Duuub

OS ABISMOS DE DEUS

A. ALVES GODINHO
Edições Colibri
Colecção: TRIBUNA LIVRE
DAS PEDRAS TAMBÉM BROTA ÁGUA
Jerónimo Nogueira

AMORES IMPERFEITOS E A FORMA DA FALA SONHADA NO MUNDO ÀS AVESSAS
Fátima Andersen
D E D 

RÓSEA LITANIA
Maria do Sameiro Barroso

ARES DE LUME
Jerónimo Nogueira

RATO DO CAMPO...
Carlos Garcia de Castro

MUNDO ENTRETECIDO
Ana Viana
Escolha e Fixaçá

MURMÚRIOS
Alberto T. Assunção
por Jerónimo I
QUARENTA E DUAS CARTAS Que não de amor
Fátima Andersen
CURSIVO MENOR
António Vera
FLAUTA DE PAN
Nicolau Saião
NÉVOA COM FLOR AZUL NO MEIO
Dimíter Ánguelov
FILUSOFANDO Uma Viagem pela Cultura Portuguesa
Jorge Chichorro Rodrigues

PARTITURA "COMO SE A FINITUDE FOSSE ETERNA, SABENDOSE QUE NÃO O
É"
Fátima Andersen

DOR E POESIA
Albertino Calamote
NA MEMÓRIA MORAM OS MUITOS MAIS DE MIM
Jerónimo Nogueira
FRAGMENTOS POÉTICAS
Maria Ribeiro Artur
PERCURSOS
Márcia Balhau
PONTA DO SOL
Benvinda Ladeira
A SOMBRA DOS MOMENTOS FELIZES
Carlos Amaral
A PORTA DE REIXA
Ofélia Bomba
NAQUELE TEMPO NOUTRO LUGAR Antologia Poética (19581974)
Carlos Monteiro dos Santos
O CURRAL DAS BEZERRAS
A. Alves Godinho
JINGANIS História de um Amor Cigano
Vanda do Nascimento Trindade
MARGINAIS
Nuno Inácio
SONS DE URBANIDADE Poemas
JoãoMaria Nabais
ESTÓRIAS DA ILHA E DO SOFOCO Contos
Luís Ladeira
O ESPELHO QUE REFLECTE
Emília Ferreira
OS ABISMOS DE DEUS
A. Alves Godinho

Edições Colibri
Faculdade de Letras de Lisboa
Alameda da Universidade
1600214 LISBOA


OS ABISMOS DE DEUS
A. Alves Godinho
Escolha e Fixação do Texto
por Jerónimo Nogueira
Edições Colibri
Catalogação na Publicação Biblioteca Nacional
Nogueira, Jerónimo, 1957
Os abismos de Deus. (Tribuna livre)
ISBN 9727722369

CDU 821.134.394"19"
Título: Os Abismos de Deus
Autor: Jerónimo Nogueira
Edição: Fernando Mão de Ferro
Capa e Concepção Gráfica: Francisco Romão
Ilustrações da Capa e Interior: José da Cunha
Foto da Contracapa: "O Arlequim" de Lídia Alves Nogueira
Execução Gráfica:
Colibri Soc. de Artes Gráficas
Depósito Legal n.º: 163 444/01
Tiragem: 1000 exemplares
LISBOA, Edições Colibri, Outubro, 2001
Apoio: Câmara Municipal de Estarreja

"Amadurecer sem cair: eis a cegueira dos frutos do céu!"
Augusto Coucho (19561999)
Doo estes fragmentos a Augusto Coucho pelo modo como,
sem pressa e sem descanso, jogou maravilhado a vida.
dou de ver o que não vi
vim dos presságios de deus
feito todinho d'enredos
envolto sob segredos
no sangue casto dos meus
tudo sem tardes nem cedos
mas o amor prometido
sem vaisvens sem vaidade
foi semeando saudade
vejom'agora 'squecido
vem do céu outra vontade
De onde brotam as perguntas? Do cosmos em fluxo perpétuo do homem
renascido.
Extraí da semente adormecida o tempo mágico das visões.
fazem felinas as fad
E o amor desvelouse na cegueira mãe dos fascínios.
Construímos custosos destinos num ruir frequente de paisagens.
Reconciliarnosemos com deus?
As ideias queremse como as almas: sãs e salvas!
Os desejos aventurosos não são linhas contemplativas.
Pintam revoltosas paisagens.
Interioridade ou exterioridade?
Ó incompletude humana, não sabes o que em ti é eterno?
dolores
dolores das perdições
castas carícias ouradas
ond'a nu as emoções
fazem felinas as fadas
Toqueite como a um violoncelo. Aconchegámonos e soaste ao meu
encontro
a balbuciar paixões. Das bocas estupefactas desprenderamse
silêncios
a perguntar se será sempre assim...
A fé naturaliza o destino.
A humildade persiste como limite divino do homem.
Quando alcançaremos a fronteira da graça?
A necessidade temnos previsíveis. A liberdade tornanos
incontroláveis.
Fartome de amanhar as consciências sem trabalho dos alunos.
Velho cavar em terra pedregosa.
Ser inteligente? Mas de que vale se não sou feliz?
luxis mundis
a vertigem é a luz
q'o vício sereno mente
mede bem teu alcatruz
não vá qu'ele s'arrebente
As coisas do carinho têm o seu coito no para sempre.
Olho em redor e sintome só, incompreensivelmente só.
Mas perguntome: como poderei ser só com tanta gente dentro de
mim?!...
A mágoa ou nos adormece ou nos apodrece.

O desprezo é como a gadanha: corta firme e cerce.

De quem será a comunidade última? Da vida ou da morte?
Abremse os leques divinos e duvidas da tua cruz.

O teu mar não tem promontório de horizontes sem fronteiras?
Tradição e revolução: a humanidade como repasto de deuses e
homens.
vou d'andar por'í fora
o pouco ou muito que creio
talvez provação de deus
trazme roend'o receio
de engrossar os ateus
'inda posso ser feliz
nas confusas desta terra?
anda vá lá me lo diz
não tenho medo da guerra!
da oração faço freio
esmolo e regateio
peregrino estafado
vou d'andar por'í fora
duvidando horaahora
do porquê do meu pecado
A amargura não faz os dias insuportáveis, fálos fatais!
Vertigens do impossível, não me abandoneis. Nem ante a morte!
O que não existe não consola. Por isso sou crente na presença dos
deuses.
A Verdade é a "virtus" que nos faz vermes?
Peregrinos da eternidade, é isso que nos faz felizes?
Toda a obra é um lugar de esperança, um compromisso de futuro.
Estamos onde não estamos porque continuamos.
fonte de lágrimas
seja fome ou colheita
seja saúd'ou maleita
sej'alegria ou penar
o todo qu'em tudo 'spreita
soluça no seu vagar
Tirito nos desaconchegos do caminho.
casa da árvore da mur
Venha deus co'um'outra chama!
Decidir é recusar as ilusões.

Não sintas a minha pena, sente a tua. Sê lúcido.

Esperança sedutora, converteme ao infindo desejo de não mais
sofrer...
Desamarra os desejos, ata os vícios. E, brinquedo de deus, sê
petiz.
Um pouco mais de impossível retempera as vontades.
casa da árvore da muralha
sob o nevoeiro em véu
marvão abraça a terra
no aconchego da serra
faz desta casa teu céu
com'um castelo sem guerra
A ilusão do fácil faznos impessoais, ou seja, desfaznos.
Os políticos são sabichões descartáveis ávidos de plástico.
Depois dos amores intempestivos que mais nos restará?
Natais com gemidos de ninguém?
Danças do crepúsculo, os dias e as noites entrebeijando olhares.
País do sítio dos muros, parto para longe. Busco a liberdade
comprometida.
"A complexidade urbana restringeme. Não há vida com'a do campo!"
(velhinho grafiti contra o betão despótico e o trânsito caótico)
jorna
mãos adentro de mim
à 'scrita ponho arado
e nessas terras sem fim
sou feliz em ser criado
No cativeiro do pecado, a violência do uso.
Nas milícias da fé, precipito a comunhão. Nunca será vã?
Desprezome tanto quanto os deuses estão ausentes.
Ignorarei o êxodo da graça?

Sempre que um homem espezinha outro não é preciso perguntar pelo
purgatório.
Ou será mesmo a peçonha do inferno?
Não vale de nada não dizeres nada.
Escravos da globalização? Mas já alguma vez fomos outra coisa?!
Surpresas profundas dos abismos, velai por nós.
Paladares ciclónicos dos alfabetos, estalejai muitos mais mundos!
aluas
descubro teu corpo nu
não sei bem se serás tu
teus trejeitos mo dirão
desvelo da lua perdida
é quando a noite da vida
s'alumia de paixão
Na correlação do gozo o sentido é perfeito. Nunca riste de ti?
Não repitas a paisagem, recriate nela. Dá sentido d'além.
A beleza distende o tempo. Eterna sejas tu, ó bela!
A arte recompõe o caos. Alistate nas hostes dos aprendizes
fazedores de mundos.
Os livros são como os homens: nascem, crescem e partem. Para onde
irão?
Sofro a moléstia dos medos no insaciável das veredas do universo.
Vou vivendo da vontade que não se detém. Comprometome.
alba
tão bela que tu serias
teu corpo tecido mar
toda marés e rochedos
qu'eu pudesse naufragar...
O profeta inocenta razões no instinto do sagrado.
As poluições do lucro já matam no futuro!
Testemunhos do divino, darmonos como discípulos da cruz, é amar
até à loucura?...
Não amputes a tua fé mesmo que te disputem as vestes.
Da intenção de domínio à atenção do fascínio se distende o homem.
Decadência e renascimento nos tropeços da história.
Vê cheio, vê fundo, vê forte. E, cego, parte para novas
perfeições.
Só resta ao viandante a tez irada? E o rubor do desejo?!
desejos
reconquistando desejos
alegrias e amores
q'a vida nos faça felizes
q'o mundo nos poupe das dores

Ao amor, as oferendas do nosso melhor espírito.
Lá, onde os corpos desfloram alegrias.
Dilacerado criador, mesmo que te desencontres, nunca te fiques.
A revolta matriz é a tua redenção.
A beleza cura; a tristeza entorpece. Não sejas enfermo nas tuas
vontades.
As heroicidades do mundo dãose na apoteose dos aprazeres.
Esplendorosas entranhas dos mundos, fazei em mim missão do que
não foi dito.
É a sedução da luz que nos confunde. Mas também é ela que nos
conforta.
san cristobal de las casas
somos todos todos índios
somos todos natureza
combatamos pela terra
tanta fome sem defesa
Cheirate mal a miséria? Pena é que não destrinces os ódios!
A graça do teu carinho infundeme a paz semelhante de deus.
Ai séculos dos séculos...
Dispõe sobre mim a púrpura do desejo. Consintoo, mendigo de mais
de ti.

Mordidinho por nunca ir mas mortinho por ir sempre. É o podão das
vidas.
Lavro, na dedicação das escritas, o nunca esquecido.
Dos labores da bondade adiada, arrecado desejos de colheita.
Desfolhemonos outra e outra vez...
Proponho uma alteração à letra do "Hino Nacional".
Respeitosíssimo, mexo só numa palavra: "marchar".
Se a substituirmos por "amar", reconquistamos o sentido dum país
e
o sentido do mundo.
ó sô dona solidão
ó sô dona solidão
fraca velhaca horrenda
envenena teu perdão
desprezo é tua lenda
só me dás consumição
um martírio sem emenda
ond'o sol d'outra paixão
nunca mais se me desvenda
'stás aqui bem pespegada
'stás aqui no coração
desanda ó desgraçada
qu'é tempo d'eu ser mais são!
Armaramte para o infinito. Não esqueças a inocência do corpo.
Nem a noite onde ser cego dá ventura.
A diferença resgata uma humanidade deficiente.
Estar perto das coisas é dar recado delas.
Pujança da linguagem como universo de proximidade e sentido.
A oração refaz as fortalezas da fé.
A espada é uma cruz: levantate e morre!
Oro, sem prantos. Já m'adivinho vindouro.
Abandonome ao desassossego da noite que alumia.
Circoteiasme, desbravasme. Porque nos quererão os deuses em tal
sofreguidão?...
caricaturas caninas
a) Coçome com as mãos de baixo como os cães.
Só espero ladrar mais perceptivelmente
b) Escorraçasteme para tão longe que já nem ouço o teu
chamamento.
Nem ganiria se o ouvisse.
c) Ladro em "HiFi": enraivecido para dentro e para fora!
d) Uivo para ver se me vejo, cego na floresta da tua indiferença.
O trágico é o contraste extremado do consentimento dos fins.
Moço maltrapilho dos enredos, que o senhorio das sortes
te doe mais alguns proveitos.

O que sobra da existência é tentar fazer dela uma obra de arte.
Arte da palavra? Arte de amar a palavra.
Dizeres difíceis? Mas não o são as fadigas da tua consciência
guerreira?
Interpela essa civilização que subestima os homens!
A escola como espaço de vitalidade criadora?
O contributo empenhado de alunos e professores esbarra no
simplismo banalizante
das estatísticas ditas do sucesso. Estamos reféns duma rebuscada
intimação?
Com a bosta burocrata, estrumemos a educação. Teremos mais
depressa uma casa
onde se celebre o serviço e a festa.
cochicho
"ó minh'amora madura"
amadureço contigo
enches todinho meu jigo
duma alegre frescura
tanto bago a desejar
o despertar da ternura
lábios rubros à procura
dos segredos de gostar
Dispõe concórdias e discórdias, inquietudes do transeunte dos
mundos.
Somos apenas a solidão do possível?
Na matemática das emoções resolvo um postulado irracional: amar
até ao fim.
Insubordina a razão. Vale muito mais do que uma espera
descomprometida.
Não te escondas na arca dos tesouros. Há muitos que, como tu,
rebuscam a sobrevivência no lixo da civilização.
Viver é o instinto do ideal. É isso que faz forjar razões.
Humanos, filhos dilectos de deus, nunca o universo nos deu mais.
pescador
coso as linhas no chão
armo as artes do pão
com a fé de mais regalo
as fainas do coração
hãode dar algum quinhão
vou ao mar arrecadálo
O abismo de águas claras converte ao desejo sem lágrimas fugidas.
Ao dizer a dor de pensar recomponho a visão cega que me dá outros
mundos.
As artes não são miragens, são a face bela que se não guarda.
A obra é a insígnia do sentido não acabado.
É o diáfano de uma viagem interrompida, um instante de tudo.

Somos filhos da terra irada. No desconsolo das mínguas,
vagabundos da caridade,
experimentamos a vertigem duma dor consentida. Amaremos até
quando?
estranh' amor
A escola não ministra, no rigor da temporalidade vivida, a
imensidade desejada.
Na face de tantos, a violência da apatia. Estaremos desavindos
dos tempos?
Alarga o teu caminho nas bermas da tua audácia.

dúbio deus débeis os céus
peço a benção de deus
no terço alumiado
rogando que tud'o qu'existe
não seja crucificado
pelas crianças famintas
pela miséria dos lares
somos ruínas sem glória
das convulsões militares?
nascidos par'a matança
os ódios por esperança
estranh'amor agonias
débeis discípulos de deus
abismos de muitos céus
refulgimos utopias
Lê, nas missivas das marés, o indizível que te faz porvir.
A auscultação das águas é a tua demanda, pescador de sonhos.
O rio galga na tentação do mar.
Deus antecedeu o homem. E depois?
O instante é o tempo sem tempo. É nos instantes que amamos.
Tudo foge, tudo foge. Porque ficas tu? Porque acreditas
que das perversões da natureza sobrarão encantos?...
Aventuroso é tragar o passado com sedes de futuro.
Abeberate.
As folhas dos diários são como pétalas em redemoinho.
Todas entregues ao alvoroço dos elementos, aspiram ser parte
dalgum céu.

... Sumário ...
frontespício 5
dedicação 7
ilustração 9
dou de ver o que não vi 11
fragmentos 12
dolores 13
fragmentos 14
ilustração 15
luxis mundis 17
fragmentos 18
vou d'andar por'í fora 19
fragmentos 20
lustração 21
fonte de lágrimas 23
fragmentos 24
casa da árvore da muralha 25
fragmentos 26
ilustração 27
jorna 29
fragmentos 30
aluas 31
fragmentos 32
ilustração 33
alba 35
fragmentos 36
desejos 37
fragmentos 38
ilustração 39
san cristobal de las casas 41
fragmentos 42
ó sô dona solidão 43
fragmentos 44
ilustração 45
caricaturas caninas 47
fragmentos 48
cochicho 49
fragmentos 50
ilustração 51
pescador 53
fragmentos 54
dúbio deus débeis os céus 55
fragmentos 56
ilustração 57
sumário 59
Execução gráfica
Colibri Artes Gráficas
Faculdade de Letras
Alameda da Universidade
1600214 Lisboa Codex
Telef./Fax 217 964 038
Internet: www.edicolibri.pt
email: colibri@edicolibri.pt

Algumas páginas dos diários de Alves Godinho são agora
publicadas.
Na capa dum caderno enviado ao seu amigo e confidente Augusto
Coucho,
liamse as seguintes anotações:
Contoto no desconsolo das mínguas no desconcerto dos medos.
Onde o martírio das coisas é testamentário dos mundos.
Desconheço vontades de futuro, desespero destinos.
Não sei porque, não sei porque pecado, conviva aziago das danas.
Mas comprometido ao manusear as vigílias dos homens,
decidido a recompor os caminhos das sortes,
tomo a graça de não querer ser assim.
E, abismo de deus, escrevo para ser feliz.
APOIO VILA DE ESTARREJA

Duuub

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