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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
CENTRO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA
ANTIGUIDADE

CADERNOS DO CEIA

No. 1 - 2008

EXPERIÊNCIAS POLITEÍSTAS

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima


Adriene Baron Tacla
(ORGANIZADORES)

Niterói - 2008

0
Copyrigth2008: Todos os direitos desta edição reservados ao
Centro de Estudos da Antiguidade (CEIA), da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Capa: Górgona – VI século a. C. – Museu de Siracusa/ Contra-capa: Perseu


combatendo as Górgonas – VI século a. C.
(http://www.pixelteca.com.br/apuentes/grecia/medusa/html)

Diagramação: Prof. Ms. José Roberto Paiva

LIMA, Alexandre Carneiro Cerqueira, TACLA, Adriene Baron (org)


Experiências Politeístas. Cadernos do CEIA. Ano 1 No 1
Niterói: Centro de Estudos de Antiguidade – CEIA – da
Universidade Federal Fluminense (UFF), 2008.
176 pp.
ISSN 1981-6782
CDD 930
Palavras-chave: 1 – História; 2 – Politeísmo; 3 – Cultos; 4 – Divindades

Cadernos do CEIA
Publicação Semestral do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade
Universidade Federal Fluminense
CEIA – Instituto de Letras e Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
Campus do Gragoatá, Bloco C, sala 310
São Domingos – Niterói – Cep: 24.210-350
Tel: (21) 2629-2603
Página na rede mundial de computadores: http://www.ceiauff.rg9.net
Correio eletrônico: ceiauff@yahoo.com.br

1
ISSN 1981-6782
CADERNOS DO CEIA

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


INSTITUTO DE LETRAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
CENTRO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA ANTIGUIDADE

EDITORES RESPONSÁVEIS
Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso – UFF
Dra. Silvia Damasceno – UFF
Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima – UFF

CONSELHO EDITORIAL
Dra. Adriane Silva Duarte – USP
Dra. Claudia Beltrão da Rosa – UNIRIO
Dr. Fabio de Souza Lessa – UFRJ
Dra. Glória Braga Onelley – UFF
Dra. Maria de Fátima de Sousa e Silva – Universidade de Coimbra
Dra. Sonia Rebel de Araújo – UFF

CONSELHO CONSULTIVO
Dr. André Domingos dos Santos Alonso – UFF
Dra. Adriene Baron Tacla – CEIA/UFF
Ms. Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras – UFF
Dr. Marcelo Aparecido Rede - UFF
Dra. Maria Bernadete de Carvalho Rocha – UFF
Dra. Maria Regina Candido – UERJ
Ms. José Roberto de Paiva Gomes – NEA/UERJ

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SUMÁRIO

Editorial 4
A religiosidade celta: politeísmo “naturalista”? 8
Adriene Baron Tacla
As espacialidades transitadas por Ártemis em Corinto 29
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
O mar e os pescadores: deuses, medos e ambivalências 41
Ana Lívia Bomfim Vieira
Jogos e festas no Alto Império romano: alegria, sacralidade e 52
identidade
Ana Teresa Marques Gonçalves
O Politeísmo dos antigos egípcios sob o Reino Novo 63
(1530-1069 a.C.)
Considerações em torno de religio em suas manifestações 77
literárias
Claudia Beltrão da Rosa
Tornar-se atleta: práticas esportivas ritualizadas entre os 89
gregos antigos
Fábio de Souza Lessa
Monoteísmo na Babilônia? Considerações acerca da mitologia 106
de Marduk
Marcelo Rede
Religião e o politeísmo entre os gregos 128
Maria Regina Candido
Usos iconográficos do monumento funerário em Atenas Clássica 137
Marta Mega de Andrade
Rituais divinatórios na República Romana 149
Regina Maria da Cunha Bustamante
Politeísmo no Asno de Ouro de Apuleio 166
Sonia Rebel de Araújo

3
EDITORIAL
A CRIAÇÃO DE UM TÓPOS DIALÓGICO

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima


Adriene Baron Tacla
(CEIA – UFF)

O Centro de Estudos da Antiguidade (CEIA), sediado


na Universidade Federal Fluminense (UFF), desde a sua
criação em 1998, sempre teve a preocupação de agregar
profissionais de distintas áreas e de diferentes centros de
pesquisas e universidades, reunindo, pois, historiadores,
arqueólogos, lingüistas e filólogos que trabalham com as
sociedades da Antiguidade oriental e ocidental. Todos os anos
o CEIA promove a Jornada de Estudos da Antiguidade, um
evento que permite divulgar trabalhos de professores e de
pesquisadores sobre sociedades antigas no Brasil. Além da
Jornada, o CEIA organiza regularmente mini-cursos e possui
grupos de estudos voltados para a discussão de várias
temáticas, tais como: cristianismo, escravidão, sociedades
egípcia e celtas, e politeísmo.
Atualmente o CEIA pretende divulgar sua produção e
suas pesquisas por meio dos Cadernos do CEIA, uma
publicação semestral, que, na forma de números temáticos,
objetiva reunir profissionais de diversas áreas (sobretudo
História, Letras e Arqueologia) para debater questões atuais e
apresentar à comunidade acadêmica seus trabalhos acerca das
sociedades antigas. Desta forma, egiptólogos, assiriólogos,
helenistas, latinistas e celticistas terão nos Cadernos mais um
espaço para divulgarem suas pesquisas.
O presente Caderno trata de pesquisas de historiadores
interessados pelas experiências religiosas dos politeísmos
antigos. A discussão em torno deste tema surgiu a partir da
organização do grupo de estudos de politeísmo no CEIA, em
novembro de 2006, por Professores e Pesquisadores

4
interessados em compreender as manifestações religiosas de
sociedades politeístas antigas.
A publicação deste Caderno consiste na materialização
de um esforço da equipe de Professores e de Pesquisadores
filiados ao CEIA. Quando escolhemos a temática dos
politeísmos antigos estávamos interessados em criar um espaço
aberto e profícuo, baseado em distintas visões e abordagens.
Tivemos como inspiração a experiência dos helenistas Jean-
Pierre Vernant e Marcel Detienne, que organizaram o Centro
Louis Gernet, cuja grande marca residia na diversidade, na
interdisciplinaridade e nos estudos comparados. De modo que,
uma plêiade de estudiosos participava dos encontros,
discussões e pesquisas coletivas desse grupo (1). Vernant e
Detienne tinham a convicção de que o trabalho em equipe
possibilitaria a criação de um locus privilegiado de trocas e de
contribuições recíprocas, marcando bem o aspecto dialógico,
da troca baseada na diferença.
Detienne advoga em sua obra Les Grecs et Nous a
necessidade de se criar um saber compartilhado. Historiadores
e antropólogos podem, juntos, trabalhar em parceria – um
ajudando o outro com o objetivo de melhor compreender uma
dada questão. Daí, Detienne falar em comparatismo
experimental e construtivo (2). Os pesquisadores podem
convergir seus olhares com o intuito de compreender o maior
número de produções culturais. A equipe composta por
especialistas ao longo dos anos deve trabalhar transitando entre
as sociedades e as manifestações culturais, procurando sempre
estabelecer noções ou categorias de análise.
Assim, o primeiro Caderno do CEIA – Experiências
Politeístas, tem o propósito de criar um tópos de discussão,
trazendo a religiosidade e as formas de ritualização para o
centro do debate acerca das sociedades antigas no ocidente e no
oriente próximo. Com Experiências Politeístas, visamos
abordar as formas como diferentes sociedades antigas
vivenciaram a relação com o sagrado. Das práticas às crenças,

5
nosso interesse reside na compreensão das formas de
religiosidade e de experiência ritual, isto é, na diversidade da
ação humana em contextos rituais, a multiplicidade de seus
significados, usos e implicações na vida em sociedade.
Para tanto, é preciso que, primeiramente, nos afastemos
da noção de irracionalidade, por tanto tempo atribuída ao
âmbito do ritual e do religioso, e que, ancorada no dualismo
sagrado-profano (3), pressupõe ser o ritual ligado tão somente
ao simbólico, ao místico e ao sobrenatural. Dentro da
arqueologia, como destacam J. Brück e R.D. Whitehouse (4),
essa visão racionalista moderna instaurou a noção de que ritual
era tudo o que não tinha uma “função” prática específica e que,
por conseguinte, não podia ser logicamente explicado.
No entanto, ao contrário, os achados arqueológicos e a
documentação textual das mais diversas sociedades antigas
demonstram haver uma profunda ligação entre religiosidade,
ritual e vida quotidiana; donde não se trata tão somente de
distinguir diferentes esferas funcionais, mas sim de
compreender que “os saberes ritual e religioso são (...)
construídos das mesmas condições materiais que a vida
quotidiana” (5). Da mesma forma, novas abordagens
antropológicas sobre ritual têm chamado a atenção de
historiadores e arqueólogos para a necessidade de compreender
que ritual e prática, ou ritual e racionalidade, não são opostos.
Ao contrário, ritual é prática e possui uma racionalidade
intrínseca. Trabalhos como os de C. Bell e C. Humphrey e J.
Laidlaw (6) mostram-nos que a ação/prática ritual implica
hábitos fixos, mímesis e rotinas estabelecidas aprendidas na
experiência ritual, mas também envolve, igualmente,
comprometimento, racionalidade, improviso e inovação. Isso
abre novas frentes de análise e interpretação da prática ritual e
das formas de religiosidade, destacando, sobretudo, a ação e a
experiência humanas; o que permite ao pesquisador ir além dos
aspectos simbólicos e culturais dos rituais.

6
Isto posto, devemos destacar que os trabalhos, aqui,
reunidos apresentam manifestações múltiplas das experiências
religiosas dos homens da Antigüidade, estudadas por
profissionais oriundos de diferentes instituições e, por
conseguinte, com distintos olhares e abordagens. O lugar
social heterogêneo e plural deste grupo de historiadores
contribui para termos análises e abordagens fecundas e
distintas sobre a temática levantada (7).
NOTAS
(1) VERNANT, J.-P. Entre Mythe et Politique. Paris: Seuil, 1996, p. 45.
(2) DETIENNE, M. Les Grecs et Nous: une Anthropologie Comparée de la
Grèce Ancienne. Paris: Perrin, 2005, p. 22.
(3) cf. BELL, C. Ritual Theory, Ritual Practice. New York/ Oxford:
Oxford University Press, 1992, passim; BRÜCK, J. Ritual and Rationality:
Some Problems of Interpretation in European Archaeology. European
Journal of Archaeology, 2 (3), 2004, pp. 313-344.
(4) WHITEHOUSE, R.D. Ritual Objects - Archaeological Joke or
Neglected Evidence? In: WILKINS, J.B. (ed.) Approaches to the Study of
Ritual. London: Accordia Research Institute University of London, 1996,
pp. 9-30.
(5) BARRETT, J.C. Towards an Archaeology of Ritual. In: GARWOOD,
P. et al. (eds.). Sacred and Profane: Proceedings of a Conference on
Archaeology, Ritual and Religion. Oxford: Oxford Committee for
Archaeology, v. 32, 1991, p.6.
(6) Humphrey, C. and Laidlaw, J. The Archetypal Actions of Ritual: A
Theory of Ritual Illustrated by the Jain Rite of Worship. Oxford: Clarendon
Press, Oxford studies in social and cultural anthropology, 1994.
(7) Segundo Michel de Certeau: “Toda pesquisa historiográfica se articula
com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. (...) Ela
está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma
particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que
se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões,
que lhe serão propostas, se organizam.” DE CERTEAU, M. A Escrita da
História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, pp. 66-67.

7
A RELIGIOSIDADE CELTA: POLITEÍSMO
“NATURALISTA”? (1)

Adriene Baron Tacla


(CEIA/UFF e BRATHAIR)

Resumo: O presente artigo discute a relação da religiosidade das


populações ditas “Celtas” e a “Natureza”, apontando a necessidade de
revermos a conceituação e propondo a perspectiva de uma paisagem vivida
marcada pela relação entre “homem” e “ambiente”. Para tanto, nosso
argumento considerará, principalmente, os relatos antigos e as
interpretações antropológicas relativas ao tema de animismo.
Palavras-chave: Idade do Ferro, Natureza, religiosidade

Abstract: This paper discusses the relationship between the religiosity of


the so-called ‘Celtic’ populations and Nature, showing the necessity to
revise concepts and supporting the perspective of a lived landscape marked
by the interaction between ‘man’ and ‘environment’. In order to achieve
that, my argument will take into consideration the ancient sources on the
Celts and anthropological interpretations regarding animism.
Keywords: Iron Age, Nature, religiosity

Introdução
Quando falamos de religiosidade na proto-história
Européia, lembramo-nos, primeiramente, dos relatos dos
autores antigos descrevendo rituais, oferendas e sacrifícios
feitos a céu aberto em “locais naturais” pelos celtas antigos.
Esses relatos nos lembram dos achados de depósitos em lagos,
rios e pântanos (2); o que leva a uma imediata equação entre
“religiosidade proto-histórica” e “Natureza”, que tem
fascinado, em igual medida, pesquisadores e leigos.
A maioria dos estudiosos interpreta os achados de
depósitos em “locais naturais” e as referências greco-latinas
acerca dos rituais das populações celtas como expressão e
evidência de uma “religião naturalista”, que é baseada na

8
crença de sacralidade enraizada na Natureza e no uso de
“lugares naturais” como locais de culto. No entanto, como
veremos abaixo, esse conceito é inapropriado para
compreender esta sorte de prática religiosa. Primeiramente,
porque ele supõe uma divisão, para não dizer uma hierarquia,
de religiões de acordo com seu nível de complexidade,
envolvendo a relação entre lugares a céu aberto e o uso ou não
de santuários cobertos ou templos. Segundo, esse conceito
perpetua a visão dos autores antigos que percebiam essas
sociedades como “bárbaros primitivos”. Tais relatos podem ser
enganosos, porquanto criam a impressão de que tratava-se de
uma religiosidade “não corrompida” pela sociedade, isto é, não
afetada pela exploração política, por conflitos de interesse ou
pela vida econômica nas comunidades praticantes.
As populações ditas “bárbaras” são representadas pelos
autores greco-romanos em meio a um panorama de terras
distantes e próximas, de inimigos e aliados, moldado pelo
fascínio por hábitos e culturas diferentes, bem como pelo medo
e o terror despertados por sua diferença e potencial hostilidade.
Como destacamos em outra ocasião, “os helenos
hierarquizavam os bárbaros por uma série de variáveis que
incluiriam: não falar o grego, não possuir os valores e costumes
helênicos. Conforme nos aponta Kristeva (1994: 58), aos olhos
dos helenos haveria, outrossim, uma distinção entre ‘bárbaros
bons’ e ‘maus’, designando, respectivamente, aqueles que eram
aliados e, portanto, poderiam adotar a cultura helênica, e os que
eram inimigos e, por conseguinte, permaneceriam distantes da
civilização” (TACLA, 2001: 32).

Os celtas, como parte dessas populações bárbaras, eram


considerados, ao mesmo tempo, com a possibilidade de contato
(e comércio) e de guerra ou invasão. Vários autores tratam dos
celtas antigos – sua estrutura sócio-política, religião, hábitos,
guerra e etc. (3) – geralmente, citando-os como o pitoresco, o

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exótico e o bizarro de terras estrangeiras. A maior parte desta
documentação consiste de fragmentos ou referências isoladas
constantes de narrativas históricas e/ou geográficas mais
amplas. Tais referências são, em sua maioria, acerca da Gália e
da Bretanha e poucas são as fontes anteriores ao século IVº
a.C.
As primeiras referências são predominantemente
baseadas em relatos históricos e geográficos dos primeiros
périplos (manuais de viagens dos primeiros exploradores do
ocidente). Dos séculos IV e III a.C., há várias informações de
que vêm de outros périplos ou narrativas históricas, geográficas
e/ou etnográficas. Porém, grande parte dos relatos se concentra
no período compreendido do século II a.C. ao século I d.C.
Assim, sendo, temos que tratam essas fontes de uma vasta
gama de populações celtas de diversos períodos e regiões,
fornecendo-nos o que poderíamos chamar de um panorama
pan-céltico.
Aqui, um tal panorama, ao invés de obstáculo ou
empecilho, se nos apresenta como vantagem, posto que nos
revelam constantes (e transformações) tanto nas visões acerca
dessas populações, quanto na relação dos celtas e com a
Natureza. Destarte, nos deteremos, neste trabalho, nos aspectos
que ligam essas populações à Natureza nos relatos greco-
latinos a fim de compreender o que fundamenta a interpretação
de “religião naturalista” e demonstrar a necessidade de
revermos a conceituação, defendendo a perspectiva de uma
paisagem vivida marcada pela relação entre “homem” e
“ambiente”.
Devemos, aqui, destacar que, por questões de espaço,
não poderemos nos deter sobre as tradições da historiografia,
geografia e etnografia antigas, limitando-nos, apenas, a pontuar
algumas breves observações a esse respeito. No entanto, é
preciso apontar que esses gêneros literários estiveram
profundamente ligados, de tal modo que era prática corrente
começar um trabalho etnográfico delineando e descrevendo a

10
região habitada pela população em questão, especialmente
porque havia, por parte desses autores, a concepção de que as
características e condições da região e do território habitados
definiriam o caráter e a natureza da população (haja vista os
relatos de César sobre a floresta Hercinia (B Gall, VI.25) e de
Diodoro da Sicília (V.25.1-2) sobre o clima na “Céltica”).

Caráter e religiosidade celtas na documentação clássica


A documentação clássica enfatiza vários aspectos que
mostram uma ligação entre as populações da Europa Centro
Ocidental e o “selvagem”, a “Natureza”: sua aparência, caráter,
comportamento, rituais e crenças religiosas. Essa ligação, se
por um lado os afasta do âmbito da “cultura, do “mundo
civilizado” greco-romano, por outro os define como um tipo
muito particular dentro do espectro de bárbaros, estando os
celtas entre o bárbaro mais próximo (helenizado) e o mais
afastado (o desconhecido, que representa a alteridade total).
Uma tal percepção deu lugar a três imagens dos celtas que
prevalecem nos relatos antigos: o “bárbaro amigável”, o “
bárbaro destemido e temível” e o “nobre selvagem”.
O celta como “bárbaro amigável” é aquele que aparece
nas primeiras referências, a saber: Hecateu de Mileto (4)
(Steph. Byz., FGrH1A≠1, frags. 54-56), Hilmico de Cartago
(5) (Avienus, Ora Maritima, 114-119, 380-389, 411-416) e
Heródoto (II.33, IV.49). Hecateu e Hilmico, que se inserem na
primeira tradição geográfica e etnográfica dos périplos,
mapeiam as populações célticas em contato com helenos e
cartagineses, assinalando, pois, populações helenizadas (a
exemplo do sul da França) e/ou com quem tinham relações
comerciais. Heródoto também apresenta os celtas como não
muito distantes dos helenos.
Contudo, a interpretação da diferença das populações
célticas mudou substancialmente durante os períodos
helenístico e romano. Autores como Platão (Leis 1.637d-e),
Aristóteles (Eth. Nic. III.7.6-7 [1115]; Eth. Eud. 3.1.25

11
[1229b]) e Éforo (Estrabão IV.4.6) apresentam os celtas como
seres exóticos, bem como sendo a antítese dos helenos, isto é,
povos dominados por grandes emoções e destemperança (6).
Durante os séculos IV e III a.C., largamente em virtude das
migrações célticas e das invasões de Delfos e Roma, as
populações célticas começaram a ser representadas pelos
autores greco-latinos como belicosas e temíveis (7);
características que eram enfatizadas pelas práticas de
sacrifícios humanos e pelo culto das cabeças cortadas. Essas
características e hábitos, em oposição aos padrões do “mundo
civilizado” greco-romano, colocavam essas populações no
domínio do selvagem, isto é, no “mundo natural”.
Os modelos das tradições historiográficas e etnográficas
de Heródoto e Tucídides são mantidos durante os períodos
helenístico e romano, como no caso de Políbio, que seguiu os
princípios básicos do modelo de Tucídides, para quem a escrita
da história se baseava no testemunho ocular (cf. MILLAR,
1964: 7). Para Políbio, os celtas representavam o caos em
oposição à ordem e civilização romana; o que se deve
sobremaneira ao evento da invasão e saque de Roma em 390
a.C.
Contudo, referências detalhadas sobre os celtas só
começam com o que Tierney (1960) chamou de “tradição
Possidônia”. Segundo ele, a etnografia de Possidônio acerca
dos celtas era a base para os relatos de Ateneu, Diodoro da
Sicília, César e Estrabão. Ateneu seria, em verdade, a principal
fonte dessa tradição, posto que é o único a dar os números dos
extratos retirados de Possidônio (cf. CLARKE, 1999: 132-
133). Por outro lado, desde o séc. XIX, Diodoro é considerado
como um “copista”, devido a sua “fidelidade” às fontes
(SACKS 1994); o que tem sido combatido por pesquisas
recentes, a exemplo de Sacks e de Yarrow (2000), que mostram
a criatividade do autor na produção de seu texto, inserindo suas
próprias idéias e crenças, especialmente no que concerne à
política e história romanas. Porém, no que tange a suas

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menções acerca dos celtas, temos que Diodoro se baseou
largamente em Possidônio a ponto de suas passagens casarem
com as de Ateneu.
O mesmo, contudo, não pode ser dito a respeito de
César e Estrabão. Como Nash (1976: 114-115) demonstra,
Tierney não levou em conta a verdadeira e original
contribuição desses dois autores, nem tampouco reconheceu
que o trabalho de César era completamente distinto dos demais,
sobretudo porque, ao contrário de Ateneu e Diodoro, e apesar
de César provavelmente ter tido conhecimento do trabalho de
Possidônio, ele também foi testemunha ocular e, por
conseguinte, certamente incluiu suas próprias visões e
explicações acerca dos gauleses. Mais do que isso, Tierney não
leva em consideração a relevância do período de produção
dessas obras. A maior parte das informações mencionadas por
tais autores provavelmente não estavam disponíveis para
Possidônio e sem o texto dele na íntegra é verdadeiramente
impossível certificar a extensão da influência de seus escritos.
Ademais, como tais autores provavelmente leram Possidônio,
eles também leram Homero, Hecateu e Heródoto dentre outros
autores que eram parte da educação e do conhecimento da
época. Isso significa que não havia a tradição de um só
indivíduo, mas uma base de formação cultural e educacional
que definia as identidades helena e romana frente a bárbaros e
estrangeiros e que, juntamente com as experiências e
percepções desses autores, fundamentava seus escritos sobre o
“Outro”.
Crítica similar pode ser feita à hipótese de uma
“tradição Alexandrina” levantada por Chadwick (1999).
Defende ela que essa tradição, constituída por Timeu,
Timógenes e Polistor, juntamente com autores da Escola de
Alexandria (principalmente Plínio o Velho, Pompônio Mela,
Lucano e Amiano Marcelino) teria cunhado uma visão muito
distinta das populações celtas, em particular de sua religião.
Não eram os celtas retratados como bárbaros temíveis ou

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violentos, mas como pitorescos tanto por suas crenças
religiosas/filosóficas quanto por sua relação estreita com a
Natureza. Isso certamente implicou uma seleção de
características que, para Chadwick, era principalmente
explicada por uma tradição literária. Contudo, embora todos
esses autores seguissem idéias estóicas, uma tal seleção seguia,
acima de tudo, os propósitos e objetivos de cada um desses
autores.
Dentre todos eles, Plínio o Velho é certamente o autor
mais interessado na relação entre religião e Natureza,
porquanto a noção estóica de poder criativo da Natureza se
encontra profundamente arraigada em seu trabalho. Em
contraste, as menções de Lucano aos bosques sagrados
gauleses não eram guiadas por seu fascínio por essas “crenças
selvagens”. Ao contrário, de seu relato emergem críticas aos
ritos bárbaros (cf. Luc. I.450-458). Amiano Marcelino, ao
invés, citando Timógenes ao se referir aos gauleses, se
aproxima mais da tradição etnográfica de Tácito, estando ele
preocupado em explicar a natureza de tais bárbaros.
Chadwick (1999: 30) acreditava que, devido ao período
em que ele escreveu, o trabalho de Tácito diferia daquele da
tradição Alexandrina. Seus Anais e Histórias seriam
claramente inspirados pela tradição histórica de Tucídides,
enquanto que sua Germânia seguiria a tradição etnográfica,
bem como a abordagem periegética de Hecateu (RIVES, 1999:
11-21). Nos Anais, as referências aos celtas estão no contexto
das campanhas romanas na Bretanha, ou seja, no contexto de
conquista e dominação de populações “selvagens”. Ao passo
que a Germânia, procura não só descrever as populações
germânicas, mas explicar o fracasso da conquista da Germânia
pelos romanos. Assim, traça ele a imagem dos germanos, não
como uma mera oposição aos romanos, mas como populações
“primitivas” corajosas e belicosas, selvagens, impulsivas e sem
limites ou leis; o que contrasta sobremaneira com a imagem
que ele traça dos celtas.

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Como podemos ver, até o IVº século a.C., foram eles
vistos de forma os celtas foram vistos pelos helenos uma sorte
de bárbaro mais próximo da cultura, com quem se podia
conviver e negociar e, por conseguinte, também era passível de
ser civilizado. Nos séculos IV-III a.C., firmou-se a visão de
belicosidade e destemperança das populações celtas;
características essas reforçadas por sua atuação como
mercenários e as invasões e saques de Delfos e Roma, bem
como pelas observações de Possidônio acerca do culto das
cabeças cortadas e dos sacrifícios humanos. A visão de seu
valor guerreiro também foi enfatizada ao longo da conquista
romana da Gália e da Bretanha; o que também servia para
enaltecer o valor e as vitórias de Roma. Após o séc. I d.C.,
surge a visão deste bárbaro como o “nobre selvagem” mais
próximo da Natureza e, por conseguinte, distante da corrupção
do “mundo civilizado”. Essa visão primitivista, juntamente
com os relatos acerca dos lugares de culto celtas, é que
contribuiu sobremaneira para a construção da visão da
religiosidade celta como “naturalista”.

Da nomenclatura de santuários e lugares sagrados


Nos relatos greco-latinos, vários termos são usados para
nomear os lugares de culto célticos. Em latim, encontramos:
locus consecratus, lucus, nemus, fanum, adytum, aedes e
templum. Locus consecratus é um termo relativamente
impreciso que designa locais sagrados em geral, enquanto que
lucus é usado em referência a santuários limitados por um
bosque, de modo a aludir não a um “local natural”, mas a uma
paisagem criada que “reproduz” uma paisagem sagrada
(BRUNEAUX, 1996: 60). Nemus também significa um bosque
sagrado, uma clareira ou uma lareira sagrada, enquanto que
fanum se refere a um lugar sagrado que tem seus limites
demarcados por um fosso. Adytum, derivado do termo grego
ádyton, é o santuário mais interior de um templo, ao qual é
vetada a entrada de outros que não os sacerdotes. Aedes é um

15
templo, uma construção simples sem qualquer subdivisão,
enquanto templum consiste em um amplo e impressionante
edifício consagrado pelos adivinhos aos deuses.
Em grego, o vocabulário para lugares sagrados é um
tanto vasto, com o léxico principal consistindo em: témenos,
hierón, naós, bóthros, sekós, álsos, hérkos and anáktoron. Os
três primeiros termos são, de fato, mais freqüentemente usados
para identificar santuários dentro do mundo helênico. O termo
témenos aparece, tal qual seu cognato latino templum, para
nomear um lugar consagrado aos deuses. Originalmente,
“témenos é uma porção do território [que] depois se torna um
espaço reservado/consagrado a uma divindade” (CASEVITZ,
1984: 86). Ele se aplica a cercamentos sagrados delimitados
por cercas, fossos ou muros. Hierón, por outro lado, apesar de
freqüentemente usado para designar um edifício/templo, pode
designar um “lugar sagrado” em seu sentido mais geral, sendo,
por conseguinte, utilizado para remeter a vários tipos de
santuários (BRUNEAUX, 1996: 61; CASEVITZ, 1984: 86).
Naós, porém, sempre se refere a templos e edifícios sagrados;
“é ‘a residência pessoal’ da divindade, que está presente por
sua estátua” (CASEVITZ, 1984: 87). Bóthros, ao invés, é um
poço ou uma cova ritual para deposição de oferendas
(PIGGOTT, 1978: 37-38), enquanto sekós (8), tal qual
témenos, corresponde a um cercamento sagrado (ROUVERET,
2000: 47). Contudo, séka indica lugares devotados ao culto do
herói (CASEVITZ, 1984: 94; WEBSTER, 1995: 446). Alguns
termos, tais como álsos e hérkos pertencem especificamente a
áreas florestadas. Álsos é uma mata ou bosque que contém uma
fonte ou curso d’água, enquanto hérkos, originalmente uma
área florestada, quando usado juntamente com hierón significa
um cercamento sagrado (CASEVITZ, 1984: 93). Finalmente,
anáktoron é “o lugar dos deuses, onde são celebrados os
mistérios” (CASEVITZ, 1984: 95).
Acrescentando-se a isso, há o vocábulo galo-bretão
nemeton, que é amplamente encontrado na toponímia e na

16
epigrafia da Gália, Bretanha e Galácia (PIGGOTT, 1978: 37;
WEBSTER, 1995: 448). Nemeton, cognato do termo grego
nemos (significando “pasto arborizado” ou “clareira numa
floresta”) e do termo latino nemus (ALDHOUSE-GREEN,
2000: 9; PIGGOTT, 1978: 37), e tal como locus consecratus, é
visto como um termo razoavelmente impreciso, posto que
designa lugares sagrados em geral.
Nem todos esses termos eram usados para se referir aos
lugares sagrados célticos. O vocabulário empregado pelos
autores gregos para descrever santuários gauleses se restringe
tão somente a: témenos, hierón e sekós.
Estrabão (III.4.16) menciona a performance de rituais a
céu-aberto por celtiberos em frente a suas casas, enquanto que,
para as tribos gaulesas, ele (IV.1.13, IV.4.6) enfatiza a
importância de lagos e ilhas como sítios rituais que coexistiram
com construções por ele nomeadas como sekós e hierón.
Devemos, porém, ressaltar que ilhas, de fato, aparecem no
texto de Estrabão como teméne que possuíam hierá, onde se
faziam os rituais. Diodoro da Sicília (V, 27.4) também
menciona a dedicação de oferendas votivas em hierá e teméne,
e Dio Cássio (LXII.7), ao mencionar os sacrifícios de
prisioneiros romanos em um bosque de Andate pelos bretões,
também usa hierá.
O uso seletivo de tais vocábulos revela a existência de
diferentes tipos de lugares sagrados consistindo em áreas
claramente demarcadas, algumas delas que talvez tivessem um
altar ou construção no centro. O termo hierón é empregado
tanto em seu sentido geral (de modo a designar ao mesmo
tempo um templo ou uma característica geográfica tal como
um lago ou uma caverna), quanto em seu sentido mais
específico de uma área sagrada dentro de um témenos.
Inversamente, sekós é usado por Estrabão (IV.1.13) para
designar um tipo específico de santuário, reconhecido por
Possidônio como consagrado ao culto dos ancestrais.

17
Entre os autores latinos, Bruneaux (1996: 60)
argumenta que há a tendência a usar os termos mais vagos,
como locus consecratus e lucus, posto que em sua visão a
nomenclatura de edifícios sagrados implica um caráter
monumental que, a seu ver, provavelmente pareceria
inapropriado para descrever os lugares sagrados dos bárbaros.
Todavia, uma outra razão pode ser que eles não aludiam a
nenhum edifício, mas a locais na paisagem. César, por
exemplo, usa locus consecratus tanto ao mencionar o encontro
druídico anual no território dos carnutos (B Gall. VI, 15)
quanto para se referir aos lugares onde os gauleses faziam seus
rituais após uma vitória (B Gall. VI, 17). Isso não significa que
não houvesse edifícios sagrados, mas sim que os lugares
sagrados em questão correspondiam a formas geográficas.
Muitas formas geográficas aparecem como lugares
sagrados nas fontes clássicas. Plínio, o Velho, (HN. XVI.
CXIII.250), por exemplo, aponta que os sacerdotes – druidas –
receberam seu nome de drús (9) (termo grego que significa
carvalho) e que as árvores e plantas, como o carvalho e o visco,
tinham um significado sagrado, sendo, portanto, objeto de culto
da população. Outros autores como Tácito (Ann. XIX.30) e
Lucano (I.452-454) também se referem à sacralidade de
florestas, matas e bosques. Alguns deles, como no caso do
bosque sagrado perto de Massalía (Luc. III.411-412), eram
igualmente relacionados a contextos aquático, em particular
fontes, que eram usadas para práticas rituais com deposição.
Por outro lado, Pompônio Mela (III, 2.18-19) menciona o uso
de cavernas e vales de montanhas isoladas para o aprendizado
druídico, bem como a existência de um oráculo numa ilha na
Bretanha Francesa, que era dedicado a uma divindade gaulesa
em Sena, no mar bretão em frente à margem de Ossimiano
(Pompon. III.6.48).
Assim, os léxicos grego e latino empregados para
designar os lugares sagrados célticos não só assinalam a
existência de diferentes tipos de santuários, mas, acima de

18
tudo, mostram uma ligação ente “locais na natureza” e o
mundo sobrenatural. Piggott (1978) demonstrou vários
paralelos entre os vestígios arqueológicos de lugares sagrados
célticos e os termos témenos, bóthros, fanum e templum. Por
exemplo, estruturas arqueológicas que podem ser classificadas
como teméne são muito comuns tanto nas Ilhas Britânicas
(cercamentos sagrados quadrados, oblongos ou circulares) e na
Europa Central (os chamados Viereckschanzen (10)
(PIGGOTT, 1978: 49-51). Bóthroi, por outro lado, são bem
representados por fossos votivos como aqueles de Holzhausen,
enquanto que fana e templa podem ser atribuídos a vários
exemplos de construções em madeira no interior de
cercamentos sagrados. De fato, esses também podem se aplicar
a conjunção hierón-témenos. Como apontado por vários outros
scholars, como Wait (1980), Webster (1995) e Bruneaux
(1996), os achados arqueológicos apóiam a maioria dessas
interpretações.

Animismo ou “religião naturalista”?


Vários autores antigos, em particular os escritores
estóicos (como vimos acima), apresentam uma “visão
primitivista” dos celtas (PIGGOTT, 1996: 91-99), que são por
eles idealizados como populações primitivas puras, geralmente
representadas como pertencendo a um passado perfeito,
idealizado, mitológico, comumente referido como “a Idade do
Ouro”, posto que eles eram entendidos como sendo livres da
corrupção do “mundo civilizado”, tendo uma vida mais simples
e, por conseguinte, estando mais próximos da Natureza e das
divindades. Essa tradição literária clássica acabou, portanto,
por criar a interpretação amplamente difundida de uma
“religião natural” dos celtas. Primeiro, porque seus santuários
eram localizados em rios, fontes, ilhas, pântanos, brejos,
bosques, florestas, montanhas ou cavernas. Segundo, porque
faziam eles largos oferecimentos de sacrifícios e ricas
oferendas aos deuses nesses locais.

19
Uma tal configuração levou muitos estudiosos a basear
seu entendimento acerca das práticas religiosas da Idade do
Ferro no conceito de uma “religião natural”. Permeado por uma
visão evolucionista e aceitando a perspectiva dada pelos relatos
greco-latinos, tal conceito presume a existência de uma forma
de religião “primitiva”, que é apresentada como uma forma
simples de religiosidade que era relacionada a supostas
sociedades primordiais e, por conseguinte, teriam precedido a
religião de posteriores sociedades “civilizadas” (cf. FRAZER,
1926: 14).
Miranda Green, por exemplo, afirma que os celtas
possuíam uma “... rica e variada tradição religiosa (...) [que]
se deve largamente ao animismo essencial que parece ter
sustentado a religião celta, a crença de que toda parte do
mundo natural, todo traço da paisagem, era imbuído de
qualidades sagradas, possuído por um espírito” e indo mais
além, ela considera que “a percepção de espíritos na paisagem
é amplamente demonstrada pelos nomes de deuses em
dedicações epigráficas do período romano-céltico...”
(GREEN, 1995: 465-466 – tradução e grifo nossos).
Diante dessas afirmações, devemos nos perguntar: 1) se
estamos, realmente, diante de uma religiosidade animista em
seu sentido original; 2) se a associação de dedicações aos
deuses a “locais naturais” verdadeiramente consiste na crença
dos deuses residindo na paisagem; e 3) como podemos
compreender essa relação homem-ambiente.

Tylor, apesar de não ter sido o primeiro a usar o termo


animismo, é geralmente considerado seu criador. Entende ele
que a forma mínima e primordial de religião seria “... a crença
em seres espirituais” (1920, vol.1: 424). Essa crença, que ele
classifica como animismo (p.425), seria própria de sociedades
mais “primitivas” (no seu dizer), seria um desenvolvimento da
“Religião Natural” (p.427), constituindo a primeira forma de
religião. Para essa forma de religião, vida, mente, alma, espírito

20
e fantasma consistiriam não em entidades distintas, mas em
formas diversas de um mesmo ser (p.435). No caso das
sociedades ditas “primitivas”, a alma/espírito possuiria uma
forma material (p.457-458), e por não verem elas distinções
entre o humano e o animal, consideravam que tanto homens,
quanto animais ou seres inanimados possuíam alma (p.469). A
visão evolucionista de Tylor, assim como sua concepção de
cultura, sobrevivência e animismo foram amplamente
criticados) e pode-se inclusive dizer que a definição de Tylor
sobre o animismo também não é exatamente precisa e ele
mesmo parece reconhecer a dificuldade de explicar e
conceituar os complexos fenômenos que essa forma de
religiosidade abarcaria (STRINGER, 1999: 546). Mesmo
assim, a definição de animismo presente ainda hoje no senso
comum, nos dicionários e na academia (salvo raras exceções)
se deve a Tylor, sendo, então, o animismo geralmente visto
como uma forma simples e “primitiva” de religião.
Contudo, autores como Bird-David (1999), Descola
(1996) e Viveiros de Castro (1999), dentre outros, têm
mostrado a necessidade de se rever o conceito de animismo.
Dentro da antropologia das religiões, animismo é o inverso do
totemismo, posto que enquanto o totemismo se baseia na
dicotomia cultura x natureza, o animismo se fundamenta na
profunda relação, e não dissociação, entre natureza e cultura
(VIVEIROS DE CASTRO, 1999: 474). Isto, segundo Descola
(1996: 89-95), significa que a relação homem-natureza se
configura em três sistemas – animismo, totemismo e
naturalismo (11), os quais possuem variantes que se
fundamentam em três modos relacionais distintos:
reciprocidade, predação e proteção. Predação, a seu ver, é mais
característico do totemismo, que não pressupõe uma estreita
ligação entre seres humanos e não-humanos e, por conseguinte,
não exige “ressarcimento” pela vida tirada. Por outro lado,
reciprocidade e proteção são próprias do animismo, que
implica uma forma de simbiose entre homem e natureza. Desta

21
forma, entende ele que o animismo media a relação entre
cultura e natureza, entre o homem e as demais espécies; donde,
defende ele, tal como Ingold (1993, 1996) e Viveiros de
Castro, a compreensão do animismo não segundo Tylor, mas
como uma ontologia ecológica.
Em linha de análise correlata, Bird-David (1999)
propõe que se fale de animismos (no plural) e que esses sejam
entendidos na forma de uma epistemologia relacional. Esta, tal
qual a ecologia de Ingold, Descola e Viveiros de Castro, parte
da interação do homem com o ambiente, com animais e
também em sociedade para compreender sua inserção no
mundo. Ambas as teorias tratam de “viver e existir no
mundo” (being-in-the-world). Inspiradas na fenomenologia de
Heidegger e de Merleau-Ponty, propõem que o cerne da
compreensão dessa relação homem-ambiente reside no “ser” e
na “experiência”. Neste sentido, a natureza e o ambiente não
constituem algo que está “lá fora” e distante do homem. Ao
contrário, o ambiente é “...a natureza constituída em relação
ao organismo ou pessoa...” que o habita (INGOLD, 1993:
156). Conseqüentemente, é um processo que assume forma na
ação da vida quotidiana, nas formas de percepção e de
construção de uma paisagem vivida. E tal não se aplica
somente às comunidades de caçadores-recoletores, mas
também a várias sociedades agrárias.
Mas o que dizer do animismo entre os celtas? São essas
interpretações aplicáveis às sociedades da Idade do Ferro na
Europa Centro-Ocidental? E temos dados materiais que as
corroborem?
Certamente, ao contrário do que Green afirma no trecho
que destacamos, a existência de dedicações epigráficas do
período romano-céltico em “locais naturais” não representa o
reconhecimento de que aquelas divindades habitassem aquele
determinado local na paisagem ou que esses locais
personificassem essas divindades. Ao invés, isso significa tão
somente que certos locais na paisagem, muitos deles, com um

22
histórico de visitas e dedicações desde fins da Idade do Bronze,
eram consagrados àquelas divindades. A limitação de dados,
porém, nos impede de saber se esses lugares sagrados na
paisagem teriam sido sempre consagrados a uma mesma
divindade durante todo este período, desde fins do Bronze até o
período romano, como por exemplo no caso da Source de La
Douix (Borgonha, França).
Bruneaux (1993), por outro lado, mostrou-se cético
quanto a uma visão animista e crítico quanto à tradicional
imagem “naturalista” acerca dos bosques sagrados celtas,
porquanto demonstra ele que raras são as evidências de culto às
árvores nas Idades do Bronze e do Ferro. Para ele a árvore
desempenharia um “papel secundário”, não sendo, pois, objeto
central de culto. Aldhouse-Green (2000), ao contrário,
argumenta que árvores e postes de madeira representariam
focos de culto em sítios rituais da Idade do Ferro. Argumento
semelhante também poderia ser levantado (e com mais
verossimilhança) acerca da grande formação rochosa do
santuário de Heidentor (Baden-Württemberg, Alemanha).
Seriam, então, essas árvores, rochas e demais formações
geográficas o objeto central de culto?
As evidências de que dispomos sobre os depósitos em
“locais naturais” e as referências dos autores greco-latinos
tanto acerca da relação dos celtas com a natureza e o mundo
selvagem quanto das formas de seus santuários (acima
mencionadas) não configuram uma religião animista no sentido
tradicional tal qual empregado por Miranda Green nos
trabalhos que aqui citamos. A nosso ver, estamos diante de
fenômenos muito mais complexos, cuja compreensão reside
sobretudo nas formas e modos de ritualização, bem como no
significado da ritualização nos contextos sócio-políticos. E para
tanto, a via de interpretação de uma paisagem vivida se mostra
sobremaneira frutífera.

23
NOTAS
(1) O presente trabalho desenvolve algumas idéias e discussões levantadas
em nossa tese de doutoramento, intitulada “Sacred Sites and Power in West
Hallstatt Chiefdoms”, desenvolvida no Instituto de Arqueologia da
Universidade de Oxford (Inglaterra), sob orientação de Sir Barry Cunliffe,
Professor Emérito de Arqueologia Européia, e financiada pelo CNPq.
(2) Para uma análise das formas de deposição, vide TACLA, A.B. Atos de
devoção: os depósitos do bronze final ao início de la Tène na Europa
centro-ocidental. Phoînix 14, 2008. (no prelo).
(3) Levantamentos detalhados das referências greco-latinas acerca dos
celtas podem ser encontrados em Freeman (1996, 2002) e Rankin (1987).
(4) A obra “Descrição da Terra” de Hecateu, uma narrativa geográfica do
périplo do Mar Negro até a Gália, só sobreviveu em fragmentos, como
citações em outras obras, principalmente na Ethnica Epitome de Estefano de
Bizâncio, mas também em Heródoto, Estabão e Avieno.
(5) Principal fonte de Avieno para sua Ora Maritima (cf. FREEMAN, 1996:
16-17).
(6) Sauer (1992) argumenta que os celtas aparecem dominados por thymós e
akrasía, o que faria deles seres destemperados, irracionais e, por
conseguinte, comparáveis aos animais.
(7) Sua ferocidade e força na guerra eram geralmente atribuídos à sua
atitude destemida diante da morte, apoiada por uma crença na imortalidade
da alma (Ammianus Marcelinus (XV.9.8), César (B Gall. VI.14), Diodorus
Siculus (V.28); Lucano (I.34); Pompônio Mela (III.2.18-20), Estrabão
(IV.4.4)).
(8) Segundo Webster (1995: 446), sekós é um termo raro usado por
Estrabão (IV.1.13) e Ateneu (IV.152) precisamente ao citar Possidônio.
(9) Para uma discussão detalhada do termo “druida” e seus possíveis
significados, vide Chadwick (1997: 12-13) e Piggott (1996: 100-101), bem
como o Anexo I de LE ROUX, F. et GUYONVARC’H, C.J. Les Druides.
Rennes: Editions Ouest-France, 1992, p. 425-432.
(10) Essas estruturas geraram muita discussão acerca de seu uso e
significado. Desde 1957, com as amplas escavações de Holzhausen
(Bavária, Alemanha) por Schwarz, a hipótese de santuário ganhou apoio.
Recentes descobertas de Ehningen e Bopfingen (Baden-Württemberg,
Alemanha) trouxeram nova luz ao debate, sugerindo, ao invés, sua “função”
como fazendas da elite ou centros de assentamento. Contudo, o debate ainda
se encontra em aberto, com autores como Wieland propondo uma
interpretação alternativa, de centros de assentamento com caráter tanto
ritual quanto profano (cf. WIELAND, G. Die spätkeltischen
Viereckschanzen in Süddeutschland – Kultanlagen oder Rechteckhöfe? In:
HAFFNER, A., BAUER, S. (eds.) Heiligtümer und Opferkulte der Kelten.

24
Stuttgart: Theiss, 1995, p. 85-99; WIELAND, G. Keltische
Viereckschanzen: einem Rätsel auf der Spur. Stuttgart: Theiss, 1999). Uma
tal proposição, sem sombra de dúvida, vem ao encontro das observações
feitas por Bradley (2005) sobre a ritualização em assentamentos.
(11) O naturalismo constitui linha filosófica e literária ocidental moderna e
não trataremos dele nesse trabalho.

ABREVIAÇÕES
Ann. – Annals
B Gall. – De Bello Gallico
Eth. Eud. – Ethica Eudemia
Eth. Nic. – Ethica Nicomachea
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Luc. – Lucan
Steph. Byz. – Stephanus Byzantius
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Edition and translation by Willy Theiler. Berlin/New York: W. de
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Graecae (TLG®) Disponível em: http://www.tlg.uci.edu/
STRABO The Geography of Strabo (Loeb classical library). Translated by
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28
AS ESPACIALIDADES TRANSITADAS POR ÁRTEMIS
EM CORINTO

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima


(CEIA/UFF)

Resumo: Objetivamos compreender a organização dos espaços sagrados


em Corinto durante os Cypsélidas. Neste artigo estudaremos a associação
entre Ártemis e Dionisos representada em um alábastros coríntio achado
em Caeres.
Palavras-chave: espaço; divindades; Corinto

Résumé: Nous voudrions comprendre l´organisation des espaces sacrés à


Corinthe pendant les Cypsélides. Dans cet article nous irons étudier
l´association entre Artémis et Dionysos représenté dans un alabastre
corinthien trouvé à Caeres.
Mots-clé: espace; divinités; Corinthe

No segundo semestre de 2006 ingressamos no


Departamento de História da Universidade Federal Fluminense
e no Centro de Estudos da Antiguidade (CEIA). No CEIA
criamos um grupo de estudos dedicados ao estudo dos
politeísmos. Tal grupo é composto por professores, graduandos
e pós-graduandos tanto do CEIA-UFF quanto de outras
instituições de ensino do Estado do Rio de Janeiro. No ano
passado, em novembro de 2007, no I Congresso Internacional
de História Antiga e Medieval oferecido pela Universidade
Estadual do Maranhão (UEMA), proferimos uma conferência a
respeito do synoecismo – ato fundador de uma cidade-Estado –
e dos cultos em Corinto Baquíade (VII-VII séculos a. C.) Esta
pesquisa nos despertou a questão relativa ao processo de
formação de Corinto, bem como aos cultos politeístas.
Anteriormente, em nossa Tese de Doutorado, já
havíamos estudado a prática dos kômoi – procissões catárticas
– e as imagens criadas pelos artesãos/ pintores dos dançarinos
pançudos (komástai) (LIMA, 2001). Elencamos as divindades
e entidades sobrenaturais representadas nos vasos e a produção

29
do corpus imagético. Conseguimos identificar 7 deuses e 4
entidades, a saber: Dionisos, Poseidon, Apolo, Ártemis,
Aphrodite, Nereu, Athená, Héracles, Hydra de Lerna, Górgona
e esfinge. Em trabalhos anteriores enfocamos os cultos de
Aphrodite e de Poseidon (LIMA, 2005). Nos últimos anos,
portanto, o estudo das experiências religiosas e, em particular,
a adoção do método comparativo nestes trabalhos tem
demonstrado uma renovação na produção acadêmica
(BRELICH, 2003, 57; DETIENNE, 2008, 19).
No que concerne o presente artigo, seguiremos a
proposta de Marcel Detienne em buscar identificar as
associações das divindades nos diferentes tipos de documentos
produzidos em um determinado contexto social. As variáveis
das associações divinas nos indicarão os atributos destas
divindades e a constituição de espaços diferentes e
concomitantes (2000, 81-104). Além da combinação Dionisos
– Aphrodite, já por nós trabalhada (2003), no período cypsélida
forjou-se a combinação Ártemis – Dionisos. Para darmos conta
de compreender tal fenômeno, iremos convergir estudos
dedicados á questão do espaço, do sagrado e dos arranjos
politeístas de uma dada comunidade e o seu valor social.
Nossa proposta consiste em pensar estas escolhas
politeístas vinculadas à conjuntura política e econômica dos
VII e VI séculos a. C. Corinto passou de um regime dominado
por um génos – o dos Baquíades – para um regime tirânico –
Cypsélidas. Além dos arranjos politeístas forjados por estes
grupos, percebemos a espacialidade sendo reorganizada, do
VIII ao VI século a. C. na pólis (tanto na chôra quanto na ásty).
Desde a sua formação (synoecismo), Corinto e os habitantes do
Istmo estabeleceram relações de amizade, de troca e de
contatos com elementos externos, os estrangeiros. Para
intermediar estas relações, os coríntios organizaram seus
espaços, seus lugares sagrados com práticas e ritos próprios
(ELIADE, 1965, 28). Sabemos que a atividade ritual promove
a integração, o fortalecimento de laços sociais e a criação de

30
identidades. Porém, como mostrou Marc Augé, em um
momento singular, em um espaço delimitado, ou seja, durante
uma prática ritual, o Outro (as alteridades) aflora por meio de
um processo de resistência/ renovação e aceitação do outro e de
si próprio (AUGÉ, 1998, 19). Os ritos às divindades são
necessários para o equilíbrio social e consistem num esforço
constante de dirimir as diferenças e os conflitos. Os cultos às
divindades e os ritos de hospitalidade (as hiérodoules de
Aphrodite, por exemplo) foram promovidos para intermediar as
atividades de contatos, quer dizer: da navegação, do comércio
e da colonização. Desta forma, elaboramos a seguinte hipótese:
a espacialidade e as associações politeístas em Corinto foram
forjadas para atenderem a necessidade de reconhecer e de se
relacionar com o Outro (outros homens e outros espaços
também) em uma nova forma de organização política. Espaços
concretos e simbólicos, muitas vezes justapostos, são
necessários para viabilizarem os contatos baseados nas
diferenças. Diferenças sociais, culturais e religiosas (1).
Mencionamos acima, os regimes políticos em Corinto –
o dos Baquíades e o dos Cypsélidas – os quais organizaram,
junto com outros setores da sociedade, os arranjos politeístas
na pólis. Tais associações entre as divindades do panteão e de
seus respectivos cultos definiram a ocupação do território. A
integração entre espaços rural e urbano foi proporcionada
também pela edificação de santuários (DE POLIGNAC, 1996),
ou seja, de espaços sagrados onde os cultuadores se
encontravam e realizavam seus rituais ocupando e marcando a
presença coríntia na proteção e demarcação de fronteiras
cívicas. Os cultos dedicados à Poseidon e à Héra, por exemplo,
marcaram a ascensão econômica e a hegemonia baquíade nas
regiões do Istmo e de Pérachora respectivamente. No centro
urbano, os áristoi coríntios provavelmente apoiaram os cultos
de Hélios e de Apolo. Os processos de synoecismo e de
colonização coríntias podem estar diretamente associados aos
rituais praticados nos santuários de Hélios, na Acrocorinto, e

31
no de Apolo, na agorá, no templo da colina (BOOKIDIS,
2003, 248-249).
Quando olhamos atentamente para o contexto da tirania
percebemos a preocupação, por parte dos dirigentes – Cypsélos
e Períandros –, em integrar os espaços, por meio de
edificações, de vias, do próprio díolkos (2), e o incremento de
cultos nos espaços rural e urbano. Em vários lugares do Istmo,
os coríntios irão erigir marcos sagrados com o intuito de
garantir a proteção dos deuses. Eles sabiam que transitavam
por espacialidades distintas e precisavam justamente destes
marcos – santuários e estátuas de deuses – pois entrariam em
contato com o estrangeiro, com o navegante e com o
comerciante. Personagens estes que representavam novas
crenças, novas idéias e uma carga simbólica significativa para
o heleno por serem xénoi. Identificamos uma associação
peculiar que pode nos ajudar a compreender este fenômeno que
produzia ao mesmo tempo a permanência das noções de
mancha/ purificação e propiciava o crescimento do território
cívico e de novas atividades econômicas.
Em um alábastros coríntio encontra-se um komastés
dançando para a direita, na face A do vaso; na face B o pintor
representou a deusa Ártemis alada segurando dois cisnes. Esse
artefato foi encontrado na cidade-Estado de Caere, fato que
evidencia os contatos com a cultura etrusca. Este alabastros foi
classificado como pertencendo ao Estilo Antigo de pintura
coríntia, cerca de 625-600 a. C. Neste objeto podemos
constatar três elementos, a saber: o folião – komastés com a
explicitação do grotesco; Ártemis alada e os cisnes. Vamos,
então, elaborar uma possível leitura para a mensagem com a
qual o pintor teria se inspirado ao produzir o desenho no vaso.

32
Representação de Komastés e motivos florais (3)

Representação de Ártemis alada, cisnes e motivos florais

O komastés encontra-se ladeado, ou melhor, abrigado


pelas asas de Ártemis e pelas penas dos rabos dos dois cisnes.
A mão esquerda do dançarino está sobre o seu estômago e a da
direita em suas nádegas. Há aqui o enfoque no ventre e no
baixo corporal. A própria barba do komastés parece ter sido
‘exagerada’ propositadamente pelo pintor, com o intuito de
criar uma barba fálica. Neste alábastros os ritos de fertilidade,

33
de fecundidade e de descobertas de novos espaços são
reforçados com a presença de Ártemis alada.
Ártemis, como lembra Jean-Pierre Vernant, é a Senhora
das feras, a agreste e ao mesmo tempo a instrutora,
fundamental para a prática da caça (VERNANT, 1991, 109).
Além das montanhas, Ártemis estende seus domínios nos
pântanos e nas “zonas costeiras onde, entre terra e água, a
fronteira é indecisa.” (VERNANT, 1991, 112) Ela é a
divindade curótrofa por excelência, cuida das crianças e dos
filhotes, ou seja, nutri seres humanos e animais. Ártemis não
representa somente a selvageria, ela consegue transitar entre as
esferas da selvageria e da cultura. O cisne tem como habitat o
lago e o pântano, ele vive em grupo (ARISTÓTELES, História
dos Animais, VIII, 12 [597 b]), contudo, os cisnes são pássaros
suscetíveis de se devorarem (ARISTÓTELES, História dos
Animais, IX, 1 [609 b-610 a]), desta maneira fica marcada uma
característica bastante selvagem destes animais. Eles se
defendem das águias e à proximidade da morte, entoam um
canto lamentoso (ARISTÓTELES. História dos Animais, IX,
12 [615 a]; ESOPO. Fábulas, 174). A partir da caracterização
feita por Aristóteles, verificamos que os cisnes, da mesma
forma que Ártemis, transitam entre a cultura (vida em grupo) e
a selvageria (bestial/devoradores). Os cisnes também marcam
os espaços limítrofes – lagos e pântanos. Édouard Will aponta
que foram encontrados em outros artefatos coríntios (relevos e
placas votivas) a representação de Ártemis ‘alada’ (WILL,
1955, 213-214). Ao representar Ártemis alada, o pintor conota
mensagens relativas à vitória, e ao ato de transitar além dos
espaços conhecidos. Os motivos florais nos remetem aos
perfumes/ odores e à presença do invisível. Portanto,
significados que estão de acordo com a conjuntura aqui
analisada.
A partir da análise deste artefato podemos levantar as
seguintes questões: quais são as possíveis espacialidades nas

34
cenas representadas? Podemos perceber associações entre
deuses/ entidades nas cenas?
Bom, respondendo ao nosso primeiro questionamento,
acreditamos que estas imagens nos permitem perceber várias
espacialidades justapostas. Interpretamos este artefato por
meio de noções sobre espaço trabalhadas por alguns
pensadores. Henry Lefebvre, Michel Foucault, Edward Soja e
Marc Augé nos ajudaram a melhor compreender a justaposição
de espaços e de experiências vividas nestes lugares. Desta
forma identificamos espaços concretos e abstratos coabitando
em um mesmo lugar. O campo e o espaço rural foram
pincelados por meio da representação do folião – o komastés.
A passagem por limites e margens, sem esquecer,
evidentemente, do espaço relativo ao sagrado valorizados com
a presença da deusa. A experiência selvagem foi acentuada
com a representação dos animais – os cisnes. Sacralidade,
fecundidade e a passagem de fronteiras se encontraram de
forma harmoniosa no alábastros que sairia de Corinto para a
Etrúria.
Sobre a segunda questão detectamos a associação
Dionisos – Ártemis. Divindades que transpassam limites e
espaços. Elas são encontradas tanto na chóra quanto na ásty,
presentes em bosques, espaços fronteiriços e também no
centro, no meio da vida pública. Agora recorreremos aos
relatos míticos das duas divindades que circulavam na região
do Istmo. Tais relatos irão nos auxiliar a melhor compreender
os signos representados no vaso, bem como identificar as
principais características dos cultos dionisíaco e da deusa da
caça. Reforçaremos neste trabalho que tais cultos praticados
em certos espaços permitem aflorar as alteridades, ou seja, o
reconhecimento do Outro, sem a perda de identidade.
O elo que une os dois deuses na região de Corinto é a
pratica da caça e o mito de Actéon. Na versão beócia e
assimilada na Ática (EURÍPIDES. As Bacantes, v. 1291),
Actéon provoca a ira da deusa da caça Ártemis ao vê-la

35
banhar-se no bosque sagrado. A divindade faz com que o herói
pereça sendo devorado por cães. Na versão coríntia, por meio
do relato de Plutarco, Actéon é um jovem vigoroso e valoroso
(PLUTARCO. Histórias de Amor, II [773d-f]). Ele desperta a
paixão entre os homens e um deles, Archías, numa procissão
com uma multidão/ turba vai à casa do jovem caçador e tenta
seduzi-lo (Actéon – erômenos/ amado – de Archías – erastés,
áristos coríntio que pertencia ao génos dos Heráclidas). Tanto
Actéon quanto os seus familiares e amigos não aceitam o
cortejo amoroso de Archías. O desfecho da história é
dramático: Actéon sucumbe na disputa. O pai de Actéon –
Mélissos – clama por justiça levando o corpo de seu filho à
agorá da cidade, mas recebe em troca somente as lástimas dos
coríntios. Durante os Jogos, no Istmo, Mélissos sobe ao templo
de Poseidon e invectiva contra os Baquíades. Após invocar os
deuses, ele se precipita sobre os rochedos. Depois deste
episódio, a seca e a peste abatem a região de Corinto. Para
aplacar a cólera de Poseidon e vingar a morte de Actéon,
Archías decide deixar Corinto, com uma comitiva, rumo à
Sicília onde funda Siracusa. O aristocrata tornou-se um míasma
(pessoa manchada por um homicídio) em sua cidade,
contaminando a comunidade. Desta forma, uma das opções
seria a sua retirada para purificar a mancha que produzira.
É interessante notar que Plutarco ambienta seu relato na
aldeia (kóme) de Mélissos, no espaço rural de Corinto
(Korinthíon chóras). Além disso, o relato traça a interligação
de espaços. Da aldeia no espaço rural, o relato segue para
agorá e depois para o santuário de Poseidon no Istmo.
Eurípides, o tragediógrafo ateniense, em sua peça As bacantes,
também indica os diferentes espaços percorridos pelas
mulheres delirantes de Tebas. Em um kômos, Agave, possuída
pela manía dionisíaca, volta das montanhas segurando a cabeça
de seu filho dilacerado (EURÍPIDES. As Bacantes, vv. 1165-
1175). As backaí percorrem a chôra e a ásty em um vai e vem

36
que reforça a interdependência entre o campo e o centro
urbano. Caça, kômos, experiências de êxtase circulam por
espaços distintos na pólis e podem se encontrar, ou melhor,
podem se justapor em um mesmo lugar. O caminho percorrido
pelas mênades pode ser comparado ao das ‘meninas ursas’ da
região da Ática. Elas vão como meninas para o santuário de
Ártemis e voltam como jovens prontas para o casamento,
reforçando a relação selvageria/ cultura (THEML, 2005). Ao
costurarmos todos os elementos contidos nas cenas do
alábastros, bem como nos relatos de Plutarco e de Eurípides,
fica explícita a diversidade de experiências acumuladas nestes
espaços. Uma determinada manifestação em uma
espacialidade cria laços, permite o reconhecimento dos limites
e das margens, além de aflorar o contato com o Outro ou com o
novo.
Seguindo nesta etapa outras pistas iremos voltar nosso
olhar para o relato de Pausânias sobre Corinto e o Istmo. O
viajante identificou na agorá duas estátuas de Dionisos e uma
de Ártemis (4). A praça é um lugar privilegiado no centro
urbano. Ela mescla em um só espaço as esferas religiosa,
política e comercial (COULET, 1996, 56-58). A agorá pode
ser compreendida por meio da expressão és mésos, estudada
por Marcel Detienne (1965). Tal termo dá a idéia de
centralidade, de esfera, de espaço comum/ público e de
reciprocidade. Dionisos, presente na agorá, aparece também no
santuário de Deméter e Koré, situado na encosta norte da
Acrocorinto. Nancy Bookidis e Richard Stroud encontraram
vestígios de artefatos dedicados à divindade do êxtase e do
vinho no témenos do santuário (1987, 27). Saindo da área da
ásty, Pausânias relata que na estrada direcionada ao porto de
Kenchreai – voltado para o Oriente – existia um santuário e um
xoanon dedicados à Ártemis (PAUSÂNIAS. Descrição da
Grécia, II, 2, 3). Deusa das fronteiras e das margens, Ártemis
aparece em Corinto tanto no centro da ásty, bem como nos
limites. Ela irá intermediar as relações em um espaço

37
privilegiado da diferença: o porto. O porto, por sua vez, liga-se
a um outro espaço repleto de experiências, de representações e
bastante simbólico: o mar, no qual Dionisos também circula.
Dionisos e Ártemis transitam por diversas espacialidades,
na agorá e nas montanhas, por exemplo, eles estão juntos
(VIAN, 2003, 515). Os coríntios e estrangeiros de passagem
pela região do Istmo e de Corinto iriam ter contato com duas
potências divinas impregnadas pelas idéias do contato, do
selvagem, do contágio e da epifania. Dionisos – Ártemis
simboliza uma associação peculiar. As duas divindades evocam
experiências múltiplas praticadas em espaços distintos, opostos
e complementares (centro, periferia, urbano, rural). O contato
com tais divindades proporcionaria a passagem por estes
espaços sem provocar um desequilíbrio na ordem cívica. Ao
mesmo tempo, os ritos dedicados a elas afloram a presença do
Outro, do Estrangeiro, do Selvagem e do Cidadão.

NOTAS
(1) A noção de heterotopia, forjada por Michel Foucault, possibilita
identificarmos a sobreposição em um mesmo lugar real diversos espaços,
diversas espacialidades concretas e abstratas/ simbólicas e as práticas
sociais conectadas a elas (FOUCAULT, 1986, 25; SOJA, 1993, 25).
Seguindo Foucault e Henry Lefebvre, Edward Soja enxerga a possibilidade
de criação de um terceiro espaço, ou seja, do Outro: o conhecido e o
desconhecido, as experiências vividas reais e imaginárias, as emoções, os
eventos, as escolhas políticas que perpassam questões entre centro e
periferia, abstrato e concreto, etc Este terceiro espaço abre a possibilidade
ao Outro: a uma rede complexa simbólica, ao clandestino, ao underground
(SOJA, 1996, 67).
(2) O díolkos era uma passagem terrestre, no Istmo, pela qual as
embarcações podiam passar do Golfo Sarônico para o de Corinto. Os
arqueólogos atestaram que o díolkos foi edificado durante a tirania de
Períandros, cerca de 600 a. C. (SALMON, 1997, 37).
(3) Alábastros coríntio encontrado em Caere (Etrúria). Musée du Louvre –
E 588 (PAYNE, 1931, no. 382, 285). Early Corinthian Vases, ca. 625-600
a. C.

38
(4) Ártemis Ephésia e xoana de Dionisos – Lysios e Baccheios
(PAUSÂNIAS. Descrição da Grécia, II, 2, 6-7). Os xoana foram feitos da
madeira da árvore que Penteu escalou (WILL, 1955, 212).

Documentação Escrita
ARISTOTE. Histoire des Animaux. Tome III. Trad. Pierre Louis. Paris: Les
Belles Lettres, 1969.
ÉSOPE. Fables. Trad. Émile Chambry. Paris: Les Belles Lettres, 1985.
EURÍPIDES. As Bacantes. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Hucitec, 1995.
PAUSANIAS. Description of Greece. Books I and II. Trad. W.H.S. Jones
Cambridge: Harvard University Press, 1992.
PLUTARQUE. Histoires d’Amours. Oeuvres Morales Tome X. Trad. M.
Cuvigny. Paris: Les Belles Lettres, 1980.

Documentação Material
PAYNE, H. Necrocorinthia: a Study of Corinthian Art in the Archaic
Period. Oxford: Clarendon Press, 1931.

Bibliografia
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39
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WILL, E. Korinthiaka: Recherches sur l’Histoire de la Civilisation de
Corinthe des Origines aux Guerres Médiques. Paris: E. de Boccard,
1955.

40
O MAR E OS PESCADORES: DEUSES, MEDOS E
AMBIVALÊNCIAS

Ana Lívia Bomfim Vieira


(UEMA)

Resumo: O mar sempre provocou medo e atração e essa ambivalência


"contaminou" aqueles que viviam de suas águas, como os pescadores.
Pensando nos deuses ligados a pesca podemos identificar esta ambivalência
e compreender um pouco mais o status social deste grupo.
Palavras-chave: Mar, Deuses, Pescadores

Résumé: La mer a toujours provoqué la peur et l'attraction e cette


ambivalence a "contaminé" ceux qui vivaient de ses eux, comme les
pêcheurs. En pensant aux dieux liés à la pêche nous pouvons identifier cette
ambivalence et comprendre un peu plus le statut social de ce groupe.
Mots-Clés: La Mer, Dieux, Pêcheurs

Desde Homero que o mar é o lugar dos heróis, o percurso a


ser desbravado com coragem, astúcia e ajuda dos deuses. Contudo,
isto não quer dizer que o medo não estivesse presente. Os gregos
sabiam o que um naufrágio representava. Ulysses já temia as
tempestades e as mudanças que elas traziam para a cor das águas.
Mesmo que o mar tenha estado sempre próximo, ele permanecia um
elemento ambivalente, portanto, perigoso.
A imagem do mar, irregular, flexível, ora amigável, ora
tenebroso carregava um caráter negativo que poderia envolver o
corpo social. A ambivalência do mar poderia contaminar os cidadão.
Este não seriam mais justos e retos e sim, ardilosos (PLATÃO. As
leis: IV, 705a-b). Essa idéia acaba, inclusive, contaminando a
vizinhança e os povos do mar, como nos caso dos pescadores, por
exemplo. Apresentar o Panteon dedicado à atividade da pesca,
portanto, nos permite pensar e compreender melhor o lugar social
ocupado pelos pescadores na pólis dos atenienses em particular, mas
também a ambivalência ligada às atividades marinhas em geral.
As divindades honradas por pescadores, neste caso, aquelas
que não possuem um vínculo evidente com o mundo marinho, são

41
muito parecidas com eles. Todas possuem aspectos dúbios ao
primeiro olhar.
Optamos por ordenar estas divindades primeiro por sexo,
começando por Ártemis a única feminina deste grupo. Em seguida,
trabalharemos com as divindades masculinas ordenadas por espaço
(Hermes, Pan e Príapo que, assim como Ártemis, não são associados
imediatamente ao elemento marinho) Deixaremos de fora Glauco,
pela especificidade de seu caso (1).
Filha de Zeus e Leto, irmã gêmea de Apolo, Ártemis é
também a deusa da caça. É a protetora e guardiã de todas as espécies
de animais, mas também daqueles que os persegue, o caçador
(XENOFONTE. Da caça: V, 34) Seus domínios mais conhecidos
são os bosques, florestas e montanhas, mas não só. Eles se estendem
desde as fontes e riachos até o mar.
Se Ártemis era a deusa de todos os animais e de seus
caçadores e se seus domínios incluíam também as águas, nada mais
justo que essa deusa fosse adorada também pelos pescadores
(ATENEU. Os Deipnosofista: VII, 325a
A deusa Ártemis tinha o direito aos primeiros peixes e
mesmo quando a pesca não tinha sido boa a regra era respeitada.
Sendo a deusa da caça, ela agia como guia para os pescadores
(SÉCHAN e LÉVÊQUE. 1966: 356) mas sem se desviar da sua
atuação na proteção dos animais e do seu poder fertilizante do qual
se beneficiavam os pescadores.
Se observarmos atentamente, Ártemis ocupa um lugar
aparentemente contraditório. Ela olha e guarda, ao mesmo tempo,
caça e caçador. Os locais sagrados são ao mesmo tempo locais de
caça, atividade limítrofe entre civilizada e selvagem. Mas são
também limítrofes estes locais. A costa, a orla, nem mar, nem terra;
as terras alagadas onde não encontramos nem a secura nem a
umidade completa (VERNANT 1988: 18). Mas encontramos
Ártemis. São estes os locais onde são edificados seus templos e onde
pescadores vão lhe render homenagem.
A deusa caçadora é ela também ambivalente, protege e pune,
autoriza e proíbe. Mas, com esta ambivalência a deusa é a grande
reguladora da fronteira entre a cultura e o selvagem, já que sabemos
que o pescador transitava entre estes dois espaços. Portanto, Ártemis
está presente neste grupo, e era adorada, tanto pelo seu atributo

42
‘caçador’, como pelo seu poder de regular os espaços proibidos
evitando, assim, que o pescador ultrapassasse os limites permitidos
atraindo, com isso, a contaminação social. Podemos imaginar o quão
significativa seria para os atenienses a imagem de Actéon, por
exemplo, punido com a morte pela deusa por ter desrespeitado o seu
espaço sagrado. Possivelmente, era uma imagem forte o suficiente
para garantir o cuidado de pescadores com os rituais à deusa e
atenção para que, neste lugar de trânsito em que eles se encontravam,
os limites não fossem esgarçados de tal forma que o retorno à ordem
e a cultura se tornassem impossíveis. Um outro aspecto de Ártemis,
mencionado por Vernant, nos faz refletir sobre a sua aproximação
dos pescadores.
Ártemis, assim como Dionísos, era considerada uma
divindade estrangeira, Cítia. E os tauros cítios eram conhecidos pelo
total desconhecimento das regras de hospitalidade, logo, os
estrangeiros eram capturados e degolados em nome da deusa. A
deusa, portanto, como seus adoradores, representava o recluso,
àquele que se coloca em um lugar de recusa ao contato do outro
(EURÍPEDES. Ifigênia em Aulis: .402, 1388). Podemos entender
essa reclusão também como social e ela se parece bastante àquela
vivida por pescadores.
Mas assim como a deusa é assimilada pelos gregos e passa a
cuidar para que os perigos da liminaridade não venham à tona, os
pescadores, ao realizarem seus ritos, se re-inserem no espaço do
civilizado.
Limites, fronteiras, margens. Associadas à caça, são estas as
características que fazem de Ártemis uma deusa adorada por
pescadores. Mais do que os caçadores terrestres, são os pescadores
que conhecem não só o perigo do trânsito por espaços opostos e a
indefinição de um espaço e lugar social fixo, mas principalmente, a
reclusão inerente ao outro, a invisibilidade social.
Todas as divindades não-marinhas (ou pelo aquelas que não
eram exclusivamente marinhas) honradas por pescadores possuíam
esta característica de liminaridade, de indefinição. Essa é também a
relação construída entre os pescadores e Hermes.
Hermes era filho de Zeus e Maia e irmão de Apolo. Teria
sido pai de Pan e Príapo simbolizando também, como o primeiro, a
fecundação universal. Era a divindade das fronteiras e dos limites por

43
excelência. Deus das passagens, dos caminhos, das viagens. Deus
dos comerciantes e dos viajantes. Uma imagem de Hermes – Hermes
itifálica – era erguida em encruzilhadas, nas bordas das ruas e em
locais de mudança de espaço, marcando a transição e lembrando a
proteção que ele exercia nestes pontos de limites (ARISTÓFANES.
Pluto: 1159-1160; HERÓDOTO. Histórias: II, 51; PAUSÂNIAS.
Descrição da Grécia: II, 3, 4). Podemos afirmar ser esta a primeira
característica de Hermes que o ligaria aos pescadores. Este grupo é
marcado por uma radical mudança de espaço. Talvez não possamos
citar espaços físicos mais antagônicos que terra e mar, e os
pescadores transitavam entre um e outro constantemente. A proteção
de Hermes era, portanto, necessária.
Mas além de marcar as passagens, as mudanças de espaço
geográfico, Hermes assegurava também a passagem tranqüila para
uma segunda etapa da vida. Além de assegurar a travessia para o
Hades, ele assegurava uma velhice tranqüila. Por esta razão Hermes
era o principal deus à quem os utensílios usados durante a vida de
trabalho eram dedicados (FELIPE DE TESSALÔNICA. Antologia
Palatina: VI, 5, 62; JULIANO. Antologia Palatina: VI, 29), não
somente por pescadores, mas principalmente:
Ao dedicar os instrumentos do seu trabalho, as ferramentas
que o ajudaram na sobrevivência de toda uma existência o pescador
buscava uma passagem tranqüila para uma nova fase da vida, a
velhice, que para um tipo de atividade como a pesca que demanda
grandes esforços físicos se torna um limite difícil de ser ultrapassado.
Mesmo para Hermes. Logo, o pescador se rende a falta de forças e
entrega seu tesouro na mão do deus que melhor assegurará sua
segurança nesta passagem. E não podemos esquecer que a velhice
antecede a morte do corpo e estes homens procuravam também,
muito provavelmente, uma passagem tranqüila para o mundo dos
mortos.
Outro aspecto que associa Hermes ao grupo dos pecadores,
explicitada sobretudo por Homero, seria o seu caráter astuto,
enganador, sedutor, vivaz, engenhoso. Alerta, ágil e vigoroso
(HOMERO. Ilíada: XX, 35; Odisséia: XXIV, 24, 333-346), era um
deus bastante representativo pois personificava as qualidades que
faziam a diferença entre o bom e o mal pescador. Hermes
personificava a métis que era necessária aos pescadores. Existe uma

44
espécie de prática da astúcia por parte do deus que se inscreve no
campo na métis; que é constitutiva da ambivalência própria de
Hermes (KAHN-LYOTARD. 1978: 77).
Podemos pensar ainda que, tendo adquirido a partir da Odisséia a
“função” de arauto e mensageiro de Zeus, Hermes tenha sido
colocado em um lugar de auxílio com um status de “prestador de
serviços” das divindades mais visíveis (ÉSQUILO. Agamêmnon:
485-486 ). Para tal, foi necessário o desenvolvimento de uma astúcia
e engenhosidade que davam ao deus um caráter bastante complexo,
para não dizer ambivalente (ARISTÓFANES. As rãs: 138-156 ;
1154-1165). Ou pelo menos era visto como tal pois Hermes era o
deus de pescadores, comerciantes e viajantes, mas também dos
ladrões. O olhar da comunidade sobre os lugares não fixamente
determinados e definidos era sempre de desconfiança. E essa
desconfiança reafirma o estatuto indefinido que, por sua vez,
reafirma o olhar de desconfiança, etc. Não que Hermes fosse um
deus mal visto. Mas também não era um deus a quem os cidadãos
hierarquicamente superiores recorriam. Hermes era o que podemos
chamar de um “deus dos pequenos” (BODSON. 1975: 48-49).
E ser um “pequeno” era ser não somente um cidadão
economicamente desfavorecido, mas também alguém que, como o
deus mensageiro, prestava serviços aos “grandes”. E no caso dos
pescadores, além deste aspecto, uniam-se à Hermes pelo laço da
astúcia, da métis empregada nos serviços.
Sobre os pescadores pesava, ainda, a desconfiança
mencionada, reservada a este grupo constantemente “em trânsito”. E
por estarem em trânsito Hermes era o deus ideal para os acompanhar
e proteger nessas travessias.
Assim como Hermes, seu filho Pan era também um “deus
dos pequenos”. Era representado com uma forma meio humana,
meio animal. Possuía um rosto barbudo e enrugado. Dois cornos
ornamentavam sua cabeça. O corpo peludo e patas de cabra
(HOMERO. Hino à Pan: XVIII, 5) lhe conferiam uma aparência
bastante ambivalente, não era homem mas também não era animal,
sem ser tampouco uma terceira coisa. Ele era simplesmente Pan.
Deus dos pastores e amante dos rebanhos, circulava entre
bosques, montanhas e era conhecido por sua rapidez e agilidade.
Podemos considerá-lo a personificação da vida pastoral, rústica. Sua

45
relação não é com a ordem política ou com um caráter heróico, é
sempre com a natureza, com as leis da phýsis.
Apesar de ser prioritariamente associado à atividade pastoral
Pan é também um caçador. Passa os dias a perseguir animais (e
ninfas). Portanto, Pan é, acima de tudo, uma divindade em oposição
ao espaço urbano (MÉLEAGRE. Antologia Palatina: VII, 535). Ele
distancia-se da àsty por dois aspectos. Primeiramente, seu aspecto
físico, bruto, animalesco, meio homem, meio animal o separa de um
espaço onde a ordem é a regra (BORGEAUD. 1979: 95). Onde os
cidadãos se reconhecem e precisam se reconhecer como iguais. Em
segundo lugar, o distanciamento espacial em que ele vive faz com
que suas características não-civilizadas sejam ainda mais
sublinhadas. A aparição de Pan em um espaço como a àsty não traz
que desordem, ao mesmo tempo que se ele é visto na natureza
selvagem é tido como um bom sinal, como o anuncio de sucesso
(ATENEU. Deipnosofistas.:V, 182; IX, 387).
Contudo, o distanciamento do espaço urbano não o aproxima
de forma definitiva do chamado espaço rural. Os domínios de Pan
não são, na verdade, rigidamente definidos. Ele circula por zonas
limítrofes e de extremidades: terras além dos campos cultivados
(terra civilizada), montanhas (os cumes, sobretudo), rios pedregosos
(TEÓCRITO. Cabreiro e pastor: Idília V, 15), rochas costeiras ou
mesmo o mar. Todos pertencem aos domínios de Pan. Domínios que,
por sua ambivalência, abrigam atividades consideradas marginais ou
perigosas, que ultrapassam as habilidades humanas ligadas a techné
ou a Sophia (BORGEAUD. 1979: 94). Estes espaços limítrofes,
onde o cuidado com os deuses e o respeito aos rituais precisa ser
ainda maior, abrigariam muito mais um tipo de saber como a métis
que caminha lado-a-lado com uma integração com a phýsis.
O deus Pan é um deus dos pescadores e são vários os fatores
que os aproxima dele. Podemos entender a escolha deste grupo pois
eram eles também homens que circulavam pelos lugares limítrofes e
que desempenhavam uma atividade que os colocava constantemente
em contato com a ambivalência destes locais. A passagem mar/terra;
costa/montanha; costa/campo; campo/cidade, era realizada por esse
grupo e, portanto, nada mais justo que fossem atraídos por um deus
que tinha poder sobre tais lugares. Era preciso estar bem com ele
para que tudo se passasse da melhor maneira possível, até porque era

46
conhecido o seu humor bastante variável (TEÓCRITO. Thirsis: I,
15-20).
Relacionado a isto, existe possivelmente também uma
identificação associada a um certo distanciamento que os pescadores
tinham da vida urbana. Até onde podemos aferir, esta participação
era extremamente discreta pois, até mesmo a venda do peixe nos
mercados da ágora não estava concretamente nas mãos dos
pescadores. Logo, estes homens eram tão isolados e estranhos à vida
citadina quanto o deus Pan. Podemos imaginar, inclusive, que o
aspecto físico dos pescadores era algo bastante distintivo, não
deixando que passassem incólumes ao olhar do corpo cívico
citadino. É claro que ele não eram metade homem, metade animal,
contudo transitavam entre limites tênues do selvagem para o
civilizado. O aspecto físico de Pan pode ser encarado como a síntese
desta ambivalência que era realizada, através de suas práticas, pelos
pescadores. Um pescador, na ásty, provavelmente não era
reconhecido como um igual.
Além do aspecto físico e do isolamento social, os pescadores
possivelmente honravam o Pan caçador também. Para ele eram
oferecidos instrumentos de trabalho, sobretudo redes, em troca de
proteção e de abundantes pescas (LEONIDAS. Antologia Palatina:
VI, 13). À Pan eram também oferecidas as primeiras presas
capturadas. Como Pan era também um deus dos ‘pequenos’, estas
primícias significavam, por vezes, oferendas muito simples (2).
E como caçador, Pan dividia com os pescadores a rapidez e
agilidade necessárias para uma caça frutífera. Estas características do
deus eram presentes também nos pescadores e é a chamada métis.
Sua porção animal, que nele era óbvia pelo seu aspecto físico, nos
pescadores residia no conhecimento dos hábitos de sua presa, de
como ela agia e se portava. Os pescadores partilhavam com Pan a
liminaridade perigosa de ser, por vezes, quase um igual a sua presa.
Divindade que circulava por lugares limítrofes, nestes ele
também caçava. Assim como Pan, os pescadores exerciam seu ofício
atravessando domínios para lá da cultura, dos campos cultivados. O
mar, como sabemos, é o caminho. É o elemento de trânsito. Não é lá
mas também não é mais aqui. É um espaço de ambivalências, do
extremo. É um espaço de Pan e dos pescadores.

47
Como Hermes e Pan, Príapo era também um deus protetor da
pesca e do pescador. E assim como aqueles, ele era também uma
divindade bastante ambivalente. A começar por sua representação.
Príapo, considerado um filho de Dionísos (ou Hermes) e
Afrodite, é originário da cidade de Lampsaco mas é acolhido na
Grécia (ESTRABÃO. Geografia da Grécia: XIII, 3, 12, 587c; VIII
6, 24, 382c ) onde era comumente confundido com Pan ou Hermes
itifálico, o que não pode causar espanto visto sua principal
característica física: um pênis de dimensões sobre-humanas. Como
sabemos, o falo era ao mesmo tempo um signo de potência geradora,
fecundadora, e um amuleto, uma proteção que afastava os males.
Logo, Príapo é sobretudo um deus rústico, como Pan, que garantiria
a fertilidade dos campos e a fecundidade dos rebanhos
(PAUSANIAS. Descrição da Grécia: IX, 31, 2). Era também a
divindade dos jardins, guardando-os sobretudo dos ladrões. Mas
também era honrado por pescadores.
Teócrito teria sido o primeiro autor a mencionar seu nome,
um Deus asiático que tinha na sua representação toda a força do seu
poder gerador (TEÓCRITO. Thirsis: 1, 21). Esse poder era clamado
quando honrado por pescadores que pediam boa pesca.
Príapo era também uma divindade associada aos “pequenos”
(OLENDER. 1989: 7). As oferendas dedicadas à ele eram sempre em
pouca quantidade ou mesmo restos do que serviu de alimento para o
pescador, mas também bebida e objetos não necessariamente ligados
a pesca. Os pescadores agradeciam a proteção durante alguma
manobra de pesca e a ele eram oferecidas também, como a Hermes,
os instrumentos de trabalho ao fim da vida ativa do pescador
(ARCHIAS. Epigramas votivos: 192).
Não sabemos com certeza até que ponto a realização de
oferendas a Príapo por parte dos pescadores e navegadores não
estaria ligada a sua associação à Hermes ou Pan. Mas não podemos
ignorar alguns fatores que o aproxima destes grupos, sobretudo dos
pescadores.
Assim como Pan, ele possuía uma imagem que o inseria em
um limite bastante tênue entre o selvagem e o civilizado. Apesar de
sua forma humana, ele era dono de um enorme falo que transformava
em disforme o seu corpo. Era um corpo ‘feio’ porque era um corpo
não harmonioso, fora de um sistema de representação do belo como

48
sendo a imagem do equilíbrio das formas. Os pescadores não
possuíam uma característica como esta, é claro, e imaginamos que
para exercer tal atividade, deveriam ter um corpo, no mínimo,
saudável. Mas gostaríamos de refletir sobre alguns pontos, mesmo
que não possamos apresentar afirmações categóricas.
Príapo era dono de uma imagem singular. E mais que isso,
possuía uma característica física que o marcava de forma grotesca.
Esta marca nos permitiria perceber um aspecto “humano” neste deus.
Humano porque ele sofre com o seu grande pênis. Humano,
sobretudo, porque é preciso lembrar que um corpo divino é sempre
belo e harmonioso (RUDHARDT: 1991). Humano, finalmente,
porque normalmente quando os deuses nascem eles passam logo a
idade adulta e a imortalidade. Não passam pelo período da infância.
Para tal existem algumas exceções, como Hermes e Príapo. São
divindades que estão extremamente próximas da fronteira entre o
mortal e o imortal. Passam por etapas da vida ligadas basicamente
aos homens e não aos deuses: infância e velhice. Estas fases são, do
ponto de vista ideal, principalmente em se tratando de divindades,
períodos onde o indivíduo é incapaz de ter um controle absoluto
sobre si mesmo, seja pela pouca experiência e imprudência da
infância, seja pelo cansaço e desgaste do corpo acarretados pela
velhice.
Lembremos que o corpo humano, dentro de uma sociedade,
se define por sua visibilidade. O corpo e com ele, sua vergonha,
pudor, deformidade, diferença, estão submetidos ao olhar do outro. E
o corpo de Príapo era coberto, escondendo sua deformidade
desconcertante. Quando o indivíduo se exclui do olhar do outro, ele
desaparece. Ele passa a não pertencer à comunidade de homens livre
e iguais. Príapo exclui uma relação dinâmica com o outro. Assim
como Pan, se coloca isolado. Isolado como os pescadores são.
Comparativamente, os pescadores possuíam este caráter de
isolamento e não adequação ao espaço urbano e às suas regras de
conduta. Possuíam um corpo marcado - pelo sol, pelo trabalho duro,
pelos acidentes - que o identificava como um diferente, como o outro
dentro da comunidade dos iguais. Não é de se espantar a
identificação destes homens com tais divindades, tão próximas da
realidade do seu cotidiano. E é a identificação com tais divindades
que reforçará o caráter ambivalente dos pescadores.

49
NOTAS
(1) Ver: VIEIRA, Ana Lívia B. O mito de Glauco: salto iniciático,
purificação e uma atormentada imortalidade; in: Phoînix. Rio de janeiro:
MAUAD Editora, ano 12, 2006, pp 35-45.
(2) “Este caranguejo de pernas torcidas, de pés em fenda, que se mexe na
areia, que anda recuando, que não tem pescoço, mas que tem dez patas,
cujo corpo é fortificado por uma carapaça no lugar da pele, é uma
oferenda consagrada à Pan pelo pescador de linha Copasos como
primícias de sua pesca” (ESTATILIOS. Antologia Palatina. VI, 196).

Documentação Escrita
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50
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VERNANT, J-P. A morte nos olhos. Figuração do Outro na Grécia Antiga:
Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1988.

51
JOGOS E FESTAS NO ALTO IMPÉRIO ROMANO:
ALEGRIA, SACRALIDADE E IDENTIDADE

Ana Teresa Marques Gonçalves


(UFG)

Resumo: Nesta comunicação pretendemos discutir como as festas e


os festivais ocuparam um importante lugar na vida política romana,
como definidas pelas tradições romanas. Além disso, objetivamos
analisar quais foram as funções simbólicas e identitárias assumidas
pelos ciclos festivos na sociedade romana antiga.
Palavras-Chave: Roma; Festa; Identidade.

Abstract: With this paper, we aim at discussing how the festivities


and the festivals played an important role in the roman political life,
as defined by the roman traditions. Furthermore, we intend to
analyse what were the symbolic and identity functions to take on
festives cycles in the ancient roman society.
Keywords: Roma; Festivity; Identity.

O poder político e a legitimidade não se apoiavam somente


em impostos e em exércitos no mundo romano, mas também em
concepções e crenças humanas. Deste modo, era necessária uma
mistificação que alçasse o Imperador sobre os demais seres
humanos. Os súditos não aderiam necessariamente a um soberano
em particular, mas a um soberano idealizado, que simbolizava a
ordem do mundo. Todos os momentos nos quais era possível se
realizar uma fusão entre o Imperador e as divindades eram
aproveitados, porque possibilitavam a coalizão da ordem moral com
a ordem política (HOPKINS, 1978:233-243).
Como, por exemplo, durante os jogos (ludi). Muito se tem
discutido a respeito da extensão, diversidade e brutalidade dos
espetáculos romanos. Em vários filmes, por exemplo “Ben Hur”,
“Quo Vadis ?”, “Spartacus” e “Gladiador”, e na série televisiva
“Roma”, reforça-se a idéia de que os jogos romanos eram épicos de
sexo e violência. Na tradicional dicotomia estabelecida entre gregos
e romanos, os primeiros aparecem como intelectuais, democratas,

52
altruístas e atléticos, e os segundos como conquistadores, violentos,
perversos, brutais, opressores e propensos a jogos de guerra (KYLE,
2007:251). Contudo, os espetáculos antigos não podem ser
historicamente entendidos a partir de sentimentos humanitários
modernos. Os spectacula eram empreendimentos públicos feitos por
razões religiosas e/ou políticas e que ajudavam a reforçar a ordem e
o status social de seus participantes. São comumente divididos pelos
locais em que ocorriam: chão dos circos (ludi circenses), para corrida
de cavalos e carros, arena de anfiteatros (ludi) para combates de
gladiadores e de feras, e palco dos teatros (ludi scaenici), para
representações cênicas e concursos e apresentações de música,
mímica e pantomimas.
Os jogos considerados mais antigos são as corridas de
cavalos e de carros, associadas pela tradição ao reinado de Tarquínio,
o Antigo (616-579 a.C.), que teria mandado construir o primeiro
circo, ainda de madeira, em Roma. As corridas teriam se tornado
anuais em 366 a.C. Roma conheceu a construção de quatro circos de
pedra: o de Flaminius, construído em 221 a.C., pelo censor
Flaminius Nepos, onde hoje está o Palácio Caetani; o circo de Gaio,
mandado construir por Calígula, onde hoje está o Vaticano; o Circus
Maximus (150 mil lugares), mandado construir em 329 a.C., onde
estava o circo de madeira feito erigir por Tarquínio, num vale entre o
Palatino e o Aventino; e o circo de Maxêncio, na Via Appia, em 309
d.C. (KYLE, 2007:308). No centro do Circo Máximo havia a spina,
onde se colocaram alguns dos maiores monumentos de Roma, como
obeliscos trazidos do Egito, a partir dos quais se contavam as voltas
dos cavalos e dos carros. Havia corrida de homens montados em dois
cavalos emparelhados, nas quais se julgavam a rapidez dos animais e
a perícia do cavaleiro (desultores) em passar de um cavalo para outro
em certos momentos da corrida e em simular combates. E havia a
corrida de carros, que se distinguiam pelos tipos de atrelagens: dois
cavalos – bigas, três cavalos – trigas, quatro cavalos – quadrigas. Por
vezes, usava-se de seis a dez cavalos em cada carro (decemiuges),
normalmente em representações, mas do que em corridas. Eram
dadas sete voltas na pista e por dia se faziam normalmente de doze a
trinta e quatro páreos (CARCOPINO, 1990:254). Ao longo da
República e do Império foram se organizando as torcidas
organizadas desses cavaleiros, que acabaram divididas em quatro

53
facções: brancos (factio albata), verdes (factio prasina), azuis (factio
veneta) e vermelhos (factio russata), que tinham campos de
treinamentos próprios, com pistas de corrida, e contratavam a
salários altos os melhores aurigas. Por vezes, o Imperador ia ao
pulvinar, o camarote específico para a família imperial e seus
convidados no Circo e lá recebia ovações ou vaias da platéia,
podendo medir a sua popularidade. Além disso, era comum a prática
da sponsio, a aposta entre particulares sobre o carro vencedor.
As primeiras apresentações cênicas teriam sido
empreendidas em 363 a.C., para comemorar o fim de uma peste que
teria acometido os romanos. Foram construídos em Roma três teatros
de pedra: o teatro de Pompeu em 55 a.C., onde hoje está a Praça de
Grotta Pinta; o teatro de Balbo em 13 a.C., no atual Monte dei Cenci;
e o teatro de Marcelo em 11 a.C., ocupado em parte pelo Palácio
Sermonetta na Via del Mare. As representações eram feitas de abril a
novembro e contavam com leituras e representações de comédias e
tragédias, pantomimas, mímicas e apresentações e concursos de
dança e música (CARCOPINO, 1990:261-272).
Já os munera, isto é, os combates gladiatoriais, vincularam-
se inicialmente aos funerais privados das grandes famílias romanas,
desde 308 a.C. (KYLE, 2007:273), e foram publicizados desde 264
a.C. (KYLE, 2007:281). Porém, foram oficializados como jogos
públicos anuais somente em 105 a.C. (CARCOPINO, 1990:246). O
munus (que quer dizer dívida, tributo, obrigação), até então, era
realizado às custas de particulares ricos, em honra de um parente
defunto. Durante a República, vários magistrados ofereceram jogos à
população, esperando seu apoio nas contendas políticas e militares
que marcaram as guerras civis. No Império, a partir do governo de
Otávio, todos os jogos eram feitos em nome do Príncipe, que possuía
procuradores imperiais cuja função era organizar os jogos,
contratando e pagando gladiadores e adquirindo feras.
Inicialmente devemos separar os munera das venationes. Os
munera eram combates efetivados entre homens, relembrando
batalhas do passado ou fazendo parelhas de combatentes de acordo
com seus armamentos, enquanto as venationes eram lutas entre
animais ou verdadeiras caçadas, representadas na arena dos
anfiteatros, que contrapunham homens a animais. Com as conquistas
romanas de novas províncias, vinham para o anfiteatro animais cada

54
vez mais exóticos, cuja presença nos jogos servia exatamente para
relembrar ao público a força e a extensão do domínio romano. Eram
elefantes, rinocerontes, leões, girafas, hienas e animais menores
como cães e gatos.
O mais antigo dos anfiteatros permanentes foi construído por
Caius Statilius Taurus, parente de Otávio, ao sul do Campo de Marte,
em 29 a.C. Mas ele foi destruído por um incêndio em 64 d.C. O
Imperador Vespasiano teve a idéia de construir um grande anfiteatro
no local onde anteriormente havia o lago da Domus Aurea de Nero.
Lá seus filhos Tito e Domiciano terminaram em 80 d.C. a construção
do edifício que ficou chamado de Anfiteatro Flávio ou Coliseu
(Colosseum, porque ficava ao lado de uma estátua colossal de Nero).
Além dos combates terrestres (hoplomaquia), o edifício estava
preparado para oferecer ao público as naumaquias, ou seja, combates
de navios, que navegavam na arena sobre uma espécie de grande
piscina cheia d´água. Trajano construiu um anfiteatro de reforço, o
denominado Anphitheatrum Castrense, próximo hoje à Igreja de
Santa Cruz em Jerusalém, e uma arena para naumaquias, a
naumaquia Vaticana, próximo ao antigo Mausoléu dos Antoninos,
hoje conhecido como Castelo de Santo Ângelo (CARCOPINO,
1990:274-275).
O Coliseu (50 mil lugares) forma uma oval bem
arredondada, onde no subsolo estavam as salas das feras e dos
gladiadores, e havia o podium, onde ficava o camarote do Imperador
e de sua família e convidados e os assentos com placas de mármore
com os nomes de seus ricos ocupantes. Depois vinham três séries de
arquibancadas (maeniana), divididas em seus quatro andares. Os
gladiadores eram organizados em grupos, as família gladiatoria,
chefiados por negociantes especializados em combates, os lenistae.
Normalmente eram escravos, que viam nas lutas gladiatoriais a
chance de serem libertos. Treinavam no ludus gladiatorius, as
escolas de treinamento, e na véspera das lutas participavam de um
lauto banquete (cena libera), do qual o público poderia participar.
Entravam na arena em desfile e procedia-se a probatio armorum, isto
é, ao exame das armas. Eram sorteados os pares de duelistas e abria-
se com música os duelos. Conforme as aptidões físicas usavam
armas diferentes: os samnitas empunhavam o escudo (scutum) e a
espada (spatha); os trácios, um escudo circular (parma) e um punhal

55
(sica); os murmillones, um capacete com a figura de um peixe
(murma) e uma espada; e os retiários, que em geral se lhes opõem
com uma rede e um tridente. Havia os lorarii, responsáveis por
açoitar na arena os maus gladiadores, e homens vestidos de Caronte
que junto com os libitinarii tiravam os mortes e feridos da arena,
além de revolver a areia suja de sangue.
Sob o governo de Otávio, organizou-se a apresentação dos
jogos, a denominada munera legitima. De manhã, por volta das nove
horas, ocorriam as matutina, ocorriam as venationes, combates entre
animais (bestiarii) e dos venatores com feras. Um pouco mais tarde,
no chamado meridiani, faziam-se as execuções públicas dos
criminosos (summa suplicia, que poderia ser o combate com feras, a
crucificação, a queima em fogueiras – tendo o que restou de seus
corpos jogado às aves ou no rio Tibre, para que não pudessem ter um
túmulo, um lugar de memória de seus feitos) e apresentavam-se
danças e competições atléticas, e à tarde, eram realizados os
combates entre gladiadores (KYLE, 2007:297-298). Sabemos que os
jogos eram divulgados pela cidade por meio de cartazes e, a
posteriori, cenas do espetáculo eram cunhadas nas moedas para
serem conhecidas por todos os habitantes do Império.
Tanto os aurigas quanto os gladiadores buscaram a ajuda da
magia para terem sucesso em suas tarefas. Entre as tabelae
defixionum, tabuinhas de bronze ou cerâmicas encontradas próximas
aos túmulos ou aos locais de espetáculo, foram achadas algumas que
pediam a vitória de um atleta frente à eliminação de seu competidor
(CARCOPINO, 1990:260).
No período imperial deve-se ressaltar a ocorrência de mais
três festividades importantes. A primeira era o chamado adventus
dos Imperadores nas cidades por eles visitadas. A entrada do
Príncipe nas cidades era sempre uma grande festa.
Para Sabine G. MacCormack, na cerimônia do adventus
passava-se a imagem do consensus omnium ideal, fundamental para
legitimar o governante, pois participavam da mesma alegria pela
chegada do soberano pobres e ricos, senadores e plebeus, civis e
militares. Tratava-se de um esplêndido teatro, no qual o Imperador
estabelecia relações de troca com os homens e com os deuses. Com
os homens, pelos benefícios que concedia após a acolhida; com os
deuses, pelos sacrifícios que realizava ao longo da recepção

56
(MACCORMACK, 1981:17-23). A procissão de boas vindas servia,
deste modo, para realçar a dignidade e a autoridade da pessoa que
entrava na cidade. No Principado, somente o Príncipe passou a ter
direito ao adventus. Este se transformava na possibilidade de ter a
presença de um ser cada vez mais distante de seus súditos, só
conhecido por intermédio de moedas e de estátuas. Este cerimonial
foi se desenvolvendo tanto que no IV século d.C. a chegada do
Imperador era vista como um deus praesens (MACCORMACK,
1972:721-752).
A cidade se preparava para a entrada do soberano,
enfeitando-se com flores, tochas e incensos. Os cidadãos se
engalanavam para a festa e faziam obras públicas para que o
soberano pudesse inaugurá-las. O Príncipe também recebia as
chamadas ovationes, aclamações com seu nome e seus feitos.
Segundo Gregory S. Aldrete, as aclamações eram gritos ou gestos de
aprovação ou desaprovação aos atos imperiais. Elas eram usadas
para atingir três objetivos básicos: apoiar, criticar ou pedir algo ao
Príncipe em pessoa. Eram realizadas por senadores, soldados e
membros das plebes urbanas, quando tinham a oportunidade de se
aproximar do soberano. Normalmente, aconteciam nas festividades,
como os aniversários imperiais, as procissões religiosas, os triunfos,
o adventus nas cidades e nos momentos de ascensão dos
Imperadores. Elas garantiam ao Príncipe a divulgação e a
demonstração pública de sua legitimidade pelo reconhecimento.
Porém, com a permanência do sistema do Principado, as
manifestações espontâneas passaram a ser cada vez mais controladas
(ALDRETE, 1999:85-87). Conhecem-se fórmulas que eram usadas
nas aclamações (ALDRETE, 1999:128) e, no caso do adventus, as
elites provinciais eram avisadas da visita imperial com antecedência
e preparavam a cidade e a população para receberem o soberano.
A proteção de romanos influentes ou o favor da própria
família imperial era de grande importância para as cidades, por isso
era visto como um privilégio poder receber a visita de um Príncipe e,
antes disso, fazer construções para recebê-lo. Como normalmente as
cidades dentro do Império não podiam guerrear entre si, elas
buscavam se superar em títulos, em magnificência nos edifícios
públicos e nas vantagens que conseguiam junto ao poder central para
os seus habitantes. Por isso, o dinheiro muitas vezes era gasto em

57
estátuas, edifícios, bustos e festas em homenagens aos poderosos.
Para sustentar o próprio prestígio e o da cidade, os notáveis locais
tinham grandes despesas, buscando dar boa impressão ao governador
local ou ao Imperador, quando lhe era possível, superando os rivais
(LEVICK, 1989:15-21). Além disso, imitando a magnificência de
Roma, os homens de posse das cidades provinciais buscavam
demonstrar a sua romanitas, sua fidelidade a um estilo de vida
romano. O desenvolvimento arquitetônico de uma cidade aumentava
a possibilidade de promoção da própria comunidade, por isso seus
habitantes mais ricos tentavam conseguir a atenção do Imperador
pela construção de termas, basílicas, aquedutos, arcos, templos,
bibliotecas, entre outras construções, na maior parte das vezes
dedicadas ao Príncipe reinante (DRINKWATER, 1989:34-35).
Havia também a profectio, a saída festiva das cidades, em procissões
muito parecidas com as realizadas na cerimônia de adventus.
De acordo com H. Mattingly, as festas de decennalia e as
cerimônias de adventus eram momentos privilegiados para a
formulação dos vota publica, pedindo às divindades a proteção dos
Príncipes, além da tradicional festa de três de janeiro, na qual se
dedicavam pedidos aos deuses em favor dos soberanos e de suas
famílias (MATTINGLY, 1950:156).
Outras duas grandes cerimônias públicas marcavam os
governos imperiais: os Jogos Seculares, que comemoravam a
Fundação de Roma, e os decennalia do Imperador, isto é, a
comemoração dos dez anos de governo do Príncipe. Para aqueles que
governavam Roma mais de dez anos e que estavam no poder quando
a fundação da cidade completava centenários, estas eram ocasiões
perfeitas para lembrar os súditos de reverenciar o poder.
Dion Cássio nos ensina que os jubileus decenais dos
Imperadores tiveram sua origem no governo de Otávio Augusto. Este
Príncipe havia recebido do Senado e do povo romano a honra de ter
um imperium legal por dez anos, vendo-o renovado por mais dez
anos e assim sucessivamente. Cada uma destas renovações legais
dava lugar à celebração de uma grande festa. A prática da renovação
decenal do imperium pelo Senado foi abandonada por Tibério, mas
não a festa e a comemoração de pelo menos dez anos no poder
(DION CÁSSIO, LIII, 16.2-3). E foi assim, separada da concessão

58
do imperium, que a festa tradicional chegou aos governos dos demais
Príncipes.
Anualmente, celebrava-se em todo o Império, por
intermédio de aclamações, o dia de aniversário da recepção do
imperium pelo Príncipe, os chamados dies imperii. Porém, as festas
denominadas de decennalia tinham outra amplitude. Davam lugar a
cerimônias e jogos espetaculares e eram comemoradas com a
construção de grandes obras públicas. Eram sempre realizadas em
Roma com a presença do Imperador. A festa decenal era realizada ao
início do décimo ano e não ao seu fim, para que se garantisse junto
aos deuses a permanência da ordem.
Como era necessário também integrar os aristocratas nas
festividades, eram oferecidos banquetes. Nestas ceias festivas se
revigoravam as forças dos convivas e se uniam em torno da família
imperial os principais cidadãos do Império. Eles integravam,
segundo André Chastagnol, os atos religiosos às festas decenais.
Antes do banquete, havia sacrifícios e libações e se faziam
procissões religiosas pela cidade até o templo de Marte, buscando-se
o apoio das divindades ao governo comemorado (CHASTAGNOL,
1987:493-496).
Além disso, era comum que quando um Imperador tomava
conta do poder e na ocasião da comemoração de seus jubileus, eram-
lhe feitos retratos que se exibiam em todo o Império. Os retratos
originais, que serviam de modelo para as oficinas provinciais, saíam
costumeiramente de Roma, quer fossem estátuas ou bustos, ou se
faziam desenhos que eram coligidos em livros de modelos, que
atravessavam o território imperial (SCHUCHHARDT, 1972:131-
138). Lembremos também, que em retribuição às vitórias, o Senado
poderia não apenas votar honras triunfais, mas também ordenar a
construção no Fórum de Roma, por exemplo, de arcos triunfais. O
importante era que as vitórias e os grandes feitos fossem inscritos na
memória romana.
Para comemorar o aniversário imperial também se
promoviam jogos. Pierre Grimal enfatiza que os Jogos em Roma
eram mais que espetáculos. Eram momentos de reunião da cidade em
torno de seus deuses, pois, para ele, os Jogos tinham funções
iminentemente religiosas de agradecimento às potências protetoras, o
que se vincula diretamente às comemorações dos Jogos Seculares

59
(GRIMAL, 1999:84-85). As festas também eram momentos
privilegiados para se fomentar a solidariedade entre os seus
participantes, demonstrar riqueza e prazer, por isso se doavam nestes
momentos altares, templos, arcos e outros prédios públicos (MEIER,
1997:55). Portanto, o governante se interessou em divulgar a
realização destes Jogos por mensageiros e mediante a cunhagem de
moedas.
O objetivo fundamental das celebrações seculares era
assegurar a sobrevivência da cidade até o século seguinte. Uma
preocupação predominante era obter o favor dos deuses para que os
cidadãos fossem poupados de doenças e de epidemias. Era
importante também garantir em algum momento da festa o culto à
Dea Roma, a própria encarnação do poder da cidade frente ao
Império conquistado, e o culto à Juno Moneta, a representação da
riqueza e da abundância imperiais (BRIND’AMOUR, 1972:1334-
1417).
Por isso, o mais importante nas comemorações era garantir a
proteção dos deuses para mais cento e dez anos de abundância para o
Império e seus habitantes. Tanto que, antes da realização dos Jogos
Seculares, costumava-se esperar o surgimento de prodígios, que
eram interpretados pelos arúspices como sinais do início de um novo
tempo (COARELLI, 1993:219).
Portanto, como afirma Arnaldo Momigliano, as estátuas, os
templos, os sacerdotes, os jogos, os sacrifícios e outros atos
cerimoniais que se executavam em honra do Imperador ajudavam a
fazê-lo presente: também ajudavam o povo a expressar seu próprio
interesse na conservação do mundo em que viviam
(MOMIGLIANO, 1992:170). Comemorar o governante era também
festejar a manutenção da situação vigente, prática esta que
permaneceu presente até o mundo contemporâneo.

60
Documentação Escrita
Dio’s Roman History. English translation by Earnest Cary. London:
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62
O POLITEÍSMO DOS ANTIGOS EGÍPCIOS SOB O REINO
NOVO (1530-1069 A.C.)

Ciro Flamarion Cardoso


(CEIA-UFF)

Resumo: Como vem ocorrendo a especialistas de outras civilizações


antigas, os egiptólogos recentemente começaram a julgar a oposição
tradicional monoteísmo/politeísmo inadequada, mesmo porque ela admite
situações intermediárias. No antigo Egito, em especial sob o Reino Novo,
cuja documentação é melhor e mais variada do que nos períodos
precedentes, uma dialética do uno e do múltiplo se estabelecia, no tocante
ao divino, mediante mecanismos de diversos tipos: monolatria, henoteísmo,
sincretismo e conjunção de divindades. A discussão mais acirrada tem a ver,
como sempre, com o curto episódio de Amarna: deve-se considerar que a
reforma do faraó Akhenaton (1352-1336 a.C.) conduziu a uma monolatria
intransigente, ou a um verdadeiro monoteísmo?
Palavras-chave: politeísmo-monoteísmo-henoteísmo-egiptologia-Amarna

Abstract: As was also the case for other scholars studying ancient societies,
these last decades egyptologists began to feel the traditional opposition
monotheism/polytheism to be rather inadequate, as intermediate situations
do occur. In ancient Egypt, especially under the New Kingdom, a period for
which we have more numerous and varied sources than for former times,
we can see how an interplay of “the one and the many” in what pertained to
the divine established itself by the means of different mechanisms:
monolatry, henotheism, syncretism, and the conjonction of divinities. The
most disputed issue, as was always the case, still concerns the short Amarna
episode: did pharaoh Akhenaten’s religious reform (1552-1336 BC)
introduce in Egypt a stubborn monolatry, or else an authentic, though short-
lived, monotheism?
Key-words: polytheism-monotheism-henotheism-egyptology-Amarna

O debate sobre o politeísmo egípcio antigo foi viciado com


freqüência por três tendências perniciosas mas renitentes, derivadas
do fato de que certos egiptólogos cristãos não souberam separar
suficientemente sua atividade profissional de seus pressupostos e
militâncias em matéria de religião: (1) a crença − que nada tem a seu
favor em obras de História e não passa de um juízo de valor − na

63
superioridade intrínseca das religiões monoteístas sobre as
politeístas, levando a que certos autores desejassem profundamente,
desde o século XIX, achar na antiga civilização egípcia algum tipo
de tendência ao monoteísmo: quase sempre, afirmava-se existir um
monoteísmo de facto sob uma fachada de aparente politeísmo
(PIERRET, 1879: 6-18); (2) encarar a Egiptologia como uma
disciplina que estuda, sem dúvida, o antigo Egito, mas enxergando a
sua relevância, prioritariamente, num rastreamento, na Antiguidade
faraônica, de elementos que, acreditam os que o empreendem,
“preparam” ou “prenunciam” a civilização ocidental, entendida
como judaico-cristã (ASSMANN, 2002: 283; WILLIAMS, 1971);
(3) estabelecer comparações altamente tendenciosas de textos
egípcios antigos com textos cristãos, dirigidas a encontrar, em ambos
os grupos de escritos, um pensamento “teológico” análogo
(DAUMAS, 1998). E nem mesmo estamos considerando as
contrafações mais grosseiras, como as daqueles que pretendem
enxergar no antigo Egito conhecimentos esotéricos reservados a
iniciados e utilizá-los a favor de alguma corrente contemporânea de
pensamento, como a Teosofia, o movimento Rosacruz ou a New Age
(assunto bem discutido em MONTSERRAT, 2000: 114-38).
Neste exame sumário do tema do politeísmo egípcio, limitar-
me-ei ao Reino Novo (séculos XVI-XI a.C.), um período mais bem
documentado − e dotado de fontes mais variadas − do que as fases
precedentes da longa história egípcia. Isto será feito devido a
questões insolúveis decorrentes da penúria de documentação para as
fases anteriores, um fator dificilmente contornável e que introduz
possíveis distorções ao se pretender efetuar uma análise diacrônica
de longa duração. Por exemplo: diversos autores acham que, sob o
Reino Novo, surgiram, como tendências inéditas, um aumento da
piedade individual para com os deuses (relação direta das pessoas
com as divindades a que escolhessem recorrer, sem passar pela
mediação faraônica ou templária) e algumas novidades “teológicas”,
por exemplo o que foi chamado de “nova religião solar”. Ora, há
autores que negam qualquer caráter novo a tais fenômenos. Teriam
aparecido, isto sim, os resultados de mudanças, ocorridas no Reino
Novo, quanto às regras de decoro − isto é, as normas regendo o que
podia ou não ser escrito ou representado iconograficamente em
diferentes contextos (régio, templário, privado) − e uma extensão

64
social maior do acesso a textos que falassem dos deuses. Isto
multiplicou a documentação que permite estudar mais em detalhe, no
período que escolhemos, os fenômenos indicados. Há alguns
escassos indícios que projetam tais fenômenos para trás, às vezes até
o terceiro milênio a.C.; mas, sendo como é a documentação anterior
ao Reino Novo, não há como dar razão aos que afirmam terem
ocorrido mudanças de peso neste último período quanto aos assuntos
mencionados; ou, pelo contrário, aos que enxergam uma grande
continuidade no tempo ao longo de muitos séculos (ou mesmo, de
milênios) (para posições opostas cf. p. ex. ASSMANN, 2000: 229-
46; QUIRKE, 1992: 134-5).
Ao se tratar de monoteísmo e politeísmo, convém que
esclareçamos os próprios termos. À primeira vista, a distinção parece
clara e incontrovertível: o politeísmo é a crença em muitos deuses
(em mais de um, em todo caso), cada um deles podendo ser objeto de
culto (embora, no antigo Egito, houvesse divindades para as quais
não se organizava um culto individual); e o monoteísmo é a crença
num único ser divino, concentrando-se o culto exclusivamente em tal
divindade, já que outras não existem. Uma variedade de monoteísmo
é o teísmo, crença num Deus pessoal, transcendente e ativo naquilo
que criou, em contraste com o deísmo (crença num Deus criador que
não interfere no que criou, após tê-lo criado) e com o panteísmo
(crença num Deus imanente àquilo que criou). Vendo as coisas mais
de perto, a situação se torna bem mais complexa, no entanto. Em
primeiro lugar porque vários desses termos (teísmo, deísmo,
panteísmo) são polissêmicos. Em segundo lugar porque, nos
ambientes culturais marcados pelas grandes religiões monoteístas da
atualidade, como o cristianismo e o islamismo, “politeísmo” muitas
vezes − já o mencionamos antes − é um termo pejorativo, carregado
de preconceitos derivados de acreditar-se numa superioridade
inerente, intrínseca, do monoteísmo, freqüentemente deixada sem
explicar. Assim, o que à primeira vista parece uma simples
classificação binária logo pode ser transformado numa hierarquia.
Ora, para continuarmos com o mundo de nossos dias, uma religião
de alta espiritualidade, o hinduísmo, é, no entanto, politeísta: em que
seria “inferior” às religiões monoteístas com que coexiste hoje em
dia? (HINNELS org., 1995: 81, 177, 200, 205, 258.)

65
É inexato, outrossim, pensar que, entre politeísmo e
monoteísmo, inexistam situações intermediárias − aquelas em que,
sem necessariamente pôr em cheque o politeísmo, atuem elementos
ou processos que permitam sínteses propiciadoras de uma dialética
do uno e do múltiplo (HORNUNG, 1983). No Egito antigo, atendo-
nos ao que foi mais importante e influente, podemos citar quatro
desses processos: (1) a monolatria, entendida como a concentração
de uma pessoa ou de uma tendência religiosa num único deus, sem
negar que existam outros; (2) o henoteísmo, que consiste numa
assimilação ou síntese de diversos deuses em favor de um deles:
assim, um hino ao deus Amon-Ra de Tebas (Hino de Leiden,
capítulo 300) declarava, a respeito dos outros dois grandes deuses
dinásticos tradicionais, ser o deus Ra, de Heliópolis, a face de Amon,
e o deus Ptah, de Mênfis, o seu corpo − sem que, por tal razão, Ra e
Ptah deixassem de ver-se também como deuses distintos, cada um
com seu culto próprio (BARUCQ; DAUMAS, 1980: 224); (3) o
sincretismo, termo usado pelos egiptólogos com significado um tanto
distinto do habitual, já que não o aplicam a conseqüências de
relações entre sociedades diferentes, mas sim, ao fato de uma
divindade egípcia poder agregar outra (ou duas outras) a si mesma
como uma espécie de epíteto (Amon-Ra, por exemplo, ou Ptah-
Sokar-Osíris) − uma das formas mais antigas de nuançar a
multiplicidade divina; (4) a conjunção passageira, a cada meia-noite,
do deus solar Ra e do deus dos mortos, Osíris, no mundo dos mortos
(Amduat), transformando-os, momentânea mas reiteradamente (já
que tal acontecia todas as noites) numa espécie de superdivindade;
sem que tal situação pudesse perdurar, mas tendo como resultado a
regeneração tanto de Ra quanto de Osíris (SHAFER org., 2002;
HORNUNG, 1999).
Ao considerar estes e outros elementos que propiciavam a
mencionada dialética do uno e do múltiplo no seio do politeísmo
egípcio, convém recordar, com Erik Hornung, que, para os antigos
egípcios, o caos anterior à emergência do demiurgo criador era
unitário: com a criação, veio a existir a diversidade, a multiplicidade
das coisas e dos seres. No contexto do culto é possível, por um
momento, unir tudo o que é divino numa única figura bem definida,
de maneira análoga ao fato de que o oficiante, embora único,
represente no entanto, no ato de culto, toda a humanidade. Mas,

66
ressalta o autor, “esta unidade divina e humana é (...) sempre relativa
e nunca exclui a pluralidade fundamental que permite todos os outros
enfoques da natureza do divino” (HORNUNG, 1983: 253).
Por último, considerar uma religião como monoteísta pode
ser, até certo ponto, questão de opinião. Muitos judeus e
muçulmanos não aceitam que o cristianismo seja de fato monoteísta,
pois vêem um politeísmo disfarçado na doutrina cristã da Trindade
(o Pai, o Filho e o Espírito Santo − três pessoas num único Deus),
pela simples razão de que que suas religiões se centram num Deus
único absolutamente indivisível. Outrossim, no Egito antigo, num
texto tardio sobre a criação do mundo (contido no papiro Bremner-
Rhind, 27,1-2) em que o deus solar criador toma a palavra, ao relatar
como criou o primeiro casal de deuses, Shu e Tefnut, por si mesmo,
sem participação de uma deusa consorte − pois não existiam, então,
outras divindades que não o criador −, diz o seguinte: “Depois que
vim a ser como um só deus, havia três deuses no tocante a mim”
(FAULKNER ed., 1933: 60-1). Isto é: embora Shu e Tefnut − deuses
funcionalmente andróginos (isto é, andróginos em suas atribuições,
mas dotado, cada um deles, de um gênero definido) como eram todas
as divindades egípcias associadas aos mitos da criação do universo −
fossem por um lado divindades diferentes do Sol, seu pai e sua mãe
ao mesmo tempo, o conjunto formado pelo criador solar Atum-Ra,
por Shu e por Tefnut podia também considerar-se, por outro lado,
como uma divindade única, posto que Shu e Tefnut não passavam de
uma projeção ou extensão da substância do deus criador solar que os
gerou por si mesmo. Esta noção − não por acaso − foi retomada nos
primeiros anos do único episódio da história religiosa do antigo
Egito que apresenta uma base aceitável para sua discussão em termos
de uma possível tendência monoteísta: a reforma de Amarna,
vinculada ao reinado de Amenhotep IV/Akhenaton (1352-1336 a. C).
O fato mesmo de ser ela utilizada tal qual no século XIV a.C. −
época de Akhenaton − demonstra que embora o Papiro Bremner-
Rhind seja tardio, a noção expressada em sua passagem 27, 1-2 é
bem mais antiga.
Em artigo recente sobre o politeísmo egípcio, John Baines
formula utilmente alguns dos problemas em que é preciso prestar
atenção ao discutir um caso como o do antigo Egito. Como cada
monoteísmo, uma vez surgido, deveu posicionar-se diante do

67
politeísmo, estabelecendo sua oposição a ele, embora ambos os
vocábulos − “monoteísmo”, “politeísmo” − sejam termos eruditos
recentemente cunhados, sem equivalentes nas linguagens da
Antiguidade, o politeísmo, anteriormente à existência de religiões
monoteístas, pode carecer de motivos para ter de examinar a si
mesmo, o que não ocorrerá com monoteísmo algum em sua fase
inicial; simplesmente porque cada uma das categorias nesse sistema
classificatório binário das religiões só adquire significado ao ser
definida em contraste com a outra. Enquanto não existir o
monoteísmo, o “politeísmo” não se perceberá como tal.
Analogamente, não houve circunstâncias históricas, no Egito
faraônico, que levassem ao desenvolvimento de uma metalinguagem
filosófica aplicável a assuntos religiosos, como a que aparece nas
discussãos teológicas presentes em muitos textos da Antiguidade
Clássica, conducente a debates abstratos sobre o divino − ou seja, a
debates sobre o divino que se travem em termos distintos dos de uma
simples discussão dos próprios deuses. Em tais condições, seria
anacrônico supor a existência (ou mesmo a possibilidade) de algo
que se possa chamar adequadamente de Teologia à maneira
ocidental. Por fim, numa sociedade em que tão poucos podiam ler e
escrever e o sistema canônico da produção iconográfica era uma
instituição de Estado acessível em forma plena somente àqueles
formados como escribas, coloca-se o problema das fontes, em
especial aquelas, bem pouco numerosas diante da totalidade de
escritos que sobreviveram, em que se percebem construções − em
certos casos muito literárias ou iconograficamente sofisticadas −,
aparentemente mais abstratas e generalizantes do que era usual,
acerca, por exemplo, da natureza da energia solar e do próprio deus
que se manifesta no disco do Sol. Em que medida se tratava de textos
excepcionais, inteligíveis por muito poucos e talvez pouco influentes
se considerarmos a religião em seu conjunto, ou, pelo contrário, de
uma postura que configurasse o que já foi chamado de “crise do
politeísmo” durante o Reino Novo? Baines acha que tal “crise” deve
ser avaliada em comparação com um “contexto de normalidade”; em
todo caso, seus elementos mais importantes − em especial a enorme
ênfase monolátrica e/ou henoteísta nas divindades solares − não
sobreviveram ao Reino Novo e seu desaparecimento deixou mais ou

68
menos intactas as linhas gerais do politeísmo tradicional (BAINES,
2000).
Um dos mais prestigiosos especialistas contemporâneos da
religião egípcia, Jan Assmann, salienta que o mundo divino do
politeísmo não era, no antigo Egito, um amontoado caótico de
divindades: tratava-se de um mundo estruturado. Três parâmetros
estruturais, segundo o autor, ordenavam o mundo divino: (1) a
linguagem, mediante a estrutura narrativa dos mitos que
relacionavam entre si as divindades ou mesmo criavam laços de
parenteco entre elas, e davam conta de seus feitos e ações; (2) o
próprio cosmo − potência solar compreendendo aspectos tanto
benéficos quanto ameaçadores, alternância do dia e da noite, fases da
Lua, movimentos dos corpos celestes, a cheia e o refluxo anuais do
Nilo, etc. − apresentava-se como um modelo para a ação de
diferentes poderes; (3) a organização estatal criava uma paisagem
vinculada aos cultos divinos mediante a distribuição destes por
cidades e templos e interpretava o poder humano como estando na
dependência do poder dos deuses (ASSMANN, 2000: 204). Este
último aspecto teve bastante desenvolvimento em pesquisas levadas
a cabo em anos recentes, demonstrando-se que, pelo menos nos
reinados faraônicos longos, houve um planejamento espacial da
distribuição e do caráter dos monumentos gerados ou reconstruídos
por um dado monarca, criando-se assim um espaço organizado,
dotado de um sentido que remetia a uma visão de mundo de base
mítica e associava o monarca divino às grandes divindades do
panteão (p. ex. O’CONNOR, 1998; CARDOSO, 2005: 8-11). A
estes três parâmetros podemos agregar um quarto: o mundo divino
não era “igualitário”. Os textos e imagens disponíveis mostram
existir uma hierarquia das divindades e mesmo das coletividades
divinas. Na interpretação de John Baines, os que eram designados
como “grandes deuses” − o que provavelmente deveria entender-se
como “deuses maiores” − eram os que gozavam de um culto próprio,
tendo santuários a eles dedicados; e coletividades como as Enéadas
(em princípio, conjuntos de nove deuses; na verdade, um número
plural variável de divindades) também podiam ser classificadas em
“maiores” e “menores”. Existiam, outrossim, seres sobrenaturais −
benignos e malignos − que não eram deuses, embora seja difícil
designá-los. Havia na língua egípcia uma designação para “deus” ou

69
“divindade” (netjer), usada no singular e no plural; mas os seres
sobrenaturais menos do que divinos − com exceção dos “mortos
bem-aventurados”, que habitavam a mesma dimensão dos deuses e a
eles eram de certo modo assimilados − só podem designar-se, na
atualidade, por analogia, mediante o recurso, sempre arriscado, a um
vocabulário derivado de religiões e mitologias diferentes:
“semideuses”, “demônios”, “gênios” (BAINES, 2000: 37-9, 46-53).
O ponto de maior controvérsia nos estudos da antiga religião
egípcia é a breve reforma amarniana (que durou cerca de duas
décadas). As posições polares a respeito são a tese da monolatria −
compatível com a continuação do politeísmo − e a do monoteísmo.
Examinemos ambas as posições à luz das fontes primárias
disponíveis.
A forma recente da tese monolátrica é a que defendem
autores como Raymond Johnson e Kent R. Weeks. Supõe ter
ocorrido uma longa co-regência entre Akhenaton e seu pai
Amenhotep III, assunto controverso, sendo impossível decidir
inequivocamente a favor ou contra tal hipótese com os dados
disponíveis. Raymond Johnson defende a idéia de que a cidade
fundada por Akhenaton − Akhetaton −, onde se instalou com sua
corte o co-regente mais jovem entre o ano 5 e o ano 6 de seu reinado,
deve considerar-se − pelo menos até a morte do co-regente mais
velho que o autor situa, tentativamente, por volta do ano 11 ou 12 de
Amenhotep IV/Akhenaton, momento em que, portanto, este último
se tornou faraó único − deve ser encarada como “uma entidade
separada, fora do contexto dos outros cultos do Egito”, dedicada ao
culto exclusivo do Aton, isto é, de seu pai Amenhotep III,
“solarizado” e transformado em vida numa divindade a partir do
jubileu celebrado em seu ano 30. Assim, teríamos a monolatria do
Aton (idêntico ao co-regente mais velho, Amenhotep III) em
Akhetaton (Amarna), num contexto geral egípcio que era politeísta,
posto que, no resto do país, sob a autoridade do co-regente mais
velho, o politeísmo continuava plenamente vigente; segundo
sublinha Johnson, Amenhotep III, que entre outras coisas se
proclamava a encarnação viva de Amon, além de construir
numerosos templos a diversas divindades egípcias, jamais
empreenderia um desmantelamento do politeísmo. Após a morte de
Amenhotep III, porém, teria ocorrido a breve e fracassada tentativa,

70
agora sim monoteísta, de Akhenaton (JOHNSON, 1998: 92-4).
Contra uma identificação pura e simples de Amenhotep III com o
Aton vejo o fato de, pelo menos numa estela amarniana, este rei e
sua esposa Tiy aparecerem representados sob os raios do Aton
(ALDRED, 1972: lâmina 30 fora do texto). Uma interpretação mais
aceitável, desenvolvida por Weeks a partir das idéias de Johnson,
seria a de que primeiro Amenhotep III e sua esposa Tiy, a seguir
Akhenaton e sua esposa Nefertíti, foram identificados a Shu e
Tefnut, divindades consubstanciais com o demiurgo solar por ser
este último (seja na forma de Atum-Ra, de Ra-Harakhty ou do Aton)
ao mesmo tempo seu pai e sua mãe (WEEKS, 1998: 230-7). Tanto
Amenhotep III quanto Akhenaton foram, sem dúvida, considerados
hipóstases solares; mas isto não é o mesmo do que um rei, em vida,
“tornar-se o Aton” (no sentido de substituí-lo em todo e qualquer
contexto religioso).
A hipótese monolátrica (defendida, por exemplo, em
SHAFER org., 2002: 130) não precisa, porém, atar-se a uma
identificação estreita do Aton com Amenhotep III. A favor da
monolatria atonista, em qualquer de suas versões, está o fato de
Akhenaton salientar, no texto mais antigo (do ano 5) inscrito nas
estelas com que delimitou o território de Akhetaton, que tal território
havia sido consagrado pelo monarca ao Aton por não ter achado nele
tumbas e templos, porque “não pertencia a um deus ou a uma deusa”,
nem a qualquer governante (MURNANE trad., 1995: 75). Isto parece
indicar o desejo do rei de achar um local virgem de conotações
religiosas de qualquer tipo para consagrá-lo em caráter único a seu
deus solar, sem, no entanto, negar a existência de outras divindades −
ou que outras localidades “pertencessem” a tais divindades, ou a
faraós divinizados do passado, ou a mortos que, enterrados segundo
o ritual, partilhassem com os deuses a mesma dimensão.
Existem, porém, dados que, por sua vez, podem favorecer a
hipótese monoteísta. Um texto recuperado no décimo pilono do
templo principal de Amon em Tebas, onde se acharam os dois blocos
de pedra em que está inscrito (retirados do templo desmantelado que
construíra Amenhotep IV ao Aton em Karnak e usados como recheio
daquele pilono), lamentavelmente muito lacunar, parece ser uma fala
atribuída ao rei. Nela, apesar das lacunas, vemos uma comparação
entre o caráter perecível dos templos e das estátuas de culto

71
(“corpos”) dos demais deuses do Egito, mesmo quando aquelas
estátuas fossem confeccionadas com materiais custosos e duráveis, e
a forma incorruptível do disco solar, imagem ou lugar de
manifestação do “[deus que gerou] a si mesmo por seus próprios
meios” (texto no 7 em: MURNANE trad., 1995: 31). Este texto dá a
impressão de pôr em dúvida a realidade dos outros deuses − que
seriam meras formas artificiais e efêmeras confeccionadas pelos
humanos − em contraste com o Aton, que se manifestava no disco
solar: que, obviamente, não era um artefato fabricado pelos homens.
No entanto, em se tratando de um escrito que nos chegou com tantas
lacunas, e ao não existirem outros de teor idêntico ou similar, é
impossível estar de todo seguro quanto a ser correta essa
interpretação. O mesmo ocorre, aliás, com o posterior ataque
ordenado pelo monarca contra Amon e sua consorte Mut, cujos
nomes foram sistematicamente apagados dos monumentos, bem
como, concomitantemente, também o foi a palavra plural “deuses”
(netjeru). Sendo o material disponível tão escasso, como averiguar
se, na segunda metade de seu reinado, Akhenaton, mediante tais
iniciativas, se voltava contra os deuses diferentes do Aton como se
fossem entidades que considerava existentes mas definia em forma
negativa, ou, pelo contrário, manifestava sua convicção de não
existirem tais deuses? (BAINES, 2000: 60-1.) Na primeira hipótese
deveríamos falar de monolatria quanto à relação do faraó com o
Aton; na segunda, estaríamos mais próximos de algo que poderia ser,
efetivamente, uma forma de monoteísmo.
Em todo caso, o esforço do rei reformador centrava-se numa
restauração, com ênfase mais marcada do que no passado, da noção
de ser o faraó o único mediador entre o mundo divino e a
humanidade. Akhenaton − o único que conhecia seu pai, o Aton, e
podia revelar os seus desígnios − e sua esposa Nefertíti, pelo menos
até o ano 9 do reinado eram equiparados a Shu e Tefnut
respectivamente, o que criava uma tríade de deuses de mesma
substância (o Aton − pai-mãe −, um deus filho e uma deusa filha),
fórmula interpretável, no limite, como uma espécie de monoteísmo.
Entretanto, nas representações iconográficas, o Aton, configurado
como uma forma divina geométrica e despersonalizada, despeja do
céu seus raios terminados em mãos, que em certos casos seguram o
hieróglifo que significa “viver” ou “vida”, abençoando as formas

72
humanas (com características andróginas) do casal que, na Terra, a
ele se associa estreitamente. Permanece a impressão de um plano
celeste com seu deus solar e outro plano, terrestre, onde Akhenaton e
talvez também Nefertíti são divinos por sua vez: percebo aí, como
tônica do pensamento e da representação iconográfica de Amarna,
uma dualidade celeste/terrestre do plano da divindade, mais do que
uma unidade cabal do mesmo. A meu ver, tanto Amenhotep III
quanto Akhenaton, ao se fazerem hipóstases de divindades solares (e,
no caso do primeiro, também de outras divindades), prenunciam as
soluções adotadas posteriormente por Ramsés II (1279-1213 a.C.):
este, por ser identificado freqüentemente aos grandes deuses
dinásticos do Egito (Amon, Ra, Ptah e − uma novidade − também
Set), nem por isso deixa de ser igualmente representado muitas vezes
ao lado dessas divindades; portanto, como algo afinal de contas
diferente delas. Analogamente, seu pai Séty I (1294-1279 a.C.), em
certas figurações de sua “mansão de milhões de anos” em Abydos,
reverteu a relação tradicional do faraó com os deuses: tanto (com
maior freqüência) o monarca é representado como sacerdote
oficiante que cultua os maiores deuses do país, quanto, em muito
menos exemplos, esses deuses é que lhe prestam culto, o que traz
consigo a inferência de ter-se tornado por sua vez uma grande
divindade. Entretanto, continuava havendo elementos de
diferenciação (por exemplo, os deuses não são representados
contíguos a uma mesa de oferendas, prestes a fazer uso das vitualhas
ali depositadas; o faraó Séty I divinizado, sim). Acho, portanto, que a
identificação do faraó com o deus (ou os deuses) dinástico(s) existiu
como tendência, mas nunca foi completa: no caso de Amarna, isto
basta, a meu ver, para tornar inadequado falar de “monoteísmo”,
posto que o deus terrestre (o rei) jamais renunciou à sua própria
divindade, nem Nefertíti à sua, partilhando os deuses terrestres esse
caráter divino com seu pai celeste, o Aton; Akhenaton podia, sem
dúvida, eventualmente mostrar-se como hipóstase do Aton, mas
jamais se confundiu de todo com ele, o que, se acontecesse,
destruiria a dualidade divina e permitiria à hipótese monoteísta
tornar-se mais consistente.
No caso específico de Akhenaton, a damnatio memoriae
tornou-se explícita algumas décadas após a sua morte, sob a XIXa
dinastia, levando a desmantelarem-se sistematicamente os seus

73
monumentos. Muito sobreviveu como recheio de outros monumentos
divinos e foi recuperado, sobretudo no século XX. Mesmo assim,
faltam informações básicas em muitos pontos, o que explica a
coexistência tenaz de interpretações incompatíveis entre si que não
há como derrubar ou apoiar em forma que obtenha consenso.
Mudam, sem dúvida, ao longo do tempo, com a descoberta de novos
dados e correlações, as formas preferidas que colorem as sempiternas
hipóteses sobre Amarna: monolatria extrema versus verdadeiro
monoteísmo. Na atualidade, por exemplo, as diferentes
interpretações tendem a aceitar o enraizamento do episódio
amarniano: (1) na hipótese de ter surgido no século XIV a.C., sob
Amenhotep III (1390-1352 a.C.), o que se chama, seguindo
Assmann, “nova religião solar”, de que a reforma de Akhenaton seria
simplesmente uma interpretação extrema; bem como (2) na hipótese
de Raymond Johnson a respeito de uma identificação estreita de
Amenhotep III com o Aton na parte final de seu longo reinado (no
contexto, como vimos, de outra hipótese: a de uma co-regência longa
entre o próprio Amenhotep III e seu filho Amenhotep
IV/Akhenaton). Sobre esta dupla base − no entanto, tão sujeita a
caução quanto as outras que foram sugeridas em outras épocas −
bordam-se variantes tanto da opinião monolátrica quanto daquela
monoteísta (como exemplo do que parece uma deutero-posição tanto
em relação à “nova religião solar” de Assmann quanto ao
Amenhotep III transformado no Aton de Johnson, cf. QUIRKE,
2001: 143-70).
Independentemente da opinião que se preferir sobre o
episódio amarniano, convém não esquecer haver sido ele bem curto e
ter a própria “nova religião solar” (que, aliás, parece uma
interpretação abstrusa e esotérica altamente elitista, sem grande
influência no conjunto da religião, a não ser exatamente no episódio
de Amarna) desaparecido com a XVIIIa dinastia, com o qual a volta
ao politeísmo tradicional − dotado de seus próprios mecanismos
propiciadores do que pode denominar-se “dialética do uno e do
múltiplo” no relativo ao plano divino (com claro predomínio da
multiplicidade sobre a unidade, entretanto) − ocorreu sem
sobressaltos de monta e sem mudanças essenciais ou de grande
envergadura em seus fundamentos: o que prova, segundo creio, ter o
politeísmo continuado arraigado no Egito apesar de todas as

74
tentativas inovadoras e simplificadoras de Akhenaton. Também me
parece claro que, caso a religião de Amarna haja sido um
monoteísmo cabal (coisa em que não creio), não houve continuidade
histórica direta entre ela e os monoteísmos posteriores, incluindo o
hebraico; o que não implica, necessariamente, a ausência total de
possíveis influências.

Documentação Escrita
BARUCQ, André; DAUMAS, François (orgs.). Hymnes et prières de
l’Égypte ancienne. Paris: Cerf, 1980.
FAULKNER, Raymond O. (ed.) The Papyrus Bremner-Rhind (British
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MURNANE, William J. (tradução). Texts from the Amarna period in
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CARDOSO, Ciro Flamarion. “O pensamento egípcio na Época Raméssida”.
Revista Uniandrade (Curitiba, Paraná). 6, 1, janeiro-junho 2005, pp. 7-
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DAUMAS, François. Autour de la vie et sens du divin dans l’Égypte
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HINNELS, John R. (org.). Dicionário das religiões. Trad. Octavio Mendes
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75
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76
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE RELIGIO EM SUAS
MANIFESTAÇÕES LITERÁRIAS

Claudia Beltrão da Rosa


(DH/PPGH – UNIRIO)

Resumo: Este artigo apresenta algumas considerações sobre a utilização do


termo religio em textos romanos, que nos parecem significativos para a
compreensão da religião romana. Buscamos o campo significativo do termo
religio e, a partir dele, uma via de acesso à compreensão da religião romana,
visando lançar luz sobre a realidade cultural do fenômeno religioso romano
por meio da documentação literária.
Palavras-chave: Religião romana; literatura latina; história romana.

Abstract: This article presents some examples of the usage of the term
religio in roman texts, and that seems to be important for the understanding
of the roman religion. We seek the knowledge of the term religio to turn
him into a way to understand the roman religion, intending to show the
cultural reality of the roman religion using written documents.

A atividade religiosa era parte integrante da vida social e


política na Roma antiga, mas até bem pouco tempo atrás, o estudo
das manifestações religiosas era considerado um tema mais
apropriado para antiquários do que para historiadores. Com isso, os
historiadores dedicavam pouco tempo e atenção a este aspecto da
vida romana, que acabava aparecendo como um aspecto marginal, e
a análise histórica se via prejudicada com a omissão desse fenômeno.
É certo que o “politeísmo” como uma religião, no sentido moderno,
simplesmente não existiu até a emergência da polêmica instaurada
pelos escritores cristãos no Baixo Império, que levou os recém-
criados “pagãos” a se autodefinirem no seio da competição religiosa
e intelectual que se instalou. Mesmo o sufixo ismo é inadequado para
falar da religião romana, pois os romanos jamais tiveram, nem
parecem ter buscado, a unidade ou a coerência de doutrina que
modernamente associamos à idéia de religião.
Um dos maiores obstáculos para uma abordagem da religião
romana, qualquer que seja, radica em nossos próprios preconceitos
em relação às características e funções dos sistemas religiosos em

77
geral. É muito difícil para uma pessoa nascida numa sociedade
determinada essencialmente por pressupostos judaico-cristãos – ou
seja, por crenças de que a religião informa a moralidade privada; que
envolve uma relação direta e pessoal entre o crente e a divindade;
que os atos privados de devoção são mais importantes do que a
observância dos rituais, etc. – compreender o caráter da religião
romana.. É impossível abandonar o nosso mundo de compreensão e
ser totalmente objetivo numa abordagem de algo que é
absolutamente estranho a nós. No caso das crenças religiosas, o
maior problema talvez seja reconhecer que as nossas idéias e atitudes
são histórica e culturalmente determinadas, e não um dado natural.
Em geral, termos e crenças religiosas romanas são tratados com base
em nossos termos e crenças, o que leva, invariavelmente, a uma
incompreensão dos primeiros. Diferentes religiões têm diferentes
modos de expressão e princípios, e o nosso próprio enquadramento
religioso jamais é objetivo, muito menos neutro.
As divindades romanas são, para nós, inumeráveis e de
algumas não percebemos nada além dos nomes. Do mesmo modo,
algumas nos parecem ser poderes divinos imanentes a alguns objetos
ou processos naturais, ou imanentes em certas ações, como Victoria,
Concordia, Fides ou Libertas. Tais personificações, assim como
deidades mais bem conhecidas, como Iuppiter ou Lares, dentre
outros, forneciam imagens e modelos que orientavam a vida humana.
As estátuas e outras imagens de divindades em seus altares eram,
mesmo para os romanos mais céticos, símbolos de seu poder. Nas
casas privadas, encontramos pequenos altares dedicados a divindades
domésticas; nos campos, encontramos santuários remotos dedicados
a divindades locais; nas cidades, templos modestos e templos
imponentes que geralmente não eram, como os templos e igrejas
modernas, locais de culto, mas residências terrenas dos deuses, ali
presentes em forma de estátuas. Encontramos também, em nossa
documentação, camponeses sacrificando animais às divindades,
magistrados observando os auspicia, pessoas comuns pedindo aos
deuses a punição de seus inimigos. Encontramos grandes festivais
públicos e rituais familiares privados. Tudo isso, e muito mais, era
parte da religião romana. Falar em “religião romana” é, então, falar
de uma vasta categoria, que compreende diferentes elementos e um
grande número de divindades, práticas, instituições e crenças.

78
***
Um dos níveis em que o caráter de uma religião é mais
visível, e que gera os efeitos mais profundos, é o nível do
vocabulário, e importa o tipo de linguagem usada no discurso
religioso. A vasta linguagem religiosa alimenta não somente grande
parte do sistema lingüístico, como também de outros campos da
expressão cultural romana. Pretendemos analisar o campo semântico
do termo religio e, a partir dele, buscar uma via de acesso à
compreensão da religião romana. As palavras vivem no contexto de
uma língua do mesmo modo que esta vive naquelas. O que
pretendemos aqui não é realizar um estudo exaustivo da palavra
religio em suas concretas aparições lexicográficas, mas apresentar,
em alguns exemplos de sua configuração no espaço semântico, usos
que nos parecem significativos para uma compreensão da religião
romana. Cremos que, deste modo, podemos lançar uma luz sobre a
realidade cultural do fenômeno religioso romano por meio da
documentação literária, observando como tal termo ganha realidade
em uma determinada formulação literária, permitindo entrever a
experiência religiosa romana.
É importante lembrar que tanto os romanos quanto os
gregos, na República romana e no início do Principado, viam os
primeiros como o mais religioso dos povos. O tema da supremacia
religiosa romana foi enfatizado, de um modo clássico para nós, por
Políbio (VI, 56, 6-14), quando se tratava de explicar a
“superioridade” romana sobre outros povos – incluindo o seu
próprio. A diferença crucial entre os romanos e seus rivais, no
tocante ao sucesso imperial era, argumenta Políbio, o respeito que os
romanos mostravam em matéria de ritual e das práticas religiosas.
Para o escritor grego, reconhecidamente, este é um tema não só de
elogio aos romanos, mas também de crítica para os gregos. Políbio
apresenta esta característica como uma falha dos gregos, talvez não
por ser exatamente um homem religioso, mas por conceber a religião
como um poderoso instrumento de coesão social e política, de que os
gregos teriam esquecido o uso. Podemos, até certo ponto, aceitar este
relato sobre a reputação religiosa romana sem acatar a interpretação
polibiana na íntegra.
Um tipo de texto parece desafiar as interpretações mais
modernizantes (e, por isso, mais anacrônicas) da religião romana: os

79
textos filosóficos, sobretudo os de Cícero, nos últimos anos de sua
vida. Em seu De Diuinatione e no De Natura Deorum, ele nos
deixou duas discussões de questões relativas às divindades, ambas
contemplando posições filosóficas radicalmente inconsistentes com
as práticas do culto romano, incluindo aquelas pelas quais Cícero,
como augure e orgulhoso disso, era responsável direto. No primeiro,
um dos dois dialogantes defende a adivinhação como uma realidade,
enquanto o outro a rechaça como uma ilusão. No segundo, uma série
de visões filosóficas é discutida, tais como se os deuses existem, se
influenciam a vida humana. Em nenhum dos textos, Cícero rejeita
em seu próprio nome a visão negativa, mas também não se declara
pela positiva. Podemos, portanto, acreditar que estes eram temas de
debates da elite romana na época ciceroniana. Na verdade, o debate e
as várias visões deviam ser correntes há mais tempo, posto que
advinham, em linhas gerais, das posições do epicurismo e da Stoa,
que eram, de certo modo, familiares na urbs antes de Cícero, mesmo
sendo ele o primeiro a escrever filosofia em latim (GRUEN, 1990). É
também relevante que Cícero se declarasse membro da Academia, o
que lhe impedia de decidir a questão por seus leitores, lhes deixando
a decisão após ouvirem uma discussão bem argumentada
(LINDERSKI, 1984; BEARD, M. 1986; SCHOFIELD, M. 1986).
O problema, aqui, não é discutir as crenças de Cícero, tema
dificílimo per se, mas saber que inferências podem ser feitas sobre a
vida religiosa dos romanos, designadamente da elite romana, a partir
da existência desses debates. É certo que muitos intelectuais tendem
a exagerar o impacto das discussões filosóficas na prática do mundo
antigo. Creio ser uma simplificação acreditar que o debate filosófico
determinava a crença ou não nos deuses, mesmo no caso do próprio
Cícero, para os contemporâneos que liam seus textos e mais ainda
para a imensa maioria que não os lia. Se devemos ter cuidado na
utilização dos tratados filosóficos como evidências para idéias e
atividades religiosas, temos, porém, um ótimo material em fontes
literárias latinas de outro tipo: os textos de historiadores, de poetas,
satíricos e ensaístas. Na maior parte deles, a religião não é
propriamente o tema em pauta, mas é sempre uma parte natural e
inevitável dos temas em debate. O texto mais explícito de que
dispomos, e que vem sendo “redescoberto” nas discussões de
especialistas, são os Fasti de Ovídio, uma discussão extensa do

80
calendário religioso romano, escrito nos últimos anos do longo
reinado de Augusto e no início do de Tibério, quando Ovídio tinha
esperanças de ser chamado de seu desterro (CARDOSO, 2005).
À primeira vista, o poema parece ser uma miscelânea de
informações, algumas idênticas às informações dos calendários do
período augustano, contendo, porém, informações astronômicas e
outras acrescentadas pelo próprio Ovídio. Mas a matéria central
consiste de explanações sobre os festivais e rituais do ano, algumas,
mas não todas, ligadas a datas particulares. Muitas das explanações
têm a forma de mitos ou lendas. Até certo ponto, isto pode ser visto
pelo prisma de que, para conhecer as antiguidades religiosas
romanas, havia que se conhecer as tradições e lendas que as
embasavam. Evidentemente não se trata, então, de estabelecer uma
verdade única, principalmente por haver inúmeras versões da
“verdade”. Um dispositivo familiar do narrador dos Fasti é usar um
deus como interlocutor, e mesmo estes informantes divinos
costumam oferecer diferentes teorias sobre os seus próprios rituais.
O tom dos Fasti varia da extrema rudeza até a mais suave delicadeza,
o que trouxe problemas para os leitores modernos, não habituados a
ver humor nas narrativas religiosas. Por vezes, esta linguagem
impediu que os Fasti fossem considerados uma boa fonte de
informações sobre a religião romana.
Em textos como a versão de Titio Lívio da história romana,
podemos buscar compreender algo do que os romanos
compreendiam como sendo a sua própria religiosidade. Raramente,
se é que ocorre, vemos T. Lívio deixar de atribuir um
comportamento profundamente religioso aos romanos antigos,
permitindo-se comentários negativos apenas quando comenta atos
inadequados de indivíduos isolados, especialmente aqueles que não
obtiveram sucesso em batalhas (ROSENSTEIN, 1990). Há uma
tradição recorrente entre os estudiosos modernos que vê T. Lívio
como cético em termos religiosos, garantindo que ele apresentaria a
posição “oficial”, mas ocasionalmente se permitiria revelar sua
própria descrença em breves passagens. Cremos que a posição de
Lívio não é tão segura e a controvérsia pode ser retomada tendo
como base principalmente a observação de que estes comentários são
feitos em relatos de casos atípicos. É claro que nos movemos aqui
em terreno inseguro, mas é notório que é prática de Lívio (e dos

81
historiadores romanos tardios) ocultar seus próprios pensamentos
quando possível, a fim de relatar as atividades dos seres humanos e
tratar a narrativa histórica como uma construção artificial, feita pelas
próprias ações humanas, mas que também abrem espaço para o papel
das divindades, mesmo que raramente apresentem uma intervenção
direta (POTTER, 1999). Lembramos, contudo, que Lívio escreveu
sua história após a desestruturação do sistema republicano romano,
com a consciência de que escrevia sobre um sistema e uma ordem
moral que pertenciam ao passado. Augusto reivindicara restaurar
essas tradições, incluindo as religiosas, mas não havia como fugir do
fato da mudança. Numa passagem, ele parece se referir
explicitamente às novas práticas em oposição às antigas, quando se
desculpa – ou parece se desculpar – por incluir em sua história as
listas dos prodígios anuais:
Estou ciente de que, devido à negligência que resulta da
crença popular de que os deuses não dão notícias do futuro, os
prodígios há muito não são anunciados publicamente ou incluídos
nos anais. Do mesmo modo, quando escrevo sobre temas antigos, a
mente se torna de certo modo também antiga, e assim uma certa
inibição religiosa [religio] me impede de considerar impróprio para
inclusão em meus anais, eventos que os mais sábios homens desta
época pensam que devem ser tratados publicamente. (43.13-1-2)

Tito Lívio critica implicitamente a esta “negligência”, que


deriva do ceticismo popular e declara que seguiria de boa vontade o
estilo de outros historiadores recentes, exceto por aquele tipo de
reticência religiosa que o aproxima do estilo tradicional. Alguns
estudiosos interpretaram toda esta passagem como uma declaração
do mais puro ceticismo, mas acreditamos que devemos ponderar esta
opinião: Lívio seguiria o estilo dos seus contemporâneos, o que
declara com falsa modéstia, exceto quando estes se mostrassem
descuidados, ignorantes ou sem imaginação em suas interpretações.
É importante notar que Lívio não se refere aqui às suas crenças
privadas, mas sim ao estilo apropriado de um historiador romano ao
lidar com as práticas do passado.
Esta observação de Lívio é instrutiva, não apenas por nos
mostrar o quanto é difícil para nós, hoje, compreendermos a visão
dos romanos antigos sobre a sua própria religião. É neste ponto que

82
as interpretações mais “modernizantes” são as mais sedutoras,
tentando-nos a ver um ceticismo radical ou uma abordagem
“cientificizante” ligada a um criticismo em relação a eventos ou
idéias. Como um tema de metodologia, talvez um ponto de partida
mais seguro, e menos anacrônico, para a interpretação da passagem
seja considerar a crença nas divindades como virtualmente universal
entre os romanos, mesmo quando há divergências no como e quando
as divindades influenciavam as atividades humanas. Como qualquer
outro, este ponto de partida pode nos levar a erros, mas talvez a erros
menos graves e freqüentes que àqueles a que nos leva a busca
obsessiva por atitudes céticas de tipo moderno em homens antigos.
Um aspecto fundamental do termo religio em Tito Lívio
indica o sentido de “constrangimento”, “impedimento” que, pela
proibição ou pelo temor reverencial, se expressa como “escrúpulo”.
Trata-se, enfim, de um sentimento espiritual, no qual o indivíduo em
relação a uma realidade considerada sobrenatural, está em situação
de religio. Vemos o termo aparecer no sentido de “impedimento”,
um impedimento causado por obrigações religiosas, como em
religionibus impediri (César. Gal. V, 6.3), ou em riuos deducere
nulla religio uetuit (Virg. G. I, 270). Do mesmo modo, vemos o
termo expressar uma idéia de “obrigação”, relacionada com o verbo
ligo, ligare (atar, ligar, donde religare, tornar a ligar, tornar a atar),
como em Lucrécio (RN, I, 931). Em Cícero, e.g., as ações de Verres
não só atentavam contra o direito divino (contra fas), como contra os
auspícios (contra auspicia), mas também contra toda consideração
divina e humana (contra omnis diuinas atque humanas religiones,
Cic.Verr. V. 34). Este uso revela uma transição que trazia obrigações
morais e, nesta direção, o sentido do termo pode se estender a uma
preocupação em relação aos officia. Esta consciência dos deveres
pessoais é um elemento necessário para a compreensão da realização
escrupulosa dos rituais e das práticas religiosas romanas em geral.
Assim, se pôde falar em uma religio domestica (Cic. Verr., IV, 93) e
do descuido das obrigações religiosas (Cic. Nat. D. II, 8). Nas
derivações ciceronianas do termo percebemos de modo ímpar a
concepção e a singularidade da religião romana.
Essa situação de constrangimento, observância e
preocupação com certas obrigações internas e externas ao ser
humano é extremada quando religio sugere uma relação com um

83
poder sobre-humano. Um eclipse lunar inesperado pode perturbar um
exército religione et metu (Cic. Rep. I, 23) e, quando de um prodígio
na dedicação de um templo a Juno Moneta, a cidade inteira se viu
plena de um temor religioso: cum plena religione ciuitas esset (T.
Lívio. 7, 28, 7). Decerto um puro temor, presente em boa parte da
significação da palavra religio, não dá conta da extensão criativa do
pensamento religioso romano, daí ser possível uma variação
semântica que permite observar a aplicação do termo, de forma
qualitativa, a um objeto, lugar, pessoa ou outra realidade.
A força criadora da religio está contida em cada domus e na
urbs, procede tanto de sua íntima relação com as divindades como
com os antepassados. A casa é um santuário, com seus Lares e
Penates, no qual oficiava como sacerdote o paterfamilias. Em um
altar (ara) de pedra, de forma quadrangular, próximo à lareira, eram
oferecidos os sacrifícios propiciatórios que estabeleciam as relações
com os seres divinos e com os numina dos antepassados, cujos restos
repousavam em um sítio que na urbs encontrou seu lugar fora das
casas.
Vejamos um exemplo significativo: a antiga festa do
Septimontium, celebrada em 11 de dezembro, recordava a unificação
dos povoados do Palatino, do Esquilino e da Suburra, e não das “Sete
Colinas”, como o nome induz a crer; seu nome está ligado a saepes,
“paliçada”. Os habitantes do Lácio eram, em boa parte, pastores que,
com seus rebanhos, percorriam os vales e cultuavam Pales, deusa
que lhes assegurava água e pastos, crias e rebanhos sadios, se eram
cumpridos os ritos de sua festa, as Parilia (ou Palilia) na primavera.
Na urbs, possivelmente a fim de que a deusa ampliasse suas bênçãos
a toda a comunidade, se instituir as Parilia (21 de abril) como o dies
natalis de Roma (Ovídio. Fasti. IV, 721 ff: Plut. Rom. XII).
A língua latina clássica tinha quatro palavras para designar
aquilo que denominamos “porta”: portua, ianua, ostium e fores. O
termo fores, que chegou até nós nas palavras fora, foro, forâneo,
forasteiro, era um dos termos-chave na definição do limite entre o
espaço doméstico e aquilo que era deixado de fora, o mundo exterior,
estranho e adverso, domínio das feras e das divindades não
aplacadas, culminando no Forum romanum, centro indiscutível da
res publica, o espaço que concentrava os cidadãos, local que criava o
espaço público comum a todos e estabelecia os limites entre o

84
romano e o não-romano, influenciando a paisagem social e
fomentando relações de convivência e estabelecendo leis e costumes,
e depois, segundo Cícero, a organização do direito e a disciplina da
vida, de modo a proteger a vida (De Off. II, 15). Daí a sacralidade de
tais lugares e a identificação da urbs com os templos de seus deuses
e com os sepulcros de seus antepassados e com os marcos limiares.
O valor desses marcos é expresso no rito de fundação de uma cidade,
que evocava o rito etrusco, criando um baluarte sobrenatural com sua
dimensão sagrada (sacer). A idéia é expressa por Cícero,
assinalando a força da comunidade de sangue na formação da res
publica, exaltando os monumentos dos maiores, o uso dos mesmos
lugares sagrados e dos sepulcros comuns (De Off. I, 55). O símbolo
mais eloqüente da união dos membros de cada família era a lareira, o
coração da domus, onde se alimentava o fogo sagrado, símbolo de
estabilidade, de imutabilidade, de permanência. Do mesmo modo, no
centro da urbs ardia o fogo de Vesta, na lareira circular que
enraizava a morada dos seres humanos na terra. A deusa Vesta,
guardiã do fogo doméstico e do fogo que simbolizava a perpetuidade
da res publica – o que nos permite compreender o extremo cuidado
exigido às suas sacerdotisas para que não se extinguisse – deu seu
nome ao santuário, aedes Vestae, que revela sua antigüidade por sua
planta circular, recordando as primitivas construções dos povos das
“Sete Colinas”, com sua porta orientada, ou seja, aberta ao Sol
nascente (ortus Solis). A defesa das lareiras familiares, assim como
dos altares (arae) das divindades, animaria os romanos, em muitos
momentos, a empunhar suas armas contra seus inimigos. Daí a
clássica locução pro aris et focis pugnare, mesmo se o sacrifício da
vida for necessário: Dulce et decorum est pro patria mori
(Horácio.Odes. III, 2, v. 13).
Esta qualidade religiosa pode produzir um sentimento de
reverência ou de temor. Um lago rodeado de um bosque espesso
pode ser considerado antiqua religione sacer (Ovídio. Fast. III, 264).
O sangue paterno e materno, segundo Cícero, magna possidet
religionem (S. Rosc. 66). Uma imagem de Diana pode ser dotada de
uma suma atque antiqüíssima... religione (Verr. IV, 72), e, segundo
Cícero, é digna, por sua extrema beleza, de ser honrada sanctissime,
inclusive pelos inimigos de Roma (ibid.).

85
Um outro sentido, ligado aos já apresentados, de religio é
apresentado por Cícero, quando diz que aqueles que revisavam ou
repassavam cuidadosamente o concernente ao culto divino eram
chamados de religiosos: sunt dicti religiosi ex relegendo (Nat. D. II,
72), relacionando religio com o verbo lego, legere (reunir, escolher,
ler). Neste sentido, vemos também religio referida ao culto divino e à
sua cuidadosa realização. Ultrapassar, contudo, o limite entre a
preocupação religiosa em relação às obrigações e praticar uma
atitude de temor religioso irracional frente às divindades e suas
prescrições era algo reprovável, a que Cícero se referia com o termo
superstitio, como na passagem qui totos dies precabantur et
immolabant, superstitiosi sunt appelati (Nat. D. II, 72). Já Lucrécio,
no De Rerum Natura, não distingue os dois termos, empregando
religio ou mito no sentido de superstitio e pietas no sentido de
religio. A despeito da diferença de uso do termo, o grande problema,
tanto para Cícero quanto para Lucrécio, é a desmedida determinar o
comportamento humano em relação às divindades.
***
Temos assim, grosso modo, a extensão de religio na língua
latina clássica. O termo sugere, por um lado, um elemento pessoal
que se expressa com um sentimento frente ao sobrenatural, até
chegar à percepção de um poder transcendente e venerável. Indica,
por outro lado, um campo de significação objetiva e exterior. A
ritualidade e a observância religiosa do culto estão aí incluídas e este
cumprimento exato do culto leva ao sistema religioso romano.
O termo religio nos dá um primeiro acesso à religião
romana. O princípio fundamental pelo qual ela era regida, pelo
menos no período clássico, era a racionalidade que garantia a
liberdade e a dignidade de seus membros. A religião tradicional
garantia a ordem estabelecida e as relações com as divindades eram
conduzidas sobre o signo da razão, e não do irracional, do mesmo
modo que as relações entre os cidadãos eram conduzidas. Em nome
deste princípio, as pessoas cultuavam as divindades que preferissem,
desde que respeitassem os cultos públicos, a ordem pública e a
liberdade dos outros. A religião romana era algo pertencente ao ideal
de cidade, que preconiza e exaltava a liberdade dos cidadãos, mesmo
em suas relações com os seres divinos, relações baseadas na libertas
e na ratio. As divindades romanas não exigiam uma submissão

86
radical a uma autoridade religiosa, nem a um “Mestre”. Podemos
dizer, grosso modo, que somente com a alteração radical do
enquadramento da vida humana, centrado na cidade e na libertas do
cidadão, abriu-se espaço para outras formas de religiosidade,
baseadas na submissão do fiel e, como diria Cícero, na superstitio.
Assim, o único “artigo de fé” da religião romana é a libertas. A
racionalidade cívica era a garantia da liberdade e da dignidade dos
membros da urbs, humanos e divinos. As relações com as divindades
eram conduzidas do mesmo modo que as relações entre os cidadãos
romanos, expressas por meio dos rituais cívicos. Em nome deste
“artigo de fé”, as pessoas podiam escolher e honrar os deuses de sua
preferência (VEYNE, 1989: 201-223), desde que se respeitasse os
cultos públicos, a ordem pública e a liberdade dos outros cidadãos.

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88
TORNAR-SE ATLETA: PRÁTICAS ESPORTIVAS
RITUALIZADAS ENTRE OS GREGOS ANTIGOS

Fábio de Souza Lessa


(LHIA/PPGHC/UFRJ)

Resumo: Neste artigo, temos por objetivo analisar as relações entre as


práticas esportivas e os rituais na Grécia antiga. Defendemos que há na
preparação do atleta uma dimensão ritualizada. As imagens representadas
nos vasos áticos serão a documentação para este estudo.
Palavras-chave: Práticas esportivas, ritual, pólis, Grécia Antiga.

Résumé: Dans cet article, nous avons pour but d’analyser le rapport entre
les pratiques sportives et les rituels en Grèce Ancienne. Nous défendons
qu’il y a dans la préparation de l’athlète un rite. Les images représentées sur
les vases atiques seront la documentation de cette étude.
Mots-clé: Pratiques sportives, rituel, pólis,Grèce Ancienne.

É recorrente na historiografia contemporânea a afirmação de


que todo ato na pólis é um ato religioso; isto significa dizer que a
religião se faz presente em todas as relações sociais que um
indivíduo possa ter com seus concidadãos. A partir de tal colocação,
objetivamos analisar as práticas ritualizadas da preparação do atleta
grego para o treinamento e a competição propriamente dita. Vale
enfatizar que o esporte, na Grécia Antiga, se constitui numa prática
ritual que atua na formação do cidadão ideal, se tornando um dos
elementos da paideía helênica.
Para os gregos antigos, o melhor meio de se comunicar com
o sagrado foram os rituais; o que significa dizer que, entrar nesse
espaço, pressupunha o conhecimento de ritos e mitos que
permitissem a ligação entre os homens e os deuses. Demonstraremos
que o campo das práticas esportivas permitia a efetivação dessa
ligação. Os gregos antigos organizaram as relações com o sagrado
através de ações como rituais, festivais, procissões, competições
atléticas, oráculos, oferendas e sacrifícios animais. Podemos, assim
como o fez Mario Vegetti, indicar como elemento central da relação
entre homens e divindades, na Grécia antiga, a observância dos
cultos e ritos prescritos pela tradição (VEGETTI, 1994: 233).

89
De acordo com Marcel Detienne, o politeísmo se configura
como um sistema complexo de relações entre potências divinas ou
entidades sobrenaturais, sendo lido na Grécia “... sobre o chão, sobre
os altares, nos templos, nos regulamentos sacrificiais, nas
representações figuradas” (DETIENNE, 2004: 95 e 107).
No caso específico dos gregos antigos, cabe às divindades
políades a função de regulação social. Elas permitem a integração
dos indivíduos aos grupos sociais (VERNANT, 1992: 94). Porém,
um deus não pode se definir em termos estáticos. Detienne (2004:
97-100) ressalta que os deuses recebem trabalhos, obras, atividades;
isto é, domínios de competência, que possuem limitações marcadas
pela partilha: (...) há, de um lado, domínios respectivos atribuídos
aos grandes deuses, com limites; um deus não deve ser imiscuir no
domínio de um outro; (...). Por outro lado, cada um desses “grandes
domínios” (...) é atravessado por uma série de potências, partilhado
entre deuses frequentemente numerosos, dos quais cada um parece
se encarregar de um aspecto, de uma dimensão, de uma significação
meio concreta, meio abstrata (DETIENNE, 2004: 101).

Assim sendo, as divindades nos seus respectivos domínios


partilhados unem todo o conjunto do espaço cívico e cimentam o
corpo dos cidadãos, o transformando numa comunidade autêntica.
Segundo Jean-Pierre Vernant, “...uma religião cívica e política cuja
função essencial é integrar o indivíduo que realiza os atos religiosos
nos grupos sociais aos quais pertence, qualificá-lo como
magistrado, cidadão, pai de família, hóspede, etc., e não arrancá-lo
à sua vida social para elevá-lo a um plano superior;...”
(VERNANT, 1992: 102).
As práticas esportivas, nosso objeto de estudo neste texto,
confirmam tal colocação, pois elas se constituíam em um ritual
religioso e aconteciam em um santuário (1). Os vencedores
compartilhavam do esplendor dos deuses e da vida atemporal dos
primeiros vencedores míticos (YALOURIS, 2004: 82).
Píndaro afirma que “dos deuses vem todo o engenho que dá
as qualidades aos mortais” (PÍNDARO. Píticas. I, 41-42). Segundo
ainda o poeta tebano, os atletas vitoriosos recebem o néctar, dom das
Musas (PÍNDARO. Olímpicas. VII, 7-8) e assim como a ambrosia,
alimento reservado aos deuses. Logo, podemos verificar que os

90
atletas ao serem vitoriosos se aproximam dos deuses. A vitória nos
jogos era a mais alta honra a que um mortal podia certamente aspirar
(YALOURIS, 2004: 82).
Na medida em que o exercício das práticas esportivas se
configura como um ritual religioso, entendemos ser necessário
algumas observações sobre as atividades rituais. Os trabalhos
antropológicos frequentemente concebem o ritual como elemento de
coesão social. Roberto DaMatta, por exemplo, afirma que os ritos
servem para promover a identidade social (DAMATTA, 1997: 29).
Marc Augé, em sentido semelhante, destaca que as atividades rituais
têm por objetivo essencial a conjugação e domínio da dupla
polaridade: individual/coletivo e si-mesmo/outro (AUGÉ, 1999: 44-
5).
Dessa forma, através da prática ritual observamos um
questionamento do mundo, do social, do ser individual e relacional,
podendo ainda os rituais ser entendidos como parte integrante da
vida política coletiva, mas que comportam ações individuais,
constituem uma época na vida de um indivíduo, e neste sentido “...é
um destino individual que se decifra, se modifica ou se cumpre na
atividade ritual” (AUGÉ: 1999: 53 e 69). O ritual ainda pode ser
definido como: (...) um momento alto da convivência entre os
homens, da auto-exaltação das suas comunidades, pelo que é sempre
acompanhado pelos eventos mais significativos da civilização grega,
desde o banquete comum até aos jogos desportivos, às danças, às
procissões e às representações teatrais (VEGETTI, 1994: 235).

O ritual, além de ser um elemento de coesão de seus


membros e agente de transmissão de valores sociais fundamentais
aos jovens, que são reforçados a cada reafirmação, como acontece
nas competições esportivas; também pode se entendido como uma
linguagem. Conforme enfatiza M. Peirano, podemos compreender a
atividade ritualizada como uma linguagem pela qual se efetua a
comunicação no interior de um sistema, existindo um conjunto de
signos que são incorporados pelos indivíduos e esta incorporação
permite a sua decodificação. O ritual comunica socialmente,
produzindo sentido para a realidade vivenciada (PEIRANO, 2002).
Postas essas questões iniciais acerca das atividades religiosas
e ritualizadas dos gregos antigos, podemos nos centrar mais na

91
dinâmica das práticas esportivas. Na Hélade, o atletismo se
estabelecia no contexto da vida cívica do homem e constituía uma
parte indissociável de sua educação.
As práticas esportivas se caracterizam por serem diferentes
no tempo e no espaço; isto porque, “a cultura do corpo, seu conteúdo
e suas características se modificam ao curso da história”
(VANOYEKE, 1992: 13-14).
Nesta pesquisa, consideraremos as atividades esportivas
como uma prática que “proporciona a descarga de energia libidinal
constrangida por um processo civilizatório, é uma atividade
substitutiva para a guerra, diverte, dá prazer, ensina obediência a
regras, fortalece e disciplina o corpo, serve para construir identidades
pessoais, locais ou nacionais, etc.” (RIAL, 1998: 242).
Já para o sociólogo Norbert Elias, esporte é uma categoria de
atividade social que se desenvolveu inserida no processo de
civilização, estando a sua continuidade com os Jogos Olímpicos
gregos justamente no processo de civilização marcado pelo
autocontrole dos comportamentos no conjunto das relações sociais
(GARRIGOU; LACROUX, 2001: 69-70). Ou ainda, ”... um lócus
propício para a construção da masculinidade, porque apresenta
aspectos de competição, violência e combate que, mesmo
ritualizados, são considerados atributos da masculinidade”
(CECCHETTO, 2004: 77).
Na pólis a prática esportiva é elemento de civilização, por
isso, os não-gregos estão afastados dos jogos. Enquanto uma prática
social e cultural, as atividades esportivas, além de manterem a
unidade/identidade dos cidadãos, se constituem em uma das formas
de leitura da estrutura social políade, explicitando o seu caráter
agonístico / de competição.
Neste artigo, a documentação priorizada para o estudo das
práticas rituais dos atletas será a material (2), constituída pelas
imagens pintadas em suporte cerâmico ático do Período Clássico
(séculos V e IV a.C.).
As imagens se constituem numa ferramenta de expressão e
de comunicação, sendo possível de admitir que elas sempre
constituam uma mensagem para o outro, mesmo quando esse outro
somos nós mesmos, podendo ainda também ser um instrumento de
conhecimento, servindo para ver o próprio mundo e para interpretá-

92
lo. Apesar de concordarmos com os especialistas que afirmam que
nos encontramos mais familiarizados com os textos escritos, pois
fomos treinados a considerar a escrita como o único meio de
comunicação confiável, defendemos que “aprender a ver é tão vital
quanto aprender a ler” (ROBERTSON; BEARD, 1993, p. 14).
Não podemos deixar de ressaltar que as imagens são veículos
importantes para obtermos informações acerca da vida cotidiana e
privada dos gregos antigos. Tanto os textos escritos quanto as
imagens se constituem em discursos, “cada um seguindo sua trilha
própria, com sua lógica particular, que, no entanto, precisam ser
entrecruzados em algum lugar” (HARTOG, 2003, p. 193).
Partiremos do princípio de que os textos escritos e as
imagens se constituem em discursos. Enquanto discursos, ambos são
falas - textos - que oferecem indícios à construção historiográfica,
sendo portadores de significações relativas ao tempo de sua
produção. Quanto às imagens, elas não são dados isolados, mas um
produto elaborado no interior de um sistema cultural. De acordo com
F. Lissarrague, o pintor e seu público partilham o mesmo saber
referente à linguagem iconográfica, que permite as imagens se
tornarem compreensíveis e significantes. No que se refere à
constituição de sentido, sabemos que a imagem não se basta por si
mesma, o que significa dizer que ela está presa em uma rede de
comunicação na qual intervém o pintor e o espectador, o autor e o
receptor (LISSARRAGUE, 1987, pp. 261-62 e 268).
As colocações acima nos permitem discordar da opinião
assumida por um grupo de pesquisadores franceses especializados
em diferentes recortes temporais da História, inclusive da
Antigüidade, publicadas no livro traduzido para o português em 2007
com o título Como se faz a história: historiografia, método e
pesquisa. Observemos a citação abaixo: (...) vale lembrar que,
contrariamente aos textos, os vestígios ou as imagens não falam por
si sós (embora veiculem um discurso político ou ideológico). Para
que possam ser compreendidos, é necessário inseri-los em seu
contexto, relaciona-los a descobertas similares e confrontá-los a
outros documentos (sobretudo aos textos, se houver). Sem essa
operação, um fragmento de muro, de vaso, ou uma moeda fornecem
apenas informações isoladas (CADIOU, 2007: 124).

93
Diferente dos autores acima citados, defendemos que as
imagens são textos. Há na citação uma identificação imediata entre
texto e documentação escrita, o que particularmente entendemos ser
um equívoco, pois parece-nos uma contradição com a própria
proposta da obra. A cultura material se constitui em textos que
possuem especificidades se comparados aos textos escritos de
diversos gêneros.
Outro equívoco presente na citação acima pode ser
verificado na afirmação de que “contrariamente aos textos, os
vestígios ou as imagens não falam por si sós”. Pela colocação dos
autores podemos entender erroneamente que a documentação escrita
“fala por si só”. Já abandonamos faz muitos anos a crença de que a
documentação “fala por si só”. Independente da natureza da
documentação, todos os textos, sem exceção, falam através da
intervenção do historiador e estão imbuídos de valores que são
inerentes a sua produção. Logo, esta não é uma questão específica
dos vestígios materiais.
A forma de compreensão dos documentos materiais
destacada pelos autores como contextualização, relacionar com
descobertas similares e confrontá-los à naturezas diversificadas de
documentação não se constitui, mais uma vez, como uma prática
única e exclusivamente aplicada aos textos oriundos da cultura
material. A nosso entender são, guardando as suas especificidades,
procedimentos comuns também à documentação escrita.
Após as discussões por nós levantadas, iniciemos a análise
(3) das imagens selecionadas para estudarmos as práticas rituais
inerentes ao universo de um atleta (4) grego da Antigüidade.
Na primeira imagem que passamos a interpretar – Figura 1 -
, temos uma cena de treinamento dos atletas representada numa kýlix
(5) de figuras vermelhas (6).

Figura 1

94
Localização: Los Angeles, J. Paul Gerry Museum – inv. 85.AE.25,
Temática: Treinamento dos atletas, Proveniência: Não fornecida,
Forma: Kýlix, Estilo: Figuras Vermelhas, Pintor: Não fornecido,
Data: 515-510 a.C., Indicação Bibliográfica: VALAVANIS, 2004:
106, fig. 124; NEWBY, 2006: 80, fig. 18.

Na imagem temos a representação de seis personagens,


estando quatro completamente nus, um vestido e um outro com um
tecido (supostamente o seu himátion) amarrado na altura da cintura.
Há na cena o confronto entre o nu e o vestido. Os especialistas que
estudam as práticas esportivas helênicas atentam para o fato de que,
diferentemente dos costumes etruscos e romanos, o atleta grego em
qualquer idade se exercitava completamente nu, demonstrando sua
alteridade frente ao bárbaro (MARROU, 1990: 200; NEWBY, 2006:
71). Devemos enfatizar ainda que “a nudez dos corpos entre os
gregos antigos tinha significados específicos. Além de se distinguir
os fortes dos vulneráveis, o corpo desnudo dos helenos evidenciava
quem era civilizado” (LESSA, 2003: 53).
Assim sendo, o signo da nudez já nos remete ao universo
esportivo dos gregos antigos. Outro signo que também nos direciona
para a prática esportiva e está presente em cinco dos personagens
presentes em cena é a coroa, que indica a vitória nas modalidades
esportivas.
Os autores que se dedicam à análise das imagens áticas
enfatizam que as idades masculinas são mais precisamente
demarcadas pelos artesãos. Na cena vemos que todos os personagens
são imberbes, isto é, são jovens. A barba é o signo que evidencia
idade entre os homens. Neste sentido, a sua ausência denota
juventude.
O pintor enfatiza três modalidades esportivas que se
encontravam, no mundo antigo grego, associadas e que certamente
eram praticadas por um mesmo atleta, a saber: o arremesso de disco,
o lançamento do dardo e o salto em distância. Os signos que atestam
tal afirmação de nossa parte são: os dois discos, os dois dardos no
centro da imagem, halter e o enxadão, usado tradicionalmente para
afofar a terra e garantir a marca nítida dos pés dos atletas ao tocarem
o solo depois do salto.

95
Esta cena não representa o momento da competição, mas sim
o do treinamento dos atletas. Estes passavam o seu tempo a treinar,
para alcançar uma preparação física, um nível técnico e uma
experiência que os distinguissem dos outros. Os treinos começavam
dez meses antes do início dos jogos. No caso dos jogos de Olímpia,
os atletas deveriam se apresentar em Élis (região próxima de
Olímpia) um mês antes do início dos jogos, sendo o treino
supervisionado pelos juízes (Hellanodíkai). Este período de intenso
treinamento em Élis provavelmente demonstraria o absoluto controle
que os helenos tinham sobre os jogos. Os atletas, juízes e treinadores
deixavam Elis dois dias antes do início das competições, percorrendo
aproximadamente 58 km até Olímpia (SWADDLING, 1999: 50-52).
No centro da imagem temos um músico (personagem
vestido) com a flauta. A prática da ginástica e a música apareciam
constantemente associadas, isto porque, eram necessárias para a
formação do cidadão como modelo de homem. Platão associa a
música ao benefício da alma e a ginástica ao corpo, subdividindo
esta última em dança e luta (PLATÃO. Leis. VII, 795 d-e). Já para
Aristóteles, a ginástica: era um verdadeiro sistema de educação,
sendo entendida sempre como uma prática que contribuía para a
andreía do cidadão (ARISTÓTELES. Política. VIII, 1337 b, 28).
A prática esportiva se inseria na paideía helênica e atuava na
formação de um homem-cidadão completo, portadores dos seguintes
atributos: força, agilidade, coletividade, desnudamento, coragem e
virilidade, honra, defesa da koinonía e o conduzi-la politicamente,
ser pai e marido, atuar no espaço público, habilidade com a palavra,
ser ativo, agilidade de movimentos, prática esportiva, ser obediente à
religião cívica, ter descendência legítima e proteger os pais na
velhice.
Quanto aos jogos de olhares, todos os personagens presentes
na cena aparecem em perfil, forma mais comum de representação nas
imagens áticas. No caso deste tipo de representação, a veiculação da
mensagem não permite um diálogo direto com um enunciador-
destinatário externo; isto é, não se estabelece uma interação com o
público e a cena adquire a conotação de um exemplo a ser seguido
pelos receptores (CALAME, 1986: 108).
A cena se passa no mesmo quadro espaço-temporal; ou seja,
os personagens estão num mesmo espaço físico e atuando

96
concomitantemente, permitindo uma interação entre eles. Apesar da
imagem não apresentar nenhum signo de interioridade explícito,
podemos afirmar que a cena é de interior. É possível observar que os
dardos estão recostados na parede. Defendemos a hipótese de que os
atletas estão no interior da palestra (7), local de reuniões gerais,
usado para uma variedade de fins além do exercício físico (JONES,
1997: 177). Pode ser definido ainda como um espaço que servia para
todos os desportos, exceto para corrida a pé, se constituindo
essencialmente em um terreno para o esporte, de forma quadrada e
rodeada de muros. (FLACELIÈRE, s/d: 117). Segundo J. Swaddling,
uma das principais funções da palestra era oferecer no seu interior
facilidades para os atletas durante um mau tempo. Com exceção de
dois cômodos (um na ala oeste e outro na leste), todos os demais
tinham bancadas em torno para os espectadores (SWADDLING,
1999: 33), o que garantia a audiência do público. Os espaços para a
prática esportiva – ginásios (8) e palestras – eram essencialmente
lugares sociais, onde a interação do corpo cívico se concretizava,
através das relações de amizade, por exemplo.
Antes de iniciarmos a análise da próxima imagem,
enfatizamos que o treinamento físico era, em Atenas, supervisionado
por um paidotribés, o responsável pela instrução do jovem nas
modalidades esportivas. A educação recebida pelos jovens atenienses
era mais esportiva que intelectual. O treinamento físico era,
conforme temos observado, um aspecto essencial da paideía grega
(GARDINER, 2002: 90).
A preparação do atleta incluía exercícios e treinamento, além
de banhos medicinais (VALAVANIS, 2004: 242). A imagem que
passaremos a analisar – figura 2 – representada certamente a
primeira etapa do ritual de preparação do atleta para a competição: o
de se massagear com o óleo. Esta prática, além de proteger a pele dos
atletas contra a exposição ao sol, atuava no sentido de aquecer o
corpo do competidor para as disputas, se equivalendo à prática
contemporânea do aquecimento.

97
Figura 2

Localização: Berlin, Staatliche Museen – inv. F 2180, Temática:


Preparação dos atletas, Proveniência: Não fornecida, Forma: Cratera,
Estilo: Figuras Vermelhas, Pintor: Não fornecido, Data: cerca de 510
a.C., Indicação Bibliográfica: VALAVANIS, 2004: 242, fig. 336;
YALOURIS, 2004: 131, fig. 48; SWEET, 1987: 111, fig. 41;
GARDINER, 2002: 81, fig. 44.

Na cratera (9) de figuras vermelhas acima, temos cinco


personagens, sendo quatro deles identificados pelas inscrições de
seus nomes no vaso. Temos três jovens atletas (a ausência da barba
nos personagens nos permite afirmar se tratar de jovens) portando
coroas e dois meninos. A distinção de faixa etária entre os
personagens pode ser observada pelo tamanho de suas
representações e pela sua própria constituição física. A coroa na
cabeça dos atletas indica que esses jovens foram vitoriosos em suas
competições.
A cena é de interior, pois contamos em cena com um banco
sobre o qual temos um manto de um dos personagens, certamente
daquele localizado no centro da imagem que já se encontra
totalmente desnudo.
N. Yalouris afirma que a modalidade para a qual os atletas se
prepararam é a luta (YALOURIS, 2004: 130), mas não observamos
qualquer signo que nos permita concordar com o autor.
À esquerda da imagem vemos Trânion massagear a sola do
pé de Hipomedonte, enquanto este se apóia em seu bastão com a mão
esquerda e na cabeça de Trânion, com a mão direita. O bastão é um
signo de poder associado ao ambiente externo e ao universo
masculino.

98
No centro da imagem encontramos Hegésias. Ele verte óleo
de um aryballos na mão direita para ungir seu corpo. Na seqüência,
temos Lícon que dobra cuidadosamente o seu himátion que, em
seguida, entregará ao menino ao seu lado, o único não nomeado.
E. N. Gardiner (2002: 80) e P. Valavanis (2004: 242)
defendem ser os dois meninos escravos. No momento não dispomos
ainda de dados suficientes para assumirmos uma posição consistente
sobre o status dos personagens. Porém, indicamos que ambos portam
uma coroa na cabeça, signo que sempre aparece associado à vitória
nas competições esportivas.
A cena se passa no mesmo quadro espaço-temporal,
demonstrando interação entre os grupos de personagens. A
representação dos jogos de olhares dos personagens é em perfil, o
que significa dizer que a interação se estabelece apenas entre os
personagens, isto é, os receptores não são convidados à participarem.
Neste sentido, a cena deve ser entendida como um exemplo a ser
seguido pelos seus receptores.
Na imagem seguinte – figura 3 -, temos pintada numa Kýlix
uma cena que pode ser entendida como uma seqüência da anterior.
Observamos em detalhe na imagem um jovem atleta (imberbe) sendo
massageado, um dos rituais de preparação para a disputa. Um
segundo personagem, também jovem, massageia os músculos das
costas do atleta. A massagem do corpo fazia parte do treinamento
recomendado para um atleta.
Assim como nas cerâmicas anteriores, a cena pintada nessa
kýlix se passa no espaço interno. Certamente no complexo destinado
à higiene e à preparação do atleta no interior da palestra.

Figura 3

99
Localização: Roma, Villa Giulia, Temática: Massagem do atleta,
Proveniência: Não fornecida, Forma: Kýlix, Estilo: Figuras
Vermelhas, Pintor: Não fornecido, Data: 480 a.C., Indicação
Bibliográfica: VALAVANIS, 2004: 240, fig. 334; YALOURIS,
2004: 132, fig. 49; GARDINER, 2002: 82, fig. 46.

A representação dos jogos de olhares também é em perfil,


evidenciando a interação entre os dois personagens e se constituindo
num referencial para os receptores da imagem, como também
observamos nas cenas anteriores.
As duas próximas imagens colocam em evidência seqüências
do ritual seguidas pelos atletas após as competições.
Dentre os acessórios frequentemente vinculados às práticas
esportivas encontramos: a esponja para o banho, o aryballos
(recipiente para óleo) e o estrigil (raspador ou almofada de bronze;
espécie de espátula). O atleta utilizava o estrigil para liberar a pele da
camada de óleo e de poeira que se misturavam ao suor durante as
competições.
Na ânfora de figuras vermelhas abaixo – figura 4 - temos no
centro da cena um atleta imberbe (logo, jovem) fazendo uso do
estrigil após o seu treinamento e antes do seu banho. Ele segura o
estrigil com a mão direita e o movimenta sobre o seu corpo.
Observamos a inclinação da cabeça e o olhar atento do atleta à
manipulação do equipamento.
.

Figura 4

100
Localização: Viena, Kunsthistoriaches Museum, Temática: Higiene
do atleta, Proveniência: Não fornecida, Forma: ânfora, Estilo:
Figuras Vermelhas, Pintor: Não fornecido, Data: 500 a.C., Indicação
Bibliográfica: YAKOURIS, 2004: 129, fig. 47.

Apesar de não possuirmos nenhum signo de interioridade na


cena, podemos trabalhar com a hipótese de que ela se passa no
interior de uma palestra, pois a higiene do atleta acontecia nesse
espaço. Situação diferente verificamos na imagem seguinte – figura
5. No detalhe da cena que selecionamos para análise vemos parte das
construções específicas para o banho. Neste caso, os atletas se
encontram no loutrón, local destinado ao banho.

Figura 5

Localização: Londres, British Museum – inv. E. 83 Temática: Banho


do atleta, Proveniência: Não fornecida, Forma: Kýlix, Estilo: Figuras
Vermelhas, Pintor: Não fornecido, Data: cerca de 420 a.C., Indicação
Bibliográfica: VALAVANIS, 2004: 99, fig. 113; GARDINER, 2002:
88, fig. 60 a; YALOURIS, 2004: 132, fig. 50.

Temos na cena que recortamos de uma das faces de uma


kýlix dois jovens imberbes. Aquele que se encontra de pé segura um

101
vaso e despeja água sobre a cabeça do personagem agachado. Este
movimenta suas mãos no sentido de lavar seus cabelos.
Podemos afirmar se tratar de dois atletas que já concluíram
os seus treinamentos cotidianos, pois o banho se constituía na etapa
final após os treinamentos e/ou disputas.
Há uma clara compenetração na ação desenvolvida em cena.
Os jogos de olhares também são em perfil. Assim sendo, conforme já
mencionamos anteriormente, a comunicação é interna, servindo de
modelo aos receptores.
Após a interpretação da pequena série de imagens
evidenciando etapas do ritual cumprido pelos atletas, podemos nos
perguntar à qual segmento social se destinam essas mensagens, isto
é, quem eram os receptores dessas imagens.
Pela temática, essas cerâmicas se direcionavam aos jovens
atletas, pois as suas mensagens atuavam como reforço ao que a pólis
esperava deles: força, coragem, resistência, velocidade, movimento,
beleza, entre outras virtudes; já pela riqueza da decoração, a
aquisição destes vasos estaria restrita aos grupos sociais mais
abastados.
No decorrer deste artigo o que buscamos enfatizar é o caráter
ritualístico presente nas práticas esportivas. Os jogos, além de
propiciarem a coesão social dos grupos no interior da pólis,
permitiam a integração entre homens e divindades. Eles aconteciam
em santuários e atuavam como parte da concretização do sistema
complexo de religiosidade helênica que nós comumente sintetizamos
com o conceito de politeísmo.

NOTAS
(1) Fernand Robert traça na sua obra A Religião Grega uma discussão
conceitual acerca de alguns dos termos comumente empregado nas análises
sobre religião grega e recomenda que santuário seja utilizado no sentido de
terreno sagrado (ROBERT, 1988: 18 – grifo do autor).
(2) A documentação material é considerada como mais abrangente que a
escrita, dizendo respeito a qualquer vestígio concreto que não seja escrito:
construções, objetos, imagens (CADIOU, 2007: 122).
(3) Aplicaremos às imagens o método semiótico proposto por Claude
Calame que pressupõe a necessidade:
1º. de verificarmos a posição espacial dos personagens, dos objetos e dos
ornamentos em cena;

102
2º. de fazermos um levantamento dos adereços, mobiliário, vestuários e os
gestos estabelecendo repertório dos signos;
3º. de observarmos os jogos de olhares dos personagens participar da ação
representada.
3.1. perfil: o receptor da mensagem do vaso não está sendo convidado a
participar da ação. Neste caso, o personagem deve servir como exemplo
para o comportamento do receptor;
3.2. três quartos: o personagem que olha tanto para o interior da cena quanto
para o receptor está possibilitando, a este último, participar da cena;
3.3.. frontal: personagem convida o receptor a participar da ação
representada (CALAME, 1986).
(4) Na Grécia aqueles que exercem um esporte são os athlètes (da raiz de
aethlos ou athlos, combate/guerra); já aqueles que participam dos concursos
são os agonistès (deriva da palavra agôn, luta, disputa).
(5) Taça usada para beber vinho.
(6) O estilo chamado de figuras vermelhas apresenta os elementos da
decoração em tom claro sobre fundo escuro.
(7) Palestra: Num ou em dois lados, erguiam-se construções cobertas, que
serviam de vestiários, de salas de repouso, munidas de bancos de
balneários, de armazéns de óleo e de areia.
(8) De acordo com Pausânias, o ginásio foi uma das estruturas cruciais que
toda pólis devia possuir (10. 4. 1). Na pólis, o ginásio era fundamental para
a exibição da masculinidade, através da exposição de um corpo firme, forte,
simétrico e vigoroso. Como Simon Goldhill afirma, “o ginásio fazia do
corpo um tópico de conversação, exibição, desejo e preocupação, assim
como de exercício e cuidados” (GOLDHILL, 2007: 22). Porém, conforme
defende Zahra Newby, a associação do ginásio com a identidade helênica
parece ter se tornado particularmente importante durante o Período
Helenístico, quando o mundo grego se expandiu como resultado das
conquistas de Alexandre (NEWBY, 2006: 72).
(9) Vaso usado para adicionar água ao vinho.

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105
MONOTEÍSMO NA BABILÔNIA?
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MITOLOGIA DE MARDUK

Marcelo Rede
(CEIA-UFF)

Resumo: Desde o início do segundo milênio, o deus Marduk – a princípio,


uma divindade secundária – experimenta uma considerável ascensão no
interior do panteão mesopotâmico. Neste artigo, analisamos algumas
narrativas que deram um suporte mitológico à consolidação da posição de
Marduk, particularmente o Enûma elish. Procuramos, igualmente,
estabelecer as relações entre esses textos e a história política da Babilônia.
Concluímos, em todo caso, que a trajetória de Marduk não significou uma
tendência em direção ao monoteísmo.
Palavras-chaves: Marduk – Babilônia - monoteísmo

Resume: Depuis le début du deuxième millénaire, le dieu Marduk – au


départ, une divinité secondaire – expérimente une considérable ascension à
l’intérieur du panthéon mésopotamien. Dans cet article, on analyse quelques
narratives ayant donné un support mythologique à la consolidation de la
position de Marduk, particulièrement l’Enûma elish. On essaye également
d’établir les liaisons entre ces textes et l’histoire politique de Babylone. On
conclut, néanmoins, que la trajectoire de Marduk n’a pas signifié une
tendance vers le monothéisme.
Mots clefs : Marduk – Babylonie - monothéisme

Teoricamente, as tendências monoteístas em uma religião


politeísta podem manifestar-se de maneiras diversas, em função do
caráter do fenômeno em curso: por vezes, elas podem indicar uma
transformação subterrânea nas crenças populares e se traduzirem
mais enfaticamente no nível do ritual (por exemplo, com a seleção
mais ou menos exclusivista de uma divindade para adoração); por
vezes, podem ter sua matriz em setores da elite sacerdotal, mais
aptos a forjarem uma codificação doutrinária. Nem sempre, no
entanto, a tendência à normatização gera um corpo rígido de
preceitos, procurando estabelecer a unicidade de um deus. De fato, a
codificação pode ser bem mais fluida e costuma sê-lo, sobretudo em
sociedades em que a religião se funda doutrinariamente em um
conjunto mais ou menos disperso de narrativas mitológicas e, ao

106
mesmo tempo, é desprovida de um corpo dogmático de princípios
(freqüentemente associado a uma instituição eclesiástica unitária e ao
que, genericamente, chamamos de ‘religiões do livro’). Assim,
metodologicamente, a observação das tendências monoteístas pode
ser feita a partir de dimensões variadas: das práticas rituais, da
evolução das doutrinas, dos relatos míticos. A escolha desta última
vertente, feita por este estudo, apresenta, certamente, limites: o
menor deles não seria o de contribuir, uma vez mais, para uma visão
um tanto desencarnada do fenômeno religioso, em que as
manifestações da palavra, particularmente escrita, sobrepõem-se aos
gestos cultuais e à corporalidade ritual. Não nos enganemos a este
respeito: o estudo da dimensão mitológica não esgota a
complexidade da religião. Portanto, o que se propõe, aqui, é apenas
uma abordagem inicial e parcial. Em todo caso, uma leitura atenta
dos relatos míticos pode contribuir decisivamente, segundo penso,
para entender melhor o problema do posicionamento da divindade
que passa a ser privilegiada no contexto de um panteão numeroso.
As estórias envolvendo o deus – seus feitos, sua ascensão diante das
demais divindades, muitas vezes a partir de uma posição
francamente secundária – servem de patamar para a criação ou
remodelação de uma identidade divina e são elementos importantes
(embora não indispensáveis, ao que parece) para a ênfase no culto de
uma divindade, fornecendo, assim, o quadro de referências
mitológicas para uma prática religiosa mais henoteísta ou, no limite,
monoteísta.
A análise da trajetória mítica de Marduk deverá permitir,
então, isolar alguns dos componentes narrativos mobilizados para a
construção da personalidade divina e refletir sobre os contextos,
sobretudo políticos, que possibilitaram ou exigiram a ênfase no culto
de um deus em detrimento dos demais.

Marduk, de senhor da Babilônia a senhor do universo


Nos últimos séculos do terceiro milênio, as tribos amorritas,
certamente provenientes do oeste, instalaram-se no vale
mesopotâmico e preencheram o vácuo político decorrente do colapso
da IIIª dinastia de Ur, marcando o derradeiro fim do poderio sumério
e, a médio prazo, a retração da própria presença suméria no vale. A
muralha erguida a partir do reinado de Shulgi como linha de defesa

107
foi, ao que tudo indica, completamente inútil e os governadores
locais informavam ao rei de Ur sua impotência e preocupação com o
avanço dos ‘hostis amorritas’ (1). Da Síria ao golfo Pérsico, do
Zagros ao Mediterrâneo, o movimento populacional foi
acompanhado pelo surgimento de novas dinastias reinantes que se
instalaram em cidades-reinos de antiga estirpe ou em unidades
políticas recém-fundadas. Assim, aqueles ‘reis que viviam sob
tendas’, como os nomeava a Lista Real Suméria sem esconder certa
reserva, tornavam-se, agora, os senhores dos palácios
mesopotâmicos.
Como lembra a própria designação dessas tribos, seu deus
epônimo era Amurru, igualmente grafado Martu, em sumério
(termos que também indicam, prosaicamente, o oeste). A trajetória
desta divindade é curiosa e reflete, de certo modo, o movimentado
ambiente da transição do terceiro para o segundo milênio: sua
origem nômade é evocada nos epítetos ‘senhor da estepe’ (bêl sêri) e
‘senhor da montanha’ (bêl shadê), mas parece que Amurrum
continua a gozar de um grande prestígio cultual entre a população
agora instalada nas cidades do vale, como sugere sua forte presença
nos nomes próprios teóforos e o fato de muitas pessoas designarem-
se, em seus selos-cilíndricos, como ‘servidor de Amurrum’
(KOZYREVA, 1999: 355). Entretanto, Amurrum não se impõe como
a divindade principal de nenhuma cidade-reino, posto normalmente
ocupado pelos antigos deuses do panteão sumero-acadiano:
An/Anum, Enlil, Utu/Shamash, Nanna/Sîn, Inanna/Ishtar etc. No
mais, na mitologia mesopotâmica, Amurrum é raramente
mencionado. Na principal narrativa conservada (2), o personagem,
sob o nome sumério de Martu, aparece em uma forma bastante
humanizada e faz figura do habitante das margens mais ou menos
nômades, que parte à busca de uma esposa na cidade de Ninab:
durante um festival, Martu exibe sua força e suas habilidades físicas
extraordinárias, superando a todos os participantes do torneio e
atraindo as graças do deus Numushda, que lhe oferece riquezas
suntuosas. Martu recusa, demandando-lhe a mão de sua bela filha,
Adgar-kidug. Numushda anui e o casamento começa a ser preparado.
Entretempo, uma dama de companhia da deusa tenta dissimulá-la,
evocando os argumentos típicos da prevenção dos citadinos contra
esses nômades bárbaros que, em suas palavras, se vestem de peles e

108
habitam em tendas sob o vento e a chuva, que levam uma vida sem
casa, errando pelas estepes e comendo carne crua. Ou, ainda pior,
que não oferecem dignos sacrifícios aos deuses nem são, quando
mortos, enterrados segundo os rituais. Mas a convicção – ou a paixão
– de Adgar-kidug é inabalável e ela reafirma que se casará com
Martu. Muitos autores viram na narrativa os ecos, mais ou menos
diretos, do amálgama populacional operado nos finais do terceiro
milênio entre os nômades recém-chegados e as cidades-reinos já
longamente instaladas, ou, em um registro mais propriamente
religioso, o processo de inserção da divindade (ou, até mesmo,
apenas um herói) tribal amorrita no panteão civilizado, isto é, urbano
e sedentário, da Mesopotâmia (cf. KLEIN, 1997: 109 e
VANSTIPHOUT, 1999). Seja como for, no processo,
Amurrum/Martu parece perder o seu lugar de destaque e liderança
original, para assumir, na mitologia sumero-acadiana, um papel
secundário.
Na cidade–reino da Babilônia, a ascendência divina sobre as
novas populações e a nova dinastia – também elas de origem
amorrita – será preenchida de uma maneira, de certo modo, singular:
enquanto nos demais centros urbanos importantes a tendência foi a
conservação e o reforço das grandes divindades do panteão já
consolidado no período sumério (ainda que, agora, sob uma
denominação predominantemente acadiana), em Babilônia, o deus
políade (que o termo seja admitido, aqui, sob as reservas que se
impõem) emergirá de fileiras mais profundas e menos nobres. De
fato, Marduk, pequena divindade agrária, galgará os degraus do
panteão à medida que sua cidade se afirma como potência política
regional. O início modesto torna ainda mais significativo e
interessante a confecção das narrativas míticas que o promovem ao
ápice da hierarquia divina.
Ápice significa, sobretudo, a soberania sobre os demais
deuses e sua conquista foi, a bem dizer, um caminho longo, milenar.
A biografia de Marduk, sua trajetória e sua posição face às outras
divindades é objeto de controvérsia entre os especialistas, mas
algumas linhas de força de sua evolução podem ser estabelecidas
com razoável clareza (em geral, ver: LAMBERT, 1984).
Para um deus que, mais tarde será tão poderoso a ponto de
ser identificado simplesmente por ‘senhor’ (bêl), as origens de

109
Marduk foram, na verdade, bastante modestas, sobretudo a julgar por
suas menções mais antigas, no período Dinástico Arcaico (IIIº
milênio), em que nada prenuncia uma fortuna gloriosa. A forma
ideográfica corrente do nome, damar-ud, normalmente lida como
‘jovem touro (ou filho) do sol’, talvez seja mais bem interpretada
como ‘jovem touro (ou filho) da tempestade’, já que, desde o início,
o deus é identificado com as nuvens da chuva e as tormentas, não
tendo praticamente nada de uma divindade solar. Sua assimilação
com o filho de Ea, Asarluhi, parece apontar neste sentido. Esta
absorção sincrética, já bem atestada no período babilônico antigo,
nos inícios do IIº milênio, foi, justamente, um primeiro passo na
elevação do status divino de Marduk: é com esta nova característica
que ele compartilhará, ou mesmo confundir-se-á, com Asarluhi no
importante papel de deus exorcista, como atestam abundantemente
os encantamentos e as preces a partir desse período (cf. LAMBERT,
1999).
Apesar do considerável poderio da primeira dinastia
babilônica, traduzido particularmente no expansionismo de Hammu-
rabi (1792-1750), Marduk permaneceu como um deus local, senhor e
protetor da Babilônia, onde seu culto, no templo de Esagila, se
concentrou de maneira quase exclusiva. Apenas dois outros
santuários, em Nippur e na Dûr-Sharru-kîn babilônica, são
conhecidos, além de algumas capelas situadas em templos de outros
deuses, mas Marduk jamais se impõe como deus políade fora da
própria Babilônia. Mais do que qualquer busca de predomínio, o que
caracteriza esta fase é uma inserção no panteão sumero-acadiano. No
prefácio do Código de Hammu-rabi (cf. BOUZON, 1987: 39 s.),
embora Marduk já apareça como filho de Enki (designação suméria
de Éa), por força de uma genealogia completamente inventada de
ocasião, a soberania sobre os deuses cabe, como prega a tradição, a
Anum, rei celeste e distante, enquanto que o governo do mundo e a
determinação dos destinos competem a Enlil, como estabelece
igualmente a imemorial tradição mítica. A outorga da Babilônia a
Marduk aparece, muito claramente, como uma concessão, do mesmo
modo que a delegação divina para que o rei seja o ‘pastor dos
povos’. Nenhuma dúvida quanto a isto: os poderes de Marduk e de
Hammu-rabi são benefícios de uma delegação em cascata da parte
dos Anunnaku, os deuses maiores. E se Marduk pode aparecer como

110
o grande instigador oracular das batalhas levadas a cabo pelo
soberano – partilhando uma função tradicional de Shamash –, como
ocorre no ataque destruidor a Larsa (CHARPIN, 2003: 84), é visível
um certo cuidado para não atiçar as suscetibilidades locais nem
apresentar Marduk como um deus conquistador a ser adorado nas
regiões anexadas (MIEROOP, 2005: 80).
Num segundo momento, que devemos situar nos últimos
séculos do IIº milênio, Marduk reivindica um quinhão maior e mais
exclusivo da soberania divina. Desde a queda da primeira dinastia,
em 1595, sob os golpes conjuntos de hititas, cassitas, elamitas e
hurritas, a Babilônia experimentara um ciclo de colapsos e
recuperações de que o próprio Marduk fora vítima e testemunha,
como mostram as desventuras de sua personificação material, ou
seja, de sua estátua: capturada pelo rei hitita Mursili I, em 1595,
recuperada por volta de 1570 pela dinastia cassita que sucedeu no
poder na Babilônia; novamente saqueada pelos que serão, agora, os
grandes adversários dos babilônios, os assírios, durante o reinado de
Tukulti-Ninurta I (1243-1207), e ainda levada para o Elam, por
Kudur-Nahhunte, em 1155! (3) Altos e baixos de um deus, mas o
resultado final será um decisivo reforço teológico e político de
Marduk: sob o reinado de Nabucodonosor I (1125-1104), que não
apenas reage vitoriosamente aos elamitas, mas também reinstala a
estátua do deus em seu templo, Marduk conhecerá uma consolidação
inédita e, doravante, irresistível (mesmo se sua estátua ainda
enfrentará percalços no Iº milênio). A confluência entre um
fortalecimento palaciano, que lança os fundamentos da grande
Babilônia dos séculos seguintes, e a nova liderança de seu deus fez
W. G. Lambert (1964) falar de um “turning point” na história da
religião da antiga Mesopotâmia e considerar a Epopéia Babilônica
da Criação, o Enûma elish, como um de seus elementos. Nós
voltaremos a este texto fundamental, a seu sentido e sua datação. Por
ora, basta assinalar o fato de que o avanço de Marduk em direção ao
topo do panteão ocorre sobretudo pelo solapamento de atributos e
funções que, antes, eram próprios de Enlil, deus soberano por
excelência. Marduk, agora, ombreia com os grandes deuses e, muitas
vezes, põe-se acima deles ou os substitui nas diversas situações da
vida religiosa, dos rituais aos papéis exercidos nas narrativas
mitológicas.

111
Mais tarde, na primeira metade do Iº milênio, à medida que
Babilônia se afirma como um dos pólos articuladores da nova
realidade regional, ao lado da rival Assíria, uma disputa também
opõe Marduk e Assur. A dimensão geopolítica, de fato, é redefinida
em patamares mais amplos e as pretensões à hegemonia unitária e
exclusiva acirram-se (embora não prevaleçam de modo mais
duradouro, seja devido a um equilíbrio bipolar interno, entre
babilônios e assírios, seja pela ingerência de forças estrangeiras). A
lógica política é, agora, mais imperial. Neste quadro, ambos os
deuses tenderão não apenas a reforçar sua posição como divindades
políades e dinásticas, como também a irradiar sua influência sobre o
conjunto do império. T. Abusch (1999: 545 ss.) sublinha dois fatores
importantes neste processo de reconfiguração das hierarquias
divinas: de um lado, um deslocamento de Nippur, antigo e mais
prestigioso centro religioso e de legitimação da realeza, em benefício
da Babilônia. Se, até então, o eventual predomínio político da
Babilônia, ou de qualquer outra cidade-reino, não alterava
substancialmente a milenar concepção suméria de que o restante do
universo encontrava-se sob o domínio da assembléia de deuses
reunida em Nippur sob a égide de Enlil, agora, a ascendência de
Marduk não mais se limita à sua morada, mas estende-se a toda
‘Suméria e Akkad’. A convivência entre um deus local,
momentaneamente poderoso, e um deus universal, eternamente
soberano, vai se rompendo em favor do primeiro, que fagocita a
jurisdição do segundo. É, portanto, a própria visão cosmológica
nippuriana que perde sua supremacia e tal mudança foi, ainda
segundo Abush, a pré-condição da promoção político-religiosa de
Marduk e da Babilônia nos novos termos do Iº milênio. Por outro
lado, e por decorrência, é toda uma outra concepção de estado e de
governo que se cria, agora concebida a partir de um centro,
Babilônia, e de seu deus, em torno dos quais se organiza a órbita do
mundo, em um modelo francamente imperial.

O Enûma elish e a exaltação de Marduk


Dentre as narrativas mitológicas, a que traduz mais
enfaticamente a trajetória ascendente de Marduk é a Epopéia
Babilônica da Criação, também conhecida por Enûma elish (4).
Estas palavras (‘Quando no alto’) iniciam a composição, já

112
indicando o seu caráter cosmológico, fundador de uma ordem na
qual o deus da Babilônia exercerá plenamente suas novas
prerrogativas: elas indicam o momento original, quando nem céu
nem terra sequer estavam nomeados, quando começam surgir as
próprias divindades. Mas este é um universo que se torna
imediatamente tenso, em que a jovem prole divina volta-se contra os
princípios elementares, em que Éa destrona e mata Apsu, erguendo
sobre seus despojos o seu reino de águas doces subterrâneas e
desencadeando a fúria de Tiamat. Entidade feminina e ligada às
águas salgadas, complementar portanto ao Apsu, Tiamat engendra
uma armada de criaturas monstruosas e prepara-se para a guerra: de
dragões gigantescos dotados de ferozes mandíbulas e leões colossais
às criaturas híbridas – meio humanas, meio animalescas, homens-
escorpiões, homens-peixes – que caracterizam o bestiário demoníaco
mesopotâmico. Todos postos sob a liderança de Kingu, general e
amante eleito por Tiamat, a quem esta promete a glória e delega a
guarda do Tablete dos Destinos, a inscrição sagrada que registra o
curso da existência, o desenrolar da vida de tudo o que faz parte do
universo ordenado.
A perspectiva do embate é aterradora e o pânico instala-se
entre os deuses, que rapidamente dão-se conta da necessidade de
reagir. Mas é com um embaraçoso silêncio e um recuo amedrontado
que eles respondem ao apelo para fazer face a Tiamat e suas tropas.
Todos, salvo Marduk. O valente filho de Éa, ao contrário, anseia pela
batalha. A disposição de Marduk progride no fértil terreno da
demissão das demais divindades e ele saberá cobrar o que lhe é
devido por sua bravura, exigindo poderes excepcionais: “que toda
ordem proferida por meus lábios permaneça irreversível,
irrevocável” (II:150). Sem verdadeira alternativa, os grandes deuses
reunidos em um banquete de pão e cerveja, concedem a Marduk não
apenas um lugar no culto em seus próprios santuários, mas também a
realeza sobre o universo inteiro. Elevação divina e ascensão de
poder, portanto: “Somente Marduk é rei” (IV,28), exclamam os
deuses em um coro satisfeito. É no duelo mortal com Tiamat, porém,
que Marduk prova ser imbatível e consolida definitivamente sua
superioridade. É verdade que, à primeira visão de Tiamat e Kingu,
Marduk é tomado de hesitação, talvez sob o efeito de encantamentos
maléficos da deusa. Mas não demora para que as ferinas palavras de

113
Marduk, agora mais senhor de seus atos, firam profundamente os
brios de Tiamat. Aos gritos estrondosos, ela avança e os dois deuses
engalfinham-se em um brutal combate corpo-a-corpo. Marduk
imobiliza Tiamat em sua rede e assola-lhe com os Ventos Furiosos,
expressamente criados para a luta. Quando Tiamat abre sua boca
aterradora para engolir Marduk, os Ventos arreganham-lhe a
garganta e invadem o interior de seu ventre, inchando-lhe o corpo.
Marduk aproveita a ocasião, lança sua flecha pela boca escancarada,
rasga o ventre da deusa e parte-lhe o corpo ao meio. Tiamat desaba
inerte no chão e, incrédulo, seu exército de seguidores, deuses e
monstros, tenta bater em retirada, amedrontado. Mas é impedido e
aprisionado nas redes de Marduk. Eles serão castigados, mas
poupados. Restava Kingu e, com ele, Marduk será impiedoso,
sacrificando-o e tomando-lhe o Tablete dos Destinos, ao qual ele
apõe seu próprio selo, antes de pendurá-lo em seu pescoço.
A defesa do ordenamento, ameaçado pela ira caótica de
Tiamat, é um passo decisivo para a afirmação de Marduk. É, porém,
apenas o primeiro passo, necessariamente destrutivo. À guerra,
segue-se a construção de uma nova ordem. É o próprio cadáver
trucidado de Tiamat que lhe servirá de fundamento. Marduk fende o
corpo em dois “como um peixe que se quer secar” (IV:137): de uma
metade, é criada a abóbada celeste, na qual Marduk semeia guardiões
e templos sagrados, astros, estrelas, o sol e a lua; de outra metade, é
feita a terra. Dos olhos de Tiamat, jorrarão os rios Eufrates e Tigre
(em acadiano, aliás, înu significa ‘olhos’ e ‘fonte’); sobre seus seios,
erguer-se-ão as montanhas longínquas. A este primeiro ímpeto
criador, segue-se uma primeira investidura real de Marduk pelas
demais divindades que, agradecidas, lhe recebem com deferência
entusiasta, honrarias e presentes, banhos e ungüentos. As
prosternações e o beija-pés não deixam dúvidas acerca da nova
hierarquia, a que se submete todo o panteão. Como sugeriu Th.
Jacobsen (1976: 183 ss.), a estrutura narrativa do poema parte de
uma situação anárquica, em que os princípios de autoridade são
aniquilados, passa por uma ‘democracia primitiva’, que se mostra
incapaz de assegurar a ordem pelas decisões coletivas dos deuses,
para, finalmente, desembocar em uma solução definitiva, única
vislumbrada como eficaz, de natureza decididamente monárquica.

114
Marduk torna-se, agora, o ‘Rei dos deuses de todo universo’ (lugal-
dimmer-an-ki-a).
Dois outros elementos completarão a obra criadora de
Marduk. Em primeiro lugar, o projeto e a construção de Babilônia.
Mais do que uma cidade terrena (pois nem mesmo homens há), a
‘Porta dos Deuses’ é concebida como a morada do deus maior, sede
de seu templo principal e centro de seu reino. É aí que as divindades
deverão reunir-se doravante. Significativamente, mesmo que, entre o
projeto e sua execução, a humanidade tenha sido criada, a ereção de
Babilônia não lhe será imposta: será tarefa dos próprios deuses,
como uma corvéia honorífica dedicada a seu salvador. Por dois anos,
mãos divinas moldarão os tijolos e erguerão o templo e a ziggurat. O
segundo elemento é, justamente, a humanidade. Sinal dos novos
tempos, a idéia original da criação do homem não é, aqui, creditada a
Éa/Enki – como ocorria tradicionalmente nas antropogonias
anteriores, no relato sumério Enki e Ninmah (5) e, particularmente,
no também babilônico Atra-hasis (6) -, mas ao próprio Marduk. Ao
engenhoso Éa, restará a função de planejar a execução da idéia de
seu filho. No mais, a fabricação da humanidade a partir do sangue de
Kingu, sumariamente julgado e imolado, reforça o vínculo da
iniciativa antropogônica com a figura de seu vencedor, Marduk.
Uma nova investidura, ainda mais solene e definitiva, tem
como quadro o Esagila, o templo de Marduk na Babilônia. Mais do
que a outorga de honrarias, desta feita, trata-se fundamentalmente de
legitimar a nova hierarquia política do panteão. Não é um mero
detalhe o fato de Marduk depositar diante dos deuses reunidos suas
poderosas armas de combate, o arco e a rede que lhe conferiram a
vitória sobre Tiamat. O próprio Anum fará as honras da louvação e
beijará o arco. Marduk é, então, instalado no centro da assembléia
divina, em “um trono régio que supera aqueles dos outros deuses”
(VI:93). Nada parece, entretanto, mais significativo da atribuição de
poderes a Marduk do que a sua nomeação por cinqüenta nomes
divinos. O texto é surpreendentemente claro sobre a intenção ritual
do procedimento: “Por estas cinqüenta designações, os Grandes
Deuses, conferindo cinqüenta nomes (a Marduk), conferiram-lhe
uma personalidade excepcional” (VII,143). E não deixa de lembrar
que cada um deles deve ser apreendido, meditado e repetido
incessantemente para que a glória de Marduk jamais tenha fim. Se a

115
enunciação pela palavra tem potencial criador, como é certamente o
caso na concepção mesopotâmica, a transferência dos nomes divinos
a Marduk garante uma inapelável concentração dos atributos divinos
em sua personalidade. Não é preciso insistir, na seqüência do
excelente trabalho de J. Bottéro (1996: 142 ss.), sobre a importância
desta longa passagem na economia geral do texto e sobre sua
contribuição na construção da nova ordem divina liderada por
Marduk.

Marduk e Babilônia: mito e poder


A mitologia da ascensão de Marduk não é desencarnada das
condições que marcaram a trajetória política da própria Babilônia. A
tentativa de estabelecer vínculos mais diretos esbarra, no entanto, em
alguns problemas. O primeiro deles é a própria datação da narrativa
(que, no mais, pode não coincidir com datação do texto escrito na
forma como o conhecemos hoje, seja porque uma tradição oral pode
tê-lo precedido, seja porque ele pode ser resultado de um arranjo de
escritos anteriores).
Seria tentador atribuir o Enûma elish à época do grande
Hammu-rabi, na primeira metade do século XVIII: a obra política
que confere à Babilônia um lugar de destaque sem precedentes e a
promulgação do célebre Código seriam coroados, assim, por uma
peça literária inovadora, que impulsiona mitologicamente a trajetória
e o prestígio do deus local até horizontes jamais alcançados.
Stephanie Dalley (1997), embora não descartando uma redação final
mais tardia, arrola, justamente, várias evidências que permitiriam
pensar em uma evolução da narrativa já a partir dos finais do reinado
de Hammu-rabi: uma das evidências é o paralelismo oferecido pelas
várias mitologias opondo um deus das tempestades e uma divindade
do mar, cujos exemplos remontam facilmente ao período babilônico
antigo, ou mesmo antes. O paralelismo já havia sido evocado por
Thorkild Jacobsen (1968; 1976: 190), que sugere uma redação do
Enûma elish em meados do IIº milênio, associando-o ao contexto da
reunificação do país sob Ulamburiash (c. 1470), da dinastia cassita,
momento em que o principal alvo dos babilônios é, et pour cause, o
‘país do mar’ (mât tâmtim), o antigo território sumério da Baixa
Mesopotâmia. Como mencionado acima, em seu estudo clássico e
muito influente, W. G. Lambert (1964) preferiu, por sua vez,

116
estabelecer um contexto de composição ainda mais tardio, o reinado
de Nabucodonosor I (1124-1103), quando a Babilônia, sob a
chamada segunda dinastia de Isin, liberta-se do jugo elamita e
restabelece seu domínio no centro-sul mesopotâmico. Do mesmo
modo, Jean Bottéro (1996: 115) acredita que um certo tempo deve
ter decorrido entre uma ascensão mais política de Marduk, no
período babilônico antigo, e o triunfo teológico expresso no Enûma
elish, e que o texto ganha maior sentido no quadro dos feitos contra o
Elam. Para Benjamin Foster (2005: 436), que, grosso modo, segue a
datação de Lambert, esta época viu fermentar uma profícua atividade
literária de inspiração patriótica babilônica, que procurou,
igualmente, legitimar a soberania de Nabucodonosor I remetendo as
origens de sua filiação dinástica aos tempos imemoriais anteriores ao
próprio dilúvio (7) ou glorificando seu feito como restaurador do
deus Marduk em seu templo, após este ter vagado cativo em terras
hititas, assírias e elamitas (8).
Em comum, estas visões, todavia discrepantes, inserem a
narrativa em um quadro de reforço do poder babilônico e mesmo de
expansão. Tzvi Abusch (1999: 547) lembra, no entanto, que uma
outra perspectiva é possível: o esforço mitográfico poderia estar
associado, pelo contrário, à necessidade de fazer face a um
enfraquecimento político. O apelo da narrativa à memória de uma
Babilônia situada na origem e no centro do universo, a importância
de primeiro plano conferida à cidade e ao seu deus seriam menos um
resultado da potência ascendente do que da vontade de superar as
debilidades presentes. Por decorrência, Abusch propõe uma datação
ainda mais tardia para o Enûma elish, o momento, nos primeiros
séculos do Iº milênio, em que Babilônia se vê enfraquecida e
ameaçada pelos arameus que se expandem pelo vale e,
especialmente, pelos assírios.
Embora em sentidos opostos, as duas tendências apontam
para uma articulação entre a ênfase mitológica em Marduk e a
trajetória política do reino babilônico. É difícil saber se o texto do
Enûma elish foi um ingrediente das representações mentais que
lastrearam o processo de reforço político ou, ao contrário, um
elemento de resposta à debilidade, visando estabelecer as bases
religiosas para uma reversão do quadro de decadência. No entanto,
qualquer que seja a alternativa correta, ela representa, em certo

117
sentido, uma alteração substancial na perspectiva mitológica
tradicional, uma vez que humaniza decididamente uma ação divina
que, antes (inclusive nas primeiras linhas do Enûma elish), era
marcada pela movimentação de forças cosmogônicas primordiais:
como notou D. Launderville (2003: 159), “with Marduk’s heroics,
human speech and political and social action rise to the level of
fundamental shaping forces of the world and so contribute to the
humaninzing of the cosmos”. A escalada de Marduk no panteão dos
imortais, tendo sido orientada pela lógica da conquista de poder,
representou uma politização das relações de força e, paradoxalmente,
o reforço de sua personalidade divina só pôde produzir-se por um
acréscimo de seus atributos guerreiros, em moldes muito humanos. A
ênfase mitológica é, portanto, praticamente desprovida de
implicações teológicas: suas engrenagens são movidas pelas forças
conflitantes que buscam alçar um ou outro deus para o topo do
panteão e, particularmente, para o exercício o mais exclusivo
possível da soberania.
O próprio Enlil, deus soberano por excelência, não parece ter
sempre ocupado esta posição desde sempre, mas, também ele recém-
chegado, tratou de usurpá-la de Enki. Se esta interpretação, sugerida
por Michalowsky (1998: 241 s.), for correta, estamos diante de um
primeiro deslocamento da soberania no interior do panteão divino,
ainda no período formativo, no IVº milênio a.C., ao menos, do
primeiro registrado pelas fontes escritas (nas quais, inclusive, o nome
originalmente semítico do deus assume uma forma artificialmente
suméria). Mais tarde, quando se acirra a dicotomia entre Babilônia e
Assíria, é natural que a disputa pela primazia no panteão oponha
Marduk e Assur: uma versão assíria do Enûma elish é redigida a fim
de substituir a divindade babilônica pela assíria no papel de herói dos
deuses e instaurador da nova ordem. O mais provável é que este
texto tenha sido composto no bojo das reformas levadas a cabo por
Senaqueribe (704-681), justamente o destruidor de Babilônia e
seqüestrador da estátua de Marduk, em 689, e visasse oferecer o
subsídio mitológico para a ritual do Ano Novo, o akîtu: festa
mesopotâmica, mas que, no primeiro milênio, ganhara um esplendor
particular na Babilônia e que, com a derrota desta, é, agora,
restaurada na capital Assur e presidida pelo deus Assur (LAMBERT,
1997: 78 s. e GLASSNER, 1993: 43).

118
O modelo narrativo da ascensão mitológica do deus não é,
portanto, uma exclusividade de Marduk. Do ponto de vista literário,
aliás, há uma visível dependência do Enûma elish em relação ao
texto do Mito de Anzu (LAMBERT, 1986: 56 s.): neste mito (9), é
Ninurta que, como herói dos deuses, enfrenta o monstro Anzu,
gigantesca águia com cabeça de leão que, valendo-se da confiança de
que gozava como guardião de Enlil, rouba-lhe traiçoeiramente o
Tablete dos Destinos e impõe ao universo uma imobilidade
silenciosa. A vitória de Ninurta assegura a preponderância da ordem
divina sobre o caos, do mesmo modo que o faz Marduk, como um
Ninurta redivivus (a expressão é de Lambert), no Enûma elish. Filho
do próprio Enlil, Ninurta é um deus de natureza guerreira e, como
seu pai, intimamente associado à noção de poder e à função real (10).
É interessante, com efeito, que a afirmação mitológica de Ninurta se
faça, por conseqüência, em detrimento da posição de Enlil: Stefano
Seminara (2000) pôde demonstrar que as diferenças entre as versões
de um outro mito, o Lugal-E, não se devem a erros de copistas, mas a
uma cuidadosa intenção de alterar a balança de poder entre pai e
filho, em favor deste. No Lugal-E (11), Ninurta enfrenta
vitoriosamente o monstro demoníaco Asakku (Asag, em sumério) e
seu exército de Pedras: Asakku representa, justamente, as forças
inóspitas da montanha (elemento que, na mentalidade mesopotâmica,
compõe com o mar o rol de potências hostis). No entanto, na versão
suméria mais antiga, que pode remontar ao fim do terceiro milênio,
Ninurta aparece como um instrumento de Enlil, mas já
experimentando uma ascensão para junto do pai, ao passo que, nas
versões bilíngües posteriores, põe-se em marcha uma promoção de
Ninurta. Segundo Seminara, a elevação mitológica de Ninurta faz
parte da ideologia política dos soberanos médio-assírios, cujo poder
se consolida na região centro-norte do vale em fins do segundo
milênio, particularmente entre os reinados de Tukulti-Ninurta I
(1244-1208) e Tiglat-Pileser I (1115-1077). Não é, certamente, uma
mera coincidência que este último soberano seja contemporâneo de
Nabucodonosor I: no plano mitológico (mas que, como vemos, se
mantém em estreita sintonia com a ideologia do poder imperial), a
flagrante retração de Enlil foi acompanhada de uma consolidação de
Marduk no panteão babilônico (como se vê no Enûma elish) e, por
outro lado, de um reforço na posição de Ninurta entre os assírios

119
(como mostram as versões mais tardias do Lugal-E). Entretanto, a
fortuna de Ninurta não será comparável à do senhor da Babilônia: no
primeiro milênio, Ninurta volta a ser um deus de segundo plano, seja
porque uma corrente mais ‘nacionalista’ assíria (de Senaqueribe, por
exemplo) considera-o, assim como a Enlil, muito comprometido
teologicamente com o panteão tradicional, agora capitaneado pelo
grande rival Marduk, preferindo enfatizar o culto bastante
exclusivista a Assur, seja porque, ao contrário, uma corrente
filobabilônica instalada no seio da própria Assíria tem reservas em
relação a uma afirmação anti-mardukiana de Ninurta, preferindo
favorecer a importação do culto de Marduk e, sobretudo, de seu filho
Nabu (SEMINARA, 2002: 467).
Um outro exemplo da dança de lugares no panteão: é
provável que o próprio Marduk também tenha experimentado –
tardiamente, é verdade – uma superação filial semelhante à que Enlil
sofrera por parte de Ninurta: no século I d.C., o relevo do peristilo do
templo atribuído a Bêl (Marduk), em Palmira, no qual figura a
batalha contra Tiamat pode ter como personagem central, na
verdade, o filho de Marduk, Nabû (segundo interpretação de
DIRVEN,1997). Mesmo antes, já no período neobabilônico, há
fortes indícios da ascensão de Nabû, em um processo que parece ser
inicialmente mais intenso na Assíria para, depois, ser reconhecido e
apropriado pela Babilônia (para a trajetória de Nabû, ver
POMPONIO, 1978). As preces e hinos da época, assim como a
adoção do nome do deus por vários soberanos da dinastia caldéia
(Nabopolassar, Nabucodonosor II, Nabonido), parecem confirmar a
tendência de fortalecimento (SEUX, 1976: 124 ss.).
Finalmente, para além da provável linha genética entre as
epopéias de Ninurta e a de Marduk, é preciso lembrar que o motivo
mitológico do confronto entre um deus da tempestade e uma
divindade marítima teve larga difusão no âmbito noroeste-semítico e
que, portanto, a tradição babilônica deve, muito certamente, remeter
a um estrato mitológico mais amplo e profundo, freqüentemente
associado a fortes implicações de legitimação política das dinastias
reinantes. Em Mari, na Síria, Adad (uma das variantes do nome do
deus da tempestade, como Hadad, Addu etc.) personifica o herói no
combate à divindade marítima e oferece seu suporte ao rei Zimri-
Lîm, oferecendo-lhe as próprias armas com que derrotara Tiamat

120
(DURAND, 1998). Na fachada ocidental do Oriente-Próximo, o
embate entre Baal e Yamm, tal como aparece nos textos de Ugarit,
na segunda metade do IIº milênio, é um dos exemplos mais
conhecidos e bem documentados da oposição entre tempestade e
mar, mas está longe de ser o único. Embora, no ciclo de Baal, o deus
vitorioso apareça sensivelmente menos poderoso do que Marduk e
sua vitória sobre Yamm, o mar, seja menos fragorosa e dependa de
uma ajuda decisiva das divindades aliadas (PARKER, 1997: 84 s.),
também aqui, reencontramos o tema de fundo da oposição entre a
ordem e o caos, que marcará, igualmente, as mitologias canaanita e
bíblica (PAGE, 1998; SMITH, 2002: 65 ss.) (12).

Conclusão: narrativa mítica e monoteísmo


A ênfase da narrativa mitológica na ascensão de um deus
implicaria, necessariamente, uma tendência religiosa monoteísta?
Uma resposta mais completa e definitiva só poderia decorrer do
confronto entre as tramas míticas e os demais elementos que
constituem o fenômeno religioso, no nível do ritual e do sentimento
face à(s) divindade(s). No entanto, por si só, a análise dos mitos
aponta no sentido de uma resposta negativa. O reforço da posição do
deus, por mais profundo que tenha sido, sempre se deu em um
quadro relacional, jamais exclusivo. Em outros termos, a intenção
das composições mitológicas foi promover um reposicionamento da
divindade privilegiada no interior do panteão, mas sempre
pressupondo a continuidade da existência dos demais deuses. Esta
continuidade – em posição diminuída, inferior – é, aliás, um requisito
lógico e formal das várias narrativas, pois é o contraponto necessário
que realça o lugar agora ocupado por um recém-chegado. O fato de a
situação ser nova apenas reforça a necessidade do contraponto, e o
faz duplamente: seja para qualificar de modo mais eficaz o novo
líder do panteão, seja para ancorar o remanejamento de modo menos
traumático, atenuando o sentimento, sempre perigoso, de ruptura e
aproveitando todo o quadro tradicional de referências legitimadoras
em benefício do novo senhor dos deuses. É no panteão, e não fora
dele, que a promoção ocorre.
Nenhum dos exemplos aqui analisados parece vincular-se a
uma proposta de nova religião e nem mesmo a uma tentativa de
reforma religiosa. O ímpeto de fundação religiosa parece, pelo

121
contrário, estar ausente da história mesopotâmica. Eis um exemplo
significativo (13): nos anos derradeiros da independência babilônica,
a ênfase cultual (mas, em larga escala, desprovida de fundamentos
mitológicos) com que Nabonido privilegia o deus da lua Sîn, em
detrimento de Marduk, não é, no essencial, uma exceção à regra.
Também aqui, a elevação de Sîn é relacional, interna ao panteão, e as
tensões que parecem ter surgido traduzem, antes de mais nada, uma
disputa de poder entre um rei longamente ausente da capital do
império e o tradicional e poderoso clero de Marduk, que se vê
ameaçado pela nova hierarquia divina proposta. Se estes sacerdotes
acolheram favoravelmente o rei persa, Ciro, em 539, como sugerem
algumas tradições posteriores à conquista (mas que parecem ter sido
escritas como uma legitimação retrospectiva), isto decorreu mais de
um cálculo político do que de razões teológicas. Portanto, considerar
Nabonido como o fundador de uma nova religião ou um soberano
herético é um abuso de termos e de conceitos (14).
Os impulsos mais profundos da ênfase mitológica – de
Marduk ou de um outro deus – devem, portanto ser buscados alhures,
no próprio enraizamento social e, particularmente, político da
produção literária que a traduz e lhe dá forma. Não é demais lembrar
este fato já bem notado por outros autores, como Jacobsen e
Lambert: a estrutura religiosa mesopotâmica estava profundamente
articulada com o quadro de convivência entre unidade cultural e
fragmentação política. Se, de um lado, o compartilhamento de um
mesmo conjunto de referências culturais (de base sumero-acadiana,
eventualmente enriquecida por aportes secundários) induziu à
manutenção de um panteão único, por outro lado, a acentuada
divisão política e a concorrência entre as cidades-reinos estimularam
uma leitura local da composição do mundo divino e, no limite, as
tentativas de conferir ao deus políade um lugar de destaque,
sobretudo no que se refere ao exercício da soberania. Em um
contexto no qual a legitimação religiosa era uma parte integrante do
discurso e da prática de poder, as evoluções políticas não são sequer
imaginadas à margem de um equacionamento adequado das
potências divinas. Não há nenhuma necessidade de estabelecer uma
relação de causa e efeito: o fenômeno religioso não gera e não resulta
do fenômeno político; ambos fazem, simplesmente, parte de uma
inextrincável realidade histórica.

122
Ao longo de mais de três milênios, o panteão mesopotâmico
foi marcado por uma evolução consideravelmente estável, mas que
admitiu várias mutações. As biografias dos deuses, suas ascensões e
suas decadências conferiram ao mundo das divindades uma dinâmica
moderada, sem lhe solapar a unidade essencialmente pluralista. Do
ponto de vista das narrativas mitológicas, nada parece sugerir uma
evolução natural em direção ao monoteísmo.

NOTAS
(1) Malgrado as incertezas que permeiam a datação da correspondência real
de Ur (MICHALOWSKY, 1991 e 1999: 262 ss.), algumas cartas são
marcadas por uma angústia reveladora dos momentos finais da dinastia. Cf.
Michalowski (1976: 87 ss. e 243 ss. edição de CRU 19, carta de Ishbi-Erra a
Ibbi-Sîn). Para uma visão de conjunto, ver W. Sallaberger (1999: 158 ss.),
para os sumperios, e R. M. Whiting (1995), para os amorritas.
(2) Para o texto, cf. Bottéro & Kramer (1989: 430 ss.) e Klein (1997: 110
ss.).
(3) Nada prova, pelo contrário, que fosse a mesma estátua em cada uma das
ocasiões; de fato, um texto do Museu Britânico, BM 119282, confirma que
existiam, pelo menos, sete estátuas de Marduk na Babilônia. Para as
peripécias guerreiras envolvendo as estátuas divinas, ver, dentre um vasta
bibliografia: S. Dalley (1997) e M. A. Brandes (1980).
(4) Texto em: J. Bottéro e S. Kramer (1989: 602 ss.); F. Lara Peinado
(1994); B. R.Foster (2005: 436 ss.).
(5) Para o texto, ver J. Bottéro e S. Kramer (1989: 188 ss.), comentários em
S. Kramer (1972: 68 ss.).
(6) Algumas edições: W. G. Lambert e A. R. Millard (1969); J. Bottéro e S.
Kramer (1989: 526 ss.); B. R.Foster (2005: 227 ss.).
(7) É o caso do texto A semente da realeza, (FOSTER, 2005: 376).
(8) Trata-se do texto conhecido como A profecia de Marduk. Nele, o nome
de Nabucodonosor não é explicitamente citado, mas a atribuição parece ser
garantida pelo próprio conteúdo da profecia (LONGMAN III, 1991: 138;
edição do texto: p. 233 ss. e também FOSTER, 2005: 388).
(9) Textos em J. Bottéro e S. Kramer (1989: 389 ss.) e Foster (2005: 555
ss.).
(10) A este propósito, ver o estudo muito completo de A. Annus (2002).
(11) Texto em J. Bottéro e S. Kramer (1989: 339 ss.).
(12) Evidentemente, o tema é objeto de vasta literatura, que também
abrange períodos mais tardios, com exemplos provenientes da antigüidade
clássica; ver, em geral, Mills (2003) e a coletânea de artigos de Duchemin
(1995); mais consistentes, são os trabalhos de Penglase (1997), que dedica

123
todo um capítulo a Ninurta; West (1999), particularmente as comparações
entre o Enûma elish e a Teogonia de Hesíodo (p. 282 s.) e, por fim, os
estudos de Burkert (2001: 43 ss.).
(13) Limito-me, aqui, ao caso babilônico, mas é preciso mencionar que a
defesa mais radical de um movimento monoteísta na antiga Mesopotâmia
foi feita por Simo Parpola (2000) e diz respeito ao deus Assur. Parpola não
apenas arrolou uma massa considerável de evidências que considera
apoiarem a hipótese de um monoteísmo assírio como também procurou
estabelecer uma linha evolutiva direta deste com o monoteísmo hebraico.
Sua teoria foi severamente criticada, no mesmo volume, por Barbara Porter
(2000).
(14) Alguns autores, porém, conferem maior escopo às reformas de
Nabonido: ver Beaulieu (1989: 43 ss.) e os dois capítulos dedicados a
Nabonido e a Sîn na biografia de Nabucodonosor II, recentemente
publicada por Arnaud (2004).

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127
RELIGIÃO E O POLITEÍSMO ENTRE OS GREGOS

Maria Regina Candido


(NEA/UERJ)

Resumo: Nossa palavra para religião não tem equivalente no grego. No


entanto, a palavra religião foi historicamente operatória na organização do
mundo social grego, a ordem da cidade faz parte da ordem sagrada do
mundo. Os textos clássicos apresentam um conjunto de locuções sobre a
palavra religião cujo sentido permanece impreciso. Ela define coisas ou
ações concretas como o culto aos ancestrais, o respeito aos mortos, os
rituais fúnebres, a proteção aos suplicantes – tudo se relaciona a
pietade/eusebeia, o respeito aos deuses gregos.
Palavras chaves:- religião grega - ordem sagrada - deuses gregos

Resume : Notre mot religion n` a pas d`equivalente grec. En revanche, le


mot religion fut historiquement operatoire dans l`organization do monde
social grec, l`ordre de la cité fait ´partie de l`ordre sacre du munde. Les
textes classiques presentent un ensemble de locutions sur le mot religion
dont les sens reste imprecise. Elle concern des choses ou actions concretés :
le culte des ancêstres, le respect des morts, des rites funebres, la protection
accordée aux suppliants – toute se rapportent à pieté/eusebeia, le respect aux
dieux grecs.
Mot-cles : religion grec - ordre sacre - dieux grecs

Julgou-se, de forma inequívoca, que a modernidade fosse


capaz de construir sociedades cuja ordem e coesão dispensava o
debate político, a presença do sagrado e da religião; destruíram-se os
paradigmas políticos que definiam o sentido da vida e as crenças
religiosas de diferente natureza, fato que resultou na promoção do
vazio existencial.
Na atualidade, presenciamos a busca de contato com o
divino, o retorno de rituais considerados extintos, cuja violência
sagrada fragmenta o coletivo ao designar o outro como culpado a
ponto de decretar a sua extinção ao expor a morte como espetáculo
(M.R.Candido, 2005:131). O tempo presente nos permite afirmar que
a reorganização do religio, da ligação entre os deuses e os homens
deixa transparecer a maneira grega de religiosidade, na qual

128
prevalece à relação direta e intensa com os deuses, o êxtase do
contato muito próximo com as divindades.
O professor José J.Queiroz nos traz a memória o encontro de
filósofos pós-modernos ocorrido na ilha de Capri em 1994, na qual
buscavam explicações para esse novo encantamento advindo da
expansão das religiões e das crenças em nível mundial. O resultado
do encontro produziu a publicação, já traduzida para o português,
intitulada A Religião (Editora Estação Liberdade, 2000).
Gianni Vattimo, professor da Universidade de Turim/Itália,
coordenou o encontro junto com Jacques Derrida, e, trabalha com a
hipótese de que o retorno do interesse do sagrado na atualidade se
deve a busca pessoal de uma experiência religiosa. Acrescenta,
ainda, o medo apocalíptico que se instalou diante do perigo nuclear,
das ameaças ecológicas e da manipulação genética assim como o
medo da perda do sentido da existência humana. A filosofia e a
ciência já não definem e nem oferecem um sentido para a trajetória
do homem na terra. O novo apego a religião seria uma aliada na luta
das culturas ancestrais contra ameaças de aniquilação proveniente da
cultura tecnológica da pós-modernidade (J.J.Queiroz, 2006: passim)
que na busca da homogeneidade e da mundialização decreta a morte,
a extinção aos grupos étnicos e culturais definidos como os outros,
os diferentes e das práticas religiosas que se desviam das convenções
há muito tempo institucionalizadas.
Como podemos observar, diante de tais questões na
atualidade, o tema religião e politeísmo têm despertado os interesses
de pesquisadores, filósofos, antropólogos, sociólogos e historiadores
tanto de sociedades antigas quanto da pós-modernidade como forma
de repensar as dificuldades que as religiões monoteístas têm em
compreender as religiosidades politeístas. As críticas as práticas
religiosas apontam para os cultos não convencionais que interagem
com rituais de sacrifícios de sangue, contato com a magia, ritual de
êxtase - ações consideradas primitivas e bárbaras. Ao mesmo tempo,
parece fazer emergir o debate em torno do tema da secularização
preconizado para a atualidade desde o século XVIII por Max Weber,
Augusto Comte e Karl Marx, entre outros, ao ratificarem o
estabelecimento do processo da trilogia magia, religião e o império
da razão cientifica para a modernidade (M.R.Candido, 2007:passim).

129
Por outro lado, o tema sobre politeísmo, nos remete a luta
que o cristianismo empreendeu contra o universo dos deuses pagãos
junto à religião grega. Considero que um dos argumentos mais bem
sucedidos foi à acusação de imoralidade das divindades gregas. A
matriz de acusação remonta a própria documentação produzida pelos
helenos ao formular críticas dirigidas aos deuses homéricos no
período arcaico e clássico, a saber:
1. Sólon, séc VI, frag 29 cita que “ muito mentem os poetas”
2. Hesíodo na Teogonia 27 dizia que “ as Musas sabiam contar
muitas mentiras”
3. Xenofanes, sec. VI no frag. 21B11 afirmava que “ Homero e
Hesíodo atribuíram aos deuses todo o que entre os homens é
considerado vergonhoso e censurável: roubo, adultério, logro,
sabotagem, mentiras.”
4. Pindaro em Olímpicas 1,52 cita que os deuses transformam-
se em canibais
5. Eurípides no frag. 292:7 e em Íon v. 436-51 afirma que “ se
os deuses fazem coisas ofensivas não são deuses .. e, quem desejaria
dirigir as suas preces a tais divindades ?”
Mesmo diante dessas críticas aos deuses, os templos, as
estátuas continuaram a serem construídas e os cultos e rituais foram
realizados e os helenos permaneceram na veneração de seus deuses.
Afinal, estamos nos referindo às sociedades gregas, cujo caráter
politeísta, o contato próximo com as divindades e os rituais de
sacrifícios configuram-se como fatores marcantes de sua cultura
marcadamente helênica.
Para Walter Burkert – a religião grega sempre nos foi
familiar, porém, é menos conhecida e compreensível diante de sua
complexidade de seus rituais de sangue, considerados bárbaros
(W.Burkert,1977:05). A multiplicidade de deuses resultou na
dificuldade de definição da palavra religio cujo termo comporta
vários desafios, pois não há na língua grega uma palavra que designe
o que entendemos por religião. Os dicionários oferecem traduções
imprecisas ao serem aplicados aos textos clássicos, a saber: ta hiera
– designa monumentos e objetos sagrados, mas, se estende a
instituição to hieron; a palavra ta theia – aponta para as ações
divinas e seus resultados designam as observações dos oráculos ou
juramentos; o termo sebein cujo radical resulta a palavra eusebeia –

130
se refere ao bom e fiel seguidor de ritos, o temente aos deuses – o ser
piedoso.
O termo mais comum na documentação refere-se ao
condutor de rituais - o hierofantes – sacerdote, cujo dever estava na
observância das regras do culto, no uso dos objetos sagrados
denominado de ta hiera. Em relação aos deuses, os termos prós
tous theous ou peri theous deixam transparecer uma forma
particular de respeito as divindades, o que qualifica a ação de
eusebeia. O fato resultou no uso do termo theosebéia , que designa
um particular comportamento individual em relação aos deuses tais
como os cultos aos ancestrais, o respeito aos mortos, aos rituais
fúnebres e a proteção acordado aqueles em situação de estrangeiro e
suplicante.
O adjetivo hosios qualifica uma ação e/ou palavra sagrada
emitida pelo homem. A locução hosion esti refere-se notadamente a
sacralidade do respeito pelo outro. O interessante é que o termo
hosios passa a substituir o termo hieras e torna-se de uso mais
freqüente no período clássico levando a se constituir a expressão ta
hosia kai ta hiera com o sentido de profano e sagrado.
O termo grego hágios será usadas pela comunidade cristã no
sentido de sanctus, porém no período clássico constrói-se a
expressão semna kai hágios para designar o acentuado respeito a
materialidade dos templos e santuários e, por vezes, se estende a
sacralidade dos rituais nos tribunais de sangue, a ação de
hospitalidade e ao ato de reverência a terra dos ancestrais.
A diversidade de termos dificulta a tradução precisa do
relacionamento dos gregos com as divindades e, nos leva a reafirmar
a necessidade de reconhecer e analisar as manifestações de contato
com o sobrenatural a partir dos indícios presentes na documentação.
A religião grega integra o que se convencionou chamar de politeísmo
diante do seu sistema plural de divindades, crenças e rituais. A
crença em diferentes deuses vai de encontro à verdade absoluta em
torno de um deus único e transcendente, e, nesse contexto, algumas
práticas ritualísticas politeístas passam a ser consideradas
degenerativas. Para Marc Auge, o pantheon grego, demarcadamente
politeísta, apresenta as suas formas religiosas um tanto confusas.
Entretanto, o pantheon grego deve ser considerado como um modelo
de organização das divindades, representadas, ordenadas e

131
hierarquisadas, cujas imagens estão presentes nas construções
iconográficas e na literatura de gênero diversos nas quais expressam
a relação entre os deuses e aos elementos da natureza (M. Augé,
2000: passim).
Os pesquisadores R. Martín e H. Metzger na obra La
Religion Grecque afirmam que a religião grega não é algo revelado
por grupos de profetas e magos. Ela não foi codificada em livro, ela
não pertence a uma casta fechada ou uma igreja e não conhece
dogmas. A religião grega emergiu seguindo o ritmo da sua própria
comunidade - sua história dependente da organização da sociedade
poliade grega (R.Martin,1976:5). Robert Garland, parece dar
continuidade à afirmação na obra Religion and the Greeks, (R.
Garland: 1994:ix) ao destacar ser mais fácil definir a religiosidade
dos gregos a partir do que ela não é, quando comparada ao sistema
de crenças aos quais estamos mais familiarizados, a saber:não tem
dogma, não apresenta centralização e hierarquia, não existe a idéia
de conversão, não apresenta uma interpretação oficial, não há a
noção de pecado ou redenção, não existe a idéia de inferno.
Yves Lehmann nos chama a atenção na introdução do livro
Religions de L` Antiguité. (Y.Lehmann,1999:3) sobre o fato da
religião da Grécia antiga cobrir um período de mais de dois mil anos
desde a sua formação monóica e micênica até a época helenística,
marcada pela divinização de soberanos. Para o autor, entre esses dois
limites extremos nasceu e desenvolveu o que se convencionou
chamar de religião grega, definido por um sistema de ritos e cultos
estreitamente ligado a uma forma de organização social a mais típica
do mundo grego, a saber: a vida em comunidade identificada como
polis.
O mais recente livro sobre religião grega intitulado
Polytheism and Society at Athens de Robert Parker, inicia a
publicação da seguinte forma “ Starting from Hestia” ou seja,
iniciando a partir de Hestia na qual o pesquisador delineia a
trajetória da religiosidade dos helenos. O autor ratifica o valor da
comunidade poliade ao descrever o universo da religião dos gregos e
que para compreendê-la devemos começar a partir da unidade da
qual Hestia tornara-se o símbolo, ou seja, iniciar a pesquisa
analisando os cultos e ritos familiares (R.Parker:2007:9).

132
Tal fato nos permite afirmar uma tendência atual da
historiografia ao repensar os princípios religiosos preconizados no
passado, o que nos remete a Fustel de Coulanges no livro La Cite
Antique.. Nessa obra o autor enfatiza que em toda residência
helênica – oikos - havia sempre um altar doméstico e que esse tinha
vários nomes para designa-lo tais como bhômos, eschára e hestia
cujo objetivo era manter acesso o fogo sagrado símbolo da coesão
familiar. O fogo sagrado do oikos e da polis nos aponta que não
existe um lugar religioso singular no qual o indivíduo estabeleça
relação com a divindade, o contato só ocorre através da mediação
social, a saber: a família, a comunidade poliade, a Helade.
Para os gregos, os deuses eram seres sobrenaturais, cuja
força e poder estavam acima dos homens mortais, mas eles
pertenciam ao mesmo universo social, pois as divindades eram
consideradas seus ancestrais cujo contato ocorre pelo via homens,
vida, ritual, morte, deuses e o ciclo se fechava e se repetia.
Por outro lado, não devemos esquecer que a religião
politeísta dos gregos foi preservada como cultura e chegou até nós
em virtude de uma tripla tradição,a saber: primeiro, devido a sua
presença marcante nos textos literários antigos; segundo, devido à
polêmica com o monoteísmo hebraico-cristão e, por último, diante
do parentesco simbólico com a filosofia neoplatônica que alguns
apontam como precursora da filosofia cristã.
Em relação as vertentes historiográficas, a Escola de
Cambridge tem como ponto em comum estabelecer pesquisas sobre
religião relacionando mitos e rituais como tema central, aplicando-
os também na abordagem das tragédias gregas. Na virada do séc.
XIX, na França, surgem duas novas escolas de pensamento
identificado como ciência da religião com Emile Durkheim que
desenvolveu um ponto de vista sociológico com Les formes
elementaires de la vie religieuse, 1912 e Sigmund Freud que
relaciona a religiosidade a vertente da pesquisa em psicanálise com
Totem und Tabu, 1913. Os pesquisadores da ciência da religião
incorporam o estudo das representações, de idéias, de crenças, poder
e práticas sociais, conceitos que só podem ser entendidos ao serem
relacionados ao conceito social, ou seja, a interação com a sociedade
ao qual foi produzido e observado a manifestação do fenômeno.

133
A pesquisa sobre religião grega recupera a abordagem
sociológica nos trabalhos de Louis Gernet (1822-1962) com
Anthropologie de la Grece Antigue e Marcel Mauss (1872-1950)
Les fonctions sociales du sacré. Formou-se também a Escola de
Paris sob a liderança de Jean-Pierre Vernant com Frontise-Ducroux,
Laurence Piel-Grimal, François Lissarrague, entre outros com temas
sobre culto aos mortos, ritual de sacrifício e a abordagem da
psicanálise com E.R. Dodds com Os Gregos e o Irracional, 1951.
A mediação da religião e a transmissão de informações sobre
a religião grega efetuam-se sempre por intermédio da língua usada
no meio social que se estende a formação dos documentos textual,
testimonia familiar ao pesquisador. Os testemunhos para a
religiosidade provem do gênero literário, embora não tenha escrituras
sagradas, não há formulas fixas para as preces ou liturgias, o contato
ocorre através de diversidade ritos e de maneira plural. Podemos
dizer que os poetas criam novas canções e preces para cada ocasião
de contato com as divindades do pantheon grego. A lírica coral
arcaica cantada pelos rapsodos com os hinos homérico poesia épica
da Ilíada e Odisséia com as aventuras heróicas dos deuses. Hesíodo
no VII aC, reuniu os mitos e definiu as características dos deuses na
Teogonia. Podemos afirmar que o modelo de Homero e de Hesíodo
foi apreendido nas tragédias e comédias gregas ao apresentar o herói
envolvido no enigma do divino.
No V aC temos Heródoto em História com a sua descrição
de rituais de gregos e não gregos, fato que permite a analise
antropológica da comparação entre helenos e bárbaros. Devemos
acrescentar a descrição pormenorizada dos costumes e ritos gregos
incluídas na obra geográfica de Estrabão na The Geography of
Strabo e de Pausânias com A descrição da Grécia.. Plutarco,
também insere a religiosidade grega em sua obra ao introduzir os
pormenores sobre os rituais dos gregos.
Na documentação epigráfica, o politeísmo grego pode ser
cotejado nas inscrições sobre as leis sagradas intituladas de Leges
Graecorum Sacrae de 1896, nas quais estão presentes as decisões
populares sobre organização de festas, calendários e sacrifícios,
sobre os investimentos dos sacerdotes, os epítetos dos deuses e sobre
rituais especiais. As inscrições de uso mais comum denomina-se
Inscriptiones Graeca (IG) compiladas em 1815 pela Berlin-

134
Brandenburdischen Akademie der Wissenschaften e mantém-se no
idioma originário, o latim.
Desde há algum tempo que a Arqueologia cientifica descobriu
os artefatos e arquitetura como testemunhos de costumes e
sobrevivência de sociedades antigas, tais como utensílios para os
cultos, diferentes altares, recipientes para rituais e depósitos de
oferendas votivas assim como inscrições com dedicatórias aos deuses.
A iconografia com imagens de cultos retratados em paredes, pinturas
em vasos, estátuas votivas permitem seguir passo a passo o
desenvolvimento da representação dos deuses desde os tempos
micênico até a tramitação da filosofia judaico-cristã.
Concluímos de forma parcial esse ensaio ratificando que o
politeísmo grego mantém a sua organização estrutural em torno da
simbolização, ou seja, da atividade ritualizada na qual vida e morte,
sagrado e profano, homem e deuses não se apresentam de forma
antagônica e sim complementares cuja equivalência não encontra
parâmetro na atualidade. Entretanto, parece que o homem moderno,
diante das incertezas do devir, busca restabelecer a retomada de
contato próximo com os deuses a maneira grega do religio, fato que
aponta para a emergência de reapropriação de rituais de êxtase e as
manifestações religiosas de viés acentuadamente politeísta.

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136
USOS ICONOGRÁFICOS DO MONUMENTO FUNERÁRIO
NA ATENAS CLÁSSICA

Marta Mega de Andrade


(LHIA/PPGHC/UFRJ)

Resumo: Proponho aqui um exercício de abordagem da relação monumento


e memória na Atenas clássica, a partir de um grupo de lécitos de fundo
branco que trazem como elemento iconográfico representações de estelas
funerárias. Procuro discutir as implicações da transição e possível
coexistência do monumento funerário como marco espacial e como signo
pictórico ou ícone, em termos de mensagem visual e projeto (social) de
consenso.
Palavras-chaves: lécitos de fundo branco, contextos funerários,
iconografia, ideologia, Atenas Clássica
Abstract: Here I suggest an exercise on approaching the relationship
between monument and memory in classical Athens, departing from a
group of white ground lekythoi on which are represented grave stelæ. I’m
bringing into debate the implications of the historical transition and possible
coexistence of the funerary monument as a spatial mark and as pictorial
sign or icon, in terms of visual message and (social) project for con-sensus.
Keywords: white-ground lekythoi, funerary contexts, iconography,
ideology, classical Athens

I- Introdução
Entre os séculos VIII e VI a.C., surgem nos espaços de
sepultamentos os monumentos funerários com suas estátuas e
inscrições. De médio a grande porte, os monumentos são vasos
pintados, obeliscos com esfinges, marcos espaciais decorados e
estátuas de jovens rapazes e moças (kouroi e korai) que “funcionam”
na paisagem como mnêmata, “memoriais”. Esses mnêmata não se
relacionam diretamente com a pessoa nem com a vida pessoal ou as
crenças religiosas do morto, mas pedem por renome, memória e,
sobretudo, lamentação por parte dos vivos, os próximos e os
distantes. Assim, o rito funerário e o monumento que o expande em
direção à memória coletiva estariam inseridos no contexto da

137
celebração heróica de um indivíduo e, através dele, de uma família
aristocrática.
As lutas sociais que levam a transformação da comunidade em
pólis, trazem a tona por toda Grécia um ideal de participação política
dos combatentes das fileiras de hoplitas, com a extensão da isonomia
a todos aqueles que combatiam na guerra por uma mesma pólis.
Assim, em Atenas, o legislador Sólon introduz reformas que são
fundamentais para a formação da politeía e, ainda, segundo uma
tradição mencionada ao longo da Antiguidade e consolidada por
Plutarco (Vidas, Sólon: XXI, 4-5), sanciona leis suntuárias incidindo
justamente sobre esse espaço de reiteração do prestígio de cidadãos
proeminentes e famílias aristocráticas. Segundo Plutarco, o
legislador de Atenas teria estabelecido limites à próthesis (doravante
realizada no recinto doméstico), e principalmente à ekphorá: limitava
as oferendas que se podia levar, o grupo que poderia seguir o cortejo,
o grau de parentesco e idade das mulheres presentes e, por fim, a
lamentação das mulheres. Com isso, Sólon estaria procurando
eliminar um dos focos de tensão entre o modelo de isonomia e a
possível emergência do poder pessoal de reis e tiranos.
Segundo Cícero (Leis: II-64), algum tempo depois novas leis
teriam sido sancionadas, talvez no início do V século a.C., limitando
mais ainda as exibições em funerais e, agora, principalmente,
limitando o porte, valor e tamanho dos monumentos. Se a lei foi
obedecida ou se obedeceu a um status quo, não sabemos. Contudo, é
um fato que os monumentos funerários privados, esculpidos em
material durável como o mármore, praticamente desaparecem dos
espaços de enterramento na Ática (mas também em outras regiões da
Grécia) ao longo dos cinqüenta anos que separam o fim das Guerras
Médicas e o início da Guerra do Peloponeso. Portanto, ao longo de
cinqüenta anos, a pressão social sobre as famílias abastadas parece
ter surtido algum efeito.
Nosso tema começa aqui. De fato, dizer que o elogio dos mortos
através de monumentos individuais acabou caindo em desuso não é
testemunhar que o próprio monumento perde seu significado como
marco de lembrança, inserido em um conjunto mais amplo de ritos
funerários do qual fazia parte. Os mnêmata permanecem não apenas
na paisagem — pois eles nem foram totalmente destruídos, nem ao
que tudo indica devem ter sido esquecidos, já que a honra dos mortos

138
em guerra da polis demandava a construção de um monumento
público — mas ainda no imaginário, como uma forma crucial de
prestar homenagem aos mortos segundo os ritos. Isto é testemunhado
pela difusão, por volta de 460 a.C., do mnêma como elemento
iconográfico na decoração de uma quantidade significativa de lécitos
de fundo branco. Alguns especialistas apontam para uma relação
direta entre a popularidade dos lécitos de fundo branco como vasos
funerários e o controle sobre as manifestações privadas de luto,
particularmente no que se refere aos monumentos. Sem discutir
ainda esta conexão, vamos optar pelos vasos com cenas funerárias e
tentar caracterizar uma modificação temática que acompanha o
processo histórico descrito mais acima.

Fig 1 - Ânfora no estilo geométrico (ático) Museu Nacional de Atenas n 804.


1,55 m. Atenas – Dypilon, c. 760 a. C.

Um dos exemplares mais conhecidos da iconografia dos


vasos do período arcaico é aquele que reproduzo na figura 1. Trata-
se de uma ânfora encontrada como marco tumular no Cerâmico,
datada de aproximadamente 760 a.C, período geométrico. O pintor

139
procurou introduzir aí um pequeno mas central espaço de
representação em que nos deparamos com um opulento cortejo
(ekphorá), contando com diversos guerreiros armados em seus
carros, carpideiras e figuras humanas em atitude de lamentação, alem
do próprio morto que é carregado em um carro. Aqui não apenas se
explicita iconograficamente a importância da ekphorá no rito
funerário. Esta enorme ânfora do Cerâmico não é propriamente um
vaso, mas funciona na paisagem da necrópole como um mnêma,
disposto como marco do sepultamento e memória do prestígio da
família na reverberação da opulência do funeral.

Fig. 2- Loutrophoros, c. 500 aC. Musée du Louvre, Paris. Apud:


Lissarrague, F. Femmes au Figuré. in: Duby, G. & Perrot, M.
Histoire des Femmes en occident. Paris, Plon, 1990. I - l’antiquité.
p.185-186

O vaso da figura 2 é representativo de um conjunto de


loutrophoroi anteriores a 470 a. C., onde há a preocupação de
representar a prothesis, ou seja, o “velório”, a parte da cerimônia
fúnebre que se realiza dentro de casa. Apesar desse tipo de
representação ligar o uso do loutrophoros ao rito funerário — como
recipiente da água lustral utilizada nas cerimônias fúnebres —

140
podemos perceber que o próprio vaso é um artefato manuseado, ao
menos em três níveis: quando toma parte do ritual de preparação do
morto em etapas da prothesis; quando é manipulado por aquele que
procura visualizar seus motivos iconográficos; quando é disposto
como oferta dentro ou fora dos túmulos e, assim, passa do contexto
interno da casa ao contexto externo da necrópole ou lugar de
sepultamento. Assim, neste exemplo vaso não é mais
necessariamente o monumento funerário; é diferente dele, quando ao
invés de colocar-se como monumento onde se “imortaliza” em cena
o funeral, investe-se de um discurso imagético sobre o rito fúnebre
doméstico e, de dentro de casa, sairá freqüentemente para ser
enterrado com o morto.
Em torno de 460 a. C, popularizam-se os lécitos de fundo
branco que, em certa medida, substituem os loutrophoroi nessa
“tarefa” de carregar um discurso imagético sobre o rito fúnebre em
um objeto manuseado, trocado, enfim, um objeto móvel que circula
nas mãos dos oficiantes dos ritos antes e depois do funeral, ao invés
de um mnêma que é um marco fixado no solo. Esses lécitos serão
comuns ao longo do período posterior, até o final do século V a. C.; e
um dos detalhes que mais chama a atenção nas imagens que neles se
pintava é a presença marcante do monumento funerário como
cenário de uma oferenda, uma libação, ou mesmo como paisagem
para a representação do arquétipo do indivíduo morto — guerreiro,
caçador, mulher, etc, como na figura 3. Mais uma vez, o que se
sugere aqui em um primeiro momento é uma nova mudança do foco
das representações de etapas do rito funerário. O vaso-mnêma
eternizava a opulência de uma ekphorá; o loutrophoros servirá como
meio a representar iconograficamente o espaço doméstico em que se
realizariam várias fases da prothesis, tendo sua superfície
cuidadosamente compartimentada para comportar, por exemplo, uma
diferença de abordagens feminina e masculina dessa exposição do
morto. Os lécitos de fundo branco abandonam o princípio da
opulência do funeral na ekphorá (provavelmente porque de há muito
já não se viam grandes cortejos privados que poderiam angariar mais
antipatia do que prestígio), e não se ocupam tanto mais da
compartimentação de papéis no habitat doméstico concernindo à
prothesis. Os lécitos transferem o olhar para um outro momento do

141
rito funerário, que seria aquele das visitas ao túmulo do nono ou
trigésimo dia, ou talvez as visitas anuais.

Fig. 3 – Lécito de fundo branco, Eubéia (Erétria) c. 450-440 a.C.


Beazley, J.D., Attic Red-Figure Vase-Painters, 2nd edition (Oxford,
1963), 1227. Museu Nacional de Atenas, n 1935.

São características muito básicas das representações dos


lécitos de fundo branco (embora nem todos os elementos estejam
sempre presentes em todos os casos):
1- A valorização das etapas do ritual fúnebre
posteriores ao sepultamento. Ênfase, portanto, na liminalidade, ou
seja, no período em que é preciso visitar o túmulo, cercá-lo de
oferendas, enfeitá-lo, para garantir ou controlar a passagem do morto
(na maioria das vezes representado junto ao túmulo) para o que
muitas inscrições funerárias denominam o “antro” de Perséfone ou
Hades;
2- A figuração central de monumentos funerários
isolados, freqüentemente encimando montículos em uma disposição
familiar aos sepultamentos anteriores a 480 a.C. Esses monumentos
não sãos estátuas e não comportam esculturas nem pinturas de cenas.

142
Os pintores dos lécitos ocupam-se no detalhe da decoração dessas
estelas pelas oferendas, mantendo do monumento em si apenas a
recordação de seu formato (tipo obelisco) e de seu cume em forma
de folhagem ou arquitrave.
3- A presença de figuras humanas em visitação
(femininas, na maioria dos casos, mas não exclusivamente), trazendo
oferendas ao monumento (lécitos, panos, potes, alimentos,
guirlandas, etc).
Apesar da grande quantidade de lécitos de fundo branco que
chegaram até nós, não devemos superestimar a dimensão de sua
popularidade. De fato, em seu estudo sobre ritos e contextos
funerários, Morris afirma que muitos outros tipos de vasos foram
encontrados nesses contextos, de forma nenhuma podendo ser
considerada uma univocidade do lécito de fundo branco como
artefato decorado em uso no contexto funerário (1992: 103-127).
Contudo, seu aparecimento indica uma inovação, em vários sentidos.
Em primeiro lugar, seu formato e a técnica do fundo branco o isolam
do conjunto dos vasos fabricados, predispondo o lécito a ser uma
espécie de vaso determinado pela função funerária, comportando,
assim, um discurso sobre a dimensão doméstica da morte; em
segundo lugar, sua forma específica de representar crenças
escatológicas associando-as a uma etapa específica dos ritos
funerários, parece indicar uma transposição da piedade familiar,
antes conectada à memória heróica do indivíduo morto e, portanto, a
uma projeção do prestígio da família sobre a sociedade como um
todo, agora vinculada à morte como problema a ser gerido pelo ritual
no âmbito dos mais próximos. Por fim, a centralidade de um tipo
específico de monumento — a estela - acanto sobre o túmulo —
mantêm a conexão entre o problema doméstico da morte e o contexto
público do memorial mais antigo e provavelmente mais comum na
paisagem antes de 440 a.C., sugerindo que há algo mais aí, na
importância da dimensão pública da morte, de tal forma que, mesmo
com o advento dessa piedade familiar, a morte não se esconde, não
se vive individualmente; ela ainda deve dizer algo para a
comunidade como um todo, ou melhor, da comunidade como um
todo, mas agora na dimensão do espaço doméstico.
Essa passagem ao doméstico é um tema debatido pela
historiografia já há alguns anos (Morris, Humphreys, Pomeroy). Mas

143
em todo caso, o fenômeno tem sido estudado do ponto de vista das
transformações políticas com o advento quer da polis democrática,
quer de um ideal comunal preponderante em toda a Grécia, que teria
inibido as manifestações aristocráticas de prestígio nos funerais.
Estudiosos como Boardman e Kurtz, por exemplo, tendem a ver nos
lécitos de fundo branco uma forma de resistência das famílias às
proibições impostas pela legislação funerárias ao porte dos
monumentos. Ou como Humphreys e Morris, um movimento de
“popularização” dos monumentos através de sua imagem nos lécitos
e sua concomitante proibição nos espaços. De minha parte, gostaria
de abandonar um pouco essa relação entre o oikos e a polis; gostaria
de explorar um outro caminho hipotético-dedutivo partindo da
questão da visibilidade aplicada tanto aos monumentos quanto aos
lécitos, considerando estes últimos em seu uso como oferenda.
No que diz respeito à paisagem funerária de Atenas, os lécitos
devem ter convivido ao longo do tempo com os monumentos e
estelas que já estavam presentes e voltarão a estar, antes de 470 e
após 420 a. C. Contudo, ele não atua como substituto ou duplo da
estela; ele não se coloca sobre ou ao lado dos túmulos, mimetizando
de uma maneira economicamente mais acessível um monumento de
pedra. Em outras palavras, o lécito não “faz de conta que...”.
Diferentemente, ele aborda, captura, tematiza o papel central do
marco espacial, sugerindo que esta sinalização do mnema era ela
mesma importante o suficiente para o ritual, de forma que as
interdições legais não poderiam simplesmente liquidar. O lécito não
é substituto do monumento, não é seu contraponto; mas
possivelmente o monumento pintado no lécito era promessa — ou
quem sabe prova? — de um ritual correto.
Desta forma, sugiro que os lécitos de fundo branco não devem
ser vistos em contraposição aos monumentos, mas antes, devem ser
analisados como sua reduplicação, sua reverberação e difusão por
um meio mais móvel, mais popular, mas ao mesmo tempo mais
restrito a círculos familiares. O lécito fornece um testemunho da
importância do mnêma para aqueles encarregados dos tà
nomizomena, da execução correta dos ritos funerários. Então temos,
de um lado, familiares que procuram perfazer os ritos cuidando de
todas as suas dimensões, desde a piedade religiosa até a questão
jurídica da herança e a questão cívica da manutenção de um marco

144
visível da relação de um oikos com a terra ancestral; de outro lado,
uma polis que propõe às famílias um outro discurso, mais exclusivo,
conectando a morte ao corpo abstrato da politeía; e a
monumentalidade ao espaço público do demos. Para equacionar a
necessidade do memorial com a instabilidade provocada por ele no
seio do espaço público, a representação pictórica nos lécitos pode ter
sido uma opção, não uma rebelião. Mas esta opção tem
conseqüências, como por exemplo a restrição do olhar: passamos do
espetáculo do monumento à afetividade (e talvez ainda à piedade) do
ex-voto.
Retornaremos aqui ao “clichê” mais repetido sobre a cultura
ateniense desde a discussão nos meios acadêmicos de teses como as
de J Svenbro (1992) e E. Havelock (1985): trata-se de uma
civilização da palavra, mas sobretudo da oralidade, ao que
acrescentaríamos com Vernant e os outros autores dos capítulos de
La Cite des Images (Bérard, 1984): uma civilização da linguagem
visual (opsis). Levando esta linguagem visual em consideração,
parece claro que os monumentos representados nos lécitos de fundo
branco não pertencem ao mesmo registro que os monumentos
presentes na paisagem, e isto não apenas pelo intervalo que separaria
real e imaginado (ou representado), mas antes porque, ao
considerarmos ambos dentro de regimes de visibilidade (e não no
interior de um jogo nem sempre verdadeiro entre o real e sua
representação), perceberemos de antemão que o que se dá a ver pelo
mnêma não é o mesmo que o lécito propõe como visível no mnêma.
O que é visto no mnêma? Os monumentos anteriores a 470
a.C. são mais freqüentemente marcos de locais de sepultamento, e
raramente trazem cenas representadas. Prefere-se, nesses
monumentos, uma relação com a escultura, com a obra monumental
que, avistada de longe, sinaliza uma requisição pública, ao ar-livre,
de lembrança de um morto que deve ser comemorado (figura 4). Já
os monumentos posteriores a 420 a.C não se moldam tanto como
esculturas, mas como “quadros” em alto relevo em que se faz
representar toda uma cenografia vinculada à oikias (figura 5).

145
Fig 4- Obelisco em
Mármore, Ática. Berlin Fig. 5- Estela em Mármore.
Staatlische Museen A7 / Atenas, Museu do Cerâmico. Final
NY MET 11185 540-530 do V século a.C.
a.C.

As estelas funerárias pintadas nos lécitos de fundo branco não


são as esculturas memoráveis que remontam ao período arcaico. Mas
não são também esses pórticos dentro dos quais o escultor procura
imprimir em relevo uma cena doméstica. De fato, ao representar os
marcos funerários nos lécitos, os pintores “inventaram”, não tanto o
formato que é familiar a um ou outro monumento que encontramos
no Cerâmico, por exemplo, mas na escolha por não fazerem desses
marcos nem esculturas, nem relevos, e, assim, desconsiderarem a
estela como suporte de uma “informação” iconográfica. Ao fazer da
estela iconografia, os pintores privilegiaram a dimensão do marco
espacial e desconsideraram a dimensão de suporte imagético.
Marco espacial de visibilidade, mas ainda de obrigação religiosa
ligada à comemoração dos mortos das famílias aristocráticas.
Operando com um signo ainda cotidianamente vivido de lembrança
de um prestígio antigo de grandes famílias de eupátridas, o lécito não
parece ter sido confeccionado, entretanto, por essas mesmas famílias.
Quem quer que tenha consumido esses vasos e feito uso deles em
suas oferendas votivas, não estava a “burlar” uma proibição, mas

146
mais provavelmente a jogar sobre o seu “ente querido” um pouco da
honra devida aos ancestrais mais nobres da Ática. Estava a
reconhecer, assim, a aristocracia mais antiga como modelo, numa
relação com a morte precisamente onde ela leva a renovar laços com
a comunidade territorial. Mas mais do que reconhecer um modelo
aristocrático, o usuário dos lécitos pintados com estelas funerárias
estavam a superá-lo, na medida em que não imitam (e não imitarão)
as próprias estelas; eles não gritam o memorável, eles o sussurram,
numa dimensão mais restrita e mais “doméstica”.
“Erigir estelas é caro e é mau. Mas, as estelas são o signo
fulcral da relação de minha família ateniense com o solo dessa pátria.
Logo, mandarei desenhar pequenas estelas nesses vasinhos que
ofertarei. Não serão vistos de longe e não causarei assim nenhum
mal-estar ao meu vizinho. Mas aqueles que tomarem os vasos, ao
manuseá-los, poderão confirmar que aquele que os receberá como
oferenda foi alguém digno de ser lembrado”. Permitam-me este
último devaneio após uma exposição que, no todo, permanece
hipotética. De qualquer modo, sugiro que se aborde a presença dos
monumentos nos lécitos de fundo branco em uma perspectiva ao
mesmo tempo mágica (ex-voto), religiosa (piedade familiar), muito
provavelmente cívica (afirmação da ligação de uma família com a
comunidade assentada na noção de patrìs, terra “ancestral”) e, nisso
tudo, precursora das novas estelas que irão surgir no final do século
V a.C.

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148
RITUAIS DIVINATÓRIOS NA REPÚBLICA ROMANA

Regina Maria da Cunha Bustamante


(LHIA/PPGHC/UFRJ)

Resumo: O texto aborda os rituais divinatórios públicos durante os dois


últimos séculos da República, objetivando compreender seu papel na
sociedade romana daquela época.
Palavras-chave: Rituais divinatórios; República Romana Tardia.

Abstract: The text deals with the public divination rituals during the last
two centuries of the Roman Republic, aiming to understand their role in
roman society at that time.
Key-words: Divination rituals; Late Roman Republic.

Introdução
Você já viu seu horóscopo hoje? Apesar de vivermos num
mundo dominado pela racionalidade e pelo cientificismo, o interesse
humano em pretender saber o que lhe reserva o futuro o faz, ainda na
atualidade, recorrer a métodos nada ou pretensamente científicos,
difundidos em qualquer jornal ou revista, seja popular ou não, em
programas de rádio e de televisão, na internet... Mesmo expressando
incredulidade, desconfiança e/ou concordando com as críticas às
práticas divinatórias, consideradas como um saber falso e repudiado
pela razão, as pessoas continuam curiosas. É a coluna do horóscopo,
são as cartas, é o I Ching, é o Tarô, são as pedras das Runas, é o jogo
dos búzios, é a interpretação dos sonhos, são as linhas da palma da
mão, é a bola de cristal, são os números, é a borra de chá, enfim
prolifera, atualmente, uma infinidade de práticas. A adivinhação
seria então parte da natureza humana? Para Raymond Bloch (1985:
7), sim: “Perdido na imensidão de um mundo que não é de sua
medida, o homem busca multiplicar os pontos de apoio nos quais
possa se agarrar.” Portanto, não devemos olhar com estranheza nem
com preconceito ao nos debruçarmos sobre este fenômeno na
Antigüidade.
Nas sociedades antigas, a adivinhação era um meio
privilegiado de contato entre o homem e a divindade e,
especificamente, na sociedade romana, inseria-se no esforço em

149
manter a pax deourum, ou seja, a paz com os deuses, que garantia o
bem-estar da comunidade, sem a qual a cidade não podia seguir o seu
destino. Era, portanto, parte integrante do mundo da religião cívica,
da qual inclusive se constituía num importante ramo. Desenvolveu-se
como um sistema preciso e complexo que governava a vida da
comunidade. Enquanto na Grécia Antiga a adivinhação dedutiva e
intuitiva inspirada ao homem diretamente por uma divindade,
mediante sonhos ou num estado de êxtase, era mais comum, tal como
o Oráculo de Delfos; em Roma, predominou a adivinhação indutiva
ou baseada em sinais, considerados, mais do que anúncios do futuro,
manifestações – geralmente encolerizadas – da vontade das
divindades, que deviam ser apaziguadas com rituais expiatórios para
restaurar a pax deorum. Atribuía-se à vontade divina a capacidade de
poder modificar a ordem natural para manifestar a sua presença e
expressar o que queriam. Os romanos eram cautelosos em relação
aos oráculos e profecias que escapavam às altas autoridades do
Estado, a tal ponto que, dentro de Roma, não havia templos
oraculares, apesar de existirem no resto da Itália (por exemplo, o
templo da Fortuna Primigenia em Preneste). Buscavam conservar
sua liberdade de ação graças a uma sutil disposição de ânimo em
relação aos sinais divinos. A adivinhação em Roma tornou-se uma
técnica humana, consciente e precisa, que revelava o acordo dos
deuses com o consultante através de uma consulta empírica e direta
com as divindades. Esta consulta divina assemelhava-se à consulta
aos magistrados: uma questão precisa era respondida afirmativa ou
negativamente, sendo organizada sob a direção autoritária dos
magistrados. Neste aspecto, revela-se o espírito prático, organizador
e zeloso do romano em garantir a vida do cidadão e da cidade e em
conservar o favor divino sem comprometer o desenvolvimento
normal e necessário de toda atividade humana. Estabeleceram-se
assim rituais respeitando rigorosamente a tradição, condizente como
uma das características do politeísmo romano: a “ortopráxis”, ou
seja, a execução correta dos ritos prescritos (SCHEID, 1998: 20).
Dentre as diversas práticas divinatórias romanas, havia:

• Omnia: Presságios que se escutavam ao acaso, sendo


considerados uma advertência enviada pelos deuses para guiar os
homens. Sua interpretação interessava ao indivíduo e à sua vida

150
diária. Cabia à inteligência e à sensibilidade do indivíduo inferi-los.
O indivíduo podia dar voz e vida ao que se anunciava caso
declarasse que o aceitava: omen accipere. Mas, também poderia
recusá-lo caso fosse funesto – omen excecrari, abominari – ou ainda
transformar o seu sentido por meio de palavras adequadas que
modificassem o seu valor. Assim, conservava-se a liberdade de ação
do homem concomitantemente à preocupação em respeitar os deuses.

• Auspicia: Presságios que se relacionavam à vista. Sua


interpretação interessava ao indivíduo e, principalmente, ao Estado,
pois o respeito ao direito augural era condição primordial para a
legitimidade de toda a iniciativa política, tanto na paz como na
guerra. A etimologia da palavra auspício advém da junção dos
termos latinos avi (aves) e spicium (observação). Assim, em seu
sentido restrito, constituiu-se na observação de aves pelos áugures,
que inferiam os sinais dados pelas aves (categoria da ave, seu vôo,
seu comportamento e seu canto) e serviam como conselheiros dos
magistrados nos problemas auspiciais. Entretanto, em seu sentido
mais amplo, auspício aplicava-se também a uma manifestação divina
através de qualquer fenômeno visual significativo (por exemplo,
presságios ameaçadores, denominados de auspicia ex diris) ou
acontecimentos que extrapolassem a norma, tais como: problemas no
desenrolar de uma cerimônia, fenômenos naturais surpreendentes e
catástrofes naturais. A partir de certo grau de gravidade e raridade,
todo sinal se transforma em prodígio. Sendo um acontecimento
contra a natureza, ou seja, uma anomalia das leis da natureza,
expressava a ruptura da paz que a cidade mantinha com os deuses.
Era, pois, uma advertência que devia ser interpretada para apaziguar
a cólera divina. Para isso, as autoridades superiores do Estado
contavam com um arsenal de medidas propiciatórias e expiatórias
visando a saúde do Estado. Os prodígios podiam ser classificados de
ostentum, portentum, monstrum ou miraculum. Os dois primeiros
referiam-se à sua função de sinal, os dois últimos relacionavam-se a
qualquer particularidade de um ser vivo, sendo que o terceiro
implicava numa idéia de advertência e o quarto, de admiração. Eram
classificados de acordo com sua natureza em: inanimados (auspicia
ex coelo, ou seja, da esfera celeste: astros, eclipses solar e lunar,
meteoritos, cometas, trovão, relâmpago, chuva de cinza, pedra e

151
sangue; da esfera terrestre: rios de sangue, estátuas com suor e
lágrimas, terremotos, tremores) e animados (auspicia ex
quadrupedibus, referentes ao comportamento estranho de animais
quadrúpedes; auspicia ex avibus concernentes ao vôo das aves;
auspicia ex tripudiis ou pullaria relativos ao comportamento das
galinhas sagradas; aves ou roedores em lugares consagrados;
deformações em humanos e animais).

Em vista das limitações de espaço para este texto e da sua


importância para a antiga sociedade romana, optou-se por privilegiar
o auspicium em seu sentido literal, ou seja, como ornitomancia:
adivinhação baseada na observação nos pássaros, atentando para o
seu aspecto ritual e sua interpretação. Entretanto, não se deixou de
fazer referências a outras práticas divinatórias. Procurou-se inseri-las
na sociedade romana dos séculos II e I a.C. Este período é bem
documentado neste assunto devido, sobretudo, ao tratado ciceroniano
em forma de diálogo intitulado Sobre a adivinhação, no qual o autor
apresenta uma seleção de opiniões sobre este tipo de prática.

1. Rituais divinatórios
A prática de ornitomancia era típica dos povos de origem
indo-européia. Na Península Itálica, esta tradição estava presente não
apenas entre os romanos, mas também nos sabinos e úmbrios. O
direito augural romano tinha como características: o formalismo; o
silêncio, pois, ao menor ruído durante a cerimônia, o ato era anulado;
a minuciosidade no desenrolar dos ritos; o estabelecimento do campo
de observação; o pragmatismo e a simplicidade das questões
colocadas aos deuses para verificar se estavam de acordo ou não com
a atividade projetada; a liberdade para o oficiante, pois a observação
do canto e do vôo de diversas categorias de aves não oferecia muitas
características de segurança; e a existência de um colégio sacerdotal
encarregado de conservar, aplicar e adaptar a todos os casos, que se
pudessem apresentar, às regras relativas aos auspícios.
A “ciência” augural é conhecida graças aos historiadores e
gramáticos romanos que concentraram sua atenção nos rituais e no
material conservado nos arquivos dos colégios dos áugures. Os Libri
Augurales agrupam regras, regulamentos, formulários, decisões
errôneas e comentários imputados aos sacerdotes mais sábios. Com

152
isso, era possível organizar, em seus mínimos detalhes, as cerimônias
dos áugures e regular todas as dificuldades que pudessem se
apresentar durante a sua execução, visando o bem-estar de Roma.
Assim, consolidou-se o ritual augural que consistia em:

1) Estabelecimento do auguraculum: O magistrado estabelecia


uma tenda num lugar específico, o auguraculum, antecipadamente
definido e “inaugurado” pelos áugures. Em Roma, existiam três:
sobre a cidadela (o arx), sobre o Quirinal e sobre o Palatino. Como o
espaço romano era dividido de maneira precisa, um magistrado devia
renovar os auspícios, isto é, consultar o céu sobre a legitimidade da
sua decisão e do seu poder cada vez que ultrapassasse um de seus
limites, freqüentemente um regato ou um rio. Em Roma, o amnis
Petronia, um regato que separava o Campo de Marte da Vrbs, isto é,
o Senado e o Fórum da sede da Assembléia Centuriata, formava um
de seus limites. O magistrado também devia tomar os auspícios antes
de entrar em função ou abandonar Roma para uma missão no
exterior. Em campanha, o magistrado instalava o auguraculum no
seu campo para os auspícios cotidianos, mas os auspícios de
investidura deviam, em princípio, ser solicitados somente em Roma;

2) Repouso do auspicante: O magistrado instala-se na tenda até o


momento da tomada dos auspícios justamente antes da aurora; e

3) Tomada de auspícios: Faziam-se gestos e proferiam-se palavras,


que se reforçavam reciprocamente e punham o áugure em relação
direta com os deuses. A consulta consistia numa troca de perguntas e
respostas entre o auspicante e um assistente, não um áugure, mas um
bedel do magistrado – pullaris. Desde o século III a. C., os
magistrados romanos preferiam, entretanto, a observação das
galinhas (auspicia ex tripudiis), cujo apetite e o comportamento em
geral eram observados quando da tomada dos auspícios (CÍCERO.
Sobre adivinhação II, 71-72). Todo magistrado romano em trânsito
tinha gaiolas de galinhas na sua bagagem, guardadas por um pulário.
Teoricamente, o fato de que as galinhas comiam, comiam muito, não
comiam ou pouco, dava uma resposta favorável, muito favorável ou
negativa. A resposta era positiva de acordo com a vontade do
magistrado, era, portanto, mais um ritual de anúncio de auspícios

153
positivos que um dispositivo de adivinhação, um rito para anunciar
sua firme convicção de que sua decisão tinha o beneplácito divino. É
sobre, principalmente, o sucesso ou fracasso que se definiam a
habilidade divinatória de um magistrado ou de um indivíduo e a
benevolência dos deuses.

Dependendo da sua forma de manifestação, os auspícios


podiam ser impetrativos – quando eram solicitados sinais aos deuses
– e oblativos – quando os sinais não eram solicitados e surgiam por
si próprios, isto é, por vontade divina. Os auspícios impetrativos não
eram prognósticos do futuro nem revelavam as causas dos
acontecimentos passados. Relacionavam-se exclusivamente a uma
ação específica imediata, mais exatamente sobre um ato público a
seguir, que devia ser aprovado pela divindade. Quando referentes à
vida pública, os auspícios eram nomeados de auspicia populi
romani. Eram tomados para as investiduras de magistrados e antes de
todas as decisões importantes como convocação dos comícios,
votação de leis, batalhas etc. Duravam apenas um dia e se aplicavam
apenas para a decisão consultada. Caso o magistrado ultrapassasse o
pomerium ou um outro limite, o aval dos auspícios era caduco, se ele
não possuísse o privilégio dos auspicia maiores, concedido às
magistraturas superiores (consulado, pretura, censura e ditadura).
Cabiam aos magistrados o aceite e o estabelecimento do significado
de todo sinal constatado ou anunciado.
Pelos rituais divinatórios, o magistrado consultava o deus
soberano – Júpiter – comprometendo-o através do seu aceite com o
sucesso do empreendimento. Todos os ritos religiosos públicos
colocavam em cena, implicitamente, o serviço benevolente e
disciplinado que o povo romano rendia às divindades. Desta forma,
anunciava-se que Roma era gerida em comum pelos magistrados e
deuses. Mas, para participar ativamente nas decisões públicas e para
intervir nos destinos do povo romano, uma divindade devia
inicialmente ser apreendida formalmente pelos magistrados. Iguais
aos seus “colegas” mortais – os senadores –, os deuses deviam ser
consultados quando os costumes o prescreviam. Deviam participar
na tomada de decisão pública, mas não tinham direito à palavra pelo
cargo. O primeiro que falava era o magistrado e os deuses
respondiam. Tal como o Senado, os sacerdotes e a Assembléia

154
Popular, os deuses deviam esperar que o cônsul lhes desse a palavra.
E mesmo então, não podiam desenvolver livremente sua opinião: se
contentavam geralmente em dar uma resposta afirmativa ou negativa.
Tomemos um exemplo. Cada vez que uma lei era votada,
que uma eleição se desenrolava ou que uma decisão pública era
tomada, Júpiter devia ser consultado através dos auspícios. O ritual
anunciava muito claramente o lugar de Júpiter, pois este último se
exprimia antes dos outros cidadãos e autorizava ou não o magistrado
a continuar sua ação: a vontade de Júpiter era então superior a do
povo romano. Então, o deus soberano impunha suas opiniões e sua
vontade aos cônsules? Não, pois, na consulta auspicial, não era o
deus que se exprimia: era o magistrado consultante que fornecia,
com alguns assistentes, as questões e as respostas. Ao ponto de
Cícero e Dionísio de Halicarnasso concluírem que o sinal pedido ao
deus não tinha em si próprio outro valor que aquele que o magistrado
ali colocava. E mesmo se Júpiter, encolerizado por alguma
indelicadeza de seus concidadãos, manifestasse sua irritação por um
signo não pedido e bem real, dependia ainda do magistrado em
função aceitá-lo ou não. No fundo, pode-se considerar que a tomada
dos auspícios e a aceitação ou recusa de um signo fortuito
constituíam um modo dramático de anunciar que uma decisão
tomada em nome do povo romano se beneficiava da concordância
dos deuses e não violava suas prerrogativas. Ao mesmo tempo, estes
rituais, que não podiam de forma nenhuma ser omissos ou tomados
levianamente, moderavam o poder de um magistrado e o forçavam a
ter em conta outros interlocutores além de Júpiter: seus colegas, os
áugures. Assim, apesar das aparências, os deuses controlavam de
qualquer modo os jogos do poder, mas discretamente, uma vez que
eram representados por humanos.
Um augúrio oblativo, ou seja, não solicitado, poderia ser
observado por magistrados, equipe de magistrados e qualquer
cidadão. Os incidentes surpreendentes de toda natureza anunciavam
acontecimentos inquietantes. Todos estes signos possuíam um
significado favorável ou desfavorável para a cidade ou para o
indivíduo. A elite esclarecida recomendava não atribuir tudo à
vontade divina e evitar viver na angústia, ou seja, ser um homem
supersticioso que pensava que os deuses eram maus, ciumentos e
tirânicos e, por isso, se angustiava. Este “receio desregrado” dos

155
imortais o levava a todos os excessos, principalmente nos
comportamentos servis destinados a atrair a benevolência divina. Ao
contrário, a boa atitude religiosa consiste em pensar que os deuses
são bons e respeitam as regras do código social da cidade: contanto
que eles não sejam ofendidos gravemente, as instituições cívicas
funcionam, os deuses não são levados pela vingança nem pela
opressão aos fracos humanos. O homem pio devia conhecer o limite
entre a calma determinação, fundamentada na confiança da
benevolência divina, e a obstinada recusa de reconhecer os
“verdadeiros” sinais. A aceitação ou não de um augúrio oblativo
dependia do magistrado, mas um prodígio geralmente era aceito
rapidamente, pois ultrapassava os limites anunciando um
acontecimento importante, favorável ou desfavorável. Sua qualidade
extraordinária devia ser reconhecida pelo magistrado. Geralmente, o
prodígio consistia num desastre punindo o povo romano: catástrofe
natural, epidemia, derrota... como manifestações da cólera divina. No
prodígio, exprimia-se a “verdadeira” natureza divina, diretamente, ao
preço de um efeito devastador, para expressar que os interesses dos
deuses tinham sido lesados pelos romanos. Era imprescindível
purificar a terra literalmente contaminada por este fenômeno
inexplicável e perigoso. O impuro era considerado como um dos
pólos opostos do sagrado e imprimia uma mancha ameaçadora para o
mundo terreno, cabendo ao homem todos os esforços para limpar
indivíduos e sociedade, purificando-os por uma catarse ritual e
adequada.

2. Interpretação dos ritos divinatórios


O colégio dos áugures era composto de três, seis, quinze e,
depois, dezesseis sacerdotes encarregados de interpretar a vontade
dos deuses quando da tomada dos auspícios pelos magistrado. Os
áugures públicos do povo romano eram bem conceituados e se
constituíam em título de prestígio, tanto que Sula, Cícero e Augusto
sentiam-se honrados por ostentar este título. Inicialmente, estes
cargos eram reservados aos patrícios e foram franqueados depois aos
plebeus; não eram hereditários nem obtidos por eleição ou desígnio
divino. Os áugures possuíam como insígnias distintivas: lituus
(bastão curvo de adivinhação), capis (vaso pequeno de vinho com

156
uma única alça) e dolabra pontificalis (machado para imolar animais
num sacrifício), que eram representadas nas moedas:

Aureus datado de 46
a.C. No anverso, Júlio
César e, no reverso, os
instrumentos religiosos.

O primeiro áugure romano foi o próprio fundador da cidade:


Rômulo. Sendo Rômulo e Remo gêmeos, a idade não poderia ser um
critério de primazia e, em vista da incapacidade de determinar o
lugar exato para a fundação da cidade, os irmãos recorreram aos
augúrios para orientá-los e dirimir o conflito que se formava entre os
irmãos pela indecisão na escolha do lugar (TITO LÍVIO. História de
Roma I, 64). Cada um então instalou-se no seu templum. O templum
era o espaço de observação traçado pelo lituus, a partir de duas linhas
perpendiculares (cardo: sentido norte-sul e decumanus: sentido leste-
oeste), sendo o ritual acompanhado com orações, que evocavam os
lugares (effari loca). A concepção do templo (templum concipere)
liberava os lugares terrestres de toda a servidão profana e, no seu
interior, observavam-se os sinais divinos. Rômulo instalou-se no
monte Palatino e Remo no Aventino. De acordo com os preceitos
etruscos sobre adivinhação, Rômulo teria sido favorecido pela
divindade na medida em que teria visto doze abutres, superando
assim o seu irmão, que vira seis abutres. Além disso, prevalecia
quem vira por último e não, o primeiro. Conservava-se
religiosamente no Palatino, na Curia Saliorum, o lituus de Rômulo,
como um talismã da Vrbs, fonte e garantia e sua grandeza.
Quando ocorria um prodígio era necessária a expiação com
os remedia através da procuratio prodigiorum, uma técnica para
desviar prodígios funestos. Para Raymond Bloch (1985: 122), a
expiação dos prodígios era puramente ritual e conforme um
procedimento religioso determinado, condizente com o espírito
preciso e jurídico do povo romano. Geralmente, o prodígio
assinalava ou punia uma omissão ou um erro cometido no culto e se
devia oferecer um sacrifício expiatório para se reconciliar com a
divindade lesada e repetir o rito esquecido ou, por vezes,

157
desvirtuado, objetivando reparar as perdas causadas ao patrimônio
divino. Todo o prodígio devia ser relatado ao cônsul que o levava
anualmente, no final de seu mandato, ao Senado e expiado sob sua
ordem. Este decidia os que eram de âmbito privado e os de âmbito
público. Para os mais comuns, o próprio Senado decidia os rituais
expiatórios, mas para os incomuns – os taetra prodigia –,
considerados especialmente ameaçadores ao Estado, o Senado
consultava os pontífices, os arúspices e os duoviri sacris faciundis.
Anualmente, os pontífices romanos registravam nos Annales todos os
prodígios ocorridos durante o ano em Roma e nas cidades romanas
para examinar seu significado e as expiações em Roma e os casos
acontecidos na Itália. Os arúspices, sacerdotes de origem etrusca,
especialistas da arte da adivinhação em especial da extispicina
(exame das entranhas de animais sacrificados para conhecer as
intenções divinas), eram consultados em caso de monstra ou queda
de raios (fulgura). Quanto aos os duoviri sacris faciundis,
inicialmente, eles eram em número de dois (condizente com a
própria etimologia da palavra duoviri) e de origem exclusivamente
patrícia, depois passaram a ser dez (367 a.C.) e incluíam plebeus e
chegaram a ser quinze durante o governo de Sula (82 a 79 a.C.).
Cabia-lhes a importante responsabilidade de cuidar e consultar os
Libri Sibilyni, os Livros Sibilinos, que se acreditavam conter os
segredos para manutenção do poderio romano. Segundo a tradição,
os Livros Sibilinos surgiram na época do reinado etrusco dos
Tarquínios em Roma (final do século VI a.C.). (1) Mesmo esta forma
de adivinhação inspirada permaneceu sempre em Roma controlada e
utilizada apenas em momentos graves, quando então se encontrava
orientação sobre eficazes rituais contra as desonras infligidas à
cidade por fenômenos anormais e terríveis.
Como referido anteriormente, qualquer ato político era
antecedido pela tomada dos auspícios, cuja aceitação dependia do
magistrado. Os auspícios acabaram tornando-se assim um dos
elementos formais necessários para que uma decisão fosse legítima
no direito público. Por esta razão, durante a República, foram
geralmente atacados e contestados por adversários políticos. Numa
posição igual ou superior, um magistrado poderia contestar a
legitimidade dos auspícios anunciando um sinal oblativo
desfavorável (obnuntiatio) ou denunciando um erro de forma na sua

158
tomada ou na sua interpretação. A única forma de contestar os
auspícios de um magistrado supremo (possuidores do imperium) era
fazer o colégio dos áugures e o Senado denunciarem um erro de
forma qualquer. Somente os áugures tinham o direito de adiar as
assembléias anunciando o alio die (adiamento), subentendendo-se
que observaram um sinal desfavorável durante as assembléias. Sob a
República, os auspícios eram um dos fundamentos da liberdade
política. Ao mesmo tempo que se garantia de liberdade de ação dos
magistrados, os auspícios impunham regras e limites aos
magistrados, pois sua legitimidade podia contestar ou anular um ato
público. Sendo a legitimidade do rito estabelecido, a decisão e seus
efeitos também eram legítimos, na medida em que tinham aprovação
do deus soberano. Os auspícios foram um elemento na disputa de
poder no final da República que contrapôs facções da elite
oligárquica, deixando, portanto, de ser garantia da liberdade política
para ser um elemento do poder pessoal. Esta situação se modificou
com ascensão de Augusto ao poder. Este tomou de fato posse dos
auspícios. Em 27 a.C., recebeu do Senado o imperium maius
(administração das províncias) e os auspícios militares, tornando-o
único comandante legítimo do exército. A guerra se fazia sob a
condução (ductu) de um general, mas sob os auspícios do imperador.
Colocando-se como restaurador da República, Augusto procurou
ressuscitar a tradição arcaica por aves em vôo (SUETÔNIO. Vida de
Augusto 95) e manteve a prática dos magistrados consultarem as
galinhas, mas cessou o conflito de legitimidade auspicial ao
monopolizar este direito. Para John Scheid (1998: 101), este tipo de
conflito foi a razão pela qual os escritores antigos mencionavam os
auspícios e, na medida em que estes conflitos foram eliminados, as
informações sobre os rituais divinatórios foram desaparecendo. No
novo contexto do Império, os auspícios paulatinamente se tornaram
puras regras formais necessárias juridicamente para os atos de
investidura e as decisões públicas importantes.

Conclusão
A analisarmos as práticas religiosas das sociedades antigas, é
preciso evitar preconceitos e anacronismos que desvirtuam o seu
significado para estas sociedades. Há o problema de como
compreender o “outro”, ainda mais quando há um distanciamento

159
temporal de quase dois milênios. Toda a sociedade tem o seu não-
dito, seja por crivo histórico ou por não sobreviver até nós a
documentação. Nossa relação com a Antigüidade Romana nos coloca
um duplo problema: a ela, devemos alguns dos nossos valores
essenciais; mas, como “herdeiros”, temos a liberdade de dispor da
nossa “herança”. As referências seletivas à religiosidade antiga
refletem mais debates ideológicos das sociedades que se apropriam
deste passado de acordo com seus interesses no decorrer do tempo e
constroem o seu discurso pautados neles. Nenhum historiador
contemporâneo questiona o formalismo da religião dos antigos
romanos. Tradicionalmente, a historiografia o interpretava
reproduzindo as críticas dos pensadores cristãos da Antigüidade, que
inseridos num contexto de polêmica contra o politeísmo, acentuavam
o caráter “frio”, “vazio de sentido” das suas obrigações rituais,
enquanto a fé cristã e seus dogmas atendiam às necessidades
espirituais dos homens. Fazia-se uma analogia com os embates entre
o cristianismo dos europeus e as religiões africanas e asiáticas
durante a expansão imperialista de fins do século XIX e início do
XX. Esta postura foi revista com os estudos antropológicos atuais,
que perceberam a importância dos rituais para as sociedades que os
praticavam, compreendendo-os dentro da sua cultura. Assim, através
dos rituais, cada sociedade constrói e transmite representações sobre
as divindades e a ordem das coisas. Desta forma, os ritos e o espírito
formalista da religião romana são categorias importantes, cujos
enunciados tiveram um papel central na sociedade e na sua visão de
mundo. Convém considerar a religião romana em seu contexto
histórico, buscando compreender que um dos princípios
fundamentais que condicionava a atitude religiosa dos romanos era
sua relação com a comunidade. Assim como em outras práticas
religiosas, a adivinhação romana caracterizou-se pela observância de
rituais que seguiam regras rígidas, ou seja, estavam conforme a
“ortopráxis”, constitutiva da teologia cívica que dava visibilidade ao
compromisso dos romanos com os deuses e garantia o bem-estar da
comunidade, sem a qual a cidade não podia seguir o seu destino.
Neste contexto, entende-se, portanto, a importância concedida aos
rituais divinatórios pela sociedade romana.

160
Nota
(1) Conta a tradição que uma mulher idosa e de aspecto misterioso
propôs a um dos reis etruscos de Roma vender-lhe nove livros de profecia.
Era a Sibila de Cumas, profetiza grega um tanto mitológica da colônia
helênica da Magna Grécia que, distintamente da pitonisa do oráculo de
Apolo em Delfos, não estava presa a um santuário oracular e possuía uma
vida errante. O rei etrusco não aceitou o alto preço pedido pela coleção de
profecias. A Sibila então queimou três livros e depois outros três e
continuou cobrando o mesmo preço inicial pelos que sobraram. Diante da
selvagem obstinação e aconselhado pelos áugures, o rei comprou os últimos
três livros e a misteriosa anciã desapareceu. Os livros foram guardados num
cofre de pedra no subterrâneo do templo de Júpiter Capitolino sob os
cuidados dos duoviri sacris faciundis. Em 85 a.C., um incêndio no Capitólio
destruiu a coleção e foram enviadas missões a diferentes partes da Itália,
Grécia e da Ásia Menor, onde se dizia que se conservavam as profecias
sibilinas, para reconstituir a coleção agora com nove livros. Augusto fez
com que esta coleção reconstituída fosse conservada no templo de Apolo
palatino e passou a ser consultada somente a pedido dos imperadores,
perdurando até o final do paganismo.

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163
POLITEÍSMO NO ASNO DE OURO DE APULEIO

Sonia Rebel de Araújo


(CEIA/UFF)

Resumo: O romance grego escrito no século II de nossa Era por Apuleio de


Madaura, O Asno de Ouro, narra as desgraças que ocorreram ao cidadão
Lúcio em sua viagem à Tessália em busca de conhecimentos sobre magia.
Transformado por artes mágicas em asno, sofreu toda sorte de desventuras,
até ser salvo e recuperar, com a volta à forma humana, a cidadania, graças à
entrega ao culto de Ísis, deusa egípcia romanizada. O significado profundo
desta obra encontra-se no fato de que as infelicidades que acometeram
Lúcio deveram-se ao fato dele ter se entregue a prazeres servis. Neste artigo
analisaremos a visão negativa de Apuleio sobre magia e sobre as
religiosidades populares em oposição ao conhecimento verdadeiro e à
verdadeira religião, o romanizado culto de Ísis. Enfatizo a narrativa sobre o
sincrético culto da Deusa Síria a e a permanência de Lúcio-asno entre os
seus sacerdotes.
Palavras-chave: Apuleio – O Asno de Ouro – Literatura no mundo romano
– religiosidade popular – magia – culto de Cibele – romance grego

Resumé: Le polytheísme dans l’Ane d’or d’Apulée


Le roman grec écrit au IIème siècle de notre ère par Apulée de Madaure,
l’Ane d’or, narre les malheurs qui sont arrivés au citoyen Lucius pendant
son voyage en Thessalie à la recherche de connaissance sur la magie.
Transformé par des arts magiques, il a subi toute sorte de mésaventures
jusqu’au moment où il a été sauvé et a pu récupérer, avec le retour à la
forme humaine, la citoyenneté grâce au dévouement au culte d’Isis, déesse
égyptienne romanisée. Le sens profond de cette oeuvre se trouve dans le fait
que les malheurs que Lucius a éprouvés ont été dus aux plaisirs serviles
auxquels il s’est livré. Dans cet article, nous analyserons la vision négative
d’Apulée sur la magie et sur les religions populaires en opposition à la
véritable connaissance et la véritable religion, le culte romanisé d’Isis. Nous
soulignos la narrative sur le syncrétique culte de la déesse syrienne et le
séjour de Lucius-âne parmi ses prêtes.
Mots-clés: Appulée – L´ Âne D´Or – Literature dans le monde romain –
religiositée populaire – magie – culte de Cibéle – roman grec

164
Introdução
Gostaria de analisar, a partir de O Asno de Ouro de Apuleio
de Madaura, um aspecto ideológico constante em sua obra, a visão
negativa sobre os elementos populares, especialmente os escravos, e
o enaltecimento da regra, das camadas letradas, da ciência e da
filosofia. Em seu livro O Asno de Ouro, sua crítica dirige-se ao que
os romanos chamavam superstitio e a valorização de uma religião
que, embora de origem estrangeira, adquirira status de cidadania e
aceitação entre os romanos. Tal crítica aparece ainda no embate entre
magia, e precisamente magia negra e o culto de Cibele, de um lado,
observando-se a disforização destes dois aspectos da religiosidade
popular, e o culto oficial romano, simbolizado pelo culto de Ísis. A
ênfase recairá, não obstante, sobre a condenação à religiosidade
popular, tanto das práticas mágicas (Apuleio, Met. I) quanto aos
sacerdotes do culto de Cibele, (Apuleio, op. cit. L. VIII, 24-27),
demonstrando que também, nesta circunstância, Lúcio permanecia
prisioneiro de seus defeitos servis. Suas desventuras terminaram
quando ele abandona o interesse por magia e entrega-se ao culto de
Ísis, pois foi devido a esta deusa nilótica romanizada que Lúcio
recupera a forma humana e, com ela, a cidadania.
Afirmo portanto que há uma unidade entre todos os livros,
do I ao XI, porquanto o autor une habilmente a busca por magia e a
luxúria à escravidão e à baixeza, simbolizadas pelo couro do asno, e
a renúncia a estes defeitos significaria sua definitiva libertação.
Neste sentido, o livro I é o oposto do Livro XI, pois no primeiro vê-
se a condenação à magia, especialmente a magia negra, e no Livro
XI vê-se a apologia do culto assimilado de Ísis. Em síntese, o texto
mostra Lúcio num percurso que vai da curiosidade por magia e da
licenciosidade – o que só lhe trouxe desgraças – à dedicação ao culto
integrado e romanizado de Ísis; sua dedicação a este culto representa
libertação de seus erros passados e a queda em nova “escravidão”,
desta vez benfazeja, ao culto da deusa.
A segunda hipótese é a de que a visão do autor é rigorosa
tanto sobre escravos quanto sobre as camadas populares e suas
práticas religiosas. A narrativa sobre a permanência de Lúcio entre
os sacerdotes da Deusa Síria-Cibele-Belona permitem comprovar
esta hipótese, uma vez que o autor desdenha esses estrangeiros
orientais e seus cultos frenéticos e estranhos à religião romana.

165
1 . A condenação à magia

Ao longo de todo o Livro I, Apuleio nos narra a viagem de


Lúcio pelo território grego em busca de práticas e conhecimento
sobre magia. Narra também a atuação maléfica de várias feiticeiras
dedicadas à magia negra, além de possuírem um comportamento
sexual exacerbado ou vicioso, e prenuncia, em várias passagens, os
malefícios que ocorreriam a quem procurasse a magia. Em I, 7-8, há
a primeira menção às desgraças que ocorrem com quem se dá a
prazeres servis como assistir jogos de gladiadores, juntar-se a
prostitutas, o que implica perder tudo o que se tem; I, 12: bruxas
dizem que a curiosidade é que perdeu o homem. A magia negra,
neste primeiro livro, é mostrada no diálogo entre dois personagens,
Aristômenes e Sócrates, a vítima da bruxa:

“Que espécie de mulher é então esta estalajadeira tão


poderosa, esta rainha de bordel?
Mágica e adivinha, tem o poder de abaixar o céu, de
suspender a terra, de petrificar as fontes, de diluir as montanhas, de
sublimar os mares e derrubar os deuses, de apagar as estrelas e
iluminar o Tártaro.” ( I, 8)

A história de Aristômenes é contada a seu companheiro de


viagem, Lúcio, o anti- herói, e ele narra as mágicas desta feiticeira
contra seus inimigos, transformando-os em animais, num claro
prenúncio do que está para acontecer-lhe caso Lúcio prossiga em seu
interesse por magia.

“Um de seus amantes cometeu a temeridade de lhe ser infiel.


Com uma única palavra ela o transformou em castor, a fim de que
ele tivesse o destino daquele animal selvagem que, por temor ao
cativeiro, corta as partes genitais para se livrar dos caçadores. O
dono de uma casa de prazer vizinha, que por isso mesmo lhe fazia
concorrência, foi trocado por ela em rã. (...) De outra feita, um
advogado tinha falado contra ela. Foi transformado em carneiro, e
hoje temos um carneiro que advoga (...)” (I, 9)

166
O tema das metamorfoses de homens em animais é um dos
mais importantes desta narrativa, assim como o da ligação entre
magia e sexualidade desenfreada das mulheres. Em várias passagens,
duas personagens femininas, Birrena e Fótis, a primeira personagem
se anuncia como irmã de leite da mãe de Lucio, pois ambas
descenderiam da família de Plutarco – o que indica a importância da
filosofia neoplatônica na formação de Apuleio – e a segunda era
escrava de Milão, advertem Lúcio contra Panfília, mulher de seu
hospedeiro Milão, como praticante de magia negra, para obter os
favores sexuais de jovens bonitos, assim como as bruxas do livro I,
pois também ela era capaz de confundir os elementos astrais:

“Guarda-te, guarda-te energicamente dos perigosos


artifícios e da criminosa sedução dessa Panfília, mulher do Milão
que dizes ser o teu hospedeiro. Ela passa por mágica de primeira
ordem, e entendida em todos os gêneros de encantamentos
sepulcrais.Consegue, soprando sobre varinhas, pedregulhos, ou
outros objetos miúdos, mergulhar toda a luz do mundo sideral no
fundo do Tártaro e no antigo caos. Reparando num moço bonito e
bem-feito, atraída por sua beleza, não tira dele mais nem os olhos
nem os pensamentos. Mas aqueles que(...), por seus desdéns,
incorrem em seu desfavor, num instante ela os transforma em
pedras, em carneiros, em quaisquer animais, sem falar daqueles que
simplesmente suprime” (II, 5-6)
“Vais saber dos maravilhosos segredos pelos quais minha
ama se faz obedecer dos manes, perturba o curso dos astros,
constrange as potências divinas, serve-se dos elementos. Mas jamais
recorre ela com mais vontade à sua arte como quando um bonito
rapaz lhe chama a atenção, o que, em verdade, acontece
freqüentemente.”(III, 15)

Apuleio narra, por intermédio de Lúcio, o narrador em


primeira pessoa deste romance, que Panfília e sua escrava Fótis
praticavam a magia negra o que atrai sobre elas o rigor dos
magistrados (III, 17). Nessas passagens citadas, vemos a magia negra
ser praticada por mulheres de sexualidade exacerbada em atividades
próximas ao crime, pelo uso de filtros mágicos tirados de cadáveres.

167
“Esse lugar se presta como nenhum outro às suas operações
mágicas, e Panfília o freqüenta em segredo. Ela dispôs então, para
começar, o aparelhamento ordinário de sua oficina infernal,(...)
Estavam ali expostos inúmeros fragmentos de cadáveres, já
chorados ou mesmo já colocados no túmulo: aqui narizes e dedos,
ali cavilhas de força, com langanhos de carne, além de sangue
recolhido das gargantas cortadas, e crânios mutilados arrancados
dos dentes da fera.” (III, 17)

Mesmo assim, Lúcio insiste em praticar a magia e convence


Fótis a ajudá-lo a realizar a mágica semelhante àquela que observara:
Panfília transformara-se em uma coruja, ao passar certo ungüento no
corpo, e saiu voando. Induziu a escrava a roubar a caixa com o
ungüento mas a escrava cometeu um engano e deu a Lucio uma outra
caixinha. Ao passar o seu conteúdo no corpo, Lúcio transformou-se
em asno, com grandes orelhas, boca enorme e pendente, e um couro
grosseiro em vez da pele macia (III, 24). Esta funesta metamorfose
causou-lhe inúmeras desgraças. Dentre estas desventuras,
ocorrências, de resto, comuns nos “romances gregos”, conta-se a sua
venda em leilão para os sacerdotes da deusa Síria, confundida nesta
narrativa com Cibele. Assim como a magia, este culto de origem
popular é mostrado de maneira rigorosa no relato de Apuleio.

2 . A condenação à religiosidade popular: Lúcio entre os


sacerdotes da deusa síria
Entre as desgraças que caíram sobre Lúcio-asno estão: sofrer
constantes castigos físicos e exploração econômica, mudar
freqüentemente de donos, ser vendido em leilão de escravos e
animais, ter a castidade, e mesmo a vida, ameaçadas. Uma das
ocorrências mais deploráveis foi a sua venda em leilão para um
sacerdote da Deusa Síria:

“[No leilão de escravos](...) Um devasso, um velho devasso,


completamente calvo, à parte alguns cabelos que caíam em cachos
grisalhos; uma dessas figuras saídas dos mistérios dos cruzamentos
populares, que, pelas ruas, de cidade em cidade, tocando címbalos e

168
castanholas, vão levando a Deusa Síria e a forçam a mendigar.
Tinha um exagerado desejo de me comprar (....)”(VIII, 24)

O sacerdote se informou sobre a mansidão do burro, pois


este seria destinado a carregar o andor da deusa Síria. O pregoeiro,
que já havia informado ser o asno originado da Capadócia, pois era
forte e rijo, disse que o asno eramanso e se prestava a todas as
necessidades, insinuando o uso para fins sexuais do burro:
“introduze-te entre as suas coxas, como hermafrodita; verás por ti
como demonstrará infinita paciência.”(VIII, 25), ao que o sacerdote,
percebendo ser alvo dos risos do público retruca:

“Alto lá, cadáver surdo e mudo, pregoeiro que só sabe


delirar! Que a deusa Síria, a Todo-Poderosa, Mãe Universal, e o
Santo Sabázio, e Belona, e a Mãe Idéia com seu Átis, Vênus
soberana com seu Adônis, te tornem cego a ti, que me provocas há
uma hora com tuas grosseiras bufonerias. Acreditas então, imbecil,
que eu possa confiar a deusa a um animal duro de queixo, para que
ele bruscamente estaque e derrube a divina imagem?(...)” (VIII, 25)

Neste discurso, o sacerdote nivela a Deusa Síria, Astargatis,


a Cibele, bem como a deuses cultuados por escravos, como Sabázio e
Belona, aliás, divindades muito cultuadas no mundo romano. Para os
propósitos deste artigo, esta passagem é da maior importância, pela
apresentação do sincretismo entre a Deusa Síria e Cibele, e estas
duas deusas à Grande Mãe. O culto da Grande Mãe foi oficializado
em Roma logo após a vitória romana em Zama, em 204, ano em que
as colheitas de cereal foram particularmente abundantes. Em 191 a .
C, foi construído um templo votivo à Cibele no Palatino e com ela
vieram seus sacerdotes eunucos que, uma vez ao ano, tinham
permissão para percorrer as ruas de Roma, com sus roupas femininas
coloridas, longas cabeleiras, acompanhados de sons de flautas e
tamborins. (TURCAN, 1992: 42-45). O culto a Cibele era associado
ao de outras deusas orientais aparentadas, como por exemplo, A
Deusa Mã associada, pelos romanos, a Belona que os romanos
conheceram no curso das guerras de expansão romana, como os
combates contra Mitrídates. Seus seguidores, chamados fanatici, se
entregavam a danças frenéticas e sua aparência era semelhante aos

169
gallos da Deusa Síria, com seus cabelos compridos, vestes longas e
negras, dançando ao som de tamborins e instrumentos de sopro. A
menção, na fonte à Capadócia, não é fortuita, prende-se a dois
motivos: os escravos da Capadócia eram fortes e rijos, ótimos para
carregar peso, e Belona, deusa associada a Cibele, era oriunda da
Capadócia. Por outro lado, a Deusa Síria tinha como deus paredro
Átis, o que é mencionado pelo sacerdote nesta passagem de Apuleio
acima citada (TURCAN, 1992: 48-49)
A compra foi realizada, no entanto, e Lúcio é levado para a
casa desses sacerdotes da deusa Síria, onde é recebido por um coro
de invertidos que “exultantes soltavam gritos desafinados, com voz
de mulher quebrada e rouca, pensando que era um pequeno escravo
que lhes prestaria serviços [sexuais] (...) mas quando viram (...) um
burro por um homem, fizeram caretas e escarneceram de seu
dirigente. Não, não era um servo, mas um marido para ele,
certamente. ‘E depois’, ajuntaram, ‘não o comas sozinho. Partilha-o
algumas vezes conosco que somos tuas pombinhas.” (VIII, 26)

Novamente, percebe-se na prosa de Apuleio, a ligação entre


cultura e ritos populares e sexualidade desenfreada, mostrados sob
um ângulo de preconceito e mesmo condenação moral. Apuleio narra
como era o ritual desses sacerdotes mendicantes da deusa Síria:
“(....) vestiram camisas vistosamente coloridas (...) odiosa
beleza lambuzando a cara com uma pintura argilosa. (...) Saíram em
seguida levando pequenas mitras, vestidos de tecido de linho fino e
de seda de um amarelo cor de açafrão. (...) Deram-me a carregar a
deusa vestida com seu manto de seda. Com os braços nus até os
ombros, levantando enormes espadas e machados, pulavam eles
como bacantes e o som da flauta lhes estimulava a marcha (...) de
possessos. (... Faziam um barulho enorme, ululando horrivelmente e
lançaram-se para a frente como fanáticos. (....) Mantendo abaixada
a cabeça, e movendo com lúbricas torções a nuca, (...) voltavam às
vezes contra si mesmos, para se morderem e acabavam cortando os
braços com a arma de dois gumes que portavam. ( ...) Um deles (...)
simulava um delírio que o esgotava, como se em verdade a presença
dos deuses não elevasse os homens acima de si mesmos, mas os
tornasse fracos e doentes.” (VIII, 27)

170
É importante considerar que o mundo romano era bem
permeável, mais do que o grego, à penetração desses deuses
estrangeiros, cujos cultos realizavam-se sem prejudicar os ritos da
religião romana. Pela análise do vocabulário, percebe-se que Apuleio
criticava os sacerdotes da Deusa Síria-Cibele com seu Átis, e o
séqüito de sacerdotes castrados. Lúcio permanece entre esses
sacerdotes como besta de carga para levar o andor da deusa Síria,
tarefa que antes era incumbida a um escravo tocador de flauta coral e
que trata muito bem o burro para que ele dure muito e o substitua
competentemente na dura tarefa. (VIII, 27). Note-se a associação
entre escravos e animais na realização da mesma tarefa de levar o
andor da deusa. Lúcio-asno sofreu muito em tais circunstâncias,
tanto castigos físicos, quanto exploração pelo duro trabalho
realizado. A sexualidade desenfreada e “contra a natureza” desses
sacerdotes é narrada em uma saborosa passagem nos capítulo 31-32,
o que permite ao Autor revelar, nessas passagens, sua crítica aos
cultos populares de origem oriental no interior do mundo romano e
que, a seu ver, não tinham legitimidade e traziam desordens. Nas
passagens referentes à seqüência da permanência de Lúcio com os
sacerdotes-eunucos da Deusa Síria os defeitos de Lúcio, a luxúria
especialmente, são causa dos sofrimentos por que passou.

3 . A Deusa Ísis e a religião de salvação


No livro XI, vemos as circunstâncias que levaram à segunda
metamorfose, desta vez benfazeja, de asno em Lúcio, o cidadão
romano. A princípio, o Asno ergue uma prece à deusa Ísis, após um
ritual de purificação, em que ele implora por salvação, chamando-a
pelos nomes de várias deusas (XI, 1-2). Ele implora “devolve Lúcio a
Lúcio”. Então, a deusa Ísis aparece-lhe em sonho e dá-lhe várias
ordens para que ele volte a ser Lúcio. Nesses trechos, ela se anuncia
como uma deusa providencial, única, mãe da natureza inteira, e uma
deusa de salvação. Portanto, a religião romana, politeísta,
comportava este elemento de soteria, e na visão apuleiana esta deusa
é altamente euforizada. (XI, 3-6).
A salvação, na forma da recuperação da forma humana deu-
se durante a Festa da Navegação de Ísis, no dia seguinte à prece.
Uma vez que Lúcio apelou para a deusa Ísis e prometeu-lhe dedicar-

171
se integralmente a seu culto, a forma humana é-lhe devolvida no
desenrolar da sua festa, no começo da primavera. A procissão
começa com os fiéis travestidos: um aparece vestido como soldado, o
outro como gladiador; outro, ainda, está vestido de mulher com
peruca de longos cabelos; mais um fiel vestido de púrpura e
precedido por carregadores de feixes, aparentava ser um magistrado;
um filósofo; um passarinheiro; e, finalmente, um pescador com seus
anzóis. Aparecem ainda animais travestidos: um macaco vestido à
moda frigia, de amarelo, parecia o pastor Ganimedes, e um urso
domesticado, carregado em liteira com roupas de mulher; um burro
com asas falsas, ao lado de um velho, simulavam ser Pégasos e
Belerofonte. (XI, 8). Ainda sobre o aspecto da procissão, cheia de
cores e sons, viam-se entre as fiéis mulheres ricamente vestidas que
jogavam rosas e aspergiam perfumes por onde passavam. As luzes
estão presentes, pois fiéis dos sexos levavam tochas; depois vinham
gaitas e flautas de melodias suaves; moços de roupas alvíssimas de
linho e moças flautistas de Serápis, uma das denominações, no
mundo romano, de Osíris (Osíris-Ápis) (XI, 9).

Durante a procissão, uma das etapas importantes da festa, o


sacerdote deixa que o asno-Lúcio se aproxime e coma as rosas de seu
andor, o que lhe trouxe a metamorfose em homem. O sacerdote,
então, menciona o alto nascimento de Lúcio, assim como sua
erudição: “Nem teu nascimento, nem teu mérito, nem mesmo a
ciência que floresce em ti te serviram.(XI, 15)
Ele insistiu com o sacerdote em ser iniciado sem demora:
“O próprio ato da iniciação representa uma morte voluntária e uma
salvação obtida pela graça. O poder da deusa atrai para si os
mortais que chegados ao fim da existência pisam a soleira onde se
acaba a luz . (... De algum modo, ela [a deusa] os faz renascer por
sua providência” (XI, 21)
Ele devia se preparar abstendo-se de carne e vinho, e praticar
continência para obter pureza sexual. O sacerdote diz que ele tem
que morrer para obter salvação eterna (XI, 23-30). Lúcio, depois de
todas as etapas da longa iniciação, é definitivamente consagrado ao
culto da deusa Ísis. Numa dessas situações, Lúcio tem visão e nela

172
contato com deuses infernais, numa inversão, desta vez positiva, da
relação das bruxas do Livro I com os astros.
Entre estas etapas da iniciação, observamos que o Autor dá
alguns dados biográficos, o que nos indica que Lúcio pode ser o
próprio Lúcio Apuleio (FANTHAM, 1996: 222-63. ) não é mais
Lúcio, cidadão de Hipata, mas é o cidadão de Madaura que passa a
narrar como foi sua consagração ao culto de Osíris, depois de ter
cumprido os ritos de Ísis. (XI, 26). Faltava-lhe a luz que vem do
grande Osíris, apesar de bem entrado nos ritos de Ísis. (XI, 27) Em
sonho, vê um fiel da deusa, que, ao acordar, ele encontra, é um dos
pastóforos da deusa, chamado Asínio Marcelo, o que não deixava de
ter relação com sua situação anterior de asno. O relato termina
mostrando Lúcio, cidadão de Madaura, como um dos quindecenvirii
que liam os livros siblinos.
Conclusão
A obra de Lúcio Apuleio vista como um todo, incluindo-se
a Apologia e as conferências – Florida – assim como este romance,
sua última obra, é um libelo em favor da ciência, do estudo, da
erudição. Em oposição a esta postura, nota-se em seu pensamento,
uma condenação às camadas populares, (ele é especialmente crítico
em relação aos escravos), às práticas rituais constituintes da
religiosidade popular. A análise das ocorrências politeístas nesta obra
– as práticas mágicas, o culto de Cibele, os cultos de Ísis e Osíris -
permitiram perceber que o paganismo, se por um lado aceitava
contribuições estrangeiras, assimilando-as e normatizando-as, por
outro, um pagão específico, o letrado e filósofo Apuleio, poderia
expressar em relação às práticas religiosas das camadas populares
bem mais do que uma visão crítica, uma condenação explícita.

Documentação Escrita
Apulée. Métamorphoses. Texto estabelecido e traduzido por P. Vallette, Les
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Apuleio. O Asno de Ouro. RJ, Ediouro, trad. Ruth Guimarães, s. d.

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Autores
Adriene Baron Tacla – Pesquisadora do Centro de Estudos Interdisciplinares da
Antiguidade (CEIA – UFF) e BRATHAIR.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima - Professor Doutor Adjunto do
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e do Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH) da UFF, membro do Centro de Estudos
Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA – UFF).
Ana Livia Bonfim Vieira – Professora Adjunta de História Antiga e Medieval da
Universidade Estadual do Maranhão.
Ana Teresa Marques Gonçalves - Professora Adjunta de História Antiga e
Medieval da Universidade Federal de Goiás.
Ciro Flamarion S. Cardoso – Professor titular de História na UFF e do
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e do Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH) da UFF, coordenador do Centro de Estudos
Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA – UFF).
Claudia Beltrão da Rosa – Professora Adjunta de História da UNIRIO, membro do
Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA – UFF).
Fábio de Souza Lessa - Professor Adjunto de História Antiga do Departamento de
História e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da
UFRJ. Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ. Apoio financeiro
do CNPq e da FAPERJ.
Marcelo Rede - Professor Doutor Adjunto do Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em História
(PPGH) da UFF, membro do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade
(CEIA – UFF).
Maria Regina Candido - Professora Adjunta de História Antiga da UERJ, integra
Programa de Pós Graduação em História Política PPGH/UERJ, e do Programa de
Pós Graduação em História Comparada PPGHC/UFRJ e coordena o NEA – Núcleo
de Estudos da Antiguidade/UERJ.
Marta Mega de Andrade - Professora Adjunto de História Antiga do
Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada
(PPGHC) da UFRJ. Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ.
Regina Maria da Cunha Bustamante - Professora Adjunto de História Antiga do
Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada
(PPGHC) da UFRJ. Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ.
Sônia Rebel de Araújo - Professora Doutora Adjunto do Departamento de História
da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em História
(PPGH) da UFF, membro do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade
(CEIA – UFF).

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