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Parte I – Três e trinta

Acordei de madrugada com o meu celular gritando, desesperado. Do meu lado


esquerdo a silhueta da minha esposa. Imersa no escuro, em profunda paz. Entre nós
dois a Kika, nossa cachorra. Do meu lado direito o chão frio, minha escrivaninha fria e
meu celular gritando, desesperado. Não sei como, mas elas continuavam dormindo
como se estivessem em um berço de nuvens.
Ligações de madrugada são sérias, sérias demais. Minha vontade é ficar imóvel,
esperando a pessoa desligar. Mas será que minha mãe tá bem?
Meus óculos não estão por perto, não consigo ver o número na tela. Atendo,
“Alô?”. Silêncio. Com a minha orelha livre escuto a geladeira na cozinha, fazendo seu
barulho característico da madrugada, com a outra, colada ao celular, escuto alguém
respirando lentamente. Nada além.
Após um gigantesco minuto falei novamente, “Alô? Quem é?”. Como se
estivesse aguardando uma segunda chance, seu sussurro gelado atravessou meu
tímpano como manteiga na chapa quente, “Preciso que mantenha a calma”, “O que?
Com quem eu falo?”, “Não mexa, não fale. Pelas próximas 24 horas, se você ver algo
no canto dos olhos, não interaja. Se alguma coisa emitir algum som direcionado a você,
não interaja. Se algum familiar ou amigo conversar com você não interaja”, “Ahn? Que
merda você tá falando?”. A ligação caiu e eu fiquei no escuro. Encarando meu futuro.
Só pode ser um trote. Quem? Por que? Por que não consigo acreditar que foi
um trote? É claro que foi, não faz sentido não ser. Isso de não interagir, como não
interagir? Só pode ter sido um trote.
Tateei a escrivaninha ao lado buscando meus óculos, precisava ver o número.
O móvel era de fato frio, tudo estava frio. Tentava me lembrar onde as coisas estavam
quando senti uma textura felpuda encostar em meus dedos, subir em minha mão e em
meu braço. Assustei e soltei um grito.
“O que foi isso?! Você tá bem?”, minha esposa finalmente acordou, abracei seu
corpo sem entender nada, minha cachorra assustada lambia meu rosto em um ato de
piedade. “Acho que algo horrível vai acontecer”, respondo a ela, “Recebi uma ligação
agora, de alguém que não sei quem é, dizendo para que eu não interaja com você e
com outras coisas nas próximas 24 horas”, ela não aguenta e solta um riso abafado,
quase em forma de tosse, “Sério mesmo gordo? Você acreditou nisso? É claro que era
um trote né, você viu o número de quem te ligou?”, me senti um otário diante a reação
dela e tentei me recompor, “Não, tava procurando meus óculos quando alguma coisa
atacou meu braço. Tem como você ligar a luz ai?”.
A luz ilumina o quarto trazendo sobriedade a minha madrugada. Em cima da
escrivaninha estão meus óculos e uma blusa de frio felpuda que comprei na última
viagem que fiz. Está explicado, tinha sido ela que “me atacou”. Eu sou um completo
idiota. Aliviado, coloco os óculos, olho na lista de chamada e vejo o número. Era do meu
filho.
“Foi Diego que me ligou”, “Que Diego?”, “Nosso filho, Diego”, “Que? Para de ser
idiota”. De fato, o número era dele, minha esposa encara a tela e depois meu rosto,
repetidas vezes, tela e rosto. Eu fico estagnado, com a mão rígida segurando meu
celular, sem nem começar a compreender o que estava acontecendo. Era um tiro seco
e inesperado que nos atingiu como se fosse um tanque de guerra explodindo formigas.
Parte II – Dois minutos e trinta segundos
No outro dia nós entramos em contato com a operadora e prestamos queixa na
delegacia. Nada foi resolvido, falaram que aquele número havia sido desativado há 3
meses e ainda não tinham reciclado para nenhum cliente novo. No fim não era possível
rastrear a ligação que recebi ontem, ela de fato aconteceu, mas era como se meu celular
estivesse simplesmente mentindo.
Eu não suporto a ideia de algum filho da puta estar fazendo isso com nós dois,
não suporto mesmo. E pior que mal consigo elencar suspeitos, não me lembro de
alguém que possa ter motivos para querer nos assombrar dessa forma, jogando tão
baixo.
Passamos o resto do dia em casa, eu, minha mulher, minha mãe e a Kika.
Tensos, ansiosos e raivosos. “Eu não acredito que alguém teria coragem de fazer isso
com o Dieguinho” diz minha mãe uma hora, “Eu vou processar até o cachorro do filho
da puta que tiver fazendo isso com a gente”, diz minha mulher outra hora, “Pode ser
uma gravação programada pelo Diego para me ligar ontem naquele horário”, eu digo
procurando ser o mais otimista possível diante uma situação igual a essa.
Percebi o quanto estamos sozinhos. Antes essa casa mantinha-se ativa, com
amigos do nosso filho correndo de um lado para o outro, todos os dias, era um inferno.
Inferno no bom sentido. Hoje, em um momento de tensão igual a esse, conseguimos
juntar nós quatro. Contando a cachorra.
O dia acabou, minha mãe foi embora. Agora são três e vinte nove da madrugada.
Dessa vez estamos todos acordados e não conseguiremos dormir por um bom tempo.
Minha mulher foi ao banheiro, minha cachorra está lambendo as patas e eu estou com
o celular em mãos, suando frio, rangendo os dentes e tentando engolir todo o abismo
de medo e ódio que borbulha dentro de mim.
Meu celular tocou novamente. Era o mesmo número, filho da puta, cuzão do
caralho! Atendi. “Olha aqui seu filho da puta, como você tem coragem de ligar de novo?!
Você sabe com quem tá falando?! Você tem noção de como você tá fodido se eu te
achar? Seu escroto!”, minha mulher saiu do banheiro às pressas, minha cachorra pulou
da cama com medo, “Fala alguma coisa agora seu filho da puta!”, novamente não tenho
resposta alguma por um longo minuto.
Passado esse período, um sussurro nublado reaparece, “Preciso que mantenha
a calma”, “Me fala quem você é, seu idiota”, “Não mexa, não fale”, minha mulher
apertava meu braço com muita força, “Você tá colocando sua vida em risco por conta
de uma piada sem graça, seu otário”, a voz antes sussurrada de repente ganha
contornos de urgência, cresce em um gutural monstruoso, “NÃO MEXA, NÃO FALE!”,
seu grito seco me assusta e percebo-me diante de algo muito real, não é um trote, não
sei o que é, mas não é um trote.
Sua voz volta a ser sussurrada, “Eu disse para não interagir nas últimas 24 horas,
você interagiu”, o silêncio volta a se tornar imperativo e em questão de segundos a Kika
começa a chorar. Junto do seu choro ouvimos um estralo e suas patas se contorcem
para trás, forçando seu corpo a se deitar. Minha mulher solta meu braço e vai para o
chão junto dela, “Kika! Que que foi Kika?”. Seu choro vai se tornando cada vez mais
próximo de um grunhido de porco e em sua boca começa a escorrer uma espuma
espessa. “Se não quiser que isso aconteça com todos que você ama (...)”, toda a
musculatura do seu corpo se enrijece e começa a sofrer uma violenta convulsão,
batendo suas patas e sua cabeça no chão repetidas vezes. Minha mulher continua a
gritar, desesperada “Kika! Que que tá acontecendo? Olha aqui para mim Kika, ah não
Kika, não faz assim, não faz assim Kika, por favor! E VOCÊ PARA DE ME ENCARAR
E FAZ ALGUMA COISA CARALHO!”. E a voz conclui “(...) Não mexa, não fale e não
interaja com nada nem ninguém pelo resto da sua vida”.
Não sei o que faço, não faço ideia de como devo reagir. Eu não sei, não sei, não
faz sentido, isso não faz o menor sentido, o que está acontecendo? Eu não consigo
entender, não faz sentido, minha cachorra realmente está convulsionando, minha
mulher realmente está gritando e chorando olhando para minha cara, esse número
realmente é do nosso filho, o que está acontecendo? Quando foi que eu entrei nisso?
O que eu fiz? O que eu faço?
Parte III – Monocromatismo
Não tive tempo para pensar e muito menos para me preparar, em dois minutos
e trinta segundos eu tive que definir todo o resto da minha vida: desacreditar da ligação
e fazer algo para ajudar a Kika, colocando a vida da minha mulher e da minha mãe em
risco, ou acreditar que, apesar de não entender o que estava acontecendo, aquilo era
real e a partir daquele momento não poderia mais interagir com o mundo ao meu redor.
Eu parei de interagir.
Minha mulher me balançou, gritou no meu ouvido, arranhou meu rosto, deu três
tapas na minha cara e jogou meu corpo no chão. Eu continuei parado, encarando a
parede na minha frente, sentindo cada ardência de um tapa como um pedaço de mim
que não pode voltar. Eventualmente ela tomou a atitude de me ignorar e levar a Kika ao
veterinário sozinha, ouvi seus passos saindo do nosso quarto e posteriormente o
barulho do carro ligando. Quando me percebi sozinho em casa deixei algumas lágrimas
escorrerem só para em seguida ser tomado por um medo da possibilidade do meu choro
ser uma interação fatal para minha mulher e minha mãe. Nada seria paz daqui para
frente.
A consciência de minha nova e desesperadora forma de existir invade meu corpo
em camadas. Ondas de agonia e confusão apunhalam meu estômago e se regurgitam
pelos meus olhos, fazendo-me quase vomitar diversas vezes enquanto sinto-me
queimando por inteiro, sem poder fazer nada. Nunca mais.
Passei o resto da madrugada paralisado no chão, minha mulher chegou quando
o sol já adentrava nosso quarto pelas frestas da janela. Chegou sozinha, me dizendo
que a Kika estava morta. Não respondi, não fiz nada. Ela deitou por cima do meu corpo,
desabando em lágrimas enquanto chamava pelo meu nome incansavelmente. Eu não
a abracei de volta, não fiz nada. Esperava ser levado para o hospital, mas ela estava
tão exausta que dormimos assim, dominados pelo mais puro e devastador dos
cansaços.
No outro dia me carregaram até a clínica onde minha mãe trabalha. Fizeram
diversos exames e constataram que minha saúde física estava ótima, sendo claramente
um problema de ordem psicológica. Inclusive nos testes de reflexo meu corpo
obviamente respondeu normalmente. Espero que o demônio não conte isso como
interação.
Por fim me encaminharam ao psiquiatra. Ele demonstrou um interesse genuíno
pela nossa história, perguntando sobre a convulsão da nossa cachorra, sobre o nosso
filho morto nos ligando e sobre o momento que eu parei de interagir. Disse que o meu
caso era bem raro e o único diagnóstico possível seria uma catatonia pós-trauma.
Na volta para casa, dentro do carro, minha mãe e minha esposa vieram
discutindo sobre o que fariam comigo. Engraçado que o simples fato de estar parado
fez com que elas se esquecessem que talvez eu pudesse escutar o que conversavam.
“Será que ele não tá fingindo não? É a cara dele fugir dos problemas assim” disse uma,
“Não, ele não ia conseguir ficar tanto tempo fingindo, precisa de muita força de vontade”
disse a outra. No meio das frases diversos adjetivos ambíguos foram usados para me
descrever: amoroso, mimado, alegre, imaturo, gentil, desajeitado, bonito, covarde,
medroso. Senti que em certo momento me culpavam pela morte da Kika, mas em
seguida voltavam atrás com certo peso na consciência. É sempre fácil culpar alguém
em estado vegetativo ao mesmo tempo que é quase impossível não se sentir horrível
ao se fazer tal coisa.
Por fim decidiram acatar a sugestão do psiquiatra: me internar por pelo menos
um mês para eu receber o melhor tratamento da melhor equipe multidisciplinar da
melhor cidade do mundo. Pelo menos era isso que o médico vendeu para elas.
A clínica era bonita e estranha. Os sons abafados e distorcidos dos demais
pacientes criavam um conflito complexo com a art decó proposta em sua arquitetura.
Claro que minha visão se limitava ao que estava em minha frente, uma vez que não
posso voluntariamente mover minha cabeça ou meus olhos, mas pude ver que meu
quarto era aconchegante dentro do possível. Suas paredes eram pintadas em tons
tediosos de branco, com uma cama de casal bem macia situada em baixo de uma janela
marrom que quebrava o monocromatismo do cômodo. Possuía uma televisão em cima
da escrivaninha, uma porta transparente com cortinas claras cobrindo-a, e o mais
importante: ar condicionado.
A primeira noite que passei sozinho naquele lugar foi assustadora, só vinha a
minha mente a imagem daquele indiano que passou quarenta anos com o braço
levantado, sem mexe-lo. A musculatura completamente atrofiada daquele membro
claramente se destoando do resto do seu corpo foi uma imagem que mexeu muito
comigo na época que vi e agora me enxergo na mesma situação. Me fez pensar se as
pessoas que cometeram grandes sacrifícios na história da humanidade realmente o
fizeram por motivos ideológicos ou simplesmente por medo, igual a mim.
Parte IV – Pelo resto da minha vida
A cama se tornou meu habitat natural e a dormência minha amante maldita.
Meus dias se resumiram a ser levado para o banho duas vezes, ser alimentado de três
em três horas, tomar cinco pílulas diferentes logo pela manhã, esperar pela visita da
minha mulher e da minha mãe uma vez na semana, e as vezes ouvir histórias de outros
pacientes que me veem como uma espécie de ser sem julgamentos.
O silêncio é algo muito forte, pode ser completamente ensurdecedor para
algumas companhias ou simplesmente aconchegante para outras, mas nunca é
passado despercebido. Todo dia eu acordo pensando se essa realmente é a única
resposta para esse enigma. E se aquela ligação for um trote? Talvez alguém possa ter
clonado o número do meu filho e envenenado a Kika. A cada hora do meu dia eu penso
em me movimentar, falar com a enfermeira, abraçar algum paciente que chora me
contando seus problemas, ligar para a minha mulher e dizer que vai ficar tudo bem, que
tudo foi só uma piada de mal gosto, correr para a casa da minha mãe e comer
novamente a sua torta de frango maravilhosa, mas não tenho coragem. E se for
verdade? E se eu mexer e elas convulsionarem até a morte? Existe vida após ser
cúmplice da morte de todo mundo que você ama? Por outro lado, existe vida sem
interação? Qual a diferença de um corpo humano repousando eternamente em cima de
uma cama e um pedaço de lixo apodrecendo em algum canto da cidade?
Pelo menos eu acredito que devo morrer rápido. Não vou aguentar essa
combinação de remédio, injeção e tratamento feito por enfermeiras completamente ocas
que venderam suas almas em troca de uma frieza necessária para sobreviver ali dentro.
Não consigo medir exatamente o tempo, mas sei que fazem a minha barba uma vez por
semana antes do dia de visita. Já fizeram minha barba dezoito vezes, já encontrei minha
mãe e minha mulher dezoito vezes. Nas primeiras quatro visitas elas mostraram
otimismo com o tratamento, mas agora não conseguem deixar de chorar sempre que
olham para mim por mais de quinze segundos. Minha mãe, cada vez mais magra, me
abraça e me beija. Minha mulher, cada vez mais calada, não mais.
Mesmo amando-as preciso diariamente lembrar o motivo de estar fazendo o que
estou fazendo: é pelo bem delas, é o certo a se fazer, é o ético, o moral, o inegociável,
se a minha vida dependesse delas eu sei que fariam isso por mim também. É isso
mesmo, né? Percebo-me realizando um dos atos de sacrifício mais extremos da
humanidade e ninguém nunca vai me ver como nada além de um doente mental
definhando pela própria ineficácia de lidar com a morte de uma cachorra. Sei que não é
espaço para narcisismo, mas sobre o que mais eu poderia pensar? Ok, os remédios
estão começando a foder muito com a minha cabeça.
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Todo momento parece uma chuva eterna de sensações presas em tempo
nenhum. Não sei se a última vez que senti uma coceira atrás do braço foi há um minuto
ou há dois meses atrás. Cento e treze barbeadas. Não lembro se a morte da minha mãe
foi essa semana ou há cinco anos atrás. Minha mulher entrou chorando, dizendo que
ela se foi, mas saiu aliviada de alguma forma e nunca mais voltou. Também não tinha
mais anel no dedo. Isso faz quanto tempo? Foi ontem? Cento e quarenta e sete
barbeadas. Não, ontem eu sonhei que andava novamente, que andava em uma casa
de barro onde tocava uma música distante, sanfona e triângulo, uma cachorra deitava
aos meus pés e eu acariciava seu pelo sem preocupação alguma, isso eu sonhei, não
foi ontem também, ontem eu acho que minha mãe morreu, não me lembro. Cento e
setenta e nove barbeadas. Minha mulher me deixou? Aliás, por que não deixaria? Não
é para isso que eu tô fazendo isso tudo? Para que ela viva novamente e feliz? Com
outra pessoa? Eu não entendo o que tá acontecendo, por que me barbeia se ninguém
me visita? O teto se aproxima de mim como um lençol, mas é um teto, o mesmo teto,
sempre o mesmo e eu sei que ele nunca vai me cobrir, porque não muda, teto não muda,
no máximo mofa, cria teia, cai e mata, talvez fosse melhor se caísse e eu morresse.
Duzentas e vinte e três barbeadas. Por que eu não me mato logo? Porque se eu me
matasse contaria como uma interação e minha mulher iria convulsionar até a morte em
cima de outra pessoa. Eu tenho que deixar ela ser feliz com outra pessoa, é para isso
que eu tô jogando fora tudo tudo tudo tudo, se ela não viver eu tô fazendo em vão se
ela não transar com outro eu tô fazendo tudo em vão se ela não gozar com outro é tudo
em vão e eu não posso deixar tudo ser em vão afinal eu destruí toda a minha vida para
minha mulher transar com outro eu não posso deixar que isso não aconteça trezentas
e noventa barbeadas para que me barbear se ninguém me vê ninguém sabe que eu
existo ninguém mesmo de verdade eu desapareci completamente eu desapareço até
de mim mesmo e não sei como me sustentam aqui dentro ainda talvez minha mulher
pague minha estadia para que possa continuar a transar com outro sem peso na
consciência certa vez ela quis experimentar algo que eu não me senti confortável em
fazer e depois eu fiz em segredo e nunca contei para ela ou isso foi algo que algum
paciente contou para mim em algum momento? Quatrocentas e trinta e sete barbeadas
acho que tem alguém falando comigo agora sobre aquela lã que se forma no umbigo
ser uma prova que os seres humanos são bichos de seda tristes e não sei se é verdade
mas é melhor do que aquele sonho que tive onde minha mãe e meu filho morriam e
minha mulher transava com outro em cima do caixão de um deles talvez eu devesse
morrer talvez eu devesse me mexer eu vou me mexer e deixar ela morrer porque na
verdade não me importo mais eu não ligo se ela vai morrer eu não ligo nem em mexer
eu acho que eu nem sei mais me mexer eu preciso eu preciso me mexer por favor por
favor me perdoe Deus quinhentas e quinze barbeadas eu não consigo eu não consigo
quinhentas e quinze barbeadas mais eu preciso me mexer eu preciso fazer alguma coisa
quinhentas e quinze eu não aguento mais eu não aguento mais Deus me desculpe Deus
me desculpe Deus quinhentas e quinze barbeadas.
Meus braços definhados saltaram em torno do tronco da enfermeira que estava
próxima a cama e caímos no chão. Percebi que ela se assustou profundamente, mas
em seguida entendeu que estava vivenciando um milagre. Retribuiu o meu abraço com
muita ternura e me acolheu de uma forma que todos os meus pensamentos intranquilos
se esvaíram por um momento. Toda uma profundidade esquecida foi reavivada junto a
sensação mais básica do tato humano: o carinho. Os meus dedos acariciando as costas
daquela pessoa se transformaram em uma injeção de adrenalina e medo, um prazer
nunca sentido misturado com a sombra das possíveis consequências daquele ato.
Minha vontade era de gritar, mas eu claramente não consegui, realmente não sabia
mais.
Percebi que a privação extrema reconstrói a infância. Com o passar das
semanas absolutamente tudo ao meu redor se tornou novamente objeto de um prazer
puro e doloroso. Doloroso por me lembrar da possível morte necessária para que eu
pudesse sentir o tapete em meus pés, para que eu pudesse mastigar a comida e sorrir
para as pessoas ou para o espelho.
Tentaram entrar em contato com algum familiar, mas não conseguiram, o que
reforçou a ideia de que de fato ela estava morta. Eventualmente suspenderam toda a
minha medicação, assinei um termo autorizando utilizarem meu caso como objeto de
pesquisa e me liberaram. Eu precisava voltar para casa. Menti para mim mesmo que
gostaria de chegar e vê-la novamente, mas no fundo eu queria confirmar que aquela
ligação não era mentira. Queria confirmar que eu não havia jogado fora toda a minha
sanidade em vão.
Parte V – Ela
“Eu me casei novamente, mas nunca deixei de sonhar com o dia que ele voltaria
para casa. Certa madrugada recebemos uma ligação e aconteceu algo terrível com a
Kika, mas algo ainda pior com ele. Nunca entendi o que foi aquilo, ninguém entendeu.
Meu marido enlouqueceu simplesmente, que opção eu tinha? Acreditei que tudo daria
certo, que ele melhoraria, mas depois de algum tempo não tinha mais o que fazer. Voltar
ali toda semana para ver o homem da minha vida encarando fixamente um teto sem
reagir a nada que eu lhe dizia sugava toda minha energia, tudo o que eu era ou tentava
construir se esvaia completamente ao vê-lo daquela forma. O momento que decidi tentar
construir uma nova vida foi no dia que minha sogra morreu. Fui contar para ele
esperando ao menos algumas lágrimas que provassem que ele poderia escutar o que
eu dizia, mas não, nada. Era tudo em vão. Voltei mais duas vezes apenas e depois disso
nunca mais”.
“Para minha surpresa, quase dez anos depois ele voltou. Estava parado diante
a porta da minha casa, mas era diferente. Existiam pequenas mudanças em seu rosto
que me perturbaram. Eu não conseguia dizer o que era, algo muito sutil, mas suficiente.
Talvez seu sorriso ou seus olhos, sim, provavelmente eram os seus olhos. Eu estava
muito assustada, mas tive que chegar mais perto para vê-los. Em outra circunstância eu
correria para abraça-lo e agradecer aos céus por um milagre, mas não consegui. Aquele
não era mais o amor da minha vida. Com muito esforço me perguntou quem eu era, eu
lhe disse meu nome e ele sorriu como se seus lábios tivessem esquecido a naturalidade
do ato. Sua expressão corporal refletia um misto tão intenso de alívio com frustração
que eu senti que apesar de tudo que vivemos, não queria aquela pessoa perto de mim.
Durante todo esse tempo ele não piscou sequer uma vez, seus olhos secos me
encaravam da mesma forma que outrora faziam com o teto da clínica. Percebi que ele
estava cortando o próprio braço com unhas enormes e o sangue já escorria pelas mãos.
Arranhava-se cada vez mais enquanto o seu sorriso amarelo expandia pelo rosto.
Depois, sem dizer nada, virou-se e foi embora, como se tivesse chegado a uma terrível
conclusão”.

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