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A cultura política comunista: alguns apontamentos

Rodrigo Patto Sá Motta


(originalmente publicado em In: NAPOLITANO, Marcos; CAJKA, Rodrigo; MOTTA,
Rodrigo Patto Sá Motta. (Org.). Comunistas: cultura política e produção cultural.
1ed.Belo Horizonte: UFMG, 2013, v. 1, p. 15-37.)

Como o título do texto indica, serão apresentados aqui alguns apontamentos


sobre a cultura política comunista, tratando em rápidas pinceladas tema denso e
complexo. Inevitável, portanto, o risco de simplificar em demasia questão polêmica -
tanto do ponto vista político quanto teórico. Porém, o risco vale a pena em vista da
importância do assunto e das ricas perspectivas oferecidas pelo prisma da cultura
política. A proposta é mostrar que o estudo do comunismo como cultura política pode
oferecer ângulo de abordagem fértil, capaz de abrir novas trilhas de pesquisa sobre
objeto cuja importância é evidente, tanto pela influência que exerceu à esquerda,
estimulando a produção de idéias e projetos políticos, assim como inspirando a
produção cultural e as artes, quanto por seu impacto à direita, que encontrou na bandeira
anticomunista uma de suas principais motivações para ação.
Primeiramente, se faz necessário apresentar o conceito em seus traços básicos,
para esclarecer as perspectivas teóricas em que se assenta esta análise. A categoria
cultura política foi desenvolvida pelas ciências sociais norte-americanas nos anos de
1950 e 1960, em estreita conexão com as teorias de desenvolvimento e modernização
em voga naquele período. Tais debates se desenrolaram tendo como pano de fundo a
Guerra Fria, sob a preocupação de fortalecer o campo “democrático” em disputa com o
bloco socialista. Ponto de partida: as sociedades ocidentais, sobretudo os EUA, eram
democracias sólidas e estáveis, ficando implícita a superioridade de seu modelo em
vista das outras opções disponíveis. Como decorrência, tais democracias eram exemplos
a serem seguidos pelos outros povos, tratando-se de encontrar explicações para a origem
das diferenças e elaborar roteiros seguros para que todos chegassem lá. A motivação dos
autores a discutir o tema era compreender melhor a origem dos sistemas políticos
democráticos, partindo da percepção da insuficiência dos paradigmas iluministas que
viam o homem como ator político estritamente racional. Questionando as explicações
tradicionais, alguns cientistas sociais começaram a formular a hipótese de que
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democracias estáveis demandavam cidadãos com valores e orientações políticas


internalizadas, ou seja, a presença de uma cultura política, que mobilizava crenças,
sentimentos e tradições. Os principais teóricos dessa linha, Gabriel Almond e Sidney
Verba criaram uma tipologia para enquadrar as diferentes formas de cultura política,
culminando em esquema que as resumia a três tipos básicos: cultura política paroquial,
cultura política da sujeição e cultura política participativa. A última, naturalmente,
correspondia ao estágio superior e meta a ser alcançada pelos povos em atraso na
corrida para a democracia, e, quando em combinação com instituições políticas
democráticas dava origem à cultura cívica, ou democrática.1
Naturalmente, tal quadro teórico foi submetido a severas críticas por sua
proximidade ideológica com os preceitos da Guerra Fria e pelo esquematismo da
tipologia triádica proposta por Almond & Verba, além do mais, comprometida por visão
que hierarquizava as diferentes culturas políticas. Em anos recentes, porém, o conceito
foi reapropriado pela historiografia, sob impacto da “virada culturalista”. Influenciados
pela força ascendente do paradigma culturalista e interessados em renovar o enfoque da
História Política, alguns historiadores redescobriram a categoria cultura política, entre
eles os franceses Jean-François Sirinelli e Serge Berstein2, que propuseram apropriação
que exclui os elementos funcionalistas e eventualmente etnocêntricos presentes na
formulação original, e esta ressalva é fundamental.
Ainda que façamos uso da categoria em acepção diferente da versão dos
cientistas sociais norte-americanos, em um ponto central a inspiração teórica é a mesma:
o entendimento de que a cultura – em sentido antropológico – influencia as decisões e
ações políticas. E esta compreensão implica certa crítica ao paradigma liberal-
racionalista, que vê os agentes políticos como seres movidos essencialmente por idéias e
interesses. A perspectiva culturalista, portanto, a aplicação do conceito cultura política,
supõe a convicção que os homens agem também movidos por paixões e sentimentos,
como medo, ódio e esperança; são mobilizados por meio de representações e
imaginários que constroem mitos e heróis exemplares, bem como inimigos odientos; e
tomam decisões por influência de valores construídos em torno da família, nação ou
religião. Assim, a atuação política dos homens não decorre apenas da apreensão racional
de interesses e/ou da aceitação de idéias e projetos sistemáticos e coerentes, mas por
determinação também de fatores culturais. Mas isso não implica estabelecer uma
espécie de determinismo culturalista, desprezando a importância do interesse e da
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escolha individual. A abordagem cultural é valiosa e inspiradora, mas se for encarada de


maneira absoluta pode empobrecer, ao invés de enriquecer, as possibilidades de
conhecimento. No momento da decisão, os agentes têm à disposição um leque de
opções para orientar suas ações, e os fatores culturais (sentimentos, identidade, valores)
podem exercer maior ou menor influência, a depender do contexto e das escolhas dos
atores.
Nesta perspectiva, pode ser adotada a seguinte definição para cultura política,
sem a pretensão de excluir outras acepções possíveis para um conceito que é,
evidentemente, polissêmico: conjunto de valores, tradições, práticas e representações
políticas partilhado por determinado grupo humano, expressando identidade coletiva e
fornecendo leituras comuns do passado, assim como inspiração para projetos políticos
direcionados ao futuro. Vale ressaltar que se trata de “representações” em sentido
amplo, configurando conjunto que inclui ideologia, linguagem, memória, imaginário e
iconografia, implicando a mobilização de mitos, símbolos, discursos, vocabulários e
diversa cultura visual (cartazes, emblemas, caricaturas, filmes, fotografias, bandeiras
etc). Reiterando, trata-se de conceito de cultura próximo à perspectiva antropológica,
mas que comporta também, e as integra, expressões artísticas e manifestações estéticas.
Tal conceituação de cultura política pode ser aplicada tanto a conjuntos nacionais
(cultura política brasileira, por exemplo), quanto a projetos políticos específicos, em
matriz pluralista: comunismo, liberalismo, conservadorismo, fascismo etc.3
A esta altura da exposição cabe a pergunta: o que se ganha com a utilização de
cultura política como categoria de análise para pesquisar o comunismo? A resposta é
que esse conceito pode ajudar a explicar melhor as razões da longevidade do
comunismo, e também porque a influência da cultura comunista transcendeu os limites
das organizações partidárias. Além disso, o estudo do comunismo como cultura política
pode oferecer compreensão mais rica das motivações para adesão, que não se
restringiram a identidade ideológica ou a defesa de interesses de classe. Mais ainda, esse
aporte teórico é capaz de nos ajudar a entender os mecanismos de popularização do
projeto comunista, que passaram, entre outros caminhos, pela via da manipulação de
imagens e sentimentos.
Na cultura partidária do PCB (Partido Comunista Brasileiro) circulava dito
interessante, expressão metafórica das motivações que levariam as pessoas a aderirem
ao movimento comunista. Segundo essa formulação, haveria três fontes que
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sensibilizariam os indivíduos favoravelmente ao comunismo, correspondentes a órgãos


do corpo humano: cérebro, estômago e coração.4 Alguns aderentes eram convencidos
pelo cérebro, conquistados pela argumentação teórica e filosófica marxista; outros eram
tangidos pelo estômago, ou seja, as necessidades materiais, a pobreza, e se
identificavam com o comunismo na expectativa de verem sua situação social melhorar;
já um terceiro grupo era tocado pelo coração, quer dizer, sua aproximação com a
esquerda devia-se à força da sensibilidade. Na inspirada metáfora comunista, o coração
corresponde exatamente à chave da cultura política, cujas linhas principais serão
traçadas neste texto: a influência dos sentimentos, da identidade, do imaginário e dos
valores culturais. Muitos militantes tornaram-se comunistas por identificarem-se com a
imagem de Luiz Carlos Prestes, de Stalin, ou da União Soviética, a “pátria do
socialismo”; ou então pelo sentimento de afinidade com familiares comunistas (pais,
avós, tios, irmãos); ou, ainda, seduzidos pela leitura de um romance proletário ou social,
com seu desfile de heróis positivos e inimigos desprezíveis; ou, então, atraídos pela
satisfação simbólica de pertencer a uma forte comunidade de sentido5 – a “família”
comunista – que se imaginava na vanguarda da humanidade e do progresso social.
Não se trata, evidentemente, de propor oposição simples e mutuamente
excludente entre escolha racional e determinação cultural. O argumento é que elementos
culturais precisam ser considerados nas tentativas de explicar a força do comunismo.
Para o uso mais adequado da categoria cultura política convém não estabelecer
explicações exclusivas, como se fosse pedra filosofal ou panacéia. Muitos comunistas
escolheram seu caminho devido à influência combinada de dois, ou mesmo dos três
“órgãos” referidos (cérebro, estômago, coração), enquanto outros aderiram
exclusivamente pela força de convencimento da filosofia marxista. Mas nem todos. Um
relato colhido em entrevista realizada pelo autor pode servir de exemplo. A entrevistada
nasceu nos anos 1940 e o pai era militante comunista muito dedicado. Perguntada sobre
o significado de ter sido educada por pai comunista, respondeu que na juventude não
tomava coca-cola, símbolo do imperialismo, e lia romances de autores como Jorge
Amado e Graciliano Ramos. Seguindo os passos do pai ela aderiu também ao
comunismo, tendo militado enquanto estudante de Ciências Sociais e depois como
professora. A certa altura da entrevista ela contou que foi fazer pós-graduação em
instituição muito influenciada por conceitos das Ciências Sociais norte-americanas e,
então, sentiu necessidade de atuar em defesa do marxismo. Por isso, pôs-se a ler os
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clássicos de Marx para armar-se devidamente para o combate teórico. Até então não
havia lido seriamente as obras marxistas, tornara-se comunista por identificação com o
pai...
Importante enfatizar que a cultura política comunista transcende, incorporando,
as idéias e o conjunto ideológico que dá forma ao projeto comunista. E transcende
também as instituições partidárias, ainda que a cultura comunista tenha na figura do
partido um dos seus elementos essenciais, inclusive na forma de mito (“o partido é
infalível”, “um comunista não pode estar correto contra o partido”). Na verdade, a
cultura política comunista inspirou a formação de vários partidos, especialmente no
Brasil, todos eles se considerando os seus verdadeiros e melhores intérpretes.
É necessário esclarecer: comunismo aqui significa a inflexão bolchevista que
partiu da – e também partiu a – tradição marxista. Seu momento de fundação é outubro
de 1917, a revolução bolchevique na Rússia que abriu caminho para a formação da
União Soviética. O episódio de 1917 e as representações nele originadas – ideais,
líderes, heróis, inimigos, conquistas, mitos – tornaram-se o cerne da identidade
comunista. Anteriormente, outros grupos haviam sido chamados de comunistas
também, mas a apropriação bolchevique desta expressão deixou marcas perenes e
associou indelevelmente comunismo a bolchevismo, servindo para distinguir os
seguidores da linha soviética das outras tendências marxistas e socialistas. Identificar-se
com a liderança de Lenin e o modelo revolucionário de 1917 constituiu a base da
cultura política comunista, ainda que tenham surgido depois disputas e críticas em
relação aos rumos da URSS sob Stalin e sucessores. Partindo do velho tronco comum
socialista construído no século XIX, o evento de 1917 permitiu a constituição da “nova”
tradição comunista.
Desde o advento bolchevique, com destaque também para o ano de 1919 quando
foi formada a Internacional Comunista, comunismo e socialismo se distinguiram no
campo da esquerda, dando origem a relacionamento que uma expressão feliz chamou de
“inimigos-irmãos”.6 Próximos e distantes ao mesmo tempo, ao longo do século XX
comunistas e socialistas aliaram-se e combateram-se, sucessiva e alternadamente. A
aproximá-los a filiação ao socialismo do século XIX, que representou interpretação
radical dos valores ilustrados/iluministas e do republicanismo de esquerda. Comunistas
e socialistas herdaram da mesma matriz valores comuns, entre eles o cientificismo, o
racionalismo, o universalismo, o igualitarismo, o laicismo. E partilharam também
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símbolos e rituais, como a cor vermelha, a comemoração do 1o de maio, o hino A


Internacional etc. Tais afinidades permitiram alianças em certas ocasiões, sobretudo
quando se sentiam igualmente ameaçados por forças de direita ascendentes. Porém, as
diferenças geraram identidades distintas e desconfianças duradouras, principalmente
com base nas críticas socialistas ao legado soviético, cujo autoritarismo e violência
repressiva repudiavam, e nos ataques comunistas ao “aburguesamento” dos socialistas.
Voltando a centrar atenção na cultura política comunista, passo a apresentar
alguns de seus traços principais.7 Dados os limites do texto, o propósito é mais
apresentar esses pontos que analisá-los a fundo, com o objetivo de estabelecer quadro
amplo do universo cultural comunista para orientar futuras pesquisas. Serão elencados,
inicialmente, elementos comuns ao comunismo internacional e, em seguida, traços
peculiares da cultura comunista no Brasil, que foram desenvolvidos, a meu ver, sob
influência da cultura política brasileira.
Em primeiro lugar, vale destacar algumas concepções filosóficas dos
comunistas, que serviram de base para seu sistema de convicções, valores e
representações. Principalmente, a crença na razão, na ciência e no progresso, como
fundamentos para a construção de uma sociedade socialista, em que os homens seriam
libertados das forças do “atraso” social e da tradição. A convicção é que a nova
sociedade permitiria a superação da pobreza e da miséria, ou seja, das privações
materiais, o que, ao mesmo tempo, abriria caminho à superação da superstição e
ignorância. Por isso mesmo a importância da educação na cultura política comunista,
como vetor capaz de disseminar os valores da nova sociedade. Naturalmente, o principal
adversário dos comunistas neste terreno eram a Igreja e a religião, que eles viam como
principais agentes da reação. A religião seria responsável por manter as pessoas na
ignorância e sempre lutara contra os processos revolucionários, ao lado dos poderes
constituídos. Portanto, tratava-se de obstáculo a ser combatido para a afirmação de
valores materialistas, que representam outra base angular da filosofia e cultura
comunistas. Com a ocorrência de embates agudos nas primeiras décadas do século XX,
em que os religiosos assumiram a linha de frente de campanhas anticomunistas,
acentuou-se a tendência anticlerical e anti-religiosa dos comunistas, com
desdobramentos repressivos na URSS e outros países.8
O internacionalismo constitui elemento importante da cultura comunista, em
oposição ao nacionalismo, considerado ideário típico da sociedade burguesa. Inspirava
7

os comunistas a célebre frase de Marx e Engels, no Manifesto Comunista: “proletários


de todo o mundo, uni-vos”. A idéia era que os proletários não deveriam seguir os
movimentos nacionalistas, que geravam guerras imperialistas e escamoteavam a
dominação social; sua identidade e solidariedade deveriam se restringir aos irmãos de
classe, lutando juntos, independentemente das fronteiras nacionais, em benefício da
igualdade universal. Entretanto, a profissão de fé internacionalista nem sempre foi
observada de maneira coerente, neste terreno os comunistas se envolveram em muitas
situações paradoxais. A principal foi a relação com a União Soviética, que a cultura
comunista considerava a “pátria do socialismo”, a ser defendida a todo custo. Tal
postura gerou muitos dissabores e propaganda negativa, pois os comunistas foram
acusados de traírem suas pátrias de origem em benefício do estado soviético. Porém, na
sua ótica eles não estavam defendendo uma nação em particular – afinal, os “soviéticos”
compunham entidade transnacional – e sim o embrião da futura organização social da
humanidade.
Outro ponto paradoxal na cultura comunista, ainda envolvendo a força do
modelo soviético, foi o estabelecimento de culto à URSS, à figura dos líderes e ao
partido (por isso mesmo, grafado em P maiúsculo na tradição comunista). Tal culto, que
levou à sacralização de líderes e instituições, produziu sua própria liturgia, assim como
textos dogmáticos (o marxismo-leninismo). Contradizendo suas convicções
materialistas, os comunistas deram origem a um tipo de religião política que atraía
“devotos” e apelava à fé dos seus aderentes, operando de maneira semelhante à tão
criticada religiosidade convencional. Tais práticas foram mais intensas no estado
soviético, em que atendiam também à preocupação de oferecer às massas populares
novos objetos de devoção, em substituição às religiões tradicionais, mas espraiaram-se
por grupos comunistas mundo afora, sobretudo no período stalinista. E os resultados
foram dúbios, pois ao passo que solidificavam a cultura comunista em certos círculos,
repeliam outros possíveis militantes, avessos à atmosfera sacral cultivada em certos
círculos revolucionários.
Próximo aos ideais internacionalistas e à devoção soviética, outro elemento forte
da cultura comunista se desenvolveu: o antiimperialismo. Trata-se de questão pouco
pesquisada ainda, mas fundamental para entender as culturas de esquerda em geral (e
não só a comunista), e seu sucesso em atingir setores mais amplos da sociedade. De
fato, o antiimperialismo foi tema freqüente nos discursos e representações comunistas,
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sobretudo em países situados nas áreas periféricas. Tais representações passaram não
apenas pela produção de textos e ataques verbais, mas também pela mobilização de
recursos visuais, com destaque para a caricatura, em que pontificou a figura de Tio Sam
registrado em chave negativa. A propósito, a temática antiimperialista propiciou forte
deriva antiamericana, ao ponto de tornar difícil distinguir as duas coisas nos discursos
da esquerda, ou seja, nas representações comunistas, freqüentemente, o
antiimperialismo se manifestava como antiamericanismo. Em princípio, os comunistas
não favoreciam ataques aos Estados Unidos como nação, já que o inimigo não seria o
povo daquele país, mas seus chefes políticos e sua burguesia, considerados líderes do
capitalismo mundial. A literatura e a imprensa comunista procuravam fazer tal
distinção, e mostravam-se simpáticos a certos traços da cultura popular norte-americana,
principalmente tudo o que pudesse ser visto como progressista ou servisse de denúncia
contra o sistema capitalista, a exemplo da opressão vivida pelos negros nos EUA. Além
disso, o imperialismo deveria ser atacado por tratar-se da “etapa superior” do
capitalismo, ou seja, por estar imbricado na lógica econômica do capital, e não por ser
atributo de uma nação em especial. Entretanto, no contexto da Guerra Fria os Estados
Unidos assumiram o lugar de principal potência imperialista e, na qualidade de
adversário maior da URSS atraíram o ódio dos comunistas. Além do mais, em muitos
países, como o Brasil, os EUA tornaram-se uma das principais fontes de investimentos
do capital estrangeiro e o grande esteio internacional das forças anticomunistas.
Neste ponto, também, o internacionalismo das esquerdas viveu um de seus
paradoxos, pois o nacionalismo tornou-se aspecto chave da pregação comunista, por
oposição ao imperialismo norte-americano. Porém, na visão comunista não se tratava de
opor uma nação às outras, reclamando qualquer tipo de superioridade, o que era típico
do nacionalismo conservador. Tratava-se de enfatizar os interesses nacionais contra o
imperialismo, o que também mobilizava a solidariedade para com outros povos em
situação semelhante ao Brasil, na América Latina, Ásia e África. Em suma, as
demandas nacionalistas, tal como as viam os comunistas, serviam de ponto de apoio
para fortalecer a causa revolucionária e lutar contra o inimigo principal, o imperialismo,
e não eram consideradas contraditórias em relação aos princípios internacionalistas.
Mais um elemento central desta cultura política: a concepção de que a
Revolução significava não somente a construção de novas estruturas econômicas e
sociais, mas também do “novo homem” (racional, materialista, socialista, livre da moral
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burguesa e dos valores cristãos). A cultura comunista implicava a formação de nova


moral, para dotar homens e mulheres de escala de valores capaz de substituir os
sistemas morais pré-revolucionários, fundamentando os comportamentos da nova
sociedade. O argumento era que o socialismo só se realizaria plenamente com a
substituição dos valores característicos da sociedade burguesa, que estavam imbricados
no sistema de dominação e ajudavam a reproduzi-lo. Nesse ponto, uma das principais
fontes teóricas era o livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado de
Friedrich Engels9, que apontava o casamento indissolúvel como instituição necessária à
manutenção da sociedade burguesa. Novos valores significavam novos arranjos sociais
também, com mudanças no casamento, na estrutura familiar, nas relações entre os
sexos. Assim como a cultura socialista do século XIX, os comunistas defendiam a
“libertação” das mulheres, com promessas de dar-lhes oportunidades iguais aos homens
e liberá-las das convenções burguesas e cristãs. Para tanto, o Estado Soviético aprovou
medidas como o divórcio e o aborto, com o propósito de dar mais autonomia às
mulheres, e as estimulou a estudar e a trabalhar, inclusive em atividades
tradicionalmente masculinas. Investimentos em redes de creches e cozinhas coletivas
foram feitos com o mesmo propósito, para liberar as mulheres do trabalho doméstico e
permitir-lhes maior mobilidade. Os meios de divulgação e propaganda investiram muito
no tema da “nova mulher”, em filmes, livros e cartazes, o que trouxe repercussão
internacional também, tornando-se uma das fontes das campanhas anticomunistas.10
Não obstante os impulsos “libertários” no tocante aos valores morais, que podem
ter contribuído para atrair mulheres de vanguarda (no caso do Brasil, por exemplo,
Eugênia Moreyra, Nise Silveira, Eneida Moraes, Patrícia Galvão, Tarsila Amaral, e
muitas outras, anônimas), a cultura comunista era atravessada por uma tensão constante
entre, de um lado, o estímulo ao questionamento de normas convencionais, e, de outro,
o impulso de condenar “excessos” visando concentrar energia nas tarefas
revolucionárias. No caso da URSS, a libertação de costumes dos primeiros anos foi
contida depois, no período stalinista, e as promessas feitas às mulheres nunca se
realizaram plenamente. No que se refere ao movimento comunista internacional, as
demandas femininas sempre tiveram lugar importante nos discursos partidários, mas
submetidas a outras prioridades, e adiadas para o momento em que a revolução
finalmente se concretizasse.11 Na esfera do comportamento sexual, os códigos morais
elaborados pelos comunistas costumavam citar fórmula de Lenin que balizava seu
10

entendimento do tema: “nem monges, nem D. Juans”. Os comunistas eram a favor do


divórcio e dos direitos femininos, mas questionavam excessos eróticos e
comportamentos desviantes, inclusive pelo medo de que sua repercussão social
aumentasse os preconceitos anticomunistas.
A moralidade comunista incluía outros temas, sobretudo valores ensinados aos
militantes dos aparatos clandestinos. Eles aprendiam a amar a revolução e o partido
acima de tudo, bem como o operariado, o povo e a humanidade. Sua devoção à causa
deveria ser total e a abnegação seria ilimitada, ao custo de sacrifícios pessoais e
familiares, e mesmo eventuais sofrimentos físicos em caso de prisão. Havia inclusive
código de comportamento a ser adotado no momento da prisão, em que se esperava
conduta exemplar dos militantes. A atitude diante dos policiais deveria ser de audácia e
desafio, para caracterizar a superioridade moral do revolucionário diante dos “esbirros”
policiais, e capacitá-lo a suportar os sofrimentos sem fraquejar ou trair. Os mais
corajosos nessas situações tornavam-se modelos e heróis, a exemplo de Carlos
Marighella, cujo comportamento na prisão nos anos 1930 o transformou em lenda. A
propósito, ele é considerado autor de um dos textos que preparavam os militantes para a
experiência prisional: Se fores preso camarada.12 O heroísmo no limite do martírio era
o que a organização esperava dos seus membros, e tais valores eram constantemente
reiterados pelos veículos de divulgação. No jornal Voz Operária, por exemplo, um dos
periódicos editados pelo Partido Comunista na primeira metade dos anos 1950, saía com
certa regularidade uma coluna intitulada “Heróis e Mártires do PCB”. Os textos dessa
coluna construíram vários modelos heróicos de militantes, mortos em confronto com a
polícia, com jagunços, ou mesmo em acidentes a serviço da causa, exemplos que se
esperava fizessem escola entre os novos aderentes.
A produção de vocabulário próprio, fator de identificação e coesão do grupo, é
mais um elemento a caracterizar a força da cultura política comunista. Exemplos:
quadro, tarefa, camarada/companheiro, aparelho, ponto, cachorro (policial), integrar-se
à produção, pequeno-burguês etc. No que toca à fixação e divulgação dos valores do
grupo, vale a pena também considerar os símbolos (foice e martelo, estrela, punho
cerrado, cor vermelho, os hinos, bandeiras); os mitos (1917, Prestes, Lenin, Stalin13,
Mao, Marighella); e as datas comemorativas, como 1o de maio, 7 de novembro
(revolução soviética), 22 de março (fundação do PCB) e 3 de janeiro (aniversário de
Luiz Carlos Prestes). Neste rol merecem menção específica os rituais integrantes da
11

cultura comunista, como festivais, festas, comícios, reuniões, congressos, plenários e


mesmo casamentos entre militantes, que tinham um ritual próprio alternativo às
celebrações de caráter religioso. Uma das mais curiosas manifestações de adesão aos
valores comunistas, e de homenagem aos seus heróis, foi a escolha de nomes para os
recém-nascidos. Um número muito grande de crianças, difícil de precisar, recebeu o
nome de Luiz Carlos, obviamente como homenagem a Prestes, assim como vários
foram chamados de Lenin, Lenine, Stalin, Vladimir, Carlos Frederico (de Karl Marx e
Friedrich Engels), Carlos Marx, Marx, Tito (o líder da Iugoslávia), Olga (Benario),
Lídice (homenagem a cidade Tcheca destruída pelos nazistas), entre outros.14
Como em todas as culturas políticas mais sólidas, as representações comunistas
não se resumiam a retratar os seus modelos positivos, mas dedicavam lugar importante
também para os inimigos. E o comunismo cultivou rica constelação de inimigos, sempre
traçados em tons superlativos, freqüentemente caricatos. Nesta lista entram o burguês, o
capitalista, o aristocrata, o latifundiário, o padre, Tio Sam, o policial, o fascista, o
traidor, o espião, entre outros. Igualmente como em outras culturas políticas, as
representações e valores comunistas foram produzidos e disseminados por diferentes
veículos, ou, nos termos de Serge Berstein, vetores de socialização: impressos de
diferentes tipos, como jornais, livros, panfletos e revistas, sendo que as sedes dessas
publicações, ou mesmo as livrarias e bancas de revista que as comercializavam, muitas
vezes se tornaram lugares de socialização dos militantes; sindicatos e organizações de
trabalhadores; os próprios partidos; entidades estudantis; associações de bairro e clubes
populares. Nesta lista de vetores de socialização deve figurar em destaque a família,
pois muitos jovens foram apresentados aos valores comunistas no próprio ambiente
familiar.
Enfim, esse conjunto de representações15 reproduzido ao longo das décadas –
algumas vezes incorporando alterações – deu forma e identidade à cultura comunista,
distinguindo-a das demais e seduzindo milhares de pessoas. Durante o período mais
intenso, tornar-se comunista era adentrar um novo universo, verdadeiramente aderir a
uma cultura, a que não faltavam rituais de iniciação e um conjunto de normas, valores e
linguagem próprios. Havia a sensação de tornar-se membro de grupo forte e coeso, mas
ao custo do afastamento de outros círculos sociais, sob o óbice do anticomunismo.
Segundo o relato de um entrevistado, que aderiu nos anos de 1940, o comunista era
segregado pelos outros como se fosse um “doente, um viciado”. A propósito do
12

anticomunismo, é interessante observar que ele teve efeito contraditório sobre a imagem
dos comunistas. Ao mesmo tempo em que os inimigos disseminavam representações
terríveis sobre os comunistas, com o objetivo de isolá-los da sociedade, a presença do
comunismo no cenário público era constantemente reafirmada por tais discursos, ainda
que em chave negativa, criando mitos sobre a força e a efetividade da militância
revolucionária. Assim, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que demonizavam os
comunistas, seus adversários contribuíam para reafirmar o seu lugar no cenário público,
confirmando sua centralidade como atores políticos mesmo nos momentos em que
estavam fragilizados.
Entre as centenas de milhares de aderentes do comunismo em todo o mundo,
cabe destacar uma categoria social, os intelectuais e artistas.16 Esse grupo tinha
importância especial para as organizações partidárias, pois ajudava a produzir imagens,
discursos, idéias e a disseminá-las entre a população, inclusive graças ao seu prestígio
social. Era fundamental poder dizer que Pablo Neruda, Candido Portinari, Jorge Amado,
Pablo Picasso, Oscar Niemeyer, entre outros, pertenciam ao movimento. Eles foram
atraídos, em parte, pela imagem de vanguarda revolucionária associada ao comunismo,
uma das portas de entrada para a modernidade e fonte de críticas à ordem tradicional,
além de inspiração para a produção cultural. Mas as relações entre os partidos
comunistas e os intelectuais foram marcadas por ambigüidades e tensões, devido às
tentativas de controle e enquadramento estético, bem como à exploração política da sua
imagem. No entanto, nem sempre os intelectuais/artistas foram vítimas nessa relação,
pois alguns deles aproveitaram a máquina cultural dos partidos (editoras, jornais,
prêmios) para divulgar melhor a sua obra.17 Bom exemplo de como as demandas do
“coração” e do “cérebro” podiam se combinar e influenciar simultaneamente a opção
militante.
Para compreensão adequada da influência social e da circulação da cultura
comunista vale a pena uma observação. Nem sempre os discursos dirigidos aos
militantes eram idênticos às representações divulgadas para o público externo. Alguns
elementos da cultura comunista foram adaptados e reinterpretados com vistas a atingir a
sociedade, sobretudo nos momentos em que o partido alcançou maior influência no
debate público. Por razões táticas, às vezes certos temas eram nuançados, como a
indisposição contra a Igreja e a religião, ou as demandas pela “libertação das mulheres”,
para aplacar resistências sociais e até de parte dos militantes.
13

A adaptação de valores comunistas tradicionais aparece de maneira flagrante na


mobilização nacionalista dos anos de 1950-60. Integrados à maré montante do
nacionalismo, os comunistas transigiram com os valores internacionalistas, em nome do
sucesso de sua estratégia de alianças. Porém, ao seu modo, eles continuaram fiéis ao
“seu” internacionalismo, que significava acima de tudo defender a URSS e o “mundo
socialista”, bem como lutar contra o imperialismo.18 Seja como for, a arregimentação
nacionalista/antiimperialista/reformista teve grande impacto social no início dos anos
1960, gerando uma onda de medo nas hostes conservadoras e liberais. As esquerdas
divergiam em muitas coisas, mas adotaram linguagens e palavras de ordem
semelhantes, de maneira que às vésperas de 1964 ficou difícil discernir a origem dos
projetos defendidos pelos grupos reformistas/revolucionários, se vinham do PCB, dos
outros grupos marxistas, dos trabalhistas radicais ou dos cristãos de esquerda.
A menção à política de alianças dos comunistas permite que se retome o tema
das peculiaridades no Brasil. O argumento é que embora integrassem movimento
internacional, com padrão de valores, normas e práticas semelhantes em todos os
lugares, os comunistas também eram influenciados por elementos da cultura política do
seu país. Assim, para analisar adequadamente o comunismo no Brasil é indispensável
considerar a influência das tradições locais, afinal, a política não se faz no “vácuo”, e os
atores, mesmo com pretensões revolucionárias, precisam partilhar elementos da
linguagem política da sociedade de que são parte para “dialogar” e serem
compreendidos. Gostaria de destacar dois traços importantes da cultura nacional que
teriam marcado também os comunistas. Em primeiro lugar, o tema da conciliação e da
flexibilidade, características centrais da cultura brasileira em geral, e também de suas
expressões políticas.19 Ao longo da história, os comunistas brasileiros tiveram
momentos de sectarismo e ortodoxia, fechando-se às influências externas e expurgando
os militantes que não se enquadrassem. Entretanto, tão ou mais freqüentes foram os
períodos em que mostraram tendência à flexibilidade e à negociação, procurando
compor com outras forças políticas em busca de alianças que os tornassem atores
relevantes no quadro nacional. A influência do cenário brasileiro ajuda a explicar a
ocorrência de tantas alianças esdrúxulas promovidas pelo PCB que, de certo modo, se
adaptava ao “ambiente”. Os comunistas se aliaram a muitos líderes burgueses,
capitalistas, oportunistas, demagogos e até conservadores – inclusive alguns dedicados
anticomunistas –, e estes conchavos custaram ao partido perda de prestígio e arranhões
14

graves em sua imagem, ao ponto de comprometer sua identidade própria diante da


população. Mas vale destacar que eles fizeram tais alianças porque havia parceiros
disponíveis; em outros países, os comunistas não teriam essa escolha, pois os costumes
políticos em vigor excluíam acomodações semelhantes.
Parece-me flagrante, também, a influência de outro traço da cultura política
brasileira, o personalismo, a prevalência das relações pessoais sobre as instituições. Este
tema, cujo maior intérprete foi Oliveira Vianna20, apresenta uma série de implicações,
mas interessa aqui destacar um ponto: a tendência nacional a personificar a política, a
construir identificações fortes mais com líderes do que com projetos políticos ou
instituições impessoais. Não seria coincidência, portanto, que o comunismo no Brasil
conseguiu ter expressão popular apenas quando encontrou líder de forte carisma, com
imagem transcendendo o próprio partido: Prestes. O PCB tornou-se força política
relevante com base no mito prestista, que apelava muito ao “coração” das pessoas ao
mobilizar imagens sedutoras: o mártir, o homem abnegado, o militar-revolucionário
impoluto, o cavaleiro da esperança. O mito de Prestes foi utilizado com eficácia pelo
partido, que se aproveitou dele para crescer além das suas possibilidades. Porém,
paradoxalmente, o prestismo aprisionou o comunismo brasileiro, tornando-se problema
e ameaça para a organização partidária, o que terminou no rompimento dramático de
1980.21 Ampliando o foco, por breve instante, o mesmo argumento pode ser aplicado às
outras esquerdas e, a meu ver, o resultado confirma a hipótese. Os outros projetos de
esquerda que alcançaram popularidade no Brasil sempre se basearam em líderes com
carisma forte, e prestígio superior às instituições políticas, inclusive seus partidos de
origem: Jango, Brizola, Arraes e Lula. Vários grupos de esquerda tentaram conquistar a
sociedade brasileira, e alguns deles eram bem organizados, tinham bons líderes e
intelectuais de prestígio. Entretanto, só conseguiram se enraizar e se popularizar os
projetos de esquerda organizados à volta de figuras fortes, que se tornaram mitos.
Gostaria de terminar estes apontamentos sugerindo uma pauta de pesquisas
orientadas para a cultura política comunista. Começo destacando um campo que,
embora não seja totalmente virgem22, ainda tem muitas possibilidades a serem
exploradas: a cultura visual comunista. Nessa direção, diversos são os registros visuais a
estudar, como cartazes, filmes, caricaturas, fotografias, pinturas, esculturas,
monumentos, arquitetura etc. E a orientação teórica deve ser tanto na direção de
interpretar o uso político das imagens, utilizadas como meio para expressar valores e
15

persuadir/seduzir, quanto de perceber a influência dos valores comunistas como


inspiração para as artes visuais. Por falar nas artes, as relações entre artistas e intelecuais
e o comunismo configura terreno importante a pesquisar, dando continuidade aos
trabalhos já existentes. Vale aprofundar a análise sobre as relações entre os aparelhos
políticos e os intelectuais, considerando a relação de mútua dependência e interesse, e
os conflitos existentes, assim como as relações de sociabilidade estabelecidas entre
artistas e intelectuais de esquerda. Outro tema próximo da cultura visual e do
imaginário, também já trabalhado, mas ainda não esgotado é o dos mitos comunistas e
sua função política, entre eles Prestes, Stalin, Guevara, Marighella etc.
Em outra direção, vale a pena revisitar o tema da questão feminina na cultura
comunista, sobretudo porque há poucos estudos dedicados ao Brasil. 23 A sugestão é ir
além da arrasadora crítica feminista dos anos de 1960 e 1970, que tendeu a relegar como
conservadora a posição dos comunistas diante das reivindicações das mulheres. O ponto
de vista feminista faz sentido considerando a pauta recente do movimento, sobretudo no
que toca à afirmação da diversidade sexual. No entanto, o estudo da militância
comunista no início do século XX mostra que ela esteve à frente de muitas demandas, e
por isso mesmo atraiu aderentes entre mulheres de vanguarda. Outro tema a ser
pesquisado, principalmente no caso do Brasil, é o da presença dos negros e da
militância orientada por questões raciais no comunismo. De um lado, é sabido que
muitos negros militaram nas fileiras comunistas, chegando a postos de direção, e que os
valores comunistas atacavam todas as formas de racismo em nome da igualdade. Não
obstante, parece também que a liderança comunista tendia a colocar em segundo plano a
luta contra o racismo, seja por aceitar o mito da democracia racial no Brasil, seja por
achar que o problema deveria ser postergado para o momento da vitória da revolução.
Por razões óbvias, trata-se de tema importante para entender as relações entre a cultura
comunista e a cultura brasileira, ainda à espera de pesquisas de maior fôlego.
O campo das relações entre comunismo e religiosidade, igualmente, necessita
ser mais pesquisado. Para além da simples constatação da existência de indisposições e
conflitos entre partido e Igreja católica, se estende terreno mais complexo a ser
explorado. De um lado, muitos católicos encontraram meios de conciliar os dois
sistemas de crença em aparência irreconciliáveis, considerando-se ao mesmo tempo
católicos e comunistas, enquanto líderes partidários fizeram gestos para aproximar-se da
Igreja. Não obstante, a realidade do conflito agudo entre comunistas e católicos foi
16

marcante durante décadas, e pode ter funcionado como fator de atração para membros
de minorias religiosas que, tal como os comunistas, se consideravam vítimas de
perseguição católica. Este tema pouco foi pesquisado até o momento, mas há indícios
interessantes de que o partido comunista atraiu membros de minorias religiosas, como
protestantes de várias denominações, espíritas, judeus e praticantes de outras formas de
culto. Além de uma comum identidade “dissidente”, eles podem ter encontrado no
comunismo espaço de atuação que não viam em outros movimentos políticos. Os
comunistas tendiam a ser hostis à Igreja dominante e mais tolerantes com os não
católicos, embora, obviamente, defendessem ponto de vista materialista. Nesse sentido,
não deve ser considerada simples coincidência a iniciativa do deputado comunista Jorge
Amado de propor projeto de lei estabelecendo a liberdade de culto no Brasil, em 1946.
Para configuração mais sólida do “território” da cultura política comunista, será
interessante mais investimento na delimitação das suas fronteiras. Exemplo: devemos
considerar maoísmo, trotskysmo, guevarismo e stalinismo expressões da mesma cultura,
enfatizando as suas semelhanças, ou o mais correto seria tratá-los como subculturas do
comunismo? No caso do Brasil, vale a pena esclarecer os processos de mútua influência
entre os comunistas e as outras esquerdas, sobretudo trabalhistas, nacionalistas radicais
e cristãos de esquerda. Ainda considerando a experiência brasileira, tema significativo a
pesquisar são os laços entre a “nova esquerda” do período pós-1964 e a matriz
comunista. Penso principalmente nas esquerdas armadas que, em parte, formaram-se a
partir de dissidências do “partidão”. A propósito, essa expressão entrou em uso no
mesmo contexto, como referência irônica ao declínio do PCB, que definhava em meio a
críticas radicais contra seu fracasso em 1964 e a atitude “pacifista” diante do regime
militar. As novas esquerdas viam-se como alternativa ao partidão e desejavam romper
com ele. Mas terão conseguido seu intento? Não teriam elas continuado na trilha da
cultura comunista, inclusive revivendo experiências armadas protagonizadas pelo PCB
nas décadas anteriores, igualmente fracassadas?
Por fim, vale ressaltar alguns temas mencionados ao longo do texto, que
merecem consideração e até agora atraíram pouca atenção dos pesquisadores. Refiro-me
ao antiimperialismo e ao antiamericanismo, assim como ao antifascismo, a serem
observados, naturalmente, na vertente comunista e a partir do viés cultural. De maneira
semelhante, pesquisas orientadas para a compreensão da família como vetor de
17

socialização e reprodução da cultura comunista prometem resultados interessantes,


mesmo porque nesta direção pouco foi experimentado até agora.
Concluo reiterando que a abordagem culturalista não implica o abandono de
outras perspectivas de análise, como a história política clássica, a ciência política ou a
sociologia política, que continuam importantes. A idéia é lançar mão de novos aportes
teóricos que, combinados às perspectivas clássicas, nos ajudem a compreender melhor o
comunismo: sua longevidade, seus mecanismos de sedução e de persuasão de aderentes,
para além dos impulsos provenientes do “cérebro” e do “estômago”.

1
A principal obra da dupla é ALMOND, Gabriel & VERBA, Sidney. The Civic Culture. Political
attitudes and democracy in five nations. Princeton: Princeton University Press, 1963.
2
Suas obras principais são: BERSTEIN, Serge. A cultura política. In RIOUX & SIRINELLI (org.). Para
uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1988; BERSTEIN, Serge (org.). Les cultures politiques en
France. Paris: Éditions du Seuil, 1999; BERSTEIN, Serge. Culturas políticas e historiografia. In
AZEVEDO, Cecília et alii. Cultura Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
3
Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In MOTTA, Rodrigo P.S. (org.). Culturas Políticas na História: Novos Estudos. Belo
Horizonte: Argvmentvm, 2009. pp.13-37.
4
Cf. CAVALCANTE, Berenice. Certezas e ilusões: os comunistas e a redemocratização da sociedade
brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Niterói: EdUFF, 1986. Proponho uma distinção entre os
conceitos cultura partidária e cultura política: os partidos comunistas (assim como outras organizações
políticas sólidas) constituem uma cultura partidária própria, que se inspira e se estrutura a partir da cultura
comunista. Entretanto, esta representa universo mais amplo que transcende a cultura estritamente
partidária, servindo de fonte de inspiração para vários partidos e mesmo para indivíduos sem militância
política, assim como para a produção cultural e artística.
5
Conceituação inspirada em BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social In Enciclopédia Einaudi. Vol.5.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. pp.296-332.
6
Cf. WINOCK, Michel. La culture politique des socialistes. In BERSTEIN. Les cultures politiques en
France.
7
É necessário registrar que alguns pesquisadores brasileiros já abordaram o comunismo como cultura
política, e serviram de inspiração para este texto, entre eles: FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do mito:
cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-56). Niterói: EdUFF: Rio de Janeiro:
Mauad, 2002; PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: História e Memória do PCB. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1995; CAMURÇA, Marcelo Ayres. A Concepção de História na Cultura
Comunista. Série Estudos Iuperj, Rio de Janeiro, v. 86, p. 1-59, 1991. Uma referência importante é
também o livro A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1990),
de Daniel Aarão Reis Filho.
8
Nos anos iniciais de formação da URSS, os bolcheviques reprimiram violentamente as instituições
religiosas do país, com vistas a eliminá-las. Entretanto, vale registrar que anos 1950 e 1960,
principalmente no chamado Terceiro Mundo, houve uma tendência de aproximação entre comunistas e
católicos, com base no processo de esquerdização de setores da Igreja. Mas foge aos objetivos deste texto
analisar esse tema.
9
Para uma visão oficial dos soviéticos sobre a moral comunista ver TITARENKO, A.I. et alii.
Fundamentos da ética marxista-leninista. Moscou, Progresso, 1982.
10
Para o debate político e as políticas sociais da URSS para as mulheres ver LAPIDUS, Gail W. Women in
soviet society. Equality, development, and social change. Berkeley: University of California Press, 1979. No
caso da legalização do aborto, Lapidus defende que a preocupação era menos dar o direito de escolha às
mulheres e mais evitar os males do aborto clandestino.
11
Sobre a moral comunista ver FERREIRA, Prisioneiros do mito, pp.118-143 e MOTTA, Rodrigo P.S. O
PCB e a moral comunista. Locus, volume 3, no 1. Juiz de Fora, EDUFJF, 1997. pp. 69-83.
18

12
GORENDER, apud GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,
p.38. Mas é curioso que um texto de mesmo título foi escrito por Álvaro Cunhal, líder do PC Português,
em 1947.
13
Para uma análise dos mitos de Prestes, Stalin e a URSS entre os comunistas brasileiros cf. FERREIRA,
Prisioneiros do mito.
14
A segunda companheira de Prestes, Maria Ribeiro, que batizou um dos filhos como Luiz Carlos Prestes
Filho, deu o nome de William a outro dos filhos, em memória de um dos homenageados da seção “Heróis
e Mártires do PCB” do jornal Voz Operária. William Dias era vereador e líder operário em Nova Lima,
MG, e morreu assassinado por capangas a serviço da empresa mineradora que atuava na cidade. Cf.
RIBEIRO, Maria. Meu companheiro. 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes. Rio de Janeiro: Rocco,
1992, p.56.
15
Reitere-se que foi feito apenas um esboço, sem intenção de analisar todos os aspectos da cultura
comunista.
16
Este tema será abordado por outros autores da coletânea, por isso receberá apenas menção ligeira.
17
Cf. RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais comunistas no auge da Guerra Fria. In Brasilidade
revolucionária. São Paulo: Editora Unesp, 2010, pp.57-83. Sobre as relações entre partido e intelectuais
ver também RUBIM, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil. Salvador:
UFBA, 1995 (pp.61-106) e MOARES, Dênis. Imaginário vigiado. RJ: José Olympio, 1994.
18
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, alguns intelectuais ligados ao PCB investiram em uma
reflexão crítica sobre a questão nacional desde a ótica comunista, em que procuraram demarcar sua
posição em relação ao nacionalismo, enfatizando a adesão dos comunistas a valores internacionalistas e
universalistas. Cf. FREDERICO, Celso. A política cultural dos comunistas. In MORAES, João Quartim
de (org.). História do Marxismo no Brasil. Teorias, interpretações. Volume III. Campinas: Editora da
Unicamp, 1998, pp.275-304.
19
Para uma discussão sobre a cultura política brasileira cf. MOTTA, Op.cit.
20
Principalmente em Instituições políticas brasileiras. São Paulo: José Olympio, 1949. Evidentemente,
não estou advogando que o personalismo seja exclusivo do Brasil, já que tradições semelhantes são
encontráveis em outros países.
21
Prestes não foi formalmente expulso, mas saiu do partido, e atirando (com sua Carta aos comunistas,
de março de 1980), quando se deu conta de que para permanecer deveria aceitar uma posição subalterna.
22
Entre os trabalhos disponíveis gostaria de citar o estudo de Victoria Bonnell (Iconography of Power:
soviet political posters under Lenin and Stalin. Berkeley: University of California Press, 1997).
23
Por exemplo: TAVARES, Betzaida Mata Machado. Mulheres comunistas: representações e práticas
femininas no Partido Comunista Brasileiro. Dissertação de Mestrado em História, UFMG, 2003.

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