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CONTEÚDO DO REGIME
JURíDICO-ADMINISTRATIVO E SEU VALOR
METODOLÓGICO
CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO
Professor na Faculdade de Direito da
Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo
2 Para Duguit o valor da noção de serviço público não descansava na acolhida que lhe
desse o sistema normativo, mas, pelo contrário residia em si mesmo e bem por isso tinha que
se impor aos legisladores que "cedo ou tarde", se veriam arrastados ou compelidos ao reconheci-
mento de que tais ou Quais atividades são por si mesmas serviço público enquanto outras, também
por si mesmas, não o são (Leon Duguit - Traité de Droit Constitutionnell, 2' ed., 1923, tomo li,
págs., 54 e segs.). Note-se Que conceito desta ordem é antes sociológico que jurldico e serve muito
bem como fundamento politiço para o direito administrativo, mas não se lhe adapta como critério.
É elucidativa sua disputa com jeze, a propósito da questão.
Enquanto Duguit pretendia reconhecer o serviço público na própria realidade social, jeze
pretendia localizá-lo na "Intenção dos governantes". Isto significa que êste último buscava UI"
critério jurídico, deduzlve1 a partir do "regime" atribui do pela lei; é aliás, o que faz questão de
frisar, (vide a propósito as págs. 67 e 68 do Traité de Duguit, vol. clt. e as págs. 18 e seguintes
e sobretudo, nota de rodapé n9 35 dos Princlpios Oenerales deI Derecho Administrativo de jeze,
tradução argentina da 3' ed. francesa, 1949, vol. 11 1).
Infelizmente, aqui não nos podemos deter neste problema que, em nosso entender, envolve duas
questões distintas, a saber: o problema do fundamento conveniente e adequado para o direito
administrativo e o problema da própria realidade jurídica, serviço público adotada como critério
desta disciplina do Direito. Fica afirmado, entretanto, que preferimos a posição de jeze.
11-
6 Ruy Cirne Lima, Principias de Direito Administrativo, 3' ed., 1954. pág. 63.
7 Ruy Cirne Lima, ap. cit., pág. 54.
8 Ruy Cirne Lima, ap. cit., pág. 21.
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lação de administração somente se nos depara, no plano das relações
jurídicas, quando a finalidade, que a atividade de administração se
propõe, nos aparece defendida e protegida, pela ordem jurídica, contra
o próprio agente e contra terceiros". 9
Em suma, o necessário - parece-nos - é encarar que na adminis-
tração os bens e os interêsses não se acham entregues à livre disposi-
ção da vontade do administrador. Antes, para êste, coloca-se a obri-
gação, o dever de curá-los nos têrmos da finalidade a que estão ads-
tritos. É a ordem legal que dispõe sôbre ela.
Relembre-se que a Administração não titulariza interêsses pú-
blicos. O titular dêles é o Estado que, em certa esfera, os protege e exer-
cita através da função administrativa, mediante o conjunto de órgãos
(chamados administração, em sentido subjetivo ou orgânico), veículos
da vontade estatal consagrada em lei. Caio Tácito observa com pre-
cisão exemplar que a função administrativa ou executiva "se realize
dentro em normas criadas pela função legislativa ou normativa ... " 10
21. As pessoas exclusivamente administrativas, autarquias, pre-
cisamente em razão do fato de assim se qualificarem, são entidades ser-
vientes. Isto significa que por serem pessoas, podem - ao contrário
da Administração - titularizar interêsses públicos, mas, apenas, na
condição de servas de uma vontade anterior, jungidas ao cumprimento
exato dos fins que aquela vontade, por lei, lhes assinalou.
Sendo pessoas administrativas, sua província é a da relação de ad-
ministração e, por isso mesmo, estão adstritas ao cumprimento de uma
finalidade. Ainda aí, é o dever, a finalidade e não a vontade, que co-
mandam sua ação. Não dispõem a seu talante sôbre os interêsses pú-
blicos; não os comandam com sua vontade; apenas cumprem, ainda
quando o fazem discricionàriamente, em muitos casos, a vontade da lei.
Esta, em tôda e qualquer hipótese, lhes serve de norte, de parâmetro e
de legitimação.
As pessoas administrativas não têm, portanto, disponibilidade
sôbre os interêsses públicos confiados a sua guarda e realização. Esta
disponibilidade está permanentemente retida nas mãos do Estado (e de
outras pessoas políticas, cada qual na própria esfera) em sua manifes-
tação legislativa. Por isso a Administração e a pessoa administrativa,
autarquia, têm caráter meramente instrumental.
22. Exposto o conteúdo e significado da indisponibilidade do in-
terêsse público, podem-se extrair as conseqüências dêste princípio, que
se vazam no regime dito administrativo, caracterizador também da
pessoa pública administrativa, autarquia.
9 Ruy Cirne Lima, op. cit., pág. 54.
10 Caio Tácito, "O Abuso do Poder Administrativo no Brasil", in Revista de Direito Admi-
nistrativo, vol. 56, pág. 1.
- 16-
14 Seabra Fagundes, Conlróle Jurisdicional dos Atos Administrativos, 1957, 3' ed., pãg. 17.
15 O principio da legalidade, que tradicionalmente tem merecido a atenção e o interêsse da
doutrina francesa, hoje, na França, sofre importantes atenuações ou, pelo menos, modificações
de conteúdo, como fruto da Constituição de 1958 que instituiu "matérias reservadas" à compe-
tência administrativa, vedando a intervenção do Legislativo. Veja-se, a êste propósito, Rivero,
op. cit., pãgs. 14 a 16, n' 9 e pãg. 74, n. 77-8 e, sobretudo Waline, op. cit., págs. 128 e segs ..
especialmente o número 204.
O mesmo principio sofre, ainda, em outro sentido, importantes restrições, particularmente em
face chamada "teoria das circunstâncias excepcionais". SObre a matéria vide George VedeI, op. cit.,
vol. I, págs. 162 e segs., Waline, Droit Administratif, 9- ed., págs. 886 e segs. e sobretuao
Laubadere, op. cit., vol. I, págs. 220 e segs.
16 Vedei, op. cit., voI. I, pá·g. 143.
17 Rivero, op. cit., págs. 74 e segs. No mesmo sentido Fritz Fleiner que diz: "A autoridade
administrativa não está ligada apenas pelo direito criado pelo legislador ao qual está subordinada;
está Igualmente (subordinada) pelo direito que ela própria cria, ligada a seus próprios regula-
mentos e seus estatutos autônomos." (Fritz Fleiner, op. cit., pág. 92).
Laubadere registra a posição diferente assumida por Eisenmann. para quem o princípio da
legalidade tem o sentido restrito de "limitação da administração pelas leis formais" (Laubadere,
op. cit., \"01. I, pág. 193).
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22 Fritz F1einer, Les Príncipes Généraux du Drúit Admlnlslratif AlIemand, 1933, pã~. 87.
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única pessoa e prosseguidos pela Administração. A fim de manter a
coerência harmônica do todo administrativo e reter sua integridade,
pôsto que a função das pessoas autárquicas é idêntica à que exercita
em sua manifestação administrativa, mantém-nas sob contrôle. Com
isto reconstitui, de certa forma, a unidade que quebrou - e que nunca
poderia romper totalmente, sob pena de mutação qualitativa em a na-
tureza de tais pessoas.
Horácio Heredia define o contrôle administrativo sôbre as pessoas
autárquicas como o "juízo que realiza um órgão da Administração
ativa sôbre o comportamento positivo ou negativo de uma entidade
autárquica ou de um agente seu, com o fim de estabelecer se se con-
forma ou não com as normas e princípios que o regulam e cuja de-
cisão se concretiza em um ato administrativo." 23
o contrôle administrativo ou tutela é o poder de que dispõe o Es-
tado, exercitável através dos órgãos da Administração, de conformar o
comportamento das pessoas autárquicas aos fins que lhe foram legal-
mente atribuídos. As implicações dêste contrôle e sua extensão variam
de país para país, dependem do tipo de entidade autárquica e apre-
sentam-se diversamente, em vista da legislação peculiar a cada enti-
dade. Algumas são submetidas a regime muito estrito de tutela, a
outras atribui-se liberdade maior e, conseqüentemente, afrouxam-se as
relações entre controlador e controlados.
Em tese, êste poder de adequar as autarquias aos genéricos obje-
tivos estatais, tendo em vista confiná-las ao exato cumprimento de seus
fins, envolve tanto juízos e decisões da Administração concernentes à
legitimidade quanto relativos ao mérito dos atos praticados. Pode
abrigar a prerrogativa de exame prévio ou a posteriori dos atos das
autarquias e chega, inclusive, em certos casos, a compreender a fa-
culdade de revogá-los, uma vez expedidos.
O contrôle compreende, ainda, o poder de manter-se a Adminis-
tração informada sôbre o comportamento das autarquias, autorizando
investigações e, freqüentemente, manifesta-se, também, sob a forma de
nomeação e demissão de administradores autárquicos. As formas de
contrôle são variáveis e dependem do direito positivo.
33. d) O princípio da isonomia ou igualdade dos administra-
dores em face da Administração firma a tese de que esta não pode de-
senvolver qualquer espécie de favoritismo ou desvalia em proveito ou
detrimento de alguém.
Com efeito, sendo encarregada de gerir interêsses de tôda a cole-
tividade, a Administração não tem sôbre êstes bens disponibilidades
23 Horário Heredia, ContraIor Admi.'istrativo sobre los Entes Autarquicos, 1942, pág. 29.
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24 Áliás, talvez haja sido Gaston Jeze quem mais se preocupou em determinar as coorde-
nadas do direito administrativo, destacando certos princípios como fundamentais. Adepto que era
da escola do serviço público reporta êstes cinones básicos à noção que lhe parecia central Ile&te
ramo do Direito.
Cumpre notar que à diferença de Duguit, - e Isto é Importantíssimo - Jêze Identlflcava
serviço público como aquêle exercido sob um "regIme determinado", o "processo de direito
público". Caracterizava-o precisamente pela "existência de regras juridlcas especiais, de teorIas
jurldlcas especlals".
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trativo. Por isso mesmo, ainda está por ser convenientemente delineado
o regime administrativo, sem embargo de ser êle, afinal, o ponto me-
dular desta disciplina jurídica.
54. Há, na matéria, verdadeira lacuna reclamando preenchimento
urgente. Eis porque, não havendo a doutrina atribuído ao regime admi-
nistrativo função categorial, poucos são os princípios diretamente qua-
lificados pela doutrina como noções articuladoras do direito adminis-
trativo. Fala·se em "regime de direito público", em "processo de direito
público", em "regime administrativo", mas não se lhes expõe as
coordenadas.
A espera de fôrças mais robustas que tratem da matéria, aponta-
mos os princípios que nos parecem formar, em seu conjunto, a tipici-
dade do regime administrativo e, portanto, do próprio direito admi-
nistrativo.
55. Resumindo o que se expôs e já agora sem agregar comentários
ou estabelecer sucessivos encadeamentos entre os vários princípios para
determinar-lhes a filiação, vão relacionados abaixo todos os que pro-
manam dos dois cânones fundamentais: supremacia do interêsse pú-
blico sôbre o privado e indisponibilidade dos interêsses públicos.