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GLOBALIZAÇÃO DO DIREITO:

NOVOS CONTEÚDOS À NATUREZA1 2

GLOBALIZATION OF LAW:
NEW CONTENTS TO THE NATURE

JOAQUIM SHIRAISHI NETO3

SUMÁRIO: Introdução - Globalização do direito: a “americanização” do direito


brasileiro - Reestruturação do campo jurídico: Harvard é a Meca - Regulamentação
dos novos “problemas ambientais”: “quando o direito é ilegal” - Considerações
finais - Referências.

RESUMO: Nas últimas décadas, o direito ambiental brasileiro vem sofrendo


sucessivos deslocamentos à medida que são implementadas reformas das leis ambien-
tais. Tais deslocamentos podem ser compreendidos no contexto do que é designado
como “globalização do direito”, especificamente, da globalização do direito americano.
No tocante ao direito ambiental, as leis espelham os discursos e as recomendações
contidas nos documentos das agências de cooperação (ONU, FAO, PNUMA, CEPAL)
e instituições financeiras internacionais (BIRD), as quais estão empenhadas em criar
as condições para a construção de uma “unidade jurídica” em atenção à globalização
econômica. Tomando como referência o direito ambiental, este trabalho, fruto de uma
pesquisa em andamento, objetiva analisar de que forma o discurso do direito ambiental
se produz e reproduz no Brasil, contaminado por um conteúdo que destoa dos princípios

1
Data de recebimento do artigo: 05.06.2017.
Datas de pareceres de aprovação: 16.06.2017 e 26.06.2017.
Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 03.07.2017.
2
Este artigo consiste nos esforços iniciais de reflexão no âmbito do Projeto de Pesquisa “A
‘Commoditização’ da Natureza no Brasil: as leis ambientais fundamentadas nos discursos das Instituições
Financeiras, Agências de Cooperação e Organizações Internacionais”, que tem apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico no Maranhão (FAPEMA - Edital 040/2015-Universal).
Os trabalhos de campo junto às diversas agências de cooperação e instituições financeiras deverão
ser realizados entre o período de 2017/2018.
3
Advogado. Doutor pela UFPR. Professor Visitante da Universidade Federal do Maranhão, vinculado
ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGDIR-UFMA). Pesquisador FAPEMA e CNPq. Bolsista
produtividade CNPq nível 2. E-mail: shiraishineto@gmail.com.

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inscritos na Constituição Federal de 1988, dentre eles: pluralismo, igualdade, justiça


e desenvolvimento.
PALAVRAS-CHAVE: globalização do direito; campo jurídico; mercantilização
da natureza; direito ambiental brasileiro.
ABSTRACT: Brazilian environmental law has suffered successive displace-
ments as environmental law reforms are implemented. Such displacements can be
understood in the context of what is designated the “globalization of law”, specifically,
the globalization of American law. With regard to environmental law, the rights mirror
the speeches and recommendations contained in the documents of the cooperation
agencies (ONU, FAO, PNUMA, CEPAL) and international financial institutions (BIRD),
which are committed to creating the conditions for the construction of a “legal unit” in
view of economic globalization. Taking as reference environmental law, the results of an
ongoing research, aims to analyze how the discourse of environmental law is produced
and reproduced in Brazil, contaminated by a content that departs from the principles
inscribed in the Federal Constitution of 1988, among pluralism, equality, justice and
development.
KEYWORDS: globalization of law; legal field; commodification of nature; Brazilian
environmental law.

INTRODUÇÃO

No Brasil, os entendimentos que orientam o direito ambiental estão centrados na


aplicação prática de todo o aparato de dispositivos legais que regulamentam os vários
temas ambientais, quer sejam novos ou velhos. A cada nova lei, dezenas de novos
artigos e livros são publicados, contemplando à exaustão os artigos da lei editada.
Dentre as alternativas apresentadas a essa prática eminentemente descritiva das leis
ambientais, identifica-se uma que toma como referência a Constituição Federal de 1988;
e uma outra que, além da Constituição, considera a realidade local e a diversidade do
país. Enquanto essa primeira enfatiza a intrínseca relação das questões ambientais
com os problemas sociais, a segunda leitura submete a aplicação do direito ambiental
aos contextos locais tendo em vista a sociobiodiversidade brasileira.
Entretanto, tais reflexões sobre o direito ambiental estão submetidas a uma
mesma lógica de compreensão do direito, tido como um sistema aberto de princípios
e regras, que se organiza e se desenvolve segundo uma dinâmica própria. Neste
contexto, chamam atenção os discursos que justificam a necessidade das reformas
das leis ambientais ou de novas proposições.
Os discursos que justificam as novas medidas espelham os discursos e as
recomendações contidas nos documentos das agências de cooperação (Organização
das Nações Unidas - ONU, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e

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Agricultura - FAO, Programa para as Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA,
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL) e instituições fi-
nanceiras internacionais (Banco Mundial - BIRD), que estão envolvidas em criar as
condições para a construção de uma “unidade jurídica” em atenção à globalização
econômica. No entanto, não se trata de qualquer globalização do direito, mas sim a
do direito americano, que se expande, impondo ao mundo o seu padrão, referenciado
nos ideais do “livre mercado” e da “democracia liberal”.
Em um contexto do que é denominado “americanização do direito”, as práticas
e os discursos jurídicos ambientais dominantes se desenvolvem no campo jurídico,
orientado por uma representação do direito e da natureza. Assim, tomando como
referência o direito ambiental, este trabalho, fruto de uma pesquisa em andamento,
objetiva analisar de que forma o discurso dominante do direito ambiental se produz e
reproduz no Brasil, contaminado por um conteúdo que destoa dos princípios inscritos
na Constituição Federal de 1988, dentre eles: pluralismo, igualdade, justiça e desen-
volvimento. Ao tutelar a natureza, tendo em vista a sua utilidade econômica, as novas
leis ambientais se opõem às representações atribuídas pelos diversos grupos sociais
designados como povos e comunidades tradicionais do país.
A reflexão a seguir será desenvolvida a partir dos seguintes tópicos: globalização
do direito: “a americanização” do direito brasileiro. A ideia aqui é analisar esse processo,
que envolve um conjunto de ações (econômicas, jurídicas e culturais) com o intuito de
promover a expansão do direito americano pelo mundo. A “americanização do direito”
tem um fim precípuo, facilitar o acúmulo de capital e o livre fluxo de bens, pessoas e
serviços. O tópico seguinte, intitulado reestruturação do campo jurídico: Harvard é a
Meca, descreve os impactos na estruturação do campo jurídico brasileiro, que se man-
tém colonizado. Os contextos vividos pela nossa sociedade “facilitaram” a incorporação
do direito americano, o que implicou na legitimação de “novos” profissionais ao “direito
de dizer o direito”. A regulamentação dos novos “problemas ambientais”: “quando o
direito é ilegal” se constitui na última parte e busca relacionar o papel das agências de
cooperação e instituições internacionais na consolidação de um direito ambiental, que
se encontra em discordância com os princípios contidos no texto constitucional de 1988.

GLOBALIZAÇÃO DO DIREITO: A “AMERICANIZAÇÃO” DO DIREITO


BRASILEIRO4

Para o sociólogo Pierre Bourdieu (2001), a globalização tem um duplo sentido:


designa uma política que objetiva construir uma unidade global no campo econômico por
4
Para evitar mal entendido ou acusações de antiamericanismo, gostaríamos de afirmar que não temos
objeção ao direito americano, embora não custe lembrar a relevância de seu papel no processo de
globalização econômica.

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meio de um conjunto de medidas jurídico-políticas destinadas a eliminar os obstáculos


atinentes à livre circulação e acumulação do capital e se constitui em um produto de
uma política deliberada por um conjunto de agentes e instituições que atuam no sentido
da criação e aplicação de regras para um fim específico, qual seja: a eliminação de
todas as formas de regulações nacionais que possam colocar barreiras às empresas
globais e seus respectivos investimentos.
Tal como prescrita, a globalização econômica encarna a forma mais acabada
de um novo tipo de imperialismo, que recupera e atualiza noções e esquemas do
pensamento científico, cuidadosamente manejado pelos Estados. O pensamento mo-
derno triunfante, orientado a partir de uma compreensão determinista e evolucionista,
classificava as diversas sociedades, tendo como critério o distanciamento econômico
das sociedades consideradas mais “avançadas”. Este etnocentrismo serviu como pre-
texto às formas impostas de controle, subordinação e dominação daquelas sociedades
tidas como mais atrasadas.5 Os recentes processos vividos na América Latina, de
transformação dos textos constitucionais (em especial a Bolívia, em 2009, e o Equador,
em 2008) denominados elos intérpretes do direito como “Novo Constitucionalismo na
América Latina”, retomam a crítica a esse pensamento científico dominante, que for-
neceu elementos para o processo de exclusão social, tornando “invisíveis” os diversos
povos indígenas e afrodescendentes do continente.6
Vale sublinhar que a globalização fundada nos ideais do “livre mercado” e da
“democracia liberal”,7 e que se caracteriza pelo “reduzido” papel do Estado na socie-
dade apresenta, na realidade, características particulares de uma economia que tem
uma estrutura e história singular, a dos Estados Unidos, embora eles estejam empe-
nhados em negar esse processo. Bourdieu e Wacquant (1998) analisam o trabalho
de “neutralização” do contexto histórico da produção e difusão do modelo, que tem
suas raízes em realidades complexas e contraditórias de uma sociedade particular
como a americana. Para esses autores, a “neutralização” do pensamento neoliberal
(frisa-se: produto de um incansável trabalho de “teorização” que envolve organizações

5
A pesquisa de Arturo Escobar (2012) sobre a “invenção do desenvolvimento” é exemplar. Para esse
antropólogo colombiano, o discurso do desenvolvimento desempenha um papel relevante nas estratégias
de controle e dominação social e cultural.
6
No contexto dos trabalhos produzidos, destacamos Anibal Quijano (2005); Walter Mignolo (2007);
Boaventura de Souza Santos (2010); e Arturo Escobar (2012).
7
Para Achille Mbembe (2016), esse modelo triunfante, que dominou o mundo até recentemente, chegou
ao seu final. Trata-se de um novo período, muito mais mortífero, que se caracteriza com a crescente
“bifurcação” entre a democracia liberal e o capitalismo financeiro, entre o governo do povo e o governo
das finanças, que são tidos como inconciliáveis. No contexto do golpe parlamentar e do regime de
exceção implantado no Brasil recentemente, vimos como é certeira a interpretação de Mbembe sobre
os processos atuais. O capitalismo financeiro não se importa com o regime instalado, desde que o
governo empossado atenda às suas necessidades de acumulação.

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internacionais, centros políticos, e thinks tanks...) envolve uma compreensão de que


se trata de um processo natural de evolução das sociedades.
Nesse contexto da globalização, que abrange a unificação do campo mundial
da economia e das finanças, a organização do direito (e dos sistemas de justiça nos
Estados nacionais)8 torna-se uma medida indispensável à garantia da reprodução e
difusão de todo o sistema econômico. Ao possibilitar a tessitura da unidade, o direito
edifica uma arquitetura própria, afiançando todo o processo, isso garante pari passu
aos agentes econômicos a necessária “segurança jurídica” às transações econômicas.
Em termos analíticos, os direitos de propriedade devidamente protegidos neutralizam
as eventuais “disfunções” do sistema, reduzindo de forma significativa os riscos e as
perdas dos agentes envolvidos.
A ideia de “homogeneização jurídica”, de Bourdieu (2001, p. 107),9 permite
compreender o papel fundamental do direito na consolidação do campo econômico
e financeiro. Ela se constitui em um processo de produção e difusão de dispositivos
(normas, procedimentos e sistemas judiciários), pelo mundo, a partir dos ideais de
Justiça da civilização do Mac Donald’s, da Coca Cola... Tal projeto, que é concebido
como um traço distintivo de modernidade e desenvolvimento atende aos interesses das
grandes empresas e investidores, os quais se posicionam acima dos Estados nacionais.
A “homogeneização jurídica” tem também como papel estabelecer e criar um
novo padrão de relações no âmbito das sociedades. A ideologia jurídica produzida,
reproduzida e difundida10 impregna as sociedades, impondo aos cidadãos dos Estados

8
Para Sider, Schjolden e Angell (2005), a pressão das organizações internacionais (BIRD, FMI e OMC)
para que os estados promovam a reforma do Poder Judiciário faz parte do conjunto de estratégias
adotadas em se estabelecer a unidade do campo econômico. O BIRD teve um papel relevante nesse
processo de reformas no Judiciário da América Latina e Caribe, na identificação dos problemas e
soluções. A esse respeito, conferir o estudo de Maria Dakolias (1996), que foi promovido pelo BIRD
intitulado Documento Técnico n. 319.
9
Sobre a “globalização do direito”, Santos (1999) e Clavero (2014) formulam uma leitura otimista, pois
centram as suas análises no papel desenvolvido pelos direitos humanos na proteção dos sujeitos ao
redor do mundo, embora não desconheçam as consequências nefastas da “globalização” econômica
neoliberal. Enquanto Santos se ocupa em analisar a relevância da expansão internacional dos direitos
humanos, Clavero analisa de forma crítica a história dos direitos humanos, afirmando que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos serviu como base para o que denominou de “direito global”. Em
pesquisas recentes sobre a globalização e direito, Boaventura e Garavito centram a sua análise no
que denominam de “globalização contra hegemônica”. Ela se refere ao direito criado e aplicado pelos
movimentos sociais em oposição ao outro direito (SANTOS; GARAVITO, 2007).
10
Como parte do processo de difusão do direito americano, as várias séries disponíveis na NETFLIX,
que se tornaram uma espécie de “febre” entre os advogados e estudantes de direito no Brasil (entre
as quais: “Suits”, “The good wife”, “How to get away with murder”...). Tais séries focalizam o cotidiano
da advocacia nos EUA, disseminando uma ideia de direito e de Justiça. Vale ressaltar que os filmes
americanos sempre estiveram presentes entre nós, porém, não de forma ostensiva como atualmente
(como: “Testemunha de Acusação”, “12 Homens e uma Sentença”, “O Vento será tua Esperança”, “A
Qualquer Preço”, “Julgamento final”...).

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nacionais um conjunto de valores na maioria das vezes divorciados dos contextos so-
ciais, econômicos e culturais. As pesquisas desenvolvidas pela antropóloga Laura Nader
(1994) sobre a produção e difusão da “Alternativa Dispute Resolutions” (ADR) ilustram
esses processos de dominação.11 Para essa autora, os “mecanismos alternativos de
resolução de conflitos” (tais como: a mediação, a arbitragem e a conciliação, que foram
incorporadas com a reforma do Código de Processo Civil brasileiro) servem para rees-
truturar a cultura dos países e, assim, instituir uma nova forma de convivência social.
O discurso difundido trata a ADR como uma evolução dos sistemas jurídicos,
uma vez que os modelos baseados nos conflitos são considerados prejudiciais ao
desenvolvimento das sociedades, na medida em que tornam as partes inimigas. A
intolerância aos conflitos objetiva eliminar as contradições, bem como apagar as diferen-
ciações socioculturais, que, no Brasil, envolvem a emergência de vários grupos sociais
designados como povos e comunidades tradicionais. A ADR se constitui, portanto, em
um instrumento de organização e controle social. Para isso, molda os cidadãos que
se tornam partidários dos acordos, conchavos e barganhas.12
No Brasil, as pesquisas de José Eduardo Faria (1997; 1998; 1999) inauguram as
reflexões sobre o direito na globalização. A análise do autor está centrada nas transfor-
mações do direito positivo (estrutura e forma) a partir da perda de sua capacidade em
“gerenciar” os conflitos resultantes dos processos econômicos globais. O advento do
“pluralismo jurídico”, como estrutura marcante dos sistemas jurídicos a partir das transfor-
mações provocadas, é destacado na análise. Para Faria (1998; 1999), o direito tal como
tradicionalmente concebido vem se “estilhaçando”, “fragmentando”, isto é, perdendo a
sua “organicidade programática”, “unidade sistêmica” e, por consequência, efetividade.13
A emergência de espaços infra e supralegais forjados por corporações empre-
sariais e organizações multilaterais para atender as suas demandas econômicas -,

11
Dentre as pesquisas sobre a difusão do modelo, sugerimos o trabalho de Mattei e Nader (2008). O lado
obscuro do Estado de Direito, segundo esses autores, tem ficado a margem das análises e discussões,
pois, para além da promessa civilizatória, o Estado de Direito tem servido para promover a pilhagem
ocidental, o que tem resultado em enormes disparidades globais. Essa mesma ideia de pilhagem
também pode ser encontrada em Vandana Shiva (2001), especificamente relacionada à natureza e
aos conhecimentos tradicionais. Sobre o papel ideológico do discurso dos Direitos Humanos na África,
recomendamos a leitura do trabalho de Issa G. Shivji (1989).
12
A propósito, sobre a introdução desse mecanismo de resolução judicial no direito brasileiro, como forma
de modernização do sistema judicial e de suas implicações aos grupos sociais emergentes designados
como povos e comunidades tradicionais no Brasil, sugerimos Shiraishi Neto (2015).
13
Os trabalhos de Jean Andre Arnaud (1999) colocam questões parecidas: os problemas jurídicos se
apresentam de forma nova, já que à margem do direito de feição tradicional desenvolvem-se normas,
regras e políticas de gestão, que são reconhecidas no mundo todo. Tomando como referência a
Europa, Yves Delazay e David M. Trubek (2010) constatam que as estruturas do direito europeu têm
se mostrado incapazes de atender as demandas oriundas do mercado europeu. Para esses autores,
a internacionalização dos campos jurídicos vem afetando o modo de produção do direito europeu.

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descritos por Faria (1998; 1999), é o que nos interessa neste momento. Nos espaços
“supra”, ele destaca o que denominou de “harmonização legislativa” e “unificação
normativa”, que seriam frutos de ações e imposições de organizações (tais como:
BIRD, FMI, OMC).
A “ambientalização” da natureza no Brasil serve como referência empírica de
análise à construção de uma unidade global do direito, tendo em vista os processos
de regulamentação mediados por agências de cooperação e instituições financeiras
internacionais. Por ora, nos interessa afirmar que os sucessivos deslocamentos de
representação da natureza, impostos, determinaram rupturas nas interpretações da
Constituição Federal de 1988, atinentes à proteção do meio ambiente (arts. 225 e ss.).
O estabelecimento de uma unidade jurídica, determinado pela lógica da globa-
lização, lembra que a organização do sistema se espelha nos padrões jurídicos anglo-
-saxônicos, considerados mais compatíveis com os interesses econômicos emergentes.
Para Faria, a expansão hegemônica dos padrões jurídicos anglo-saxônicos, que se
fundamentam em valores da eficiência, produtividade, competitividade e acumulação
de capital se impõe à ordem jurídica,14 já que os modelos franco-romanos, baseados
em estrutura e procedimentos rígidos, são considerados “pouco objetivos, lentos e
incompatíveis” diante das diferenciações de espaço e tempo ditadas pelo campo eco-
nômico. Os estudos de Delazay e Trubek (2010, p. 39) identificam situações análogas
no campo jurídico europeu, os quais denominam de “modo americano de produção
do direito”, já que compreende a “política econômica de regulamentação, proteção e
legitimação num dado espaço nacional, num momento específico”.
Observa-se que o campo jurídico brasileiro se transforma impulsionado pelo
“modo americano de produção do direito”, com a emergência de “novos” profissionais,
que tem mobilizado de maneira estratégica essa prática jurídica. Os usos locais de uma
prática jurídica têm permitido de um lado a horizontalização da difusão e, de outro, a
verticalização do poder, isto é, a ascensão de grupos que embora detendo o poder do
direito em dizer o direito, não possibilita a democratização do campo jurídico.
A reflexão a seguir se constitui de exercício preliminar da pesquisa, que propõe
identificar como ocorre esse movimento de horizontalização da difusão e verticaliza-
ção do poder no interior do campo jurídico brasileiro,15 levando em consideração os
contextos local e global, determinados pelo “modo americano de produção do direito”.
A “americanização”, segundo Yves Delazay e Bryant G. Garth (2005), é um elemento

14
É assustadora a incorporação acrítica do direito norte-americano no Brasil. Autores como Ronald
Dworkin e John Rawls são citados, consumidos e venerados nas centenas de cursos de direito e de
pós-graduação esparramados pelo país afora.
15
No Brasil, os trabalhos do sociólogo Fabiano Engelmann (2006) sobre o campo jurídico iluminam as
nossas reflexões. No âmbito da América latina, as pesquisas do colombiano Cesar Rodrigues Garavito
(2011) são referências de análise.

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chave para a compreensão da nova ortodoxia do direito, que se apresenta como


inevitável aceitação acrítica.

REESTRUTURAÇÃO DO CAMPO JURÍDICO: HARVARD É A MECA

Com relativo atraso em relação à Europa, o Brasil, nas últimas décadas, vem
sofrendo de forma natural a penetração do “modo americano de produção do direito”.16
A figura de linguagem aqui utilizada expressa de maneira irônica uma crítica à maioria
dos profissionais do direito, que veem a expansão do direito americano como algo ine-
vitável, já que se constitui na “evolução” e “modernização” do sistema jurídico brasileiro.
Observa-se que a produção e a difusão da ideia de que esse fenômeno da
“americanização” se constitui em um dado natural tem impedido uma análise crítica e
rigorosa das questões que envolvem a incorporação do “modo americano de produção
do direito”. Os contextos locais absorvidos pela expansão do capital e o reconhecimento
do pluralismo, que envolveu discussões em torno das políticas de ação afirmativa,
favoreceram as condições para a incorporação acrítica do direito norte-americano,
na medida em que essas questões foram tratadas naquele país. Contudo, os graves
problemas socioeconômicos do Brasil decorrentes das sucessivas políticas dirigidas
ao desmanche do Estado de Bem-Estar Social têm sido ignorados no debate jurídico.
O contexto de desmanche do Estado Social e de reconhecimento do pluralismo17
pôs em relevo o princípio da liberdade, evidenciando o descaso com um discurso, que
se ocupou com os problemas gerados pelas desigualdades no país. Em uma situação
de déficit de efetivação de direitos, a dogmática crítica se empenhou em construir e
reafirmar a validade da dignidade da pessoa humana como princípio matriz da ordem
jurídica brasileira.18
A fórmula que posicionou a dignidade da pessoa humana à condição de princípio-
-matriz do sistema jurídico se constitui de um procedimento hermenêutico, que promoveu
uma ruptura com os padrões de interpretação e atribuiu ao Poder Judiciário “função
social”. Os processos que impõem a perda da centralidade da dignidade da pessoa
na hierarquia do sistema - em prol da liberdade - expressam os novos conteúdos do
direito, determinados pelo processo de globalização. Contudo, os eventos recentes
16
Os trabalhos de Delazay e Trubek (2010) nos auxiliam na análise, pois suas pesquisas focalizam as
transformações no campo jurídico europeu, que sofreu algo semelhante. Lá, as transformações geraram
a organização da prática dos serviços jurídicos, da cultura e dos modos de legitimação no campo, sendo
que é possível observar distinções no campo francês e alemão, como bem observou Marcos Nobre
(2003) a partir das pesquisas de Trubek.
17
A propósito do processo de construção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil,
recomendamos Shiraishi Neto (2010).
18
Dentre os inúmeros trabalhos relativos à construção do princípio da dignidade da pessoa humana,
destacamos Silva (1998), Rocha (1999) e Sarlet (2002).

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no país, que marcaram a destituição de uma presidenta democraticamente eleita,


fornecem “novos” elementos para as reflexões. O estado de exceção em curso vem
promovendo a obstrução e desconstrução de todas as ações e políticas afirmativas
implantadas nas últimas décadas, notadamente, aquelas relativas ao reconhecimento
e a promoção da diversidade social. Trata-se de uma nova ruptura, que aprofunda as
desigualdades e sinaliza o descompromisso da elite política com o desenvolvimento
do país, respaldada pelo Poder Judiciário.
Entretanto, Delazay (1990) ressalta que esse processo de “americanização”
representa mais que uma simples “colonização”. Analisando o caso europeu, afirma:
A metamorfose na prática legal europeia não podia ter ocorrido
se não tivesse sido também energizada de dentro através de
uma nova geração de juristas, puro produto de uma meritocra-
cia acadêmica cujas ambições seriam concretizadas somente
por um novo ideal que destruiria os hábitos e privilégios que
se autorreproduzem dos senhores juristas. (DELAZAY, 1990,
p. 298 - grifo nosso).

Convém destacar que desde sempre o direito brasileiro sofreu forte influência
de outros modelos, notadamente, o continental/europeu. A necessidade de uma
intelligentsia local para discutir os problemas do Brasil - a questão da raça, em especial,
os mestiços, desvinculada da cultura da metrópole, fez com que, na primeira metade
do século XIX, fossem instalados os primeiros cursos jurídicos no Brasil, em Olinda e
São Paulo. A despeito dos propósitos em formar uma intelectualidade, o pensamento
dominante nas escolas, ainda que com uma certa originalidade se apoiou no modelo
europeu. O “darwinismo jurídico” foi útil aos interesses dominantes, consolidando o
modelo autoritário e racista da nossa sociedade patriarcal.19
Até bem recentemente essa tradição continental/europeia servia como guia
orientando as reflexões e o aprendizado nas faculdades de direito. Era marcante, no
direito público, a influência do direito francês e alemão, mediado nos espaços mais
periféricos pelos doutrinadores portugueses e espanhóis, ou seja, no caso dos alemães
lia-se a sua doutrina pelos trabalhos dos portugueses e espanhóis, que exerceram forte
influência em período recente. O direito italiano influenciava o direito privado, sendo
que ele serviu como base para a construção da “dogmática crítica do direito privado”,
diferentemente de tempos pretéritos, quando esse mesmo direito italiano foi utilizado
como lustro à produção dos doutrinadores, que “manualizaram” o ensino jurídico no
Brasil.

19
Sobre o papel desempenhado pelas primeiras faculdades de direito no Brasil na consolidação de um
pensamento conservador, autoritário e racista, recomendamos a leitura da antropóloga Lilia Moritz
Schwarcz (1993).

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A denominada “constitucionalização do direito privado” explicita esse movimento


de disputas no campo jurídico,20 que consagrou os professores Luiz Edson Fachin -
hoje, Ministro no Supremo Tribunal Federal - e Gustavo Tepedino, da Universidade
Federal do Paraná (UFPR) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
respectivamente. Tal processo contribuiu com a horizontalização da difusão do cam-
po jurídico privado, considerado pouco diversificado, já que outros interlocutores se
impuseram, produzindo e difundindo uma concepção do direito privado “fora” dos
marcos tradicionais. Os exemplos assinalados reafirmam a “colonização” como um
dado natural do pensamento jurídico nacional, na medida em que a produção de “fora
do país” foi manejada a pretexto de “melhorar” o direito brasileiro, diferentemente do
período recente, embora sempre utilizada para definir e redefinir as estruturas objeti-
vas e subjetivas de poder. Em outras palavras, a “colonização” nunca foi vista como
problema no Brasil, pois tradicionalmente sempre foi utilizada de maneira funcional
para lograr espaços no poder.
Todavia, importa sublinhar que os usos “alternativos” do pensamento jurídico,
como forma de crítica à dogmática, sempre estiveram vinculados aos espaços de dis-
putas no interior do próprio campo jurídico. Tomando Bourdieu (1989) como referência
de análise, o que está em jogo é o “direito do direito de dizer o direito”:
O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do
direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos)
ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de
competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste
essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de
maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de
textos que consagram a visão legitima, justa, do mundo social.
(BOURDIEU, 1989, p. 212 - grifo nosso).

No Brasil, o monopólio do poder em dizer o direito está relacionado ao exercício


da atividade acadêmica e/ou investidura na carreira jurídica de Estado, merecendo
destaque o Ministério Público (MP) e o Judiciário. Em tempos recentes, essas carreiras
se transformaram em um locus privilegiado para a produção e a difusão de uma ideia
do direito diante do enorme prestígio material e simbólico conquistados.

20
Ficava evidente o papel das editoras na estruturação do poder no campo jurídico. As poucas editoras
jurídicas ordenavam a listagem de títulos e temas jurídicos relevantes a serem debatidos nacionalmente,
ditando o processo de consagração de autores, bem como produzindo e difundindo determinadas
“verdades”, que eram consumidas (SHIRAISHI NETO, 2008). Hoje, o acesso fácil e rápido de autores
norte-americanos pela internet tem contribuído em muito com esse processo de expansão hegemônica
do direito americano. A língua também é outro fator que deve ser considerado na análise, já que torna
os autores mais acessíveis ao consumo de estudantes, pesquisadores e operadores.

RIDA_Miolo.indb 126 07/07/2017 14:37:24


GLOBALIZAÇÃO DO DIREITO: NOVOS CONTEÚDOS À NATUREZA 127

A advocacia privada21 por meio dos grandes escritórios também mantém a sua
posição no campo jurídico. Contudo, essa atividade tradicional está em transforma-
ção perante a “invasão estrangeira” de escritórios de advocacia no país desde 2008.
As políticas econômicas dos governos Lula e Dilma trouxeram uma leva de grandes
escritórios de advocacia ao país, que se associaram às firmas nacionais. A metáfora
utilizada por Thiago Bronzatto (2010, p. 61), na reportagem publicada pela Revista
Exame, expressa de forma clara os impactos do processo na estruturação da advocacia
privada no Brasil “[...] basta imaginar um elefante entrando sorrateiro numa pequena
loja de porcelana [...]”.22
Não custa lembrar que o prestígio dos grandes escritórios de advocacia no Brasil,
estruturados com base em relações familiares cuja razão social era o sobrenome, eram
mantidos a partir de posições de prestígio assumidas pelo sócio fundador no campo
jurídico. O exercício de atividades acadêmicas (universidades), a participação em orga-
nizações representativas de advogados (OAB, Instituto de Advogados, Associações...)
ou, ainda, a nomeação em cargos públicos (Secretaria de Segurança Pública, Ministério
da Justiça...) se constituíam em estratégias práticas para um melhor posicionamento
no campo e, consequentemente, maior prestígio para a prestação de serviços, que se
diversifica.23 Todavia, o aquecimento do mercado de serviços jurídicos no Brasil impôs
novas estratégias na organização dos escritórios de advocacia,24 como a associação
com firmas estrangeiras, sobretudo dos EUA, que mobilizam receitas de milhões de
dólares, bem como a contratação de especialistas portadores de títulos acadêmicos
para as áreas de atuação. O ingresso de profissionais com pós-graduação para a
composição dos grandes escritórios também se constitui em um fenômeno novo no
contexto da advocacia privada dominada pelas organizações familiares.
Em tempos passados, juízes, promotores, procuradores... buscavam se tor-
nar professores das faculdades de direito, na medida em que esse espaço conferia

21
Delazay e Trubek (2010, p. 44 - grifo nosso) lembram: “[...] a grande empresa de advogados é não só
o emblema como a máquina de todo o campo jurídico norte-americano”.
22
No âmbito do caso JBS e “operação lava jato”, Luís Nassif (2017) descreve a imbricada relação dos
escritórios de advocacia americanos com os escritórios brasileiros a fim de promover os interesses
econômicos estratégicos dos EUA.
23
Para a defesa de seus direitos, envolvendo o acesso ao conhecimento tradicional dos Ashaninkas,
no Acre, a Natura Cosméticos contratou o escritório de advocacia “Dinamarco, Rossi, Beraldo &
Bedaque”, que é um dos grandes escritórios de advocacia de São Paulo, segundo a Top Lawyer
2014/2015. As informações do processo estão no Portal no Tribunal Federal da 1ª região, processo nº
2007.30.00.002117-3.
24
Desde 2011, é possível encontrar uma publicação da Inbook Editora e Portal Migalhas, orientada para
apresentação do mercado de advocacia no Brasil (Top Lawyers 2011/212; 2013/2014; 2015/2016). A
revista luxuosa, em edição bilíngue, revela esses processos, retratando as transformações da advocacia
privada brasileira determinada pela prática do direito norte-americano.

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128 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VI - nº 17 - maio-agosto de 2017

maior legitimidade a sua atuação. O caminho da pós-graduação era tido como mero
“detalhe” na vida universitária, já que o fato de ser membro de uma carreira, bem como
o exercício de uma prática jurídica, se constitui como elemento satisfatório ao ensino
jurídico. O sentimento meritocrático, que envolvia a conquista de uma carreira jurídica
de Estado, tornava o profissional detentor de verdades diante da “rigidez do controle no
recrutamento”, nem sempre submetido aos critérios republicanos, como o da herança
familiar. Assim, o aprendizado e a pesquisa em direito eram e ainda são vistos como
mera transmissão de uma prática jurídica.25
No entanto, as transformações recentes nas carreiras jurídicas (que envolvem a
autonomia política, financeira e funcional...) colocaram “velhas” questões à nova ordem. A
autonomia conquistada pelo MP e Judiciário, por exemplo, fortaleceu o spiritu de corpus,
garantindo a produção de um modelo baseado em relações patrimoniais com o Estado.
O êxito das conquistas do MP e Judiciário “contaminou” outras carreiras de Estado (au-
ditores, delegados, advogados...), que “substituíram a luta sindical pela corporativa”.26
A pretexto da tutela dos direitos individuais, difusos e coletivos (e, mais recente-
mente, “combate à corrupção”), esses profissionais do MP e Judiciário lograram bene-
fícios, que se traduziram em enormes privilégios pessoais.27 A ascensão de membros
do MP28 e Judiciário29 decorrentes do prestígio conquistado rebate na reestruturação

25
A esse respeito, sugerimos a leitura da pesquisa de Nobre (2003).
26
Sobre esse processo, ler a extensa reportagem intitulada “Sangue Azul sem Pudor”, de André Barrocal
(2017), que foi publicado na revista Carta Capital.
27
As vantagens adquiridas, na maioria das vezes obtidas de forma imoral e até ilegal, vêm sendo
sistematicamente denunciadas e questionadas pelo conjunto da sociedade diante do distanciamento
entre o salário percebido por esses profissionais e o salário mínimo do brasileiro. Segundo os dados
levantados na reportagem de André Barrocal (2017, p. 22 - grifo nosso): “Em 2015, os 1,7 mil juízes
federais recebiam em média 38 mil mensais, e não poderia extrapolar 33,7 mil, o salário dos ministros
do STF, teto teórico no setor público. O holerite de dezembro de Sérgio Moro, o juiz federal do momento,
foi de 117,5 mil... Janot tem salário de 33,7 mil por lei. Em dezembro, embolsou 160 mil a mais, a título
de indenizações por anos passados, devidos a cerca de outros 500 procuradores.” Os hipersalários
refletem o custo da nossa Justiça, que é considerada a mais cara do mundo. A respeito dos custos da
Justiça brasileira, conferir as reportagens de José Casado (2016) e Reis Friede (2016), publicadas em
O Globo e Estadão, respectivamente.
28
No caso do MP, a apresentação midiática das investigações e ações, bem como a divulgação de
seus resultados, é uma prática adotada, que objetiva legitimar tais atos, na maioria das vezes
arbitrários. No âmbito da operação “Lava Jato”, além do abuso das práticas - dado o caráter seletivo
das investigações que envolvem a perseguição de determinados indivíduos -, a violação sistemática
de direitos fundamentais inscritos na CF de 1988. Novamente recorremos a uma serie da NETFLIX,
“Billions”, para ilustrar as discussões envolvendo a difusão do “modo americano de produção do direito”.
29
No âmbito do Poder Judiciário, chama atenção, por exemplo, o papel de muitos juízes que incorporaram
o discurso da eficiência dos “mecanismos alternativos de resolução de conflitos”, sem qualquer tipo de
questionamento. No caso, esses juízes estão preocupados com o volume de processos judiciais nos
tribunais, independentemente se os acordos são “justos” ou não.

RIDA_Miolo.indb 128 07/07/2017 14:37:24


GLOBALIZAÇÃO DO DIREITO: NOVOS CONTEÚDOS À NATUREZA 129

hierárquica do campo jurídico nacional, verticalizando o poder, já que concentrado a


esse corpus de profissionais. Hoje, o saber jurídico está vinculado à capacidade de
mobilização de recursos, notadamente aqueles determinados pela prática jurídica
americana, que tem se revelado “eficaz” no combate à corrupção, independentemente
de suas arbitrariedades. Imaginem, então, a potencialização do poder de legitimação
se esse profissional logrou realizar algum tipo de “curso de verão” ou mesmo de pós-
-graduação em Harvard: Harvard é a Meca.
Ao posicionar esses profissionais na condição de portadores das “verdades jurídi-
cas”, tem-se um “problema” ante as dificuldades que esses operadores têm em produzir
um pensamento jurídico autônomo, na medida em que manejam o direito segundo os
comandos das instituições às quais estão vinculados e dos afazeres jurídicos, bem
como da orientação jurisprudencial que norteia toda a prática.30 Em outras palavras:
os limites para a produção do pensamento jurídico se colocam como obstáculos diante
das condições preestabelecidas que moldam o pensamento.

REGULAMENTAÇÃO DOS NOVOS “PROBLEMAS AMBIENTAIS”: “QUANDO O


DIREITO É ILEGAL”

Neste contexto da globalização em que se impõe o “modo americano de pro-


dução do direito”, o que nos interessa é compreender o papel das agências de coope-
ração e instituições financeiras para a “melhoria” dos dispositivos (normas, sobretudo)
relacionados à natureza.31
No tocante às questões ambientais, os dispositivos elaborados e publicados sob
a recomendação dos documentos das agências de cooperação e instituições financeiras
violam o direito brasileiro. As estratégias de mercantilização e privatização da natureza
expressam um conteúdo que afronta o direito (SHIRAISHI NETO, 2014),32 já que ferem
princípios do texto constitucional de 1988, dentre eles: pluralismo, igualdade, justiça
e desenvolvimento. Enquanto direito fundamental, a natureza é de toda a sociedade.

30
Ilustramos os argumentos a partir de um exemplo trazido por Nobre (2003, p. 148-150) a propósito da
indicação do juiz Robert Bork para a Suprema Corte norte-americana, por Ronald Regan, em 1987.
Bork era um conservador, muito conhecido nos meios acadêmicos por suas posições contrárias aos
direitos civis. O professor de Yale, George Priest, fez a defesa da indicação dele, contudo, colocou-se
contrário à renovação do seu contrato na universidade de Yale, pois, como juiz, Robert Bork teria que
abandonar as suas posições radicais nos trabalhos acadêmicos em prol da lógica jurisprudencial.
31
O geógrafo Porto Gonçalves (2006, p. 299-355) trabalha com a noção de “neoliberalismo ambiental”.
Para ele, diferentes protagonistas, como as agências multilaterais - BIRD, FMI e OMC, exercem um
papel estratégico na formulação e promoção das políticas ambientais globais, sendo que isso tem
levado à destruição da própria natureza.
32
Silva (2002), Benjamin (2005) e Derani (2009), dentre tantos outros juristas, enfatizam que a CF de
1988 abandonou o paradigma liberal em favor de um outro, social, que concilia as necessidades de
preservação, desenvolvimento e justiça social em uma sociedade marcada por sua diversidade social.

RIDA_Miolo.indb 129 07/07/2017 14:37:24


130 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VI - nº 17 - maio-agosto de 2017

Já o pluralismo, que envolve igual dignidade, orienta a organização do nosso sistema


jurídico e se mantém distante do monismo contido nos documentos.
As referências de desenvolvimento que orientam esses novos dispositivos estão
alicerçadas em uma única representação da natureza. Ao ser incluída como categoria
abstrata de capital (CORONIL, 2005), a natureza como “bem” ou “serviço” é tratada
como constitutiva de um portfólio, que necessita ser gerenciada para gerar benefícios
a “todos”. O termo “governança”, que atravessa toda a nossa legislação ambiental
recente é a palavra-chave para compreender esses processos em curso, uma vez que
traz consigo a ideia de que o mercado é o meio eficiente para se alcançar o “desen-
volvimento sustentável”. Assim, os países deveriam se empenhar em consolidar uma
legislação com esse conteúdo e capaz de ser aplicada.
Entretanto, para a maioria dos Estados considerados ricos em biodiversidade,
como o Brasil, a natureza se converteu em vantagem comparativa. A dependência
econômica da natureza gerou uma intensificação da exploração dos recursos naturais,33
bem como a estruturação de dispositivos mais propícios à promoção das práticas, que,
na sua maioria, são nocivas aos povos e comunidades tradicionais do país. Os estudos
envolvendo os impactos gerados pela exploração intensiva dos recursos (terra e flores-
tas de babaçu) no âmbito de atuação do Movimento Interestadual das Quebradeiras
de Coco Babaçu (MIQCB) são reveladores dos processos de devastação ainda em
curso (ALMEIDA; SHIRAISHI NETO; MARTINS, 2005).
A Tabela abaixo consiste em um primeiro exercício da pesquisa no sentido de
identificar a relação dos discursos das agências de cooperação e instituições financeiras
com as reformas das leis ambientais ou apresentação de novas proposições. Alinhadas
aos ideais do “livre mercado”, as agências e instituições “ditam” aos países melhorias
das leis ambientais a partir dos estudos e pesquisas que promovem e incentivam,
em uma tentativa de unificar o econômico por meio da “homogeneização jurídica” de
modo a facilitar a acumulação e o livre fluxo de capital (incluindo a terra e a natureza).
Tabela:34 Relação Preliminar entre os Documentos e Leis ou Proposições

33
“Neoextractivismo” é o neologismo utilizado por Eduardo Gugynas (2010), a fim de expressar esse
processo que ocorre na maioria dos países da América do Sul. Para esse autor, há uma tolerância dos
governos em relação aos impactos socioambientais decorrentes da exploração da natureza, na medida
em que as estratégias extrativistas são consideradas necessárias à realização dos “ajustes fiscais” e à
promoção das políticas assistenciais de combate à pobreza nos países.
34
Em tempo, informamos que a Tabela se encontra em processo de construção, pois temos conhecimento
que existem várias outras agências e instituições envolvidas, bem como outras dezenas de projetos de
lei em curso no Congresso Nacional. Trata-se de um primeiro exercício da pesquisa, assim, sublinhamos
a incompletude dos levantamentos até aqui realizados.

RIDA_Miolo.indb 130 07/07/2017 14:37:24


GLOBALIZAÇÃO DO DIREITO: NOVOS CONTEÚDOS À NATUREZA 131

Agências de Coope-
N. de Leis ou Proposições
Recurso/bem ração e Instituição Documentos
Ordem legais
Financeiras
01 Água ONU Agenda 21 (1992) Lei nº 9.433/1997
CEPAL “Crises de gobernabili-
dad en gestión del agua
(Desafíos que enfrentan
la implementación de las
recomendaciones conte-
nidas en el capítulo 18 del
Programa 21” (2001)
02 Conhecimento ONU/PNUMA CDB (1992) Lei nº 13.123/2015
Tradicional Protocolo de Nagoya
associado à (2014)
biodiversidade
03 Terra BIRD Em levantamento MP nº 759/2016 35
04 Florestas BIRD “Sustaining Forests. A de- Lei nº 11.284/2006
FAO velopment strategy” (2004)
“The State of the world’s
Forest Genetic Resources”
(2014)
05 Mineração Em pesquisa Em pesquisa PL nº 37/2013
06 Judiciário BIRD Documento n. 391 (1996) EC nº 45
Fonte: Organização do autor a partir do levantamento de documentos, relatórios e pesquisas realizadas. 35

Tais documentos, que se ocupam em identificar o que denominam “problemas


ambientais” e as respectivas soluções, impõem, na sua maioria, reformas à legislação
ambiental. As reformas no Poder Judiciário brasileiro, por exemplo, ditadas sob a batuta
do BIRD, determinaram novos conteúdos aos direitos dominados pela lex mercatoria.
“Problemas estruturais” do Poder Judiciário, que foram identificados no Documento
391, fizeram com que o país adotasse medidas a torná-lo mais “eficiente” e “seguro”
às transações comerciais, eliminando os “conflitos” e prol de instrumentos mais “har-
mônicos” (como: a mediação, a arbitragem e a conciliação).
Na década de 1990, o BIRD se empenhou na formulação de uma proposta de
“reforma agrária de mercado” pelo mundo. O governo Fernando Henrique Cardoso,
por meio do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), implantou a proposta, de-
signando como “Cédula da Terra”. A ideia, segundo o sociólogo Sérgio Sauer (2004,
p. 43 - grifo nosso) era promover uma reforma agrária “pacífica, desburocratizada e mais
coerente com os tempos de estabilização econômica [...] Essas justificativas baseiam-
-se no pressuposto de que o mercado e seus mecanismos são capazes de reduzir os

35
Uma das últimas medidas adotadas pelo governo federal.

RIDA_Miolo.indb 131 07/07/2017 14:37:24


132 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VI - nº 17 - maio-agosto de 2017

conflitos e as disputas por terras, reduzindo os problemas sociais”.36 Observa-se que


essa ideologia que invoca a “harmonia” orienta não só a formulação das políticas de
terras no Brasil, mas também de outras políticas a despeito do contexto local dominado
por agudos conflitos, que envolvem distintas mobilizações e lutas. Neste contexto, as
discussões que dominavam o debate a respeito do Judiciário no Brasil, que envolvia
o papel do Judiciário para o enfrentamento dos problemas sociais, sequer foram colo-
cadas na agenda das reformas realizadas pelo Poder Judiciário (FARIA, 1989; 1991).
Os documentos apresentados pelas agências de cooperação e instituições
financeiras fazem parte do conjunto de práticas discursivas, que envolvem a realização
de eventos, parcerias, apoios, investimentos..., a fim de difundir esse discurso tido
como inevitável.37 As noções de “crise”, “escassez”, “ameaça”, “conflitos”, “atraso”,
“moderno”, “governança”, “gestão”, “parceria”, “harmonia”, “eficiência”, “segurança
jurídica” e “preservação” compõem o conjunto de léxicos utilizados por essas agências
e instituições para expressar o que designam como “problemas ambientais”. O esquema
de pensamento dual, que organiza a construção dos “problemas”, tem suas raízes no
período colonial e faz parte das estratégias de dominação, cujo objetivo é persuadir
os estados a incorporar as medidas tidas como necessárias e imprescindíveis; em
determinadas situações, como a reforma do Poder Judiciário no Brasil, a implementa-
ção das recomendações condicionou a realização de novos empréstimos ao país. Os
esforços em “americanizar” o direito ficam evidentes, no caso.
Na questão da água, a noção de “crise”, mediante a iminente “escassez” do
recurso que se avizinha, foi essencial para a criação de um ambiente de consenso
entre os diversos agentes legitimados (técnicos, estudiosos, pesquisadores, instituições,
ONGs...), em torno da necessidade de “modernizar” a legislação da água no país, isso
levou à aprovação de um novo marco legal, em 1997 (Lei nº 9.433).38
36
Ainda sobre a proposta de “reforma agraria de mercado”, sugerimos a leitura de Pereira (2006). Em
2009, soube que o BIRD estava empenhado na contratação de consultoria para a realização de um
estudo de forma a apresentar recomendações para melhorar os procedimentos de titulação das terras
públicas no Brasil, tido como demorado e custoso. No caso, melhorar era “simplificar os procedimentos
de titulação”, pois havia uma crença de que as definições de domínio iriam reduzir os conflitos e os
desmatamentos na região amazônica. A MP nº 759, de 22 de dezembro de 2016, editada recentemente
pelo governo, segue essa lógica, que se relaciona a reduzir o papel do Estado. No Maranhão, a
experiência de pesquisa e os trabalhos já realizados por pesquisadores revelam justamente o contrário
das proposições, isto é, quando a terra foi regularizada-titulada houve uma intensificação da destruição
dos recursos.
37
No caso das florestas públicas, a FAO vem se ocupando em difundir o seu discurso pela realização
de eventos e parcerias realizadas no país. A esse respeito, ver a reportagem publicada “FAO debate
gestão de florestas públicas em parceria com iniciativa privada e povos nativos” (Disponível em: <https://
nacoesunidas.org/fao-debate-gestao-de-florestas-publicas-em-parceria-com-iniciativa-privada-e-povos-
nativos/>. Acesso em: 01 maio 2017).
38
A propósito de uma tentativa de compreender os interesses econômicos que envolviam a necessidade
de instituição de um novo marco legal para regulamentar os usos da água, recomendamos Shiraishi
Neto (2007).

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GLOBALIZAÇÃO DO DIREITO: NOVOS CONTEÚDOS À NATUREZA 133

O discurso da “crise” vivida pela má gestão perpassa todo o conteúdo do


documento preparado pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL),
independentemente dos contextos locais, em que a maioria dos cidadãos sequer dispõe
da água para consumo próprio. Na América Latina, a instituição das medidas propostas
provocou distintos problemas e, em alguns casos, como na Bolívia, um agudo conflito
em Cochabamba,39 envolvendo os indígenas e uma concessionária americana, que,
posteriormente, foi expulsa da Bolívia. As questões envolvendo os direitos ao acesso
e uso da água avançaram nas recentes Constituições do Equador (2008) e Bolívia
(2009), que trataram a água como direito fundamental,40 portanto, de todos os cidadãos,
independentemente de sua capacidade de pagar.
As vantagens comparativas da natureza vêm fazendo com que o Estado
brasileiro se ocupe em realizar as regulamentações necessárias às definições das
titularidades e do domínio da propriedade, imprescindíveis às transações e à “segu-
rança jurídica”. No caso da regulamentação do acesso ao conhecimento tradicional
associado à biodiversidade, o discurso era promover “justiça distributiva”, pois os
recursos genéticos enquanto patrimônio comum da humanidade eram apropriados,
sem a justa e equitativa distribuição dos benefícios (CUNHA, 2009). Os esforços em
reforçar tais ideias se difundiam pelo mundo:
[...] the CDB has the most part become an instrument which
crystallizes dreams of planetary equity and hopes of economic
prosperity, founded on the use of ‘green gold’ from which it is
envisage that biotech industries will develop the medicines of
tomorrow. (AUBERTIN; FILOCHE, 2011, p. 52 - grifo nosso).

No Brasil, a regulamentação do conhecimento tradicional se orientou pelo Pro-


tocolo de Nagoya, que é um documento suplementar a Convenção sobre a Diversidade
Biológica (CDB), em processo de ratificação pelo Brasil. A assinatura do Protocolo
serviu como justificativa para a necessidade de revogação da Medida Provisória nº
2.186-16/2001.41

39
A respeito do conflito em Cochabamba, que envolve a mercantilização e privatização da água em
detrimento dos direitos dos povos indígenas, sugerimos a animação “Abuela Grillo” (Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=AXz4XPuB_BM>. Acesso em: 23 abr. 2017). Consultar também
Petrella (2003).
40
Sobre as discussões envolvendo a água como direito fundamental no Equador, sugerimos Acosta;
Martinez (2010).
41
A MP já era nociva aos povos e comunidades tradicionais no Brasil, pois se ocupava em dispor o
conhecimento tradicional ao mercado através do sujeito e contrato de repartição de benefícios. Aliás,
o uso de velhas categorias do direito civil não deixava dúvidas da real intenção da MP (SHIRAISHI
NETO; DANTAS, 2010).

RIDA_Miolo.indb 133 07/07/2017 14:37:24


134 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VI - nº 17 - maio-agosto de 2017

O Projeto de Lei nº 7.735/201442 (que originou a Lei nº 13.123/2015) objetivava


atualizar a MP e se conformar às diretrizes de conteúdo do Protocolo de Nagoya, já
que as leis, decretos e regulamentos em vigor “[...] não atendem adequadamente a
demanda conhecida e potencial para o uso da sociobiodiversidade no Brasil”, e “[...] o
País precisa estar preparado para responder a esses novos compromissos que estão
sendo assumidos em âmbito internacional”.
Os argumentos que justificavam a proposição do PL, encaminhado pelo Poder
Executivo em regime de urgência, estariam alinhados à instituição de um sistema
“moderno” de proteção da natureza, conjugando os usos da sociobidiversidade com a
“preservação”. Portanto, a revisão da MP era necessária, na medida em que a lei iria
propiciar maior “segurança” aos interessados em acessar os conhecimentos, gerando,
assim, benefícios a toda sociedade. O discurso dos resultados econômicos decorrentes
dos produtos gerados pelo acesso colocava em segundo plano aqueles que seriam os
reais destinatários da lei, os povos e comunidades tradicionais, cujos conhecimentos
deveriam ser protegidos com a previsão da justa e equitativa repartição dos benefícios.
Nesse sentido, a Lei nº 13.123/2015 é, notadamente, classista, na medida em subverte
os conteúdos do Protocolo de Nagoya, protegendo as empresas e indústrias em detri-
mento dos povos e comunidades tradicionais que a lei deveria proteger.
Quanto às questões relacionadas às florestas, identificamos também documen-
tos produzidos pelo BIRD e FAO. O discurso da FAO se vincula ao pensamento que
condiciona a proteção da natureza a sua utilidade econômica como bens e serviços.
Para a FAO, a falta de informação sobre os potenciais dos recursos florestais para o
fornecimento de produtos e serviços ambientais, incluindo os recursos genéticos, é um
fator limitante à adequada “gestão sustentável” dos recursos florestais. A “ameaça” às
florestas decorrentes do mau uso também se constitui em um argumento acionado, que
serve para reforçar essa lógica econômica do pensamento. O documento, assim, se
constitui em um esforço da FAO em produzir conhecimentos necessários aos países,
os quais devem assumir compromissos, instituições e legislações, tendo em vista que
o aparato institucional existente necessita ser melhorado. Tais recomendações se di-
rigiram aos vários países, sobretudo os da África, Sudeste Asiático e América Latina.43
Os documentos da FAO sobre as necessidades de melhorar a “gestão” das flo-
restas nos países tropicais estão em perfeita sintonia com as formulações realizadas na
década anterior pelo BIRD. Aliás, para o BIRD, a má gestão dos recursos florestais tem
42
No período, o Ministério Público Federal encaminhou uma Recomendação ao MMA e Casa Civil, que
o governo promovesse a consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais como condição à
regulamentação da Lei nº 13.123/2015 (MARX; LOPES; BRAGA, 2015).
43
No contexto da América Latina, além do Brasil, Bolívia, Guatemala, Guiana, Peru e Suriname implantaram
um programa de concessão florestal, que se constitui no principal instrumento legal para o aproveitamento
e manejo das florestas.

RIDA_Miolo.indb 134 07/07/2017 14:37:24


GLOBALIZAÇÃO DO DIREITO: NOVOS CONTEÚDOS À NATUREZA 135

custado aos governos receitas, que poderiam ser aproveitadas para o desenvolvimento
dos países, com ênfase no combate à pobreza. Ante a gama de bens e serviços ambien-
tais disponíveis (tais como: proteção da biodiversidade e o sequestro de carbono), o BIRD
vem se empenhando na construção de mercados florestais e na elaboração de políticas
de boa governança, condicionando os empréstimos aos ajustes e à implementação de
medidas de proteção. No caso, não se trata de esmiuçar o conteúdo dos documentos
produzidos pelo BIRD e FAO, mas expor a relação intrínseca com a Lei nº 11.284/2006,
que foi imposta à sociedade brasileira, que pouco pode fazer naquele período diante do
discurso da imediatidade da Lei para a proteção das nossas florestas públicas no Brasil.
Ao que parece, as discussões em torno do Novo Código de Mineração (PL nº 37/2013)
estão permeadas pelo mesmo esquema de pensamento ambiental, que se reveste de
uma racionalidade econômica independentemente de outras que possam coexistir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um mundo globalizado, o direito tem um papel relevante, na medida em


que proporciona a unidade do campo econômico, tornando possível a acumulação
de capital, o livre fluxo de bens, pessoas e serviços, bem como a consagração dos
direitos de propriedade privada. Eliminar os “entraves”, reformando o direito, faz parte
da retórica utilizada produzida e difundida pelo mundo.
Para que isso se torne realidade, os modelos jurídicos até recentemente
adotados são questionados, pois são tidos como atrasados. Abandonados ou mesmo
rejeitados pela força de um discurso que se impõe de modo irresistível, os dispositivos
(normas, procedimentos e sistema) são reformados. No caso da pesquisa, chamamos
atenção para o papel das agências de cooperação (ONU, FAO, PNUMA, CEPAL) e
instituições financeiras internacionais (BIRD), que produzem e difundem um discurso
afinado com os interesses econômicos. Os documentos elaborados por essas agên-
cias e instituições têm servido como espelho para a realização das reformas das leis
ambientais no Brasil, ainda que essas leis possam ser consideradas para o direito,
“ilegais” (MATTEI; NADER, 2008).
Nesse contexto da globalização econômica, o “modo americano de produção do
direito” se expande pelo mundo, reestruturando o direito e o campo jurídico dos países.
Sublinha-se, aqui, que não se trata simplesmente da adoção de novas referências
bibliográficas, como se tenta transparecer, mas sim, em mudanças profundas, que
envolvem transformações na cultura e convivência, impondo, na maioria das vezes,
valores estranhos, divorciados das realidades locais.
Na verdade, estamos vivendo nos dias atuais a continuidade de um padrão que
foi estabelecido no período colonial. No entanto, esse processo, que abandonou a força
e a violência, se utiliza de estratégias mais sofisticadas, pois envolve os usos do direito,

RIDA_Miolo.indb 135 07/07/2017 14:37:24


136 Revista Internacional de Direito Ambiental - vol. VI - nº 17 - maio-agosto de 2017

que sempre foi apresentado positivamente avesso a qualquer forma de violência. Assim,
retomar as reflexões críticas sobre o direito, se afastando de uma práxis dominante, é
a condição necessária para a produção de um direito mais ajustado aos interesses de
toda a sociedade brasileira, reconhecidamente plural e desigual.

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Doi:10.5007/2177-7055.2011v32n62p79

“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas


sobre as recentes transformações jurídicas

Joaquim Shiraishi Neto1

Resumo: As Declarações e as Convenções In- Abstract: The declarations and international


ternacionais aliadas ao processo de organização conventions allied with the organization and
e mobilização de grupos sociais de identidade ét- mobilization processes of social groups of
nica resultaram, nas últimas décadas, em profun- ethnic identity resulted, in recent decades, in
das transformações na ordem jurídica brasileira. profound changes to the Brazilian juridical
O reconhecimento da diversidade social e cultu- order. The recognition of social and cultural
ral trouxe o “pluralismo jurídico” para o direito. diversity brought “legal pluralism” to the law.
Essa noção que era tomada como instrumento de This notion, that was taken as an instrument
crítica ao direito positivado e, por isso mesmo, of criticism of positive law, and therefore,
tratada como algo “residual” ou “periférico”, é treated as something “residual” or “periph-
levada ao centro das reflexões. Observa-se que eral” is brought to the center of reflections
esse processo se realiza no interior de uma ordem about law. It is observed that this process
jurídica, que também se transforma, criando o takes place inside a juridical order, which is
que pode ser designado como uma “nova” “sen- also transforming itself, creating what might
sibilidade jurídica”. Ao “pluralismo jurídico”, be called a “new” “juridical sensitivity”. Oth-
outras noções são incorporadas, compondo um er concepts are incorporated to the “legal plu-
léxico de termos, acionados de forma indistinta ralism”, composing a lexicon of terms, fired
pelos intérpretes do direito. Neste contexto de indiscriminately by the interpreters of the
mudança é possível indagar: será que essa “nova” law. In this changing environment it is pos-
“sensibilidade jurídica” tende a contribuir com a sible ask: does this “new” “juridical sensitiv-
tomada de decisões que possam ser consideradas ity” tend to contribute to decisions that can be
mais justas, levando em consideração a realidade considered fairer, taking into account the so-
social que é tida como plural e complexa, com cial reality which is taken as plural and com-
profundas contradições econômicas? plex, with its deep economic contradictions?
Palavras-chave: Grupos sociais. Pluralismo ju- Keywords: Social groups. Legal pluralism.
rídico. “Sensibilidade jurídica”. “Juridical sensitivity”.

1
Advogado. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor do
Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do
Amazonas (PPGDA-UEA); Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade
(NUPEDD-UNDB); Bolsista produtividade 2 do CNPq. E-mail: jshiraishi@uol.com.br.
Recebido em: 15/11/2010.
Revisado em: 07/12/2010.
Aprovado em: 14/02/2011.
“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas

Introdução

O sinal amarelo foi aceso para os povos e as comunidades tradi-


cionais2 do Brasil quando do julgamento pelo Supremo Tribunal Fede-
ral (STF) da Ação Popular, que impugna o ato de demarcação contínua
da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, situada no Estado de Roraima.
O resultado final do julgamento expressa a dinâmica e as contradições
existentes em torno do direito3 desses grupos sociais e, de certa forma, o
conteúdo do que pode ser designado como uma “nova sensibilidade jurí-
dica”, que vem se desenhando nas últimas décadas no Brasil4. O procedi-
2
As noções de povos e comunidades tradicionais são utilizadas em consonância
com os critérios adotados pela Convenção n.169 da OIT, promulgada pelo Decreto n.
5.051, de 19 de abril de 2004, e pelo Decreto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que
“Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais”. É importante ressaltar que os diversos dispositivos internacionais e
QDFLRQDLV YrP XWLOL]DQGR GLIHUHQWHV WHUPRV FRP SUDWLFDPHQWH RV PHVPRV VLJQL¿FDGRV
para designar as situações que dizem respeito aos grupos sociais de identidade étnica no
Brasil (SHIRAISHI NETO, 2007).
3
 (PERUDDGHFLVmR¿QDOWHQKDGHFODUDGRDFRQVWLWXFLRQDOLGDGHGDGHPDUFDomRFRQWtQXD
GD7HUUD ,QGtJHQD 5DSRVD 6HUUD GR 6RO H XPD YH] D¿UPDGD D FRQVWLWXFLRQDOLGDGH GR
procedimento administrativo-demarcatório, foram impostas uma série de “salvaguardas”
que afetaram os direitos de grupos sociais em “processo de territorialização”, a exemplo,
da salvaguarda que veda “a ampliação da terra indígena já demarcada” (inciso “r” das
salvaguardas contidas no Acórdão) A respeito das “salvaguardas”, o ministro Carlos
$\UHV %ULWR UHODWRU GD $omR 3RSXODU D¿UPRX ³R PLQLVWUR 0HQH]HV 'LUHLWR WUDoRX
`diretivas´ para nortear a execução da decisão do STF pela União”. “[A proposta] me
pareceu uma técnica interessante, inovadora, que, embora inusual do ponto de vista
da operacionalização do que estamos aqui a decidir, resulta altamente proveitosa.”
(NOTÍCIAS STF, 2008b, grifo nosso).
4
Procuramos ressaltar a importância da discussão, pois na mesma Corte há um conjunto
GHFDVRVSHQGHQWHVTXHGHYHUmRVHUMXOJDGRVHPEUHYH HVSHFL¿FDPHQWHUHODFLRQDGRV
DRWHPD$',1QSURPRYLGDSHOR'(0FRQWUDR'HFUHWR)HGHUDO
TXH ³5HJXODPHQWD R SURFHGLPHQWR SDUD LGHQWL¿FDomR UHFRQKHFLPHQWR GHOLPLWDomR
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”).
As decisões do Supremo Tribunal Federal servem como referência para outras decisões
sobre o mesmo tema, um leading case FRPR UHVVDOWRX R 0LQLVWUR &HVDU 3HOXVR
127Ë&,$667)D 0DLVGRTXHLVVRQRFDVRGDGHPDUFDomRGDVWHUUDVLQGtJHQDV
as decisões servem para orientar os processos em andamento no Poder Executivo o que
pode inviabilizar os processos de demarcação que se encontram em curso no país.

80 Seqüência, n. 62, p. 79-96, jul. 2011


Joaquim Shiraishi Neto

mento de incorporação de dispositivos normativos e teorias sempre esti-


veram presentes no direito brasileiro, aliás, esse expediente foi recorrente
para atualização do nosso direito5.
A ideia de “sensibilidade jurídica” elaborada por Geertz (1997) e
da qual fazemos uso, bem ajuda a compreender com acuidade esse pro-
cesso ao qual estamos nos referindo. A “sensibilidade” está relacionada
a um conjunto de “atitudes práticas” para o gerenciamento de disputas
(GEERTZ, 1997). Os regulamentos, as regras de etiqueta, as tradições, as
técnicas, a doutrina e os academicismos compõem os elementos jurídicos
para a tomada das decisões, mas também servem para explicitar uma ma-
neira específica de construir a realidade social, que vem se apresentando
de forma múltipla e complexa. A multiplicidade e complexidade social
vêm contribuindo com a construção de uma nova “sensibilidade jurídi-
ca”. Em verdade, as “sensibilidades” não só expressam as variedades de
direito, mas também o poder que exercem sobre os processos da vida so-
cial. “Trata-se, basicamente, não do aconteceu, e sim do que acontece aos
olhos do direito” (GEERTZ, 1997, p. 259).
Nesse sentido, este artigo objetiva refletir a respeito do reconhe-
cimento jurídico dos grupos sociais portadores de identidade étnica en-
quanto sujeitos de direito à luz de uma “nova” “sensibilidade jurídica”.
Ela é permeada por um conjunto de elementos jurídicos, conforme acima
anunciado, mas, no caso, importa destacar a influência de doutrinadores
estrangeiros no direito brasileiro, sobretudo dos doutrinadores americanos
diferentemente de período recente, quando o nosso direito era fortemente
influenciado pelo direito europeu. Essas transformações estão evidentes
nos mais variados textos jurídicos, como a ênfase atribuída aos princípios
da liberdade e da igualdade em detrimento ao da dignidade da pessoa hu-
mana. Observa-se que a utilização manualística, meramente operacional,

5
 1R FDVR JRVWDUtDPRV GH FKDPDU DWHQomR SDUD DV UHÀH[}HV HP WRUQR GD DGRomR GR
Código Civil Brasileiro de 1916. Orlando Gomes em “Raízes Históricas e Sociológicas
do Código Civil Brasileiro” nos relata como as ideias foram introduzidas ao Código e
VH DGHTXDUDP j UHDOLGDGH FRP D ¿QDOLGDGH GH DWHQGHU RV LQWHUHVVHV GH GHWHUPLQDGRV
JUXSRVQDTXHOHSHUtRGR *20(6 $LQVWLWXLomRGD¿JXUDGR³FKHIH´GHIDPtOLD
é exemplar a esse respeito e representa as relações de poder em torno do senhor da casa
JUDQGHTXHVHHVWHQGHVREUHDHVSRVDHRV¿OKRV

Seqüência, n. 62, p. 79-96, jul. 2011 81


“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas

aplicativa, dos autores nos cursos de direito6, sem qualquer tipo de análise
sobre o contexto de aplicação do direito7 tende a permitir interpretações
mais restritivas de direitos conquistados por esses grupos sociais, sobre-
WXGRRGHGL]HURGLUHLWR0DLVSUHFLVDPHQWHRGLUHLWRDIDODTXHYHPVH
instituindo no processo de organização e mobilização política. Os termos
e as noções isolados, que são apanhados das teorias, são “adaptados” aos
discursos jurídicos, funcionando como “verdades” absolutas, que servem
para organizar a vida social dos indivíduos e dos grupos sociais.
As ações exitosas em torno das conquistas de direitos por parte dos
grupos sociais, que até então se encontravam “invisíveis”, também, têm
contribuído para uma apatia em torno das reflexões jurídicas. Afinal, é
bastante extensa a lista de ações e de proposições que se concretizaram
na garantia de direitos e em direitos a esses grupos sociais8. No contexto
6
 )LFDPRVLQTXLHWRVTXDQGRXPSURIHVVRUGHXPFXUVRGHJUDGXDomRGHGLUHLWRD¿UPRX
que somente estudava com os seus alunos os elementos jurídicos, técnicos, da obra
de Dworkin, como se fosse possível descontextualizar o contexto em que a obra foi
formulada. O “esquecimento” de que direito em Dworkin está profundamente ligado ao
FRQWH[WRQRUWHDPHULFDQRWRUQDVHXPSUREOHPDSDUDDVQRVVDVUHÀH[}HVQDPHGLGDHP
que esse direito se encontra distante da nossa realidade social. O ensino da mera técnica
jurídica, como se essa fosse destituída de conteúdo, afasta qualquer possibilidade de
UHÀH[mRHUHIRUoDRVHVTXHPDVGHSURGXomRHUHSURGXomRGRGLUHLWR(P³$SRQWDPHQWRV
sobre a Pesquisa em Direito no Brasil”, Nobre relata as diferentes políticas adotadas
pela Alemanha e França em relação ao crescente domínio do direito americano e dos
escritórios de advocacia americanos na Europa (NOBRE, 2004).
7
Bourdieu e Wacquant chamam a atenção para o uso de teorias e noções, sem a devida
preocupação com as condições históricas de sua produção e difusão. Para esses autores,
a neutralização e o correspondente esquecimento de suas condições históricas produz
uma aparente universalização ampliada pelo trabalho de teorização (BOURDIEU;
WACQUANT, 2005). A propósito dessa preocupação em incorporar esses esquemas
de pensamento jurídico dominante, vale a pena ver as críticas dos autores em relação
ao dogmatismo de Rawls sobre a prioridade das liberdades básicas. Para eles, trata-se
de atribuir à sociedade, um ideal latente, que não passa de seu próprio ideal “o de um
acadêmico estadudinense ligado a uma visão estadudinense de democracia” (BOURDIEU;
:$&48$17S (VVHSRVLFLRQDPHQWR¿FDHYLGHQWHQROLYUR³2'LUHLWRGRV
Povos”. Quando Rawls projeta uma sociedade mundial dos povos a partir dos ideais
liberais – democráticos da sociedade americana (RAWLS, 2001).
8
No ponto de vista da “juridicização das práticas sociais”, podemos enumerar uma série
de dispositivos que já se encontram em vigor, dentre os quais: as leis do babaçu livre
QRVHVWDGRVGR0DUDQKmR7RFDQWLQVH3DUiDOHLGROLFXULQRHVWDGRGD%DKLDDOHLGH

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Joaquim Shiraishi Neto

social de reconhecimento jurídico dos povos e comunidade no Brasil e da


relação desse processo com o direito é que se movimentam as reflexões.

1 Movimentando o Direito: de uma posição periférica para uma


central na ordem social

Há pouco tempo atrás, ainda no final da década de 1980, as refle-


xões jurídicas mais acuradas se perfilavam em torno de uma crítica refle-
xiva ao direito positivado9. O direito era compreendido como uma técni-
ca que organizava coercitivamente o controle da sociedade destinado a
preservar os interesses de uma minoria detentora do capital. Em regra, os
esforços teóricos se ocupavam em denunciar esse processo que se encon-
trava “encoberto” pelo mundo das formas jurídicas; em confronto com a
tentativa de Kelsen criar uma “teoria pura do direito”10.
Nesse contexto, a apresentação do direito como técnica e o empe-
nho em isolá-lo do seu contexto social e econômico foram procedimen-
tos consistentes adotados que garantiram a produção, a reprodução e a
circulação do direito tal como proposto, dificultando a compreensão do
próprio direito11. A teoria crítica do direito se opôs a esse esquema de pen-
samento, realizando dois movimentos. Ao mesmo tempo em que procu-

FRR¿FLDOL]DomR GDV OtQJXDV EDQLZD WXFDQR H QKHHQJDKWX QR HVWDGR GR$PD]RQDV H D


lei que reconhece a existência social das comunidades de faxinais no estado do Paraná.
Em andamento, a proposição de lei que reconhece a existência social das catadoras de
mangaba no estado de Sergipe.
9
A literatura a esse respeito é bastante extensa. Entre eles: Edelman (1976) e Correas
(1995).
10
A propósito das críticas sobre a formulação da teoria jurídica de Kelsen, conferir o
trabalho de Correas (2003), no qual é possível ter acesso a mais uma leitura possível de
Kelsen. Para Correas (2003), são os intérpretes de Kelsen e não ele que se apoiam em
difundir uma ciência jurídica a margem da política, na medida em que ocultam o fundo
SROtWLFRGD¿ORVR¿DMXUtGLFDGH.HOVHQ
11
 7RPDQGRRFRQFHLWRGH³REVWiFXORHSLVWHPROyJLFR´HPSUHVWDGRGH%DFKHODU0LDLOOH
trabalha com a ideia de “obstáculo epistemológico à constituição de uma ciência do direito”.
6HJXQGRRDXWRUpSRVVtYHOLGHQWL¿FDURVVHJXLQWHV³REVWiFXORV´D³IDOVDWUDQVSDUrQFLDGR
direito”; o “idealismo profundo das explicações jurídicas”; e a “independência da ciência
MXUtGLFD´ 0,$,//(S 

Seqüência, n. 62, p. 79-96, jul. 2011 83


“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas

rou descortinar os elementos que estavam “encobertos”, esquadrinhando


o direito no sentido de desvendar os “mitos”, os “dogmas” e as “crenças”;
acreditou que esse direito pudesse ser utilizado na emancipação dos indi-
YtGXRV 0,$,//( 2FRQKHFLPHQWRGRIXQFLRQDPHQWRGRGLUHLWR
permitiria as transformações sociais e econômicas acalentadas pela maio-
ria dos indivíduos e dos grupos sociais. Por outro lado, os mais “céticos”
focalizavam o direito como verdadeiro “obstáculo a transformação so-
FLDO´ 0215($/ 
As críticas mais recentes objetivam afastar-se dessas discussões
que dominaram o debate científico do direito, tais como a do formalismo,
que detém a forma em detrimento ao mundo social, e a do instrumentalis-
mo, que percebe o direito como instrumento dos processos de dominação
(BOURDIEU, 1989). Para romper com esses esquemas teóricos de pen-
samento jurídico dominante, Bourdieu (1989) afirma que é preciso levar
em consideração a existência de um campo jurídico, onde se produz e se
exerce a autoridade jurídica, forma de violência simbólica. As práticas e
os discursos jurídicos, no caso, são produtos desse campo, onde os intér-
pretes lutam pelo “direito de dizer o direito”, sendo o que está em jogo é a
luta pelo monopólio da produção da visão do mundo social12.
A despeito de o mundo social ser reconhecido como fragmentado,
explicitando as enormes diferenças sociais, culturais e econômicas exis-
tentes entre os indivíduos e grupos sociais, continua a ser tratado pelo
direito de forma universal13. O universalismo da “prática jurídica”, em
diversos momentos, foi denunciado pela teoria crítica do direito, como
verdadeiro obstáculo para a compreensão do próprio direito, pois ignora a
realidade social.

12
 /RQJHGHTXDOTXHUQHXWUDOLGDGHFLHQWt¿FDRVPDQXDLVGHGLUHLWRYrPVLVWHPDWLFDPHQWH
produzindo e difundindo uma compreensão do direito e do mundo social. Sobre a
construção da noção de propriedade privada nos manuais de direito, ver Shiraishi Neto
(2008).
13
A expansão cultural do direito europeu e, mais recentemente, do direito americano
no Brasil, sempre se deu pela capacidade de “universalizar os particularismos” por meio
GH SHUJXQWDV SUHWHQVDPHQWH ¿ORVy¿FDV TXH HUDP GHEDWLGDV FRPR XQLYHUVDLV 2 GHEDWH
¿ORVy¿FRHQWUH³OLEHUDLV´H³FRPXQLWiULRV´pXWLOL]DGRFRPRLOXVWUDWLYRGHVVHSURFHVVR
(BOURDIEU; WACQUANT, 2005).

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Joaquim Shiraishi Neto

Nos dias de hoje, percebe-se um movimento intenso no interior do


campo jurídico, que se afasta das discussões do direito como uma téc-
nica de dominação14. As reflexões, ambientadas no que tem sido desig-
nado como filosofia do direito (BOURETZ, 1991), vem se orientando a
partir da luta contra o positivismo jurídico, que segundo os argumentos
utilizados é tido como desprovido de qualquer fundamento ético moral, e
neste contexto são eleitos dois temas centrais: “A Constituição (com seu
sistema de direitos) e a Interpretação da Constitucional” (CITTADINO,
2004, p. 143). A força ético-moral das discussões e a destituição de todo
o debate político em relação ao direito são elementos chaves para a com-
preensão do papel que se atribui a ele, conformando o que tem sido deno-
minando pelos intérpretes de “retorno ao direito”15.
O direito retorna envolvido em um debate filosófico ético moral.
A “leitura moral” dos dispositivos jurídicos16 leva a uma completa “des-
politização” de todas as reivindicações sociais. As lutas sociais e as rei-
vindicações dos grupos sociais, que só recentemente foram incluídos na
ordem jurídica como sujeitos de direito, perdem toda e qualquer referên-
cia aos processos jurídicos de dominação que fizeram com que esses gru-
pos se escondessem, tornando-os propositalmente “invisíveis”, para um
tratamento jurídico considerado adequado no contexto de uma sociedade
plural e complexa. Entre nós, a questão se tornou mais grave, como bem
salientou Oliveira (2002), pois os direitos que eram garantidos pelo esta-
do do bem estar social ruiu antes mesmo de serem efetivados. Embora a
noção de cidadania não possa ser mensurada pelos ganhos sociais, bem
14
 (PERUDWDLVUHÀH[}HVYHQKDPVHUHVWULQJLQGRDFtUFXORVFDGDYH]PHQRUHVpLPSRUWDQWH
registrar o consistente trabalho de Kashiura Júnior (2009) sobre a crítica da igualdade
jurídica partir de uma leitura marxista, que recentemente foi defendido na Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.
15
Para Cittadino (2004, p. 141), o movimento de “retorno ao direito” estaria vinculado
à derrocada da utopia igualitarista e do reconhecimento do pluralismo nas sociedades
democráticas.
16
Em diversos trabalhos, Dworkin (2006) propõe um método particular de ler e executar
uma Constituição política, método que ele chama de “leitura moral”. A “leitura moral” da
Constituição propõe que os operadores do direito interpretem os dispositivos abstratos da
Constituição considerando os princípios morais de justiça embutidos nesses dispositivos.
Pelo visto, Dworkin procura construir uma racionalidade a sua proposta de interpretação
do texto constitucional.

Seqüência, n. 62, p. 79-96, jul. 2011 85


“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas

estar e qualidade de vida, a sua importância está relacionada à conquista


desses direitos.
Para essa ideia de “retorno do direito”, o direito estaria em movi-
mento e se deslocando para assumir uma posição central na sociedade.
Segundo Habermas (2008), o direito é compreendido como “categoria
central” para a mediação de todos os problemas vividos pela sociedade,
sobretudo para garantir o que tem sido designado de “integridade social”.
Dworkin em “O Império do Direito”, trabalha com a ideia do “direito
como integridade”. A integridade como virtude ao promover a união mo-
ral e política dos cidadãos (DWORKIN, 2007). A essa ideia de “integri-
dade”, podemos listar outras que também objetivam atribuir ao direito um
papel central, de destaque, na sociedade, como é o caso do “sentimento
constitucional” (LUCAS VERDÙ, 2004) e “neoconstitucionalismo”. Para
os autores, a normatividade jurídica, mais especificamente, a normativa
constitucional, estaria penetrando de forma profunda na sociedade e esse
sentimento de reconhecimento da ordem constitucional representaria um
passo importante para uma maior efetividade das normas. Tais formu-
lações, “direito como integridade”, “sentimento constitucional” e “neo-
constitucionalismo” estão em parelha com a ideia do direito como catego-
ria central da sociedade.
Neste contexto de propagada “retirada” ou mesmo da “ausência” do
Estado, o deslocamento do direito para uma posição central é festejado
como uma grande conquista da sociedade contemporânea, pois seria ele,
o direito, o instrumento capaz de garantir, de forma adequada, os direitos
fundamentais, que se encontram inscritos na Constituição Federal. Os es-
forços teóricos se concentram no sentido de demonstrar as virtudes do di-
reito e de seus intérpretes, que estariam comprometidos com uma ordem
justa.
No bojo desse processo, as técnicas de interpretação jurídica, inven-
tadas e criadas, para resolução das disputas que se tornaram mais variadas
e complexas diante da sociedade que se diversifica, objetivam a adequa-
ção do direito a essas “novas” situações, na medida em que o direito seria
uma espécie de garantidor da “integração social”. Para que esse esquema
de pensamento possa ser efetivado é necessário afastar-se de quaisquer
possibilidades de conflito, sob pena de distender os indivíduos e grupos

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Joaquim Shiraishi Neto

sociais que se encontram ambientados em um mesmo mundo social e,


para isso, diversas noções são tomadas preferencialmente com o pretexto
de cimentar não somente o papel central que se atribuí ao direito, mas
também a construção de uma “nova” “sensibilidade jurídica” mais ade-
quada a essa nova ordem social.

2 Criando a “Nova” “Sensibilidade Jurídica”: o pluralismo ju-


rídico, a fraternidade e a comunidade como noções fundamen-
tais do processo

O reconhecimento de que a sociedade brasileira é plural17 trouxe a


noção de “pluralismo jurídico” para as preocupações. Isso fez com que os
intérpretes passassem a se ocupar com a construção de novos processos
de interpretação para a aplicação e efetivação do direito. Segundo Silva
(2007, p. 143, grifo nosso) “O pluralismo é uma realidade, pois a socie-
dade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, de
JUXSRVVRFLDLVHFRQ{PLFRVFXOWXUDLVHLGHROyJLFRV´0DLVGRTXHLVVR
Silva (2007, p. 143, grifo nosso) nos previne de que “Optar por uma so-
ciedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de inte-
resses contraditórios e antagônicos.”.
A noção de pluralismo está relacionada aos ideais de uma socieda-
de democrática. O reconhecimento da diversidade social às reflexões é o
resultado de um intenso processo de mobilização social por direitos em
todo mundo, o que acabou resultando na edição de um conjunto de dispo-
sitivos no âmbito internacional e nacional. As polêmicas geradas em tor-
no do processo fizeram com que a Organização Internacional do Trabalho
(OIT) revogasse a Convenção n. 107, de caráter assimilacionista, para a
Convenção n. 169, que além de reconhecer a existência social dos grupos

17
 (VSHFLDOPHQWH QR FDVR GR 0DUDQKmR p SRVVtYHO LGHQWL¿FDU RV SRYRV LQGtJHQDV RV
quilombolas, as chamadas quebradeiras de coco babaçu, os pescadores artesanais e os
FLJDQRV³&DORQV´TXHHVWmRHPSURFHVVRGHVHGHQWDUL]DomRHP3LUDSHPDV0DUDQKmR
O reconhecimento desses grupos sociais pelo direito vem provocando uma série de
transformações no cotidiano. No caso dos ciganos, é interessante observar que eles saíram
das páginas policiais para as partes mais centrais dos jornais (JORNAL PEQUENO, 2010,
p. 4).

Seqüência, n. 62, p. 79-96, jul. 2011 87


“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas

e seus direitos, adotou como critério de identificação a consciência de si


720(,6(:36721 LVWRpDDXWRDWULEXLomR
As Declarações e as Convenções Internacionais aliadas ao processo
de organização e mobilização dos grupos sociais resultaram em profundas
transformações na ordem jurídica brasileira, bem como de diversos Países
da América Latina. Vários autores descrevem esse processo a partir da
noção de ciclos, quando os ordenamentos incorporam os dispositivos para
o reconhecimento dos direitos dos povos e das comunidades tradicionais.
No Brasil, o processo ganhou força com a Constituição Federal de 1988,
que reconheceu a existência de diversos grupos sociais. Além dos povos
indígenas (artigo 231 da CF), foram reconhecidos explicitamente os qui-
lombolas (artigo 68 do ADCT) e os seringueiros (artigo 54 ADCT), e por
isonomia, os demais grupos sociais. Para essa leitura, estaríamos vivendo
uma terceira etapa que, no caso, corresponderia ao momento em que os
Estados nacionais passaram a se definir como “Estados Pluranacionais”,
afirmando o “princípio do pluralismo igualitário”.
Assim, o reconhecimento da diversidade deveria implicar na garan-
tia plena de direitos a esses grupos sociais. No caso, é importante retomar
o papel desempenhado pelo pluralismo jurídico no âmbito das discussões
de uma teoria crítica do direito. O pluralismo era considerado como ins-
trumento analítico para uma crítica ao direito positivado e, por isso, foi
tratado pelos intérpretes mais dogmáticos como algo “residual” ou “peri-
férico” das reflexões jurídicas. Eram os chamados sociólogos (SANTOS,
 HKLVWRULDGRUHV :2/.0(5 GRGLUHLWRTXHVHXWLOL]DPGHV-
se instrumento analítico como forma de crítica ao direito. Os sociólogos
e historiadores do direito muito se empenham em tentar demonstrar a in-
suficiência do ordenamento jurídico diante da realidade social brasileira.
A universalidade e abstração das categorias jurídicas não penetra-
vam na realidade, fazendo com que os grupos sociais organizassem o seu
próprio direito de acordo com as suas imensas necessidades. Nesse senti-
do, a noção de pluralismo jurídico era utilizada para reafirmar o “direito
vivido”, que se encontrava à margem do direito positivado. No Brasil, a
ideia da diversidade e do pluralismo jurídico vem se incorporando às re-
flexões; embora seja intensa e de alguma forma incorpore nas práticas, foi

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Joaquim Shiraishi Neto

lenta, gerando polêmica entre os intérpretes, que enfatizavam a universa-


lização dos direitos18.
Ao que parece, a noção de pluralismo jurídico não expressa o mes-
mo conteúdo das reflexões elaboradas inicialmente. Ele foi atualizado,
incorporando novos significados. Em verdade, o pluralismo jurídico não
representa mais a luta pelo reconhecimento do “direito vivido”, que foi
propositalmente desconhecido e ignorado pelos intérpretes do direito,
mas sim, a marca de um direito, que se amplia, estendendo seu controle
para além da ordem controlada, e para isso se reinventa, criando o que
pode ser designado como uma “nova” “sensibilidade jurídica”. Enquanto
discurso jurídico oficial, o pluralismo jurídico deixou de subordinar a si
para subordinar-se ao direito. Em um sentido eminentemente formal, ele
continua a ser compreendido como algo residual ou periférico da ordem
jurídica, pois enquanto que nos primeiros esboços se relacionava à ideia
de emancipação, nesse segundo relaciona-se à de sujeição.
Soma-se a essa noção de pluralismo jurídico, a recuperação da
ideia de comunidade que precedeu a de sociedade19. A comunidade era
tida como algo “natural” e “evidente”. Trata-se de um “entendimento
compartilhado” por todos os seus membros, sendo que esse entendimen-
to não necessita ser procurado, e muito menos construído, pois já existe.
Na comunidade, há uma ligação dos membros desde o seu nascimento
FRPWXGRRTXHKiGHERPHGHUXLP %$80$1 1HVVHVHQWLGR
não representava consenso entre seus membros, pois

18
Recordamos as críticas sofridas por Canotilho no momento em que fez menção a
³PRUWHGD&RQVWLWXLomR'LULJHQWH´(OHSUySULRVHGHIHQGLDD¿UPDQGRTXHHPXPSHUtRGR
de “cidadanias múltiplas” e de “múltiplos de cidadania” seria prejudicial o fecho da
Constituição (CANOTILHO, 2001). Consultar, também, Coutinho (2003).
19
Em “Comunidade e Sociedade”, Tonnies objetiva precisar inicialmente a distinção dos
conceitos de comunidade e sociedade, pois para esse autor, o uso desses conceitos vem
RFRUUHQGRVHPQHQKXPDGLVWLQomRULJRURVD³>@PLHQWUDVTXHODWHUPLQRORJLDFLHQWt¿FD
anterior solía mezclarlos a capricho sin dinstinguirlos” (TONNIES, 1947, p. 19). A
comunidade é polissêmica, compreendendo diversos sentidos, é utilizada para expressar
o lugar dos indivíduos mais fracos, que não são capazes de individualmente sobreviver na
VRFLHGDGH %$80$1 

Seqüência, n. 62, p. 79-96, jul. 2011 89


“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas

[...] esse entendimento já “está lá”, completo e pronto para ser


usado – de tal modo que nos entendemos “sem palavras” e nun-
ca precisamos perguntar, com apreensão, “o que você quer dizer?”.
O tipo de entendimento em que a comunidade se baseia prece-
de todos os acordos e desacordos %$80$1SJULIR
nosso).

Tal entendimento compartilhado, considerado “natural” e “eviden-


te”, era totalmente incompatível com a organização social ascendente,
uma vez que o indivíduo se tornava consciente e se libertava das tradi-
ções. A ideia de comunidade se rivalizava com a de sociedade, pois en-
quanto uma representava o velho à outra o moderno. Na tensão entre a
“estabilidade” e a “segurança” da comunidade, foi a “liberdade” e a “au-
tonomia” da sociedade que prevaleceu e se impôs, transformando as rela-
ções e a sociedade.
No caso da teoria do direito, percebe-se uma tendência de recuperar
DQRomRGHFRPXQLGDGH0DLVGRTXHLVVRDUHFXSHUDomRRGRTXHSRGH
ser chamado de “sentimentos de comunidade”, a fim de utilizá-los no for-
talecimento dos padrões jurídicos propostos. A ideia de comunidade tem
embutido um conjunto de elementos que sugerem coisas boas e agradá-
veis. Para Bauman (2003, p. 7), “[...] a comunidade é um lugar ‘cálido’,
um lugar confortável e aconchegante”.
A noção de comunidade tem aparecido explicitamente nos textos
jurídicos, sobretudo em Dworkin (2007), embora para esse autor a “fra-
ternidade” se apresente como sinônimo. Os demais juristas, muito embora
não utilizem essa noção explicitamente, preferindo a de sociedade, procu-
ram associar à sociedade os sentimentos de comunidade a partir de uma
leitura ético moral do direito.
Para Dworkin (2007), a comunidade tem princípios comuns – e não
apenas regras –, e os destinos de seus membros estão fortemente ligados.
No caso, os princípios são produtos das decisões tomadas e estão relacio-
nados às ideias de justiça e de equidade (DWORKIN, 2007) A intenção é
tentar criar uma espécie de “lealdade” entre todos os membros da socie-
dade em torno dos princípios comuns. Desta forma, cada membro da co-

90 Seqüência, n. 62, p. 79-96, jul. 2011


Joaquim Shiraishi Neto

munidade “aceita” os direitos dos outros e seus deveres, ainda que esses
não tenham sido identificados ou declarados (DWORKIN, 2007).
O assento da noção ou mesmo do sentimento de comunidade está
relacionado ou tem sido denominado de “nova” “sensibilidade jurídica”.
Neste contexto, a ideia de fraternidade também ganha força, aparecendo
nos textos jurídicos recentes, sobretudo no sentido de garantir os sentidos
que se quer atribuir ao direito na nossa sociedade. Além de Dworkin, os
intérpretes vêm se empenhando em recuperar a ideia da fraternidade, que
é tida como um “princípio esquecido” (BAGGIO, 2008).
Baggio (2008) lembra que a “liberdade” e a “igualdade” que repre-
sentam os ideais da revolução francesa se espraiaram pelo mundo, se uni-
versalizaram, incorporando-se as ordens jurídicas como princípios consti-
tucionais. No entanto, esses dois ideais permaneceram mais antagônicos
do que aliados entre si, justamente pelo fato de que ficaram desprovidos
da ideia de fraternidade (BAGGIO, 2008). A fraternidade enquanto “laço
universal”, compreendido, tem um significado muito forte, por isso mesmo
é recuperada pelo direito, enquanto critério para a tomada das decisões.
No entanto, esse processo que germina, merece algumas reflexões,
que podem ser observadas a partir da Ação Popular, que impugna o ato de
demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Ao se afas-
tar do processo as noções de território e de povo, por exemplo, afastou-
se deliberadamente o conflito. O discurso jurídico vem se empenhando
em construir um sistema jurídico mais harmônico, consensual (daí a re-
tomada das ideias de comunidade e de fraternidade, que se alastram nos
discursos jurídicos, sem nenhuma reflexão), afastando das partes o con-
flito20. Observa-se que o direito vem sendo reinventado, mesmo que para
isso tenha que reinventar a própria sociedade à luz de seus ideais, a pre-
texto de atender as demandas.

20
 1HVVH FRQWH[WR R FRQÀLWR p LQWHUSUHWDGR FRPR XP HOHPHQWR SUHMXGLFLDO DR SUySULR
GLUHLWRSRLVVHJXQGRHVVHHQWHQGLPHQWRRFRQÀLWRWRUQDDVSDUWHVLQLPLJDV³>@HQTXDQWR
o processo judicial é uma espécie de guerra que afasta as partes, a arbitragem tenta manter
as relações entre elas de modo que possam continuar a atuar em conjunto nos contratos de
ORQJRSUD]RTXHUFRPRIRUQHFHGRUHVTXHUFRPRFOLHQWHV´ 0$57,16:$/'S
A-3).

Seqüência, n. 62, p. 79-96, jul. 2011 91


“Novas Sensibilidades” Velhas Decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas

A construção desse modelo jurídico, alicerçado na ideia do consen-


so e da harmonia, já foi objeto de análise, em outras oportunidades. Os
estudos antropológicos relevaram que as decisões baseadas nesse modelo
jurídico representaram uma poderosa forma de controle social exatamente
pela aceitação do modelo como benigno (NADER, 1994).
Ao afastar o conflito, retira-se a política, e no caso específico des-
ses grupos sociais de identidade étnica, a fala dos próprios sujeitos. Neste
período da “pós-democracia”, Ranciere (1996, p. 110, grifo nosso) nos
revela que o conflito é retirado por meio do direito, lembrando que “[...]
o reino do direito é sempre o reino de um direito, isto é, de um regi-
me de unidade de todos os sentidos do direito, colocado como regime de
identidade da comunidade”. Conquanto o direito venha se transformando,
alargando o seu alcance para além das situações juridicamente cataloga-
das, não se pode esquecer que o direito está inscrito em uma disputa, que
se realiza no interior do campo jurídico.

Conclusões

O direito se transforma, criando o que tem sido denominado de


“nova” “sensibilidade jurídica”. A “sensibilidade” está relacionada a um
conjunto de atitudes práticas construídas para a resolução das disputas. As
atitudes não se resumem ao arsenal de elementos jurídicos descritos, que
vêm sendo incorporados à ordem jurídica, mas também a uma forma es-
pecífica de construir a realidade social, apresentada como múltipla e com-
plexa, diante dos novos sujeitos de direito. O direito vem procurando dar
uma unidade a essa ordem social diversa, que, aliás, foi sistematicamente
ignorada pelo próprio direito.
A força desse esquema tem se revelado inicialmente pela nossa in-
capacidade de se mobilizar em torno do questionamento da aplicação des-
se modelo; e também pelo fato de que os grupos sociais de identidade
étnica estão vivendo um período de conquistas de direito, ainda que es-
sas conquistas possam ser questionadas, a exemplo do resultado do julga-
mento da referida Ação Popular.

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Joaquim Shiraishi Neto

Nesse contexto de construção de uma “nova” “sensibilidade jurí-


dica”, vivemos um dilema: ao mesmo tempo em que os diversos povos
e comunidades tradicionais conseguiram direito, ingressando na ordem
jurídica como sujeitos de direito, corre-se o risco de que esses sujeitos se-
jam novamente destituídos de sua fala e, consequentemente, privados de
seus direitos duramente conquistados. Os “sem parcelas”, destituídos de
tudo, viram parte. Nessa parte correm o risco de ficar sem a sua parcela.

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ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR: UM CONCEITO, UM MOVIMENTO
1
Ana Lia Almeida

RESUMO​: Este artigo resulta da sistematização de parte das análises empreendidas na


tese de doutorado “Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da
assessoria jurídica universitária popular” (2015). Em “Assessoria Jurídica Popular: um
conceito, um movimento”, busco caracterizar a Assessoria Jurídica Popular (AJP) a
partir de suas principais premissas: o verbo assessorar, o adjetivo “popular” e a
compreensão que ali se tem a respeito do direito. Antes dessa caracterização, reflito a
respeito da conformação deste campo, o que remonta ao enfrentamento da ditadura
civil-militar no Brasil e ao período da redemocratização do país. A partir de então, a
AJP configurou-se como uma perspectiva ideológica no interior do campo jurídico,
colocando-se ao lado dos sujeitos das lutas sociais, o que representa um enfrentamento à
perspectiva dominante no direito, de compromisso com as elites para a conservação da
ordem posta. Para delimitar, conceitual e historicamente, este movimento, dialogo com
importantes referências orgânicas da assessoria jurídica popular neste trabalho.

1. Introdução
Em 2013, conversei com dezenas de estudantes de direito em universidades do
2
Nordeste do país. Um desses estudantes, ​Chico , ​me disse que a Assessoria Jurídica
Popular havia provocado ​um estalo em sua cabeça. Ele, que antes era um leitor assíduo
da Revista Veja e um fiel telespectador do Jornal Nacional da Rede Globo, passou a se
posicionar ao lado das lutas sociais devido àquele estalo, depois que começou a integrar
o Projeto Cajuína, na UFPI. O Cajuína faz parte de uma orientação ideológica no direito
(a Assessoria Jurídica Popular, ou AJP) que busca apoiar os trabalhadores e os demais
sujeitos subalternizados em seus enfrentamentos na sociedade de classes, provocando
sucessivos estalos nos sujeitos ligados ao campo jurídico. Nesse estalo, que é um
processo de despertar ideológico, os estudantes vão mudando a sua forma de
compreender o mundo ao tempo em que vão tomando partido nos antagonismos sociais
por meio da práxis da assessoria jurídica popular.
A expressão “assessoria jurídica popular” relaciona-se a certas práticas do campo
jurídico que se colocam ao lado dos sujeitos subalternizados nos enfrentamentos da

1
Ana Lia Almeida é professora da Universidade Federal da Paraíba, onde coordena o Núcleo de Extensão
Popular (NEP) Flor de Mandacaru, ligado à Rede de Assessoria Jurídica Universitária (RENAJU), e o
Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais (GPLutas), ligado ao Instituto de Pesquisa Direito e
Movimentos Sociais (IPDMS).
2
​Chico ​é um dos nomes fictícios atribuídos aos estudantes entrevistados para a tese em questão, alguns
dos quais serão citados, em itálico, e com as devidas referências, nas próximas páginas.
sociedade de classes. Os sujeitos destas práticas são, principalmente, advogadas e
advogados populares (conformando o campo da “advocacia popular”) e grupos ligados
às universidades (conformando o campo da assessoria jurídica universitária popular)
(ALMEIDA: 2014, p.52).
As tais conversas com os estudantes a que me referi consistiam em entrevistas
com oito grupos de assessoria jurídica universitária popular do Nordeste (o Projeto
Cajuína - UFPI, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Negro Cosme - UFMA, o
Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária e o Centro de Assessoria Jurídica
Universitária - UFCE, o Programa Motyrum - UFRN, o Núcleo de Extensão Popular
Flor de Mandacaru - UFPB, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Direito nas Ruas -
UFPE e o Serviço de Apoio Jurídico Universitário - UFBA), e foram o principal ​corpus
de pesquisa sobre o qual me debrucei na tese de doutorado “Um estalo nas Faculdades
de Direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular”. Ali,
buscava compreender as possibilidades, as contradições e as limitações desse segmento
na tarefa de se contrapor à perspectiva ideológica dominante no direito, absolutamente
comprometida com a manutenção da ordem posta. Neste artigo, apresento parte das
análises desenvolvidas na tese, que dizem respeito à conformação e à caracterização
deste campo ideológico no direito. Em algumas passagens, aqui amplio considerações
para o âmbito mais geral da Assessoria Jurídica Popular, da qual a Assessoria Jurídica
Universitária Popular é espécie. Tal ampliação, contudo, em nada compromete o rigor
das análises. Elas caminharão na seguinte ordem: primeiro, um resgate do momento
histórico em que se conformou o campo da AJP; segundo, uma caracterização do
significado do verbo “assessorar” para este segmento; terceiro, uma análise daquilo que
o adjetiva como “popular”, e; por fim, considerações a respeito do significado da
dimensão jurídica para a AJP.

2. O Movimento da Assessoria Jurídica Popular


O processo de conformação da assessoria jurídica popular no Brasil remonta ao
enfrentamento da ditadura civil-militar por parte de certos profissionais e estudantes do
direito desde a década de 1960. Por um lado, as contingências históricas levaram
advogados e advogadas a atuar na defesa judicial de desaparecidos, presos políticos e
perseguidos do regime (RIBAS: 2009, p 46). Esta aproximação ocorria tanto no
contexto das lutas contra a exploração no campo, como nas lutas dos trabalhadores e do
movimento estudantil na cidade. De fato, advogadas e advogados se engajaram na
defesa dos perseguidos pelo regime desde o primeiro momento em que ele foi
3
deflagrado . Muitas advogadas e advogados chegaram a ser perseguidos e até
assassinados nesse contexto, sobretudo aqueles que atuavam junto à advocacia
trabalhista em conflitos na área rural. A violência do regime foi particularmente feroz
no campo, até mesmo porque os latifundiários aproveitaram aquele contexto para
perseguir e assassinar trabalhadores rurais que enfrentavam a exploração a que eram
4
submetidos . Por isso, muitos advogados que defendiam os camponeses foram
duramente perseguidos, a exemplo de Eugênio Lyra, assassinado na Bahia em 1977.
Por sua vez, os estudantes de direito, antes mesmo do golpe, já haviam criado dois
grupos precursores do que hoje se entende por assessoria jurídica universitária popular:
o Serviço de Assistência Jurídica Gratuita da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (SAJU/UFGRS), fundado em 1950; e o já aludido Serviço de Assistência Judiciária
da Universidade Federal da Bahia (SAJU/UFBA), criado em 1963. A criação destas
entidades foi motivada por dois elementos: por um lado, havia um vácuo curricular nos
cursos de Direito, que não ofereciam atividades práticas para o exercício das carreiras
jurídicas. Os estudantes, então, passaram a se organizar para, por conta própria,
desenvolver esta dimensão importante para a sua formação, até então inexistente,
denunciando a “inefetividade da prática forense” (OLIVEIRA: 2003, p.15). Por outro
lado, havia também o interesse em se aproximar das classes populares por parte de
alguns setores estudantis, respondendo às movimentações da época. Os estudantes
estavam sensíveis, por exemplo, às demandas por reformas de base, dentre as quais

3
Um resgate dessa história pode ser encontrado no documentário dirigido por Silvio Tendler (2014), “Os
advogados contra a ditadura: por uma questão de justiça”, patrocinado pela Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça (disponível em:
http://www.justica.gov.br/videos/filme-os-advogados-contra-a-ditadura-por-uma-questao-de-justica​.
Acesso em outubro de 2014). O filme é baseado no livro “Os advogados e a Ditadura de 1964: A defesa
dos perseguidos políticos no Brasil”, organizado por Fernando Sá, Paulo Emílio Martins e Oswaldo
Munteal, da editora Vozes, Petrópolis, 2010.
4
Este problema da violência (e da conivência com ela por parte dos órgãos de justiça) contra os
camponeses e seus apoiadores – entre eles advogados - é, na verdade, enfrentado até hoje, como aponta
os relatórios anuais sobre os conflitos no campo que a Comissão Pastoral da Terra vem realizando há 29
anos (a edição de 2013, bem como as anteriores, estão disponíveis em www.cptnacional.org). Quanto à
atualidade desta violência contra advogados e outros apoiadores das lutas sociais, conferir material
produzido pela Terra de Direitos e pela Justiça Global (2005) intitulado ​Na linha de frente: Defensores
de Direitos Humanos no Brasil – 2002-2005.
estava inclusa uma ampliação do “acesso à justiça”. Como uma resposta a estas lutas
por “acesso à justiça”, em 1950 foi promulgada no Brasil a Lei da Assistência Judiciária
Gratuita (nº1060), garantindo aos “necessitados” (Art. 1°) a assistência necessária para
ajuizar ações no Poder Judiciário. Essas movimentações por “acesso à justiça” ecoaram
em meio à agitação política dos estudantes às vésperas do golpe militar, influenciando
na criação dos SAJU.
O contexto estudantil, dessa forma, estava fortemente implicado em certas
movimentações do “mundo da cultura” que conformavam uma intelectualidade ligada
ao povo na passagem dos anos 1950 aos 1960, segundo as análises de José Paulo Netto
(1990). Esta inclinação, aliada à crise no sistema educacional (ocasionada por conta do
acréscimo na demanda por educação institucional, decorrente do processo de
industrialização pesada), convertia os estudantes em catalisadores do bloco contrário ao
regime. Por isso, a questão educacional tornou-se prioritária para a ditadura, tanto no
sentido de reprimir as forças de contestação como para redirecionar o sistema de ensino.
Num primeiro momento, até 1968, a política educacional se concentrou em erradicar as
experiências democratizantes. A partir dali, tendo o Ato Institucional nº5 como marco,
há uma reorientação para a construção de um modelamento segundo o ​projeto
modernizador​, que consistia basicamente em dotar a educação da funcionalidade
necessária ao modelo econômico, reproduzindo os mecanismos excludentes e ajustando
o financiamento da educação para privilegiar o grande capital. A educação passa a se
configurar como um novo filão de negócios, dotada, portanto, de ​lógica empresarial –
um espaço de todo neutralizado como lugar de crítica (NETTO: 1990, p.67).
Estas forças de contestação no campo jurídico, entre os advogados e os estudantes
de direito, já estavam presentes, portanto, desde o período que antecedeu ao golpe de
1964, e passaram imediatamente a atuar contra o regime ditatorial que a partir de então
se instalou. Mas é com o enfraquecimento e o fim da ditadura que estes sujeitos passam
a se articular de forma mais organizada. Neste momento histórico, no Brasil e na
América Latina havia uma retomada da democracia com o fim de regimes ditatoriais.
Era também um momento de profunda crise econômica, que, apesar de haver se
instalado no mundo desde o fim dos anos 60, passara a ser mais intensamente percebida
no Brasil a partir dos anos 80. A resposta do capital a esta crise, o neoliberalismo,
provocou um forte abalo nesse processo de rearticulação das forças de esquerda. Na
década de 90, enquanto o neoliberalismo se consolidava no Brasil, a assessoria jurídica
popular retomava a sua organização, um processo de todo implicado no contexto
redemocratizante daquele período. Isso faz da AJP uma força de contestação dentro do
direito, mas que se rearticulou num momento histórico de inflexão das esquerdas.
A articulação desses sujeitos progressistas do campo jurídico estava inserida num
contexto mais amplo de retomada da mobilização social que incidiu nos processos de
transição democrática na América Latina. Os países latino-americanos, com o fim dos
regimes ditatoriais, vivenciavam uma conjuntura de maior liberdade para a agitação
social e a mobilização política. No Brasil dessa época, a partir de meados da década de
70, quando a ditadura dava sinais de esgotamento, “o movimento popular,
principalmente através das organizações de bairro, e o sindical, através das oposições
sindicais, começaram a reaparecer” (MOMESSO: 1997, p.51).
Surgiram, nesse contexto, várias organizações importantes ligadas à classe
trabalhadora, como o Partido dos Trabalhadores (em 1980) e a Central Única dos
Trabalhadores (em 1983). Além destes sujeitos coletivos que se organizavam num
modelo “tradicional”, concebidos enquanto entidades de classe, partidos e sindicatos, a
retomada democrática também possibilitava o surgimento de novas formas de
participação político-social. Desse modo entra em cena, por exemplo, o Movimento dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (em 1984), que, mais próximos dos
5
arranjos das predecessoras Ligas Camponesas , apresentavam uma forma de
organização diferenciada em relação aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Da mesma
forma, surgem diversas organizações feministas e de mulheres, ligadas à luta contra o
racismo e à opressão sexual etc.
A interação entre essas forças mais tradicionalmente ligadas à classe trabalhadora
e os sujeitos políticos “novos”, menos próximos da referência organizativa da classe, foi
responsável por um período extremamente rico do ponto de vista político no Brasil,
cheio de possibilidades históricas para o real aprofundamento da nossa democracia. O
sindicalismo, interagindo com diversas outras forças sociais, vivenciou nesta época um
período de avanços, marcado por “grandes mobilizações que acompanharam o final da

5
Segundo Momesso (1997, p.61), as Ligas Camponesas apresentavam uma postura mais radicalizada –
como demonstra o lema “Reforma Agrária na lei ou na marra” - e por isso mais temida e também
reprimida pelos proprietários rurais. Buscavam conquistas para os camponeses independentemente de
haver previsão legal e, “diferentemente do sindicalismo, não priorizavam a categoria como um todo”.
ditadura, a anistia e a luta pela constituinte garantindo algumas conquistas legais”, como
ensina Luiz Momesso (1997, p. 16). Na análise de José Paulo Netto (2004), a interação
desses “novo sujeitos” com o movimento sindical classista e com partidos políticos de
esquerda gerou uma potencialização das forças de ambos, e daí resultaram os ganhos
sociais que foram plasmados na Constituição.
Na exata medida em que se conjugaram – e a década de oitenta no Brasil é
absolutamente emblemática da potencialidade dessa conjugação – esse
associativismo de base e os instrumentos capazes de totalizar e universalizar
os interesses que ele expressava, colocou-se a possibilidade da constituição
de um marco democrático capaz de incidir com efetividade em processos de
transformação econômico-social (NETTO, 2004, p.76-77).

O período da Constituinte, em meados dos anos 1980, foi, de fato, uma síntese
importante deste momento histórico no país. Ao discutir os direitos que deveriam estar
contidos na Constituição Federal, as forças políticas atuantes naquele processo debatiam
o projeto que queriam para o país com a derrubada da ditadura. A reorganização das
forças sociais trouxe para o processo da constituinte uma série de reivindicações que
esses setores esperavam ver consolidadas em direitos, ao mesmo tempo em que
propiciou fecundos rearranjos na forma de participação social e política na sociedade. O
processo da Assembleia Constituinte, em que interagiam e incidiam essas forças
“tradicionais” e outras “novas” do campo de contestação da ordem, resultou num
período de grande importância para a conformação da assessoria jurídica popular (LUZ.
2006; MAIA, 2007; SOUZA JÚNIOR, 2008; RIBAS, 2009).
Nesse contexto é que surgem as primeiras experiências associativas de advogados
populares, a exemplo da Sociedade Paraense de Direitos Humanos (SDDH), fundada
ainda na década de 1970 em Belém do Pará; do Gabinete de Assessoria Jurídica às
Organizações Populares (GAJOP) fundado em Recife em 1981; da Associação de
Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR) criada em Salvador em 1982 e
do Instituto de Apoio Jurídico Popular (IAJUP ou AJUP) no Rio de Janeiro em 1985.
Elas estavam fortemente associadas às principais referências organizativas dos
trabalhadores que atuavam no campo, como a Comissão Pastoral da Terra e os
sindicatos de trabalhadores rurais. A partir dessa atuação que já se acumulava desde os
primeiros enfrentamentos à ditadura militar, surgem grupos de advogados articulados
com diversos sujeitos que se organizavam nesse momento da retomada democrática no
país, sobretudo com o surgimento de um movimento sindical atuante (construindo as
centrais sindicais), mas também movimentos religiosos (como as pastorais), de
educação popular, ligados a entidades não governamentais e mesmo certas instituições
públicas, de modo que o “período da dita ‘redemocratização’ do país, sobretudo a partir
de 1985, foi fecundo para a organização popular, inclusive dos grupos de apoio
jurídico” (RIBAS, 2009, p.40).
Nos anos 1990, parte destas experiências confluiria para a criação da Rede
Nacional de Advogados Populares. Mas, mesmo antes, ainda nos anos 1980, os
advogados e advogadas passaram a se articular de forma mais organizada em
decorrência desta conjuntura de mobilização de diversas forças de contestação presentes
6
na transição democrática . É o que revela Ana Cláudia Tavares, em dissertação sobre a
advocacia popular no estado do Rio de Janeiro:
A RENAP não é a primeira articulação de advogados voltados para a defesa
de movimentos populares. A ANAP (Associação Nacional de Advogados
Populares), criada na década de 1980, reuniu um grupo de advogados que, na
época, trabalhava para a CPT, e o AJUP (Instituto Apoio Jurídico Popular),
no Rio de Janeiro, que possuía um trabalho voltado para educação popular,
são exemplos de grupos que se identificam como advogados ou assessores
populares. Já mencionamos a ANATAG (Associação Nacional de Advogados
de Trabalhadores da Agricultura), que embora não se auto-identifique
explicitamente em torno da ideia de “advocacia popular”, era composta por
advogados que prestavam assessoria aos trabalhadores e organizações
sindicalistas rurais da época, como a CONTAG (Confederação Nacional de
Trabalhadores da Agricultura) (TAVARES, 2007, p. 71).

Enquanto isso, as forças progressistas presentes na universidade pública brasileira


também pressionavam para que esta instituição experimentasse um profundo repensar
de si mesma nesse novo momento político que o país atravessava. Estava colocada a
necessidade de firmar algum tipo de compromisso social com o desenvolvimento da
nascente democracia, e o papel da universidade era inteiramente rediscutido por todos
os segmentos que a compunham. Ainda em 1978, foi criada a Federação de Servidores
7
das Universidades Brasileiras (FASUBRA) . A União Nacional dos Estudantes (UNE),

6
Antônio Carlos Wolkmer (2001b, p. 303), mapeando estas iniciativas dos anos 1980 e 1990, destaca as
seguintes entidades: AJUP (Instituto de Apoio Jurídico Popular – Rio de Janeiro); GAJOP (Gabinete de
Assessoria às Organizações Populares – Olinda, Pernambuco);PAJ (Projeto de Assessoria Jurídica da
Pró-reitoria Comunitária da Universidade Católica de Salvador); Comissão de Justiça e Paz da
Arquidiocese de Salvador (Bahia); Acesso à Cidadania e Direitos Humanos(Porto Alegre/RS); o Serviço
de Assessoria Jurídica Universitária da Faculdade de Direito da UFRGS (SAJU – Porto Alegre/RS); o
Serviço de Apoio Jurídico Popular (SAJU – Universidade Federal da Bahia) todos no Brasil e, na
América Latina, o ​Instituto de Servicios Legales Alternativos ​(ILSA – Colômbia).

7
Informações disponíveis na página virtual da entidade: <​http://www.fasubra.org.br​>. Acesso em
outubro de 2014.
que já existia desde 1937, embora tenha sido forçada à ilegalidade pela ditadura a partir
de 1964, conseguia finalmente realizar um encontro nacional relativamente às claras em
8
1979 . Por sua vez, os professores criavam o seu sindicato nacional em 1981, a
9
Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior (ANDES)​ .
Quanto aos estudantes de direito, estavam antenados com a necessidade de
formação de um novo perfil de profissionais para dar conta das demandas sociais que
surgiam após a ditadura. A perspectiva da assistência jurídica tradicional, de orientação
liberal, por seu caráter patrimonialista e individualista, não era adequada àquelas novas
demandas, de cunho coletivo, que haviam sido positivadas em direitos na
redemocratização (OLIVEIRA: 2003, p.44 a 45). Alguns estudantes passaram a se
integrar em torno da assessoria jurídica popular, e, aproveitando os novos ares para o
movimento estudantil na retomada democrática, conformaram diversos coletivos nos
anos 1990, articulados pela Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária a partir
dos últimos anos desta década.
Assim, na década de 1990 jovens estudantes de direito, de forma esparsa em
todo o Brasil, com o espírito efervescente da “redemocratização”, iniciaram
práticas que privilegiavam o atendimento de grupos de pessoas que
normalmente não têm acesso a um serviço jurídico. Eles iam em busca de
demandas coletivas, de movimentos populares, de problemas sociais que não
estavam nos tradicionais livros de direito; queriam saber da reforma agrária,
da “democratização”, da garantia de direitos humanos, ou, até, do socialismo
brasileiro (RIBAS: 2009, p.51).

Atualmente, a Assessoria Jurídica Universitária Popular pode ser caracterizada


como uma perspectiva ideológica ​ligada a ​certos grupos estudantis do direito, que, de
modo auto-organizado e geralmente ligados à extensão universitária, colocam-se ao
lado dos trabalhadores e dos demais sujeitos subalternizados na sociedade de classes
(ALMEIDA: 2015, p.77).
A organização desses sujeitos progressistas do campo jurídico, advogadas(os) e
estudantes esteve implicada, desse modo, num período de grande agitação e interação
entre diversas forças de contestação na retomada democrática pela qual o Brasil e a
América Latina passavam, com a derrubada de regimes ditatoriais. É uma contradição
esta efervescência política ter ocorrido num período de crise econômica tão severa,
sendo os anos 1980 conhecidos como uma “década perdida” para o Brasil. Aqui, a

8
Para um breve resgate da história da UNE, ver <​http://www.une.org.br​>. Acesso em outubro de 2014.
9
Informações disponíveis na página virtual da entidade: < ​http://www.andes.org.br​>. Acesso em outubro
de 2014.
década de 1970 havia sido um período de expansão e crescimento econômico,
caracterizado como uma ​modernização conservadora (com aumento da concentração de
renda e precarização das condições de vida dos trabalhadores). Na verdade, apesar desse
crescimento, o “milagre brasileiro”, que vai até 73/74, correspondeu ao período de
maior repressão da ditadura, além de grande arrocho salarial (MOMESSO; 1997, p.51).
Já na década de 80, havia um baixo crescimento do PIB, com a compressão de salários e
aumento ainda maior da concentração das riquezas (MOTA: 2000, p.62-63).
A ofensiva das forças de esquerda nesse período consistia numa resposta da classe
trabalhadora e dos grupos sociais subalternizados à crise que se desenhava no Brasil e
no mundo. Portanto, era apesar e por causa da grave crise econômica que emergia a
efervescência política como movimentação ligada às forças progressistas que incidiram
na redemocratização. Estas forças conseguiram obter os ganhos políticos e sociais que
foram plasmados na Constituição de 1988, num verdadeiro processo democratizante. No
entanto, a profunda transformação na estrutura do Estado brasileiro que elas poderiam
ter impulsionado foi frustrada por uma contra reforma cujo marco inicial pode ser
localizado na eleição de Fernando Collor de Melo (em 1989), e sobretudo a partir de
1995, com o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando se coloca com mais força
o projeto neoliberal no Brasil. Se a efervescência política dos anos 80 era uma resposta
subalterna à crise que se instalava no Brasil e no mundo, o neoliberalismo foi a resposta
do capital a esta mesma crise, dando início a um processo de reestruturação produtiva
que trouxe profundas consequências para a classe trabalhadora e para as forças de
contestação da ordem em geral.
Acompanhando o movimento mais amplo de reorientação das forças de esquerda
em meio a esse processo histórico, os sujeitos progressistas do campo jurídico se
articularam em torno de duas organizações, consolidando a perspectiva da assessoria
jurídica popular: a ​Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP) em 1995 e a
Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária (RENAJU) em 1998. A RENAP
surge no intuito de articular e fortalecer as experiências em torno da advocacia popular
que se acumulavam desde o início dos anos 1980, atendendo a uma demanda pela
defesa judicial de trabalhadores, sobretudo da área rural. A RENAJU, por sua vez, surge
para articular os estudantes de direito no apoio a ​comunidades​ e organizações populares.
A assessoria jurídica popular consiste, desse modo, numa orientação ideológica
porque atua como uma consciência prática da realidade, orientando o posicionamento de
certos sujeitos do campo jurídico nos embates travados dentro do direito ao lado da
classe trabalhadora e dos grupos sociais subalternizados. Ao falar em ​ideologia​, ​não me
refiro a uma ​falsa consciência ​da realidade (sentido usual conferido ao termo), mas a
processos de consciência absolutamente voltados à práxis, ou seja, orientados para a
ação. Não se trata de algo encerrado ao plano da consciência, portanto. Consiste em
ideologia, ademais, tanto os processos de consciência voltados à conservação da ordem
posta como aqueles implicados na transformação da mesma. Este sentido de ideologia
10
se depreende da própria obra marxiana , como também da do último Lukács (2013), n´a
Ontologia do Ser Social, e, especialmente, da obra de Mészáros (2004), donde se toma a
noção exata de ideologia como uma ​consciência prática e inevitável da sociedade de
classes​. Passo agora a explicar em que consiste a perspectiva da ​assessoria jurídica​,
como também os processos que adjetivam essa prática como ​popular​.

1. O verbo assessorar
Os pressupostos da perspectiva da ​assessoria ​encontravam-se numa forte crítica
ao tradicionalismo do campo jurídico, compreendido como “formalista”,
“burocratizado”, “individualista”, “comprometido com as elites” etc.
Do ponto de vista teórico, havia no direito uma retomada do pensamento “crítico”
na passagem dos anos 80 para os 90 que acompanhava os ares da abertura democrática e
também o movimento de inflexão da perspectiva comunista/socialista. Circulavam, à
época, como ainda hoje, formulações como as do ​pluralismo jurídico, ​do direito
alternativo, do D​ireito Achado na Rua e do ​Direito Insurgente​, sob forte influência de
advogados e teóricos como Jacques Távora Alfonsin, Miguel Pressburguer, Miguel
Baldez, Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, Luís Alberto Warat, Antônio Carlos
Wolkmer, José Geraldo de Souza Júnior, entre outros.
Desse modo, a perspectiva da ​assessoria apoiava-se num campo até hoje
identificado como ​teorias críticas do direito​, tomado como referência para justificar

10
A propósito, remeto à leitura de “Ideologia e formação humana em Marx, Lukács e Mészáros”​.
(PINHO: 2013); e “Um estalo nas Faculdades de Direito: perspectivas ideológicas da Assessoria Jurídica
Universitária Popular” (ALMEIDA:2015).
práticas jurídicas ​alternativas, ​isto é, que se contrapunham à forma tradicional de
conceber e manejar o direito. Nesta movimentação estava inserida a crítica à perspectiva
11
assistencialista dos ​serviços legais tradicionais , que engendraria a noção de
assessoria contraposta à de ​assistência​. Se os serviços de ​assistência​, inclusive os
criados pelos primeiros grupos estudantis como os SAJU (no Rio Grande do Sul e na
Bahia), reproduziam a lógica tradicional do direito, individualista e patrimonialista;
cabia às práticas ​alternativas investir em abordagens que buscassem compreender as
raízes dos conflitos sociais, intervir na sua dimensão coletiva e perceber que o direito,
isoladamente, não poderia dar conta de solucioná-los.
A perspectiva da assistência jurídica, simbolizada pelo atendimento
técnico-jurídico a casos individuais, passa a ser avaliada como insuficiente e inadequada
para intervir nas reais causas dos conflitos sociais, pois reforçava o universo simbólico
dominante no direito (com sua linguagem difícil, seus tribunais opulentos etc.). Havia,
ademais, uma forte influência de perspectivas que, no contexto da ​redemocratização do
país, contribuíam para os processos de mobilização da classe trabalhadora e dos demais
sujeitos subalternizados, a exemplo das reflexões de Paulo Freire.
Fortalecia-se, desse modo, a concepção de que os processos educativos deveriam
estar implicados no questionamento da ordem posta, a partir do desenvolvimento crítico
da autonomia dos sujeitos. Essas premissas contribuíam para a avaliação de que, na
perspectiva da ​assistência​, os sujeitos ​assistidos eram postos numa posição demasiado
passiva, que não levava em conta a sua autonomia e o potencial de mobilização para
intervir na realidade e modificá-la. Conjugar o verbo ​assessorar passa, então, a
significar “estar ao lado de”, “em comunhão com”; apoiar os interesses dos ​oprimidos​,
do ​povo​, ​das ​classes populares – aqui compreendidos como classe trabalhadora e
demais sujeitos subalternizados na sociedade de classes.
Fazer ​assessoria passa a significar ir além do acompanhamento judicial da
questão, além do mero litígio; ir além do direito, firmando um compromisso com a luta
dos sujeitos ​assessorados​. Como reflito noutro trabalho:

11
A formulação teórica que contrapõe os “serviços legais tradicionais” aos “serviços legais inovadores” é
de Celso Campilongo (1991), e sistematiza uma crítica à orientação dominante do campo jurídico. Os
“serviços legais inovadores” são também identificados por outras denominações que remetem ao campo
do “alternativo”, “crítico”, “popular” etc, como indica a expressão mais abrangente “práticas jurídicas
insurgentes”, utilizada por Luiz Otávio Ribas (2009).
as atividades desenvolvidas por esses grupos se distanciam em grande medida
das atividades tradicionais dos juristas, em especial pela opção de trabalhar
com setores populares. É um trabalho eminentemente político, que
compreende o direito mas não se esgota nele. Participam de protestos por
direitos sociais, acompanham ações processuais coletivas, fazem trabalho de
base em comunidades e atividades que contribuem para o fortalecimento das
organizações populares em geral (ALMEIDA: 2013, p.14).

A contraposição entre ​assistência e ​assessoria é um dilema fundante da AJP.


Havia, na conformação desse campo, uma forte crítica à perspectiva ideológica que
permeava as atividades de assistência jurídica, de modo que a ​assessoria carregava, em
sua gênese, a necessidade de compreender o direito desde um ponto de vista externo,
relacionado ao contexto social mais amplo que, para ser transformado, necessitava dos
processos de mobilização social. Por isso a AJP, em especial os grupos ligados às
universidades, foram tão influenciados pelas concepções e iniciativas de educação
popular experenciadas sob as ideias de Paulo Freire. Daí que muitos grupos de
assessoria jurídica universitária popular tenham, inclusive, optado por investir esforços
na ​educação popular em detrimento da atuação propriamente jurídica. No fim das
contas, a AJUP acabou se distanciando das tarefas mais estritamente consideradas
“jurídicas”, sob a justificativa de se contrapor ao assistencialismo.
No entanto, a ​educação popular​, por si só, não representa necessariamente um
contraponto ao assistencialismo, como muitas vezes advertiu Paulo Freire. Na pesquisa
de campo que desenvolvi na minha tese de doutorado com grupos de assessoria jurídica
universitária popular do Nordeste, colhi vários depoimentos que problematizavam essa
questão. Por exemplo, os integrantes do Programa Motyrum, da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, revelaram-me preocupações com as primeiras aproximações
de alguns estudantes com esta AJUP, “porque tinha uma galera muito grande da igreja,
e aqueles projetos de levar brinquedos, sabe, a gente ficou preocupado. Uma galera
empolgada e massa, mas a gente sabia que precisava desse momento, pra galera ‘pá’”
(​Isadora, ​em ALMEIDA: 2015, p.269). Nessa fala, a estudante ​Isadora referia-se, com
o “pá”, à necessidade de fazer os novos integrantes do Motyrum perceberem as
distinções entre o assistencialismo e as perspectivas ideológicas do grupo.
O projeto “de levar brinquedos” vira e mexe aparece como um problema para a
AJUP, como demonstra o episódio do trote solidário, no Serviço de Assessoria Jurídica
Universitária (SAJU-BA) da Universidade Federal da Bahia. No SAJU, ambas as
atividades, de ​assistência ​e de ​assessoria jurídica​, são realizadas por grupos distintos de
estudantes. Estas duas orientações por vezes se relacionam em meio a certo nível de
tensão, cujo motivo principal é a questão do assistencialismo. Embora “assistência” não
seja sinônimo de “assistencialismo”, em muitas ocasiões as perspectivas dos estudantes
ligados à atuação da “assistência jurídica” se afina com esta perspectiva. Daí que um
grupo de estudantes da UFBA apresentou a proposta de realizar um “trote solidário”.
Consistia em arrecadar brinquedos e levar para “crianças carentes” de uma creche em
Salvador. O SAJU foi convidado para participar dessa iniciativa ​cidadã​, e, de pronto, a
turma da ​assistência​ concordou em prestar tal solidariedade.
Aí começou uma briga gigante pelo ​facebook se o SAJU iria participar ou
não, porque, teoricamente, o SAJU tem princípios em comum entre
Assistência e Assessoria, de não ser assistencialista etc. Mas só teoricamente,
porque as pessoas da Assistência não compartilham com isso. Aí a briga
ficou despropositada, fugiu do controle, e fizeram a Reunião Geral. Foi uma
discussão gigante, e era como se Assessoria quisesse ditar os princípios do
SAJU: “como assim, que princípios, nunca ouvi falar desses princípios, vocês
estão aí inventando, eu não concordo, quem disse que é assim?” E a gente:
“Tudo bem, se não é assim, vamos discutir juntos, ver que princípios são
esses, então, o que é que a gente compartilha”. Porque a gente achava que
não tinha que participar enquanto instituição; primeiro, era uma coisa com a
galera do trote, não tinha nada a ver; era uma coisa assistencialista, estranha:
ir numa creche entregar brinquedos pra umas crianças pobres, que não vão
sair dali provavelmente... Enfim, a gente achava que não tinha que ser, e
algumas pessoas achavam que tinha que ser, e foi uma briga gigante. Aí
mostrou, ficou claro que tinha problemas graves, que tinham coisas que as
pessoas não conseguiam compartilhar que a gente entendia como princípios
mínimos. Inclusive, três meses antes tinha tido o planejamento do SAJU, e
agente tinha discutido todas essas coisas. Só que aí chegam as pessoas que
não participam desses espaços e querem implodir tudo (​Elis​; Entrevista ao
SAJU realizada em Salvador no ano de 2013 para a tese “Um estalo nas
Faculdades de Direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica
universitária popular”. ALMEIDA: 2015, p.270).

Entre os “princípios mínimos” da ​assessoria ​a que se referiu ​Elis, dos quais a


turma da ​assistência ​discordava, encontrava-se a contraposição ao assistencialismo.
Mas é preciso uma profunda problematização para firmar este “princípio mínimo” junto
aos integrantes da AJUP, em especial os “mais novos”. É preciso um longo e difícil
caminho, permeado por sucessivos ​estalos ​e inúmeras contradições, para possibilitar as
necessárias desconstruções da perspectiva assistencialista. As “boas intenções” rondam
muito facilmente a AJUP, de diversos modos, não apenas nos “projetos de levar
brinquedos”. A intenção de ​ajudar ​de vez em quando aparece também em propostas
como a de “conscientização na escola mais próxima da minha casa” ou de “educação
em direitos humanos na comunidade mais carente da cidade”. Como observou Diego
Diehl (2012, p.1137), muitas vezes a escolha do “foco de atuação” da AJP tem como
critério “a carência ou a precariedade da situação de vida de setores específicos das
classes oprimidas”, em vez da avaliação amadurecida das reais condições de a AJUP
contribuir com as lutas dos trabalhadores e dos demais sujeitos subalternizados em seus
enfrentamentos na sociedade de classes.
Portanto, a perspectiva da ​assessoria ​pode não estar livre do assistencialismo. Por
sua vez, um trabalho de assistência jurídica não implica necessariamente em
assistencialismo. A questão depende do tipo de compromisso que se estabelece com os
sujeitos ao lado dos quais a AJP se coloca, como analisou Thiago Arruda (2008) em
artigo intitulado “​A assessoria Jurídica Popular como aprofundamento (e opção) do
conteúdo político do serviço jurídico”. Nesse sentido, as atividades da ​assessoria podem
– e devem - transitar por entre as inescapáveis cercas do terreno jurídico sem, com isso,
assumir uma perspectiva assistencialista.
Quero destacar que a diferença essencial entre essas duas perspectivas –
assistência e assessoria - não consegue ser adequadamente alcançada a partir das
costumeiras análises dicotômicas que contrapõem demandas “individuais” a “coletivas”;
atuação “jurídico-processual” a ​atuação “educativa” etc. No curso dessa reorientação,
operou-se na prática da ​assessoria “um aprofundamento do conteúdo político e da
reflexão exercitada pelo estudante ou profissional do direito sobre seu papel no mundo”,
como notou Thiago Arruda (2008, p.02). Priscylla Joca (2011, p.192), ao entrevistar
advogados e advogadas ligados às lutas por “terra e território” no Ceará, em dissertação
de mestrado, sintetizou que os dois núcleos centrais da definição da assessoria jurídica
popular consistem na “busca da emancipação e da superação de várias formas de
opressão” e na “disputa por um papel transformador do direito”. A identidade de
assessoria ​passa, portanto, pela opção ideológica de estar ao lado dos trabalhadores e
dos demais sujeitos subalternizados na sociedade de classes. Estando essa opção
presente, é plenamente possível atuar junto a certas demandas individuais, utilizando-se
ou não dos meios judiciais para tomar partido nos embates travados, ao lado desses
sujeitos.
2. O adjetivo popular
A palavra “popular” possui uma significativa elasticidade semântica, a propósito
12
da qual não discorrerei . Cabe discutir neste trabalho o modo como ela se adjetiva à
prática da assessoria jurídica. Nesse caso, a identificação com o “popular” implica numa
opção ideológica por estar ao lado do “povo” explorado, analiticamente compreendido
aqui como a classe trabalhadora e os demais sujeitos subalternizados na sociedade de
classes. No léxico das esquerdas e nas formulações ligadas à AJP, esses sujeitos
passaram a ser identificados nas últimas décadas como ​movimentos sociais populares.
Desse modo, o apoio às lutas dos ​movimentos sociais é o principal elemento que
costuma caracterizar a prática da assessoria jurídica popular. Nas palavras de Luiz
Otávio Ribas (2009, p.48. Grifos meus):
A assessoria jurídica popular, amplamente concebida, consiste no trabalho
desenvolvido por advogados populares, estudantes, educadores, militantes
dos direitos humanos em geral, entre outros, de assistência, orientação
jurídica e/ou educação popular ​com movimentos sociais​, com o objetivo de
viabilizar um diálogo sobre os principais problemas enfrentados pelo povo
para a realização de direitos fundamentais para uma vida com dignidade, seja
por meio dos mecanismos oficiais, institucionais, jurídicos, seja por meios
extrajurídicos, políticos e de conscientização.

Desde a sua origem, no contexto do enfrentamento à ditadura militar, a AJP esteve


comprometida com as lutas sociais. Mais tarde, as movimentações que resultaram na
criação da RENAP foram fundamentalmente provocadas por movimentações de
trabalhadores rurais na luta pela terra. O Primeiro Encontro Nacional da RENAP, em
dezembro de 1995, no Seminário em Defesa dos Povos da Terra, em São Paulo (MAIA:
2007; TAVARES: 2007), ocorreu num contexto de extrema criminalização destes
sujeitos, como comenta Jacques Alfonsin:
Um grupo de advogados que já vinham servindo ao MST, à CPT, e a grupos
de sem-teto, tanto na esfera criminal como na cível, se reuniram em São
Paulo, em 1995, um ano em que a escalada de violência policial contra o
MST pedia urgente apoio jurídico. Por sugestão do Dr. Plínio de Arruda
Sampaio, ali foi criada de maneira muito informal a RENAP, então
denominada de Rede Nacional de Advogados Populares (ALFONSIN, 2005,
p. 356).

A RENAP foi criada, portanto, com o intuito de organizar advogados para a


defesa dos trabalhadores rurais contra as violentas forças do capital, movimentação que

12
A respeito das diferentes compreensões acerca do termo “popular”, conferir a pesquisa de José
Francisco de Melo Neto (2006) junto “a militantes de movimentos sociais populares e/ou partidários de
uma alternativa democrático-popular” (MELO NETO, 2006, p.23).
já vinha ocorrendo de modo espontâneo desde a ditadura militar. De acordo com Ana
Cláudia Tavares (2007, p. 69), “essa articulação de advogados possui íntima relação
com o processo de organização política dos movimentos ou grupos populares”. Em
entrevista concedida para a sua dissertação de mestrado, um dos fundadores da RENAP
comenta que, no período de criação da rede, muitos advogados estavam saindo do PT e
dos sindicatos em que trabalhavam para abrir escritórios próprios, de modo que havia
certa desilusão dos advogados com os partidos e o sindicalismo rural e urbano. A
RENAP nasceu, segundo ele, como uma demanda dos “movimentos sociais”, sobretudo
do MST, por advogados que defendessem os trabalhadores rurais numa época de forte
criminalização da luta pela terra. Dez anos depois de sua criação, a RENAP continuava
avocando para si a tarefa de resgatar uma perspectiva de advocacia “voltada aos
interesses das classes populares” (RENAP, 2005), defendendo até hoje:
Organizações informais e formais, movimentos populares como o MST
(Movimento de Sem Terra), MMTR (Movimento das Mulheres
Trabalhadoras Rurais), MPA (Movimento de Pequenos Agricultores), MAB
(Movimento de Atingidos por Barragens), MNLM (Movimento Nacional de
Luta por Moradia), CPT (Comissão Pastoral da Terra), CEBs (Comunidades
Eclesiais de Base), MTD (Movimento de Trabalhadores Desempregados),
Movimentos e Comissões de Direitos Humanos, Sindicatos rurais e urbanos,
pastorais, grupos de pessoas dedicadas á defesa de direitos humanos violados
pela tortura, pelo racismo, pelas prisões ilegais, à defesa de crianças e
adolescentes, de homossexuais, do direito à livre expressão através das rádios
comunitárias, entre outros, têm procurado apoio nos serviços da RENAP
(ALFONSIN, 2005, p.84).

Os vínculos estabelecidos pelos grupos que compõem a RENAJU também se


enlaçam aos mesmos sujeitos. Como escreveram os estudantes do NAJUP num artigo
intitulado ​Sobre a atuação das assessorias jurídicas populares junto aos movimentos
sociais e às organizações populares​, “não há a menor dificuldade em apontar os sujeitos
com os quais as AJUPs lidam: são os movimentos sociais da cidade e do campo, as
organizações populares, comunitárias, as redes populares”, enfim, todas as formas de
organização dos “homens e mulheres oprimidos e oprimidas de nossa sociedade”
(ANDRADE; AZEVEDO; VALENÇA, 2008, p.04).
O apoio às lutas dos ​movimentos sociais é hoje, seguramente, um consenso na
assessoria jurídica popular. A opção por estar próximos às lutas populares é valorizada,
inclusive, por meio dos símbolos escolhidos para representar estes grupos. Reivindicam
expressamente o ​popular em seus nomes (Ex: Rede Nacional de Advogados ​Populares​;
Coletivos de Advocacia ​Popular​) fazem menção às ​ruas ​(ex.: NAJUP Direito nas
Ruas/PE), àquilo que é ​comunitário ​(ex.: Núcleo de Assessoria jurídica
Comunitária/CE); homenageiam pessoas (Negro Cosme; Luiz Gama, Maria Crioula, Isa
Cunha) e símbolos (Aldeia Kayapó, Tacape) que remetem às lutas sociais populares.
Em sua atuação, as AJUP realmente se relacionam com diversos movimentos sociais​,
mas também com outros sujeitos coletivos com diversas estruturas organizativas:
associações de bairros, lideranças comunitárias ligadas ou não a movimentos ou
organizações políticas, partidos, sindicatos, ONG, instituições públicas, etc.
A despeito desta diversidade, há uma inclinação em identificar esta amplitude de
forças organizativas sob a abstração de ​movimentos sociais​, algo que está relacionado à
forma como esta noção passou a dominar a racionalidade política das forças de esquerda
do período histórico mais recente. Nas últimas décadas (sobretudo a partir dos anos 70),
a noção de ​movimentos sociais se consolidou e passou a ser dominante no universo
simbólico das esquerdas, ocupando o ​lócus da legitimidade para contestar a ordem em
detrimento das ​tradicionais ​organizações da classe trabalhadora (SANTOS: 2008). A
própria noção de ​classe social passa a ser questionada enquanto categoria de análise, na
medida em que os antagonismos sociais deixam de ser compreendidos como ​luta de
classes​.
Os sujeitos organizados nos ​movimentos sociais​, distanciados dos partidos e
sindicatos, passaram a ser concebidos como substitutos históricos da classe trabalhadora
para a tarefa de transformar a realidade opressora, não mais de uma ​classe​, mas das
diversas ​identidades ou dos âmbitos de luta específicos em torno dos quais se
organizam. Dentro do esquema analítico e da racionalidade política dessas
movimentações, elementos como a ​cultura ​ou a ​identidade passaram a ser concebidos
como centrais na definição dessas “novas” formas de se organizar (centradas no gênero,
na sexualidade, na raça/etnia, etc.) em contraposição à ​classe como elemento unificador.
No entanto, as formulações dos ​novos movimentos sociais ​(presentes em autores como
Melucci, Offe, Touraine e Gohn)​, ​ao analisar este deslocamento – da ​classe para a
identidade se precipitam ao sobrevalorizar a diferença entre esses sujeitos políticos e
desconsiderar os elementos que os unem, reforçando ainda mais a desarticulação
política entre eles, como coloca Eduardo Luiz Zen (2007).
Mas isso a que chamamos ​movimentos sociais populare​s, sobretudo na América
Latina, ​não seriam formas de organização ligadas à ​classe trabalhadora​? A classe não
estaria ali presente, mesmo que sua forma de se organizar não esteja imediatamente
centrada no conflito entre capital e trabalho? E mais: será que este conflito não está
implicado, de alguma forma, nas lutas travadas por estes sujeitos?
Tais questionamentos, obviamente, manejam uma noção ampliada de ​classe
trabalhadora​, reconfigurada, sobretudo, com o processo de reestruturação produtiva das
últimas décadas. Estas transformações foram (e continuam sendo) tão profundas que
acarretaram uma significativa reconfiguração na composição da classe, trazendo a
necessidade de ampliar a compreensão que temos dela nos termos de uma
classe-que-vive-do-trabalho, como propõe Ricardo Antunes (2005) em ​Adeus ao
Trabalho?​. Para ele, o trabalhador produtivo detém um papel de centralidade no interior
da classe, incorporando não só aqueles que realizam trabalho manual direto, mas “a
totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo assalariado que produz
diretamente a mais-valia e participa diretamente de um processo de valorização do
capital” (ANTUNES: 2011, p.118). Em que pese os trabalhadores produtivos
constituírem o núcleo central da classe, tendo em vista a crescente imbricação entre
trabalho produtivo e improdutivo no capitalismo contemporâneo, nessa noção ampliada
também se incluem os trabalhadores ​improdutivos – “aqueles cujas formas de trabalho
são utilizadas como serviço, tanto para uso público como para o capitalista, e que não se
constituem como elementos diretamente produtivos no processo de valorização do
capital” (ANTUNES, 2011, p.118). A noção ampliada de classe trabalhadora deve
incluir também
Todos que vendem a sua força de trabalho em troca de salário e incorporar
não apenas o proletariado industrial e os assalariados do setor de serviços,
mas também o proletariado rural, que vende sua força de trabalho para o
capital. Essa noção ampliada inclui, portanto, o proletariado precarizado, o
subproletariado moderno, ​part time​, o novo proletariado da ​McDonalds​, o os
trabalhadores terceirizados e precarizados, os trabalhadores ​assalariados da
chamada “economia informal”, que muitas vezes são indiretamente
subordinados ao capital, além dos trabalhadores desempregados, expulsos do
processo produtivo e do mercado de trabalho pela reestruturação do capital e
que hipertrofiam o exército industrial de reserva na fase de expansão do
desemprego estrutural ​(ANTUNES, 2011, p.118).

A proposta analítica de ampliar a compreensão da ​classe trabalhadora​, contudo,


encontra sérias objeções teóricas. Tendo em vista que a discussão foge ao escopo desta
13
tese, remeto à leitura dos trabalhos de Ivo Tonet e Sérgio Lessa . Em síntese, tais
objeções se baseiam na compreensão do trabalho como transformação da natureza
14
externa ao homem, segundo as formulações de Lukács na ​Ontologia . Sendo assim,
apenas os trabalhadores diretamente envolvidos nesse processo teriam condições de
constituir-se como sujeito revolucionário, capazes de subverter o processo produtivo e
romper com o capital. Alargar a noção de ​trabalho e a noção de ​classe trabalhadora​, de
acordo com esta compreensão, implicaria num afastamento da perspectiva
revolucionária.
A linha teórica dominante nos anos 60/70 sobre a constituição da ​classe
trabalhadora no Brasil tinha como referência um modelo idealizado, em que faltava
uma “concepção da prática operária no próprio âmbito da sua proletarização”, como
aponta Luiz Momesso (1997, p.43). É o caso de Juarez Brandão Lopes, Fernando
Henrique Cardoso, Leôncio Martins Rodrigues, José A. Rodrigues, Alain Touraine e
Azis Simão. Foi a partir da década de 70 que “se começou a perceber a heterogeneidade
da composição interna das classes trabalhadoras urbanas, como expressão e resultado do
próprio modo como o capitalismo se realizou no Brasil, a fragilidade da chamada
burguesia nacional, etc.” (MOMESSO, 1997, p.43). Os estudos de Florestan Fernandes
no ensaio “Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina”, são simbólicos
dessa orientação. De qualquer modo, ainda faltam investimentos intelectuais voltados
para o estudo da configuração das ​classes sociais e a sua realidade atual na América
Latina e no Brasil.
Mészáros, ao comentar sobre as movimentações mais radicais de contestação do
período mais recente em várias partes do mundo, observa que apareceu claramente na
agenda histórica “a necessidade e o potencial positivo de combinação de grupos de
protesto multifacetados, inclusive os elementos radicais da esquerda tradicional e os
milhões desprezados do campesinato, em uma força emancipadora capaz de lutar
conscientemente pela alternativa desejada”. Esta combinação, para ele, implica num

13
De Sérgio Lessa: Trabalho e ser social (1997); Mundo dos Homens (2002); Trabalho e proletariado no
capitalismo contemporâneo (2007). De Ivo Tonet e Sérgio Lessa: Proletariado e Sujeito Revolucionário
(2012) e Cadê o proletariado? (2014).
14
É discutível que a noção de ​trabalho de Lukács seja a mesma de Marx, como observa Maria Teresa
Buomano Pinho (2013, p.179). Para Marx, assim como para Mészáros, o trabalho está relacionado à
produção material da vida social; enquanto para Lukács, a noção de trabalho restringe-se à
transformação da natureza externa ao homem.
reexame de alguns “conceitos restritivos” (MÉSZÁROS, 2004, p.51). Quanto à noção
de ​sujeito da emancipação​, ele
só estará apto para criar as condições de sucesso se abranger a totalidade dos
grupos sociológicos capazes de se aglutinar em uma força transformadora
efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O
denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode
ser o “trabalho industrial”, tenha ele colarinho branco ou azul, mas o ​trabalho
como antagonista estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2004, p.51, grifos do
autor).

O conflito entre capital e trabalho perpassa todas as lutas que mobilizam as forças
de contestação numa sociedade de classes, embora estas lutas não se reduzam ao
conflito em questão. Procurar pelo “sujeito central” da revolução em algum lugar
distante dessas lutas ​específicas ​acaba por fortalecer a fragmentação que se processou
nas esquerdas e o consequente triunfo da perspectiva das ​identidades como mediadora
dos processos político-organizativos, como se o enfrentamento ao capital não dissesse
respeito a essas movimentações. Assim, cabe ao movimento estudantil a luta por
educação​; aos sem-terra, a luta pela terra; aos sem-teto, a luta por moradia; ao
movimento negro, a ​luta contra o racismo​; ao movimento de mulheres, a luta ​contra ​o
machismo​; ao movimento LGBT a luta ​contra a homofobia ​etc. E a ninguém mais
caberia lutar contra o capital, porque as esquerdas procuram o ​operariado – o “sujeito
da revolução” - e o encontram reduzido, desorganizado, fragmentado ou comportado
demais dentro dos sindicatos e dos partidos da idealizada ​classe trabalhadora​.
Ao lado da ​classe trabalhadora​, compreendida nesses termos ampliados, e dos
sujeitos subalternizados na sociedade de classes que não cabem nessa ampliação, é que
os grupos de assessoria jurídica popular se colocam – sobretudo apoiando aqueles que
concebem, e que se concebem a si mesmos, como ​movimentos sociais populares​.

3. O “direito” para a Assessoria Jurídica Popular


Em geral, os integrantes da Assessoria Jurídica Popular costumam reivindicar a
tarefa de construir outro tipo de direito, um direito ​emancipatório ou ​justo; alternativo
ao direito opressor e violento associado à sociedade desigual e injusta que está posta.
Diante de uma correta leitura de que a perspectiva ideológica dominante no campo
jurídico é de todo comprometida com as elites, formalista, dogmática, admiradora de
uma retórica vazia etc., difunde-se a compreensão de que é possível edificar, em lugar
deste, outro modelo de direito.
A difusão dessa crença em um ​direito emancipatório ​na assessoria jurídica
popular em muito é reforçada sob a influência do que se convencionou chamar de
teorias críticas do direito – tendências como o ​direito alternativo e o ​pluralismo
jurídico​, por exemplo​. ​Relativamente bem difundidas no Brasil, respondem por uma
inestimável contribuição na consolidação de uma perspectiva crítica no complexo
jurídico. Destacam-se, nesse campo, as formulações de Roberto Lyra Filho, Roberto
Aguiar, Antônio Carlos Wolkmer, Luís Alberto Warat, José Geraldo Sousa Júnior,
Horácio Wanderlei Rodrigues, Edmundo Lima de Arruda Júnior, José Eduardo Faria,
José Reinaldo Lima Lopes, Boaventura Sousa Santos, entre outros. Não é o espaço aqui
15
para fazer uma revisão das ideias de cada um desses autores , que apresentam
particularidades e diferenças entre si, também obedecendo a movimentos internos
próprios de mudanças.
Cada um deles merece um estudo específico, e poucos foram os que se dedicaram
a isso, como observa Andreia Marreiro (2015, p.21) em sua dissertação de mestrado
16
sobre o pensamento de Roberto Aguiar . Nunca será demasiado destacar a riqueza
destas formulações e a sua importância para a configuração de um campo ​crítico entre
os juristas brasileiros e latino-americanos. Mas é igualmente necessário, como aponta
Ricardo Pazello (2014), proceder a uma reavaliação das teorias jurídicas
latino-americanas. Penso que tal reavaliação deve ser sobretudo capaz de localizá-las
frente às movimentações mais amplas de reorientação das esquerdas a partir do último
quartel do século passado.
Devidamente marcada a influência das ​teorias críticas do direito na formação da
assessoria jurídica popular, pretendo analisar o modo como o projeto de um ​direito
crítico para uma ​transformação social ​se constitui como bandeira de unidade contra a
perspectiva ideológica dominante no direito, ​ao mesmo tempo em que guarda dentro de

15
Um estudo introdutório sobre essas tendências das teorias críticas do direito pode ser encontrado em
Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, ​de Antônio Carlos Wolkmer (2006), muito embora numa
perspectiva analítica bastante distante da apresentada aqui​.
16
Ver, a propósito, o próprio trabalho de Andrea Marreiro (2015), ​Uma fotografia da obra de Roberto
Aguiar: possibilidades para pensar o direito sob outras lentes​; o de Marcos Araújo de Lima Filho
(2014), ​Uma avaliação acerca da teoria dialética do Direito a partir da verificação de sua utilização
pelos advogados populares​; e o de Pedro Rezende Feitosa (2014), ​O direito como modelo avançado de
legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho​.
si tensionamentos internos às forças de esquerda, próprios do atual período histórico,
que se expressam no terreno jurídico. Nesse sentido, as ​teorias críticas do direito no
Brasil e na América Latina desenvolvem-se, sobretudo a partir dos anos 80, em íntima
ligação com o processo de reorientação das esquerdas, respondendo contraditoriamente
à retomada da perspectiva democrática nos anos 80 e também à reestruturação produtiva
dos anos 90 (alcançadas pelo neoliberalismo e pelos descaminhos do socialismo ​real​).
Concordo com Ricardo Pazello e Moisés Alves (2014) na análise de que as
teorias críticas do direito encontram-se ​em ruínas ​ou ​sob escombros​. Se nos anos 80,
em diálogo com o marxismo, ainda que empreendido de modo heterodoxo e/ou eclético,
as teorias críticas possibilitavam uma frutífera crítica social a partir do contexto das
lutas aqui travadas nesse período; os anos 90 foram eivando essas análises da
combatividade que lhes era originária. Daí que as formulações mais representativas
deste campo descambaram para uma arena cada vez menos ​crítica​, mais afeita ao
“receituário garantista de direitos” (SOARES e PAZELLO: 2014, p.478) que, a despeito
das árduas lutas por meio das quais se forjara, estava destinado a uma existência apenas
retórica nas Constituições democráticas latino-americanas. Esta inflexão, que
acompanha o processo mais amplo de reorientação das esquerdas na passagem dos anos
80 para os 90, fez ruir quase que por completo a ​criticidade deste campo analítico,
17
configurando assim os ​escombros das teorias críticas do direito .
Profundamente imersos no processo histórico que levou aos escombros as ​teorias
críticas do direito, os juristas da Assessoria Jurídica Popular costumam expressar a
perspectiva de construir um ​direito crítico voltado à ​transformação social​. De muitos
modos deixam transparecer a crença no tal do ​direito emancipatório​. A isto se relaciona
uma compreensão bastante ampliada da dimensão do “jurídico” nas relações sociais. Por
exemplo, quando perguntei a ​Edson ​qual era a finalidade do trabalho do SAJU, ele me
respondeu:
É a coisa do acesso ao direito, mesmo. Acesso ao direito, entendendo o
direito não numa perspectiva processual, mas ao que as pessoas têm de
direito: a moradia que as pessoas têm direito, a terra que as pessoas têm
direito, ao trabalho, a “n” coisas que são negadas a ela durante o dia. Eu
entendo que uma finalidade desse trabalho aqui é contribuir, de alguma
forma, pra que as pessoas consigam acessar esses direitos. Como a gente vai
contribuir? Mil maneiras: fazendo oficina, levando o conhecimento formal,

17
A expressão é utilizada por Ricardo Prestes Pazello (2014) em sua tese de doutorado e também no já
mencionado artigo publicado juntamente com Moisés Alves (2014) na edição especial da Revista
Direito e Práxis, dentro do Dossiê Marxismo e Direito.
de certa forma, que a gente possa ter, às vezes, outras não; tentando fazer isso
da forma menos impositiva possível, menos vertical, na perspectiva de troca,
de estar lá aprendendo, também. Acho que é uma finalidade, também, estar
trocando, aprendendo, discutindo, em discussão sempre, sentar de igual pra
igual. Tentar contribuir de alguma forma pra esse acesso ao direito ​num
sentido mais macro possível de direito​, do que é ter direito (​Edson​;
Entrevista com o SAJU realizada em Salvador no dia 07 de junho de 2013).

Peço a ele que me explique melhor esse sentido “mais macro possível” do direito.
“É que o sentido estrito do direito é esse que a gente vê aqui [na faculdade], que eu não
acho bacana. É legal, também, eu não desprezo não, mas é bom ter a perspectiva que
não é só isso”. Com isso, ​Edson ​quer me dizer que há outro direito para além daquele
apresentado na faculdade de direito – “que não é só isso”. Assim o expressa ​Gil​:  “Eu 
entrei  no  Negro  Cosme  porque  acredito  na  concepção  de  direito  que  eu  vejo  que  não  é 
ensinada  em  sala  de  aula;  ​acredito  num  direito  justo​,  por  mais  que  seja  difícil  hoje 
pensar, é mais uma questão utópica, mas que a gente tem que perseguir” (meus grifos).  
Ao conceber o direito nos marcos da ​emancipação​, falta freio a estas análises.
Elas ampliam o direito para além das inescapáveis implicações da forma jurídica com a
sociedade de classes. Reflito a respeito disso, com Mészáros, que “um dos aspectos
mais desalentadores do fetichismo jurídico é que ele cria a ilusão de que sua
importância é extremamente grande – e é precisamente deste modo que desempenha
suas funções na sociedade capitalista -, desviando a atenção do verdadeiro alvo”
(MÉSZÁROS: 2004, p. 506). Por isso, “alterar o direito legal não resolve,
fundamentalmente, a questão do capital como a força ​materialmente​, e não apenas
juridicamente​, controladora do metabolismo social” (MÉSZÁROS, 2004, p.19), pois,
“na realidade, o capital é, em si, essencialmente, um ​modo de controle​, e não apenas um
direito​ – legalmente codificado – a exercer esse controle” (MÉSZÁROS, 2004, p.506).
Por isso, é necessário problematizar as implicações do fetichismo do direito no
segmento da AJP. As suas possibilidades como uma perspectiva de enfrentamento
ideológico dependem de um tipo de trânsito no terreno jurídico que não queira salvá-lo
dos compromissos inexoráveis com a reprodução da sociedade de classes. As
dificuldades com esse trânsito certamente se expressam no modo como a AJP oferece
contra o “direito da ordem” o seu “direito crítico”, acreditando, em geral, na
possibilidade de transcender, com este “outro” direito (​emancipatório​), os profundos
antagonismos que marcam a sociedade de classes. De um modo ou de outro, o direito
continua sendo a resposta para as questões sociais.
No entanto, o direito é, na expressão de Lukács (2013), um ​complexo
específico da totalidade social que exerce uma função importante na reprodução desta
totalidade, a despeito de manter uma legalidade própria em seu funcionamento. Desse
modo, estaria o direito inescapavelmente entranhado à ordem burguesa, sendo o próprio
capital em forma jurídica, conforme a tese de Pachukanis em ​A Teoria Geral do Direito
e o Marxismo (1924). Embora o sistema jurídico apresente algumas contradições
internas pontuais quanto ao reconhecimento de certos interesses da classe trabalhadora,
tais contradições não questionam, antes reforçam (porque legitimam), a exploração
fundante da relação capital-trabalho, que se entrecorta (e é entrecortada pelas) às
demais opressões e desigualdades sociais. Por isso estes direitos que “interessam” à
classe trabalhadora jamais se acharão plenamente realizados dentro do modo de
produção capitalista, marcado inexoravelmente pela lógica da exploração.
Esta posição, no entanto, não implica no entendimento vulgar de que o
marxismo seria, por assim dizer, um inimigo dos direitos humanos; tampouco nega o
papel das lutas por tais direitos. Na verdade, a crítica marxiana aos direitos humanos,
especialmente presente em ​Sobre a Questão Judaica​, “diz respeito à contradição
fundamental entre os ‘direitos do homem’ e a realidade da sociedade capitalista, onde se
crê que esses direitos estejam implementados”, como argumenta Mészáros (2008:
p.204).
Não há, portanto, uma "incompatibilidade" entre marxismo e as lutas por
direitos humanos, desde que entendidas como parte de um processo maior de
rompimento com a ordem posta. Esta compreensão é particularmente importante no
contexto dos países dependentes, em que, segundo a tese de Florestan Fernandes, a
“revolução dentro da ordem" se articula e se confunde com a "revolução contra a
ordem”, apresentando para a classe trabalhadora como primeira tarefa política a de
“revolucionar a velha sociedade em sentido burguês-capitalista” (FERNANDES:2009,
p.29), já que essa não é uma tarefa que a burguesia, no países dependentes, realizará.
Portanto, a "defesa dos direitos humanos" pode acabar assumindo, aqui, implicações
revolucionárias.
Dentro desse contexto em que a assessoria jurídica popular se consolidava, havia
(como ainda há), do ponto de vista das forças de esquerda, um distanciamento da
perspectiva socialista/comunista enquanto projeto de superação da sociedade de classes.
Dessa forma, as categorias manejadas pela tradição marxista para compreender a
realidade – ​totalidade​, ​classe social​, ​luta de classes​, ​revolução​, ​ideologia​, etc. – passam
a ser consideradas “fora de moda”. Em seu lugar, consolidou-se a crença no direito e no
Estado como elementos descolados dos antagonismos sociais, capazes de atender às
demandas colocadas pela classe trabalhadora e pelos sujeitos subalternizados na
sociedade de classes.
Tal aposta das esquerdas no campo da institucionalidade, questionando as
implicações de seus enfrentamentos com a ​luta de classes e apostando na capacidade do
“Estado de Direito” atender às suas demandas, é também uma marca da assessoria
jurídica popular. Esta questão de fundo repercute diretamente nas movimentações da
assessoria jurídica popular, especialmente na sua disposição para o apoio às lutas mais
radicalizadas dos trabalhadores e dos demais sujeitos subalternizados na sociedade do
capital.
Além dos dilemas diretamente relacionados ao contexto mais amplo das
movimentações de esquerda do atual período histórico, também se faz necessário
problematizar as implicações do fetichismo do direito no segmento da AJP. As suas
possibilidades como uma perspectiva de enfrentamento ideológico dependem de um
tipo de trânsito no terreno jurídico que não queira salvá-lo dos compromissos
inexoráveis com a reprodução da sociedade de classes. As dificuldades com esse
trânsito certamente se expressam no modo como a AJP oferece contra o “direito da
ordem” o seu “direito crítico”, acreditando, em geral, na possibilidade de transcender,
com este “outro” direito (​emancipatório​), os profundos antagonismos que marcam a
sociedade de classes. De um modo ou de outro, o direito continua sendo a resposta para
as questões sociais.
Ademais, juntar-se aos trabalhadores e aos demais sujeitos subalternizados na
sociedade do capital é uma atitude que implica num questionamento profundo da
própria condição de classe, e reside aqui um problema significativo para este segmento.
O tipo de apoio em questão não admite um titubear corporativista, um “que vai ser de
mim sem meu paletó e minha gravata vermelha”. O trânsito da AJUP por entre as
inescapáveis cercas do terreno jurídico é conduzido, portanto, pela questão de fundo do
tipo de ​transformação social​ que estão dispostos a apoiar.

4. Considerações Finais
Em síntese, o campo da assessoria jurídica popular se conformou a partir do
enfrentamento às forças da ditadura civil-militar, e se pôde consolidar de modo
organizado a partir da retomada democrática no Brasil e na América Latina na
passagem dos anos 70 para os 80. Naquele momento prenhe de possibilidades históricas
para a retomada de um projeto de classe para contrapor-se às forças do capital, estavam
postas as possibilidades de conjugar as movimentações “tradicionais” da classe
trabalhadora (nos partidos e sindicatos) com outras movimentações em torno de
demandas colocadas por sujeitos que emergiram no período da retomada democrática,
havendo uma fecunda interação entre estas forças. No entanto, a contra-ofensiva do
capital em resposta a sua própria crise contribuiu para imprimir nessas forças de
contestação da ordem os termos de um projeto de conciliação de classes. Nesse
contexto, a ​cidadania e os ​direitos humanos foram perdendo, cada vez mais, a sua
combatividade, conforme passaram a simbolizar, também e predominantemente,
projetos de conservação da ordem.
Herdeira desse momento histórico conturbado, a Assessoria Jurídica Popular
consiste numa orientação ideológica porque possibilita, dentro do complexo jurídico, o
tomar partido pela classe trabalhadora e pelos demais sujeitos subalternizados na ordem
do capital. No entanto, as movimentações históricas a partir das quais emergiu a AJP
conformaram tal perspectiva como um campo permeado de contradições e limites nos
quais também estão implicadas as demais forças de esquerda no atual período.

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movimento dos atingidos por barragens. ​2007. 211 fl. Dissertação (Mestrado em
Sociologia). Universidade de Brasília. Brasília/DF.
AGORA É LEI

Dá cadeia para quem me chamar de negro analfabeto


Só não dá cadeia para quem impõe o analfabetismo,
obstruindo meu acesso às escolas
Dá cadeia para quem me chamar de negro burro
Só não dá cadeia para quem me chamar de “moreno”,
Mesmo sabendo que com isso querem me transformar
em um híbrido
E assim como aos burros, negar as condições de
reprodução da minha raça

Nego Bispo

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CAPÍTULO 1

INVASÃO E COLONIZAÇÃO

C omparando a cor da minha pele com a cor da pele da moça que está
digitando este texto, ela tem uma cor mais próxima do branco e a
minha cor está mais próxima do preto5. Se compararmos as duas cores com
o papel que vamos usar na impressão deste livro, então a cor dela vai está
mais próxima do amarelo e a minha se aproxima ainda mais do preto. Se
ela um dia visitar a Ásia, encontrará muitas pessoas cuja cor se aproxima
muito da dela, enquanto aqui ela é branca, lá essas pessoas são amarelas.
Quanto a mim, se um dia eu visitar as arábias, também encontrarei
muitas pessoas com cores próximas a minha, enquanto aqui eu sou preto,
lá essas pessoas são árabes, muçulmanas, etc. Se aqui sairmos pelas ruas

5 A moça a quem me refiro é Rakuel Costa, considerada de pele branca e comprometida


com a luta quilombola. Deixo também registrado meus agradecimentos à Graça
Silva, Júnia Torres, Maria Sueli Rodrigues de Souza e Taís Garone pelas contribuições
e diálogos que permeiam a escrita deste livro.

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Colonização, Quilombos: modos e significações

abraçados, ela será chamada sempre de branca e eu, de acordo com as pessoas
que irão me olhar, serei preto, moreno, pardo, mulato, negro, etc. Enquanto
isso, há um grupo de pessoas que em qualquer continente, mesmo tendo a cor
da pele bem próxima ao branco, são chamadas de albinas. Por isso, entendo
que no caso da moça a quem me referi no início, amarelo é cor, branco é raça.
No meu caso, preto é cor, negro é raça, humano é espécie e povo é nação.
Por assim perceber, se quisermos entender porque eu e a moça
somos tratados de forma tão diferente na sociedade onde vivemos, embora
pertencendo à mesma espécie, a humana, precisamos dialogar profundamente
com os conceitos de cor, raça, etnia, colonização e contra colonização.
Não pretendo fazer aqui um trabalho acadêmico, nem tenho os
elementos necessários para isso. O que tentarei fazer é analisar as relações
entre as populações que tem uma cor que se aproxima da cor da referida moça
e as populações com cor semelhante à minha na sociedade brasileira.
Para fazer essa análise, partirei dos documentos e das resoluções que
deliberaram sobre a vinda dos europeus e dos africanos para o Brasil e da
recepção que ambos tiveram dos povos originários dessa terra. Espero como
resultado fomentar um amplo debate não apenas sobre o conceito de raça e de
cor, mas sobre as relações entre as pessoas e os diferentes povos nos processos de
colonização e de contra colonização das Américas, as organizações produzidas
nesses processos e o que isso pode significar na busca de relações de vida mais
harmoniosas.

1.1 LEITURAS SOBRE A COLONIZAÇÃO

Existem incontáveis versões sobre a vinda dos colonizadores para o


Brasil. Uma bastante exótica que aprendi no meu tempo de escola é a de

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1. Invasão e colonização

que os portugueses chegaram ao Brasil por que se perderam no caminho das


Índias, por onde pretendiam restabelecer o comércio de especiarias. Essa
versão tenta ganhar consistência na denominação que foi dada aos povos
originários por eles aqui encontrados. Esses povos até hoje são chamados
de “índios”, exatamente porque os portugueses pensavam ter chegado às
Índias.
O estranho é que mesmo pensando ter chegado às Índias, logo
denominaram essa terra de Monte Pascoal. Ao perceber que não era um
monte, chamaram-na Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, por
último, Brasil. Mais estranho ainda é que os povos aqui encontrados
como, por exemplo, os povos de língua tupi que chamavam essa terra de
Pindorama (Terra das Palmeiras), continuam sendo chamados de índios.
Como sabemos, esses povos possuem várias autodenominações.
Os colonizadores, ao os generalizarem apenas como “índios”, estavam
desenvolvendo uma técnica muito usada pelos adestradores, pois sempre
que se quer adestrar um animal a primeira coisa que se muda é o seu nome.
Ou seja, os colonizadores, ao substituírem as diversas autodenominações
desses povos, impondo-os uma denominação generalizada, estavam
tentando quebrar as suas identidades com o intuito de os coisificar/
desumanizar. Mesmo compreendendo isso, vou utilizar também de forma
generalizada o termo povos pindorâmicos com a intenção principal de
contestar a denominação forjada pelos colonizadores.
Com relação aos africanos, também aprendi na escola várias versões.
Uma delas é a de que pelo fato dos índios terem se rebelado contra o
trabalho escravo os portugueses resolveram trazer o povo da África, porque
esses seriam mais “dóceis”, portanto, mais facilmente “domesticáveis”.
No entanto, os povos africanos, assim como os povos pindorâmicos,
também se rebelaram contra o trabalho escravo e possuem as suas diversas

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Colonização, Quilombos: modos e significações

autodenominações. Os colonizadores, ao chamá-los apenas de “negros”,


estavam utilizando a mesma estratégia usada contra os povos pindorâmicos
de quebra da identidade por meio da técnica da domesticação.
Hoje, algum tempo fora da escola, tenho encontrado/percebido
outras fontes de informações que dialogam com essas versões. Dentre as
que mais me chamaram a atenção há as Bulas Papais. Senão vejamos:

Nós [...] concedemos livre e ampla licença ao rei Afonso


para invadir, perseguir, capturar, derrotar e submeter todos
os sarracenos e quaisquer pagãos e outros inimigos de Cristo
onde quer que estejam seus reinos [...] e propriedades e reduzi-
los à escravidão perpétua e tomar para si e seus sucessores seus
reinos [...] e propriedades” (Bula “Romanus Pontifex”, Papa
Nicolau V, 08 de janeiro de 1455) 6.

Como podemos ver, essa Bula não fala em especiarias e sequer cita
a Índia. O que ela enfatiza é o cristianismo e o paganismo, concedendo
amplos poderes aos cristãos para fazerem o que quisessem com os pagãos.
Nesse caso, preciso dizer o que compreendo como cristianismo e paganismo.
No meu entender, os cristãos citados na Bula são os povos que cultuam
um único Deus, o Deus da Bíblia, onipotente, onisciente e onipresente,
isto é, que pertencem a uma religião monoteísta. Já os ditos pagãos são os
povos que cultuam os elementos da natureza tais como a terra, a água, o ar,
o sol e várias outras divindades do universo, as quais chamam de deusas e
deuses, e por isso pertencem às religiões politeístas.
Nesse período, os povos cristãos concentravam-se predominantemente
na Europa. Não entendo que critérios a Igreja utilizou ao escolher Portugal

6 In; SILVA, José Moreira. 2006.

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1. Invasão e colonização

e Espanha para aplicação da Bula Papal, no entanto reconheço que os


licenciados não hesitaram na execução da missão recebida. Tanto é que
foram os primeiros a chegar às Américas na condição de colonizadores, e
aqui cumpriram rigorosamente a Lei Papal, subjugando os povos originários
e indo buscar para o mesmo fim os povos do continente africano.
Então podemos perceber que esses eram os citados povos pagãos. O
estranho é que a escola sempre se refere a esses povos apenas como negros
e índios, desconsiderando as suas diversas autodenominações e ocultando
a relação colonialista por detrás de tais denominações. Isso porque para
os cristãos é necessário justificar que essas pessoas são apenas “coisas”, que
elas não têm “alma” e que, por isso, delas podem se utilizar como bem
quiserem.
Curioso por mais informações, me fiz o seguinte questionamento: esse
comportamento dos cristãos era apenas contra os povos ditos pagãos? Uma
resposta bastante interessante eu li na Bula Papal de 1567 e a apresento:

Pela autoridade da presente carta, Nós ordenamos que todo


e cada judeu de ambos os sexos em Nosso domínio temporal
e em todas as cidades, terras, lugares e baronatos sujeitos a
eles deve deixar sua terra no espaço de três meses a partir da
publicação da presente carta. Devem ser despojados de suas
propriedades e processados de acordo com a lei. Eles devem
tornar-se servos da Igreja Romana e sujeitar-se à servidão
perpétua. E a dita Igreja deve ter sobre eles os mesmos direitos
que outros domínios têm sobre seus escravos e servos (Papa
Pio V, 1567, Bula Romanus Pontifex, VII, 741)7.

7 In; SILVA, José Moreira. 2006.

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Colonização, Quilombos: modos e significações

Assinadas por Papas diferentes, podemos ver que as Bulas Papais


fogem do caráter pessoal de um líder e atendem às deliberações doutrinárias
de uma religião, no caso o cristianismo. O estranho aqui é que o judaísmo
também é uma religião monoteísta e originária da mesma bíblia. Porém,
a servidão dos judeus tem um caráter diferenciado, pois a Bula Papal
recomenda que eles sejam servos da própria Igreja Romana e não escravos
dos reis e senhores, conforme foram submetidos os povos pagãos. E quando
a mesma Bula recomenda que esses sejam processados, reconhece a sua
condição de sujeitos de direito.
O que dá para perceber é que, nesse caso, a Igreja não pretende
eliminar a doutrina religiosa dos judeus, mas tão somente despojá-los
de suas propriedades, dando-lhes ainda um prazo de três meses para
abandonarem as suas terras e posses. Podemos, então, afirmar que se trata
de uma colonização moderada, diferente do que foi determinado para os
pagãos politeístas: a eliminação da própria doutrina.
As citações dos trechos das Bulas Papais indicam a necessidade de
se recorrer à Bíblia para melhor dialogar com os reais fundamentos da
cosmovisão dos colonizadores. Eis, então, um excerto da Bíblia que considero
importante para compreendermos a cosmovisão dos colonizadores.

Javé deus disse para o homem: “já que você deu ouvidos à sua
mulher e comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido
comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver,
você dela se alimentará com fadiga. 18 A terra produzirá para
você espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos
campos. 19 Você comerá seu pão com o suor do seu rosto
até que volte para terra, pois dela foi tirado, você pó e ao pó
voltará”. (GÊNESIS 3:17).

30

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1. Invasão e colonização

Por bem dizer, o Deus da Bíblia inventou o trabalho e o fez como um


instrumento de castigo. Daí entendemos o caráter escravagista de qualquer
sociedade que venha a construir seus valores a partir das igrejas originárias
da Bíblia.
O Deus da Bíblia, ao expedir e executar essa sentença, condenou o
seu povo a penas perpétuas e indefensáveis, portanto, precisamos analisar
essa leitura com certo detalhamento. Senão vejamos: ao amaldiçoar a terra e
determinar uma relação fatigante entre o seu povo e a terra, classificando os
frutos da terra como espinhos e ervas daninhas e impondo aos condenados
que não comam de tais frutos, só podendo comer das ervas por eles
produzidas no campo com o suor do seu próprio corpo, o Deus da Bíblia,
além de desterritorializar o seu povo, também os aterrorizou de tal forma
que não será nenhum exagero dizer que nesse momento ele inventou o
terror psicológico que vamos chamar aqui de cosmofobia.
E como se não bastasse o terror psicológico, a invenção do trabalho
como castigo e o amaldiçoamento dos frutos da terra, os versículos que
vamos apresentar agora também comprovam o uso dos textos bíblicos
como fundamento ideológico para a tragédia da escravidão.

Não é o discípulo mais do que o seu mestre, nem o servo mais


do que o seu senhor.(MATEUS 10:24).

O servo que soube a vontade do seu senhor, e não se aprontou,


nem fez conforme a sua vontade, será castigado com muitos
açoites; 48, mas o que não a soube, e fez coisas que mereciam
castigo, com poucos açoites será castigado. Daquele a quem
muito é dado, muito se lhe requererá; e a quem muito é
confiado, mais ainda se lhe pedirá.(LUCAS 12:47 e 48: (Jesus
falando))

31

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Colonização, Quilombos: modos e significações

Vós, servos, obedecei em tudo a vossos senhores segundo a


carne, não servindo somente à vista como para agradar aos
homens, mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor.
(COLOSSENSES 3:22).

Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o senhor pôs sobre


os seus serviçais, para a tempo dar-lhes o sustento?46 Bem-
aventurado aquele servo a quem o seu senhor, quando vier,
achar assim fazendo.47 Em verdade vos digo que o porá sobre
todos os seus bens.48 Mas se aquele outro, o mau servo, disser
no seu coração: Meu senhor tarda em vir,49 e começar a
espancar os seus conservos, e a comer e beber com os ébrios,50
virá o senhor daquele servo, num dia em que não o espera, e
numa hora de que não sabe,51 e corta-lo-á pelo meio, e lhe
dará a sua parte com os hipócritas; ali haverá choro e ranger de
dentes. (MATEUS 24:45 ).

Todos os servos que estão debaixo do jugo considerem seus


senhores dignos de toda honra, para que o nome de Deus e
a doutrina não sejam blasfemados.2 E os que têm senhores
crentes não os desprezem, porque são irmãos; antes os sirvam
melhor, porque eles, que se utilizam do seu bom serviço, são
crentes e amados. Ensina estas coisas. (TIMÓTEO 6:1).

Exorta os servos a que sejam submissos a seus senhores em


tudo, sendo-lhes agradáveis, não os contradizendo10 nem
defraudando, antes mostrando perfeita lealdade, para que em
tudo sejam ornamento da doutrina de Deus nosso Salvador.
(TITO 2:9).

Então o anjo do Senhor, achando-a junto a uma fonte no


deserto, a fonte que está no caminho de Sur,8 perguntou-lhe:

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1. Invasão e colonização

Agar, serva de Sarai, donde vieste, e para onde vais? Respondeu


ela: Da presença de Sarai, minha senhora, vou fugindo.9 Disse-
lhe o anjo do Senhor: Torna-te para tua senhora, e humilha-te
debaixo das suas mãos. (GÊNESIS 16:7).

Se alguém ferir a seu servo ou a sua serva com pau, e este


morrer debaixo da sua mão, certamente será castigado;21 mas
se sobreviver um ou dois dias, não será castigado; porque é
dinheiro seu. (ÊXODO 21:20).

Pois venderei vossos filhos e vossas filhas na mão dos filhos


de Judá, e estes os venderão aos sabeus, a uma nação remota,
porque o Senhor o disse. (JOEL 3:8).

Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos vossos senhores,


não somente aos bons e moderados, mas também aos maus.19
Porque isto é agradável, que alguém, por causa da consciência
para com Deus, suporte tristezas, padecendo injustamente20
Pois, que glória é essa, se, quando cometeis pecado e sois por
isso esbofeteados, sofreis com paciência? Mas se, quando fazeis
o bem e sois afligidos, o sofreis com paciência, isso é agradável
a Deus. (PEDRO 2:18 ).

A partir dessas citações fica bastante difícil negar a importância da


Bíblia para o desenvolvimento da escravidão.
Outro documento que considero importante para ilustrarmos o
pensamento dos colonizadores sobre os povos que pretendiam escravizar
é a Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita entre 26 de abril e 02 de maio
de 1500, em Porto Seguro/BA, e remetida a D. Manuel I de Portugal, Rei
de Portugal, para lhe comunicar sobre o descobrimento/invasão do vasto
território que posteriormente viria a ser chamado de Brasil. Apresentaremos
e analisaremos, em seguida, alguns trechos da referida carta.

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Colonização, Quilombos: modos e significações

Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte
amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam,
como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de
rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles
querem – para os bem amansarmos !(...)

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos


a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não
têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E
portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem
bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo
a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer
na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga,
porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade.
E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe
quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos
e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui
trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza,
pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da
salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja
assim!8

Conforme já argumentamos, aqui está explicitada a intenção dos


colonizadores de animalizar e/ou coisificar os povos pindorâmicos para
domesticá-los, desconsiderando suas autodenominações e igualando-
os aos pardais. E nem precisamos questionar o fato de Pero Vaz não
representar oficialmente a Igreja, porque o conteúdo dos trechos citados
será posteriormente reafirmado, no século XVII, em um sermão do Padre

8 CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta. Disponível em: http://www.culturabrasil.org/


carta.htm. Acesso em 16/09/2007.

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1. Invasão e colonização

Antônio Vieira: “é melhor ser escravo no Brasil e salvar sua alma que viver
livre na África e perdê-la” (Sermão do Pe. Antônio Vieira aos escravos)9.
Os trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha que vamos apresentar
agora servirão como um instrumento de análise sociológica que estabeleceu
o perfil dos colonizadores e, consecutivamente, dos contra colonizadores.

Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra,
ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja
acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste
inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a
terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos
e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e
legumes comemos.

Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram (....)

Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como


nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns,
que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a
pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com
crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram
por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa
se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a
sua a todos – um a um – ao pescoço, atada em um fio, fazendo-
lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e
lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.
E isto acabado – era já bem uma hora depois do meio dia –
viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquele
mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu,

9 In; SILVA, José Moreira. 2006.

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Colonização, Quilombos: modos e significações

(e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe


uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.

E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não


lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-
nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como
nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria
nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui
mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão
tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso,
se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar;
porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos
dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje
também comungaram.

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma
mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram
um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela.
Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito
para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que
a de Adão não seria maior – com respeito ao pudor.

Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se


convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua
salvação. (...)

Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou


outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra
em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de
Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os
achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal
maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela
tudo; por causa das águas que tem!

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1. Invasão e colonização

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me


que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente
que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais
do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação
de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela
cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentamento da nossa fé! (...)

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-


feira, primeiro dia de maio de 1500. Pero Vaz de Caminha10

É importante observar que ao se referir aos nativos, Pero Vaz de Caminha


reconhece que a relação daquele povo com os elementos da natureza, ou seja,
com o seu território, os permite uma condição de vida invejável diante da
condição dos recém-chegados colonizadores. Isso demonstra, seguramente,
que os colonizadores, ao acusarem esse povo de improdutivo e atrasado,
estavam querendo refletir naquele povo a sua própria imagem.

1.2 A COSMOVISÃO CRISTÃ MONOTEÍSTA E A


COSMOVISÃO PAGÃ POLITEÍSTA

O processo de escravização no Brasil tentou destituir os povos afro-


pindorâmicos de suas principais bases de valores socioculturais, atacando
suas identidades individuais e coletivas, a começar pela tentativa de substituir
o paganismo politeísta pelo cristianismo euro monoteísta.
No plano individual, as pessoas afro-pindorâmicas foram e continuam

10 CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta. Disponível em: http://www.culturabrasil.org/


carta.htm. Acesso em 16/09/2007.

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Colonização, Quilombos: modos e significações

sendo taxadas como inferiores, religiosamente tidas como sem almas,


intelectualmente tidas como menos capazes, esteticamente tida como feias,
sexualmente tidas como objeto de prazer, socialmente tidas como sem
costumes e culturalmente tidas como selvagens. Se a identidade coletiva
se constitui em diálogo com as identidades individuais e respectivamente
pelos seus valores, não é preciso muita genialidade para compreender como
as identidades coletivas desses povos foram historicamente atacadas.
No entanto, na perspectiva da resistência cultural, essas identidades
vêm sendo ressignificadas como forma de enfrentar o preconceito e o
etnocídio praticado contra povos afro-pindorâmicos e os seus descendentes.
Muitos são os autores que escreveram sobre a trajetória dos povos afro-
pindorâmicos e sobre a sua importância para a história do Brasil. Portanto,
o que vamos falar pode ser encontrado em várias bibliografias. Poderíamos
aqui fazer referências a várias delas, mas não será necessário, porque a
trajetória desses povos transpõe qualquer texto científico ou literário. Ela
é visível e palpável materialmente e pode ser sentida imaterialmente, tanto
quando olhamos para o passado e fazemos referência aos nossos ancestrais,
como hoje quando visitamos as comunidades da atualidade e dialogamos
com as suas organizações e manifestações culturais.
Vamos fazer agora um breve comparativo entre as matrizes culturais
dos colonizadores e as matrizes culturais dos contra colonizadores, a começar
pelas bases religiosas. Como já falamos, faz-se por bem entendermos que as
populações desenvolvem sua cosmovisão a partir da sua religiosidade e é a
partir dessa cosmovisão que constroem as suas várias maneiras de viver, ver
e sentir a vida.
O povo eurocristão monoteísta, por ter um Deus onipotente,
onisciente e onipresente, portanto único, inatingível, desterritorializado,
acima de tudo e de todos, tende a se organizar de maneira exclusivista,

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1. Invasão e colonização

vertical e/ou linear. Isso pelo fato de ao tentarem ver o seu Deus, olharem
apenas em uma única direção. Por esse Deus ser masculino, também tendem
a desenvolver sociedades mais homogêneas e patriarcais. Como acreditam
em um Deus que não pode ser visto materialmente, se apegam muito em
monismos objetivos e abstratos.
Quanto aos povos pagãos politeístas que cultuam várias deusas e
deuses pluripotentes, pluricientes e pluripresentes, materializados através
dos elementos da natureza que formam o universo, é dizer, por terem deusas
e deuses territorializados, tendem a se organizar de forma circular e/ou
horizontal, porque conseguem olhar para as suas deusas e deuses em todas
as direções. Por terem deusas e deuses tendem a construir comunidades
heterogêneas, onde o matriarcado e/ou patriarcado se desenvolvem de acordo
com os contextos históricos. Por verem as suas deusas e deuses através dos
elementos da natureza como, por exemplo, a água, a terra, o fogo e o ar e
outros elementos que formam o universo, apegam-se à plurismos subjetivos
e concretos.
Para melhor ilustrar essas diferenças, vamos apresentar algumas
experiências organizativas dos povos cristãos monoteístas e dos povos pagãos
politeístas.

1.2.1 RELIGIOSIDADE

Ao frequentarmos um culto em um templo cristão monoteísta (um


jurado em um fórum da justiça comum), podemos verificar todos os fiéis
(cidadãos) postados verticalmente de frente ao altar (Tribuna do Júri),
onde um pregador (Juiz) que possui status para falar em nome de Deus
(da Justiça) fala das normas estáticas escritas na Bíblia (Código Legal),
cobra dos fiéis (cidadãos) comportamentos e ações voltadas para a vontade

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Colonização, Quilombos: modos e significações

de Deus (Justiça), avisa que Deus (Justiça) punirá os desobedientes e por


fim anuncia as possíveis sentenças. Porém em nome de Deus (Justiça)
abre oportunidades para que os pecadores (réus) recorram aos santos
(advogados) e, através de doações generosas (honorários), interfiram
perante Deus (Justiça) pela a sua salvação (absolvição).
Nos terreiros dos povos pagãos politeístas (nas festas), as filhas e
filhos de santo (pessoas da comunidade) se organizam circularmente no
centro do terreiro (salão de festas), juntamente com a mãe ou pai de santo
(animadora ou animador da festa) através de quem as deusas e deuses se
manifestam, compartilhando a sabedoria da ancestralidade e a força viva
da natureza, de acordo com a situação de cada pessoa da comunidade.

1.2.2 TRABALHO

Javé deus disse para o homem: “já que você deu ouvidos à sua
mulher e comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido
comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver,
você dela se alimentará com fadiga. 18 A terra produzira para
você espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos
campos. 19 Você comerá seu pão com o suor do seu rosto até
que volte para terra, pois dela foi tirado, você é pó e ao pó
voltará”. (GÊNESIS [3] 17).

Como podemos interpretar nesta leitura bíblica, o trabalho (castigo)


foi criado pelo Deus dos cristãos para castigar o pecado, portanto, o seu
produto dificilmente servirá ao seu produtor que, por não ver o seu Deus
de forma materializada, muitas vezes se submete a outro senhor que
desempenha o papel de coordenador do trabalho (castigo). Talvez por isso

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1. Invasão e colonização

o produto concreto do trabalho (castigo) tenha evoluído facilmente para


a condição fetichista de mercadoria sob o regimento do “Deus dinheiro”.
Nas religiões de matriz afro-pindorâmicas a terra, ao invés de ser
amaldiçoada, é uma Deusa e as ervas não são daninhas. Como não existe o
pecado, o que há é uma força vital que integra todas as coisas. As pessoas, ao
invés de trabalhar, interagem com a natureza e o resultado dessa interação,
por advir de relações com deusas e deuses materializados em elementos do
universo, se concretizam em condições de vida.

1.2.3 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS

As manifestações culturais dos povos eurocristãos monoteístas


geralmente são organizadas em uma estrutura vertical com regras
estaticamente pré-definidas, número limitado de participantes classificados
por sexo, faixa etária, grau de habilidade, divididos em times e/ou equipes,
segmentadas do coletivo para o indivíduo (onde o talento individual costuma
ser mais valorizado que o trabalho em equipe) e em permanente estado de
competitividade. As competições são praticadas em espaços delimitados e
arbitradas por um juiz, aos olhos de torcedores e simpatizantes que devem
participar com vaias e/ou aplausos.
As manifestações culturais dos povos afro-pindorâmicos pagãos
politeístas são organizadas geralmente em estruturas circulares com
participantes de ambos os sexos, de diversas faixas etárias e número
ilimitado de participantes. As atividades são organizadas por fundamentos
e princípios filosóficos comunitários que são verdadeiros ensinamentos de
vida. É por isso que no lugar dos juízes, temos as mestras e os mestres na
condução dessas atividades. As pessoas que assistem, ao invés de torcerem,

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Colonização, Quilombos: modos e significações

podem participar das mais diversas maneiras e no final a manifestação é a


grande vencedora, porque se desenvolveu de forma integrada, do individual
para o coletivo (onde as ações e atividades desenvolvidas por cada pessoa
são uma expressão das tradições de vida e de sabedoria da comunidade).
Observando o conteúdo organizativo e os regramentos que governam
essas diferentes modalidades, logo podemos perceber que as manifestações
de matriz eurocristã monoteísta trabalham o coletivo de forma segmentada
e as manifestações afro-pindorâmicas politeístas trabalham o indivíduo
de forma integrada. Um exemplo ilustrativo é a diferença entre o futebol
(criados pelos ingleses, um povo de cosmovisão monoteísta) e a capoeira
(criada pelos povos afro-pindorâmicos, de cosmovisão politeísta).
O jogo de futebol é regido por regras estáticas e pré-definidas, onde
vinte e duas pessoas jogam, uma pessoa julga e milhares de pessoas assistem.
Pode ocorrer que entre as pessoas que assistem exista alguém que jogue
melhor que uma das vinte e duas pessoas que estão jogando. Mesmo assim
dificilmente esse alguém poderá entrar no jogo.
Numa roda de capoeira, regida pelos ensinamentos de vida, podemos
ter cinquenta pessoas jogando, uma pessoa ensinando e pouquíssimas
assistindo. Entre as poucas pessoas que assistem pode haver alguma que
nunca viu a capoeira. No entanto, se esta quiser, ela pode entrar na roda
e jogar.
Uma pessoa de qualquer sexo e de qualquer idade que não conheça
nenhuma das duas modalidades tem muito mais probabilidade de ser
convidada para entrar numa roda de capoeira que num jogo de futebol.
Essa lógica excludente do futebol e inclusiva da capoeira estão presentes
no dia a dia e fazem parte do processo organizativo da coletividade. Eis a
importância das cosmovisões na organização das sociedades.

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Após apresentarmos algumas das principais diferenças entre a
cosmovisão cristã monoteísta e a cosmovisão pagã politeísta dentro de
uma perspectiva comparativa, vamos agora analisar os efeitos dessas
diferenças em contextos históricos mais específicos, relativos ao contato
entre esses povos.

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12

CAMPONESES E CAMPONESAS NA DITADURA.

RESISTIR É PRECISO!

Vimos que o espaço rural brasileiro é


O que é uma Ditadura? Ditadura é uma forma
marcado por grandes desigualdades e de governo onde todo poder está localizado
por conflitos em torno do direito à terra. nas mãos de uma pessoa ou de um grupo. É
essencialmente um regime antidemocrático e
Geralmente esses conflitos resultam em antipopular. No Brasil houve várias
assassinatos ou expulsão dos camponeses. experiências ditatoriais em diferentes
contextos. No presente capítulo estudaremos
Durante a Ditadura iniciada com o aspectos da Ditadura iniciada em 1964, após o
Golpe de Estado de 1964, os conflitos Golpe de Estado que destituiu o presidente
João Goulart. Em todos esses casos, as
agrários se intensificaram. Muitos características fundamentais de uma ditadura
empresários e grandes latifundiários se é ausência da participação democrática, uso
da violência com legitimadora do poder e
beneficiaram com esse sistema autoritário ameaça aos direitos políticos e civis gerando
um regime de exceção e deixando
que representou a retirada de direitos de
experiências traumáticas na sociedade.
parte significativa da sociedade brasileira.

A repressão na Ditadura atingiu uma grande parte da sociedade. Na primeira imagem militares
reprimem uma manifestação. Já na segunda imagem, camponeses capturados na Guerrilha do
Araguaia. Esse movimento contou com o apoio de vários camponeses nos estados do Maranhão,
Para e Goiás (hoje atual Tocantins). Vários camponeses e militantes do Partido Comunista Brasileiro
foram brutalmente assassinados e dezenas seguem desaparecidos. Você já ouviu falar na Guerrilha
do Araguaia? Procure em sites, livros e blogs informações sobre esse movimento, depois reflita
sobre o contexto de violência política no campo.
13

Violência e Perseguição no campo

A Ditadura deixou marcas profundas no campo


Grilagem é o termo utilizado para a
maranhense reprimindo as organizações
prática de apropriação ilegal de terras
camponesas que buscavam garantir direitos
públicas. Quem comete a grilagem é
para o trabalhador rural. Nesse período o meio conhecido como grileiro. O termo
rural maranhense passou por grandes vem de grilo. Em épocas coloniais,
mudanças. para regulamentar a posse da terra,
algumas pessoas forjavam uma
Em 1969, o governador José Sarney colocou em documentação e colocava em um local
vigor a Lei de terras. Essa lei tinha como objetivo com vários grilos. Esses grilos
regularizar a estrutura agrária maranhense. liberavam toxinas deixando o
documento com a cor envelhecida que
Todavia, o que se viu foi a possibilidade de
serviria para comprovar a longevidade
acúmulo de terras e crescimento do latifúndio
da documentação. Na
no estado. contemporaneidade o processo se dá
de outra forma, o grileiro geralmente
A lei não regularizou a posse de terra de pessoas
tem ligação com agentes públicos que
que viviam décadas em muitas regiões do regulamentam terras públicas a partir
estado. Muitas empresas e fazendeiros se de um esquema fraudulento de
apropriaram ilegalmente dessas terras públicas reconhecimento da propriedade.
através da grilagem. Após 1969 os conflitos de
terras no Maranhão se acentuaram.

Ter posse da terra não significa ter a


propriedade. O que isso quer dizer? A
posse está relacionada ao uso de algo,
nesse caso a terra. Enquanto a
propriedade é o reconhecimento
jurídico da posse. No caso em estudo,
muitos grupos conseguiram a
propriedade de vários hectares de terras
sem ter a posse, enquanto para quem
trabalhava na terra, no caso, o
campesinato foi negado o direito de
propriedade.

A figura acima se trata de uma charge. Crie


uma legenda para essa imagem, e em seguida
responda: qual a crítica que o artista procurou
fazer? Você concorda?
14

A imprensa é uma fonte para historiador, pois a partir dela compreendemos como é construída a
importância de um tema em um determinado contexto. Através do análise do jornal é possível
refletir sobre a circulação de ideias em momento histórico. O que você sabe sobre a imprensa, sobre
os jornais? Eles constroem opiniões? Comente com seu professor ou professora sobre isso.

O Jornal Pequeno foi um importante impresso no Maranhão com circulação ainda hoje. Era um dos
principais jornais da cidade de São Luís e um dos poucos que denunciavam os conflitos rurais do
estado. Todas as matérias acima são da década de 1980, esse período foi marcado por grandes
manifestações contra a Ditadura e luta pelo retorno da democracia. Parte considerável dos
pesquisadores chamam esse período de Reabertura Política ou mesmo Período de Redemocratização.
Interessante observar que essa conjuntura de luta é marcada pela permanência e intensificação dos
conflitos rurais. Observe as imagens acima e discuta em sala de aula as temáticas das reportagens. Há
alguma permanência ou o cenário de violência no campo mudou? Você conhece algum caso recente de
violência no campo?

As imagens acima da esquerda para direita (Jornal Pequeno, 1985. Jornal Pequeno 22.06.1986. Jornal
Pequeno, 20.06.1985) fazem parte do acervo da Biblioteca Benedito Leito localizada no centro da
cidade de São Luís, MA.
15
Resistir é Preciso!

O aumento da violência no campo na


década de oitenta não representou a
indiferença dos camponeses e camponesas
ao problema agrário. A luta pela reforma
agrária continuava sendo a principal
bandeira das organizações campesinas no
Maranhão. Por que essa reivindicação era
importante ao campesinato?

ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DO CAMPESINATO


MARANHENSE

Associação de Lavradores (1950 e


1960).

Atuação do Movimento de Educação


de Base -Igreja Católica (1960). A luta pela terra no Bico do Papagaio
(1964-1985) representou um dos grandes
marcos na História social do campesinato
Processo Itensivo de Sindicalização e
atuação da Federação dos e dos conflitos agrários do Maranhão
Trabalhadores e Trabalhoras do Contemporâneo. Essa microrregião,
Maranhão ( 1970-1980).
corresponde hoje ao atual Tocantins, é
conhecida por esse nome por ter um
Criação do Movimento dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Sem estrutura geológica semelhante ao bico de
Terra MST (1984). uma ave. A região do Bico do Papagaio
foi cenário de um grande movimento de
Primeira Ocupação organizada pelo resistência do campesinato. Durante
MST e formação de Assentamento no
Maranhão em 1987, em Vila vários anos os camponeses e camponesas
Conceição região de Imperatriz. lutaram contra grileiros, fazendeiros,
políticos e pistoleiros que tinham
Criação do Centro de Educação dos interesses naquela região. Em 1986,
Trabalhadores Rurais - CENTRU
(1987). Padre Josimo foi assassinado em
Imperatriz, ele era um dos grandes
Movimento Interestadual das apoiadores dos camponeses da região.
Quebradeiras de Coco Babaçu. Apenas em 15 de setembro de 2010, os
(1991)
acusados foram julgados pelo crime.
16

UM CERTO MANOEL DA CONCEIÇÃO

TEXTO 1
Quantos anos você tem?
Vou completar 140 anos, no dia 4 de julho deste ano.
Como assim?
Quando nasci e onde me criei, a noite não era contada como dia. Os meus avós e pais diziam: um ano
tem 365 dias. Então, como o ano tem 365 dias, ele tem 365 noites, e, juntos, termina a gente tendo 140
anos!
E você nasceu onde?
Nasci em Pirapemas, numa comunidade chamada Pedra Grande, no Maranhão. Na época era
município de Coroatá. Hoje é município.
Sua família era de camponeses?
Minha família era de camponeses, agricultores pobres. Meu avô descendia de indígenas, meu pai de
africanos escravos e minha mãe de portugueses...
Sua família é do interior do Maranhão?
Todo o tempo habitaram no campo. Primeiro na região de Vargem Grande (MA), que nós chamamos
de desemboque do Rio Parnaíba, entre o Piauí e o Maranhão. Depois eles mudaram para esse lugar
chamado Pedra Grande, que fica na beira do Rio Itapecuru.
E como você começa a se conscientizar, a participar da luta?
Meu pai tinha um patrão chamado Luís Soares, que era considerado o pai dos pobres. E como os
agricultores pobres tinham dificuldade de ter suas terras registradas, pagar impostos direitinho, ele
sugeriu ao meu pai incluir a terra herdada dos avós como sendo dele, porque nossa terra ficava no
meio da terra dele. Mas em 1953 esse cidadão morreu. E a gente pensava que ele tinha feito isso só
conosco, mas ele tinha feito com centenas de famílias da região do cerrado maranhense. Um ano
depois, a viúva, com os filhos, entendeu de tomar essas terras e juntou centenas de jagunços, policiais,
que saíram expulsando todo mundo, e nós fomos atingidos. Ficamos sem terra e viemos para a região
do Mearim, município de Bacabal, onde iniciamos o trabalho de criação da associação rural de
agricultores, pois as terras também eram da União, não tinham dono.
ENTREVISTA COM MANOEL DA CONCEIÇÂO cedida a Hamilton Pereira e Ricardo de Azevedo
em 10/03/2005.

TEXTO 2

"[...] exame de trajetórias individuais nos permite avaliar estratégias e ações de atores em diferentes
situações e posições sociais, seus movimentos, seus recursos, as formas como as utilizam ou procuram
maximizá-los, suas redes de relações, como se estruturam, como as acionam, nelas se locomovem ou
as abandonam (GRYNSZPAN, 1990, p. 74)"

De acordo com a leitura do TEXTO 2, qual a


importância das trajetórias individuais para a
reconstrução do conhecimento histórico?

Sobre o TEXTO 1, você já ouviu falar desse


personagem? Que aspectos da vida de Manoel da
Conceição se relacionam com o assunto estudado?
17

Manoel da Conceição é um líder camponês maranhense


nascido em 1935, no distrito de Pirapemas no Maranhão.
Na década de 1950, sua família migrou para Pedra
Grande na beira do Rio Itapecuru.
Em 1953, Manoel muda-se para a região do Mearim
(próximo de Bacabal). Juntamente com outros
Retome o início do livro camponeses e camponesas organiza a primeira
quando falamos sobre os fluxos
migratórios no Maranhão e a Associação de Lavradores da região. Nesse período,
questão agrária. envolve-se em conflitos com os fazendeiros locais e
torna-se sobrevivente da chacina de Copaíba em 1957.
Na década de 1960, torna-se um dos principais
organizadores políticos do campesinato maranhense. Em
Massacre de camponeses incluindo
crianças e idosos na região de Pindaré, 1967, sob o regime ditatorial foi vítima de um atentado,
localizada entre as cidades de Santa
sendo baleado na perna e preso durante sete dias sem
Inês e Santa Luzia. O massacre foi
coordenado pelo subdelegado Manacé cuidados médicos.
Alves Castro. Os camponeses vinham Nesse período, estudantes, operários e intelectuais
resistindo ao assédio de Manacé que
cobrava indevidamente pagamento pressionam o então governador José Sarney, para a sua
pelo uso de terras públicas. libertação. Em 1969, viaja para a China e participa de
uma intensa formação política.
Manoel da Conceição radicaliza a luta pela terra
A tortura era um instrumento utilizado de juntamente com outros camponeses e camponesas na
forma naturalizada na Ditadura. Muitos não criação de sindicatos rurais no interior do estado, o que o
resistiam a procedimentos desumanos como
choques, estupros, espancamentos, cisões nos torna como um dos principais alvos da Ditadura no
órgãos genitais dentre outras formas de Maranhão.
violência exercida pelos militares durante esse
Ente 1972-1975, é preso diversas vezes e torturado. Em
período. Exílio significa ser expulso do país
por motivos políticos. 1975, torna-se um refugiado político ganhando exílio em
Genebra, Suíça.
Com a Anistia de 1979, Manoel e outros exilados retorna
ao país, e de imediato, reinicia suas atividades políticas.
Em 1979, juntamente com a camponesa Margarida Alves
A Lei de Anistia entrou em vigou em 1979 e
estabeleceu orientações para o perdão dos crimes e outros camponeses cria o CENTRU em Pernambuco e
políticos. Vários pesquisadores criticam o modelo de Imperatriz, cidade em que reside até hoje.
Anistia conduzido no Brasil, sobretudo no tocante a
impunidade dos agentes públicos e privados que Participa ativamente do primeiro assentamento do
cometeram crimes hediondos com tortura e Maranhão em 1987. Sua luta política pela
assassinatos.
democratização da terra é conhecida nacional e
Margarida Alves foi uma líder camponesa da internacionalmente.
Paraíba, assassinada em 1983.
18

Quando Manoel estava no exílio é lançada a


obra "Essa terra é nossa". Trata-se de sua
autobiografia organizada pela pesquisadora
Ana Maria Galeno. Mas o que é uma
biografia? Que cuidados devemos ter ao
analisar um biografia? Converse com seu
professor(a) de História sobre isso.

Interlocutor – Certo, senhor Manoel, dentro desse


O Período de Redemocratização do Brasil foi lento
estado, que você passou um tempo sendo transferido
e gradual. Em 1985, tivemos eleições indiretas de um lugar para outro, para prisões diferentes. Qual
para presidente. Em 1988, foi colocado em vigor a foi o lugar que você realmente sofreu maiores
Constituição Democrática, no entanto, nada foi torturas, você lembra?
feito para apuração dos crimes da Ditadura. Manoel Conceição Santos – todas as minhas
Comissão Nacional da Verdade é a comissão torturas, a maioria esmagadora foi no Rio de Janeiro.
instituída pelo governo do Brasil no ano de 2011, 1 Interlocutor não identificado – Ah, no Rio.
Manoel Conceição Santos – É, lá para onde eu fui e
que investigou as graves violações de Direitos que me botaram nessa cela infernal, eu entrava
Humanos cometidas entre 18 de setembro de 1946 empurrado, de costas, não podia ficar em pé porque
e 5 de outubro de 1988. A CNV luta pela memória não cabia e lá eu ficava deitado no chão. Ali, [trecho
social do nosso país e pela divulgação dos atos incompreensível] pouco, mas comia pouco também.
hediondos cometidos pelo Estado brasileiro. Mas o De vez em quando, no final do dia eles te davam um
que é memória social? Podemos dizer que é a pão molhado com água, essa era a comida, pegava o
pão para comer molhado com água. No outro dia ou
construção coletiva sobre o que lembrar. No
nos outros três dias para lá, tudo era noite.
presente caso, a CNV contribui para reconstrução Interlocutor : Você não tinha noção de quando era
da memória coletiva a respeito da Ditadura. O dia e nem de quando era noite?
direito à memória faz parte de uma justiça de Manoel Conceição Santos – Não, mas ali a luz era
transição, ou seja, para construção de uma cultura todo o tempo, aí a gente não sabia se era de dia ou se
democrática é necessário reconhecer os crimes de era de noite. Agora, depois de lá [trecho
eventos traumáticos. Justiça de Transição diz incompreensível] no Recife, mas lá era uma cadeia
melhor, eu ficava assim, eu ficava em pé, ficava
repeito aos mecanismos de responsabilização dos
algemado, só de calção. Muita investigação foi. No
crimes cometidos em um período. Recife e na Bahia não foi tanto, nem em Alagoas.
Agora, tortura só no Rio e no Recife.
O que você pensa a respeito disso? Você acha Trecho do Depoimento de Manoel Da Conceição a
importante para uma sociedade o conhecimento de Comissão da Verdade na cidade de Imperatriz, MA. em
eventos autoritários? Publicizar as informações 16. 11. 2013
sobre torturadores e assassinos é um tipo de
justiça?

Agora é a sua vez!


a) Identifique no depoimento de Manoel da Conceição elementos que indiquem crimes aos Direitos Humanos.
b) Você consegue perceber elementos da História coletiva dos camponeses maranhenses no vida de Manoel da
Conceição? Quais?
c) Construa uma linha do tempo sobre os eventos da vida de Manoel da Conceição.
19

COCO LIVRE E MULHERES EM LUTA

A extração do babaçu é uma prática


longínqua na produção agrícola maranhense, dá-
se por meio da extração da amêndoa do coco
de forma manual para venda e produção do
azeite de coco, sabonete e outros derivados.
O trabalho de extração dos babaçus, na
grande maioria das vezes, é desenvolvido por
mulheres e representa parte significativa da renda
familiar.
Os babaçuais se estendem desde o norte
do Tocantins até o norte do Maranhão, e do leste
do Pará ao oeste do Piauí.

Extração da amêndoa do babaçu. No mapa acima temos a divisão agro ambiental do Maranhão, localize e pinte a
região correspondente as áreas de babaçuais, não se esqueça de atualizar a legenda.
Você conhece esse fruto? Que relação existe entre a defesa dos babaçuais e a questão da luta pela terra?
20

A luta pelo direito ao extrativismo representa o caráter


de totalidade da luta pela terra que inclui discussões ecológicas,
extrativismo é uma das
atividades mais antigas da proteção das áreas ambientais e relações de solidariedade, para
humanidade, antecedendo a
agricultura e a pecuária, além da produção econômica.
corresponde em extrair da No Maranhão, durante muito tempo os babaçuais eram
natureza recursos minerais,
animais e vegetais como no localizados em florestas, ou seja, em terras públicas, eram livres
caso do babaçu.
para a extração. Esse tempo é considerado dentro da narrativa
de muitas quebradeiras de coco como tempo do coco livre.
Com o processo de criação de latifúndio e cercamento
das áreas de babaçuais nas décadas de 1960 e 1980, as pessoas
que viviam do extrativismo foram perseguidas por grileiros e
grandes criadores de gado sendo proibidas de colher o fruto.
Esse período é lido pelas quebradeiras de coco como o tempo do
coco preso.
Não raras vezes os fazendeiros protegidos pelas
Narrativa: prática instituições do governo ditatorial, pagavam jagunços para
de organizar e
contar uma espancar e surrar as mulheres extrativistas.
história.
Foram muitos anos de luta e resistência. A defesa das
áreas de babaçuais não significam apenas a segurança
econômica, mas uma concepção de preservação da palmeira e
regiões de florestas.
Em 1991, já no período democrático, foi realizado o I
Congresso Interestadual de Quebradeiras de Coco e em 1995,
foi criado o Movimento Interestadual das Quebradeiras de
Coco Babaçu (MIQCB), unindo mulheres extrativistas do
Piauí, Pará, Tocantins e Maranhão.
O MIQCB continua em atividade até os dias de hoje na
defesa do meio ambiente e luta pela floresta.

Mulheres na extração do babaçu


21

Observe as pontuações da antropóloga Maristela Andrade da Universidade


Federal do Maranhão, sobre o uso dos termos "tempo do coco livre" e "tempo
do coco preso" e responda as questões propostas.

"Toda vez que solicitamos a essas mulheres – e em geral o fazemos às ocupantes de


posições de destaque, hoje, no movimento das quebradeiras – para discorrerem sobre as
lutas que as levaram à conquista da terra e dos babaçuais, elas remontam ao tempo em que
o acesso aos babaçuais e, portanto, a extração do babaçu deixou de ser livre. Toda vez que
lhes pedimos para comentar sobre o processo que as levou a se livrar dos atravessadores, a
controlar o beneficiamento das amêndoas, a comercialização e, até mesmo, a exportação do
óleo para o mercado internacional, as narrativas remontam ao denominado tempo do coco
preso. A memória das lutas travadas para garantir o livre acesso a esse recurso vegetal
remete, nas narrativas, a um tempo em que os babaçuais deixaram de ser recursos abertos,
usufruídos em sistema de uso comum (ANDRADE, 2007, p. 446)"

a) Para as mulheres quebradeiras de coco, qual a


diferença entre os tempos do coco livre e coco
preso?

b) Existe alguma relação entre o tempo do coco


preso e as mudanças na estrutura agrária
maranhense abordadas no início do livro?

Abaixo segue um depoimento de uma quebradeira de coco. Trata-se


de um documento histórico a partir do uso da História Oral. Através
do registro oral é possível reconstruir historicamente um processo, ou
parte dele. Leia atentamente o trecho e reflita sobre as questões
sugeridas.

"Olha, isso é diferenciado por tempo. Antes, quando eu era pequena, minha avó fazia uma
crítica e isso entra muito na questão do preconceito e da discriminação... “ah homem que
quebra coco cresce a bunda”. É como se fosse assim “ah vai virar mulher...” assim, nesse
sentido. Então na minha comunidade eram poucos os homens que quebravam coco. Agora já
têm mais homens que quebram coco na minha comunidade. A outra diferença aqui mesmo no
município é no Riachão. Nós temos uma diretora sindical aqui de Lago do Junco, mas mesmo
no Riachão, que é um povoado, lá os homens juntam coco e quebram coco. Os nossos, da nossa
comunidade, junta mais do que quebram. Eles não têm muita vergonha de juntar, mas já não
gostam de quebrar". Entrevista com Maria Soares concedida, Bacabal-MA a historiadora
Viviane Barbabosa, em 04/11/2011

a) Por que os homens se negavam participar do trabalho?

b) Reflita sobre o protagonismo das mulheres na luta e defesa dos babaçuais.


22

Para não esquecer:


Vítimas e desaparecidos no Maranhão

TEXTO 1
A memória, para prolongar essa definição lapidar, é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de
fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um
indivíduo inserido num contexto familiar, social nacional. Portanto, toda a memória é, por definição, coletiva.
(Henry Roussou. 2006, pp. 94).

TEXTO 2
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução,
aberta à dialética da lembrança e do esquecimento. (Pierre Nora, 1984, p.12)

TEXTO 3
"Nada mais urgente e necessário que educar em direitos humanos a partir da memória, tarefa indispensável
para a defesa, o respeito, a promoção e a valorização desses direitos. Esse é um desafio central da
humanidade, que tem importância redobrada em países da América Latina, caracterizados historicamente
pelas violações dos direitos humanos, expressas pela precariedade e fragilidade do Estado de Direito e por
graves e sistemáticas violações dos direitos básicos de segurança, sobrevivência, identidade cultural e bem-
estar mínimo de grandes contingentes populacionais (Programa Direitos Humanos nas Escolas 2007, p. 22)."

a) O que é memória para os historiadores Pierre Nora e Henry Roussou? Você concorda com eles?

b) Segundo o TEXTO 2: Por que a América Latina é citada de forma pontual? Que eventos ocorrido
nessa parte do continente desperta maior atenção para uma educação em Direitos Humanos?

c) "toda memória, é por definição coletiva" Você concorda com essa afirmação? Justifique sua
resposta.

O Memorial da Resistência de São Paulo é um museu que preserva as memórias da resistência e da


repressão políticas do estado de São Paulo. O conjunto prisional é composto por quatro celas, um
corredor principal e um corredor para banho de sol. Em cada um dos espaços, painéis e outros
suportes audiovisuais apresentam desde o processo de implantação do Memorial da Resistência aos
testemunhos sobre o cotidiano na prisão.
23

No Maranhão, a luta pela terra foi marcada pela utilização extrema de


violência contra os camponeses e camponesas.
A ditadura iniciada em 1964, conduziu de forma autoritária o problema
fundiário no estado e no Brasil.
As forças militares ficaram a serviços dos latifundiários e grandes
representantes do capital internacional.
Nas décadas de 1970 e 1980, cresceram o número de sindicatos rurais no
Maranhão. Camponeses e camponesas seguiram na organização política a partir
de uma forte tradição de resistência e luta contra a concentração de terras.

Parte do mapeamento dos conflitos do campo


no período ditatorial só foi possível devido ao
apoio de pesquisadores, intelectuais , artista e
outros segmentos sociais às causas do campo.

Dentre os inúmeros apoiadores da luta pela


terra, destacamos a atuação da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) criada em 1972, tendo
como principal função acompanhar as
problemáticas agrárias e coletar dados sobre a
violência no campo. A CPT era uma das
principais ações do segmento da Igreja Católica
iniciado na década de 1960, chamado Teologia
da Libertação. Pesquise sobre esse movimento
e suas contribuições na luta pelo fim das
desigualdades sociais.

De acordo com os gráficos ao lado e responda:


a) Qual a categoria que mais sofreu com o
assassinato no campo no Brasil?
b) No Maranhão, qual o período de maior
incidência de assassinatos no campo?

FONTE - Gráficos : CPT 1985-2005


24

Nos anos 2000 vários pesquisadores apoiadores


das lutas camponesas e familiares das vítimas
reivindicaram o direito a memória e à reparação.
O resultado foi a publicações de vários
relatórios sobre a violência no campo.

O relatório ao lado aponta 1.196 casos de


trabalhadores rurais assassinados ou
desaparecidos por razão ideológica e disputa
fundiária no campo. Reflita sobre a importância
desses relatórios para a sociedade.

O filme "Quem matou Elias Zi " do cineasta


maranhense Murilo Santos, apresenta como enredo
a morte do camponês Elias Zi no município de
Santa Luzia em 1982. Ele foi assassinado no
mercado central da cidade. Os criminosos,
comerciantes e políticos da região, continuam
impunes até hoje. O filme encontra-se disponível
em:
https://www.youtube.com/watch?v=FOKhFqmigs
Q

Epaminondas Gomes de Oliveira foi morto em


20 de agosto de 1971 sob custódia do exército e
desaparecido nessa mesma data em Porto Franco
- MA. A Comissão Nacional da Verdade
coordenou em 2013, a exumação dos restos mortais
do líder camponês que foi entregue aos familiares
no mesmo ano.
25

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro leitor e leitora, espero que essa pequena caminhada tenha


contribuído para seu conhecimento sobre as lutas camponesas do nosso
estado.

Sabemos que nem sempre algumas informações são


democratizadas. Ao pensar nesse material levamos em consideração o
pouco de materiais didáticos sobre o campesinato nas escolas e nas livrarias
A partir do que estudamos e refletimos até aqui discuta
para o público da sua idade.
em sala de aula sobre a importância de conhecer sobre
as lutas camponesas no Maranhão. Apresente
Para nós foi uma oportunidade única poder dialogar com um
argumentos que sustentem a tradição de luta pela terra
universo
no tão interessante e curioso como os jovens das escolas de Educação
estado.
Básica do Maranhão.

A vocês depositamos toda a nossa esperança. Não esqueçamos


que nem sempre os dias foram bons para quem desejou um mundo melhor.

Muitas vezes somos surpreendidos por movimentos autoritários


que nos retiram direitos e perseguem nossos sonhos. Mas, aprender História
nos deixa atentos e esperançosos, porque nada é imutável e o movimento da
vida quem conduz somos nós, seres humanos!

Não deixa de ser excitante saber que nem o autoritarismo e a força


da ditadura frearam o desejo pela reforma agrária de milhares camponeses e
camponesas. E que estudantes, operários, intelectuais, indígenas,
quilombolas e trabalhadoras e trabalhadores rurais lutaram, cada um da sua
maneira, pela mesma coisa: liberdade e vida com dignidade.

Que essa história alimente nossos desejos por dias melhores e mais
justo!

Até mais, e não esqueçamos que tudo é História!


1

Resistências de comunidades tradicionais ao agronegócio enquanto forma de efetivação


de direitos: análise do cenário do Baixo Parnaíba maranhense1

Resistance of traditional communities to agribusiness as a form of efective rights: analysis of the Baixo
Paranaíba maranhense scenario

Ruan Didier Bruzaca2

Sumário. 1 O desenho do ambiente pelo cenário


neodesenvolvimentista: avanços do agronegócio sobre o território
brasileiro e maranhense. 2 Traços dos conflitos socioambientais
provocados pelo agronegócio: do entrelace entre os derrames. 3
Implicações das resistências de comunidades tradicionais frente ao
agronegócio no Baixo Parnaíba maranhense. Considerações finais.
Referências.

Introdução

Ó donos do agrobiz, ó reis do agronegócio


Ó produtores de alimento com veneno
Vocês que aumentam todo ano sua posse
E que poluem cada palmo de terreno
E que possuem cada qual um latifúndio
E que destratam e destroem o ambiente
De cada mente de vocês olhei no fundo
E vi o quanto cada um, no fundo, mente
(“Reis do agronegócio”, de Carlos Rennó e Chico César)

O agronegócio reflete na realidade brasileira as implicações de modelos de


desenvolvimento que consolidam o país enquanto produtor de bens primários para
exportação, como é o caso da soja, grão que assume grande importância no mercado de
exportações. Neste cenário, o avanço das monoculturas no país repercute em variados
impactos, como os relacionados ao ambiente, ao território e aos direitos.
O tema do presente artigo científico é o impacto do agronegócio sobre os direitos
de comunidades tradicionais3. De forma delimitada, analisando-se em consideração o

1
Artigo premiado na VII Edição do Prêmio Jose Bonifácio de Andrada e Silva (2º lugar - Categoria: estudante
de doutorado), do Instituto O Direito por um Planeta Verde, e apresentado no IX Congreso de La Red
Latinoamericana de Antropologia Juridica (RELAJU), realizado em Temuco, Chile, em 2018.
2
Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com período sanduíche na
Università Degli Studi di Firenze (UNIFI); Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Graduado em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom
Bosco (UNDB). Professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e da Unidade de Ensino Superior
Dom Bosco (UNDB). Orientador do Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular (PAJUP). Foi
Assessor Jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Professor Substituto do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) e Professor da Faculdade do Maranhão
(FACAM).
3
O presente artigo tratará camponeses e quilombolas enquanto comunidades tradicionais. Segundo Wolf (1976,
p. 10), camponeses são entendidos por alguns como “agregados amorfos, sem estrutura própria”, outros como
2

contexto do Baixo Parnaíba maranhense, dar-se-á enfoque à efetividade de direitos pelas


resistências destes grupos no cenário de conflitos socioambientais provocados pelo
monocultivo da soja.
A problemática do presente estudo refere-se à indagação de em que medida as
resistências das comunidades tradicionais atingidas pelo agronegócio, tal qual se observa nos
conflitos envolvendo a soja no Baixo Paranaíba maranhense, contribui para a efetividade de
direitos. Tem-se como premissa principal que os direitos são efetivados na medida em que as
comunidades tradicionais contrapõem-se ao modelo de produção adotado pelos
empreendedores, caracterizado por ser ambiental, social e culturalmente prejudicial.
Para tal, tem-se como objetivo geral analisar relação entre o agronegócio e a
consagração de direitos de comunidades tradicionais. Especificamente, busca-se: 1) destacar o
avanço territorial do agronegócio no Brasil e no Maranhão; 2) apresentar a relação entre o
avanço territorial do agronegócio e os impactos sobre o ambiente e os direitos; 3) examinar as
implicações da resistência das comunidades tradicionais ao avanço do agronegócio no Baixo
Parnaíba maranhense.
Metodologicamente, além da realização de pesquisa bibliográfica e documental,
destaca-se o levantamento de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística a
respeito do espaço ocupado pelo agronegócio, em particular pela soja, no Brasil, no Maranhão
e no Baixo Parnaíba maranhense, do ano de 2008 a 2016. Intentando destacar as implicações
ambientais do agronegócio, também se realizou levantamento de dados do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis a respeito da comercialização de
agrotóxicos de 2009 a 2016, no Brasil e no Maranhão.

1 O desenho do ambiente pelo cenário neodesenvolvimentista: avanços do agronegócio


sobre o território brasileiro e maranhense

Os debates sobre neodesenvolvimentismo, ou novo desenvolvimentismo, tem


ganhado atenção desde o seu surgimento enquanto balizador da política de desenvolvimento
do Brasil. Neste aspecto, o país insere-se num contexto que mantém o aprofundamento do
capital internacional e nacional em diferentes espaços do país, o que gera conflitos com

“populações tradicionais”, rotulando-as de “conservadoras” em contraponto às sociedades “modernas”. Quanto


às comunidades quilombolas, entende Almeida (2007, p. 11-12) que podem ser reconhecidos conforme a referida
tipologia.
3

grupos marcados por formas diferenciadas de criar, de ser e de viver, a exemplo do que ocorre
no Maranhão com as comunidades tradicionais.
Do início da ditadura civil-militar, em 1964, até o seu fim, no ano de 1985, tem-se
o chamado segundo ciclo do desenvolvimentismo (BIELSCHOWSKY, 2009, passim), no
qual se observa em seus governos (Castelo Branco e Costa e Silva, Médici, Geisel e
Figueiredo) formas diferentes e não-lineares de articulação na consolidação das políticas de
desenvolvimento, mas com características comuns. É o caso da abertura para o capital
internacional, do aprofundamento do capital no território brasileiro (em especial, na
Amazônia, o que afeta o Maranhão), da inserção do país na divisão internacional do trabalho
enquanto provedor de produtos primários, dos investimentos em infraestruturas e do
desrespeito a direitos da população étnica excluída, principalmente no campo (BRUZACA,
2014, passim).
Trata-se de um modelo que marcou a economia brasileira, cujas políticas de
desenvolvimento das últimas décadas guardam ainda relação. Neste sentido, Augusto et. al.
(2015, p. 98) destaca que no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso ocorreu a
rearticulação do “processo de modernização técnica da agropecuária, que se fizera pelos
militares nos anos 1960 e 1970”, caracterizando o país como provedor de bens primários no
cenário internacional. Ademais, houve a reestruturação de “aliança das cadeias
agroindustriais, da grande propriedade fundiária e do Estado, promovendo um estilo de
expansão agrícola, sem reforma social”. Finaliza-se destacando que os governos Lula (2003-
2010) e Dilma (2011-2015) intensificaram tal modelo.
É justamente este último período que se nomeia “neodesenvolvimentismo” ou
“novo desenvolvimentismo”. Segundo Santos (2013, p. 92-93), refere-se a um modelo de
acumulação mais nacionalista e estatista, baseado no neoextrativismo, com centralização no
Estado, intervindo no mercado nacional e internacional. Sobre a questão do extrativismo,
Gudynas (2016, p. 26-27, traduziu-se) destaca a existência de extrativismos conservadores
reajustados (Colômbia, Chile, Paraguai e Peru) e progressistas (Argentina, Bolívia, Equador,
Uruguai e Venezuela), tendo diferenças na “estruturação econômica, [no] papel do Estado,
[no] uso de excedentes e [na] legitimação de políticas”, estando o Brasil no segundo grupo.
Buscou-se solucionar o déficit advindo do governo de Fernando Henrique
Cardoso, acelerando-se as exportações primárias e alcançando “superávits nas transações
externas durante o período de 2003 a 2007, criando certa euforia passageira”, mas que
aumenta em 2008. A gravidade está “na dependência de capital estrangeiro, por um lado, e na
ampliação dos custos sociais desse estilo de crescimento, por outro. Os custos sociais da
4

especialização econômica do setor primário ainda não estão suficientemente percebidos pela
sociedade” (AUGUSTO, et. al., 2015, p. 98).
O momento de recrudescimento de 2008 referencia o início do segundo mandato
de Luís Inácio Lula da Silva, que utiliza um discurso sobre a necessidade de uma política
econômica que retome o “crescimento econômico”, dando destaque ao “desenvolvimento
industrial e agrícola” (MOTA, 2010, s. p.). Neste momento, observa-se o aumento de
atividades como as relacionadas ao agronegócio, o que implicará, conforme se verá adiante,
na agudização de conflitos socioambientais, impactando comunidades tradicionais.
Sobre a ideia da palavra “agronegócio”, destaca-se:

[...] tem origem na década de 1990 e representa uma construção ideológica


na tentativa de consolidar uma imagem de novo modelo de desenvolvimento
da agricultura: sofisticado, eficiente, produtivo, em contraposição à imagem
da agricultura capitalista vinculada ao latifúndio, que carrega o estigma da
exploração, do trabalho escravo, da extrema concentração da terra, do
coronelismo, do clientelismo, da improdutividade e do desmatamento. Na
verdade, representam o mesmo modelo que domina historicamente a
produção agrícola no país – grandes propriedades de terras que produzem
para exportação –, mas que sofre modificações e adaptações em suas
diferentes fases, intensificando a exploração da terra e do homem
(AUGUSTO, et. al., 2015, p. 172).

Trata-se de um esquema de produção associado a concepções desenvolvimentistas


que se aprofunda no Brasil. Como exemplo, tem-se a monocultura da soja4, que assume a
posição de um dos principais produtos de exportação do país. Isto também pode ser observado
em regiões e estados específicos, como é o caso do Maranhão. Ocorre que o agronegócio, na
esteira daquele modelo de desenvolvimento, impõe uma lógica de produção e apropriação da
natureza distante das formas de cultura e criação realizadas pelas comunidades tradicionais.
No agronegócio, diferente da agricultura, “não há cultura, pois não há povo, [na
qual] a relação homem-natureza é mediada pelos valores do mercado, do negócio”
(AUGUSTO, et. al., 2015, p. 123, acréscimos nossos). Neste contexto da expansão da
agricultura industrial ou agronegócio, observa-se a concentração de terras para a monocultura
de alimentos ou de agrocombustível. Acarreta na reprimarização da economia, expansão da
fronteira agrícola, modernização agrícola e monocultura químico-dependente. Ademais, os
4
Sobre esta afirmativa, destaca-se: “Entre 1990 e 2007, a área plantada com soja no Brasil cresceu cerca de
114%, passando de 9,74 para 20,87 milhões de hectares. Nesse período, merece destaque o aumento da área
plantada com soja na região CentroOeste (+6,4 milhões de hectares) e na região Nordeste (+1,2 milhão de
hectares), representando a consolidação dessas regiões como aquelas da fronteira agrícola da soja”
(SCHLESINGER, NUNES, 2008, p. 25). Ademais, importa destacar, como será apresentado mais adiante,
conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que desde 2008 a soja é o produto que mais
ocupa espaço no território brasileiro, em comparação a outros plantios (IBGE, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012;
2013; 2014; 2015; 2016).
5

cultivos ocupam vastas terras não para alimentar as populações, mas para sustentar ciclos
produtivos, ocasionando graves impactos socioambientais (SANTOS, 2013, p. 96).
Especificamente, o agronegócio repercute no “desenhar” do ambiente, afirmação
que se extrai do conceito de “efeito derrame” de Gudynas (2016, p. 28). Tal conceito
possibilita compreender as condições e transformações provocadas por empreendimentos
econômicos no espaço geográfico, resultando em modificações no direito, na gestão
ambiental, no território, por exemplo, para acolher a atividade. Continuando, o referido autor
destaca existir também mudanças nas políticas públicas, na justiça e na economia, estando tais
efeitos entrelaçados.
Um destes seria o “derrame territorial”, no qual o extrativismo impõe novos tipos
de territorialidade, que se sobrepõem a outros existentes, como indígenas, campesinas, áreas
protegidas etc. Com isto, ou debilitam ou anulam estas, a exemplo da proteção de territórios
indígenas, que pode ser relativizadas a qualquer momento. Este redesenho territorial pode
cobrir parte considerável dos países (GUDYNAS, 2016, p. 30-31).
Levando em consideração o espaço territorial ocupado pela soja que, como
destacado, é considerado um produto de grande relevância para a economia, apresentam-se
dados sobre as áreas plantadas para sua produção, possibilitando perceber a dimensão que o
agronegócio vem assumindo. Para tal, foram levantados do ano de 2007 a 2016 dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, referentes ao Plano Agrícola Municipal –
Culturas Temporárias e Permanentes, analisando-se a tabela 15 (“Área plantada ou área
destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida, rendimento médio e valor da
produção dos principais produtos das lavouras temporárias e permanentes em ordem
decrescente de área colhida”).
No Brasil, observa-se o crescimento da área destinada à soja, cujos dados5 podem
ser organizados conforme o gráfico abaixo:

5
Quanto aos números, destaca-se: em 2008, 21.063.721 ha; em 2009, 21.761.782 ha; em 2010, 23.339.094 ha;
em 2011, 24.032.410 ha; em 2012, 25.090.559 ha; em 2013, 27.948.605 ha; em 2014, 30.308.231 ha; em 2015,
32.206.387 ha; em 2016, 33.309.865 ha (IBGE, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016).
6

35.000.000

30.000.000

25.000.000

20.000.000
Área ocupada pela soja
15.000.000
no Brasil em hectáres
10.000.000

5.000.000

0
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Gráfico 1 – Área plantada ou área destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida,
rendimento médio e valor da produção dos principais produtos das lavouras temporárias e
permanentes em ordem decrescente de área colhida no Brasil.
Fonte: IBGE (2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016).
Elaboração do gráfico: autor.

O mesmo se observa com dados referentes ao Maranhão6, apesar de um


decrescimento do primeiro para o segundo ano, conforme gráfico que segue:
900.000
800.000
700.000
600.000
500.000
Área ocupada pela soja
400.000 no Maranhão em
300.000 hectáres
200.000
100.000
0

Gráfico 2 – Área plantada ou área destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida,
rendimento médio e valor da produção dos principais produtos das lavouras temporárias e
permanentes em ordem decrescente de área colhida no Brasil.
Fonte: IBGE (2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016).
Elaboração do gráfico: autor.

Iniciada a seleção de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística desde


2008, verifica-se que a soja é o produto que mais ocupa espaço no Brasil até o ano de 2016 e,

6
Quanto aos dados, destaca-se: em 2008, 421.520 ha, sendo o segundo maior produto a ocupar espaço no
Estado, perdendo para o arroz, que era de 467.405 ha; em 2009, 409.402 ha, novamente com o arroz ocupando
área maior, de 472.621 ha; a partir de 2010 passa a ser o produto com maior área ocupada, com 495.756 ha; em
2011, 530.539 ha; em 2012, 556.178 ha; em 2013, 564.546 ha; em 2014, 677.540 ha; em 2015, 761.225 ha; em
2016, 783.654 ha (IBGE, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016).
7

no Maranhão, desde 2010 até 2016 (IBGE, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015;
2016). A produção do referido bem primário, voltado para a exportação, referencia o
momento da política do desenvolvimento do país, o que implica também na configuração da
economia do estado-membro objeto de análise do presente artigo.
Não obstante, este desenho do ambiente conforme um dado modelo de produção
não se distancia das constatações de Escobar (2003, p. 157) a respeito da desconsideração dos
atropelos decorrentes da noção dominante de desenvolvimento, que levam, por exemplo, aos
deslocamentos forçados de grupos étnicos. Repercute ademais em fragmentações das
relações familiares, de inseguranças em relação ao território. Continuando, atenta o autor
colombiano que modernidade e desenvolvimento são “projetos culturais-espaciais”,
requerendo a conquista de territórios e de pessoas, bem como de sua transformação ecológica
e cultural, de acordo com suas bases racionais e logocêntricas.
Deste modo, verifica-se como um esquema de desenvolvimento, que se
denominou de novo desenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo, repercutiu no incentivo
de uma específica atividades agrícola, ou seja, o agronegócio. Neste, tem-se como exemplo a
soja, que ano após ano ocupa mais territórios tanto no Brasil quanto no Maranhão. De início,
percebe-se que essa apropriação territorial resulta na reconfiguração do ambiente. Entretanto,
necessário se faz especificar outras implicações socioambientais que se envolvem com o
nomeado derrame territorial.

2 Traços dos conflitos socioambientais provocados pelo agronegócio: do entrelace entre


os derrames

Conforme destacado, o modelo de desenvolvimento adotado no Brasil resulta em


uma apropriação territorial. Entretanto, trata-se de apenas um dos aspectos provocados pelo
esquema baseado no extrativismo, cujo conceito foi anteriormente abordado. Por isto,
relevante se faz pontuar algumas implicações que se relacionam com o nomeado derrame
territorial.
Retomando a tipologia utilizada por Gudynas, destacar-se-á três tipos de derrame:
derrames ambientais; derrames de direitos e extrações e; derrame de compensações e justiça.
Quanto aos derrames ambientais, consistem: 1) no reforço da mercantilização da Natureza,
convertendo-a em mercadoria, fragmentando a natureza em serviços com e sem valor
econômico – sendo estes últimos invisibilizados ou irrelevantes; 2) na redução das exigências,
controles ou sanções ambientais, que constituem “flexibilizações” – a exemplo das pressões
8

ao governo Lula, no Brasil voltado para flexibilizações que afetam todo o marco normativo e
regulatório ambiental (GUDYNAS, 2016, p. 28-30). Neste primeiro derrame, pode-se
destacar o aprofundamento do uso de agrotóxicos, considerados, como se apresentará,
maléficos ao ambiente e à saúde humana, bem como inconciliável às práticas tradicionais.
No contexto brasileiro, é latente o uso de agrotóxicos, que cresce ao passo que o
agronegócio ocupa espaço territorial. Com isso, destaca-se gráfico que possibilita verificar a
sua comercialização no país, com base na “Venda de agrotóxicos e afins no Brasil no período
de 2009 a 2016”7, utilizando como unidade a tonelada de ingrediente ativo. Com isso, obtém-
se o seguinte gráfico:
600.000,00

500.000,00

400.000,00
Venda de agrotóxicos e
300.000,00 afins no Brasil no
período de 2000 a 2016
200.000,00 (unidade: tonelada de
ingrediente ativo)
100.000,00

0,00

Gráfico 3 – Vendas de agrotóxicos e afins no Brasil no período de 2000 a 2016 (unidade:


tonelada de ingrediente ativo)
Fonte: IBAMA (s. d.).
Elaboração do gráfico: autor.

O panorama maranhense em relação ao uso de agrotóxicos não se distancia muito


da situação nacional. Observa-se, conforme gráfico abaixo, que existe diminuições na
comercialização de agrotóxicos, mas desde o ano de 2008 até 2012 verifica-se um
crescimento que corresponde ao momento de recrudescimento destacado no tópico anterior.
Importa destaca que, conforme dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis, o Maranhão figura como o segundo maior consumidor de
agrotóxicos do nordeste, ficando atrás apenas da Bahia (IBAMA, s.d).

7
Destaca-se que o gráfico foi elaborado conforme a seção “Histórico de comercialização – “2000-2016” –
“Histórico de comercialização de Químicos e Biológicos: 2000-2016”, no sítio eletrônico do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, do qual não consta dados a respeito do ano de 2018.
9

12.000,00

10.000,00

8.000,00
Venda de agrotóxicos e
6.000,00 afins no Maranhão no
período de 2000 a 2016
4.000,00 (unidade: tonelada de
ingrediente ativo)
2.000,00

0,00

Gráfico 4 – Vendas de agrotóxicos e afins no Maranhão no período de 2000 a 2016 (unidade:


tonelada de ingrediente ativo)
Fonte: IBAMA (s.d.).
Elaboração do gráfico: autor.

Entretanto, há neste contexto um enraizamento do conhecimento e do saber na


biosfera e em formas de intervenções, como é o caso dos agroquímicos e outras tecnologias,
contraposto aos saberes ambientais, estes enraizados por meio de novas práticas políticas,
sociais e produtivas (LEFF, 2006, p. 310). Leff (2006, p. 228-229) destaca que houve a
apresentação de soluções tecnológicas para a escassez de recursos pelos países do Norte,
implementando-se processos mais eficazes que diminuíam o consumo e aumentavam a
produtividade. Não obstante, além de dificuldades reais, isto possui limites. Neste sentido,
para o referido autor, a produção da globalização econômica não compensa, pelos seus
mecanismos, a destruição de ecossistemas, de práticas tradicionais, de risco e a insegurança
econômica.
A respeito disto, destaca-se a existência de uma onda neocolonial:

[...] a mercantilização da natureza (a natureza como negócio), a


artificialização da agricultura, a crescente presença de organismos
geneticamente modificados (OGMs) e as decisões político-comerciais dos
oligopólios que definem a matriz produtiva nacional na agricultura, além da
redução do Estado e o estímulo a um suposto livre-cambismo, tornam o
Brasil uma das principais economias do mundo, mas com pés de barro
(AUGUSTO, et. al., 2008, p. 104).

O derrame ambiental é observado em diversos conflitos socioambientais8, tais


ocorre no Baixo Paranaíba maranhense, que será destacado no tópico seguinte, sendo

8
No cenário brasileiro, pode-se destacar o caso de Lucas do Rio Verde/MT, que remete aos danos à saúde
provocadas por intoxicação por agrotóxicos. Houve a ocorrência de leite materno contaminado pelos
agrotóxicos, que também afetou a prole. Dentre eles destaca-se a presença de metabólico do
diclorodifeniltricloroetano (DDT), proibido em 1998 no país, que acumula no corpo e pode causar diversas
10

situações que carregam também relações de poder e de saber. Sobre este aspecto, Shiva (2003,
p. 22) destaca que os valores baseados do poder decorrem da ascensão do capitalismo
comercial, no qual se introduz que o sistema dominante consiste em uma tradição universal,
não uma tradição local globalizada.
Seguindo, também se observa o derrame de direito e extrações, que pode ser lido
em conjunto com o derrame de compensação e justiça. Segundo Gudynas (2016, p. 37-38), o
primeiro diz respeito às violações nos marcos dos direitos da pessoa, de direitos trabalhistas,
do direito à informação e à participação e da Natureza. O segundo, por sua vez, referencia a
ideia de compensação por danos sociais e ambientais de forma monetarizada, mercantilizando
a natureza e a sociedade, escolhendo concepções de justiça essencialmente econômicas.
O agronegócio tem avançado no território nacional e maranhense, trazendo uma
diversidade de externalidades à sociedade e ao meio ambiente, amparados por políticas
estatais e pelo corpo jurídico-institucional existente9. Com isso, tal esquema econômico é
consolidado com o apoio institucional e jurídico do Estado, bem como por correlações de
forças políticas.
Neste aspecto, foi necessário, para a manutenção da modernização conservadora
advinda da década de 1960, “um conjunto articulado de medidas governamentais e
legislativas, em particular a instituição do crédito rural subsidiado pelos governos”. Houve um
reforço pós-1990 do respaldo dos governos da ditadura civil-militar, com ampliação das
políticas públicas compensatórias, apoio inconsistente do Estado e processo político-
ideológico de cooptação popular (AUGUSTO, et. al., 2015, p. 102-103).
Ademais, destaca-se:

doenças, como o câncer. Com a produção da soja, recordista em produção, o uso de agrotóxicos aumentou e não
se teve controle do raio de alcance dos herbicidas – inclusive afetando a produção de pequenos produtores
(TENDLER, 2011). Outros casos além de Lucas do Rio Verde são destacados por Augusto et. al. (2015, passim),
como o da Chapada do Apodi/CE, com a presença de transnacionais, havendo aplicação contínua de fungicidas e
apropriação de terras; o do Pantanal Mato-grossense, com a contaminação das afluentes do Rio Paraguai e da
planície pantaneira, acarretando em danos à saúde humana, à fauna e à flora; o do Polo Fruticultor de Exportação
de Petrolina/PE, com ações governamentais para apoiar a “modernização da agricultura”, como a transposição
do Rio São Francisco, que traz em contrapartida o incentivo ao agronegócio, o aumento da depência ao mercado
externo e pioras nos índices sociais (analfabetismo, exploração sexual etc) e de saúde (aumento dos casos de
danos aos trabalhadores e à população).
9
Neste sentido, em relação aos incentivos, Raquel Rigotto, professora da Universidade Federal do Ceará,
destaca: “[...] os agrotóxicos têm estímulo fiscal para serem utilizados e consumidos no Brasil como um todo. Há
um convenio que data de 1997, que oferece isenção fiscal de 60% do ICMS [Imposto sobre Operações relativas à
Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de
Comunicação], do COFINS [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social], do IPI [Imposto sobre
Produtos Industrializados] e do PIS-PASEP [Programa de Integração Social – Programa de Formação do
Patrimônio do Servidor Público] para todos os agrotóxicos vendidos nesse país. E no Ceará, e me parece que
alguns outros Estados do Brasil, acharam isso pouco e estenderam a isenção a 100%” (TENDLER, 2011).
11

O modelo de desenvolvimento adotado, voltado para o crescimento


econômico, estruturou-se por um aparato jurídico-institucional que
possibilitou o incentivo às atividades econômicas, mas que afastou as
necessidades e a realidade local, bem como as capacidades e particularidades
ecológicas da região – projetando-se, desta forma, um desenvolvimento que
não satisfaz liberdades e particularidades de ser e viver (BRUZACA, 2014,
p. 52).

Faria (2002, p. 15) apresenta que na ordem sócio-econômica multifásica e


policêntrica, o direito positivo enfrenta dificuldades na edição de normas vinculantes dos
campos da vida sócio-econômica. Com isso, as regras que asseguravam a operacionalidade e a
funcionalidade do sistema jurídico revelam-se ineficazes. Direitos individuais, coletivos e
políticos são flexibilizados e desconstitucionalizados, e os conflitos coletivos cada vez menos
se adéquam aos textos legais.
No mesmo sentido, Wolkmer (2006, p. 116-117) aponta que no cenário latino-
americano, a ideologia neoliberal se comporta de maneira a eximir o Estado de sua
responsabilidade, contribuindo para imensos desequilíbrios “ao ajustar e estabilizar a
economia capitalista para as grandes burocracias e as elites financeiras internacionais”. Com
isso, as novas formas de dominação e exclusão afetaram as práticas políticas tradicionais e os
padrões normativos reguladores da vida em sociedade.
Em termos específicos, no Brasil o novo desenvolvimentismo, com incentivos a
atividades voltadas para a produção e exportação de bens primários, conforme a divisão
internacional do trabalho, resulta em modificações do cenário jurídico nacional. Deste modo,
pode-se observar interferências nas legislações, na formação jurídica, na atuação de
instituições do sistema de justiça e na tutela de direitos.
Atualmente, a expansão do papel de instituições do sistema de justiça, como o do
judiciário, e o primado do direito relacionam-se com o marco jurídico para o
desenvolvimento, beneficiando o comercio, os investimentos e o lucro. Aqui, o Estado de
direito e a reforma judicial traduzem-se em elementos para o desenvolvimento, sendo tarefa
do judiciário clarificar e proteger direitos de propriedades, contratos, dentre outros (SOUSA,
2011, p. 31).
O modelo de desenvolvimento acaba legitimando-se política e economicamente,
assumindo o direito papel importante neste cenário, Neste sentido, fazem os danos
socioambientais serem considerados inevitáveis frente ao progresso, suscitando uma
incompatibilidade de direitos. Argumenta-se que não é possível consagrar direitos associados
ao desenvolvimento sem violar direitos sociais e culturais (SANTOS, 2013, p. 94).
12

Entretanto, existem resistências que buscam formas alternativas de produção


àquela imposta pelo modelo neodesenvolvimentista. Ali se inserem comunidades tradicionais,
como as compostas por camponeses e quilombolas, tais quais as que se observam no Baixo
Parnaíba maranhense, que, resistindo às situações de violência e apropriação de seu território,
articulam outras formas de ser, de viver e de fazer, alinhada às necessidades ambientais e
sociais locais.

3 Implicações das resistências de comunidades tradicionais frente ao agronegócio no


Baixo Parnaíba maranhense

Ao passo que se aprofunda a inserção do agronegócio no território maranhense, os


conflitos fundiários, marcados por violências, são agudizados e a lógica de produção e
apropriação degradante da natureza é consolidada. Assim, neste último momento, destaca-se
avanço do agronegócio e as resistências na microrregião do Baixo Parnaíba maranhense10-11,
marcado por graves desrespeitos a direitos, pela violência no campo e pela degradação
ambiental.
Pode-se observar o aprofundamento do agronegócio novamente com o plantio de
soja. Para a elaboração do quadro seguinte foi utilizado também dados do Plano Agrícola
Municipal, mas com referência à tabela 16 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(“Área plantada ou área destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida, rendimento
médio e valor da produção, unidades da federação e municípios, segundo principais produtos
das lavouras temporárias e permanentes em ordem decrescente de área colhida”).
Ano 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Município
Água doce do 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Maranhão
Anapurus 9.790 7.737 8.120 4.550 5.000 8.370 8.170 6.800 6.800

10
Conforme Gaspar e Andrade (2015, p. 111), tal microrregião é formada por 16 municípios, sendo eles: Água
Doce do Maranhão, Anapurus, Araioses, Belágua, Brejo, Buriti, Chapadinha, Magalhães de Almeida, Mata
Roma, Milagres do Maranhão, Santa Quitéria do Maranhão, Santana do Maranhão, São Benedito do Rio Preto,
São Bernardo, Tutóia e Urbano Santos.
11
Tal microrregião foi objeto do documentário “A soja na terra das chapadas”. Neste se destaca que a
mesorregião do leste maranhense (na qual se insere a microrregião analisada) tem sido o palco da expansão do
monocultivo, como ocorre com a soja. Vilson Ambrozi, então presidente da Associação dos Produtores
Agrícolas do Cerrado do Leste Maranhense (APACL), destaca o seu deslocamento e de outros do sul do Brasil
para a região, em 1990-1991, período de dificuldades econômicas do país. Em 1995/1998, mantiveram-se na
localidade conforme atesta, tendo em vista a viabilidade na produção de soja. Em 1994 houve a inauguração do
terminal de grãos da então Companhia Vale do Rio Doce, o que incentivou a produção de soja na mesorregião,
considerando agora ponto estratégico para tal, estando o Baixo Parnaíba e o Alto Munim próximo do Porto do
Itaqui e da Ponta da Madeira. O agronegócio avançou, ocupando áreas vistas como “inúteis” por órgãos que
promovem o desenvolvimento agrícola (SANTOS, 2008).
13

Araioses 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Belágua 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Brejo 8.530 12.075 12.700 15.380 16.000 23.840 24.240 26.775 25.500
Buriti 16.100 11.340 11.900 13.140 15.000 11.027 12.357 13.500 13.500
Chapadinha 2.090 2.440 2.570 3.700 4.000 2.393 2.140 3.700 3.700
Magalhães de 1.900 2.500 2.500 2.500 2.602 3.120 3.770 3.325 3.050
Almeida
Mata Roma 3.210 3.500 3.700 5.350 6.000 6.660 6.660 8.100 8.100
Milagres do 1.460 2.850 2.950 2.400 3.200 2.650 2.650 3.500 3.500
Maranhão
Santa Quitéria 1.000 2.992 2.992 3.550 3.800 835 1.415 1.520 1.900
do Maranhão
Santana do 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Maranhão
São Benedito 190 270 440 500 600 610 650 1.240 1.240
do Rio Preto
São Bernardo 0 0 0 0 0 0 0 1000 1310
Tutóia 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Urbano 400 200 450 500 600 1.590 1.690 1.350 1.350
Santos
Total 44.670 45.904 48.322 51.570 56.802 61.095 63.742 70.810 69.950
Tabela 1 – Área plantada ou área destinada à colheita, área colhida, quantidade produzida,
rendimento médio e valor da produção, unidades da federação e municípios, segundo
principais produtos das lavouras temporárias e permanentes em ordem decrescente de área
colhida.
Fonte: IBGE (2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016).
Elaboração do gráfico: autor.

Conforme os dados apresentados, observa-se como na região paulatinamente a


soja vem ganhando espaço, assim como ocorre no cenário nacional e estadual. Malgrado um
declínio nos últimos dois anos abordados e as variações de quantidade e crescimento de
ocupação de área para o monocultivo do grão, o plantio da soja também se consolida
enquanto atividade econômica importante na microrregião.
Tal qual se observou em relação à ocupação do território, ao consumo de
agrotóxicos, ao desrespeito a direitos no âmbito nacional e estadual, na microrregião agora
analisada a situação de derrames e conflitos não é diferente. Isto é destacado no relatório do
Grupo de Estudos Rurais e Urbanos (GERUR) intitulado “O agronegócio e os problemas
socioambientais no Baixo Parnaíba Maranhense: a luta dos lavradores em defesa de um modo
de vida”. Nele, descreve-se a presença dos chamados “gaúchos”, com o monocultivo de soja,
e de empresas como a Suzano/Paineiras, com o plantio de eucalipto 12, que se valem do uso de

12
Conforme explicado anteriormente, enfatizou-se a soja em razão de ser o produto que mais ocupa área de
plantio no Brasil, bem como pela relevância dada na economia do estado do Maranhão. Entretanto, existem
outros monocultivos que também geram conflitos, como é o caso da cana-de-açúcar e do eucalipto. Sobre o
eucalipto no Brasil, Shiva (2003, p. 73-74) destaca que seu plantio destrói florestas e comunidades. Há
resistências da comunidade contra o “disseminar o verde” com eucaliptos, contrários à natureza e a seus ciclos.
Ademais, “o eucalipto certamente aumentou o fluxo de dinheiro e mercadorias, mas resultou numa interrupção
desastrosa dos fluxos de matéria orgânica e água no interior do ecossistema local”. Assim, o movimento
14

agrotóxicos e técnicas prejudiciais ao meio ambiente. Este modo de produção afeta


diretamente a população camponesa que desenvolve outras práticas de manejo em relação à
natureza (GERUR, 2014, passim).
Shiraishi Neto (2011, p. 27) destaca que a ocupação de terras para monoculturas
“se põe de forma antagônica ao vivenciado pelos diversos povos e comunidades tradicionais”.
Justamente, Almeida (2008, p. 133) apresenta que esses grupos são caracterizados por
relações diferentes com a terra. As modalidades de uso comum da terra consistem em
situações em que o uso dos recursos não se faz livre e individualmente por um determinado
grupo, sendo instituídos por grupos familiares que compõem uma unidade social.
Trata-se de um conflito entre esquemas econômicos, modelos de produção e
culturas no qual, por um lado, observa-se o monocultivo de soja, que se baseia no capital e
num modelo de desenvolvimento dependente do mercado internacional; por outro, as práticas
camponesas e de grupos étnicos, que são fundados em formas de ser, viver e criar próprios.
Deste encontro, observam-se conflitos e resistências, como é possível observar em
manifestações, em propostas legislativas, no ajuizamento de ações, dentre outras. Percebe-se,
como apresenta Escobar (2007, p. 172-173), que no encontro com o desenvolvimento e a
modernidade, as comunidades locais resistem ao aportarem seus recursos materiais e
culturais13. Com isso, seus modelos econômicos híbridos e locais, refletem resistências
culturais à transformação intentada pelo capital.
Quanto às resistências, pode-se destacar primeiramente propostas legislativas,
visando modificar o quadro do avanço do agronegócio na microrregião. Neste sentido, em
alguns de seus municípios, observam-se leis que proíbem a ampliação do monocultivo, do uso
de sementes transgênicas, a obrigação de destinação de propriedade para plantio de mata
nativa, como a Lei nº 659 de 2008 do município de São Benedito do Rio Preto (SBRP, 2008).
Entretanto, a mesma foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, referente ao processo
nº 0007737-50.2013.8.10.0000, que tramitou no Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão:

“questiona a dominação da ciência florestal que reduziu todas as espécies a uma única (o eucalipto), todas as
necessidades a uma única (a da indústria de polpa) e todo saber a um único (o do Banco Mundial e das
autoridades florestais)”. Tal crítica também pode dialogar com os problemas de outros monocultivos, como o de
soja.
13
As áreas nas quais a soja avança no Baixo Parnaíba maranhense eram habitadas há gerações por grupos
camponeses, conforme atesta Marcelo Carneiro, professor da Universidade Federal do Maranhão, afirmando que
os empreendimentos do agronegócio não encontraram as terras livres, aptas para expandir a fronteira agrícola.
Atenta que não se trata de um deserto, havendo um confronto com um sistema de produção bastante antigo de
agricultores, que são os agricultores familiares, que realizam atividade de produção extrativista vegetal e da
criação de pequenos e grandes animais (SANTOS, 2008).
15

AÇAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL.


VEDAÇÃO AO CULTIVO DE SEMENTES TRANSGÊNICAS.
MATÉRIA DE RELEVÂNCIA NACIONAL. COMPETÊNCIA
CONCORRENTE DA UNIÃO, ESTADOS E DISTRITO FEDERAL.
AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA MUNICIPAL.
PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Ação direta de inconstitucionalidade.
Adequação da via processual eleita para impugnação de lei municipal. 2.
Configura ofensa à Constituição Estadual dispositivo de lei municipal que
traz vedação ao cultivo de sementes transgênicas, extrapolando os limites da
competência legislativa municipal,conforme interpretação conjunta dos
artigos 141 e 12, inciso II, alínea "f", da Constituição do Estado do
Maranhão, e artigo 24, inciso VI, da Constituição Federal. 3. Arepartição de
competências estabelecida na Constituição da República rege-se pela
predominância de interesses de cada ente político. Assim, à União, cabe a
edição de normas gerais, aos Estados, as normas suplementares e, aos
Municípios, as normas atinentes às peculiaridades do interesse local. 4. Ação
Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente para declarar
inconstitucional, com efeitos ex nunc, o art. 1º, parágrafo único, da Lei
municipal n°. 659/2008, de São Benedito do Rio Preto (MARANHÃO,
2014, destaques nossos).

Com isso, foi julgado parcialmente inconstitucional quanto ao previsto no artigo


1º, parágrafo único: “Fica proibida a ampliação onde já estiverem implantados e a
implantação de novos empreendimentos de monocultura de eucalipto, soja, cana de açúcar e
outros” (SBRP, 2008). Não obstante o resultado da referida ação, observa-se como a
mobilização da comunidade suscitou mudanças legislativas e uma consequente atuação do
judiciário.
Consoante apresenta Santos (2013, p. 95), somente é possível o questionamento
do esquema econômico, tal qual o adotado no Brasil e consequentemente no Maranhão, pelo
questionamento por meio de movimentos e organizações sociais. Para o autor, estes expõem
“o lado destrutivo deste modelo sistematicamente ocultado, dramatizar[am] a sua
negatividade e forç[am] a entrada desta denúncia na agenda política”.
Seguindo, situação que se relaciona com o derrame territorial diz respeito ao
cenário de conflitos fundiários. Isto repercute na atuação administrativa de órgãos como o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), bem como do Instituto de
Terras do Maranhão (ITERMA). Ademais, o judiciário e outras instituições do sistema de
justiça envolvem-se, principalmente no que diz respeito ao ajuizamento de ações possessórias.
A atuação administrativa, com órgãos fundiárias, não se distancia do apresentado
por Santos (2013, p. 99), para quem o agronegócio repercute na “grilagem de terras dos povos
tradicionais e das áreas da reforma agrária”. Isto pode ser observado, por exemplo, na lentidão
e baixos números quanto à titulação de terras na microrregião do Baixo Parnaíba maranhense.
Carneiro (2008, p. 96-97) destaca que a atuação do INCRA e do ITERMA é tímido na
16

microrregião homogênea de Chapadinha (Buriti, Brejo, Anapurus e Chapadinha), que faz


parte do Baixo Parnaíba maranhense. Atenta ao pequeno número de terras tituladas, às poucas
famílias beneficiárias e às diminutas áreas desapropriadas para fins de reforma agrária. Em
dado específico, na região destaca a inexistência de titulação de comunidades remanescentes
de quilombo.
Quanto às comunidades quilombolas, conforme Comissão Pró-Índio de São
Paulo, com dados até o ano de 2014, inexiste titulação de comunidades quilombolas em todo
Baixo Parnaíba maranhense (CPISP, s.d.). Tais instabilidades quanto à garantia da terra e do
território resultam na agudização dos conflitos possessórios, cujas resistências das
comunidades encontram como palco o judiciário e outras instituições do sistema de justiça.
No que diz respeito aos conflitos possessórios, conforme expõe Santos (2011, p.
101), no âmbito da revolução democrática da justiça é necessário um outro relacionamento
com os movimentos sociais. Suas queixas refletem a insensibilidade quanto a seus problemas
e direitos. Atenta-se à acusação por tais movimentos de uma parcialidade do judiciário,
observada quando da concessão de liminares de reintegração de posse aos proprietários rurais.
Não obstante, existem decisões que requerem justificação de posse e, por algumas vezes,
nega-se o pedido de liminar por descumprimento da função social da propriedade.
Como visto, o agronegócio é marcado por ser ambiental, social e culturalmente
prejudicial para as comunidades locais. Não obstante, encontram tutela jurídica por meio de
instrumentos processuais, como é o caso das ações possessórias. Bruzaca e Vieira (2017, p.
195-196) destacam o cenário de conflitos possessórios na região, dando ênfase à situação do
município de Brejo, no qual se encontram comunidades quilombolas como Depósito, Saco
das Almas e São Bento. Detalham o processo que envolve esta última, apresentando-se as
dissonâncias existentes no uso da via processual possessória para compreender a particular
relação que as comunidades quilombolas possuem com a terra.
O uso da propriedade, como atenta Costa Neto (2003, p. 53), deve estar atrelado a
uma finalidade de cunho social. Esta função social se materializa quando proporcionada uma
existência digna. Significa, em outras palavras, atrelar o exercício da propriedade a outros
valores, alheios ao proprietário, como: construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades. Entretanto, o que se observa é a
existência de instrumentos do processo civil que asseguram a continuidade do exercício do
domínio sobre a propriedade, mesmo que não cumpram com a sua função social – e
ambiental.
17

Nas situações de conflitos possessórios envolvendo o agronegócio, como os acima


mencionados, aspectos como a relação com o ambiente empreendida pelas comunidades ou
até mesmo a função socioambiental da propriedade não são considerados. Neste sentido,
segue uma concepção estritamente civilista, distanciando-se de uma leitura constitucional e
ambiental nos conflitos envolvendo o agronegócio. A este respeito, Wolkmer (2001, p. 107)
apresenta que os conflitos internalizados por sujeitos sociais são analisados tendo em vista a
legislação convencional, cuja decisão se dá de forma inadequada, gerando um agravamento
maior do conflito.
Por outro lado, são os novos agentes que se marcam pela potencialidade na
produção jurídica, com a captação do fenômeno jurídico por meio da informalidade das ações
de atores coletivos, consensualizados pelo interesse do todo comunitário, independente dos
rituais formais e institucionais (WOLKMER, 2001, p. 119). Como destacado, as comunidades
inseridas no contexto de conflitos provocados pelo monocultivo promovem resistências por
meio de mudanças legislativas, de pressões sobre os órgãos fundiários ou de resistências ao
direito aplicado pelo judiciário.
Com isso, entende-se que as resistências das comunidades tradicionais associam-
se com uma luta de pela soberania cultural e epistemológica que, para Marchi (2016, p. 53-
54) referencia uma re-apropriação de sentidos e símbolos, bem como uma re-apropriação da
terra e dos recursos em conformidade com a cosmovisão e o estilo de vida das comunidades,
tratando-se de uma contra-força à narrativa dominante.
O agronegócio tem avançado agressivamente no território nacional e maranhense,
trazendo uma diversidade de externalidades à sociedade e ao meio ambiente, amparados por
políticas estatais e pelo corpo jurídico-institucional existente. Entretanto, existem resistências,
como destacado, que buscam formas alternativas de produção àquela imposta pelo modelo de
desenvolvimento adotado. Ali se inserem grupos formados por camponeses e quilombolas,
por exemplo, que resistindo às situações de violência e apropriação de seu território articulam
outras formas de ser, de viver e de fazer, alinhada às necessidades ambientais e sociais locais.

Considerações finais

O presente artigo trouxe um panorama a respeito do avanço do agronegócio no


território brasileiro e seus consequentes impactos, como os provocados ao ambiente pelo uso
de técnicas, a exemplo dos agrotóxicos, e as implicações sobre os direitos. Especificamente,
em relação ao Maranhão e ao Baixo Parnaíba Maranhense, pode-se observar que se mantém a
18

política neodesenvolvimentista nacional e, consequentemente, um cenário social e ambiental


marcado por conflitos, como os envolvendo comunidades tradicionais.
Consolida-se o modelo de desenvolvimento que, assentado na divisão
internacional do trabalho, impõe ao Brasil a condição de produtor de bens primários para
exportação, guardando relações com aquele existente na década de 1960. Sob o nome de
neodesenvolvimentismo ou novo desenvolvimentismo, tem no agronegócio uma das
principais atividades, sustentada pela atuação do Estado.
Com isso, observa-se o aprofundamento das monoculturas no espaço maranhense,
assim como no Baixo Parnaíba maranhense, também com cumplicidades estatais, sejam elas
administrativas ou jurídicas. Considerada atividade importante para a economia nacional,
estadual e microrregional, justificam-se os impactos causados pelo agronegócio ao ambiente,
à sociedade e aos direitos.
Não obstante, frente a tais avanços percebem-se resistências, guiadas por outra
forma de ser, viver e criar, como a de comunidades tradicionais, a exemplo de camponeses e
quilombolas. No Baixo Parnaíba maranhense isto é possível de se observar com as
reivindicações das comunidades de São Benedito do Rio Preto e nas resistências das
comunidades quilombolas de Brejo.
Deste modo, a atuação das comunidades tradicionais repercute na contraposição
ao dominante esquema de desenvolvimento existente na localidade, que refletem outras
formas de organização econômica, de relação com a terra e com o ambiente. Disto,
possibilita-se questionar a primazia daquele modelo na sociedade e no espaço jurídico,
buscando caminhos para a efetivação de direitos.

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ESTADO, DIREITO E ANÁLISE MATERIALISTA DO RACISMO

Introdução

Não são poucos os trabalhos no campo do direito e da política que se


propõem a analisar o racismo. Em geral, estes trabalhos, a partir de uma perspectiva
liberal, vêem no racismo um problema moral ou cultural que deve ser enfrentado pela
“educação” ou por meios jurídicos, que variam do direito penal às políticas de ação
afirmativa.

A perspectiva liberal tem se mostrado insuficiente para a compreensão do


racismo enquanto prática social concreta que, para além dos aspectos morais e culturais,
manifesta-se nos planos da economia e da política. O racismo estrutura relações de
poder, de tal sorte que sua inteligibilidade histórica passa por uma investigação sobre os
liames existentes entre a discriminação racial e a reprodução da vida social.

Mas é na tradição marxista que podem ser encontrados elementos


cruciais para formulação de uma análise materialista do racismo. Já nas obras de Marx
e Engels, assim como na dos primeiros teóricos marxistas - Lênin, Kautsky, Rosa
Luxemburgo e Bauer - estão os primeiros passos para uma investigação acerca da
conexão entre nacionalismo, racismo e exploração capitalista1.

As transformações sociais ocorridas ao longo do século XX, e que


repercutem no início do século XXI, exigiram um reposicionamento teórico do
marxismo e, por consequência, o aprofundamento das análises sobre o racismo. Temas
como a subjetividade, a ideologia, o Estado capitalista e as crises, o neocolonialismo e
o papel das minorias na luta de classes tiveram forte impacto sobre o marxismo, que foi
atravessado ou confrontado com teorias como a psicanálise, a fenomenologia, o
estruturalismo e o pós-estruturalismo.

1
Para um bom itinerário do tratamento da questão racial pelo marxismo “clássico”, ver o artigo de Pedro
Caldas Chadarevian “Os precursores da interpretação marxista do problema racial”. Crítica Marxista. São
Paulo: Revan, v.1, n.24, 2007, p.73-92. Ver também os textos de Augusto Buonicore sobre a internacional
comunista e a questão racial em:
http://grabois.org.br/portal/revista.php?id_sessao=21&id_publicacao=5724. Acessado em junho de 2015.
No século XX pode-se observar o surgimento de pensadores que trataram
do racismo partindo da análise de experiências históricas distintas e de múltiplas
interpretações e apropriações dos conceitos presentes na obra de Marx. Muitos destes
estudiosos da conexão entre racismo e capitalismo estiveram diretamente envolvidos
nas lutas sociais em seus respectivos países2.

Se é pretensão do materialismo histórico dar conta da realidade concreta,


tendo como ponto de partida relações sociais igualmente concretas, o racismo é um
fenômeno que não pode ser desprezado. Longe de se reduzir a um dado meramente
psicológico, o racismo é, antes de tudo, uma relação social3.

A compreensão das estruturas do capitalismo exige uma investigação


sobre o racismo enquanto práxis que se reproduz segundo uma lógica específica, de
modo que não se trata única e tão somente de estabelecer vínculos circunstanciais e
empíricos entre o racismo e a exploração de classe. A operação, muito mais complexa, é
composta por dois grandes desafios: 1) entender a forma social do racismo ou, em
outros termos, como o racismo se objetiva e se reproduz em relações relativamente
determinadas pela sociabilidade capitalista; 2) entender se o vínculo entre o processo de
valorização do valor e as práticas racistas é estrutural ou simplesmente circunstancial.

A divisão de classes, a divisão de grupos no interior das classes, o


processo de individualização e os antagonismos sociais que caracterizam as
contradições que formam a sociabilidade capitalista, têm o racismo como veículo
importantíssimo. Logo, o racismo não deve ser tratado como uma questão lateral, que
pode ser dissolvida na concepção de classes, até porque uma noção de “classe” que
desconsidera o modo com que esta mesma “classe” se expressa enquanto relação social
objetiva torna o conceito uma abstração vazia de conteúdo histórico. As classes quando

2
Alguns exemplos da abordagem do racismo que de alguma forma beberam da teoria marxista: Nos EUA,
Oliver C. Cox e os membros do Partido dos Panteras Negras, Angela Davis e Stokely Carmichael; no
continente africano e no contexto da resistência anticolonial, Amílcar Cabral, Kwane Nkrumah e Frantz
Fanon; sobre a realidade da escravidão e do racismo na perspectiva caribenha, Walter Rodney, CRL
James e Eric Williams desenvolveram reflexões de relevo; no Brasil, destaca-se a importância de
Florestan Fernandes, Jacob Gorender, Octávio Ianni e Clóvis Moura, este último o mais destacado
pensador negro do marxismo brasileiro. Estes são apenas alguns exemplos e o modo com que estes
pensadores se apropriaram do marxismo permanece objeto de inúmeras polêmicas. Ao final deste texto,
serão mencionadas algumas obras dos autores mencionados.
3
Como enfatiza Etienne Balibar “o racismo é uma relação social e não um simples delírio de sujeitos
racistas”. BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and Nation: ambiguous identity.
Londres, Reino Unido: Verso, 2010, p. 41.
materialmente consideradas também são compostas de mulheres, pessoas negras,
indígenas, gays, imigrantes, pessoas com deficiência, que não podem ser definidas tão
somente pelo fato de não serem proprietários dos meios de produção. São estes os
indivíduos concretos que compõem as classes à medida que se constituem
concomitantemente como “classe” e como “minoria” nas condições estruturais do
capitalismo. Para entender as classes em seu sentido material, portanto, é preciso,
antes de tudo, dirigir o olhar para a situação real das minorias. A situação das
mulheres negras exemplifica isso: percebem os mais baixos salários, são empurradas
para os “trabalhos improdutivos” (aqueles que não produzem mais-valia, mas que são
essenciais, a exemplo das babás e empregadas domésticas, em geral negras que, vestidas
de branco, criam os herdeiros do capital), são diariamente vítimas de assédio moral, da
violência doméstica e do abandono; recebem o pior tratamento nos sistemas
“universais” de saúde e suportam, proporcionalmente, a mais pesada tributação. A
descrição e o enquadramento estrutural desta situação revelam o movimento real da
divisão de “classes” e dos mecanismos institucionais de exploração no capitalismo.

Portanto, tratar o racismo como reflexo mecânico da luta de classe, sem


que mediações históricas sejam estabelecidas e sem a devida compreensão da lógica que
governa a sociabilidade capitalista, é recair no economicismo que tanto prejudica o
entendimento da sociedade pelos próprios marxistas.

Se a intelecção do racismo está no desvelamento dos mecanismos de


poder estatal e no ferramental técnico e ideológico do direito, o contrário também pode
ser dito: compreender o direito e o Estado em suas relações mais íntimas com o
capitalismo faz da análise do racismo uma exigência teórica primordial.

O Estado e o direito, temas essenciais para um mergulho nas estruturas


mais complexas e profundas da reprodução do capital, não podem ser estudados como
relações materiais historicamente engendradas se o racismo não for elevado à
categoria de elemento analítico essencial. Este é mais um dos motivos da insuficiência
das teorias liberais4 - idealistas ou positivistas - do Estado e do direito: elas ignoram as

4
Nesse sentido, Charles Mills considera que a teoria do contrato social fornece as bases ideológicas para
o racismo e a exclusão de negros e negras (MILLS, Charles. The Racial Contract. NY, EUA: Cornell
University Press, 1999). Também sobre a relação racismo e liberalismo ver LOSSURDO, Domenico. A
contra-história do liberalismo. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006.
relações sociais concretas e, por isso, ou não levam em conta o racismo ou tratam o
problema racial como uma anomalia dentro de uma estrutura imaginária que funciona
perfeitamente. Daí não é de se estranhar que boa parte destas teorias do Estado e do
direito que, além de não darem conta nem do Estado nem do direito, quando
reconhecem o problema racial, identificam na educação, no direito penal e nas políticas
públicas a solução para o racismo5. Teorias idealistas e positivistas do Estado e do
direito podem ignorar o racismo e outras formas de discriminação e violência
justamente porque o valor destas teorias está no fato de ignorarem a realidade.

Nas próximas páginas aproximaremos as teorias materialistas do Estado e


do direito de uma construção do racismo enquanto prática material que denominaremos
de análise materialista do racismo. Se o estudo do racismo exige a compreensão das
artimanhas da reprodução do capital e da lógica do valor, uma abordagem materialista
do direito e do Estado tem como pressuposto uma análise materialista do racismo (o que
certamente se estende a outras formas de discriminação, como as que envolvem a
questão de gênero e de sexualidade).

Estado e capitalismo

O Estado é a expressão das condições estruturais da sociedade capitalista


que se assenta na separação dos trabalhadores e trabalhadoras dos meios de produção,
na produção privada, no trabalho assalariado e na troca mercantil. A política não se
expressa como a dominação direta de uma classe sobre a outra, mas como o aparato de
mediação entre indivíduos livres, iguais e proprietários. Assim, a forma-Estado é o
modo com que as relações políticas derivam das condições de sociabilidade próprias do
capitalismo6.

5
Da mesma maneira, nota-se que as teorias idealistas ou positivistas do Estado e do direito que admitem
o problema racial o façam em linha com o culturalismo, que em geral redunda no tratamento do racismo
na chave dos direitos humanos.
6
“No balanço de sua especificidade histórica, depreende-se que o nexo entre capitalismo e Estado é
estrutural. A generalização das relações sociais constituídas mediante forma-mercadoria demanda uma
forma política apartada dos próprios portadores e trocadores de tais mercadorias – a principal delas, a
força de trabalho mediante salariado. O Estado se consolida como o ente terceiro, garante e necessário da
dinâmica do capitalismo. Em face dos indivíduos e suas interações, que passam a identificar a „vida
Ainda que tenham as sociedades pré-capitalistas se constituído por
múltiplas formas de dominação e de exercício difuso do poder político, as
características da ordem capitalista são bastante específicas. É apenas com o
desenvolvimento do capitalismo que a política assume a forma de um aparato exterior,
relativamente autônomo e centralizado, separado do conjunto das relações sociais, em
especial das relações econômicas. No capitalismo, a organização política da sociedade
não será exercida diretamente pelos grandes proprietários ou pelos membros de uma
classe, mas pelo Estado.

Numa sociabilidade constituída pela relação entre indivíduos


formalmente livres e iguais, em que a força de trabalho é também uma mercadoria, a
manutenção da ordem e a “internalização das múltiplas contradições”, seja pela coação
física, seja por meio da produção de discursos ideológicos justificadores da dominação,
será papel do Estado. Desse modo, como destaca David Harvey, a acumulação
capitalista depende do Estado para a reprodução das condições de sociabilidade:

O Estado se torna a instituição central por meio da qual os conflitos


inter-regionais são elaborados, e a base a partir da qual cada aliança
regional busca o seu “ajuste espacial”.

O Estado, em resumo, é protagonista em quase todos os aspectos da


reprodução do capital. Além disso, quando o governo intervém para
estabilizar a acumulação em face de múltiplas contradições, isso só
acontece à custa da internalização dessas contradições7.

A forma com que os indivíduos atuam na sociedade, seu reconhecimento


enquanto integrantes de determinados grupos e classes bem como a constituição de suas
identidades relacionam-se às estruturas que regem a sociabilidade capitalista.

privada‟, o Estado se inscreve com distinto: „público‟”. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma
política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 57.
7
HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 564.
Estado, nacionalismo e ideologia

Um dos pressupostos da análise marxista da sociedade é que os


fenômenos sociais não podem ser reduzidos a um único aspecto da realidade. É preciso
encontrar a relação dos fenômenos sociais com a totalidade das práticas materiais. Deste
modo, ainda que as relações econômicas determinem as demais relações sociais, essa
influência é relativa, ou seja, as formas sociais não são um desdobramento automático e
reflexivo da economia. Todas as instâncias da vida social mantêm uma relativa
autonomia, como é o caso da política, em que o Estado, apesar de sua relação estrutural
com o capitalismo, não tem o seu funcionamento absolutamente alinhado com o
processo econômico.

Não por acaso a referência aos Estados modernos é acompanhada do


adjetivo “nacional” 8. A ideologia nacionalista é central para a construção de um
discurso em torno da “unidade do Estado” a partir de um imaginário que remonte a uma
“origem” ou “identidade” comuns.

O nacionalismo preenche as enormes fissuras da sociedade capitalista,


afastando a percepção acerca dos conflitos de classe, de grupos e, em particular, da
violência sistemática do processo produtivo. Mas, isso não significa que o nacionalismo
– e seu derivado, o racismo – tenha sido concebido com a função de acobertar a
exploração de classe. Essa explicação funcionalista, ainda que parcialmente correta,
seria bastante frágil diante de contextos em que a democracia racial ou o advento de
sociedades pós-raciais são afirmados; ou, ainda, em situações em que conflitos de
classe, entre etnias ou grupos religiosos estão abertamente deflagrados. A questão aqui,
portanto, é também estabelecer a relação estrutural e histórica, e não meramente a
funcional ou lógica, entre a sociabilidade capitalista e a reprodução da ideologia racista.

O desenvolvimento do capitalismo apoiou-se no Estado como aparato de


violência institucionalizada e como sustentáculo da ideologia nacionalista como fator de
integração. Mas por que o capitalismo necessita de um fator de integração? E como é

8
Sobre a construção do nacionalismo ver HOBSBAWN, Eric. Nações a nacionalismo desde 1780:
programa, mito e realidade. São Paulo: Paz e terra, 2013.
possível falar de integração numa sociedade que, como aqui mesmo já se afirmou, é
estruturalmente cindida?

Uma sociedade é definida pela sua capacidade de reproduzir-se ou, dito


de outra maneira, de manter-se estável ainda que portadora de contradições, no que
dependerá do aparecimento de instituições cujo papel será manter a integração social.
No caso do capitalismo, tem-se uma sociedade cujo funcionamento gira em torno do
trabalho abstrato e em que a lógica de mercado fornece o modelo de sociabilidade. Se a
continuidade do capitalismo depende da reprodução destas condições de funcionamento,
é aí que entra o Estado como a principal instituição do capitalismo.

No capitalismo as relações políticas tomam a forma de um Estado


impessoal e exterior à vida social que, paradoxalmente, estabiliza a sociedade mantendo
o processo de individualização e a separação de classe que caracterizam o capitalismo,
mas que, ao mesmo tempo, atua para impedir que os antagonismos e os conflitos
destruam a vida social. Por isso, o controle estatal da sociedade dar-se-á por meio do
estabelecimento de critérios de classificação dos indivíduos de modo que as identidades
subjetivas estão diretamente relacionadas ao processo de reprodução social. Pela ação
do Estado e pela conformação normativa operada pelo direito, os indivíduos serão
sujeitos de direito, cidadãos, eleitores, empregados etc.

Mas mesmo a produção e a extração da mais-valia, processos que dão


especificidade ao capitalismo, não são estritamente econômicos, e dependem de uma
série de condições extra-econômicas para se reproduzir. A integração dos indivíduos ao
capitalismo é um processo histórico que envolve uma dinâmica de criação, de
readaptação e de dissolução de valores, tradições e costumes. Por conseguinte, a
exploração e a opressão que marcam a reprodução social se normalizam a partir de um
imaginário derivado das formas sociais.

Esse imaginário forjado pelas práticas sociais concretas, quando elevado


ao plano da consciência dos indivíduos é denominado de ideologia9. Porém, o

9
Sobre o conceito de ideologia ver ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os
aparelhos ideológicos de estado (AIE). Rio de Janeiro: Graal, 1983. A dissertação de mestrado de Pedro
Eduardo Zini Davoglio “Anti-humanismo teórico e ideologia jurídica em Althusser” merece ser
consultada pelos excelentes esclarecimentos que fornece sobre a teoria da ideologia de Althusser.
(DAVOGLIO, Pedro Eduardo Zini. Anti-humanismo teórico e ideologia jurídica em Althusser. São
Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie. Dissertação de mestrado. 2014)
imaginário socialmente construído não molda a estrutura psíquica dos indivíduos de
forma automática, voluntária ou pelo mero contato com as ideais. A ideologia forma as
subjetividades através de uma prática material que interpela o indivíduo e o transforma
em sujeito para além da sua vontade e consciência. É na escola, na família e nos
ambiente de trabalho, ou seja, no interior de determinados aparelhos sustentados pelo
Estado, que a ideologia dará forma (expressão nas relações sociais) às subjetividades10.

Em termos históricos, seja em sua versão francesa e inglesa -


“universalista” e iluminista - seja em sua versão alemã - que a enfatiza a Kultur como
busca de uma identidade própria e particularizada – a ideologia nacionalista europeia11
materializou-se historicamente em processos violentos de subjugação de comunidades e
grupos humanos, sob a justificativa de que não se organizavam a partir dos valores
extraídos da “razão natural” ou do “espírito do povo”.

O nacionalismo é o solo sobre o qual indivíduos e grupos humanos


renascem como parte de um mesmo povo, no interior de um território e sob o domínio
da soberania. Haverá a destruição, a dissolução e a incorporação de tradições, costumes
e culturas regionais e particulares que, eventualmente, entrem em choque com o Estado-
nação. Daí ser possível concluir que a nacionalidade - que se manifesta como “orgulho
nacional”, “pátria”, “espírito do povo” - é resultado de práticas de poder e de dominação
convertidas em discursos de normalização da divisão social e da violência praticada
diretamente pelo Estado ou por determinados grupos sociais que agem com o
beneplácito estatal.

A questão da delimitação territorial e da construção da nacionalidade


merece particular atenção devido às implicações sobre o tema aqui tratado. Como muito
bem destaca Joachim Hirsch12, o controle da população pelo Estado, o que engloba o
processo de formação das subjetividades adaptadas ao capitalismo, depende de um
10
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de estado
(AIE). Rio de Janeiro: Graal, 1983.
11
Sobre Civilização e Kultur, diz Norbert Elias: “[...] Civilização descreve um processo ou, pelo menos,
seu resultado. Diz respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se incessantemente „para a
frente‟. O conceito alemão de Kultur, no emprego corrente, implica uma relação diferente, com
movimento. Reporta-se a produtos humanos que são semelhantes a „flores do campo‟, a obras de arte,
livros, sistemas religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de um povo. O conceito
de Kultur delimita.” ELIAS, Norbert. O processo civilizador (vol. 1). Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 24.
12
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processo de transformação do sistema capitalista de
Estados. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 81-84
planejamento territorial que permita o controle e a vigilância da população. O controle
da natalidade, a definição dos critérios de entrada e permanência no território consoante
elementos de nacionalidade determinados pelo direito, a criação de guetos ou de
reservas para certos grupos sociais (também definidos, direta ou indiretamente, segundo
padrões étnicos, culturais ou religiosos), o estabelecimento de condições jurídicas para o
reconhecimento de territórios ou de propriedades coletivas segundo a identidade de
grupo (quilombolas, indígenas etc.) demonstram a sobejo como a nacionalidade e a
dominação capitalista se apóiam em uma construção espaço-identitária que pode ser
vista na classificação racial, étnica, religiosa e sexual de indivíduos como estratégia de
poder13.

Entretanto, há que se apontar para o fato de que a nacionalidade


colonizadora produziu, dialeticamente, uma nacionalidade de resistência que afirma a
identidade e a soberania dos povos dominados. Esse tipo de apropriação do discurso
nacionalista esteve na base das lutas pela independência das colônias14, convertendo-se,
muitas vezes, em poderoso combustível para a luta anticapitalista nos países periféricos.
Nas desventuras deste conceito cheio de ambiguidades o que se vê é que o sentido
histórico da nacionalidade se define no interior das contradições do capitalismo.

O resultado mais bem acabado do nacionalismo é o racismo, tão


importante para ajustar a reprodução do capitalismo às diferentes etapas e contextos
sócio-históricos.

Racismo e ideologia

13
Idem, Ibidem, p. 81 e 82.

14 Sobre o nacionalismo, racismo e a luta política anticolonial são exemplares os ensaios do autor
peruano José Carlos Mariátegui. MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la
realidad peruana (1923), Lima Empresa Editorial Amauta, 1995.
Mas como poderíamos entender o racismo para além de circunstâncias
particulares ou casos específicos? O racismo é construído a partir do imaginário social
de inferioridade, seja intelectual ou moral, de uma raça em face de outra raça (sendo
que a “raça” dominadora não aparecerá como “raça”, mas como “seres humanos” ou
apenas pessoas “normais”). O racismo, portanto, não é um ato isolado de preconceito ou
um “mal entendido”; o racismo é um processo social de assujeitamento, em que as
práticas, o discurso e a consciência dos racistas e das vítimas do racismo são produzidos
e reproduzidos socialmente15. Esse processo, que implica na violência sistemática e na
superexploração de indivíduos que pertençam a determinados grupos racialmente
identificados, só se reproduz quando é sustentado pelo poder estatal, seja por ações
institucionais diretas (apartheid, por exemplo), seja pela omissão sistemática diante da
desigualdade material e à insegurança existencial que se abatem sobre as minorias.

Consequentemente, o racismo está inscrito nas estruturas sociais e no


modo de funcionamento da política e da economia. Ao contrário do que se poderia
pensar, o racismo, que só se reproduz com base no poder político, é quem forma os
“sujeitos racistas” ou identificados como pertencentes a uma determinada “raça”. O
racismo é uma ideologia que se manifesta nos sujeitos formados pelo racismo, mas que
não tem origem no sujeito. Dessa forma, o racismo não se define unicamente pelos atos
de preconceito, mas também como indiferença que “normaliza” a desigualdade racial.

Como é próprio da ideologia, o racismo se movimenta no inconsciente,


podendo a partir daí moldar as práticas materiais que dão unidade e justificação às
contradições e antagonismos sociais. Ao racismo se aplica o raciocínio que Roswitha
Scholz reserva à análise da dominação masculina: é uma dominação sem sujeito, em
que:

os depositários do domínio não são sujeitos autoconscientes, mas


agem no interior de uma moldura de sociabilidade dotada de
constituição historicamente inconsciente. O valor sem sujeito remete
ao homem sem sujeito, que na qualidade de dominador, de iniciador e

15
“Em certo sentido, a reprodução das relações é anterior ao sujeito que se forma no curso no curso
destas mesmas relações. Todavia, a rigor, não podem ser concebidos independentemente uns dos outros.
[...] A reprodução das relações sociais, a reprodução das habilidades, supõe a reprodução da submissão.
Porém, a reprodução do trabalho não é fundamental aqui: a reprodução fundamental é uma reprodução
própria do sujeito e tem lugar na relação com a linguagem e a formação da consciência” BUTLER,
Judith. Mecanismos psíquicos del poder: teorias sobre la sujécion. Madrid, Espanha: Cátedra, 2001.
realizador, colocou em movimento instituições culturais e políticas
capazes de cunhar a história, que começaram a ter vida autônoma,
inclusive com relação a ele16.

Todavia, é preciso cautela: dizer que o racismo é um processo sem


sujeito significa dizer que “penetração” e “renovação” do racismo a cada geração
depende, essencialmente, de condições estruturais e institucionais para que práticas
discriminatórias possam “atingir” a formação dos afetos e da consciência dos
indivíduos. Ou seja, os sujeitos racistas são o resultado mais bem acabado destas
condições estruturais e institucionais e não o contrário. Ainda que o racismo não
dependa única e exclusivamente da consciência, ele não é tecido apenas por
irracionalidades, misticismos ou pela religião. O racismo também vaza dos discursos
“racionais” e das “teorias científicas”. O nazismo, o apartheid sul-africano (que possui
elementos nazistas e colonialistas em suas explicações e em seu modo de
funcionamento) e a democracia racial à brasileira, ainda que compostos por doses
expressivas de irracionalismo, completam-se com elementos de “racionalização” que
elevam ao plano científico práticas racistas já bem instaladas no cotidiano.

De fato, não há racismo sem teoria (s). Seria completamente inútil perguntar-se
se as teorias racistas procedem das elites ou de as massas, das classes
dominantes ou das classes dominadas. Pelo contrario, é evidente que estão
"racionalizadas" pelos intelectuais. É sumamente importante perguntar-se sobre
a função que desempenham as teorizações do racismo culto (cujo protótipo é a
antropologia evolucionista das raças “biológicas” elaborada no final do século
XIX) na cristalização da comunidade que se cria ao redor do significante da
raça17.

Por certo o racismo, entendido de modo genérico e impreciso como


discriminação de indivíduos pertencentes a grupos sociais, não é algo exclusivo do
capitalismo. Porém, dar ao racismo um caráter eterno e universal apenas encobre o fato
de que se faz referência a algo específico, integrado às práticas sociais deste tempo

16
SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem”. Revistas Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, n. 45, julho
de 1996, p. 15-36.
17
BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and Nation: ambiguous identity.
Londres, Reino Unido: Verso, 2010, p. 32.
histórico e que se define segundo a lógica do capitalismo. A respeito da relação entre a
reprodução das discriminações e o capitalismo, a lição de Alysson Leandro Mascaro:

No que tange à raça, a ação estatal apenas parece se plantar em dados de origem
biológica. Ocorre que toda narrativa de raça é uma reconstrução político-social
em torno do sangue ou da pele. De algum modo, revela, inclusive um padrão de
preconceito que vai imanente com as noções de respeito e admiração ao capital.
[...].

A sorte das minorias, nas sociedades capitalistas, deve ser tida não apenas como
replique, no mundo atual, das velhas operações de preconceito e identidade,
mas como política estatal deliberada de instituição de relações estruturais e
funcionais na dinâmica do capital. Por isso o capitalismo é machista,
homofóbico, racista e discriminador de deficientes e dos indesejáveis18.

Distinções de gênero e de raça são construções sócio-ideológicas que


apenas ganham relevância pelas conseqüências sociais que engendram. Aspectos
biológicos ou culturais só se transformam em raça ou gênero quando aproveitados em
processos de dominação e sujeição. Por isso são tão importantes os recentes estudos
sobre a branquidade ou branquitude19, cuja virtude é revelar que o “branco” é também
o resultado de uma construção social que materialmente se expressa na dominação
exercida por indivíduos considerados brancos. Sob o ângulo das relações capitalistas, a
branquidade também pode ser entendida como a interiorização do “fetiche do capital”,
uma vez que gera a admiração e a valorização das características físicas e dos padrões
de “beleza” dos povos eurocêntricos, ou seja, dos povos dos países do capitalismo
central20. E o que é ser “branco” e normal e “não branco” e “diferente” irá variar
conforme a constituição histórica dos nacionalismos, as especificidades de cada
formação social capitalista e as estratégias do discurso racista a fim de ostentar um
caráter universalista.

Acerca do vínculo entre universalismo e racismo, Imannuel Wallerstein


conclui que o racismo se instaura como um ponto de equilíbrio entre o discurso

18
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 67.
19
Sobre o conceito ver VRON WARE (org.) Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de
Janeiro: Garamond, 2004; SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo:
branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2015.
20
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 67.
ideológico do universalismo – expressão da “universalidade” da troca mercantil -, e a
meritocracia, cujo sentido maior é naturalizar particularismos e privilégios por meio de
um discurso racional acerca da “competência” e da “capacidade pessoal” de certos
indivíduos21. Segundo Wallerstein, a meritocracia seria incapaz de sustentar-se como
discurso que penetra a subjetividade de dominadores e dominados sem que o racismo,
antes de qualquer justificação “racional” e “humanista”, pavimentasse no inconsciente a
inferioridade das minorias, fundamentada em questões de ordem natural ou biológica ou
na “falta de mérito”. Por conta da meritocracia e da “incapacidade natural das
minorias”, a desigualdade na distribuição dos bens socialmente produzidos seria uma
medida justa.

A meritocracia é um discurso racista e legitimador de privilégios que,


caso a igualdade não se realizasse única e tão somente como igualdade jurídica, no
momento da troca mercantil, seria socialmente inaceitável. E como todo racismo se
mantém institucionalmente é essencial que existam mecanismos institucionais
meritocráticos, como são exemplos os processos seletivos das universidades e os
concursos públicos. Por este motivo é que as universidades e certos cargos e funções
públicas tenham filtros tão estreitos: dada a estrutura social e a desigualdade
educacional que, em geral, atende a padrões raciais e de gênero, aqueles que ocupam
vagas em determinadas universidades ou acessam cargos públicos de prestígio
reafirmam o imaginário de que mérito (e o poder, portanto) é mais bem exercido por -
ou pertence naturalmente - a pessoas brancas, heterossexuais e do sexo masculino22. Por
outro lado, o sistema penal complementa a institucionalização do sistema
meritocrático, estabelece o controle carcerário da pobreza e estigmatizando jovens
negros, cuja inserção em esquemas de trabalho altamente precarizados e até mesmo a
eliminação física serão vistos com “normalidade” por parte significativa da sociedade.

21
“Por outra parte, a meritocracia seria não apenas economicamente eficaz, mas também um fator de
estabilização política. Na medida em que existem desigualdades na distribuição de recompensas no
capitalismo histórico (assim como nos sistemas anteriores), o ressentimento daqueles que recebem
recompensas modestas com relação aos que recebem as mais importantes seria menos intenso ao justificar
tal desigualdade pelo mérito e não pela tradição. Em outras palavras, se pensar que a maior parte das
pessoas consideraria mais aceitável, moral e politicamente, o privilegio adquirido mediante o mérito que
o adquirido graças à herança.” BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and
Nation: ambiguous identity. Londres, Reino Unido: Verso, 2010, p. 32.
22
Isso explica em parte a resistência de setores da sociedade às políticas de ação afirmativa. O que é mais
curioso é que os argumentos contra as ações afirmativas tenham como base o universalismo, sintetizado
na reafirmação do princípio da isonomia. Daí torna-se simples o próximo passo na defesa da clivagem
racial: a meritocracia que, paradoxalmente, assemelha-se com a defesa da impessoalidade.
Racismo e subsunção real do trabalho ao capital

Poder-se-ia dizer que o racismo normaliza a superexploração do trabalho,


em especial na chamada “periferia”, onde em geral o capitalismo se instalou sob a
lógica colonialista. O racismo, certamente, não é estranho à expansão colonial e à
violência dos processos de acumulação primitiva de capital23 que “liberam” os
elementos constitutivos da sociedade capitalista24.

Entretanto, há três indagações que nos colocam diante de um impasse em


face desta boa explicação funcional do racismo: 1) a existência de racismo e
superexploração nos países desenvolvidos “ou centrais” que se dirige tanto a nacionais
como a imigrantes; 2) o racismo que se manifesta fora das relações de produção, como
na violência policial contra minorias; 3) o fato de que uma mesma formação social
possa abrigar as mais diversas formas e níveis de exploração, podendo, na mesma
formação social, o trabalhador assalariado e com direitos sociais conviver com o
trabalhador que produza em condições análogas à escravidão, inclusive na mesma
cadeia produtiva25.

23
Para uma interessante abordagem do sexismo a partir do conceito de acumulação primitiva ver
FEDERICI, Silvia. Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y acumulación originaria. Madrid, Espanha:
Traficante de Sueños, 2004.
24
[...} “O processo que cria a relação capitalista não poder ser senão o processo de separação entre o
trabalhador e a propriedade das condições da realização de seu trabalho, processo que, por um lado,
transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores
diretos em trabalhadores assalariados. A chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do
que o processo histórico de separação do produtor e meio de produção. Ela aparece como primitiva
porque constitui pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde”. A estrutura
econômica da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução
desta última liberou os elementos daquela”. MARX, Karl. O Capital (vol. I). São Paulo: Boitempo, 2013,
p. 786.
25
O caso dos imigrantes bolivianos e agora, dos haitianos, no Brasil, é emblemático de como a dinâmica
do racismo vai constituindo uma complexa cadeia de hierarquias que se dá à margem da legalidade e que
revela a convivência de diferentes tipologias do racismo. Junta-se na construção da alteridade racista
contra bolivianos e haitianos o racismo interior e já tradicional contra negros e índios e se insere no
discurso a xenofobia. O racismo se alimenta de um imaginário historicamente construído de que negros e
indígenas são racialmente inferiores, caso contrário, não haveria explicação para o modo distinto com que
imigrantes brancos são bem recebidos. Assim, ainda que haja um horror de certa parcela da sociedade
com os horrores e a ilegalidade” do tratamento recebido por haitianos e bolivianos, essa indignação não é
capaz de se traduzir numa ação política efetiva contra essa violência e nem impedir o uso da força de
trabalho destes imigrantes pela indústria capitalista (N.A.).
Talvez a pergunta sobre a relação estrutural entre racismo e reprodução
capitalista possa ganhar profundidade se atentarmos para os conceitos utilizados por
Marx na descrição das fases constitutivas das relações de produção capitalistas:
subsunção formal do trabalho ao capital e subsunção real do trabalho ao capital.

Na subsunção formal, o trabalho, embora já organizado segundo padrões


e objetivos do capitalismo, mantém-se praticamente inalterado em relação à maneira de
produzir nas corporações de ofício ou nas oficinas de artesanato do mundo medieval.

Já a subsunção real26 corresponde à etapa em que a produção está


totalmente sob o controle do capital. Nesta quadra, não há espaços para a intromissão de
elementos que destaquem a pessoalidade ou a individualidade do trabalhador. A
automação do processo produtivo e o avanço tecnológico tornam o trabalho realmente
abstrato, no sentido de que as características e habilidades individuais dos trabalhadores
tornam-se indiferentes à produção capitalista.

Referindo-se à subsunção real, Etienne Balibar chama a atenção para o


fato de que subsunção real do trabalho ao capital

[...] vai muito além da integração do trabalhador ao mundo do contrato


de rendas monetárias, do direito e da política oficial: implica uma
transformação da individualidade humana que se estende desde a
educação da força de trabalho até a formação de uma ideologia
dominante suscetível de ser adotada pelos próprios dominados.27

A suscetibilidade a que se refere Balibar é reveladora de que a subsunção


real designa a instituição de um “ponto de não retorno do processo de acumulação
28
ilimitada e de valorização do valor” . A subsunção real do trabalho ao capital só é

26
“Assim se constitui um modo de produção especificamente capitalista, no qual o controle do processo
de produção pelo capitalista e o seu domínio sobre o operário é completo, isto é, agora ele tem a efetiva
capacidade de dispor dos meios de produção, configurando a subsunção real do trabalho ao capital”.
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras expressões; Dobra, 2014,
p. 44.
27
BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Class and Nation: ambiguous identity.
Londres, Reino Unido: Verso, 2010, p. 04.
28
Idem, Ibidem.
compreensível no nível concreto das relações sociais, em que experiências sociais das
mais diversas fossem integradas à dinâmica do capitalismo29.

É neste ponto que a relação estrutural entre racismo e capitalismo


demonstra uma incrível sutileza, visto que nacionalismo e racismo são práticas
ideológicas que traduzem a “comunidade” e o “universalismo” necessários ao processo
de subsunção real do trabalho a capital, adaptando tradições, dissolvendo ou
institucionalizando costumes, dando sentido e expandindo alteridades, a partir das
especificidades de cada formação social na integração à organização capitalista da
produção.

É a predominância - e não a exclusividade - do trabalho assalariado que


fornece o índice do desenvolvimento das relações capitalistas em uma dada formação
social. Isso significa que as condições estruturais para a plenitude da troca mercantil e o
processo de valorização do valor estão dadas quando se constitui a predominância e -
devemos insistir - não a exclusividade do trabalho assalariado. Nesse passo, há que se
lembrar que a subjetividade jurídica – condição sine qua non para a realização das
trocas - se exterioriza no momento da circulação mercantil, que, por óbvio, é
determinada pela produção. Mas a depender das formações sociais, da conjuntura e das
articulações econômicas no plano interno e internacional, a produção capitalista e a
exploração que lhe é inerente pode se utilizar do trabalho compulsório e de estratégias
violentas de controle da produção. Assim, a existência de escravidão ou formas cruéis
de exploração do trabalho não é algo estranho ao capitalismo, mesmo nos ditos países
desenvolvidos e “civilizados” onde predomina o trabalho assalariado. No capitalismo
dividem espaço e concorrem entre si trabalhadores assalariados bem pagos, mal pagos,
muitíssimo mal pagos, escravizados, grandes empresários, pequenos empresários etc. A
inserção dos indivíduos em cada uma destas condições formatadas pela sociabilidade
capitalista depende de um complexo jogo que mescla uso da força e a reprodução da
ideologia a fim de realizar a domesticação dos corpos30 entregues indistintamente ao
trabalho abstrato. O racismo é um elemento deste jogo: será que parte da sociedade não
verá qualquer anormalidade na maioria das pessoas negras ganharem salários menores,
29
Essa é a chave de leitura de Márcio Bilharinho Naves que relaciona a especificidade do direito à etapa
de subsunção real do trabalho ao capital em “A questão do direito em Marx” (São Paulo: Outras
expressões; Dobra, 2014)
30
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
submeterem-se aos trabalhos mais degradantes, não estarem nas universidades mais
importantes, não ocuparem cargos de direção, residirem nas áreas periféricas nas
cidades e serem com frequência assassinadas pelas forças do Estado.

A institucionalização das diferenças raciais e de gênero garante que o


trabalho seja realmente submetido ao capital, uma vez que o racismo retirará do
trabalhador qualquer relevância enquanto indivíduo. No mundo (racista), o “negro” não
tem condição de reivindicar um “tratamento igualitário” ou exigir que suas “diferenças”
sejam respeitadas; o tratamento dispensado ao trabalhador e até mesmo as suas
“diferenças” não dependem dele ou do que venha a achar de si mesmo. A forma como o
trabalhador será tratado, o que é “justo” ou não e até onde pode ir em suas
reivindicações vai depender única e exclusivamente das determinações da produção
capitalista e da replicação da forma-valor. Assim é que o racismo se conecta à
subsunção real do trabalho ao capital, uma vez que a identidade será definida segundo
os padrões de funcionamento da produção capitalista.

Por esse motivo é que o racismo enquanto “dominação” convive


pacificamente com a subjetividade jurídica, as normas estatais, a impessoalidade da
técnica jurídica e a afirmação universal dos direitos do homem, elementos diretamente
ligados ao processo de abstração do trabalho31.

O racismo e sua especificidade

Rafael Bivar Marquese, ao tratar dos debates historiográficos sobre a


formação da economia brasileira, reafirma a necessidade de que as “relações entre
trabalho assalariado e trabalho escravo sejam vistas não como externas umas às outras,
mas como estrutural e dialeticamente integradas”. E completa Marquese afirmando que

31
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras expressões; Dobra
Editorial, 2014.
“a escravidão deve ser apreendida por meio de sua relação, via mercado mundial, com
32
as outras formas de trabalho que o constituem, sejam assalariadas ou não” .

O que Rafael Bivar Marquese acusa em relação à escravidão serve


também para dar sequência à análise do racismo. Tal como a escravidão, o racismo não
é um fenômeno uniforme e que pode ser entendido de maneira puramente conceitual ou
lógica. A compreensão material do racismo torna imperativo um olhar atento sobre as
circunstâncias específicas da formação social de cada Estado. Por isso é temerário dizer
que todos os nacionalismos sejam iguais e que o racismo se manifeste da mesma forma
em todos os lugares. Em comum, nacionalismos e racismos têm 1) a articulação com as
estratégias de poder e dominação verificadas no interior dos Estados; 2) o vínculo de
“relativa autonomia” com a reprodução capitalista. Por isso, o racismo nazista é distinto
do racismo colonial na tessitura dos discursos de justificação que geram e nas
estratégias de poder de que se utilizam, mas, no bojo destas distinções, essas formas de
racismo se aproximam, na medida em que promovem a integração ideológica de uma
sociabilidade inerentemente fraturada. Por isso, as diferentes formas de nacionalismo e
de racismo só ganham sentido histórico inseridas no contexto da dinâmica do
capitalismo global, das distintas estratégias de acumulação e da organização
institucional específica de cada formação social.

A evidência de que por meio da conjugação nacionalismo/racismo o


capitalismo dá origem a distintas formas de “unidade contraditória” é a maneira como
se constituíram países como EUA, África do Sul e Brasil. Se nos países europeus o
racismo (e a superexploração da força de trabalho) encontra uma relação mais direta
com a condição de imigrante, nos mencionados países, o processo de colonização
imprimiu um sentido diferente ao racismo. No Brasil, EUA e África do Sul, por conta
das particularidades do desenvolvimento capitalista e das especificidades da
colonização em cada um destes países, o racismo não toma como critério principal o
fato de ser nacional ou imigrante, mas o “pertencimento” a um grupo “étnico” ou
“minoria” (ainda que demograficamente maioria), ainda que os membros destes grupos
sejam institucionalmente reconhecidos como nacionais.

32
MARQUESE, Rafael Bivar. As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia
sobre a escravidão brasileira. Revista de História. São Paulo, nº 169, julho / dezembro de 2013 , p. 223-
253.
A “ordem” produzida pelo racismo não afeta apenas a sociedade em suas
relações exteriores (como no caso da colonização), mas atinge, sobretudo, a sua
configuração interna, estipulando padrões hierárquicos, naturalizando formas históricas
de dominação e justificando a intervenção estatal sobre grupos sociais discriminados,
como se pode observar no cotidiano das populações dos países acima mencionados.

Enquanto na África do Sul e nos EUA, que com as devidas distinções,


estruturavam juridicamente a segregação da população negra, mesmo no avançar do
século XX (no caso da África do Sul, até 1994), no Brasil, a ideologia do “racismo
científico”33 foi substituída a partir dos anos 1930 pelo mito da democracia racial,
denotando que o racismo organiza diferentes estratégias de dominação que dependem
de circunstâncias históricas específicas. O surgimento do discurso da democracia racial,
que ainda hoje é tido como um elemento da “identidade” brasileira, coincide com o
início do projeto de adaptação da sociedade ao capitalismo industrial, período este
conhecido como “Estado Novo”.

O Estado brasileiro não é diferente de outros Estados capitalistas em um


aspecto fundamental: o racismo é elemento constituinte da política e da economia sem o
qual não é possível compreender as suas estruturas. Nessa vereda, a ideologia da
democracia racial é um discurso racista e legitimador da violência e da desigualdade
racial diante das especificidades do capitalismo brasileiro.

Portanto, não é o racismo estranho à formação social de qualquer Estado


capitalista, mas um fator estrutural, que organiza as relações políticas e econômicas.
Seja como racismo “interiorizado” (dirigido contra as populações internas) ou
“exteriorizado” (dirigido contra estrangeiros), é possível dizer que países como Brasil,
África do Sul e EUA não são o que são apesar do racismo, mas são o que são graças ao
racismo.

Em suma: todo racismo é estrutural e, ao mesmo tempo, institucional.

33
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo, Companhia da Letras, 2014.
Racismo e crise

A instabilidade própria das sociedades capitalistas provocada pela


dinâmica da individualização, da divisão de classes e da concorrência interfere na forma
com que o racismo se expressa nas relações sociais. A opressão de negros e negras não
conheceu folga no capitalismo, ainda que tenha ocorrido de diversas formas.
Escravidão, apartheid e mesmo a etapa dos direito civis foram diferentes momentos da
mesma sociedade racista.

Lidar com as crises34 do modo de sociabilidade capitalista torna


necessária uma transformação na atuação do Estado sobre a sociedade o que, por
consequência, altera os padrões de clivagem racial. Crise não deve ser compreendida
como violência social, insurgência popular, pobreza ou ilegalidade, pois tais fenômenos
são inerentes ao capitalismo, mesmo em períodos de estabilidade. A disfuncionalidade
que caracteriza a crise do capitalismo diz respeito à incapacidade de um determinado
arranjo social da produção capitalista de manter os níveis de extração da mais-valia e
queda na taxa de lucro. Crise, portanto, refere-se aos mecanismos estruturais de
exploração do trabalho, de circulação mercantil e de concorrência.

Diante da crise e a partir do Estado, serão moldados novos arranjos


institucionais a fim de reorganizar as relações de produção. Esta reordenação social
pode implicar, a depender das circunstâncias, em desemprego, aumento de
produtividade sem aumento de salário e mudança nos padrões de consumo. O Estado
terá um papel fundamental nesse processo, visto que o uso da força repressiva (polícia,
exército, tecnologias de vigilância) e a imposição de uma reorientação ideológica são os
pressupostos de um rearranjo social eficiente para lidar com as crises e seus efeitos.

Historicamente, as mudanças nas relações raciais coincidem com os


períodos de crise do capitalismo e de reformulação nos parâmetros de intervenção
estatal. Por isso, olhar para as relações raciais nos revela muito sobre a relação entre
capitalismo, direito e política.

34
Sobre a crise no capitalismo ver: HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2011.
Após o fim da segunda grande guerra, a formação do Estado de bem estar
social e a “ampliação da cidadania” não significou o fim do racismo. O racismo apenas
passou a estruturar a desigualdade e a sua percepção a partir de outros termos.
Trabalhadores vinculados a sindicatos fortes e à indústria monopolista eram, em geral,
trabalhadores brancos; já no setor concorrencial, de baixos salários e convivendo com a
pobreza estavam os negros35. Por isso que a prosperidade da era de ouro do capitalismo
não impediu que, no centro do capitalismo, surgisse o movimento pelos direitos civis,
reprimido, no mais das vezes, com extrema violência por um Estado que não poderia ser
tolerante com grupos que contestassem o bom funcionamento da “democracia”. O
Estado de bem estar social foi uma mudança nos padrões de intervenção estatal diante
das exigências da acumulação capitalista e que teve como estratégia principal a
integração de parte dos explorados à cidadania. Mas, ao mesmo tempo, o welfare state
não dispensou o uso sistemático da violência contra as minorias.

Todavia, a partir dos anos 70, com a crise do Estado de Bem Estar social
e do modelo fordista de produção, e o predomínio do capital financeiro sobre o capital
industrial, o racismo ganha uma nova configuração. O fim do consumo de massa como
padrão produtivo predominante, o enfraquecimento dos sindicatos, a produção baseada
em alta tecnologia e a supressão dos direitos sociais em nome da austeridade fiscal
tornaram populações inteiras submetidas às mais precárias condições ou simplesmente
abandonadas à própria sorte, anunciando o que muitos consideram o esgotamento do
modelo expansivo do capital. O resultado disso é que os antagonismos se acentuam, as
contradições se agudizam, e o racismo, o sexismo e todas as discriminações sociais
assumem sua face mais cruel nesse contexto de disputa e esfacelamento da sociabilidade
regida pelo trabalho abstrato. Assim, o encarceramento em massa, fome, epidemias ou,
simplesmente, a eliminação física darão o tom da forma do racismo nesse momento da
história36.

35
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2011, p. 133.

36
“Nos anos 1980 se voltou – depois dos 30 anos gloriosos do pós-Guerra, em que o capitalismo pôde se
expandir como nunca fizera em sua história, a ponto de se consolidar como sociedade mundial sem rivais
– ao pêndulo punitivo. Sinais de esgotamento desta onda expansiva são encontrados por todos os lados. O
desemprego estrutural que resulta de mais uma larga transformação das forças produtivas vai tornando o
trabalho escasso e obsoleto. A pobreza absoluta com fome em massa, juntamente com a morte por
epidemias, passam a se repetir com uma mesmice sem trégua. A dissolução desta forma social regida pela
valorização pura do valor voltou à pauta da objetividade em que o mundo se reproduz. Desta vez, as
resistências contra estes sinais não são apenas dos conservadores. A sanha por mais prisões e por se
O encarceramento e o assassinato pelas forças policiais do Estado são
“aceitos” por parte da sociedade justamente pelo fato deste processo atingir
especialmente jovens negros e moradores da periferia, ocasião em que a
compatibilidade da organização espacial e racial da sociedade mostra-se totalmente
compatível com o funcionamento regular do capitalismo.

Por fim, como nos alerta Joachim Hirsch37 a ligação entre capitalismo,
nacionalismo, racismo e sexismo não é simples e funcional. Ao longo da história esta
ligação ganhou os mais diferentes significados, formas e conteúdos, a depender das
lutas sociais e das relações de força travadas nacional e internacionalmente. Mas o que
se pode observar até o momento é que, historicamente, o capitalismo e suas formas
sociais básicas jamais se descolaram do racismo e do sexismo.

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prender todos os que parecem ameaçadores parecem não ter limites. No mundo inteiro, do Estados
Unidos à China, e desta à Europa, passando pelo Brasil, estão encarcerando populações gigantescas. Esta
tendência revela uma irracionalidade sem saída [...]” MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas. Rio de
Janeiro: Revan, 2012, p. 127.
37
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Numeração de páginas original à esquerda, na seqüência da digitação, sinalizada por
linhas. Todas as palavras do texto sublinhadas estão assim no original, com exceção
dos títulos de obras ou eventos, que foram alterados para itálico.
As notas de rodapé explicativas foram inseridas pela digitadora.
As notas de rodapé do original têm sua numeração marcada por parênteses e recuo de
texto ao fim de sua página correspondente.

223

RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA1

Lélia Gonzales

I – Cumé que a gente fica?

... Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles, dizendo que
era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a gente foi muito bem recebido e tratado
com toda consideração. Chamaram até prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo
discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente
fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na
mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá gente sentar junto com eles. Mas a gente se
arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão
ocupados, ensinado um monte de coisa pro crioléu da platéia, que nem repararam que se
apertasse um pouco até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar juto na mesa.
Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega prá cá, chega
prá lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado ela
prá responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no microfone e começou a
reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A
negrada parecia que tava esperando por isso prá bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar,
vaiar, que nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de
raiva e com razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a gente
se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da
gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma porção
de coisa prá gente da gente? Teve um hora que não deu prá agüentar aquela zoada toda da
negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu prá cima de
um crioulo que tinha pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a festa acabou em
briga...
Agora, aqui prá nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com
a língua nos dentes... Agora ta queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também quem
mandou não saber se comportar? Não é a toa que eles vivem dizendo que “preto quando não
caga na entrada, caga na saída”...

1
Apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, IV
Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 31 de outubro
de 1980.
224

A longa epígrafe diz muito além do que ela conta. De saída, o que se percebe é a
identificação do dominado com o dominador. E isso já foi muito bem analisado por
um Fanon, por exemplo. Nossa tentativa aqui é a de uma indagação sobre o porquê
dessa identificação. Ou seja, que foi que ocorreu, para que o mito da democracia racial
tenha tido tanta aceitação e divulgação? Quais foram os processos que teriam
determinado sua construção? Que é que ele oculta, para além do que mostra? Como a
mulher negra é situada no seu discurso?

O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno
do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sintomática que
caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação
com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular.
Conseqüentemente, o lugar de onde falaremos põe um outro, aquele é que
habitualmente nós vínhamos colocando em textos anteriores. E a mudança foi se
dando a partir de certas noções que, forçando sua emergência em nosso discurso, nos
levaram a retornar a questão da mulher negra numa outra perspectiva. Trata-se das
noções de mulata, doméstica e mãe preta.

Em comunicação apresentada no “Encontro Nacional da LASA (Latin American


Studies Association), em abril de 1979 (Gonzales, 1979a), falamos da mulata, ainda
que de passagem, não mais como uma noção de caráter étnico, mas como uma
profissão. Tentamos desenvolver um pouco mais essa noção em outro trabalho,
apresentado num simpósio realizado em Los Angeles (UCLA) em maio de 79
(Gonzales, 1979c).

Ali, falamos dessa dupla imagem da mulher negra de hoje: mulata e doméstica. Mas ali
também emergiu a noção de mãe preta, colocada numa nova perspectiva. Mas ficamos
por aí.

Nesse meio tempo, participamos de uma série de encontros internacionais que


tratavam da questão do sexismo como tema principal, mas que certamente abriam
espaço para a discussão do racismo também. Nossa experiência aí foi muito
enriquecedora. Vale ressaltar que a militância política no Movimento Negro Unificado
constituía-se como fator determinante de nossa compreensão da questão racial. Por
outro lado, a experiência vivida enquanto membro do Grêmio Recreativo de Arte
Negra e Escola de Samba Quilombo permitiu-nos a percepção de várias facetas que se
225

constituiriam em elementos muito importantes para a concretização deste trabalho. E


começaram a se delinear, para nós, aquilo que se poderia chamar de contradições
internas. O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar
nessa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que
nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos
falavam da mulher negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série
de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto
que desafiava as explicações. E isso começou a nos incomodar. Exatamente a partir das
noções de mulata, doméstica e mãe preta que estavam ali, nos martelando com sua
insistência...

Nosso suporte epistemológico se dá a partir de Freud e Lacan, ou seja da Psicanálise.


Justamente porque como nos diz Miller em sua Teoria da Alingua (1976):

O que começou com a descoberta de Freud foi uma outra abordagem da linguagem, uma outra
abordagem da língua, cujo sentido só veio à luz com sua retomada por Lacan. Dizer mais do que
sabe, não saber o que diz, dizer outra coisa que não o que se diz, falar para não dizer nada, não
são mais, no campo freudiano, os defeitos da língua que justificam a criação das línguas formais.
Estas são propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar. Psicanálise e Lógica, uma se
funda sobre o que a outra elimina. A análise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica. Ou
ainda: a análise desencadeia o que a lógica domestica (p. 17).

Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois
assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. E
justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso
que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar?
E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente
porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a
criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho
assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.

A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha
que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele tem
umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual,
criancice, etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia, pois
226

não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão.


Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou
trombadinha (Gonzales, 1979b), pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra,
naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta
a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais
é que ser favelados.

Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem
diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é
bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele
sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto,
elegante e com umas feições tão finas... Nem parece preto.

Por aí se vê que o barato é domesticar mesmo. E se a gente detém o olhar em


determinados aspectos da chamada cultura brasileira a gente saca que em suas
manifestações mais ou menos conscientes ela oculta, revelando, as marcas da
africanidade que a constituem. (Como é que pode?) Seguindo por aí, a gente também
pode apontar pro lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim
como os diferentes modos de rejeição/integração de seu papel.

Por isso, a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente
pretende caracterizar. A gente tá falando das noções de consciência e de memória.
Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da
alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz
presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de
inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da
verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que
memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa
como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando
memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a
memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas
do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí, das duas,
também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que
a consciência faz tudo prá nossa história ser esquecida, tirada de
227

cena. E apela prá tudo nesse sentido (1). Só que isso ta aí... e fala.

II – A Nêga Ativa

Mulata, mulatinha meu amor


Fui nomeado teu tenente interventor
(Lamartine Babo)

Carnaval. Rio de Janeiro, Brasil. As palavras de ordem de sempre: Bebida, Mulher e


Samba. Todo mundo obedece e cumpre. Blocos de sujo, banhos a fantasia, frevos,
ranchos, grandes bailes nos grandes clubes, nos pequenos também. Alegria, loucura,
liberdagem geral. Mas há um momento que se impõe. Todo mundo se concentra: nas
concentração, nas arquibancadas, diante da tevê.

As escolas vão desfilar suas cores duplas ou triplas. Predominam as duplas: azul e
branco, verde e rosa, vermelho e branco, amarelo e preto, verde e branco e por aí afora.
Espetáculo feérico, dizem os locutores: plumas, paetês, muito luxo e riqueza.
Imperadores, uiaras, bandeirantes e pioneiros, princesas, orixás, bichos, bichas,
machos, fêmeas, salomões e rainhas de sabá, marajás, escravos, soldados, sóls e luns,
baianas, ciganas, havaianas. Todos sob o comando do ritmo das baterias e do rebolado
das mulatas que, dizem alguns, não estão no mapa. “Olha aquele grupo do carro
alegórico, ali. Que coxas, rapaz” “Veja aquela passista que vem vindo; que bunda, meu
Deus! Olha como ela mexe a barriguinha. Vai ser gostosa assim lá em casa, tesão”.
“Elas me deixam louco, bicho”.

E lá vão elas, rebolantes e sorridentes rainhas, distribuindo beijos como se fossem


bênçãos para seus ávidos súditos nesse feérico espetáculo... E feérico vem de “fée”,
fada, na civilizada da língua francesa. Conto de fadas?

(1) O melhor exemplo de sua eficácia está no barato da ideologia do branqueamento. Pois foi
justamente um crioulo, apelidado de mulato, quem foi o primeiro na sua articulação em
discurso “cinetífico”. A gente ta falando do “seu” Oliveira Vianna. Branqueamento, não
importa em que nível, é o que a consciência cobra da gente, prá mal aceitar a presença da gente,
prá mal aceitar a presença da gente. Se a gente parte prá alguma crioulice, ela arma logo um
esquema prá gente “se comportar como gente”. E tem muita gente da gente que só embarca
nessa.
228

O mito que se trata de reencenar aqui, é o da democracia racial. E é justamente no


momento do rito carnavalesco que o mito é atualizado com toda a sua força simbólica.
E é nesse instante que a mulher negra transforma-se única e exclusivamente na rainha,
na “mulata deusa do meu samba”, “que passa com graça/fazendo pirraça/fingindo
inocente/tirando o sossego da gente”. É nos desfiles das escolas de primeiro grupo que
a vemos em sua máxima exaltação. Ali, ela perde seu anonimato e se transfigura na
Cinderela do asfalto, adorada, desejada, devorada pelo olhar dos príncipes altos e
loiros, vindos de terras distantes só para vê-la. Estes, por sua vez, tentam fixar sua
imagem, estranhamente sedutora, em todos os seus detalhes anatômicos; e os “flashes”
se sucedem, como fogos de artifício eletrônicos. E ela dá o que tem, pois sabe que
amanhã estará nas páginas das revistas nacionais e internacionais, vista e admirada
pelo mundo inteiro. Isto, sem contar o cinema e a televisão. E lá vai ela feericamente
luminosa e iluminada, no feérico espetáculo.

Toda jovem negra, que desfila no mais humilde bloco do mais longínquo subúrbio,
sonha com a passarela da Marquês de Sapucaí. Sonha com esse sonho dourado, conto
de fadas no qual “A Lua te invejando fez careta/ Porque, mulata, tu não és deste
planeta”. E por que não?

Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra.
Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de
maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento
carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura
na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu
endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se
constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A
nomeação vai depender da situação em que somos vistas (2).

(2) Nesse sentido vale apontar para um tipo de experiência muito comum. Refiro-me aos
vendedores que batem à porta da minha casa e, quando abro, perguntam gentilmente: “A
madame está?” Sempre lhes respondo que a madame saiu e, mais uma vez, constato como
somos vistas pelo “cordial” brasileiro. Outro tipo de pergunta que se costuma fazer, mas aí em
lugares públicos: “Você trabalha na televisão?” ou “Você é artista?” E a gente sabe que significa
esse “trabalho” e essa “arte”.
229

Se a gente dá uma volta pelo tempo da escravidão, a gente pode encontrar muita coisa
interessante. Muita coisa que explica essa confusão toda que o branco faz com a gente
porque a gente é preto. Prá gente que é preta então, nem se fala. Será que as avós da
gente, as mucamas, fizeram alguma coisa prá eles tratarem a gente desse jeito? Mas,
quê era uma mucama? O Aurélio assim define:

Mucama. (Do quimbumdo mu’kama ‘amásia escrava’) S. f. Bras. A escrava negra moça e de
estimação que era escolhida para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar pessoas da família
e que, por vezes era ama-de-leite. (Os grifos são nossos).

Parece que o primeiro aspecto a observar é o próprio nome, significante proveniente da


língua quimbunda, e o significado que nela possui. Nome africano, dado pelos
africanos e que ficou como inscrição não apenas no dicionário. Outro aspecto
interessante é o deslocamento do significado no dicionário, ou seja, no código oficial.
Vemos aí uma espécie de neutralização, de esvaziamento no sentido original. O por
vezes é que, de raspão, deixa transparecer alguma coisa daquilo que os africanos
sabiam, mas que precisava ser esquecido, ocultado.

Vejamos o que nos dizem outros textos a respeito de mucama, June E. Hahner, em A
Mulher no Brasil (1978) assim se expressa:

... a escrava de cor criou para a mulher branca das casas grandes e das menores, condições de vida
amena, fácil e da maior parte das vezes ociosa. Cozinhava, lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos
o chão das salas e dos quartos, cuidava dos filhos da senhora e satisfazia as exigências do senhor. Tinha
seus próprios filhos, o dever e a fatal solidariedade de amparar seu companheiro, de sofrer com os
outros escravos da senzala e do eito e de submeter-se aos castigos corporais que lhe eram,
pessoalmente, destinados. (...) O amor para a escrava (...) tinha aspectos de verdadeiro pesadelo. As
incursões desaforadas e aviltantes do senhor, filhos e parentes pelas senzalas, a desfaçatez dos padres a
quem as Ordenações Filipinas, com seus castigos pecuniários e degredo para a África, não intimidavam
nem os fazia desistir dos concubinatos e mancebias com as escravas.
(p. 120 e 121)

Mais adiante, citando José Honório Rodrigues, ela se refere a um documento do final
do século XVIII pelo qual o vice-rei do Brasil na época excluía de suas funções de
capitão-mor que manifestara “baixos sentimentos” e manchara seu sangue pelo fato de
se ter casado com uma negra. Já naqueles tempos, observa-se de que maneira a
consciência (revestida de seu caráter de autoridade, no caso) buscava impor suas regras
do jogo: concubinagem tudo bem; mas
230

casamento é demais.

Ao caracterizar a função da escrava no sistema produtivo (prestação de bens e serviços)


da sociedade escravocrata, Heleieth Saffioti mostra sua articulação com a prestação de
serviços sexuais. E por aí, ela ressalta que a mulher negra acabou por se converter no
“instrumento inconsciente que, paulatinamente, minava a ordem estabelecida, quer na
sua dimensão econômica, quer na sua dimensão familiar” (1976, p. 165). Isto porque, o
senhor acabava por assumir posições antieconômicas, determinadas por sua postura
sexual; como houvesse negros que disputavam com ele no terreno do amor, partia para
a apelação, ou seja, a tortura e a venda dos concorrentes. E a desordem se estabelecia
exatamente porque

as relações sexuais entre os senhores e escravas desencadeavam, por mais primárias e animais
que fossem, processos de interação social incongruentes com as expectativas de comportamento,
que presidiam à estratificação em castas. Assim, não apenas homens brancos e negros se
tornavam concorrentes na disputa das negras, mas também mulheres brancas e negras
disputavam a atenção do homem branco.
(p. 165)

Pelo que os dois textos dizem, constatamos que o engendramento da mulata e da


doméstica se fez a partir da figura da mucama. E, pelo visto, não é por acaso que, no
Aurélio, a outra função da mucama está entre parênteses. Deve ser ocultada, recalcada,
tirada de cena. Mas isso não significa que não esteja aí, com sua malemolência
perturbadora. E o momento privilegiado em que sua presença se torna manifesta é
justamente o da exaltação mítica da mulata nesse entre parênteses que é o carnaval.

Quanto à doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de


bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas
costas. Daí, ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano.E é nesse
cotidiano que podemos constatar que somos vistas como domésticas. Melhor exemplo
disso são os casos de discriminação de mulheres negras da classe média, cada vez mais
crescentes. Não adianta serem “educadas” ou estarem “bem vestidas” (afinal, “boa
aparência”, como vemos nos anúncios de emprego é uma categoria “branca”,
unicamente atribuível a “brancas” ou “clarinhas”). Os porteiros dos edifícios obrigam-
nos a entrar pela porta de serviço, obedecendo instruções dos síndicos brancos (os
mesmos que as “comem com os olhos” no carnaval ou nos oba-oba [...]2 só pode ser
doméstica, logo, entrada

2
Trecho ilegível na cópia digitada.
231

de serviço. E, pensando bem, entrada de serviço é algo meio maroto, ambíguo, pois
sem querer remete a gente prá outras entradas (não é “seu” síndico?). É por aí que a
gente saca que não dá prá fingir que a outra função da mucama tenha sido esquecida.
Está aí.

Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da vida,
quem sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente
porque é ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar
praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de
perseguição policial sistemática (esquadrões da morte, “mãos brancas estão aí matando
negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos. Por
outro lado, que se veja quem é a maioria da população carcerária deste país).

Cabe de novo perguntar: como é que a gente chegou a este estado de coisas, com
abolição e tudo em cima? Quem responde prá gente é um branco muito importante
(pois é cientista social, uai) chamado Caio Prado Junior. Num livro chamado Formação
do Brasil Contemporâneo (1976), ele diz uma porção de coisas interessantes sobre o tema
da escravidão:

Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá na sociedade colonial, fator trabalho e
fator sexual, não determinará senão relações elementares a muito simples. (...) A outra função do
escravo, ou antes da mulher escrava, instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus
senhores e dominadores, não tem um efeito menos elementar. Não ultrapassara também o nível
primário e puramente animal do contato sexual, não se aproximando senão muito remotamente
da esfera propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve de todo um complexo
de emoções e sentimentos tão amplos que chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele
ato que afinal lhe deu origem.
(p. 342 e 343)

Depois que a gente lê um barato assim, nem dá vontade de dizer nada porque é um
prato feito. Mas vamos lá. Quanto aos dois fatos apontados e conjugados, é só dar uma
olhadinha, de novo, no texto de Heleieth. Ela dá um baile no autor, dentro do mesmo
espaço discursivo em que ele se colocou. Mas, nosso registro é outro, vamos dar nossa
chamadinha também. Pelo exposto, a gente tem a impressão de que branco não trepa,
mas comete ato sexual e que chama tesão de necessidade. E ainda por cima, diz que
animal só tira sarro. Assim não dá prá entender, pois não? Mas na verdade, até que dá.
Pois o texto possui riqueza de sentido, na medida em
232

que é uma expressão privilegiada do que chamaríamos de neurose cultural brasileira.


Ora, sabemos que o neurótico constrói modos de ocultamento do sintoma porque isso
lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de se defrontar com o
recalcamento. Na verdade, o texto em questão aponta para além do que pretende
analisar. No momento em que fala de alguma coisa, negando-a, ele se revela como
desconhecimento de si mesmo.

Nessa perspectiva, ele pouco teria a dizer sobre essa mulher negra, seu homem, seus
irmãos e seus filhos, de que vínhamos falando. Exatamente porque ele lhes nega o
estatuto de sujeito humano. Trata-os sempre como objeto. Até mesmo como objeto de
saber. É por aí que a gente compreende a resistência de certas análises que, ao
insistirem na prioridade da luta de classes, se negam a incorporar as categorias de raça
e sexo. Ou sejam, insistem em esquecê-las (Freud, 1925) (3).

E retomando a questão da mulher negra, a gente vai reproduzir uma coisa que a gente
escreveu há algum tempo.

As condições de existência material da comunidade negra remetem a condicionamentos


psicológicos que têm que ser atacados e desmascarados. Os diferentes índices de dominação das
diferentes formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo
ponto: a reinterpretação da teoria do “lugar natural” de Aristóteles. Desde a época colonial aos
dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por
dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis,
situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes
formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas, etc, até à polícia
formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até aos belos edifícios e residências
atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da
senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (...) dos dias de hoje,
o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço (...) No caso do grupo
dominado o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de
higiene e saúde são as mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que
não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar. É por aí que se entende porque o
outro lugar natural do negro sejam as prisões. A sistemática repressão policial, dado o seu caráter
racista, tem por objetivo próximo a instauração da submissão

(3) Que se leia o Jornal do Brasil de 28.10.1980, para se ter uma idéia de como se dá esse
“esquecimento”. Trata-se de mais um caso de discriminação racial de uma mulher negra; no
caso uma professora. Como a história resultou em morte, indo para a alçada judicial, o
criminoso, juntamente com seus “cúmplices” afirmam que a causa do crime não foi o seu
racismo, mas a incompetência da professora.
233

psicológica através do medo. A longo prazo, o que se visa é o impedimento de qualquer forma de
unidade do grupo dominado, mediante à utilização de todos os meios que perpetuem a sua
divisão interna. Enquanto isso, o discurso dominante justifica a atuação desse aparelho
repressivo, falando do de ordem e segurança sociais (Gonzales, 1979c).

Pelo visto, e respondendo à pergunta que a gente fez mais atrás, parece que a gente não
chegou a esse estado de coisas. O que parece é que a gente nunca saiu dele. Basta a gente
dar uma relida no que a Hahner e a Heleieth disseram. Acontece que a mucama
“permitida”, a empregada doméstica, só faz cutucar a culpabilidade branca porque ela
continua sendo a mucama com todas as letras. Por isso ela é violenta e concretamente
reprimida. Os exemplos não faltam nesse sentido; se a gente articular divisão racial e
sexual de trabalho fica até simples. Por que será que ela só desempenha atividades que não
implicam em “lidar com o público”? Ou seja, em atividades onde não pode ser vista? Por
que os anúncios de emprego falam tanto em “boa aparência”? Por que será que, nas casas
das madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira e raramente copeira?
Por que é “natural” que ela seja a servente nas escolas, supermercados, hospitais, etc e tal?

E quando, como no famoso “caso Marli”3 (que tem sua contrapartida no “caso Aézio”4
que, afinal, deu no que deu), ela bota a boca no trombone, denunciando o que estão
fazendo com homens de sua raça? Aí as coisas ficam realmente pretas e há que dar um
jeito. Ou se parte para a ridicularização ou se assume a culpabilidade mediante a estratégia
de não assumi-la. Deu pra sacar? A gente se explica: os programas radiofônicos ditos
populares são useiros e vezeiros na arte de ridicularizar a crioula que defende seu crioulo
das investidas policiais (ela sabe o que vai acontecer a ele, né? O “caso Aézio” tai de
prova). Que se escute as seções policiais desses programas. Afinal um dos meios mais
eficientes de fugir à angústia é ridicularizar, é rir daquilo que a provoca. Já o “caso Marli”,
por exemplo, é levado a sério, tão a sério que ela tem que se esconder. É sério porque se
trata do seu irmão (e não do seu homem); portanto, nada melhor para neutralizar a
culpabilidade despertada pelo seu ato do que o gesto de folclorizá-la,de transformá-la
numa “Antógina Negra”, na heroína, única e inigualável. Com isso a massa anônima das
Arlis é esquecida, recalcada. E tudo continua legal nesse país tropical. Elementar, meu
caro Watson.

3
Em 1980, em Belford Roxo, uma mulher negra, de uns 27 anos, Marli Pereira da Silva, em plena ditadura
militar, resolvera enfrentar os grupos de extermínio para afirmar que seu irmão Paulo Pereira da Silva, de 19
anos, fora assassinado por policiais militares infiltrados nestes grupos. Sem temer as ameaças de morte, Marli
esteve em delegacias e batalhões tentando reconhecer os assassinos de seu irmão. Uma fotografia dela nos jornais
da época destaca a mulher pobre e negra olhando firme para a multidão de policiais perfilados no pátio do
batalhão da Polícia Militar, em Nova Iguaçu, numa tentativa de reconhecer os assassinos.
4
“Caso Aézio”: um servente de pedreiro morreu torturado na cela de uma delegacia na Barra da Tijuca em 1979.
234

É por aí que a gente entende porque dizem certas coisas, pensando que estão xingando
a gente. Tem uma música antiga chamada “Nêga do cabelo duro” que mostra
direitinho porque eles querem que o cabelo da gente fique bom, liso e mole, né? É por
isso que dizem que a gente tem beiços em vez de lábios, fornalha em vez de nariz e
cabelo ruim (porque é duro). E quando querem elogiar a gente dizem que a gente tem
feições finas (e fino se opõe a grosso, né?). E tem gente que acredita tanto nisso que
acaba usando creme prá clarear, esticando os cabelos, virando leidi e ficando com
vergonha de ser preta. Pura besteira. Se bobear, a gente nem tem que se defender com
os xingamentos que se referem diretamente ao fato da gente ser preta. E a gente pode
até dar um exemplo que põe os pintos nos is.

Não faz muito tempo que a gente estava conversando com outras mulheres, num papo
sobre a situação da mulher no Brasil. Foi aí que uma delas contou uma história muito
reveladora, que complementa o que a gente já sabe sobre a vida sexual da rapaziada
branca até não faz muito: iniciação e prática com as crioulas. É aí que entra a história
que foi contada prá gente (brigada, Ione). Quando chegava na hora do casamento com
a pura, frágil e inocente virgem branca, na hora da tal noite de núpcias, a rapaziada
simplesmente brochava. Já imaginaram o vexame? E onde é que estava o remédio
providencial que permitia a consumação das bodas? Bastava o nubente cheirar uma
roupa de crioula que tivesse sido usada, para “logo apresentar os documentos”. E a
gente ficou pensando nessa prática, tão comum nos intramuros da casa grande, da
utilização desse santo remédio chamado catinga de crioula (depois deslocado par ao
cheiro de corpo ou simplesmente cc). E fica fácil entender quando xingam a gente de
negra suja, né?

Por essas e outras também, que dá vontade de rir quando a gente continua lendo o livro
do “seu” Caio Prado Junior (1976, p. 343). Aquele trecho, que a gente reproduziu aqui,
termina com uma nota de rodapé, onde ele reforça todas as babaquices que diz da
gente, citando um autor francês em francês (só que a gente traduz):

(2) “O milagre do amor humano é que, sobre um instinto tão simples, o desejo, ele constrói os
edifícios de sentimentos os mais complexos e delicados”. (André Maurois) É este milagre que o
amor da senzala não realizou e não podia realizar no Brasil-colônia. (Grifos nossos).

Pelo exposto, parece que nem Freud conseguiu melhor definir neurose do que André
Maurois. Quando à negativa do “seu” Caio Prado Júnior,
235

Infelizmente, a gente sabe o que ele está afirmando esquecidamente: o amor da senzala
só realizou o milagre da neurose brasileira, graças a essa coisa simplérrima que é o
desejo. Tão simples que Freud passou a vida toda escrevendo sobre ela (talvez porque
não tivesse o que fazer, né Lacan?). Definitivamente, Caio Prado Júnior “detesta”
nossa gente.

A única colher de chá que dá prá gente e quando fala da “figura boa da ama negra” de
Gilberto Freyre, da “mãe preta”, da “bá”, que “cerca o berço da criança brasileira de
uma atmosfera de bondade e ternura” (p. 343). Nessa hora a gente é vista como figura
boa e vira gente. Mas aí ele começa a discutir sobre a diferença entre escravo (coisa) e
negro (gente) prá chegar, de novo, a uma conclusão pessimista sobre ambos.

É interessante constatar como, através da figura da “mãe-preta”, a verdade surge da


equivocação (Lacan, 1979). Exatamente essa figura para a qual se dá uma colher de chá
é quem vai dar a rasteira na raça dominante. É através dela que o “obscuro objeto do
desejo” (o filme do Buñuel), em português, acaba se transformando na “negra vontade
de comer carne” na boca da moçada branca que fala português. O que a gente quer
dizer é que ela não é esse exemplo extraordinário de amor e dedicação totais como
querem os brancos e nem tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como quem
alguns negros muito apressados em seu julgamento. Ela, simplesmente, é a mãe. É isso
mesmo, é a mãe. Porque a branca, na verdade, é a outra. Se assim não é, a gente
pergunta: que é que amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que põe prá dormir, que
acorda de noite prá cuidar, que ensina a falar, que conta história e por aí afora? É a
mãe, não é? Pois então. Ela é a mãe nesse barato doido da cultura brasileira. Enquanto
mucama, é a mulher; então “bá”, é a mãe. A branca, a chamada legítima esposa, é
justamente a outra que, por impossível que pareça, só serve prá parir os filhos do
senhor. Não exerce a função materna. Esta é efetuada pela negra. Por isso a “mãe
preta” é a mãe.

E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, ao
exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira, como
diz Caio Prado Júnior. Essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é
o pretuguês. A função materna diz respeito à internalização de valores, ao ensino da
língua materna e a uma série de outras coisas
236

mais que vão fazer parte do imaginário da gente (Gonzalez, 1979c). Ela passa prá gente
esse mundo de coisas que a gente vai chamar de linguagem. E graças a ela, ao que ela
passa, a gente entra na ordem da cultura, exatamente porque é ela quem nomeia o pai.

Por ao a gente entende porque, hoje, ninguém quer saber mais de babá preta, só vale
portuguesa. Só que é um pouco tarde, né? A rasteira já está dada.

III – Muita Milonga prá uma Mironga só

Só uma palavra me devora


Aquela que o meu coração não diz
(Abel Silva)

Quando se lê as declarações de um Dom Avelar Brandão, Arcebispo da Bahia, dizendo


que a africanização da cultura brasileira é um modo de regressão, dá prá desconfiar.
Porque afinal de contas o que tá feito, tá feito. E o Bispo dançou aí. Acordou tarde
porque o Brasil já está e é africanizado. M. D. Magno tem um texto que impressionou
a gente, exatamente porque ele discute isso Duvida da latinidade brasileira afirmando
que este barato chamado Brasil nada mais é do que uma América Africana, ou seja,
uma Améfrica Ladina. Prá quem saca de crioulo, o texto aponta prá uma mina de ouro
que a boçalidade europeizante faz tudo prá esconder, prá tirar de cena.

E justamente por isso tamos aí, usando de jogo de cintura, prá tentar se entender.
Embora falando, a gente, como todo mundo, tá numa de escritura. Por isso a gente vai
tentar apontar praquele que tascou sua assinatura, sua marca, seu selo (aparentemente
sem sê-lo), seu jamega, seu sobre-nome como pai dessa “adolescente” neurótica que a
gente conhece como cultura brasileira. E quando se fala de pai tá se falando de função
simbólica por excelência. Já diz o ditado popular que “Filhos de minha filha, meus
netos são; filhos do meu filho, serão ou não”. Função paterna é isso aí. É muito mais
questão de assumir do que de ter certeza. Ela não é outra coisa senão a função de
ausentificação que promove a castração. É por aí, graças a Frege, que a gente pode
dizer que, como o zero, ela se caracteriza como a escrita de uma ausência.

É o nome de uma ausência. O nome dessa ausência, digamos, é


237

o nome que se atribui à castração. E o que é que falta para essa ausência não ser ausente, para
completar essa série? Um objeto que não há, que é retirado de saída. Só que os mitos e as
construções culturais, etc, vão erigir alguma coisa, alguma ficção para colocar nesse lugar; ou
seja, qual é o nome do Pai e qual é o nome do lugar-tenente do Nome do Pai? Por um motivo
importante, porque se eu souber qual é o nome do lugar-tenente do Nome do Pai, acharei esse
um (S1) que talvez não seja outra coisa senão o nome do Nome do Pai.

É por isso que a gente falou em Sobre-nome, isto é, nesse S1 que inaugura a ordem
significante de nossa cultura. Acompanhando as sacações de Magno, a gente fecha com
ele ao atribuir ao significante Negro o lugar de S1. Prá isso, basta que a gente pense
nesse mito de origem elaborado pelo Mário de Andrade que é o Macunaíma. Como
todo mundo sabe, Macunaíma nasceu negro, “preto retinto e filho do medo da noite”.
Depois ele branqueia como muito crioulo que a gente conhece, que, se bobear, quer
virar nórdico. É por aí que dá prá gente entender a ideologia do branqueamento, a
lógica da dominação que visa a dominação da negrada mediante a internalização e a
reprodução dos valores brancos ocidentais. Mas a gente não pode esquecer que
Macunaíma é o herói da nossa gente. E ninguém melhor do que um herói para exercer
a função paterna (4). Isto sem falar nos outros como Zumbi (5), Ganga-Zumba e até
mesmo Pelé. Que se pense nesse outro herói chamado de a Alegria do Povo, nascido
em Pau-Grande. Eles estão ao como repetição do S1, como representações populares do
herói. Os heróis oficiais não têm nada a ver com isso, são produto da lógica da
dominação, não têm nada a ver com “a alma de nossa gente”.

É por essa via que dá prá entender uma série de falas contra o negro e que são como
modos de ocultação, de não assunção da própria castração. Por que será que dizem que
preto correndo é ladrão? Ladrão de que? Talvez de uma onipotência fálica. Por que
será que

(4) O barato do Magno é chamar Macunaíma de Máquina-íman, o erói sem H. Sacaram?


(5) Que se atente para o fato da permanência de Zumbi no imaginário popular nordestino como aquele
que faz as crianças levadas se comportarem melhor. “Se você não ficar quieto, Zumbi vem te pega”.
Por aí, a gente lembra não só o temor que os senhores de engenho tinham em face de um ataque
surpresa do grande general negro, com também a fala das mães que, referindo-se ao pai que vai
chegar, ameaçam os filhos de lhe contar (ao pai) as molecagens destes. Que se atente também para a
força simbólica de Zumbi como significante que cutuca a consciência negra do seu despertar. Não é
por acaso que o 20 de novembro, dia de sua morte em 19655, é considerado o Dia Nacional da
Consciência Negra e que nada tem a ver com o 13 de maio. Esse deslocamente de datas (do 13 para
o 20) não deixa de ser um modo de assunção da paternidade de Zumbi e a denúncia da falsa
maternidade da Princesa Isabel. Afinal a gente sabe que a mãe-preta é que é a mãe.

5
O registro histórico afirma que Zumbi foi morto em 1695. Levando em conta a relação entre os números, é
possível que aqui se trate apenas de uma inversão não planejada dos números durante a datilografia do artigo.
238

dizem que preto quando não caga na entrada, caga na saída? Por que será que um dos
instrumentos de tortura utilizados pela polícia da Baixada é chamado de “mulata
assanhada” (cabo de vassoura que introduzem no ânus dos presos?). Por que será que
tudo aquilo que o incomoda é chamado de coisa de preto? Por que será que ao ler o
Aurélio, no verbete negro, a gente encontra uma polissemia marcada pelo pejorativo e
pelo negativo? Por que será que “seu” Bispo fica tão apavorado com a ameaça da
africanização do Brasil? Por que será que ele chama isso de regressão? Por que vivem
dizendo prá gente se por no lugar da gente? Que lugar é esse? Por que será que o
racismo brasileiro tem vergonha de si mesmo? Por que será que se tem “o preconceito
de não ter preconceito” e ao mesmo tempo se acha natural que o lugar do negro seja
nas favelas, cortiços e alagados?

É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a
gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a
presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma
africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo,
acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais,
que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando
pretuguês.

E por falar em pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da
cultura brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo que, por sua vez, e
juntamente com o ambundo, provém do tronco linguístico bantu que “casualmente” se
chama bunda). E dizem que significante não marca... Marca bobeira quem pensa assim
(6). De repente bunda é língua, é linguagem, é sentido é coisa. De repente é
desbundante perceber que o discurso da consciência, o discurso do poder dominante,
quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo brasileiro, e de ascendência européia,
muito civilizado, etc e tal.

Só que na hora de mostrar o que eles chamam de “coisas nossas”, é um tal de falar de
samba, tutu, maracatu, frevo, candomblé, umbanda, escola de samba e por aí afora.
Quando querem falar do

(6) Basta olhar na tevê e sacar como as multi transam bem os significantes que nos pegam “pelo
pé”. A U.S. Top tem um anúncio de Jean que só mostra o pessoal rebolando a bunda e isto sem
falar na Sardinha 88, “a mais gostosa do Brasil”.
239

charme, da beleza da mulher brasileira, pinta logo a imagem de gente queimada da


praia (7), de andar rebolativo, de meneios no olhar, de requebros e faceirices. E
culminando, pinta este orgulho besta de dizer que a gente é uma democracia racial. Só
que quando a negrada diz que não é, caem de pau em cima da gente, xingando a gente
de racista. Contraditório, né? Na verdade, para além de outras razões, reagem dessa
forma justamente porque a gente pôs o dedo na ferida deles, a gente diz que o rei tá
pelado. E o corpo do rei é preto e o rei é Escravo.

E logo pinta a pergunta. Como é que pode? Que inversão é essa? Que subversão é essa?
A dialética do Senhor e do Escravo dá prá explicar o barato.

E é justamente no carnaval que o reinado desse rei manifestadamente se dá. A gente


sabe que carnaval é festa cristã que ocorre num espaço cristão, mas aquilo que
chamamos do Carnaval Brasileiro possui, na sua especificidade, um aspecto de
subversão, de ultrapassagem de limites permitidos pelo discurso dominante, pela ordem
da consciência. Essa subversão na especificidade só tem a ver com o negro. Não é por
acaso que nesse momento, a gente sai das colunas policiais e é promovida a capa de
revista, a principal focalizada pela tevê, pelo cinema e por aí afora. De repente, a gente
deixa de ser marginal prá se transformar no símbolo da alegria, da descontração, do
encanto especial do povo dessa terra chamada Brasil. É nesse momento que Oropa,
França e Bahia são muito mais Bahia do que outra coisa. É nesse momento que a
negrada vai prá rua viver o seu gozo e fazer a sua gozação. Expressões como: botá o
bloco na rua, botá prá frevê (que virou nome de dança nas fervuras do carnaval
nordestino), botá prá derretê, deixa sangrá, dá um suó, etc são prova disso. É também
nesse momento que os não-negros saúdam e abrem passagem para o Mestre-Escravo,
para o senhor, no reconhecimento manifesto de sua realeza. É nesse momento que a
exaltação da cultura americana se dá através da mulata, desse “produto de exportação”
(o que nos remete a reconhecimento internacional, a um assentimento que está para
além dos interesses econômicos, sociais, etc. embora com eles se articule). Não é por

(7) Um anúncio de bronzeador utilizado nos ônibus que trafegam na zona sul do Rio de Janeiro,
reproduz um ato falho, uma mancada do discurso consciente, ao afirmar: Primeiro a cor,
depois o amor. Bandeira, né?
240

acaso que a mulher negra, enquanto mulata, como que sabendo, posto que conhece,
bota prá quebrar com seu rebolado. Quando se diz que o português inventou a mulata,
isso nos remete exatamente ao fato de ele ter instituído a raça negra como objeto a; e
mulata é crioula, ou seja, negra nascida no Brasil, não importando as construções
baseadas nos diferentes tons de pele. Isso aí tem mais a ver com as explicações do saber
constituído do que com o conhecimento.

É também no carnaval que se tem a exaltação do mito da democracia racial,


exatamente porque nesse curto período de manifestação do seu reinado o Senhor-
Escravo mostra que ele sim, transa e conhece a democracia racial. Exatamente por isso
que no resto do ano há reforço do mito enquanto tal, justamente por aqueles que não
querem olhar para onde ele aponta. A verdade que nele se oculta, e que só se manifesta
durante o reinado do Escravo, tem que ser recalcada, tirada de cena, ficando em seu
lugar as ilusões que consciência cria para si mesma. Senão como é que se explciaria,
também, o fato dos brancos proibirem a presença da gente nesses lugares que eles
chamam de chique e da gente não ter dessas frescuras com eles? E é querendo
aprofundar sua sacação que Magno se indaga se

Na dialética Senhor-Escravo, porque é a dialética da nossa fundação (...), aonde sempre o senhor
se apropria do saber do escravo, a inseminação, por vias desse saber apropriado, como marca que
vai dar em relação com o S2, não foi produzida pelo escravo, que na dialética, retoma o lugar do
senhor, subrecepticiamente, como todo escravo. (...) quer dizer, o lugar do senhor era de outrem,
mas a produção e a apropriação do lugar-tenente de nome do pai veio marcada, afinal, por esse
elemento africano.

Diferentes lugares da cultura brasileira são caracterizados pela presença desse


elemento. No caso da macumba, por exemplo, que se atente para os 31 de dezembro
nas praiais do Rio de Janeiro, para os despachos que se multiplicam em cada esquina
(ou encruzilhada) de metrópoles como Rio e São Paulo, e isto sem falar de futebol. Que
se atente para as festas de largo em Salvador (tão ameaçadoras para o inseguro
europocentrista do Bispo de lá). Mas que se atente para os hospícios, as prisões, e as
favelas, como lugares privilegiados da culpabilidade enquanto dominação e repressão.
Que se atente para as práticas dessa culpabilidade através da chamada ação policial. Só
porque o Significante-Mestre foi roubado pelo escravo que se impôs como senhor. Que
se atente, por fim, pro samba da Portela quando fala de Macunaíma: “Vou m’embora,
vou m’embora/ Eu aqui volto mais não/ Vou morar no infinito e virar constelação”. E
o que significa constelação, senão lugar de inscrição, de marcação do
241

Nome do Pai?

Se a batalha discursiva, em termos de cultura brasileira, foi ganha pelo negro, que terá
ocorrido com aquele que segundo os cálculos deles, ocuparia o lugar do senhor?
Estamos falando do europeu, do branco, do dominador. Desbancando do lugar do pai
ele só pode ser, como diz o Magno, o tio ou o corno; do mesmo modo que a européia
acabou sendo a outra.

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[A página 244 deveria supostamente conter algumas outras referências bibliográficas,


mas está ilegível na cópia utilizada para esta digitação].
Safira:
violência, gênero e sexualidade

Roberto Efrem Filho1

1.   Faca suja de sangue com lâmina amassada, cabo quebrado e com fios de
cabelo enrolados: apresentação

“A vítima foi identificada como Sandro Almeida Lúcio2, com 24 anos de idade, um
travesti que ‘fazia ponto’ naquele local e era conhecido por ‘Safira’ ou ‘Manca’, ante
uma deficiência física na perna”. Assim, o Promotor de Justiça descreveu Safira na
segunda página da denúncia que iniciou o processo judicial que a teve como vítima.
Segundo a tal denúncia e as conclusões do relatório final do inquérito policial, Safira foi
assassinada por volta das 4h30 da madrugada do dia 15 de abril de 2011. Achava-se numa
rua do centro de Campina Grande, “realizando ‘programas’”, quando foi abordada por
homens que desceram de um veículo Celta de cor preta, rodas de liga leve, duas portas,
com um adesivo de cor branca na parte superior do para-brisa traseiro. Do carro desceram
três homens. Um quarto homem permaneceu na direção do automóvel. Assim que os viu,
Safira correu, tentou escapar. Sua perna deficiente, no entanto, não permitiu que ela fosse
muito longe. Um dos homens a derrubou numa rasteira. Os outros dois a esfaquearam
mais de trinta vezes. Cortaram, inclusive, a “veia jugular do pescoço da vítima”. Os
homens voltaram ao carro e se foram. Mas uma das armas, uma faca-peixeira de sete
polegadas, foi deixada no local do homicídio e posteriormente apreendida pelos policiais.
Todo o episódio foi filmado pelas câmeras de rua da Superintendência de Trânsito e
Transporte Público da cidade. Dois irmãos de Safira procuraram a delegacia de polícia e
informaram que um carro com as mesmas características daquele utilizado no crime
passou, por duas vezes, em frente ao velório da vítima. De acordo com os dois irmãos, o
carro pertenceria aos Cangaceiros, “uma família conhecida na esfera policial por praticar
homicídios e tráfico de drogas”. Uma decisão judicial permitiu a realização da prisão

                                                                                                           
1
Roberto Efrem Filho é professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da
Paraíba. Integra o setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra em Pernambuco
e o Coletivo de Diversidade Sexual e de Gênero da Consulta Popular em Recife.
2
Sandro Almeida Lúcio, Safira, Cangaceiros, Henrique e os demais nomes próprios apresentados em
itálico neste texto são ficcionais, ou seja, não correspondem aos nomes originais dos sujeitos. A
ficcionalização dos nomes consiste numa estratégia comum nas ciências sociais e objetiva, por exemplo,
proteger identidades. Também estão em itálico as categorias êmicas e as expressões sob rasura, como
homofobia, transfobia, luta etc.

  1  
preventiva de um dos suspeitos e uma operação de busca e apreensão junto à casa de sua
mãe. Na garagem da casa, encontrou-se o mencionado Celta. Na cozinha, achava-se a
provável segunda arma empregada no assassinato, “uma faca suja de sangue com lâmina
amassada, cabo quebrado e com fios de cabelos enrolados”. Os policiais também
encontraram, na casa, uma espingarda calibre 12 e Henrique, um adolescente de 17 anos,
irmão de dois suspeitos, que acabou por confessar haver cometido o crime contra Safira.
Henrique indicou ainda o nome de outros dois rapazes que teriam participado do
homicídio. Livrou, contudo, seus irmãos. Em sua confissão junto à delegacia, no dia 17
de abril, Henrique assumiu o planejamento e a execução da morte. Alegou que, alguns
dias antes, havia decidido matar Safira por conta de uma vingança. Contou que Safira
teria agenciado, para ele, os serviços de uma prostituta, mas que a própria Safira se valeu
da situação para, ainda antes do programa, roubar oitocentos reais que Henrique trazia
consigo. Esse dinheiro corresponderia ao “apurado do trailer” de seu irmão, uma
lanchonete ou um bar onde Henrique, segundo diz, trabalhava. Questionado, na
delegacia, sobre as razões da brutalidade do crime, o rapaz explicou que “se desse apenas
uma facada na vítima, já iria dar ‘cana’, então decidiu dar os demais golpes”. A Delegada
de Polícia responsável pelas investigações adotou a versão dos fatos apresentada pelo
adolescente. “Embora nenhuma das testemunhas relate com detalhes a motivação do
crime realizado com tanta violência e ira, percebe-se pelas próprias oitivas dos autores do
homicídio que se tratava de um roubo provocado pela vítima e vingado com requintes de
sofrimento para a vítima que não teve como se defender de tantos algozes e de tantos
golpes de faca”. A partir do resultado das investigações, o Promotor de Justiça também
aderiu à versão de Henrique. Nem no relatório final do inquérito, nem na denúncia
produzida pelo Promotor, a palavra “homofobia” foi escrita. O Movimento LGBT,
entretanto, reagiu à sua ausência. Diante das notícias sobre o assassinato de Safira e as
posições tomadas pela Delegada, militantes do Movimento procuraram representantes do
Governo da Paraíba, requisitaram explicações, pretendiam que a homofobia3 fosse

                                                                                                           
3
Embora Safira fosse identificada – e possivelmente se identificasse – como uma travesti, o termo utilizado
nas narrativas dos militantes do Movimento LGBT à época de sua morte, em 2011, e durante o trabalho de
campo que possibilitou este texto, em 2012 e 2013, foi homofobia. Àquela época, expressões hoje presentes
no vocabulário dos militantes, como LGBTfobia, lesbofobia, bifobia ou transfobia, ainda não se
encontravam presentes no cotidiano do Movimento. Se a pesquisa houvesse sido realizada mais
recentemente, é provável que os mesmos militantes empregassem a expressão transfobia – e não homofobia
– para tratar da violência perpetrada contra Safira. Resolvi, entretanto, manter o uso da palavra homofobia
em respeito ao que me foi dito. Transpor formas classificatórias do presente para o passado seria um
equívoco metodológico pois ensejaria, no mínimo, o ocultamento da historicidade e, inclusive, dos conflitos
historicamente existentes a respeito dessas designações.

  2  
explicitada para ser combatida. O Secretário de Segurança, porém, recusou a
interpretação dos fatos oferecida pelos militantes. “Não existem crimes homofóbicos” –
argumentou o Secretário4.
***
Safira morreu em 15 de abril de 2011. De acordo com os dados apresentados por
organizações do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais,
naquele ano houve 266 homicídios de LGBT no país, 21 apenas na Paraíba. O caso de
Safira resta entre os mais emblemáticos deles. Tornado público através das imagens
capturadas pelas câmeras da Superintendência de Trânsito, explorado pelos meios de
comunicação, presente nas linhas do relatório anual sobre “crimes relacionados ao ódio
contra homossexuais no Estado da Paraíba”, produzido pelo Movimento do Espírito Lilás
e por seus parceiros, o “caso Safira” acabou por se converter numa batalha pela
possibilidade de designação da “homofobia”. De um lado, como dito, agentes de Estado,
como a Delegada responsável pelas investigações e o próprio Secretário de Segurança,
sustentavam a hipótese da “vingança”. Do outro lado, integrantes do Movimento LGBT
contavam cada uma das trinta facadas empreendidas contra o corpo de Safira e investiam
incisivamente na homofobia como chave explicativa para o homicídio.
Eu cheguei ao “caso Safira” através das linhas daquele relatório e das narrativas
sobre violência tecidas pelos militantes do Movimento LGBT que passei a entrevistar e
acompanhar em razão de minha pesquisa de doutorado. No ano seguinte à morte de
Safira, em 2012, eu iniciei meus estudos na Universidade Estadual de Campinas, a
Unicamp, e, sob a orientação de Regina Facchini, comecei o trabalho de campo que
oportunizaria a minha tese (Efrem Filho, 2017a). Safira se tornaria imprescindível para
a pesquisa: sua morte marcava indelevelmente aquelas narrativas produzidas pelos
militantes, expunha conflitos característicos às instâncias de Estado, indicava modos
como gênero e sexualidade compunham tais instâncias, suas lógicas e as narrativas sobre
violência reivindicadas pelos integrantes do Movimento LGBT para a realização das lutas
por direitos ou por “justiça” em que se acham implicados. Nessas narrativas, Safira

                                                                                                           
4
Agradeço a Francisco Lúcio de Assis Neto pelo acesso aos autos do processo judicial que tem Safira como
vítima. Lúcio conheceu o “caso” de Safira através da leitura de “Corpos brutalizados” (Efrem Filho, 2016).
À época, ele era estudante do curso de direito da UFPB e, sob minha orientação, dedicava-se a seu trabalho
de conclusão de curso, que acabou tratando do referido caso. Foi Lúcio quem, depois de muitas tentativas,
conseguiu encontrar os autos do processo em meio à confusão burocrática do Tribunal de Justiça da Paraíba.
Por sugestão minha, sua monografia também se intitulou “30 facadas”, como o terceiro capítulo de minha
tese que, dentre outros “casos”, trata das narrativas judiciais e policiais acerca da morte de Safira.

  3  
carecia de ser constituída como “vítima de homofobia”, enquanto que nas conclusões da
Delegada de Polícia, Safira consistia numa “criminosa”.
Neste texto, valendo-me da análise dos autos do inquérito policial e de parte do
processo judicial que tiveram Safira como vítima e das entrevistas realizadas no
transcurso da pesquisa, eu procuro discutir: a) o acionamento das “imagens de
brutalidade”, como aquelas formadas pelas referências às trinta facadas que vitimaram
Safira, em meio às disputas pela caracterização da homofobia; b) a definição da
homofobia ou da transfobia como chave de inteligibilidade para a compreensão das
relações de gênero e de sexualidade que constituem casos como o de Safira; c) a
localização do assassinato no interior do que venho chamando de “reciprocidades
constitutivas” entre relações de classe, gênero, sexualidade, racialização, geração,
território etc.; e, enfim, d) a correlação entre a “criminalização” de Safira – ela, afinal, é
descrita como uma “ladra” – e aquelas reciprocidades.

2.   30 facadas: as imagens de brutalidade

Não, o caso de Safira é emblemático! Assim, não dá pra ficar dúvida.


(...) E até você pode inverter a situação e fazer alguém responder: – se
fosse uma mulher, seria morta da mesma forma? Uma mulher, ela
roubou 800 reais, é uma prostituta e roubou 800 reais. Precisariam de
05 homens para matá-la?5 Não. Então tem um elemento de machismo
aí porque um homem só dá conta de uma mulher. Inclusive porque se
não der vai ficar feio pra ele. Do ponto de vista dele mesmo. Então ele
não vai chamar outros quatro. Então, precisam de 05 homens para
matar? Se fosse uma mulher e tivesse roubado 800? Então, e aí? Qual é
a explicação? E outra coisa: 05 homens para matar uma travesti
aleijada? Que não corria? Sabia que ela era aleijada, não? Ela era
aleijada de uma perna! Você não a vê correndo? A dificuldade? Por isso
que ela cai. Era aleijada. Travesti, aleijada, negra, feia e pobre. E mora
longe! Tudo o que não presta. Quatro homens para matar – porque um
ficou no carro – quatro homens para matar uma travesti aleijada? Que
não corria? Ela era perneta. Tinha uma perna fina, eu acho. (...) Ah,
outra coisa também: o motivo foi o roubo. Isso aí é pra qualquer crime
de ódio. Mas crimes de ódio não acontecem todo dia com homens e
mulheres, acontecem com LGBT. Mesmo com o ódio, a fúria do
momento, mas o motivo foi o roubo. Ele não tinha ódio dela, né? Foi
roubo! Ódio só de ter sido enganado, humilhado, traído e roubado,
vamos dizer, tinha esse ódio. Precisa de 30 facadas para você eliminar
o seu ódio? (André, entrevista concedida em 05 de maio de 2013).

                                                                                                           
5
Como visto, 04 homens estavam no Celta que alcançou Safira naquela madrugada de 15 de abril de 2011.
André, no entanto, parece se confundir e fala em cinco homens.

  4  
Os conflitos em torno da designação da homofobia – ou da transfobia – como
“causa” das violências cometidas contra LGBT aparecem frequentemente nas denúncias
desempenhadas por militantes do Movimento e atravessam o seu cotidiano de lutas.
Associadas a reclamações sobre as impunidades, ou seja, sobre a notável quantidade de
casos que restam sem solução ou punição, essas denúncias envolvem tanto a necessidade
de disputar a legibilidade da vítima, sua apreensão como uma vítima legítima, merecedora
da atenção das instâncias estatais competentes, quanto a necessidade de fazer reconhecer
a existência da transfobia ou da homofobia nesses episódios de violência. Segundo venho
observando, o esforço de constituição da vítima como uma vítima é correlato ao esforço
de explicação do gênero e da sexualidade como motivos da violência.
A constituição da vítima requer, de costume, a mobilização das convenções
morais disponíveis, sua aproximação narrativa a determinados padrões sociais, algo
bastante semelhante ao que Mariza Corrêa (1083) avaliou acerca das narrativas judiciais
sobre as mulheres, vítimas ou autoras, em casos de violência letal intraconjugal.
Corresponder à imagem de uma “boa mãe” ou de uma “cuidadosa dona de casa”
possibilitaria mais facilmente a aceitação da mulher como vítima e a consequente
condenação do seu marido ou companheiro, aquele que a matou. O manejo dessas
convenções morais, contudo, faz-se mais difícil à medida em que a vítima discente dos
mencionados padrões, certamente baseados em noções de gênero, e não se adequa às
expectativas morais de “passividade” e de “fragilidade”, por exemplo.
Safira, de certo, tensiona aquelas convenções. Achava-se bem distante da figura
da “boa mãe”, dedicava-se à prostituição de rua, fora acusada de roubo e, afinal, era uma
travesti, um sujeito que embaralha as estabilidades identitárias de gênero e de sexualidade
e que, como notou Néstor Perlongher (2008), costuma ser caracterizada como uma
persona ameaçadora, a personalização de um “duplo engano”, “por um lado, se faz
passar por uma mulher, sendo automaticamente homem; não contente com isso, ainda
mentindo sua genitalidade, ele não executa o papel de mulher passiva que propala, mas o
papel de penetrador ativo que sua aparência desmente” (Idem, p. 112). Safira, portanto,
trata-se de uma vítima sob dúvida, sob suspeita. Uma vítima que – acusada, por um dos
réus, do roubo de R$ 800,00 – parece ser suficientemente adequável ao papel de
“culpada”, alguém que, para todos os efeitos, colaborou com a sua própria morte,
justificou-a.
Entretanto, houve 30 facadas. “Ele não tinha ódio dela, né? Foi roubo! Ódio só de
ter sido enganado, humilhado, traído e roubado, vamos dizer, tinha esse ódio. Precisa de

  5  
30 facadas para você eliminar o seu ódio?”. Nas narrativas apresentadas pelos militantes
do Movimento LGBT, as 30 facadas desferidas contra o corpo de Safira demonstram
irrefutavelmente a homofobia. Situam Safira num espaço de fragilidade – onde, segundo
aquelas convenções morais, deve se localizar uma vítima – e apontam para um excesso
inexplicável, para algo inexplicavelmente excessivo: por que trinta facadas se uma a
mataria, se duas a matariam, para que tantos homens, se um a mataria, se dois a matariam?
“Se desse apenas uma facada na vítima, já iria dar ‘cana’, então decidiu dar os demais
golpes”. De acordo com as narrativas dos militantes, a explicação estaria, então, na
homofobia. É assim que as “imagens de brutalidade”, como as tenho chamado (Efrem
Filho, 2016), preenchem as reivindicações do Movimento LGBT6.
As 30 facadas não estão sozinhas. Nessas narrativas, nas falas de militantes, nos
documentos, relatórios e denúncias por eles confeccionados, imagens de brutalidade se
multiplicam vertiginosamente. Safira sofreu trinta golpes de faca, mas Lua levou, à
queima-roupa, um tiro em cada perna porque se recusou a realizar sexo oral num policial
militar que a abordou durante uma seresta. Otávio foi espancado, praticamente degolado.
Com lâminas, os rapazes que o assassinaram riscaram cruzes em todo o seu corpo.
Severino Antônio, violentado sexualmente antes da morte, teve uma faca peixeira cravada
em seu ânus. Todas essas imagens remetem ao excesso. Implicam na inevitável pergunta
“por quê?” e, conforme os integrantes do Movimento, ensejam a inescapável resposta
“homofobia”.
Assim, a homofobia – atualmente, também a transfobia – funciona como “chave
de inteligibidade” para a violência. Noutros termos, a sua alegação indica que a transfobia
e a homofobia explicam a violência, que relações de gênero e de sexualidade participam
da causa da morte, de sua oportunidade, porque conduzem à vulnerabilização dos sujeitos
que terminariam compondo o rol de vítimas pranteadas pelo Movimento LGBT. As trinta
facadas brutalizam o corpo de Safira e se transformam, como dito, numa prova inconteste
do motivo da morte ao tempo em que iluminam as relações de gênero e de sexualidade
que, por exemplo, comumente conduzem, cedo, as travestis para fora da vida escolar e

                                                                                                           
6
A reivindicação da violência e o acionamento de “imagens de brutalidade”, claro, não são exclusividades
do Movimento LGBT. Pelo contrário, constituem estratégias narrativas movimentadas por diversos
movimentos sociais, como o de mulheres e mesmo os de luta pela terra. Em momentos anteriores (Efrem
Filho, 2017a; 2017b), pude analisar, por exemplo, como o episódio de violência sexual contra uma
trabalhadora rural é narrado em documentos e mesmo nos autos de ações judiciais para explicitar o absurdo
do conflito e a premência da realização da reforma agrária; ou como o episódio de sequestro, estupro e
assassinato de uma adolescente, filha de uma sindicalista rural, é mobilizado para combater o problema da
violência de gênero, o machismo e provocar a condenação do acusado.

  6  
para dentro de formas precarizadas de trabalho, como é o caso da prostituição noturna de
rua.
A reivindicação da violência e das imagens de brutalidade e a arquitetura da
homofobia ou da transfobia como chave de inteligibilidade para as mortes, dessa forma,
transcendem os casos sob disputa. Não se restringem apenas à demanda pela punição dos
culpados. Alcançam as vidas das pessoas cujas mortes precisam ser evitadas e as
experiências percorridas por essas pessoas, as relações de gênero e de sexualidade que as
forjam e são por elas forjadas. O investimento do Movimento LGBT no “caso Safira”,
desse modo, no conflito pela designação da homofobia como causa do homicídio a trinta
facadas, concerne à “população LGBT”7, especialmente às travestis, às vidas que devem
ser protegidas e às políticas de Estado que precisam ser efetivadas para garantir essa
proteção. Nesse sentido, em narrativas dessa espécie, como Bruna Mantese de Souza
(2015) percebeu, a violência se mostra “produtiva”, não meramente destrutiva8.
No entanto, os recursos às “imagens de brutalidade” e à homofobia como chave
de inteligibilidade para a violência oferecem ao Movimento LGBT – e, por consequência,
às nossas análises – dois dilemas, no mínimo. O primeiro deles diz respeito àqueles casos
em que o excesso e o inexplicável não emergem tão flagrantemente como emergem nas
referências às trinta facadas impingidas em Safira ou às cruzes talhadas em Otávio. O
reforço narrativo da brutalização corre o risco de estruturar modelos de vítimas que,
embora não precisem satisfazer necessariamente aquelas convenções morais, devem se
aproximar das imagens de brutalidade, do exemplo aparentemente incontestável de
violência provocada por homofobia ou por transfobia. Há, aqui, sendo assim, o problema
teórico da compreensão da violência como algo excepcional, extraordinário, que difere
do cotiado.
No que escutei das histórias contadas pelos militantes do Movimento LGBT sobre
suas trajetórias, porém, as narrativas sobre violência percorrem parte significativa das
suas vidas, chegam às suas infâncias, às inadequações familiares e escolares, seguem às
suas adolescências, às surras, curras e perseguições ocorridas no ônibus na volta do

                                                                                                           
7
Como Regina Facchini (2009; 2008; 2005) vem discutindo, expressões como “comunidade LGBT”
supõem aquilo que Benedict Anderson (2008) denominou de “comunidades imaginadas”. A própria
afirmação da existência de uma “comunidade” participa do processo de constituição da noção de
comunidade e auxilia a presumir uma coesão de sujeitos reunidos em torno de determinada identidade.
Trabalhos mais recentes sobre o movimento LGBT ou sobre os “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil,
como os textos de Vinícius Zanoli (2015) e Sílvia Aguião (2014), adensam essa questão.
8
Em seu argumento sobre a produtividade da violência, Bruna Mantese de Souza (2015) se põe em diálogo
com o argumento análogo de Michel Foucault (2010) a respeito da produtividade do poder.

  7  
colégio ou do trabalho, às perseguições policiais porque um grupo de amigos
homossexuais se reunia na Praça João Pessoa para conversar e, talvez, paquerar. Esses
episódios não reproduzem a brutalidade das trinta facadas, mas foram identificados, todos
eles, como experiências de violência. São ordinários, cotidianos. A insistência nas
imagens de brutalidade, portanto, pode sombrear tais episódios, impedir seu
reconhecimento como violência. Mais do que isso, pode obstar que vítimas não
indiscutivelmente brutalizadas – não, a “brutalidade” não é óbvia, consiste ela mesma
num campo sob conflito – deixem de ser apreendidas como vítimas de homofobia.
Claro, as arenas em que os conflitos sobre a legibilidade da vítima e a definição
da homofobia se desenlaçam são campos minados. Nessas arenas, nas instâncias de
Estado, nas páginas do inquérito policial e do processo judicial, no pronunciamento do
Secretário de Segurança, nem as trinta facadas parecem ser suficientes, tampouco
indiscutíveis ou irrefutáveis. “Não existem crimes homofóbicos”, afinal. Apesar de
visíveis e pericialmente averiguadas, as marcas das trintas facadas não representaram
“materialidade” bastante para justificar o “nexo de causalidade”, como dizem os juristas,
com a homofobia. Por outro lado, a referência a R$ 800,00 nunca encontrados ou
“materializados” nos autos do processo exsurgem como razão para a defesa da hipótese
da vingança9. Novamente, um campo minado com pouquíssima margem de manobra para
militantes do Movimento LGBT.
No extremo, e se não houvesse as trinta facadas? – é a pergunta inexorável. A
despeito da acusação de roubo e da hipótese da vingança, relações de gênero e de
sexualidade permanecem perpassando as narrativas sobre a morte de Safira, sobre as
experiências da travesti assassinada numa calçada anoitecida no centro de Campina
Grande enquanto fazia ponto. A noção de homofobia, como disse anteriormente, ajuda a
iluminar as relações de gênero e de sexualidade que contribuem para a vulnerabilização
de Safira. No entanto, as experiências da “travesti, aleijada, negra, feia e pobre”, embora
sejam profundamente de gênero e de sexualidade, não são tão-só de gênero e de
sexualidade. Isto nos leva ao segundo dilema: o de considerar analiticamente gênero e
sexualidade sem descartar as demais relações sociais que perfazem as experiências dos
sujeitos e, até mesmo, gênero e sexualidade.

                                                                                                           
9
Minhas análises sobre os conflitos acerca da (des)materialização das facadas e, assim, do corpo da vítima
resultam da leitura dos trabalhos de Laura Lowenkron (2012). Seguindo os argumentos de Judith Butler
(2002) e Michel Foucault (2010) sobre a inexistência de um “sexo pré-discursivo”, Lowenkron sustenta a
inexistência de uma realidade corporal pré-discursiva, ou seja, externa ou anterior a relações de poder e,
portanto, conflitos.

  8  
3.   “Travesti, aleijada, negra, feia e pobre. E mora longe”: as reciprocidades
constitutivas

Logo que iniciei o trabalho de campo de minha pesquisa de doutorado, deparei-


me com o que meus interlocutores classificam como sendo “padrões de assassinatos
homofóbicos”. O primeiro desses padrões corresponderia aos assassinatos das bichas
velhas. De acordo com o que se identifica nesse padrão, bichas velhas morrem quando se
arriscam ao levar para casa os rapazes com quem de regra estabelecem “trocas
patrimoniais”, mais ou menos explícitas, em razão de sexo, afeto, companhia. A “velhice”
da “bicha” remete não necessariamente à sua idade – meus interlocutores de pesquisa
falavam em bichas velhas de 40 ou 50 anos –, mas à necessidade de recorrer a
“pagamento” ou “ajuda” para realizar desejos. Em resumo, “velha” é a “bicha” que
precisa bancar10. O segundo padrão, por sua vez, corresponderia às mortes de travestis e
mulheres trans ocorridas “na pista”, normalmente à noite, durante o trabalho na
prostituição, como aconteceu com as trinta facadas em Safira e com os tiros à queima-
roupa em Lua11.
Em outro momento (Efrem Filho, 2016), em estreito diálogo com as análises
anteriores de Sérgio Carrara e Adriana Vianna (2006; 2004), busquei indicar a
desestabilização desses padrões, tanto apontando casos de homossexuais mortos em
espaços públicos, como ocorreu com Otávio e suas cruzes, quanto problematizando as
proximidades territoriais entre prostituição e “criminalização”. É que tanto os alegados
padrões quanto as suas dissenções se complexificam à medida em que consideramos,
mais densamente, as demais relações sociais que atravessam as narrativas sobre violência
e as experiências que alimentam essas narrativas. Nesse sentido, a frase dita por André é
sintomática dessa complexificação. A síntese “travesti, aleijada, negra, feia e pobre. E

                                                                                                           
10
Minha percepção acerca dos significados atribuíveis ao termo “bicha velha” decorre de leituras dos
trabalhos de Guilherme Rodrigues Passamani (2015) e Júlio Assis Simões (2004). Para esses autores, a
noção de “velhice” se encontra atravessada por complexas relações de poder e identificação, as quais
impedem analiticamente a tomada do “tempo” ou da “geração” como consequências óbvias ou naturais da
“idade cronológica”. Em outras palavras, “faz-se juventude” e “faz-se velhice” como, para Butler (2010),
faz-se gênero, por exemplo. Há, também aí, performatividade.
11
É interessante, de pronto, que as frequentes narrativas sobre esses “padrões” mencionem experiências de
homens homossexuais, travestis e mulheres trans, mas não de mulheres cis que se identifiquem como
lésbicas ou bissexuais ou que, a despeito da identificação, vivenciem relações sexuais e afetivas com
mulheres cis ou trans. O problema da “visibilidade” – contundentemente anunciado pelas militantes das
organizações do Movimento de mulheres lésbicas e bissexuais – parece se reproduzir também no interior
das narrativas sobre violência contra LGBT.

  9  
mora longe” aponta para como relações desiguais de classe, racialização, gênero,
sexualidade e territoriais se veem implicadas na produção da morte. Essas relações
participam do processo de vulnerabilização, mas participam igualmente da tessitura umas
das outras. Trata-se do que tenho chamado de “reciprocidades constitutivas” entre as
relações sociais (Efrem Filho, 2017a)12.
Quero com isso dizer que relações de classe perfazem relações de gênero, as quais
reciprocamente perfazem relações de classe, mas também formas de racialização,
conflitos territoriais etc. As relações sociais se fazem umas através das outras. Nos termos
manejados por Anne McClintock, gênero, classe e raça, por exemplo, “existem entre si e
através dessa relação – ainda que de modo contraditório e conflituoso” (2010, p. 19).
Disso decorre a conclusão, por exemplo, de que as experiências de gênero e de
sexualidade presentes nas narrativas sobre os homicídios das bichas velhas diferem das
experiências de gênero e de sexualidade que cruzam as narrativas sobre as mortes de
travestis. Embora se fale em homofobia – ou LGBTfobia, ou transfobia – para
consubstanciar a inteligibilidade da violência em ambos os casos, diferentes relações de
classe, geração e racialização participam dos diferentes modos de exercício do gênero e
da sexualidade.
É notável que, conforme o primeiro padrão, as violências cometidas contra as
bichas velhas aconteçam no espaço doméstico, marcado pelo gênero e pelo privado. O
recurso à domesticidade se refere, algumas vezes, à administração das tensões com o que
se convencionou denominar de “armário”13, ou seja, à gestão dos “regimes de
visibilidade” de que falou Ernesto Meccia (2011), da possível necessidade de
ocultamento das experiências sexuais. As bichas velhas presentes nas narrativas dos
militantes do Movimento LGBT são diversas em classe e racialização, mas alguns dos
casos mais lembrados nessas narrativas dizem respeito a homens brancos de classe média

                                                                                                           
12
As origens do meu argumento em torno das reciprocidades constitutivas se acham nos campos dos
feminismos e dos estudos de gênero, notadamente nas abordagens teóricas sobre as “consubstancialidades”
(Kergoat, 2010; Hirata, 2014) e as “interseccionalidades” (Facchini, 2008; Piscitelli, 2008; Moutinho,
2014). Tais abordagens diferem entre si e inclusive internamente. O que há de melhor nelas, contudo,
valoriza analiticamente as experiências dos sujeitos (não se restringindo às “estruturas”), como se dá nos
imprescindíveis trabalhos de Avtar Brah (2006) e Anne McClintock (2010), ambas mais próximas das
abordagens interseccionais. Para uma análise dos argumentos de McClintock e de sua aproximação aos
debates marxistas, ver Efrem Filho (2013).
13
Para um debate sobre a administração dos processos de entradas e saídas do “armário”, ver Sedgwick
(2007). Para uma inventiva problematização do conceito de “armário” e a percepção de outras formas de
experimentação de gênero e sexualidade, no “guarda-roupas” ou na “cristaleira”, por exemplo, ver
Passamani (2015).

  10  
– ou alta classe média – assassinados por boys, de regra pertencentes aos setores mais
precarizados da classe trabalhadora.
Por sua vez, as travestis vitimadas “na pista” são mais próximas da síntese
proposta por André. Normalmente são jovens – mas se tornam “velhas” também cedo,
quando, se consideradas apenas as idades, ainda poderiam ser tomadas como jovens – e
suas vivências das relações de gênero e de sexualidade estão, de regra, intensamente
marcadas pelo trabalho sexual na prostituição de rua14. Estão, dessa maneira, tramadas
em relações de classe e racialização características aos mencionados setores mais
precarizados da classe trabalhadora. Elas morrem enquanto trabalham15, enquanto
exercitam aquilo de que elas vivem, num espaço público noturno, somente ambiguamente
público, portanto, cujas zonas de sombreamento costumam impedir o reconhecimento da
vítima, sua legibilidade, mesmo quando clareados pelas câmeras de vídeo da
Superintendência de Trânsito do município. Essas zonas de sombreamento atuam,
reciprocamente, na fricção dos limites entre o legal e o ilegal, a prostituição e a
criminalização, do que decorre, por exemplo, no “caso Safira”, a automática aceitação da
hipótese da “vingança”.
Como expliquei acima, a necessária reivindicação da homofobia ou da transfobia
oferece lastro para a compreensão das relações de gênero e de sexualidade que engendram
a morte e, portanto, para a constituição da vítima. Ela, contudo, não basta. Entendi isso
assim que passei a observar mais atentamente a relevância das demais relações sociais na
produção da violência e, sobretudo, das próprias relações de gênero e de sexualidade.

                                                                                                           
14
O campo dos estudos de gênero e sexualidade tem proporcionado importantes discussões sobre as
trajetórias de travestis e mulheres trans, os conflitos acerca dessas designações, a história do Movimento
de Travestis e Transexuais e, inclusive, sobre o lugar ocupado pela prostituição em tais trajetórias, conflitos
e histórias. Essas discussões são desenvolvidas, por exemplo, por Bruno César Barbosa (2013), Mário
Carvalho (2011), Mário Carvalho e Sérgio Carrara (2013), Larissa Pelúcio (2005), Jorge Leite Júnior (2011)
e Thiago Duque (2012).
15
  Como se sabe, o reconhecimento da prostituição como um “trabalho” representa uma polêmica
incontornável no interior dos feminismos. Posições “abolicionistas” normalmente identificam a
prostituição como uma violência apriorística, estrutural, ainda que conte com o “consentimento” das
mulheres que a praticam. Do outro lado, contrárias aos abolicionismos, há diversas posições que ora alegam
a necessidade do reconhecimento do trabalho e da regulamentação da prostituição, considerando que se
trata de uma realidade que não pode ser negada, ora argumentam que recusar a capacidade de agência das
mulheres que optam pela prostituição consistiria numa negação do “sujeito” que elas são, pessoas que,
como quaisquer outras, precisam responder a contextos sociais e de vida que tanto constrangem quanto
possibilitam margem para ação. Os fundamentais trabalhos de Adriana Piscitelli (2012) ajudam na
compreensão da espinhosa relação entre prostituição e feminismos. Além deles, os trabalhos de José Miguel
Nieto Olivar (2013; 2012) abordam especialmente a relação entre prostituição feminina e direitos sexuais.
No transcurso do trabalho de campo de minha pesquisa de doutorado, acompanhei e entrevistei militantes
do Movimento de Travestis e Transexuais, as quais sempre se posicionaram favoráveis ao reconhecimento
da prostituição como um trabalho (Efrem Filho, 2017a). Estou com elas, tanto política quanto teoricamente.  

  11  
Safira morreu, como dito, no ano de 2011. Nesse ano, houve 1619 homicídios na Paraíba,
42,7 por 100 mil habitantes, a terceira maior taxa estadual do país, inferior apenas às taxas
de Alagoas, com 72,2, e do Espírito Santo, com 47,4. Das 1619 vítimas de homicídios
ocorridos na Paraíba em 2011, 915 eram jovens, o que equivale a uma taxa de 88,5 por
100 mil na população entre 15 e 29 anos. Safira estava entre elas. Das mesmas 1619
vítimas do ano de 2011, 143 foram designadas como mulheres e 1476 foram designadas
como homens. Sandro Almeida Lúcio, Safira, achava-se entre eles. Enfim, daquelas 1619
vítimas, 81 foram descritas como brancas, 1535 foram descritas como negras16. Safira se
encontrava entre as últimas.
Safira morreu como travesti – 30 facadas; morreu como homem, nomeada como
Sandro; mas morreu, também, preenchendo os números oficiais que explicitam o que se
tem chamado de “extermínio da juventude negra”, um fenômeno que envolve
centralmente o assassinato de homens jovens negros pertencentes aos estratos mais
precarizados da classe trabalhadora e habitantes das periferias urbanas. O número
correspondente à morte de Safira ocupa, sendo assim, os relatórios e documentos
formulados pelo Movimento LGBT, onde ela é evidentemente conhecida como Safira,
mas igualmente os estrondosos números acusados por organizações do Movimento Negro
acerca dos violentos efeitos das relações raciais no país. Esses números compõem,
acredito, imagens de brutalidade tão severas quanto aquelas trinta facadas. 81 pessoas
descritas como brancas, 1535 pessoas descritas como negras...
As relações desiguais de gênero e de sexualidade que contribuíram para a
vulnerabilização de Safira, dessa maneira, precisam ser situadas no interior das
reciprocidades constitutivas entre as relações sociais. Embora as “lógicas de Estado” que
caracterizam as disputas pela legitimidade da vítima imponham a premência da definição
da “causa”, ou do nexo de causalidade, o que nos leva a investir politicamente na
homofobia ou na transfobia, nossas análises não podem escusar as reciprocidades, o peso
das formas de racialização, dos conflitos de classe etc. De certo, esse movimento analítico
pode parecer estranho à parte significativa das esquerdas. Dá-se que ele significa, sem
meias palavras, que as mortes de Safira e provavelmente daquelas outras 1534 pessoas

                                                                                                           
16
Todos os números aqui apresentados advêm do “Mapa da violência 2014”, de Julio Jacobo Waiselfisz.
Como se vê, há uma pequena diferença entre a soma dos números de pessoas identificadas como brancas
(81) e pessoas identificadas como negras (1535) e o número total de homicídios na Paraíba. A referida
soma alcança 1616 vítimas, conquanto o número total é de 1619 vítimas. Não consigo explicar tal diferença.
Mas é possível, por exemplo, que essas três pessoas que desapareceram da soma não tenham sido
identificadas segundo critérios de cor/raça.

  12  
negras devem ser localizadas nos interstícios da luta de classes, nas estratégias de controle
social que se valem da violência como uma obviedade através, por exemplo, das políticas
de criminalização das drogas. Também significa, reciprocamente, que aquilo que as
esquerdas tratam como “lutas de classes” precisa ser significado nos meandros dos
processos de racialização, dos conflitos territoriais que conformam as periferias e
participam fortemente da produção dos sujeitos mais matáveis.
A noção de reciprocidades constitutivas exige, então, a superação de dois cacoetes
irmanados, cruciais para as atuais análises empreendidas pelas esquerdas, o da separação
entre “centralidades” e “especificidades” e o da acepção das “esquerdas identitárias”.
Gênero e sexualidade não consistem em “questões específicas”, não correspondem a
“pautas identitárias”. São relações sociais e preenchem as experiências dos sujeitos.
Nunca houve um “trabalhador” anterior às relações de gênero e de sexualidade, tampouco
uma classe trabalhadora. O trabalho e a classe se fazem através de relações de gênero,
sexualidade, racialização etc. Reciprocamente, nunca houve uma travesti anterior às
relações de classe por meio das quais ela se faz sujeito, conjuga seus verbos, sobrevive
às adversidades. Mesmo as questões convencionalmente tidas como “centrais” são
tramadas entre relações de gênero, de sexualidade, de racialização etc., ou não
explicaríamos aqueles números de homicídios ou as cortantes dinâmicas de Estado em
nosso país.
Essa forma de compreender os conflitos sociais e, inclusive, a “classe” resulta das
leituras do campo dos estudos de gênero e sexualidade – em que, como percebeu Isadora
Lins França (2012), gênero e sexualidade podem ser concebidos como linguagens que
exprimem outras relações de poder –, mas também das leituras de setores do campo
marxista que tomam a classe não como um dado estrutural e sim como um “fazer-se”.
Esses setores, referendando-se nas “obras históricas” marxianas (Marx, 2012; 1997) e nas
análises desenvolvidas por intelectuais como E. P. Thompson (1987) e Antônio Gramsci
(1966), centram atenção nos sujeitos e não nas estruturas. Por isso se tratam de “relações
sociais” e de “experiências”, não de “opressões” somente. Importa entender os
movimentos dos sujeitos, o processo, os conflitos, as contradições, as diversas táticas por
meio das quais os sujeitos se fazem diante dos constrangimentos sociais postos. É assim
que Safira, a vítima pranteada por integrantes do Movimento LGBT, transcende aqueles
números. Sua morte se transforma numa oportunidade de luta.

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  17  
O que é a Teoria Queer?
(https://medium.com/@lucas.germano/o-que-%C3%A9-a-teoria-queer-5c084c0b6cfd)

E o que não é.
Há uns dois anos a Teoria Queer vem tomando visibilidade nas redes sociais. E
não é o tipo de visibilidade boa, algumas páginas simplesmente resolveram ignorar todo
o material bibliográfico produzido pelo Queer e começaram a associar algumas coisas
um tanto quanto sem noção ao Queer. Como evitar essa desonestidade na internet senão
escrevendo na/pela internet?
Antes de começar é importante ressaltar que este texto não cobre toda a gama
potencial e teórica que a política queer oferece. Afinal de contas, a queer não trata apenas
de gênero e sexualidade — esse nunca foi o único foco dela. Porém, como é comum que
algumas páginas foquem nesta área do queer, é justo que meu texto também tenha esse
enfoque. Portanto, alguns pontos ficarão de lado: o propósito aqui é justamente retirar a
deturpação que fazem da Teoria Queer. O texto tem caráter de ensaio, não utiliza
linguagem e termos próprios da TQ. Estamos na internet, isso aqui é pra descomplicar.
Ao final pode ser encontrado referências para leituras posteriores e mais profundas.
O QUE É
Darwin criou a Teoria da Evolução das Espécies, Einstein formulou a Teoria da
Relatividade, e Marx o marxismo. E quem criou a Teoria Queer? Ninguém. A TQ surgiu
advinda de trabalhos de vários filósofos e sociólogos: Michel Foucault, Judith Butler,
Eve Sedgwick, Guy Hocquenghem e Michael Warner são apenas seis dos nomes que
foram pioneiros nessa área de estudo (embora Foucault nunca tenha usado o termo
―queer‖ sua obra foi de imensurável importância). Isso pode ser percebido quando se
analisa a história. Os primeiros movimentos queer aconteceram após a Rebelião de
Stonewall (1969), estes movimentos não tinham uma ―teoria‖ para se orientarem (e o uso
do termo ―queer‖ não era tão popular), e se opunham ao assimilacionismo do Movimento
Homófilo. De fato, só em 1990 que aparece o primeiro movimento que realmente adotou
o termo queer: o Queer Nation. E o que é queer?
Queer é tudo que o discurso da sociedade transforma em anormal, em estranho,
em abjeto, em subalterno (Miskolci, 2012). São os gays afeminados, as lésbicas
masculinizadas, as pessoas trans e travestis, as pessoas intersexo, e todos que estão na
margem social. E não se engane, o termo ―queer‖ nunca foi uma forma carinhosa de
tratamento. Ele é originalmente um palavrão de teor extremamente pejorativo. Não há
tradução em português que consiga provocar tanta repulsa que o termo originalmente
provoca, há tentativas de tradução para ―estranho‖, ―bicha‖, ―viado‖, ―traveco‖ e
―sapatão‖. Mas simplesmente não há correspondência em português para o ―queer‖ como
adjetivo pejorativo. Mas por que diabos alguém iria querer ser tratado por palavrão?
Simples: o Queer Nation acreditava, naquela época, que o termo poderia ser usado como
uma forma de apoderar-se de uma arma LGBTfóbica e utilizar contra os próprios
LGBTfóbicos. ―Sim, nós somos viados‖, diziam e ainda dizem.
Ao mesmo tempo em que os queers (mesmo que não se denominassem assim) se
organizavam na rua em movimentos sociais, também se organizavam nas universidades.
Foi apenas em 1991, vinte anos depois de Stonewall, que Teresa de Lauretis usou pela
primeira vez a frase ―Teoria Queer‖. A partir daí, o termo se popularizou. Ela usou como
uma forma de escárnio ao Movimento Homófilo que repudiava o uso do termo pois
acreditavam que não iriam incluir-se na sociedade deste jeito. E, de fato, não iriam se
incluir mesmo. A TQ não quer a inclusão dos queers na sociedade atual, ela quer
transformar a sociedade para que não mais existam os ―normais‖ e os ―anormais‖. Afinal
de contas, o Movimento Homófilo era composto majoritariamente por gays brancos de
classe média e não-afeminados enquanto o queer abrangia as pessoas que estavam de
fora das classificações homófilas.
A Teoria Queer é, então, uma linha de pensamento filosófico e sociológico
surgida da aliança entre feministas e movimento LGBTQ. É uma teoria que ainda está
em construção e que foi altamente influenciada pelo existencialismo de Beauvoir, pelo
marxismo, pela psicanálise, pelos estudos pós-coloniais, e por Foucault. Postula contra a
classificação e padronização das identidades, contra o assimilacionismo cultural, contra a
cisnormatividade e heteronormatividade, contra o patriarcado, contra o (pink)
capitalismo e contra o sistema binário de gênero/sexualidade. Não é, como alguns
pensam, uma política identitária; é uma teoria crítica e pós-identitária orientada pela
política das diferenças (e não da diversidade) e da subversão.
E aqui, quando falamos de não-binarismo de gênero, não estamos falando apenas
dos terceiros gêneros ou gêneros não-binários que associam à TQ. Estamos falando
também que a identidade mulher não pode ser o oposto da identidade homem. Essa
concepção binária de gênero naturaliza que o que o homem pode fazer, a mulher não
pode e vice-versa. Por exemplo, nesta concepção binária, mulheres devem utilizar
maquiagem, enquanto homens não. E tantos outros exemplos que não caberiam aqui sem
fazer o texto ficar demasiadamente longo. O que está em questão é desnaturalizar as
oposições que ocorrem entre estas identidades, pois elas fazem algo que a TQ postula
contra: a normatização e padronização das identidades. E por se opor ao sistema binário,
a TQ não se opõe à mulher ou ao homem: ela se opõe ao ―sistema de gêneros como
instituição social [que] cria uma hierarquia, colocando os homens em uma posição
superior à das mulheres‖ (Não Me Kahlo, 2016, p. 33).

O QUE NÃO É

A TQ não é uma tentativa de criar uma ―infinidade de gêneros‖ como algumas


pessoas podem afirmar. Quanto ao gênero, a TQ tem o objetivo de subverter as
identidades para que não mais possam classificar algo como Y ou como X:

A multidão queer não tem relação com um “terceiro sexo” ou com um “além
dos gêneros”. Ela se faz na apropriação das disciplinas de saber/poder sobre
os sexos, na rearticulação e no desvio das tecnologias sexopolíticas
específicas de produção dos corpos “normais” e “desviantes”. Por oposição
às políticas “feministas” ou “homossexuais”, a política da multidão queer
não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma
definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma
multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem
como “normais” ou “anormais” […]. O que está em jogo é como resistir ou
como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas. (Preciado, 2003/2011,
p. 16).

Sabe aquelas imagens que circulam no Tumblr com uma descrição sobre algum
gênero? Esquece isso (e não associe mais ao queer), a Teoria Queer nunca nomeou,
descreveu ou criou nenhum desses gêneros (e duvido que irá fazer isso). Porém, é
inegável a existência de gêneros não-binários. Os estudos em português sobre estes
gêneros são escassos, e por isso é necessário recorrer ao estudos em inglês. Mair Cayley,
em sua tese de PhD intitulada de ―Xwhy? Stories of non-binary genders‖, analisou e
descreveu estes gêneros além de ter dado perspectivas multidisciplinares sobre a
formação destas identidades. Além dela, Christina Richards et al escreveu o artigo ―Non-
binary or genderqueer genders‖. Margaret Mead, antropóloga estadunidense, escreveu
―Sexo e temperamento‖ em 1935 (muito antes de qualquer teórico queer) onde nos
mostra como a feminilidade e masculinidade pode fluir independente do sexo. Em
português, pode-se encontrar o ―Gêneros não-binários, identidades, expressões e
educação‖ de Neilton dos Reis e Raquel Pinho.

Existem outras afirmações absurdas como ―a TQ é uma cura gay‖, ―é misógina e


sexista‖ que não compensam a escrita sem parcimônia deste texto. A TQ não é uma
―cura gay/lésbica‖ porque ela advoga a favor da não-heteronormatividade, tampouco é
―misógina e sexista‖ justamente por se opor ao patriarcado. Estas afirmações geralmente
(se não sempre) são feitas sem argumentação lógica nenhuma e torna-se impossível ter
ideia de como alguém chegou a tal conclusão, e isso impede a contra-argumentação.

REFERÊNCIAS

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de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças (2012). 2ª ed.


Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2016.

PRECIADO, [Paul] B. Multidões queer: notas para uma política dos


―anormais‖. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11–20, jan. 2011. (O autor
é um homem trans que, ao publicar este artigo, não havia adotado seu nome social: Paul
B. Preciado).
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1

A LGBTIfobia na Universidade: algo


cheira a podre no reino da Dinamarca

RESUMO: O presente trabalho aborda a questão da LGBTIfobia no âmbito universitário. No pri- Mylla Maria
meiro momento, são abordados, brevemente, alguns conceitos-operativos, bem como se traça um Sousa Sampaio
panorama do constructo sociocultural que é a LGBTIfobia. Em seguida, discorre-se sobre a pre- Graduanda em Direito
pela Universidade Federal
sença da mesma na Universidade, suas causas e consequências, além do papel do Estado nesse
do Maranhão - UFMA.
processo. Por fim, partindo do pressuposto da autonomia universitária, são aventadas algumas myllamariah@hotmail.
sugestões para o enfrentamento da discriminação por orientação sexual e da expressão e identi- com
dade de gênero como forma de garantir a cidadania e dignidade das pessoas LGBTI.
Thiago G. Viana
Pós-graduando em Direito
ABSTRACT: The actual project aproach LGBTphobia inssue in the university scope. In the first
Penal e Criminologia pelo
moment, are aproached, briefly, some operactives-comcepts, exactly how draw a panoram of Instituto de Criminologia
sociocultural construct what is the lgbtphobie. Then, talks up about the presence of the same e Política Criminal (ICPC)/
in the university, your causes and consequences, beyond the states’s role in the process. Lastly, Centro Universitário
Internacional (UNINTER).
starting from the assumption by the university utonomy, are suggested some sugestions for the
thiagogv.adv@gmail.com
confronting of the discrimination for sexual orientation and expression and gender intentity with
a way to ensure citizenship and dignity of the LGBTI people. Palavras-chave:
LGBTIfobia.; Orientação
sexual; Identidade de
gênero; Universidade.

1 - Introdução receio (inconsciente e “doentio”) de a Keywords:


própria pessoa homofóbica ser homos- LBGTIphobia; Sexual
De início, cabe elucidar que por LGBTIfobia sexual (ou de que os outros pensem orientation; Gender
entende-se a intolerância em virtude da orien- que ela seja). [...] Outros estudiosos e identity; University.
tação sexual e da expressão e/ou identidade estudiosas adotam um posicionamen-
de gênero da pessoa, também conhecida por to diferente. A visão que, neste caso,
prevalece acerca da homofobia se dá,
“homofobia”. Pode-se, ainda, falar em “fobias”
em geral, a partir da manutenção da 1 A intolerância em virtude
específicas e suas problemáticas peculiares: daRessalte-se que esse uso
referência àquele conjunto de emoções do termo “fobia” não se dá
em gayfobia (fobia contra gays); lesbofobia no sentido utilizado pelo
negativas, mas sem enfatizar exclusiva-
jargão médico, mas sim no
(fobia contra lésbicas); bifobia (fobia contra mente aspectos de ordem psicológica e, sentido de aversão ao indiví-
bissexuais); transfobia (fobia contra pessoas duo LGBTI, em conjunto com
ao mesmo tempo, rechaçando acepções a reprodução e manutenção
trans); e, por fim, intersexfobia (fobia contra patologizantes.” da estrutura de heterosse-
xualidade compulsória (he-
pessoas intersexuais)1. A respeito do termo teronormatividade) da socie-
dade ocidental.
“homofobia”, Junqueira (2007, p. 4-6) expõe: A LGBTIfobia é um dos temas de muita evi- 2 Transexuais, travestis, in-
dência no debate público atual. Sua relevân- tersexuais e demais pessoas
que não se encaixam no rí-
“[...] o termo costuma ser emprega- cia, no entanto, não se deu em virtude da dis- gido modelo binário dos pa-
péis de gêneros masculino
do quase que exclusivamente em refe- cussão de mecanismo de como enfrentá-la, e feminino (crossdressers,
rência a conjuntos de emoções negati- queers etc.).
mas sim em decorrência de casos de agres-
vas (tais como aversão, desprezo, ódio, 3 Indivíduos que nascem
sões LGBTIfóbicas veiculados na mídia.
desconfiança, desconforto ou medo) com genitália ambígua, vul-
As recorrentes notícias da intolerância garmente conhecidos por
em relação a pessoas homossexuais “hermafrodita”.
ou assim identificadas. Essas emoções, contra lésbicas, gays, bissexuais, pessoas
em alguns casos, seriam a tradução do trans2 e intersexuais3 (LGBTI) refletem um 60
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
11.1

recrudescimento desse tipo de violência ou dos corpos e do desejo. Foucault, ao desvelar


esta se tornou mais frequentes porque se tais mecanismos, abre caminhos para melhor
concedeu maior atenção a tais casos? A res- entendimento e análise da orientação sexual
posta a tal pergunta demanda uma pesquisa e identidade de gênero, da LGBTIfobia, dos
aprofundada, contudo, é válido ressaltar que a movimentos de liberdade sexual.
LGBTIfobia entrou na pauta do debate públi- Nesse processo, a tutela exercida pela Ci-
4 “[...] tento demarcar, em
primeiro lugar, um conjunto co, pois mostrou-se um problema de profun- ência sobre a “sexualidade” levou o primeiro
decididamente heterogê-
neo que engloba discursos, da gravidade e que deve ser equcionado. golpe em 1973, quando o termo “homossexu-
instituições, organizações
arquitetônicas, decisões re- Nesse passo, é de se indagar como a LGB- alismo” foi retirado da classificação de doen-
gulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados
TIfobia, presente nos mais diversos espaços ças pela Associação Americana de Psiquiatria
científicos, proposições fi- da vida social e familiar, se manifesta nas – passou-se a falar em homossexualidade (o
losóficas, morais, filantró-
picas. Em suma, o dito e o instituições de Ensino Superior (IES) do país. sufixo “-dade” significa modo de ser); desde
não dito são os elementos
do dispositivo. O dispositivo Imagina-se a Universidade como um espaço então, esse processo foi se disseminando, de
é a rede que se pode estabe-
lecer entre estes elementos.
onde a luz da Razão guia a humanidade para modo que em 1975, a Associação Americana
Em segundo lugar, [...] [e] alcançar os caminhos rumo ao progresso. Na de Psicologia adotou a mesma postura; no
ntre estes elementos, dis-
cursivos ou não, existe um realidade, em um nítido paralelo da afirmação mesmo sentido, no Brasil, em 1985, o Conse-
tipo de jogo, ou seja, mudan-
ças de posição, modificações de Hamlet em relação à hipocrisia, dentre ou- lho Federal de Psicologia e o Conselho Fe-
de funções, que também
podem ser muito diferentes. tras desvirtudes, no aparente reino perfeito deral de Medicina deixaram de considerar a
Em terceiro lugar, entendo
dispositivo como um tipo de
da Dinamarca, a Universidade não condiz com homossexualidade um desvio sexual; em 17
formação que, em um deter- a visão ideal – e até utópica – que dela se tem, de maio de 1990, a Assembleia geral da Or-
minado momento histórico,
teve como função principal pelo contrário, ela vem se mostrando, como ganização Mundial de Saúde (OMS) retirou a
responder a uma urgência.
O dispositivo tem, portanto, qualquer outra esfera da vida social, uma ins- homossexualidade da Classificação Interna-
uma função estratégica do-
minante” (FOUCAULT, 2004, tituição que reproduz discursos e práticas de cional de Doenças (CID) (VECCHIATTI, 2013
p. 244).
intolerância, tal como a LGBTIfobia. apud VIANA, 2014, p. 267-268).
5 “Em a ‘vontade de saber’ A orientação sexual, segundo Borrillo
Foucault se dedica a mostrar
que nas sociedades ociden- 2 - LGBTIfobia: conceitos-operativos e (2010, p. 23), consiste em uma:
tais modernas o sexo é alvo
de um investimento politico. estado da arte
O dispositivo representado “[...] componente da sexualidade en-
pela sexualidade faz parte
de um agenciamento políti- Faz-se necessária a compreensão de cer- quanto conjunto de comportamentos
co da vida, ou seja, integra relacionados com a pulsão sexual e com
uma biopolítica.” (FONSECA, tos conceitos, tais como orientação sexual,
2002, p. 199). identidade de gênero, LGBTIfobia, dentre ou- sua concretização. Se a atração sexual
6 A identidade de gênero, é dirigida para pessoas do mesmo sexo,
até final de 2012, era cha- tros pontos, que, longe de serem exaustivos
mada de “transexualismo”, designamos tal orientação por “homos-
segundo a Classificação Es- ou definitivos, serão esmiuçados, a seguir,
tatística Internacional de Do- sexualidade”; se ela se inclina para o
para oferecer o instrumental teórico da aná-
enças e Problemas Relacio- sexo oposto, trata-se da “heterossexua-
nados com a Saúde – versão lise ora proposta pelo trabalho.
10 (CID-10), ou “transtorno lidade”; e, ainda, de “bissexualidade”, se
de identidade de gênero”, de
o sexo do parceiro é indiferente.”
acordo com Manual Diag-
nóstico e Estatístico de Do- 2.1 - Os conceitos-operativos
enças Mentais, em sua 4ª
edição (DSM-IV). Contudo A identidade de gênero, relacionada às
neste último, em sua versão Michel Foucault (1988) no seu clássico “A
mais recente, foi retirada da pessoas trans, pode ser definida como a:
categoria de desordem men- História da sexualidade: a vontade de saber”,
tal e incluída como “disforia
de gênero”, que corresponde publicada em 1976, demarcou uma fissura “[...] experiência interna e individual
ao sofrimento emocional, re-
sultado de “uma incongruên-
nas análises críticas sobre o sexo, gênero e do gênero de cada pessoa, que pode ou
cia marcante entre o gênero sexualidade na contemporaneidade ao de- não corresponder ao sexo atribuído no
experimentado/exprimido e
o gênero atribuído” (FORD, monstrar que tais marcadores sociais da di- nascimento, incluindo o senso pessoal
2012, tradução nossa). Na
prática, essa mudança não ferença foram entendidos como dispositivos4 do corpo (que pode envolver, por livre
foi significativa, pois as pes-
discursivamente assinalados pela Ciência escolha, modificação da aparência ou
soas trans ainda sofrem in-
gerência na sua (auto) iden- função corporal por meios médicos, ci-
(Psicanálise, Medicina, Psiquiatria, Direito
tificação de gênero. rúrgicos ou outros) e outras expressões
etc.), cada um a seu modo, como alvo essen-
de gênero, inclusive vestimenta, modo
61 cial para o controle biopolítico5 na economia
de falar e maneirismos (CENTRO LATI-
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1

NO-AMERICANO EM SEXUALIDADE E que não performatizam os papéis do “mas- 7 É válido destacar que a
LGBTIfobia do meio social
DIREITOS HUMANOS, 2010, p. 07-10).6” culino” e “feminino”10. A sua manifestação, no acaba sendo internalizada
por uma parcela dos pró-
meio familiar e social, compreende desde a prios indivíduos LGBTI: “[...]
A LGBTIfobia se traduz, conforme lição de violência moral até espancamento, torturas11, a homofobia, nos homos-
sexuais, apresenta-se de
Borrillo (2001, p. 36, tradução nossa), na: mutilações, castrações e agressões sexuais distintas maneiras, como
autodesprezo, baixa estima,
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2011 tentativas de suicídio. Vale
lembrar que os homosse-
“[...] hostilidade, geral, psicológica e apud VIANA, 2012, p. 122), em homicídios com xuais foram socializados no
social, em relação àqueles e àquelas de seio de sociedades que re-
requintes de crueldade. Considerando tal si- jeitam a homossexualidade,
quem se supõe que desejam indivíduos incorporando os valores he-
tuação de vulnerabilidade à qual a LGBTIfobia terossexuais com os quais,
de seu próprio sexo ou tenham práticas
são empurrados, a população LGBTI e os efei- inúmeras vezes, entram em
sexuais com eles. Forma específica de conflito” (MACHADO; PICCO-
sexismo, a homofobia rejeita a todos tos sofridos por estes em sua vida pessoal e LO, 2010, p. 117).

os que não se conformam com o papel profissional12, resta evidente que: 8 “Como observa Michael
determinado por seu sexo biológico. Warner (1993), por meio
da heteronormatividade,
Construção ideológica consistente na “Diante da lógica que naturaliza e a heterossexualidade (e
acrescente-se: pensada in-
promoção de uma forma de sexuali- estabelece a heterossexualidade como variavelmente no singular,
dade (hétero) em detrimento de outra referência, a homossexualidade passa a embora seja um fenômeno
plural) é instituída e vivencia-
(homo), a homofobia organiza uma hie- ser uma ameaça simbólica ao poder he- da como única possibilidade
terocêntrico e falocêntrico, tornando vi- legítima (e natural) de ex-
rarquização das sexualidades e extrai
pressão identitária e sexual,
dela consequências políticas.7” sível a existência de desigualdades nas ao passo que as homossexu-
alidades tornam-se desvio,
relações de poder estabelecidas pelas crime, aberração, doença,
Merece atenção especial a ideia de que a oposições binárias heterossexualida- perversão, imoralidade, pe-
cado.” (JUNQUEIRA, 2009,
de/homossexualidade, homem/mulher, p. 376).
“homofobia organiza uma hierarquização das
masculino/feminino. Tendo em vista es-
sexualidades e extrai dela consequências polí- 9 Em igual sentido, os Prin-
sas ameaças e as diferenças de podem cípios de Yogyakarta (CEN-
ticas”, ou seja, não apenas assinala a diferen- TRO LATINO-AMERICANO
que subjugam, nesse caso, os homos-
EM SEXUALIDADE E DIREI-
ça no outro ou se restringe ao preconceito e sexuais, estes se encontram enredados TOS HUMANOS, 2010, p. 12),
discriminação, mas implica também a nega- muitas vezes em interações violentas.” com inspiração última no
conceito de discriminação
ção de direitos fundamentais, da plenitude de (MACHADO & PICCOLO, 2010, p. 117). constante do art. I da “Con-
venção Internacional sobre
exercício da cidadania. Em outros termos, ins- a eliminação de todas as
formas de Discriminação Ra-
titui-se o mecanismo (bio)político da chamada Na maior pesquisa sobre LGBTIfobia já cial”. (BRASIL, 1969).
“heteronormatividade”, ou seja, a produção e realizada no país, questionou-se vários entre- 10 Um simples abraço en-
vistados acerca do preconceito contra as pes- tre dois homens não é visto
reiteração compulsória da heterossexualida- como demonstração de ca-
de como norma. (LOURO, 2009, p. 90).8 soas LGBTI: rinho, mas de intoleráveis
afeto e intimidade, daí casos
Nesse passo, pode-se conceituar discri- como os a seguir relatados:
em 24 de junho de 2012, na
minação por orientação sexual, expressão e “Indagados sobre a existência ou cidade baiana de Camaçari,
identidade de gênero como qualquer distin- não de preconceito contra as pesso- dois irmãos gêmeos, José
Leandro e José Leonardo,
as LGBT no Brasil, quase a totalidade andavam abraçados quando
ção, exclusão, restrição ou preferência, mo- foram abordados por um
das pessoas entrevistadas respondeu
tivada por orientação sexual e expressão e grupo de 08 jovens que pas-
afirmativamente: acreditam que existe sou a agredi-los, pensando
identidade de gênero, que tenha o propósito tratar-se de um casal homo-
preconceito contra travestis 93% (para afetivo, o que resultou no fa-
de anular ou prejudicar o reconhecimento, 73% muito, para 16% um pouco), contra lecimento de José Leonardo,
consequência das agressões
gozo ou exercício em pé de igualdade de di- transexuais 91% (respectivamente 71% e pedradas na cabeça, e em
reitos humanos e liberdades fundamentais lesões graves em José Le-
e 17%), contra gays 92% (70% e 18%),
andro (MENESES, 2012); na
nos campos econômico, social, cultural ou em contra lésbicas 92% (69% e 20%) e, cidade paulista de São João
da Boa Vista, em 15 de julho
qualquer campo da vida pública9. tão freqüente (sic), mas um pouco me- de 2012, um grupo de jovens
nos intenso, 90% acham que no Brasil agrediu um pai e um filho que
Assim, a LGBTIfobia se apresenta como se abraçavam porque estes
há preconceito contra bissexuais (para foram confundidos com um
um conjunto de ideias e práticas que refletem casal homoafetivo, o que
64% muito, para 22% um pouco). Mas
o preconceito e a discriminação motivados causou vários hematomas e
perguntados se são preconceituosos, escoriações no filho e o dece-
pela orientação sexual, expressão e identida- pamento de uma das orelhas
apenas 29% admitiram ter preconceito do pai (SOUZA, 2012).
de de gênero de LGBTI e, até mesmo, contra contra travestis (e só 12% muito), 28%
heterossexuais confundidos com LGBTI por- contra transexuais (11% muito), 27% 62
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
11.1

11 Na cidade de São Gonça- contra lésbicas e bissexuais (10% mui- 3 - A Universidade e a LGBTIfobia
lo (RJ), o adolescente Ale-
xandre Thomé Ivo Rajão, de to para ambos) e 26% contra gays (9%
apenas 14 anos de idade, foi muito).” (VENTURI, 2009). 3.1 Considerações preliminares
torturado por cerca de três
horas e assassinado por as-
fixia, tendo, como pano de A Universidade, como já dito, representa
fundo, a LGBTIfobia (CAVAL- A partir deste estudo, a conclusão é
CANTI; AZEVEDO, 2010). um lócus de produção de conhecimento para
impactante: cerca de 99% da população bra-
pensar questões sociais (desigualdade social,
12 Hill (2009 apud VIANA, sileira apresenta algum grau de LGBTIfobia,
2012, p. 116-117) compilou discriminação e preconceito, saúde, educação,
várias pesquisas sobre a si- sobretudo em relação às pessoas trans.
tuação da vítima em relação economia, segurança etc.) e propor soluções
aos hate crimes, apurando No Brasil, há pelo menos três déca-
que tal vítima se sente me- para essas problemáticas, bem como fomen-
nos segura, enxerga o mun-
das, o Grupo Gay da Bahia (GGB) realiza levan-
tar as bases da educação com a formação de
do como menos ordenado tamento dos crimes LGBTIfóbicos. Em 2012,
e significativo, tem baixa
professores.
autoestima, apresenta qua- superando os índices dos anos anteriores,
dro depressivo e fica mais Assim, pode-se falar na ideia tradicional da
propensa ao uso de álcool e houve 338 assassinatos de LGBTI (AFFON-
drogas, dentre outros pon- Universidade como promotora do projeto de
tos, e, ainda segundo esse SO, 2013a)13– isso significa uma morte a cada
mesmo autor, em relação País, ou seja, tem o papel de “conceber proje-
às vítimas de crimes que não
26 horas. O Poder Público, até o ano de 2012,
tos de desenvolvimento ou de modernização
os de ódio, as vítimas destes não realizava qualquer tipo de levantamento
delitos têm quase três vezes nacionais, protagonizados pelo Estado, que
mais probabilidade de sofrer de dados referentes a crimes de ódio (bias
ferimentos graves, relatar visavam criar ou aprofundar a coerência e a
níveis mais elevados de crimes; hate crimes), tampouco em relação
medo, ansiedade, relacionar coesão do país enquanto espaço econômico,
contratempos pessoais com aos crimes contra LGBTI, embora há muito
o preconceito, bem como re- social e cultural, território geopoliticamente
venha utilizando os dados do GGB como for-
latar o incidente como tendo
bem definido” (SANTOS, 2011, p. 46). Nessa
um grande impacto sobre ma de monitoramento desse tipo de delito
suas vidas, dentre outros linha, a Universidade constitui um dos atores
sintomas. no país. Entretanto, em julho de 2012, a Se-
sociais a concretizar os objetivos fundamen-
13 Recente pesquisa compi-
cretaria de Direitos Humanos da Presidência
tais traçados no art. 3º da Constituição da Re-
lou vários estudos a respeito da República (SDH/PR) lançou um relatório
da LGBTIfobia entre os anos pública consistentes em erradicar a pobreza e
de 1973 e 2001, chegando à sobre LGBTIfobia referente a 2011, segundo
conclusão de que a “[...] ho- a marginalização e reduzir as desigualdades
mofobia no Brasil tem forte o qual foram denunciadas 6.809 violações de
vínculo com o sexismo (dis- sociais e regionais e promover o bem de to-
criminação baseada no sexo direitos humanos contra LGBTI, com 1.713 ví-
ou gênero) e o preconceito dos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
timas e 2.275 suspeitos, das quais 278 foram
contra o não conformismo
cor, idade e quaisquer outras formas de dis-
às normas de gênero (mu- homicídios e, em 2013, o 2º Relatório Sobre
lheres que têm comporta- criminação, para construir uma sociedade li-
mento considerado mascu- Violência Homofóbica - 2012 apontou 9.982
linizado, por exemplo). Isso vre, justa e solidária (BRASIL, 1988).
significa que homossexuais violações relacionadas à população LGBT,
que tenham características Um exemplo emblemático é o da África do
consideradas compatíveis
dos quais 310 foram homicídios (VIANA, 2014,
Sul. Como lembra Santos (2011, p. 37-39), este
com seu sexo anatômico p. 270). Em ambos os levantamentos, a sub-
tendem a sofrer menos pre-
País lançou nas instituições educacionais, so-
conceito do que mulheres notificação é reconhecida como alarmante.
masculinizadas ou homens bretudo no Ensino Superior (com destaque
com trejeitos femininos. As- No Senado, após mais de 13 anos de tra-
sim, mesmo uma pessoa he- para as “Universidades historicamente bran-
terossexual pode ser alvo de mitação, o polêmico Projeto de Lei da Câmara
homofobia. ‘Se um menino cas”), um amplo programa de enfrentamen-
não gostar de jogar futebol
nº 122/2006 (PLC nº 122/2006), que incluía
to ao racismo; a resistência desse à onda de
ou não adotar algum com- “orientação sexual” e “identidade de gênero”
portamento esperado [de mercantilização do mercado universitário, tra-
alguém do sexo masculino], na Lei nº 7.716/89 (Lei Antirracismo) foi arqui-
vai ser chamado de ‘bicha’ zendo a verve mercadológica dos EUA, Nova
pelos colegas mesmo que vado e tais expressões já foram eliminadas do
seja heterossexual’ [...].” Zelândia e Austrália e, com isso, enfraquecen-
(ANDRADE, 2012). Cumpre Projeto de Lei do Senado nº 236/2012 (Proje-
lembrar que a discriminação do ou eliminando tal iniciativa, mostrando,
to de Código Penal) (VIANA, 2014, p. 272 e ss.)
por orientação sexual e iden-
com essa atitude, que o combate ao racismo
tidade de gênero representa, O projeto encontra forte oposição dos setores
tal qual a violência domésti- consubstancia um importante elemento do
ca e familiar contra a mulher, conservadoras do Congresso Nacional, espe-
um fenômeno que ocorre projeto (político) de País.
com frequência no ambiente cialmente da bancada religiosa fundamenta-
doméstico, onde se dá 42% Ademais, como expõe Herkenhoff (2001),
dos casos de violência, sen-
lista.
a Universidade representa um referencial éti-
do que 38,2% são praticados Assentadas tais premissas, passa-se à
por familiares e em 61,9%
co14 em meio ao pluralismo cultural da socie-
análise de como a LGBTIfobia se faz presente
63 dade brasileira contemporânea:
nas Universidades brasileiras.
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1

Se a Universidade não serve ao uma demanda necessária na pauta para a Uni-


bem comum, descumpre o seu mais versidade se recuperar das crises que enfren-
importante dever ético. O serviço ao ta e, dessa maneira, reafirmar seu papel ético.
bem comum a Universidade dele se
Colocadas essas premissas, aborda-se a
desincumbe proporcionando ensino
seguir a LGBTIfobia no ambiente universitá-
de excelente qualidade; exercendo um
rio, seja ela institucional ou não, e, em segui-
papel civilizatório, progressista, de
debate crítico, dentro da comunidade; da, são aventadas algumas medidas para seu
comprometendo-se com o conjunto da enfrentamento.
população, através das atividades de
extensão; ajudando no avanço de todo o 3.2 - LGBTIfobia na Universidade
leque de saberes humanos, através da
pesquisa. Ensino, pesquisa e extensão “Casal gay é expulso de festa da
segundo critérios éticos, atentando-se USP e registra queixa” (G1, 29/01/2008)
invariavelmente para os fins últimos “Caso de homofobia na USP expõe
que justificam e enobrecem as institui- crescimento da intolerância entre os
ções universitárias. [...] O que justifica a jovens. Pesquisa mostra que problema
Universidade pública e gratuita é o rele- começa na infância” (IstoÉ, 29/10/2010)
vante papel social da Universidade, com “Grupo denuncia suposto foco de
instituição fundamental para pensar o homofobia em Universidade da Capi-
Brasil e os problemas do nosso povo. tal [Porto Alegre]” (Jornal Zero Hora,
08/12/2010)
“Cartazes homofóbicos colados em
Entretanto, neste início do séc. XXI, como
banheiros da Universidade Federal do
bem notou o professor Boaventura de Sousa
Espírito Santo geram revolta entre aca-
Santos (2011, p. 9-11), a Universidade vem pas- dêmicos” (A Gazeta, 25/10/2012);
sando por três crises: a crise de hegemonia, “Estudante denuncia estupro [cor-
fruto do conflito entre o papel tradicional de retivo] em estacionamento da UERJ”
produção da alta cultura, de conhecimentos (UOL,17/05/2013)
científicos e humanísticos e de pensamento “Aluna espancada na UnB foi vítima
crítico, de um lado, e, de outro, a produção de de homofobia: ‘lésbica nojenta’” (Agên-
conhecimentos instrumentais, formação de cia Pragmatismo político, 19/02/2013)

mão de obra qualificada exigida pelo mercado


de trabalho (como, por exemplo, os cursos de A violência contra a população LGBTI, além
“tecnólogo”, a redução da duração dos cur- de multifacetada (discriminação no trabalho,
sos etc.), que resultou por parte do Estado e violência moral, espancamento, torturas,
agentes econômicos (empresas, sobretudo) mutilações, castrações e agressões sexuais
na busca de outras instituições para o papel e, nos casos mais graves, assassinatos com
produção que veio a ser atribuído às IES; a brutais requintes de crueldade), está presen-
crise de legitimidade, reflexo de elitismo da te em todas as esferas da sociedade, desde a
Universidade em resistir ao acesso de classes familiar ��������������������������������������
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universitária. É, portanto, um cons-
populares aos seus quadros; e, por fim, a cri- tructo sociocultural que vai se consolidando
se institucional, resultado do paradoxo entre na personalidade do indivíduo e no meio social
a “reivindicação da autonomia na definição (nos seus mais diversos espaços) desde bem
dos valores e objetivos da Universidade e a cedo.
pressão crescente para submeter esta última A ONG Reprolatina, por meio de um estudo
a critérios de eficácia e de produtividade de realizado em escolas estaduais e municipais
natureza empresarial ou de responsabilidade de 11 capitais no Brasil, reforça a tese de que
social.” a LGBTIfobia é construída desde a infância, e,
Nesse processo, lidar com a temática da por não saber como lidar com a diversidade
discriminação, quer seja ela praticada na so- sexual, as escolas tendem a ignorar as pes-
ciedade ou no meio universitário, nasce como soas LGBTI (REPROLATINA, 2011). Já nos pri- 64
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
11.1

meiros anos escolares, ela se manifesta colo- A seguir, alguns casos de discurso de ódio,
cando a “heterossexualidade” como a única discriminação e violência LGBTIfóbicas que
expressão normal, natural da sexualidade (os desvelam esse fenômeno no seio da Univer-
contos de fadas, com o par mocinho-donzela, sidade.
enraízam a ideia de que felicidade e o amor Em outubro de 2010, tornou-se público
somente�����������������������������������
são possíveis
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em um par heterosse- um caso de violência contra homossexuais na
xual e monogâmico ), o que também guarda
15
Universidade de São Paulo (USP), onde o es-
dos casos o agressor é próxi-
mo da vítima (MACIEL, 2012).
estreita relação com o machismo: tudante Henrique Andrade foi agredido física
e verbalmente em uma festa por três rapazes
14 Por Ética entenda-se o A reprodução do patriarcado, ne- que estavam incomodados pela presença do
“[...] esforço do espírito hu-
mano para formular juízos cessária pela sucessão de trocas de acadêmico e de seu namorado no ambiente
tendentes a iluminar a con- gerações não teve reais dificuldades: os
duta das pessoa, sob a luz de (GOMES, 2010). No mesmo ano, foram divul-
um critério de Bem e Justiça” seres humanos se socializam com pou-
(HERKENOFF, 2001, p. 11-12). gados, pelo menos, quatro casos de estu-
ca idade; aprendem quase ao mesmo
tempo a linguagem e as expectativas
dantes americanos que cometeram suicídio
15 Tal visão, além de pade-
cer de machismo, invisibiliza sociais impostas pela estrutura pa- após sofrerem agressões e humilhações nas
outros modelos de vivência
afetiva, tais como o polia- triarcal, reprimindo os transgressores Universidades que frequentavam, o que, inclu-
mor, relações livres, afinal as
pessoas têm liberdade para,
desde a infância (entre os meninos a sive, motivou o atual presidente dos Estados
desde que maiores de idade, pior injúria é precisamente menina) (CA- Unidos da América, Barack Obama, a fazer um
de forma consensual e em
pé de igualdade, viver as re- PELLA, 2002, p. 34).
lações e arranjos familiares
que desejarem, cabendo ao
Estado apenas resguardar a É comum que piadas e apelidos sejam as
parte mais fraca da relação
(mulher, criança, pessoa ido- primeiras demonstrações de LGBTIfobia nos
sa ou com deficiência etc.)
ambientes escolares e universitários. Como
16 “A perspectiva institu- essa prática costuma ser encarada como
cional, por sua vez, enfatiza
a importância do contexto inofensiva e irrelevante, perpetua-se até de-
social e organizacional como
efetiva raiz dos preconcei- sencadear outros tipos de violência − como a
tos e comportamentos dis-
criminatórios. Ao invés de física e sexual –, estando, de tal maneira, tão
acentuar a dimensão volitiva
individual, ela volta-se para
“naturalizada” que não se percebe sua sutil
a dinâmica social e a ‘nor- presença. Infere-se, então, ante a inexistência
malidade’ da discriminação
que ela engendra, buscando de programas educacionais de enfrentamen-
compreender a persistência
da discriminação mesmo em to à LGBTIfobia nas escolas, que os egressos
indivíduos e instituições que
rejeitam conscientemente do Ensino Médio irão tornar-se universitários
sua prática intencional”, daí que continuarão reproduzindo as práticas e
se poder falar em “discrimi-
nação institucional e privilé- os discursos discriminatórios dessa natureza.
gio” (a reprodução e perpe-
tuação da discriminação tem A condescendência com que os primeiros
como fonte a situação privi-
legiada usufruída por grupos sinais da LGBTIfobia são tratados contribui,
dominantes), “discrimina-
ção institucional e direitos
imensamente, para a sua propagação e cria
especiais” (inexiste direito uma ambiência permissiva para o cometi- Gilmara Oliveira
“especial” quando se pre-
tende, com tratamento anti- mento de crimes ainda mais graves contra as
discriminatório, a concreção discurso reconfortante aos jovens que ainda
do princípio da igualdade pessoas LGBTI na Universidade.
sensível às circunstâncias
estão em processo de autoconhecimento em
históricas de determinado Tem-se aí o que se chama de LGBTIfobia
relação à sexualidade (GOMES, 2010).
contexto social) e “discrimi-
institucional16, vale dizer, as formas pelas
nação institucional e mérito” Outro caso relatado na pesquisa de San-
(a ideia de “mérito” baliza a quais instituições e pessoas, mesmo cons-
sociedade para avaliar, quan- tos, Gomes e Mendes (2011, p. 7) com gradu-
to a este aspecto meritório, cientemente contrárias à discriminação, dis-
as características e padrões andos e graduandos do Centro de Ciências
típicos dos privilegiados, daí criminam pessoas em função de sua orienta-
que tais benefícios não sejam
Agrárias, município de Areia (PB), Campus II,
ção sexual, expressão e identidade de gênero
enxergados pelo que são: da Universidade Federal da Paraíba, demons-
privilégios odiosos) (RIOS, presumidas, relegando-as à invisibilidade em
2008, p. 135 e ss.). tra as práticas degradantes de humilhação de
seus procedimentos administrativos, normas,
estudantes LGBTI:
65 leis.
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1

De acordo com o relato do aluno tacionamento, o primeiro abordou-a, dizendo


do curso de Zootecnia, o trote dos ca- “eu vou fazer você gostar de homem” e, em
louros/feras do Campus se dá através seguida, a estuprou (AFFONSO, 2013b).
de um ou dois banhos durante a noite
Em 17 de setembro, o aluno da pós-gra-
pelos veteranos dos cursos. No entan-
duação em História pela UFRGS e professor
to, quando o calouro é homossexual
de História, Diego Soca foi ameaçado por um
assumido ou possui trejeito efeminado,
os banhos frios se multiplicam, além de estudante da graduação do mesmo curso em
ocorrerem ao longo das madrugadas uma rede social com a seguinte mensagem:
da primeira semana de aula. Os alunos “Se eu te ver na rua, tu vai contribuir para o
também são expostos, concomitante- movimento LGBT ao adicionar um número
mente, a situações constrangedoras nas estatísticas mentirosas e fraudulentas
que variam entre banhos de baldes de que vocês inventam sobre violência ‘homofó-
urina, até a própria agressão física, du-
bica’” (OLIVEIRA, 2013).
rante os tais “banhos”:
Em 2010, um jornal estudantil da Faculda-
Em um dos banhos frios, quase fo-
de de Farmácia da Universidade de São Paulo
mos agredidos por um aluno que nos
ameaçava com um pau em punho, não (USP), intitulado “O parasita”, veiculou uma
fosse pela intervenção de uma amiga publicação em que encorajava os alunos a
que interviu e evitou a agressão. Eles lançar excrementos humanos em estudantes
ainda queriam jogar na gente um sapo LGBTI em troca de entradas para uma festa:
e um balde com urina (Aluno do curso
de Zootecnia, 22 anos). Lance-merdas (sic) e Brega será
na Faixa - Ultimamente nossa gloriosa
Recentemente, uma notícia envolvendo o faculdade vem sendo palco de cenas
estupro de uma estudante da Universidade totalmente inadmissíveis. Ano passa-
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi veicu- do, tivemos o famoso episódio em que
dois viadinhos trocaram beijos em uma
lada e, pela repercussão que causou, trouxe
festa no porão de med. Como se já não
à tona uma prática inviabilizada na discrimi-
bastasse, um deles trajava uma cami-
nação por orientação sexual: o “estupro cor-
seta da Atlética. Porra, manchar o nome
retivo” de lésbicas. Durante uma recepção de de uma instituição da nossa faculdade
calouros, a vítima beijou um rapaz e posterior- em território dos médicos não pode
mente uma moça; quando a vítima foi ao es- ser tolerado. Na última festa dos bixos,

66
Maressa de Souza
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
11.1

os mesmos viadinhos citados acima, via, e acredito que ainda há, um desejo
aprontaram uma pior ainda. Os seres se incontido daquele em denegrir a ima-
trancaram em uma cabine do banheiro, gem público da parte autora por discor-
enquanto se ouviam dizeres do tipo “Aí, dar de seus anseios relacionados a eco-
tira a mão daí.” Se as coisas continua- nomia íntima de sua sexualidade. [...] não
rem assim, nossa faculdade vai virar resta dúvida que a requerente foi vítima
uma ECA. Para retornar a ordem na nos- de homofobia no ambiente de trabalho,
sa querida Farmácia, O Parasita lança ao ter sua orientação sexual repudiada
um desafio, jogue merda em um viado, de forma indevida. E isso constitui vio-
que você receberá, totalmente grátis, lação ao direito da personalidade, em
um convite de luxo para a Festa Brega especial, à honra e à sua liberdade de
2010. Contamos com a colaboração de cidadão. (MARANHÃO, 2015)
todos (LOBEL; CAPUTO, 2010).
Estes são alguns dos inúmeros casos em
Na Universidade Federal do Maranhão que a LGBTIfobia está presente no ambiente
(UFMA), em observação realizada in loco, po- universitário. Dos insultos corriqueiros fa-
dem ser encontradas algumas mensagens de zendo piada com referência à condição de ser
ódio contra LGBTI em paredes, portas, salas. LGBTI, até crimes hediondos, como o estupro
Um exemplo é a mensagem a seguir, encon- são violações de direitos que, não raro, são
trada em uma cabine de estudo individual da subnotificadas. Os episódios se repetem país
Biblioteca Central: “Os gays vão morrer. Está afora e atestam que as instituições de ensino,
planejado daqui para o final do ano um mas- do básico ao superior, não estão preparadas
sacre (sic) aqui na UFMA, pelo menos algum para lidar com essa população, os professores
de um curso terá que morrer”. Ameaça não carecem ser sensibilizados e passar por uma
concretizada, o que não paga a gravidade da formação que os possibilite trabalhar esses
mensagem. temas em sala de aula e evitar que estudantes
Foi também na UFMA um caso recente LGBTI sejam menos prejudicados por proble-
em que o professor Glécio Machado fora in- mas como tristeza, depressão, baixa autoesti-
sultado por um aluno em sala de aula e fora ma, fraco rendimento escolar e evasão decor-
dela que, questionando sua metodologia e rentes da discriminação que sofrem.
formação acadêmica, passou a fazer ofen- A situação de vulnerabilidade da população
sas verbais homofóbicas contra o professor LGBTI urge que uma legislação mais efetiva e
(DEAN, 2015). O professor ajuizou ação por rigorosa, centrada especialmente em propor-
danos morais e o universitário foi condenado cionar assistência psicossocial à vítima, entre
a pagar R$ 7 mil reais de indenização ao pro- em vigor para garantir a segurança e demais
fessor, como se pode ler no seguinte excerto direitos básicos dessa parcela da população
da sentença: que sempre foi vítima preferencial da discri-
minação. Em que pese tal fato, o Estado bra-
Ao que me parece, o comportamen- sileiro pouco ou nada tem feito com relação ao
to perpetrado pelo requerido atingiu
enfrentamento da LGBTIfobia no meio educa-
ares de insustentabilidade, na medida
cional, aspecto que será discutido a seguir.
em que este, não satisfeito com seus
acharques em sala de aula, passou a
ofender, publicamente, o requerente em 3.3 - O Estado Brasileiro e a LGBTIfobia: o
mídias sociais e grupos de comunicação que está sendo feito?
comunitários, a demonstrar, sem dúvi-
da alguma, sua intolerância em relação A Constituição Cidadã, como já trabalha-
ao demandante. Registre-se, que tal do anteriormente, é categórica ao falar no
comportamento ultrapassava, e muito, enfrentamento do preconceito e da discrimi-
qualquer justificativa calcada no ques- nação, quaisquer que sejam os motivos, como
67 tionamento acadêmico do requerido em um dos meios para construir uma sociedade
relação ao requerente. Na verdade ha-
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1

justa, igualitária. O Estado Democrático de Di- lei e outros atos normativos, bem como a im- 17 Dentre tantos exemplos:
Portaria Normativa MPOG
reito, como se identifica o Brasil, se concretiza plementação de políticas públicas para equa- - nº 1/2007, que estabelece
orientações aos órgãos e en-
e mostra sua força quando há o respeito e a cionar a LGBTIfobia, sobretudo no que diz tidades do Sistema de Pes-
soal Civil da Administração
possibilidade do exercício dos direitos básicos respeito ao ambiente educacional, já existe, Federal assistência à saúde
e a vida em sociedade. o que falta é a vontade política dos chefes do suplementar do servidor
ativo, inativo, seus depen-
Em 25 anos da nova ordem constitucional, Poder Executivo e, sobretudo, do Legislativo dentes e pensionistas; Por-
taria MS nº 1.707/2008, que
a população LGBTI encontra-se num dilema. para efetivá-las. institui, no âmbito do SUS, o
Processo Transexualizador,
De um lado, o reconhecimento e a efetivação Apesar desse panorama, não se pode ig- a ser implantado nas unida-
des federadas, respeitadas
dos seus direitos por parte dos Poderes Exe- norar que a IES gozam de autonomia didáti- as competências das três
cutivo17 e Judiciário18; de outro, sofre de um co-científica, administrativa e de gestão fi- esferas de gestão); Portaria
MPOG nº 233/2010, esta-
quase absoluto vácuo legislativo no Congres- nanceira e patrimonial, a teor do art. 207 da belecendo o uso do nome
social de travestis e tran-
so Nacional19. Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), o que sexuais no âmbito da Admi-
nistração Pública Federal;
Existem projetos legislativos dos mais lhe dá plena autorização para, per si, adotar a Portaria MPS nº 513/2010
variados para assegurar direitos à população iniciativas para o enfrentamento LGBTIfobia. (define a indicação de de-
pendentes para concessão
LGBTI, entretanto, todos eles, sem exceção, Para tanto, no tópico seguinte são traça- de benefícios previdenciá-
rios, estendendo a casais de
têm encontrado forte resistência por parte da dos alguns pontos que podem contribuir para homossexuais, igualdade
de condições com casais de
bancada religiosa fundamentalista (o polêmi- esse intento. heterossexuais); Portaria
ME nº 1.612/2011 (assegura
co PLC n.º 122/2006 é um clássico exemplo), às pessoas trans o uso do
que não hesita em acionar pânicos morais20 4 - Enfrentamento da LGBTIfobia na Uni- nome social no MEC) (OLI-
VEIRA, 2012, p. 108).
deturpando os projetos. versidade: algumas propostas
18 Foi no Judiciário que os
Nesse processo, emblemático o fato de direitos de LGBTI foram
que o Kit anti-LGBTIfobia (o qual era chamado A autonomia universitária representa um inicialmente assegurados:
reconhecimento dos pares
de “Kit gay” pelos detratores), uma das ações elemento essencial no processo de combate homoafetivos como socieda-
de de fato, posteriormente
do Programa Escola Sem Homofobia − que à LGBTIfobia, pois possibilita às IES o poder, uma série de decisões de
tribunais reconhecendo a
consistia na utilização de materiais, dentre dentre outros pontos, de criar mecanismos, união estável homoafetiva
eles, vídeos para trabalhar a questão da dis- programas para esse fim. até culminar na decisão do
STF em junho de 2011 (Ação
criminação e agressões LGBTIfóbicas no am- No processo de equacionamento das re- direta de inconstituciona-
lidade nº 4.277 e Arguição
biente escolar − foi vetado pela presidente feridas crises que atingem a Universidade, de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº
Dilma Roussef, após a bancada religiosa fun- Santos (2011, p. 08-10) acredita que as ativi- 132) assegurando tal direi-
to, em igualdade de direitos
damentalista ameaçar que chamaria o então dades de pesquisa e extensão desempenham e deveres com os pares he-
Ministro da Casa Civil, Antônio Palocci, para importante papel para dar às Universidades teroafetivos, e, mais recen-
temente, a regulamentação
explicar como havia multiplicado o seu patri- uma “[...] participação ativa na construção da do casamento civil homoa-
fetivo pelo Conselho Nacio-
mônio em mais de vinte vezes entre 2006 e coesão social, no aprofundamento da demo- nal de Justiça (Resolução
nº 175/2013), obrigando os
2010, quando fora deputado federal pelo PT/ cracia, na luta contra a exclusão social e a de- cartórios a realizar a união
gradação ambiental, na defesa da diversidade estável, a conversão da
SP (VITAL DA CUNHA; LOPES, 2012). união estável em casamento
Como se vê, a implementação de políticas cultural”. Assim, a Universidade deverá pro- e a celebração do casamento
civil homoafetivos.
públicas de garantias de direitos à população mover “[...] atividades de extensão [que] de-
vem ter como objetivo prioritário, sufragado 19 As previsões legais
LGBTI encontra-se obstacularizada no âmbito que falam em orientação
parlamentar federal, o que dificulta, em boa democraticamente no interior da Universida- sexual e/ou identidade de
gênero, tal como na Lei nº
medida, lidar com a LGBTIfobia no ambiente de, o apoio solidário na resolução dos proble- 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha), não tratam do tema
escolar e universitário. mas da exclusão e da discriminação sociais” específico da diversidade se-
xual e de gênero; os projetos
De qualquer maneira, no âmbito do Pro- para dar voz aos grupos excluídos e discrimi- que o fazem se arrastam por
nados (SANTOS, 2011, p. 74). décadas no Congresso Na-
grama Nacional de Direitos Humanos, desde cional.
sua primeira versão em 1996 até a última em Desta forma, como já referenciado, no
20 Situação em que “um
2010, tratam de enfrentamento da LGBTIfo- PNDH III (2010), tem-se como objetivo criar grupo social que se presume
bia e formação dos profissionais de educação núcleos de pesquisa e promoção da cidadania representar alguma forma
de perigo é associado a de-
para lidar com a temática da diversidade se- do segmento LGBTI em Universidades públi- terminadas características,

xual e de gênero. cas.


No conjunto de esforços para debater esse 68
As bases para a aprovação de projetos de
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
11.1

Alexsandro Rodrigues, um dos coordena-


dores do referido seminário e do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Sexualidades/UFES,
afirmou que são muitos estudos para en-
tender o real motivo que provoca aversão a
algumas sexualidades, de modo que tais ma-
nifestações de LGBTIfobia tornaram-se mais
frequentes porque o trabalho desenvolvido
pelo grupo começou a incomodar outras pes-
soas (NOGUEIRA, 2012).
O professor Marco Aurélio Máximo Prado
sustentou, ainda, que algumas Universidades
já combatem a LGBTIfobia com algumas me-
didas que, mesmo sutis, trazem um conforto,
como a adoção do nome social de travestis e
transexuais no registro escolar21, desenvol-
vem políticas internas de debate e conferên-
cias sobre o assunto, e incluíram disciplinas
Josi Tainá em alguns cursos sobre o tema (NOGUEIRA,
tema no ambiente universitário, em 2012, foi 2012).
realizado na Universidade Federal do Espírito É importante destacar que um dos papéis
Santo (UFES), o II Seminário de Educação, Di- principais da Universidade é promover o
versidade sexual e Direitos Humanos. respeito pelas diversidades, sejam culturais,
No evento, o professor Marco Aurélio Má- sociais�����������������������������������
, sexuais ou de gênero e, além dis-
ximo Prado, coordenador do Núcleo de Direi- so, promover a inclusão social, com vistas a
tos Humanos e Cidadania LGBT da Universida- suprimir a desigualdade social e subsidiar a
de Federal de Minas Gerais (UFMG), afirmou emancipação dos segmentos sociais vulnera-
que as Universidades não estão preparadas bilizados.
para combater a LGBTIfobia. Este seminário Analisando o problema da LGBTIfobia nas
aconteceu na mesma semana em que um car- Universidades, nota-se que, como verificado
taz com discurso de ódio destinado a LGBTI por um estudo da ONG Reprolatina (2011), as
foi divulgado na porta de um banheiro de um manifestações discriminatórias dessa nature-
21 O uso do nome social já
dos campi da UFES. O cartaz continha a frase za se desenvolvem no ambiente da educação
existe em������������������
vários órgãos fe-
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derais e estados, dentre os “Homossexuais de merda! Morram todos!”. O fundamental e, pela falta de enfrentamento,
quais citamos a Administra-
ção Pública Federal (Por- professor, que faz parte do corpo docente da perpetuam-se até chegar no Ensino Superior.
taria MPOG nº 233/2010), É necessário que haja uma reforma no
o Ministério da Educação UFMG, disse também que:
(Portaria ME nº 1.612/2011) modelo de educação proposto pelas esco-
(OLIVEIRA, 2012, p. 115),
bem como, segundo o site [...] infelizmente as Universidades las, para que a LGBTIfobia – que tão cedo é
da Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, não estão preparadas para lidar com inculcada – possa ser combatida de manei-
Travestis e Transexuais esses temas. Na minha Universidade
(ABGLT) (www.abglt.org.br),
ra eficaz. Menezes (1987, p. 17) afirma que a
Universidade Federal de São também ocorreu em um dado momento educação por si só não romperá o ciclo de de-
Carlos, Instituto Federal de
Santa Catarina, Universidade uma série de manifestações homofóbi- pendência cultural e econômica de um povo,
Federal do Paraná, Univer- cas. Em um ato como esse, é necessária
sidade Federal de Sergipe, todavia é somente através dela que se gera e
Conselho Federal de Serviço a posição da reitoria e dos diretores de
Social e no âmbito da admi- potencializa todo o processo de transforma-
unidade expressa sobre o tema para
nistração pública dos esta-
dos do Rio Grande do Sul, que seja pensada uma política interna
ção do indivíduo e da sociedade, incluindo a
Pará, Piauí, São Paulo, Per-
de combate à homofobia dentro a Uni- emancipação dos grupos vulneráveis.
nambuco, Paraíba, Rio de Ja-
neiro e Mato Grosso do Sul. versidade (NOGUEIRA, 2012). Diante desse quadro, não é de se estra-
nhar que os educadores, idealmente os prin-
69
cipais combatentes da LGBTIfobia durante o
A LGBTIfobia na Universidade: algo cheira a podre no reino da Dinamarca REVISTA TRÊS [ ] PONTOS
11.1

período escolar, “não se sentem preparados, As propostas acima, longe de serem


consideram os alunos imaturos e temem a exaustivas, devem ser democraticamente dis-
reação das famílias ao tratarem do tema em cutidas no ambiente universitário, com todos
aula”, como bem observou a doutora Magda os atores da comunidade acadêmica, possi-
Chinaglia (GOMES, 2010). bilitando a participação de todos os atores e,
O trabalho não poderia se deter em ape- sobretudo, construindo um ambiente de res-
nas fazer um diagnóstico do problema, pelo peitador e abertura a todos os tipos de diver-
contrário, tem também por mote aventar sidade, sejam elas quais forem.
medidas de erradicação da LGBTIfobia, con-
tribuindo efetivamente para que os casos de 5 - Conclusão
discriminação diminuam ou cessem (MEN-
DES, 2012, p. 49) Como demonstrado no presente trabalho,
urge que a LGBTIfobia no sistema educacio-
• Promoção e divulgação de even- nal como um todo seja reconhecida como um
tos contra a discriminação sexual problema pela sociedade e pelo Poder Públi-
destinados a toda a comunidade co, o que propicia o debate necessário para
acadêmica e não apenas aos discen- implementar ações efetivas para que possa
tes LGBTI ou aos cursos que lidam
ser erradicada.
com essa questão diretamente;
A LGBTIfobia, assim como outras formas
• Fazer a oferta de disciplinas
de discriminação, exige da Universidade uma
sobre gênero e diversidade sexual
para todos os cursos, vez que a edu- nova postura, não apenas de pensamento,
cação se mostra como mecanismo mas também de postura, dando espaço aos
de vital importância no combate a grupos sociais vulneráveis, tomando a dis-
qualquer forma de preconceito; criminação e violência que sofrem um objeto
• Oferecer suporte psicossocial de estudo e como parceiros para pensar suas
gratuito para os alunos vítimas de situações de opressão e, conjuntamente, bus-
LGBTIfobia e seus parentes, tenha
car as soluções para as mesmas.
a discriminação ou violência ocorri-
Foram sugeridas algumas propostas para
do no seio familiar ou no ambiente
fomentar o debate e as ações no processo de
acadêmico;
• Criação e promoção de cursos erradicação da LGBTIfobia, contudo um de-
que capacitem os estudantes a se- bate amplo, democrático em cada IES, se faz
rem agentes do combate ��������
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LGBTI- necessário para que tal processo possa estar
fobia; atento às peculiaridades de cada caso, não se
• Ampla divulgação de cartazes e prendendo, apenas, ao aspecto punitivo, mas
folders que conscientizem os alunos que, também, vislumbre ações no campo pe-
de que a LGBTIfobia é crime, mesmo
dagógico e de assistência psicossocial para
não tipificado de forma específica,
acolhimento da vítima.
que pode e deve ser combatida por
Cabe à Universidade o papel ético de bus-
todos e que a condição das pessoas
LGBTI é manifestação sadia e natu- car o bem comum, de ajudar no projeto políti-
ral da sexualidade humana, tal qual co de construção de um país justo, igualitário,
a heterossexualidade; fraterno e livre, no qual não mais tenham lu-
• Destinar uma parte do orça- gar o preconceito e a discriminação.
mento da Universidade para o com-
bate à LGBTIfobia.

70
REVISTA TRÊS [ ] PONTOS Mylla Maria Sousa Sampaio e Thiago G. Viana
11.1

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Recebido em: 31 de outubro de 2013.


Aprovado em: 2 de agosto de 2015.

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