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André Duarte
Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná – UFPR/CNPq
E-mail: andremduarte@brturbo.com
2 Desenvolvi essa hipótese de leitura em dois artigos anteriores. Cf. Duarte 2000 e
2002.
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3 Nos textos dos anos 50, como veremos, Heidegger afirmará que o ser da lingua-
gem radica no aberto da verdade do ser, mantendo, entretanto, as mesmas críticas
endereçadas anteriormente à concepção imprópria da linguagem.
Tempo Heidegger dedica boa parte das suas considerações sobre a lingua-
gem à análise do modo impróprio em que o ser-aí se detém na maioria
das vezes, tendo em vista elucidar como se articulam a fala e a escuta no
âmbito da cotidianidade decadente, totalmente absorta no trato das ocu-
pações e preocupações continuamente permeadas pela interpretação pú-
blica do todo dos entes.
No parágrafo 35, Heidegger caracteriza o falatório (Gerede) como
uma possibilidade do discurso que determina a interpretação e a comuni-
cação cotidiana do ser-aí, as quais, por sua vez, constituem o modo de ser
em que ele se detém a maior parte das vezes e em primeira aproximação.
O falatório regula o que e como se fala cotidianamente, porque define e
circunscreve não apenas a compreensão de ser vaga e mediana em que o
ser-aí já sempre se move, mas também suas disposições possíveis. O
falatório regula e perfaz nossa escuta, fala e compreensão cotidianas do
mundo, de nós mesmos e dos outros com quem convivemos, limitando e
obstruindo de maneira autoritária, porém insidiosa, a possibilidade de
uma interpretação apropriadora de nossas possibilidades mundanas. A
escuta, a comunicação e a compreensão cotidianas fecham, deste modo, o
ser do que se escuta, se compreende e se comunica. Em outras palavras,
sendo um falar por mero falar, o falatório esconde e oculta aquilo de que
se fala, ao qual também corresponde um escutar que não atenta verdadei-
ramente ao que se escutou. O falatório é, portanto, o contrário de uma
apropriação originária do que se fala; é o “repetir e passar adiante a fala”
sem um esforço genuíno por realmente dizer aquilo sobre o que se fala:
trata-se de um falar contínuo sem nada dizer propriamente, um falar sem
conteúdo original, isto é, um falar cujo conteúdo é o já dito e repetido de
inúmeras formas, a ponto de se tornar indiferente a quem escuta. Daí a
“falta de solidez” do que assim é dito, escrito, escutado ou lido. Nesse
sentido, o falatório não é diferente da escrita que nada diz que realmente
valha a pena dizer, isto é, que só diz aquilo que bem poderia não dizer.
O falatório e a escrivinhação exprimem, assim, a compreensão mediana que
tudo compreende sem nada compreender propriamente, trancando as
com o próprio ser, após a viragem (Kehre) o ser-aí será pensado como o
ente extático ao qual corresponde a guarda protetora do aberto da clarei-
ra do ser, na qual ele já se encontra lançado; tal proteção se dá agora por
meio do cultivo do pensamento essencial e da linguagem poético-medita-
tiva, não objetificada ou objetificante, não calculadora e não
representacional. Segundo a formulação de Françoise Dastur, o
questionamento do ser em sua temporalidade deixa de ser perseguido na
perspectiva “transcendental-horizontal de um sentido do ser que se
temporalizaria numa temporalidade ekstática do Dasein” para ser desen-
volvido, a partir de agora, na perspectiva “aletheiológica-eksistencial de uma
verdade do ser na qual o Dasein se encontra e à qual tem de corresponder”
(Dastur 1997, p. 126). Ou seja, após a viragem, Heidegger deslocou a
ênfase de sua anterior concepção da existência (Eksistenz) enquanto aber-
tura manifesta no comportar-se do ser-aí com o próprio ser para concebê-
la, agora, enquanto ek-sistência (Ek-sistenz), como correspondência para
com o aberto do ser enquanto tal. Como anteriormente, a linguagem não
será pensada como uma faculdade ou capacidade humana entre outras;
porém, em vez de afirmar que a linguagem deve ter o mesmo modo de
ser do ser-aí, agora Heidegger diz que pensar a essência da linguagem é
pensar a essência do humano, conduzindo o homem ao lugar da sua es-
sência, isto é, ao “recolhimento no acontecimento-apropriador” (Versamlung
in das Ereignis; Heidegger 1959, p. 12). Surge, então, a questão da deter-
minação da relação entre ser, pensamento meditativo e linguagem, pro-
blema que não se encontrava presente em Ser e Tempo e que permitirá a
Heidegger aprofundar sua concepção ontológica da linguagem sem, no
entanto, desviá-la fundamentalmente das bases ontológicas já anterior-
mente conquistadas. Assim, persistirão nas suas análises tardias sobre o
ser da linguagem o primado ontológico já concedido anteriormente à
escuta e ao silêncio, a recusa da concepção da linguagem como mero
veículo da transmissão de informações e a crítica da definição do humano
como animal racional dotado da faculdade da fala, elementos fundamen-
tais para uma consideração pós-metafísica da ética.
Referências