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GLOBALIZATION OF LAW:
NEW CONTENTS TO THE NATURE
1
Data de recebimento do artigo: 05.06.2017.
Datas de pareceres de aprovação: 16.06.2017 e 26.06.2017.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 03.07.2017.
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Este artigo consiste nos esforços iniciais de reflexão no âmbito do Projeto de Pesquisa “A
‘Commoditização’ da Natureza no Brasil: as leis ambientais fundamentadas nos discursos das Instituições
Financeiras, Agências de Cooperação e Organizações Internacionais”, que tem apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico no Maranhão (FAPEMA - Edital 040/2015-Universal).
Os trabalhos de campo junto às diversas agências de cooperação e instituições financeiras deverão
ser realizados entre o período de 2017/2018.
3
Advogado. Doutor pela UFPR. Professor Visitante da Universidade Federal do Maranhão, vinculado
ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGDIR-UFMA). Pesquisador FAPEMA e CNPq. Bolsista
produtividade CNPq nível 2. E-mail: shiraishineto@gmail.com.
INTRODUÇÃO
Agricultura - FAO, Programa para as Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA,
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL) e instituições fi-
nanceiras internacionais (Banco Mundial - BIRD), que estão envolvidas em criar as
condições para a construção de uma “unidade jurídica” em atenção à globalização
econômica. No entanto, não se trata de qualquer globalização do direito, mas sim a
do direito americano, que se expande, impondo ao mundo o seu padrão, referenciado
nos ideais do “livre mercado” e da “democracia liberal”.
Em um contexto do que é denominado “americanização do direito”, as práticas
e os discursos jurídicos ambientais dominantes se desenvolvem no campo jurídico,
orientado por uma representação do direito e da natureza. Assim, tomando como
referência o direito ambiental, este trabalho, fruto de uma pesquisa em andamento,
objetiva analisar de que forma o discurso dominante do direito ambiental se produz e
reproduz no Brasil, contaminado por um conteúdo que destoa dos princípios inscritos
na Constituição Federal de 1988, dentre eles: pluralismo, igualdade, justiça e desen-
volvimento. Ao tutelar a natureza, tendo em vista a sua utilidade econômica, as novas
leis ambientais se opõem às representações atribuídas pelos diversos grupos sociais
designados como povos e comunidades tradicionais do país.
A reflexão a seguir será desenvolvida a partir dos seguintes tópicos: globalização
do direito: “a americanização” do direito brasileiro. A ideia aqui é analisar esse processo,
que envolve um conjunto de ações (econômicas, jurídicas e culturais) com o intuito de
promover a expansão do direito americano pelo mundo. A “americanização do direito”
tem um fim precípuo, facilitar o acúmulo de capital e o livre fluxo de bens, pessoas e
serviços. O tópico seguinte, intitulado reestruturação do campo jurídico: Harvard é a
Meca, descreve os impactos na estruturação do campo jurídico brasileiro, que se man-
tém colonizado. Os contextos vividos pela nossa sociedade “facilitaram” a incorporação
do direito americano, o que implicou na legitimação de “novos” profissionais ao “direito
de dizer o direito”. A regulamentação dos novos “problemas ambientais”: “quando o
direito é ilegal” se constitui na última parte e busca relacionar o papel das agências de
cooperação e instituições internacionais na consolidação de um direito ambiental, que
se encontra em discordância com os princípios contidos no texto constitucional de 1988.
5
A pesquisa de Arturo Escobar (2012) sobre a “invenção do desenvolvimento” é exemplar. Para esse
antropólogo colombiano, o discurso do desenvolvimento desempenha um papel relevante nas estratégias
de controle e dominação social e cultural.
6
No contexto dos trabalhos produzidos, destacamos Anibal Quijano (2005); Walter Mignolo (2007);
Boaventura de Souza Santos (2010); e Arturo Escobar (2012).
7
Para Achille Mbembe (2016), esse modelo triunfante, que dominou o mundo até recentemente, chegou
ao seu final. Trata-se de um novo período, muito mais mortífero, que se caracteriza com a crescente
“bifurcação” entre a democracia liberal e o capitalismo financeiro, entre o governo do povo e o governo
das finanças, que são tidos como inconciliáveis. No contexto do golpe parlamentar e do regime de
exceção implantado no Brasil recentemente, vimos como é certeira a interpretação de Mbembe sobre
os processos atuais. O capitalismo financeiro não se importa com o regime instalado, desde que o
governo empossado atenda às suas necessidades de acumulação.
8
Para Sider, Schjolden e Angell (2005), a pressão das organizações internacionais (BIRD, FMI e OMC)
para que os estados promovam a reforma do Poder Judiciário faz parte do conjunto de estratégias
adotadas em se estabelecer a unidade do campo econômico. O BIRD teve um papel relevante nesse
processo de reformas no Judiciário da América Latina e Caribe, na identificação dos problemas e
soluções. A esse respeito, conferir o estudo de Maria Dakolias (1996), que foi promovido pelo BIRD
intitulado Documento Técnico n. 319.
9
Sobre a “globalização do direito”, Santos (1999) e Clavero (2014) formulam uma leitura otimista, pois
centram as suas análises no papel desenvolvido pelos direitos humanos na proteção dos sujeitos ao
redor do mundo, embora não desconheçam as consequências nefastas da “globalização” econômica
neoliberal. Enquanto Santos se ocupa em analisar a relevância da expansão internacional dos direitos
humanos, Clavero analisa de forma crítica a história dos direitos humanos, afirmando que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos serviu como base para o que denominou de “direito global”. Em
pesquisas recentes sobre a globalização e direito, Boaventura e Garavito centram a sua análise no
que denominam de “globalização contra hegemônica”. Ela se refere ao direito criado e aplicado pelos
movimentos sociais em oposição ao outro direito (SANTOS; GARAVITO, 2007).
10
Como parte do processo de difusão do direito americano, as várias séries disponíveis na NETFLIX,
que se tornaram uma espécie de “febre” entre os advogados e estudantes de direito no Brasil (entre
as quais: “Suits”, “The good wife”, “How to get away with murder”...). Tais séries focalizam o cotidiano
da advocacia nos EUA, disseminando uma ideia de direito e de Justiça. Vale ressaltar que os filmes
americanos sempre estiveram presentes entre nós, porém, não de forma ostensiva como atualmente
(como: “Testemunha de Acusação”, “12 Homens e uma Sentença”, “O Vento será tua Esperança”, “A
Qualquer Preço”, “Julgamento final”...).
nacionais um conjunto de valores na maioria das vezes divorciados dos contextos so-
ciais, econômicos e culturais. As pesquisas desenvolvidas pela antropóloga Laura Nader
(1994) sobre a produção e difusão da “Alternativa Dispute Resolutions” (ADR) ilustram
esses processos de dominação.11 Para essa autora, os “mecanismos alternativos de
resolução de conflitos” (tais como: a mediação, a arbitragem e a conciliação, que foram
incorporadas com a reforma do Código de Processo Civil brasileiro) servem para rees-
truturar a cultura dos países e, assim, instituir uma nova forma de convivência social.
O discurso difundido trata a ADR como uma evolução dos sistemas jurídicos,
uma vez que os modelos baseados nos conflitos são considerados prejudiciais ao
desenvolvimento das sociedades, na medida em que tornam as partes inimigas. A
intolerância aos conflitos objetiva eliminar as contradições, bem como apagar as diferen-
ciações socioculturais, que, no Brasil, envolvem a emergência de vários grupos sociais
designados como povos e comunidades tradicionais. A ADR se constitui, portanto, em
um instrumento de organização e controle social. Para isso, molda os cidadãos que
se tornam partidários dos acordos, conchavos e barganhas.12
No Brasil, as pesquisas de José Eduardo Faria (1997; 1998; 1999) inauguram as
reflexões sobre o direito na globalização. A análise do autor está centrada nas transfor-
mações do direito positivo (estrutura e forma) a partir da perda de sua capacidade em
“gerenciar” os conflitos resultantes dos processos econômicos globais. O advento do
“pluralismo jurídico”, como estrutura marcante dos sistemas jurídicos a partir das transfor-
mações provocadas, é destacado na análise. Para Faria (1998; 1999), o direito tal como
tradicionalmente concebido vem se “estilhaçando”, “fragmentando”, isto é, perdendo a
sua “organicidade programática”, “unidade sistêmica” e, por consequência, efetividade.13
A emergência de espaços infra e supralegais forjados por corporações empre-
sariais e organizações multilaterais para atender as suas demandas econômicas -,
11
Dentre as pesquisas sobre a difusão do modelo, sugerimos o trabalho de Mattei e Nader (2008). O lado
obscuro do Estado de Direito, segundo esses autores, tem ficado a margem das análises e discussões,
pois, para além da promessa civilizatória, o Estado de Direito tem servido para promover a pilhagem
ocidental, o que tem resultado em enormes disparidades globais. Essa mesma ideia de pilhagem
também pode ser encontrada em Vandana Shiva (2001), especificamente relacionada à natureza e
aos conhecimentos tradicionais. Sobre o papel ideológico do discurso dos Direitos Humanos na África,
recomendamos a leitura do trabalho de Issa G. Shivji (1989).
12
A propósito, sobre a introdução desse mecanismo de resolução judicial no direito brasileiro, como forma
de modernização do sistema judicial e de suas implicações aos grupos sociais emergentes designados
como povos e comunidades tradicionais no Brasil, sugerimos Shiraishi Neto (2015).
13
Os trabalhos de Jean Andre Arnaud (1999) colocam questões parecidas: os problemas jurídicos se
apresentam de forma nova, já que à margem do direito de feição tradicional desenvolvem-se normas,
regras e políticas de gestão, que são reconhecidas no mundo todo. Tomando como referência a
Europa, Yves Delazay e David M. Trubek (2010) constatam que as estruturas do direito europeu têm
se mostrado incapazes de atender as demandas oriundas do mercado europeu. Para esses autores,
a internacionalização dos campos jurídicos vem afetando o modo de produção do direito europeu.
descritos por Faria (1998; 1999), é o que nos interessa neste momento. Nos espaços
“supra”, ele destaca o que denominou de “harmonização legislativa” e “unificação
normativa”, que seriam frutos de ações e imposições de organizações (tais como:
BIRD, FMI, OMC).
A “ambientalização” da natureza no Brasil serve como referência empírica de
análise à construção de uma unidade global do direito, tendo em vista os processos
de regulamentação mediados por agências de cooperação e instituições financeiras
internacionais. Por ora, nos interessa afirmar que os sucessivos deslocamentos de
representação da natureza, impostos, determinaram rupturas nas interpretações da
Constituição Federal de 1988, atinentes à proteção do meio ambiente (arts. 225 e ss.).
O estabelecimento de uma unidade jurídica, determinado pela lógica da globa-
lização, lembra que a organização do sistema se espelha nos padrões jurídicos anglo-
-saxônicos, considerados mais compatíveis com os interesses econômicos emergentes.
Para Faria, a expansão hegemônica dos padrões jurídicos anglo-saxônicos, que se
fundamentam em valores da eficiência, produtividade, competitividade e acumulação
de capital se impõe à ordem jurídica,14 já que os modelos franco-romanos, baseados
em estrutura e procedimentos rígidos, são considerados “pouco objetivos, lentos e
incompatíveis” diante das diferenciações de espaço e tempo ditadas pelo campo eco-
nômico. Os estudos de Delazay e Trubek (2010, p. 39) identificam situações análogas
no campo jurídico europeu, os quais denominam de “modo americano de produção
do direito”, já que compreende a “política econômica de regulamentação, proteção e
legitimação num dado espaço nacional, num momento específico”.
Observa-se que o campo jurídico brasileiro se transforma impulsionado pelo
“modo americano de produção do direito”, com a emergência de “novos” profissionais,
que tem mobilizado de maneira estratégica essa prática jurídica. Os usos locais de uma
prática jurídica têm permitido de um lado a horizontalização da difusão e, de outro, a
verticalização do poder, isto é, a ascensão de grupos que embora detendo o poder do
direito em dizer o direito, não possibilita a democratização do campo jurídico.
A reflexão a seguir se constitui de exercício preliminar da pesquisa, que propõe
identificar como ocorre esse movimento de horizontalização da difusão e verticaliza-
ção do poder no interior do campo jurídico brasileiro,15 levando em consideração os
contextos local e global, determinados pelo “modo americano de produção do direito”.
A “americanização”, segundo Yves Delazay e Bryant G. Garth (2005), é um elemento
14
É assustadora a incorporação acrítica do direito norte-americano no Brasil. Autores como Ronald
Dworkin e John Rawls são citados, consumidos e venerados nas centenas de cursos de direito e de
pós-graduação esparramados pelo país afora.
15
No Brasil, os trabalhos do sociólogo Fabiano Engelmann (2006) sobre o campo jurídico iluminam as
nossas reflexões. No âmbito da América latina, as pesquisas do colombiano Cesar Rodrigues Garavito
(2011) são referências de análise.
Com relativo atraso em relação à Europa, o Brasil, nas últimas décadas, vem
sofrendo de forma natural a penetração do “modo americano de produção do direito”.16
A figura de linguagem aqui utilizada expressa de maneira irônica uma crítica à maioria
dos profissionais do direito, que veem a expansão do direito americano como algo ine-
vitável, já que se constitui na “evolução” e “modernização” do sistema jurídico brasileiro.
Observa-se que a produção e a difusão da ideia de que esse fenômeno da
“americanização” se constitui em um dado natural tem impedido uma análise crítica e
rigorosa das questões que envolvem a incorporação do “modo americano de produção
do direito”. Os contextos locais absorvidos pela expansão do capital e o reconhecimento
do pluralismo, que envolveu discussões em torno das políticas de ação afirmativa,
favoreceram as condições para a incorporação acrítica do direito norte-americano,
na medida em que essas questões foram tratadas naquele país. Contudo, os graves
problemas socioeconômicos do Brasil decorrentes das sucessivas políticas dirigidas
ao desmanche do Estado de Bem-Estar Social têm sido ignorados no debate jurídico.
O contexto de desmanche do Estado Social e de reconhecimento do pluralismo17
pôs em relevo o princípio da liberdade, evidenciando o descaso com um discurso, que
se ocupou com os problemas gerados pelas desigualdades no país. Em uma situação
de déficit de efetivação de direitos, a dogmática crítica se empenhou em construir e
reafirmar a validade da dignidade da pessoa humana como princípio matriz da ordem
jurídica brasileira.18
A fórmula que posicionou a dignidade da pessoa humana à condição de princípio-
-matriz do sistema jurídico se constitui de um procedimento hermenêutico, que promoveu
uma ruptura com os padrões de interpretação e atribuiu ao Poder Judiciário “função
social”. Os processos que impõem a perda da centralidade da dignidade da pessoa
na hierarquia do sistema - em prol da liberdade - expressam os novos conteúdos do
direito, determinados pelo processo de globalização. Contudo, os eventos recentes
16
Os trabalhos de Delazay e Trubek (2010) nos auxiliam na análise, pois suas pesquisas focalizam as
transformações no campo jurídico europeu, que sofreu algo semelhante. Lá, as transformações geraram
a organização da prática dos serviços jurídicos, da cultura e dos modos de legitimação no campo, sendo
que é possível observar distinções no campo francês e alemão, como bem observou Marcos Nobre
(2003) a partir das pesquisas de Trubek.
17
A propósito do processo de construção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil,
recomendamos Shiraishi Neto (2010).
18
Dentre os inúmeros trabalhos relativos à construção do princípio da dignidade da pessoa humana,
destacamos Silva (1998), Rocha (1999) e Sarlet (2002).
Convém destacar que desde sempre o direito brasileiro sofreu forte influência
de outros modelos, notadamente, o continental/europeu. A necessidade de uma
intelligentsia local para discutir os problemas do Brasil - a questão da raça, em especial,
os mestiços, desvinculada da cultura da metrópole, fez com que, na primeira metade
do século XIX, fossem instalados os primeiros cursos jurídicos no Brasil, em Olinda e
São Paulo. A despeito dos propósitos em formar uma intelectualidade, o pensamento
dominante nas escolas, ainda que com uma certa originalidade se apoiou no modelo
europeu. O “darwinismo jurídico” foi útil aos interesses dominantes, consolidando o
modelo autoritário e racista da nossa sociedade patriarcal.19
Até bem recentemente essa tradição continental/europeia servia como guia
orientando as reflexões e o aprendizado nas faculdades de direito. Era marcante, no
direito público, a influência do direito francês e alemão, mediado nos espaços mais
periféricos pelos doutrinadores portugueses e espanhóis, ou seja, no caso dos alemães
lia-se a sua doutrina pelos trabalhos dos portugueses e espanhóis, que exerceram forte
influência em período recente. O direito italiano influenciava o direito privado, sendo
que ele serviu como base para a construção da “dogmática crítica do direito privado”,
diferentemente de tempos pretéritos, quando esse mesmo direito italiano foi utilizado
como lustro à produção dos doutrinadores, que “manualizaram” o ensino jurídico no
Brasil.
19
Sobre o papel desempenhado pelas primeiras faculdades de direito no Brasil na consolidação de um
pensamento conservador, autoritário e racista, recomendamos a leitura da antropóloga Lilia Moritz
Schwarcz (1993).
20
Ficava evidente o papel das editoras na estruturação do poder no campo jurídico. As poucas editoras
jurídicas ordenavam a listagem de títulos e temas jurídicos relevantes a serem debatidos nacionalmente,
ditando o processo de consagração de autores, bem como produzindo e difundindo determinadas
“verdades”, que eram consumidas (SHIRAISHI NETO, 2008). Hoje, o acesso fácil e rápido de autores
norte-americanos pela internet tem contribuído em muito com esse processo de expansão hegemônica
do direito americano. A língua também é outro fator que deve ser considerado na análise, já que torna
os autores mais acessíveis ao consumo de estudantes, pesquisadores e operadores.
A advocacia privada21 por meio dos grandes escritórios também mantém a sua
posição no campo jurídico. Contudo, essa atividade tradicional está em transforma-
ção perante a “invasão estrangeira” de escritórios de advocacia no país desde 2008.
As políticas econômicas dos governos Lula e Dilma trouxeram uma leva de grandes
escritórios de advocacia ao país, que se associaram às firmas nacionais. A metáfora
utilizada por Thiago Bronzatto (2010, p. 61), na reportagem publicada pela Revista
Exame, expressa de forma clara os impactos do processo na estruturação da advocacia
privada no Brasil “[...] basta imaginar um elefante entrando sorrateiro numa pequena
loja de porcelana [...]”.22
Não custa lembrar que o prestígio dos grandes escritórios de advocacia no Brasil,
estruturados com base em relações familiares cuja razão social era o sobrenome, eram
mantidos a partir de posições de prestígio assumidas pelo sócio fundador no campo
jurídico. O exercício de atividades acadêmicas (universidades), a participação em orga-
nizações representativas de advogados (OAB, Instituto de Advogados, Associações...)
ou, ainda, a nomeação em cargos públicos (Secretaria de Segurança Pública, Ministério
da Justiça...) se constituíam em estratégias práticas para um melhor posicionamento
no campo e, consequentemente, maior prestígio para a prestação de serviços, que se
diversifica.23 Todavia, o aquecimento do mercado de serviços jurídicos no Brasil impôs
novas estratégias na organização dos escritórios de advocacia,24 como a associação
com firmas estrangeiras, sobretudo dos EUA, que mobilizam receitas de milhões de
dólares, bem como a contratação de especialistas portadores de títulos acadêmicos
para as áreas de atuação. O ingresso de profissionais com pós-graduação para a
composição dos grandes escritórios também se constitui em um fenômeno novo no
contexto da advocacia privada dominada pelas organizações familiares.
Em tempos passados, juízes, promotores, procuradores... buscavam se tor-
nar professores das faculdades de direito, na medida em que esse espaço conferia
21
Delazay e Trubek (2010, p. 44 - grifo nosso) lembram: “[...] a grande empresa de advogados é não só
o emblema como a máquina de todo o campo jurídico norte-americano”.
22
No âmbito do caso JBS e “operação lava jato”, Luís Nassif (2017) descreve a imbricada relação dos
escritórios de advocacia americanos com os escritórios brasileiros a fim de promover os interesses
econômicos estratégicos dos EUA.
23
Para a defesa de seus direitos, envolvendo o acesso ao conhecimento tradicional dos Ashaninkas,
no Acre, a Natura Cosméticos contratou o escritório de advocacia “Dinamarco, Rossi, Beraldo &
Bedaque”, que é um dos grandes escritórios de advocacia de São Paulo, segundo a Top Lawyer
2014/2015. As informações do processo estão no Portal no Tribunal Federal da 1ª região, processo nº
2007.30.00.002117-3.
24
Desde 2011, é possível encontrar uma publicação da Inbook Editora e Portal Migalhas, orientada para
apresentação do mercado de advocacia no Brasil (Top Lawyers 2011/212; 2013/2014; 2015/2016). A
revista luxuosa, em edição bilíngue, revela esses processos, retratando as transformações da advocacia
privada brasileira determinada pela prática do direito norte-americano.
maior legitimidade a sua atuação. O caminho da pós-graduação era tido como mero
“detalhe” na vida universitária, já que o fato de ser membro de uma carreira, bem como
o exercício de uma prática jurídica, se constitui como elemento satisfatório ao ensino
jurídico. O sentimento meritocrático, que envolvia a conquista de uma carreira jurídica
de Estado, tornava o profissional detentor de verdades diante da “rigidez do controle no
recrutamento”, nem sempre submetido aos critérios republicanos, como o da herança
familiar. Assim, o aprendizado e a pesquisa em direito eram e ainda são vistos como
mera transmissão de uma prática jurídica.25
No entanto, as transformações recentes nas carreiras jurídicas (que envolvem a
autonomia política, financeira e funcional...) colocaram “velhas” questões à nova ordem. A
autonomia conquistada pelo MP e Judiciário, por exemplo, fortaleceu o spiritu de corpus,
garantindo a produção de um modelo baseado em relações patrimoniais com o Estado.
O êxito das conquistas do MP e Judiciário “contaminou” outras carreiras de Estado (au-
ditores, delegados, advogados...), que “substituíram a luta sindical pela corporativa”.26
A pretexto da tutela dos direitos individuais, difusos e coletivos (e, mais recente-
mente, “combate à corrupção”), esses profissionais do MP e Judiciário lograram bene-
fícios, que se traduziram em enormes privilégios pessoais.27 A ascensão de membros
do MP28 e Judiciário29 decorrentes do prestígio conquistado rebate na reestruturação
25
A esse respeito, sugerimos a leitura da pesquisa de Nobre (2003).
26
Sobre esse processo, ler a extensa reportagem intitulada “Sangue Azul sem Pudor”, de André Barrocal
(2017), que foi publicado na revista Carta Capital.
27
As vantagens adquiridas, na maioria das vezes obtidas de forma imoral e até ilegal, vêm sendo
sistematicamente denunciadas e questionadas pelo conjunto da sociedade diante do distanciamento
entre o salário percebido por esses profissionais e o salário mínimo do brasileiro. Segundo os dados
levantados na reportagem de André Barrocal (2017, p. 22 - grifo nosso): “Em 2015, os 1,7 mil juízes
federais recebiam em média 38 mil mensais, e não poderia extrapolar 33,7 mil, o salário dos ministros
do STF, teto teórico no setor público. O holerite de dezembro de Sérgio Moro, o juiz federal do momento,
foi de 117,5 mil... Janot tem salário de 33,7 mil por lei. Em dezembro, embolsou 160 mil a mais, a título
de indenizações por anos passados, devidos a cerca de outros 500 procuradores.” Os hipersalários
refletem o custo da nossa Justiça, que é considerada a mais cara do mundo. A respeito dos custos da
Justiça brasileira, conferir as reportagens de José Casado (2016) e Reis Friede (2016), publicadas em
O Globo e Estadão, respectivamente.
28
No caso do MP, a apresentação midiática das investigações e ações, bem como a divulgação de
seus resultados, é uma prática adotada, que objetiva legitimar tais atos, na maioria das vezes
arbitrários. No âmbito da operação “Lava Jato”, além do abuso das práticas - dado o caráter seletivo
das investigações que envolvem a perseguição de determinados indivíduos -, a violação sistemática
de direitos fundamentais inscritos na CF de 1988. Novamente recorremos a uma serie da NETFLIX,
“Billions”, para ilustrar as discussões envolvendo a difusão do “modo americano de produção do direito”.
29
No âmbito do Poder Judiciário, chama atenção, por exemplo, o papel de muitos juízes que incorporaram
o discurso da eficiência dos “mecanismos alternativos de resolução de conflitos”, sem qualquer tipo de
questionamento. No caso, esses juízes estão preocupados com o volume de processos judiciais nos
tribunais, independentemente se os acordos são “justos” ou não.
30
Ilustramos os argumentos a partir de um exemplo trazido por Nobre (2003, p. 148-150) a propósito da
indicação do juiz Robert Bork para a Suprema Corte norte-americana, por Ronald Regan, em 1987.
Bork era um conservador, muito conhecido nos meios acadêmicos por suas posições contrárias aos
direitos civis. O professor de Yale, George Priest, fez a defesa da indicação dele, contudo, colocou-se
contrário à renovação do seu contrato na universidade de Yale, pois, como juiz, Robert Bork teria que
abandonar as suas posições radicais nos trabalhos acadêmicos em prol da lógica jurisprudencial.
31
O geógrafo Porto Gonçalves (2006, p. 299-355) trabalha com a noção de “neoliberalismo ambiental”.
Para ele, diferentes protagonistas, como as agências multilaterais - BIRD, FMI e OMC, exercem um
papel estratégico na formulação e promoção das políticas ambientais globais, sendo que isso tem
levado à destruição da própria natureza.
32
Silva (2002), Benjamin (2005) e Derani (2009), dentre tantos outros juristas, enfatizam que a CF de
1988 abandonou o paradigma liberal em favor de um outro, social, que concilia as necessidades de
preservação, desenvolvimento e justiça social em uma sociedade marcada por sua diversidade social.
33
“Neoextractivismo” é o neologismo utilizado por Eduardo Gugynas (2010), a fim de expressar esse
processo que ocorre na maioria dos países da América do Sul. Para esse autor, há uma tolerância dos
governos em relação aos impactos socioambientais decorrentes da exploração da natureza, na medida
em que as estratégias extrativistas são consideradas necessárias à realização dos “ajustes fiscais” e à
promoção das políticas assistenciais de combate à pobreza nos países.
34
Em tempo, informamos que a Tabela se encontra em processo de construção, pois temos conhecimento
que existem várias outras agências e instituições envolvidas, bem como outras dezenas de projetos de
lei em curso no Congresso Nacional. Trata-se de um primeiro exercício da pesquisa, assim, sublinhamos
a incompletude dos levantamentos até aqui realizados.
Agências de Coope-
N. de Leis ou Proposições
Recurso/bem ração e Instituição Documentos
Ordem legais
Financeiras
01 Água ONU Agenda 21 (1992) Lei nº 9.433/1997
CEPAL “Crises de gobernabili-
dad en gestión del agua
(Desafíos que enfrentan
la implementación de las
recomendaciones conte-
nidas en el capítulo 18 del
Programa 21” (2001)
02 Conhecimento ONU/PNUMA CDB (1992) Lei nº 13.123/2015
Tradicional Protocolo de Nagoya
associado à (2014)
biodiversidade
03 Terra BIRD Em levantamento MP nº 759/2016 35
04 Florestas BIRD “Sustaining Forests. A de- Lei nº 11.284/2006
FAO velopment strategy” (2004)
“The State of the world’s
Forest Genetic Resources”
(2014)
05 Mineração Em pesquisa Em pesquisa PL nº 37/2013
06 Judiciário BIRD Documento n. 391 (1996) EC nº 45
Fonte: Organização do autor a partir do levantamento de documentos, relatórios e pesquisas realizadas. 35
35
Uma das últimas medidas adotadas pelo governo federal.
39
A respeito do conflito em Cochabamba, que envolve a mercantilização e privatização da água em
detrimento dos direitos dos povos indígenas, sugerimos a animação “Abuela Grillo” (Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=AXz4XPuB_BM>. Acesso em: 23 abr. 2017). Consultar também
Petrella (2003).
40
Sobre as discussões envolvendo a água como direito fundamental no Equador, sugerimos Acosta;
Martinez (2010).
41
A MP já era nociva aos povos e comunidades tradicionais no Brasil, pois se ocupava em dispor o
conhecimento tradicional ao mercado através do sujeito e contrato de repartição de benefícios. Aliás,
o uso de velhas categorias do direito civil não deixava dúvidas da real intenção da MP (SHIRAISHI
NETO; DANTAS, 2010).
custado aos governos receitas, que poderiam ser aproveitadas para o desenvolvimento
dos países, com ênfase no combate à pobreza. Ante a gama de bens e serviços ambien-
tais disponíveis (tais como: proteção da biodiversidade e o sequestro de carbono), o BIRD
vem se empenhando na construção de mercados florestais e na elaboração de políticas
de boa governança, condicionando os empréstimos aos ajustes e à implementação de
medidas de proteção. No caso, não se trata de esmiuçar o conteúdo dos documentos
produzidos pelo BIRD e FAO, mas expor a relação intrínseca com a Lei nº 11.284/2006,
que foi imposta à sociedade brasileira, que pouco pode fazer naquele período diante do
discurso da imediatidade da Lei para a proteção das nossas florestas públicas no Brasil.
Ao que parece, as discussões em torno do Novo Código de Mineração (PL nº 37/2013)
estão permeadas pelo mesmo esquema de pensamento ambiental, que se reveste de
uma racionalidade econômica independentemente de outras que possam coexistir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
que sempre foi apresentado positivamente avesso a qualquer forma de violência. Assim,
retomar as reflexões críticas sobre o direito, se afastando de uma práxis dominante, é
a condição necessária para a produção de um direito mais ajustado aos interesses de
toda a sociedade brasileira, reconhecidamente plural e desigual.
REFERÊNCIAS
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1
Advogado. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor do
Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do
Amazonas (PPGDA-UEA); Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade
(NUPEDD-UNDB); Bolsista produtividade 2 do CNPq. E-mail: jshiraishi@uol.com.br.
Recebido em: 15/11/2010.
Revisado em: 07/12/2010.
Aprovado em: 14/02/2011.
“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas
Introdução
5
1R FDVR JRVWDUtDPRV GH FKDPDU DWHQomR SDUD DV UHÀH[}HV HP WRUQR GD DGRomR GR
Código Civil Brasileiro de 1916. Orlando Gomes em “Raízes Históricas e Sociológicas
do Código Civil Brasileiro” nos relata como as ideias foram introduzidas ao Código e
VH DGHTXDUDP j UHDOLGDGH FRP D ¿QDOLGDGH GH DWHQGHU RV LQWHUHVVHV GH GHWHUPLQDGRV
JUXSRVQDTXHOHSHUtRGR*20(6$LQVWLWXLomRGD¿JXUDGR³FKHIH´GHIDPtOLD
é exemplar a esse respeito e representa as relações de poder em torno do senhor da casa
JUDQGHTXHVHHVWHQGHVREUHDHVSRVDHRV¿OKRV
aplicativa, dos autores nos cursos de direito6, sem qualquer tipo de análise
sobre o contexto de aplicação do direito7 tende a permitir interpretações
mais restritivas de direitos conquistados por esses grupos sociais, sobre-
WXGRRGHGL]HURGLUHLWR0DLVSUHFLVDPHQWHRGLUHLWRDIDODTXHYHPVH
instituindo no processo de organização e mobilização política. Os termos
e as noções isolados, que são apanhados das teorias, são “adaptados” aos
discursos jurídicos, funcionando como “verdades” absolutas, que servem
para organizar a vida social dos indivíduos e dos grupos sociais.
As ações exitosas em torno das conquistas de direitos por parte dos
grupos sociais, que até então se encontravam “invisíveis”, também, têm
contribuído para uma apatia em torno das reflexões jurídicas. Afinal, é
bastante extensa a lista de ações e de proposições que se concretizaram
na garantia de direitos e em direitos a esses grupos sociais8. No contexto
6
)LFDPRVLQTXLHWRVTXDQGRXPSURIHVVRUGHXPFXUVRGHJUDGXDomRGHGLUHLWRD¿UPRX
que somente estudava com os seus alunos os elementos jurídicos, técnicos, da obra
de Dworkin, como se fosse possível descontextualizar o contexto em que a obra foi
formulada. O “esquecimento” de que direito em Dworkin está profundamente ligado ao
FRQWH[WRQRUWHDPHULFDQRWRUQDVHXPSUREOHPDSDUDDVQRVVDVUHÀH[}HVQDPHGLGDHP
que esse direito se encontra distante da nossa realidade social. O ensino da mera técnica
jurídica, como se essa fosse destituída de conteúdo, afasta qualquer possibilidade de
UHÀH[mRHUHIRUoDRVHVTXHPDVGHSURGXomRHUHSURGXomRGRGLUHLWR(P³$SRQWDPHQWRV
sobre a Pesquisa em Direito no Brasil”, Nobre relata as diferentes políticas adotadas
pela Alemanha e França em relação ao crescente domínio do direito americano e dos
escritórios de advocacia americanos na Europa (NOBRE, 2004).
7
Bourdieu e Wacquant chamam a atenção para o uso de teorias e noções, sem a devida
preocupação com as condições históricas de sua produção e difusão. Para esses autores,
a neutralização e o correspondente esquecimento de suas condições históricas produz
uma aparente universalização ampliada pelo trabalho de teorização (BOURDIEU;
WACQUANT, 2005). A propósito dessa preocupação em incorporar esses esquemas
de pensamento jurídico dominante, vale a pena ver as críticas dos autores em relação
ao dogmatismo de Rawls sobre a prioridade das liberdades básicas. Para eles, trata-se
de atribuir à sociedade, um ideal latente, que não passa de seu próprio ideal “o de um
acadêmico estadudinense ligado a uma visão estadudinense de democracia” (BOURDIEU;
:$&48$17S(VVHSRVLFLRQDPHQWR¿FDHYLGHQWHQROLYUR³2'LUHLWRGRV
Povos”. Quando Rawls projeta uma sociedade mundial dos povos a partir dos ideais
liberais – democráticos da sociedade americana (RAWLS, 2001).
8
No ponto de vista da “juridicização das práticas sociais”, podemos enumerar uma série
de dispositivos que já se encontram em vigor, dentre os quais: as leis do babaçu livre
QRVHVWDGRVGR0DUDQKmR7RFDQWLQVH3DUiDOHLGROLFXULQRHVWDGRGD%DKLDDOHLGH
12
/RQJHGHTXDOTXHUQHXWUDOLGDGHFLHQWt¿FDRVPDQXDLVGHGLUHLWRYrPVLVWHPDWLFDPHQWH
produzindo e difundindo uma compreensão do direito e do mundo social. Sobre a
construção da noção de propriedade privada nos manuais de direito, ver Shiraishi Neto
(2008).
13
A expansão cultural do direito europeu e, mais recentemente, do direito americano
no Brasil, sempre se deu pela capacidade de “universalizar os particularismos” por meio
GH SHUJXQWDV SUHWHQVDPHQWH ¿ORVy¿FDV TXH HUDP GHEDWLGDV FRPR XQLYHUVDLV 2 GHEDWH
¿ORVy¿FRHQWUH³OLEHUDLV´H³FRPXQLWiULRV´pXWLOL]DGRFRPRLOXVWUDWLYRGHVVHSURFHVVR
(BOURDIEU; WACQUANT, 2005).
17
(VSHFLDOPHQWH QR FDVR GR 0DUDQKmR p SRVVtYHO LGHQWL¿FDU RV SRYRV LQGtJHQDV RV
quilombolas, as chamadas quebradeiras de coco babaçu, os pescadores artesanais e os
FLJDQRV³&DORQV´TXHHVWmRHPSURFHVVRGHVHGHQWDUL]DomRHP3LUDSHPDV0DUDQKmR
O reconhecimento desses grupos sociais pelo direito vem provocando uma série de
transformações no cotidiano. No caso dos ciganos, é interessante observar que eles saíram
das páginas policiais para as partes mais centrais dos jornais (JORNAL PEQUENO, 2010,
p. 4).
18
Recordamos as críticas sofridas por Canotilho no momento em que fez menção a
³PRUWHGD&RQVWLWXLomR'LULJHQWH´(OHSUySULRVHGHIHQGLDD¿UPDQGRTXHHPXPSHUtRGR
de “cidadanias múltiplas” e de “múltiplos de cidadania” seria prejudicial o fecho da
Constituição (CANOTILHO, 2001). Consultar, também, Coutinho (2003).
19
Em “Comunidade e Sociedade”, Tonnies objetiva precisar inicialmente a distinção dos
conceitos de comunidade e sociedade, pois para esse autor, o uso desses conceitos vem
RFRUUHQGRVHPQHQKXPDGLVWLQomRULJRURVD³>@PLHQWUDVTXHODWHUPLQRORJLDFLHQWt¿FD
anterior solía mezclarlos a capricho sin dinstinguirlos” (TONNIES, 1947, p. 19). A
comunidade é polissêmica, compreendendo diversos sentidos, é utilizada para expressar
o lugar dos indivíduos mais fracos, que não são capazes de individualmente sobreviver na
VRFLHGDGH%$80$1
munidade “aceita” os direitos dos outros e seus deveres, ainda que esses
não tenham sido identificados ou declarados (DWORKIN, 2007).
O assento da noção ou mesmo do sentimento de comunidade está
relacionado ou tem sido denominado de “nova” “sensibilidade jurídica”.
Neste contexto, a ideia de fraternidade também ganha força, aparecendo
nos textos jurídicos recentes, sobretudo no sentido de garantir os sentidos
que se quer atribuir ao direito na nossa sociedade. Além de Dworkin, os
intérpretes vêm se empenhando em recuperar a ideia da fraternidade, que
é tida como um “princípio esquecido” (BAGGIO, 2008).
Baggio (2008) lembra que a “liberdade” e a “igualdade” que repre-
sentam os ideais da revolução francesa se espraiaram pelo mundo, se uni-
versalizaram, incorporando-se as ordens jurídicas como princípios consti-
tucionais. No entanto, esses dois ideais permaneceram mais antagônicos
do que aliados entre si, justamente pelo fato de que ficaram desprovidos
da ideia de fraternidade (BAGGIO, 2008). A fraternidade enquanto “laço
universal”, compreendido, tem um significado muito forte, por isso mesmo
é recuperada pelo direito, enquanto critério para a tomada das decisões.
No entanto, esse processo que germina, merece algumas reflexões,
que podem ser observadas a partir da Ação Popular, que impugna o ato de
demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Ao se afas-
tar do processo as noções de território e de povo, por exemplo, afastou-
se deliberadamente o conflito. O discurso jurídico vem se empenhando
em construir um sistema jurídico mais harmônico, consensual (daí a re-
tomada das ideias de comunidade e de fraternidade, que se alastram nos
discursos jurídicos, sem nenhuma reflexão), afastando das partes o con-
flito20. Observa-se que o direito vem sendo reinventado, mesmo que para
isso tenha que reinventar a própria sociedade à luz de seus ideais, a pre-
texto de atender as demandas.
20
1HVVH FRQWH[WR R FRQÀLWR p LQWHUSUHWDGR FRPR XP HOHPHQWR SUHMXGLFLDO DR SUySULR
GLUHLWRSRLVVHJXQGRHVVHHQWHQGLPHQWRRFRQÀLWRWRUQDDVSDUWHVLQLPLJDV³>@HQTXDQWR
o processo judicial é uma espécie de guerra que afasta as partes, a arbitragem tenta manter
as relações entre elas de modo que possam continuar a atuar em conjunto nos contratos de
ORQJRSUD]RTXHUFRPRIRUQHFHGRUHVTXHUFRPRFOLHQWHV´0$57,16:$/'S
A-3).
Conclusões
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1. Introdução
Em 2013, conversei com dezenas de estudantes de direito em universidades do
2
Nordeste do país. Um desses estudantes, Chico , me disse que a Assessoria Jurídica
Popular havia provocado um estalo em sua cabeça. Ele, que antes era um leitor assíduo
da Revista Veja e um fiel telespectador do Jornal Nacional da Rede Globo, passou a se
posicionar ao lado das lutas sociais devido àquele estalo, depois que começou a integrar
o Projeto Cajuína, na UFPI. O Cajuína faz parte de uma orientação ideológica no direito
(a Assessoria Jurídica Popular, ou AJP) que busca apoiar os trabalhadores e os demais
sujeitos subalternizados em seus enfrentamentos na sociedade de classes, provocando
sucessivos estalos nos sujeitos ligados ao campo jurídico. Nesse estalo, que é um
processo de despertar ideológico, os estudantes vão mudando a sua forma de
compreender o mundo ao tempo em que vão tomando partido nos antagonismos sociais
por meio da práxis da assessoria jurídica popular.
A expressão “assessoria jurídica popular” relaciona-se a certas práticas do campo
jurídico que se colocam ao lado dos sujeitos subalternizados nos enfrentamentos da
1
Ana Lia Almeida é professora da Universidade Federal da Paraíba, onde coordena o Núcleo de Extensão
Popular (NEP) Flor de Mandacaru, ligado à Rede de Assessoria Jurídica Universitária (RENAJU), e o
Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais (GPLutas), ligado ao Instituto de Pesquisa Direito e
Movimentos Sociais (IPDMS).
2
Chico é um dos nomes fictícios atribuídos aos estudantes entrevistados para a tese em questão, alguns
dos quais serão citados, em itálico, e com as devidas referências, nas próximas páginas.
sociedade de classes. Os sujeitos destas práticas são, principalmente, advogadas e
advogados populares (conformando o campo da “advocacia popular”) e grupos ligados
às universidades (conformando o campo da assessoria jurídica universitária popular)
(ALMEIDA: 2014, p.52).
As tais conversas com os estudantes a que me referi consistiam em entrevistas
com oito grupos de assessoria jurídica universitária popular do Nordeste (o Projeto
Cajuína - UFPI, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Negro Cosme - UFMA, o
Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária e o Centro de Assessoria Jurídica
Universitária - UFCE, o Programa Motyrum - UFRN, o Núcleo de Extensão Popular
Flor de Mandacaru - UFPB, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Direito nas Ruas -
UFPE e o Serviço de Apoio Jurídico Universitário - UFBA), e foram o principal corpus
de pesquisa sobre o qual me debrucei na tese de doutorado “Um estalo nas Faculdades
de Direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular”. Ali,
buscava compreender as possibilidades, as contradições e as limitações desse segmento
na tarefa de se contrapor à perspectiva ideológica dominante no direito, absolutamente
comprometida com a manutenção da ordem posta. Neste artigo, apresento parte das
análises desenvolvidas na tese, que dizem respeito à conformação e à caracterização
deste campo ideológico no direito. Em algumas passagens, aqui amplio considerações
para o âmbito mais geral da Assessoria Jurídica Popular, da qual a Assessoria Jurídica
Universitária Popular é espécie. Tal ampliação, contudo, em nada compromete o rigor
das análises. Elas caminharão na seguinte ordem: primeiro, um resgate do momento
histórico em que se conformou o campo da AJP; segundo, uma caracterização do
significado do verbo “assessorar” para este segmento; terceiro, uma análise daquilo que
o adjetiva como “popular”, e; por fim, considerações a respeito do significado da
dimensão jurídica para a AJP.
3
Um resgate dessa história pode ser encontrado no documentário dirigido por Silvio Tendler (2014), “Os
advogados contra a ditadura: por uma questão de justiça”, patrocinado pela Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça (disponível em:
http://www.justica.gov.br/videos/filme-os-advogados-contra-a-ditadura-por-uma-questao-de-justica.
Acesso em outubro de 2014). O filme é baseado no livro “Os advogados e a Ditadura de 1964: A defesa
dos perseguidos políticos no Brasil”, organizado por Fernando Sá, Paulo Emílio Martins e Oswaldo
Munteal, da editora Vozes, Petrópolis, 2010.
4
Este problema da violência (e da conivência com ela por parte dos órgãos de justiça) contra os
camponeses e seus apoiadores – entre eles advogados - é, na verdade, enfrentado até hoje, como aponta
os relatórios anuais sobre os conflitos no campo que a Comissão Pastoral da Terra vem realizando há 29
anos (a edição de 2013, bem como as anteriores, estão disponíveis em www.cptnacional.org). Quanto à
atualidade desta violência contra advogados e outros apoiadores das lutas sociais, conferir material
produzido pela Terra de Direitos e pela Justiça Global (2005) intitulado Na linha de frente: Defensores
de Direitos Humanos no Brasil – 2002-2005.
estava inclusa uma ampliação do “acesso à justiça”. Como uma resposta a estas lutas
por “acesso à justiça”, em 1950 foi promulgada no Brasil a Lei da Assistência Judiciária
Gratuita (nº1060), garantindo aos “necessitados” (Art. 1°) a assistência necessária para
ajuizar ações no Poder Judiciário. Essas movimentações por “acesso à justiça” ecoaram
em meio à agitação política dos estudantes às vésperas do golpe militar, influenciando
na criação dos SAJU.
O contexto estudantil, dessa forma, estava fortemente implicado em certas
movimentações do “mundo da cultura” que conformavam uma intelectualidade ligada
ao povo na passagem dos anos 1950 aos 1960, segundo as análises de José Paulo Netto
(1990). Esta inclinação, aliada à crise no sistema educacional (ocasionada por conta do
acréscimo na demanda por educação institucional, decorrente do processo de
industrialização pesada), convertia os estudantes em catalisadores do bloco contrário ao
regime. Por isso, a questão educacional tornou-se prioritária para a ditadura, tanto no
sentido de reprimir as forças de contestação como para redirecionar o sistema de ensino.
Num primeiro momento, até 1968, a política educacional se concentrou em erradicar as
experiências democratizantes. A partir dali, tendo o Ato Institucional nº5 como marco,
há uma reorientação para a construção de um modelamento segundo o projeto
modernizador, que consistia basicamente em dotar a educação da funcionalidade
necessária ao modelo econômico, reproduzindo os mecanismos excludentes e ajustando
o financiamento da educação para privilegiar o grande capital. A educação passa a se
configurar como um novo filão de negócios, dotada, portanto, de lógica empresarial –
um espaço de todo neutralizado como lugar de crítica (NETTO: 1990, p.67).
Estas forças de contestação no campo jurídico, entre os advogados e os estudantes
de direito, já estavam presentes, portanto, desde o período que antecedeu ao golpe de
1964, e passaram imediatamente a atuar contra o regime ditatorial que a partir de então
se instalou. Mas é com o enfraquecimento e o fim da ditadura que estes sujeitos passam
a se articular de forma mais organizada. Neste momento histórico, no Brasil e na
América Latina havia uma retomada da democracia com o fim de regimes ditatoriais.
Era também um momento de profunda crise econômica, que, apesar de haver se
instalado no mundo desde o fim dos anos 60, passara a ser mais intensamente percebida
no Brasil a partir dos anos 80. A resposta do capital a esta crise, o neoliberalismo,
provocou um forte abalo nesse processo de rearticulação das forças de esquerda. Na
década de 90, enquanto o neoliberalismo se consolidava no Brasil, a assessoria jurídica
popular retomava a sua organização, um processo de todo implicado no contexto
redemocratizante daquele período. Isso faz da AJP uma força de contestação dentro do
direito, mas que se rearticulou num momento histórico de inflexão das esquerdas.
A articulação desses sujeitos progressistas do campo jurídico estava inserida num
contexto mais amplo de retomada da mobilização social que incidiu nos processos de
transição democrática na América Latina. Os países latino-americanos, com o fim dos
regimes ditatoriais, vivenciavam uma conjuntura de maior liberdade para a agitação
social e a mobilização política. No Brasil dessa época, a partir de meados da década de
70, quando a ditadura dava sinais de esgotamento, “o movimento popular,
principalmente através das organizações de bairro, e o sindical, através das oposições
sindicais, começaram a reaparecer” (MOMESSO: 1997, p.51).
Surgiram, nesse contexto, várias organizações importantes ligadas à classe
trabalhadora, como o Partido dos Trabalhadores (em 1980) e a Central Única dos
Trabalhadores (em 1983). Além destes sujeitos coletivos que se organizavam num
modelo “tradicional”, concebidos enquanto entidades de classe, partidos e sindicatos, a
retomada democrática também possibilitava o surgimento de novas formas de
participação político-social. Desse modo entra em cena, por exemplo, o Movimento dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (em 1984), que, mais próximos dos
5
arranjos das predecessoras Ligas Camponesas , apresentavam uma forma de
organização diferenciada em relação aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Da mesma
forma, surgem diversas organizações feministas e de mulheres, ligadas à luta contra o
racismo e à opressão sexual etc.
A interação entre essas forças mais tradicionalmente ligadas à classe trabalhadora
e os sujeitos políticos “novos”, menos próximos da referência organizativa da classe, foi
responsável por um período extremamente rico do ponto de vista político no Brasil,
cheio de possibilidades históricas para o real aprofundamento da nossa democracia. O
sindicalismo, interagindo com diversas outras forças sociais, vivenciou nesta época um
período de avanços, marcado por “grandes mobilizações que acompanharam o final da
5
Segundo Momesso (1997, p.61), as Ligas Camponesas apresentavam uma postura mais radicalizada –
como demonstra o lema “Reforma Agrária na lei ou na marra” - e por isso mais temida e também
reprimida pelos proprietários rurais. Buscavam conquistas para os camponeses independentemente de
haver previsão legal e, “diferentemente do sindicalismo, não priorizavam a categoria como um todo”.
ditadura, a anistia e a luta pela constituinte garantindo algumas conquistas legais”, como
ensina Luiz Momesso (1997, p. 16). Na análise de José Paulo Netto (2004), a interação
desses “novo sujeitos” com o movimento sindical classista e com partidos políticos de
esquerda gerou uma potencialização das forças de ambos, e daí resultaram os ganhos
sociais que foram plasmados na Constituição.
Na exata medida em que se conjugaram – e a década de oitenta no Brasil é
absolutamente emblemática da potencialidade dessa conjugação – esse
associativismo de base e os instrumentos capazes de totalizar e universalizar
os interesses que ele expressava, colocou-se a possibilidade da constituição
de um marco democrático capaz de incidir com efetividade em processos de
transformação econômico-social (NETTO, 2004, p.76-77).
O período da Constituinte, em meados dos anos 1980, foi, de fato, uma síntese
importante deste momento histórico no país. Ao discutir os direitos que deveriam estar
contidos na Constituição Federal, as forças políticas atuantes naquele processo debatiam
o projeto que queriam para o país com a derrubada da ditadura. A reorganização das
forças sociais trouxe para o processo da constituinte uma série de reivindicações que
esses setores esperavam ver consolidadas em direitos, ao mesmo tempo em que
propiciou fecundos rearranjos na forma de participação social e política na sociedade. O
processo da Assembleia Constituinte, em que interagiam e incidiam essas forças
“tradicionais” e outras “novas” do campo de contestação da ordem, resultou num
período de grande importância para a conformação da assessoria jurídica popular (LUZ.
2006; MAIA, 2007; SOUZA JÚNIOR, 2008; RIBAS, 2009).
Nesse contexto é que surgem as primeiras experiências associativas de advogados
populares, a exemplo da Sociedade Paraense de Direitos Humanos (SDDH), fundada
ainda na década de 1970 em Belém do Pará; do Gabinete de Assessoria Jurídica às
Organizações Populares (GAJOP) fundado em Recife em 1981; da Associação de
Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR) criada em Salvador em 1982 e
do Instituto de Apoio Jurídico Popular (IAJUP ou AJUP) no Rio de Janeiro em 1985.
Elas estavam fortemente associadas às principais referências organizativas dos
trabalhadores que atuavam no campo, como a Comissão Pastoral da Terra e os
sindicatos de trabalhadores rurais. A partir dessa atuação que já se acumulava desde os
primeiros enfrentamentos à ditadura militar, surgem grupos de advogados articulados
com diversos sujeitos que se organizavam nesse momento da retomada democrática no
país, sobretudo com o surgimento de um movimento sindical atuante (construindo as
centrais sindicais), mas também movimentos religiosos (como as pastorais), de
educação popular, ligados a entidades não governamentais e mesmo certas instituições
públicas, de modo que o “período da dita ‘redemocratização’ do país, sobretudo a partir
de 1985, foi fecundo para a organização popular, inclusive dos grupos de apoio
jurídico” (RIBAS, 2009, p.40).
Nos anos 1990, parte destas experiências confluiria para a criação da Rede
Nacional de Advogados Populares. Mas, mesmo antes, ainda nos anos 1980, os
advogados e advogadas passaram a se articular de forma mais organizada em
decorrência desta conjuntura de mobilização de diversas forças de contestação presentes
6
na transição democrática . É o que revela Ana Cláudia Tavares, em dissertação sobre a
advocacia popular no estado do Rio de Janeiro:
A RENAP não é a primeira articulação de advogados voltados para a defesa
de movimentos populares. A ANAP (Associação Nacional de Advogados
Populares), criada na década de 1980, reuniu um grupo de advogados que, na
época, trabalhava para a CPT, e o AJUP (Instituto Apoio Jurídico Popular),
no Rio de Janeiro, que possuía um trabalho voltado para educação popular,
são exemplos de grupos que se identificam como advogados ou assessores
populares. Já mencionamos a ANATAG (Associação Nacional de Advogados
de Trabalhadores da Agricultura), que embora não se auto-identifique
explicitamente em torno da ideia de “advocacia popular”, era composta por
advogados que prestavam assessoria aos trabalhadores e organizações
sindicalistas rurais da época, como a CONTAG (Confederação Nacional de
Trabalhadores da Agricultura) (TAVARES, 2007, p. 71).
6
Antônio Carlos Wolkmer (2001b, p. 303), mapeando estas iniciativas dos anos 1980 e 1990, destaca as
seguintes entidades: AJUP (Instituto de Apoio Jurídico Popular – Rio de Janeiro); GAJOP (Gabinete de
Assessoria às Organizações Populares – Olinda, Pernambuco);PAJ (Projeto de Assessoria Jurídica da
Pró-reitoria Comunitária da Universidade Católica de Salvador); Comissão de Justiça e Paz da
Arquidiocese de Salvador (Bahia); Acesso à Cidadania e Direitos Humanos(Porto Alegre/RS); o Serviço
de Assessoria Jurídica Universitária da Faculdade de Direito da UFRGS (SAJU – Porto Alegre/RS); o
Serviço de Apoio Jurídico Popular (SAJU – Universidade Federal da Bahia) todos no Brasil e, na
América Latina, o Instituto de Servicios Legales Alternativos (ILSA – Colômbia).
7
Informações disponíveis na página virtual da entidade: <http://www.fasubra.org.br>. Acesso em
outubro de 2014.
que já existia desde 1937, embora tenha sido forçada à ilegalidade pela ditadura a partir
de 1964, conseguia finalmente realizar um encontro nacional relativamente às claras em
8
1979 . Por sua vez, os professores criavam o seu sindicato nacional em 1981, a
9
Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior (ANDES) .
Quanto aos estudantes de direito, estavam antenados com a necessidade de
formação de um novo perfil de profissionais para dar conta das demandas sociais que
surgiam após a ditadura. A perspectiva da assistência jurídica tradicional, de orientação
liberal, por seu caráter patrimonialista e individualista, não era adequada àquelas novas
demandas, de cunho coletivo, que haviam sido positivadas em direitos na
redemocratização (OLIVEIRA: 2003, p.44 a 45). Alguns estudantes passaram a se
integrar em torno da assessoria jurídica popular, e, aproveitando os novos ares para o
movimento estudantil na retomada democrática, conformaram diversos coletivos nos
anos 1990, articulados pela Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária a partir
dos últimos anos desta década.
Assim, na década de 1990 jovens estudantes de direito, de forma esparsa em
todo o Brasil, com o espírito efervescente da “redemocratização”, iniciaram
práticas que privilegiavam o atendimento de grupos de pessoas que
normalmente não têm acesso a um serviço jurídico. Eles iam em busca de
demandas coletivas, de movimentos populares, de problemas sociais que não
estavam nos tradicionais livros de direito; queriam saber da reforma agrária,
da “democratização”, da garantia de direitos humanos, ou, até, do socialismo
brasileiro (RIBAS: 2009, p.51).
8
Para um breve resgate da história da UNE, ver <http://www.une.org.br>. Acesso em outubro de 2014.
9
Informações disponíveis na página virtual da entidade: < http://www.andes.org.br>. Acesso em outubro
de 2014.
década de 1970 havia sido um período de expansão e crescimento econômico,
caracterizado como uma modernização conservadora (com aumento da concentração de
renda e precarização das condições de vida dos trabalhadores). Na verdade, apesar desse
crescimento, o “milagre brasileiro”, que vai até 73/74, correspondeu ao período de
maior repressão da ditadura, além de grande arrocho salarial (MOMESSO; 1997, p.51).
Já na década de 80, havia um baixo crescimento do PIB, com a compressão de salários e
aumento ainda maior da concentração das riquezas (MOTA: 2000, p.62-63).
A ofensiva das forças de esquerda nesse período consistia numa resposta da classe
trabalhadora e dos grupos sociais subalternizados à crise que se desenhava no Brasil e
no mundo. Portanto, era apesar e por causa da grave crise econômica que emergia a
efervescência política como movimentação ligada às forças progressistas que incidiram
na redemocratização. Estas forças conseguiram obter os ganhos políticos e sociais que
foram plasmados na Constituição de 1988, num verdadeiro processo democratizante. No
entanto, a profunda transformação na estrutura do Estado brasileiro que elas poderiam
ter impulsionado foi frustrada por uma contra reforma cujo marco inicial pode ser
localizado na eleição de Fernando Collor de Melo (em 1989), e sobretudo a partir de
1995, com o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando se coloca com mais força
o projeto neoliberal no Brasil. Se a efervescência política dos anos 80 era uma resposta
subalterna à crise que se instalava no Brasil e no mundo, o neoliberalismo foi a resposta
do capital a esta mesma crise, dando início a um processo de reestruturação produtiva
que trouxe profundas consequências para a classe trabalhadora e para as forças de
contestação da ordem em geral.
Acompanhando o movimento mais amplo de reorientação das forças de esquerda
em meio a esse processo histórico, os sujeitos progressistas do campo jurídico se
articularam em torno de duas organizações, consolidando a perspectiva da assessoria
jurídica popular: a Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP) em 1995 e a
Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária (RENAJU) em 1998. A RENAP
surge no intuito de articular e fortalecer as experiências em torno da advocacia popular
que se acumulavam desde o início dos anos 1980, atendendo a uma demanda pela
defesa judicial de trabalhadores, sobretudo da área rural. A RENAJU, por sua vez, surge
para articular os estudantes de direito no apoio a comunidades e organizações populares.
A assessoria jurídica popular consiste, desse modo, numa orientação ideológica
porque atua como uma consciência prática da realidade, orientando o posicionamento de
certos sujeitos do campo jurídico nos embates travados dentro do direito ao lado da
classe trabalhadora e dos grupos sociais subalternizados. Ao falar em ideologia, não me
refiro a uma falsa consciência da realidade (sentido usual conferido ao termo), mas a
processos de consciência absolutamente voltados à práxis, ou seja, orientados para a
ação. Não se trata de algo encerrado ao plano da consciência, portanto. Consiste em
ideologia, ademais, tanto os processos de consciência voltados à conservação da ordem
posta como aqueles implicados na transformação da mesma. Este sentido de ideologia
10
se depreende da própria obra marxiana , como também da do último Lukács (2013), n´a
Ontologia do Ser Social, e, especialmente, da obra de Mészáros (2004), donde se toma a
noção exata de ideologia como uma consciência prática e inevitável da sociedade de
classes. Passo agora a explicar em que consiste a perspectiva da assessoria jurídica,
como também os processos que adjetivam essa prática como popular.
1. O verbo assessorar
Os pressupostos da perspectiva da assessoria encontravam-se numa forte crítica
ao tradicionalismo do campo jurídico, compreendido como “formalista”,
“burocratizado”, “individualista”, “comprometido com as elites” etc.
Do ponto de vista teórico, havia no direito uma retomada do pensamento “crítico”
na passagem dos anos 80 para os 90 que acompanhava os ares da abertura democrática e
também o movimento de inflexão da perspectiva comunista/socialista. Circulavam, à
época, como ainda hoje, formulações como as do pluralismo jurídico, do direito
alternativo, do Direito Achado na Rua e do Direito Insurgente, sob forte influência de
advogados e teóricos como Jacques Távora Alfonsin, Miguel Pressburguer, Miguel
Baldez, Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, Luís Alberto Warat, Antônio Carlos
Wolkmer, José Geraldo de Souza Júnior, entre outros.
Desse modo, a perspectiva da assessoria apoiava-se num campo até hoje
identificado como teorias críticas do direito, tomado como referência para justificar
10
A propósito, remeto à leitura de “Ideologia e formação humana em Marx, Lukács e Mészáros”.
(PINHO: 2013); e “Um estalo nas Faculdades de Direito: perspectivas ideológicas da Assessoria Jurídica
Universitária Popular” (ALMEIDA:2015).
práticas jurídicas alternativas, isto é, que se contrapunham à forma tradicional de
conceber e manejar o direito. Nesta movimentação estava inserida a crítica à perspectiva
11
assistencialista dos serviços legais tradicionais , que engendraria a noção de
assessoria contraposta à de assistência. Se os serviços de assistência, inclusive os
criados pelos primeiros grupos estudantis como os SAJU (no Rio Grande do Sul e na
Bahia), reproduziam a lógica tradicional do direito, individualista e patrimonialista;
cabia às práticas alternativas investir em abordagens que buscassem compreender as
raízes dos conflitos sociais, intervir na sua dimensão coletiva e perceber que o direito,
isoladamente, não poderia dar conta de solucioná-los.
A perspectiva da assistência jurídica, simbolizada pelo atendimento
técnico-jurídico a casos individuais, passa a ser avaliada como insuficiente e inadequada
para intervir nas reais causas dos conflitos sociais, pois reforçava o universo simbólico
dominante no direito (com sua linguagem difícil, seus tribunais opulentos etc.). Havia,
ademais, uma forte influência de perspectivas que, no contexto da redemocratização do
país, contribuíam para os processos de mobilização da classe trabalhadora e dos demais
sujeitos subalternizados, a exemplo das reflexões de Paulo Freire.
Fortalecia-se, desse modo, a concepção de que os processos educativos deveriam
estar implicados no questionamento da ordem posta, a partir do desenvolvimento crítico
da autonomia dos sujeitos. Essas premissas contribuíam para a avaliação de que, na
perspectiva da assistência, os sujeitos assistidos eram postos numa posição demasiado
passiva, que não levava em conta a sua autonomia e o potencial de mobilização para
intervir na realidade e modificá-la. Conjugar o verbo assessorar passa, então, a
significar “estar ao lado de”, “em comunhão com”; apoiar os interesses dos oprimidos,
do povo, das classes populares – aqui compreendidos como classe trabalhadora e
demais sujeitos subalternizados na sociedade de classes.
Fazer assessoria passa a significar ir além do acompanhamento judicial da
questão, além do mero litígio; ir além do direito, firmando um compromisso com a luta
dos sujeitos assessorados. Como reflito noutro trabalho:
11
A formulação teórica que contrapõe os “serviços legais tradicionais” aos “serviços legais inovadores” é
de Celso Campilongo (1991), e sistematiza uma crítica à orientação dominante do campo jurídico. Os
“serviços legais inovadores” são também identificados por outras denominações que remetem ao campo
do “alternativo”, “crítico”, “popular” etc, como indica a expressão mais abrangente “práticas jurídicas
insurgentes”, utilizada por Luiz Otávio Ribas (2009).
as atividades desenvolvidas por esses grupos se distanciam em grande medida
das atividades tradicionais dos juristas, em especial pela opção de trabalhar
com setores populares. É um trabalho eminentemente político, que
compreende o direito mas não se esgota nele. Participam de protestos por
direitos sociais, acompanham ações processuais coletivas, fazem trabalho de
base em comunidades e atividades que contribuem para o fortalecimento das
organizações populares em geral (ALMEIDA: 2013, p.14).
12
A respeito das diferentes compreensões acerca do termo “popular”, conferir a pesquisa de José
Francisco de Melo Neto (2006) junto “a militantes de movimentos sociais populares e/ou partidários de
uma alternativa democrático-popular” (MELO NETO, 2006, p.23).
já vinha ocorrendo de modo espontâneo desde a ditadura militar. De acordo com Ana
Cláudia Tavares (2007, p. 69), “essa articulação de advogados possui íntima relação
com o processo de organização política dos movimentos ou grupos populares”. Em
entrevista concedida para a sua dissertação de mestrado, um dos fundadores da RENAP
comenta que, no período de criação da rede, muitos advogados estavam saindo do PT e
dos sindicatos em que trabalhavam para abrir escritórios próprios, de modo que havia
certa desilusão dos advogados com os partidos e o sindicalismo rural e urbano. A
RENAP nasceu, segundo ele, como uma demanda dos “movimentos sociais”, sobretudo
do MST, por advogados que defendessem os trabalhadores rurais numa época de forte
criminalização da luta pela terra. Dez anos depois de sua criação, a RENAP continuava
avocando para si a tarefa de resgatar uma perspectiva de advocacia “voltada aos
interesses das classes populares” (RENAP, 2005), defendendo até hoje:
Organizações informais e formais, movimentos populares como o MST
(Movimento de Sem Terra), MMTR (Movimento das Mulheres
Trabalhadoras Rurais), MPA (Movimento de Pequenos Agricultores), MAB
(Movimento de Atingidos por Barragens), MNLM (Movimento Nacional de
Luta por Moradia), CPT (Comissão Pastoral da Terra), CEBs (Comunidades
Eclesiais de Base), MTD (Movimento de Trabalhadores Desempregados),
Movimentos e Comissões de Direitos Humanos, Sindicatos rurais e urbanos,
pastorais, grupos de pessoas dedicadas á defesa de direitos humanos violados
pela tortura, pelo racismo, pelas prisões ilegais, à defesa de crianças e
adolescentes, de homossexuais, do direito à livre expressão através das rádios
comunitárias, entre outros, têm procurado apoio nos serviços da RENAP
(ALFONSIN, 2005, p.84).
13
De Sérgio Lessa: Trabalho e ser social (1997); Mundo dos Homens (2002); Trabalho e proletariado no
capitalismo contemporâneo (2007). De Ivo Tonet e Sérgio Lessa: Proletariado e Sujeito Revolucionário
(2012) e Cadê o proletariado? (2014).
14
É discutível que a noção de trabalho de Lukács seja a mesma de Marx, como observa Maria Teresa
Buomano Pinho (2013, p.179). Para Marx, assim como para Mészáros, o trabalho está relacionado à
produção material da vida social; enquanto para Lukács, a noção de trabalho restringe-se à
transformação da natureza externa ao homem.
reexame de alguns “conceitos restritivos” (MÉSZÁROS, 2004, p.51). Quanto à noção
de sujeito da emancipação, ele
só estará apto para criar as condições de sucesso se abranger a totalidade dos
grupos sociológicos capazes de se aglutinar em uma força transformadora
efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O
denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode
ser o “trabalho industrial”, tenha ele colarinho branco ou azul, mas o trabalho
como antagonista estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2004, p.51, grifos do
autor).
O conflito entre capital e trabalho perpassa todas as lutas que mobilizam as forças
de contestação numa sociedade de classes, embora estas lutas não se reduzam ao
conflito em questão. Procurar pelo “sujeito central” da revolução em algum lugar
distante dessas lutas específicas acaba por fortalecer a fragmentação que se processou
nas esquerdas e o consequente triunfo da perspectiva das identidades como mediadora
dos processos político-organizativos, como se o enfrentamento ao capital não dissesse
respeito a essas movimentações. Assim, cabe ao movimento estudantil a luta por
educação; aos sem-terra, a luta pela terra; aos sem-teto, a luta por moradia; ao
movimento negro, a luta contra o racismo; ao movimento de mulheres, a luta contra o
machismo; ao movimento LGBT a luta contra a homofobia etc. E a ninguém mais
caberia lutar contra o capital, porque as esquerdas procuram o operariado – o “sujeito
da revolução” - e o encontram reduzido, desorganizado, fragmentado ou comportado
demais dentro dos sindicatos e dos partidos da idealizada classe trabalhadora.
Ao lado da classe trabalhadora, compreendida nesses termos ampliados, e dos
sujeitos subalternizados na sociedade de classes que não cabem nessa ampliação, é que
os grupos de assessoria jurídica popular se colocam – sobretudo apoiando aqueles que
concebem, e que se concebem a si mesmos, como movimentos sociais populares.
15
Um estudo introdutório sobre essas tendências das teorias críticas do direito pode ser encontrado em
Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, de Antônio Carlos Wolkmer (2006), muito embora numa
perspectiva analítica bastante distante da apresentada aqui.
16
Ver, a propósito, o próprio trabalho de Andrea Marreiro (2015), Uma fotografia da obra de Roberto
Aguiar: possibilidades para pensar o direito sob outras lentes; o de Marcos Araújo de Lima Filho
(2014), Uma avaliação acerca da teoria dialética do Direito a partir da verificação de sua utilização
pelos advogados populares; e o de Pedro Rezende Feitosa (2014), O direito como modelo avançado de
legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho.
si tensionamentos internos às forças de esquerda, próprios do atual período histórico,
que se expressam no terreno jurídico. Nesse sentido, as teorias críticas do direito no
Brasil e na América Latina desenvolvem-se, sobretudo a partir dos anos 80, em íntima
ligação com o processo de reorientação das esquerdas, respondendo contraditoriamente
à retomada da perspectiva democrática nos anos 80 e também à reestruturação produtiva
dos anos 90 (alcançadas pelo neoliberalismo e pelos descaminhos do socialismo real).
Concordo com Ricardo Pazello e Moisés Alves (2014) na análise de que as
teorias críticas do direito encontram-se em ruínas ou sob escombros. Se nos anos 80,
em diálogo com o marxismo, ainda que empreendido de modo heterodoxo e/ou eclético,
as teorias críticas possibilitavam uma frutífera crítica social a partir do contexto das
lutas aqui travadas nesse período; os anos 90 foram eivando essas análises da
combatividade que lhes era originária. Daí que as formulações mais representativas
deste campo descambaram para uma arena cada vez menos crítica, mais afeita ao
“receituário garantista de direitos” (SOARES e PAZELLO: 2014, p.478) que, a despeito
das árduas lutas por meio das quais se forjara, estava destinado a uma existência apenas
retórica nas Constituições democráticas latino-americanas. Esta inflexão, que
acompanha o processo mais amplo de reorientação das esquerdas na passagem dos anos
80 para os 90, fez ruir quase que por completo a criticidade deste campo analítico,
17
configurando assim os escombros das teorias críticas do direito .
Profundamente imersos no processo histórico que levou aos escombros as teorias
críticas do direito, os juristas da Assessoria Jurídica Popular costumam expressar a
perspectiva de construir um direito crítico voltado à transformação social. De muitos
modos deixam transparecer a crença no tal do direito emancipatório. A isto se relaciona
uma compreensão bastante ampliada da dimensão do “jurídico” nas relações sociais. Por
exemplo, quando perguntei a Edson qual era a finalidade do trabalho do SAJU, ele me
respondeu:
É a coisa do acesso ao direito, mesmo. Acesso ao direito, entendendo o
direito não numa perspectiva processual, mas ao que as pessoas têm de
direito: a moradia que as pessoas têm direito, a terra que as pessoas têm
direito, ao trabalho, a “n” coisas que são negadas a ela durante o dia. Eu
entendo que uma finalidade desse trabalho aqui é contribuir, de alguma
forma, pra que as pessoas consigam acessar esses direitos. Como a gente vai
contribuir? Mil maneiras: fazendo oficina, levando o conhecimento formal,
17
A expressão é utilizada por Ricardo Prestes Pazello (2014) em sua tese de doutorado e também no já
mencionado artigo publicado juntamente com Moisés Alves (2014) na edição especial da Revista
Direito e Práxis, dentro do Dossiê Marxismo e Direito.
de certa forma, que a gente possa ter, às vezes, outras não; tentando fazer isso
da forma menos impositiva possível, menos vertical, na perspectiva de troca,
de estar lá aprendendo, também. Acho que é uma finalidade, também, estar
trocando, aprendendo, discutindo, em discussão sempre, sentar de igual pra
igual. Tentar contribuir de alguma forma pra esse acesso ao direito num
sentido mais macro possível de direito, do que é ter direito (Edson;
Entrevista com o SAJU realizada em Salvador no dia 07 de junho de 2013).
Peço a ele que me explique melhor esse sentido “mais macro possível” do direito.
“É que o sentido estrito do direito é esse que a gente vê aqui [na faculdade], que eu não
acho bacana. É legal, também, eu não desprezo não, mas é bom ter a perspectiva que
não é só isso”. Com isso, Edson quer me dizer que há outro direito para além daquele
apresentado na faculdade de direito – “que não é só isso”. Assim o expressa Gil: “Eu
entrei no Negro Cosme porque acredito na concepção de direito que eu vejo que não é
ensinada em sala de aula; acredito num direito justo, por mais que seja difícil hoje
pensar, é mais uma questão utópica, mas que a gente tem que perseguir” (meus grifos).
Ao conceber o direito nos marcos da emancipação, falta freio a estas análises.
Elas ampliam o direito para além das inescapáveis implicações da forma jurídica com a
sociedade de classes. Reflito a respeito disso, com Mészáros, que “um dos aspectos
mais desalentadores do fetichismo jurídico é que ele cria a ilusão de que sua
importância é extremamente grande – e é precisamente deste modo que desempenha
suas funções na sociedade capitalista -, desviando a atenção do verdadeiro alvo”
(MÉSZÁROS: 2004, p. 506). Por isso, “alterar o direito legal não resolve,
fundamentalmente, a questão do capital como a força materialmente, e não apenas
juridicamente, controladora do metabolismo social” (MÉSZÁROS, 2004, p.19), pois,
“na realidade, o capital é, em si, essencialmente, um modo de controle, e não apenas um
direito – legalmente codificado – a exercer esse controle” (MÉSZÁROS, 2004, p.506).
Por isso, é necessário problematizar as implicações do fetichismo do direito no
segmento da AJP. As suas possibilidades como uma perspectiva de enfrentamento
ideológico dependem de um tipo de trânsito no terreno jurídico que não queira salvá-lo
dos compromissos inexoráveis com a reprodução da sociedade de classes. As
dificuldades com esse trânsito certamente se expressam no modo como a AJP oferece
contra o “direito da ordem” o seu “direito crítico”, acreditando, em geral, na
possibilidade de transcender, com este “outro” direito (emancipatório), os profundos
antagonismos que marcam a sociedade de classes. De um modo ou de outro, o direito
continua sendo a resposta para as questões sociais.
No entanto, o direito é, na expressão de Lukács (2013), um complexo
específico da totalidade social que exerce uma função importante na reprodução desta
totalidade, a despeito de manter uma legalidade própria em seu funcionamento. Desse
modo, estaria o direito inescapavelmente entranhado à ordem burguesa, sendo o próprio
capital em forma jurídica, conforme a tese de Pachukanis em A Teoria Geral do Direito
e o Marxismo (1924). Embora o sistema jurídico apresente algumas contradições
internas pontuais quanto ao reconhecimento de certos interesses da classe trabalhadora,
tais contradições não questionam, antes reforçam (porque legitimam), a exploração
fundante da relação capital-trabalho, que se entrecorta (e é entrecortada pelas) às
demais opressões e desigualdades sociais. Por isso estes direitos que “interessam” à
classe trabalhadora jamais se acharão plenamente realizados dentro do modo de
produção capitalista, marcado inexoravelmente pela lógica da exploração.
Esta posição, no entanto, não implica no entendimento vulgar de que o
marxismo seria, por assim dizer, um inimigo dos direitos humanos; tampouco nega o
papel das lutas por tais direitos. Na verdade, a crítica marxiana aos direitos humanos,
especialmente presente em Sobre a Questão Judaica, “diz respeito à contradição
fundamental entre os ‘direitos do homem’ e a realidade da sociedade capitalista, onde se
crê que esses direitos estejam implementados”, como argumenta Mészáros (2008:
p.204).
Não há, portanto, uma "incompatibilidade" entre marxismo e as lutas por
direitos humanos, desde que entendidas como parte de um processo maior de
rompimento com a ordem posta. Esta compreensão é particularmente importante no
contexto dos países dependentes, em que, segundo a tese de Florestan Fernandes, a
“revolução dentro da ordem" se articula e se confunde com a "revolução contra a
ordem”, apresentando para a classe trabalhadora como primeira tarefa política a de
“revolucionar a velha sociedade em sentido burguês-capitalista” (FERNANDES:2009,
p.29), já que essa não é uma tarefa que a burguesia, no países dependentes, realizará.
Portanto, a "defesa dos direitos humanos" pode acabar assumindo, aqui, implicações
revolucionárias.
Dentro desse contexto em que a assessoria jurídica popular se consolidava, havia
(como ainda há), do ponto de vista das forças de esquerda, um distanciamento da
perspectiva socialista/comunista enquanto projeto de superação da sociedade de classes.
Dessa forma, as categorias manejadas pela tradição marxista para compreender a
realidade – totalidade, classe social, luta de classes, revolução, ideologia, etc. – passam
a ser consideradas “fora de moda”. Em seu lugar, consolidou-se a crença no direito e no
Estado como elementos descolados dos antagonismos sociais, capazes de atender às
demandas colocadas pela classe trabalhadora e pelos sujeitos subalternizados na
sociedade de classes.
Tal aposta das esquerdas no campo da institucionalidade, questionando as
implicações de seus enfrentamentos com a luta de classes e apostando na capacidade do
“Estado de Direito” atender às suas demandas, é também uma marca da assessoria
jurídica popular. Esta questão de fundo repercute diretamente nas movimentações da
assessoria jurídica popular, especialmente na sua disposição para o apoio às lutas mais
radicalizadas dos trabalhadores e dos demais sujeitos subalternizados na sociedade do
capital.
Além dos dilemas diretamente relacionados ao contexto mais amplo das
movimentações de esquerda do atual período histórico, também se faz necessário
problematizar as implicações do fetichismo do direito no segmento da AJP. As suas
possibilidades como uma perspectiva de enfrentamento ideológico dependem de um
tipo de trânsito no terreno jurídico que não queira salvá-lo dos compromissos
inexoráveis com a reprodução da sociedade de classes. As dificuldades com esse
trânsito certamente se expressam no modo como a AJP oferece contra o “direito da
ordem” o seu “direito crítico”, acreditando, em geral, na possibilidade de transcender,
com este “outro” direito (emancipatório), os profundos antagonismos que marcam a
sociedade de classes. De um modo ou de outro, o direito continua sendo a resposta para
as questões sociais.
Ademais, juntar-se aos trabalhadores e aos demais sujeitos subalternizados na
sociedade do capital é uma atitude que implica num questionamento profundo da
própria condição de classe, e reside aqui um problema significativo para este segmento.
O tipo de apoio em questão não admite um titubear corporativista, um “que vai ser de
mim sem meu paletó e minha gravata vermelha”. O trânsito da AJUP por entre as
inescapáveis cercas do terreno jurídico é conduzido, portanto, pela questão de fundo do
tipo de transformação social que estão dispostos a apoiar.
4. Considerações Finais
Em síntese, o campo da assessoria jurídica popular se conformou a partir do
enfrentamento às forças da ditadura civil-militar, e se pôde consolidar de modo
organizado a partir da retomada democrática no Brasil e na América Latina na
passagem dos anos 70 para os 80. Naquele momento prenhe de possibilidades históricas
para a retomada de um projeto de classe para contrapor-se às forças do capital, estavam
postas as possibilidades de conjugar as movimentações “tradicionais” da classe
trabalhadora (nos partidos e sindicatos) com outras movimentações em torno de
demandas colocadas por sujeitos que emergiram no período da retomada democrática,
havendo uma fecunda interação entre estas forças. No entanto, a contra-ofensiva do
capital em resposta a sua própria crise contribuiu para imprimir nessas forças de
contestação da ordem os termos de um projeto de conciliação de classes. Nesse
contexto, a cidadania e os direitos humanos foram perdendo, cada vez mais, a sua
combatividade, conforme passaram a simbolizar, também e predominantemente,
projetos de conservação da ordem.
Herdeira desse momento histórico conturbado, a Assessoria Jurídica Popular
consiste numa orientação ideológica porque possibilita, dentro do complexo jurídico, o
tomar partido pela classe trabalhadora e pelos demais sujeitos subalternizados na ordem
do capital. No entanto, as movimentações históricas a partir das quais emergiu a AJP
conformaram tal perspectiva como um campo permeado de contradições e limites nos
quais também estão implicadas as demais forças de esquerda no atual período.
5. Referências
ALFONSIN, Jacques. Dos nós de uma lei e de um mercado que prendem e excluem
aos nós de uma justiça que liberta. REDE NACIONAL DE ADVOGADOS E
ADVOGADAS POPULARES. Advocacia popular: caderno especial – 1995-2005 - 10
anos. Cadernos Renap, São Paulo, n. 6, p. 83-104, mar. 2005.
ALMEIDA, Ana Lia. Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas
da assessoria jurídica universitária popular. 2015. 342 fls. Tese (Doutorado em
Direito). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa - PB.
________. A ideologia e os grupos de assessoria jurídica popular. In: SEMINÁRIO
DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS, 2. 2012, Cidade de Goiás. Anais.
ISBN: 978-85-67551-00-5. Cidade de Goiás: Instituto de Pesquisa, Direitos e
Movimentos Sociais, 2013. p.17-43.
________. O papel das ideologias na formação do campo jurídico. Revista Direito e
Práxis, vl. 5, nº 9. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014.
p.34-59. Disponível em: < http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju>.
LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio
Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1ª edição. São Paulo: Boitempo, 2013.
NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. Uma análise do Serviço Social no
Brasil pós-64. São Paulo: Ed. Cortez, 1990.
________. Notas sobre a reestruturação do Estado e a emergência de novas formas de
participação da sociedade civil. In: Política Social: alternativas ao neoliberalismo.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Política Social. Brasília: UNB, 2004.
TAVARES, Ana Cláudia Diogo. Os nós da rede: concepções e atuação do(a)
advogado(a) popular sobre os conflitos sócio-jurídicos no estado do Rio de Janeiro.
2007. 202 fl. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito). Universidade Federal
Fluminense. Niterói/RJ.
Nego Bispo
INVASÃO E COLONIZAÇÃO
C omparando a cor da minha pele com a cor da pele da moça que está
digitando este texto, ela tem uma cor mais próxima do branco e a
minha cor está mais próxima do preto5. Se compararmos as duas cores com
o papel que vamos usar na impressão deste livro, então a cor dela vai está
mais próxima do amarelo e a minha se aproxima ainda mais do preto. Se
ela um dia visitar a Ásia, encontrará muitas pessoas cuja cor se aproxima
muito da dela, enquanto aqui ela é branca, lá essas pessoas são amarelas.
Quanto a mim, se um dia eu visitar as arábias, também encontrarei
muitas pessoas com cores próximas a minha, enquanto aqui eu sou preto,
lá essas pessoas são árabes, muçulmanas, etc. Se aqui sairmos pelas ruas
25
abraçados, ela será chamada sempre de branca e eu, de acordo com as pessoas
que irão me olhar, serei preto, moreno, pardo, mulato, negro, etc. Enquanto
isso, há um grupo de pessoas que em qualquer continente, mesmo tendo a cor
da pele bem próxima ao branco, são chamadas de albinas. Por isso, entendo
que no caso da moça a quem me referi no início, amarelo é cor, branco é raça.
No meu caso, preto é cor, negro é raça, humano é espécie e povo é nação.
Por assim perceber, se quisermos entender porque eu e a moça
somos tratados de forma tão diferente na sociedade onde vivemos, embora
pertencendo à mesma espécie, a humana, precisamos dialogar profundamente
com os conceitos de cor, raça, etnia, colonização e contra colonização.
Não pretendo fazer aqui um trabalho acadêmico, nem tenho os
elementos necessários para isso. O que tentarei fazer é analisar as relações
entre as populações que tem uma cor que se aproxima da cor da referida moça
e as populações com cor semelhante à minha na sociedade brasileira.
Para fazer essa análise, partirei dos documentos e das resoluções que
deliberaram sobre a vinda dos europeus e dos africanos para o Brasil e da
recepção que ambos tiveram dos povos originários dessa terra. Espero como
resultado fomentar um amplo debate não apenas sobre o conceito de raça e de
cor, mas sobre as relações entre as pessoas e os diferentes povos nos processos de
colonização e de contra colonização das Américas, as organizações produzidas
nesses processos e o que isso pode significar na busca de relações de vida mais
harmoniosas.
26
27
Como podemos ver, essa Bula não fala em especiarias e sequer cita
a Índia. O que ela enfatiza é o cristianismo e o paganismo, concedendo
amplos poderes aos cristãos para fazerem o que quisessem com os pagãos.
Nesse caso, preciso dizer o que compreendo como cristianismo e paganismo.
No meu entender, os cristãos citados na Bula são os povos que cultuam
um único Deus, o Deus da Bíblia, onipotente, onisciente e onipresente,
isto é, que pertencem a uma religião monoteísta. Já os ditos pagãos são os
povos que cultuam os elementos da natureza tais como a terra, a água, o ar,
o sol e várias outras divindades do universo, as quais chamam de deusas e
deuses, e por isso pertencem às religiões politeístas.
Nesse período, os povos cristãos concentravam-se predominantemente
na Europa. Não entendo que critérios a Igreja utilizou ao escolher Portugal
28
29
Javé deus disse para o homem: “já que você deu ouvidos à sua
mulher e comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido
comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver,
você dela se alimentará com fadiga. 18 A terra produzirá para
você espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos
campos. 19 Você comerá seu pão com o suor do seu rosto
até que volte para terra, pois dela foi tirado, você pó e ao pó
voltará”. (GÊNESIS 3:17).
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Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte
amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam,
como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de
rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles
querem – para os bem amansarmos !(...)
34
Antônio Vieira: “é melhor ser escravo no Brasil e salvar sua alma que viver
livre na África e perdê-la” (Sermão do Pe. Antônio Vieira aos escravos)9.
Os trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha que vamos apresentar
agora servirão como um instrumento de análise sociológica que estabeleceu
o perfil dos colonizadores e, consecutivamente, dos contra colonizadores.
Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra,
ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja
acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste
inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a
terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos
e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e
legumes comemos.
35
Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma
mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram
um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela.
Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito
para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que
a de Adão não seria maior – com respeito ao pudor.
36
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vertical e/ou linear. Isso pelo fato de ao tentarem ver o seu Deus, olharem
apenas em uma única direção. Por esse Deus ser masculino, também tendem
a desenvolver sociedades mais homogêneas e patriarcais. Como acreditam
em um Deus que não pode ser visto materialmente, se apegam muito em
monismos objetivos e abstratos.
Quanto aos povos pagãos politeístas que cultuam várias deusas e
deuses pluripotentes, pluricientes e pluripresentes, materializados através
dos elementos da natureza que formam o universo, é dizer, por terem deusas
e deuses territorializados, tendem a se organizar de forma circular e/ou
horizontal, porque conseguem olhar para as suas deusas e deuses em todas
as direções. Por terem deusas e deuses tendem a construir comunidades
heterogêneas, onde o matriarcado e/ou patriarcado se desenvolvem de acordo
com os contextos históricos. Por verem as suas deusas e deuses através dos
elementos da natureza como, por exemplo, a água, a terra, o fogo e o ar e
outros elementos que formam o universo, apegam-se à plurismos subjetivos
e concretos.
Para melhor ilustrar essas diferenças, vamos apresentar algumas
experiências organizativas dos povos cristãos monoteístas e dos povos pagãos
politeístas.
1.2.1 RELIGIOSIDADE
39
1.2.2 TRABALHO
Javé deus disse para o homem: “já que você deu ouvidos à sua
mulher e comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido
comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver,
você dela se alimentará com fadiga. 18 A terra produzira para
você espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos
campos. 19 Você comerá seu pão com o suor do seu rosto até
que volte para terra, pois dela foi tirado, você é pó e ao pó
voltará”. (GÊNESIS [3] 17).
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42
RESISTIR É PRECISO!
A repressão na Ditadura atingiu uma grande parte da sociedade. Na primeira imagem militares
reprimem uma manifestação. Já na segunda imagem, camponeses capturados na Guerrilha do
Araguaia. Esse movimento contou com o apoio de vários camponeses nos estados do Maranhão,
Para e Goiás (hoje atual Tocantins). Vários camponeses e militantes do Partido Comunista Brasileiro
foram brutalmente assassinados e dezenas seguem desaparecidos. Você já ouviu falar na Guerrilha
do Araguaia? Procure em sites, livros e blogs informações sobre esse movimento, depois reflita
sobre o contexto de violência política no campo.
13
A imprensa é uma fonte para historiador, pois a partir dela compreendemos como é construída a
importância de um tema em um determinado contexto. Através do análise do jornal é possível
refletir sobre a circulação de ideias em momento histórico. O que você sabe sobre a imprensa, sobre
os jornais? Eles constroem opiniões? Comente com seu professor ou professora sobre isso.
O Jornal Pequeno foi um importante impresso no Maranhão com circulação ainda hoje. Era um dos
principais jornais da cidade de São Luís e um dos poucos que denunciavam os conflitos rurais do
estado. Todas as matérias acima são da década de 1980, esse período foi marcado por grandes
manifestações contra a Ditadura e luta pelo retorno da democracia. Parte considerável dos
pesquisadores chamam esse período de Reabertura Política ou mesmo Período de Redemocratização.
Interessante observar que essa conjuntura de luta é marcada pela permanência e intensificação dos
conflitos rurais. Observe as imagens acima e discuta em sala de aula as temáticas das reportagens. Há
alguma permanência ou o cenário de violência no campo mudou? Você conhece algum caso recente de
violência no campo?
As imagens acima da esquerda para direita (Jornal Pequeno, 1985. Jornal Pequeno 22.06.1986. Jornal
Pequeno, 20.06.1985) fazem parte do acervo da Biblioteca Benedito Leito localizada no centro da
cidade de São Luís, MA.
15
Resistir é Preciso!
TEXTO 1
Quantos anos você tem?
Vou completar 140 anos, no dia 4 de julho deste ano.
Como assim?
Quando nasci e onde me criei, a noite não era contada como dia. Os meus avós e pais diziam: um ano
tem 365 dias. Então, como o ano tem 365 dias, ele tem 365 noites, e, juntos, termina a gente tendo 140
anos!
E você nasceu onde?
Nasci em Pirapemas, numa comunidade chamada Pedra Grande, no Maranhão. Na época era
município de Coroatá. Hoje é município.
Sua família era de camponeses?
Minha família era de camponeses, agricultores pobres. Meu avô descendia de indígenas, meu pai de
africanos escravos e minha mãe de portugueses...
Sua família é do interior do Maranhão?
Todo o tempo habitaram no campo. Primeiro na região de Vargem Grande (MA), que nós chamamos
de desemboque do Rio Parnaíba, entre o Piauí e o Maranhão. Depois eles mudaram para esse lugar
chamado Pedra Grande, que fica na beira do Rio Itapecuru.
E como você começa a se conscientizar, a participar da luta?
Meu pai tinha um patrão chamado Luís Soares, que era considerado o pai dos pobres. E como os
agricultores pobres tinham dificuldade de ter suas terras registradas, pagar impostos direitinho, ele
sugeriu ao meu pai incluir a terra herdada dos avós como sendo dele, porque nossa terra ficava no
meio da terra dele. Mas em 1953 esse cidadão morreu. E a gente pensava que ele tinha feito isso só
conosco, mas ele tinha feito com centenas de famílias da região do cerrado maranhense. Um ano
depois, a viúva, com os filhos, entendeu de tomar essas terras e juntou centenas de jagunços, policiais,
que saíram expulsando todo mundo, e nós fomos atingidos. Ficamos sem terra e viemos para a região
do Mearim, município de Bacabal, onde iniciamos o trabalho de criação da associação rural de
agricultores, pois as terras também eram da União, não tinham dono.
ENTREVISTA COM MANOEL DA CONCEIÇÂO cedida a Hamilton Pereira e Ricardo de Azevedo
em 10/03/2005.
TEXTO 2
"[...] exame de trajetórias individuais nos permite avaliar estratégias e ações de atores em diferentes
situações e posições sociais, seus movimentos, seus recursos, as formas como as utilizam ou procuram
maximizá-los, suas redes de relações, como se estruturam, como as acionam, nelas se locomovem ou
as abandonam (GRYNSZPAN, 1990, p. 74)"
Extração da amêndoa do babaçu. No mapa acima temos a divisão agro ambiental do Maranhão, localize e pinte a
região correspondente as áreas de babaçuais, não se esqueça de atualizar a legenda.
Você conhece esse fruto? Que relação existe entre a defesa dos babaçuais e a questão da luta pela terra?
20
"Olha, isso é diferenciado por tempo. Antes, quando eu era pequena, minha avó fazia uma
crítica e isso entra muito na questão do preconceito e da discriminação... “ah homem que
quebra coco cresce a bunda”. É como se fosse assim “ah vai virar mulher...” assim, nesse
sentido. Então na minha comunidade eram poucos os homens que quebravam coco. Agora já
têm mais homens que quebram coco na minha comunidade. A outra diferença aqui mesmo no
município é no Riachão. Nós temos uma diretora sindical aqui de Lago do Junco, mas mesmo
no Riachão, que é um povoado, lá os homens juntam coco e quebram coco. Os nossos, da nossa
comunidade, junta mais do que quebram. Eles não têm muita vergonha de juntar, mas já não
gostam de quebrar". Entrevista com Maria Soares concedida, Bacabal-MA a historiadora
Viviane Barbabosa, em 04/11/2011
TEXTO 1
A memória, para prolongar essa definição lapidar, é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de
fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um
indivíduo inserido num contexto familiar, social nacional. Portanto, toda a memória é, por definição, coletiva.
(Henry Roussou. 2006, pp. 94).
TEXTO 2
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução,
aberta à dialética da lembrança e do esquecimento. (Pierre Nora, 1984, p.12)
TEXTO 3
"Nada mais urgente e necessário que educar em direitos humanos a partir da memória, tarefa indispensável
para a defesa, o respeito, a promoção e a valorização desses direitos. Esse é um desafio central da
humanidade, que tem importância redobrada em países da América Latina, caracterizados historicamente
pelas violações dos direitos humanos, expressas pela precariedade e fragilidade do Estado de Direito e por
graves e sistemáticas violações dos direitos básicos de segurança, sobrevivência, identidade cultural e bem-
estar mínimo de grandes contingentes populacionais (Programa Direitos Humanos nas Escolas 2007, p. 22)."
a) O que é memória para os historiadores Pierre Nora e Henry Roussou? Você concorda com eles?
b) Segundo o TEXTO 2: Por que a América Latina é citada de forma pontual? Que eventos ocorrido
nessa parte do continente desperta maior atenção para uma educação em Direitos Humanos?
c) "toda memória, é por definição coletiva" Você concorda com essa afirmação? Justifique sua
resposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Que essa história alimente nossos desejos por dias melhores e mais
justo!
Resistance of traditional communities to agribusiness as a form of efective rights: analysis of the Baixo
Paranaíba maranhense scenario
Introdução
1
Artigo premiado na VII Edição do Prêmio Jose Bonifácio de Andrada e Silva (2º lugar - Categoria: estudante
de doutorado), do Instituto O Direito por um Planeta Verde, e apresentado no IX Congreso de La Red
Latinoamericana de Antropologia Juridica (RELAJU), realizado em Temuco, Chile, em 2018.
2
Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com período sanduíche na
Università Degli Studi di Firenze (UNIFI); Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Graduado em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom
Bosco (UNDB). Professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e da Unidade de Ensino Superior
Dom Bosco (UNDB). Orientador do Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular (PAJUP). Foi
Assessor Jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Professor Substituto do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) e Professor da Faculdade do Maranhão
(FACAM).
3
O presente artigo tratará camponeses e quilombolas enquanto comunidades tradicionais. Segundo Wolf (1976,
p. 10), camponeses são entendidos por alguns como “agregados amorfos, sem estrutura própria”, outros como
2
grupos marcados por formas diferenciadas de criar, de ser e de viver, a exemplo do que ocorre
no Maranhão com as comunidades tradicionais.
Do início da ditadura civil-militar, em 1964, até o seu fim, no ano de 1985, tem-se
o chamado segundo ciclo do desenvolvimentismo (BIELSCHOWSKY, 2009, passim), no
qual se observa em seus governos (Castelo Branco e Costa e Silva, Médici, Geisel e
Figueiredo) formas diferentes e não-lineares de articulação na consolidação das políticas de
desenvolvimento, mas com características comuns. É o caso da abertura para o capital
internacional, do aprofundamento do capital no território brasileiro (em especial, na
Amazônia, o que afeta o Maranhão), da inserção do país na divisão internacional do trabalho
enquanto provedor de produtos primários, dos investimentos em infraestruturas e do
desrespeito a direitos da população étnica excluída, principalmente no campo (BRUZACA,
2014, passim).
Trata-se de um modelo que marcou a economia brasileira, cujas políticas de
desenvolvimento das últimas décadas guardam ainda relação. Neste sentido, Augusto et. al.
(2015, p. 98) destaca que no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso ocorreu a
rearticulação do “processo de modernização técnica da agropecuária, que se fizera pelos
militares nos anos 1960 e 1970”, caracterizando o país como provedor de bens primários no
cenário internacional. Ademais, houve a reestruturação de “aliança das cadeias
agroindustriais, da grande propriedade fundiária e do Estado, promovendo um estilo de
expansão agrícola, sem reforma social”. Finaliza-se destacando que os governos Lula (2003-
2010) e Dilma (2011-2015) intensificaram tal modelo.
É justamente este último período que se nomeia “neodesenvolvimentismo” ou
“novo desenvolvimentismo”. Segundo Santos (2013, p. 92-93), refere-se a um modelo de
acumulação mais nacionalista e estatista, baseado no neoextrativismo, com centralização no
Estado, intervindo no mercado nacional e internacional. Sobre a questão do extrativismo,
Gudynas (2016, p. 26-27, traduziu-se) destaca a existência de extrativismos conservadores
reajustados (Colômbia, Chile, Paraguai e Peru) e progressistas (Argentina, Bolívia, Equador,
Uruguai e Venezuela), tendo diferenças na “estruturação econômica, [no] papel do Estado,
[no] uso de excedentes e [na] legitimação de políticas”, estando o Brasil no segundo grupo.
Buscou-se solucionar o déficit advindo do governo de Fernando Henrique
Cardoso, acelerando-se as exportações primárias e alcançando “superávits nas transações
externas durante o período de 2003 a 2007, criando certa euforia passageira”, mas que
aumenta em 2008. A gravidade está “na dependência de capital estrangeiro, por um lado, e na
ampliação dos custos sociais desse estilo de crescimento, por outro. Os custos sociais da
4
especialização econômica do setor primário ainda não estão suficientemente percebidos pela
sociedade” (AUGUSTO, et. al., 2015, p. 98).
O momento de recrudescimento de 2008 referencia o início do segundo mandato
de Luís Inácio Lula da Silva, que utiliza um discurso sobre a necessidade de uma política
econômica que retome o “crescimento econômico”, dando destaque ao “desenvolvimento
industrial e agrícola” (MOTA, 2010, s. p.). Neste momento, observa-se o aumento de
atividades como as relacionadas ao agronegócio, o que implicará, conforme se verá adiante,
na agudização de conflitos socioambientais, impactando comunidades tradicionais.
Sobre a ideia da palavra “agronegócio”, destaca-se:
cultivos ocupam vastas terras não para alimentar as populações, mas para sustentar ciclos
produtivos, ocasionando graves impactos socioambientais (SANTOS, 2013, p. 96).
Especificamente, o agronegócio repercute no “desenhar” do ambiente, afirmação
que se extrai do conceito de “efeito derrame” de Gudynas (2016, p. 28). Tal conceito
possibilita compreender as condições e transformações provocadas por empreendimentos
econômicos no espaço geográfico, resultando em modificações no direito, na gestão
ambiental, no território, por exemplo, para acolher a atividade. Continuando, o referido autor
destaca existir também mudanças nas políticas públicas, na justiça e na economia, estando tais
efeitos entrelaçados.
Um destes seria o “derrame territorial”, no qual o extrativismo impõe novos tipos
de territorialidade, que se sobrepõem a outros existentes, como indígenas, campesinas, áreas
protegidas etc. Com isto, ou debilitam ou anulam estas, a exemplo da proteção de territórios
indígenas, que pode ser relativizadas a qualquer momento. Este redesenho territorial pode
cobrir parte considerável dos países (GUDYNAS, 2016, p. 30-31).
Levando em consideração o espaço territorial ocupado pela soja que, como
destacado, é considerado um produto de grande relevância para a economia, apresentam-se
dados sobre as áreas plantadas para sua produção, possibilitando perceber a dimensão que o
agronegócio vem assumindo. Para tal, foram levantados do ano de 2007 a 2016 dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, referentes ao Plano Agrícola Municipal –
Culturas Temporárias e Permanentes, analisando-se a tabela 15 (“Área plantada ou área
destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida, rendimento médio e valor da
produção dos principais produtos das lavouras temporárias e permanentes em ordem
decrescente de área colhida”).
No Brasil, observa-se o crescimento da área destinada à soja, cujos dados5 podem
ser organizados conforme o gráfico abaixo:
5
Quanto aos números, destaca-se: em 2008, 21.063.721 ha; em 2009, 21.761.782 ha; em 2010, 23.339.094 ha;
em 2011, 24.032.410 ha; em 2012, 25.090.559 ha; em 2013, 27.948.605 ha; em 2014, 30.308.231 ha; em 2015,
32.206.387 ha; em 2016, 33.309.865 ha (IBGE, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016).
6
35.000.000
30.000.000
25.000.000
20.000.000
Área ocupada pela soja
15.000.000
no Brasil em hectáres
10.000.000
5.000.000
0
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Gráfico 1 – Área plantada ou área destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida,
rendimento médio e valor da produção dos principais produtos das lavouras temporárias e
permanentes em ordem decrescente de área colhida no Brasil.
Fonte: IBGE (2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016).
Elaboração do gráfico: autor.
Gráfico 2 – Área plantada ou área destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida,
rendimento médio e valor da produção dos principais produtos das lavouras temporárias e
permanentes em ordem decrescente de área colhida no Brasil.
Fonte: IBGE (2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016).
Elaboração do gráfico: autor.
6
Quanto aos dados, destaca-se: em 2008, 421.520 ha, sendo o segundo maior produto a ocupar espaço no
Estado, perdendo para o arroz, que era de 467.405 ha; em 2009, 409.402 ha, novamente com o arroz ocupando
área maior, de 472.621 ha; a partir de 2010 passa a ser o produto com maior área ocupada, com 495.756 ha; em
2011, 530.539 ha; em 2012, 556.178 ha; em 2013, 564.546 ha; em 2014, 677.540 ha; em 2015, 761.225 ha; em
2016, 783.654 ha (IBGE, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016).
7
no Maranhão, desde 2010 até 2016 (IBGE, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015;
2016). A produção do referido bem primário, voltado para a exportação, referencia o
momento da política do desenvolvimento do país, o que implica também na configuração da
economia do estado-membro objeto de análise do presente artigo.
Não obstante, este desenho do ambiente conforme um dado modelo de produção
não se distancia das constatações de Escobar (2003, p. 157) a respeito da desconsideração dos
atropelos decorrentes da noção dominante de desenvolvimento, que levam, por exemplo, aos
deslocamentos forçados de grupos étnicos. Repercute ademais em fragmentações das
relações familiares, de inseguranças em relação ao território. Continuando, atenta o autor
colombiano que modernidade e desenvolvimento são “projetos culturais-espaciais”,
requerendo a conquista de territórios e de pessoas, bem como de sua transformação ecológica
e cultural, de acordo com suas bases racionais e logocêntricas.
Deste modo, verifica-se como um esquema de desenvolvimento, que se
denominou de novo desenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo, repercutiu no incentivo
de uma específica atividades agrícola, ou seja, o agronegócio. Neste, tem-se como exemplo a
soja, que ano após ano ocupa mais territórios tanto no Brasil quanto no Maranhão. De início,
percebe-se que essa apropriação territorial resulta na reconfiguração do ambiente. Entretanto,
necessário se faz especificar outras implicações socioambientais que se envolvem com o
nomeado derrame territorial.
ao governo Lula, no Brasil voltado para flexibilizações que afetam todo o marco normativo e
regulatório ambiental (GUDYNAS, 2016, p. 28-30). Neste primeiro derrame, pode-se
destacar o aprofundamento do uso de agrotóxicos, considerados, como se apresentará,
maléficos ao ambiente e à saúde humana, bem como inconciliável às práticas tradicionais.
No contexto brasileiro, é latente o uso de agrotóxicos, que cresce ao passo que o
agronegócio ocupa espaço territorial. Com isso, destaca-se gráfico que possibilita verificar a
sua comercialização no país, com base na “Venda de agrotóxicos e afins no Brasil no período
de 2009 a 2016”7, utilizando como unidade a tonelada de ingrediente ativo. Com isso, obtém-
se o seguinte gráfico:
600.000,00
500.000,00
400.000,00
Venda de agrotóxicos e
300.000,00 afins no Brasil no
período de 2000 a 2016
200.000,00 (unidade: tonelada de
ingrediente ativo)
100.000,00
0,00
7
Destaca-se que o gráfico foi elaborado conforme a seção “Histórico de comercialização – “2000-2016” –
“Histórico de comercialização de Químicos e Biológicos: 2000-2016”, no sítio eletrônico do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, do qual não consta dados a respeito do ano de 2018.
9
12.000,00
10.000,00
8.000,00
Venda de agrotóxicos e
6.000,00 afins no Maranhão no
período de 2000 a 2016
4.000,00 (unidade: tonelada de
ingrediente ativo)
2.000,00
0,00
8
No cenário brasileiro, pode-se destacar o caso de Lucas do Rio Verde/MT, que remete aos danos à saúde
provocadas por intoxicação por agrotóxicos. Houve a ocorrência de leite materno contaminado pelos
agrotóxicos, que também afetou a prole. Dentre eles destaca-se a presença de metabólico do
diclorodifeniltricloroetano (DDT), proibido em 1998 no país, que acumula no corpo e pode causar diversas
10
situações que carregam também relações de poder e de saber. Sobre este aspecto, Shiva (2003,
p. 22) destaca que os valores baseados do poder decorrem da ascensão do capitalismo
comercial, no qual se introduz que o sistema dominante consiste em uma tradição universal,
não uma tradição local globalizada.
Seguindo, também se observa o derrame de direito e extrações, que pode ser lido
em conjunto com o derrame de compensação e justiça. Segundo Gudynas (2016, p. 37-38), o
primeiro diz respeito às violações nos marcos dos direitos da pessoa, de direitos trabalhistas,
do direito à informação e à participação e da Natureza. O segundo, por sua vez, referencia a
ideia de compensação por danos sociais e ambientais de forma monetarizada, mercantilizando
a natureza e a sociedade, escolhendo concepções de justiça essencialmente econômicas.
O agronegócio tem avançado no território nacional e maranhense, trazendo uma
diversidade de externalidades à sociedade e ao meio ambiente, amparados por políticas
estatais e pelo corpo jurídico-institucional existente9. Com isso, tal esquema econômico é
consolidado com o apoio institucional e jurídico do Estado, bem como por correlações de
forças políticas.
Neste aspecto, foi necessário, para a manutenção da modernização conservadora
advinda da década de 1960, “um conjunto articulado de medidas governamentais e
legislativas, em particular a instituição do crédito rural subsidiado pelos governos”. Houve um
reforço pós-1990 do respaldo dos governos da ditadura civil-militar, com ampliação das
políticas públicas compensatórias, apoio inconsistente do Estado e processo político-
ideológico de cooptação popular (AUGUSTO, et. al., 2015, p. 102-103).
Ademais, destaca-se:
doenças, como o câncer. Com a produção da soja, recordista em produção, o uso de agrotóxicos aumentou e não
se teve controle do raio de alcance dos herbicidas – inclusive afetando a produção de pequenos produtores
(TENDLER, 2011). Outros casos além de Lucas do Rio Verde são destacados por Augusto et. al. (2015, passim),
como o da Chapada do Apodi/CE, com a presença de transnacionais, havendo aplicação contínua de fungicidas e
apropriação de terras; o do Pantanal Mato-grossense, com a contaminação das afluentes do Rio Paraguai e da
planície pantaneira, acarretando em danos à saúde humana, à fauna e à flora; o do Polo Fruticultor de Exportação
de Petrolina/PE, com ações governamentais para apoiar a “modernização da agricultura”, como a transposição
do Rio São Francisco, que traz em contrapartida o incentivo ao agronegócio, o aumento da depência ao mercado
externo e pioras nos índices sociais (analfabetismo, exploração sexual etc) e de saúde (aumento dos casos de
danos aos trabalhadores e à população).
9
Neste sentido, em relação aos incentivos, Raquel Rigotto, professora da Universidade Federal do Ceará,
destaca: “[...] os agrotóxicos têm estímulo fiscal para serem utilizados e consumidos no Brasil como um todo. Há
um convenio que data de 1997, que oferece isenção fiscal de 60% do ICMS [Imposto sobre Operações relativas à
Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de
Comunicação], do COFINS [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social], do IPI [Imposto sobre
Produtos Industrializados] e do PIS-PASEP [Programa de Integração Social – Programa de Formação do
Patrimônio do Servidor Público] para todos os agrotóxicos vendidos nesse país. E no Ceará, e me parece que
alguns outros Estados do Brasil, acharam isso pouco e estenderam a isenção a 100%” (TENDLER, 2011).
11
10
Conforme Gaspar e Andrade (2015, p. 111), tal microrregião é formada por 16 municípios, sendo eles: Água
Doce do Maranhão, Anapurus, Araioses, Belágua, Brejo, Buriti, Chapadinha, Magalhães de Almeida, Mata
Roma, Milagres do Maranhão, Santa Quitéria do Maranhão, Santana do Maranhão, São Benedito do Rio Preto,
São Bernardo, Tutóia e Urbano Santos.
11
Tal microrregião foi objeto do documentário “A soja na terra das chapadas”. Neste se destaca que a
mesorregião do leste maranhense (na qual se insere a microrregião analisada) tem sido o palco da expansão do
monocultivo, como ocorre com a soja. Vilson Ambrozi, então presidente da Associação dos Produtores
Agrícolas do Cerrado do Leste Maranhense (APACL), destaca o seu deslocamento e de outros do sul do Brasil
para a região, em 1990-1991, período de dificuldades econômicas do país. Em 1995/1998, mantiveram-se na
localidade conforme atesta, tendo em vista a viabilidade na produção de soja. Em 1994 houve a inauguração do
terminal de grãos da então Companhia Vale do Rio Doce, o que incentivou a produção de soja na mesorregião,
considerando agora ponto estratégico para tal, estando o Baixo Parnaíba e o Alto Munim próximo do Porto do
Itaqui e da Ponta da Madeira. O agronegócio avançou, ocupando áreas vistas como “inúteis” por órgãos que
promovem o desenvolvimento agrícola (SANTOS, 2008).
13
Araioses 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Belágua 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Brejo 8.530 12.075 12.700 15.380 16.000 23.840 24.240 26.775 25.500
Buriti 16.100 11.340 11.900 13.140 15.000 11.027 12.357 13.500 13.500
Chapadinha 2.090 2.440 2.570 3.700 4.000 2.393 2.140 3.700 3.700
Magalhães de 1.900 2.500 2.500 2.500 2.602 3.120 3.770 3.325 3.050
Almeida
Mata Roma 3.210 3.500 3.700 5.350 6.000 6.660 6.660 8.100 8.100
Milagres do 1.460 2.850 2.950 2.400 3.200 2.650 2.650 3.500 3.500
Maranhão
Santa Quitéria 1.000 2.992 2.992 3.550 3.800 835 1.415 1.520 1.900
do Maranhão
Santana do 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Maranhão
São Benedito 190 270 440 500 600 610 650 1.240 1.240
do Rio Preto
São Bernardo 0 0 0 0 0 0 0 1000 1310
Tutóia 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Urbano 400 200 450 500 600 1.590 1.690 1.350 1.350
Santos
Total 44.670 45.904 48.322 51.570 56.802 61.095 63.742 70.810 69.950
Tabela 1 – Área plantada ou área destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida,
rendimento médio e valor da produção, unidades da federação e municípios, segundo
principais produtos das lavouras temporárias e permanentes em ordem decrescente de área
colhida.
Fonte: IBGE (2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016).
Elaboração do gráfico: autor.
12
Conforme explicado anteriormente, enfatizou-se a soja em razão de ser o produto que mais ocupa área de
plantio no Brasil, bem como pela relevância dada na economia do estado do Maranhão. Entretanto, existem
outros monocultivos que também geram conflitos, como é o caso da cana-de-açúcar e do eucalipto. Sobre o
eucalipto no Brasil, Shiva (2003, p. 73-74) destaca que seu plantio destrói florestas e comunidades. Há
resistências da comunidade contra o “disseminar o verde” com eucaliptos, contrários à natureza e a seus ciclos.
Ademais, “o eucalipto certamente aumentou o fluxo de dinheiro e mercadorias, mas resultou numa interrupção
desastrosa dos fluxos de matéria orgânica e água no interior do ecossistema local”. Assim, o movimento
14
“questiona a dominação da ciência florestal que reduziu todas as espécies a uma única (o eucalipto), todas as
necessidades a uma única (a da indústria de polpa) e todo saber a um único (o do Banco Mundial e das
autoridades florestais)”. Tal crítica também pode dialogar com os problemas de outros monocultivos, como o de
soja.
13
As áreas nas quais a soja avança no Baixo Parnaíba maranhense eram habitadas há gerações por grupos
camponeses, conforme atesta Marcelo Carneiro, professor da Universidade Federal do Maranhão, afirmando que
os empreendimentos do agronegócio não encontraram as terras livres, aptas para expandir a fronteira agrícola.
Atenta que não se trata de um deserto, havendo um confronto com um sistema de produção bastante antigo de
agricultores, que são os agricultores familiares, que realizam atividade de produção extrativista vegetal e da
criação de pequenos e grandes animais (SANTOS, 2008).
15
Considerações finais
Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Apresentação. In: SHIRAISHI NETO, Joaquim.
Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil: Declarações, Convenções
Internacionais e Dispositivos Jurídicos definidores de uma Política Nacional. Manaus: UEA,
2007. p. 8-16.
_____. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faixinais
e fundos de pastos: terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus: PGSCA-UFMA, 2008.
AUGUSTO, Lia Giraldo da Silva, et. al. Parte 2 – Saúde, ambiente e sustentabilidade. In.:
CARNEIRO, Fernando Ferreira, et. al. (Orgs.). Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os
impactos dos agrotóxicos na saúde. São Paulo: Expressão Popular, 2015. pp. 89-191.
19
_____, VIEIRA, Adriana Dias. Linguagem dos juristas frente a representações jurídico-
culturais de povos e comunidades tradicionais: o caso do conflito possessório envolvendo a
comunidade quilombola de São Bento, Brejo/MA. In: Prisma Jurídico, v.16, n.1, p.181-204,
2017.
COSTA NETO, Nicolau Dino de Castro e. Proteção jurídica do meio ambiente: florestas.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
CPISP. Terras de quilombos com processos no INCRA por estado. São Paulo, s.d.
Disponível em: <http://www.cpisp.org.br/terras/Mapa/mapa.aspx?VerTerras=r>. Acesso em
20 fev. 2018.
_____. La Invencíon del Tercer Mundo. Caracas: Edición Fundación Editorial el perro y la
rana, 2007.
GUDYNAS, Eduardo. Extractivismos em América del Sur: conceptos y sus efectos derrame.
In.: ZHOURI, Andréa. BOLADOS, Paola, CASTRO, Edna (Orgs.). Mineração na América
do Sul: neoextrativismo e lutas territoriais. São Paulo: Annablume, 2016, pp. 23-44.
MOTA, Carlos Guilherme. Para uma visão de conjunto: a história do Brasil pós-1930 e seus
juristas. In: MOTA, Carlos Guilherme. SALINAS, Natasha. Schimitt Caccia (coords.). Os
juristas na formação do Estado-Nação brasileiro: 1930-dias atuais. São Paulo: Saraiva
[Kindle Version], 2010.
SANTOS, Murilo (diretor). A soja na terra das chapadas [documentário]. São Luís: FASE,
SMDH, 2008.
SBRP (São Benedito do Rio Preto). Lei nº 659 de 2008. São Benedito do Rio Preto, 2008.
21
SHIRAISHI NETO, Joaquim. Disputa pela redefinição da região amazônica. In.: SHIRAISHI
NETO, Joaquim, et al. Meio ambiente, território e práticas jurídicas: enredos em conflito.
São Luís: EDUFMA, 2011. p. 23-52.
Introdução
1
Para um bom itinerário do tratamento da questão racial pelo marxismo “clássico”, ver o artigo de Pedro
Caldas Chadarevian “Os precursores da interpretação marxista do problema racial”. Crítica Marxista. São
Paulo: Revan, v.1, n.24, 2007, p.73-92. Ver também os textos de Augusto Buonicore sobre a internacional
comunista e a questão racial em:
http://grabois.org.br/portal/revista.php?id_sessao=21&id_publicacao=5724. Acessado em junho de 2015.
No século XX pode-se observar o surgimento de pensadores que trataram
do racismo partindo da análise de experiências históricas distintas e de múltiplas
interpretações e apropriações dos conceitos presentes na obra de Marx. Muitos destes
estudiosos da conexão entre racismo e capitalismo estiveram diretamente envolvidos
nas lutas sociais em seus respectivos países2.
2
Alguns exemplos da abordagem do racismo que de alguma forma beberam da teoria marxista: Nos EUA,
Oliver C. Cox e os membros do Partido dos Panteras Negras, Angela Davis e Stokely Carmichael; no
continente africano e no contexto da resistência anticolonial, Amílcar Cabral, Kwane Nkrumah e Frantz
Fanon; sobre a realidade da escravidão e do racismo na perspectiva caribenha, Walter Rodney, CRL
James e Eric Williams desenvolveram reflexões de relevo; no Brasil, destaca-se a importância de
Florestan Fernandes, Jacob Gorender, Octávio Ianni e Clóvis Moura, este último o mais destacado
pensador negro do marxismo brasileiro. Estes são apenas alguns exemplos e o modo com que estes
pensadores se apropriaram do marxismo permanece objeto de inúmeras polêmicas. Ao final deste texto,
serão mencionadas algumas obras dos autores mencionados.
3
Como enfatiza Etienne Balibar “o racismo é uma relação social e não um simples delírio de sujeitos
racistas”. BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and Nation: ambiguous identity.
Londres, Reino Unido: Verso, 2010, p. 41.
materialmente consideradas também são compostas de mulheres, pessoas negras,
indígenas, gays, imigrantes, pessoas com deficiência, que não podem ser definidas tão
somente pelo fato de não serem proprietários dos meios de produção. São estes os
indivíduos concretos que compõem as classes à medida que se constituem
concomitantemente como “classe” e como “minoria” nas condições estruturais do
capitalismo. Para entender as classes em seu sentido material, portanto, é preciso,
antes de tudo, dirigir o olhar para a situação real das minorias. A situação das
mulheres negras exemplifica isso: percebem os mais baixos salários, são empurradas
para os “trabalhos improdutivos” (aqueles que não produzem mais-valia, mas que são
essenciais, a exemplo das babás e empregadas domésticas, em geral negras que, vestidas
de branco, criam os herdeiros do capital), são diariamente vítimas de assédio moral, da
violência doméstica e do abandono; recebem o pior tratamento nos sistemas
“universais” de saúde e suportam, proporcionalmente, a mais pesada tributação. A
descrição e o enquadramento estrutural desta situação revelam o movimento real da
divisão de “classes” e dos mecanismos institucionais de exploração no capitalismo.
4
Nesse sentido, Charles Mills considera que a teoria do contrato social fornece as bases ideológicas para
o racismo e a exclusão de negros e negras (MILLS, Charles. The Racial Contract. NY, EUA: Cornell
University Press, 1999). Também sobre a relação racismo e liberalismo ver LOSSURDO, Domenico. A
contra-história do liberalismo. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006.
relações sociais concretas e, por isso, ou não levam em conta o racismo ou tratam o
problema racial como uma anomalia dentro de uma estrutura imaginária que funciona
perfeitamente. Daí não é de se estranhar que boa parte destas teorias do Estado e do
direito que, além de não darem conta nem do Estado nem do direito, quando
reconhecem o problema racial, identificam na educação, no direito penal e nas políticas
públicas a solução para o racismo5. Teorias idealistas e positivistas do Estado e do
direito podem ignorar o racismo e outras formas de discriminação e violência
justamente porque o valor destas teorias está no fato de ignorarem a realidade.
Estado e capitalismo
5
Da mesma maneira, nota-se que as teorias idealistas ou positivistas do Estado e do direito que admitem
o problema racial o façam em linha com o culturalismo, que em geral redunda no tratamento do racismo
na chave dos direitos humanos.
6
“No balanço de sua especificidade histórica, depreende-se que o nexo entre capitalismo e Estado é
estrutural. A generalização das relações sociais constituídas mediante forma-mercadoria demanda uma
forma política apartada dos próprios portadores e trocadores de tais mercadorias – a principal delas, a
força de trabalho mediante salariado. O Estado se consolida como o ente terceiro, garante e necessário da
dinâmica do capitalismo. Em face dos indivíduos e suas interações, que passam a identificar a „vida
Ainda que tenham as sociedades pré-capitalistas se constituído por
múltiplas formas de dominação e de exercício difuso do poder político, as
características da ordem capitalista são bastante específicas. É apenas com o
desenvolvimento do capitalismo que a política assume a forma de um aparato exterior,
relativamente autônomo e centralizado, separado do conjunto das relações sociais, em
especial das relações econômicas. No capitalismo, a organização política da sociedade
não será exercida diretamente pelos grandes proprietários ou pelos membros de uma
classe, mas pelo Estado.
privada‟, o Estado se inscreve com distinto: „público‟”. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma
política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 57.
7
HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 564.
Estado, nacionalismo e ideologia
8
Sobre a construção do nacionalismo ver HOBSBAWN, Eric. Nações a nacionalismo desde 1780:
programa, mito e realidade. São Paulo: Paz e terra, 2013.
possível falar de integração numa sociedade que, como aqui mesmo já se afirmou, é
estruturalmente cindida?
9
Sobre o conceito de ideologia ver ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os
aparelhos ideológicos de estado (AIE). Rio de Janeiro: Graal, 1983. A dissertação de mestrado de Pedro
Eduardo Zini Davoglio “Anti-humanismo teórico e ideologia jurídica em Althusser” merece ser
consultada pelos excelentes esclarecimentos que fornece sobre a teoria da ideologia de Althusser.
(DAVOGLIO, Pedro Eduardo Zini. Anti-humanismo teórico e ideologia jurídica em Althusser. São
Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie. Dissertação de mestrado. 2014)
imaginário socialmente construído não molda a estrutura psíquica dos indivíduos de
forma automática, voluntária ou pelo mero contato com as ideais. A ideologia forma as
subjetividades através de uma prática material que interpela o indivíduo e o transforma
em sujeito para além da sua vontade e consciência. É na escola, na família e nos
ambiente de trabalho, ou seja, no interior de determinados aparelhos sustentados pelo
Estado, que a ideologia dará forma (expressão nas relações sociais) às subjetividades10.
Racismo e ideologia
13
Idem, Ibidem, p. 81 e 82.
14 Sobre o nacionalismo, racismo e a luta política anticolonial são exemplares os ensaios do autor
peruano José Carlos Mariátegui. MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la
realidad peruana (1923), Lima Empresa Editorial Amauta, 1995.
Mas como poderíamos entender o racismo para além de circunstâncias
particulares ou casos específicos? O racismo é construído a partir do imaginário social
de inferioridade, seja intelectual ou moral, de uma raça em face de outra raça (sendo
que a “raça” dominadora não aparecerá como “raça”, mas como “seres humanos” ou
apenas pessoas “normais”). O racismo, portanto, não é um ato isolado de preconceito ou
um “mal entendido”; o racismo é um processo social de assujeitamento, em que as
práticas, o discurso e a consciência dos racistas e das vítimas do racismo são produzidos
e reproduzidos socialmente15. Esse processo, que implica na violência sistemática e na
superexploração de indivíduos que pertençam a determinados grupos racialmente
identificados, só se reproduz quando é sustentado pelo poder estatal, seja por ações
institucionais diretas (apartheid, por exemplo), seja pela omissão sistemática diante da
desigualdade material e à insegurança existencial que se abatem sobre as minorias.
15
“Em certo sentido, a reprodução das relações é anterior ao sujeito que se forma no curso no curso
destas mesmas relações. Todavia, a rigor, não podem ser concebidos independentemente uns dos outros.
[...] A reprodução das relações sociais, a reprodução das habilidades, supõe a reprodução da submissão.
Porém, a reprodução do trabalho não é fundamental aqui: a reprodução fundamental é uma reprodução
própria do sujeito e tem lugar na relação com a linguagem e a formação da consciência” BUTLER,
Judith. Mecanismos psíquicos del poder: teorias sobre la sujécion. Madrid, Espanha: Cátedra, 2001.
realizador, colocou em movimento instituições culturais e políticas
capazes de cunhar a história, que começaram a ter vida autônoma,
inclusive com relação a ele16.
De fato, não há racismo sem teoria (s). Seria completamente inútil perguntar-se
se as teorias racistas procedem das elites ou de as massas, das classes
dominantes ou das classes dominadas. Pelo contrario, é evidente que estão
"racionalizadas" pelos intelectuais. É sumamente importante perguntar-se sobre
a função que desempenham as teorizações do racismo culto (cujo protótipo é a
antropologia evolucionista das raças “biológicas” elaborada no final do século
XIX) na cristalização da comunidade que se cria ao redor do significante da
raça17.
16
SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem”. Revistas Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, n. 45, julho
de 1996, p. 15-36.
17
BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and Nation: ambiguous identity.
Londres, Reino Unido: Verso, 2010, p. 32.
histórico e que se define segundo a lógica do capitalismo. A respeito da relação entre a
reprodução das discriminações e o capitalismo, a lição de Alysson Leandro Mascaro:
No que tange à raça, a ação estatal apenas parece se plantar em dados de origem
biológica. Ocorre que toda narrativa de raça é uma reconstrução político-social
em torno do sangue ou da pele. De algum modo, revela, inclusive um padrão de
preconceito que vai imanente com as noções de respeito e admiração ao capital.
[...].
A sorte das minorias, nas sociedades capitalistas, deve ser tida não apenas como
replique, no mundo atual, das velhas operações de preconceito e identidade,
mas como política estatal deliberada de instituição de relações estruturais e
funcionais na dinâmica do capital. Por isso o capitalismo é machista,
homofóbico, racista e discriminador de deficientes e dos indesejáveis18.
18
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 67.
19
Sobre o conceito ver VRON WARE (org.) Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de
Janeiro: Garamond, 2004; SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo:
branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2015.
20
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 67.
ideológico do universalismo – expressão da “universalidade” da troca mercantil -, e a
meritocracia, cujo sentido maior é naturalizar particularismos e privilégios por meio de
um discurso racional acerca da “competência” e da “capacidade pessoal” de certos
indivíduos21. Segundo Wallerstein, a meritocracia seria incapaz de sustentar-se como
discurso que penetra a subjetividade de dominadores e dominados sem que o racismo,
antes de qualquer justificação “racional” e “humanista”, pavimentasse no inconsciente a
inferioridade das minorias, fundamentada em questões de ordem natural ou biológica ou
na “falta de mérito”. Por conta da meritocracia e da “incapacidade natural das
minorias”, a desigualdade na distribuição dos bens socialmente produzidos seria uma
medida justa.
21
“Por outra parte, a meritocracia seria não apenas economicamente eficaz, mas também um fator de
estabilização política. Na medida em que existem desigualdades na distribuição de recompensas no
capitalismo histórico (assim como nos sistemas anteriores), o ressentimento daqueles que recebem
recompensas modestas com relação aos que recebem as mais importantes seria menos intenso ao justificar
tal desigualdade pelo mérito e não pela tradição. Em outras palavras, se pensar que a maior parte das
pessoas consideraria mais aceitável, moral e politicamente, o privilegio adquirido mediante o mérito que
o adquirido graças à herança.” BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and
Nation: ambiguous identity. Londres, Reino Unido: Verso, 2010, p. 32.
22
Isso explica em parte a resistência de setores da sociedade às políticas de ação afirmativa. O que é mais
curioso é que os argumentos contra as ações afirmativas tenham como base o universalismo, sintetizado
na reafirmação do princípio da isonomia. Daí torna-se simples o próximo passo na defesa da clivagem
racial: a meritocracia que, paradoxalmente, assemelha-se com a defesa da impessoalidade.
Racismo e subsunção real do trabalho ao capital
23
Para uma interessante abordagem do sexismo a partir do conceito de acumulação primitiva ver
FEDERICI, Silvia. Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y acumulación originaria. Madrid, Espanha:
Traficante de Sueños, 2004.
24
[...} “O processo que cria a relação capitalista não poder ser senão o processo de separação entre o
trabalhador e a propriedade das condições da realização de seu trabalho, processo que, por um lado,
transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores
diretos em trabalhadores assalariados. A chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do
que o processo histórico de separação do produtor e meio de produção. Ela aparece como primitiva
porque constitui pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde”. A estrutura
econômica da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução
desta última liberou os elementos daquela”. MARX, Karl. O Capital (vol. I). São Paulo: Boitempo, 2013,
p. 786.
25
O caso dos imigrantes bolivianos e agora, dos haitianos, no Brasil, é emblemático de como a dinâmica
do racismo vai constituindo uma complexa cadeia de hierarquias que se dá à margem da legalidade e que
revela a convivência de diferentes tipologias do racismo. Junta-se na construção da alteridade racista
contra bolivianos e haitianos o racismo interior e já tradicional contra negros e índios e se insere no
discurso a xenofobia. O racismo se alimenta de um imaginário historicamente construído de que negros e
indígenas são racialmente inferiores, caso contrário, não haveria explicação para o modo distinto com que
imigrantes brancos são bem recebidos. Assim, ainda que haja um horror de certa parcela da sociedade
com os horrores e a ilegalidade” do tratamento recebido por haitianos e bolivianos, essa indignação não é
capaz de se traduzir numa ação política efetiva contra essa violência e nem impedir o uso da força de
trabalho destes imigrantes pela indústria capitalista (N.A.).
Talvez a pergunta sobre a relação estrutural entre racismo e reprodução
capitalista possa ganhar profundidade se atentarmos para os conceitos utilizados por
Marx na descrição das fases constitutivas das relações de produção capitalistas:
subsunção formal do trabalho ao capital e subsunção real do trabalho ao capital.
26
“Assim se constitui um modo de produção especificamente capitalista, no qual o controle do processo
de produção pelo capitalista e o seu domínio sobre o operário é completo, isto é, agora ele tem a efetiva
capacidade de dispor dos meios de produção, configurando a subsunção real do trabalho ao capital”.
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras expressões; Dobra, 2014,
p. 44.
27
BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and Nation: ambiguous identity.
Londres, Reino Unido: Verso, 2010, p. 04.
28
Idem, Ibidem.
compreensível no nível concreto das relações sociais, em que experiências sociais das
mais diversas fossem integradas à dinâmica do capitalismo29.
31
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras expressões; Dobra
Editorial, 2014.
“a escravidão deve ser apreendida por meio de sua relação, via mercado mundial, com
32
as outras formas de trabalho que o constituem, sejam assalariadas ou não” .
32
MARQUESE, Rafael Bivar. As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia
sobre a escravidão brasileira. Revista de História. São Paulo, nº 169, julho / dezembro de 2013 , p. 223-
253.
A “ordem” produzida pelo racismo não afeta apenas a sociedade em suas
relações exteriores (como no caso da colonização), mas atinge, sobretudo, a sua
configuração interna, estipulando padrões hierárquicos, naturalizando formas históricas
de dominação e justificando a intervenção estatal sobre grupos sociais discriminados,
como se pode observar no cotidiano das populações dos países acima mencionados.
33
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo, Companhia da Letras, 2014.
Racismo e crise
34
Sobre a crise no capitalismo ver: HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2011.
Após o fim da segunda grande guerra, a formação do Estado de bem estar
social e a “ampliação da cidadania” não significou o fim do racismo. O racismo apenas
passou a estruturar a desigualdade e a sua percepção a partir de outros termos.
Trabalhadores vinculados a sindicatos fortes e à indústria monopolista eram, em geral,
trabalhadores brancos; já no setor concorrencial, de baixos salários e convivendo com a
pobreza estavam os negros35. Por isso que a prosperidade da era de ouro do capitalismo
não impediu que, no centro do capitalismo, surgisse o movimento pelos direitos civis,
reprimido, no mais das vezes, com extrema violência por um Estado que não poderia ser
tolerante com grupos que contestassem o bom funcionamento da “democracia”. O
Estado de bem estar social foi uma mudança nos padrões de intervenção estatal diante
das exigências da acumulação capitalista e que teve como estratégia principal a
integração de parte dos explorados à cidadania. Mas, ao mesmo tempo, o welfare state
não dispensou o uso sistemático da violência contra as minorias.
Todavia, a partir dos anos 70, com a crise do Estado de Bem Estar social
e do modelo fordista de produção, e o predomínio do capital financeiro sobre o capital
industrial, o racismo ganha uma nova configuração. O fim do consumo de massa como
padrão produtivo predominante, o enfraquecimento dos sindicatos, a produção baseada
em alta tecnologia e a supressão dos direitos sociais em nome da austeridade fiscal
tornaram populações inteiras submetidas às mais precárias condições ou simplesmente
abandonadas à própria sorte, anunciando o que muitos consideram o esgotamento do
modelo expansivo do capital. O resultado disso é que os antagonismos se acentuam, as
contradições se agudizam, e o racismo, o sexismo e todas as discriminações sociais
assumem sua face mais cruel nesse contexto de disputa e esfacelamento da sociabilidade
regida pelo trabalho abstrato. Assim, o encarceramento em massa, fome, epidemias ou,
simplesmente, a eliminação física darão o tom da forma do racismo nesse momento da
história36.
35
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2011, p. 133.
36
“Nos anos 1980 se voltou – depois dos 30 anos gloriosos do pós-Guerra, em que o capitalismo pôde se
expandir como nunca fizera em sua história, a ponto de se consolidar como sociedade mundial sem rivais
– ao pêndulo punitivo. Sinais de esgotamento desta onda expansiva são encontrados por todos os lados. O
desemprego estrutural que resulta de mais uma larga transformação das forças produtivas vai tornando o
trabalho escasso e obsoleto. A pobreza absoluta com fome em massa, juntamente com a morte por
epidemias, passam a se repetir com uma mesmice sem trégua. A dissolução desta forma social regida pela
valorização pura do valor voltou à pauta da objetividade em que o mundo se reproduz. Desta vez, as
resistências contra estes sinais não são apenas dos conservadores. A sanha por mais prisões e por se
O encarceramento e o assassinato pelas forças policiais do Estado são
“aceitos” por parte da sociedade justamente pelo fato deste processo atingir
especialmente jovens negros e moradores da periferia, ocasião em que a
compatibilidade da organização espacial e racial da sociedade mostra-se totalmente
compatível com o funcionamento regular do capitalismo.
Por fim, como nos alerta Joachim Hirsch37 a ligação entre capitalismo,
nacionalismo, racismo e sexismo não é simples e funcional. Ao longo da história esta
ligação ganhou os mais diferentes significados, formas e conteúdos, a depender das
lutas sociais e das relações de força travadas nacional e internacionalmente. Mas o que
se pode observar até o momento é que, historicamente, o capitalismo e suas formas
sociais básicas jamais se descolaram do racismo e do sexismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CABRAL, Amilcar. Obras escolhidas: unidade e luta (vols, I e II). Cabo Verde:
Fundação Amilcar Cabral, 2013.
CALDAS, Camilo. O Estado. São Paulo: Estúdio Editores, 2014.
COX, Oliver C. Caste, Class & Race: a study in social dynamics. NY, EUA: Monthly
Rewiew, 1970.
prender todos os que parecem ameaçadores parecem não ter limites. No mundo inteiro, do Estados
Unidos à China, e desta à Europa, passando pelo Brasil, estão encarcerando populações gigantescas. Esta
tendência revela uma irracionalidade sem saída [...]” MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas. Rio de
Janeiro: Revan, 2012, p. 127.
37
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processo de transformação do sistema capitalista de
Estados. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 89.
DAVIS, Angela. Women, Race and Class. NY, EUA: Random House, 1983.
DAVOGLIO, Pedro Eduardo Zini. Anti-humanismo teórico e ideologia jurídica em
Althusser. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie. Dissertação de mestrado.
2014.
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
MILLS, Charles. The Racial Contract. NY, EUA: Cornell University Press, 1999
MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Fundação Maurício
Grabois; Anita Garibaldi, 2014.
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras
expressões; Dobra, 2014.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo, Companhia da Letras,
2014.
SHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude,
hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2015.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
Numeração de páginas original à esquerda, na seqüência da digitação, sinalizada por
linhas. Todas as palavras do texto sublinhadas estão assim no original, com exceção
dos títulos de obras ou eventos, que foram alterados para itálico.
As notas de rodapé explicativas foram inseridas pela digitadora.
As notas de rodapé do original têm sua numeração marcada por parênteses e recuo de
texto ao fim de sua página correspondente.
223
Lélia Gonzales
... Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles, dizendo que
era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a gente foi muito bem recebido e tratado
com toda consideração. Chamaram até prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo
discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente
fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na
mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá gente sentar junto com eles. Mas a gente se
arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão
ocupados, ensinado um monte de coisa pro crioléu da platéia, que nem repararam que se
apertasse um pouco até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar juto na mesa.
Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega prá cá, chega
prá lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado ela
prá responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no microfone e começou a
reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A
negrada parecia que tava esperando por isso prá bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar,
vaiar, que nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de
raiva e com razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a gente
se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da
gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma porção
de coisa prá gente da gente? Teve um hora que não deu prá agüentar aquela zoada toda da
negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu prá cima de
um crioulo que tinha pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a festa acabou em
briga...
Agora, aqui prá nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com
a língua nos dentes... Agora ta queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também quem
mandou não saber se comportar? Não é a toa que eles vivem dizendo que “preto quando não
caga na entrada, caga na saída”...
1
Apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, IV
Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 31 de outubro
de 1980.
224
A longa epígrafe diz muito além do que ela conta. De saída, o que se percebe é a
identificação do dominado com o dominador. E isso já foi muito bem analisado por
um Fanon, por exemplo. Nossa tentativa aqui é a de uma indagação sobre o porquê
dessa identificação. Ou seja, que foi que ocorreu, para que o mito da democracia racial
tenha tido tanta aceitação e divulgação? Quais foram os processos que teriam
determinado sua construção? Que é que ele oculta, para além do que mostra? Como a
mulher negra é situada no seu discurso?
O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno
do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sintomática que
caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação
com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular.
Conseqüentemente, o lugar de onde falaremos põe um outro, aquele é que
habitualmente nós vínhamos colocando em textos anteriores. E a mudança foi se
dando a partir de certas noções que, forçando sua emergência em nosso discurso, nos
levaram a retornar a questão da mulher negra numa outra perspectiva. Trata-se das
noções de mulata, doméstica e mãe preta.
Ali, falamos dessa dupla imagem da mulher negra de hoje: mulata e doméstica. Mas ali
também emergiu a noção de mãe preta, colocada numa nova perspectiva. Mas ficamos
por aí.
O que começou com a descoberta de Freud foi uma outra abordagem da linguagem, uma outra
abordagem da língua, cujo sentido só veio à luz com sua retomada por Lacan. Dizer mais do que
sabe, não saber o que diz, dizer outra coisa que não o que se diz, falar para não dizer nada, não
são mais, no campo freudiano, os defeitos da língua que justificam a criação das línguas formais.
Estas são propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar. Psicanálise e Lógica, uma se
funda sobre o que a outra elimina. A análise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica. Ou
ainda: a análise desencadeia o que a lógica domestica (p. 17).
Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois
assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. E
justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso
que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar?
E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente
porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a
criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho
assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.
A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha
que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele tem
umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual,
criancice, etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia, pois
226
Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem
diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é
bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele
sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto,
elegante e com umas feições tão finas... Nem parece preto.
Por isso, a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente
pretende caracterizar. A gente tá falando das noções de consciência e de memória.
Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da
alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz
presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de
inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da
verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que
memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa
como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando
memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a
memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas
do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí, das duas,
também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que
a consciência faz tudo prá nossa história ser esquecida, tirada de
227
cena. E apela prá tudo nesse sentido (1). Só que isso ta aí... e fala.
II – A Nêga Ativa
As escolas vão desfilar suas cores duplas ou triplas. Predominam as duplas: azul e
branco, verde e rosa, vermelho e branco, amarelo e preto, verde e branco e por aí afora.
Espetáculo feérico, dizem os locutores: plumas, paetês, muito luxo e riqueza.
Imperadores, uiaras, bandeirantes e pioneiros, princesas, orixás, bichos, bichas,
machos, fêmeas, salomões e rainhas de sabá, marajás, escravos, soldados, sóls e luns,
baianas, ciganas, havaianas. Todos sob o comando do ritmo das baterias e do rebolado
das mulatas que, dizem alguns, não estão no mapa. “Olha aquele grupo do carro
alegórico, ali. Que coxas, rapaz” “Veja aquela passista que vem vindo; que bunda, meu
Deus! Olha como ela mexe a barriguinha. Vai ser gostosa assim lá em casa, tesão”.
“Elas me deixam louco, bicho”.
(1) O melhor exemplo de sua eficácia está no barato da ideologia do branqueamento. Pois foi
justamente um crioulo, apelidado de mulato, quem foi o primeiro na sua articulação em
discurso “cinetífico”. A gente ta falando do “seu” Oliveira Vianna. Branqueamento, não
importa em que nível, é o que a consciência cobra da gente, prá mal aceitar a presença da gente,
prá mal aceitar a presença da gente. Se a gente parte prá alguma crioulice, ela arma logo um
esquema prá gente “se comportar como gente”. E tem muita gente da gente que só embarca
nessa.
228
Toda jovem negra, que desfila no mais humilde bloco do mais longínquo subúrbio,
sonha com a passarela da Marquês de Sapucaí. Sonha com esse sonho dourado, conto
de fadas no qual “A Lua te invejando fez careta/ Porque, mulata, tu não és deste
planeta”. E por que não?
Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra.
Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de
maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento
carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura
na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu
endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se
constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A
nomeação vai depender da situação em que somos vistas (2).
(2) Nesse sentido vale apontar para um tipo de experiência muito comum. Refiro-me aos
vendedores que batem à porta da minha casa e, quando abro, perguntam gentilmente: “A
madame está?” Sempre lhes respondo que a madame saiu e, mais uma vez, constato como
somos vistas pelo “cordial” brasileiro. Outro tipo de pergunta que se costuma fazer, mas aí em
lugares públicos: “Você trabalha na televisão?” ou “Você é artista?” E a gente sabe que significa
esse “trabalho” e essa “arte”.
229
Se a gente dá uma volta pelo tempo da escravidão, a gente pode encontrar muita coisa
interessante. Muita coisa que explica essa confusão toda que o branco faz com a gente
porque a gente é preto. Prá gente que é preta então, nem se fala. Será que as avós da
gente, as mucamas, fizeram alguma coisa prá eles tratarem a gente desse jeito? Mas,
quê era uma mucama? O Aurélio assim define:
Mucama. (Do quimbumdo mu’kama ‘amásia escrava’) S. f. Bras. A escrava negra moça e de
estimação que era escolhida para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar pessoas da família
e que, por vezes era ama-de-leite. (Os grifos são nossos).
Vejamos o que nos dizem outros textos a respeito de mucama, June E. Hahner, em A
Mulher no Brasil (1978) assim se expressa:
... a escrava de cor criou para a mulher branca das casas grandes e das menores, condições de vida
amena, fácil e da maior parte das vezes ociosa. Cozinhava, lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos
o chão das salas e dos quartos, cuidava dos filhos da senhora e satisfazia as exigências do senhor. Tinha
seus próprios filhos, o dever e a fatal solidariedade de amparar seu companheiro, de sofrer com os
outros escravos da senzala e do eito e de submeter-se aos castigos corporais que lhe eram,
pessoalmente, destinados. (...) O amor para a escrava (...) tinha aspectos de verdadeiro pesadelo. As
incursões desaforadas e aviltantes do senhor, filhos e parentes pelas senzalas, a desfaçatez dos padres a
quem as Ordenações Filipinas, com seus castigos pecuniários e degredo para a África, não intimidavam
nem os fazia desistir dos concubinatos e mancebias com as escravas.
(p. 120 e 121)
Mais adiante, citando José Honório Rodrigues, ela se refere a um documento do final
do século XVIII pelo qual o vice-rei do Brasil na época excluía de suas funções de
capitão-mor que manifestara “baixos sentimentos” e manchara seu sangue pelo fato de
se ter casado com uma negra. Já naqueles tempos, observa-se de que maneira a
consciência (revestida de seu caráter de autoridade, no caso) buscava impor suas regras
do jogo: concubinagem tudo bem; mas
230
casamento é demais.
as relações sexuais entre os senhores e escravas desencadeavam, por mais primárias e animais
que fossem, processos de interação social incongruentes com as expectativas de comportamento,
que presidiam à estratificação em castas. Assim, não apenas homens brancos e negros se
tornavam concorrentes na disputa das negras, mas também mulheres brancas e negras
disputavam a atenção do homem branco.
(p. 165)
2
Trecho ilegível na cópia digitada.
231
de serviço. E, pensando bem, entrada de serviço é algo meio maroto, ambíguo, pois
sem querer remete a gente prá outras entradas (não é “seu” síndico?). É por aí que a
gente saca que não dá prá fingir que a outra função da mucama tenha sido esquecida.
Está aí.
Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da vida,
quem sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente
porque é ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar
praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de
perseguição policial sistemática (esquadrões da morte, “mãos brancas estão aí matando
negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos. Por
outro lado, que se veja quem é a maioria da população carcerária deste país).
Cabe de novo perguntar: como é que a gente chegou a este estado de coisas, com
abolição e tudo em cima? Quem responde prá gente é um branco muito importante
(pois é cientista social, uai) chamado Caio Prado Junior. Num livro chamado Formação
do Brasil Contemporâneo (1976), ele diz uma porção de coisas interessantes sobre o tema
da escravidão:
Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá na sociedade colonial, fator trabalho e
fator sexual, não determinará senão relações elementares a muito simples. (...) A outra função do
escravo, ou antes da mulher escrava, instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus
senhores e dominadores, não tem um efeito menos elementar. Não ultrapassara também o nível
primário e puramente animal do contato sexual, não se aproximando senão muito remotamente
da esfera propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve de todo um complexo
de emoções e sentimentos tão amplos que chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele
ato que afinal lhe deu origem.
(p. 342 e 343)
Depois que a gente lê um barato assim, nem dá vontade de dizer nada porque é um
prato feito. Mas vamos lá. Quanto aos dois fatos apontados e conjugados, é só dar uma
olhadinha, de novo, no texto de Heleieth. Ela dá um baile no autor, dentro do mesmo
espaço discursivo em que ele se colocou. Mas, nosso registro é outro, vamos dar nossa
chamadinha também. Pelo exposto, a gente tem a impressão de que branco não trepa,
mas comete ato sexual e que chama tesão de necessidade. E ainda por cima, diz que
animal só tira sarro. Assim não dá prá entender, pois não? Mas na verdade, até que dá.
Pois o texto possui riqueza de sentido, na medida em
232
Nessa perspectiva, ele pouco teria a dizer sobre essa mulher negra, seu homem, seus
irmãos e seus filhos, de que vínhamos falando. Exatamente porque ele lhes nega o
estatuto de sujeito humano. Trata-os sempre como objeto. Até mesmo como objeto de
saber. É por aí que a gente compreende a resistência de certas análises que, ao
insistirem na prioridade da luta de classes, se negam a incorporar as categorias de raça
e sexo. Ou sejam, insistem em esquecê-las (Freud, 1925) (3).
E retomando a questão da mulher negra, a gente vai reproduzir uma coisa que a gente
escreveu há algum tempo.
(3) Que se leia o Jornal do Brasil de 28.10.1980, para se ter uma idéia de como se dá esse
“esquecimento”. Trata-se de mais um caso de discriminação racial de uma mulher negra; no
caso uma professora. Como a história resultou em morte, indo para a alçada judicial, o
criminoso, juntamente com seus “cúmplices” afirmam que a causa do crime não foi o seu
racismo, mas a incompetência da professora.
233
psicológica através do medo. A longo prazo, o que se visa é o impedimento de qualquer forma de
unidade do grupo dominado, mediante à utilização de todos os meios que perpetuem a sua
divisão interna. Enquanto isso, o discurso dominante justifica a atuação desse aparelho
repressivo, falando do de ordem e segurança sociais (Gonzales, 1979c).
Pelo visto, e respondendo à pergunta que a gente fez mais atrás, parece que a gente não
chegou a esse estado de coisas. O que parece é que a gente nunca saiu dele. Basta a gente
dar uma relida no que a Hahner e a Heleieth disseram. Acontece que a mucama
“permitida”, a empregada doméstica, só faz cutucar a culpabilidade branca porque ela
continua sendo a mucama com todas as letras. Por isso ela é violenta e concretamente
reprimida. Os exemplos não faltam nesse sentido; se a gente articular divisão racial e
sexual de trabalho fica até simples. Por que será que ela só desempenha atividades que não
implicam em “lidar com o público”? Ou seja, em atividades onde não pode ser vista? Por
que os anúncios de emprego falam tanto em “boa aparência”? Por que será que, nas casas
das madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira e raramente copeira?
Por que é “natural” que ela seja a servente nas escolas, supermercados, hospitais, etc e tal?
E quando, como no famoso “caso Marli”3 (que tem sua contrapartida no “caso Aézio”4
que, afinal, deu no que deu), ela bota a boca no trombone, denunciando o que estão
fazendo com homens de sua raça? Aí as coisas ficam realmente pretas e há que dar um
jeito. Ou se parte para a ridicularização ou se assume a culpabilidade mediante a estratégia
de não assumi-la. Deu pra sacar? A gente se explica: os programas radiofônicos ditos
populares são useiros e vezeiros na arte de ridicularizar a crioula que defende seu crioulo
das investidas policiais (ela sabe o que vai acontecer a ele, né? O “caso Aézio” tai de
prova). Que se escute as seções policiais desses programas. Afinal um dos meios mais
eficientes de fugir à angústia é ridicularizar, é rir daquilo que a provoca. Já o “caso Marli”,
por exemplo, é levado a sério, tão a sério que ela tem que se esconder. É sério porque se
trata do seu irmão (e não do seu homem); portanto, nada melhor para neutralizar a
culpabilidade despertada pelo seu ato do que o gesto de folclorizá-la,de transformá-la
numa “Antógina Negra”, na heroína, única e inigualável. Com isso a massa anônima das
Arlis é esquecida, recalcada. E tudo continua legal nesse país tropical. Elementar, meu
caro Watson.
3
Em 1980, em Belford Roxo, uma mulher negra, de uns 27 anos, Marli Pereira da Silva, em plena ditadura
militar, resolvera enfrentar os grupos de extermínio para afirmar que seu irmão Paulo Pereira da Silva, de 19
anos, fora assassinado por policiais militares infiltrados nestes grupos. Sem temer as ameaças de morte, Marli
esteve em delegacias e batalhões tentando reconhecer os assassinos de seu irmão. Uma fotografia dela nos jornais
da época destaca a mulher pobre e negra olhando firme para a multidão de policiais perfilados no pátio do
batalhão da Polícia Militar, em Nova Iguaçu, numa tentativa de reconhecer os assassinos.
4
“Caso Aézio”: um servente de pedreiro morreu torturado na cela de uma delegacia na Barra da Tijuca em 1979.
234
É por aí que a gente entende porque dizem certas coisas, pensando que estão xingando
a gente. Tem uma música antiga chamada “Nêga do cabelo duro” que mostra
direitinho porque eles querem que o cabelo da gente fique bom, liso e mole, né? É por
isso que dizem que a gente tem beiços em vez de lábios, fornalha em vez de nariz e
cabelo ruim (porque é duro). E quando querem elogiar a gente dizem que a gente tem
feições finas (e fino se opõe a grosso, né?). E tem gente que acredita tanto nisso que
acaba usando creme prá clarear, esticando os cabelos, virando leidi e ficando com
vergonha de ser preta. Pura besteira. Se bobear, a gente nem tem que se defender com
os xingamentos que se referem diretamente ao fato da gente ser preta. E a gente pode
até dar um exemplo que põe os pintos nos is.
Não faz muito tempo que a gente estava conversando com outras mulheres, num papo
sobre a situação da mulher no Brasil. Foi aí que uma delas contou uma história muito
reveladora, que complementa o que a gente já sabe sobre a vida sexual da rapaziada
branca até não faz muito: iniciação e prática com as crioulas. É aí que entra a história
que foi contada prá gente (brigada, Ione). Quando chegava na hora do casamento com
a pura, frágil e inocente virgem branca, na hora da tal noite de núpcias, a rapaziada
simplesmente brochava. Já imaginaram o vexame? E onde é que estava o remédio
providencial que permitia a consumação das bodas? Bastava o nubente cheirar uma
roupa de crioula que tivesse sido usada, para “logo apresentar os documentos”. E a
gente ficou pensando nessa prática, tão comum nos intramuros da casa grande, da
utilização desse santo remédio chamado catinga de crioula (depois deslocado par ao
cheiro de corpo ou simplesmente cc). E fica fácil entender quando xingam a gente de
negra suja, né?
Por essas e outras também, que dá vontade de rir quando a gente continua lendo o livro
do “seu” Caio Prado Junior (1976, p. 343). Aquele trecho, que a gente reproduziu aqui,
termina com uma nota de rodapé, onde ele reforça todas as babaquices que diz da
gente, citando um autor francês em francês (só que a gente traduz):
(2) “O milagre do amor humano é que, sobre um instinto tão simples, o desejo, ele constrói os
edifícios de sentimentos os mais complexos e delicados”. (André Maurois) É este milagre que o
amor da senzala não realizou e não podia realizar no Brasil-colônia. (Grifos nossos).
Pelo exposto, parece que nem Freud conseguiu melhor definir neurose do que André
Maurois. Quando à negativa do “seu” Caio Prado Júnior,
235
Infelizmente, a gente sabe o que ele está afirmando esquecidamente: o amor da senzala
só realizou o milagre da neurose brasileira, graças a essa coisa simplérrima que é o
desejo. Tão simples que Freud passou a vida toda escrevendo sobre ela (talvez porque
não tivesse o que fazer, né Lacan?). Definitivamente, Caio Prado Júnior “detesta”
nossa gente.
A única colher de chá que dá prá gente e quando fala da “figura boa da ama negra” de
Gilberto Freyre, da “mãe preta”, da “bá”, que “cerca o berço da criança brasileira de
uma atmosfera de bondade e ternura” (p. 343). Nessa hora a gente é vista como figura
boa e vira gente. Mas aí ele começa a discutir sobre a diferença entre escravo (coisa) e
negro (gente) prá chegar, de novo, a uma conclusão pessimista sobre ambos.
E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, ao
exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira, como
diz Caio Prado Júnior. Essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é
o pretuguês. A função materna diz respeito à internalização de valores, ao ensino da
língua materna e a uma série de outras coisas
236
mais que vão fazer parte do imaginário da gente (Gonzalez, 1979c). Ela passa prá gente
esse mundo de coisas que a gente vai chamar de linguagem. E graças a ela, ao que ela
passa, a gente entra na ordem da cultura, exatamente porque é ela quem nomeia o pai.
Por ao a gente entende porque, hoje, ninguém quer saber mais de babá preta, só vale
portuguesa. Só que é um pouco tarde, né? A rasteira já está dada.
E justamente por isso tamos aí, usando de jogo de cintura, prá tentar se entender.
Embora falando, a gente, como todo mundo, tá numa de escritura. Por isso a gente vai
tentar apontar praquele que tascou sua assinatura, sua marca, seu selo (aparentemente
sem sê-lo), seu jamega, seu sobre-nome como pai dessa “adolescente” neurótica que a
gente conhece como cultura brasileira. E quando se fala de pai tá se falando de função
simbólica por excelência. Já diz o ditado popular que “Filhos de minha filha, meus
netos são; filhos do meu filho, serão ou não”. Função paterna é isso aí. É muito mais
questão de assumir do que de ter certeza. Ela não é outra coisa senão a função de
ausentificação que promove a castração. É por aí, graças a Frege, que a gente pode
dizer que, como o zero, ela se caracteriza como a escrita de uma ausência.
o nome que se atribui à castração. E o que é que falta para essa ausência não ser ausente, para
completar essa série? Um objeto que não há, que é retirado de saída. Só que os mitos e as
construções culturais, etc, vão erigir alguma coisa, alguma ficção para colocar nesse lugar; ou
seja, qual é o nome do Pai e qual é o nome do lugar-tenente do Nome do Pai? Por um motivo
importante, porque se eu souber qual é o nome do lugar-tenente do Nome do Pai, acharei esse
um (S1) que talvez não seja outra coisa senão o nome do Nome do Pai.
É por isso que a gente falou em Sobre-nome, isto é, nesse S1 que inaugura a ordem
significante de nossa cultura. Acompanhando as sacações de Magno, a gente fecha com
ele ao atribuir ao significante Negro o lugar de S1. Prá isso, basta que a gente pense
nesse mito de origem elaborado pelo Mário de Andrade que é o Macunaíma. Como
todo mundo sabe, Macunaíma nasceu negro, “preto retinto e filho do medo da noite”.
Depois ele branqueia como muito crioulo que a gente conhece, que, se bobear, quer
virar nórdico. É por aí que dá prá gente entender a ideologia do branqueamento, a
lógica da dominação que visa a dominação da negrada mediante a internalização e a
reprodução dos valores brancos ocidentais. Mas a gente não pode esquecer que
Macunaíma é o herói da nossa gente. E ninguém melhor do que um herói para exercer
a função paterna (4). Isto sem falar nos outros como Zumbi (5), Ganga-Zumba e até
mesmo Pelé. Que se pense nesse outro herói chamado de a Alegria do Povo, nascido
em Pau-Grande. Eles estão ao como repetição do S1, como representações populares do
herói. Os heróis oficiais não têm nada a ver com isso, são produto da lógica da
dominação, não têm nada a ver com “a alma de nossa gente”.
É por essa via que dá prá entender uma série de falas contra o negro e que são como
modos de ocultação, de não assunção da própria castração. Por que será que dizem que
preto correndo é ladrão? Ladrão de que? Talvez de uma onipotência fálica. Por que
será que
5
O registro histórico afirma que Zumbi foi morto em 1695. Levando em conta a relação entre os números, é
possível que aqui se trate apenas de uma inversão não planejada dos números durante a datilografia do artigo.
238
dizem que preto quando não caga na entrada, caga na saída? Por que será que um dos
instrumentos de tortura utilizados pela polícia da Baixada é chamado de “mulata
assanhada” (cabo de vassoura que introduzem no ânus dos presos?). Por que será que
tudo aquilo que o incomoda é chamado de coisa de preto? Por que será que ao ler o
Aurélio, no verbete negro, a gente encontra uma polissemia marcada pelo pejorativo e
pelo negativo? Por que será que “seu” Bispo fica tão apavorado com a ameaça da
africanização do Brasil? Por que será que ele chama isso de regressão? Por que vivem
dizendo prá gente se por no lugar da gente? Que lugar é esse? Por que será que o
racismo brasileiro tem vergonha de si mesmo? Por que será que se tem “o preconceito
de não ter preconceito” e ao mesmo tempo se acha natural que o lugar do negro seja
nas favelas, cortiços e alagados?
É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a
gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a
presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma
africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo,
acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais,
que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando
pretuguês.
E por falar em pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da
cultura brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo que, por sua vez, e
juntamente com o ambundo, provém do tronco linguístico bantu que “casualmente” se
chama bunda). E dizem que significante não marca... Marca bobeira quem pensa assim
(6). De repente bunda é língua, é linguagem, é sentido é coisa. De repente é
desbundante perceber que o discurso da consciência, o discurso do poder dominante,
quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo brasileiro, e de ascendência européia,
muito civilizado, etc e tal.
Só que na hora de mostrar o que eles chamam de “coisas nossas”, é um tal de falar de
samba, tutu, maracatu, frevo, candomblé, umbanda, escola de samba e por aí afora.
Quando querem falar do
(6) Basta olhar na tevê e sacar como as multi transam bem os significantes que nos pegam “pelo
pé”. A U.S. Top tem um anúncio de Jean que só mostra o pessoal rebolando a bunda e isto sem
falar na Sardinha 88, “a mais gostosa do Brasil”.
239
E logo pinta a pergunta. Como é que pode? Que inversão é essa? Que subversão é essa?
A dialética do Senhor e do Escravo dá prá explicar o barato.
(7) Um anúncio de bronzeador utilizado nos ônibus que trafegam na zona sul do Rio de Janeiro,
reproduz um ato falho, uma mancada do discurso consciente, ao afirmar: Primeiro a cor,
depois o amor. Bandeira, né?
240
acaso que a mulher negra, enquanto mulata, como que sabendo, posto que conhece,
bota prá quebrar com seu rebolado. Quando se diz que o português inventou a mulata,
isso nos remete exatamente ao fato de ele ter instituído a raça negra como objeto a; e
mulata é crioula, ou seja, negra nascida no Brasil, não importando as construções
baseadas nos diferentes tons de pele. Isso aí tem mais a ver com as explicações do saber
constituído do que com o conhecimento.
Na dialética Senhor-Escravo, porque é a dialética da nossa fundação (...), aonde sempre o senhor
se apropria do saber do escravo, a inseminação, por vias desse saber apropriado, como marca que
vai dar em relação com o S2, não foi produzida pelo escravo, que na dialética, retoma o lugar do
senhor, subrecepticiamente, como todo escravo. (...) quer dizer, o lugar do senhor era de outrem,
mas a produção e a apropriação do lugar-tenente de nome do pai veio marcada, afinal, por esse
elemento africano.
Nome do Pai?
Se a batalha discursiva, em termos de cultura brasileira, foi ganha pelo negro, que terá
ocorrido com aquele que segundo os cálculos deles, ocuparia o lugar do senhor?
Estamos falando do europeu, do branco, do dominador. Desbancando do lugar do pai
ele só pode ser, como diz o Magno, o tio ou o corno; do mesmo modo que a européia
acabou sendo a outra.
BIBLIOGRAFIA
1. Faca suja de sangue com lâmina amassada, cabo quebrado e com fios de
cabelo enrolados: apresentação
“A vítima foi identificada como Sandro Almeida Lúcio2, com 24 anos de idade, um
travesti que ‘fazia ponto’ naquele local e era conhecido por ‘Safira’ ou ‘Manca’, ante
uma deficiência física na perna”. Assim, o Promotor de Justiça descreveu Safira na
segunda página da denúncia que iniciou o processo judicial que a teve como vítima.
Segundo a tal denúncia e as conclusões do relatório final do inquérito policial, Safira foi
assassinada por volta das 4h30 da madrugada do dia 15 de abril de 2011. Achava-se numa
rua do centro de Campina Grande, “realizando ‘programas’”, quando foi abordada por
homens que desceram de um veículo Celta de cor preta, rodas de liga leve, duas portas,
com um adesivo de cor branca na parte superior do para-brisa traseiro. Do carro desceram
três homens. Um quarto homem permaneceu na direção do automóvel. Assim que os viu,
Safira correu, tentou escapar. Sua perna deficiente, no entanto, não permitiu que ela fosse
muito longe. Um dos homens a derrubou numa rasteira. Os outros dois a esfaquearam
mais de trinta vezes. Cortaram, inclusive, a “veia jugular do pescoço da vítima”. Os
homens voltaram ao carro e se foram. Mas uma das armas, uma faca-peixeira de sete
polegadas, foi deixada no local do homicídio e posteriormente apreendida pelos policiais.
Todo o episódio foi filmado pelas câmeras de rua da Superintendência de Trânsito e
Transporte Público da cidade. Dois irmãos de Safira procuraram a delegacia de polícia e
informaram que um carro com as mesmas características daquele utilizado no crime
passou, por duas vezes, em frente ao velório da vítima. De acordo com os dois irmãos, o
carro pertenceria aos Cangaceiros, “uma família conhecida na esfera policial por praticar
homicídios e tráfico de drogas”. Uma decisão judicial permitiu a realização da prisão
1
Roberto Efrem Filho é professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da
Paraíba. Integra o setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra em Pernambuco
e o Coletivo de Diversidade Sexual e de Gênero da Consulta Popular em Recife.
2
Sandro Almeida Lúcio, Safira, Cangaceiros, Henrique e os demais nomes próprios apresentados em
itálico neste texto são ficcionais, ou seja, não correspondem aos nomes originais dos sujeitos. A
ficcionalização dos nomes consiste numa estratégia comum nas ciências sociais e objetiva, por exemplo,
proteger identidades. Também estão em itálico as categorias êmicas e as expressões sob rasura, como
homofobia, transfobia, luta etc.
1
preventiva de um dos suspeitos e uma operação de busca e apreensão junto à casa de sua
mãe. Na garagem da casa, encontrou-se o mencionado Celta. Na cozinha, achava-se a
provável segunda arma empregada no assassinato, “uma faca suja de sangue com lâmina
amassada, cabo quebrado e com fios de cabelos enrolados”. Os policiais também
encontraram, na casa, uma espingarda calibre 12 e Henrique, um adolescente de 17 anos,
irmão de dois suspeitos, que acabou por confessar haver cometido o crime contra Safira.
Henrique indicou ainda o nome de outros dois rapazes que teriam participado do
homicídio. Livrou, contudo, seus irmãos. Em sua confissão junto à delegacia, no dia 17
de abril, Henrique assumiu o planejamento e a execução da morte. Alegou que, alguns
dias antes, havia decidido matar Safira por conta de uma vingança. Contou que Safira
teria agenciado, para ele, os serviços de uma prostituta, mas que a própria Safira se valeu
da situação para, ainda antes do programa, roubar oitocentos reais que Henrique trazia
consigo. Esse dinheiro corresponderia ao “apurado do trailer” de seu irmão, uma
lanchonete ou um bar onde Henrique, segundo diz, trabalhava. Questionado, na
delegacia, sobre as razões da brutalidade do crime, o rapaz explicou que “se desse apenas
uma facada na vítima, já iria dar ‘cana’, então decidiu dar os demais golpes”. A Delegada
de Polícia responsável pelas investigações adotou a versão dos fatos apresentada pelo
adolescente. “Embora nenhuma das testemunhas relate com detalhes a motivação do
crime realizado com tanta violência e ira, percebe-se pelas próprias oitivas dos autores do
homicídio que se tratava de um roubo provocado pela vítima e vingado com requintes de
sofrimento para a vítima que não teve como se defender de tantos algozes e de tantos
golpes de faca”. A partir do resultado das investigações, o Promotor de Justiça também
aderiu à versão de Henrique. Nem no relatório final do inquérito, nem na denúncia
produzida pelo Promotor, a palavra “homofobia” foi escrita. O Movimento LGBT,
entretanto, reagiu à sua ausência. Diante das notícias sobre o assassinato de Safira e as
posições tomadas pela Delegada, militantes do Movimento procuraram representantes do
Governo da Paraíba, requisitaram explicações, pretendiam que a homofobia3 fosse
3
Embora Safira fosse identificada – e possivelmente se identificasse – como uma travesti, o termo utilizado
nas narrativas dos militantes do Movimento LGBT à época de sua morte, em 2011, e durante o trabalho de
campo que possibilitou este texto, em 2012 e 2013, foi homofobia. Àquela época, expressões hoje presentes
no vocabulário dos militantes, como LGBTfobia, lesbofobia, bifobia ou transfobia, ainda não se
encontravam presentes no cotidiano do Movimento. Se a pesquisa houvesse sido realizada mais
recentemente, é provável que os mesmos militantes empregassem a expressão transfobia – e não homofobia
– para tratar da violência perpetrada contra Safira. Resolvi, entretanto, manter o uso da palavra homofobia
em respeito ao que me foi dito. Transpor formas classificatórias do presente para o passado seria um
equívoco metodológico pois ensejaria, no mínimo, o ocultamento da historicidade e, inclusive, dos conflitos
historicamente existentes a respeito dessas designações.
2
explicitada para ser combatida. O Secretário de Segurança, porém, recusou a
interpretação dos fatos oferecida pelos militantes. “Não existem crimes homofóbicos” –
argumentou o Secretário4.
***
Safira morreu em 15 de abril de 2011. De acordo com os dados apresentados por
organizações do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais,
naquele ano houve 266 homicídios de LGBT no país, 21 apenas na Paraíba. O caso de
Safira resta entre os mais emblemáticos deles. Tornado público através das imagens
capturadas pelas câmeras da Superintendência de Trânsito, explorado pelos meios de
comunicação, presente nas linhas do relatório anual sobre “crimes relacionados ao ódio
contra homossexuais no Estado da Paraíba”, produzido pelo Movimento do Espírito Lilás
e por seus parceiros, o “caso Safira” acabou por se converter numa batalha pela
possibilidade de designação da “homofobia”. De um lado, como dito, agentes de Estado,
como a Delegada responsável pelas investigações e o próprio Secretário de Segurança,
sustentavam a hipótese da “vingança”. Do outro lado, integrantes do Movimento LGBT
contavam cada uma das trinta facadas empreendidas contra o corpo de Safira e investiam
incisivamente na homofobia como chave explicativa para o homicídio.
Eu cheguei ao “caso Safira” através das linhas daquele relatório e das narrativas
sobre violência tecidas pelos militantes do Movimento LGBT que passei a entrevistar e
acompanhar em razão de minha pesquisa de doutorado. No ano seguinte à morte de
Safira, em 2012, eu iniciei meus estudos na Universidade Estadual de Campinas, a
Unicamp, e, sob a orientação de Regina Facchini, comecei o trabalho de campo que
oportunizaria a minha tese (Efrem Filho, 2017a). Safira se tornaria imprescindível para
a pesquisa: sua morte marcava indelevelmente aquelas narrativas produzidas pelos
militantes, expunha conflitos característicos às instâncias de Estado, indicava modos
como gênero e sexualidade compunham tais instâncias, suas lógicas e as narrativas sobre
violência reivindicadas pelos integrantes do Movimento LGBT para a realização das lutas
por direitos ou por “justiça” em que se acham implicados. Nessas narrativas, Safira
4
Agradeço a Francisco Lúcio de Assis Neto pelo acesso aos autos do processo judicial que tem Safira como
vítima. Lúcio conheceu o “caso” de Safira através da leitura de “Corpos brutalizados” (Efrem Filho, 2016).
À época, ele era estudante do curso de direito da UFPB e, sob minha orientação, dedicava-se a seu trabalho
de conclusão de curso, que acabou tratando do referido caso. Foi Lúcio quem, depois de muitas tentativas,
conseguiu encontrar os autos do processo em meio à confusão burocrática do Tribunal de Justiça da Paraíba.
Por sugestão minha, sua monografia também se intitulou “30 facadas”, como o terceiro capítulo de minha
tese que, dentre outros “casos”, trata das narrativas judiciais e policiais acerca da morte de Safira.
3
carecia de ser constituída como “vítima de homofobia”, enquanto que nas conclusões da
Delegada de Polícia, Safira consistia numa “criminosa”.
Neste texto, valendo-me da análise dos autos do inquérito policial e de parte do
processo judicial que tiveram Safira como vítima e das entrevistas realizadas no
transcurso da pesquisa, eu procuro discutir: a) o acionamento das “imagens de
brutalidade”, como aquelas formadas pelas referências às trinta facadas que vitimaram
Safira, em meio às disputas pela caracterização da homofobia; b) a definição da
homofobia ou da transfobia como chave de inteligibilidade para a compreensão das
relações de gênero e de sexualidade que constituem casos como o de Safira; c) a
localização do assassinato no interior do que venho chamando de “reciprocidades
constitutivas” entre relações de classe, gênero, sexualidade, racialização, geração,
território etc.; e, enfim, d) a correlação entre a “criminalização” de Safira – ela, afinal, é
descrita como uma “ladra” – e aquelas reciprocidades.
5
Como visto, 04 homens estavam no Celta que alcançou Safira naquela madrugada de 15 de abril de 2011.
André, no entanto, parece se confundir e fala em cinco homens.
4
Os conflitos em torno da designação da homofobia – ou da transfobia – como
“causa” das violências cometidas contra LGBT aparecem frequentemente nas denúncias
desempenhadas por militantes do Movimento e atravessam o seu cotidiano de lutas.
Associadas a reclamações sobre as impunidades, ou seja, sobre a notável quantidade de
casos que restam sem solução ou punição, essas denúncias envolvem tanto a necessidade
de disputar a legibilidade da vítima, sua apreensão como uma vítima legítima, merecedora
da atenção das instâncias estatais competentes, quanto a necessidade de fazer reconhecer
a existência da transfobia ou da homofobia nesses episódios de violência. Segundo venho
observando, o esforço de constituição da vítima como uma vítima é correlato ao esforço
de explicação do gênero e da sexualidade como motivos da violência.
A constituição da vítima requer, de costume, a mobilização das convenções
morais disponíveis, sua aproximação narrativa a determinados padrões sociais, algo
bastante semelhante ao que Mariza Corrêa (1083) avaliou acerca das narrativas judiciais
sobre as mulheres, vítimas ou autoras, em casos de violência letal intraconjugal.
Corresponder à imagem de uma “boa mãe” ou de uma “cuidadosa dona de casa”
possibilitaria mais facilmente a aceitação da mulher como vítima e a consequente
condenação do seu marido ou companheiro, aquele que a matou. O manejo dessas
convenções morais, contudo, faz-se mais difícil à medida em que a vítima discente dos
mencionados padrões, certamente baseados em noções de gênero, e não se adequa às
expectativas morais de “passividade” e de “fragilidade”, por exemplo.
Safira, de certo, tensiona aquelas convenções. Achava-se bem distante da figura
da “boa mãe”, dedicava-se à prostituição de rua, fora acusada de roubo e, afinal, era uma
travesti, um sujeito que embaralha as estabilidades identitárias de gênero e de sexualidade
e que, como notou Néstor Perlongher (2008), costuma ser caracterizada como uma
persona ameaçadora, a personalização de um “duplo engano”, “por um lado, se faz
passar por uma mulher, sendo automaticamente homem; não contente com isso, ainda
mentindo sua genitalidade, ele não executa o papel de mulher passiva que propala, mas o
papel de penetrador ativo que sua aparência desmente” (Idem, p. 112). Safira, portanto,
trata-se de uma vítima sob dúvida, sob suspeita. Uma vítima que – acusada, por um dos
réus, do roubo de R$ 800,00 – parece ser suficientemente adequável ao papel de
“culpada”, alguém que, para todos os efeitos, colaborou com a sua própria morte,
justificou-a.
Entretanto, houve 30 facadas. “Ele não tinha ódio dela, né? Foi roubo! Ódio só de
ter sido enganado, humilhado, traído e roubado, vamos dizer, tinha esse ódio. Precisa de
5
30 facadas para você eliminar o seu ódio?”. Nas narrativas apresentadas pelos militantes
do Movimento LGBT, as 30 facadas desferidas contra o corpo de Safira demonstram
irrefutavelmente a homofobia. Situam Safira num espaço de fragilidade – onde, segundo
aquelas convenções morais, deve se localizar uma vítima – e apontam para um excesso
inexplicável, para algo inexplicavelmente excessivo: por que trinta facadas se uma a
mataria, se duas a matariam, para que tantos homens, se um a mataria, se dois a matariam?
“Se desse apenas uma facada na vítima, já iria dar ‘cana’, então decidiu dar os demais
golpes”. De acordo com as narrativas dos militantes, a explicação estaria, então, na
homofobia. É assim que as “imagens de brutalidade”, como as tenho chamado (Efrem
Filho, 2016), preenchem as reivindicações do Movimento LGBT6.
As 30 facadas não estão sozinhas. Nessas narrativas, nas falas de militantes, nos
documentos, relatórios e denúncias por eles confeccionados, imagens de brutalidade se
multiplicam vertiginosamente. Safira sofreu trinta golpes de faca, mas Lua levou, à
queima-roupa, um tiro em cada perna porque se recusou a realizar sexo oral num policial
militar que a abordou durante uma seresta. Otávio foi espancado, praticamente degolado.
Com lâminas, os rapazes que o assassinaram riscaram cruzes em todo o seu corpo.
Severino Antônio, violentado sexualmente antes da morte, teve uma faca peixeira cravada
em seu ânus. Todas essas imagens remetem ao excesso. Implicam na inevitável pergunta
“por quê?” e, conforme os integrantes do Movimento, ensejam a inescapável resposta
“homofobia”.
Assim, a homofobia – atualmente, também a transfobia – funciona como “chave
de inteligibidade” para a violência. Noutros termos, a sua alegação indica que a transfobia
e a homofobia explicam a violência, que relações de gênero e de sexualidade participam
da causa da morte, de sua oportunidade, porque conduzem à vulnerabilização dos sujeitos
que terminariam compondo o rol de vítimas pranteadas pelo Movimento LGBT. As trinta
facadas brutalizam o corpo de Safira e se transformam, como dito, numa prova inconteste
do motivo da morte ao tempo em que iluminam as relações de gênero e de sexualidade
que, por exemplo, comumente conduzem, cedo, as travestis para fora da vida escolar e
6
A reivindicação da violência e o acionamento de “imagens de brutalidade”, claro, não são exclusividades
do Movimento LGBT. Pelo contrário, constituem estratégias narrativas movimentadas por diversos
movimentos sociais, como o de mulheres e mesmo os de luta pela terra. Em momentos anteriores (Efrem
Filho, 2017a; 2017b), pude analisar, por exemplo, como o episódio de violência sexual contra uma
trabalhadora rural é narrado em documentos e mesmo nos autos de ações judiciais para explicitar o absurdo
do conflito e a premência da realização da reforma agrária; ou como o episódio de sequestro, estupro e
assassinato de uma adolescente, filha de uma sindicalista rural, é mobilizado para combater o problema da
violência de gênero, o machismo e provocar a condenação do acusado.
6
para dentro de formas precarizadas de trabalho, como é o caso da prostituição noturna de
rua.
A reivindicação da violência e das imagens de brutalidade e a arquitetura da
homofobia ou da transfobia como chave de inteligibilidade para as mortes, dessa forma,
transcendem os casos sob disputa. Não se restringem apenas à demanda pela punição dos
culpados. Alcançam as vidas das pessoas cujas mortes precisam ser evitadas e as
experiências percorridas por essas pessoas, as relações de gênero e de sexualidade que as
forjam e são por elas forjadas. O investimento do Movimento LGBT no “caso Safira”,
desse modo, no conflito pela designação da homofobia como causa do homicídio a trinta
facadas, concerne à “população LGBT”7, especialmente às travestis, às vidas que devem
ser protegidas e às políticas de Estado que precisam ser efetivadas para garantir essa
proteção. Nesse sentido, em narrativas dessa espécie, como Bruna Mantese de Souza
(2015) percebeu, a violência se mostra “produtiva”, não meramente destrutiva8.
No entanto, os recursos às “imagens de brutalidade” e à homofobia como chave
de inteligibilidade para a violência oferecem ao Movimento LGBT – e, por consequência,
às nossas análises – dois dilemas, no mínimo. O primeiro deles diz respeito àqueles casos
em que o excesso e o inexplicável não emergem tão flagrantemente como emergem nas
referências às trinta facadas impingidas em Safira ou às cruzes talhadas em Otávio. O
reforço narrativo da brutalização corre o risco de estruturar modelos de vítimas que,
embora não precisem satisfazer necessariamente aquelas convenções morais, devem se
aproximar das imagens de brutalidade, do exemplo aparentemente incontestável de
violência provocada por homofobia ou por transfobia. Há, aqui, sendo assim, o problema
teórico da compreensão da violência como algo excepcional, extraordinário, que difere
do cotiado.
No que escutei das histórias contadas pelos militantes do Movimento LGBT sobre
suas trajetórias, porém, as narrativas sobre violência percorrem parte significativa das
suas vidas, chegam às suas infâncias, às inadequações familiares e escolares, seguem às
suas adolescências, às surras, curras e perseguições ocorridas no ônibus na volta do
7
Como Regina Facchini (2009; 2008; 2005) vem discutindo, expressões como “comunidade LGBT”
supõem aquilo que Benedict Anderson (2008) denominou de “comunidades imaginadas”. A própria
afirmação da existência de uma “comunidade” participa do processo de constituição da noção de
comunidade e auxilia a presumir uma coesão de sujeitos reunidos em torno de determinada identidade.
Trabalhos mais recentes sobre o movimento LGBT ou sobre os “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil,
como os textos de Vinícius Zanoli (2015) e Sílvia Aguião (2014), adensam essa questão.
8
Em seu argumento sobre a produtividade da violência, Bruna Mantese de Souza (2015) se põe em diálogo
com o argumento análogo de Michel Foucault (2010) a respeito da produtividade do poder.
7
colégio ou do trabalho, às perseguições policiais porque um grupo de amigos
homossexuais se reunia na Praça João Pessoa para conversar e, talvez, paquerar. Esses
episódios não reproduzem a brutalidade das trinta facadas, mas foram identificados, todos
eles, como experiências de violência. São ordinários, cotidianos. A insistência nas
imagens de brutalidade, portanto, pode sombrear tais episódios, impedir seu
reconhecimento como violência. Mais do que isso, pode obstar que vítimas não
indiscutivelmente brutalizadas – não, a “brutalidade” não é óbvia, consiste ela mesma
num campo sob conflito – deixem de ser apreendidas como vítimas de homofobia.
Claro, as arenas em que os conflitos sobre a legibilidade da vítima e a definição
da homofobia se desenlaçam são campos minados. Nessas arenas, nas instâncias de
Estado, nas páginas do inquérito policial e do processo judicial, no pronunciamento do
Secretário de Segurança, nem as trinta facadas parecem ser suficientes, tampouco
indiscutíveis ou irrefutáveis. “Não existem crimes homofóbicos”, afinal. Apesar de
visíveis e pericialmente averiguadas, as marcas das trintas facadas não representaram
“materialidade” bastante para justificar o “nexo de causalidade”, como dizem os juristas,
com a homofobia. Por outro lado, a referência a R$ 800,00 nunca encontrados ou
“materializados” nos autos do processo exsurgem como razão para a defesa da hipótese
da vingança9. Novamente, um campo minado com pouquíssima margem de manobra para
militantes do Movimento LGBT.
No extremo, e se não houvesse as trinta facadas? – é a pergunta inexorável. A
despeito da acusação de roubo e da hipótese da vingança, relações de gênero e de
sexualidade permanecem perpassando as narrativas sobre a morte de Safira, sobre as
experiências da travesti assassinada numa calçada anoitecida no centro de Campina
Grande enquanto fazia ponto. A noção de homofobia, como disse anteriormente, ajuda a
iluminar as relações de gênero e de sexualidade que contribuem para a vulnerabilização
de Safira. No entanto, as experiências da “travesti, aleijada, negra, feia e pobre”, embora
sejam profundamente de gênero e de sexualidade, não são tão-só de gênero e de
sexualidade. Isto nos leva ao segundo dilema: o de considerar analiticamente gênero e
sexualidade sem descartar as demais relações sociais que perfazem as experiências dos
sujeitos e, até mesmo, gênero e sexualidade.
9
Minhas análises sobre os conflitos acerca da (des)materialização das facadas e, assim, do corpo da vítima
resultam da leitura dos trabalhos de Laura Lowenkron (2012). Seguindo os argumentos de Judith Butler
(2002) e Michel Foucault (2010) sobre a inexistência de um “sexo pré-discursivo”, Lowenkron sustenta a
inexistência de uma realidade corporal pré-discursiva, ou seja, externa ou anterior a relações de poder e,
portanto, conflitos.
8
3. “Travesti, aleijada, negra, feia e pobre. E mora longe”: as reciprocidades
constitutivas
10
Minha percepção acerca dos significados atribuíveis ao termo “bicha velha” decorre de leituras dos
trabalhos de Guilherme Rodrigues Passamani (2015) e Júlio Assis Simões (2004). Para esses autores, a
noção de “velhice” se encontra atravessada por complexas relações de poder e identificação, as quais
impedem analiticamente a tomada do “tempo” ou da “geração” como consequências óbvias ou naturais da
“idade cronológica”. Em outras palavras, “faz-se juventude” e “faz-se velhice” como, para Butler (2010),
faz-se gênero, por exemplo. Há, também aí, performatividade.
11
É interessante, de pronto, que as frequentes narrativas sobre esses “padrões” mencionem experiências de
homens homossexuais, travestis e mulheres trans, mas não de mulheres cis que se identifiquem como
lésbicas ou bissexuais ou que, a despeito da identificação, vivenciem relações sexuais e afetivas com
mulheres cis ou trans. O problema da “visibilidade” – contundentemente anunciado pelas militantes das
organizações do Movimento de mulheres lésbicas e bissexuais – parece se reproduzir também no interior
das narrativas sobre violência contra LGBT.
9
mora longe” aponta para como relações desiguais de classe, racialização, gênero,
sexualidade e territoriais se veem implicadas na produção da morte. Essas relações
participam do processo de vulnerabilização, mas participam igualmente da tessitura umas
das outras. Trata-se do que tenho chamado de “reciprocidades constitutivas” entre as
relações sociais (Efrem Filho, 2017a)12.
Quero com isso dizer que relações de classe perfazem relações de gênero, as quais
reciprocamente perfazem relações de classe, mas também formas de racialização,
conflitos territoriais etc. As relações sociais se fazem umas através das outras. Nos termos
manejados por Anne McClintock, gênero, classe e raça, por exemplo, “existem entre si e
através dessa relação – ainda que de modo contraditório e conflituoso” (2010, p. 19).
Disso decorre a conclusão, por exemplo, de que as experiências de gênero e de
sexualidade presentes nas narrativas sobre os homicídios das bichas velhas diferem das
experiências de gênero e de sexualidade que cruzam as narrativas sobre as mortes de
travestis. Embora se fale em homofobia – ou LGBTfobia, ou transfobia – para
consubstanciar a inteligibilidade da violência em ambos os casos, diferentes relações de
classe, geração e racialização participam dos diferentes modos de exercício do gênero e
da sexualidade.
É notável que, conforme o primeiro padrão, as violências cometidas contra as
bichas velhas aconteçam no espaço doméstico, marcado pelo gênero e pelo privado. O
recurso à domesticidade se refere, algumas vezes, à administração das tensões com o que
se convencionou denominar de “armário”13, ou seja, à gestão dos “regimes de
visibilidade” de que falou Ernesto Meccia (2011), da possível necessidade de
ocultamento das experiências sexuais. As bichas velhas presentes nas narrativas dos
militantes do Movimento LGBT são diversas em classe e racialização, mas alguns dos
casos mais lembrados nessas narrativas dizem respeito a homens brancos de classe média
12
As origens do meu argumento em torno das reciprocidades constitutivas se acham nos campos dos
feminismos e dos estudos de gênero, notadamente nas abordagens teóricas sobre as “consubstancialidades”
(Kergoat, 2010; Hirata, 2014) e as “interseccionalidades” (Facchini, 2008; Piscitelli, 2008; Moutinho,
2014). Tais abordagens diferem entre si e inclusive internamente. O que há de melhor nelas, contudo,
valoriza analiticamente as experiências dos sujeitos (não se restringindo às “estruturas”), como se dá nos
imprescindíveis trabalhos de Avtar Brah (2006) e Anne McClintock (2010), ambas mais próximas das
abordagens interseccionais. Para uma análise dos argumentos de McClintock e de sua aproximação aos
debates marxistas, ver Efrem Filho (2013).
13
Para um debate sobre a administração dos processos de entradas e saídas do “armário”, ver Sedgwick
(2007). Para uma inventiva problematização do conceito de “armário” e a percepção de outras formas de
experimentação de gênero e sexualidade, no “guarda-roupas” ou na “cristaleira”, por exemplo, ver
Passamani (2015).
10
– ou alta classe média – assassinados por boys, de regra pertencentes aos setores mais
precarizados da classe trabalhadora.
Por sua vez, as travestis vitimadas “na pista” são mais próximas da síntese
proposta por André. Normalmente são jovens – mas se tornam “velhas” também cedo,
quando, se consideradas apenas as idades, ainda poderiam ser tomadas como jovens – e
suas vivências das relações de gênero e de sexualidade estão, de regra, intensamente
marcadas pelo trabalho sexual na prostituição de rua14. Estão, dessa maneira, tramadas
em relações de classe e racialização características aos mencionados setores mais
precarizados da classe trabalhadora. Elas morrem enquanto trabalham15, enquanto
exercitam aquilo de que elas vivem, num espaço público noturno, somente ambiguamente
público, portanto, cujas zonas de sombreamento costumam impedir o reconhecimento da
vítima, sua legibilidade, mesmo quando clareados pelas câmeras de vídeo da
Superintendência de Trânsito do município. Essas zonas de sombreamento atuam,
reciprocamente, na fricção dos limites entre o legal e o ilegal, a prostituição e a
criminalização, do que decorre, por exemplo, no “caso Safira”, a automática aceitação da
hipótese da “vingança”.
Como expliquei acima, a necessária reivindicação da homofobia ou da transfobia
oferece lastro para a compreensão das relações de gênero e de sexualidade que engendram
a morte e, portanto, para a constituição da vítima. Ela, contudo, não basta. Entendi isso
assim que passei a observar mais atentamente a relevância das demais relações sociais na
produção da violência e, sobretudo, das próprias relações de gênero e de sexualidade.
14
O campo dos estudos de gênero e sexualidade tem proporcionado importantes discussões sobre as
trajetórias de travestis e mulheres trans, os conflitos acerca dessas designações, a história do Movimento
de Travestis e Transexuais e, inclusive, sobre o lugar ocupado pela prostituição em tais trajetórias, conflitos
e histórias. Essas discussões são desenvolvidas, por exemplo, por Bruno César Barbosa (2013), Mário
Carvalho (2011), Mário Carvalho e Sérgio Carrara (2013), Larissa Pelúcio (2005), Jorge Leite Júnior (2011)
e Thiago Duque (2012).
15
Como se sabe, o reconhecimento da prostituição como um “trabalho” representa uma polêmica
incontornável no interior dos feminismos. Posições “abolicionistas” normalmente identificam a
prostituição como uma violência apriorística, estrutural, ainda que conte com o “consentimento” das
mulheres que a praticam. Do outro lado, contrárias aos abolicionismos, há diversas posições que ora alegam
a necessidade do reconhecimento do trabalho e da regulamentação da prostituição, considerando que se
trata de uma realidade que não pode ser negada, ora argumentam que recusar a capacidade de agência das
mulheres que optam pela prostituição consistiria numa negação do “sujeito” que elas são, pessoas que,
como quaisquer outras, precisam responder a contextos sociais e de vida que tanto constrangem quanto
possibilitam margem para ação. Os fundamentais trabalhos de Adriana Piscitelli (2012) ajudam na
compreensão da espinhosa relação entre prostituição e feminismos. Além deles, os trabalhos de José Miguel
Nieto Olivar (2013; 2012) abordam especialmente a relação entre prostituição feminina e direitos sexuais.
No transcurso do trabalho de campo de minha pesquisa de doutorado, acompanhei e entrevistei militantes
do Movimento de Travestis e Transexuais, as quais sempre se posicionaram favoráveis ao reconhecimento
da prostituição como um trabalho (Efrem Filho, 2017a). Estou com elas, tanto política quanto teoricamente.
11
Safira morreu, como dito, no ano de 2011. Nesse ano, houve 1619 homicídios na Paraíba,
42,7 por 100 mil habitantes, a terceira maior taxa estadual do país, inferior apenas às taxas
de Alagoas, com 72,2, e do Espírito Santo, com 47,4. Das 1619 vítimas de homicídios
ocorridos na Paraíba em 2011, 915 eram jovens, o que equivale a uma taxa de 88,5 por
100 mil na população entre 15 e 29 anos. Safira estava entre elas. Das mesmas 1619
vítimas do ano de 2011, 143 foram designadas como mulheres e 1476 foram designadas
como homens. Sandro Almeida Lúcio, Safira, achava-se entre eles. Enfim, daquelas 1619
vítimas, 81 foram descritas como brancas, 1535 foram descritas como negras16. Safira se
encontrava entre as últimas.
Safira morreu como travesti – 30 facadas; morreu como homem, nomeada como
Sandro; mas morreu, também, preenchendo os números oficiais que explicitam o que se
tem chamado de “extermínio da juventude negra”, um fenômeno que envolve
centralmente o assassinato de homens jovens negros pertencentes aos estratos mais
precarizados da classe trabalhadora e habitantes das periferias urbanas. O número
correspondente à morte de Safira ocupa, sendo assim, os relatórios e documentos
formulados pelo Movimento LGBT, onde ela é evidentemente conhecida como Safira,
mas igualmente os estrondosos números acusados por organizações do Movimento Negro
acerca dos violentos efeitos das relações raciais no país. Esses números compõem,
acredito, imagens de brutalidade tão severas quanto aquelas trinta facadas. 81 pessoas
descritas como brancas, 1535 pessoas descritas como negras...
As relações desiguais de gênero e de sexualidade que contribuíram para a
vulnerabilização de Safira, dessa maneira, precisam ser situadas no interior das
reciprocidades constitutivas entre as relações sociais. Embora as “lógicas de Estado” que
caracterizam as disputas pela legitimidade da vítima imponham a premência da definição
da “causa”, ou do nexo de causalidade, o que nos leva a investir politicamente na
homofobia ou na transfobia, nossas análises não podem escusar as reciprocidades, o peso
das formas de racialização, dos conflitos de classe etc. De certo, esse movimento analítico
pode parecer estranho à parte significativa das esquerdas. Dá-se que ele significa, sem
meias palavras, que as mortes de Safira e provavelmente daquelas outras 1534 pessoas
16
Todos os números aqui apresentados advêm do “Mapa da violência 2014”, de Julio Jacobo Waiselfisz.
Como se vê, há uma pequena diferença entre a soma dos números de pessoas identificadas como brancas
(81) e pessoas identificadas como negras (1535) e o número total de homicídios na Paraíba. A referida
soma alcança 1616 vítimas, conquanto o número total é de 1619 vítimas. Não consigo explicar tal diferença.
Mas é possível, por exemplo, que essas três pessoas que desapareceram da soma não tenham sido
identificadas segundo critérios de cor/raça.
12
negras devem ser localizadas nos interstícios da luta de classes, nas estratégias de controle
social que se valem da violência como uma obviedade através, por exemplo, das políticas
de criminalização das drogas. Também significa, reciprocamente, que aquilo que as
esquerdas tratam como “lutas de classes” precisa ser significado nos meandros dos
processos de racialização, dos conflitos territoriais que conformam as periferias e
participam fortemente da produção dos sujeitos mais matáveis.
A noção de reciprocidades constitutivas exige, então, a superação de dois cacoetes
irmanados, cruciais para as atuais análises empreendidas pelas esquerdas, o da separação
entre “centralidades” e “especificidades” e o da acepção das “esquerdas identitárias”.
Gênero e sexualidade não consistem em “questões específicas”, não correspondem a
“pautas identitárias”. São relações sociais e preenchem as experiências dos sujeitos.
Nunca houve um “trabalhador” anterior às relações de gênero e de sexualidade, tampouco
uma classe trabalhadora. O trabalho e a classe se fazem através de relações de gênero,
sexualidade, racialização etc. Reciprocamente, nunca houve uma travesti anterior às
relações de classe por meio das quais ela se faz sujeito, conjuga seus verbos, sobrevive
às adversidades. Mesmo as questões convencionalmente tidas como “centrais” são
tramadas entre relações de gênero, de sexualidade, de racialização etc., ou não
explicaríamos aqueles números de homicídios ou as cortantes dinâmicas de Estado em
nosso país.
Essa forma de compreender os conflitos sociais e, inclusive, a “classe” resulta das
leituras do campo dos estudos de gênero e sexualidade – em que, como percebeu Isadora
Lins França (2012), gênero e sexualidade podem ser concebidos como linguagens que
exprimem outras relações de poder –, mas também das leituras de setores do campo
marxista que tomam a classe não como um dado estrutural e sim como um “fazer-se”.
Esses setores, referendando-se nas “obras históricas” marxianas (Marx, 2012; 1997) e nas
análises desenvolvidas por intelectuais como E. P. Thompson (1987) e Antônio Gramsci
(1966), centram atenção nos sujeitos e não nas estruturas. Por isso se tratam de “relações
sociais” e de “experiências”, não de “opressões” somente. Importa entender os
movimentos dos sujeitos, o processo, os conflitos, as contradições, as diversas táticas por
meio das quais os sujeitos se fazem diante dos constrangimentos sociais postos. É assim
que Safira, a vítima pranteada por integrantes do Movimento LGBT, transcende aqueles
números. Sua morte se transforma numa oportunidade de luta.
Referências bibliográficas
13
AGUIÃO, Sílvia. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição
dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. Tese de doutorado
em Ciências Sociais, IFCH/Unicamp, 2014.
BARBOSA, Bruno César. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual.
Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, nº. 14. Rio de Janeiro:
2013, pp. 352 – 379.
CARVALHO, Mario Felipe de Lima. Que mulher é essa? Identidade, política e saúde no
movimento de travestis e transexuais. 2011. Dissertação de mestrado em Saúde
Coletiva, Instituto de Medicina Social, UERJ, Rio de Janeiro, 2011.
14
______. A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima.
Cadernos Pagu, n. 50. Campinas: 2017b, e175007.
LEITE JR., Jorge. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti” e
“transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume, 2011.
MARX, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. Trad. Nélio Schneider. São
Paulo: Boitempo, 2012.
15
______. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Trad. Leandro Konder e Renato
Guimarães. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
PELÚCIO, Larissa. Na noite nem todos os gatos são pardos: notas sobre a prostituição
travesti. Cadernos Pagu, v. 25. Campinas: 2005, pp. 217 – 248.
SOUZA, Bruna Mantese de. Mulheres de fibra: narrativas e o ato de narrar entre usuárias
e trabalhadoras de um serviço de atenção a vítimas de violência na periferia de São
Paulo. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2015.
16
Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, 2015.
17
O que é a Teoria Queer?
(https://medium.com/@lucas.germano/o-que-%C3%A9-a-teoria-queer-5c084c0b6cfd)
E o que não é.
Há uns dois anos a Teoria Queer vem tomando visibilidade nas redes sociais. E
não é o tipo de visibilidade boa, algumas páginas simplesmente resolveram ignorar todo
o material bibliográfico produzido pelo Queer e começaram a associar algumas coisas
um tanto quanto sem noção ao Queer. Como evitar essa desonestidade na internet senão
escrevendo na/pela internet?
Antes de começar é importante ressaltar que este texto não cobre toda a gama
potencial e teórica que a política queer oferece. Afinal de contas, a queer não trata apenas
de gênero e sexualidade — esse nunca foi o único foco dela. Porém, como é comum que
algumas páginas foquem nesta área do queer, é justo que meu texto também tenha esse
enfoque. Portanto, alguns pontos ficarão de lado: o propósito aqui é justamente retirar a
deturpação que fazem da Teoria Queer. O texto tem caráter de ensaio, não utiliza
linguagem e termos próprios da TQ. Estamos na internet, isso aqui é pra descomplicar.
Ao final pode ser encontrado referências para leituras posteriores e mais profundas.
O QUE É
Darwin criou a Teoria da Evolução das Espécies, Einstein formulou a Teoria da
Relatividade, e Marx o marxismo. E quem criou a Teoria Queer? Ninguém. A TQ surgiu
advinda de trabalhos de vários filósofos e sociólogos: Michel Foucault, Judith Butler,
Eve Sedgwick, Guy Hocquenghem e Michael Warner são apenas seis dos nomes que
foram pioneiros nessa área de estudo (embora Foucault nunca tenha usado o termo
―queer‖ sua obra foi de imensurável importância). Isso pode ser percebido quando se
analisa a história. Os primeiros movimentos queer aconteceram após a Rebelião de
Stonewall (1969), estes movimentos não tinham uma ―teoria‖ para se orientarem (e o uso
do termo ―queer‖ não era tão popular), e se opunham ao assimilacionismo do Movimento
Homófilo. De fato, só em 1990 que aparece o primeiro movimento que realmente adotou
o termo queer: o Queer Nation. E o que é queer?
Queer é tudo que o discurso da sociedade transforma em anormal, em estranho,
em abjeto, em subalterno (Miskolci, 2012). São os gays afeminados, as lésbicas
masculinizadas, as pessoas trans e travestis, as pessoas intersexo, e todos que estão na
margem social. E não se engane, o termo ―queer‖ nunca foi uma forma carinhosa de
tratamento. Ele é originalmente um palavrão de teor extremamente pejorativo. Não há
tradução em português que consiga provocar tanta repulsa que o termo originalmente
provoca, há tentativas de tradução para ―estranho‖, ―bicha‖, ―viado‖, ―traveco‖ e
―sapatão‖. Mas simplesmente não há correspondência em português para o ―queer‖ como
adjetivo pejorativo. Mas por que diabos alguém iria querer ser tratado por palavrão?
Simples: o Queer Nation acreditava, naquela época, que o termo poderia ser usado como
uma forma de apoderar-se de uma arma LGBTfóbica e utilizar contra os próprios
LGBTfóbicos. ―Sim, nós somos viados‖, diziam e ainda dizem.
Ao mesmo tempo em que os queers (mesmo que não se denominassem assim) se
organizavam na rua em movimentos sociais, também se organizavam nas universidades.
Foi apenas em 1991, vinte anos depois de Stonewall, que Teresa de Lauretis usou pela
primeira vez a frase ―Teoria Queer‖. A partir daí, o termo se popularizou. Ela usou como
uma forma de escárnio ao Movimento Homófilo que repudiava o uso do termo pois
acreditavam que não iriam incluir-se na sociedade deste jeito. E, de fato, não iriam se
incluir mesmo. A TQ não quer a inclusão dos queers na sociedade atual, ela quer
transformar a sociedade para que não mais existam os ―normais‖ e os ―anormais‖. Afinal
de contas, o Movimento Homófilo era composto majoritariamente por gays brancos de
classe média e não-afeminados enquanto o queer abrangia as pessoas que estavam de
fora das classificações homófilas.
A Teoria Queer é, então, uma linha de pensamento filosófico e sociológico
surgida da aliança entre feministas e movimento LGBTQ. É uma teoria que ainda está
em construção e que foi altamente influenciada pelo existencialismo de Beauvoir, pelo
marxismo, pela psicanálise, pelos estudos pós-coloniais, e por Foucault. Postula contra a
classificação e padronização das identidades, contra o assimilacionismo cultural, contra a
cisnormatividade e heteronormatividade, contra o patriarcado, contra o (pink)
capitalismo e contra o sistema binário de gênero/sexualidade. Não é, como alguns
pensam, uma política identitária; é uma teoria crítica e pós-identitária orientada pela
política das diferenças (e não da diversidade) e da subversão.
E aqui, quando falamos de não-binarismo de gênero, não estamos falando apenas
dos terceiros gêneros ou gêneros não-binários que associam à TQ. Estamos falando
também que a identidade mulher não pode ser o oposto da identidade homem. Essa
concepção binária de gênero naturaliza que o que o homem pode fazer, a mulher não
pode e vice-versa. Por exemplo, nesta concepção binária, mulheres devem utilizar
maquiagem, enquanto homens não. E tantos outros exemplos que não caberiam aqui sem
fazer o texto ficar demasiadamente longo. O que está em questão é desnaturalizar as
oposições que ocorrem entre estas identidades, pois elas fazem algo que a TQ postula
contra: a normatização e padronização das identidades. E por se opor ao sistema binário,
a TQ não se opõe à mulher ou ao homem: ela se opõe ao ―sistema de gêneros como
instituição social [que] cria uma hierarquia, colocando os homens em uma posição
superior à das mulheres‖ (Não Me Kahlo, 2016, p. 33).
O QUE NÃO É
A multidão queer não tem relação com um “terceiro sexo” ou com um “além
dos gêneros”. Ela se faz na apropriação das disciplinas de saber/poder sobre
os sexos, na rearticulação e no desvio das tecnologias sexopolíticas
específicas de produção dos corpos “normais” e “desviantes”. Por oposição
às políticas “feministas” ou “homossexuais”, a política da multidão queer
não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma
definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma
multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem
como “normais” ou “anormais” […]. O que está em jogo é como resistir ou
como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas. (Preciado, 2003/2011,
p. 16).
Sabe aquelas imagens que circulam no Tumblr com uma descrição sobre algum
gênero? Esquece isso (e não associe mais ao queer), a Teoria Queer nunca nomeou,
descreveu ou criou nenhum desses gêneros (e duvido que irá fazer isso). Porém, é
inegável a existência de gêneros não-binários. Os estudos em português sobre estes
gêneros são escassos, e por isso é necessário recorrer ao estudos em inglês. Mair Cayley,
em sua tese de PhD intitulada de ―Xwhy? Stories of non-binary genders‖, analisou e
descreveu estes gêneros além de ter dado perspectivas multidisciplinares sobre a
formação destas identidades. Além dela, Christina Richards et al escreveu o artigo ―Non-
binary or genderqueer genders‖. Margaret Mead, antropóloga estadunidense, escreveu
―Sexo e temperamento‖ em 1935 (muito antes de qualquer teórico queer) onde nos
mostra como a feminilidade e masculinidade pode fluir independente do sexo. Em
português, pode-se encontrar o ―Gêneros não-binários, identidades, expressões e
educação‖ de Neilton dos Reis e Raquel Pinho.
REFERÊNCIAS
RESUMO: O presente trabalho aborda a questão da LGBTIfobia no âmbito universitário. No pri- Mylla Maria
meiro momento, são abordados, brevemente, alguns conceitos-operativos, bem como se traça um Sousa Sampaio
panorama do constructo sociocultural que é a LGBTIfobia. Em seguida, discorre-se sobre a pre- Graduanda em Direito
pela Universidade Federal
sença da mesma na Universidade, suas causas e consequências, além do papel do Estado nesse
do Maranhão - UFMA.
processo. Por fim, partindo do pressuposto da autonomia universitária, são aventadas algumas myllamariah@hotmail.
sugestões para o enfrentamento da discriminação por orientação sexual e da expressão e identi- com
dade de gênero como forma de garantir a cidadania e dignidade das pessoas LGBTI.
Thiago G. Viana
Pós-graduando em Direito
ABSTRACT: The actual project aproach LGBTphobia inssue in the university scope. In the first
Penal e Criminologia pelo
moment, are aproached, briefly, some operactives-comcepts, exactly how draw a panoram of Instituto de Criminologia
sociocultural construct what is the lgbtphobie. Then, talks up about the presence of the same e Política Criminal (ICPC)/
in the university, your causes and consequences, beyond the states’s role in the process. Lastly, Centro Universitário
Internacional (UNINTER).
starting from the assumption by the university utonomy, are suggested some sugestions for the
thiagogv.adv@gmail.com
confronting of the discrimination for sexual orientation and expression and gender intentity with
a way to ensure citizenship and dignity of the LGBTI people. Palavras-chave:
LGBTIfobia.; Orientação
sexual; Identidade de
gênero; Universidade.
NO-AMERICANO EM SEXUALIDADE E que não performatizam os papéis do “mas- 7 É válido destacar que a
LGBTIfobia do meio social
DIREITOS HUMANOS, 2010, p. 07-10).6” culino” e “feminino”10. A sua manifestação, no acaba sendo internalizada
por uma parcela dos pró-
meio familiar e social, compreende desde a prios indivíduos LGBTI: “[...]
A LGBTIfobia se traduz, conforme lição de violência moral até espancamento, torturas11, a homofobia, nos homos-
sexuais, apresenta-se de
Borrillo (2001, p. 36, tradução nossa), na: mutilações, castrações e agressões sexuais distintas maneiras, como
autodesprezo, baixa estima,
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2011 tentativas de suicídio. Vale
lembrar que os homosse-
“[...] hostilidade, geral, psicológica e apud VIANA, 2012, p. 122), em homicídios com xuais foram socializados no
social, em relação àqueles e àquelas de seio de sociedades que re-
requintes de crueldade. Considerando tal si- jeitam a homossexualidade,
quem se supõe que desejam indivíduos incorporando os valores he-
tuação de vulnerabilidade à qual a LGBTIfobia terossexuais com os quais,
de seu próprio sexo ou tenham práticas
são empurrados, a população LGBTI e os efei- inúmeras vezes, entram em
sexuais com eles. Forma específica de conflito” (MACHADO; PICCO-
sexismo, a homofobia rejeita a todos tos sofridos por estes em sua vida pessoal e LO, 2010, p. 117).
os que não se conformam com o papel profissional12, resta evidente que: 8 “Como observa Michael
determinado por seu sexo biológico. Warner (1993), por meio
da heteronormatividade,
Construção ideológica consistente na “Diante da lógica que naturaliza e a heterossexualidade (e
acrescente-se: pensada in-
promoção de uma forma de sexuali- estabelece a heterossexualidade como variavelmente no singular,
dade (hétero) em detrimento de outra referência, a homossexualidade passa a embora seja um fenômeno
plural) é instituída e vivencia-
(homo), a homofobia organiza uma hie- ser uma ameaça simbólica ao poder he- da como única possibilidade
terocêntrico e falocêntrico, tornando vi- legítima (e natural) de ex-
rarquização das sexualidades e extrai
pressão identitária e sexual,
dela consequências políticas.7” sível a existência de desigualdades nas ao passo que as homossexu-
alidades tornam-se desvio,
relações de poder estabelecidas pelas crime, aberração, doença,
Merece atenção especial a ideia de que a oposições binárias heterossexualida- perversão, imoralidade, pe-
cado.” (JUNQUEIRA, 2009,
de/homossexualidade, homem/mulher, p. 376).
“homofobia organiza uma hierarquização das
masculino/feminino. Tendo em vista es-
sexualidades e extrai dela consequências polí- 9 Em igual sentido, os Prin-
sas ameaças e as diferenças de podem cípios de Yogyakarta (CEN-
ticas”, ou seja, não apenas assinala a diferen- TRO LATINO-AMERICANO
que subjugam, nesse caso, os homos-
EM SEXUALIDADE E DIREI-
ça no outro ou se restringe ao preconceito e sexuais, estes se encontram enredados TOS HUMANOS, 2010, p. 12),
discriminação, mas implica também a nega- muitas vezes em interações violentas.” com inspiração última no
conceito de discriminação
ção de direitos fundamentais, da plenitude de (MACHADO & PICCOLO, 2010, p. 117). constante do art. I da “Con-
venção Internacional sobre
exercício da cidadania. Em outros termos, ins- a eliminação de todas as
formas de Discriminação Ra-
titui-se o mecanismo (bio)político da chamada Na maior pesquisa sobre LGBTIfobia já cial”. (BRASIL, 1969).
“heteronormatividade”, ou seja, a produção e realizada no país, questionou-se vários entre- 10 Um simples abraço en-
vistados acerca do preconceito contra as pes- tre dois homens não é visto
reiteração compulsória da heterossexualida- como demonstração de ca-
de como norma. (LOURO, 2009, p. 90).8 soas LGBTI: rinho, mas de intoleráveis
afeto e intimidade, daí casos
Nesse passo, pode-se conceituar discri- como os a seguir relatados:
em 24 de junho de 2012, na
minação por orientação sexual, expressão e “Indagados sobre a existência ou cidade baiana de Camaçari,
identidade de gênero como qualquer distin- não de preconceito contra as pesso- dois irmãos gêmeos, José
Leandro e José Leonardo,
as LGBT no Brasil, quase a totalidade andavam abraçados quando
ção, exclusão, restrição ou preferência, mo- foram abordados por um
das pessoas entrevistadas respondeu
tivada por orientação sexual e expressão e grupo de 08 jovens que pas-
afirmativamente: acreditam que existe sou a agredi-los, pensando
identidade de gênero, que tenha o propósito tratar-se de um casal homo-
preconceito contra travestis 93% (para afetivo, o que resultou no fa-
de anular ou prejudicar o reconhecimento, 73% muito, para 16% um pouco), contra lecimento de José Leonardo,
consequência das agressões
gozo ou exercício em pé de igualdade de di- transexuais 91% (respectivamente 71% e pedradas na cabeça, e em
reitos humanos e liberdades fundamentais lesões graves em José Le-
e 17%), contra gays 92% (70% e 18%),
andro (MENESES, 2012); na
nos campos econômico, social, cultural ou em contra lésbicas 92% (69% e 20%) e, cidade paulista de São João
da Boa Vista, em 15 de julho
qualquer campo da vida pública9. tão freqüente (sic), mas um pouco me- de 2012, um grupo de jovens
nos intenso, 90% acham que no Brasil agrediu um pai e um filho que
Assim, a LGBTIfobia se apresenta como se abraçavam porque estes
há preconceito contra bissexuais (para foram confundidos com um
um conjunto de ideias e práticas que refletem casal homoafetivo, o que
64% muito, para 22% um pouco). Mas
o preconceito e a discriminação motivados causou vários hematomas e
perguntados se são preconceituosos, escoriações no filho e o dece-
pela orientação sexual, expressão e identida- pamento de uma das orelhas
apenas 29% admitiram ter preconceito do pai (SOUZA, 2012).
de de gênero de LGBTI e, até mesmo, contra contra travestis (e só 12% muito), 28%
heterossexuais confundidos com LGBTI por- contra transexuais (11% muito), 27% 62
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
11.1
11 Na cidade de São Gonça- contra lésbicas e bissexuais (10% mui- 3 - A Universidade e a LGBTIfobia
lo (RJ), o adolescente Ale-
xandre Thomé Ivo Rajão, de to para ambos) e 26% contra gays (9%
apenas 14 anos de idade, foi muito).” (VENTURI, 2009). 3.1 Considerações preliminares
torturado por cerca de três
horas e assassinado por as-
fixia, tendo, como pano de A Universidade, como já dito, representa
fundo, a LGBTIfobia (CAVAL- A partir deste estudo, a conclusão é
CANTI; AZEVEDO, 2010). um lócus de produção de conhecimento para
impactante: cerca de 99% da população bra-
pensar questões sociais (desigualdade social,
12 Hill (2009 apud VIANA, sileira apresenta algum grau de LGBTIfobia,
2012, p. 116-117) compilou discriminação e preconceito, saúde, educação,
várias pesquisas sobre a si- sobretudo em relação às pessoas trans.
tuação da vítima em relação economia, segurança etc.) e propor soluções
aos hate crimes, apurando No Brasil, há pelo menos três déca-
que tal vítima se sente me- para essas problemáticas, bem como fomen-
nos segura, enxerga o mun-
das, o Grupo Gay da Bahia (GGB) realiza levan-
tar as bases da educação com a formação de
do como menos ordenado tamento dos crimes LGBTIfóbicos. Em 2012,
e significativo, tem baixa
professores.
autoestima, apresenta qua- superando os índices dos anos anteriores,
dro depressivo e fica mais Assim, pode-se falar na ideia tradicional da
propensa ao uso de álcool e houve 338 assassinatos de LGBTI (AFFON-
drogas, dentre outros pon- Universidade como promotora do projeto de
tos, e, ainda segundo esse SO, 2013a)13– isso significa uma morte a cada
mesmo autor, em relação País, ou seja, tem o papel de “conceber proje-
às vítimas de crimes que não
26 horas. O Poder Público, até o ano de 2012,
tos de desenvolvimento ou de modernização
os de ódio, as vítimas destes não realizava qualquer tipo de levantamento
delitos têm quase três vezes nacionais, protagonizados pelo Estado, que
mais probabilidade de sofrer de dados referentes a crimes de ódio (bias
ferimentos graves, relatar visavam criar ou aprofundar a coerência e a
níveis mais elevados de crimes; hate crimes), tampouco em relação
medo, ansiedade, relacionar coesão do país enquanto espaço econômico,
contratempos pessoais com aos crimes contra LGBTI, embora há muito
o preconceito, bem como re- social e cultural, território geopoliticamente
venha utilizando os dados do GGB como for-
latar o incidente como tendo
bem definido” (SANTOS, 2011, p. 46). Nessa
um grande impacto sobre ma de monitoramento desse tipo de delito
suas vidas, dentre outros linha, a Universidade constitui um dos atores
sintomas. no país. Entretanto, em julho de 2012, a Se-
sociais a concretizar os objetivos fundamen-
13 Recente pesquisa compi-
cretaria de Direitos Humanos da Presidência
tais traçados no art. 3º da Constituição da Re-
lou vários estudos a respeito da República (SDH/PR) lançou um relatório
da LGBTIfobia entre os anos pública consistentes em erradicar a pobreza e
de 1973 e 2001, chegando à sobre LGBTIfobia referente a 2011, segundo
conclusão de que a “[...] ho- a marginalização e reduzir as desigualdades
mofobia no Brasil tem forte o qual foram denunciadas 6.809 violações de
vínculo com o sexismo (dis- sociais e regionais e promover o bem de to-
criminação baseada no sexo direitos humanos contra LGBTI, com 1.713 ví-
ou gênero) e o preconceito dos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
timas e 2.275 suspeitos, das quais 278 foram
contra o não conformismo
cor, idade e quaisquer outras formas de dis-
às normas de gênero (mu- homicídios e, em 2013, o 2º Relatório Sobre
lheres que têm comporta- criminação, para construir uma sociedade li-
mento considerado mascu- Violência Homofóbica - 2012 apontou 9.982
linizado, por exemplo). Isso vre, justa e solidária (BRASIL, 1988).
significa que homossexuais violações relacionadas à população LGBT,
que tenham características Um exemplo emblemático é o da África do
consideradas compatíveis
dos quais 310 foram homicídios (VIANA, 2014,
Sul. Como lembra Santos (2011, p. 37-39), este
com seu sexo anatômico p. 270). Em ambos os levantamentos, a sub-
tendem a sofrer menos pre-
País lançou nas instituições educacionais, so-
conceito do que mulheres notificação é reconhecida como alarmante.
masculinizadas ou homens bretudo no Ensino Superior (com destaque
com trejeitos femininos. As- No Senado, após mais de 13 anos de tra-
sim, mesmo uma pessoa he- para as “Universidades historicamente bran-
terossexual pode ser alvo de mitação, o polêmico Projeto de Lei da Câmara
homofobia. ‘Se um menino cas”), um amplo programa de enfrentamen-
não gostar de jogar futebol
nº 122/2006 (PLC nº 122/2006), que incluía
to ao racismo; a resistência desse à onda de
ou não adotar algum com- “orientação sexual” e “identidade de gênero”
portamento esperado [de mercantilização do mercado universitário, tra-
alguém do sexo masculino], na Lei nº 7.716/89 (Lei Antirracismo) foi arqui-
vai ser chamado de ‘bicha’ zendo a verve mercadológica dos EUA, Nova
pelos colegas mesmo que vado e tais expressões já foram eliminadas do
seja heterossexual’ [...].” Zelândia e Austrália e, com isso, enfraquecen-
(ANDRADE, 2012). Cumpre Projeto de Lei do Senado nº 236/2012 (Proje-
lembrar que a discriminação do ou eliminando tal iniciativa, mostrando,
to de Código Penal) (VIANA, 2014, p. 272 e ss.)
por orientação sexual e iden-
com essa atitude, que o combate ao racismo
tidade de gênero representa, O projeto encontra forte oposição dos setores
tal qual a violência domésti- consubstancia um importante elemento do
ca e familiar contra a mulher, conservadoras do Congresso Nacional, espe-
um fenômeno que ocorre projeto (político) de País.
com frequência no ambiente cialmente da bancada religiosa fundamenta-
doméstico, onde se dá 42% Ademais, como expõe Herkenhoff (2001),
dos casos de violência, sen-
lista.
a Universidade representa um referencial éti-
do que 38,2% são praticados Assentadas tais premissas, passa-se à
por familiares e em 61,9%
co14 em meio ao pluralismo cultural da socie-
análise de como a LGBTIfobia se faz presente
63 dade brasileira contemporânea:
nas Universidades brasileiras.
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1
meiros anos escolares, ela se manifesta colo- A seguir, alguns casos de discurso de ódio,
cando a “heterossexualidade” como a única discriminação e violência LGBTIfóbicas que
expressão normal, natural da sexualidade (os desvelam esse fenômeno no seio da Univer-
contos de fadas, com o par mocinho-donzela, sidade.
enraízam a ideia de que felicidade e o amor Em outubro de 2010, tornou-se público
somente�����������������������������������
são possíveis
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em um par heterosse- um caso de violência contra homossexuais na
xual e monogâmico ), o que também guarda
15
Universidade de São Paulo (USP), onde o es-
dos casos o agressor é próxi-
mo da vítima (MACIEL, 2012).
estreita relação com o machismo: tudante Henrique Andrade foi agredido física
e verbalmente em uma festa por três rapazes
14 Por Ética entenda-se o A reprodução do patriarcado, ne- que estavam incomodados pela presença do
“[...] esforço do espírito hu-
mano para formular juízos cessária pela sucessão de trocas de acadêmico e de seu namorado no ambiente
tendentes a iluminar a con- gerações não teve reais dificuldades: os
duta das pessoa, sob a luz de (GOMES, 2010). No mesmo ano, foram divul-
um critério de Bem e Justiça” seres humanos se socializam com pou-
(HERKENOFF, 2001, p. 11-12). gados, pelo menos, quatro casos de estu-
ca idade; aprendem quase ao mesmo
tempo a linguagem e as expectativas
dantes americanos que cometeram suicídio
15 Tal visão, além de pade-
cer de machismo, invisibiliza sociais impostas pela estrutura pa- após sofrerem agressões e humilhações nas
outros modelos de vivência
afetiva, tais como o polia- triarcal, reprimindo os transgressores Universidades que frequentavam, o que, inclu-
mor, relações livres, afinal as
pessoas têm liberdade para,
desde a infância (entre os meninos a sive, motivou o atual presidente dos Estados
desde que maiores de idade, pior injúria é precisamente menina) (CA- Unidos da América, Barack Obama, a fazer um
de forma consensual e em
pé de igualdade, viver as re- PELLA, 2002, p. 34).
lações e arranjos familiares
que desejarem, cabendo ao
Estado apenas resguardar a É comum que piadas e apelidos sejam as
parte mais fraca da relação
(mulher, criança, pessoa ido- primeiras demonstrações de LGBTIfobia nos
sa ou com deficiência etc.)
ambientes escolares e universitários. Como
16 “A perspectiva institu- essa prática costuma ser encarada como
cional, por sua vez, enfatiza
a importância do contexto inofensiva e irrelevante, perpetua-se até de-
social e organizacional como
efetiva raiz dos preconcei- sencadear outros tipos de violência − como a
tos e comportamentos dis-
criminatórios. Ao invés de física e sexual –, estando, de tal maneira, tão
acentuar a dimensão volitiva
individual, ela volta-se para
“naturalizada” que não se percebe sua sutil
a dinâmica social e a ‘nor- presença. Infere-se, então, ante a inexistência
malidade’ da discriminação
que ela engendra, buscando de programas educacionais de enfrentamen-
compreender a persistência
da discriminação mesmo em to à LGBTIfobia nas escolas, que os egressos
indivíduos e instituições que
rejeitam conscientemente do Ensino Médio irão tornar-se universitários
sua prática intencional”, daí que continuarão reproduzindo as práticas e
se poder falar em “discrimi-
nação institucional e privilé- os discursos discriminatórios dessa natureza.
gio” (a reprodução e perpe-
tuação da discriminação tem A condescendência com que os primeiros
como fonte a situação privi-
legiada usufruída por grupos sinais da LGBTIfobia são tratados contribui,
dominantes), “discrimina-
ção institucional e direitos
imensamente, para a sua propagação e cria
especiais” (inexiste direito uma ambiência permissiva para o cometi- Gilmara Oliveira
“especial” quando se pre-
tende, com tratamento anti- mento de crimes ainda mais graves contra as
discriminatório, a concreção discurso reconfortante aos jovens que ainda
do princípio da igualdade pessoas LGBTI na Universidade.
sensível às circunstâncias
estão em processo de autoconhecimento em
históricas de determinado Tem-se aí o que se chama de LGBTIfobia
relação à sexualidade (GOMES, 2010).
contexto social) e “discrimi-
institucional16, vale dizer, as formas pelas
nação institucional e mérito” Outro caso relatado na pesquisa de San-
(a ideia de “mérito” baliza a quais instituições e pessoas, mesmo cons-
sociedade para avaliar, quan- tos, Gomes e Mendes (2011, p. 7) com gradu-
to a este aspecto meritório, cientemente contrárias à discriminação, dis-
as características e padrões andos e graduandos do Centro de Ciências
típicos dos privilegiados, daí criminam pessoas em função de sua orienta-
que tais benefícios não sejam
Agrárias, município de Areia (PB), Campus II,
ção sexual, expressão e identidade de gênero
enxergados pelo que são: da Universidade Federal da Paraíba, demons-
privilégios odiosos) (RIOS, presumidas, relegando-as à invisibilidade em
2008, p. 135 e ss.). tra as práticas degradantes de humilhação de
seus procedimentos administrativos, normas,
estudantes LGBTI:
65 leis.
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1
66
Maressa de Souza
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
11.1
os mesmos viadinhos citados acima, via, e acredito que ainda há, um desejo
aprontaram uma pior ainda. Os seres se incontido daquele em denegrir a ima-
trancaram em uma cabine do banheiro, gem público da parte autora por discor-
enquanto se ouviam dizeres do tipo “Aí, dar de seus anseios relacionados a eco-
tira a mão daí.” Se as coisas continua- nomia íntima de sua sexualidade. [...] não
rem assim, nossa faculdade vai virar resta dúvida que a requerente foi vítima
uma ECA. Para retornar a ordem na nos- de homofobia no ambiente de trabalho,
sa querida Farmácia, O Parasita lança ao ter sua orientação sexual repudiada
um desafio, jogue merda em um viado, de forma indevida. E isso constitui vio-
que você receberá, totalmente grátis, lação ao direito da personalidade, em
um convite de luxo para a Festa Brega especial, à honra e à sua liberdade de
2010. Contamos com a colaboração de cidadão. (MARANHÃO, 2015)
todos (LOBEL; CAPUTO, 2010).
Estes são alguns dos inúmeros casos em
Na Universidade Federal do Maranhão que a LGBTIfobia está presente no ambiente
(UFMA), em observação realizada in loco, po- universitário. Dos insultos corriqueiros fa-
dem ser encontradas algumas mensagens de zendo piada com referência à condição de ser
ódio contra LGBTI em paredes, portas, salas. LGBTI, até crimes hediondos, como o estupro
Um exemplo é a mensagem a seguir, encon- são violações de direitos que, não raro, são
trada em uma cabine de estudo individual da subnotificadas. Os episódios se repetem país
Biblioteca Central: “Os gays vão morrer. Está afora e atestam que as instituições de ensino,
planejado daqui para o final do ano um mas- do básico ao superior, não estão preparadas
sacre (sic) aqui na UFMA, pelo menos algum para lidar com essa população, os professores
de um curso terá que morrer”. Ameaça não carecem ser sensibilizados e passar por uma
concretizada, o que não paga a gravidade da formação que os possibilite trabalhar esses
mensagem. temas em sala de aula e evitar que estudantes
Foi também na UFMA um caso recente LGBTI sejam menos prejudicados por proble-
em que o professor Glécio Machado fora in- mas como tristeza, depressão, baixa autoesti-
sultado por um aluno em sala de aula e fora ma, fraco rendimento escolar e evasão decor-
dela que, questionando sua metodologia e rentes da discriminação que sofrem.
formação acadêmica, passou a fazer ofen- A situação de vulnerabilidade da população
sas verbais homofóbicas contra o professor LGBTI urge que uma legislação mais efetiva e
(DEAN, 2015). O professor ajuizou ação por rigorosa, centrada especialmente em propor-
danos morais e o universitário foi condenado cionar assistência psicossocial à vítima, entre
a pagar R$ 7 mil reais de indenização ao pro- em vigor para garantir a segurança e demais
fessor, como se pode ler no seguinte excerto direitos básicos dessa parcela da população
da sentença: que sempre foi vítima preferencial da discri-
minação. Em que pese tal fato, o Estado bra-
Ao que me parece, o comportamen- sileiro pouco ou nada tem feito com relação ao
to perpetrado pelo requerido atingiu
enfrentamento da LGBTIfobia no meio educa-
ares de insustentabilidade, na medida
cional, aspecto que será discutido a seguir.
em que este, não satisfeito com seus
acharques em sala de aula, passou a
ofender, publicamente, o requerente em 3.3 - O Estado Brasileiro e a LGBTIfobia: o
mídias sociais e grupos de comunicação que está sendo feito?
comunitários, a demonstrar, sem dúvi-
da alguma, sua intolerância em relação A Constituição Cidadã, como já trabalha-
ao demandante. Registre-se, que tal do anteriormente, é categórica ao falar no
comportamento ultrapassava, e muito, enfrentamento do preconceito e da discrimi-
qualquer justificativa calcada no ques- nação, quaisquer que sejam os motivos, como
67 tionamento acadêmico do requerido em um dos meios para construir uma sociedade
relação ao requerente. Na verdade ha-
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1
justa, igualitária. O Estado Democrático de Di- lei e outros atos normativos, bem como a im- 17 Dentre tantos exemplos:
Portaria Normativa MPOG
reito, como se identifica o Brasil, se concretiza plementação de políticas públicas para equa- - nº 1/2007, que estabelece
orientações aos órgãos e en-
e mostra sua força quando há o respeito e a cionar a LGBTIfobia, sobretudo no que diz tidades do Sistema de Pes-
soal Civil da Administração
possibilidade do exercício dos direitos básicos respeito ao ambiente educacional, já existe, Federal assistência à saúde
e a vida em sociedade. o que falta é a vontade política dos chefes do suplementar do servidor
ativo, inativo, seus depen-
Em 25 anos da nova ordem constitucional, Poder Executivo e, sobretudo, do Legislativo dentes e pensionistas; Por-
taria MS nº 1.707/2008, que
a população LGBTI encontra-se num dilema. para efetivá-las. institui, no âmbito do SUS, o
Processo Transexualizador,
De um lado, o reconhecimento e a efetivação Apesar desse panorama, não se pode ig- a ser implantado nas unida-
des federadas, respeitadas
dos seus direitos por parte dos Poderes Exe- norar que a IES gozam de autonomia didáti- as competências das três
cutivo17 e Judiciário18; de outro, sofre de um co-científica, administrativa e de gestão fi- esferas de gestão); Portaria
MPOG nº 233/2010, esta-
quase absoluto vácuo legislativo no Congres- nanceira e patrimonial, a teor do art. 207 da belecendo o uso do nome
social de travestis e tran-
so Nacional19. Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), o que sexuais no âmbito da Admi-
nistração Pública Federal;
Existem projetos legislativos dos mais lhe dá plena autorização para, per si, adotar a Portaria MPS nº 513/2010
variados para assegurar direitos à população iniciativas para o enfrentamento LGBTIfobia. (define a indicação de de-
pendentes para concessão
LGBTI, entretanto, todos eles, sem exceção, Para tanto, no tópico seguinte são traça- de benefícios previdenciá-
rios, estendendo a casais de
têm encontrado forte resistência por parte da dos alguns pontos que podem contribuir para homossexuais, igualdade
de condições com casais de
bancada religiosa fundamentalista (o polêmi- esse intento. heterossexuais); Portaria
ME nº 1.612/2011 (assegura
co PLC n.º 122/2006 é um clássico exemplo), às pessoas trans o uso do
que não hesita em acionar pânicos morais20 4 - Enfrentamento da LGBTIfobia na Uni- nome social no MEC) (OLI-
VEIRA, 2012, p. 108).
deturpando os projetos. versidade: algumas propostas
18 Foi no Judiciário que os
Nesse processo, emblemático o fato de direitos de LGBTI foram
que o Kit anti-LGBTIfobia (o qual era chamado A autonomia universitária representa um inicialmente assegurados:
reconhecimento dos pares
de “Kit gay” pelos detratores), uma das ações elemento essencial no processo de combate homoafetivos como socieda-
de de fato, posteriormente
do Programa Escola Sem Homofobia − que à LGBTIfobia, pois possibilita às IES o poder, uma série de decisões de
tribunais reconhecendo a
consistia na utilização de materiais, dentre dentre outros pontos, de criar mecanismos, união estável homoafetiva
eles, vídeos para trabalhar a questão da dis- programas para esse fim. até culminar na decisão do
STF em junho de 2011 (Ação
criminação e agressões LGBTIfóbicas no am- No processo de equacionamento das re- direta de inconstituciona-
lidade nº 4.277 e Arguição
biente escolar − foi vetado pela presidente feridas crises que atingem a Universidade, de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº
Dilma Roussef, após a bancada religiosa fun- Santos (2011, p. 08-10) acredita que as ativi- 132) assegurando tal direi-
to, em igualdade de direitos
damentalista ameaçar que chamaria o então dades de pesquisa e extensão desempenham e deveres com os pares he-
Ministro da Casa Civil, Antônio Palocci, para importante papel para dar às Universidades teroafetivos, e, mais recen-
temente, a regulamentação
explicar como havia multiplicado o seu patri- uma “[...] participação ativa na construção da do casamento civil homoa-
fetivo pelo Conselho Nacio-
mônio em mais de vinte vezes entre 2006 e coesão social, no aprofundamento da demo- nal de Justiça (Resolução
nº 175/2013), obrigando os
2010, quando fora deputado federal pelo PT/ cracia, na luta contra a exclusão social e a de- cartórios a realizar a união
gradação ambiental, na defesa da diversidade estável, a conversão da
SP (VITAL DA CUNHA; LOPES, 2012). união estável em casamento
Como se vê, a implementação de políticas cultural”. Assim, a Universidade deverá pro- e a celebração do casamento
civil homoafetivos.
públicas de garantias de direitos à população mover “[...] atividades de extensão [que] de-
vem ter como objetivo prioritário, sufragado 19 As previsões legais
LGBTI encontra-se obstacularizada no âmbito que falam em orientação
parlamentar federal, o que dificulta, em boa democraticamente no interior da Universida- sexual e/ou identidade de
gênero, tal como na Lei nº
medida, lidar com a LGBTIfobia no ambiente de, o apoio solidário na resolução dos proble- 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha), não tratam do tema
escolar e universitário. mas da exclusão e da discriminação sociais” específico da diversidade se-
xual e de gênero; os projetos
De qualquer maneira, no âmbito do Pro- para dar voz aos grupos excluídos e discrimi- que o fazem se arrastam por
nados (SANTOS, 2011, p. 74). décadas no Congresso Na-
grama Nacional de Direitos Humanos, desde cional.
sua primeira versão em 1996 até a última em Desta forma, como já referenciado, no
20 Situação em que “um
2010, tratam de enfrentamento da LGBTIfo- PNDH III (2010), tem-se como objetivo criar grupo social que se presume
bia e formação dos profissionais de educação núcleos de pesquisa e promoção da cidadania representar alguma forma
de perigo é associado a de-
para lidar com a temática da diversidade se- do segmento LGBTI em Universidades públi- terminadas características,
70
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
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