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EDIÇÃO 115 | ABRIL_2016

vultos do mercado editorial

A VIA-CRÚCIS DE CHARLES
As utopias e os tormentos que marcaram a trajetória da Cosac Naify
ADRIANA ABUJAMRA

Certa vez, ao chegar à editora, Charles Cosac notou que um quadro de Siron Franco estava
danificado. Levou-o para casa e deixou vazia a parede manchada pela umidade, como testemunha
do descaso. “Ninguém tomou a iniciativa de cuidar. Vi naquilo um símbolo de que a editora estava
se desfazendo.” FOTO: EGBERTO NOGUEIRA / ÍMÃ FOTOGALERIA_2016
N
a última quarta-feira de novembro, dia 25 – data em
que o calendário litúrgico comemora o martírio de
santa Catarina de Alexandria, uma intelectual do
século IV –, Charles Cosac decidiu se recolher em casa.
Ligou para Nova York, onde vive seu cunhado, Michael
Naify, e anunciou que encerraria as atividades da editora
que haviam fundado dezenove anos antes. “Faça como
achar melhor”, disse o outro. Vivendo fora do país, já não
era de agora que o sócio havia perdido o interesse pela
Cosac Naify. E não era a primeira vez que ouvia aquela
conversa.

Cosac passou a sexta-feira recluso em seu apartamento, no


bairro de Higienópolis, em São Paulo. Às dez da noite,
quando o funcionário encarregado de passear com os cães
foi embora, ele se viu sozinho, “entre a cruz e a espada”.
Escutou música, contemplou suas obras de arte e conversou
com Deus. Não pediu nada, a não ser paciência para
atravessar o Rubicão.

No sábado, depois de uma noite insone, entre incontáveis


cigarros e latas de Coca-Cola Zero, Charles Cosac escreveu
um comunicado para explicar aos funcionários sua
resolução: “Meus queridos amigos. É com muita tristeza,
mas também com muita tranquilidade e paz de espírito, que
venho participar-lhes a minha decisão de encerrar a Cosac
Naify.” Deixou-o pronto para ser disparado no início da
semana. Enviou ao cunhado uma mensagem curta. Na
madrugada de sábado para domingo, também por e-mail,
participou a notícia aos três diretores de sua editora.

Dione Oliveira, o diretor financeiro, leu o comunicado em


casa, pela manhã. Elaine Ramos, a diretora de arte, acordou
com uma tremenda ressaca. Mal abriu os olhos e encontrou
um recado em seu celular: “Vc viu o e-mail?” Era Florencia
Ferrari, a diretora editorial, que acabara de receber a
mensagem, mas acreditava que o chefe pudesse voltar atrás.
Na manhã de segunda-feira, Cosac se reuniu com a diretoria
na sede da empresa, a poucas quadras de sua casa, e avisou
que sua deliberação era irreversível. Os três tentaram
apontar saídas, em vão.

Sereno, ainda que bastante abatido, o diretor-presidente


disse que para sobreviver não recorreria ao corriqueiro
expediente de reduzir o quadro de funcionários, tampouco
encolheria o número de livros editados anualmente.
Evocando o trabalho de Farnese de Andrade – que criava
suas obras a partir de destroços de bonecas, sucatas e ex-
votos, amalgamados com resina –, elucidou seu raciocínio:
“Não quero cortar pernas, braços, dedos, e ficar
desfigurado”, disse. Ele e as duas editoras choraram ao
longo da conversa. Oliveira manteve-se impávido e foi
almoçar com alguns colegas, guardando segredo sobre o
que iria acontecer.

As duas outras diretoras fugiram dali. Na editora havia


mais de uma década, seria impossível a elas dissimular e
agir como se aquele não passasse de mais um dia de
trabalho. Pegaram um táxi e foram a um restaurante em
Pinheiros, onde dividiram uma garrafa de vinho. À tarde,
Ramos reuniu quatro outras integrantes da equipe de
design em seu apartamento, perto da sede, para dar a má
notícia pessoalmente.

Charles Cosac voltou para casa depois do expediente e


chamou Antonio Gonçalves Filho, experiente repórter do
jornal O Estado de S. Paulo e seu amigo de longa data.
Contou-lhe que estava determinado a pôr um ponto final no
catálogo que elaborara por quase duas décadas, imaginando
que a notícia viria a lume apenas no dia seguinte, na edição
impressa do matutino. À meia-noite, antes que o Estadão
chegasse às bancas, pretendia enviar a todos os funcionários
o comunicado preparado no sábado. Tudo havia sido
planejado. Sentia-se “o próprio agente 007”, como me disse,
zombando de sua ingenuidade.

Na noite de segunda-feira, 30 de novembro, ele recebeu em


seu apartamento a amiga Marcela de Ré, coordenadora de
feiras e eventos da editora. Conheciam-se desde os tempos
em que Cosac vivera na Inglaterra, antes de criar o selo.
Ouviram uma ópera de Donizetti que trouxe ao editor
reminiscências da juventude. O volume do som era
tamanho que o chão e as paredes pareciam vibrar.

Cosac e sua amiga estavam imersos na música no momento


em que a notícia do fechamento da Cosac Naify foi
publicada no site do Estadão, às 21h16. Alastrou-se em
segundos. A equipe do departamento comercial fechava os
relatórios do mês na sede da editora quando foi
interrompida por mensagens condoídas de amigos. “Como
assim, fechou? Ainda estamos aqui, trabalhando”, rebateu
um dos funcionários, atônito.

Naquela mesma noite, na biblioteca do Parque Villa-Lobos,


o escritor Estevão Azevedo recebeu o Prêmio São Paulo de
Literatura por seu romance Tempo de Espalhar Pedras,
publicado pela Cosac. Comemorava a vitória num
restaurante com a mulher, quando, já feitos os pedidos e
brindes com espumante, leu nas redes sociais a mensagem
de um colega: “Feliz pelo Estevão e triste pelo fim da
Cosac.” Por alguns instantes, acreditou se tratar de exagero
retórico, uma hipérbole para ilustrar a crise que assolava
não apenas sua editora, mas todas as outras também.
Custou a entender que a notícia era para ser tomada ao pé
da letra.

No apartamento em Higienópolis, os telefones começaram a


estrilar, mesclando-se ao som estrepitoso da ópera. Cosac
não se deu conta, estava em transe, mas sua amiga
estranhou e espiou de esguelha as mensagens no celular.
Informou o editor sobre o estardalhaço em curso lá fora, e só
então ele percebeu que havia negligenciado a internet.
Sentiu como se estivesse tendo um ataque cardíaco. Correu
ao computador para disparar o e-mail que escrevera à
equipe, àquela altura já a par de tudo. Quando Marcela de
Ré foi embora, o editor ainda escutava a ópera.
Conversei com Charles Cosac nos últimos dias de
dezembro. No primeiro de nossos três encontros, ao me
receber no escritório de sua casa, disse que desde que
tomara sua decisão as noites se arrastavam “longas, vazias e
tristes”. Vestia uma túnica preta de manga comprida que
chegava até o chão, calçava sapatos com estampa de pele de
onça. O traje soturno reforçava a palidez de seu rosto, de
alguém que evidentemente não toma sol. O cabelo, já
rarefeito, estava despenteado. Sob os óculos de aros pretos
grossos, seus olhos cansados fixavam um ponto distante.
“Dormir virou um produto raro. Me sinto um sonâmbulo.”

O apartamento é repleto de obras de arte – quadros,


esculturas, instalações. Cosac tem uma coleção considerável
de arte sacra – quinze santos espalhados pelos aposentos,
quatro Cristos em tamanho natural. “Jesus é meu herói,
morreu na cruz por nós.” O encarnado das paredes e tapetes
de uma das salas não por acaso foi inspirado no filme Gritos
e Sussurros, de Ingmar Bergman. O diretor sueco, aliás,
declarou ter escolhido essa cor para o cenário porque desde
a infância imaginara a alma “como uma úmida membrana
em diversos tons de vermelho”.

O editor sentou no sofá e acendeu um cigarro. Atrás dele,


duas figuras enormes, ajoelhadas, as mãos em prece e o
olhar para o alto – esculturas mexicanas do século XIX que
representam almas no purgatório. Ao lado das “alminhas”,
como Cosac as denomina, um Cristo em tamanho natural
deitado, de um artista baiano do século XVIII. “É tão terno.
Nem parece morto, mas que está dormindo, não acha?” Ele
desviou os olhos da peça e subitamente exclamou: “Gente,
não serviram nada pra você até agora? Desculpe. Antônia,
por favor”, disse ao telefone, com firmeza. “Traga água,
Coca-Cola, café e gelo.” Depois da terceira tragada, passou a
relembrar momentos da editora. “Santo Cristo. São tantas
histórias, tantas.”

C
harles Cosac desembarcou no Brasil em 1996, depois
de viver quinze anos na Europa. Tinha 32 anos, além
de duas malas e o desejo de encontrar um trabalho
que desse sentido a sua existência. Ninguém o esperava no
aeroporto de São Paulo. Pegou um táxi e foi direto para um
hotel na região da avenida Paulista. Todos os quartos
estavam ocupados. Dominado por um misto de temor e
exaustão, largou-se no sofá do lobby e chorou “feito um
bebê”.

A Cosac Naify seria fundada no ano seguinte, com capital


oriundo da fortuna familiar dos donos. Os sócios nunca
esclareceram o montante do investimento inicial. Ao jornal
O Estado de S. Paulo, Cosac afirmou ter sido algo em torno
de 70 milhões, embora haja quem especule ter sido o dobro.
Em todos os encontros que tivemos, procurei sondar esse
valor. “Não vou falar. Nunca. Michael também não”, disse,
sem transigir.

Os Cosac trocaram a Síria pelo Brasil fugindo da pobreza. O


primeiro a chegar foi o avô materno, Eduardo, ao qual
outros parentes vieram se juntar posteriormente. A família
enriqueceu com mineração, explorando jazidas de quartzo,
cristal, sílica, ferro e manganês, e hoje atua em diversos
setores, como educação, agronegócio, cosméticos, hotelaria,
entre outros.

Quando Charles nasceu, em 1964, o clã já era abastado e


muito bem estabelecido na sociedade do Rio de Janeiro.
“Isto pode parecer uma maravilha, mas a riqueza me
infantiliza. Elimina a ambição e a preocupação com certos
aspectos da vida comuns a todos. Eu, por exemplo, não sei o
preço do cigarro nem da Coca-Cola”, ele me disse em
março, dessa vez com o semblante menos carregado. “De
certa forma levei a editora assim, sem me importar, sem
cobrar nem conferir nada”, continuou, com as pernas
dobradas sobre o sofá da sala.

Sua infância não foi um mar de rosas. Aos 5 anos o pequeno


Charles ganhou uma vitrola. Entre os discos disponíveis na
casa, cismou com um de Chopin, que ouvia encolhido num
canto do quarto, fantasiando situações dramáticas. Na mais
frequente delas, o menino se via em fuga com a mãe, e ela,
exaurida, sem forças para prosseguir, pedia-lhe que
seguisse sozinho. Incapaz de abandoná-la, o menino
sacrificava a própria vida para ficar a seu lado. E chorava.
“Eu forçava o choro, provocava, era uma coisa que me dava
prazer. Era como me livrar de algo que me sufocava”,
lembrou.
Apreensiva, a mãe pediu ajuda a um psicólogo, que
identificou os primeiros sintomas de depressão. Quando
Charles completou 12 anos, os médicos lhe prescreveram
remédios para combater a doença. Na escola, o garoto sofria
por ser gago e homossexual. Confessou que era gay a um
padre, e o sacerdote, lhe asseverando que aquilo era coisa
do capeta, mandou-o rezar vinte ave-marias e vinte pai-
nossos. O pai, Mustafá, tinha tanta dificuldade em aceitar o
filho que o despachou para a casa de uns tios.

Concluído o ensino médio, o jovem viajou para fora. “Foi


muito conveniente para papai, que me desprezava e não me
queria por perto.” Por quinze anos ele peregrinou pelo
mundo, visitando museus, ouvindo concertos e estudando.
Na Inglaterra, matriculou-se num curso de matemática – ali
seu inglês, então precário, não precisava ser testado o tempo
todo, já que a disciplina emprega símbolos universais.
Concluiu o curso e se voltou para as artes plásticas.

Cosac fez seu mestrado em história da arte pela


Universidade de Essex e ajudou a organizar a primeira
coleção pública de arte latino-americana da Europa.
Inscreveu-se na Universidade Estatal de São Petersburgo
para um doutorado sobre o suprematista russo Kazimir
Malevich, mas retornou ao Brasil antes de concluí-lo.

Foi ainda na Inglaterra que conheceu Michael Naify, seu


futuro sócio e cunhado. A empatia entre eles foi imediata. O
pai do novo amigo, o magnata Marshall Naify, simpatizou
com o jovem brasileiro ao ouvi-lo descrever a maneira hostil
como o pai o tratava. Numa das paredes do escritório de
Cosac, em seu apartamento, repousa um retrato do velho
Marshall, morto há dezesseis anos.

A família Naify – de origem libanesa – fez fortuna com uma


cadeia de cinemas que, iniciada nos primórdios do século
passado, acabou se associando à United Artists, em
Hollywood, uma das maiores companhias do setor. Os
Naify também ganharam dinheiro com televisão a cabo e
uma empresa chamada Todd-AO, especializada em efeitos
sonoros e outros serviços de pós-produção cinematográfica,
atuante de 1953 até 2014.

Uma ou duas vezes por ano o sócio americano costumava


vir ao Brasil. Seu aspecto nem de longe revelava que
pertencia a uma das famílias mais ricas do mundo: aparecia
metido em ternos largos, como que surrupiados de um
irmão mais velho e robusto. Cordial, elogiava os livros,
agradecia a todos pela dedicação e comentava os relatórios
num português fluente e carregado de sotaque. Ex-
funcionários o descreveram como um homem prático e
familiarizado com finanças. Mas, morando no exterior,
sempre acompanhou os negócios de longe. Em janeiro,
Naify veio passar alguns dias ao lado do cunhado, solidário.
“Mas não tocou no assunto da editora”, disse Cosac.
Tampouco quis receber a piauí para uma entrevista.
Concordou apenas em responder a algumas perguntas por
e-mail. Disse que a editora foi uma tentativa de “deixar uma
marca na vida cultural” do país: “Quando começamos, a
qualidade dos livros no Brasil era muito baixa”, escreveu.
“Queríamos elevar o padrão dos livros, tanto físico quanto
intelectual. Gosto de pensar que este será um dos legados
duradouros da empresa.”

O
primeiro lançamento da editora, em 1997, foi Barroco
de Lírios, do artista plástico Tunga. Com mais de dez
tipos de papel e 200 ilustrações, o livro incluía a foto
de uma trança (um dos motivos recorrentes do artista) que,
desdobrada, se estendia por 1 metro de comprimento. A
vocação original da editora, voltada à arte, permitia que
Charles Cosac trabalhasse na área sem precisar se
transformar em artista, o que exigiria talentos que ele
reconhece não ter.

O gosto por arte extrapolava o catálogo e era disseminado


pelo ambiente do escritório, sempre repleto de itens da
vasta coleção particular do dono, como uma tela de Alberto
Guignard, uma serigrafia de Milton Dacosta e uma
fotografia de Mario Cravo Neto, entre outros. De tempos em
tempos ele substituía as peças, e muitos acreditavam que as
trocas não fossem aleatórias. Uma gravura com uma boneca
Barbie toda espetada, feito um vudu, foi exposta diante da
sala de um funcionário com o qual vinha tendo alguns
atritos. Outro empregado, pudico, foi agraciado por uma
obra com imagens de órgãos sexuais, disposta na frente de
sua porta. Não raro os colaboradores tinham perto de si
seus artistas prediletos. Quem não tinha seu canto
contemplado por nenhuma peça sentia-se desprezado.
Nos três primeiros anos, a equipe – mínima, cerca de dez
pessoas – girava ao redor do dono, figura que fascinava a
todos. Extravagante no modo de trajar, Cosac tinha apreço
por roupas coloridas e muitas vezes inusitadas. Certa vez
surgiu vestido de Hello Kitty, calçando sapato de salto alto e
com o cabelo atado por uma chuquinha. Seu interesse por
moda se espraiou pelo catálogo, que passou a contar com
uma coleção voltada ao tema. Quando sugeriu um volume
que trazia Barbie vestida por grandes costureiros, Alberto
Martins, o Betito, diretor editorial à época e atualmente na
Editora 34, torceu o nariz. A ideia mostrou-se um acerto e o
livro teve sua edição esgotada.

Com o tempo Cosac adotou um figurino sóbrio e


monocromático, hoje composto de mais de sessenta túnicas
pretas e compridas. “Só uso preto, é meu luto, minha
declaração de tristeza à vida.” Sua última ousadia foi
aparecer com uma camiseta da Gaviões da Fiel, a torcida
organizada do Corinthians. Ele não torce para o time,
tampouco dá bola para futebol.

Odin, pastor alemão do editor – batizado em homenagem


ao deus nórdico –, vivia solto pela editora. O jornalista e
editor Paulo Werneck, atual curador da Flip, trabalhava lá
como estagiário. Escrever releases era moleza, disse
Werneck, desafio mesmo era conviver com o cão que
eriçava os pelos e o encarava sempre que cruzava seu
caminho. Logo o jovem estagiário foi convidado a trabalhar
na Companhia das Letras. Contrariado, Cosac o chamou e
ditou-lhe uma carta bem desaforada para Luiz Schwarcz, da
concorrente. A carta provavelmente nunca foi enviada, mas
o chefe preterido queria registrar seu desagrado.

A Cosac Naify era tocada com muita paixão e pouco


método. Irene Fehrmann, uma senhora alemã, se
encarregava de catalogar os livros. Ora classificava as obras
pelo título, ora pelo nome do autor. Rodrigo Naves, crítico
de arte e então coordenador da coleção Espaços da Arte
Brasileira, recorda a extravagância nos gastos. “Aquele troço
não era real. Parecia o ouro de Moscou”, disse, numa
referência bem-humorada a uma expressão bastante
popular na Guerra Fria, indicando o aporte de dinheiro
oriundo não se sabe bem de onde.

Os preços dos livros eram definidos de modo arbitrário,


sem cálculos precisos. “Quanto vai custar este?”, alguém
perguntava. “Oitenta, sugeria Charles.” E oitenta ficava. Os
livros iam para as lojas, muitas vezes com preços que não
cobriam os custos de produção. A editora só incorporou
planilhas de cálculo cinco anos depois de ter sido fundada.
“Não havia uma cultura empresarial de estruturar ações em
função de um planejamento econômico e financeiro. Era
tudo muito precário nessa área”, lembrou Marcelo
Rogozinski, que por quase sete anos foi diretor
administrativo e financeiro da editora.

A figura romântica do proprietário com ares aristocráticos,


despreocupado com questões pecuniárias, conferia uma
aura especial à empresa. “A gente não fazia livros com
grandes expectativas de venda, mas com expectativa em
cima da qualidade do livro”, disse Cosac.

Ivo Camargo, diretor comercial da editora por quatro anos,


de 1999 a 2004, insistia na importância do desempenho dos
livros no mercado. “O mercado para produtos como o da
Cosac é muito restrito. Maravilha, lindo, todo mundo elogia.
Mas quem coloca a mão no bolso para comprar?”,
perguntou o executivo. Por ser leigo na área, Cosac
confessou que dispensava a Camargo – “o seu Ivo”, um
homem de proporções avantajadas e jeitão despachado –
tratamento de presidente da República. Um dia o diretor foi
mais enfático e sugeriu que se não lhe dessem ouvidos a
editora acabaria quebrando. Sentindo-se desafiado, Cosac
reuniu todos os funcionários e comunicou que fecharia as
portas. A equipe, pega de surpresa, saiu da sede e foi para
uma pizzaria pensando que não havia mais o que fazer. O
dono voltou atrás.

Foi nessa época que Augusto Massi veio ocupar a cena na


vida da editora. Junto com o professor de teoria literária da
Universidade de São Paulo Davi Arrigucci Jr. e o tradutor
Samuel Titan Jr., o poeta e professor havia sido chamado
para organizar a coleção Prosa do Mundo, de clássicos da
literatura mundial. Inúmeras reuniões eram feitas no
apartamento de Charles Cosac. Massi se ofereceu para
administrar a editora – um desafio que enfrentaria, disse, se
tivesse carta branca para fazer o que bem entendesse. “Se
toparem, vou trabalhar firme e vocês não vão gostar de
mim”, avisou ao dono.
N
omeado editor-presidente em 2001, Augusto Massi
permaneceu no cargo por dez anos e tornou-se uma
figura-chave na trajetória da empresa. Àquela altura, a
editora já havia lançado cerca de oitenta livros, com títulos
concentrados em artes plásticas. Uma das primeiras
resoluções do novo executivo foi diversificar o catálogo, que
passou a investir em literatura, antropologia, arquitetura e
história, e no público infantojuvenil.

Ao luxo das edições somou-se o cuidado com as traduções e


a inclusão de material complementar, como prefácios e
ensaios críticos assinados por especialistas renomados. “São
estes detalhes que fizeram a diferença”, disse o editor
Milton Ohata, que trabalhou oito anos na Cosac e hoje está
na Editora 34. Segundo ele, muitos selos tentam fisgar os
leitores com blurbs na contracapa, citações publicitárias que
pouco acrescentam à compreensão da obra. Antes do
surgimento da Cosac, editoras como a Companhia das
Letras já dedicavam especial atenção às traduções. O novo
player, porém, entrou no jogo pagando bem mais do que a
concorrência, o que na ocasião gerou tensões e acarretou um
aquecimento no mercado dos tradutores. Com o tempo os
valores se equipararam.

Massi convidou intelectuais de prestígio, como Ismail


Xavier e Fernando Novais, para coordenar coleções de
cinema e história, cavando espaço para publicar vários
títulos acadêmicos. Orientava as leituras dos funcionários,
pagava cursos de história da arte para os vendedores. O
tradutor Rubens Figueiredo, que verteu do russo várias
obras de Tolstói, viajou do Rio de Janeiro para dar uma aula
na editora. O poeta Francisco Alvim declamou seus poemas
para uma equipe entusiasmada.

“Hum, esta coisa está muito uspiana”, divertia-se Cosac. A


busca de prestígio acadêmico sempre fora um desejo do
fundador, que mal abriu a empresa e já lançou uma coleção
de história da arte dirigida a professores, pesquisadores e
especialistas. Mas foi sob a direção de Massi que esse
objetivo foi alcançado. A Cosac Naify floresceu e passou a
disputar capital intelectual com a Companhia das Letras, à
época estrela solitária, senhora do pedaço.

“A Cosac representou um avanço significativo no mercado


editorial, sobretudo na área do design”, me disse Luiz
Schwarcz, diretor-presidente da Companhia das Letras. “A
ousadia gráfica vinha antes do cálculo empresarial. Isto não
é uma crítica, é o espírito da casa, desde sua fundação.
Havia um desprendimento que é mais possível para um
mecenas do que para quem tem um pé mais firme no
mercado.” O jornalista Matinas Suzuki Jr. – há cinco anos o
braço direito de Schwarcz, ocupando o cargo de diretor
executivo da Companhia – observou que a editora de
Charles Cosac conseguiu “reinventar o objeto livro”, e assim
teria atraído leitores que até então não davam muito valor à
literatura.
Uma vez por semana ocorria na editora uma “reunião de
conceito”. Diretores, editores e designers passavam um dia
inteiro sentados à mesa com profissionais do departamento
financeiro e da área comercial para debater cada título –
suas especificidades, o universo dos autores, o público
visado. “Na Cosac os designers sempre leram os livros. E
esse diferencial aparece nos projetos, tanto na capa como no
miolo”, contou Elaine Ramos, por anos a diretora de arte.

Massi conduzia esses encontros em tom professoral, falando


em voz baixa e detalhando explicações que muitas vezes se
perdiam na prolixidade, segundo alguns dos participantes.
Quando se empolgava com um projeto ou se irritava com
alguém, o volume de sua voz subia vários decibéis.

Para o bem ou para o mal, tais reuniões definiam a


identidade da casa. A maioria das editoras contrata
profissionais de fora para fazer as capas de seus livros e
trabalha com um modelo padrão para o miolo – emprega
sempre a mesma tipologia e a mesma diagramação, quando
muito varia conforme os títulos sejam de ficção ou não.
Embora essa prática ajude a reduzir os custos de produção,
na avaliação da Cosac ela limitaria consideravelmente o
potencial das obras.

São muitos os exemplos de lançamentos que fizeram


barulho por sua apresentação gráfica. Quando a Cosac
colocou no mercado a primeira tradução de Guerra e Paz
realizada a partir do russo, a capa do livro foi revestida de
um tecido que procurava imitar os uniformes dos soldados
russos do romance de Tolstói. A novela Bartleby, o Escrivão,
do americano Herman Melville, teve sua capa costurada às
páginas, reportando o leitor de hoje à prática empregada no
passado, quando era preciso cortar as folhas para separá-las.
A adoção desse procedimento pretendia oferecer certa
resistência ao desfrute do leitor, mimetizando a resistência
ao trabalho manifestada pelo protagonista. (Não é possível
avaliar se a intenção do design foi percebida pelos
consumidores, mas Bartleby teve bom desempenho
comercial, com várias edições e vendas constantes até o
fechamento da editora.) Já as letras em dégradé, a variação
da gramatura do papel e o espaçamento reduzido entre as
linhas do miolo de A Fera na Selva, de Henry James,
inviabilizaram a leitura do livro. (Um dos casos em que a
radicalização da proposta acabou soterrando a legibilidade,
queixa recorrente entre os leitores.)

As gráficas penaram para dar conta da ousadia gráfica da


Cosac. Não bastasse a dificuldade de execução, muitas
vezes os livros atrasavam e elas ficavam a ver navios, com
as máquinas paradas. Nenhum título poderia ser impresso
sem a devida autorização de Massi, que retinha as provas
por meses a fio até que fossem feitas todas as correções que
desejava. A Idade Viril, um estudo do antropólogo Michael
Leiris, demorou tanto que os funcionários o apelidaram de
A Idade Senil. O poeta Sebastião Uchoa Leite morreu sem
ver publicado seu último livro, Crítica de Ouvido, porque
Massi ficou hesitante quanto à capa e segurou o imprimátur
por meses.
Além de procrastinar, o editor-presidente, mais preocupado
com a relevância intelectual dos projetos que tocava,
negligenciava sua viabilidade econômica. Livros de custos
exorbitantes foram vetados pelo departamento financeiro,
mas Massi batia de frente com o parecer negativo e oferecia
estratégias para seguir adiante. Tentou viabilizar vários
projetos fazendo tiragens maiores, procedimento que lhe
permitia negociar melhores condições com as gráficas e
reduzir o preço de capa. Imaginava com isso atrair o
interesse de um número de leitores mais expressivo, mas na
maioria das vezes deu com os burros n’água. Arquivo
Brasília, um amplo levantamento sobre a arquitetura da
capital federal, foi lançado com tiragem de 10 mil
exemplares. Vendeu por volta de 2 mil livros, contribuindo
para abarrotar o depósito da editora. Com 1 410 imagens
sobre a construção de Brasília, o livro era uma joia rara, mas
o público que se dispunha a comprá-lo era exíguo.
Terminou seus dias em saldões.

A
té 2010, se o dinheiro em caixa minguasse, bastava
pedir socorro a Michael Naify e tudo se ajeitava. As
coisas tomaram outro rumo quando os investimentos
do cunhado chamaram a atenção do fisco americano. As
autoridades não conseguiam entender por que ele
continuava aplicando tanto capital numa empresa que só
dava prejuízo. Suspeitavam estar diante de uma operação
de lavagem de dinheiro. Pressionado, Naify passou a
insistir com a editora para que ela encontrasse meios de
sobreviver sem seus constantes aportes financeiros.

Foi um momento de inflexão na história da Cosac.


Desabituada a processos de controle, a editora precisaria
fazer um esforço de guerra para conter despesas. As
decisões de Augusto Massi começaram a enfrentar mais
resistência. O editor varava as noites trabalhando e aos
poucos perdeu a medida no trato com as pessoas. A equipe
o apelidou com o título de um livro do antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro, A Inconstância da Alma
Selvagem. Não raro ele saía da sala aos berros, chutava
portas e humilhava funcionários publicamente.

Nem mesmo o dono da editora escapou. Intimidado com o


destempero de Massi, Cosac retraiu-se e nas reuniões de
diretoria passou a sentar num canto da sala, não mais à
mesa com os outros diretores. Num encontro cujo objetivo
era redefinir a função de cada um, o nome do proprietário
não foi mencionado e ele quis saber: “Augusto, e eu, o que
faço?” Massi fez que não ouviu e seguiu adiante. “E eu,
Augusto?”, insistiu Cosac. O executivo levantou-se e,
encarando o dono da editora, respondeu de forma ríspida.
“Quer saber o que você faz, Charles? Vai ser o chefe do
depósito! Agora vamos continuar a reunião.”

Em outras ocasiões, Massi simplesmente o ignorava. Cosac


usa um perfume peculiar preparado especialmente para ele
por um parfumeur francês, cuja fórmula ele não revela
“nem sob tortura”. Quando entrava na editora, o rastro da
fragrância se espalhava pelo ambiente, denunciando sua
presença. Se Massi não ia cumprimentá-lo, ele ficava
magoado. “O Augusto sabia muito bem que eu havia
chegado e nem ia falar comigo.”

Aos poucos, Cosac se afastou da editora, passou a trabalhar


em casa ou a se refugiar numa pequena sala improvisada no
depósito, onde os estoques ficavam armazenados.

Nessa época, o diretor administrativo e financeiro da


empresa já era Bernardo Ajzenberg. Fora levado para a
editora pelo próprio Massi. Jornalista de formação e escritor,
tinha boa interlocução com o editorial, mas o que
impulsionou sua contratação foi a experiência prévia como
coordenador executivo do Instituto Moreira Salles e gestor
administrativo da Folha de S.Paulo.

Como as tensões só faziam aumentar na editora, Ajzenberg


sugeriu a Massi que tirasse férias prolongadas. Ele
concordou com a ideia. Voltou depois de dois meses. E
voltou estrilando. Sobrou para a advogada Sintia Mattar,
funcionária antiga da casa, incumbida dos direitos autorais.
Massi lhe pediu que negociasse os direitos de imagem para
dois projetos novos, mas ela argumentou que naquele exato
momento não poderia fazê-lo, assoberbada que estava com
outras negociações em curso. Sentindo-se desrespeitado,
com a sensação de que sua autoridade estava sendo posta à
prova, Massi subiu o tom de voz e ordenou: “Você vai
fazer.” Mattar não engoliu o desaforo. Pediu as contas e,
recolhendo seus pertences, deu as costas. O presidente
percebeu que se excedera e tentou demovê-la da ideia. Não
conseguiu. O constrangimento foi generalizado.

Dias depois, numa ocasião em que Massi não estava


presente, a diretoria se reuniu para discutir o ocorrido.
Ajzenberg telefonou a ele diante dos outros diretores e lhe
informou que daquele jeito sua permanência seria inviável.
Sugeriu que tirasse uma licença.

Massi aceitou, porém não parou de trabalhar. Ligava


constantemente para o departamento editorial, dava
palpites aqui e ali. Andava obcecado por um projeto que
fora vetado pela editora, um livro sobre João Gilberto, de
custos altíssimos, tanto pelo número de fotos como pela
fortuna que o músico exigia para autorizar a inclusão das
letras de suas canções. O cantor completaria 80 anos em
junho daquele ano de 2011. E era para essa data que Massi
queria o livro pronto. Incansável, não desistia de buscar
patrocínio para seu projeto.

Certo dia, eufórico, ligou para a sede e comunicou que


havia conseguido uma parceria com o Serviço Social do
Comércio, o Sesc, que prometia bancar metade dos custos.
Ajzenberg e o diretor financeiro examinaram a planilha de
custos e concluíram que não era um negócio vantajoso para
a editora, que por contrato deveria oferecer ao patrocinador
grande parte da tiragem. Dias depois Massi recebeu um
telefonema da secretária informando que o livro não sairia.
Sentindo que havia um motim contra ele, o presidente
pediu demissão. No fim de semana, sem ninguém por
testemunha, foi à sede da Cosac recolher seus pertences.
Nunca mais voltou.

Um ano depois a editora mudou de ideia e lançou o livro da


discórdia. A edição de 4 mil exemplares esgotou
rapidamente. João Gilberto processou a editora e perdeu a
causa.

“D
ei minha vida pela editora”, me disse Massi,
numa conversa em janeiro. Contou ter ficado
esgotado como presidente nos últimos anos,
cargo que acumulou juntamente com um projeto de
doutorado na universidade. Foram nove anos sem tirar
férias. “Sei que me excedi algumas vezes e não tenho
orgulho disso”, falou. Sentia-se responsável não só pela
editora, mas também por Cosac, que andava desanimado.
Sua nomeação como chefe do depósito teria ocorrido com o
intuito de motivá-lo. “Era um choque de realidade
importante para o Charles. Havia infiltração nas paredes,
livros malconservados e ele tomou pé da situação.”

Massi reconhece não ter o perfil talhado para os negócios,


mas nega ter negligenciado a viabilidade econômica da
empresa. “Negociava direito autoral mais baixo, fiz parceria
com diferentes instituições para bancar livros de artes e dei
maior visibilidade aos livros da Cosac nas livrarias.” Por
fim, o pior teria sido perceber que sua liderança passara a
ser questionada e a equipe deixara de acreditar em seus
projetos. “A comoção das pessoas com o fechamento da
Cosac foi uma coisa simbólica para mim”, disse. “Os livros
ficam. Brigas não apagam um projeto bonito e coletivo de
dez anos.”

“Saiu à francesa, nem me deu adeus”, lamentou Cosac à


época, numa entrevista que me concedeu, publicada no
Valor Econômico em janeiro de 2012. O editor também
revelou que a empresa vinha operando no vermelho e que
precisou injetar capital próprio para fechar as contas.
“Entrei em pânico. Se não fosse o apoio das pessoas que
trabalham lá, teria dado um tiro na cabeça.”

Desde então os dois nunca mais se encontraram, me disse


Cosac em dezembro. Enquanto conversávamos, caía uma
tempestade magna, com direito a trovões. O anfitrião
parecia alheio ao estrondo. Abriu mais uma lata de Coca-
Cola e recostou-se novamente no sofá com o isqueiro e um
cigarro na mão. “Se tem uma pessoa que ajudou a formatar
aquela editora foi o Augusto, sou muito grato a ele. Seria
uma bobagem tentar apagar.” Embora reconheça suas
qualidades como editor, Cosac lamenta o desempenho do
ex-presidente como administrador da empresa. Para ele,
Massi agia feito Diana Vreeland, editora de moda muito
criativa conhecida por seu temperamento difícil. “Diana
surtou, quebrou a Vogue e foi demitida por sandice. Quase
levou a revista à falência. Contratava os fotógrafos mais
caros do planeta, mandava todo mundo para a África na
primeira classe. E ninguém tinha coragem de dizer não para
ela”, explicou Cosac. “Esta é minha mágoa com o Augusto,
ele não zelou pelo dinheiro da editora. Precisava tanto
desperdício? Ninguém teve a menor piedade. Até que a
Cosac Naify fechou”, concluiu, apagando a bituca no
cinzeiro.

Q
uando Massi saiu, em maio de 2011, Charles Cosac
reassumiu a presidência da editora, embora nunca
tenha se identificado com a figura de patrão. “Nem
meu cachorro me obedece”, ele diz. Ninguém mais, depois
da era Massi, concentraria tantos poderes. O comando e a
configuração da chefia mudaram algumas vezes desde
aquele período até o encerramento da editora.

No remanejamento das funções de comando, Bernardo


Ajzenberg foi nomeado diretor executivo. Cosac não voltou
à antiga sala, que cedeu ao diretor editorial, o jornalista
Cassiano Elek Machado, com passagem pela Folha e pela
piauí, hoje na editora Planeta do Brasil. Julgando que Elek
precisava de uma sala maior para receber os autores da
casa, abriu mão de seu espaço. A princípio o diretor recusou
a oferta, mas Cosac fez a mudança a sua revelia,
aproveitando um feriado. Por um curto período o dono da
editora se espremeu numa sala exígua, mas logo se
transferiu para a sala onde Ajzenberg trabalhava.

Voltou a circular pela sede da empresa e a despachar


diariamente. Seu comportamento continuava uma fonte
permanente de surpresas. Certa vez, um funcionário entrou
em sua sala para colher uma assinatura num documento.
Cosac aproveitou a oportunidade para lhe contar que já
havia comprado um caixão e que, depois que ele o ocupasse
– morto, naturalmente –, queria que fosse lançado ao
espaço. E emendou com reminiscências sobre o pai,
Mustafá, que havia morrido recentemente.

Projetos passaram a ser autorizados somente se as planilhas


demonstrassem sua viabilidade comercial, e as tiragens se
tornaram mais modestas, na faixa de 3 mil exemplares por
título, praxe no mercado. Em 2013, pela primeira vez a
Cosac Naify fechou o balanço com lucro. Foram apenas 10
mil reais, mas os funcionários celebraram o resultado com
festa.

Em abril de 2012, Elek Machado entrou na sala de


Ajzenberg para combinar detalhes sobre sua ida iminente à
Feira do Livro de Londres, importante evento do setor. Mal
fechou a porta, recebeu um convite meio formal para sentar.
“O Charles quer te demitir”, informou o diretor executivo.
“Como assim?”, espantou-se o diretor editorial. Ajzenberg
alegou que o colega não apresentava um projeto editorial
claro, e que a direção tinha em mente promover para o seu
lugar Florencia Ferrari, então editora-adjunta. Com a
demissão de Elek Machado, o antigo cargo de Ferrari seria
extinto, o que significava uma economia para a empresa.

O diretor saiu da sede desnorteado e ligou para Charles


Cosac, que o convidou para ir à sua casa. Tiveram uma
conversa longa. O dono da editora começou dizendo que
estava confuso, precisava pensar. Terminou prometendo
que reverteria a decisão e tudo continuaria como antes.
Quatro horas depois Cosac ligou para Elek. Chorando e
muito nervoso, pediu desculpas, mas agora que Florencia
Ferrari fora promovida ele não teria como rebaixá-la. Dois
anos depois, a própria Ferrari sentiria na pele os efeitos do
comportamento errático do dono da editora, quando
protagonizou, juntou com Ajzenberg, mais um capítulo
tenso da história da empresa.

Poucos dias antes de viajar para a Feira de Frankfurt


representando a editora no mais prestigioso evento anual do
mercado de livros, Ferrari, na função havia dois anos,
discutira com Charles Cosac. O motivo era trivial, um
pequeno desentendimento com a equipe de marketing.
Assim que pisou na Alemanha, a diretora recebeu um
telefonema de Ajzenberg informando-a de que estava
demitida. Ele dizia cumprir ordens de Cosac e a
aconselhava a ligar para a secretária para providenciar a
passagem de volta.

Na casa havia mais de uma década, Ferrari era uma


profissional respeitada pelos colegas. Desorientada com o
telefonema, desmarcou às pressas encontros agendados,
jogou no lixo todo o material promocional que pretendia
distribuir na feira e começou a se preparar para a viagem de
volta. Enquanto isso, na sede em São Paulo, Ajzenberg
convocava uma reunião para, laconicamente, comunicar à
equipe o afastamento de Ferrari. Houve comoção de muitos.
Colegas se mobilizaram para tentar reverter a demissão.
Alguns relatam que viram Charles Cosac entrar na sala de
Ferrari, sentar em sua cadeira e abraçar um pequeno
caderno que ela deixava sempre à mão. Arrependido da
decisão que tomara na véspera, o editor enviou uma
mensagem à diretora, para que entrasse em contato com ele
o mais rápido possível.

Enquanto isso, na sede da editora, João Perassolo, o assessor


de imprensa, confirmava a demissão de Ferrari a uma
jornalista da Folha. Horas depois, Perassolo recebeu um
telefonema do próprio Cosac, que, nervoso, avisava que a
nota não poderia sair no jornal “de jeito nenhum”. Perassolo
falou com Ajzenberg, que, confuso, ligou para o dono da
editora. Foi aconselhado a espiar seus e-mails. Num deles,
Cosac informava ao diretor executivo a revogação de sua
decisão.

Dois dias depois, Ferrari estava de volta e Ajzenberg havia


sido demitido. Não houve nenhuma reunião para informar
as mudanças à equipe, tampouco um comunicado formal.
Os funcionários simplesmente chegaram para trabalhar e
encontraram a nova situação configurada. Diante de cenas
mirabolantes como essas, eles sacavam uma frase que ficou
célebre: “Mais um dia normal na Cosac Naify.”

Em depoimento à Folha, Cosac afirmou que precisou


resolver um impasse entre Ajzenberg e Ferrari, que se
estendia havia meses. Elogiou o trabalho do ex-diretor, mas
disse que acabou optando pela funcionária mais antiga.
O
s problemas financeiros da Cosac Naify se agravaram
desde então. A alta do dólar aumentou os custos da
editora, que recorria a gráficas estrangeiras para
executar seus projetos. Compras governamentais,
considerável fonte de receita, foram reduzidas. Prazos e
outras condições comerciais impostas pelas livrarias, que
demoram 120 dias para pagar e muitas vezes devolvem
danificados os livros não vendidos, amplificaram os efeitos
da crise econômica.

O mercado todo sofreu com isso. As vendas de livros no


Brasil ficaram praticamente estagnadas em 2015. O setor
virou coisa para gente grande, e apenas quinze editoras
foram responsáveis por 60% das vendas no ano passado,
segundo as estimativas da empresa de pesquisas Nielsen.
Algumas se associaram a grandes grupos estrangeiros,
como a Companhia das Letras. A maioria se esfalfa para se
manter sem perder a independência. “Há espaço para as
pequenas quando elas conseguem definir um nicho claro de
atuação e estratégias diferenciadas de marketing”, diz o
presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros
(SNEL), Marcos da Veiga Pereira, editor da Sextante.

A Cosac – que havia anos já não operava com o foco


exclusivamente em livros de arte – sempre adotou uma
atitude de afronta às convenções do mercado. Quando
decidiu publicar a História do Olho, de Georges Bataille,
estampando na capa, em primeiro plano, a imagem de uma
mulher deitada de costas com as nádegas voltadas para
cima, um dos funcionários da área comercial estrilou. “Onde
já se viu? Nunca vou conseguir expor este livro em livrarias.
As crianças vão dar de cara com a bunda.” O leitor dava de
cara com a bunda e a Cosac dava de ombros, radicalizando
ainda mais ao imprimir livros que nem título traziam na
capa.

Empenhado em buscar alternativas para conter despesas e


equilibrar as finanças, Olavo Gruber, por anos diretor
administrativo e financeiro, alugou um novo depósito,
abandonando o galpão mais espaçoso que a editora ocupava
no Belenzinho, na Zona Leste de São Paulo. O local, porém,
era muito pequeno, e isso acarretou atrasos nas entregas.
Alguns clientes tiveram que esperar meses para receber
livros comprados por via eletrônica.

Outra iniciativa malograda foi a tentativa de reformular o


site da editora. A ideia era aumentar as vendas pela
internet, o que possibilitaria driblar o pedágio de 50% do
preço de capa que as livrarias cobram na venda de cada
livro. A empresa contratou uma agência especializada e
mais tarde constatou que era melhor continuar com o
sistema antigo. No processo, acabou descobrindo que um
funcionário que cuidara do site por quatro anos vendia os
títulos numa livraria virtual na internet. Sem compartilhar
os lucros com a empresa.

Com a corda no pescoço e sem dinheiro em caixa sequer


para pagar o salário dos funcionários, Gruber propôs
liquidações com descontos acima de 50%, no intuito de
diminuir os custos de armazenagem dos estoques. De
espada em punho, o diretor administrativo também efetuou
cortes de pessoal que reduziram a folha de pagamento em
cerca de 30%. No primeiro semestre do ano passado, a
editora abriu mão de profissionais de prestígio no mercado,
como Heloisa Jahn e Marta Garcia, egressas da Companhia
das Letras e curadoras da área de literatura contemporânea
e ficção e poesia brasileira. Também dispensou Isabel
Coelho, do departamento infantojuvenil, área que em
alguns momentos chegou a representar metade do
faturamento da editora, sem contar as compras
governamentais. Dois anos antes, a Cosac havia sido eleita a
melhor editora infantojuvenil da América Latina pelo
BOP (Bologna Prize for Best Children’s Publishers of the
Year). A Feira de Bolonha, na Itália, é considerada a top na
área.

A
s medidas de ajuste permitiram reduzir os custos fixos
anuais da editora de 23 milhões para cerca de 17
milhões. Mas com a crise econômica suas receitas
caíram vertiginosamente, e Charles Cosac continuou com
dificuldades para manter a cabeça fora da água. A situação
tornou-se tão dramática que Michael Naify voltou a fazer
aportes financeiros – no ano passado, contribuiu com 6
milhões de reais. Gruber foi demitido em meados de 2015,
substituído por um profissional mais jovem, Dione Oliveira.
Em busca de uma saída para a editora, Cosac chegou a
contratar o consultor André Mastrobuono, que sugeriu o
arroz e feijão do mundo corporativo: enxugar ainda mais o
quadro de funcionários e diminuir a produção. Mas o
consultor foi além: examinando os 1 300 títulos do catálogo,
propôs que apenas 200 deles fossem mantidos. (Entre eles,
lançamentos recentes como a luxuosa edição dos Contos
Completos de Tolstói, cuja primeira tiragem esgotou em
dois meses.) Mas a vocação primeira da casa era divulgar
artistas contemporâneos – Cosac não via sentido em ancorar
sua sobrevivência publicando obras em domínio público, de
autores mortos.

Se acatada, a sugestão de Mastrobuono significaria a


eliminação de pilhas e pilhas de livros, reduzindo a pó a
“biblioteca de Alexandria” que Cosac e sua equipe
construíram até então. (Santa Catarina de Alexandria deve
ter intercedido pela preservação do saber.)

Se quisesse, o editor assegura que tinha fôlego suficiente


para continuar cobrindo o buraco na contabilidade da
empresa por muitos anos ainda. Não quis. Disse ter chegado
à conclusão de que simplesmente não compensava mais o
esforço para manter a editora funcionando. “Sempre
coloquei alguém para responder pela editora, mas entendi
que ela sempre precisaria de mim ali, como uma força
motriz. Ela se tornou inviável e eu me senti cansado.” Sua
fortuna pessoal lhe garantiria os recursos necessários para
honrar todos os compromissos e não deixar nenhum
funcionário sem receber tudo a que teria direito depois que
a empresa encerrasse suas atividades.

“Não quero que sintam pena de mim. ‘Ai, coitadinho!


Perdeu tanto dinheiro.’ Já estou sofrendo demais por ter
perdido a editora e dezenove anos da minha vida”, disse
Cosac. E, numa fração de segundos, transformou o drama
em comédia: “Dezenove dá um ar de juventude, não acha?
Vinte soa velho. ‘Ai, ele demorou tudo isso para perceber
que não ia dar certo?’ Iam achar que sou burro.”

Uma das críticas a Charles Cosac é que ele teria agido de


maneira leviana e impulsiva ao encerrar a editora de um dia
para o outro, deixando à deriva funcionários e autores. A
agente literária Lucia Riff representava vários autores da
editora e tinha acabado de negociar um contrato na
antevéspera do anúncio do fechamento. “Foi tudo muito
traumático, autores e funcionários saberem da notícia pela
internet. Fico imaginando essas pessoas todas entrando o
ano sem emprego. Sei que é difícil dar palpite agora, mas
poderiam ter parado de contratar, talvez pudessem ter
vendido o selo”, ela disse.

Em um de nossos encontros, perguntei a Cosac se vender a


editora não teria sido uma saída. Ele encheu um copo de
Coca-Cola e, antes de levá-lo à boca, respondeu: “Pode valer
o que for, mas não me passou pela cabeça vender. O nome
Cosac Naify não é só meu. Seria muito humilhante negociar
meu nome. Me sinto responsável pelos funcionários e
autores, mas fechar a editora é um direito que me cabe. A
Lucia Riff fez declarações aos jornais dizendo que eu era um
irresponsável. Eu seria, sim, se caísse na inadimplência, mas
estou honrando todos os compromissos.”

Aos efeitos da crise, somaram-se episódios aparentemente


banais, mas que contribuíram para a pá de cal. Certa vez, ao
chegar à sede da editora, Cosac percebeu que um quadro do
artista plástico Siron Franco havia sido danificado devido a
um vazamento de água. Ele levou a obra para casa e deixou
vazia e manchada a parede do escritório, como se a
testemunhar o descaso da equipe.

“Isto me magoou muito”, comentou. “Ninguém tomou a


iniciativa de cuidar. Vi naquilo um símbolo de que a editora
estava se desfazendo. Vou assumir que a parede vai ficar
manchada e com o prego ali, ou vou lutar, consertar o cano
e colocar outro quadro no lugar? Fui largando mão, foi
dando preguiça, entende? O prego já não me incomodava
mais.”

Dias antes do Natal, poucas semanas depois do anúncio do


fim da editora, Charles Cosac enviou aos funcionários uma
longa mensagem de desabafo. “Decorei a sala de vocês com
o mesmo amor que decorei a minha casa, com as mesmas
obras, com os mesmos móveis, os mesmos tapetes”,
escreveu no e-mail que me encaminhou pouco depois. “Eu
queria que a editora fosse uma extensão da minha casa e
como gratidão eu tive obras de arte danificadas, móveis de
jacarandá de design quebrados e a palavra veado incrustada
na minha mesa de trabalho inúmeras vezes.”
Em outro trecho, Cosac afirma que chegou a limpar os
banheiros da editora com as próprias mãos em mais de uma
ocasião. “Todas as vezes que eu entrei no toalete, eu, o mais
pomposo, o mais perfumado, o burguês, limpei calado urina
e fezes da tampa do vaso sanitário e do piso em torno do
mesmo”, escreveu. “Também colhi destroços do chão para
colocá-los no cesto.”

U
m dos livros prediletos de Cosac é Oblómov, escrito
em 1859 pelo russo Ivan Goncharóv, cuja única edição
brasileira foi publicada por sua editora em 2012. O
protagonista, um nobre que vive das rendas obtidas nas
propriedades da família e entra em crise com o fim do
regime de servidão no campo, passa as primeiras 150
páginas do romance entre a cama e o sofá, refletindo sobre
sua existência e procrastinando. Quando um criado lhe diz
que há uma conta para pagar, ele entra em parafuso. Na
época em que morou na Rússia, Cosac foi apelidado de
“Oblómov” por amigos que o achavam parecido com o
personagem. (O editor já promoveu reuniões de trabalho
deitado em sua cama, de pijama, enquanto a diretoria se
acomodava ao lado de uma mesa fornida de pães de queijo.)

“Fumo vinte cigarros antes de sentar na frente do


computador. Ainda tenho momentos de oblomovismo”,
contou Cosac, com o corpo afundado no sofá de seu
apartamento, isqueiro na mão, pronto para se abastecer de
mais uma dose de nicotina.
A despeito da identificação com o nobre russo, nos últimos
meses ele assinou pilhas de papéis, encaminhou demissões
de funcionários, enviou e-mails para os autores da casa,
doou livros para a Biblioteca Mário de Andrade – enfim,
empenhou-se em dar um destino ao espólio da editora. Em
entrevista ao Estadão, nos últimos dias de janeiro, o editor
declarou que o fechamento da casa estava sendo um
verdadeiro “inferno”.

Na última semana de dezembro foi divulgado um acordo


com a Companhia das Letras, segundo o qual cerca de
setenta títulos do catálogo da Cosac seriam incorporados
pela editora de Schwarcz – as obras de Murilo Mendes e de
Jorge de Lima, a biografia de Clarice Lispector, as traduções
de Tolstói assinadas por Rubens Figueiredo, entre outros.
Uma nota da Folha de S.Paulo publicada logo depois
revelou que as coleções de antropologia e design ficariam
com Florencia Ferrari e Elaine Ramos, que abriram uma
nova editora, de nome Ubu. Milton Ohata levou para a 34 as
obras de dois autores que a Cosac ajudou a redescobrir, o
contista João Antônio e o crítico Mário Pedrosa. Em nome
da Planeta, onde ocupa o cargo de diretor editorial,
Cassiano Elek Machado adquiriu os direitos das obras do
escritor chileno Alejandro Zambra.

À Editora da Universidade de São Paulo, Edusp, caberão


alguns ensaios e paradidáticos; à Gustavo Gili, alguns
títulos de moda, design e arquitetura. Em fevereiro Charles
Cosac anunciou a transferência para as editoras Sesi e Senai
de cerca de 300 títulos do catálogo, incluindo várias
coleções, como Cinema, Mulheres Modernistas, Teatro e
Modernidade, entre outras. O Instituto Moreira Salles
adquiriu lotes de exemplares de todos os 46 títulos de
fotografia da Cosac.

Em meados de janeiro a editora mudou de endereço.


Mudou ma non troppo: continuou na mesma rua, mas foi
para um espaço menor, num prédio vizinho ao anterior. A
maioria dos funcionários já havia se desligado da empresa,
restavam os da área comercial. Dione Oliveira, o diretor
financeiro, me disse que as vendas do selo triplicaram desde
o anúncio do seu fim. Congestionado, o site chegou a ficar
fora do ar por mais de uma semana. A média de vendas
online cresceu cinco vezes em um mês e atingiu a marca de
1 milhão. O número de livros estocados no depósito foi
reduzido à metade. O site foi desativado no final de janeiro,
quando a Amazon ganhou exclusividade para vender o
estoque remanescente da casa.

Numa enquete realizada pelo jornal Valor Econômico há


cinco anos, um grupo de críticos e professores apontou a
Cosac Naify como a segunda editora mais admirada do
país, superada apenas pela Companhia das Letras. Na
última edição da Festa do Livro da USP, em dezembro, a
Cosac atraiu muito mais leitores que sua antiga concorrente.
Admiradores, curiosos e donos de sebos enfrentaram filas
de quase uma hora para comprar com descontos de 50%. Os
funcionários mal tinham tempo para respirar, mas
interromperam as vendas para abraçar Augusto Massi, o ex-
presidente da editora, que apareceu de surpresa e saiu de lá
emocionado.

Na fila, os comentários se concentravam sobre a notícia,


então fresca, do término da editora. Um rapaz disse ter
pensado que fosse um boato, uma engenhosa jogada de
marketing. Outros desconfiavam que a Cosac Naify iria
voltar a operar como no começo, focada em títulos de arte.

Cosac anunciou que ainda ao longo deste ano vai publicar


sete títulos sobre artistas contemporâneos, antes de encerrar
em definitivo as atividades da editora. Mas esse último
movimento não significa que ele tenha outros planos.
“Ninguém pense que o novo escritório é um embrião de
uma editora de arte”, avisa o fundador da casa, que também
planeja organizar uma exposição dos livros da editora.

O derradeiro título já foi definido. Será uma obra de Tunga,


o artista plástico cujo livro deu início ao ciclo editorial da
casa, em 1997. “Meu desejo é que o último livro supere o
primeiro e seja uma celebração da vida de Tunga”, contou o
editor. (O artista e amigo de Cosac morou no apartamento
do editor durante boa parte do ano passado, quando se
mudou para São Paulo para tratar de um câncer na
garganta. O tratamento acabou em janeiro, e hoje Tunga já
está em sua casa no Rio.)

Cosac acompanha de perto a saúde da mãe, Vitória Cosac,


que tem Alzheimer e vive em um edifício próximo ao do
filho. Ele visita diariamente a matriarca, que é assistida por
enfermeiras. “Eu cuido dela, me sacrifico, dou meu tempo.
Mamãe é mais importante para mim do que minha própria
vida”, declarou. Impossível não se lembrar da fantasia do
menino que aos 5 anos chorava ouvindo Chopin e preferia
morrer a perder a mãe. Na presença do filho, ela
frequentemente menciona a primogênita que mora no Rio e
pouco aparece. “Tenho uma filha que sou apaixonada, sabe
moço?”, costuma dizer, como se não o reconhecesse. Às
vezes o confunde com o marido morto e o chama de
Mustafá.

S
e depender do desejo da irmã Simone e do cunhado
Michael Naify, Cosac abandonará o Brasil novamente.
O editor tem outra inclinação. “Eu amo São Paulo”, ele
diz, acrescentando que tem se animado com a ideia de
voltar a morar no Rio.

Cosac colocou à venda o apartamento de Higienópolis. Os


interessados no imóvel em geral ficam incomodados com o
espaço povoado por Cristos. As imagens do Redentor já
foram um obstáculo também na hora de contratar gente
para trabalhar no apartamento – muitas candidatas são
evangélicas, julgam uma heresia aquelas esculturas e se
recusam a prestar serviços para ele.

Quando nos encontramos pela última vez, o chão do


escritório estava abarrotado de caixas com livros da Cosac.
Na sala, o lugar de maior destaque ostentava sua mais nova
aquisição, um enorme são Miguel Arcanjo. “Dizem que é
meu santo protetor, mas não gosto de santo vencedor,
prefiro os trágicos, com olhar suplicante.” (Santa Catarina,
por sinal, foi condenada à morte lenta na roda – no
momento de sua execução a geringonça quebrou e a mártir
acabou morrendo decapitada.)

“Parece que perdi meu mundo, minha cidade, meu


apartamento e meu país. Mas tenho que entender que sou
brasileiro, tenho um RG, cães, uma mãe com Alzheimer,
psiquiatra e advogado. Isto já é uma razão para eu me
levantar.”

Hoje com 51 anos de idade, Charles Cosac acredita que


ainda tem uns trinta anos de vida pela frente, o suficiente
para desenvolver novos projetos. Meio de troça, ele diz que
sempre teve vontade de ter uma rádio, provavelmente para
tocar ópera e “canções de fossa”. Quando anunciou o fim da
editora, os primeiros que escreveram para seu e-mail
receberam uma resposta automática com a letra de Meu
Mundo Caiu, o grande sucesso de Maysa.

Mas o hit de sua emissora, diz, seria Por Minha Conta, do


compositor português Jorge Fernando, que Cosac conheceu
ouvindo um disco lançado pela cantora Ana Moura há
alguns anos. Aquele fado seria a perfeita tradução de seus
sentimentos e poderia servir como trilha sonora se o
desfecho da editora fosse filmado. “Ouvia sem parar, sem
parar”, ele me disse em dezembro, quando rememorou o
martírio do fechamento.
Cosac saiu do escritório e me levou até a sala. Colocou o
disco de Ana Moura.

Fiquei por minha conta


Mercê dum passo incerto
A culpa em mim se apronta
Ronda-me a alma por perto

Fiquei num olhar fundo


Perdido não sei onde
Só sei ceder-me ao mundo
Onde o meu ser se esconde

Sentado no sofá, tinha as duas mãos sobre o colo e os olhos


perdidos num canto. Escutava imóvel, feito as esculturas
espalhadas pelo apartamento. Até que caiu no choro e seu
soluço se misturou à voz da cantora portuguesa.

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