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clássicos de Marx para armar-se devidamente para o combate teórico. Até então não
havia lido seriamente as obras marxistas, tornara-se comunista por identificação com o
pai...
Importante enfatizar que a cultura política comunista transcende, incorporando,
as idéias e o conjunto ideológico que dá forma ao projeto comunista. E transcende
também as instituições partidárias, ainda que a cultura comunista tenha na figura do
partido um dos seus elementos essenciais, inclusive na forma de mito (“o partido é
infalível”, “um comunista não pode estar correto contra o partido”). Na verdade, a
cultura política comunista inspirou a formação de vários partidos, especialmente no
Brasil, todos eles se considerando os seus verdadeiros e melhores intérpretes.
É necessário esclarecer: comunismo aqui significa a inflexão bolchevista que
partiu da – e também partiu a – tradição marxista. Seu momento de fundação é outubro
de 1917, a revolução bolchevique na Rússia que abriu caminho para a formação da
União Soviética. O episódio de 1917 e as representações nele originadas – ideais,
líderes, heróis, inimigos, conquistas, mitos – tornaram-se o cerne da identidade
comunista. Anteriormente, outros grupos haviam sido chamados de comunistas
também, mas a apropriação bolchevique desta expressão deixou marcas perenes e
associou indelevelmente comunismo a bolchevismo, servindo para distinguir os
seguidores da linha soviética das outras tendências marxistas e socialistas. Identificar-se
com a liderança de Lenin e o modelo revolucionário de 1917 constituiu a base da
cultura política comunista, ainda que tenham surgido depois disputas e críticas em
relação aos rumos da URSS sob Stalin e sucessores. Partindo do velho tronco comum
socialista construído no século XIX, o evento de 1917 permitiu a constituição da “nova”
tradição comunista.
Desde o advento bolchevique, com destaque também para o ano de 1919 quando
foi formada a Internacional Comunista, comunismo e socialismo se distinguiram no
campo da esquerda, dando origem a relacionamento que uma expressão feliz chamou de
“inimigos-irmãos”.6 Próximos e distantes ao mesmo tempo, ao longo do século XX
comunistas e socialistas aliaram-se e combateram-se, sucessiva e alternadamente. A
aproximá-los a filiação ao socialismo do século XIX, que representou interpretação
radical dos valores ilustrados/iluministas e do republicanismo de esquerda. Comunistas
e socialistas herdaram da mesma matriz valores comuns, entre eles o cientificismo, o
racionalismo, o universalismo, o igualitarismo, o laicismo. E partilharam também
6
sobretudo em países situados nas áreas periféricas. Tais representações passaram não
apenas pela produção de textos e ataques verbais, mas também pela mobilização de
recursos visuais, com destaque para a caricatura, em que pontificou a figura de Tio Sam
registrado em chave negativa. A propósito, a temática antiimperialista propiciou forte
deriva antiamericana, ao ponto de tornar difícil distinguir as duas coisas nos discursos
da esquerda, ou seja, nas representações comunistas, freqüentemente, o
antiimperialismo se manifestava como antiamericanismo. Em princípio, os comunistas
não favoreciam ataques aos Estados Unidos como nação, já que o inimigo não seria o
povo daquele país, mas seus chefes políticos e sua burguesia, considerados líderes do
capitalismo mundial. A literatura e a imprensa comunista procuravam fazer tal
distinção, e mostravam-se simpáticos a certos traços da cultura popular norte-americana,
principalmente tudo o que pudesse ser visto como progressista ou servisse de denúncia
contra o sistema capitalista, a exemplo da opressão vivida pelos negros nos EUA. Além
disso, o imperialismo deveria ser atacado por tratar-se da “etapa superior” do
capitalismo, ou seja, por estar imbricado na lógica econômica do capital, e não por ser
atributo de uma nação em especial. Entretanto, no contexto da Guerra Fria os Estados
Unidos assumiram o lugar de principal potência imperialista e, na qualidade de
adversário maior da URSS atraíram o ódio dos comunistas. Além do mais, em muitos
países, como o Brasil, os EUA tornaram-se uma das principais fontes de investimentos
do capital estrangeiro e o grande esteio internacional das forças anticomunistas.
Neste ponto, também, o internacionalismo das esquerdas viveu um de seus
paradoxos, pois o nacionalismo tornou-se aspecto chave da pregação comunista, por
oposição ao imperialismo norte-americano. Porém, na visão comunista não se tratava de
opor uma nação às outras, reclamando qualquer tipo de superioridade, o que era típico
do nacionalismo conservador. Tratava-se de enfatizar os interesses nacionais contra o
imperialismo, o que também mobilizava a solidariedade para com outros povos em
situação semelhante ao Brasil, na América Latina, Ásia e África. Em suma, as
demandas nacionalistas, tal como as viam os comunistas, serviam de ponto de apoio
para fortalecer a causa revolucionária e lutar contra o inimigo principal, o imperialismo,
e não eram consideradas contraditórias em relação aos princípios internacionalistas.
Mais um elemento central desta cultura política: a concepção de que a
Revolução significava não somente a construção de novas estruturas econômicas e
sociais, mas também do “novo homem” (racional, materialista, socialista, livre da moral
9
anticomunismo, é interessante observar que ele teve efeito contraditório sobre a imagem
dos comunistas. Ao mesmo tempo em que os inimigos disseminavam representações
terríveis sobre os comunistas, com o objetivo de isolá-los da sociedade, a presença do
comunismo no cenário público era constantemente reafirmada por tais discursos, ainda
que em chave negativa, criando mitos sobre a força e a efetividade da militância
revolucionária. Assim, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que demonizavam os
comunistas, seus adversários contribuíam para reafirmar o seu lugar no cenário público,
confirmando sua centralidade como atores políticos mesmo nos momentos em que
estavam fragilizados.
Entre as centenas de milhares de aderentes do comunismo em todo o mundo,
cabe destacar uma categoria social, os intelectuais e artistas.16 Esse grupo tinha
importância especial para as organizações partidárias, pois ajudava a produzir imagens,
discursos, idéias e a disseminá-las entre a população, inclusive graças ao seu prestígio
social. Era fundamental poder dizer que Pablo Neruda, Candido Portinari, Jorge Amado,
Pablo Picasso, Oscar Niemeyer, entre outros, pertenciam ao movimento. Eles foram
atraídos, em parte, pela imagem de vanguarda revolucionária associada ao comunismo,
uma das portas de entrada para a modernidade e fonte de críticas à ordem tradicional,
além de inspiração para a produção cultural. Mas as relações entre os partidos
comunistas e os intelectuais foram marcadas por ambigüidades e tensões, devido às
tentativas de controle e enquadramento estético, bem como à exploração política da sua
imagem. No entanto, nem sempre os intelectuais/artistas foram vítimas nessa relação,
pois alguns deles aproveitaram a máquina cultural dos partidos (editoras, jornais,
prêmios) para divulgar melhor a sua obra.17 Bom exemplo de como as demandas do
“coração” e do “cérebro” podiam se combinar e influenciar simultaneamente a opção
militante.
Para compreensão adequada da influência social e da circulação da cultura
comunista vale a pena uma observação. Nem sempre os discursos dirigidos aos
militantes eram idênticos às representações divulgadas para o público externo. Alguns
elementos da cultura comunista foram adaptados e reinterpretados com vistas a atingir a
sociedade, sobretudo nos momentos em que o partido alcançou maior influência no
debate público. Por razões táticas, às vezes certos temas eram nuançados, como a
indisposição contra a Igreja e a religião, ou as demandas pela “libertação das mulheres”,
para aplacar resistências sociais e até de parte dos militantes.
13
marcante durante décadas, e pode ter funcionado como fator de atração para membros
de minorias religiosas que, tal como os comunistas, se consideravam vítimas de
perseguição católica. Este tema pouco foi pesquisado até o momento, mas há indícios
interessantes de que o partido comunista atraiu membros de minorias religiosas, como
protestantes de várias denominações, espíritas, judeus e praticantes de outras formas de
culto. Além de uma comum identidade “dissidente”, eles podem ter encontrado no
comunismo espaço de atuação que não viam em outros movimentos políticos. Os
comunistas tendiam a ser hostis à Igreja dominante e mais tolerantes com os não
católicos, embora, obviamente, defendessem ponto de vista materialista. Nesse sentido,
não deve ser considerada simples coincidência a iniciativa do deputado comunista Jorge
Amado de propor projeto de lei estabelecendo a liberdade de culto no Brasil, em 1946.
Para configuração mais sólida do “território” da cultura política comunista, será
interessante mais investimento na delimitação das suas fronteiras. Exemplo: devemos
considerar maoísmo, trotskysmo, guevarismo e stalinismo expressões da mesma cultura,
enfatizando as suas semelhanças, ou o mais correto seria tratá-los como subculturas do
comunismo? No caso do Brasil, vale a pena esclarecer os processos de mútua influência
entre os comunistas e as outras esquerdas, sobretudo trabalhistas, nacionalistas radicais
e cristãos de esquerda. Ainda considerando a experiência brasileira, tema significativo a
pesquisar são os laços entre a “nova esquerda” do período pós-1964 e a matriz
comunista. Penso principalmente nas esquerdas armadas que, em parte, formaram-se a
partir de dissidências do “partidão”. A propósito, essa expressão entrou em uso no
mesmo contexto, como referência irônica ao declínio do PCB, que definhava em meio a
críticas radicais contra seu fracasso em 1964 e a atitude “pacifista” diante do regime
militar. As novas esquerdas viam-se como alternativa ao partidão e desejavam romper
com ele. Mas terão conseguido seu intento? Não teriam elas continuado na trilha da
cultura comunista, inclusive revivendo experiências armadas protagonizadas pelo PCB
nas décadas anteriores, igualmente fracassadas?
Por fim, vale ressaltar alguns temas mencionados ao longo do texto, que
merecem consideração e até agora atraíram pouca atenção dos pesquisadores. Refiro-me
ao antiimperialismo e ao antiamericanismo, assim como ao antifascismo, a serem
observados, naturalmente, na vertente comunista e a partir do viés cultural. De maneira
semelhante, pesquisas orientadas para a compreensão da família como vetor de
17
1
A principal obra da dupla é ALMOND, Gabriel & VERBA, Sidney. The Civic Culture. Political
attitudes and democracy in five nations. Princeton: Princeton University Press, 1963.
2
Suas obras principais são: BERSTEIN, Serge. A cultura política. In RIOUX & SIRINELLI (org.). Para
uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1988; BERSTEIN, Serge (org.). Les cultures politiques en
France. Paris: Éditions du Seuil, 1999; BERSTEIN, Serge. Culturas políticas e historiografia. In
AZEVEDO, Cecília et alii. Cultura Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
3
Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In MOTTA, Rodrigo P.S. (org.). Culturas Políticas na História: Novos Estudos. Belo
Horizonte: Argvmentvm, 2009. pp.13-37.
4
Cf. CAVALCANTE, Berenice. Certezas e ilusões: os comunistas e a redemocratização da sociedade
brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Niterói: EdUFF, 1986. Proponho uma distinção entre os
conceitos cultura partidária e cultura política: os partidos comunistas (assim como outras organizações
políticas sólidas) constituem uma cultura partidária própria, que se inspira e se estrutura a partir da cultura
comunista. Entretanto, esta representa universo mais amplo que transcende a cultura estritamente
partidária, servindo de fonte de inspiração para vários partidos e mesmo para indivíduos sem militância
política, assim como para a produção cultural e artística.
5
Conceituação inspirada em BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social In Enciclopédia Einaudi. Vol.5.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. pp.296-332.
6
Cf. WINOCK, Michel. La culture politique des socialistes. In BERSTEIN. Les cultures politiques en
France.
7
É necessário registrar que alguns pesquisadores brasileiros já abordaram o comunismo como cultura
política, e serviram de inspiração para este texto, entre eles: FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do mito:
cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-56). Niterói: EdUFF: Rio de Janeiro:
Mauad, 2002; PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: História e Memória do PCB. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1995; CAMURÇA, Marcelo Ayres. A Concepção de História na Cultura
Comunista. Série Estudos Iuperj, Rio de Janeiro, v. 86, p. 1-59, 1991. Uma referência importante é
também o livro A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1990),
de Daniel Aarão Reis Filho.
8
Nos anos iniciais de formação da URSS, os bolcheviques reprimiram violentamente as instituições
religiosas do país, com vistas a eliminá-las. Entretanto, vale registrar que anos 1950 e 1960,
principalmente no chamado Terceiro Mundo, houve uma tendência de aproximação entre comunistas e
católicos, com base no processo de esquerdização de setores da Igreja. Mas foge aos objetivos deste texto
analisar esse tema.
9
Para uma visão oficial dos soviéticos sobre a moral comunista ver TITARENKO, A.I. et alii.
Fundamentos da ética marxista-leninista. Moscou, Progresso, 1982.
10
Para o debate político e as políticas sociais da URSS para as mulheres ver LAPIDUS, Gail W. Women in
soviet society. Equality, development, and social change. Berkeley: University of California Press, 1979. No
caso da legalização do aborto, Lapidus defende que a preocupação era menos dar o direito de escolha às
mulheres e mais evitar os males do aborto clandestino.
11
Sobre a moral comunista ver FERREIRA, Prisioneiros do mito, pp.118-143 e MOTTA, Rodrigo P.S. O
PCB e a moral comunista. Locus, volume 3, no 1. Juiz de Fora, EDUFJF, 1997. pp. 69-83.
18
12
GORENDER, apud GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,
p.38. Mas é curioso que um texto de mesmo título foi escrito por Álvaro Cunhal, líder do PC Português,
em 1947.
13
Para uma análise dos mitos de Prestes, Stalin e a URSS entre os comunistas brasileiros cf. FERREIRA,
Prisioneiros do mito.
14
A segunda companheira de Prestes, Maria Ribeiro, que batizou um dos filhos como Luiz Carlos Prestes
Filho, deu o nome de William a outro dos filhos, em memória de um dos homenageados da seção “Heróis
e Mártires do PCB” do jornal Voz Operária. William Dias era vereador e líder operário em Nova Lima,
MG, e morreu assassinado por capangas a serviço da empresa mineradora que atuava na cidade. Cf.
RIBEIRO, Maria. Meu companheiro. 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes. Rio de Janeiro: Rocco,
1992, p.56.
15
Reitere-se que foi feito apenas um esboço, sem intenção de analisar todos os aspectos da cultura
comunista.
16
Este tema será abordado por outros autores da coletânea, por isso receberá apenas menção ligeira.
17
Cf. RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais comunistas no auge da Guerra Fria. In Brasilidade
revolucionária. São Paulo: Editora Unesp, 2010, pp.57-83. Sobre as relações entre partido e intelectuais
ver também RUBIM, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil. Salvador:
UFBA, 1995 (pp.61-106) e MOARES, Dênis. Imaginário vigiado. RJ: José Olympio, 1994.
18
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, alguns intelectuais ligados ao PCB investiram em uma
reflexão crítica sobre a questão nacional desde a ótica comunista, em que procuraram demarcar sua
posição em relação ao nacionalismo, enfatizando a adesão dos comunistas a valores internacionalistas e
universalistas. Cf. FREDERICO, Celso. A política cultural dos comunistas. In MORAES, João Quartim
de (org.). História do Marxismo no Brasil. Teorias, interpretações. Volume III. Campinas: Editora da
Unicamp, 1998, pp.275-304.
19
Para uma discussão sobre a cultura política brasileira cf. MOTTA, Op.cit.
20
Principalmente em Instituições políticas brasileiras. São Paulo: José Olympio, 1949. Evidentemente,
não estou advogando que o personalismo seja exclusivo do Brasil, já que tradições semelhantes são
encontráveis em outros países.
21
Prestes não foi formalmente expulso, mas saiu do partido, e atirando (com sua Carta aos comunistas,
de março de 1980), quando se deu conta de que para permanecer deveria aceitar uma posição subalterna.
22
Entre os trabalhos disponíveis gostaria de citar o estudo de Victoria Bonnell (Iconography of Power:
soviet political posters under Lenin and Stalin. Berkeley: University of California Press, 1997).
23
Por exemplo: TAVARES, Betzaida Mata Machado. Mulheres comunistas: representações e práticas
femininas no Partido Comunista Brasileiro. Dissertação de Mestrado em História, UFMG, 2003.