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Sobottka
CONSTELAÇÕES PÓS-NACIONAIS E A
DOSSIÊ
QUESTÃO DA INTEGRAÇÃO SOCIAL1
Emil A. Sobottka*
A preservação da identidade cultural coletiva, em sua tensão com a integração de novos membros, foi objeto
de discussão entre Taylor e Habermas em seus textos sobre política de reconhecimento. Para ambos, a ideia
de nação deixou de ter força agregadora suficiente em estados modernos. Face à diversidade fática, surge a
dupla pergunta: o que pode manter a unidade de uma comunidade política nas atuais sociedades e como
novos membros podem ser nela integrados? O texto trata dessa questão, reconstruindo aquele debate e as
alternativas propostas pelos dois autores, levando em consideração tanto a crescente individualização das
formas de vida como a migração transnacional.
Palavras-chave: Reconhecimento. Migrações. Integração social. Cidadania.
1
INTRODUÇÃO nesse particular, enfatiza que “as concepções
de nação e indivíduo cresceram juntas na his-
Charles Taylor (1995, p. 241), em seu tória do Ocidente e continuam a influenciar
texto A política do reconhecimento, defende uma a outra”. Para reforçar sua tese sobre a
a tese de que “nossa identidade é moldada importância do reconhecimento, Taylor (1995)
em parte pelo reconhecimento ou por sua au- afirma que ele não é uma simples cortesia que
sência, frequentemente pelo reconhecimento se poderia conceder ou não aos outros, mas
errôneo por parte dos outros”. Ao destacar o uma necessidade vital. A implicação ética des-
caráter relacional da formação identitária, o sa asserção é que, em sendo uma necessidade
autor se coloca em sintonia com debates con- vital do Outro, o reconhecimento, de modo al-
temporâneos que questionavam concepções gum, pode ser negado: quem o recusa ou faz de
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i85.27683 47
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sada em reconhecimento errôneo. Ela seria, reprodução da comunidade que tem como na-
pois, promotora de “um particularismo masca- tural para si a língua francesa e a cultura com
rado de universalismo” (Taylor, 1995, p. 254). ela associada, porque ambas – língua e cultura
Em contraposição a essas políticas, – seriam dignas de terem seu valor reconheci-
Taylor (1995) expõe uma forma mais exigente do por todos.
de reconhecimento: para além da dignidade ou Dentre as medidas adotadas à época, no
do potencial igual de todos, ela exige o reco- Québec, uma regulava o tipo de escola que as
nhecimento “do igual valor daquilo que estes famílias poderiam eleger para seus filhos. Ela
possam ter feito concretamente desse poten- pode ser destacada como ilustrativa. Segundo
cial” (Taylor, 1995, p. 253, grifo nosso). Sua aquela regulamentação, famílias de origem fran-
referência empírica é a disputa em torno do cófona e famílias de origem estrangeira seriam
francês no Québec.3 A língua e, por extensão, obrigadas a colocar seus filhos em escolas fran-
a cultura dos francófonos daquela província cesas. Taylor não desconhece que, com uma im-
seriam bens tão valiosos que eles deveriam ser posição como essa, algum direito interpretado
preservados. Provavelmente, pouca objeção como liberdade tenha sido restringido em nome
haveria a esse objetivo coletivo daquela comu- de um bem coletivo. Mas essa não seria uma
nidade, se sua implicação fosse a não discrimi- das liberdades fundamentais, “que nunca po-
nação e a correspondente liberdade para que dem ser feridas” e devem ser “incessantemente
a escolha da língua pelos indivíduos ou pelas protegidas”. Tratar-se-ia de tipos de “privilégios
famílias fosse facilitada em condições de ra- e imunidades que, embora importantes, podem
zoável igualdade. Política semelhante já havia ser revogados ou restringidos por razões de po-
sido defendida anteriormente por Will Kymli- lítica pública” (Taylor, 1995, p. 265).
cka (1992, 2003; Cf. Creighton, 2016) para De modo geral, o liberalismo se consi-
a população francófona do Québec e para os dera neutro e enfatiza, na política, a democra-
aborígenes canadenses – e tem sido praticada cia procedimental. Mais recentemente, ele se
como política compensatória ou de discrimi- apresenta como defensor do multiculturalis-
nação positiva em vários países. mo. Mas, na leitura de Taylor (1995), ele seria
A política implementada, em certo mo- tão somente mais “um credo em luta”, como o
mento, no Québec, e secundada por Taylor são outros tantos, sendo por vezes, inclusive,
(1995), no entanto, é bem mais exigente. Ela colonizador. Em oposição a esse particularis-
não se limita a colocar a língua francesa à mo disfarçado de universalismo, o autor advo-
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A LIVRE ESCOLHA ENTRE FOR- formas. Mas o lugar por excelência da partici-
MAS DE VIDA EM DISPUTA pação política é a esfera pública (Arato; Cohen,
1994; Gripsrud; Eide, 2010; Habermas, 1997;
Em uma resposta a Taylor, Habermas de- Cf. Rosenfeld; Arato, 1998). Ali seria o lugar
fende que a exigência de reconhecimento tem para que os próprios afetados, como indivídu-
por objetivo a “defesa da integridade de formas os ou organizados em movimentos sociais e
de vida e tradições com as quais os membros em organizações da sociedade civil, busquem
de grupos discriminados possam identificar- entender-se sobre como querem regrar sua
-se” (Habermas, 1995, p. 232) (Cf. Gutmann, vida coletiva, sobre aquilo que deve receber
1994). Sua ênfase está no fato de que esse reco- tratamento diferenciado e o que deve receber
nhecimento deve ocorrer dentro do marco do tratamento igualitário. Nessa busca pública
estado democrático de direito, cujo escopo são e aberta, nada impede que os jurisconsortes
os direitos subjetivos. Ou seja: para ele, o direi- aprovem como preferíveis formas específicas
to moderno tem, dentre outras características de vida culturalmente herdadas, inclusive
importantes, a de ser formal, procedimental e aquelas etnicamente vinculadas.
focado no individuo.4 Com essa construção, Habermas (1995)
Habermas (1995) contesta a construção detalha sua concepção de que a referência das
de Taylor, segundo a qual os direitos indivi- normas jurídicas é o contexto específico das
duais universais colidiriam com o reconheci- interações. Nele, tanto objetivos gerais como
mento das formas específicas de vida,5 e que, fins coletivos específicos, que expressam for-
em determinadas situações, seria necessário mas de vida em particular e se afirmam através
decidir qual deles priorizar. Seu argumen- de lutas por reconhecimento, podem resultar
to acolhe a possibilidade de a ordem jurídica da configuração democrática específica. Não
proteger concepções específicas do bem viver, há uma necessidade inerente à ordem jurídica
mas ele deriva essa possibilidade de uma cons- para que ela seja eticamente neutra. Forman-
trução procedimental que combina autonomia do-se consensos na esfera pública entre os
e participação política. Com isso, Habermas concidadãos, a ordem jurídica poderia prote-
se vê na necessidade de explicitar logo duas ger formas de vida coletivamente construídas e
questões-chave: (a) como uma ordem jurídica particulares daquela comunidade política.
dessas se coaduna com a exigência liberal de Esse procedimento não poderia, no en-
neutralidade valorativa e (b) como a ordem ju- tanto, resultar no privilégio de uma forma de
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dos indivíduos, seriam modos de assegurar, ao (1995), para a imposição de restrições na au-
mesmo tempo, a autonomia dos indivíduos e o tonomia de indivíduos (ou famílias) para es-
reconhecimento das formas coletivas de vida colherem sua forma preferida de vida. A inte-
que dão suporte à sua identidade. Segundo Ha- gração baseada na aceitação de um marco legal
bermas (1995, p. 249): formal distingue claramente entre a aceitável
e necessária convivência com formas diferen-
Pois se é possível garantir a integridade da pessoa de
direito em particular, de um ponto de vista normati-
ciadas de vida nas sociedades de constelações
vo, isso não pode ocorrer sem a defesa dos contextos pós-nacionais e pretensões de imposição de
vitais e experienciais compartilhados intersubjeti- uma forma de vida específica em detrimento
vamente, nos quais a pessoa foi socializada e nos de outras.
quais se formou sua identidade. A identidade do in- Em oposição à defesa da precedência
divíduo está entretecida com identidades coletivas e
de objetivos coletivos sobre a autonomia in-
só pode estabilizar-se numa rede cultural.
dividual feita por Taylor, Habermas apresenta
Mas Habermas contesta um ponto cen- sua concepção sobre como culturas poderiam
tral da tese de Taylor sobre o reconhecimento conviver em uma sociedade plural (Cf. Cooke,
do valor das culturas. Ele adverte que das lu- 1997; Delanty, 1996). Sua visão é que culturas
tas sociais podem resultar obrigações jurídicas não seriam um bem pronto a ser transmitido
de reconhecimento, mas não a obrigação ética ou herdado. Elas precisam se manter sempre
de uma apreciação positiva do valor da cul- em transformação para permanecerem vivas,
tura como tal. Sua convicção é de que a con- não podendo ser objeto de esforços de conser-
vivência multicultural e multiétnica deve ser vação, como podem ser espécies ameaçadas
regrada no marco jurídico feito “para atender a do mundo biológico. Mais que isso: para Ha-
pessoas individuais” (Habermas, 1995, p. 250). bermas, em sociedades plurais, multiculturais,
Em sociedades atuais, diversificadas e as formas de vida de uma cultura específica
estruturadas como constelações pós-nacio- seriam ofertas feitas a cada membro da comu-
nais, esse procedimento muito provavelmente nidade, seriam formas de vida à disposição de
resultará na coexistência de diversas formas cada indivíduo. Esses membros têm a liberdade
culturais particulares de vida numa mesma de apropriar-se ou não dessa herança, de adap-
circunscrição. A proeminência de uma, num tá-la e transformá-la. Assim, caberia a cada
processo democrático, não poderá implicar a cultura particular, para perpetuar-se no tempo
negação, o cerceamento, ou o desmerecimento e através de gerações sucessivas, apresentar-se
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das demais. A decisão de proteger determina- como suficientemente atrativa no conjunto das
da forma de vida, no entanto, não a congela ofertas disponíveis aos indivíduos a fim de ser
para sempre. Habermas (1995) ressalta que a apropriada e duradouramente reproduzida. Na
própria composição do conjunto de membros medida em que se apropria de ofertas cultu-
de uma ordem jurídica estatal é contingente e rais, mesclando-as, adaptando-as e transfor-
se altera por diversos fatores como migrações, mando-as, a pessoa seria simultaneamente so-
secessões, evoluções internas etc. Isso pode cializada e tornada indivíduo autônomo. Com
levar a mudanças nas proporcionalidades ou isso, a relação entre indivíduo e coletividade
mesmo inversão na relação entre minorias e deixa de ser uma contradição e passa a consti-
maioria. tuir, simultaneamente, os dois lados da equa-
Essas contestações de ordem teórico- ção: individualização e integração. Por meio de
-normativa tornariam desnecessário, ou me- posicionamentos reflexivos dos indivíduos, as
lhor, impossível que, num estado democráti- culturas particulares estariam expostas a “uma
co de direito, objetivos coletivos servissem de disputa civilizada entre diversas convicções”
justificação, como é preconizado por Taylor (Habermas, 1995, p. 253), da qual resultaria
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um intercâmbio renovador, tanto das culturas cultural ou multiétnica, haveria dois planos de
como das identidades dos membros da comu- inserção a considerar.
nidade política. No primeiro, que ele denomina de in-
tegração política, os cidadãos definiriam o
regramento abstrato de sua convivência, do-
TRÊS MODOS DE INTEGRAÇÃO tando sua cidadania com direitos e deveres
recíprocos. Dos membros da comunidade se
Há uma diferença profunda entre as requer a concordância com aquilo que resul-
formas como Taylor e Habermas concebem as tar da discussão pública em termos de orde-
possibilidades de sobrevivência da cultura de namento constitucionalizado. As disputas de-
coletividades. Elas estão intimamente vincula- mocráticas, na esfera pública, permitiriam a
das com a respectiva visão do vínculo que une argumentação ética ancorada em valores locais
a comunidade portadora da cultura. Taylor da respectiva comunidade, uma vez que esse
(1995) concebe a comunidade a partir de sua conjunto de valores é que fundamenta o regra-
dimensão étnico-cultural, como portadora de mento jurídico. E o regramento jurídico, por
uma identidade que se formou historicamente sua vez, assegura aos indivíduos a escolha li-
e que a caracteriza inconfundivelmente. A lín- vre entre as formas coletivas de vida em dispu-
gua constitui, para ele, o vínculo mais central ta. Assim, cada constituição reflete, em algum
de transmissão e cultivo dessa herança entre grau, a cultura política vigente quando de sua
as gerações. Não havendo mais pessoas dispos- elaboração, e a interpretação constitucional
tas a falar essa língua no cotidiano, a cultura acompanha as mudanças na autocompreensão
morrerá. E o fato de querer falar a língua esta- dos que vivem na respectiva circunscrição. De
ria vinculado à aceitabilidade social, expressa, novos membros que entram nessa comunida-
sobretudo, num número significativamente de seria legítimo esperar a concordância com
grande de outras pessoas falantes do mesmo tal regramento, mesmo sem uma adesão aos
idioma, que sirvam de referência. A morte da valores mais profundos que o inspiraram.
cultura de origem, por sua vez, seria a perda Portanto, nesse modo de integração,
de autenticidade, o que equivaleria a uma vida o que forma a comunidade política e assegu-
fracassada. A comunidade política e o marco ra sua unidade é o vínculo estabelecido pelo
jurídico teriam um papel relativamente secun- marco jurídico, do qual a constituição é a ex-
dário para os laços de pertinência, se forem pressão central. Pessoas livres e iguais se asso-
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reito de poder postular, publicamente, futuras pessoas e grupos vinculados a formas de vida
mudanças. As regras para a naturalização de muito distintas, tornou-se normalidade. No
estrangeiros, por sua vez, expressam o desejo caso do Canadá, essa pluralidade tem longín-
de proteção mais ou menos restritiva dos mem- qua origem histórica, cujas raízes remontam
bros da comunidade política em relação às for- ao processo de colonização. Tal como em ou-
mas de vida já estabelecidas e com as quais eles tros países, ali “subculturas” se confrontam há
melhor se identificam. Patriotismo constitucio- anos. Mas a integração política não foi capaz
nal é a designação que Habermas (1995) dá a de consolidar um patriotismo constitucional
esse vínculo (Cf. Müller, 2006; Pinzani, 2002). capaz de dar sustentação ao consenso proce-
Um segundo modo, mais forte, que Ha- dimental no longo prazo e em toda a extensão
bermas designa de integração ética, seria aque- da comunidade. A província do Québec e suas
le em que ocorreria uma proteção explícita diferentes lutas por separação ou por autono-
de formas de vida construídas coletivamente. mia e as lutas dos aborígenes expressam isso.
Quem quiser se integrar à comunidade, nesse Mas, dentre os fatores responsáveis pela
nível, deverá ir bem além de uma conformação pluralidade cultural e dos modos de vida no
externa e descrita acima como integração polí- Canadá, pode-se citar também a migração
tica. Deve estar disposto a aculturar-se, assu- transnacional de anos recentes, com os desa-
mindo, em certo grau, o modo de vida, as práti- fios que ela coloca no que diz respeito à in-
cas e os costumes locais. Também, nesse modo tegração e à unidade. O país tem se destaca-
de integração, a socialização das pessoas nati- do internacionalmente tanto por políticas de
vas tende a ocorrer gradativamente e num bai- acolhimento de refugiados como de atração de
xo nível de explicitação. Mas, para quem vem migrantes que ali queiram se estabelecer (Cf.
de fora, na prática, essa integração significará Simmons, 2011). A fase de acolhida e abertura
um rompimento com a comunidade anterior e ao multiculturalismo estendeu-se, pelo menos,
com a sua cultura. A convicção de Habermas desde 1945 até a virada do século, quando, se-
é que colocar como exigência esse modo de gundo Ofelia B. Scher (2017), teria sido ini-
integração para imigrantes seria incompatível ciada uma fase de “mal-estar da diversidade”,
com o estado democrático de direito, porquan- substituindo-se a abertura e a receptividade
to atropelaria a autonomia dos indivíduos. Ou, pela preocupação com a segurança.
em referência à autenticidade defendida por Segundo os pressupostos defendidos por
Taylor (1995, p. 245), pode-se dizer que tama- Taylor (1995), o desafio no Québec, em meio à
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Já a distinção que Habermas faz entre clássico texto sobre o estrangeiro, Georg Sim-
integração ético-cultural e política lhe permi- mel (2002) já havia anotado que as relações
tiu uma diferenciação entre dois graus dis- concernentes ao espaço são também o símbolo
tintos de assimilação de novos membros. A das relações entre os seres humanos. O autor
assimilação política se daria através da con- refere-se àquele que está numa comunidade,
cordância dos neófitos com os princípios fixa- mas não pertence imediatamente a ela, não é
dos pela constituição, tida como a expressão seu membro. O compartilhamento do espaço
sintética da compreensão ético-política dos ci- físico concomitante com a distância nas rela-
dadãos. Indiretamente ela veicularia a cultura ções, com o estranhamento, torna sua integra-
política estabelecida na sociedade em tela. A ção apenas espacial. Espera-se do estrangeiro
assimilação ético-cultural, por sua vez, seria que ele seja móvel. Não tanto como o turista
muito mais exigente e implicaria a disposição que hoje vem e amanhã terá ido, mas muito
de aculturar-se, de assumir o modo de vida, mais do que do imigrante que tenha como ho-
práticas e costumes locais. Por óbvio, essa úl- rizonte a naturalização e, por conseguinte, sua
tima afetaria profundamente a identidade dos integração formal na comunidade política.
migrantes, porquanto implicaria a necessidade É bem verdade que esse não é um fenô-
de um rompimento, em certas circunstâncias meno novo, pois seria possível encontrá-lo “na
inclusive bem radical, com a cultura e a forma história inteira da economia”, como, por exem-
de vida pregressas – o que cada migrante pode plo, na figura do comerciante, nos representan-
eleger, se assim desejar, mas que, em um esta- tes diplomáticos, dentre outros. Presentes no
do democrático de direito, nunca lhe poderia cenário político-social das décadas recentes,
ser imposto como condição de acolhimento. os estrangeiros migrantes estão fundamental-
Essa exigência seria um atentado à dignidade mente em duas modalidades de status: como
da pessoa recém-chegada. trabalhador temporário ou hóspede, que vem
Mas foi precisamente essa segunda for- para vender temporariamente sua força de tra-
ma de integração que se exigiu, à época, no balho em troca de ganhos a serem usufruídos,
Québec, pelo menos para a segunda geração de modo geral, na terra de origem, ou como re-
dos migrantes, com a legislação que lhes im- fugiado, que espera uma acolhida humanitária
punha um tipo específico de escola. Habermas para vencer uma adversidade via de regra tida
(1995, p. 258), por sua vez, está convencido como temporária (Cf. Castles; Haas; Miller,
de que, numa comunidade política unida pelo 2014). O estrangeiro com integração apenas
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as culturas locais poderiam se defender para grantes, com a justificativa de que haveria um
sobreviver e manter sua autenticidade, nem o pertencimento nacional já dado. O conjunto
quanto se pode exigir dos novos membros em de direitos e deveres vinculados à cidadania
termos de adesão e internalização da cultura passa a ser atribuído ao novo membro como
política local. Caberia à comunidade hospe- expressão da integração étnico-cultural, na ex-
deira a responsabilidade de encontrar os meios pectativa de que a socialização progrida poste-
para melhor realizar o acolhimento.6 riormente. Portugal e Espanha também desen-
Porém, como bem observa Benhabib volveram discursos e políticas de acolhimento
(2004), não havendo, no âmbito internacional, de latino-americanos, com a argumentação
um grau de formalização de um status legal fundada em supostos laços históricos que as-
comparável à cidadania, de modo a que o di- segurariam grande afinidade (Padilla; Cuberos-
reito pudesse ser eficazmente reclamado, tor- -Gallardo, 2016).7 Subsiste, nessas políticas, a
nam-se necessárias mediações institucionais concepção de nação que inspirou, nos anos
que acolham a norma cosmopolita no ordena- 1980, as reformas constitucionais no Québec.
mento local. Essas mediações dependerão da Uma grande diferença, porém, está no fato de
comunidade de jurisconsortes locais já esta- as políticas desses países não se expressarem
belecidos. Dependerão de sua maior ou menor em exigências altamente restritivas à acolhida
sensibilidade para com o dever ético-moral da do imigrante, mas na romântica idealização de
hospitalidade. Sua maior abertura para o aco- laços históricos de afinidade e pertinência.
lhimento poderá ser estimulada por apelos, Num estudo interessante, com o título
críticas ou pressões externas, mas dependerá, A invenção do passaporte, John Torpey (2000)
em última instância, da vontade política local descreve a íntima vinculação criada entre a
(Cf. Benhabib, 2004). Com isso, migrantes, re- ideia de estados-nação e sua institucionaliza-
fugiados e estrangeiros em geral podem ter, na ção por meio do desenvolvimento de sistemas
hospitalidade, apenas um direito em sentido de regulação e controle da mobilidade das
fraco. A contribuição da política migratória pessoas simbolizada no passaporte, na Euro-
para a justiça social, como Paolo Gomarasca pa e nos Estados Unidos da América. A razão
(2017) mostrou em relação à União Europeia, para que tenha feito o recorte nesse conjunto
será pouca enquanto permanecer divorciada de estados, segundo o próprio autor, foi por-
do status de cidadania. Ou, o que é o rever- que “a imposição do caminho trilhado pelo
so da moeda, enquanto a regulamentação dos Ocidente à maior parte do restante do mundo
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então o debate pode deixar o plano da cultura DELANTY, G. Habermas and post-national identity:
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