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Conhecer infâncias brasileiras: meninos e meninas em

contos de Mário de Andrade

Márcia Gobbi1

Resumo
Este artigo aborda diferentes infâncias apresentadas pelo poeta modernista Mário de
Andrade em seus contos: Cai, cai, balão, Tempo de Camisolinha e Piá não sofre,
sofre? Em ambos o poeta apresenta crianças e suas transgressões e diversas
formas expressivas, antecipando de forma original estudos cujas preocupações
voltam-se para conhecer mais profundamente as infâncias, trazendo contribuição
inestimável para a constituição desse campo de pesquisa: educação e infância, em
especial a primeira infância.
Palavras chave: infâncias; literatura; modernismo; Mário de Andrade.

Know brazilian children: boys and girls in tales of Mario de Andrade

Abstract
This article discusses different childhoods made by modernist poet Mário de
Andrade in two of his many stories: Cai, cai, balão, Pia não sofre, sofre? Tempo de
Camisolinha. In both the poet gives children and their various transgressions and
expressive forms in anticipation of an original studies whose concerns turned to know
more deeply the childhoods, bringing invaluable contribution to building this field of
research: education and childhood, especially the first childhood.
Keywords: Childhood; modernism; Mário de Andrade; literacy.

Conocer niños brasileños: niños y niñas en los cuentos de Mário


de Andrade

Resumen
Este artículo aborda las distintas infancias presentadas por el poeta modernista
Mário de Andrade en sus cuentos: Caí, caí, balão, Tempo de Camisolinha y Piá não
sofre, sofre? El poeta da a los niños y sus transgresiones y diferentes formas, en
previsión de un estudio original cuyo foco se desplaza a saber más sobre la infancia,
con lo invalorable contribución a la constitución de este campo de investigación: la
educación y la infancia, sobre todo La primera infancia.

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Palabras: modernismo; infância; Mário de Andrade; literatura.

Introdução

Nesse artigo aborda-se um entre tantos aspectos de Mário de Andrade: a


presença da infância em alguns de seus contos. Procura-se apresentar em Mário de
Andrade e no modernismo, em sua primeira fase, as infâncias que são observadas,
de modo original, não somente em prosa e verso, e que também ocupam o lugar de
fontes inspiradoras para poetas, pintores, desenhistas, o que não será
compreendido dentro dos limites desse artigo que fica restrito aos contos.
A literatura se oferece como objeto a partir do qual se podem focalizar
aspectos sociais, nesse caso, as infâncias, ainda que, como sabido, seja uma
criação e recriação de seu autor que devolve à realidade suas idéias e concepções
sobre determinados aspectos da vida, tal como ensina Antonio Candido (2008).
Não principiaremos num exercício de pesquisa voltado para a descoberta de
infâncias na obra modernista de Mário de Andrade, embora a curiosidade fique
bastante aguçada. Parte-se aqui de alguns questionamentos que as obras nos
impõem: é possível encontrar nos contos de Mário de Andrade aspectos das
infâncias brasileiras do século XX? Aprendemos com a literatura – tendo, portanto,
os textos literários como fontes documentais – sobre meninos e meninas de outros
períodos históricos em diferentes sociedades? Quais características presentes nos
estudos sobre infâncias que podemos encontrar nos contos?
Sendo a infância uma construção social e histórica, sabe-se que ela sofre
transformações ao longo do tempo levando-nos a concebê-la também de diversas
formas nos variados períodos. Desse modo, não é possível tratar de infância sem
colocá-la no plural a partir do cruzamento entre classe social, gênero, etnia, religião,
questionando e contestando modelos universais de concepção de crianças que
tantas vezes nos são apresentados. Segundo Faria (2002) diferentes fontes
documentais podem servir para conhecermos mais e melhor as infâncias,
contribuindo para um alargamento das concepções sobre meninos e meninas.A
literatura é uma delas, do que tomaremos como ponto de partida no artigo ora
apresentado, no qual o social é passível de ser encontrado, não como o real,

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apresentado por meio da literatura, mas como uma instigante representação de


aspectos sociais nos quais meninos e meninas encontram-se presentes levantando
curiosidade e promovendo conhecimentos naqueles que os lêem. Este artigo,
procura apresentar infâncias em Mário de Andrade, através dos contos Cai, cai,
balão, publicado em 1925, Tempo de Camisolinha, publicado em 1947 e Piá não
sofre, sofre? datado de 1926. Contos se constituem, então, como fios que
conduzirão a escrita, considerados como fontes documentais que podem colaborar
para a construção de conhecimentos sobre crianças, nesse caso em especial,
meninos e meninas da primeira infância, o que carece bastante de compreensão.

Infâncias em Mário de Andrade

Em vários de seus contos, Mário de Andrade, intelectual polivalente que era2,


evidencia traços de uma cidade que não temos mais, assim como aborda diferentes
aspectos de infâncias que hoje têm sobrevivido em alguns, - por partes – habitando
memórias, fotos, desenhos, contos e cartas e, dessa maneira, ainda vivendo em nós
e nos constituindo. É desse ponto que pretendo partir: contos e imagens de uma
época, primeiras décadas do século XX, que apontam elementos de uma cidade,
nesse caso em especial, focando a capital paulista, para encontrarmos nessas
representações as infâncias de décadas atrás, nos espaços públicos da cidade, a
partir da prosa de Mário de Andrade. Nos quais, seguindo os princípios de escrita de
um conto, o faz optando por colocar crianças como personagens principais, ligadas
aos conflitos apresentados no enredo. É importante afirmar, embora já sabido, a
raridade desse feito nos campos literários. Se a criança era desconsiderada por
historiadores, sociólogos, antropólogos como sujeito-objeto de pesquisa, dificultando
os estudos posteriores que visavam domínio teórico nos campos da educação da
2
É praticamente impossível pensar em Mario de Andrade desconsiderando seus múltiplos Mários,
não somente de uma personalidade que freqüentemente se desdobra, curioso do mundo que era,
mas que alude a uma profusão de sensações e atos que caracterizam sua vida e obra e a atuação
em diferentes campos: poeta, pianista, cronista, romancista, jornalista, folclorista, pesquisador –
sobretudo, com a Missão das Pesquisas Folclóricas por ele empreendidas pelo norte e nordeste do
Brasil –, estudioso dos assuntos culturais brasileiros, administrador de política cultural, como diretor
do Departamento de Cultura do município de São Paulo, entre os anos de 1935 e 1938, desenhista,
fotógrafo, colecionador de obras de arte entre as quais reunia desenhos de crianças pequenas e
jovens em farta coleção pessoal. Sem dúvida, não lhe faltava fôlego para empreender, de forma
ousada e inovadora, cada vez mais projetos do sempre turista aprendiz a caminhar por diferentes
paragens, aqui abordado como professor aprendiz, a aprender com a imensidão de seu país, com
seus amigos e alunos.

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primeira infância, Mário de Andrade apresenta farta contribuição na literatura para


que possamos conhecê-la sob aspectos ainda pouco explorados.
Essa preocupação mariodeandradina encontra ressonância em seus pares. A
estética modernista, entre tantas de suas contribuições, provoca e apresenta a
temática da infância de modo genuíno mostra-nos infâncias que se encontram
presentes em linguagem de caráter mais coloquial, como há tanto visto no uso
inventivo da palavra por Osvald de Andrade, desde Memórias Sentimentais de João
Miramar e Mário de Andrade com sua prosa que mostra-nos distintas crianças
pequenas, o que é tão escasso até os dias atuais, em variados episódios de vida de
meninos e meninas em tantas paragens na cidade e no campo. Encontramos
também entre os estrangeiros não uma descoberta da infância nas artes,
propriamente, mas a possibilidade de aprender com as crianças, seja estudando e
exercitando-se no desenho, como fez Mário de Andrade, seja observando suas
criações, como fez Paul Klee. A arte poderá desenvolver-se, assim como um ponto
de encontro entre o mundo da criança e o mundo do adulto3 (Russo: 1988).
Observando as produções das crianças, os artistas modernistas procuram
aprender com elas a expressar sua criatividade de formas diferentes das até então
conhecidas, numa busca por reencontrar aspectos da infância perdida e torná-los
presentes em suas criações de artistas. Como ressalta Flávio de Carvalho, trata-se
de “desorganizar o organizado” e, para isso, o caráter transgressor das crianças,
que tantas vezes oferece a possibilidade do encanto com o desconhecido, a não-
conformidade com modelos oficiais, afirmava-se como imprescindível e fonte que
provoca percepções e escritas.
Na literatura de Mário de Andrade, como salientado em Sevcenko (2009), a
vida urbana que se descortinava e se construía sugeria uma multiplicidade de sons,
ritmos, que lhes são próprios, explorados em profusão em seus textos literários,
resultando em contos que evocam memórias de infância em seus muitos leitores e,

3
Vale lembrar que não foi com os modernistas que a criança surgiu pela primeira vez como temática
nas artes. No Renascimento, as crianças surgem também na biografia de artistas, trazendo o tema da
precocidade com que o gênio se manifestará. Ressalto que a criança-prodígio foi um dos temas
abordados por Mário de Andrade. O surgimento do gênio estava atrelado ao desenho de maneira
disciplinar adestrando a mão do desenhista. O interesse pelas expressões plásticas das crianças
remonta ao século XVI com o artista Giovan Francesco Caroto, com a obra Fanciullo con Pupazzetto.
Caroto pinta uma criança segurando um desenho que, pelos traçados que se assemelham aos
desenhos infantis, parece ter sido criado pelo próprio menino que o mostra. No entanto, somente
séculos depois, as crianças serão concebidas como aquelas cujas criações podem e devem inspirar
alguns artistas, sobretudo devido ao caráter transgressor encontrado em ambos: artistas modernos e
crianças (Russo: 1988).

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por que não dizer, também nos educam sobre o que deviam ser meninos e meninas
na cidade que se constituía a época.
Ao trabalhar com os textos escritos por Mário, o que é possível encontrar,
entre tantos aspectos, é que esses contos nos fazem ver os objetos narrados, a
partir do contato com um denso lado imagético presente em ambos os textos. Essa
característica provoca-nos a ler vendo imagens, criando-as em profusão diante de
nossos olhos. Embora sabendo não existir uma arte puramente textual ou visual,
Mário de Andrade diz e descreve em seus contos, deixando o sabor de querer
conhecer e perquirir os diferentes espaços, as variadas infâncias, os sujeitos que
surgem em tantos contextos. Com isso fazem ver, com a qualidade visual existente
nas linhas escritas, nas maneiras como as temáticas são abordadas e as tramas
amarradas. Temos um texto que pode ser compreendido como imagem e do qual
saltam imagens, figuras a desvelar infâncias esquecidas ou que fazemos por
esquecer.
As afirmações que constam em alguns de seus artigos, cartas e contos
apontam para o que será característico de épocas posteriores, quando, num esforço
teórico, se muda a perspectiva sobre a infância, que começa a ser dita e percebida
por si mesma. Mário4 não apresenta diretamente as vozes das crianças, mas
consegue trazer aspectos de suas vidas que revelam muito do imaginário da
infância. Mário de Andrade, no período histórico em que escreve encontra-se na
intersecção entre concepções que apontam a criança vista e dita somente por
adultos, que, ao traduzirem seus comportamentos, revelam a percepção da criança
como uma não falante, logo, não desenhista, não expressiva, e outros modos de
compreender a infância que procuram representá-la em seu universo, ouvindo suas
vozes para apreenderem suas formas de ver o mundo. A infância é retirada do
silêncio que tanto a ocultou na história, e que conseqüentemente ocultava suas
criações, conquistando um espaço e um status diferenciado.

2. Que goiabada, nem mané goiabada! Imaginação e transgressão em Tempo de


Camisolinha

4
Tomo a liberdade de tratá-lo apenas pelo primeiro nome em algumas passagens do texto desta
obra, imbuída pelo sentimento de proximidade que fui construindo à medida que lia seus estudos,
poesias e, principalmente, algumas cartas.

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“A criança é essencialmente um ser sensível à procura de expressão.


Não possui ainda a inteligência abstraideira completamente formada.
A inteligência dela não prevalece e muito menos não alumbra a
totalidade da vida sensível. Por isso ela é muito mais
expressivamente total que o adulto. Diante duma dor: chora – o que
é muito mais expressivo do que abstrair “estou sofrendo”. A criança
utiliza-se indiferentemente de todos os meios de expressão artística.
Emprega a palavra, as batidas do ritmo, cantarola, desenha. Dirão
que as tendências dela inda não afirmaram. Sei. Mas é essa mesma
vagueza de tendências que permite pra ela ser mais total.”(p.129-
130: 1996)

Em alguns de seus contos, Mário de Andrade, deixa avistarem-se aspectos


da cidade ainda não descobertos por todos. Põe a vislumbrar cidades na cidade
tornando a todos curiosos por descobri-las. Mário, autor na modernidade, em um
tempo que demandava, como diria Baudelaire (1996), fixar o elemento fugaz de um
lugar que se tornava transitório, captando com requinte os detalhes, as pequenas
belezas; descreve personagens que voltam-se para si mesmos em atos mais
circunspetos. Revitaliza a narrativa urbana implicando uma materialidade do todo dia
com alta potência estética, facilmente percebida ao longo das linhas que vão
delineando cidades nas quais apresentará diferentes infâncias. Na crônica De São
Paulo I, escrita entre 1920 e 1921, Mário, nos diz,

Mas, no momento em que escrevo, novembro anda lá fora,


desvairado de odores e colorações. Eu sei de parques esquecidos
em que a rabeca dos ventos executa a sarabanda por que
pesadamente bailam os rosais... Eu sei de coisas lindas, singulares
que Paulicéia mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível e
lhe admiro o temperamento hermafrodita... Procurarei desvendar-lhe
aspectos, gestos, para que a observem e entendam. (2004,p.73)

É nessa cidade misteriosa, de características polifônicas e sensoriais de


temperamento a ser descoberto onde personagens surgem e com eles crianças e
jovens, novos personagens a conquistarem cenários onde até então reinavam em
ausência. Mário de Andrade esboça nas narrativas, em prosa e verso, preocupações
e temáticas nas quais a percepção e inserção de diferentes experiências de infância
demandam, por assim dizer, práticas de criação estética e política voltada para
espaços públicos onde crianças poderiam viver a vida em plenitude. Trata-se de
aliar as questões de ordem política a outras voltadas para a elaboração de uma
estética experimental modernista, que pretendia desconstruir parâmetros do século
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XIX na procura por outras linguagens ou manifestações expressivas. Há


representações sobre a infância que surgem como memória e como desvelar de
injustiças cometidas contra elas. Nesse contexto as crianças se comportam como
sujeitos interessantes para se observar, estudar e considerar aptas a ensinar aos
adultos suas maneiras de ser e de compreender o mundo. Erguem-se na Paulicéia,
em lugares até mesmo esquecidos, em segredos contados para poucos, mas que se
deixam entrever em sutis expressões, em especial, quando procuramos as infâncias
na cidade e suas experiências nos espaços públicos em contextos cujos sentidos
são dados pelas mediações com os outros – adultos e demais crianças – e
reclamam nossos olhares. Reclamação essa já percebida há décadas pelo poeta,
antecipando debates acadêmicos recentes.
São crianças que surgem apresentadas pelo autor em diversos mundos:
resistindo, brincando, inventivas e, por que não, entristecidas e até chorosas. É
possível inferir que, diante da cidade e da criança, parece saber e mostrar-nos
detalhes precisos sobre ambas convidando a viagens, cujos trajetos, propostos pelo
autor, resultam de uma relação intensa com a cidade e com a infância, aparente em
tantas reflexões em distintas situações: nos Parques Infantis, onde foram criados
inúmeros desenhos pelas crianças colecionados por Mário de Andrade, primeira
iniciativa publica de Educação Infantil para filhos do operariado paulistano, como já
mencionado, no início do século XX, e também na relação com os sobrinhos,
sobrinhas e filhos de amigos. Disto, parece emergir variadas considerações sobre
práticas adultas e infantis relacionadas às crianças, portanto, ora realizadas por elas,
ora pelos adultos tais como descrito em Cai, cai balão.

(...) o homem, nas alturas sábias dos quarenta anos, vai e pratica um
ato de menino de grupo. (...) mas por outro lado, a realização
espontânea duma faculdade infantil num homenzarrão meditabundo
que já enterrou a infância num cemitério repudiado, mostra que o
indivíduo, por maior técnica que possua, guarda pra sua riqueza a
inexperiência do aprendiz. (1963,p.126)

(...) chegaram em disparada as vergonhas, as censuras, e um


passado em que nunca fui moleque de rua, jamais peguei balão!”
(1963,p. 126)

É, numa cidade aqui não denominada, que Mário afirmará sua presença de
adulto refletindo a criança e, ainda mais, sobre a própria infância. Provocação.
Provoca-nos ao apresentar práticas cotidianas de uma infância que ficou enterrada,
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ou mesmo, demonstrando a vergonha que nos é imposta ao desejarmos cometer


atitudes infantis. Desafia-nos ao mostrar-se, com seus personagens, diante de
experiências supra-sensíveis de infância na cidade. Desde o inicio apresenta uma
infância inventiva que busca e perscruta o mundo quase arqueologicamente, com
curiosidade cientifica e de forma não menos brincalhona. As imagens criadas
misturam diferentes visões no cotidiano urbano que se firmava. Arrependimento?
Desafio? Talvez. Jamais peguei balão! Trata-se de apontar para o processo de
maturidade desse homem que questiona, desde pequeno, conforme se apresenta
nos contos, uma relação adultocentrada, que denota e faz valer diferentes perdas ao
longo do processo de crescimento. As censuras que chegam e que, em grande
medida são apresentadas pelos adultos que lidam com as crianças em diferentes
contextos sociais.
Prenuncia e exaspera ao tratar de idéias ainda hoje tão necessariamente
presentes entre pesquisadores da infância: o homem que perdeu sua infância, ou
melhor, perdeu sua capacidade brincalhona – ou lhe foi roubada – adotando
posturas enrijecidas com a chegada rápida de vergonhas, como diz o autor, o que
sugere também uma critica às práticas moralizadoras do processo educativo que se
faz por diferentes vias. Não seria o equivalente a perda mais recente, em nossos
dias de século XXI, dos afazeres de caráter lúdico, imposta por uma sociedade que
está sendo moldada há tempos num formato fast-food tornando as relações
estabelecidas com o outro um grande self-service? Essa configuração social
impede experiências mais intensas, ou mesmo, que elas estejam a todo o momento
voltadas para o capital, cujo tempo ruma em direção oposta aos interesses e tempos
dos fazeres da infância, que se mostra mais rápido e mais lento numa fração de
segundos, ao realizar diversas atividades nos espaços freqüentados pelas crianças.
Apresenta-se uma concepção de criança que contraria a noção de natureza infantil,
segundo a qual, as imperfeições, o inacabado, aquele que é desprovido de tudo, têm
predominância. Ao dizer e pensar “que goiabada, nem mané goiabada!” temos o
principio de uma visão a registrar desconforto e descontentamento com sua
ausência naquilo que lhe é próprio, que lhe identifica: suas brincadeiras, suas
traquinagens que são tão caras e expressão de algumas das características infantis.
Mário de Andrade, ao descrever sua personagem, remete-nos a construção
de imagens de uma cidade de tempos em que havia balões juninos, de certo dia em
que brigaria com os meninos-moleques por pegar balão e, logo após pegá-lo, o

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devolve a criançada, afinal, como afirma no conto, o que fazer com um balão? O que
fazer? Sua pergunta faz entrever: o que fazer com práticas infantis do passado
quando elas nos são restituídas? Com um outro tempo nas mãos? Trabalha
mostrando-nos a presença inequívoca da cidade que cresce e destitui, sob tantos
aspectos, o humano do ser humano de todas as idades, e a infância, que quando
reencontrada evidencia a necessidade, cada vez maior, de sua existência.
Restabelecer imagens de uma infância que numa cidade, em suas ruas tortuosas e
cheiros de rosas, como o poeta dizia, se perde e vem se perdendo há décadas,
desde o descrito no início do século XX. Não se trata, em hipótese alguma, da
constatação pura e simples de lembranças de um passado remoto e idealizado, nem
mesmo de defender a infância idílica, avizinhando-a da natureza, como alguém
espontâneo naturalmente, mas sim de problematizar a insistência com que nos é
colocada a impossibilidade de manifestações lúdicas, tidas como infantis, o que por
vezes é dito, até mesmo, de forma pejorativa. A figura da criança e as práticas
infantis que a envolvem, surgem aqui como para provocar o adulto a pensar sobre o
quanto tem que estar apto a viver somente com o espírito da racionalidade, que
ainda não conseguiu domar totalmente a criança e suas singularidades.
Em Cai, cai balão, Mário de Andrade subverte a ordem estabelecida há
tempos e já naturalizada, tais como aquelas fundadas na idéia de dominação e total
prevalência dos conhecimentos dos adultos sobre as crianças. Propõe a submissão
da lógica ou dominação do mais jovem, subvertendo então a ordem presente com a
modernidade onde o homem vai mascarar sentimentos, não reagindo a certas
solicitações, evocando um ar blasé, distanciado de seu cotidiano mais imediato, ao
mesmo tempo em que lidar com a pluralidade das relações sociais, especificamente
aqui, entre adultos e crianças, e deste primeiro tendo que tomar parte de aspectos
subjetivos tais como a volta de práticas infantis não vividas em sua inteireza.
Destaco que se trata também da influência da dinâmica da cidade que ao crescer
exige daqueles que nela habitam que adquiram determinadas posturas – que
desconsideram propostas mais lúdicas ou reflexivas – que podem gerar o se
convencionou chamar de “perda de tempo”. Perder o tempo instituído pelo capital,
que inequivocamente, deve ser rápido, produtivo, onde brincar e pensar mais
detidamente são ações percebidas como escolhas feitas pelo mero prazer.
Pode-se assinalar a capacidade de recriar, em Mário de Andrade, um tempo,
no qual disputas nas ruas em brincadeiras de crianças aconteciam com mais

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constância, instiga pensamentos que conduzem a perguntas sobre as infâncias tal


qual são vividas hoje, bem como, para onde foi, não apenas nossa infância, mas
para onde irão as atuais infâncias. É a reflexão de um poeta, trazendo
representações nas quais podemos nos reconhecer. Pouco mais de uma década
depois Florestan Fernandes publicará Trocinhas do Bom Retiro, resultado de
pesquisa do sociólogo que mostrará as culturas infantis sendo construídas pelos
meninos e meninas nos bairros operários da cidade de São Paulo, mais
especificamente Bom Retiro, o que apenas reafirmará a importância também de uma
obra, que evidenciará, pela prosa, aspectos de infâncias nas cidades paulistas, a
partir do ponto de vista literário.
Repito tratar-se de algo conquistado e afirmado pelo modernismo, onde a
infância apresenta-se como emblema de ruptura na métrica procurada pelos poetas
e é vista como aquela que ensina com a clareza e a espontaneidade de culturas
construídas entre seus pares, independente da idade, aparecendo em prosa e
poesias dos ícones do modernismo do inicio do século. Interessa observar que, se o
humano poderia perder sua aura, nas crianças mariodeandradinas a mesma resiste,
suas presenças ocorrem em gestos tênues ao mesmo tempo em rompantes, não
raivosos, mas audaciosos, como a dizer estou aqui com meus desejos e
sentimentos e, sobretudo, com modos peculiares de compreender o mundo e as
relações sociais nele estabelecidas.
Tais posturas e investidas do autor e suas crianças podem também ser
observadas no conto Tempo de Camisolinha, onde um menino, em situação familiar
a tantos outros meninos e meninas desvela um dos inumeráveis mundos infantis e
seus modos de explicá-lo,

— Esse menino não come nada, Maria Luísa!


— Não sei o que é isso hoje, Carlos! Meu filho, coma ao
menos a goiabada... Que goiabada nem mané goiabada! Eu estava era
pensando nas minhas estrelas, doido por enxergá-las. E nem bem o almoço
se acabou, até disfarcei bem, e fui correndo ver as estrelas do mar. (1996,
p.105)

Temos aqui a presença da imaginação infantil combinada à sua ousadia ao


colocar em questão a preocupação dos pais quanto a alimentação do filho. Mostra-
nos e porque não, nos ensina a procurar ver com as crianças tantas e distintas
estrelas do mar, como revelado pelo menino, para o qual até a goiabada escapa
deixando prevalecer a descoberta e talvez as brincadeiras envoltas em ver estrelas.

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Mário traz para seu texto elementos já vistos em poesias, tais como a que o poeta
Olavo Bilac, diz não perder seu senso, e que abre as janelas, conversando toda
noite com as estrelas, enquanto a via láctea cintila. O sentido poético do poeta é
aqui restabelecido junto à criança. Trata-se de uma, entre tantas experiências
infantis, das quais por vezes, não participamos ou mesmo não compreendemos,
fechados em nossas visões adultocentradas que estamos. Compreensão que
implica negar a maneira linear como explicamos o mundo, implica rever as
concepções que tomam como princípios explicativos da realidade a separação entre
mão e cabeça, fazer e pensar, hierarquizando concepções, práticas e relações
sociais que estabelecemos com os outros, e as crianças em particular. Essa mesma
centralização de práticas, olhares e definições do que são as crianças e do que as
mesmas devem ser futuramente aparecem no primeiro parágrafo de Tempo de
Camisolinha:

A feiúra dos cabelos cortados me fez mal. Não sei que noção prematura de
sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa experiência
da minha primeira infância. O que não pude esquecer, e é minha recordação
mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me
desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos,
alguém, não sei mais quem, uma voz masculina falando: você ficou um
homem assim! Ora eu tinha três anos, fui tomado de pavor. Veio um medo
lancinante de já ter ficado homem naquele tamanhinho, um medo medonho, e
recomecei a chorar. (1996. p:102)

Novamente aqui, de forma bastante sensível são apresentadas


características de uma infância abafada em suas características e desejos e o
dolorido processo de crescer. Imaginem “já ter ficado um homem naquele
tamanhinho”... Esquecemos-nos de que cortamos simbolicamente os cabelos de
nossas crianças em muitas das palavras ditas e dos gestos cometidos, tantas vezes
contra elas.
O menino de Tempo de Camisolinha desencadeia movimentos
transgressores, provoca em seus leitores a transposição da barreira do
convencional, resistindo à tendência de dicotomizar razão e emoção e, com isso,
leva-nos a aproximar imaginação e razão nos diferentes e tão constantes atos de
aprender, nos quais a liberdade também é fundamental. O inusitado abre espaço
para criação de diferentes exercícios de transgressão, de liberdade, evocando e

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demonstrando a capacidade humana de criar e inventar, de imaginar situações as


mais diversas; pode-se dizer que Mário de Andrade apresenta aqui uma criança e
sua poiesis, o ato criador que se oferece, não de forma espontânea, mas sim,
reivindicado. O autor mostra-nos, mais uma vez, sua obrigação com a arte já tantas
vezes manifesto: em seu compromisso com a função social da arte, exibe-a nas
infâncias em seus textos nos quais transparece que educar a sensibilidade para que
cada criança possa entregar-se aos (im) possíveis demarcações do humano é algo
imprescindível. Imaginação que proporciona “ver as estrelas” que é origem de toda
nascente filosófica, científica, artística.
O questionamento e a insubordinação tornam-se ainda mais presentes
nesse trecho do mesmo conto,

Vivia sujo. Muitas vezes agora até me faltavam, por baixo da camisola, as
calcinhas de encobrir as coisas feias, e eu sentia um esporte de inverno em
levantar a camisola na frente pra o friozinho entrar. Mamãe se incomodava
muito com isso, mas não havia calcinhas que chegassem, todas no varal
enxugando ao sol fraco. E foi por causa disso que entrei a detestar minha
madrinha, Nossa Senhora do Carmo. Não vê que minha mãe levara pra
Santos aquele quadro antigo de que falei e de que ela não se separava
nunca, quando me via erguendo a camisola no gesto indiscreto, me
ameaçava com minha encantadora madrinha — “meu filho, não mostra isso,
que feio! Repare: sua madrinha está te olhando na parede”, e descia a
camisolinha, mal convencido, com raiva da santa linda.(1996,p, 103)

Mario de Andrade subverte a própria imposição religiosa do respeito à Santa


e, imediatamente após, coloca-se novamente ao lado da “santa linda” como a
restituir a ordem desconstruída pela criança, ainda que não totalmente convencido
de que devesse assim se comportar diante dos olhos vigilantes da santa, sua
madrinha, na parede. Parece evocar, na figura da Santa5, respeito e desrespeito
simultaneamente, traz a presença de rituais – a reverência aos santos, nesse caso
católicos – onde suas figuras unificam os domínios, reproduzem certos tipos de
opressão através da reprodução tanto discursiva quanto imagética, no quadro posto
na parede, a ordem está presente permanentemente ou é restabelecida quando se
julga necessário. E o menino do conto resiste e transgride dentro de espaços tão
limitantes de suas criancices.

5
Vale lembrar, que Mário de Andrade em 1918 é noviciado na Ordem Terceira do Carmo,
posteriormente chamada de Venerável Ordem Terceira do Carmo. O conto foi escrito décadas mais
tarde e talvez tenha também sido resultado desse episódio passado em sua vida de menino.

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3. “É preciso cortar os cabelos desse menino”: tristeza em Tempo de


Camisolinha e Pia não sofre, sofre?

Toda a gente apreciava os meus cabelos cacheados, tão lentos! e eu me


nvaidecia deles, mais que isso, os adorava por causa dos elogios. Foi por
uma tarde, me lembro bem, que meu pai, suavemente murmurou uma
daquelas suas decisões irrevogáveis: è preciso cortar os cabelos desse
menino. Olhei de um lado, de outro, procurando um apoio, um jeito de fugir
daquela ordem. (1996,p:103)

No trecho citado o que temos é descaso em relação aos desejos e medos


infantis, ainda mais se desconhece que as crianças têm em construção, um gosto
estético, que nesse caso, voltava-se para si mesmo e sua aparência. Mário, sensível
ao cotidiano infantil apresenta em seu conto o que será objeto de pesquisa nas
ciências que dialogam com os diferentes campos da educação. Conforme Quinteiro
(2002), somente nas duas últimas décadas do século XX, as pesquisas sobre
infância ampliaram seus campos e adquiriram um estatuto teórico-metodológico. Isto
coincide com um período histórico de esforços para consolidar a visão da criança
como sujeito, como cidadã, como produtora de cultura. Esse objeto se constrói a
partir do diálogo constante entre diferentes áreas de conhecimentos, produzindo
uma recomposição disciplinar.
Pode-se dizer novamente, que Mário de Andrade prenuncia o que será
pauta de pesquisas acadêmicas futuras e, mais do que isso, cria, com essa
percepção, contos que evidenciarão o desalento de várias crianças. Calar-se
obrigatoriamente diante das imposições geradas em práticas adultocentradas pelas
famílias e demais educadores torna-se motivo de sua escrita. As crianças passam a
ser consideradas como atores sociais não somente nos espaços escolarizados, mas
em diferentes contextos e a família é o destaque aqui. As confusões causadas e
sentidas como agressões de diferentes ordens são destacadas. Em algumas
passagens dirá da perda dos cabelos lentos caídos pelos ombros, cachos que
comprovavam a criança e o choro que os muitos presentes ofertados não
conseguiam segurar. O dolorido contato com a aspereza adulta ficou guardado nas
camisolinhas, onde o passado ficou contido em memórias de entre choros. Choros

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esses destacados na epígrafe desse artigo no qual o próprio Mário dirá da


incapacidade de falar da dor e sim de externá-la em lágrimas com sua inteligência a
procura de outras formas de expressão, muitas delas ainda pouco conhecidas pelos
adultos que com elas se relacionam.
Insistindo, Mário de Andrade apresenta as crianças em seus contos de forma
ora irônica, com os adultos familiares, ora fustigando a própria cidade ao demonstrar
seu lado cinzento e avesso às relações sociais de caráter mais afetivo, solidário,
amoroso. Na dinâmica tão ágil que mobilizava a todos, a infância surge como
suprimida pelas engrenagens que a própria cidade criava. É como se o autor
rasgasse severamente as máscaras impostas para a compreensão do que é a
infância e deflagrasse a presença de meninos e meninas emudecidos entre ruas e
avenidas, entre casebres e miséria que, escondida, também escondiam infâncias
pobres, que apesar de aparentemente sem fôlego, encontrava mecanismos para
sobreviver e escapar de algum modo àquilo a que era subjugada.
Em Piá não sofre, sofre? as relações estabelecidas entre o menino
Paulino e sua família, em especial sua mãe e posteriormente a avó paterna, deixam
transparecer aspectos da cidade que, ao se urbanizar no inicio do século, cria
lugares de moradia da pobreza, os cortiços nos quais imigrantes e migrantes
residiam, como é o caso da mãe de Paulino, descendente de italianos. Mário
mostra-nos a miséria humana a partir do garoto de quatro anos de idade e suas
investidas e percepções do mundo de sua casa, da fome, da vontade de brincar e
dos maus-tratos sofridos. Como o autor escrevia “Paulino sobrava naquela casa” o
que o mesmo demonstrava na constante busca por atenção, que podia provir de
qualquer lugar ou pessoa com a se relacionasse.
Ainda assim, considerando a miséria e a expondo em detalhes, Mário de
Andrade não deixa de antever a incessante procura pela brincadeira, pelo universo
da fantasia onde o menino Paulino encontraria e depositaria certo conforto longe das
agruras de tratamento dado por todos da casa. Mesmo ao dizer que Paulino
adormecia diante da negação de tudo o que solicitava e não era muito: pão. E o
menino ... sonhava não, (1960,p.45), sugere com isso, o entre sonho e fantasia,
imaginação e busca pela comida diária, impossibilitado de construir o conceito de
futuro e arranjava jeito de criar força no medo (p,47).O poder da infância e sua
capacidade de criar soluções nas condições adversas é tratado pelo autor
observando a mesma de acordo com suas especificidades, talvez nisso resida o

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mais peculiar nos escritos de Mário de Andrade sobre a infância: não distanciar-se
daquilo que expõe a singularidade da criança e o que a difere do adulto (a). Não a
identifica com organizações preocupadas com propostas comerciais, padrões de
consumo nos quais as crianças se vêem como alvos constantes, tantas vezes
caracterizadas apenas como consumidoras de culturas.
Não tendo desenvolvido teorias a respeito, Mário de Andrade tem na
literatura a presença marcante de sua voz sobre a infância, apresentando crianças
de todas as idades, sexo, etnia, classe social. Em sua obra, a presença marcante
das múltiplas infâncias dialoga com tantos Mários e se põe a conversar conosco em
promissoras ofertas de criticas aos nossos atos, em que não paramos para refletir
sobre quais são as concepções de infâncias que pautam as relações sociais que
estabelecemos com meninos e meninas em nosso cotidiano. Urge pensar e
considerar nossas práticas educativas na família e nas instituições de ensino.

5. Conclusões: mais quentura pra gente ser feliz

Retomo aqui a seguinte pergunta: mas porque recuperar os contos de Mário


de Andrade e reencontrar neles aspectos da cidade e da infância? O que trazem de
excepcional? Sua originalidade encontra-se justamente em apresentar infâncias em
lugares onde talvez estivessem esquecidas, cria lugares para meninos e meninas
até então ausentes. Além do mais, ausentes entre aqueles que ao lidarem com mais
freqüência com crianças podem não ter em seu horizonte perspectivas mais
sensíveis de compreensão de suas tantas linguagens, de suas capacidades
inventivas com as quais aprendemos incessantemente. Provoca-nos a pensar e, por
que não, a voltar nossas observações e preocupações para lugares até então não
considerados, desloca-nos. E isso, que é tão raro e tão necessário em nós e entre
aqueles (as) que pesquisam infâncias, não pode ficar ao largo, quando
naturalizamos as vidas de Piás, Paulinos e tantos meninos e meninas, não
estranhando mais quando nos chegam expressos em choros, alegrias e tristezas.
Onde seja possível encontrar mais quentura pra gente ser feliz, (p, 49) como Mário
escreve em Piá não sofre, sofre? O autor nos apresenta meninos e meninas
criadores de culturas e, ainda mais, antecipa tal concepção que ainda hoje, tanto é
debatida entre pesquisadores e estudiosos do assunto.

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É como se Mário de Andrade apresentasse diferentes territórios nos quais


Piás, Totós e Marias6 poderão construir e viver as dimensões humanas,
expressando-se de diferentes maneiras: choro, angústia, alegria, tristeza,
indignação. Pode-se perceber uma concepção de criança como sujeito histórico,
construtora e portadora de cultura – cidadã –, que nas últimas décadas do século
XX, não apenas ganhou maior visibilidade, como também conquistou maior espaço
na sociedade e nas políticas públicas a ela referidas. Logo, o que se vê são
aspectos das crianças brasileiras pertinentes ao período em que Mário escrevia,
tanto quanto, aos meninos e meninas atuais, sendo a literatura uma fonte riquíssima
para essas descobertas.

Referências bibliográficas

Andrade, Mário de. Cai, cai, balão. In: Os filhos da Candinha. São Paulo: Martins
Fontes,1963. p. 123-126.
_________________. Piá, não sofre, sofre? In: Os Contos de Belazarte. São Paulo,
1939.
_________________. Tempo de camisolinha. In: Contos Novos. São Paulo: Martins
Fontes, 1939/1996.
_________________. Vestida de preto. In. Contos Novos. São Paulo: Martins
Fontes, 1939/1996.
_________________. Crônicas de São Paulo. SESC São Paulo e Editora SENAC
São Paulo. 2004.
Baudelaire, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra.
1996.
Candido, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro. Editora Ouro sobre o azul.
2008.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Educação pré-escolar e cultura. São Paulo. Editora
Cortez. 2002.
Russo, Lúcia Pizzo. Il disegno infaltile:storia, teoria pratiche. Palermo. Itália. Editora
Aesthetica. 1988.

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Personagens dos contos “Piá não sofre, sofre?” (1939/1996), “Tempo de camisolinha” (1939/1996) e “Vestida de preto”
(1939/1996), respectivamente, nos quais apresenta crianças como protagonistas em diferentes contextos.

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