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H I S T Ó R I A

E ANTOLOGIA
DA L I T E R AT U R A
P O RT U G U E S A
S é c u l o
XVII

N.º 30

FUNDAÇÃO
CALOUSTE
GULBENKIAN
1

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS


HALP N. 30

Professores/Investigadores

Ana Hatherly
António Cirurgião
Maria Lucília Gonçalves Pires
Maria de Lourdes Belchior
Marta Anacleto

Agradecimentos

Imprensa Nacional Casa da Moeda


Publicações Alfa

Ilustração Capa:

Aelbert Cuyp (Dutch, 1620-1691): Herdsmen tending


Cattle. Signed. c. 1650. Canvas 66 x 88 cm. Andrew W.
Mellon Collection

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste Gulbenkian


Serviço de Educação e Bolsas
Av. de Berna 45A – 1067-001 Lisboa
Autora: Isabel Allegro de Magalhães
Concepção Gráfica de António Paulo Gama
Composição, impressão e acabamento
G.C. Gráfica de Coimbra, Lda.
Tiragem de 11.000 exemplares
Distribuição gratuita
Depósito Legal n.º 206390/04
ISSN 1645-5169
Série HALP n.º 30 – Novembro 2004

2
SÉC U L O X V I I
NOVELAS PASTORIS
OUTRAS OBRAS

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Índice Livro Primeiro.
Jornada terceira ................................................ 50

O Desenganado - Terceira Parte de


Nota Prévia ....................................................... 7 A PRIMAVERA

ESTUDOS, INTRODUÇÕES: Discurso II ....................................................... 52

“A prosa de Francisco Rodrigues Lobo” Corte na Aldeia [e Noites de Inverno] (1619)


Marta Anacleto ................................................ 11 Diálogo I
Diálogo III
“A Primavera, de Rodrigues Lobo: uma Diálogo VIII
introdução” Diálogo XI ...................................................... 53
Maria Lucília Gonçalves Pires .......................... 14
FERNÃO ÁLVARES DO ORIENTE
“Textos incluídos na trilogia pastoril Lusitânia Transformada (1607)
de Rodrigues Lobo”
Maria de Lourdes Belchior .............................. 23 Livro Primeiro:
“Argumento”
“Aspectos de Lusitânia Transformada” Prosa primeira
António Cirurgião ........................................... 26 Prosa terceira
Prosa undécima
“A Preciosa no conjunto da obra de
Sóror Maria do Céu” Livro Segundo:
Ana Hatherly ................................................... 30 Prosa sexta

Livro Quarto:
TEXTOS LITERÁRIOS: Prosa quarta
Prosa quinta
FRANCISCO RODRIGUES LOBO Prosa duodécima .............................................. 69
A PRIMAVERA: Trilogia
A Primavera (1601) – Primeira Parte de ELÓI DE SÁ SOTTO MAIOR
A PRIMAVERA ........................................ 37 Das Ribeiras do Mondego (1623)

– “Vales e montes entre o Lis e o Lena” Livro I ............................................................. 80


Florestas primeira, quinta, décima,
duodécima ....................................................... 37 SÓROR MARIA DO CÉU
– “Campos do Mondego” A Preciosa (1731)
Floresta primeira, sétima .................................. 46
– “Praias do Tejo” Cap. 1 “Limbo de infantes”
Floresta primeira .............................................. 49 Cap. 2: “Vale de Lágrimas”
Cap. 5 “Embaixada de Delcídia”
O Pastor Peregrino - Segunda Parte Cap. 7 “Jardins de Delcídia”:
de A PRIMAVERA Cap. 23 “Corte do Rei” ................................... 85

5
6
Em Pastor Peregrino, ouvimos a voz desse peregrino
Nota Prévia aconselhar o “queixoso”, dizendo: “Imagina no que
te convém” que “o melhor remédio é concertar o desejo
com o sofrimento” (“Jornada Terceira”).
N’O Desenganado, uma das figuras, aqui viajante
Este Boletim apresenta excertos de algumas das por barco, narra a alegria breve de ter ouvido falar
novelas pastoris e alegóricas, de diferentes autores bem da sua cantiga “& mulheres que a louvavam a
do início de seiscentos em Portugal – o tempo ela me favoreciam a mim. Já saber como o ânimo dos
mais significativo da nossa produção da novelística homens que se criam bem, não tem outro maior que
pastoril. Inclui também uma obra de carácter serem louvados das Damas, e terem em sua opinião lugar
didáctico. de merecimentos.” (“Discurso III”)
O conjunto de PRIMAVERA - tal como outras
– As primeiras obras apresentadas são da autoria novelas pastoris - inclui diversíssimos poemas 2, por
de Francisco Rodrigues Lobo: vezes nomeados como “Cantigas”, que fazem parte
integrante da narrativa e dos diálogos.
A primeira, PRIMAVERA, é uma trilogia pastoril
constituída por Primavera, Pastor Peregrino e
A segunda é Corte na Aldeia: um conjunto de diá-
Desenganado. Do primeiro texto, existe uma edição
logos didácticos e um dos mais significativos
recente, da autoria de Maria Lucília Gonçalves
textos da “prosa barroca”, de 1619, que tem uma
Pires; dos outros dois, as edições são ainda do
edição modernizada, de J.A. de Carvalho, em 1992.
século XVIII.1
Trata-se de um conjunto dezasseis “Diálogos” que
Primavera (1601), texto bucólico “escrito sob a
expõem conversações “entre amigos bem acostu-
égide de Sannazzaro e de Bernardim” (M.L.G.
mados”, diversas entre amigos, por vezes nas “noites
Pires), tem também em três partes – “Vales e montes
de inverno” de uma vida de corte rural ou uma
entre o Lis e o Lena”, “Campos do Mondego”,
“corte na aldeia”.
“Praias do Tejo”, estando ainda cada uma dessas
Aí se debatem matérias diversas, como géneros
três partes subdividida em secções (doze, dez e
literários, a língua e suas utilizações, os “livros de
oito, respectivamente) intituladas “Florestas”. Nestes
cavalarias fingidas”, a história e a ficção, a verdade e
três espaços impõe-se a figura do pastor Lereno,
a verosimilhança nas histórias narradas, nos “Livros
com “a história da [sua] deambulação” e do “amor
de Cavalaria”, a maneira de contar histórias, a agu-
que a determinou” (M.L.G. Pires).
deza na conversação, a escrita de diferentes tipos
Por sua vez, Pastor Peregrino (1608), organizado em
de cartas. Ou ainda: se “a melhor escrita é a que retrata
doze “Jornadas” distribuídas por dois livros, e
com mais diferença a fala e a conversação entre os amigos”,
Desenganado (1614), na forma de vinte “Discursos”,
ou se “a escritura” será mais perfeita, já que ela cons-
prolongam, ambas, a temática e os contextos de
titui “a perfeição da prática”.
Primavera. Os mesmos e outros pastores e pastoras
partilham entre si as suas “falsas esperanças”, a sua
– De Fernão Álvares do Oriente, Lusitânia Trans-
“desesperação do que perdera[m]” para isso buscando
formada (1607), editado em 1985 por António
“satisfação” e “ventura”.
Cirurgião.
1
O Pastor Peregrino tem agora uma nova edição de Maria
2
Lucília Pires. Vega, 2004, saída depois da elaboração deste Alguns dos poemas de PRIMAVERA aparecem na
volume. Antologia da Poesia do Século XVII, no Boletim n.° 28.

7
O cenário da novela é o de uma natureza ideali- – De Sóror Maria do Céu, uma longa novela
zada – como é próprio da convenção bucólica –, intitulada A Preciosa (1731), editada por Ana
dentro da qual se abre um panorama do Império Hatherly, a partir de um Manuscrito, em 1990.
português e alguns dos seus territórios (Japão, Sóror Maria do Céu é uma das muitas autoras-
China, Indonésia, Ceilão, Etiópia, etc., além de -freiras que, durante o século XVII em Portugal,
surgirem algumas localidades de Portugal). escreveram diversíssimas obras significativas, de
Além dos elementos constituintes de uma socie- poesia e de ficção narrativa, ou de carácter
dade pastoril, da situação, ocupações e entreteni- apologético ou moral, mas que durante séculos
mentos dos pastores, esta novela – escrito por permaneceram na sombra, dado que as suas obras
alguém que viveu também no Oriente – dá voz a apenas tinham forma manuscrita ou cujas publi-
algumas acções e fracassos dos portugueses nas cações se tornaram quase inacessíveis.
terras do Oriente, satirizando-os, a ponto de a obra Genologicamente, A Preciosa pode ser considerada
incluir um “epitáfio” à era imperial que inscreve a uma “alegoria moral” (a edição de 1731 é assim
decadência de um período glorioso. que a descreve), sendo simultaneamente uma
Também aqui os diálogos incluem frequentemente novela pastoril, mas a lo divino. Como comenta
poemas. Mas, diferentemente de outras novelas Ana Hatherly, o texto segue algumas das normas
pastoris, o texto dá especial relevo a uma espécie impostas à criação artística pela Contra-Reforma:
de ideal da infância, como tempo mítico, conforme por exemplo, louvando o Amor “do ponto de vista
é apontado por António Cirurgião. a lo divino” e condenando-o do ponto de vista a lo
humano. Também aqui a narrativa se vai abrindo à
– De Mário Eloy, a novela pastoril Ribeiras do inclusão de poemas que surgem totalmente arti-
Mondego, de 1623, reeditada em 1932 por Martinho culados com a narrativa contextual.
da Fonseca (sem modernização da grafia).
Reunidos em seis livros, estes “Diálogos” entre Este volume inclui, como sempre, alguns Estudos
pastores, intercalados com poemas, revelam cos- e Introduções aos textos literários, sua época,
tumes e traços da época. autores, bem como uma Bibliografia Sumária.
A natureza-cenário é agora a das margens do
Mondego (tal como em Primavera de Rodrigues Lisboa, Novembro de 2004
Lobo o era já), onde se conto de um “pastor triste”,
“acudido por três pastoras”, das relações, alegrias e ISABEL ALLEGRO DE MAGALHÃES
sofrimentos de amor por que passam, eles e outros
pastores mais. Desse pastor se acentua a tristeza e
o relevo atribuído à sua relação com a natureza
tem algo que, curiosamente, parece prenunciar já
algum Romantismo:

uma grande tristeza tudo em si converte, ele


convertendo em si tudo, a tudo entristecia,
aborrecido de si mesmo, como causa dos efeitos
que já reconhecia na mudança do tempo, [...],
na turvação das águas”, no desmaio das plantas, N.B. Nos textos de que não existem edições com grafia moder-
nizada, decidi actualizá-la minimamente, de modo a facilitar a
[...], no silêncio dos aves. leitura.

8
I N T RO D U Ç Õ E S
ESTUDOS BREVES

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10
A prosa Os romances pastoris

A tradição da literatura pastoril remonta a Teócrito


de Francisco e Virgílio, devendo-se a Sannazaro, com a Arcádia,
a definição preliminar dos códigos do romance
pastor il. A sua consagração, em ter mos de
Rodrigues Lobo subgénero, liga-se, sem qualquer dúvida, a Jorge
de Montemor, cujo texto mais relevante, Los siete
libros de la Diana (1559), fixou o modelo definitivo,
(excerto) conjugando habilmente prosa e verso, garantindo
o seu sucesso junto do público.
A composição do romance pastoril prevê, à partida,
MARTA ANACLETO* uma relação peculiar entre o texto (ficção) e o real:
o disfarce pastoril define o estatuto das personagens,
[...] do universo em que se movimentam e fixa o tipo
A produção em prosa de Francisco Rodrigues de relação autor-texto-leitor. Estabelece-se, assim,
Lobo, que constituirá objecto de análise neste um «pacto de leitura» que pressupõe, ao mesmo
capítulo, compreende a trilogia pastoril formada tempo, uma ruptura aparente e uma aproximação
pelos textos Primavera (1601), O Pastor Peregrino tácita da ficção com a realidade. A Arcádia é um
(1608) e O Desenganado (1614), e os diálogos Corte mundo utópico, um mundo outro, mas o texto
na Aldeia e Noites de Inverno (1619), que granjearam legitima uma série de correspondências com o real:
enorme sucesso junto do público. as personagens são falsos pastores disfarçados (Lereno
Dos romances pastoris à Corte na Aldeia evidencia- virá a ser uma personagem potencialmente
-se todo um percurso de percepção e compreensão identificada com Rodrigues Lobo), a paisagem
da ficção que espelha, de certo modo, a forma pastoril parte de uma idealização da paisagem
como a narrativa se desenvolve, de uma cosmovisão existente (os campos do Lis e do Lena, os campos
predominantemente maneirista (onde ecoam do Mondego na Primavera).
versos de Camões) a uma conceptualização já As personagens / pastores do romance pastoril
barroca. Assim, a obra de Francisco Rodrigues formam uma micro-sociedade ideal, marcada pela
Lobo surge comummente situada na encruzilhada harmonia, pela amizade (simbólica), pelo ócio, e
entre Quinhentos, implicando uma inspiração por certas atitudes de grupo, de natureza lúdica
camoniana, e Seiscentos, evidenciando sinais de (os jogos e exercícios pastoris) ou espiritual e
gongorismo (Belchior, 1978). contemplativa (as questões de amor, a condição
É nesta perspectiva que irão ser abordados os textos do homem no mundo). O pastor é um filósofo
narrativos produzidos pelo autor, lidos com que cultiva a imagem do ser e não do agir, que
entusiasmo na época e praticamente esquecidos contempla, que intelectualiza profundamente os
hoje, reconhecendo o seu estatuto e mérito, sentimentos, criando no leitor a consciência de
tentando reavivá-los na memória do leitor. um «estilo introspectivo pastoril» (Lopez Estrada,
1974). Forma-se, deste modo, uma filosofia da vida
* In História da Literatura Portuguesa: da Época Barroca ao
pastoril profundamente enraizada numa visão
pré-Romantismo. Lisboa: Alfa, 2002, p. 47-84. Foram retiradas utópica do mundo e do homem, muitas vezes
do corpo do texto as referências bibliográficas. plasmada em imagens, símbolos e alegorias.

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A paisagem descrita surge, enquanto convenção outros há que permanecem no desengano e que
do subgénero, ligada ao «tópico» do locus amoenus continuam na sua peregrinação existencial
(Curtius, 1984), com implicações temáticas e abandonados a si próprios e ao «Fado» (Lereno).
ideológicas evidentes. Fontes, nascentes, rios, Esta concepção maneirista do homem e da vida,
ribeiras, prados, constituem um espaço idílico e que tende a salientar, com uma nota pessimista, a
uma fuga à angústia existencial subjacente à fraqueza e corrupção humanas, explica a procura
metamorfose pastoril.As descrições do espaço, fruto da utopia e a opção deliberada pelo disfarce pastoril.
de uma interiorização consciente, focam a beleza e A trilogia pastoril de Rodrigues Lobo integra-se
pureza originais da paisagem, evidenciando, de numa prática do subgénero, a que estão ligados,
forma nítida, a possibilidade de comunhão do na tradição da literatura portuguesa da época,
homem com a natureza, o retorno a uma Idade de autores como Fernão Álvares do Oriente (Lusitânia
Ouro irreversivelmente ligada ao passado. Transformada – 1607) e Elói de Souto Maior
O ritmo lento e a monotonia marcam a acção, (Ribeiras do Mondego – 1623). Apesar da
reduzida, na maior parte dos casos, à prática da notoriedade atingida por estes dois escritores, foi,
conquista amorosa e às deambulações e encontros sem dúvida, a Primavera que granjeou maior sucesso
de pastores, cujos diálogos retomam sistematicamente junto do público: dez edições nos séculos XVII e
o tema do Amor. A diegese constrói-se partindo da XVIII, tendo mesmo sido traduzida para
exploração, a nível textual, das relações entre as castelhano, em 1629, por Juan Baptista Morales.
personagens e o Amor, a Fortuna e o Tempo. Os romances pastoris de Francisco Rodrigues
Profundamente enraizado numa cosmovisão Lobo inscrevem-se numa poética ditada pela
maneirista, o romance pastoril sublinha o paradoxo Arcadia, de Sannazaro, e por Los siete libros de la
decorrente do poder irracional da Fortuna sobre Diana de Jorge de Montemor, colhendo certos
o homem, reflecte sobre o carácter irreversível do preceitos de casuística amorosa nos Dialóghi di
Tempo que flui e transforma, analisa os efeitos do Amore (1535) de Leão Hebreu e desenvolvendo
Amor, que redundam frequentemente num uma intertextualidade nítida com Camões.
angustiante e passivo sentimento de desengano. É No contexto da produção literária de Rodrigues
a imagem de um homem inseguro, melancólico, Lobo, a trilogia pastoril dialoga com a ideologia e
perdido nos meandros da sua própria existência e temas explorados nas Éclogas [...]
na mutabilidade da sua experiência humana, que
nos transmitem, em primeira instância e sob uma Os pastores da trilogia pastoril de Rodrigues Lobo
capa de falsa felicidade (engano; ideal imaginado), são, sobretudo, poetas que compõem as suas
os romances pastoris.A tentativa de superação desta composições em verso, onde expr imem o
condição explica a presença corrente, nos textos, sofrimento amoroso que os domina, os seus
do maravilhoso, do sobrenatural, do divino. Trata- enganos, esperanças e desenganos. O verso
-se, efectivamente, de um aproveitamento das desenvolve, assim, uma casuística amorosa
virtualidades da ficção para criar um espaço complexa, fruto do aproveitamento das
imaginado que sublime o real e que permita obter virtualidades expressivas e associações conceptuais
soluções de felicidade para algumas personagens, exploradas no modo lírico. Sob uma enorme
ainda que sob uma visão do mundo pessimista. variedade de metros (sonetos, tercetos, quadras,
Se surgem pastores cujos destinos se encerram com oitavas, décimas, canções, romances, glosas,
um final feliz, fruto da acção de uma fonte ou água endechas...), os pastores poetizam as histórias dos
milagrosas, de uma entrega total ao Amor divino, seus amores, exprimem os seus sentimentos, e o

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verso acaba, de um ponto de vista estético, por se autor formula uma série de normas de conduta a
sobrepor à prosa. seguir por todo o cortesão discreto e culto,
Vozes autorizadas como Ricardo Jorge, Maria de reveladoras de um espírito clarividente, erudito,
Lourdes Belchior e Teófilo Braga entendem o texto racionalista e também crítico ou mesmo céptico.
em prosa dos romances de Lobo como um mero II Cortegiano (1528), de Baltasar Castiglione, é
pretexto para a inclusão do verso. Enquanto Maria comummente apontado como o modelo
de Lourdes Belchior chama a atenção do leitor inspirador de Rodrigues Lobo para a composição
para o valor estético dos versos incluídos nos três da Corte na Aldeia, ainda que, como refere Walter
romances, que consagram o poeta e o associam a Schnerr, os dois textos se afastem visivelmente pela
Camões, Teófilo Braga refere o «esplendor variedade de temas tratados pelo autor português.
maravilhoso dos seus versos». Considerações sobre retórica, preceitos de conversa,
O texto em prosa for nece pontualmente fazem parte de uma estratégia didáctica montada
informações ao leitor sobre o movimento das por Rodrigues Lobo que não figura em Castiglione.
personagens, oferece sumárias descrições da São igualmente apontados como fontes dos
paisagem ou comentários didácticos sobre os diálogos de Rodrigues Lobo, ainda que com uma
efeitos do amor no amante, assumindo uma função influência menos nítida que a de Castiglione, o texto
introdutória e preparatória, relativamente ao verso, de Antonio Guevara Menosprecio de corte y alabanza
onde o génio e o invento de Rodrigues Lobo de aldea e Noshes de Insierno, de Antonio Eslava.
atingem o seu auge, aproximando-se de Camões. Da literatura portuguesa o autor colheu lições mais
É neste equilíbrio um pouco instável entre prosa directas para a composição da Corte na Aldeia, do
e verso que Rodrigues Lobo se revela um Leal Conselheiro, de D. Duarte, do Livro da Virtuosa
importante poeta da sua época, um homem Benfeytoria, de D. Pedro, e da Ropicapneufma de João
profundamente culto, um espírito de grande de Barros.
capacidade reflexiva sobre os problemas que O título e a realidade para a qual aponta o texto
afectam o homem e o mundo, o revelador de uma relacionam-no ideologicamente com uma situação
sensibilidade estética em voga. A Primavera, O Pas- política peculiar – o domínio filipino – e
tor Peregrino e O Desenganado, apesar de objectos evidenciam uma certa nostalgia que liga Francisco
de leitura fastidiosa, constituem uma síntese e uma Rodrigues Lobo a um passado próximo. O autor
reflexão teórica sobre temas recorrentes na parte, assim, de uma situação ficcional que lhe
literatura da época e funcionam como textos a ter permite criar uma corte na aldeia (eventualmente
em conta na definição de um estilo de época Sintra), à semelhança da corte secreta deVilaViçosa,
maneirista. composta por um conjunto de personagens
[...] masculinas originárias de estratos sociais distintos,
humanistas unidos pelo prazer do diálogo; pela
Corte na Aldeia e Noites de Inverno erudição e pelo conhecimento das regras sociais
pelas quais se deve pautar o cortesão. Os dezasseis
[...] diálogos que compõem o texto resultam da
A Corte na Aldeia foi, sem dúvida alguma, um dos tentativa de formação de uma pequena sociedade
textos mais importantes da «prosa barroca» na de elite, onde se cultiva o espírito e a linguagem,
literatura portuguesa, um manual de civilização onde se apuram os conceitos, onde se tende, em
de carácter didáctico, pedagógico e enciclopédico. última instância, a reavivar a identidade da pátria.
Através do debate e de uma prática conceptista, o [...]

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A Primavera, elementos procedentes de outros géneros literários
como a novela de cavalaria, a novela de corte ou o
chamado romance grego, elementos que irão
de Rodrigues convergir em quase todas as novelas pastoris e que
Rodrigues Lobo também aproveitará nas suas
outras novelas.
Lobo: uma Neste estabelecer de relações com textos que cons-
tituem matrizes e foram erigidos em modelos do

introdução género, impõe-se ainda trazer à colação a Menina


e Moça (1554) de Bernardim Ribeiro. Sem poder
ser designada de novela pastoril, esta obra procede
(excerto) contudo a um aproveitamento de elementos
bucólicos que transforma e molda de acordo com
o universo sentimental que constrói. Frequente-
MARIA LUCÍLIA GONÇALVES PIRES* mente a obra de Bernardim Ribeiro tem sido
apontada como antecedente da Diana, que da
Menina e Moça teria recebido, entre outros ele-
[...] mentos secundários, a construção da trama nove-
Se é certo que na Península o prestígio da Diana lesca centrada na paixão amorosa. Mas o Lereno
parece condicionar toda a novelística de inspiração da Primavera está incomparavelmente mais próximo
pastoril, não podemos, ao estudar A Primavera, da paixão desenganada de Binmarder ou do drama
deixar de a relacionar com outros textos de cunho sentimental de Avalor do que qualquer das perso-
bucólico que contribuíram para a constituição dos nagens da Diana. Por isso, e apesar do indiscutível
códigos do género ou representam for mas sucesso de que gozava na época a novela de Jorge
específicas de actualização desses códigos. É o caso, de Montemor, a Primavera coloca-se primordial-
antes de mais, da Arcadia de Sannazaro (1504), mente sob a égide de Sannazaro e de Bernardim.
modelo primeiro da novela pastoril, em que pela
primeira vez se encontram os elementos que Em Portugal o tempo de produção e publicação
passarão a constituir tópicos do género e as da Primavera coincide com, ou precede de pouco,
estruturas textuais que o identificam. Mais do que o tempo de produção das outras novelas pastoris.
da Diana, é da obra de Sannazaro que A Primavera É o caso da Lusitânia Transformada, de Fernão
parece aproximar-se: na caracter ização do Álvares do Oriente, publicada em 1607, já depois
protagonista e de algumas personagens secundárias; da morte do seu autor que deve ter ocorrido em
no aproveitamento de episódios como contendas 1600 ou pouco depois. Também Elói de Sá Sotto
poéticas entre pastores ou cerimónias fúnebres; na Maior, ao publicar em 1623 a sua novela Ribeiras
presença de uma mitologia rústica centrada no do Mondego, afirma na dedicatória que a obra esta-
culto do deus Pã; na cena final de despedida da va pronta ainda antes de Rodrigues Lobo ter pu-
«sanfonha» simbolizando a renúncia ao canto; na blicado a sua Primavera. Se é certo que os dados
depuração do elemento pastoril, com exclusão de objectivos de que dispomos nos não permitem
confirmar esta prioridade, permitem-nos pelo
* In A Primavera. Edição de M.ª Lucília Gonçalves Pires. menos situar neste final de Quinhentos e início
Lisboa: Vega, 2003, p. 8-30. de Seiscentos o tempo de mais significativa

14
produção da novelística pastoril em Portugal. O Estruturação do texto
género teve entre nós um número escasso de cul-
tores e uma relativamente breve duração. Além A obra apresenta-se dividida em três partes,
dos autores referidos (e lembremos que Rodrigues intituladas respectivamente «Vales e montes entre
Lobo irá continuar a sua Primavera em mais duas o Lis e o Lena», «Campos do Mondego» e «Praias
novelas – Pastor Peregrino e Desenganado), encon- do Tejo». Uma divisão que corresponde à repre-
tramos apenas Manuel Quintana de Vasconcelos, sentação de três espaços sucessivamente marcados
autor de A Paciência Constante (1622), e João Nunes pela presença de Lereno nas deambulações que o
de Vasconcelos, que publica Os Campos Elísios destino lhe vai impondo; que corresponde igual-
(1626). mente a três momentos no desenrolar da
Neste panorama sobressai Rodrigues Lobo, e a peregrinação do protagonista.
Primavera sempre foi a mais apreciada das suas O primeiro destes espaços é o da terra natal, o
novelas. Depois da edição de 1601, o autor procede que confere a Lereno a sua identidade. Ao longo
a alterações do texto, publicando em 1608 uma da novela sempre o pastor se identifica (e é pelos
segunda edição «emendada e acrescentada». Em outros identificado) pela sua pertença originária a
1619 sai nova edição. Apesar de ter estampada no este espaço. Ele é o pastor nado e criado nas terras
frontispício a informação de que a obra é «de novo banhadas pelo Lis e o Lena, onde apascentou o
emendada e acrescentada nesta terceira impressão seu rebanho enquanto os fados lho permitiram.
pelo mesmo Autor», não apresenta qualquer Esta relação matricial fundamenta não só a visão
diferença textual em relação à segunda edição. idílica que deste espaço o texto constrói, mas
[...] sobretudo a visão nostálgica em que aparece
envolvido nas evocações do desterrado Lereno.
Depois da morte do autor (1621), a obra continuou A este espaço corresponde um tempo que será
a ser reeditada: ainda no século XVII temos edições posteriormente evocado como tempo de felici-
de 1650 e 1670 (de eventuais edições de 1633 e dade. É o tempo breve em que Lereno ainda canta
1635 só temos o testemunho de Diogo Barbosa a alegria e a esperança do amanhecer, e em que se
entrega despreocupado aos cantos e outros
Machado, não havendo rasto de qualquer
passatempos dos pastores. Mas é também o tempo
exemplar); no século XVIII A Primavera será
da infausta descoberta da história oculta da tragédia
reeditada pelo menos três vezes em conjunto com
amorosa de Sileno. E é, sobretudo, o tempo do
outras obras de Rodrigues Lobo; no século XIX,
fatídico enamoramento pela pastora do bosque
só em 1888-1889 será editado o conjunto das três
desconhecido. Em termos diegéticos, é um tempo
novelas pastoris. Em Espanha a obra será dada a
fundador em que se situa a mudança de estado do
ler a leitores menos familiarizados com a língua
protagonista e os factos que irão desencadear toda
portuguesa através da tradução de Juan Baptista
a sucessão da narrativa.
Morales (1629), que de Rodrigues Lobo traduzira
O segundo espaço, o dos campos do Mondego, é
já a Corte na Aldeia (1622). já um espaço de desterro. Condenado pelo destino,
E pode dizer-se que a história editorial da Primavera concretizado no rigor da pastora do bosque
termina com aquela edição oitocentista, pois desde desconhecido, é obrigado a deixar a sua terra e a
então até hoje não temos qualquer indicação de viver numa terra estranha. O tempo aqui vivido é
que tenha sido reeditada. um tempo de saudade da terra distante e do amor
[...] perdido; é também um tempo de provação da sua
fidelidade a esse amor.

15
Finalmente, as praias do Tejo constituem um espaço Esta perspectiva de leitura, que o texto parece
de novo desterro, desta feita motivado por um solicitar e que tem antecedentes (recorde-se Faria
equívoco: as infundadas desconfianças de Florício e Sousa, por exemplo), valoriza a Primavera mais
acerca da fidelidade de Lereno à amizade que os como cancioneiro do que como novela. Mas não
unia. Nesta terceira parte, que constitui essencial- podemos esquecer a sua natureza de texto
mente um tempo de recordação, abrem-se também narrativo. Por isso, apesar da sua frágil construção
perspectivas para um futuro bastante incerto. novelística, é necessário encará-la tal como se nos
Lereno continua a viver de lembranças nostálgicas, apresenta do ponto de vista genológico: uma
mas o mundo evocado pela memória tornou-se novela pastoril em que as composições poéticas
mais amplo e diversificado. Já não recorda apenas se destacam pelo número e pela qualidade, e em
a terra natal e a figura da amada, mas também os cuja tessitura discursiva os poemas desempenham
amigos dos campos de Coimbra e até mesmo as funções diegéticas mais ou menos relevantes.
festas a que assistira em Penacova. A abertura para A inserção dos poemas na obra é sempre justificada
o futuro ocorre na cena final das consultas feitas pelo desenrolar do fio narrativo. São sempre
pelos pastores ao sábio Astreu em dia de S. João poemas cantados, escritos, ouvidos ou lidos pelas
acerca do desenvolvimento dos seus dramas personagens que povoam este peculiar universo
amorosos. Também Lereno procura conhecer o novelesco. Geralmente cantados com acompanha-
destino do seu amor, mas a resposta é vaga e mento de diversos instrumentos musicais, da
nebulosa (como convém a resposta de oráculo), pastoril «sanfonha» a outros instrumentos menos
aconselhando mudança. Por isso «determinou ele rústicos, estes poemas podem ler-se também
fazê-la no trajo e no lugar, e deixar a vida de pastor escritos em pedras ou em troncos de árvores, ou
pela de peregrino». Fica assim aberto o caminho a apresentarem-se como comunicação epistolar
nova etapa da peregrinação de Lereno... e à novela entre algumas das personagens.
seguinte de Rodrigues Lobo. As funções destes poemas não são muito variadas.
Composta por trechos em prosa que alternam com A mais frequente é a de confidência, desabafo de
composições poéticas (o que constituía norma do sofrimentos de amor, confiado pelas personagens
género desde a Arcadia de Sannazaro), e valorizada a algum amigo, ou assumindo a forma de solilóquio
a coberto de uma ilusória solidão. Além de ser a
essencialmente em função dos poemas que inclui,
mais frequente, a confidência é também a função
como já anteriormente referimos, interessa-nos
mais relevante destes poemas, pois corresponde,
agora analisar a forma como estes poemas se
na estrutura narrativa, à revelação das personagens
integram no conjunto da obra e as funções que
e dos seus sentimentos. E também da sua história,
nela desempenham. Comentando a presença
pois muitos deles assumem a forma de narrativas
dominante de composições poéticas neste texto,
intradiegéticas. Mas há também poemas de função
escreve Maria de Lourdes Belchior:
essencialmente lúdica. São os cantos que acom-
panham festas e jogos pastoris; são os cantares ao
«O que à primeira vista impressiona, quando se
desafio, reminiscência do clássico canto amebeu;
folheia o livro, é a abundância de poesias ali insertas. são as alegres cantigas entoadas ao longo dos
Depois, no decorrer da leitura da novela, nasce caminhos por personagens estranhamente isentas
muitas vezes a impressão de que a prosa é apenas dos males de amor. Sem desempenharem qualquer
arranjo ou ligação entre as poesias, de modo a função nuclear na narrativa, estes poemas são
embrechá-las oportunamente numa sequência de elementos importantes na criação e representação
episódios.» do universo pastoril.

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A quase constante associação de poesia e música, são quase indistintas. Sujeitos ou objectos de
além de conferir à obra um cunho acentuadamente amores infelizes, vítimas de inconstância ou de
lírico, além de actualizar um dos tópicos da paixões desencontradas, praticamente só o nome
literatura pastoril – o do pastor poeta e cantor–, as individualiza. É este tipo de personagem pastoral
permite também aqui, como noutros textos da que confere à novela o seu tom uniforme de
época, a requintada idealização da personagem do sentimentalismo melancólico. No entanto, algumas
pastor pela sua ligação ao mito de Orfeu. A figura personagens se destacam, quer pela sua natureza,
do pastor-Orfeu concretiza-se sobretudo em pelas suas funções, ou pela sua caracterização.
Lereno, cuja arte poética e musical a todos seduz; Pela sua natureza sobre-humana se distinguem as
mas idêntica caracterização se aplica a outros personagens mitológicas – ninfas, faunos, deuses.
pastores (como o «pegureiro Agrário, cuja voz fazia Embora a novela pastoril constitua um espaço em
descer as nuvens e emudecer os ventos»), forma que o sobrenatural frequentemente coexiste com
superlativa de elogio dos seus dotes musicais. o humano, na Primavera personagens deste tipo
As formas métricas aqui cultivadas por Rodrigues são pouco relevantes: estão presentes apenas em
Lobo (já minuciosamente analisadas por Maria de representações plásticas ou como figuras de
Lourdes Belchior) recobrem quase completamente segundo plano, personagens de histórias narradas
o conjunto de opções formais que a sua época na novela, como acontece com a história do trágico
colocava à criação poética. Assim, encontramos amor de Sileno. Só no capítulo final assumem
formas que se situam na linha da poesia tradicional, função de destaque as ninfas que anunciam aos
com recurso ao verso de redondilha – cantigas, pastores o destino das suas histórias de amor.
vilancetes, endechas, poemas em quadras, em Pela sua especial função se distinguem aquelas
quintilhas, etc. Encontramos igualmente as formas personagens que poderemos designar de figuras
da chamada medida nova, utilizando o verso de sabedoria. São pastores idosos, portadores da
decassílabo, na linha da poesia italianizante – sabedoria que dá o tempo e a experiência da vida,
sonetos, canções, odes, poemas em oitavas, etc. Em como «O bom velho Títero», um «sábio velho»
muitos destes poemas ecoam versos camonianos, que canta os louvores da aurea mediocritas e junto
bem como uma tradição poética peninsular, por de quem Lereno procura conselho; ou o sábio
vezes com formulações idênticas às representadas Menalcas, «um sábio de muita idade», «buscado de
no Cancioneiro Geral. muitos pastores naturais e estrangeiros a que dava
remédio em muitos males, particularmente nos
A organização da narrativa na Primavera obedece a de amor, de quem ele já fora na mocidade
uma estrutura linear e algo repetitiva. A linha fun- atormentado», razão que leva Lereno a procurá-lo;
damental da novela é a história da deambulação de ou «o velho Corino», que explica aos pastores o
Lereno e do amor que a determinou. Com esta significado de duas figuras alegóricas que lhes são
história fundamental se cruzam outras – breves, frag- apresentadas - a Glória de amor, sob a forma de
mentárias –, narradas geralmente pelos seus prota- uma sedutora ninfa, e o Desengano, que a denuncia
gonistas. São histórias secundárias integradas na his- como enganadora; ou ainda o sábio Astreu, que
tória pr incipal, funcionando como eco ou pelo seu contínuo estudo tinha conhecimento «das
contraponto desta, reiterando idênticos afectos e estrelas, do movimento e ordem dos céus, da
sofrimentos, criando um universo marcado pelo virtude das ervas, da natureza das pedras, da
mesmo sentimentalismo e por uma certa propriedade dos animais, dos seguros das aves», e a
monotonia. As personagens – pastores e pastoras – quem esses conhecimentos permitem antever o

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futuro e responder, no capítulo final da obra, às ingredientes consegue Rodrigues Lobo construir,
consultas dos pastores acerca do destino dos seus se não cenários originais, alguns dos seus mais belos
amores. Figuras cuja autoridade decorre do seu trechos em prosa. Além disso, procede por vezes a
saber. Um saber fundado na experiência e no uma equilibrada combinação de elementos tópicos
estudo, envolto num certo halo mágico que, no e elementos realistas. Veja-se, por exemplo, a
necessário respeito pela ortodoxia ideológica, se descrição inicial de Leiria ou, mais evidente ainda,
procura naturalizar fundamentando-o no conhe- a de Penacova. Também o tradicional elenco de
cimento da natureza. Estas figuras de sabedoria ingredientes vegetais da composição da paisagem
têm uma tradução em registo paródico na se alarga de forma a incluir espécies novas, pró-
personagem da «tia Lisandra, que entende das ervas prias da zona centro do país, por vezes com a sua
e das estrelas», a quem o pegureiro de Lereno pede designação popular. Se é certo que com este
remédio para o mal que atormenta o seu amo, processo não se altera o cenário construído pelo
recebendo por resposta que, como «o seu mal era texto, que mantém as suas características tópicas,
de amor ou doudice, que tanto monta», era caso renova-se o próprio texto descritivo, enriquecido
sem remédio. não só pela maior diversidade vocabolar como
Esta personagem do pegureiro, com a sua menta- pelas conotações que desses novos vocábulos por
lidade terra a terra e linguagem rústica, pertence vezes explora.
ao grupo restrito de figuras que na obra são objecto Além destes espaços que o texto pretende radicar
de uma caracter ização algo burlesca. Estas numa realidade geográfica, seja pelo uso de
personagens, que destoam no universo idealizado topónimos, seja por traços realistas da paisagem
da novela, constituem o contraponto dos pastores ou da flora representada, deparamos também com
amantes, poetas, músicos, filósofos. Ao contrário a descrição de espaços situados fora da realidade,
destes, tais personagens escrevem cartas e poemas num algures mágico. É o caso da morada de alguns
ridículos, cantam com voz rouca ou desafinada, dos «sábios» já referidos, seres que, de certo modo,
usam uma linguagem alheia à expressão requintada se colocam acima do comum dos mortais pela sua
e conceituosa dos outros pastores. A sua irrupção capacidade de conhecer o que a estes é vedado.
na narrativa constitui breves intermezzi cómicos Mas é sobretudo o caso do «bosque desconhecido»,
num universo hieraticamente melancólico. onde vive a inominada pastora objecto da paixão
de Lereno: um espaço com características edénicas,
A novela desenrola-se num espaço que as denomi- geograficamente ilocalizável, a que se acede por
nações toponímicas parecem inserir numa geografia uma estreita passagem subterrânea (como que sim-
real e concreta – vales do Lis e do Lena, campos do bolizando um percurso iniciático) que desaparece
Mondego, ribeiras do Tejo. Mas a representação sem deixar vestígios quando a vontade soberana
destes espaços, como é de norma na novela pasto- da pastora assim o determina. A este espaço acede
ril, constrói-se a partir de elementos previamente Lereno por três vezes: da primeira acidentalmente,
codificados. Repetidamente deparamos com des- como que levado pelo destino a descobrir a causa
crições que mobilizam os ingredientes constitutivos da sua perdição futura; da segunda já consciente-
do tópico do lugar ameno, com o seu habitual elen- mente, contrariando as sensatas recomendações
co de árvores e plantas, as suas fontes cristalinas e do velho Titero, movido pela força do amor, «que
águas correntes, as suas aves canoras e o colorido é maior que a da própria vontade»; da terceira,
das flores. Mas isto não significa que estejamos pe- por mandado da própria pastora, podendo então
rante mera repetição de estereótipos. Com estes gozar da contemplação da amada. Mas em breve

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esta felicidade dará lugar ao desespero, pois Lereno, final. Entre estes dois marcos cronológicos – o
novo Adão expulso do Éden, verá ser-lhe para sem- início e o fim da primavera – decorre a história
pre vedada a entrada naquele paraíso. Um paraíso de Lereno, também ela situada entre dois marcos
em que, estranhamente, se situa a única cena fú- antagónicos: o eufórico canto inicial acompanhado
nebre da novela – um grupo de ninfas rodeia um da sua sanfona, e o desolado gesto final de fazer
túmulo e lamenta a morte de Amarílis –, como se em pedaços o instrumento do seu canto, assim
nenhum espaço pudesse ser lugar de felicidade sacrificado «à memória dos seus desenganos».
perfeita. Ao contrário da Arcadia de Sannazaro, em Mas a narrativa assim balizada constrói-se segundo
que as cerimónias fúnebres desempenham papel um ritmo lento e repetitivo. O curso da história
fulcral, ou de Ribeiras do Mondego, de Elói de Sá principal é frequentemente cortado por narrativas
Sotto Maior, que principia com a alegórica cele- intradiegéticas, histórias secundárias geralmente
bração das exéquias da esperança do protagonista, narradas pelos seus protagonistas, vozes múltiplas
na Primavera esta cena fúnebre aparece desprovida repetindo com ligeiras variações o mesmo tema,
de qualquer função diegética, parecendo ter como quer se trate de personagens humanas (história de
único sentido o de contaminar de luto aquele Alteia, 2.ª parte, floresta segunda; história de
espaço edénico: um memento mori associado ao Florício, 2.ª parte, floresta sexta), quer de
universo arcádico, ideia que tem a sua expressão personagens mitológicas (história de Sileno, 1.ª
condensada no tão repetido Et in Arcadia ego. parte, floresta segunda, em que o protagonista sofre
uma metamorfose que traz à memória o episódio
Quanto ao aspecto temporal, podemos dizer que do Adamastor). E o discurso narrativo, também
a novela se situa num plano quase completamente ele repetitivo, enquadra cada episódio nos mesmos
an-histórico. Não há referências que permitam moldes temporais – o nascer do dia e o cair da
situar a acção num tempo histórico, real. O início noite. Assim, ao ritmo lento do fluir dos dias, flui
do texto remete-nos para um tempo indeter- esta narrativa de amores e desenganos.
minado em que da antiga cidade de Colipo apenas
restam majestosas ruínas. E na narrativa do episódio Temas e motivos
de Penacova, se o espaço aparece descrito com
acentuadas marcas de realismo, o elemento É o amor a principal e quase exclusiva linha
temporal, pelo contrário, é desligado da realidade temática desta novela. E não só por ser esse o fio
histórica pela transfiguração das personagens reais que determina todas as atitudes do protagonista,
em seres mitológicos: ninfas de entre as quais mas também porque é o sentimento que domina
sobressai a (não denominada) dedicatória da obra, e condiciona quase todas as personagens da novela.
D. Juliana de Lara, «a quem em sorte coube esta Assim sendo, importa analisar qual o conceito de
montanha». Este cortar de laços que pudessem ligar amor que rege este universo diegético; que formas
a história narrada ao tempo histórico é mais um e expressões assume; como é teorizado pelas
elemento a construir o universo utópico da novela personagens que desvios às suas leis são apontados;
pastoril. que correspondência poderá eventualmente
O tempo da histór ia narrada nesta novela estabelecer-se entre o amor ideal desenhado no
corresponde à duração da primavera: da celebração texto e a vivência amorosa das personagens.
inicial da «entrada do verão» (a palavra verão Nesta obra deparamos com um conceito de amor
conservando o sentido de primavera, estação que marcado pelo platonismo: uma visão idealizada do
precede o estio), aos festejos do dia de S. João no amor como aspiração irrealizada a algo de

19
espiritual, caminho de aperfeiçoamento do sujeito canto e motivo de debates. Da casuística amorosa
amoroso. Mas há que ter em conta, por um lado, se ocupam estes pastores-filósofos enamorados,
que esta concepção vulgarizada de amor platónico discutindo sobre quais as mais perfeitas formas de
está longe da complexidade e profundidade amor, sobre a sua relação com a beleza, com a
filosófica dos diversos textos que, ao longo do razão, com o ciúme; recupera-se o conceito cortês
século XVI, desenvolveram e reelaboraram ideias de amor como serviço, enunciando-se os deveres
matriciais expostas em diálogos de Platão; por do amador para com a amada; verbera-se ainda,
outro lado, importa salientar a convergência de retomando ideias e expressão poética tradicionais,
outras fontes, que incluem tanto a tradição a inconstância feminina, acusada de ser a causa
petrarquista (e o petrarquismo foi o principal principal do sofrimento dos amantes. E assim, entre
veículo na divulgação de um certo platonismo na opiniões divergentes, se constrói uma dialéctica
expressão amorosa), como a tradição medieval de do sentimento amoroso, quase sempre exposta em
debates acerca do amor e de lamento dos composições poéticas.
sofrimentos que causa. Neste universo dominado pelo amor e pelos
A visão do amor como causa de sofrimento sofrimentos que provoca, avulta a figura de Lereno,
domina toda a novela. Que esse sofrimento decorra desenhada como representação do perfeito amante.
da não correspondência da pessoa amada, da E o traço que mais se destaca nessa caracterização
consciência de que a felicidade no amor não passa é a constância, a fidelidade ao seu amor. Nos
de esperança ilusória, ou de essa felicidade diversos espaços que percorre e habita, na
constituir apenas lembrança desenganada de um multiplicidade de personagens com quem se
tempo desaparecido, são meras variantes do mesmo relaciona e de paixões que desperta, a lembrança
sentimento doloroso que afecta todas as da pastora do bosque desconhecido mantém-se
personagens dominadas pelo amor. Só as raras constante, e inabalável a sua devoção a essa lem-
personagens isentas do seu domínio ostentam uma brança. Cultiva o sofrimento decorrente dessa
alegre independência, uma efémera satisfação que paixão, o gosto de ser triste por esse amor, uma
o amor não deixará de punir. tristeza obsessiva que constitui a única força que
O sofrimento amoroso desdobra-se em vários o anima. Mas como perfeito amante, segundo as
sentimentos: melancolia, saudade, temor, incerteza, leis do amor cortês, Lereno cumpre fielmente a
arrependimento, desespero. Chega mesmo a lei do segredo, não divulgando o motivo da sua
assumir a forma superlativa que consiste em melancolia nem dando a conhecer o objecto da
conduzir as suas vítimas à loucura. São várias as sua paixão. E as pastoras que por ele se apaixonam
personagens que no texto enlouquecem de amor. deparam invariavelmente com a delicada mas firme
Longe agora do plano burlesco em que a tia rejeição de quem compreende os sentimentos
Lisandra identificava amor com loucura, é a alheios, mas se mantém inabalável na fidelidade
intensidade do sofrimento amoroso que faz que deve ao seu amor.
enlouquecer personagens como Linceu, Dorisa,
Filénio e, sobretudo, Montano, cuja loucura Além do tema do amor, omnipresente na obra,
repetidamente perturba as actividades dos outros importa destacar também o motivo da
pastores, funcionando como imagem exemplar do deambulação. Com efeito, o peregrinar constitui,
poder trágico do amor. não apenas vector estruturante do desenrolar da
Móbil exclusivo do agir das personagens, o amor narrativa que acompanha as deslocações espaciais
é também assunto das suas conversas, tema do seu do protagonista, mas também uma linha semântica,

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criadora e organizadora do sentido da obra. É que esse caminho alegórico da perfeita realização da
as deslocações de Lereno não podem ser lidas sua natureza de amante.
apenas como meras mudanças de lugar numa Uma outra linha que percorre todo o texto é a
geografia mais ou menos identificada com espaços que corresponde ao tema do desengano. Este tema
reais. Elas assumem também uma clara dimensão manifestar-se-á de forma obsessiva na cultura
espiritual. Antes de mais, a deambulação de Lereno barroca, exprimindo a consciência da efemeridade
é um processo de purgação. Tendo cometido, da vida, da vanidade dos bens terrenos, da
embora inconscientemente, o «pecado» de evanescência de tudo o que no mundo aparece
desvendar a história secreta do trágico amor de como atraente e sedutor. O espírito desenganado
Sileno, sofre o desterro que o destino lhe impõe é, pois, o espírito lúcido que conseguiu ultrapassar
como punição e como caminho de purificação as aparências, superar atractivos enganadores, e
na senda do perfeito amor. Por isso o seu desterro apreender a realidade que as aparências recobrem.
será também uma busca. Não a busca de alívio O caminho do desengano, significando renúncia
para o seu sofrimento amoroso, mas a busca do a aspectos ilusórios, é condição de acesso à verdade,
perfeito amor, ou da perfeita ideia de Amor, que quer se trate do plano filosófico – compreensão
cor responder ia à contemplação da amada da situação do homem no mundo e na vida –,
enquanto emanação da suma Beleza. E neste caso quer do plano religioso – conhecimento de que
é evidente a diferença em relação a La Diana. As só em Deus se pode encontrar felicidade perfeita
personagens da novela de Jorge de Montemor e duradoura.
deslocam-se ao palácio da sábia Felícia em busca Na Primavera, nesse universo novelesco totalmen-
de solução para as suas infelizes histórias de amor, te impregnado do sentimento amoroso, é a essa
solução que encontram quer na união com os esfera que se limita o conceito e a vivência do
amados, quer no esquecimento da antiga paixão. desengano. É em relação ao amor que é definido,
Na Primavera, pelo contrário, não há lugar para significando a descoberta dolorosa da efemeridade
qualquer destas soluções. O amor satisfaz-se de si dos bens proporcionados pelo amor («Quão pou-
mesmo; e a hipótese de esquecimento da paixão co tempo dura uma alegria»), do sofrimento a que
seria o maior pecado contra o amor. Resta pois a esses bens dão lugar («Tristes lembranças da passa-
Lereno prosseguir nesse caminho de purificação da glória»), dos embustes com que o amor seduz
que, em sofrimento e renúncia, fará dele um cada os amantes («Amor com falsas mostras aparece»),
vez mais perfeito amante. das ilusórias esperanças em que os envolve. O de-
Note-se o carácter fatalista deste amor e dos sengano exprime-se tanto no discurso das perso-
caminhos pelos quais o protagonista é conduzido. nagens – nas suas falas, nos poemas que cantam
Ao destino são continuamente atribuídos os ou escrevem –, como no discurso do narrador
infortúnios por que passa. E se há um momento que, além de relatar o desenrolar da história, a vai
em que Lereno goza a ilusão de ter «posta a seus também pontuando de observações de pendor
pés a ventura» (1.ª parte, floresta undécima), não filosófico e moralista, nomeadamente no final de
falta, nesse mesmo momento, um canto de pastoras cada uma das «florestas». A sublinhar a importância
a lembrar que «a fortuna [é] mudável, fementida», deste tema, não falta o debate entre pastores acerca
o que será confirmado pela efémera duração da da dicotomia engano/desengano (3.ª parte, floresta
felicidade do pastor. Assim, sob o jugo de um sexta), nem a representação alegórica da figura do
destino cruel que sem culpas o persegue, mas desengano, contraposta à alegoria representativa
assumido esse destino, Lereno vai prosseguindo da ilusória glória de amor (3.ª parte, floresta sétima).

21
E Lereno, o amante «ausente, fir me, só, Ao contrário desta, a novela de Rodrigues Lobo
desesperado», que canta o «bem-aventurado não prega o arrependimento do pecado, a renúncia
desengano» e afirma que vive desenganado e ao mundo e a conversão a Deus, embora represente
contente de viver triste, resolve, na cena final da uma mundividência igualmente marcada pelo
novela, quebrar a sua sanfona, sacrificando-a assim desengano.
«à memória de seus desenganos». Se na obra de Fernão Álvares do Oriente esse
desengano decorre essencialmente da ligação do
Uma obra maneirista? universo ficcional ao momento histórico em que
é produzido - perda da independência, decadência
O tempo em que Rodrigues Lobo produz a sua política e económica, em contraste com o
obra – anos finais do século XVI e inicio do XVII esplendor de um passado recente – na Primavera,
– corresponde, em termos de periodização literária, cuja acção se situa, como anteriormente referimos,
ao que actualmente se considera ser o período num tempo desligado da história, não há sinais da
maneirista da nossa literatura. Mas a inserção de realidade que o país então vivia.
uma obra num determinado espaço cronológico No aspecto formal, os poemas que abundam na
não é critério suficiente para lhe atribuir uma obra e que, como vimos, são considerados o seu
designação de carácter histórico-literário, pois o elemento mais valioso, estão longe da complexi-
conceito de período literário, além do tempo dade prosódica e estilística que marca grande parte
histórico em que se situa, é caracterizado sobretudo da produção poética da época. Mais uma vez
por factores de ordem literária, por uma visão podemos estabelecer o contraste com a obra de
específica da literatura concretizada em valores, Fernão Álvares do Oriente. Não encontramos na
normas, modelos, processos retórico-estilísticos. Primavera nada que se assemelhe à deleitada
Assim sendo, importa averiguar até que ponto A exploração de dificuldades poéticas que encon-
Primavera, produzida e publicada nos alvores do tramos na Lusitânia transformada: labirintos,
século XVII, corresponde ao conceito de literatura capítulos, sextinas, rimas esdrúxulas, construção
e concretiza os valores literários que caracterizam contrapontística de poemas, numa exibição de
virtuosismo poético que corresponde a valores
o Maneirismo.
apreciados na época e cultivados por muitos outros
Antes de mais, note-se que não encontramos na
poetas. Os poemas da Primavera, na sua diversidade
obra praticamente nenhum vestígio da intensa
prosódica e estilística, mantêm-se na linha da poesia
religiosidade que permeia quase toda a nossa
tradicional e do aproveitamento de um
cultura da época, com destaque para as
conceptualismo abundantemente documentado
manifestações literárias. Poder-se-ia pensar que tal
no Cancioneiro geral, ou, no caso dos poemas em
decorresse do facto de se tratar de um género
versos decassílabos, na senda de for mas de
fortemente codificado e com raízes numa cultura
expressão que tendem a aproximar-se do modelo
essencialmente clássica. Mas sabemos como esta
camoniano. Mas o comprazimento no trabalho de
época procedeu à alteração de códigos de géneros glosa, não só de motes alheios à maneira tradicional,
consagrados, a começar pela epopeia. E no mas também de poemas de outrem, e sobretudo a
referente à novela pastoril, vemos como os códigos escolha dos poemas a glosar, revelam, além do gosto
deste género foram adaptados a uma mundividência da época pelo trabalho de expansão textual, a
cristã, de acentuado cunho ascético, numa novela expressão obsessiva do desencanto perante a
pastoril contemporânea da Primavera – a Lusitânia natureza frágil e ilusória dos bens que o amor
Transformada de Fernão Álvares do Oriente. concede.

22
Pelo que respeita a prosa, deparamos com um texto
que, ao lado da expressão popular na fala de alguns
pastores, cultiva sobretudo o discurso conceituoso,
Textos incluídos
o dito sentencioso e agudo, a linguagem do
«discreto» que Rodrigues Lobo teorizará na Corte
na triologia
na aldeia. E as descrições espraiam-se geralmente
em frases labirínticas, numa acumulação de
elementos que ora funciona como processo
pastoril de
intensificativo das características deleitosas do locus
amoenus, ora como esforço de representação de Rodrigues Lobo
um espaço estranho, com a marca do mistério.
Neste conjunto textual, avulta a figura de
Lereno, encarnação perfeita do ser melancólico,
(excerto)
dotado de qualidades excepcionais – como
poeta, como músico, como amigo e, sobretudo, MARIA DE LOURDES BELCHIOR*
como amante –, peregrinando, não só num espaço
geográfico determinado, mas principalmente num
labiríntico mundo interior, na senda da ideia do
EPÍSTOLAS, NARRATIVAS,
perfeito amor.
BIOGRAFIAS-ABREVIADAS, ETC.
Assim Rodrigues Lobo, na sua forma original de
reelaborar os códigos da novela pastoril, contrói Entre as composições insertas na novelística há
um texto identificado com o seu tempo histórico- algumas que têm carácter predominantemente
-literário, tanto na ideologia que veicula como nos narrativo. Trata-se de longas histórias, epístolas em
valores literários que concretiza. Uma obra que que se colhem dados biográficos sobre pastoras e
poderíamos classificar de narrativa poética. Não pastores apaixonados, etc. O género decorre das
tanto pela abundância e função nuclear dos poemas epístolas e sátiras de quinhentos, mas tem carácter
que entram na sua composição, mas pela quase próprio; anuncia também, de certo modo, o
ausência de referências concretas, que abre didactismo do século XVIII. Nalguns casos, a
caminho a uma possível interpretação alegórica composicão é uma espécie de «fábula», em que se
do texto, a uma leitura universalizante das contam a vida de alguém e os acontecimentos dessa
deambulações de Lereno. vida; este alguém é, por exemplo, Sileno: Sileno
sou que em fonte convertido / Vou regando a verdura
deste prado / Nas ribeiras do Lena fui nascido / E nas
do Lis guardava o manso gado /. Sucedeu-lhe, quando
pastor, ficar preso de amores por uma ninfa, que
se vingou da ousadia, transformando-o em rio. Na
fábula, cujos versos têm às vezes sabor camoniano,
encontram-se os consabidos lugares-comuns sobre
o amor e suas crueldades, etc.

* In Itinerário Poético de Rodrigues Lobo, 1959; Lisboa: INCM,


1985, p. 141-148. Foram retiradas do texto notas ou
indicações das páginas citadas.

23
O carácter narrativo destas composições – quase Rodrigues Lobo utiliza, muitas vezes, a narrativa
sempre silvas, oitavas ou longas séries de tercetos em verso para a confidência; são em verso as
decassilábicos – é «exemplar» na confissão de confissões de Sileno, Learda, Alteia, Florício,
Learda No princípio de minha tenra idade /. Cismonte, Lionísia, Oriano, Leontino e Marisbeia.
Primeiro, alusão à infância e adolescência, o amor Neste particular o bucolista português é um
nascente declarado em versos como Eu vivia de inovador, visto que só na Diana aparece uma
vê-lo, ele de ver-me / Cada qual em seus olhos tinha a narrativa em verso, a que conta o drama de Sireno,
vida /; depois, a traição e a rotura. Mas tudo com recordado pelas ninfas.
tais pormenores, que a silva parece composição «à Mas o que parece dominar, em Rodrigues Lobo,
clef», segundo a terminologia francesa. Eram pa- é o gosto da exposição didáctica. Deverá filiar-se
rentes os pastores felizes, a pastora que os separou nesta tendência o pendor nar rativo das
partia do Tejo para o Douro, Onde grandes reba- composições a que vimos aludindo? Às vezes, a
nhos/ Grandes pastos / Herdara de uma tia ..., etc. longa composição narrativa quase só é desenvol-
São quase sempre histórias de amores infelizes, bem vimento de um grito de amor saudoso; assim
contadas; história de uma pastora que se apaixo- acontece com a carta A ti Lereno, ausente, em cuja
nou pelo amigo do noivo, história de um pastor, vida. Outras vezes, a composição começa ao jeito
que tendo-se ausentado é esquecido e, ao voltar, de história, e depois, como no caso das quadras De
trava relações de amizade com outro pastor que, ilustres progenitores nasci /, avolumam-se certos valo-
sem saber que a mulher que ama é objecto da res cénicos e a pastoral quase se pode considerar
paixão do amigo, confessa a este o seu noivado e pastoral-dramática. Mas os poemas deste teor são
convida-o para ele. excepções no conjunto da produção em verso,
O esquema narrativo – referência à juventude, aos contida na novelística; a maioria dos poemas can-
primeiros amores, às origens familiares dos pastores, ta, lamentosamente, enganos e desenganos de
etc. – repete-se quase invariavelmente. Às vezes, Amor. E apesar da graciosidade e malícia enge-
os pormenores referem-se ao traje «galante» do nhosa de algumas cantigas e do artifício de outras,
pastor: capote pespontado / De alvas carneiras forrado
o tom elegíaco é, de certo modo, predominante.
/ Com vivos de catasol ou ao luxo das pastoras:
Brial tinha leonado / Capirote azul pombinho / Surrão
NOITE, TRISTEZA E DESENGANO
de peles de arminho / E de sanguinho o cajado /. Mas
são apenas pormenores; o que avulta nestas com-
O que domina, de facto, na temática dos poemas
posições e a narrativa de amores infelizes, e temos
insertos na novelística, é a Dor, a Tristeza, o
quase sempre a impressão de que se escondem,
Desengano e, como que servindo-lhe de pano de
sob determinadas alusões, personagens verdadei-
fundo, a Noite, sempre ou quase sempre
ras. Isto explicaria, em parte, o interesse dos leito-
enganadora e traiçoeira.
res e, sobretudo, das leitoras pela novelística. Na
história de Lereno, por exemplo, além de uma A noite, adjectivada como escura, é escura física e
provável paisagem-verdadeira, a dos campos de espiritualmente; o «pastor» infeliz não quer con-
Penavoca, Marília, Dionisa, Cimeia, Aulisa, Belisa, templar as estrelas, por elas lhe não serem propícias
sob o disfarce pastoril, seriam pastoras que os e por isso exclama: Que fiará da noite / O que nunca
leitores depressa e facilmente identificariam. teve estrela?. A noite desenganou-o: Noite escura
A mesma sensação de composições «à clef» nos porém clara inimiga / De minha sorte e meu contenta-
dão as narrativas de Monteia, de Oriano, de mento / ... Ah quão mal me pagaste / O tempo em que
Marisbeia, etc. queria / De ingrato mal ao dia /... Quão mal

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imaginava / Que em tua sombra escura / Se escurecesse vem pôr termo à sua tristeza. Repudia, porém, a
assim minha ventura. Note-se a insistência em som- morte, por lhe parecer alívio à dor: Se morro é fra-
bra escura se escurecesse; repare-se que nesta diatribe queza / E sinto-o mais porque assim / Terá fim minha
contra a noite, o poeta a interpela e se lhe dirige, tristeza.
ao censurá-la; a noite é quase-pessoa, alguém em A razão da sua melancolia dá-no-la em dois versos
quem se confiou: ...de meus pensamentos secretária de um soneto: ... nem o mal muda a natureza / Nem
/ Sempre de ti fiei quantos bens tinha. A noite é pode haver nos males alegria. São males constantes o
assim imagem da escuridão interior, em que a dor seu tesouro, tem o pesar por alegria, e tem por tor-
faz sossobrar o apaixonado. É, sobretudo, a recor- mento viver de se alegrar com amor tristeza;e
dação das noites felizes que torna mais dolorosa a entristecer-se com o mor contentamento; por isto
presença das noites infelizes. se desengana e desespera, sem nunca alcançar fim
A noite é apostrofada como escura negra feia / Mãe sua tristeza. Esta tristeza decorre da consciência
de enganos ocultos / De roubos e insultos: / e respon- que o poeta tem da efemeridade das coisas; na
sabilizada por encobrir das flores a beleza / Dos composisão que começa: Passa o bem como sombra
oiteiros e campos a verdura e por trocar o que é alegre e na memória / repete-se, no final de cada oitava,
e brando em espanto temor enieio e medo. Rodrigues agudo o refrão: Quão pouso tempo dura uma alegria.
Lobo é muito sensível, sobretudo, ao silêncio da Dir-se-ia que o poeta vive obcecado pela ideia
noite: emudece o vento, as sombras adensam a da tristeza. E se não fossem a cor e o pitoresco,
espessura e os passarinhos não cantam; tudo é irrompendo aqui e além, poder-se-ia dizer da
escuro e o murmúrio do próprio rio, que corre, sua obra, como da de Bernardim, que «tudo está
parece cansado e lento. triste da sua tristeza». Tristeza desenganada?
Nas noites da poesia de R. Lobo não há o brilho
das estrelas, nem beleza, nem harmonia. Só uma O Desengano era nas Éclogas uma das verdades
vez, excepcionalmente, o poeta louva as noites honestas prégadas pelo poeta; a poesia do
liberais de sua alegria, mas no passado; no presente, a desengano amoroso e da vida alongou-se depois
noite é sempre negra. pela novelística. São muitas as composições em
Poderá considerar-se apenas tópica a expressão da que se exprime o desengano; canta-o, lamento-
tristeza contida no soneto Se coubesse em meus versos samente, em cantigas, sonetos, oitavas, tercetos, etc..
e em meu canto / A tristeza sem fim que o peito encerra? Desenganado se confessa Arcélio; Oriano pergunta
A história de Lereno é triste, pois, segundo decla- o seguinte: Quanto há que sigo e vejo desenganos? /
ração sua: vi no primeiro dia a minha estrela / Mas E me torno a enganar desenganado? e Lereno entoa
quando em meu favor aparecia / Cerrou--se a noite e eu um soneto, que começa deste modo: Desenganado
houve de perdê-la / No berço feneceu minha alegria. está meu pensamento / Do que esperar podia da ventura.
Mais do que triste, Lereno confessa-se o próprio O tema não é novo, e não é pela originalidade
centro da tristeza. E tem tal gosto e prazer na triste- que R. Lobo se distingue nesta como em outras
za, que diz: se não vivesse triste morreria. Comunica- matérias. Já na Diana havia casos de pastoras
-se a natureza a melancolia do poeta: Entre estas desenganadas (Selvaggia, Felismena e Belisa); na
árvores tristes /, ou Ouvi-me ó arvoredos / Que vesti- Galateia, Lisandro e Silério, Elício, Erastro e
dos de triste verde escuro .../ Ouvi agora a voz de um Orompo são atingidos pelo Desengano; Orompo é
triste ausente / E vós águas cansadas ... ouvi meus quem mais desenganado se confessa: Ni espero en
versos tristes; lamenta-se porque nem sequer pode fortuna, ni espero en el hado / ni espero en el tiempo, ni
ser contente de ser triste, e porque a morte não espero en el cielo. No entanto, em R. Lobo o tema

25
do Desengano é obsidiante; canta-o insistentemente
até o apostrofar: Ah desengano esquivo / parca, que as
vidas cortas levemente. E repete sempre, lamentoso,
Aspectos
os desenganos, as desilusões da vida: ...atrás do de-
sejo / Se me encontra o desengano; Soube de Amor o de Lusitânia
que eram desenganos ... / Desenganei-me e vi meu mal
defronte; ... minha sorte desigual / .../ Me vai com o
tempo, assim desenganando, Oxalá que o desengano /
Transformada
Viera antes da esperança, Ai desenganos vãos..., Mas ai
desengano, cruel e inimigo, etc. (excerto)
O desengano amoroso leva ao desengano da vida;
radicará este na efemeridade das coisas ou na vo-
lubilidade do homem? Num poema que é diatribe ANTÓNIO CIRURGIÃO*
contra a vida da corte, diz-se: Em nada se assegula /
O nosso pensanmento / Mais ligeiro e vão / Que a
sombra e vento; noutro, o poeta pela boca de Midália Como é da tradição da novela pastoril (e da
confessara: Os bens que amor na terra / Promete em literatura bucólica em geral), o cenário principal
sombras vãs ao pensamento / Na conquista são guerra é sempre no seio da natureza – de uma natureza
/ No fim são todos sombra, todos vento. É que segundo idealizada, quase diríamos que genesíaca, típica da
o Peregrino, ele (o mal) é substância (da sua vida) / Idade de Ouro, de tão venerandas tradições na
e os prazeres acidente. Não esqueçamos que a ter- literatura clássica. Porém, é comum encontrar,
ceira novela pastoril se intitula, significativamente, numa espécie de ponto e contraponto, um cenário
O Desenganado. [...] secundário.
Pelo que se refere à Lusitânia Transformada, este
cenário secundário é praticamente tão vasto como
o Império Português do tempo em que o autor
viveu e escreveu. E, tendo servido esse império
emblematicamente como o cidadão ideal do
Renascimento, isto é, com a espada e com a pena,
Fernão Álvares fez dele palco da acção da sua
novela pastoril. Pelas parcelas mais remotas desse
mundo português do século XVI peregrinam o
protagonista (Olívio/Felício) e várias das outras
personagens. Quanto ao protagonista, é
interessante notar que, como todo o homo viator,
caminha do Nascente para o Poente, do berço para
a tumba. Nascido em Goa, acaba por estabelecer-
-se numa Arcádia pastoril, nas margens do Nabão,
na sua confluência com o Zêzere, depois de ter

* In “Introdução”, Lusitânia Transformada.: Lisboa: INCM,


1985, p. XXXI-LXI.

26
deambulado pelas Ilhas Platárias ou Japão, pelo É como se o autor quisesse indicar com isso o
Grão Cataio ou China, pela Indochina, por Ceilão, caminho a seguir pelo homo viator: de simples
pela Taprobana, pela ilha Formosa, pela Etiópia homem, como D. Miguel de Meneses, passa a ser
ou costa oriental da África, pela ilha de Santa o maior dos homens. [...]
Helena, por Lisboa, pelo Porto, por Aveiro, por
Coimbra o cenário principal é narrado pelo
narrador principal da acção, Felício, na “Prosa AS PERSONAGENS E OS SEUS NOMES
primeira”.
Aqui temos nós, com todos os seus ingredientes, [...]
o locus amoenus da convenção bucólica. Do carácter As personagens da Lusitânia Transformada
simbólico e alegórico deste cenário desnecessário constituídas, obviamente (com excepção das da
é falar. O pastor, desiludido do mundo e dos seus novela sentimental e da novela de cavalaria nela
enganos, refugia-se – nesse paraíso terreal, onde inseridas), por pastores e pastoras, incluem também
tudo rescende a harmonia, formosura e pureza. uma Sereia, duas ninfas – Clemene e Efire –, e
É em vista destes aspectos que podemos falar no três figuras alegóricas – Cleménia, Constância e
carácter transcendente da novela pastoril, traduzido Modéstia – representando cada uma destas, tal
na evasão de um mundo cheio de corrupção, de como o nome indica, as virtudes da clemência, da
mentira, de egoísmo, de ambição, para um mundo constância e da modéstia, respectivamente.
de pureza, de verdade, de altruísmo, de dádiva Dentro do espírito da essencialização das coisas,
pessoal. No fundo, tratar-se-ia de um desejo de em obediência ao Neoplatonismo, então em voga,
regresso ao mundo da infância e da inocência, para os nomes traduzem, de uma maneira geral, o
sempre perdido. A criança está totalmente ausente carácter e a essência da personagem, assim como
da novela pastoril, como personagem, mas o o papel que desempenham na novela. Na
espírito da infância, esse respira-se constantemente. impossibilidade de nos alongar mos, vamos
E, neste aspecto, convém acentuar desde já que a procurar exemplicar este princípio com alguns
Lusitânia Transformada se distingue de todas as outras nomes. Flumínio, associado a rio, simboliza a égloga
piscatória; Liriano, associado ao lírio do campo,
novelas pastoris que conhecemos. Se fôssemos
simboliza a égloga campestre; Jacinto, associado à
buscar o fulcro central da obra, talvez tivéssemos
flor do mesmo nome, simboliza a pureza; Urbano,
que convir em que ele consiste na celebração do
associado à cidade, simboliza o cortesão feito
espírito da infância, materializado em três crianças:
pastor; Rurânio, associado ao campo, simboliza o
em D. Miguel de Meneses, filho do Marquês de
homem rústico; Sílvia, associada a bosque,
Vila Real, cujo nascimento é celebrado no «Canto
simboliza a pastora que renuncia ao casamento
da Sirena», canção petrarquista moldada na Égloga
para passar a vida no templo de Diana, deusa da
IV deVirgílio, que é o protótipo da égloga profética
caça e, metaforicamente, na Lusitânia Transformada,
ou messiânica, assim chamada por anunciar o
patrona das pastoras que abraçam a vida de
advento da Idade de Ouro; em São João Baptista,
perfeição, num convento; Célia, associada ao céu,
celebrado também na sua qualidade de criança simboliza a pastora que troca as agruras do mun-
santificada no seio materno e de precursor do do pelas delícias do paraíso.
Salvador do Mundo; e no Menino Jesus, com cuja Como corolário do que acaba de dizer-se,
celebração do nascimento termina a Lusitânia poderíamos concluir que se trata mais de tipos
Transformada. [...] que de personagens. E como corolário também

27
dos exemplos apresentados para provar a teoria da e quatro filhas. Mas só uma dessas filhas está inte-
essencialização neoplatónica, poderíamos também grada na sociedade pastoril: é Sílvia, filha do pastor
concluir que o processo principal utilizado pelo Silvano.
autor para baptizar as suas personagens foi o do Quanto ao casamento, fala-se em quatro: dois na
recurso ao étimo latino. Os outros dois processos, novela pastoril, um na novela de cavalaria e outro
usados em escala muito menor, são o da imitação na novela sentimental. Todos se dissolvem no
da tradição bucólica, dando às personagens nomes decorrer da acção: os da novela pastoril propria-
utilizados nos outros escritores, e o do recurso ao mente dita, pela morte da esposa num caso, e pela
anagrama, também de tradição bucólica. Assim, morte do esposo no outro. Mas acentua-se desde
anagramas mais ou menos óbvios seriam os já que o cônjuge viúvo passa a viver uma vida de
seguintes: Arbelo (Rabelo); Armia (Maria); Arima ascetismo, vida que o narrador considera mais
(Maria); Lénia (Elena); Lorénia (Lianore ou perfeita que a conjugal. Por outro lado, aos que
Elianor); Techrina (Caterina). morrem coloca-os o narrador no paraíso das
Num total de 67 nomes de personagens da delícias sem fim. Quase se diria que existe como
Lusitânia Transformada, 25 encontram-se nas obras que uma visão cátara da vida na Lusitânia
bucólicas de outros autores latinos, italianos, Transformada, sobretudo se se tiver em conta
espanhóis e portugueses [...], e 42 parecem ser também que todos os pastores, alguma vez
exclusivos da Lusitânia Transformada (não se pondo enamorados, se vêm a desiludir do amor, em
de parte a hipótese, claro está, de alguns destes 42 virtude dos males que causa, e a refugiar-se no
se virem a encontrar em obras não consultadas). seio da natureza, em harmoniosas repúblicas
arcádicas, onde o mito da Idade de Ouro se
A CONSTITUIÇÃO transforma em realidade.
DA SOCIEDADE PASTORIL
OCUPAÇÕES E PASSATEMPOS
De natureza essencialmente igualitár ia, os DOS PASTORES
membros que constituem a sociedade pastoril
tratam-se todos por tu.Veneração ou reverência é Ser pastor, mais que uma profissão, é um estado.
apenas prestada aos pastores mais idosos (que são Como poderá ver-se, através de uma leitura atenta
poucos), chamados maiorais, ou aos que desem- da novela, nenhuma personagem tem dificuldades
penham funções sobrenaturais, religiosas ou económicas.As ocupações e passatempos principais
mágicas. Na Lusitânia Transformada temos o maioral dos pastores (e das pastoras) consistem, essencial-
Severo, que governava a república pastoril, o mente, em pastorear os rebanhos, em contar
conselheiro Rurânio, e a sacerdote Sincero, a quem histórias de amor, em chorar, sobretudo em verso,
todos tratam com a deferência que o seu estado ao som da sanfonha, do arrabil ou da flauta, as
postula. ilusões amorosas e as respectivas desilusões, em
Pelo que se refere ao agregado familiar, só espora- debater, escolasticamente, sobre a excelência da
dicamente, pelo menos na novela pastoril propri- língua portuguesa, sobre a natureza da poesia e do
amente dita (faz-se esta ressalva, em virtude de o deplorável estado em que se encontra, sobre os
autor ter inserido na obra um pequeno romance benefícios da vida do campo, em comparação com
sentimental e um pequeno romance de cavalaria), os malefícios da vida da cidade, em condenar o
só esporadicamente, repito, se fala em laços de amor humano e exaltar o amor divino, em
parentesco. Mencionam-se quatro pais, uma mãe participar em certames poéticos, em celebrar festas

28
populares, tais como a de S. João Baptista e a do tido em adoptar esse topos numa novela pastoril.
Natal, episódio com que termina a novela, como Os pretextos para Fernão Álvares pôr o dedo nessa
já foi dito. ferida mortal são os mais diversos: já não se preza
Baseados numa passagem em que se faz uma sinopse a arte nem a poesia porque os seus contem-
bastante completa das ocupações e passatempos dos porâneos preferem os «perfumes» do «Indo mago»
pastores (cfr. ), talvez pudéssemos classificar essas à cultura; vive-se uma vida mais pura e mais santa
ocupações e passatempos em quatro categorias: as (como é o caso do «venerando Sincero») numa
de carácter material ou económico; as de carácter choupana «ornada» «pela mão da natureza» que
lúdico ou artístico; as de carácter filosófico ou teo- nos «reais paços dos príncipes cubertos de tintas
lógico e as de carácter ascético ou contemplativo. finas e ouro trazido de tão longe, tanto à custa do
Dizer que uma leitura atenta nos leva a concluir descanso e das vidas, e pode ser que também das
que, segundo o ponto de vista do narrador, a última almas dos que o procuram» (LT, fls. 108-108v); é
categoria é a mais importante, é desnecessário. Ela mais fácil encontrar a paz interior e a felicidade,
é a meta final a atingir por esses peregrinos da pastoreando rebanhos, em comunhão com a
felicidade. De desilusão em desilusão, de desengano natureza, que nas cortes dos reis, no «exercicio do
em desengano, todos virão a concluir que só a belicoso Marte» ou em aventuras mercantilistas
virtude e o amor divino poderão salvá-los. Como «lá nas partes do Oriente», como, à própria custa,
já foi dito, não é por mero acaso que a novela viria a aprender Lusmeno:
termina com os pastores em adoração junto do
Presépio, em memória daqueles outros pastores afeiçoado ao trato de cortesão, gastou nelas [nas
dos Santos Evangelhos. [...] cortes] parte da idade, pidindo satisfação da
outra parte, que gastara no robusto exercício
A CORRUPÇÃO DO IMPÉRIO do belicoso Marte lá nas partes Orientais onde
PORTUGUÊS em seu serviço despendeu o melhor da vida à
custa do sangue e da fazenda, e ainda da mesma
Escrita por um homem que passou vários anos no vida, que de tantos perigos escapa por erro
Oriente, alguns dos quais em missões de carácter muitas vezes (...). Gastada por fim a maior parte
oficial, já como soldado, já como capitão de navio, da fazenda sem algum fruto, mudou os pensa-
já como vedor da fazenda – cargos que constam mentos e determinou mudar os trajos e o
expressamente de documentos oficiais –, a Lusitânia estado, por fazer mais certo emprego do cabedal
Transformada reflecte vários aspectos das aventuras da vida e do sangue que ainda lhe ficara (LT,
portuguesas ultramarinas. fls. 290-290v).
Satirizar a ambição cega e outros desmandos
praticados pelos portugueses no Oriente tinha-se [...]
transformado numa espécie de topos da literatura Numa obra carregada de simbolismo e alegorias
quinhentista como se pode ver, por exemplo, em Fernão Álvares epitomiza o espírito acentuada-
Sá de Miranda, António Ferreira, nos «Disparates mente mercantilista naquele Petrário (nome
da Índia» e em Os Lusíadas de Camões, em O derivado do latim petra – pedra) que, acompanhado
Soldado Prático de Diogo do Couto, na Peregrinação de Olívio (futuro Felício, criptónimo do autor),
de Fernão Mendes Pinto e nalguns dos relatos da vai às Ilhas Platárias em busca de pedras preciosas.
História Trágico-Marítima. A originalidade, neste Eco eloquente do que poderia chamar-se na
ponto, de Fernão Álvares do Oriente terá consis- literatura portuguesa o topos do «Velho do Restelo»

29
– numa adaptação original do topos do Beatus Ille –
são estes versos que Lizarte encontra entalhados
no tronco de uma árvore na Ilha de Santa Helena
A Preciosa e
(ilha que, na Lusitânia Transformada, representa
essencialmente a «Ilha de Vénus» de Os Lusíadas,
a obra de Sóror
transposta a lo divino):

Cubiça, que assi engrossa,


Maria do Céu
Ambição, que tanto alcança,
Deram princípio à mudança, (excerto)
Ó gente, da glória vossa,
E fim à vossa esperança (LT, 215v.)
ANA HATHERLY*
Nesta quintilha e noutras passagens, de carácter
um pouco velado e sibilino, como o postulavam Considerações gerais
as circunstâncias, deu-nos o autor as causas que
levaram Portugal à decadência e à perda da própria A produção literária de Sóror Maria do Céu, que
independência. Veja-se, a título de exemplo, esta compreende prosa, poesia e teatro, em português
oitava que Lusmeno canta, sintomaticamente, na e em castelhano, exceptuando alguns textos de
Ilha de Santa Helena – reverso daquela «Ilha de circunstância, é uma obra que, em termos gerais,
Vénus» em que Camões glorificou e deificou pode ser descrita como didáctico-recreativa,
Portugal e o seu Império –, em diálogo com Lizarte consagrada à edificação moral do leitor através de
[...]. processos artísticos.
[Aí] temos nós, numa síntese admirável, a teoria Considerando que Sóror Maria do Céu nasceu,
de Fernão Álvares sobre a decadência de Portugal fez a sua formação, e viveu cerca de metade da sua
e a perda da independência. vida no século XVII, não é de admirar que na sua
obra se encontrem reflectidas as tendências
ideológicas e as preferências artísticas dominantes
durante esse período chamado Barroco, que, em
Portugal e como a vida da escritora, se prolongou
até meados do século XVIII.
Igualmente não será surpreendente que, dada a
intenção das suas principais obras, nelas se encon-
trem significativas marcas, tanto do pensamento e
das normas do catolicismo, como da tradição
clássica pagã que, fundidos e assimilados já durante
o século XVI, adquirem no século XVII os traços
característicos de grande parte da Contra-Reforma.

* In “Introdução histórica literária”. A Preciosa de Sóror Maria


do Céu, Edição actualizada do Códice 3773 da BN, precedida
de um estudo Histórico por A. Hatherly. Lisboa: Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1990, p. XXXV-LXXXIX

30
Assim, por um lado, nota-se uma exacerbada verdadeiramente inabaláveis, onde não podemos
ortodoxia, que conduz ao misticismo e à ascese, deixar de reconhecer, mais uma vez, essa «estratégia
desdobrando-se em obsessivo didactismo; por da convicção», inculcada pela Contra-Reforma e
outro, patenteia-se um sensual culto da mitologia tão atentamente praticada por Sóror Maria do Céu.
e da elegância que se compraz no espectacular e Quanto ao estilo da escrita, que Fr. Boaventura
no lúdico. [...] descreve como «aureo, altiloco e discretissimo», não
se pode dizer que nele predomine o culto da
A Preciosa corresponde, de facto, a um ideal artístico «obscuridade» gongorina ou da «dificuldade»
e moral vigente na sua época, pelo menos na conceptista, cujos fundamentos teóricos se podem
península ibérica. ver na Agudeza e arte de ingénio de Gracián, e cuja
A Preciosa, que na edição de 1731 é descrita como prática, entre nós, é exemplarmente demonstrada
Alegoria Moral, e de facto o é, inserindo-se clara- na poesia de Jerónimo Baía, em particular nas suas
mente na longa lista de alegorias e moralidades fábulas mitológicas.
que remontam à Idade Média, também é uma Na verdade, conceptismo e obscuridade são até
novela pastoril, género pagão que renasce trans- expressamente criticados na obra (veja-se, por exem-
formado no século XVI. Porém, A Preciosa, além plo, no fl. 41r: «só quem falava claro não se enten-
de ser uma novela pastoril já enxertada em novela dia»), havendo nela uma nítida preocupação com a
de corte, como adiante veremos, é sobretudo uma claridade e a lhaneza do discurso, que são realmen-
novela pastoril a lo divino, quer dizer, «cristianizada», te conseguidas. Porém, A Preciosa é um expoente
com o que se constitui exemplar ilustração da do seu tempo, e como tal nela se detectam forçosa-
observância dos ditames da Contra-Reforma mente características do estilo elevado da época,
aplicados à cr iação artística, que levam à então dito culto, que no nosso século veio a ser
«moralização» das formas e dos géneros, herdados desmembrado em cultista e conceptista, por vezes
do passado ou novos, introduzindo-lhes ou apressadamente designado como gongórico.
sobrepondo-lhes significados piedosos com Assim, n’A Preciosa, quer na poesia quer na prosa,
intuitos catequizantes. A hibridização que daí fre- mas sobretudo na prosa, encontraremos postos em
prática muitos dos recursos estilísticos do cultismo
quentemente resulta, e que é muito evidente em
e do conceptismo, característicos do Barroco
A Preciosa, é uma das características mais salientes
peninsular, mas não encontraremos o que é mais
de grande parte da produção barroca, onde
caracteristicamente gongórico, como seja, entre
predominam os contrastes deliberados e as
outros aspectos, o uso de metáforas engenhosas,
assimilações surpreendentes.
catacreses e elipses em cadeia, aliadas a uma sintaxe
No que diz respeito à concepção geral da sua
e a um léxico repescados na tradição clássica.
estrutura, A Preciosa é uma forma fechada, se bem
N’A Preciosa, a sólida construção lógica e concisa
que funcionando a mais de um nível [...].
do discurso («estilo altiloco», segundo a definição
Na sua base é possível detectar a forma do labi-
de Gracián), suporta sem esforço os recursos
rinto de via única, conduzindo para o centro, onde, ornamentais usados sem por eles ser obscurecida,
de acordo com a tradição medieval em que assenta, porque essa ornamentação, além de moderada,
se encontra a Cidade de Deus, a Jerusalém Celeste. integra-se tão perfeitamente, está de tal modo de
Quanto à estruturação da escrita, essa apoia-se acordo com a matéria a que se aplica, que efecti-
sobretudo num tipo de construção silogística, que vamente contribui para a tornar até mais explícita,
confere ao discurso e à narração que ele propor- adicionando-lhe um brilho que realça o alto nível
ciona uma inevitabilidade lógica e uma segurança emocional que se deseja atingir.

31
N’A Preciosa, como em Gôngora, o estilo é real- associados à natureza simbólica da narrativa, a sua
mente um absoluto e torna-se transcendente em Autora consegue criar e manter um clima per-
virtude da própria visão que transmite: o esplendor manentemente poético que conquista o leitor e
da escrita corresponde ao esplendor (ou ao terror) faz com que ele seja conduzido através dos
da visão, ao esplendor (ou ao terror) da mensagem. meandros da complicada acção alternadamente en-
A força da sua coerência está aí. Como numa cantado e surpreendido, o que corresponde com
verdadeira construção barroca – palácio ou templo rigor aos propósitos explícitos da obra. [...]
– o luxo da decoração corresponde à sublimidade
do seu habitante, reflectindo o seu poder, a sua Aspectos do funcionamento alegórico da
magnificência: daí o seu aspecto deslumbrante, o narrativa
seu espectáculo. Para falar do sublime, Sóror Maria
do Céu usa o estilo sublime; para falar do vulgar, Uma leitura de A Preciosa revelará ao leitor atento
do mundano, usa o estilo coloquial. que esta narrativa é, de facto, o que pretende ser:
Se do ponto de vista moral Sóror Maria do Céu uma obra didáctica em que os dois polos da sua
demonstra uma indefectível convicção, uma fé actuação – o intuito de ensinar e o intuito de
inabalável, do ponto de vista da criatividade divertir – funcionam como uma unidade
revela-se uma artista segura e inspirada que usa o inextricável, apesar de claramente distintos. Essa
estilo barroco com perfeita consciência da sua íntima associação, mantida e acentuada através de
função operatória. Mas por fim, tudo o que no processos que adiante veremos, confere à obra uma
conjunto da sua obra não pode deixar de ser ambivalência específica que nos indica dever ela
considerado como resultante duma sábia mani- ser colocada, para além da categoria da novela de
pulação de recursos disponíveis, por fim, tudo isso corte ou da novela pastoril a lo divino, dentro da
nos remete para a conclusão a que talvez ela própria categoria mais vasta mas também mais profunda
tenha chegado e que Focillon formulou assim: «a da alegoria, de que esses géneros, aliás, participam.
forma não passa de uma visão do espírito». As novelas de Sóror Maria do Céu, que temos
A característica mais saliente da melhor poesia vindo a descrever como alegóricas, são-no de facto,
incluída, em A Preciosa, com excepcão, talvez, das podendo e devendo ser apreciadas tanto pelas suas
oitavas do Capítulo 20 é, portanto, o seu carácter qualidades edificantes como pelas lúdicas. Nelas o
lírico e elegantemente rústico, em que a graça do tratamento particular da temática corrobora esta
tema e a musicalidade do seu tratamento se con- afirmação, como vimos, pois encontrando-se nessas
jugam para formar peças verdadeiramente meló- novelas elementos eficazes para uma doutrinação
dicas, cantáveis e cheias de ritmo. A poesia que religiosa, nelas se encontram também aspectos
não apresenta tão marcadamente a qualidade indispensáveis para o aliciamento do leitor, já que
musical e a singeleza pastoril caracteriza-se por nunca se perde de vista quer a observância da mais
um pendor solenemente intimista ou por uma estrita ortodoxia quer o gosto mundano do leitor
descritividade barrocamente teatral. de então, moldado pela voga das novelas de
cavalaria, pastoris, bizantinas e de corte. [...]
Porém, a conclusão mais importante a que
Fazendo uma leitura analítica de A Preciosa com
porventura se pode chegar, depois duma leitura
base na sua intenção alegórica, e debruçando-nos
atenta de A Preciosa, é que nela a poesia e a prosa
sobre o seu plano de acção, nele poderemos
estão tão intimamente ligadas quanto são
distinguir três níveis de funcionamento: o nível
interdependentes. Pelo modo bem sucedido como
superior, o médio e o íntimo.
utiliza e doseia os recursos da sedução artística,

32
O nível superior corresponde à luta entre o Bem e O funcionamento da narrativa assenta, pois, na
o Mal num plano supraterrestre, a qual, sendo ante- interacção destes três níveis, devidamente
rior à acção propriamente dita, é reacesa pela cria- caracterizados em termos de ambientes e de
ção da Alma, pelo amor do Rei por ela e pela liber- personagens e seus respectivos modos de agir, a
dade que Ele lhe concede. É o nível básico de toda cada nível correspondendo um certo número de
a narrativa, e sobre ele assenta toda a intenção da personagens e um certo estilo de procedimento,
obra.Toda a acção, quer se produza no nível médio mas quem verdadeiramente ilustra o percurso da
quer se realize no íntimo, tem por pressuposto, ex- narrativa em todas as suas fases é Preciosa, pois ela
plícito ou implícito, o nível superior. é o fulcro de toda a acção.
Se, numa visão global, é possível dizer-se que todas
O nível médio corresponde à luta entre o Bem e as personagens pertencem ao nível superior,
o Mal no plano terreno, desencadeado pela porque ele é o básico, no entanto é necessário
existência de Preciosa. Consequência da luta que distinguirmos nele duas origens: a do Bem e a do
se trava no nível superior, a acção neste plano Mal. Preciosa e todos os seus servidores pertencem
reflecte esse conflito, multiplicando-o em ao grupo do Bem, grupo do Rei; Signão e todos
numerosas situações críticas que surgem e acabam os seus aliados pertencem ao grupo do Mal, grupo
por resolver-se através da intervenção de elementos do Príncipe do Averno. Uma vez que todas as
representantes das duas facções em disputa. personagens funcionam como representantes das
suas respectivas origens, agindo de acordo com
O nível íntimo corresponde à meditação sobre o elas, temos assim um esquema estruturalmente
Bem e o Mal no plano da consciência. Resultado binário, em que cada grupo representa um
da luta travada no nível médio, funciona como princípio contrário do outro, como se um tivesse
ilustração do livre arbítrio da personagem central o sinal positivo e outro o negativo. Porém, se
e serve de elo de ligação entre as sucessivas existem estes dois grupos, que correspondem às
situações críticas e a sua eventual solução. É duas forças básicas em tensão, no plano da acção
cabalmente ilustrado pelos Capítulos 19 e 20, onde principal, que é o nível médio, encontramos três
a heroína faz um exame de consciência como acto grupos actuantes: o grupo do Rei, representado
de contrição, através do qual, a si própria se
pelos seus enviados; o grupo do Príncipe, repre-
esclarecendo, fica liberta das tentações do mundo
sentado por Signão e seus aliados; o grupo da Alma,
e aberta para o amor a Deus.
representada por Preciosa, que tem quatro
servidores.
Estes três níveis apresentam-se como estádios num
Torna-se então claro que o sistema binário do nível
percurso circularmente simbólico, o percurso ge-
superior se transforma, no nível médio, em sistema
ral da narrativa que, no seu termo, se fecha sobre
ternáriol. [...]
si própria como um ciclo que se completa. Assim,
Esta tripartição, que no final da novela é eliminada
se observarmos que o nível superior corresponde
através da plena solução do conflito de todas as
ao domínio da Verdade, o médio ao domínio do
Engano e o íntimo ao do Desengano, fica ilustrado forças em tensão, corresponde ao tradicional
que o que se procura demonstrar é que todo o esquema triangular do conflito amoroso, que é o
afastamento da Verdade conduz ao Engano e que eixo de toda a acção. Para aprofundarmos esta
deste só se pode regressar à Verdade através do distribuição é necessário entrarmos na área da
Desengano, processo de consciencialização que temática, abordando-a do ponto de vista da
implica renúncia e penitência. ambivalência emotiva.

33
Duma leitura atenta de A Preciosa depreende-se das sublimes bem-aventuranças prometidas aos
que há nesta narrativa um tema central – a eleitos; os quatro elementos, que podem ser outro
peregrinaçõa da Alma no mundo e a sua final união veículo de atracção e perdição no mundo, também
mística com o Criador – mas dado que a obra se servem para a purificação, para o desligamento em
nos apresenta como alegoria, temos de procurar relação e ele; a beleza humana e a beleza da
os outros níveis de leitura, e portanto, de signifi- natureza, a que é preciso renunciar para se atingir
cação, que essa temática assume. Se o fizermos, a salvação, são depois recuperadas nas supremas
rapidamente compreenderemos que essa peregri- belezas que esperam a Alma na Jerusalém Celeste.
nação, que é exílio da Alma no mundo, tem outra E assim sucessivamente, em todos os detalhes da
face, ou seja, que esse tema de superfície, reduzido narrativa.
à sua essencialidade, revela-nos ser, na verdade, Perante a impossibilidade de, nesta Introdução, nos
constituído pela oposição amor humano / amor debruçarmos sobre cada um destes numerosos e
divino, e que esse tipo de desdobramento se vai facetados desdobramentos, ocupar-nos-emos
encontrar em todos os aspectos temáticos da apenas, a título ilustrativo, do tema central – O
narrativa. Amor Divino e o Amor Humano – e dos dois
Veremos então que estamos perante um relato principais subtemas – os Cinco Sentidos e os
assente num tema nuclear dúplice, ou seja, bi-face, Quatro Elementos. [...]
em torno do qual gravita todo um sistema de sub-
temas (ou temas secundários), igualmente bi-faces,
pois tanto o tema central como cada um dos sub-
temas tem uma face positiva e uma face negativa,
que se manifestam de acordo com a intencionali-
dade central e de acordo com a função que
momentaneamente tenham a desempenhar na
economia da novela.
Na sua grande diversidade, os subtemas adicionam
variedade ao que é intrinsecamente um sistema
de reiterações, pois cada um deles não faz mais do
que ilustrar, ou se quisermos, espelhar, na sua dupla
função, a intencionalidade do tema central, que é
mostrar o lado positivo do divino em oposição ao
lado negativo do humano, com o objectivo de
conduzir o leitor para a via da contrição e do
desapego ao mundo.
Assim, os mesmos elementos usados para ilustrar
a via do Bem servem para denunciar a via do Mal:
tudo depende da óptica aplicada. Desse modo, se
o Amor é louvado quando do ponto de vista a lo
divino, é condenado quando do ponto de vista a lo
humano; os cinco sentidos, condenados como
conducentes aos prazeres, e portanto veículo das
tentações do mundo, também vão permitir o gozo

34
TEXTOS LITERÁRIOS

35
36
fruitos mais saborosos ao gosto, as flores mais suaves
Francisco ao cheiro e alegres aos olhos, mas ainda os penedos
mais engraçados e parece que menos duros. Aqui,

Rodrigues aonde Amor costuma conservar seu senhorio,


mostrava cada dia maiores efeitos dele entre as
pastoras do vale que igualavam e venciam as do
Lobo* Tejo e Mondego em fermosura. èa entrada do
verão1, quando polo costume dos naturais do vale
e por ajuntamento de outros pastores estrangeiros
que ali traziam seu gado pela abundância dos pastos
daquela ribeira, havia entre todos muitos exercícios
A PRIMAVERA: Triologia
de alegria costumados dos pastores, como eram
Primeira Parte de “A PRIMAVERA” música em perfia, dúvidas amorosas, bailos e lutas
“VALES E MONTES ENTRE O LIS E LENA” de terreiro e outros jogos em que havia na
montanha guardadores extremados, Lereno, que
Floresta primeira na música a muitos do vale tinha ventagem, um
dia que com o novo sol sobre os floridos ramos
Entre as fragosas montanhas de Lusitânia, na costa começaram as aves a celebrar a entrada do verão e
ocidental do mar Oceano aonde se vem agora com as ervas e boninas a se levantar da terra apesar das
mais nobreza levantadas as ruínas da cidade antiga cheias do inverno, escolhendo um lugar apartado
de Colipo, há um espaçoso sítio partido em verdes a que o inclinava a própria condição, se foi assentar
outeiros e graciosos vales que a natureza com junto de ua fonte que está perto do rio à sombra
particular graça povoou de arvoredos e fontes que de um alto freixo entre duas faias; e ali, tirando a
fazem nele perpétua primavera, em meio do qual sanfonha, cantou esta lira:
se levanta um monte agudo de penedia cercado
como ilha de dous rios que pela fralda dele vão Já nasce o belo dia,
murmurando até que, ajuntando-se no extremo Princípio do verão fermoso e brando,
de sua altura, levam ao mar em companhia a Que com nova alegria
vagarosa corrente; e assim pela parte do rio Lis, Estão denunciando
que na cópia das águas é principal, como pela do As aves namoradas,
claro Lena, que escondido entre arvoredos faz o Dos floridos raminhos penduradas.
caminho, é cultivada á terra de muitos pastores
que naqueles vales e montes apacentam, passando Já abre a bela Aurora
a vida contente com seus rebanhos e com os fruitos Com nova luz as portas do Oriente,
que a terra em abundância lhe oferece, assim de E mostra a linda Flora
Ceres como de Pomona, porque com a benina O prado mais contente,
inspiração do Céu e disposição da terra não Vestido de boninas
somente são as plantas mais fermosas à vista, os Aljofradas de gotas cristalinas.

* Edição de M.ª Lucília Gonçalves Pires. Lisboa: Vega, 2003. 1


O termo verão designava, desde a época medieval, a
Foram retiradas do texto editado a maior parte das suas
primavera. [...]
notas, por economia de espaço.

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Já o sol mais fermoso Diana mais fermosa
Está ferindo as águas prateadas, Sem ventos sobre as águas aparece,
E Zéfiro queixoso E faz que a noite irosa
Ora as mostra encrespadas Tão clara resplandece
À vista dos penedos, À vista das estrelas
Ora sobre elas move os arvoredos. Que se envergonha o sol de inveja delas.

De reluzente areia Tudo nesta mudança


Se mostra mais fermosa a rica praia, Também de novo cobra novo estado;
Cuja riba se arreia Qual em sua esperança,
Do álamo e da faia, E qual em seu cuidado,
Do freixo e do salgueiro, Acha contentamento;
Do ulmo, da aveleira e do loureiro. Qual melhora na vida o pensamento.

Já com rumor profundo Acabou de cantar; e porque o murmuro da fonte


Não soa o Lis nos montes seus vizinhos, que entrava no rio debaixo de uns salgueiros e a
Antes no claro fundo veia da água cristalina que borrifava de flores a
Mostra os alvos seixinhos verdura fazia a vontade cobiçosa de a tocar, pôs o
E os peixes que nas veias surrão e a sanfonha sobre o penedo para lavar o
Deixam tremendo a sombra nas areias. rosto na borda da água, e virando os olhos viu em
ũa face da pedra entalhado este mote:
Já sem nuvens medonhas
Se mostra o céu vestido de outras cores; O mal que meu peito encerra,
Já se ouvem as samponhas Pois ventura o quer assim,
E frautas dos pastores Seguro estará de mim
Que vão guiando o gado Se o não descobrir a terra.
Pela fragosa serra e pelo prado.
Enleado no que debaixo daqueles versos se
entendia, crendo que não foram sem causa escritos
Já nas largas campinas
em tal lugar, deitou o pastor mil juízos para
E nas verdes decidas dos outeiros
entendê-los; mas havendo todos por temerários,
Ao som das sanfoninas
pois as palavras enfim mostravam segredo, deixou
Cantam os ovelheiros,
a empresa e, despois de lavar o rosto, tomou o
Enquanto os gados pacem
caminho para os currais donde viu que já deciam
As mimosas ervinhas que renacem.
com o gado os pegureiros; e entre eles vinham
cantando em baixa voz Tirreno e Melibeu, como
Sobre a tenra verdura que se entoavam. Porém, conhecendo-o, deixa-
Agora os cabritinhos vão saltando, ram a cantiga e com muito alvoroço o festejavam.
E sobre a fonte pura – Bofé2 (disse Tirreno), que mais parece este
Passa a noite cantando encontro buscado de minha boa ventura que
O roixinol suave,
Com saudoso acento, agudo e grave. 2
Bofé – fórmula de afirmação, resultante de contracção da
expressão à boa fé.

38
achado nela; e sabe que não há bem que não venha em saborosa conversação com as pastoras; e vendo
a um descuidado, que bem o estava eu agora do aos contendores da perfia, com grande alvoroço
que me convinha e da tua lembrança. se levantaram a os receber, e assentados em roda
– Não te desmereço eu (disse ele) muitas lem- os obrigaram logo a que cantassem, pois lhes tocava
branças, que não sei pastor desta ribeira que mais pola promessa passada. E como por esta razão a
me contente, ora seja no gado, ora no canto; e o não tinham de se escusar, afinando os instrumentos
em que agora vinhas com Melibeu começava eu cantaram. [...]
a ouvir com muito gosto, mas fizestes-me cuidar
que vos estorvara. Quem a Amor serve, quem de Amor procura
– O mal fora (tornou ele) não cantar bem diante A glória de um contente e ledo estado;
quem melhor o faz nesta montanha, e já tornára- Quem por amor quer ter vida segura
mos à cantiga por teu gosto se ela fora pera o dar. E ver ditoso o fim de seu cuidado;
Contudo te direi a razão que nos moveu a este Quem quer em seus serviços ter ventura
ensaio. O domingo da festa, quando tu faltaste (que E vir por este preço a ser amado,
logo o tive a mau agouro), foi grande luta e folgar, Por amor sirva, por amor mereça,
porque os serranos do Lena nos desafiaram a cantar Por amor ouse, tema e obedeça.
e bailar diante as nossas pastoras, das quais foram
mui gabados no seu modo e nas suas cantigas; e já Ponha só nestes meios a esperança
sabes que o que se tem a jeito nunca é melhor Para alcançar de amor bens de verdade,
que o que vem por novidade. Mas foi pera nós Que mal pode ter nele confiança
mui grande sermos enjeitados, e logo com raiva Quem a vida não der e a liberdade.
desafiámos, Melibeu e eu, a cantar de porfia a todos Em vão pretende amar, em vão se cansa
os vaqueiros e guardadores de além do rio; e sabe Quem não obriga as forças da vontade
que estamos pera hoje bem temperados. Mas como À tirana isenção de ũa pastora
elas são já suspeitas e eles favorecidos, corremos Que de quantos a vem quer ser senhora.
risco se tu não fores do nosso cabo.
– Para vos ouvir (respondeu ele) irei eu de boa Faça de seu querer merecimento
vontade, e esta tenho também pera vos obedecer, Sem querer merecer por outra via,
e não já contra vós, como fora misturar-me na Posto que tenha em posse e pensamento
vossa demanda. Mais ovelhas, mais cabras, mais valia.
– Não te valem escusas (tornou Melibeu), que O que mais lhe convém é sofrimento
quando não bastarem rogos, provaremos forças. Com que vença o poder da fantasia,
E tomando-o pelos braços, o levaram entre si e Que nenhua pastora se imagina
foram pelo vale abaixo atrás do gado; e ao empinar Ser menos que fermosa ou que divina.
do sol vieram pela praia do rio Lis aonde ele,
represado entre altas árvores, aos raios do sol fica Ouse, porque mil vezes o atrevido
escondido, até que chegando a ũa fragosa penedia Alcança mais que o cauto e temeroso,
vem quebrando em escuma sobre os lisos penedos, E o que nega o temor quando é devido
e com acordado ruído se vai debruçando em um Dá um sucesso vil a um venturoso.
quieto remanso, deixando em ondas a areia que Mais vale ficar ousado arrependido,
ao longo da praia vai correndo. E nela viram estar Que ser fiel amante e vergonhoso,
muitos pastores, uns cantando, outros jogando o Pois nenhua pastora em afeição
que entre eles é costume, outros entretendo-se Respeita mais amor que ocasião.

39
Tema, porque o que sabe amar melhor, como pouco experimentados em amor, que não
Melhor teme as mudanças da ventura, conhecem, não podem dar saída a seus enleios, e
Que não há em mulher seguro amor como inimigos nossos querem encobrir suas faltas
Nem ausente afeição de muita dura. com nossas condições, passemos estes
Aprenda mil cautelas do temor despropósitos, pois nacem de raiva e de inveja.
Para o que só na vista se assegura, – Não passes adiante (disse Lereno), que não é
Pois quem da vista ũa hora só se parte justo, Belisa, que o nosso passatempo se torne em
Ou já não acha amor, ou noutra parte. diferença. O teu queixume é justo, e a cantiga
destes pastores verdadeira. Mas para concertar vossa
Obedeça, que enfim nisto se encerra porfia, eu quero ser atrevido, que é crueldade a
O merecer, servir, temer e ousar; quem cantou tão bem desengraçar com todos sua
E quem conquista amor em justa guerra cantiga, e seria mor erro o de a sustentar em
Deve só com tais armas pelejar. prejuízo de vosso merecimento. Porém, sem a este
Este é o mor poder que tem na terra fazer ofensa, digo que quem pretende obrigar ou
Quem quer vontades livres sujeitar; afeiçoar ua vontade livre de natureza deve usar
Sem esta não alcança e não repousa das leis da sua cantiga e de outras muitas que se
O que serve, merece, teme e ousa. aprendem na servidão de amor. E quanto à vossa
queixa particular, fique à conta das que merecem
Esperou Belisa que os pastores acabassem a música, nome de mudáveis, esquecidas e ingratas. Mas
que pareceu mui bem, para se defender da cantiga outras, a quem se deve fé verdadeira, elas também
que a todas tratava mal. ficam sujeitas à desgraça de serem desamadas, mas
– Que graça é (disse ela) cuidarem Tirreno e são por natureza tão senhoras de nossa vontade e
Melibeu que por cantarem melhor podem ser mais tão livres do alheio senhorio, que não há nenhua
atrevidos, sendo maior a ofensa que nos fizeram que não seja servida e poucas que não tenham
com a sua cantiga que o gosto que se esperava queixosos seus servidores, donde vem atribuírem
dela. Contudo, se eles se não desdizem logo e estas só a elas o que é comum a todos os pastores, como
pastoras me derem a licença, eu defenderei a nossa serem servidas, respeitadas e temidas, que o mesmo
razão muito à sua custa e sem nenhum perigo do lhe importa a elas pera obrigar a outrem. E lembra-
que nos alevantam. -me que em outro vale bem desviado ouvi eu já a
– Grande mal é (tornou Tirreno) que não somente um vaqueiro ua cantiga deste propósito. Era ele já
sejais todas más de servir, senão que tenhais por de idade e gastara o melhor dela no serviço de
agravo ensinar a granjear-vos a condição ao que a amor e ensinava a acautelar-se de suas mudanças
não sabe. E se estas, em que eu pus o serviço de aos que de novo entravam na sua sujeição; e se eu
amor, vos parecem mais, dai-me algũa pastora que não temera o que aconteceu aos dous meus
se contente com menos. companheiros (que em lugar de louvados foram
– Não reprovo eu (disse a pastora) que para servir reprendidos), me oferecera a cantar o que lhe ouvi.
a amor seja muitas vezes necessário renunciar a – Quem pode tanto (disse Learda) que apaga culpas
própria vontade, desconhecer a razão e o mereci- alheias e faz que ainda fiquemos devendo graças a
mento de serviços, pondo a valia toda no preço quem nos ofendeu, não deve temer em causa
de amor. Mas dar por razão de suas sem-razões a própria que seja mal ouvido; e pois Tirreno e seu
nossa altiveza e mudança ou é erro de inocente, companheiro disseram já o de que nos podia pesar,
ou vingança de magoado. E já que os homens, que males pode ter a tua cantiga ou haver em nós

40
que nos descubram mais defeitos? Assim que com Floresta quinta
o mesmo desconto te pedimos que cantes.
– Isso não farei eu (tornou ele) só com o teu con- Descuidado vivia Lereno dos extremos que Liseia
sentimento, porque estão na companhia muitas que fazia em sua ausência, que o amor que em presença
mostram pouco gosto de me dares licença; e se dissimulara muito tempo não podia então encobrir
também não for sua, eu me não atrevo. a dor de falta tão custosa. Ele buscava conselho
Então lhe pediram todas que cantasse, mostrando para outro cuidado que o chamava. Ela não
que o desejavam muito. encontrava pastor no vale a que não perguntasse
[...] se vira o seu Lereno, dando a entender com suspiros
Cantavam os dous pegureiros muito bem, e Lereno, a pena que sentia de o não achar. Correu o vale e
que não perdeu o sentido da cantiga, acabada ela o monte, tornou enfim ao longo da ribeira do Lis
disse para o velho: onde achou o seu rebanho, cujas ovelhas, como
– Razões são aquelas de exprimentado, e é bom saudosas de tão bom pastor, ũas olhando para o
conselho o que delas se tira, se houvera artifício
pegureiro deixavam de comer a miúda relva, outras
tão poderoso que apurasse os males de maneira
vendo nas fontes a sombra de sua figura, com tristes
que ficassem em ouro; mas como eles em tudo
balos o chamavam. Ali se assentou Liseia defronte
são fezes, custoso deve ser aquele segredo.
delas, ao pé de um freixo por entre cujas raízes
– Muito custa o bem (respondeu ele), e tudo acaba
passa o ribeiro que com apressado murmúrio vai
o siso e a perfia, e de ver as cousas e ainda cometê-
-las a alcançá-las há grande diferença. Não te fugindo da fonte donde nacera, e ali, tirando do
enganes, que quanto amor faz dos homens com surrão ũa pena e papel, escreveu estas palavras:
seu poder, tanto os homens fazem de amor com
sua cautela; e não sei se diga que mais, pois ele A ti, guardador perdido,
obriga a um homem a querer bem a quem com Que desamparando o gado,
fermosura, graça ou outras partes naturais o con- Sem te haveres por culpado
tenta, e os homens com juízo e razão obrigam Andas com razão fugido,
muitas vezes que os ame ũa mulher a quem
aborrecem. E porque a idade atègora te não deu Uma pastora enganada,
lugar pera mais experiência, antes pera tão poucos De teus poderes vencida,
anos alcançaste muita, tudo te mostrará o tempo Te roga e deseja vida,
adiante. Agora vamos té à minha cabana, que se Inda que lha tens tirada.
faz tarde. E antes que se ponha o sol, quero que
vejas os enxertos do meu pomar como estão Não pareces há mil dias,
crecidos. E lá saberei o sucesso de tuas cousas e Nem eu sei aonde te escrevo;
procuraremos ambos o remédio delas, que esta Sei que não faço o que devo,
noite por força serás meu hóspede. E faço o que me devias.
Não foram necessários muitos rogos pera que
Lereno lhe obedecesse, e logo foram pelo vale abaixo Mas não é cousa de espanto
té à cabana que no fundo dele estava, contente Que nestes erros acerte
Lereno com a companhia do sábio pastor, imagi- Quem sem ti soube querer-te
nando que no seu conselho acharia princípio de E te soube querer tanto.
remédio; que o maior que tem os males de amor é
serem guiados por exemplo de sucessos alheios.

41
Busquei montes, busquei vales, blasfemar de suas sem-razões. E ainda Lereno, antes
E onde te busque não sei, deste sucesso, já de outiva dizia mal de seu senhorio,
Porque das novas que achei como quem agora havia de experimentar quanto
Abri caminho a mil males. custa conhecê-lo. Se eu a tal estado chegasse (longe
[...] vá o meu agouro!), antes escolhera a morte que a
sujeição, por não aceitar vida em que um homem
Depois que escreveu e cerrou a carta com mil há-de perder a própria vontade e andar granjeando
suspiros que lhe naciam da saudade de Lereno, a alheia, que em galardão disto às vezes se entrega
chegou ao pegureiro, que logo a conheceu, e com a outra que fica senhora de ambas.
amorosas palavras lhe perguntou: – Grande é a força de amor (disse Liseia), e todos
– Que novas tens, Serrano, do teu pastor, que tantos esses contrários consente, mas não o agraves,
dias há que deixa este seu gado e a ti com os porque é vingativo e não se paga de liberdades
encargos dele? alheias; e pouco te valerá conhecer seu dano pera
– Bofé (respondeu o pegureiro), que te não darei fugir-lhe, porque a sujeição da vontade não deixa
boa conta de sua vida, porque a ele dá tal de si, juízo livre, donde fica leve a culpa de quem por
que não sei mais que estranhar as novidades que sua causa comete desatinos.
nele vejo. A isto lhe atalhou Serrano:
– E essas quais são? (disse a pastora). Pode ser que – Falas tanto ao certo, que me parece que algum
pelo efeito se conheça o mal. tempo tiveste esta doença, porque não pode saber
– Qualquer que o mal seja (tornou Serrano), é tanto dela quem a não sentiu.
perigoso e inimigo da vida e do sossego, porque – Oxalá (tornou a pastora) que, como tu dizes,
Lereno atègora ria e zombava, hoje suspira e chora; fora só em algum tempo, que nenhum eu tive fora
buscava os pastores, agora foge deles; esmorecia desta sujeição; e agora, além de sujeita estou cativa,
sobre o seu gado, agora aborrece-o e desampara-o; com tão pouca vontade e esperança de me ver
era aprazível a todos, agora intratável; não saía das livre, que não procuro mais que favorável cativeiro.
festas e lugares públicos da aldeia, hoje gasta o dia – Não cuido eu (disse ele) que haverá alguém,
entre os matos e a menor parte da noite na cabana;
ainda que por natureza seja isento, que não queira
finalmente, nem se lembra de si, nem vive. Não
conhecer-te por senhora, quanto mais ter-te por
sei aonde agora é ido, nem donde lhe veio este
obrigada; e com esta certeza hei dó de ti, pesa-me
cuidado. Com lástima dele o contei a minha tia
de teu mal, porque nenhum mereces. Porém não
Lisandra que, como tu sabes, entende das ervas e
te agastes, que se Lereno se acha bem com ũas
das estrelas, e deve saber polos sinais a natureza do
ervas que Lisandra andou buscando esta madru-
mal quem sabe dar-lhe o remédio. Pela informação
gada junto do Lena entre uns penedos, tu haverás
que lhe dei, disse-me que o seu mal era amor ou
cura.
doudice, que tanto monta. Se tal é, dá-o tu por
– A que eu quisera (respondeu Liseia) não é que
finado, porque Lereno é de fraca natureza, e os
me faltasse este tal, mas que a causa dele ao menos
frenesis de amor muito poderosos pera a destruir
não durará muito. com sua vista quisesse dar-lhe remédio.
– E donde te vem a ti (perguntou a pastora) ter – Cousa é essa (respondeu ele) fácil de alcançar e
em tão má conta os frenesis de amor? que ninguém te negará.
– Pela que ele dá (tornou Serrano) de quem o – Só por teus meios (tornou ela) a eu pudera ha-
segue e o serve. Nunca outra cousa ouvi senão ver mui cedo.

42
– Ainda é logo mais fácil do que eu cuidava (disse cobenos de língua-cervina, que escassamente se
Serano), porque não haverá nenhũa cousa de teu conhecia pela queda das lágrimas que caíam do
gosto que eu não faça com muita vontade; e agora alto estiladas pela verde avenca que, sem se mostrar,
com maior, pela compaixão de ver tal a Lereno. as despedia sobre o claro remanso. Chegando o
Por isso dize-me o que posso fazer em teu favor. pastor à vista dela, se deteve no estreito caminho
– Nenhũa outra cousa mais (disse a pastora) que por não estorvar um roixinol que de um ramo de
dares-lhe esta carta como vier ver o rebanho, aveleira com saudosos assovios fazia um sonoro
encobrindo-lhe agora o nome de quem ta deu, eco entre os montes, e depois de redobrar com
porque nisso está a minha vida. mil queixumes a cantiga, de um voo se passou
– Por certo (tornou Serrano) que a tens em perigo, pera ũas árvores altas que da outra parte ficavam.
porque eu procuro salvar de um a Lereno e tu Então foi o pastor adiante, e ficou muito mais
queres que o meta em outro. Porém, como dizem, confuso vendo a Liseia que, sentada sobre ũa pedra
às vezes ũa peçonha mata a outra. Dá-me a carta e da fonte, tinha em o chão escritas estas palavras:
guarda segredo no ofício, que eu farei nele
maravilhas. Tive enganos por ventura
– Novo coração me deste (disse a pastora) com Para sentir mais meu dano;
essa promessa; e se eu lhe vir tão venturoso fim Se é mal viver de um engano,
como espero, prometo que não te pese de Como um mal tão pouco dura?
empregares o cuidado em me valer. Mas agora
dissimula, que vem decendo pelo vale abaixo Nise Ao movimento dos ramos que cerravam o estreito
e encaminha com os olhos pera cá; finge que me caminho virou Liseia o rosto e viu a Lereno; e
ensinas a toada de algũa cantiga. ainda que magoada dele pelo que Enália lhe
Logo Serrano tomou o arrabil e em voz baixa, contara, não pôde o amor que lhe tinha negar seus
como que ensinava, cantou. efeitos; mas dissimulando o mais que lhe foi
[...] possível o gosto de [o] ver, lhe disse:
– Como vens, Lereno, a buscar o castigo que
Floresta décima mereces, se eu fora tal que soubera tomar vingança
de tuas sem-razões e satisfação de minhas mágoas?
O passatempo das festas e a alegria dos pastores Porém, tanto me sujeitou amor ao que te quis,
não tiravam a Lereno o sentido de seus cuidados que em lugar de queixume te ofereço lágrimas
pera quem guardava o melhor do dia; e ainda que com que me contento, pois nacem da causa que
no passado não pôde fugir ao ajuntamento dos busquei pera elas.
outros pastores, pretendia recuperar esta perda que E dizendo isto inclinou a cabeça sobre a fonte, e
tinha por grande em entregar os outros à tristeza com novas gotas de cristal a revolvia. O pastor,
da saudade e ao receio de lhe faltar a glória cujo coração não negava a paixões amorosas
prometida, que era ver a sua senhora ao outro dia piedade, se viu enleado; e conhecendo a causa pelo
no vale desconhecido. E gastando as horas na que já Enália lhe dissera, tomando-a pelo cajado
esperança desta, se foi com as ovelhas decendo lhe dizia:
um outeiro sobre o vale onde pastava e, desviado – A essas lágrimas injustas bem é que pague com
um pouco dos rafeiros, foi ter a ũa fonte que ficava a vida o ser causa delas; mas ainda que por ti seja
entre duas subidas que naquele baixo se cruzavam; voluntária a morte, se executará em um inocente
e estava ela tão escondida entre uns penedos que te ofendeu sem saber o que fazia. Levanta o

43
rosto de sobre a fonte, e com os olhos no meu te Floresta duodécima
assegura que te não ofendi, nem me falta senti-
mento de teus queixumes. Declara-me os que tens Da parte por onde vem decendo o rio Lis antes
que, se com a vida puder dar-lhe remédio, a de chegar aos espaçosos vales que com sua corrente
entregarei à tua vontade. vai regando toma um estreito caminho entre altos
A isto se levantou a pastora e, virando os olhos a arvoredos, onde com profundo silêncio se detém
Lereno, viu os seus que com a mesma dor se até chegar à queda de ũa alta penedia; e ali
encheram de lágrimas; e pesarosa daquela tristeza, repartidas, as águas medrosas vão fugindo por entre
que lhe pareceu maior mal por ser experimentada raízes de amargosas nogueiras, outras, oferecendo-
em quem tanto amava, lhe disse com um suspiro: -se aos penedos, com saudoso som estão neles
– Se esses sinais, Lereno, são verdadeiros, como eu quebrando, e depois ficam derramadas em dous
quisera crer, porque em outros te acho meu ribeiros: o maior, depois de muitas voltas se vai a
inimigo? E se as minhas lágrimas te magoaram encontrar primeiro co as águas de que se apartou
em fé que te pesou de meu desgosto, porque de entre altos ciprestes e loureiros; o outro, ao voltar
duas cartas minhas partiste pelo meio com Enália, de um vale se vai encostando a ũa alta rocha por
dando-lhe aquela cujo segredo mais me importava? baixo de espessas aveleiras; e esperando as águas
– Que pena merece (tornou Lereno) quem uas pelas outras, descobrem a boca de ũa lapa
dormindo fazia erros contra ti porque lhos encoberta entre uns ramos que vai por baixo do
ordenava sua ventura? Que, sem força do fado, de chão ũa légua. E nesta havia fama que vivia um
crer é que não te ofendesse nem por sonhos.Veio sábio de muita idade que por encantamento a
Enália a mi muito queixosa que te dera ũa carta fabricara, o qual naquele lugar era buscado de
sua, de que eu não sabia, e perguntando-lhe o muitos pastores naturais e estrangeiros a que dava
modo por que viera ter à minha mão, me contou remédio em muitos males, particularmente nos
como nela a deixara estando eu repousando junto de amor, de quem ele já fora na mocidade
do rio. Mostrei-lhe então ũa que da mesma maneira atormentado, e neste tempo corria mais a fama
achara quando acordei, não imaginando que era das maravilhas que obrava. Quando Lereno saiu
tua, como depois soube, confessando-me Serrano do vale desconhecido, triste pela ausência de sua
que o era outra que antes me tinha [dado] da pastora que a tão ditosa esperança o levantara, e
mesma letra. E com o pesar deste sucesso ando antes de recolher o gado, encontrou a Liseia, a
tão triste, que se a culpa fora minha estavas bem qual, incerta de seu dano, não imaginando que
vingada. contra si fazia, lhe disse o que passara indo trás ele
– Não no quero eu ser tanto à minha custa (tornou e o mais que lhe acontecera com a pastora da
ela), antes me dou por satisfeita da tua descarga. montanha, cujo recado lhe deu. O pastor, quando
E indo adiante lhe cortou as palavras ũa voz que isto ouviu, como se aquela hora lhe arrancaram a
perto dali ouviram, como que vinha endireitando alma, ficou sem cor e sem fala e, virando as costas
pera a fonte; à pastora, foi suspirando pelo vale acima. E ela ficou
[...] tão desesperada caindo no que fizera, que depois
de muitas e lastimosas palavras que disse, se quisera
deitar no alto do rio e pagar com a vida seu
descuido. Mas a isto atalhou Nise, que perto andava
com o seu gado, e todo aquele dia com amorosas
razões a aliviou em o mal cuja causa lhe encobria.

44
E depois de muitos em que o pastor andou entre E pera que de mim nas obras conheças a vontade
os matos emboscado, comendo o fruto das árvores com procurar teu remédio, espera-me neste lugar,
sem dono, aborrecendo a conversação dos naturais que logo nele saberás a causa de teu dano. E entanto
pastores, dizendo às feras, às árvores e penedos seus (por que não fiques sem companhia), te mandarei
queixumes, foi por aquele caminho a buscar o vale quem te entretenha.
por ver ao menos as relíquias de sua passada glória Dito isto foi, por meio dos seus encantos, a saber
representada no lugar aonde a gozara. Mas achou o sucesso dos amores de Lereno, e ele ficou na
cerrados os penedos da cova como se nunca ali quadra, onde não tardou muito que vieram duas
houvera tal caminho. E tendo então por impossível pastoras por extremo fermosas, vestidas de verde
o remédio de seu mal, fazendo mil discursos que claro com samarras de pelica manchada e violas
na imaginação vinham a parar em desatinos, se foi de arco nas mãos. E chegando a Lereno o saudaram;
ũa manhã buscar ao sábio Menalcas que habitava e ele, muito contente de sua vista, as recebeu. E
naquela estranha morada que dissemos junto do depois de passadas alguas saborosas práticas, lhe
rio. E entrando pela cova aonde com a escuridão pediram que quisesse cantar com elas pelo modo
não atinava, foi ter aonde corria um ribeiro cujas que o costumava fazer na sua aldeia. Ele, que não
águas vinham tão frias que, tocando a mão nelas, sabia negar boa vontade a quem merecia o preço
perdia de improviso o sentimento. E chegando ali, dela, aceitou o cargo, e tocando as violas, cantava
ouvia dentro grande harmonia de música de aves o pastor e elas respondiam, [...]
e, entre vozes humanas, mover de arvoredos e Despediram-se as pastoras acabando a música,
murmurar de fontes. E daí a pouco espaço se veio porque sentiram que vinha o velho Menalcas. E
para ele o sábio velho e lhe preguntou o que ele, com ledo rosto, assi falou para o pastor que
buscava. entre temor e desejo o esperava.
– A ti (respondeu ele), pera remédio de meu – Posto que o estado de teus cuidados seja perigoso
cuidado ou desengano dele, que posto que conheça e te pareça que tens nele a vida aventurada, não
não ter cura minha desgraça, o desejo de me ver desesperes de grandes bens que os fados te
livre faz que procure cousa tão duvidosa, ou, pera prometem. Por eles estava ordenado que o
melhor dizer, impossível. primeiro que descobrisse a história de Sileno, que
O velho o tomou pela mão e, levando-o a ũa em um penedo foi encantado pelos Faunos desta
quadra que com artificiosa luz se alumiava, e montanha, padecesse em castigo de tal ousadia que
sentando-o perto de si, lhe mandou com mostras todos seus segredos fossem manifestos. E por esta
de brandura que contasse a sua história. E Lereno, razão, se discorreres pelos sucessos de tua vida
que com a lembrança renovava a dor dela, com depois que aos pastores do Lis e Lena a descobriste,
lágrimas que nos olhos lhe naciam contou do acharás que por estranha maneira, sem culpa tua,
princípio de sua vida té o estado em que estava, foram descobertos os amores de Liseia, a carta de
que tinha pelo fim dela. Ao que o sábio com um Enália e o que te aconteceu no vale desconhecido.
maduro sossego respondeu: O remédio que tens pera melhorar tua sorte e
– Posto que os males cansam ao sofrimento e os vencer a força desta desgraça é um desterro que
teus sejam de calidade que te ponham a risco de o logo farás desta montanha em castigo da culpa que
perder vendo-te sem culpa, não desesperes de ser tiveste. E depois de larga ausência, que será atalhada
curado, que tudo há no tempo que em casos por permissão de tua estrela, te poderás chamar
semelhantes com a longa experiência me ensinou. neste vale venturoso pastor.

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Espantado ficou Lereno de ouvir o que o sábio “CAMPOS DO MONDEGO”
lhe dizia e a razão de seus males tão encoberta.
Vendo que nesta verdade não podia haver engano Floresta primeira
pelo que já lhe acontecera, e em recompensa do
trabalho, se lançou aos pés do pastor, que com um [...]
estreito abraço o levantou e veio com ele até a Era tão alegre o cantar das serranas e pareciam tão
saída da cova, representando-lhe sempre o que bem com aquele rústico trajo afrontadas do sol e
convinha pera sair dos ameaços de sua ventura. E descalças pela água do ribeiro, que posto que os
ele, a quem tudo o mais aborrecia faltando-lhe o dous caminhantes gastavam os sentidos em outra
bem que ela lhe negava, determinou partir-se ao lembrança, não puderam negar naquela vista con-
outro dia sem a ninguém dar conta de seu aparta- tentamento. E ũa delas, na cor preta, nos olhos
mento. E deixando cabana e rebanho, levando só engraçados e nas palavras mais livre, disse para eles
consigo rabil, surrão e cajado, tomou o caminho quando os viu defronte:
dos campos do Mondego. Porém, antes de se – Por amor de mim, pastores, que deixeis o lugar,
apartar do Lis e Lena, subido de um alto penedo porque é de quem nele me parece melhor que vós.
que descobria aqueles saudosos vales e montes, os Ao que Lereno respondeu:
espessos e sombrios arvoredos, as cristalinas – Não podeis vós logo dar esse a outra que melhor
correntes que iam com ordenados rodeios pareça; e se eu deixar este por vosso gosto, será
cortando a verdura, tirando o pastoril instrumento, por outro donde mais ao meu vos veja, que sem
com rouca voz começou a celebrar desta maneira isto obedecer-vos fora agravar-vos.
a triste despedida: – Bofé, pastor, que errastes na escolha (disse ũa das
outras), que em qualquer de nós a tínheis melhor;
Fermoso rio Lis que de contente porque esta serrana fez já a sua aonde está bem
Estais detendo as águas vagarosas empregada. Vejo-vos pera os amores boas palavras
Por não passar daqui vossa corrente, e ruim partido.
– Por essa razão o tenho eu melhor (disse
Entre essas ondas claras duvidosas Menandro), que ainda não escolhi. E por que [me]
Levai ao largo mar com turva veia não aconteça o que a ele, desenganai-me qual de
Tristes queixumes, lágrimas queixosas. vós está sem afeição.
– Eu, que nunca a tive a quem me quis bem
Enquanto descansais na branca areia, (respondeu a primeira). Falai comigo, que sou pera
Ouvi um pastor triste e magoado tudo, e vós, pelos sinais, meu namorado.
Que vai perder a vida em terra alheia. – Não sejais tão sôfrega (disse ele) que roubeis o
alheio. Contentai-vos com meu companheiro, que
Sua ventura o manda desterrado, o não podemos ser nos amores. Mas se a pastora
Não se pode saber que culpas teve, do branco vive sem eles e quiser os meus, ficarei
Que Amor, que foi juiz, era o culpado. nesta terra por soldada à sua conta, inda que vejo
que faz pouca desta vontade.
[...] – Nenhũa tenho (respondeu ela) de aceitar amores
tão apressados, porque nunca pago serviços de
antemão. E pois esta pastora me ganhou por ela e
vos quer por servidor, não sejais ingrato.

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– Bem podereis (disse ele) enjeitar-me sem me – O pouco que te hás-de gozar deste engano (dis-
aconselhar, que vos não quero pera terceiro. Porém, se ela) me fará mais liberal.
o pouco espaço que aqui me detenho fará que – Não consinto (atalhou a primeira) que entreis
aceite o conselho. tanto pela terra dentro nos favores e obrigações.
– O meu é (disse a outra) que, enquanto lavamos Pastores, desenganai-vos, que nenhũa de nós sabe
as talhas, canteis algua cantiga, pois ao parecer sois querer bem senão a si. Vivemos de dar em que
do Tejo, aonde são as melhores. entender a todos e de não entender a nenhum;
– Eu (disse Lereno) nada farei sem interesse. E levamos boa vida de a dar má a quem nos serve;
posto que não sei cantar, me ofereço, se me ajudar nada nos contenta senão o que nos não custa. Há
meu companheiro. mais enganados nesta serra com nossas palavras
E porque ele se não negou, cantaram ambos: do que há galardoados de nossa afeição. Eu sou
um pouco de melhor natureza que minhas com-
Mal pelos meus olhos panheiras: não quero que desta graça se vos pegue
No que amor ordena, algũa imaginação com que adoexais de sizo, que
Que eles tem a pena. conheço muitos que coro menos causa o perderam.
Ajudai-nos a levantar os cântaros, já que aqui vos
Meu desejo vão achastes, que sempre à conta deste favor direis um
Tenha toda a culpa par de trocidos.
E quem nele culpa – Ora (disse Lereno), nunca encontrei com gente
A meu coração, que tanta pudesse levar após si. Digo-vos que falais
Que só pagarão tão bem como pareceis e que o que sobre desen-
Meus olhos a pena ganado vos não servir desacerta em tudo. Não nos
Do que amor ordena. deixeis tão depressa, por vossa vida.
– E vós (respondeu ela), não vos afeiçoeis tão
Deste meu querer devagar, que desacreditais o nosso costume; que
Amor foi seu fim, no pr imeiro encontro fer imos, matamos e
E sem ver-me a mim roubamos como salteadores, e não há liberdade
Vos quiseram ver. que pare ante nossos olhos, que com eles temos
Se é contra o poder feito a amor um esfola-caras. E vós, a cabo de
Do que amor ordena, tempo e com muita freima, caistes na razão. Por
Eles tem a pena. vos não esperar outras, ficai embora.
E tomando o cântaro, fizeram as outras o mes-
– Já me arrependo (disse a serrana do branco) de mo, e com grande risada foram pelo vale acima,
me mostrar esquiva à tua boa vontade. Quiçais, se deixando-os na borda da fonte.
ma ofereceras cantando, que obrigaras a minha Dali foram continuando seu caminho pela subida
com maior força, pois a teve agora a tua cantiga de um vale assaz pedregoso té chegarem ao cume
pera te olhar com mais brandura, que é cousa assaz de um monte donde começaram com os olhos a
alheia de minha condição. descobrir a vagarosa corrente do Mondego que
– Não no parece ela logo do teu rosto (tornou em curiosas voltas se detinha por não chegar ao
Menandro). Porém, já que te soube contentar, ain- mar aonde perde o nome e o sabor de suas doces
da estás em tempo de me restituir. águas. E porque se detiveram em contemplar os
sumptuosos edifícios e altos templos da famosa

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cidade de Coimbra, honra e glória da Lusitânia, e obrigara a desesperar. Contudo, antes me atrevera
os aprazíveis lugares e quintas de que está rodeada, a obrigar a quem já das paixões de amor tem
e era já tarde, disse Menandro para o companhei- conhecimento que a conquistar de novo ũa
ro com muito sentimento: vontade rebelde a seu senhorio; porque a primeira
- Nem o bem de tua conversação me consente a empresa é induzir ũa vontade afeiçoada aos mesmos
ventura, porque aqui se aparta o nosso caminho, efeitos de que já se obrigou, e a segunda é obra do
que o meu é por fora do lugar e hei-de passar poder e força de amor, a quem os antigos atribu-
hoje da outra parte do rio.Vai embora, pastor, tua íram este senhorio.
viagem. Guie-te boa estrela, que a minha é tal que – Boa era essa razão (respondeu Florício) se essa
até esse bem me tira. Se algũa hora tiver descanso, vontade afeiçoada de que falamos não tivera feito
que já não espero, e te vir com ele, faremos emprego com quem ausente ocupa o mesmo lugar
lembrança destas horas magoadas. no coração; e assim menos força se faz induzindo
– Dê-te o céu (disse Lereno) o que desejas e nos amor em um peito humano, cousa tão natural nele,
torne a encontrar menos queixosos. Se algũa hora que destruir o que já na alma tem feito assento.
ouvires nomear a Lereno, natural do Lis, sabe que – Em verdade (tornou Riseu) que muito confias
tens nele esta vontade. da firmeza das mulheres, pois nelas fazes diferença
E nisto com um abraço se despediram cada um entre ausente e esquecido; e eu ousarei a afirmar
pera sua via e seu cuidado, iguais na pena e desigual que, ainda presente, não há nenhũa em quem o
a causa dela. amor esteja seguro, que são tão inclinadas a
novidades e mudanças que desconhecem afeição
Floresta sétima e merecimentos.
– Se tu as conheces a todas (tornou ele) por tão
Despois que a noite se despediu das estrelas e a inclinadas a novidades, porque se não obrigará
fermosa aurora em seu rosado carro começou a tanto delas a que tem amor como a que nunca o
campear os horizontes, levantados os pastores de teve?
seu repouso se repartiram da aldeia nos costumados – Porque (replicou Riseu) a que tem afeição não
exercícios de seu gado. Riseu, Lereno e Florício tem firmeza, e a que vive isenta vive de pertinácia
se ajuntaram perto do rio à vista dos rebanhos para que sua natureza siga sempre extremos. E se
aonde, para que gastassem a manhã em saborosa ũa mulher se não obriga de sua vontade ou apetite,
prática, disse [Lereno] aos companheiros: é impossível conquistá-la ninguém com serviços,
– Ainda que os pensamentos que de noite repre- que por ficarem sempre senhoras de sua liberdade
senta a fantasia não costumem parecer ao outro e da alheia, só de sim aceitam a sujeição.
dia, merece ter ante vós hoje lugar ũa dúvida que – Não cuidei (disse Lereno que com muita atenção
esta madrugada se me representou no entendi- os escutava) que eras tão inimigo das pastoras que
mento que me deixou um grande desejo de saber com sua infâmia abonasses tua opinião, que essas
dela a verdade. E é: qual terá maior pena e razão razões servem mais de as ofender que de confir-
para viver sem esperança: quem ama ũa pastora marem o teu parecer; antes te conhecia por
que nunca soube de amor nem dele se obrigou, homem afeiçoado e que sentia bem de cuidados
ou quem ama a outra que de sua vontade tem amorosos.
feito emprego em um pastor de que vive ausente? – Não te enganas (disse ele), porque mais tempo
– Duvidosa é (disse Riseu) a questão, e cada um gastei já em as servir do que agora em dizer esta
desses estados perigoso; porém nenhum deles me verdade. E dirás que, como quis já bem a quem

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conhecia com tanto mal, pois não somente a Manda-me Amor que conte
afeição mas também o apetite nasce das cousas Agora em voz chorosa
que melhor nos parecem? Porém maior desculpa Mágoas que não fiei do claro dia.
disto é a falsidade de suas palavras e o fingimento Ouçam minha perfia
de seus afeitos do que a culpa do meu engano. Essas nuvens escuras
– Esse (disse Lereno) é o maior, e mais pareceu Que o céu mostrava há pouco prateadas,
vingança de agravo que praga de homem Que não estão seguras
desafeiçoado. E se assim é, eu por sua parte apelo Por estarem da terra levantadas
e te rogo que deixemos a questão para outro tempo, De padecer mudança,
que agora melhor será, para escusar o arrependi- Que mais alta tive eu minha esperança.
mento que despois te pode custar muito, que cantes [...]
algua cantiga de seus louvores, e ficando com elas
reconciliado, darás alívio à malenconia do nosso Estava o lugar com a saudade da noite e com os
Florício. acentos da cantiga de Lereno tão triste que só lhe
– Se o seu mal com outro se apaga (tornou ele), faltava para o igualar o sentimento; e como só este
quero-te obedecer, e cantarei louvores das pastoras bem lho parecia, esqueceu-se da jornada que lhe
de quem cantando tão mal fico vingado. faltava e de tudo o mais que não eram seus suspiros.
[...] Mas como este repouso não pode dar descanso
nem sua sorte lho consentia, levantou-se, tomou
“PRAIAS DO TEJO” o sur rão e foi por um vale abaixo bem
acompanhado de árvores que o faziam mais escuro,
Floresta primeira até chegar à queda de ua ribeira aonde entre muitos
álamos e freixos apareciam cabanas de pastores.
Queixoso da ventura que o desterra, cansado de Dali saíram os rafeiros a lhe ladrar; e enquanto ele
caminhar por terra estranha, desconfiado das com o cajado os desviava, saiu um pastor da porta
esperanças em que sustentava a vida, buscava o e preguntou:
pastor Lereno lugar onde acabá-la, parecendo-lhe – Sois esse que tantas horas há que vos espero?
que cada hora se alargava com as saudades do Lis – Não devo ser eu (respondeu Lereno) quem
aonde nacera e da liberdade que nelas lhe ficara, esperais, porque não sou desta ribeira, antes pela
magoado das desconfianças de Florício que o apar- não saber errei o caminho que levava. Peço-vos
tavam do Mondego. Chegou a ũa montanha das que me encaminheis para a aldeia.
praias do Tejo em ũa tarde graciosa, quando o sol – Se tu não sabes o atalho (tornou o outro), não
dos horizontes se despedia deixando as rosadas tens horas para passar daqui, aonde se quiseres
nuvens envoltas em seus raios. E enquanto dos gasalhado to darão de boa vontade.
altos montes não caía a sombra escura, assentado – Essa vos pague Deus (tornou ele), e a mi por
em um penedo de cujas entranhas Eco os saudosos agora é forçado aproveitar-me dela.
acentos repetia, no som do vagaroso Tejo que O do casal o fez entrar para a cabana, aonde logo
passava cantou o seguinte: tirou o surrão, e assentado lhe preguntou donde
era e para donde ia.
Ó tarde saudosa – Bofé (disse ele) que te não saberei dizer donde
Que ides aposentando a noite fria sou nem ainda cujo; porém naci perto destas serras
Neste nosso horizonte, de riba Tejo e vou para aquela famosa aldeia aonde

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ele se acaba para viver ali por soldada entre os Corre por entre as serras furioso,
guardadores, aonde me não faltará amo, porque Perto donde o rio Alva se derrama
sei da pastura dos gados, da cura deles, do monger E entregando-lhe as águas perde a fama;
e queijar do leite, e do mais que cá se estima dos [...]
pegureiros.
– Por certo (tornou o velho) que buscas forte
trabalho, que é tão má vida tê-la sujeita à vontade O PASTOR PEREGRINO *
de outrem, e sobretudo viver no labarinto e
Segunda Parte de A PRIMAVERA
confusão dessa aldeia, que te não aconselhara tal
engano. E não tratando de mim, a quem a idade
Livro Primeiro
ensinou a fugir dela, todos os caseiros desta
montanha que costumam levar lá de venda os
Jornada Terceira
cabritos e o fruito do seu gado outra cousa não
contam senão as maranhas e enleios que lhe tratam
Muito descança o sentimento de um queixoso
os abegões. Porém às vezes é força o que não é
(disse o pastor) ouvindo males alheias, agora sei,
gosto dos homens: sicais que te será necessário.
que o maior que tem a tristeza, é não consentir
– Assi é (disse Lereno), que ninguém já agora vive
companhia, pois este pequeno espaço, que tive da
a seu sabor; e este meio que eu busco é mais para
tua, parece, que já me ia esquecendo da minha
entreter a vida que para remedeá-la com esperanças
pena, não me tenhas por tão ingrato, que a troco
de algum descanso.
deste alívio, folgue de te ver com ela, mas é tão
Nesta prática estavam os pastores quando dous que
estranho o conto de teus amores, & tão boas as
o velho esperava assomaram à porta, dos quais logo
palavras com que o representaste, que não é muito,
Lereno conheceu seu amigo Riseu, a quem a
que me descuidasse de mim, em quanto te ouvia.
ventura ali trouxera havia poucos dias. Foi o
No fim te digo, que em parte se assemelha conti-
alvoroço estranho entre os dous pastores e o
go a minha ventura, que sempre amigos a que amei,
contentamento do velho de empregar tão bem o
& intrigas, que me quiseram, foram o principal
gasalhado. E despois que descansaram em saborosa
estorvo de meu descanso. O Céu te dê o que tu
conversação entre as saudades do Mondego, e o
desejas, que já agora (ainda que te não conheço)
velho lhe ofereceu os saborosos manjares da
amarei a tua boa sorte, & me pesará dos males
natureza, e comeram com a vontade que lhe
igualmente: Não te posso eu pagar essa vontade
oferecia o cansaço do caminho e o gosto da
(respondeu ele) mais que com a mesma afeição, &
companhia, sobre mesa pediu Riseu ao amigo que
desejo; pois já ouviste o que sei de minha vida,
ao som da sua sanfonha lhe cantasse o que passara
folgaria, que me contastes algũa cousa tua, & de
despois [de] se apartarem dos campos do Mondego.
teus pensametos. Isto farei eu de boa vontade (tor-
Lereno por lhe obedecer tomou logo o instru-
nou o Pastor) se o sono, & trabalho do caminho
mento, e foi seguindo sua história desta maneira:
te não divertirem; porém em quanto ele tarda,
escuta agora. Em uma Aldea, onde de tenros anos
Por onde entre penedos e aspereza
me levou minha Estrela, tirando-me da pátria
Passa o Mondego claro e saudoso,
aonde nasci, guardei um rebanho de ovelhas, bem
Rompendo os montes seus que a natureza
Fez por muro da terra poderoso;
* O Pastor Peregrino [...]. Lisboa Occidental: MDCCXXI
Aonde estreitando as praias e a grandeza [1721], p. 30-33.

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envejado dos guardadores naturaes daquela ribeira, escondido, sabendo, que pelos montes me buscava
fui pouco tempo livre, & já neste o não estava de a que injustamente desprezei, tornando ao meu
meu cuidado, uma fermosa Pastora digna de outro rebanho, comecei de a tratar melhor, & a dar algum
de maiores merecimentos, & melhor ventura; teve lugar a seus pensamentos, o que como ela
ela comigo tão pouca, como eu logo com outrem conheceu estimou logo menos, que cousa é natural
experimentei, dando-lhe eu próprio vingança de em mulheres que o que negado desejaram com
minha sem-razão. Oferecia a fé, & o cuidado a grandes extremos, alcançado se possue com
outra Pastora daquela mesma Aldea, que a juizo maiores desprezos: A Pastora por quem eu andei
de meus olhos era a que só os podia senhorear, & tantos anos sem descanço, & perdi um amigo em
desenganar a todas as mais fermosas de sua idade: que o tinha, soube que o seu Pastor ausente a tinha
Tive eu meio para lhe comunicar minha afeição, esquecido, & estava casado com uma estrangeira
que o amor tem asas com que encobre, & vence daquelas partes donde habitava, queixosa, & vin-
todos os receios, & achei em ligar do remédio gativa, de quem tão mal galardoara sua fé, come-
desengano: Tinha ela de mais longe feito outro çou a favorecer-me, & como eu até então não
emprego, & guardava firmeza a um Pastor, que tinha perdido o amor com que a procurei, não lhe
alorgado daquela Aldea habitava em Reino pude negar consentimento. Porém lembrado de
estranho, & quiçá já esquecido do que devia a seus uma promessa, que o meu amigo estrangeiro lhe
amores.Valeram pouco com ela meus extremos, fizera de seu amor (posto que ela me quis persuadir,
& quanto mais em vão os fazia, me obrigava com que fora cautelosa) por a ele não fazer ofensa, em
maior força o desejo a procurá-la. Passaram tempos, pertender em sua ausência, o que ele já tinha
sem nenhum trazer para mim uma esperança, & alcançado, & não tomar vingança de uma culpa, a
quando já de todo ia perdendo atrás dela o sofri- que ele próprio buscou o castigo: Determinei, pelo
mento, foi ter àqueles campos um estrangeiro, que ouvi desta fonte, a saber, se a sua promessa &
dotado de muitas graças da natureza, a quem eu juramento era verdadeiro, & ele a fazia de vontade,
escolhi por verdadeiro amigo d’alma, por fiel porque nem eu o tenho de o ofender, nem dela a
secretário de meus pensamentos, pode tanto com esta conta quero ter confiança, possuindo com
suas razões, que eram boas, que me deu novo alento perigo de ambos o que nenhum de nós tinha
para os sustentar, & procurando ele o meio de seguro em sua firmeza, nem verme alguma hora
minha cura, veio a adoecer d’outro mal a Pastora ante seus olhos senhor do bem que ele antes de
que eu amava, & ofereceu-lhe a ele sua afeição, mim pudera ter gozado.
que aceitou para si, o que até então para outrem Ficou o Peregrino tão confuso, & enlevado com
desejava (não ponho culpa à pouca fé que mostrou, o que o estrangeiro lhe contara, a que cuidando
queixo-me da minha desgraça, que o favoreceu.) ele, que adormecera o despertou, dizendo: Ah
O amigo esqueceu-se de mim pelo que tinha pre- companheiro, que ao melhor tempo me desam-
sente, ela escolheu quem me ajudava por fugir ao paraste, porque no fim de meus males, quando eu
que me devia, ele fez e ofício de amigo, ela mudou- esperava deles consolação, me deixas só com o
-lhe a tenção, que para encontrar meu remédio, se sentimento. Por certo (tornou Lereno,) que o tive
igualaram pensamentos tão desconcertados. Soube bem grande de te ouvir, & fiquei mudo de ver
eu logo o que passara, & ele, ou arrependido do quantas mudanças fez a sorte em teus cuidados,
que fizera, ou envergonhado de ver que eu o sabia, não usando comigo nenhuma em tanto tempo.
se ausentou daquela Aldea, & eu como desesperado Se tu estiveras por o meu conselho, bem podias
a deixei também, & depois de andar alguns dias voltar daqui sem outra reposta, porque ainda que

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nesta diligência mostras fidelidade a teu amigo, seguro. Ai, amigo (disse ele, alçando a cabeça, &
que te ofendeu, fazes agravo conhecido a uma acodindo à carta, que ali tinha) quam certo é um
Pastora, que não amaste menos, antes por quem descuido nas maiores cautelas, & ainda que o meu
deixaste o mesmo amigo, que agora desejas; & assim caiu em tão bom lugar, como é o teu segredo, te
vens a fazer o que a primeira usou contigo, pois houvera de comunicar por confiança, o que se
agora, que podes possuir o que te custou tanto, pões manifestou por desatento. Sabe, que esta noite
esta Pastora a risco de um desengano: E já pode ser depois que adormeceste, me nasceram da minha
que esteja o amigo, com quem queres tomar cantiga novos cuidados, & tendo-o mui grande
satisfação, ocupado em diferentes pensamentos. de os esconder, até de mim próprio, tos vim a
Confesso, que tens razão (replicou o Pastor;) mas descobrir sem meu consentimento; pode ser, que
não terei por gosto, este que tanto desejei; sem seja isto ventura, (que já n’outros começos mo
saber o como meu amigo tomaria a nova dele. Se pareceu,) & que para a alcançar por teu conselho
ele o é [tornou o Peregrino] deve-a estimar muito; tos declarasse a furto da vontade; & assim te direi
pois em algum tempo grangeou esse bem, & se o que passa neste navio. Não quisera eu (lhe disse
pelo contrário, desculpado estás no que fizeres. Oriano) começar a saber as tuas cousas de tão perto,
Repouzemos agora, que é já tarde, imagina no que ainda nem me disseste o teu nome, a tua vida,
que te convém, se de noite acordares, que nos nem a tua navegação. Essa história (tornou ele) é
males, & mudanças, de afeição, o melhor remédio larga, & a nova ocasião não dá lugar ao que lhe
é concertar o desejo com o sofrimento. devia de sentimento; & além disto, mais quero de
ti ânimo, & conselho, para o bem presente, que
mágoa, & compaixão dos males passados. Quero
O DESENGANADO * de ti o que é mais teu gosto (respondeu Oriano,)
& o terei muito grande de ver bom sucesso aos
Terceira Parte de A PRIMAVERA
princípios que te têm alvoraçado; porém não te
fies deles, que com os melhores, que tinha que dar
Discurso II
a fortuna, vim ao mais rigoroso estado, que há em
seus disfavores, & tenho por melhor sorte começar
Nasceu o Sol ao outro dia mui fermoso, acabaram-
bem pelos males, que entrar de súbito em algum
-se as nuvens, encerraram-se os ventos, alegraram-
contentamento, porque então é a perda dele mais
-se os navegantes, acordou Oriano: mas ainda o
custosa, porém conta-me agora o que quiseres. A
companheiro, se afeiçoava ao repouso, como quem
tudo te responderei, como devo (disse o outro,)
vigiara a noite passada, & com o descuido do sono,
mas acodindo ao meu caso: Poi um que me
tinha junto de si a carta que escrevera. Oriano a
aconteceu fora da esperança, me conveio ausentar
começou a ler, & vendo nas primeira regras o que
do lugar em que estava, & metendo-me em uma
continha, o despertou, dizendo. Como dormes
pequena barca com uns pescadores, que iam a seu
amigo, tão pezadamente? Que é isto? Que nem
costumado exercício, naveguei até um porto, em
vês a bonança do tempo, que todos festejam? Nem
o qual foram fazer escala com suas pescarias, estava
guardas estes segredos, que só da noite parece que
nele de vergad’alto este navio, que eu logo soube,
querias confiar? Que posto que em minha fé não
que era de um nobre estrangeiro, que com sua
corram perigo, o lugar por ser de muitos é pouco
família, & casa navegava a certa Ilha, de que era
Senhor, & achando licença em sua brandura, &
* O Pastor Peregrino e Desenganado [...]. Lisboa Occidental:
MDCCXXI (1721), p. 256-260. cortesia, para entrar por passageiro, me apercebi

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para o ser com muita presteza. Fizemos viagem, & inquietem. Mas a maior dúvida, que eu tenho, é de
no primeiro dia que foi de bonança, não tive eu como se há-de dar esta carta, & com que ardil che-
mais delas, que os acidentes de quem estranha a gará à mão de quem tu queres que a veja. Hora te
navegação; os que se seguiram foram tão tempes- digo (respondeu ele) que não cuidei nisto, nem agora
tuosos, & mortais, que eu que d’antes perdera o o quero considerar; mas aproveitar-me da tua re-
sentido na bonança, o tive para também acudir preensão, que me parece acertada; & assim te peço,
aos trabalhos da tormenta; durou esta, o que tu que melhores a carta da maneira, que tu a escreve-
bem sabes à custa do que nela padeceste, & até o ras em tal ocasião. Oriano, tomando a pena, que
tempo em que tu bem entraste nesta embarcação ainda estava perto dele, escreveu a seguinte. [...]
tão falto de vida, não tive outro desejo, mais que
de salvar a tua. Concederam-me as Estrelas este
bem, & depois que te vi sem perigo, & com CORTE NA ALDEIA *
repouso, comecei a cantar de meus males, que este
efeito é dos tristes, posto que o acto pareça obra DIÁLOGO I
de contentes. Ou despertasse o meu canto a quem
dormia, ou me ouvisse quem vigiava; ouvi falar Argumento de toda a obra
bem da minha cantiga, & mulheres, que a louvavam
a ela me favoreciam a mim. Já sabes, como o ânimo Perto da cidade principal da Lusitânia está ũa
dos homens que se criam bem, não tem outro graciosa aldeia que, com igual distância, fica situada
maior, que serem louvados das Damas, & terem à vista do mar Oceano, fresca no Verão, com muitos
em sua opinião lugar de merecimentos. Eu, como favores da natureza, e rica no Estio e Inverno com
não nasci rusticamente, agasalhei no coração o que os fruitos e comodidades que ajudam a passar a
os ouvidos recebiam, & como agradecido à sua vida saborosamente, porque, com a vizinhança dos
brandura, lhe ia pagando com minha liberdade portos do mar, por ũa parte, e, da outra, com a
perguntaram-me, sem falarem comigo muitas comunicação de ũa ribeira que enche os seus vales
cousas, a que eu desejava, & não sabia responder e outeiros de arvoredos e verdura, tem em todos
como convinha. Dei final de o fazer em uma carta, os tempos do ano o que em diferentes lugares
& comecei a me declarar em uma cantiga. Neste costuma buscar a necessidade dos homens. E por
estado me deixaram elas, recolhendo-se a repousar. este respeito foi sempre o sítio escolhido para
Fiquei eu só em companhia deste novo cuidado; desvio da corte e voluntário desterro do tráfego
escrevi estas regras, & em quanto me descontentava dela, dos cortesãos que ali tinham quintas, amigos
delas, & as aprovava adormeci. Dize-me agora o ou heranças, que costumam ser valhacouto dos
que te parecem, & de mim o que farei. Leu Oriano excessivos gastos da cidade.
o papel muito de vagar, & disse ao companheiro: Um Inverno em que a aldeia estava feita corte
Em verdade, que está a carta muito bem escrita; com homens de tanto preço que a podiam fazer
porém, me parece mais triste, que amorosa: & mais em qualquer parte, se juntava a maior deles em
discreta que afeiçoada: & se pela experiência, eu casa de um antiguo morador daquele lugar, que
tenho voto na matéria, ainda me alargara mais, & também o fora em outra idade da casa dos reis,
me doera menos; porque Damas não se querem donde, com a mudança e experiência dos anos,
namoradas com cuidados alheios, & estimam mais,
que à sua vista se percam todas as lembranças, que * Corte na Aldeia [e Noites de Inverno]. Introd., notas e fixação
haver no coração que cativam, algumas que o do texto de J. A. de Carvalho. Lisboa: Ed. Presença, 1992.

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fez eleição dos montes para passar neles os que da velhice. Mas se ainda virdes na mesa algũa cousa
lhe ficavam da vida. Grande acerto de quem colhe de vosso gosto, lançai mão dela, que de mistura
este fruito maduro entre desenganos. Ali, ora em achareis a minha boa vontade.
conversação aprazível, ora em moderado e quieto – Eu sei (disse Píndaro) a que tendes de me fazer
jogo se passava o tempo, se gozavam as noites, se mercê, mas venho ceado e também Solino, a quem
sentiam menos as importunas chuvas e ventos de tive hóspede, cuja conversação me dobrou o gosto
Novembro e se amparavam contra os frios das iguarias.
rigorosos de Janeiro. – Eram elas tão boas (respondeu Solino) que a
Entre outros homens que naquela companhia se mim me davam graça. Porém, o serdes vós tão
achavam eram nela mais custumados, em anoite- miúdo nas cortesias me deu muita pena. E já que
cendo, um Letrado que ali tinha um casal e que já sois tão discreto, e tão meu amigo, daqui adiante
tivera honrados cargos de governo da justiça na emendai-vos nas cerimónias da mesa e adverti ao
cidade, homem prudente, concertado na vida, vosso moço que não acompanhe com os olhos os
doutor na sua profissão e lido nas histórias da bocados dos hóspedes té o estômago, porque
humanidade; um fidalgo mancebo, inclinado ao apostarei que me contou todos os da ceia, e anda
exercício da caça e muito afeiçoado às coisas da tão destro no apartar das brigas que ainda bem
pátria, em cujas histórias estava bem visto; um não desvio um prato do outro quando me dá xaque
estudante de bom engenho, que, entre os seus em ambos e me deixa em casa branca. E não vos
estudos, se empregava algũas vezes nos da poesia; pareça que é isto dizer que venho faminto, que, se
um velho não muito rico, que tinha servido a um assim fora, pode ser que o comprimento do senhor
dos Grandes da corte, em cujo galardão se reparara Leonardo não ficara solto e livre. Antes é fazer-vos
naquele lugar, homem de boa criação, e, além de lembrança que, pois dais tão bem de comer, não
bem entendido, notavelmente engraçado no que tenhais um moço harpia, que descomponha o
dizia e muito natural, de ũa murmuração que ficasse sabor dos manjares.
entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante. – Bem sei (respondeu Píndaro) que, ainda farto,
Ao senhor da casa chamavam Leonardo, ao dou- não haveis de deixar de roer. O meu moço é de ũa
tor, Lívio, ao fidalgo, D. Júlio, ao estudante, Píndaro, destas aldeias vezinhas. Há pouco que me serve;
ao velho, Solino. Fora estes havia outros de quem por isso, e por ser criado de estudante, lhe devíeis
em seus lugares se fará menção, que, assim como perdoar o erro e a mim o remoque. Porém, a vossa
os mais, não eram para enjeitar em ũa conversação condição não se sujeita a respeito, nem a disculpas.
de poucas perfias. – É tão saborosa a murmuração de Solino (disse
~
Ua noite de Novembro, em a qual já o frio não Leonardo) que também na mesa se pode estimar
dava lugar a que a frescura do tempo convidasse como boa iguaria; e, se a eu tivera muitas vezes,
ao sereno, estando ainda Leonardo à mesa, porém dera vida ao apetite que para as outras me falta.
no fim das iguarias. bateram à porta Píndaro e – Se o ela fora (tomou Solino) em mais ocasiões
Solino, aos quais o velho mandou abrir com grande me valera das em que a vis podeis desejar. Mas,
alvoroço e festa, porque a de o buscarem era a que não tratando de vo-la oferecer, nem de a disculpar
mais estimava por sua. Subiram, agasalhou-os com com meu amigo, como ceastes hoje tão tarde e
contentamento e cortesia. Sentaram-se perto da não vieram mais cedo o Doutor e D. Júlio?
mesa, e disse o senhor da casa: – Antes (disse o velho) me mandaram já recado e
– Pesa-me que não viesseis mais cedo, que me não devem tardar. Eu o fiz com a ceia, porque os
pudereis acompanhar neste trabalho tão necessário homens de serviço me não deram lugar senão a

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esta hora; mas ouço que batem à porta e devem escuros, castelos rocheiros cavaleiros namorados,
ser eles. gigantes soberbos, escudeiros discretos e donzelas
A este tempo mandou juntamente alçar a mesa e vagabundas, como tem palavras sonoras, razões
levar a luz à escada. Subiram o Doutor e D. Júlio; concertadas, trocados galantes e períodos que
saudaram-se com muita alegria e, sentados perto levam todo o fôlego, pudera pôr a um canto o
do fogo, disse o velho: Amadis, Palmeirim, Clarimundo e ainda o mais
– Muito deveis ambos a Solino, porque, vindo a pintado de todos os que nesta matéria escreveram.
esta casa com Píndaro, de quem foi convidado na E já estive em o persuadir que se metesse em ũa
ceia, e tendo a minha em estado que se podia empresa semelhante, porém receio que se me
aproveitar de algua coisa dela, vos achou menos e ensoberbeça com a altiveza de seu estilo e despreze
preguntou a causa da tardança. Sinal é este de amor aos amigos.
e da pouca razão com que o temos por desobri- – Não merecia eu, senhor Leonardo, a vós, nem
gado de toda a afeição dos amigos. ao Doutor (disse Píndaro) que tomásseis meus
– Não é Solino tão descuidado do que lhe eu defeitos por matéria de vossa galantaria. Falo como
mereço (tornou D. Júlio) que se esqueça de mim sei, e cada um se estende conforme a roupa com
e de quanto sentirei perder horas suas. E polo que se cobre. Não sou tão filósofo como o Doutor,
interesse das da conversação do Doutor o tivera tão cortesão como vós, nem tão engraçado como
em menos conta se as não desejara. E, além disto, Solino, nem tenho maiores penas que a gaiola.
posso afirmar que está pago da lembrança que teve Porém, se abrisse as asas para compor livros, não
com a diligência que fizemos polo trazer connosco, houveram de ser de patranhas. Por isso, fiai mais
que voltámos pola sua porta e eu tirei ũa pedra à de meus pensamentos.
janela, donde me disseram que ceava com Píndaro; – Nunca o tive de vos ofender (respondeu o Velho)
e cada um dos dous me fez inveja. nem me parece com razão a vossa desconfiança,
– Ah! senhor D. Júlio (respondeu ele) tão grande nem podeis fazer tão pouca conta dos livros de
trovoada de cumprimentos secos não podia deixar cavalarias e dos famosos autores que os escreveram
de lançar pedra. Eu tenho feita a conta e sei que e que mostraram neles a sua boa linguagem com
não posso pagar o que vos devo, além dessa honra toda a perfeição: a graça de tecer e historiar as
e mercê, senão com a humildade com que a todas aventuras, o decoro de tratar as pessoas, a agudeza
reconheço por vossas. Dai-vos por satisfeito de e galantaria das tenções, o pintar as armas, o betar
meus desejos e de pôr aqui ponto nos as cores, o encaminhar e desencontrar os sucessos,
comprimentos, porque não tenho pólvora mais o encarecer a pureza de uns amores, a pena de uns
que para a primeira salva. ciúmes, a firmeza em ũa ausência, e outras muitas
– Já eu me quisera meter em meio (disse o Doutor) coisas que recreiam o animo e afeiçoam e apuram
porque, se vos ateardes em cortesias, não haverá o entendimento. Se vós tendes por desprezo
quem as pague, se não for Píndaro, que tem ũa compor livros de cavalarias, eu vos desengano que
corrente tão arrebatada que não dá vau a nenhuma pertencem mais cousas ao bom autor deles que a
retórica do mundo. um dos letrados, filósofos ou juristas com que
– Agora (arguiu Leonardo) levastes três de um tiro. desejais de vos parecer, porque lhe importa saber
Não me dou por seguro neste lugar, inda que é de a geografia dos reinos e províncias do mundo, para
minha casa. Porém, não tendes razão contra encaminhar por elas a sua história; ter notícia dos
Píndaro, que, cada vez que o ouço, me parece um nomes e coisas que usam naquelas partes donde
livro de cavalarias. Se ele tivera encantamentos faz naturais os cavaleiros; saber estilo de corte para

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as mesuras, gasalhados e cortesias, conforme as encantamentos, fazendo casas e torres de cristal,
pessoas introduzidas; conhecer da justiça, do edifícios, lagos e colunas impossíveis, pirâmides de
torneio e do serão, a ordem, as leis e as gentilezas; alabastro e casas de pedraria, cuja riqueza podia
entender da bastarda e da gineta o que convém empobrecer a Fortuna. E em nossos tempos, na
para pintar o encontro, a queda, o acerto, o desar, Índia Oriental, sabemos que o rei Mogor andou
o brio ou descuido de um cavaleiro, debuxar o muitos anos fabricando ũa casa de esmeraldas, por
cavalo nas cores, concertá-lo nas rédeas, no pisar, cujo respeito se passavam deste Reino à nossa Índia
no arremesso, na fúria, na destreza, nas carreiras, as da Ocidental. E, enfim, morreu sem a acabar. E
chaças e rodeios; e, sobre o conhecimento de todas não há livro de cavalarias em que qualquer
as ciências e disciplinas, também há-de ter algua cavaleiro de um castelo não acabe cousas maiores.
notícia dos nigromantes antigos para os encanta- E, deixando isto, é graça e galantaria comparar
mentos que servem de bordão e valhacouto aos histórias verdadeiras com patranhas despro-
historiadores. [...] porcionadas, que gastam o tempo mal a quem nelas
se ocupa, quando as outras servem de exemplo
– Não é essa a minha opinião (disse Solino) porque para imitar, de lembrança para engrandecer e de
contra o gosto me assombram muito cousas recreação para divertir. A quem não anima ler as
passadas, e andar abrindo sepulturas de gente morta. histórias de seus passados? A quem não move o
E, no que toca à verdade, certo que à conta dos desejo de igualar a fama que lê de suas obras? O
enterrados se escrevem alguas vezes tão grandes governo da paz, a ordem da guerra, o trato dos
mentiras que lhes não levam ventagem os fingi- homens, o comércio das províncias, donde se
mentos de histórias imaginadas. E havendo um conserva, alcança e sabe senão polas histórias
homem de ler o que não é, ou o que sai tão verdadeiras? Porque nelas sabe cada um
caldeado e tão batido da forja dos autores que felicemente polos sucessos alheios o que deve
mudado traz o metal, a cor e a natureza, estou seguir. Donde Marco Túlio chamou à História
melhor com os livros de cavalarias e histórias mestra da vida.
fingidas, que, se não são verdadeiros, não os vendem – Vós, senhor Doutor (disse Solino) achareis isso
por esses; e são tão bem inventados que levam nos vossos cartapácios, mas eu ainda estou contumaz.
após si os olhos e os desejos dos que os lêem. E Primeiramente, nas histórias a que chamam
não estima um autor matar mais dous mil homens verdadeiras, cada um mente segundo lhe convém,
com a pena para fazer valente o seu cavaleiro com ou a quem o informou, ou favoreceu para mentir;
a espada, sem estar receando os ditos das porque se não forem estas tintas, é tudo tão
testemunhas que ficaram da batalha, que por iguais mesturado que não há pano sem nódoa, nem légua
respeitos pende cada ũa para seu cabo. Pois, se é sem mau caminho. No livro fingido contam-se as
caso em que um historiador queira passar adiante, cousas como era bem que fossem e não sucederam,
como Ariosto, não matou mais gente a peste e, assim, são mais aperfeiçoadas. Descreve-se o
grande em Lisboa que Rodamonte nos muros de cavaleiro como era bem que os houvesse, as damas
Paris. quão castas, os reis quão justos, os amores quão
– Essa é ũa das razões por que eu os reprovo, verdadeiros, os extremos quão grandes, as leis, as
(tomou o Doutor), porque a fábula é ũa cousa falsa, cortesias, o trato tão conforme com a razão. E,
que podia, contudo, ser verdadeira e acontecer assim, não lereis livro em o qual se não destruam
assim como se fingiu. Porém, a isto não dão lugar soberbos, favoreçam humildes, amparem fracos,
os livros de cavalarias com esses excessos e outros sirvam donzelas, se cumpram palavras, guardem

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juramentos e satisfaçam boas obras. Vereis que as companheiros e de outros muitos soldados, lhe
damas andam polas estradas sem haver quem as ampararam a vida, recolhendo-o com muita honra
ofenda, seguras na sua virtude própria e na cortesia e não poucas feridas. E reprendendo-o os amigos
dos cavaleiros andantes. E, quanto ao retrato e daquela temeridade, respondeu:Ah! deixai-me, que
exemplo da vida, melhor se colhe no que um bom não fiz a metade do que cada noite ledes de qual-
entendimento traçou e seguiu com muito tempo quer cavaleiro do nosso livro. E ele dali adiante o
de estudo que no sucesso que, às vezes, se alcançou foi mui valeroso.
por mão da ventura, sem a diligência e engenho Muito festejaram todos o conto, e logo prosseguiu
meterem nenhum cabedal. Não digo que os livros o Doutor:
tenham excessos desatinados que não sejam – Tão bem fingidas podem ser as histórias que
semelhantes à verdade, nem os encantamentos tão merecem mais louvor que as verdadeiras; mas há
escuros e disconformes que não tenham algua poucas que o sejam; que a fábula bem escrita (como
maneira de enganar o juízo. Porém, os livros bem diz Santo Ambrósio), ainda que não tenha força
fingidos, como verdadeiros obrigam. Um curioso de verdade, tem ũa ordem de razão, em que se
em Itália (segundo um autor de crédito conta) podem manifestar as cousas verdadeiras.
estando com sua mulher ao fogo lendo o Ariosto, Xenofonte, querendo pintar ũa república perfeita
prantearam a morte de Zerbino com tanto e regimento político, por modo de história, fingiu
sentimento que lhe acudiu a vizinhança a saber o o governo de Ciro, rei dos persas; D. António de
que era. E, no que toca ao exemplo, um capitão Guevara, em nome de um emperador romano,
valeroso houve em Portugal, que o não teve melhor escreveu o que ele queria dizer em Espanha; e
o Império Romano, que, com a imitação de um outros que ainda em modo mais estranho
cavaleiro fingido, foi o maior de seus tempos, ensinaram aos homens, como Esopo nas suas
imitando as virtudes que dele se escreveram. Muitas fábulas e Lúcio Apuleio no seu Asno de Ouro; e
donzelas guardaram extremos de firmeza e fideli- todos os livros que em seu género são bons se
dade costumadas a ler outros semelhantes nos livros podem chamar perfeitos. Resta agora que o que
de cavalarias. Na milícia da Índia, tendo um escreve história seja verdadeiro e não terá Solino
Capitão nosso cercado ũa cidade de inimigos, de que o reprender nela. O que compõe fábulas
certos soldados camaradas, que alvergavam juntos, seja verosímil, e não terei eu razão de o reprovar.
traziam entre as armas um livro de cavalarias, com O que trata de ciência, alegue razões. O que fala
que passavam o tempo. Um deles, que sabia menos de artes, experiência. E o que quer ensinar
que os mais daquela leitura, tinha tudo o que ouvia princípios, mostre autoridade. E posto que eu tinha
ler por verdadeiro (e assim há alguns inocentes muitas que alegar em favor da vossa opinião, senhor
que cuidam que se não pode mentir em letra D. Júlio, vós estais no caso, e todos os mais, que a
redonda); os outros, ajudando a sua simpreza, lhe história verdadeira apascenta os doutos, adelgaça
diziam que assim era. Veio ocasião de um assalto os grosseiros, encaminha os moços, insina os
em que o bom soldado, invejoso e animado do mancebos, recreia os velhos, anima aos baixos,
que ouvia ler, lhe pareceu ensejo de mostrar seu sustenta os bons, castiga os maus, ressuscita aos
valor e fazer ũa cavalaria de que ficasse memória; mortos, e a todos dá fruito a sua lição. E por que
e, assim, se meteu entre os contrários com tanta esta não seja mais comprida, diga Píndaro agora a
fúria e os começou a ferir tão rijamente com a sua opinião.
espada que em pouco espaço se empenhou de – Apostarei eu (disse Solino), que, se a Píndaro lhe
sorte que, com muito trabalho e perigo dos armarem com poesia levantada sobre os bons

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conceitos e versos, que, com serem amorosos, sejam – Se eu não dormira tão poucas horas da passada
arrogantes, que o tomarão como pássaro em visco. (disse o Doutor) ainda houvera de prosseguir
– Para isso (disse o Doutor) arredar-lhe as ocasiões, adiante e responder a isso, mas, com vossa licença,
e vá com declaração que não tratamos de poesia. me vou recolher e amanhã acudirei mais cedo.
– Essa condição (acudiu Píndaro) logo ao princípio – Acompanhemos ao Doutor (disse o Fidalgo).
ficou declarada; que, como exceptuastes Livros E levantando-se ele, se despediram todos com
Divinos, nesse número devem estar os dos poetas muita cortesia, deixando ao senhor da casa
que mereceram este nome; e o que eles antiga- magoado de se acabar tão depressa a conversação,
mente tiveram, e ainda agora lhe dão os latinos, que quem sabe estimar a que é tão boa, tem
assim o deixa entender. E Platão, quando deles sentimento das horas que dela perde.
escreve, lhes chama divinos intérpretes dos deuses,
possuídos de espíritos celestes, donde Marco Túlio
tirou os louvores com que os trata. Orígenes afirma DIÁLOGO III
que a poesia é ũa virtude espiritual, que inspira
em os poetas e lhes enche o animo e o entendi- Da maneira de escrever e da diferença das
mento de ũa divina força. Santo Augostinho lhes cartas missivas
chama teólogos para cantarem os louvores divinos.
Diziam os filósofos antigos que, se os deuses [...]
falassem, seria em verso, trazendo exemplo do – E aonde deixais (disse D. Júlio) as cartas amatórias
oráculo de Apolo e das Sibilas. Cassiodoro diz que ou namoradas? que se na vossa idade não têm lugar,
a poesia tomou princípio da Divina Escritura. De parece que o mereciam neste discurso.
maneira que, por autoridade de tão grandes varões, – Bem sei eu (tornou Solino) quem as tomara no
nunca os livros de poesia podem vir em primeiro, mas o senhor Leonardo já não joga com
competência com os de que até’gora tratastes, que essas cartas.
doutro modo já estivera concluída a diferença. – Não me esquecia de todo delas (tornou ele),
– O que eu vejo (tornou D. Júlio) que, ainda que mas deixo-as para que no fim das mais sejam
o Doutor vos cerrava a porta, que metido de ilharga melhor recebidas, e para prosseguir a matéria quem
dissestes tudo o que cumpria ao vosso intento por
agora as puder apurar.
junto, e, quanto para mim, estais declarado; e com
– As do primeiro género (disse o Doutor) me
o desejo de ouvir a opinião do Doutor, não digo
parecem cartas muito secas, que é matéria estéril
o mais que me parece.
para que empregueis nela sem fruito o vosso
– Ora, (respondeu ele) não quero que a essa conta
entendimento.
fique o meu voto às escuras; e digo, não falando
– Antes (disse Leonardo), como essas foram as
em poesia, que não escolho lição de historiadores
primeiras, e delas nasceram as leis e as regras para
verdadeiros, nem tenho por melhor a dos fingidos,
outras, será razão que debaixo deste género
porque uns servem de conservar a memória, os
tratemos das mais, repartindo o pouco que eu
outros, de enganar o entendimento. E serão
melhores os livros que deleitem a memória e a soube dizer por os lugares de cada ũa. E, assim, me
vontade e apurem e levantem o entendimento, parece que, como a carta que escrevemos ao amigo
como os de recreação que, com algũa engenhosa sobre seu negócio, ao criado sobre as cousas da
novidade, tratam de matérias políticas e engraçadas: casa, e o mercador ao outro sobre seus tratos e
de corte, de aldeia e de qualquer sujeito aprazível. mercancia, é um aviso e ũa relação que lhe não
[...] podemos fazer em presença, fazendo-o por meio

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de ũa carta, devemos usar nela o que na prática tudo; os segundos, menos; os terceiros, escusados.
costumamos que é brevidade sem enfeite, clareza Para dizer ou escrever um homem douto, ũa mulher
sem rodeios e propriedade sem metáforas nem fermosa, um cavalo ligeiro, ũa árvore alta, um caminho
translações. comprido, um peito forte, são atributos necessários
– E quando (disse o Doutor) seremos breves em para declarar o que queremos dizer; porque há
ũa carta? homem que não é douto, mulher que é feia, e os
– Quando (respondeu ele) de tal maneira, e com mais. Os de propriedade como ferro frio, relva verde,
tal artifício a escrevermos, que se entendam dela sol claro, calma ardente, areia seca, pedra dura, estes são
mais cousas do que tem de palavras. pouco necessários nas cartas e somente por com-
– E como pode ser? (tornou ele). paração ou em adajos se devem usar nelas, como
– Por meio dos relativos e subsequentes (disse dizendo, é duro como pedra, ou é dar em pedra dura ou
Leonardo) que, sem nomear as palavras, as repetem; é malhar em ferro frio. Os de elegância e ornamento
e por ordem das sentenças e adajos, que, sem tenho eu que se hão-de degradar das cartas missivas
entender as cousas, as declaram; e nisto se adiantam para fora do termo delas, como agora firme sofri-
muito as cartas da prática familiar, que se escrevem mento, incansável deligência, solícito desejo, cuidadoso
de cuidado, e têm mais tempo de se furtarem receio, importuna lembrança, desusada brandura e ou-
palavras para se subentenderem razões. tros que têm juiz de seu foro. Assim que não digo
– E que cousa é enfeite ou afeitação? (perguntou que faltem nas cartas epítetos necessários, mas que
Solino). se escusem os sobejos, nem se andem granjeando
– É (disse ele) o cuidado sobejo de enfeitar as as palavras para fazerem assento em o cabo da sen-
palavras por elegância, ou por via de epítetos, ou tença, que será ir contra a brevidade, sem enfeite
de escolha de lugar para as sílabas fazerem melhor ou afeitação.
som aos ouvidos. E, em favor desta opinião, dezia – Parecia-me a mim (disse Solino) que a carta
um homem insigne deste Reino e que teve nele breve seria a de menos regras e que não estava a
os melhores lugares da república eclesiástica e cousa nos epítetos serem próprios ou necessários.
~
secular, que a carta e a mulher muito enfeitadas, – Ua carta (prosseguiu ele) pode ser breve e levar
em certo modo eram desonestas; e eu antes seguira escritas muitas páginas de papel, porque pode tratar
este voto que o de alguns retóricos que deram à de tantos negóceos ou cousas que as ocupem, mas
carta missiva cinco partes de oração, convém a estarão relatadas de modo que seja a leitura
saber: saudação, exórdio, narração, petição e conclusão; comprida e a cana breve.
e, se houvéssemos de seguir o seu estilo, – O segundo ponto (perguntou Píndaro), que é
mudaríamos de todo o das cartas. clareza sem rodeios, me parece a mim que fica
– Nunca retóricos (disse o Estudante) souberam declarado nessa primeira pane, pois sendo breve a
escrever canas, se as sujeitaram às leis da oração. carta, e não tendo enfeite nas palavras, será clara e
Mas parece que o senhor Leonardo dá a entender sem rodeios?
que na carta se não devem usar epítetos ou – Não estais no caso (tornou ele), que posto que a
adjectivos por evitar o enfeite e sobeja elegância clareza é parte da brevidade, a clareza é das razões
dela, e eu tenho que sem eles se não pode escrever. e a brevidade das palavras. E, assim, pode a carta
– Os epítetos (prosseguiu Leonardo) ou servem ser breve, mas confusa, e clara sendo comprida,
para descrição e declaração das cousas, ou para que muitos, para dizerem cousas que têm estrada
propriedade, ou para ornamento e enfeite delas. coimbrã e caminho direito, buscam rodeios e
Os primeiros são necessários nas cartas como em atalhos em que se perdem, confundindo o que

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querem dizer. Em ũa minha doença me escreveu recem nascidas com a mesma língua, que como
um amigo e dizia: Disseram-me que a saúde de vossa adajos andam pegadas a ela, se devem trazer, quan-
mercê corria perigo na inconveniência de médicos do forem tais, nas cartas missivas do mesmo modo
discrepantes no remédio dos males dessa doença. E fez que na prática se costumam. Dizemos dos nomes:
estas trocas aonde podia dizer: Soube que os médicos folha de espada, lume de espelho, veia de água, braço de
não se conformavam na cura dos vossos males, que na mar, língua de fogo, lanço de muro, faixa de ferro, e ou-
dúvida deles corria risco a vossa saúde. Outro me tras semelhantes; e nos verbos: lançar o cavalo, fazer
escreveu há muitos dias: Se vossa mercê não está à capa, quebrar a palavra, cospir o pelouro, arrepiar a
ausente das lembranças que suas promessas me carreira, e outras muitas. E, além destas, tão usadas
asseguravam de haver de ter muitas deste seu cativo. e naturais que servem de propriedade à língua por-
Havendo de dizer: Se vos não esquece que me tuguesa, há outras nascidas de provérbios ou adajos,
prometestes de ter lembrança de mim. E, porque ainda que têm o mesmo lugar e antiguidade, como são
temos lugar de tornar aos particulares das disposi- furtar o corpo, ir vento em popa, nadar contra a água,
ções das razões, passando ao terceiro ponto, que é ficar em seco, repicar em salvo, tirar barro à parede, etc. E
propriedade (a) sem metáforas ou translações. quanto a carta tiver mais destas, será mais breve e
– A propiedade (disse o Doutor) era matéria da cortesã, pois, como primeiro disse, por este modo
noite passada quando falaste das letras e razões em se entendem da carta mais cousas do que tem es-
seu lugar, sem barbaria nem impropriedade no crito de palavras. Pelo contrário usando, em lugar
escrever, e, como isto é parte do exterior da carta, destas, outras humildes, populares ou inovadas, será
já hoje não tem dia. vício na propriedade da carta; como se nos nomes
– A propriedade que vós dizeis (acudiu Leonar- disséssemos: um feixe de cuidados, um mar de enco-
do) é exterior, mas muito diferente a de que eu mendas, um moio de queixumes, um golpe de razões; e
trato e não pouco importante ao falar e escrever, nos verbos, como: enfeitar o desejo, tropeçar em cuida-
que é a propriedade das palavras na sua própria dos, navegar em desconfiança, e outras muitas. Esta é
significação, sem serem emprestadas por via de a propriedade de que trato e a que me parece que
translações para outros lugares, que é termo que se deve usar no escrever das cartas missivas, por-
argui pobreza de linguagem. E, por que fique mais que não sofre o estilo delas o que em a prática, ou
declarado, sabei que dizemos em português, fa- em outro género de escritura, não somente se
lando propriamente dos nomes: Bando de aves, car- permite, mas muitas vezes se deseja.
dume de peixes, rebanho de ovelhas, fato de cabras, vara – Espero (disse D. Júlio) que deis algũa limitação,
de porcos, alcateia de lobos, tropel de cavalos, cáfila de ou declareis a linguagem que se deve usar neste
camelos, récua de cavalgaduras, manga de arcabuzeiros, estilo das cartas; porque encontro muitas muito
mó ou roda de homens; e se, trocando isto, disséra- mal escritas, cujos erros, a meu ver, nascem de os
mos: Um cardume de aves, ou ũa alcateia de ovelhas, ou homens se cansarem muito em quererem parecer
um fato de porcos, seria impropriedade e descon- singulares.
certo. Dizemos também nos verbos: Chiar de aves, – Posto que isso pertence primeiro ao falar que
balar de gado, grunhir de porcos, ladrar de cães, rin- ao escrever (respondeu Leonardo), pois, como já
char de cavalos, bramir de leões, empolar de mares, disse, devemos escrever como praticamos, as
encapelar de ondas, assoprar de ventos, etc. E se dis- palavras da carta hão-de ser vulgares, e não já
séssemos chiar de porcos, rinchar de leões e grunhir populares, nem esquisitas: vulgares de modo que
de cavalos, seria o mesmo erro. E, porque há me- todos as entendam, e, ao menos, que a quem se
táforas e translações tão usadas e próprias que pa- escrevem não sejam perigrinas; e não já populares,

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que sejam termos humildes, palavras baixas que a e graça de as dizer, o que eu comparo a ũa mesma
cortesia não recebe, e que tão pouco, em lugar cousa escrita de boa ou roim letra, que a boa
dos adajos e sentenças, tenham anexins. Também afermoseia e dá ser, cor e graça ao que ledes, e a
se deve fugir ao termo esquisito de palavras roim disconcerta, empeça e afeia as razões, sendo
alatinadas, ou acarretadas de outras línguas todas ũas. E não faltarão muito perto exemplos
estranhas, que sempre têm o sabor da sua origem. desta verdade. [...]
– Assim na linguagem, como em tudo (acudiu – Essa divisão parece escusada, (disse Leonardo)
Feliciano), ficávamos satisfeitos se de aqueles três porque a graça não se aprende, nem se pode
géneros, em que o senhor Leonardo dividiu as car- alcançar por arte, pois é mero dom da natureza.
tas, dera alguns exemplos que nos alumiaram; por- – Todas as cousas dela (tornou o Doutor) se aper-
que nem as regras sem eles ensinam de todo, nem feiçoam e melhoram com a arte; [...]
se pode perder a lição de tão bom estilo. O que eu – Muito contrária me parece essa lição (disse D.
não pedira se foram dos vinte géneros de cartas Júlio) à polícia da corte, aonde é regra que o
em que um retórico as dividiu, que, por querer homem há-de falar com a língua e ter quieto o
dar leis e partes a cada ũa, as confundiu todas. corpo e as mãos.
– Em tudo (tornou ele) vos quisera satisfazer. – Eu concertarei essa regra com as minhas,
Porém, cartas mais se hão-de escrever em ocasião (replicou o Doutor) que o homem no falar nem
do que trazerem-se por exemplos, que é o porque há-de parecer estátua, nem bonifrate. E logo vereis
eu lhe não dera regra certa, nem das muitas que que o que quero dizer é o mesmo em que vos
há bem escritas se pode tirar; que esse autor que quereis antecipar. O primeiro instrumento da
vós dizeis, lhe assinou vinte géneros, achará fora prática é a voz; e, para ser engraçada no falar, há-de
deles infinitas cartas bem melhor escritas que as ter estas propriedades: ser clara, branda, cheia e
com que os ele quer autorizar. Porém, com o compassada, porque a voz escura confunde as
pressuposto de não dar preceitos: as cartas do palavras; a áspera e seca tira-lhe a suavidade; e muito
primeiro género familiares, domésticas, civis e mercantis, delgada e feminina faz imprópria a acção do que
respeitam tanto a brevidade que não podem os fala; a muito apressada empeça e revolve as razões
retóricos dividi-las em partes, se não forem nas da que per si podem ser muito boas. Não trato das
oração. [...] que a natureza inabilitou para esta perfeição, como
é a voz do gago, do cicioso e do rústico grosseiro,
mas na do cortesão tomara eu estes atributos,
DIÁLOGO VIII porque há alguns que falam com a voz tão metida
por dentro que deixam as palavras para si e os
Dos movimentos e decoro no praticar ouvintes às escuras, que lhes é necessário estar
espreitando o que lhes querem dizer e outros que
Foi-se o Prior da casa de Leonardo em aparecendo pronunciam com tanta aspereza que espinham as
o dia e nela em vindo a noite se ajuntaram os orelhas dos que escutam e outros que falam tão
amigos, sentindo grandemente a falta daquele que apressadamente que parecem que levam esporas
os deixara. [...] na língua.
– Entre vozes (disse Solino) também eu hei-de
– Parte é o falar bem (acudiu D. Júlio) que leva soltar a minha e no que é a voz cheia, que dizeis,
tudo após si. E não consiste este bem só nas razões quisera saber a diferença, porque eu tenho que
discretas e palavras escolhidas, senão no bom modo ainda é pior a muito grossa que a feminina, porque

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há homem que, quando fala, mais parece tom de outras muitas, porque sabemos que todas as nações
baixão que espírito de voz. E igualmente aborrece orientais naturalmente oprimem a voz na garganta
ver um homem com um rosto com ũa pineira, quando falam, como os indianos, persas, assírios e
muito versudo da barba e sobrancelhas, sair com caldeus; e todos os mediterrâneos referem as
ũa voz de frauta muito esprimida. palavras aos padares da língua, como fazem os
– O meio (respondeu o Doutor) em todas as causas gregos, frígios e asiáticos. E todos os ocidentais,
é a perfeição delas. E, se estais bem lembrado, como os franceses, italianos e espanhóis, mastigam
também deixei de fora a voz grosseira, como a a palavra entre os dentes e as pronunciam na ponta
quem a natureza privou da graça no falar. Depois da língua, posto que em alguns lugares,
da voz, os olhos dão muito espírito às razões, conquistados outros tempos dos africanos, ficaram
porque, como eles são as janelas da alma, por eles usos e palavras que ainda obr igam a sua
se comunica vida às palavras. E, assim, hão-de ser pronunciação, mas os que estão mais isentos dela
claros, alegres e movíveis, porque os muito intensos são os portugueses, como aqui na primeira noite
e estendidos entristecem, os muito apertados e da nossa conversação se tocou. Além destas partes
franzidos, movem o desprezo, os muito abertos, do rosto, tem o movimento do corpo o seu lugar,
pasmados e saídos para fora, fazem temor. E posto que pode parecer airoso quando fala, mostrando-
que os olhos, por risonhos, nunca perdem a graça, -se grave, composto ou inclinado segundo as
parece que nas práticas graves e de importância matérias sobre que fala nos contos, histórias, graças
não hão-de ser muito chucalheiros. ou galantarias, não representando o que diz com
– Nisso tendes vós muita razão (disse D. Júlio), meneios de comediante, nem com modéstia e
que há homens que dão olhado ao que falam. compostura sobeja, mas com ũa boa sombra e um
Porém, não vos esqueçais das sobrancelhas. termo no persuadir assossegado; no relatar, mais
– Também a acção do falar toma muito delas ligeiro; no arguir, esperto; no disculpar ou
(tornou o Doutor), porque, franzidas, fazem defender-se, mui brando; nem fazer badalos dos
carranca e mostram que fala um homem com pés quando fala assentado, bolindo sempre, nem
menencoria; baixas, representam tristeza ou estar com os olhos neles quando passeia. Sobre
vergonha; muito arqueadas significam espanto, todos os mais gestos ou acções, que tenho tocado
levantadas, alegria. E não menos convém a se ajuda a prática do movimento das mãos, que
composição da barba, que, fincada nos peitos, há-de ser com um leve ar e compostura, com que
mostra desconfiança ou perfia, e posta no ar, o discreto favorece as palavras que diz, não falando
vanglória. E o pescoço, que nem se há-de ter tão com ambas elas, nem chegando com algũa perto
levantado que faça soberba nas palavras, nem tão da vista dos ouvintes. E, guardando estas e outras
baixo que pareça que não pode com a cabeça, a advertências semelhantes, pode fazer um homem
qual não há-de estar tão firme que pareça que a ũa agradável gentileza no praticar, emendando
espetaram nele, nem se há-de quebrar para todas alguas faltas da natureza, ou favorecendo com o
as partes como grimpa. Da mesma maneira a boca cuidado as graças que ela lhe dotou, não tratando
há-de ser quieta quando fala, sem estar mordendo dos incuráveis, a que já não possam valer estes
os beiços, nem trocendo-se, nem inchando-se com remédios, mas dos que à falta deles, e com o largo
as palavras; nem com o riso se há-de mostrar tão discurso de maus custumes, se vieram a fazer
descuidada que as entorne polos cantos, nem tão incuráveis.
apertada que ofenda a boa pronunciação e graça – Parece que dais a entender, senhor Doutor (disse
delas no que vai mais à língua portuguesa que a Píndaro), que há mais alguas advertências que

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podem ser de importância nesta matéria e, para a quando um entendeis-me? estais comigo? digo bem?
tratar de fundamento, não é razão que fiquem de que vos parece? não sei se me declaro? De maneira
fora. que, para encarecerem o seu aviso, fazem dos outros
– Para essas e para o mais que tenho dito néscios. E, com este, caem logo no terceiro, que é
(respondeu ele), nomearei alguns vícios que são deter-se muito em cada palavra, soltando-as por
contra o bom termo da prática, que reprovados compasso, dilatando ũa da outra por que se não
nela, acreditarão as minhas opiniões, a que eu não peguem. E é vício que fará ser aborrecível a todo
posso, nem quero dar o nome de preceitos, posto o mundo a quem o tem, e até à mesma discrição
que são fundadas em os melhores dos que desta fará importuna este mau uso dela. E mais é muito
matéria escreveram: certo andar anexo esta boa parte a ũa fala de doente
muito mole, que tudo junto vem a ser um xarope
O primeiro é escutar-se um homem a si próprio quando de sensaboria que não há quem o leve. O quarto
fala, por se contentar do que diz. não entendo bem, porque não sei ao que chama
O segundo, repetir outra vez o que tem dito, com os bordão o Doutor.
olhos nos ouvintes para que lho gabem. – Sabei (disse ele) que os arrimos a que se pega ou
O terceiro, deter-se tanto nas palavras como que as vai encosta o que fala, quando as palavras lhe cansam,
pesando, e compondo para as dizer. se chamam bordões e são de duas maneiras: uns
O quarto, ir-se arrimando a bordões para que lhe acudam que pertencem, ou para melhor dizer, que são
em tanto as palavras. impertinências nas acções de falar, e outros nas
O quinto, ir à mão ao que quer responder, por querer palavras. Os primeiros são mais culpáveis que os
falar tudo. segundos, porque há um que não sabe praticar
O seisto, bracejar muito, e dar grandes risadas a seus convosco sem vos estar desabotoando ou limpando
próprios ditos. o cotão, e arrancando a frisa do vestido; outro, que
O sétimo, borrifar as palavras com a humidade da boca, a cada palavra vos pega no cinto ou travando-vos
por falar com veemência. do braço vos molesta; e ainda há algum tão
[...] desatinado que vos dá com a mão nos peitos a
cada cousa que diz; e outros que se deixam de
– Desses disse Horácio (acudiu Píndaro) que entender com quem praticam, o hão consigo, não
falavam empolas; e está muito bem o nome à estando quietos com as mãos, esgravatando os
inchação das suas palavras. Mas o segundo vício, dentes ou bulindo nos narizes e falando, tirando
que é da repetição, parece menor erro, porque o cabelos da barba e mordendo as unhas, e outros
que é bem dito se pode repetir, conforme ao que vícios semelhantes que servem como uns espaços
disse o poeta; e só será a culpa quando o dito não e recramos a que lhe acodem as palavras. Os
for acertado. segundos são metidos na mesma prática com alguns
– Essa estimação não há-de ser feita por seu dono, que em cada palavra dela metem um diz, assim
(respondeu Solino) nem ele pode pôr o preço a que digo, tal e qual, sim senhor, vai, vem, então, senão
suas palavras, cuidando que tala ouro. Em obras quando, espere vossa mercê, assim que, senhor, estais
alheias, referidas por outrem, tem lugar essa comigo, e outros muitos, fora os que vós apontastes
desculpa e não se podem servir dela os que, com no vício da repetição, que são bordões da primeira
os olhos e com a repetição do que disseram, estão classe.
puxando por vós a que lhas gabeis e vos contenteis – Certo (disse Feliciano) que tem muita razão o
à força da sua razão, e metem de quando em Doutor em dizer que este vício e os dous que se

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seguem nacem do descustume e falta da doutrina em pedaços, como se a polícia pudera sofrer o
cortesã, porque eu alcancei ainda por condiscípulo desassossego e inquietação da sua esgrima. As
um estudante que, na opinião dos mais, não era risadas, além de arguirem falta de entendimento,
tido por o que falava pior, que, por o grande ódio são mais impertinentes quando um homem festeja
que tinha aos bordões, inventou um modo seus próprios ditos, que, para terem galantaria, ele,
excelente para os desterrar da conversação dos que os diz, há-de ficar sesudo, e os que o ouvem,
amigos com que tratava de ordinário, e foi um risonhos. E, assim, os engraçados de nossos tempos
jogo de não menor engenho que utilidade, e polo que conhecemos e outros, que deixaram esse
exercício dele se perdeu até a semente dos bordões nome, sabiam festejar moderadamente as graças
entre aqueles amigos. alheias e dissimular o riso nas suas, fazendo menos
– Não vos esqueçam (disse Leonardo) os termos caso delas.
de tão bom jogo, que já pode ser que ocupemos – Duas cousas (disse D. Júlio) se me oferecem para
com ele ua noite mais bem empregada do que o vos preguntar nessa matéria, e seja a primeira; que
remédio será necessário para os presentes, porque moderação se há-de usar no riso com que um
não são dos homens limitados que se apegam a homem festeja o conto ou graça do que fala diante
estes encostos. E, se quereis conhecê-los, ouvi-lhe dele?
contar ũa história e meter-vos-ão nela mais bordões – Os homens (respondeu o Doutor) não hão-de
do que tem de palavras. ser tão severos que nunca riam; como Catão
– O quinto vício (prosseguiu o Doutor) é Censorino, Anaxágoras e Sócrates, nem como
incomportável; porque há homens tão sôfregos de Marco Crasso, que riu ũa só vez na vida, pois é
falarem tudo que atalham as palavras ao que lhes definição e diferença do homem ser animal
começa a responder, querendo antecipar com o racional, e a sua própria paixão é ser risível. Porém,
seu entendimento a tenção alheia. não menos se há-de guardar de ser desentoado
– Esses tais (disse Solino) falam a duas mãos, porque nas risadas, que, para nisto haver ũa moderação
querem que vá tudo por eles. E como me acho política, lhe buscaram os antigos muitas diferenças.
entre esses, por não pedir por mercê que me ouçam E, deixando o riso jónio, megárico, sardónio e
ũa palavra, deixo o feito sem parte, e, como ficam sinclúsio, dos quais falam tantos outros gregos e
falando à reveria, desfaço as suas sentenças com ũa latinos, colhida deles a melhor doutrina, não há-de
bochecha de água. rir o homem com a boca aberta, que dá grande
– Esses faladores são como cigarras, que atroam e tom ao riso, nem com os beiços apertados, como
não deleitam (disse D. Júlio) e é sentença mui costumam os que têm cieiro neles, nem somente
aprovada entre cortesãos que três cousas não há-de mostrando os dentes, que a estes chamavam os
haver entre eles demasiadas: sobeja parola, comprida latinos riso de cavalgaduras; nem com um riso mole
perfia e grande risada; porque quem muito fala dele, e afeminado, como era o jónio, mas com ũa boa
dana (como diz o rifão) e com quem aperfia, não sombra e graça na boca e no ar do rosto, com que
disputes, e onde há muito riso há pouso siso, que todos se mostre agradecido do que escuta. E se esta
estes pertencem à conversação. resposta vos satisfaz, bem podeis continuar com a
– Essa terceira parte (prosseguiu o Doutor) é do segunda pregunta.
sexto vício, que é bracejar quando fala festejar com [...]
risadas seus próprios ditos o que se quer vender – Eu me dou por satisfeito (disse o Fidalgo) e, já
por discreto. E, assim, vereis alguns que falam às agora, podereis passar ao sétimo erro, em que há
pancadas e, se acharem um púlpito diante, o farão pouco que discorrer, segundo me parece, que não

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é mais que um descuido e desatento dos que, que poderão levar grande tempo, o cortesão,
mostrando o fervor do animo com que falam, quando arguir para graça, há-de considerar três
borrifam com humidade o que dizem e, às vezes, cousas: o que fala, com quem e diante de quem.
a quem os escuta. O primeiro, por fugir de matéria em que o presente
– Não cuido eu (disse Feliciano) que são esses os desconfie; o segundo, por não motejar com quem
de que trata o provérbio, que falam fontes de prata. não saiba pesar e conhecer as galantarias; o terceiro,
– Antes (tornou Solino) lhes chamara eu homens que por não falar graças de que algum dos ouvintes se
falam fresco, que nem ũa manhã de Abril deixa tão envergonhe, porque de outro modo, sendo a graça
orvalhado um campo de boninas, como eles a roda pesada, perderia o nome. Não falo do murmurar
dos que os estão ouvindo. E para estas imundícias de ausentes, que em todo o modo me parece
houvera de ter à discrição um almotacé da limpeza. culpável. E bem podiam servir para lei destas
– Desterrados, pois (continuou o Doutor) da galantarias as vossas, que a todos agradam, e que,
conversação estes sete inimigos dela, parecerá um se aos ouvintes não fazem fastio, tão pouco aos
homem cortesão aos que os escutarem, falando ofendidos causam queixume.
agradavelmente e guardando nas palavras as leis – Lembra-me (disse Píndaro) que no quinto vício
que agora lhe der o senhor Leonardo, que, posto condenastes o querer um homem falar tudo, e não
que a verdadeira discrição seja natural, nenhum destes regra aos que falam pouco.
dos dons da natureza deixa de receber benefício – Seria (respondeu o Doutor) por me conformar
da arte, da continuação e dos costumes. com ũa sentença, que diz: aos que pouco falam pousas
– Muito depressa vos quereis desobr igar leis lhes bastam. Além disso tègora não tratei dos
(respondeu Solino) e eu ainda esperava que louvores do silêncio, nem da verdade daquele dito:
passáveis pola minha porta, dando algum toque assás sabe o que não sabe, se calar sabe. E o outro: que
na murmuração, como destes no riso, que também o néssio, calando, se parece com o discreto. Falo somente
estes preceitos são fora das palavras. da maneira de praticar entre os amigos, aonde as
– O riso, sim (lhe tornou ele), mas não o murmurar palavras não têm mais que estas duas medidas, que
que é culpa que não se atribui à prática, posto que são falar a tempo e a propósito: a tempo, porque
alguns digam que sem esse sal a mais discreta é nem em todos se pode dizer tudo o que é bem
pouco saborosa e é, porque há muitas cousas que dito. Nas comidas se há-de fugir falar em coisas
não queremos dizer e folgamos em extremo de as que enojem o estômago e ofendam ao gosto, ainda
ouvir. Assim que o que murmura ordinariamente que em outros lugares podem dar muito. Entre
agrada a gostos alheios de gente ociosa, com risco enojados não dizer g raças ou contos que
próprio. Porém, por fazer as pazes convosco, desautorizem a tristeza e provoquem o riso. Entre
entrarei em contendas de que estou desobrigado, enfermos não contar histórias que causem temor
tocando na murmuração engraçada. E, para lhe ou desconfiança em seus males. Entre eclesiásticos
dar lugar, a meterei no meio de ũa sentença guardar-se de cousas que saibam a lascívia e
excelente que diz que dos animais bravos a pior profanidade. A propósito: porque há muitos que
mordedura é a do praguento, e dos mansos a do lisonjeiro. se desviam do princípio da prática, de maneira
O praguejar é maldade, o lisonjear, treição; o motejar que do primeiro salto vão parar a Flandres; outros,
levemente, galantaria. O discreto nem há-de morder, que em tudo querem meter ũa história que sabem,
nem lamber, porém, picar levemente e com arte é contar ua nova que lhes veio, um dito que ouviram,
graça da conversação Para o que, deixando um sonho que sonharam; e, pela deleitação que
autoridades, exemplos, preceitos e cousas infinitas tomam de contar cousas próprias, perdem o decoro

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com que hão-de escutar as alheias e o tento do DIÁLOGO XI
que eles mesmo respondem. E também me a mi
parece que me vou metendo nas que não são Dos contos e ditos graciosos e agudos na
minhas, que me fizeram passar os termos da conversação
maneira que nem a meu amigo ficou tempo para
continuar com a segunda parte destes discursos. [...] Acharam a D. Júlio na cama, o Prior junto a
– Vós dizeis tudo tão bem (tornou Leonardo) que ela, e o irmão, que era homem mancebo, bem
se perde pouco no que eu havia de acrescentar, afigurado e que no trajo vestia mais ao soldado
quanto mais que o que se dilata não se tira. E já que ao cortesão. Sentados todos, depois de lhe
amanhã terei cuidado ou espaço de cuidar no que fazerem cortesia e comprimentos devidos, disse
hei-de dizer, por não cair no terceiro pecado de ir Leonardo:
compondo as palavras com vagar que enfastia. – Bem parece, senhor D. Júlio, que estais já tão
– Em casa cheia (disse Solino) depressa se faz a aldeão com a nossa companhia que vos apalpam
ceia, em entendimento tão rico como o vosso, nem os ares da cidade e que os regalos dela fizeram que
de cousas, nem de palavras pode haver pobreza. o senhor Prior se esquecesse daquela sua estalagem
Guarde-vos Deus de uns meus senhores que as tão cheia de vontade para o servir.
pedem fiadas aos livros de cavalarias, com suas [...]
sentenças de cabo de capítulo, que, se se lhe Contudo, ao menos para divirtir, comece o Doutor,
atravessa um escarro de um dos ouvintes, varreu- que eu aqui trago as armas com que costumo a
-lhe toda a pregação da memória, e vão com a acudir a esta guerra. E cada um diga o seu conto e
prática em muletas até tomarem assento com conte o seu dito, encomendando a todos que riam
muito trabalho seu e de quem os escuta. do que eu disser, porque é vício dos que cuidam
– Ora, não o demos também ao senhor Leonardo que têm graça a desconfiança.
(disse D. Júlio) que hoje o não deixemos dormir, [...]
pois amanhã o havemos de despertar, que as duas Festejaram todos o conto com muito riso. E disse
noites passadas foram de hóspedes, e a conversação Solino:
dos que são de mais gosto roubam melhor o tempo. – Neste mesmo lugar conheci um galante que
E, contudo, a parte que se tira ao repouso sempre falava muitas noites do pé da janela a ũa dama
faz falta. com quem tinha amores e, assim, em vendo
Começaram-se os outros a levantar, e o velho ainda vizinhança recolhida e lugar quieto, disfraçando-se
os deteve em pé dizendo: com os móveis que para aquele mister tinha
– O senhor D. Júlio em tudo tem tenção de me aparelhados, vigiando todos os portos por onde
fazer mercês, porém, esta não é das em que lhe podiam contraminar a cautela do seu segredo, se
~
fico devendo mais, porque antes quisera poupar o vinha ao posto. Ua noite que lhe não coube vez
tempo do sono para viver, que o da vida para senão perto da madrugada, falando a moça com
dormir. E se é verdade que na conversação de tão ele, sentiu dentro rebuliço e, por não ser sentida,
bons amigos só se vive, qual posso eu ter melhor pediu-lhe que se cobrisse com a sombra e que ela
que fazendo estas noites mais compridas, alargar a tornaria a lhe fazer sinal como se tudo se aquietasse.
minha idade? Sentou-se ele nũa pedra e a moça, vendo negócio
Que sentença é antigua que o tempo em que mal parado, por desmentir algũas sospeitas se foi
dormimos, perdemos a vida polo que chamaram lançar na cama. O galante, que como estava
ao sono imagem da morte. trasnoutado, achou branda a em que se recolhera,

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adormeceu com tão boa vontade que já no alto entrava, e entornou-se-lhe o sangue polas mãos, e
dia foi achado como Leandro na praia de Cesto, acudindo logo com elas ao chapéu, que lhe caía,
dormindo com o trajo de outras horas, espada nua encheu a testa de sangue que lhe corria em gotas
e rodela mal vestida, sem dar acordo, té que, depois sobre o rosto. Um filho que, olhando para ele, o
de estar à vergonha, um amigo o recolheu a casa e viu ensanguentado, começou com grandes gritos
a dama padeceu, a esta conta, muitas que costumam e choros a chamar sua mãe, a qual, tanto que achou
a ser o ganho destes empregos. o marido daquela maneira, com as mãos nos
Com igual alegria foi recebido este conto que o cabelos pranteava sua desaventura. Ele, ouvindo
do Prior e disse Leonardo a Feliciano e a Píndaro os gritos de todos, sem saber o que era, caiu
que, pois eles tinham dado exemplo dos contos esmorecido na casa, aonde pudera morrer de
de descuido e desatento, a eles ambos tocavam os néscio como outros morrem de mal-feridos.
da ignorância. Pareceu muito galante e provocou a todos riso o
– Não nos guardastes para bom lugar, (tornou conto de Feliciano. E prosseguiu o Doutor,
Píndaro) porque mais convinha aos mancebos dizendo:
contarem descuidos e desatentos dos velhos que – Os contos da ignorância têm mais graça que os
ignorâncias suas, mas, para que saibais que não da malícia e, assim, dizia um discreto que só a
faltam ũas e outras culpas nessa idade, me não parvoíce com autoridade era sem sabor, que não
escuso: – Um homem, de melhor parecer e estatura pode ser maior galantaria que um enjeitar ao
que entendimento, se apartou a viver alguns anos sirgueiro o chapéu, porque não tinha a rosa para
longe da cidade, em um monte aonde, além de diante, podendo-a ele voltar para onde quisesse; o
tratar pouco do culto de sua pessoa, com o ar dos outro, espantar-se muito de lhe não tingirem ũas
matos, o discurso da idade e alguas infirmidades meias negras de verde, sendo assim que havia
que tivera, estava no rosto e das feições mui pouco tempo que ũas verdes lhe tingiram de negro;
dessemelhado. Vindo depois com nova ocasião a e o outro, que para não perder a chave do cadeado
viver à terra donde saíra, querendo-se vestir e a meteu dentro da canastra encourada, antes de o
concertar ao galante, mandou que lhe comprassem fechar, e depois lhe foi necessário quebrar a ele
um espelho. Fez o criado diligência e não achou ou romper a ela para tirar a chave. E muitas
nenhum de que se satisfizesse o amo, tendo semelhantes, que contar agora seria infinito.
provado muitos ou quase todos os que havia. E, – Ainda (acudiu D. Júlio) haveis de dar licença ao
preguntando-lhe porque os enjeitava, respondeu: conto de um meu conhecido que, ouvindo falar
– «Porque fazem tão mau rosto e tão avelhentado que havia antípodas e que andavam com os pés
que se não pode um homem de bem ver a eles; e para os nossos, o não pude persuadir de que modo
há poucos anos que os havia nesta terra tão podia estar esta gente sem cair de cabeça abaixo
excelentes que me faziam o rosto como de um andando às vessas.
anjo». Riu-se o moço, dizendo entre si: «Mais se – Todos esses (disse Leonardo) são extremados.
desconhece meu amo por ignorante que por mal Porém, os de engano, se têm menos ocasião de
visto, pois ao espelho põe a culpa que teveram provocar o riso, têm a graça mais viva na sutileza e
montes e a idade.» malícia e quando a matéria é graciosa, levam a
– Outro, (disse Feliciano) tão fraco de ânimo como todos os outros muita vantagem: – Um amigo meu
de entendimento, passando em sua casa de ũa para era mui regalado de doces, e no tempo das flores e
outra com ũa porcelana de sangue que levava para das frutas mandava fazer em sua casa muita
certo efeito, acertou de tropeçar na porta por onde variedade deles; ũa das criadas, com que se servia,

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era tão golosa que, em vendo bocados a enxugar, comprida, a que chamavam N. Quaresma e,
não se aquietava té tomar sua ração, que era cerceá- queixando-se ũa sexta-feira de falta de pescado,
-los a todos como a reales. Desejando o senhor de lhe disse outro: – Quem se atreve a ũa Quaresma
saber qual dos seus moços ou criadas lhe fazia tão estreita e comprida, porque receia uma sexta-
aquela travessura, mandou fazer certos bocados -feira? – Porque (respondeu ele) tenho a Quaresma
com azevre; cobertos de açúcar e, postos ao sol, por carnal, e a sexta-feira por dia de Quaresma.
deu mais lugar à moça, que, acudindo ao reclamo, – A graça na mudança das letras ou acento (disse D.
fez seu lanço, e, como logo se quis aproveitar do Júlio) não é pouco galante, como aconteceu a um
ponto, foi tão grande o amargor na boca que o mancebo que, vendo ũa moça à janela, que lhe
não pôde encobrir; fazendo muitas diligências, pareceu bem, sem ter dela outra notícia a namorava,
começou ela a dar sinais e agastar-se. O amo, mui embebido em sua gentileza. Passou um amigo
fingindo suspeitas de peçonha, meteu toda a casa que, vendo-o acenar, lhe disse: – Que quereis a essa
em revolta e a moça em desconfiança, fazendo-a moça? – Se ela quisesse (respondeu ele) tomá-la
beber azeite e tomar outros defensivos. Porém, por minha dama. – Cuidei (tornou o outro) que
como ele não podia encobrir o riso de a tomar na por ama, porque há poucos meses que pariu.
empresa com aquele engano, entendeu ela o que – Também por esse caminho (disse Feliciano) me
seria e, por remediar sua falta, fingindo estar parece gracioso o dito de ũa mulher que não tratava
atribulada, disse que lhe declarassem se morria, bem de obras a honra de seu marido, e ele muito
porque havia de deixar culpado quem a convidara mal de palavras a de toda a sua vizinhança. Era o
com aquele doce, por ela não descobrir os que seu nome dele N. Ramos e, pondo-se um dia em
lhe vira muitas vezes furtar dos tabuleiros. E, deste práticas com a mulher, começou a contar com ela
modo, remediou seu erro, deixando seu amo na todos os cornudos que havia no seu bairro. A
mesma dúvida que tinha dantes. mulher, com raiva da sua má natureza, a cada passo
– Um estudante (disse Feliciano) que, entre outros, dizia: – Erramos, marido; tornai a contar, que falta
era hóspede em casa de um amigo, jazendo todos um. Ele, que entendia mal o remoque, sem se meter
na cama, por ser o tempo de Verão, ele, que era na conta a tornava a fazer de novo muitas vezes.
menos corrido que engraçado, lhes disse: – Não – Ainda que o dito é mui sabido (tornou Píndaro)
se riam vossas mercês tanto do meu pé, que não vem fora da razão neste lugar, nem se deve
apostarei que há na companhia outro peor. Cada negar também a outro de um cortesão engraçado
um, fiado nos seus, zombava e saía à aposta, de que, levando-o um alcaide preso diante de certo
maneira que a fizeram que, se ele o mostrasse, julgador, por trazer seda contra a premática e
ganharia certo preço ou perderia outra igual valia. alegando que era homem nobre, lhe disse o juiz
Feita a aposta, tirou ele o pé esquerdo, que tinha que, pois o era, porque não trazia o que devia?
escondido, que por calçar mais dois pontos que o – Antes (respondeu ele) o faço assim, porque ainda
outro, tinha os dedos em arco, tão tortos e cheios devo tudo o que trago. – Sabei, senhor (tornou
de cravos e o pé de joanetes, que não parecia ele) que se vos fez a dívida maior, pois o tomam
natural. E, assim, ganhou, com muito riso de todos, por perdido. – Por pedido (disse ele) mo poderá
o que tinha apostado. [...] tornar seu dono, mas, pois, Vossa Mercê o quer
julgar ao alcaide, requeiro que lhe passe com seus
Todos festejaram muito o dito e prosseguiu encargos.
Leonardo: – Outros ditos há engraçados a essa semelhança
– Um amigo meu tinha ũa amiga muito magra e (prosseguiu o Doutor) que só na mudança dos

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sentidos das cousas, como já disse, têm a galantaria,
como o que aconteceu há poucos meses a ũa
donzela que serviu seis a ũa dona mui miserável
Fernão Álvares
de condição, a qual a despediu sem mais galardão
que um vestido de serguilha, a que chamam cilício.
do Oriente*
E preguntando-lhe ũa senhora: – Como vos pagou
N. o tempo que a servistes? – Pagou-me
(respondeu a moça) como um confessor: com este
LUSITÂNIA TRANSFORMADA
cilício e seis meses de pão e água.
E, porque disse que, de uns e outros, os melhores
LIVRO PRIMEIRO
consistiam na graça de ũa boa reposta, e quasi todos
os que aqui se disseram o parecem [...]
ARGUMENTO DESTA OBRA

Levado da natural inclinação de ver gentes estranhas,


terras várias, e costumes diferentes, Felício pastor,
que, movido das sem-rezões do tempo, e tiranias
de amor e da fortuna, converteu ao Céu seus pen-
samentos; repastou um tempo suas ovelhas, pacífi-
co rebanho, na fértil Arcádia, rebeiras do famoso
Erimanto, desterrando da lembrança cuidados, que
tão mal a mereciam. E como ũa menhã levasse ao
campo a manada, que apacentava desejoso de can-
tar a Deus seus novos pensamentos, encontrou aca-
so aquela frauta (único depósito do celebrado
Menalo) com que ornou Sincero um ramo altíssimo,
depois que com ela fez, cantando, abalar os montes
e deter o curso das figitivas ágoas, que mereceram
participar do som divino, que naquele lugar algum
tempo lh’ escutaram. Do tronco antigo recolheu
Felício a rústica sanfonha de Sincero, e, tornando-
-se com ela à pátria Lusitânia, canta nesta sua
Lusitânia transformada glórias a Deus e as leis tirânicas
do mundo, escrevendo pelas cortiças das árvores
selváticas quanto nos floridos campos ouve cantar
outros pastores, que por vários casos, desenganan-
do-se também à sua custa das injustiças do mundo,
lhe voltaram as costas, fugindo seus enleios, que é o
bem que dos males sabe só colher o sábio, que em
si os experimenta.

* Introdução e actualização do texto de António Cirurgião.


Lisboa: INCM, 1985.

69
E se contando de seus pastores as suas primeiras da vaidade dela (mercê da longa experiência), o
vaidades, faz aqui delas mistura diferente, foi a em que se entretinham, e deleitavam, era em contar
ocasião ou querer variar o gosto dos ouvidos, que casos diversos com que amor e fortuna, tiranos
da variedade (como as ovelhas de várias flores) se regedores do mundo, afligem nele quem os segue,
apacentam; ou entender que acontecimentos para mais certo desengano de suas sem-rezões, e
passados, se se referem para exemplo e desengano mais firme segurança daquela vida, que lhe
dos presentes, pelos mesmos termos por que emprestava quietação tão descansada.
passaram, podem mal tirar nem diminuir o preço Estavam u~ a tarde naquele lugar os pastores mais
ao espírito que, para qualquer outro efeito, da vezinhos baixo da verdura, com que os arvoredos
lembrança os desterrou de todo. Com esta os defendiam do ardor da calma, e, desejosos de
segurança Felício pastor ainda nas montanhas da me mostrar o gosto com que todos festejaram
Arcádia (que a sanfonha de Sincero de lá trazida minha vinda, um tangia na frauta rústica tão
transformou em Lusitânia) dá princípio à sua suavemente, que a melodia das cíteras sonoras lhe
história, arrezoando ũa menhã consigo desta sorte. pudera reconhecer ventagem, cantava outro a Deus
[...] versos polidos, mostrando a quanto se pode
alevantar o preço da poesia, que até gora andou
PROSA PRIMEIRA tão mal empregada na boca dos pastores. Mas
Frondoso, que mais que todos quis obrigar-me,
Naquela parte da grande Lusitânia, que a natureza voltando-se para mi, me disse:
fez no sítio aos olhos mais oculta, e na frescura – Por que com gosto e proveito, que na vida
dos arvoredos, que a encobrem mais aprazível, campestre cabem num saco, possamos passar este
perto donde o rio Nabão, mais conhecido pola pedaço de dia, que nos fica, paga, ó Felício, a toda
antiguidade de seu nome, que pola grandeza de esta companhia, não só a mágoa com que até gora
sua corrente, e o claro Zêzare misturando as águas, sem ti nos vimos, mas o gosto também com que
juntamente com os seus nomes as vão entregar ao já connosco aqui te vemos.
Tejo, que por douradas areas (desconto certo de – Se em mi pode haver – respondi eu – algu~ a
todos os bens do mundo) as leva de mistura com cousa que possa ser bastante paga de tão grande
as suas daí a pouco espaço ao mar salgado, nu~ a obrigação, eis aqui a vontade, que vale mais que
abrigada ao pé dum alto monte, que de contino tudo, de cujo preço só fio que possa satisfazê-la.
lava com a sua corrente um ribeiro, vive na – Conta-nos - replicou Frondoso – a história de
companhia de pastores que, juntos debaxo do Amâncio, e de Jacinto, que, segundo cá soou, de
governo de Severo seu maioral, naqueles campos u~ a prática que entre si ũa vez tiveram, ribeiras do
apacentam seus rebanhos. Aqui a par du~ a fonte Douro, aonde então estavas, desenganados da
clara se alevanta um freixo antigo, que, estendendo vaidade do mundo, e falsidade do amor, a quem
os ramos sobre as ágoas, parece que ou estão serviam, de seus pensamentos fizeram a Deus novo
contemplando no cristal líquido sua fermosura, sacrifício, conhecendo que nenhu~ a outra cousa
namorando-se, ou que, agradecido ao benefício, merece lugar no coração humano. E por que te
que das mesmas ágoas recebe, por natural impulso não pareça que não temos ainda ouvidos em que
lho paga com a sombra, que de contino lhe fazem caibam, por passatempo, as vaidades em que
os ramos, que estende sobre a fonte cristalina. [...] primeiro se ocuparam, da minha parte, e de todos,
E como os mais dos pastores, que naquele pacífico te rogo que tudo o que passaram nos contes, como
remanso passavam a vida, estavam desenganados o sabes, por que em seus erros passados se realce a

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sua emenda, e nós deles nos possamos prover de em breve. Saberás, pois, que, obrigado Silvano de
remédio contra os nossos: e fia de nós que só disto satisfações injustas, que responderam tão mal a seus
nos poderá servir sabê-los, que é o fruto que d’erros merecimentos, veio da vossa corte a fazer habitação
alheios sabe colher quem os conhece. voluntariamente nesta nossa ribeira, que é a que
Eu, sem réplica nenhu~ a, inclinando a cabeça um tu fazes agora tão forçado. Estava neste tempo a
pouco, entre os ombros recolhidos, em sinal de fermosa Sílvia, única filha sua, que é a pastora por
obediência, comecei a contar a história, que quem preguntas, na flor da sua idade, porquanto
queriam saber referindo-a polas mesmas palavras não tinha dela chegado aos primeiros dias da verde
com que a vi escrita pola mão de Frondélia, Primavera; e a fermosura do rosto lhe servia de
fermosa ninfa que fazia junto ao Douro habitação, retrato das perfeições de sua alma, com o excesso
naquele mesmo lugar onde o caso aconteceu, pola de que sua vista te dá testemunho sem suspeita,
maneira que se segue. fazendo-a dos mais livres corações soberba
triunfadora.Vivia neste tempo na ribeira do Nabão
FRONDÉLIA – AMÂNCIO – JACINTO Florimonte, mancebo nos anos, e em todas as
perfeições e bens da natureza e da fortuna polo
Da ventura queixoso benigno Céu com larga mão dotado: o qual não
Estava Amâncio triste na verdura, era pastor de seu natural, mas no ofício, em que,
Que o turvo Douro com sua ágoa rega, nos nossos trajos disfraçado, livre gozava dos
Queixoso da ventura, benefícios que o mesmo Céu lhe concedia. Mas,
E mais do Amor: porque ele d’ invejoso rendido por fim ao parecer de Sílvia, determinou
Obriga a deseiar o que ela nega. de a declarar por senhora de sua liberdade. Porém,
A esperança cega, como a não tinha Silvia pola estreiteza da casa do
A qual lhe sustentara pai em que vivia, para ele a seu salvo pôr em efeito
A custa do seu dano o seu namorado pensamento, passava os dias tristes
A vida num gostoso e ledo engano, em u~ a profundíssima melancolia, que abertamente
[...] lhe ia consumindo a vida.Até que u~ a tarde, andando
Sílvia em companhia doutras pastoras suas amigas
PROSA TERCEIRA e vizinhas num gracioso prado, ocupada também
com o pensamento em Florimonte, polo que de
[...] seu peito a vista claramente lhe descobria, ele de
– Assi faça o Céu, amigo Frondoso, a ventura para longe, aproveitando-se da presente ocasião, à
ti sempre propícia mais do que até gora o foi sombra de u~ a verde faia que ocupava o campo,
comigo, que me digas a causa deste ajuntamento por manifestar o seu cuidado a quem sabendo dele
de pastores, se a sabes; e quem é aquela serrana, lho pudesse remediar, ao som dum rabil o espalhou
que, coroada de flores, parece que com elas reparte assi do peito em presença das pastoras, que com
a graça natural, que dela participam. sumo gosto o estiverarn escutando.
– Aquela – replicou Frondoso – é Sílvia, cujo preço,
entre as pastoras deste monte, e já pode ser que FLORIMONTE

entre as mais do mundo, tem sem nenhu~ a diferença


o o primeiro lugar, que com muita rezão lhe tem Armada d’ aspereza minha estrela,
a fama concedido. Quem ela seja, com a causa A nova dor me leva e m’encaminha
deste ajuntamento, que queres saber, te contarei Mas, s’ua glória vi perder-se azinha

71
Foi, por quem a perdi, glória perdê-la. – Das praias do Douro – respondeu Amâncio –
Sucede nova dor, nova querela nos apartámos para estas do vosso Nabão. [...]
Á liberdade que gozado tinha;
Não sei remédio dar à mágoa minha; LIVRO SEGUNDO
E quem lho pode dar, não sabe dela.
Que alívio logo em meu tormento espero, PROSA SEXTA
Se a que mo causa n’ alma não o sente,
Senão se o vê nos olhos com que a vejo? Depois que o sol com sua claridade na menhã
Porém, ah doce amor, eu antes quero seguinte visitou o largo mundo, acabado o sacrifício
Passar convosco a vida descontente, a que estivemos presentes, que Ribeiro, por ter
Que contente viver sem meu desejo! também a dignidade sacerdotal, antes de tudo
ofereceu, tirei eu um papel do seio, e começando
Com sentimento e gosto estiveram escutando as de o desdobrar, disse aos companheiros:
pastoras o canto de Florimonte; mas Sílvia, a quem - Fui, como sabeis que é custume antigo, a buscar
ele n’alma fez mais impressão, com sentimento e entre a gente que agora ultimamente veio da nossa
mágoa o celebrava, por lhe não ser possível poder Lusitânia algu~ a curiosidade que vos trouxesse de
manifestar-se que aceitava o seu cuidado antes que oferta para recreação do entendimento. E como
dele se dava por penhorada e por servida. aquele terreno brota de novo cada dia raríssimos
[...] engenhos, que agora florecem nele, mais que
nunca, de cujas flores esparzidas polo mundo cá
PROSA UNDÉCIMA nestas partes tão remotas também participamos,
confesso-vos que entre todas as que temos visto,
Não tinham bem dado fim ao canto com que u~ a que encontrei agora merece sem dúvida o
vinham caminhando os dous pastores estrangeiros, primeiro lugar, por ser a mais excelente que vi
quando com a vista descubriram os três naturais ainda neste género. É um soneto que contém um
que os estiveram escutando com gosto, senão conceito altíssimo, declarado em seis línguas entre
Pradélio, que não tinha licença de seu tormento, si mui diferentes, composto por aquele único
que todos os sentidos lhe ocupava para os empregar sojeito, que deu nestes nossos tempos a terra
em mais que no sentimento dele. Jacinto, Lusitana para exemplo de varões ilustres, o qual,
descubrindo a vista com o rio, e emparelhando sendo nas armas tão excelente, não o deixou de
juntamente com os três companheiros, mui ser também nas letras, porque ambas estas cousas,
cortesmente os saudou, dizendo: que entre si é u~ a ornamento da outra, foram sempre
– Assi responda o céu, venturosos pastores, com o esmalte da nobreza verdadeira. E para que vejais
igual satisfação aos merecimentos que em vós por experiência u~ a parte da verdade que de seu
representais, que nos mostreis o caminho mais ânimo vos apregoo, lede este papel, e vereis nele
certo que nos leve à ribeira do famoso Nabão, que tão propriamente fala em todas essas primei-
para onde caminhamos. [...] ras cinco línguas tão estranhas, como na última
que é a sua natural.
Com palavras de cortesia, responderam os pastores Tomando-me logo Ribeiro o papel da mão, e
estrangeiros à oferta de Jasmínio: e, assentados sobre fiando de si que o leria mui bem pela notícia que
o feno, começaram os naturais a perguntar-lhe qual tinha de todas aquelas língoas, alcançada pela
fosse a causa da sua vinda a lugares tão remotos, e experiência longa e contino estudo, começou de
donde fizeram o principio de seu caminho. ler o soneto, que dizia desta maneira:

72
SONETO ela, folgara que mas desfizeras primeiro; que eu
imagino ser empresa que não levarás ao cabo tão
Opos to pyr, lampron che avaris, facilmente, como tu imaginas porventura. E por
Flegi, lampi che in astris anaveni que me não tenhas por porfiado, vícios que nos
Sic semper mentis nostrae interna vis outros sofro mal, proponho de estar no caso polo
Ascendit, ardens lumine perenni. que nele determinar Ribeiro, de cujo parecer fiarei
cousas de maior importância.
Ma si dal Nilo ondoso al freddo Argis Aceitado por Ribeiro o juízo da nossa contenda,
Gli giorni ormai son’justi ne sereni; propôs Arbelo as suas dúvidas, dizendo:
Et se sont faits les cieux mes ennemis – A lingoagem Portuguesa é primeiramente tão
Et les temps de fureur et d’ira pleni. escabrosa, que apenas acharás entre mil um
estrangeiro, por mais larga continuação que tenha
Como podrá afrentarse 1’alma mia dela, que a possa pronunciar sem cometer infinidade
De aquello en que los casos son culpados, de faltas, que não sofrem que sejas de tão austera
Pues de contino aspira a lo más alto? condição, que todas as outras nações condenes por
desculpar a tua, que mais confio de tua cortesia.
Por merecer, trabalho cada dia, Quanto mais que eu, em lhe chamar lingoagem
Tudo o que podem dar Fortuna e fados: Portuguesa, fiz u~ a falsa suposição, sendo assi que a
S’eles faltarem, saibam que eu não falto. não há: que aquela de que usamos agora em
Portugal moderno é mendigada das outras nações,
Tão acreditados ficaram na opinião de Ribeiro os de tal maneira que até ao Arábigo pedimos
meus encarecimentos, lido o soneto, como na emprestado enxoval para podermos enfeitá-la com
minha o seu espanto, com que mais que com cabedal alheo: que quanto a mi não pode ser que
palavras engrandeceu tão maravilhosa compostura. se tenha por pequeno defeito falta tão grande. Mas
Mas Arbelo, que so nela notou a consonância a por que vejais mais claro esta pobreza não só na
que se mostrou mui inclinado, disse: minguante dos vocábulos, que esta não podes tu,
– Agora acabo de confirmar u~ a opinião que tinha meu Olívio, negar, por mais que queiras, senão na
da sutileza do engenho Português, que não deve impropriedade das palavras, que é o que mais
ser pequeno, pois usa com tanta facilidade de importa, toma qualquer sentença em qualquer
línguas estranhas para declarar os seus conceitos, outra lingoagem, e acharás que traduzida na nossa
pronunciando-as tão propriamente, como se cada polas mesmas palavras soa tão mal, que as vezes
u~ a delas fosse a própria, sendo a sua na opinião de que o fiz não pude deixar de a condenar por
todas as nações condenada pela mais grosseira. bárbara. Estes são os motivos, entre outros, que
– Tão enganado estás, meu Arbelo –, lhe repliquei tenho para sustentar o meu parecer, no qual quanto
a isto eu – na segunda parte da tua opinião, como mais me mostro desapegado da própria afeição
certo na primeira; que bem notado, a excelência que tudo contamina, tanto deveis tê-lo por mais
da língoa Portuguesa é tal, que pode com muita arrezoado.
justiça competir com a do seu engenho. E se vos – A reposta destas dúvidas – disse Ribeiro – e o
hei-de falar verdade, ainda eu agora não estou meu parecer nelas, como pasto d’alma, quero que
deliberado a qual deles me mostre mais rendido. fique para hora mais acomodada: o tempo nos pede
– Algu~ as instâncias tenho – replicou Arbelo –, que para o corpo já o seu: despois do repouso espaço
contrariam essa opinião: e se queres inclinar-me a largo fica para se determinar vossa profia. [...]

73
~
Ua das rezões por que é hoje a nossa língoa Por- lavara ventagem também a nossa, porque é certo
tuguesa estimada pola mais excelente que as outras que muitas sentenças dela, que nos deleitam os
todas, é porque, sendo só capaz deste benefício, ouvidos, traduzidas à letra noutra lingoagem, não
que não é a mais pequena excelência que nela têm aquela graça e suavidade com que soam na
noto, encorporou em si a graça da pronunciação e nossa, o que nace da propriedade com que fala
dos melhores vocábulos das outras, fazendo-se cada um na sua.
entre todas um ramalhete composto de diversas O bom Ribeiro, que atento esteve a todas as rezões
flores. Esta é a causa, meu Arbelo, por que, que eu ia dando, me atalhou a outras com que
pronunciando nós tão facilmente e com tanta continuava minha reposta, falando com ambos
propriedade as outras língoas, não podem nunca desta sorte:
pronunciar os estrangeiros bem a nossa: e mais por – Se no caso hei-de dar a sentença, como tendes
ser a nós e não a eles da natureza concedido este determinado, não posso consentir, Olívio, que me
benefício. E se por dita assi o não imaginas, folgarei tires da boca outra rezão, se por dita a tens também
que me digas a causa por que nem uns dos outros imaginado, de que me dou por mais satisfeito na
pronunciam a lingoagem com aquela propriedade última dúvida que te ofereceu Arbelo. Se quiserdes
com que nós pronunciamos a de todos, como vês que eu a dê, fico com isso juntamente dando meu
que a experiência claramento o manifesta. Na parecer.
abundância e cópia larga de vocábulos, em que E notando em mi que levava gosto de me tomar
tanto contra direito achas falta nossa linguagem, das mãos a empresa, e em Arbelo que lhe não
te afirmo que particularmente faz ela ventagem a pesava de ele a prosseguir, com ela prosseguiu desta
muitas, que disso injustamente se gloriam: porque, maneira:
quem pratica bem a nossa, bem claro mostra o – Para que vejais quão propriamente transfere em
engano dos que têm dela contrária opinião. Neste si a língoa Portuguesa a perfeição das outras, e
passo me dá licença meu Arbelo, que me espante com quanta propriedade faz próprias as sentenças
de notar em ti a elegância com que falas, decla- alheas, na sua lingoagem traduzidas, ocupei um
rando com palavras tão escolhidas os teus conceitos, pedaço da sesta em fazer todo Português este
e quereres por outra parte desacreditar o soneto que, Olívio, nos trouxeste das seis línguas,
instromento com que fazes obra tão perfeita: que convertendo na nossa as outras cinco: que se não
é o que me faz cuidar que pretendes com este foi polas mesmas palavras ao pé da letra, desculpa-
paradoxo acreditar a sutileza do teu engenho, ou -me a obrigação dos consoantes, com que devia
que pela alteza do pensamento lhe fica inferior guardar também o seu respeito. E por que dele
ainda nossa lingoagem; ou o que tenho por mais colijas, Arbelo, qual é o meu parecer, e quão
certo, que seguindo nisso a natural inclinação dos afeiçoado lhe estou há muito, quero que leas o
Portugueses, que nunca vimos das cousas dos seus soneto traduzido neste papel, em que o tresladei,
naturais mui satisfeitos, queres usar também deixando essoutra escritura (por que vos não
conosco do mesmo estilo. E porque na terceira enfadeis com a moléstia dela) para outra hora, que
instância que puseste te pode parecer que tens mais é u~ a glosa que ao mesmo soneto fiz, continuando
algua justiça, quero que saibas que nenhua sentença, com as regras da língoa Portuguesa, a que te afirmo
transferida polas mesmas palavras de u~ a noutra que achei mais graça.
lingoagem, pode soar tão bem como na própria. – Pois faz tanto a meu caso – repliquei neste
E se isto fora defeito, as outras língoas também passo – o soneto e a glosa que compuseste, meu
não careceram dele; antes pola mesma rezão a todas Ribeiro, em favor da minha opinião, tenha Arbelo

74
paciência, e ambos lea, que ambos sei que teremos chegado à nossa notícia; tantas cousas revolveu no
gosto particular d’entendermos as tuas graças. E entendimento, até que veio a determinar consigo
porque imagino que o tereis vós também, bons a pior, como muitas vezes acontece, pola menos
pastores, agora do que leu então Arbelo, quero duvidosa, que foi aquela que tantos indícios e
recitar-vos o soneto traduzido, e despois a glossa, presságios infelices há tanto pronosticaram em
que são os que ouvireis: nosso dano. E resoluto neste pensamento, se
determinou logo noutro, que foi acabar naquele
SONETO TRADUZIDO lugar, por todas as partes tão apartado do mundo,
o resto que da vida lhe ficava, por se desviar de
Como a chama veloz clara e luzente infortúnios que ela consigo traz em idade tão
Resplandece e às estrelas sobe ardendo, perigosa. Com este pressuposto se ausentou Lizarte
Assi do corpo u~ a alma o peso erguendo, da conversação de seus amigos, despedindo-se
Ao céu sobe abrasada em lume ardente. primeiro deles com sentimento d’alma de que seus
olhos nas lágrimas que vertiam dava mui claro
Mas se do Nilo for té o Oriente, estemunho. No remate do vale, ao pé da serra que
Nunca irei tempo justo e claro vendo; fica fronteira ao mar, donde se diriva dum pequeno
E se o céu contra mim vi sempre horrendo, princípio o ribeiro gracioso, está; um sítio pequeno,
E os dias cheos d’ira e pena urgente: mais escondido aos olhos que os outros em que
tinhamos os nossos alojamentos Aqui por
Por que causa minh’alma se injuria entretanto consigo e com seu pensamento
Só daquilo em que os casos são culpados, recolhido, s’escondeu Lizarte, esperando a nossa
Pois de contino aspira ao que é mais alto? partida disfraçado em trajos vis ao modo pastoril,
com intenção de sustentar a cansada vida em
Por merecer, trabalho cada dia, serviço de quem a dá, sem as moléstias dela, com
Tudo o que podem dar fortuna e fados: os frutos com que ao seu trabalho por prémio
S’ eles faltarem, saibam que eu não falto. dele lhe acudisse a terra, e da grangearia dalgum
fato de cabras que ajuntasse.
[...]
LIVRO QUARTO
LUZMENO

PROSA QUARTA
Espera um pouco assi: que o triste efeito
Desse fogo infernal que em nós se atiça,
Cubiça, que assi se engrossa,
Colho das contas que comigo deito,
Ambição, que tanto alcança,
Que não é d’ambição, mas da cubiça.
Deram princípio à mudança,
A cousas altas alevanta o peito,
Ó gente, da gloria vossa, Do temor sacudido e da preguiça,
E fim à vossa esperança. Quem esperta a ambição, e árduas empresas
Cometem almas em seu fogo acesas.
Confuso esteve espaço largo o esforçado Lizarte [...]
no sentido do letreiro, que lera, e desejoso de o
penetrar, entendendo que era profecia de caso Mas essa mal nacida e vil cubiça,
algum acontecido em parte donde não tinha Vil, que da terra o seu princípio teve,

75
Por obras boas fraca, na injustiça Esta cubiça vil, esta, Lizarte,
Forte (pois contra o mesmo céu se atreve) Depois que à gente forte entrou no peito,
D’ódios amiga, imiga da justiça, Pôs de morada tão ilustre à parte
De fogo no temor, no amor de neve, Aquele alto valor, a que tanto a peito
Que de contino vai dum noutro extremo, Tomado tinha, com esforço e arte
Da própria inclinacão atada ao remo. Fazer o mundo todo assi sojeito:
Esta lhe pôs do infame lodo a noda,
Esta só para si por vários modos, Que voltando do fado esparze a roda.
Quanto todos possuem, tudo achega; [...]
E quanto achega para si de todos,
Depois inútil a si própria nega, EPIGRAMA DE LIZARTE
Das brenhas pisa pela terra os lodos;
As ágoas fundas pelo mar navega, A vida ao tempo rende o fraco e o forte,
Descubrindo o que esconde a natureza, Do fado universal a prende o lanço:
Para fartar do peito a sede acesa. Que estado achará triste? qual remanso?
Subida mais, a glória abate a morte.
E tu, que por mostrar peito atrevido
T’enganas com fingida segurança, De vida e justa lei d’ humana sorte,
Ao Cabo Tormentório tão temido, Cansado busca em vão o homem descanso:
Co título ilustraste da Esperança: Irado o Céu o oprime manso e manso,
Tu deste por antífrasi apelido Erguida a espada vai azando o corte.
De Cabo Verde àquela inculta estança,
Que Flora nunca ornou com seus arreos; Em pena muda a morte o gosto à vida;
Por lançar essa capa aos teus receos. A morte tudo abala e desordena,
Ao gosto a morte pois enfree o passo.
Contudo se igualar quantas areas
Na praia se revolvem da Etiópia Pena mortal à culpa foi devida;
O tesouro, avarento, que rangeas, Sorte alegre, porém, alegre pena;
E às flores, que do corno esparze a Cópia; Posto na morte está à vida o passo!
Se as casas vires d’abundância cheas, [...]
O fim nunca verás da mágoa própria:
Porque um bem esperado se se alcança, EPIGRAMA DE LUZMENO
Produze doutros bens nova esperança.
O forte, e o fraco rende ao tempo a vida:
Que então das mesmas dores as enchentes, O lanço a prende universal do fado.
As mesmas horas de prazer vazias, Remanso qual (triste) achará? que estado?
Que em ti, do que te falta agora, sentes, A morte abate a glória mais subida.
Do que então te faltasse, sentirias.
Desejo ardendo em lágrimas ardentes, Sorte d’humana lei justa e devida,
Medo esfriado em esperanças frias, Descanso o homem, em vão, busca cansado.
Fazem no peito avaro eterno assento: Manso e manso o oprime o céu irado:
Porque assi té nos bens viva em tormento. O corte azando vai a espada erguida.

76
A vida o gosto a morte muda em pena: Este foi, pastores venturosos, o discurso de minha
Desordena e abala tudo a morte. perigrinação, este o processo largo de minha vida
O passo pois enfree a morte ao gosto. breve: a qual ficando polo mundo em tantos pedaços
repartida, só aquela parte que dela entre vós agora
Devida foi à culpa mortal pena; passo, fica merecendo mui bem nome de vida.
Pena alegre porém, alegre sorte; Eu, que acabava de dar fim à história longa de
O passo à vida está na morte posto! meus passados infortúnios, quando afigurava o
pensamento, que tinha já aqueles pastores de tão
PROSA QUINTA compr ido discurso não satisfeitos só, mas
enfadados, Frondoso com alegre semblante voltou
Enternecidos estávamos todos os que estávamos a mim, dizendo:
presentes às rezões de Luzmeno e de Lizarte, – A carta, que dizes da estéril Etiópia escreveste
enternecidos com suas lágrimas, e magoados da ao teu Arbelo, e a glosa que nela com o bom
causa que tinham de as derramar: e contudo não Ribeiro cantaste, trabalha, gracioso pastor, por
nos tirou o sentimento a admiração em que nos trazeres à memória, que parece rezão, que du~ a e
pôs o epigrama de Lizarte, com cujas palavras, outra cousa participem também as plantas desta
caindo na sutileza delas escreveu o seu Luzmeno nossa floresta, que se mostram ainda sequiosas das
com as mesmas regras tomadas ao revés, aonde ágoas, que as regaram, dessa perenal corrente.
fronteiro um do outro, ficaram ambos para – Não com menor gosto, amigos (falando com to-
desengano dos míseros mortais, que, levados de dos respondi ao requerimento de Frondoso), satis-
opiniões fantásticas, entre medos e esperanças fizera a essa vontade que mostrais do que foi o que
fizerem por ali passagem. Finalmente, amigos, os tive no que tenho feito para vô-la satisfazer; mas se
epigramas ficaram na ilha, e ficou nela também a minhas palavras não negais o crédito que o meu
Lizarte: e nós, entregando outra vez as velas ao ânimo vos merece, tende por certo que u~ a e outra
vento e as vidas aos mares inimigos, chegámos a cousa me arrebatou da memória ó tempo, triunfador
ver as areas do celebrado Tejo, douradas antiga- até das almas que pareciam isentas de sua tirania.
mente na opinião dos estrangeiros, e regadas agora Não acabava de me desculpar com estas palavras,
com as lágrimas dos naturais. Eu como tinha posto quando Amâncio, que de fronte me ficava ao pé
a glória da vida na minha perigrinação, três dias dum castanheiro recostado, se chegou a mim um
me detive só em ver as grandezas da cidade insigne, pouco mais: e sem me dizer palavra, me meteu na
que na nossa Europa edificou Ulisses. Passando mão um papel, gastado assás do tempo, que tirou
depois pola ribeira do claro Lena e por esta do do seo, e se tornou com muita segurança ao seu
vosso Nabão tão famoso, fui ver aos do Erimanto, lugar, não fazendo de si nenhum outro movimento.
e a gentileza dos pastores do alto Menalo, com Os pastores cirunstantes, que da diligência de
eles tão soberbo, lá na pastoral Arcádia. Aqui como Amâncio conceberam o mesmo pensamento que
outro Teseus que alcançou por venturosa sorte as eu (porque todos imaginámos que era algu~ a
maçãs d’ouro que guardavam as Hespérides, colhi curiosidade, com que pretendeu remediar a minha
eu doutra planta o depósito rico com que a falta, interpondo-nos algua recreação), logo me
enobreceu o velho Sincero: e com ele me vim a rodearam, com desejo de ver o fundamento de
esta vossa ribeira, a que me inclinou mais o gosto, tamanha confiança. Eles quietos, fui abrindo o
para fazer do seu sítio deleitoso particular escolha papel; e vendo ser a letra minha, e a mesma carta
para o restante da vida, que o céu m’empresta. que eu tinha escrito ao meu Arbelo, pus os olhos

77
em Amâncio: e subitamente conheci ser quem a Convida-nos ao pranto, não ao gosto:
carta me dava o mesmo a quem a escrevera. Se o A sanha mostra, em nada ao mundo aceito:
gosto priva do uso dos sentidos como a pena, então Engano usando, não ofrece a palma.
o experimentei, quando em u~ a mudança repentina
dei notícia aos circunstantes da causa que me fez Ouviu em silêncio Florindo a minha música até o
fazer tão grande movimento. Tornando em mim, remate; mas no fim dela, vendo-se atalhado de
levei nos braços ao fingido Amâncio, e com mil minhas palavras que com as suas o contrariaram,
lágrimas lhe disse: [...] rompeu o sofrimento com que até então estivera:
e chegando-se a mim me disse palavras descom-
postas com a mão posta no punhal, ameaçando-me
PROSA DUODÉCIMA com a perda da vida, se ali tornava; e parece-me
sem dúvida que totalmente não conheceu com
[...] quem falava. Mas eu, a quem a paixão de me ver
Não faltava no pastoral ajuntamento quem, escarnecido por seu respeito de Laurélia, posto
abatendo a prática a cousas mais rasteiras, propunha que sem culpa sua, obrigou a mais, por tomar dela
questões do tempo: qual era o mais propício às nele vingança, fingindo que o não conhecia, não
sementeiras? e quais eram os meses mais prejudi- respondi às palavras com outras, por que não me
ciais ao gado? e que mezinhas seriam mais conhecesse; mas dando com mais presteza
prestadias contra o mal da ronha? e contra os lobos execução às obras (que a sanha daquela ofensa me
que artifícios bastariam para lhe assegurarem os emprestou o furor desatinado) duas vezes lhe
currais? Assi praticando chegaram ao vale dos escondi no peito o punhal que já na mão levava.
Ulmeiros a tempo em que descubriram no recosto Ele, obrigado das feridas, de que regava com o
do monte, que sobre ele pende, a Urbano e seus sangue esparzido a terra, tocava o céu com suspiros,
companheiros mui atentos à música dum pastor que não sei se foram os últimos de sua vida, porque
estranho, que ao tom do ribeiro que atravessava o eu ao outro dia, primeiro que o sol descubrisse a
vale com u~ a cítera suavemente descantava. face, não querendo, de envergonhado do caso, que
Detiveram o passo advertidos os pastores antes de alguém me visse, me parti para esta nossa ribeira,
serem vistos do pastor que cantava (o qual onde possa com minhas lágrimas lavar a nódoa
conheceu logo Frondoso tanto que o descubriu que me pôs n’alma tão bruto acontecimento, e
da vista, e nos disse que era o namorado fazer sacrifício delas ao sangue derramado do
Florimonte) porque com a súbita chegada não amigo, a quem aquele furor maldito, filho do cego
causassem à sua música algum impedimento. Mas amor e da enveja também cega, me constrangeu
ele acompanhando o som da cítera com a fazer tamanha sem-rezão. Vedes aqui, pastores, o
suavidade da voz, cantou esta letra contra os processo de meus amores infelizes: e aprendei deste
enganos do Amor, a qual foi atentamente de todos e doutros semelhantes infortúnios, tão certos
escutada. sempre na tragédia da breve vida, a obrigação que
[...] tendes de agradecer ao céu esse estado venturoso,
em que vos pôs, isentos das leis do mundo, da tirana
A vida triste não faz ledo o rosto: jurdição do tempo, do amor e da fortuna.
Banha d’ ágoas, não de prazer o peito: Naquela sezão própria, em que naquela parte da
Tirano, não já rei mora aos seus n’ alma. nossa Lusitânia se viram tais sucessos, seguiu
Lusmeno as pomposas cortes: e afeiçoado ao trato

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cortesão, gastou nelas parte da idade, pidindo vida passada, e o descanso que pretendia buscar
satisfação da outra parte, que gastara no robusto para o restante dela, onde achou para u~ a e outra
exercício do belicoso Marte lá nas partes orientais, cousa naquela letra motivos excelentes. Com este
onde em seu serviço despendeu o melhor da vida propósito se pôs a fantesia sobre ela: e tão enlevado
tanto à custa do sangue e da fazenda, e ainda da estava neste pensamento, que, como se um
mesma vida, que de tantos perigos escapa por erro mármore fosse, nenhum movimento de si fazia.
muitas vezes. Ajudava-o neste seu pensamento ser Neste estado estava Lusmeno, quando empare-
rico, discreto, liberal, bem nacido, a todos aprazível, lharam com ele os pastores, que já por aquela parte
partes que juntas aos merecimentos de sua pessoa se recolhiam com suas manadas, levando consigo
o faziam confiado para tudo o que seus desejos o desconsolado Florimonte, a quem por sua
lhe afiguravam e suas esperanças lhe fingiam Mas cortesia não consentiram que dali passasse tão falto
como as mais das vezes enganam no mundo o e necessitado de quem o consolara. Os pastores,
pensamento as fantasmas, que esses desejos e vendo a Lusmeno naquela contemplação, e vendo
esperanças lhe representam, as de Lusmeno, ainda bem que os não vira ele, de metido nela, se retiraram
que tão bem principiadas, no fim de muitos dias para detrás duas moutas que rodeavam em circuito
lhe desapareceram da vista, deixando-lhe o bem a fonte, espreitando o que de si faria. Mas o aflito
do desengano, que o livrou deste seu enleo pelo Lusmeno, como que acordara dum profundo sono,
benefício da experiência de muitas cousas, que se alevantou um pouco da terra, e recostado a um
viu e que notou na corte. Gastada por fim a maior penedo, com a palma direita posta na face, os olhos
parte da fazenda sem algum fruto, mudou os no tronco do castanheiro, o pensamento no céu, ao
pensamentos, e determinou mudar os trajos e o som d’ágoa que da fonte corria e ao compasso de
estado, por fazer mais certo emprego do cabedal seus suspiros, começou a cantar assi:
da vida e do sangue que ainda lhe ficara. Camisa
de estopa crua, calções da mesma sorte, carapuça LUSMENO
e vaqueiro pardo, polai nas toscas e sapatos de
vaqueta trazia o bom Lusmeno, caminhando pela Por flagelo da vida
ribeira do Tejo em seguimento da mais oculta parte Esperança, em lugar ficou na terra
do mundo, em que apartado de seus olhos fizesse Dos bens que ao céu do cântaro voaram;
seguro a sua morada. E nesta mesma tarde, em A Fúria, que atrevida
que os pastores estiveram no vale dos Ulmeiros Foi para as almas fabricando a guerra
ouvindo o sucesso infeliz de Florimonte, magoados Do desejo e temor que as ocuparam;
de sua desastrada sorte, chegou Lusmeno cansado Desejos que não param,
à fonte do Castanheiro, no qual Urbano entalhara Temores que maltratam
o dia dantes o epitáfio da esperança, a que no seu Est’alma. Quanto importa.
pensamento tinha dado sepultura para sempre. Do Que morram esperanças, que me matam
caminho que trazia errado, como nem de si sabia Com sua vagarosa e vã tardança?
parte o bom Lusmeno, e obrigado da presente E não somente morra esta esperança;
aflição, se lançou por tomar algum repouso ao pé Mas fique também morta
do castanheiro, em que descobriu as letras, que, Das esperanças mortas a lembrança.
lidas, viu que diziam mui bem com o pensamento Só dá dos bens no mundo
que levava: e logo determinou de lhe cantar ũa Esperanças a sorte injusta e crua,
grosa, em que retratasse ao natural os enleos da As quais mil e mil vezes leva o vento.

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Quem do assento profundo
S’ ergueu, voltando a roda, cai da sua
Mais alta parte ao mais profundo assento.
Elói de Sá
Ah falso pensamento,
Que às nuvens enganado Sotto Maior*
Alçaste Icárias asas
Após um bem que dá e nega o fado!
Um bem, que havido enfim tão pouco avulta!
Que engano, ou nova mágica oculta; DAS RIBEIRAS DO MONDEGO
Que esperanças tão rasas
Um novo desengano já sepulta? Livro Primeiro

Se da praia Tirrena Prometeu-me por fazer dele honrado,


Té os campos, que cinge o pego Eoo, Quando em mais baixo, & vil estado posto,
Daquela lei comum escapa nada, De me subir ao mais felice estado,
Faze, ó carga terrena, Que o desejo formar pode a seu gosto:
Que est’alma minha ao céu levante o voo, Fiei-me dele, dei-lhe meu cuidado,
Isenta já de ti, carga pesada. Voltou-me as costas, não lhe vejo o rosto;
Alma pois levantada Mas que hei-de ver? Só meu cuidado vejo,
Já voe à sua esfera; Que eu nem ver posso aquilo, que desejo.
Tu fica em terra fria
Mudada, onde o princípio teu te espera: Chorar não quero o mal, que me atormenta,
Contigo enterrarás nesta mudança Com que vejo a esperança consumida,
D’esperança mundana que te cansa Que se a tristes chorar também sustenta,
A douda e vã porfia, Não quero sustentar tam triste vida:
De cujas cinzas viva outra esperança. Pois, se com se encobrir, meu mal se augmenta,
[...] Vede a quantos tenho alma oferecida,
Que atado entre eles, neste laberinto,
(Quer os encubra, ou chore) sempre os sinto,

De mal tam grande o bem, que hoje quizera


A conta desta vida lastimosa,
Que qual Cisne cantando aqui morrera,
Pera gozar com Cinthia o bem, que goza:
Nele do que pretendo o fim tivera,
Que enfim tornava a ver Cinthia fermosa;
Mas, pois que tarda a morte, & meu mal dura,
Abra-se a terra, & dê-me sepultura.

* Nova edição, revista e prefaciada por Martinho de Fonseca.


Coimbra: Imp. da Universidade, 1932, p. 1 e ss.

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Se alguém chorando canta, assi cantava um pastor Laurea (que a conhecia muito bem) que não se
à vista do Rio do Mondego, tentado sobre ũa podia seguir menos, que um desastrado fim,
sepultura, cuja antiguidade a pezar do tempo, & acodindo com as mais, que o sogigaram ousou
da inveja descobria a fama entre as ruinas de uns tirar-lhe o punhal da mão, dizendo; larga, pastor,
derribados edifícios na entrada de um vale, a quem que quem quer viver triste poupa a vida. Eu não
altos Ciprestes, & outras fúnebres plantas faziam (respondeo ele) que como desesperado ainda temo,
com carregadas sombras morada eterna da tristeza. que se me troque em alegre a vida triste, pera que
Corria o Rio Alegre, & nunca tanto atrás da o eu não seja, que terei por maior mal. Por onde
fermosa Aretufa o namorado Alpheo. Agora com se no meu há razão, ou em vós piedade, soltai-me,
apressado curso, por se apartar das Ribeiras comedidas pastoras, não me queirais acrescentar a
humildes, que o perseguem, mostra a seu furor na pena com o alívio dela, deixai-me acabar de ũa
crespa escuma, & logo desfazendo a já livre delas vez com o que tantas me persegue. Quando teu
ia mais vagaroso. Retratauam-se nele (como em mal (disse então Phyles) nolo fizera a nós, puderas
espelho) os frescos arvoredos, que de ũa, & doutra julgar dele: mas como é teu somente, juízo em
parte o assombravam em cerrada espessura. Entre causa própria nunca é sem paixão. Fia de nós (lhe
ela festejavam a Alvorada os músicos passarinhos, disse Bellizarda) a tua causa. Pareço tão mal vivo
quando com a melodia, que formavam, lhe davam diante dela (tornou ele) que verei de me ausentar
salva, & alegre vista à terra com aquelas libreas, pera a saberdes. E tanto que se viu livre,
que de várias cores lhes tinha a natureza dado. Saía desatinadamete lançou a fugir pela ladeira de um
o Sol, & nunca tam fermoso, coroando de ouro as monte à vista do namorado pescador Clarinardo,
cabeças dos montes, que vestidos de verde que a este tempo com seus companheiros estendia
enriquecia com seus raios pera inveja dos vales, as redes ao Sol pera as enxugar, & concertar algũas
que esmaltados de flores, & boninas faziam, que malhas, que se lhe quebraram, a noite dantes na
pera estrelas as envejasse o Céo. Chegava a pescaria. Mas como desesperados, se escapam de
Primavera prometendo verão, tudo estava contente, algum perigo grande, é pera dar noutro maior, das
& alegre tudo: mas como os tristes, que de o ser pastoras deu o pastor nos pescadores, cujo senti-
vivem, abafam entre alegrias, nelas não repousava mento encruado com as tormentas do mar, se não
o pastor triste; & se ũa grande tristeza tudo em si deixa adoçar tão facilmente dos tormentos de
converte, ele convertendo em si tudo, a tudo amor, & assim correndo-lhe todos no alcance lhes
entristecia, & aborrecido de si mesmo, como causa bradaram a um tempo que esperasse. Como pode
dos efeitos, que já reconhecia na mudança do esperar (disse o estrangeiro) quem tem morta a
tempo, na escuridade do Sol, na turvação das ágoas, esperança? Detivera-me, se me não levara após si
no desmaio das plantas, no quebranto das flores, meu mal pera onde só me espera o desengano
no silêncio das aves, desesperado já da vida quisera dele, ou o fim da vida. Não tem logo (lhe disse
que as derradeiras palavras de seu canto o fossem Clarinardo) pera que ir mais longe: porque o de-
dela, quando despois de algũas poucas, & mal sengano aqui o acharás, & a morte ainda mais perto,
formadas, levadas à força de algũs sospiros, que essa é a sua condição, chegar-se a quem lhe
arrancando um punhal lhes quisera pelo peito dar foge, & ficar mais perto de quem mais longe a
saída, se com não menos presteza, com que o ia busca: assim que, ou desenganado, ou morto hás-
executar, lhe não acudiram as três pastoras, Laurea, -de vir connosco. E pegando todos nele, o traziam
Bellizarda, & Phyles, que então levavam ao monte por força. Eu irei de boa vontade (foi dizendo o
o gado: & como da causa de seu canto entendeo pastor) mas bem sei que a não faço ao que devo:

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porque ninguém me pode fazer maior mal, que perseguir aos simples passarinhos, armando-lhe mil
quem me aparta dele; donde vos não fico a dever invenções de enganos, ensaiando-me então neles
mais, que o que cuidais que me fazeis de bem. pera os em que me vejo. Lembra-me que em
Pequena obrigação é essa (acudio Meliso) de que quanto as ovelhas passavam a festa a sombra de
te havemos por livre, quando queiras que nos um antigo Carvalho, a que se acolhiam, sentado
amanheça na confusão destes teus bens, ou males, ao pé dele, tocando a poucos ũa frauta, cantava
& nos não deixes às escuras, pera que vejamos o muitas vezes não do Tempo, do Amor, nem da
que tiramos deste lanço. Pouco (respondeu o Fortuna, mudanças, tiranias, & infelicidades: mas
pastor) se colhe deste. Muito ganhámos nós da vida pastoril, da solitária, & da contemplativa
(continuou Salicio) no que fizemos esta noite na mil bem aventuranças. Sentindo o que cantava o
pescaria, & muito mais em te haver encontrado fazia com tanta suavidade, & melodia, que os
neste tempo, pelo que haverás de ser nosso Roixinoes de muito longe se vinham a mim de
hóspede; & em quanto a ventura nos dá lugar, a um voo, & não sei se com inveja, porém sem medo,
que te trouxe a este, & o teu nome nos dize, pera postos agora nos mais vizinhos ramos, & logo so-
que sabendo o do teu mal, conhecida a causa dele, bre as asas no ar & quasi sobre mim se desfaziam
trabalhemos todos em lhe buscar remédio. Eu o em confusa harmonia com tanta variedade de
direi (prometeu o pastor) se me quiser deixar; & passos de garganta, assomos, & quebros, que
arrazando os olhos de água, entre mil sospiros, deu encobrindo-me a voz, me suspendiam assim à
lugar a estas palavras. força, ou por vontade, quando algum começava
Na minha terra Elicio, & nesta tenho por nome parava a ouvi-lo, & acabando lhe sucedia então
Ondelio; mudei o nome, por ver se com ele se me revesando-nos com tanta ordem, & concerto, que
mudava a sorte: mas que importa que até ela me entre a Natureza, & a Arte se não conhecia
desconheça pelo nome, se me há-de conhecer pela ventagem. Nesta deleitosa competência nos
sua marca. Naci nas Ribeiras do Tejo, donde para colhiam muitas vezes os pastores, & pastoras do
estas do Mondego me guiou minha estrela; nelas lugar, eles me davam o primeiro na poesia, & na
sete anos há que vivo desterrado, se assim e vive música, elas na isenção, & crueldade com que as
tanto tempo.Tive por partes (pelas, que a Natureza tratava. Acabava eu de cantar, & o Sol de fazer seu
mal empregou em mim ao desejo, & à inveja; a ele curso um dia (se bem me lembra) deixando aos
de ver estranhas terras, & a ela contra mim tanto, Orizontes, abrazados em saudades, acompanhados
que em todas me persegue. Na tenra idade de meus ainda de ũas nuves douradas, que raiadas, ou
primeiros anos ao som da simplicidade, em que esmaltadas de roxo, azul, & verde, pouco, & pouco
vivia cantava muitas vezes, & chorava muitas, mas se iam desfazendo em noite, quando a Aurora das
sem causa, que estes descontos tem aquela idade. pastoras (digo Lucinda) que até então ficara presa
Passou esta, chegou a pueril, dei fé de mim, & de meu canto, arrebatada dele, & esquecida de si,
conheci-me de bons pais (posto que lavradores) & do seu gado, que junto em roda, ao pé de um
criavam-me com pensamentos nobres, dando-me Sovereiro a esperava, pera que o recolhesse, me
por ama a memória de meus antepassados, que acabava de ouvir, sem que eu a visse, & vendo que
(como ouvi dizer muitas vezes) eram nestas vossas atrás do sentimento me ia levando o sono, & que
Ribeiras bem aparentados, & assaz: mas de se vencido dele, me caíra a frauta da mão, a lançou
chamarem assim não foi ela a causa. A sombra da da occasião pera a levantar, se com a pressa não
mais certa lhes guardava o seu gado, & em quanto caíra, & eu a colhera com o furto, o que foi causa
ele pascia, gastava a maior parte da manhã em de me descobrir a de sua afeiçaõ, & de sua desgraça.

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[...] Que quem ventura, sem ventura tem,
Mas como neste tempo minha desgraça vivia Se se val dela & cuida que lhe val,
desterrada nesta Aldea, puxou por mim pera se Não tem cousa mais certa, que enganar-se.
pagar nela aos anos por dia desses poucos, que em
minha pátria tive de descanço. E como a fama, Bem recebidos foram estes versos da ausente
que corre desta terra, a faz hoje em letras tão Belizarda, & namorada Phyles, & por lhes ser
insigne, como o foi em armas noutro tempo, aqui notória a causa deles, lhes pareceu bem o conceito,
concorrem de todo Portugal, & da maior Aldea & agradou o estilo: não me nos satisfizeram aos
(que é a cabeça dele, & o coração de Europa) os pescadores, os quais vendo que já o Sol os cons-
mais felices engenhos que ela tem, que com o trangia a que se recolhessem à sombra das suas
resplandor das ciências, com que aqui se ilustram, lapas, que por baixo de ũa penedia alcantilada apa-
de um Pólo ao outro alumiam o mundo. Aqui me reciam, aonde faziam sua habitaçam, obrigaram a
vim eu despir das trevas, em que estava & revestido Ondelio que a aceitasse; & recolhendo as redes o
de luz, & da ciência (que nunca se deu bem nos levaram entre si, por saber dele o fim da começada
matos) fazia tanta ventagem aos naturaes, que a história. [...]
fama com o dedo me mostrava entre eles. Assim
entrava eu na idade juvenil tam cheo de esperanças, Ninguém te pode negar, fermosa Belizarda (disse
que não cabia em mim, tam amado de todos, que Phyles) serem muitas, & excelentes as partes, de
hora tinha de mim ciúmes, hora inveja, & sobre que te dotou a Natureza. Deu-te fermosura, graça,
tudo tam isento, & livre de paixões amorosas, que discrição, gravidade, brio, recato, honestidade, &
posto que as sabia reconhecer, nũca as soube sentir confiança em tudo, & sobre tudo a soberania
quando Amor. natural, com que esses esmaltes em ti como em
Por diante fora Ondelio com sua práctica, se o jóia de muito preço, resplandecem; & ainda dissera
não condenara a silêncio a música de Laurea, que mais, se pelo pouso, que em mim há, pudera chegar
traspassada pelo peito não do punhal, que lhe ficou a dizer o muito, que em ti vejo. Injustamente me
na mão, mas de um cuidado, que não alma lhe afrontas (respondeu Belizarda) pois junto à minha
ficou, sentada sobre a sepultura, aonde tinha ouvido imperfeição dás lugar a teu merecimento: mas fazes
a causa dele, desmentindo a venturosa ocasião, que bem, porque junto a ela necessariamente ele há-de
se lhe oferecera, ao som de um arrabil, que realçar mais; ou fazes mal: porque é lição de feas
Belizarda lhe tangia, cantou o que se segue. chegarem-se às que o são mais, pera o parecerem
menos. Fea me chamas (tornou Phyles) & falas
Venhas contentamento muito embora, verdade, que é sobre todas, parte, que se não acha
Dar-te-á meu coraçaõ hoje aposento, em muitas. Em boa conta (acudiu Laurea) pouca
Que pois que sempre o foi de meu tormento, é a que de mim se faz; fique-vos pois em castigo
Bem é que o seja teu somente um hora; desta afronta o fim dessa contenda; & pois o tem-
Verás um coração tam triste agora, po nos dá lugar, folgara que também o déramos à
Que nunca soube ver contentamento, verdadeira história de Belizarda, & soubéramos a
E como está de posse o sentimento, causa de se desterrar da sua Aldea pera esta nossa,
Então menos o sente quando o chora: onde lhe não parece nada bem. Ai de mim (disse
Mas se a Fortuna quer que eu goze um bem, Belizarda) se nesta ausência, em que vivo, ou morro,
Porque me quer com ele fazer mal, não tivera a quem me queixar dela! E pois da
Pode comigo já desenganar-se, comunicação de um mal resulta muitas vezes o

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remédio dele, ainda que por ser notória a causa, a Arcindo & Livia, por fim de tudo (como o foi de
vos enfade, & a mim canse, lançarei mão da ocasião, meu contentamento) pediu Aurelio a meu pai
que me dais pera contar meu miserável, & triste Arcenio me deixasse sair ao terreiro com sua filha
sucesso, que é o seguinte. Livia. Não me valeu escusar-me pera deixar de o
~
Ua das frescas Ribeiras, que neste vosso Mondego fazer, a tempo, que Felicio, & seu irmão Lionio
tem entrada, é a celebrada Duessa, que às mais se nos recebiam com estes versos, que então forão
aventaja, assim na pureza de suas ágoas, como na de mim tam estimados, que encomendando-os
corrente delas. Corre entre brancos Álamos, despois à memoria, me não esqueceram mais.
copados Cenceiros, Vimeiros altos, Amieiros ver- [...]
des, sombrias Aveleitas, alegres Freixos, deleitosos
Plátanos, & outras árvores frescas, que até nos mais
fundos pegos, como por baixo de vidraças
cristalinas representam de contino à vista fingidas
espessuras, & encantados bosques, que com qual-
quer movimento se perdem dela. Brota do pé de
um monte alto junto a um viçoso sítio, aonde nasce.
Aqui naci eu, & em tam triste estrela, que a que
sigo me mata; & não acabo só porque vivo triste;
& vivo tão contente com minha sorte, que não
invejo outra. Se me perguntais a causa? fale Felicio
em mim. Ai, mas quantas vezes me entristecia com
o prazer, por temer a falta dele! Receios são de
Amor, sobressaltos do Tempo, & assaltos da Fortuna,
com que todos três nos saqueam o bem, que nos
não deram. Tempo foi que tam de neve me
achavam os incêndios de Amor, que lhes fora mais
fácil convertê-la em fogo, que a mim a seu propó-
sito, & mais possível abrasar os Montes, & as Ro-
chas, que ofender-me na sombra de minha liber-
dade. Rendê-la me parecia fraqueza, obedecer
miséria, servir vileza, perder-me desatino; & de
todos os males nenhum maior que querer bem.
Das tocadas dele, ou feridas de peste me não fiava,
de longe ouvia seus queixumes, de perto me ou-
viam reprensões: calunimavam-me em ausência,
louvavam-me em presença; não sei que viam em
mim, que lhes decepava a confiança, com que a
perdiam, & o passo de maneira, que o não davam
por diante. Das que por mais Águias se tinham era
eu Sol: [...]

Sucedeu pois que entre muitas festas, & jogos,


dançando muitas pastoras, & pastores, & desposados

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Advertiu Angelino em que Preciosa chorava e ela,
Sóror Maria que no seu reparo fez advertência, lhe disse: Não
choro as saudades do que fui, porque eu não sei a
do Céu* que era; choro os perigos do que sou porque não
sei aonde entro e estes cristais que hoje despeço
com ignorância, pode ser que amenhã chame com
experiência.
Ainda, Senhora (respondeu Angelino), não é tempo
A Preciosa de entenderes ao que vindes, mas só vos advirto
que, para pisares segura esta terra, sempre vos haveis
“Limbo de Infantes” (Capítulo 1) de fiar em mim, nunca de vós, e dêmos os
primeiros passos, para que vos deixe aonde vos
De uma encoberta ilha chamada Abismo do Nada hei-de guardar, não como presa de alguma justiça,
mandou o supremo Rei tirar uma beleza Precio- mas como assistida de algum cuidado. Já a este
sa, que deveu este nome às excelências do ser e tempo entravam em um aprazível vale, vistoso
não às lisonjas da antonomásia. Chegou a fremosura engano aos olhos, custoso desengano à experiência.
aos olhos da Majestade e foi tão agradável a seus Neste descobriram uma fonte de tão aprazíveis
olhos que fez o amor tiro ao coração, para nunca cristais, que chamava com graças a quem se lhe
fazer retiro à fineza. Enamorado de perfeição tão chegava com manchas e, porque alguma não fosse
peregrina tratou de guardá-la cuidadoso, só para sombra à luz de Preciosa, entrou a banhar-se
obrigá-la amante, e falando a um grande de sua prevenida, esperando a sua companhia retirada.
Corte, chamado Angelino, lhe disse: A beleza que Deixou as águas, saindo delas tão fremosa que
agora foi objeto a meus olhos, foi também roubo excedeu na fonte beleza verdadeira à que no mar
a meu afecto, amo-a com soberania de Rei, mas se crê deusa mentida e, a não ser Tétis fábula, só
também com fineza de homem; ao meu amor fora inveja. Tornou Angelino a conduzi-la e fez
tocam os seus aumentos, à vossa obediência a sua glória de olhá-la, e vendo-lhe duplicadas as graças,
guarda; eu vo-la entrego para que ma defendais respeitou da fonte as maravilhas, pois troixe dela a
cuidadoso, que já sabeis tenho inimigos, e adverti pureza dos cristais, sem deixar o precioso das
que a destino para as majestades de Esposa, que pérolas. Do alto do seu sólio viu o Rei a nova luz
por isso a resgatei dos Ésses de escrava. da beleza querida e, crecendo o amor nos aumentos
Respondeu Angelino com a obediência, que não da fremosura, disse tierno, sem que fosse ouvido:
tem mais palavras a sujeição, e chegando aonde Preciosa, não percas essa graça, que por ela te
Preciosa estava, que ainda não era tempo de ser na prometo esta Coroa.
Corte, a achou acompanhada de um criado, que Retirou-se sua Sua Majestade mui enamorado,
El Rei lhe deu para assisti-la, homem de gentil caminhando Preciosa mui inocente e, a pouco
presença, de soberbo gesto, inclinado a mandar e andar do vale, chegou com a sua companhia a um
mandado só para servir. delicioso jardim aonde só havia jasmim puro,
açucena candida, cravo branco, flor nevada, aves
tiernas, águas simples; ali não havia vôo de abelha
picante, arrojos sim de mariposa inocente; ali não
* Edição actualizada do Códice 3773 da BN, precedida de era o Sol ardor que consumisse, era Febo só luz
um estudo histórico por Ana Hatherly. Lisboa: INIC, 1990. que alegrasse; ali não entendia a Aurora o porque

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chorava, nem sabia a Alva o porque se ria; ali não Despertou, que era tempo, e por mandado do
havia o rio para o murmuro, havendo fonte para o grande Rei chegou a Preciosa e lhe intimou estas
pranto; ali toda a mosqueta era singela, e nenhuma rezões severo: A Majestade de um grande Rei viu
rosa era dobrada; ali não se conhecia da ave a pena, vossa beleza e, humanando-se a querê-la, fez gosto
advertia-se só da ave o canto; ali não chegavam os de amá-la, pois podendo mandar ao destino, se
silvos do Noto, sim as mansões do Zéfiro. Em este inclinou ao rendimento; trocou-vos o S de escrava
lugar, chamado Limbo de Infantes, deixou pelo de escolhida, que já sabeis que nacendo
Angelino a Preciosa, em companhia de Procorpo Senhora, vos criastes sujeita. Olha-vos para Esposa,
(que assim se chamava o seu criado) e de duas e não é pouco, que ainda sendo tanto subis a muito,
Damas de sublime calidade e rara fremosura, e a medir as distâncias do ser há tanta distância,
chamadas uma Luz, outra Amanta. Estas lhe deixou que caira o pensamento despenhado e não acertara
para assisti-la, e a um venerável ancião também de a rezão confundida. Para o sólio, pois, da Majestade
calificado ser, tio das duas belezas, que eram primas, vos tirou do abatimento da Ilha, porém, decreta
e ao despedir-se de Preciosa disse Angelino: Neste seu poder que padeça alguns vagares seu amor.
ameno jardim tenho preceito para deixar-vos e Do jardim em que por preceito seu fostes detida,
quem me fiou a diligência de trazer-vos, me em- manda que saiais a este vale, que escolheu para
penha também no cuidado de assistir-vos; assim entretanto a suas bodas. Nele haveis de assistir por
me fico a ser custódia a vossa beleza, ainda que largo tempo, em o qual quer Sua Majestade con-
não seja objecto a vossa vista. Por agora não podeis quistar-vos o alvedrio por fineza, que não compra
entender-me mais e me retiro a não desvelar-me a vontade com poder. Ama-vos tão fino, que até
menos. Sem esperar resposta fez saída, que não de sua soberania tivera zelos, se vira vos inclináveis
para ausência, ficando Preciosa a passear o jardim aos respeitos da Coroa mais que às dívidas do
com as Damas e Procorpo, a regalar-se com o leite afecto. Assim vos quer render pelo que ama,
do vale. Só o bom do velho se deitou a dormir, quando vos pudera sujeitar pelo que pode,
até que fosse hora de despertar. deixando-vos liberdade para o desdém, ao mostrar-
-vos obrigação para o amor, porque assim faz o
seu amor a sua obrigação. Quer haja em vós aquele
“Vale de Lágrimas” (Capítulo 2) temor de amante, mas não que o ameis só pelo
temor; que queirais enfenecida, não forçada; deixa-
Em limbo de Infantes deixámos a Preciosa, tenra -vos no livre de poderes escolher o que for me-
flor daquele jardim, tão maravilha na fremosura nos, e dá-vos conhecimento de que ele é o mais,
que olhando-a o Sol luz, se retirou sombra. Era porque na dúvida, não faça desculpa a inclinação;
este portento nunca visto na terra, sendo sempre liberaliza-vos a advertência nas luzes, e não vos
admirado no céu. Assistiam-na Amanta e Luz sem cativa a liberdade nas sombras; enfim, é tão fidalga
se atreverem a revelar-lhe os altos fins para que ali a sua fineza, que podendo tudo o que quer, não
a troixeram. Assim passaram algum tempo descui- quer em vós tudo o que pode. Olhai, Senhora,
dadas, sem haver pena que as despertasse havendo não passeis de ficar livre a ser ingrata, que vos re-
sinceridade que as divertisse. Nesta tranquilidade pudiará ingrata quem vos quis livre, e a isenção
pacífica as achou Sereno (que assim se chamava o para o alvedrio não é desculpa para a ofensa, que
venerável ancião), que se inclinou letargo para Sua Majestade dá-vos liberal para que lhe
acordar notícia. recompenseis agradecida, e da Coroa que vos tece
sua fineza vos poderá privar a sua justiça, aonde

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haveis de chorar perdida e não haveis de tornar Loucos, não pelas pedras com que fazem tiro mas
Preciosa. Não vos fieis em cautelas para dissímulos, pelas margaritas de que fazem desprezo; este anfi-
que vosso Amante adivinha pensamentos para ter teatro chamado Monstro, não pela disformidade
ciúmes, e se com amor é um homem que padece, com que se vê mas pela desunião com que se con-
com zelos é um leão que ruge. Dai asas à ideia serva, esteVale, pois, de que vos conto, aonde entrais
para que suba, e cadeias ao pensamento a que não preciosa e de donde podeis sair perdida, é a um
deça; nao repartais desvelos, que é loucura; sêde abrir de olhos, sonhado, é a um fechar de olhos,
uma na memória, que é obrigação; cuidado no desaparecido; é um susto no temor do que será; é
cuidado, e porque saibais o que merece vosso um perigo nas posses do que há; é uma mentira
amante, ouvi quem é meu Rei: aonde as rosas são as lisonjas; é um desengano
É Sua Majestade, por ser, tão soberano que, a com- aonde os espinhos são as realidades; é um espelho
parar-vos sua fidalguia com as estrelas, ficaram elas que dá mais presunções à fremosura; é um vidro
encarecidas, ele queixoso; e a querer o Sol ser que deixa menos durações à beleza; é um vento
exemplo, fora sombra. A nobreza de seu Pai é tão que não pode senão ruinas; é um ai que não segura
antígua, que não se lhe acha princípio, por sua nem vaidades; é uma cegueira que foge das luzes;
Mãi da Real Casa de Judeia. é uma luz que anda rogando as sombras; é um rio
É tão poderoso, que com uma palavra fará um que sempre corre a despenhar-se; é uma penha
Mundo, e me atrevo a dizer que ainda um Céu, que nunca chora a enternecer-se; é um pranto
porque um Céu e um Mundo pode fazer em duas em que muitas vezes há rezões de riso; é um riso
palavras. Não há Rei que lhe não seja tributário, em que sempre há modvos de chorar; é um desvelo
não há criatura que lhe não seja sujeita: o mar não em que muitos adormecem; é um letargo em que
brama, o ar não serena, a fera não geme, a ave não nenhum descansa. Neste Vale, pois, como vos digo,
canta, a fonte não chora, o vento não corre, a estrela há suntuosas moradas aonde a soberba levanta
não pára, a pedra não lastima, a árvore não lisonjeia, quanto a inveja arruina; há mais choças humildes
a flor não nace, o Sol não vive, o dia não morre, aonde à pobreza não perdoam retirada os baldões
sem vontade sua. da vaidade conhecida; há floridos prados aonde a
[...] malícia adormece os áspides que ao dispois
desperta a inocência; há aprazíveis jardins aonde a
EsteVale, chamado de Lágrimas, mais pelas misérias delícia põe a duração nas flores para que o deleite
com que se olha que pelas fontes com que se rega; tenha ser nos instantes; há intrincados labarintos
este lugar chamado o Desconhecido, não pelas aonde a memória morre perdida e a vontade vive
sombras com que se encobre mas pelos enganos aprisionada; há bosques opacos aonde se não faz
com que se dissimula; este campo chamado o da boa sombra à singeleza e só se dá capa à dissimu-
Variedade, não pelas flores com que se mescla mas lação há pomares de vistosas frutas aonde lisonje-
pela inconstância com que se pisa; este país, ando-se ao gosto nunca se satisfaz ao desejo; há
chamado Nada de Nadas, não pelo pouco que desertos aonde chora a verdade retirada quanto
nele se logra mas pelo menos que dele se leva; esta logra a mentira introduzida; há silvados aonde
morada, chamada a do Encanto, não pelas escarmenta o descuido para não cerrar os olhos
maravilhas que oculta mas pelos peregrinos que ao cuidado; há despenhos aonde não tem voz o
adormece; este monte, chamado Mar de Perigos, perigo para que tenha mais facilidade o arrojo; há
ou já pelas sereias que cantam ou já pelas tormentas fontes aonde toma lições a murmuração e não
que navegam; esta estada, chamada Prisão de busca espelhos o desengano; há rios aonde as

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Ninfas são uma beleza mentida e os Tritões uma olhos; pois vos afirmo que há cocodrilos, não creais
fineza fabulosa, há árvores altivas aonde a ambição os prantos; pois vos ensino que é tudo folha, não
sobe a chegar e o poder nunca chega a subir; há aprendais das árvores; pois vos intimo que é tudo
filomenas enamoradas que cantam de um amor fábula, não vos mintais nas Ninfas; pois vos certi-
aonde puderam chorar de uma tragédia. Aqui de fico que é tudo lisonja, não oiçais os Faunos; pois
maravilha se acha perpétua firme, amor perfeito, vos represento que tudo é ostinação, não vos
açucena cândida, jasmin puro, rosa singela, angélica lastimeis nas pedras; pois vos grito que em nada
suave, margarita preciosa, cravo abrasado, lírio há firmeza, não vos creais das penhas; pois vos
celeste; aqui toda a flor é azar; todo o cravo é informo que tudo perde o brio, não vos inclineis
mesclado; toda a rosa é sangrenta; toda a açucena aos ares; e finalmente, pois vos juro que tudo é
é frágil; todo o jasmin é hipócrita; todo o lírio é mentira, aborrecei o tudo e apelai para uma Aura
delírio; toda a chaga é culpa; todo o narciso é suave de alentos superiores que nestes bosques
presunção; todo o girassol é idó1atra; toda a sopra: a ela ouvireis, que vos há-de falar em respi-
perpétua é fingida; toda a maravilha é flor; nenhum rações, mas tratai de lhe gratificares em obediências,
amor é fino; e tanto é o desamor com que me que às vezes foge para não tornar, quando a
tratam neste Vale que fugi dele. Aborrecida sou de escutam sò para a ouvir. A esta tereis por aviso, a
seus moradores: dos homens, porque os desengano; Angelino por guarda, a Sereno por guia, a mim
das mulheres, porque as não lisonjeio; dos maiores, por luz, com que os perigos dos vossos passos nao
porque os igualo; dos pequenos, porque os não terão desculpa em ser tropeços. Acabou Cândida
creço; das feias, porque lhe não chamo fremosas; o lastimoso informe, pagando Preciosa se em
das fremosas, porque lhe lembro que hão-de ser atenções as notícias, em pérolas os sustos, mas
feias; dos moços, porque lhe digo que se vai o alentada nos arrimos, tratou de não desmaiar aos
tempo; dos velhos, porque lhe acordo que já se ameaços, ag radecendo muito à Ser rana a
foi; dos amantes, porque lhe desfaço os enredos; compaixão com que a preveniu, na lealdade com
das amadas, porque lhe desmancho as vaidades. que a informou, rogando-lhe não deixasse de
Assim, Senhora, que já não sou admitida senão assisti-la, prometendo-lhe que sempre da sua
em algum deserto, aonde dou vozes, que só ali companhia seria estimada. A Serrana lhe segurou
não dou vozes em deserto em alguma cabana, a ficaria a servi-la enquanto lhe não desse causa para
quem a malícia deixou por escondida ou perdoou deixá-la.
por pobre. Ali, quando muito, me hospeda um [...]
pastor simples, que é muito minha amiga a
singeleza, e na serra, que por alta me é defensa, me “Embaixada de Delcídia” (Capítulo 5)
retiro do Vale, que quiçá que por de baixo ser me
seja perigo. Junto à Primavera de várias flores e vizinhas à
Ali soube hoje a vossa entrada nele e compadecida aspereza de altos espinhos se sentaram três Damas
de vossa fremosura quis valer-vos noticiosa, e uma Serrana, esta mui cortezã nos primores,
primeiro que vos perdesses peregrina. Olhai como aquelas mui aldeanas no donaire. Às flores picavam
pisais esta terra, pois vos disse que havia áspides, com a fremosura, aos espinhos floreciam com a
não vos fieis das flores; pois vos advirto que há assistência, que aqui perdeu-se por inveja quanto
espinhos, não vos pegueis das rosas; pois vos segurei lá se ganhou por comunicação. Os rios já não
que havia murmuros, não converseis as fontes; pois corriam, que paravam; as aves cortavam as asas para
vos lembro que há despenhos, não descuideis os abaterem os voos; os Faunos perdiam a memória

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das Ninfas; as Ninfas esqueciam o temor dos vontade quem não quer lisonjear a minha vista?
Faunos e tudo ficava suspensão aonde Preciosa, Sua Majestade, respondeu Cândida, quer comprar
Amanta, Luz e Cândida eram objectos. Por este a vossa vontade só à custa da sua fineza, deixar-se
Vale, dizia Amanta para a Serrana, por este Vale se ver fora fazer merecimento do que é, e ele quer
pode dizer que não é o diabo tão feio como o fazer merecimento do que ama. Não podeis negar,
pintam! Vós retratáste-lo um Inferno e ele lá tem tornou ela, que no que acredita o seu extremo
seus deixos de Paraíso, e quasi que adormece a duplica a minha mortificação, e que então ficava
memória às lisonjas da vista. mais amante quando me deixasse mais gostosa. Os
[...] mistérios do seu amor, disse Cândida, não se
Muito inconsiderada estais para discreta, disse regulam pelas vulgaridades de outro querer; ele
Cândida, contentais-vos de umas coisinhas pintadas não vos pode ter saudades porque sempre vos vê
para a loucura de um poeta e riscadas da conside- e vós morrereis de saudades se o houvéreis visto.
ração de um filósofo! Dizei a esse Sol que se doa, Morrera eu mil vezes, respondeu Amanta, e
a esse cravo que se queixe, a essa árvore que chegue, soubera o como ele é uma, mas Preciosa ou tem
a esse arroio que páre, a esse roixinol que enamore, muita paciência ou muita fé, pois não põe uma
a essa fonte que ensine, a essa rosa que não morra, escada ao céu e dentro no mesmo céu o vai
a essa mariposa que ressucite, e se assim o fizerem, averiguar! Segundo sois de voluntária, disse
eu gostarei de ver como maravilha o que a vós vos Cândida, bem se esperara de vós tal determinação,
diverte como fábula, mas se a mariposa não tem mas ele tem seus capr ichos e não satisfaz
fé para tornar, se a rosa não tem beleza para viver, curiosidades: lançara-vos da escada a baixo e
se o arroio não tem remédio para despenhar-se, e deixara-vos menos ligeira e tão ignorante! [...]
o Sol não tem fogo para consumir-se, se a fonte
foge sem o cuidar, se a árvore sobe sem o presumir, “Jardins de Delcídia” (Capítulo 7)
se o roixinol não tem alma para querer, se o cravo
não tem vida para sentir, como fazeis estórias da No jardim havemos de entrar, que de flores nem
fé da mariposa, dos zelos do Sol, da fineza do arroio, uma serpe faz medo. Não entrareis, tornou Sereno,
dos amores da ave, das graças da rosa, da ferida do que estou eu considerado para atalhar-vos
cravo, do atrevimento da árvore, das lisonjas da indiscreta! A fazer medo basta uma flor, sem ser
fonte? Ora digo-vos, que ainda de alguma sidra uma serpe, pois pode esconder uma serpe essa flor!
de amor nos haveis de fazer estória, que quem é Andaremos com tento, respondeu ela, e assim não
tão ignorante nos reparos será tão inocente nos nos picará o áspide dormido. Deixai as cobardias
contos! [...] para as baixezas, o medo para os muitos anos, e o
Como não havia de falar verdade quem chegou a jardim para nós!
dizer que me queria? Pois olhai vós pela vossa fé, [...]
tornou Cândida, porque se não possa dizer que Chegáram ao meio do jardim aonde se ostentava
com mentiras se pagam. De melhor satisfação, disse uma fonte superior às mais na grandeza, singular
Luz, ficarão as verdades de ElRei e aqui estou eu na traça, porque das outras se ficavam as correntes
para fazer a Preciosa memória delas. Quem nace em seus tanques e desta corriam arrebatadamente
nobre, disse Preciosa, vive agradecida, mas também as correntes. Era fonte ao nacer, rio ao não parar, e
me confesso queixosa: amar eu a ElRei sem que o suas águas, se apareceram nativas, se desnaturali-
veja parece fé, amar-me ElRei sem deixar-se ver zaram impetuosas: fugiam a desaparecer, e em todo
parece desamor. Como pode anelar a minha o jardim se não viam a ficar. Estava de peitos sobre

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a fonte uma Dama que o agotá-la tinha tomado a exceder-lhe, que não admitia competência excepto
peito: bebia com uma ânsia e ficava a beber com esta. Não havia em o jardim coisa que se lhe com-
uma porfia, que não só parecia ter sede da água parasse, ainda entrando Ninfas e flores. Vestia a
mas que a mesma água lhe fazia a sede e, embebi- belíssima Dama cor de rosa, bordado o vestido
da nela, da nova companhia não deu fé. Que fon- em Cupidos de prata. A outra, também de gentil
te é esta, disse Preciosa, tão grosseira ao jardim parecer, alegre semblante, vivíssimas acções, agra-
que o foge, e que mulher é esta tão fina dáveis olhos, encarnada cor, vestia de uma
com a fonte que a não deixa? Esta fonte, respondeu Primavera de flores guarnecida em espinheiros de
Ocia, é de águas tão suaves, de tão saborosas oiro. Chegou a vistosa companhia a fazer salva de
correntes, que lhe chamam os Bens do Vale, e esta cortesias a Preciosa, e última a levou nos braços a
Dama é tão sedenta de seus cristais que lhe Senhora Delcídia, de quem ela muito enamorada
chamam a sede destes bens. Todo o dia está estimava e correspondia os afectos. Tempo era,
bebendo e em nenhum dia se satisfaz. Quanto mais Senhora Preciosa, disse a Encantadora, de mere-
deseja mais bebe, quanto mais bebe mais deseja. cer-vos neste jardim, pois em vós lhe faltava a
Agota a fonte e não farta a vontade. Pois melhor flor! Vós bastáveis, disse Preciosa, a fazeres
cheguemos, disse Amanta, antes que ela a seque, a nela as maravilhas, e se eu soubera que tal Aurora
provar de suas águas, e se nos souberem bem amanhecia neste Vale, não lhe chamara Vale de
deixar-nos-emos como ela estar! Se assim for, disse Lágrimas mas Vale de Pérolas! Essas, tornou
Luz, viremos a secar o Vale e lançar-nos-ão dele Delcídia, lhe troixestes vós no tesouro de vossa
por destruição de suas minas! Eu, disse Preciosa, beleza, aonde não só das Índias tendes o precioso
não quero ficar nas águas, que também quero pro- mas também dos índios a devoção, e já que
var dos frutos. Com que, por mais gulosa, disse chegastes ao meu Paraíso, ouvi o que no meu
Luz, sois menos sedenta! Ora vejamos se tem bom Paraíso vindes a lograr:Aqui, oh belíssima Preciosa,
gosto esta Ninfa hidrópica, cheguemos a ajudá-la aonde o gosto faz lei para que a delicia tenha vida,
já que não podemos adverti-la! Beberam todas, aqui haveis de achar os ares tão serenos que se
gostáram das águas, mas conheceram que lhe não
equivoquem os ventos com as respirações, sem que
satisfaziam a sede. Contudo, deixaram a fonte por
se mesclem os suspiros com os alentos; aqui
lograrem o mais do jardim, com intento de torna-
encontrareis os incêndios tão templados que o Sol
rem a buscá-la, sem que a sedenta Dama desse
há-de nacer a ser luz e não há-de crecer a ser fogo;
atenção mais que a seus cristais. Passeavam o grande
aqui gostareis as águas tão salutíferas que fiqueis
mapa de flores, pagas das maravilhas que nele viam,
sempre a desejá-las, não passando nunca de bebê-
quando as suspendeu a métrica harmonia de
-las; aqui pisareis a terra tão vistosa que a cada
feridos instrumentos que, vários no ser, iguais na
passo vos dará uma gala de flores, pagando-vos
consonância, entravam pelos ouvidos a fazer glória
um Abril por cada passada; e água, terra, fogo, vento
da apreensão. Ao estrondo da melodia se
encresparam as águas de um cristalino golfo, e delas serão um festejo a vossa fremosura, como um
levantaram as cabeças para ver, e soltaram a voz sacrifício a vossa deidade: a terra sem aspereza, o
para cantar, as músicas Sereias que na prisão vento sem estrondo, o fogo sem perigo, a água
daqueles cristais faziam morada. sem murmuro. Palpareis rosas sem a crueldade dos
[...] espinhos; cheirareis aromas sem o embaraço dos
fumos; gostareis néctares sem a grossaria de
Faziam-lhe lado duas Senhoras, e uma de elas de manjares; vereis maravilhas sem o custo de abrires
tão estranha fremosura que só a de Preciosa podia os olhos; ouvireis sereias sem o risco de perderes

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os sentidos, e ao tacto, vista, olfacto, ouvidos, gosto É de condição altiva, de gosto vário, inveja de
se repartirão dos bens deste lugar pedaços de glória muitos, desvelo de todos, finalmente Princesa de
que não serão migalhas. Aqui vos não morrerá o grande estimação.A outra chama-se Évida, Senhora
dia nunca, que as luzes prevenidas destruirão as de muito valor, e tão amada neste Vale que se
sombras forçosas; o transparente dos cristais, os raios cuidarmos hoje nos há-de deixar, morreremos de
dos diamantes, os resplandores dos topázios, o fogo susto de esperá-lo, primeiro que do rigor de vê-lo.
dos rubis as luzes do carbúnculo substituirão o A sua saúde é o nosso cuidado, a sua conservação
Sol para alegrar-vos, e da noite vos deixarão só as o nosso desvelo, a sua presença o nosso bem, a sua
estrelas. Aqui, no Verão, vos perdoarão calores companhia o nosso alento e enfim, Senhora, por
activos, no Inverno, frios elados, que as neves dos ela respiramos, sem ela acabaremos.
Janeiros vos conservarão para o ardor dos Estios e É de delicada compleição, de débil natural, mas
da esfera do fogo vos farão um Estio contra os com a sua viveza engana o nosso receio e fazemos
Janeiros. Aqui não ouvireis as músicas rogadas e nela uma esperança como se a julgáramos eterna.
sempre os instrumentos prevenidos; aqui não Ouvindo Preciosa o informe das duas belezas,
achareis o divertimento a dias porque de todos chegou a falar-lhe com agrado, a que elas
faz um o divertimento. Aqui as finezas de um corresponderam com estimações, e tão enamorada
Narciso serão sombra ao cristal de vossa beleza e estava a nossa companhia do jardim que, sem
serão fogo à neve de vosso desdém; aqui as aves lembrar-lhe a estabilidade do Vale, fizeram ali o
cantarão a vossa fremosura, as mariposas se abra- seu Paraíso. Nele encontraram uma grande mensa
sarão a vossas luzes, as fontes correrão a vossas para a qual administrava oficiosa uma mulher os
graças, as flores crecerão a vosso Sol; aqui... Basta, delicados manjares, aonde da demasia se fez prato
amabilíssima Ninfa, atalhou Preciosa, dizei que para o deleite, e tão ocupada estava a mulher neste
aqui vos acho, direis tudo, porque é ofender o que ministério que de tudo o mais descuidava. Quem
mereceis fazer-me memória do que lograis! é esta mulher, perguntou Preciosa, tão embebida
Discorramos do jardim o que falta por curiosidade, no que se come que parece que dos manjares até
que por satisfação eu não quero mais do que vejo. os fumos bebe? É quem não tem cuidado de outra
Passeava toda a companhia o jardim e ao ouvido coisa, lhe respondeu uma das Damas, e reparai
de Preciosa chegava Procorpo repetidas vezes a melhor nela: aqui olhou com mais atenção Preciosa
dizer: Ah, Senhora, não saireis vós daqui enquanto e viu que só do seu estâmago se podia fazer um
eu tiver vida! Preciosa, dizia por outro lado Amanta, corpo de outra, tão desmedido era o seu estâmago.
não deixareis vós este lugar enquanto eu tiver Grande aleijão, disse Preciosa, entre tantas maravilhas
alvedrio! Assim fazia o seu ofício o bom do criado também se faz singular esta monstruosidade! E na
e a má da companheira. Reparava Preciosa na monstruosidade adora, tornou a Dama, porque do
superioridade das duas Damas que faziam lado a seu estâmago faz o seu ídolo, mas aqui são as
Delcídia e perguntou a uma das outras quem eram. comidas tão deliciosas que passa de ter desculpa a
Aquela Senhora, respondeu ela, de beleza, deve ter rezão! Mandou Delcídia tomar lugar a Preciosa
tanto à fama de suas prendas que lhe chamam por na cabeceira da mensa e a Narciso cadeira junto a
antonomásia a Fremosura; é cuidado de muitos ela. Fizeram-lhe companhia Évida, a Fremosura,
Cupidos, Cupido de muitos corações, coração de Amanta e Luz. Procorpo assistiu em pé, costas da
muitos olhos mas também (aqui abaixou’ a Dama cadeira de Delcídia, de cuja mão tomava os pratos
a voz), mas também é causa de muitas desgraças e que a seu regalo se ofereciam favor, e ele tão satis-
se ela não nacera, ainda Troia estivera por abrasar. feito do lugar que dera a alma por passar nele a

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vida. As Damas serviam, cantavam as Sereias, tan- besta tão disforme que só consigo teve semelhança,
giam as Ninfas. Estando no melhor do banquete, por isso se lhe não dá nome. As Ninfas se tornaram
se neste banquete houve melhor, bateu à porta em feras, as Sereias em siglas. Do banquete voaram
dura mão com apressados golpes. Mandou Delcídia as aves, estaláram os vidros, esparziram-se os néctares,
um criado a saber o que era. Este perguntou sem os doces provados foram azlbar, as bebidas apuradas
abrir. Foi-lhe respondido o que batia ser um foram veneno, os frutos gostados foram fel. Esten-
homem que vendia luzes de grande claridade.Aqui deu a atemorizada Dama os olhos ao jardim para
se fez toda olhos a vilã que deu os pôs contra os retirar de tantas mortes e viu as flores trocadas
Sereno e, chegando ao ouvido de Delcídia, lhe em espinhos; as árvores nuas de toda a gala; a lapa,
disse não sei que chocalhice, com que a fez mudar erário das riquezas de Delcídia, desfeita em terra
de cor mas não de ser. Cerrai essas ginelas! gritou com todas as riquezas; as fontes correndo a
a Encantadora: Cuidado nessas portas! Cautela lágrimas, e a que dos bens do vale tinha o nome,
nesses muros! O mesmo ar se entolde! Não entre, mudados os cristais de suas águas em asqueroso
não entre, que é fogo dissimulado e luz conhecida! lago; a Dama que antes a agotava sedenta, trocada
Aqui fez uma densa nuvem tecto ao jardim; em aquele animal que do lodo faz sustento. Assim
oscurecendo o pavilhão celeste, ficou docel se revelava mas hediondas correntes a lastimosa
nocturno, que aos conjuros da Encantadora baixou transmutação do cauteloso jardim. Estremeceu
pronto, mas a diligência de quem bateu detruíu a Preciosa e a sua companhia, que também padecia
prevenção de quem embuçou, porque, arrojando- o mesmo reparo, com luz para conhecer mas sem
-se, um raio de luz rompeu a sombra, deixando o resolução para deixar.
jardim o que era, se não o que parecia.
Logo que a disparada flecha de luz entrou no “Corte do Rei” (Capítulo 23)
fingido Paraíso, sendo em si tão clara, o vestiu de
uma cor diurna, ar opaco, assombrada vista, a cujas A breve tempo de sua partida, com ser desmedida
macilentas luzes, descobertas pelo preclaríssimo a distância, chegou Preciosa à Corte da maior
raio, viu Preciosa com admiração, e não sem temor, Majestade, que a esperava amante porque o soube
a seguinte transfiguração: Pôs em Delcídia os olhos buscar arrependida.
e achou-os em uma serpente de veneno tão nocivo Era da cidade tão soberana a grandeza, tão singular
que a pouco alento inficionou os ares; a Senhora a superioridade, tão levantada a magnificência, tão
Fremosura se tornou em uma caveira feia como a alta, tão régia, tão maravilhosa a fábrica, que
morte que representava; a Évida um assopro de ar querendo pena de águia descrevê-la, disse o que
a levou debaixo de dois palmos de pedra, aonde pôde e não pôde o que viu. Cuide-se em sua
ficou a não ser vista; Ócia se desfez em nada; as riqueza: os cimentos de pedras preciosas, as paredes
Damas se converteram em basiliscos, que todo o de oiro puríssimo, as portas de margaritas, os
perigo se lhe deixou aos olhos. Quis Preciosa assentos de diamantes, as ruas calçadas de safiras,
contra o espectáculo presente buscar no afecto de as moradas cravadas de rubis. Contemplem-se em
Narciso algum reparo, mas achou-o de diferente seus paraísos as flores de duração constante, a
ser, olhos de raio contra ela, semblante de inimigo, fragrância de suavidade celestial, as fontes de água
na mão um punhal com que Ihe ameaçava o viva, os frutos de sabor eterno. Presuma-se em sua
coração. A má vilã se transformou em cocodrilo, soberania os Grandes de cabeça coroada, a nobreza
que chorava dissimulada para enganar cautelosa; escolhida como o Sol, o povo mais nobre que as
na mulher que aministrava o banquete se viu uma estrelas. Veja-se em sua paz a união em todos

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recíproca, o contento em nenhum menos, a
satisfação em todos. Medite-se em sua alegria: toda
a gala de luz, todo o adorno de resplendores, toda
a fábrica de luzeiros. Olhe-se em seus festejos os
instrumentos superiores, as músicas divinas, os
conceitos soberanos. Cuide-se em seu Rei a
Majestade no mandar, o afecto no querer, a
liberalidade no repartir, a fortaleza nas vitórias, a
justiça nos juízos, a misericórdia nos perdões, a
soberania no poder, a singularidade no amor.
Olhem-se em seus criados o número a milhares,
o luzimento a sóis, o extremo em tudo e em tudo
o infinito. A esta Corte, pois, e a este Rei chegou
Preciosa, assistida de sua companhia e de muitos
da Casa Real, que a vieram cortejando.
As admirações com que seu amor creceu à vista
do Rei; os afectos do Rei à sua vista; a satisfação
de Preciosa, vendo-se a seus olhos; a corres-
pondência da Majestade que a tinha neles; os
amantes colóquios dos dois recíprocos; à conside-
ração vêm dificultosos quais seriam, à pena, de
impossíveis. Das festas com que a Corte a recebeu;
da Coroa que nela se lhe preveniu; das grandezas
que se lhe mostráram; dos tesoiros que se lhe
ofereceram, e das liberalidades que ElRei com os
da sua companhia repartiu, também se não pode
explicar o menos nem compreender o mais. Este
foi o fim de Preciosa, princípio de suas felicidades,
termo de suas peregrinações, e porque arrependida
chorou no Vale seus deslizes, mereceu coroar na
Corte sua fortuna, aonde ficou a celebrar seus
desposórios e a eternizar sua beleza.

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BIBLIOGRAFIA
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