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ta não possa ser entendida como uma conseguiu, ao criar os símbolos para
mera representação da fala tenha re- as vogais, o ajuste que a poesia épica
calcado firmemente a possibilidade de precisava para ser registrada na escri-
se considerar o campo do oral tam- ta. A volumosa tradição oral grega
bém como algo que se recalca quan- ganha então memória fora do corpo,
do se põe a escrita como centralidade passa a dispensar o rapsodo, o menes-
da vida comunitária. Isso ocorre por- trel, como portadores de textos da tra-
que em geral a escrita é contraposta dição, para ganhar o mundo na for-
apenas à fala cotidiana, à fala prosaica ma de memórias portáteis e, como
e não aos gêneros textuais mais ela- mostra Havelock, abrir também as
borados das culturas orais, os cantos, portas da escrita prosaica e conceitual,
a poesia popular, os textos da infân- que revolucionou o ocidente, a partir
cia e outros. de Platão.
Esse nosso esforço de conver- No capítulo 9 de Prefácio a Platão
gência teórica entre percursos de encontramos um interessante estudo
conhecimento aparentemente tão di- da “Psicologia da declamação poéti-
vergentes vem se mostrando absolu- ca” (1996b, p. 163), que tenta descre-
tamente necessário para compreender ver como os menestréis gregos exer-
e repensar o ensino da escrita e da lei- ciam influência sobre os cidadãos
tura em culturas complexas, como a utilizando um complexo sistema de re-
nossa, em que comunidades oralistas cursos mnemônicos (a mousike ou o
e de escrita se misturam e se tensio- que Platão, ao rejeitá-la, chamou-a
nam, escondendo um conflito milenar mimesis) que envolvia sensualmente a
– conflito esse que hoje parece encon- platéia. A técnica associava recursos
trar na emergência do suporte eletrô- poéticos da declamação, uso de ins-
nico uma espécie de síntese complexa trumento musical e dança, de tal for-
desses quase três milênios de domínio ma que o esforço de memorizar a pa-
da cultura escrita e de progressivo afas- lavra fosse minimizado pelo prazer
tamento das culturas orais. sensual convocado pela associação
Havelock pesquisou detalhada- entre linguagem oral e linguagem cor-
mente a entrada e os efeitos do alfa- poral. Esse envolvimento catártico
beto na Grécia. Suas obras Prefácio a chega a ser comparado por Havelock
Platão (1996a) e A revolução da escrita aos prazeres do sexo e da alimenta-
na Grécia e suas conseqüências culturais ção (1996b, p. 170)
(1996b) mostram que a cultura oralis- Essa pantomima entre menestrel
ta grega, que já dispunha dos recur- e público lembra os rituais e folguedos
sos estéticos da epopéia, do teatro e ainda existentes na cultura oral brasi-
de uma refinadíssima retórica, deu um leira em que instrumentos de percus-
imenso impulso ao uso da escrita con- são ou mesmo de cordas animam
sonantal oriunda dos Fenícios, porque cantorias festivas e religiosas durante
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