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A VIA-CRÚCIS DE CHARLES
As utopias e os tormentos que marcaram a trajetória da Cosac Naify
ADRIANA ABUJAMRA
Certa vez, ao chegar à editora, Charles Cosac notou que um quadro de Siron Franco estava
danificado. Levou-o para casa e deixou vazia a parede manchada pela umidade, como testemunha
do descaso. “Ninguém tomou a iniciativa de cuidar. Vi naquilo um símbolo de que a editora estava
se desfazendo.” FOTO: EGBERTO NOGUEIRA / ÍMÃ FOTOGALERIA_2016
N
a última quarta-feira de novembro, dia 25 – data em
que o calendário litúrgico comemora o martírio de
santa Catarina de Alexandria, uma intelectual do
século IV –, Charles Cosac decidiu se recolher em casa.
Ligou para Nova York, onde vive seu cunhado, Michael
Naify, e anunciou que encerraria as atividades da editora
que haviam fundado dezenove anos antes. “Faça como
achar melhor”, disse o outro. Vivendo fora do país, já não
era de agora que o sócio havia perdido o interesse pela
Cosac Naify. E não era a primeira vez que ouvia aquela
conversa.
C
harles Cosac desembarcou no Brasil em 1996, depois
de viver quinze anos na Europa. Tinha 32 anos, além
de duas malas e o desejo de encontrar um trabalho
que desse sentido a sua existência. Ninguém o esperava no
aeroporto de São Paulo. Pegou um táxi e foi direto para um
hotel na região da avenida Paulista. Todos os quartos
estavam ocupados. Dominado por um misto de temor e
exaustão, largou-se no sofá do lobby e chorou “feito um
bebê”.
O
primeiro lançamento da editora, em 1997, foi Barroco
de Lírios, do artista plástico Tunga. Com mais de dez
tipos de papel e 200 ilustrações, o livro incluía a foto
de uma trança (um dos motivos recorrentes do artista) que,
desdobrada, se estendia por 1 metro de comprimento. A
vocação original da editora, voltada à arte, permitia que
Charles Cosac trabalhasse na área sem precisar se
transformar em artista, o que exigiria talentos que ele
reconhece não ter.
A
té 2010, se o dinheiro em caixa minguasse, bastava
pedir socorro a Michael Naify e tudo se ajeitava. As
coisas tomaram outro rumo quando os investimentos
do cunhado chamaram a atenção do fisco americano. As
autoridades não conseguiam entender por que ele
continuava aplicando tanto capital numa empresa que só
dava prejuízo. Suspeitavam estar diante de uma operação
de lavagem de dinheiro. Pressionado, Naify passou a
insistir com a editora para que ela encontrasse meios de
sobreviver sem seus constantes aportes financeiros.
“D
ei minha vida pela editora”, me disse Massi,
numa conversa em janeiro. Contou ter ficado
esgotado como presidente nos últimos anos,
cargo que acumulou juntamente com um projeto de
doutorado na universidade. Foram nove anos sem tirar
férias. “Sei que me excedi algumas vezes e não tenho
orgulho disso”, falou. Sentia-se responsável não só pela
editora, mas também por Cosac, que andava desanimado.
Sua nomeação como chefe do depósito teria ocorrido com o
intuito de motivá-lo. “Era um choque de realidade
importante para o Charles. Havia infiltração nas paredes,
livros malconservados e ele tomou pé da situação.”
Q
uando Massi saiu, em maio de 2011, Charles Cosac
reassumiu a presidência da editora, embora nunca
tenha se identificado com a figura de patrão. “Nem
meu cachorro me obedece”, ele diz. Ninguém mais, depois
da era Massi, concentraria tantos poderes. O comando e a
configuração da chefia mudaram algumas vezes desde
aquele período até o encerramento da editora.
A
s medidas de ajuste permitiram reduzir os custos fixos
anuais da editora de 23 milhões para cerca de 17
milhões. Mas com a crise econômica suas receitas
caíram vertiginosamente, e Charles Cosac continuou com
dificuldades para manter a cabeça fora da água. A situação
tornou-se tão dramática que Michael Naify voltou a fazer
aportes financeiros – no ano passado, contribuiu com 6
milhões de reais. Gruber foi demitido em meados de 2015,
substituído por um profissional mais jovem, Dione Oliveira.
Em busca de uma saída para a editora, Cosac chegou a
contratar o consultor André Mastrobuono, que sugeriu o
arroz e feijão do mundo corporativo: enxugar ainda mais o
quadro de funcionários e diminuir a produção. Mas o
consultor foi além: examinando os 1 300 títulos do catálogo,
propôs que apenas 200 deles fossem mantidos. (Entre eles,
lançamentos recentes como a luxuosa edição dos Contos
Completos de Tolstói, cuja primeira tiragem esgotou em
dois meses.) Mas a vocação primeira da casa era divulgar
artistas contemporâneos – Cosac não via sentido em ancorar
sua sobrevivência publicando obras em domínio público, de
autores mortos.
U
m dos livros prediletos de Cosac é Oblómov, escrito
em 1859 pelo russo Ivan Goncharóv, cuja única edição
brasileira foi publicada por sua editora em 2012. O
protagonista, um nobre que vive das rendas obtidas nas
propriedades da família e entra em crise com o fim do
regime de servidão no campo, passa as primeiras 150
páginas do romance entre a cama e o sofá, refletindo sobre
sua existência e procrastinando. Quando um criado lhe diz
que há uma conta para pagar, ele entra em parafuso. Na
época em que morou na Rússia, Cosac foi apelidado de
“Oblómov” por amigos que o achavam parecido com o
personagem. (O editor já promoveu reuniões de trabalho
deitado em sua cama, de pijama, enquanto a diretoria se
acomodava ao lado de uma mesa fornida de pães de queijo.)
S
e depender do desejo da irmã Simone e do cunhado
Michael Naify, Cosac abandonará o Brasil novamente.
O editor tem outra inclinação. “Eu amo São Paulo”, ele
diz, acrescentando que tem se animado com a ideia de
voltar a morar no Rio.