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Considerações Iniciais
Francisco Godinho 1
Fontes:
Essencialmente a lei, com um valioso papel da doutrina e, nos casos não antecipados pelo
legislador, da jurisprudência.
A partir de 25 de abril de 1974 inicia-se uma caminhada tendente à reforma do processo penal
português e, prosseguindo o princípio do Estado de direito democrático plasmado no art. 2º da
CRP, é criado o CPP de 1987, cujo anteprojeto foi desenvolvido por uma comissão presidida
por Figueiredo Dias. A este novo CPP subjaz uma estrutura acusatória integrada por um
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princípio de investigação – estrutura acusatória (art. 32º nº5 da CRP) porque contem um
princípio de acusação que se traduz no facto da entidade que investiga e acusa (ministério
público) ser distinta daquela que julga (juiz), tendo ainda em atenção a repartição de funções
entre magistraturas distintas para garantir o máximo de acusatoriedade possível.
Olhando agora para a CRP como fonte interna, “o direito processual penal é o sismógrafo da
Constituição de um Estado”, de acordo com Roxin e Schünemann. Pode considerar-se que o
direito processual penal é direito constitucional aplicado, com a dupla função de que os
fundamentos deste são os alicerces constitucionais de um Estado. Em especial, cabe analisar o
art. 32º da CRP em pormenor: no seu nº1 temos um mandado de otimização e concordância
prática, com estrutura de princípio, entre os interesses do processo e os interesses do arguido;
no nº2 temos o princípio da presunção de inocência; no nº3 consagra-se o direito à defesa
técnica, nos casos em que a defesa seja obrigatória (este direito ainda engloba o direito a
escolher o defensor que se entenda ter (art. 64º do CPP). Diferentemente sucede no EUA, com
a aplicação do US Patriot Act, que exclui a possibilidade de escolha do defensor a suspeitos da
prática de atos de terrorismo); no nº4 consagra-se a competência reservada do juiz para a
instrução e prática dos atos instrutórios que se prendam diretamente com os direitos
fundamentais; no nº5 estabelece-se a submissão da audiência de julgamento e dos atos
instrutórios que a lei determinar ao princípio do contraditório; no nº6 estabelece-se a
possibilidade de julgamento à revelia; no nº8 está plasmado o regime estrutural das proibições
de prova; no nº9 consagra-se o princípio do juiz natural; no nº10 estende-se o direito de
audiência e defesa aos processos contraordenacionais.
Acerca do CP como fonte interna, são de destacar os institutos que se encontram a paredes
meias com os de direito processual penal, acima referidos – queixa, acusação particular e
prescrição.
Já no plano internacional, cabe referir primeiramente a Carta Europeia dos Direitos do
Homem, de 1950, e, especialmente, o seu art. 6º (garantia de fair trial, princípio do
contraditório, garantia de um processo célere e presunção de inocência). É de especial
importância por permitir um acesso direto à jurisdição do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem.
É de relevar, também, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, assinado sob a égide
da ONU em 1976. O seu art. 14º confere garantias similares às do art. 6º da CEDH e acrescenta
ainda o direito à não autoincriminação.
Acerca do Direito da UE, é importante mencionar que a justiça penal é o último bastião da
soberania estadual. Com o fenómeno da globalização e com a facilidade de circulação dentro
da UE e, em especial, no espaço Schengen, surge um tipo de criminalidade que se volta contra
a própria União, por exemplo, atribuição irregular de subvenções ou fraudes contra a própria
UE. Assim, a partir da década de 90, com a introdução de um terceiro pilar em matéria de
cooperação em matéria judicial (com o Tratado de Maastricht, em 1992), com a criação da
Europol (1992) e da Eurojust (2002), surgem novos mecanismos de cooperação mais estrita
num esforço de maior facilidade de obtenção de meios probatórios e detenção em crimes
plurinacionais. É especialmente necessário que os atos praticados num Estado sejam
reconhecidos num outro.
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Âmbito de Aplicação:
Quanto ao âmbito de aplicação material, existe uma coincidência tendencial entre os âmbitos
de aplicação do direito penal e do direito processual penal. Assim, se uma conduta
corresponde à violação de uma norma de determinação então a sua apreciação e valoração
cabe ao direito processual penal. Contudo, não é uma coincidência total, como acima referido:
no processo penal conhecem-se matérias que não cabem no direito penal, como por exemplo,
a dedução de pedido cível (à responsabilidade criminal muitas vezes soma-se responsabilidade
civil e, assim, à pretensão punitiva soma-se a pretensão ressarcitória que é materialmente
gerida pelo direito civil mas cuja pretensão é deduzida no processo penal – nisto consiste o
princípio da adesão do art. 71º do CPP); à responsabilidade criminal pode ainda somar-se
responsabilidade contraordenacional, muito patente nos casos de acidentes rodoviários
(nestes casos de concurso entre responsabilidades, é competente a jurisdição penal embora,
substantivamente, compita à jurisdição contraordenacional (art. 38º do Regime Geral das
Contraordenações)); e ainda questões prejudiciais que se subordinam ao princípio da
suficiência do art. 7º do CPP.
Acerca do âmbito de aplicação pessoal, também existe uma coincidência tendencial entre o
âmbito pessoal do direito penal substantivo e o do direito processual penal. Assim, aplica-se a
todas as pessoas, nacionais ou não, a quem seja aplicável o direito penal português. Há,
contudo, limitações fundadas em preceitos de direito internacional, por exemplo, fundadas na
Convenção sobre Relações Diplomáticas, assinada em Viena em 1961. Há ainda limitações
fundadas no nosso direito constitucional e que têm o sentido da lei processual não se aplicar a
determinadas pessoas em razão das funções exercidas (arts. 130º nº 1,2 e 3, 163º al. c), 157º
nº2 e 3 e 196º nº1 da CRP).
Quanto ao âmbito de aplicação espacial, estabelece o art. 6º do CPP um princípio de
territorialidade que coincide com o âmbito de aplicação do direito penal substantivo. O art. 6º
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do CPP estabelece ainda o princípio do auxílio jurídico interestadual em matéria penal que é
identificável nos arts. 229º e ss. do CPP e em legislação extravagante como a lei da cooperação
judiciária internacional em matéria penal, de aplicação supletiva em matéria de extradições e
transmissão de processos, por exemplo.
Acerca do âmbito de aplicação temporal se suscitam maiores questões, especialmente no que
toca à sucessão de leis penais no tempo. Primeiramente cabe distinguir entre âmbito de
vigência (período temporal entre a entrada em vigor e a cessação de vigência) e âmbito de
eficácia (havendo a possibilidade de existência de leis com eficácia retroativa ou ultrativa) –
não há coincidência entre ambos os âmbitos. Dita o art. 12º do CC que o princípio geral é da
aplicação para o futuro. No direito adjetivo vigora o princípio da aplicação imediata ou tempus
regit actum, isto é, a lei nova aplica-se a todos os atos processuais praticados depois da
entrada em vigor desta, mesmo que estes digam respeito a crimes praticados anteriormente e,
respetivamente, processos iniciados anteriormente também. Adota-se aqui um conceito
atomístico de ato processual que não equivale ao processo e, assim, refere -se a todo o
acontecimento individual e juridicamente relevante (art. 5º nº1, primeira parte, do CPP). Na
segunda parte do nº1 do art. 5º do CPP estabelece-se que a entrada em vigor da lei nova não é
causa superveniente de invalidade dos atos regularmente praticados à luz da lei anterior.
Surgem, a este respeito, certas dificuldades de aplicação. O processo não é uma série
desordenada de atos – é uma sequência de atos organizados e concatenados. Desta forma,
com a lei nova, dá-se uma quebra na harmonia processual dos atos praticados (art. 5º nº2 al.
b) do CPP). Por exemplo, com a entrada em vigor do CPP de 1987, com uma estrutura
completamente diferente do anterior, decidiu-se que o CPP de 1987 seria aplicado a todos os
processos iniciados a partir de 1 de janeiro de 1988, data de entrada em vigor, e que o CPP de
1929 seria aplicado a todos os processos pendentes – assim, existia uma situação de
sobrevigência/ultratividade da lei antiga ou, por outro prisma, de eficácia diferida da lei nova.
É importante, neste ponto, apresentar uma distinção, avançada por Figueiredo Dias, entre
normas processuais materiais (embora inscritas no corpo normativo do processo, condicionam
a efetivação da responsabilidade criminal como um todo ou contendem com os direitos
fundamentais – expandindo ou comprimindo o estatuto processual do arguido) e normas
processuais formais (limitam-se a disciplinar o trânsito do processo). Assim, quando em causa
estiverem normas processuais materiais, proíbe-se a retroatividade in malam partem e
permite-se a retroatividade in bonam partem. Para Taipa de Carvalho, o critério que fixa qual a
lei a aplicar-se é o do direito penal substantivo (arts. 2º e 3º do CP), relevando o momento da
prática do facto. Nesta linha, em matéria de recursos, teria de se consultar toda a legislação
em vigor desde a prática do facto e aplicar aquela que seja mais favorável. Desta forma, corre-
se o risco de o processo se tornar ingovernável por não ser necessária uma extensão tão
alargada das garantias e, ainda, o processo não é um relação bilateral entre arguido e Estado,
mas antes uma relação triangular onde participam as vítimas (poderá haver normas que
favoreçam o arguido mas prejudiquem a vítima). Ainda neste domínio, Mario Chiavario
introduz a teoria das expectativas que, aparentemente, trará uma solução ao empeno
encontrado na tese de Taipa de Carvalho. Assim, as exigências de aplicação da lei processual
devem pautar-se pelas concretas expectativas a tutelar em cada caso, proteção essa que
deverá ir tão longe quanto a norma permita – desta forma, quando a questão contenda com a
efetivação da responsabilidade criminal, com normas incriminadoras, fará sentido que se
tenha em conta o momento da prática do facto; nos outros casos, o momento dependerá do
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assunto em causa (em matéria de recursos, será sensato que o momento a considerar seja o
da prolação da decisão de que se recorre (v. Ac. 4/2009 do STJ).
No especial caso de leis que alterem a natureza juridico-processual dos crimes, cabe primeiro
distinguir três caraterísticas essenciais: nos crimes públicos não há necessidade de queixa para
que o ministério público investigue, nos crimes semi-públicos há necessidade de queixa e nos
crimes particulares é necessário que, depois da apresentação de queixa e no fim do inquérito
se deduza acusação particular. Assim, a lei que converta um crime semi -público num crime
público, como desfavorável ao arguido e de acordo com Taipa de Carvalho e com os arts. 2º e
3º do CP, será aplicável a crimes praticados depois do momento de entrada em vigor (ex: se o
crime é praticado no dia 1 de setembro e a lei nova entra em vigor a dia 10 de setembro, esta
não lhe é aplicável, mas antes a todos os crimes praticados depois da data de entrada em
vigor). Na situação inversa, se a lei nova converter um crime público em semi -público, como
mais favorável ao arguido, aplicar-se-á retroativamente (ex: se o crime for praticado no dia 1
de setembro e a lei nova entrar em vigor a dia 10 de setembro, é aplicável porque in bonam
partem). E no caso em que, no dia 1 de setembro, é cometido um crime cujo procedimento
criminal depende de queixa (no prazo de 6 meses) e no dia 1 de outubro entra em vigor uma
nova lei que reduz o prazo de queixa para 3 meses. Nestas questões a jurisprudência segue no
sentido de se aplicar a lei nova, porque in bonam partem. Todavia, como há expetativas do
ofendido a proteger, o prazo novo (mais curto) só se vai contar a partir do momento da
entrada em vigor dessa lei nova. Em suma, quando a lei nova encurta o prazo, ela aplica-se
mas o prazo começa a ser contado no momento da entrada em vigor da lei nova, a não ser
que, contando o prazo pela lei antiga, faltasse menos tempo para apresentar queixa, nesta
última situação o ofendido já teria de contar com essa situação e com esse prazo. E se o
processo já se tivesse iniciado (sem queixa por ainda se tratar de um crime público), com
investigação em curso pelo ministério público, antes da entrada em vigor da lei nova (que
converte o crime público em semi-público)? Nestes casos, se era legítimo à altura que o
ministério público investigasse, a sua conduta não é censurável e alteração apenas vale para o
futuro, não invalida os atos processuais regularmente praticados.
Modelos Processuais
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Explicadas as finalidades, é importante indicar que cada uma delas terá uma maior relevância
num ou noutro modelo processual. Assim, podemos observar estas diferenças através de uma
dupla perspetiva: vendo as finalidades como modelos teoréticos/abstratos ou como categorias
históricas.
Aludindo à primeira perspetiva podemos, numa primeira linha traçar a distinção entre o
modelo acusatório (o nosso, v. art. 32º nº5 CRP) e o modelo inquisitório. Segundo o primeiro
modelo, o processo penal é visto como uma disputa entre indivíduo (que tem o estatuto de
sujeito processual) e Estado, com igualdade de armas para ambos. Há uma separação entre a
entidade que investiga, a que acusa e a que julga. Já no segundo, a contrario, domina o
interesse estadual e, assim, as funções de investigação, acusação e julgamento cabem ao juiz.
O arguido tem o estatuto de objeto do processo e não de sujeito processual.
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Dentro do modelo acusatório podem distinguir-se dois subtipos, de acordo com Mirjan R.
Damaška: modelo hierárquico/vertical (o nosso modelo, bastante patente na Europa
Continental) e paritário/horizontal (adversarial norte-americano). O primeiro, modelo
hierárquico/vertical, associa-se, pela estrutura do poder estadual, a um Estado
ativo/intervencionista, onde o estado prossegue finalidades públicas. Neste seguimento, o
modelo paritário/horizontal associa-se a um Estado reativo/abstencionista.
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Aludindo agora à segunda perspetiva, vejamos os modelos através da sua evolução histórica.
A partir do século VI d.C., com a queda do Império Romano do Ocidente e com as invasões
bárbaras, a ação civil e a ação penal começaram a perder a sua distinção e, assim, ambas se
iniciavam com uma accusatio. Desta forma, aquele que era acusado teria de purgar essa
suspeita através da prova que poderia assumir três modalidades distintas: juramentos
purgatórios (destinados aos clérigos), gottesurteil ou ordálios (destinados aos servos e às
mulheres) e os duelos (destinados aos cavaleiros) – não tinham qualquer função probatória
mas antes decisória, aparentemente, revelariam a vontade de Deus que se manifestava no
desfecho. Dentro dos ordálios existiam diversos institutos como a prova caldária (escaldava-se,
com um ferro em brasa, a mão do acusado que, em seguida era ligada. Se a ferida se curasse,
seria considerado inocente, a contrario, seria considerado culpado, caso a ferida gangrenasse,
por exemplo) e uma prova que consistia em amarrar o acusado e atirá-lo para dentro de um
lago ou rio de água fria, sob a convicção de que água pura expurgaria o impuro (ou seja, caso o
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acusado flutuasse seria considerado culpado) e que não expurgaria o puro (se o acusado
afundasse seria considerado inocente). Dentro dos juramentos purgatórios, os clérigos fariam,
como indicado, um juramento que apontasse no sentido da inocência e eram assistidos,
geralmente, por compurgatores, figura semelhante à das testemunhas abonatórias, que
atestam a credibilidade da pessoa em causa.
Ao modelo anteriormente descrito surgem críticas valorativas, por parte da Igreja, referindo,
por exemplo, que o juramento era uma contradição aos mandamentos de Cristo e outras
críticas, de ordem epistemológica, que fundamentalmente referiam que os duelos não eram a
forma mais eficaz de comprovar a verdade porque, a certa altura, era recorrente o recurso a
pessoas contratadas para substituir o próprio no duelo e, por conseguinte, não parecia revelar
a vontade de Deus.
Desta forma, a partir do IV Concílio de Latrão, em 1215, a Igreja proíbe os ordálios. Instaura-se
a partir deste momento, o processo per inquisitione – já não se esperava pela accusatio,
bastava uma suspeita ou um rumor para que o processo se iniciasse, bastava que se
conhecesse de algo para começar a acusação – tudo isto era fundado na Bíblia, mais
especificamente no episódio de Caim e Abel, onde Deus conhece da morte de Abel porque “o
seu sangue subiu aos Céus”. Alteram-se também os meios de prova, e procede-se a uma
hierarquização destes, pré-determinando o seu valor: prova notória (flagrante delito, confissão
(regina probationum) – podia condenar-se logo, sem necessidade de qualquer outra prova
adicional), prova plena (testemunhos concordantes de duas testemunhas capazes, imparciais
e, por exemplo, documentos autênticos – havendo-os, seriam suficientes para a condenação),
prova semi-plena (testemunho de uma pessoa, documento não autêntico) e indícios (fuga do
acusado antes da obtenção de prova, presença no local do crime. Legitimava-se a tortura uma
vez que “estimulava” a confissão, promovia-se a descoberta da verdade a todo o custo,
acreditava-se que aquele que fosse inocente teria a força dada por Deus para resistir à tortura
e provar a sua inocência). Assim era numa fase inicial, quem resistisse à tortura era absolvido
mas, nos séculos XV e XVI, estes moldes endurecem e, aparecendo novos indícios, o suspeito
poderia ser torturado novamente. Assistiu-se também a um sistema aritmético de prova, que
consistia na soma dos indícios – oito indícios eram suficientes para uma condenação, tal como
duas provas semi-plenas.
Nos séculos XVII e XVIII, com o advento do iluminismo, a tortura começa a ser entendida como
algo inconciliável com os postulados do jusnaturalismo. Voltaire, no seu “Tratado sobre a
Tolerância”, critica o sistema aritmético de prova dizendo que “se admitem semi-provas que
nada mais são do que rumores, bem como quartos de prova e metades de prova”. Com a
Revolução Francesa, em 1789, cai o sistema inquisitório medieval. Com a necessidade de um
novo modelo decide-se, assim, copiar o exemplo do direito inglês, em moldes acusatórios –
existia um júri de acusação e um júri para julgar. Contudo, ao arguido que se recusasse a ser
presente a julgamento, era-lhe colocada uma pedra pesada em cima do tronco e forçado num
dia a comer apenas pão e no outro apenas água, para que tomasse uma decisão acertada –
peine fort et dure. Assistia-se a uma separação material entre entidade acusadora e julgadora,
como referido acima, não existia tortura (excetuando-se o caso referido anteriormente) e,
assim, substitui-se o sistema de prova legal pelo sistema de intime conviction (dir-se-ia, “se
entendes, perdoai”) – as provas afetavam o íntimo daquele que julgava, havia assim uma livre
apreciação do que era apresentado à entidade julgadora.
Este modelo não vigorou durante longo tempo e, com Napoleão, foi aprovado um Código de
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Instrução Criminal, que na verdade era um código de processo penal, mas era assim chamado
porque a fase de maior relevo era a fase de instrução/investigação e não a fase de julgamento
que era vista como uma encenação dramática daquilo que havia sido recolhido na fase
anterior. Este processo dura até ao início do século XX e conhece aí endurecimentos com o
surgimento dos regimes autoritários e, posteriormente, conhece enfraquecimentos com o
advento do Estado de Direito Democrático.
Entre nós, em traços gerais, ao CPP de 1929, cujo projeto se deve a Beleza dos Santos, está
inerente uma filosofia ligada à conceção politico-social dos inícios do Estado Novo. Assim,
correspondia-lhe uma estrutura processual de tipo inquisitório ou acusatório formal – o juiz
que julgava também instruía e cabia ao ministério público deduzir a acusação. Em 1945 dá-se
uma alteração que entrega a instrução preparatória ao ministério público e a instrução
acusatória cabe ao juiz (modelo acusatório em sentido próprio). Tratava-se de um ministério
público governamentalizado que, por vezes, se intrometia na esfera dos direitos fundamentais
das pessoas. Em 1972 o ministério público passa a ser controlado judicialmente, através da
criação da figura do juiz de instrução. Depois do 25 de abril de 1974 e depois de aprovada a
Constituição de 1976, é aprovado o CPP de 1987, cujo anteprojeto foi desenvolvido por uma
comissão presidida por Figueiredo Dias. A este novo CPP subjaz uma estrutura acusatória
integrada por um princípio de investigação – estrutura acusatória (art. 32º nº5 da CRP) porque
contem um princípio de acusação (princípio da acusação material – art. 39º nº1 al. c) do CPP)
que se traduz no facto da entidade que investiga e acusa (ministério público) ser distinta
daquela que julga (juiz), tendo ainda em atenção a repartição de funções entre magistraturas
distintas para garantir o máximo de acusatoriedade possível. Quanto ao princípio de
investigação referido supra, diz Figueiredo Dias que este se reporta a um poder-dever
conferido ao juiz para investigar anteriormente os factos trazidos a julgamento (v. arts. 340º
nº1 e 348º nº5 do CPP, como concretizações do princípio da investigação).
Entre nós, o processo conhece duas formas – a comum e a especial. A primeira desdobra-se
em três fases em primeira instância – fase de inquérito, fase de instrução (eventual ou
facultativa) e fase de julgamento. As formas especiais têm três tipos de processo: sumário,
sumaríssimo e abreviado – são formas simplificadas de processo para crimes com pena de
prisão não superior a cinco anos e, em nenhuma das formas, existe fase de instrução (art. 286º
nº3 do CPP). Vejamos, primeiramente, as formas especiais de processo.
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Neste não há fase de julgamento – então, qual o fator que legitima a sua
ausência? O acordo (entre o ministério público, juiz e arguido) é o fator de
legitimação. O ministério público investiga de forma normal, havendo
indícios suficientes, em vez de acusar, elabora um requerimento com
característica de acusação (art. 394º do CPP) onde apresenta uma
Processo proposta de pena não privativa da liberdade e entrega-a ao juiz
Sumaríssimo competente para julgar. Se o juiz concordar, notifica-se o arguido, a
contrario, segue o processo por forma comum ou abreviada e impede-se o
juiz de participar num subsequente julgamento.
Pode tramitar o processo nesta forma quando diga respeito a qualquer
tipo de crime e quando se trate de um delinquente primário, por
exigências de celeridade e para evitar submeter o arguido à cerimónia
degradante do julgamento.
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Aqui tem competência o ministério público (art. 267º e 263º, este último
acerca da competência de direção da fase, que reside no ministério público
e nos órgãos de polícia criminal, ou seja, todos aqueles que desempenhem
Fase de Inquérito funções próprias de investigação em processo penal) e o juiz de instrução
criminal (arts. 268º e 269º do CPP), especialmente em todos os atos que
contendam com direitos fundamentais.
A sua finalidade é a recolha de prova em ordem à decisão de acusar (art.
262º do CPP).
A esta fase preside o tribunal que pode ser singular (um juiz), coletivo (três
juízes) ou de júri (três juízes do coletivo, quatro jurados e quatro suplentes
– esta forma é utilizada apenas quando requerida e apenas quando o
crime em causa comporte uma moldura penal abstrata igual ou superior a
oito anos de prisão; tem competência para a requerer o ministério público,
o arguido ou o assistente; decidem por maioria).
Esta fase é encabeçada pelo princípio da imediação na sua dupla
dimensão: formal (postela uma relação de proximidade comunicante entre
juiz e meios de prova, que este irá avaliar, especialmente os meios de
prova pessoal (hesitação na resposta, tremores – elementos
Fase de Julgamento paralinguísticos do discurso) e material (relação entre os meios de prova e
os factos a provar, escolher os meios mais próximos aos próprios factos –
deverá escolher-se aquele que testemunhou presencialmente os factos ou
aquele que é mais eloquente a descrevê-los? – deve escolher-se quem os
viu pois a probabilidade de erro é menor (a propósito, v. art. 129º do CPP).
O princípio da oralidade é essencial por força do princípio da imediação em
sentido formal, o veículo de transmissão deve ser oral. Vigora também o
princípio da publicidade, salvo contadas exceções e ainda o princípio do
contraditório que é transversal a todas as fases do processo. Na fase de
inquérito nem sempre há contraditório, imagine-se, por absurdo,
perguntar ao arguido se se pode ou não fazer uma busca.
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Analisadas de forma breve as diferentes fases do processo comum, cabe agora referir como se
dá a passagem entre elas, desde a fase de inquérito até à fase de julgamento.
No fim do inquérito:
O ministério público ou acusa (profere despacho de acusação – art. 283º nº1 do CPP) ou não
acusa (profere despacho de arquivamento por falta de indícios, art. 277º nº2 do CPP (ver, a
propósito, arquivamento rec sic stantibus ou arquivamento sob condição, devido à
possibilidade de reabertura do inquérito nos termos do art. 279º do CPP) , ou por falta de
pressupostos processuais, art. 277º nº1 do CPP (não ser apresentada a queixa dentro do prazo,
haver queixa depois do prazo de prescrição, haver queixa mas não haver legitimidade
processual para o fazer, morte do arguido). Nos crimes particulares em sentido estrito, não
basta a queixa, aquele que a faz tem de se constituir assistente no processo e, havendo
indícios, abre-se uma exceção ao princípio da oficialidade e é sobre o assistente que recai a
competência para acusar, cumprindo-se também os pressupostos do princípio da legalidade
uma vez que o ministério público não tem poder da oportunidade. Contudo, há casos em que
se arquiva o processo mesmo havendo indícios por concessões em favor do princípio da
oportunidade/mecanismos de diversão: arquivamento por dispensa de pena (art. 280º do CPP,
ex vi, art. 74º do CP – referente à criminalidade dita bagatelar) e suspensão provisória do
processo (de forma a evitar fenómenos de estigmatização e vitimização secundária; tem lugar
se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos, pode suspender-se o
processo durante dois a cinco anos durante os quais o arguido está sujeito a injunções e regras
de conduta que determinarão a reabertura ,ou não, do processo – arts. 281º e 282º do CPP).
Tanto a acusação como o arquivamento são impugnáveis.
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processual (princípio da investigação – art. 340º nº1 do CPP, princípio da livre apreciação da
prova – art. 127º do CPP, princípio in dubio pro reo (que se retira do princípio da presunção de
inocência, plasmado no art. 32º nº2 da CRP)) e forma processual (princípio da publicidade,
princípio da oralidade e princípio da imediação).
Pelo exposto, alguns dos princípios encontram consagração normativa expressa nos preceitos
legais e outros, por sua vez, depreendem-se de outros ou ainda da conjugação de diversos
princípios. Cabe referir que a cada um destes princípios existe um outro, de sinal oposto, pelo
qual o legislador não optou por adotar (princípio da legalidade vs. princípio da oportunidade;
princípio da oralidade vs. princípio do processo escrito; princípio da publicidade vs. princípio
do processo secreto).
A este respeito, há que referir dois grandes princípios transversais às categorias apresentadas
supra: o princípio da presunção de inocência, plasmado no art. 32º nº2 da CRP; e o princípio
do fair trial ou do processo equitativo que, por sua vez, está consagrado nos arts. 6º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e 14º do Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos (PIDCP), com reflexo no art. 20º nº4 do nosso texto constitucional.
O princípio da presunção de inocência deve ser entendido num duplo sentido: enquanto regra
decisória/de juízo ou regra de tratamento. Na primeira vertente, surge primeiramente no art.
9º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) com a intenção de refrear os
abusos do poder estadual, pretendendo assegurar um tratamento digno ao presumível
inocente, passível de ser absolvido. De forma extrema, poderia ser entendido como uma
proibição a qualquer privação da liberdade – desta forma, é importante uma enunciação dos
fins das medidas de coação e explicitar, por exemplo, que a prisão preventiva não prossegue
quaisquer fins punitivos mas sim estritas prevenções cautelares endoprocedimentais. As regras
penitenciárias auxiliam, neste campo, diferenciando os regimes para presos preventivos e
efetivos com reflexos, por exemplo, na forma como este primeiro é apresentado na audiência
de julgamento, sem estar algemado e vestido com as suas roupas (diferentemente do que se
assiste nos EUA onde o preso preventivo é apresentado a julgamento num uniforme de uma
penitenciária, por vezes algemado). É importante associar a esta vertente da presunção de
inocência exigências de celeridade que se contrapõem ao estigma da dúvida que degrada, pelo
decurso do tempo do processo, a agora “ilusória presunção de inocência”. De igual modo
certas restrições ao princípio da publicidade se entendem numa perspetiva de diminuição do
estigma que do processo pode advir. Enquanto regra decisória/de juízo, a presunção de
inocência pode ser vista como uma regra de distribuição de encargos probatórios (não é o
arguido que faz prova da sua inocência mas sim outrem que terá de provar o contrário ( v. art.
6º nº2 CEDH)) e como uma regra de valoração da prova (existe condenação apenas quando a
convicção de culpabilidade existir para lá de qualquer dúvida razoável, a contrario, in dubio pro
reo, com a absolvição associada).
Já o princípio do fair trial ou do processo equitativo acentua a dimensão procedimental da
justiça, pretende garantir-se um resultado materialmente justo quanto às garantias de defesa
processuais. Funciona, assim, como uma cláusula geral de inclusão de todas as garantias do
arguido, expressas na lei ou implícitas nesta. A doutrina norte-americana tende a associá-lo ao
princípio da igualdade de armas que, entre nós, apenas pode ser entendido de forma mitigada
dada a natureza assimétrica do processo, podendo ser entendida como meios de prova
equilibrados, por exemplo.
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o próprio crime. Por fim, há certos crimes que contendem com a vida familiar em que o Estado
não deve ingerir-se sob pena de agravar o conflito (ex: o crime de furto simples, semi-público,
torna-se particular em sentido estrito quando praticado entre familiares). Por razões
probatórias, os familiares podem recusar depoimento (art. 134º do CPP) e, assim, inviabiliza-se
a tarefa do Estado. Por razões pragmáticas, o facto de existirem crimes semi-públicos ou
particulares em sentido estrito traduz-se num alívio do sistema de perseguição penal. Releva
ainda o facto da resolução consensual de litígios, entre nós a partir de 2007, através do
sistema de mediação penal.
A natureza juridico-penal dos diferentes tipos de crime afere-se expressamente da redação
dos preceitos do Código Penal ou por remissão de um para outro artigo (ex: 203º do CP para o
207º do CP; 180º e 181º do CP para o 188º do CP).
Em suma, nos crimes públicos a competência é do ministério público, o ofendido pode
constituir-se como assistente em certos tipos de crime, pode haver acusação particular,
ancilar/subsidiária à deduzida pelo ministério público e não pode extravasar o seu âmbito (art.
284º do CPP); nos crimes semi-públicos a competência é do ministério público, mediante
queixa (transporta uma manifestação de ciência e vontade de que se mova procedimento
criminal contra determinada pessoa), apresentada por quem tenha legitimidade (art. 113º do
CP), dentro de um prazo de seis meses; nos crimes particulares em sentido estrito é necessário
queixa, que o ofendido ou outras pessoas se constituam como assistente (art. 68º nº2 e 246º
nº4 do CPP) e que este/estes deduzam acusação particular (art. 285º do CPP – o ofendido, na
veste de assistente, decide da submissão do arguido e dos factos a julgamento) – pode o
ministério público acusar também, no prazo de cinco dias (art. 285º nº4 do CPP – acusação
também ancilar/subsidiária, não podendo alargar o leque de factos que constem da acusação
particular, mas diferente da acusação ancilar/subsidiária plasmada no art. 284º do CPP).
Acerca da queixa:
Cabe ao ofendido, titular dos bens jurídicos que a lei pretende proteger com a
incriminação, apresentá-la (art. 113º nº1 do CP). Nos crimes de violação de domicílio
considera-se que o titular do bem jurídico perturbado é aquele ou aqueles que
habitem nesse domicílio, não sendo tutelado o bem jurídico “propriedade” (uma vez
que pode existir uma locação) mas sim a esfera de intimidade da vida privada. Mutatis
mutandi no caso de burla para obtenção de géneros alimentícios – o ofendido é o
funcionário engando ou o sócio anónimo? – proteger-se-á aqui o património e não a
honra, sendo a pessoa do ofendido o sócio.
Trata-se de um direito estritamente pessoal cuja titularidade não se extingue com a
morte do ofendido (art. 113º nº2 do CP) – o direito transmite-se a uma das duas classe
de, em linguagem civilista, sucessíveis: a primeira, a que se dá prioridade, integrada
pelas pessoas referidas na al. a) do nº2 do art. 113º do CP e a segunda classe na al. b)
do mesmo número. As pessoas incluídas na segunda categoria de sucessíveis apenas
têm direito de queixa quando não exista ninguém que preencha as caraterísticas para
pertencer à primeira. Qualquer uma das pessoas pertencentes a uma das classes
acima pode exercer o seu direito independentemente das outras (art. 113º nº 3 do
CP). Não havendo ninguém que integre ambas as categorias, pode o ministério público
dar início ao procedimento criminal (art. 113º nº5 al. b) do CP). A capacidade para
apresentar queixa adquire-se aos 16 anos (em paralelo com a imputabilidade penal) e
Francisco Godinho 18
é caraterizada pelo discernimento natural de querer e entender (v. art. 113º nº4 do CP
acerca da incapacidade do ofendido). A falta de capacidade é suprida pelos pais ou
representantes legais e, na falta destes, às pessoas a quem cabe o direito de queixa
em caso de morte (art. 113º nº2 e 4 do CP). O menor continua a ser titular do direito
de queixa, nos termos do nº6 do art. 113º do CP podendo, assim, exercer o direito de
queixa quando este não tenha sido exercido pelas pessoas a que se refere o nº4 do art.
113º do CP e nos termos deste e ainda quando não tenha sido iniciado o
procedimento criminal nos termos da al. a) do nº5 do art. 113º do CP.
No caso de crimes sexuais, existe uma diferença de regime quando estes sejam
praticados contra maiores (crime semi-público – ao “mal do crime” pode somar-se o
“mal do processo”, na expressão de Maria João Antunes) ou quando sejam praticados
contra menores (crime público) – o exposto retira-se da leitura conjugada dos arts.
113º nº5 e 178º nº1 e 2 do CP.
O direito de queixa pode ainda ser exercido por mandatário judicial, com poderes
genéricos, ou ainda por mandatário que esteja munido de poderes especiais.
No art. 115º nº1 do CP está plasmada a extinção do direito de queixa no prazo de seis
meses depois do conhecimento (não obrigatoriamente coincidente com o momento
da produção do resultado e, ainda, não se trata de um conhecimento absoluto quanto
à pessoa do agente) por parte do titular deste direito. Contudo, este prazo conhece
especificidades: caso o ofendido morra no decurso do prazo de queixa, este contar-se-
á a partir da data da sua morte; no caso de um indivíduo capaz e que se torne incapaz
no decurso do prazo de queixa, este contar-se-á a partir da data da sua incapacidade;
sendo o indivíduo menor, nos termos do art. 113º nº6 do CP, o direito de queixa
extingue-se findos seis meses a contar da data em que perfizer 18 anos.
Da leitura conjugada dos arts. 114º e 116º nº3 do CP retira-se o princípio da
indivisibilidade passiva da queixa. Assim, sendo vários os agentes do crime, o titular
não pode escolher contra quais pretende apresentar queixa. Este princípio não existe
numa vertente ativa uma vez que, nos termos do art. 113º nº3 do CP, qualquer um dos
titulares do direito de queixa pertencentes a cada uma das categorias pode exercer o
seu direito independentemente dos demais, fá-lo autonomamente.
Cabe ainda referir que o direito de queixa é um direito renunciável, nos termos do art.
116º do CP, renúncia esta que pode ser expressa ou tácita (quando depree ndida dos
factos). Quanto à renúncia tácita, rege o art. 72º nº2 do CPP que, quando se trate de
crime cujo procedimento dependa de queixa ou acusação particular, a prévia dedução
de pedido cível perante tribunal civil, em separado, vale como renúncia ao direito de
queixa.
Desistência de queixa (art. 51º do CPP):
Tem de ser homologada (na fase de inquérito, pelo ministério público, na fase de
instrução, havendo-a, pelo juiz de instrução e na fase de julgamento pelo juiz
presidente) e notificada ao arguido para que este, no prazo de cinco dias, se oponha
ou não à mesma. Esta pode ser feita em qualquer fase do processo em primeira
instância, incluindo na fase de julgamento, marcando-se como momento-limite o da
publicação da sentença (art. 116º nº2 do CP – em primeira instância as sentenças não
são publicadas mas sim tornadas públicas através da leitura da sentença). O momento
eleito foi este porque, depois de lida a sentença e sendo esta condenatória, poderia
Francisco Godinho 19
Princípio da Legalidade:
Decorre do art. 219º nº1 da CRP e, por força deste, o ministério público está obrigado a, num
primeiro momento, abrir inquérito sempre que haja notícia de crime e, num segundo
momento, deduzir acusação sempre que recolher indícios suficientes da prática do crime e de
quem foi o seu agente e, a contrario, arquivar o processo (respetivamente, art. 262º nº2 e arts.
283º e 277º nº 1 e 2 do CPP). Sempre que o ministério público não o faça, incorre em
responsabilidade disciplinar (arts. 162º e 163º do Estatuto do Ministério Público (Lei nº47/86,
de 15 de Outubro)) e em responsabilidade criminal (crime de denegação de justiça e
prevaricação – art. 369º do CP).
Na sua origem histórica, o princípio da legalidade prende-se com o modelo inquisitório e com
conceções absolutas e retribucionistas dos fins das penas. Contudo, entre nós, o que se
pretende com a pena é a reafirmação contrafática da norma e satisfazer finalidades de
ressocialização do agente. De acordo com Maria João Antunes, a exclusão da ponderação de
razões de oportunidade de qualquer ordem (raison d’état, política, económico-financeira,
religiosa, social) põe a justiça penal a coberto de suspeitas e de tentações de parcialidade e de
arbítrio, ligando-se por esta via ao princípio da igualdade na administração da justiça penal
(art. 13º da CRP) – entende-se que não deve haver qualquer tratamento diferenciado, exceto
quando existam razões racionais e objetivas para tal (ex: imunidades diplomáticas).
Deste princípio decorre um outro, o princípio da imutabilidade da acusação pública, de acordo
com o qual não pode haver renúncia ou desistência de acusação que ministério público tenha
deduzido, não pode sobre ela transigir. Diferentemente sucede no direito anglo-americano,
através do instituto de plea bargaining, pelo qual só há julgamento quando o arguido se
declarar inocente (cabe referir que em cerca de 95% dos casos o arguido dá-se como culpado
devido ao sistema de cúmulo jurídico entre eles vigente e devido ainda ao facto de que pode
vir a provar-se que, por exemplo, não se tratou de um homicídio negligente e que o agente
agiu dolosamente e devido ainda às decisões incertas que de um júri podem advir).
Paralelamente ao instituto de plea bargaining, temos os acordos sobre sentenças, introduzidos
primeiramente na Alemanha, em 2009, em casos em que o arguido tenha um maior poder de
ação, que possa servir-se de mais incidentes processuais (cfr. §257c StPO).
Francisco Godinho 20
que não haja um ónus de fundamentação nas suas atuações, não se trata de um livre
arbítrio.
Assim, há uma certa abertura em favor da oportunidade, de acordo com Figueiredo
Dias, legalidade aberta, especialmente no domínio da pequena e média criminalidade
onde se reconhece uma certa gradação entre necessidade de pena e dignidade penal
em resposta à heterogeneidade do fenómeno criminal (assim, gravidade diferente,
tratamento diferente). Admite-se uma maior formalização do processo quanto mais
grave for o fenómeno criminal e, inversamente, uma menor formalização do processo
quanto menos grave for o fenómeno criminal. A este propósito, Costa Andrade refere,
na expressão de Riess, “uma transferência da política criminal para o processo”, com
reflexo nos mecanismos de diversão (como traduzem uma situação desviada do
processamento normal, traduzem-se, num certo sentido, numa limitação ao princípio
da legalidade uma vez que constituem uma alternativa à dedução de acusação (são
estes mecanismos o arquivamento por dispensa de pena, suspensão provisória do
processo, a mediação penal e o processo sumaríssimo (este último ponto será tratado
mais adiante)). Estes desvios ao princípio da legalidade colocam-se no segundo
momento, a seguir à abertura de inquérito pelo ministério público, sempre que haja
notícia de crime, aquando do momento de acusar, depois de recolhidos indícios
suficientes para a deduzir. Todos estes mecanismos se traduzem na materialização de
um programa politico-criminal surgido nos anos 60 do século XX, nos EUA,
denominado de intervencionismo simbólico, de onde decorre a labeling approach
(demonstra o fenómeno de estigmatização daqueles que entravam em contacto com o
processo e a possível degradação social daí decorrente poderia suscitar casos de
delinquência. Pelo simples facto de se “etiquetar” a pessoa como criminosa, ela pode
comportar-se como tal – criminalidade secundária). Perspetivando estas teorias de
uma forma extrema, levaria a uma não intervenção total do direito penal mas, de
ângulo mais mitigado, conduz a fenómenos de descriminalização cujo correlato
adjetivo são os supracitados mecanismos de diversão – a função primeira destes
institutos é a proteção do arguido, garantindo a ressocialização, poupando-o à
“cerimónia degradante do julgamento”. Já quanto à mediação penal (Lei 21/2007, de
12 de Junho), não se trata de proteger o arguido mas sim de atender aos interesses da
vítima, evitando fenómenos de vitimização secundária decorrentes do “mal do
processo”. Muitas vezes o processo é um “roubo do conflito à vítima” e, através da
mediação, conseguem satisfazer-se exigências de justiça restaurativa através da
promoção do consenso (onde o ofendido tem um papel constitutivo, uma voz ativa) e
através da revalorização da reparação como dritte spur (terceira via) em
sancionamento criminal – desta última decorre que pode interessar mais ao ofendido
ver reparados os seus danos (no caso de furto simples, por exemplo) do que a
aplicação da pena em si. Contudo, entre nós, há quem considere que se trata de uma
aproximação da justiça penal à justiça civil, como por exemplo, Almeida Costa.
o Arquivamento em Caso de Dispensa de Pena (art. 280º do CPP e art. 74º do
CP): trata-se de um mecanismo de diversão simples, em contraposição aos
mecanismos de diversão com intervenção (na suspensão provisória do
processo). Do art. 74º nº1 do CP decorre que este instituto se aplica a crimes
de pequena gravidade, cuja moldura penal abstrata seja não superior a seis
Francisco Godinho 21
meses de prisão ou não superior a 120 dias de multa. No nº3 do mesmo artigo
apresentam-se exceções ao nº1, ou seja, apenas se têm de cumprir os
requisitos das als. a), b) e c) mas não o requisito formal da moldura penal
abstrata (v. arts. 143º nº3, 186º nº2, 278º-B, 286º e 374º-B do CP).
Dentro do nº1 do art. 74º do CP enunciam-se, nas várias alíneas, vários
requisitos a preencher: que a ilicitude e a culpa sejam diminutas, que em caso
de dano, este seja reparado pelo lesante e que às razões de dispensa de pena
não se oponham razões de necessidade de pena.
Assim, no final do inquérito, a decisão cabe ao ministério público enquanto
dominus desta fase, por razões de economia processual – contudo, tem de
obter a concordância do juiz de instrução criminal (para cumprimento da
função de garantia dos direitos fundamentais das pessoas. No fim da fase de
instrução, o arquivamento em caso de dispensa de pena cabe ao juiz de
instrução criminal, obtendo a concordância do ministério público e ainda a do
arguido (art. 280º nº2 do CPP) – exige-se a concordância deste último uma vez
que pode, por já ter havido um chamamento solene à responsabilidade,
querer obter uma sentença absolutória. No caso do art. 277º do CPP, o
arquivamento é uma manifestação do princípio da legalidade, diferentemente
da situação descrita no art. 280º do CPP, que contém uma discricionariedade
limitada que Figueiredo Dias chama de legalidade aberta.
o Suspensão Provisória do Processo (art. 281º do CPP e arts. 52º e 53º do CP):
trata-se de um mecanismo de diversão com intervenção, aplicável a crimes
punidos com pena de prisão não superior a 5 anos, correspondendo a uma
fatia mais larga da criminalidade. Quando decidida na fase de inquérito impõe-
se o requisito acima enunciado, impõe-se ainda, como requisitos de ordem
formal, que haja concordância do arguido (por se tratar de diversão com
intervenção, existe a aplicação de injunções e regras de conduta, equivalentes
funcionais das penas), concordância do assistente (Odete Oliveira defende
que, mesmo que o ofendido não se constitua como assistente, deve-lhe ser
dada voz ativa nestas situações; diferentemente afirma Sónia Fidalgo, de
forma consentânea com o texto da lei, que é necessária a constituição como
assistente para que a sua vontade possa ser manifestada neste sentido – entre
nós, trata-se da posição dominante), ausência de condenação anterior por
crime da mesma natureza e ausência de aplicação anterior de suspensão
provisória do processo por crime da mesma natureza; enquanto requisitos de
ordem material, atende-se à gravidade concreta do crime e impõe-se a
ausência de um grau de culpa elevado e ainda que seja de prever que o
cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às
exigências de prevenção geral e especial, uma vez que são equivalentes
funcionais das penas (em paralelo, art. 281º nº2 do CPP e arts. 51º e 52º do
CP). Acerca do disposto no art. 281º nº2 al e) e no nº4 do CPP, cabe
fiscalização por parte do juiz de instrução criminal.
Na fase de inquérito é competente para a decisão o ministério público com a
concordância do juiz de instrução criminal (v. Ac. 7/87 do TC). Não pode a
concordância entre ambos ser vista como um mero requisito formal mas
Francisco Godinho 22
Francisco Godinho 23
Princípio da Concentração:
Este princípio aponta para uma prossecução processual unitária e continuada de todos os
termos e atos do processo, quer de temporalmente, quer espacialmente. Rege o art. 276º do
CPP, acerca dos prazos ordenadores do inquérito. Acerca da fase de julgamento, convoca-se
uma ideia de imutabilidade do juiz, com intenção de manter a continuidade psicológica, uma
ideia de concentração espacial, também denominada de princípio da localização e que se
Francisco Godinho 24
traduz em trazer todos aqueles que devem intervir (ver, a contrario, art. 318º e 139º nº1 do
CPP e ainda a Lei de Proteção de Testemunhas em Processo Penal (Lei nº 93/99 de 14 de Julho)
que por razões de especial vulnerabilidade consente que sejam ouvidas por videoconferência)
e ainda uma ideia de concentração/continuidade temporal (é precisamente este o sentido do
art. 328º nº1 do CPP quando estatui acerca da continuidade da audiência, esta deve decorrer
sem interrupções ou adiamentos desde a abertura da audiência até à leitura da sentença.
Quis-se também que a produção de prova fosse contínua para porque o princípio da livre
apreciação da prova pressupõe imediação e concentração, especialmente quando se trate de
prova pessoal, para que a impressão seja mais pura, o peso que se atribui a esta pressupõe
imediação. No nº3 do art. 328º do CPP estão previstas as causas de adiamento, num elenco
não taxativo, a que acrescem as demais dispersas pelo CPP. No nº6 do mesmo artigo estatui -se
que o adiamento nunca deve exceder 30 dias (anteriormente a 2015, se se excedesse este
prazo, haveria consequências probatórias – a prova pessoal, mesmo que gravada, nos termos
do art. 373º do CPP, teria de ser repetida. Assim, retirou-se algum peso ao princípio da
concentração deixando de haver consequências a nível probatório).
que se define o objeto sobre que a prova deve incidir e quem tem iniciativa para a produzir –
desta forma, à iniciativa associa-se o princípio da investigação (art. 340º nº1 do CPP) e à
admissibilidade associa-se o princípio da legalidade da prova (art. 125º do CPP). Dentro da
segunda, dá-se especial importância às regras de produção de prova, que variam consoante o
meio em causa. Por fim, na terceira, há um especial reflexo do princípio da livre apreciação da
prova (art. 127º do CPP) e do princípio in dubio pro reo (retira-se do princípio da presunção de
inocência, contido no art. 32º nº2 da CRP). Transversal às três fases referidas é o princípio da
imediação, tendo um especial reflexo no domínio da prova pessoal.
sentido – por exemplo, testis unus, testis nullus (literalmente, “uma testemunha não é
testemunha), seriam necessários dois testemunhos para dar como provado determinado facto
mesmo que houvesse um que, para além de toda a dúvida, o desse como provado) e sentido
positivo (as regras legais pré-fixam ou definem o peso de cada elemento probatório,
incumbindo ao julgador, mesmo contra a sua convicção, decidir no sentido de acusar sempre
que esteja preenchido aquele quantum probatório pré-estabelecido – era um sistema
garantístico porque limitava a arbitrariedade mas, por outro lado, pervertido porque, por
exemplo, extorquindo a confissão através da tortura obrigava-se o julgador a condenar mesmo
que, pelas razões óbvias, este estivesse convicto do contrário (vigorou na Baixa Idade Média,
entre os séculos XV e XVIII)). O principal perigo das provas legais é o de converter uma máxima
da experiência (por exemplo, em princípio o testemunho concordante de duas testemunhas
corresponderá à realidade fáctica) em premissa maior do silogismo judicial, resulta numa
generalização indevida.
No início do século XVIII, com a queda do sistema inquisitório medieval e com a adoção do
sistema inglês de jurados, incompatibiliza-se este com o sistema ainda vigente da prova legal
uma vez que os jurados, enquanto expressão e manifestação da vontade popular que
deveriam decidir com base na impressão causada pelos elementos que lhe eram apresentados,
eram leigos quanto às regras estritas do sistema de prova legal. Desta forma, o sistema vigorou
por pouco tempo e logo em 1808, Napoleão aprova o Code d’Instruction Criminelle – os juízes
de carreira passam a decidir também segundo o sistema da intime conviction e
“reinterpretam” o princípio da livre apreciação da prova de forma a introduzir meios
probatórios não admitidos pelo legislador, seguindo caminhos atípicos e fugindo aos esquemas
fixados. Atualmente, já não é visto o princípio como forma de desvincular o julgador das regras
legais pré-fixadas mas antes de afirmar que o julgador deverá apreciar livremente mas dentro
de certos limites:
Limites internos: respeito pelas regras da experiência (cânones normais do acontecer e agir
humanos, que poderão firmar certas convicções probatórias (por exemplo, àquele que foge
pode-lhe ser associada alguma responsabilidade pelo crime cometido; lei da não ubiquidade:
se X está em Lisboa no momento em que o crime é cometido no Porto, é impossível que o
tenha cometido (nesta assenta a força que um alibi pode ter); leis científicas não
probabilísticas e leis científicas probabilísticas (por exemplo, a frequência de um determinado
grupo sanguíneo numa determinada comunidade pode auxiliar na identificação do agente));
limites externos: motivação da convicção (dever de fundamentação da convicção em matéria
probatória (motivação de direito e de facto, especialmente densificado no que diz respeito a
decisões condenatórias, “exame crítico das provas” que servem para fundar a convicção do
tribunal, explicando porque se retira peso a determinado elemento probatório, porque se
considera certo testemunho como mais ou menos credível, explicando quais os critérios legais
de que se serviu – art. 374º do CPP; dever de fundamentação – art. 97º nº5 do CPP), controlo
em sede de recurso (especial relevo do recurso em matéria de facto, decorrente do art. 32º
nº1 da CRP – é admitido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça sobre matéria de facto
ainda que a regra seja a de recurso de matéria de direito (art. 410º nº2 do CPP, revista
ampliada); regras probatórias legais negativas ou positivas: certos casos contados onde o
legislador intervém na quantificação do valor a atribuir a certos elementos de prova,
geralmente em sentido negativo ((v. desde logo, arts. 343º nº1, 345º nº1 e 61º nº1 al. c) do
CPP) proibição da valoração desfavorável do silêncio – este nunca pode ser valorado
Francisco Godinho 27
desfavoravelmente face ao arguido, mesmo que se entenda que possa ser indício de culpa
deste. Pode o arguido, todavia, prestar declarações que afetem, caso existam, os co-arguidos,
sendo apenas valoradas (doutrinalmente indica-se que deverá ser feito escrupulosamente)
caso o este não se exima ao contraditório – acontecendo, o próprio legislador retira o valor
probatório destas declarações, como resulta do art. 345º nº4 do CPP), o depoimento indireto
(depoimento de ouvir dizer, hearsay ou Hörensagen) em princípio não é valorado (art. 129º do
CPP e, a propósito, v. art. 130º do CPP), no caso de testemunhos anónimos, por falta do
reconhecimento destas no âmbito do processo, o peso do seu testemunho é atenuado (v. art.
19º da Lei 93/99, de 14 de Julho); mas também em sentido positivo (a confissão (art. 344º nº2
als. a) e b) do CPP) livre (não coagida nem induzida), integral (acerca da totalidade dos factos
imputados) e sem reservas (o confitente não pode opor nenhuma condição que importe a
apreciação dos factos de forma diferente da descrita – por exemplo, invocando que agiu a
coberto de uma causa de exclusão da ilicitude) adquire valor de prova plena, não carecendo de
qualquer outra atividade probatória ulterior, passando-se de imediato para as alegações orais
– contudo, a confissão não se estende aos demais co-arguidos, apenas vale como prova plena
em crimes punidos com pena de prisão não superior a 5 anos (casos de pequena e média
gravidade onde haverá um maior consenso quanto à decisão tomada; diferentemente se
verifica nos crimes mais graves, onde é dada uma maior importância à descoberta da verdade,
não se cedendo ao consenso). Não é, verdadeiramente, uma exceção ao princípio da livre
apreciação da prova, mas apenas uma aparência de sobreposição da prova legal à livre
apreciação do julgador, este pode, pelo disposto no art. 344º nº3 al. b) do CPP, recusar a
atribuição de valor de prova plena quando, “em sua convicção”, suspeite do caráter livre da
confissão ou mesmo da veracidade dos factos. Cumpridos os requisitos supra, a confissão terá
então um valor de prova plena mas, contudo, sendo apenas parcial, terá ainda o valor
probatório que, pela sua convicção lógica, o julgador lhe atribua; há um especial valor
atribuído à prova pericial (parece, pela leitura do nº1 do art. 163º do CPP, que a prova pericial
se encontra subtraída ao livre arbítrio do julgador. Contudo, pode o julgador afastar-se do
juízo técnico (art. 163º nº2 do CPP) sempre que a base factual seja equívoca, quando possa
invocar conhecimentos, sempre que os possua ou ainda pedindo oficiosamente uma nova
perícia, sempre que o julgue necessário) – estes também não comportam uma verdadeira
limitação ao princípio da livre apreciação da prova, mas antes uma vinculação a
conhecimentos específico de certas áreas técnicas).
Francisco Godinho 28
Nos crimes contra a honra (art. 180º nº2 al. b) do CP), incumbe ao arguido fazer prova
da veracidade da imputação, sob pena de, não o fazendo, se afastar o in dubio pro reo
e ser punido pelo crime cometido. Para os autores que entendam que o princípio in
Francisco Godinho 29
Princípio da Oralidade:
De acordo com este, toda a decisão penal, máxime a final, deve assentar em elementos de
prova produzidos em audiência oral. A consagração do princípio da oralidade em nada colide
com a documentação das declarações – na fase de inquérito, através da redução a auto,
porventura em súmula (art. 275º nº1 do CPP), na fase de instrução, art. 296º do CPP, quanto
ao debate instrutório, art. 305º do CPP e quanto à fase de julgamento, arts. 363º a 365º do
CPP - no debate instrutório e na audiência de julgamento as declarações constam de suporte
Francisco Godinho 30
Princípio da Imediação:
Em sentido subjetivo/formal (art. 355º do CPP), enquanto princípio relativo à forma, é visto
como impondo uma relação de proximidade comunicante entre o juiz e os sujeitos
processuais, por não ser apenas relevante aquilo que se diz, mas também a forma como se diz,
nomeadamente para o efeito de formação da convicção do julgador. Em suma, trata-se da
relação entre juiz e meios de prova. No sentido objetivo/material (arts. 129º, 356º e 357º do
CPP), enquanto princípio relativo à prova, impõe que o juiz escolha o meio de prova mais
próximo dos factos, ou seja, trata-se da relação entre meios de prova e factos que integram o
thema probandum. Entre os dois sentidos não há, obrigatoriamente, coincidência – no
testemunho indireto existe uma imediação subjetiva/formal mas não objetiva/material, uma
vez que a testemunha não é próxima dos factos que declara.
Existe, na prática, uma regra de preferência pelas provas mais próximas dos factos, o que no
direito anglo-americano se chama de best evidence rule, que se consubstancia na maior
relevância dada a provas de melhor qualidade epistemológica.
Desta forma, porque se exclui o peso probatório do testemunho indireto (art. 129º do CPP)?
Pela simples razão de se tratar de uma prova mais distante dos factos, prefere-se o
testemunho presencial por assentar na memória do declarante (apesar de, no complexo
processo de recordar, existam erros, por exemplo, quanto à perceção dos próprios factos; será
de acrescentar que a probabilidade de erro cresce com o aumento de elos na cadeia
probatória) e na sua sinceridade (embora se jure declarar a verdade, o tribunal é um dos locais
onde mais se mente e esta é, de facto, a grande fragilidade da prova testemunhal, cujo
controlo é mais difícil). Contudo, esta exclusão do peso probatório do testemunho indireto não
é absoluta uma vez que o juiz pode chamar as pessoas que presenciaram a depor e, em caso
de morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas, o
testemunho terá valor probatório, uma vez que é a melhor prova disponível – prevalece, aqui,
a imediação em sentido objetivo/material.
Quanto aos arts. 356º e 357º do CPP, em regra, em audiência de julgamento não há lugar à
leitura das declarações prestadas em anteriores fases da tramitação, ou seja, proíbe-se a
leitura destas e proíbe-se qualquer atividade probatória acerca daquilo que nelas está
cristalizado. Contudo, existem exceções a esta regra e que têm em vista o equilíbrio entre a
imediação em sentido objetivo/material e a finalidade de descoberta da verdade material:
Francisco Godinho 31
Cabe apenas referir, por fim, que, em regra, o interrogatório do arguido é gravado através de
registo áudio ou audiovisual ou ainda documentação em auto quando tais meios não estejam
disponíveis, o que deverá constar do próprio auto (art. 141º n os 7 e 8 do CPP).
Francisco Godinho 32
Princípio da Publicidade:
Por um lado, visto por um prisma subjetivo, traduz-se na garantia que é reconhecida ao
arguido, integrando os seus direitos de defesa, enquanto garantias de um processo público e
equitativo como decorre do art. 6º da CEDH e do art. 14º do PIDCP. Por outro lado, visto por
um prisma objetivo, consubstancia-se na forma de assegurar, aos olhos da comunidade, a
regularidade, imparcialidade e confiança na administração da justiça em nome do povo, autor
ideal das decisões judiciais.
Consagra-se expressamente no art. 206º da CRP, indicando-se apenas que vale na fase de
julgamento – o art. 321º do CPP estatui que a inobservância deste princípio da fase de
julgamento comina numa nulidade insanável.
Atenderemos agora ao conteúdo deste princípio e aos seus reflexos: primeiramente, implica a
assistência, pelo público em geral, à realização do debate instrutório e dos atos processuais na
fase de julgamento – art. 86º nº6 al. a) do CPP (contudo, é de excluir do âmbito dos atos
processuais em geral aqueles que se encontrem sob segredo de justiça); em segundo lugar, o
direito de crónica/narração/menção pública dos atos processuais, ou reproduções dos seus
termos, pelos órgãos de comunicação social – art. 86º nº6 al. b) do CPP; por último, a
possibilidade de leitura dos autos e obtenção de cópias de quaisquer partes do processo – art.
86º nº6 al. c) do CPP. Assim, este princípio ilumina de forma mais intensa a fase de julgamento
e, de forma menos intensa, ilumina as fases de inquérito e instrução. Mesmo na fase de
julgamento não é um princípio absoluto, observa certas restrições. A primeira delas coloca-se à
assistência pelo público em geral (art. 87º do CPP), podendo o juiz restringir este livre acesso
quando se presuma grave dano à dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso
do ato (art. 87º nº2 do CPP) – não sendo a regra no nº2, é-o, contudo, no nº3, sempre que o
processo seja por tráfico de pessoas ou crime contra a liberdade e autodeterminação sexual,
não se exigindo sequer despacho do juiz para que a audiência não seja pública; e a segunda
delas coloca-se ao direito de crónica (art. 88º do CPP) – por um lado pretende conjugar-se o
direito de informar e ser informado (arts. 37º e 38º da CRP) e, por outro lado, o direito à
honra, à imagem, à intimidade e reserva da vida privada, ao bom nome – os meios de
comunicação conseguem ter um potencial amplificador da adulteração da imagem,
contribuindo para o “mal do processo” (o Caso Lebach, na Alemanha, julgou culpados dois
soldados por homicídio e, no momento em que iriam ser libertados, uma cadeia televisiva
pretendia exibir um documentário sobre o caso em apreço, ao que ambos se opuseram por
violação do seu direito à ressocialização, atendendo o tribunal ao seu pedido). É permitido aos
órgãos de comunicação social, dentro dos limites da lei, a narração circunstanciada do teor de
certos atos processuais não cobertos por segredo de justiça e a que seja permitida assistência
pelo público em geral (art. 88º nº1 do CPP) – o nº2 do mesmo artigo comporta as devidas
exceções à regra do nº1, sob pena de incorrer em desobediência simples: na al. a) estatui-se a
proibição de reprodução de peças processuais (por exemplo, despacho de pronúncia ou
contestação) ou documentos incorporados no processo, salvo se houver autorização expressa
da autoridade judiciária que presida a essa concreta fase; na al. b), a proibição de transmissão
ou registo de imagens ou tomada de som relativas à prática de atos processuais, salvo se a
autoridade judiciária referida na al. a) autorizar por despacho e, ainda, se a pessoa em apreço
não se opuser ao registo ou transmissão de imagens ou à tomada de som; na al. c), proíbe-se a
publicação da identidade da vítima de crime de tráfico de pessoas ou de crime contra a
liberdade ou autodeterminação sexual, honra ou reserva da vida privada, salvo se a vítima o
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Francisco Godinho 34
1º Prazo Prorrogação
3 meses ?
O Ac. 5/2010 do STJ fixou jurisprudência no sentido de entender que a prorrogação do prazo
de sujeição a segredo de justiça está sujeita a um limite simplesmente relativo. Contudo, não
poderá o arguido aceder a todos os elementos que constem dos autos, podendo estes
contender com elementos de terceiros, violando-se a integridade da vida privada destes (v. Ac.
428/2008 do TC).
Questiona a doutrina se não se terá ido longe demais eliminando o segredo de justiça como
regra, violando o art. 20º nº3 da CRP. Parece, por esta ótica, que se perverte a natureza do
inquérito penal enquanto fase célere e breve (v. especialmente, art. 120º nº3 do CPP) para
investigação da suspeita e sua densificação, segundo a teleologia do CPP, na versão original de
1987. Por força da prática, o inquérito tornou-se uma fase mais alargada, sujeita agora ao
princípio da publicidade e contraditório, sendo, assim, uma espécie de antecâmara que
antecede a fase de julgamento.
Sujeitos Processuais
Francisco Godinho 35
referir que o nosso processo não é um processo de partes, como sucede noutros
ordenamentos jurídicos, nomeadamente nos sistemas anglo-americanos onde reina o
antagonismo entre defesa e acusação, típico do acusatório puro. O nosso modelo, a contrario
sensu, não se carateriza por esta contraposição referida, servindo como exemplo bastante a al.
a) do nº1 do art. 401º do CPP – “O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no
exclusivo interesse do arguido” (acerca da legitimidade para recorrer). É de referir ainda que
não existe disponibilidade sobre o objeto do processo, não se podendo transigir ou desistir
deste. Por último, a produção de prova não incumbe à acusação e à defesa mas também ao
juiz, não se traduzindo num ónus que recai única e exclusivamente na competência do
ministério público.
Juiz/Tribunal:
O estatuto de sujeito processual deste funda-se na prerrogativa do poder judicial (e nunca
legal, político ou negocial) de aplicação de penas – estrito monopólio da função jurisdicional
decorrente do art. 202º da CRP. O texto constitucional garante ao juiz independência e
imparcialidade. Acerca da primeira (art. 203º da CRP), confere-se inteira liberdade ao órgão
judicial, no exercício da função judicativa, sem qualquer tipo de contingentes – independência
face ao poder executivo e face ao poder legislativo e mesmo face ao poder disciplinar,
exercido independentemente pelo Conselho Superior da Magistratura, sendo o juiz inamovível
e irresponsável (art. 216º nos 1 e 2 da CRP). Entre si, os tribunais são também independentes,
não estando vinculados às decisões de outros tribunais salvo em questões de recurso, onde o
tribunal ad quem depende da decisão do tribunal a quo. Os juízes são apenas dependentes
face à lei e ao Direito. No plano fáctico, a sua independência diz-se assegurada pela sua
remuneração, referindo-se que não deverá estar sujeito a quaisquer pressões e devendo
manter uma posição de recato. Acerca da segunda, surge como corolário do princípio da
independência mas, desta vez, acerca da posição do juiz enquanto terceiro face aos factos e
aos intervenientes no processo penal. A imparcialidade é assegurada pelos impedimentos,
recusas (quando pedida pelos sujeitos processuais) e escusas (quando pedidas pelo juiz), todas
enquanto concretizações práticas de suspeitas. Os impedimentos, surgem em elenco taxativo
e operam automaticamente, não se exigindo mais do que a mera aplicação subsuntiva da
norma. Os impedimentos fundam-se na relação do juiz com os intervenientes (art. 39º nº1 als.
a) e b) e nº3 do CPP), quando tiver intervindo no processo de forma ativa (arts. 39º nº1 als. c) e
d) e 40º do CPP) e ainda quando se tiver oferecido como testemunha (art. 39º nº2 do CPP). De
acordo com as várias alíneas do art. 40º do CPP, nenhum juiz pode intervir em julgamento,
recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tenha aplicado medida de coação
sempre que haja “fortes indícios” da prática de crime doloso (v. arts. 200º a 202º do CPP),
sempre que tenha presidido a debate instrutório, participado em julgamento anterior,
participado ou proferido em decisão em que tenha conhecido do objeto do processo e ainda
quando tenha recusado o arquivamento em caso da dispensa de pena, suspensão provisória
do processo ou forma sumaríssima (mecanismos de diversão) ou ainda por discordar da
sanção proposta. As escusas e recusas surgem no art. 43º nº1 do CPP, num elenco meramente
exemplificativo, consubstanciando-se numa cláusula geral, exigindo uma ponderação caso a
caso, concreta, e não uma mera subsunção. Para que haja causa de suspeição, não tem
necessariamente de haver uma falta de imparcialidade por parte do juiz, mas uma aparência
desta, aos olhos da comunidade. Nas recusas, é raro verificar-se a procedência destas porque
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1º
Homicídio – pena de 10 anos de Neste caso, a competência é
prisão atribuída ao tribunal coletivo (não
podendo ser atribuído ao tribunal
Competência do tribunal coletivo singular por não preencher nem o
da comarca de Lisboa critério da al. a) nem da al. b) do
nº2 do art. 16º do CPP) da
2º
comarca do Porto (tribunal da
Furto – pena de 4 anos de prisão
última condenação), para que
Competência do tribunal singular este determine a pena única a
da comarca do Porto aplicar ao concurso de crimes
referido.
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Ministério Público:
Trata-se de uma magistratura com estatuto de autonomia, que age pautada por critérios de
legalidade e objetividade, sendo os seus agentes magistrados hierarquicamente subordinados
(art. 219º da CRP e art. 53º do CPP). O ministério público colabora com o tribunal na
descoberta da verdade, competindo-lhe dirigir a fase de inquérito, orientando as diligências de
prova a efetuar na referida fase ainda que por ele não sejam diretamente realizadas mas sim
através dos órgãos de polícia criminal. Cabe-lhe ainda deduzir acusação e sustentá-la em juízo
(salvo quando se trate de crimes particulares em sentido estrito) e interpor recursos ainda que
no interesse da defesa (art. 413º nº1 al. a) do CPP). Como referido, certos atos desenvolvidos
em inquérito não são efetuados diretamente pelo ministério público mas sim pelos órgãos de
polícia criminal que têm uma dependência funcional (arts. 56º e 263º nº2 do CPP) face ao
primeiro e uma autonomia organizatória e institucional (v. art. 1º al. d) do CPP). Existem assim
órgãos de polícia criminal com competência genérica (GNR, PSP e PJ) e com competência
específica (ASAE, AT e SEF). Nos termos dos arts. 248º e ss. do CPP, cabe aos órgãos de polícia
criminal proceder a medidas cautelares quanto aos meios de prova, mesmo antes de
receberem ordem da autoridade judiciária competente para que se iniciem as investigações,
ou seja, mesmo antes da comunicação da notícia de crime ao ministério público. A
dependência funcional traduz-se, em suma, na possibilidade de o ministério público conduzir a
investigação dando as ordens necessárias e, em última instância, pode até avocar essa
possibilidade, encabeçando todas as diligências.
Arguido:
Na letra da lei não se encontra uma definição precisa, como sucede com a figura do “suspeito”
(art. 1º al. e) do CPP), mas antes são definidos os pressupostos que dão lugar aos momentos
de aquisição do estatuto de arguido (arts. 57º, 58º e 59º do CPP). No art. 58º do CPP, referem-
se as situações em que a constituição como arguido é obrigatória, com base na fundada
suspeita de prática de um crime, nas situações em que haja fundado motivo para restrição dos
seus direitos, entre outras situações. Assim, a constituição como arguido é uma garantia que
assiste à pessoa, conferindo-lhe o direito a ser devidamente informado e a recorrer, por
exemplo. Do ponto de vista social, da posição de quem está sob a suspeita, para evitar o
estigma injustificado, circunscreveram-se os casos em que a pessoa se deve constituir arguida
(v. as expressões “suspeita fundada” (art. 58º nº1 al. a) do CPP) e “salvo se a notícia for
manifestamente infundada” (art. 58º nº1 al. d) do CPP)). No art. 59º do CPP aparecem
enunciadas outras situações onde se dá a constituição como arguido – no nº1 referem-se os
casos em que, após a inquirição de testemunha, surja fundada suspeita de crime por ela
cometido e, no nº2, situações em que, caso sobre determinada pessoa recaia suspeita simples
(não necessita de ser fundada) de ter cometido um crime, assiste à mesma o direito de se
constituir, a seu pedido, como arguida. A pessoa sobre quem recai a suspeita é constituída
arguida pelo menos no despacho de acusação, caso não o tenha sido antes (art. 57º nº1 do
CPP). Caso o processo seja arquivado, não se torna necessária a constituição com arguido; e
assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem foi requerida abertura de instrução
(art. 57º nº1, in fine, do CPP). Contudo, a constituição como arguido não opera oper legis, é
necessário que se cumpra um formalismo: a constituição como arguido dá-se através da
comunicação feita ao visado por um órgão de polícia criminal que deve explicitar os direitos e
deveres que lhe passarão a caber (art. 58º nº2 do CPP, valendo para os arts. 57º e 59º do CPP),
Francisco Godinho 42
sendo comunicada à autoridade judiciária no prazo de 10 dias para que possa ser validada (art.
58º nº3 do CPP, valendo para os arts. 57º e 59º do CPP). A preterição das formalidades
invocadas determina a proibição de valoração das declarações prestadas pela pessoa visada
(art. 58º nº3 do CPP, valendo para os arts. 57º e 58º do CPP).
Defensor:
Trata-se de um sujeito processual porque não é um mero representante judiciário do arguido,
é um órgão de administração da justiça, agindo no exclusivo interesse do arguido. É-o ainda
porque intervém mesmo contra a vontade do arguido ou nas situações em que este perca o
interesse em defender-se (por exemplo, por se encontrar fragilizado na posição de imputado).
Em processo penal existe proibição de autodefesa e há certos atos em que é obrigatória
assistência do defensor – art. 64º do CPP – situações em que a posição do arguido, pelas suas
qualidades ou pela natureza da situação em que se encontra, seja de maior fragilidade (art.
64º nº1 als. a), c) e d) do CPP); situações em que para a prática de certos atos seja necessário
possuir conhecimentos técnicos (art. 64º nº1 al. e) do CPP); e ainda sempre que forem
praticados atos com eficácia probatória (art. 64º nº1 als. b), f), g) e h) do CPP). No art. 61º nº1
als. e) e f) do CPP (v. também art. 32º nº3 da CRP) vem plasmado o direito que ao arguido
assiste de constituir advogado e de ser assistido por defensor em todos os atos processuais em
que participar. Ainda a este respeito cabe referir as normas dos arts. 143º nº4 e 179º nº2 do
CPP acerca da incomunicabilidade com qualquer pessoa, enquanto detido, exceto com o
defensor e, ainda, a proibição de escutas telefónicas ou qualquer outra forma de
correspondência entre arguido e defensor, salvo se o juiz tenha fundadas razões para crer que
constituem objeto ou elemento de um crime. De acordo com o art. 65º do CPP, cada arguido
pode ter mais do que um defensor e vários arguidos podem ter um só defensor.
Assistente:
A figura do assistente é uma particularidade do direito processual penal português que traduz
a preocupação do legislador para com a vítima, consubstanciando-se na conformação efetiva
da marcha processual (art. 32º nº7 da CRP). O conceito translato de vítima abrange sob a sua
vastidão o ofendido em sentido próprio, titular do bem jurídico atingido (art. 113º nº1 do CP) e
o lesado (que não se pode constituir como assistente quando não seja cumulativamente
ofendido e lesado), conferindo-lhes legitimidade para se constituírem como assistente. No art.
68º nº1 als. c) e d) do CPP apontam-se as situações de morte ou incapacidade do ofendido,
paralelamente aos termos que recobrem a mesma temática quanto ao direito de queixa. Na al.
e) do nº1 do art. 68º do CPP, pela gravidade da infração e pela especial natureza desta, dá-se
uma extensão legal do direito de constituição como assistente, sendo especialmente útil
qualquer contributo ou colaboração de qualquer pessoa. Existe ainda uma extensão, desta vez
por via jurisprudencial, referente a crimes que atinjam bens jurídicos supraindividuais (Acs.
1/2003, 2/2005 e 8/2006 do STJ). No art. 69º do CPP regula-se o estatuto do assistente
enquanto colaborador do ministério público, salvo os casos previstos na lei (ou seja, nos
crimes particulares em sentido estrito onde se exige acusação particular por parte do
assistente, sendo a possível acusação do ministério público meramente subsidiária face à
primeira). O assistente é sempre representado por advogado (art. 70º nº1 do CPP), que não é
um sujeito processual, mas um mero representante judicial cujos poderes e direitos não são
equiparados aos do defensor que pode até agir contra a vontade do arguido ou quando este
não manifeste qualquer vontade de se defender.
Francisco Godinho 43
Partes Civis:
São sujeitos processuais apenas do ponto de vista formal, uma vez que a sua natureza não é
penal. Assim, como deverá proceder-se quanto ao tratamento juridico-processual desta figura
e como deve atender-se à natureza substantiva da reparação/indemnização aplicável à vítima
(em sentido translato, como referido supra)? Desta forma, quanto à questão do tratamento
juridico-processual, duas vias surgem: a primeira, de total independência entre pretensão civil
e penal (formula-se o pedido no tribunal competente e em separado), prejudicando a
economia processual uma vez que o mesmo facto está a ser apreciado em dois processos
distintos; a segunda, que entre nós vigora, é a via da interdependência ou de adesão
(obrigatória) (art. 71º do CPP), que se traduz no facto do pedido de indemnização civil fundado
na prática de um crime ser deduzido no processo penal respetivo, salvo casos excecionais .
Aparentemente, poderia haver um paralelismo com o princípio da suficiência do art. 7º do
CPP, situação que não se verifica uma vez que o pedido cível não é uma questão prejudicial, da
sua decisão não depende o desfecho da causa principal. Através da adesão obrigatória evita-se
os inconvenientes de julgamentos possivelmente contraditórios entre si, garante -se a
economia processual quanto à questão de facto, protege-se a vítima conferindo-lhe, sem
implicação de pagamento de taxa de justiça inicial, a possibilidade de deduzir pedido cível
dentro do próprio processo penal. Contudo, no art. 72º do CPP, consagram-se exceções ao
princípio de adesão, consubstanciando-se em situações em que é possível o pedido em
separado, em ação autónoma: sempre que se trate de crime semi-público ou particular em
sentido estrito (art. 72º nº1 al. c) do CPP), o que no fundo parece traduzir uma certa
descriminalização por via adjetiva sempre vez que o pedido cível seja intentado previamente
em separado, optando o ofendido ou o lesado pelo ressarcimento ou pela pretensão punitiva
(esta nota diz respeito, firmando o que atrás foi referido, apenas às situações em que o
procedimento criminal dependa de queixa ou de acusação particular e o pedido cível seja
intentado previamente, valendo como renúncia ao direito de queixa, nos termos do nº2 do art.
72º do CPP); quando o processo penal não tenha conduzido à acusação nem suspensão
provisória no prazo de 8 meses a contar da notícia de crime ou mesmo quando nem sequer
tenha havido qualquer andamento nesse lapso temporal (art. 72º nº1 al. a) do CPP) – não faz
qualquer sentido que o ofendido ou lesado tenha de aguardar pelo fim do processo para ver
ressarcidos os seus danos; admite-se ainda que o pedido cível seja deduzido em separado
sempre que haja responsáveis que o sejam apenas no plano civil e não no plano penal em
sentido próprio, ou seja, concretizando, nas situações de homicídio negligente causado por
condução, no plano civil não se encontra o arguido mas sim a seguradora, a quem cabe a
legitimidade passiva nestas situações (já no plano penal, claramente, a responsabilidade
caberá ao arguido).
Respondendo agora à segunda parte da questão inicialmente colocada, acerca da natureza
substantiva da reparação, dita o art. 129º do CP que deve esta ser regulada pela lei civil
remetendo, assim, para os arts. 483º e ss do CC. Do exposto decorrem alguns corolários: os
critérios substantivos da lei civil podem levar a resultado distinto daquele que a que os
critérios da lei penal conduzam (pode haver absolvição do arguido no caso de crime de dano,
extinguindo-se a responsabilidade criminal deste mas, contudo, pode ter de pagar uma certa
indemnização ao lesado ou ofendido em questão); o pedido cível é enxertado na ação penal,
fazendo-se certas concessões a favor deste – vale, no geral, o princípio do pedido e limitação
deste, ou seja, o tribunal não pode condenar o arguido a pagar uma quantia a título de
Francisco Godinho 44
indemnização quando o ofendido ou lesado não o faça, bem como não pode condenar o
arguido a pagar uma quantia a título de indemnização em valor superior àquele que foi pedido
pelo ofendido ou lesado; pode desistir-se ou transigir-se do pedido cível; não há despacho
saneador nem pedido reconvencional; a decisão quanto ao pedido cível forma caso julgado,
não podendo o ofendido ou lesado insatisfeito intentar uma nova ação (art. 84º do CPP).
No art. 82º-A do CPP aparece-nos regulado uma reparação de regime dissonante daquelas
anteriormente referidas. Este artigo abre via para o tribunal, oficiosamente e sempre que haja
condenação, arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos causados. Contudo,
apenas opera quando especiais exigências de proteção da vítima assi m o imponham. Remete-
se do art. 67º-A do CPP onde se define vítima como “a pessoa singular que sofreu um dano,
nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou
moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da
prática de um crime; os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada
por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte” para o art. 130º
do CP onde, no nº1, há referência à possibilidade do Estado assegurar a indemnização devida
pela prática do crime sempre que não possa ser satisfeita pelo agente (v. Lei 104/2009, de 14
de Setembro). Na prática, o âmbito é extremamente reduzido porque raramente se
preenchem os requisitos para que se possa recorrer a esta modalidade de reparação. O nº2 e o
nº3 do art. 130º do CP ainda regulam as possibilidades de sub-rogação do Estado no direito do
lesado à indemnização até que o montante esteja satisfeito. De todo o exposto podemos
concluir que se encontra intimamente ligado com o paradigma da justiça restaurativa como
terceira via da pretensão penal, podendo cumprir, também, exigências de prevenção geral e
especial, completando os fins das penas e contribuindo para a ressocialização do agente.
Por fim, nas situações de burla qualificada, furto qualificado e dano qualificado, tratando-se de
crimes públicos que contendem com bens jurídicos patrimoniais, o art. 206º nº1 do CP estatui
que nestes casos extingue-se a responsabilidade criminal, mediante acordo entre arguido e
ofendido, após a restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação
integral dos prejuízos causados.
Objeto do Processo
De forma sucinta, trata-se do quid sobre o qual incide a investigação e o julgamento. O objeto
encontra-se intimamente ligado ao princípio da acusação, em três distintas vertentes: o
tribunal não tem iniciativa de investigação; a atividade judicativa depende de prévia acusação
deduzida por entidade distinta daquela que julga (ou seja, a acusação é pressuposto/fator
desencadeador da atividade judicativa); não apenas a acusação é o pressuposto formal do
julgamento como também fixa e delimita o objeto sobre o qual irá incidir o juízo (o thema
decidendum é fixado e delimitado pelo thema probandum), evitando-se, assim, surpresas para
o arguido que, a contrario, poderia ser alvo de imputação de factos que não constassem da
acusação – do exposto resulta que o objeto e o princípio da acusação que a ele se liga
determinam o se, como e quando da atividade judicativa, delimitando os poderes de cognição
do tribunal. Para finalizar esta exposição inicial, introduzem-se ainda dois outros conceitos
ligados estreitamente ao objeto do processo: a litispendência (estar pendente num outro
tribunal um processo idêntico) e o caso julgado (saber o que fica ou não consumido por este,
concretização do princípio ne bis in idem – art. 29º nº5 da CRP).
Francisco Godinho 45
Assim, será que o objeto do processo é o mesmo nas três situações destacadas? A este
respeito, diversas respostas surgiram na doutrina:
Tese Minoritária (Karl Peters): o autor em apreço defende uma tese diferenciada
do objeto – o âmbito deve ser distinto consoante os momentos em que o objeto é
analisado, sofrendo estreitamentos sucessivos ao longo das fases, conferindo uma
natureza ampla e dinâmica ao objeto. Valoriza Peters, portanto, as finalidades da
investigação e descoberta da verdade material.
Cognição
Caso Julgado
Desta forma, segundo o princípio da identidade o objeto deve manter-se o mesmo desde a
acusação até ao trânsito em julgado da decisão, estando o tribunal vinculado aos limites que a
acusação consubstancia, permitindo-se ligeiras flexibilizações fruto de apuramentos ou
pequenas alterações ao escopo traçado por esta.
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