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Direção editorial:
Paulo Roberto da Silva
Capa:
Leonardo Gomes da Silva
Editoração:
Carla da Silva Flor
Revisão:
Heloísa Hübbe de Miranda
Ficha Catalográfica
(Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de
Santa Catarina)
CDU: 850
ISBN 978.85.328.0706-9
C.E.S.C. - V.N.H.
Categorias italianas
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vavertencia a
presente edição
Janeiro de 2010.
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retacio
3 Há uma edição brasileira publicada com o título: Seis propostas para o próximo
milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 (N.T.).
4 Na edição brasileira: Infância e história: destruição da experiência e origem
da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
p. 159-170 (N.T.).
Comédia
O problema
librum Comoedia a stylo ínfimo et vulgari...”) [“digo que o autor quis chamar
o livro Comédia em razão do estilo baixo e vulgar”]. Cf.: Benvenuti Rambaldis
de Imola, Comentum super D.A. Comoediam, edição de Lacaita, t. I, Firenze,
1887, p. 18-19.
7 “Não sei dar conta dos fatos a não ser supondo que a escolha da titulação deve
ter sido tomada por Dante muito cedo. Uma narração poética em alto estilo
era então para ele, e continuou sempre a ser, Tragédia; e a nenhuma obra
0\
1. Comédia
Num certo sentido, no que diz respeito à inteligência dos
motivos da escolha cômica de Dante, a crítica moderna não foi
muito além das observações de Benvenuto da Imola, ou daquelas de
Boccaccio, que, após ter elencado as razões pelas quais “parece [...]
não ser conveniente a este livro o nome de comédia”, concluía assim
o seu comentário sobre o título do poema:
1. Comédia
sacro”, e isso não apenas porque ele chega assim a opor a Comédia
à obra daquele que considera o mestre, de quem retira “o belo estilo
que me fez honorável”,17mas também porque a definição da Eneida
como tragédia não resulta coerente com o critério do “início calmo”
vo
e do “fim fétido”, indicado na carta a Cangrande.
Já se disse, para o que uma das metades do problema foi
utilizada como explicação da outra, que a Eneida, como narração
poética em estilo alto, só podia ser para Dante uma tragédia. Na
verdade, a Eneida, segundo uma tradição que tem sua origem
. Comédia
vestes cotidianas, cabeça baixa, não pretendendo os prazeres de nenhuma
festividade”]. Também os mais antigos comentadores de Dante conhecem
quatro estilos poéticos. A carta a Cangrande assinala, nessa perspectiva, uma
passagem de uma tripartição (ou quadripartição) a uma justaposição para a
qual não é fácil encontrar precedentes.
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21 “Sunt et alia genera narrationum poeticarum, scilicet carmen bucolicum, elegia,
satira, et sententia votiva, ut etiam per Oratium patere potest in sua poetria;
sed de istis ad praesens nihil dicendum est” [“Há também outros gêneros de
narrações poéticas, a saber, o canto bucólico, a elegia, a sátira, a oração votiva,
como também pode ficar evidente na obra de Horácio, em sua poesia: mas
dessas, presentemente, nada há para dizer”]. (Ep. a Cangrande, 32). Na Poética
aristotélica, tragédia e comédia não são colocadas expressamente em oposição.
A única passagem em que Aristóteles de maneira explícita contrapõe os dois
gêneros surge em De gen. et cor. (315b), onde se lê que “com as mesmas letras
é possível fazer tanto tragédias quanto comédias”. No comentário a tal trecho,
Tomás de Aquino observa: “Et ponit exemplum in sermonibus quorum prima
principia indivisibilia sunt litterae: ex eisdem autem litteris, transmutatis
secundum ordinem aut positionem, fiunt diversi sermones, puta comoedia,
quae est sermo de rebus urbanis, et tragoedia, quae est sermo de rebus bellicis”
[“E dá como exemplo discursos, cujos primeiros princípios indivisíveis são as
letras: dessas mesmas letras, mudadas segundo a ordem ou a posição, se fazem
os diversos discursos, como a comédia, que é um discurso das coisas urbanas, e
a tragédia, que é um discurso das coisas bélicas"|. (N. 'Ihoinne Aq. Opera omnia,
Roma, 1886, t. III, p. 273).
A écloga a Giovanni dei Virgílio constitui, sob esse viés,
uma ulterior comprovação. Aqui Dante alude ao seu poema com
a expressão cômica verba.22 A interpretação dessa passagem foi
falseada por uma glosa boccacciana que explicava “cômica, id
est vulgaria” e cuja influência foi tão tenaz que, ainda na recente
Enciclopédia dantesca, pode-se ler que Dante, na primeira écloga,
teria resolutamente identificado “o cômico no vulgar”. Desse
modo, um texto que podia lançar alguma luz sobre a escolha
cômica de Dante tornava-se, ao contrário, irrelevante, porque
a identificação entre estilo cômico e língua vulgar é claramente
insustentável.23 Uma leitura atenta da carta em versos de Giovanni
mostra que as censuras que o humanista bolonhês lança a Dante
não têm simplesmente como objeto o uso do vulgar ao invés do
latim, mas muito mais a escolha da comédia no lugar da tragédia.
A expressão sermone forensi, com a qual Giovanni qualifica a
Categorias italianas
22 “Cômica nonne vides ipsum reprehendere verba...” [“Acaso não o vês repreender
palavras cômicas...?”]. (Ecl., 1,52).
23 Vejam-se a propósito as observações de Auerbach (Mimesis, cit., p. 202)
que mostram como a expressão “locutio vulgaris, in qua et muliercule
communicant” [“fala vulgar, em que também as mulherzinhas se exprimem”],
que Dante usa na carta a Cangrande, não pode referir-se ao uso da língua
italiana: “Não se pode atribuir tal ideia a Dante, que defendeu a nobre dignidade
do vulgar desde o De vulgari Eloquentia, que iniciou nas suas canções o estilo
ilustre da língua vulgar, e, no tempo da carta a Can Grande, tinha já terminado
a Comédia”.
24 A expressão de Giovanni é: “Praeterea nullus, quos inter es agmine sextus /
nec quem consequeris coelo, sermone forensi / descripsit” [“Ademais, nenhum,
entre os quais és o sexto do grupo, nem a quem seguirás no céu, descreveu
com discurso forense”] (cf. La corrispondcnza poética di Dante e Giovanni di
Virgílio e Vecloga di Giovanni al Muasatlo, edição de G. Albini, Bologna, 1963).
25 “Canto de um vate” (N.T.).
seu tempo, isto é, a matéria heróica e “pública” da tragédia em vez
dos eventos “privados” da comédia.
No centro do debate com Giovanni dei Virgílio, que pertencia
ao círculo cultural do qual nascería a primeira tragédia moderna,
a tragoedia Ecerinis de Mussato, não está tanto a oposição latim/
vulgar quanto tragédia/comédia, e isso testemunha ainda uma
vez que a titulação cômica do poema tem, para Dante, o valor não
contingente nem fragmentário de uma afirmação de princípio.
1. Comédia
e cuja incompletude faz com que não tenhamos nessa obra um
verdadeiro tratamento temático do cômico), o estilo trágico é
definido, segundo os princípios da tripartição clássica dos estilos,
como o estilo mais elevado (superiorem stilum), em harmonia com
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OJ
a altura da matéria que lhe é reservada (os três grandes magnalia:
Salus, Amor e Virtus). Na carta a Cangrande, em que a articulação
conteudística é preponderante, a oposição trágico/cômico é ao
invés caracterizada, quanto ao plano material, como oposição
de princípio e fim: princípio brusco “admirável” e “calmo” e fim
“fétido” e “horrível” na tragédia, princípio “horrível” e “fétido” e
fim “próspero”, “desejável” e “grato” na comédia; e, sobre o plano
estilístico, como oposição entre um modus loquendi elevado e
sublime em um caso, “resignado” e “humilde” no outro (temperado,
no entanto, por uma referência a Horácio, que licentiat aliquando
comicos ut tragedos loqui).26
Uma confrontação mesmo superficial dessas definições
mostra que, segundo os critérios do De vulgari Eloquentia, o título
da Comédia não se justifica sem contradições, enquanto que a Eneida
1. Comédia
1. A definição dada pela carta a Cangrande à oposição trágico/
cômico foi até agora considerada de modo isolado, sem ter sido
colocada em relação com seu contexto. Posto que essa definição,
no que nos interessa, concerne à “matéria” (Nam si ad materiam
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respiciamus...), o contexto imediato ao qual ela deve ser restituída é
o subiectum da obra. Dante a princípio define esse “sujeito” nestes
termos:
30 “É pois o assunto de toda a obra, apenas iiteralmente aceito, o estado das almas
após a morte tomado de modo simples; pois disto e em torno disto versa o
percurso de toda a obra. Mas se se aceitar a obra alegoricamente, o assunto é
o homem enquanto é sujeito, por mérito ou demérito do seu livre-arbítrio, à
justiça que premia e pune” (N.T.).
31 Ep. a Cangrande, 24-25.
O final “próspero” ou “fétido”, cômico ou trágico, adquire
então o seu significado próprio somente se referido ao seu “sujeito”:
isto é, ele diz respeito à salvação ou à danação do homem, ou, em
sentido alegórico, à sujeição do homem, no seu pessoal livre arbítrio,
à justiça divina (homo prout merendo et demerendo per arbitrii
libertatem iustitie premiandi et puniendi obnoxius est). Longe de
representar uma escolha insignificante e arbitrária, com base em
estereótipos lexicográficos vazios, a titulação cômica implica, ao
contrário, uma tomada de posição com respeito a uma questão
essencial: a culpa ou a inocência do homem perante a justiça divina.
Que o poema dantesco seja uma comédia e não uma tragédia, que
o início seja “brusco” e “horrível” e o final “próspero, desejável e
agradável” significa: o homem, que na sua sujeição à justiça divina
é o subiectum da obra, aparece no início como culpado (obnoxius
iustitie puniendi) mas, ao término de seu itinerário, ele se encontra
Categorias italianas
na comédia.39
40 “poeta fui, e cantai di quel giusto...” [“fui poeta, e cantei daquele justo...”]
(H , I 73).
41 “como após a prevaricação do gênero humano, o início da sua fala começou
com um “Ai!”, sendo razoável que aquele que existiu antes começasse com
alegria” (N.T.).
42
De vulgari Eloquentia, I, IV, 4-5.
Pessoa e natureza
43 K. von Fritz, Antike und Moderne Tragoedie, Berlin, 1962; trad. it. in La tragédia
greca. Guida storica e critica, Roma-Bari, 1974, p. 285.
44 “Vostra natura, quando peccò tota / nel seme suo...” (N.T.).
45 Sobre a distinção entre justiça natural e justiça pessoal, vejam-se as agudas
observações de C. Singleton in Journey to Beatrice, Cambridge, 1958; trad. it.
Viaggio a Beatrice, Bologna, 1968, p. 249 et seq. A distinção entre culpa natural
e culpa pessoal elaborada pelos padres da Igreja corresponde àquela de von
Fritz entre culpa objetiva e culpa subjetiva.
46 “A culpa que cada um traz da natureza na sua própria origem” (N.T.).
47 “Fuit enim peccatum Adae in homine, quod est in natura; et in illo qui
vocatus est Adam, quod est in persona. Est tamen peccatum quod quisque
ecc.” ["Houve, com efeito, uma culpa de Adão para a humanidade, que está na
natureza; e naquele que é chamado Adão, que está na pessoa. Há, contudo, uma
culpa que cada um etc.”]. (San!'Anselmo, /><• comeptu virg. et de orig. peccato,
P. L. 158,433).
dizer, assim, que exatamente na tentativa de explicar, por meio da
distinção entre pecado natural e pecado pessoal, o paradoxo de uma
culpa que se transmite independentemente da responsabilidade
individual, a teologia cristã coloca as bases das categorias pelas
quais a cultura moderna interpretou o conflito trágico. O pecado
original não é concebido pelos padres como um pecado atual e
subjetivamente imputável - tanto é verdade, observa São Tomás,
que ele está presente também nas crianças, a quem falta o livre-
arbítrio48 -, mas como uma marca objetiva e independente da
vontade. A disputa entre traducionistas, que sustentavam que em
Adão toda a humanidade tinha pecado personaliter, e não apenas
naturaliter, e a corrente ortodoxa, que defendia o caráter natural da
culpa original, ilustra bem a formação dessa concepção “natural”
da culpa na teologia cristã.
É a confirmação do caráter natural da culpa original que
a exegese dos padres da Igreja encontra na passagem de Gênesis
(III, 7), na qual a vergonha pela própria nudez é apresentada como
1. Comédia
a primeira consequência da culpa. Assim, no De civitate Dei de
Santo Agostinho, se a perda da justiça original e o nascimento da
concupiscência, que retiram os membros genitais do controle da
vontade, são dramaticamente vistos como imediatas consequências
CO
penais da queda, a vergonha aparece, na mesma perspectiva, como
o sinal do caráter “natural” da queda:
18 “Ergo in eis [sc. pueris] est aliquid peccatum. Sed non peccatum actuale, quia
non habent pueri usum liberi arbitri, sine quo nihil imputatur homini ad
peccatum [...]. Necesse est igitur dicere quod in eis sit peccatum per originem
traductum” [“Logo, neles (isto é, nos garotos) há alguma culpa. Mas não a culpa
atual, porque os garotos não têm o uso do livrc-arbítrio, sem o qual nenhum
homem é imputado de culpa [...]. É preciso, de lato, dizer que neles há uma
culpaprovinda da sua origem”]. (Divi 'Ihomac Aq. |...| Stunnui contragentiles,
Roma, 1927, p. 639).
parte oportuit apparere, qua generatur ipsa natura, quae illo
primo et magno in deterius est mutata peccato. . . 49,50
1. Comédia
Adam . 55,56
57 “Est autem paene totus in affectione, licet in fine pathos habeat, ubi abscessus
Aeneae gignit dolorem. Sane totus in consiliis et subtilitatibus est: nam paene
comicus stilus est: nec mirum, ubi de amore tractatur” [“É, com efeito, quase
todo de afeto, embora no fim tenha um pathos, na parte em que a partida de
Eneias causa tristeza. E quase todo de conselhos e sutilezas: pois o estilo é quase
cômico; e não é de se admirar, pois se trata de amor”]. (Sérvio, a propósito do
livro IV da Eneida, cf. Servianorum in Víti;. ( larmina Com., editio harvardiana,
Oxford, 1965, v. II, p. 247).
58 “finamors” (N.T.).
59 Sobre a essência do amor cortês c a ivlai1ao de banle com ele, vejam-se as
agudíssimas observações de K. Iti.igoMolli. /.V/i/mk/c iír l:mncesca selon la
“cômica” de Dante adquire um peso ainda maior. Em relação ao
projeto “trágico” dos poetas de amor, a titulação cômica do seu poema
constitui uma verdadeira “inversão categórica”, que faz novamente
girar o amor da tragédia à comédia. Na teoria do amor que ele expõe
pela boca de Virgílio, no canto XVII do Purgatório, a experiência
erótica, o conflito “trágico” entre inocência pessoal e culpa natural,
torna-se conciliação cômica de inocência natural e culpa pessoal.
Enquanto, de um lado, ele pode desse modo afirmar que “o natural
é sempre sem erro”,60 desmente, de outro, a reivindicação da “gente
que assevera / todo amor em si como louvável coisa”,61 e - em
oposição à teoria cavalcantiana segundo a qual o amor implicava a
impossibilidade de um juízo reto (“para a saúde - manter o juízo”)62-
funda o caráter pessoal da responsabilidade amorosa em uma “inata
virtude que aconselha / e do assentimento deve manter o limiar”.63
O amor assim se dissipa no obscuro fundo trágico da culpa natural
e torna-se uma experiência pessoal imputável ao arbitrium libertatis
de cada um e, como tal, expiável in singulis.
1. Comédia
3. A teoria da vergonha - que Dante desenvolve no canto
XXXI do Purgatório - é o fulcro em torno do qual se cumpre esse
giro da culpa natural trágica a uma culpa pessoal cômica. Aqui a
co
in
expiação do pecador Dante, antes da imersão nas águas do Lete,
cumpre-se por intermédio de um processo de humilhação “cômica”,
que tem no seu centro a experiência da vergonha. Se a aparição de
Beatriz, com a sua severa apóstrofe, já aprofunda Dante na vergonha
(“tanta vergonha gravou-me a fronte”),64 a necessidade purificadora
da vergonha é reafirmada logo após Dante confessar o seu pecado
1. Comédia
a alegria do amor está, trágica ou comicamente, cindida.
Pessoa e comédia
OJ
1. A decisão de Dante de chamar “Comédia” o seu poema
representa, portanto, um momento importante na história
semântica de duas categorias cuja oposição permitiu a nossa
cultura trazer à consciência um dos seus “pensamentos secretos”.
O giro antitrágico, que nela se manifesta, não é, contudo, e de
modo algum, um evento novo e isolado, mas representa, em certo
sentido, o último ato de um processo ao qual a tardo-antiguidade
73 Epict. Ench., XVII: “Recordes que tu és como um ator na parte que o autor
dramático quis consignar-te: breve, se é breve, longa, se é longa. Se ele quer que
tu recites um papel de mendigo, recita-o convenientemente. Faça o mesmo para
uma parte de aleijado, de magistrado, de simples privado. Pois de ti depende
recitar bem o personagem que te foi designado; mas escolher compete a um
outro”. Epict. Diss., I, XXIX, 39: “Está talvez em teu poder escolher o tema?
Foi-te designado um certo corpo, certos genitores, certos irmãos, uma certa
pátria, um certo estatuto. E eis que tu vens me dizer: troque me o tema”. Diss.,
I, XXIX, 41: “Chegará logo o dia em que os atores acrcdilurun que a sua máscara
e os seus costumes sejam eles mesmos”.
tu encontras um herói trágico, não um ator, mas o próprio
Édipo.74
1. Comédia
por obra dos padres da Igreja, a noção teológico-metafísica de
pessoa.
No Contra Eutychen de Boécio essa ambiguidade pode ser
C\
CO
percebida na sua indivisa coerência original. Boécio é, de fato,
ainda perfeitamente consciente do significado teatral do termo
“pessoa”, mas procura, por outro lado, convertê-lo numa categoria
filosófica, fazendo dele o equivalente do grego hypóstasis, no
sentido de naturae rationabilis ináividua substantia. Numa
passagem em que a pertinência da tragédia e da comédia ao
estatuto da pessoa tem a sua legitimação originária, a dificuldade
dessa crucial mutação semântica aflora à sua consciência como
uma “falta de palavras”:
hypóstasis.76
76 Boécio, Contra Eutychen, III, 9-23 (in Moelliiiis, ítn-oloyjml Tmclates, London-
Cambridge 1973, p. 86).
77 “Nam illud quidem manifestam csl peisnnar sulaei l.nn esse naturam nec
praeter naturampersonam posse predii a n " |'Tcus. m m eleiio. é manifesto que
a natureza está sujeita à pessoa, e (|tie a pessoa nao p o, l e se i pr e d i c ad a além da
natureza”]. (Boécio, Contra Eiitychen, i il , p M’>
metáfora estoica, como uma fabula, uma comoeáia ou tragoedia
mundana. At si nostra têmpora propheticus spiritus concepisset - lê-
se no Policraticus de Giovanni de Salisbury - dicetur egregie quia
Comoeáia est vita hominis super terram, ubi quisque sui oblitus,
personam exprimit alienam.71
1. Comédia
surgiu completamente acabado na cabeça do homem ocidental, mas
formou-se por meio de um fastidioso processo em relação ao qual
a oposição tragédia/comédia não permaneceu estranha (desde esse
ponto de vista pode-se dizer que a pessoa-sujeito moral da cultura
moderna nada mais é que um desenvolvimento da relação “trágica”
do ator que se identifica completamente com a própria “máscara”.
Por isso, enquanto a comédia - que negava a identificação com o
prósõpon, tanto mais que essa tinha no seu centro a figura do servo,
ou seja, do aprósõpos por excelência - conservou na cultura moderna
a máscara, a tragédia, ao contrário, teve que necessariamente
desembaraçar-se dela). Quem termina a viagem da Comédia não é
um sujeito, um Eu no sentido moderno da palavra, mas uma pessoa
(o pecador de nome Dante) e, ao mesmo tempo, a natureza humana (a
specificata proprietas, segundo a definição de Boécio, que é subiecta
a essa pessoa). E é essa unidade-dualidade entre natureza e pessoa
que funda a peculiaridade do estatuto do protagonista da Comédia78
79 É com base na passagem em que Boecio (Ibitl., |>. H.!) explica que os acidentes
não podem se tornar pessoas (“vidcmus porson.im m accidenlibus non posse
constitui: quis enim dicat ullam albcdinis vel nigredinis vel magnitudinis esse
personam?”) [“vemos que uma pessoa ii.it» pode m nsiiiuii se nos acidentes:
quem, com efeito, dirá que uma brannii.i, um.i uegmi.i ou mna grandeza é
uma pessoa?”], que a alegoria medieval, solue a qual lanlo se di.si ul iu, encontra
a sua situação própria.
80 “registrato di necessità”. Pur., XXX o
expiação, não é nem uma alegoria nem o sujeito moral que a ética
moderna fará o centro inalienável do homem, mas um prósõpon,
uma máscara, a “pessoa estranha” e a risilis facies turpis aliqua et
inversa sine doloremdo direito e da comédia.
É essa concepção “cômica” da criatura humana, cindida
em natureza inocente e pessoa culpada, que Dante deixou como
herança à cultura italiana. É certamente possível ver na sua escolha
uma confirmação daquela posição historicamente atrasada sobre a
qual tanto se insistiu. Isso porque, para além do projeto trágico dos
poetas de amor que ele tinha compartilhado, na cultura do seu tempo
já estavam em ação os fermentos, dos quais na Itália se fez intérprete
Mussato, que teriam levado, com base na descoberta do caráter
trágico da história, à reafirmação da tragédia na Idade Moderna.
Mas se essas tendências, que foram lentamente prevalecendo na
cultura moderna até a presunção trágica do século que observou a
sua própria Weltanschauung como aquela na qual apenas o trágico
podia encontrar um desenvolvimento coerente,8182 permaneceram na
1. Comédia
Itália singularmente inativas, e se a cultura italiana de modo mais
tenaz do que qualquer outra permaneceu fiel à herança antitrágica
do mundo tardo-antigo, isso se deve também ao fato de que, nos
limiares do século XIII, um poeta florentino decide abandonar a
reivindicação trágica da inocência pessoal em nome da inocência
natural da criatura, o íntegro amor edênico pelo amor humano
comicamente cindido, a personalidade inalienável da moral pela
“pessoa estranha” do direito, os “altíssimos voos” do gavião “sobre
coisas tão vis” pelo “voar baixo” da andorinha .83 A severa “maschera
84
Máscara de grifo (N.T).
da anatomia à
História
1 . Canello, 1883:
Cornar, com o significado de “usar sodomiticamente”,
que aqui está em questão, assim como com por “traseiro”, não
são registrados nem pelo Lexicon nem pelo Glossário; mas o
traslado de “corno” como “traseiro” era comum, como mostra
o Barbariccia do Inferno (XXI, 141) dantesco, que fez “do cu
Categorias italianas
2. Lavaud, 1910:
vo
Com: Rayn distingue com, II, 485, “cor, clairon”, de corn, II,
486, “corne, coin, angle, canal, tuyau”. Levy réunit tous ces sens sous
le même article, I, 369, et y ajoute celui de “derrière, anus”, daprès
Arnaut Daniel, ici et Turc Malec (ou plutôt Raimon de Durfort,
selon Canello et moi...). Lanus est comparé dans toute cette pièce
à une trompette, un clairon ou un cor [...]. Au vers 6 cornar a son
87 Sirvente, por vezes grafado servente, designa uma estrofe de três versos
hendecassílabos dotados de uma mesma rima, seguidos do um verso de rima
irrelata, usualmente de cinco sílabas, <|ue introduz, a rima principal da estrofe
seguinte (N.T.).
88 O texto crítico de Arnaut aqui utilizado é o de M I uscbi, Arnaut Daniel. 11
Sirventese e le Canzoni, Milano, IdHd (do qual me al.r.ioi somente com respeito
ao nome Ayna, em vez de Etui).
89 U. A. Canello, La vita e le opera tlrl iiovuioir l I Kiuulln. Il.dle. IS83, p. 187.
sens ordinarie (cf. R., II, 486) de “corner, sonner de la trompete ou
du cor”.90'91
3. Toja, 1960:
Cornar. A fantasiosa interpretação de Canello (p. 187):
“usar sodomiticamente” foi com facilidade corrigida por Lavaud
como “corner, sonner de la trompete ou du cor”, portanto “soprar”,
deduzido do ordinário significado de com (cf. SW, I, 368, que reúne
as vozes do Lexicon, II, 485: cor, clairon e de II, 486: corne, coin, angle,
canal, tuyau, a eles acrescentando o significado de ânus, traseiro).
Lavaud, desdramatizando a exegese de Canello, compreendeu
4. Perugi, 1978:
Estamos longe de ressuscitar a improvável interpretação
sodomítica proposta por Canello: além disso, com a melhor das boas
vontades e com toda a nossa fantasia, não conseguimos imaginar em 47
que esse “exercício com o buraco” devia consistir, e como, em suma,
representá-lo concretamente (honni soi qui mal y pense). Após um
atento exame da questão, e firmemente convictos de que os homens
(e as mulheres) de então não deveríam apresentar substanciais
diferenças em relação aos de hoje, nem na estrutura física nem nas
90 “Com: Rayn distingue com, II, 485, ‘chifre, corneta’, de com, II, 486, ‘corno,
canto, ângulo, canal, tubo’. Levy reuniu todos esses sentidos no mesmo artigo,
I, 369, e a eles acrescenta o de ‘traseiro, ânus’, seguindo Arnaut Daniel aqui
e Turc Malec (ou sobretudo Raimon de Durfort, de acordo comigo e com
Canello...). O ânus é comparado em toda essa peça a um trompete, uma corneta
ou um chifre [...]. No verso 6 cornar tem seu sentido ordinário (cf. R., II, 486) de
‘cornar, soar o trompete ou o chifre’” (N.T.).
91 R. Lavaud, Lespoésies d ’ Arnaut Daniel, réediclion critique dápròs Canello, in
“Annales du Midi”, 22,1910 e 23,1911 (Cenc-vr, 1971). p. 9.
92 G. Toja, Arnaut Daniel. Canzoni, ed. crítica, liicn /e, |9<,o, p. IH2.
atitudes e hábitos sexuais a tal estrutura inevitavelmente conexos,
acreditamos que todos os estudiosos - de Canello em diante -
enganaram-se sobre a parte do corpo a ser focalizada em relação ao
exercício requerido. [...]
Antes de apresentar as peças de apoio para nossa interpretação,
vejamos mais precisamente quais são os traços pertinentes do com
encontráveis com base nas sirventes a nossa disposição. Raimons
de Durfort fala genericamente de trauc sotiran (I 16) e de um
misterioso raboi (III 41: Contini interpreta “traseiro”, conforme a
explicação por ele sustentada para toda a tenção).93 Arnaut Daniel
é mais abundante nos particulares: localiza o com nelVefonil /
entre Veschine-l penchenil (cf. v. 41-42: o particular topográfico
corresponderá sem dúvidas ao vago III 14 Cornatz mayssi sobre-l
reorí), e se alonga em ilustrar (cf. v. 12-15) que-l corns esfers epelutz
/ que sta preonz dinz la palutz... e neül jom no stai essutz. Agora,
Categorias italianas
6 . Eusebi, 1984:
A questão sobre o que é o corn não deveria ser repetida se não
tivesse sido proposta por Perugi (II, p. 3-10) uma interpretação que
deve ser refutada. Em substância, esta se apresenta assim: o corn não
pode ser o ânus porque épelutz e jamais essutz (p. 5); “o (seu) campo
semântico coincide quase perfeitamente com aquele do v. 47 dosil”
(p. 8); posto que Raimon de Durfort, III, 11, diz Si- m mostrava’l corn
e-l con, “o corn é próximo ao con, ainda que sem se identificar com
ele” (p. 9); portanto “o corn é o clitóris” (p. 9). Ora, (1) não se pode
por certo sustentar-se que o orifício anal não possa ser circundado
95 L. Lazzerini, Cornar lo corn: sulla tenzonc trn liainnui ilc Durjorl, 'iruc Malec e
Arnaut Daniel, in “Medioevo romanzo”, 8, l‘)HI W M4.
de pelos, nem que o reto não tenha seu muco ou que outras secretas
viscosidades (sangue menstruai?) não possam banhar o ânus, que
é colocado com os órgãos sexuais na mesma palut, e o todo em
medida congruente com o efeito desagradável que se quer produzir;
(2) o citado verso de Raimon de Durfort, III, 11, prova que o corn
não é o con, assim como o que se lê logo em seguida, 14, cornatz
mayssi sobre-l reon, coloca o corn no traseiro [...]. Além disso, o que
é sugerido por essa inversão paródica, como exato oposto da boca?
E cornar será naturalmente compreendido como “levar a boca ao
corno”: e no taing que mais sia drutz/ cel que sa bocal corn conáutz
(vv. 17-18).96
Alegoria
m
O escritor de H conhece, portanto, um sentido inédito de
com, que remete não à anatomia feminina, mas à poética, e que
de agora em diante será oportuno arquivar virtualmente entre os
significados do lema correspondente de Levy. Que não se trate de
um hápax descuidado está confirmado pelo próprio H: no primeiro
verso da tornada de L’aur'amara ele recita, ao contrário do vulgar
Faitz es Vacortz / quel cor remir (Lavaud: “cet accord est conclu”;103
Perugi: “estipulado está o acordo”), Faits es lo cors quel cor remir, isto
é, “feito está o verso” (ou melhor, por sinédoque, “o poema”), com
sentido, dada a situação em tornada, decididamente mais satisfatório
(a prova é que Eusebi acaba por interpretar por conta própria acort
Tropologia
107 “A firme vontade que em meu corn entra/dem im não pode ser tirada por bico
ou unha...” (N.T.).
108 Eusebi, Arnaut Daniel, cit., p. 128.
109 E. Levy, Petit dictionnaireprovençal-français, I leidclberp,, 1906, p. 96.
110 C. Di Girolamo, Elementi di versificazionc firovciwalr, N.ipoli, 1079, p. 116.
específico. Se voltarmos, portanto, à sirvente de Arnaut, toda a
polêmica em torno do com de «Ayna sairá do âmbito do sentido
literal obsceno para tornar-se uma questão de técnica poética, de
um problema de conveniência anatômica para uma disputa métrica.
À equação corpo da mulher = corpo da poesia, que por certo não
é óbvia e tampouco inesperada na lírica cortês, será contraposta
àquela entre corn orifício corpóreo e com ponto de ruptura da
coesão métrica da estrofe. O corpo “por ligação musaica [musaico]
harmonizada” do poema é rompido em um ponto, assim como a
integridade do corpo feminino é quebrada no trauc sotiran. Mas
o que muda, com relação a uma melhor leitura do texto, com essa
rotação semântica que transforma uma brincadeira sexual em um
quesito poético? Em primeiro lugar, a presença, de outro modo
improvável, do mestre do gradus constructionis excellentissimus
em uma tenção obscena encontra agora uma explicação pontual.
Categorias italianas
111 “e desse modo o uso nas estâncias por Arnaut Daniel é frequentíssimo, como
aqui, Semfos Amor de joi danar" (N.T.).
112 Veja-se o elenco em Toja, Arnaut Ihinii l. <iurtuii, i ii., p. •! I.
torna-se em Arnaut a regra a que ele concede apenas raras e
insignificantes exceções. Era para ele fácil, daí, a passagem
à sextina...113145
un
m
unidade formal meta-estrófica. Isso nada mais é do que aquilo que
Arnaut de modo expresso reivindica em Doutz braitz:
113 F. Diez, Leben und Werke der Troubadours, Leipzig, 1882, p. 286.
114 “E para entender o que quer dizer esse próximo enlace de sílabas com tão
bela cadência, podeis também tomar como exemplo a canção que fez Arnaut
Daniel e que assim se inicia: lo ferms volers que- 1cor m intra [...]. E a tais rimas
comumente chamamos irrelatas” (N.T.).
115 Las Flors dei gay saber (= Leys), Toulouse, edição de l;. (íatien-Arnoult, 1841
1843, III, p. 330.
116 “e portanto eu, que procuro pela mais bela / devo lazer uma canção que será tão
refinada / que não haverá palavra falsa nem rima irrclala" (N.T.).
(com a advertência, sugerida por Di Girolamo, de que Arnaut chama
aqui rima estrampa “o que as Leys damours iriam depois denominar
rims espars ou brut, vale dizer, rimas de todo ir relatas” ).117189Dessa
maneira, apenas se as rimas estiverem unidas num nível meta-
estrófico será lícito expor, sem perigo (e até mesmo beijar), o corpo
da mulher-poema (assim lemos, com base no paralelismo restituído
com a tornada de L’aur’amara, e em contiguidade com o cornar- l
com da sirvente, os versos 39-40: que- l sieu bel cors baisan, rizen
descobra / e que-l remir contra-l lum de la lampa).ns
O tema obsceno e jocoso da sirvente reconecta-se, portanto,
segundo a mais pura intenção trovadoresca, perfeitamente
àquele seríssimo “teorema da preponderância da harmonia
sobre a melodia”, no qual, nos passos de Dante, Contini tinha
peremptoriamente compendiado a lição danielina .” 9 Teorema
severo - na medida em que coloca em primeiro plano na composição
poética um cânone perceptível, no limite, apenas através da
escritura -, pois ele prepara o definitivo afastamento do canto (isto
é, do elemento que Dante, ao modo grego, chama de meios) do
texto poético, algo que em pouco tempò iria caracterizar a história
ulterior da lírica europeia. Se é verdade que podemos supor, em
âmbito occitânico, uma correspondência entre divisão estrófica,
assinalada por rimas regulares, e divisão melódica, é também certo
que o com - ou rima irrelata - marca um ponto de ruptura nesta
correspondência. E a nova técnica inaugurada por Arnaut, que
eleva essa fratura ao supremo paradigma compositivo, significará
então uma metamorfose tão radical do corpo da poesia a ponto de
justificar a tempestuosa fermentação alquímica que parece vir no
corpo de rz’Ayna. No ponto em que a rasa correspondência entre
frase métrica e frase melódica se rompe, instaura-se uma nova e
mais complexa correspondência, na qual o verso irrelato, ligando-
se ao seu companheiro na estrofe sucessiva, tece uma superior e,
por assim dizer, silenciosa partitura.
cn
corpo de «Ayna.
Anagogia
120 “a página [...] tomada como unidade, como o é, em outra parte, o verso ou a
linha perfeita” (N.T.).
121 “Famoroso canto / che mi solea quetar tutte mie voglie” (N.T.).
122 “a modulação nunca é dita canção” (N.T.).
123 “também tais palavras escritas em papéis e fora dc seu proferimento nós
chamamos canção” (N.T.).
124 De vulgari Eloquentia, II, VIII, 5-6.
125 G. Gorni. II nodo delia lingua e il verbo damorc. Stiuli sn Ihinte e altri
duecentisti, Firenze, 1981, p. 41.
adequada inteligência do seu significado na economia global do
texto poético. À parte alguns acenos de Hülderlin (da teoria da
cesura na Anmerkung à tradução de Édipo), de Hegel (a rima como
compensação do domínio do significado temático), de Mallarmé
(a crise de vers que ele deixa como herança à poesia europeia do
Novecentos) e de Kommerell (o significado teológico - ou melhor,
ateológico - dos Freirhythmen), uma filosofia da métrica falta, de
resto, quase que totalmente em nosso tempo. É possível extrair da
anatomia especial do corpo de nAyna alguma ideia nesse sentido?
Em todo caso, é certo que a consciência de um poeta não pode ser
indagada sem que se leve em conta suas escolhas técnicas.
Já vimos que o com, como ponto de ruptura do corpo poético,
assinala uma desconexão entre a tessitura harmônica e a tessitura
melódica, e entre a oralidade e a escritura. Mas não podemos
compreender o seu sentido - como, em geral, de qualquer instituto
Categorias italianas
128 “Et devetz saber que nos cossiram pauza en dos manieras, la una cant
a la sentensa: e segon aquesta maniera en tot loc dei bordo pot estar pauza
suspensiva, plena o finais [...] en autra manera cossiram pauza en quant que la
prendem por una alenada”. [“E deveis saber que neste tipo de poemas a pausa se
dá de duas maneiras: uma quanto à sentença: e segundo essa maneira em todo
lugar do verso pode estar uma pausa suspensiva, plena ou final [...] na outra
maneira a pausa se dá quando é tomada por um suspiro”] (Leys, I, p. 130).
129 “frequentemente, de fato, acontece que, uma vez acabada a consonância, o
sentido da oração ainda não acabou” (N.T.).
IJ" Lote, Histoire du vers français, cit., p. 252.
131 “E aqui tu deves saber que esse vocábulo [estância] foi cunhado somente em
relação à discussão da técnica poética, de modo que o objeto a que toda a arte da
canção foi consagrada deveria ser chamado estância, isto é, um armazém capaz
ou um receptáculo para a arte em sua totalidade. Pois, assim como a canção é
cobertura da totalidade de suas sentenças, assim a cslância engloba a totalidade
de sua técnica; e as ulteriores estâncias do poema nunca doveriam aspirar a
englobar algumas novas técnicas, mas deveriam apenas veslit se com o mesmo
traje da primeira” (N.T.). De vulgari Eloquciiliu, II, IX. 2 i (grilo nosso).
e unidades parciais essencialmente métricas; e é singular que
ele exprima esse contraste exatamente através de uma imagem
corpórea: o ventre feminino, com implícita assimilação (retomada
também logo abaixo: de ipso corpore, II, X, 1) da canção a um corpo
constituído por órgãos métricos (e o verbo ingremiare, recolher no
ventre, poderá também, como o correspondente insinuare, ter um
sentido equívoco).
Nessa perspectiva, o verso irrelato (ou corrí) não aparece
mais apenas como um instrumento votado a realizar um vínculo
formal meta-estrófico, mas também e acima de tudo como o lugar
de fronteira per superexcellentiam entre unidade métrica e unidade
semântica. Torna-se então compreensível porque Dante, adotando
uma improvável sugestão, chame o verso desacompanhado de
clavis (chave, mas também prego, justamente o duplo significado
do termo, que corresponde, de resto, à originária unidade da coisa;
Categorias italianas
132
‘chave que fecha ou abre” (N.T.).
os dois ventres, e a outra que gostaria de colocá-los em impossível
confusão. No limite, não atingível por nenhuma exaustão, está a
glossolalia, na qual o sentido se esfumaça no som ou este naquele:
o babariol, babarial, babarian de Guilherme IX ou o Raphel may
amèch zahi almi do Nembrot dantesco, ambos “além ou aquém”133
do discurso significante.
É sob essa luz que será então preciso colocar-se para tratar
da persistente evocação do verso irrelato no De vulgari Eloquenti.
Ali Dante, quase a sublinhar (não sem desdém) a importância do
0\
caracterizador, para os estilonovistas, das rimas irrelatas, que
Guinizelli, no soneto Caro padre meo, parece opor explicitamente,
como ligação frágil (debel’ vimi), à rima como “nó canônico” da
composição poética134 (é significativo que o arquétipo negativo de
Dante, Guittone, nas suas canções tenha extremo cuidado em evitar
a irrelação).
Com base na recuperada dignidade do verso-chave (ou
prego) na economia poética cortês, será talvez possível ler de
maneira menos ingênua (ou, no mínimo, menos contraditória)
o ápice da própria definição da poética “estilonovista” no canto
XXIV do Purgatório. A leitura trivial prejudica romanticamente o
tema dantesco, interpretando-o no sentido de uma mais “segura”
as
entre a inteligência e a língua, na qual, enquanto a língua (“quase
por si mesma iniciada” )136 fala sem poder entender, a inteligência
entende sem poder falar.
Por isso Dante pode apresentar essa insuficiência constitutiva
(“a debilidade do intelecto e a inadequação do nosso falar”) como
“uma culpa pela qual não deixo de ser culpado” e que o motiva
a acusar-se e, “simultaneamente”, escusar-se. Dados, no ato de
palavra (ou de escuta), os dois processos sincrônicos e inversos,
135 “Em alguns casos o discurso é a causa do intelecto, como nas coisas apreendidas
por disciplina: e assim acontece com o intelecto do aprendiz que não apreende
o poder da fala; e o intelecto pode então escutar, mas não compreender as
coisas faladas [...]. Mas quando o intelecto é a causa do discurso, como naqueles
conhecidos pela invenção: em seguida o intelecto excede o discurso e muitas
coisas são compreendidas não sendo possíveis de piolciir" (N.T.).
136 “quasi da se stessa mossa” (N.T.).
aquele da língua em direção à inteligência e aquele da inteligência
em direção à palavra, ambos comunicam, por assim dizer, através
de seus defeitos, de modo que (como Dante dirá pouco depois) a sua
imperfeição coincide, na verdade, com a sua perfeição (3, XV, 9).
Se tal é a estrutura do ditado poético, então os tercetos de
Purgatório XXIV 49-63 devem ser relidos. Antes de tudo a dupla
escansão spira / noto e detta / vo significando (como também
a duplicação f / un) corresponde ao duplo excesso e à dupla
inefabilidade do Convívio que, adquirida em definitivo como feliz
princípio poético, delimita agora o espaço no qual, na verdade,
segundo a intenção tópica de Dante, a invenção pode inverter-se em
escuta (e transcrição) e a escuta em invenção. O mover-se “seguro”
[stretto] da pena “em obediência àquele que dita” não poderá,
deste modo, significar uma simples adesão; de fato - enquanto a
pena adere ao ditado exatamente por meio da sua insuficiência -,
Categorias italianas
137 “Tu deixas tal vestígio / por aquilo que ouço, em mim, e tão claro / que Lete
não pode trazer nem tornar opaco”; ou, caso se tome “ch’i’odo” como cifra: “Tu
desconexão que o Convívio enuncia no plano da doutrina e que se
recompõe somente na mente divina, quando intendente e intelecto
se identificam, enquanto toda pretensão humana de superá-la perde
de vista a distância que separa os dois “estilos” (a escritura da língua
que excede o intelecto e aquela da inteligência que excede a língua):
vo
LT)
“prego” (ou chave) constitui o mecanismo de troca, assim como o
com marca o seu traço no corpo delirante de n’Ayna.
Epílogo
deixas tal vestígio / por aquele prego, em mim, e lão claro / que Lete não pode
trazer nem tornar opaco” (N.T.).
138 “e quem mais a desejar além se coloca / não vê m.lis nem iiiii nem outro estilo”
(N.T.).
da domnagenser que no say dir,m dos trovadores, e daquela “senhora
inteligência” eleita pelos poetas de amor como fonte e, ao mesmo
tempo, destino de seu canto. Como tal, ela poderá trazer à mente a
“mulher gaga” de Purgatório, IX 7-15, a sereia da língua demasiado
solta, em cujo ventre tem lugar uma exibição igualmente indecente
e na qual se pode ver, com razão, uma figura do “não-canto”.139140 Mas
também aqui a inversão se complica e, por assim dizer, inverte-se
por sua vez.
Acreditamos ter identificado o arquétipo disso em uma
passagem das glosas de Erigena sobre Marziano Capella, um texto
decerto não ignorado pela cultura cortês. Aqui lemos, a propósito
do nome de uma das Musas:141
144
‘Aquela que conduz à beatidude” (N.T.).
0 sonho da língua1"
146 O termo aldino faz referência a Aldo Manuzio, consagrado editor e tipógrafo
italiano que no início do século XVI (entre 1500 e 1515) inovou no modo de
fazer e compor livros. Foi o responsável pelo projeto gráfico e pela impressão
do Hypnerotomachia Poliphili (N.T.).
147 “que não pareça mais filosofastro que comentador” (N.T.).
em que língua está lendo, se em latim, em vulgar ou em um terceiro
idioma - talvez aquele que uma precoce paródia quinhentista
define como lingua poliphylesca. Não se trata apenas de um efeito
resultante da distância temporal do texto. A consciência desse efeito
era tão primária para o autor e para os imediatos destinatários da
obra que a encontramos claramente enunciada, in limine, no próprio
incunábulo. Na epístola em latim de Leonardo Crasso que abre o
texto, de fato lemos: Res una in eo miranda est, quod, cum nostrati
lingua loquatur, non minus ad eum cognoscendum opus sitgraeca et
romana quam tusca et vernacula (I, IX).14e Aqui está perfeitamente
apreendido o que ainda desorienta o leitor moderno, mesmo se
não esteja de todo claro o que se deve entender por “nostrati”, se
conforme ao latim no qual escreve Leonardo ou ao vulgar do texto.
A elegia anônima ao leitor, que segue logo abaixo, reafirma
esses conceitos falando de nova lingua novusque sermoli9 (I, X). E o
3. O sonho da língua
carme de Matteo Visconti, acrescentado à cópia da Staatsbibliothek
de Berlim, afirma, de maneira ainda mais explícita, sobre Polifilo:
novum propemodumque divinum eloquium nactus1481950 (II, 36).
Os estudiosos modernos analisaram a língua de Polifilo,
mesmo se ainda não de modo exaustivo. Os resultados aos quais
chegaram confirmam aquilo que já aparece numa primeira leitura: a
língua do livro é um unicum monstruoso, no qual a estrutura vulgar
sofre uma vigorosa inserção lexical latina. Nas palavras de um
estudioso, que dedicou ao Hypnerotomachia cuidados exemplares,
o texto é “uma tentativa de resolver com uma fórmula prática a
querela humanística entre vulgar e latim, conservando de um a
realidade fonética e morfológica e do outro a nobreza lexical”.151
Não se trata apenas de uma intrusão de vocábulos puramente
latinos (e também gregos) no léxico vulgar, segundo um processo
de crescimento que por certo caracteriza a história do vulgar no
148 “A única coisa aqui maravilhosa é que, embora ele fale a nossa língua, um
trabalho considerável é necessário para reconhecer se está em grego, latim,
toscano ou língua vernácula” (N.T.).
149 “nova língua e novo discurso” (N.T.).
150 “tendo encontrado uma nova e quase divina linguagem" (N.T.).
151 M. T. Casella - G. Pozzi, Francesco Colomui. Uioem/io e opere, 2 v., Padova,
1959, v. II, p. 79.
século XV; antes, têm-se aqui inumeráveis neo-formações feitas por
meio da transposição isolada de temas e sufixos latinos, que dão
vida a palavras gramaticalmente possíveis mas que, na verdade,
jamais existiram e cuja vida, na maior parte dos casos, permanece
confinada à sua aparição única no sonho de Polifilo.
Não se entende, entretanto, o sentido dessa operação no
elemento lexical caso ela não seja colocada em relação coma particular
estrutura gramatical e sintática da prosa do Hypnerotomachia.
Esta acolhe, por um lado, a longa e complexa sintaxe do modelo
de Bocaccio, e, por outro, complica-o e o onera com uma série de
dilações e anomalias,152 cujo resultado final é o de deixar sobressair
de modo ainda mais claro a rígida estraneidade do elemento lexical
sobre o fundo discursivo das proposições.
Um intento do gênero - aliás, conscientemente perseguido, foi
observado por Mallarmé,153154no qual a infinita complicação sintática
Categorias italianas
152 O elenco foi feito em ibid., v. II, p. 117-126, integrado em Pozzi-Ciapponi (ed.
critica de), Hypnerotomachia, cit., v. II, p. 33-35.
153 Remetemos à análise de K. H. Stierle, Linguaggio absolute e linguaggio
strumentale in Mallarmé, em “Metaphorein”, 3, marzo-giugno 1978, p. 17-34.
154 “As palavras por si mesmas se exaltam em diversa faceta reconhecida a mais
rara ou valendo para o espírito, centro de suspensão vibratória; que as percebe
independentemente da sequência ordinária, projetadas, em paredes de grutas,
enquanto dura sua mobilidade ou princípio, sendo aquilo que não se diz do
discurso...” (N.T.).
155 S. Mallarmé, Oeuvres completes, edição de H. Mondor-J. Aubry, Paris, 1945,
p. 386.
É esse jogo entre o elemento lexical e o sintático-gramatical
que produz em Polifilo o efeito de imobilidade e de rigidez quase
pictórica notado pelos intérpretes, cujas ilustrações parecem
multiplicar-se como em um espelho. Isto é, encontramo-nos diante
de uma língua em que o elemento lexical parece estar em agio em
relação ao elemento sintático-gramatical, uma língua agramatical,
como também foi dito. De modo mais preciso, não se trata de um
discurso agramatical, mas de uma linguagem na qual a resistência
dos nomes e das palavras é de imediato solta e tornada transparente
pela compreensão do sentido global, de maneira que o elemento
lexical permanece isolado e suspenso por alguns segundos, como
um material morto, antes de ser articulado e dissolvido no fluido
discurso do sentido.
A língua de Polifilo é, portanto, um discurso em vulgar que
arrasta dentro de si, como um obstáculo, o esqueleto lexical dos
3. O sonho da língua
nomes latinos, sem conseguir deles se livrar de modo integral,
deixando-os ao contrário aparecer, heraldicamente e por um átimo,
no próprio ventre (grembo). Podemos dizer que nos encontramos
diante de um texto em que uma língua - o latim - reflete-se em
uma outra - o vulgar - numa recíproca deformação. O que o vulgar
contém em si sem dizer - o que resta não dito no discurso - é, neste
caso, uma outra língua, o latim.
Daí a impressão defestina lente, de uma retardada excitação e
de uma respiração hesitante nessas páginas, cujo ritmo é como que
incessantemente refreado desde o seu interior. Daí aquela “incerteza
insolúvel entre elementos do humanismo e do Trezentos” com que
Dionisotti resume à perfeição o caráter de Polifilo. Por isso, enfim,
o efeito de sepulcral e sonhadora rigidez de uma prosa na qual o
discurso não vale por aquilo que diz, mas por aquilo que nele parece
permanecer não dito e contudo presente: como em um sonho,
portanto, ou como em um acróstico, do mesmo modo que o nome
do autor e o da amada, num entrelaçar amoroso, estão secretamente
transcritos em latim nas iniciais de cada capítulo: Poliam frater
Franciscus Columna peramavit.
3. O sonho da língua
Polia mesma professa desde a tumba, que fazem com que o livro
pareça apresentar-se como o seu mausoléu, Polia é apenas uma flor
seca, condenada a jamais reviver, e que em vão Polifilo procurou
reanimar: “Heu Poliphile / desine / fios sic exsiccatus / nunquam
reviscit” (ibid.).160
Polia, o objeto da amorosa e onírica procura do autor, é assim
Ol
uma velha e ainda uma morta que somente o sonho faz viver, e para
quem todo o livro é, a um só tempo, obra e mausoléu. Por quê? O
que significa a morte de Polia? Todos esses dados, à primeira vista
impenetráveis, tornam-se perfeitamente límpidos se os ligarmos
não com uma presumida realidade referencial, mas, restituindo-
os à viva unidade da leitura, com tudo que antes observamos a
propósito da língua de Polifilo e de seu caráter autorreferencial.
Polia - podemos agora avançar uma primeira hipótese - é a (língua)
velha, a (língua) morta, ou seja, o latim que a inaudita redação de
Polifilo reflete, na sua arcaica rigidez lexical, no discurso vulgar,
em um recíproco e sonhado espelhamento. E Polifilo - aquele que
159 “Oh Polia, que é a única feliz dentre os mortais, / Voa" vive na morte, mas vive
melhor: / Enquanto Polifilo jaz em seu sono proluiulo, / l;a/.e-a ficar acordada
nos lábios dos doutos” (N.T.).
160 “Infelizmente, Polifilo, / desista, / uma lloi sei a / i.mi.os irá reviver” (N.T.).
ama Polia - é uma figura do amor pelo latim: amor impossível ou
sonhado, porque amor por uma (língua) morta, e que tenta fazer
reviver a flor ressecada transplantando-a para os membros vivos do
vulgar. Nos próprios membros, caso Polifilo, aquele que ama o latim,
seja por isso mesmo figura de um falar materno daquele separado, e
cujo amor é necessariamente, segundo as palavras da primeira carta
a Polia, um ser todo vivo no outro e todo morto em si mesmo (1,439).
Isso porque as palavras latinas mortas, suspensas em seu isolamento,
ressurgem e voltam ainda vivas no final, caso seja verdade que nós
compreendemos, em última instância e embora com dificuldades, o
texto de Polifilo. A reflexão de uma língua na outra não permanece
inerte, não é apenas o espelhamento de duas realidades separadas,
mas, como em qualquer discurso humano, aqui alguma coisa morre
e alguma coisa vive. A língua do Hypnerotomachia contém assim
uma implícita mas articulada reflexão sobre a linguagem, uma
Categorias italianas
teoria das relações entre vulgar e latim que deve ser trazida à luz.
O acróstico não revela apenas o nome do autor, mas também o
essencial e insolúvel bilinguismo, cuja circularidade está já inscrita
na passagem do título do texto do latim ao vulgar e no retorno ao
latim do epitáfio final.
Essa hipótese - provisória - sobre a identidade de Polia, não
ON
3. O sonho da língua
foi expressa pela metáfora não da morte e do renascimento, mas de
um sono e de um despertar da língua. A propósito da renovação
da cultura latina na época de Dante, Sicco descreve com delicioso
realismo o acordar das musas latinas após um sono de mil anos:
“naquele tempo, como costumam fazer as pessoas ainda envoltas
no sono, elas começaram a mover os membros, a esfregar os olhos e
a esticar os braços [hoc vero tempore, ut somnolenti solent, membra
movere, oculos tergere, brachia extenáere coeperunt]”.162163No prefácio
aos seis livros das Elegantiae, no entanto, quando enuncia o seu
apaixonado programa de restauração da língua latina, Lorenzo
Valia fala já de uma morte (de uma quase morte) das letras latinas,
que deverão então despertar para a nova vida (ac paene cum litteris
ipsis áemortuae, hoc tempore excitentur ac reviviscant).m
Quando, muitos anos depois, o debate humanístico toma,
a partir de Bembo, a forma de uma “questão da língua” e de um
contraste entre Humanismo vulgar e Humanismo latino, será
exatamente a ideia de uma morte da língua - que tinha sido já
assim morta como está, a vós é lícito poder fazê-lo: mas falai entre
vós as vossas mortas palavras latinas; e a nós idiotas deixai-nos falar
em paz, com a língua que Deus nos deu, o nosso vivo vulgar”.164
Quando as teses de Bembo tinham vencido a batalha,
setenta anos depois do Hypnerotomachia, no Ercolano, de Varchi,
os conceitos de língua morta e língua viva constituem um límpido
00
3. O sonho da língua
identificação de Polia com a língua velha e a língua morta, devemos
agora procurar medir exatamente essa diferença, e adentrar uma
zona em que a crise da língua entre o século XV e o século XVI
ainda não assumiu a forma - determinante para a nossa tradição
cultural - de uma “questão da língua”.
5. Para medir a novidade da ideia do latim enquanto língua
morta é preciso não subvalorizar a inversão que ela implicava
com respeito às concepções do século XIV. Ainda no De vulgari
Eloquentia e no Convívio, a língua morta e perecível por excelência
é o vulgar, enquanto o latim, “perpétuo e não corruptível”, e
porquanto lingua gramatica, possibilita frear o movimento que leva
à caducidade das línguas. Vale frisar que o bilinguismo de Dante e
o bilinguismo dos séculos XV e XVI de modo algum recobrem o
mesmo fenômeno. O primeiro corresponde menos à oposição entre
duas línguas que entre duas experiências diversas da linguagem, às
quais Dante denomina língua materna e língua gramática. O vulgar
é, de fato, uma experiência da palavra absolutamente primordial
e imediata (prima locutio - De vulgari Eloquentia, I, IV, 21; “um
3. O sonho da língua
numa língua gramática.
O bilinguismo entre os séculos XV e XVI recobre, ao
contrário, uma relação regulada e instrumental com a linguagem
que é, nos dois casos, em substância homogênea. A luta entre o
latim ciceroniano e o vulgar do século XIV - assim como Bembo a
concebe - é, do ponto de vista de Dante, uma luta entre duas línguas
00
gramaticais: ambas renunciam à experiência da primordialidade do
evento de linguagem e parecem inconscientemente pressupor um
saber e um pensamento pré-linguístico que, na realidade, como
foi sugerido pelos pensadores latinos da alta Idade Média, poderia
coincidir com o vernáculo, singularmente à sombra nos debates
sobre a língua. A crise da língua que se consuma entre os séculos
XV e XVI não é, então, apenas o contraste entre uma língua morta
(ou semiviva) e uma língua viva que naturalmente a sucede (como
as mentes mais lúcidas de pronto compreenderam, também o vulgar
do século XIV proposto por Bembo era uma língua morta, que “não
se fala, mas se aprende como as línguas mortas nos três escritores
florentinos”, afirma Bernardo Davan/.ati),177 mas, muito mais, o
definitivo ocaso da experiência de linguagem da qual nascera a
lírica românica e a mutação radical dos termos do bilinguismo.
177 Cf. B. Migliorini, Storia delia lingua ilaliuna. N.insoni, l iicii/o, 1960, p. 94.
A antítese dantesca entre vulgar e gramática - ou seja, entre
experiência do estatuto primordial ou secundário do evento de
linguagem (ou, ainda, entre amor da palavra e saber da palavra) -
será então substituída - com uma transformação decisiva na
cultura europeia - por aquela entre língua viva e língua morta,
que a dissimula e, ainda, inverte o seu significado. O bilinguismo
essencial da palavra humana acaba assim resolvido, de modo
diacrônico, com a separação e o lançamento de um de seus termos
para trás, enquanto “língua morta”. No entanto, a língua que morre -
o latim - não é aquela língua gramática imperecível de Dante, mas
uma língua materna de novo gênero, é já a lingua matrix da filologia
seiscentista, a língua original da qual as outras derivam e cuja morte
torna possível a inteligibilidade e a gramaticalização das outras.
Com efeito, somente a configuração do latim como língua morta
permitiu a transformação do vulgar em uma língua gramática. E
Categorias italianas
3. 0 sonho da língua
“Polifilo e Polia” foram vistos “como Dante e Beatriz”, e foi ainda
observado que, sob as vestes da ninfa do século XV, Polia retoma a
função soteriológica e domesticadora da mulher da lírica amorosa,
enquanto Polifilo, por sua vez é “humilhado e treme como os
amantes do dolce stil novo”.m É essa sólida referência à poesia de
amor e à recuperação da figura feminina da lírica estilonovista que
00
CO
nos permite verificar e aprofundar a nossa hipótese sobre Polia. Na
medida em que a singularíssima prática linguística de Polifilo traz
implícita uma reflexão sobre a língua, por detrás da teoria provençal
e estilonovista do amor está, então, uma reflexão tão radical sobre a
palavra poética que apenas a pseudocientificidade de uma tradição
hermenêutica, obstinada por séculos em privilegiar os dados
referenciais em detrimento dos elementos textuais, pode impedir de
dimensionar sua novidade e sua importância.
A inteligência daquilo que, no texto poético, aparecia como
instância de um nome e de uma figura feminina foi removida pelo
gesto aparentemente desatento com o qual Boccaccio, referindo-
se a uma pretensa brincadeira familiar, identificava Beatriz com a
filha de Folco Portinari, mais tarde esposa de Simone de’ Bardi. A
compreensão desse gesto, que para a poesia Irovadoresca já havia
sido cumprido naquelas noveletas germinais que são as vidas e as
razos provençais, somente é possível caso ele seja entendido na sua
estreita solidariedade com aquele com o qual Boccaccio cria a novela
florentina. A experiência amorosa que era, tanto nos provençais
como nos estilonovistas, experiência da absoluta primordialidade
do evento de palavra sobre a vida, do poetado sobre o vivido, inverte-
se então na ideia de que todo poetar é, ao contrário, sempre poetar
um vivido, um colocar em palavras - narrar - um evento biográfico.
Observando-se bem, no entanto, tanto Boccaccio quanto os ignotos
autores das vidas trovadorescas nada mais faziam, na realidade, que
levar às extremas consequências a intenção dos poetas de amor:
construindo uma anedota biográfica para explicar uma poesia,
eles inventavam o vivido a partir do poetado, e não vice-versa. Se a
experiência dantesca da absoluta originariedade da palavra era uma
“vida nova”, assim como no evangelho de João está dito que aquilo
Categorias italianas
179 “Pus numa galera sem biscoito / o ingrato vulgar, e sem nenhum piloto /
deixei-o num mar para ele ignoto / ainda que sc acredite mestre e douto” (N.T.).
180 Curtius já chama a atenção dos estudiosos para este texto, no capítulo 17 do seu
Europãische Literatur und lateinischcs Milhiiilltr, Herna, 1948.
texto poético. Nome e amor da língua, portanto, mas da língua
compreendida não como uma língua gramática, mas, no sentido
que se viu, como absoluta demora no princípio da palavra, o surgir
do verso do puro nada (de dreit nien, segundo o incipit do vers de
Guglielmo IX). É exatamente essa absoluta originariedade da palavra
que a constitui como causa e objeto supremo do amor, no próprio
momento em que sanciona sua caducidade e sua perecibilidade.
Nessa perspectiva, a morte de Beatriz, como momento essencial
da experiência dantesca da palavra, e a instância da perdida língua
edênica no primeiro livro do De vulgari Eloquentia, adquirem todo
o seu significado: após ter procurado - em uma práxis poética,
não em uma gramática - conferir estabilidade e duração ao vulgar,
retirando-o da confusão babélica, Dante tinha terminado por
aceitar sem reticências, na Comédia, a irremediável perecibilidade
de toda língua materna, afirmando, pela boca de Adão, que já antes
3. O sonho da língua
da construção da torre a língua edênica estava “toda extinta” 181 (Par.,
XXVI124-129).
No Hypnerotomachia, a exigência de um estatuto primordial,
de uma vetustas edênica da palavra, insere-se não na firme oposição
entre falar materno e língua gramática, mas numa situação na qual
o vulgar está se tornando uma língua gramática e o latim uma
00
LO
língua morta. Por isso a sua língua não é coerentemente definível
nem como língua materna, nem como língua gramática, nem como
língua viva, nem como língua morta, mas é todas essas coisas ao
mesmo tempo. Reduzindo de modo drástico os vários níveis do
bilinguismo a um único plano, ela nos apresenta a língua como um
campo de uma luta e de um contraste entre exigências inconciliáveis.
Essa luta é, no entanto, segundo o modelo da lírica, uma batalha e
uma ãottanza amorosa, um combate de eros [erotomachia] em que
tem lugar, em um recíproco estranhamento, uma incessante troca
de vida e de morte entre vulgar e latim. Se a discórdia era, na lírica
provençal e estilonovista, aquela forma poética em que as diversas
línguas maternas, na sua babélica discórdia, eram chamadas a
testemunhar o amor pela única língua distante, podemos então
dizer que o Hypnerotomachia é um desacordo de tipo novíssimo,
181
‘tutta spenta” (N.T.).
no qual as diversas línguas penetraram-se umas nas outras e
mostram, assim, a íntima discórdia de toda língua consigo mesma,
o bilinguismo implícito em toda palavra humana.
A esta altura, podemos ainda ver em Polia - a língua velha -
simplesmente uma figura do latim? Aqui um primeiro e ulterior
indício nos é oferecido por uma obra que, segundo as análises de Pozzi
e Ciapponi, foi amplamente consultada pelo autor. Nas Etimologias
de Isidoro de Sevilha (IX, I, 6), o pensamento medieval, unindo uma
precoce consciência histórica a uma consideração meta-histórica
dos fatos linguísticos, havia individualizado quatro idades ou quatro
figuras da língua latina. No elenco de Isidoro, a primeira recebe o nome
de Prisca e dela se diz que vetustissimi Italiae sub lano et Saturno sunt
usi, incondita, ut se habent carmina saliorum.1S2 Prisca, a antiga, é o
latim, não como língua do saber mas sim como língua desconhecida da
Idade de Ouro, equivalente à língua pré-babélica da tradição bíblica, da
| qual se diz terem incompreensivelmente sobrevivido os fragmentos dos
1 poemas de Salii, os sacerdotes de Marte. Na experiência dessa recôndita
| dimensão originária da língua, a figura de Polia se atém à prática da
B> filologia humanística chamada pedante. Mas, ao mesmo tempo, por
§ meio de sua intrusão no contexto vulgar, o amor de Polia e Polifilo
pode se tornar figura daquela perfeita autorreferencialidade da língua,
^ pela qual o objeto da amorosa procura do livro coincide com a própria
língua em que o livro é escrito. Essa língua - Polia, a velha - não é,
como vimos, nem o latim nem o vulgar, nem uma língua morta nem
uma língua viva, mas - se o livro é um sonho - uma língua sonhada,
0 sonho de uma língua ignota e novíssima, que existe apenas enquanto
para ela dura a realidade textual. Sonho da língua, em que o genitivo
da tem certamente valor objetivo (no sentido em que aqui é sonhada
uma língua desconhecida), mas também valor subjetivo, caso, como
está dito na dedicatória, o livro tenha sido feito pela própria Polia. (E,
de resto, todo sonho não implica sempre um problema de bilinguismo?
Não é o sonho, sempre, uma dimensão não além das línguas, mas
entre as línguas e que, como tal, precisa de uma interpretação e de uma
DeutungT)182
182 “os mais antigos italianos, sob Jano e Sal u rno, usaram os cantos desordenados
dos Sálios como seus” (N.T.).
Nessa sua perfeita autorreferencialidade, o livro realiza
totalmente - seja apenas por intermédio de seu particularíssimo
bilinguismo - o projeto de uma absoluta demora da palavra
no princípio que os estilonovistas e Dante haviam tentado em
sua poesia. Porém, enquanto Beatriz, a língua de Dante, com o
desaparecimento da sua originária contraposição a uma gramática,
entrou, mesmo se por meio de desentendimentos de todo gênero,
em uma história linguística em cuja fratura ainda nos movemos,
Polia, depois de cinco séculos, jaz ainda incólume e, desse modo,
morta e inextinguível no seu fechado sonho como no momento em
que o autor - quem quer que tenha sido - entregou-a às páginas do
incunábulo. Mas, na verdade, esse sonho, de nenhum modo inatual,
volta a ser sonhado toda vez (e não faltaram as ocasiões na nossa
também recente história literária, das glossolalias e xenoglossias
pascolianas, dos arcaísmos e neologismo de Gadda até as intrusões
3. O sonho da língua
sempre mais frequentes do dialeto no corpo da língua) que, por meio
da restauração do bilinguismo e da discordância implícita em toda
língua, procura-se evocar na sua transparente autorreferencialidade
aquela pura língua que, faltante em toda língua instrumental, torna
possível a palavra dos homens.
O sonho da velha - o sonho da língua - ainda dura. Como
oo
■vj
seria possível, por fim, despertá-la, de que modo poderiamos nós,
os falantes, acordar do sonho da língua e sair de uma vez por todas
da ilusão do bilinguismo - isto é, se fosse possível uma palavra
humana unívoca e radicalmente subtraída a todo bilinguismo -, isso
permanece fora do âmbito desta comunicação, que se mantém nos
limites do tema da conferência, qual seja, a “linguagem do sonho”.
n
'ascol e o
pensamento da voz
a Gianfranco Conlini
as
isto é, experiência de um sinal como puro querer-dizer e intenção
de significado, antes e além de todo concreto acontecimento de
significado. Essa experiência de um verbo desconhecido (verbum
incognitum) na terra de ninguém entre som e significado é, para
Agostinho, a experiência amorosa como vontade de saber: à
intenção de significar sem significado corresponde, de fato, não a
compreensão lógica, mas o desejo de saber (qui scire amat incógnita,
non ipsa incógnita, seá ipsum scire amat; isto é, o amor é sempre
desejo de saber). Importante é relevar, entretanto, que o lugar dessa
experiência de amor, que mostra a vox na sua pureza original, é uma
palavra morta, um vocabulum emortuum: temetum.
(Notemos aqui, de passagem, que não é possível compreender
a teoria provençal e estilonovista do amor caso não seja posta
outra vez em questão exatamente essa passagem de Agostinho: o
amor de lonh é, portanto, a aposta de que seja possível um amor
que jamais se transforme em saber, um amare ipsa incógnita, isto é,
uma experiência da palavra - também aqui, e não por acaso, palavra
obscura e rara: cars, bruns e tenhz motz - que jamais se traduz em
experiência lógica de significado.)
OJ
vo
diz Paulo - serei, com respeito a quem fala, um bárbaro, e aquele
que fala em mim será um bárbaro. A expressão “aquele que fala
em mim” (o lalõn en emoí) coloca um problema que a Vulgata
contorna interpretando en emoí como mihi, por (para) mim [per
me\. Mas o en emoí do texto só pode significar “em mim”, e aquilo
que Paulo entende é perfeitamente claro: se eu pronuncio palavras
cujos significados não entendo, aquele que fala em mim, a voz que as
profere, o princípio mesmo da palavra em mim, será algo de bárbaro,
algo que não sabe falar e tampouco sabe o que diz. Assim, falar-
em-glossa significa fazer experiência, em si mesmo, de uma palavra
bárbara, palavra que não se sabe; experiência de um falar “infantil”
(“irmãos, não vos torneis criancinhas em relação ao juízo”) no qual
o intelecto permanece “sem fruto”.
vo
cn
caracterizar a onomatopéia como linguagem pré-gramatical ou
agramatical (“essa linguagem - escreve Contini - não tem nada a
ver, enquanto tal, com a gramática” ).188 Na introdução aos Princípios
de fonologia, Trubeckoj, a propósito da imitação vocal dos sons
naturais, escreve: “Se alguém conta uma aventura de caça e, para
tornar vivo o seu relato, imita um grito animal ou qualquer outro
rumor natural, ele deve, nesse ponto, interromper o relato: o som
natural imitado é, então, um corpo estranho que se situa fora do
discurso representativo normal”.
Mas é de fato seguro serem as onomatopéias pascolianas uma
linguagem pré-gramatical? E, antes de mais nada, o que significa
“linguagem pré-gramatical”? Tal linguagem - uma dimensão não
gramatizada da linguagem humana - é de algum modo pelo menos
pensável?
189 “som iletrado, que não pode ser compreendido por loiras” (N.T.).
190 “relincho dos cavalos” (N.T.).
191 “raiva dos cães” (N.T.).
vozes animais colhem a voz da natureza no ponto em que esta, não
tendo ainda se tornado linguagem significante, emerge do mar
interminável do mero som.
Devemos agora olhar para as onomatopéias pascolianas
à luz de tais considerações. Não se trata de meros sons naturais
que simplesmente interrompem o discurso articulado; não há
- nem poderia haver - na poesia pascoliana, como em nenhuma
linguagem humana, presença da voz animal, mas somente um traço
de sua ausência, do seu “morrer” gramatizando-se em uma pura
intenção de significado. Como a “schilletta” de Caprona (nos Cantos
de Castelvecchio), esses sons não pertencem a nada de vivente, são
^4
VO
7. A letra é, portanto, a dimensão em que glossolalia e
onomatopéia, poética da língua morta e poética da voz morta,
convergem em um único lugar, no qual Pascoli situa a experiência
mais própria do ditado poético: aquela em que ele pode apreender a
língua no instante em que se aprofunda, morrendo, na voz, e a voz no
ponto em que, emergindo do mero som, transpassa (isto é, morre) no
significado. Na poesia de Pascoli, glossolalia e onomatopéia falam de
um mesmo lugar, mesmo se parecem percorrê-lo em dois sentidos
opostos. Daí o caráter exemplar dos versos em que a onomatopéia
extrapola em linguagem articulada, e a linguagem articulada em
onomatopéia:
194 “Enquan... Enquanto no céu voei / Há dentre vós quem viu... viu... viuvitt /
Também eu também eu bémeu bémcu bénieu” (N.T.).
195 “p)eixe argentado cardo ao ligeiro / leu hálito os papos seus como / o moribundo
à morte um pensamento / vago, último: a sombra de um nome” (N.T.).
196 “de Mong, Mosach, thubal, Aneg, Ageg. / Assur, 1’othim, Cephar, Alan, a
mim!” (N.T.).
querer-dizer à linguagem significante, e somente morrendo a língua
articulada pode retornar ao confuso seio da voz do qual brotou. A
poesia é experiência da letra, mas a letra tem o seu lugar na morte:
morte da voz (onomatopéia) ou morte da língua (glossolalia), ambas
coincidentes nas breves fulgurações das grammata.
197 “egli confonde la sua voce con la nostra [...] si sente un palpito solo, uno strillare
e un guaire [...] tinnulo squillo di campanello |...| urdire il chiacchiericcio”
(N.T.).
ííis “1’Adamo che per primo mette i nomi” (N.T.).
199 “Entre os chilreios dos ninhos / eu senti a voz / minha de criancinha...” (N.T.).
e, em Giovannino, a criancinha habita o limite do cemitério e é, então,
claramente equivalente, na sua função poética, à figura materna. E
é essa visão sepulcral que está no centro da poesia em que Pascoli
cultivou no modo para ele supremo a própria experiência do ditado:
A tecedora, que encerra em um diálogo, entre o poeta e a voz, o
terrível evento da palavra poética.
Aqui - no coração do ditado - não se ouve “o som de uma
palavra”, a moldura que prende a tela da língua “não soa [...] mais” e
tudo é apenas “aceno silencioso”. Até que, à interrogação duas vezes
repetidas, “por que não soa?”, a virgem vocal (criancinha e musa,
voz e língua materna) revela a sua irremediável morte:
200 “E chora, e chora - Meu doce amor. / nuo le lalaram? não o sabes? / Eu só
sou viva no teu coração. // Morla! Sim, mm Ia! Se leço, teço / para ti apenas...”
(N.T.).
escritores do Novecentos - Gadda e Maganelli, Pasolini, Noventa,
Zanzotto mas também naqueles escritores que operam em uma
área aparentemente diversa: Longhi, por exemplo, cujas “scandelle”,
no ensaio sobre Serodine, dão à frase um sombreado pascoliano. Tal
é a difícil e enigmática relação desse povo com a sua língua materna,
que só pode nela se encontrar caso consiga senti-la morta, e somente
fraturando-a em fragmentos e pedaços anatômicos pode ele amá-la
e fazê-la sua. A morte de Beatriz condiciona - também aqui - toda
a nossa tradição literária, e Laura (a aura [Vaura]) de Petrarca nada
mais é que o sopro da voz - e esse, por fim, apenas “aura morta”.
2111 “linguaggio che piü non suona su labbra cli viventi” (N.T.).
202 “ciò che da lungo tempo piü non esistc” (N.T.).
203 “mobili, ma senza vita” (N.T.).
“um número incrível de feias poesias” é, então, na verdade, “o mais
europeu dos nossos poetas de fim de século”.204 Poeta da metafísica
na época de seu ocaso, ele cumpre até o extremo a experiência do
mitologema original dela característico: o mitologema da voz, da
sua morte e da sua memorial conservação na letra.
Por isso mesmo, no ponto em que registramos a coerência e o
rigor da sua lição, devemos, no entanto, também colocar a pergunta
que deve - aqui - permanecer provisoriamente sem resposta: é
possível uma experiência da palavra que não seja, no sentido que foi
visto, experiência da letra? É possível falar, poetar, pensar, além da
letra, além da morte da voz e da morte da língua?
Categorias italianas
to
o
Tudo foi gerado por ele [o Logos] e sem ele nada foi gerado
daquilo que foi gerado; nele estava a vida, e a vida era a luz
dos homens.
Tudo foi gerado por ele, e sem ele nada foi gerado, e aquilo
que foi gerado nele era vida, e a vida era a luz dos hom ens.
Comentando esse versículo, o gnóstico Tolemeo escreve:
“Tudo foi gerado pelo Logos, mas a vida foi gerada nele. Esta, que
foi gerada nele, é-lhe mais íntima [oikeiõtéra] do que aquilo que
foi gerado por ele; essa vida faz unidade com ele e frutifica através
dele”. No mesmo sentido, Orígenes escreve: “A própria vida se
gera sobrevivendo à palavra [epiginetai tõ lógõ] e, uma vez gerada,
permanece inseparável [achõristos} dela”.
A vida é aquilo que se gera na palavra e nela permanece
inseparável e íntima. Esse nexo ilibado de palavra e vida é a herança
que a teologia cristã transmite a uma literatura que ainda não se
tornou inteiramente profana.
5. O ditado da poesia
de tal maneira autorizada, contudo, que não apenas impediu por
longo tempo o constituir-se de um cânone biográfico, em sentido
moderno, como também influenciou, em larga medida, o modo
pelo qual, nas origens da lírica românica, os poetas conceberam sua
relação com o vivido.
A retórica antiga denominava ratio (ou ars) inveniendi
O
LT)
(distinta da ratio iudicandi, que concernia à verdade e à correição
dos discursos pronunciados) a técnica que assegurava ao orador
ou ao poeta o acesso ao lugar da palavra (daí o termo tópica), que
ali encontravam o argumentum de que por vezes precisavam. A
tópica antiga, na medida em que tinha como objetivo, sobretudo, a
necessidade do orador de ter sempre à disposição os “argumentos”
de que devia tratar, com o passar do tempo degenera-se em uma
mnemotécnica que concebia os “lugares” da palavra como imagens
mnemônicas, cuja maestria assegurava ao orador a faculdade de
argumentar seu discurso. Os primeiros germes de uma mutação
dessa concepção pagã da inventio, em consequência do novo estatuto
arquetípico do logos joanino, já estão no De Trinitate de Agostinho,
em que a inventio é interpretada, com uma figura etimológica, como
in id venire quod quaeritur.205Ou seja, o homem encontra a palavra
205
:deparar-se com o que busca” (N.T.).
somente por meio de um appetitus, um desejo amoroso, de modo
que o evento de linguagem se apresenta como um cruzamento
inextricável de amor, palavra e conhecimento: cum itaque se mens
novit et amat, iungitur ei amore verbum eius. Et quoniam amat
notitiam et novit amorem, et verbum in amore et amor in verbo,
et utrumque in amante et dicente (“e enquanto a mente se ama e
conhece, junta-se a ela, através do amor, a sua palavra. E posto que
ama o conhecimento e conhece o amor, a palavra está no amor e
o amor na palavra, e ambas no amante e no falante”, De Trin. IX,
10,15).
No curso do século XII, a tópica e a sua ratio inveniendi foram,
nos passos de Agostinho, interpretadas de maneira radicalmente
nova pelos poetas provençais, advindo dessa reinterpretação a
origem da lírica europeia moderna. A ratio inveniendi torna-se,
para os poetas, razo de trobar, e eles retiram dessa expressão o seu
Categorias italianas
5. O ditado da poesia
ela chamava “Rai” [razão], E um dia o cavalheiro veio para
junto da duquesa e entrou em seu quarto. A mulher, que o
viu, levantou então a barra do seu manto e o levou até o seu
colo, caindo sobre o leito. E Bernart viu tudo, pois uma serva
da dama lhe mostrou tudo discretamente: e por essa razo fez
a canção que diz: Quan vei la lauzeta mover...206
ov i
dar-se conta de que o autor da razo (que, como mais tarde Boccaccio
fará para a Beatriz de Dante, diz registrar uma brincadeira familiar),
nada mais faz, na realidade, do que levar às últimas consequências
o procedimento trovadoresco: no intento aparente de referir-se
à anedota biográfica que deveria explicar a poesia, ele a inventa
inteiramente (e, na verdade, desajeitadamente) a partir dos primeiros
três versos da canção (Quan vei la lauzeta mover / de joi sos alas
contra-l rai/ que s’oblid’es laissa chazer...).207Ele, portanto, constrói o
vivido a partir do poetado e não vice-versa (como deveria acontecer
segundo o paradigma biográfico com o qual nós, modernos, estamos
acostumados).
5. O ditado da poesia
e não esta justificá-las.
o
escritura, avisando de modo inequívoco ao leitor de que “antes que o
poeta escrevesse não apenas não existia uma realidade, mas a assim
chamada realidade do público não teria sido possível nem mesmo
chegar a ser formulada”. A pretensão de antepor ao texto um vivido
(a “assim chamada vida real”) pertence “àqueles que não sabendo e
não podendo viver [subentenda-se: na palavra], não deixam viver,
pretendendo que oficialmente se diga que vivem”. (São os fantasmas
sinistros dos pequenos nomes obscenos que comparecem tão amiúde
no texto, no qual têm a mesma função que, nas canções provençais,
compete ao lauzengier, ao maledicente).
O mundo e a vida nascem, em Delfini, com a palavra e pela
palavra. Por que, então, o título fala com (amanha clareza de um
“fim do mundo”, como de algo que inconsleslavel mente já aconteceu
(ou que está, de algum modo, acontecendo)? ( ',omo pôde acontecer
que a palavra não esteja mais à altura de gerar a vida e de mantê-
la de si indissociável? E como a palavra da poesia não inaugura
aqui uma vita nova, mas um cataclisma cósmico-poetológico sem
precedentes?
Um dos títulos que figura como variante do autor entre as
notas por ele deixadas, Dio cè, ma il mondo no, indica implicitamente
o quanto Delfine estava consciente das implicações teológicas,
por assim dizer, dessa situação. Não se poderia exprimir de modo
mais drástico a quebra do nexo vida-poesia e logos-cosmos que
caracterizava tanto o prólogo joanino quanto o ditado estilonovista.
No outro título possível, arquivado nas notas, Scene scatenate delia
vita di província, o adjetivo “desencadeada” [“scatenate”] qualifica
uma vida que rompeu o vínculo que a unia à palavra e torna-se
agora unicamente “vida assim chamada real”, que em verdade não
vive mas pode somente “pretender” que se diga que vive.
Categorias italianas
L
Daí a preliminar inversão da figura feminina, a quem os
poetas de amor entregavam a imagem mais íntegra do seu ditado.
A senhora (a Basca, inscrita na tradição dos senhal estilonovistas e
provençais, entre Beatriz, Giovanna, Miellz de Domna, Dezirada,
Bon Vezi), que levava a cifra da unidade de poetado e vivido, da vida
na língua, agora extraída à força da caneta e da palavra, inverte-se
em vida nua, símbolo horrível e obscuro “da fraude, da traição, do
pecado”.212 Em uma célebre sirvente (que por sua violência verbal
nada tem a invejar das invectivas delfinianas), Arnaut Daniel evoca
a figura de seu próprio ditado como uma mulher (dita w’Ayna) cujo
corpo está quebrado em um ponto (o corn, que com descuido os
filólogos tentam em vão identificar a algum orifício ou ao esfíncter
feminino) do qual, em uma espécie de tempestade alquímica, toda
vida está ameaçada de escapar em forma de segredo viscoso, fétida
fumaça e chorume fervente. Na senhora dos muitos nomes, na
5. O ditado da poesia
“torpe, imunda criatura” ou “infame, sujo fantasma”, a quem são
dedicadas as Poesie delia fine dei mondo, Delfini vê diante de si essa
vida (a vida da mulher e, portanto, também a sua vida) no ato de
separar-se em definitivo da palavra, de tomar irrevogavelmente
distância da poesia para tornar-se “vida real”. Essa despedida, essa
incurável reificação, é o tema das poesias.
213 “Do laureado poeta Francisco IVtrarca Irapinemos de coisas vulgares” (N.T.).
214 “fragmentos, porque se dividem, como cm pedamos" (N.T.).
vivido se torne biografia, que ele exista inexoravelmente fora da
palavra como um fato real.
Por isso a visão mais desumana testemunhada pelo poeta
(“grande foi minha coragem!” )215 seja a de que a “senhora” (isto
é, a sua vida) esteja a observá-lo “enquanto [ele] morre ”.216 Aqui,
como em certos rasgos imprevistos no tecido da Basca, desenha-
se incerta, febril e como decaída, a figura de uma experiência do
ditado poético que jaz além tanto do cânone joanino e estilonovista
quanto daquele de Petrarca, e cuja fruição está reservada às gerações
poéticas futuras.
5. 0 ditado da poesia
CO
217 Data da carta a Gianni D’Elia, diretor de “l.in|\ii.i", <|uc ;u ompanha a expedição
da quarta e definitiva versão do poema.
durante a qual acontece o episódio que dá ensejo à poesia), uma
outra anotação, a princípio datilografada e a seguir nervosamente
continuada à caneta, recita: “Todos (sem recordar de quem) /
recebemos um dom precioso / e o guardamos tão ciosamente que
não lembramos mais onde e, por fim, de que dom se trata Res amissa
O contrário do Conde Centro a perda”.218
Mais tarde, na entrevista a Domenico Astengo (Corriere dei
Ticino, 11/2/1989), Caproni confirmava:
6. Desapropriada maneira
Com a sua costumeira acuidade, Agostinho intui as consequências
últimas dessa doutrina e diante dela retrocede, amedrontado: a
impossibilidade de distinguir entre a natureza humana e uma
graça tornada inamissível e, portanto, a ruína da própria noção de
pecado. Por isso a Igreja constantemente condenou o pelagianismo
e sustentou, contra todas as correntes extremistas, e em favor da
necessidade da intervenção da Graça, o seu caráter essencialmente
“amissível”, isto é, a sua perda por meio do pecado (Concilio de
vi
Trento, sessão VI, c. XV: “Se alguém afirma que o homem, uma
vez que tenha sido justificado, não pode mais pecar, nem perder a
Graça... anátema”).
A tese de Caproni é uma espécie de pelagianismo levado ao
extremo: a Graça é um dom infundido de modo tão profundo na
natureza humana que permanece sempre incognoscível, é sempre já
res amissa, sempre já inapropriável. Inamissível porque desde sempre
perdido, e perdido por força de ser - como a vida, como, portanto,
uma natureza - demasiado e intimamente possuído, demasiado e
219 É o mesmo tema que Kafka discute, nos anos da grande guerra, com o amigo
Felix Weltsch, autor de um livro sobre Gnadc und Vrciheit (Graça e liberdade):
“Quem era Pelágio? Sobre o pelagianismo já li muita coisa, mas não me lembro
de nada” (carta de Kafka a Weltsch, de dezembro de 1917).
220 “Quamquam inseparabilem habere possibilil.ilem id est, ut ita dicam,
inamissibilem” [“Apesar de ter inseparável a p o ssib ilid a d e , ou seja, como direi,
inamissível”]. (De natura et gratia, I.I, 59).
“ciosamente” (irrecuperavelmente) guardado. Por isso, explicando
a Domenico Astengo o sentido do “espinho da nostalgia” na poesia
Generalizzando, Caproni especificava: “o conteúdo ou objeto de tal
nostalgia é a própria nostalgia”. O bem que aqui é dado não é, de
fato, algo que tenha sido conhecido e depois esquecido (o depois
de Generalizzando não remete a uma cronologia, mas é puramente
lógico); ao contrário, o dom recebido é desde o início e para sempre
incognoscível. O dele [ne\ anafórico que abre Res amissa (“Dele
não encontro traço” )221 permanece para sempre privado do termo
anaforizado, que apenas poderia fornecer-lhe seu valor denotativo.
Ao identificar drasticamente, na figura da res amissa, graça
e natureza, Caproni, com um gesto característico, torna caducas as
distinções categoriais sobre as quais se fundam a teologia e a ética
ocidentais - ou, antes, complica-as e as desloca para uma dimensão
em que seu sentido muda de modo radical. Seria possível repetir,
Categorias italianas
221
[Non ne trovo traccia” (N.T.).
Und keiner Würden brauchts, und keiner
Waffen, Solange der Gott nicht fehlet.
E [o poeta] não precisa de nenhuma dignidade, de nenhuma
arma, porquanto o Deus não falta.
Hõlderlin retifica:
Und keiner Waffen brauchts, und keiner
Listen, so lange, bis Gottes Fehl hilft.222
E não precisa de nenhuma arma, de nenhuma
astúcia, porquanto a falta de Deus ajuda.
6. Desapropriada maneira
o ser puro retirando todas as propriedades reais e as essências),
tampouco uma cristologia ateia (como em certa teologia social
contemporânea), mas um arruinar sonambúlico de divino e
humano rumo a uma zona incerta e sem sujeito, achatada sobre o
transcendental, e que não pode ser definida de outra maneira senão
a partir do eufemismo hõlderliniano: “traição de espécie sagrada”
(“de tal modo”, lê-se na Nota à tradução do Êdipo de Sófocles, “o
homem esquece de si e do deus e procede, mas de modo sagrado,
como um traidor. No limite extremo do sofrimento não subsiste
nada além das condições do espaço e do tempo”). Pois o que é
próprio da ateologia poética, em relação a toda teologia negativa,
é a singular coincidência de niilismo e prática poética, por meio da
qual a poesia se transforma no laboratório em que todas as figuras
conhecidas são desarticuladas para dar lugar a novas criaturas para-
humanas ou subdivinas: o semideus hõlderliniano, a marionete
de Kleist, o Dionísio nietzschiano, o anjo e a boneca em Rilke, o
Odradek kafkiano, até a “cabeça de medusa” e o “autômato” de
Celan e o “traço de madrepérola do caracol” de Montale. (Nesse
sentido, a ateologia era já começada quando a lírica provençal e
estilonovista tinha feito da poesia a estância em que uma absoluta
experiência de desubjetivação e de desindividuaçüo acompanhava
223 “Irrespirabile per i piü. Dura e incolore come un quarzo. Nera e transparente
[e tagliente] come 1’ossidiana. I 'allegria eh essa può dare è indicibile. È 1’adito -
troncata netta ogni speranza a lutie Ic liberta possibili. Compresa quella [la
serpe che si morde la coda) di crederc iu I >io, pur sapendo - definitivamente -
cheD ionon c è e n o n esiste” (N.T.).
224 Por F. Milana, Invoca il non iiivocnliilc, em "A/ione sociale”, n. 5, 1990.
Conte é, por excelência, algo que com efeito não pertence a ninguém
0a. fera bestia é, na exemplificação jurídica, o tipo mesmo da res
nullius), enquanto o bem que está em questão na última coletânea
é uma res amissa, não no sentido da res derelicta (que, segundo
os juristas romanos, torna-se outra vez objeto de propriedade
no instante em que alguém a recolhe), mas no modo de algo que
permanece para sempre inapropriável. E na medida em que a Besta
do Conte não era tanto uma alegoria do mal (de modo igualmente
legítimo seria possível nela vislumbrar, segundo uma equivalência
tipicamente caproniána, uma cifra da vida e da linguagem), quanto
da sua radical impropriedade, resulta que o único e verdadeiro mal
não era, no fundo, outro que a implacável e ao mesmo tempo vã
tentativa humana de capturá-la e fazê-la própria, de tal modo que a
6. Desapropriada maneira
res amissa não é senão a inapropriabilidade e a infigurabilidade do
bem (seja isso, por sua vez, natureza ou graça, vida ou linguagem -
ou, como se lê no primeiro esboço do poema, a liberdade). A Besta
e a res amissa não são portanto duas coisas, mas as duas faces
de uma mesma desapropriação do único dom - ou, antes, a res
amissa é apenas a Besta tornada definitivamente inapropriável, a
despedida de toda caça e de toda vontade de apreensão (segundo
uma indicação comum também ao último Betocchi: “O mal e o
N>
bem são dois espelhos / da mesma ilusão: que é aquela / de viver
donos do ser próprio...” ).225 Nesse sentido, será preciso entender a
estreita correspondência que Caproni intui entre as duas últimas
coletâneas: juntas, elas constituem as tábuas de um díptico no qual
se compendia o prefácio do novo ethos, isto é, da nova morada dos
“desabitantes” da Terra.
225 “II male e il bene sono due specchi / delia .stcss.i illusioni': i br è quella / di viver
padroni dellessere proprio... ” (N.T.).
exclusiva do fato de dela isolar-se. Ambos os campos desmentem
assim seu intento aparente: os primeiros porque sacrificam a poesia
à vida em que a resolvem; os segundos porque sancionam, em
última análise, a sua impotência em relação à vida. Tão vazios como
o romantismo e o estetismo, que confundem poesia e vida em todos
os pontos, são o classicismo olímpico e o laicismo, que, mantendo-
as divididas em todos os pontos, destinam a humanidade a deixar
como legado um patrimônio sacrossanto, mas inútil, justamente
em razão da exigência [istanza] que em toda ordem deveria resultar
decisiva.
Contra essas duas posições está aquela que é atestada pela
experiência do poeta: a afirmação de que poesia e vida, mesmo
no caso de elas divergirem infinitamente no plano da biografia e
da psicologia do indivíduo, voltam a confundir-se sem resíduos
no ponto de sua desubjetivação recíproca. E elas - nesse ponto -
Categorias italianas
226 “E eu a ele: ‘Eu sou um que, quando / Amor mc inspira, noto, e daquele m odo/
Quele me dita vou significando’" (N.T.).
língua experimenta tal unidade, cumpre, no âmbito de sua história
natural, uma mutação antropológica a seu modo tão decisiva quanto
foi, para o primata, a liberação da mão na posição ereta, ou, para o
réptil, a transformação dos membros que o converteu em pássaro.
Tome-se o lendário ciclo dos Versi livornesi para Annina
Picchi no Seme dei piangere\ quem quer que não esteja de todo
surdo para os problemas da tradição poética ficará surpreso
diante desse inaudito ressurgimento da cançoneta siciliana e
da balada cavalcantiana, para celebrar a “esplêndida invenção”
(Mengaldo) de uma relação de amor com a mãe-jovenzinha. Mas
não se compreende a tarefa poética aqui realizada enquanto tais
versos forem vistos desde a perspectiva psicológica e biográfica
da sublimação incestuosa da relação mãe-filho; isto é, caso não se
6. Desapropriada maneira
compreenda a mutação antropológica que neles se cumpre. Isso
porque não há aqui nenhuma figura da memória e tampouco o
amor de lonh, mas o amor, em uma sorte de xamanismo temporal
(e não simplesmente espacial, como nos estilonovistas), encontra
pela primeira vez o seu objeto em um outro tempo. Por isso não
pode haver traço de incesto: a mãe é de fato moça, “uma ciclista”,
e o poeta “enamorado” literalmente a ama à primeira vista. Nesse
sentido, o homem de Caproni pertence a um outro phylon com
cs
CO
respeito ao homem do Édipo: saltando de uma vez as lúgubres
ordens cronológicas da estirpe, o édito dos Versi livornesi sanciona
o fim do Édipo e da família incestuosa; e quem, diante dele, ainda
se obstinasse a falar em termos de incesto e de psicologia, faria
o papel exemplar do crítico que se perdeu no beco sem saída de
um trilho morto da antropologia poética. Daí a terrível reunião
das duas figuras ad portam inferi, quando a jovenzinha volta a
confundir-se com a mãe edípica e procura em vão as chaves e o
anel que não pode possuir. O limiar infernal aqui não assinala
tanto a passagem entre o reino dos vivos e o dos mortos, quanto,
na viva fornalha da fantasia poética, o ponto de fusão em que
transitam, uma contra a outra, as duas forças que se enfrentam: a
morte de Annina Picchi, assim como a de Beatriz, não é a morte
de um indivíduo, mas o gigantesco choque entre dois mundos
inconciliáveis.
Não “poemas familiares”,227 portanto, mas muito mais, como
no poema ao filho Attilio Mauro, no Muro delia terra, inversão
temporal e troca filogenética nas quais as hierarquias familiares
tornam-se irreconhecíveis. Caproni, em outras palavras, conseguiu
realizar aquilo que Pascoli talvez tenha tentado, mas não pode
fazer: confundir e transfigurar eroticamente os muros da domus
e da família para nelas encontrar as criaturas que aí moravam,
integralmente renascidas para si mesmas e para os outros. Por isso
não será inútil confrontar a jovenzinha dos Versi livornesi com a
Tessitrice de Pascoli. Assim como Cavalcanti e os estilonovistas (no
limiar epocal de uma mutação antropológica que havia deslocado
pela primeira vez a sexualidade para além dos confins da reprodução
da espécie) haviam animado em uma figura viva, por meio de seus
“spiritelli”, a separada imagem siciliana da mulher pintada na mente,
do mesmo modo a muda pantomima da recordação, que aprisiona
Categorias italianas
6. Desapropriada maneira
alternadas (mais bem imagináveis numa língua com flexão de casos),
Contini reconhece uma tendência da língua de Pizzuto não apenas
em direção ao indo-europeu arcaico, com o seu estilo nominal, mas
também “para além das fronteiras reconhecidas no indo-europeu”,
em direção às línguas monossilábicas (o chinês, por exemplo).
Não é nada surpreendente que o ensaio de Lewy tenha
suscitado o entusiasmo de Benjamin. Porque a língua do indivíduo
torna-se aqui o lugar de uma mutação experimental e de um
<N
LD
deslocamento que atesta aquela “pura língua” (Dante falava, em
sentido não demasiado distinto, de um “vulgar ilustre”) que,
segundo Benjamin, está entre as línguas naturais sem coincidir com
nenhuma delas (e cuja sede própria ele indicava na tradução).
Tensões e extremismos do gênero, não raro encontrados na
obra dos artistas velhos (basta pensar, para a pintura, no Michelangelo
ou no Tiziano tardios), são com frequência catalogadas pelos críticos
como maneirismos. Já os gramáticos alexandrinos observavam que
o estilo de Platão, tão límpido nos diálogos juvenis, torna-se, nos
últimos, obscuro, afetado e demasiado paratático; e considerações
semelhantes (ainda que aqui amiúde se fale menos de senilidade
quanto de loucura) foram feitas e podem ser feitas para o Hólderlin
de depois das traduções de Sófocles, dividido enlre a técnica áspera
6. Desapropriada maneira
exílio: habitar.
to
oi
em oito), e também porque possibilita, nesse sentido, justificar a
boutade de Pasolini (repetida por brincadeira pelo poeta) segundo
a qual Caproni não fala italiano, mas uma outra língua, o capronês.
O essencial, entretanto, é que tal maneira transgressiva é exercida
sobretudo no elemento que caracteriza mais ciosamente a poesia:
o metro. Isso na medida em que o poeta, que atingira a excelência
tanto na técnica áspera e quase pedrosa de Passagio d ’Enea, quanto
naquela doce229 de Seme dei piangere, em dado momento demite
seu canto e, repetindo em outro plano o gesto juvenil - quando,
certa noite, sendo membro de uma orquestra em Livorno, ao ser
chamado a fazer o spalla quebrou seu violino -, agora desfaz e
desagrega o seu precioso instrumento poético. Caproni, retomando
230 “nulla cosa per legame musaico armouiz/.ala si può de la sua loquela in altra
trasmutare senzarompere Uilta sua doccz/a e ai monia” (N.T.).
reticências (que Caproni compara ao pizzicato que, no quinteto
de Schubert op. 63, intervém para quebrar o desenvolvimento da
frase melódica) assinalam a impossibilidade de levar a termo o tema
prosódico. O verso é assim reduzido aos seus elementos-limites: o
enjambement (se é verdade que ele é o único critério que permite
distinguir a poesia da prosa) e a cesura (que já Hõlderlin definia
“antirrítmica” e que aqui se dilata patologicamente até devorar o
ritmo por completo).231
Não será possível, portanto, falar de verso livre ou de verso
tipograficamente quebrado, mas de aprosódia (no sentido em que os
neurologistas, que falam de afasia para caracterizar os distúrbios do
aspecto lógico-discursivo da linguagem, definem como aprosódia
as alterações do seu aspecto tonal e rítmico); e de uma aprosódia,
6. Desapropriada maneira
como é óbvio, pacientemente calculada e obsessivamente ordenada
(os editores conhecem a atenção quase maníaca do último Caproni à
partitura tipográfica), mas nem por isso menos destrutiva.
Segundo o já comentado caráter polar da escritura poética,
essa desafeição do elemento prosódico produz, todavia, um
resíduo contrário: os versículos do Contracaproni. É possível se
perguntar de onde provém a invasiva proliferação desse contracanto
(metricamente trivial) que está ao lado do canto quebrado das
vo
to
últimas poesias, quase um cantarolar e um assovio no meio do
hino mais tenso, e que dá consistência ao paradoxo de um poeta
que vive em união pessoal com um contrapoeta. Os versículos são a
escória - o demasiado próprio - que se estilhaça devido ao implacável
trabalho de desapropriação que caracteriza a maneira suprema de
Caproni.
Nesse sentido, Res amissa contém, de fato, a razão última da
sua poesia, uma vez que a própria poesia tornou-se, para o velho
poeta, a res amissa em que é impossível distinguir entre natureza
e graça, hábito e dom, possessão e expropriação. Na oscilação,
231 A multiplicação das rimas internas (que um atento exame dos manuscritos
mostra que foi conscientemente procurada) é um outro sinal (ambíguo, como
também os precedentes) dessa tendência de colocar em questão a unidade do
verso (implícita já no projeto mallarmaico de substituir, através dos espaços em
branco, o verso como unidade rítmica pela página).
numa espécie de mímica transcendental, entre a aprosódia do canto
interrompido e os versículos demasiado harmônicos, Res amissa
atingiu assim uma região para sempre situada além do próprio e do
impróprio, da salvação e da ruína. Essa é a herança irresgatável que
a desapropriada maneira de Caproni lega à poesia italiana, e que
nenhum benefício de inventário permitirá eludir. Como um animal
que de súbito tenha sofrido uma mutação que o leva para fora dos
limites da espécie, sem que seja possível inseri-lo em algum outro
phylon, e tampouco jamais saber se conseguirá transmitir a outros
tal mutação, a poesia, a um só tempo irreconhecível e demasiado
familiar, tornou-se agora para nós definitivamente res amissa. Por
isso, de todos os livros de poesia que continuam e continuarão por
certo a ser publicados, é impossível dizer se algum deles poderá estar
à altura do evento que aqui se cumpriu. Podemos somente dizer que
aqui algo termina para sempre e alguma coisa tem início, e que isso
Categorias italianas
O "logos
erchomenos" de
Andréa Zanzottcr
233 Andréa Zanzotto, Pocsic, cdu,.i<> <lc S. A|',osli, Mondadori, Milano, 1973, p. 20.
os motivos e as citações bíblicas (não somente neo-testamentárias)
na sua poesia serem explícitas e constantes. Qual é o sentido - para
começar com uma constatação tanto óbvia quanto excepcional -
da contínua e quase obsessiva recorrência do termo “páscoa” nessa
poesia - desde a “Páscoa ventosa que sobe aos crucifixos”234 de
Dietro il paesaggio (1951) até k “páscoa mutante”235 de Fosfeni (1983),
passando pela coletânea homônima de 1973, na qual a Páscoa deve
ser entendida “com todas as suas implicações”236 (p. 1160)? Será
237 “(talvez que espera um esposo lao eterno / como ela - e que é ela - logos
erchomenos)” (N.T.).
238
“Em nome do I.O( l( )S proveniente..." (N.T.)-
ilo Apocalipse (um texto que o nosso poeta evoca diversas vezes)
<>Senhor é definido “aquele que é, que era e que vem”: “Eu sou o
Alfa e o Ômega, diz o senhor Deus, aquele que é, que era e que
vem (erchomenos)” (Ap. 1 , 8) (esse contexto escriturai explica, entre
•Mitras coisas, por que em Filò a referência teológica esteja ainda
mais explícita pela imagemdQ“esposo eterno” (Cristo) e por que a
nota sinta a necessidade de especificar - contra a proximidade entre
11 Messias e o trono que, no Apocalipse, simboliza o Reino - que o
cn
in
língua nacional” (p. 1229), isto é porque o dialeto não é, para ele,
simplesmente uma outra língua, menor e não (ainda) escrita, que
precede a língua maior; ao contrário, como ele escreve na sua obra-
prima de filosofia da linguagem, que é a longa nota a Filò, comparável
.ms pontos mais altos do De vulgari, dialeto é o nome da experiência
mais própria e profunda do “fato linguístico”, ou seja, “a metáfora -
<■c para um certo verso a realidade - de todo excesso, de qualquer
inimaginável, do superabundar nascente ou do estagnar ambíguo
•Io fato linguístico na sua mais profunda natureza” (p. 542). O “fato
linguístico” (que não é a língua, mas o que os linguistas chamam o
luctum loquendi, o mero fato, inacessível ao saber, de que os homens
l.ilam) apresenta-se como uma estrutura dupla ou, melhor dizendo,
>nmo um campo de forças percorrido por duas tensões conjugadas
c opostas, que de modo incessante se tocam, habitam-se, nutrem-se
i- se descartam: o dialeto e a língua, “málria” c “pál ria”, lisse tocar-se
deve ser compreendido de modo quase físico, pois nessa experiência -
que é algo como uma “violentíssima deriva” histórica, “cheia da
vertigem do passado” - o falante “foca, com a língua (nas suas duas
acepções, como órgão físico e sistema de palavras) o nosso não saber
de onde a língua vem, no momento em que vem, sobe como o leite...”
(Ibid.). Isso significa que a língua tem lugar em um não-lugar, isto é,
no não ter lugar do dialeto. Assim, isso que chamamos dialeto nada
mais é do que a experiência desse não ter lugar da linguagem, logos
que está sempre “no princípio”, sempre sobrevivente em nenhum
lugar (gnessulogo, que é o “intraduzível pendant negativo de ‘por
toda parte’” - p. 645); nesse sentido, como advertia a passagem
supracitada, “lugar então de um logos que permanece sempre
erchomenos’, que jamais se congela em um corte de evento, que
permanece ‘quase’ infante no seu dizer-se”.
Nessa paradoxal temporalidade do fato linguístico, que
Categorias italianas
CO
E este é, talvez, o momento de falar da especial “ilebigilidade”
ô.i poesia de Zanzotto, isto é, daquilo que induziu os críticos, ao
menos a partir de La beltà, a falar de uma dificuldade, de um gaguejar,
‘Ir uma “insignificância” e quase de uma “afasia” dessa poesia. Por
<ri to o fato linguístico, enquanto lugar messiânico, é para Zanzotto
lugar de esfacelamento e de catástrofes no qual a experiência do
■lialeto (mas também do latim, “garganta aberta a devorar o seu
11mpido rejeton, o italiano”239 - p. 1131) age desagregando e dividindo
i Iíngua, obrigando o poeta a quebrar aprosodicamente o seu canto
(<nino nos últimos hinos hòlderlinianos, tão caros a Zanzotto). Mas
i ilegibilidade que está aqui em questão provém de um lugar ainda
mais profundo; o poeta não está em dificuldades nem balbucia, ao
>mitrário, soletra e escande em sílabas o ilegível, faz-se leitor (ou,
■obretudo, ouvinte - cf. Jacó 1 , 22 ) daquilo que não pode ser lido, não
' ' “fauce aperta a divorare il suo limpido rejeton, l'ilali.mo" (N.T.).
somente e não tanto porque não foi escrito, mas porque, sobrevindo,
erchomenos, urge e trabalha, na língua, para expor a ilegibilidade
que lhe é constitutiva.
Daí, em Zanzotto, a peculiar e indissolúvel unidade entre
a prática poética e a reflexão sobre a língua. A tradição da poesia
italiana se abre com um tratado que um poeta escreve sobre a
língua vulgar, no momento em que se propõe a escrever em uma
língua que não pode ser escrita. É arriscado sugerir que a escritura
de Zanzotto fecha essa tradição com um outro “tratado”, misto de
prosa e “linhas cortadas” (não “versos”! - p. 1231), longuíssima glosa
sobre o que, na poesia, dá-se e só pode dar-se como ilegível? O que
será a poesia (a língua) italiana após Zanzotto não é algo sobre o
qual eu deva me pronunciar. É certo, entretanto, que esse poeta nada
afável, não balbuciante nem afásico, absolutamente não confinado
no significante, marca para a leitura da poesia um limen histórico
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com o qual o logos que vem não poderá deixar de acertar as contas.
oj
00
A sorte póstuma de Giorgio Manganelli apresenta aspectos
singulares. De um escritor que tinha deixado um tão imponente
e volumoso conjunto de obras (27 volumes e 1.669 publicações
em vida registradas na bibliografia de Graziella Pulce) teria sido
possível no máximo esperar resíduos e resquícios secundários,
torsos e fragmentos preciosos, mas que nada teriam acrescentado
à grandeza do escritor. Ao contrário, escrivaninhas e prateleiras
foram, nesse caso, excepcionalmente pródigas. La palude definitiva
(1991) e La notte (1996), ambos póstumos, representam com grande
probabilidade o ápice da obra manganelliana, o êxito supremo e
quase a decantação do seu maneirismo, que de modo decisivo se
inscrevem entre as escrituras máximas do Novecentos.
O opus postumum aqui publicado,240 cuja radical hetero-
geneidade impede de definir como menor, não é, obviamente, dessa
ordem. Mas o seu caráter heteróclito - trata-se de uma tese de láurea
em ciência política - permite por certo formular uma hipótese
inédita, e talvez não impertinente, sobre a gênese e as características
da escritura manganelliana. Se não estivermos equivocados, um fio
secreto une esse ensaio juvenil às obras máximas, o nada ingênuo
jovem politólogo de 23 anos ao inquieto vidente do fim.1
111 Informações mais precisas sobre este ensaio, bom i omo solno os demais, são
fornecidas no final deste volume, na “Nola aos loxios", p. I .V
Abra-se o romance - ou, sobretudo, o rolo apocalíptico - que a
editora intitulou, com felicidade, Lapalude definitiva. Uma acusação
infamante leva o protagonista eu-narrador a fugir, montando um
improvável ‘corcel’, para um pântano infindável, onde se estabelece
como em um ‘reinado clandestino’, sem esperança nem desejo de
êxodo. Todo o livro é apenas a minuciosa e alucinada contemplação
desse pântano definitivo, que preenche ‘compacto e sem forâmen’
o horizonte com as suas águas mortas e seus Iodos e é, todavia,
animado por uma vida ‘repelente e inexaurível’. Até que, pouco a
pouco, da mais profunda das visões noturnas surge no solitário
monarca a ideia - ou o presságio - de ser parte de uma diarquia, de
que na extremidade do pântano exista um seu companheiro, diarca
do fogo e dos vulcões, em direção ao qual ele ao final se move como
em direção a sua ‘danação’ ou ‘iluminação suprema’.
O que é o pântano definitivo? A tentação da interpretação
Categorias italianas
8. Heráldica e política
do livro póstumo, cidade e pântano parecem entrar em uma zona
de indiferença paradoxal, na qual a monarquia cede lugar a uma
diarquia, e o pântano se identifica com a história (“esse pântano
de algum modo é dotado de história ”,246 p. 95); e o diarca narrador,
verdadeiro ‘espírito do mundo a cavalo’, segundo a célebre imagem
de Hegel, move-se ao encontro do Senhor do fogo em uma final
ecpirose messiânica. A política, como a literatura, é uma diferença
interna do pântano (da língua), que tende ao infinito a anular-se,
mas que se mantém indefinidamente por meio da escritura do
próprio desastre.
Retrocedamos agora de um opus postumum a outro, de um
extremo ao outro do itinerário criativo de Manganelli: à tese de
láurea cujo título diz de modo contido Contributo critico alio studio
delle dottrine politiche del’600 italiano [Contribuição crítica ao
estudo das doutrinas políticas do Seiscentos italiano ]. Antes de tudo,
de que autores se trata, de quais doutrinas? Uma primeira surpresa
espera aqui o leitor não afeito à história do pensamento político.
8. Heráldica e política
Mas do conceito de razão de Estado decorre ainda uma
outra consequência que não podia deixar de fascinar o jovem
Manganelli. A ratio status, enquanto “novidade de meios aptos
a fundar, conservar e ampliar o domínio sobre os povos”, carrega
consigo a ideia, barroca e ao mesmo tempo moderna, de um arcano
constitutivo do Estado, isto é, de medidas secretas que, segundo a
Ui
lógica da exceção, derrogam o direito ordinário em vistas do bem
comum. Podemos imaginar o prazer com que o laureando terá
consultado, com base em Mainecke (que os cita amplamente), os
teóricos dos arcana imperii (um termo que também aparecerá no
léxico do escritor): antes de tudo o tratado de Clapmar, De arcanis
rerum publicaram libri VI (1605), em seguida a Dissertatio de arcanis
rerum publicaram, de Besold (1614), bem como a obra de Kessler
de 1678, de título inacreditavelmente manganelliano, Detectas ac a
fuco politico repurgatus candor et imperium indefinitum, vastum et
immensum Rationis Status boniprincipis.24SA política, no momento2478
249 G. Manganelli, Labariosc inr. ir. ( l.u /.mli, Miluno, 1986, p. 151.
Patrizia (pense-se, para todos, no misterioso ainda que límpido
“teotéricos” [“teoterici’’], em vez do banal “teoréticos” [“teoretici”]
do manuscrito - p. 35).
Mas é sobretudo na concepção da subjetividade que a analogia
política-literatura vai ainda mais além. É sabido que as “infinitas
interioridades em relação recíproca”, no teatro político do barroco,
jogam não apenas entre os indivíduos, mas também no interior de
cada sujeito, que assim está preso em uma infinita cisão. Considere-
se a definição canônica do escritor em Laboriose inezie (elaborada,
não por acaso, a propósito de um outro grande escritor seiscentista,
não alheio a preocupações políticas, Torquato Accetto), segundo a
qual escritor é “quem é chantageado pelas palavras”.250 Pois bem,
essa chantagem é, in nuce, um genuíno ato político, é a chantagem
que o homem de antemão faz a si mesmo pelo fato de ter se tornado
falante (ou escrevedor). O ingresso na linguagem (na escritura) não
8. Heráldica e política
é, com efeito, um gesto neutro, mas introduz no sujeito um princípio
de divisão infinita, do qual não há reparo nem saída. Tu escreves, tu
falas: portanto, és dividido de ti mesmo, estás empenhado em uma
angustiante contenda política contigo mesmo, obrigado a guerrear
e a sofrer contigo e com os outros. O axioma teológico-político de
Gregorio de Nazianzo, “o Uno está em guerra civil consigo mesmo”
(to hen stasionzon pros heauton), define o cânone do eu literário,
e é notório que a dogmática trinitária não seja mais do que uma
intrépida especulação sobre o ato de palavra: o falante, o verbo,
o sopro da voz. Algo de similar, em suma, àquilo que o último
Manganelli chamará, em uma brincadeira terrivelmente séria,
“pseudônimo ao quadrado”. Não apenas aqui, segundo a advertência
rimbaudiana e keatsiana, eu é um outro, mas esse outro pretende
não ser outro, e identificar-se com eu, coisa que eu só pode negar.
Nessa alternada e vertiginosa dessubjetivação, experiência política e
experiência literária coincidem sem restos.
Manganelli, então, escritor político? O sentido e as cautelas
com que se deverá entender essa pergunta estão implícitas no
próprio lugar arquetípico de sua escritura. Reflita-se: não é talvez a
heráldica, com as suas “armas” e os seus “campos", as suas “bandas”
0 torso órfico
Ia poesia
251 M. Luzi, Al di qua e al di là deU’elcj’iii. prrl.ic i<> >lc I >. ( lampim», Canti orfici,
edição de E. Falqui, Firenze, 1973, p. IX.
louvor [Iode] a Deus. Se há louvor [Iode], mas não a Deus, não é um
hino; se há louvor [Iode] a Deus, mas não é cantado, não é um hino.
Se é em louvor [Iode] a Deus e é cantado, então é um hino”. A partir
do final da Idade Média, a hinologia cristã entra em um processo de
irreversível decadência. A Laude delle creature franciscana, ainda
que não por completo pertencente à tradição dos hinos, constitui
para ela o último grande exemplo e, ao mesmo tempo, confirma o
seu ocaso. A poesia moderna, embora com exceções (para a poesia
italiana, além dos Inni sacri de Manzoni, ao menos Campana e
Rebora), é, no geral, mais elegíaca do que hínica. Mas os dois polos
devem estar, em alguma medida, presentes em ambos, sob pena de
um distanciamento do campo de tensão da língua (e não é impossível
que, tomando-se o exemplum de Montale, a progressiva exclusão do
polo hínico, que lhe trouxe a glória precoce, deverá talvez um dia
descontar a tendencial carência do tonos a partir de Satura).
Categorias italianas
252 “Chi, s’io gridassi, mi udiebbc dagli imlini / degli angeli?” (N.T.).
253 “Apenas no espaço da celebras ao p o d e n in ie i .1 lamentação” (N.T.).
é a impossibilidade do hino, o seu não poder proferir nomes divinos
e palavras, mas somente lamento - isto é, segundo a aguda fórmula
de Scholem, a linguagem instável [labile Sprache] por excelência,
linguagem que perdeu toda consistência e todo sentido, não-
linguagem.
O inverso simétrico das Elegias rilkeanas é a poesia tardia de
Hõlderlin que, composta entre 1800 e 1805, pertence de pleno direito
à poesia do Novecentos, pois sua recensão começa somente com a
edição de von Hellingrath (1913). Essas poesias são tradicionalmente
inscritas sob a rubrica “hinos”, pois seu conteúdo diz em essência
respeito aos deuses e semi-deuses (estes últimos tomam ali o lugar
dos anjos). Com um deslocamento decisivo, todavia, aquilo que esses
hinos celebram não é a presença dos deuses, mas o seu afastamento.
m
seu modo, tomando emprestado da filologia alexandrina a oposição
poetológica entre harmonia austêrà (conexão áspera, que tinha
Píndaro como campeão) e harmonia glaphyra (conexão lisa). O que
define a articulação áspera (ou dura, como traduz von Hellingrath)
não é tanto a parataxe quanto o fato de que nela as palavras singulares
(ou algumas delas) tendem a isolar-se do seu contexto semântico
até constituir uma espécie de unidade autônoma (Mallarmé tinha
falado no mesmo sentido de um isolement de la parole,254cujo êxito
máximo é o Coup de dés), enquanto na articulação lisa, ou plana, o
contexto semântico subordina e conecta ao mesmo tempo palavras
e frases. “A articulação dura”, escreveu von Hellingrath, “faz tudo
para exaltar a própria palavra, imprimindo-a no ouvido de quem a
escuta e extraindo-a na medida do possível do contexto associativo
254
‘isolamento da palavra” (N.T.).
das imagens e dos sentimentos a que pertencia”.255 É como dizer que,
no hino, age uma tensão anti-semântica que faz colapsar o sentido
para atingir a pura palavra, o nome separado de toda conexão
sintática. A leitura dos versos é assim apenas um suceder-se de
cesuras e de distanciamentos, uma fragmentação da qual emergem
lemas e também, às vezes, apenas adjetivos ou conjunções (como,
no último Hõlderlin, o feroz e absoluto isolamento da conjunção
adversativa aber, “mas”).
Torna-se então possível definir a língua da poesia moderna
como um campo de tensões percorrido por duas correntes opostas,
a da harmonia austêrà e a da harmonia glaphyra, em cujos
extremos polares estão, de um lado, o hino, que celebra e isola o
nome, e, do outro, a elegia, que lamentando a impossibilidade do
hino mantém os nomes no discurso significante. O que de fato se
dá na contaminação das duas tensões é, entretanto, de um lado, a
Categorias italianas
CO
m
sorte de kenning,2SS ameaça e quebra a inteligibilidade do sentido.
Como na kenning dos escaldos, um nome especifica um outro de
maneira a distorcer-lhe o sentido, produzindo uma impressão de
obscuridade que mantém o leitor em suspenso. Em Nappo, deste
modo, o adjetivo por assim dizer devora o sentido do substantivo,
perfura-o e modifica a “substância” (Ranchetti observa que “o
adjetivo traspassa o nome”). Uma vez que essa kenning singular
se encontra quase em toda poesia, às vezes em todos os versos,
bastará aqui alguns exemplos: “céu isósceles”, “errante clausura”
Argomento di voce,
notte anteriore,
cantica terza e
dubitata effigie, per te
dico il mio amore.259
Inferta gemma,
splendore attribuito.260
E o moralizante quarteto:
Imperfectio santíssima,
difettivo fulgore,
sonno dei poveri,
sogno dei signori.261
259 “Argumento de voz, / noite anterior, / cantiga terceira e / duvidada efígie, para
ti / digo o meu amor” (N.T.).
260 “Infligida gema / esplendor atribuído." (N.T.).
261 “Imperfectio santíssima, / drlethvo fulgm. / sono dos pobres, / sonho dos
senhores” (N.T.).
r
Dasiatiche novizie
straniato stuolo, errante
clausura. 262
266 “Descartes começou a partir tl.i nii-nlr, rir a partir ile Deus” (N.T.).
caminho a língua? Isso com a condição de especificar de imediato
que a viagem aqui cumprida pela língua vai ao além-túmulo, e que
a língua da poesia de Nappo é, segundo o denso dogma pascoliano,
uma língua morta. Desde quando Pascoli apresentou nos Pensieri
scolastici, quase com descuido, a sua implacável denúncia, a grande
estação da poesia italiana do Novecentos, de Montale a Penna e
Caproni, fez com que os críticos se esquecessem da sua pertinência.
Mas os poucos e lúcidos poetas da geração de Nappo (do que
testemunha a língua “arruinada” e “seca” de De Signoribus) sabem
que aquela estação não protege mais a sua língua, o que faz com
que tenham de confrontar-se outra vez com a morte da língua. Nas
lamelas áureas encontradas nos tympanoi órficos, o morto implora
obstinado: “Dipsai ã ’eim’ayos, morro de sede, dá-me de beber a
en
não são a insurgência de algo vivo em um contexto sepulcral, mas o
urgir na língua morta de um idioma ainda mais espectral, relicário
infinita e memoravelmente remoto.
É apenas nesse sentido que se pode falar de uma “religiosidade”
da poesia de Nappo. Ranchetti tinha observado que a dedicatória
de Genere ao marechal soviético suicida contém uma memória da
também intempestiva dedicatória dos Cantos órficos a “Guilherme
II, imperador dos Alemães” (que o autor depois tentou apagar
nos exemplares que tinha conseguido encontrar). O comunismo
evocado na dedicatória de Genere, como a religiosidade “do povo
iliterato de Nápoles” que fornece o título à segunda coletânea, Requie
materna, tem aqui primeiramente uma função poetológica (como
o catolicismo em Rebora, antes que, com a conversão, colapsasse
267 “Dipsai cTeimáyos, brucio di sete, dalcini da Ix-n- l'.u <|ii.i gelida clu* vienc dal
lago di Mnemosyne” (N.T.).
na redação dos hinos no sentido estrito do termo, que assinalam
o fim da sua estação poética). A escatologia messiânica concerne
primeiro à língua. Pois a sua particular tensão hínica dá à poesia de
Nappo aquela consistência de pedregulho errático que faz dela um
fenômeno único na instabilidade da língua poética do Novecentos.
Contra a “filosofia implícita da destronação” (uma provável flechada
em Montale) de que falava Luzi no ensaio citado, Nappo não celebra
novas coroações, mas eleva na língua a sua tênue ethoimasia tou
thronou, na qual, como nos mosaicos das basílicas bizantinas, as
asas dos serafins circundam um trono rigorosamente vazio. Nela,
hino e elegia chocam-se com um impacto surdo mas enorme, no
qual o hino fecha a boca da elegia, e o lamento apaga a pretensão
nomeadora do hino. O indecidível de celebração e lamento daí
resultante deixa um campo de ruínas em que desponta algo como
um torso órfico da poesia, o prólogo epilogal de uma nova língua
Categorias italianas
poética, isso caso seja verdade que a poesia italiana não poderá
mais por longo tempo continuar a roer a amarga casca elegíaca da
“felicidade negada”.
01
00
Paródia
10. Paródia
melhor, a indiferença - entre canto e linguagem aparece completa em
Callia, que compõe um canto no qual as palavras cedem seu posto à
soletração do ABC (beta alfa, beta eta, etc).
Disso resulta que a paródia, segundo esta mais antiga acepção
MD
do termo, designa o rompimento do nexo “natural” entre a música e a
linguagem, o afastamento do canto em relação à palavra. Ou ainda, ao
inverso, da palavra em relação ao canto. É este afrouxamento paródico
do vínculo tradicional entre música e logos que torna possível, com
Gorgia, o nascimento da prosa artística. O rompimento do vínculo
libera um parà, um espaço ao lado, no qual a prosa se instala. Mas isso
significa que a prosa literária traz em si o signo de sua separação do
canto. O “canto obscuro” que segundo Cícero se escuta no discurso
em prosa (est antem etiam in dicenão quidam cantus obscurior),26S
nesse sentido, consiste em um lamento pela música perdida e pelo
desaparecimento do lugar natural do canto.
Decerto não é novidade que a paródia constitui a chave
estilística do universo morandiano. Falou-se, quanto a isso, de
“paródia séria”.268
268 “há, com efeito, no dizer um canto mais o I>m iu o " (N.T.).
O conceito de “paródia séria” é obviamente contraditório,
não por que a paródia não seja uma coisa séria (é, inclusive, por vezes
seríssima), mas por que ela não pode pretender se identificar com a
obra parodiada, não pode negar o seu estar necessariamente ao lado
do canto (pará-õiáên) e o seu não ter lugar próprio. Sérias podem
ser, todavia, as razões que terão levado o parodista a renunciar a
uma representação direta de seu objeto. Para Morante elas são tão
evidentes quanto substanciais: o objeto que ela deveria descrever
- a vida inocente, ou seja, fora da história - é a rigor inenarrável.
A precoce explicação que Elsa fornece em um fragmento de 1950,
tomada de empréstimo ao mito hebraico-cristão, é para sua poética
definitiva: o homem foi expulso do Éden, perdeu seu lugar próprio e
foi lançado, em companhia dos animais, em uma história que não lhe
pertence. O objeto mesmo da narração é, nesse sentido, “paródico”,
ou seja, posto fora, e o escritor pode apenas repetir e imitar a íntima
Categorias italianas
10. Paródia
a existência do anti-herói (que é o protagonista) estão desde o início
inscritas em uma constelação de caráter decisivamente cloacal.
Turgibus, seu pai, é senhor de Cocuce, “um país pantanoso / onde a
gente está com a merda até o pescoço. / Por um riacho de esgoto lá
cheguei nadando: / não é possível jamais sair por outro buraco”.270
Sobre este nobre senhor, de quem Audigier se revela digno herdeiro,
sabemos que “quando cagou até encher o capuz / enfia seus dedos
na merda, e depois os chupa”.271 O verdadeiro núcleo paródico do
poema, porém, está na contrafação do cerimonial cavalheiresco
do adoubement, realizado em uma estrumeira e, sobretudo, nos
repetidos embates com a enigmática velha Grinberge, que sempre
acabam em uma espécie de zombaria sacramentária escatológica,
conhecida pelo “verdadeiro cavalheiro” [“vero gentiluomo”]
Audigier:
270 “un paese molle / dove la gente st a nclla m e rd a li no al eolo. / Per un rivolo di
fogna ci arrivai anuoto: / non ne potei mai useire p e r a llro Imco” (N.T.).
271 “quando ha cacato da riempire il cappuei io / In <a i dili nella m e r d a , e poi li
ciuccia” (N.T.).
Grinberge a decouvert et cul et con
et sor le vis li ert a estupon;
du cul li chiet la merde a grant foison:
Quans Audigier se siet sor un fumier envers,
et Grinberge sor lui qui li froie les ners.
ii. foiz li fist baisier son cul ainz qu’il fust ters...
Grinberge descobriu o cu e o grelo
e sobre seu rosto se abaixou;
do cu caía merda aos borbotões.
Quando Audigier sentou sobre o esterqueiro
Grinberge sobre ele lhe roçou os tendões.
Duas vezes o fez lamber o cu antes que ficasse limpo...272
272 “Grinberge ha messo a mulo culo e fregna / e sulla faccia gli si è acciambellata;
/ dal culo le cade merda a prol iisioue. / 111 onlc Audigier sopra un letemaio sta
riverso, / e sului Grinberge i lie li s l m p u < 1.11 leiulini. / Due volte gli fecebaciare
il culo prima che fosse lorso..." (N.T.).
273 “fuori dei limbo non v'r elisu" ( NI )
A leitura dos tratados teológicos sobre o limbo revela, sem
sombra de dúvidas, que os padres da igreja concebiam o “primeiro
círculo” como uma paródia ao mesmo tempo do paraíso e do
inferno, tanto da beatitude como da danação. Do paraíso, na medida
em que este abriga criaturas - crianças mortas antes do batismo
ou pagãos justos que não puderam conhecê-lo - que são, como os
beatos, inocentes, e todavia trazem consigo o pecado original. O
elemento mais ironicamente paródico, entretanto, diz respeito ao
inferno. Segundo os teólogos, a punição aos habitantes do limbo
não pode ser uma pena aflitiva, como aquela aplicada aos danados,
mas somente uma pena privativa, que consiste na perpétua carência
da visão de Deus. Esta carência, que constitui a primeira das penas
infernais, não provoca dores, à diferença do que ocorre com os
danados. À medida que possuem apenas a consciência natural e
não a sobrenatural, derivada do batismo, a falta do bem supremo
não causa neles o menor pesar. As criaturas do limbo transformam
assim a pena maior em alegria natural, que por certo é uma forma
extrema e especial de paródia. Daí também o véu de tristeza que,
no entanto, “como algo cinza”, cobre, aos olhos de Morante, a ilha
inviolada. A “casa dos rapazes” (“casa dei guaglioni”) que evoca,
com o seu próprio nome, o limbo infantil, contém, com a memória
dos festins homossexuais de Amalfitano, uma paródia da inocência.
Em um sentido particular, toda a tradição da literatura
italiana está sob o signo da paródia. Gorni mostrou como a
paródia (ainda que na forma séria) é um constituinte essencial do
estilo dantesco, que busca produzir um duplo com quase a mesma
dignidade em relação às passagens da Sagrada Escritura que
reproduz. Mas a presença de uma instância paródica na literatura
italiana é ainda mais íntima. Todos os poetas são enamorados pela
sua língua. Amiúde, porém, algo lhes é revelado através da língua,
que os rapta e ocupa por inteiro: o divino, o amor, o bem, a cidade,
a natureza... Com os poetas italianos - ao menos a partir de um
certo momento - verifica-se um falo singular: eles são enamorados
somente de sua língua, e ela lhes revela somente a si mesma. E isso
é causa - ou, talvez, consequência de um oul ro làlo singular, qual
seja, que os poetas italianos odeiam a sua lingua na mesma medida
em que a amam. Por isso, no seu caso, a paródia não procede apenas
inserindo conteúdos mais ou menos cômicos em formas sérias, mas
parodiando, por assim dizer, a própria língua. Ela introduz (ou, o
que é o mesmo, descobre) na língua (e, assim, no amor) uma cisão.
O obstinado bilinguismo da cultura literária italiana (latim/vulgar
e, mais tarde, com o progressivo declínio do latim, língua morta/
língua viva, língua literária/dialeto) tem nesse sentido por certo uma
função paródica. De maneira poeticamente constitutiva, como é, em
Dante, a oposição gramática/língua materna; em formas elegíacas
e pedantes, como no Hypnerotomachia, ou desbocadas como em
Folengo. O essencial, em todo caso, é que seja possível instaurar na
língua uma tensão e um desnível, sobre os quais a paródia instala
sua central elétrica.
É fácil mostrar os êxitos dessa tensão na literatura do
Novecentos. A paródia não é aqui um gênero literário, mas a própria
Categorias italianas
e do canto).
Se a pressuposição da impossibilidade de atingir seu objeto é
essencial para a paródia, então a poesia trovadoresca e estilonovista
contém uma indubitável intenção paródica. Isso explica o caráter
ao mesmo tempo complicado e pueril de seu cerimonial. O amor
de lohn é uma paródia que garante o caráter não aproximável
[;inavvicinabílità] daquilo a que procura unir-se. Isso também é
verdadeiro no plano linguístico. Preciosismo métrico e trobar
clus inserem na língua desníveis e polaridades que transformam
a significação em um campo de tensões destinadas a permanecer
inesgotáveis.
Tensões polares no cnlanto afloram também no plano
erótico. Desde sempre causa espanto a presença de uma pulsão
lasciva e burlesca ao lado da mais refinada espiritualidade, com
frequência convivendo na mesma pessoa (o caso exemplar é Arnaut,
cuja sirvente obscena não cessa de preocupar os estudiosos). O
poeta, obsessivamente ocupado em afastar o objeto do amor, vive
em simbiose com um parodista, que pontualmente inverte suas
intenções.
A poesia de amor nasce na modernidade sob a insígnia
ambígua da paródia. O Canzoniere de Petrarca, que de maniera
decidida volta as costas à tradição trovadoresca, é a tentativa de
salvar a poesia da paródia. A sua receita é tão simples quanto eficaz:
monolinguismo integral no plano da língua (latim e vulgar são
separados até se tornarem incomunicáveis, os desníveis métricos
abolidos); eliminação do caráter não aproximável [inavvicinabilità]
do objeto de amor (não em sentido realístico, por certo, mas
transformando o não aproximável [inavvicinabile] em um cadáver -
ou melhor, em um espectro). A “aura” [Vaura] morta é, então,
o objeto próprio e imparodiável da poesia. Exit parodia. Incipit
litteratura.
A paródia reprimida reaparece, porém em formas patológicas.
10. Paródia
O fato de a primeira biografia de Laura dever-se a um antepassado
de Sade, que a inscreve na genealogia familiar, não é apenas uma
coincidência irônica. Ela anuncia a obra do Divino Marquês como
a subversão mais implacável do Canzoniere. A pornografia, que
o\
mantém inatingível o próprio fantasma no mesmo gesto com que,
de modo imperceptível, dele se aproxima, é a forma escatológica da
paródia.
Fortini estendeu a Pasolini a fórmula da “paródia séria”
morantiana. Ele aconselha ler o último Pasolini em estreito diálogo
com Morante. Tal sugestão pode ser ulteriormente desenvolvida.
Até certo ponto Pasolini não apenas dialoga com Morante (que
nas poesias é com ironia chamada Basilissa) mas dela fornece
uma paródia mais ou menos consciente. Além disso, o próprio
Pasolini começara com uma paródia linguística (as poesias
friulanas, o uso incongruente do romanesco). Mas nos passos de
Morante, e com a passagem ao cinema, ele desloca a paródia para
os conteúdos, carregando-a de um significado metafísico. Como
a língua, também a vida traz consigo uma cisão (a analogia não
surpreende, pois é ajusta equação leológiia enlre vida e palavra
que marca profundamente o universo cristão). O poeta pode viver
“sem os confortos da religião”, mas não sem aqueles da paródia. Ao
culto morantiano de Saba contrapõe-se agora o culto de Penna, à
“longa celebração morantiana da vitalidade” a trilogia da vida. Aos
angélicos jovens que devem salvar o mundo, responde a santificação
de Ninetto. Como fundamento da paródia, em ambos os casos, está
um irrepresentável. E, por fim, também aqui a pornografia aparece
com uma função apocalíptica. Não seria ilegítima, nessa perspectiva,
a leitura de Salò como uma paródia da Storia.
A paródia entretém relações especiais com a ficção, que desde
sempre constitui a contra-senha da literatura. À ficção - de que
Morante sabe ser mestra - é dedicada uma das mais belas poesias de
Alibi, que ao modo de um compêndio anuncia o tema musical: “de
ti me cinjo, ficção, fátua veste...”.274 E a própria língua de Morante,
como notou Pasolini, é uma pura ficção (“[Ela] finge que o italiano
Categorias italianas
exista” ).275 Mas a paródia, na verdade, não apenas não coincide com
a ficção como constitui o seu oposto simétrico. Isso porque a paródia
não coloca em dúvida, como a ficção, a realidade de seu objeto -
este é tão insuportavelmente real que se trata, aliás, de mantê-lo a
distância. Ao “como se” da ficção, a paródia opõe o seu drástico
“assim é demais” (ou “como se não”). Por isso, se a ficção define a
vo
00
10. Paródia
de um espaço junto à experiência sensível, que deve, entretanto,
permanecer vazio com todo rigor, assim também a paródia é um
terreno notoriamente impraticável, no qual o'\najante amiúde colide
com limites e aporias que não pode evitar, e dos quais tampouco
consegue encontrar uma rota de saída.
Se a ontologia é a relação - mais ou menos feliz - entre
linguagem e mundo, a paródia, enquanto para-ontologia, exprime
a impossibilidade de a língua alcançar a coisa, e a impossibilidade
de a coisa encontar o seu nome. O seu espaço - a literatura - é então
necessário e teologicamente assinalado pelo luto e pelo escárnio
(como o da lógica é marcado pelo silêncio). Desse modo, todavia,
ela é testemunha daquela que parece a única verdade possível da
linguagem.
Na sua definição da paródia, Scaligero, em certa passagem,
menciona a parábase. Na linguagem técnica da comédia grega, a
parábase (ouparekbasi) designa o momento em que os atores saem
de cena e o coro se dirige diretamente aos espectadores. Para fazer
isso, para poder falar ao público, ele se desloca (/mmibanõ) à parte
do proscênio dita logeion, lugar do discurso.
(
No gesto da parábase, quando a representação se interrompe,
e atores e espectadores, autor e público, trocam os papéis, a tensão
entre cena e realidade se atenua, e a paródia conhece talvez a sua
única dissolução. A parábase é uma Aufhebung - uma transgressão
e um cumprimento - da paródia. Por isso Friedrich Schlegel,
como sempre atento a toda possível superação irônica da arte, vê
na parábase o ponto no qual a comédia vai além de si mesma em
direção ao romance, a forma romântica por excelência. O diálogo
cênico - íntima e parodicamente dividido - abre um espaço ao
lado (representado em termos físicos pelo logeion) e torna-se apenas
colóquio, conversação simples e humana.
No mesmo sentido, em literatura, o voltar-se da voz narrativa
para o leitor, assim como os famosos apelos do poeta ao leitor, são
uma parábase, uma interrupção da paródia. Nessa perspectiva,
convirá refletir sobre a função eminente da parábase no romance
Categorias italianas
276 “preferisco fingere chc non si.i csistii.i. IVn iò, (inn al momento che non se ne
vede piü niente, sarà mcglio i h<- non gu.udi l.i. Tu avvisami, a quel momento”
(N.T.).
esta do
tesouro
[...] onde se pode ver que a lei que proíbe de não matar os
animais é fundada mais sobre uma vã superstição e uma
u>
essa razão não seja lícito prover a nossa utilidade, servir-nos
deles ao nosso prazer e tratá-los como melhor nos convém,
uma vez que eles não concordam por natureza conosco, e os
seus afetos são por natureza diversos dos afetos humanos.
277 “O Baruch! me nedolgo per te, ma qui In min li.u ( AN I t >" (N.T.).
a coerência do filósofo, mas para lançar uma luz sobre as razões do
desacordo de Elsa, que podem ser muito menos óbvias do que pode
parecer à primeira vista.
No final da passagem que acabo de citar, Spinoza remete ao
escólio da proposição LVII da terceira parte.
-a
O fato de que exista somente o mundo espiritual nos tolhe a
esperança e nos dá a certeza.
Jírí Langer, nas Nove porte, sustenta que essa seja a “mais bela
doutrina chassídica”:
279
‘O poema, hesitação prolongada entre o som r n sentido" (N.T.).
Os autores medievais parecem ter perfeita consciência do
estatuto eminente dessa oposição, ainda que tenha sido preciso
esperar até Nicolò Tibino (século XIY) para que se chegasse a uma
nítida definição do enjambement: Multociens enim acciãit quod,
finita consonantia, adhuc sensus oratonis non estfinitus.2*0
Todos os institutos da poesia participam dessa não
coincidência, desse cisma entre som e sentido: a rima não menos
que a cesura. Pois o que é a rima senão o descolamento entre um
evento semiótico (a repetição de um som) e um evento semântico,
que induz a mente a exigir uma analogia de sentido na qual nada
pode encontrar além de uma homofonia?
O verso é o ser que se situa sobre esse cisma, ser feito de murs
etpaliz, como queria Brunetto Latini, ou être de suspens, segundo as
palavras de Mallarmé. E o poema é um organismo fundado sobre
a percepção de limites e terminações que definem, sem jamais
Categorias italianas
métricas:
00
possibilidade: est autem pausatió fons consonantiae.2S2
Apenas nessa perspectiva é possível compreender o singular
prestígio, na lírica provençal e estilonovista, daquela especial
instituição poética que é a rima irrelata, que as Leys chamam
rimestrampa e Dante clavis. Se a rima assinalava um antagonismo
entre som e sentido em virtude da não correspondência entre uma
homofonia e uma significação, aqui, por sua vez, e na medida em
que falta onde era esperada, ela deixa as duas séries por um átimo
interferirem na aparência de uma coincidência. Digo aparência
pois, se é verdade que o ventre da arte parece aqui quebrar o seu
fechamento métrico para sinalizar para o ventre do sentido, a rima
irrelata remete contudo a um rhymcjdlow na estrofe sucessiva28
não deveríam aspirar a acrescentar nenhuma nova arte poética, mas deveríam
somente trajar-se do mesmo modo t|iu- as antci olontrs." (N.T.).
282 “a pausa é a fonte da consonância” (N.T.).
e, portanto, não faz mais que deslocar a estrutura métrica para
um nível metaestrófico. Por isso, nas mãos de Arnaut, ela evolui
quase naturalmente para palavra-rima, engendrando o estupendo
mecanismo da sextina. Uma vez que a palavra-rima é acima de tudo
um ponto de indecidibilidade entre um elemento por excelência
a-semântico (a homofonia) e um elemento por excelência semântico
(a palavra), a sextina é a forma poética que eleva a rima irrelata a
supremo cânone compositivo e procura, por assim dizer, incorporar
o elemento do som no próprio ventre do sentido.
Mas é tempo de confrontar-me com o tema anunciado e de
tentar definir essa prática desconsiderada nos estudos de métrica
e de poética: o fim do poema, enquanto última estrutura formal
perceptível de um texto poético. Existem pesquisas sobre os incipit
da poesia (mesmo se, talvez, ainda insuficientes), mas, ao contrário,
investigações sobre seu fim faltam quase por completo.
Categorias italianas
poema
poema. Proust certa vez observou, a propósito dos últimos versos
das poesias das Fleurs du mal, que o poema parece de modo brusco
arruinar-se e perder o fôlego (“il tourne court - escreve ele - tombe
presque à plat [...] il semble malgré tout qu’il y ait là quelque chose
d’écourté, un manque de soufflé”.283 Pensemos em Andromaque, c\j
essa composição tão vigorosa e heróica que termina com o verso:
18.
Aux captifs, aux vaincus, à bien dautres encor.284
283 “ele encurta e decai quase ao plano |...| parece, apesar de tudo, que houve aí algo
encurtado, um a perda de fôlego” (N.T.).
284 “Aos cativos, aos vencidos, a muitos outros ainda" (N.
som está prestes a arruinar-se no abismo do sentido, o poema busca
uma saída suspendendo, por assim dizer, o próprio fim em uma
declaração de estado de emergência poética.
É à luz dessas reflexões que gostaria de agora examinar uma
passagem do De vulgari Eloquentia, em que Dante parece colocar, ao
menos implicitamente, o problema do fim da poesia. A passagem se
encontra no livro III (XII, 7-8), em que o poeta trata da disposição
das rimas na canção. Após ter definido a rima irrelata (que alguém
sugeriu denominar clavis), o texto diz: Pulcerrime tamen se habent
ultimorum carminum desinentiae, si cum ritmo in silentium
cadunt,285286O que é essa queda do poema no silêncio? O que é uma
beleza que cai? E o que resta do poema depois de sua ruína?
Se a poesia apenas vive na inexaurível tensão entre a série
semiótica e a série semântica, o que acontece no momento do fim,
quando a oposição das duas séries não é mais possível? Há aqui,
Categorias italianas
285 “Belíssimas são as term inardes dos últimos versos, se caem, com as rimas, no
silêncio” (N.T.).
286 “nada terá lugar senão o lugar" (N.T.).
retarda o advento do Messias, isto é, daquele que, cumprindo o
tempo da poesia e unificando os dois éons, destruiría a máquina
poética precipitando-a no silêncio. Mas qual pode ser o fim dessa
conspiração teológica sobre a linguagem? Por que tanta obstinação
em manter a todo custo uma separação que consegue garantir
o espaço do poema somente ao custo de subtrair-lhe qualquer
possibilidade de um acordo durável entre o som e o sentido?
Releiamos agora o que escreve Dante sobre a maneira mais
bela de finalizar um poema, ali onde os últimos versos caem,
rimados, no silêncio. Sabe-se que se trata, para ele, quase de uma
regra. A título de exemplo, pensemos na tornada da pedrosa Cosi
nel mio parlar volgio esser aspro.2il O primeiro verso termina com
uma rima em absoluto irrelata, que coincide (com certeza não por
acaso) com a palavra que nomeia a intenção suprema do poema:
dorma [mulher], Essa rima irrelata, que parece antecipar um ponto
oo
in
quello ond’io ho piü gola,
e dalle per lo cor duna saetta;
ché bellonor sacquistain far vendetta.289
jm enigma
da 3asca~
2,0 As citações do Ricordo delia Basca sao tia edição da (larzanti: A. Delfini, I
racconti, Milano, 1963.
A hipótese de que esses versos incompreensíveis possam
esconder algum indício para uma resposta à pergunta do inoportuno
leitor é sugerida não apenas pela posição estratégica deles, in fine,
mas também pelo fato de que na razo o autor, relatando (não sem
uma consciente analogia com a passagem da Vita nuova em que
Dante se refere à epifania de Beatriz) o primeiro encontro com a
menina de 15 anos, “por mim chamada Basca” [p. 95], caracteriza-a
justamente por uma alusão a sua língua: ela conversava com o irmão
“em uma língua de tal tocante doçura que o meu coração, ao ouvi-la,
pareceu querer parar o próprio batimento para deixar as coisas para
sempre suspensas naquele átimo” [p. 92]. (Mais adiante, o autor quer
entender as palavras das duas crianças, e para tanto se aproxima até
“quase tocá-las” [p. 94]; mas consegue apenas apreender a palavra
entonces - em castelhano “então”, que é aqui o exato in illo tempore
do mito). A Basca entra em cena através da doçura de uma língua
ignota e dela sai no murmúrio inapreensível de uma glossolalia.
Quem é a Basca? E por que essa obstinada caracterização por
intermédio de um impenetrável “falar em língua”?
Uma primeira resposta está implícita na natureza glossolálica
dos versos em questão. Se a Basca, segundo uma indicação outras
vezes repetidas no relato, é aquilo tão íntimo e presente a ponto de
não poder ser de modo algum lembrado (“eu queria que me fosse
tão próxima que qualquer esforço de recordação não poderia dar-
me nem mesmo a imagem” [p. 2 10 ]), o que é, então, o mais íntimo
e imemorável de uma glossolalia, isto é, de uma língua na qual o
espírito de imediato se confunde com a voz, sem a mediação do
significado (cf. I Cor., XIV: “aquele que fala em língua não fala aos
homens, mas a Deus; ninguém, de fato, entende, mas em espírito
fala mistérios”)?
Seguindo uma tenaz intenção trovadoresca e estilonovista,
que faz de um senhal feminino o símbolo da língua da poesia, a
Basca seria a cifra desse originário e imediato estatuto da língua, no
qual ela, como o “falar materno” de Dante, é aquilo que “uno e só
está primeiro na mente”, e em relação ao qual não é possível nenhum
saber e nenhuma gramática. Na medida em que faz experiência
dessa demora imediata da língua no princípio, o poetâ não pode
“dizer nada que tivesse algo a dizer” [p. 2 1 1 ], está absolutamente sem
palavras diante da língua.
Se a Basca é a figura desse evento imediato da língua, por que,
então, o relato se intitula, ao contrário, Ricoráo delia Basca? E por
que a Basca não somente está perdida, mas é, de fato, um “eterno
desaparecimento” (p. 206)?
Contradizendo-se desse modo, Delfini sinaliza com discrição
para a outra Basca da literatura italiana do Novecentos, que
constitui seu exemplar verossímil: Manuelita Etchegarray, a crioula
de Dualismo nos Canti orfici, cujo nome traz uma inconfundível
origem basca. Contra a ingênua crença em uma nativa imediatez da
poesia, Campana (que formula aqui, como observou Contini, a sua
poética) faz valer o dualismo e a diglossia que constituem para ele
a experiência da poesia: a memória e a imediatez, a letra e a voz, o
pensamento e a presença. Entre uma impossibilidade de pensar (“eu
nao pensava, nao pensava em voce: eu jamais pensei em voce ) e um
poder apenas pensar (“eu lhe perdia então Manuelita [...]. Entrava,
lembro, na biblioteca...”), entre uma incapacidade de lembrar
Apêndice
na perfeita e amorosa adesão ao presente e à memória que surge
precisamente na impossibilidade desse amor, está sempre dividida
a poesia, e essa íntima divergência é o seu ditado. Como na canção
oo
co
do trovador Folquet de Marselha, o poeta só pode recordar no canto
aquilo que, no canto, gostaria apenas de esquecer (“Cantando me
ocorre lembrar daquilo que, cantando, procuro esquecer...”).
Daí, para Delfini, “a irremediável tragédia dessa lembrança” (p.
2 1 1 ): a experiência da língua poética (ou seja, do amor) é inteiramente
compreendida na cisão entre uma presença imemorial e um poder
apenas lembrar. A língua da poesia não é, portanto, uma perfeita
glossolalia, na qual a cisão se sutura, assim como nenhuma língua
humana, em que pese a sua tensão em relação ao absoluto, jamais
pode, ultrapassando a mediação do sentido, resolver-se sem resíduos
em um “falar em língua”. O desaparecimento da Basca é eterno, pois
ela eternamente falta na língua dos homens, na qual se afirma somente
através da babélica discordância dos múltiplos idiomas.
Se isso é verdade, então o poema que conclui o relato não
pode ser simplesmente uma glossolalia, devendo porém, de algum
modo, testemunhar essa radical diglossia da experiência poética.
Um reconhecimento conseguido graças à cortesia de uma amiga
especialista em basco confirma essa hipótese. Ele permitiu verificar,
além de qualquer dúvida, que o poema, longe de constituir uma
invenção glossolálica (como em certos contos de Landolfi) é, na
verdade, uma cobla em puríssima língua basca.
291 “Mia stella amata / mia iiuanlal i ii r / aimnulolilo venjj» a guardarti / esciper
me alia finestra; / quando Irovo nn.i poesia / l u Ii slai adormentando: / come il
sogno delia notte / sia per le il m io i a n io " (N.T.).
entendê-lo é um problema que deixamos aos biógrafos futuros.
Basta, por ora, ter trazido algumas contribuições à compreensão de
um enigma (ou, melhor, de um “pastiche”) que permanece ainda
firmemente fechado.
***
um a mais
no tempo ainda intacto e indiviso.307
306 “né ora né piü / v’è soccorso aqud k-in|><> omni diviso” (N.T.).
307
“un d ip iíi/ nel tempo ancora inlatlo cd indiviso” ( N.T.).
Caproni é o mais cidadão dos poetas italianos do Novecentos.
Em nenhum outro como nele a poesia vive integralmente da cidade
e na cidade. Montale e Penna, nos quais também vibra uma tensa
atmosfera metropolitana, permanecem indissoluvelmente ligados,
um à concisa paisagem lígure e o outro ao doce campo úmbrio.
A poesia de Caproni é, ao contrário, inexoravelmente cidade. E
não apenas Gênova (“eu sou feito de Gênova!” )308 e Livorno, mas
também, de modo mais submerso e quase sufocado, a nunca
nomeada Roma - não a Roma monumental e histórica, mas aquela
semiperiférica e impura dos bairros onde o poeta por muito tempo
viveu: Monteverde (nas duas contíguas variantes ditas “velho” e
“novo”). E quando, justo no fim, um desabitado campo começa a
aparecer sempre mais áspero e noturno na sua poesia, isso acontece
pari passu com o rompimento da maravilhosa tessitura do metro
caproniano. É a sua própria poesia que se desfaz e se perde nas
angustiantes paisagens do Conte e de Res amissa. Assim, Caproni
viu exemplarmente, depois do juvenil sonho genovês, o ocaso da
cidade na fase do capitalismo começada nos últimos anos da década
de setenta, e que estamos ainda, sem visíveis êxitos, vivendo.
308
io sono fatto di Gênova!” (N.T.).
lí
Categorias italianas
Jazíamos
, no profundo da m ancha, quando
/ no fim te avizinhaste
rastejando.
Apênd
Também não podíam os
nos ultraobscurecer a ti:
em poder de
um a coação de lu z . 310
309 “ V icj n0) nellarco dellaorta, / nel sangue di chiarità: / parola d i chiarità. //
Madre Rachele / non piange piü. / Dislocato / lu tto ciò che è stato pianto. /
Im m obile, nelle coronarie, / slegala: / Ziw, quella lute." (N.T.).
310 “ Giacevamo / nel profondo delia ínanhia, i|iiaiulo / ala fine ti avvicinasti /
strisciando. / Pure non potevanio / o llito s í u ia ri i a le: / in balia di /una
coazione di luce.” (N.T.).
311 “portatori diorpelli” (N.T.).
os “pregadores-predadores”312 cuja língua se irrita “para parabo-
lizar / o bem comum ”,313 e uma “luz desamparada, irredimida”, que
procura às apalpadelas os seus irmãos no mundo inóspito:
Luz desamparada, irredimida luz
que queima no mundo inóspito
entre os sulcos celerados e as cancelas
fixadas pela mente criminosa...
no ângulo cego ou no vazio das estâncias
tu és, ou no choro do luzidio campo...
o farol hipócrita ilumina as bandas
mas tu existes, e procuras os teus irmãos.314
320 “dunque, indietro voltandomi / nclla ncluila dei temporale no” (N.T.).
321 ‘Turlo composto e converso / verso il si” (N.T.).
322 “non c’èp iü tempo e non v’ò piú clic inizio" (N.T.).
323 “manca il tempo delia fm ilura / Ia Icl.i >.i •.liappa o si rkyimoda // ... II per una
língua chepaziente cuco / e e n l o Imi ulc l . i e j i . m o alia luce.” (N.T.).
no poema Iprovenienti, os con-versos,-'-' os versos que provêm “dos
mais encordoados nós”3 2 da língua e, no esfacelamento do tecido
325
324
métrico do poema, que “distancia todos os acentos”326 e “liberam as
reconectadas rimas”,327 simulam um gesto “estrófico”, acenando uma
“con-versão” que, na prática atenta desse grande poeta civil, é unida
somente por “um fio sutil / de consciência e vasta piedade”.328
Apêndice
<N
o
LO
Apêndice
cesuras e das rimas internas, que desfazem por vezes o verso em
dois hemistíquios, fazendo-os quase tropeçar, faz frente um uso do
enjambement tão violento quanto salvífico, que retoma o verso in
N>
v]
O
extremis da sua segmentação para protelá-lo indefinidamente no
verso sucessivo. A uma sabedoria prosódica estupefaciente, na qual
a desconexão entre som e sentido definidora da poesia é exagerada
ao extremo, corresponde um contra-movimento que toda vez a
emenda com uma costura invisível. Uma prosódia incrivelmente rica
em cesuras e pausas, uma estruturação do discurso decididamente
hipotática ao final resulta, não se sabe como, na língua quiçá mais
fluida, contínua e cotidiana da poesia italiana do Novecentos.
Isso significa que, na língua poética de Cavalli, hino e elegia
se identificam e se confundem sem resíduos (ou, talvez, o único
resíduo seja o eu do poeta). A celebração se liquidifica em lamento,
e o lamento se faz imediatamente hino. () I )eus desse poeta é de tal
modo e tão exaustivamente presente que pode apenas ser lamento;
o louvor das criaturas, abertamente lí aiu isi ano, é percorrido em
contrafuga por um íntimo e sombrio murmúrio, murmúrio de
misericórdia e hosana.
A essa inédita conjugação poetológica dos tensores hino-
elegia corresponde, no plano ontológico, uma incomum economia da
linguagem e do seu sujeito. O eu que percorre as cenas implacáveis do
seu “sempre aberto teatro”329 fala, para a vergonha da sua consumada
competência psicológica, desde um território ontológico e ético
novo e remoto, no qual a casa da vida, de modo fático tão presente,
transforma-se sub-repticiamente em caverna platônica ou em antro
pré-histórico. Aqui a língua vê onde o poeta é cego, fala onde ele
emudece. Essa astuta língua obsessiva e metricamente intenta
dizer “eu”, esse ego idiossincrático até a monomania, repetido e
silabado até a náusea no próprio labirinto doméstico, porém esse “eu
singular próprio meu”330 cumpre, ao contrário, o supremo milagre
de inaugurar um campo transcendental sem eu nem consciência,
abre o “há” de uma ontologia brutal e alucinada, algo como uma
paisagem ética primordial, na qual nenhuma psicologia e nenhuma
Categorias italianas
cinjo, / fátua veste...”.331 Por isso, das duas relações possíveis com a
linguagem - a tragédia e a comédia -, Elsa aderia instintivamente à
trágica.
Ingeborg Bachmann (que com Elsa conhecemos e
frequentamos juntos alguns anos depois e que, pela seriedade, a
ela muito se assemelhava) certa vez fez esta terrível confissão: “A
linguagem é a pena. Nela todas as coisas devem entrar e transcorrer
segundo a medida da sua culpa...”. Séria é, nesse sentido, a palavra
de quem jamais esquece que a linguagem é a pena e que, falando ou
escrevendo, estamos em todo caso cumprindo uma pena.
Há redenção para essa pena? Em um poema Ingeborg se
dirige à palavra, à própria pena para pedir salvação: “Oh, palavra
minha, salva-me!”.332 Mas para Elsa não parece haver salvação nem
333
‘Fuori dei limbo non v’è Eliso” (N.T.).
ou os anjos a elevem ao céu. E tal instante - a ficção contemplada, a
palavra expiada - é a despedida da tragédia. Somente nesse ponto a
poesia de Elsa mostra a sua fênix brilhante, a sua cinza eterna.
Categorias italianas
H-*
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K>
N
Nota aos textos
335 Tradução para o português: Orojaiui^ofs, S.io Paulo: Boitempo, 2007. Tradução
e apresentação de Selvino J. Assmann.
Posfácio
(de Carlos Eduardo Schmidt Capela
e Vinícius Nicastro Honesko)
Língua nova,
ng
337 Hõlderlin, nas meditações que propõe a partir de sua experiência com a
tradução do Êdipo e da Antígona, de Sófocles, talvez seja o caso mais saliente.
Cf. HÕLDERLIN, Freidrich. Observações sobre Êdipo. Observações sobre
Antígona, precedido de Hõlderlin e Sófocles, de Jean Beaufret, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2008. Tradução e notas de Anna Luiza A. Colli et al.
338 Ou sobrevivências, para falar com Aby Warburg, autor cujas pesquisas no
domínio da história da arte ressoam em diversos escritos de Agamben, por
exemplo, em “Aby Warburg e la scienza senza nome”, publicado originamente
na revista Prospettive settanta, de julho-setembro de 1975, ensaio que figura
entre aqueles reunidos em La potenza dei pensiero (Saggi e conferenze).
Vicenza: Neri Pozza, 2005.
de modalidades de expressão e compreensão que ainda nos atingem,
de experiências provenientes de um mundo que não deixa de nos
concernir, e que, por isso mesmo, deveria ser restituído à consciência
moderna .339Agora, porém, não apenas no âmbito da cultura italiana,
mas também do pensamento ocidental. Na aposta do ensaísta, deste
modo, ressoa não sem intensidade aquela realizada, séculos atrás,
por Dante Alighieri.
Isso porque o filósofo, em seu ensaio, afasta-se do diagnóstico
tornado tradicional - cujos pressupostos configuram um paradigma
no qual comentadores contemporâneos da Comédia (Benvenuto
de Imola e Boccaccio) se congregam a críticos modernos (Rajna e
Aiierbach) -, que considera problemáticas e incoerentes as razões
da opção cômica dantesca, o que justificaria sua pouca relevância
em termos críticos. Para Agamben, com efeito, a decisão de Dante
constitui apenas a parte mais notável de uma sorte de manifesto
Categorias italianas
339 O autor, com isso, reafirma sua afinidade também com o pensamento de Walter
Benjamin, em particular no que tange à reafirmação das responsabilidades
éticas e políticas com respeito à diversidade de leituras deixadas em aberto
por tudo aquilo que, embora declinado no passado, nem por isso cessa ou
cessará de passar ainda. Algumas das reflexões de Agamben em torno da
comédia, no ensaio, levam adiante intuições formuladas pelo jovem Benjamin,
particularmente em “Destino e caráter", no Brasil publicado em Escritos sobre
mito e linguagem, São Paulo: D ua s C idade s, EditoVu 34, 2011, tradução de
Ernani Chaves.
A titulação cômica do poema dantesco, nesse sentido, é
considerada como constituindo uma sorte de “reviravolta categórica”,
uma espécie de viragem, ou torsão, que não deixa de funcionar
em analogia ao instituto poético introduzido pelo “corn”, produto
da crescente preocupação dos poetas medievais com o ponto, ou
momento, em que o corpo do poema, sua unidade, fragmenta-se,
justo no momento em que o verso atinge o seu fim, e, enquanto
versura, volta-se para um novo começo. Instituto esse, convém
sublinhar, que possibilita ainda o estabelecimento da rima irrelata,
aquela que faculta o rompimento da estrutura fechada do poema,
funcionando como uma linha de fuga na direção de uma outra
fragmentação, agora no nível meta-estrófico, conforme exposto
no ensaio homônimo. Intimamente ligadas, a versura e a rima
irrelata, que serão retomadas e discutidas em “O fim do poema",
testemunham a importância determinante da poesia medieval nas
poéticas que a prolongarão até a modernidade, sinalizando paia
o processo histórico a ser posteriormente cumprido no domínio
da poesia, com o progressivo abandono do canto pelo texto (que
culmina com o experimento mallarmaico do Lance de dados), a
confrontação entre som e sentido, a desconexão entre língua e
inteligência, entre poesia e filosofia, entre hino e elegia, estas que
são algumas das categorias centrais em torno das quais os diversos
ensaios desta coletânea se movimentam.
Os parâmetros que balizaram a longeva discussão relativa
à questão da titulação do poema dantesco mostrariam, caso
considerados isoladamente, sua pouca utilidade no sentido de coloi a i
em outros termos o problema proposto por Dante, situando o na
contemporaneidade. Daí a necessidade, a que responde o filósofo, de
buscar uma articulação entre elementos compositivos ou na rral iv<>s,
de um lado, e o tema ou motivo da Comédia, de outro. O destaque
recai sobre algumas passagens da Carta a Cangrande, na qual
Agamben encontra uma conjunção entre a oposição trágico-cômico,
com ênfase, porém, não nas motivações estilístico-formais, mas
naquelas relativas ao aspecto “material” que sustenta tal oposição
(o mais fraco em termos de composição literária: o quiasma entre
início calmo/final horrível e início horrível/final calmo), aspecto
esse que será a seguir, e de maneira ínstigante, articulado ao tema,
ao subiectum do poema.
Na Carta a Cangrande, Agamben constata que o assunto
privilegiado por Dante, na Comédia, é o estadoposf mortem das almas.
Segundo a leitura proposta, a reflexão dantesca sobre a condição
ãhímica no além-túmulo leva o poeta a introduzir, desde um viés
alegórico, o tema adjacente, e crucial, da submissão do homem, em
seu livre-arbítrio, à justiça divina. O poema constitui uma comédia,
desde essa perspectiva, porque o percurso nele narrado conduz
da culpa à inocência. A formulação posta em destaque no ensaio,
segundo a qual “a tragédia aparece como a culpabilização do justo e
a comédia como a justificação do culpado”, 540 indica a convicção do
filósofo sobre a validade da articulação entre culpa e justiça, de um
lado, e o caráter trágico ou cômico de um texto, de outro.
Justificam tal conjugação argumentos emprestados da
Categorias italianas
consiste, isso sim, e em medida certamente não menos decisiva, no talo dr <|m .
único entre os seres vivos, o homem não se limitou a adquirir a linguagem
como uma capacidade entre outras de que é dotado, mas fez dela sua |>oien. u
específica, ou seja, na linguagem ele pôs em jogo a sua própria natureza Av.im
como, nas palavras de Foucault, o homem é “um animal em cuja polihi a (•■a.i
em questão sua vida de ser vivo”, ele é também “o ser vivo em cuja língua i,i
em questão a sua vida.” (Edição brasileira: AGAMBEN, Giorgio. (> s m i m i i e i i t o
da linguagem. Arqueologia do juramento (Homo Sacer II, 3). belo 1loi i/onir
Ed. UFMG, 2011. Tradução de Selvino J. Assmann; p. 79; grifo do auloi)
346 Como exposto no prefácio à primeira edição italiana da colelánea. r.ia
responde ao intento de Agamben, que, juntamente com ítalo Calvino <• ( 'Iamim
Rugafiori, havia procurado identificar, e definir por meio de conceilos pulai es,
algumas das principais estruturas categoriais da cultura italiana.
347 Talvez valha a pena ressaltar, aqui, um detalhe intrigante: quando nomeia sem.
pós-escritos, com exceção de O reino e a glória e de A comunidade que vem,
o autor não utiliza o significante apêndice ou pós-escrito, preferindo, iom
frequência, intitulá-los “limiar”.
348 É importante assinalar que foi Morante quem apresentou ao jovem Agamben o
milieu intelectual italiano que, a partir dos anos 1960, ele passaria a frequentar.
A seriedade de Elsa parece resultar, no relato dessa despedida
tal como formulado por Agamben, menos do reconhecimento ou da
revelação de uma verdade terrível por detrás de uma aparência do
que do fato de a amiga ter, na ocasião, adquirido de súbito consciência
de saber-se, enquanto ser humano, irremediavelmente condenada à
linguagem, ou seja, à impossibilidade de chegar a algo tão inelutável
como uma verdade definitiva. Tal condenação, cuja sentença resulta
da observação atenta do rosto da mãe, teria colocado Elsa Morante
num estado de tamanha conexão com a tragédia que algo como a
contemplação de uma pura língua tornara-se para ela daí possível.349
Na severidade do rosto da mãe, que em razão da doença dificilmente
podia identificar a si mesma, ou de todo já não mais podia, a filha
se identifica, e, com isso, intui que qualquer suposto segredo
escondido (por uma máscara, seja trágica ou cômica) desvela nada
Categorias italianas
349 Com Elsa Morante parece ter ocorrido algo como um vislumbrar do puro meio,
do rosto, que, num ensaio sobre outra de suas amigas, Ingeborg Bachmann -
também citada em A despedida da tragédia -, o filósofo diz ser o lugar da
claritas, que, na tradição latina, é um dos atributos da voz. Cf. AGAMBEN,
Giorgio. II silenzio delle parole. In: BACHMANN, Ingeborg. In cerca difrasi
vere. Roma-Bari: Laterza, 1989. p. XIV-XV, “A utopia da linguagem, em cuja
direção a literatura está a caminho, coincide com o irreparável caráter tópico
<N
<N
das proposições significantes: ela não é uma outra palavra, mas apenas o seu
mudo ter lugar, o halo de silêncio que as delimita e expõe. / Isso, e somente
isso, é a palavra ‘livre, clara, bela’ para a qual se volta a invocação final de Rede
und Nachrede: ‘ó, minha palavra, salva-me!’. Mas o espaço que se abre nesse
evento em que um limite coloca fim à pena da linguagem é aquele no qual se
poderia, pela primeira vez, aparecer isto ‘que tem o lugar do instante em que
poesia e música encontram, uma em relação a outra, seu momento de verdade’,
e que, só, tem o poder de fazer calar a linguagem sem aboli-la, dando-lhe -
pelo contrário - lugar: ‘uma voz humana’. Segundo o significado original do
termo latino, claritas, é, antes de mais nada, um/atributo da voz.” É fato que
Agamben chama a atenção, ainda em A despedida da tragédia, justamente para
a diferença entre Elsa Morante e Ingeborg Bachmann: enquanto esta acaba por
fim encontrando uma palavra clara que salva, aquela vê na palavra uma pura
condenação sem possibilidade alguma de redenção. Entretanto, a proximidade
entre ambas - ao menos do que se pode inlérir do que indica o autor - dá-se
pelo fato de Morante aderir a tal tragédia de modo tão irrestrito que aquilo que
a ela se mostra, a pura Ficção {Fmzionc), e, de nlgmna maneira, uma abertura à
pura língua (ao puro meio), que Bachmann i ouscguc perceber na claridade da
palavra: a palavra expiada na despedida da Iragcdia.
mais, nada menos, que apenas a si mesmo: o que se revela é a simples
intransitividade de qualquer revelação.
Em outro dos ensaios de Categorias italianas, “A festa do
tesouro escondido”, também dedicado a Elsa Morante (publicado,
em dezembro de 1985, no suplemento cultural Fine Secolo, do jornal
Repórter, e escrito sob o impacto da morte da escritora, como uma
homenagem a ela e, ao mesmo tempo, como uma despedida dela),350351
Agamben reafirma, ao modo kafkiano, o acolhimento da certeza
do mundo espiritual, por parte da amiga, como decorrente de sua
concepção singular da Ficção e da linguagem, que a levara a perder
toda esperança em uma possível redenção para os seres humanos.
As referências feitas a Franz Kafka em Categorias italianas não
são de ocasião, mas, ao contrário, resultam de uma articulação de
leituras que atravessam os 32 anos desde a redação da versão inicial de
“Comédia”, em 1978. São leituras que, num primeiro grande movimento,
confluem no lançamento das Categorias italianas, em 1996, e, depois,
culminam na segunda edição do livro, pela editora Laterza, em 2010,
aqui traduzida, com a sintomática introdução de alguns ensaios antes
ausentes da coletânea, no caso “O ‘logos erchomenos’ de Andréa
Zanzotto”, “Heráldica e política”, “O torso órfico da poesia”, “I'anuiia",
além dos apêndices “Interjeição em cesura”, “A cidade e a poesia", "A
ronda dos conversos” e “A anti-elegia de Patrizia Cavai li”.
Nesse entremeio, como é notório, o autor desenvolve seu
projeto mais ambicioso, peloqual ganha fama internacional enquanto
um grande pensador da política: o projeto Homo sturr. Entretanto,
e eis uma desatenção de que nem sempre os leitores conlmn.i/v.
do Agamben da política se dão conta, para uma compreensão mais
ampla e menos enviesada do pensamento agambeniano, toma
se necessária, em larga medida indispensável, a leitura dos livms
que correm, por assim dizer, ao lado daquele grande projeto. ''1 t. 3501
esquecido que não podem ser medidas em termos de memória consciente nem
acumuladas como saber, mas cuja insistência determina o valor de todo saber e
de toda consciência. O que o perdido exige não é ser lembrado e comemorado,
mas permanecer em nós e entre nós enquanto esquecido, enquanto perdido - e,
unicamente por isso, inesquecível. Daqui a insuficiência de toda relação com
o esquecido que procure simplesmente restituí-lo à memória, inscrevê-lo nos
arquivos e nos monumentos da história, ou, no limite, construir para ele uma
outra tradição e uma outra história, a dos oprimidos ou dos vencidos, que se
escreve com instrumentos diversos dos das) classes dominantes, mas que não
se diferencia substancialmente desta. Contra essa confusão é preciso lembrar
que a tradição do inesquecível não é uma tradição - ela é, ao contrário, aquilo
que marca toda tradição com um selo de infâmia ou de glória e, às vezes, com
os dois ao mesmo tempo. O que torna histórica toda história e transmissível
toda tradição é, portanto, o núcleo inesquecível que ela leva dentro de si. A
alternativa aqui não é entre esquecer e lembrar, ser inconsciente e tomar
consciência: decisiva é apenas a capacidade de permanecer fiel ao que -
ainda que incessantemente esquecido deve permanecer inesquecível, exige
permanecer de algum modo conosco, de ser ainda - para nós - de algum modo
possível.”
falar quer dizer.358É possível, deste modo, perseguir nos mais diversos
escritos do filósofo uma ideia de linguagem, de um experimentum
linguae que intenta, para além daquilo que ele sugere ter sido para
Pascoli, em “Pascoli e o pensamento da voz”, superar a experiência
da língua como experiência da morte da voz e da morte da língua,
e que tem por horizonte o tornar-se enfim uma experiência do uso:
um estar habituado, um éthos da língua, portanto, uma experiência
ética.
Está assim em jogo, aqui, como indica o nome de outro dos
ensaios de Categorias italianas, no qual é realizada uma brilhante
análise de um original do final do século XV, o Hypnerotomachin
Poliphili, “O sonho da língua”. Nessa expressão pode-se divisai
a concepção da língua “como um campo de uma luta e de um
contraste entre exigências inconciliáveis”.359 Terreno de luta que,
entretanto, não é o que de maneira contumaz se apresenta n.i
tradição literária italiana, na qual via de regra é delimitada «um
base na oposição entre mono e bilinguismo. Pois para Agamben
o espaço desta luta é ocupado por tudo aquilo que resulta da
discórdia ínsita a toda palavra humana. Tal discórdia, essa Iide qm*
faz causa, e traz à causa, como uma acusação, ou mellmr, iiiiim
uma autoacusação que comete todo poeta, na medida mesma nu
que se expõe, conforme argumenta o autor, revela a vergonha
advinda da autocalúnia, isto é, do fato de o poeta, nau obstante
358 Discussão essa que deságua em questões relativas à tl é ix i.s o u ,i a i m Imi ,i.
analisadas por Agamben, já em 1982, no livro A linguagem <■ a mm (.■ I hn
seminário sobre o lugar da negatividade. (Belo Horizonte: Ud. 1IIM<.'Iiiiii
Tradução de Henrique Burigo). Todavia, numa das passagens «Io ///r/immv/.
do final de A comunidade que vem, a relação aparece, a partir «Ia <oir.li m,.\n
teórica de Agamben, mais claramente ligada à concepção de <'A/>nw«iiu '<>
Irreparável não é nem uma essência nem uma existência, nem uma s 111>■,Io11<ia
nem uma qualidade, nem um possível nem um necessário. Não é propi i.imriiir
uma modalidade do ser, mas é o ser que se dá desde logo na modaliil.ide. i'
as suas modalidades. Não é assim, mas é o seu assim”. AGAMBliN, <iioigm
“O Irreparável”. A comunidade que vem. Lisboa: Presença, 1993; p. 7t, goto
do autor. Tradução de Antônio Guerreiro. A comunidade que vem foi também
recentemente publicado no Brasil, em 2013, pela editora Autêntica (llclu
Horizonte), com tradução de Cláudio Oliveira.
359 Neste volume, p. 85.
saber-se inocente, implicar-se na linguagem como um culpado
sem expiação.
A vergonha, que em “Ideia da vergonha” é definida como
“a forma pura, e vazia, do mais íntimo sentimento do eu”,360 é o
que permanece ao final da acusação, é o que sobrevive para além
da possibilidade de ser dita na linguagem. É, por fim, aquilo em
que pulsa uma experiência da língua não como um silêncio na
linguagem, mas como um silêncio da linguagem.
Em um dos textos de composição mais recente entre os reu
nidos em Categorias italianas, “A anti-elegia de Patrizia Cavalli”,361
o filósofo aborda o tema da vergonha a partir de uma perspectiva
ontológica e ética, algo ademais peculiar ao modo de operação
realizado por ele, que amiúde propõe cruzamentos de leituras
(com destaque, de um lado, para a perspectiva heideggeriana e,
de outro, para seu viés benjaminiano, em torno dos quais ele tece
Categorias italianas
360 AGAMBEN, Giorgio. “Ideia da vergonha”. Ideia da prosa, op. cit.; p. 79.
361 O ensaio foi publicado pela primeira ve/., em 2007, como prefácio à edição
francesa do livro da poeta, Mcs poentes tte ehangeront pas le monde, e, até a
edição de 2010 de Categorias italianas permanecia inédito em italiano.
362 Não é possível deixar de notar, porém, a referência indireta ao Dasein
heideggeriano, aqui posto em questão.
363 Neste volume, p. 208.
e, num indecidível limiar entre propriedade e impropriedade,
exibe apenas o lugar qualquer no qual os homens podem, por fim,
liberar-se dos mitos e de seus discursos vagos, em que se mostram
satisfeitos com seus pressupostos tidos como inquestionáveis. E,
assim, abrir caminho na direção de uma possível comunidade vazia e
impresumível, isso em oposição a tudo aquilo que, embora impondo
a exigência do manter-se presente, nunca deixa de se apresentar nos
modos do inapreensível e do desde sempre inamissível.
As Categorias italianas, portanto, como já colocado, tradu
zem um esforço no sentido de articular e tensionar conceitos
polares fundamentais para a compreensão da cultura italiana,
que se expande na direção da cultura ocidental. Esse movimento
de expansão é claramente atestado pelo processo pelo qual o livro,
após uma elaboração primeira, acaba por ser (provisoriamente?)
reelaborado antes de ser publicado pela segunda vez. A incorporação
de novos ensaios leva a um incremento dos diálogos, seja com outros
textos do autor, seja com idéias e conceitos propostos por alguns
dos intelectuais que balizam seu pensamento, incluindo, entre
Posfácio
estes, aqueles dos quais se afasta, por razões teóricas, éticas ou
políticas. Seja como for, a coletânea mostra fazer parte de um largo
e longo projeto de investigação em torno de algumas das questões
ÍN
ro
UI
centrais com que os homens se deparam, com destaque àquela que
diz respeito à relação entre a linguagem e os seres humanos. Sua
formulação mais simples talvez seja essa: como os homens possuem
a linguagem? Que se desdobra: eles de fato têm a posse dela?
O trajeto cumprido nas Categorias italianas, transitando entre
Dante, Arnaut Daniel, e outros autores provençais, de um lado, e
uma série de poetas coetâneos do filósofo, de outro, assim postos em
articulação, busca compreender nao uma língua, ou várias línguas
históricas, mas o próprio faclnin loque/nli resultante do lançamento
dos homens na linguagem, de sua captura por ela. E este, pode-se
dizer, está no cerne das pesquisas de Agambeu.
A coletânea, assim, parece mcie«ei, miiui talvez nenhum
outro livro do autor, a marea da insigma que assinala seu caráter
paradigmático no conjunto da ohia .igamlxniana. Tratando
sobretudo de poesia, o livro constitui, dnciio, a ,u usação que
Agamben faz a si mesmo enquanto filósofo. Daí a importância
que, nele, adquire a introdução de uma paráfrase a uma reflexão
de Wittgenstein, colocada justamente na conclusão do último dos
ensaios mais longos, “O fim do poema”, a que se segue um extenso
e incomum, no âmbito das obras assinadas pelo autor, apêndice.
Ecoando a preocupação de um colega filósofo que imaginou poder
responder ao mundo com a e a partir da linguagem, dotando-a,
para tanto, de uma transparência que de modo algum ela possui,
a paráfrase chama a atenção, com obstinada resignação, ao fato de
que a língua não é um instrumento apropriável. Ela, como a poesia,
“propriamente se deve apenas filosofá-la”.364
Categorias italianas
Ov
u>
to
A
Abelardo, 36.
Abraão, 28.
Accetto, T., 147.
Adão, 29-31, 33, 40, 85, 99.
Adorno, T. W., 151.
Agostinho de Hipona, 31-33, 90-93,105-106, 117.
Agosti, S., 132,134.
Alan de Lille, 42.
A lbertoni, L., beata, 141.
A lb in i, G.y22.
A lighieri, D., 14-19, 21-26, 34-37,41-44, 50, 52, 54, 56, 59-64, 77, 7‘> H4, H7. ')•>.
107,110-111, 122,125, 133, 166, 168, 180-181, 183, 188. 1‘) 1, .MU
A lighieri, P., 15.
Ambrogio, 149.
A nônim o Florentino, 15.
Anselmo d ’Aosta, 30, 92.
Aristóteles, 21, 26, 27, 93, 161.
A rnaut, D „ 37,46, 51, 54-56, 60-61, 111, 166,182.
Astengo, D., 116-118,128.
Aubry, J„ 72.
Auerbach, E., 15,16,17, 22.
Averróis, 28.
B
Bachmann, I., 210.
Baldini, G., 210.
Bardi, S. de, 83.
Barin, E„ 77.
Barnes, J., 37.
Beato Angélico, 176.
Bec, P., 52.
Beissner, F., 119.
Bellini, G., 171.
Belzunce, Conde de, 191.
Bembo, P., 77, 81.
Benjamin, W„ 25, 43, 118,124-125, 183.
Benvenuto de Imola, 16, 17.
Bernart de Ventadorn, 107.
Beroaldo, F., 70, 82.
Besold, C., 145.
Betocchi, C„ 121, 206.
Binswanger, L., 126.
Boccaccio, G„ 17,18, 83-84, 107.
Boccalini, T., 146.
Boezio, S., 39, 40, 41, 42.
Categorias italianas
C
Callia, 161.
Calvino, I., 13.
Campana, D., 131, 149, 150,152-153, 156-157, 189, 206.
Canello, U. A., 46.
Canetti, E., 207.
Cangrande delia Scalla, 17-19, 22, 23, 24-25, 29.
Caproni, A. M., 124.
Caproni, G„ 14,115-121, 123-124, 127-131, 152, 157, 194-196, 199,207.
Careri, M., 51.
Casella, M. T., 71.
Cavalcanti, G., 112, 124.
Cavalli, P., 207.
Cecchi, C., 171.
Celan, P., 119, 200.
Céline, L.-F., 128.
Cervantes, M. de, 170.
Ciapponi, L. A., 69, 72, 83, 86.
Cicerone, M. T., 161.
Clapmar, A., 145.
Cloetta, W., 20.
Contini, G., 16, 24, 41, 48, 56, 62, 89, 90, 94, 95, 122, 125, 127, 131-132, 152, 189.
Cortellessa, A., 153.
Curtius, E. R., 20, 84.
D
Dal Pra, M., 36.
Daniele, 134.
Davanzati, B., 81.
Delfim, A., 14,108-113,187,189-191.
D’Elia, G., 115.
Delia Casa, G., 146.
De Signoribus, E., 201.
Dezirada, 111.
Diez, F„ 54, 55.
índice de nomes
Di Girolamo, C., 53, 56, 58.
Diomede, 20, 27.
Dionísio da Trácia, 96, 203.
Dionisotti, C., 69, 73, 79.
Donato, 27.
Dragonetti, R., 34, 61.
CO
C
Durante, G., 171.
n
E
Eneias, 29, 34.
Epiteto, 38.
Erígena (ver Escoto Erígena, J.)
Ermanno, o Alemão, 27.
Etchegarray, M., 189.
Eusebi, M., 46, 49, 50, 51, 52, 53.
F
Falqui, E„ 149.
Faral, E„ 20, 21.
Ficino, M., 108.
Folengo, T., 166.
Folquet de Marselha, 189.
Fortini, F., 167.
Fortunio, G. F., 81.
Foucault, M„ 144.
Franceschini, E., 27.
Fritz, K. von, 30.
G
Gadda, C. E„ 87, 101, 126, 166.
Garboii, C„ 124,177, 210.
Gaunilone, 92.
Gentile, G„ 171.
Gerace, W., 159.
Giovanna, 111.
Giovanni dei Virgilio, 22, 23.
Giovanni de Salisbury, 41.
Goethe, J. W. von, 25,124.
Gorgia, 161.
Gorni, G., 57, 61, 165.
Gotto, 61.
Gramsci, A., 171.
Gregório de Nazianzo, 147.
Guanda, M., 108.
Categorias italianas
H
Hegel, G. W. F„ 25, 58, 143.
Hegemone de Thaso, 161.
Hellingrath, N. von, 127,151,152, 207.
Heusler, A., 50.
Hobbes, T., 142.
Hõlderlin, F„ 58, 118,119,125,151,152, 207.
Horácio Flacco, Q., 21-23.
I
Idel, M., 61.
Isidoro de Sevilha, 20, 60, 86, 112, 149.
J
Jacopo delia Lana, 15.
Jakobson, R„ 98, 179.
Jarry, A., 140,169.
Jeauneau, E., 66.
Jeremias, profeta, 133.
Jerônimo, santo, 92.
Jesus Cristo, 29, 32-33,134-135.
Joana D ’Arc, 171.
João Batista, 134.
João, evangelista, 84,104,133.
Justiniano I, imperador, 39.
K
Kafka, F„ 109,117,142, 175, 177.
Keil, H„ 20.
Kern, O., 156.
Kessler, J. E., 145.
Kierkegaard, S., 25.
Klein, H. W„ 76, 78.
Kleist, H. von, 119.
Kommerell, M., 58.
L
Lacaita, J. P., 16.
Landolfi, T„ 166,169, 190,192.
Langer, J., 177.
Latini, B„ 180.
Laura, 101,112, 167-168.
Lavaud, R„ 46,47, 51.
Lazzerini, L., 49.
Lelli, T. de, 74.
Leonardo Crasso, 71.
Lévy, Eliphas, 155.
Levy, Emil, 51, 53.
Lewy, E., 124-127.
Lexer, M., 50.
Lobeck, C. A., 155.
Longhi, R., 101.
Lote, G„ 58, 59.
Lucas, evangelista, 134.
Lucini, G. P., 128.
Luzi, M„ 149,153, 158.
M
Mallarmé, S. É„ 58, 72,151, 155, 180, 184.
Manganelli, G., 101, 139, 140, 141-143, 144, 145, I4(>, 147, lí,6, 169.
Manzoni, A., 150.
Maquiavel, N., 144.
Marcabru, 64.
Marziano Capella, 66.
Matheus, evangelista, 134.
Matilda, 37, 67.
Matteo di Vendôme, 21.
Mazzoni, F., 16.
Mediei, L. de, 76.
Meinecke, F., 144-145.
Melville, H., 126.
Mengaldo, P. V., 123, 153.
Michelet, V. E„ 155.
Miellz de Domna, 111.
Migliorini, B., 81.
Milana, F., 120.
Minio-Puluello, L., 27.
Miquel de la Tor, 106.
Mondor, H., 72.
Categorias italianas
N
Nappo, F„ 153,156-158.
Nembrot (ou Nemrod), 61, 98,193-194.
to
O
Oinopas, 161.
Olivieri, A., 156.
Orígenes, 105.
P
Papia, 27.
Paruta, P., 144-145.
Pascoli, G., 14, 89-90, 94, 97-102, 124, 128, 157, 166.
Pasolini, P. P„ 101,167-168, 196, 197, 210.
Pastore-Stocchi, M., 16.
Paulo de Tarso, 92-93,184.
Pelágio, 117.
Penna, S., 128,131,152, 157,168, 199, 2(K,, .>10.
Perugi, M„ 47, 48,49, 51.
Petrarca, F., 101,167.
Picchi, A., 123.
Píndaro, 151.
Pinder, W., 126.
Pintor, G„ 89,102.
Pio, G. B„ 82.
Pizzuto, A., 125.
Platão, 125, 171.
Plauto, 17.
Polenton, S., 77.
Poliziano, A., 45, 70-71, 82.
Porena, M., 16.
Portinari, B„ 35, 83-84, 87, 101, 107, 111,123, 168, 188.
Portinari, F., 83.
Pound, E., 133.
Pozzi, G., 69, 71, 83, 86.
Proust, M., 183.
Pulce, G., 139.
Q
Quintiliano, M. F„ 93.
R
Raimbaut DAurenga, 67,182.
Raimon de Durfort, 45-50.
Rajna, P., 16, 19.
Ranchetti, M„ 153,157.
Rebora, C„ 131,150, 152, 156-157, 206.
Reinach, S., 156.
Rembrandt, H. van Rijn, 171.
Rilke, R. M„ 119,128, 150, 156.
Rimbaud, A., 171.
Rosselli, A., 207.
S
Saba, U„ 168, 206.
Sachs, N., 200.
Sade, D.-A.-F. de, 167.
Scaligero, G. G„ 101, 160, 169.
Scardanelli, ver Hõlderlin.
Schiaffini, A., 16, 24.
Schlegel, F., 124, 170.
Scholem, G., 151.
Schuré, E., 155.
Sereni, V., 206.
Serodine, G., 101.
Servio, M. O., 34.
Settala, L., 144.
Shakespeare, W., 127.
Simeone, B., 191.
Simplício, 39.
Sinésio, 149.
Singleton, C., 30, 37, 41.
Sordello de Goito, 16.
Speroni, S., 78.
Spinoza, B„ 156, 171, 173-176, 178.
Stazio, P. P., 16.
Stierle, K. H., 72.
Strada, F., 144.
T
Categorias italianas
Teófilo, 39.
Terenzio Afro, P., 17.
Tibino, N„ 59, 180.
Tiziano Vecellio, 125.
Toja, G„ 47, 54.
Tolemeo, 105.
Tolomei, C., 78.
Tomás de Aquino, 21, 31, 33, 62.
Toynbee, P„ 19.
Trubeckoj, N. S., 95.
Turc Malec, 45-46.
U
Uc de Saint Circ, 106.
Uguccione da Todi, 27.
Ullmann, B. L„ 77.
Ungaretti, G., 206.
y
Valéry, P., 179.
Valia, L„ 77.
Varchi, B„ 77, 78.
Verlaine, R, 155.
Vigny, A. de, 184.
Villani, F., 44.
Virgílio Marone, P., 16, 17, 20, 29, 35.
Visconti, M., 71.
Võlkelt, J., 43.
W
Walter de Châtillon, 34.
Weil, S„ 171,177.
Weltsch, F„ 117.
Wilcock, R., 209.
Wittgenstein, L., 186.
Z
Zanzotto, A., 101, 131, 132, 133-134,136-138, 153, 203.
Zuccoli, L., 144.
índice de nomes
m
(N