i cancelli / fissali dalla menle criminale... // nelfangolo cieco o nel
vuoto delle stanze / tu sei, o ik -I pianlo dei lum inio cainpale... // il faro ipocrita
illum ina le b a n d e /m a tu esisli, eceivlii i luni IValelli.” (N.T.).
315 “ Sopra la loro testa divisa / possano i n i o l l i e vennjjparlare.” (N.T.).
316 “ nella sera dei secolo” (N.T.).
317 “sghemba faccia dei m ondo” (N.T.).
7 '! |
a V ...-7

Nesses poemas (exceto na inserção em prosa Dialogo) jamais


comparece o ponto. Se este, na tradição dos manuais de pontuação,
assinalava uma pausa para a respiração (“o ponto”, lê-se na gramática
de Dionisio da Trácia, “indica onde se deve respirar”), então aqui a
poesia jamais retoma o fôlego, continuando com falta de ar ou em
apneia, sem possibilidade de trégua. 203
A essa impossibilidade de respiro, responde, na estrutura do
verso, a ausência de enjambement, ainda que virtual. Os versos não
se comunicam entre si e são, segundo a bela expressão de Andréa
Zanzotto, não versos, mas “linhas cortadas”. O caso extremo em
Ricordo, traccia:

de enganosa face e de destruidora318318319

que simula um enjambement e no qual, ao contrário, “destruidora”


não se curva sobre o verso sucessivo, mas volta-se para trás, à sua
“face”. Ou, em Consuntivo,

318 O título do texto faz referência dircla à colriãiu-a de poemas de Eugênio De


Signoribus, Ronda dei convcrsi, publiiada em .!()<)'>, pela edilora Garzanti, de
Milão (N.T.).
319 “d ’ingannevole volto e di struggenle" (N.T)
portanto, para trás voltando-me
na nébula do temporal não320321

no qual a impossibilidade do enjambement é destacada pela sucessiva


e belíssima falsa curvatura “converso / verso”:

o grito composto e converso


verso o sim

Por isso, aqui

não há mais tempo e não há mais que início3201322

como se, no lugar da relação prosódica, existisse entre os versos


apenas rupturas e distanciamentos, escandidos por um pungente
metrônomo que corta e rompe:
Categorias italianas

falta o tempo do acabamento


a tela se rompe e se reúne
[...]
para uma língua que paciente coze
cem bifurcações cortam à luz.323
O
CS

Daí, às vezes, a impressão de que os versos - ou melhor,


as linhas cortadas - sejam empilhados uns sobre os outros, num
equilíbrio precário, como se pudessem de um momento a outro
bruscamente desabar (mas não desabam), como se os cortes
remetessem à outra parte do poema, que falta e só pode faltar.
Será então conveniente prestar atenção na palavra “conversos”,
que intitula a coletânea. Os conversos que aqui se unem deverão
por certo ser compreendidos no sentido comum daqueles que
cumpriram a epistrophé, a conversão religiosa, mas ainda não
receberam a ordem; mas serão também, e em primeiro lugar, como

320 “dunque, indietro voltandomi / nclla ncluila dei temporale no” (N.T.).
321 ‘Turlo composto e converso / verso il si” (N.T.).
322 “non c’èp iü tempo e non v’ò piú clic inizio" (N.T.).
323 “manca il tempo delia fm ilura / Ia Icl.i >.i •.liappa o si rkyimoda // ... II per una
língua chepaziente cuco / e e n l o Imi ulc l . i e j i . m o alia luce.” (N.T.).
no poema Iprovenienti, os con-versos,-'-' os versos que provêm “dos
mais encordoados nós”3 2 da língua e, no esfacelamento do tecido
325
324
métrico do poema, que “distancia todos os acentos”326 e “liberam as
reconectadas rimas”,327 simulam um gesto “estrófico”, acenando uma
“con-versão” que, na prática atenta desse grande poeta civil, é unida
somente por “um fio sutil / de consciência e vasta piedade”.328

Apêndice
<N
o
LO

324 “con-versi” (N.T.).


325 “dai piü incordati nodi” (N.T.).
326 “stecca tutti gli accenti” (N.T.).
327 “sballa le riconnesse rime” (N.T.).
328 “un filo sottile [...] / di coscienza e vasla pielà" (N.T.).
anti-eege
atrizia uava
Categorias italianas

É possível definir a língua da poesia como um campo de forças^


percorrido por duas tensões contrastantes, do hino, cujo conteúdo
é a celebração, e da elegia, cujo conteúdo é o lamento. Levado ao
limite, o primeiro tensor rompe a linguagem no grito de júbilo pela
presença de Deus, o segundo a desautoriza e desfalece no murmúrio
CN
VO
O

inesitante aos pés do Ausente. Mas na medida em que o âuctus da


escritura sustém o gesto da voz, a poesia resulta de uma sapiente e
sempre diversa conjugação das duas tensões.
Já foi dito que a poesia italiana do Novecentos (e talvez a
diagnose valha para todaapoesiamoderna)é,nasualinha dominante,
elegíaca. Isso levou a crítica a constituir o seu cânone excluindo os
componentes hínicos (Campana, Rebora) e colocando no centro a
ortodoxia montaliana, toda ela tecida sobre a felicidade negada e
sobre a privação. Desse modo, aquartelada a infantaria dos menores,
era fácil destacar nas margens, em missão de reconhecimento ou na
retaguarda, as grandes variações táticas de Saba, Ungaretti e Sereni,
ainda que sempre reconduzíveis ao tonos da elegia. Como acontece
de costume, o recalque do componente liínico tinha, no entanto,
uma consequência imprevista, que rompia a linearidade do cânone:
a felicidade de Penna, a voz submersa de beloçchi, mas também a
interjeição de Caproni e o obstinado desacordo de Amélia Rosselli
eram, com toda evidência, irredutíveis à elegia.
Onde situar, neste rápido mapeamento, a poesia de Patrizia
Cavalli? Por certo fora da ortodoxia elegíaca, mas onde? Um indício
precioso nos é fornecido pela língua. O hino, cujo paradigma é a
aleluia, inclina-se por isso à parataxe e ao isolamento da palavra
(o caso limite é o Coup de dés, com a sua disseminação dos sinais
sobre o candor empalidecido da página). O vocábulo, já notava von
Hellingrath, na sua leitura dos últimos hinos de Hõlderlin, tende
aqui a se retirar de seu contexto sintático e, fiel ao seu paradigma
interjetivo, cristaliza em mônada descontínua e irrelata, em nome.
A elegia, ao contrário - nisso similar ao longuíssimo e ininterrupto
“a-a-a-a-a-a...” que, voz no limite do vivente, Canetti ouve ser
proferido por uma pilha de trapos na praça de Marrakesh -, tende
à fraca continuidade do lamento, à conexão hipotática das formas e
das palavras.
Uma breve análise da língua de Patrizia Cavalli exibe seu
gesto antitético: a uma maestria incomparável nas urdiduras das

Apêndice
cesuras e das rimas internas, que desfazem por vezes o verso em
dois hemistíquios, fazendo-os quase tropeçar, faz frente um uso do
enjambement tão violento quanto salvífico, que retoma o verso in

N>
v]
O
extremis da sua segmentação para protelá-lo indefinidamente no
verso sucessivo. A uma sabedoria prosódica estupefaciente, na qual
a desconexão entre som e sentido definidora da poesia é exagerada
ao extremo, corresponde um contra-movimento que toda vez a
emenda com uma costura invisível. Uma prosódia incrivelmente rica
em cesuras e pausas, uma estruturação do discurso decididamente
hipotática ao final resulta, não se sabe como, na língua quiçá mais
fluida, contínua e cotidiana da poesia italiana do Novecentos.
Isso significa que, na língua poética de Cavalli, hino e elegia
se identificam e se confundem sem resíduos (ou, talvez, o único
resíduo seja o eu do poeta). A celebração se liquidifica em lamento,
e o lamento se faz imediatamente hino. () I )eus desse poeta é de tal
modo e tão exaustivamente presente que pode apenas ser lamento;
o louvor das criaturas, abertamente lí aiu isi ano, é percorrido em
contrafuga por um íntimo e sombrio murmúrio, murmúrio de
misericórdia e hosana.
A essa inédita conjugação poetológica dos tensores hino-
elegia corresponde, no plano ontológico, uma incomum economia da
linguagem e do seu sujeito. O eu que percorre as cenas implacáveis do
seu “sempre aberto teatro”329 fala, para a vergonha da sua consumada
competência psicológica, desde um território ontológico e ético
novo e remoto, no qual a casa da vida, de modo fático tão presente,
transforma-se sub-repticiamente em caverna platônica ou em antro
pré-histórico. Aqui a língua vê onde o poeta é cego, fala onde ele
emudece. Essa astuta língua obsessiva e metricamente intenta
dizer “eu”, esse ego idiossincrático até a monomania, repetido e
silabado até a náusea no próprio labirinto doméstico, porém esse “eu
singular próprio meu”330 cumpre, ao contrário, o supremo milagre
de inaugurar um campo transcendental sem eu nem consciência,
abre o “há” de uma ontologia brutal e alucinada, algo como uma
paisagem ética primordial, na qual nenhuma psicologia e nenhuma
Categorias italianas

subjetividade jamais poderão penetrar e em que, sobrevivente à sua


extinção, pasta distraído o grande réptil jurássico da poesiaHEsse
campo transcendental, a que o eu não pode se integrar, não é outro
que o da língua, uma língua que não é mais hino nem elegia, nem
celebração nem lamento, mas que no seu incidir sonâmbulo toca e
apalpa os contornos exatos do ser.
CO
O
to

329 “sempre aperto teatro" (N


330 “io singolare proprio mio" (N I )
A minha amizade com Elsa Morante começou há 22 anos,
no pequeno trem que desde a praça Flaminio atravessa o campo
romano até Viterbo. Elsa ia visitar sua mãe, internada em uma casa
de cuidados de Viterbo, e Wilcock, a quem eu havia conhecido
alguns meses antes, tinha escolhido justo aquele dia para nos
encontrar. Em Viterbo, Elsa deixou-nos na estação, e uma hora
depois nos revimos. O encontro com a doente não tinha sido fácil
para Elsa: a mãe, já quase demente em razão de uma grave forma de
arteriosclerose, não a tinha reconhecido, mas Elsa, observando-a,
tinha tido a impressão de se reconhecer naquele rosto emoldurado
por cachos de cabelos brancos, o que a deixou amedrontada. Por
isso, disse-me mais tarde, preferia tingir os cabelos precocemente
grisalhos. (Na clínica romana onde Elsa passou os últimos três anos
de sua vida, quando apenas tinha deixado de tingir os cabelos e
parecia às vezes que por um instante não me reconhecesse, voltou-
me à mente esse nosso primeiro encontro).
Depois daquele dia começou uma frequentação bastante
intensa, quase febril: viamo-nos Iodos os dias, às vezes desde a
manhã até a noite. Elsa tinha aquela ilimitada disponibilidade dos
períodos nos quais não estava escrevendo. Pela manhã íamos tomar
café da manhã fora de Roma, ou na Appia antiga, na taverna dita “I
trenini”; pela noite nos reencontrávamos em algum restaurante do
Centro. Além de amigos mais jovens, com frequência estavam Pier
Paolo Pasolini, Sandro Penna, Natalia e Gabriele Baldini e Cesare
Garboli.
Eu tinha então 21 anos e jamais pude esquecer tudo aquilo de
viático, caprichoso mas incomparável, com o que a amizade de Elsa
me muniu. Mas se me pergunto agora o que me toca tanto desde
aquele primeiro encontro, já que depois revi tantas vezes Elsa, posso
apenas responder: estava séria, selvagemente séria. Sério não significa
aqui quem toma tudo por verdadeiro e com gravidade. Mesmo sem
levar em conta suas leituras dos clássicos indianos, Elsa era até em
demasia consciente de que o mundo é apenas aparência (lembram-
se do “ritornelo subversivo” do -Mondo salvato dai ragazzini?). A
sua seriedade era sobretudo aquela de quem crê inteiramente e sem
Categorias italianas

reservas na Ficção e, portanto, pretende dizer tudo o que diz. Em


Alibi, a extraordinária coletânea de poemas que, no momento de seu
lançamento, em 1958, passou quase despercebida e é, ao contrário,
um dos maiores livros da poesia italiana do pós-guerra, há um
poema que contém uma chave preciosa para o mundo fantástico de
Elsa. É o que se intitula Alia favola e começa: “De ti, Ficção, me
to
o

cinjo, / fátua veste...”.331 Por isso, das duas relações possíveis com a
linguagem - a tragédia e a comédia -, Elsa aderia instintivamente à
trágica.
Ingeborg Bachmann (que com Elsa conhecemos e
frequentamos juntos alguns anos depois e que, pela seriedade, a
ela muito se assemelhava) certa vez fez esta terrível confissão: “A
linguagem é a pena. Nela todas as coisas devem entrar e transcorrer
segundo a medida da sua culpa...”. Séria é, nesse sentido, a palavra
de quem jamais esquece que a linguagem é a pena e que, falando ou
escrevendo, estamos em todo caso cumprindo uma pena.
Há redenção para essa pena? Em um poema Ingeborg se
dirige à palavra, à própria pena para pedir salvação: “Oh, palavra
minha, salva-me!”.332 Mas para Elsa não parece haver salvação nem

331 “Di te, Finzione, mi cingo, / falua veste..." (N.T.)(


332 “O mia parola, salvami!” (N.T.).
redenção possível da pena da linguagem. Quando, tantos anos
depois, disse-lhe que estava escrevendo um livro que se chamava
A linguagem e a morte, Elsa comentou: “A linguagem e a morte? A
linguagem é a morte!”.
Por isso a obra de Elsa se apresenta à primeira vista como uma
das raras obras trágicas em uma tradição literária, como a italiana,
tão obstinadamente fiel à intenção anti-trágica da Comédia. Mas,
em Elsa (e essa era talvez a sua herança cristã), é como se dentro da
tragédia se insinuasse uma outra tragédia que a ela resiste, de modo
que o conflito trágico explode não entre uma culpa e uma inocência,
mas entre duas penas incomensuráveis. Um outro poema de Alibi
assim formula a lei que lhe quebrou o coração: “Fora do limbo não
há Elísio”.333 No limbo, como é notório, encontram-se não inocentes,
mas aqueles que não têm outra culpa senão a natural, aqueles
infantes que não puderam ser submetidos à pena da linguagem, e
que Elsa contemplou amavelmente por toda a vida. O batismo do
Verbo apaga essa culpa natural, mas a apaga somente através de
uma pena mais atroz. Em Elsa, contudo, é como se a um certo ponto
a criatura do limbo levantasse o seu frágil braço contra a tragédia
histórica da linguagem em um gesto sem esperança, em um choque
inaudito do qual não é fácil compreender o êxito.
Nos últimos meses muitas vezes me perguntei sobre o quanto
a parte da tragédia na vida de Elsa tinha crescido além de toda
medida, se não havia nela uma espiral anti-trágica, se a sua tragédia
não era, de algum modo, uma tragédia anti-trágica. É certo que
toda tragédia projeta uma sombra cômica, e quem conheceu Elsa
recorda certas inacreditáveis cantigas que somente ela conhecia e
com as quais, se quisesse, fazia rir os amigos (delas há um traço
nos despreocupados ritornelos com que amava rechear os seus
romances). Mas não se trata disso. Antes, às vezes, é como se Elsa
aderisse de modo tão tenaz à ficção trágica que esta, ao final, acaba
por abrir uma passagem além de si mesma, em direção a algo que não
é mais trágico (ainda que não possa nem mesmo dizer-se cômico).
Nessa passagem, sem pena nem redenção, contemplamos por um
instante a pura Ficção, antes que os demônios a arrastem ao inferno

333
‘Fuori dei limbo non v’è Eliso” (N.T.).
ou os anjos a elevem ao céu. E tal instante - a ficção contemplada, a
palavra expiada - é a despedida da tragédia. Somente nesse ponto a
poesia de Elsa mostra a sua fênix brilhante, a sua cinza eterna.
Categorias italianas
H-*
>
K>
N
Nota aos textos

Comédia apareceu pela primeira vez em “Paragone”, n. 346,


dezembro de 1978. Com (destinado a uma reunião de estudos em
homenagem a Roger Dragonetti) é inédito. O sonho da língua (em
sua origem destinado a um congresso da Fundação Cini sobre
“Linguagem do sonho”) apareceu em “Lettere italiane”, n. 4,
1982. Pascoli e o pensamento da voz como prefácio a G. Pascoli,
II fanciullino, Milano, 1982. O ditado da poesia com prefácio a A.
Delfini, Poesia deliafine dei mondo, Macerata, 1995. Desapropriada
maneira como prefácio a G. Caproni, Res amissa, Milano, 1991.3,1
A festa do tesouro escondido foi lido em um congresso sobre Elsa
Morante em Perugia, em janeiro de 1993. O fim do poema foi
lido em 10 de novembro de 1995 na Universidade de Genebra,
na jornada em homenagem a Roger Dragonetti. Um enigma da
Basca apareceu em “Marka”, n. 27, 1990. A caça da língua em “II
Manifesto”, a 23 de janeiro de 1990. Os justos não se nutrem de
luz em “Idra”, n. 5, 1992, para apresentar um ciclo de poesias de
Eugênio de Signoribus. A despedida da tragédia em “Fine secolo”,
a 17 de dezembro de 1985.34

334 No Brasil, uma primeira tradução de “Desapropriada maneira” foi publicada


como introdução de A coisa perdida: Agambcn comenta Caproni; Florianópolis:
Ed. UFSC, 2011. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini, que também
organizou e traduziu os poemas de Giorgio ( àiproni.
Quanto aos textos incorporados à presente edição, Logos
erchomenos, inédito, foi lido por ocasião de um encontro com
Andréa Zanzotto, a 11 de abril de 2007, em Mestre. Heráldica e
política foi publicado como introdução a G. Manganelli, Contributo
critico alio studio delle dottrine politiche dei ‘600 italiano, Macerata,
1999. O torso órfico da poesia apareceu como introdução a F. Nappo,
Poesie, Macerata, 2007. Paródia faz parte do volume: G. Agamben,
Profanazioni, Roma 2005.335 Interjeição em cesura foi publicado em
Per Giorgio Caproni, edição de G. Devoto e S. Verdino, Gênova, 1997.
A cidade e a poesia em “minimum fax”, I, 5, 1994. Ronda dos con­
versos, inédito, foi pensado como introdução à tradução francesa da
reunião nomônima impressa por Verdier, Paris, 2007. A antielegia de
Patrizia Cavalli, inédito em italiano, apareceu em tradução francesa
como prefácio a P. Cavalli, Mespoèmes ne changeront pas le monde,
Paris, 2007.
Categorias italianas
4^
to

335 Tradução para o português: Orojaiui^ofs, S.io Paulo: Boitempo, 2007. Tradução
e apresentação de Selvino J. Assmann.
Posfácio
(de Carlos Eduardo Schmidt Capela
e Vinícius Nicastro Honesko)

Língua nova,
ng

“Comédia”, o magnífico ensaio de abertura das Categorias


italianas, revela, com propriedade, alguns dos matizes que tendem
a comandar o exercício analítico proposto por Giorgio Agamben
em sua leitura de obras seminais da literatura ocidental e, nesta
coletânea em particular, italiana. O leitor ali constata, desde os
primeiros parágrafos, o privilégio conferido a uma operarão
argumentativa baseada numa dinâmica contrapontística, que leva o
autor a se aproximar da obra específica de que trata, no caso A divina
comédia, através da mediação, ou do diálogo, de todo modo de um
contato sempre tenso, com parte dos textos que configuram o amplo
contexto a que tal obra responde. E ainda, de outro lado, com parte
daqueles que compõem a fortuna crítica a ela relativa, incluindo-se
entre estes, por certo, alguns escritos de Dante Alighieri. O poeta,
afinal, à medida que em diversos de seus originais reflete sobre a
prática literária, inclusive a própria, não deixa de ser um estudioso,
e um crítico, dos poemas por ele mesmo assinados.
É com base na exploração de uma configuração plural de
leituras, de um arquivo, ou seja, uma coleção de documentos avessa
a um encerramento definitivo, que Agamben traça seu roteiro até
a obra em questão, para então, no movimento de retorno realizado
desde o espaço aberto por e em torno desta obra, delinear a sua
leitura, realizada portanto ao custo de um paciente diferimento. Um
método, e uma teoria, que em outro lugar o autor define como uma
“arqueologia filosófica”.336
A questão a que responde o ensaio é a princípio colocada em
termos mais estritamente literários. A opção de Dante Alighieri
em consignar o seu poema maior à esfera do cômico, indicada de
modo explícito no título a ele conferido, constitui o ponto de partida
para a densa reflexão ali proposta. A decisão dantesca é deste modo
alçada para o primeiro plano, sendo considerada como um evento
determinante na cultura italiana, e, como tal, manteria preservado
ainda hoje um poder de ressonância sobrevivente ao passar dos
séculos. Ao identificar, e lamentar, a manutenção, inclusive na
Categorias italianas

moderna crítica dantesca, de uma persistente desatenção com


respeito a possíveis e nada banais implicações que a guinada de
Dante na direção do cômico teria desde sempre sinalizado, pulsando
como uma sorte de arcano, o filósofo reafirma o caráter polêmico de
sua intervenção.
O percurso analítico por ele cumprido demanda um
VO
<N

movimento em dois lances complementares: no primeiro deles, o


mais importante é justamente esse advogar em favor do fato de que
questões decorrentes da opção de Dante pelo cômico, vista como
adrede calculada, mantêm-se pertinentes. Na sequência, trata-se de
demonstrar como tal pertinência torna possível, em larga medida
demanda, a revisão de certa postura que acabou por se arraigar na
cultura ocidental, segundo a qual a Idade Média teria restringido

336 Em Signatura rerum, de 2008, no ensaio justamente chamado “Arqueologia


filosófica”, Agamben descreve nestes termos as relações entre a pesquisa
arqueológica e a história: “Na perspectiva da arqueologia filosófica que aqui
se propõe, o problema da ancoragem mitológica é integralmente revisto. A
arché a que retrocede a arqueologia não deve cio nenhum modo ser entendida
como um dado situável em uma cronologia (nem sequer em uma larga linha de
tipo pré-histórico); ela é acima de tu do uma força operante na história...” Cf.
AGAMBEN, Giorgio. Signatura rrrmn: sul melodo. Turino: Bollati Boringhieri,
2008. p. 1 1 0 .
sua experiência do trágico e do cômico a uma contraposição baseada
apenas seja em fatores estilísticos e formais (estilo alto versus estilo
baixo; latim versus vulgar), seja em fatores descritivos, de raiz
aristotélica, relativos às mudanças de condições por que passam as
personagens de obras célebres da tradição clássica (princípio feliz e
final triste versus princípio triste e final feliz).
Agamben dirige sua crítica sobretudo a uma certa arrogância
moderna que, ao virar as costas a intuições provenientes de outra
“Idade” da história, agora, salvo as exceções de praxe, quase
totalmente esquecida e menosprezada, e a uma série de poetas e
escritores modernos que a elas fazem eco,337 estabelece uma ruptura
radical entre o presente e o passado. O disparate de tal atitude,
que no limite retira a possibilidade da ocorrência de processos de
transmissão de matrizes e forças culturais,338 torna-se ainda mais
evidente porquanto empregada para tratar dos escritos deixados
por Dante Alighieri. Isso em razão do contraste entre a postura
prepotente que ali subjaz e a dignidade expressa pelo poeta florentino
em seu meticuloso e persistente esforço de repensar, logo revigorar,
o conceito de comédia, tomando como base, isso é, considerando-os
criticamente, diferentes gêneros tais como foram sendo praticados,
descritos e discutidos ao longo da história que lhe coube conhecer.
Para Agamben, ao contrário, o conglomerado de problemas
e posições a que responde a cultura medieval (daí, vale assinalar,
a estratégica remissão a ela em vários dos ensaios de Categorias
italianas), cuja pulsação o gesto cômico dantesco, ao modo de uma
cifra ou uma alegoria, tem o poder de preservar, constitui o legado

337 Hõlderlin, nas meditações que propõe a partir de sua experiência com a
tradução do Êdipo e da Antígona, de Sófocles, talvez seja o caso mais saliente.
Cf. HÕLDERLIN, Freidrich. Observações sobre Êdipo. Observações sobre
Antígona, precedido de Hõlderlin e Sófocles, de Jean Beaufret, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2008. Tradução e notas de Anna Luiza A. Colli et al.
338 Ou sobrevivências, para falar com Aby Warburg, autor cujas pesquisas no
domínio da história da arte ressoam em diversos escritos de Agamben, por
exemplo, em “Aby Warburg e la scienza senza nome”, publicado originamente
na revista Prospettive settanta, de julho-setembro de 1975, ensaio que figura
entre aqueles reunidos em La potenza dei pensiero (Saggi e conferenze).
Vicenza: Neri Pozza, 2005.
de modalidades de expressão e compreensão que ainda nos atingem,
de experiências provenientes de um mundo que não deixa de nos
concernir, e que, por isso mesmo, deveria ser restituído à consciência
moderna .339Agora, porém, não apenas no âmbito da cultura italiana,
mas também do pensamento ocidental. Na aposta do ensaísta, deste
modo, ressoa não sem intensidade aquela realizada, séculos atrás,
por Dante Alighieri.
Isso porque o filósofo, em seu ensaio, afasta-se do diagnóstico
tornado tradicional - cujos pressupostos configuram um paradigma
no qual comentadores contemporâneos da Comédia (Benvenuto
de Imola e Boccaccio) se congregam a críticos modernos (Rajna e
Aiierbach) -, que considera problemáticas e incoerentes as razões
da opção cômica dantesca, o que justificaria sua pouca relevância
em termos críticos. Para Agamben, com efeito, a decisão de Dante
constitui apenas a parte mais notável de uma sorte de manifesto
Categorias italianas

tácito, que se mantém em vigência, através do qual o poeta anuncia


a sua convicção de que a comédia, longe de constituir um gênero de
baixa extração e cotação, seria o objetivo maior, quiçá o mais sublime,
do exercício poético. Vista por este prisma, a atitude dantesca, então,
traria embutido o propósito de fazer da comédia um gênero de
composição tão digno como os demais. Como irá sustentar Agamben,
to
00
i— i

com A divina comédia, assim como com as suas diversas reflexões


sobre o cômico, o poeta buscava, a um só tempo, promover a ampliação
dos campos literário, filosófico e político. Daí ele ter, como parte de
seu estratagema, colocado em segundo plano outros gêneros poéticos,
e suas propriedades e imbricações, escolhendo operar a partir de uma
polarização entre o trágico e o cômico, levados ao extremo de sua
possível dissolução, ou seja, de sua con fusão.

339 O autor, com isso, reafirma sua afinidade também com o pensamento de Walter
Benjamin, em particular no que tange à reafirmação das responsabilidades
éticas e políticas com respeito à diversidade de leituras deixadas em aberto
por tudo aquilo que, embora declinado no passado, nem por isso cessa ou
cessará de passar ainda. Algumas das reflexões de Agamben em torno da
comédia, no ensaio, levam adiante intuições formuladas pelo jovem Benjamin,
particularmente em “Destino e caráter", no Brasil publicado em Escritos sobre
mito e linguagem, São Paulo: D ua s C idade s, EditoVu 34, 2011, tradução de
Ernani Chaves.
A titulação cômica do poema dantesco, nesse sentido, é
considerada como constituindo uma sorte de “reviravolta categórica”,
uma espécie de viragem, ou torsão, que não deixa de funcionar
em analogia ao instituto poético introduzido pelo “corn”, produto
da crescente preocupação dos poetas medievais com o ponto, ou
momento, em que o corpo do poema, sua unidade, fragmenta-se,
justo no momento em que o verso atinge o seu fim, e, enquanto
versura, volta-se para um novo começo. Instituto esse, convém
sublinhar, que possibilita ainda o estabelecimento da rima irrelata,
aquela que faculta o rompimento da estrutura fechada do poema,
funcionando como uma linha de fuga na direção de uma outra
fragmentação, agora no nível meta-estrófico, conforme exposto
no ensaio homônimo. Intimamente ligadas, a versura e a rima
irrelata, que serão retomadas e discutidas em “O fim do poema",
testemunham a importância determinante da poesia medieval nas
poéticas que a prolongarão até a modernidade, sinalizando paia
o processo histórico a ser posteriormente cumprido no domínio
da poesia, com o progressivo abandono do canto pelo texto (que
culmina com o experimento mallarmaico do Lance de dados), a
confrontação entre som e sentido, a desconexão entre língua e
inteligência, entre poesia e filosofia, entre hino e elegia, estas que
são algumas das categorias centrais em torno das quais os diversos
ensaios desta coletânea se movimentam.
Os parâmetros que balizaram a longeva discussão relativa
à questão da titulação do poema dantesco mostrariam, caso
considerados isoladamente, sua pouca utilidade no sentido de coloi a i
em outros termos o problema proposto por Dante, situando o na
contemporaneidade. Daí a necessidade, a que responde o filósofo, de
buscar uma articulação entre elementos compositivos ou na rral iv<>s,
de um lado, e o tema ou motivo da Comédia, de outro. O destaque
recai sobre algumas passagens da Carta a Cangrande, na qual
Agamben encontra uma conjunção entre a oposição trágico-cômico,
com ênfase, porém, não nas motivações estilístico-formais, mas
naquelas relativas ao aspecto “material” que sustenta tal oposição
(o mais fraco em termos de composição literária: o quiasma entre
início calmo/final horrível e início horrível/final calmo), aspecto
esse que será a seguir, e de maneira ínstigante, articulado ao tema,
ao subiectum do poema.
Na Carta a Cangrande, Agamben constata que o assunto
privilegiado por Dante, na Comédia, é o estadoposf mortem das almas.
Segundo a leitura proposta, a reflexão dantesca sobre a condição
ãhímica no além-túmulo leva o poeta a introduzir, desde um viés
alegórico, o tema adjacente, e crucial, da submissão do homem, em
seu livre-arbítrio, à justiça divina. O poema constitui uma comédia,
desde essa perspectiva, porque o percurso nele narrado conduz
da culpa à inocência. A formulação posta em destaque no ensaio,
segundo a qual “a tragédia aparece como a culpabilização do justo e
a comédia como a justificação do culpado”, 540 indica a convicção do
filósofo sobre a validade da articulação entre culpa e justiça, de um
lado, e o caráter trágico ou cômico de um texto, de outro.
Justificam tal conjugação argumentos emprestados da
Categorias italianas

Poética, de Aristóteles, livro a que, como sublinhado no ensaio, o


medievo teve acesso a partir de traduções diretas ou indiretas ao
latim. O termo grego hamartía, que se transforma no peccatum do
Novo Testamento, fornece a ligação indubitável entre as experiências
pagãs do trágico e do cômico e as doutrinas cristãs relativas à culpa
e à inocência. Garantida a abordagem pelo viés teológico (algo
N)
to
O

recorrente conjunto da obra agambeniana, como no ciclo do Homo


sacer, por exemplo), o próximo passo do ensaísta é vincular o tema
da culpa (e do pecado) ao relato da queda edênica e da Paixão de
Cristo. No roteiro de leitura traçado a partir do poema de Dante,
tais eventos teriam, para o poeta, desprovido o trágico de boa parte
de seu sentido tradicional, ou de sua força coercitiva, com o que ele
pode delinear a possibilidade da consequente postulação de trajetos
salvíficos, isto é, cômicos.
A reflexão realizada no ensaio leva em conta, ainda nos passos
de Dante, a nítida cisão entre natureza e pessoa estabelecida pela
doutrina cristã da culpa. Com Adão, afinal, teria pecado a inteira
natureza humana, situação trágica que a Paixão de Cristo reverte,
ao fornecer a expiação de uma culpa (natural) de que o homem
nunca podería se livrar senão graças à introdução do princípio de340

340 Na página 26 desta edição.


uma inocência natural, em oposição à culpa genérica, universal.
Esta, assim, ao ser deslocada para o polo pessoal, como insinua
o poema dantesco, abre outra vez o campo poético, na esteira do
pelagianismo341342brevemente discutido em “Desapropriada maneira”,
para a vazão do cômico.
Agamben percebe, de novo sob o influxo de Dante, nos
trovadores e poetas de amor do estilo novo, a manutenção de um
resto de culpabilidade, produto da concupiscência, que mantém
o corte entre o juízo, ou o arbítrio, e o plano físico, e impede ao
homem de recobrar sua pura unidade adâmica, em que o sensível
era subsumido ao domínio da vontade e da razão. Este resto permite
justificar a presença de um caráter trágico em Dante (em especial
no De Vulgari Eloquentia), que é aproximado dos poetas de amor
provençais exatamente pelo motivo de a experiência amorosa
acarretar uma culpa que traz em si a memória de uma natureza que
pecou (uma experiência, portanto, trágica), mas ao mesmo tempo
preserva ainda a possibilidade de uma inocência pessoal.
Situa-se nesse imbricamento, conforme Agamben, a herança
da poesia estilo novista para a modernidade, com seus anseios
por uma “perfeição de amor” em que os planos natural e pessoal
poderíam outra vez, idealmente, confundir-se. No caso de Dante.
a decidida dedicação ao cômico faz com que seu poema postule
uma possível conciliação entre inocência natural e culpa pessoal, na
qual o amor torna-se uma expiação individual, algo que a teoria da
vergonha (que, vale lembrar, Agamben também desenvolve na série
Homo sacer, em O que resta de Auschwitz),U2 presente na Comédia,
no canto XXI do Purgatório, confirma e ao mesmo tempo realiza
para o caso da personagem dantesca ali interpretada.
Com a breve exposição da teoria da vergonha, o filósofo
aproxima a situação cômica postulada por Dante à situação edípica3412

341 Termo derivado de Pelágio, seu principal divulgador, nomeia a doutrina


combatida por Agostinho, segundo a qual a possibilidade de não pecar seria
própria da natureza humana.
342 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha, São
Paulo: Boitempo, 2008. Tradução de Selvino ]. Assmann. Edição italiana: Quel
che resta di Auschwitz.Ldrchivio e il Icsliinone (I lomo sacer III). Torino: Bollati
Boringhieri, 1998.
clássica, posto que à impossibilidade de Édipo assumir sua culpa
(e tampouco sua vergonha) corresponde a aceitação cômica da
ruptura entre culpa e natureza (livrada pela expiação propiciada
pela experiência amorosa). Dante, nesse sentido, é responsabilizado
por ter trazido outra vez para o primeiro plano - e operado a
partir dela, para o que se vê obrigado a assumir, na Comédia, suas
consequências mais radicais - a quebra entre trágico e cômico (ou
anti-trágico), cujo caráter estruturante, para Agamben, estava de
antemão presente na crítica platônica à tragédia. A herança recebida
por Dante encontraria sua proveniência, porém, não na tradição
platônica, mas na tradição estoica.
Esse original desvio no argumento faz que a discussão
aborde, de maneira sutil, a relação entre vida e poesia, entre poetado
e vivido (outro par categorial importante entre aqueles explorados
em Categorias italianas), isso em razão da introdução do motivo
Categorias italianas

da atuação ou do desempenho individual, e, por conseguinte, da


máscara. No teatro, uma vez que para os estoicos a vida constitui-
se enquanto espetáculo, prosopopeia, caberia aos viventes a
assunção de uma máscara, um prósõpon, e o trágico emergiría caso
o ator, enquanto potência de uma pretensa “personalidade moral”,
abandonasse o governo de suas ações, substituindo-as por aquelas,
to
to
to

previamente conformadas, que definiam e restringiam determinado


papel. A representação, no caso, acaba por formar um todo fechado,
um eterno retorno de um único conjunto de ações, sem diferimento
e sem possibilidade de escape, isso na medida em que o indivíduo
então apenas repete, como uma sorte de ritual, o roteiro firmado por
outro, a ele se entregando de maneira passiva.
Agamben localiza aí, neste conflito entre ator e personagem,
um dos momentos decisivos no processo de construção da noção
moderna de pessoa, tanto no sentido jurídico como teológico,
que deriva, a partir de Boécio, do conceito grego de hypóstasis,
com que era definida a substância individual natural e racional.
Mas no medievo permanecia atuante a ideia de que subjacente
à pessoa existia uma natureza, numa fusão incompleta de que
estariam isentos apenas Adão e Cristo, na meclida em que neles
pessoa e natureza compunham uma perléila unidade. É esta cisão
entre natureza e pessoa que Dante teria retomado em seu poema,
explorando-a segundo o viés da faculdade de uma redenção cômica
na qual uma pessoa culpada, logo passível de absolvição, podería se
unir, caso fosse finalmente absolvida, a uma natureza humana posta
como de antemão inocente.
A concepção cômica subjacente à Comédia de Dante, deste
modo, de acordo com o longo argumento traçado por Agamben, teria
uma importância determinante no processo mesmo de maturação
de que resultou a formulação do conceito moderno, e jurídico, de
pessoa. Pois o poema, em seu corpo parcelado, acompanha o trajeto
de uma natureza humana inocente na busca de uma pessoa com
quem possa almejar ao final encontrar-se, isso com a condição
de que as culpas que esta carrega possam ser e sejam expiáveis, e
assim abandonadas, como uma máscara cômica, carnavalesca.
Máscara essa que o direito, a seu tempo e a seu modo, não deixará de
confiscar. Por isso, enfim, a posição de destaque conferida a Dante
no contexto da cultura medieval projetar-se sobre a modernidade.
O poeta, florentini natione non moribus, com seu apelo ao cômico
estabelece, afinal, uma tênue mas persistente linha de resistência
contra o caráter trágico da história, reiterado na modernidade, que,
ao insistir no caráter culpável da simples natureza dos homens, e
postular que sejam ou possam ser punidos por isso, exibe uma visão
de mundo obliterada pela máscara trágica de que tudo indica não
querer abrir mão, e cujos olhos, como os de Édipo, necessitam ainda
ser pelo menos vazados. Esse é um dos alertas, e desafios, que o
ensaio de Agamben lança ao presente.
Se em “Comédia” a argumentação conflui para uma
discussão sobre a máscara, em um dos fragmentos que compõem
“Ideia da prosa”,343 no entanto, o filósofo irá- se ater, para pensar

343 Publicado oríginalmente em 1985, Idea delia prosa (Giangiacomo Feltrinelli:


Milão), ao menos em certa medida, leva adiante o exercício do experimentum
linguae subjacente aos escritos de Agamben, isto é, de uma experiência em
que aquilo que é experimentado “é a própria língua”, também postulado em
“Experimentum linguae’\ que introduz Infância e história (Destruição da
experiência e origem da história), belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005; p. 11.
Tradução de Henrique Burigo. Edição italiana: Infanzia e storia (Distruzione
delTesperienza e origine delia storia). Torino: liinaudi, 1978. Idea delia prosa
a linguagem humana, à figuração do rosto, em cuja harmonia
vislumbra a possibilidade de um contato silente: “Um belo rosto
é talvez o único lugar onde há verdadeiramente silêncio”.344 Nesse
caso, a atenção àquilo que, embora aparente, mantém a potência
do indecifrável, quando menos do misterioso, motiva uma reflexão
não sobre a suspensão do discurso (de uma mera interrupção da
palavra), mas sobre o silêncio da própria linguagem. Com isso é
posta em questão a existência de uma suposta língua da natureza,
edênica ou adâmica, que atravessaria o existente (o aberto em que
todos os viventes se encontram). Tal questionamento, por sua vez,
leva a um dos problemas centrais amiúde abordados pelo filósofo,
que diz respeito à exposição do homem às coisas e aos seres que em
sua mudez nos encantam e despertam.
Para Agamben, o rosto traz consigo a irretocável característica
política, exibindo-a ao se exibir. Trata-se da manifestação, ao
Categorias italianas

homem, do próprio (do) homem, daquilo que, indiferentemente à


suposta propriedade de seu portador, está à vista e, justo por isso,
garante a possibilidade de o eu que o carrega manter relação com
os demais. O rosto, então, na medida em que ex-posto, posto para
fora ou posto fora, aparece como um limiar entre propriedade e
impropriedade que, como instância, meio, coloca em xeque o par
4^

dicotômico do ser e do aparecer.


No rosto está em jogo a presença, ou a aventura, da pura
comunicabilidade, isto é, o factum loquendi que obriga o homem
a se deparar com a natureza, inclusive a sua.345 A questão literária,

foi recentemente traduzido para o português (Ideia da prosa, Belo Horizonte:


Autêntica, 2012, em tradução de João Barrento).
344 AGAMBEN, Giorgio. “Ideia da linguagem I”. Em Ideia da prosa; op. cit.; p. 112.
O rosto é tema também de “II volto”, um dos ensaios presentes em outro livro
do autor, M ezzi senzafine. Note sulla política. Torino: Bdllati Boringhieri, 1996
(p. 74-80). /
345 É o que, em outro texto recente, O sacramento da linguagem, Agamben
irá afirmar de modo incisivo: Cf. AGAMBEN, Giorgio. II Sacramento dei
linguaggio. Archeologia dei giuranwnto. Koina-Bari: Laterza, 2008. p. 93­
94. “[...] a especificidade da linguagem liumaiia em relação àquela animal
não pode residir apenas nas peculiaridades do instrumento, que análises
posteriores poderiam reencontrar |...| nessa ou naquela linguagem animal: ela
poética, que atravessa categoricamente todos os ensaios reunidos
em Categorias italianas,346 incorpora assim, de modo concomitante
e inevitável, o problema eminente da política, isso na medida em
que neles se discute sobretudo o estatuto da linguagem em sua
articulação com o agir humano.
Mas a questão a que nos convoca o olhar sobre o rosto se
faz presente também nas Categorias italianas. Como no último
dos apêndices que concluem o livro,347 “A despedida da tragédia”,
por exemplo, em que o autor descreve alguns acontecimentos
ocorridos por ocasião de um de seus primeiros encontros com lilsa
Morante, escritora com quem manteria uma longa amizade. Alí,
nessa despedida que, como um ritornelo, marca o início de uma
estreita relação pessoal, e, ainda, os primeiros passos da carreira
intelectual do filósofo,348 a imagem do rosto como problema crucial
para a compreensão do mundo aparece de maneira sutil e, ao
mesmo tempo, tenaz. Em particular quando o autor afirma que I I'..i
Morante mostrara-se então demasiado séria, isso em razão de In •.<•
reconhecido no rosto de sua mãe que, demente por uma lórma de
arteriosclerose, naquele mesmo dia visitara.

consiste, isso sim, e em medida certamente não menos decisiva, no talo dr <|m .
único entre os seres vivos, o homem não se limitou a adquirir a linguagem
como uma capacidade entre outras de que é dotado, mas fez dela sua |>oien. u
específica, ou seja, na linguagem ele pôs em jogo a sua própria natureza Av.im
como, nas palavras de Foucault, o homem é “um animal em cuja polihi a (•■a.i
em questão sua vida de ser vivo”, ele é também “o ser vivo em cuja língua i,i
em questão a sua vida.” (Edição brasileira: AGAMBEN, Giorgio. (> s m i m i i e i i t o
da linguagem. Arqueologia do juramento (Homo Sacer II, 3). belo 1loi i/onir
Ed. UFMG, 2011. Tradução de Selvino J. Assmann; p. 79; grifo do auloi)
346 Como exposto no prefácio à primeira edição italiana da colelánea. r.ia
responde ao intento de Agamben, que, juntamente com ítalo Calvino <• ( 'Iamim
Rugafiori, havia procurado identificar, e definir por meio de conceilos pulai es,
algumas das principais estruturas categoriais da cultura italiana.
347 Talvez valha a pena ressaltar, aqui, um detalhe intrigante: quando nomeia sem.
pós-escritos, com exceção de O reino e a glória e de A comunidade que vem,
o autor não utiliza o significante apêndice ou pós-escrito, preferindo, iom
frequência, intitulá-los “limiar”.
348 É importante assinalar que foi Morante quem apresentou ao jovem Agamben o
milieu intelectual italiano que, a partir dos anos 1960, ele passaria a frequentar.
A seriedade de Elsa parece resultar, no relato dessa despedida
tal como formulado por Agamben, menos do reconhecimento ou da
revelação de uma verdade terrível por detrás de uma aparência do
que do fato de a amiga ter, na ocasião, adquirido de súbito consciência
de saber-se, enquanto ser humano, irremediavelmente condenada à
linguagem, ou seja, à impossibilidade de chegar a algo tão inelutável
como uma verdade definitiva. Tal condenação, cuja sentença resulta
da observação atenta do rosto da mãe, teria colocado Elsa Morante
num estado de tamanha conexão com a tragédia que algo como a
contemplação de uma pura língua tornara-se para ela daí possível.349
Na severidade do rosto da mãe, que em razão da doença dificilmente
podia identificar a si mesma, ou de todo já não mais podia, a filha
se identifica, e, com isso, intui que qualquer suposto segredo
escondido (por uma máscara, seja trágica ou cômica) desvela nada
Categorias italianas

349 Com Elsa Morante parece ter ocorrido algo como um vislumbrar do puro meio,
do rosto, que, num ensaio sobre outra de suas amigas, Ingeborg Bachmann -
também citada em A despedida da tragédia -, o filósofo diz ser o lugar da
claritas, que, na tradição latina, é um dos atributos da voz. Cf. AGAMBEN,
Giorgio. II silenzio delle parole. In: BACHMANN, Ingeborg. In cerca difrasi
vere. Roma-Bari: Laterza, 1989. p. XIV-XV, “A utopia da linguagem, em cuja
direção a literatura está a caminho, coincide com o irreparável caráter tópico
<N
<N

das proposições significantes: ela não é uma outra palavra, mas apenas o seu
mudo ter lugar, o halo de silêncio que as delimita e expõe. / Isso, e somente
isso, é a palavra ‘livre, clara, bela’ para a qual se volta a invocação final de Rede
und Nachrede: ‘ó, minha palavra, salva-me!’. Mas o espaço que se abre nesse
evento em que um limite coloca fim à pena da linguagem é aquele no qual se
poderia, pela primeira vez, aparecer isto ‘que tem o lugar do instante em que
poesia e música encontram, uma em relação a outra, seu momento de verdade’,
e que, só, tem o poder de fazer calar a linguagem sem aboli-la, dando-lhe -
pelo contrário - lugar: ‘uma voz humana’. Segundo o significado original do
termo latino, claritas, é, antes de mais nada, um/atributo da voz.” É fato que
Agamben chama a atenção, ainda em A despedida da tragédia, justamente para
a diferença entre Elsa Morante e Ingeborg Bachmann: enquanto esta acaba por
fim encontrando uma palavra clara que salva, aquela vê na palavra uma pura
condenação sem possibilidade alguma de redenção. Entretanto, a proximidade
entre ambas - ao menos do que se pode inlérir do que indica o autor - dá-se
pelo fato de Morante aderir a tal tragédia de modo tão irrestrito que aquilo que
a ela se mostra, a pura Ficção {Fmzionc), e, de nlgmna maneira, uma abertura à
pura língua (ao puro meio), que Bachmann i ouscguc perceber na claridade da
palavra: a palavra expiada na despedida da Iragcdia.
mais, nada menos, que apenas a si mesmo: o que se revela é a simples
intransitividade de qualquer revelação.
Em outro dos ensaios de Categorias italianas, “A festa do
tesouro escondido”, também dedicado a Elsa Morante (publicado,
em dezembro de 1985, no suplemento cultural Fine Secolo, do jornal
Repórter, e escrito sob o impacto da morte da escritora, como uma
homenagem a ela e, ao mesmo tempo, como uma despedida dela),350351
Agamben reafirma, ao modo kafkiano, o acolhimento da certeza
do mundo espiritual, por parte da amiga, como decorrente de sua
concepção singular da Ficção e da linguagem, que a levara a perder
toda esperança em uma possível redenção para os seres humanos.
As referências feitas a Franz Kafka em Categorias italianas não
são de ocasião, mas, ao contrário, resultam de uma articulação de
leituras que atravessam os 32 anos desde a redação da versão inicial de
“Comédia”, em 1978. São leituras que, num primeiro grande movimento,
confluem no lançamento das Categorias italianas, em 1996, e, depois,
culminam na segunda edição do livro, pela editora Laterza, em 2010,
aqui traduzida, com a sintomática introdução de alguns ensaios antes
ausentes da coletânea, no caso “O ‘logos erchomenos’ de Andréa
Zanzotto”, “Heráldica e política”, “O torso órfico da poesia”, “I'anuiia",
além dos apêndices “Interjeição em cesura”, “A cidade e a poesia", "A
ronda dos conversos” e “A anti-elegia de Patrizia Cavai li”.
Nesse entremeio, como é notório, o autor desenvolve seu
projeto mais ambicioso, peloqual ganha fama internacional enquanto
um grande pensador da política: o projeto Homo sturr. Entretanto,
e eis uma desatenção de que nem sempre os leitores conlmn.i/v.
do Agamben da política se dão conta, para uma compreensão mais
ampla e menos enviesada do pensamento agambeniano, toma
se necessária, em larga medida indispensável, a leitura dos livms
que correm, por assim dizer, ao lado daquele grande projeto. ''1 t. 3501

350 Recentemente, em 2011, Adriano Sofri organizou um volume intitulado If-ln


per Elsa, editado pela Sellerio Editore, de Palermo, no qual reproduz, o s l e s l o s
publicados no suplemento Fine Secolo, do periódico Repórter, inclusive "A Irsi.i
do tesouro escondido”, de Giorgio Agamben.
351 Estes, assim, podem ser considerados essencialmente paradigmáticos, isso n.i
medida em que formam um conjunto singular que apenas pode ser isolado
do contexto específico que o conforma (a “produção” de Giorgio Agamben)
por certo, além da presente coletânea, um desses livros é Nudità,
lançado em 2008, no qual o autor publica um ensaio, K„ dedicado
exclusivamente à leitura de Kafka - texto esse, com efeito, que
possibilita descortinar instigantes relações com alguns daqueles
presentes em Categorias italianas.352
Tomando como ponto de partida uma intervenção de Davide
Stimilli, Agamben ali argumenta em prol do fato de que a letra K,
que compõe o nome da personagem de O Processo, Josef K., diz
menos respeito a Kafka, como supôs Max Brod, do que alude, ao
modo de uma cifra, à noção jurídica de kalumniator. Esse conceito
foi empregado para identificar, no âmbito do Direito Romano,
qualquer indivíduo que, por ter feito uma falsa acusação, recebia
como punição ter o rosto marcado, em brasa, com o símbolo
K. Josef K., portanto, segundo tal perspectiva, constituiria uma
encarnação de um típico kalumniator, que justo por ter dado início
Categorias italianas

a um processo calunioso contra alguém inocente, teria a insígnia K


marcada em si. Entretanto, no caso específico de Josef K., o processo
a que ele dá início por meio da sua denúncia não é contra uma outra
pessoa, mas contra si próprio - e tal seria a insígnia paradoxal dos
escritos kafkianos.
A calúnia, observa Agamben, só acontece no caso de o
K>
N)
00

acusador ter conhecimento da inocência daquele a quem acusa.


Ora, tal é a situação de Josef K., que, ao acusar a si próprio de uma
culpa que sabe inexistente, passa a ser culpado do crime de calúnia:
ele é culpado pelo fato de, sabendo-se inocente, ter se aceito como
acusado e, assim, ter se autocaluniado. Agamben, na sequência,

caso torne inteligível, pela própria singularidade que o caracteriza, um


novo conjunto, de cuja homogeneidade, por sua vez, ele deve fazer parte. Cf.
AGAMBEN, Giorgio. Che cos’è un paradigrrja? In: AGAMBEN, Giorgio.
Signatura rerum; op. cit., p. 19-20.
352 Ao lado de Nudità (Roma: Nottetempo, 2009), também o já citado Signatura
rerum, além de Profanazioni (Roma: Nottetempo, 2005 - já com edição
brasileira: São Paulo: Boitempo, 2007. Tradução de Selvino Assmann) e o
muito pouco comentado II tempo chc irslu. Un commento alia lettera ai
romani. (Torino: Bollati Boringhieri, 2000), sinalizam para a manutenção, no
pensamento agambeniano.de uma constauleainiçiio com respeitoà linguagem
e à poética, sem prejuízo da reflexão sobre a luopolíiica.
estende esse paradoxo - kafkiano por excelência - para além da
condição de Josef K.
Considerando em termos gerais a situação da personagem
tal como imaginada por Kafka, a auto-calúnia, para o filósofo,
configuraria a condição basilar de todo homem. E, mais uma vez,
o problema da articulação ou dos limites entre trágico e cômico
mostra-se decisivo no âmbito do pensamento agambeniano:

Todo homem dá início a um processo calunioso contra


si mesmo. Esse é o ponto a partir do qual Kafka se move.
Por isso, o seu universo não pode ser trágico, mas apenas
cômico: a culpa não existe - ou, antes, a única culpa é a auto-
calúnia, que consiste em acusar-se de uma culpa inexistente
(isto é, da própria inocência, e esse é o gesto cômico por
excelência).353

O desenvolvimento da análise desde o prisma fornecido


pelo mecanismo da auto-calúnia leva o autor a assumir, como
questão fundamental que daí emerge, o modo como o indivíduo se
surpreende capturado pelo processo. Na narrativa kafkiana, mm
efeito, o tribunal não chega a acusar K., mas tão somente atollir
a acusação que ele faz a si mesmo, com o que a personagem tem
sua vida atrelada, de maneira inelutável, ao aparelho jurídim. K .
afinal, jamais recebe uma citação do tribunal, não é de modo algum
chamado em causa num processo, mas, pelo contrário, deixa se ou
se faz capturar por um processo ao qual ninguém mais do que ele
mesmo alimenta. Para o filósofo, nesse sentido, torna se u u u al
a compreensão do que significa o fato da acusação, isso tanto no
âmbito do processo quanto no âmbito etimológico, bem como o
entendimento das implicações que dele decorrem.
Em sua exposição Agamben mostra que a abertura <le um
processo criminal, no Direito Romano, tinha início com a realiza», a<>
do delatio nominis, isto é, a inscrição do nome do denunciado na
lista dos acusados. O nome, desse modo, era chamado em causa
(ad causare). Acontecia, portanto, a implicação de algo no direito,
a captura de uma “coisa” pela esfera do processo, pelo domínio do

353 AGAMBEN, Giorgio. K. In: Nudità. Op. cit., p. 35.


jurídico. O autor lembra que a causa e a coisa (res) estão, no direito,
relacionadas de modo íntimo, pois sempre dizem respeito a uma
questão processual, antes de indicar que:

[...] nas lín gu as neolatinas, causa é substituída de m odo


progressivo por res e, após ter designado, na term inologia
algébrica, a incógnita (assim com o res, em francês, apenas
sobrevive na forma rien, “nada”), dá lugar ao term o “coisa”
(çhose em francês). N a realidade, essa palavra tão neutra
e genérica, a “coisa”, nom eia “aquilo que está em causa”,
aquilo que acontece no direito (e na linguagem ).354

Torna-se então possível inferir, com base em tal constatação,


que a culpa e a pena são menos definitivas para o processo do que a
acusação, que assume assim o primeiro plano. “A acusação é”, nas
palavras de Agamben, “talvez, a ‘categoria’ jurídica por excelência
Categorias italianas

(categoria, em grego, significa precisamente ‘acusação’), sem a qual


todo o edifício do direito ruiria: a chamada em causa do ser no
direito. Isto é, o direito é, na sua essência, acusação, ‘categoria’”,355
por isso o seu caráter eminentemente trágico.
O rosto da mãe de Elsa Morante, a imagem tão próxima e, ao
mesmo tempo, terrorífica, que dá ensejo à despedida da tragédia,
<N
CO
O

carrega de algum modo o emblema da auto-calúnia impetrada pela


própria Elsa, a marca, ou a falta, que transparece para além das
máscaras (cômica ou trágica). Eis um dos porquês de seu sentimento
de condenação à linguagem: ao se identificar naquele e com aquele
rosto, ela toma consciência de que também ela, ainda que inocente,
encontra-se já acusada, e por si mesma, posto estar de antemão
implicada na linguagem. A desesperança revelada, a impossibilidade
de redenção, indica Agamben, é a sentença condenatória no processo
em que os falantes ingressam a partir do ijiomento em que, falando,
eles se autocaluniam.
Tal sentença, a entrada na linguagem, é categórica e, assim,
de maneira implacável, trágica, mas, caso compreendida a partir
da possibilidade do extravasamento t rágico, ela ao mesmo tempo,

354 Idem, p. 37, grifo do autor.


355 Idem.
ao modo dantesco, abre espaço para o cômico. É uma pena sem
outra expiação que não o seu próprio cumprimento, e que leva à
compreensão de que toda redenção ou salvação, de que toda graça,
enfim, está irreparavelmente perdida e, como firmado no último
parágrafo de “A despedida da tragédia”, o derradeiro também das
Categorias italianas, nada mais resta senão a contemplação da
Ficção, isto é, a despedida da tragédia.
Em outro dos autores cuja poesia é analisada nesta coletânea,
outro acusado, portanto, Giorgio Caproni, essa coisa, essa implicação
de algo na linguagem, mostra-se de igual modo perdida. No texto
que originalmente apareceu como prefácio a Res amissa (a coletânea
de poemas publicada, sob a curadoria de Agamben, em 1991, após a
morte do poeta, o que torna possível dizer que aqui também se Irala
de uma despedida por parte do filósofo), “Desapropriada maneira",
a poesia de Caproni é caracterizada a partir da radicalizaçao do
pelagianismo nela identificada. Res amissa, a coisa perdida, seria a
con-fusão entre natureza e graça no seio dos homens:

[...] a Graça é um dom infundido de modo tão profundo iu


natureza humana que permanece sempre incognoscível. í-
sempre já res amissa, sempre já inapropriável. Inamissível
porque desde sempre perdido, e perdido por força de ser
- como a vida, como, portanto, uma natureza - demasiado e
intimamente possuído, demasiado e “ciosamente” (irra upr
ravelmente) guardado.356357

O acento, no ensaio, recai sobre a impossibilidade de


apreensão de um próprio (de um dom), posto que este está já desde
sempre tão bem guardado que se torna aquilo que o autor, em <>
tempo que resta, ecoando Walter Benjamin (não por acaso também
citado no estudo sobre Caproni), diz ser o inesquecível, o que exige3567

356 Neste volume, p. 117-118.


357 Cf. AGAMBEN, Giorgio. II tempo che resta. Un commento alia Iclleia ai
romani. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. p. 43-44. “A cada instante, a medula
do esquecimento e da ruína, o desperdício ontológico que portamos insi i ilo
em nós mesmos, excede largamente a piedade de nossas lembranças c de nossa
consciência. Mas esse caos informe do esquecido não é inerte nem inclii az
ao contrário, age em nós com não menos força do que a massa de lembram,as
permanecer de algum modo possível. Aqui, em “Desapropriada
maneira”, Agamben retorna à questão da permanência de uma
língua que, mesmo convivendo com as demais línguas naturais,
não se confunde com nenhuma delas. A língua, no caso, é vista
como algo demasiado guardado justamente por estar desde sempre
perdido (como uma espécie de arké, de origem sempre presente,
que, em Caproni, estaria no jogo entre a apropriação desapropriante
e a desapropriação apropriante, ou seja, no balanço entre estilo
e maneira). Mas, pode-se indagar, essa coisa perdida no jogo
poetológico não seria, com efeito, a própria linguagem, e o estatuto
que lhe seria próprio? Não seria a categoria, a acusação, a própria
implicação do vivente na linguagem?
As Categorias italianas circunscrevem, portanto, a busca do
filósofo pela categoria por excelência, ou seja, pela acusação última
que, não por acaso, pode ser também vislumbrada no “Pós-escrito” de
Categorias italianas

A comunidade que vem, de 1990 (pós-escrito neste caso não nomeado:


nem apêndice, nem limiar, apenas “O Irreparável” que se anuncia,
como se anuncia), no qual a discussão sobre essência e existência
conduz a uma retomada categorial, em moldes aristotélicos, do que

conscientes, ainda que de modo diverso. Há uma força e uma operação do


Os)
to
to

esquecido que não podem ser medidas em termos de memória consciente nem
acumuladas como saber, mas cuja insistência determina o valor de todo saber e
de toda consciência. O que o perdido exige não é ser lembrado e comemorado,
mas permanecer em nós e entre nós enquanto esquecido, enquanto perdido - e,
unicamente por isso, inesquecível. Daqui a insuficiência de toda relação com
o esquecido que procure simplesmente restituí-lo à memória, inscrevê-lo nos
arquivos e nos monumentos da história, ou, no limite, construir para ele uma
outra tradição e uma outra história, a dos oprimidos ou dos vencidos, que se
escreve com instrumentos diversos dos das) classes dominantes, mas que não
se diferencia substancialmente desta. Contra essa confusão é preciso lembrar
que a tradição do inesquecível não é uma tradição - ela é, ao contrário, aquilo
que marca toda tradição com um selo de infâmia ou de glória e, às vezes, com
os dois ao mesmo tempo. O que torna histórica toda história e transmissível
toda tradição é, portanto, o núcleo inesquecível que ela leva dentro de si. A
alternativa aqui não é entre esquecer e lembrar, ser inconsciente e tomar
consciência: decisiva é apenas a capacidade de permanecer fiel ao que -
ainda que incessantemente esquecido deve permanecer inesquecível, exige
permanecer de algum modo conosco, de ser ainda - para nós - de algum modo
possível.”
falar quer dizer.358É possível, deste modo, perseguir nos mais diversos
escritos do filósofo uma ideia de linguagem, de um experimentum
linguae que intenta, para além daquilo que ele sugere ter sido para
Pascoli, em “Pascoli e o pensamento da voz”, superar a experiência
da língua como experiência da morte da voz e da morte da língua,
e que tem por horizonte o tornar-se enfim uma experiência do uso:
um estar habituado, um éthos da língua, portanto, uma experiência
ética.
Está assim em jogo, aqui, como indica o nome de outro dos
ensaios de Categorias italianas, no qual é realizada uma brilhante
análise de um original do final do século XV, o Hypnerotomachin
Poliphili, “O sonho da língua”. Nessa expressão pode-se divisai
a concepção da língua “como um campo de uma luta e de um
contraste entre exigências inconciliáveis”.359 Terreno de luta que,
entretanto, não é o que de maneira contumaz se apresenta n.i
tradição literária italiana, na qual via de regra é delimitada «um
base na oposição entre mono e bilinguismo. Pois para Agamben
o espaço desta luta é ocupado por tudo aquilo que resulta da
discórdia ínsita a toda palavra humana. Tal discórdia, essa Iide qm*
faz causa, e traz à causa, como uma acusação, ou mellmr, iiiiim
uma autoacusação que comete todo poeta, na medida mesma nu
que se expõe, conforme argumenta o autor, revela a vergonha
advinda da autocalúnia, isto é, do fato de o poeta, nau obstante

358 Discussão essa que deságua em questões relativas à tl é ix i.s o u ,i a i m Imi ,i.
analisadas por Agamben, já em 1982, no livro A linguagem <■ a mm (.■ I hn
seminário sobre o lugar da negatividade. (Belo Horizonte: Ud. 1IIM<.'Iiiiii
Tradução de Henrique Burigo). Todavia, numa das passagens «Io ///r/immv/.
do final de A comunidade que vem, a relação aparece, a partir «Ia <oir.li m,.\n
teórica de Agamben, mais claramente ligada à concepção de <'A/>nw«iiu '<>
Irreparável não é nem uma essência nem uma existência, nem uma s 111>■,Io11<ia
nem uma qualidade, nem um possível nem um necessário. Não é propi i.imriiir
uma modalidade do ser, mas é o ser que se dá desde logo na modaliil.ide. i'
as suas modalidades. Não é assim, mas é o seu assim”. AGAMBliN, <iioigm
“O Irreparável”. A comunidade que vem. Lisboa: Presença, 1993; p. 7t, goto
do autor. Tradução de Antônio Guerreiro. A comunidade que vem foi também
recentemente publicado no Brasil, em 2013, pela editora Autêntica (llclu
Horizonte), com tradução de Cláudio Oliveira.
359 Neste volume, p. 85.
saber-se inocente, implicar-se na linguagem como um culpado
sem expiação.
A vergonha, que em “Ideia da vergonha” é definida como
“a forma pura, e vazia, do mais íntimo sentimento do eu”,360 é o
que permanece ao final da acusação, é o que sobrevive para além
da possibilidade de ser dita na linguagem. É, por fim, aquilo em
que pulsa uma experiência da língua não como um silêncio na
linguagem, mas como um silêncio da linguagem.
Em um dos textos de composição mais recente entre os reu­
nidos em Categorias italianas, “A anti-elegia de Patrizia Cavalli”,361
o filósofo aborda o tema da vergonha a partir de uma perspectiva
ontológica e ética, algo ademais peculiar ao modo de operação
realizado por ele, que amiúde propõe cruzamentos de leituras
(com destaque, de um lado, para a perspectiva heideggeriana e,
de outro, para seu viés benjaminiano, em torno dos quais ele tece
Categorias italianas

conexões quase insólitas que, de alguma maneira, configuram sua


estratégia e seu arcabouço teórico). Na leitura ali proposta, o eu
envergonhado perde-se no há (na existência)362 “de uma ontologia
brutal e alucinada, algo como uma paisagem ética primordial, na
qual nenhuma psicologia e nenhuma subjetividade jamais poderão
penetrar”,363 enunciado que aponta para a experiência da língua
U))
hP^
N

como puro meio, como exposição singular.


Para os poetas, e, de acordo com Agamben, para os demais
seres humanos, por detrás da exposição, da simples exibição
do rosto, nada mais resta sob as máscaras do que uma “caça da
língua”, como aquela apreendida por Dante com respeito ao vulgar,
tal como descrita no ensaio homônimo, que figura como um dos
apêndices desta edição. Uma perseguição à palavra, e, também, uma
perseguição da palavra, que, todavia, apenas diz a e de si mesma,

360 AGAMBEN, Giorgio. “Ideia da vergonha”. Ideia da prosa, op. cit.; p. 79.
361 O ensaio foi publicado pela primeira ve/., em 2007, como prefácio à edição
francesa do livro da poeta, Mcs poentes tte ehangeront pas le monde, e, até a
edição de 2010 de Categorias italianas permanecia inédito em italiano.
362 Não é possível deixar de notar, porém, a referência indireta ao Dasein
heideggeriano, aqui posto em questão.
363 Neste volume, p. 208.
e, num indecidível limiar entre propriedade e impropriedade,
exibe apenas o lugar qualquer no qual os homens podem, por fim,
liberar-se dos mitos e de seus discursos vagos, em que se mostram
satisfeitos com seus pressupostos tidos como inquestionáveis. E,
assim, abrir caminho na direção de uma possível comunidade vazia e
impresumível, isso em oposição a tudo aquilo que, embora impondo
a exigência do manter-se presente, nunca deixa de se apresentar nos
modos do inapreensível e do desde sempre inamissível.
As Categorias italianas, portanto, como já colocado, tradu­
zem um esforço no sentido de articular e tensionar conceitos
polares fundamentais para a compreensão da cultura italiana,
que se expande na direção da cultura ocidental. Esse movimento
de expansão é claramente atestado pelo processo pelo qual o livro,
após uma elaboração primeira, acaba por ser (provisoriamente?)
reelaborado antes de ser publicado pela segunda vez. A incorporação
de novos ensaios leva a um incremento dos diálogos, seja com outros
textos do autor, seja com idéias e conceitos propostos por alguns
dos intelectuais que balizam seu pensamento, incluindo, entre

Posfácio
estes, aqueles dos quais se afasta, por razões teóricas, éticas ou
políticas. Seja como for, a coletânea mostra fazer parte de um largo
e longo projeto de investigação em torno de algumas das questões

ÍN
ro
UI
centrais com que os homens se deparam, com destaque àquela que
diz respeito à relação entre a linguagem e os seres humanos. Sua
formulação mais simples talvez seja essa: como os homens possuem
a linguagem? Que se desdobra: eles de fato têm a posse dela?
O trajeto cumprido nas Categorias italianas, transitando entre
Dante, Arnaut Daniel, e outros autores provençais, de um lado, e
uma série de poetas coetâneos do filósofo, de outro, assim postos em
articulação, busca compreender nao uma língua, ou várias línguas
históricas, mas o próprio faclnin loque/nli resultante do lançamento
dos homens na linguagem, de sua captura por ela. E este, pode-se
dizer, está no cerne das pesquisas de Agambeu.
A coletânea, assim, parece mcie«ei, miiui talvez nenhum
outro livro do autor, a marea da insigma que assinala seu caráter
paradigmático no conjunto da ohia .igamlxniana. Tratando
sobretudo de poesia, o livro constitui, dnciio, a ,u usação que
Agamben faz a si mesmo enquanto filósofo. Daí a importância
que, nele, adquire a introdução de uma paráfrase a uma reflexão
de Wittgenstein, colocada justamente na conclusão do último dos
ensaios mais longos, “O fim do poema”, a que se segue um extenso
e incomum, no âmbito das obras assinadas pelo autor, apêndice.
Ecoando a preocupação de um colega filósofo que imaginou poder
responder ao mundo com a e a partir da linguagem, dotando-a,
para tanto, de uma transparência que de modo algum ela possui,
a paráfrase chama a atenção, com obstinada resignação, ao fato de
que a língua não é um instrumento apropriável. Ela, como a poesia,
“propriamente se deve apenas filosofá-la”.364
Categorias italianas
Ov
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to

NrsU’ vnliliur, |>. 1Hf>


naice ae nomes

A
Abelardo, 36.
Abraão, 28.
Accetto, T., 147.
Adão, 29-31, 33, 40, 85, 99.
Adorno, T. W., 151.
Agostinho de Hipona, 31-33, 90-93,105-106, 117.
Agosti, S., 132,134.
Alan de Lille, 42.
A lbertoni, L., beata, 141.
A lb in i, G.y22.
A lighieri, D., 14-19, 21-26, 34-37,41-44, 50, 52, 54, 56, 59-64, 77, 7‘> H4, H7. ')•>.
107,110-111, 122,125, 133, 166, 168, 180-181, 183, 188. 1‘) 1, .MU
A lighieri, P., 15.
Ambrogio, 149.
A nônim o Florentino, 15.
Anselmo d ’Aosta, 30, 92.
Aristóteles, 21, 26, 27, 93, 161.
A rnaut, D „ 37,46, 51, 54-56, 60-61, 111, 166,182.
Astengo, D., 116-118,128.
Aubry, J„ 72.
Auerbach, E., 15,16,17, 22.
Averróis, 28.

B
Bachmann, I., 210.
Baldini, G., 210.
Bardi, S. de, 83.
Barin, E„ 77.
Barnes, J., 37.
Beato Angélico, 176.
Bec, P., 52.
Beissner, F., 119.
Bellini, G., 171.
Belzunce, Conde de, 191.
Bembo, P., 77, 81.
Benjamin, W„ 25, 43, 118,124-125, 183.
Benvenuto de Imola, 16, 17.
Bernart de Ventadorn, 107.
Beroaldo, F., 70, 82.
Besold, C., 145.
Betocchi, C„ 121, 206.
Binswanger, L., 126.
Boccaccio, G„ 17,18, 83-84, 107.
Boccalini, T., 146.
Boezio, S., 39, 40, 41, 42.
Categorias italianas

Boine, G., 152.


Bonagiunta da Lucca, 57, 64, 110.
Bon Vezi, 111.
Botero, G., 144.
Bresciano, A., 75.
Brod, M„ 177.
Bruno, G„ 171.
u>
to
00

Buonarroti, M., 125.


Burckhardt, ]., 163.
Busch, W„ 128.

C
Callia, 161.
Calvino, I., 13.
Campana, D., 131, 149, 150,152-153, 156-157, 189, 206.
Canello, U. A., 46.
Canetti, E., 207.
Cangrande delia Scalla, 17-19, 22, 23, 24-25, 29.
Caproni, A. M., 124.
Caproni, G„ 14,115-121, 123-124, 127-131, 152, 157, 194-196, 199,207.
Careri, M., 51.
Casella, M. T., 71.
Cavalcanti, G., 112, 124.
Cavalli, P., 207.
Cecchi, C., 171.
Celan, P., 119, 200.
Céline, L.-F., 128.
Cervantes, M. de, 170.
Ciapponi, L. A., 69, 72, 83, 86.
Cicerone, M. T., 161.
Clapmar, A., 145.
Cloetta, W., 20.
Contini, G., 16, 24, 41, 48, 56, 62, 89, 90, 94, 95, 122, 125, 127, 131-132, 152, 189.
Cortellessa, A., 153.
Curtius, E. R., 20, 84.

D
Dal Pra, M., 36.
Daniele, 134.
Davanzati, B., 81.
Delfim, A., 14,108-113,187,189-191.
D’Elia, G., 115.
Delia Casa, G., 146.
De Signoribus, E., 201.
Dezirada, 111.
Diez, F„ 54, 55.

índice de nomes
Di Girolamo, C., 53, 56, 58.
Diomede, 20, 27.
Dionísio da Trácia, 96, 203.
Dionisotti, C., 69, 73, 79.
Donato, 27.
Dragonetti, R., 34, 61.

CO
C
Durante, G., 171.

n
E
Eneias, 29, 34.
Epiteto, 38.
Erígena (ver Escoto Erígena, J.)
Ermanno, o Alemão, 27.
Etchegarray, M., 189.
Eusebi, M., 46, 49, 50, 51, 52, 53.

F
Falqui, E„ 149.
Faral, E„ 20, 21.
Ficino, M., 108.
Folengo, T., 166.
Folquet de Marselha, 189.
Fortini, F., 167.
Fortunio, G. F., 81.
Foucault, M„ 144.
Franceschini, E., 27.
Fritz, K. von, 30.

G
Gadda, C. E„ 87, 101, 126, 166.
Garboii, C„ 124,177, 210.
Gaunilone, 92.
Gentile, G„ 171.
Gerace, W., 159.
Giovanna, 111.
Giovanni dei Virgilio, 22, 23.
Giovanni de Salisbury, 41.
Goethe, J. W. von, 25,124.
Gorgia, 161.
Gorni, G., 57, 61, 165.
Gotto, 61.
Gramsci, A., 171.
Gregório de Nazianzo, 147.
Guanda, M., 108.
Categorias italianas

Guanda, U., 108.


Guerri, D„ 18.
Guglielmo de Moerbeke, 27.
Guilherme II, Imperador, 157.
Guilherme IX de Aquitania, 61, 85.
Guinizelli, G., 37, 57, 61, 64.
Guiraut de Calanso, 51.
K>
O

Guittone d’Arezzo, 61.

H
Hegel, G. W. F„ 25, 58, 143.
Hegemone de Thaso, 161.
Hellingrath, N. von, 127,151,152, 207.
Heusler, A., 50.
Hobbes, T., 142.
Hõlderlin, F„ 58, 118,119,125,151,152, 207.
Horácio Flacco, Q., 21-23.

I
Idel, M., 61.
Isidoro de Sevilha, 20, 60, 86, 112, 149.

J
Jacopo delia Lana, 15.
Jakobson, R„ 98, 179.
Jarry, A., 140,169.
Jeauneau, E., 66.
Jeremias, profeta, 133.
Jerônimo, santo, 92.
Jesus Cristo, 29, 32-33,134-135.
Joana D ’Arc, 171.
João Batista, 134.
João, evangelista, 84,104,133.
Justiniano I, imperador, 39.

K
Kafka, F„ 109,117,142, 175, 177.
Keil, H„ 20.
Kern, O., 156.
Kessler, J. E., 145.
Kierkegaard, S., 25.
Klein, H. W„ 76, 78.
Kleist, H. von, 119.
Kommerell, M., 58.

L
Lacaita, J. P., 16.
Landolfi, T„ 166,169, 190,192.
Langer, J., 177.
Latini, B„ 180.
Laura, 101,112, 167-168.
Lavaud, R„ 46,47, 51.
Lazzerini, L., 49.
Lelli, T. de, 74.
Leonardo Crasso, 71.
Lévy, Eliphas, 155.
Levy, Emil, 51, 53.
Lewy, E., 124-127.
Lexer, M., 50.
Lobeck, C. A., 155.
Longhi, R., 101.
Lote, G„ 58, 59.
Lucas, evangelista, 134.
Lucini, G. P., 128.
Luzi, M„ 149,153, 158.

M
Mallarmé, S. É„ 58, 72,151, 155, 180, 184.
Manganelli, G., 101, 139, 140, 141-143, 144, 145, I4(>, 147, lí,6, 169.
Manzoni, A., 150.
Maquiavel, N., 144.
Marcabru, 64.
Marziano Capella, 66.
Matheus, evangelista, 134.
Matilda, 37, 67.
Matteo di Vendôme, 21.
Mazzoni, F., 16.
Mediei, L. de, 76.
Meinecke, F., 144-145.
Melville, H., 126.
Mengaldo, P. V., 123, 153.
Michelet, V. E„ 155.
Miellz de Domna, 111.
Migliorini, B., 81.
Milana, F., 120.
Minio-Puluello, L., 27.
Miquel de la Tor, 106.
Mondor, H., 72.
Categorias italianas

Montale, E„ 131, 150, 152, 157-158, 199.


Morante, E„ 14, 159-162,165-167, 170-178, 209-212.
Mozar, W. A., 171.
Mussato, A., 23, 43.

N
Nappo, F„ 153,156-158.
Nembrot (ou Nemrod), 61, 98,193-194.
to

Nietzsche, F., 163. .


Novalis, pseudônimo de G. F. von Hardenberg, 128.
Noventa, G., 101.

O
Oinopas, 161.
Olivieri, A., 156.
Orígenes, 105.

P
Papia, 27.
Paruta, P., 144-145.
Pascoli, G., 14, 89-90, 94, 97-102, 124, 128, 157, 166.
Pasolini, P. P„ 101,167-168, 196, 197, 210.
Pastore-Stocchi, M., 16.
Paulo de Tarso, 92-93,184.
Pelágio, 117.
Penna, S., 128,131,152, 157,168, 199, 2(K,, .>10.
Perugi, M„ 47, 48,49, 51.
Petrarca, F., 101,167.
Picchi, A., 123.
Píndaro, 151.
Pinder, W., 126.
Pintor, G„ 89,102.
Pio, G. B„ 82.
Pizzuto, A., 125.
Platão, 125, 171.
Plauto, 17.
Polenton, S., 77.
Poliziano, A., 45, 70-71, 82.
Porena, M., 16.
Portinari, B„ 35, 83-84, 87, 101, 107, 111,123, 168, 188.
Portinari, F., 83.
Pound, E., 133.
Pozzi, G., 69, 71, 83, 86.
Proust, M., 183.
Pulce, G., 139.

Q
Quintiliano, M. F„ 93.

R
Raimbaut DAurenga, 67,182.
Raimon de Durfort, 45-50.
Rajna, P., 16, 19.
Ranchetti, M„ 153,157.
Rebora, C„ 131,150, 152, 156-157, 206.
Reinach, S., 156.
Rembrandt, H. van Rijn, 171.
Rilke, R. M„ 119,128, 150, 156.
Rimbaud, A., 171.
Rosselli, A., 207.

S
Saba, U„ 168, 206.
Sachs, N., 200.
Sade, D.-A.-F. de, 167.
Scaligero, G. G„ 101, 160, 169.
Scardanelli, ver Hõlderlin.
Schiaffini, A., 16, 24.
Schlegel, F., 124, 170.
Scholem, G., 151.
Schuré, E., 155.
Sereni, V., 206.
Serodine, G., 101.
Servio, M. O., 34.
Settala, L., 144.
Shakespeare, W., 127.
Simeone, B., 191.
Simplício, 39.
Sinésio, 149.
Singleton, C., 30, 37, 41.
Sordello de Goito, 16.
Speroni, S., 78.
Spinoza, B„ 156, 171, 173-176, 178.
Stazio, P. P., 16.
Stierle, K. H., 72.
Strada, F., 144.

T
Categorias italianas

Teófilo, 39.
Terenzio Afro, P., 17.
Tibino, N„ 59, 180.
Tiziano Vecellio, 125.
Toja, G„ 47, 54.
Tolemeo, 105.
Tolomei, C., 78.
Tomás de Aquino, 21, 31, 33, 62.
Toynbee, P„ 19.
Trubeckoj, N. S., 95.
Turc Malec, 45-46.

U
Uc de Saint Circ, 106.
Uguccione da Todi, 27.
Ullmann, B. L„ 77.
Ungaretti, G., 206.

y
Valéry, P., 179.
Valia, L„ 77.
Varchi, B„ 77, 78.
Verlaine, R, 155.
Vigny, A. de, 184.
Villani, F., 44.
Virgílio Marone, P., 16, 17, 20, 29, 35.
Visconti, M., 71.
Võlkelt, J., 43.

W
Walter de Châtillon, 34.
Weil, S„ 171,177.
Weltsch, F„ 117.
Wilcock, R., 209.
Wittgenstein, L., 186.

Z
Zanzotto, A., 101, 131, 132, 133-134,136-138, 153, 203.
Zuccoli, L., 144.

índice de nomes
m
(N

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