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Introdução
A questão central que era feita a Ulisses – quem você é – cada vez que chegava
a um novo lugar, não tem mais lugar nos tempos atuais. O que interessa agora, na
sociedade contemporânea, é saber o que você é, ou seja, quanto você ganha e onde
você mora. As aparências tem muito mais importância do que o ser.
Contudo, o que poderia ter sido, para ambos amantes, uma noite feliz, cheia de
desejos e fantasias, transformou-se, num instante, num longo pesadelo que irá, aos
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Rafael Ruiz. Artigo em construção.
poucos, arrancando as máscaras e as aparências para deixar transparecer quem ele é
verdadeiramente. Como reconhecerá, no final do livro, “não sou a pessoa com quem
minha mulher se casou ou o pai que minha filha conheceu. Sou um ser humano
diferente (...). Todo bicho tem o seu hábitat, e estou no meu neste instante. ”(p. 590).
Senhor do Universo
Tem pessoas que andam pela vida como se fossem os donos do mundo. E tem
pessoas que, como Sherman McCoy, não se satisfazem apenas com isso, o que querem
mesmo é serem tratados como “Senhores do Universo”. O mundo não é bastante para
eles.
É por isso que Sherman, como um bom “Senhor do Universo”, perde o sentido
da realidade e, não poucas vezes, chega a cair no ridículo porque se interessa
exclusivamente por satisfazer seus desejos a curto, a médio ou a longo prazo. Há muitas
coisas que não se entendem na sua conduta, não porque sejam ilógicas ou irracionais,
mas porque não são sinceras e sempre estão ocultas no mais recôndito das suas
intenções. O que quer e o que pretende nem sempre é o que se pode deduzir das suas
ações. Há sempre um interesse mais ou menos oculto que escapa à percepção dos
outros. E quase sempre há um momento em que -por um descuido, por uma palavra
fora de propósito, por um comentário na hora errada...- os verdadeiros motivos vêm à
tona. Não de forma aberta ou explícita, mas como um lampejo, como se, por um
instante, se disparasse um flash instantâneo que deixasse às claras os meandros da sua
alma. E, depois, de novo, a escuridão e o silêncio.
Depois de fazer uma cena ridícula, perante a sua mulher e o porteiro do prédio,
forçando o cachorro para passear no meio de uma noite de chuva, animando
insistentemente o animal, que latia e se recusava a sair, primeiro da casa e depois do
prédio, conseguiu finalmente o que queria: um álibi para poder ligar à amante, longe da
sua mulher, e saber se tudo estava bem com ela, depois da tragédia na volta do
aeroporto.
- Alô?
Mas não era a voz de Maria. Imagina que seja a amiga Germaine, de quem ela
subloca o apartamento. Então diz:
- Sherman? É você?
Essa não! É Judy! Ele ligou para o próprio apartamento. Está aterrado -
paralisado!
- Sherman?
Desliga. Meu Deus, Que fazer? Vai blefar. Quando perguntar dirá que não sabe
do que está falando. Afinal, disse apenas cinco ou seis palavras. Como pode ter
certeza? ”(p. 18-19).
Até aquele momento, Sherman não tinha consciência do que fez nem do que
aconteceu. Conseguia enganar-se achando que talvez acontecera algo, mas, sem dúvida,
não devia ter lá muita importância. Não para um Senhor do Universo. Porém, aquele
lampejo, aquele faixo de luz instantâneo despertou em Sherman um processo que, até
aquele momento, tinha ficado adormecido: a tomada de consciência.
O difícil nesse processo não é encarar os fatos, pois eles estão aí e são
incontestáveis, pelo menos a maior parte das vezes. O difícil mesmo é reconhecer que
erramos, sem alegar nenhuma justificativa atenuante. Difícil mesmo é admitir a culpa.
Tenta-se de tudo, antes de admiti-la e, por isso, se acusa o síndico, o tempo, a pressão,
o stress, os filhos, o cônjuge.... Tudo e todos, mas nunca a si próprio.
Sherman tentou manter as aparências. Todo o seu mundo girava em torno dos
seus próprios interesses. Não podia, por isso, parar simplesmente e dizer: “errei”;
“enganei a todos”; “o que eu dizia e fazia não era bem isso, era outra coisa”... Tomar
esse caminho era uma decisão difícil, pois exigiria não apenas a humildade de
reconhecer o erro, mas a valentia de mudar de vida, a coragem de retificar as
motivações íntimas de todo o seu comportamento. Por isso, McCoy recorreu ao
expediente ridículo -ridículo para quem olha de fora, mas absolutamente “justificado”
para ele- de arranjar desculpas.
Não é que faltassem “dimensões morais” para McCoy, pois se assim fosse não
teria tido capacidade de “sentir a sua falta”. O que McCoy não tinha era a coragem de
agir de acordo com essas dimensões e, por isso, aquietava sua consciência mostrando-
lhe que, naquele caso concreto, fora forçado a trair sua mulher, tendo em conta a
imoralidade gritante do ambiente em que vivia.
Outras vezes, a desculpa não se coloca no ambiente, mas, por mais incrível que
possa parecer, coloca-se na própria vítima.Trata-se de um dos argumentos mais curiosos
já esgrimidos até hoje. E parece que o está sendo com sucesso! Há como que uma
inversão de papéis, de maneira que o agressor torna-se vítima e a vítima agressor.
Pode-se acompanhar pelos jornais como esse tipo de justificativa está cada vez
tomando mais espaço na nossa sociedade. É comum um assassino defender-se culpando
a vítima porque não soube compreendê-lo; porque explorou a sua ingenuidade por anos
a fio; porque fabricou cigarros que lhe provocaram câncer; porque vestia de forma
provocativa... De repente, é como se nos encontrássemos junto com “Alice através do
espelho” e tudo começasse a acontecer ao contrário do que parecia normal.
Shermam, como um bom Senhor do Universo, era o tipo de homem que, de tanto
enganar, conseguia enganar-se inclusive a si próprio. A sua personalidade estava
absolutamente fechada em si mesma e precisamente por isso não conseguia enxergar
nada além de a si próprio. Era como se a sua visão estivesse inevitavelmente afetada
pela icterícia. Tudo o que via, tudo o que enxergava e tudo o que deduzia sobre si próprio
ou os outros não era realmente o que, de fato, era, mas a imagem que seus caprichos e
interesses foram amarelando com o passar do tempo.
“Por volta das 17.00 horas Sherman estava flutuando em adrenalina. Fazia
parte do poderio de destruição da Pierce and Pierce, Senhores do Universo. A audácia
da transação era de cortar o fôlego. Arriscar 6 bilhões de dólares em uma tarde! A
Pierce and Pierce era o poder, e ele estava intimamente ligado ao poder, e o poder
zumbia e pulsava em suas entranhas.
Judy. Não pensava nela nas últimas horas. Que importância tinha um único,
talvez idiota, telefonema...no estupendo registro mantido pela Pierce and Pierce? O
quinquagésimo andar era para pessoas que não tinham medo de agarrar o que
queriam. E, nossa! não queria muito, comparado ao que ele, um Senhor do Universo,
tinha o direito de possuir. Só queria sair do sério quando lhe desse na telha, gozar os
prazeres simples a que todos os poderosos guerreiros tinham direito.
Sherman McCoy também terá de passar, como o sofredor Ulisses, por um longo
e doloroso caminho. Uma odisseia que irá tirando dele todas as suas máscaras e acabará
por mostrá-lo como verdadeiramente é.
Os fatos, até certa altura dos acontecimentos, eram claros, pelo menos para
Sherman e Maria Ruskim, sua amante. Ele fora até o aeroporto para recebê-la e levá-la
até a sua casa. Na volta, em direção à cidade, no seu Mercedes esportivo, de 48.000
dólares, acabou perdendo a entrada para Manhattan e entrou, sem perceber, no Bronx.
Perambularam cada vez mais assustados pelas ruas do Bronx até que encontraram uma
saída para a Ponte George Washington - “Pelo menos é a civilização!”, foi o grito de
Maria-. Entraram na rampa de acesso e se encontraram repentinamente com a
passagem bloqueada -latas de lixo, pneus...-. McCoy saiu do carro para desimpedir a
passagem e se encontrou com dois rapazes negros. Tudo fazia crer que se tratava de um
assalto. Jogou o pneu contra um deles e correu para o carro que Maria já tinha ligado e
estava dirigindo em alta velocidade, sorteando as latas de lixo. Numa brusca freada
escutaram um “toque” e deu a nítida impressão de terem batido num dos rapazes.
Mesmo assim, Maria acelerou e conseguiram entrar na via expressa.
Até aí eram apenas fatos. Fatos como o telefonema errado que dera no começo
e que também o deixou intranquilo sem, contudo, abalá-lo. Era um Senhor do
Universo.... Pouco a pouco, ambos os dois foram se acalmando até chegarem finalmente
no apartamento de Maria. Nesse instante, os fatos transformaram-se num sinal de
alerta vermelho. A consciência começava a ficar intranquila.
“ - Acho que deveríamos comunicar à polícia (...) eles tentaram nos assaltar... e
acho que talvez você... acho que é possível que tenhamos atropelado um deles.
- (...) Se fiz isso, tenho certeza de que não o atingi com muita força. Mal cheguei
a ouvir alguma coisa (...). Francamente, não ligo a mínima.
- Mas suponha...
- Mas suponha...
- Suponha uma ova, Sherman. Aonde pretende ir para contar à polícia? Que vai
dizer?
- Sherman, vou dizer a você o que aconteceu. Sou da Carolina do Sul e vou lhe
dizer em inglês claro. Dois crioulos tentaram nos matar e fugimos (...)
- É, mas suponha...
- Suponha você! Suponha que vá à polícia. Que vai dizer? Que vai dizer que
estávamos fazendo no Bronx? Afirma que só vai contar o que aconteceu. Muito bem,
conte a mim, Sherman. Que aconteceu?
Então, era isso o que na realidade ela estava dizendo. Será que se diz à polícia
que a sra. Arthur Ruskin da Fifth Avenue e o sr. Sherman McCoy da Park Avenue por
acaso estavam tendo um tête-à-tête noturno quando perderam a saída da Ponte
Triborough para Manhattan e se meteram numa ligeira enrascada no Bronx?
Repassou isso mentalmente. Bom, podia simplesmente dizer a Judy -não, não havia
maneira de poder simplesmente dizer a Judy que dera um passeio de carro com uma
mulher chamada Maria (...). Não sei - disse-. Talvez você tenha razão. Vamos refletir
um pouco. Só estou pensando alto” (p. 89-90).
Acabava de cair na real. Tinha tomado consciência de que não podia ser sincero,
não podia dizer o que as coisas eram, não podia simplesmente dar os nomes aos bois.
Não por enquanto. De fato, precisava de tempo. Precisava, principalmente, uma forma
“neutra” de contar toda aquela terrível história.
Mas, de qualquer forma o feixe de luz tinha sido aceso. Se percebia que não
poderia falar com sua mulher era porque acabava de perceber que seus argumentos
anteriores eram vãos, fúteis, ridículos; que tudo aquilo não passava de retórica; que a
verdadeira realidade era que tudo o que tinha montado na sua cabeça para justificar-se
era falso e mesquinho e que ele -como sua própria mulher lhe dissera depois da
discussão por causa do telefonema- “o Senhor do Universo, era ridículo, e era mau
caráter e era mentiroso”(p. 28). A luz estava em alerta vermelho. Ainda era necessário
trilhar o caminho do sofrimento.
Não há pior cego do que aquele que não quer ver, diz o provérbio. E, quando não
queremos ver, procuramos concentrar nossa atenção em alguma coisa fora de nós.
Normalmente, no trabalho. O trabalho é muitas vezes como esse capuz que se coloca
nalguns animais para que percam a noção de tempo, desliguem da realidade que os
rodeiam e passem a produzir mais - mais leite, mais ovos, mais gordura... - Assim,
quando queremos desligar de certos aspectos negativos da nossa vida, nada mais fácil
do que deixar-se absorver pela tarefa profissional.
Mas esse mesmo processo, evidentemente artificial, acaba em pouco tempo.
Podemos distrair-nos, desligar-nos e absorver-nos por alguns dias ou talvez durante
várias semanas, mas não podemos passar assim a vida inteira. Todos temos um
“disjuntor emocional” que dispara no exato momento em que não dá mais para
disfarçar: é o remorso da consciência.
“- Obrigado, Frank, lembranças ao Oscar. Ah, e diga a ele que voltarei a ligar
em breve sobre a Giscard. O franco está um pouco baixo, mas isso não é problema (...).
Que era aquilo? Na tela as 10,10 por cento de ’96 da United Fragrance tinham
subido para 102 1/8. Ah! Isso significava que acabara de ganhar um quarto de um
ponto percentual sobre 3 milhões de obrigações (...) mas se alguma coisa acontecesse
com o (...) rapaz alto e delicado...” (p. 130).
Depois, o que parecia ser apenas pequenos “brancos” na memória, vai ganhando
corpo e - dependendo do caráter da pessoa - acaba por tomar conta da cabeça, do
coração, da memória, dos sentidos..., do homem todo. É como se acontecesse um jogo
tragicômico entre a consciência e a imaginação, a primeira plantando-se nos pequenos
detalhes que lhe lembrassem o fato que se pretende esquecer, e a segunda,
aumentando as projeções e as dimensões das consequências: qualquer fagulha é
suficiente para imaginar um incêndio; qualquer piscar de olhos basta para confirmar a
desconfiança: qualquer sorriso abafado é sinal mais do que suficiente de que todos já
estão sabendo do assunto... Somos trazidos e levados de cá para lá, ao sabor do medo
de que tudo se descubra e vemo-nos absolutamente incapacitados de prestar atenção
no que fazemos
McCoy estava no telefone tentando fechar um contrato com seu colega francês
- 300 milhões de dólares - enquanto que um engraxate cuidava dos seus sapatos. Sentia-
se novamente Senhor do mundo “estava quase disposto, mais uma vez, a considerar a
ideia do... domínio do universo... os gritos dos jovens titãs acuando o dinheiro soavam
à sua volta...” (p. 229). Porém, num relance de olhar no jornal do engraxate, pareceu-
lhe ver uma manchete que começou a intranquilizá-lo
Acima em letras brancas menores, numa tarja preta, vinha: Rapaz à beira da
morte.” (p. 230).
A partir desse exato momento vai começar para McCoy uma verdadeira
“odisseia” entre a realidade diária - as ações negociadas que o puxam para um lado - e
o remorso da consciência que, cada vez mais fortemente, força-o a concentrar-se sobre
si próprio e sobre o seu sentimento de culpa.
- ... falando de 96, se é isso que você quer dizer com as coisas estarem ‘se
encaixando’. Mas isto está começando a parecer mito caro, porque...
Uma das características mais nítidas daquele que se acha “senhor do Universo”
é o seu total e completo individualismo a qualquer custo. Não gosta de pedir a ajuda de
ninguém: não quer externar o que para ele seria um sinal de fraqueza. O egoísmo é, de
alguma maneira, uma força centrípeta, concentrada espiralmente para dentro.
Por outro lado, o remorso é uma força centrífuga. Talvez porque exerce uma
profunda pressão sobre as forças íntimas do homem, ou talvez porque os sentimentos
despertados necessitem de uma válvula de escape, o fato é que sempre que nos
encontramos com um problema de consciência, sentimos uma imperiosa necessidade
de abrir-nos com alguém, de encontrar ao nosso lado um ouvido atento, compreensivo
e orientador.
“- Sherman, deixe-me dizer uma coisa. Existem dois tipos de selva. Wall Street
é uma selva (...). E existe o outro tipo de selva. Foi nessa que nos perdemos na outra
noite, no Bronx. (...). Sabe o que existe naquela selva? Pessoas que estão o tempo todo
atravessando para lá e para cá, para lá e para cá, para lá e para cá, deste lado da lei
para o outro lado, deste lado para o outro lado. Você não tem idéia do que seja isso.
Você recebe uma boa educação. As leis não representaram nenhuma ameaça para
você. Elas eram as suas leis, de gente como você e a sua família. Bom, eu não fui criada
assim. Estávamos sempre oscilando entre um lado da linha e o outro, como um bando
de bêbados; conheço isso e a coisa não me assusta. E deixe-me dizer mais uma coisa.
Do lado de lá todos são animais: a polícia, os juízes, os criminosos, todos...”(p. 253).
E, dessa forma, Sherman perdeu mais uma vez a sua luta contra a consciência.
De fato, quando não estamos totalmente dispostos a encarar a própria mesquinhez,
qualquer argumento mais ou menos racional é suficiente para pagar o silêncio da
consciência. Embora não por muito tempo.
De fato, pouco tempo depois de tentar, em vão, colocar as coisas claras com
Maria, Sherman decidiu-se a contar tudo para a esposa, mas da decisão aos fatos houve
ainda um longo percurso. Quando se vive de aparências é sempre extremamente difícil
encarar a verdade de frente e, mais ainda, deixar isso claro e patente para os outros.
Sherman queria e não queria. Umas vezes, no meio desse debate de consciência,
tinha um profundo e sincero desejo de se abrir, porém não encontrava nem o clima,
nem a receptividade desejada. Sempre é necessário um número mínimo de condições
para facilitar o desabafo: tempo e tranquilidade, confiança e compreensão; mas a
condição decisiva talvez seja a empatia entre quem se abre e quem escuta.
No começo, nem sempre é fácil para quem quer abrir-se. Há toda uma resistência
anterior que deve ser vencida, há o medo de não ser compreendido; existem todos
aqueles argumentos já vistos que atuam como inibidores do diálogo...
Deveria contar sobre a polícia imediatamente? Não! Saia e ligue para Maria!
- Papai! -exclamou Campbell, vindo em sua direção-. Está vendo estas cartas?
- Papai!
- Um segundo, queridinha!
- PAPAI!
- Papai!
- Casa de Freddy Button? Sabe que horas são? Temos que nos arrumar para
sair!
- Não sei, Judy. Eu... não sei quanto tempo precisarei demorar na casa de
Freddy. Sinto muito, eu...
- Vamos para a biblioteca -disse a Judy num tom de voz agourento (...)
Agora!... Conte-lhe!... Livre-se desse terrível peso de uma vez por todas!
Confesse! Com uma sensação próxima à euforia ele escalou os últimos centímetros da
grande muralha da impostura que erigira entre ele e a família, e...
- Sherman, aceitamos esse convite há cinco semanas. Temos que estar lá dentro
de uma hora e meia. E eu vou. E VOCÊ VAI (...). Nós vamos.
- Judy, juro a você, nem beijei a mulher, e muito menos tive um caso. Então essa
coisa inacreditável aconteceu, um pesadelo (...).
Estudou o seu rosto para ver se havia alguma chance de ela acreditar. Nada.
Aturdimento. Ele continuou...”(p. 412).
“(...) percebeu que ela já não estava ouvindo. Uma expressão curiosa, quase
sonhadora, surgira em seu rosto. Então começou a dar risadinhas. O único som que
saiu foi um cloc, cloc, cloc gutural.
Chocado e ofendido:
- Enganei? Meu Deus, foi um flerte, se é que foi alguma coisa. Se você... olhar
desejosa para alguém... pode chamar a isso de enganar se quiser, mas eu não o
chamaria.
- (...) você se sentou aqui ao meu lado nesta mesma sala e assistiu ao noticiário,
à manifestação, e não disse uma só palavra. A polícia veio a nossa casa... a polícia!...
à nossa casa... e até lhe perguntei por que estava naquele estado, e você fingiu que
era uma coincidência. E então... naquela mesma noite... você se sentou ao lado de
sua... amiga... sua cúmplice... sua sócia... me diga como devo chamá-la... e ainda
assim não disse nada. Deixou-me pensar que não havia problema algum (...). E agora
chega em casa -subitamente seus olhos se marejaram de lágrimas- no fim do dia e me
diz... que... vai... ser... preso... pela ... manhã.
Ela estava sentada muito aprumada e estendia as mãos para a frente num
gesto delicado e hesitante.
- Não -disse-lhe baixinho-. Ouça apenas o que estou lhe dizendo. Vou tentar
ajudá-lo e vou tentar ajudar Campbell, de todas as formas que puder. Mas não posso
lhe dar amor, e não posso lhe dar carinho. Não sou uma boa atriz. Gostaria de ser
porque você vai precisar de amor e de carinho, Sherman.
Sherman perguntou:
- Você pode me perdoar?
O egoísta, mais cedo ou mais tarde, acaba colhendo os próprios frutos que
semeou. É como se fosse uma espiral, um redemoinho que deixa apenas uma única
saída: continuar pensando em si próprio, mesmo que essa atitude obrigue
necessariamente a tornar-se cruel.
“... uma vez na rodovia, ela quis comunicar o acidente na polícia. Mas o sr.
McCoy não quisera ouvir falar nisso.
- Disse que era ele quem estava dirigindo quando aconteceu, portanto a
decisão era dele, não ia comunicar nada (...).
E assim a linda viúva Ruskin fez o sr. Sherman McCoy afundar como uma pedra”
(p. 575).
Cada um recolhe os frutos que semeou. Finalmente, completamente acuado e
sozinho, McCoy decidiu dar um passo ousado: o seu advogado conseguira por meios
ilícitos recuperar uma fita que o dono do apartamento, onde Maria e Sherman se
encontravam, possuía como defesa contra inquilinos que se tornavam “maus
pagadores”. Essa fita, por sorte, trazia a gravação da conversa entre os dois algumas
horas depois do acidente. Tudo estava gravado. Maria dizendo justamente o contrário
do que acabara de declarar ao júri: que era ela quem dirigia, que era ela quem não queria
que se avisasse a polícia, as hesitações de Sherman... O único problema era que não se
podia apresentar no tribunal uma fita como aquela, não havia maneira de uma fita
escondida e ilegal poder ser usada -explicou o seu advogado- em um tribunal de Justiça
- Então, por que foi que instalou um gravador em mim? É uma gravação furtiva.
Como, então, poderia ser usada?
- É furtiva, mas não ilegal. Você tem o direito de gravar as próprias conversas,
secretamente ou não. Mas se a conversa é de outra pessoa, então é ilegal (...).
- É. Dê-me aqui.
- Tirar do gravador?
- É. - Sherman estendeu a mão (...). Ora essa - disse, erguendo os olhos para
Killian- É minha.
- Estou dizendo que gravei essa fita. Quem vai dizer que não gravei. Essa
gravação é a minha propriedade, certo? Aqui está (...). Diga-me, doutor, o senhor
consideraria essa gravação admissível num tribunal de justiça? ” (p. 588-9).
Sherman estava chegando ao fim da sua odisseia. Mentiu. Não uma, nem duas
vezes. Toda a sua tese de defesa será apoiada numa mentira. Porém, o que significaria
mais uma mentira quando toda a sua vida estava fundamentada na mentira? Os
argumentos racionais surgiam na sua consciência com uma velocidade e acuidade
surpreendentes. Com a velocidade e a acuidade de quem fez da mentira o seu próprio
hábitat.
“... gradualmente compreendi uma coisa nos últimos dias. Não sou mais o
Sherman McCoy. Sou outra pessoa sem um nome adequado. Tenho sido essa pessoa
desde o dia em que fui preso. Eu sabia que alguma coisa... alguma coisa fundamental
acontecera naquele dia, mas a princípio não soube o que era. A princípio pensei que
ainda era Sherman McCoy, e Sherman McCoy estava passando por um período de
muito azar. Nos últimos dois dias, porém, comecei a encarar a verdade. Sou outra
pessoa (...). Não sou a pessoa com quem minha mulher se casou ou o pai que minha
filha conheceu. Sou um ser humano diferente (...). Todo bicho tem o seu hábitat, e
estou no meu neste instante...”(p. 590).
A odisseia de Sherman foi corroendo-o pouco a pouco. O câncer do egoísmo vai
tomando conta de todas as nossas decisões, de todas as nossas atitudes e, finalmente,
de todo o nosso ser e pensar. Deixamos de ser o que poderíamos ter sido e passamos a
ser um bloco de mármore: frio, calculista, distante...
“- É ruim, sim -disse Sherman- mas juro a você que me sinto melhor agora. Sabe
como fazem com um cachorro, um cachorro de estimação, um pastor alemão que foi
alimentado e cuidado a vida toda para o treinarem como um cão de guarda perverso?
- É verdade.
- Bom, nessa situação os cães são mais inteligentes que os homens -concluiu
Sherman-. O cão não se apega à ideia de que é um fabuloso animalzinho de estimação
em alguma fantástica exposição de cães, como o homem faz. O cão entende o que se
espera dele. O cão sabe quando é a hora de se transformar num animal e lutar”(p.
591).
Víktor Frankl afirma que frente ao “homo faber”, que se desenvolve apenas nas
coordenadas do êxito e do fracasso, está o “homo patiens”, andando precisamente na
direção contrária. Mesmo nas condições mais difíceis; mesmo no meio do maior
sofrimento e abandono, o homem que sofre resgata-se a si mesmo, supera a sua própria
dor. Mas para isso é necessário experimentar e aceitar o sofrimento. Sherman
experimentou a dor, a humilhação e o abandono, mas não o aceitou.
Víktor Frankl dizia que a essência do homem não é a de um “homo faber”, mas a
de um “homo patiens” (Cfr. FIZZOTI, Eugenio. “De Freud a Frankl”, Espasa-Calpe,
Madrid, 1977,p. 209). O caminho da redenção do homem é o caminho da aceitação
voluntária da dor e do sofrimento.
Talvez às portas de uma condenação à prisão quase certa – Tom Wolfe não nos
conta o final dessa história - Sherman McCoy possa vir a tornar-se o homem que deveria
ter sido e que a estrada do “homo faber” tinha malogrado. Talvez venha a descobrir,
como dizia Frankl, que o homem que sofre e aceita o sofrimento é quem acaba vivendo
verdadeiramente como homem (p. 209). Mas, para isso, seria preciso, também como
dizia Frankl, que Sherman tivesse a coragem de ter não a pretensão de viver como um
Senhor do Universo, mas a ousadia de sofrer como qualquer ser humano.