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CURITIBA
2015
TÁSSIA VALENTE VIANA AROUCHE
CURITIBA
2015
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o romance Niketche: uma história de poligamia, da
escritora moçambicana Paulina Chiziane, com base nos conceitos de empoderamento,
relações de poder e democracia comunicativa, provenientes do campo da Ciência Política.
Para isso, utiliza, de forma central, os autores Baquero e Baquero (empoderamento), Michel
Foucault (relações de poder) e Iris Marion Young (democracia comunicativa). Como
conclusão, apresenta como tais conceitos podem ser percebidos na obra de Chiziane, focando-
se especialmente no processo de autoempoderamento da protagonista Rami.
This paper intends to analyse the novel Niketche: a story of polyamy, by the mozambican
writer Paulina Chiziane, based on the concepts of empowerment, power relations and
communicative democracy, from the Political Science field. To accomplish this, it uses,
centrally, the authors Baquero and Baquero (empowerment), Michel Foucault (power
relations) and Iris Marion Young (communicative democracy). In conclusion, it shows how
these concepts can be seen in the novel of Chiziane, focusing especially on the process of self-
empowerment of the protagonist Rami.
1. Introdução
Este artigo centraliza suas análises no processo de autoempoderamento por qual passa
Rami, a protagonista e narradora do romance Niketche: uma história de poligamia, da autora
moçambicana Paulina Chiziane. Ao lermos o romance, percebemos o contraste na
caracterização de Rami no início e no final da narrativa. Se, no início, Rami é
demasiadamente dependente do marido, Tony, não conseguindo, inclusive, resolver sozinha
um problema doméstico relativamente simples (o que a leva a procurá-lo e, como
consequência, a encontrar as outras mulheres e famílias que ele mantém paralelamente, dando
início a todo o conflito que marca o romance); por outro lado, enquanto a ação se desenvolve,
observamos Rami se aliando às outras mulheres – estas também dependentes econômica e
afetivamente de Tony –, buscando a sua e incentivando a independência financeira das
demais, tecendo com elas laços de solidariedade e afetividade – tudo isso sem deixar de
recorrer a aspectos da própria tradição, mesmo que, nesse contexto, esta confira às mulheres
um papel de submissão em relação ao marido.
É recorrendo a esta tradição que Rami realiza uma espécie de vingança do marido infiel,
ainda que não possamos afirmar que esta seja uma ação calculada, explicitamente desejada
pela protagonista. Após Rami fazer com que o marido legitimasse todas as demais mulheres e
oficializasse a relação poligâmica, ao final, todas as outras encontram-se em relacionamentos
em que são “primeiras esposas”, desta forma abandonando Tony e o deixando apenas para
Rami. A protagonista, no entanto, está grávida de Levy, irmão de Tony, como consequência
de ter participado do tradicional kutchinga (cerimônia de purificação sexual da viúva). Isto
porque seu marido foi oficialmente dado como morto, enquanto, na realidade, estava em Paris
com uma amante. Além disso, Rami passa a apresentar um perfil de mulher mais madura e
autônoma, amuderecimento e autonomia que vão se concretizando no decorrer da trama.
Na análise, lançaremos mão dos conceitos de relações de poder, empoderamento e de
democracia comunicativa, com o objetivo de identificar como estes processos estão presentes
em Niketche: uma história de poligamia. Se, em geral, para a teoria da democracia, os estudos
se dão no nível social, aqui, transportaremos o conceito de democracia para um contexto
específico, no qual se desenvolve a narrativa, que é o ambiente familiar poligâmico do
romance.
Entendemos, como Silveirinha (2005), que a teoria e a prática das democracias
contemporâneas têm o desafio de:
2
A coisa política entendida nesse sentido grego está, portanto, centrada em torno da
liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como o não ser-dominado e
não-dominar, e positivamente como um espaço que só pode ser produzido por
muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus iguais
não existe liberdade alguma e por isso aquele que domina outros e, por conseguinte,
é diferente dos outros em princípio, é mais feliz e digno de inveja que aqueles a
quem ele domina, mas não é mais livre em coisa alguma (ARENDT, 2011, p. 49).
3
Dito isto, faz sentido trazermos conceitos próprios da Ciência Política, como relações
de poder, democracia e empoderamento, para a análise de Niketche: uma história de
poligamia. Assim, como próxima etapa deste artigo, apresentamos estes conceitos.
1
Sobre
a
ideia
de
dispositivo,
Michel
Foucault
irá
esclarecer
que
se
trata
de
“um
conjunto
decididamente
heterogêneo
que
engloba
discursos,
instituições,
organizações
arquitetônicas,
decisões
regulamentares,
leis,
medidas
administrativas,
enunciados
científicos,
proposições
filosóficas,
morais,
filantrópicas.
Em
suma,
o
dito
e
o
não
dito
são
os
elementos
do
dispositivo.
O
dispositivo
é
a
rede
que
se
pode
estabelecer
entre
estes
elementos”
(FOUCAULT,
1979,
p.
244).
4
para haver este movimento de cima para baixo, é necessário que exista, ao mesmo tempo,
uma capilaridade de baixo para cima.
Nesse cenário, Foucault afirma que todo mundo se opõe a todo mundo: “Quem luta
contra quem? Nós lutamos contra todos. Existe sempre algo em nós que luta contra outra
coisa em nós” (FOUCAULT, 1979, p. 257). Trata-se de um contexto de coalisões transitórias,
em que o elemento primeiro e último são os indivíduos e mesmo os sub-indivíduos.
Havendo relação de poder, a resistência é uma possibilidade, já que, para Foucault
(1979, p. 241), “jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua
dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa”.
Neste cenário, a sexualidade não é aquilo de que o poder tem medo, mas é aquilo
através de que o poder se exerce. Como exemplo disso, Foucault (1979, p. 232) fala sobre a
perseguição da masturbação infantil a partir do começo do século XVIII. Através da
sexualidade infantil, “específica, precária, perigosa, a ser constantemente vigiada”, o objetivo
era tecer “uma rede de poder sobre a infância”, e não apenas proibir ou produzir “uma miséria
sexual da infância e da adolescência”. “Na encruzilhada do corpo e da alma, da saúde e da
moral, da educação e do adestramento, o sexo das crianças tornou-se ao mesmo tempo um
alvo e um instrumento de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 232).
Presente, a miséria sexual não pode ser simplesmente explicada de forma negativa por
uma repressão. Existem, na verdade, mecanismos positivos que produzem a sexualidade de
uma forma ou de outra, acarretando efeitos de miséria. Nesse sentido, o poder não se exerce
apenas através do interdito e da proibição, que, para Foucault, não são formas essenciais do
poder, mas seus limites e formas extremas. Isto porque “as relações de poder são, antes de
tudo, produtivas” (FOUCAULT, 1979, p. 236) e dizem respeito a fenômenos complexos,
como no caso da reivindicação do próprio corpo:
O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito
do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento
muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo… tudo isto conduz ao desejo de seu
próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder
exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio. Mas, a partir
do momento em que o poder produziu este efeito, como consequência direta de suas
conquistas, emerge inevitavelmente a reinvindicação de seu próprio corpo contra o
poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade,
do casamento, do pudor. E, assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por
que ele é atacado… O poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio
corpo…” (FOUCAULT, 1979, p. 146).
intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo” (FOUCAULT, 1979, p. 147).
Assim, Foucault (1979, p. 230) afirma que “as proibições existem, são numerosas e fortes.
Mas fazem parte de uma economia complexa em que existem ao lado de incitações, de
manifestações, de valorizações. São sempre interditos que são enfatizados”.
Ainda em sua análise sobre a sexualidade, Foucault esclare que o entendimento de que
a miséria sexual simplesmente vem da repressão acaba por configurar uma “armadilha
perigosa”, pois:
Em relação à questão das mulheres, Foucault afirma que buscou-se fixá-las, por muito
tempo, à sua sexualidade, dizendo a elas: “Vocês são apenas o seu sexo”, um sexo “frágil,
quase sempre doente e sempre indutor de doença. ‘Vocês são a doença do homem’”. Tal
fenômeno se acelera no século XVIII até chegar à patologização da mulher. A partir deste
cenário, os movimentos feministas passam a se afirmar na sua sexualidade, aceitando ser
“sexo por natureza”, mas sexo “em sua singularidade e especificidade irredutíveis”. Com isso,
partem “desta sexualidade na qual se procura colonizá-las e atravessá-la para ir em direção a
outras afirmações”, um tipo próprio de existência, política, econômica, cultural etc.
(FOUCAULT, 1979, p. 234).
Assim, entendendo a sexualidade como “instrumento formado há muito tempo e que
se constitui como um dispositivo de sujeição milenar”, Foucault observa que os movimentos
de liberação da mulher partiram do próprio discurso que era formulado no interior dos
dispositivos de sexualidade no sentido de “um deslocamento em relação à centralização
sexual do problema, para reivindicar formas de cultura, de discurso, de linguagem, etc., que
são não mais esta espécie de determinação e de fixação a seu sexo” (FOUCAULT, 1979, p.
268).
Essa ideia de relações de poder e sexualidade é importante na análise, pois na trama de
Niketche vemos uma série de mulheres ocupando o lugar de “um em baixo”, em que o
dispositivo da sexualidade aparece como uma forma de controlá-las (especialmente em
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relação à personagem Rami), gerando, nos dizeres de Foucault, miséria sexual. E, ao mesmo
tempo, é a partir deste mesmo dispositivo – não é à toa, neste caso, o romance ser chamado
Niketche, que significa “dança do amor” – que as mulheres acabam por ressignificar suas
relações, buscando novos tipos de existência – afetiva, econômica etc. – rumo a um processo
de empoderamento.
O conceito é complexo e sua definição pode se dar tanto de forma negativa – nos
contextos em que se nota a ausência de alguns de seus indicadores e percebem-se “alienação,
impotência e desamparo de indivíduos e grupos” – como de forma positiva – em que se
“abordam dimensões como alcance de poder e controle sobre decisões e recursos que
determinam a qualidade de vida de cada um”. Além disso, o conceito pode se dar em nível
individual (“quando se refere às variáveis comportamentais”), organizacional (quando se
refere à mobilização participativa de recursos e oportunidades em determinada organização”)
ou comunitário (“quando a estrutura das mudanças sociais e a estrutura sociopolítica estão em
foco”) (BAQUERO; BAQUERO, 2011, p. 243).
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Cabe, aqui, apresentar o que os autores dizem a respeito de cada nível do processo de
empoderamento, para que possamos estabelecer com qual nível (ou níveis) iremos trabalhar
na análise de Niketche. Para isso, apresentam-se os níveis em um quadro conceitual.
Uma revolta interior envenena todos os caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na
boca. Náuseas. Revolta. Impotência e desespero (CHIZIANE, 2004, p. 10).
É desta forma que temos o primeiro contato com a personagem Rami, uma mulher
submissa, impotente, que se sente incapaz inclusive de repreender o próprio filho, e
dependente do marido.
Se o meu Tony estivesse por perto, repreenderia o filho como pai e como homem.
Se ele estivesse aqui, agora, resolveria o problema do vidro quebrado com o
proprietário do carro, homem com homem se entendem, ah, se o Tony estivesse
perto!
Mas onde anda o meu Tony que não vejo desde sexta-feira? Onde anda esse homem
que me deixa os filhos e a casa e não dá um sinal de vida? Um marido em casa é
segurança, é protecção. Na presença de um marido, os ladrões se afastam. Os
homens respeitam. As vizinhas não entram de qualquer maneira para pedir sal,
açúcar, muito menos para cortar na casaca da outra vizinha. Na presença de um
marido, um lar é mais lar, tem conforto e prestígio (CHIZIANE, 2004, p. 11).
Além de caracterizar Rami como uma mulher frágil e dependente, o início do romance
é importante porque apresenta o acontecimento que levará ao grande conflito da narrativa:
com o incidente, ela irá atrás do marido e chegará à casa da outra mulher que sabe que Tony
tem, Julieta. Assim, aos poucos passará a saber que existem outras mulheres (além de Julieta,
Luísa, Saly e Mauá Sualé) e se perceberá em uma relação poligâmica, ainda que não
oficializada, pois apenas o seu casamento é oficial.
Esses encontros com as outras mulheres de Tony serão inicialmente marcados pelo
conflito: Rami briga e apanha de todas elas, indo parar na prisão no confronto com Luísa.
Como resultado dos confrontos, Rami sente “o corpo pesado, moído de tanta pancada das
rivais em defensiva, invadidas no seu território. Dói-me tudo” (CHIZIANE, 2004, p. 59). No
entanto, há um segundo momento apaziguador: ao conversar com a rival Julieta, por exemplo,
Rami percebe que ela também sofre: “Esta mulher tem uma angústia bem pior que a minha.
Eu, pelo menos, conheci o sonho e o altar. [...] A Julieta foi enganada desde a primeira hora.
Nada pior que uma eterna frustração” (CHIZIANE, 2004, p. 26).
Neste momento, Rami encontra-se confusa e não sabe como solucionar seu problema
com Tony. Ela passa a ter aulas com uma “conselheira de amor”, mas ao se arrumar para
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seduzir o marido, este lança a ela um “sorriso de troça”. Também não dá certo confrontar as
rivais, o que só lhe trouxe “problemas de saúde e aborrecimentos”. Outra alternativa que
Rami explora é a magia, o que também a frustra.
Apesar do início conflituoso, uma rede de solidariedade começa a se formar entre
Rami e as outras mulheres de Tony: Rami está presente no aniversário do filho de dois anos
de Luísa, que, na ocasião, acaba lhe cedendo o amante para uma “assistência conjugal,
informal”, como Rami chama a experiência.
Em outro momento, Rami chama as outras mulheres, menos a mais nova que ainda
recebia a atenção de Tony, para lhes propor que se unam:
Cada uma de nós é um ramo solto, uma folha morta, ao sabor do vento – explico. –
Somos cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão. Cada uma de nós será
um dedo, e as grandes linhas da mão a vida, o coração, a sorte, o destino e o amor.
Não estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme da vida e traçar o
destino (CHIZIANE, 2004, p. 105).
Com isso, Rami sente-se feliz e realizada: “Era bom, dirigir aquele encontro, para mim
que nunca tinha dirigido nada na vida. Sentia-me primeira esposa, esposa grande, a mulher
antiga, a rainha de todas as outras mulheres, verdadeira primeira dama” (CHIZIANE, 2004, p.
103-104).
Mesmo propondo às mulheres que se unam, Rami, como uma personagem que hesita e
questiona, mostra-se em vários momentos desconfortável com a ideia de viver um
relacionamento poligâmico.
Acham que eu devo abraçar a poligamia, e pôr-me aos gritos de urras e vivas e
salves, só para preserver o nome emprestado? Acham que devo dizer sim à
poligamia só para preserver este pedaço de chão onde repousam os meus pés? Não,
não vou fazer isso, tenho os braços presos para aplaudir, e a garganta seca para
gritar. Não, não posso. Não sei. Não tenho vontade nenhuma (CHIZIANE, 2004, p.
91).
Ainda assim, ela planeja uma pequena vingança na festa de 50 anos de Tony. Seu
plano é expor a toda a família que Tony possui outras mulheres, obrigando-o a reconhecer
publicamente o que fazia secretamente. Assim, todas as mulheres de Tony aparecem com seus
filhos, todas vestidas iguais, pois era assim que se apresentavam as mulheres de um polígamo,
e com todos os filhos também vestidos iguais. A reação do marido é de surpresa, vergonha,
lágrimas e raiva.
Aqui, cabe falar sobre a relação de poder estabelecida entre Tony e Rami, uma relação
desigual, em que Tony encontra-se em um lugar superior e Rami está submissa. Quando, logo
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após encontrar Julieta, Rami questiona Tony sobre a traição, ele responde da seguinte forma:
“- Traição? Não me faça rir, ah, ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é feminino. Só
as mulheres podem trair, os homens são livres, Rami” (CHIZIANE, 2004, p. 29). Enfatizando
a desigualdade de tratamento para homens e mulheres, Rami, em outro momento, reflete:
“Poligamia é destino de homem e castidade é destino de mulher. Um homem mata para salvar
a honra e é aplaudido. Uma mulher faz ciúmes e é condenada” (CHIZIANE, 2004, p. 130).
Por encontrar-se em um lugar privilegiado é que Tony não deseja expor nem
formalizar sua condição de polígamo. Pois antes, quando a situação era informal, ele dizia
viver uma vida boa, em que “fazia tudo o que queria. Visitava as mulheres quando me
apetecia. Tirava o dinheiro do meu bolso, pagava-as quando mereciam” (CHIZIANE, 2004, p.
166).
Cabe observar que tal lugar privilegiado do homem é cultural. Ao conversar com a sua
conselheira de amor, Rami e a conselheira, que é do norte de Moçambique, falam sobre
diversos tabus e mitos que explicam – ou melhor, naturalizam – práticas culturais e a própria
submissão da mulher ao homem.
Vendemos [Rami e Luísa] a roupa usada durante seis meses. Criámos capital. A Lu
e eu, cada uma de nós abriu uma pequena loja para vender roupas novas e o negócio
começou a correr melhor. A Saly construiu uma loja. Vende bebidas por grosso.
Tem um café e um salão de chá. A Ju conseguiu fazer um pequeno armazém e já
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Por decisão da mãe de Tony, que apoia a poligamia, as mulheres são loboladas2 e os
filhos, legalmente reconhecidos. Na primeira reunião formal, chamada parlamento conjugal,
Rami é considerada pilar da família, rainha da casa, mas ela se sente “promovida na
hierarquia da tirania”, com “um chicote a que chamam ceptro” e promete não açoitar
ninguém.
Mesmo com o arranjo com as cinco mulheres, Tony encontra outra amante, Eva. Ao
descobrirem, as mulheres conjuntamente discutem a situação e decidem fazer algo a respeito.
Suas reuniões têm caráter muito diverso das demais reuniões de família que são descritas no
romance. Entre elas, apesar de suas fortes diferenças culturais (duas mulheres são do sul –
Rami e Julieta – e as outras três são do norte3), todas podem expor suas opiniões divergentes e
chegam, conjuntamente, a uma decisão sobre o que fazer, em um processo de deliberação que
podemos classificar como de democracia comunicativa.
Assim, após as mulheres investigarem sobre a nova amante, elas decidem fazer um
protesto que não fosse uma greve de sexo, mas uma manifestação amorosa e pacífica. Elas
fazem um jantar para Tony e, no entanto, acabam por confrontá-lo, primeiro perguntando
sobre a amante e depois, por iniciativa de Saly, propondo uma “orgia de amor”, em que ele
deve, se for capaz, realizar-se com todas as cinco de uma vez só. Tony, por sua vez, fica
horrorizado e foge.
Este episódio fará com que Tony convoque o conselho de família, onde acabará vindo
à tona a tentativa das mulheres de fazerem uma “orgia de amor”, o que é mal recebido pelos
familiares, que, supersticiosos, temem pela sorte de Tony. Nos comentários das mulheres
sobre a reunião, surge a palavra que intitula o romance – niketche, quando Mauá afirma que
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Lobolo significa dote. As mulheres são recebidas no lar polígamo, que passa a ter regras de funcionamento, como a escala
conjugal, em que Tony deve permanecer uma semana na casa de cada esposa. No entanto, as mulheres não se encontram
casadas legalmente com Tony, apenas Rami.
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Sobre as diferenças entre as mulheres do norte e do sul: “As mulheres do sul acham que as do norte são umas frescas, umas
falsas. As do norte acham que as do sul são umas frouxas, umas frias. Em algumas regiões do norte, o homem diz: querido
amigo, em honra da nossa amizade e para estreitar os laços da nossa fraternidade, dorme com a minha mulher esta noite. No
sul, o homem diz: a mulher é meu gado, minha fortuna. Deve ser pastada e conduzida com vara curta. No norte, as mulheres
enfeitam-se como flores, embelezam-se, cuidam-se. No norte a mulher é luz e deve dar luz ao mundo. No norte as mulheres
são leves e voam. Dos acordes soltam sons mais doces e mais suaves que o canto dos pássaros. No sul as mulheres vestem
cores tristes, pesadas. Têm o rosto sempre zangado, cansado, e falam aos gritos como quem briga, imitando os estrondos da
trovoada. Usam o lenço na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um feixe de lenha. Vestem-se porque não podem
andar nuas. Sem gosto. Sem jeito. Sem arte. O corpo delas é reprodução apenas” (CHIZIANE, 2004, p. 36).
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Tony deveria celebrar e não chorar, pois tinha cinco esposas fazendo a dança do amor só para
ele. Niketche4 representa a força do amor e da sensualidade das mulheres, que, unidas desta
forma, acabam deixando Tony acuado.
Podemos notar, aqui, que as mulheres e especialmente Rami já se encontram em outro
patamar, diferente daquele do início do romance – não são mais tão submissas a Tony, agora
que têm independência financeira, estão em um relacionamento legítimo e oficial, possuem
direitos, portanto. Isso, claro, deixa Tony insatisfeito. Ele, então, decide punir Rami pedindo o
divórcio, para colocá-la “ao nível das outras mulheres”. Por sua vez, Rami recusa-se a assinar
o divórcio e as outras mulheres, temerosas, pedem para que ela não aceite.
No meio deste conflito, Tony desaparece e, por causa do atropelamento de um homem
não-identificado, os familiares consideram-no morto. Rami sabe que aquele não é Tony, pois
não encontra no corpo uma cicatriz que seu marido tem. No entanto, ninguém quer acreditar
nela, nem mesmo a sua sogra.
Segue-se mais uma reunião familiar, em que Rami sente-se oprimida e é culpada pela
morte de Tony. A família exige que todas as tradições da morte sejam cumpridas, inclusive o
kutchinga, que é uma cerimônia de purificação sexual. Seguindo a tradição, cobrem Rami de
óleos mal cheirosos, colocam-na em um quarto com incensos e raspam-lhe os cabelos.
Antes do kutchinga, Rami recebe a visita da amante de Tony, Eva. Ela desmente a
história da morte de Tony e conta pra Rami que ele foi para Paris de férias. Eva havia
sugerido a viagem a Tony para ele se consultar com um médico e providenciou tudo da
viagem. No entanto, ele levou outra mulher, Gaby, no lugar de Eva.
Ainda segundo a tradição, o próximo passo é a cerimônia do kutchinga, pela qual
Rami anseia, pois se deitará com um homem belo, Levy, irmão de Tony. Rami conta a Eva
que vê a oportunidade como “um momento de amor” e “um bom castigo” a Tony.
Após o funeral, em que se segue a divisão dos bens de Rami, ocasião em que ela se
sente pilhada, e logo após a cerimônia do kutchinga, Tony retorna à casa e a vê vazia. Rami
conta tudo o que aconteceu, deixando-o arrasado. Ela fala com prazer, mesmo percebendo a
dor de Tony. “No meu peito explodem aplausos. Surpreendo-me. Sinto que endureci nas
4
Nas palavras de Chiziane, niketche é: “A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança
que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o
corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o
mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As
mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos
jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança
termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom” (CHIZIANE, 2004, p. 160-161).
16
minhas atitudes. O meu desejo de vingança é superior a qualquer força deste mundo”
(CHIZIANE, 2004, p. 227).
Agora é Rami quem quer ir embora, mas Tony não permite. As outras mulheres
chegam e culpam-no por tudo o que aconteceu. Os papeis estão invertidos e as relações de
poder se alteram. Desta vez é Tony, humilde, que pede perdão.
Na madrugada antes do casamento, Tony se exalta e passa mal, indo parar no hospital.
Lá, Rami tenta explicar ao médico o que houve e é repreendida por Tony: “- Fecha essa boca!
Como podes tu falar da minha intimidade a qualquer um, se nunca te admiti? Como teu
marido não permito que te comportes como qualquer peixeira. És mulher e deves pôr-te no
teu lugar, que da minha saúde cuido eu” (CHIZIANE, 2004, p. 285).
Rami, indignada, não se mostra submissa: “- Doutor, suportei este homem a vida
inteira. Se ele não quer que eu fale, então que morra!” (CHIZIANE, 2004, p. 286). Deste
modo, deixa Tony e volta para casa. No dia seguinte, arruma-se e vai para o casamento da Lu.
Antes, porém, liga para o médico para se certificar de que o marido está bem.
De volta para casa, Tony decide que quer ficar apenas com Rami. Mas Rami recusa a
decisão, pois as outras mulheres ficariam sozinhas com seus filhos, sem suporte. Para ela,
Tony precisa mesmo é lobolar uma nova mulher.
Assim, Rami convoca as outras mulheres e conta o que aconteceu. Todas dizem que
não têm tempo para satisfazer os caprichos de Tony e concordam com a solução de Rami de
sugerir uma nova mulher a Tony. Com isso, as mulheres vão para o norte onde encontram
Saluá e a apresentam a Tony. Mas Tony não aceita a oferta.
Diante disso, Saly diz, de forma incisiva: “A tua recusa é uma declaração de
impotência sexual, e então vamos reunir o conselho de família, informar do que se passa e
procurar assistentes conjugais. Este é um direito que a poligamia nos confere” (CHIZIANE,
2004, p. 325).
Por sua vez, Mauá anuncia que já tem um assistente conjugal e que irá se casar com
ele em quinze dias. A Ju também informa que irá subir ao altar em breve. Todas as mulheres
recusam Tony e partem. Rami é a única que resta:
Ruínas de uma família. A Lu, a desejada, partiu para os braços de outro com véu e
grinalda. A Ju, a enganada, está loucamente apaixonada por um velho português
cheio de dinheiro. A Saly, a apetecida, enfeitiçou o padre italiano que até deixou a
batina só por amor a ela. A Mauá, a amada, ama outro alguém. Só fiquei eu, a
rainha, a principal, para lhe salvar a honra de macho (CHIZIANE, 2004, p. 332).
A sós com Rami, Tony ainda sente orgulho de homem e ensaia um pedido de perdão:
- Eu adoro-te. Quero adorar-te, mas não posso. Adorar é ajoelhar. Um homem com
H maiúsculo não se curva, é erecto.
- Ai, sim?
- Queria também dizer que confio em ti, mas também não me é permitido. Os
homens devem desconfiar sempre das mulheres, e as mulheres devem confiar
sempre nos homens.
- Já sei. (CHIZIANE, 2004, p. 328).
Mas a verdade é que, como dito antes, só Rami que pode lhe salvar a honra de macho.
Enquanto se abraçam, Tony percebe que Rami está grávida e implora pra que ela diga que o
filho é dele. Rami pensa sobre o que irá responder: “Dizer sim e resgatá-lo. Dizer não e perdê-
lo. Mas eu o perdi muito antes de o encontrar. Ignorou-me muito antes de me conhecer”
(CHIZIANE, 2004, p. 332-333). E, finalmente, conta que o filho que ela carrega é de Levy.
5. Conclusão
ambiente privado, familiar, restrito, mas que podemos identificar como seguindo o modelo da
democracia comunicativa.
Referências
ARENDT, Hannah. O que é política? 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
KEANE, John. Vida e morte da democracia. São Paulo: Edições 70, 2010.
YOUNG, Iris Marion. Comunicação e o outro: além da democracia deliberativa. In: SOUZA,
Jessé (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea.
Brasília, DF: UnB, 2001.