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O Itinerário do ser humano moderno1

Introdução

Se Homero deu ao mundo ocidental o primeiro retrato de um homem, Tom


Wolfe talvez seja um dos autores contemporâneos que melhor retratou até onde pode
chegar o hoomem do final do século XX. Se a Odisseia narra o longo itinerário que Ulisses
terá de percorrer para ser quem ele é, a Fogueira das Vaidades narra a derrocada de
Sherman McCoy, desde o que parecia ser até o que verdadeiramente era.

A questão central que era feita a Ulisses – quem você é – cada vez que chegava
a um novo lugar, não tem mais lugar nos tempos atuais. O que interessa agora, na
sociedade contemporânea, é saber o que você é, ou seja, quanto você ganha e onde
você mora. As aparências tem muito mais importância do que o ser.

Sherman McCoy é um típico WASP, que trabalha no coração pulsante de Nova


York, na Wall Street, na mesa de operações financeiras da Bolsa e tem uma bela casa
num dos bairros mais nobres, onde mora com sua mulher Judy, de pouco mais de 40
anos e com uma carreira em franca ascensão em decoração de interiores, e a sua
filhinha, Campbell, de 6 anos. Não sabemos bem, logo no começo, quem ele é, mas
ficamos sabendo que Sherman se acha um dos poucos “senhores do Universo” e que no
ritmo frenético e alucinante do mundo financeiro, num abrir e piscar de olhos, fecha
negócios de muitos milhões de dólares.

Nas primeiras páginas do livro, encontramo-nos com um homem cheio de si,


autoconfiante, bem situado e que goza de um status privilegiado. Não o encontramos,
como a Ulisses, deslocado, triste e procurando voltar ao seu lar. Pelo contrário,
encontramos Sherman McCoy fora da sua casa e da sua família, voltando do aeroporto
com Maria Ruskin, a sua amante, e com a expectativa feliz de poder estar a sós no
apartamento dela, longe da sua casa e da sua família.

Contudo, o que poderia ter sido, para ambos amantes, uma noite feliz, cheia de
desejos e fantasias, transformou-se, num instante, num longo pesadelo que irá, aos

1
Rafael Ruiz. Artigo em construção.
poucos, arrancando as máscaras e as aparências para deixar transparecer quem ele é
verdadeiramente. Como reconhecerá, no final do livro, “não sou a pessoa com quem
minha mulher se casou ou o pai que minha filha conheceu. Sou um ser humano
diferente (...). Todo bicho tem o seu hábitat, e estou no meu neste instante. ”(p. 590).

Senhor do Universo

Tem pessoas que andam pela vida como se fossem os donos do mundo. E tem
pessoas que, como Sherman McCoy, não se satisfazem apenas com isso, o que querem
mesmo é serem tratados como “Senhores do Universo”. O mundo não é bastante para
eles.

“Os senhores do Universo eram uma coleção de sinistros e predatórios bonecos


de plástico com que sua filha, (...) gostava de brincar. Pareciam deuses nórdicos
halterofilistas e tinham nomes com Dracon, Ahor, Mangelred, Blutong. Eram
extraordinariamente vulgares, até mesmo para brinquedos de plástico. Porém um
belo dia, num assomo de euforia, depois de ter erguido o fone e recebido um cupom
de dividendos que lhe rendeu 50.000 dólares de comissão, num piscar de olhos, essa
mesma expressão lhe ocorrera. Na Wall Street ele e uns poucos - quantos? Trezentos,
quatrocentos, quinhentos? - Tinham se transformado exatamente nisso... Senhores do
Universo. Não havia limites, simplesmente! É claro que nunca nem sussurrara essa
expressão para ninguém. Não era idiota. Contudo não conseguia tirá-la da cabeça” (p.
15).

São homens de gelo, profundamente egoístas, incapazes de assumir quaisquer


responsabilidades que estejam além dos limites do que lhes interessa especificamente.
Não se sentem responsáveis pelo simples motivo de que não há ninguém acima deles a
quem precisariam responder. Quem poderia pedir contas a um Senhor do Universo? É
ele quem exige satisfações; ele quem tem exigências a fazer; é ele, enfim, que está
sempre com a razão.

É por isso que Sherman, como um bom “Senhor do Universo”, perde o sentido
da realidade e, não poucas vezes, chega a cair no ridículo porque se interessa
exclusivamente por satisfazer seus desejos a curto, a médio ou a longo prazo. Há muitas
coisas que não se entendem na sua conduta, não porque sejam ilógicas ou irracionais,
mas porque não são sinceras e sempre estão ocultas no mais recôndito das suas
intenções. O que quer e o que pretende nem sempre é o que se pode deduzir das suas
ações. Há sempre um interesse mais ou menos oculto que escapa à percepção dos
outros. E quase sempre há um momento em que -por um descuido, por uma palavra
fora de propósito, por um comentário na hora errada...- os verdadeiros motivos vêm à
tona. Não de forma aberta ou explícita, mas como um lampejo, como se, por um
instante, se disparasse um flash instantâneo que deixasse às claras os meandros da sua
alma. E, depois, de novo, a escuridão e o silêncio.

Depois de fazer uma cena ridícula, perante a sua mulher e o porteiro do prédio,
forçando o cachorro para passear no meio de uma noite de chuva, animando
insistentemente o animal, que latia e se recusava a sair, primeiro da casa e depois do
prédio, conseguiu finalmente o que queria: um álibi para poder ligar à amante, longe da
sua mulher, e saber se tudo estava bem com ela, depois da tragédia na volta do
aeroporto.

“...Finalmente conseguiu dobrar a esquina e chegar ao telefone público. E pôs


o cachorro no chão (...) Tem a cabeça empapada de chuva. O coração bate com força
(...) O cachorro continua a lutar. A guia torna a enredar-se nas pernas de Sherman. Ele
tira o fone do gancho e o aconchega entre o ombro e a orelha, e cata uma moeda de
25 cents no bolso; insere-a na ranhura e disca. Três toques e uma voz de mulher:

- Alô?

Mas não era a voz de Maria. Imagina que seja a amiga Germaine, de quem ela
subloca o apartamento. Então diz:

- Posso falar com Maria, por favor?

- Sherman? É você?

Essa não! É Judy! Ele ligou para o próprio apartamento. Está aterrado -
paralisado!

- Sherman?
Desliga. Meu Deus, Que fazer? Vai blefar. Quando perguntar dirá que não sabe
do que está falando. Afinal, disse apenas cinco ou seis palavras. Como pode ter
certeza? ”(p. 18-19).

Até aquele momento, Sherman não tinha consciência do que fez nem do que
aconteceu. Conseguia enganar-se achando que talvez acontecera algo, mas, sem dúvida,
não devia ter lá muita importância. Não para um Senhor do Universo. Porém, aquele
lampejo, aquele faixo de luz instantâneo despertou em Sherman um processo que, até
aquele momento, tinha ficado adormecido: a tomada de consciência.

O longo caminho da tomada de consciência

É difícil. Muito difícil e doloroso o processo de tomada de consciência que deve


realizar Sherman McCoy. A dúvida já tomou conta da sua mente: “Conseguiria blefar
ou se enrascara realmente de vez? Teria mesmo magoado a mulher?”(p. 19). Pouco
a pouco a dúvida -o desassossego produzido por não saber se foi ou não descoberto -
vai tomando conta da imaginação, da memória, do coração , dos afetos...

“...Que seria de Campbell se ele e Judy algum dia se separassem? Não


conseguia imaginar a vida depois disso. Direito de visitas à própria filha? (...) a alminha
de Campbell se empedernindo, mês após mês, transformando-se numa casquinha
quebradiça...”(p. 51).

O difícil nesse processo não é encarar os fatos, pois eles estão aí e são
incontestáveis, pelo menos a maior parte das vezes. O difícil mesmo é reconhecer que
erramos, sem alegar nenhuma justificativa atenuante. Difícil mesmo é admitir a culpa.
Tenta-se de tudo, antes de admiti-la e, por isso, se acusa o síndico, o tempo, a pressão,
o stress, os filhos, o cônjuge.... Tudo e todos, mas nunca a si próprio.

Sherman tentou manter as aparências. Todo o seu mundo girava em torno dos
seus próprios interesses. Não podia, por isso, parar simplesmente e dizer: “errei”;
“enganei a todos”; “o que eu dizia e fazia não era bem isso, era outra coisa”... Tomar
esse caminho era uma decisão difícil, pois exigiria não apenas a humildade de
reconhecer o erro, mas a valentia de mudar de vida, a coragem de retificar as
motivações íntimas de todo o seu comportamento. Por isso, McCoy recorreu ao
expediente ridículo -ridículo para quem olha de fora, mas absolutamente “justificado”
para ele- de arranjar desculpas.

“Na “bombonnière”, depois de pagar pelo “Times”, Sherman voltou-se para


sair, e seus olhos relancearam por uma estante de revistas. A carne salmão saltou
diante dele...moças...rapazes...moças com rapazes...moças com seios nus, moças com
traseiros nus...moças com adereços...uma orgia alegre e sorridente de pornografia,
uma festança, uma depravação, um chafurdeiro (...)

Sherman retomou a caminhada em direção à First Avenue num estado de


agitação. Pairava no ar! Era uma onda! Por toda parte! Iniludível!...Sexo!...à
disposição...(...) Se você fosse jovem e parcialmente vivo, que chance teria?...
Tecnicamente fora infiel à esposa. Bem, sem dúvida...,mas quem poderia permanecer
monógamo com esse, esse, esse maremoto de concupiscência rolando pelo mundo?
Deus todo-poderoso! Um Senhor do Universo não poderia ser santo, afinal... Era
inevitável. Pelo amor de Deus, não se podia esquivar de flocos de neve, e isso era uma
nevasca! Só fora apanhado por ela, só isso, ou meio apanhado por ela. Não queria
dizer nada. Não tinha dimensões morais. Era o mesmo que se encharcar...” (p. 52).

Como é fácil iludir-se com o conceito de “inevitabilidade”! É como se, de repente,


Sherman tivesse tomado consciência não do que tinha feito, mas de que não podia ter
feito de outra forma; de que não haveria força no mundo capaz de resistir... E Sherman
não tinha uma Circe que o aconselhasse a resistir aos encantos das Sereias.

Não é que faltassem “dimensões morais” para McCoy, pois se assim fosse não
teria tido capacidade de “sentir a sua falta”. O que McCoy não tinha era a coragem de
agir de acordo com essas dimensões e, por isso, aquietava sua consciência mostrando-
lhe que, naquele caso concreto, fora forçado a trair sua mulher, tendo em conta a
imoralidade gritante do ambiente em que vivia.

Outras vezes, a desculpa não se coloca no ambiente, mas, por mais incrível que
possa parecer, coloca-se na própria vítima.Trata-se de um dos argumentos mais curiosos
já esgrimidos até hoje. E parece que o está sendo com sucesso! Há como que uma
inversão de papéis, de maneira que o agressor torna-se vítima e a vítima agressor.
Pode-se acompanhar pelos jornais como esse tipo de justificativa está cada vez
tomando mais espaço na nossa sociedade. É comum um assassino defender-se culpando
a vítima porque não soube compreendê-lo; porque explorou a sua ingenuidade por anos
a fio; porque fabricou cigarros que lhe provocaram câncer; porque vestia de forma
provocativa... De repente, é como se nos encontrássemos junto com “Alice através do
espelho” e tudo começasse a acontecer ao contrário do que parecia normal.

“Senhores do Universo! O vozerio (no local de trabalho de McCoy) enchia a alma


de Sherman de esperança, confiança, “esprit de corps”e virtude. É, virtude! Judy não
entendia nada disso. Nadinha. Ah! Reparava que seus olhos se embaciavam quando
ele falava disso. Mover a alavanca que movia o mundo era o que ele fazia - e só o que
ela queria saber era por que nunca chegava em casa na hora do jantar. E quando
chegava em casa na hora do jantar, sobre o que queria conversar? Sobre o seu precioso
negócio de decoração de interiores e a maneira pela qual conseguira estampar o
apartamento deles no “Architectural Digest”, o que, sinceramente, para um
verdadeiro wall-streetano era um constrangimento só. E será que o elogiava pelas
centenas de milhares de dólares que tornavam possível sua decoração e os almoços e
qualquer outra coisa que fizesse? Isso não. Eram favas contadas... e assim por diante.
Em 90 segundos, animado pelo ruído ensurdecedor da sala de operação de obrigações
da Pierce and Pierce, Sherman conseguiu encher a cabeça de justificado rancor contra
a mulher que ousava fazê-lo se sentir culpado”(p. 58).

Shermam, como um bom Senhor do Universo, era o tipo de homem que, de tanto
enganar, conseguia enganar-se inclusive a si próprio. A sua personalidade estava
absolutamente fechada em si mesma e precisamente por isso não conseguia enxergar
nada além de a si próprio. Era como se a sua visão estivesse inevitavelmente afetada
pela icterícia. Tudo o que via, tudo o que enxergava e tudo o que deduzia sobre si próprio
ou os outros não era realmente o que, de fato, era, mas a imagem que seus caprichos e
interesses foram amarelando com o passar do tempo.

McCoy, num ato de profundo autoexame, chegou a convencer-se de que,


pensando bem em tudo, não fez nada de errado, já que uma pessoa tão importante
quanto ele tinha perfeito direito a agir como agiu. Não é que Sherman fosse cínico -
embora suas conclusões e atitudes o deixem parecer-, é que não tem olhos de ver ou,
por outras palavras, suas ações parecem-lhe tão justificadas que, o que para os outros
aparece evidentemente como uma mesquinharia, para ele -com seus olhos amarelados-
aparece como um direito.

“Por volta das 17.00 horas Sherman estava flutuando em adrenalina. Fazia
parte do poderio de destruição da Pierce and Pierce, Senhores do Universo. A audácia
da transação era de cortar o fôlego. Arriscar 6 bilhões de dólares em uma tarde! A
Pierce and Pierce era o poder, e ele estava intimamente ligado ao poder, e o poder
zumbia e pulsava em suas entranhas.

Judy. Não pensava nela nas últimas horas. Que importância tinha um único,
talvez idiota, telefonema...no estupendo registro mantido pela Pierce and Pierce? O
quinquagésimo andar era para pessoas que não tinham medo de agarrar o que
queriam. E, nossa! não queria muito, comparado ao que ele, um Senhor do Universo,
tinha o direito de possuir. Só queria sair do sério quando lhe desse na telha, gozar os
prazeres simples a que todos os poderosos guerreiros tinham direito.

Onde ela arranjava razão para fazê-lo sentir-se mal?

Se a quarentona queria o continuado apoio e a companhia do Senhor do


Universo, então tinha que deixá-lo aproveitar o precioso bem que ganhara com o seu
esforço, ou seja, juventude, beleza, seios sumarentos e nádegas plásticas” (p. 68).

Sherman McCoy também terá de passar, como o sofredor Ulisses, por um longo
e doloroso caminho. Uma odisseia que irá tirando dele todas as suas máscaras e acabará
por mostrá-lo como verdadeiramente é.

Os fatos, até certa altura dos acontecimentos, eram claros, pelo menos para
Sherman e Maria Ruskim, sua amante. Ele fora até o aeroporto para recebê-la e levá-la
até a sua casa. Na volta, em direção à cidade, no seu Mercedes esportivo, de 48.000
dólares, acabou perdendo a entrada para Manhattan e entrou, sem perceber, no Bronx.
Perambularam cada vez mais assustados pelas ruas do Bronx até que encontraram uma
saída para a Ponte George Washington - “Pelo menos é a civilização!”, foi o grito de
Maria-. Entraram na rampa de acesso e se encontraram repentinamente com a
passagem bloqueada -latas de lixo, pneus...-. McCoy saiu do carro para desimpedir a
passagem e se encontrou com dois rapazes negros. Tudo fazia crer que se tratava de um
assalto. Jogou o pneu contra um deles e correu para o carro que Maria já tinha ligado e
estava dirigindo em alta velocidade, sorteando as latas de lixo. Numa brusca freada
escutaram um “toque” e deu a nítida impressão de terem batido num dos rapazes.
Mesmo assim, Maria acelerou e conseguiram entrar na via expressa.

Até aí eram apenas fatos. Fatos como o telefonema errado que dera no começo
e que também o deixou intranquilo sem, contudo, abalá-lo. Era um Senhor do
Universo.... Pouco a pouco, ambos os dois foram se acalmando até chegarem finalmente
no apartamento de Maria. Nesse instante, os fatos transformaram-se num sinal de
alerta vermelho. A consciência começava a ficar intranquila.

“ - Acho que deveríamos comunicar à polícia (...) eles tentaram nos assaltar... e
acho que talvez você... acho que é possível que tenhamos atropelado um deles.

Ela ficou parada olhando para ele.

- (...) Se fiz isso, tenho certeza de que não o atingi com muita força. Mal cheguei
a ouvir alguma coisa (...). Francamente, não ligo a mínima.

- Mas suponha...

- Olhe, conseguimos sair de lá. Como conseguimos não faz diferença.

- Mas suponha...

- Suponha uma ova, Sherman. Aonde pretende ir para contar à polícia? Que vai
dizer?

- Não sei. Só vou contar o que aconteceu.

- Sherman, vou dizer a você o que aconteceu. Sou da Carolina do Sul e vou lhe
dizer em inglês claro. Dois crioulos tentaram nos matar e fugimos (...)

- É, mas suponha...

- Suponha você! Suponha que vá à polícia. Que vai dizer? Que vai dizer que
estávamos fazendo no Bronx? Afirma que só vai contar o que aconteceu. Muito bem,
conte a mim, Sherman. Que aconteceu?
Então, era isso o que na realidade ela estava dizendo. Será que se diz à polícia
que a sra. Arthur Ruskin da Fifth Avenue e o sr. Sherman McCoy da Park Avenue por
acaso estavam tendo um tête-à-tête noturno quando perderam a saída da Ponte
Triborough para Manhattan e se meteram numa ligeira enrascada no Bronx?
Repassou isso mentalmente. Bom, podia simplesmente dizer a Judy -não, não havia
maneira de poder simplesmente dizer a Judy que dera um passeio de carro com uma
mulher chamada Maria (...). Não sei - disse-. Talvez você tenha razão. Vamos refletir
um pouco. Só estou pensando alto” (p. 89-90).

Acabava de cair na real. Tinha tomado consciência de que não podia ser sincero,
não podia dizer o que as coisas eram, não podia simplesmente dar os nomes aos bois.
Não por enquanto. De fato, precisava de tempo. Precisava, principalmente, uma forma
“neutra” de contar toda aquela terrível história.

Mas, de qualquer forma o feixe de luz tinha sido aceso. Se percebia que não
poderia falar com sua mulher era porque acabava de perceber que seus argumentos
anteriores eram vãos, fúteis, ridículos; que tudo aquilo não passava de retórica; que a
verdadeira realidade era que tudo o que tinha montado na sua cabeça para justificar-se
era falso e mesquinho e que ele -como sua própria mulher lhe dissera depois da
discussão por causa do telefonema- “o Senhor do Universo, era ridículo, e era mau
caráter e era mentiroso”(p. 28). A luz estava em alerta vermelho. Ainda era necessário
trilhar o caminho do sofrimento.

Sofrer para conhecer

Não há pior cego do que aquele que não quer ver, diz o provérbio. E, quando não
queremos ver, procuramos concentrar nossa atenção em alguma coisa fora de nós.
Normalmente, no trabalho. O trabalho é muitas vezes como esse capuz que se coloca
nalguns animais para que percam a noção de tempo, desliguem da realidade que os
rodeiam e passem a produzir mais - mais leite, mais ovos, mais gordura... - Assim,
quando queremos desligar de certos aspectos negativos da nossa vida, nada mais fácil
do que deixar-se absorver pela tarefa profissional.
Mas esse mesmo processo, evidentemente artificial, acaba em pouco tempo.
Podemos distrair-nos, desligar-nos e absorver-nos por alguns dias ou talvez durante
várias semanas, mas não podemos passar assim a vida inteira. Todos temos um
“disjuntor emocional” que dispara no exato momento em que não dá mais para
disfarçar: é o remorso da consciência.

No começo, é como se, vez por outra, levasse um pequeno curto-circuito:


momentos em que “dá branco”; lapsos de memória, nos quais aflora todo o interior que
se pretende não ver; cenas vividas de que tentamos esquecer que atraem nossos
sentidos a tal ponto que carregamos a passar a concentração cada vez mais no trabalho.

“- Obrigado, Frank, lembranças ao Oscar. Ah, e diga a ele que voltarei a ligar
em breve sobre a Giscard. O franco está um pouco baixo, mas isso não é problema (...).

... e mesmo antes de terminar de preencher o formulário do pedido e o entregar


a Muriel, assistente de vendas, já estava pensando: Talvez devesse consultar um
advogado (...). Dois malfeitores tinham tentado roubar Maria e ele, e receberam o que
mereciam. Uma refrega na selva, pela lei da selva; fora só o que acontecera (...).

Então, sentiu o chão fugir. Em nenhum momento eles o ameaçaram “Eh!


Precisa de ajuda? ” E Maria provavelmente o atropelara com o carro. É foi Maria. Eu
não estava dirigindo. Ela é que estava. Mas será que isso o eximia da responsabilidade
aos olhos da lei? E será...

Que era aquilo? Na tela as 10,10 por cento de ’96 da United Fragrance tinham
subido para 102 1/8. Ah! Isso significava que acabara de ganhar um quarto de um
ponto percentual sobre 3 milhões de obrigações (...) mas se alguma coisa acontecesse
com o (...) rapaz alto e delicado...” (p. 130).

Depois, o que parecia ser apenas pequenos “brancos” na memória, vai ganhando
corpo e - dependendo do caráter da pessoa - acaba por tomar conta da cabeça, do
coração, da memória, dos sentidos..., do homem todo. É como se acontecesse um jogo
tragicômico entre a consciência e a imaginação, a primeira plantando-se nos pequenos
detalhes que lhe lembrassem o fato que se pretende esquecer, e a segunda,
aumentando as projeções e as dimensões das consequências: qualquer fagulha é
suficiente para imaginar um incêndio; qualquer piscar de olhos basta para confirmar a
desconfiança: qualquer sorriso abafado é sinal mais do que suficiente de que todos já
estão sabendo do assunto... Somos trazidos e levados de cá para lá, ao sabor do medo
de que tudo se descubra e vemo-nos absolutamente incapacitados de prestar atenção
no que fazemos

McCoy estava no telefone tentando fechar um contrato com seu colega francês
- 300 milhões de dólares - enquanto que um engraxate cuidava dos seus sapatos. Sentia-
se novamente Senhor do mundo “estava quase disposto, mais uma vez, a considerar a
ideia do... domínio do universo... os gritos dos jovens titãs acuando o dinheiro soavam
à sua volta...” (p. 229). Porém, num relance de olhar no jornal do engraxate, pareceu-
lhe ver uma manchete que começou a intranquilizá-lo

“Mãe de aluno brilhante:

Tiras não investigam atropelamento”

Acima em letras brancas menores, numa tarja preta, vinha: Rapaz à beira da
morte.” (p. 230).

A partir desse exato momento vai começar para McCoy uma verdadeira
“odisseia” entre a realidade diária - as ações negociadas que o puxam para um lado - e
o remorso da consciência que, cada vez mais fortemente, força-o a concentrar-se sobre
si próprio e sobre o seu sentimento de culpa.

“Seu cérebro estava em fogo. Morria de vontade de se abaixar e virar o jornal


- e morria de vontade de nunca precisar saber o que revelaria. Entrementes, a voz de
Bernard Levy” (o colega francês) “continuava monotonamente do outro lado do
oceano(...).

- ... falando de 96, se é isso que você quer dizer com as coisas estarem ‘se
encaixando’. Mas isto está começando a parecer mito caro, porque...

Caro? Noventa e seis? “Nenhuma menção de uma tentativa de assalto!”O


preço sempre estivera ajustado! “Será que, afinal, não tinha sido uma tentativa de
assalto?” Pagará em média 94 por elas. Um “spread”de apenas dois pontos. “Esse
rapaz de boa aparência morrendo! Meu carro!”Preciso me concentrar... Não posso
fracassar, não depois de todo esse tempo de negociações (...)
(...) Sherman tentou prestar atenção às duas coisas ao mesmo tempo, mas as
palavras do francês não demoraram a se transformar num chuvisco, num chuvisco via
satélite, à medida que ele devorava os caracteres impressos visíveis sob o crânio do
engraxate”(p. 233-4).

A partir desse momento, o curto-circuito transformou-se num paralisante


blecaute. Sherman McCoy começou a sofrer intensamente, tanto internamente -
angústia, desassossego, incertezas- quanto externamente, pois dificilmente acertava
mais até nas menores rotinas diárias.

A necessidade de enfrentar-se com a verdade

Uma das características mais nítidas daquele que se acha “senhor do Universo”
é o seu total e completo individualismo a qualquer custo. Não gosta de pedir a ajuda de
ninguém: não quer externar o que para ele seria um sinal de fraqueza. O egoísmo é, de
alguma maneira, uma força centrípeta, concentrada espiralmente para dentro.

Por outro lado, o remorso é uma força centrífuga. Talvez porque exerce uma
profunda pressão sobre as forças íntimas do homem, ou talvez porque os sentimentos
despertados necessitem de uma válvula de escape, o fato é que sempre que nos
encontramos com um problema de consciência, sentimos uma imperiosa necessidade
de abrir-nos com alguém, de encontrar ao nosso lado um ouvido atento, compreensivo
e orientador.

Dentro do coração de Sherman essas duas forças esticavam-se ao máximo,


criando uma forte tensão interior que, inevitavelmente, conduziria a uma crise. Essa
crise, que vem do grego e significa “resolução”, “decisão”, poderá ter um resultado bom
ou mau, dependendo principalmente do peso moral da pessoa que atravessa a crise, e
sempre -ou quase sempre- será um momento verdadeiramente doloroso.

Sherman não aguentava mais a pressão da sua consciência. Estava disposto a


contar a verdade, queria abrir-se porque percebia que, se não, seria incapaz de
concentrar-se em qualquer coisa. As negociações delicadas que estava realizando
praticamente quase naufragaram porque, vez por outra, não conseguia prestar atenção
a não ser nas circunstâncias que envolveram o acidente. Iria falar com Maria para dizer-
lhe que decidiu procurar a polícia e contar a verdade. No fundo, estava querendo
encontrar um apoio, pois ainda não estava totalmente decidido.

“- Sherman, deixe-me dizer uma coisa. Existem dois tipos de selva. Wall Street
é uma selva (...). E existe o outro tipo de selva. Foi nessa que nos perdemos na outra
noite, no Bronx. (...). Sabe o que existe naquela selva? Pessoas que estão o tempo todo
atravessando para lá e para cá, para lá e para cá, para lá e para cá, deste lado da lei
para o outro lado, deste lado para o outro lado. Você não tem idéia do que seja isso.
Você recebe uma boa educação. As leis não representaram nenhuma ameaça para
você. Elas eram as suas leis, de gente como você e a sua família. Bom, eu não fui criada
assim. Estávamos sempre oscilando entre um lado da linha e o outro, como um bando
de bêbados; conheço isso e a coisa não me assusta. E deixe-me dizer mais uma coisa.
Do lado de lá todos são animais: a polícia, os juízes, os criminosos, todos...”(p. 253).

E, dessa forma, Sherman perdeu mais uma vez a sua luta contra a consciência.
De fato, quando não estamos totalmente dispostos a encarar a própria mesquinhez,
qualquer argumento mais ou menos racional é suficiente para pagar o silêncio da
consciência. Embora não por muito tempo.

De fato, pouco tempo depois de tentar, em vão, colocar as coisas claras com
Maria, Sherman decidiu-se a contar tudo para a esposa, mas da decisão aos fatos houve
ainda um longo percurso. Quando se vive de aparências é sempre extremamente difícil
encarar a verdade de frente e, mais ainda, deixar isso claro e patente para os outros.

“Sherman estava de pé na metade do piso de mármore do saguão de entrada,


quando viu Judy na biblioteca. Estava sentada (...) Ergueu os olhos para ele. Que olhar
era aquele? Era de surpresa e não de carinho. Se lhe desse uma pontinha sequer de
carinho, ele entraria direto e ...contaria a ela! Ah, é? Contaria o quê? (...). Será que a
essa altura já teria visto um artigo sobre um Mercedes...RF... Mas não havia nem uma
pontinha de carinho”(p. 286).

Sherman queria e não queria. Umas vezes, no meio desse debate de consciência,
tinha um profundo e sincero desejo de se abrir, porém não encontrava nem o clima,
nem a receptividade desejada. Sempre é necessário um número mínimo de condições
para facilitar o desabafo: tempo e tranquilidade, confiança e compreensão; mas a
condição decisiva talvez seja a empatia entre quem se abre e quem escuta.

No começo, nem sempre é fácil para quem quer abrir-se. Há toda uma resistência
anterior que deve ser vencida, há o medo de não ser compreendido; existem todos
aqueles argumentos já vistos que atuam como inibidores do diálogo...

A empatia -esse estado de espírito adaptado milimetricamente ao estado de


espírito do outro- facilita infinitamente esse dificultoso dar os primeiros passos em
direção à abertura da alma. Quando nos apercebemos de que quem nos escuta não irá
surpreender-se por nada; não irá recriminar-nos por nada; não irá exigir-nos nada; mas
irá apenas escutar-nos, colocando-se no nosso lugar, então, sim, encontramos as
condições oportunas para abrirmos o nosso coração.

Sherman precisava encontrar um mínimo de condições para abrir-se com Judy.


Dois policiais, investigando o caso rotineiramente, acabavam de falar com ele no seu
apartamento e Sherman estava numa enorme excitação nervosa.

Judy acabava de chegar com Campbell e Sherman estava indeciso, pensando se


devia ou não contar à sua mulher toda a tragédia. Judy, porém, tinha outro tipo de
preocupações naquele momento.

“- Sherman -disse Judy parecendo preocupada- algum problema?

Deveria contar sobre a polícia imediatamente? Não! Saia e ligue para Maria!

- Ah, não -respondeu-, só que eu...

- Papai! -exclamou Campbell, vindo em sua direção-. Está vendo estas cartas?

- Vendo estas cartas?

Ela lhe estendeu três cartas de um baralho em miniatura, o ás de copas, o ás de


espadas e o ás de ouros.

- O que elas são? -perguntou a menina- O que elas são?

- Não sei, queridinha. Cartas de jogar.

- Mas o que elas são?


- Espere um instante, meu anjo. Judy, tenho que sair um minuto.

- Papai! O que elas são?

- Quando eu voltar. Tenho que sair só um segundinho.

- Papai!

- Um segundo, queridinha!

- Você vai sair? -perguntou Judy- Onde vai?

- Tenho que ir até...

- PAPAI! ME DIGA O QUE ELAS SÃO?

-...a casa de Freddy Button.

- PAPAI!

- Psssiiuuu -disse Judy- Quietinha.

- Papai!

- Casa de Freddy Button? Sabe que horas são? Temos que nos arrumar para
sair!

- Me diga o que elas são, papai!

Nossa! Esquecera completamente! Tinham que ir jantar na casa daquela gente


horrível, os Bavardages! A turma de Judy... as radiografias ambulantes... Hoje à noite?
Impossível.

- Não sei, Judy. Eu... não sei quanto tempo precisarei demorar na casa de
Freddy. Sinto muito, eu...

- O que quer dizer com não sei? (...)

- Vamos para a biblioteca -disse a Judy num tom de voz agourento (...)

Agora!... Conte-lhe!... Livre-se desse terrível peso de uma vez por todas!
Confesse! Com uma sensação próxima à euforia ele escalou os últimos centímetros da
grande muralha da impostura que erigira entre ele e a família, e...
- Sherman, aceitamos esse convite há cinco semanas. Temos que estar lá dentro
de uma hora e meia. E eu vou. E VOCÊ VAI (...). Nós vamos.

Ela continuava a sorrir cordialmente...e está encerrado o assunto”(p. 308-311).

Quando se quer e não se quer, dificilmente se encontra o momento oportuno


para se abrir. E normalmente é o tempo quem decide por nós. E nem sempre é bom,
porque quando é o tempo quem decide é sinal de que somos nós quem não decidimos,
somos nós quem não queremos.

“Começou a contar a sua história. Até as palavras saírem da sua boca,


pretendia ser inteiramente honesto a respeito de Maria. Mas... que bem faria isso?
Por que arrasar completamente a mulher? (...).

- Judy, juro a você, nem beijei a mulher, e muito menos tive um caso. Então essa
coisa inacreditável aconteceu, um pesadelo (...).

Estudou o seu rosto para ver se havia alguma chance de ela acreditar. Nada.
Aturdimento. Ele continuou...”(p. 412).

É fácil desculpar um erro de avaliação. Qualquer um de nós pode errar e todos


sabemos disso. Só os muito orgulhosos -aqueles que acreditam que nunca fazem nada
de errado- é que não perdoam. Porém, todos temos uma enorme dificuldade para
perdoar os erros de intenção, essas tentativas mesquinhas para disfarçar o indisfarçável,
para encobrir os interesses escusos, para justificar os próprios egoísmos
desmascarados... E quando a pessoa é muito próxima o sentimento que se desperta é o
da decepção: como é possível que estando tudo tão às claras, ainda assim continue
tentando manter a pose...

“(...) percebeu que ela já não estava ouvindo. Uma expressão curiosa, quase
sonhadora, surgira em seu rosto. Então começou a dar risadinhas. O único som que
saiu foi um cloc, cloc, cloc gutural.

Chocado e ofendido:

- Isso lhe parece engraçado?

Com um leve ar de riso:


- Estou rindo de mim mesma (...). Não estou reagindo como uma boa esposa,
estou? Eu quero. Mas como posso fazê-lo? Quero lhe oferecer meu amor ou, se não for
amor, meu... o quê?...minha solidariedade, meu apoio, meu consolo. Mas não posso.
Não posso nem fingir.Você não tem me deixado me aproximar de você. Você me
enganou, Sherman. Sabe o que isso significa, enganar alguém?

- Enganei? Meu Deus, foi um flerte, se é que foi alguma coisa. Se você... olhar
desejosa para alguém... pode chamar a isso de enganar se quiser, mas eu não o
chamaria.

Ela tornou a sorrir ligeiramente e a balançar a cabeça.

- Sherman, Sherman, Sherman.

- Juro que é verdade.

- (...) você se sentou aqui ao meu lado nesta mesma sala e assistiu ao noticiário,
à manifestação, e não disse uma só palavra. A polícia veio a nossa casa... a polícia!...
à nossa casa... e até lhe perguntei por que estava naquele estado, e você fingiu que
era uma coincidência. E então... naquela mesma noite... você se sentou ao lado de
sua... amiga... sua cúmplice... sua sócia... me diga como devo chamá-la... e ainda
assim não disse nada. Deixou-me pensar que não havia problema algum (...). E agora
chega em casa -subitamente seus olhos se marejaram de lágrimas- no fim do dia e me
diz... que... vai... ser... preso... pela ... manhã.

A frase foi engolida com os soluços. Sherman se levantou. Deveria tentar


abraçá-la? Ou isso só pioraria as coisas? Deu um passo na direção dela.

Ela estava sentada muito aprumada e estendia as mãos para a frente num
gesto delicado e hesitante.

- Não -disse-lhe baixinho-. Ouça apenas o que estou lhe dizendo. Vou tentar
ajudá-lo e vou tentar ajudar Campbell, de todas as formas que puder. Mas não posso
lhe dar amor, e não posso lhe dar carinho. Não sou uma boa atriz. Gostaria de ser
porque você vai precisar de amor e de carinho, Sherman.

Sherman perguntou:
- Você pode me perdoar?

- Acho que sim. Mas de que adiantaria?

Ele não soube responder” (p. 413-4).

O caminho até a solidão

Sherman foi ficando desesperado. O que inicialmente fora um simples


interrogatório policial acabou tornando-se uma queixa-crime, e só conseguiu continuar
em liberdade, depois de pagar uma boa fiança. Maria não estava disposta a dizer a
verdade no júri -que era ela quem na hora o acidente estava dirigindo o carro- e realizou
um arranjo com o Promotor Público para incriminar Sherman.

O egoísta, mais cedo ou mais tarde, acaba colhendo os próprios frutos que
semeou. É como se fosse uma espiral, um redemoinho que deixa apenas uma única
saída: continuar pensando em si próprio, mesmo que essa atitude obrigue
necessariamente a tornar-se cruel.

Maria finalmente aceitou encontrar-se com Sherman, poucos dias antes de


prestar depoimento perante o júri, e depois de ter feito o arranjo com o Promotor
Público. Sherman foi ao encontro com um gravador grudado no corpo, na altura da
cintura. Abraçaram-se e beijaram-se até que Maria percebeu que, nas costas de
Sherman havia um fio e um gravador. Da parte de Sherman foi uma tentativa frustrada
e desesperada. Magoada, Maria depôs no júri mentindo contra Sherman.

“... uma vez na rodovia, ela quis comunicar o acidente na polícia. Mas o sr.
McCoy não quisera ouvir falar nisso.

- Por que estava relutante em comunicar o que acontecera?

- Disse que era ele quem estava dirigindo quando aconteceu, portanto a
decisão era dele, não ia comunicar nada (...).

E assim a linda viúva Ruskin fez o sr. Sherman McCoy afundar como uma pedra”
(p. 575).
Cada um recolhe os frutos que semeou. Finalmente, completamente acuado e
sozinho, McCoy decidiu dar um passo ousado: o seu advogado conseguira por meios
ilícitos recuperar uma fita que o dono do apartamento, onde Maria e Sherman se
encontravam, possuía como defesa contra inquilinos que se tornavam “maus
pagadores”. Essa fita, por sorte, trazia a gravação da conversa entre os dois algumas
horas depois do acidente. Tudo estava gravado. Maria dizendo justamente o contrário
do que acabara de declarar ao júri: que era ela quem dirigia, que era ela quem não queria
que se avisasse a polícia, as hesitações de Sherman... O único problema era que não se
podia apresentar no tribunal uma fita como aquela, não havia maneira de uma fita
escondida e ilegal poder ser usada -explicou o seu advogado- em um tribunal de Justiça

- Então, por que foi que instalou um gravador em mim? É uma gravação furtiva.
Como, então, poderia ser usada?

- É furtiva, mas não ilegal. Você tem o direito de gravar as próprias conversas,
secretamente ou não. Mas se a conversa é de outra pessoa, então é ilegal (...).

- Deixe-me ver essa gravação - disse Sherman.

- Ver? perguntou seu advogado.

- É. Dê-me aqui.

- Tirar do gravador?

- É. - Sherman estendeu a mão (...). Ora essa - disse, erguendo os olhos para
Killian- É minha.

- Que quer dizer com é sua?

- A gravação é minha. Eu a fiz.

Killian observou-o com ar de troça, como se procurasse entender a piada.

- O que quer dizer com você a fez?

- Instalei um gravador em mim naquela noite, porque essa reportagem acabara


de sair em “The City Light” e presumi que talvez fosse precisar verificar o que
realmente acontecera. Isso que acabamos de escutar... é a gravação que fiz naquela
noite. É a minha gravação.

Killian estava boquiaberto.

- O que está dizendo?

- Estou dizendo que gravei essa fita. Quem vai dizer que não gravei. Essa
gravação é a minha propriedade, certo? Aqui está (...). Diga-me, doutor, o senhor
consideraria essa gravação admissível num tribunal de justiça? ” (p. 588-9).

Sherman estava chegando ao fim da sua odisseia. Mentiu. Não uma, nem duas
vezes. Toda a sua tese de defesa será apoiada numa mentira. Porém, o que significaria
mais uma mentira quando toda a sua vida estava fundamentada na mentira? Os
argumentos racionais surgiam na sua consciência com uma velocidade e acuidade
surpreendentes. Com a velocidade e a acuidade de quem fez da mentira o seu próprio
hábitat.

De certa forma, pode se conceder que, subjetivamente, não estivesse mentindo.


Subjetivamente, porque já fazia tempo que conseguiu enganar-se a si próprio; porque a
deformação da realidade era tão surpreendentemente forte que, de fato, podia estar
convencido de que as coisas se passaram como a sua imaginação ou sua fantasia
acabavam de inventar. Era como se o instinto de preservação detonasse todos os
ressortes de contato com a realidade.

“... gradualmente compreendi uma coisa nos últimos dias. Não sou mais o
Sherman McCoy. Sou outra pessoa sem um nome adequado. Tenho sido essa pessoa
desde o dia em que fui preso. Eu sabia que alguma coisa... alguma coisa fundamental
acontecera naquele dia, mas a princípio não soube o que era. A princípio pensei que
ainda era Sherman McCoy, e Sherman McCoy estava passando por um período de
muito azar. Nos últimos dois dias, porém, comecei a encarar a verdade. Sou outra
pessoa (...). Não sou a pessoa com quem minha mulher se casou ou o pai que minha
filha conheceu. Sou um ser humano diferente (...). Todo bicho tem o seu hábitat, e
estou no meu neste instante...”(p. 590).
A odisseia de Sherman foi corroendo-o pouco a pouco. O câncer do egoísmo vai
tomando conta de todas as nossas decisões, de todas as nossas atitudes e, finalmente,
de todo o nosso ser e pensar. Deixamos de ser o que poderíamos ter sido e passamos a
ser um bloco de mármore: frio, calculista, distante...

“- É ruim, sim -disse Sherman- mas juro a você que me sinto melhor agora. Sabe
como fazem com um cachorro, um cachorro de estimação, um pastor alemão que foi
alimentado e cuidado a vida toda para o treinarem como um cão de guarda perverso?

- Já ouvi falar - respondeu Killian.

- Então, conhece o princípio. Não alteram a personalidade do cachorro com


biscoitos ou pílulas. Eles o acorrentam, batem nele, tentam-no, atormentam-no, e
batem mais um pouco, até que um dia ele se vira e mostra os dentes e está pronto
para o combate mortal todas as vezes que escutar um ruído.

- É verdade.

- Bom, nessa situação os cães são mais inteligentes que os homens -concluiu
Sherman-. O cão não se apega à ideia de que é um fabuloso animalzinho de estimação
em alguma fantástica exposição de cães, como o homem faz. O cão entende o que se
espera dele. O cão sabe quando é a hora de se transformar num animal e lutar”(p.
591).

A odisseia de Sherman McCoy, o arrogante e prepotente homem da Wall Street,


tinha-o levado a comportar-se como um cachorro. A espiral do egoísmo sempre é
aviltante, reducionista, impiedosa; sempre degrada o próprio homem.

O julgamento de Sherman McCoy fora anulado, porém o Promotor Público, por


interesses eleitorais, apresentou nova denúncia e conseguiu um novo indiciamento. No
prazo de um ano -da anulação do primeiro julgamento à instauração do segundo- todos,
absolutamente todos, abandonaram Sherman McCoy: sua mulher com a sua filha, seu
advogado, seus amigos, sua amante, seus vizinhos, seus colegas... McCoy ficou só.
Amarguradamente só.

Víktor Frankl afirma que frente ao “homo faber”, que se desenvolve apenas nas
coordenadas do êxito e do fracasso, está o “homo patiens”, andando precisamente na
direção contrária. Mesmo nas condições mais difíceis; mesmo no meio do maior
sofrimento e abandono, o homem que sofre resgata-se a si mesmo, supera a sua própria
dor. Mas para isso é necessário experimentar e aceitar o sofrimento. Sherman
experimentou a dor, a humilhação e o abandono, mas não o aceitou.

Víktor Frankl dizia que a essência do homem não é a de um “homo faber”, mas a
de um “homo patiens” (Cfr. FIZZOTI, Eugenio. “De Freud a Frankl”, Espasa-Calpe,
Madrid, 1977,p. 209). O caminho da redenção do homem é o caminho da aceitação
voluntária da dor e do sofrimento.

Talvez às portas de uma condenação à prisão quase certa – Tom Wolfe não nos
conta o final dessa história - Sherman McCoy possa vir a tornar-se o homem que deveria
ter sido e que a estrada do “homo faber” tinha malogrado. Talvez venha a descobrir,
como dizia Frankl, que o homem que sofre e aceita o sofrimento é quem acaba vivendo
verdadeiramente como homem (p. 209). Mas, para isso, seria preciso, também como
dizia Frankl, que Sherman tivesse a coragem de ter não a pretensão de viver como um
Senhor do Universo, mas a ousadia de sofrer como qualquer ser humano.

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