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Paula Marshall
Digitalização: Não consta - (Versão NC CH 201 - O Casamento de Hester) Ele não queria
entregar seu coração... Austrália, século XIX. Hester Waring ficou quase à míngua
depois da morte de seu pai, um homem que levara uma vida devassa e inconsequente.
A salvação veio de quem ela menos esperava: Tom Dilhorne, ex-presidiário e o homem
mais rico de Sídnei. Tom conseguiu para Hester um emprego de professora, mas sabia
que, para ser aceito na sociedade, teria de se casar com lady. Por que não Hester? Ela
era uma lady, e não era o tipo de mulher que o atraía. O que era uma vantagem, pois,
assim, ele não correria o risco de se apaixonar...
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
PRÓLOGO
CAPÍTULO I
— Para quê?
— Agora que o governador me colocou no Conselho da Escola - disse Tom,
pegando a taça de vinho que o amigo lhe oferecia - , está pensando em fazer de mim
um magistrado. Você também - acrescentou. - Ele me pediu para que lhe falasse a
respeito.
— Oh, que maravilha! — exclamou Sarah. — Você será o primeiro emancipista a
fazer parte da Justiça de Sídnei.
— Aí é que está o problema. Existem aqueles que pensam que ex-condenados,
como AIan e eu, não têm o direito de estar no Tribunal.
— Bem, se o governador quer que sejamos juizes, certamente o seremos, a longo
prazo, se não puder ser em breve. — Referia-se ao fato de que os poderes do
governador eram praticamente ilimitados, em razão da distância entre a Inglaterra e o
governo. Na verdade, seus decretos poderiam ser revogados, mas somente depois de
transcorridos meses.
— E cedo ainda para isso — retrucou Tom. — Tenho muito a fazer no Conselho
da Escola. Deixe que eu me saia bem por lá e então passarei ao próximo desafio. Melhor
que seja a longo prazo.
— Fred Waring deve estar se revirando no túmulo com a idéia de você se tornar
um magistrado! — exclamou Sarah, caindo na gargalhada.
— Tem razão, e isso me faz lembrar de sua filha, de novo:
Confio em você, Sarah. Quero que me diga que qualidades eu deveria buscar em
uma professora.
— Paciência — disse Sarah, com um sorriso. — A habilidade de ensinar o ABC,
desenhar coisas simples, e passar a eles um pouco de História, que lhes mostre a velha
Inglaterra.
— E, eu. também acho. Se ela tiver condições de fazer isso, então poderia ser a
preceptora, isso se o Conselho for justo e lhe der ao menos uma chance. O problema é
que Fred fez muitos inimigos.
— Não é culpa dela, pobre garota — disseram, ao mesmo tempo, Alan e Sarah.
— A moça, com certeza, precisa desesperadamente de dinheiro — acrescentou
Sarah. — Por que eles não a querem, excluindo o problema com Fred?
— Acham que tem um ar estranho e é muito retraída. E não é forte o suficiente
para o posto. Não quero condenar a pobre criatura sem mais nem menos, a despeito de
Fred não gostar de mim.
Não gostar? Odiar seria a palavra correta, pensou Alan.
Tom pôs-se a caminhar de um lado para o outro, falando como se pensasse alto.
— Robert Jardine me disse, em confidência, que ela está bem pior do que parece,
bem abaixo da linha de uma pobreza aceitável. Que mal pode pagar por uma refeição
A casa da sra. Cooke, onde Hester morava, era uma construção de tijolos de dois
andares, em um beco que saia da rua da Ponte. Seu pai havia alugado o andar superior
da ara. Cooke, viúva de um oficial do exército que havia preferido permanecer na Nova
Gales do Sul em vez de retomar à Inglaterra.
Assoberbada de dívidas após a morte do pai, Hester havia pedido para ocupar
apenas um quarto e preparar as próprias refeições. Tinha pouquíssimo dinheiro vivo, a
maior parte conseguida com a venda das últimas Jóias da mãe que haviam escapado
dos dedos ávidos de Fred Waring. Ele pusera fora tudo que possuía para continuar
bebendo e jogando, na vã esperança de recuperar a fortuna perdida.
Hester continuou a pensar no pai enquanto subia os degraus da varanda. Abriu a
Hester Waring’s Marriage 8
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
porta da frente e sentiu no ambiente o cheiro gostoso de comida. Sua boca encheu-se de
água que ela tentou conter, em vão.
— Oh, aí está você, srta. Waring — disse a sra. Cooke, saindo de sua pequena
cozinha. — Pensei mesmo tê-la ouvido. Havia muita gente na igreja, hoje?
— Sim — retrucou Hester, tirando o chapéu. — A sra. Wright estava lá. Disse
que seu bebê está ótimo. — Encaminhou-se depressa para a escada, esperando que a
ara. Cooke não a convidasse para o almoço. Com a fome que a consumia, não teria
forças para recusar. Porém não aceitaria a caridade da sra. Cooke. Não, nunca!
Com um suspiro, a viúva observou-a desaparecer rapidamente para dentro do
quarto. Já havia decidido oferecer a ela um pouco do ensopado. Afinal, Hester parecia
extremamente abatida nos últimos dias. Não vinha se alimentando direito. Pena que
seus refinados amigos nunca se lembrassem de convidá-la para as refeições ou nem
mesmo para um simples lanche.
Sentada na cama, em seu quarto, Hester ficou a imaginar o que diria a Lucy, se a
amiga a houvesse convidado para o almoço. Julgara que, por um instante, Lucy estivera
a um passo de fazê-lo. Frank, porém, logo havia posto um ponto fina] na intenção.
Bem, ela não a convidara. Hester havia aprendido a não perder tempo pensando
em possibilidades remotas, principalmente aquelas que estavam fadadas a não
acontecer. Sua refeição seria uma fatia de pão velho com um pouco de manteiga rançosa
que comprara barato. E um bocado de maçã. Para beber, água.
Havia terminado de passar a manteiga no pão quando a sra. Cooke meteu a
cabeça no vão da poda.
— Fiz um pouco de ensopado, hoje, srta. Waring. Fiquei pensando se você
poderia me ajudar a acabar com ele.
— Oh, que pena... — Hester foi tão amável quanto conseguiu, escondendo o pão
e a maçã debaixo de uma toalha velha. — Acabei de comer, mas foi multa gentileza sua
pensar em mim. Uma outra vez, quem sabe.
A sra. Cooke desceu a escada, aborrecida. Julgara que a moça não teria coragem
de recusar um convite tão tentador. Sabia perfeitamente qual devia ser o almoço de
Hester. Uma migalha! Enfim, tinha cumprido seu dever de boa cristã. Pena que nada
que se fizesse conseguisse agradar a algumas pessoas.
Para Hester, entretanto, não havia outra alternativa. O que estava em jogo era
mais do que orgulho. Uma vez aceita a oferta caridosa da ara. Cooke, onde isso iria
parar? Hester não desejava defrontar-se com ressentimentos amargos, talvez até mesmo
receber um ultimato da ara. Cooper para deixar a casa.
Se era uma injustiça pensar assim, não queria saber e preferia não descobrir.
Acabou de comer e estirou-se na cama, cansada até os ossos. Tentou dormir, mas
as lembranças do passado vieram assombrá-la. Normalmente, tentava esquecer. Não
gostava de relembrar como e por quê os Warings haviam sido exilados da Inglaterra, até
terminarem ali, sozinhos e sem um tostão, perdidos na fronteira do mais recente
Hester Waring’s Marriage 9
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mais rica que tenha conseguido ficar e por mais que alguns de vocês possam desejar
arrancar dinheiro dela. Ou ele sai ou saio eu.
Tom afundou-se ainda mais na cadeira. Sempre fora insensível a insultos. Olhou
para Burrell, então para Fred, e murmurou:
— Não tenho a intenção de sair.
A resposta de Burrell foi encarar friamente o pobre Fred.
— E eu não tenho a intenção de pedir ao sr. Dilhorne que saia e acredito que a
comissão tenha a mesma opinião. Ele está aqui a nosso convite. Peço que mude de idéia,
Waring, e seja educado com ele. De outra forma, é você quem deve sair.
Fred tornou-se lívido. Havia se colocado em uma posição para a qual não havia
saída. Em seus primeiros anos na colônia, havia se tomado um grande amigo de Burrell
e de vários outros membros do clube. Porém suas bebedeiras, as perdas no jogo, sua
incapacidade de quitar as dívidas, associada a sua decadência física e moral e sua
desabrida liberdade sexual, haviam feito com que perdesse a maioria dos amigos que
um dia conquistara.
— Eu disse que não me sentaria com Dilhorne — retrucou — , e pretendo manter
minha palavra.
Saiu cambaleando da sala, indo terminar o dia no inferninho de madame Phoebe,
uma casa noturna de jogos. Mais tarde, fora trazido, bêbado até a inconsciência, e
jogado na soleira da porta da sra. Cooke. Hester o arrastara penosamente pela escada,
limpara-lhe as roupas emporcalhadas e, sabe-se lá como, colocara-o na cama.
Muito depois, ele lhe contou, em detalhes, como Dilhorne liquidara com ele no
clube, assim como nos negócios. Na verdade, havia perdido o cargo de escrevente por
causa de sua falta de atenção para com seus deveres, mas escolheu culpar Tom ao invés
de atribuir sua demissão à própria incompetência. Nunca mais entrou no clube: era seu
último vínculo com a respeitabilidade. Sua própria tolice cortara aqueles laços.
Além disso, havia suas dívidas de jogo. Emprestara dinheiro de um amigo, que
vendera as promissórias a Tom. Outros débitos tiveram o mesmo destino. Fred
descobriu-se devendo urna considerável soma para o homem que mais detestava no
mundo.
Mesmo antes de sua discussão com os membros do clube, em confidências à
filha, inúmeras vezes Fred acusara Tom de ser o autor de sua desgraça. E em linguagem
tão veemente que Hester estremecera de pavor. Na decadência que se seguiu, até a
ruína, culpou-o injustamente por tudo que lhe acontecia. Via-o como o mentor de sua
desgraça, e ensinou Hester a temê-lo como ao próprio demônio.
Hester levantou-se da cama e olhou pela janela. Suas recordações sempre lhe
traziam à mente o pai como o homem em que se tomara na colônia. Dificilmente
conseguia relembrar de como ele era, antes de chegar a Sidnei. De uma forma vaga,
pareceu recordar-se de um sujeito grande e alegre, carinhoso para com ela, embora sua
verdadeira afeição fosse sempre centrada em seu irmão.
E sua mãe? Parecia, de alguma forma, que nunca tivera mãe, de fato. Assim que
haviam chegado a Sídnei, a sra. Waring entrara em um processo de depressão que
terminou com sua morte prematura.
Para ser justa com a memória da falecida, a cidade na qual haviam
desembarcado havia oito anos, depois de unia longa e miserável viagem por mar, era
insignificante. A maior parte das casas era de troncos de madeira. Vir parar ali devia ter
parecido à mãe como chegar a um ao inferno, povoado de bandidos, animais estranhos
e selvagens, particularmente depois de viver na bela casa de campo, em Kent.
Hester havia escrito ao tio, sir John Saville, contando da morte da mãe e, depois,
da do pai. Nunca recebera resposta. Era dolorosamente evidente que sir John havia
lavado as mãos, esquecendo esse ramo da família. Tinha que encarar a realidade. Via-se
presa a Sidnei pelo resto da vida. Porém, que tipo de vida? O que iria fazer quando
acabassem as míseras moedas que guardava? E se não conseguisse o cargo de
professora na nova escola?
A vista se lhe turvou. Tudo desapareceu. Hester fechou os olhos, estremecendo
diante de tal possibilidade. Se não conseguisse aquele emprego, sabia que havia apenas
um destino a sua espera. O mesmo destino miserável das filhas dos menos favorecidos.
As ruas, para vender a única coisa que ainda possuía, seu corpo.
Quanto alguém iria pagar por aquilo? Hester não tinha ilusões sobre si mesma.
Uma pobre criatura como ela iria arrancar apenas centavos de soldados rasos, que
aceitavam qualquer companhia, desde que fosse mulher e disponível. A menos que
madame Phoebe julgasse que poderia fazer alguma coisa e a levasse para seu bordel.
Não devia pensar no passado. O bom senso dizia que era preciso pensar apenas
no presente. Devia sentar-se e planejar o que dizer ao conselho da escola. Tinha de
persuadir seus membros para que não dessem ouvidos a Tom Dilhorne. Assim, ele não
poderia arruiná-la, como havia arruinado a seu pai.
sua estatura.
Sua mal disfarçada insolência não passou despercebida a .Jack, que não
entendera as palavras exatas de Tom, mas captara seu sentido. Sua fisionomia fechada
enfureceu-se ainda mais. Nenhum maldito ex-condenado iria falar com ele assim.
— Maldito seja, seu condenado! Se já não fosse suficientemente ruim ser
mandado para os confins da terra, ainda temos que agüentar a insolência dos velhacos
que somos obrigados a proteger! — Disfarçadamente, esquadrinhou Tom de alto a
baixo, notando-lhe as roupas caras e elegantes e acrescentou: — Mesmo querendo
macaquear os ricos, Dilhorne, você ainda se parece com a escória à qual realmente
pertence!
O semblante de Tom continuou impassível diante daqueles insultos.
— Você queria falar comigo? — perguntou, com uma voz pausada. Conseguia,
sem nem sequer tentar, parecer vagamente ameaçador.
Jack disse, com rudeza:
— Disseram-me que você tem um cavalo para vender. Quanto quer por ele? E
não tente me enganar, veja lá.
— Nem sonhe com isso — murmurou Tom, os brilhantes olhos azuis fixou nos
olhos negros de Jack. — Que eu tinha, é certo. Apenas, não tenho mais. — Com um ar
quase distraído, limpou o ombro de seu elegante casaco azul escuro, por onde Jack o se-
guram. Porém, a insinuação de perigo que o rodeava como uma aura estava em cada
gesto, em tudo que ele fazia.
Era mentira, e o oficial sabia disso. Tom tinha um cavalo para vender, mas no
momento em que Jack o interpelara a respeito, resolvera retirá-lo do mercado. Conhecia
a reputação de Jack com a relação a cães, cavalos e mulheres. Não tinha a intenção de
permitir que seu belo garanhão preto fosse maltratado por tal criatura. Melhor guardá-
lo.
A raiva de Jack explodiu.
— Você sabe muito bem que tem um cavalo à venda, Dilhorne. Ramsey me disse
isso, não disse, Ramsey?
O capitão Patrick Ramsey, que não sabia a qual dos dois homens detestava mais,
Jack por ser um cafajeste e, Dilhorne por estar abaixo da consideração de um cavalheiro,
deu de ombros e falou, com despreocupação:
— Pensei ter ouvido.
— Aí está, veja só. Um boato — retrucou Tom, em tom de caçoada. — Sinto
muito se você se deixou iludir por isso, capitão... Cameron, é esse seu nome?
— Você sabe muito bem quem sou eu — esbravejou Jack, tomado de fúria.
— Parece que não fomos apresentados — comentou Tom.
Sua audácia divertiu a todos os oficiais. Menos a Jack. A simples idéia de um
essa escória. Meu sonho é ver aquele cão atrevido gemendo debaixo do chicote de novo,
antes de deixarmos Sídnei.
— Chamou os outros oficiais. — Venham, vamos sair de debaixo desse sol
maldito e fingir que estamos em qualquer outro lugar que não seja aqui, sendo
insultados por bandidos!
CAPÍTULO II
A duras penas, Hester Waring tentava administrar os últimos tostões que lhe
restavam. Ainda faltavam uns poucos dias antes que o Conselho da Escola se reunisse
para decidir seu destino.
Engolira o orgulho e pedira a sua. Cooke para ajudá-la em seu pequeno negócio.
Em troca, ganhava para pagar o aluguel e sobravam alguns trocados. Ainda não era a
ruína total.
A viúva suplementava a ínfima pensão que o marido lhe deixam fazendo
camisas, roupas e peças íntimas para homens e mulheres e estava começando a receber
mais encomendas do que podia dar conta. Assim que compreendera que Hester falava a
sério, passara a ela o trabalho que exigia menos habilidade e também a orientam quanto
às costuras mais elaboradas.
Estava começando a ficar preocupada com sua inquilina, que se recusava a
aceitar qualquer forma de caridade. Ficaria ainda mais nervosa se soubesse o que estava
acontecendo com Hester. Uma falsa euforia, resultado de um estado próximo à
inanição, vinha mostrando seus sinais.
Desde que chegara a Sidnei, Hester passam a escutar uma voz interior que lhe
dizia coisas horríveis e irreverentes. Também lhe contava os reais motivos que moviam
as pessoas, muitas vezes bem diversos daquilo que falavam da boca para fora.
Ultimamente, essa voz desenvolvem um hábito desagradável de usar uma linguagem
bastante inadequada, que aparentemente aprendem com Fred Waring, quando ele
estava bêbado, ou no bar de onde Hester freqüentemente o resgatava.
Ela mesma jamais ousara falar assim em voz alta. E nem tinha idéia de onde
surgiam aquele modo cínico de enxergar os amigos. Entre divertida e abalada, escutava
seu Mentor, como passara a chamar aquela voz, que a aconselhava com freqüência,
indicando-lhe o que devia fazer A princípio, tentara expulsá-lo de sua cabeça. Aos
poucos, porém, começara a entender que, longe de a estar levando à loucura, aquilo
preservava sua sanidade.
Seu Mentor estava, agora mesmo, e de urna maneira desagradável, informando
que se ela não conseguisse pagar o aluguel ou as contas, mesmo a bondade da si-a.
Cooke teria seus limites. Não, sua única salvação era a reunião do conselho da Escola.
Era nisso que deveria pensar e em nada mais.
Além disso, poderia não ser prudente chegar para a entrevista em um estado
próximo ao colapso. Por isso, nesta tarde que antecedia ao compromisso, Hester aceitou
o convite da sra. Cooke para o chá na tarde. Com alegria, devorou uma grande fatia de
bolo de frutas, depois de a viúva ter comentado, superficialmente, que o fizera dias
antes e que Hester lhe faria um favor se o comesse.
Hester acordou, no dia seguinte, sentindo febre. 9uebrou o jejum com um pedaço
de pão seco e um pouco da manteiga que a sra. Cooke lhe dera, com o pretexto de que
estava sobrando e não deveria ser desperdiçada.
Ao se examinar no espelho quebrado, percebeu que mesmo seu melhor vestido
estava bastante desbotado e dificilmente serviria para melhorar sua aparência já tão
abatida. Mesmo assim, esforçou-se em adotar um ar de vivacidade com o qual
pretendia impressionar os membros do Conselho.
Todos, cem exceção daquele bicho-papão monstruoso, Dilhorne! Nada que fizesse
poderia impressioná-lo. O Mentor de Hester parecia ainda mais vulgar e falante que
nunca, naquela manhã. Arrasara com ela e com sua aparência submissa e comportada.
Dane-se!, pensou, saindo na gama fina de Sídnei com apenas um xale para protegê-la.
A chuva contribuiu para piorar sua aparência. Os cabelos grudavam-se a seu
rosto. Tentou secá-los com um lenço. Não adiantou em nada.
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Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
Tinha em uma das mãos um chapéu de pele de castor, no grito da moda, e, na outra,
uma bengala de ébano encimada por um ídolo chinês esculpido em marfim.
— Minhas escusas, srta. Waring, amigos membros do Conselho, sr. Jardine, mas
o Governador me reteve. Pediu-me que lhes transmitisse suas desculpas, mas o assunto
que tínhamos a discutir era urgente.
Somente quando ele a encarou com seus brilhantes olhos azuis, Hester percebeu
que aquela estonteante visão, que também era amigo do Governador, era Tom
Dilhorne!
Ficou tão chocada que perdeu o rumo e sentou-se, a imagem da confusão, de
queixo caído. A razão pela qual nunca mais o vira pelas ruas de Sídnei, recentemente,
não era porque ele desaparecera, mas sim porque se tornara alguém inteiramente
diferente do homem que conhecera.
Tom, do alto de sua cadeira, ao lado do presidente, foi tomado por uma intensa
piedade. Se isso era a melhor maneira com que ela podia se apresentar para uma
ocasião tão importante, então a moça devia estar bem pior do que Jardine o havia
informado. Também sabia o motivo pelo qual ela se tornara violentamente rubra e
depois pálida como uma morta quando ele entrara. Maldisse intimamente o falecido
Fred Waring, algo que viria a fazer com crescente freqüência nos meses que estavam
por vir.
Consciente de que sua apresentação, nunca muito brilhante, estava deteriorando-
se rapidamente e beirando à incoerência, Hester endireitou os ombros e tentou se
recobrar. Godfrey Burrell lhe dirigia a palavra.
— E, por favor, srta. Waring, quais são seus talentos como educadora, quero
dizer, nas áreas mais sérias do ensino?
Um pensamento cruzou a cabeça de Hester: “como se eu fosse ensinar César e
Lívia, os imperadores de Roma!”. Sua resposta, entretanto, foi delicada.
— Fui educada pelo tutor do meu irmão e tenho domínio bastante bom do Latim
e um pouco do Grego.
Essa colocação, feita friamente, pareceu impressionar a todos do Conselho, a
exceção do bicho-papão, que perguntou:
— Então, acha que o conhecimento dos clássicos seja útil para a juventude de
Sidnei, srta. Waring?
— Essa é uma decisão do Conselho, não minha, sr. Dilhorne — ela retrucou. —
Se desejarem que eu os introduza ao conhecimento do amo, amas, assim será!
A demonstração de presença de espírito pareceu divertir o monstro.
— E a matemática, sra. Waring? Como se sai com os algarismos?
— Posso calcular uma porcentagem tão bem como qualquer um, ar. Dilhorne.
— Ah, então você seria uma aquisição muito útil para meu escritório de
contabilidade, srta. Waring — ele redargüiu suavemente. — Alguns de meus
Hester Waring’s Marriage 18
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
Esperava que fizesse bom proveito. Ele, de súbito, baixou o rosto, viu que ela o encarava
e, por um aterrador momento, Hester pensou tê-lo visto mandar-lhe uma piscadela de
olhos. Devia estar ficando louca! Juntou as mãos que tremiam. E ao fazê-lo, Tom deixou
escapar uni suspiro. Notara o estado deplorável de seus dedos miados.
A reunião caminhava para um desfecho. Pela expressão de Jardine, pelo ar
divertido de Tom Dilhorne, e a julgar pela reação do conselho a suas últimas respostas,
Hester temia ter jogado fora sua última chance de evitar a ruína.
O que era bem pior, se a entrevista não terminasse logo, tinha medo de
acabar desmaiando diante de todos. As contorções da fome, cada vez mais e mais fortes,
haviam começado a preocupá-la. Estavam se tomando insuportáveis.
Hester ficaria bastante surpresa se soubesse que havia um membro do conselho
que tinha plena consciência do que se passava de errado com ela. E era o homem do
qual guardava uni amargo ressentimento. Tom disfarçava a piedade, que
instintivamente sabia que ela iria rejeitar, sob uma máscara de divertida indiferença.
Além disso, não poderia deixar que seus companheiros do Conselho soubessem
de sua simpatia. Devia forçá-los gentilmente para que a contratassem. Não tinha
dúvidas da competência da moça: isso transparecia, mesmo através de seu estado de
fraqueza e miséria.
Finalmente, tudo acabou. Hester, o coração na boca, levantou-se e fez uma ligeira
curvatura de cabeça, antes de deixar o Conselho entregue as suas deliberações.
Dilhorne guardou na mente apenas unia única lembrança, ao final da entrevista.
Hester, sentada diante deles, desesperançada e aflita, cabeça baixa, as mãos
avermelhadas no colo. Se nunca antes houvesse se deparado com o desespero
silencioso, ele o tivera diante dos olhos. Percebeu que os companheiros conversavam
entre si, deixando claro que não sabiam o que havia de errado com a moça.
Burrell comentou que achara suas maneiras muito desagradáveis.
— Falta-lhe bom senso — emendou Fitzgerald, com secura. — Não tem
condições de controlar nem mesmo crianças pequenas. E é bem feiosa, também.
Embora concordasse quanto à aparência de Hester, Tom não tinha certeza
daquilo que os conselheiros esperavam de uma professora. Alguns, ele sabia, deviam
considerar sua feiúra uma vantagem.
— Ela está morrendo de fome — anunciou, com aspereza. — É por isso que
parece tão feiosa e magra e tem aquela cor emaciada.
Todos os encararam. Tom, porém, havia visto a fome e suas conseqüências em
seus dias vividos em Londres e as reconhecera em Hester. Os braços finos, as faces
encovadas, o pescoço comprido, os ossos saltando pela pele, o rosto que era só olhos,
olhos embotados e findos, a compleição doentia, os cabelos sem brilho. Pela aparência,
ela não desfrutava de uma boa refeição havia anos. Sua antipatia pelos companheiros,
que sempre fora grande, aumentou. Bem alimentados, todos uns beberrões, não
reconheceriam unia criatura morrendo de inanição mesmo que caísse morta diante
deles.
Julgou que era hora de intervir, a favor da moça.
— O dinheiro de Fred Waring, o pouco que tinha, ele o gastava consigo mesmo,
com bebida. E agora que ele está morto, Deus sabe lá como ela está sobrevivendo, O que
é mais importante, eu acho, é que ela poderia controlar as crianças, há presença de es-
pírito dentro dela, e tem o conhecimento necessário para ensiná-los efetivamente.
Discutiu comigo asperamente e, uma ou duas vezes, falando com você, Burrell, foi clara
e incisiva.
Godfrey Burrell ponderou, com seu jeito pomposo:
— Sinto que a opinião do conselho é contrária a sua, Dilhorne.
Tom sorriu.
— Sim, claro, não seria a primeira vez, seria? Porém, se a quiserem descartar,
pensem um pouco. O que pretendem fazer? Quem irá preencher o posto? Ela foi a única
pretendente. Devemos esperar que aporte um outro navio vindo da Inglaterra... e des-
cobrir que não há ninguém adequado a bordo? Ou o quê, então?
— E preciso levar isso em consideração — concordou Burrell.
Viam-se diante de uma total falta de opções. Era evidente que nenhum deles
queria Hester, todos pelos motivos errados. Logo, a maioria iria preferir postergar a
abertura da escola ao invés de empregá-la, a despeito do desejo do Governador de que
isso fosse feito com urgência.
O fantasma de Fred Waring havia se levantado de seu túmulo para assombrar
sua infeliz filha. E a falta de imaginação dos conselheiros também os levava a não
compreender quais as conseqüências para a moça, se não a indicassem para o cargo.
Tom não quis forçar mais a situação em favor de Hester. Poderia criar
antagonismos. Com seu usual leque de possibilidades, enxergou uma saída.
— Deixem o compromisso pendente — sugeriu. — Coloquem-na em prova.
Vejam como ela se sai. Se não servir, então está fora. Podemos encontrar alguém até lá.
Todos relutaram um pouco mas, como estava se tornando cada vez mais comum
em suas reuniões, acabaram por aceitar a sugestão. Dariam três meses à srta. Waring, a
título de experiência, e ela que se sentisse feliz com isso.
Dilhorne recostou-se na cadeira, satisfeito por ter encontrado um jeito de fazer
valer sua opinião; feliz porque o Conselho estava contratando uma professora
competente, e contente também porque a feiosa srta. Waring não teria que palmilhar as
ruas a procura de sustento. Muito embora no estado em que a moça se encontrava, só
um homem desesperado pagasse para levá-la para cama.
Hester, esperando na ante-sala, sentia que cada minuto que passava era um
baque a mais em suas esperanças. Tinha certeza de que iria ser reprovada, e que Tom
Dilhorne seria o responsável por seu fracasso. Se ele não fosse membro do Conselho,
quem sabe ela houvesse se saído bem. Depois dos conflitos com seu pai, ele só poderia
conveniência de sua contratação seja avaliada. Se, ao final desse período, seu
desempenho não houver sido satisfatório, será demitida incontinenti. O ar. Jardine, o
secretário, redigiu a minuta do contrato. Está me entendendo?
— Perfeitamente — disse Hester, secamente, fixando os olhos turvos em Tom,
que se remexia com evidente desconforto em sua cadeira, diante da expressão aflita da
moça.
Godfrey Burrell sentiu-se impelido a deixar clara a Hester a natureza precária do
emprego.
— Julgo-me obrigado a lhe dizer, srta. Waring, que o Conselho lhe faz esta
proposta com alguma relutância. Há alguns dentre nós que temem que não .esteja à
altura da tarefa. E se espera que a senhorita prove que estão enganados.
Eu estava certa, pensou Hester. Só podia ser Tom Dilhorne, ainda tentando dar o
troco a papai. Bem, que ele se dane! Mostrarei que está errado. Tenho que fazer isso.
Era impossível a ela imaginar que apenas Tom tinha conseguido salvar seu
emprego.
— Darei o melhor de mim para que fiquem satisfeitos — retrucou, com firmeza.
— Ótimo, ótimo — cortou Burrell. Estava com pressa. Queria almoçar. Alguma
coisa, em Hester, perturbava-o. Provavelmente Dilhorne estivesse com a razão
novamente, droga. Olhando bem a moça, parecia possível que não ela estivesse
alimentando-se decentemente.
Uma lembrança súbita o assaltou, da garotinha bonita que ela era quando os
Warings haviam desembarcado em Sídnei. Remexeu-se na cadeira, tomado de
desconforto. Bem, tinham dado a ela uma chance, o que era mais do que muitos haviam
feito. Apontou para o secretário, parado ao lado da mesa, de cabeça baixa.
— Jardine vai pô-la a par das particularidades de seu cargo e será o encarregado
de sua remuneração. Ele lhe dará um pequeno adiantamento para suas despesas. Se
desejar se comunicar com o Conselho, você deverá fazê-lo através dele. Como seu
desempenho está em questão, estou propondo que o ar. Dilhorne seja encarregado de
supervisioná-la pelos próximos três meses.
O quê? O que sabe esse homem sobre educação ou ensino, para assumir essa
tarefa?, pensou o Mentor de Hester, irritado. Eu o verei e a todos vocês no inferno, antes
de lhes dar a satisfação de me despedir.
Hester procurou dissimular seus reais sentimentos. A única pessoa que
conseguiu perceber a raiva latente oculta sob aquela expressão submissa foi o próprio
Dilhorne. Enquanto Burrell falava, Tom vira os olhos da moça luzirem estranhamente, e
ele reconhecia a insolência muda quando se deparava com ela. Sua intuição, quase
feminina, dizia-lhe que havia mais dentro dela, do que se poderia supor.
Há tempo bastante para descobrir, pensou. O encargo que lhe fora dado pelo
Conselho possibilitaria a oportunidade de descobrir exatamente de que estofo a pobre e
feiosa Hester era feita.
Hester Waring’s Marriage 23
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
CAPÍTULO III
Lachlan Macquarie pôs-se a ler o breve relatório que estava sobre a mesa. Era de
Jardine. Informava que o Conselho da Escola indicara Hester Waring para o posto de
professora, a titulo de experiência. Ali havia o dedo maquiavélico de Tom Dilhorne,
pensou. Nesse instante, o tenente Munro colocou a cabeça no vão da porta, dizendo que
o coronel O’Connell, do 73º Regimento de Infantaria, tinha chegado e esperava para vê-
lo.
Macquarie suspirou e colocou o relatório de lado. Ultimamente, as visitas de
O’Connell não eram muito agradáveis. O militar não apreciava nem um pouco muitas
das medidas que o governador vinha adotando. Via nelas uma maneira de agradar à
população de ex-condenados. Macquarie ficou a imaginar do que O’Connell viria
reclamar, desta vez.
— Mande-o entrar — ordenou aborrecido.
O’Connell era um homem grandalhão, a obesidade ganhando terreno na paz da
fronteira meridional das ilhas Britânicas.
— Prazer em vê-lo — disse o governador, depois das formalidades cumpridas.
— Não vai pensar assim depois de ouvir o que tenho a dizer.
— Não? O que é desta vez, Jack?
— Dilhorne — retrucou O’Connell asperamente. — Correm boatos por ai, não sei
se há alguma verdade, veja bem, já que parece que começaram com Jack Cameron... e
você sabe como ele não é confiável, de que você pretende nomear Tom Dilhorne como
juiz. Logo esse sujeito! O homem chegou aqui acorrentado, é cheio de truques, apossou-
se de tudo quanto a vista alcança... dizem que, sabe-se lá como, convenceu os ianques a
deixá-lo entrar em seu gigantesco negócio.
Você sabe tão bem quanto eu que ele controla o ramo das olarias. Praguejo contra
ele cada vez que o vento sopra vindo daquela direção e cobre tudo com uma poeira
vermelha. Também tem o monopólio do transporte de carga, é provavelmente o homem
por trás da fábrica de beneficiamento de lã do Dempster, está brigando com Wil French
pelo controle da extração das pedreiras, e, acima de tudo, com certeza é o investidor na
retaguarda do empreiteiro de obras que está mudando a cara de Sidnei para você... —
Ficou sem fôlego antes de terminar de enumerar os detalhes do império de Tom na
lugar habitado por bandidos e mulheres de vida fácil, a ralé da Inglaterra! Levar o
Dilhorne para os tribunais é a mesma coisa que colocar no Legislativo e no Judiciário
todos esses cangurus, marsupiais e aborígines que pululam por aqui. E, quanto a Kerr...
ele pode ter sido um cavalheiro, algum dia, mas é tão ruim quanto Dilhorne. Quer que a
comida servida aos bandidos seja melhorada e exige melhores acomodações para os
sentenciados. Qual a próxima exigência, posso lhe perguntar? —
O coronel estava tão transtornado que foi obrigado a parar. Logo, porém,
arrematou: — Encare a realidade, Lachlan, este lugar não tem futuro a não ser como
colônia penal e, por sua conduta, nem ao menos isso você está permitindo que seja.
O corpo inteiro de Macquarie estava retesado de raiva. Mal conseguia
controlar-se, ao responder:
— Não posso concordar. Porém, posso entender porque pensa dessa maneira.
Você vê as coisas apenas a curto prazo, o que não é surpresa para mim. Dê a Dilhorne o
beneficio da dúvida. Alguns dos exclusivos, como Godfrey Burrell, já estão agindo
assim.
— Antes, eu preferiria dar com a chibata nas costas dele — retrucou O’Connell,
levantando-se e enterrando o quepe na cabeça.
— Inútil conversar com você, Lachlan. Mas, eu lhe aviso: meus homens estão
muito perturbados com suas atitudes, tais como convidar gente como Dilhorne e Kerr
para jantar no Palácio do
Governo, junto com oficiais, cavalheiros e damas de boa família. Você está
arranjando encrenca para si mesmo.
— Porém, isso não vai me impedir de cumprir com meu dever. E se eu julgar que
meu dever é fazer de Dilhorne um magistrado, então é isso o que farei.
O’Connell abandonou a sala, O governador soltou um suspiro de desânimo.
Descobria-se mais inclinado a simpatizar com um ex-condenado do que com seu velho
amigo e companheiro de armas. No devido tempo, Dilhorne e homens como ele
poderiam criar uma nova classe social na Nova Gales do Sul, e era isso que Macquarie
gostaria de presenciar.
Tom dissera que ficaria de olhos em Hester, e ele sempre cumpria suas
promessas. Em uma bela manhã de sol, não muito tempo depois que ele e Mary
Mahoney haviam se separado, resolveu ir até a escola, que ocupava um cômodo de um
armazém reformado na rua York, para verificar o trabalho da nova professora. Ao se
aproximar, ouviu as risadas alegres que vinham da sala. Não quis espiar pela janela
para descobrir o que se passava, pois sabia que não era de bom tom. Entrou no prédio
pela porta da frente, que estava aberta, e ficou em um canto, onde não poderia ser visto.
Isso também não era muito bonito, porém não queria que Hester soubesse que
ele estava ali. Sua presença iria perturbá-la, fazê-la perder a naturalidade. E, por alguma
razão, ele queria descobrir como era ela quando não sabia estar sendo observada.
Ela estava sentada diante de um grupo de crianças, com uma garotinha
sorridente no colo, lendo uni texto de um livro infantil, uma das poucas relíquias de sua
antiga vida na Inglaterra. Atrás dela, meninos e meninas, curvados sobre suas lousas,
— Obrigada, sr. Dilhorne. Eu não gostaria que fosse assombrado, nem por
crianças perturbadas nem por qualquer outra coisa.
Bravo, srta. Waring, foi a resposta que Tom murmurou para si mesmo. Sua
provocação trouxera cor ao rosto dela, um brilho a seus olhos e todo o corpo de Hester
vibrava em uma combinação de divertimento e indignação. A julgar por sua expressão,
a opinião que tinha do ar. Tom Dilhorne era digna de ser ouvida em voz alta.
Ele cumprimentou-a com uma curvatura de cabeça. Ela retribuiu e mandou que
os pequenos fizessem o mesmo, os meninos com uma reverência, as garotinhas com
uma mesura.
— Esplêndido, muito bem — foi o comentário de Tom. — E óbvio que está
ensinando a eles como se comportar e tão bem quanto a Mamãe Gansa. Lamento ter de
deixá-los, srta. Waring, mas tenho uma reunião. Quero que saiba que sou seu mais
humilde e obediente criado. — Ele curvou-se, em um salamaleque exagerado nas
últimas palavras.
Você nunca foi meu criado e pode ir para o diabo, pelo que me diz respeito,
pensou Hester, fulminando-o com seu sorriso mais dissimulado.
Ele, porém, percebeu o brilho em seu olhar e sabia que Hester Waring zombava
internamente de Tom Dilhorne. De novo!
Havia um código de honra quanto a isso, e as trapaças de Jack teriam que ser
suficientemente desmascaradas para que se pudesse dizer ou fazer algo a respeito. Uma
falsa acusação, ou uma que não pudesse ser sustentada, iria arruinar o acusador, ao
invés de o acusado. Aqueles que eram pegos trapaceando com cartas ou dados se
tornavam párias. A honra exigia que renunciassem às Forças Armadas e ao convívio em
sociedade.
Tom conhecia os códigos de honra, mas pouco se importava com eles. Tinham
sido inventados por cavalheiros para passar o tempo. O único código com o qual se
importava era o da sobrevivência. Para sobreviver faria qualquer coisa, empregaria
qualquer truque, destruiria inimigos, defenderia os amigos com toda a coragem,
embora se tivesse juízo, não devesse ter muitos amigos. Manteria a palavra empenhada,
porém somente se os outros mantivessem a sua, e evitaria agir estupidamente, tal como
trapacear com cartas.
Acima de tudo, ficaria de olho em suas costas. A honra era mantida com suas
próprias regras, não com algumas delicadezas imaginárias que serviam meramente
para perpetuar as diferenças sociais.
Assim, começou a jogar contra Jack, usando de sua excelente memória, como o
jovem oficial havia dito, calculando as probabilidades e, finalmente, empregando sua
intuição. Essa raramente falhava, tanto nas cartas como na vida.
Logo percebeu que Jack trapaceava e que a maioria dos outros jogadores era
ingênua demais, ou estava muito embriagada para se importar. Bêbados a ponto de não
notar que o uísque na garrafa diante de Tom, cujo nível baixava, não descia por sua
garganta. Jack também não era o beberrão que aparentava ser e, lentamente, ele e Tom
eram os únicos vencedores a se defrontar.
O sucesso de Tom, na vida, em parte era baseado em seu conhecimento de como
ir em frente em qualquer empreendimento. De olhos fixos em Jack, rapidamente
deduziu que perderia em qualquer jogo que disputasse contra um homem cujas
habilidades eram quase iguais às suas, mas que tinha a vantagem de manusear as cartas
com truques, estratagemas e dedos ligeiros. O baralho devia estar marcado. Para Tom,
não interessava como Jack havia conseguido fazer isso.
Não tinha objeções em perder em um jogo limpo, porém não tinha intenção de
deixar o vigarista ainda mais sorridente nem queria confusão. Se o denunciasse, sem
provas, ou usasse suas próprias habilidades para derrotá-lo, poderia criar problemas
para si mesmo.
Após um tempo, levantou-se. O que ganham havia desaparecido nas últimas
rodadas. Fitou as fichas que lhe restavam, bocejou, e disse:
— Já chega. Hora de dormir.
Jack reclinou-se na cadeira, com ar de zombaria.
— Assustado, Dilhorne? Com medo de perder? Jogue outra mão. Vamos ver
quem é o mestre.
— Oh, é você, com certeza. Mas eu não gostaria de dizer do quê. — Cambaleou,
apanhou a garrafa de brandi, sorrindo para Jack no silêncio mortal que se seguiu a suas
palavras.
Jack, o rosto agora cor de púrpura, encarou-o furioso.
— O que quer dizer com isso, Dilhorne? Não vou permitir que um ex-condenado
tente sujar minha reputação.
Tom gingou o corpo, amparou-se na mesa para se equilibrar, chacoalhou a
garrafa de brandi e levou-a a boca, tomando um longo trago, de verdade, desta vez.
— Sujar sua reputação? Eu estava apenas pensando no que você era melhor. No
baralho ou nos dados, o que me diz?
Suas palavras saiam gaguejadas, porém seus olhos tinham um brilho de
insolência. Os circunstantes, que variavam de oficiais, colonos endinheirados e até uns
poucos que tinham vindo mais para se divertir que para jogar, podiam, assim como
Jack, tomar aquelas palavras em seu sentido literal, ou sentir nelas uma acusação
velada. Só Tom e Jack sabiam o que significavam realmente.
— Desembuche ou cale a boca — esbravejou Jack. — E melhor esclarecer logo o
que quer dizer com isso!
Tom desabou na cadeira, apertando a garrafa contra o peito.
— O que quero dizer, Cameron, é que nunca mais jogarei com você de novo.
Nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Você é muito hábil para um pobre ex-condenado.
Suas últimas palavras vieram em um murmúrio claro. Mal tinha acabado de
falar, ele escorregou para debaixo da mesa, ainda agarrado à garrafa. Ficou lá deitado,
imóvel, enquanto a bebida escorria pelo assoalho, ensopando-lhe a camisa e a calça.
Pat Ramsey, que, após perder, abandonara o jogo algum tempo atrás, começou a
rir. Assim como vários de seus amigos oficiais, ele desde muito alimentava suspeitas
contra .Jack. Nunca ousara dizê-las em voz alta ou parar de jogar com ele, o que seria o
mesmo que uma acusação.
Porém, com poucas e bem escolhidas frases, o mestre da malandragem, que
agora jazia deitado sob a mesa, havia dito aquilo que todos na sala pensavam, e não
havia nada que Jack pudesse fazer a respeito. Continuar a insistir que Tom o acusara de
trapaça seria fazer tempestade em copo de água. Se havia quem suspeitasse que a
bebedeira de Tom era uma encenação magistral, ninguém parecia disposto a tentar
desmascará-lo.
O que era pior, a acusação, embora velada, havia sido feita, e alguns usariam as
palavras de Tom como desculpa para não jogar com Jack. Afinal, ele era um mestre.
Seria tolice jogar dinheiro fora.
Deitado debaixo da mesa, olhos fechados, Tom ficou a rir intimamente, divertido
com a altercação que se seguiu. Jack berrava, deixando clara sua intenção de colocá-lo
de pé e enfrentá-lo. Não estava disposto a fazer papel de tolo.
Hester ficou sabendo que Tom Dilhorne e Mary Mahoney haviam rompido, e foi
tomada de uma alegria infantil com a notícia.
Agora o monstro sabia o que era sofrer um bocado, disse o Mentor de Hester,
impiedoso. Ter uma amante infiel seria uma boa lição para ele, para ensiná-lo de que
não podia dirigir a vida a seu bel-prazer, sempre.
A cidade inteira pensava que tinha sido Tom que abandonara Mary,
particularmente quando a viúva e Jem Wilkinson começaram a mostrar sinais que
tinham um caso e pretendiam casar-se. O fato teria provocado o ciúme de Tom.
Ninguém conhecia a verdade, nem que Dilhorne havia dado dinheiro a Mary.
Hester pôs-se a cantar pela casa, para surpresa e alegria da sra. Cooke. Esta,
entretanto, não estava nada feliz ao perceber que, a despeito de ter agora um salário, o
padrão de vida de sua inquilina não tinha melhorado. O que não sabia era que Larkin,
que havia arrematado todos os débitos remanescentes de Fred, havia aumentado os
juros e, consequentemente, o valor das parcelas a serem pagas, depois que soubera que
a moça arranjara um emprego. Hester se vira, assim, em condições idênticas às que
antes de começar a ensinar na escola.
Porém, gostava de trabalhar lá, pensou. E isso, junto com as boas-novas a
respeito de Tom Dilhorne e Mary Mahoney, deixava-a com os passes lépidos. Até
mesmo aceitou o convite da sra. Cooke para o chá, junto com a vizinha, a sra. Smith, e a
filha Kate.
Kate era uma criança encantadora, e ela e Hester se davam muito bem. Depois do
chá, a ara. Jack, sabendo disso e querendo fofocar com a sra. Smith sobre assuntos não
muito adequados aos ouvidos de uma moça solteira, sugeriu que Hester levasse Kate
para o quintal, para mostrar à menina a nova ninhada de pintinhos.
As duas senhoras haviam principiado a conversar quando se ouviu uma batida
na porta. Ao levantar-se e ver quem era o visitante, a surpresa da sra. Cooke não
Hester Waring’s Marriage 34
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
— Excelente sugestão, srta. Waring. Percebo que indicá-la para professora foi
uma atitude sábia. Você é capaz de dar aulas aos mais velhos, assim como às crianças.
— Tem algum motivo para ter vindo falar comigo, sr. Dilhorne?
— Além de fazer questão de me lembrar de que sou descuidado, você também
sabe que minha presença no quintal da sra. Cooke só pode ser porque quero falar
consigo e não para cuidar da nova ninhada de pintos. Muito perspicaz de sua parte,
senhorita.
Hester não conseguiu se conter e caiu na risada.
— Tenho a impressão de que nunca poderemos conversar de maneira adequada,
sr. Dilhorne.
— Não vejo nada inadequado na presente situação, srta. Waring. Eu apenas vim
trazer as cartilhas de leitura que Jardine me disse que você precisava.
Hester pensou, por um instante, porque o próprio Jardine não entregara o
material a ela, e porque motivo o grande Tom Dilhorne se dispunha a fazer o papel de
office boy. Decidiu não questioná-lo. Ele sempre conseguia confundi-la.
Tom pediu licença e sentou-se ao lado dela, no muro. Pôs-se a acariciar a
garotinha e fez várias perguntas a Hester a respeito do trabalho com as crianças. A
conversa parecia estar seguindo um padrão normal quando, de repente, Hester,
distraidamente, estendeu-lhe a menina para que ele a pegasse no colo.
Coisas estranhas pareciam acontecer a uma percepção da realidade, cada vez que
Tom Dilhorne surgia em seu horizonte, pensou Hester. A mais estranha era que
conversava com ele de forma espontânea e natural, logo ela que ficava tensa e
gaguejante cada vez que os oficiais da guarnição tentavam travar uma conversa.
Tom recusou o convite para tomar uma xícara de chá, alegando outros
compromissos, e despediu-se, afastando-se majestosamente. Hester, com toda a
sinceridade, não pôde deixar de se impressionar com sua aparência soberba e as roupas
extremamente elegantes.
— Bem! — exclamou a sra. Cooke, depois que ele se fora e Hester examinava os
livros que ele lhe trouxera. — O que vem a ser isso, srta. Waring?
Mas a srta. Waring não poderia lhe dizer.
Tom, ainda com a lembrança de Hester ajoelhada entre os pintinhos, caminhou
para casa bosque, a depois do que dissera, não tinha nenhum compromisso. Uma idéia
começava a tomar forma em sua cabeça. Uma idéia nascida de sua separação de Mary e
das noticiam que, naquele mesmo dia, sua governanta lhe contara.
De novo, ele vira Hester com uma criança no colo e recordava-se da evidente
afeição que ela demonstrava para com os pequeninos, na escola. Lembrava-se também
do brilho súbito em seus olhos quando se voltara para ele, no meio da conversa,
conversa que ela obviamente apreciara muito mais do que ele. Tinha vontade de
provocá-la, de fazê-la desabrochar para a vida, de ouvir suas respostas inteligentes às
bobagens que ele, de forma séria, dizia-lhe. Somente seu rosto magro e encovado ainda
o preocupava, pois certamente agora ela podia fazer uma boa alimentação.
Era isso! Tenho certeza, pensou, de que a pobre criatura ficaria até bonita se
tivesse boa comida, um pouco de afeição e algumas roupas novas. Ela já começava a
mostrar muito mais espírito desde que se tornara uma professora. Não é meu estilo, é
claro, miúda e morena ao invés de exuberante e loura como Mary Mahoney e as outras.
Porém, e dai? Não corro o risco de me apaixonar por ela.
O que Mary me disse antes de nos separarmos? Case-se com uma dama. Bem,
Hester Waring é uma dama; embora não tenha boa aparência. Porém, dama alguma iria
querer se casar comigo.
Ela é sensível, esperta também, a julgar pelo jeito engenhoso com o qual me
responde quando a provoco. Quando a entrevistei, julguei que tinha capacidade. Sim,
ela dará uma excelente dona de casa, e uma esposa que saberia para que serve cada
coisa, o garfo certo a usar, o que dizer e fazer. E uma idéia!
Porém, pensar em ir para cama com qualquer homem, especialmente comigo,
faria com que saísse em disparada como uma lebre. Quase fugiu quando me viu hoje,
embora mostrasse um ar corajoso. Aquele seu pai tenebroso deve ter lhe cito muitas
bobagens. A julgar pela maneira como se comporta, fica apavorada diante de qualquer
homem que encontre pela frente.
Um lento sorriso apareceu em seus lábios. Bem, pensou Tom, conheço um truque
ou dois, e um deles pode muito bem arrastar Hester Waring para um lugar que ela
nunca imaginou!
CAPÍTULO IV
dizer que não iria à festa do Conselho, mudara de idéia, só para se certificar de que ela
teria um lauto banquete à espera.
Se fosse outro, que não Tom Dilhorne, tido como um homem sem coração, ele
diria que o sujeito estava interessado pela garota. O que, pensando bem, era
improvável, uma total bobagem, a julgar pelo gosto de Tom por mulheres exuberantes e
ao lembrar da aparência de Hester.
Ele, Jardine, bem que podia atiçar lenha à fogueira. A pobre srta. Waring merecia
um pouco de excitação em sua vida miserável. Bastava a palavra certa em seus ouvidos,
e tudo podia acontecer.
— Bem, Frank, tenho certeza de que, segundo sua maneira de ver, e a do capitão
Parker também, eu mesma não sou grande coisa, hoje em dia. Dizem que a comida que
oferecem é muito boa, e não quero perdê-la. Gente que é grande coisa não parece estar
disposta a me oferecer nem ao menos um lanche!
Um silêncio espantado caiu na sala.
Qual o problema comigo?, pensou Hester, surpresa com a própria audácia. Dera
agora para expor seus pensamentos em vez de guardá-los para si? Frank vai dizer a
Lucy para não me receber mais, pensou. E por quê, em nome de Deus, estou fazendo
pouco do capitão Parker? Ele é um rapaz gentil, bonito... Comum. Conversar com Tom
Dilhorne tem me feito ficar intratável. Parece que começo a pensar em coisas horríveis.
Com os pensamentos atropelando-se em sua cabeça, Hester despediu-se de Lucy,
apanhou o vestido, acenou de maneira atrevida para Frank e o capitão, que a
encaravam, atônitos, e saiu, porta afora.
Houve um silêncio momentâneo antes que os três falassem, ao mesmo tempo:
— Ora, ora — disse Lucy, abobalhada.
— Que absurdo... — murmurou o capitão Parker, que sempre se sentira
lisonjeado com a tímida adoração de Hester, que hoje se desvanecera por completo.
— Deus do céu! — exclamou Frank. — Ela está mais feiosa que nunca e cada vez
mais desagradável e rude. Não quero essa moça aqui em casa de novo, Lucy.
— Deixe disso, Frank. Ela é uma coitada. — Interrompeu-se, pensativa. — Você
não acha que ela esteja realmente com fome, acha? Talvez seja esse o problema. Delírio
de fome. Eu deveria ter oferecido a ela alguma coisa. Nunca parei para pensar como
Hester está vivendo, agora que Fred está morto. Oh, meu Deus!
— Não, Lucy, o problema são esses plebeus com os quais ela anda se misturando
— disse o capitão, em um tom lúgubre. — Ela era uma coisinha suportável, ainda que
feiosa. Agora, está mais feia do que nunca e um pouco agressiva também. — Parker
sentia-se aliviado. Felizmente, a piedade não o levara a dizer a Hester qualquer coisa
que pudesse ser interpretada como um pedido de casamento.
Hester caminhou para casa com um sentimento estranho. Deixara a raiva falar
mais alto. Por um instante, não sentiu remorso. Provavelmente, sentiria depois. Durante
toda a vida, tinha sido uma criança tímida que mal ousava levantar a voz. Todos faziam
questão de deixar claro que qualquer coisa que tivesse a dizer era de pouca ou
nenhuma importância.
A mãe a ignorava. Fred, seu pai, tratava-a simplesmente como uma criada muito
conveniente, já que mesmo uma criada não suportaria o tratamento que ele dispensava
à própria filha.
Nesse dia, ela levantara a voz e fizera sua presença ser percebida também. Estava
perplexa com a própria ousadia.
A festa do Conselho da escola não eram, como Hester poderia ter adivinhado, o
mais excitante dos eventos. Sabia que, em uma sala repleta de homens e mulheres
trajados com simplicidade, ela era a pior de todas. Mesmo os laçarotes de Lucy não
tinham podido salvar seu vestido.
Por outro lado, havia muita comida, e sua boca encheu-se de água e o estômago
vazio pôs-se a roncar. Teve que se esforçar para agir como uma moça educada e servir-
se de apenas um pouco.
Tom estava na mesa-de-cabeceira. Vestira-se de forma extremamente elegante
para a ocasião, colocando um colete com pavões delicadamente bordados, e uma pérola
negra na gravata. Ao escolher o traje, ele mesmo se perguntara a quem estaria tentando
Hester Waring’s Marriage 41
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
tão erradas. Você sempre se mostrou muito gentil em suas visitas, levando-me os livros,
os doces para as crianças.
— De súbito, emendou, parecendo delirar: — Lá em casa, tínhamos pavões no
jardim...
— Quando Jardine voltar com a água e você tiver bebido um pouco, eu a levarei
para casa — disse Tom. — Está exausta e precisa descansar.
Os olhos de Hester se fecharam.
— Como sabe que estou cansada? Acho que eu poderia dormir para sempre...
Dilhorne poderia ter dito a ela que a comida e a bebida as quais não estava
acostumada e o choque com as palavras de Jardine eram os responsáveis por esse seu
estado, assim como o fim de meses de sofrimento. Nada disse, porém. Apenas ajudou-a
a beber a água. Até mesmo segurar o copo, Hester não conseguia.
Ao ver que ela se recostava de novo, os lábios lívidos, ele a tomou no colo e
carregou-a pelo salão até o carro, diante dos olhos atônitos do Conselho e dos
professores.
Pouco antes do Natal, Hester havia procurado Jem Larkin, pedindo a ele que lhe
desse alguns dias para o pagamento da parcela da dívida de seu pai. Larkin havia dito
que cobraria juros pelo tempo de atraso.
Hester havia engolido em seco, porém concordara. Precisava de algum dinheiro
para comprar uni presente para a sra. Cooke e algumas guloseimas para as crianças da
escola.
Logo depois disso, Tom aparecera na sala de aula com uni pacote de balas e um
bolo de passas para ela e os alunos.
Deitada na cama, na noite da festa, ela se recordou, dolorosamente, de outras
pequenas gentilezas que ela e as crianças haviam recebido por parte de Dilhorne
durante semanas. Era como se o veneno que seu pai havia destilado em seus ouvidos
por tantos anos houvessem feito com que não percebesse a forma gentil como ele a
tratava. Bem, Dilhorne podia ser um homem perigoso nos negócios, porém com ela, não
era assim.
Lembrou-se da festa e não pôde deixar de recordar do sentimento cálido que
havia experimentado quando ele a carregara pelo salão, chamando a sra. Cooke para
ajudar a levá-la para casa. Aninhada em seus braços, Hester não sentira medo ou raiva,
apenas uma sensação de conforto e segurança.
O semblante da era. Cooke se transformara em um imenso ponto de
interrogação. Depois que Tom se fora, ela havia ajudado Hester a se despir. Descera a
escada e voltara, ainda com a mesma expressão no rosto, trazendo um copo de licor de
chocolate quente na mão e alguns biscoitos deliciosos em um prato. Tudo aquilo, disse,
havia chegado pelas mãos de um empregado de Tom Dilhorne.
— É um enigma, esse Tom — comentou a sra. Cooke. — Mary Mahoney disse
que nunca se sabe em que terreno se pisa, com ele. Eu, porém, não me importo em
beber seu maravilhoso licor e em comer suas finas guloseimas.
Hester não podia fazer outra coisa, a não ser concordar. Sentadas na cama, as
duas dividiram a comida e a bebida enquanto conversavam. Aqui e ali, a velha tentava
arrancar dela o motivo pelo qual Tom a teria levado para casa e a presenteava com
coisas deliciosas.
Hester não saberia dizer.
Gole a gole, logo as duas ficaram levemente embriagadas e caíram no sono.
Dormiram juntas, a era. Cooke enrolada no xale
— Não estou inteiramente inconsciente, sr. Dilhorne — Hester gaguejou, em um
fio de voz. — Estou me sentindo apenas um pouco fraca e muito envergonhada.
— Sra. Waring, você pode não estar desmaiada, mas parece muito doente —
disse Dilhorne, em um tom preocupado, que jamais Hester ouvira de alguém em toda
sua vida. Seus olhos se encheram de Lágrimas.
— Deve ser porque comi demais e porque tenho agido de forma terrível.
— Não posso acreditar nisso, srta. Waring.
— Ah, mas devia, sr. Dilhorne. Eu me comportei muito mal com você hoje. O que
eu disse sobre a entrevista foi imperdoável. O sr. Jardine me contou o que fez por mim,
naquele dia. Não brigue com ele por ter me dito isso. Ele tinha razão. Não podia deixar
que eu o insultasse quando tinha sido tão generoso.
Olharam-se, em silêncio. Tom, pela primeira vez, via-se sem palavras.
— Gosto de seu colete — disse Hester, inesperadamente.
— Não se recrimine — respondeu Dilhorne gentilmente. — Diante das
circunstâncias, era natural que você pensasse assim.
— De forma alguma — ela retrucou. — Eu não devia ter chegado a conclusões
tão erradas. Você sempre se mostrou muito gentil em suas visitas, levando-me os livros,
os doces para as crianças.
— De súbito, emendou, parecendo delirar: — Lá em casa, tínhamos pavões no
jardim...
— Quando Jardine voltar com a água e você tiver bebido um pouco, eu a levarei
para casa — disse Tom. — Está exausta e precisa descansar.
Os olhos de Hester se fecharam.
— Como sabe que estou cansada? Acho que eu poderia dormir para sempre...
Dilhorne poderia ter dito a ela que a comida e a bebida as quais não estava
acostumada e o choque com as palavras de Jardine eram os responsáveis por esse seu
estado, assim como o fim de meses de sofrimento. Nada disse, porém. Apenas ajudou-a
a beber a água. Até mesmo segurar o copo, Hester não conseguia.
Ao ver que ela se recostava de novo, os lábios lívidos, ele a tomou no colo e
Hester Waring’s Marriage 45
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
carregou-a pelo salão até o carro, diante dos olhos atônitos do Conselho e dos
professores.
Pouco antes do Natal, Hester havia procurado Jem Larkin, pedindo a ele que lhe
desse alguns dias para o pagamento da parcela da dívida de seu pai. Larkin havia dito
que cobraria juros pelo tempo de atraso.
Hester havia engolido em seco, porém concordara. Precisava de algum dinheiro
para comprar um presente para a sra. Cooke e algumas guloseimas para as crianças da
escola.
Logo depois disso, Tom aparecera na sala de aula com um pacote de balas e um
bolo de passas para ela e os alunos.
Deitada na cama, na noite da festa, ela se recordou, dolorosamente, de outras
pequenas gentilezas que ela e as crianças haviam recebido por parte de Dilhorne
durante semanas. Era como se o veneno que seu pai havia destilado em seus ouvidos
por tantos anos houvessem feito com que não percebesse a forma gentil como ele a
tratava. Bem, Dilhorne podia ser uni homem perigoso nos negócios, porém com ela, não
era assim.
Lembrou-se da festa e não pôde deixar de recordar do sentimento cálido que
havia experimentado quando ele a carregara pelo salão, chamando a era. Cooke para
ajudar a levá-la para casa. Aninhada em seus braços, Hester não sentira medo ou raiva,
apenas uma sensação de conforto e segurança.
O semblante da era. Cooke se transformara em um imenso ponto de
interrogação. Depois que Tom se fora, ela havia ajudado Hester a se despir. Descera a
escada e voltara, ainda com a mesma expressão no rosto, trazendo um copo de licor de
chocolate quente na mão e alguns biscoitos deliciosos em um prato. Tudo aquilo, havia
chegado pelas mãos de um empregado de Tom Dilhorne.
— E um enigma, esse Tom — comentou a era. Cooke. — Mary Mahoney disse
que nunca se sabe em que terreno se pisa, com ele. Eu, porém, não me importo em
beber seu maravilhoso licor e em comer suas finas guloseimas.
Hester não podia fazer outra coisa, a não ser concordar. Sentadas na cama, as
duas dividiram a comida e a bebida enquanto conversavam. Aqui e ali, a velha tentava
arrancar dela o motivo pelo qual Tom a teria levado para casa e a presenteava com
coisas deliciosas.
Hester não saberia dizer.
Gole a gole, logo as duas ficaram levemente embriagadas e caíram no sono.
Dormiram juntas, a era. Cooke enrolada no xale por cima da cama, e Hester entre os
lençóis. A manhã de Natal encontrou-as com as cabecinhas ligeiramente pesadas de
ressaca.
Hester deu seu presente de Natal à era. Cooke, que a convidou para o jantar de
comemoração. Ambas estavam ocupadas com o molho, quando o mensageiro de Tom
Hester Waring’s Marriage 46
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
apareceu. Trazia uma carta para Hester, uma garrafa de vinho do Porto e um enorme
pudim de ameixas para ambas.
Hester abriu a carta em frente à senhoria, que queimava de curiosidade. A letra,
no envelope, era de uma caligrafia elegante e clássica, e Hester ficou a pensar, por um
instante, se fora o secretário de Tom que a subscrevera. Dentro, porém, a letra era a
mesma e, sem dúvida, era dele. Perguntava se ela se sentia melhor, pedia que aceitasse
a garrafa de Porto e o pudim como um presente de Natal, e desejava poder vê-la bem, e
de volta à escola, depois da passagem do ano.
Levantou os olhos e deparou-se com o ar de interrogação da era. Cooke.
Esquivou-se de dizer qualquer coisa. Não tinha a menor idéia do motivo que levava
Tom Dilhorne a enchê-la de gentilezas.
No jantar, Hester descobriu-se contando à sra. Cooke sobre o colete de Tom, todo
bordado com pavões, e da pérola negra que usava na gravata.
— Que extravagância! — foi o comentário da senhora. — Eu me lembro dele,
percorrendo as ruas de Sidnei logo quando chegou aqui, um rapazola atrevido de
pernas compridas, se bem me recordo. Quem iria pensar em vê-lo assim elegante e
falando tão bem?
Hester fixou os olhos turvos na companheira: o vinho já fizera seu efeito.
— Elegante não é bem a palavra — ela corrigiu, com a voz arrastada. — Alguém
poderia pensar que ele usou roupas assim durante toda sua vida. — Sorriu, diante de
uma súbita recordação.
— Quando eu era menina, nós tínhamos pavões em casa. Bichos barulhentos.
Gritavam e abriam a cauda. Lindos! Mamãe não gostava deles. Enfim, ela não gostava
de muita coisa. Exceto de Rowland — emendou.
Depois do jantar, as duas deixaram-se cair no sofá, para um cochilo prazeroso.
Mais tarde, degustaram um chá excelente, que aliviou os vapores do álcool. O chá,
evidentemente, viera das mãos de Tom Dilhorne.
As festas de fim de ano ficaram para trás, e as preocupações de Hester voltaram.
Larkin havia dado a ela até o dia cinco de janeiro para pagar os juros. Assim, depois das
aulas, ela contou o dinheiro, colocou-o na bolsa e rumou para o pequeno estabele -
cimento de crédito. Tinha plena consciência de que a quantia que estava prestes a
entregar ao agiota poderia alimentá-la e vesti-la pelo resto do mês.
O escriturário olhou-a com insolência e apontou para a sala de Larkin, quando
ela pediu para vê-lo. Ela já se acostumara com essa falta de educação.
— Boa tarde, sr. Larkin — disse ela, abrindo a bolsa e começando a contar o
dinheiro. — Vim pagar o que lhe devo.
Larkin fitou-a com estranheza.
— Não é preciso, srta. Waring, não é preciso.
— Como, sr. Larkin? Não estou entendendo...
Tomada de uma estranha excitação, ela encarou-o sem medo. Pagar pelos débitos
de meu pai, realmente!, pensou. Quem o autorizara a isso?
— Boa tarde, srta. Waring. A que devo a honra de sua visita?
— Vim conversar com o senhor.
Ele endereçou a ela seu sorriso enviesado e encantador. E, em seu estado de
perturbação, Hester registrou na mente a maneira com a boca de Tom se curvava no
canto e uma sobrancelha se arqueava, dando a ele um ar de pirata, que, longe de
assustá-la, como sempre fizera, deixava-a desarmada. Mas não se deixaria levar por
essas sensações, de jeito nenhum!
— Sim, eu percebi, srta. Waring. O que posso fazer por você?
— Não é o que o senhor pode fazer por mim, sr. Dilhorne, mas o que já fez.
Ele simplesmente sorriu, com uma expressão de curiosidade.
— Ora, não estou acompanhando seu raciocínio.
— Como se não fosse bastante ter cumulado de presentes a era. Cooke e a mim,
com comida, bebida, e pudim de ameixa, você também comprou e destruiu as
promissórias de meu pai. Por favor, tenha a bondade de se explicar.
— Pensei que você e a sra. Cooke iriam apreciar a comida e a bebida que mandei.
O que há de errado?
— Não há nada de errado, sr. Dilhorne. Claro que apreciamos. Gostamos tanto
que ficamos satisfeitas por dois dias. Não é essa a questão. A questão é que comprou
todas as dívidas restantes de meu pai e destruiu os documentos. Com que direito fez
isso e qual a razão?
Ele puxou uma cadeira em frente a ela, sentou-se e inclinou-se para frente, com
um trejeito nos lábios.
— Bem, eu pensei que você gostaria de comprar seu próprio vinho do Porto e
seu pudim de ameixa, no futuro.
Ele estava tão próximo que Hester podia ver as linhas de expressão em seu rosto,
a força de suas mãos que repousavam no colo, e sentir seu cheiro de homem asseado,
tão diferente do cheiro azedo do finado Fred, em seus últimos dias. A indignação
começou a ceder. O senso de humor e do ridículo, longamente escondidos sob a
opressão, a escravidão e a negligência, emergiram ante a uma conversa tão cheia de
entrelinhas.
— Você sabe perfeitamente bem a que estou me referindo, ar. Dilhorne. Por quê,
ora essa, vem falar de pudins de ameixa?
— Acho que foi você que tocou no assunto, srta. Waring.
— Oh, por que não pode falar sério? — Ela gemeu.
— Porque você tem levado a vida muito a sério, por tempo demais. Um
momento, srta. Waring.
aprovação.
— Excelente, srta. Waring. Creio que vamos nos entender muito bem.
Seguiu-se uma batalha verbal cheia de meios sentidos. Hester nunca se sentira
tão solta em sua vida. Uma conversa inconseqüente era novidade para ela e também a
facilidade com que se descobria respondendo às provocações de Tom Dilhorne a
surpreendia. A excitação a dominava.
O secretário retornou, carregando uma cesta.
Smith caminhou até o aparador, apanhou pratos de porcelana, talheres de prata,
mais copos, algumas colheres de diversos tamanhos e facas para frutas com delicados
cabos entalhados em marfim. Puxando uma pequena mesa redonda, arrumou-a diante
de Tom e de Hester, estendendo finalmente, a cada um, guardanapos de linho
adamascado.
Isso feito, curvou-se em um cumprimento e saiu. Tom começou a tirar da cesta
pão, manteiga, queijo, carne fatiada e frutas.
— Recomendo que prove de tudo, srta. Waring, incluindo desse vinho. — Tirou
uma garrafa da cesta e pôs-se a abri-la. Serviu-a de vinho em uma taça ainda mais fina.
Desta vez, ela pôs-se a beber aos golinhos, de maneira educada. E não tentou
esconder a fome diante da bela refeição. Mal tocara em comida desde as festas de fim de
ano. Tom observou-a com satisfação.
Por fim, tirou da cesta um grande abacaxi, que dividiu entre os dois. Comeram
os pedaços com as mãos, entre risos, o líquido escorrendo entre seus dedos. Hester,
agora em sua terceira taça de vinho, nunca havia comido abacaxi antes e achou a fruta
deliciosa.
— Uma delícia, porém faz um pouco de bagunça, não é? Diga, não há uma
maneira mais elegante de comer uma especialidade como esta?
Smith entrou, trazendo uma pequena bacia e um jarro de prata, e toalhas para
que pudessem lavar as mãos. Outro empregado entrou, recolhendo pratos, talheres e a
cesta, deixando apenas a garrafa e os copos.
Sozinhos de novo, Tom serviu Hester de mais vinho. A terceira ou quarta taça?,
ela perguntou-se, com a mente turva. Era evidente que ele estava tentando corrompê-la
pelo estômago. Porém, que deliciosa sensação de bem-estar uma boa comida trazia! Só
por isso, poderia perdoá-lo por qualquer coisa.
Ele sentou-se frente a ela, novamente, agora com a fisionomia muito séria.
— Srta. Waring, tenho uma proposta a lhe fazer. Por favor, não a descarte sem
pensar. Ouça cuidadosamente o que vou dizer. Sua felicidade futura pode depender
disso. — Ele fez uma pausa.
Minha felicidade futura? Devo estar ouvindo coisas. Foi o vinho, pensou Hester,
tomando outro gole.
— Como deve saber, ou talvez não saiba, srta. Waring, em breve perderei minha
Hester Waring’s Marriage 51
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
governanta, que vai se casar e morar em Paramatta. Não preciso dizer que desastre isso
é para um homem que gosta de uma vida ordenada. Ora, você, srta. Waring, seria
uma excelente pessoa para dirigir minha casa. É perspicaz e seria urna excelente
companhia com a qual eu poderia conversar.
Hester ficou a ouvir boquiaberta. Tentou imaginar-se conversando com ele.
Tomou o resto do vinho, sentindo a cabeça ainda mais confusa, e ele apressou-se em
encher a taça novamente.
— Porém, temos um problema, srta. Waring. Por mais que eu queira empregá-la
e por mais que você queira o emprego, não há como uma senhorita, encantadora e
jovem como você, aceitar viver na casa de um homem como eu, que tem uma certa
reputação... Você está me entendendo, tenho certeza. Pense nas fofocas que surgiriam
por aí. — Ele fez uma pausa, para depois continuar.
— Ora, eu também preciso de uma esposa. Uma dama, que saiba tudo de
etiqueta e as coisas certas a fazer. E você seria uma excelente esposa, srta. Waring.
Porém, temo que não deseje, na verdade, casar-se comigo no sentido literal. Estou certo,
não estou?
Hester limitou-se a concordar com a cabeça, incapaz de falar. Não tinha certeza
se era o vinho ou o choque com o que ouvira. Estava paralisada. Muda.
Ele continuou.
— Sendo assim, já que concorda comigo, o que diria se eu pedisse que se casasse
comigo, nominalmente, é claro, de forma que eu tivesse uma esposa e uma governanta,
e você pudesse ter segurança, respeitabilidade e uma boa casa? — Tom recostou-se na
cadeira, sorrindo para ela, os olhos azuis faiscando, o sorriso torto mais torto que
nunca. Insistiu: — O que diria, srta. Waring?
Hester engoliu em seco, incapaz de acreditar no que estava ouvindo.
— Penso que ficou louco, sr. Dilhorne, embora me pareça em sua plena sanidade
mental, o que, tenho de admitir, deixa-me um pouco confusa. Está falando a sério?
— Sim, estou falando realmente a sério.
— Nominalmente, foi o que disse? — Hester sentiu que seria muito indelicado
dizer simplesmente: Não vamos dormir juntos?, ou, Você não vai exigir seus direitos de
marido? Estava realmente tendo uma conversa inacreditável com ele ou era tudo um
sonho? Estava bêbada?
— Sim, nominalmente, srta. Waring. Pode me entender, tenho certeza.
— Como vou saber se, uma vez casados, você vai manter sua palavra?
— Sempre mantenho minha palavra. É a alma de meus negócios. Talvez fosse
melhor que Joseph Smith redigisse um contrato para que assinássemos. Que acha, srta.
Waring? Um de meus escriturários pode servir de testemunha.
Um riso nervoso escapou dos lábios de Hester.
— Acho que não, sr. Dilhorne, não iria ficar bem. Diga-me, existem muitos
homens de negócio como você?
— Felizmente não, srta. Waring, ou eu não seria tão rico.
Cada vez mais atordoada, Hester resmungou:
— O senhor quer... ah... uma resposta... imediatamente, sr. Dilhorne? — Estava
ficando difícil falar. Sua língua parecia estar inchada, e a cabeça rodava. Precisava
descansar. Oh, como precisava!
— Não, srta. Waring. Pode me dar a resposta quando quiser. Espero que não
demore muito. Nenhum de nós está ficando mais jovem a cada dia que passa.
— Sem dúvida, sr. Dilhorne. — Uni sono incontrolável a dominava. — Sem
demora, então.
O que era isso? Cada vez que se encontrava com ele ficava com sono? E essa
proposta absurda? Uma parte de si desejava responder sim, imediatamente. Outra
parte, influenciada pela criação dos pais, dizia que ela estava louca em confiar nesse
rufião, não importava a forma magnífica com que hoje ele se vestia e falava.
Seu Mentor, de súbito, emergiu. Devia ter ficado adormecido, enquanto Tom
Dilhorne a enchia de vinho para dobrá-la a sua vontade, e murmurou, provocador:
Pense no conforto, na comida boa, na conversa, você gosta de conversar com ele, você
sabe que gosta... E você estará a salvo dos Larkins da vida e de seus funcionários
atrevidos.
Hester bocejou e entregou os pontos.
— Eu lhe darei uma resposta em uma semana, sr. Dilhorne.
Colocando cuidadosamente o copo ao lado da garrafa praticamente vazia, ela
acomodou-se na poltrona e mergulhou no sono.
Com um misto de divertimento e ternura, uma expressão que teria deixado
atônito qualquer um que o conhecesse, Tom Dilhorne fitou-a e, levado por um impulso
que não conseguiu identificar, inclinou-se e beijou-a na testa.
Ergueu-se, caminhou para a escrivaninha e retomou o trabalho interrompido,
não sem antes olhar para o rosto de Hester, sereno no sono. Murmurou, para si mesmo:
— E se eu não levá-la por sua livre vontade para minha cama em poucas
semanas depois do casamento, não me chamo Tom Dilhorne!
CAPÍTULO V
Hester não precisou de uma semana para se decidir. Soubera, desde o momento
em que ele lhe fizera a proposta, que iria aceitá-la. Entre escandalizada e chocada,
percebera que estava disposta a vender a própria alma em troca de segurança. Não teria
concordado se fosse uni casamento de verdade, porém, ser esposa, governanta e anfitriã
sem ter de partilhar a cama com ele parecia um bom negócio. Tom dissera que honraria
o compromisso assumido, tinha que acreditar que assim seria.
Estaria bem instalada, e sua vida não seria insípida, se as conversas que haviam
trocado pudessem ser alguma indicação. Nessas ocasiões, seu pavoroso Mentor
constantemente a provocava, levando-a a fazer os mais impróprios comentários. O que
faria quando ela estivesse a sós e a portas fechadas com Tom?
Hester afastou para longe as preocupações e concentrou-se firmemente nas
partes mais impessoais do acordo. Nada havia a temer, tinha certeza. Depois de Mary
Mahoney, disse-lhe seu Mentor, sem qualquer delicadeza, por que ele haveria de querer
levá-la para a cama? Talvez por piedade, quem sabe...
Ela levou a mão ao rosto em chamas e gritou à horrível voz para que parasse.
Não era nada disso. Só não queria ser sua esposa de verdade. Tinha medo dele, apenas.
Não tanto quanto já teve, a voz do Mentor insistiu, e quando o conhecer melhor,
seus medos serão menores ainda.
Em meio a suas aflições, o mensageiro de Dilhorne apareceu, mais uma vez, com
uma cesta de frutas e algumas flores.
— Se eu não conhecesse bem a ambos, eu diria que você tem um admirador, srta.
Waring — foi o comentário espantado da sra. Cooke, enquanto se deleitava com uma
das frutas.
Hester Waring’s Marriage 54
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
Hester colocou seu melhor vestido, o que não queria dizer grande coisa, pensou,
com tristeza, e foi visitar Lucy Wright. A amiga a recebeu calorosamente, reclamando
do longo tempo que se passara desde sua última e desastrada visita.
Quando tentara convidá-la para a festa de Natal, Frank, pela primeira vez, havia
feito pé firme, e dissera que não a queria em sua casa. Lucy desistira. Agora, ao
cumprimentar a amiga, recordou-se que Sarah Kerr havia comentado que Hester
parecia não ter nada para comer, tal sua magreza. Observando-a melhor, via que seu
vestido era tão velho quanto aquele que trouxera para reformar para o Natal. Bem,
quanto a isso, nada podia fazer.
Porém, alguma coisa para comer, isso poderia providenciar. Tocou a sineta,
pediu chá, pão e manteiga e algumas fatias de bolo de passas.
Hester tentou tomar o chá sem parecer gulosa. Uma tarefa difícil. O salário agora
dava para comprar um pouco mais de comida, ainda não o bastante para satisfazê-la.
Torceu as mãos, aflita: ia ser mais difícil do que pensara pedir o favor a Lucy.
— Lucy, preciso pedir a você — murmurou de súbito.
— Você sabe que estou sempre pronta a fazer algo para ajudá-la — retrucou
Lucy solicita. Gostava de se julgar uma pessoa generosa.
— Vou me casar com Tom Dilhorne em breve. — Lançando essa bomba em plena
sala de Lucy, Hester calou-se.
— Casar-se! Com Tom Dilhorne? Oh, Hester, acha que isso é uma atitude
prudente? Tem certeza de que quer uma coisa dessas? Não há outro pretendente? Com
certeza você sabe que ele é um ex-condenado! Chegou aqui acorrentado, dizem. Além
do mais, você é uma dama!
— Não, não há outro — disse Hester dolorosamente. — Nem haverá. Nunca. Eu
gostava do capitão Parker, porém você sabe que ele nunca me proporia casamento. Não
tenho dinheiro e não sou nem mesmo bonita. E óbvio, na verdade, que a maioria das
pessoas me acha feiosa. Sei que outros oficiais me julgam uma piada. — Disse isso com
uma voz impassível, porém, no íntimo, havia a amarga lembrança de Jack Cameron e a
maneira com que se referira a ela: “a cria horrorosa de Fred Waring”.
— Oh, não, Hester — gemeu Lucy penalizada. — Você não pode crer em uma
coisa dessas... — Porém, um olhar para o rosto de Hester lhe disse que a amiga devia,
sim, acreditar. — Mas... Tom Dilhorne , logo ele? Por quê? Eu nem sabia que você tinha
alguma familiaridade com ele.
— Eu o conheci desde que entrei na escola. Tem sido muito gentil comigo. Pensei
que ele não queria que eu fosse professora ~ por causa de papai, mas foi ele quem fez
com que eu fosse indicada.
— Interrompeu-se e decidiu contar a Lucy um pouco, um pouquinho só da
verdade. — Além disso, acho que Tom precisa de uma governanta tanto quanto de uma
esposa, agora que a sra. Jones está de partida.
Se isso era motivo para alguém se casar, pensou Lucy, com tristeza, era a razão
mais infeliz de que já ouvira falar, na vida. Não disse nada, porém. Decidiu também
não impedir Hester de levar adiante a idéia, por mais inconveniente que aquele homem
fosse para marido da afta. Waring, da Casa de Essendene e Lighthorne. Olhando
para ela, era óbvio que, como solteira, o futuro de Hester era sem esperanças. Porém,
casar-se com Tom Dilhorne? E por quê, pelos céus, aquele sujeito haveria de querer
desposá-la?
— Na realidade, sei pouco sobre ele — disse, finalmente, a voz cheia de dúvidas.
— Nunca conversamos, é claro. — Recordou-se, de súbito, daquilo que Sarah Kerr havia
dito quando a criticara pela amizade com aquele “safado do Dilhorne”: que ela e Alan
preferiam perder todos os outros amigos a romper com Tom. Sentiu um certo alívio. —
Sei que Sarah e Alan Kerr entendem-se muito bem com ele, e que deve haver algo de
bom a seu favor.
— Sim — retrucou Hester. Não tinha intenção de discutir com Lucy sobre seu
casamento com Tom. — Você ficaria muito aborrecida se eu lhe pedisse para ir comigo
tomar chá na casa de Tom, na sexta-feira? Ele acha que devo conhecer a residência antes
da cerimônia, e sua presença tornaria as coisas mais apropriadas. Frank se importaria?
— perguntou, com uma ingenuidade aparente.
— Importar-se?! — exclamou Lucy enfática. — E melhor ele nem pensar! Estarei
apenas ajudando minha melhor amiga, acompanhando-a em uma visita ao futuro
marido. O que há de errado nisso? Além disso, estou morrendo de curiosidade para
conhecer aquela casa por dentro. Dizem os boatos que é simplesmente “bárbara”. Mal
posso esperar! Certamente irei, e devemos ir juntas em minha carruagem. Não quero
que você vá caminhando até lá. Seria totalmente inapropriado que eu fosse de condução
e você a pé.
Assim que a amiga tomou seu lugar, Lucy instruiu o espantado cocheiro para
que rumasse para a mansão de Dilhorne.
— O patrão sabe? — perguntou o homem, com um certo atrevimento.
— Não preciso de permissão de meu marido para minhas ações
— retrucou ela com altivez. — Dirija, vamos.
Externamente, a casa, erguida em um terreno com uma vista surpreendente para
a baía de Sidneí, era uma mansão clássica de belas proporções. Por dentro, contudo, era
totalmente inusitada. O vasto hall de entrada continha apenas dois vasos chineses,
imensos, em azul e branco, e uma gigantesca urna de bronze apoiada sobre uma base de
madeira.
A urna era coberta com um intrincado entalhe e, em torno dela, se enrodilhava
um dragão, sua cauda desaparecendo na base e a cabeça erguendo-se para rugir aos
visitantes. O chão, de pedra polida, era recoberto por um imenso tapete chinês de um
desenho delicado e em lindas cores.
A ara. Jones conduziu-as até a um salão onde Tom as esperava. Para os olhos da
maioria dos ingleses, acostumados à elegância georgiana, a sala era ainda mais
extravagante.
Havia mais tapetes chineses sobre o chão de pedra, mais vasos de porcelana em
cada canto imaginável, mais bronzes, assim como peças laqueadas e uma pintura
japonesa que ocupava todo o comprimento do salão. Um tigre perambulava pelo
quadro, os olhos fixos nos espectadores. Lembrava seu dono, pensou Hester, que as
observava com um sorriso enigmático na face. Diante do quadro havia uma longa mesa,
a superfície esculpida em um único bloco de madeira negra polida.
Atrás de Tom, ficava uma gigantesca lareira em pedra bruta, sobre a qual havia
pendurada uma espada de Samurai. Ao lado, uma armadura completa de um guerreiro
japonês. Três ou quatro cadeiras e várias mesinhas laqueadas, um jogo de xícaras sem
asas, e vários pequenos e delicados bolos em meio a mais pratos de rara porcelana
esperavam pelas convidadas.
Os olhos de Lucy pareciam discos, de tão arregalados. Hester sentou-se,
determinava a examinar tudo sem comentários. A pedido de Tom, pôs-se a servir o chá
e a agir como anfitriã, depois que as apresentações e as regras de educação haviam sido
cumpridas.
— Bem, ara. Wright — disse Tom — , gostaria de conhecer o restante de minha
casa após o chá?
— Oh, sim, por favor... E... é... inacreditável.
— De fato — retrucou ele, com um ar impenetrável. — E você, srta. Waring, o
que pensa?
— É bonita — ela respondeu com convicção.
— Eu também acho. Porém, você sabe que, se não gostar de algo, é só dizer, e eu
— Não, você deve estar brincando, Lucy. Hester Waring vai se casar com Tom
Dilhorne? Ridículo! Ela não pode oferecer a ele nem beleza nem dinheiro. E, além do
mais, casar-se com um emancipista! Lembre-se do que o pai dela pensava deles... e de
Dilhorne, em particular.
A reação da mãe de Lucy foi a mesma de todos, assim que a novidade espalhou-
se por Sídnei como um rastilho de pólvora. A sociedade que se reunia em Hyde Park
não falava em outra coisa. As fofocas eram o combustível daquele mundo restrito, e
aquela, em especial, era mais extraordinária até mesmo da mais recente loucura do
governador. Loucura que também envolvia Tom Dilhorne, a quem Mcquarie pretendia
nomear juiz, assim como a seu amigo íntimo, o dr. Kerr.
— Dilhorne perdeu o juízo, para se casar com aquela mulher feiosa e sem um
centavo, filha de Fred Waring — caçoou Jack Cameron, dirigindo-se a seus
companheiros de caserna. Ele era sempre veemente em criticar Hester. Por alguma
razão, o total desamparo da moça o incomodava.
Julgava o fato uma piada, a união do inominável com o infortúnio. Como tantos
outros, Jack achava que o senso de oportunidade e o faro para um bom negócio tinham
abandonado Dilhorne. Que tipo de barganha poderia esperar de Hester Waring? A
menos, é claro, que a desposasse porque ela era uma dama de linhagem nobre. E isso
vinha mostrar a que desespero um safado emancipista podia chegar em sua luta pela
respeitabilidade.
Mesmo o governador, quando sua esposa lhe contou a novidade surpreendente,
ergueu as sobrancelhas, com ar de espanto. Não fez, contudo, qualquer comentário.
Sabia que tudo o que Dilhorne fazia era cuidadosamente pensado.
Não eram apenas os exclusivos que se entretinham com as fofocas. A última
jogada de Tom Dilhorne era celebrada com risos nos bares de Sidnei, reduzidos agora a
bem poucos por decreto do governador, que mandara fechar a maioria deles, outro
ponto negativo nos registros contra ele. O ricaço Tom Dilhorne, que poderia ter
qualquer mulher ou quase todas, tinha escolhido a professorinha, o arremedo pavoroso
de gente que era a filha de Fred Waring. Peso dos anos ou desespero, era o veredicto
geral.
Se nada disso chegou aos ouvidos de Hester diretamente, ela não pôde deixar de
perceber o furor que seu casamento com Tom havia despertado. Cabeças que se
voltavam, olhares significativos, e quase sempre os parabéns com ar de zombaria, de
gente que dificilmente lhe dirigira a palavra por anos.
Longe de enfraquecer sua decisão, as críticas a fortaleceram. E os comentários de
Hester Waring’s Marriage 61
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
seu Mentor, em resposta aos comentários, eram ainda mais duros e impublicáveis que o
normal. Afinal de contas, poucos dos que a criticavam tinham dado a ela mais do que
um pedaço de pão duro. Apenas a ara. Cooke a ajudara, antes que Tom entrasse em sua
vida.
Mesmo a senhoria estava tão surpresa quanto o resto da cidade. Hester era muito
diferente de Mary Mahoney. E mesmo a antiga amante, que o conhecia bem, ficou a
imaginar a razão que o movia. Com Tom, havia sempre mais do que as aparências
sugeriam.
Hester, mas uma série de circunstâncias o impedira. Conseguira falar brevemente com
Alan, em uma manhã em que o encontrou cumprindo sua rotina de médico.
Alan ficou tão boquiaberto quanto o resto de Sidnei. Hester Waring! Não
conseguia pensar em ninguém menos adequado para ser a esposa de Tom e senhora de
sua magnífica casa. A reação de Sarah foi idêntica.
— Hester Waring! Você deve estar brincando, Alan!
— Sei como está se sentindo. Não, não estou brincando. Foi o próprio Tom que
me contou.
— Mas, por que Hester? Sempre imaginei que Tom se casaria com alguém
formidável, unia mulher bonita e inteligente, que pudesse ficar em pé de igualdade com
ele. O que ele pode ter em mente? Para ser mais exata, o que ela deve tem em mente?
Ele vai devorá-la!
— Talvez ela queira ser devorada. Ou talvez.., queira simplesmente comer... —
sugeriu Alan, em um tom estranho.
— Pobre ratinha morta de fome... Que casamento vai ser esse? Só sei que todos
vão querer ver com os próprios olhos.
— Os proclamas estão correndo. E eu convidei a ambos para jantar no sábado.
— Isso explica porque Tom não tem vindo nos visitar ultimamente! — exclamou
Sarah. — Cachorro! Está namorando. Fico feliz que tenha feito o convite. Não importa o
que eu pense a respeito desse casamento, farei o melhor para ajudá-los.
— O que vai diverti-la ainda mais — continuou Alan — , é saber que Hester
levou Lucy Wright como acompanhante, quando foi tomar chá na casa de Tom. Lucy
foi sem o consentimento de Frank, que só ficou sabendo quando Pat Ramsey o
interpelou a respeito, na caserna.
— Ora, como descobriu isso? — perguntou Sarah surpresa.
— Depois que conversei com Tom, Pat apareceu e me contou que Frank tentou
repreender Lucy pela visita. Lucy respondeu, ofendida, que Hester precisava de seu
apoio, que Tom Dilhorne era um homem a quem julgavam erroneamente, e mandou
que Frank voltasse ao trabalho sem lhe servir o almoço!
Sarah explodiu na gargalhada.
— E bem próprio de Lucy. Cada dia que passa está mais parecida com a mãe.
— E verdade. Pat disse que Lucy está fazendo um relato que é um verdadeiro
guia de turismo pela mansão de Tom, a seu ver uma mistura entre o Palácio Imperial de
Pequim e o Museu Britânico. Todos que se recusavam a conhecê-lo vão estar
disputando um convite para o jantar de casamento, mortos de curiosidade.
Sarah enxugou os olhos, marejados de tanto rir.
— Ora, a Villa Dilhorne — era o apelido que dera à casa de Tom — é
maravilhosa. Mas, não há perigo que Hester venha a transformá-la em algo
aconchegante e comum?
— Não, de acordo com Pat. Lucy contou que Hester, aparentemente, achou tudo
de bom grado.
— Que fofoqueiros são vocês, os homens... — disse Sarah.
— Sarah, precisamos dar apoio a Tom. Hester é a esposa que ele escolheu. Ele
tem sido um bom amigo e precisamos ajudar a moça. Ela não tem ninguém no mundo.
— Mas fisgou o homem mais rico de Sídnei. Sim, sim, eu sei.
— Serei boazinha e não vou dizer ou pensar bobagens. Ela, porém, nunca gostou
muito de mim.
— Acho que você a assusta.
— Eu? Assustar alguém! Que bobagem!
Sarah recebeu Tom e Hester para o jantar com todo o carinho de seu bom
coração. Tomou Hester pela mão, quando esta entrou, beijou-a na face, e disse:
— A esposa de Tom será sempre bem-vinda em minha casa. - Intimamente,
estava chocada. Achou que Hester parecia doente. E não tinha certeza, mas a moça
parecia ter medo de Tom.
Hester falou pouco durante o jantar, exceto uma vez, quando Tom inclinou-se e
perguntou-lhe a opinião sobre o pudim que, para evitar parecer gulosa, ela comia com
absurda lentidão. Seu autocontrole às refeições ainda era um tanto frágil.
— Está excelente, sr. Dilhorne. O manjar dos deuses.
— E o que é exatamente isso, srta. Waring? — perguntou Tom, com um trejeito
nos lábios.
— Bem, algumas vezes é pudim de ameixas, e outras, é algo que realmente gosto
quando saboreio. Ambrosia, o néctar dos deuses do Olimpo, ar. Dilhorne.
Sarah percebeu que havia mais nesse intercâmbio de palavras do que os olhos ou
os ouvidos podiam apreender. A expressão enlevada de Hester e o sorriso irônico de
Tom não haviam escapado a ela.
Mais tarde, quando Tom conversava, falando de alguns acordos com Sandy
Jameson e de como o escriturário de Jameson tentara enganá-lo, Hester comentou:
— Tentou enganá-lo, ar. Dilhorne? Teria que ser alguém corajoso para fazê-lo...
— Ora, ora, srta. Waring, devo considerar suas palavras como um elogio?
— Se quiser, ar. Dilhorne, se quiser. Agora, se estivesse vestindo aquele colete
com os pavões bordados, ele não teria nem sequer tentado.
— Da próxima vez que fizer negócios com Jameson, vou me lembrar disso.
Mesmo assim...
Ele fez uma pausa, de forma provocante, até que Sarah perguntou, impaciente:
— Mesmo assim...?
— Mesmo assim, eu o peguei pelo nariz, torci-o, disse a ele o que achava de suas
maneiras, joguei-o no chão, gentilmente, sem rudeza, e, então, passei por cima dele e fui
direto ao escritório de Jameson.
— E o que foi que Jameson disse? Tendo em vista que Macquarie quer torná-lo
um magistrado, e você acabara de agredir o escriturário?
— Nada. Eu é que disse que me lembrava do tempo em que ele não tinha um
gato para puxar pelo rabo; e que, se permitisse que o escriturário me insultasse de novo,
seria seu nariz que eu torceria. E que eu estava pensando em cobrar o dinheiro que ele
me devia relativo à pedreira. Isso o deixou vermelho como um pimentão e fez com que
ficasse anormalmente gentil, posso assegurar.
— Fico feliz que você não tenha feito negócios assim comigo — comentou
Hester, muito séria.
— Ah, você sempre foi extremamente gentil comigo, srta. Waring. Pessoas gentis
ganham vinho e pudim de ameixas. Eu deveria ter dito isso ao Jameson.
Alan caiu na risada.
— Você daria um esplêndido juiz, obediente à lei, Tom. Pensei que tivesse
deixado para trás esse jeito rude de ser.
— Bem, em grande parte. Mas nunca é demais lembrar às pessoas que você
ainda pode ter certas recaídas. Tome aquele escriturário, por exemplo, é tão educado
quando o vejo agora, que poderia até dar lições à srta. Waring, embora você não precise
disso, não é, srta. Waring?
— Temo que precise, às vezes, sr. Dilhorne. Porém, se eu merecer um corretivo,
espero que me puxar pelo nariz esteja fora de questão!
— Dependendo do que fosse, srta. Waring, eu poderia achar uma punição mais
adequada...
Mais tarde, o assunto do casamento veio à tona. Alan seria o padrinho. Tom
anunciou que gostaria que Robert Jardine conduzisse a noiva.
— Pois — justificou — , se não fosse por Jardine, eu não teria o prazer de
desposar a afta. Waring.
Para surpresa de Alan e Sarah, Hester corou. Antes que pudesse se conter, Sarah
perguntou:
— Logo Jardine, Tom? Por quê?
— Ele, gentilmente, deu referências sobre o meu caráter, quando a afta. Wanng
expôs algumas dúvidas a meu respeito. Assim, se a srta. Waring consentir, Jardine a
levará ao altar. Se você não tem outra pessoa em mente — acrescentou, voltando-se
para Hester.
Hester respondeu que não, com sinceridade; não havia, em toda Sidnei, um
Para surpresa geral, a srta. Hester Waring, solteira, vinte e um anos de idade,
dama sem nenhum tostão, de uma família que ostentava uma linhagem que remontava
aos conquistadores, casou-se com o sr. Tom Dilhorne, solteiro e ex-condenado, filho só
Deus sabe de quem, provavelmente ilegítimo, de idade desconhecida até de si mesmo,
embora se julgasse por volta dos trinta anos, e que, por seus próprios esforços, tornara-
se o homem mais rico da Nova Gales do Sul.
A cerimônia realizou-se na Villa Dilhorne, e foi simples e restrita como Tom
havia dito que seria. Presentes apenas Alan e Sarah Kerr, Robert Jardine, Will French,
Joseph Smith,os Wrights, a sra. Cooke, a menina Kate e os pais, senhor e ara. Smith. Os
últimos, por causa das galinhas, dissera Tom, em um tom sério, fazendo Sarah imaginar
o que ele queria dizer com aquilo.
Hester, é claro, entendera a insinuação. Aliás, já aprendera a prestar atenção a
tudo que Tom dizia e a captar o significado oculto que freqüentemente jazia sob seus
comentários aparentemente descuidados.
Tom, sendo quem era, resolvera levar a sério a brincadeira de Sarah, e mandara
gravar o nome Villa Dilhorne em um bloco de granito à entrada da casa, para que os
convidados não se perdessem pelo caminho.
O governador Macquarie enviara a Hester um belo buquê de flores de seu
próprio jardim, e Tom comprara a ela um vestido novo, passando por cima de seus
protestos de que isso não era apropriado para um noivo.
— Não quero que use um daqueles vestidos pretos no dia de seu casamento —
retrucara, com razão. — Não é adequado.
Olhando para si mesma, diante do espelho, na manhã do casamento, Hester
percebeu que não tinha adiantado muita coisa ter uma roupa nova para usar.
Continuava magra demais e feiosa, mesmo depois dos esforços de Tom para que se
alimentasse melhor, durante as poucas semanas que faltavam para a cerimônia. Seria o
único casamento em que a aparência do noivo ofuscaria completamente a da noiva.
Comentou tal fato com Sarah Kerr, que escolhera como madrinha. Sarah não
conseguiu dizer nada que pudesse levantar-lhe o ânimo. A preocupação e os temores de
Hester eram tão evidentes que só faltava ela abrir um buraco no chão e enfiar-se dentro
CAPÍTULO VI
Sou seu ratinho de estimação, ela pensou encolerizada e ainda tremendo, quando
se dirigiu à cozinha para supervisionar os trabalhos. Ele não vai nem mesmo me
devorar. Ah, não ele. Vai me manipular com patas macias, só para me mostrar quem
manda aqui.
— Mas você gosta disso, você sabe que gosta — disse-lhe a voz de seu horrível
Mentor — , e não quer que o gato faça algo mais além de brincar com você sem a ferir.
Ou quer? O que acha de uma brincadeira mais adulta?
Oh, fique quieto, ela pensou, apavorada. De onde vinham essas idéias horríveis?
minha esposa.
— Ora, agora você está brincando, ar. Dilhorne. Sua esposa não é bonita.
Tom encarou-a. Várias semanas de boa alimentação e tratamento afetuoso
haviam dado mais brilho aos frágeis cabelos de Hester, que começavam a crescer fortes
e ondulados. Sua compleição física agora já dava mostras de saúde. Ela começava a
ganhar curvas onde antes nada existia. O divertimento dele aumentou ao observar a
avidez elegante com que ela devorava a refeição.
— Você nunca se olha no espelho, ara. Dilhorne?
— Com freqüência, ou de que outra forma eu me pentearia?
— De que outra forma, não é mesmo?
Era claro que Hester não tinha idéia do quanto havia mudado e ainda continuava
mudando.
— Achei que o capitão Parker foi um tanto atencioso demais com você, no último
sábado, considerando que você é minha esposa.
— Bobagem, ar. Dilhorne. O capitão Parker sempre foi gentil. Mesmo quando eu
não tinha amigos e era pobre. Ele agiu como sempre, no sábado.
— Gentil, é como você chama a isso... — murmurou Tom, ignorando a verdade
da última parte da frase, e o fato que Hester ainda não mudara o bastante para atrair
um jovem bonito. — Onde eu cresci tínhamos um outro nome para tal. Espero que ele
se lembre de que você, agora, é minha esposa.
Hester agora já o conhecia bem, para saber quando ele a estava provocando. O
jeito lento de falar, os olhos ligeiramente cerrados, a maneira de observar como o
ratinho reagia. E ainda assim, ainda assim, desta vez ela não tinha certeza.
— Sempre achei o capitão Parker muito bonito — ela murmurou, com um ar
falsamente distraído, derramando uma generosa porção de creme de leite batido sobre
os pêssegos. — É de se esperar que ele encontre para si uma linda mulher que o agrade
— Cuidado com o creme, ara. Dilhorne — foi a resposta de Tom a esse
inesperado revide. — Não podemos nos arriscar a que você fique gorda. Sei, por fontes
seguras, que o capitão Parker gosta das magras.
Era quase impossível vencê-lo, pensou Hester, enfezada, e, para irritá-lo, colocou
mais duas colheradas de creme.
— Gosto de creme — disse desafiadora — , e comer é um dos benefícios deste
casamento.
— Um dos benefícios, ara. Dilhorne? Quais são os outros?
Hester agitou a colher em um gesto pouco educado, respingando o creme sobre a
toalha. Tom causava nela esse tipo de reação.
Seu Mentor lhe disse que ele a estava corrompendo. Então, gosto de ser
corrompida, pensou ela, em retorno, feliz em dar o troco ao Mentor, pelo menos por
uma vez.
— Além de saborear creme, há quartos confortáveis, o fato de eu não ter que me
preocupar se posso pagar por um novo par de meias ou um vestido... — e, antes que
pudesse se conter, acrescentou: — . . .e alguém com quem conversar.
Seu atrevimento tinha, sem que tivesse intenção, descido a um anticlímax. Ficou
a imaginar o que Tom pensaria de urna lista tão absurda.
A expressão de Dilhorne continuou impassível. Ele não iria se permitir deixar
transparecer a piedade que o invadira diante dessa relação de coisas comuns, simples
confortos da vida, como mostra dos benefícios que Hester julgava que o casamento lhe
dera. Nem era a primeira vez que praguejava contra o egoísmo lamentável de Fred
Waring, que privara a filha do mínimo necessário. Nunca a deixaria perceber sua
piedade. Ela poderia não acreditar nele, ou se ressentir com isso, furiosamente.
— E eu, sra. Dilhorne? Sou um dos benefícios de nosso casamento?
A colher foi colocada sobre a mesa com cuidado. O que diria a isso? A verdade, é
claro. O rato podia não escapar das patas do gato, mas podia evitar ser maltratado.
— Realmente é, sr. Dilhorne, como eu disse, O prazer de sua conversa compensa
em muito as desvantagens da situação em que nos encontramos.
— Sempre podemos achar um remédio para isso, ara. Dilhorne.
A reação de Hester, à sugestão velada de acabarem com um casamento de
mentira, foi imediata. Ela levou a mão à boca, e seus olhos se arregalaram assustados.
Tom encarou-a com um ar arrependido. Por trás das maneiras sedutoras e o
aparente espírito de bravata, ela ainda não estava preparada para ser a esposa de Tom
Dilhorne mais do que nominalmente. Tudo não passava de um jogo no qual ela podia
brincar com ele, segura de que não haveria conseqüências.
Bem, isso iria passar. Por ora, devia tranqüilizá-la. Daria tempo ao tempo.
Bocejou e não se esforçou mais em conversar. Poderia provocá-la a dizer algo mais que
ela pudesse vir a lamentar. Se ficasse quieto, Hester pensaria que o havia confundido.
Homens e mulheres tinham um grande poder de autodecepção, como ele bem sabia
pelos próprios e freqüentes lucros.
Enquanto isso, devia tentar fazê-la ver que, lentamente estava se transformando
em uma mulher atraente. Quando sorria e o desafiava, ficava mais do que sedutora. Ele
estava apenas parcialmente brincando quando a provocara, falando sobre o jovem
Parker. Afinal, o rapaz tinha mais ou menos a idade dela e era de boa aparência, louro e
vigoroso. E isso o deixava estranhamente irritado.
De sua parte, Hester, como Tom deduzira, concluiu que conseguira confundi-lo.
O gato não tinha intenções de se atirar sobre a presa. A sra. Dilhorne podia ir, em
segurança, para sua cama vazia.
Ter empregado a sra. Hackett porque Sarah não fora capaz de encontrar ninguém
mais, foi um erro ainda maior do que Tom havia pensado. Para começar, a mulher
detestava Hester. E detestava por não gostar de todas as mulheres mais jovens que ela;
além disso, Hester era feia demais e, para piorar, filha do velho beberrão Fred Waring, e
não havia como entender como conseguira casar com a fortuna, mesmo a fortuna de um
emancipista. Quanto a Dilhorne, ela o odiava porque ele sempre a assustara, desde o
tempo em que era esposa do cabo Hackett, e Tom era um recém-chegado levado até a
Nova Gales do Sul à força.
A empregada não era tola e logo percebeu que seus patrões eram marido e
mulher apenas no papel e dormiam em quartos separados. Pôs-se a espioná-los,
observando-os furtivamente para certificar-se de que suas suspeitas eram fundadas. E,
então, de posse dessa divertida fofoca, boa demais para não ser partilhada, passou a
espalhá-la por todos os cantos de Sídnei.
O que viria a seguir? Era inacreditável! O esperto Tom Dilhorne perdera mesmo
o bom senso. Além de se casar com um espantalho, ainda arranjara uma esposa que não
o deixava partilhar de seu leito! Até que enfim, os boateiros tinham algo de sólido em
que enterrar os dentes. Madame Phoebe estava chocada com a novidade; a guarnição
vibrava de alegria. Jack Cameron abriu um caderno, anotando apostas: Tom Dilhorne
iria levar a esposa para a cama? Quanto tempo isso levaria? O casamento se manteria?
Em uma tarde, Pat Ramsey contou a Lucy e Frank a espantosa notícia, depois de
ter ouvido as fofocas no bar de Phoebe, na noite anterior. O casal se entreolhou e caiu na
risada. Mesmo Lucy não se conteve e mal conseguiu encontrar um motivo para
recriminar o marido, quando este, enxugando os olhos, disse:
— Nunca pensei que aquele pedaço de coisa feia tivesse essa coragem. O grande
Tom Dilhorne enganado por uma mulher. Ah-ah-ah! E tão cheio de boas maneiras,
agora, que não se impõe a ela sem permissão. Desculpe-me, Lucy, mais isso é demais!
Outros boatos eram ainda mais indelicados. Correndo por toda a Sídnei, as
conversas entraram até mesmo no Palácio do Governador e chegaram aos ouvidos de
Lachlan Macquarie.
— O que estará aquele demônio maquiavélico aprontando agora? — ele
comentou com sua esposa. Conhecia Tom melhor do que a maioria e não podia
acreditar que fosse passado para trás por Hester Waring.
Outros, contudo, gostariam de acreditar que ele fora derrotado em sua
pretensão. Até mesmo Mary Mahoney, agora sra. Wilkinson, sentiu pena dele.
Os últimos a saber foram os Kerrs. Muitos tinham medo de contar a novidade a
eles.
Em uma tarde, porém, ao visitar Lucy Wright, Sarah ouviu os comentários
envolvendo Tom e Hester, entre gargalhadas maldosas.
— O que é isso, ara. Middleton? Você está falando de meus amigos! Que tipo de
difamação é essa?
Antes que sua mãe pudesse responder, Lucy, temendo uma explosão, em
público, se Sarah tomasse conhecimento da fofoca, fez um sinal à amiga e levou-a para
outra sala. E contou-lhe o que toda Sídnei já sabia.
— Não acredito! — retrucou Sarah, com dureza, e, então, calou-se. Tudo que
havia imaginado acerca daquele casamento, a maneira com que o casal se comportava,
de repente, encaixava-se.
Lucy observou o rosto de Sarah mudar e deduziu que tudo era verdade, então.
Os boatos são verdadeiros. Sarah sabe. Mesmo ostentando ares de grande senhora,
Lucy era jovem e irrefletida. E divertiu-se com aquela piada!
— Acha que é verdade, Alan? — Sarah perguntou ao marido, a última pessoa de
Sídnei a saber. — Pobre Tom. E se é verdade, o que pode significar isso? Aonde ele
pretende chegar agora?
— Creio que é verdade. Eu vinha suspeitando disso há algum tempo. Hester não
se parece nem age como uma mulher casada. Seu aspecto está mais saudável do que
antes, mas isso é resultado de ter finalmente o que comer. Contudo, Sarah, você conhece
Tom quase tão bem quanto eu. Acredite, deve haver ai muito mais do que a cidade toda
pensa. Confie em Tom, como eu confio.
Consciente ou não dos comentários sobre seu casamento, e seria estranho que
não soubesse disso, pois Dilhorne sempre tomava conhecimento de tudo o que
acontecia em Sídnei, Tom continuou a orientar a esposa pelos meandros de seu mundo.
A princípio, insistiu para que se inteirasse de seus negócios.
Vira muitas viúvas de homens bem-sucedidos desbaratarem a fortuna que os
maridos haviam lhes deixado e estava determinado a não permitir que Hester ficasse
desprotegida.
Dar-lhe as cartas para ler no café da manhã era apenas parte de seu método de
instrução. Nas tardes, ia além. Uma semana após o casamento, chamou-a até o
escritório, depois do jantar.
— Este aposento é para seu uso, tanto quanto meu — disse-lhe. Hester olhou ao
redor, um pouco aparvalhada. Tom mostrou-lhe os livros de contabilidade, seus
registros particulares e a ordem em que documentos e papéis ficavam nas prateleiras.
Lentamente, Hester aprendeu os mistérios da escrituração, dos descontos, dos
empréstimos de dinheiro, do funcionamento do Emporium e seus armazéns, da
construção e manutenção de navios, g fabricação de coches, reboque de mercadorias,
gerenciamento das pedreiras e das olarias, e até mesmo os segredos da arte de leiloar,
da qual Tom era mestre.
Muitas dessas coisas, ela achou tediosas, outras a interessaram e até mesmo
despertaram um grande entusiasmo. Aprendia depressa, tinha a mente aguda, e
impressionou-o pela rápida compreensão dos negócios e a maneira objetiva com que
aceitou o que poderia parecer a ela um estranho aprendizado para uma dama.
No final da semana, Tom chegou a casa mais cedo e convidou Hester para ir até
o jardim. Tinha uma surpresa para ela.
Pondo de lado a camisa de seda em que bordava um monograma para ele,
Hester se enrolou no xale e saiu. O jardim era grande, com topiarias ao estilo inglês e
um gramado. Em um dos cantos ficava um pagode japonês com uma mesa de madeira e
cadeiras, pintadas de branco, colocadas uma em frente à outra, onde costumavam tomar
chá.
Tom levou consigo uma caixa de mogno. Abriu-a e colocou sobre a mesa um
coldre com uma pistola, uma cornucópia com pólvora, balas, e uma bucha para carregar
a arma. A distância, enfiara na terra fofa um pedaço de madeira, cortado toscamente
com a forma de um homem.
— Deus do céu, sr. Dilhorne, o que vai fazer agora?
— Não é o que eu vou fazer, sra. Dilhorne, mas o que você vai fazer. —
Carregava a pistola enquanto falava. — Preste muita atenção, Hester— continuou. —
Depois, vou querer que você a recarregue.
— Oh, não, Tom, não vou mexer com essas coisas horríveis!
— Oh, sim, Hester. Nova Gales do Sul é um lugar perigoso e mesmo as mulheres
deveriam ser capazes de se defender. Quero que aprenda a carregar e manejar uma
pistola sem hesitar, como se realmente tivesse de matar um homem.
Era inútil protestar. Ele sempre vencia.
— Você quer dizer que deseja que eu atire com uma dessas coisas?
— Exatamente. Deixe-me mostrar-lhe.
Com paciência e cuidado, Tom pôs-se a ensiná-la a atirar. Hester não era forte o
suficiente para empunhar a pistola na posição tradicional dos duelos, braço esquerdo
para trás, braço direito estendido, porém nem ele pretendia isso. Orientou-a para que
segurasse a arma com ambas as mãos, para ter firmeza.
— Você não vai enfrentar um duelo, Hester, então não há porque aprender um
monte de regras. E ninguém vai ficar esperando que você atire. Atire primeiro, um tiro
mortal.
Ela o fitou, apavorada.
— Só um idiota espera que o outro atire primeiro, e você não é idiota.
Não havia nada a fazer, a não ser obedecer a ele. Tom se mantinha inflexível, e
Hester, aos poucos, acostumou-se com o barulho e o coice da arma.
— Não estamos brincando de lordes e cavalheiros, em Londres — disse ele,
secamente, enquanto a ensinava a atirar em um ponto ao longe. — Nem vamos brincar
de atirar — continuou, fazendo-a mirar a forma recortada na madeira. — Você estaria
atirando em um homem, Hester, não em um círculo de papel. Sempre mire o peito e
nunca a cabeça. O tórax é um alvo maior, e você certamente o machucará se o atingir.
Nenhuma pistola é eficiente além de uma distância curta, de qualquer maneira.
Hester logo compreendeu que, embora ele fizesse de tudo para que aquilo
parecesse um jogo, não era jogo, era sério. Tentou agra
dá-lo, procurando perder o medo e tornar-se mais hábil. Era a única maneira
com a qual podia agradecê-lo por salvá-la da penúria. E pela paciência quanto às
restrições ao contato físico desse estranho casamento.
Assim que Hester aprendeu a manejar a pistola com destreza, Tom fez com que
ela praticasse todos os dias.
Embora orgulhosa de seu desempenho, a outra conseqüência dessa intimidade
continuada era perturbadora, para Hester. As noites, após os treinos, eram insones.
Ficava acordada, debatendo-se na cama, imaginando o que poderia estar acontecendo
consigo.
Tom poderia ter contado a ela o que havia de errado. Percebia como ela corava
quando a tocava, para corrigir a pontaria ou a postura. Via também que Hester se
apoiava nele sem necessidade. Ela teria ficado surpresa em saber como ele ansiava por
tomá-la nos braços e começar a ensiná-la a arte do amor para a qual estava quase
pronta.
Ele, também, não conseguia dormir. E por mais motivos, já que estava
determinado a não buscar alívio em casa de Madame Phoebe. Sua paciência seria
recompensada, tinha certeza. A hora se aproximava, a cada mudança no corpo e no
espírito de Hester, e ela o receberia de braços abertos, sem pensar em repeli-lo. E se
tomariam marido e mulher de fato, não apenas no papel.
Em camas separadas, cada um deles encontrava conforto de maneiras diferentes.
Tom se fixava em seu próximo negócio, e sonhava com maravilhas, não das mulheres,
porém das porcelanas e sedas.
E Hester?
Hester fazia o que sempre fizera, desde que chegara a Sídnei. Imaginava-se de
volta ao jardim de sua casa, na Inglaterra. Apenas com uma diferença. Quando
mergulhava no sono e a porta, na muralha, abria-se, era Tom que entrava para
cumprimentá-la, e não seu irmão, Rowland, que morrera.
Tom não estava surpreso com a inteligência de Hester para os negócios, ou com
sua crescente habilidade com uma pistola. Tinha uma visão pragmática da vida.
Anteriormente, notara que Madame Phoebe tinha um cérebro muito melhor para
negócios que muitos homens. E a coragem de sua própria mãe, de quem se lembrava
vagamente da longínqua infância, sempre lhe parecera uma atitude exemplar. Hester
também havia demonstrado uma excepcional fortaleza de caráter, antes e depois da
morte de seu pai. Na verdade, tinha sido por isso que a notara, a princípio.
Ele não julgava que homens e mulheres eram iguais. Em seu mundo, não havia
coisas tais como igualdade. Porém, achava que muitas mulheres que conhecia eram
tolas, triviais e incompetentes, por causa da vida que viviam e a que eram submetidas
pelos homens. Não que fossem mais tolas que a maioria dos cavalheiros. Apenas
tinham menos oportunidade de serem diferentes.
Sua compreensão da motivação humana e a habilidade para manipular as
pessoas advinham do fato de não ter teorias de vida. Trabalhava unicamente com base
na observação, aliada à intuição que emergia dessa mesma capacidade e que lhe
permitia enxergar além dos fatos. Fora assim que descobrira as qualidades inatas de
Hester Waring!
A imagem da esposa, dia-a-dia ganhando confiança e começando a desfrutar de
suas habilidades recém-descobertas, surgiu-lhe à mente. E mais determinado que
nunca, ele decidiu que faria dela sua mulher e a mãe de seus filhos.
CAPÍTULO VII
Hester postou-se diante da janela de seu quarto, olhando para o imenso oceano
que a Primeira Esquadra Naval havia singrado até chegar a Botany Bay, em 2 de janeiro
de 1788. O dia da chegada da Primeira Esquadra normalmente era comemorado em
grande estilo. Era decretado feriado e até mesmo os condenados participavam dos
festejos. Era distribuído rum entre a guarnição, e o governador promovia um grande
banquete para o qual eram convidadas todas as pessoas relevantes da colônia.
Este ano, as cerimônias oficiais tinham sido transferidas de dia, porque o
governador ficara retido em Paramatta e somente agora, no final de fevereiro,
MacQuarie promoveria o disputado banquete.
Os Dilhornes haviam sido convidados, embora, como emancipista, Tom pudesse
ser ignorado por todos os demais que estivessem presentes, a não ser o próprio
governador e os Kerrs. Hester estava curiosa para descobrir como seus velhos amigos
do regimento iriam tratá-la. Será que tratariam Tom com menosprezo?
Seus pensamentos foram interrompidos por uma batida na porta. Era Tom, ela
sabia. O marido era sempre cheio de escrúpulos e nunca entrava em seu quarto sem se
anunciar. Quando ela disse: “entre”, ele abriu a porta, hesitante por um momento, e
avançou, estendendo a ela a gravata de seda amarrotada, com um sorriso infeliz no
rosto.
— Desculpe, sra. Dilhorne, mas nunca vou aprender a amarrar essa coisa. Acho
que você pode dar um jeito nisso.
Hester fitou-o, muito séria. Não acreditava em uma palavra do que ele estava
dizendo. Tinha notado que, ultimamente, Tom vinha pedindo a ela que o ajudasse a
terminar de se vestir.
— A necessidade obriga, sra. Dilhorne — era a desculpa habitual.
Aonde isso iria parar? Ela gostaria de saber. A algo que você haveria de gostar,
murmurou seu Mentor, em um tom irônico.
— Eu costumava fazer isso para papai — ela retrucou— , depois que ele não
podia mais pagar por um criado.
Ela sabia que Tom não tinha um valete de quarto e mantinha poucos
empregados na casa, além da sra. Hackett, que tinha um quarto pró~amo da cozinha. As
outras dependências dos serviçais eram afastadas da casa, perto das cocheiras.
Hester puxou uma banqueta e ajeitou a gravata sobre ela, começando a arrumar
as pregas e o nó.
— Este laço é chamado de queda de água — disse. — Era o predileto de
Rowland. Acho que o que papai gostava era mais adequado para um homem de mais
idade.
— Então, você não me considera um velho — murmurou Tom.
— Que pena. Acho que agora que sou, não apenas seu marido, mas um dos mais
eminentes cidadãos de Sídnei, eu devia parecer, a seus olhos, alguém sério e
compenetrado, a ser respeitado. Até mesmo Macquarie deve me julgar com idade
bastante ou não iria anunciar a minha indicação, e a de Alan, para a magistratura, hoje,
durante o banquete, para desgosto dos exclusivos, eu suponho.
— Se seriedade e compenetração são próprias de um velho — retrucou Hester,
levantando-se e estendendo-lhe a gravata, admirando seu trabalho — , então duvido de
que o sr. Tom Dilhorne algum dia venha a ter tais qualidades, mesmo quando chegar
aos noventa.
— Certamente nunca conseguirei, com uma esposa tão atrevida — murmurou
ele, inclinando a cabeça e beijando os dedos de Hester, quando esta lhe entregou a
gravata. — Diga-me, sra. D., o que aconteceu à criatura meiga e doce que indicamos
para ser a professora, no ano passado? Parece que ela desapareceu. Mais um comentário
para encará-los em todos os sentidos, minha querida. Miller vai trazer a carruagem para
que possamos chegar ao Palácio do Governo em alto estilo.
Hester, é claro, estava certa ao pensar que Tom seria tratado com menosprezo.
Ele sentou-se à mesa do lado oposto a ela, na bela sala do Palácio do Governo. Todos
comiam sob a luz dos candelabros e ao som da banda do Regimento. Nem uma alma,
além do governador, dirigiu a palavra a ele.
Ao final do banquete, os brindes começaram. Até então, as senhoras e os
cavalheiros haviam brindado entre si, fazendo tinir as taças e trocando gentilezas. Pat
havia feito um brinde a Hester, porém ninguém brindara com Tom, cujo vinho
continuava intocado, a sua frente.
A banda começou a tocar, suavemente desta vez, e com grande sentimento, a
marcha do Regimento, “Meu amor é uma rosa vermelha, muito vermelha”, para
acompanhar o brinde oficial. O criado de libré que coordenava a saudação pediu aos
convidados que erguessem suas taças. O barulho dos convidados ao se levantarem foi
seguido pelo som de um súbito tumulto na ponta da mesa, distante dos Dilhornes.
Um jovem tenente, que havia bebido mais do que era conveniente, levantou-se,
antes que a ordem fosse dada, e começou a gritar para o Governador.
— Não! — ele bradou. — Não erguerei uni brinde nem jurarei lealdade a Sua
Majestade, o rei George III, na companhia de bandidos e da escória que deveria estar
trabalhando sob correntes! Você pode ser o governador aqui, senhor, mas abusa de
minha integridade moral se quer que eu partilhe do Brinde da Lealdade com ele. —
Apontou para Tom e, erguendo a taça ao alto, pôs-se a despejar o brilhante liquido
vermelho sobre a toalha da mesa, em uma cascata. O rumor cresceu.
O coronel O’Connell, o rosto tão avermelhado como o vinho esparramado, deu
uni murro na mesa.
— Cale a boca, seu idiota! Perdeu o juízo?
Outros oficiais, sentados perto dele, embaraçados que o jovem embriagado
houvesse dito aquilo que todos pensavam no íntimo, procuraram fazer o rapaz sentar-
se. Este, porém, não pretendia silenciar, e gritou novamente, antes que o major Menzies
lhe tapasse a boca com a mão:
— É ele que está louco — berrou, indicando Macquarie, que se sentou, imóvel, o
rosto transformado em pedra, enquanto o tumulto continuava. — Pedir a oficiais e
cavalheiros que se sentem à mesa e confraternizem com um sujeito como Dilhorne,
pensar em fazer dele um magistrado... E vocês todos que aqui estão são uns hipócritas,
que... — O resto da frase se perdeu por trás da palma larga da mão de Menzies.
Cabeças se viraram. Homens riam à socapa. Mulheres tremiam. A única pessoa
impassível na sala, além de Macquarie, era o próprio Tom.
Ele sorriu, pegou sua taça, e ficou a observar o jovem ser arrastado, esperneando,
para fora da sala pelos constrangidos oficiais. Os protestos sufocados continuaram até
Hester Waring’s Marriage 82
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
Tom levantou o copo vazio e fez uma reverência, primeiro para a sra. Middleton
e, então, para Hester.
— Ao ar. Dilhorne e a mim — disse Hester, em tom de desafio.
Ao que Pat retrucou, divertido:
— Bravo, minha cara Hester. Espero que sua lealdade a ele mereça uma
recompensa digna de sua coragem.
Por um instante, Hester pensou que o capitão estava brincando. Porém, talvez
não estivesse. Ela estava começando a descobrir que Pat Ramsey tinha qualidades
ocultas.
Depois do brinde, todos os convidados dirigiram-se ao jardim. Em grupos
fechados, discutiam com grande animação, entre divertidos e zangados, tudo que havia
se passado.
A opinião geral era que Macquarie havia merecido um tal susto por ousar forçar
o inaceitável dentro do Palácio do Governo, onde se supunha que tais desclassificados,
como Dilhorne, nunca fossem recebidos.
Hester, seguida por olhos curiosos e reprovadores, recusou o convite de Pat
Ramsey para acompanhá-la e saiu, à procura de Tom. Este estava impassível como
sempre, conversando com o governador, que fizera questão de aproximar-se dele no
momento em que o jantar terminara. Tomara-o pelo braço e caminhara a seu lado para
o jardim, em uma clara demonstração de seu desprazer com o comportamento dos
oficiais de seu antigo Regimento.
Vendo que Hester se aproximava com unia expressão de desafio no rosto, Tom
desculpou-se junto ao governador, tomou o braço dela e afastou-a dos convidados,
levando-a até uma pequena alameda de pinheiros através dos quais, lá embaixo, o
oceano distante podia ser visto, desmanchando-se em ondas.
Sentiu que ela tremia e murmurou, com doçura:
— Ora, vamos, ara. Dilhorne. Você foi uma moça corajosa lá dentro. Não lhes dê
a satisfação de mostrar-se aborrecida.
— Aborrecida?! — exclamou Hester, elevando a voz. — Eles é que deveriam
mostrar-se aborrecidos...
— Psiu... — ele a interrompeu, em um tom gentil. — O que aconteceu não é nem
mais nem menos do que aquilo que eu esperava. Talvez Macquarie agora perceba que
minhas advertências têm fundamento. Tenho que confessar que, em primeiro lugar, sua
conduta em nos convidar, insistindo para que aceitássemos e, depois, fazendo questão
de me honrar com sua atenção após o tumulto, ainda que pessoalmente seja gratificante
para nós, não foi uma atitude nem sábia nem sensata. Alan me ensinou um ditado, em
latim, um sobre o qual o governador deveria ponderar. Festina lente, ou traduzindo em
linguagem vulgar, Vá devagar! — Ele sorriu com sarcasmo. — Você deve compreender o
ressentimento deles, Hester, e aprender a viver com isso. Agora, me dê um sorriso.
Estamos nos divertindo, não é mesmo? Logo, vão espocar os fogos de artifício. Você vai
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Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
gostar de ver, eu sei. E a banda está prestes a começar a tocar, o que, pelo que todos be-
beram, será uma aventura, por si só.
Subitamente, Hester percebeu que ele procurava tranquiliza-la, que nada do que
tinha sido dito ou feito contra ele tinha o poder de feri-lo, e que ele estava tentando
fazê-la reagir da mesma maneira.
Como se pudesse ler-lhe os pensamentos, Tom continuou, suavemente:
— Eles querem vê-la aborrecida. Sorria e pareça feliz, isso irá irritá-los ainda
mais. É o que fazem os japoneses. Há uma luta, chamada judô, na qual usam a força do
oponente para derrubá-lo.
A despeito de tudo, Hester esboçou um sorriso. Era bem próprio de Tom ouvir
um insulto e usá-lo para tirar alguma estranha lição de vida, em vez de permitir que
isso o perturbasse. Ele percebeu sua expressão e apertou-lhe a mão carinhosamente.
Will French, um dos amigos e rival de Tom em negócios, aproximou-se.
— Sra. Dilhorne — disse ele, com seu jeito franco e rude — , está com ótimo
aspecto. Corada, na verdade.
— Oh, é apenas efeito de uma crise temperamental, sr. French — retrucou Hester
espirituosamente.
— Ah, é claro — concordou French. — Ouvi dizer que um dos jovens oficiais se
encrencou.
— Mesmo para Sídnei, essa fofoca andou rápido — emendou Tom, realmente
divertido.
French fitou-o com dureza; não conseguia compreender Dilhorne.
— Bem, não foi sobre isso que vim conversar. Importa-se que tratemos de
negócios, senhora?
Antes que Hester pudesse responder, Tom interveio:
— Se tem alguma coisa a dizer, French, pode fazer isso na frente de minha
esposa sempre que quiser.
— Pois bem... Você tem sido um bom amigo e sempre jogou limpo comigo. Achei
que gostaria de saber que há um mercado clandestino de bebida e mercadorias do
governo, ultimamente. Pensei que havia um acordo com O’Connell de que o que estava
aqui, em compromisso, seria distribuído por seu intermédio, e o suborno pago aos
militares.
Isso era novidade para Hester.
Tom sabia o que ela estava pensando.
— E hora de você saber como essas coisas são organizadas, Hester — disse a ela.
— Então, French, alguém, um oficial, ou oficiais, quem sabe, está roubando, por baixo
do pano, é lógico, em vez de às dares, e o material está sendo vendido por toda a
Sídnei?
French concordou.
— E isso está sendo feito sem o conhecimento de O’Connell?
Novamente, French concordou.
— Meus agradecimentos — disse Tom, muito sério. — Vou ficar atento.
Ninguém pode sair por ai com a parte do leão e passando a perna em seus colegas
oficiais, sem dizer nada a Tom Dilhorne.
Hester não pôde se conter. Deixou escapar uma risada. Tom fitou-a com fingida
severidade.
— Acha graça, não é, querida? Acha graça que alguém esteja fazendo Dilhorne e
a sócia de trouxas?
— Sócia? — perguntou French, um tanto espantado.
— Sócia — repetiu Tom, apontando para Hester.
Era sua recompensa, ela sabia, por trabalhar duro e tentar se comportar como ele
o faria. Tom começara, agora, a dizer ao mundo que os dois eram mais que um simples
casal de marido e mulher. Não podia agradecê-lo no momento, não em frente de Will
French e dos espectadores hostis.
Ao invés disso, ela ficou a observar alguns dos soldados particulares do 73~
Regimento caminharem pelo gramado, trazendo tochas nas mãos, para acender os
galhos cortados dos grandes pinheiros que apontavam para o céu. Outros acendiam
lanternas entre o arvoredo para iluminar a penumbra crescente. Os primeiros fogos de
artifício começaram a espocar. A banda tocou uma versão de Fireworks’ Music, de
Handel, distorcida pelo efeito do álcool, para acompanhar o espetáculo.
De semblante deslumbrado, Hester admirou o show de luzes e cores, esquecida
dos insultos ao marido e dos ladrões que surrupiavam mercadores. Tom, ao contrário,
ficou a observá-la e não aos fogos. Aquele ar inocente e deliciado, inesperadamente,
penetrou em sua alma empedernida e amargurada.
French, ao fitá-lo, ficou surpreso. Então, Dilhorne tinha um ponto fraco, afinal, e
era a esposa feiosa, entre todas as pessoas. Quem haveria de imaginar unia coisa
dessas? Essa mesma constatação faziam muitos outros, com um sorriso cruel.
No início, Tom até fizera descaso das fofocas desagradáveis que circulavam por
trás de suas costas. Seu casamento fora uma decisão tomada a sangre frio, e Hester, uni
troféu, a melhor parte do jogo. E, se nisso tudo, seduzi-la e levá-la para a cama era
apenas mais uma jogada, estava se tornando, surpreendentemente, bem mais que isso.
Não era apenas o fato de viver em íntima proximidade com Hester o que o
levava a desejá-la. Possuí-la inteiramente não era simplesmente um ímpeto da carne, era
a própria Hester que o compelia a fazê-lo. Sentia-se tomado por unia emoção que o
homem duro em que se tornara jamais sentira por qualquer mulher, por mais que
tivesse gostado de suas amantes, e era algo absolutamente distanciado de sexo, apenas.
Estavam casados havia quase dois meses quando, uma certa tarde, Tom chegou
em casa mais cedo e contou a Hester que, quando descia a King Street, um dos
aborígines o havia parado e dito a ele que estava para desabar uma violenta tempestade
naquela noite.
Muitos europeus poderiam rir diante de tal profecia. Tom, porém, aprendera em
sua vida dura que nada devia ser ignorado. Os aborígines já o haviam alertado antes,
sobre coisas assim e, usualmente, estavam certos. Por isso, dera uma moeda ao homem.
Este arreganhara os dentes e murmurara alguma coisa em sua estranha linguagem, que
Tom esperava fosse algum tipo de agradecimento, mas que julgara fosse algo mais
parecido com “coitado de você, pobre homem branco”.
— Caso ele esteja com a razão — Tom disse a Hester — , vamos sair para um
piquenique e observar a tempestade em campo aberto. Já presenciou uma tempestade,
Hester?
Hester confessou que nunca vira.
— Bem, então não há nada a perder e, se não houver tempestade, teremos
passado uma tarde agradável ao ar livre.
Miller, o empregado, arreou os cavalos da carruagem, e Tom trouxe comida da
cidade para o piquenique. Partiram pela campina até chegar a uma clareira, distante de
Sídnei, em um promontório do qual se via o mar, de um lado, e as montanhas distantes,
de outro.
A princípio, como dissera Hester, tudo não passara de um rumor. Nada de
tempestade. Comeram a comida e beberam o vinho que, premeditadamente, Tom
colocara na cesta.
— Mais vinho! — exclamou Hester. — Você está me transformando em unia
beberrona, ar. Dilhorne.
— Mas você se comporta bem melhor, agora — disse Tom, que nunca se cansava
de mimá-la, ultimamente. Colocou o xale em suas costas, deixando que os dedos se
demorassem em seu pescoço. Sentiu que ela estremecia a seu toque e perguntou,
ansioso: — Está com frio?
Em resposta, Hester corou e murmurou:
— Não. — E inclinou-se ligeiramente, recostando-se contra ele.
Se a proximidade afetava Tom, afetava Hester ainda mais. Seu medo dos homens
havia começado a desaparecer, e o que começara a sentir por Tom estava muito distante
de temor.
Tom gostava de comer ao ar livre e desfrutar de um piquenique no campo, o que
freqüentemente faziam. Isso incluía dar de comer a Hester na boca, com ela lambendo-
lhe os dedos, como se fosse um bichinho de estimação, Hester pensava, divertida.
O Dilhorne bicho-papão havia, há muito, desaparecido de seus monólogos
interiores, para ser substituído por Tom, que lhe trazia presentes e descobria coisas
CAPÍTULO VIII
De súbito, Tom surgiu, correndo para o próprio quarto, para reaparecer quase
imediatamente, com uma garrafa de brandi na mão e toalhas sobre o ombro.
Bateu à porta do quarto de Hester e entrou. Encontrou-a tentando secar os
cabelos ensopados. Ela o fitou. A água escorria pelo rosto dele, dos cabelos encharcados,
e, como as dela, suas feições irradiavam um brilho misterioso. Ele caminhou até a
penteadeira e colocou uma dose generosa de brandi no copo, oferecendo-o a ela.
— Beba isto, ara. Dilhorne, vai lhe fazer bem.
Hester sentiu como se alguma invisível mão, que a segurara pelas costas durante
toda sua vida, houvesse sido removida. Tomou o copo e, recordando-se do pai, engoliu
a bebida de um só gole. Imediatamente, engasgou e pôs-se a tossir, o álcool queimando-
lhe a garganta e escorrendo como um fluxo quente em direção a seu estômago. De olhos
lacrimejantes, voltou-se para ao marido, que ria da expressão de seu rosto.
— Muito corajoso de sua parte, ara. Dilhorne! — Avançou para ela, segurando
uma das toalhas. — Deixe-me ajudá-la a secar-se.
Ela poderia ter recusado, afastando-se, lembrando-o do acordo. Hester, porém,
descobriu que unia estranha excitação a tomava. Longe de se sair com um cerimonioso:
“Oh, não, sr. Dilhorne, posso fazer isso sozinha”, tinha mais é vontade de sentir as mãos
de Tom em contato com seu corpo.
Pior, ou seria melhor?, a proximidade entre os dois, que deveria fazê-la encolher-
se de desgosto, provocava um ataque de risinhos, na verdade. E Tom parecia não
apenas disposto a enxugá-la, mas a tirar-lhe as roupas, e, o mais estranho, tirar as dele
também!
— Estão muito encharcadas, sra. Dilhorne, não vamos arriscar a provocar uma
febre.
Longe de assustar Hester como antes poderia ter acontecido, isso provocou nela
uma sensação inusitada. Estavam quase nus, enrolados em uma das toalhas gigantes
que tinha trazido.
— Você vai pegar uma gripe, sra. Dilhorne, se continuar a tremer assim. Deixe
que eu a ajude a trocar de roupa.
E ajudá-la a vestir-se significava tocá-la por todo o corpo. Na verdade, ele o fazia
muito suavemente. Porém, agora, o tremor não era de frio. Hester estremecia pelo efeito
que aquelas mãos lhe causavam.
A princípio, os toques eram quase casuais e inocentes. Lentamente, porém, ele se
pôs a massageá-la nas costas e ombros e, logo, corria as mãos por seus quadris e os
selos. Os polegares fechavam-se sobre seus mamilos retesados e os apertaram de um
jeito estranho. O prazer que a invadiu fez com que Hester não apenas gritasse, mas se
apertasse contra ele, o que serviu apenas para dar a Tom novas oportunidades de
acariciá-la e tocá-la, tudo isso em meio a murmúrios, dizendo que, logo, ela estaria
aquecida outra vez, ele poderia assegurar!
A sensação de algo se derretendo em seu ventre tomava-se cada vez mais forte.
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Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
para o lado. Lançou-lhe um olhar malicioso, e ela soltou um risinho involuntário. Então,
os lábios dele novamente a percorreram, a começar da orelha, descendo pelo pescoço,
até mais abaixo, pelo ventre, deixando um rastro de fogo.
— Alguém já lhe disse como você cheira gostoso, sra. Dilhorne? O capitão
Parker, por exemplo?
Hester não conseguiu reprimir uma risada. A vontade de retribuir com paixão a
todas as carícias voltou, e ela respondeu a cada toque, cada beijo, até que Tom a beijou
nos lábios, sua língua penetrando-lhe a boca, provocando-a, excitando-a, cada vez mais.
E ela devolveu a provocação.
Sentia-se prestes a derreter. O brandi, a fúria da tempestade, a excitação de
ambos, a toalha que os enrolava, e, agora, as atenções inconfundíveis com que Tom a
cumulava, começaram a fazer seus efeitos.
Seu último pensamento, quanto ele arrancou a toalha que os separava e
preparou-se para possuí-la, foi: “Será verdade que isto está acontecendo comigo?”
— Não fique com medo — ele murmurou. — Posso machucá-la um pouquinho
no começo, mas depois, ora... Depois, prometo que vai gostar e chegaremos ao êxtase,
juntos.
Ele tinha razão de novo, descobriu Hester. Depois da primeira investida, a
sensação de dor era quase nenhuma. O contrato firmado no casamento tinha sido
quebrado, mas ela não se importava, de jeito nenhum. Corpos unidos, ela com dedos
enterrados nas costas de Tom, ele agarrado a seus quadris, a sensação de preen-
chimento e prazer era indescritível. Gritou de alegria, uma alegria que nunca sentira em
seus vinte anos, estranha, completa, total.
Depois, mergulhou no sono da exaustão, nos braços do amado, amado que era
seu marido, o homem que a desposara por brincadeira e que agora descobria que a
brincadeira voltara-se contra ele.
— Oh, Tom, você me conforta. Eu estava começando a pensar que era tão
desviada quanto as mulheres do bordel de Madame Phoebe.
— As mulheres de Madame Phoebe não sentem prazer em seus atos, meu amor
— ele lhe disse, suavemente. — Por essa razão, nunca dormi com elas. Você foge da
alegria e satisfação honestas quando paga por isso, ou faz isso por dinheiro. O que
inclui maridos e esposas que usam um ao outro. As garotas de Phoebe não são
desvirtuadas, Hester, ganham a vida, pobres criaturas, do único jeito que podem.
Hester retesou-se nos braços do marido. Se ele não a houvesse resgatado daquela
vida miserável, ela poderia ser uma dessas infelizes, se tudo o mais lhe faltasse. Ela a
salvara daquilo... Estremeceu e voltou-se, procurando por segurança.
— Você sabe tanta coisa, Tom, e eu tão pouco. Diga-me, todos os homens são
como você?
— Deus me livre, não! — ele respondeu, em um ímpeto, com súbita violência e
extremamente sério. — A única coisa boa que você pode dizer de mim, Hester, é que
não gosto de ver as mulheres sofrerem.
— A única... — ela murmurou, suavemente, para si mesma, quando ele
finalmente dormiu, ao lado dela. — Mas é uma grande coisa, Tom.
Grudada contra a porta do quarto dos patrões, os ouvidos atentos, a expressão
ávida e cruel, havia alguém que não apreciava em nada aquela paixão e aquela
felicidade recém-descoberta. A única coisa que desejava era espalhar a fofoca por toda a
Sidnei.
— Ora, ora, ele finalmente se apossou daquela madame arrogante na noite da
tempestade — cacarejou a ara. Hackett a seus amigos e a quem mais quisesse ouvir. —
Carregou-a para a cama e ficou lá, com ela, por dois dias inteiros! Só saiu de lá, e foi ele
que levantou, para ir até minha cozinha, usando uma roupa de dormir. Minha esposa
está doente — me disse, na maior tranqüilidade — e não vai se levantar, hoje. Vou levar
a comida para ela. — Explodiu em uma horrível gargalhada. — Doente! Olhem só para
ela! Dois dias inteiros fazendo aquilo! Fico a imaginar como não os ouviram, em toda a
Sídnei!
A novidade se espalhou, chegando aos ouvidos da guarnição. E o livro de
apostas de Jack Cameron o ameaçava com a falência. Quando a fofoca atingiu os
portões do Palácio do Governo, Lachlan Macquarie sorriu, e pensou consigo mesmo:
“Aquela raposa esperta... Qual será seu jogo, desta vez?”.
Alan Kerr ouviu Pat Ramsey comentando com o jovem cabo Osborne sobre a
última investida de Tom Dilhorne, entre gargalhadas, e levou a boa-nova para casa.
Quando contou a Sarah, ela o beijou.
— Eu disse a você que confiasse em Tom — murmurou ele.
CAPÍTULO IX
Fazia uma quinzena que Tom e Hester eram marido e mulher de verdade e ainda
desfrutavam das delicias da lua-de-mel, quando receberam um convite de Lachlan
Macquarie para um baile.
Um baile! Hester nunca fora a um baile. Havia lido a respeito, porém nunca
esperara poder fazer parte da seleta lista de convidados do Palácio do Governo. Por
outro lado, nem poderia jamais imaginar o que aconteceria a ela, desde que se casara
com Tom Dilhorne.
Cada dia lhe trazia urna nova experiência, ou quem sabe fosse melhor dizer
duas, pois eram as noites que mais a enchiam de prazer. Devia estar agradando a Tom,
também, pois, ao contar a ela sobre o baile, ele dissera:
— Por ser uma esposa tão maravilhosa na cama, sra. Dilhorne, você vai ganhar
um vestido novo para o baile, e será a dama mais elegante da festa.
Tom, como sempre, era fiel a sua palavra e voltara para casa com um esplêndido
traje de noite da mais fina seda cor de ametista. Também lhe dera um colar e um anel de
ametista.
Naquela noite, ele a fez usar todas aquelas preciosidades, como se fosse para o
baile, ajudou-a a prender o cabelo no alto da cabeça e pediu que calçasse delicadas
sapatilhas. Então, muito devagar, desnudou-a com um carinho demorado, que a fez
gemer de frustração. Tirou tudo, porém o colar de ametista ficou em seu pescoço
durante a longa noite de amor que se seguiu.
Hester ainda não havia adquirido a aparência que Tom tinha certeza de que ela
haveria de apresentar quando seu desabrochar fosse completo, mas era agora bem mais
bonita do que a moça com quem ele tinha se casado.
Sentia-se orgulhoso de levá-la pelo braço, senhor e ara. Dilhorne de direito e de
fato, para atormentar Sidnei com seu sucesso e a emergente beleza da esposa, assim
como para desafiar os fofoqueiros que vinham devorando os boatos sobre seu
casamento como abutres.
Antes de saírem, Hester perguntou, envergonhada:
— Estou bem, Tom?
Ele fitou-a, correu a mão delicadamente por seu pescoço, e murmurou a seu
ouvido:
— Muito bem, Hester, embora eu a prefira usando apenas as ametistas, mas isso
não seria próprio para o baile... para mais tarde, quem sabe.
Ruborizada e sorrindo, pois Tom passara todo o trajeto provocando-a com as
delícias que os esperavam, quando voltassem para casa, Hester chegou ao Palácio do
Governo segura de si mesma como jamais se sentira. O que veio apenas mostrar, ela
concluiu mais tarde, que pobre profetiza era ela.
Estava feliz! Só o fato de estar presente a um acontecimento tão importante a
enchia de alegria. Lachlan Macquarie tratou-a com gentileza, quando chegou. Porém,
depois de algum tempo, Hester percebeu que ela e Tom eram objeto de mais do que um
simples interesse, e que, pela expressão, era algo de desagradável.
Tom notou também, e seu rosto se endureceu. Nada disse, porém, a Hester. Deu
de ombros, afastando o desconforto e concentrou-se em tentar assegurar que ela se
divertisse. Hester procurou ignorar os sussurros, os cochichos, os olhares. Viver com
Tom criara nela uma armadura.
Depois de desfrutarem de uma leve refeição servida em tira bufê em uma das
pontas do enorme salão, ela manifestou o desejo de sentar-se longe do calor. Tom
imediatamente levou-a a um canto da sala, próximo ao jardim de inverno recém-
construído, onde era agradavelmente fresco, e não havia outros convidados.
Sentaram-se por algum tempo, observando a movimentação, até que Tom
sugeriu a Hester que tomasse algo refrescante. Diante da concordância dela, ele
levantou-se para buscar o drinque, deixando-a sozinha, a ouvir a banda e admirando os
dançarmos. Tom raramente dançava.
— Não faz parte de minha educação — havia explicado.
Hester por diversas vezes se perguntara em que consistira essa educação e como
tivera acesso a ela. Ele, porém, nunca falava de sua vida passada.
Dois oficiais, um deles Jack Cameron, pela voz, e o outro a quem ela não
conhecia, entraram no jardim de inverno, para fumar, longe do salão onde isso era visto
com desagrado. Pararam diante da porta aberta e pareciam despercebidos da presença
de Hester, ali perto. Ela podia ouvi-los, rindo e conversando.
A conversa e a fumaça a perturbavam. Estava a ponto de afastar-se e tentar
encontrar Tom quando ouviu seu nome e o dele, repetidos.
— Então ele levou aquela coisa feia para a cama, afinal — disse o oficial
desconhecido, em um tom de caçoada. — Ouvi dizer que foi há uma quinzena e
parecem estar se divertindo à beça: dois dias trancados no quarto, é o comentário.
Todas as apostas precisam ser pagas, Jack. Quando posso pegar meu dinheiro?
— Não sei, velho amigo. Ele a levou para a cama, é verdade, mas irá mantê-la lá?
Tom Dilhorne sabe como manipular as coisas, porém quem poderá ter certeza de que
ela deseja continuar a ter relações com um bruto como aquele? Não, vamos esperar para
ver o que acontece, antes de eu pagar a ele, ou a qualquer outro.
— Você é tão ardiloso como um demônio, tanto quanto ele, Cameron —
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que haviam trazido a ela, e sentiu que fosse desmaiar. Aquele bruto, aquele bruto
odioso! Ele a trata como uma vagabunda, e ela ainda o consideram tão gentil, tão
atencioso... A sala girou diante de seus olhos.
Tom voltou com os drinques e percebeu, imediatamente, que algo havia
acontecido. O semblante de Hester havia se transformado e estava pálido como cera.
Estava mais parecido com o aspecto macilento de antes; mesmo seus olhos haviam se
encovado, e sua aparência era de um fantasma.
— Hester! O que houve? — ele indagou, pondo as taças em unia mesa, ao lado
da cadeira. Fez menção de tomar-lhe a mão, mas uma expressão de horror perpassou
pelo rosto dela.
— Não me toque, proíbo que me toque. Leve-me para casa. — Ela fez um gesto,
procurando afastá-lo, mas sua voz falhou ao dizer a palavra casa. Não tinha casa...
Tom endireitou-se, o semblante consternado.
— Por quê, Hester, por quê?
— Eu ouvi — ela murmurou. — Eu os ouvi falando. Estavam rindo da coisa feia
que Tom Dilhorne levou para cama, para ganhar uma aposta.
Ele ficou imóvel, o rosto impassível.
— Hester, você não pode acreditar em uma coisa dessas.
— Oh, mas eu acredito, acredito mesmo. Eles sabiam de tudo. Sabiam
exatamente quando aconteceu. Que ficamos dois dias juntos na cama. Como nos
divertimos... — Sua voz fraquejou. — Pensei que era um segredo nosso, e é a piada que
corre por toda a Sídnei.
— Levantou-se e pôs as mãos trêmulas no pescoço, soltou o colar de ametistas e
entregou-o a Tom. — Não vou usar sua marca registrada, Tom Dilhorne. Foi isso que
disseram que era. Sua marca registrada. Agora, leve-me para... casa... — Começou a
tremer.
Tom levou a mão para tomar-lhe o braço, mas ela o rejeitou.
— Está proibido de me tocar.
— Hester, por favor. — O rosto de Tom estava sombrio. Era a primeira vez que
ele implorava algo a ela, ou a qualquer um, homem ou mulher. Olhou para o colar, em
sua mão. — Por favor, ponha o colar de novo. Se já não souberem que você está me
rejeitando, irão saber quando virem que você não o está usando. E acredite-me, Hester,
eu a amo. Pelo meu bem, ponha de volta. Por Tom, Hester, por Tom.
Ali, finalmente, ele dissera o que nunca havia dito a ela, diretamente, enquanto
faziam amor. Aquilo que nunca pensara que haveria de dizer a alguém: eu a amo.
— Pelo seu bem? Por que eu deveria? Eles parecem saber tudo sobre nós, então
quero que saibam que eu o rejeitei, assim você perderá sua maldita aposta, e Jack
Cameron pode ficar com os lucros.
— Jack Cameron? Foi Jack Cameron a quem você escutou? Como pode acreditar
em um crápula como aquele e não acreditar em mim?
— Porque você é um crápula ainda pior que ele, e toda a Sídnei sabe disso. Sim,
foi ele. Os dois sabiam. A propósito, acho que todas essas pessoas que estavam me
olhando sabiam. — Sua voz tremeu, em um soluço. — Sabiam o que havíamos feito ,e
que você apostara que iria me possuir. Você contou a eles no dia seguinte? Oh, por
favor, leve-me para casa. Não agüento mais ser olhada dessa forma.
Tom, pela primeira vez, sentiu-se derrotado. Hester começou a afastar-se, cabeça
erguida, e ele caminhou atrás dela, sem a tocar. Cruzaram o salão de baile, sem olhar
para nada e para ninguém, o rosto dela tão impassível como o dele: a sra. Dilhorne
tinha sido bem treinada pelo ar. Dilhorne.
Mais de uma pessoa notou que ela não usava mais o colar de ametista, entre elas
um sorridente Jack Cameron.
Era, porém, o rosto de Tom que prendia a maioria dos olhares. Estava tão sério e
pesaroso como se estivesse se encaminhando para o cadafalso.
Durante todo o caminho para casa, Hester manteve-se afastada de Tom. Ele
dirigiu com um cuidado incomum e, quando chegaram à villa e estavam finalmente lá
dentro, ela o deixou sem uma palavra, subindo a escada para o quarto.
A porta, ela se voltou, os lábios tremendo.
— Você pode recolher suas coisas e ir para seus antigos aposentos, Tom
Dilhorne! O acordo original entre nós continua em pé, isso é tudo!
Ele ignorou-lhe as palavras e caminhou em sua direção.
— Hester, você precisa me ouvir.
— Por que eu deveria? Você me enganou desde o princípio. Posso ver isso agora.
Tudo não passou de uma grande piada para você, casar-se com uma dama, e ainda
levar uma boa governanta na barganha.
— Eu poderia ter contratado uma governante — ele retrucou — sem precisar me
casar com ela. A própria sra. Hackett serviria, e nem posso pensar em mim, casando-me
com ela.
— Por que será meu comigo? Por que quer uma dama como esposa? Disseram
que você amava Sarah Kerr. E que eu era um bagulho.
Ele fechou os olhos. As batalhas verbais que enfrentara com Hester desde o dia
da entrevista não cabiam ali. Na verdade, ela estava certa. Ele começara a persegui-la de
uma maneira cínica e friamente premeditada. Manipulara a situação para que se casasse
com ele, e também usara de ardis para levá-la para cama. Mesmo que Hester o quisesse
tanto quanto ele mesmo a queria, no final, ainda assim tudo não passara de
manipulação.
Seu casamento havia começado, em princípio, como um dos jogos que ele jogava
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Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
com a vida, uma de suas piadas sarcásticas. Se fosse honesto, podia dizer que tinha sido
um jeito canhestro de se vingar daquele porco desagradável, o pai dela, levar a filha
dele para a cama e fazer dessa filha sua parceira.
Mas, em determinado ponto, o jogo havia mudado, e tudo o mais então.
Conforme a conhecia, começara a gostar dela. A mudança havia sido lenta, e era difícil
saber quando aquilo que era uma diversão inconseqüente havia se transformado em
amor. Impossível precisar o momento em que seu frio coração começara a se derreter.
Se ele a transformara, de uma criatura frígida em uma mulher cheia de paixão e fogo,
ela o transformara também, irrevogavelmente, e ele não conseguia nem sequer lembrar
quando essa constatação o atingira.
Certa manhã, contra o costume, Hester cairá da cama antes dele, totalmente nua,
pois não tinha falsos pudores, embora continuasse modesta e envergonhada em
público, e começara a se pentear diante do espelho.
Deitado, apoiado em um dos braços, observando-a, ele vira, não pela primeira
vez, que embora franzino, o corpo dela era bonito, perfeitamente proporcionado e de
belos contornos, agora que a boa alimentação e a felicidade o faziam desabrochar.
Quando ela erguera os braços e se voltara, as linhas adoráveis haviam se revelado em
toda a sua beleza.
A promessa que vira nela, quando a observara, distraída, na sala de aula, havia
se concretizado: tinha uma mulher graciosa diante dos olhos, e ainda não era,
certamente, tudo que ainda seria. As duas Hesters, aquela no espelho e aquela real,
haviam se movido, e o reflexo o fitara nos olhos. Ela sorrira, a boca erguendo-se no
canto, de um jeito encantador.
Um sentimento estranho, que Tom Dilhorne jamais havia experimentado,
inundou-o. Soube, pela primeira vez, que o que sentia por Hester não era simplesmente
orgulho de sua propriedade ou desejo pelas delícias de seu corpo, mas era amor, amor
por ela, por algo além de si mesmo, amor pela essência de Hester. Ela não era apenas
querida por que era dele, uma extensão de suas coisas, mas porque era ela mesma, era
Hester.
Jack Cameron havia esmagado o amor e a confiança que haviam começado a
crescer entre os dois com musa poucas e pérfidas palavras. Tinha certeza de que haviam
sido ditas deliberadamente, e Cameron, ele jurou a si mesmo, iria pagar por isso.
Dolorosamente.
Julgava que sabia quem poderia ter espalhado a fofoca por toda a Sidnei, fofoca
que permitira a Cameron destilar seu veneno.
Alguma coisa precisava ser feita a respeito, também. Culpou a si mesmo por ter
ignorado os fatos, por achar que ninguém ousaria desafiar Tom Dilhorne ou sua esposa,
por temor do que ele poderia fazer. Não havia pensado que aquela fofoca odiosa fosse
destruir o casamento que Hester e ele estavam construindo, baseado na confiança e na
alegria.
Precisava, a todo custo, trazer Hester de volta. Não podia perdê-la, agora que a
Hester Waring’s Marriage 104
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
— Não acredito em você. Meu pai estava certo. Você não presta. Eu nunca
deveria ter me casado com você. Não fale em nossas horas de intimidade. Estremeço só
em pensar como me comportei, nem um pouco melhor do que as prostitutas de
Madame Phoebe.
— Porém, não tão cheia de criatividade — ele emendou, brutalmente, já que era
evidente que ela não desejava poupá-lo. Sua força estava retrocedendo para voltar a se
confrontar com a dela, pois agora eram iguais, e, infelizmente, no desespero também,
que nunca havia sido igual antes. — Não se gabe, ara. Dilhorne, você tem muito a
aprender ainda, antes de poder se estabelecer na Rua das Pedras.
— Oh, você é intratável — ela gritou, desesperada. — Cada palavra que diz só
confirma a opinião de meu pai sobre você.
Hester pôs-se a torcer as mãos; um gesto antigo que o tocou, apesar da raiva e da
dor de se sentir rejeitado.
Culpou-se por tê-la deixado sozinha. Por fim, culpou os homens que ela escutara
conversando. Ele tinha ido ao baile tomado de orgulho, levando, finalmente, a esposa
de fato pelo braço, protegidos pela felicidade mútua.
— Você precisa me escutar — gritou, roucamente, percebendo-se em uma
situação nunca antes enfrentada. Tom Dilhorne havia jurado, muito tempo atrás, que se
bastava a si mesmo, e que ninguém iria penetrar seu coração. Tinha negado, a si e ao
mundo, até mesmo que possuía um coração.
Na cama, com Hester, ele se entregara a ela de corpo e alma, e a rejeição que
sentia tornava tudo mais amargo.
Hester recusava-se a chorar, não daria a ele esse prazer, mas o choque e a
vergonha que ainda a sufocavam fizeram-na desabar na cadeira do quarto, no quarto
onde se dera a Tom e onde tinham vivido horas de amor e paixão. Lamentou as
lembranças.
Tom lançou-se de joelhos, diante dela.
— Venha, meu amor, venha para mim. Vamos esquecer tudo isso. Precisamos
confiar um no outro. Eu não a magoaria, nem com palavras nem com atos. Você já
deveria saber disso.
Hester afastou o braço com que ele tentava enlaçá-la. A expressão alheada de seu
rosto, que ele julgara banida para sempre, havia retornado.
— Não confio em você. Não quero. Eu deveria ter compreendido melhor as
coisas. Quem haveria de querer a feiosa Hester Waring, a não ser como um troféu?
Alguém para ser exibido entre outras taças de conquistas na mesa de uni bar. Desde
que tenha se casado com a filha de um exclusivo, urna dama, não importa que ela seja
feia e pobre, ela era tudo que você queria para atingir seus objetivos.
Se a situação não fosse tão séria, Tom teria rido desse retrato de si mesmo. Ele, o
mais reservado dos homens, jactando-se de sua vida? Mesmo assim, havia alguma
verdade: ele a desposara porque Hester era uma dama.
Hester Waring’s Marriage 107
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
Levantou-se. Era inútil insistir. Serviria apenas para criar maia antagonismos, e
ele era suficientemente perspicaz para saber que somente a paciência teria o condão de
remendar as coisas. Precisava tentar mostrar a ela que Jack Cameron havia mentido, e
que a ara. Hackett, de quem suspeitava, tinha espalhado a fofoca pela cidade. Então,
quem sabe, o problema pudesse ser resolvido, se pudesse ser resolvido.
Afinal, pensou carrancudo, que não era totalmente inocente e que ela estava certa
quanto a isso. Ele a enganara. Pensou em seu rosto risonho quando ela o provocara, na
noite anterior, até que o levara quase à loucura. Depois, rendera-se com um ar de
desamparo. E ele havia jurado que sempre iria velar por ela. Por Deus, tudo mudara em
menos de vinte e quatro horas.
— Vou para meu antigo quarto, então — ele disse, lentamente, alimentando
ainda uma pequena esperança de que ela pudesse mudar de idéia e permitir que ele
ficasse.
— Você pode ir para o inferno, pelo que me diz respeito, Tom Dilhorne.
Bem, pelo menos ela ainda tinha presença de espírito, pensou ele, frustrado. Era
uma ratinha que se transformara, pelas mãos dele, em urna tigresa.
Na porta, voltou-se para dizer boa noite, apenas para ver que ela lhe virava o
rosto, escondendo-o nas costas da cadeira, para não vê-lo.
Mas, ao deitar-se em sua cama vazia, ele disse a si mesmo com toda aquela fria
ferocidade que o haviam transformado, de um condenado sem vintém, no magnata
mais rico da colônia:
— Sra. Dilhorne, eu a terei em minha casa de novo, e escolha como, se preferir!
CAPÍTULO X
tempo, depois de saciados. Ela não podia conceber urna vida em que isso nunca mais
pudesse acontecer, outra vez.
Tom sentado do lado oposto a ela, observando-lhe o semblante infeliz, o mesmo
rosto que Hester Waring tivera um dia, foi avassalado por um simples desejo. Levá-la
para cama e possui-la, para que ela pudesse corresponder com toda a paixão que, sabia,
ela era capaz. Ou, ainda, segurá-la, aninhada entre seus braços, o corpo quente contra o
dele, dormindo ou acordada, como faziam sempre quando saciados. Ele não podia
conceber uma vida em que isso nunca mais pudesse acontecer, outra vez.
Tom tinha absoluta certeza de que fora a sra. Hackett que os traira, mas precisava
de uma evidência definitiva. Simplesmente confrontá-la sem essa evidência seria inútil.
Ela era perfeitamente capaz de negar com toda a veemência. Por alguns instantes, de-
dicou-se a estudar o assunto, até chegar a uma possível solução.
Como sempre, a empregada os espionara. Na noite do baile, vira que Tom
voltara a seus antigos aposentos com seus pertences e não tivera dúvidas do que havia
acontecido. Ardia de vontade de passar adiante o ultimo capítulo do escândalo e mal
podia esperar que o meio-dia chegasse. Iria visitar um velho amigo que certamente
adoraria escutar o que ela ansiava por contar.
Enquanto Hester, sozinha em casa, pregava um botão solto de uma das camisas
de Tom, a sra. Hackett, entre goles de chá, anunciava, com um estranho prazer, a seus
camaradas:
— Madame não o quer mais, e o belo Mestre Tom foi posto para fora de sua
cama, de novo!
A fofoca, como um rastilho de pólvora, espalhou-lhe pela cidade. A caminho de
casa, a sra. Hackett foi interceptada por Jack Cameron, que lhe perguntou se ela
conseguira saber alguma novidade sobre os Dilhornes. Se assim fosse, haveria uma
recompensa.
Oh, sim, claro que sabia. E contou-lhe a última fofoca. Chegou em casa leve,
bem-humorada, e com mais dinheiro no bolso!
Tom descia a rua da Ponte, à tarde, quando viu o cabo Osborne entrando em um
bar, freqüentado pelos jovens oficiais.
O instinto o fez seguir o rapaz, que lhe devia um favor. Em um jogo pesado, por
falta de juízo, Osborne perdera um bocado de dinheiro, e se. vira sem condições de
pagar no ato, assinando uma promissória. O papel fora trocado entre os comerciantes e
acabara nas mãos de Dilhorne.
Tom raramente demonstrava simpatia para com os tolos, mas a exploração da
ingenuidade de Osborne e o fato de saber que o jovem era de uma família pobre e que a
maior parte de seu salário era mandado para casa, para sua mãe, fizeram com que
sentisse piedade pelo pobre idiota.
Acertara o débito por menos da metade de seu valor e dissera a Osborne que
Hester Waring’s Marriage 109
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
mantivesse a boca fechada: ele não poderia financiar a guarnição inteira. Também o
aconselhara a não jogar cartas novamente com espertalhões como Jack Cameron.
A gratidão de Osborne fora patética, gratidão que poderia bem servir aos
interesses de Tom, nesse momento.
Ele entrou no bar, fazendo um ar de surpresa ao ver o oficial.
— Importa-se se eu me sentar com você, rapaz? Estou sozinho, também.
Osborne, não sem motivos, apreciava Tom e, freqüentemente, defendia-o perante
os outros oficiais. Mais que depressa, concordou com a sugestão.
— Garçom, traga brandi para mim e para meu amigo — pediu Tom.
Puseram-se a beber, despreocupados, bebida paga, naturalmente, por Dilhorne.
— Digam o que quiserem, Dilhorne — disse Osborne, depois de alguns tragos —
, mas você é uni bom amigo, mesmo que tenha sido um bandido. Não dê importância ao
que Jack e o resto das pessoas pensam.
— Você não está apostando de novo nas cartas contra Jack, eu espero.
— De jeito nenhum! Nem coloquei meu nome no livro que ele abriu para você e
Hester. — A bebida fizera com que Osborne se esquecesse da discrição. Ficou vermelho,
e emendou: — Eu não deveria ter dito isso, Dilhorne.
— Não se preocupe, garoto — retrucou Tom, alegremente — , somos todos
homens vividos. Indecente, não acha, apostar no casamento de um homem?
— Foi o que disse a ele — respondeu Osborne, em um tom sombrio. — Ele riu de
mim. Disse que sou tolo, e que criminosos não merecem bons casamentos. Desculpe de
novo, Dilhorne. Acho que ele está chateado porque vai perder um monte de dinheiro se
você e Hester continuarem juntos. E é coisa séria o que ele anda dizendo de Hester por
aí, subornando sua governanta para tagarelar sobre vocês, e rindo de sua esposa por ser
feia. Eu disse a ele que não é culpa dela ser feia.
Agora, Osborne estava perdido. Viu que o rosto de Dilhorne se alterava quando
falou dos comentários de Jack sobre Hester. Fitou-o, encabulado.
— Ele não presta. Gostaria de lhe dizer isso, mas não sou homem o bastante. Até
mesmo Pat Ramsey, que é o melhor homem no regimento com a espada e as pistolas,
não quer briga com Jack. Não sou páreo para ele. Uma pena. Ele precisava de uma lição,
achar um homem que lhe desse um corretivo. — Bocejou, engoliu o último gole, e
murmurou: — Coisa estranha. Estou cansado como o diabo esta tarde, Dilhorne... —
Pousou a cabeça na mesa e começou a ressonar.
— Desculpe-me por isso, rapaz — disse Tom, apanhando urna toalha das mãos
do garçom e colocando-a sob a cabeça do oficial.— Mas eu tinha que descobrir, e agora
tenho a informação que precisava.
Pediu ao garçom que mandasse um de seus ajudantes levar Osborne de volta ao
quartel, quando o rapaz se recobrasse.
Foi para casa. Seus pensamentos quanto a Cameron eram permeados de sangue.
Saber que o nome de Hester andava na boca daquele homem e de toda a Sidnei era o
pior e o mais degradante insulto. A aposta e o suborno já eram suficientemente
indecentes, mas o abuso contra Hester era intolerável.
— Diabos — disse a si mesmo — , me dê metade de uma chance de cair sobre
você, Jack, meu camarada, e você vai desejar nunca ter nascido.
Agora, ia acertar as contas com a sra. Hackett.
Já em casa, encontrou a empregada na cozinha. Ela o encarou, mal-humorada.
Um dia, tivera medo dele, mas a familiaridade havia embotado essa sensação,
substituída pelo desprezo. Se fosse homem de verdade insistiria em seus direitos sobre
Hester.
Ele foi categórico:
— Dentro de cinco minutos, apresente-se em meu escritório.
Nunca um “por favor’ ou “muito obrigado”, pensou ela, ressentida. Mas, cinco
minutos mais tarde, batia na porta.
Tom estava de costas. E assim continuou. Ignorou-a por vários minutos, tempo
em que pôde sentir a agitação da mulher crescendo, atrás de si. Subitamente, voltou-se
e inspecionou-a, de alto a baixo, os olhos tão duros como pedras.
— Divertindo-se, não é mesmo? — perguntou com cinismo.
— Não sei o que quer dizer, mestre Dilhorne.
— Senhor, para você, Hackett. Senhor! — Insistir em ser chamado assim era um
sinal de sua profunda irritação. Desejava humilhá-la, como ela havia humilhado Hester.
— Pode pensar em uma simples razão para que eu não a expulse daqui, sem pagamento
e sem carta de recomendação, com a certeza absoluta de que ninguém, em Sidnei,
jamais a empregará de novo?
A mulher ficou lívida e, em seguida, pavorosamente arroxeada.
— O senhor.., não faria isso...
A expressão de Tom alterou-se, e ela começou a tremer. O medo, que um dia
tivera dele, voltou, em um só ímpeto.
— Não faria? Tenho em mente fazer isso agora, exatamente agora. Neste minuto!
E se eu o fizer, quem irá empregá-la, para espalhar seus boatos por aí? Se me contar
tudo o que vem dizendo e fazendo contra mim e minha esposa, eu poderei pensar em
mantê-la aqui. Porém, fique aí e finja que não sabe do que estou falando, e eu a jogarei
porta afora, neste exato minuto. Agora, raciocine. Ele não erguera a voz nem por um
instante, e isso era pior e mais mortal do que se houvesse gritado com ela.
— Eu posso ter contado alguma coisa para uns poucos amigos, senhor... — a
mulher começou. Seu medo era tanto que não conseguia mentir para ele.
— E dinheiro? — ele perguntou, observando que a fisionomia dela se
transtornava, diante dessas palavras. — Alguém lhe pagou para dar com a língua nos
dentes?
Como ele soubera? Hackett julgava que o assunto era um segredo entre ela e
Cameron. Gostaria de negar, mas em face da ira reprimida de Dilhorne, não ousou.
— Aquele oficial — ela murmurou em desespero. — Cameron. Logo depois que
vocês casaram, ele me parou na rua. Disse que me pagaria por qualquer informação
sobre o senhor e a sra. Dilhorne. Eu nunca peguei dinheiro antes... foi a primeira vez,
Deus é minha testemunha. — De repente, ela se lançou de joelhos, diante dele. — Oh,
por Deus, ar. Dilhorne, por favor, não me expulse. Não tenho para onde ir, se o senhor
se voltar contra mim. Ninguém irá me querer, vão ficar com medo de me dar emprego.
Vou morrer de fome. — Ela deixou escapar um soluço e agarrou-se em seus tornozelos.
Tom olhou para baixo, para a mulher amontoada a seus pés, e a raiva esvaiu-se
de dentro de seu peito. Era apenas uma pobre velha, afinal, que não tivera bom senso
de ver que desfrutava de uma cama macia ali, e que Heater era uma boa patroa. Acima
de tudo, ele não podia condená-la ao destino do qual resgatara Hester.
— Levante-se, levante-se — disse bruscamente. — Quanto ele lhe pagou?
— Ele me deu outro guinéu hoje, quando lhe contei sobre ontem à noite. Juro por
Deus que é verdade, senhor, foi tudo.
Tom fechou os olhos. Então os fatos da noite anterior também já eram motivo de
comentários pela cidade. Graças aos céus, Hester não ficaria sabendo. Acertaria as
contas com a velha megera e resolveria o assunto com Cameron.
— Dê-me o guinéu, e estamos quites. Primeira condição: há um quarto de
despejo sobre as cocheiras, perto de onde vivem os outros empregados. Não é tão
grande nem tão bonito como o que você ocupa, mas Miller vai arrumá-lo e, quando
estiver em ordem, leve seus pertences para lá. Não quero mais empregados espionando-
me em minha própria casa.
Empurrou-a, e a mulher começou a soluçar seus agradecimentos, remexendo os
bolsos à procura do guinéu, que colocou nas mãos que ele estendia.
— Fique quieta, mulher, está me pondo doente. Agora, a segunda condição. Se
eu descobrir que está contando coisas de novo, além daquelas que eu queira que você
conte, eu a jogarei nas ruas. Preste atenção no que digo, e agradeça por não lhe ter acon-
tecido coisa pior. Agora, saia daqui!
O que fazer agora? Contar a Hester? Sobre a sra. Hackett, sim. Sobre Cameron,
não. Antes, precisava acertar as contas com o capitão.
Apanhou os papéis da escrivaninha. Madame Phoebe queria falar com ele com
urgência sobre um assunto de negócios. Sorriu para si mesmo, com um ar de lobo. Iria
vê-la nessa nesta noite, sem falta, na casa de jogos. Os oficiais do 73º regimento
deveriam estar lá, Cameron entre eles, e quem sabe então o que Tom Dilhorne iria
resolver fazer?
Apanhou o guinéu do bolso, jogou-o no ar, girando, pegou-o, fê-lo desaparecer, e
Hester Waring’s Marriage 112
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
depois o sacou do centro da flor de um dos vasos que Hester colocara no escritório.
Então, tendo aparentemente colocado a moeda no bolso direito da camisa, esticou as
mãos para mostrar que nada tinha nelas, e retirou-o do bolso esquerdo.
O bandido Tom Dilhorne não havia perdido suas habilidades, nem o homem de
negócios que hoje ele era. Qual dos dois iria dar uma lição em Jack Cameron, ele não
sabia.
— Se eu lhe der o dinheiro de volta, Jade, vai me contar, ou devo arrancar isso de
você?
A resposta de Cameron foi uma gargalhada. Seu rosto tornou-se rubro. Ignorou a
moeda.
— Por Deus, Dilhorne, vai ter o que quer. Eu estava dizendo que sujeito especial é
você. Tão especial que até mesmo aquela coisa feia de sua esposa, e, diabos, não existe
coisa mais feia, que devia estar desesperada para trepar, não quer deixar um ex-
condenado como você deitar em sua cama, de novo. O que me diz disso, Dilhorne?
Sua risada de bêbado ressoou no silêncio opressivo.
Tom havia conseguido o que queria. Provocara Jack e o fizera dizer algo que
mesmo os oficiais mais ciosos de sua classe achariam difícil de engolir. E, ao fazê-lo,
destruíra seu próprio círculo de proteção.
Dilhorne era indiferente aos insultos dirigidos contra sua pessoa. Sabia que tinha
sido um ladrão e um renegado: era um fato, não uma ofensa. O que não suportava era
que Hester fosse mal-falada. Ouvi-la ser escarnecida por uni bêbado em um bordel,
diante da metade dos oficiais da guarnição de Sidnei, era demais.
— Isto! — ele respondeu, e se lançou por cima da mesa, sobre Jack.
Copos, garrafas, vinho, fichas de jogo, promissórias, cartas de baralho, voaram
em todas as direções. Antes que alguém pudesse impedi-lo, Dilhorne agarrou Jack pelas
orelhas e, com uma força espantosa, esmagou-lhe o rosto contra a madeira dura da
mesa.
Ergueu a cabeça de Cameron, agora ensangüentada, para repetir a ação, mas os
homens ao redor, a princípio estatelados pela rapidez e ferocidade do ataque,
agarraram-no, obrigando-o a soltar a vitima. Cameron caiu, semi-inconsciente, o sangue
jorrando da face destroçada, misturando-se ao vinho esparramado.
O silêncio mortal foi seguido por um tumulto. Um grupo se amontoou em torno
de Jack e outro empurrou Tom duramente contra a parede. Ele não fez menção de
resistir.
— Por Deus — gritou o oficial cujo braço prendia o peito de Tom, para impedi-lo
de atacar Jack novamente — , você não é mesmo um cavalheiro, Dilhorne.
— E você chama aquilo de cavalheiro? — foi a resposta incisiva de Tom. — Solte-
me, e ele nunca mais vai insultar uma dama outra vez. Meu trabalho está apenas pela
metade.
Sua voz era o que mais impressionava a todos, tal sua frieza e indiferença.
— Quando se recobrar, Jack vai querer satisfações — disse o jovem oficial que
segurava Tom pelo ombro direito.
Tom o fitou friamente.
— Então, ele vai querer me espetar com sua espada, eu suponho. Conheço um
truque que vale dois desses. Ele não vai insultar ou dizer mentiras sobre minha esposa
Hester Waring’s Marriage 115
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
parecia disposta a esquecer tudo, sem explicações. Rira sozinho diante da curiosidade
que queimava a esposa e de sua determinação em não se deixar trair. “Oh, iremos
celebrar esta noite, sra. Dilhorne, pensou, ora, se não vamos!”
Quando a deixara para ir a Sídnei, ele a beijara no topo da cabeça, murmurando:
“Eu lhe contarei tudo esta tarde, ara. Dilhorne”, o que a provocara mais ainda. Não
obstante, enquanto o observava afastar-se, seu rosto já se suavizara, e a infeliz e mal-
tratada Hester Waring havia desaparecido em um limbo do qual jamais haveria de
retornar.
Hester decidiu ir até a cidade para fazer algumas compras. Imediatamente
percebeu que algo estranho havia ocorrido. Algo envolvendo Tom e ela mesma, pensou,
ao se dar conta da reação das pessoas, seus olhares e seus sorrisos.
Entrou no Emporium. Todas as cabeças voltaram-se em sua direção. As
conversas pararam, para logo recomeçar. Ela podia ouvir seu nome e o dele sendo
sussurrado, o que não era novidade, exceto que, desta vez, sua presença provocava
ainda mais excitação.
Quando voltou para casa, o cocheiro que a levara à cidade, em um súbito
atrevimento, pensando que ela sabia dos fatos, insinuou que o patrão fizera bem em
defender-lhe o bom nome diante da guarnição. Isso a fez perceber que, de alguma
forma, Tom, os militares e ela estavam envolvidos em algum incidente de conhecimento
público. Bem, se os militares estavam no meio daquela estória, então, iria procurar Lucy
Wright.
Colocou um vestido novo, que Tom havia escolhido para ela em sua loja, e pôs
na cabeça um novo chapéu. Escolheu uma bela sombrinha e resolveu usar o colar e o
anel de granadas que ele lhe dera. Então, pronta para a guerra, ordenou que o cocheiro
a levasse até a casa de Lucy.
A amiga ficou encantada de vê-la de novo, depois de uma longa ausência.
— Oh, Hester, você está esplêndida! Foi Tom que escolheu tudo isso para você?
Para um homem, ele tem um gosto notável no que se refere a roupas femininas. Pena
que não atende mais na loja.
— Sim — retrucou Hester, secamente. Não tinha vindo falar de Tom. Precisava
descobrir qual era a fofoca que corria de boca em boca. Havia aprendido a ser paciente
na dura escola da vida, e somente depois de mostrar sua admiração pelo bebê, tomar
chá e apreciar o novo trabalho de agulha que Lucy estava fazendo, é que tocou no
assunto que causara sua visita.
Olhou, um tanto encabulada para a amiga e perguntou:
— Frank disse alguma coisa a você sobre algum problema envolvendo Tom e os
militares?
Lucy colocou de lado o bordado, com um suspiro.
— Oh, Hester, você não sabe o que aconteceu? Tom não lhe disse nada?
— Você o conhece.
— Claro... Bem, talvez seja melhor que você saiba. Não posso lhe contar em todos
os detalhes, porque Frank julgou que não eram dignos de meus ouvidos. Devo, como
uma mulher virtuosa, ignorar que o bordel de Madame Phoebe existe. Pergunto a você,
como eu poderia desconhecer uma tal coisa? Porém, ele me contou o bastante. Seu
marido foi, ontem à noite, àquele lugar, quando todos os oficiais da guarnição estavam
lá, e teve alguma espécie de desentendimento com Jack Cameron. E Jack levou a pior,
Frank viu tudo. Aparentemente, Tom destruiu o lugar, também. E a maior piada é que,
segundo Frank, Tom fez os oficiais pagarem pelos prejuízos, e foi embora sem arcar
com nada. Típico de Tom, não é? — Riu, e não entrou em detalhes sobre os motivos do
desentendimento.
Hester queria saber mais e insistiu:
— Sobre o quê foi a discussão, Lucy?
Lucy hesitou e, então, decidiu contar a Hester o que sabia, embora fosse pouco.
— Tem alguma coisa a ver com você e Tom. O capitão Cameron estava bêbado e
dirigiu-lhe palavras insultuosas. Frank acha que ele tem espalhado mentiras sobre você
e seu marido.
— Você quer dizer que Tom o atacou por minha causa?
— Sim. Frank diz que ele fez um estrago no rosto de Jack. Não quis me contar
como. Se Frank fosse tão corajoso como Tom, eu ficaria feliz, caso fosse eu a insultada
em um inferninho de jogatina ou em qualquer outro lugar.
— E por que Tom haveria de destruir tudo?
— Bem, não foi bem assim. Só a mesa de jogo e o que estava sobre a mesma,
quando ele caiu sobre Jack.
Ambas tentaram visualizar a cena descrita por Lucy. Sabiam tão pouco dos
lugares que os homens e “aquelas mulheres» freqüentavam, que era difícil imaginar
exatamente como tudo havia se passado.
Hester apenas compreendia que Tom, sem dúvida, havia punido Jack por aquilo
que o oficial dissera no baile, por subornar a sra. Hackett, e por outro qualquer insulto
dito na casa de Madame Phoebe.
— Frank diz que Jack quer satisfação de Tom, quer desafiá-lo para um duelo,
mas há um problema quanto a isso. Frank acha que ninguém pode decidir quem é a
parte desafiante, Tom ou Jack. O caso foge a todas as regras normais entre cavalheiros.
— Mas, o que importa quem desafia quem? — perguntou Hester, confusa com as
tolices que regiam o código de honra.
— Oh, importa sim — retrucou Lucy vivamente. — Veja você, o homem
desafiado tem o direito de decidir quais as armas a usar, e ninguém sabe quem desafiou
quem. Foi Tom que atacou Jack? Ou foi Jack que desafiou Tom? — De repente, ela caiu
na risada.
Naquela tarde, Jack Cameron se apresentou com os dois olhos pretos, o nariz
quebrado, a boca arrebentada e os dentes perdidos, na sala do coronel O’Connell, no
alojamento. Anteriormente, não deixara o quartel, exceto para consultar o dr. Kerr, que
lhe dissera que, tirando o nariz quebrado, para o qual não havia conserto, poderia dar
um jeito em tudo o mais, incluindo os dentes, era só uma questão de tempo.
Suas palavras iniciais foram categóricas:
— Quero aquele bastardo do Dilhorne preso, acorrentado, acusado de assalto
qualificado.
O’Connell fitou-o com visível desgosto.
— Você sabe que não posso fazer isso, Jack. Por mais que eu queira ver Dilhorne
em uma gaiola, não posso fazer qualquer coisa contra ele, diante disso.
Jack apontou para o rosto deformado.
— O bruto quase me matou na noite passada. Não é suficiente?
— Você sabe que não. Se tivesse se limitado a insultá-lo, tudo bem, eu já o teria
colocado atrás das grades. Mas você insultou sua esposa, e não importa o que ele seja,
ela é uma dama. E mais, nunca houve um único escândalo que a envolvesse. Fora, é
claro, o fato de ter se casado com Dilhorne. Porém, aquele asno do Fred Waring deixou-
Hester Waring’s Marriage 120
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
a em uma situação tão miserável que casar com ele foi uma alternativa melhor que
morrer de fome ou parar na casa de Madame Phoebe.
Jack começou a bufar.
— Você está mal informado. Quem lhe contou os fatos?
— Parker me fez um relatório completo do acontecido na noite passada.
— Parker! — O sarcasmo de Jack era contundente. — Aquele sujeitinho
inexperiente! Eu só poderia esperar isso dele.
— Mesmo você, Jack, não pode chamar Pat Ramsey de inexperiente — disse
O’Connell, em um tom cansado — , e seu relatório bate com o de Parker.
— Então Dilhorne se safou dessa, e não terá que me dar satisfações...
— Ora, cale a boca, Jack. Você deveria aprender a controlar a bebida.
A expressão de Cameron era a de um assassino.
— Pensar naquele porco caminhando por Sídnei como se a cidade lhe
pertencesse, é o que eu não posso suportar.
— Vamos lá, Jack. Ele é o dono de Sídnei, ou quase isso — resmungou O’Connell.
— Ora, arque com os prejuízos e certifique-se de atingir um alvo mais fácil, da próxima
vez. Se não sabia que Dilhorne era perigoso, agora já sabe.
Jack afastou-se, revoltado, mas voltou ao ouvir o comentário de O’Connell.
— Feia, foi como você se referiu a ela. Você não a tem visto ultimamente, Jack.
Ao contrário, devo lhe dizer, desde que se casou com Dilhorne, aquela garota está
transformada. Está se tornando uma belezinha.
Aquilo o irritou. Uma belezinha?, pensou Jack furioso. Se é O’Connell quem diz,
deve haver alguma coisa ai, ele é mulherengo. E ficou a imaginar como poderia dar o
troco àquele animal, se através de sua esposa ou de seus negócios. O que poderia ser
mais fácil? Melhor mesmo seria poder destrui-lo, vê-lo morto!
Tom sentou-se para jantar, ainda exaltado pela satisfação que sentira por ter
atacado Jack Cameron. Havia encontrado com Alan Kerr pela manhã, e o amigo se
mostrara assombrado com o que ele fizera.
— Eu havia me esquecido o brigão que você é, Tom. Você trilhou uni longo
caminho desde que desembarcamos em Nova Gales do Sul.
— Ele insultou Hester — explicou, simplesmente.
— Eu sei. Não preciso Lhe dizer que essa história corre de boca em boca. Você
destruiu a casa de Madame Phoebe também?
Tom explodiu em uma gargalhada.
— E o que andam dizendo? Mas apenas quebrei a mesa na qual melhorei a
aparência de Cameron. Tenho para com os oficiais, amigos dele, uma dívida de
Hester Waring’s Marriage 121
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
gratidão. Eles me impediram de matá-lo, o que poderia ter sido o meu fim. — Fez uma
pausa. — Você sabe, pensei que isso tudo tinha passado. Que eu era um homem
civilizado. Quando ele disse aquilo sobre Hester, somado a outras coisas, eu me senti
com dezoito anos novamente, pronto para matar se fosse confrontado. — Deu de
ombros. — E tinia lição, preciso aprender a controlar meu temperamento. Engraçado, se
ele tivesse me insultado, eu teria rido em sua cara. Mas ele falou de Hester... eu poderia
tê-lo matado por isso.
Agora, sentado do lado oposto a ela, Tom ficou a imaginar o que poderia ter
causado aquele ligeiro rubor no rosto de Hester, e por que ela escolhera usar as
granadas que havia dado a ela, e o vestido combinando, cujo tom avermelhado
iluminava-lhe as feições. Ela costumava vestir-se assim quando estavam sozinhos. A
aparência de abandono e desamparo, que havia retomado na noite do baile,
desaparecem de seu rosto, e ela comia a sopa com avidez. Ia perguntar por quê, quando
ela ergueu os olhos e lhe disse, no tom de brincadeira que costumavam usar, antes da
briga.
— O que andou fazendo na casa de Madame Phoebe na noite passada, sr.
Dilhorne?
— O que os homens costumam fazer lá, sra. Dilhorne.
Ela apertou os lábios, em um gesto cômico.
— Não me atrevo a falar em uma coisa dessas, ar. Dilhorne.
— Bem.., eu não estava fazendo aquilo.
— Então, estava fazendo o quê?
— Pensei que comparecia a um encontro de negócios, ara. Dilhorne, mas então
descobri que tinha me metido em uma confusão com um dos oficiais de O’Connell.
Acho que posso ter melhorado as maneiras de Cameron, mas não creio que fiz o mesmo
com seu rosto.
— Oh, ar. Dilhorne, em Sídnei não se fala de outra coisa! Conte-me, estou ansiosa
por saber, por que quebrou a casa de Madame Phoebe?
O rosto de Tom era tão cômico como o Hester, instantes atrás.
— Quantas vezes tenho de dizer que não quebrei a casa de Madame Phoebe?
Será que vou receber uma conta por causa disso?
— Bem, se não o fez, ar. Dilhorne e, é claro, eu aceito sua palavra, o que foi que
os oficiais pagaram?
— Uma mesa arrebentada, ara. Dilhorne, e algumas garrafas de vinho, tudo por
uma boa causa.
— Por mim, Tom? — A voz de Hester era doce. — Por causa daquilo que
Cameron disse no baile? E na casa de Madame Phoebe?
Ele aquiesceu.
CAPÍTULO XI
Jack não estava mentindo. Diante dele estava a mulher que pedira ao destino,
mas nunca procurara encontrar. Hester, contudo, não o deixou ir avante.
— Não há necessidade, senhor. Não desejo conversar com o senhor, nem receber
suas desculpas. Por favor, retire-se. Deve ter consciência de que se dirige a mim por sua
conta e risco.
Inútil falar com ele assim. Jack estava fascinado. Indiferente ao perigo, insistiu.
Seus olhos não conseguiam se afastar daquele rosto maravilhoso. Não havia quem se
comparasse a ela no salão. A beleza e o comportamento orgulhoso a destacavam, de
forma singular, de todas as outras.
Hester olhou ao redor, procurando por Tom, que estava em pé, longe dali,
conversando com Wil French. Não poderia responder pelas conseqüências, se o marido
a visse sendo importunada. Não podia acreditar que a admiração de Jack era genuína.
Tarde demais! Jack não fez qualquer menção de se afastar, e Tom, aborrecido
com a tagarelice sem fim de Will, procurou Hester com os olhos, para descobrir que ela
estava sendo molestada por Cameron. Era claro, por seu comportamento, que ela queria
que ele se fosse.
— Minha esposa precisa de mim — disse a Will, abruptamente, e atravessou o
salão, os olhos fascinados de todos sobre si, até onde Jack ainda se desfazia em atenções
para com Hester.
Tom segurou-o pelo ombro e obrigou-o a voltar-se, feliz em ver que o rosto de
Jack empalidecia diante de sua presença.
— Eu agradeceria que não perturbasse minha esposa, Cameron.
— Eu estava apenas tentando me desculpar, Dilhorne.
— De um porco como você, um insulto não se apaga com um pedido de
desculpas.
— Eu estava somente tentando comportar-me com decência, Dilhorne.
— Você não saberia como, Cameron.
Jack decidiu que recuar, diante do salão inteiro, que observava avidamente a
troca de palavras, seria sua última desgraça. Começou a esbravejar.
— Ora, veja bem, Dilhorne...
A raiva assassina, que tomara conta de Tom quando vira Jack falando com
Hester, aumentou ainda mais. Tinha dificuldade em se autocontrolar. Sua mão se
fechou cruelmente no ombro de Jack. E lhe perguntou, em urna voz gelada:
— Tenho que ensiná-lo a se comportar, mais uma vez? Vou avisá-lo das
conseqüências, Cameron, se testar minha paciência. Fique longe de minha esposa!
O salão inteiro tinha os olhos presos na cena. Hester encarou o marido e viu que
sua expressão era perigosa. Mal podia reconhecê-lo. Algo tinha que ser feito para evitar
que Tom matasse Jack Cameron, ali mesmo, na sala.
Por mais feliz que Tom fosse, Jack precisava ser neutralizado, o sujeito era uni
canhão pronto para disparar. Tom se pôs em ação, rapidamente. Ouvira falar, em uma
vinha secreta que existia em Sídnei, que Jack estava determinado a se vingar dos
insultos que Tom lhe dirigira, malgrado seu nariz quebrado e a aparência arruinada.
— Ele é um cão danado, Tom — seu informante, Natty Jemson, disse-lhe. — Eu
tomaria cuidado, se fosse você, camarada. Pede lhe fazer mal. Melhor cuidar de suas
costas.
Sim, cão danado era uma boa descrição para um homem que rondava a rua das
Pedras, meio ignorado, permitindo que seu ódio por Tom e seu desejo por Restei- se
tornasse de conhecimento público.
Enquanto havia aqueles, nas Pedras, que poderiam gostar de ver Tom Dilhorne
em maus lençóis, havia outros que o temiam, tanto por sua paciência ou pelo que ele
havia feito no passado longínquo, quando era ainda o jovem ladrão de Londres em uma
cidade de fronteira, pronto para fazer dali seu próprio território.
Tom dirigiu o coche para seu escritório, desviando-se do tráfego crescente,
pensando sobre o que Jemson lhe dissera, e ponderando em como cortar as garras de
Cameron. Tratar com um cão danado era difícil: eram os mais perigosos de todos,
porque eram irracionais.
Acima de tudo, Hester não podia ficar sabendo das ameaças. Não queria que
nada turvasse a felicidade de ambos, e, por isso, Jack devia ser neutralizado com
rapidez. Era escolher a melhor oportunidade. Entrou no escritório, dizendo,
abruptamente para Joseph Smith:
— Quero que percorra Sídnei e resgate os débitos do capitão Cameron, o máximo
que puder.
Smith sorriu.
— Não é necessário. Larkin me procurou há menos de uma hora e me ofereceu
uni lote.., e ficou feliz de livrar-se das promissórias. Eu relutei um pouco, embora
soubesse que você fosse ficar satisfeito em tê-las. Estava certo?
— Certíssimo. Pague a Larkin tão pouco quanto possa barganhar, são inúteis,
exceto para mim.
Tom sentou-se diante da escrivaninha, rindo, dizendo para si mesmo: compre as
dividas de uni homem e poderá controla-lo, eis aí como cortar as garras de Mestre Jack.
Escreveu-lhe uma carta informando-o para comparecer ao escritório da Dilhorne & Co.,
no prazo de uma semana, para discutir assuntos de negócios relativos a seus débitos.
Isso deveria forçá-lo duplamente a aparecer, refletiu Tom, estendendo a
correspondência para que o mensageiro a entregasse.
Estava particularmente alegre durante o jantar, naquela noite. Hester comentou,
sorrindo:
— Se eu não o conhecesse muito bem, sr. Dilhorne, pensaria que andou bebendo.
— Uma boa idéia essa, minha querida — retrucou ele, com uma risada. —
Ultimamente, temos negligenciado o prazer de um bom vinho.
— Hart... ela o chamava assim. Meu amado Hart. Minha mãe nunca acreditou
que ele a houvesse abandonado, realmente. Dizia a si mesma que o pai dele o impedia
de vê-la. Ele nunca a trairia. Qualquer que fosse a verdade, ela foi mandada como
empregada para todo o serviço em uma fazenda longe dali, afastada tanto do castelo
como de sua própria casa e de sua gente. Nunca mais viu nenhum deles, de novo. Sua
família a deserdou, ela os desgraçara. Tinha que ser tratada como uma prostituta
banida. E teve o seu bastardo, eu.
A voz de Tom era triste, quase um suspiro.
— Cresci na fazenda. Lembro que não tínhamos urna vida ruim, a princípio.
Porém, a esposa do fazendeiro ficou velha e doente. Minha mãe era urna moça bonita, e
o fazendeiro arrastou-a para a cama, contra a sua vontade. Eu me lembro da noite em
que isso aconteceu. Eu a vi se debater e lutar com ele... Sua esposa contou aos irmãos o
que o marido havia feito. Eles chegaram à fazenda, deram uma surra nele e nos
expulsaram, a mim e minha mãe.
Hester o ouvia e entendia seu sofrimento.
— Você pode compreender por que eu quero esquecer meu passado, Hester . É
uma estória feia. Minha mãe havia sido estuprada, mas foi punida tão severamente
como se houvesse consentido. Não me lembro qual minha idade, então. Ainda não sei
quantos anos tenho, na verdade. Outro fazendeiro nos acolheu. Era um bruto que não
conseguia manter criados. Ele passou a abusar de minha mãe e a me surrar. Logo, ela já
não tinha mais a aparência bonita.
O coração de Hester estava amargurado. Ela tentava ocultar sua dor ao pensar no
sofrimento do amado.
— Ele começou a bater em minha mãe. Batia por prazer, para satisfazer sua
crueldade, e é por isso que não posso suportar ver uma mulher maltratada. Eu me
lembro claramente agora de tudo aquilo que me obriguei a esquecer, e de como tudo
terminou. Acho que tinha uns doze, treze anos, e era grande para minha idade. Minha
mãe dizia que eu estava ficando parecido com meu pai. Ela me alfabetizara e me fazia
ler e escrever. Na casa, havia uma Bíblia, o Livro dos Martírios, de Foxe, e alguns libretos
religiosos. Um dia, ele chegou e nos encontrou lendo juntos. Por alguma razão, isso o
enfureceu. Começou a espancar minha mãe, cruelmente. Antes, eu sempre tivera medo,
embora tivesse prometido a mim mesmo que daria cabo dele, um dia, quando crescesse.
Achei que ele fosse matá-la. Havia uma faca sobre a mesa. Posso enxergá-la, agora
mesmo. Lembro que a peguei e a enterrei em seu peito. Nunca fiquei sabendo se o matei
ou não...
Hester levou a mão à boca.
— Ele caiu, sangrando, sobre minha mãe. Ela chorava e gemia:
“Vão enforcá-lo por isso, Tom”.
Tom acomodou-se melhor, estava visivelmente perturbado pelas lembranças.
— Nunca — eu respondi. Era jovem e estúpido e fiquei aturdido de orgulho com
minha coragem. Nós o deixamos lá, deitado em um mar de sangue e fugimos para
Londres.
Tom deu uru suspiro profundo. O fluxo de recordações não poderia ser contido.
— Londres! Ela não tinha idéia, nem eu, da distância em que ficava. Era apenas
um nome para nós. Caminhamos sem descanso, e isso foi sua morte. Ela havia
começado a cuspir sangue na fazenda. Nós dormíamos em celeiros e debaixo do feno. E
eu não era tão pequeno que não soubesse que ela se vendia para ter comida e nos
manter vivos. Chegamos a Londres, não sei como. Lembro que ter pensado que
havíamos chegado ao inferno. Sabia alguma coisa do inferno através do Livro dos
Martírios. Minha mãe estava morrendo quando chegamos e não demorou muito para
que isso acontecesse. Em seus últimos suspiros, balbuciava, falando de si e de Hart nos
pântanos, quando eu ainda não havia nascido.
Hester o abraçou. O amor que sentia por aquele homem se intensificou ainda
mais.
— Fiquei sozinho. Não tinha ninguém, nem nada, nem família, nem meios para
sobreviver, nem uma roupa decente para me dar respeitabilidade, nem trabalho e nem
mesmo um teto. Dormia nas ruas, debaixo das pontes, nos jardins, mendigando por
migalhas.
Tom parecia disposto a contar tudo, e Hester o ouvia, ávida.
— Logo percebi que um garoto de treze anos pode ser enganado, mas descobri
também maneiras de evitar isso. Trabalhei para uni mágico durante algum tempo e
aprendi uma porção de truques úteis. Ele, porém, queria me levar para a cama, e eu
fugi. Por fim, tornei-me uni ladrão, não podia ser outra coisa. Era grande, forte e
esperto, e logo me tornei um líder, entre garotos que conheci. Tornara-me um criminoso
antes da adolescência. Oh, eu era inacreditavelmente ladino, posso lhe assegurar.
Restei- não o censurava, aceitava-o.
— Na época em que tinha uns dezoito anos, eu poderia dizer que era rico. Tinha
um colchão só meu e uma linda amante. Às vezes, ficava a imaginar o que aconteceria
com ela se os guardas me prendessem, se eu me aventurasse a pegar mais do que
poderia carregar. Eu achava que poderia superar os mestres de meu mundo.
Sua risada, desta vez, foi mais amarga.
— Isso me ensinou a prestar a atenção às minhas costas, Hester , tarde demais,
no entanto, para me beneficiar, então. Os mais velhos perceberam que eu ameaçava seus
ganhos e me traíram, entregaram-me para os policiais. Oh, sim, eu era uma ameaça real,
sempre soubera como manipular as pessoas e tomava conta dos garotos que eu
chefiava. Eu não os explorava simplesmente, como os outros faziam. Fui denunciado à
polícia e pego em flagrante.
O rosto de Tom se contorceu diante das lembranças, e Hester não soube o que
dizer ou fazer.
— Eu cometera crimes capitais. Um velho, com um camisolão e uma capa preta,
Hester Waring’s Marriage 135
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
CAPÍTULO XII
Tom estava em sua sala, na casa bancária, na manhã do dia em que pedira a Jack
Cameron que comparecesse aos escritórios, quando uma agitação, nos corredores, tirou-
o de sua concentração no trabalho.
Mal teve tempo de se levantar quando a porta se abriu. Jack Cameron surgiu,
com a carta de cobrança em unia das mãos, e, com a outra, arrastava Joseph Smith pela
orelha.
— Vou dar uma lição a esse seu lacaio insolente, Dilhorne.
— Eu simplesmente pedi a ele que esperasse até que eu verificasse se o senhor
estava livre para atendê-lo, mestre Dilhorne.
— Ex-condenados estão sempre livres para me receber, quando eu preciso vê-los
— debochou Cameron.
— Está enganado — retrucou Tom suavemente. — Sou eu que preciso vê-lo. —
Estava perfeitamente controlado agora, já que Hester não estava envolvida no
problema. — Se não soltar o si-. Smith imediatamente, temo que eu tenha que lhe
ensinar como se comportar. Parece até que se esqueceu da ultima lição que lhe dei.
Jack libertou Smith com um safanão.
— Ora, muito bem, Dilhorne, vou deixar esse seu miserável criado continuar com
sua escrita, novamente.
— Eu creio — continuou Dilhorne, com uma voz mais macia que a seda — que
você acaba de acrescentar mais dois por cento de juros na taxa que vou exigir para o
pagamento de seus débitos. O valor servirá para compensar o sr. Smith por ter sido
maltratado desta forma.
— Dois por cento, é? — caçoou Jack, observando Smith afastar-se. — Que
significa isso? E o que é esta intimação que me enviou? Devo dizer que estou atônito
que você saiba escrever. — Jogou a carta de Tom sobre a mesa.
— Temos alguns assuntos de negócio a resolver — retrucou Dilhorne, ignorando
a insolência de Jack, mas notando, com um certo desprezo, que o oficial evitava entrar
em confrontação física com ele.
— Eu não tinha idéia que pudesse haver quaisquer assuntos de negócios entre
mim e você, Dilhorne. Sempre fui cuidadoso em evitar contatos com condenados, na
medida do possível.
um bobo quer a lua, desejando uma mulher que não podia ter. E, para tornar as coisas
ainda piores, aquela mulher era a esposa de Dilhorne.
Jack não conseguia tirar da cabeça, por mais que tentasse, a lembrança do rosto
de Hester, quando ela o fitara por sobre o leque, a graciosidade com que se afastara dele
e colocara a mão delicada no braço musculoso daquele bandido.
Seguia os rastros de Tom, pela cidade, ardendo por vingança, mas também
andava sorrateiramente atrás de Hester, queimando de uma vontade que não sabia bem
qual era, pois ela lhe parecia inacessível. A idéia de levá-la para a cama era, para ele, um
sacrilégio. E pensar nela, nos braços daquele bruto do Dilhorne, fazia-o sentir vertigens.
Essas emoções eram tão novas, que ele mal sabia como agir. O ciúme sempre
fora, para ele, uma piada. Agora, consumia-se de ciúme de qualquer um, mesmo que
apenas falasse com ela, pois nem isso podia fazer.
Um dia, quando Hester saía da carruagem e caminhava pela rua, depois de
visitar amigos, ele a viu.
Jack prendeu o fôlego. Emparelhou o passo com ela. Nada iria impedi-lo de
abordá-la. Talvez isso suavizasse a estranha dor que sentia, sempre que pensava nela, o
que, para a própria surpresa, era tão freqüente.
Cumprimentou-a, com uma profunda reverência.
— Sra. Dilhorne, estou a seus serviços, agora e sempre.
Hester encarou-o. Não tinha nada, nada mesmo, a tratar com ele.
— Por favor, capitão Cameron, deixe-me passar — foi tudo que conseguiu dizer.
— Não, até que tenha lhe apresentado minhas mais humildes desculpas.
— Acredito que tenha lhe deixado claro, antes, que se dirige a mim por sua conta
e risco.
— Mas eu desejo realmente retirar tudo que eu possa ter dito de você, no
passado. Você é incomparável, Hester, se é que posso chamá-la assim. Não há ninguém
como você.
— Dispenso seus elogios, senhor, não vou agradecê-lo por isso.
— Será que o homem enlouquecera?, pensou.
Jack estava desesperado por tocá-la. Estendeu a mão. Ela recuou.
— Devia envergonhar-se, senhor, por tentar me deter. De novo, eu peço, deixe-
me passar.
Ele não iria resistir.
— Queria ter olhado você mais de perto, antes que tivesse se casado com aquele
bandido.
— Você olhou, capitão Cameron, mas não gostou do que viu. Se não deixar que
eu passe, vou ter que informar meu marido desse seu comportamento inadmissível. Vai
Uma manhã, ao acordar, ao invés de se levantar alegre para saudar o novo dia,
Hester sentou-se na cama com uma sensação estranha de mal-estar. Sentia-se doente.
Quando, finalmente, conseguiu ficar de pé, foi tomada de náuseas. A princípio, pensou
que comera algum alimento estragado, algo muito comum em Sídnei, mas a sensação
persistiu. Com o decorrer da semana, percebeu que o mal-estar a atacava todas as
manhãs, até que culminou em vômitos incontroláveis.
Não disse nada a Tom, que invariavelmente se levantava antes dela. Um dia,
porém, quando se sentia horrivelmente doente, ele a encarou com uma atenção
cuidadosa. Observou-a comer pouquíssimo, mas nada comentou. Na manhã seguinte,
depois de sair, ele voltou e subiu correndo a escada. Encontrou-a na cama, o rosto
empapado de suor.
Ele molhou uma toalha, sentou-se ao lado dela e pôs-se a refrescar-lhe a testa,
gentilmente.
— Há quanto tempo isso está acontecendo?
— Todas as manhãs, já faz uma semana. Parece que passa, durante o dia — disse
Hester, em uma voz fraca. — Eu esperava melhorar e achei que não devia preocupá-lo.
— Tem idéia do que se passa com você, Hester?
— Um problema no estômago, eu acho.
— Pode-se dizer que sim. — Tom estava sorrindo. — Mas eu acho que você está
grávida. Há algum outro indício que possa ser isso?
Hester Waring’s Marriage 144
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
O doutor Kerr confirmou que Hester estava grávida, e a atitude de Tom, diante
disso, foi a que se esperava. Tornou-se superprotetor e, ao mesmo tempo, ríspido. Disse
a Hester, abruptamente, que embora se sentisse adoentada, ela devia levar uma vida
ativa, na medida do possível, não era uma inválida.
Foi encorajado a isso por Alan, defensor de tratamentos diferenciados na
gravidez e no parto, insistindo em uma dieta saudável para evitar complicações.
Hester fez apenas uma exigência aos dois. Quando o nenê nascesse, queria ter
certeza de que Tom estaria por perto.
— Vai me prometer isso, não vai, sr. Dilhorne? E seu filho, tanto quanto meu.
— Prometo, sra. D., farei tudo que a torne feliz. Isso a deixará contente?
Para grande alívio de Tom, logo os mal-estares de Hester diminuíram, e sua
energia voltou. Longe de prejudicar-lhe a aparência, a gravidez deixou-a ainda mais
esplêndida, conferindo-lhe uma nova radiância que mais de uma pessoa de seu circulo
de amizade notou.
Uma noite, deitada na cama, sem conseguir dormir, pois a gravidez lhe tornam
difícil conciliar o sono, Hester ficou a pensar na delicadeza de Tom e na consideração
com que a tratava. Oh, ele ainda era o homem duro e maquiavélico que toda Sidnei
conhecia, e ela não tinha ilusões quanto a isso. O que importava era o Tom que somente
ela conhecia: uni homem complexo, multífacetado, que a manipulam para levá-la ao
casamento, pelo que ela só tinha a agradecer.
Também o compreendia cada vez mais. Ultimamente, tinha certeza, alguma coisa
o vinha preocupando. Ao contrário de sua prática usual, ele não lhe contara o que era.
Agora, estava começando a ficar preocupada.
Tom mexeu-se na cama e rolou para o lado dela, abrindo os olhos. Puxou-a para
perto.
— Ainda acordada, mulher? Precisa dormir. Há algo errado?
— Não — disse Hester, sem disposição para questioná-lo sobre possíveis
problemas. — E estranho, quando eu o conheci e, depois, quando me casei com você,
parecia que precisava dormir bastante. Agora, não consigo.
— Não é estranho — ele murmurou, recusando-se a levar adiante a conversa.
Rodeou-a com o braço e aconchegou-a junto ao peito. Ela se aninhou e, logo,
adormeceu.
Jack Cameron vagava por Sídnei, carregando o ódio no peito. Tinha avançado
pouco em seus planos para vingar-se de Dilhorne. A raiva o consumia, crescendo mais
forte a cada dia, alimentada pelo fato de estar mais difícil pagar àquele condenado os
juros da dívida.
Depois do encontro que tivera com Hester, encontrar-se com Dilhorne
caminhando ou de carruagem, com ela a seu lado, ouvir os comentários de seus
sucessos nos negócios, saber que um de seus cavalos vinha vencendo as corridas com
regularidade, e que ele marcara uni gol em seu acordo com os baleeiros ianques, tudo
servia para inflamá-lo ainda mais. A noticia de que o governador estava prestes a
nomeá-lo juiz foi o bastante para deixá-lo enlouquecido.
Para coroar tudo, estivera em casa de Lucy Wright, unia tarde, e ouvira algo que
acabara por destruir seus últimos vestígios de sanidade. Ter ido até lá mostrava quanto
ele havia caído. O jovem Wright, apiedado do cão desprezado em que ele se tornara,
convidara-o para tomar um chá, um convite que o antigo Cameron teria desprezado
veementemente. O homem marginalizado em que ele se transformara aceitara o
oferecimento com sofreguidão.
Conversas fúteis rolavam, envolvendo pessoas menores que Jack normalmente
evitava. Estava a ponto de ir embora quando Lucy, vendo que ele estava deslocado e
sozinho, estendeu-lhe uma xícara de chá. Mal tocara na xícara quando uma mulher, ao
lado, disse, em voz alta o bastante para ser ouvida por todos:
Jack logo descobriu que não avançara muito em sua vingança e tentou afogar o
desapontamento na bebida. Devia haver, quem sabe, maneiras mais seguras de acabar
com Dilhorne do que matá-lo com as próprias mãos. Arruiná-lo poderia ser um bom
ponto de partida. Tinha amigos nas Pedras, que poderiam fazer-lhe um favor,
particularmente se ele perguntasse se queriam ajudá-lo a pilhar os estoques de bebida
do Regimento, de novo. Dificilmente usaria o dinheiro que o saque poderia trazer. De
um jeito ou de outro, ele iria parar nas mãos daquele infeliz.
CAPÍTULO XIII
Tom voltara sua criatividade para desenvolver jogos que não exigiam esforço
físico. Jogavam cartas, ele lhe mostrava os truques das mágicas e explicava que tudo
dependia de se desviar o foco de atenção. Durante a noite, ela lia para ele. Tom
continuava a consultá-la em assuntos de negócios, mesmo quando ela não podia mais
acompanhá-lo às reuniões.
— Você amadureceu, sra. Dilhorne — dissera a ela uma tarde.
— Não quero que se restrinja ao papel de esposa. E minha sócia, agora, e precisa
lidar com os negócios. Pode cuidar de nosso filho, mas isso não pode ser o foco de sua
vida, pois dia virá que a criança estará crescida e, pense, o que faremos, então?
Só Tom, pensou Hester, divertida, poderia contemplar a esposa, que nem mesmo
dera à luz ainda, e decidir com firmeza o que ele, ela, e o filho ainda não nascido,
fariam, vinte anos depois.
Recentemente, suas lições sobre negócios pareciam ter se tornado mais urgentes.
Certa vez, ela o ouvira dizendo a Joseph Smith:
— Por Deus, homem, se algo acontecer a mim, não quero que ela se torne presa
de gente sem escrúpulos, como tantas viúvas ignorantes que conheço.
Seria a possibilidade de uma morte prematura que o preocupava? E se assim
fosse, por quê? Muitas vezes, enquanto bordava, pois suas mãos eram tão habilidosas
como sua mente, ela o observava sentado a sua frente e se vira tentada a perguntar o
que o aborrecia. O que a impedira era que ele, provavelmente, contar-lhe-ia, no tempo
certo. Sempre agira assim, anteriormente.
Seu silêncio fez com que ele a encarasse.
— Cansada, sra. Dilhorne?
— Não mais que o usual.
A intuição de Tom não o enganava. Ele tinha certeza de que Hester havia
detectado uma mudança em seu comportamento desde que Jack se transformara em
uma ameaça, mas não queria sobrecarregá-la com aquele problema.
Ao invés disso, murmurou:
— Hora de mais um pouco de Gibbon?
Hester sorriu e apanhou o pesado livro que estava sobre a mesa. Começam a ler
para ele O Declínio e Queda do Império Romano, e Tom descobrira que o cinismo de
Gibbon combinava com o seu próprio. Estavam se enfronhando no mundo dos
Antoninos, onde outros homens e mulheres, como Dilhorne e ela, haviam vivido em
fronteiras para que outros pudessem viver no conforto.
Mesmo que Tom estivesse esperando por um outro ataque, foi surpreendido
quando aconteceu. Somente seus refinados instintos o salvaram. Custava livrar-se do
falante Will French naquela noite e dirigia-se apressado para casa. Sentia-se cada vez
menos inclinado a deixar Hester sozinha, embora tivesse postado um empregado
Hester Waring’s Marriage 151
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
armado, Miller, no hall da Villa, para ficar como cão de guarda durante sua ausência.
Estava escuro nas ruas sem pavimentação que se afastavam do centro de Sídnei,
e, à noite, ele sempre andava com cuidado. Foi somente no ultimo instante que
pressentiu seus atacantes. Nunca soube quantos eram, possivelmente dois ou três, e
apenas por imensa sorte ele evitou um golpe de cassetete que poderia ser fatal, se o
atingisse em cheio, na cabeça. Mesmo assim, sentiu a pancada. Outro soco fez com que
cambaleasse. Mais outro, e sentir tudo rodar.
Meio atordoado, mas com a determinação instintiva de sobreviver, ele esquivou-
se de outro ataque como o brigador de rua que um dia fora, e usou alguns dos golpes
que havia aprendido com os japoneses que viviam em Sídnei.
Com o lado da mão espalmada, ele golpeou no pescoço o homem que
empunhava o cassetete, de forma tão dura que o sujeito caiu, incapaz de gritar,
inconsciente, no chão. Então, com a ponta da bota, aplicou aia chute no sexo do segundo
atacante, com tamanha força, que o bandido soltou aia berro de agonia e caiu
amontoado.
Tom, quase inconsciente, caiu de costas contra a parede de uma casa atrás de si e
deixou-se escorregar até ficar sentado, no solo. O terceiro homem, se é que havia um
terceiro, havia sumido ao ouvir o barulho de alguns noctívagos aproximando-se. A nata
do 730 Regimento voltava da casa de Madame Phoebe, para o quartel, encharcada de
vinho e cantando.
Um dos oficiais o viu, recostado contra a parede e parecendo desmaiado.
— Por Deus, é Dilhorne! — exclamou o jovem Parker. — Acha que está bêbado?
— Seria um espanto — retrucou Pat Ramsey, inclinando-se e encontrando o olhar
irônico de Tom.
— Bêbado não, fui atacado — resmungou Tom. — Ajude-me a levantar, Ramsey.
— Minha nossa, há outro aqui — disse o major Menzies, apontando o dedo para
o bandido cuja laringe Tom havia praticamente arrebentado.
— Deviam ser dois, pelo menos — murmurou Tom, cambaleando entre os braços
de Ramsey.
— Dois! — berrou Pat. — Onde está o outro?
Osborne encontrou o segundo homem, e Menzies examinou-o, detidamente.
— Ele quase matou os dois — rosnou Menzies, levantando-se.
— Há um ali que vai demorar a falar de novo e, pelo jeito, o outro terá sorte se
conseguir dar prazer a alguma garota. Com o que os atingiu, Dilhorne? Com uma
pedra?
Parker havia encontrado o cassetete, e Pat havia carregado Tom até sentá-lo em
um muro baixo.
— Eles machucaram sua cabeça e seu ombro esquerdo — afirmou, depois de
examiná-lo. — Aqui, Osborne, venha segurá-lo para mim. Quero ver exatamente o que
Dilhorne fez com eles.
Sob o olhar curioso dos oficiais mais novos, Pat examinou as vítimas de Tom,
antes de voltar e perguntar:
— Só para satisfazer minha curiosidade, Dilhorne, com o quê, exatamente, você
os a tingiu?
Tom olhou para Pat, ainda com a vista turvada. Tinha uma ligeira concussão, um
dos olhos estava se fechando, e os hematomas começavam a arroxear seu rosto.
— Com a mão... quase a quebrei — resmungou. — E com o pé. — Apontou para
a bota.
Osborne sugeriu, cheio de cuidados.
— Vamos levá-lo para a casa de Madame Phoebe.
— Não! — exclamou Tom, a voz quase no tom normal. — Quero ir para casa.
Hester vai ficar preocupada. O coche está na esquina, vou dirigindo.
— Ela ficaria preocupada se você dirigisse nesse estado, meu amigo — disse Pat,
secamente, pensando que essa era uma ótima oportunidade para conhecer o interior da
Vila. — Parker e eu vamos levá-lo.
— Eu vou também — ofereceu-se Osborne ansioso.
— Não, rapaz, não há lugar — disse Pat. — Mas nós lhe contaremos tudo, mais
tarde.
Particularmente, seu respeito por Dilhorne, já alto, havia aumentado depois de
ver o que ele havia feito, semiconsciente, aos assaltantes. Aquele estúpido Jack Cameron
podia se considerar com sorte que Dilhorne não tivesse lutado com ele.
Já eram duas da madrugada quando chegaram à Vila Dilhorne. Tom deu as
chaves a Pat. O oficial abriu a porta, e Miller, pistola da mão, os recebeu. Hester,
preocupada, apareceu, carregando um lampião. Os dois oficiais ajudaram Tom, ainda
sob o efeito da dor e da pancada, a entrar no hall.
— Tom, o que aconteceu? — perguntou Hester aflita. Seus olhos voltaram-se
para Parker e Pat.
Tom ergueu a cabeça.
— Estou ferido — esforçou-se em dizer. Mal conseguia parar em pé. Soltou o
peso todo do corpo sobre Ramsey. — Fui atacado. Os bons amigos aqui me trouxeram
para casa.
Os olhos fascinados de Parker estavam sobre Hester. Seu corpo, avolumado pela
gravidez, estava envolto em um robe de seda chinesa, de um rosa pálido, decorado com
íris em tons de creme e amarelo. Era preso por uma faixa mole, de um malva suave. Sua
pele parecia translúcida, resultado de sua crescente fragilidade. Sua extrema beleza era
cheia de delicadeza, e o rosto mostrava toda sua preocupação.
— Ele não iria agir com gentileza — ela murmurou, com firmeza.
— Vocês tiveram tanta consideração com meu marido como eu esperava. Nunca
poderemos agradecê-los o bastante.
Os oficiais partiram. Se fora a casa ou Hester que os impressionara mais, nenhum
dos dois saberia dizer.
Na cantina do quartel, no dia seguinte, eles contaram sua história e como era a
casa onde tinham entrado.
— Vocês deveriam ter visto o quarto! — exclamou Pat. — Lucy Wright não
exagerou, nem mesmo contou tudo. E cheio de tesouros: deuses de marfim, vasos
chineses, sedas, mobília laqueada... E a cama? Vocês nunca viram nada como aquilo.
Sem cortinados, só travesseiros e almofadas para todo o lado. E é tão grande como um
salão de baile. Juro por Deus que Dilhorne poderia reunir ali todas as garotas de
Madame Phoebe, se lhe desse na cabeça.
Tom recobrou-se rapidamente dos ferimentos. Disse a Hester que devia ter sido
vitima de unia tentativa de roubo. Ambos os bandidos eram condenados que haviam
fugido, viviam escondidos nas matas próximas a Sídnei e eram conhecidos por serem
pequenos Ladrões. O homem que podia falar contou aos juizes que estavam atrás do
dinheiro de Tom e de coisas valiosas. Tom e Hester, por diferentes razões, duvidavam
disso. Tom tinha certeza de que Cameron estava por trás do ataque, mas não tinha
como provar.
Outras coisas o preocupavam.
Os carroções do comboio que operavam entre Sidnei, Paramatta e outros
assentamentos distantes, vinham sendo constantemente vitimas de ataques, cada vez
piores. Os homens que trabalhavam no transporte não andavam armados, mas os
bandidos sim, e o mais recente assalto deixara um empregado bastante ferido.
De novo, a suspeita recaiu nos condenados fugitivos.
— Alguma idéia de quem pode estar por trás de tudo isso? — Tom perguntou a
O’Neill, o chefe dos transportes, que encontrara no cais do porto.
— Nenhuma, exceto que... — O homem hesitou. — Ninguém mais tem sido alvo,
a não ser nós.
— Correto. Se nos atacarem na próxima viagem, eu os acompanharei
pessoalmente, depois disso. Estarei armado, e meia dúzia de rufiões estará às nossas
costas, armados também. Não podemos permitir que nos peguem de surpresa.
Não disse mais nada. Só o tempo diria se os assaltos aos carroções eram simples
coincidências ou aia sinal de que Jack havia mudado sua tática. Infelizmente, mais uma
coisa a esconder de Hester.
— Verdade, e por isso mesmo vai entender que não posso comprometer minha
Liberdade de ação, no momento.
— Entendido. Quero que, quando esse assunto se resolver de forma satisfatória,
você me dê sua palavra de honra de que concordará em ser nomeado para o posto. Sei
que você honrará o compromisso e não vou permitir que venha a usar de seus truques
maquiavélicos para se safar. É o governador falando, sr. Dilhorne, e não seu amigo
Macquarie. Do contrário, não lhe darei liberdade de ação. Espero que resolva seu
problema da forma mais discreta possível.
Tom tocou sua taça na dele, em ata brinde, e cedeu à insistência do governador.
Não podia fazer por menos. Macquarie sabia, Deus era testemunha, de que Jack
Cameron estava por trás dos ataques e lhe dera permissão para resolver a questão como
lhe agradasse. Ao mesmo tempo, usava do problema para chantageá-lo a aceitar o cargo
de magistrado, algo que ele, particularmente, havia jurado nunca ser.
Gostasse ou não, a respeitabilidade o chamava para seu seio!
— Claro! — respondeu, e, pela primeira vez, bebeu tudo de um só gole.
Depois disso, os acontecimentos se sucederam de forma rápida.
A semana em que conversara com O’Neill passou e, nesse período, os carroções e
carretas de Dilhorne foram novamente atacados.
O’Neill, preocupado, chegou a Villa com as notícias.
— Foi coisa feia, mestre Dilhorne. Um carroção carregado foi saqueado, no
caminho de Paramatta, e dois ficaram homens gravemente feridos.
— Então, está decidido — disse Tom. — Estarei no próximo embarque, como
prometi. Ninguém deve saber que viajarei com vocês. Mande avisar quando tudo
estiver pronto.
— Dois ou três dias, o mais tardar.
Tom coçou a barba, refletindo.
— Quatro ou cinco dias. Estou com a aparência ainda muito respeitável.
Quando O’Neill se foi, ele retomou à sala onde Hester estava reclinada em um
sofá, com um livro nas mãos.
— Estive pensando... — disse a ela. — Preciso passar uns dias em Paramatta, os
negócios me obrigam a ir até lá, e n~o gostaria de deixá-la sozinha. Você poderia passar
algum tempo com Alan e Sarah enquanto estou fora. Alan disse-me, ontem, que quer
examiná-la, e você teria a ele e Sarah, para não citar o pequeno John, como companhia.
Hester ergueu os olhos para o marido. Percebeu, de imediato, que havia ali um
problema.
— Se isso o deixa feliz, claro que irei — respondeu. — Gosto muito dos Kerrs.
— Então, está combinado — ele retrucou, beijando-a.
Tom saiu assobiando, para apanhar o cavalo. Pelo menos, não teria que somar
Hester Waring’s Marriage 157
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
Tom chegou a Paramatta com O’Neil, três carretas de bois, dois carroções
puxados por cavalos e a meia dúzia de rufiões, como prometera, anteriormente.
Não se conseguia distingui-lo entre os homens. Não se barbeara e nem tomara
banho depois que deixara Hester com os Kerrs e usava as roupas rústicas de seus dias
pregressos, ao chegar a Sídnei. Cruzara com Pat Ramsey, na estrada, e o olhar do oficial
o examinara superficialmente, sem reconhecê-lo, avaliando suas botas desgastadas, suas
roupas e faces imundas, e seu chapéu rasgado enterrado nos cabelos ensebados.
Em Paramatta, descarregaram as mercadorias vindas de Sídnei e carregaram os
produtos agrícolas, artefatos de madeira e metros de tecido rústico que as camponesas
teciam. Esperaram pela tarde, antes de empreender a viagem de volta. Três dos rufiões
estavam escondidos sob as traves das carretas maiores, os outros três ajudavam com a
carga, as armas escondidas.
Tom dirigia o primeiro carroção. Resolvera seguir para casa à noite. O’Neill tinha
certeza de que estavam sendo observados a distância e que os assaltantes poderiam
julgar que uni ataque noturno seria mais fácil do que durante o dia. Tom instruíra seus
homens a esconderem as armas e a agirem como se estivessem ligeiramente bêbados.
Estavam cantando, parecendo descuidados, quando o ataque ocorreu, próximo a
umas cabanas abandonadas onde os bandidos haviam se escondido, depois de seguir o
comboio desde Sídnei.
O ataque foi repentino. Meia dúzia de homens apareceu a cavalo e ordenou que
descessem e abandonassem a carga. Dispararam uma bala de advertência pouco acima
da cabeça de Tom e pareciam dispostos, desta vez, a cometer um assassinato.
— Vão para o inferno — gritou Dilhorne, e assobiou. Era o sinal para os homens
escondidos nas carretas.
Os ladrões não esperavam resistência. Com a vantagem da surpresa, o grupo de
Tom não teve grande trabalho em dominar seus atacantes. O líder, um emancipista de
nome Kaye, notório marginal de Sídnei, foi apartado dos demais, depois de ser
capturado.
Tom deixou que O’Neil reorganizasse os carroções e carretas, cuja carga havia se
espalhado com o ataque, e foi até uma das cabanas, dando ordens para que Kaye fosse
levado para lá, dentro de quinze minutos. Essa demora era deliberada, queria inquietá-
lo ainda mais do que o fracasso do assalto havia conseguido.
O miserável foi jogado dentro do cômodo parcamente iluminado. Ao lado de
uma mesa rústica, no meio da sala, ele viu Tom Dilhorne, uma cigarrilha presa entre os
dentes e uma pistola na mão. Dilhorne não parecia o homem respeitável que
caminhava, elegante, por Sídnei. Tinha, agora, uma aparência vulgar e suja e usava
roupas rasgadas, como um bandido.
Kaye não o reconheceu, a princípio, tão diferente ele lhe parecia. E seu coração
disparou: havia esquecido como Dilhorne era perigoso.
Tom encarou-o fixamente, fumando a cigarrilha devagar, fazendo-o esperar pelo
pior. Kaye tinha os nervos em frangalhos. Finalmente, ele apagou o cigarro na mesa e
apontou para o assaltante, com a pistola.
— O que propõe que eu faça com você, Kaye? — Seus olhos eram tão duros e
cruéis como Kaye jamais vira em alguém.
— Não me entregue aos militares, mestre Dilhorne. Eu seria pendurado na corda,
desta vez.
— Seria mesmo. Mas o que o faz pensar que eu gostaria disso?
— Fez um gesto com a pistola. — Um tiro só, e eu iria me livrar de uni problema
e poupar Sídnei do custo de um julgamento.
— Não faça isso, mestre Dilhorne. Poderíamos fazer um bom acordo: sua vida
pela minha. — Sua voz demorou-se na ultima palavra.
Tom não baixou a pistola.
— Poderíamos, é mesmo? Ora, o que o leva a dizer isso?
— Abaixe essa coisa, e eu Lhe contarei.
— Você vai me contar com essa coisa apontada para seus miolos, ou não vai
poder mais falar nada com ninguém!
— E que poderia disparar, por acidente...
— Não, não poderia. Eu nunca deixo que nada aconteça por acidente, Kaye. Não
teste minha paciência. Mal consigo me controlar, no momento.
Kaye pensou que nunca vira alguém mais controlado que Tom Dilhorne, sentado
ali, ameaçando mandá-lo para o inferno.
— Está certo, vou falar. Há um homem que quer acabar com você, Dilhorne, e
quer muito. Tanto que pagou a turma do Fitzpatrick para o atacar, semanas atrás. O
pobre Fitz acabou em uma estrepada e não vai ser capaz de falar, de novo. Então, o
homem me contratou para saquear seus carroções, para prejudicá-lo. Ele o mataria se
pudesse, Deus sabe disso.
Tom abaixou a pistola e encarou o miserável. Suas suspeitas se confirmavam.
Nada havia de acidental no ataque de rua, sem falar no tiro que lhe perfurara o chapéu,
anteriormente.
— Continue — ordenou. — Esse homem deve ter um nome. Diga-me, estou
curioso. Como foi que lhe pagou? O homem em que estou pensando não tem dinheiro.
— Continua não tendo, mestre Dilhorne, mas tem acesso aos estoques de bebida
da guarnição, e isso é melhor que dinheiro.
— Ah... então é isso. Mas, e o nome? Se não me disser, eu o matarei aí, onde está.
— O senhor sabe o nome dele, não sabe, mestre Dilhorne? E o capitão Cameron,
cujo rosto bonito o senhor arrebentou.
Tom ergueu a pistola e apontou-a para Kaye, que deixou escapar um berro de
desespero, e disparou um tiro no ombro do miserável. Kaye caiu no chão, apertando o
ferimento.
— Eu contei o que o senhor queria, mestre Dilhorne. Uma vida pela outra, você
concordou, e quebrou sua palavra.
Tom jogou a arma fumegante sobre a mesa e olhou para a porta que se abria.
O’Neill entrou e sorriu, ao se deparar com Kaye, retorcendo-se de dor.
— Não, não quebrei minha palavra — retrucou Dilhorne com frieza.
— Estou Lhe deixando com vida, não falei nada sobre seu ombro. — Voltou-se
para o empregado. — O’Neill, providencie para que ele seja levado ao dr. Kerr. Isso é
para você aprender a não interferir em meus negócios, Kaye. — Enfiou a mão no bolso,
pegou uni guinéu e entregou-o a O’Neill. — Pague o doutor e dê o troco a Kaye.
O’Neil arrastou Kaye para fora, comentando que, em sua opinião, o mestre
Dilhorne tinha se tornado mole, ultimamente. Se fosse ele, O’Neill, teria dado o fígado
de Kaye para os abutres, pelo trabalho sujo daquela noite e das outras.
Tom recarregou a pistola. Sua expressão era terrível. Então, sua suposição era
correta. Jack estava agindo como um louco, tentando matá-lo e arruiná-lo. Agora, tinha
várias pistas para usar contra ele. Para começar, O’Connell gostaria de saber quem era o
responsável pelos saques aos estoques do Regimento. A questão era, como poderia
fazer para que O’Connell soubesse o que Cameron andava aprontando, sem que
tomasse conhecimento de quem era o informante?
Tom caiu na gargalhada. A malícia iria achar um jeito, sempre achava.
Tom voltou de Paramatta e levou Hester para casa. O medo dela, de que ele
estivesse escondendo algo, era cada vez mais forte. Desta vez, o marido contara pouco
sobre a viagem, falando superficialmente sobre a renovação de contrato com os locais,
explicação que, ela pensou, dificilmente convenceria uma criança.
Tom Dilhorne gastara uma semana, renegociando contratos insignificantes, os
quais Joseph Smith poderia muito bem resolver em unia tarde? Não disse nada, porém.
Era um jogo a ser disputado a dois. Cedo ou tarde, ela iria descobrir o quê, exatamente,
estava acontecendo.
Descansava no sofá, e Tom havia se sentado a seu lado, no chão. Acariciou-lhe os
cabelos. Resolveu provocá-lo.
— Espero que seus negócios em Paramatta tenham sido bastante bem-sucedidos
para justificarem sua viagem até lá.
Ele fitou-a, atentamente, mas o rosto de Hester não a denunciou, nem ela parou
de acariciá-lo. A Senhora da Dissimulação, pensou ele, divertido, entendendo que ela se
CAPÍTULO XIV
Tom investiu contra Jack Cameron com toda a fria determinação, rapidez e
esperteza que conseguiu reunir para a tarefa. Quanto mais cedo se livrasse dele, mais
cedo poderia descansar. Assim que a ameaça a sua vida houvesse sido afastada, ele
poderia concentrar-se em cuidar de Hester, e não teria mais que a enganar.
Agiu da forma mais sigilosa que pôde, enquanto colocava em ação as
engrenagens que iriam enrodilhar Jack na armadilha, e que não deviam deixar traços de
seu próprio envolvimento. Voltando de unia dessas empreitadas, encontrou-se com o
tenente Wright, com Lucy pelo braço, descendo a rua Macquarie.
Tom foi cauteloso em não dividir com eles suas preocupações acerca da saúde de
Hester. Ficou particularmente feliz com a forma calorosa com que ambos o tratavam,
um contraste marcante frente ao comportamento de um ano atrás. Disse-lhes que,
embora caseira, Hester estava sempre disposta a receber os amigos.
— Então, iremos visitá-la, uma hora dessas! — exclamou Lucy, que, diante da
transformação notável de Hester, depois de seu casamento com Tom, sentia-se
envergonhada que a elite de Sídnei tivesse feito tão pouco pela moça, depois da morte
de Fred.
A participação de Frank, na conversa, foi mais comedida.
— Suponho que ainda não saiba das noticias esplêndidas sobre Pat Ramsey —
comentou — já que ele mesmo as recebeu somente ontem, quando o ultimo navio
atracou. Ele herdou o título da família e, mais importante, seus grandes domínios.
Teremos que chamá-lo de sir Pat, agora, embora por pouco tempo. Ele é esperado em
casa e, sem dúvida, vai renunciar à carreira militar e cuidar de suas terras.
Então, a Roda da Fortuna girara, favorecendo Pat. Tom esperava que não
acontecesse o mesmo com Jack, que já devia ter sabido, a essa altura dos
acontecimentos, que sua ultima investida havia falhado.
Jack, realmente, estava plenamente consciente de que algo ocorrera. Kaye nunca
mais aparecera para pegar seu pagamento em espécie, nem fizera qualquer tentativa de
entrar em contato para explicar o que havia dado errado. Os dias passavam, e sua impa-
ciência crescia. Investigações discretas revelaram que Kaye estava escondidos nas
Pedras, com o braço direito na tipóia.
— Um acidente — dissera a todos.
Jack, finalmente, aventurou-se a ir até as Pedras por si próprio, e deparou-se com
Kaye.
está indo para casa. Parece que se encheu de Sídnei, pelo menos, essa é a versão oficial.
Tom ergueu as sobrancelhas, em um gesto de indiferença.
— Será, capitão Ramsey? Ou melhor, devo chamá-lo de sir Patrick, agora?
— Oh, pare com isso, Dilhorne, Ramsey basta. Devo partir em breve, e a única
coisa de que sentirei falta é o prazer de sua companhia, que aprendi a apreciar
recentemente. Pena que você não possa me acompanhar.
— Uma pena, realmente — retrucou Tom suavemente. — Quanto a Cameron,
Sídnei ficará feliz em vê-lo pelas costas.
E você também, pensou Pat, observando Dilhorne se afastar, em largas passadas.
Parabéns a você, por tê-lo enredado nessa trama. O Regimento ficará melhor sem ele.
O melhor de tudo isso, pensou Tom, é que poderia procurar Hester sem esse
peso nas costas e sem a necessidade de enganá-la mais. Poderia se concentrar em cuidar
dela, apenas.
Hester haveria de se lembrar, mais tarde, como aquele dia, em particular, fora
agitado. Tom acabara de dizer que havia contratado uma enfermeira para cuidar dela
até que o bebê nascesse. Iria chegar naquele fim-de-semana.
Ele a fitou, sentada do lado oposto, à mesa do café. Hester estava alegre, porém
mais pálida do que nunca. Seus olhos estavam fundos, e as olheiras escureciam sua face
abatida.
— Decidi ficar em casa até que a enfermeira chegue. Não quero que fique
sozinha — disse Tom, de repente, o medo apertando-lhe o coração.
Devia ter esperado que ela fosse recusar.
— Oh, não, Tom, sei que está muito ocupado, hoje. Está resolvendo os negócios
da fábrica de farinha, não está?
Ele concordou.
— O problema, minha querida, é que há um jantar também, e um coquetel, mais
tarde, de modo que tenho medo de chegar tarde em casa. Acho que não devo ficar fora
durante muitas horas, até que o bebê nasça.
Seu assunto com Cameron podia ter sido superado, mas ele não iria descansar
em paz até que Hester estivesse em segurança.
— Não seja por isso — ela continuou. — Não irei ficar sozinha. As senhoras do
Círculo de Costura vão se reunir aqui, pela manhã, e Lucy vai trazer Frank, Stephen
Parker, Pat Ramsey e todos os amigos do Regimento, esta tarde. Finalmente, veja só,
fomos aceitos pelos exclusivos.
Tom abriu a boca para argumentar e, então, recordando-se da demonstração de
amizade que lhe dera Pat Ramsey no dia anterior, recuou.
— Eu desisto — disse levantando-se e beijando-lhe o rosto — , mas não se canse.
Hester Waring’s Marriage 166
Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
sujeito. Se não posso tê-la para mim, Dilhorne também não a terá. Então, poderei
dormir em paz.
Faça-o continuar falando, disse o Mentor de Hester, subitamente retornando à
vida, depois de uma longa ausência e falando com o tom de voz de Dilhorne. Mudança
de foco, lembre-se, sempre funciona. Ele não sabe que você é uma esplêndida atiradora.
Vai pensar que você tem medo de armas.
Hester quase meneou a cabeça, concordando, enquanto a voz continuava: se você
se apossar da pistola sobre a mesa, lembre-se de apontar para o peito e não para a
cabeça, se quiser matá-lo.
Sim, ela respondeu mentalmente, com firmeza, quando a voz se calou. Eu vou
matá-lo, se com isso puder salvar Tom. Porém, tenho que apanhar a pistola, primeiro.
A arma estava diante dela, sobre a mesa. Era inacessível, no momento, os olhos
de Jack estavam continuamente sobre ela. Era óbvio que o capitão estava no limite da
sanidade e poderia até mesmo disparar se pensasse que ela pretendia ajudar Tom.
Hester fechou os olhos. Sua vida não valeria nada, se Cameron matasse Tom,
mas tinha o bebê a considerar. Se não fosse pelo filho, poderia se arriscar.
— Pensando, Hester, minha querida?
— Sim. Estava imaginando como você pôde descer a esse ponto. Deve ter sido,
realmente, por minha causa.
— Oh, Hester, eu estava cego, cego! Se eu, pelo menos, soubesse como era você,
na verdade, eu teria feito de tudo para que se interessasse por mim, não por ele. Jamais
você teria se casado com aquele porco.
Era inútil tentar usar da razão para com ele. Jack estava transtornado. Sua louca
adoração por ela poderia ser até divertida, quando comparada a ojeriza anterior, se não
fosse tão perigosa. Os deuses deviam estar rindo de uma tal reviravolta, se é que não a
tinham planejado para se divertirem.
O silêncio de Hester deixou Jack irritado.
— Fale comigo, Hester, pois Dilhorne não deve demorar, agora. Implore por ele,
embora nada do que diga possa salvá-lo.
— Não — ela respondeu, calmamente. — Não o farei.
— Não? Então, sirva-me um drinque, querida, como estava servindo para ele
quando eu cheguei. Esperar dá sede. Se você fosse minha esposa, eu não a deixaria
sozinha, à noite.
— Mas eu não sou sua esposa, capitão Cameron. E nunca serei, e matar Tom não
vai mudar isso. — Ela se levantou e caminhou para o aparador.
Ele ergueu a pistola, acompanhando o trajeto desengonçado de Hester, e mirou
nela, enquanto ela colocava o brandi em dois copos. Um barulho, lá fora, alertou-o.
— Está ouvindo o porco, chegando?
— Ela é corajosa, Dilhorne — disse Jack, com admiração. — Você não a merece.
— Sei disso — retrucou Tom, falando em tom natural, para não provocar Jack. —
Você não a machucaria, não é verdade?
— Eu? Não! Eu não a deixaria cair no meio do mato...
Tom começou a deslizar lentamente em direção ao aparador. Se conseguisse ficar
por baixo dele.. Na verdade, marido e mulher calculavam os prós e contras para
neutralizar Jack, enquanto o mantinham preso à conversa e cego a seus propósitos.
Como se tivesse pressentido esse jogo de gato e rato, Jack ergueu a pistola,
apontou-a para Tom e disparou. Dilhorne, adivinhando a intenção pelo braço
estendido, lançou-se para debaixo do aparador, a bala atingindo-o quando desapareceu
da vista.
Hester, enquanto isso, aproveitara a oportunidade, quando Jack se voltara,
afastando a atenção tanto dela quanto da arma sobre a mesa. Apossou-se da pistola no
momento em que ouviu o estampido do tiro e o barulho da queda.
Soltou um grito desesperado de angústia e desespero.
— Você o matou, você o matou!
Jack deixou caiu o braço e virou-se, sorrindo:
— Com prazer, Hester, com prazer.
Jogou a pistola fumegante sobre a mesa.
Hester, as mãos escondendo a arma que havia apanhado, levantou-se, empurrou
a cadeira atrás de si com o pé e, antes que Jack entendesse o que estava acontecendo,
deu dois passos para trás, firmando-se como Tom havia lhe ensinado e como fizera tan-
tas vezes, nos exercícios de tiro.
Usando ambas as mãos, ergueu a pistola e apontou-a para o peito de Jack.
Cameron, que se deleitava com uma alegria selvagem ao ver Dilhorne caído,
subitamente se deu conta de que a morte o espiava pelo cano de sua própria pistola, e
de um ângulo fatal.
De semblante pálido, olhos faiscando, Hester o encarou, as intenções claras em
seu rosto.
— Você matou Tom, e vou matá-lo por isso.
As mãos de Jack se levantaram, em um gesto involuntário. Deu um passo em
direção a ela. Era óbvio que ela pretendia fazer o que dizia. A posição de tiro dizia a ele
que Hester tinha o conhecimento e a habilidade para atirar.
— Não, por favor, não! — gritou roucamente.
Os dedos de Hester fecharam-se sobre o gatilho. Armou o cão. Tom, ferido, mas
não morto, levantou-se por detrás do aparador e gritou:
— Não, Hester, não! Não atire.
Hester disparou.
CAPÍTULO XV
envolveu-o de novo. Sua carreira militar estava acabada, seu futuro era negro, e ele fora
esbulhado por um ex-condenado que, sabia-se lá como, tivera a sorte de obter um amor
que a maioria dos homens apenas sonhava em ter.
Que mulher mataria por ele?
Nem Tom nem Hester o viram sair.
Hester tremia violentamente.
— Acabou! — exclamou Tom. — Ele é um homem derrotado. Até deixou para
trás suas pistolas. Vou providenciar para que sejam devolvidas, sem que O’Connell
descubra o que ele tentou fazer.
Gradualmente, ela se acalmou sob as mãos suaves e carinhosas do marido. O
coração de Tom estava cheio de amor por ela. Estranhamente agradecido. Não apenas
por ter sido salvo da morte, mas porque a atitude de Hester havia revelado a força de
seus sentimentos para com ele.
— Diga-me, meu amor, você realmente o teria matado? Gosta tanto assim de
mim? Há momentos em que temo que tudo o que sinta seja gratidão, que eu me engane
ao pensar que pode me amar, um bruto como eu.
— Oh, sim — disse Hester, e não poderia haver dúvidas quanto à sinceridade de
sua voz. — Eu o amei desde que entrou na sala do Conselho, para me entrevistar.
Quando brigamos, depois do baile, você me disse isso e tinha razão. Eu não sabia,
então, mas tenho pensado nisso desde essa ocasião. Eu não sabia o que era amar alguém
ou ser amada. Foi somente depois que nos tomamos marido e mulher de verdade que
comecei a entender o que eu queria de você, desde o primeiro momento em que o vi
naquele belo colete com os pavões. Pensei, a princípio, que era medo o que eu sentia,
mas, então, subitamente, percebi que era amor, que você se tomara meu mundo. — Ela
o abraçou. — Sim, eu o teria matado. Por você, apenas e tão somente por você.
Tom ficou em silêncio. Hester repetira a frase que dissera a ela, na discussão.
Cabeça baixa, as palavras saíram de sua boca, e ele disse a Hester aquilo que jamais
pensara em dizer a alguém:
— Eu não a mereço, ou o seu amor, Hester. Sou um homem mau, ardiloso, duro
e cruel. Cameron tem razão em me odiar. Eu atirei no pobre Kaye no ombro, quando
estava em pé, indefeso, diante de mim. Fiz outras coisas, ainda piores, terríveis.
— Sei disso — ela retrucou simplesmente. — E não importa. Eu o amo, é tudo
que sei e que me interessa. O resto é nada! Sei que você foi gentil comigo, a princípio,
porque isso o divertia. Apenas a princípio. Mais tarde, percebi que também me amava,
como eu o amava. Você me transformou, e, então, transformou-se também. — Ela
afagou-lhe os cabelos. — Por que estamos falando sobre isso, enquanto esse pobre braço
precisa de cuidados? O ferimento não foi sério, mas tem que ser curado imediatamente.
— Você continua prática como sempre, amor — ele respondeu, beijando-a. — Eu
lhe direi o que fazer por meu ombro e, depois, mandaremos buscar Alan para examiná-
lo. Ele não vai falar ou fazer perguntas.
Hester foi buscar água e ataduras, para limpar e envolver o ferimento. A bala não
se alojara no ombro, tendo, por sorte, desviado-se do osso. Pouco depois, Tom
recostava-se no sofá, saboreando o brandi que ela lhe trouxera.
Por alguns instantes, ele deixou de ser o observador atento que sempre fora.
Fechou os olhos. A dor e o susto o desviaram do fato de que Hester também estava
sofrendo, e que o sofrimento, em vez de desaparecer, aumentava. O esforço para
empurrar para trás a pesada poltrona, e levantar-se tão subitamente para confrontar
Jack com a pistola, tinha provocado uma dor aguda e penetrante em suas costas. Não
havia pensado em nada naquele instante, atribuindo isso ao movimento violento e ao
peso do corpo.
Mais tarde, quando trouxera a bacia com água para limpar o sangue do
ferimento, do chão e da parede, a dor voltara de novo, desta vez mais forte. Ela precisou
apoiar-se na mesa, para suportá-la. Se não fosse nas costas, ela teria sabido que o bebê
estava prestes a nascer. Contudo, supôs que fosse mais um dos desagradáveis sintomas
de sua difícil gravidez.
Até que, caminhando até onde estava Tom, para verificar se estava confortável,
foi tomada de uma dor tão forte que a obrigou a se agarrar ao braço da cadeira. Deixou
escapar um gripo estrangulado.
Tom arregalou os olhos e agarrou-lhe o pulso com a mão boa.
— Hester? O que houve?
— Minhas costas — ela murmurou, com uma voz abafada. — É unia dor
horrível.
— Quando começou? Diga depressa, querida — pediu ele, levantando-se.
Ela o fitou, assustada.
— Eu me machuquei quando pulei para pegar a pistola de Jack e empurrei a
cadeira para trás, com força. Mas, não pode ser o bebê. A dor é nas costas, e o bebê
ainda não está pronto para... oh!
Ela quase caiu sobre ele, dobrada por uma pontada ainda mais forte.
— Meu Deus, mas é o bebê, Hester! Depressa, precisamos levá-la para cama, e
Alan tem que vir até aqui, imediatamente. Se eu não estivesse ferido, poderíamos nos
arranjar sem ele. Fiz o parto de mais de uma criança no transporte. Mas isso! Oh, Deus!
Não temos nem mesmo uma enfermeira!
Hester nunca vira Tom tão descontrolado. A dor no ombro ferido e sua
preocupação para com ela o estavam deixando desarvorado. Tentou pegá-la no colo
para subir a escada, mas ela o impediu.
— Oh, não, por favor, você pode me deixar cair. Posso andar sem sua ajuda. Não
tente fazer mais do que pode, Tom. Pense em seu braço.
— Dane-se meu braço!
Ele insistiu em ajudá-la a subir a escada, segurando-a cada vez que a dor a
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Paula Marshall - Em Nome do Amor (Grds Rom Históricos 09)
e do ego haviam silenciado, também. Alan, baixando os olhos para ela, viu um
semblante resignado e de aceitação pacífica, que já presenciara anteriormente. Percebeu
que ele a estava perdendo para a morte.
Sarah, do outro lado da cama, também percebeu. Seu rosto transformou-se em
uma máscara de pesar. Perguntou ao marido:
— Devo trazer Tom?
— Não! — exclamou Alan, com violência. — Ainda não. Não vou falhar com
eles. Pelo menos, tentarei salvar Hester.
Ao ouvir o nome do marido, Hester abrira os olhos, para fechá-los, logo em
seguida.
Alan, inclinando-se, colocou as mãos sob o corpo de Hester, ergueu-a para uma
posição sentada na cama, e apoiou-lhe a curvatura da coluna com uma almofada.
— Hester! — chamou imperioso. — Olhe para mim.
Ela abriu os olhos. Ele não queria que se fechassem outra vez.
— Faça o que eu mando. Por Tom e pelo bebê.
Tom e o bebê, murmurou seu Mentor, ganhando novamente a vida. Pense em
Tom e no bebê. Não durma. Dormir é morrer. Lembre-se, Hester, Tom e o bebê. Você
quer ver o bebê, e ver Tom com o bebê, não quer?
A princípio, Hester quis ignorar a voz incisiva. Acordar, voltar à vida, significava
sofrimento e dor. Tudo o que queria era paz, libertar-se do sofrimento. Tom não
gostaria que ela sofresse.
A voz insistiu, novamente, mais alta e mais forte. Pense em Tom e no bebê. Você
não quer deixar seu marido sozinho, quer? Lembre-se de quanto o ama.
— Sim — ela respondeu, com uma voz tão fraca, que Alan mal a conseguiu ouvir
— , eu me lembro. Quero ver Tom outra vez, e o bebê.
— Segure as mãos de Sarah — disse Alan, encontrando os olhos dela que agora
pareciam reconhecer que ele estava ali, a seu lado — e, então, quando a dor voltar, não
a reprima, não a ignore. Grite, Hester, grite tão alto quanto puder. Aceite a dor, associe-
se a ela e, só assim, eu posso ajudá-la.
Enquanto ele falava, a dor veio de novo, tão violenta que parecia emergir das
profundezas de seu próprio ser. Tão poderosa que Hester pensou que sé partiria em
duas. Um primeiro grito escapou, o grito continha a mesma angústia daquele que
soltara quando pensara que Jack Cameron havia matado Tom. Como Alan disse mais
tarde, era seu estoicismo que a estava destruindo.
Lá fora, Tom enterrou o rosto entre as mãos horrorizado.
Lá dentro, Sarah caiu sobre Hester, com a força com que esta a agarrou.
Alan berrou, vendo que um novo espasmo a sacudia:
— Vamos, força! Ótimo! De novo! Você quase conseguiu. Empurre, Hester,
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