Sunteți pe pagina 1din 1103

SEMINÁRIO

INTERDISCIPLINAR EM
SOCIOLOGIA E DIREITO

CEM ANOS DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS:


A Revolução de Outubro de 1917 e seu
impacto no Mundo Contemporâneo
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SOCIOLOGIA E DIREITO
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SOCIOLOGIA E DIREITO
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
7° Seminário
Interdisciplinar
em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CEM ANOS DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS:


A Revolução de Outubro de 1917
e seu impacto no Mundo Contemporâneo

Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito


Universidade Federal Fluminense

Niterói
2017
EDITORA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO
Universidade Federal Fluminense
Rua Tiradentes 17, Ingá
24210-510 Niterói/RJ
+55 (21) 3674-7477
sociologia_direito@yahoo.com.br

Coordenador

NAPOLEÃO MIRANDA

Comissão Científica

EDSON ALVISI NEVES


SÉRGIO GUSTAVO DE MATTOS PAUSEIRO
ELIZABETE ROSA DE MELLO
ANA ALICE DE CARLI
JOAQUIM LEONEL DE REZENDE ALVIM
BÁRBARA GOMES LUPETTI BAPTISTA
NAPOLEÃO MIRANDA
WILSON MADEIRA FILHO
ENZO BELLO
GIULIA PAROLA
LUÍS ANTÔNIO CUNHA RIBEIRO
JAMES ARÊAS
GILVAN LUIZ HANSEN
CLODOMIRO JOSÉ BANNWART JÚNIOR
ANA MARIA MOTTA RIBEIRO
MÁRCIA BARROS FERREIRA RODRIGUES
JACQUELINE DE CASSIA PINHEIRO LIMA
ALEXANDRE SÁ BARRETTO DA PAIXÃO
MARIA ALICE NUNES COSTA
MARIA ANTONIETA LEOPOLDI
EDER FERNANDES MONICA
ADRIANA RIBEIRO RICE GEISLER
DELTON MEIRELLES
FERNANDA DUARTE
MARCUS FABIANO GONÇALVES
MÔNICA PARAGUASSU CORREIA DA SILVA
THIAGO RODRIGUES-PEREIRA
MARCELO PEREIRA DE ALMEIDA
CECILIA CABALLERO LOIS
CARLOS MAGNO SPRICIGO VENERIO

Comissão Organizadora

DANIELA JULIANO SILVA


FRANCIS NOBLAT
É de inteira responsabilidade dos autores os conceitos aqui apresentados.
Reprodução dos textos autorizada mediante citação da fonte.
APRESENTAÇÃO
O Legado Social da Revolução Russa 100 anos depois

Em 2017, completou-se 100 anos da Revolução Russa, um dos eventos políticos e sociais mais
importantes e significativos do Século XX. Sua carga simbólica, enquanto movimento revolucionário
que colocou, pela primeira vez na História, a classe trabalhadora no poder possibilitando a ela
promover as transformações econômicas, políticas e sociais que promoveriam a passagem do
capitalismo para o socialismo, teve imensa repercussão na história do século passado e no imaginário
das classes sociais em todo o mundo.
Nestes 100 anos, o mundo assistiu a uma nova guerra mundial, a muitas revoluções e tentativas de
revolução, ao uso da bomba atômica no Japão, a uma profunda transformação de suas estruturas
econômicas e sociais a partir da globalização e da internet, à reafirmação dos Direitos Humanos, à luta
e reafirmação das mulheres em busca de seus direitos, à luta contra o colonialismo e à luta pela
libertação nacional, em especial na África, na América Latina e na Ásia, além de uma profunda
transformação cultural que levou à valorização das diferenças culturais entre os povos do mundo,
assim como à reafirmação da diversidade como valor intrínseco das sociedades democráticas e da
cidadania.
A contribuição da Revolução Russa para todas essas transformações foi enorme, quando mais não seja
pelo estabelecimento de um exemplo histórico concreto de que, sim, é possível aos seres humanos
assumirem a responsabilidade pelo curso da História de cada sociedade existente.
Sua influência foi profunda, por exemplo, na luta dos trabalhadores em todo o mundo, por assegurar
seus direitos e definir uma Justiça do Trabalho voltada para a defesa dos trabalhadores na sua relação
com os empresários. Ainda na esteira desta influência sobre a história do Século XX, cabe lembrar o
importante papel da então União Soviética na delimitação dos Direitos Humanos Políticos, Sociais e
Econômicos na década de 1960, ampliando o rol dos Direitos Humanos até então centrados nos
direitos individuais.
Apesar de todas as dificuldades que enfrentou e dos grandes erros de condução política que levaram a
uma ditadura burocrática, altamente repressiva sobre a sociedade, a Revolução Russa permanece como
um dos momentos históricos mais importantes e transcendentes do Século XX. Ao colocar a
Revolução Russa de 1917 como tema central do 7° Sociologia e Direito, o PPGSD homenageia a todos
os trabalhadores em sua luta por um mundo melhor, menos desigual e mais solidário.

Napoleão Miranda
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
da Universidade Federal Fluminense
ÍNDICE

CEM ANOS DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS: A REVOLUÇÃO DE


OUTUBRO DE 1917 E SEU IMPACTO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
EL DERECHO PENAL TRAS LA REVOLUCIÓN RUSA: UN PARÉNTESIS DE 100 AÑOS
.......................................................................................................................................................... XX
VÁZQUEZ, Virgilio Rodríguez

GT01- EMPRESA, DIREITO E SOCIEDADE


PLANOS NACIONAIS DE AÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS: SUFICENTES
ANTE A ARQUITETURA DA IMPUNIDADE? ...................................................................................39
JÚLIO, Kaliandra Casati
CAMPOS, Rafael Jordan de Andrade
ROLAND, Manoela Carneiro

OS DESAFIOS EMPRESARIAIS GERADOS PELOS ELEVADOS NÍVEIS DE ENCARGOS


TRABALHISTAS NO BRASIL..................................................................................................................53
SOUZA, Mylena Devezas
SOUZA, Gabriel Santos Cintra Gomes de

A (IN) VISIBILIDADE DE FUNCIONÁRIOS DA LIMPEZA NA FACULDADE DE DIREITO


DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF) E A TERCEIRIZAÇÃO COMO
QUESTÃO SOCIAL .....................................................................................................................................66
ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende
COSTA, Luane Faustino

GT02 - TRIBUTAÇÃO JUSTA COMO DIREITO FUNDAMENTAL


A EXTRAFISCALIDADE DA TAXA DE COLETA DE RESÍDUOS SÓLIDOS ..................... 81
MELLO, Elizabete Rosa de
SIMON, Laura Fonseca
VIDAL, Victor Luna

A FUNÇÃO EXTRAFISCAL DO IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS


COM A FINALIDADE DE REDUZIR A TRIBUTAÇÃO DE VEÍCULOS ELÉTRICOS NO
BRASIL.............................................................................................................................................. 97
MELLO, Elizabete Rosa de
SENRA, Matheus Veloso Bastos

ICMS ECOLÓGICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS......................................................... 115


MELLO, Elizabete Rosa de
SIMON, Laura Fonseca
VIDAL, Victor Luna
O EFEITO CONFISCATÓRIO DAS MULTAS NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS E
JUDICIAIS TRIBUTÁRIOS ......................................................................................................... 131
MELLO, Elizabete Rosa de
CASTRO, Isabela Lobo Monteiro de
VILELA, Débora Carolina de Oliveira

GT03 - MERCADO DE TRABALHO, CAMPO PROFISSIONAL E


MEDIAÇÃO
DISPUTAS PROFISSIONAIS NA INTRODUÇÃO DA MEDIAÇÃO NO NÚCLEO DO
IDOSO E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DE FORTALEZA. (MINISTÉRIO PÚBLICO
DO CEARÁ) .................................................................................................................................... 143
ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende
ALCÂNTARA, Alexandre de Oliveira

UMA REFLEXÃO SOBRE A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA


INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO NO BRASIL....................................................... 161
SOUZA, Carla Faria de
BRAGANÇA, Fernanda

GT04 - CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS


UM ENSAIO DE DIETROLOGIA JURÍDICA: O CASO DA ALDEIA IMBUHY ................ 176
BARAHONA, Henrique

ASPECTOS DE PROTEÇÃO ANIMAL, AMBIENTAL E HUMANA: ANIMAIS E


VEÍCULOS DE TRAÇÃO ............................................................................................................. 193
CHAUFUN, Mery
ARRUDA, Camila Rabelo de M. S.
NOGUEIRA, Marcelo

VULNERABILIDADE SOCIAL DE MORADORES REASSENTADOS E SUA


PERCEPÇÃO DE RISCOS ........................................................................................................... 205
KNÖLLER, Patrícia de Vasconcellos

PROJETO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UMA APARENTE


CONTRADIÇÃO ENTRE A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A REFORMA AGRÁRIA . 223
SOARES, Paulo Brasil Dill
RIBEIRO, Ana Maria Motta
CÂMARA, Andreza Aparecida Franco

GT05 - CAPITALISMO VERDE, DIREITO À CIDADE E LUTAS


ANTICAPITALISTAS
INTERFACES ENTRE ÁREAS NATURAIS PROTEGIDAS E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL: UMA ABORDAGEM TEÓRICA ANTICAPITALISTA............................ 242
AFONSO, Rodrigo Vilhena Herdy
NASCIMENTO, Camila Aguiar Lins do

xii
DIREITO À TERRA: UMA ANÁLISE DA LUTA INDÍGENA CHIQUITANO .................... 265
MOREIRA DA COSTA, Loyuá Ribeiro Fernandes
COUTO, Larissa de Paula

BEM VIVER E UBUNTU: MUDANÇAS DE VALORES NA BUSCA PELO


ECOSSOCIALISMO...................................................................................................................... 281
LEMOS, Walter Gustavo da Silva

GT06 - POLÍTICA, SUBJETIVIDADE E VIDA COLETIVA: RESISTÊNCIA E


MOVIMENTOS SOCIAIS
O DIREITO ACHADO NA RUA COMO UMA PERSPECTIVA PARA A CONSTRUÇÃO
DE UM TRATADO VINCULANTE SOBRE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS ......... 300
FERREIRA, Livia Fazolatto
ROLAND, Manoela Carneiro
SENRA, Laura Monteiro

RAFAEL BRAGA VIEIRA E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA NO CONTEXTO


BIOPOLÍTICO ............................................................................................................................... 315
IGNATOWSKI, Thiago Salles
LOPES, Gilberto Santiago
PINTO, Anna Carolina Cunha

REFLEXÕES SOBREA JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO DOMÉSTICA (HOME-


SCHOOLING): DISPOSITIVO, IMMUNITAS E A FORMA-DE-VIDA ................................. 329
FARIAS-LARANGEIRA, Marcelo
LIMA, Andrea Peres

A CONSTRUÇÃO DA “VERDADE” E O FIM DAS ILUSÕES ACERCA DO INDIVÍDUO


.......................................................................................................................................................... 347
MONTEIRO, Mariana L.

DA BIO À TANATOPOLÍTICA: AUTOS DE RESISTÊNCIA E A SELETIVIDADE


DIREITO À VIDA .......................................................................................................................... 359
PINTO, Anna Carolina Cunha
SANTIAGO, Gilberto Lopes
FELDKIRCHER, Gabriela Fenske

UMA REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE E RECONHECIMENTO A PARTIR DO


PARADIGMA DA IMUNIZAÇÃO DE ROBERTO ESPOSITO .............................................. 376
PINTO, Simã Catarina de Lima

O TRABALHO ESCRAVO E O CAPITALISMO: UM PROBLEMA NA POLÍTICA


CONTEMPORÂNEA .................................................................................................................... 390
VELOSO, Carla Sendon Ameijeiras
FIGUEIRA, Hector Luiz Martins
CHAUFUN, Mery

xiii
GT07 - DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
O CERRADO BRASILEIRO E SUA INVISIBILIDADE NAS METAS DO ACORDO DE
PARIS: A OMISSÃO DO ESTADO COM O DESMATAMENTO NA “CUMEEIRA” DA
AMÉRICA DO SUL ....................................................................................................................... 404
BOLSON, Simone Hegele
MIRANDA, Napoleão

A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO EFETIVAÇÃO NO PROCESSO DE


ADMINISTRAÇÃO DOS CONFLITOS ESCOLARES............................................................. 420
ESTEVES, Pâmela
GOMES, Ingrid

REGULAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO: PERCEPÇÕES DE UMA


(RE)CONFIGURAÇÃO DA CIDADANIA ATRAVÉS DA FORMALIZAÇÃO DA
ATIVIDADE EMPRESARIAL ..................................................................................................... 438
JUAREZ, Rodson

A ARMADILHA AUTORITÁRIA E O ESTADO DE EXCEÇÃO: AS LIÇÕES DE CARL


SCHMITT ....................................................................................................................................... 455
MENEZES, Wellington Fontes

DIREITO E MORAL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DAS POSSIBILIDADES DE


UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ............................................................... 479
MONNERAT, Alice Nogueira

ENFRENTAMENTO À VIOLENCIA DOMÉSTICA: REFLEXÕES A PARTIR DA


DESOBEDIENCIA CIVIL, ÉTICA-MORAL E MEDIAÇÃO DE CONFLITOS ................... 491
PIRES, Rosely Maria da Silva
SILVA, Rosely Dias da
GOUVEA, Roberta Suzane

CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UMA CONSTRUÇÃO HORIZONTALIZADA DOS


DIREITOS HUMANOS COM APORTES NO TRANSCONSTITUCIONALISMO ............. 507
FERREIRA, Lucas Pontes

A EFETIVAÇÃO DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL EM PAUTA: A


ALIMENTAÇÃO ADEQUADA COMO DIREITO FUDNAMENTAL................................... 524
SOARES, Durcelania da Silva
GOMES Luciane Mara Correa
RANGEL, Tauã Lima Verdan

A DIVULGAÇÃO DAS OPERAÇÕES DA POLICIA FEDERAL: DIREITO DE ACESSO À


INFORMAÇÃO, LIBERDADE DE IMPRENSA E INTERESSE PÚBLICO.......................... 540
SANTOS, Denis Ribeiro dos

O DIREITO NA SOCIOLOGIA ................................................................................................... 557


SANTANA, Gabriela T. M. da Hora

xiv
GT08 - NARRATIVAS DE CONTRADIÇÕES DE CLASSE E RELAÇÕES DE
DOMINAÇÃO
A ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA E SEU DOPPELGÄNGER: AS TENSÕES
ENTRE HEGEMONIA CAPITALISTA E RESISTÊNCIA NESTE RECORTE DO MUNDO
DO TRABALHO ............................................................................................................................ 567
PITA, Flávia Almeida

VIA COLONIAL E NEOLIBERALISMO: AS REFORMAS TRABALHISTAS E A


PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO ..................................................................... 587
JACINTO, Ana Letícia Domingues
RODRIGUES, Arthur Bastos

APORTES MATERIALISTAS AO ESTUDO DO PENSAMENTO JURÍDICO COMO


IDEOLOGIA: A CRÍTICA ROMÂNTICA DO CAPITALISMO E O DIREITO SOCIAL DE
CESARINO JÚNIOR ..................................................................................................................... 605
SALES, Anna Paula Almeida
PAÇO CUNHA, Elcemir
MONNERAT, Alice Nogueira

UMA REFLEXÃO SOBRE AS CATEGORIAS: CAMPESINATO E AGRICULTURA


FAMILIAR COMO PROCESSO DE LUTA............................................................................... 629
SOARES, Mara Magda
RIBEIRO, Ana Maria Motta
SOUZA, Maria José Andrade de

GT09 - ARTE E LITERATURA EM CENÁRIOS SOCIOJURÍDICOS


O DIREITO E SUAS NECESSÁRIAS INTERAÇÕES COM A LITERATURA E A
TECNOLOGIA............................................................................................................................... 643
SANTO, Letícia Alonso do Espírito

ORDEM E DESORDEM NA FRONTEIRA DO DESERTO: A NARRATIVA DE BREAKING


BAD E AS TRANSGRESSÕES MORAIS
MADEIRA FILHO, Wilson
DIAS, Fabricio de Barros Seraphim
SANTOS, Rayanne Monteiro de Andrade

GT10 - ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E GOVERNANÇA


A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: UM ESTUDO DOCUMENTAL ..................................... 673
CHRIZOSTIMO, Raquel Marinho
SILVINO, Zenith Rosa
SANTOS, Marcelo José

GOVERNANÇA CORPORATIVA, GOVERNANÇA PÚBLICA E ACCOUNTABILITY:


INSTRUMENTOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DE DIRETOS FUNDAMENTAIS NAS
COMPANHIAS ABERTAS........................................................................................................... 685
DALCASTEL, Marcia Bataglin
ALONSO, Pedro Moreira

xv
O IMPACTO DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS NA PRODUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS ...................................................................................................................................... 701
LOPES, Monique Rodrigues

ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS (APAC) COMO


POLÍTICA PÚBLICA ALTERNATIVA AOSISTEMA CARCERÁRIO CONVENCIONAL
.......................................................................................................................................................... 714
NUNES, Isabela Gomes
RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva

OS PAÍSES DO BRICS E O CONTEXTO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO: O


DEBATE NO ÂMBITO DA GOVERNANÇA GLOBAL .......................................................... 731
RACHED, Gabriel

AS DISPUTAS DE CAPITAL SIMBÓLICO NO CAMPO JURÍDICO: AS REAÇÕES AO


NOVO DESENHO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA ............................... 742
ALÔ, Bernard dos Reis

CORRUPÇÃO E INSTITUIÇÕES ............................................................................................... 754


BRETAS, Carlos Renan Moreira

A LEI N. 13.019/14: LIÇÕES DE “BOA” GOVERNANÇA NAS PARCERIAS COM O


TERCEIRO SETOR?..................................................................................................................... 766
SILVA, Daniela Juliano

GT11 - SEXUALIDADE, DEMOCRACIA E PODER


A SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES, O POLIAMOR E O RECONHECIMENTO DA UNIÃO
POLIAFETIVA PELO TABELIÃO DE NOTAS EM ESCRITURA PÚBLICA ..................... 786
BOLSON, Simone Hegele

DIÁLOGO ENTRE FEMINISMOS, DIREITO E RELIGIÃO ................................................. 808


COLEN, Karen de Sales

GT 12 - ENSINO JURÍDICO, FACULDADES DE DIREITO E FORMAÇÃO


PROFISSIONAL
A ARTE DE ENSINAR DIREITO TRIBUTÁRIO ..................................................................... 824
MELLO, Elizabete Rosa de

AS UNIVERSIDADES PRIVADAS NO BRASIL: O LONGO CAMINHO............................. 839


FIGUEIRA, Hector Luiz Martins
VELOSO, Carla Sendon Ameijeiras
ARRUDA, Camila Rabelo de M. S.

A CRISE NO ENSINO JURÍDICO E OS CONCURSOS PÚBLICOS ..................................... 851


COSTA, Beatriz Guimarães

ENTRE O TECNÓLOGO E O JURISTA.................................................................................... 864


LOPES, Ricardo Ferraz Braida
MEIRELLES, Delton Ricardo Soares

xvi
AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE: RETRATOS DE UMA PESQUISA SOBRE
A INSERÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS EM UMA FACULDADE PÚBLICA DE DIREITO
.......................................................................................................................................................... 875
SANTOS, Erli Sá dos
ALMEIDA, Matheus Guarino Sant’Anna Lima de
PACHECO, Heloisa de Faria

A EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO NA COMAR UNIG .......................................................... 893


NADER, Carmen Caroline Ferreira do Carmo
RANGEL, Tauã Lima Verdan
NADER, Cristian

EM BUSCA DE UM NOVO SABER JURÍDICO: A EXPERIÊNCIA EM “PODER


JUDICIÁRIO E POLÍTICA” ........................................................................................................ 906
MACHADO, Joana de Souza
VALENTE, Mário José Bani

GT 13 - SOCIOLOGIA DOS SENTIMENTOS MORAIS


MANUEL DA NÓBREGA E AS MISSÕES JESUÍTAS NOS PRIMEIROS ANOS DO
GOVERNO GERAL DO ESTADO DO BRASIL (1549-1559) ................................................... 921
BROCCO, Pedro
GONÇALVES, Marcus Fabiano

XENOFOBIA PARA ALÉM DA MORAL .................................................................................. 937


MONTEIRO, Tiago Leão

IMPEACHMENT NA CONVERGÊNCIA ENTRE DIREITO, MORAL E POLÍTICA À LUZ


DA TEORIA INSTITUCIONALISTA DE NEIL MACCORMICK ......................................... 953
SILVA, Anna Carolina Pinheiro da Costa

GT 14 - HERMENÊUTICA, PROCESSO E TEORIA DA DECISÃO


LEI OU JUSTIÇA: UMA ANÁLISE ETNOMETODOLÓGICA DOS JUIZADOS
ESPECIAIS CÍVEIS I E II DA COMARCA DE VOLTA REDONDA ..................................... 970
MIRANDA, Napoleão
SEIXAS, Marcus Wagner de
MARCHI, Amanda Aguado

TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO: ALGUNS


ARRANJOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS ..................................................................... 983
CATHARINA, Alexandre de Castro

PERÍCIAS NAS AÇÕES DE CONCESSÃO DE AUXILIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO: A


APLICABILIDADE DO PRINCÍPIODA RAZOABILIDADE NOS PROCESSOS JUDICIAIS
.......................................................................................................................................................... 999
MARQUES, Marcilene Margarete Cavalcante
CHALFUN, Mery
BORGES, Letícia Maria de Oliveira

xvii
GT 15 - ENSINO JURÍDICO HOJE
O DIREITO E O ENSINO JURÍDICO SOB A PERSPECTIVA DE MICHEL MIAILLE E A
RECONFIGURAÇÃO DA CIÊNCIA JURÍDICA A PARTIR DAS OCUPAÇÕES DAS
ESCOLAS PÚBLICAS................................................................................................................. 1015
ABREU, Angélica Kely

PARA ALÉM DAS AULAS EXPOSITIVAS: UM REPENSAR DO ENSINO JURÍDICO A


PARTIR DO PROTAGONISMO DOS DISCENTES............................................................... 1032
FERREIRA, Oswaldo Moreira
GOMES, Luciane Mara Correa
RANGEL, Tauã Lima Verdan

AÇÃO AFIRMATIVA, EDUCAÇÃO E JUDICIALIZAÇÃO: SILÊNCIOS E SENTIDOS


........................................................................................................................................................ 1047
SANTOS, Erli Sá dos

ENSINO JURÍDICO NO BRASIL: A PREPARAÇÃO MULTIFUNCIONAL ..................... 1058


SOUZA, Mylena Devezas
SOUZA, Gabriel Santos Cintra Gomes de

GT 16 - ARTE, MÍDIA E DIREITOS HUMANOS: O TEATRO, A


FOTOGRAFIA, O CINEMA E A TELEVISÃO
A VERDADE DE NIETZSCHE NA OBRA A LIBERDADE GUIANDO O POVO DE EUGENE
DELACROIX, UMA PERSPECTIVA FEMINISTA ................................................................ 1071
COELHO, Naiara

A(R)TIVISMO FEMINISTA: INTERSECÇÕES ENTRE ARTE POLÍTICA E FEMINISMO


........................................................................................................................................................ 1082
COSTA, Maria Alice Nunes
COELHO, Naiara

INDIVÍDUO, SOCIEDADE E O CINEMA: A CONTEMPORANEIDADE, O DINHEIRO E O


MOVIMENTO NA CIDADE ...................................................................................................... 1095
RIBEIRO, Wanisy Roncone

xviii
Conferência de Abertura

CEM ANOS DE
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS:
A Revolução de Outubro de 1917 e seu impacto
no Mundo Contemporâneo
EL DERECHO PENAL TRAS LA REVOLUCIÓN RUSA:
UN PARÉNTESIS DE 100 AÑOS

VÁZQUEZ, Virgilio Rodríguez


Profesor Contratado Doctor (acreditado profesor titular) de Derecho Penal.
Universidad de Vigo.

INTRODUCCIÓN1

En general, el Derecho penal ruso, y en particular el producido tras la Revolución


Rusa, apenas ha sido objeto de estudio en los países de tradición jurídica continental. Sin
embargo, indirectamente se han producido acercamientos a través del Derecho penal alemán
de preguerra (anterior a la II Guerra Mundial).
Lo que se trata de poner de manifiesto en este trabajo es que la génesis del Derecho
penal alemán del período Nazi, de 1933 a 1945, reproduce conceptos y léxico contenidos en
el Derecho penal creado en la Revolución de Octubre de 1917.
La Revolución Rusa crea un Nuevo Derecho penal que rompe con el Derecho penal
liberal, propio del Estado de Derecho que nace con las Revoluciones liberales y que encuentra
su punto de inflexión en la Revolución Francesa del año 1789. Hay una línea de continuidad
que va desde el Derecho penal de autor, que se instala a partir del año 1919 en la Unión de
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), y que pasando por la Alemania Nazi, llega hasta
nuestros días a través del Derecho penal del enemigo, con referencias en el Derecho positivo
de muchos países occidentales.

1
El presente trabajo se inscribe en el proyecto de investigación “Responsabilidad penal de personas físicas y
jurídicas en el ámbito empresarial, económico, laboral y de los mercados (II)” (Referencia: DER2014-58546-R,
Ministerio de Economía y Competitividad), del que es investigador principal el Prof. Dr. Dr. h. c. mult. Diego-
Manuel Luzón Peña, Catedrático de Derecho Penal de la Universidad de Alcalá de Henares, así como también en
los proyectos de investigación “Las garantías penales como límite y guía en la solución de problemas penales
complejos: la necesidad de evitar atajos” (Referencia: DER2013-47511-R, Ministerio de Ciencia e Innovación) y
“Principios y garantías penales: sectores de riesgo” (Referencia: DER2016-76715-R, Ministerio de Ciencia e
Innovación) de los que es investigador principal el Prof. Dr. Dres. h. c. Miguel Díaz y García Conlledo,
Catedrático de Derecho Penal de la Universidad de León, y de cuyos equipos de trabajo formo parte. Este trabajo
fue presentado como ponencia de apertura del 7.º Seminário Interdisciplinar em Sociología e Direito (S&D 7),
celebrado en la Faculdade de Diereito, Universidade Federal Fluminense, Niterói (Brasil), los días 25 y 26 de
octubre de 2017. Quiero expresar mi agradecimiento al Profesor Napoleão Miranda, así como a los Profesores
Edson Alvisi Neves, Gilvan Luiz Hansen, Wilson Madeira Filho y Antón Lois Fernández Álvarez.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. EL DERECHO PENAL TRAS LA REVOLUCIÓN FRANCESA.

Las revoluciones liberales de mediados y finales del siglo XVIII que tienen lugar en
la Europa continental y en América del Norte, cuyo precedente inmediato lo podemos
encontrar en los movimientos liberales del siglo anterior en el Reino Unido, van a marcar un
antes y un después en el devenir político y social de los Estados occidentales. El punto de
inflexión generalmente reconocido de este cambio tiene fecha, nombre y apellidos: 14 de julio
de 1789, Revolución Francesa. El levantamiento popular, liderado por la burguesía, que acaba
por derrocar a la monarquía absoluta materializa en la praxis política las corrientes de
pensamiento que habían ido forjando una nueva concepción de poder, legitimidad y, en
definitiva, de Estado. Los clásicos Rousseau, Locke y Montesquieu, compendian las
principales ideas que empujan la transformación definitiva del Estado absolutista en un
Estado de Derecho. El complemento nominal “de Derecho”, que adjetiva la nueva forma de
organización política de la sociedad, nos señala ya la principal característica de esta nueva
realidad. El Estado, como superestructura que planea sobre todos los miembros de una
colectividad (auto)considerada como sujeto político, deberá estar sometida al Derecho. Por
tanto, ni tan siquiera esa superestructura, que concentra el poder, y quienes actúen en su
nombre, es decir, quienes ejerzan fácticamente ese poder, podrán hacerlo sin control, de modo
autónomo, sino que se verán necesariamente sometidos al Derecho, entendido como sistema
de normas. A esto hay que añadir que esas normas las crea el conjunto de personas, la
comunidad, que decide organizarse en Estado. En este orden de cosas, los poderes del Estado,
cedidos por la sociedad en su conjunto que es quien originariamente los ostenta, están
sometidos a las normas, a la Ley, que emana, como decía, de dicha sociedad. El principio de
legalidad se configura como la piedra angular de esta nueva forma de organización política,
de manera que el poder estatal, que es un poder derivado, no pueda hacer nada fuera de la
Ley; Ley que a su vez procede de los hombres y las mujeres que deciden, como miembros de
una comunidad, otorgar la capacidad de dirigir, gestionar y controlar, a una superestructura,
denominada Estado, que lo ejercerá puntual y temporalmente a través de personas concretas,
pertenecientes a esa misma sociedad. La idea de contención del poder que implica el principio
de legalidad se ve complementada con la división de poderes que ya se refiere a una forma
determinada de organizar a las personas que van a ejercer el poder que se atribuye al Estado.
En realidad, supone una división de tareas o funciones que se distribuyen en tres grandes
bloques, ejecutivo, legislativo y judicial, que a su vez es objeto de subdivisiones y

xxi
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estratificaciones en una cadena sucesiva hacia la base de la pirámide. Pero lo fundamental es


que el poder que concentra el Estado, por delegación de la sociedad, no lo olvidemos, se
divide en esos tres bloques, con funciones (en principio) claramente diferenciadas. De esos
tres bloques el que más interesa aquí es el legislativo, pues debe ser el canal que comunique
permanentemente al sujeto político -la comunidad- con el artefacto político -el Estado- para
que las ideas sobre la organización, las relaciones sociales, la convivencia, los negocios, etc.
presentes en la comunidad puedan materializarse en leyes reconocidas por todos y
susceptibles de aplicación y, consecuentemente, necesitadas de cumplimiento. De alguna
manera, el poder legislativo, cualesquiera formas que adopte, congreso, parlamento, senado,
cámara, etc., tiene la misión de traducir el sentir social para hacerlo inteligible frente a todos y
susceptible de aplicación. Entre las competencias cedidas por la sociedad al Estado (en
concreto, al poder legislativo) está la de entrar a regular los aspectos más conflictivos de la
sociedad, aquellos comportamientos o conductas que pueden afectar a la convivencia pacífica
y, por tanto, poner en peligro la supervivencia del propio sujeto político. En el proceso de
definir qué es delito, y qué consecuencia se le atribuye, el Estado está obligado a traducir
fielmente el sentir de la sociedad, lo debe hacer a través del poder al que se le ha atribuido
específicamente esa función, el poder legislativo, y estará sometido, por tanto, al principio de
legalidad. En resumen, en el Estado de Derecho, el poder punitivo, reconocido
tradicionalmente como el “ius puniendi”, no puede ser, como acabamos de ver, por la propia
naturaleza de esta forma de organización política de la sociedad, un poder absoluto, pero
además, no puede ser ajeno a la propia sociedad, sino que debe ser ejercido atendiéndola,
vinculado a lo que ésta diga, piense o crea. Estas ideas son las que sintetiza el “principio de
legalidad”.
El principio de legalidad condiciona decisivamente la creación del Derecho penal en
un Estado de Derecho. En primer lugar, determina que no puede haber delito, es decir, una
conducta no puede ser calificada como lesiva, en última instancia para la sociedad, si no lo es
a través de una ley. Tampoco podrá contemplarse una consecuencia jurídica, en forma de
pena, para esa conducta, si no se hace mediante una ley. Por tanto, no puede haber delito ni
pena si no a través de ley (“nullum crimen, nulla poena sine lege”)2. Pero es que además, para

2
Véase ROXIN, Claus, Derecho penal, Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier De
Vicente Remesal, Miguel Díaz y García Conlledo, Civitas, Madrid, 1997, 137; DE FIGUEIREDO DIAS, Jorge,
Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, 177; LUZÓN PEÑA, Diego-
Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte General, 3.ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2016, 20.

xxii
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

que ese mandato realmente se cumpla, y sea por tanto efectivo, tiene que hacerse siguiendo
unas pautas, adoptando unas formas concretas, y con rigor. Sólo habrá cumplimiento efectivo
del mandato, y el poder legislativo, en definitiva, el Estado, respetará el mandato social, si
identifica y define el delito con precisión, con claridad y con exactitud. De no ser así, es decir,
de tener, cada miembro de la sociedad, que “adivinar” para cada situación si una conducta es
delito o no lo es, no se estaría cumpliendo ese mandato. Esa definición debe hacerse con
carácter previo, pues el telos del mandato es asegurar la convivencia, algo que sólo se puede
conseguir si antes de la toma de decisiones cada persona sabe (o, al menos, puede llegar a
saber) qué consecuencias tiene su conducta (y no solo para él, sino más importante incluso,
qué consecuencias tiene su conducta para los demás, para la sociedad en la que se integra,
pues ésta y no la primera es –o debería ser- la razón de su toma de decisión). Se suele añadir
que esa definición legal ha de fijarse por escrito, para que pueda llegar con más seguridad a
todos los miembros de la sociedad o al mayor número, con un carácter permanente y estable,
e incluso con mayor fuerza vinculante, aunque éste requisito es más discutible (“Lex praevia,
scripta, stricta et certa”)3. Del principio de legalidad, así entendido, derivan dos importantes
consecuencias que no hacen otra cosa que extenderse en ideas que están contenidas en dicho
principio. Primera, la que se conoce como principio de irretroactividad de las leyes penales,
segunda, la prohibición de la analogía en contra del reo. El principio de irretroactividad nos
dice que las leyes que definen delitos e imponen penas no se pueden aplicar con carácter
retroactivo, hacia atrás, a hechos que acontecieron antes de que esas leyes entrasen en vigor y
por tanto pudiesen ser conocidas y pudiesen condicionar así el comportamiento de los
ciudadanos. El principio de irretroactividad persigue proporcionar seguridad jurídica a los
ciudadanos y también eficacia jurídica a las normas penales. Por eso se predica la prohibición
de retroactividad respecto de aquéllas leyes que crean delitos o agravan penas, pero no así de
aquéllas que derogan o atenúan las penas, pues no se estará afectando ningunas de las dos
cuestiones en juego ya señaladas. Por su parte, la prohibición de la analogía en contra del reo,
relaciona la labor del poder legislativo en materia penal con la del poder judicial, otro de los
tres bloques en los que se divide el poder del Estado. Cuando se exige, de acuerdo con el
principio de legalidad, que la ley penal sea lo más precisa y clara posible, se quiere evitar que

3
Véase ROXIN, Claus, Derecho penal, Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier De
Vicente Remesal, Miguel Díaz y García Conlledo, Civitas, Madrid, 1997, 140 ss.; DE FIGUEIREDO DIAS,
Jorge, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, 183 ss.; LUZÓN PEÑA,
Diego-Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte General, 3.ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2016, 20.

xxiii
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

los jueces y tribunales puedan “estirarla” a su antojo para incluir en la descripción de delito
cuantas conductas estimen oportuno. Se quiere impedir que el poder judicial pueda utilizar la
ley penal para aplicar a supuestos que sin estar reconocidos claramente en la misma son
parecidos o quizá los jueces y tribunales le encuentran un parecido, aplicando la norma
analógicamente y ampliando de esta forma el espectro de lo punible, la esfera de lo delictivo.
Esta práctica supone un claro ejercicio de arbitrariedad y una desnaturalización del propio
Estado de Derecho.
A partir del principio de legalidad se han ido desarrollando otros principios que han
acabado por configurar los límites del poder punitivo dentro del Estado de Derecho. Entre
estos límites, cabe destacar el principio de lesividad o exclusiva protección de bienes
jurídicos4, según el cual lo que el poder punitivo tiene que perseguir a través del Derecho
penal es asegurar los derechos e intereses considerados esenciales para la convivencia pacífica
en sociedad. Se trata de derechos intersubjetivos, que transciendan la mera esfera privada o
contractual, y que alcanzan una dimensión pública, colectiva o comunitaria, y sólo en tanto en
cuanto se vea afectada esta dimensión las conductas de los ciudadanos interesarán al Derecho
penal. Desde este punto de vista, el Derecho penal no tendría que ocuparse de aspectos
internos o privados de los ciudadanos, o de comportamientos que sólo afectan a su ámbito
íntimo o particular pero que para nada influyen en la convivencia social, siempre y cuando
nos encontremos en el marco de convivencia de un Estado democrático y libre. Así,
cuestiones como los meros pensamientos, la defensa de determinadas ideas, las tendencias o
gustos sexuales, las creencias religiosas, entre otras, deberían quedar fuera de toda
consideración jurídicopenal. Otro principio es el de proporcionalidad, que nos indica que las
penas a imponer han de ser justas, lo que tiene que ver más con la coherencia del sistema de
penas que con la idea de justicia material, que por los demás difícilmente se puede alcanzar a
través de una herramienta como es el Derecho penal. Así, se dice que las penas deben ser
proporcionales a la gravedad del hecho realizado, que en parte tiene que ver con la
importancia del bien jurídico lesionado y con el grado de afectación del mismo. Un principio
que también se debe destacar aquí es el de culpabilidad, que exige para la imposición de la
pena que el sujeto que actúa, que ha cometido un hecho delictivo, sea libre, es decir, sea capaz
de una acción distinta a la que ha realizado. Sólo la persona libre puede realmente ser

4
Sobre el “bien jurídico”, véase DE FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed.,
Coimbra Editora, Coimbra, 2007, 133 ss.

xxiv
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

motivado por la norma, conducir su conducta de acuerdo con la ley, y sólo ante esa persona
tiene sentido el juicio de reproche que supone el ser juzgado y el imponer una pena. El grado
de libertad estará en función de las capacidades y conocimientos individuales, de las
condiciones intelectivas, perceptivas del sujeto concreto, de las circunstancias en las que se
desarrolla, de parámetros culturales, y de las posibilidades reales de acción. Junto a éstos
existen otros principios en los que no me voy a detener, pues no interesan especialmente a
efectos del análisis que aquí se propone, como son el principio de subsidiariedad, intervención
mínima o ultima ratio, que tiene que ver en parte con el carácter fragmentario del Derecho
penal, el de efectividad, eficacia o idoneidad, el principio de responsabilidad subjetiva, el de
responsabilidad personal y el principio de humanidad o humanización de las penas5.
En síntesis, se puede decir que la Revolución Francesa, como máximo estandarte de
las revoluciones liberales del siglo XVIII, supone una ruptura con el Estado absolutista,
consagrando una nueva forma de organización política de la sociedad, el Estado de Derecho.
En él, el principio de legalidad constituye la piedra angular, pues todos, sociedad y Estado
están sometidos a la Ley, que emana del pueblo, de la voluntad de sujeto político colectivo, la
“sociedad”. En el ejercicio del poder punitivo por parte del Estado, a través del poder
legislativo, el principio de legalidad se concreta en tres ideas centrales: no hay delito ni pena
sin ley, la ley penal debe ser previa y debe ser precisa. Estas ideas se desarrollan encontrando
reflejo en dos postulados fundamentales: principio de irretroactividad de las leyes penales
desfavorables al reo y prohibición de la analogía en contra del reo. Sobre el principio de
legalidad se construye un entramado de principios limitadores del poder punitivo entre los que
destacan el de exclusiva protección de bienes jurídicos, el de proporcionalidad y el de
culpabilidad. Todos estos principios toman como referencia para definir el delito e imponer
una pena, hechos, es decir, comportamientos o conductas humanas que lesionan bienes
esenciales para la convivencia pacífica en sociedad, sin que sean de interés a estos efectos los
meros pensamientos o ideologías, por muy divergentes que estos puedan ser, u otros aspectos
privados, íntimos, individuales de cada uno de los ciudadanos que conforman la sociedad
organizada en Estado. La libertad individual constituye el punto de partida y sólo se verá
limitada en la misma medida en que en uso de esa libertad el ciudadano dañe a la comunidad.

5
Sobre cada uno de estos principios, en profundidad, LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel, Lecciones de Derecho
penal, Parte General, 3.ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2016, 20 ss.

xxv
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. EL DERECHO PENAL DURANTE LA REVOLUCIÓN RUSA.

La Rusia anterior a la Revolución de 1917 trata de salir lentamente de una economía


predominantemente rural, donde la mayoría de la población se concentra en el campo, y en la
que el sistema feudal todavía sigue en vigor6. Durante finales del siglo XIX, el régimen zarista
va evolucionando hacia una sociedad más abierta, en la que se produce la abolición de la
servidumbre, así como la llegada no sin cierto retraso de la industrialización y con ello de una
clase trabajadora militante7. Los comienzos del siglo XX son realmente convulsos, por una
parte con la guerra Ruso-Japonesa y, por otra, con el estallido de la I Guerra Mundial. Es en
este escenario donde tiene lugar la Revolución Rusa con el levantamiento de febrero 1917 y la
posterior Revolución de Octubre, con la toma del Palacio de Invierno, la caída del gobierno
provisional y la subida de Lenin al poder, como jefe del gobierno8. En lo que al Derecho
penal se refiere, este primer período revolucionario, que va desde el año 1917 hasta el año
1919, puede ser calificado de “transitorio”. Ante la precipitación de los acontecimientos y la
imposibilidad de desarrollar un corpus legislativo plenamente ajustado a los principios
revolucionarios, se mantiene irremediablemente el Código Penal (en adelante CP) zarista de
1903. Sin embargo, este Código se moldea y se va adaptando a dichos principios a través de
la publicación sucesiva de una serie de decretos que determinaron la vigencia de las leyes
zaristas en todo aquello que no fuese contrario a la conciencia socialista revolucionaria del
Derecho9. Esta es la época en la que los Soviets aglutinan progresivamente más poder, los
cuadros bolcheviques se van imponiendo hasta alcanzar un protagonismo máximo, creándose
en el año 1918 la CHECA, comisión especial para la lucha contra la contrarrevolución y el
sabotaje, configurándose como un cuerpo de policía prácticamente autónomo y con una
función claramente represora10. En esta época, lo que definía el Delito era fundamentalmente
el carácter de “peligrosidad social” de una actividad, aunque no tuviese una correspondencia
formal con un delito preexistente. Además, las penas variaban en función de la clase social a

6
FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China, Lisboa, 2017, 35.
7
FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China, Lisboa, 2017, 39 ss.
8
En detalle, FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China, Lisboa,
2017, 77 ss.; ROSAS, Fernando, Guerra e Revolução na Rússia de 1917, en AA.VV, A Revolução Russa, 100
anos depois, Parsifal, Lisboa, 2017, 68.
9
BLAS ZULUETA, Luis, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias
Penales, núm. 596, 6.
10
Sobre la CHECA, véase En detalle, FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva,
Tinta da China, Lisboa, 2017, 138 s.

xxvi
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

la que perteneciese el autor del hecho, siendo más graves para los defensores del zar que para
los integrantes de la clase trabajadora. Esta tendencia se ve reforzada con la promulgación el
12 de diciembre de 1919 de los “Principios directores del Derecho penal de la República
Socialista Federativa de los Soviets de Rusia”, que constituyen el primer intento de legislar de
forma sistemática en materia penal11. Este texto, compuesto de veintisiete artículos y ocho
secciones, contenía una especie de Parte General del Derecho penal, a modo de conceptos
penales comunes que debían seguir cada una de las Repúblicas de la Federación en la
redacción de sus Códigos Penales, y que en todo caso orientaban la acción de la justicia penal
mientras estuviesen en vigor. Este Derecho penal se caracteriza por el abandono de la
tipificación, con una marcada indeterminación de las penas, lo que conducía a una evidente
arbitrariedad judicial que utilizaba como criterio interpretativo el principio de la “conciencia
jurídica socialista”12. Lo que fundamentalmente preocupa es la motivación de los hechos
delictivos, especialmente la motivación de corte político. Un tercer período es el que se inicia
en el año 1922, cuando se aprueba el primer CP “postzarista”, el 24 de mayo, entrando en
vigor el 1 de junio del mismo año. Este CP desarrolla en su Parte General los principios
básicos contenidos en la norma precedente del año 1919, por lo que perfecciona una línea de
pensamiento penal que se aleja definitivamente de los principios limitadores del ius puniendi,
propios de un Estado de Derecho, pervirtiendo el principio de legalidad y, con ello, negando
las garantías inherentes al mismo13. Lo que me interesa destacar aquí del CP 1922 son dos
cosas. Por una parte, la definición de delito, “como un acto o una omisión socialmente
peligrosa que amenaza los fundamentos del régimen soviético y el orden jurídico establecido
por el poder obrero y campesino para el período de transición hacia el comunismo”14. Se trata
de una consagración del delito político y eminentemente clasista, que paradójicamente no

11
JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires, 1947, 54;
BLAS ZULUETA, Luis, El novísimo Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,
núm. 480, 4; el mismo, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,
núm. 596, 5; MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo,
Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1986, 324.
12
ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO GONZÁLEZ, Gabriel, The social
science post, La Unión Soviética y el Derecho penal, URL: http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-
sovietica-y-el-derecho-penal/, [consultado o día 23/10/2017].
13
Sobre el CP 1922, en detalle, véase JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora
Argentina, Buenos Aires, 1947, 55 s.; BLAS ZULUETA, Luis, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario
de Derecho Penal y Ciencias Penales, núm. 596, 6 ss. También, MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal,
algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1986, 326 ss.
14
A través de BLAS ZULUETA, Luis, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y
Ciencias Penales, núm. 596, 7.

xxvii
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

reconoce el derecho de igualdad, y que no tiene como referencia el principio de exclusiva


protección de bienes jurídicos, tal y como se había entendido en el Estado liberal de Derecho.
Por otra parte, se legaliza la analogía en contra del reo, pues se trataba de evitar que, ante la
imposibilidad de prever todas las posibles formas de comportamientos contrarrevolucionarios,
los enemigos de la Revolución pudiesen aprovecharse de lagunas legales y, de esta forma,
atacar impunemente las bases del régimen. Además, se incorpora el concepto de “estado
peligroso”, entendido como conjunto de condiciones subjetivas que autorizan a las
autoridades para realizar un pronóstico acerca de la propensión de un individuo a cometer
delitos, y que justifican la aplicación de penas o medidas de seguridad. En el año 1924 se
dictan los “Principios fundamentales de la legislación penal de la URSS y de las repúblicas
federadas”, que constituyen unas directrices cuyo principal objetivo es el establecimiento de
un sistema de defensa social, del estado peligro y del principio de analogía15. Estos principios
desembocaron en la aprobación, el 22 de noviembre de 1926, del nuevo CP, que entra en
vigor el 1 de enero de 1927. En este texto se recoge la idea de estado peligroso como
elemento definitorio del delito, así “se consideran socialmente peligrosas las acciones u
omisiones dirigidas contra la Constitución del Estado soviético o que lesionan el orden
jurídico creado por el gobierno de los obreros y campesinos (…)” según señala el art. 6 CP
192616. Pierde valor la consideración objetiva del hecho, siendo lo más relevante la
peligrosidad social, dependiente no tanto del hecho como del autor. Por su parte, entre las
consecuencias jurídicopenales se recogen las “medidas de defensa social”, que tienen como
fin la protección del orden jurídico, a través de la evitación nuevos delitos por quien ya haya
cometido una infracción, el tratamiento de miembros anormales de la sociedad, así como la
adaptación del autor de un delito a las condiciones de la vida social activa, como se puede ver
en el art. 9 CP 192617. Nuevamente aparece en el art. 16 el principio de analogía en los
siguientes términos, “cuando algún acto peligroso no esté expresamente previsto en este

15
Sobre los “Principios fundamentales” de 1924, en profundidad, BLAS ZULUETA, Luis, El novísimo Derecho
penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, núm. 480, 4 ss. También, JIMÉNEZ DE
ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires, 1947, 59.
16
A través de MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo,
Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1986, 330 s.
17
Véase MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad
Nacional Autónoma de México, México, 1986, 331 s.; también ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO
LOIRA, Pablo/MORENO GONZÁLEZ, Gabriel, The social science post, La Unión Soviética y el Derecho penal,
URL: http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-sovietica-y-el-derecho-penal/, [consultado o día
23/10/2017].

xxviii
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Código, se determinarán los principios y los límites de su responsabilidad conforme a


aquellos artículos de este Código que prevean los delitos de naturaleza más análoga”18. Este
principio, reconocido legalmente, sumado a una falta de enumeración exhaustiva de los
delitos y de la definición genérica de delito basada en la peligrosidad del autor que nos da el
texto legal, son la base para un amplísimo arbitrio judicial, en un sistema en el que el principio
de legalidad queda relegado al ostracismo, la referencia para calificar la infracción penal es
más el autor que el hecho, y el objeto de protección es el orden social no el bien jurídico.
Además, las consecuencias jurídicas utilizan un lenguaje claramente tendencioso, como se
puede ver en el art. 20 CP 1926, incluyendo entre las que tienen un carácter correctivo la
“declaración de enemigo de los trabajadores, con pérdida del derecho de ciudadanía de la
Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas, y con extrañamiento absoluto del territorio
nacional”19. Se podría llegar a hablar de un cuarto período en la evolución jurídicopenal ruso
si las reformas planeadas tras la llegada de Stalin al poder, en los años 1929 y 1930 hubiesen
cristalizado, cosa que finalmente no sucedió20. En consecuencia, el CP 1926 se mantuvo su
vigencia, con sucesivas reformas, hasta el año 1961, viéndose especialmente influenciado por
la Constitución de la URSS del año 1936, en la que destacan el art. 131, que catalogaba como
enemigo del pueblo a todos aquellos que no acatasen la propiedad socialista o el art. 133 que
determinaba que la traición a la patria era el delito más grave de los crímenes21.

18
A través de MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo,
Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1986, 333.
19
A través de MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo,
Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1986, 334.
20
Por una parte el proyecto Krylenko que propugnaba un CP de corte represivo. El “proyecto Krylenko” suponía
abandonar por completo la taxatividad delictiva, así como de las penas, otorgando al juzgador un catálogo entre el
que deberá elegir. Una parte del articulado se dirige expresamente a atajar las conductas de los “enemigos de la
clase proletaria”, con medidas represivas de clase, frente a otro bloque, más benévolo, destinado a la clase
trabajadora y a los delitos comunes cometidos por ésta, que contempla medidas con finalidad coactiva. Casi
paralelo al anterior apareció el “proyecto Schirwindt”, que se oponía al anterior, al diferenciar entre una Parte
general y una Parte especial en la que se recogía una enumeración taxativa de los delitos, basados además en la
protección de bienes jurídicos, aunque mantenía gran parte de los principios recogidos en el CP 1926, como por
ejemplo el de analogía. Véase al respecto, JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica
Editora Argentina, Buenos Aires, 1947, 64 ss.; MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas
consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional Autónoma de México, México, 1986, 337 s.;
ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO GONZÁLEZ, Gabriel, The social
science post, La Unión Soviética y el Derecho penal, URL: http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-
sovietica-y-el-derecho-penal/, [consultado o día 23/10/2017].
21
Véase JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires,
1947, 79; ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO GONZÁLEZ, Gabriel, The
social science post, La Unión Soviética y el Derecho penal, URL: http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-
union-sovietica-y-el-derecho-penal/, [consultado o día 23/10/2017].

xxix
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

En resumen, podemos decir que el Derecho penal que surge con la Revolución Rusa
se aparta claramente de los principios establecidos tras la Revolución Francesa y que desde
entonces inspiraban el Derecho penal liberal. Así, se produce un abandono del principio de
legalidad que en un primer momento, tras la Revolución de febrero y octubre de 1917, ni
siquiera formalmente se respeta, pero que en todo caso, desde entonces, no se respeta
materialmente. La falta de taxatividad y precisión en la definición de los delitos, así como la
enumeración de las consecuencias jurídicas como un catálogo abierto, otorgan una absoluta
arbitrariedad al juzgador, que se ve ampliada por el hecho de reconocerse legalmente el
principio de analogía en contra del reo. La referencia en la definición del delito no es el bien
jurídico, sino la necesidad de mantener el orden social instaurado por el Estado socialista, en
definitiva, la necesidad de proteger la dictadura del proletariado, y el hecho sólo constituye la
base del delito, en tanto en cuanto sea revelador de la peligrosidad social del autor para
mantener el orden referido. Se desarrolla un bloque de normas penales especialmente
dirigidas a los enemigos de clase y otro bloque que contemplan delitos comunes cometidos
por el ciudadano “normal”, es decir, que no pretende atentar contra el régimen, con
consecuencias jurídicas diferentes, siendo más severas las contempladas para los primeros
que para los segundos. En definitiva, podemos comprobar como el Derecho penal tras la
Revolución Rusa desarrolla claramente delitos políticos, un Derecho penal a dos velocidades,
o un Derecho penal del enemigo, en el que se ven debilitadas garantías jurídicas básicas,
donde el bien jurídico cede a favor de la protección y preservación del orden social, es decir,
del sistema.

3. EL DERECHO PENAL DEL ENEMIGO EN LA REVOLUCIÓN DEL


CAPITAL

El Derecho penal del enemigo es una expresión que se ha acuñado a finales de siglo
pasado para denominar un Derecho penal y, particularmente, un Derecho procesal penal,
desarrollado en los países occidentales en los últimos tiempos, sobre todo a raíz de los
atentados de Nueva York del 11 de septiembre de 200122. Desde esta concepción, el
delincuente es un “no ciudadano”, es decir, un enemigo, frente a la generalidad de los

22
JAKOBS, Günther, Derecho penal del enemigo, trad. Manuel Cancio Meliá, 2.ª ed., Civitas, Madrid, 2006,
passim; sobre el Derecho penal del enemigo, LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte
General, 3.ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia, 2016, 23.

xxx
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ciudadanos, respetuosos con el orden establecido, con el sistema de libertades y derechos


dado. Se desarrolla un bloque normativo específicamente destinado a neutralizar al
“enemigo”, cueste lo que cueste. Este bloque de normas jurídicopenales se caracteriza por un
extraordinario adelantamiento de las barreras de protección penal, incrementando la creación
de delitos de peligro, preocupándose por el delito que está por venir, endureciendo penas, y
atendiendo más a las características, condiciones y tendencias del autor del hecho que las que
integran el propio hecho. Es decir, se impone un Derecho penal de autor frente a un Derecho
penal del hecho23. En este orden de cosas también se puede señalar la presencia en las
legislaciones penales contemporáneas de delitos de corte político o ideológico, en los que
difícilmente se puede identificar el bien jurídico, al menos en el sentido liberal del término.
Todo ello acompañado de una regresiva Política criminal en materia de garantías. A modo de
ejemplo se podrían citar, en la legislación española, los arts. 183 ter y 189 CP español24, en

23
Véase GÓMEZ MARTÍN, Víctor, El Derecho penal de autor: desde la visión criminológica tradicional hasta
las actuales propuestas de Derecho penal de varias velocidades, Tirant lo Blanch, Valencia, 2007, passim.
24
Art. 183 ter CP español: “1. El que a través de internet, del teléfono o de cualquier otra tecnología de la
información y la comunicación contacte con un menor de dieciséis años y proponga concertar un encuentro con el
mismo a fin de cometer cualquiera de los delitos descritos en los artículos 183 y 189, siempre que tal propuesta se
acompañe de actos materiales encaminados al acercamiento, será castigado con la pena de uno a tres años de
prisión o multa de doce a veinticuatro meses, sin perjuicio de las penas correspondientes a los delitos en su caso
cometidos. Las penas se impondrán en su mitad superior cuando el acercamiento se obtenga mediante coacción,
intimidación o engaño. 2. El que a través de internet, del teléfono o de cualquier otra tecnología de la información
y la comunicación contacte con un menor de dieciséis años y realice actos dirigidos a embaucarle para que le
facilite material pornográfico o le muestre imágenes pornográficas en las que se represente o aparezca un menor,
será castigado con una pena de prisión de seis meses a dos años”. Art. 189 CP español: 1. Será castigado con la
pena de prisión de uno a cinco años: a) El que captare o utilizare a menores de edad o a personas con discapacidad
necesitadas de especial protección con fines o en espectáculos exhibicionistas o pornográficos, tanto públicos
como privados, o para elaborar cualquier clase de material pornográfico, cualquiera que sea su soporte, o
financiare cualquiera de estas actividades o se lucrare con ellas. b) El que produjere, vendiere, distribuyere,
exhibiere, ofreciere o facilitare la producción, venta, difusión o exhibición por cualquier medio de pornografía
infantil o en cuya elaboración hayan sido utilizadas personas con discapacidad necesitadas de especial protección,
o lo poseyere para estos fines, aunque el material tuviere su origen en el extranjero o fuere desconocido. A los
efectos de este Título se considera pornografía infantil o en cuya elaboración hayan sido utilizadas personas con
discapacidad necesitadas de especial protección: a) Todo material que represente de manera visual a un menor o
una persona con discapacidad necesitada de especial protección participando en una conducta sexualmente
explícita, real o simulada. b) Toda representación de los órganos sexuales de un menor o persona con discapacidad
necesitada de especial protección con fines principalmente sexuales. c) Todo material que represente de forma
visual a una persona que parezca ser un menor participando en una conducta sexualmente explícita, real o
simulada, o cualquier representación de los órganos sexuales de una persona que parezca ser un menor, con fines
principalmente sexuales, salvo que la persona que parezca ser un menor resulte tener en realidad dieciocho años o
más en el momento de obtenerse las imágenes. d) Imágenes realistas de un menor participando en una conducta
sexualmente explícita o imágenes realistas de los órganos sexuales de un menor, con fines principalmente
sexuales. 2. Serán castigados con la pena de prisión de cinco a nueve años los que realicen los actos previstos en el
apartado 1 de este artículo cuando concurra alguna de las circunstancias siguientes: a) Cuando se utilice a menores
de dieciséis años. b) Cuando los hechos revistan un carácter particularmente degradante o vejatorio. c) Cuando el
material pornográfico represente a menores o a personas con discapacidad necesitadas de especial protección que
sean víctimas de violencia física o sexual. d) Cuando el culpable hubiere puesto en peligro, de forma dolosa o por
imprudencia grave, la vida o salud de la víctima. e) Cuando el material pornográfico fuera de notoria importancia.

xxxi
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

materia de libertad e indemnidad sexuales, en los que atendiendo a la redacción típica resulta
realmente difícil esclarecer el bien jurídico que se pretende proteger así como el momento de
consumación del delito, subjetivizando excesivamente la conducta típica y ampliando la
intervención penal hasta criminalizar tendencias o meros pensamientos. El art. 235 CP
español que en su apartado séptimo parece castigar una conducción de vida, más que la
realización de un hecho, al decir que “el hurto será castigado con la pena de prisión de uno
tres años: (…) 7.º Cuando al delinquir el culpable hubiera sido condenado ejecutoriamente al
menos por tres delitos comprendidos en este título, siempre que sean de la misma naturaleza.
No se tendrán en cuenta antecedentes cancelados o que debieran serlo”, aproximándose a lo
que se entiende por Derecho penal de autor. Por su parte, los arts. 270 y 368 CP español25, el

f) Cuando el culpable perteneciere a una organización o asociación, incluso de carácter transitorio, que se dedicare
a la realización de tales actividades. g) Cuando el responsable sea ascendiente, tutor, curador, guardador, maestro
o cualquier otra persona encargada, de hecho, aunque fuera provisionalmente, o de derecho, del menor o persona
con discapacidad necesitada de especial protección, o se trate de cualquier otro miembro de su familia que conviva
con él o de otra persona que haya actuado abusando de su posición reconocida de confianza o autoridad. h)
Cuando concurra la agravante de reincidencia. 3. Si los hechos a que se refiere la letra a) del párrafo primero del
apartado 1 se hubieran cometido con violencia o intimidación se impondrá la pena superior en grado a las
previstas en los apartados anteriores. 4. El que asistiere a sabiendas a espectáculos exhibicionistas o pornográficos
en los que participen menores de edad o personas con discapacidad necesitadas de especial protección, será
castigado con la pena de seis meses a dos años de prisión. 5. El que para su propio uso adquiera o posea
pornografía infantil o en cuya elaboración se hubieran utilizado personas con discapacidad necesitadas de especial
protección, será castigado con la pena de tres meses a un año de prisión o con multa de seis meses a dos años. La
misma pena se impondrá a quien acceda a sabiendas a pornografía infantil o en cuya elaboración se hubieran
utilizado personas con discapacidad necesitadas de especial protección, por medio de las tecnologías de la
información y la comunicación. 6. El que tuviere bajo su potestad, tutela, guarda o acogimiento a un menor de
edad o una persona con discapacidad necesitada de especial protección y que, con conocimiento de su estado de
prostitución o corrupción, no haga lo posible para impedir su continuación en tal estado, o no acuda a la autoridad
competente para el mismo fin si carece de medios para la custodia del menor o persona con discapacidad
necesitada de especial protección, será castigado con la pena de prisión de tres a seis meses o multa de seis a doce
meses. 7. El Ministerio Fiscal promoverá las acciones pertinentes con objeto de privar de la patria potestad, tutela,
guarda o acogimiento familiar, en su caso, a la persona que incurra en alguna de las conductas descritas en el
apartado anterior. 8. Los jueces y tribunales ordenarán la adopción de las medidas necesarias para la retirada de las
páginas web o aplicaciones de internet que contengan o difundan pornografía infantil o en cuya elaboración se
hubieran utilizado personas con discapacidad necesitadas de especial protección o, en su caso, para bloquear el
acceso a las mismas a los usuarios de Internet que se encuentren en territorio español. Estas medidas podrán ser
acordadas con carácter cautelar a petición del Ministerio Fiscal”.
25
Art. 270 CP español: “1. Será castigado con la pena de prisión de seis meses a cuatro años y multa de doce a
veinticuatro meses el que, con ánimo de obtener un beneficio económico directo o indirecto y en perjuicio de
tercero, reproduzca, plagie, distribuya, comunique públicamente o de cualquier otro modo explote
económicamente, en todo o en parte, una obra o prestación literaria, artística o científica, o su transformación,
interpretación o ejecución artística fijada en cualquier tipo de soporte o comunicada a través de cualquier medio,
sin la autorización de los titulares de los correspondientes derechos de propiedad intelectual o de sus cesionarios.
2. La misma pena se impondrá a quien, en la prestación de servicios de la sociedad de la información, con ánimo
de obtener un beneficio económico directo o indirecto, y en perjuicio de tercero, facilite de modo activo y no
neutral y sin limitarse a un tratamiento meramente técnico, el acceso o la localización en internet de obras o
prestaciones objeto de propiedad intelectual sin la autorización de los titulares de los correspondientes derechos o
de sus cesionarios, en particular ofreciendo listados ordenados y clasificados de enlaces a las obras y contenidos
referidos anteriormente, aunque dichos enlaces hubieran sido facilitados inicialmente por los destinatarios de sus

xxxii
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

primero referido a delitos contra la propiedad intelectual y el segundo a delitos de tráfico de


drogas, contemplan una enumeración de posibles conductas delictivas que suponen una
excesiva ampliación de la esfera típica y que parecen igualar acciones de autoría con otras
que, en principio, se pensaría que son de mera participación, lo que sin duda abre las puertas a
la arbitrariedad judicial. Muchas de estas características se pueden observar en los delitos de
rebelión, arts. 472 ss. CP español y de sedición, arts. 544 ss. CP español26, respecto de los

servicios. 3. En estos casos, el juez o tribunal ordenará la retirada de las obras o prestaciones objeto de la
infracción. Cuando a través de un portal de acceso a internet o servicio de la sociedad de la información, se
difundan exclusiva o preponderantemente los contenidos objeto de la propiedad intelectual a que se refieren los
apartados anteriores, se ordenará la interrupción de la prestación del mismo, y el juez podrá acordar cualquier
medida cautelar que tenga por objeto la protección de los derechos de propiedad intelectual. Excepcionalmente,
cuando exista reiteración de las conductas y cuando resulte una medida proporcionada, eficiente y eficaz, se podrá
ordenar el bloqueo del acceso correspondiente. 4. En los supuestos a que se refiere el apartado 1, la distribución o
comercialización ambulante o meramente ocasional se castigará con una pena de prisión de seis meses a dos años.
No obstante, atendidas las características del culpable y la reducida cuantía del beneficio económico obtenido o
que se hubiera podido obtener, siempre que no concurra ninguna de las circunstancias del artículo 271, el Juez
podrá imponer la pena de multa de uno a seis meses o trabajos en beneficio de la comunidad de treinta y uno a
sesenta días. 5. Serán castigados con las penas previstas en los apartados anteriores, en sus respectivos casos,
quienes: a) Exporten o almacenen intencionadamente ejemplares de las obras, producciones o ejecuciones a que
se refieren los dos primeros apartados de este artículo, incluyendo copias digitales de las mismas, sin la referida
autorización, cuando estuvieran destinadas a ser reproducidas, distribuidas o comunicadas públicamente. b)
Importen intencionadamente estos productos sin dicha autorización, cuando estuvieran destinados a ser
reproducidos, distribuidos o comunicados públicamente, tanto si éstos tienen un origen lícito como ilícito en su
país de procedencia; no obstante, la importación de los referidos productos de un Estado perteneciente a la Unión
Europea no será punible cuando aquellos se hayan adquirido directamente del titular de los derechos en dicho
Estado, o con su consentimiento. c) Favorezcan o faciliten la realización de las conductas a que se refieren los
apartados 1 y 2 de este artículo eliminando o modificando, sin autorización de los titulares de los derechos de
propiedad intelectual o de sus cesionarios, las medidas tecnológicas eficaces incorporadas por éstos con la
finalidad de impedir o restringir su realización. d) Con ánimo de obtener un beneficio económico directo o
indirecto, con la finalidad de facilitar a terceros el acceso a un ejemplar de una obra literaria, artística o científica, o
a su transformación, interpretación o ejecución artística, fijada en cualquier tipo de soporte o comunicado a través
de cualquier medio, y sin autorización de los titulares de los derechos de propiedad intelectual o de sus
cesionarios, eluda o facilite la elusión de las medidas tecnológicas eficaces dispuestas para evitarlo. 6. Será
castigado también con una pena de prisión de seis meses a tres años quien fabrique, importe, ponga en circulación
o posea con una finalidad comercial cualquier medio principalmente concebido, producido, adaptado o realizado
para facilitar la supresión no autorizada o la neutralización de cualquier dispositivo técnico que se haya utilizado
para proteger programas de ordenador o cualquiera de las otras obras, interpretaciones o ejecuciones en los
términos previstos en los dos primeros apartados de este artículo”. Art. 368 CP español: “Los que ejecuten actos
de cultivo, elaboración o tráfico, o de otro modo promuevan, favorezcan o faciliten el consumo ilegal de drogas
tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas, o las posean con aquellos fines, serán castigados con las penas
de prisión de tres a seis años y multa del tanto al triplo del valor de la droga objeto del delito si se tratare de
sustancias o productos que causen grave daño a la salud, y de prisión de uno a tres años y multa del tanto al duplo
en los demás casos. No obstante lo dispuesto en el párrafo anterior, los tribunales podrán imponer la pena inferior
en grado a las señaladas en atención a la escasa entidad del hecho y a las circunstancias personales del culpable.
No se podrá hacer uso de esta facultad si concurriere alguna de las circunstancias a que se hace referencia en los
artículos 369 bis y 370”.
26
Art. 472 CP español: “Son reos del delito de rebelión los que se alzaren violenta y públicamente para cualquiera
de los fines siguientes: 1.º Derogar, suspender o modificar total o parcialmente la Constitución. 2.º Destituir o
despojar en todo o en parte de sus prerrogativas y facultades al Rey o a la Reina, al Regente o miembros de la
Regencia, u obligarles a ejecutar un acto contrario a su voluntad. 3.º Impedir la libre celebración de elecciones
para cargos públicos. 4.º Disolver las Cortes Generales, el Congreso de los Diputados, el Senado o cualquier
Asamblea Legislativa de una Comunidad Autónoma, impedir que se reúnan, deliberen o resuelvan, arrancarles

xxxiii
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

cuales habría que añadir que podría discutirse el corte político de los mismos y, por lo tanto, la
posibilidad de que sean aplicados por razones ideológicas, es decir, por divergencias de
pensamiento más que por auténtica preservación de bienes jurídicos. Algo semejante podría
llegar a predicarse de los delitos de terrorismo de los arts. 570 bis ss. CP español27.
Pues bien, la doctrina ha venido identificado tradicionalmente como antecedentes
originales de esta forma de legislar en materia penal el Derecho penal del régimen Nazi, a
partir de la llegada al poder en Alemania, en 1933, de Adolf Hitler28. Sin duda, durante el

alguna resolución o sustraerles alguna de sus atribuciones o competencias. 5.º Declarar la independencia de una
parte del territorio nacional. 6.º Sustituir por otro el Gobierno de la Nación o el Consejo de Gobierno de una
Comunidad Autónoma, o usar o ejercer por sí o despojar al Gobierno o Consejo de Gobierno de una Comunidad
Autónoma, o a cualquiera de sus miembros de sus facultades, o impedirles o coartarles su libre ejercicio, u obligar
a cualquiera de ellos a ejecutar actos contrarios a su voluntad. 7.º Sustraer cualquier clase de fuerza armada a la
obediencia del Gobierno”. Art. 473 CP español: “1. Los que, induciendo a los rebeldes, hayan promovido o
sostengan la rebelión, y los jefes principales de ésta, serán castigados con la pena de prisión de quince a
veinticinco años e inhabilitación absoluta por el mismo tiempo; los que ejerzan un mando subalterno, con la de
prisión de diez a quince años e inhabilitación absoluta de diez a quince años, y los meros participantes, con la de
prisión de cinco a diez años e inhabilitación especial para empleo o cargo público por tiempo de seis a diez años.
2. Si se han esgrimido armas, o si ha habido combate entre la fuerza de su mando y los sectores leales a la
autoridad legítima, o la rebelión hubiese causado estragos en propiedades de titularidad pública o privada, cortado
las comunicaciones telegráficas, telefónicas, por ondas, ferroviarias o de otra clase, ejercido violencias graves
contra las personas, exigido contribuciones o distraído los caudales públicos de su legítima inversión, las penas de
prisión serán, respectivamente, de veinticinco a treinta años para los primeros, de quince a veinticinco años para
los segundos y de diez a quince años para los últimos”. Art. 544 CP español: “Son reos de sedición los que, sin
estar comprendidos en el delito de rebelión, se alcen pública y tumultuariamente para impedir, por la fuerza o
fuera de las vías legales, la aplicación de las Leyes o a cualquier autoridad, corporación oficial o funcionario
público, el legítimo ejercicio de sus funciones o el cumplimiento de sus acuerdos, o de las resoluciones
administrativas o judiciales”. Art. 545 CP español: “1. Los que hubieren inducido, sostenido o dirigido la sedición
o aparecieren en ella como sus principales autores, serán castigados con la pena de prisión de ocho a diez años, y
con la de diez a quince años, si fueran personas constituidas en autoridad. En ambos casos se impondrá, además,
la inhabilitación absoluta por el mismo tiempo. 2. Fuera de estos casos, se impondrá la pena de cuatro a ocho años
de prisión, y la de inhabilitación especial para empleo o cargo público por tiempo de cuatro a ocho años”.
27
Art. 570 bis CP español: “1. Quienes promovieren, constituyeren, organizaren, coordinaren o dirigieren una
organización criminal serán castigados con la pena de prisión de cuatro a ocho años si aquélla tuviere por finalidad
u objeto la comisión de delitos graves, y con la pena de prisión de tres a seis años en los demás casos; y quienes
participaren activamente en la organización, formaren parte de ella o cooperaren económicamente o de cualquier
otro modo con la misma serán castigados con las penas de prisión de dos a cinco años si tuviere como fin la
comisión de delitos graves, y con la pena de prisión de uno a tres años en los demás casos. A los efectos de este
Código se entiende por organización criminal la agrupación formada por más de dos personas con carácter estable
o por tiempo indefinido, que de manera concertada y coordinada se repartan diversas tareas o funciones con el fin
de cometer delitos. 2. Las penas previstas en el número anterior se impondrán en su mitad superior cuando la
organización: a) esté formada por un elevado número de personas. b) disponga de armas o instrumentos
peligrosos. c) disponga de medios tecnológicos avanzados de comunicación o transporte que por sus
características resulten especialmente aptos para facilitar la ejecución de los delitos o la impunidad de los
culpables. Si concurrieran dos o más de dichas circunstancias se impondrán las penas superiores en grado. 3. Se
impondrán en su mitad superior las penas respectivamente previstas en este artículo si los delitos fueren contra la
vida o la integridad de las personas, la libertad, la libertad e indemnidad sexuales o la trata de seres humanos”.
28
ROXIN, Claus, Derecho penal, Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier De Vicente
Remesal, Miguel Díaz y García Conlledo, Civitas, Madrid, 1997, 118 s.; MUÑOZ CONDE, Francisco, Edmund
Mezger y el Derecho penal de su tiempo: los orígenes ideológicos de la polémica entre causalismo y finalismo,
Tirant lo Blanch, Valencia, 2000, passim.

xxxiv
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

período nacionalsocialista el desarrollo de un Derecho penal carente de las más elementales


garantías y superador de los principios limitadores del ius puniendi, encuentra reflejo en
multitud de normas, como la Ordenanza municipal para la protección del Pueblo y del Estado
(1933), la Ley contra los delincuente habituales peligrosos y medidas de seguridad y
corrección (1933), la Ley de reforma del StGB (1935), las Ordenanzas contra los sujetos
nocivos para el pueblo (1939), las Ordenanzas contra los delincuentes violentos (1941), y el
Proyecto sobre los extraños a la comunidad (1944), que finalmente no llegó a entrar en vigor.
No se otorga atención, sin embargo, a los precedentes de esta deriva en la Alemania Nazi,
también desarrollados en un régimen totalitario, y que quizá por primera vez, con seguridad
en la historia del Derecho penal moderno, perfilan conceptos que finalmente ponen en
práctica, y que serán reproducidos y perfeccionados bajo el régimen nazi y recuperados –con
matices y salvando las distancias- en la Revolución del Capital, ya avanzado el siglo XX,
dominante en lo que llevamos de siglo XXI29. Así como el Derecho penal liberal, que
propugnaba como epicentro del sistema el principio de legalidad y todas las garantías a él
adheridas, nace en medio de una Revolución a finales del siglo XVIII, es otra Revolución, a
principios del siglo XX la que lo anula y todo parece apuntar a que a comienzos del siglo
XXI, puede volver a verse superado nuevamente por otra Revolución, ésta ya silenciosa.

CONCLUSIONES.

Las revoluciones liberales marcan el nacimiento del Derecho penal propio del
Estado de Derecho. Entre ellas cabe destacar por lo que representa la Revolución Francesa de
finales del siglo XVIII. A partir de estas revoluciones el poder punitivo del Estado pasa a estar
sujeto a límites a favor del individuo. El principio de legalidad aparece como el principio
rector y de él se deriva la prohibición de la analogía en contra del reo, como máxima
indiscutible del sistema. El bien jurídico protegido pasa a ser el referente para la construcción
legal del delito y para la interpretación doctrinal y judicial de la Ley penal. El concepto de

29
Sobre esta cuestión, CHARLES, Raymond, Histoire du Droit Penale, Presses Universitaires de France, Paris,
1955, 115, señala de modo revelador que “el fin de la primera guerra mundial abre una nueva era con el
advenimiento de un totalitarismo político, de inspiración bolchevique, fascista y nazi. (…) Mas es la legislación
penal soviética la que representa el tipo de un penalismo totalitario, del cual la aparición sobre el plano positivo
constituye el fenómeno capital de la evolución del Derecho penal en el siglo XX, por el poder de atracción de una
concepción rigurosamente fundada sobre la dictadura de un proletariado identificado con el Estado”. Traducción
tomada de BLAS ZULUETA, Luis, El novísimo Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y
Ciencias Penales, núm. 480, 4.

xxxv
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

bien jurídico se despoja de atisbos ideologizantes o moralizantes, tratando de buscar en su


definición la máxima objetividad posible.
La Revolución Rusa se puede definir como la génesis y el ensayo de un “Nuevo
Derecho penal”. Supone una ruptura con el principio de legalidad, introduce laxitud en la
tipificación de las conductas, consagra la analogía en contra del reo, y obliga a interpretar la
Ley penal conforme a la “conciencia socialista revolucionaria”, abandonando la referencia del
bien jurídico. Esta forma de concebir y producir el Derecho penal, dominante durante todo el
período Revolucionario que situamos entre 1919 y 1938, propicia la arbitrariedad judicial. Por
otra parte, el Derecho penal del hecho es abandonado en favor del Derecho penal de autor,
pues la calificación de la conducta como delito estará en función de la peligrosidad que el
delincuente suponga para el orden social, más que por la peligrosidad que el hecho en sí
represente. Se construye un bloque normativo dirigido específicamente a los “enemigos de
clase”, con tipos penales de corte político y consecuencias jurídicas más severas que las
contempladas para los ciudadanos integrados en el sistema.
Todo lo anterior pone de manifiesto que la Revolución Rusa trae consigo la
generación de conceptos, estructuras y métodos en las Ciencias penales que luego encontrarán
eco y desarrollo en otros países occidentales, como en la Alemania Nazi a partir del año 1933.
Hoy en día, algunas de estas características impregnan legislaciones penales de muchos países
occidentales, especialmente a través de artículos en la Parte Especial, como ha quedado
expuesto supra. Por ello podemos concluir que la influencia del Derecho penal surgido a
partir de la Revolución Rusa ha tenido y sigue teniendo una influencia mayor de la que se
pudiese pensar, de ahí la necesidad de revisitarlo e investigarlo, aunque sea sólo ahora que se
cumplen cien años de aquella Revolución.

BIBLIOGRAFÍA.

BLAS ZULUETA, Luis, El novísimo Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,
núm. 480.

BLAS ZULUETA, Luis, Notas sobre Derecho penal soviético, en Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,
núm. 596.

CHARLES, Raymond, Histoire du Droit Penale, Presses Universitaires de France, Paris, 1955.

DE FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007.

FITZPATRICK, Sheila, A Revolução Russa, trad. Susana Sousa e Silva, Tinta da China, Lisboa, 2017.

xxxvi
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

GÓMEZ MARTÍN, Víctor, El Derecho penal de autor: desde la visión criminológica tradicional hasta las actuales
propuestas de Derecho penal de varias velocidades, Tirant lo Blanch, Valencia, 2007.

JAKOBS, Günther, Derecho penal del enemigo, trad. Manuel Cancio Meliá, 2.ª ed., Civitas, Madrid, 2006.

JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis, Derecho penal soviético, Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires, 1947.

LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel, Lecciones de Derecho penal, Parte General, 3.ª ed., Tirant lo Blanch, Valencia,
2016.

MÁRQUEZ PIÑERO, Rafael, El tipo penal, algunas consideraciones en torno al mismo, Universidad Nacional
Autónoma de México, México, 1986.

MUÑOZ CONDE, Francisco, Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo: los orígenes ideológicos de la
polémica entre causalismo y finalismo, Tirant lo Blanch, Valencia, 2000.

ROLDÁN CAÑIZARES, Enrique/DEL RÍO LOIRA, Pablo/MORENO GONZÁLEZ, Gabriel, The social
science post, La Unión Soviética y el Derecho penal, URL: http://thesocialsciencepost.com/es/2015/02/la-union-
sovietica-y-el-derecho-penal/, [consultado o día 23/10/2017].

ROSAS, Fernando, Guerra e Revolução na Rússia de 1917, en AA.VV, A Revolução Russa, 100 anos depois,
Parsifal, Lisboa, 2017.

ROXIN, Claus, Derecho penal, Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Javier De Vicente
Remesal, Miguel Díaz y García Conlledo, Civitas, Madrid, 1997.

xxxvii
Grupo de Trabalho 01

EMPRESA,
DIREITO E SOCIEDADE
PLANOS NACIONAIS DE AÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS:
SUFICENTES ANTE A ARQUITETURA DA IMPUNIDADE?

JÚLIO, Kaliandra Casati


Mestranda do Programa de Direito e Inovação da UFJF
CAMPOS, Rafael Jordan de Andrade
Mestrando do Programa de Relações Internacionais PUC – RJ
ROLAND, Manoela Carneiro
Professora do Programa de Mestrado em Direito e Inovação da UFJF

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar se os Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos,
documentos que têm sido elaborados pelos países, com finalidade de orientarem suas políticas de
repressão às violações de Direitos Humanos por parte das Empresas, a partir do incentivo da ONU, têm
se mostrado suficientes para evitarem violações de Direitos Humanos. Para se realizar tal análise,
lança-se um olhar sobre o contexto no qual tais Planos devem atuar, o qual é entendido por Juan
Hernandéz Zubizarreta como sendo a chamada arquitetura da impunidade, isto é, um cenário no qual
as empresas gozam de grande poder econômico e político, muitas vezes se sobrepondo aos Estados,
que acabam por depender dos investimentos destas. Em seguida procede-se uma releitura de análises
realizadas sobre os Planos Nacionais em Empresas e Direitos Humanos existentes na Europa, bem
como se realiza um estudo sobre o Plano Nacional em Empresas e Direitos Humanos da Colômbia,
único país da América Latina que já possui tal documento.

Palavras-chave. Planos Nacionais de Ação em Direitos Humanos e Empresas. Arquitetura da


Impunidade. Direitos Humanos.

ABSTRACT

The present article seeks to analyze if the National Action Plans on Business and Human Rights,
documents that have been elaborated by countries looking to guide their politics of repressing human
rights violations by companies - as of the United Nations’ encouragement - have been enough to avoid
human rights violations. To carry out this analysis one must look at the context in which those Plans
must operate, which is understood by Juan Hernandéz Zubizarreta as the so called architecture of
impunity, i.e. a scenario where companies enjoy a huge economic and political power often overriding
states, which end up depending upon the investments of the companies themselves. Subsequently, a
rereading of the analysis made about the European National Action Plans is carried out alongside a
study about Colombia’s National Plan on Business and Human Rights, the only country in Latin
America that already possess such document.

Keywords. National Action Plans on Human Rights and Business. Architecture of impunity. Human
Rights.

39
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A preocupação a respeito das graves violações de Direitos Humanos cometidas


pelas empresas e, especialmente pelas transnacionais, emerge, no cenário internacional, na
década de 1970. E, desde seu surgimento, no âmbito das Nações Unidas, propostas
voluntaristas e vinculantes têm se alternado e até mesmo rivalizado.
Atualmente, tem-se os dois tipos de iniciativa. A medida de caráter voluntarista é
representada pelo denominado “Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos”,
encarregado de divulgar e promover os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos
Humanos, um conjunto de 31 princípios, os quais visam orientar os Estados na proteção dos
Direitos Humanos contra violações das Empresas, incentivar as corporações a respeitar tais
direitos e buscar maneiras de reparar as vítimas. O principal meio eleito pelo mencionado
Grupo de Trabalho, para instrumentalizar os Princípios Orientadores, trata-se do incentivo aos
países, para a elaboração de Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos.
Já a proposta de caráter vinculante surgiu como resposta do descontentamento da
sociedade civil e da academia às iniciativas meramente voluntaristas, em 2013, capitaneada
pelo Equador e pela África do Sul, através da propositura de criação de um Tratado
Vinculante sobre Direitos Humanos e Empresas. Assim, foi criado um Grupo de Trabalho
Intergovernamental para desenvolver tal Tratado, o qual atualmente encontra-se no último
ano de elaboração do rascunho do instrumento.
Estes processos, para alguns autores, como Gonzalo Beron (2016), podem ser vistos
como complementares, mas, na prática, acabam rivalizando no cenário internacional,
principalmente devido à postura dos defensores dos Princípios Orientadores, os quais,
frequentemente, argumentam pela desnecessidade do Tratado, baseados em que os Planos
Nacionais já seriam suficientes para a defesa dos Direitos Humanos.
O contexto internacional no qual se dão as iniciativas de combate aos abusos de
Direitos Humanos perpetrados pelas empresas, em especial pelas transnacionais, é nomeado
por Juan Hernandez Zubizarreta como arquitetura da impunidade. Isto, porque no atual
mundo globalizado, as empresas por muitas vezes acabam tendo um produto interno bruto
(PIB) maior do que o de muitos países, e assim, gozam de grande poder econômico e político
ao pressionar os países para que atendam suas condições e, até mesmo, criem leis que
atendam a seus interesses, sob pena de não se fixarem ou se retirarem daquele país.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Conforme salientado em linhas anteriores, a medida de caráter voluntarista na


temática Direitos Humanos e Empresas já em vigor no âmbito da ONU é a do “Grupo de
Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos”, o qual tem incentivado, como uma de suas
políticas principais, a produção de Planos de Ação Nacionais em Empresas e Direitos
Humanos pelos países, para que estes possam, assim, instrumentalizar os Princípios
Orientadores.
A produção de Planos Nacionais em Empresas e Direitos Humanos inicia-se em
2013, na Europa, sendo este continente o que possui a maior quantidade de países com
Planos. Até o presente momento, na América Latina, apenas a Colômbia possui seu Plano de
Ação Nacional em Empresas e Direitos Humanos.
Ante o exposto, o presente trabalho pretende realizar uma investigação em torno da
seguinte pergunta de pesquisa: Os Planos Nacionais de Ação em Direitos Humanos e
Empresas são suficientes para reprimir as violações de Direitos Humanos perpetrados pelas
Empresas?
Utilizar-se-á como marco teórico para a presente investigação as ideias de Juan
Hernandez Zubizarreta, em especial a ideia de arquitetura da impunidade, a qual representa o
contexto que deve ser enfrentado pelas medidas tendentes a reprimir as violações de Direitos
Humanos perpetradas pelas empresas.
A hipótese inicial com a qual se trabalhará é de que os Planos Nacionais de Ação
não são suficientes para se enfrentar o contexto da arquitetura da impunidade.
A metodologia utilizada para se realizar a presente investigação será a releitura
bibliográfica, em especial de trabalho realizado pelo HOMA – Centro de Direitos Humanos e
Empresas, no qual foram analisados os Planos de Ação em Empresas e Direitos Humanos
existentes na Europa, bem como a análise empírica do Plano de Ação Colombiano em
Empresas e Direitos Humanos.

1. EVOLUÇÃO DA TEMÁTICA DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO


ÂMBITO INTERNACIONAL

Conforme explicitado na introdução, é na década de 1970 que a preocupação com as


violações de Direitos Humanos perpetradas por empresas, em especial as transnacionais,
ganha status internacional, tornando-se palco de debates na ONU .
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Desta forma, em 1973, surge na ONU o Centro das Nações Unidas sobre
Corporações Transnacionais (UNCTC, sigla em inglês), tendo por objetivo monitorar a
atuação das transnacionais, prover informação e assessoramento e avaliar a possibilidade de
um acordo multilateral, que poderia ter a forma de um código de conduta.
Esse formato vinculante de código de conduta não foi bem visto por muitos países,
em especial aqueles que sediavam grandes empresas transnacionais. Em 1993, o Centro foi
fechado e, a partir de 1999, o então secretário geral da ONU, Koffi Annan, inicia uma ação de
caráter voluntarista, denominada Pacto Global, o qual visa incentivar boas práticas
corporativas no tocante aos Direitos Humanos, padrões trabalhistas, ambientais e
anticorrupção.
Concorrentemente ao Pacto Global e tentando implantar um regramento vinculante
com relação às empresas, surge nos anos 2000, por um grupo de membros da Subcomissão de
Promoção e Proteção aos Direitos Humanos, a iniciativa de criar as chamadas “Normas sobre
a responsabilidade das empresas transnacionais e outras empresas comerciais”. Tal iniciativa
também não prosperou.
Atualmente temos, no âmbito da ONU, duas iniciativas sobre a temática Direitos
Humanos e Empresas: uma de caráter voluntarista e outra que visa a elaboração de um tratado
vinculante.
A de caráter voluntarista teve início em 2005, com a designação de John Ruggie,
pelo então secretário geral da ONU, Koffi Annan, para exercer o cargo de representante geral
para o tema “Empresas e Direitos Humanos”. Ruggie apresentou, em 2008, o chamado
“Marco das Nações Unidas para Proteger, Respeitar e Remediar” e teve seu mandato
estendido por mais três anos, a fim de que apresentasse uma forma de instrumentalizar sua
proposta.
Desta maneira, em 2011, Ruggie apresenta os chamados “Princípios Orientadores
sobre Empresas e Direitos Humanos” e ocorre a criação de um grupo de trabalho denominado
“Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos”, encarregado de divulgar e
promover tais princípios, bem como visitar países para avaliar a situação relacionada aos
Direitos Humanos e às Empresas.
Tal grupo elegeu como melhor ferramenta para a instrumentalização dos Princípios
Orientadores o incentivo aos países, para que elaborem Planos Nacionais de Ação sobre
Empresas e Direitos Humanos, os quais devem se basear nos supracitados princípios.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Por outro lado, tem-se o Grupo de Trabalho Intergovernamental para desenvolver


um tratado sobre Direitos Humanos e Empresas, proposta esta capitaneada pelo Equador e
pela África do Sul, e que surge como resposta do descontentamento da sociedade civil e da
academia com as propostas de caráter meramente voluntaristas.

2. CENÁRIO ATUAL: A ARQUITETURA DA IMPUNIDADE

A fim de realizar-se a análise desejada sobre a suficiência ou não dos Planos


Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos para reprimir as violações de Direitos
Humanos cometidas pelas empresas, especialmente as transnacionais, faz-se necessário uma
análise do cenário no qual tais Planos deverão atuar.
Este cenário é denominado por Juan Hernández Zubizarreta como sendo a
arquitetura da impunidade. Isto porque, atualmente, as empresas transnacionais gozam de
grande poder econômico e também político, muitas vezes colocando-se em posições
superiores até mesmo aos Estados nos quais desenvolvem sua atividade produtiva.
Juan Hernández Zubizarreta e Pedro Ramiro alegam que é comum que as
Companhias tenham poder econômico superior ao dos Estados. Citam como exemplos, Wal-
Mart, Shell e Exxon Móbil, que têm faturamento anual superior ao produto interno bruto
(PIB) de países como Áustria, África do Sul e Venezuela.
Devido aao grande poder econômico das empresas transnacionais, estas possuem
cada vez mais influência política sobre os países, que passam a depender dos investimentos
econômicos e, assim, se tornam reféns de pressões sobre as possibilidades de retirada do
capital de tais empresas ou de não realização de investimentos naquele país.
Ante este quadro, muitas vezes as corporações acabam por ditar aos países quais as
melhores políticas econômicas e legislações que coadunem com seus interesses, sob pena de
levarem seus fundos para outros países:

A la vez, las grandes corporaciones disponen de um innegable poder político, tanto


em relación a los estados-nación – ejerciendo su influencia, en el avance de las
contrareformas estructurales y en la eliminación de derechos sociales – como a
escala global, con su labor de lobby en las instituciones económico-financeiras
internacionales. (Zubizarreta e Ramiro, 2015,p.16).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Sendo assim, percebe-se que as empresas incentivam cada vez mais que os Estados
adotem políticas de caráter neoliberal, reduzindo e flexibilizando os direitos sociais, em
especial os direitos trabalhistas, o que favorece o interesse empresarial.
Observa-se também a existência de grande número de acordos internacionais de
caráter financeiro, os quais garantem uma série de direitos às empresas e não se preocupam
com questões ambientais, laborais, nem de Direitos Humanos. São os acordos de livre
comércio, como por exemplo, o NAFTA, que estabelecem uma série de condições favoráveis
às transnacionais e acabam por ignorar o Direito Internacional dos Direitos Humanos, direito
este que deve ser respeitado por todo tipo de legislação internacional, por possuir caráter
obrigatório, isto é, ser hierarquicamente superior às demais normativas internacionais, por
disposição do próprio Direito Internacional, como a Convenção de Viena de Direito dos
Tratados de 1969, que dispõe em seu artigo 53 que será nulo um tratado que afeta à
disposições imperativas de Direito Internacional:

El Derecho Internacional de los Derechos Humanos – incluído el Derecho


Internacional Del Trabajo y el Derecho Internacional Ambiental – es
jerárquicamente superior a las normas de comercio e inversiones, nacionales e
internacionales, por su carácter imperativo y como obligaciones erga omnes, esto
es, de toda la comunidad internacional y para toda la comunidad internacional.
(Zubizarreta e Ramiro, 2015,p.33).

Explicam ainda os autores supracitados, que compõe a chamada arquitetura da


impunidade a existência dos tribunais arbitrais. Tais tribunais, constituídos a partir de acordos
financeiros internacionais, trazem segurança às empresas, uma vez que sempre julgam os
Estados demandados pelas transnacionais e podem levar a imposições econômicas muito
duras para tais Estados:

Y es que los tribunales internacionales de arbitraje tienen uma función fundamental


en la arquitectura jurídica de la impunidad: dotar de plena seguridad jurídica las
inversiones realizadas por las multinacionales frente a los estados receptores. Así,
mientras no existem instrumentos efectivos a nível internacional para el control de
las empresas transnacionales y se deja de lado esa concepción de la seguridad
jurídica que pone el derecho internacional de los derechos humanos en el vértice de
la pirámide normativa, los laudos de los tribunales arbitrales si que dan lugar a
mecanismos coercitivos y son “sentencias” de obligado cumplimento, puesto que
sus implicaciones económicas resultan muy difíciles de sostener para los países
periféricos. (Zubizarreta e Ramiro, 2015, p.35).

Ante o exposto, pode-se perceber que as transnacionais encontram-se blindadas


devido aos tratados financeiros internacionais, às legislações nacionais de caráter neoliberal,
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

as quais as próprias empresas incentivam a elaboração e às cortes arbitrais, que se mostram


sempre favoráveis ao setor empresarial. Neste contexto, os direitos humanos, dentre os quais
inclui-se os direitos ambientais e os direitos laborais, são sistematicamente violados, e os
instrumentos de Direitos Internacional dos Direitos Humanos até então existentes não têm se
mostrado fortes o suficiente para impedir e reprimir tal situação.

3. OS PLANOS NACIONAIS DE AÇÃO EM EMPRESAS E DIREITOS


HUMANOS EXISTENTES

Após avaliar-se o contexto que deve ser enfrentado pelas medidas repressoras das
violações de Direitos Humanos por parte das empresas é necessário realizar a análise dos
Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos existentes, a fim de constatar-se
se estes têm se apresentado como suficientes para impedir as violações de direitos humanos
por parte das empresas ante a arquitetura da impunidade.

3.1. Diretrizes para os Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos

Conforme já explicitado anteriormente, os Planos Nacionais em Empresas e Direitos


Humanos são o principal instrumento do Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e
Direitos Humanos. Desta forma, tal grupo elaborou no ano de 2014 um Guia para orientar os
países na elaboração de seus Planos Nacionais. Tal documento foi publicado novamente com
atualizações nos anos de 2015 e 2016.
O Guia traz recomendações sobre o desenvolvimento, implementação e atualização
dos Planos Nacionais, os quais, segundo estas orientações, devem conter quatro requisitos:
serem elaborados com base nos Princípios Orientadores, refletirem a realidade de cada país
quanto às violações de Direitos Humanos por empresas, provir de processos transparentes e
inclusivos e contar com revisões e atualizações periódicas.
Dentre as orientações contidas no supracitado Guia temos que, tanto a elaboração do
Plano como sua implementação e atualização devem se dar através do diálogo dos múltiplos
atores interessados no tema. De acordo com o Guia, o processo deve incluir organizações da
sociedade civil, instituições nacionais de Direitos Humanos, sindicatos, empresas e
associações, bem como grupos de população especialmente expostos aos efeitos do abuso de
Direitos Humanos pelas empresas, como crianças, mulheres, indígenas, minorias éticas e
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pessoas com deficiências. O documento estimula ainda que se possibilite a participação de


afetados por abusos de Direitos Humanos por parte de empresas ou atores legitimados que os
representem.

3.2. Análise crítica dos Planos Nacionais de Ação em Empresas e Direitos Humanos

Ante o exposto cabe realizar-se uma breve análise crítica dos Planos Nacionais de
Ação em Empresas e Direitos Humanos existentes. Para tal, lançar-se-á mão de releitura
bibliográfica de documento produzido, em 2016, pelo HOMA – Centro de Direitos Humanos
e Empresas –, no qual foram analisados os Planos europeus existentes até então, bem como de
análise do Plano Nacional da Colômbia elaborada para fins do presente trabalho.
Em tal documento supracitado, o HOMA analisou os seis planos já publicados:
Reino Unido, Países Baixos, Dinamarca, Finlândia, Lituânia e Suécia; e dois Planos que
estavam prontos, mas pendentes de aprovação: Itália e Espanha.
De tal análise, produzida a partir de uma perspectiva crítica, pode-se verificar falhas
comuns presentes nos Planos europeus.
Primeiramente o estudo detecta que os processos falharam na questão da
participação de múltiplos atores e na publicidade dada durante a confecção dos instrumentos.
Atores fundamentais, como os atingidos por violações de Direitos Humanos por parte das
empresas, tiveram pouca ou nenhuma voz durante o processo.
Verificou-se também que tais Planos apresentaram apenas propostas genéricas, sem
previsão de controle da implementação e aplicação de tais políticas, sem formas de
punibilidade para as empresas violadoras de Direitos Humanos e sem prazos para que os
Estados coloquem em prática as políticas pensadas:

...a experiência dos Planos Nacionais já existentes mostra que estes não possuem
em seu conteúdo o potencial para um efetivo avanço no desenvolvimento de
normativas nacionais e políticas públicas de proteção aos Direitos Humanos contra
violações cometidas por empresas. Muito menos contribuem para o pleno acesso à
justiça e para que as vítimas sejam capazes de alcançar reparação pelas violações
sofridas. (HOMA, 2016, p. 33).

De acordo com o supracitado estudo realizado pelo HOMA, aponta-se que no Plano
Nacional do Reino Unido pode-se perceber que não se priorizou a participação de atores
populares, como os afetados pelas violações de direitos humanos por parte das empresas
durante o processo de elaboração do documento estatal. Também não houve circulação
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pública do documento preliminar que deu origem ao Plano, ficando a circulação restrita
apenas aos atores consultados e às agências governamentais. Pode-se perceber ainda, no
Plano, a utilização de um enfoque empresarial, destacando os benefícios que as empresas
podem obter ao respeitar os Direitos Humanos.
Segundo o estudo, o documento falha ainda por não explicar como se dará a
implementação das ações propostas, bem como não deixar claro o setor governamental que
será responsável por tal implementação. Também não se especificam prazos, o que dificulta
que a sociedade possa controlar o desenvolvimento das medidas apontadas no Plano.
Por fim, não há criação de novas obrigações para as empresas, não se aborda a
responsabilidade extraterritorial, nem mecanismos jurisdicionais de responsabilização das
empresas.
Já quanto ao Plano Nacional da Holanda, aponta o estudo que não houve nenhuma
consulta efetivamente pública e ampla e nem se deu prioridade à participação popular no
processo. O foco deste Plano são medidas de caráter voluntário, tanto para o Estado, quanto
para as empresas. Poucas medidas concretas são apontadas, bem como não se define prazo
para sua execução e não há estratégias para o monitoramento da implementação destas. Deu-
se, ainda, prioridade ao destaque das medidas já existentes no país.
A análise realizada sobre o Plano Nacional da Itália aponta que este enuncia
medidas pouco assertivas no tocante às mudanças sociais e legislativas, bem como traz uma
visão de que a solução para as violações de Direitos Humanos só será possível a partir de uma
matriz europeia:

A Itália demonstra através do seu Plano Nacional, o seu compromisso com a


perspectiva europeia. Juntamente com as políticas nacionais, ela defende que
somente uma dimensão autenticamente européia seja capaz de proteger
eficazmente os Direitos Humanos em escala global. Tal perspectiva é no mínimo
curiosa, e demonstra o ranço colonial ainda presente, que enxerga a solução para o
dilema das violações de Direitos Humanos em escala global na construção de
políticas regionais para a Europa. (HOMA, 2016, p. 17).

Da análise realizada sobre o Plano Nacional Dinamarquês pode-se perceber que este
é fruto de um processo pouco inclusivo, vez que houve a participação do Conselho para
Responsabilidade Social Corporativa, mas apenas um grupo seleto de membros deste
conselho foi consultado, bem como setores chaves da sociedade foram excluídos da consulta,
como ocorreu com o Conselho Dinamarquês dos Consumidores.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Este Plano confunde Direitos Humanos com uma perspectiva puramente de


responsabilidade social corporativa, trazendo medidas neste sentido, ao invés de políticas
protetivas dos Direitos Humanos.
O Plano prima por orientações, recomendações e encorajamentos às empresas. Não
há prazos para aplicação e desenvolvimento de estratégias nacionais de proteção aos Direitos
Humanos e nenhuma menção quanto a mecanismos de extraterritorialidade.
Quanto à investigação realizada sobre o Plano Nacional espanhol, extrai-se que o
processo de elaboração, que foi aparentemente inclusivo e transparente, visto que ocorreram
duas rodadas de consultas públicas, incluindo diversos atores sociais, acabou por ceder às
pressões empresariais, sendo que, no documento final, excluíram-se propostas constantes do
primeiro projeto como a vedação de financiamento público a empresas violadoras de Direitos
Humanos. Esta proposta foi alterada, e passou-se a vedar o financiamento apenas àquelas
empresas que tenham sido condenadas com sentença transitada em julgado e se neguem a
cooperar com o governo espanhol nas reparação as violações. Também excluiu-se do Plano
Nacional a proposta que exigia altos padrões laborais e de proteção ambiental.
Assim, como se notou nos demais Planos, o Plano espanhol também traz propostas
vagas e imprecisas, tendo sido destacado no estudo do HOMA a imprecisão na disposição
quanto aos mecanismos a serem utilizados para responsabilização de empresas espanholas
que cometam violações em outros países. Também não foram criadas obrigações diretas para
as empresas e a ação do Estado se limita a programas de acompanhamento, incentivo e
conscientização sobre Direitos Humanos e Empresas.
No tocante ao Plano Nacional finlandês, o estudo ora analisado destaca que a
elaboração se deu por um processo envolvendo vários ministérios governamentais e duas
consultas públicas com agentes interessados. Porém não houve incentivo para que algumas
parcelas de atores interessados, como migrantes, índios e outras minorias pudessem participar
do processo. Este Plano traz prazo para o cumprimento das propostas apresentadas e também
as entidades governamentais responsáveis por determinadas ações, contudo os tópicos que
tratam de tais ações são vagos, dificultam a compreensão do que de fato o governo propõe.
Muitos dos tópicos demonstram mais o compromisso do Estado finlandês em apoiar os
Princípios Orientadores de Ruggie, do que de fato de realizar algum tipo concreto de atuação.
O Plano não traz nenhuma proposta de mecanismos de reparação das violações de Direitos
Humanos, bem como centra suas propostas em medidas de caráter voluntário.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A análise realizada pelo HOMA do Plano Nacional lituano destaca que não foi
possível encontrar informações acerca do processo que levou à elaboração de tal documento.
Quanto ao conteúdo de tal Plano, se ressalta que este está restrito a medidas de combate à
discriminação, à corrupção e ao direito de associação trabalhista. As propostas por sua vez
possuem algum grau de concretude, sendo menos vagas do que as encontradas na maioria dos
Planos, bem como se faz referência a medidas que já estão sendo implementadas. Porém,
ainda assim, as propostas são superficiais e não há proposições quanto a mecanismos
vinculantes, que obriguem as empresas a respeitar os Direitos Humanos e sejam capazes de
responsabilizá-las em caso de violações.
Por fim, da análise realizada sobre o Plano Nacional sueco extrai-se que este foi
concebido através de consulta a vários atores interessados, incluídas empresas e ONGs.
Ocorreram também consultas populares ao texto preliminar do documento. O estudo
elaborado pelo HOMA destaca que não foi possível identificar se, em tal processo houve a
participação dos afetados por violações perpetradas pelas empresas.
Quanto ao conteúdo do Plano destaca-se que privilegiou-se as políticas relacionadas
à responsabilidade social corporativa, em detrimento dos princípios de Direitos Humanos. Há
no documento o encorajamento para que as empresas adotem as diretrizes ali contidas, mas
nenhuma medida de caráter vinculante. O documento não estabelece nenhum tipo de
responsabilidade direta para as empresas, deixando as responsabilidades a cargo do Estado, o
qual deve desenvolver programas para orientar as práticas empresariais. Os crimes cometidos
pelas empresas estão sujeitos apenas a penalidades de multa.

Este Plano Nacional aparenta ser uma vitrine da política de Responsabilidade


Social implementada pelo Estado junto das empresas, apenas elaborada para
aparentar que algo está sendo feito e para demonstrar à sociedade civil a
preocupação com o tema. Não se vê previsão de mecanismos de punibilidade ou
responsabilização alguma das empresas por suas condutas adversas em relação a
Direitos Humanos, pelo contrário as políticas propostas giram entorno da
premiação das companhias que aplicam os Princípios Orientadores e “respeitam os
Direitos Humanos” (HOMA, 2016, p. 17).

No tocante ao Plano Nacional da Colômbia, cuja análise foi realizada para fins da
presente pesquisa, pode-se perceber que, de acordo com o disposto em tal documento, sua
elaboração se deu através da participação de empresas, ONGs, entidades governamentais e
com apoio da comunidade internacional. O esboço de tal Plano foi submetido à consulta em
algumas oficinas, uma nacional em Cartágena e outras regionais, nas quais houve a
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

participação de atores institucionais, empresas e sociedade civil. Houve também a publicação


deste esboço no site do Conselho Presidencial de Direitos Humanos e o fornecimento de e-
mail para receber opiniões sobre o tema. Não há menção da participação de afetados por
violações perpetradas pela empresas no processo de elaboração do Plano Nacional.
Pode-se destacar que consta no Plano a existência do objetivo de se harmonizar a
proteção dos Direitos Humanos com o desenvolvimento econômico, bem como se exalta, em
tal documento, o compromisso da Colômbia e das Empresas com Direitos Humanos e a
existência, no país, de iniciativas de respeito aos Direitos Humanos há mais de uma década,
tanto por parte do Estado quanto das Empresas.
O Plano dispõe sobre a intenção de considerar as minorias e superar o passado
conflituoso do país, dizendo que, para tal é necessário o empenho dos empresários, de
organizações sociais e sindicais. Enfatiza que as empresas que operam em zonas
historicamente de conflito devem ser especialmente cuidadosas quanto a possíveis afetações
de DH. Também declara priorizar os setores que geram maior conflito social e maiores
impactos em termos de Direitos Humanos e meio ambiente, quais sejam: setor mineiro-
energético, agroindústria e infraestrutura rodoviária. Dispõe ainda que o Plano se associa com
o marco “Empresas e Paz”, que contempla um papel mais ativo das empresas nas
transformações positivas, apostando na devida diligência.
Percebe-se um marcante presença de políticas relacionadas à responsabilidade social
corporativa, como pode-se depreender do fato de “potencializar a sustentabilidade e os
Direitos Humanos como práticas competitivas empresariais” constar expressamente dos
objetivos gerais do documento.
Destaca-se, também, que o Estado é tratado como um ator que, enquanto agente
econômico, deve respeitar os Direitos Humanos e que tem o dever de apontar referências
claras às empresas do que devem ser práticas de respeito aos Direitos Humanos.
Quanto aos mecanismos de reparação em caso de violações aos Direitos Humanos
serem perpetradas, o Plano não traz nada de concreto, restringido-se a declarar que tais
mecanismos deverão existir para quando a prevenção falhar.
Assim, como observou-se da análise do HOMA dos Planos Nacionais europeus, o
Plano da Colômbia também trouxe propostas vagas e pouco concretas, focando-se em
políticas de caráter voluntarista, que muito se assemelham à responsabilidade social
corporativa.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONCLUSÕES

Ante todo o exposto, pode-se concluir que da análise dos Planos Nacionais de Ação
em Empresas e Direitos Humanos existentes percebe-se que estes por si só não são capazes de
impedir as violações de Direitos Humanos perpetradas pelas empresas, nem de oferecer
mecanismos eficazes de reparação aos afetados por estas violações.
No cenário apresentado em linhas anteriores da arquitetura da impunidade, pode-se
extrair que dificilmente políticas de cunho nacional terão capacidade de enfrentar o grande
poder que possuem as empresas, em especial as transnacionais, as quais tem influenciado até
mesmo a produção de legislação de caráter neoliberal para lhes favorecer, em diversos países,
a partir de pressões financeiras a respeito de investirem ou manterem seus investimentos em
seus países.
Neste contexto, onde vemos Estados tornando-se cada vez mais dependentes do
poder econômico das empresas, torna-se difícil que estes produzam políticas que possam
desfavorecer os interesses de tais atores econômicos.
Face a tal poderio das empresas, percebe-se que os Planos Nacionais de Ação em
Direitos Humanos e Empresas têm se apresentado apenas como proposições de caráter
voluntarista, que não trazem nenhum tipo de obrigação direta para as empresas, nem
prescrevem punições efetivas. Mantêm sua ênfase em políticas relacionadas à
responsabilidade social corporativa, estimulando as empresas a desenvolverem boas práticas
empresariais e respeitarem os Direitos Humanos como uma boa estratégia de
empreendimento.
Sendo assim, pode-se concluir que ainda que os Planos Nacionais em Empresas e
Direitos Humanos tragam em si o benefício de colocarem tal temática, tão costumeiramente
negligenciada nas agendas dos países nos quais são elaborados, estes sozinhos não têm o
poder de impedir as violações perpetradas pelas empresas nem de fornecer aos afetados
remédios efetivos. Desta forma confirma-se a hipótese de insuficiência dos Planos Nacionais
para impedirem as violações de Direitos Humanos, entendendo-se pela necessidade de que,
além de tais Planos, surjam também instrumentos vinculantes e de caráter internacional, para
garantirem de forma efetiva o respeito das empresas aos Direitos Humanos.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS

BERRÓN, Gonzalo. Derechos Humanos Y Empresas Transnacionales. Nueva Sociedad. Buenos Aires V.264,
pp. 147-158

COLOMBIA. Plan Nacional de Acción em Derechos Humanos y Empresas Informe de Avances em La


Implementación, 2016. Disponível em:
http://www.derechoshumanos.gov.co/lineasestrategicas/empresa/Documents/170331-informe%20ddhh-
empresas.pdf. Acesso em: 20/05/2017

DE SCHUTTER, Olivier. Towards a New treaty on Business and Human Rights. Business and Human Rights
Journal. Cambridge: Cambridge University Press. V1(2015), pp 41-67

DEVA, Surya; BILCHITZ, David. Human Rights Obligations of Business Beyond the Corporate Responsbility to
respect? Cambridge: Cambride University Press,2013.

EPSTEIN, Lee; King,Gary. The Rules Of Inference. In: The University of Chicago Law Review, volume 69,
Winter 2002.

ROLAND, Manoela Carneiro (coord); FARIA JR, Luiz Carlos S. (supervisão). Planos Nacionais de Ação Sobre
Direitos Humanos e Empresas: Contribuições para a Realidade Brasileira – parte 1: Perspectivas Gerais Sobre
os Planos Nacionais de Ação Sobre Empresas e Direitos Humanos. HOMA, 2016. Disponível em
http://homacdhe.com/wp-content/uploads/2016/01/Perspectivas-Gerais-sobre-os-Planos-Nacionais-de-
Ac%CC%A7a%CC%83o-sobre-Empresas-e-Direitos-Humanos.pdf. Acesso em: 30/03/2017

UN WORKING GROUP ON BUSINESS AND HUMAN RIGHTS, Guidance on National Action Plans on
Business and Human Rights. Version 1.0 Genebra, 2014.
Disponívelem:http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/UNWG_%20NAPGuidance.pdf. Acesso em:
20/05/2017

UN WORKING GROUP ON BUSINESS AND HUMAN RIGHTS, Guidance on National Action Plans on
Business and Human Rights. Genebra, 2016. Disponível em:
http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/UNWG_NAPGuidance.pdf. Acesso em: 20/05/2017

ZUBIZARRETA, Juan Hernández; RAMIRO, Pedro. Contra La Lex Mercatoria.Icaria Editorial. Barcelona,
2015.

ZUBIZARRETA, Juan Hernández. Las Empresas Transnacionales Frente a los Derechos Humanos : Historia de
uma Assimetria Normativa. Hegoa. Barcelona, 2009.
OS DESAFIOS EMPRESARIAIS GERADOS PELOS ELEVADOS
NÍVEIS DE ENCARGOS TRABALHISTAS NO BRASIL

SOUZA, Mylena Devezas


Mestranda do Programa de Pós Gradução em Direito e Sociologia/UFF
SOUZA, Gabriel Santos Cintra Gomes de
Bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida/UVA

RESUMO

O Brasil possui um dos maiores encargos trabalhistas do mundo, encarecendo a mão de obra e
trazendo complicações para o empresário. A mudança desse cenário é esperada com a vigência da Lei
da Reforma Trabalhista Brasileira, a qual teve inspiração na legislação trabalhista espanhola, ocorrida
há mais de cinco anos, e trouxe diversas alterações benéficas para as empresas, tais como o fim do
recolhimento obrigatório do imposto sindical e a demissão em comum acordo. O objetivo desta
pesquisa é verificar os desafios empresariais enfrentados pelos elevados encargos trabalhistas e analisar
se a alteração da legislação trabalhista poderá reduzir o custo bruto da mão de obra a fim de incentivar
o aumento da oferta de empregos, conforme esperado pelo governo. Como fonte de pesquisa são
utilizados estudos já realizados sobre os percentuais referentes aos encargos trabalhistas no custo bruto
da mão de obra brasileira.

Palavras-chave. Reforma Trabalhista; Encargos Trabalhistas, Mão de obra.

ABSTRACT

Brazil has one of the highest labor costs in the world, increasing labor costs and bringing
complications to the entrepreneur. The change in this scenario is expected with the validity of the
Brazilian Labor Reform Law, which was inspired by the Spanish labor legislation, which occurred
more than five years ago, and brought various changes beneficial to companies, such as the end of
mandatory tax collection union and dismissal by mutual agreement. The objective of this research is to
verify the business challenges faced by high labor costs and to analyze whether the change in labor
legislation could reduce the gross labor cost in order to encourage the increase of the job offer, as
expected by the government. As research source is used studies already performed on the percentages
referring to labor charges in the gross cost of Brazilian labor.

Keywords. Labor Reform; Labor benefits; Labor.

53
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A nova questão social da sociedade atual, segundo Pierre Rosanvallon (1998),


compreende o problema da baixa oferta de empregos para uma mão de obra disponível em
constante crescimento e expõe a necessidade de atuação do Estado a fim proporcionar uma
ampliação das vagas de emprego. Assim também a formação de blocos econômicos que, com
um mercado totalmente globalizado, traz desafios ao mercado de trabalho ao pretender torná-
lo o mais competitivo possível, realidade de que não discrepa o cenário brasileiro.
Um grande obstáculo no caminho para a eficiência econômico-empresarial reside
nos encargos sociais atrelados aos salários dos trabalhadores e no constante aumento da
população economicamente ativa, sem que houvesse, contudo, um crescimento proporcional
da oferta de vagas de trabalho, devido ao constante avanço tecnológico, que por diversas
vezes substitui a mão de obra humana.
Vislumbra-se, então, a existência de um cenário desfavorável àqueles que disputam
oportunidades no mercado de trabalho, em que a possibilidade de redução dos impactos
financeiros dos encargos sociais é, sob o ponto de vista dos empregadores, considerada uma
forma de atenuar o custo da produção e, ao mesmo tempo, incrementar o emprego da mão de
obra disponível nos processos produtivos. Afinal, os encargos sociais afetam
significativamente o custo do trabalho.
Com a intenção de aumentar a oferta de vagas de emprego e estimular a economia,
foi proposta a Reforma Trabalhista pelo governo brasileiro, inspirada na reforma espanhola
ocorrida na Espanha em 2012. Em âmbito nacional, a alteração da legislação trabalhista se
deu através da Lei nº 13.467/2017, que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017,
trazendo profundas alterações no modo de pactuação e nos termos das relações entre
empregados e empregadores.
Para proporcionar o aumento da oferta de emprego e a superação da moderna
questão social, as alterações na legislação trabalhista preveem novas formas de contratação e
de prestação dos serviços pelos empregados, como o teletrabalho, o trabalho intermitente e a
terceirização, ao mesmo tempo em que exonera o empresário do pagamento de alguns
encargos e custos trabalhistas, como a contribuição sindical obrigatória e as horas in itinere.
Questiona-se assim, o real peso dos encargos laborais no custo empresarial e se as
alterações legislativas promovidas são, de fato, capazes de propiciar uma redução neste custo,
viabilizando o surgimento novas oportunidades empregatícias. Para tanto, este artigo analisa

54
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estudos já realizados sobre o custo total do empregado na atividade empresarial, para,


posteriormente, se debruçar sobre as alterações empreendidas pela Reforma Trabalhista. Ao
comparar as informações, pretende-se compreender se a nova legislação poderá de fato
reduzir os encargos trabalhistas enfrentados pelas empresas.
Não é objeto deste estudo investigar a efetiva ampliação da oferta de trabalho e a
consequente redução do desemprego, e suas possíveis relações com a alteração legislativa
procedida, tal como ocorreu com a implementação da reforma trabalhista na Espanha, mas tão
somente avaliar os possíveis impactos financeiros das mudanças para os empresários em
geral.

1. ENCARGOS TRABALHISTAS NO BRASIL

Para se entender o que são os encargos trabalhistas ou sociais, é necessário antes


definir o que é salário e diferenciá-lo dos encargos sociais. Para Vasconcelos e Volpato
(2000), o salário “corresponde ao valor da reposição da força de trabalho, tendo em vista a
vigência do seu ciclo de utilização no processo de produção” (Vasconcelos e Volpato, 2000,
p. 3). Ao considerar a realidade Brasileira, no salário estariam incluídos ainda o 13º salário, as
férias e participações nos lucros, já que:

Fazem parte dos Salários todos os valores dos rendimentos monetários recebidos
pelos trabalhadores, e, por eles direta e individualmente apropriados no período
corrente, ou em algum momento e condições pré-determinados de períodos futuros.
Em outras palavras, há defasagens temporais que envolvem o pagamento dos
valores relacionados com a reposição das condições produtivas da mão de obra no
processo produtivo, vale dizer, há frações do salário que são pagas em momentos
distintos do período corrente. (Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 4).

De outro lado, os encargos são as verbas incidentes sobre a folha de pagamento sob
a forma de contribuições sociais pagas pelo empregador ao Estado, e integram o custo total do
trabalho. Os encargos, ao reverso do que ocorre com o salário, não são totalmente revertidas
em benefício do empregado e, segundo a legislação brasileira, seriam os valores pagos a título
de contribuição previdenciária, PIS/COFINS e Seguro de Acidente de Trabalho.
Fato é que além do salário contratual, é devido o pagamento de encargos sobre o
período trabalhado e sobre período não trabalhado, incluindo: Previdência Social, FGTS,
acidente de trabalho, sistema S, repouso semanal, férias, abono de férias, feriados, aviso
prévio, auxílio enfermidade, décimo terceiro salário, despesas de rescisão contratual.

55
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O pagamento do período não trabalhado pelas se deve ao impacto produtivo


decorrente dos períodos de ociosidade, pois é no período de descanso que o trabalhador repõe
suas energias para manter seu nível de produtividade. A remuneração do período de descanso
é, portanto, o pagamento pela reposição da capacidade de produção e pela eficiência do
funcionário no período de trabalho.
Há divergências sobre os valores devidos a titulo de encargos sociais. Isto ocorre
porque alguns autores defendem que nem todo imposto e taxas baseados na folha de
pagamento são encargos trabalhistas, mas sim taxas de financiamento de políticas públicas, de
entidades patronais e de fomento e apoio aos pequenos empreendimentos, de modo que certos
valores, apesar de envolverem os salários pagos aos trabalhadores, não dizem com a reposição
da força de trabalho, como no caso do seguro acidente de trabalho e o financiamento do
sistema S (Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 10).
Ao tratar do assunto Ulysses e Reis (2006) elaboraram a tabela abaixo a fim de se
elencar o custo total do empregado com os encargos sociais pagos no Brasil. Segundo os
mencionados autores, foi obtido o valor do custo total do trabalhador em montante
correspondente a 165,4% do salário, se considerado o salário básico como 100, o qual já está
incluído neste cálculo. Ressalta-se apenas que os autores não consideram os valores devidos a
titulo de Imposto de Renda, que incide sobre os trabalhadores, apesar de compor a folha fiscal
total incidente sobre o trabalho formal.

Fonte: Ulysses e Reis, 2006, p. 11.

56
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Além dos autores acima citados, Vasconcelos e Volpato (2000) elaboraram também
as seguintes tabelas, separando os valores pagos a título de custo salarial e custo não salarial, a
fim de obter o custo dos encargos sociais.

Fonte: Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 11.

57
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Fonte: Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 12.

Assim, ao se analisar as tabelas acima colacionadas pode-se perceber que


Vasconcelos e Volpato consideram a totalidade dos salários no valor de 126% (grupo 01) ao
passo que os encargos sociais representam o valor de 32,56% (grupo 02). Portanto, ao se
considerar o custo total do trabalho somando-se os valores anteriormente mencionados, os
encargos sociais equivalem a 25,84% do custo total.
Por fim, ao elencar os encargos, analisando aqueles que incidem diretamente sobre a
folha de pagamento nos orçamentos da construção civil, Mendes e Bastos elaboram tabelas
separadas por grupos, conforme demonstrado adiante:

58
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Fonte: Mendes e Bastos, 2001, pp. 12 e 14.

No segundo grupo foram considerados os valores pagos diretamente aos


empregados em dias sem prestação de serviço, e que sofrem incidência dos encargos. No
terceiro grupo (grupo C) foram consideradas as incidências dos encargos sociais sobre as
verbas elencadas no grupo A e no grupo B, de modo que chegaram a seguinte fórmula
(Mendes e Bastos, 2001, p. 14):

TOTAL DO GRUPO C = GRUPO A X GRUPO B X 100


TOTAL DO GRUPO C = 0,3680 X 0,4998 X 100 = 18,39%

No quarto grupo foram considerados os encargos pagos aos empregados de forma


direta que não são onerados pelos encargos elencados no grupo A, como o deposito por
rescisão contratual, de modo que chegaram a um total de 12,48% (Mendes e Bastos, 2001, p.
16).
Assim, os autores concluem a pesquisa sobre os encargos sociais aplicados sobre o
salário horário, especificamente do setor da construção civil:

TOTAL = GRUPO A + GRUPO B + GRUPO C + GRUPO C

59
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

TOTAL = 36,80% + 49,98% + 18,39% + 12,48% = 117,65%

Como se pode ver não há unanimidade no valor calculado a título de encargos


sociais. Fato é que não é possível definir um valor fixo de encargos sociais ou trabalhistas que
incidirão no custo trabalho, já que há variedades dependentes de cada setor e empresa, como
os acordos e convenções coletivas, as faltas, acidentes de trabalho, dentre outras variáveis que
podem alterar significativamente o cálculo da incidência dos encargos sociais sobre a folha de
pagamento.
Desse modo adotaremos como parâmetro para o artigo o custo total obtido por
Ulysses e Reis, no valor do 165,4% do salário básico, por entender, em nossa visão, que este
seria uma média dos valores obtidos pelos diversos autores.

2. ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA REFORMA TRABALHISTA

A lei nº 13.467/2017 implementou a reforma trabalhista e trouxe consigo algumas


mudanças benéficas para o empregador, tais como a possibilidade de contratação de trabalho
intermitente, a regularização do teletrabalho e o fim da cobrança sindical compulsória.
O contrato de trabalho intermitente passou a ser previsto no artigo 443 da CLT, e é
considerado aquele em que a prestação de serviços não é contínua. Apesar de ocorrer a
subordinação, a prestação de serviços é alternada com períodos de inatividade, como no caso
dos trabalhadores rurais e suas safras, ou ainda como no caso dos vendedores extras no
período do natal.
O contrato intermitente é conhecido também como “contrato zero hora”, já que o
empregado fica à disposição do empregador, sendo chamado em momentos de necessidade,
sem que haja prestação mínima de serviço mensal. Para o empregador esse tipo de contrato
possibilita a contratação do funcionário para o período necessário, sem que fique vinculado à
este pelo ano inteiro, ou ainda que a cada período de alta demanda tenha que arcar com os
custos de admissão e posterior demissão do funcionário.
Quanto à regularização do teletrabalho, a legislação incluiu um novo capítulo na
Consolidação das Leis Trabalhistas prevendo a possibilidade de contratação de funcionários
para jornada fora da dependência do empregador que não se constituam trabalho externo. Os
artigos 75-A até o artigo 75-E da CLT preveem as normas a serem aplicadas para esse tipo de
contrato.

60
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Entretanto, apesar de finalmente possibilitar o contrato para o teletrabalho, que cada


dia ganha mais adeptos, a regulamentação não foi de todo modo satisfatória deixando ainda
algumas lacunas em aberto, tais como a configuração de acidente de trabalho no teletrabalho.
Para o empregador o teletrabalho é uma ótima ferramenta, pois possibilita a redução de gastos
com as dependências laborais, com o pagamento de vale transporte e auxílio alimentação.
O fim da contribuição sindical compulsória não beneficia apenas o trabalhador que
deixa de ter que recolher anualmente o valor referente a um dia de trabalho ao ano, mas
também ao empregador, que até então precisava recolher anualmente uma contribuição de
acordo com o capital social da empresa. Assim, o artigo 579 da CLT, retira do empregador
um elevado custo até então obrigatório.
A reforma trabalhista trouxe ainda a supressão do direito ao recebimento de horas in
itinere, que apesar de ser um benefício a menos para o trabalhador, para o empregador reduz
os gastos com o pagamento de horas extras com seus reflexos e a consideração de tempo a
disposição do empregador no trajeto realizado para o local de emprego em transporte
fornecido pelo empregador. A supressão foi expressa no artigo 58 parágrafo 2º da CLT.
Outra alteração benéfica para o empregador veio na redação do artigo 448-A da
CLT o qual prevê a possibilidade de extinção do contrato do trabalho por acordo entre
empregado e empregador, o que acarretará no pagamento pela metade do valor devido de
aviso prévio e da indenização sobre o saldo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.
Esse tipo de extinção contratual não permite o recebimento de seguro desemprego, entretanto,
permite a movimentação da conta do FGTS.
O artigo 507-B prevê a possibilidade de que empregado e empregador firmem termo
de quitação anual de obrigações trabalhistas, o qual deverá descrever as obrigações de dar e
fazer cumpridas mensalmente, e constará a quitação anual dada pelo empregado.
Por fim, a prevalência do acordado sobre o legislado passa a ser a nova regra,
conforme artigo 611-A da CLT. Assim, o acordo com o empregador sobre jornada de
trabalho, intervalo intrajornada, teletrabalho, trabalho intermitente, regime de sobreaviso,
enquadramento do grau de insalubridade, participação nos lucros, remuneração por
produtividade, dentre outros assuntos elencados no artigo, irão prevalecer sobre o legislado.
Essas alterações, portanto, beneficiam o empregador e reduzem certos custos com
salários e encargos sociais que anteriormente eram devidos a fim de tentar proporcionar um

61
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estímulo ao mercado e a consequente ampliação do número de ofertas de emprego como


ocorreu na Espanha, após a implementação da reforma trabalhista em 2012.
O problema é que não se traz soluções para a consequência já identificada na
reforma espanhola referente à precarização dos salários, com a redução dos direitos e valores
devidos aos empregados. De modo que, apesar de se ter reduzido a taxa de desempregado,
hoje a Espanha enfrenta um problema referente aos baixos salários oferecidos nos empregos.

3. A REDUÇÃO DOS ENCARGOS SOCIAIS NO BRASIL

Na década de 1990 iniciou-se a flexibilização trabalhista brasileira com o objetivo de


estimular o mercado.

Na segunda metade da década de 90 o governo promoveu a flexibilização da


contratação do trabalho, como banco de horas e o contrato temporário, por
exemplo. Partindo do principio de que uma legislação trabalhista mais flexível
estimula a geração de emprego, o governo esperava que tais medidas fossem
reduntar em aumento das contratações líquidas. Os resultados, no entanto, foram
absolutamente débeis, não tendo provocado nem aumento da formalização nem
tampouco redução do desemprego.
O que teria acontecido? Para alguns, não teria havido a flexibilização necessária
para afetar positivamente o emprego, mas tão-somente, o início de um ensaio que
seria requerido da legislação trabalhista para que o nível de emprego aumentasse.
Pode ser, no entanto, que o problema não seja, somente ou necessariamente, de
grau de flexibilização, mas da natureza da questão.
De fato, não parece haver consenso na literatura para países em desenvolvimento de
que a redução dos custos trabalhistas implicará, necessariamente, em aumento do
emprego e melhor desempenho da economia. (Arbache , 2003, p. 102)

Agora, com a reforma trabalhista de 2017, vivencia-se um novo período de


flexibilização da legislação trabalhista com o fomento de incentivo ao aumento da oferta de
empregos a partir da redução de encargos sociais. Para Ulysses e Reis, a redução dos encargos
sociais afetariam a informalidade e o desemprego, que poderiam ser reduzidos, conforme
narram:

Os resultados mostram que a redução da alíquota tem efeito significativo sobre o


grau de formalização do mercado de trabalho, uma vez que a proporção de
trabalhadores com carteira passa de 39,6% para 47,8% do total de ocupados. De
forma simétrica, há uma queda substancial no grau de informalidade, pois a
proporção de trabalhadores sem carteira diminui de 21,9% para 16,4% do total de
ocupados.
A tabela 6 apresenta os efeitos de reduções nos encargos sobre a taxa de
desemprego agregada e por grupo de qualificação. Os efeitos são significativos,
pois uma redução de 27,5% para 10% resultaria em uma queda da taxa de
desemprego agregada de 9,47% para 2,62%. Tanto os trabalhadores qualificados

62
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

quanto os nãoqualificados observam uma queda muito forte na taxa de desemprego,


de aproximadamente 7 p.p.
Ao considerar uma estrutura não competitiva para o mercado de trabalho brasileiro
– traduzida pelas curvas de salário – variações na alíquota do imposto que incide
sobre o trabalho apresentam impactos significativos sobre o emprego e o
desemprego, e não apenas sobre os salários dos trabalhadores. Embora parte do
ajuste ocorra via salários (ver tabela 7), uma parte substancial do ajuste recai sobre
os indicadores de emprego, reduzindo tanto a taxa de desemprego quanto o grau de
informalidade do mercado de trabalho. (Ulyssea e Reis, 2006, p. 16-17)

Assim, na análise desses autores, a redução dos encargos sociais seria favorável a
geração de empregos e formalização. Entretanto, para Vasconcelos e Volpato, a conclusão da
pesquisa é diversa:

Por outro lado, como já tem sido apontado em vários trabalhos, é enganosa a ideia
que afirma que os salários, ou mais precisamente, os encargos sociais criam
obstáculos para o estabelecimento de preços que tornem nossas empresas
competitivas internacionalmente, o que estaria dificultando a inserção das nossas
empresas no processo de globalização. (Vasconcelos e Volpato, 2000, p. 14)

Fato é que a redução dos encargos sociais traz benefícios ao empregador que vê a
reduzida a folha de pagamento, entretanto tal redução não pode assegurar a criação de novos
postos de emprego, já que a redução do custo com a mão de obra pode viabilizar o
investimento da empresa em outras áreas, tais como avanço tecnológico ou até mesmo em
aprimoramento das instalações laborais.
Torna-se arriscado, portanto, estabelecer uma consequência específica para a
redução do custo da empresa diante do livre arbítrio do empresário, que pode usar o recurso
economizado para desenvolver outras áreas de interesse, não necessariamente criando novos
empregos como almeja o governo brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pode ver pelos diversos artigos e cálculos elaborados, os encargos sociais e
salários dos funcionários representam um alto custo para o empresário, entretanto, não há uma
concordância quanto à porcentagem que os encargos representam no total dos custos sobre os
salários.
Apesar dos diferentes posicionamentos, em quase todos há pelo menos um aumento
de cerca de 50% do valor gasto a título de encargos, baseado no salário, o que é uma elevada

63
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

porcentagem, tornando a manutenção de uma empresa com diversos empregados um elevado


custo para o empresário.
Assim, busca-se por meio da flexibilização e da redução dos direitos sociais até
então obtidos um modo de reduzir os custos do trabalhador enfrentados pelos empresários e
incentivar não somente a manutenção da empresa no Brasil, mas também proporcionar o
aumento da oferta de vagas de emprego a fim de combater o desemprego estrutural.
Não é a primeira vez que o Brasil passa por uma flexibilização da legislação
trabalhista em busca de uma otimização do número de postos de emprego, na atual reforma
pretende-se diminuir os encargos sociais de modo a reduzir os desafios empresariais na
manutenção de quadro de funcionários.
Entretanto, Arbache (2003) defende que o mercado de trabalho realiza a
incorporação das contribuições sociais aos níveis de emprego e de salários, assim, a simples
redução dos encargos trabalhistas não geraria necessariamente o aumento da formalização e
de vagas de emprego.
A redução dos encargos sociais baseados na folha de pagamento dos funcionários
apesar de gerar uma economia para o empresário, pode vir a proporcionar o investimento em
outros segmentos da empresa, como segurança, tecnologia ou ainda infraestrutura.
O governo se arrisca ao defender que a simples implementação da reforma
trabalhista irá trazer o aumento da oferta de empregos, já que os empresários podem se
utilizar da economia para investir em outros setores além do quadro de funcionários da
empresa, não sendo, portanto certo que haverá aumento das vagas de emprego.
A flexibilização da reforma trabalhista pode proporcionar o aumento das vagas de
emprego, como ocorreu na Espanha, mas não é algo certo e preciso, já que a redução dos
custos de encargos sociais não é tão significante para o orçamento da empresa.
Para uma melhor análise do caso é necessário observar posteriormente na prática se
os itens identificados nesse artigo proporcionarão a diminuição do custo empresarial bem
como o aumento das vagas de emprego. Assim, resta, portanto, aguardar os efeitos que serão
trazidos com a implementação da reforma trabalhista.

64
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS

ARBACHE, Jorge Saba. Informalidade, Encargos trabalhistas e previdência social. In Base de Financiamento da
Previdência Social: alternativas e perspectivas - Brasília, MPS, 2003, p. 89 -106. Disponível em:
<http://www1.previdencia.gov.br/docs/pdf/ volume19.pdf#page=90>. Data de acesso: 30/10/2017.

BITENCOURT, Mayra Batista e TEIXEIRA, Erly Cardoso. Impactos dos encargos sociais na economia
brasileira. In Nova econ. [online]. 2008, vol.18, n.1, pp.53-86. ISSN 0103-6351. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/neco/v18n1/03.pdf>. Data de acesso: 02/10/2017.

MENDES, André Luiz. BASTOS, Patrícia Reis Leitão. Os encargos sociais nos orçamentos da construção civil.
In Revista. TCU, Brasília, v. 32, n. 89, jul/set 2001.Disponível em:
<http://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/ viewFile/883/948>. Data de acesso: 05/10/2017.

ROCHA, Wellington. Custo de mão-de-obra e encargos sociais. In Cadernos de estudos no.6 São Paulo Oct.
1992. Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S1413-92511992000300003&script=sci_arttext>.
Data de acesso: 02/10/2017.

ROSANVALLON, Pierre. A nova questão social. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998.

VASCONCELOS, Luiz Antônio Teixeira. VOLPATO, Luiz Antônio. Salários e encargos trabalhistas ou sociais:
os custos do trabalho no processo produtivo. In VII CONGRESSO BRASILEIRO DE CUSTOS, Recife –PE,
Brasil, 02 a 04 de agosto de 2000. Disponível em: <https://anaiscbc.emnuvens.com.br/anais/article/view/3043>.
Data de acesso: 20/10/2017.

ULYSSEA, Gabriel. REIS, Maurício Cortez. Imposto sobre trabalho e seu impacto nos setores formal e informal.
IPEA: Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/1961>. Data de
acesso: 31/10/2017.

65
A (IN) VISIBILIDADE DE FUNCIONÁRIOS DA LIMPEZA
NA FACULDADE DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF)
E A TERCEIRIZAÇÃO COMO QUESTÃO SOCIAL

ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende


Professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito
Costa, Luane Faustino
Estudante de graduação em Direito

RESUMO

O presente trabalho trata de uma temática estudada na interseção da sociologia do direito e psicologia
do direito: a invisibilidade social. Essa invisibilidade é um fenômeno psicossocial que afeta
determinados indivíduos, normalmente como uma consequência da discriminação. Aqueles que
sofrem com o fenômeno desaparecem aos olhos dos outros, o que faz com que sejam tratados como
parte integrante da paisagem e não como pessoas possuidoras de direitos e sentimentos. Como efeito
desse fenômeno, e outros descritos no artigo em questão, os terceirizados têm diversos direitos
negligenciados ou violados. Sendo assim, o trabalho trata da terceirização como mais uma forma de
precarizar as relações de trabalho, contribuindo diretamente para o aumento da desigualdade e para a
desarticulação sindical dos trabalhadores (que são manejados segundo os interesses de empresas
mediadoras do contrato).

Palavras-chave. Invisibilidade Social. Terceirização. Precarização.

ABSTRACT

The present work deals with a thematic studied on the interseccion of sociology of law and psicology of
law: the social invisibility. This invisibility is as psychosocial phenomenon that afects certain
individuals, normally as a consequence of discrimination. Those who suffer with the phenomenon
disappear in the eyes of others, wich leads them to be treated as an integrant part of the landscape and
not as a person with rights and feelings. As an effect of this phenomenon, and others that will be
described on the arcticle in question, the outsorced has an amount of righs neglected or violated.
Therefore, the arcticle treats outsorcing as one of the many manners used to transforme work relations
to a more precarious kind of bond, contribuing directly to inequality increase and to an union disarray
(as the workers are handled by the third party company's interests).

Keywords. Social invisibility, Outsoursing. Precarious work relationship.

66
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata de temática estudada na interseção da sociologia do direito


e psicologia do direito: a invisibilidade social. Essa invisibilidade é um fenômeno psicossocial
que afeta determinados indivíduos, normalmente como uma consequência da discriminação.
Aqueles que sofrem com o fenômeno desaparecem aos olhos dos outros, o que faz com que
sejam tratados como parte integrante da paisagem e não como pessoas possuidoras de direitos
e sentimentos. Esse fenômeno é um dos reflexos do passado exploratório do país com relação
a determinadas classes e etnias. Sendo assim, tornou-se corriqueiro ignorar a parcela da
sociedade que está à margem. Isso explica a baixa percepção do fenômeno por pessoas que
não sofrem diretamente com ele.
Pelo fato do Brasil ser marcado por uma trajetória de abusos com relação aos grupos
afetados hoje pela invisibilidade, ela será pensada através de um viés histórico e através de um
olhar socieconômico. Sendo assim, o trabalho passa pelo estabelecimento do capitalismo
como sistema econômico predominante; pela identificação do indivíduo com aquilo que ele
consome (os homens e mulheres passaram a ser valorizados por sua força de trabalho e
capacidade de consumo, sendo a última a medida do seu status social). Além disso, é
importante ressaltar a grande influência que a reificação e o fetichismo da mercadoria têm no
processo de invisibilidade. As relações sociais, devido a esses fenômenos típicos da sociedade
capitalista, tornaram-se aparentemente associais e, em geral, mediadas por coisas. Sendo
assim, só aqueles que possuem e consomem produtos específicos são indivíduos reconhecidos
como parte da sociedade; são visíveis. Todos esses aspectos serão levados para a realidade
dos trabalhadores terceirizados da UFF da área de limpeza.
Como consequência de todos os fenômenos descritos anteriormente, os terceirizados
têm diversos direitos negligenciados ou violados. Sendo assim, o trabalho trata da
terceirização como mais uma forma de precarizar as relações de trabalho, contribuindo
diretamente para o aumento da desigualdade e para a desarticulação sindical dos trabalhadores
(que são manejados segundo os interesses de empresas mediadoras do contrato). Portanto, é
importante levantar a questão da falta de uma legislação que garanta os direitos dessa
categoria de empregados, mesmo após quase um século da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT).
É importante esclarecer também que o artigo em questão refere-se a uma pesquisa
em andamento, que foi iniciada por um método puramente bibliográfico, que evoluirá para o

67
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

empírico no momento em que todas as questões concernentes à identidade e demanda dos


terceirizados estiverem formuladas. Sendo assim, aqui será apresentada toda a carga teórica
obtida nos últimos meses, tratando da invisibilidade pública e a terceirização, histórica e
socialmente.
Futuramente, portanto, será realizada uma visita ao Sindicato dos Trabalhadores em
Asseio, Conservação e Limpeza Urbana de Niterói (SINTACLUNS). Com base nessas
visitas, e nos dados obtidos por meio delas, será desenvolvido um questionário que abranja
suas principais demandas. Além disso, algumas questões mais pessoais também serão
abordadas na tentativa de criar uma relação de confiança, a fim de facilitar a comunicação (já
que espera-se que muitos dos trabalhadores tenham receio de desenvolver comentários
negativos sobre o empregador).

1. A INVISIBILIDADE E O UNIFORME

De fato, um simples uniforme possui uma enorme simbologia dentro da nossa


sociedade. Ele é capaz de identificar o trabalho subalterno, de fazer com que quem o veste
sofra de um desaparecimento psicossocial, de identificar uma parcela de trabalhadores que
geralmente não possuem garantias trabalhistas, que são ignorados individualmente e como
classe. Além disso, no caso dos trabalhadores da limpeza, ainda existe um agravante no fato
de lidarem diretamente com rejeitos. Diversas pesquisas sociológicas mostram que aqueles
que trabalham com lixo são considerados homens rebaixados, apesar de desempenharem uma
tarefa essencial para o funcionamento da sociedade.
O fenômeno de invisibilidade social abarca muitos outros indivíduos que não
somente os uniformizados, como moradores de rua; e outros diversos homens pobres e
vagabundos, como diz Maria Stella Martins Bresciani em seu livro homônimo; todos eles
tendo seus direitos expropriados diariamente. Porém, neste artigo, focaremos somente nos
trabalhadores terceirizados.
Uma das publicações de maior visibilidade dentro da temática são as teses de
mestrado e doutorado do psicólogo social da Universidade de São Paulo (USP) Fernando
Braga da Costa, porém também será utilizado como ferramenta de entendimento e
interpretação do fenômeno o livro Profissões Republicanas, dos organizadores Maria da
Glória Bonelli e Wellington Luiz Siqueira. Baseando-se nessa obra, será abordada a

68
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

invisibilidade como consequência da identidade construída em torno do que é ser um


trabalhador terceirizado. Será, então, analisada a identidade enquanto um mecanismo
inconsciente de apartação ou de não-reconhecimento de uma classe de indivíduos.
O artigo trata somente dos funcionários da Faculdade de Direito da UFF. Apesar
disso, observa-se que esse fenômeno de invisibilidade pública não é uma problemática local e
que possui diversas justificativas histórias, econômicas e socioculturais para a sua existência.
A fim de chegar à raiz da questão da negligência dos direitos a esses empregados, essas
origens necessitam ser pontuadas e destrinchadas, o que faz com que o trabalho passe por
áreas como a sociologia, antropologia, psicologia e direito.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Historicamente, a flexibilização das relações de trabalho intensificou-se no Brasil,


diferentemente do ocorrido em outros países mais centrais, nos anos 90. Em direção contrária
à tendência mundial, nos anos 80 o Brasil enfrentava uma grande crise devido à dívida
externa e, com ela, o processo de redemocratização foi acelerado e o movimento sindical
tornou-se mais forte e organizado. Esses fatores fizeram com que o neoliberalismo, ideologia
que vinha sendo aplicada na política de diversos países pelo mundo afora, fosse impedida de
se desenvolver no Brasil.
Apesar da oposição inicial às tendências neoliberais, na década seguinte o país
deixou de lado, em diversos aspectos, sua recente Constituição Cidadã. Devido a uma
insurgência do pensamento conservador e ao enfrentamento de instabilidades econômicas
causadas pela recente inserção submissa do país na globalização, o pensamento neoliberal
acabou por penetrar a política brasileira na forma de uma promessa de melhora e superação
dos problemas enfrentados pelo país na época.
De maneira bastante contraditória, nos anos 2000 as medidas flexibilizantes foram
por demais expandidas, justo em um momento em que o país se encontrava com índices de
emprego e salário expressivamente melhores. Foi então que os trabalhadores passaram a
encarar situações de extrema insegurança, precaridade e rotatividade empregatícia. É
importante frisar que, apesar de identificada essa ampliação de políticas precarizantes, no
Brasil, isso sempre foi presente quando fala-se de relações de trabalho. (Krein, 2013: 27)

69
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Tais contradições surgiram de um conflito entra a mentalidade conservadora que


prevalecia no país e uma recente constituição criada para expandir direitos e garanti-los de
forma mais eficaz. Porém, nenhuma legislação posterior foi criada com o objetivo de
concretizar o espírito da constituição, preponderando então, na disputa entre capital e trabalho,
o capital. Vê-se, atualmente, que as mudanças na legislação trabalhista trazidas pela Lei
13.467/17 em nada reforçam o objetivo da criação de uma justiça do trabalho: proteger o
trabalhador.
Esclarecendo melhor a realidade do trabalho no Brasil, mesmo prevalecendo os
contratos por tempo indeterminado, mecanismos flexibilizadores podiam ser facilmente
aplicados, ou seja, a flexibilidade, de certa forma, incorporava tais contratos. Foi também
como forma de burlá-los que surgiu a terceirização. Essa problemática tornou-se ainda mais
nefasta com a reforma trabalhista recentemente sancionada.
Ademais, é importante lembrar que no Brasil, devido a um histórico de uso
predatório da mão de obra baseado na rotatividade e instabilidade, a incorporação de medidas
de flexibilização do trabalho, como forma de aumentar a acumulação, são um meio de
precarizar ainda mais as relações trabalhistas. Diversos são os estudiosos que insistem em
salientar a eficácia de tais medidas, usando como exemplo de triunfo o país criador destas
(Japão), porém deixando de lado todo um debate acerca do diferente passado e vivência de
ambos. No Brasil, há flexibilidade estrutural. Portanto, é completamente descabido falar em
consertar os efeitos da flexibilização com uma “inovação flexível” (Santos, 2012: 190).
Sendo assim, os mecanismos flexibilizantes implementados no Brasil não estão de
acordo com a tendência mundial. Nos países centrais, em geral conhecidos pelas amplas
garantias sociais, a flexibilização é apontada como uma forma de enfrentamento de crises.
Aqui ela amplia a possibilidade de imposição de arbitrariedades por parte dos empregadores
em acordos com o trabalhador e no momento da demissão. Com a flexibilização, o custo do
trabalho na indústria da transformação passou de 3 dólares por hora em 1980 para 1 dólar em
2003. (Santos, 2012: 233).
Essa realidade ainda é mais preocupante quando fala-se de trabalhadores de baixa
escolaridade, como os terceirizados da área da limpeza. Isso fica bastante claro quando
analisa-se dados que afirmam que o maior número de demissões sem justa causa ocorrem na
faixa de trabalhadores com menos de dois anos de serviço. Não é uma coincidência que a
margem média de tempo de trabalho de um terceirizado é de exatos dois anos, o que pode

70
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

indicar que aqueles que mais sofrem com desligamentos sem qualquer justificativa são
justamente os terceirizados. Fica claro, portanto, que as novas formas de flexibilizar a
produção reforçam a flexibilidade estrutural do Brasil (Carelli, 2003).

Escolaridade exigida pelo cargo Total


Ensino fundamental 1.376
Ensino médio 581
Ensino superior 40
Total 1.997
Tabela 1 – Perfil de escolaridade dos terceirizados da UFF.
Fonte: UFF, 2017.

De fato, as demissões e a taxa de desemprego do país estão diretamente ligadas à


precarização consequente da terceirização. O enorme exército de reserva existente a
disposição do empregador faz com que o trabalhador se torne facilmente substituível.
Sabendo disso, submete-se cada vez mais a piores condições de emprego, já que, para o
trabalhador, permanecer nele é condição essencial para sua sobrevivência. Em uma sociedade
com altas taxas de desemprego, o trabalho precário torna-se um luxo. É uma nova forma de
dominação, tão eficiente e lucrativa quanto a escravidão, porém sem remorsos morais e
religiosos (Carelli, 2003).
Esse fato torna manifesta a importância do direito do trabalho, uma vez que o
empregado sempre será o lado mais fraco do liame trabalhista. Numa sociedade onde as
relações de emprego são estruturalmente flexíveis e onde há preponderância dos interesses
dos grandes empresários, o proletário torna-se extremamente dependente do patrão.
Autonomia e equidade entre partes não existe quando se trata de uma relação de trabalho no
Brasil. Sendo assim, a proteção estatal nunca será excessiva e precauções nesse tipo de
sistema nunca deixarão de ser necessárias.
Tratemos agora das consequências práticas da terceirização sobre as condições de
trabalho daqueles submetidos a esse regime precarizante. Segundo pesquisa realizada pelo
DIEESE em 1992, levando em consideração um universo de 40 empresas, observa-se uma
drástica diminuição dos benefícios sociais, baixa nos salários, entre outros aspectos tratados
na tabela abaixo.

71
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Efeitos da Terceirização sobre as condições de trabalho


- Diminuição dos benefícios sociais – 72,5%
- Salários mais baixos – 67,5%
- Ausência de equipamentos de proteção/falta de segurança/insalubridade – 2,5%
- Trabalho menos qualificado – 17,5%
- Trabalho sem registro – 7,5%
- Perda de representação sindical – 5%
- Jornada mais extensa – 5%
Tabela 2 – Efeitos da terceirização.
Fonte: Carelli, 2003.

Vale a pena lembrar que esses dados são de uma pesquisa de 1992, ou seja, em
momento anterior à expansão massiva da terceirização no Brasil (anos 2000). Ainda assim, os
dados mostram o início de uma situação bastante alarmante, com perdas iniciais de direitos
sociais na casa do setenta por cento e baixas salariais na casa dos sessenta por cento.
Em um estudo sobre as consequências da terceirização, é impossível não falar do
movimento sindical. Com a chegada da política neoliberal e a flexibilização do trabalho, os
sindicatos tiveram sua força bastante diminuída. No pós-guerra, eram considerados um meio
de solucionar os problemas. A partir dos anos 1980, e ainda hoje, são considerados “o”
problema e as tentativas estão em torno de desestruturá-lo.
Primeiramente, o fato dos terceirizados permanecerem em um mesmo emprego por
pouquíssimo tempo faz com que não haja coesão entre os trabalhadores ou mesmo um
sentimento de pertencimento, ambos elementos essenciais para um movimento sindical
fecundo. Além disso, em uma mesma empresa trabalham terceirizados de diversas outras.
Sendo assim, não há mais somente um sindicato representando todos os trabalhadores de uma
mesma localidade, mas vários deles. Sem dúvidas isso também descoletiviza o trabalho
através da desunião dos terceirizados. (Carelli, 2003).
A constante realocação dos trabalhadores terceirizados, além de contribuir para a
desarticulação sindical, em muito influencia a segurança no local de trabalho. Por
consequência dessas mudanças, o empregado encontra-se constantemente desacostumado
com seu local de trabalho. Isso traz consequências por demais negativas, tanto em termos de
segurança quanto em termos de identidade do grupo. Há, portanto, não somente precarização
do trabalho, mas das relações, dos laços. Todos esses fatores tornam o ambiente de trabalho
desconfortável em diversos aspectos. Ademais, esses trabalhadores possuem maior carga de
trabalho e menos dias de descanso, o que também contribui para um aumento de acidentes
(Carelli, 2003).

72
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A fim de ilustrar a diferença na taxa de acidentes entre trabalhadores efetivos e


terceirizados, a tabela 3 traz informações entre os anos 1998 e 2005 dos acidentes de uma
empresa petroleira.

1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005


Efetivos 4 1 4 12 3 3 3 0
Terceirizados 22 27 14 18 18 11 14 13
Total 26 28 18 30 21 14 17 13
Tabela 3 – Acidentes fatais. Efetivos e terceirizados e petroleira
Fonte: Federação Única dos Petroleiros – Petrobras
Elaboração: DIEESE

Além dos diversos direitos negados e negligenciados aos trabalhadores devido a sua
condição de terceirizados, muitos outros efeitos terríveis surgem como consequência desta.
Um deles é a exclusão. Segundo Alan Touraine, atualmente, a sociedade não mais se estrutura
numa forma de pirâmide, de modo que um indivíduo podia fazer parte do topo ou da base
desta. Hoje em dia, você está dentro ou fora. Entende-se como exclusão social o conceito
trazido por Rodrigo Carelli. Segundo ele,

deve ser entendida como a forma ou processo de discriminação ou segregação,


causada por situação ou posição existente, determinante de quebra de liame social,
dificuldade ou impossibilidade de continuação de relações sociais, que causa
ruptura na coesão social e participação efetiva em determinado ambiente social
(Carelli, 2003, 202)

Sendo assim, a luta de classes sofreu uma transformação. Existem aqueles que
encontravam-se no patamar mais baixo da pirâmide social e direcionam seus esforços para
uma luta contra a exploração dos mais ricos. Porém, existem também aqueles que nem
mesmo chegaram a esse patamar. São indivíduos que não compõem a pirâmide e lutam para
ao menos serem incluídos nela, mesmo que no estrato mais explorado. É nessa situação em
que encontram-se os trabalhadores terceirizados.
De forma geral, eles são moradores de periferia que não possuem acesso aos seus
direitos ou ao consumo, tudo isso por decorrência ou funcionando como causa de sua
exclusão. O elo entre exclusão e todos os fatores citados acima é tão intrínseco que torna-se
difícil estabelecer uma relação clara de causa e consequência. Esses indivíduos, portanto,
encontram-se apartados, discriminados pela sociedade.

73
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

De fato, em empresas terceirizadas, como já dito anteriormente, os vínculos e liames


sociais entre os trabalhadores torna-se bastante fracos e dificultados. Sem dúvidas, essa
realidade por si só já é uma das causas da existência de processos de exclusão dentro do
ambiente de trabalho. Não há reconhecimento mútuo, o que leva os tidos como inseridos a
tratar de forma diferente e exclusiva o grupo já menos favorecido pelo ambiente
organizacional. Essa situação de desigualdade de fato ou de direito faz com que as trocas
sociais tornem-se praticamente impossíveis de ocorrer (Carelli, 2003).
A segregação ocorre de forma que o espaço social de um grupo seja reduzido,
mantendo uma distância permanente entre círculos determinados. É uma forma de preservar
uma certa ordem social que mantém os incluídos confortáveis ou poucos desconfortáveis.
Nessa “ordem” formada, são conservados e delimitados espaços de convivência diferentes, há
distinção clara entre os grupos, são legitimadas as esferas de autoridade e subordinação e o
acesso aos recursos sociais é bastante diferenciado. Todos esses aspectos, descritos por Carelli
em seu livro aqui citado, são facilmente identificados no dia a dia e na convivência dos
trabalhadores da limpeza da UFF. Tal exclusão e apartação levam a um fenômeno ainda mais
problemático: a invisibilidade.
A invisibilidade pública pode ser definida como um fenômeno psicossocial sofrido
por certos indivíduos, normalmente como consequência de discriminação - seja ela racial ou
social. Eles desaparecem aos olhos de outros, o que faz com que sejam tratados como parte
integrante da paisagem e não como pessoas possuidoras de direitos e sentimentos. Por ser um
fenômeno bastante marcante na história exploratória do Brasil, a percepção de pessoas de
outra classe ou etnia para com estes indivíduos torna-se pouco apurada, já que tornou-se
corriqueiro ignorar a parcela da sociedade que está à margem (Costa, 2008).
Pensando a invisibilidade também através do viés socioeconômico, observa-se que,
com o estabelecimento do capitalismo como sistema econômico predominante, diversas
relações sociais foram modificadas por sua influência direta, principalmente a com o
consumo. As pessoas passaram a não serem mais vistas com humanidade e individualidade,
mas como cifrões, sendo tratados de forma diferenciada de acordo com a sua função social,
sua posição dentro da sociedade de consumo. Caso não tenham tanta relevância nesse sentido,
tornam-se invisíveis, o que caracteriza uma operação mental chamada Reificação. Sendo
assim, observa-se que a reificação muito influi na existência da invisibilidade (Costa, 2008).

74
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Ainda analisando a invisibilidade por meio de critérios socioeconômicos, pode-se


pensar a individualidade como algo moldado pelo consumo, já que você só é alguém se
consome, ou seja, só é indivíduo se faz parte da massa. Fica clara, portanto, grande influência
que a reificação e o fetichismo da mercadoria têm no processo de invisibilidade. As relações
sociais, devido a esses fenômenos típicos da sociedade capitalista, tornaram-se aparentemente
associais e, em geral, mediadas por coisas. Sendo assim, só aqueles que possuem e consomem
produtos específicos são indivíduos reconhecidos como parte da sociedade; são visíveis
(PORTO, 2006).
Trazendo o fenômeno da invisibilidade para dentro do universo dos trabalhadores
terceirizados, principalmente aqueles que lidam com dejetos e lixo, fica claro que na maioria
das sociedades, aqueles que manipulam o lixo são vistos como imundos, inferiores, por mais
que não haja outro “motivo” aparente para classificá-los dessa forma. Devido a essa visão
preconceituosa arraigada na sociedade como um todo, há uma separação entre grupos
dominantes e grupos dominados muito clara. Os mais poderosos – portanto dominantes –
consideram-se e são considerados pelos outros como humanamente superiores (ELIAS,
2000).
Como diz Nobert Elias em seu livro Os Estabelecidos e os Ousiders:

No caso de diferenciais de poder muito grandes e de uma opressão


correspondentemente acentuada, os grupos outsiders são comumente tidos como
sujos e quase inumanos (ELIAS, 2000: 29)

Apesar da diferenciação e discriminação serem muito mais veladas nas relações


trabalhistas do que nas sociedades estudadas por Elias, esse tipo de postura com certos tipos
de trabalhadores pode ser facilmente trazida para a questão do terceirizado da área da limpeza
e para as possíveis causas de sua invisibilidade.
Ainda considerando como possível causa da invisibilidade social o estabelecimento
de grupos excluídos e incluídos na maioria das sociedades, cabe incluir e analisar o fenômeno
da apartação, o apartheid social. É caracterizado pela distinção de tratamento de pessoas de
acordo com seu estrato social, ou seja, uma parcela da população é rejeitada, tendo assim
acesso dificultado até mesmo ao básico — educação, emprego, saneamento básico, saúde, etc.
Ou seja, os prejudicados pela apartação social são também aqueles que permanecem em
funções subalternas, que sofrem discriminação por sua posição social, que não veem a

75
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

possibilidade da ascensão social. Os invisíveis. Para ilustrar melhor a conexão entre o


apartheid social e os trabalhadores terceirizados:

“Uma parte deles sobrevive na margem entre o setor moderno e a exclusão social:
são os trabalhadores de baixa renda. Estão em permanente risco de desemprego,
que os jogaria, talvez definitivamente, na miséria da exclusão” (Buarque, 1993: 37).

Outro entendimento extremamente relevante para a melhor compreensão da


invisibilidade pública de um grupo de trabalhadores é a identidade. A identidade, segundo
Dubar, é o resultado de vivências individuais e sociais. Sendo assim, são produzidas pelo
processo de socialização, sendo algo bastante mutável ao longo da vida de um indivíduo ou
grupo. É importante entender que a identidade não é algo dado, mas construído, ou seja, não
se refere necessariamente ao que o indivíduo é, mas ao que ele faz enquanto parte de um todo.
De fato, as identidades não se restringem a figura do indivíduo, como ficou claro.
Sendo assim, é perfeitamente possível que haja a formação de uma identidade profissional.
Ela pode ser traçada principalmente considerando-se quais são os comportamentos esperados
de determinado círculo de trabalhadores, não tendo isso, necessariamente, relação com a
função social do trabalho desempenhado por eles (Araújo, 2016: 150).
Ademais, a formação de identidades está diretamente ligada à exclusão – tratada
anteriormente nesse artigo –, já que surgem do jogo de poder existente nas relações de
trabalho. Ela existe, portanto, para marcar também a diferença entre determinados grupos de
indivíduos e justificar sua exclusão e invisibilização. Tal “reconhecimento incorreto” que um
círculo faz de outro, em geral, é extremamente prejudicial. Afinal, se tal visão construída
torna o outro inferior aos olhos de um grupo, ele será desprezado e reduzido a uma ideia falsa
e distorcida do que ele realmente é (Araújo, 2016: 152).
Ainda hoje, mais de 70 anos após a criação da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), não há legislação que abranja e, consequentemente, garanta os direitos dos
empregados por empresas terceirizadas. Tentativas de regulamentação como o Projeto de Lei
de nº 4330, vulgarmente conhecido como “lei da terceirização”- apresentado pelo Deputado
Sandro Mabel, PMDB/GO, em 2004, com substitutivo global do relator Artur Maia — nos
mostram que os interesses desta parcela de trabalhadores está longe de ser prioridade. Isso
fica bastante claro no fato do PL4330 ter sido amplamente criticado por, desde sua origem,
tentar tornar a interação empregado-empregador uma relação puramente comercial. Com sua

76
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

aprovação, o empregador torna-se isento de qualquer responsabilidade para com o detentor da


força de trabalho. (Barros, 2015).
De fato, paradigmas conceituais em torno da profissão podem ter muita contribuição
com a falta de garantias trabalhistas que compreendam os terceirizados. Segundo Eliot
Freidson, profissão é genericamente uma ocupação, distinguida das demais pelo
“conhecimento e competência especializados necessários para a realização de tarefas
diferentes numa divisão do trabalho”. Estes conhecimentos, formais e abstratos, são
adquiridos ao longo de uma educação de nível superior, que é pré-requisito para o exercício
da profissão (Bonelli, 1998).
Devido a esse fenômeno de profissionalização, descrito e estudado por Freidson, a
exclusividade de um conhecimento e capacidade de desenvolver tarefas são um instrumento
de barganha, uma forma de negociar “privilégios” junto ao Estado a fim do profissional ter
mais controle da sua atuação (Bonelli, 1998). Nesse sentido podemos observar como os
terceirizados não encontram instrumentos de luta satisfatórios, permanecendo negligenciados
e invisibilizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De fato, a pesquisa aqui descrita encontra-se em momento bastante inicial e em uma


etapa puramente bibliográfica, o que impede que dados representativos da realidade prática
dos terceirizados da área limpeza da UFF sejam trazidos e cruzados com todo o contexto
histórico de terceirização e com conceitos e noções de exclusão e identidade. Porém, a
invisibilidade de fato desses trabalhadores – que praticamente não são vistos por diversos
alunos e professores consultados – pode indicar a existência de uma invisibilidade social.
Esses empregados realmente não são encontrados em locais comuns aos alunos e professores?
É importante entender o motivo disso ou se a invisibilidade pública é tamanha que faz com
que nosso olhos deixem de enxergá-los.
Ademais, esse grupo é o primeiro a sofrer com qualquer instabilidade
governamental em torno de distribuição de salários. As greves de terceirizados na UFF são
algo corriqueiro, o que aponta a existência de um tratamento diferenciado e de uma
negligência, por parte do governo, na garantia de acesso a direitos. Existem, inclusive, relato
informais – afinal, dados como esse nunca serão obtidos junta à empregadora – de demissões,

77
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

por parte da empresa responsável pela terceirização do serviço da limpeza (Luso Brasileira
S.A), de funcionários que participaram de manifestações por falta de salário em 2015. Em site
de sindicato do Paraná (SINDITEST), que realizou reportagem com os terceirizados nesse
momento crítico, há citação direta da fala de um dos funcionários entrevistados, afirmando
que todos ali ficariam mal vistos na empresa por estarem gozando de seus direitos enquanto
cidadãos, ou seja, exigindo remuneração.
Pouco se fala sobre a terceirização existente em instituições públicas e como esse
processo realmente acontece, com suas particularidades e nuances. Na Universidade Federal
Fluminense, uma das áreas com o maior número de trabalhadores terceirizados é a limpeza e
esse fato pode ter relação direta com as constantes greves, com a invisibilidade, com o
esquecimento que envolve esses indivíduos.

REFERÊNCIAS

BUARQUE, Cristovam. O que é Apartação: O Apartheid Social no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993.

ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders: Sociologia das Relações de Poder a partir
de uma Pequena Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000 (Trad. Vera Ribeiro).

COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: retratos de uma humilhação social. São Paulo: Ed. Globo, 2004.

PORTO, Juliana. A Invisibilidade Social e a Cultura do Consumo. Artigo. PUC-Rio, 2006. Disponível em
http://www.dad.puc-rio.br/dad07/arquivos_downloads/43.pdf. Acesso em: Fevereiro de 2016.

COSTA, Fernanda Braga da. Moisés e Nilce: Retratos Biográficos de Dois Garis. Um Estudo de Psicologia a
Partir de Observação Participante e Entrevistas. Dissertação de Doutorado, USP, Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, São Paulo: 2008.

BARROS, Magda e OLIVEIRA, Marilane. A Terceirização e seu Dinâmico Processo de Regulamentação no


Brasil: Limites e Possibilidades em Revista da ABET . Disponível em
http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/abet/article/view/25700/13876. Acesso em: Fevereiro de 2016.

BONELLI, Maria da Glória. 1998. Origem social, trajetória de vida, influências intelectuais, carreira e
contribuições sociológicas de Eliot Freidson. In: FREIDSON, Eliot. 1998. O renascimento do profissionalismo.
Tradução: Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Edusp

KREIN, José Dari. Trabalho no Brasil: evolução recente e desafios em Revista Paranaense de Desenvolvimento.

SANTOS, Josiane Soares. “Questão social”: particularidades no Brasil São Paulo: Cortez, 2002.

CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Terceirização e intermediação da mão de obra: ruptura do sistema trabalhista,
precarização do trabalho e exclusão social. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

ARAÚJO, Dafne. Identidade e diferença: o exercício da advocacia por profissionais negros(as) na cidade de São
Paulo em: BONELLI, Maria da Glória (org.). SIQUEIRA, Wellington Luiz. (org.) Profissões republicanas:
experiências brasileiras no profissionalismo.São Paulo: Edufscar, 2016, 145-164.

78
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

BOLETIM DIEESE. O processo de terceirização e seus efeitos sobre o trabalhador no Brasil. São Paulo:
DIEESE, 2003

79
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Grupo de Trabalho 02

TRIBUTAÇÃO JUSTA
COMO
DIREITO FUNDAMENTAL
A EXTRAFISCALIDADE
DA TAXA DE COLETA DE RESÍDUOS SÓLIDOS

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós-graduação de Direitos Humanos e Inovação da UFJF
SIMON, Laura Fonseca
Graduanda em Direito da UFJF
VIDAL, Victor Luna
Graduando em Direito da UFJF

RESUMO

O Direito Tributário contemporâneo tem na função extrafiscal dos tributos uma ferramenta eficaz na
concretização dos direitos fundamentais. Embora a extrafiscalidade tributária e a temática ambiental
sejam elementos aparentemente distantes, a sua associação pode contribuir significativamente para a
sociedade contemporânea. Neste sentido, o presente artigo tem como escopo refletir acerca da adoção
de incentivos fiscais de forma a contribuir com o meio ambiente e, em contrapartida, reduzir a carga
tributária tão custosa ao cidadão. Para tanto, debate-se acerca da possibilidade de redução das taxas
referentes à coleta de resíduos sólidos às residências e aos estabelecimentos comerciais e industriais
que promoverem a coleta seletiva do seu lixo, destinando o mesmo ao sistema local de reciclagem.

Palavras-Chave. Extrafiscalidade. Taxa de Coleta de Resíduos Sólidos. Meio ambiente.

ABSTRACT

Contemporary Brazilian Tax Law has an extrafiscal function which is an effective tool in the
realization of fundamental rights. Although tax extrafiscalism and environmental issues are apparently
distant elements, their association can contribute significantly to contemporary society. In this sense,
the purpose of this article is to reflect on the adoption of fiscal incentives in order to contribute to the
environment and, on the other hand, reduce the tax burden that is so costly to the citizen. In order to do
so, the possibility of reducing the rates referring to the collection of solid waste from residences and
commercial and industrial establishments that promote the selective collection of their waste, for the
local recycling system, is discussed.

Keywords. Extrafiscalism. Solid Waste Collection Rate. Environment.

81
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Sob a perspectiva do meio ambiente ecologicamente equilibrado, investiga-se a


extrafiscalidade em face da taxa de coleta de resíduos sólidos, com propósito de incentivar a
discussão acerca de políticas públicas que zelem pela efetiva preservação ambiental. Para
tanto, analisar-se-á a tributação no ordenamento jurídico brasileiro e os impactos que
eventuais incentivos fiscais e isenções podem acarretar no seio social.
O presente artigo possui três itens: primeiramente, investiga-se a fundamentação
histórica e a análise dos mecanismos extrafiscais no Brasil, descrevendo sua relação com o
conceito de Tributação Justa. Em um segundo momento, debate-se acerca dos tributos,
sobretudo no que concerne à espécie tributária taxa, sobrelevando a importância da
extrafiscalidade, notadamente com relação à taxa de coleta de resíduos sólidos. Por fim, a
gestão fiscal da taxa de coleta de resíduos sólidos é tratada na atualidade, propondo-se novos
parâmetros para a cobrança da referida exação, com o escopo de incentivar condutas de
preservação do meio ambiente.
A metodologia adotada neste artigo será bibliográfica e crítico dialética, na medida
em que não se aterá apenas a reprodução legislativa, doutrinária e jurisprudencial sobre o
tema e, sim, a uma análise crítica sobre a da possibilidade de utilização da taxa de coleta de
resíduos sólidos com finalidade extrafiscal.

1. FUNDAMENTAÇÃO HISTÓRICA E ANÁLISE DOS MECANISMOS


EXTRAFISCAIS

Contemporaneamente, a atividade arrecadatória do Estado é concebida como um


mecanismo intrínseco à realização de serviços públicos e, conforme JUSTEN FILHO (2014),
à promoção dos direitos fundamentais. Para compreender a conformação tributária nacional e
o desenvolvimento de políticas públicas em matéria ambiental, torna-se indispensável a
investigação histórica da tributação no Brasil, realçando a força dos princípios constitucionais
em vigor.
Influenciado pelo modelo europeu de tributação, notadamente o português, em
virtude do seu passado colonial e da chegada ao continente americano da realeza no século
XVII, o sistema tributário nacional passou por uma série de transformações no decorrer do
tempo, especialmente quando se tem em perspectiva a transição da condição de submissão a
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Portugal até a égide democrática atual. Especificamente com relação à experiência local, a
referida atividade estatal, embora profundamente inspirada nos moldes previamente referidos,
assumiu contornos próprios (BARROS, 2012).
Neste contexto, o período colonial brasileiro destacou-se pelo financiamento de
projetos de colonização do território e pelo enriquecimento da Coroa Portuguesa, maior
destinatária das riquezas auferidas em solo americano (BARROS, 2012).
Originalmente, o primeiro imposto a ser instituído no país relacionava-se à
exploração do pau-brasil. O pagamento deste imposto realizava-se por meio da
disponibilização de parte do produto explorado. Tal atividade era exercida pelos chamados
rendeiros ou cobradores de rendas, aos quais eram atribuídos poderes incontrastáveis, o que se
ilustra pela possibilidade de prisão dos inadimplentes (BARROS, 2012).
Com a ascensão da mineração, o sistema tributário brasileiro instituiu o quinto,
equivalente à cobrança de 20% do ouro que era levado às Casas de Fundição, pertencentes à
monarquia, e a derrama, imposto que tinha como objetivo a complementação dos débitos que
os mineradores acumulavam junto ao reino (BARROS 2012).
Ressalta-se que, neste período, não existia um critério determinado de modo a
definir a quantia de impostos que deveria ser paga. Os excessos exacionais cometidos pelos
agentes reais geravam profunda insatisfação na população da época, culminando, em
associação aos ideais libertários propagados na Revolução Francesa de 1789, no movimento
revolucionário da Inconfidência Mineira no século XVIII (BARROS, 2012).
A chegada da Coroa Portuguesa ao Brasil em 1807 trouxe consigo a estrutura
tributária originária daquela nação. Paralelamente às aberturas portuária e comercial então
empreendidas, o Rei Dom João VI contribuiu com a realização de modificações significativas
na ordem colonial. Dentre tais mudanças, destaca-se a criação do Banco do Brasil e do
Tesouro Nacional (BARROS, 2012).
A formação dessas instituições possibilitou o desenvolvimento de novos modelos
fiscais, captando recursos econômicos, especificamente no tocante aos bens imóveis
(construção e transferência de propriedade) e à importação de bens e produtos. Para sustentar
a família Real, historicamente reconhecida como perdulária, práticas arrecadatórias abusivas
tornaram-se comuns como, por exemplo, a bitributação (BARROS, 2012). Para COSTA
(2012), a bitributação traduz-se como a cobrança pelo mesmo fato gerador por mais de um
ente da Federação.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A proclamação da República não alterou significativamente a tributação nacional.


Apenas em 1934 foi operada uma reestruturação do modelo fiscal brasileiro, por meio da
Constituição de 1934 e do Decreto n° 24.036, que reestruturou o Código Tributário Nacional.
Tais marcos normativos tiveram, dentre as suas principais características, a definição das
competências tributárias para a União, os Estados e os Municípios (BARROS, 2012).
A Constituição de 1946, por sua vez, permitiu a instituição de sistemas tributários
autônomos para cada ente federativo. Nessa esteira, assumiu posição de destaque o princípio
da capacidade contributiva, estando presente desde então em todas as constituições
supervenientes. Em virtude de contingências históricas, como o crescimento das despesas da
administração pública e o cenário de pós-guerra, percebeu-se um substancial incremento de
impostos para compensar tal volume de despesas (BARROS, 2012).
Com o processo de redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, o
legislador constituinte elegeu dentre as suas prioridades a adoção de princípios limitadores ao
poder de tributar. Tais normas consubstanciam, assim, mecanismos eficazes de proteção do
contribuinte diante da avidez estatal por receitas. Conforme assevera MACHADO (2016,
p.32), “os princípios existem para proteger o cidadão contra os abusos do Poder. Em face do
elemento teleológico, portanto, o intérprete, que tem consciência dessa finalidade, busca
nesses princípios a efetiva proteção do contribuinte”.
Neste contexto, outras novidades no plano jurídico brasileiro ganharam relevo a
partir da Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988. A função extrafiscal, por
exemplo, muito embora já fosse utilizada nas décadas anteriores, passou a se constituir como
uma ferramenta indispensável ao desenvolvimento de políticas públicas (BEVILACQUA,
s.d.).
Historicamente, o instituto tributário em análise surge a partir das contribuições
parafiscais e das contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDE), representativas
da instituição de entidades dotadas de personalidade jurídica autônoma, compondo, portanto,
a administração indireta do Estado. Diante desse panorama de descentralização
administrativa, surge a necessidade de novas receitas para fazer frente às novas despesas
geradas (SILVA, 2007).
Superadas tais peculiaridades conceituais, vislumbra-se que tal instituto, de modo
diverso ao recorrente propósito meramente arrecadatório, apresenta papel capital no
desenvolvimento da atividade estatal e da sociedade. Tendo como fundamento o estímulo ou
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

a inibição de comportamentos, a extrafiscalidade revela-se como componente essencial na


promoção da equidade na atividade arrecadatória estatal, fomentando, portanto, o
desenvolvimento social e o bem estar coletivo.
Neste diapasão, conclui-se que o processo de inovação da atuação estatal
propugnado pela Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988),
especialmente no que tange à extrafiscalidade tributária, corresponde, dessa forma, a um
mecanismo de fomento do desenvolvimento social e do bem estar coletivo, o que pode ser
constatado em diversas facetas jurídicas.
A importância deste conceito para a contemporaneidade foi observada por Silva
(2007), o qual defendeu que o valor finalístico da extrafiscalidade incute na lei tributária, de
forma que se atenda às necessidades da economia, mas que se observe, de forma equânime, à
correção das anomalias sociais indesejadas ou mesmo o fomento de certas atividades que
consagrem os valores constitucionais.
De fato, a relevância da discussão atual quanto a tal aspecto fiscal se alicerça na
promoção de direitos preponderantemente coletivos, de forma a conferir um patamar mínimo
de cidadania aos indivíduos por meio da tutela do interesse público. Hodiernamente, esse
conceito se consubstancia, conforme JUSTEN FILHO (2014), na promoção dos valores
constitucionais.
Nessa esteira, Regina Helena Costa sustenta a importância da função supracitada ao
caracterizá-la como consistente “[...] no emprego de instrumentos tributários para o
atingimento de finalidades não arrecadatórias, mas, sim, incentivadoras ou inibitórias de
comportamentos, com vista à realização de outros valores, constitucionalmente contemplados
(2009, p. 48)”.
Verifica-se, desse modo, que o seu desenvolvimento legislativo encontra apoio não
somente na necessidade de modernização da atividade administrativa estatal, mas também no
ideal imperativo das sociedades modernas pela efetivação de direitos fundamentais,
notadamente, neste caso, os direitos relativos ao contribuinte.
Neste contexto, a extrafiscalidade tributária torna-se elemento indispensável à noção
de Tributação Justa tão cara ao Estado de Direito. Realçando a perspectiva democrática
atualmente em vigor, o conceito analisado traduz-se na composição de um conjunto de
princípios e institutos que tem como escopo a defesa do cidadão em face da insaciedade do
Estado por aumentar suas arrecadações.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

De fato, em meio a um extenso rol de garantias constitucionais erigidas pela


Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), o conceito de
Tributação Justa consolida verdadeiro instrumento de exercício da cidadania, uma vez que,
em uma sociedade fundada em alicerces democráticos, não se tolera mais o emprego do
dinheiro público de forma irresponsável, ineficiente e não transparente (MELLO, 2013).
A Tributação Justa abarca, portanto, à adoção da lógica extrafiscal pelos poderes
Legislativo e Executivo, de modo a se contemplar as necessidades de caráter público e os
parâmetros constitucionais (MELLO, 2013).
Dentre os objetivos a serem tutelados pelo instituto na atualidade, a preocupação
com a proteção ambiental adquire status superior no ordenamento jurídico nacional. De fato,
o instituto tributário em análise tem correspondido a uma ferramenta indispensável na busca
de uma gestão ambiental mais eficiente.
Alçado à categoria de direito fundamental pelo constituinte de 1988, o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado corresponde, contemporaneamente, a uma
necessidade social de caráter imperativo, estando consagrado no artigo 225 da Constituição
Republicana Federativa (BRASIL, 1988). Em sua redação, fundamenta-se a tutela ecológica
como um dever para com as atuais e as futuras gerações, sendo objeto, portanto, não somente
da responsabilidade do Estado, mas também de todos os indivíduos.
A relevância da discussão quanto à proteção ambiental tem fundamento segundo
SILVA (2014), por tal direito apresentar caráter instrumental em relação ao próprio direito à
vida. Constata-se, assim, que sua relevância se dá em razão de corresponder a matéria que, se
não devidamente observada e tratada, pode conduzir à amplificação do seu potencial
catastrófico.
Em tom alarmista com relação aos riscos que as mudanças climáticas têm suscitado,
tendo em vista a crescente intervenção humana na natureza de forma invasiva e destruidora,
BECK (1986) também pondera quanto à necessidade de se repensar a vida humana em face
das transformações climáticas e ambientais atualmente experimentadas.
Partindo do conceito de sociedade de risco, vislumbra-se a existência de uma
coletividade que passa a conviver com um conjunto ilimitado de dificuldades e,
principalmente, instabilidades capazes de comprometer ou até mesmo anular os possíveis
efeitos benéficos advindos do desenvolvimento tecnológico e científico (BECK, 1986).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Com efeito, diante de episódios de devastação ambiental de repercussão global, o


conceito supracitado tem indicado uma série de riscos de proporção sem precedentes com
potencial de ameaçar a própria sobrevivência humana. Tais efeitos podem ser ainda mais
danosos quando se tem em perspectiva o seu alcance à população mais pobre, geralmente
vulnerável e desassistida do aparato estatal (BECK, 1986).
Embora a extrafiscalidade tributária e a temática ambiental sejam elementos
aparentemente distantes, a sua associação pode contribuir significativamente para a sociedade
contemporânea. Neste sentido, a presente reflexão tem como escopo a adoção de incentivos
fiscais de forma a contribuir com o meio ambiente e, em contrapartida, reduzir a carga
tributária tão custosa ao cidadão, concretizando, portanto, o direito à Tributação Justa.
Pretende-se com este artigo sugerir ao Poder Público medidas que permitam o
aproveitamento do lixo de maneira planejada. Para tanto, propõe-se que o mecanismo da
extrafiscalidade, mediante nova regulação legal, seja aplicado de forma a conceder a redução
ou, até mesmo, a isenção das taxas referentes à coleta de resíduos sólidos às residências e aos
estabelecimentos comerciais que promoverem a coleta seletiva do seu lixo, destinando o
mesmo ao sistema local de reciclagem.
Para atingir tal intento, investigar-se-á a natureza jurídica da taxa de resíduos sólidos
comparativamente ao conceito de tributo insculpido na Constituição Federal (BRASIL, 1988)
e, posteriormente, analisar-se-á a proeminência do debate da proteção ambiental e da
utilização de ferramentas fiscais na promoção do equilíbrio ecológico. Por fim, propõem-se
medidas vinculadas ao tratamento do lixo urbano aos munícipes.

2. TRIBUTOS E TAXA DE COLETA DE RESÍDUOS SÓLIDOS

Segundo Hugo de Brito Machado (2016), o homem precisou de uma entidade com
força superior, com poder suficiente para definir regras de conduta, para construir o direito
positivo. Diante de tal necessidade, nasceu o Estado e a consequente necessidade de realizar
planejamentos por meio da atividade financeira.
No Brasil, a já elevada carga tributária tem crescido substancialmente nos últimos
anos, muito embora nem sempre o cidadão tenha as devidas contrapartidas do Estado em
investimentos sociais. Torna-se evidente, desse modo, que a forte atividade arrecadatória
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estatal nem sempre se reverte em serviço público de qualidade e capaz de atender a toda a
população.
Para se compreender as incongruências da realidade brasileira, devem-se investigar,
assim, as noções fundamentais pertinentes ao modelo tributário nacional.
Partindo do conceito previsto no artigo 3º do Código Tributário Nacional, “tributo
corresponde a toda prestação pecuniária compulsória, expressa em moeda ou em meio que
nela possa exprimir, que não constitua ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante
atividade administrativa plenamente vinculada” (BRASIL, 1966).
Tal definição se mostra extremamente útil ao presente estudo. Consubstanciado em
operação estatal plenamente vinculada, isto é, conduta eminentemente obrigatória, vislumbra-
se que a lei não concede margem de discricionariedade para o não cumprimento da obrigação
exacional. Logo, está-se diante do princípio da legalidade, um dos principais, senão o mais
importante, princípio em matéria tributária.
Fundado na imperatividade da norma jurídica, tal mandamento está previsto no
inciso II do artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Em matéria fiscal, seu
parâmetro de atuação não se limita exclusivamente ao reconhecimento do pacto social em que
todos se constituem como indivíduos sujeitos ao mesmo tratamento perante a lei, assumindo,
assim, contornos peculiares.
Tal conceito consolida, em suma, autêntico instrumento protetivo em face do poder
de polícia estatal, visto que limita a sua atuação à cobrança daqueles tributos previstos em lei
e, principalmente, dado o caráter hierárquico do ordenamento jurídico nacional, à
Constituição Federal (BRASIL, 1988), que, por sua vez, exerce verdadeiro controle sobre o
plano normativo nacional, visto que encerra os valores mais caros à sociedade.
Sendo a legalidade responsável por definir as espécies tributárias consideradas
admissíveis pelo pacto social e jurídico em vigor, seu fundamento consta na Constituição
Republicana federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), sendo a classificação fiscal a ser
observada pelo legislador ordinário em todas as esferas federativas.
Tendo em vista a materialização do Estado num pacto federativo indissolúvel,
conforme o caput do artigo 1º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), o legislador
constituinte distribuiu as receitas tributárias em competências, havendo, portanto, tributos
exclusivamente devidos à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No que concerne às diversas modalidades fiscais existentes, outra classificação


avulta no ordenamento jurídico. Embora parte significativa da doutrina tenha reconhecido a
existência de apenas duas ou três espécies tributárias, impostos e taxas para Geraldo Ataliba, e
além das duas primeiras espécies exacionais a contribuição de melhoria para Sacha Calmon
Navarro Coelho, Paulo de Barros Carvalho e Roque Antônio Carrazza, a Constituição Federal
concebeu a existência de exatamente cinco categorias distintas, acrescendo às classificações
anteriores os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais (LUCK, s.d.).
Nesta perspectiva, cumpre ressaltar que o modelo pentapartite adveio da premência
em se acrescentar outras características aos tributos para além do caráter vinculativo (ou não)
que distingue impostos e taxas. Destarte, tornaram-se presentes também os critérios da
destinação do produto da arrecadação, atribuído às contribuições de um modo geral, e da
possibilidade de devolução do tributo que foi pago, parâmetro empregado para discriminar os
empréstimos compulsórios.
O Supremo Tribunal Federal, neste sentido, já consolidou a teoria pentapartite no
sentido de que os empréstimos compulsórios são espécies tributárias autônomas, ostentando
natureza jurídica própria que as diferenciam das demais espécies tributárias (LUCK, s.d).
Em síntese, os impostos, conforme o artigo 16 do Código Tributário Nacional
(BRASIL, 1966), são tributos cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente
de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte. Nota-se, assim, que a espécie
em análise tem como intrínseca a ideia da não vinculação (MACHADO, 2016).
As contribuições de melhoria, por sua vez, são tributos vinculados que têm como
fato gerador a realização de obra pública da qual decorra uma valorização imobiliária do
imóvel do proprietário. Estão previstas nos artigo 145, inciso II, e 81, respectivamente, da
Constituição Federal (BRASIL, 1988) e do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966).
Já os empréstimos compulsórios, previstos nos artigos 148 e 15, respectivamente, da
Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988) e do CTN
(BRASIL, 1966), têm como pressupostos o atendimento de despesas extraordinárias,
decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência e o investimento
público de caráter urgente e de relevante interesse nacional.
Estando definidas no artigo 149 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), as
contribuições sociais são caracterizadas, essencialmente, por sua destinação. Em suma, são
utilizadas para o financiamento da atuação estatal em segmento específico, seja social ou
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

econômico. Em regra, são de competência tributária exclusiva da União, salvaguardadas a


contribuição esculpida no art. 149-A da Constituição Federal (BRASIL, 1988), conhecida
como contribuição para o Custeio de Serviço de Iluminação Pública (COSIP), e aquela
prevista no art. 149, §1º do mesmo preceito normativo, o qual faz alusão às contribuições
sociais de custeio do regime previdenciário dos servidores públicos dos distintos Entes
federativos.
Especificamente no que concerne à taxa, tributo que merece considerável destaque
no presente artigo, tal espécie tributária, de competência comum dos Entes da Federação, tem
como fato gerador uma atividade estatal uti singuli, isto é, intrínseca ao contribuinte. Neste
diapasão, o art. 145, II da Constituição (BRASIL, 1988), assim como o art. 77 do CTN
(BRASIL, 1966), constam de expressa previsão normativa da taxa, a qual pode ter como fato
gerador o exercício regular do poder de polícia ou a prestação de serviço público específico
ou divisível, ou a colocação deste à disposição do contribuinte. Os serviços são específicos e
divisíveis se possível a mensuração da utilização de seus usuários, tendo, como exemplo, a
taxa para a obtenção de passaporte.
No mesmo sentido, Yoshiaki Ichihara afirma que o conceito de taxa “[...] tem como
característica, na materialidade de ser fato gerador a atuação estatal diretamente referida de
seu contribuinte, em forma de contraprestação de serviço” (ICHIHARA, 2009, p.84).
Resta claro do texto da Constituição Federal (BRASIL, 1988) que a atividade estatal
específica relativa ao contribuinte pode ser de duas espécies: exercício regular do poder de
polícia ou prestação de serviços ou colocação destes à disposição do contribuinte.
Quanto à taxa relativa aos serviços, vislumbra-se imediatamente o caráter
contraprestacional da mesma, seja pelo cumprimento efetivo do serviço ou pela simples
disponibilidade de prestação deste ao contribuinte, nos termos do artigo 79 do Código
Tributário Nacional (BRASIL, 1966). A competência legislativa para a instituição de taxas é
limitada aos entes da Federação e às suas autarquias. Repisa-se a especificidade e a
divisibilidade da natureza do serviço público para que a espécie tributária seja cobrada.
Ao revés, no que tange à taxa de poder de polícia, cabe salientar a disposição do art.
78 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966). Segundo MACHADO (2016), poder de
polícia é poder de Estado, a fim de defender o interesse público. Considerando que cada
pessoa, individualmente, tem interesse na preservação do bem estar geral, tem-se a espécie de
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

taxa relativa ao poder de polícia, abrangendo diversas searas em sua incidência, tais como
taxa de licença para publicidade ou, ainda, taxa de licença para construções.
Salienta-se que ambas as espécies de taxa podem desempenhar função extrafiscal,
sobretudo em relação ao meio ambiente, ainda que a doutrina não seja unânime acerca desta
compreensão. Embora a função precípua seja a arrecadatória, é possível estimular ou inibir
condutas que refletem no seio social. Aliás, DOMINGUES (2007) afirma que a taxa admite
extrafiscalidade, desde que se dimensionem o volume e o custo do serviço para à cobrança
desta.
Sob tal égide, destaca-se que, especialmente no que concerne à taxa relativa aos
serviços públicos, a extrafiscalidade se mostra mais eficaz, uma vez ser possível a análise da
proporcionalidade entre serviço e conduta de um contribuinte determinado.
Neste diapasão, no próximo capítulo, discute-se a extrafiscalidade da taxa de coleta
de resíduos sólidos, conhecida como taxa de coleta de lixo. Em face do frequente debate
acerca da produção de resíduos, analisa-se como políticas públicas tributárias podem ser um
importante alicerce na preservação ambiental, inclusive, quando se trata da questão do lixo,
um dos grandes problemas da sociedade atual.

3. A EXTRAFISCALIDADE DA TAXA DE RESÍDUOS SÓLIDOS

A taxa de coleta de resíduos sólidos é devida por proprietários de imóveis edificados


beneficiados por coleta domiciliar de lixo. Tal exação não incide sobre lotes vazios, vagas de
garagem constituídas em imóveis autônomos e barracões, considerando que, nos dois últimos,
correspondam somente ao único tipo construtivo do lote.
Consoante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, considera-se legal e
constitucional a cobrança da taxa de coleta de resíduos sólidos urbanos, atendendo-se os
critérios da especificidade e da divisibilidade. Portanto, deve prevalecer sua cobrança, nos
termos da súmula vinculante do STF nº 19, “A taxa cobrada exclusivamente em razão dos
serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos
provenientes de imóveis não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal.” (BRASIL,
2009).
Nesse sentido, para instituí-la, os Municípios devem colocar o serviço de coleta de
lixo à disposição dos usuários. Porém, inúmeros entes municipais brasileiros utilizam da base
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de cálculo do imposto predial e territorial urbano (IPTU) a fim de apurar o valor a ser cobrado
por esta taxa. De fato, a base de cálculo, a rigor, tem como fundamento a metragem e a
localização dos imóveis urbanos para sua cobrança.
Nessa esteira, o Supremo Tribunal de Federal (BRASIL, 2008) reconheceu a
constitucionalidade da apuração do montante devido a termos de tal taxa, desde que não se
verifique identidade integral entre a base de cálculo desta taxa com o referido imposto
municipal, conforme entendimento consolidado no RE 576321, com julgamento em 13 de
fevereiro de 2009, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski.
Demonstra-se uma celeuma de cunho social, visto que se discute como tais
requisitos para a apuração da base de cálculo podem se adequar à noção de serviço público
divisível (uti singuli) atribuível à taxa de coleta de resíduos sólidos. Muito embora o escopo
normativo seja aquele de individualização do contribuinte, resta evidente que o
funcionamento deste instituto não particulariza o cidadão em si, uma vez que a análise da
especificidade é o próprio imóvel. Porém, nota-se que não é possível investigar a produção de
lixo de cada contribuinte apenas com fulcro em aspectos puramente objetivos do imóvel
urbano.
A discussão ainda se torna mais acirrada quando se consideram as políticas
ambientais e a extrafiscalidade. Sob a égide do Estado Democrático de Direito, em que a
atividade arrecadatória não tem viés estritamente econômico, vislumbra-se o aspecto
paradoxal deste tipo de taxa. Embora o ordenamento jurídico promova tributos que zelam
pela promoção dos direitos fundamentais, ainda são vigentes tributos totalmente
desvinculados dos serviços que são devidos em contraprestação.
Conquanto a intenção que permeia a taxa da coleta de resíduos sólidos seja a
disponibilização de um serviço público essencial que permita a higidez urbana, demonstra-se
que o cálculo deste tributo deveria ter cunho particularizado. Não é razoável que a cobrança
seja generalizada, desprezando as especificidades de cada contribuinte, sobretudo, em um
Estado que promova políticas públicas ambientais, consoante o preceito fixado no art. 225 da
Constituição Federal (BRASIL, 1988).
A cobrança tributária deve atender, portanto, aos critérios da extrafiscalidade, sob
pena de institucionalizar, mais uma vez, uma sociedade segregada dos valores constitucionais.
A coletividade deve participar, portanto, da busca por um meio ambiente ecologicamente
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

equilibrado, sendo esta taxa um meio primordial de estimular comportamentos benéficos


quanto à coleta de lixo.
Vale ressaltar que a cobrança genérica afasta, até mesmo, a natureza uti singuli desta
espécie tributária, haja vista que a natureza da taxa, em si, exige serviços públicos específicos
e individualizados. Sem dúvidas, a particularização deve atender a critérios que permitam sua
consolidação, sobretudo, em cidades de grande porte. Não se poder permitir é a manutenção
de taxas genéricas desvinculadas da integralidade do cunho social.
Reflete-se, portanto, acerca da adoção de incentivos fiscais de forma a contribuir
com o meio ambiente e, em contrapartida, reduzir a carga tributária tão custosa ao cidadão.
Para tanto, debate-se acerca da possibilidade de redução das taxas referentes à coleta de
resíduos sólidos às residências que produzirem menos lixo ou, ainda, promoverem a coleta
seletiva do seu lixo, destinando o mesmo ao sistema local de reciclagem, por exemplo.
Neste sentido, destaca-se o principal sistema de cobrança desta taxa nos países da
Comunidade Europeia, conhecido como PAYT (pay-as-you-throw), termo que significa
“pague pelo que se descarta”. Em face das particularidades de cada Município, a base de
cálculo da referida taxa ocorre em função do volume ou do peso dos volumes descartados,
tendo como fundamento a análise do custo da coleta, bem como a destinação final dos
resíduos (CEARÁ, 2014).
Nos Estados Unidos da América, cidades que dispõem do sistema PAYT utilizam
três principais tipos de coleta: sacos com identificação, latões de tamanhos variados ou um
sistema que utilize ambas as modalidades. Os Municípios americanos que adotam tal sistema
obtiveram um decréscimo de 16% (dezesseis por cento) a 17% (dezessete por cento) na
produção de resíduos e um aumento de 5% (cinco por cento) na reciclagem (CEARÁ, 2014).
Neste diapasão, nota-se que a cobrança da taxa da coleta de resíduos sólidos na
maioria dos Municípios nacionais é desvinculada da participação do contribuinte no que tange
à produção de lixo, postura esta não consentânea com aquela dos países que buscam a
melhoria da qualidade ambiental.
Assim, devem ser considerados critérios específicos em relação a cada Município, o
que deverá ser observado em estudos técnicos específicos sobre a temática. Todavia, nota-se
que parâmetros tais como quantidade de moradores em cada domicílio, quantidade de lixo
produzido, número de habitantes da região e custo do serviço de coleta são alguns daqueles
que devem ser necessariamente considerados em qualquer análise, a fim de investigar a
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

possibilidade de isenção parcial ou total desta espécie tributária. A ideia é que seja
desenvolvido no Brasil um sistema similar ao PAYT, já que tal concepção é pautada na
extrafiscalidade e na efetividade da tributação.
A gestão fiscal promovida pelo Poder Público passa a ter o condão de promover
profundas alterações na coletividade. Nota-se que contemplar comportamentos sociais de
modo a se obter incentivos tributários pode produzir consequências positivas em curto prazo.
Conclui-se que a adoção de políticas públicas em matéria ambiental tributária
corresponde a um instrumento essencial à gestão planejada da Administração Pública para,
principalmente, concretizar os direitos fundamentais.

CONCLUSÕES

Este artigo tratou do desenvolvimento da tributação nacional, intrínseca


originalmente à condição do Brasil como colônia portuguesa. Com fulcro em um viés
histórico, ressaltando-se que a grande ruptura no modelo de arrecadação no país ocorreu com
o advento da Constituição Federal de 1988.
Com escopo de promover os direitos fundamentais, considerou-se também a
extrafiscalidade como viés da gestão fiscal, sob a égide da Tributação Justa. Através desta
função, certos comportamentos sociais são incentivados, ao passo que outros são inibidos,
fomentando condutas em conformidade com os valores consagrados na Constituição
Republicana Federativa do Brasil de 1988.
No que concerne à taxa de coleta de resíduos sólidos, foram verificados critérios
genéricos para apuração do montante devido a este título. Foram, também, destacados
requisitos particulares quando na apuração do quantum devido em face de cada contribuinte,
como forma de se estimular a proteção ambiental.
Apontou-se o sistema PAYT, desenvolvido por países da Comunidade Europeia e
pelos Estados Unidos, como um dos modelos que poderia ser adotado pelos Municípios
brasileiros a fim de adequar a base de cálculo das taxas de coleta de resíduos sólidos com a
participação de cada contribuinte no que concerne à produção e à destinação de lixo,
culminando em isenções parciais para aqueles que atendam os níveis almejados pelos entes
munícipes de cada região do país.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Portanto, a tutela ambiental necessita da participação de toda coletividade para


buscar a plena efetividade. Assim, a adoção políticas públicas deve ser cumulada com
incentivos à população, já que a gestão do espaço público, para ser eficiente, exige a
participação da sociedade em sua integralidade com o objetivo de promover os direitos
fundamentais.

REFERÊNCIAS

BARROS, Fernanda Monteleone. A evolução das obrigações tributárias nas constituições brasileiras e os reflexos
no atual regime tributário de energia elétrica. Disponível em
<http://dspace.idp.edu.br:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/243/Monografia_Fernanda%20Monteleone
%20Barros.pdf?sequence=1>. Acesso em 28 set. 2017.

BEVILACQUA, Karen Afonso. A extrafiscalidade como mecanismo de políticas públicas ambientais. Disponível
em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4664965ba7a274df>. Acesso em 28 set. 2017.

BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Disponível em


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172.htm> . Acesso em 28 set. 2017.

_______. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 19 set. 2017.

_______. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. Tributário. Contribuições sociais. Contribuições incidentes
sobre o lucro das pessoas jurídicas. Lei nº 7.689, de 15.12.88. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=208091>. Acesso em 29 set. 2017.

_______. Supremo Tribunal Federal Recurso Extraordinário n. 576.321-8 SP. Município de Campinas e Helenice
Bérgamo de Freitas Leitão. Relator Ricardo Lewandowski. Acórdão, 4 dez. 2008. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=576025>. Acesso em 28 set. 2017.

CEARÁ. Mecanismos de cobrança dos serviços de limpeza pública e manejo de resíduos sólidos. Disponível em
<http://www.sema.ce.gov.br/attachments/article/44259/Caderno%20Temático%20Mecanismos%20de%20Cob
rança%20.pdf>. Acesso em 28 set. 2017.

COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo:
Saraiva, 2009.

DOMINGUES, José Marcos de Oliveira. Direito Tributário e Meio Ambiente. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007.

FERREIRA, Rodrigo. Tributos: Origem e evolução. Disponível em:


<https://rfersantos.jusbrasil.com.br/artigos/222353175/tributos-origem-e-evolucao>. Acesso em: 19 set. 2017.

GUERRA, Sidney; GUERRA, Sérgio. Curso de Direito Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

LIMA, Sophia Nóbrega Câmara. A extrafiscalidade à luz do sistema constitucional brasileiro. Disponível em:
<http://boletimcientifico.escola.mpu.mp.br/boletins/boletim-n-39-julho-dezembro-de-2012/a-extrafiscalidade-a-
luz-do-sistema-constitucional-brasileiro/at_download/file>. Acesso em: 19 set. 2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

LUCK, Alan Saldanha. A classificação dos tributos e as teorias bipartite, tripartite, quadripartite e pentapartite.
Disponível em <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6705>. Acesso em: 28 set.2017.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

MELLO, Elizabete Rosa de. Direito Fundamental a uma Tributação Justa. São Paulo: Atlas, 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Bonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.

PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos federais, estaduais e municipais - 8. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

SILVA, Daniel Cavalcanti. A finalidade extrafiscal do tributo e as políticas públicas no Brasil. Disponível em:
<https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/prisma/article/viewFile/218/219>. Acesso em: 23 set. 2017.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

TORRES, Ricardo Lobo. O Conceito Constitucional de Tributo. In: TORRES, Heleno (Coord.). Teoria Geral da
Obrigação Tributária. Estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros,
2005.
A FUNÇÃO EXTRAFISCAL
DO IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS
COM A FINALIDADE DE REDUZIR A TRIBUTAÇÃO
DE VEÍCULOS ELÉTRICOS NO BRASIL

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós-graduação de Direitos Humanos e Inovação da UFJF
SENRA, Matheus Veloso Bastos
Graduado em Direito pela UFJF

RESUMO

Analisa-se a função extrafiscal do imposto sobre produtos industrializados (IPI) e a aplicação de sua
redução no que concerne aos veículos elétricos. Pretende-se inicialmente tratar do conceito de veículos
elétricos, depois realizar uma análise dos diversos benefícios fiscais vigentes na legislação pátria e de
outros países, além de abordar o IPI levando em consideração a aplicação de suas funções à redução
tributária. Demonstrar-se-á a importância das medidas propostas neste estudo para redução dos danos
ao meio ambiente, além da efetivação de princípios do Direito Tributário em prol da sociedade. O
marco teórico será o pós-positivismo jurídico, em razão do status normativo dado aos princípios
consagrados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Por fim, a metodologia
utilizada é a de revisão bibliográfica além de crítico-dialética, por conter considerações acerca da
aplicação da função extrafiscal do IPI.

Palavras-chave. Imposto sobre produtos industrializados. Veículo elétrico. Meio ambiente.

ABSTRACT

The extrafiscal function of the tax on industrialized products (IPI) is analyzed and its application on
tributary reduction regarding electric vehicles. It is intended initially to deal with the addressing
concept of electric vehicles, perform an analysis of the many tax benefits in force under national law
and other states of law, in addition to address the IPI taking into account the application of its
functions regarding tax reduction. The importance of measures proposed in this article will be shown
regarding the reduction of environmental damage, as well as the effectiveness of Tax Law principles in
favor of social welfare. The theoretical framework will be legal post positivism, due to the normative
status given to legal principles set out in the Brazilian Constitution of 1988. Finally, the methodology
used is bibliographical revision, besides being critical and dialectical, as it contains considerations
about the application of the extrafiscal function of the IPI.

Keywords. Tax over industrialized products. Electric Vehicle. Environment.

97
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A consciência ambiental e o desenvolvimento sustentável são assuntos sempre


pertinentes no mundo de hoje. E, nesse cerne, cada vez mais a indústria automobilística tem
avançado no desenvolvimento de tecnologias limpas, pois os automóveis estão entre os
principais causadores de emissões de gases poluentes que provocam desequilíbrio no meio
ambiente.
No âmbito tributário, no que concerne ao meio ambiente, existe a base
principiológica, reforçada pela doutrina, de que a nocividade de um produto dá ensejo à
aplicação de alíquotas maiores em cobrança de impostos. Isto significa tratar do princípio da
seletividade, que norteia a aplicação do imposto sobre produtos industrializados no
ordenamento brasileiro e, pode ser usado como ponto de partida para a concessão de
benefícios fiscais à produtos amigáveis ao meio ambiente.
Ainda, o IPI é um imposto dotado de função extrafiscal, ou seja, não é apenas um
meio arrecadatório de tributos, mas também um instrumento que pode ser utilizado pelo fisco
na aplicação de políticas econômicas, sociais e ambientais no Brasil.
Pela análise das atuais formas de cobrança do IPI, revela-se que os veículos
elétricos, que são dotados de tecnologia limpa, com menor emissão de poluentes e maior
eficiência energética, estão sujeitos às mesmas alíquotas de veículos nocivos ao meio
ambiente, o que onera os seus fabricantes, além de estabelecer obstáculo na sua aceitação no
mercado de automóveis do Brasil.
Será utilizado como marco teórico o pós-positivismo jurídico, por ser essa a corrente
de pensamento que permite a adoção de princípios do Direito como força normativa. Isso
ocorre em razão, sobretudo, de o presente artigo utilizar como tema central os princípios da
seletividade e da essencialidade, inerentes à função extrafiscal do IPI.
Utilizar-se-á como metodologia a revisão bibliográfica, crítico-dialética,
considerações doutrinárias, bem como crítica da forma como o fisco atualmente tributa os
veículos elétricos, expondo-se especificamente os casos de ocorrência no ordenamento
jurídico brasileiro, comparados a previsões legais de outros países.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. CONCEITO DE VEÍCULOS ELÉTRICOS E MEIO AMBIENTE

Hodiernamente, a preocupação com as mudanças climáticas do planeta é um dos


principais temas em pauta. Assim, os veículos automotores são grandes adversários dos
ambientalistas, em decorrência de serem um dos principais responsáveis pela queima de
combustíveis fósseis, os quais agridem o meio ambiente. Em contrapartida, percebe-se que a
indústria automobilística tem imprimido esforços para criar automóveis cada vez menos
poluentes, sobretudo com tecnologia híbrida e movidos a motores elétricos.
Nessa esteira, muitos países têm criado maneiras de tornar vantajosa a compra dos
veículos elétricos (VEs), haja vista possuírem uma maior eficiência energética, no que diz
respeito ao consumo de combustível (WITMANN, 2013).
O Instituto Nacional de Eficiência Energética (INEE) conceitua os veículos elétricos
(VEs) baseado na sua divisão em cinco categorias: os VEs movidos unicamente por baterias
recarregadas em tomadas elétricas; os VEs de tecnologia híbrida; os VEs de célula a
combustível; os VEs ligados diretamente à rede elétrica (trólebus) e os VEs de placas
fotovoltaicas.
Apesar da divisão supracitada, por serem mais comumente comercializados por
grandes montadoras de automóveis, este estudo se limitará a questionar a viabilidade da
redução tributária apenas no que toca aos VEs movidos à bateria, híbridos e de célula a
combustível(INEE).
Entende-se por VE o veículo que usa para seu deslocamento pelo menos um motor
elétrico, conforme classificação do INEE. Dessa maneira, conforme supramencionado, a
primeira categoria de VE, é o Veículo Elétrico a bateria, que é aquele movido unicamente por
baterias e possui um motor elétrico, que é recarregado na rede elétrica residencial ou outro
meio, e que se utiliza dessa energia para se movimentar. Quanto aos VEs híbridos, entende-se
que são aqueles que, além de um motor elétrico, contam também com um motor de
combustão interna (o motor comum inerente a maioria dos veículos automotores, movido a
gasolina, diesel ou outro combustível fóssil), que torna possível a recarga de suas baterias e
consequentemente o seu deslocamento. Os VEs híbridos utilizam-se separadamente ou
conjuntamente de seus motores, a depender da demanda do veículo por velocidade ou
eficiência. Quanto ao funcionamento de forma conjunta, o motor de combustão interna
designa o papel de um gerador de energia, fornecendo eletricidade para recarga das baterias
que propulsionam o veículo (IMBASCIATI, 2012). Já o VE de célula a combustível utiliza-se
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de um equipamento eletroquímico que torna possível produzir energia elétrica a partir de


reações com átomos de hidrogênio (conforme INEE). No que concerne aos VEs ligados à
rede, a sua energia é fornecida diretamente pela rede elétrica, como por exemplo os ônibus
elétricos da cidade de São Paulo (chamados de “trólebus”). Por fim, existem também os VEs
solares, que se utilizam da energia fornecida por placas fotovoltaicas, todavia sendo a sua
produção reduzida, devido à limitação do tamanho das placas que recebem energia solar
(INEE).
Os VEs foram concebidos como uma alternativa aos veículos comuns, aqueles
movidos por motores que emitem gases poluentes, com o objetivo de conter a poluição em
nível global, além de proporcionar ao seu consumidor maior eficiência no uso do
combustível. Nesse sentido, observa-se que os veículos elétricos movidos unicamente por
baterias, não emitem gases poluentes, tendo em vista que seu funcionamento é puramente
elétrico, não havendo qualquer queima de combustível fóssil. Por sua vez, os veículos
híbridos fazem uso de motor à combustão para recarregar suas baterias, funcionando de
maneira mais eficiente, reduzindo queimas de combustível nocivas ao meio ambiente. No que
concerne aos VEs de célula a combustível, apesar dos mesmos produzirem uma queima
gasosa para se propulsionar, a reação química que extrai energia do hidrogênio resulta apenas
em vapor d’água em seu escapamento (INEE), que não é nocivo ao meio ambiente.
Apesar da vantagem ambiental, os VEs apresentam custo para o consumidor final
significativamente maior comparados a um automóvel comum poluente. As pesquisas de
desenvolvimento de baterias, materiais para sua fabricação e emprego de tecnologia avançada
encarecem demasiadamente a cadeia de produção dos VEs (MINASPETRO, 2015).
Além de possuírem mais tecnologia, um dos principais benefícios trazidos pelo
aumento da frota de veículos elétricos é a redução da emissão de poluentes. A concentração
de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera vem aumentado, ano após ano, o que pode causar
a retenção de calor, que resulta no aumento da temperatura global, o que tem efeitos
catastróficos sobre ecossistemas e à vida humana (VONBUN, 2015).
Segundo dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o Brasil
emitiu 1.246.477 Gg de CO2 em 2010 (VONBUN, 2015). E ainda, em 2009, sendo signatário
do Acordo de Copenhague, o Brasil instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima
(PNMC), através da Lei nº 12.187/2009, definindo a meta de reduções de gases de efeito
estufa entre 36,1% e 38,9%.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A partir desses números, de acordo com dados do MCTI, em 2014 (ano mais
recente da pesquisa do Ministério), o setor de energia, que é composto pela queima de
combustíveis, seja por emissões fugitivas da indústria de petróleo ou a queima de
combustíveis fósseis pelos veículos, representa 37% nas participações de emissões de gases
estufa. Interessante destacar que o setor de energia é o que mais cresce, desde que a medição
da emissão de gases estufa se iniciou em 1990, quando o setor representava aproximadamente
14% das emissões totais (MCTI, 2014).
De acordo com a mesma fonte de dados, as emissões pela indústria petroleira
representam cerca de 4,5% do total das emissões do setor de energia, enquanto que o subsetor
de queima de combustíveis, composto pelos veículos leves e pesados de passeio e de
comércio, além de motocicletas e aeronaves representa aproximadamente 95,5% das
emissões do setor (SIRENE, 2015).
Assim, líder em emissão de poluentes, o setor de energia merece maior atenção,
tendo em vista a possibilidade de sua redução através do emprego de tecnologias cada vez
menos poluentes.
Em estimativa feita pela Confederação Nacional do Transporte, seria possível
reduzir em 10% o consumo de combustível no Brasil se essa frota fosse renovada com
veículos comuns, sendo possível uma maior redução se entre eles estivessem veículos
elétricos (FUNDEP, 2015).
Conclui-se que o aumento das vendas dos veículos elétricos poderia proporcionar
grande redução nos índices de emissão dos gases estufa, tendo em vista que hoje a frota
brasileira de automóveis é constituída quase unicamente por veículos com motores à
combustão interna. Existe grande espaço para desenvolvimento ambiental nesse cerne,
necessitando-se de uma aplicação efetiva da redução tributária na produção dos veículos
elétricos, com vistas a aumentar a sua presença na frota de automóveis, consequentemente,
reduzindo-se os danos ambientais.

2. BENEFÍCIOS FISCAIS VIGENTES PARA VEÍCULOS ELÉTRICOS NO


BRASIL E EM OUTROS PAÍSES

É relevante a análise das vantagens tributárias ligadas aos VEs no Brasil e em outros
países, sendo necessário, inicialmente, a definição de “benefício fiscal”, de acordo com a
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

doutrina pertinente ao assunto, bem como um estudo sobre os principais benefícios fiscais já
existentes em prol dos veículos elétricos.
O presente estudo utiliza-se do referencial teórico pós-positivista. Esse referencial
pauta-se na teoria de que os valores devem ser resgatados, aplicando-se princípios e regras,
em conjunto com direitos fundamentais. Aliam-se o Direito e a Ética, de modo que possa
interpretar-se a legislação da maneira mais atual possível, adequando-se o sistema jurídico ao
momento social pertinente (VERONESE, 2010).
Além disso, o prisma do pós-positivismo permite que seja realizada uma análise
além do texto legal para que sejam concedidos benefícios fiscais com vistas ao
desenvolvimento ambiental. Apesar de não existir na Constituição Federal de 1988 matéria
específica acerca de “benefícios fiscais ao meio ambiente”, utilizando-se do referencial
teórico do presente estudo, encontra-se uma interdisciplinaridade entre Direito e meio
ambiente, com a aplicação de princípios constitucionais, notadamente os ditames do Estado
Democrático de Direito, que se encontram consagrados nos artigos 1º e 3º do referido
dispositivo legal (VERONESE, 2010).
Independentemente de uma reanálise pós-positivista dos benefícios fiscais, estes já
se encontram previstos no ordenamento pátrio, notadamente na Constituição Federal de 1988,
onde, em seu artigo 150, §6º, prevê que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de
cálculo, entre outros, só poderá ser concedido através de lei específica, nos âmbitos Federal,
Estadual, Distrital ou Municipal (HARADA, 2011).
Cumpre salientar que existe previsão no artigo 23, inciso VI, da CRFB/88 a
competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para proteger o meio
ambiente e combater a poluição em qualquer das suas formas, sendo esse o objetivo principal
da concessão de benefícios fiscais aos veículos elétricos.

2.1 Benefícios fiscais aos veículos elétricos no Brasil

Uma das primeiras medidas, partindo de sete Estados brasileiros, é a isenção do


imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA) aos veículos movidos a motor
elétrico, segundo dados da Associação Brasileira dos Veículos Elétricos (ABVE).
Similarmente, outros três Estados têm alíquota diferenciada para esses veículos. A título de
exemplo, pode ser citado o Estado do Rio Grande do Sul, que, através do Decreto nº 32.144,
de 30 de dezembro de 1985, atualizado pelo Decreto nº 53.340, de 06 de dezembro de 2016,
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

dispõe em seu artigo 4º, inciso II, que os proprietários de veículos de força motriz elétrica
estão isentos do recolhimento do IPVA (RIO GRANDE DO SUL, 1985).
No caso do Estado de São Paulo, os VEs possuem o benefício de uma alíquota
diferenciada no recolhimento do IPVA. A Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de 2008, ao
tratar das alíquotas desse imposto, define em seu artigo 9º, inciso III, que os veículos que
utilizem exclusivamente álcool, gás natural veicular ou eletricidade, ainda que combinados,
estão sujeitos a alíquota de 3% do imposto, enquanto que a Lei, no mesmo artigo, em seu
inciso IV, define 4% a alíquota para os demais veículos automotores (SÃO PAULO, 2008).
Observa-se que, a alíquota diferenciada, em razão do combustível do veículo,
caracteriza a função extrafiscal do IPVA (ALMEIDA, 2012), tendo em vista que ao conceder
uma alíquota menor ao veículo que polui menos, o fisco incentiva o licenciamento dos
veículos elétricos. E, dessa maneira, quanto mais veículos elétricos forem licenciados, maior
será o benefício ambiental, efetivando-se a função extrafiscal do imposto.
Quanto a políticas do governo federal, merece destaque a diretoria do Banco
Nacional do Desenvolvimento (BNDES), que definiu juros menores para a aquisição de
ônibus movidos a motores elétricos, em margens de 1% ao ano e margem de 2,5% a.a. para
ônibus híbridos, enquanto que, nos demais casos, a margem padrão é de 3,5% a.a., de acordo
com dados da ABVE.
O que se infere é que através da redução de juros para ônibus elétricos e híbridos,
enquanto são mantidas taxas de juros mais altas aos ônibus movidos por motores de
combustão interna, incentiva-se o uso dos veículos que se utilizam da tecnologia limpa.
Nesse cerne, a Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX),
através de sua Resolução nº 97, de 26 de outubro de 2015, zerou a alíquota do Imposto de
Importação (II) para veículos movidos unicamente a eletricidade ou células de hidrogênio
(BRASIL, 2015), que anteriormente eram sujeitos à alíquota de 35% (BRASIL, 2011). Fica
evidenciada a vantagem em importação do VE, levando em conta apenas a benefício do
Imposto de Importação. Apesar da vantagem concedida pela CAMEX, sobre qualquer
veículo importado hoje no Brasil, ainda incidem diversos outros impostos, tais como do
imposto sobre produtos industrializados (IPI), imposto sobre circulação de mercadorias e
serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), programas de
integração social e de formação do patrimônio do Servidor público (PIS), contribuição para
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

financiamento da seguridade social (COFINS), assim que o veículo for licenciado em


território nacional.
Percebe-se que existem no Brasil diversas medidas que desoneram os veículos
elétricos, mas que são regionais, sendo aplicáveis apenas em alguns Estados da Federação.
Apesar de pequena participação do governo Federal, não se verifica a possível aplicação da
função extrafiscal do IPI, tendo em vista que as medidas ainda se revelam insuficientes para
tornar os veículos elétricos mais acessíveis ao consumidor final.

2.2 Incentivos fiscais (tax incentives) aos veículos elétricos existentes em outros países

De acordo com Elizabete Rosa de Mello, as expressões “benefício fiscal” e


“incentivo fiscal” devem ser vistas como de significado sinônimo, já que o resultado será o
mesmo, a desoneração fiscal ou renúncia de receitas (MELLO, 2014). E, nessa esteira,
intenta-se analisar alguns incentivos fiscais concedidos ao redor do mundo, notadamente na
União Europeia (UE) e nos Estados Unidos da América (EUA), regiões onde a venda de
veículos elétricos e híbridos alcançam grandes números.
Somente na UE, em 2015, havia mais de 1milhão de veículos elétricos nas estradas,
incluindo elétricos a bateria, híbridos, híbridos plug-in e de célula a combustível, segundo a
Agência Internacional de Energia (International Energy Agency). Enquanto nos EUA,
somente no ano de 2015 foram vendidos quase 500 mil veículos elétricos, de todas as
categorias, de acordo com dados do Departamento de Energia dos EUA (U.S. Department of
Energy).
Uma das razões do elevado número de vendas dos VEs na União Europeia são os
incentivos fiscais concedidos ao consumidor final, de acordo com as políticas tributárias de
cada país do continente. Segundo a Associação Europeia dos Fabricantes de Veículos
(ACEA), a adoção de medidas tributárias, com ênfase nos incentivos fiscais ajuda a criar um
mercado preparado para receber alta tecnologia, sendo de suma importância a interferência
governamental para tomar medidas iniciais que propiciem o desenvolvimento da indústria dos
veículos elétricos.
Assim sendo, Portugal, por exemplo, adota o incentivo de isentar os condutores de
veículos elétricos do chamado “Imposto Sobre Vehículos (ISV)” (PROCURADORIA
GERAL-DISTRITAL DE LISBOA, 2007), imposto que o governo Federal português cobra
sobre a propriedade de veículos, que tem o objetivo de financiar construção da infraestrutura
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

rodoviária do país europeu. Ainda, os veículos híbridos que tenham autonomia superior a 25
quilômetros usando somente a sua bateria, são sujeitos a somente 25% do imposto
supracitado, conforme dados da ACEA.
Já na Alemanha, veículos elétricos são isentos da taxa anual de circulação que o país
cobra, por um período de dez anos contados do licenciamento do automóvel. Ainda, a partir
de 2016, o governo alemão tem concedido bônus de 4 mil euros para veículos elétricos a
bateria e de 3 mil euros para híbridos plug-in, desde que não sejam modelos com valor venal
superior a 60 mil euros (REUTERS, 2016).
Destaca-se que em 19 países europeus as taxas aplicáveis a veículos automóveis são
baseadas nas emissões de dióxido de carbono (CO2), gás que contribui com o aumento das
temperaturas globais (dados do INEE). As taxas são gradativamente menores para veículos
que emitem menos dióxido de carbono (ACEA, 2017).
Assim como os países europeus, os Estados Unidos da América (EUA) também
adotam diversas medidas que visam desonerar o licenciamento e produção dos veículos
elétricos. Merece destaque a medida do ex-presidente estadunidense Barack Obama, que,
através de sua administração, concedeu 2.4 bilhões de dólares de incentivos fiscais para o
desenvolvimento de veículos elétricos e baterias (USA TODAY, 2010). A medida consistiu
em disponibilizar 1.5 bilhões de dólares para fabricantes de automóveis que fossem sediados
nos EUA, para que pudessem produzir baterias e componentes de alta eficiência. Ainda,
outros 500 milhões de dólares foram concedidos para a fabricação de motores elétricos e seus
componentes e 400 milhões de dólares investidos em infraestrutura para veículos elétricos,
com a instalação de diversos pontos de recarga, além de capacitação de técnicos para realizar
manutenção nesses automóveis, conforme dados da Iniciativa dos Carros da Califórnia, em
inglês: The California Cars Initiative.
Verifica-se que em diversos países europeus, além dos EUA, o veículo elétrico
encontra-se em constante aumento de vendas, sendo que o governo Federal de cada um
desses países adota medidas efetivas para conceder vantagens àqueles que pretendem comprar
um veículo elétrico. Como já explicitado, as medidas do governo de um país têm caráter
essencial na aceitação dos veículos elétricos, que necessitam da criação de um ambiente
tributário amigável, pelo menos inicialmente, à sua aquisição.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3. O IPI E SUA FUNÇÃO EXTRAFISCAL APLICADA AOS VEÍCULOS


ELÉTRICOS

O principal direcionamento do presente estudo é a relação das funções do imposto


sobre produtos industrializados, sobretudo no seu aspecto extrafiscal, com a concessão de
benefícios fiscais aos veículos elétricos. Dessa maneira, faz-se necessária a conceituação
desse imposto, formas de estabelecimento da alíquota, princípios e entendimento
jurisprudencial de sua aplicação.

3.1 Conceito de IPI

Atualmente, o Decreto nº 7212/10 regulamenta a cobrança, fiscalização, arrecadação


e administração do imposto sobre produtos industrializados (IPI).
O IPI é um imposto de competência exclusiva da União, que tem como fato gerador
a industrialização de produtos. Este imposto tem função fiscal, ou seja, tem efeito
arrecadatório, mas é consagrado como instrumento de controle da política econômica, em
razão sua função extrafiscal e de suas alíquotas poderem sofrer alteração pelo Poder
Executivo. Observa-se que com essa faculdade de alteração da alíquota, o fisco pode escolher
estrategicamente uma área de desenvolvimento econômico ou social para conceder alíquotas
menores ou maiores, revelando-se assim, a maneira pela qual o imposto dota a União de
grande controle na política econômica nacional.
Dessa maneira, o presente estudo propõe a aplicação da função extrafiscal do IPI, no
controle das emissões dos gases estufa, com o fito de desonerar a produção dos veículos
elétricos pela indústria, consequentemente, beneficiando o meio ambiente e materializando a
sua seletividade em detrimento dos produtos mais nocivos à saúde.

3.2 Fixação da alíquota do IPI

As alíquotas, devem ser dimensionadas de forma a gravar menos produtos


essenciais e mais os produtos supérfluos ou nocivos. As alíquotas do IPI são estabelecidas na
Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados, chamada de TIPI
(PAULSEN, 2015).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A TIPI identifica os produtos e atribui a eles suas respectivas alíquotas, de acordo


com o critério supramencionado. A tabela tem a faculdade de atribuir alíquota zero,
considerando a essencialidade do produto (PAULSEN, 2015).
No Capítulo 87 da TIPI de 2017, anexa ao Decreto 8950 de 2016, é tratada a matéria
pertinente aos veículos automotores. Verifica-se que o critério da tributação é o de
deslocamento volumétrico do motor do veículo, sendo que maior tributação incide sobre
veículos com motores capazes de maiores queimas de combustível fóssil. Ainda, da leitura da
TIPI, pode-se observar que as categorias de veículos são ordenadas através de seu código de
nomenclatura comum, que consiste em um sistema harmonizado de designação e de
codificação de mercadorias, chamado de “NCM”. Dessa maneira, além da ordenação pelo
“NCM”, os produtos são categorizados pela sua descrição e tipo, sendo prevista sua
respectiva alíquota do IPI, conforme a seguir:

NCM DESCRIÇÃO ALÍQUOTA (%)

Automóveis de passageiros e outros veículos automóveis


87.03
concebidos para transporte de pessoas [...].

8703.21.00 - De cilindrada não superior a 1.000 cm3 7

De cilindrada superior a 1.000 cm3, mas não superior a 1.500


8703.22 13
cm3

De cilindrada superior a 1.500 cm3, mas não superior a 3.000


8703.23
cm3

Com capacidade de transporte de pessoas sentadas inferior ou


8703.23.10 25
igual a seis, incluindo o motorista

Ex 01 - De cilindrada superior a 1.500 cm³, mas não superior a


13
2.000 cm³

8703.24 - De cilindrada superior a 3.000 cm3

Com capacidade de transporte de pessoas sentadas inferior ou


8703.24.10 25
igual a seis passageiros[...]

Tabela 1 – Alíquotas de IPI em relação a veículos movidos por motor à combustão.


Fonte: BRASIL. 2016.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Observada a tributação dos veículos que se movem por motor de combustão interna,
deve ser colacionada a parte pertinente aos veículos elétricos:

NCM DESCRIÇÃO ALÍQUOTA (%)


Outros veículos, equipados para propulsão, simultaneamente,
8703.40.00 com um motor de pistão alternativo de ignição por centelha 25
(faísca*) e um motor elétrico [...]

Ex 01 - De cilindrada não superior a 1.000 cm3 7

Ex 02 - De cilindrada superior a 1.000 cm3, mas não superior a


13
2.000 cm

- Outros veículos, equipados para propulsão, simultaneamente,


8703.50.00 com um motor de pistão de ignição por compressão (diesel ou 25
semidiesel) e um motor elétrico [...]

Outros veículos, equipados [...] suscetíveis de serem carregados


8703.60.00 25
por conexão a uma fonte externa de energia elétrica

Ex 01 - De cilindrada não superior a 1.000 cm3 7

Ex 02 - De cilindrada superior a 1.000 cm3, mas não superior a


13
2.000 cm3

Outros veículos, [...]suscetíveis de serem carregados por


8703.70.00 25
conexão a uma fonte externa de energia elétrica

Outros veículos, equipados unicamente com motor elétrico para


8703.80.00 25
propulsão

Tabela 2 – Alíquotas de IPI em relação aos veículos elétricos.


Fonte: BRASIL. 2016.

A partir dos dados das duas tabelas, observa-se que o legislador se utiliza de
metodologia antiga para estabelecer as alíquotas do IPI sobre os veículos. Infere-se que o
veículo elétrico, mesmo quando equipado unicamente por motor elétrico para propulsão, ou
seja, aquele que não tem qualquer emissão de gases poluentes, é sujeito à alíquota máxima
cabível aos veículos movidos por motores à combustão (25%).
As únicas alíquotas menores que 25% previstas na TIPI, são aos veículos híbridos
plug-in que, se equipados com motor à combustão de até 1000cm³ (conhecidos como 1.0) ou
de cilindrada superior a 1000cm³, mas não superior a 2000cm³, terão a mesma alíquota
cabível aos movidos unicamente por motores à combustão interna, respectivamente 7% e
13%. E, conforme já exposto no primeiro capítulo do presente estudo, nenhum dos veículos
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

atualmente à disposição do consumidor no Brasil enquadram-se nessa hipótese de menor


alíquota.
Assim, infere-se que os veículos elétricos, que necessitam de menos combustível
para funcionamento e isentam o meio ambiente de poluentes são sujeitos à mesma alíquota de
veículos com cilindrada superior a 3000cm³, a maior aplicável aos veículos de passageiros.

3.3 Função Extrafiscal do IPI e meio ambiente

A função extrafiscal do IPI, tem caráter de atenuar o princípio da legalidade


juntamente com a aplicação do princípio da seletividade inerente a esse tributo, o presente
estudo intenta aplicar esse conhecimento na desoneração da produção dos veículos elétricos.
Ainda, pretende-se a introdução e análise de medidas já efetivadas pelo poder
público, de redução de IPI utilizando-se de sua função extrafiscal e de seu princípio da
seletividade.
O meio ambiente atualmente tem sido um dos principais temas em pauta. Por essa
razão a aplicação da função extrafiscal do IPI também encontra fulcro nas melhorias
sustentáveis da sociedade. Ainda, de acordo com Elizabete Rosa de Mello, os benefícios
fiscais podem ser entendidos como instrumentos de educação e de proteção ao meio ambiente
(MELLO, 2014). Acredita-se que os benefícios devem agir como instrumento educativo, que
provoca no contribuinte o desejo de agir não somente em proveito próprio, mas também
baseado na coletividade (MELLO, 2014).
A concessão de benefícios fiscais como as isenções aos veículos elétricos, baseados
nos dados colacionados ao presente estudo revelam-se medidas de grande valor ao meio
ambiente, tendo em vista que o fisco não somente deixa de receber receita, mas incentiva o
desenvolvimento sustentável da nação.
Assim, a função extrafiscal do IPI revela-se como um instrumento adequado para o
Estado intervir na agenda ambiental do país, tendo em vista que o fisco pode se valer do seu
uso para gerenciamento de um determinado setor da economia, como já exposto
anteriormente.
Salienta Juliana Vieira de Araújo, que o direito à manutenção do meio ambiente,
através de seu equilíbrio ecológico, encontra previsão expressa no artigo 225, caput,
explicitando que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tendo em
vista que é bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida (ARAUJO, 2014).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O mesmo dispositivo, prevê em seu §1º que incumbe ao Poder Público tomar
medidas de preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais, além de promover
o manejo ecológico das espécies e ecossistemas.
Assim, com a exposição do tema, quanto maior for possível o número de veículos
que poluem menos, caso dos veículos elétricos, maior será o benefício ao meio ambiente.
Importante ser salientado, que o Poder Público possui a faculdade de alterar as alíquotas do
IPI que incidem sobre os veículos elétricos, com vistas de incentivar suas vendas.
Verifica-se a existência de previsão constitucional que impõe ao Poder Público o
dever de administração, educação e proteção do meio ambiente. Dessa maneira, a aplicação
da função extrafiscal do IPI e do princípio da seletividade poderiam ser objeto de uso para
efetivação dessa incumbência, na medida em que fossem aplicados benefícios fiscais com
objetivo de reduzir a incidência do imposto sobre os veículos elétricos.
É relevante lembrar que o Poder Executivo, em junho de 2008, reduziu o IPI dos
veículos automotores, zerando a alíquota para carros de até mil cilindradas, e reduzindo as
alíquotas para os demais, através do Decreto 6890/09 (TEIXEIRA, 2013).
O Governo tinha o objetivo de conter a crise econômica que assolou o mercado no
início de 2008. Assim, a intenção era de aquecer a economia e manter o Produto Interno
Bruto (PIB) em nível razoável, mantendo parte da receita tributária através da função fiscal do
IPI, tendo em vista que o benefício fiscal foi temporário (BRASIL, 2009).
À época, a indústria automobilística nacional enfrentava quedas de até 40% em sua
produção, gerando desemprego e diminuição do PIB. O Decreto 6890/09 provocou razoável
melhora nos índices econômicos, ainda em 2009, sendo que o Governo decidiu até postergar
a validade das isenções de IPI, em razão da venda de automóveis ter experimentado aumento
significante (TEIXEIRA, 2013).
O que se experimentou foi a aplicação da função extrafiscal do IPI, tendo em vista
que o fisco desejava aquecer a economia, através da concessão de isenção do imposto. Ainda,
observa-se a aplicação do princípio da seletividade, haja vista que segundo Ricardo Lodi
Ribeiro (RIBEIRO, 2013), o referido princípio, além de onerar os produtos nocivos ou
supérfluos e desonerar os essenciais, também pode ser usado como mecanismo que mensura a
capacidade contributiva dos tributos indiretos, considerando o poder aquisitivo do consumidor
final (RIBEIRO, 2013).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A aplicação da extrafiscalidade aqui tratada demonstra a possibilidade de que o fisco


tem de desonerar a tributação dos veículos elétricos. Atualmente, observa-se o
desenvolvimento da falta de sustentabilidade dos automóveis, além do descaso com a
preservação ambiental, razão pela qual cria-se a possibilidade da função extrafiscal do IPI ser
invocada como forma de auxílio ao meio ambiente, através da concessão de benefícios fiscais
ou alteração da alíquota do referido imposto aplicado aos veículos elétricos.

CONCLUSÃO

Restou demonstrado através do presente estudo a existência do problema na


tributação dos veículos elétricos. Provou-se, através da exibição de tabelas, além de inúmeros
artigos e notícias, que os veículos elétricos são sujeitos às mesmas alíquotas de incidência do
IPI comparado a outros veículos que não trazem os seus benefícios.
A presença dos veículos elétricos é primordial, em tempos que eficiência energética
e redução de poluentes é tema frequente. Ainda, comparando o Brasil a outros países que já
aceitaram o veículo elétrico, percebe-se o abismo existente entre as vendas no exterior e em
território nacional. Demonstrou-se que os governos de muitos países tratam o assunto
“veículo elétrico” com muita seriedade, motivo pelo qual concedem incentivos fiscais para
auxiliar na aceitação e multiplicação desses automóveis pelas ruas.
Além disso, foi esclarecido que o atual método de tributação dos veículos elétricos
tem por base critério antigo, considerando o deslocamento volumétrico de motores, sendo que
atualmente muitos dos carros híbridos enquadram-se em regimes de cobrança do IPI
destinados a tributar veículos verdadeiramente ineficientes energicamente.
O Poder Executivo Federal deverá provocar o Poder Legislativo, por meio de
proposta de lei, para que seja realizada a revisão da TIPI, com a desoneração do IPI aos
veículos elétricos, ou que, ao menos possam as alíquotas serem reduzidas, de forma a
incentivar o consumo desses veículos, prezando o desenvolvimento sustentável do Brasil, na
forma de benefícios fiscais.
Por fim, este artigo pretendeu sugerir que, através da analogia da redução do IPI, na
época da crise financeira, utilize o Poder Público sua função extrafiscal, pois a preservação
ambiental é medida necessária de ser efetivada.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Elizangela Santos de. Aspectos jurídicos do IPVA- imposto sobre a propriedade de veículos
automotores. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/aspectos-jur%C3%ADdicos-do-ipva-
imposto-sobre-propriedade-de-ve%C3%ADculos-automotores>. Acesso em: 13 jun. 2017.

ARAUJO, Juliana Vieira de. A tributação extrafiscal e o meio ambiente. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14437>. Acesso em: 15 jun. 2017.

Associação Brasileira dos Veículos Elétricos. Disponível em: <http://www.abve.org.br/diversos/15/legislacao>.


Acesso em: 12 jun. 2017.

Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores. Disponível em:


<http://www.anfavea.com.br/estatisticas.html>. Acesso em: 09 mai. 2017.

Association des Constructeurs Européens d'Automobiles. Overview of incentives for buying electric vehicles.
Disponível em: <http://www.acea.be/publications/article/overview-of-incentives-for-buying-electric-vehicles>.
Acesso em: 14 jun. 2017.

BRASIL. Decreto 6890 de 29 de junho de 2009. Disponível em: <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D6890.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.

_______. Decreto 8950 de 29 de dezembro de 2016. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8950.htm>. Acesso em: 17 jun. 2017.

_______. Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), Anexo I da Resolução 94 de 2011.


Disponível em:
<http://www.infoconsult.com.br/legislacao/resolucao_camex/2011/anexo_94/secaoXVII.htm#capitulo86>.
Acesso em: 09 mai. 2017.

_______. Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), Resolução 97 de 2015. Disponível


em: <http://www.camex.itamaraty.gov.br/component/content/article/62-resolucoes-da-camex/em-vigor/1564-
resolucao-n-97-de-26-de-outubro-de-2015>. Acesso em: 09 mai. 2017.

_______. Tabela de incidência do imposto sobre produtos industrializados (TIPI), anexa ao Decreto 8950 de 29 de
dezembro de 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2016/decreto/Anexo/AND8950.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017.

CARLI, Ana Alice de. MARTINS, Saadia Borba. Educação ambiental premissa inafastável ao desenvolvimento
econômico sustentável. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p.355.

Confederação Nacional do Transporte. Renovação de frota é fundamental para reduzir emissões de poluentes.
Disponível em: <http://www.cnt.org.br/Imprensa/noticia/renovacao-da-frota-e-fundamental-para-reduzir-
emissoes-de-poluents-cnt>. Acesso em: 14 jun. 2017.

Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (FUNDEP). Investimento em tecnologias para carros elétricos pode
reduzir emissões poluentes do Brasil. Disponível em: <http://www.fundep.ufmg.br/pagina/3218/investimento-
em-tecnologias-para-carros-ele-233-tricos-pode-reduzir-emisse-245-es-poluentes-do-brasil--diz-
pesquisador.aspx>. Acesso em: 13 jun. 2017.

HARADA, Kioshi. Incentivos fiscais. Limitações constitucionais e legais. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10645>. Acesso em: 05 jul. 2017.

IMBISCIATI, H. Estudo descritivo dos sistemas, subsistemas e componentes de veículos elétricos e híbridos.
Disponível em: < http://maua.br/files/monografias/estudo-descritivo-dos-sistemas-subsistemas-e-componentes-
de-veiculos-eletricos-e-hibridos.pdf>. Acesso em: 09 mai. 2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Instituto Nacional de Eficiência Energética (INEE). Sobre Veículos Elétricos. Disponível em:
<http://www.inee.org.br/veh_sobre.asp?Cat=veh>. Acesso em: 20 abr. 2017.

Internal Revenue Service (U.S.A.). Disponível em: <https://www.irs.com/articles/2016-federal-tax-rates-personal-


exemptions-and-standard-deductions>. Acesso em: 15 jun. 2017.

International Energy Agency. Global EV Outlook 2016. Disponível em:


<http://www.iea.org/publications/freepublications/publication/Global_EV_Outlook_2016.pdf>. Acesso em: 14
jun. 2017.

MELLO, Elizabete Rosa de. Os benefícios fiscais brasileiros como instrumentos de educação e de proteção do
meio ambiente. In: CARLI, Ana Alice de. MARTINS, Saadia Borba. Educação ambiental premissa inafastável
ao desenvolvimento econômico sustentável. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

Ministério da Tecnologia, Ciência e Inovação. Estimativas anuais de emissões de gases de efeito estufa no Brasil.
Disponível em: <http://www.mct.gov.br/upd_blob/0226/226591.pdf >. Acesso em: 14 jun. 2017.

PAULSEN, Leandro. MELO, José Eduardo Soares de. Impostos Federais, Estaduais e Municipais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2013.

Procuradoria Geral-Distrital de Lisboa. Disponível em:


<http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=976&tabela=leis>. Acesso em: 14 jun. 2017.

Reuters. S. Germany to launch 1 billion-euro discount scheme for electric car buyers. Disponível em:
<http://in.reuters.com/article/autos-electric-germany-discount-idINKCN0XO1Y4>. Acesso em: 14 jun. 2017.

RIBEIRO, Ricardo Lodi. Tributos Teoria Geral e Espécies. Niterói: Impetus, 2013.

RIO GRANDE DO SUL. Decreto 37131 de 30 de dezembro de 1985. Disponível em:


<http://www.al.rs.gov.br/Legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=9697&hText
o=&Hid_IDNorma=9697>. Acesso em: 05 jul. 2017.

Sindicato do Comércio Varejista de Derivados do Petróleo do Estado de Minas Gerais (MINASPETRO). Carro
elétrico começa a superar limite de baterias. Disponível em: <http://minaspetro.com.br/noticia/carro-eletrico-
comeca-superar-limite-baterias/>. Acesso em: 09 mai. 2017.

Sistema de Registro Nacional de Emissões (SIRENE). Disponível em: <http://sirene.mcti.gov.br/publicacoes>.


Acesso em: 14 jun. 2017.

TEIXEIRA, Humberto Gustavo Drummond da Silva. A utilização do IPI enquanto imposto extrafiscal para fins
de proteção do mercado nacional. Disponível em:
<http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13769>. Acesso em 15 jun. 2017.

The California Cars Initiative. Disponível em: <http://www.calcars.org/calcars-news/1051.html>. Acesso em: 14


jun. 2017.

U.S. Department of Energy. Federal Tax Credits for All-Electric and Plug-in Hybrid Vehicles. Disponível em:
<https://www.fueleconomy.gov/feg/taxevb.shtml>. Acesso em: 14 jun. 2017.

USA Today. Obama pushes electric cars, battery power this week. Disponível em:
<http://content.usatoday.com/communities/driveon/post/2010/07/obama-pushes-electric-cars-battery-power-
this-week-/1#.WT9IwWgrKHs>. Acesso em: 14 jun. 2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

VERONESE, Thábata Biazzuz. O PÓS-POSITIVISMO COMO MÉTODO HERMENÊUTICO


CONSTITUCIONAL PARA UMA TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:XMLSfE7BsPcJ:150.162.138.7/documents/downloa
d/525%3Bjsessionid%3DEE4244ACAF521069A7F100B1D0C7D732+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>.
Acesso em: 05 jul. 2017.

VONBUN, Christian. Impactos ambientais e econômicos dos veículos elétricos e híbridos plug-in: uma revisão da
literatura. Brasília: IPEA, 2015. Disponível em:
<http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/5328/1/td_2123.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2017.

WITMANN, D. Análise Crítica da Integração em Larga Escala de Veículos Elétricos no Brasil. Disponível em:
<http://www.advancesincleanerproduction.net/fourth/files/sessoes/6B/6/wittmann_et_al_work.pdf>. Acesso
em: 20 abr. 2017.
ICMS ECOLÓGICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós-graduação de Direitos Humanos e Inovação da UFJF
SIMON, Laura Fonseca
Graduanda em Direito da UFJF
VIDAL, Victor Luna
Graduando em Direito da UFJF

RESUMO

Tendo como supedâneo a busca por um meio ambiente ecologicamente equilibrado, debate-se acerca
de políticas públicas que zelem por tal garantia constitucional. Com fulcro no Federalismo Fiscal, o
direito fundamental a uma Tributação Justa impõe não somente a observância de normas e
procedimentos legais tributários, como também a aplicação da receita arrecadada em prol da
população. Sob a égide da extrafiscalidade tributária ambiental, repisa-se o instituto do ICMS
Ecológico, o qual se conceitua como o critério ou conjunto de critérios ambientais a ser considerado
quando do cálculo para repasse relativo à parcela do ICMS para cada Município, consoante lei de cada
Estado da Federação. Destarte, o presente artigo tem como escopo analisar, detidamente, o instituto do
ICMS Ecológico no Estado de Minas Gerais, bem como discutir sua efetividade no que concerne à
proteção ambiental em território mineiro.

Palavras-Chave. ICMS Ecológico. Estado de Minas Gerais. Extrafiscalidade.

ABSTRACT

Having as its goal the search for a balanced environment, this article debates public policies that are
supported by such constitutional guarantees. With a focus on Fiscal Federalism, the fundamental right
to Fair Taxation imposes, not only the observance of norms and legal tax procedures, but also the
application of tax revenue to benefit the population. Under the aegis of environmental tax
extrafiscality, the ICMS Ecological Institute, which is conceptualized as the criterion or set of
environmental criteria to be considered when calculating the transfer of the ICMS installment for each
Municipality, according to the law of each State of the Federation. The purpose of this article is to
analyze the ICMS Ecological Institute in the State of Minas Gerais, as well as to discuss its
effectiveness regarding environmental protection in Minas Gerais.

Keywords. Ecological ICMS. Minas Gerais State. Extrafiscality.

115
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A tributação tem suscitado grandes discussões no contexto contemporâneo. Com


fundamento no direito fundamental a uma Tributação Justa, discute-se a função extrafiscal do
ICMS Ecológico. Com fulcro na tutela ambiental, o presente artigo tem como escopo a
análise da efetividade de tal mecanismo, especificamente aplicável ao Estado de Minas
Gerais. Para tanto, a análise do instituto parte do estudo das novas funcionalidades fiscais,
advindas especialmente da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) Posteriormente, o
instituto do ICMS Ecológico é investigado por meio da previsão da repartição de receitas
tributárias, culminando na crítica à Lei Estadual n.º 18.030/09, marco normativo fundamental
no desenvolvimento do instituto fiscal em Minas Gerais.
Este artigo possui quatro itens: num primeiro momento, investiga-se a mudança
promovida pela extrafiscalidade no panorama jurídico brasileiro e a sua relação com o
conceito de tributação justa. Em sequência, analisa-se o instituto do ICMS Ecológico sob os
vieses histórico e jurídico. Doravante, são propostas reflexões quanto ao desenvolvimento
dessa política ambiental no Estado de Minas Gerais, avaliando a sua efetividade e a sua
compatibilidade com a Constituição. E, por derradeiro, questionam-se possíveis causas da
ineficiência do instituto para alguns dos Municípios mineiros.
A metodologia adotada neste artigo será bibliográfica e crítico dialética, na medida
em que não se aterá apenas a reprodução legislativa, doutrinária e jurisprudencial e, sim, a
uma análise crítica da possibilidade de utilização do ICMS com finalidade extrafiscal.
Desse modo, são estudados os dispositivos da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (CRFB/88) e da Lei 18.030/09 de modo a verificar se esta Lei se coaduna
com o mandamento previsto no artigo 225 da CRFB/88. Ademais, são utilizados dados
estatísticos fornecidos pelo IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- e pela
Fundação João Pinheiro, fundação pública vinculada ao Estado de Minas Gerais. Por meio
destes dados, são comparados aspectos populacionais e econômicos de Municípios de
características diversas, bem como as receitas provenientes do ICMS Ecológico pertinentes a
cada um no ano de 2016 e no mês de janeiro de 2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. TRIBUTAÇÃO JUSTA E EXTRAFISCALIDADE

Tendo como fundamento a égide do Estado Democrático, modelo de organização


estatal que tem como elemento norteador a defesa dos valores mais caros à sociedade, os
tributos são apresentados não somente como manifestações do poder soberano do Estado,
mas como atividade essencial, isto é, um dever fundamental do cidadão em prol
funcionamento da própria sociedade, com base nos princípios constitucionais da capacidade
contributiva, do custo/benefício ou da solidariedade (TORRES, 2005).
A partir dessa reflexão, um importante conceito pode ser extraído do estudo do
Direito Público contemporâneo: nota-se que a atividade arrecadatória do Estado corresponde
a um mecanismo intrínseco à realização de serviços públicos e, conforme JUSTEN FILHO
(2014), à promoção dos direitos humanos.
Hodiernamente, destaca-se a Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988
(BRASIL, 1988), sobretudo em face ao seu art. 3º. A justiça social e o desenvolvimento
nacional são objetivos fundamentais do estado brasileiro. Para tanto, é indiscutível que a
tributação é o meio primordial de financiamento de campanhas públicas para concretização
destes valores.
Nessa perspectiva, a extrafiscalidade revela-se como ferramenta fundamental na
promoção dos interesses coletivos por meio da atividade arrecadatória. Inserida num processo
de inovação da atuação estatal propugnado pela Constituição (BRASIL, 1988), o instituto em
comento corresponde a um mecanismo de fomento do desenvolvimento social e do bem estar
coletivo.
Como forma de atuação, a extrafiscalidade baseia-se na utilização de meios
tributários a fim de fomentar ou inibir condutas perante a população. Nesse contexto, conclui-
se que a função extrafiscal tem como objetivo a interferência no domínio econômico, de
modo a buscar um efeito diverso da simples arrecadação de recursos financeiros
(MACHADO, 2016).
A importância deste conceito para a contemporaneidade foi observada por SILVA:

[...] a extrafiscalidade constitui-se na aplicação de um modelo jurídico-tributário


para a consecução de objetivos que preponderam sobre os fins simplesmente
arrecadatórios de recursos financeiros para o Estado. O valor finalístico da
extrafiscalidade que o legislador incute na lei tributária, portanto, deve atender às
necessidades na condução da economia ou correção de situações sociais
indesejadas ou mesmo possibilidade de fomento a certas atividades ou ramo de
atividades de acordo com os preceitos constitucionais (SILVA, 2007, p. 100).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

De fato, a relevância da discussão atual quanto a tal aspecto fiscal se alicerça na


promoção de direitos preponderantemente coletivos, de forma a conferir um patamar mínimo
de cidadania aos indivíduos por meio da tutela do interesse público. Hodiernamente, esse
conceito se consubstancia, conforme JUSTEN FILHO (2014), na promoção dos valores
constitucionais.
Nessa esteira, Regina Helena Costa sustenta a importância da função supracitada ao
caracterizá-la como consistente “no emprego de instrumentos tributários para o atingimento
de finalidades não arrecadatórias, mas, sim, incentivadoras ou inibitórias de comportamentos,
com vista à realização de outros valores, constitucionalmente contemplados” (2009, p. 48).
Verifica-se, desse modo, que o seu desenvolvimento legislativo encontra apoio não
somente na necessidade de modernização da atividade administrativa estatal, mas também no
imperativo das sociedades modernas pela efetivação de direitos fundamentais, notadamente,
neste caso, os direitos relativos ao contribuinte.
De fato, a relevância da discussão atual quanto a tal aspecto fiscal se alicerça na
promoção de direitos preponderantemente coletivos, de forma a conferir um patamar mínimo
de cidadania aos indivíduos por meio da tutela do interesse público. Hodiernamente, esse
conceito se consubstancia, conforme JUSTEN FILHO (2014), na promoção dos valores
constitucionais.
Neste contexto, a extrafiscalidade tributária torna-se elemento indispensável à noção
de Tributação Justa, visto que permite a arrecadação dos recursos públicos de forma
equilibrada e voltada ao interesse público. Realçando a perspectiva democrática atualmente
em vigor, o conceito analisado traduz-se na composição de um conjunto de princípios e
institutos que tem como escopo a defesa do cidadão em face da insaciedade do Estado por
aumentar suas arrecadações.
Segundo MELLO (2013), tal conceito consiste, basicamente, na forma pela qual se
pratica o ato de tributar, isto é, como os entes que dispõem de competência tributária aplicam
as técnicas de tributação, com o escopo de implementar, viabilizar e conjugar a quantidade
com a qualidade dos tributos.
Sobreleva-se, assim, a função extrafiscal dos tributos, em consequência desta
consciência recente em relação a como se aplicar a renda obtida através da arrecadação
estatal. Este direito advém, em síntese, dos valores constitucionais consagrados pela Carta
Magna de 1988, notadamente a dignidade da pessoa humana.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. O ICMS ECOLÓGICO

Em sede do Federalismo Cooperativo, a iniciativa deste instituto legislativo tem


como princípio o incentivo à proteção ambiental, que decorre justamente da distribuição de
verbas entre os entes federativos. Inicialmente instituído no Estado do Paraná, em 1991, esta
novidade legislativa adveio de uma postura compensatória, fulcrada no princípio do protetor
recebedor.
Segundo ALTMANN (2013) tal princípio tem como parâmetro a retribuição
àqueles que se empenham na melhoria da qualidade ambiental. Dessa forma, está
fundamentado no sistema de pagamento por serviços ambientais (PSA). Este conceito, por
sua vez, abarca a lógica de prestação de serviços ecossistêmicos, sinalizando, portanto, que a
natureza preservada também fornece benefícios ao homem.
Partindo de tal comportamento compensatório, o ICMS Ecológico corresponde a
critério ou conjunto de critérios ambientais a serem considerados quando do cálculo para
repasse relativo à parcela do ICMS - imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de
comunicação- para cada Município, de acordo com a observância de critérios de proteção
ambiental estabelecidos em Lei Complementar Estadual (REIS, 2011). Concretiza-se,
portanto, uma espécie de sanção premial, de baixo custo operacional, agindo na forma de
reeducação institucional (REIS, 2011).
Por meio da medida em análise, o contribuinte não é onerado frente a tal repasse.
Trata-se, em suma, de uma forma de reorganização da destinação das verbas provenientes do
ICMS, beneficiando os Municípios que priorizam a manutenção de um meio ambiente sadio.
Em um contexto de carga tributária cada vez maior, demonstra-se que a extrafiscalidade
corresponde a um dos alicerces relevantes às novas demandas sociais, sendo um dos reflexos
de uma Tributação Justa.
Nesta perspectiva, torna-se necessária a fundamentação constitucional da medida
legislativa em tela. Disposto no art. 155, inciso II, CRFB/88 (BRASIL, 1988), o ICMS é um
imposto cuja competência é dos Estados e do Distrito Federal, sendo o principal arrecadador
de fundos para os Estados e de suma importância para os Municípios. Tal tributo repercute ao
longo de toda cadeia produtiva, já que acompanha o fluxo da formação de bens e serviços.
Em busca pela efetivação da proteção ambiental, deu-se a ampliação das
características que marcam a extrafiscalidade deste imposto, o que culminou no surgimento
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

do ICMS Ecológico. Para tanto, o art. 158, inciso IV, CRFB/88 determina que 25% do valor
arrecadado com o ICMS pertencem aos Municípios. Deste quantum, o parágrafo único do
mesmo artigo define que 75% deste montante serão distribuídos aos Municípios conforme o
critério do Valor Agregado Fiscal e o restante, isto é, 25%, repassados por intermédio de Lei
Complementar Estadual.
Partindo de tal premissa constitucional, o Estado do Paraná em 1991, por meio da
cooperação entre os seus Poderes Executivo e Legislativo e os respectivos Municípios, e
diante de um cenário de manifestos entraves ao desenvolvimento econômico em virtude da
necessidade de manter seus recursos hídricos e florestais em conformidade com a legislação
ambiental, promoveu uma ação conjunta para tentar solucionar, pelo menos em parte, seus
problemas em matéria ambiental, segundo dados fornecidos pelo Instituto Ambiental do
Paraná (PARANÁ, s.d.).
Sob tal égide, o ICMS Ecológico surgiu, consolidando um mecanismo de fomento
ao desenvolvimento sustentável. Por meio da referida iniciativa, a Lei Complementar
Estadual nº 59, de 1º de outubro de 1991, foi instituída a política pública em análise,
consagrando dois subcritérios para a redistribuição de recursos: a existência de mananciais de
abastecimento, cuja água se destina ao abastecimento da população de outros Municípios, no
valor de 50% (cinquenta por cento), e de unidades de conservação e de outras reservas
naturais similares, também na razão de 50% (cinquenta por cento), segundo dados do IAD -
Instituto Ambiental do Paraná (PARANÁ, s.d.)
Ao longo do tempo, tal instrumento extrafiscal foi disseminado no território
brasileiro, sendo instalado, ressalvadas as suas peculiaridades, nos Estados de São Paulo, em
1993, Minas Gerais, em 1995, Rondônia, em 1996, e Rio Grande do Sul, em 1998
(AQUINO, s.d.).
O ICMS Ecológico está em fase de discussão ou implantação nos Estados de Mato
Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia, Goiás, Pernambuco, Pará, Santa Catarina e Ceará,
conforme dados fornecidos pelo LOREIRO (s.d.). Conclui-se que o ICMS Ecológico
simboliza uma alternativa potencialmente eficaz na formulação de políticas públicas dirigidas
à biodiversidade.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3. ICMS ECOLÓGICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

A experiência do ICMS Ecológico em Minas Gerais apresenta peculiaridades que


merecem ser destacadas. Na década de 1990, busca-se promover a desconcentração de renda
quando da repartição das verbas provenientes do ICMS entre os Municípios mineiros. Para
tentar diminuir a disparidade do produto da arrecadação entre os entes municipais, a Lei nº
12.040 de 28 de dezembro de 1995 adotou critérios de progressividade e gradualidade para o
repasse aos Municípios, de forma a destinar recursos às áreas mais pobres, considerando
segmentos, tais como, população, educação, área cultivada, patrimônio cultural, saúde, meio
ambiente, entre tantas outras searas. Inicialmente, os critérios escolhidos teriam que atender a
certas considerações, como favorecer um grande número de Municípios, com a publicidade
de dados da gestão governamental, assim como estimular o desenvolvimento de atividades,
entre outros. Por seu objetivo ímpar de justiça social, tal preceito normativo ficou conhecido
como “Lei Robin Hood”, consoante dados obtidos do Portal da Fundação João Pinheiro.
Doravante, no ano posterior a promulgação da Lei 12.040, a Lei nº 12.428 de 27 de
dezembro de 1996 modificou as disposições da originária Lei “Robin Hood”, reduzindo o
peso do Valor Agregado Fiscal destinado aos Municípios e, por conseguinte, conferiu valor
mais significativo aos demais critérios, como aqueles relativos a área geográfica, população,
população dos 50 (cinquenta) Municípios mais populosos, educação, saúde, meio ambiente,
patrimônio cultural, produção de alimentos e receita própria. Os critérios supracitados foram
mantidos pela Lei 13.803/00 até o advento da vigente Lei 18.030, a qual foi publicada em 13
de janeiro de 2009, sendo fruto de amplo debate no Poder Legislativo Estadual.
No que se refere aos fins ecológicos do vigente preceito normativo no Estado, a
distribuição da receita de acordo com o critério ambiental corresponde a exatamente 1,1%
(um inteiro e um décimo por cento) de todo o valor arrecadado de ICMS no Estado, nos
termos do art. 1º e do Anexo I, ambos da Lei 18.030/95. A partir deste valor, prevê-se a sua
divisão em três subcritérios: a) tratamento ou disposição final de lixo ou de esgoto sanitário;
b) criação e manutenção de unidades de conservação estaduais, federais, municipais e
particulares e áreas de reserva indígena; c) área de mata seca, vegetação característica da
região Norte do Estado, conforme o art. 4º da Lei 18.030/09. Tais critérios configuram,
portanto, o instituto do ICMS Ecológico em Minas Gerais.
Quanto ao primeiro subcritério acima exposto, destaca-se que este abrange parcela
de 45,45% (quarenta e cinco por cento e quarenta e cinco centésimos) do montante destinado
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

aos Municípios, referindo-se ao tratamento ou disposição final de lixo ou de esgoto sanitário


da população urbana, com fulcro no art. 4º, I da Lei 18.030/09.
Relativamente ao segundo subcritério, que abrange 45,45% (quarenta e cinco por
cento e quarenta e cinco centésimos) do total do valor do ICMS Ecológico, conforme o art. 4º,
II e o Anexo IV da Lei 18.030/09. Para o cálculo, o índice de Conservação considera a área da
Unidade de Conservação da Natureza e/ou área protegida, a área do município, o fator de
conservação e o fator de qualidade, que varia de 0,1 a 1 (um décimo a um inteiro). O cálculo
dessa categoria envolve os índices de qualidade, pré-definidos pelo COPAM - Conselho
Estadual de Política Ambiental- em sua Deliberação Normativa COPAM n.º 86/05, segundo
dados do Portal da Fundação João Pinheiro.
No que tange ao terceiro subcritério, 9,1% (nove por cento e um décimo) do total
são destinados às áreas de mata seca nos Municípios, de acordo com o art. 4º, III da Lei
18.030/09, conforme dados fornecidos pelo IEF- Instituto Estadual de Florestas.
No que concerne à distribuição de receitas do ICMS no Estado mineiro, surpreende
a quantidade avassaladora de Municípios que não recebe nenhuma verba relativa aos critérios
ecológicos previstos no artigo 4º da Lei 18.030/09. Tal ocorrência se revela mais incisiva
quando são abordados os Municípios mais populosos do Estado. De acordo com a publicação
de 28 de setembro de 2016 do Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, apenas 340
Municípios mineiros receberam parcela maior do ICMS em função da boa gestão ambiental
de Unidades de Conservação.
O Município de Juiz de Fora, por exemplo, segundo dados fornecidos pelo IBGE –
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, possui 563.769 (quinhentos e sessenta e três
mil, setecentos e noventa e nove) habitantes. Ilustrativamente, no ano de 2016 arrecadou a
soma anual de R$8.840,43 (oito mil, oitocentos e quarenta reais e quarenta e três centavos),
renda esta relativa apenas a um subcritério. Ainda, no mês de janeiro de 2017, recebeu apenas
R$698,83 (seiscentos e noventa e oito reais e oitenta e três centavos) relativos ao mesmo
subcritério ambiental do ano anterior, segundo dados divulgados pela Fundação João
Pinheiro. Neste contexto, nota-se que o Município preenche apenas o subcritério unidade de
conservação, não recebendo nenhuma verba quanto aos demais critérios.
Torna-se, em princípio, preocupante o fato de o Município não receber nenhum
valor acerca dos demais parâmetros, sobretudo no que concerne ao saneamento. Em que pese
assumir posição estratégica no Estado, notadamente em virtude de sua economia, a população
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

juizforana não tem gozado de políticas que a consagrem como referência no aspecto
ambiental, em comparação com as demais cidades mineiras, quando do recebimento de verba
referente ao ICMS Ecológico.
Segundo informações extraídas do portal eletrônico da Fundação João Pinheiro,
analisado o Município de Belo Horizonte, constata-se o recebimento do montante de
R$300.060,62 (trezentos mil, sessenta reais e sessenta e dois centavos) relativo ao ano de
2016, observados os subcritérios saneamento básico e unidade de conservação. Já em janeiro
de 2017, a soma totalizou R$ 25.158,14 (vinte e cinco mil, cento e cinquenta e oito reais e
catorze centavos), valor proveniente dos mesmos subcritérios ambientais do ano anterior,
tendo, em contrapartida, uma população, segundo dados do IBGE referentes ao ano de 2016,
de 2.513.451 (dois milhões, quinhentos e treze mil e quatrocentos e cinquenta e um)
habitantes.
Torna-se evidente que os valores advindos do critério ambiental do mês de janeiro
do presente ano perpetuam uma média, conforme fixado no ano de 2016, de arrecadação
desses Municípios. Quando se compara tais quantias com outras arrecadadas por entes
menores, destaca-se a participação ínfima de cidades de médio e grande porte com relação à
distribuição do ICMS Ecológico.
Para ilustrar esta assertiva, destaca-se o Município de Cata Altas, situado a 120
quilômetros de Belo Horizonte, que conta com 5.274 (cinco mil duzentos e setenta e quatro)
habitantes, segundo dados do IBGE referentes ao ano de 2016. No ano passado, sua
arrecadação foi de R$ 978.245,67 (novecentos e setenta e oito mil, duzentos e quarenta e
cinco reais e sessenta e sete centavos) quando considerado o repasse do ICMS, consoante
extrato da Fundação João Pinheiro. Recebeu, portanto, valores bastante significativos, quando
comparados com Municípios consideravelmente maiores e de economia mais pujante, como
Juiz de Fora e Belo Horizonte.
Resta claro, portanto, que o propósito da Lei é contemplar Municípios que não
detêm desenvolvimento econômico substancial, necessitando, por consequência, de ajuda
financeira para o custeio administrativo.
Deve-se ressaltar, assim, que o presente estudo não tem como escopo criticar o ideal
de repartição estabelecido no Estado, mas, sim, evidenciar a limitada ou quase inexistente
promoção de campanhas públicas para tutelar o meio ambiente, especialmente pelos
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Municípios maiores, vislumbrando-se verdadeiro distanciamento do gestor público dos


preceitos constitucionais de matriz ambiental.
Com efeito, os dados obtidos nesta pesquisa mostram que os planos de gestão da
maioria dos Municípios apresentam propostas demasiadamente tímidas no que concerne ao
equilíbrio ecológico. Predomina, ainda que de maneira obsoleta, a lógica puramente
econômica da administração pública, não atendendo, desse modo, à pluralidade de carências
gestadas no seio social. Embora o debate econômico seja profícuo, ele não dispensa a adoção
de uma política efetiva dirigida ao desenvolvimento sustentável, conforme preceitua a
Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Diante deste panorama, torna-se necessária a investigação das possíveis causas
relacionadas à falta de iniciativa dos Municípios, especialmente aqueles de maior expressão
econômica e populacional, quanto à promoção de atividades para a obtenção dos recursos
provenientes do ICMS Ecológico.

4. CAUSAS SOBRE A INEFICIÊNCIA DO ICMS ECOLÓGICO MINEIRO

Em que pese o escopo da Lei, bem como o fato de suas disposições serem louváveis,
em termos práticos, sobrelevam-se algumas considerações críticas. Em princípio, deve-se
registrar que a Lei 18.030/09 dispõe de vocábulos rigorosamente técnicos que impedem a
interpretação pelo leitor que não detém conhecimentos especializados em matéria ambiental.
Nesta toada, explicita-se o conceito dos próprios subcritérios acima citados, como, v. g., os
termos “mata seca”, ou, ainda, “unidade de conservação”, os quais exigem para sua apuração
auxílio técnico.
A hermenêutica do texto legal demanda consultoria especializada sobre o assunto, o
que, na maioria dos Municípios, constitui-se como um verdadeiro obstáculo. Compromete-se,
portanto, o efetivo sentido do instituto legislativo, visto que, como mandamento direcionado à
tutela dos interesses sociais, o instrumento em perspectiva demonstra-se distante dos
princípios da transparência e da universalidade. Resta nítido que um preceito normativo deve
ser claro o suficiente para que o intérprete possa entendê-lo, de forma que se submeta às suas
prescrições. Do contrário, têm-se apenas normas que não são destinadas à população em
geral, mas apenas a uma parte restrita da população que possui conhecimento técnico
especializado.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Ademais, enfatiza-se a ausência de dados e de informações acerca da temática, as


quais deveriam ser objeto de divulgação pelos entes públicos. De fato, o Estado de Minas
Gerais foi responsável pela criação de uma Fundação Pública dirigida à divulgação do repasse
das verbas do ICMS de acordo com a Lei 12.040/09, na tentativa de consolidar o princípio da
publicidade presente no artigo 37 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Tal instituto, representado pela Fundação João Pinheiro, apresenta um portal
eletrônico relativamente claro e coeso - a qual possui como endereço eletrônico
<http://www.fjp.mg.gov.br/>. No entanto, tal assertiva não se verifica quando investigadas as
páginas virtuais dos Municípios. As experiências resultantes desta pesquisa permitiram a
visualização, de um modo geral, de sítios eletrônicos municipais defasados e de prefeituras
ainda pouco sensíveis à necessidade de divulgação de dados acerca de suas receitas.
Ressalta-se, além disso, que alguns entes têm desenvolvido políticas ambientais
preservacionistas. Tais medidas, contudo, ou não se enquadram nos parâmetros estabelecidos
pela Lei para o recebimento do ICMS Ecológico, em virtude da previsão de critérios
demasiadamente rigorosos, ou não são efetivamente contempladas pelo instituto legal,
havendo, portanto, lacunas quanto à sua abrangência.
Destarte, sobressaem dois parâmetros de discussão, quais sejam: a) os critérios
legais não têm um mínimo de pertinência com a realidade dos Municípios mineiros, gerando,
dessa forma, distorções na distribuição dos recursos citados; b) a atuação dos referidos entes
ou é ineficiente ou praticamente inexistente quando se considera a necessidade de observância
dos requisitos legais.
Nesse sentido, destaca-se a central de tratamento de resíduos de Juiz de Fora, a qual
foi inaugurada em 12 de abril de 2010. Muito embora corresponda a uma unidade tratamento
de resíduos moderna e voltada ao desenvolvimento sustentável, tendo como objetivo a adoção
de sistemas de tratamento e destinação final que façam uso de técnicas de engenharia sanitária
e ambiental, estando em conformidade, segundo dados obtidos da Fundação João Pinheiro e
do DEMLURB – Departamento de Limpeza Urbana de Juiz de Fora- com a legislação
ambiental, ela não preenche os requisitos vigentes na Lei 18.030/09. Por conseguinte, nota-se
que o Município de Juiz de Fora recebe uma parcela ínfima do ICMS Ecológico em
detrimento dos seus vultosos investimentos na seara de tratamento de lixo.
Quanto ao segundo argumento, examina-se o fundamento do desinteresse dos
poderes públicos locais quanto à adoção de políticas potencialmente captadoras de verbas.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nota-se que os centros que recebem altos valores pelo repasse do Valor Agregado Fiscal não
desempenham, em regra, medidas ambientais nos moldes da Lei, visto que consideram que
tão somente o argumento econômico relacionado a tais iniciativas, efetuando, assim, um juízo
de custo-benefício, que, geralmente, resulta na verificação de que os investimentos não
cobrem os gastos a serem despendidos.
Usualmente, o repasse do ICMS Ecológico não é tão significativo quando cotejado
com os gastos derivados da proteção ambiental. Todavia, em se tratando de tema tão caro à
sociedade contemporânea, seu escopo deve ser visualizado não somente sob o viés
arrecadatório, mas, também, pela urgência da efetivação do direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Desta forma, resta evidente que a análise puramente
econômica atualmente hegemônica se consubstancia em argumento de discutível
plausibilidade ante a força dos princípios constitucionais.
Nessa esteira, constata-se que, embora inicialmente a Lei Robin Hood apresentasse
um viés essencialmente compensatório, atualmente, seu propósito extrapola tais barreiras,
preconizando um bem muito maior, tal seja, a efetivação da disposição constante no artigo
225 da Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988).
Por conseguinte, o estudo da concepção de extrafiscalidade tributária e da
necessidade de se tratar da atividade estatal como promotora dos direitos fundamentais
assume posição capital. A legislação tributária não pode mais se pautar em critérios
estritamente econômicos, sob pena de mitigar todo o arcabouço constitucional proclamado
pela Carta Magna de 1988. Hodiernamente, não se vislumbra mais o ramo tributário como
fornecedor apenas de divisas para o ente estatal. É indubitável o fato de que o interesse
público tenha como alicerce a promoção, especialmente, dos direitos de terceira dimensão,
isto é, aqueles de fulcro metaindividual, tendo em vista a atual égide democrática (MENDES,
2013).
Dessa forma, parte-se da necessidade de refletir quanto à aplicação destes recursos
em prol da população. O cidadão, considerado como sujeito de direitos, torna-se o destinatário
do ideal de Tributação Justa. Por conseguinte, a gestão financeira operada pelos agentes
públicos passa a se relacionar à noção de responsabilidade na aplicação das rendas em
benefício da coletividade.
Neste diapasão, vislumbra-se uma importante discussão acerca de uma das
principais características dos impostos brasileiros, a saber, a não vinculatividade. Não
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

obstante a maioria da doutrina entenda pela necessidade da espécie tributária dos impostos
não ser vinculada, como assim preconizam o texto constitucional (BRASIL, 1988) e o Código
Tributário Nacional (BRASIL, 1966), deve-se ponderar quanto à compatibilidade desta
configuração tributária em face do dever do administrador público de concretizar os direitos
fundamentais previsto na Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Não havendo, em regra, restrição quanto à destinação das receitas de impostos,
torna-se possível a valorização de alguns setores em detrimento de outros, impedindo,
portanto, que os valores consagrados constitucionalmente sejam atendidos de forma
equânime. Assim, caso a receita proveniente de tal espécie tributária fosse vinculada,
possivelmente, as políticas públicas não se baseariam apenas nos planos de governo, já que
estas possuiriam caráter cogente.
A aplicação do valor arrecadado relacionar-se com o fato gerador dos impostos
individualmente considerados, bem como com metas estabelecidas por lei. No que concerne
ao ICMS Ecológico, por exemplo, a verba que cada Município recebesse, a título de repasse
deste imposto em face dos critérios ambientais, deveria ser necessariamente investida na
manutenção e no desenvolvimento de projetos ecológicos. Logo, não haveria lacuna para a
arbitrariedade do gestor público em desenvolver ou não um planejamento ambiental, tendo
em vista a obrigatoriedade da aplicação desta renda. Resta evidente que os gastos
contemplados pelo orçamento público devem ser reanalisados, sobretudo, diante de uma
sociedade que convive diariamente com escândalos referentes à má aplicação do dinheiro
público.
Neste contexto, a não observância dos critérios do ICMS Ecológico pode refletir o
descaso que muitos representantes do Poder Executivo têm para com a população. A
liberdade no orçamento público permite, quando mal empregada, o desprezo dos valores
elencados no Texto Constitucional em troca ao atendimento de necessidades efêmeras ou de
cunho eminentemente eleitoreiro. Isto não se deve simplesmente a uma incompetência do
gestor público, como também à forma de elaboração de seu plano de governo, que, a rigor,
não contempla todas as necessidades da comunidade ou não possibilita a realização de um
debate democrático para aclará-las. Questiona-se, assim, se os direitos considerados
fundamentais podem ser menosprezados ou suprimidos, ao passo que deveriam ser
cotidianamente concretizados pelo Estado soberano, tendo em vista o caráter imperativo das
normas constitucionais.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A implementação e o desenvolvimento do ICMS Ecológico correspondem a


elementos de elevado valor no ordenamento jurídico brasileiro, máxime no que tange ao seu
caráter inovador, fundado no princípio do protetor recebedor. Busca-se, em síntese,
concretizar o mandamento constitucional atinente ao direito ao meio ambiente
ecologicamente correto.

CONCLUSÕES

Este artigo analisou a efetividade do ICMS Ecológico, instituto legislativo que


objetiva a proteção ambiental, tendo como fundamento a extrafiscalidade. Para tanto, foram
estudadas as peculiaridades do instituto no Estado de Minas Gerais.
Críticas foram realizadas em relação à efetividade do ICMS Ecológico do Estado de
Minas Gerais, observados os repasses de três Municípios mineiros. Num primeiro momento,
constatou-se que uma das dificuldades advindas do instituto neste Estado decorre da
imprecisão ou da excessiva tecnicidade dos seus termos, impedindo ou dificultando a
interpretação legal.
Posteriormente, reconheceu-se que uma das dificuldades se vincula à falta de
informações disponíveis acerca da temática nos endereços eletrônicos dos Municípios,
embora o site da Fundação João Pinheiro, vinculado ao Estado de Minas Gerais, apresente
conteúdo satisfatório.
Em sequência, foram identificados dois problemas relacionados aos critérios
redistributivos mineiros: ausência de um mínimo de pertinência com a realidade dos
Municípios, gerando, distorções na distribuição dos recursos citados; atuação ineficiente dos
gestores públicos ou não observância dos requisitos legais pelos mesmos.
Ademais, notou-se que a análise sob um viés puramente econômico por parte dos
gestores públicos, tendo em vista a desproporção entre investimentos públicos e
contraprestações por parte do repasse de ICMS, conduz a um cenário pouco estimulante à
realização de novos projetos ambientais.
Em que pese o instituto legal ter se pautado, originalmente, em um escopo
compensatório, hodiernamente, preconiza-se que os investimentos em políticas públicas
ambientais devem ser consolidados com fulcro nos valores constitucionais.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Por fim, tratou-se da discussão acerca da não vinculação dos impostos. Nesta esteira,
vislumbrou-se que a liberdade na aplicação do orçamento público culminou em supressão de
certos direitos fundamentais, haja vista que os planos de governo não conseguem abranger a
totalidade dos direitos elencados na Constituição Republicana Federativa do Brasil de 1988.
Sugere-se que as receitas advindas dos impostos devem considerar seus fatos
geradores, bem como metas estabelecidas por lei. No que concerne ao ICMS Ecológico, nota-
se que os valores advindos dos critérios ambientais quando do repasse deste imposto
deveriam ser, obrigatoriamente, reinvestidos em projetos ambientais, de forma a contribuir
para um meio ambiente sustentável.

REFERÊNCIAS

ALTMANN, Alexandre. Princípio do Preservador-Recebedor: contribuições para a consolidação de um novo


princípio de Direito Ambiental a partir do sistema de pagamento por serviços ambientais. Disponível em:
<http://www.planetaverde.org/arquivos/biblioteca/arquivo_20131207160003_4833.pdf>. Acesso em: 27 set.
2017.

AQUINO, Marizete Dantas de; CABRAL, Nájila Rejane Alencar Julião; HEMPEL, Wilka Barbosa;
MAYORGA, Maria Irles de Oliveira. A importância do ICMS ecológico como instrumento de compensação
financeira na aplicação do princípio protetor - recebedor. Disponível em:
<http://www.sober.org.br/palestra/5/1145.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 19 set. 2017.

COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo:
Saraiva, 2009.

FERREIRA, Rodrigo. Tributos: Origem e evolução. Disponível em:


<https://rfersantos.jusbrasil.com.br/artigos/222353175/tributos-origem-e-evolucao> Acesso em: 19 set. 2017.

GONÇALVES, Régis Afonso Furtado Gonçalves. A extrafiscalidade e o ICMS Ecológico como instrumentos
econômicos de política e preservação ambiental. Disponível em:
<http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2008_1/regis_afonso.pdf>
Acesso em: 19 set. 2017.

GUERRA, Sidney; GUERRA, Sérgio. Curso de Direito Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

JUIZ DE FORA. Portal do Departamento de Limpeza Urbana do Município de Juiz de Fora. Disponível em: <
http://www.demlurb.pjf.mg.gov.br/>. Acesso em: 27 set. 2017.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

LIMA, Sophia Nóbrega Câmara. A extrafiscalidade à luz do sistema constitucional brasileiro. Disponível em:
http://boletimcientifico.escola.mpu.mp.br/boletins/boletim-n-39-julho-dezembro-de-2012/a-extrafiscalidade-a-
luz-do-sistema-constitucional-brasileiro/at_download/file Acesso em: 19 set. 2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

LOREIRO, Wilson. O ICMS Ecológico na biodiversidade: experiências de Brasil - caso de Paraná. Disponível
em: <http://www.icmsecologico.org.br/site/images/artigos/a019.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

MELLO, Elizabete Rosa de. Direito Fundamental a uma Tributação Justa. São Paulo: Atlas, 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Bonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.

MINAS GERAIS. Lei nº 18.030, de 12 de janeiro de 2009. Disponível em: <


http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/leis/2009/l18030_2009.htm>. Acesso em: 27 set.
2017.

MINAS GERAIS. Portal da Fundação João Pinheiro. Disponível em: < http://www.fjp.mg.gov.br/>. Acesso em:
27 set. 2017.

NETO, Fernando Cesar da Veiga Neto. Análise de Incentivos Econômicos nas Políticas Públicas para o Meio
Ambiente – O caso do “ICMS Ecológico” em Minas Gerais. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2000. Dissertação do
Curso de Pós Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade do Instituto de Ciências Humanas e
Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.

PARANÁ. Constituição Estadual de 1989. Promulgada em 05 de outubro de 1989. Disponível em:


<http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?action=iniciarProcesso&tipoAto=10&orgaoUnid
ade=1100&retiraLista=true&site=1>. Acesso em: 27 set. 2017.

________. Portal Instituto Ambiental do Paraná. ICMS Ecológico por Biodiversidade. Disponível em:
<http://www.iap.pr.gov.br/pagina-418.html>. Acesso em: 27 set. 2017.

PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos federais, estaduais e municipais. 8. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

RIBEIRO, Maria de Fátima; FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. O Papel do Estado no
Desenvolvimento Econômico Sustentável: Reflexões sobre a Tributação Ambiental como Instrumento de
Políticas Públicas. IDTL, 16 setembro de 2.005. Disponível em: <http://idtr.com.br/artigos/133/pdf>. Acesso
em: 27 set. 2017.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

TORRES, Ricardo Lobo. O Conceito Constitucional de Tributo. In: TORRES, Heleno (Coor.). Teoria Geral da
Obrigação Tributária. Estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros,
2005.
O EFEITO CONFISCATÓRIO DAS MULTAS
NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS
E JUDICIAIS TRIBUTÁRIOS

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Juiz de Fora
CASTRO, Isabela Lobo Monteiro de
Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora
VILELA, Débora Carolina de Oliveira
Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO

O objetivo do presente trabalho é analisar e descrever os principais aspectos relacionados às multas


tributárias aplicadas nos processos administrativos e judiciais brasileiros e como adquirem caráter
confiscatório. Foi realizado um estudo sobre a indeterminação do quantum que pode ser considerado
exacerbado ao ponto de comprometer a renda e o patrimônio do contribuinte, de forma a ultrapassar os
seus limites de capacidade contributiva, bem como infringir o artigo 150, inciso IV, da Constituição
Brasileira de 1988 que veda o confisco.
Além disso, analisou-se a jurisprudência do STF em relação à porcentagem aplicada aos diversos tipos
de multas tributárias e propôs uma forma de aplicar tais multas de maneira justa e coadunada com os
direitos fundamentais.

Palavras-chave. Multas tributárias, Efeito Confiscatório, Processo Tributário.

ABSTRACT

The main goal of this article is to analyze and describe the aspects of capital importance regarding tax
fines in Brazilian courts and how they acquire a confiscatory character. Research has been carried out
to investigate the quantum that can be considered exaggerated to the point of compromising the
incomes and the assets of taxpayers, in a way that surpasses their capacity to contribute, as well as
violating article 150, subsection IV of the 1988 Brazilian Federal Constitution, that forbids
confiscation. Furthermore, court precedent from the STF (Federal Supreme Court) has been examined
relating to the percentage applied to different kinds of taxation fines and, finally a just method of
imposing fines, according to the fundamental right to fair taxation, following the principles of
reasonableness and proportionality, is proposed.

Keywords. Tax fines, Confiscatory effect, Tax Procedure.

131
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

No âmbito dos processos judiciais tributários, questão que chama atenção de juristas
e contribuintes é o exorbitante valor das multas cobradas pelo Fisco. Nota-se dívidas
aumentarem em demasiado, em alguns casos dobrando ou até mesmo triplicando e chegando
a valores absurdos.
Alguns julgados com valores de multas muito altos já foram declarados
inconstitucionais. Há décadas o STF vem avaliando a proporcionalidade das “multas
tributárias” com o intuito de alcançar a conformação entre a gravidade da conduta do devedor
inadimplente e o percentual de penalidade imposto. Todavia, ainda não houve consenso de
qual seria o limite máximo aceitável e nem mesmo qual seria o critério utilizado para cálculo
de tais sanções. Assim, o Direito Fundamental a uma Tributação Justa mostra-se por muitas
vezes, violado.
A Constituição Brasileira de 1988 (BRASIL, 1988), pautada em valores
democráticos e sociais traz em seu artigo 150, inciso IV, a proibição de que o tributo seja
utilizado como forma de confisco por parte do ente público. A cobrança exorbitante de multas
no âmbito tributário se configura, então, como enriquecimento ilícito do Estado. Nesse
sentido, Rui Barbosa Nogueira e Paulo Roberto Cabral Nogueira lecionam que “a
transferência para o Fisco do total ou de parte do patrimônio do particular sem base legal
constitui a figura que se dá o nomem juris de confisco” (BARBOSA NOGUEIRA, CABRAL
NOGUEIRA, p.150).
Assim, este artigo analisa como as multas adquirem no processo judicial tributário
caráter confiscatório e delimita através da análise jurisprudencial e doutrinária parâmetros
máximos de cobranças das diferentes espécies de multas tributárias. Para tal, a estrutura do
trabalho se dividirá em quatro itens. No primeiro item serão analisadas as espécies de multas
tributárias, bem como a natureza jurídica de cada uma delas. O segundo item terá como foco
o efeito confiscatório das multas tributárias. No terceiro item será trabalhado o entendimento
jurisprudencial e o entendimento doutrinário do conceito de multa confiscatória, onde serão
analisadas jurisprudências do sistema judiciário brasileiro. Por fim, o último item trará uma
nova proposta para que as multas tributárias não adquiram caráter confiscatório.
Quanto à metodologia, este artigo não se baseará apenas em reprodução doutrinária
e jurisprudencial, mas também à análise bibliográfica e crítico dialética acerca do caráter
confiscatório das multas no processo judicial tributário.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. AS ESPÉCIES DE MULTAS TRIBUTÁRIAS

A análise do efeito confiscatório das multas passa, obrigatoriamente, pela


diferenciação em espécies. O Direito Tributário Brasileiro tende a classificar as multas em
duas espécies: moratórias e punitivas. As duas têm naturezas diferentes e, por tal, devem ser
tratadas de maneiras distintas.
A multa moratória é aquela advinda do atraso no pagamento do tributo pelo
contribuinte. Ela onera o atraso no cumprimento da obrigação principal da regra-matriz de
incidência tributária, o que configura infração já que conforme o artigo 113, §1º do CTN o
pagamento do tributo deverá ser realizado na forma, no prazo e nas condições estabelecidas
em lei. (MELLO, 2013, p. 85). A Lei nº 9.430, DOU de 30/12/96, assim determina:

Art. 61. Os débitos para com a União, decorrentes de tributos e contribuições


administrados pela Secretaria da Receita Federal, cujos fatos geradores ocorrerem a
partir de 1º de janeiro de 1997, não pagos nos prazos previstos na legislação
específica, serão acrescidos de multa de mora, calculada à taxa de trinta e três
centésimos por cento, por dia de atraso (grifo nosso).

Com relação à natureza jurídica da multa moratória, adota-se aqui a teoria de que
tem natureza civil, de caráter indenizatório, já que seu principal objetivo é compensar o fisco
pela intempestividade no pagamento do tributo, ou seja reparar o dano, se assemelhando
muito à multa contratual no sentido de buscar restabelecer o equilíbrio patrimonial antes
prejudicado. É justamente por sua natureza diverso que a multa moratória merece tratamento
distinto da multa punitiva, com valores máximos mais baixos (MELLO, 2013, p. 99).
A multa punitiva, por sua vez, é aquela cobrada pela Fazenda Pública em virtude de
ato ilícito por parte do contribuinte. Tem como gênese o descumprimento de obrigação
tributária acessória, determinada no artigo 113 do Código Tributário Nacional.
Quanto à natureza da multa punitiva, distintamente da multa moratória, tem natureza
tributária. Seu principal objetivo é punir o contribuinte pelo erro ou não cumprimento da
obrigação e coibi-lo a não mais praticar o ilícito. Todavia, por mais que a multa punitiva
admita tal caráter é necessário que se mantenha os limites da proporcionalidade, razoabilidade
e vedação ao confisco na estipulação de seus parâmetros de cálculo (MELLO, 2013, p. 91).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. EFEITO CONFISCATÓRIO DAS MULTAS

A Constituição Federal de 1998 em seu art. 150, inciso IV proibiu a utilização do


tributo “com efeito de confisco”. Desta forma, em matéria tributária podemos classificar o
tributo confiscatório como aquele que sua exigência tributária importe na absorção de parcela
significativa do patrimônio ou da renda do individuo. Nesse sentido, sustenta o Ministro Ilmar
Galvão no ADI 551/RJ, que “a desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua
consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o
patrimônio do contribuinte” (ADI 551/RJ, p.42) e sendo contrária ao disposto na Constituição
Federal (BRASIL, 1988).
A tributação não pode ter como efeito o de impedir o exercício de atividades lícitas
pelo contribuinte e nem comprometer o seu direito a uma vida digna, por isso, a aplicação do
princípio da vedação ao efeito confiscatório prima pela razoabilidade e proporcionalidade da
carga tributária.
No que se refere à razoabilidade e a proporcionalidade da carga tributária, deve-se
considerar que tais princípios são primordiais para que possa utilizar um fundamento
adequado ao se estabelecer as multas tributárias, sendo vedado ao legislador aplicar multas
desproporcionais, que acabam por afetar os direitos fundamentais assegurados
constitucionalmente. Percebe-se assim, uma nítida relação entre os princípios da razoabilidade
e proporcionalidade com a vedação da utilização de tributos com efeito confiscatório.
Segundo Sacha Calmon Navarro Coelho :

[...] o princípio do não-confisco tem sido utilizado também para fixar padrões ou
patamares de tributação tidos por suportáveis, de acordo com a cultura e as
condições de cada povo em particular, ao sabor das conjunturas mais ou menos
adversas que estejam se passando. Neste sentido, o princípio do não-confisco nos
parece mais como um princípio de razoabilidade na tributação (grifo do autor),
(COELHO, 1988, p.257).

Observa-se que o princípio do não confisco possui um conteúdo indeterminado,


motivo pelo qual deve haver verificações, em cada caso concreto, para averiguar o quanto
invasivo foi o encargo para o contribuinte. Guilherme Cezarotti defende o posicionamento
adotado por grande parte da jurisprudência:

Não só a vedação ao confisco, mas também os princípio da proporcionalidade e da


razoabilidade devem ser aplicados no exame das multas.[...] O contribuinte que
constitui o crédito tributário mediante a apresentação das declarações necessárias,
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mas deixa de recolhê-lo por qualquer razão, deve ser sancionado de forma
moderada, porque cumpriu suas obrigações acessórias regularmente. Diferente é a
situação o contribuinte que é autuado pela fiscalização tributária porque deixou de
constituir alguma obrigação tributária, situação em que poderia ser beneficiado pela
ocorrência da decadência. Neste caso específico, deve ser levado em consideração,
na hora da fixação da multa, que o benefício econômico deste contribuinte seria de
100% do valor do tributo (CEZAROTTI, Guilherme. Aplicação de multa pelo
descumprimento de obrigações acessórias. Razoabilidade e proporcionalidade em
sua aplicação (RDDT nº 148, jan/2008).

Nesse sentido, o próximo item abordará o entendimento adotado pelo STF em


relação aos percentuais aplicados às multas confiscatórias.

3. JURISPRUDÊNCIA DO STF ACERCA DAS MULTAS CONFISCATÓRIAS

Tendo como fundamento a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), o


Supremo Tribunal Federal na ADI (Ação Direta de Constitucionalidade) n551-1/RJ declarou
a inconstitucionalidade dos §§ 2º e 3º do art. 57 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que determinava que as multas
consequentes do não recolhimento de impostos e taxas não poderiam ser inferiores a duas
vezes o seu valor e as decorrentes de sonegação não poderiam ser fixadas em menos de cinco
vezes o valor do tributo (ADI.551-1/RJ, p.40, 2008).
Segundo o Relator Ilmar Galvão a atividade estatal não pode ser onerosa, afetando a
propriedade do contribuinte e confiscando-a a título de tributação:

[...] desse modo, o valor mínimo de duas vezes o valor do tributo como
consequência do não recolhimento apresenta-se desproporcional, atentando contra
o patrimônio do contribuinte, em evidente efeito de confisco. Igual desproporção
constata-se na hipótese de sonegação, na qual a multa não pode ser inferior a cinco
vezes o valor da taxa ou imposto, afetando ainda mais o patrimônio do contribuinte.

Num momento posterior, o STF analisando a ADIn 1.075-DF admitiu a


caracterização do efeito confiscatório da multa disposta no art. 3º e parágrafo único, da Lei nº
8.846/1994. Já que previa a incidência do percentual de 300%, devido à falta de emissão de
documento fiscal, sobre o valor da operação ou do serviço prestado (ADIn 1075-DF,
p.162,1998).
No julgamento do AgRg no RExt 833.106/GO, referente a cobrança de multa
tributária, prevista em lei estadual, no percentual de 120% do valor da obrigação principal. O
tribunal de origem defendeu pela não inconstitucionalidade da previsão legal de penalidade
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pecuniária em patamar superior ao valor do próprio tributo, segundo o mesmo, não está
presente caráter confiscatório da sanção neste caso. Porém, o STF, assentou a
inconstitucionalidade da cobrança de multa tributária em percentual superior a 100% e
determinou a exclusão da penalidade excedente (AgRg no RExt 833.106/GO, p.2-4, 2014).

TRIBUTÁRIO – MULTA – VALOR SUPERIOR AO DO TRIBUTO –


CONFISCO – ARTIGO 150, INCISO IV, DA CARTA DA REPÚBLICA. Surge
inconstitucional multa cujo valor é superior ao do tributo devido. Precedentes: Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 551/RJ – Pleno, relator ministro Ilmar Galvão – e
Recurso Extraordinário nº 582.461/SP – Pleno, relator ministro Gilmar Mendes,
Repercussão Geral.

Verifica-se, que as decisões do STF e de outros órgãos, não abrangem todos os


casos de multas fiscais e diante da ausência de definição constitucional do que seria confisco
em matéria tributária, cabe aos tribunais analisarem os excessos praticados, com observância
dos princípios já mencionados, quais sejam o da proporcionalidade e razoabilidade.
Ainda, no Recurso Extraordinário nº 582.461/SP o plenário do STF, decidiu pela
legitimidade da utilização da taxa SELIC como índice de atualização dos débitos tributários
pagos em atraso, bem como pelo caráter não confiscatório da multa em patamar de até 20%:

Multa moratória. Patamar de 20%. Razoabilidade. Inexistência de efeito


confiscatório. Precedentes. A aplicação da multa moratória tem o objetivo de
sancionar o contribuinte que não cumpre suas obrigações tributárias, prestigiando a
conduta daqueles que pagam em dia seus tributos aos cofres públicos. Assim, para
que a multa moratória cumpra sua função de desencorajar a elisão fiscal, de um
lado não pode ser pífia, mas, de outro, não pode ter um importe que lhe confira
característica confiscatória, inviabilizando inclusive o recolhimento de futuros
tributos. O acórdão recorrido encontra amparo na jurisprudência desta Suprema
Corte, segundo a qual não é confiscatória a multa moratória no importe de 20%
(vinte por cento) (RE 582.461/SP, 2011).

Tais posicionamentos reafirmam a desproporção entre as multas aplicadas ao crédito


tributário e aquelas aplicadas em outros ramos do direito (MELLO, 2013, p.79). Nas relações
privadas, por exemplo, na maioria das vezes, fixa-se multa moratória no percentual de 10%
sobre o valor da obrigação. Já na cobrança do crédito tributário, os percentuais arbitrados para
tais multas são superiores que 10% sobre o valor do tributo devido pelo descumprimento da
obrigação tributária principal.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

4. PROPOSTA DE MULTAS TRIBUTÁRIAS SEM CARÁTER


CONFISCATÓRIO

Após a análise das espécies de multas tributárias bem como do caráter confiscatório
que adquirem nos processos judiciais e administrativos cabe a formulação de proposta de
parâmetro para estipulação de multas em consonância com os princípios da proporcionalidade
e do não-confisco, com o intuito de garantir tanto a justiça tributária quanto a tributação justa.
Com relação às multas moratórias, por sua natureza civil parece razoável a fixação
de padrão máximo de 10% do valor do tributo. Conforme já fora mencionado, se nas relações
de direito privado esse é o percentual fixado, não se mostra razoável que sobre o crédito
tributário incida multas em percentual maior que esse pela mora no cumprimento da
obrigação tributária (MELLO, 2013).
Todavia, questão controvérsia no Direito Brasileiro é o parâmetro máximo de
cobrança da multa punitiva no processo judicial e administrativo tributário. Conforme já fora
analisado no item 3 deste artigo, essa espécie de multa ganha por muitas vezes caráter
confiscatório e atinge valores altíssimos e desarrazoados.
Com o intuito de estabelecer um parâmetro de cálculo para tais multas a tabela a
seguir traz uma proposta de adequação entre o ilícito praticado pelo contribuinte e a
porcentagem de multa punitiva que lhe será imposta:

Porcentagem da
Infração tributária
multa punitiva

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação tributária


acessória que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a 1% (Um por cento).
R$10.000,00 (Dez mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


5% (Cinco por
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a
cento).
R$50.000,00 (Cinquenta mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


10% (Dez por
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a
cento).
R$100.000,00 (Cem mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


15% (Quinze por
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a R$500.000
cento).
(Quinhentos mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória 20% (Vinte por


Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja inferior a cento).
R$1.000.000 (Um milhão de reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


25% (Vinte e cinco
que acarrete no não pagamento de tributo, cujo valor seja superior a R$
por cento).
1.000.000,00 (Um milhão de reais).

Tabela elaborada pelas autoras deste artigo.

Para exemplificar a aplicação dessa proposta a tabela a seguir traz alguns exemplos
hipotéticos de impostos descumpridos e das respectivas multas:

Valor da multa
Infração tributária
punitiva

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$ 2.000,00 (Dois mil R$20,00 (Vinte reais).
reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


R$2.000,00 (Dois mil
que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$40.000,00
reais).
(Quarenta mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


R$ 8.000,00 (Oito mil
que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$80.000,00 (Oitenta
reais).
mil reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória R$ 45.000,00


que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$300.000,00 (Quarenta e cinco mil
(Trezentos mil reais). reais).

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


R$ 140.000,00 (Cento
que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$ 700.000,00
e quarenta mil reais).
(Setecentos mil reais) .

Descumprimento ou cumprimento errôneo ou parcial de obrigação acessória


R$ 300.000,00
que acarrete em não pagamento de tributo no valor de R$ 1.200.000,00 (Um
(Trezentos mil reais).
milhão e duzentos mil reais).

Tabela elaborada pelas autoras deste artigo.

A proposta foi trazer um percentual que aumente de acordo com o valor do tributo
que deixou de ser pago em virtude do descumprimento ou cumprimento parcial de uma
obrigação tributária acessória. Assim, à medida que aumenta o valor do tributo também
aumenta a percentual de multa punitiva que será imposta ao contribuinte.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A proposta foi trazer um percentual que aumente de acordo com o valor do tributo
que deixou de ser pago em virtude do descumprimento ou cumprimento parcial de uma
obrigação tributária acessória. Assim, à medida que aumenta o valor do tributo também
aumenta a percentual de multa punitiva que será imposta ao contribuinte.
A tributação justa exige que o parâmetro de aplicação tanto de tributos quanto de
multas leve em consideração a realidade social do país. Desta forma, é importante analisar
que as multas que incidem sobre valores abaixo de R$ 10.000,00 (Dez mil reais), por
exemplo, são aquelas que na grande maioria das vezes serão cobradas do contribuinte comum
e dos pequenos empresários. As multas com altos valores, como aquelas que incidem sobre
tributos superiores a R$ 1.000.000, são muitas vezes cobradas de grandes empresas, que
decidem praticar o ilícito com o claro conhecimento do descumprimento da lei. Assim, o
objetivo da proposta é evitar que o contribuinte comum seja punido da mesma forma que as
grandes empresas e os grandes devedores, mas ainda assim evitando que em qualquer dos
casos a multa tributária adquira caráter confiscatório.
Neste interim, é importante distinguir dois termos frequentemente usados pela
doutrina e jurisprudência, quais sejam a tributação justa e justiça tributária. A primeira, diz
respeito à criação e majoração dos tributos. Já a segunda, relaciona-se à justiça dentro dos
processos judiciais e administrativos tributários sendo a efetiva aplicação do direito nos
diversos casos (MELLO, 2013), o que se faz imprescindível na concretude dos princípios
democráticos tratados nos itens anteriores.

CONCLUSÕES

Foram analisadas neste artigo as espécies de multas tributárias, bem como a


jurisprudência acerca da aplicação de diversos percentuais aplicados às multas tributárias nos
processos administrativos e judiciais. Observou-se que a falta de determinação do quantum
razoável para ser aplicado nas multas tributárias acaba gerando valores exacerbados, que
comprometem a renda e o patrimônio de muitos contribuintes. Além disso, observa-se que as
decisões judiciais relacionadas ao tema não abrangem todos os casos de multas fiscais o que
permite a aplicação de percentuais altíssimos que excedem em muito o valor do tributo
devido.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Tais valores excessivos não estão de acordo com os princípios basilares do Estado
Democrático de Direito, visto que a tributação não pode ser utilizada como meio de impedir o
contribuinte de exercer atividades, nem tão pouco afetar seu direito a uma vida digna. Nesse
sentido, destaca-se a importância da aplicação das multas em harmonia com os princípios da
proporcionalidade, razoabilidade e do não-confisco, que além de garantir a justiça tributária ,
permitem uma tributação justa.
Com o fim de garantir tais princípios, foi proposto nesse artigo um novo parâmetro
para estipulação do valor de multas punitivas, no sentido de evitar que as multas tributárias
aplicadas nos processos administrativos e judiciais possuam efeito confiscatório, em
discordância com a Constituição Federal de 1988.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 9. ed. São Paulo: Métodos, 2015.

BRASIL. Código Tributário Nacional. Promulgado em 25 de outubro de 1966. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172.htm>. Acesso em: 28 set. 2017.

________. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 27 set. 2017.

_______. Lei nº 9430. Promulgada em 27 de dezembro de 1996. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9430.htm>. Acesso em: 28 set. 2017.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1998.

DALLAZEM, Dalton Luiz. O princípio constitucional tributário do não-confisco e as multas tributárias. In:
FISCHER, Octávio Campos (coord.). Tributos e direitos fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004.

MELLO, Elizabete Rosa de. Direito Fundamental a uma Tributação Justa. São Paulo: Atlas, 2013.

NOGUEIRA, Ruy Barbosa; NOGUEIRA, Paulo Roberto Cabral. Direito tributário aplicado e comparado. Rio de
Janeiro: Forense, 1977.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 551 RJ. Relator Ilmar Galvão.
Acórdão, 24 out. 2003. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266412 >. Acesso em: 24 set. 2017.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 833.106 GO. Relator
Min. Marco Aurélio. Acórdão, 25 nov. 2014. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7464567>. Acesso em 25 set. 2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . Recurso Extraordinário n. 582.461 SP. Relator Min. Gilmar Mendes.
Acórdão, 18 maio 2011. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=626092>. Acesso em 25 set. 2017.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário n. 833.106/ GO. Relator Min. Marco Aurélio.
Acórdão, 25 nov. 2014. Disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7464567 >. Acesso em 25 set. 2017.

TORRES, Ricardo Lobo. O Conceito Constitucional de Tributo. In: TORRES, Heleno (Coord.). Teoria Geral da
Obrigação Tributária. Estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros,
2005.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Grupo de Trabalho 03

MERCADO DE TRABALHO,
CAMPO PROFISSIONAL
E MEDIAÇÃO
DISPUTAS PROFISSIONAIS
NA INTRODUÇÃO DA MEDIAÇÃO
NO NÚCLEO DO IDOSO E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
DE FORTALEZA. (MINISTÉRIO PÚBLICO DO CEARÁ)

ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende


Professor Titular de Teoria do Direito doDepartamento de Direito Público,
do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)
ALCÂNTARA, Alexandre de Oliveira
Estudante de doutorado do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)

RESUMO

O presente artigo propõe expor reflexões sobre o processo de criação do núcleo de mediação no
Núcleo do idoso e da pessoa com deficiência de Fortaleza (CE) e seu contexto de disputas
profissionais. A proposta é discutir o tema da mediação a partir da sociologia das profissões,
dialogando com documentos institucionais e dados empíricos coletados no âmbito dessa unidade do
ministério público cearense no período de 2013-2016. A proposta metodológica do trabalho é uma
compreensão interdisciplinar para pensar o instituto da mediação em um ambiente de competição
profissional. São identificados conflitos intra e interprofissionais no contexto de reformas no núcleo do
idoso e da pessoa com deficiência no momento de discussão e aprovação do núcleo de mediação. As
disputas ocorrem entre os promotores de justiça da unidade e percebe-se um ceticismo por parte de
alguns promotores na adoção da mediação, e indícios de uma tensão conflituosa entre ministério
público e defensoria pública.

Palavras-chave. Ministério Público; mediação; Sociologia das Profissões.

ABSTRACT

This article proposes to present reflections on the process of creation of the nucleus of mediation in the
nucleus of the elderly and the person with disabilities in Fortaleza (CE) and its context of professional
disputes. The proposal is to discuss the topic of mediation from the sociology of the professions,
dialoguing with institutional documents and empirical data collected within the scope of this unit of the
public ministry of Ceará in the period 2013-2016. The methodological proposal of the work is an
interdisciplinary understanding to think the institute of mediation in an environment of professional
competition. Intra and interprofessional conflicts are identified in the context of reforms in the nucleus
of the elderly and the person with disability at the moment of discussion and approval of the mediation
nucleus. Disputes occur among the unit's prosecutors and there is skepticism on the part of some
promoters in the adoption of mediation, and indications of a conflicting tension between public
prosecutors and public defenders.

Keywords. Public Prosecutor; mediation; Sociology of Professions.

143
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO: A DEMANDA POR DIREITOS SOCIAIS DA VELHICE E DAS


PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

O tema do 7º Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito (S&D 7) é “Cem


anos de transformações sociais: a revolução de outubro de 1917 e seu impacto no mundo
contemporâneo”. Nesse século, o mundo viveu uma transformação demográfica sem
precedentes na História. Falemos um pouco do envelhecimento da população e de suas
repercussões no sistema de justiça. Segundo o IBGE1 e as Nações Unidas2, na década de
vinte, o Brasil contava com uma população de 30, 6 milhões de pessoas enquanto o planeta
contava com 1,8 bilhão de pessoas. Em 2017 esses contingentes populacionais passaram
param para 207,7 milhões e 7,5 bilhão, respectivamente.
O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial, e no Brasil, a população
idosa é o grupo que apresenta as taxas mais elevadas de crescimento (CAMARANO,
2005, 2016, páginas 2-4 e 479-515). A taxa de fecundidade do país caiu de 6,16 filhos por
mulher para apenas 1,57 filhos em pouco mais de sete décadas – de 1940 para 2014. Em
contrapartida, a expectativa de vida da população aumentou 41,7 anos em pouco mais de
um século. Em 1900, a expectativa de vida era de 33,7 anos, dando um salto significativo em
pouco mais de 11 décadas, atingindo 75,4 anos em 20143.
Diante de tal realidade, o Estado brasileiro enfrenta graves dificuldades para atender
a demanda de polícias públicas desse segmento populacional, principalmente nos setores
previdenciário, de saúde, assistência social, segurança pública, habitação e lazer.
As Assembleias das Nações Unidas sobre o envelhecimento (1982 e 2002) foram
fundamentais para influenciar as legislações de vários países, inclusive o Brasil. Nessas
assembleias, foram elaborados planos de ação internacional para o envelhecimento, e as
nações se comprometeram a tomar uma série de medidas em defesa desse segmento
populacional. Estudos do IBGE (2012) demonstram o rápido crescimento do segmento
populacional acima de 65 anos no Brasil que em 2060 representará 26,7% da população. No
início da década de 2010, o país contava com 23, 5 milhões de pessoas maiores de 60 anos.
1
Fonte: de 1920 a 2010: IBGE – Disponível em https://memoria.ibge.gov.br/sinteses-historicas/historicos-dos-
censos/censos-demograficos.html acessado em 13.09.2017.
2
Para o mundo: Fonte: de 1920 a 1940: ONU- Disponível em:
http://www.un.org/esa/population/publications/wpp2002/WPP2002_VOL_3.pdf acessado em 13.09.2017 de
1950 a 2017, ONU- Disponível em http://www.un.org/en/development/desa/population/ acessado em 13.09.2017.
3
Brasil: uma visão geográfica e ambiental do início do século XXI (IBGE). Disponível em
https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?id=297884&view=detalhes acessado em 13.09.2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No plano legislativo, a Constituição de 1988 inovou ao exigir a efetiva proteção, por


parte do Estado, da sociedade e da família, à pessoa idosa (art.230, C.F.) A velhice digna é um
direito humano fundamental, porque expressão do direito à vida com dignidade. Em termos
infraconstitucionais a Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso representam as
principais leis ordinárias de proteção da pessoa idosa. Ocorre que transcorridos quase três
décadas da redemocratização do país e de todo esse labor legislativo pró-idoso4 as políticas
públicas para o envelhecimento ainda não foram efetivadas de modo satisfatório.
Até o presente, embora a Constituição Federal, a PNI e o EI delimitem as
corresponsabilidades do amparo à pessoa idosa vulnerável entre a família, a sociedade e o
Estado, na prática, a primeira tem assumido o encargo de cuidar de seus idosos. Desse modo,
uma cuidadosa leitura dessas leis demonstra o quanto o Estado brasileiro é devedor para com
esse segmento populacional. O não atendimento dessas demandas por políticas públicas gera
uma demanda por direitos sociais perante o sistema de justiça, sendo o ministério público um
dos atores responsáveis pela efetivação desses direitos (art.74, I do E.I).
No tocante às pessoas com deficiência, a situação social não se mostra diferente,
posto que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam
que 6,2% da população brasileira tem algum tipo de deficiência. A Pesquisa Nacional de
5
Saúde (PNS) considerou quatro tipos de deficiências: auditiva, visual, física e intelectual.
Segundo o IBGE, a população cearense com alguma deficiência chega a número superior de
dois milhões de pessoas6. O Estado brasileiro é signatário de diversas convenções, dentre as
quais a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi
homologada pela Assembleia da ONU, em 13 de dezembro de 2006, e entrou em vigência em
3 de maio de 2008, após ultrapassar o mínimo de vinte ratificações. A promulgação desse
documento pelo Decreto n.º 6.949, de 25 de agosto de 2009, ganhou importância por ter sido
a primeira convenção internacional com equivalência de emenda à constituição, por força do
artigo 5º, § 3º do texto constitucional de 1988.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência), Lei nº 13.146 de 6 de julho de 2015, conferiu ao Ministério Público atribuições

4A Política Nacional do Idoso está vigente há 23 anos e o Estado do Idoso, há 14 anos.


5
Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-08/ibge-62-da-populacao-tem-algum-tipo-de-
deficiencia acessado em 14.09.2017
6
Disponível em
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=230440&idtema=92&search=ceara|fortaleza|censo-
demografico-2010:-resultados-da-amostra-pessoas-com-deficiencia-- acessado em 14.09.2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de garantidor de direitos da pessoa com deficiência. Novamente, coloca-se o Estado brasileiro


como devedor de políticas públicas para com um segmento populacional historicamente
excluído.

1. O NÚCLEO DO IDOSO E DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DE


FORTALEZA (MINISTÉRIO PÚBLICO DO CEARÁ).

Cumpre inicialmente registrar da minha relação pessoal (segundo autor7) com o


objeto de estudo o que amplia a dificuldade de objetivação, embora isso não comporte
nenhuma anormalidade como pondera PAUGAM (2015, página 22).
O Núcleo de Defesa do Idoso e da Pessoa com Deficiência8 do Ministério Público
na cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará é composto por 07 (sete) Promotorias de
Justiça: 17ª, 18ª, 19ª, 20ª, 21ª, 22ª e 37ª Promotorias de Justiça Cível da Comarca de
Fortaleza.
Com relação à pessoa com deficiência, a situação não é diferente, a população
cearense com alguma deficiência chega a número superior de dois milhões de pessoas,
gerando demanda por serviços públicos de saúde, educação, lazer, acessibilidade etc.
Cada uma das Promotorias é responsável pelo seguinte quantitativo de
procedimentos administrativos (2013-2016) que apuram principalmente, situações de
violência contra a pessoa idosa e pessoa com deficiência, como abandono, maus tratos,
violência física, psicológica, violência financeira etc,: a) 17ª Promotoria de Justiça: 344
procedimentos administrativos; b) 18ª Promotoria de Justiça: 424 procedimentos
administrativos; c)19ª Promotoria de Justiça: 236 procedimentos administrativos; d) 20ª
Promotoria de Justiça: 281 procedimentos administrativos; e) 21ª Promotoria de Justiça: 345
procedimentos administrativos; f) 22ª Promotoria de Justiça: 120 procedimentos
administrativos e g) 37ª Promotoria de Justiça: 301 procedimentos administrativos. Esses
números dizem respeito à atuação extrajudicial, isto é, sem levar em consideração as ações
judiciais propostas em razão da não solução das questões pela via extrajudicial. Ademais,

7
O segundo autor exerce a função de Promotor de Justiça em Fortaleza-Ceará. No dia 03 de outubro de 2013 foi
removido da 7º Promotoria de Justiça Criminal para a 17ª Promotoria de Justiça Cível da Comarca de
Fortaleza (Núcleo do idoso e da pessoa com deficiência).
8
Iremos usar a abreviatura NUPID (Núcleo do idoso e da pessoa com deficiência).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

cada uma dessas Promotorias de Justiça tem atribuição de intervir nas demais ações em que
haja interesse público ou de incapazes em cada uma das Varas Cíveis respectivas.
Afora uma demanda decorrente da violência interpessoal, há uma demanda que
decorre de uma violência institucional, ou seja, aquela que acontece em razão da omissão ou
da deficiência dos órgãos públicos ou políticas públicas que deveriam criar um ambiente
propício ao envelhecimento e dignidade das pessoas com deficiência, como por exemplo,
podemos citar a não efetivação das alternativas de atendimento ao idoso, educação especial e
acessibilidade, matérias previstas nas respectivas legislações.
Em abril de 2013 a Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério
Público- CNMP publicou um Relatório de Inspeção realizada no Ministério Público do
Ceará9 que apontava uma série de críticas à atuação das Promotorias do Núcleo do idoso e da
pessoa com deficiência de Fortaleza, em especial: a) Os procedimentos administrativos eram
instaurados independentemente de portaria; b) Não havia nos autos atos de publicização geral
de instauração dos procedimentos; c) Não havia observância à necessária prorrogação dos
prazos e/ou convolação de procedimentos preparatórios em inquéritos civis; d) O
funcionamento da Secretaria Executiva em prédio distinto do Núcleo, situação que
prejudicava o atendimento das demandas; e) A ausência de paralelismo entre a definição das
atribuições e funções dos membros do MPCE, em matérias de atuação correlatas (tutela
coletiva a direitos humanos/sociais).
Quanto a esse último item, foi observado na correição, a prevalência de
procedimentos tratando de questões envolvendo direitos individuais indisponíveis de idosos e
de pessoas com deficiência, principalmente em situação de conflitos familiares. Por outro
lado, havia poucos inquéritos civis públicos tratando de direitos coletivos dos dois grupos
vulneráveis atendidos pelo NUPID.
Dessa inspeção decorreram discussões e mesmo, um conflito entre os sete
Promotores de Justiça do NUPID em torno das críticas do Conselho Nacional do Ministério
Público, contexto em que, entre outras propostas, surgirá a ideia de criação de um núcleo de
mediação para atender conflitos envolvendo direitos individuais de pessoas idosas e com
deficiência.

9
Disponível em
http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Corregedoria/inspe%C3%A7%C3%A3o/Relat%C3%B3rio_Conclusivo_
MPE.CE_%C3%BAltima_vers%C3%A3o1.pdf acessado em 15.09.2017
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. DISPUTAS E AS MUDANÇAS IMPLEMENTAS NO NÚCLEO DO IDOSO E


DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DE FORTALEZA (MINISTÉRIO PÚBLICO
DO CEARÁ).

A nossa proposta então é abordar o contexto de criação do Núcleo de Mediação do


idoso e da pessoa com deficiência no âmbito do NUPID de Fortaleza a fim de atender a
demanda de aprimoramento apontada pela inspeção da Corregedoria do Conselho Nacional
do Ministério Público, demarcando como hipóteses de trabalho os conflitos intra e inter-
profissionais subjacentes, ou seja, os decorrentes dos embates entre os promotores de justiça
integrantes do NUPID e indícios de conflituosidade entre esses e a defensoria pública.
Tal abordagem se dará pelo olhar da sociologia das profissões, buscando pela
etnografia institucional (BONELLI, 1998; 2002) discutir essa interação entre os atores
(promotores de justiça), revelando uma tensão conflituosa entre esses profissionais quanto às
propostas de aprimoramento do NUPID feitas pelo Conselho Nacional do Ministério Público
e a constatação de uma situação conflituosa entre ministério público e a defensoria Pública.
Os dados demonstrados no trabalho decorrem de pesquisa empírica realizada pelo
segundo autor no âmbito do Ministério Público do Ceará, mas precisamente no NUPID
durante os anos de 2013 a 2016, e discutidas e analisadas com o primeiro autor, no qual foram
empregados métodos da etnografia institucional, em especial a observação participante e
análise documental para a escrita deste texto.
O trabalho e as críticas da Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do
Ministério Público causaram reações adversas do grupo de Promotores de Justiça integrantes
do NUPID. De um lado, aqueles que concordavam com as críticas e da necessidade de
mudanças administrativas e do outro, um grupo minoritário que entendia uma intromissão
indevida do Conselho Nacional do Ministério Público na instituição e que defendia a atuação
profissional até então desenvolvida:

Esse pessoal do Conselho Nacional do Ministério Público não conhece a nossa


realidade e chega aqui querendo impor uma série de mudanças sem oferecer
condições materiais e de pessoal para tal (Promotora de Justiça);

Antes de exigir uma melhor atuação dos promotores de justiça, esse pessoal deveria
arrumar um prédio melhor para nosso núcleo, que não tem condições de receber
com dignidade o público. Temos procurado fazer o melhor e temos cumprido os
objetivos de atender as pessoas idosas e com deficiência de Fortaleza (Promotor de
Justiça).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Temos que reconhecer que nosso núcleo tem um grande número de promotores de
justiça (07) em comparação com outras capitais. E o que estamos fazendo em
termos de tutela coletiva em prol da pessoa idosa e da pessoa com deficiência?
Estamos fiscalizando os abrigos de idosos de forma sistemática? Estamos
acompanhando as políticas públicas e os orçamentos destinados a essas políticas?
(Promotor de Justiça)

Realmente, tem dias que me sinto enxugando gelo, pois até consigo resolver alguns
problemas pessoais dessas pessoas, mas as questões das políticas públicas? Existe
uma grande demanda de problemas pessoais individuais envolvendo violências
contra essas pessoas porque não temos políticas públicas efetivas.(Promotora de
Justiça)

Acho um absurdo o Estado pagar um excelente salário a um Promotor de Justiça


para fazer mediação familiar. Hoje é o que mais fazemos aqui no NUPID. A
instituição tem uma vocação para tratar das questões que envolvem a coletividade,
as políticas públicas... (Promotor de Justiça).

Essas falas demonstram muito bem uma situação conflituosa e de uma competição
intra-profissional entre um grupo de promotores de justiça que já estava há alguns anos no
NUPID e no próprio Ministério Público e um grupo de profissionais que havia chegado há
pouco tempo na unidade e pertencia a uma geração mais nova que entendia da necessidade de
mudanças urgentes para melhorar atuação da instituição no âmbito da tutela da pessoa idosa e
da pessoa com deficiência no município de Fortaleza. Maria da Glória Bonelli relaciona a
competição intraprofissional, com vários fatores, entre os quais uma questão de diferença
geracional:

O outro tipo de competição que movimenta o mundo do Direito refere-se às


disputas e tensões vivenciadas pelos pares no interior da profissão a que pertencem.
As distintas posições que compõem a profissão, que se apresenta estratificada em
diferentes subgrupos, pode inclusive favorecer a segmentação por gênero, etnia ou
geração, com grupos profissionais monopolizando critérios de seleção de novos
pares, introduzindo novas discriminações e multiplicando conflitos entre seus
membros. (BONELLI,1988, p.20).

Restou evidente no conflito intraprofissional entre os promotores de justiça do


NIPID a existência de duas concepções de Ministério Público ou entre dois grupos
geracionais, o primeiro que ainda não compreendeu a necessidade de uma atuação
institucional focada do âmbito da defesa de direitos coletivos, buscando a efetivação das
políticas públicas, seja por uma atuação administrativa por meio de inquéritos civis públicos,
termos de ajustamento de condutas, seja através do Poder Judiciário, propondo-se demandas
por ações civis públicas etc e o segundo grupo, que defende essa atuação. O primeiro grupo
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mantinha uma atuação no NUPID quase que exclusivamente no âmbito da tutela de direitos
individuais indisponíveis, motivo da censura por parte do Conselho Nacional do Ministério
Público.
Esse choque geracional demonstra a não coesão da instituição, o conflito
intraprofissional e concepções institucionais diferentes, não se podendo falar uma identidade
coletiva da instituição, senão em uma perspectiva ideológica, a fim de manter a profissão
como uma corporação coesa, como bem esclarece Maria da Glória Bonelli:

A idéia central no conceito de competição intraprofissional opõe-se à visão da


profissão como um grupo coeso, com uma única identidade coletiva. Ele procura
mostrar esta construção como uma perspectiva ideológica, que se propõe a
fortalecer a profissão como corporação. (BONELLI,1988, p. 20).

Desse modo, o ano de 2014 foi marcado por intensas discussões e conflitos sobre os
novos rumos que deveriam ser dados ao NUPID a fim de melhorar sua atuação, ficando bem
clara a oposição dos dois grupos como acima descrito. Realmente não há como falar de
“grupo coeso”, quando se tem interpretações institucionais diferentes. O fato é que nesse ano,
o grupo que defendia mudanças no NUPID obteve duas importantes vitórias, primeiro,
internamente, onde as propostas defendidas pelo grupo foram deliberadas e aprovadas por
maioria, e segundo, perante as instâncias superiores da instituição que aprovaram as
mudanças demandadas pelo grupo majoritário do NUPID.
A primeira das mudanças se deu em maio quando o Procurador-Geral de Justiça
editou o Provimento nº10010 que instituiu no âmbito da Estrutura Organizacional do
Ministério Público do Estado do Ceará, a Secretaria Executiva das Promotorias de Justiça
Cíveis atuantes na defesa do idoso e da pessoa com deficiência. A medida deu autonomia
administrativa ao NUPID e agilizou o atendimento de idosos e pessoas com deficiência, bem
como, a distribuição dos processos administrativos.
A segunda mudança se deu no âmbito do Órgão Especial do Colégio dos
Procuradores de Justiça que através da Resolução nº18/201411, especializou12 a atuação das
07 (Promotorias de Justiça), ficando duas Promotorias de Justiça com atribuições de tutela

10
Disponível em http://tmp.mpce.mp.br/servicos/provimentos/2014/Provimento100-2014.pdf acessado em
16.09.2017
11
Disponível em http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2015/12/Resolucao018.2014.pdf acessado em
16.09.2017
12
A distribuição das atribuições: tutela individual x tutela coletiva foram acertadas entre os próprios promotores
de justiça, depois de muitas reuniões e discussões.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

coletiva dos direitos da pessoa idosa (17ª e 19ª Promotorias de Justiça Cíveis), duas
Promotorias de Justiça com atribuições de tutela coletiva dos direitos da pessoa com
deficiência (18ª e 20ª Promotorias de Justiça Cíveis) e três Promotorias de Justiça com
atribuições de tutela dos direitos individuais da pessoa idosa e da pessoa com deficiência (21ª,
22ª e 37ª Promotorias de Justiça Cíveis)13.
Essas duas mudanças deram uma nova dinâmica ao NUPID, mas foram realizadas
com resistências, tanto no âmbito das 07 Promotorias do NUPID, bem como, com menor
intensidade, nos Órgãos superiores do Ministério Público do Ceará. A especialização das
Promotorias mudou completamente a atuação do NUPID a atendeu a uma das principais
demandas do Conselho Nacional do Ministério Público no sentido da instituição priorizar a
atuação na defesa de direitos coletivos dos idosos e pessoas com deficiência.
A última mudança no NUPID nesse contexto de conflitos intra-profissional se deu
com a criação do Núcleo de Mediação do Idoso e da Pessoa com Deficiência pelo
Provimento nº13, de 9 de fevereiro de 2017, da senhora Procuradora-Geral de Justiça em
exercício14. A descrição das mudanças anteriores foi necessária para contextualizar o
surgimento da proposta de criação de um núcleo de mediação no âmbito do NUPID. A ideia é
transferir para esse núcleo de mediação, boa parte da demanda envolvendo questões
individuais, principalmente conflitos familiares de pessoas idosas e de pessoas com
deficiência. Mais uma vez, reacende-se o conflito entre os dois grupos de promotores.

2. A QUEM INTERESSA UM NÚCLEO DE MEDIAÇÃO NO NUPID? A


PERSISTÊNCIA DOS CONFLITOS INTRA-PROFISSIONAIS E A AMEAÇA
DA DEFENSORIA PÚBLICA.

Desde a instituição da arbitragem em nosso sistema legal pela Lei nº 9.307/1996,


sob a perspectiva legal, considera-se que o Estado deixou de possuir o monopólio da
jurisdição, visto que a decisão arbitral tem o mesmo valor ontológico de uma sentença
judicial, produzindo os mesmos efeitos daquela proferida no processo judicial. Avançando
nesse novo paradigma de métodos alternativos de conflitos tivemos a aprovação da Lei de

13
É importante registrar que há pelo menos um Promotor de Justiça insatisfeito com a mudança por não se
identificar com o trabalho de defesa da tutela individual.
14
Disponível em http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2016/10/Provimento-n%C2%BA-013-2017-Cria-
N%C3%BAcleo-de-Media%C3%A7%C3%A3o-da-Pessoa-Idosa-e-com-Defici%C3%AAncia.pdf acessado em
16.09.2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mediação (Lei nº 13.140/2015), bem como, o novo Código de Processo Civil (Lei nº
13.105/2015) que também trata do instituto, inclusive estatuindo como norma fundamental do
processo civil brasileiro que:

[...] a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos


deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. (art.3º, § 3º do NCPC).

A adoção desses novos métodos de resolução de conflitos pela legislação brasileira


vem em um contexto de criticas ao Poder Judiciário depois da redemocratização do país e da
reflexão de sua função social, de sua legitimação e incapacidade para atender a uma explosão
de litigiosidade decorrente da complexidade socioeconômica e da extrema desigualdade
social da sociedade brasileira, (SANTOS et alii, 1989, página 54.).
Esse paradigma dos métodos de solução consensual dos conflitos traz uma nova
dimensão e impacto nos múltiplos saberes do fenômeno jurídico, seja no âmbito do direito
processual (reformas no interior da justiça civil tradicional), do direito comercial, direito do
consumidor, direito de família e da sociologia para administração da justiça, tendo como
unidade de análise o conflito, e não mais, a norma.
Deve ser ponderado, entretanto, que essas novas metodologias alternativas de
solução de conflitos (Alternative Dispute Resolution- ADR15), entre as quais temos a
negociação, a mediação, e a conciliação, têm recebido críticas de alguns teóricos que as vêm
como um instrumento do neoliberalismo em razão do afastamento do Estado de sua função
primordial de garantir direitos através do Poder Judiciário. Nessa direção, (NUNES, 2012,
p.173) critica o movimento “Conciliar é legal” do Supremo Tribunal Federal:

Defende-se, ainda, sempre em perspectiva ideológica socializadora, a profusão de


técnicas alternativas de resolução de conflitos (ADR- Alternative dispute
resolution), a difusão da cultura da conciliação, como o atual conciliar é legal.
Realmente, conciliar seria legal e legítimo se tal opção fosse escolhida pelas partes,
no exercício de sua autonomia privada, devido às peculiaridades de seu caso, e não
dimensionada como única hipótese de solução rápida de seu caso ou mesmo,
imposta pelo magistrado mediante a coação de futura decisão desfavorável
(NUNES, 2012, p.173)

O autor citado tem a concepção que os métodos alternativos de resolução de


conflitos estão proliferando em nosso país, não como uma decorrência das necessidades e da

15
Essas metodologias têm se desenvolvido com êxito em países como os Estados Unidos, Inglaterra, Itália e
Espanha.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

decisão dos jurisdicionados, mas tão somente em razão da incapacidade do Estado Brasileiro
em garantir o acesso a uma jurisdição eficiente. No mesmo sentido, pondera Streck:

Cada vez que a crise do Judiciário se agudiza- através da inefetividade, acesso à


justiça, lentidão da máquina, etc- o establishment responde com soluções ad hoc,
como por exemplo, uma pífia reforma do processo civil, a lei dos juizados especiais
cíveis e criminais e o nefasto projeto (de poder) representado pelas súmulas
vinculantes.
Com o juizado especial criminal, instituído pela Lei 9099/95, p.ex., e nova lei da
arbitragem, o Estado sai cada vez mais das relações sociais (STRECK, 2003,
página 68).

Feito esse parêntese, e registrado o contraponto, voltemos a considerar os métodos


alternativos de solução de conflitos como uma possibilidade legítima de pacificação social,
onde as pessoas tenham seus conflitos resolvidos de uma forma mais eficiente, econômica e
acessível. O novo CPC16, no artigo 165, §§2º e 3º faz a distinção entre a mediação e
conciliação:

Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos,


responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e
pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a
autocomposição:
....
§ 2o O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver
vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada
a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes
conciliem.
§ 3o O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo
anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os
interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da
comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem
benefícios mútuos.

A mediação coloca-se no elenco dos métodos que levam em consideração e


trabalham os interesses das partes, nos quais são investigadas as preocupações, as
necessidades, as percepções e vontades dos envolvidos no conflito como ponto inicial para a
apuração das questões a serem resolvidas. A mediação busca identificar os interesses por trás
das posições, enquanto a conciliação trabalha somente com as posições externadas pelas
partes do conflito.
A leitura da lei aponta para a diferenciação entre mediação e conciliação em razão
da natureza do conflito. Assim, a mediação coloca-se como mais apropriada para litígios
16
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm acessado em
16.09.2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

surgidos de relações continuadas- relações de parentesco (família), de vizinhança, de


sociedade (art.165§3º, NCPC), e por sua vez, a conciliação apresenta-se mais pertinente para
solução de conflitos oriundos de relações descartáveis, tais como conflitos envolvendo
acidentes automobilísticos e relações de consumo (art.16523º, NCPC). Tomemos um
conceito doutrinário da mediação:

Pode-se entender por mediação o instrumento de natureza autocompositiva


marcado pela atuação, ativa ou passiva, de um terceiro neutro e imparcial,
denominado mediador, que auxilia as partes na prevenção ou solução de litígios,
conflitos ou controvérsias (GALVÃO FILHO; WEBER, 2008, página 19-20).

Realizadas essas ponderações sobre os métodos alternativos de resolução de


conflitos, em especial, sobre a mediação, resta afirmar que no contexto da discussão sobre as
mudanças no NUPID, como contextualizado e esboçado acima, surgiu a proposta de criação
de um núcleo de mediação para atender a grande demanda de conflitos familiares levadas à
instituição. É fato que muitas dos conflitos familiares envolvendo idosos e pessoas com
deficiência giram em torno do abandono, dos maus-tratos familiares, da não assunção dos
deveres de cuidado pelos familiares etc. Portanto, a mediação é perfeitamente indicada para a
resolução desses conflitos, daí a criação no começo desse ano do Núcleo de Mediação do
Idoso e da Pessoa com Deficiência.
Apesar de já criado, o Núcleo ainda não foi instalado, havendo a programação de
um curso preparatório para os mediadores voluntários que terá início no começo de outubro, a
ser ministrado na Escola Superior do Ministério Público do Ceará17. Não foi sem divergência
e conflito entre os promotores de justiça que se concretizou a criação desse núcleo. O que
diziam o grupo opositor ao núcleo? Em algum momento foi colocado o contraponto
doutrinário referido acima? (a mediação como um instrumento liberal de solução de conflito)?
Não. Vejamos algumas falas:

“Essa ideia de um núcleo de mediação é complicada porque pode esvaziar as


Promotorias de Justiça de Tutela individual, pois muitas demandas serão deslocadas
para os mediadores” (Promotora de Justiça);

17
Disponível: http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2015/12/Minist%C3%A9rio-P%C3%BAblico-
Sociedade-e-Fam%C3%ADlia-Medir-para-proteger.pdf acessado em 16.09.2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

“ Vejo um risco de até mesmo nosso núcleo perder Promotorias de Justiça18, já que
haverá uma redução de procedimentos em tramitação nas Promotorias de tutela
individual” (Promotora de Justiça);

“Ainda há uma questão mais grave que traz a criação desse núcleo de mediação,
nós podemos perder público para à defensoria pública. As pessoas gostam de ser
atendidas por uma autoridade, não acreditam em um simples mediador” (Promotora
de Justiça).

As falas do grupo que defendiam a criação do núcleo de mediação:

“As Promotorias de Justiça perdem muito tempo com conflitos que poderiam ser
resolvidos pela mediação, principalmente os conflitos familiares, inclusive porque
requerem mais tempo e investigação da gênese da desavença, e a mediação é um
excelente instrumento para isso” (Promotor de Justiça).

“A criação do núcleo de mediação liberará as Promotorias de |Justiça de tutela


individual para resolver e enfrentar as questões que realmente precisam de um
encaminhamento jurídico, seja administrativamente ou judicialmente para garantir
direitos individuais indisponíveis” (Promotora de Justiça).

Mais uma vez percebemos haver uma diferença das concepções institucionais em
razão do fator geracional dos profissionais. A geração mais antiga vê com desconfiança
mudanças no fazer institucional, demonstra uma insegurança em criar outra instância de
resolução de conflitos, no caso o núcleo de mediação. Há uma persistência da tensão
conflituosa em razão de visões institucionais diferentes. Maria da Glória Bonelli ao estudar
instituições do sistema de justiça paulista identifica disputas internas em torno do conteúdo da
ideologia profissional dominante:

Tal como encontrado entre os advogados e os juízes, os promotores e procuradores


enfrentam disputas internas sobre o conteúdo da ideologia profissional que
predomina no grupo (BONELLI, 2002, página 24).

Apesar da oposição desse grupo à criação do núcleo de mediação no NUPID, o


Ministério Público do Ceará conta com um Programa de Mediação Comunitária há dez anos,
regulamentado e pela Resolução nº01, de 27 de junho de 2007, do Colégio de Procuradores

18
Observamos que o Ministério Público do Ceará estuda uma reforma administrativa, podendo haver extinção,
fusão ou transformação no atual quadro das promotorias de justiça. Disponível em:
http://intranet.mpce.mp.br/asscom/destaquesresultado.asp?icodigo=5939 acessado em 16.09.2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de Justiça19. Segundo dados da instituição, em 2016 foram realizados 11.370 atendimentos à


população e o percentual de êxito nas mediações realizadas atingiu a marca de 86,77%20. Ora,
se a mediação comunitária está dando certo em vários bairros de Fortaleza, porque não daria
certo no NUPID?
O Poder Judiciário cearense também tem um trabalho significativo no campo dos
métodos alternativos de solução de conflitos. Segundo dados do Conselho Nacional de
Justiça-CNJ, na publicação Justiça em Números 2017 (ano-base 2016)21, apesar de o Tribunal
de Justiça do Ceará ter o pior índice de produtividade do país, a instituição ficou com a
segunda melhor posição no número de Centros Judiciários de Solução de Conflitos na Justiça
Estadual, por tribunal, contando com 112 desses centros no Estado, ficando atrás somente de
São Paulo que possui 191 centros.
Outra questão que merece uma análise na fala de um dos Promotores de Justiça que
repudiavam a ideia de criação do núcleo de mediação no NUPID é o discurso que vê a
Defensoria Pública como uma ameaça à instituição do Ministério Público. A situação
caracteriza-se como uma disputa entre instituições do sistema de justiça no mercado de
trabalho. Coloca-se o argumento da possível “fuga de clientes” do Ministério Público em
razão da criação do núcleo de mediação no NUPID e da não confiança das pessoas na figura
do mediador, personagem que não é uma “autoridade”. Maria da Glória Bonelli relaciona as
disputas inter-profissionais com a proximidade entre as profissões no sistema de justiça, no
“mundo do direito”:

Os tipos de conflitos observados nesta pesquisa apontam para a existência de maior


tensão entre aqueles que estão em posições mais próximas, reforçando a noção de
que é a proximidade nos lugares ocupados no sistema das profissões que aumenta a
disputa entre eles. É possível se detectar a distância entre as posições profissionais,
em função da forma mais amena, mais cordial ou mais externa com que os
entrevistados se referem às profissões que atuam no mundo do direito. Esta
distância é detectada principalmente na hierarquia ocupacional. O contato entre
auxiliares judiciais e juízes é espacialmente próximo, mas é socialmente distante.
As questões que provocam a manifestação de opiniões mais veementes e
conflituosas são aquelas cuja proximidade profissional as coloca em disputa, seja
jurisdicionalmente, seja negando-lhe a aceitação desejada através da contestação
contínua. (BONELLI 1988, p.13).

19
Disponível em http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2015/12/resolucao001-2007proc.pdf acessado em
16.09.2017.
20
Disponível em http://www.mpce.mp.br/2017/04/25/mpce-apresenta-sucesso-de-mediacoes-comunitarias-no-x-
forum-de-mediadores-e-cultura-de-paz/ acessado em 16.09.2017.
21
Disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/09/904f097f215cf19a2838166729516b79.pdf
acessado em 16.09.2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A análise da Professora Maria da Glória Bonelli é perfeita para a compreensão da


situação conflituosa existente entre o Ministério Público e a Defensoria Pública. Desde que a
Lei nº 11.448/200722 deu legitimidade à Defensoria Pública para propor ação civil pública
que o embate entre as instituições é uma constante. Reclama o Ministério Público que o
Estado age mal ao atribuir atribuições idênticas a instituições diversas. Promotores de Justiça
alegam que os Defensores Públicos sofrem uma “crise de identidade” ao querer propor ações
para tutelar direitos coletivos, esquecendo-se de sua vocação constitucional que é prestar
assistência jurídica aos hipossuficientes de recursos no âmbito da defesa de direitos
individuais.
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp23) propôs ação
direta de inconstitucionalidade (ADI n. 3.943/DF), perante o Supremo Tribunal Federal
(STF), questionando o dispositivo da Lei 11.448/2007 que legitima a Defensoria Pública a
ajuizar ações civis públicas, não obtendo êxito, conforme ementa da decisão do plenário da
corte que teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia24:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.


LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR
AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART. 5º, INC. II, DA LEI N. 7.347/1985, ALTERADO
PELO ART. 2º DA LEI N. 11.448/2007). TUTELA DE INTERESSES
TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFENSORIA PÚBLICA: INSTITUIÇÃO
ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL. ACESSO À JUSTIÇA.
NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS
GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA
MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART. 5º,
INCS. XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDADE DO MINISTÉRIO
PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA
DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO
RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA
PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

A leitura do acórdão demonstra claramente que na perspectiva da entidade de classe


do Ministério Público a legitimação da Defensoria Pública para propor ações civis públicas
provocou um prejuízo à instituição ministerial, dado indicador do conflito inter-profissional

22
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11448.htm acessado em
16.09.2017.
23
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - CONAMP, é a entidade de classe de âmbito
nacional do Ministério Público Brasileiro. Disponível em https://www.conamp.org.br/pt/ acessado em 16.09.2017.
24
Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=9058261 acessado em
17.09.2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

entre as instituições, conflito este também demonstrado no argumento da Promotora de


Justiça que vê na criação do núcleo de mediação no NUPID uma ameaça de “fuga de
clientes” do Ministério Público para à Defensoria Pública25.
O Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP publicou em seu site no
último dia 13 um Relatório de Pesquisa de Satisfação e Imagem do CNMP e do Ministério
Público -201726 que demonstra uma disputa pela melhor imagem pública entre as instituições
do sistema de justiça, tendo sido a Defensoria Pública mais bem avaliada em alguns pontos da
pesquisa: a) Importância da Instituição: Defensoria Pública (1ª); Ministério Público (2ª); b)
Confiança na Instituição27: Defensoria Pública (2ª); Ministério Público (3ª). Imediatamente,
após o conhecimento da pesquisa, iniciou-se uma discussão virtual entre alguns Membros do
Ministério Público sobre o conteúdo da pesquisa, bem como, alguns integrantes da
Defensoria Pública propagaram o resultado da pesquisa que demonstrou ser a sua instituição a
mais importante e confiável do sistema de justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto descrevemos o incremento no país por demandas de políticas


públicas que atendam idosos e pessoas com deficiência. O envelhecimento populacional é um
fenômeno mundial e levou organismos internacionais como a Organização das Nações
Unidas (ONU) a realizar Conferências para discutir a questão com os estados-membros e
elaborar documentos afirmadores da necessidade da preparação das nações para enfrentar o
desafio do envelhecimento com dignidade. No mesmo plano dos organismos internacionais,
as pessoas com deficiência têm lutado pela afirmação de direitos. Esses movimentos
favoreceram a partir da constituição de 1988, o reconhecimento desses grupos vulneráveis e a
elaboração de uma legislação específica, como o Estatuto do Idoso e a Lei Brasileira de
Inclusão.

25
A Defensoria Pública do Ceará dispõe de um Núcleo do Idoso e de Defesa dos Portadores de Necessidades
Especiais e Deficientes Físicos. Disponível em http://www.defensoria.ce.def.br/locais-de-atendimento/fortaleza/
acessado em 17.09.2017.
26
Disponível em
http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_da_pesquisa_CNMP_V7.pdf acessado
em 17.09.2017.
27
As Forças armadas figuraram como a instituição mais confiável.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No âmbito do sistema de justiça brasileiro foram criadas instâncias administrativas e


judiciais para atender a demanda desses grupos vulneráveis, como o Núcleo do idoso e da
pessoa com deficiência de Fortaleza (Ministério Público do Ceará). O Novo Código de
Processo Civil determina que a mediação deva ser estimula pelos atores do sistema de justiça,
entre os quais, os membros do ministério público. Assim, procuramos refletir sobre os
conflitos intra e inter-profissionais no contexto de criação do núcleo de mediação no NUPID,
procurando identificar as disputas em jogo, os interesses e visões institucionais diferentes,
bem como, o indício de disputa com a Defensoria Pública por alguns dos Promotores de
Justiça do NUPID.
O elemento determinante da disputa entre os próprios Promotores de Justiça foi o
fator geracional, sendo que a diferença de tempo na instituição e mesmo de idade é um fator
que influi na interpretação do fazer profissional e das necessidades da instituição. Por sua vez,
foi detectado claro indícios de disputa inter-profissional de alguns Promotores de Justiça com
Defensores Públicos (Defensoria Pública), quando se colocaram contrários a criação do
núcleo de mediação no NUPID com receio de “perder clientes” para essa instituição. A
“proximidade” entre assas profissões e um fato gerador de conflitos. Esses mesmos
Promotores de Justiça vêm com pessimismo e desconfiança a figura do mediador, pois
segundo uma das falas, “as pessoas querem ser atendidas por autoridades, e não por
mediadores”.
A disputa inter-profissional entre Promotores de Justiça e Defensores Públicos
restou patente no plano nacional quando do episódio em que Associação Nacional dos
Membros do Ministério Público (CONAMP) propôs ação direta de inconstitucionalidade
perante o Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a legitimidade da Defensoria
Pública a ajuizar ações civis públicas.
O núcleo de mediação do NUPID foi instituído nesse contexto de disputas,
apreensões e incertezas, estando em fase de implantação, já se esperando outro trabalho sobre
seu funcionamento, viabilidade, conflitos e disputas para o 8º Seminário Interdisciplinar em
Sociologia e Direito.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS

BONELLI, Maria da Gloria. A competição profissional no mundo do Direito. In: Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 10(1): 185-214, maio de 1998. Disponível em
https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/86766/89768 , acessado em 01/09/2017.

_______________________. Profissionalismo e política no mundo do direito- As relações dos advogados,


desembargadores, procuradores de justiça e delegados de polícia com o Estado. São Carlos: EdUFSCar:
Editora Sumaré, 2002.

CAMARANO, Ana Amélia et al. Idosos brasileiros: indicadores de condições de vida e de acompanhamento de
políticas. Brasília: Presidência da República- Subsecretaria de Direitos Humanos, 2005.

CAMARANO, Ana Amélia e BARBOSA, Pamela e Camarano, Ana Amélia. Instituições de longa permanência
para idosos no Brasil: do que se está falando? In: Política Nacional do Idoso: velhas e novas questões.
Alcântara, Alexandre de Oliveira; Camarano, Ana Amélia; Giacomin, Karla Cristina; Rio de Janeiro, Ipea.
2016.

GALVÃO FILHO, Maurício Vasconcelos; WEBER, Ana Carolina. Disposições gerais sobre a mediação civil. In:
PINHO, Humberto Dalla Bernadina (Org). Teoria geral da mediação à luz do projeto de lei e do direito
comparado. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008.

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático- Uma análise crítica das reformas processuais,
4ª reimpressão/Curitiba: Juruá, 2012.

PAUGAM, Serge, et alii. Afastar-se das prenoções. In: A pesquisa sociológica. PAUGAM, Serge(coordenador);
tradução de Francisco Morás- Petrópolis, RJ; Vozes, 2015 (Coleção Sociologia).

SANTOS, Boaventura de Sousa, et alii. Introdução à sociologia da administração da justiça. In: Direito e Justiça-
a função social do judiciário. Faria, José Eduardo (Organizador), 1ª edição. Editora Ática, São Paulo, 1989.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise- uma exploração hermenêutica da construção do
Direito, 4ª edição, Porto Alegre; Livraria do Advogado, 2003.
UMA REFLEXÃO SOBRE A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO
NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO NO BRASIL

SOUZA, Carla Faria de


Doutoranda em Sociologia e Direito – PPGSD
BRAGANÇA, Fernanda
Doutoranda em Sociologia e Direito – PPGSD

RESUMO

Este artigo traz uma análise reflexiva a atuação do Poder Judiciário na institucionalização da Mediação
no Brasil, mediante a publicação da Lei 13.105 de 2015 e da Lei 13.140 de 2015. Trata da tendência
em trazer para a estrutura do Judiciário a competência em relação à formação, divulgação e
desenvolvimento da Mediação no Brasil, e traz como problemática, de uma forma reflexiva, se a
atividade exercida pelo Judiciário, que traz um modelo de Mediação Judicial, ao contrário de diversos
outros países que já utilizam a Mediação de Conflitos como forma “extrajudicial”, ou seja, a Mediação
se desenvolve fora do Judiciário.

Palavras-chave. Mediação. Administração de Conflitos. Políticas Públicas Judiciárias.

ABSTRACT

This article brings a reflexive analysis about the performance of the Judiciary in the institutionalization
of mediation in Brazil, through the publication of the rules of Law 13,140 from 2015 and 13.105 from
2015. It is the guidance of to bring the structure of the Judiciary the legitimacy in relation to training,
to spread and development of Mediation in Brazil, and in a reflexive way, if the activity exercised by
the Judiciary.

Keywords. Mediation. Conflict Management. Judicial Public Policy.

161
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar a institucionalização da Mediação no cenário


brasileiro, o processo de positivação e o marco legal da Mediação, buscando uma reflexão
acerca da regulamentação da Mediação Judicial e da atuação do Poder Judiciário como
“órgão” competente para a formação, a regulação e o desenvolvimento da Mediação no
Brasil.
A análise reflexiva – e de certa forma crítica, sobre a atuação do Judiciário de forma
tão abrangente na formação, regulação e no desenvolvimento da Mediação trazem duas
premissas que fundamentam o referido questionamento: a primeira seria as características
fundamentais do instituto da Mediação, que seria flúido, dialógico, e não se adequaria à
estrutura do Judiciário e ao processo, como estabelecido pela Lei 13.105 de 2015 e a Lei
13.140 de 2015; a segunda seria a própria natureza do “serviço judiciário” na implantação
desse tipo de política pública, e a decisão de utilizar o Judiciário como instrumento de
efetivação da Mediação.

1. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO

Quando se fala em Mediação, é preciso lembrar que os meios consensuais de


resolução de conflitos existem desde os tempos das sociedades primitivas, e antecederam,
inclusive, o surgimento da Jurisdição. No entanto, diante do monopólio judicial, percebeu-se
que, em alguns casos, a Jurisdição não seria o único e mais adequado meio de solução de
conflitos, o que levou a sociedade moderna a resgatar o interesse pelos meios consensuais e
pacificadores, e desencadeou movimentos de implementação dos mesmos, como já visitado
nos capítulos que se antecederam.
No Brasil não foi diferente, os movimentos relacionados aos meios alternativos de
solução de conflitos desembarcaram já há algum tempo e podem ser observados na tentativa
de inserir a conciliação no processo civil brasileiro, seja como uma fase na audiência de
instrução e julgamento, onde é realizada pelo magistrado; ou ainda na forma da Lei 9.099, de
1995, nos Juizados Especiais, podendo inclusive ser realizada por leigos(NOBRE, 2015). Não
foi incorporada, entretanto, pela cultura jurídica como deveria, tornando-se apenas mais uma
fase do processo judicial.
Segundo Eleonora Coelho,
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nesta esteira, o próprio Estado passou a incentivar a adoção de outros métodos e


procedimentos para a pacificação de conflitos, em um movimento de
descentralização, que ocorre tanto dentro como fora da estrutura judicial. No Brasil,
a primeira medida de relevância nesse sentido foi a criação dos Juizados Especiais
de Pequenas Causas (Lei nº 7.244/84), posteriormente substituídos pelos Juizados
Especiais Cíveis (Lei nº 9.099/95), Criminais (Lei nº 10.259/02) e Federais (Lei nº
10.259/01), os quais objetivavam ser um mecanismo mais adequado para
solucionar causas de valor reduzido, pois contam com um procedimento
simplificado (em que há incentivo à conciliação, privilégio da informalidade,
concentração de atos etc.). A criação dos Juizados teve grande aceitação da
sociedade, o que já demonstrava o anseio por meios mais ágeis e eficazes para
solução de conflitos. Contudo, não tardou para que tais órgãos também ficassem
saturados (COELHO, 2015, p. 106).

O movimento pela institucionalização da mediação chegou ao Brasil na década de


90, diante de uma realidade jurídica que apenas visualizava o Poder Judiciário como capaz de
solucionar conflitos. Conforme ressalta Walsir Edson Rodrigues Júnior, os operadores do
Direito se posicionavam contra a mediação, com receio de perder o controle do processo e a
clientela, o que caracterizava uma total ignorância, uma falta de informação sobre o Instituto
da Mediação (RODRIGUES, 2006).
A partir de então, tendo como exemplo o desenvolvimento em outros países1,
começou no Brasil um movimento pró-mediação que, apesar de pequeno, despertava
interesse dos profissionais que integravam o meio jurídico brasileiro.
Um marco muito importante para a desjudicialização e a uma forma de solução de
conflitos fora da estrutura do Poder Judiciário foi a publicação da Lei de Arbitragem, n. 9.307,
de 1996. A referida lei trouxe algumas polêmicas e uma aceitação controversa entre os
operadores do Direito; e, mesmo com a declaração da constitucionalidade da lei, no ano de
20012, sua aplicabilidade era muito restrita, apresentando um crescimento considerável
apenas após a primeira década da sua criação.3

1
Principalmente pela instituição da mediação pelos vizinhos argentinos, com a Ley n. 24.573, posteriormente
substituída pela Ley n. 26.589/2010. Disponível em:
http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/165000-169999/166999/norma.htm. Acesso em: 06 dez. 2015.
2
Brasil. STF. SE n. 5306. Espanha. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. 2001.
3
Segundo pesquisa realizada por Selma Ferreira Lemes, no ano de 2005, primeiro ano da pesquisa, as Câmaras de
Arbitragem do país cuidavam de 21 arbitragens sobre assuntos do dia a dia das empresas, que envolviam pouco
mais de R$ 247 milhões, e, no ano de 2013, oito anos depois, esses números cresceram expressivamente, com
cerca de 147 arbitragens, que envolviam cerca de R$ 3 bilhões. Disponível em:
http://www.valor.com.br/legislacao/3407430/arbitragens-envolveram-r-3-bilhoes-em-2013#ixzz2rb7dlZbv.
Acesso em: 04 nov. 2015.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No ano de 1997, foi criado o Conselho Nacional de Instituições de Mediação e


Arbitragem – CONIMA, abrindo espaço para maiores discussões sobre a mediação, e
atualmente já conta com quarenta e duas instituições associadas em todo Brasil4.
A mediação começou a ser utilizada no Brasil de forma modesta, mesmo sem ter
sido contemplada com uma lei específica. No entanto o movimento pela institucionalização
começou a exigir amparo legal para o resultado eficaz do instituto na solução dos conflitos.
Desta forma, quando se falava em sua institucionalização no Brasil, o principal
objetivo era a formulação de propostas legislativas de institucionalização que buscavam
regular o seu procedimento, de forma minuciosa e exaustiva. Diante desta perspectiva, o
termo institucionalização adquire característica normativa e se afasta da noção sociológica,
que estaria ligada, de forma geral, “à organização de ideias, concepções, relações
intersubjetivas e padrões de comportamento em torno de um interesse ou finalidade
socialmente reconhecidos”.5
A primeira iniciativa legislativa que tentava instituir a mediação em território
nacional foi o Projeto de Lei n. 4.827, de 1998, de autoria da Deputada Zulaie Cobra. Trazia
como principais características a instituição de um procedimento não-obrigatório, que poderia
ser instaurado no curso do processo judicial, ou até antes do processo, desde que a matéria
objeto de acordo admitisse conciliação, reconciliação, transação ou acordo de outra ordem
(BARBADO, 2004).
Em 2004, como parte do Pacote Republicano que se seguiu à Emenda
Constitucional nº 45, e que trouxe a conhecida “Reforma do Judiciário”, o governo
apresentou diversos projetos de lei modificando o Código de Processo Civil, e um novo
relatório do PLC, n. 94. O projeto inicial ficou prejudicado com a aprovação do Substitutivo

4
Disponível em: http://www.conima.org.br/inst_filia. Acesso em: 30 nov. 2015.
5
Como será desenvolvido no decorrer do presente capítulo, e no sentido do pensamento de Michelle Tonon
Barbado, “para nós, basta a compreensão de que, no mundo jurídico, o processo de institucionalização ocorre, via
de regra, às avessas. Em outras palavras: negligencia-se o fator social necessário à legitimação do instituto a ser
incorporado no ordenamento; despreza-se o necessário debate democrático e a consagração empírica do que está
prestes a vigorar por força de lei. Conforme será visto, não parece ser esse o melhor caminho para o estímulo e
desenvolvimento da mediação”. E continua, “diante dessas considerações, e das características intrínsecas à
mediação acima delineadas, notadamente o seu aspecto inovador e interdisciplinar, constata-se que um autêntico
desenvolvimento do instituto não poderá se concretizar com a mera institucionalização pelo direito positivo, isto é,
no plano estritamente jurídico legal”. BARBADO, Michelle Tonon. Reflexões sobre a institucionalização da
Mediação no Direito Positivo Brasileiro. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em Arbitragem,
Mediação e Negociação. Brasília: Grupos de Pesquisa, 2004. p. 206. Disponível em:
http://www.arcos.org.br/livros/estudos-de-arbitragem-mediacao-e-negociacao-vol3/parte-ii-doutrina-parte-
especial/reflexoes-sobre-a-institucionalizacao-da-mediacao-no-direito-positivo-brasileiro. Acesso em: 30 nov.
2015.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(Emenda n. 1 – CCJ), que foi enviado à Câmara e à Comissão de Constituição e Justiça.


Desde então, não se deu andamento, sendo arquivado, o que, naquele momento, frustrou a
expectativa de um marco legal para a mediação no Brasil (PINHO, 2016).
A mediação continuou a se desenvolver no cenário nacional mesmo sem uma
legislação específica, seguindo a tendência internacional de incorporação no seio social de
uma mentalidade jurídica voltada para os meios alternativos de solução de conflitos, o que
levou o Conselho Nacional de Justiça, órgão de estruturação da política judiciária nacional, a
editar a Resolução n. 125, de 2010. A Resolução veio para trazer diretrizes ao
desenvolvimento da mediação no país, e cumpriu muito bem esse papel, sendo fundamental
para o desenvolvimento do instituto nos últimos cinco anos6.
Segundo Humberto Dalla B. Pinho, a Resolução n. 125, de 2010, traz como base as
seguintes premissas:

[...] a) o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição


Federal, além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à
ordem jurídica justa;
b) nesse passo, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento
adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em
larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional,
não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que

6
Segundo Fredie Didier, “a reprodução da consideranda cumpre bem a sua função didática, revelando com
clareza a importância deste ato normativo e os seus objetivos: “CONSIDERANDO que compete ao Conselho
Nacional de Justiça o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, bem como zelar pela
observância do art. 37 da Constituição da República; CONSIDERANDO que a eficiência operacional, o acesso ao
sistema de Justiça e a responsabilidade social são objetivos estratégicos do Poder Judiciário, nos termos da
Resolução CNJ nº 70, de 18 de março de 2009; CONSIDERANDO que o direito de acesso à Justiça, previsto no
art. 5º, XXXV, da Constituição Federal além de vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à
ordem jurídica justa; CONSIDERANDO que, por isso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de
tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente
escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos
judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros Conselho Nacional de Justiça mecanismos de
solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação; CONSIDERANDO a
necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos
consensuais de solução de litígios; CONSIDERANDO que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos
de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já
implementados nos país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de
recursos e de execução de sentenças; CONSIDERANDO ser imprescindível estimular, apoiar e difundir a
sistematização e o aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais; CONSIDERANDO a relevância e a
necessidade de organizar e uniformizar os serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de
solução de conflitos, para lhes evitar disparidades de orientação e práticas, bem como para assegurar a boa
execução da política pública, respeitadas as especificidades de cada segmento da Justiça; CONSIDERANDO que
a organização dos serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos deve
servir de princípio e base para a criação de Juízos de resolução alternativa de conflitos, verdadeiros órgãos
judiciais especializados na matéria; CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de
Justiça na sua 117ª Sessão Ordinária, realizada em de 23 de 2010, nos autos do procedimento do Ato 0006059-
82.2010.2.00.0000”. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual
civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 174-175.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos


consensuais, como a mediação e a conciliação;
c) a necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e
aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios;
d) a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social,
solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já
implementados no país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de
interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças;
e) é imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o aprimoramento
das práticas já adotadas pelos tribunais;
f) a relevância e a necessidade de organizar e uniformizar os serviços de
conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos, para
lhes evitar disparidades de orientação e práticas, bem como para assegurar a boa
execução da política pública, respeitadas as especificidades de cada segmento da
Justiça(PINHO, 2016, P. 6-7).

Uma das importantes previsões da Res. 125, de 2010, foi a determinação de criação,
pelos Tribunais dos Estados de Núcleos Permanentes, de Métodos Consensuais de Solução de
Conflitos, que foi alterada em 2013, constando a obrigatoriedade de instalação dos Centros
Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) em locais com até quatro Juízos,
Juizados ou Varas cíveis, fazendárias, previdenciárias ou de família. No entanto, apesar da
obrigatoriedade estabelecida pela Resolução na criação dos CEJUSC, não foi incorporada por
todos os Tribunais(COELHO, 2015).
Outra característica abordada pela doutrina em relação às formas de solução pacífica
de conflitos no ordenamento brasileiro seria que as mesmas são quase sempre associadas ao
Poder Judiciário, que vem se esforçando para perder esse poder e para que esses métodos
continuem atrelados ao processo civil e à estrutura judiciária de forma preliminar à aceitação
da demanda.7
Desse estímulo pelo Poder Estatal, adveio a proposta de institucionalização da
mediação, com as discussões travadas a partir de 2009, quando foi convocada uma Comissão
de Juristas, presidida pelo Ministro Luiz Fux, para criação de um novo Código de Processo
Civil. As discussões traziam sempre uma grande preocupação da Comissão com os meios
alternativos de solução de conflitos, como a conciliação e a mediação.8

7
Essa característica difere, por exemplo, da forma como foi institucionalizada a mediação na Inglaterra, uma vez
que, no Brasil, o Judiciário é o responsável por todo o procedimento de mediação judicial, inclusive por formar
mediadores judiciais e se responsabilizar pelo procedimento.
8
Na redação final do Código de Processo Civil, que foi sancionado em 16 de março de 2015 e publicado em 17
de março de 2015, fica clara a preocupação da Comissão em estabelecer diretrizes e uma regulamentação atenta à
mediação como instrumento de acesso à justiça. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; CABRAL, Trícia
Navarro Xavier. Marco Legal da Mediação no Brasil – Comentários à Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015.
Cord. Durval Hale, Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Trícia Navarro Xavier Cabral. São Paulo: Atlas, 2016.
p. 8-9.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Após as discussões para criação do Projeto do Novo Código de Processo Civil, em


2011, foi proposto o Projeto Lei n. 517, de 2011, que possuía como objeto a regulamentação
da mediação judicial e extrajudicial, de modo “a criar um sistema afinado tanto com o futuro
CPC, bem como com a Resolução n. 125, do CNJ” (PINHO, 2016).
Assim, em 16 de março de 2015, foi publicado o Novo Código de Processo Civil
Brasileiro, a Lei 13.105, que regulamenta as diretrizes e o procedimento de mediação judicial;
e, em 29 de junho de 2015, foi publicada a Lei n. 13.140, a Lei de Mediação brasileira, que
traz os novos e tão esperados parâmetros de desenvolvimento da mediação no Brasil (PINHO,
2016).
Acreditava-se que, para a institucionalização da mediação, seria imprescindível um
marco regulatório que estabelecesse parâmetros de desenvolvimento, uma vez que a
legislação seria capaz de se adequar a sociedade, que estava imersa em um contexto social
onde a regra era judicializar.
No entanto, a criação dos marcos legais da mediação, tanto em relação ao Novo
Código de Processo Civil quanto em relação à Lei de Mediação, não pode ser considerada o
fator essencial e exclusivo de institucionalização no Brasil. Outros fatores, que não apenas a
lei, devem ser observados para que a mediação seja incorporada de forma eficaz na cultura
social.
A institucionalização da mediação no ordenamento brasileiro está, em grande parte,
associada à regulamentação do instituto por meio de lei, apesar de se observar que algumas
medidas já estão sendo tomadas no sentido de estimular uma cultura voltada ao consenso, e
que estão de forma gradual sendo incorporadas pela sociedade.
Muitas foram as iniciativas legislativas que visavam regulamentar a mediação no
ordenamento jurídico. A preocupação se voltava para a sua institucionalização legal, pois,
segundo a mentalidade jurídica nacional, o instituto apenas poderia ser utilizado se houvesse
previsão legal, regulamentando quem, como, quando e onde ela poderia ser realizada. Assim,
o legislador trabalhou no sentido de regulamentá-la para que seu procedimento fosse
orientado segundo as normas legais, gerando maior credibilidade e segurança jurídica das
partes envolvidas. Assim, a publicação da Lei 13.140, de 2015, visava regulamentá-la entre
particulares e sobre a composição de conflitos no âmbito da administração pública. De outro
lado, a Lei 13.105, de 2015, o Novo Código de Processo Civil, buscava regulamentar a
mediação judicial, extremamente prestigiada pelo Poder Judiciário brasileiro.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Entre as muitas iniciativas, o legislador brasileiro se preocupou de forma particular


com a mediação judicial, realizada no seio do processo civil e vinculada, de certa forma, à
Jurisdição estatal. Um grande exemplo seria a regulamentação da mediação no Novo Código
de Processo Civil, que prevê a mediação judicial9 não como uma forma consensual de
resolução de conflitos, mas como uma fase preliminar do processo de conhecimento.
Conforme Michelle Paumgartten,

Inscrita no contexto judicial, a mediação se torna predestinada a cumprir o ritual de


padrões processuais, que instrumentalizam e compatibilizam o dogma da
efetividade da atividade jurisdicional, além de dever de funcionar direcionada à
justiça (jurisdição estatal). Jacques Faget observa que esta dinâmica conduz a
mediação a dois modos de existência paralela: (i) uma acepção não oficial que lhe
confere uma concepção mais prescritiva do que normativa, na maioria das vezes
criticada, pois gera um sentimento de insegurança por estar supostamente sujeita a
equívocos, devido a ausência de regulamentos e da supervisão de um juiz (Estado);
(ii) por detrás desta ideia, à sombra de uma existência oficial, a mediação é
deslocada para outra realidade que lhe confere uma posição de legitimidade,
garantindo-lhe maior aceitabilidade (PAUMGARTTEN, 2016).

A partir do novo enfoque do Acesso à Justiça e da necessidade de profundas


mudanças no sistema como um todo, o Novo Código de Processo Civil10, publicado em 16 de
março de 2015, utiliza como uma de suas fontes de inspiração as bases do Código de
Processo Civil Inglês, vigente há pouco mais de dez anos, que tem como forte preocupação a
incorporação dos meios consensuais de solução de conflitos, com ênfase na
mediação(REZENDE, 2013). No entanto, o modelo adotado pelo Processo Civil Inglês não
traz a hipótese de Mediação Judicial.
Desta forma, apesar de a Inglaterra integrar o sistema de tradição do Comom Law, e
o Brasil, a tradição do Civil Law11, a proposta do Novo Código de Processo Civil inspirada

9
Apesar de regular a mediação judicial como fase do processo o artigo 175, do NCPC aduz que não se excluiriam
outras formas de conciliação e mediação extrajudiciais, que poderão ser regulamentadas por lei específica,
aplicando no que couber às câmaras privadas de conciliação e mediação os dispositivos previstos na norma
processual.
10
Cabe considerar que a Lei 13.105, de 16 de março de 2015, ainda se encontra em período de vacatio legis, não
sendo possível a análise de sua aplicabilidade no ordenamento brasileiro. Desta forma, o que se pretende são
apenas prospecções sobre sua eficácia no Direito brasileiro.
11
“Costuma-se afirmar que o Brasil é país cujo Direito se estrutura de acordo com o paradigma do civil law,
próprio da tradição jurídica romano-germânica, difundida na Europa continental. Não parece correta essa
afirmação. O sistema jurídico brasileiro tem uma característica muito peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos
um direito constitucional de inspiração estadunidense (daí a consagração de uma série de garantias processuais,
inclusive, expressamente, do devido processo legal) e um direito infraconstitucional (principalmente o direito
privado) inspirado na família romano-germânica (França, Alemanha e Itália, basicamente). Há controle de
constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado (modelo austríaco). Há
inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo tempo, constrói-se um sistema de valorização dos
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

no direito inglês, busca estimular e regulamentar os substitutivos da Jurisdição que devem ser
usados prioritariamente, em detrimento da solução judicializada, sendo a mediação objeto de
destaque em ambos os ordenamentos (REZENDE, 2013).
No Novo Código de Processo Civil - NCPC, assim como no Civil Procedure Rules -
CPR Inglês12, podem ser observados dispositivos que fomentam a utilização dos meios
consensuais de solução de conflitos, como o artigo 3º, §2º, do NCPC, que prevê que “O
Estado promoverá sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”; e o §3º, do
mesmo artigo dispõe que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução de
consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e
membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
A doutrina brasileira já aponta o referido dispositivo como uma diretriz que
fundamenta a utilização dos meios consensuais de solução de conflitos e, como afirma Fredie
Didier, em seu Curso de Direito Processual Civil, “pode-se inclusive, defender a atualmente a
existência de um princípio do estímulo da solução por autocomposição – obviamente para os
casos em que ela é recomendável. Trata-se de princípio que orienta toda a atividade estatal na
solução dos conflitos jurídicos” (DIDIER, 2015).

precedentes judiciais extremamente complexo (súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo para
causas repetitivas etc.; sobre o tema ver o capítulo respectivo no v.2 deste Curso), de óbvia inspiração no
Common Law. Embora tenhamos um direito privado estruturado de acordo com o modelo romano, de cunho
individualista, temos um microssistema de tutela de direitos coletivos dos mais avançados e complexos do mundo;
como se sabe, a tutela coletiva de direitos é uma marca da tradição do common law”. DIDIER JR, Fredie. Curso
de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed.
Salvador: JusPodivm, 2015. p. 57-58.
12
CPR 1.4. (1) The court must further the overriding objective by actively managing cases.
(2) Active case management includes –
(a) encouraging the parties to co-operate with each other in the conduct of the proceedings;
(b) identifying the issues at an early stage;
(c) deciding promptly which issues need full investigation and trial and accordingly disposing summarily of the
others;
(d) deciding the order in which issues are to be resolved;
(e) encouraging the parties to use an alternative dispute resolution(GL)procedure if the court considers
that appropriate and facilitating the use of such procedure;(grifo nosso)
(f) helping the parties to settle the whole or part of the case;
(g) fixing timetables or otherwise controlling the progress of the case;
(h) considering whether the likely benefits of taking a particular step justify the cost of taking it;
(i) dealing with as many aspects of the case as it can on the same occasion;
(j) dealing with the case without the parties needing to attend at court;
(k) making use of technology; and
(l) giving directions to ensure that the trial of a case proceeds quickly and efficiently.
Disponível em: https://www.justice.gov.uk/courts/procedure-rules/civil/rules/part01. Acesso em: 05 nov. 2015.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. A MEDIAÇÃO NO BRASIL E O PODER JUDICIÁRIO

Dentro desse novo contexto social, que rompe com o hermetismo manifestado pelas
instituições judiciais, a Mediação desponta, mesmo que de forma modesta, como uma nova
forma de enxergar o Direito.
A partir de então, tendo como exemplo o desenvolvimento em outros países,
começou no Brasil um movimento pró-mediação que, apesar de pequeno, despertava
interesse dos profissionais que integravam o meio jurídico brasileiro.
Quando se falava em sua institucionalização no Brasil, o principal objetivo era a
formulação de propostas legislativas de institucionalização, que buscavam regulamentar o seu
procedimento. Diante desta perspectiva, o termo institucionalização adquire característica
normativa e se afasta da noção sociológica, que estaria ligada, de forma geral, “à organização
de ideias, concepções, relações intersubjetivas e padrões de comportamento em torno de um
interesse ou finalidade socialmente reconhecidos”.
A Mediação continuou a se desenvolver no cenário nacional mesmo sem uma
legislação específica, seguindo a tendência internacional de incorporação no seio social de
uma mentalidade jurídica voltada para os meios alternativos de solução de conflitos, o que
levou o Conselho Nacional de Justiça, órgão de estruturação da política judiciária nacional, a
editar a Resolução n. 125, de 2010.
Seguindo essa perspectiva, em 16 de março de 2015, foi publicado o Novo Código
de Processo Civil Brasileiro, a Lei 13.105, que regulamenta as diretrizes e o procedimento de
Mediação Judicial; e, em 29 de junho de 2015, foi publicada a Lei n. 13.140, a Lei de
Mediação, que trazia os novos e tão esperados parâmetros de desenvolvimento da Mediação
no Brasil. Acreditava-se que, para a institucionalização da mediação, seria imprescindível um
marco regulatório que estabelecesse parâmetros de desenvolvimento, uma vez que a
legislação seria capaz de se adequar a sociedade, que estava imersa em um contexto social
onde a regra era “judicializar”(PINHO e CABRAL, 2016).
A institucionalização da Mediação no ordenamento brasileiro está, em grande parte,
associada à regulamentação do instituto por meio de lei e da atuação maciça do Poder
Judiciário, como órgão de regulamentação, formação e de desenvolvimento da Mediação.
A Mediação Judicial passou a ser o grande objeto de estudo e de desenvolvimento
da Mediação no Brasil, sendo regulamentada pelo Poder Judiciário tanto pelo CNJ, pela
Resolução 125/2010, que estabelece suas diretrizes como pelos Tribunais Estaduais, sendo o
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Poder Judiciário responsável pela formação dos mediadores judiciais, pela estrutura dos
Centros de Mediação Judicial.
Toda estrutura de desenvolvimento da Mediação que vem sendo assumida pelo
Poder Judiciário e esta se consolidando nas estruturas do serviço judiciário, diferente de
outros países como EUA, Alemanha, Itália e Holanda e Reino Unido. Esses países trazem
taxas de grande desenvolvimento da Mediação, e apesar de alguns deles estimular de forma
clara a Mediação antes de judicializar, como por exemplo nos EUA e no Reino Unido, a
Mediação não é promovida pelo Judiciário e dentro da estrutura do Judiciário, como se
observa no modelo brasileiro de Mediação Judicial (PALO, 2014).
Deste modo, com o esforço na tentativa de incorporação da Mediação na estrutura
social a partir da histórica e habitual concentração de poder do Judiciário, a reflexão que se
impõe, é a seguinte: seria o Poder Judiciário competente para a institucionalização da
Mediação? Ou apenas lhe foi delegada essa competência como decorrência de uma espécie de
capital simbólico e legitimaria o Judiciário na assunção de um instituto como a Mediação?
Seria o Judiciário competente mesmo quando a sua natureza estrutural adversarial afasta os
próprios fundamentos da Mediação? E a Mediação Judicial? Qual seria a intenção de se criar
um modelo de Mediação diverso daquele aplicado em outros países, que se desenvolve dentro
da estrutura judiciária, e é regulamentado pela norma processual civil como fase que precede
o processo judicial?
A intenção não é trazer respostas aos questionamentos propostos, até porque não
temos ainda tempo para chegar a quaisquer conclusões epistemologicamente seguras, mas
seria possível, no entanto definir alguns pontos importantes, e que devem ser esclarecidos.
De um lado, podemos observar o Poder Judiciário, como o detentor do campo de
poder, que exerceu durante anos o “monopólio” da solução de conflitos, e exerce ainda sobre
os jurisdicionados um poder de dependência na solução dos próprios conflitos, baseados no
processo de dominação racional-legal, onde os juristas produzem o discurso sobre o Estado, e
o campo jurídico ganha autonomia, produzindo uma competência técnica e social de dizer o
direito.
Acerca do capital jurídico e da concentração de poder, Frederico Almeida esclarece
que

A diferenciação do campo e a concentração do capital especificamente jurídicos


coloca o direito e os juristas em uma posição de protagonistas nesse processo
(Bourdieu, 2005). A adequação moderna da técnica processual do direito romano às
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

demandas de racionalização do Estado moderno em torno do príncipe, obra cultural


dos juristas medievais, é apontada, desde Weber (1999), como condição para o
sucesso do processo de burocratização e construção da dominação racional-legal.
Nesse processo, em que os juristas produzem o discurso sobre o Estado
(especificamente o discurso da soberania do príncipe sobre os interesses
particulares e o discurso do Estado de direito), o campo jurídico também ganha
autonomia relativa, produzindo uma espécie própria de capital simbólico – o capital
jurídico –, consistente numa competência técnica e social de se dizer o direito, que
significa, em última análise, o poder de se interpretar e afirmar a visão oficialmente
justa ou legítima da ordem social (Bourdieu, 2007a, 2007b).(ALMEIDA, 2016)

Essa legitimidade concedida pelo hábito social teria levado o Poder Judiciário a
assumir, mesmo não sendo sua função específica, mesmo não sendo característica de sua
natureza, a institucionalização da Mediação como política pública de resolução de conflitos, e
de outras políticas que não são decorrentes da sua natureza.
O Judiciário seria, nesta visão, o único poder hábil a institucionalizar a Mediação,
competência que decorre da concentração do poder e do capital simbólico que carrega, em
detrimento dos outros poderes.
A Mediação Judicial e atuação política do Judiciário na institucionalização da
Mediação seriam, dentro dessa perspectiva, a grande solução para a efetividade da Mediação,
pois só assim, com a aplicação das leis que instituíram a Mediação essa modificação da
cultura adversarial de solução de conflitos seria possível.
Diante de perspectivas diversas sobre a atuação política do Poder Judiciário na
institucionalização da Mediação, como já mencionado, ainda não é possível chegar quaisquer
conclusões epistemologicamente seguras, ainda é necessário um amadurecimento
institucional e social acerca da Mediação no Brasil, e nesse percurso a atuação dos atores
sociais que promovem e disseminam a Mediação será fundamental.

CONCLUSÃO

O propósito maior do presente artigo é refletir se, mesmo que a consagração da


concentração de poder em relação ao Judiciário venha a coloca-lo na posição de órgão
responsável pela institucionalização da Mediação, “quando outros não poderiam fazê-lo com
tamanha credibilidade”, teria ele essa função já que a atividade desenvolvida em muito difere
das características da Mediação. A reflexão que se faz é se o Judiciário não estaria sendo
utilizado como instrumento e avocando função que não lhe seria originária.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A única conclusão que é possível chegar, e de fato não responde às reflexões


formuladas, é que a utilização do Poder Judiciário na institucionalização da Mediação
encontra-se consolidada no ordenamento jurídico brasileiro e que vem se desenvolvendo ao
seu modo. Se positivo ou negativo, ainda não é possível aferir devido à brevidade da sua
prática. Mas um aspecto é importante ressaltar, sempre que se utiliza um “garfo para tomar
uma sopa, a maior parte do conteúdo escorre e se perde”.

REFERÊNCIAS

ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na
Inglaterra. Oriente. Tradução de Teresa Arruda Alvim Wambier. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012.

BARBADO, Michelle Tonon. Reflexões sobre a institucionalização da Mediação no Direito Positivo Brasileiro.
In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Brasília: Grupos
de Pesquisa, 2004. p. 206. Disponível em: http://www.arcos.org.br/livros/estudos-de-arbitragem-mediacao-e-
negociacao-vol3/parte-ii-doutrina-parte-especial/reflexoes-sobre-a-institucionalizacao-da-mediacao-no-direito-
positivo-brasileiro. Acesso em: 30 nov. 2015.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da justiça: Alguns Mitos. Revista da Academia Brasileira de
Letras Jurídicas. n. 17, p. 159. Disponível em:
http://www.ablj.org.br/revistas/revista17/revista17%20%20JOS%C3%89%20CARLOS%20BARBOSA%20M
OREIRA0001.pdf. Acesso em: 05 dez. 2015.

CAPPELLETTI, Mauro. Os Métodos Alternativos de Solução de Conflitos no Quadro do Movimento Universal


de Acesso à Justiça. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.74, 1994.

COELHO, Eleonora. Desenvolvimento da Cultura dos Métodos Adequados de Solução de Conflitos: Uma
urgência para o Brasil. In ROCHA, Caio Cesar Vieira; SALOMÃO, Luis Felipe (Cords.). Arbitragem e
Mediação – a reforma da Legislação Brasileira. São Paulo: Atlas, 2015.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e
processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.

FOLEY, Gláucia Falsarella; CAETANO, Flávio Crocce. Justiça para Todos. Disponível em:
http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2013/justica-para-todos-2013-juiza-glaucia-falsarella-
foley. Acesso em: 06 dez. 2015.

HILL, Flavia Pereira; ASSMAR, Gabriela. et al. In: Marco Legal da Mediação no Brasil – Comentários à Lei nº
13.140 de 26 de junho de 2015. Cord. Durval Hale, Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Trícia Navarro
Xavier Cabral. São Paulo: Atlas, 2016.

Ley n. 24.573, posteriormente substituída pela Ley n. 26.589/2010. Disponível


em:http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/165000-169999/166999/norma.htm. Acesso em: 06 dez.
2015.

NOBRE, Marcelo. A Mediação On-line. In: ROCHA, Caio Cesar Vieira; SALOMÃO, Luis Felipe (Cords.).
Arbitragem e Mediação – a reforma da Legislação Brasileira. São Paulo: Atlas, 2015.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

PAUMGARTTEN, Michele. Disposições Finais. In: HALE, Durval; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de;
CABRAL, Trícia Navarro Xavier (Coords.) Marco Legal da Mediação no Brasil – Comentários à Lei nº 13.140
de 26 de junho de 2015. São Paulo: Atlas, 2016.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. PAUMGARTTEN, Michele. Mediação obrigatória: um oxímoro
jurídico e mero placebo para a crise do acesso à justiça. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=82b8a3434904411a. Acesso em: 23 nov. 2015.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Marco Legal da Mediação no Direito Brasileiro. In: GABBAY, Daniela
Monteiro; TAKAHASHI, Bruno (Cords.). Justiça Federal: Inovações nos Mecanismos Consensuais de solução
de conflitos. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; CABRAL, Trícia Navarro Xavier (Coords.). Marco Legal da Mediação
no Brasil – Comentários à Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015. São Paulo: Atlas, 2016.

REZENDE, Caroline Gaudio. Semelhanças entre o projeto do Novo Código de Processo Civil com o Civil
Procedure Rules (Código de Processo Civil Inglês). Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de
Janeiro. Ano 7. v. XI. p. 46-66. jan-jun. 2013.

RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. A Prática da Mediação e o Acesso à Justiça. Belo Horizonte: Editora Del
Rey, 2006.

WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: ofício do mediador. Coord. Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri
Júnior, Aires José Rover, Cláudia Sevilha Monteiro. v. III. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2004.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Grupo de Trabalho 04

CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS
UM ENSAIO DE DIETROLOGIA JURÍDICA:
O CASO DA ALDEIA IMBUHY

BARAHONA, Henrique
Doutor em Sociologia e Direito pelo PPGSD/UFF
Doutor em História pelo PPGH/UFF

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo discutir o papel da “evidência” no direito e a violência de que ela faz
parte, que ela oculta, tomando como base o exemplo da “Adeia Imbuhy”, como ficou denominada a
comunidade tradicional localizada dentro dos limites de uma unidade do Exército Brasileiro situada na
cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. A metodologia a ser utilizada para inquietar a
credibilidade das provas manejadas nas decisões judiciais do Tribunal Regional Federal da 2ª Região
sobre a comunidade e que autorizaram a remoção dos moradores da Aldeia Imbuhy é a “dietrologia”,
tal como a denomina o historiador italiano Carlo Ginzburg. Com esta ferramenta indiciária,
procuraremos formular uma proposta que seja ao mesmo tempo metodológica e de fundo, oferecendo
uma nova visão sobre o conflito sociojurídico verificado naquela localidade.

Palavras-chave. Aldeia Imbuhy, dietrologia, direito.

ABSTRACT:

This article aims at investigating the role of “evidence” in the law and its violence, which it hides,
based on the example of “Adeia Imbuhy”, as it was called the traditional community within the limits
of a unit of the Brazilian Army in the city of Niterói, in Rio de Janeiro. The methodology to be used to
disturb the credibility of the evidence handled in the judicial decisions from Tribunal Federal Regional
da 2ª Região that authorized the removal of the inhabitants of the Imbuhy Village is the “dietrology”,
as the Italian historian Carlo Ginzburg calls it. With this indiciary tool, we will try to formulate a
proposal that is methodological and substantive at the same time, showing a new vision on the socio-
juridical conflict verified in that locality.

Keywords. Aldeia Imbuhy, dietrology, law.

176
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A Aldeia Imbuhy é uma comunidade tradicional litorânea de Niterói, no Rio de


Janeiro, situada dentro dos limites de uma área de terras reivindicada pela União Federal. É ali
onde fica uma unidade do Exército Brasileiro, o 8º Grupo de Artilharia de Costa Motorizado.
Os moradores da Aldeia vêm sendo pouco a pouco arrancados do seu lugar, da sua terra, do
seu chão; pessoas que tiveram dolorosamente apagada a sua história, a sua memória, os seus
traços, os seus laços muito mais abrangentes do que os de simples vizinhança, vínculos muito
mais profundos e irredutíveis a simples relações jurídicas. Ali havia escola, igreja, trabalho,
casas, uma gente e seu cotidiano. “Vidas infames”, famílias inteiras que num determinado
momento caíram nas teias do poder, que foram enredados nas malhas do discurso jurídico e
da sua escrupulosa neutralidade, ficando dali para sempre registradas nas folhas dos processos
judiciais. Papéis a indicarem como as suas remoções foram legitimamente autorizadas,
“autos” que revelam como foi permitido que estas pessoas fossem expulsas das suas casas
lentamente pelos escalões militares com a chancela dos escalões do direito, uma violência por
anos a fio ficou ocultada, tornada invisível por um artifício, exatamente porque autorizada
pelos homens da lei e seu discurso privilegiado baseado objetivamente em “evidências”.
“Escrevo invadido pela angústia”, afirmou o historiador italiano Carlo Ginzburg ao
escrever o livro intitulado “El juez y el historiador”, sobre a condenação de um amigo dele,
Adriano Sofri, pelo assassinato na Itália do comissário de polícia Luigi Calabresi em 17 de
maio de 1972, em plena Guerra Fria. A acusação recaiu sobre os membros da Lotta Continua,
um grupo de militantes de esquerda em sua maioia de orientação anarquista, do qual Sofri
fazia parte. Neste livro, Ginzburg problematiza as “evidências” manejadas pelo juiz do
processo penal em que Sofri era incriminado para fundamentar a sua convicção dos fatos
expressa na sentença penal condenatória, comparando o que significa a evidência para o juiz e
a evidência para o historiador, já que ambos, segundo ele, possuem em comum a tarefa de
verificação dos fatos e da sua prova. Ginzburg, o historiador conhecido por suas análises
historiográficas conjecturais, indiciárias, provisórias, lançou mão de um mecanismo
metodológico capaz de questionar a credibilidade incontestável das “evidências” (o
pleonasmo é proposital) do direito, quer dizer, uma “dietrologia” (GINZBURG, 1993, p. 64),
palavra italiana que expressa uma desconfiança interpretativa das provas. Léxico pomposo,
que impressiona, mas que quer dizer algo muito simples. Com este mecanismo “dietrológico”
de interrogação permanente sobre o que pode estar por trás (“dietro”) da versão que se torna a
única, a oficial, ele propôs uma “antievidência” ao argumento jurídico assentado nas verdade
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

última de uma prova, isto é, um descontentamento fundamental do analista com a mera


superfície dos acontecimentos, os seus textos, as suas bases documentais.
Não se trata aqui – e que isso fique bem claro – , do conceito de “evidência” oriundo
da dogmática jurídica, principalmente a norte-americana. Falo da “evidência” em seu sentido
mais profano, do grau máximo de probabilidade que uma prova ou fonte carrega consigo, sem
perder de vista, contudo, que se trata apenas de uma probabilidade. A rigor, a palavra
“evidência” sequer aparece nas decisões judiciais atinentes à Aldeia Imbuhy que analisei.
Chamam atenção frases como “A análise feita pelo juiz sentenciante se ateve aos elementos
de prova constantes dos autos”, ou “o Tribunal de origem firmou, com base nas provas dos
autos, que não teriam amparo fático e que haveria falar em esbulho possessório”, e ainda que
“se torna insuperável a prova trazida pela UNIÃO” (REsp 1.650.680-RJ). Entretanto, há uma
oração neste mesmo acórdão que melhor sintetiza a credibilidade dada a uma determinada
argumentação com base em provas que triunfam em detrimento de outras, conferindo valor de
verdade à narrativa vencedora dos fatos e legitimidade à decisão: “Tenho, pois, como
verdadeira a versão dos fatos sustentada, e que considero provada pela UNIÃO”. Ginzburg
aludia à evidentia in narratione da poesia latina, ou da enargheia grega, como uma capacidade
de representar com vivacidade determinados personagens e situações, comunicando
eficazmente uma ilusão da realidade. O que está em jogo é justamente aquilo que como no
teatro antigo era “mascarado”, ou seja, aquilo que é sempre falseado, o que é ocultado, o que é
por ela encoberto no plano das possibilidades. Pois bem, o que nos interessa na “evidência”
jurídica envolvendo as nossas “tragédias” socioambientais (LOBÃO, 2000, p. 161), falando
especificamente na Aldeia Imbuhy, é o que nela não tem nada de óbvio. Não se trata mais do
que um conceito tem de instituinte de uma determinada prática ou relação de poder através do
direito, mas justamente o que nele é desestabilizador, o que inquieta o monólogo jurídico
sobre o direito às terras da Aldeia. Por esta razão este é apenas um ensaio, ironicamente um
ensaio. Uma diatribe, talvez. O que importa é trazer à luz o tudo o que a “evidência” até agora
deixou necessariamente de fora como condição para ser, ela mesma, uma “evidência”,
arrogando-se como significante único, roubando para si todo o sentido, ao imaginar-se
preenchendo todas as lacunas, negando qualquer outra versão pretendente dos fatos e
obstruindo o acesso a qualquer outra narrativa possível. É desta forma que ela passa a
produzir pessoas coisificadas, removíveis, que podem ser abandonadas à própria sorte e
jogadas pra lá e pra cá.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Da minha parte, não sou juiz nem historiador. O meu doutoramento em História não
me confere, por si só, a alcunha de historiador, não me dá a formação de historiador que não
possuo. Mas nem por isso deixo de escrever também tomado de indignação diante da
remoção compulsória destas pessoas baseada nas “provas” dos autos ou em “evidências” que
acredito devam ser rebaixadas, destronadas, como diria M. Bakhtin. Não para colocar uma
outra “verdade” em seu lugar, mas justamente para incomodar a verdade, para desabsolutizar
o lugar dela, espaço que deve ser deixado vazio, desocupado, trazendo à tona a violência que
dela resulta. Eis aqui outra palavra que já foi dita e que precisa ser explicada fora dos cânones
onde geralmente ela se encontra: a violência. Posso até consentir que haja uma invisibilidade
“simbólica” do poder operada pelo discurso jurídico na valoração das provas, uma ficção
legitimante de uma relação de dominação, segundo teorizado por P. Bourdieu. Mas me parece
que o deslocamento forçado recente de dezenove famílias, com as suas casas sendo postas
abaixo por retroescavadeiras ainda com os seus pertences pessoais e mobiliário no interior,
vigiado de todos os lados por cães e soldados armados de fuzis, em cumprimento de uma
ordem judicial de despejo, está situada muito mais além de uma “violência simbólica”
weberiana. Pelo menos ela o será dependendo de como submetemos a prova à prova, quer
dizer, de como passamos a suspeitar da “evidência” que sustenta o olhar adormecido. Pode
ser que eu esteja equivocado, mas talvez ao se esvaziar a “evidência” de todo o conteúdo
despótico de verdade com o qual monopoliza o fato narrado, tudo isso possa ser visto como
uma violência pura, cruel, ignóbil. Aliás, o conflito socioambiental na Aldeia Imbuhy deve
ser compreendido num contexto ainda maior de remoções em marcha atualmente no Rio de
Janeiro. É um caso muito semelhante ao que ocorre na Comunidade Quilombola da Ilha da
Marambaia, onde a União Federal vem também ajuizando diversas ações judiciais de
reintegração de posse em face dos seus habitantes.
Vejamos um exemplo. Há um enunciado no mesmo acórdão do Superior Tribunal
de Justiça antes mencionado de que “A história é bem verossímil”. Para concluir, logo em
seguida, contrariamente aos moradores: “E compreensível que, no final do séc. XIX, os
comandantes militares permitissem que alguns militares e servidores civis das diversas
fortalezas ali existentes trouxessem suas famílias para residir próximo do local de trabalho”. A
referência ao século XIX é uma alusão à suposta posse da área pelo Exército Brasileiro desde
1863. Esta “história verossímil” vem sendo repetida como um mantra em diversas ações
judiciais pesquisadas. E de tal maneira, que se chega a dizer que “resta incogitável qualquer
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

tese de posse que possa inviabilizar a gestão da coisa pública” (apelação nº 0033234-
40.1996.4.02.5102). Todavia, estas mesmas ações judiciais estão repletas de certidões
invisíveis expedidas pelos Cartórios de Registros de Imóveis indicando que a área é
particular, que ela está em nome de pessoas feitas de carne e osso, além de outros
documentos, como cartas, recibos e fotografias. Como pode? Ainda que a maioria das ações
relativamente à Aldeia Imbuhy seja de natureza possessória, ou pelo menos deveria ser, este
dado não é irrelevante. A origem destas fontes ou provas menores, desprezíveis, deve ser
buscada no regime de direito público sobre as terras existente desde pelo menos 1850. Deve-
se à Lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850, também chamada de “Lei de Terras”, a
normatização “sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por títulos
de sesmaria sem preenchimento das condições legaes, bem como por simples títulos de posse
mansa e pacífica...”.
Foi esta lei que instituiu a obrigatoriedade do registro nos arquivos paroquiais a
partir de 1850. Esta disposição da “Lei de Terras” causa uma certa estranheza a reivindicação
que a União Federal faz da área do Forte Imbuhy desde 1863. Pois ainda que seja verdade que
a unidade militar foi ali instalada naquele ano, já havia ali áreas particulares tituladas e gente
morando anteriormente nelas, gozando plenamente da proteção do Estado Imperial. Essas
pessoas sim, tiveram as suas posses transformadas em propriedade em virtude de lei. Desta
forma, não me parece “verossímil” que o Exército Brasileiro tenha chegado no local e
encontrado tudo vazio, sem ninguém morando, ou que tenha simplesmente dito “cheguei!
Agora vão todos embora”. Isto significaria simplificar demais o conflito sobre a reivindicação
de terras pelas comunidades tradicionais e o olvido dos direitos e garantias a elas conferidos
pela Constituição da República de 1988 e pelo Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007.
Mesmo assim, lembro que a já Constituição Imperial de 1824, em vigor quando editada a
“Lei de Terras”, tinha como princípio a proteção da propriedade privada daquelas pesoas em
seu artigo 179 (“A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros,
que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela
Constituição do Imperio...”).
A “Lei de Terras” de 1850 foi posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 1318
de 30 de Janeiro de 1854, que dispunha em seu artigo 24 que “Estão sujeitas à legitimação as
posses que se acharem em poder do primeiro occupante, não tendo outro título senão a sua
occupação”, bem como “as que, posto se achem em poder do segundo occupante, não tiverem
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sido por este adquirida por titulos legitimos”. A mesma “Lei de Terras” foi posteriormente
regulamentada pelo Regulamento de 8 de Maio de 1854, que em seu artigo 91 estabalecia que
“Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua propriede ou possessão, são
obrigados à fazer registrar as terras que possuírem”, o que passou a ser efetivamente feito em
seguida, dando origem à titulação particular de toda a área da Aldeia Imbuhy antes da
chegada do Exército Brasileiro no local. Por isso há nos processos esta grande quantidade de
certidões imobiliárias de áreas circunscritas na Aldeia Imbuhy registradas nos cartórios de
Niterói e São Gonçalo, já que a região de Itaipú, Piratininga e Imbuí ficava antigamente sob a
competência registral deste último município. Documentos ou “provas” abundantes que
ninguém procurou saber de onde vieram. Voltaremos a isso mais adiante. O que eu gostaria
de propor é uma outra narrativa possível, contrária à anterior, e a conclusão que desta outra
narrativa resulta será, por conseguinte, também diametralmente oposta: os moradores da
Aldeia Imbuhy, muitas delas proprietárias das terras onde viviam e trabalhavam muito antes
da chegada da União Federal, jamais tiveram a sua presença no local tolerada pelo Exército, e
por isso vêm sendo paulatinamente arrancadas de lá. A afirmação de que os moradores
“convivem pacificamente com os militares no entorno do Forte Imbuhy (ou Imbuí) há várias
décadas”, que encontramos no acórdão da apelação nº 0033242-17.1996.4.02.5102, faz de
conta que não existe de fato um sério conflito histórico sobre a ocupação do local.
A propriedade “imemorial” da União Federal sobre as terras da Aldeia deve-se ao
que ficou decidido na apelação cível nº 6.421, uma decisão muito mais repetida do que lida.
Se passarmos os olhos com vagar nas alegações finais do Procurador da República naquela
ação de manutenção de posse, ou seja, de índole possessória, José Júlio de Saboia e Silva,
vamos ver que ele próprio reconheceu em suas razões a propriedade particular das terras do
“Imbuhy” desde o século XVIII, mais precisamente, pelo menos desde 1721. E disse ainda
mais: “Após os estudos procedidos pela engenharia militar, o Governo Imperial’, por Aviso
do Ministério da Guerra de 21 de Novembro de 1862, tomou posse da Ponta do Imbuhy, para
melhor construir o Forte D. Pedro II”. Percebam que quando a posse da União Federal teve
início – sem indenização alguma aos proprietários – ela oficialmente estava reduzida à “Ponta
do Imbuhy”, na pedra também conhecida como “Ponta do Boqueirão”, não na praia ou na
direção da lagoa de Piratininga. E a discussão dentro daquele processo, por mais curioso que
possa parecer hoje em dia, era inversa ao que se discute atualmente, se esmerando o
Procurador em demonstrar que a posse então restrita à “Ponta do Imbuhy” não havia sofrido
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

qualquer oposição aos moradores da localidade. Ora, isso revela que sempre foi a União
Federal a invasora, a indesejada, a estrangeira. Não foi uma posse clandestina, se tomarem por
fundamento, num apego formalista, o tal “Aviso” ministerial de 21 de novembro de 1862.
Mas ela de qualquer maneira acabou se mostrando violenta, desde o seu início, pela não
indenização de quem ali estava, tendo em vista a proteção da propriedade trazida no já
mencionado artigo 179 da Constituição do Império. Clandestinidade que se perpetua ainda
atualmente, já que estão todos, proprietários e possuidores, abrangidos pela proteção
constitucional dada às comunidades tradicionais. Foi naquela sentença que a posse da União
Federal de uma pequenina parte da região de Imbuhy e Piratininga situada apenas na Ponta do
Boqueirão, encravada na pedra, por uma ficção jurídica, se expandiu para a posse de 600
braças de terras ao seu redor, pouco importando quem já se encontrava lá “imemorialmente”.
Deve-se ao estudo de Márcia Motta a informação de que no Almanak Laemmert de 1867,
apenas quatro anos após a posse do Governo Imperial da Ponta do Imbuhy, eram apontados
dois proprietários e um Inspetor de Quarteirão na referida localidade, cargo surgido com o
Código de Processo Criminal de 1832. Cada Quarteirão deveria ter no mínimo vinte e cinco
casas ou “fogos”, o que nos dá uma noção da provável quantidade de pessoas atingidas pela
intromissão dos homens de farda na sua comunidade. Em seguida, a fortificação na Ponta do
Boqueirão ficou abandonada até 1901, perdendo inteiramente a afetação ou destinação
pública conferida pelo Aviso de 21 de novembro de 1862. Isso demonstra também a trama
das conveniências duvidosas, dos interesses obscuros e seus critérios desiguais. Basta ver que
a presença do Forte do Gragoatá aqui bem perto de dois campi desta Universidade Federal
Fluminense, não limita o tráfego de pessoas ou veículos, moradores e alunos dentro das 600
braças ou 1.318,800 metros ao seu redor, segundo uma anacrônica disposição que remonta a
um Regulamento de 12 de fevereiro de 1812.
Esta gente, portanto, resiste às remoções que foram iniciadas ainda no século XIX.
Nada justificaria o desmando e a violência que ali ocorre ao longo dos anos, com o
desapossamento forçado de bens particulares em virtude do agigantamento do poderio dos
militares após sucessivos períodos históricos em que a democracia fora ela própria violentada.
A começar pelos “vitoriosos” da própria Proclamação da República, quando a população
atônita, assistiu a tudo como se fosse uma parada militar. José Murilo de Carvalho tomou de
empréstimo a expressão na época utilizada por Aristides Lobo indicando que o povo ficou
“bestializado” com a quartelada que pôs fim ao Império. Nas palavras do historiador: “Os
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

militares tinham provado o poder que desde o início da Regência lhes fugira das mãos. Daí
em diante julgaram-se donos e salvadores da República, com o direito de intervir assim que
lhes parecesse conveniente” (CARVALHO, 1987, p. 22). Logo em seguida houve o
aprofundamento de uma crise política com Floriano Peixoto que vitimou até mesmo a Rui
Barbosa, que havia saído em defesa das pessoas presas e desterradas pelos militares fiéis ao
“Marechal de Ferro” durante a decretação do Estado de Sítio em 1892. Os Ministros do
Supremo Tribunal Federal, ao comunicarem a Floriano que não poderiam deixar de conceder
o Habeas Corpus impetrado por Rui Barbosa em favor dos pacientes, ouviram do então
Presidente a seguinte ameaça: “Esta notícia me contraria sobremodo. Não sei amanhã, quem
dará habeas-corpus aos ministros do Supremo Tribunal...” (Apud VIANA FILHO, 1949, p.
253). O resultado foi a denegação do mandamus e o exílio do “Águia de Haya” para a
Argentina, Portugal e a Inglaterra. Se o exílio foi a resposta dada pelo “Marechal de Ferro” ao
grande jurista que era Rui Barbosa, personagem cultuado até os dias de hoje, o que se dirá de
simples pescadores e extrativistas num local que passou a ser naquele momento cobiçado para
acomodar todo o séquito de vitoriosos fiéis florianistas? O resultado disso tudo para eles foi
um exílio dentro das suas próprias casas, o desterro dentro do próprio lugar onde viviam.
Na “Planta do Imbuhy e Arredores, levantada, desenhada e impressa pelo Serviço
Geographico Militar” em 1924, foram apontadas diversas residências em torno da lagoa de
Piratininga e da praia do Imbuhy, ligadas pelo “Caminho da Lagoa”, que depois ficou
chamado de “Estrada da Fonte” (referência à “fonte da Penha”, nome dado ao poço de água
potável que abastecia os moradores na praia de mesmo nome dentro da lagoa), e que depois
teve até mesmo o seu nome apropriado pelo Exército e virou “Estrada do Forte”. Naquela
documento é possível ver a expansão da ocupação militar para além da ponta onde antes
havia apenas os canhões que ficam na Ponta do Boqueirão, a residência original dos oficiais,
o cassino e o quartel. Neste mapa é possível perceber o avanço das edificações militares em
direção às dezenas de casas dos moradores marcadas em pequenos pontos pretos situadas
tanto na praia do Imbuhy como na direção das casas que ocupavam o “Caminho da Lagoa”.
Numa demonstração bruta e deigual de poder, os hotéis de trânsito dos oficiais e suboficiais
foram construídos no local exato onde antes ficava a escola Miriam de Andrade Mello no
outro extremo da praia, que funcionava como uma espécie de centro de tradições
comunitárias. E a guarita ou “guarda” que limitava a entrada e saída de pessoas e veículos
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pelo antigo “Caminho da Lagoa” do lado de Piratininga, e que originalmente ficava bem perto
da praia do Imbuhy, foi esticada até chegar praticamente na antiga Praia da Penha.
Já naquela época havia uma pressão econômica sobre a Aldeia. Neste mesmo ano de
1924 começou a aludida disputa judicial sobre a área entre Mário Guaraná de Barros e sua
esposa e a União Federal. Quem tiver curiosidade de ler aquela primeira sentença proferida
em 9 de setembro de 1932 verá que a primeira coisa que fez Mário Guaraná foi tentar vender
a área que acabara de comprar por quinze contos de réis imediatamente para o Ministério da
Guerra por quinhentos e vinte oito contos de réis! O négócio não deu certo. Todos se diziam
incrivelmente donos de tudo. Nenhum deles tinha razão. Nem Mário Guaraná e sua esposa
eram proprietários de toda a área, nem os militares detinham a posse que dizia ter. Mas quem
se saiu melhor, quer dizer, quem saiu vitoriosa na contenda judicial, como sendo a possuidora
de toda a área de servidão militar compreendida dentro das 600 braças de raio da torre do
Forte Imbuhy, ao menos naquele momento, foi a União Federal. Uma posse que, é bom
repetir, ela nunca teve. Nova investida contra os pescadores ocorreu quando foi praticamente
proibida a pesca de camarões na Lagoa de Piratininga, tornada propriedade particular pelo
Decreto Estadual nº 51 de 1943 que criou a “Companhia Itaipu”. O loteamento de toda a área
lagunar em 1947 empurrou os pescadores para a faixa mais próxima da enseada do Imbuhy,
onde abrigavam melhor os seus barcos das ondas e ventos. O loteamento foi feito num acordo
entre o incansável Mário Guaraná e a empresa Jardins Piratininga Imbuí Limitada, como se
depreende da Certidão do Livro 8-Auxiliar, fls. 008, sob o nº de ordem 02, do Cartório do 15º
Ofício de Justiça de Registro de Imóveis de Niterói. Pela descrição da propriedade da empresa
Jardins Piratininga Imbuí Limitada, ela ia “da lagoa de Piratininga e Praia de Imbuí”. Segundo
este mesmo registro, o loteamento “contará com elemento paisagístico, de grande valor, com
um bosque”; a “construção de um cais”, “um hotel moderno”, e “a sede de um clube,
localizado na ilha, que se encontra no interior da lagoa de Piratininga, no gênero do Clube dos
Caiçaras existente na lagoa Rodrigo de Freitas”. O Decreto-lei 58/37 estabelecia como
condição para o registro da área “uma relação cronológica dos títulos de domínio, desde 30
anos, com indicação da natureza e data de cada um, e do número e data das transcrições” que
jamais foi feita. Caso houvesse sido realizado este levantamento, certamente seria verificada
numa área tão extensa a existência de dezenas de propriedades privadas antecedentes no local.
No estudo feito por Lejeune P. H. de Oliveira sobre o sistema lagunar de Piratininga e Itaipú
em 1948, ele afirmava existerem trinta e oito casas na região. Lejeune reproduzia em seus
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

escritos o pressentimento corrente já naquela época de que “as lindas praias atlânticas da
margem oriental de Niterói; Piratininga e Itaipu, transforma-se-ão em futuro breve em bairros
residenciais idênticos aos de Copacabana, Ipanema e Leblon” (Apud OLIVEIRA, 1948, p.
683).
Levantar a propriedade das terras e mesmo a sua posse não interessava aos sócios da
empresa Jardins Piratininga Imbuí Limitada que investiam o seu capital na área. Seria mais
fácil remover os humildes moradores depois, fosse pela truculência, fosse através do Poder
Judiciário. A última coisa que pretendiam era chamar a atenção para a proveitosa fraude em
curso. E por isso precisavam que o Município de Niterói aprovasse tudo às pressas, sem
levantar qualquer suspeita. E também que os cartórios recém-criados não pesquisassem a
origem dos títulos aquisitivos e esquecessem os títulos preexistentes. Assim foi feito. A
dificuldade era que o Decreto-lei 58/37 previa que “o plano e planta do loteamento devem ser
previamente aprovados pela Prefeitura Municipal, ouvidas, quanto ao que lhes disser respeito,
as autoridades sanitárias e militares”. Com isso, o arranjo entre os proprietários da Jardins
Piratininga Imbuí Limitada e o município esbarrou frontalmente nos interesses do Exército
Brasileiro na área loteada, pois em sendo o memorial do loteamento aprovado pela
municipalidade sem a oposição da União Federal, a área se tornaria toda loteada, particular, e
todas as ruas e as praças públicas daquela localidade passaram a pertencer desde então ao
Município de Niterói. Como resultado, a União Federal nunca se opôs juridicamente ao
aludido loteamento. A mencionada matrícula imobiliária do loteamento dizia que “...foram
publicados editais, divulgando a pretensão da requerente para conhecimento de terceiros
interessados, pelo prazo legal, durante o qual, não havendo sido, apresentado, qualquer
impugnação à inscrição requerida...”.
O problema criado para o Exército Brasileiro pelos proprietários do loteamento e os
burocratas municipais era difícil de consertar, mas não impossível. Ainda mais com o
precioso auxílio dos tabeliães. Em 02 de abril de 1951, o loteamento foi alterado, com a
retirada a porção de terras dentro da servidão militar. Para compensar esta “perda”,
aumentaram, como num passe de mágica, de 770 para 1.442 lotes, tendo a parte da praia e
lagoa de Piratininga modificada a sua denominação para loteamento Marazul. Se a área de
servidão onde estava localizada a Aldeia Imbuhy não pertencia ao loteamento, pertencia ao
Exército. Foi mediante mais este artifício que as propriedades particulares situadas na praia do
Imbuí ao longo do tempo ficaram esquecidas, como se a área pertencesse “imemorialmente”
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ao Exército. Com isso, os tradicionais membros da comunidade passaram a ser considerados


não mais com direito à terra, sendo transformados todos em posseiros sem direito a nada, nem
mesmo a uma indenização. Aliás, nada disso chega a ser novidade. Os títulos de propriedade
estão aos bocados encartados nos processos judiciais dos moradores da Aldeia Imbuhy, sem
que alguém indagasse de onde vieram. Ainda que a maioria das ações em trâmite atualmente
tomem por base a posse dos terrenos, a propriedade particular da área onde se encontram
estabelecidos há décadas daria a eles o direito de ao menos pedirem o reconhecimento da
posse qualificada através da ação de usucapião.
Esta questão possui relevância vista tabto sob o ângulo da propriedade quanto da
posse anterior da área de servidão militar que “saltou” da Ponta do Boqueirão para uma área
imensa dentro das 600 braças. Pura ficção. Tudo isso acontecia quando o próprio direito de
propriedade estava se constituindo nas discussões sobre o Código Civil em elaboração desde
a contratação de Augusto Teixeira de Freitas em 1858, debates que invadiram o século XX.
Imagino que o direito das comunidades tradicionais à terra deve passar por outros
mecanismos e o presente estudo está a demonstrar que o modelo atual encontrado nas ações
judiciais é insuficiente, para dizer o mínimo. Mas se é a propriedade vale para um, deve valer
para outro. O fato de os aldeães terem construído as suas residências em terrenos de marinha
só é uma “ilegalidade” do ponto de vista do colonialismo jurídico atual. Sob o aspecto da
heteronormatividade, é esta justamente a característica histórica que os define como uma
comunidade tradicional a ser protegida segundo a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), como tal reconhecida pelo
Parecer Técnico nº 032/2009, Referência PA 1.30.005.000137/2003-81, da 6ª Câmara de
Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Por isso falo da propriedade apenas
para provocar um curto-circuito no discurso jurídico da propriedade, colocando o dedo nas
suas feridas, nas suas incoerências, jogando o direito contra o direito, mostrando que ainda
que se entre neste pantanoso terreno patrimonialista, há no caso da Aldeia Imbuhy uma
“contraprova” a ser levada em conta, uma “contraevidência”, um “algo mais” que
desestabiliza a reivindicação da área pela União Federal. Com efeito, esta afirma nalgumas
ações “ser proprietária e legítima possuidora da área” (apelação nº 0033477-
81.1996.4.02.5102). Baseia-se este acórdão numa firma convicção: “inexistindo dúvidas de
que a Aldeia do Forte Imbuhy se encontra localizada em bem público da União”. Mas será?
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Vejamos outro exemplo. Nos autos da ação de reintegração de posse nº


24.111/1959, movida por dois proprietários e possuidores da área contra a União Federal,
encontramos o Oficio nº 498 SSS/SI da Diretoria do Patrimônio do Exército, datado de
26.11.64. Este documento esclarecia que “a zona de servidão militar pode ser próprio
nacional sujeito a aforamento ou de propriedade particular”, e que “quando aforado ou
pertencente a terceiro o imóvel na zona das 600 braças será desapropriado se pelo Ministério
da Guerra foi emitido parecer contrário à sua utilização por ser proprietário”. Levando em
conta este documento, o então Ministro Amarílio Benjamim, do antigo Tribunal Federal de
Recursos, examinando a matéria debatida naqueles autos, deu razão aos proprietários do
terreno dentro da Aldeia Imbuhy que foram esbulhados pelo Exército, reintegrando-os em sua
posse cuja sucessão remontava a 1889: “Nesses termos, demonstrada também a violência
praticada pelo comando do Grupamento Militar, é fora de dúvida que a ação deve ser julgada
procedente”. Não sou eu, portanto, que digo que o proceder do Exército no caso da Aldeia
Imbuhy em relação aos pescadores foi violento, mas a própria decisão transitada em julgado
há décadas: “O uso da fôrça desnatura os propósitos do Patrimônio do Exército e tornam os
ocupantes da propriedade os Autores como esbulhadores”; ou “a ilegitimidade do
desapossamento daqueles que, com legitimidade, mantinham a discutida posse efetiva”. De
fato, reconhecida judicialmente a violência perpetrada pela União Federal, outra alternativa
não restaria senão a desapropriação da área. Foi então expedido o Ofício nº 197/SSPR/1-SS1,
assinado pelo Coronel Otto Denys Gomes Porto, então Chefe do Escalão Territorial da 1ª
RM, em 04/05/1982, e também a petição dirigida ao juiz firmada em 16 /11/1982, assinada
pelo Assistente Jurídico da União, o Dr. Florinaldo J. B. Parahyba, comunicando a intenção
de desapropriar o terreno litigioso. Esta desapropriação, contudo, jamais foi levada a termo.
Ao invés disso, a União federal, ajuizou em 1996 a ação de reintegração de posse nº 033233-
55.1996.4.02.5102, juntamente com outras dezenas de ações contra os moradores da Aldeia,
em face dos sucessores desses dois moradores que ainda resistem no local, omitindo tudo isto
que se disse acima, como se nada disto tivesse acontecido. Portanto, a União Federal sabe
muito bem, sempre soube, que a servidão militar não lhe transferiu automaticamente nem a
posse nem a propriedade da área onde esteja porventura inserida. Na decisão do processo nº
1998.51.02.201069-6, ficou decidido que nem sempre a posse é a exteriorização da
propriedade, ou seja, que “algumas vezes, a posse decorre da lei”. Sim, é verdade. Mas a
própria lei estabelece critérios para tanto. A área da Aldeia Imbuhy é particular por presunção
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

decorrente dos títulos de propriedade registrados na forma da Lei 6.015/1973, títulos que
remontam ao século XIX, anteriores à presença militar na região, e permanecerá particular até
que todos os passos previstos em lei ou o “devido processo legal” para a desapropriação
sejam cumpridos. Mas este interesse, ainda que houvesse, não poderia suplantar o de uma
comunidade tradicional protegida por lei.
Há também julgados entendendo que a propriedade da Aldeia Imbuhy é pública em
virtude do Decreto nº 77.890, de 22 de junho de 1976. Mas se a propriedade e a posse da área
pela União Federal era “imemorial” (apelação nº 0033477-81.1996.4.02.5102), como se diz
repetidamente nas decisões judiciais, qual seria a necessidade deste Decreto? Apenas
possibilitar o registro traslativo da propriedade? Mas o julgado nº 2001.02.01.010184-6
afirma que o referido decreto não confere a propriedade da área à União Federal. E vai mais
além, dizendo que a posse da União não é originária, devendo ser respeitadas as situações já
consolidadas. Este Decreto nº 77.890/76 nada mais é do que um triste registro do período
ditatorial militar inaugurado em 1964, pelo qual o Presidente da República, Ernesto Geisel,
autorizou o registro em nome da União Federal da área ocupada pela “1ª Bateria do 1º Grupo
de Artilharia de Costa Motorizado e do Presídio do Exército, ocupado nos últimos vinte anos,
sem interrupção nem oposição, pelo Ministério do Exército”. Mas como, “sem interrupção
nem oposição”?
Este Decreto 77.890/76 tem como norma de regência a Lei nº 5.972, de 11 de
dezembro de 1973, estabelecendo que “O Poder Executivo promoverá o registro da
propriedade de bens imóveis da União... possuídos ou ocupados por... unidades militares,
durante vinte anos, sem interrupção nem oposição” (artigo 1º, inciso II). Diz também que
deverá conter “certidão lavrada pelo Serviço do Patrimônio da União (S.P.U.), atestando a
inexistência de contestação ou de reclamação feita administrativamente, por terceiros, quanto
ao domínio e à posse do imóvel registrando” (artigo 2º); e que “o Oficial do Registro
verificará se o imóvel descrito se acha lançado em nome de outrem” (artigo 3º). Reparem bem
que o aludido Decreto fala em terrnos “possuídos ou ocupados” pela União, ou seja, sobre a
posse. No exemplo que demos acima, a posse da União Federal foi eficazmente contestada
em juízo. Logo, neste e também em tantos outros casos, a União Federal não contava com a
posse vintenária das áreas da Aldeia. Pelo contrário, as casas dos pescadores já estavam lá
vinte anos anos antes. Isso quer dizer que quem exercia a posse eram os moradores da
comunidade! Além do mais, basta uma leitura na Certidão do Cartório do 15º Ofício para
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

perceber que o requerimento administrativo da União Federal não indicou o Cartório de


Registros de Imóveis onde estavam pulverizados todos os títulos de propriedade dos
particulares da Aldeia Imbuhy em Niterói e São Gonçalo. Esta manobra impediu que o
Oficial do Registro de Imóveis pudesse verificar a existência da titulação anterior da área,
parecendo que não havia ninguém lá, como se aquela localidade fosse tão deserta quanto a
superfície da lua.
Eu gostaria de sugerir ainda mais uma hipótese, também provisória, que pode estar
relacionada com o período sobre o qual exercitava o historiador Carlo Ginzburg a sua
“dietrologia”: a transferência da área particular onde havia a Unidade do Exército Brasileiro
para a União Federal foi determinada em junho de 1976 pelo Decreto nº 77.890, assinado
pelo general Sylvio Frota, então Ministro do Exército. É possível que ele tinha como
finalidade o completo fechamento das várias vias de acesso que interligavam os Fortes Imbuí,
Rio Branco, São Luiz e a Fortaleza de Santa Cruz, medida que se impunha tanto para ocultar
a prisão e tortura de presos políticos que ali se encontravam, quanto ao controle da
“hierarquia” militar. Na Fortaleza de Santa Cruz funcionava o presídio do Exército. Era
preciso vigiar o interior das unidades militares, evitando “vazamentos” do que acontecia ali
dentro. Sobretudo após os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro do
ano anterior, e do operário Manoel Fiel Filho, em 18 de janeiro daquele mesmo ano de 1976,
ambos ocorridos dentro de unidades militares do II Exército, em São Paulo. Quando Herzog
foi assassinado, Sylvio Frota não queria a investigação do caso por um inquérito penal militar.
Pretendia preservar o anomimato todos os envolvidos naquela barbaridade. O inquérito foi
uma imposição do presidente Ernesto Geisel. O novo episódio com Fiel Filho custou a
demissão do comandante do II Exército, o general Ednardo D’Avila Mello e poderia muito
bem ter custado a do próprio Frota. Era a cabeça dele que estava a prêmio caso não colocasse
ordem na casa. No telegrama em que participava a Ednardo ter ciência da morte do operário
nas dependências do DOI-CODI, Frota indicava a “Repetição sistemática desse fato vg pois é
a terceira vez que acontece vg deve ser apurada em rigoroso inquérito...” (Apud GASPARI,
2004, p. 222). Está claro que colocar ordem na casa não significava de modo algum acabar
com a tortura sistemática de presos-políticos, que já contava com cerca de trezentos mortos e
seis mil denúncias. O problema era o inquérito inevitável e imprevisível, a pressão pública
que crescia desde a derrota eleitoral de 1974, a repercussão dos crimes praticados pelo regime
militar. Será que esta narrativa faz algum sentido? Aqui aparece uma “fonte”, uma “prova”,
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ou uma “antievidência”: a tortura de prisioneiros políticos dentro do enorme complexo


formado pelas quatro unidades militares dos Fortes Imbuí, Rio Branco, São Luiz e a Fortaleza
de Santa Cruz foi registrada no depoimento do ex-preso político Umberto Trigueiro, detido
em 15 de fevereiro de 1969, feito para a Comissão da Verdade de Niterói:

Ai eles me levaram de lá, do Terceiro Regimento de Infantaria, para o Forte Rio


Branco, ali em Jurujuba. Tinha muita gente da UFF presa lá, muita gente presa.
Muitos estudantes presos lá.
(...)
Eu segurei essa versão. E ai eles me falaram: '- Olha, você não quer falar nada,
então nós vamos mandar você para uma delegacia de polícia no interior da Paraíba.
Enquanto isso se organiza que nós vamos levar você para outro lugar.' Ai me
botaram num jipe e me levaram lá para esse Forte São Luiz.” Segue a narrativa
explicando que, nesse Forte São Luiz, não havia basicamente nada. Conta que foi
colocado numa pequena guarita, vigiado por sentinelas que revezavam de turno,
onde ficou preso por certa de 30 dias sob constantes interrogatórios e em situação
de isolamento, não havendo conhecimento de sua prisão por conhecidos ou
parentes (COMISSÃO DA VERDADE DE NITERÓI, p. 112).

Este é um motivo possível, incofessável, ignominioso, nada republicano para a


Decreto nº 77.890/76, cuja exposição de motivos é secreta. A tortura deveria permanecer
oculta ali dentro e os moradores cada vez mais controlados; o acesso à informação e a
comunicação deles vigiada, os seus passos ali dentro guiados, as suas companhias restritas.
Em 1977, foi proibida a passagem dos moradores por Piratininga pela guarda de Piratininga,
atingindo não somente aqueles que trabalhavam fora da Aldeia Imbuhy, mas até mesmo os
alunos de fora dela que estudavam na escola Miriam de Andrade Mello, e os de dentro da
comunidade que frequentavam o Grupo Escolar Fernando Magalhães do loado de fora. No
ano seguinte, foi determinada a desocupação das casas pelos moradores no prazo de trinta
dias, sob pena da adoção das medidas judiciais “competentes e adequadas ao caso”, que
acabaram, ao final, por serem tomadas.
A militarização do território da Aldeia Imbuhy que, como se percebe, é bem recente,
prosseguiu no período da redemocratização. “Território” aqui entendido nos termos do artigo
3º, inciso II, do Decreto nº 6.040/2007, o mesmo que criou o PNPCT. Mas isso não se deu
sem a resistência dos seus moradores. Há notícias de que alguns deles tentaram forçar a
ultrapassagem pela Guarda da Lagoa em direção de Piratininga em 1994, por acharem
“absurda” a ordem do comandante que impedia-lhes o uso daquela via de acesso. Em
represália, os transgressores tiveram a suas autorizações de ingresso por aquelas canceladas e
proibidos de receberem visitantes nos finais de semana “até segunda ordem”. Com o tempo,
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

os aldeães tiveram limitados o ingresso em suas casas dos seus vizitantes, familiares e amigos,
dos seus veículos; foi controlada a entrada das bebidas; foram proibidos de utilizarem o
telefone público, a água da rede de abastecimento, de reformarem as suas casas, quem se
casasse era obrigado a se mudar dali etc. Corpos também militarizados, hábitos, cotidiano. Foi
deles exigido pelo comandante em deterinado momento até mesmo que cantassem o hino
nacional nos dias de solenidades e trocas de bandeira, os homens com a cabeça descoberta.
Mas o final daquele ano guardaria ainda mais uma triste surpresa: a proibição da pesca pelo
comandante da unidade. Em mais um ato de resistência, os moradores denunciaram as
arbitrariedades do comando militar da Aldeia Imbuhy à Comissão Permanente de Direitos
Humanos da Câmara Municipal de Niterói, então presidida pelo vereador João Batista
Petersen Mendes. O Relatório desta Comissão, de 16 de maio de 1995, e que foi aprovado na
reunião do dia 23 do mesmo mês, sugeria que “os contrangimentos e pressões sobre os
moradores têm como único objetivo desalojá-los de suas moradias, por método arbitrário,
ilegal e desumano” (RELATÓRIO, s/p).
De qualquer modo, a ofensiva contra os aldeães encontrou o seu momento decisivo
no ano seguinte, com o ajuizamento contra todos eles de ações de reintegração de posse pela
União Federal. Como diria Michel Foucault, “A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra
continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder” (FOUCAULT, 2005,
p. 55). O direito, para ele, invertendo a fórmula de Clausewitz, seria a guerra continuada por
outros meios. Eu apenas acrescentaria que é a guerra continuada por outros meios com as
regras do “inimigo”. No caso, o colonialismo jurídico, o monólogo jurídico sobre o direito à
terra pelas comunidades tradicionais. Toda esta enxurrada de ações de 1996, pelo menos todas
as que tive acesso, foi instruída com a cópia do Decreto nº 77.890, de 22 de junho de 1976,
uma lei que pretendia ocultar não apenas a tortura, mas a violação de outros direitos dos
moradores da Aldeia Imbuhy, como os direitos de propriedade e de posse. É inegável que
ambos fazem parte do rol dos direitos humanos inclusive internamente e não isso é de hoje.
Mas em se tratando de hipótese de violação de tais direitos quando praticada durante a
vigência de regimes políticos autoritários, a questão ganha um tratamento especial. O
Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) se posicionou em 2004 no sentido de
retirar os efeitos e repudiar as autoanistias concedidas aos “crimes de genocídio, crimes de
guerra, crimes de lesa-humanidade ou graves violações dos direitos humanos”. Na data da sua
edição, o Decreto nº 77.890 violava os tratados internacionais de direitos humanos então em
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

vigor e dos quais o Brasil fazia parte. Ele riscou o direito de propriedade resguardado nos
artigos 17.1. (“Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros”)
e 17.2. (“Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”) da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de
1948. A “autoapropriação” feita, sem indenização alguma, sem a salvaguarda da posse da
área pelos seus tradicionais ocupantes, colidiu, portanto, com uma matéria inderrogável de
direitos humanos internacionais, não resistindo ao controle de convecionalidade. O historiador
Carlo Ginzburg, cotejando a tarefa do historiador e do juiz diante das provas que manuseiam,
diz que “existem erros catastróficos, erros inócuos, erros fecundos”. Porém, no processo
judicial, este último não tem lugar. “O erro judicial, mesmo quando revogável, se traduz
sempre numa diminuição da justiça” (GINSBURG, 1993, p. 97). E qualquer diminuição da
justiça, para quem a sofre, será sempre uma violência.

REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. São
Paulo: Hucitec, 2013.

CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia
das Letras, 1987.

COMISSÃO DA VERDADE DE NITERÓI. Documento eletrônico disponível em


http://www.documentosrevelados.com.br/depoimentos-torturas-denuncias-ditadura/relatorio-final-da-comissao-
da-verdade-de-niteroi, acessado em 11/9/2016, às 16:42hs.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Coleção Ditos &Escritos. Volume IV, Estratégia, poder-
saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

_____________ Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FREITAS JÚNIOR, Augusto Teixeira de. Terras e Colonização. Rio de Janeiro: B. L. Garnier – Livreiro Editor,
1882.

GASPARI, Elio. A Ditadura Encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

GINZBURG, Carlo. El Juez y el Historiador. Madri: Anaya & Mario Muchnik, 1993.

LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se transformar
em uma política do ressentimento. Niterói: EdUFF, 2010.

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Uma história para não esquecer. O Forte Imbuí e a expulsão dos moradores.
Laudo histórico. 2015.

RELATÓRIO da Comissão Permanente de Direitos Humanos. Câmara Municipal de Niterói. 1995.

VIANA FILHO, Luiz. A vida de Rui Barbosa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949.
ASPECTOS DE PROTEÇÃO ANIMAL, AMBIENTAL E HUMANA:
ANIMAIS E VEÍCULOS DE TRAÇÃO

CHAUFUN, Mery
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA.
Mestre em Direito pela UNESA.
Professora da Universidade Veiga de Almeida do Curso de Direito.
ARRUDA, Camila Rabelo de M. S.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA.
Professora da Universidade Veiga de Almeida dos Cursos de Direito e Administração.
NOGUEIRA, Marcelo
Doutorando do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA,
Mestre em Psicanálise, saúde e sociedade pela Universidade Veiga de Almeida.
Professor da Universidade Veiga de Almeira do Curso de Direito.

RESUMO

A presente pesquisa trata da utilização de animais para atividades pesadas, onde se usa a força, a tração
animal para o exercício de atividades de trabalho. Os impactos causados a saúde dos animais, ao meio
ambiente, e a vida humana. A utilização dos animais possui características de crueldade, grande
esforço físico, levando os animais a exposição de doenças, lesões e diminuição da qualidade de vida. A
pesquisa objetiva verificar a legislação existente quanto ao trabalho de animais de tração, verificar as
consequências para os animais e para o meio ambiente deste tipo de trabalho e analisar as novas
possibilidades que substituam a utilização dos animais. A pesquisa demonstra-se relevante por ser um
tema de relevância social, ao meio ambiente e os animais.

Palavras- chave. Meio ambiente; trabalho animal; impactos.

ABSTRACT

The present research deals with the use of animals for heavy activities, where the force is used, the
animal traction for the exercise of work activities. The impacts caused to the health of animals, the
environment, and human life. The use of the animals has characteristics of cruelty, great physical
effort, leading the animals to expose diseases, injuries and decrease the quality of life. The objective of
this research is to verify the existing legislation regarding the work of traction animals, to verify the
consequences for the animals and the environment of this type of work and to analyze the new
possibilities that substitute the use of the animals. The research is relevant because it is a subject of
social, environmental and animal relevance.

Keywords. Environment; animal work; impacts.

193
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A visão antropocêntrica e utilitarista em relação aos animais, a ideia de


superioridade humana gerou e continua gerando exploração e desrespeito quanto aos animais
não humanos.
Destaca-se no presente artigo aspectos da utilização de cavalos, burros, mulas em
trabalho informal, ou seja, carroças e charretes em áreas urbanas.
Tal utilização iniciada séculos atrás permanece na atualidade, cabendo uma análise
sucinta da legislação pertinente, problemas e impactos gerados para os animais, para o meio
ambiente e para o homem.
O trabalho se justifica, pois inúmeras crueldades e desrespeito são cometidos contra
os animais. A atividade permanece tendo como argumentos a sobrevivência humana.
Diversos locais proíbem ou regulamentam a atividade, no entanto se observa que a
fiscalização deste “trabalho” ou da legislação é precária ou ausente, notadamente quanto ao
tratamento dos animais. Torna-se necessária uma reflexão desta forma de trabalho e
substituição por outros meios.
Os objetivos são:(i) Analisar a legislação específica; (ii) Verificar o tratamento e
Consequências para os animais e para o meio ambiente; (iii) Analisar as novas possibilidades
que substituam a utilização dos animais.
Quanto à metodologia adotou-se a análise crítica da legislação brasileira que
regulamenta ou proíbe a utilização de animais para tração e consequências desta utilização,
bem como doutrina do direito dos animais e casos concretos que refletem os abusos
cometidos.
Observa-se que a legislação brasileira regulamenta a utilização de animais no
trabalho informal, no entanto, tal prática somada a falta de consciência humana e fiscalização
gera grave impacto para os animais e meio ambiente, não estando em conformidade com os
entendimentos mais contemporâneos que tratam dos animais. Além disso, alguns estados
brasileiros e Estados Estrangeiros romperam com tal prática ou pretendem romper. Existem
formas alternativas, como por exemplo; a charrete elétrica como ocorre atualmente em
Paquetá.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1.ASPECTOS HISTÓRICOS

A exploração de espécies da fauna e flora brasileira não é recente, ao contrário,


ocorre desde a época da colonização, início do século XVI, período em que se observa intenso
contrabando por portugueses, franceses e holandeses. Ciclos do pau-brasil, cana de açúcar,
gado, caça indiscriminada, animais explorados em zoológicos particulares e como fonte de
trabalho. Atos antropocêntricos que geram desrespeito por outras espécies, provocaram a
devastação do meio ambiente e extinção de diversas espécies de animais.
Cavalos, mulas, muares, burros utilizados na lavoura, pecuária, transportes em geral.
O Brasil foi sendo colonizado e desbravado com a ajuda destes seres, arando canaviais,
movendo roda de engenho, transportando mercadorias e provimentos.
Os animais aliviavam os escravos, eram utilizados em atividades pesadas, puxavam
charretes, ou como montaria para tropas, uma época que não existiam veículos ou máquinas.
Eram comuns relatos de maus tratos, desrespeito e excessos cometidos:

“A carga dos animais acostumados ao trabalho da tropa girava em torno de oito


arrobas (120 kg). Os mais fortes podiam levar até dez arrobas (150 kg). Durante a
marcha, era comum de acontecer de burros ou mulas jogarem fora a carga ou de
animais caírem paralisados porque não suportavam o peso. Era preciso, nestes
casos, que os tocadores descarregassem os animais, levantassem-nos e colocassem
novamente a carga sobre ele; só então a viagem poderia ser retomada.”
(MARTINS, 2007, p. 104-5)

(...) tendo observado a entrada de uma tropa de mulas na cidade de Santo, notou
que quando os tropeiros retiravam as cangalhas dos animais, viam-se em muitos
deles feridas que iam até os ossos. Resultado de longas viagens por maus caminhos,
sem que os homens se preocupassem com os animais. E quase o mesmo martírio
sofriam as mulas nas cidades, transportando pelas ruas esburacadas , em caleças e
carros arcaicos, gordos vigários, imensas baronesas acompanhadas de pretas
também opulentas, fidalgos enormemente arredondados pelo pirão e pela inércia ou
inchados monstruosamente pela elenfatíase. (FREYRE, 2006, p.632)

Inexistia preocupação ou leis de proteção para os animais, mas apenas interesse na


colonização e exploração de riquezas, tanto da flora quanto da fauna, e se, porventura, fosse
estabelecida alguma norma, seu intuito não era de proteção ambiental, ou para o animal em si,
mas apenas de interesse econômico, exemplo disso foi a determinação de extermínio dos
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

muares1 em 1791, tendo como finalidade beneficiar os criadores e negociantes de cavalos. Tal
determinação foi obtida pelo governador da Capitania de Goiás.
No período posterior a colonização, os animais chamados pelo homem de tração
continuaram sendo explorados sem qualquer preocupação com seu bem estar. Comuns os
maus tratos sofridos por cavalos e burros, que puxavam carroças e charretes, impostas por
seus condutores, realidade que, infelizmente, ainda ocorre, tanto que talvez a primeira lei que
se tenha notícia quanto à preocupação com o animal no Brasil seja o Código de Posturas, de
06 de outubro de 1886, no município de São Paulo, que estipulava no artigo 220 a proibição
do cocheiro impor castigo exagerado ao animal conduzido.2
Posteriormente a sociedade começa a refletir sobre a questão animal e protetores
atentos e atuantes pela causa animal, abolicionistas ou em busca de melhores condições
ambientais e para os animais. Passagem interessante ocorreu em 1905 com José do
Patrocínio, abolicionista e simpatizante da causa animal.

Fala-se na organização de uma sociedade protetora dos animais. Tenho pelos


animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que rudimentar, e que
têm conscientemente revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar
depois de brutalmente espancado por um carroceiro que atulhava a carroça com
carga para uma quadriga, e que queria que o mísero animal a arrancasse do
atoleiro...” (http://www.acordacultura.org.br/artigos/29012014/hoje-na-historia-29-
de-janeiro-1905-morria-jose-do-patrocinio-o-tigre-da-abolicao)

Entretanto, a primeira legislação mais efetiva quanto à proteção aos animais,


considerando-os individualmente e não apenas como proteção da fauna abstrata ou meio
ambiente, e regulamentando entre outros sobre os animais utilizados em tração e carga foi
promulgada no governo de Getúlio Vargas, com o Decreto 24.645 de 10 de julho de 19343.

1
“Os Muares são produto do cruzamento de jumentos e jumentas com cavalos e éguas de diversas raças, gerando
burros e mulas. Aptidão: Animais de tração, rústicos e resistentes a terrenos acidentados e temperaturas altas.
Apropriados para o trabalhos no campo, lazer, turismo eqüestre e cavalgada”
Disponível em.<http//:www. mercadodecavalos.com.br> Acesso em 25.08.08.
2
Código de Posturas de 06.10.1886: “Art. 220: É proibido a todo e qualquer cocheiro, condutor de carroça, pipa
d’água, etc, maltratar os animais com castigos bárbaros e imoderados. Esta disposição é igualmente aplicada aos
ferradores. Os infratores sofrerão a multa de 10$, de cada vez que se der a infração.”
3
Decreto n. 24.645 de 10 de julho de 1934: estabelece medidas de proteção aos animais.
Art. 3º Consideram-se maus tratos:
I – praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;
II – manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou
os privem de ar ou luz;
III – obrigar animais a trabalhos excessívos ou superiores ás suas fôrças e a todo ato que resulte em sofrimento
para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo;
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Além de considerar o animal por ele próprio, tornou contravenção penal os maus tratos aos
animais e possibilitou ao ministério público atuar em benefício dos animais em juízo.

2. DIREITO DOS ANIMAIS E 5 LIBERDADES

Ao longo da história animais foram explorados e desrespeitados, teorias que


conferem ao animal o status de coisa e o equiparam a máquinas. Não obstante, em paralelo,
muitos filósofos, cientistas e estudiosos se dedicaram a compreender o bem estar dos animais,
questionar sua natureza jurídica e buscar uma tutela mais efetiva. A sociedade se sensibiliza e
busca novas formas de convivência não baseadas na exploração, mas sim no respeito e
solidariedade.
Nasce um movimento em prol do reconhecimento do direito dos animais em esfera
nacional e internacional, cria-se o termo especismo, ou seja, a desconsideração por espécies

IV- (...)
V – abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o que
humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária;
VI - (...)
VII – abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação;
VIII. – atrelar, no mesmo veículo, instrumento agrícola ou industrial, bovinos com equinos, com muares ou com
asininos, sendo somente permitido o trabalho etc conjunto a animais da mesma espécie;
IX – atrelar animais a veículos sem os apetrechos indispensáveis, como sejam balancins, ganchos e lanças ou com
arreios incompletos incomodas ou em mau estado, ou com acréscimo de acessórios que os molestem ou lhes
perturbem o'fucionamento do organismo;
X – utilizar, em serviço, animal cego, ferido, enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que êste último caso
somente se aplica a localidade com ruas calçadas;
Xl – açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma um animal caído sob o veiculo ou com ele, devendo o
condutor desprendê-lo do tiro para levantar-se;
XII – descer ladeiras com veículos de tração animal sem utilização das respectivas travas, cujo uso é obrigatório;
XIII – deixar de revestir com couro ou material com identica qualidade de proteção as correntes atreladas aos
animais de tiro;
XIV – conduzir veículo de tração animal, dirigido por condutor sentado, sem que o mesmo tenha bola fixa e
arreios apropriados, com tesouras, pontas de guia e retranca;
XV – prender animais atraz dos veículos ou atados ás caudas de outros;
XVI – fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros, sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas
continuas sem lhe dar água e alimento;
XVIII – conduzir animais, por qualquer meio de locomoção, colocados de cabeça para baixo, de mãos ou pés
atados, ou de qualquer outro modo que lhes produza sofrimento;
XX – encerrar em curral ou outros lugares animais em úmero tal que não lhes seja possível moverem-se
livremente, ou deixá-los sem Agua e alimento mais de 12 horas;
Artigo 4º Só é permitida a tração animal de veículo ou instrumento agrícolas e industriais, por animais das
espécies esquina, bovina, muar e asinina.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

que não sejam a humana. Livros são lançados com teorias que incluem o animal na esfera de
consideração moral. Destaca-se o livro Libertação Animal do filósofo Peter Singer, com o
princípio da igual consideração de interesses e Jaulas Vazias do filósofo Tom Regan,
incluindo os animais como sujeitos de uma vida. A temática e reflexão sobre os animais
ganha espaço. Forma-se uma disciplina autônoma, com reflexos ambientais e para o animal
individualmente considerado, cursos de extensão, congressos abordando a questão animal, as
crueldades sofridas em suas tristes realidades cotidianas.
Forma-se um novo ramo do direito com preceitos doutrinários nos quais animais
possuem titularidade de direitos como vida, liberdade, integridade física e psíquica. Animais
como sujeitos de direito, como entes despersonalizados ou como sui generis. Animais com
direito a vida digna e um mínimo existencial. Respeito por sua natureza e essência, liberdade
para viverem com seus pares em conformidade com suas necessidades inerentes,
independente do homem ou para o proveito deste.
Em meio à elaboração de leis, preceitos doutrinários e princípios, e no que tange aos
animais utilizados para tração e carga, pode-se destacar as cinco liberdades defendidas na
ideia de bem estar animal.
Em 1965 foi elaborado o relatório Brambell (1965), através de comissão presidida
pelo veterinário Rogers Brambell e em 1967 a Comissão de Bem Estar de Animais de
Produção e em 1979 o Conselho de Bem Estar de Animais de Produção, surgindo as “cinco
liberdades” as quais deveriam ser aplicadas também aos animais ditos de tração, ou seja;
liberdade nutricional (livre de fome e sede); liberdade psicológica (livre de medo, estresse);
liberdade ambiental (local adequado para viver); liberdade sanitária (livre de dor , lesões e
doenças. Com tratamento veterinário)
Ocorre que, equinos em centros urbanos não tem as cinco liberdades respeitadas.
Concorrem com carros, caminhões, no caos do trânsito. Trabalham longas jornadas, não
descansam de forma adequada, permanecem amarrados ou em baias inadequadas nos
momentos de suposto descanso, calor, privados de convivência com os da sua espécie,
ausência de cuidados veterinários, carga excessiva, arreios de forma rústica gerando feridas e
desconforto. Abandono na velhice ou quando com problemas de saúde. É comum observar
perda de peso, lesões de pele, dores musculares e nos cascos, desidratação, degenerações
ósseas, depressão imunológica; perda de visão, entre outros problemas.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3. ASPECTOS NORMATIVOS E AMBIENTAIS

Quanto aos aspectos normativos e em âmbito federal, se destaca a Constituição da


República Federativa do Brasil de 1988 e a Lei federal n° 9605 de 1988. A CRFB\88 dedica
capítulo à proteção ao meio ambiente, considerando em seu artigo 225 o meio ambiente
ecologicamente equilibrado um direito fundamental, e, em seu parágrafo 1º, inciso VII,
proteção aos animais, bem sócio-ambiental de toda a humanidade, com imperativo moral que
demonstra preocupação ética de vedar práticas cruéis contra todos os animais, e não apenas
com o equilíbrio ecológico. Há preocupação ética, bem como reconhecimento de que estes
são seres sensíveis, passíveis de sofrimento e proteção. A lei de Crimes ambientais, com
destaque para o artigo 32 veda qualquer ato de maus tratos, sejam os animais silvestres,
aquáticos, domésticos ou exóticos.
No âmbito do direito dos animais, pretende-se extinguir com a utilização de animais
para carroças ou tração, no entanto, O código de trânsito Brasileiro (CTB) regulamenta
“veículos de tração animal”, devendo haver registro, identificação das carroças e autorização
para os condutores. Ocorre que tais condutores não são treinados, e a preocupação acaba
sendo com o trânsito propriamente. É comum o excesso de peso, trânsito intenso e a falta de
repouso, alimentação e tratamento veterinário.
Destaca-se o apontamento de diversos problemas para os animais e ambientais em
decorrência da tração animal. Os problemas de maus tratos e crueldade a que os cavalos ficam
submetidos é evidente e pode ser observada de forma diária e continuada. Cavalos foram a
segunda maior causa (8,6%; 21/240) de denúncias de maus tratos aos animais em estudo
recente na região metropolitana de Curitiba, abaixo de cães (82,9%; 203/240) mas acima de
gatos (6,5%; 16/240). A das denúncias de maus tratos a cavalos ocorreram exatamente pelo
seu uso na tração de carroças para materiais recicláveis, sendo sujeitos a sofrimento dentro de
uma rotina de vida muito diferente do natural para a espécie.
De acordo com os dados do Grupo de Pesquisa em Cavalos Carroceiros da UFPR,
36/76 (47,4%) dos cavalos estavam magros, 58/76 (76,3%) se encontravam anêmicos
(hematócrito abaixo de 32,0%), 48/76 (63,2%) apresentaram lesões de pele, 27/76 (35,5%)
com desidratação leve, 50/76 (65,8%) com problemas de casco e 36/41 (88,0%) estavam
severamente parasitados. Ainda, estudo feito no interior paulista 08/26 (30,7%) mostrou que
os carroceiros mantinham seus animais presos aos arreios durante os intervalos, embora 16/26
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(61,5%) negaram o uso do chicote nos animais, cargas excessivas de 500 a 800 kg, com
jornada de trabalho exaustiva de 8 a 13 horas por dia e sem intervalos para descanso.
Embora sejam reconhecidos e classificados pelo Art. 96 da Lei 9.603/1997 do
Código Brasileiro de Trânsito como veículos de passageiros (charrete) ou de carga (carroça)
de tração animal, a regulamentação da sua circulação local tem ficado a cargo das legislações
municipais. No entanto, leis municipais de circulação de carroceiros já foram aprovadas em
várias capitais brasileiras, como em Belo Horizonte (10.119/2011) e Curitiba (11.381/2005),
sem que tenham sido ainda hoje feitas suas respectivas regulamentações e aplicações.
Alguns municípios regulamentam a prática, outras elaboraram leis para por fim. O
estado do Rio de Janeiro foi o primeiro estado a proibir a utilização de animais nos centros
urbanos, no entanto, abre exceção em centros turísticos.
Em âmbito internacional também já se observa a proibição ou regulamentação, por
exemplo: o Código Penal italiano: Artigo 544 tipifica como maus tratos a submissão a
trabalhos excessivos; em Israel a circulação de carroças que transportam cargas foi proibida
em 2004, por entender que as condições são inadequadas para o animal.

Cidade/País Lei ou similares Situação do veículo de tração animal


Bogotá Decreto 178/2012 Troca de carroças por veículos motorizados.
Exclusão de veículos com fins turísticos.
Israel Lei (setembro/2014) Proibido.
Entrada em vigor (março/2015) Exclusão para carruagens.
Paris Lei (junho/2016) Carros elétricos substituindo carruagens.
Multa: U$ 25.000,00
Porto Rico Ordem executiva (abril/2015) Proibido, inclusive carruagens.
Nova Iorque Projeto 0573/2014 Proibição de passeios com carruagens puxadas
por cavalos no Central Park.
Pequim Banido em 1995 Atenuar os problemas de congestionamentos
Pouca ou nenhuma fiscalização
Viena Permitido Trânsito regulamentado
Hannover Permitido Trânsito regulamentado
Londres Permitido Trânsito regulamentado
Tabela 1: Legislação sobre veículos de tração animal em diversas cidades de diferentes continentes.

Capital Lei / PL Situação do veículo de tração animal


Brasília PL 1.804/2014 Proibido em 2014.
Vedado cavalos soltos ou amarrados em vias públicas.
Multa: R$ 50,00 (resgate do veículo e outras taxas)
Belo Horizonte PL 832/2013 Redução gradativa sem data limite.
PL 900/2013 Políticas públicas para os carroceiros cadastrados.
Implantação de veículos de tração motorizados.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Florianópolis Lei 1352/2014 Proibido em 2016.


Cadastro e qualificação profissional dos carroceiros.
Curitiba PL 5.130/2015 Proíbe quando regulamentada.
Vedado cavalos soltos ou amarrados em vias públicas.
Porto Alegre Lei 10.531/2008 Proibido em 2016.
Redução gradativa e qualificação profissional alternativa
Indenização no ato de entrega da carroça.
Recife Lei 17. 918/2013 Proibido em 2013.
Carroceiros com qualificação profissional alternativa.
Multa: R$ 500,00 e animais apreendidos para adoção.
São Luís Lei 215/2010 Regulamenta o tráfego.
Proibido sem autorização e em vias de alta velocidade.
Animais em maus tratos recolhidos.
São Paulo Lei 14.146/ 2006 Proibido em 2006.
Multa: R$ 50,00 para resgate em 5 dias mais despesas.
Reincidência resulta em perda do animal
Vitória Lei 8678/2014 Proibido.
Multa: taxas de remoção, registro e diárias do animal.
Reincidência resulta em perda do animal
Rio de Janeiro Lei 7194/2016 Proibido em 2016
Quando em maus tratos aplicar Lei 9605\98. Falta
regulamentação. Animais em maus tratos recolhidos
Tabela 2 Legislação sobre veículos de tração animal nas capitais de diversos estados brasileiros
Fonte: notícias e sites oficiais disponíveis na internet.

4.QUESTÃO AMBIENTAL E NOVAS POSSIBILIDADES

A atividade desenvolvida pelos carroceiros engloba três questões principais:


exploração ou maus tratos aos animais; atividade informal dos carroceiros em centros urbanos
e questão ambiental.
Quanto a primeira são inúmeros os casos de maus tratos e condições precárias que
estes animais são mantidos. Privados de alimentação adequada, veterinário, descanso, cargas
excessivas durante o dia todo. 4

4
“ Um homem foi detido e indiciado por maus-tratos a animais em Luís Eduardo Magalhães, na região oeste da
Bahia, após um cavalo de propriedade dele desmaiar no meio de uma rua da cidade por não suportar puxar uma
carga de madeira em uma carroça. O dono do animal foi levado à delegacia após uma foto que mostra o animal
caído no chão viralizar na internet, segundo informou ao G1, nesta terça-feira (23), a Polícia Civil do município
“.Disponível em http://g1.globo.com/bahia/noticia/cavalo-desmaia-por-nao-suportar-carga-de-madeira-em-
carroca-e-dono-e-detido-apos-foto-viralizar.ghtml>Acesso em 09\09\2017 “Um cavalo sofreu um acidente, nesta
segunda-feira (24), no bairro Cidade Santa Maria, em Montes Claros. O animal caiu de uma carroça, depois de
não ter forças para seguir. O ocorrido foi registrado pela Repórter do Web Terra que, quando chegou ao local, viu
o animal em pé e bebendo água ofertada por moradores. Segundo o dono do animal, o cavalo “caiu porque quis.
A culpa não é minha”, justificou. A população do bairro, que presenciou o momento também, disse que o dono
do cavalo bateu demais nele, e o bicho apresentava sinais de maus- tratos, fome e cansaço.
Disponívelem<http://olharanimal.org/cavalo-em-carroca-cai-apos-maus-tratos-em-montes-claros-mg/>
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No que tange aos carroceiros a atividade pode indicar exclusão do mercado de


trabalho formal por baixa escolaridade e falta de qualificação profissional, ou ainda falta de
opção em decorrência das condições sociais para desenvolver um negócio próprio mais
adequado. Some-se a falta de segurança e a permanência de crianças na atividade.5
Some-se a terceira problemática da atividade, a ambiental, uma vez que resíduos ou
carcaças são encontradas frequentemente em locais inadequados. É comum o abandono
quando não possuem mais condições de puxar carroças, em decorrência da idade ou doenças,
ou ainda serem abatidos para consumo de carne sem inspeção sanitária.
A utilização destes animais, talvez, se justificasse no passado, em momento que
inexistiam máquinas, veículos e falta de conhecimento ou desconsideração pela senciência
animal. Na atualidade, porém, não há como continuar.
Diversas legislações reconhecem a sensibilidade animal e os protege de crueldades.
A sociedade e diversos setores públicos já se compadecem do sofrimento animal e lutam por
seu término. Novas possibilidades são oferecidas de forma a proteger os animais e também
tutelar a sobrevivência dos carroceiros, além de conscientização.
Diversos exemplos podem ser citados, como projeto carroceiros, charretes elétricas,
cavalo lata e até mesmo a utilização de bicicletas.
As escolas de Medicina Veterinária do Brasil têm se mostrado sensíveis a esta
demanda social, criando os famosos “Projetos Carroceiros”, oferecendo assistência médico-
veterinária aos cavalos e capacitação dos carroceiros, além de auxiliar os estudantes de
medicina veterinária a aprimorar suas habilidades clínico-cirúrgicas no tratamento desses
animais, complementando assim a sua formação profissional e cidadã.
Cavalo lata6, projeto em desenvolvimento no Rio Grande do Sul oferece uma nova
possibilidade aos carroceiros. Trata-se de estrutura metálica que permite aos carroceiros
levarem materiais para reciclagem nas cooperativas do município sem utilização de animais.
Pode alcançar até 25 km por hora sendo dispensável a utilização de habilitação.
Em Paquetá, os animais foram substituídos por charretes elétricas. Em 2013, um
carroceiro foi apreendido em decorrência de maus tratos a seu animal, que faleceu. Tal fato

5
Recentemente em Minas, Montes Claros uma carroça colidiu com um ônibus, a carroça tombou sobre a criança
de 11 anos que acabou falecendo. Disponível em <http://g1.globo.com/mg/grande-minas/noticia/crianca-de-11-
anos-morre-apos-colisao-entre-carroca-e-onibus-em-montes-claros.ghtml> Acesso em 09\09\2017.
6
Disponível em <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2013/05/projeto-cavalo-de-lata-quer-reduzir-
circulacao-de-carrocas-no-rs.html> Acesso em 09\09\2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

gerou comoção, impulsionou a lei estadual no Rio de Janeiro e forte atuação da Comissão de
proteção e defesa dos animais do RJ.7 Assim, após longas conversas e negociações com os
carroceiros, alguns apoiando e outros não, os animais foram levados para local adequado e
foram substituídos por charretes elétricas. Muitos dos animais foram levados para a Ong
Santuário das Fadas.

CONCLUSÃO

Evidente os maus tratos sofridos por animais em carroças e charretes, e o crescente


inconformismo com esta prática. Não se pretende desamparar os carroceiros, mas novas
possibilidades de trabalho são oferecidas e buscadas com intuito de uma convivência
respeitosa entre humanos e não humanos. As necessidades inerentes de cada animal devem
ser respeitadas.
A sobrevivência humana não deve ocorrer através da exploração animal.
São nítidas as questões de sofrimento para o animal, questões ambientais e questões
de segurança para os seres humanos.
Não se justifica na atualidade a permanência desta atividade, o que se observa na
própria legislação que reflete os anseios da sociedade e novas perspectivas no âmbito do
direito dos animais.
Necessária uma transição gradativa para outras atividades de forma a romper com a
exploração destes animais e respeito ao meio ambiente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

BECHARA, Érika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003

DIAS, Edna Cardozo. A defesa dos animais e as conquistas legislativas do movimento de proteção animal no
Brasil. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, Instituto de Abolicionismo Animal, ano 2.n.2. jan/jun.
2007.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos; decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. São Paulo:
Global, 2006.

LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais. 2.ed. Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 2004

MARTINS, Marcos Lobato. História e meio ambiente. São Paulo. Annablume, Facudades Pedro Leopoldo, 2007.

7
http://www.oabrj.org.br/noticia/96497-paqueta-saem-as-charretes-e-entram-carros-eletricos
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

MÓL, Samylla. Carroças Urbanas & Animais.: Uma Análise ética e jurídica. RJ: Lumen Juris, 2016.

REGAN, Tom. Jaulas Vazias. Porto Alegre: Lugano, 2006

SINGER, Peter. Libertação Animal. Porto Alegre: Lugano, 2004.

SOUZA, Mariângela Freitas de Almeida e. Implicações para o bem-estar de eqüinos usados para tração de
veículos. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, Instituto de Abolicionismo Animal, ano 1.n.1. jan/dez,
2006

http://www.anda.com

http://www.planalto.com.br

http://www.mercyforanimals.org
VULNERABILIDADE SOCIAL
DE MORADORES REASSENTADOS
E SUA PERCEPÇÃO DE RISCOS

KNÖLLER, Patrícia de Vasconcellos


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
Professora da Universidade Estácio de Sá-UNESA

RESUMO

A Ocupação Machado de Assis, comunidade de baixa renda situada no bairro da Gamboa, na Cidade
do Rio de Janeiro, foi removida para o bairro de Senador Camará, em função das obras para os
preparativos dos megaeventos esportivos da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Este trabalho avalia as
consequências da remoção na vida destes moradores no tocante às vulnerabilidades sociais, riscos e
perigos da sua nova condição de moradia. O risco é abordado a partir de seu aspecto conceitual,
desdobrando-se sua distinção com o conceito de perigo. Na nova morada, os removidos se expõem a
riscos e perigos distintos dos anteriores, e a mutação da natureza do risco acarreta-lhes incerteza e
receio pelo pior. Baseado em dados empíricos obtidos em entrevistas com moradores removidos,
apresenta como resultados as percepções de risco de cada pessoa, concluindo que a amplitude do risco
tem estreita conexão com a classe social do indivíduo e que muito do que se considera risco, não
ultrapassa os limites do imaginário.

Palavras-chave. Risco. Vulnerabilidade social. Perigo. Megaeventos esportivos.

ABSTRACT

The Machado de Assis occupancy, a low-income community in the Gamboa, neighborhood in the City
of Rio de Janeiro, was removed to the neighborhood of Senador Camará, as a result of the
preparations for the mega-events of the World Cup and the Olympics. This paper assesses the
consequences of the removal in the life of these residents regarding the social vulnerabilities, risks and
dangers of their new housing condition. The risk is approached from its conceptual aspect, unfolding
its distinction with the concept of danger. In their new home, the evicted residents are exposed to risks
and dangers different from the previous ones, and the mutation of the nature of the risk brings them
uncertainty and fear for the worse. Based on empirical data obtained from interviews with evicted
residents, its results presents the perceptions of each person's risk, concluding that the extent of risk
has a close connection with the social class of the individual and much of what is considered risk does
not exceed the limits of the imaginary.

Keywords. Risk. Social vulnerability. Danger. Sports mega-events.

205
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte de uma pesquisa empírica, base de uma dissertação de


mestrado em desenvolvimento, na qual proponho investigar para onde foram transferidos e
como vivem os moradores removidos da região portuária da Cidade do Rio de Janeiro, em
função das obras para os preparativos dos megaeventos da Copa do Mundo de Futebol, em
2014, e dos Jogos Olímpicos realizados em 2016. A partir dos dados coletados analiso
aspectos da vulnerabilidade social e a percepção que os moradores removidos tinham dos
riscos envolvendo sua nova condição.
Meu objetivo era conhecer o novo local de moradia1 para onde foram transferidos os
moradores da Ocupação Machado de Assis, um aglomerado de famílias que ocupava um
prédio abandonado no bairro da Gamboa, e ouvir suas próprias impressões acerca de uma
melhora ou piora em sua qualidade de vida: (i) se a mudança, ainda que forçada, garantia-lhes
o direito à subsistência, incluindo o acesso ao trabalho; (ii) se as condições da nova moradia
eram pelo menos iguais ou melhores do que a anterior; (iii) se houve impacto no custo de
vida; (iv) se a infraestrutura disponibilizada era satisfatória, considerando-se mais ou menos
satisfeitos do que na moradia anterior e (v) se eles se consideravam mais ou menos seguros no
novo local de moradia.
A pesquisa foi realizada numa comunidade carente que reside num Conjunto
Habitacional integrante do Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), no bairro de
Senador Camará, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Foi neste local que o poder público
reassentou ex-moradores da Ocupação Machado de Assis2, que se localizava no bairro da
Gamboa, região portuária da cidade e cujo despejo ocorreu em 2012.
No primeiro dia marcado para as entrevistas, tive acesso ao local por intermédio de
uma pessoa conhecida que reside no conjunto habitacional, em outro bloco de apartamentos
que foi inteiramente sorteado para pessoas inscritas no Programa Minha Casa, Minha Vida, o
que não era o caso das famílias removidas.

1
A propósito, muito instrutivo o material produzido pela Relatoria Especial da ONU para a moradia adequada.
Disponível em: <https://raquelrolnik.files.wordpress.com/2010/01/guia_portugues.pdf>.
2
Ocupação coletiva de 150 famílias que viviam em um prédio industrial de quatro andares desativado na Rua da
Gamboa, nº 111, desde 22/11/2008, com base no Decreto Municipal nº 26.224, de 16/02/2006, que declara o
edifício como de utilidade pública para fins de desapropriação. Disponível em:
<http://ocupacaoma.blogspot.com.br/>. Acesso em 12/03/2015. Muitas famílias da Ocupação Machado de Assis
eram provenientes de outra ocupação que existia na Rua Rodrigues Alves, 143, que foi alvo de um incêndio um
mês antes de ocuparem a área da Gamboa.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Para a população removida não foi oferecida nenhuma opção mais viável3 como,
por exemplo, um local para reassentamento mais próximo de onde residiam. Apenas como
referência, o assentamento ocorreu a cerca de 40 Km de distância do local da antiga moradia.
Uma distância que percorrida em transporte público, em via expressa, levaria mais de uma
hora, se não houvesse congestionamento de trânsito.
As entrevistas semi-estruturadas foram conduzidas em conversas informais, em que
os entrevistados podiam se expressar livremente. Com a finalidade de homogeneizar as
informações, estabeleci um curto roteiro com cinco perguntas cujo tema eu pretendia que
permeassem os discursos4. As entrevistas foram gravadas de forma discreta, usando o
gravador de um aparelho celular, e depois transcritas.
Antes de iniciar cada entrevista, esclareci o motivo da coleta de dados, e solicitei
autorização para efetuar a gravação. Foi adotado protocolo de entrevistas aderente às
determinações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, na forma da Resolução CNS
196/96, que foi utilizado com pleno consentimento dos entrevistados.
Realizei um total de dez entrevistas com moradores da comunidade, amostra
representativa de dez famílias remanescentes da antiga Ocupação. As entrevistas ocorreram
em dois dias consecutivos. A primeira delas ocorreu no próprio conjunto habitacional, e
contou com auxílio de uma pessoa conhecida que também reside em um dos blocos de
apartamentos, mas não integra o grupo de reassentados, e que ajudou a reunir os moradores
que se interessaram em participar da segunda entrevista.
O segundo encontro ocorreu no bairro de Bangu, também na Zona Oeste; sendo que
a mudança de local se deu a pedido dos próprios entrevistados, uma vez que se instalou um
ambiente de desconfiança e havia receio de represália “das lideranças comunitárias” ou de
“grupo armado” do local, que não estaria gostando do movimento de gente estranha fazendo
perguntas e observando o local.
Durante as entrevistas, principalmente nas que ocorreram in loco na área de
reassentamento, um fato que me chamou a atenção foi o temor recorrente e disseminado que
eles demonstravam em suas falas. Era unânime o receio que desenvolveram de uma

3
Dados oficiais declaram que as famílias tiveram a opção de compra assistida de imóveis na zona central ou em
outras áreas da cidade ou de serem indenizadas (Disponível em: <https://medium.com/explicando-a-
pol%C3%ADtica-de-habita%C3%A7%C3%A3o-da-prefeitura/os-casos-emblem%C3%A1ticos-do-rio-
1b7f4b3f6054#.x0mpjthx8>. Acesso em 05/10/2015), entretanto, depoimentos de moradores contradizem a
afirmação.
4
Vide acima.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

perspectiva muito peculiar de risco de virem a ser novamente sujeitos passivos de outra
remoção forçada.
O risco de nova remoção poderia vir ou ordenada pelo poder público ou pelos
dirigentes do crime organizado. Neste caso, pela força da milícia5 ou pela truculência de
algum comando6. O temor deu a tônica na condução das entrevistas, e os moradores
expuseram o risco da forma como o percebiam a partir da situação que enfrentavam na área
de reassentamento.

1. O CONTEXTO DOS REASSENTAMENTOS NA CIDADE DO RIO DE


JANEIRO

A Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro disponibiliza dados gerais sobre


reassentamentos realizados entre 2009 e 2015, contabilizando um total de 22.059 famílias
reassentadas, sendo o motivo principal para terem “saído de casa”, a alegação de sua
exposição a algum tipo de risco7, como desmoronamento de encostas, ou alagamentos ou por
estarem morando em locais de condições insalubres ou em ruínas8. O discurso oficial não
utiliza a palavra “remoção” para se referir à transferência compulsória das pessoas de seus
locais de moradia9. Prefere dizer que as pessoas “saíram de casa” por estarem em risco.
Foi a partir da preparação para os Jogos Pan-americanos de 2007 que se iniciou o
maior processo de remoções da história da cidade do Rio de Janeiro, intensificado com a

5
Termo utilizado para se referir a grupos armados paramilitares que agem sob o argumento de combater a
atividade do tráfico de drogas e criminalidade em determinado local, forçando os moradores a viverem sob suas
regras de conduta; desenvolve seu modus operandi principalmente em práticas de extorsão nos locais onde atua.
Para mais informações, ver: < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/01/para-nao-chamar-atencao-
milicia-do-rio-muda-forma-de-assassinar-vitimas.html>. Acesso em 10/01/2017.
6
Termo utilizado para se referir às principais facções criminosas que atuam no estado do Rio de Janeiro,
envolvidas no tráfico de drogas, a saber: CV (Comando Vermelho), TC (Terceiro Comando) e ADA (Amigos dos
Amigos). Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u94005.shtml>. Acesso em 10/01/2017.
7
Tal alegação, em alguns casos, como a situação dos moradores do Morro da Providência e Pedra Lisa, também
na região central da cidade, foi tecnicamente contestada através de contralaudo, comprovando que o argumento do
risco, justificador para a remoção dos moradores, era implausível e falacioso. Sobre o assunto, ver:
<https://forumcomunitariodoporto.files.wordpress.com/2011/12/relatc3b3rio-morro-da-providc3aancia_final-
1.pdf>. Acesso em 09/05/2016.
8
Disponível em: <https://medium.com/explicando-a-pol%C3%ADtica-de-habita%C3%A7%C3%A3o-da-
prefeitura/reassentamentos-s%C3%B3-em-%C3%BAltimo-caso-e-priorizando-popula%C3%A7%C3%B5es-
vulner%C3%A1veis-2cf4a6dc847b#.4tdtileza>. Acesso em 05/10/2015.
9
Disponível em: <https://medium.com/explicando-a-pol%C3%ADtica-de-habita%C3%A7%C3%A3o-da-
prefeitura/explicando-desapropria%C3%A7%C3%A3o-reassentamento-remo%C3%A7%C3%A3o-
f5c86fe100e1#.8itodirfb>. Acesso em 05/10/2015.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

escolha da capital para sediar a Copa do Mundo de Futebol (2014) e, logo após, os Jogos
Olímpicos (2016). Durante a preparação para os dois últimos megaeventos esportivos, a
Prefeitura e a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) passaram a agir nas comunidades
carentes com base em um alegado interesse público na execução de obras para implantação
de infraestrutura urbana e de equipamentos esportivos.
Ainda que a remoção da comunidade não seja reconhecida oficialmente como
devida aos megaeventos esportivos10, a comunidade removida vivia na região portuária, local
extremamente impactado pelas modificações urbanísticas com o surgimento de novas
edificações na região.
A despeito da reformulação urbanística pretendida, o pretenso plano urbanístico
manteve abandonado o decrépito edifício da Gamboa, onde habitava a comunidade removida.
Até o início de 2017, a edificação ainda permanecia em pé sem que lhe fosse conferida função
social. O fato reforça o argumento de ativistas de que se estaria procedendo a uma
higienização social da área, com a “turistificação” (KNAFOU, 2001, p. 70) daquele espaço
urbano.
Este neologismo que teria sido utilizado pela primeira vez por Stephen Kanitz11
frente à situação exposta, dispara um severo processo de exclusão social. Ao elevar os preços
dos imóveis, a consequência natural é a gentrificação (GLASS, 1964) da área, subproduto
resultante de uma política urbanística que desconsidera o habitante despossuído.
A gentrificação (GLASS, 1964) - entendida em sua concepção original como
reestruturação espacial de uma determinada área urbana, implicando o deslocamento dos
moradores de baixa renda que viviam naqueles espaços (MENDOZA, 2016, p. 699) -
remeteu os antigos moradores para mais longe de seu antigo núcleo social. No caso específico
da remoção da Ocupação Machado de Assis, o fato é que o local de reassentamento das
famílias desalojadas, ainda que distante cerca de 40 km de distância, representou a alternativa
mais viável, diante da insuficiente oferta de um aluguel social de R$ 400,00 por família, valor
que não permite alugar um imóvel no subúrbio do Rio de Janeiro, e menos ainda na sua
região central.

10
Oficialmente, a gestão municipal reconhece apenas as intervenções realizadas na Vila Autódromo como ligadas
diretamente aos megaeventos esportivos. Disponível em: <https://medium.com/explicando-a-pol%C3%ADtica-
de-habita%C3%A7%C3%A3o-da-prefeitura/os-casos-emblem%C3A1ticos-do-rio-1b7f4b3f6054#.v0s6xbqmq>.
Acesso em 05/10/2015.
11
KANITZ, Stephen. Turistificando o Brasil. In Veja, edição 1.632, ano 33, nº 3, 19 de janeiro de 2000, página
20.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A proposta da Prefeitura era pagar o aluguel social até concluir a construção de


prédios residenciais na zona oeste, que abrigariam os desalojados. Havia a proposta de
indenizar a posse precária, cujo valor cobriria apenas o direito ao ressarcimento sobre os bens
móveis possuídos pelo morador no seu antigo local de residência. Somente em última
instância é que ocorreria a compra assistida12, situação em que a Prefeitura arca com o custo
de aquisição de um novo imóvel. Mesmo nesta modalidade de benefício, a quantia sempre
será insuficiente para a aquisição de um imóvel na mesma localidade onde ocorreu a
remoção. Nos dez relatos, referente à indenização em função das remoções devido aos Jogos
Olímpicos, a oferta da Prefeitura/SMH de compra assistida foi de R$15.000,00 como valor
máximo, ficando a média das propostas em torno de R$10.000,00.
Um cenário que se mostra de acordo com Mendoza (2016, p. 716), que após uma
pesquisa de revisão bibliográfica de textos da Web of Science e SciELO no período de 2011 a
2016, concluiu que na América Latina o Estado atua como um agente promotor de
gentrificação indireta, atuando como um facilitador para as atividades do lucrativo mercado
imobiliário e suas formas de exploração de venda do solo gentrificado.

2. O CONTEXTO DO RISCO

Durante o desenrolar das narrativas dos moradores entrevistados em seus


respectivos apartamentos, todos mencionaram várias vezes a expressão “está arriscado”. A
menção referia-se à possibilidade de nova intervenção “da Prefeitura” no sentido de removê-
los mais uma vez do local que passaram a habitar, e que lhes disseram pertencer, mas do qual
“ninguém ainda viu a escritura”.
É nesse contexto que introduzo o conceito de risco, ponto central deste trabalho,
procurando conceituá-lo a partir dos fatos observados, pretendendo demonstrar que a
percepção de risco, como vista pelos moradores removidos, assume os mesmos contornos
daqueles conceitos descritos pela literatura.
A remoção dos moradores está relacionada a pelo menos três determinantes
externos: a existência de um novo plano urbanístico, a valorização imobiliária oportunista da

12
À época, o teto máximo para a compra assistida era de R$ 77.000,00, conforme:
<http://www.jn.pt/brasil/interior/amp/rio-de-janeiro-eleva-indemnizacao-para-familias-que-serao-deslocadas-em-
funcao-das-olimpiadas-2036866.html>. Acesso em 07/01/2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

área que ocupavam e a necessidade de a cidade corresponder à expectativa internacional de


condições satisfatórias para sediar megaeventos esportivos.
Todos os determinantes externos mencionados estão presentes nas remoções de
moradores da Ocupação Machado de Assis. O que importa aqui é que cada um deles, à sua
maneira, representa diferentes probabilidades de risco.
O novo plano urbanístico foi o de maior risco e redundou de fato na remoção dos
moradores. Os outros dois, embora presentes, não influenciaram na mudança, já que o prédio
continuou no mesmo local, abandonado e sem qualquer obra que indicasse nova destinação
da área.
Nas Ciências Sociais, o conceito de risco foi disseminado por Anthony Giddens e
Ulrich Beck, que se utilizaram do conceito para compreender as sociedades contemporâneas
(GIDDENS E SUTTON, 2015, p. 97). Na visão destes autores:

Os teóricos do risco veem os riscos de hoje como qualitativamente diferentes dos


perigos externos de antigamente. (...) Os principais perigos de hoje, como
aquecimento global ou a proliferação de armas nucleares, são exemplos de risco
fabricado, criados pelos próprios seres humanos por meio de impacto de seu
conhecimento e suas tecnologias. (...)
Como o futuro das pessoas está menos estável e previsível do que no passado, todos
os tipos de decisões apresentam novos riscos para os indivíduos (2015, p.97-98).

Na situação dos moradores removidos, os riscos foram todos fabricados: o plano


urbanístico, a especulação imobiliária, a necessidade de oferecer aos visitantes uma cidade
“organizada”.
Agora, na situação em que atualmente estes moradores se encontram, outros riscos
fabricados passam a fazer parte de seu imaginário. Alguns destes podem nada mais ser que
mera realidade psicológica vinculada à imaginação, como por exemplo, o temor de que a
Prefeitura resolva desapropriar a área distante em que se encontram, uma probabilidade
reduzida. Mas outros que fazem parte deste imaginário, têm efetivamente alta probabilidade
de passar de uma realidade psicológica para a concretude de, por exemplo, uma expulsão de
sua nova moradia por ação das milícias ou tráfico que dominam o local.
Disso tudo, pode-se concluir que não há um conceito absoluto, estanque ou
universal para risco, já que ele varia de acordo com o contexto social em que é produzido.
Cada um está sujeito a riscos na vida em sociedade que, porém, dependem do extrato social
em que estiver inserido.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Passo agora a análise de outro enfoque do conceito de risco e sua diferenciação do


que venha a ser perigo. “Estou correndo risco” e “Estou em perigo” são, consequentemente,
instâncias distintas da vulnerabilidade.
Conforme GIDDENS (1991, p. 36), “perigo e risco estão intimamente relacionados,
mas não são a mesma coisa”, de modo que o risco pressupõe o perigo, mas “não
necessariamente a consciência do perigo”. “E o perigo existe em circunstâncias de risco e é na
verdade relevante para a definição de risco” (1991, p. 40). O autor define que

Risco não é o mesmo que infortúnio ou perigo. Risco se refere a infortúnios


ativamente avaliados em relação a possibilidades futuras. A palavra só passa a ser
amplamente utilizada em sociedades orientadas para o futuro – que veem o futuro
como um território a ser conquistado ou colonizado. O conceito de risco pressupõe
uma sociedade que tenta ativamente romper com o seu passado – de fato, a
característica primordial da civilização industrial moderna. (GIDDENS, 2007, p.
33).

Então, o risco implica numa situação de indefinição em que a ideia da


verossimilhança com o plausível é importante, já que se está considerando alguma coisa no
plano do virtual, que poderia vir a ser ou ocorrer, mas que de fato tem alguma probabilidade
de se tornar realidade. Por exemplo, um eventual receio destes moradores de perderem suas
casas para moradores abastados da zona sul do Rio de Janeiro não é um risco, por carecer da
possibilidade de vir a ocorrer. Já a perda destas mesmas moradias para traficantes ou
milicianos é um risco, haja vista o interesse destes em habitações em locais recônditos, longe
da exposição para as forças do Estado.
No caso dos moradores expostos a toda sorte de traumas provenientes das situações
vividas de conflito, na luta pela autoafirmação de sua própria dignidade, a expressão “está
arriscado” representa essa ideia de verossimilhança, do que pode vir a se transformar numa
situação concreta. Trata-se, portanto, de riscos com consequências para a cidadania destas
pessoas, e que para alguém sem o mesmo “instinto de precaução” poderia nada significar ou
ser apenas uma possibilidade remota ou improvável de ocorrer.
Nas palavras de NEVES e JEOLÁS (2012, p. 1-2), uma conceituação teórica das
expressões ligadas ao risco esclarece que

[...] os enfoques dados ao termo pelo senso comum assumem configurações que
não estão diretamente vinculadas à sua expressão abstrata e conceitual, [...]. Isto
revela o caráter polifônico que tem assumido e a sua capacidade de compor
metáforas em contextos sociais diferentes. O termo risco permite a
comunicabilidade sobre o “arriscado”, “arriscoso”, “perigoso”, “inseguro”, os
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

imponderáveis da vida cotidiana, garantindo a interlocução mesmo em cenários de


dissensão semântica e cultural13.

Não há evidências que sinalizem que os moradores devam se sentir ameaçados ou


que estejam diante de risco concreto que implique em novo deslocamento compulsório por
parte do poder público. Entretanto, como a percepção de risco não se relaciona
necessariamente com o que poderia ser considerado um risco real ou efetivo, mas está ligada à
maneira como estas pessoas idealizam a vida em situação de normalidade, a incerteza do
imaginário transforma a realidade psicológica em realidade concreta na vida destas pessoas.
O paradoxo representado pela ação estatal da remoção de pessoas14, que o Estado
justifica com o argumento de estar assegurando condição de moradia digna para a população
removida e o próprio entendimento que esta população entende por condições satisfatórias de
moradia, é algo que chama a atenção no discurso dos moradores. Há um entendimento
contraditório das partes sobre o que significa morar bem e isto se transforma em paradoxo. O
que a governabilidade entende como parâmetros indicativos de qualidade de vida
frontalmente difere do entendimento dos moradores reassentados. A contradição entre a visão
estatal e a visão da comunidade acaba por criar um ressentimento coletivo no grupo de
moradores, que vê no Estado o grande opressor de suas vidas.
A avaliação da qualidade de vida dos moradores é outro ponto de atenção. Nem de
longe se poderia dizer que no antigo local as pessoas viviam bem. Imagens das condições de
moradia na antiga Ocupação Machado de Assis15 estão disponíveis nas redes sociais.
Quaisquer que sejam os indicadores sociais utilizados para qualificar as condições de vida
naquele local, estes certamente estariam aquém do mínimo aceitável como indicativo de
qualidade de vida. Mais discrepante ainda se os marcadores sociais adotados na avaliação
forem os do IBGE, aderentes aos estabelecidos pela Comissão de Estatística das Nações
Unidas16.

13
Disponível em: <periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/download/14840/8397>. Acesso em
10/12/2016.
14
Aqui não se problematizará acerca de interesses econômicos privados que teriam influenciado a decisão política
de remover as pessoas para abrir espaço ao mercado imobiliário e atender a interesses nada nobres e fora de
propósito para um Estado Democrático de Direito.
15
A título de exemplo, ver: < http://ocupacaoma.blogspot.com.br/>. Acesso em 12/03/2015.
16
A respeito, ver:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/default_minimos.shtm
>. Acesso em 10/12/2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

É preciso explicitar que não é o objetivo deste trabalho apresentar um estudo


comparativo das condições de vida com rigor censitário. A menção à qualidade de vida antes
e depois da remoção visou unicamente explicitar a percepção que os moradores tinham acerca
de exposição a riscos antes e a percepção que têm agora quando reassentados.
Comparando o antigo local de moradia com o novo local, tendo como referência os
níveis mínimos aceitáveis para os indicadores sociais de qualidade de moradia, observa-se
uma melhora. Pode-se dizer que com base em determinados critérios, condições de extrema
pobreza deixaram de existir. A estatística, entretanto, se torna em vão quando a percepção do
envolvido é diferente.
A melhoria estatística da qualidade de vida observada no novo local de moradia
conflita com a percepção de sete entre dez entrevistados, que preferem o antigo local de
moradia, não pelas condições físicas, mas pelo que eles denominam “qualidade de vida”.

Lá na Ocupação era melhor, era tudo perto, dava pra fazer tudo a pé, a gente
entrava e saía a hora que queria, não tinha perigo, não tinha ameaça de tiroteio.
Aqui não dá pra sair à noite, até de dia é risco, tem muita favela no entorno e a
polícia pode estar fazendo operação. É ruim pras crianças. Tem dia que não dá pra
elas irem à escola. Vai, e volta quando está tendo operação. (Marcos)17.

Aqui é o fim do mundo. Nenhum parente quer vir pra cá porque gasta muita
passagem e chega aqui não dá pra ficar saindo, porque ou não tem condução ou
corre risco de tiroteio. (Vera).

Sinto falta da amizade que tinha entre as pessoas na Ocupação. Onde todos estavam
no mesmo barco e um não queria mandar mais do que o outro. Todo mundo se
ajudava. Se um começava a criar caso todo mundo resolvia junto. Agora, aqui, é
cada um por si. (Sílvio).

A percepção dos moradores encontra respaldo em CASTEL (2005, p. 31), para


quem

o ressentimento coletivo se nutre do sentimento partilhado de injustiça sofrido por


grupos sociais cujo estatuto se degrada e que se sentem privados dos benefícios que
eles tiravam de sua posição anterior. É uma frustração coletiva que se esforça por
encontrar responsáveis ou bodes expiatórios.

17
Os nomes aqui utilizados são todos fictícios, a pedido dos moradores entrevistados.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

De fato, o que se percebe no ressentimento dos reassentados é a injustiça a que


foram submetidos. Mesmo que as condições oferecidas sejam em parte melhores, prevalecerá
a percepção de que a mudança foi para pior.
Predomina no discurso dos moradores a questão da distribuição e enfrentamento do
risco, que acaba recaindo sobre os mais pobres, que no entendimento dos afetados ocorre
devido à sua condição social desprivilegiada:

Tivesse eu condições pra não precisar passar por nada do que passei até chegar
aqui. Ralando desde sempre, ‘apanhando’ muito sufoco pra ter o que dar de comer
pras crianças. E ainda tem gente que acha a maior onda eu nem ter participado de
sorteio pro apartamento, que tô levando vantagem. E quem diz nunca nem morou
na rua e ainda acha que só porque ganha mais eu não mereço estar no meu teto. Tá
arriscado querer ‘armar’ pra me tirar” (Ana).

A percepção demonstrada pela moradora encontra em BECK (2010, p. 41) a


explicação teórica sobre o porquê de o indivíduo mais pobre estar mais exposto ao risco. Para
entender este fato pode-se imaginar que o risco se distribui na forma de uma pirâmide, em
cuja base estão as classes mais despossuídas e o maior nível de exposição. Segundo ele,

A história da distribuição de riscos mostra que estes se atêm, assim como riquezas,
ao esquema de classe – mas de modo inverso: as riquezas acumulam-se em cima,
os riscos, embaixo. Assim, os riscos parecem reforçar, e não revogar, a sociedade
de classes. À insuficiência em termos de abastecimento soma-se a insuficiência em
termos de segurança e uma profusão de riscos que precisam ser evitados. Em face
disto, os ricos (em termos de renda, poder, educação) podem comprar segurança e
liberdade em relação ao risco (loc. cit.).

BECK (2010, p. 71) afirma que não se pode pressupor uma hierarquia de
racionalidade que explique a distribuição desproporcional dos riscos para os mais pobres.
Segundo o autor, o que se pode questionar é como a racionalidade de uma distribuição
desigual surge socialmente, como se passa a acreditar nela, e como esta se torna questionável.
Não é a evidência científica quem determina a distribuição de riscos: a percepção de riscos é
uma racionalidade socialmente criada.
Reforçando a ideia de que, na determinação da relevância, nem sempre a evidência
científica teria papel esclarecedor, a classificação dos riscos responde a fatores sociais e
culturais e não naturais (GUIVANT, 1998, p. 4). Deste modo, a partir da percepção social do
observador, sob influência de suas vivências, que prescindem de critérios técnico-científicos,
o observador categoriza o risco a que se submete, com base apenas na sua percepção de
sociedade.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Neste ponto, em muito contribuem Douglas e Wildavsky (1982, apud GUIVANT,


1998, p. 6) trazendo a perspectiva cultural para os riscos. Douglas posteriormente
desenvolveu uma tipologia de racionalidades (GUIVANT, 1998, p. 6), baseada em matriz
grade/grupo, que mostra como as disputas em relação à influência na percepção dos riscos
não podem ser analisadas a partir de uma oposição entre os que assumem uma posição
racional e uma irracional, ou entre leigos e peritos, uma vez que nos conflitos sobre riscos
podem ser encontradas diversas racionalidades (p. 8).
Tornam-se evidentes nos dias atuais os riscos ligados à ação criminosa. Isto
transparece na insegurança demonstrada na fala dos entrevistados, e que se mostrou mais
significativa quando perguntados se no novo local de moradia tinham que conviver com
problemas de violência e criminalidade, e da parte de quem viriam tais ameaças.
Todas as respostas convergiram para a presença de criminalidade e muita violência
no bairro de Senador Camará como um todo, bem como em vários bairros vizinhos. Foram
muitas histórias envolvendo operações violentas e confrontos entre a Polícia Militar e
traficantes nas comunidades próximas. Não mais dentro da área do conjunto habitacional, “o
que já ocorreu bastante até uns dois anos atrás”.
Atualmente, o que se impõe dentro da área dos apartamentos é a presença da milícia,
com o oferecimento de serviços clandestinos de TV a cabo, venda de botijões de gás,
segurança e “patrulhamento” da região, além do próprio sistema “alternativo” de transporte,
que acaba por ser a primeira opção dos moradores em face da precariedade da malha de
transporte público oferecida por ali.
Ao ser lembrado por uma vizinha das condições precárias em que vivia antes,
ocupando um barraco improvisado em acomodação coletiva, um morador acrescentou:

É, tem que considerar que em matéria de conforto aqui tá muito melhor. O ruim é
começar de novo aquele problema de alguém cismar com a gente ser de área rival
da que comanda aqui e perseguir18 (Marcos).

18
Vide uma série de reportagens veiculadas na imprensa acerca da atuação de grupos do tráfico e milícia naquela
localidade:<http://bandnewsfmrio.com.br/editoriais-detalhes/traficantes-impoem-medo-aos-moradores-de-conj>.
Acesso em 20/01/2017.
<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/quatro-pessoas-sao-presas-em-operacao-contra-milicias-no-
rio.html>. Acesso em 05/09/2016.
<http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/183251/Minha-Casa-Minha-vida-est%C3%A1-abandonado-em-
Camar%C3%A1.htm>. Acesso em 05/09/2016.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Relato que trouxe novo tópico à entrevista, o primeiro de vários outros no mesmo
sentido, é a exposição dessa população compulsoriamente removida e reassentada em local
controlado por facção criminosa rival daquela do local de origem do morador19.
Quando o próprio Estado contribui para criar um quadro de vulnerabilidade (social)
dessas pessoas, que passam a conviver com sensação de medo e ficam expostas ao risco de
agressão ou represália.
À semelhança de uma análise de Teresa Caldeira (2000) sobre estratégias, na forma
de enclaves fortificados (p. 257), como meio de proteção e reação adotadas nos condomínios
nobres na cidade de São Paulo contra o aumento da criminalidade, no caso do Rio de Janeiro
verifica-se que o uso de “estratégias” deste tipo também está presente mesmo nos
condomínios mais populares, ainda que a custos bem mais baixos do que nos condomínios de
luxo, mas não menos relevantes e sacrificados para seus moradores.
Os entrevistados foram unânimes em relatar que estão “obrigados” ao pagamento de
uma “taxa de segurança” cobrada por milicianos, de R$ 15 a 30 reais mensais, dependendo do
condomínio. Taxa que se estende também a todos que desempenham algum tipo de serviço
ali, como mototáxis, entregadores de compras, camelôs, cujo valor vai aumentando conforme
o serviço oferecido e sem contar com os “serviços extras” que os moradores são obrigados a
aderir, como o “Gato Net” e o fornecimento de botijões de gás. No caso daqueles que
realizam transporte alternativo no local essa taxa chega a R$ 450,00 por semana.
Situação que faz daqueles conjuntos habitacionais verdadeiros enclaves fortificados
que, conforme CALDEIRA (2000, p. 12), “criam um espaço que contradiz diretamente os
ideais de heterogeneidade, acessibilidade e igualdade que ajudaram a organizar tanto o espaço
público moderno quanto às modernas democracias”.
Com a remoção e posterior reassentamento dos moradores em área precarizada e
distante de onde viviam anteriormente, fica evidente o processo de segregação espacial a que

<http://extra.globo.com/casos-de-policia/todos-os-condominios-do-minha-casa-minha-vida-no-rio-sao-alvos-do-
crime-organizado-15663214.html>. Acesso em 10/09/2016.
<http://extra.globo.com/casos-de-policia/moradores-de-conjuntos-do-minha-casa-minha-vida-em-senador-
camara-sofrem-com-acao-simultanea-do-trafico-da-milicia-15712204.html> 20/01/2017.
<http://www.folhapolitica.org/2014/01/minha-casa-minha-vida-enfrenta.html>. Acesso em 10/09/2016.
<http://oglobo.globo.com/rio/conjuntos-da-prefeitura-em-senador-camara-viram-alvo-de-milicia-5040165>.
Acesso em 10/09/2016.
19
No entorno do complexo de conjuntos habitacionais de baixa renda em Senador Camará, que somam quase
quinze mil famílias, estão situadas as favelas de Vila Aliança, Taquaral, Rebu e Sapo, todas ocupadas por facção
rival a que atua na região central da cidade, de onde vieram os moradores reassentados.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

foram submetidos, quando se pode apontar a ocorrência de um duplo modelo de enclave


fortificado a que ficaram sujeitos na cidade.
Primeiramente, com a separação das áreas mais nobres das áreas menos nobres da
cidade e, depois, ainda se adotou um modelo dentro dessa área mais precarizada, nos
condomínios de baixa renda, em que a população tem que se submeter ao mercado de
segurança clandestina dominado pelas milícias que atuam no local contra a ação de
criminosos de facções rivais ou contrárias ao exercício dos direitos de cidadania dos
moradores. Eles pagam a criminosos para terem o seu direito de ir e vir resguardado de outros
criminosos.
Tudo contribuindo para a existência de cercas simbólicas dentro de um “ciclo da
violência” (CALDEIRA, 2000, p.13) e medo que alimenta ainda mais o aumento do
crescimento da indústria da segurança, ainda que paralela e ilegal, mas cotidianamente a única
com a qual os moradores podem efetivamente contar.
Dos dez entrevistados, oito disseram não se sentir mais seguros ali do que em sua
antiga moradia, vivendo sob um clima de mais tensão do que enfrentavam antes, “quando a
ameaça era apenas serem expulsos pela ‘Prefeitura’, não se preocupando com tráfico ou
milícia”. Antes, a falta de dinheiro os expunha à privação de meios de subsistência, agora
tendo que enfrentar também as cobranças pelos serviços que se veem obrigados a utilizar20.
Outras queixas quase unânimes versavam sobre o abandono e o descaso da
Prefeitura/SMA em não prestar assistência à situação de deterioração dos conjuntos de
apartamentos, principalmente das áreas comuns, bastante degradadas apesar do relativo pouco
tempo de construção (o conjunto foi inaugurado em 2012), além de problemas de
alagamentos que causavam infestação de mosquitos, deficiência de iluminação e rompimento
de rede de esgoto, além de falta de água com frequência.
Reclamação feita por todos os entrevistados abarcou a questão da distância do
conjunto habitacional para seus postos de trabalho, na região central da cidade, quando alguns
relataram terem perdido o local de trabalho, formal ou informal, em decorrência do problema
de mobilidade e aumento com o custo de transporte no percurso casa-trabalho-casa. Muitos
buscaram novas frentes de trabalho em bairros mais próximos.

20
Pude ouvir de um síndico que o Conjunto Habitacional enfrenta muitos problemas pela alta taxa de
inadimplência entre os moradores, incluindo a taxa condominial e o pagamento de tarifas pelos serviços públicos
disponibilizados, para o que argumentam que antes de ali residirem nada pagavam.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Tudo para esses lados é mais difícil porque é muito longe, sacrifica muito a gente.
Não tem nada perto. Fora a despesa, que aumentou bastante e está muito difícil
conseguir um trabalho, nem “bico” aparece (Suelen).

Tiraram a gente de onde facilitava pra todo mundo e não fizeram nada lá. Está
fechado. Fizeram obra gigante em tudo que é lugar lá no Centro e de que adiantou
isso pra gente? Por que não podiam reformar o prédio de onde expulsaram a gente?
Gastaram tanto dinheiro! (Marilene).

O último censo demográfico do IBGE demonstra que dos dezesseis milhões de


habitantes do Estado do Rio de Janeiro, quase doze milhões (74%) residem em sua região
metropolitana e cerca de 62% da população, com idade economicamente ativa entre quinze a
setenta anos, ocupam postos de trabalho na capital do estado. Se a maior parte dessa
população ocupava postos de trabalho nas áreas centrais da cidade, como o caso da zona
portuária, de onde vieram essas pessoas, exatamente onde há maior oferta de emprego, é
evidente o prejuízo que tiveram quanto à mobilidade, tanto no acesso aos bens e serviços
urbanos quanto ao próprio mercado de trabalho.

3. O RISCO DIANTE DA VULNERABILIDADE SOCIAL

Diante desses fatos, vê-se que o Estado involuntariamente aumentou os riscos das
pessoas que já se encontravam em situação de franca vulnerabilidade social, sendo esta
entendida como a associação da pessoa a situações de exposição a riscos. Vulnerabilidade
social subentende, então, a maior susceptibilidade dessas pessoas de sofrerem algum tipo
particular de agravo (ACSELRAD, 2006, p. 1).
Desta forma, o Estado, ao invés de desenvolver uma política pública de
planejamento e gestão territorial eficiente na recuperação da população já tão vitimada pela
negação de cidadania e inclusão social, atua promovendo verdadeira desqualificação social
(PAUGAM, 1999, p. 68).
Esta forma de atuação estatal colabora para manter em alta os indicadores de
vulnerabilidade social, que é quantificada pelo índice de vulnerabilidade social (IVS). Este
indicador está disponível a partir de dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) no Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros21, cuja última
edição foi a de 2015. Em termos qualitativos, o indicador busca identificar porções do

21
Disponível em: <http://ivs.ipea.gov.br/ivs/data/rawData/publicacao_atlas_ivs.pdf>. Acesso em 30/06/2016.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

território onde há a sobreposição de situações indicativas de exclusão e vulnerabilidade social,


servindo para orientar gestores públicos municipais, estaduais e federais para o desenho de
políticas públicas mais sintonizadas com as carências e necessidades.
O índice de vulnerabilidade social se refere ao acesso, à ausência ou à insuficiência
de ativos, possuindo três dimensões de marcadores – IVS Infraestrutura Urbana; IVS Capital
Humano e IVS Renda e Trabalho - que busca identificar as falhas de ofertas de bens e
serviços públicos no território nacional que deveriam ser providos aos cidadãos pelo Estado,
nas suas diversas instâncias administrativas.
Conforme a citada pesquisa, a dimensão que apresenta maior evolução (positiva) no
período de 2000 a 2010 é o IVS Renda e Trabalho, que abarca indicadores de insegurança de
renda e de precariedade nas relações de trabalho, quando o país passa de um alto índice para
um médio índice. Um dos indicadores aqui informa sobre o uso do tempo das pessoas de
baixa renda, com uma atividade compulsória (deslocamento para o trabalho), que pode ser
estressante e comprometedora do seu bem-estar.
Um dado alarmante é que o município do Rio de Janeiro aparece com apenas 4,3%
na faixa de redução do índice de vulnerabilidade social. O fato vem a se constituir um
problema sobre o qual ACSELRAD (2006, p.2) entende que para interromper o “processo de
vulnerabilização de determinados grupos sociais” se fará necessário interromper os processos
que concentram os riscos do projeto desenvolvimentista sobre os mais desprotegidos”.
O que certamente demanda.

CONCLUSÕES

Conclui-se que a remoção de moradores da Ocupação Machado de Assis, que tinha


como motivação a reurbanização da área, não atingiu o objetivo urbanístico. O complexo de
moradias permanece no local, em situação precária.
Há o entendimento de que tenha ocorrido uma higienização social, ainda que a
Prefeitura do Rio de Janeiro adote o eufemismo de que os moradores removidos “saíram de
suas casas” em decorrência de riscos a que estavam expostos; não há no discurso oficial a
menção ao termo remoção.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

As vias indenizatórias da Prefeitura/SMA são insuficientes para assegurar novas


condições de moradia aos removidos que lhe permitissem residir próximo a zona portuária,
local de onde foram removidos.
As remoções têm levado os moradores para longe de seu lugar de trabalho, o que
implica que muitos ficam sem meio de subsistência, pelas dificuldades decorrentes da menor
mobilidade.
O conceito de risco é aberto, depende do contexto social e seu potencial é
inversamente proporcional ao nível social do afetado. Quanto mais pobre, mais exposto ao
risco.
É necessário distinguir risco e perigo. O risco é uma probabilidade, o perigo é uma
evidência. Quando a probabilidade do risco é extremamente reduzida, este fica
desconfigurado e passa a ocupar unicamente o imaginário do que se sente ameaçado.
As famílias desalojadas da Ocupação Machado de Assis têm a percepção de que,
apesar de terem melhores moradias, ficaram expostas a novos riscos, como o da violência.
Sua percepção de risco decorre da violência e da possibilidade de serem novamente
removidas pelo poder público.
Os processos políticos decisórios, como o que decide sobre a remoção e
reassentamento de comunidades, podem se transformar em mecanismos promotores de
injustiças e aumento de desigualdades sociais, aumentando a vulnerabilidade das populações
atingidas; quando o Estado deveria proporcionar mecanismos que protegessem essas
populações da sujeição e enfrentamento de riscos desnecessários, criando um exército de
resilientes a toda sorte de infortúnios.

REFERÊNCIAS

ACSELRAD, Henri. Vulnerabilidade ambiental, processos e relações. Comunicação ao II Encontro Nacional de


Produtores e Usuários de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais, FIBGE, Rio de Janeiro, 24/8/2006.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução de
Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000.

CASTEL, Robert. From dangerousness to risk. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER, Peter.
The Foucault Effect: Studies in Governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. – São Paulo: Editora UNESP,
1991.

_____. Mundo em descontrole. O que a globalização está fazendo de nós. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

GUIDDENS, Anthony; SUTTON, Philip W. Conceitos essenciais da Sociologia. Tradução Claudia Freire. 1. ed.
São Paulo: Editora UNESP, 2016.

GUIVANT, Julia S. A trajetória das análises de risco: da periferia ao centro da teoria social. Revista Brasileira de
Informações Bibliográficas – ANPOCS, nº 46, 1998, pp.3-38.

KNAFOU, Rémy. Turismo e território. Por uma abordagem cientifica do turismo. In: RODRIGUES, A. B.
(Org.). Turismo e Geografia: Reflexões teóricas e enfoques regionais. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1996.

MENDOZA, Félix Rojo. La gentrificación en los estudios urbanos: una exploración sobre la producción
académica de las ciudades. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016.

NEVES, Ednalva Maciel; JEOLÁS, Leila Sollberger. Para um debate sobre risco nas ciências sociais:
aproximações e dificuldades. Revista de Ciências Sociais, n. 37, Outubro de 2012 – PP. 13-31 14.

PAUGAM, Serge. A Desqualificação Social: ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo: Educ/Cortez, 2003.
PROJETO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL:
UMA APARENTE CONTRADIÇÃO ENTRE
A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A REFORMA AGRÁRIA

SOARES, Paulo Brasil Dill


Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Ciência, Tecnologia e Inovação em
Agropecuária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Doutorando pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Direito /UFF. Membro do Observatório Fundiário Fluminense.
RIBEIRO, Ana Maria Motta
Professora Associada da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)/
(CPDA). Professora do Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) e Coordenadora do
Observatório Fundiário Fluminense.
CÂMARA, Andreza Aparecida Franco
Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pelo
PPGSD/UFF. Pesquisadora FAPERJ.

RESUMO

A presente proposta objetiva analisar o modelo de assentamento que está atualmente sendo instituído
pelo INCRA, denominado “Projeto de Desenvolvimento Sustentável” ou simplesmente PDS, enquanto
política agroambiental, inspirada na luta dos seringueiros e dos povos da floresta na Amazônia visando
continuar exercendo o direito ao acesso a terra e à floresta, em regime de uso sustentável, valorizando
os saberes e o modo de vida de suas experiências. Serão examinamos dois casos de assentamentos na
modalidade de PDS criados no estado do Rio de Janeiro: o PDS Sebastian Lan, localizado no
Município de Silva Jardim, no entorno da Reserva Biológica Poço das Antas (REBIO), e o PDS
Osvaldo de Oliveira, situado em Macaé, ambos em território de Mata Atlântica. A contrapelo da
história de construção dessa proposta verificam-se dois processos que merecem análise para entender
empiricamente a questão da produção política de uma suposta contradição entre preservação ambiental
e reforma agrária. No primeiro aparece o PDS através de uma politica pública impositiva do Estado,
sem consulta aos atingidos já estabelecidos na área há 20 anos. No segundo, o INCRA disponibiliza
uma área sem presença humana e só depois conduz um grupo já mobilizado para acesso a terra para os
quais apresenta o PDS como modelo fechado e as tensões começam a emergir criando novas lutas em
lugar de facilitar a emergência de uma comunidade centrada em objetivos que recebeu e sequer soube
como assumir. Pretende-se problematizar pela escuta das vozes afetadas, especificamente em relação
ao modelo de PDS imposto nessas territorialidades para entender o contraste entre interesses políticos
do Estado e os significados e interesses levantados pelo de construção coletiva dos projetos.

Palavras-chave. Reforma agrária; Projeto de Desenvolvimento Sustentável; Assentamentos Sebastião


Lan; Assentamento Osvaldo de Oliveira.

ABSTRACT

The present proposal aims at analyzing the settlement model that is currently being set up by INCRA,
known as the “Sustainable Development Project” or simply PDS, as an agro-environmental policy,
inspired by the struggle of rubber tappers and forest peoples in the Amazon to continue exercising the

223
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

right to access to land and forest, in a sustainable use regime, valuing the knowledge and way of life of
their experiences. We will examine two cases of settlements in the PDS modality created in the state of
Rio de Janeiro: the PDS Sebastian Lan, located in the Municipality of Silva Jardim, near the Poço das
Antas Biological Reserve (REBIO), and the PDS Osvaldo de Oliveira, in Macaé, both in Atlantic
Forest territory. In contrast to the history of the construction of this proposal, there are two processes
that merit analysis to understand empirically the question of the political production of a supposed
contradiction between environmental preservation and agrarian reform. In the first one the PDS
appears through a public tax policy of the State, without consultation to those already established in
the area 20 years ago. In the second, INCRA provides an area with no human presence and only then
leads a group already mobilized to access land for which it presents the PDS as a closed model and
tensions begin to emerge creating new struggles rather than facilitating the emergence of a community
focused on goals that he has received and even knew how to assume. It is intended to problematize by
listening to the voices affected, specifically in relation to the PDS model imposed in these
territorialities to understand the contrast between political interests of the State and the meanings and
interests raised by the collective construction of the projects.

Keywords. Agrarian reform; Sustainable Development Project; Settlements Sebastião Lan; Osvaldo de
Oliveira Settlement.

INTRODUÇÃO

A relação do homem com a natureza e sua apropriação pode ser analisada sob a
ótica de Marx. Em “Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira, de
1842”, Marx analisa “interesses materiais”, apesar de sua crítica à economia política ainda
não ter sido construída, já aparecem, de forma embrionária, expressões como “valor” e “mais-
valor”, assim como o problema da mercadorização da natureza, da vida e do trabalho.

Uma vez alcançado certo nível de desenvolvimento, a apropriação privada da


natureza se manifesta como supérflua e nociva. Em MARX: uma vez alcançado
certo nível de desenvolvimento, a propriedade do solo se manifesta como supérflua
e nociva (...) (MARX, [18941 1981:801).

No Brasil, após a década de 1990, a questão ambiental ganha um novo corpo sem
perder as raízes da patrimonialização da natureza, passa a ser operada por um movimento de
institucionalização. Organizações sociais, grupos técnicos e administrativos profissionalizados
reabrem o debate sobre a identidade do “movimento ambientalista”, através de instituições-
redes que atuam, por vezes, induzindo as políticas públicas ambientais, outras servindo de
executoras dessas políticas, através de consultorias e outros mecanismos de assessoramento,
que priorizam o pragmatismo de ação em detrimento de meios democráticos e horizontais de
participação dos atores envolvidos (ACSELRAD, 2004). É a partir desse cenário que uma
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

nova categoria passa a constar em documentos oficiais, legislações e ações governamentais:


decidir politicamente o que é ou não “sustentável”.
Este trabalho tem como objetivo discutir o processo de sistematização de um novo
modelo de assentamento, na modalidade de Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS)1,
que visa harmonizar as políticas agrárias e ambientais, inspiradas na luta dos seringueiros e
dos povos da floresta na Amazônia, em continuar exercendo o direito ao acesso a terra e à
floresta, dando-lhe um uso sustentável, baseado na valorização dos saberes e do modo de vida
tradicionais.
Para tanto, serão examinados dois casos de assentamentos na modalidade de PDS,
criados no Estado do Rio de Janeiro, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA): o PDS Sebastian Lan, localizado no Município de Silva Jardim, e o PDS
Osvaldo de Oliveira, situado em Macaé, sob a perspectiva de um processo de construção
fundado em luta social de populações atingidas pela intervenção estatal na adoção de uma
matriz tecnológica baseada na agroecologia, revelando-se, por vezes, uma opção baseada no
modelo de “domínio gestionário-administrativo” (ACSELRAD, 2010) calcado em ações de
cima para baixo, sem a escuta das organizações de luta pela terra e dos próprios assentados.

1 CONTEXTUALIZANDO O MODELO DE PROJETO DE


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A luta dos povos da floresta Amazônica até a década de 1970 era invisibilizada no
panorama nacional e internacional. Somente após os anos de 1980, com a intensa articulação
de um movimento agrário conectado a temas ambientais, enquanto estratégia de resistência
baseada no paradigma de desenvolvimento sustentável com a participação popular ao modelo
excludente e hegemônico do nacional desenvolvimentismo observado nesse período é que
passa a ter atenção acadêmica e social (ALMEIDA, 2004).
Desse modo, o jogo de forças no campo de lutas da questão agroambiental,
notadamente, a partir de meados dos anos de 1980, tem resultado numa configuração política
em que a reivindicação do direito à diferença e a valorização dos modos de vida tradicionais
como alternativa para uma convivência mais harmoniosa com a natureza são levados em
consideração na formulação de políticas públicas ambientais e agrárias.

1
Portaria INCRA/P/nº. 477, de 04 de novembro de 1999.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O Estado brasileiro não abandonou sua agenda desenvolvimentista para a Amazônia


na década de 1980. Contudo, os atingidos por essa agenda tiveram um protagonismo antes
não experimentado nesse locus. As populações indígenas tiveram assegurados direitos civis e
a definição de seu território tradicional a partir de um processo de regularização fundiária,
com destaque a promulgação da Lei nº. 6.001, de 19 de dezembro de 1973, abandonando o
velho assistencialismo messiânico do início do século XX. Os camponeses da floresta
perderam a invisibilidade e através de luta obtiveram o direito à posse coletiva de florestas.
Na atualidade, os desafios são outros. Além das constantes invasões às terras
delimitadas para uso extrativista e reserva indígena por grileiros e fazendeiros, nessa região os
assentados passam a lidar com os conflitos inaugurados por um Estado conservacionista.
Conforme considera Almeida os “(...) líderes seringueiros recusaram-se a permanecer
isolados, e criaram uma ponte entre as lutas que continuavam a ser travadas em escala local,
como no caso das ‘greves’ no rio Tejo, e um movimento em âmbito nacional” (ALMEIDA,
2004, p. 46).
No Brasil após o evento ECO-92 houve uma demanda crescente por políticas
públicas de conservação de florestas adequadas ao que se discutia em nível internacional
sobre desenvolvimento sustentável, acompanhado de um investimento internacional para essa
conservação particularmente na região amazônica que ainda possuía espaços naturais
preservados e uma imensa biodiversidade a se preservar também (FATHEUER, 1998).
Uma alternativa para o uso sustentável do território amazônico foi à criação do
Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que constitui um modelo de base com a
gestão coletiva e cooperativista para evitar o parcelamento da terra com titulação individual.
Criado a partir das ideias de conservação dos biomas brasileiros e da floresta amazônica, em
particular, aliado à manutenção da atividade extrativista tradicional e do apoio às populações
que articulem a produção e a comercialização e contribua para a preservação da
biodiversidade, o INCRA edita, em 04 de novembro de 1999, a Portaria nº. 477, que além de
outras disposições, destina o PDS como modalidade de interesse social e ecológico, destinada
às populações que baseiam sua subsistência no extrativismo, na agricultura familiar e em
outras atividades de baixo impacto ambiental (art. 1º), tendo por base a sustentabilidade e a
promoção de qualidade de vida para os assentados.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Ressalta-se que as áreas destinadas aos projetos serão objeto de concessão de uso2,
em regime comunal, segundo participação popular das comunidades, podendo assumir a
forma de associação, condomínio ou cooperativa (art. 2º).
Contudo o que se verifica, ao menos nos Projetos já criados ou em via de criação no
Estado do Rio de Janeiro, é que a valorização das diferenças constitutivas das comunidades
tradicionais não aparece em instrumentos político-jurídicos relacionada à noção de patrimônio
cultural, mas uma tentativa de uniformização e nivelamento das comunidades às diretrizes
conservacionistas gerais, aliada às políticas contemporâneas de reforma agrária que visa
somente à distribuição terras, não ofertando satisfatoriamente infraestrutura e capacitação
sociotécnica às famílias assentadas.
Especificamente em relação ao modelo PDS, transposto aqui para a região sudeste e
objeto desse estudo, parece oportuno contextualizar a primeira experiência de PDS,
denominado São Salvador, instituído pela Portaria nº 11, de 19 de junho de 2001/
INCRA/Acre, em um território no entorno da Unidade de Conservação (UC), na modalidade
de Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD). Este PDS possui uma área de 27.830 ha,
dividida internamente em dez comunidades, localizada no município de Mâncio Lima às
margens dos rios Moa e Azul, com capacidade para assentar 117 (cento e dezessete) famílias.
A sua localização se dá em uma região amazônica caracterizada por sua extensão de formas,
vidas, culturas. A criação de um modelo de assentamento cristalizado para essa região seria
uma tarefa inviável. Porém existem regras básicas de conduta a serem adotadas no transcorrer
de um projeto de assentamento, e estas podem ser decisivas para o seu sucesso e essas
normativas gerais, podem ser aplicadas em toda a extensão amazônica, desde que adaptadas a
situações específicas (GUERRA, 2004).

2 UMA APARENTE DICOTOMIA ENTRE REFORMA AGRÁRIA E


PRESERVAÇÃO AMBIENTAL: A RELATIVIZAÇÃO ATRAVÉS DA
EXPERIÊNCIA DO PDS

O encontro do ideal ambientalista (defendido pelos novos movimentos sociais,


como por exemplo, os coletivos) com o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

2
A Constituição Federal disciplina a distribuição dos imóveis rurais na implantação da política pública de reforma
agrária em seu artigo 189, prevendo que os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária
receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Terra -, que aqui será entendido como sendo um representante dos movimentos sociais
tradicionais, especialmente se consideradas suas práticas, ações e estrutura, pode ser
representado na criação e na consolidação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS).
O recorte abordado neste item será a atuação do MST, regional Rio de Janeiro, que
acontece em assentamentos nas áreas rurais da cidade de Macaé e de Silva Jardim, no estado
do Rio de Janeiro e ações interligadas com outros coletivos e movimentos como a Federação
dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio de Janeiro, FETAG.-RJ.
No assentamento Osvaldo de Oliveira, primeiro PDS do estado, o processo de
criação se deu com a ocupação pelo MST da fazenda Bom Jardim, no território de Macaé,
localizada no distrito Córrego do Ouro, desapropriada pelo INCRA, para fins de reforma
agrária, no modelo de PDS, no final dos anos 2000. Destaca-se tal conflito foi judicializado,
em 2007, pelo Ministério Público Federal (MPF), tendo como principal fundamento a criação
do PDS e sistematização de todas as previsões contidas nas portarias desapropriatórias e de
criação do Conselho Gestor do PDS.
O assentamento, denominado “Sebastião Lan”, foi criado no final da década de
1990 para pouco menos de meia centena de famílias em terras acusadas de grilagem da
Fazenda Sobara. (PEREIRA 2006, p. 96) O fazendeiro não recorreu à Justiça, terminou em
reintegração de posse ao INCRA e na criação do projeto de Assentamento para parte das
famílias acampadas. A área do assentamento Sebastião Lan, apesar de está no entorno da
Reserva Biológica Poço das Antas (REBIO), margeia-se do outro lado com o rio São João, e
não se confronta diretamente com a Reserva. Existiria por parte da administração da REBIO a
intenção de negociação, tendo sido criado o assentamento, de forma que as outras famílias
acampadas fossem transferidas. E o acampamento Sebastião Lan 2, contemplando 82
famílias, em uma área de 1466 ha, criado em 21 de junho de 1997 (PEREIRA, 2006, p.52).
O PDS é um modelo de gestão ambiental da produção, que segundo DIEGUES
(1992), aproveita a ideia de desenvolvimento sustentável derivada do conceito de
ecodesenvolvimento, proposto nos anos 1970, por Maurice Strong, como alternativa a
dicotomia “economia – ecologia”.
O Projeto de Desenvolvimento Sustentável é uma alternativa para o modelo
excludente e seletivo de produção da terra, uma vez que prioriza a construção dos processos
decisórios a partir de uma horizontalidade do Comitê Gestor e da interação com as famílias
beneficiadas equalizando com o meio ambiente. É fato que os problemas ambientais
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

decorrentes do modelo de exploração capitalista, denunciado pelo movimento ambientalista,


atingiram uma escala global deixando de ser uma causa particular de teóricos, pesquisadores
ou defensores da natureza para tornar-se um pleito associado a uma nova maneira de
considerar a relação entre economia, sociedade e natureza.
Anteriormente ao paradigma ambientalista, o imperativo era produzir alimentos via
modernização da lavoura. Foi possível aumentar a produção, entretanto, a fome no mundo
continuou, provando que o problema não era apenas elevar a produção e a produtividade. Ao
final, os efeitos colaterais negativos ficaram visíveis.
A estratégia modernizadora fundamentou-se na chamada Revolução Verde onde a
pesquisa e o desenvolvimento dos modernos sistemas de produção foram orientados para a
incorporação de “pacotes tecnológicos”, tidos como de aplicação universal e destinados a
maximizar o rendimento dos cultivos em situações ecológicas profundamente distintas
aquelas encontradas na agricultura tradicional. Objetivou-se com isso elevar ao máximo a
capacidade potencial dos cultivos, alterando condições ecológicas naturais para outras ideais.
Um dos recursos empregado foi o uso dos agrotóxicos buscando eliminar os competidores e
predadores naturais. Outro meio utilizado foi o fornecimento dos nutrientes necessários sob a
forma de fertilizantes sintéticos. A lógica subjacente é o controle das condições naturais por
meio da simplificação e da máxima artificialização do ambiente, de forma a adequá-lo ao
genótipo0 para que esse possa efetivar todo seu potencial de rendimento (SARADÓN, 1996).
O surgimento do movimento social ambientalista resultou dos efeitos produzidos a
partir dos conflitos sociais envolvendo questões públicas que decorreram da implantação de
uma ordem mercadológica que permeia as relações públicas, o cenário internacional e as
agendas políticas, ao longo das décadas de 70 e 80. O desafio passou a ser a conjugação dos
valores ambientais com os econômicos, visando ao desenvolvimento sustentável.
Assim, diante desses conflitos entre a maximização dos lucros no sistema capitalista
do agronegócio e a alternativa proposta pelo uso racional e agroecológico da terra, apresenta-
se a experiência desses conflitos socioambientais existentes nos Municípios de Macaé e de
Silva Jardim, a partir da judicialização desta centralidade de disputa envolvendo as categorias
preservação ambiental e desenvolvimento sustentável, explicados neste artigo.
Embora o INCRA desenvolva uma política de fiscalização e monitoramento da
evasão dos lotes da reforma agrária por parte dos contemplados nos assentamentos, esse
fenômeno é observado e estudado por especialista na temática rural. É possível analisar a
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

relação entre a evasão e as razões relacionadas aos processos sociais que deram origem aos
assentamentos, segundo informa Aleixo (2007, p. 21) esta categoria analítica foi proposta por
Bruno & Medeiros (1998), que sistematizaram os dados da pesquisa realizada em diversas
regiões do Brasil e dividiram em quatro tipos diferentes de processos sociais que originaram
os assentamentos estudados por diversos autores.
O Assentamento Sebastião Lan, em Silva Jardim, nos perece enquadrar-se no
primeiro tipo refere-se aos assentamentos onde o público predominante é o de posseiros e
antigos moradores da área desapropriada. Nesses casos, são trabalhadores que, num
determinado momento, passaram a ser pressionado pelo proprietário para que saíssem ou
pagassem alguma forma de renda. Dos casos que se enquadram nessa categoria, 42,8% tem
índices de evasão menores que 12,5% e em 76,5% dos casos, possuem índices de evasão
inferiores a 25%. É a categoria cuja tendência é a presença de baixos índices de evasão,
embora se observasse no Estado de Mato Grosso índices significativamente mais altos.
O Assentamento Osvaldo de Oliveira, em Macaé, se assemelha ao quarto e último
processo social, que diz respeito aos casos onde coube ao INCRA a iniciativa de constituir
assentamentos, ou seja, onde o órgão desapropriou a terra, independentemente da existência
de demanda e escolheu o público beneficiário. Os índices de evasão nesses casos são bastante
elevados, chegando a 89,3% no assentamento Sertão Bonito (BA), ou seja, de cada dez
pessoas que entraram, cerca de nove saíram. As Regiões Norte (TO, PA e RO) e Nordeste
(CE e BA) concentram tais situações (ALEIXO, 2007, p. 21).
É possível analisar a relação entre a evasão e as razões relacionadas aos processos
sociais que deram origem aos assentamentos, segundo informa Aleixo (2007, p. 21) esta
categoria analítica foi proposta por Bruno & Medeiros (1998) que sistematizaram os dados da
pesquisas realizadas em diversas regiões do Brasil e dividiram em quatro tipos diferentes de
processos sociais que originaram os assentamentos estudados por diversos autores.
O Assentamento Sebastião Lan, em Silva Jardim, nos perece enquadrar-se no
primeiro tipo refere-se aos assentamentos onde o público predominante é o de posseiros e
antigos moradores da área desapropriada. Nesses casos, são trabalhadores que, num
determinado momento, passaram a ser pressionado pelo proprietário para que saíssem ou
pagassem alguma forma de renda. Dos casos que se enquadram nessa categoria, 42,8% tem
índices de evasão menores que 12,5% e em 76,5% dos casos, possuem índices de evasão
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

inferiores a 25%. É a categoria cuja tendência é a presença de baixos índices de evasão,


embora se observasse no Estado de Mato Grosso índices significativamente mais altos.
O Assentamento Osvaldo de Oliveira, em Macaé, se assemelha ao quarto e último
processo social que diz respeito aos casos onde coube ao INCRA à iniciativa de constituir
assentamentos, ou seja, onde o órgão desapropriou a terra, independentemente da existência
de demanda e escolheu o público beneficiário. Os índices de evasão nesses casos são bastante
elevados, chegando a 89,3% no assentamento Sertão Bonito (BA), ou seja, de cada dez
pessoas que entraram, cerca de nove saíram. As Regiões Norte (TO, PA e RO) e Nordeste
(CE e BA) concentram tais situações (ALEIXO, 2007, p. 21).
Os trabalhadores rurais que ocupavam, sem autorização do INCRA, lotes em áreas
de reforma agrária tiveram a oportunidade de regularizar a situação. A possibilidade foi criada
com a publicação, no Diário Oficial da União, de 31 de maio de 2012, da Instrução
Normativa (IN) nº. 71, que estabeleceu ações e medidas a serem adotadas nos casos de
constatação de irregularidades em assentamentos. A nova IN revogou a IN nº. 47, que previa
a retomada dos lotes diante da comprovação de qualquer tipo de ocupação irregular, mesmo
nos casos em que ocorresse de boa-fé, vivesse com a família e produzisse no local.
Entretanto, para a Controladoria Geral da União (CGU), ainda haviam em janeiro de
2016, 76 (setenta e seis) mil lotes ocupados irregularmente nos processos de assentamentos da
Reforma Agrária, cerca de 8% (oito por cento) do total. Assim, do total, 38mil foram
usurpados por funcionários públicos, em casos que envolvem até mesmo um delegado da
Polícia Federal e um Procurador Geral do estado do Acre. Há lotes em nome de 8.519
menores de idade, uma prática que revela a manipulação para aumentar o tamanho da área de
uma mesma família, acima do módulo rural permitido pela lei. Não faltam casos de
empresários, precisamente 7.872, que burlaram a lei de Reforma Agrária para acumular
terras. E há, ainda, 271 casos de políticos que se apropriaram indevidamente de terras que
deveriam ser destinadas à Reforma Agraria para o assentamento de famílias de sem-terras.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3 OS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS EM TERRITÓRIOS DE PDS’S NO


ESTADO DO RIO DE JANEIRO

3.1.1 PDS Osvaldo de Oliveira e a construção da territorialização

A judicialização do conflito envolvendo as famílias de assentados no PDS Osvaldo


de Oliveiro se originou com a propositura de uma Ação Civil Pública (ACP) proposta pelo
MPF, na Seção Judiciária de Macaé, em face de aproximadamente 50 (cinquenta) famílias
que ocuparam uma área degradada pela ação humana para a exploração agropecuária e que
foi desapropriada pelo INCRA.
O PDS Osvaldo de Oliveira foi instituído em uma área que possui 1.539,76 hectares
e compõem uma antiga Fazenda antes denominada de Bom Jardim, localizada no distrito de
Córrego do Ouro, pertencente ao município de Macaé, na região norte do Rio de Janeiro. A
área pertencia à empresa de rádio Campos Difusora LTDA, no Norte Fluminense, e foi
arrendada ao empresário rural José Antônio Barbosa Lemos, sócio proprietário da mesma
empresa, ex-deputado estadual e ex-prefeito de São Francisco de Itabapoana, município
também localizado na região norte do estado. Contudo, a área foi considerada improdutiva
pelo INCRA em 2006, por não cumprir a sua função social e ambiental conforme as diretrizes
legais pré-estabelecidas3.
No ano de 2010, a área foi declarada de interesse social para fins de Reforma
Agrária pelo Decreto Presidencial e o INCRA foi imitido na sua posse em 28 de fevereiro do
mesmo ano. No mês de setembro de 2010, o assentamento foi ocupado por cerca de 200
famílias vinculadas e organizadas pelo MST. No decorrer desse período, o território foi palco
de diversos conflitos, entre os quais, quatro despejos das famílias assentadas, por
determinação judicial. O conflito mais violento ocorreu no dia 17 de novembro de 2010,
quando a polícia exigiu que os acampados retirassem seus pertences e objetos pessoais em

3
A mesorregião onde está localizado o PDS apresenta propriedades variadas em decorrência das características
botânicas da Mata Atlântica brasileira, a maior floresta tropical do mundo, diversificando, assim, as possibilidades
de aplicação, algumas espécies apresentavam uma densidade superior às madeiras importadas da América do
Norte, o que facilitava, inclusive, o processo de escoamento pelos rios da região até portos marítimos ou pontos de
apoio na logística da atividade de extração madeireira. Sucupira, louro, angelim vermelho e amarelo, vinhático,
oiti, jequitibá, pindaíba, potumuju, jenipapo e tapinhoã, espécies abundantes nas matas locais, eram algumas das
mais utilizadas nos estaleiros (MILLER, 2000, p. 325). Essas características levaram ao INCRA em instituir esse
modelo de produção agroecológica no Estado do Rio de Janeiro. Muito embora, registra-se uma tentativa anterior
no Município de Silva Jardim, através do PDS Sebastião Lan, que será tratado no item 3.1.2.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

poucos minutos antes do despejo. Depois que as famílias saíram do local os barracos foram
incendiados.
Posteriormente, no ano 2015 houve a tentativa de se retomar a área ocupada através
de uma ACP proposta pelo Ministério Público Federal, da Seção de Macaé. Contudo, depois
de algumas audiências públicas realizadas no Palácio Legislativo de Macaé e na Vara Federal
de Macaé, com a apresentação de contra laudos fornecidos pelo Coletivo Mariana Crioula –
Assessoria Jurídica Popular, o magistrado federal resolveu suspender os efeitos da referida
decisão e determinou a reintegração de posse ao INCRA, devendo o órgão elaborar o Plano
de Uso (PU) e cumprir outras obrigações no prazo de oito meses contados da data de
publicação do PU.
Na verdade, entre os anos de 2012 a 2014, foi elaborado o Plano de Uso do Projeto
de Desenvolvimento Sustentável Osvaldo de Oliveira pelo conselho incumbido de sua gestão.
Todavia, por entraves técnicos alegados pelo INCRA, somente em janeiro de 2017 foi
publicada a aprovação do Plano de Uso. Porém, essa delimitação territorial específica vem
sendo trabalhada, visando incorporar como público alvo de suas ações toda a comunidade
assentada no PDS para conscientizar sobre a importância da preservação do meio ambiente, e
esclarecer quaisquer dúvidas quanto à legislação ambiental necessária à viabilização do Plano
de Uso.
A vivência de campo ocorreu com visitas ao assentamento e participação de
diversas ações junto aos assentados do MST, através do grupo de alunos e professores que
integram o Tamoio Coletivo de Assessoria Popular – TaCAP. O Coletivo se constitui como
um grupo de pesquisa e extensão, voltado à prestação de Assessoria Jurídica Popular
Universitária vinculado à Universidade Federal Fluminense. O TaCAP realiza atividades de
extensão e pesquisa, promove interconexões entre a sociedade e universidade como partes
indissociáveis de um todo: a vida social. Essas atividades/projetos são definidas coletivamente
e executadas por cada Grupo de Trabalho.
Observa-se que antes das atividades serem iniciadas (somente com a presença de
todos os assentados) existe a exposição dos alimentos produzidos e colhidos na safra pelos
assentados locais, e a apresentação de cada uma das pessoas presentes fornecendo o nome
completo e a função operacional ou administrativa ocupada por aquele assentado. Somos
informados sobre a origem de cada um deles, bem como os cursos de capacitação que já
frequentaram no local ou em outros assentamentos do MST e mesmo em Instituições
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

parceiras. Nesses encontros, todos os assentados tem a liberdade de expressão garantida para
interpelar e apresentar resposta à eventual arguição que lhe seja dirigida e o direito de
apresentar propostas e de votar nas matérias pautadas.

3.1.2 Vinte anos de espera! O PDS Sebastião Lan ainda aguarda sua consolidação

O Assentamento Sebastião Lan, inicialmente previsto para acolher


aproximadamente trinta famílias, em terras acusadas de grilagem da Fazenda Sobara
(PEREIRA, 2007, p. 50) passou pelo ajuizamento de processo, a priori, em benefícios dos
assentados e tendo como autor o Ministério Público Federal e o réu o INCRA, através da
Ação Civil Pública nº 0001284-36.2012.4.02.5107 (2012.51.07.001284-2). O objetivo da
ação foi à condenação da autarquia agrária a reparar os danos materiais e morais suportados
pelos agricultores instalados nos Assentamentos Sebastião Lan, São José da Boa Morte e
Cambucaes, na extensão a ser individualmente. Como se extrai dos autos, o MPF pretende
que o INCRA seja condenado a reparação dos prejuízos advindos de sua omissão em
assegurar as condições básicas para a moradia e o pleno desenvolvimento das atividades dos
trabalhadores assentados.
O INCRA tinha a posse das terras desde 1977, teve as terras ocupadas por décadas.
A reintegração da posse das terras ocorreu somente ao final da década de 1990, após a
ocupação de terras pelo movimento social (PEREIRA, 2007). Parte foi destinada para o
Assentamento Sebastião Lan nas terras griladas pela Fazenda Sobara. Outra parte junto à
barragem, o INCRA não assumiu a reintegração de posse e não destinou para assentamento
de famílias. Muitas famílias após a criação do Assentamento Sebastião Lan continuaram
acampadas e constituíram o Acampamento Sebastião Lan 2, demandando assentamento para
cerca de 82 famílias na gleba norte (conhecida como brejão) (PEREIRA, p.53).
Os conflitos socioambientais não se dão apenas em relação à Reserva biológica de
Poço das Antas, pois o Assentamento Sebastião Lan é vizinho da Represa da Lagoa de
Juturnaíba e suas comportas foram abertas sem as cautelas necessárias, causando uma
inundação por negligência do Poder público, com graves prejuízos materiais e morais. E em
decorrência desse fato o assentado Mario Rogério de Souza moveu ação judicial contra a Pró-
Lagos S/A. Concessionária de Serviços Públicos de Água e Esgoto (APL1589720058190059,
no TJRJ).
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O autor da ação alegou que foi assentado pelo INCRA no Assentamento Lan e que
em razão de grande densidade de chuvas na região, que acarretou aumento acima do normal
na Represa da Lagoa de Juturnaíba, foram abertas as comportas da represa de uma só vez,
causando inundação no Assentamento Sebastião Lan. Em razão de tal fato, o autor perdeu sua
plantação e sua residência.
O Acampamento Sebastião Lan vem resistindo por vários anos, desde 1997,
aguardando a definição para assentamento definitivo nas terras do INCRA. O projeto
ambiental preservacionista tem avançado na região do Vale do São João e muitas unidades de
conservação foram criadas: a Reserva Biológica União com 3.126 hectares (em abril/1998); a
APA Bacia do Rio São João/ Mico-Leao-Dourado (em junho/2002), que abrange dos
municípios de Rio Bonito e Cachoeiras de Macacu até Barra de São João (7 municípios); e
muitas Reservas Particulares do Patrimônio Natural nas fazendas da região, num total
crescente totalizando 3.026,37 hectares no ano de 2000 (em 1991 eram 63,70 hectares sob a
forma de RPPN) (PEREIRA, p. 54), conforme se verifica no mapa abaixo.
A defensoria Pública da União (DPU), em Niterói (RJ) divulgou, em seu endereço
eletrônico, que seus representantes estiveram, em 11 de julho de 2017, na localidade
conhecida como Sebastião Lan II, em Silva Jardim, no estado do Rio de Janeiro, onde
participaram de reunião com moradores e acadêmicos da Universidade Federal Fluminense,
que acompanham o processo de assentamento rural no local.
O objetivo do encontro foi ouvir as famílias de agricultores e definir os próximos
passos a serem tomados em ação civil pública (ACP) movida pela DPU contra O INCRA.
Bárbara Valle, socióloga da DPU, observou que “a visita ao assentamento foi importante para
conhecer a realidade da comunidade e finalizar o mapeamento das famílias, além de ouvir
suas demandas em relação às estratégias de atuação no processo judicial”, já que foi proposta
em 2015 a Ação Civil Pública, questionando exigências que colocam em risco as atividades
agrícolas da localidade e a inobservância do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC),
firmado em 2005 entre o Ministério Público Federal, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o INCRA (DPU, 2017).
Sobre o caso, o defensor público federal, Bernard dos Reis Alô, afirmou que a
imposição de um modelo de assentamento sem prévia discussão e participação da
comunidade contraria as estratégias e as indicações de educação ambiental e oficinas previstas
no TAC. Um dos lotes visitados é inclusive considerado improdutivo por laudos
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

apresentados pelo INCRA. No entanto, há dez anos a mesma família cultiva a terra e produz
no local mandioca, milho, guando e laranja (DPU, 2017).
A Assessoria de Comunicação Social do INCRA/RJ noticiou, em 25 de julho de
2017, em seu site eletrônico, que a Superintendência Regional retomou as atividades de
campo, no PDS Sebastião Lan II. Informou que a equipe do Serviço de Meio Ambiente e
Recursos Naturais da unidade vem realizando estudos e vistorias no local a fim de apresentar
uma nova proposta de ordenamento territorial do assentamento e que os técnicos se reuniram
com a comunidade no dia 20 de julho de 2017 (INCRA, 2017). Segundo o INCRA, a
proposta é rediscutir as condicionantes do licenciamento ambiental com o INEA e com o
ICMBio, que administra reserva biológica vizinha ao assentamento.
A abertura do diálogo visava à promoção de ajustes na proposta de organização
espacial do PDS, que previa a construção de uma agrovila e a destinação das áreas baixas do
assentamento, que possuem alto risco de inundação, exclusivamente como reserva legal. A
nova proposta não prevê inviabilizar totalmente as áreas inundáveis do assentamento, que
somam quase mil hectares, mas permitir sua ocupação em termos de atividade produtiva
(INCRA, 2017).
A recente vistoria do INCRA detectou que será preciso recuperar as margens dos
rios São João e Aldeia Velha, que fazem divisa com o assentamento, e destinar
aproximadamente 10% (dez por cento) da área, hoje ocupada por famílias, à reserva legal,
para se chegar ao mínimo estabelecido por lei (INCRA, 2017).
Cumpre observar que essa é a primeira atividade técnica de campo no PDS, desde a
decisão da 2ª Vara Federal de Itaboraí, em março deste ano, que suspendeu a Ação Civil
Pública movida contra o INCRA pela Defensoria Pública da União (DPU). A ação cobrava
da autarquia a revisão da proposta técnica de implantação do PDS e também das
condicionantes da licença prévia. O INCRA criticou o ajuizamento da ACP classificando-a
como precipitada, uma vez que ainda não se haviam esgotados os recursos administrativos
para a mediação do conflito com as famílias que vivem na área do PDS, que não haviam
aceitado a proposta de ordenamento territorial então apresentada.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desafio consiste em entender a realidade contemporânea ultrapassando o modelo


clássico de análise da realidade, que no mundo moderno tem as ciências empíricas como
referência constitutiva. É necessário, sobretudo, buscar o desenvolvimento de um
“pensamento complexo” (MORIN, 2000), que percebe o conhecimento como sistêmico e
multidimensional, que não reduz a realidade à linearidade dos fatos e acontecimentos em
sentido restrito ou midiático.
Porém são visíveis as contradições nas manifestações massivas, não apenas no
Brasil, como em vários lugares do mundo: o tom apartidário e as bandeiras mais abstratas
deram força aos movimentos num primeiro momento, mas resultaram em inúmeras
dificuldades, como a violência de alguns manifestantes e também da polícia, à medida que os
protestos se expandiram, deixando um vácuo e enfraquecendo os movimentos pela falta de
lideranças e de referenciais mais sólidos de representação política e social.
No caso do PDS Osvaldo de Oliveira, verificou-se que havia uma terra liberada
para a Reforma Agrária, mas “sem gente”, o que significa a criação de uma territorialidade
somente “após colocação dessa gente sem terra” na área. Entretanto surgiram questões e
embates com o INCRA e com o Estado, envolve questões da natureza socioambiental
conflituosas. Enquanto no caso do PDS Sebastião Lan II, a terra estava ocupada pelos
membros dos movimentos sociais há 20 (vinte) anos, no território entendido pelo INCRA
enquanto área para o zoneamento especial e transformação em PDS, com fortes
determinações contrárias aos interesses, percepções e escolhas dos atingidos. Essa área já
territorializada e formada como uma comunidade, novamente brotaram as questões
conflituosas geradoras de uma reação judicializada pelos moradores.
Conclui-se que a apropriação da bandeira ambientalistas como política pública
federal na instituição do modelo de assentamento conhecido como PDS pode ser benéfica aos
assentados. Mas resulta em um elemento determinante de insucesso quando o paradigma
extrativista amazônico é imposto sem “ouvir” ou permitir a participação da comunidade em
sua construção acarretam conflitos que desaguam no judiciário para a solução, representado,
por vezes, por uma elite econômica que encontra-se afastada da relação
natureza/coletivo/modelo de produção profere decisões que tencionam e polarizam os
conflitos.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A viabilidade de qualquer projeto de assentamento da reforma agrária que pretenda


atingir o desenvolvimento sustentável deve observar as suas características específicas
(sociais, ambientais, econômicas e institucionais) e outras que são de natureza geral de
qualquer modalidade que almeja o desenvolvimento sustentável deverá ser replicada e
adaptada para outras localidades que certamente serão diferentes em diversos âmbitos. A
adoção de uma metodologia própria e aberta para assentamentos sustentáveis, de acordo com
a situação de cada localidade, poderá servir como um ponto de partida no sentido de
minimizar os problemas previsíveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONSULTADAS

ACSELRAD, H. Justiça ambiental – ação coletiva e estratégias argumentativas. In: ___. et all.(Org.) Justiça
ambiental e cidadania, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

ALEIXO, Duvanil Ney Santana. Mudança de beneficiário e formas de reocupação de lotes no Assentamento
Capelinha, Conceição de Macabu, RJ. 2007, 211f. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade,
2007.

BARROSO, L. R. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Consultor Jurídico, 22 de


dezembro de 2008. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2008-dez-
22/judicializacao_ativismo_legitimidade_democratica> Acesso em: 12 ago. 2017.

BERNINI, C. I. De posseiro a assentado: a reinvenção da comunidade do Guapiruvu na construção contraditória


do assentamento agroambiental Alves, Teixeira e Pereira, Sete Barras-SP. 2009, 173 f. Dissertação
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

BRUNO, R.; MEDEIROS, L. Percentuais e causas de evasão nos assentamentos. Projeto de Cooperação
técnica MEPF-INCRA/FAO. Versão final. Brasília, dez., 1998.

BUENO, E. Capitães do Brasil: A saga dos primeiros colonizadores. Rio de Janeiro. Objetiva. 1999.

DIEGUES, A. C. S. Desenvolvimento sustentável ou sociedades sustentáveis – da crítica dos modelos aos


novos paradigmas. Disponível em: <http://www.bibliotecacidade.sp.gov.br/produtos/spp/v06n01-02/v06n01-
02_05.pdf>. Acesso em: 07 jan. 2017.

______. O mito moderno da natureza intocada. 3. a ed. — São Paulo : Hucitec Núcleo de Apoio à Pesquisa
sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, USP, 2000.

FATHEUER, T. W. Desenvolvimento sustentável na Amazônia? In: LEROY, Jean-Pierre; FATHEUER,


Thomas W. (orgs.). O futuro da Amazônia em questão. Caderno de proposta, n. 77, Rio de Janeiro: FASE,
1998.

FELIX, P. J. O pensamento marxista no projeto político dos dirigentes do MST. Disponível em:
<http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2012/trabalhos/6142_Feix_Plinio.pdf> Acesso em: 21
jan. 2017.

GOHN, M. G. Movimentos e lutas sociais na história do Brasil. São Paulo: Loyola, 1995.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

GUERRA, R. M. N. Verificando a viabilidade do PDS São Salvador no estado do Acre. Ambiente &
Sociedade. v.7, n. 1, Campinas, jan./jun., 2004, p. 157-167.

LITTLE, P. E. A etnografia dos conflitos socioambientais: bases metodológicas e empíricas. Anais do I


Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (Anppas).
Indaiatuba, Maio de 2004. Disponível em<
www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT17/gt17_little.pdf > Acesso em: 14 jun. 2017.

MARX, K. El capital. Tomo III, v. 8. México : Siglo XXI. [1894] 1981.

_______; BENSAÏD, D. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Tradução de Karl
Marx Nélio Schneider, Tradução de Daniel Bensaïd Mariana Echalar, 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 75-
127.

MILLER, S. W. Fruitless Trees – Portuguese Conservation and Brazil’s Colonial Timber. Stanford, California:
Stanford University Press. 2000.

MORIN, E. Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS, Francisco Menezes; SILVA, Juremir
Machado da (Orgs). Para navegar no século 21: tecnologias do imaginário e cibercultura. 2. ed. Porto Alegre:
Sulina/Edipucrs, 2000.

PEREIRA, M. C. de B. P. Mediação de conflitos agrários e ambientais: um estudo sobre o Vale do Rio São João
no Estado do Rio de Janeiro. 275 p. Tese. (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Instituto
de Ciências Humanas Sociais, CPDA, UFRRJ, Rio de Janeiro, 2006.

. Reforma Agrária e Meio Ambiente: Interfaces da função social e ambiental da terra. GEOgraphia - Ano 7, nº. 14,
2006

RIBEIRO, A. M. M. et all. O mito da ecologização da reforma agrária e o mico do desenvolvimento sustentável:


18 anos de lenga lenga. Anais do IV Coninter, v. 7, Foz do Iguaçu/PR: UNIOESTE/ Aninter, dez., 2015, p.
142-159.

SARADÓN, S. Impacto ambiental de la agricultura; el enfoque agroecológico como necesidad para el logro de
una agricultura sostenible. In: Sistemas Agrícolas Sustentables. Santiago, CLADES/ Faculdad de Ciências
Agrícolas Universidad Central de Equador,1996.

OUTRAS FONTES CONSULTADAS

BRASIL DE FATO. MST exige combate a irregularidades em assentamentos da reforma agrária. 2016. São
Paulo. Disponível em:
<https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:gF9ZFN1g74oJ:https://www.brasildefato.com.br/no
de/33820/+&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 17 jun. 2017.

BRASIL. Portaria n. 48, de 19 de dezembro de 2016. INCRA/RJ. Aprova o Plano de Utilização do PDS Osvaldo
de Oliveira. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 19 jan. 2017. Seção I, pág. 06. Disponível em:
<http://www.cursosmodulos.com.br/DiarioOficial/Leitura.aspx?id=539472&ido=1> Acesso em: 17 jan. 2017.

DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Agricultores que esperam por assentamento há 20 anos recebem
visita da DPU. Assessoria de Comunicação Social. Defensoria Pública da União. Disponível em:
<http://www.dpu.def.br/noticias-rio-de-janeiro/38266-agricultores-que-esperam-por-assentamento-ha-20-anos-
recebem-visita-da-dpu>. Acesso em: 11. set. 2017

INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. RJ: SEBASTIÃO LAN Assentamento
sustentável terá nova proposta de ordenamento territorial. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/noticias/rj-
assentamento-sustentavel-tera-nova-proposta-de-ordenamento-territorial>. Acesso em: 25 jul. 2017.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

UFF/ECOSOCIAL. Laudo “Cooperação técnica INCRA/UFF/IBAMA para convivência harmoniosa de


assentamentos rurais entorno da Reserva Biológica de Poço das Antas”. Niterói, 2002.
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Grupo de Trabalho 05

CAPITALISMO VERDE,
DIREITO À CIDADE E LUTAS
ANTICAPITALISTAS

ccxli
INTERFACES ENTRE ÁREAS NATURAIS PROTEGIDAS
E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL:
UMA ABORDAGEM TEÓRICA ANTICAPITALISTA

AFONSO, Rodrigo Vilhena Herdy


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF
NASCIMENTO, Camila Aguiar Lins do
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF

RESUMO

A criação de áreas protegidas é um consenso mundial e expoente da política de conservação da


natureza, elas existem por todo o mundo. A afetação ambiental das áreas protegidas tenta resguardar a
natureza, seus processos e a biodiversidade. Outra diretriz internacional de combate à crise ambiental
consiste na ideia de uso sustentável dos recursos naturais pelas gerações atuais sem comprometer as
gerações futuras, calcada no conceito de desenvolvimento sustentável. Entretanto o conceito não é
capaz de contextualizar o papel do modo de produção capitalista na trajetória da crise ambiental.
Diante disso, este trabalho objetiva refletir sobre a eficiência da política de criação de áreas protegidas a
longo prazo a partir de uma análise crítica do desenvolvimento sustentável. Para tanto, lançamos mão
de bibliografias no marco teórico do socioambientalismo e do marxismo, identificando-se no campo
das pesquisas qualitativas interdisciplinares. Ao final, apropriação tanto da política ambiental quanto do
conceito de desenvolvimento sustentável pelo modelo econômico capitalista.

Palavras-chave. desenvolvimento sustentável; áreas naturais protegidas; política ambiental; modo de


produção.

ABSTRACT

The creation of protected areas is a worldwide consensus and exponent of the policy of conservation of
nature, they exist all over the world. Environmental affectation of protected areas tries to protect
nature, its processes and biodiversity. Another international guideline to combat the environmental
crisis is the idea of sustainable use of natural resources by current generations without compromising
future generations, based on the concept of sustainable development. However, the concept is not
capable of contextualizing the role of the capitalist mode of production in the trajectory of the
environmental crisis. Therefore, this work aims to reflect on the efficiency of the policy of creating
protected areas in the long term based on a critical analysis of sustainable development. To this end,
we have used bibliographies in the theoretical framework of socio-environmentalism and Marxism,
identifying in the field of interdisciplinary qualitative research. In the end, appropriation of both
environmental policy and the concept of sustainable development by the capitalist economic model.

Keywords. sustainable development; protected natural areas; environmental politics; mode of


production.

242
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A criação de áreas protegidas é um consenso mundial e expoente da política de


conservação da natureza, elas existem por todo o mundo. A afetação ambiental das áreas
protegidas tenta resguardar a natureza, seus processos e a biodiversidade. Outra diretriz
internacional de combate à crise ambiental consiste na ideia de uso sustentável dos recursos
naturais pelas gerações atuais sem comprometer as gerações futuras, calcada no conceito de
desenvolvimento sustentável. Entretanto o conceito não é capaz de contextualizar o papel do
modo de produção capitalista na trajetória da crise ambiental.
Diante disso, este trabalho objetiva refletir sobre a eficiência da política de criação
de áreas protegidas a longo prazo a partir de uma análise crítica do desenvolvimento
sustentável. Para tanto, lançamos mão de bibliografias no marco teórico do
socioambientalismo e do marxismo, identificando-se no campo das pesquisas qualitativas
interdisciplinares.
Este artigo está estruturado em três partes. Na primeira parte contextualizamos a
política de criação de unidades de conservação da natureza nos âmbitos internacional e
nacional, a fim de demonstrar as influências e interseções existentes. Na segunda parte,
abordamos o conceito de desenvolvimento sustentável e apontamos suas contradições
inerentes ao modo de produção capitalista. Após, na terceira e última parte, registramos os
resultados alcançados apontando para uma apropriação tanto da política ambiental quanto do
conceito de desenvolvimento sustentável pelo modelo econômico capitalista e, também, para
o fato de que prevalece a ideologia do crescimento econômico infinito no âmbito das
organizações multilaterais como ONU, de forma que não há propostas de superação do atual
modelo econômico, mas sim uma tentativa de conciliação fisiológica deste com a natureza.

1. CONTEXTUALIZANDO A POLÍTICA DE CRIAÇÃO DE UNIDADES DE


CONSERVAÇÃO DA NATUREZA

1.1 Âmbito internacional

O pressuposto da socialização do usufruto das belezas cênicas naturais por toda a


população fundamentou a criação de áreas naturais protegidas em muitos países,
principalmente parques. A área escolhida para o Yellowstone National Park, por exemplo,

243
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

deveria ficar “reservada e separada da colonização, ocupação ou venda (...) dedicada e


destacada para parque público (...) em benefício e desfrute do povo (...) e que toda a pessoa
que se estabeleça ou ocupe esse parque (...) será desalojada do lugar” (AMEND, 1991 apud
WEY, 2003, p. 20, tradução nossa).
A partir disso, podemos depreender que o objetivo do Yellowstone era conservar
inalterado um fragmento do Novo Mundo em estado anterior a chegada do colonizador, como
símbolo da façanha da conquista colonial, mantendo a paisagem primitiva como um museu a
céu aberto, oportunizando às gerações futuras o testemunho da glória ufanista. Apesar de, na
época, ter sido considerada uma vitória dos preservacionistas por não permitir o uso direto dos
recursos naturais, nada tinha haver com proteção especificamente à natureza, mas sim com a
proteção do patrimônio histórico-cultural da colonização yankee, impedindo a apropriação
particular deste patrimônio “difuso”.
Em 1933, os parques já estavam espalhados por várias partes do mundo, mas ainda
não se tinha tentado estabelecer um conceito universal para esta área natural protegida. Para
esse fim, a Convenção para Preservação da Fauna e Flora em seu Estado Natural reuniu-se
em Londres. Considerando que aos objetivos originais dos sistemas de áreas naturais
protegidas foram sendo incorporados novos conceitos que priorizavam a conservação da
biodiversidade e dos bancos genéticos, a Convenção definiu que os parques nacionais
deveriam ter as seguintes características (WEI, 2003, pp. 22-23): controle pelo poder público;
inalterabilidade dos limites; inalienabilidade; objetivar propagação, proteção e preservação da
fauna e flora e preservação de objetos de interesse estético, geológico, pré-histórico,
arqueológico e outros de interesses científicos; benefício e desfrute do público em geral;
proibição da caça, abate ou captura de fauna e destruição ou coleta de flora, exceto sob a
direção ou controle das autoridades responsáveis; instalações de apoio aos visitantes.
Interessante observar que McCormick (1992, p. 37, apud WEI, 2003, p. 23)
comenta, sobre o fato de a maioria dos países coloniais africanos terem assinado a
Convenção, que esta definição talvez tenha levado à antipatia das populações locais para com
o conceito de proteção à vida selvagem, pois “os animais estavam sendo protegidos por
razões não práticas e desconsiderando os direitos tradicionais de caça”.
A Conferência para a Proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais
dos Países da América, também conhecida como Convenção Panamericana, realizou-se em
Washington, 1940, com objetivo de discutir experiências e resultados da Conferência de

244
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Londres e como forma de comprometer os países da América Latina a criarem áreas naturais
protegidas, além de uniformizar os conceitos e os objetivos dessas áreas. Nesse contexto, a
definição de parques nacionais reforçou a definição da Conferência de 1933, com foco na
conservação da paisagem e das espécies, caracterizando-se como uma ação de difusão da
Convenção de 1933 para os países sul-americanos.
A fundação da União Internacional para a Proteção da Natureza (UIPN), em 1948,
como resultado de um congresso organizado pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em parceria com o governo francês a fim de
promover a cooperação internacional para conservação da natureza, é um marco importante
na organização de uma política ambiental internacional, sendo um fórum que engloba
agências governamentais e não-governamentais.
Diante da constatação do crescente número de plantas em extinção, iniciou-se uma
tendência de manutenção de habitats em vez de espécies específicas, o que exerceu influência
na UIPN, que passou a dar mais atenção à conservação, inclusive alterando seu nome para
União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) alguns anos mais tarde. Em
1960, foi criada a Comissão de Parques Nacionais e Áreas Protegidas com o objetivo de
monitorar áreas naturais protegidas e orientar seu manejo e manutenção (QUINTÃO, 1983,
apud WEI, 2003, p. 25). No mesmo ano, foi lançado o Red data book, mais conhecido como a
lista das espécies ameaçadas de extinção, contendo 135 espécies animais, principalmente os
mamíferos de grande porte mais populares entre o público em geral.
Em 1957 foi promulgada a Convenção 107 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT/ONU) sobre “a proteção e integração das populações indígenas e outras
populações tribais e semitribais” no interior dos Estados Nação, remontando a preocupação
com estas minorias étnicas suscitada pelos genocídios promovidos durante a Segunda Guerra.
Esse convenção tinha a intenção de promover o assimilacionismo e integracionismo dos
povos tribais que representassem minorias restantes dos processos coloniais dos Estados
Nação às sociedades nacionais.
A UIPN organizou a I Conferência Mundial sobre Parques Nacionais, em Seattle,
1962. Apesar dessa conferência ter ficado conhecida pela importância que deu a conservação
dos ambientes marinhos, mais nos interessa a incorporação da possibilidade de existirem
exceções ao princípio geral da não exploração dos recursos naturais estabelecido para os
parques através do zoneamento, defendido por Harroy. Para ele, essa novidade “criava a

245
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

possibilidade de proteger grandes ecossistemas sob a forma de parques nacionais, mesmo que
algumas de suas partes fossem aproveitadas pelos homens” (FOSTER, 1973, apud AMEND
e AMEND, 1992, apud WEI, 2003, p.26).
A 10ª Assembleia Geral da UICN aconteceu em 1969 em Nova Delhi, sendo a
oportunidade de se definir um novo conceito para os parques nacionais, a partir das
experiências em andamento e das recomendações de 1962. Apesar das expectativas, a
definição de parque pouco foi alterada, se resumindo a introduzir a proteção de habitats e
reforçar a lógica de controle pelo poder público e do não uso dos recursos naturais, além da
garantia de acesso controlado aos visitantes (WEY, 2003, p. 27).
No ano anterior, 1968, havia ocorrido a Conferência Intergovernamental de
Especialistas sobre as Bases Científicas para o Uso Racional e a Conservação dos Recursos
da Biosfera, mais conhecida como Conferência da Biosfera, organizada por diversas agências
das Nações Unidas (ONU) como a UNESCO, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) em parceria com da
IUCN, com o objetivo de discutir o impacto humano sobre a biosfera, entendida como
“aquela parte do mundo em que a vida pode existir” (MCCORMICK, 1992, p. 98, apud
WEY, 2003, p.28) e convencer as nações periféricas da necessidade da conservação. Como
resultado dessa conferência, foi lançado o programa O Homem e a Biosfera, que apregoava o
uso racional dos recursos ambientais, defendendo um certo equilíbrio nas relações entre o
homem e seu ambiente na busca pelo desenvolvimento. As Reservas da Biosfera foram
idealizadas para otimizar a relação homem-natureza, constituindo-se ao mesmo tempo como
mostras representativas dos biomas do globo, exemplos de gestão harmoniosa de diferentes
culturas, laboratórios de experimentação do desenvolvimento sustentável e centros de
monitoramento. Além de ter sido a origem de um novo tipo de área natural protegida, a
Conferência da Biosfera teve como conclusões mais importantes:

(...) era preciso dar ênfase ao entendimento do caráter inter-relacionado do meio


ambiente, e que o uso e a conservação racional do meio ambiente humano e das
áreas naturais protegidas dependiam não só das questões científicas, mas sobretudo
das dimensões política, social e econômica, que estavam fora de sua esfera de ação
(WEI, 2003, p. 28).

Desde a década de 1950 aconteceu um progressivo aumento no número de áreas


naturais protegidas, mas foi durante as décadas de 1970 e 1980 que houve uma
impressionante expansão do estabelecimento dessas áreas, a maioria parques e reservas

246
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

biológicas nos países periféricos. Como já comentado, muitos grupos étnicos foram
desalojados para a implantação de áreas naturais protegidas, o que chamou a atenção da
comunidade internacional para uma série de conflitos envolvendo esses grupos.
A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em
1972 e mais conhecida como Conferência de Estocolmo, foi praticamente um desdobramento
da Conferência da Biosfera, sendo a primeira ocasião em que foram discutidos os problemas
políticos, sociais e econômicos do meio ambiente global com objetivo de definir ações
práticas e a fim de estabelecer um compromisso entre Estados-Nação quanto a efetivação
destas ações corretivas. Um dos resultados mais expressivos da Conferência de Estocolmo foi
a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

Talvez o maior legado da Conferência de Estocolmo tenha sido a inserção


definitiva das questões ambientais na agenda mundial e o estabelecimento do
conceito de que os problemas ambientais transcendem fronteiras, e que estavam
relacionados a questões de ordem política, econômica, social e cultural (WEY,
2003, p. 29).

Nesse mesmo ano de 1972, finalmente acontece a incorporação oficial do princípio


do zoneamento às definições de parques nacionais durante a 11ª Assembleia Geral da UICN,
em Banff, Canadá, e ratificadas pelo II Congresso Mundial de Parques Nacionais, realizado
no mesmo ano em Yellowstone, de modo que reconheceu-se que comunidades humanas com
características culturais específicas faziam parte desses ecossistemas que se desejava proteger.
Foram definidas onze zonas divididas em três grupos:

a) Zonas Naturais Protegidas:


a. zonas de proteção integral;
b. zona de manejo de recursos;
c. zona primitiva ou silvestre.
b) Zonas Antropológicas Protegidas:
a. zona de ambiente natural com culturas humanas autóctones;
b. zonas com antigas formas de cultivo;
c. zona de interesse especial.
c) Zonas Protegidas de Interesse Arqueológico ou Histórico:
a. zona de interesse arqueológico;
b. zona de interesse histórico.

247
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A 12ª Assembleia Geral da UICN, em 1975, em Kinshasa, no Zaire, discutiu


questões relacionadas com a expulsão de grupos étnicos e deu um passo à frente ao reforçar
que o estabelecimento de áreas naturais protegidas não trouxesse como consequência a
desagregação cultural e econômica desses grupos que não afetam a integridade ecológica da
área, como comunidades indígenas. Apesar disso, populações locais que não eram tão
facilmente identificadas como grupos étnicos continuavam como um problema ainda não
muito bem equacionado.
O programa Estratégia Mundial para a Conservação, produzido pela UICN,
PNUMA e World Wildlife Fund (WWF) em 1980, pretendia ser um programa mundial de
conservação da natureza que defendia a administração do uso humano dos recursos naturais,
de modo que pudesse produzir os maiores benefícios sustentáveis para as gerações atuais,
embora mantendo seu potencial para atender as necessidades e aspirações das gerações
futuras.
Foi somente em 1982, na ocasião do III Congresso Mundial de Parques, em Bali, na
Indonésia, que surgiram preocupações mais claras com as relações homem-áreas naturais
protegidas, tendo sido reafirmado o direito das comunidades com características culturais
específicas aos seus territórios, inclusive com recomendações sobre o manejo conjunto dessas
áreas com seus habitantes originais (Diegues, 1994, apud WEY, 2003, p. 31). Em 1985, a
ONU e UICN passaram a incluir na lista de parques nacionais aqueles cujo interior existissem
áreas com povoados, contanto que permanecessem em uma zona específica e não
prejudicassem a conservação, obedecendo ao princípio do zoneamento.
A recusa por parte dos povos indígenas e tribais a uma ideia hegemônica de cultura
e civilização, vez que a ideologia assimilacionista da Convenção 107 não se traduziu em um
ideal de igualdade entre todos, pois manteve intacta a distinção entre aquele que assimilava e
“o outro” assimilado (LOBÃO, 2014), criou as condições para a construção de uma nova
convenção sobre o lugar destes povos no interior dos Estados Nação. Nesse contexto, foi
promulgada a Convenção 169 da OIT, em 1989, pautada no sentido da autonomia e
autodeterminação dos povos originários.
No IV Congresso Mundial de Parques, em Caracas, 1992, a questão das populações
residentes em áreas naturais protegidas figurou como um dos temas centrais das discussões. O
resultado foi o fortalecimento de alguns conceitos, como a importância da integração das
áreas protegidas aos planos de desenvolvimento dos diferentes países e a necessidade de se

248
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

criar mais e melhor manejadas áreas naturais protegidas, conceitos que foram posteriormente
aprofundados durante os debates da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, que aconteceria naquele mesmo ano no Rio de Janeiro e que ficou
conhecida como Rio-92. Além disso, os direitos dos povos indígenas sobre suas terras foi
ratificado, consequência do cada vez mais presente entendimento de que o destino das áreas
naturais protegidas está ligado ao apoio e, portanto, ao destino das populações locais (UICN,
1993, WEST e BRECHIN, 1991, apud WEY, 2003, p. 34).
Até esse momento, das categorias de áreas naturais protegidas existentes, somente
os parques naturais e as reservas da biosfera possuíam uma política internacional delineada,
entretanto essa política não era totalmente clara no caso dos parques. O ponto que continua
insatisfatoriamente explicitado é o da ocupação humana. Alguns países como Inglaterra
(DOWER, 1945, p. 44 apud HARMON, 1994, p. 34, apud WEY, 2003, p. 32), Canadá e
Japão (JICA, 1990, apud WEY, 2003, p. 32) experimentaram particularidades conceituais que
introduziram modelos alternativos de parque nacional mais permissivos ao uso e ocupação de
suas áreas pelas populações residentes, contribuindo tanto para a difusão do conceito de
parques nacionais quanto influenciando no surgimento de outras categorias de manejo
(WEST e BRECHIN, 1991, apud WEY, 2003, p. 32-33).
Na 19ª Assembleia Geral da UICN, Buenos Aires, 1994, almejou-se alcançar maior
entendimento dos conceitos das diferentes categorias de manejo, permitir maior flexibilidade
à aplicação e interpretação do sistema, menor grau de prescrição quanto a zonificação,
classificação, autoridade de manejo e propriedade das terras e definir princípios que deveriam
guiar o estabelecimento das unidades. No mesmo ano, a Comissão de Parques Nacionais e
áreas Naturais Protegidas da UICN definiu um novo sistema de categorias de áreas naturais
protegidas onde os parques eram definidos como categoria que tolerava moderadas
intervenções humanas e especialmente o uso sustentável dos recursos naturais por parte de
etnias indígenas, rompendo, assim, com o paradigma do impedimento de toda e qualquer
exploração ou ocupação (WEY, 2003, p. 44).
Embora tenham acontecido outros congressos mundiais até então, em 2016 (Havaí),
2012 (Jeju), 2008 (Barcelona), 2004 (Bangkok), 2000 (Amman) e 1996 (Montreal), não nos
foi possível realizar a análise de suas resoluções tendo em vista que o material não está
disponível no site da UICN. Apesar disso, analisando o Programa da UICN 2017-2020
aprovado no último congresso mundial em 2016, observamos uma clara indicação na direção

249
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

do desenvolvimento sustentável, como em “La buena gobernanza de los recursos naturales es


fundamental para el desarrollo sostenible” (UICN, 2016, p. 32) e uma tímida e inócua
avaliação dos impactos ambientais decorrentes do atual modelo de produção:

Predominio de modelos de producción y consumo no sostenibles. La economía


política actual junto con los modelos de producción y consumo en que se basa
exacerban algunos de los problemas antes mencionados. La humanidad sigue atada
a un modelo económico y social en el que el consumo es el motor del crecimiento
sin tener suficientemente en cuenta el costo total que impone a la naturaleza y, en
definitiva, a las personas (UICN, 2016, p. 34).

1.2 Âmbito nacional

Em suas notas para uma história social das áreas de proteção integral no Brasil,
Barreto Filho nos conta que desde 1658 já se falava na defesa das florestas para proteção dos
pequenos rios da Serra da Carioca. A preocupação não era para menos, vez que os habitantes
da cidade dependiam quase que exclusivamente dos rios Carioca e Maracanã para o seu
abastecimento. Porém, com a substituição das matas das encostas da Serra por extensos
cafezais por volta de 1800 e com a chegada da família real em 1808, o que provocou um
imediato aumento populacional de 25% (DRUMMOND, 1997, p. 215, apud BARRETO
FILHO, 2004, p. 54), a cidade passou a sofrer com crises de abastecimento de água.
O governo imperial, em 1817 e 1818, baixa decretos proibindo o corte de árvores
próximas aos mananciais e mandando avaliar terras de particulares para fins de
desapropriação (DRUMMOND, 1997, p. 221, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 55). Já
nessa época, havia pessoas preocupadas com a destruição dos recursos naturais no Brasil,
como José Bonifácio de Andrada e Silva, que sugeriu, em 1821, que fosse criado um setor
administrativo para as matas e bosques (VICTOR, 1975, apud WEY, 2003, p. 53), com vistas
no seu potencial científico (DIEGUES, 1994, p. 102, apud WEY, 2003, p. 53). Em 1833 e
1837, em meio a uma grave seca, são criadas Reservas de Florestas. Em 1844, retoma-se a
ideia da desapropriação visando a recuperação florestal e, mesmo antes de concluir as
desapropriações, inicia-se um programa emergencial de plantio de árvores em terras
particulares na Tijuca. Em 1856 são concluídas as primeiras desapropriações e em 1860 são
desapropriadas as nascentes necessárias para abastecer a cidade, até que, finalmente em 1861,
são criadas as Florestas da Tijuca e das Paineiras (DRUMMOND, 1997, p. 221, apud
BARRETO FILHO, 2004, p. 55), podendo esta ser considerada a primeira tentativa oficial de

250
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

conservação. Vale, ainda, comentar que a primeira proposta de criação de parques nacionais
propriamente ditos foi apresentada por André Rebouças ainda em 1876 que, inspirado pelo
modelo Yellowstone, propôs a criação dos Parques Nacionais de Sete Quedas e da Ilha do
Bananal, que não chegaram a ser criados. Mais ou menos nessa mesma época, foram criados
parques nacionais em outros países da América Latina, como México (1876), Argentina
(1903) e Chile (1907) (MOORE e ORMAZÁBAL, 1988, apud WEY, 2003, p. 53).
Importante comentar que a iniciativa de reflorestamento do maciço da Tijuca foi
apoiada e promovida pela elite citadina, que encontrava nas matas das encostas da Serra um
refúgio da cólera e da febre amarela decorrentes das condições sanitárias periclitantes na
cidade (DEAN, 1996, p. 225, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 55), devemos lembrar, em
um contexto de crise hídrica. Podemos, então, observar que esta iniciativa inédita de
reflorestamento tinha dois aspectos: manutenção de recursos naturais, no caso a água, e uso
público, sendo paisagisticamente planejado e destinado ao lazer do público em geral
(DRUMMOND, 1997, p. 228, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 55).

É assim que chegamos ao fim do século XIX com uma coleção dispersa e
desarticulada de hortos e jardins botânicos, mistos de passeios públicos, entregues
às administrações provinciais e estaduais, duas florestas e outras tantas terras
públicas na capital consideradas Reservas Florestais, sujeitas a inúmeras mudanças
de jurisdição ao longo de meio século, e uma iniciativa de reflorestamento
indicativa da crescente preocupação das elites com o desmatamento e a
conservação das matas (BARRETO FILHO, 2004, p. 55).

Assim, o Brasil chega ao século XX com uma política ambiental indefinida,


contando com uma pluralidade de categorias de áreas naturais protegidas: florestas nativas,
florestas protetoras, reservas florestais, hortos florestais, jardins botânicos, estações
biológicas, estações experimentais, postos zootécnicos, fazendas modelo etc.
Em 1911 é criada a Reserva Florestal do Acre, pensada como banco biológico no
intuito de conservar a flora e a fauna indígenas para que se pudesse apoiar em seus estoques
para reposição, na linha dos bancos genéticos ou reservatórios de germoplasma (GARCIA,
1986, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 56). As décadas subsequentes se caracterizam por
uma enorme produção legislativa e criação de instituições relacionadas à gestão dos recursos
naturais, como códigos florestal, de águas e minas, caça e pesca e o Serviço Florestal. O
Código Florestal de 1934 reconheceu as categorias parques nacionais, florestas nacionais,
estaduais e municipais e florestas protetoras, além de introduzir a noção de área reservada.

251
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Além disso, a Constituição de 1934 introduziu na legislação brasileira a categoria de


monumento público natural.
Sobre o Código Florestal de 1934, podemos citar duas características negativas
principais: permissão aos proprietários para homogeneizar as florestas visando maior
rendimento econômico (o que significa substituir as variadas espécies vegetais presentes em
uma propriedade por uma única espécie com maior valor econômico, como eucalipto ou
pinus) e a interpretação duvidosa do dispositivo que obrigava proprietários a manterem pelo
menos um quarto da mata, que não oferecia clareza quanto ao valor sobre o qual incidiria essa
fração, ou seja, se sobre o total da mata original ou sobre a mata existente no momento da
aquisição por cada proprietário (VICTOR, 1975, p. 27, apud WEY, 2003, p. 55).
Apesar de a primeira menção oficial à categoria parque nacional datar de 1921, o
primeiro parque nacional foi criado somente em 1937, sendo seguido por outros dois em
1939: Parque Nacional de Itatiaia, Iguaçu e Serra dos Órgãos. A criação destes parques
baseou-se na ideia de proteger paisagens de grande beleza cênica, os monumentos naturais,
quais sejam a maciço de Itatiaia, as Cataratas do Iguaçu e o maciço da Serra dos Órgãos, bem
conhecidos dos habitantes dos grandes centros urbanos do Sudeste e Sul, onde se localizam.
Em 1948, foi aprovada pelo Congresso Nacional e ratificada (incorporada ao
sistema jurídico pátrio) em 1965, a Convenção para Proteção da Flora, Fauna e das Belezas
Naturais dos Países da América, da qual o Brasil foi signatário em 1940, em Washington, e
que estabelecia novas categorias de unidades de conservação, quais sejam parque nacional,
reserva nacional, monumento natural e reserva de região virgem (WWF, 1994, apud WEY,
2003, p. 57).
Uma segunda geração de parques veio na virada da década de 1950 e 1960,
acompanhando a marcha para o Oeste e a fundação de Brasília. Esse movimento programado
e planejado em direção a ocupação do interior do país fica aparente na criação de cinco
parques nacionais no Centro-Oeste (Araguaia, Emas, Tocantins, Brasília e Xingu) e oito em
outras regiões (Ubajara-CE, Aparados da Serra-RS/SC, Sete Quedas-PR, Caparaó-MG/ES,
Sete Cidades-PI, São Joaquim-SC, Rio de Janeiro e Monte Pascoal-BA) (BARRETO FILHO,
2004, p. 57). Interessante notar que, como mostra Lobo (1998, apud BARRETO FILHO,
2004, p. 57), a motivação para criação do Parque Nacional de Brasília teve estreita relação
com a proteção de mananciais para o abastecimento da nova capital.

252
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nesta época, a presença de povos indígenas nas áreas escolhidas para a instalação de
parques, como no caso do Xingu e do Araguaia, não era vista como um problema, mas sim
como “um atrativo a mais a adicionar um toque de exotismo e autenticidade à paisagem
natural primitiva”. Em um primeiro momento, chegou-se a propor que o Xingu fosse um
“parque indígena” de modo que preservasse uma amostra do Brasil prístino (BARRETO
FILHO, 2004, p. 58).
O projeto desenvolvimentista empreendido pelo regime civil militar nos anos
seguintes baseou-se na falsa ideia de “vazio demográfico” para promover a expansão induzida
da fronteira agrícola para a Amazônia, através de projetos de colonização oficial, e ocupar o
território nacional com projetos de desenvolvimento econômico-industrial a partir da criação
de localizações privilegiadas para a valorização de capitais privados e o crescimento de pólos
industriais, via subsídios e investimentos públicos na infra estrutura regional (BARRETO
FILHO, 2004, p. 59).
Diante da obsolescência do Código Florestal de 1934 e da devastação dos recursos
florestais, o regime baixa o Código Florestal de 1965. Neste código aparece, pela primeira
vez, a divisão conceitual entre unidades de conservação restritivas ou de uso indireto (parques
nacionais, reservas biológicas) e unidades de conservação não restritivas ou de uso direto
(florestas nacionais, florestas protetoras, florestas remanescentes, reservas florestais, parques
de caça florestais) (WEY, 2003, p. 58). Segundo Victor (1975, apud WEY, 2003, p. 56), este
novo código florestal confundia a propriedade da floresta com a propriedade da do solo,
fazendo com que toda a limitação ao uso da floresta colidisse com o direito de propriedade,
enfraquecendo bastante essas medidas.
Em 1969, quando os debates sobre os povos indígenas e tribais já encontravam-se
avançados no âmbito internacional quanto a uma migração do paradigma da integração para o
da tolerância, o Brasil incorpora com atraso uma questionada e frágil Convenção 107 da OIT
ao seu ordenamento jurídico. Sem dúvidas que os preceitos desta convenção estavam
alinhados com os projetos desenvolvimentistas e faraônicos já mencionados, mas também não
há dúvidas de que as propostas de novas categorias que surgem como forma de superar a
hierarquia entre raças, como o etnocentrismo (LÉVI-STRAUSS, 1976), a partir da próxima
década, exerceram grande influência no Brasil.
Em 1967, foi criado o Instituto Brasileiro para o Desenvolvimento Florestal (IBDF)
como autarquia do Ministério da Agricultura, com o objetivo de promover a utilização

253
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

racional, à proteção e conservação dos recursos naturais. Em 1972, foi criada a Secretaria
Especial do Meio Ambiente (SEMA), vinculada ao Ministério do Interior, também orientada
para a conservação do meio ambiente e uso racional dos recursos ambientais. Enquanto
NOGUEIRA NETO (1991 apud WEY, 2003, p. 60) considera que a convivência entre IBDF
e SEMA constitui-se como uma “competição saudável”, relatórios da época (como o
documento Brasil) entendiam que a existência concomitante das duas instituições com
atuação semelhante fazia vigorar legalmente dois sistemas de áreas naturais protegidas
distintos e paralelos sem coordenação entre si (WEY, 2003, p. 60).
Em 1979, o IBDF propôs a I Etapa do Plano do Sistema de Unidades de
Conservação para o Brasil, estabelecendo a região amazônica como prioritária para a criação
de novas unidades de conservação. Durante esse processo, o IBDF inspirou-se nas diretrizes
para o estabelecimento de unidades de conservação desenvolvidas pela UICN no ano anterior,
deixando transparecer a influência de conceitos e diretrizes internacionais. A principal
característica desse processo foi o reforço que deu a necessidade do uso de critérios
eminentemente técnico-científicos na criação de unidades de conservação, além de prever
outras categorias como manumento nacional, santuário da vida silvestre, estrada, parque
(WEY, 2003, p. 61).
É também de 1979 o Regulamento dos Parques Nacionais Brasileiros, que
introduziu a necessidade da elaboração de planos de manejo para todos os parques nacionais,
cujo o principal objetivo é a determinação do zoneamento dos parques. Este regulamento
definiu sete zonas, quais sejam zona intangível, zona primitiva, zona de uso extensivo, zona
de uso especial, zona histórico-cultural, zona de uso intensivo e zona de recuperação, sendo
que nenhuma delas corresponde a realidade da ocupação humana no interior das unidades de
conservação de proteção integral, característica própria da então zona de ambiente natural
com culturas autóctones proposta na 11ª Assembleia Geral da UICN de 1972 ou nas zonas
antropológicas propostas por Harroy.
Até 1974, quando foi criado o Parque Nacional da Amazônia em Itaituba-PA, havia
apenas o Parque Nacional do Araguaia e as mais de dez reservas florestais “de papel”,
criadas em 1911 e 1959, mas que nunca chegaram a ser implementadas. Porém,
principalmente a partir da década de 1980, deu-se um grande impulso a criação de novas
unidades de conservação de proteção integral no país, em particular na Amazônia
(GUIMARÃES, 1991, p. 166, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 58). Ao todo, foram criadas

254
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

vinte unidades de conservação de proteção integral entre 1979 e 1985, o que levou esse
período a ficar conhecido como a década do progresso para os parques nacionais sul-
americanos (WETTERBERG et al., 1885, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 58). Nesse
mesmo período também deu-se uma quantidade expressiva de medidas administrativas e
jurídicas como a elaboração do Regulamento dos Parques Nacionais do Brasil, a Lei da
Política Nacional do Meio Ambiente, que instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente e o
Conselho Nacional do Meio Ambiente, a regulamentação das Estações Ecológicas e Áreas de
Proteção Ambiental.
Aqui precisamos apontar a aparente contradição de que o momento em que o regime
militar levou adiante as políticas hoje responsabilizadas por impactos sociais e ambientais na
região amazônica coincide justamente com aquele em que mais se avançou em termos de
medidas conservacionistas por meio da criação de unidades de conservação de proteção
integral. Essa relação é mais do que o resultado de um mero concurso favorável de
circunstâncias, devendo-se a um conjunto complexo de fatores, tais como gestão estatal
estratégica do território como instrumento e condição da via brasileira - autoritária - para a
modernidade (BECKER, 1988, 1990, 1992, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 59).
Essa relativa facilidade de se estabelecer unidades de conservação de proteção
integral nas décadas de 1970 e 1980 é comumente atribuída à astúcia política dos
planejadores da conservação conjugada ao ambiente tecnocrático do governo federal no
regime militar e às oportunidades que assim se apresentaram para se avançar nas propostas de
criação de tais áreas. Isso fez com que prevalecesse um entendimento de que a conservação
da natureza era um setor técnico e burocrático e que todo o questionamento às políticas de
desenvolvimento deveriam ser encaminhadas dentro dos marcos da técnica e da ciência.
Nesse sentido:

(...) a conservação da natureza na Amazônia (...) avançou quando as circunstâncias


políticas eram favoráveis e quando um conjunto de princípios consistentes,
pretensamente científicos e taticamente selecionados, coadunaram a política de
conservação com os valores dominantes da administração tecnocrática do regime
militar (BARRETO FILHO, 2004, p. 61).

Desta forma, podemos concluir que a criação de parques nacionais, reservas


biológicas e outras unidades de conservação de proteção integral na Amazônia esteve
relacionado com uma das dimensões da via autoritária brasileira para a modernidade, em que
a politização e a manipulação do território foi fundamental no processo de modernização da

255
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estrutura econômica do país, sem alterar sua estrutura hierárquica (BECKER, 1988, 1990,
1992, apud BARRETO FILHO, 2004, p. 61).
Em 1981, a Política Nacional de Meio Ambiente traz, de forma inédita, uma
definição legal de meio ambiente, qual seja “o conjunto de condições, leis, influências e
interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as
suas formas”. No mesmo ano, foi estabelecido o Sistema Nacional de Meio Ambiente
(SISNAMA) que, sob direção do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), visava
constituir-se como um conjunto articulado de instituições, entidades, regras e práticas dos
entes federados (União, Distrito Federal, Estados e Municípios) e de fundações instituídas
pelo poder público , responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental (USP,
1991 apud WEY, 2003, p. 63).
Em 1982, diante da falta de categorias de manejo próprias aos objetivos nacionais da
conservação, do número excessivo de terminologias para unidades de conservação não
consensuais quanto à sua definição, da sobreposição de unidades de conservação de fins
diversos e da confusão de atribuições, foi proposta a II Etapa do Plano do Sistema de
Unidades de Conservação para o Brasil, que, além da definição de critérios técnico-científicos
para a indicação e implantação de unidades de conservação e a ênfase à proteção da
biodiversidade, buscou a criação de novas categorias de manejo. Em 1984, foram definidas as
novas categorias de manejo Reserva Ecológica e Área de Relevante Interesse Ecológico.
(WEY, 2003, p. 65).
Acontece que foram sendo criadas, tanto em nível federal quanto estadual, unidades
de conservação que não correspondiam às categorias de manejo previstas nas duas Etapas de
Planos de Sistemas de Unidades de Conservação, nem às dez categorias previstas pela UICN
em 1978. Mesmo a SEMA parecia ter uma rede própria de unidades de conservação que
incluia as Estações Ecológicas e as Áreas de Proteção Ambiental, independentemente do
sistema adotado pelo IBDF (MILANO, 1990, p. 135 apud WEY, 2003, p. 66).
Em 1989, foi criado o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (IBAMA) (VIANNA et al., 1994 apud WEY, 2003, p. 67) a partir da
acomodação de diferentes instituições em uma só, como o IBDF, a SEMA, a
Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e a Superintendência do
Desenvolvimento da Borracha (SUDHEVEA) (WEY, 2003, p. 73), com objetivo principal de
unificar a política ambiental brasileira e corrigir distorções presentes na administração de

256
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

unidades de conservação (VIANNA et al., 1994 apud WEY, 2003, p. 67), mas herdando as
funções, a infra-estrutura e os problemas dessas instituições (WEY, 2003, p. 73). Nesse
mesmo ano o IBAMA e a Fundação para a Conservação da Natureza (FUNATURA)
elaboraram uma proposta de Sistema Nacional de Unidades de Conservação, com objetivo de
sistematizar conceitos, objetivos e tipos de categoria para as unidades de conservação (WEY,
2003, p. 67).
No contexto do processo de redemocratização e com movimentações para uma
assembleia constituinte, movimentos sociais como a União dos Povos da Floresta e
ambientalistas se uniram para garantir que suas reivindicações estivessem contempladas na
nova constituição, fazendo surgir, assim, o movimento socioambiental. Em 1992 a proposta
do IBAMA/FUNATURA de um sistema nacional de unidades de conservação é protocolado
como projeto de lei que viria a ser o atual SNUC.
As discussões e debates sobre o projeto de lei do SNUC duraram 10 anos e foram
marcadas por duas concepções distintas de relação homem natureza: a que acreditava que o
homem era inerentemente destruidor da natureza (homem x natureza) e outra, que acreditava
que algumas populações e comunidades podiam viver de maneira integrada com a natureza
(homem-natureza). Dessa forma, ambas as concepções foram contempladas na Lei do SNUC
(2000), que classificou o rol das unidades de conservação em categoria de proteção integral e
uso sustentável e, ainda, rompeu com o paradigma da expulsão compulsória, ao prever a
permanência de populações tradicionais até que seja possível o reassentamento para local com
as mesmas condições de reprodução socioculturais. Apesar de a Convenção 169 da OIT ter
sido incorporada ao ordenamento jurídico pátrio em 2004, o SNUC incorporou vários
conceitos e diretrizes desta convenção, antecipando seus efeitos jurídicos no país.

2. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL?

O rompimento da barragem de rejeitos decorrentes da mineração em Mariana - MG


e a consequente tragédia ambiental ocorrida no Rio Doce, a catástrofe na usina nuclear de
Fukushima e o vazamento de radiação, a dos altos níveis de uso de agrotóxico ao
desenvolvimento de câncer, são alguns acontecimentos que colocam em perspectiva a crise
ambiental na qual a sociedade mundial está inserida.

257
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Esses desastres possuem um ponto de interseção, são atividades que exploram


recursos naturais e os transformam em mercadorias para atender as demandas do mercado.
Assim, para caminhar na trilha do desenvolvimento econômico-social prometido pelos
programas de organismos internacionais e almejado pela periferia, é necessário extrair o
minério de ferro para confecção de diversos bens de consumo, gerar energia elétrica para o
abastecimento majoritariamente industrial e aumentar a produtividade das monoculturas
através da utilização de agrotóxicos frente a possibilidade do desabastecimento alimentar.
Diante disso, podemos pensar que a destruição ambiental está associada ao modo de
produção?
Um marco da preocupação ambiental foi em 1972, quando diante dos inegáveis
sinais da crise ambiental que colocavam em risco a existência humana e do planeta, a ONU
organizou a Primeira Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável, em Estocolmo. Como resultado dessa iniciativa, em 1987, a Comissão Mundial
sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento tornou público o relatório “Nosso Futuro
Comum”, também conhecido como Relatório Brundtland, que apontou como receita para
saída da crise ambiental o desenvolvimento sustentável, definido como um desenvolvimento
que fosse capaz de suprir as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das
futuras gerações de satisfazerem suas próprias necessidades.
Entretanto, como é possível compatibilizar a preservação do meio ambiente com o
produtivismo, o crescimento econômico ilimitado e o fomento do consumo através da
inculcação de falsas necessidades nos indivíduos, todos característicos do atual modo de
produção, frente à finitude dos recursos naturais? A fórmula desenvolvimento +
sustentabilidade = desenvolvimento sustentável é uma explícita contradição, pois
desconsidera que há limites de fontes de energia e recursos naturais necessários, níveis de
poluição e mudanças climáticas toleráveis, consistindo nos limites absolutos do sistema
capitalista e não propõe a ruptura com esse modo de produção.
A produção no capitalismo se orienta pelo crescimento econômico,
consequentemente, pela acumulação de capital. Chesnais explica, segundo Marx, a essência
do capital. De acordo com Chesnais, é através do dinheiro que se gera mais dinheiro. Disso
depreende-se que o produtivismo é essencial para o ciclo de acumulação de capital e, para
tanto, ele se sustenta na mais-valia decorrente da exploração dos trabalhadores e no estímulo
ao consumo das mercadorias produzidas. No que concerne ao enriquecimento pela mais-

258
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

valia, os empresários organizam a atividade produtiva de forma eficiente objetivando o


aumento da produtividade dos trabalhadores ao passo que tentam reduzir seus gastos com os
empregados (CHESNAIS, 2009, p. 15).
Cabe salientar que a concorrência entre as empresas no mercado gera, por sua vez,
uma concorrência entre os trabalhadores pelos postos de trabalho que existem, provocando a
submissão dos trabalhadores à lógica produtivista e causando o aprofundamento desta.
Ademais, ao mesmo tempo que os trabalhadores vêem usurpada a mais-valia de seu trabalho,
eles são também mercado consumidor da produção capitalista contribuindo duas vezes para o
acúmulo de capital. (CHESNAIS, 2009, p. 15)
Quanto ao fomento do consumismo, é necessário o condicionamento dos
assalariados e de toda a população para que comprem. Uma vez que o processo de fabricação
das mercadorias é orientado pela produtividade, ao final da produção o mercado será
inundado pela maior quantidade de mercadorias que se foi possível fabricar e que precisam
ser vendidas para que a mais-valia inscrita nelas seja paga. O passo para o consumo consiste
no convencimento de que as mercadorias são úteis, tanto na autenticidade da utilidade do
produto para atender as necessidades do comprador, quanto no sentido de permitir a
realização da mais-valia encerrada na mercadoria. O que importa é “que las mercancías que
contienen plusvalor tengan la apariencia de “cosas útiles”, pues para el capital la “utilidad” es
lo que permite obtener ganancias (lucros) y proseguir el proceso infinito de valorización”
(CHESNAIS, 2009, p. 15).
Estes mecanismos de acumulação de capital descritos acima, que são impulsionados
pela necessidade de valorização infinita e ilimitada do capital, levam simultaneamente: i) ao
excesso de acumulação de meios de produção e a consequente superprodução de
mercadorias; ii) a existência de uma situação de desemprego endémico e; iii) a um imenso
desperdício de recursos não renováveis, desperdício contínuo porque é tão inerente ao
capitalismo como é a superprodução (CHESNAIS, 2009, p. 16).
Diante disso, depreende-se que a própria racionalidade do capitalismo expõe, na
realidade, a irracionalidade social e ambiental deste sistema. Ele gera a destruição ambiental e
a desigualdade social que supostamente se busca combater através do desenvolvimento
sustentável. Embora seja evidente a associação da destruição ambiental ao desenvolvimento
do modo de produção capitalista, o relatório Brundtland não contextualiza a crise ambiental e
o conceito de desenvolvimento sustentável nesses termos.

259
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O relatório aponta a necessidade de uma nova abordagem de crescimento


econômico tendo em vista que a finitude dos recursos naturais ameaça o desenvolvimento
econômico e social, de maneira que os países “em desenvolvimento” não poderiam manter o
mesmo ritmo de crescimento econômico dos países “desenvolvidos” (FREITAS, NÉLSIS e
NUNES, 2012. p. 44). Assim, o desenvolvimento sustentável foi construído como um
conceito capaz de aliar meio ambiente e crescimento econômico, sem questionar a
continuidade do sistema capitalista (FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 45).
Atualmente no mundo globalizado, a divisão internacional do trabalho ainda se
configura como nos tempos coloniais. As ex-colônias, hoje países periféricos, seguem
exportando matéria prima para os países centrais e nossas economias atreladas a exploração
de recursos naturais perpetuam a troca desigual de mercadorias e da degradação ambiental.
Esse intercâmbio desigual entre periferia e centro não pode ser ignorado na elaboração de um
futuro comum, pois a degradação ambiental, como lembra Leff (1994), “acentuou-se nas
regiões onde, historicamente, as formações sociais, sobretudo os ecossistemas tropicais, foram
explorados pelos países capitalistas industrializados” (FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012.
p. 43).
É perceptível o rastro de degradação deixado pela sanha da acumulação ilimitada de
capital que gera suas riquezas a partir da transformação da natureza em mercadoria e da mais-
valia extraída dos trabalhadores e da natureza no processo de transformação dessa natureza
em mercadoria. Quando do colonialismo, a exploração dos recursos naturais das colônias
permitiu a acumulação primitiva de capital fundamental para a consolidação do modo de
produção capitalista e o consequente desenvolvimento dos países centrais, outrora
metrópoles.
De fato os países periféricos não podem seguir a mesma receita de desenvolvimento
que os países centrais para avançarem no sentido da redução da desigualdade social a fim de
oferecer qualidade de vida a suas populações. A busca pela justiça social não pode perder de
vista a necessidade do meio ambiente equilibrado. Para fugir do modelo hegemônico de
desenvolvimento que nos colocou na “crise ambiental” é preciso uma “reorganização da base
civilizacional e da estrutura política, econômica social e cultural, vigente nas sociedades
instituídas no período posterior à Revolução Industrial e no marco da modernidade
capitalista” (LOUREIRO, 2006. p. 11 apud FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 44).

260
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Na contramão da mudança necessária, o conceito hegemônico de desenvolvimento


sustentável mostra-se como ideologia que ao mesmo tempo que ignora as determinações
históricas do processo destrutivo das sociedades e da natureza, decorrentes do modo de
produção, apela à preservação da natureza, ao enfrentamento da desigualdade social e ao
comprometimento individual e coletivo da sociedade com a natureza (FREITAS, NÉLSIS e
NUNES, 2012. p. 46). Além disso, essa concepção de desenvolvimento sustentável não
questiona a relação de dominação do homem com a natureza e que consiste em fator
potencializador do processo destrutivo decorrente do modo de produção, conforme segue:

A ideia de desenvolvimento, tal como existe na sociedade moderno-colonial, é


questionada por Porto-Gonçalves (2004), pois pressupõe a dominação da natureza.
O autor sinaliza a importância de determinadas condições jurídicas e políticas para
novas formas de dominação que não só prolonguem, mas intensifiquem os
processos anteriores de apropriação destrutiva da natureza. Ou seja, mesmo diante
dos graves problemas, são apresentadas propostas como “plante uma árvore”,
“promova a coleta seletiva do lixo” ou “desenvolva o ecoturismo” (FREITAS,
NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 46).

Marx, ao tratar da grande indústria e da agricultura, fala sobre o processo de retirada


do campesinato da terra para a implantação da agricultura mercantil e explicita a ruptura
metabólica entre sociedade e natureza, como resultado do produtivismo capitalista (LÖWY,
2014, p. 27 e 28). A noção de fratura metabólica pressupõe que “a natureza e o homem
possuiriam um metabolismo único, esta seria o corpo inorgânico desse, e, com a alienação do
próprio ser no capitalismo, ocorreria um distanciamento visceral entre ambos” (FREITAS,
NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 42).
Assim, a fratura metabólica consiste na inversão da relação Homem natureza na
medida que passa a desconsiderar o homem como parte da natureza e o coloca na posição de
senhor da mesma tendo em vista sua capacidade de transformação da natureza pelo trabalho.
Marx e Engels, na Crítica do Programa de Gotha, refutam essa tese ao sustentar que “o
trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (que são, de
qualquer forma, a riqueza real!) tanto quanto o trabalho, que não é em si nada além da
expressão de uma força natural, a força de trabalho do homem” (MARX, ENGELS, 1950, p.
128 apud LÖWY, 2014, p. 25).
Engels, no texto “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”,
após mencionar alguns exemplos de atividade humana predatória sobre o meio ambiente
reafirma a condição do homem como ser intrínseco à natureza:

261
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Os fatos nos lembram a todo instante que nós não reinamos sobre a natureza do
mesmo modo que um colonizador reina sobre um povo estrangeiro, como alguém
que está fora da natureza, mas que nós lhe pertencemos com nossa carne, nosso
sangue, nosso cérebro, que nós estamos em seu seio e que toda a nossa dominação
sobre ela reside na vantagem que levamos sobre o conjunto das outras criaturas por
conhecer suas leis e por podermos nos servir dela judiciosamente (ENGELS, 1968,
p. 181 apud LÖWY, 2014, p. 24)

Diante da tentativa do atual conceito de desenvolvimento sustentável de neutralizar a


imagem do capital perante a degradação ambiental por ele provocada, dada a forte alienação
entre homem e natureza intrínseca à fratura metabólica identificada por Marx e Engels
(FREITAS, NÉLSIS e NUNES, 2012. p. 47), a possibilidade de uma existência sustentável
para a humanidade só pode se dar a partir da renúncia da lógica capitalista de produção pela
produção e da acumulação de capital, de riquezas e de mercadorias como fim em si,
abandonando a ideia de crescimento infinito.

3. RESULTADOS ALCANÇADOS

Podemos observar que o modelo econômico se apropriou tanto da política ambiental


quanto do conceito de desenvolvimento sustentável. No âmbito das organizações multilaterais
como ONU e suas agências, em que seus integrantes representam Estados-Nação, sociedade
civil e corporações empresariais, prevalece a ideologia do crescimento econômico infinito
porque a economia dos países está fortemente atrelada ao modelo de desenvolvimento
econômico e social que só é possível com crescimento econômico constante. Dessa forma,
não se propõe uma superação do modelo posto, mas sim uma tentativa de conciliação.
Na mesma linha, foi possível observar a influência que estes organismos
multilaterais exerceram na política de meio ambiente nacional, principalmente a partir da
década de 1970, quando ocorreu o maior número de criação de unidades de conservação de
proteção integral na Amazônia e Centro-Oeste, em parte para cumprir exigências dos
financiadores internacionais como o Banco Mundial ou acessar os fundos do PNUMA e
PNUD. No Brasil, a política de meio ambiente e a política de desenvolvimento e exploração
dos recursos naturais não se excluem ou, sequer, são antagônicas, mas, sim, são
complementares no sentido de que a política ambiental é voltada para orientar a exploração
dos recursos necessários ao desenvolvimento econômico.

262
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Tendo em vista que o produtivismo é inerente ao modo de produção capitalista, seria


utópico acreditar que o capitalismo teria a capacidade de se auto impor os limites do seu
crescimento econômico e da acumulação de capital hoje, alterando suas características
estruturais, em respeito ao direito de gerações futuras, por exemplo.
Desde a assunção da crise ambiental, em 1972, o que observamos é o seu
agravamento. O capitalismo tem se pintado de verde sob o pretexto do desenvolvimento
sustentável e transformado em lucro a sustentabilidade através do marketing verde, mas sem
alterar de maneira significativa seus processos de produção. Assim como nas inerentes crises
econômicas cíclicas, onde o capitalismo se reinventa para continuar lucrando, parece que a
crise ambiental tem surtido efeito semelhante.
Se as políticas de conservação da natureza não consideram a centralidade do modo
de produção capitalista para a crise ambiental, as áreas protegidas vão consistir em ilhas de
conservação que podem ganhar contorno de zonas de recursos naturais a serem exploradas
quando a natureza fora delas já tiver sido consumida e deteriorada. Uma poupança de recursos
naturais a ser utilizada no futuro, pois as áreas protegidas, apesar de reservadas, possuem
valor de mercado e enquanto os recursos naturais vão se tornando escassos fora delas, elas se
valorizam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante o exposto, podemos vislumbrar que uma das possibilidades futuras das
unidades de conservação frente o conceito de desenvolvimento sustentável hegemônico, é se
tornar reserva de mercado de recursos naturais, de modo que para se pensar política
ambiental é imprescindível contextualizar o protagonismo do modo de produção capitalista na
crise ambiental.
Sugerimos, portanto, a necessidade do aprofundamento de estudos interdisciplinares,
inclusive empíricos, capazes de identificar outras interseções entre política ambiental e
desenvolvimento sustentável e os sintomas dessa relação no atual modelo de produção, assim
como estudar e elaborar modelos alternativos.

263
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS

BARRETO FILHO, Henyo Trindade. Notas para uma história social das áreas de proteção integral no Brasil, em
Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza, p. 53-63, 2004.

BRASIL. Decreto nº 4.340 de 22 de agosto de 2002 - Regulamenta artigos da Lei no 9.985, de 18 de julho de
2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, e dá outras
providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4340.htm>. Acesso em
01/09/2017.

_______. Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000 - Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9985.htm>. Acesso em 01/09/2017.

CHESNAIS, François. Orígenes comunes de la crisis económica y la crisis ecológica. Herramienta, 2009.

FREITAS, Rosana de Carvalho Martinelli; NÉLSIS, Camila Magalhães; NUNES, Letícia Soares. A crítica
marxista ao desenvolvimento (in) sustentável. Rev. katálysis, v. 15, n. 1, p. 41-51, 2012.

INEA. Parque Estadual da Lagoa do Açu. Disponível em


<http://www.inea.rj.gov.br/Portal/Agendas/BIODIVERSIDADEEAREASPROTEGIDAS/UnidadesdeConserv
acao/INEA_008601>. Acesso em 30/09/2016.

LÉVI-STRAUSS, C. Raça e História. Col. Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1976.

LOBÃO, R. O Direito em Contextos de Jusdiversidade. Projeto de Pós-Doutorado pelo PPGA-UFRR, 2014.

LÖWY, Michel. O que é o Ecossocialismo? 2. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2014.

PINHEIRO, Kelly. Levantamento do Perfil Socioeconômico, da Percepção Ambiental e dos Conflitos no


Entorno do Parque Estadual da Lagoa do Açu/RJ. Dissertação. Programa de Pós-graduação em Engenharia
Ambiental, Área de Concentração de Sustentabilidade Regional. Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Fluminense.2014.

URBAN, Teresa. Saudade do matão: relembrando a história da conservação da natureza no Brasil. Editora
Ufpr, 1998.

WEY, MC de B. Unidades de Conservação: intenções e resultados. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.

264
DIREITO À TERRA:
UMA ANÁLISE DA LUTA INDÍGENA CHIQUITANO

MOREIRA DA COSTA, Loyuá Ribeiro Fernandes


Mestranda em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF).
COUTO, Larissa de Paula
Mestranda em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF).

RESUMO

O estudo se volta para a discussão relacionada ao racismo institucional e ambiental, com enfoque em
questões indígenas brasileiras, em especial da etnia Chiquitano, localizada em Mato Grosso. A
temática demonstrará a luta indígena como potencial emancipador para alcance de construção de
mecanismos jurídicos e econômicos de proteção ambiental e de emersão de novas formas de cidadania.
Para tanto, o estudo realiza uma análise acerca de constituições latino-americanas, como Bolívia e
Equador. Assim, objetiva-se demonstrar perspectivas teóricas e práticas anticapitalistas, sob o viés
decolonial. A pesquisa qualitativa interdisciplinar, calcada na teoria crítica, articula Antropologia,
História, Direito, Política, Economia e Cultura. Isso porque o marco teórico-metodológico adotado
permite demonstrar a interconexão entre os diferentes ramos dos saberes. Conclui-se a pesquisa
demonstrando alternativas ao capitalismo verde e sua relação com a importância das lutas sociais.

Palavras-chave. Capitalismo Verde; Racismo Institucional; Racismo Ambiental; Chiquitano.

ABSTRACT

The study is related to the discussion about institutional and environmental racism, focusing on
Brazilian indigenous issues, especially on the Chiquitano ethnic group, located in Mato Grosso. The
theme will demonstrate the indigenous struggle as an emancipatory potential to reach the construction
of legal and economic mechanisms for environmental protection and the emergence of new forms of
citizenship. To do so, the study analyzes Latin American constitutions, such as Bolivia and Ecuador.
Thus, it aims to demonstrate theoretical perspectives and anti-capitalist practices, under the decolonial
bias. The qualitative interdisciplinary research, based on critical theory, articulates Anthropology,
History, Law, Politics, Economy and Culture. This is because the theoretical-methodological
framework adopted allows us to demonstrate the interconnection between the different branches of
knowledge. The study concludes by showing alternatives to green capitalism and its relation to the
importance of social struggles.

Keywords. Green Capitalism; Institutional Racism; Environmental Racism; Chiquitano.

265
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O artigo tem como objetivo compreender a disputa de terras tradicionalmente


ocupadas pelas comunidades Chiquitano1 e sua relação com o capitalismo verde, racismo
ambiental e racismo ambiental. Para tanto, o estudo baseia-se em pesquisa empírica,
utilizando meios jurídico-processuais, pesquisa de campo e de análise de mecanismos
constitucionais de países da América Latina, como Bolívia e Equador.
A fim de trazer subsídios ao estudo, foi feito um levantamento documental nos
arquivos da FUNAI, em Cuiabá, nos anos de 2014, 2015 e 2016. No intuito de conhecer
melhor a situação em que as comunidades Chiquitano estão submetidas e de colher
informações de diferentes lideranças indígenas, realizou-se duas viagens de campo nos meses
de maio e julho de 2014 e reuniões pela internet com membros das comunidades, em agosto
de 2017. Ainda em 2014, foi realizado acompanhamento de liderança indígena da
comunidade de Vila Nova Barbecho à Delegacia Federal de Cáceres, junto ao Procurador
Federal da FUNAI, para relato de ocorrência de ameaça, bem como visita ao Ministério
Público Federal, na mesma cidade, para melhor compreensão do conflito socioambiental.
No que diz respeito às fontes orais, estas basearam-se em entrevistas
semiestruturadas por meio de formulário dialogado com indígenas das comunidades
Chiquitano de Fazendinha, Vila Nova Barbecho, Nossa Senhora Aparecida e Aldeia Urbana
Aeroporto Hitchi Tuúrrs. Os fatos apontam a possibilidade de ocorrência de violação de
direitos humanos desde a década de 1970, momento em que o INCRA (Instituto de
Colonização e Reforma Agrária) intensificou a distribuição de terras para instalação de
fazendas.
O estudo proposto foi elaborado com a ideia de compreensão e aprofundamento no
que tange aos direitos humanos dos povos indígenas, como o direito à autodeterminação, ao
usufruto das terras que tradicionalmente ocupam, à saúde, ao trabalho digno, à igualdade na
diferença, à reprodução físico-cultural, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Pensou-se na possibilidade de vir a servir como meio de difusão de conhecimento acerca
desses direitos aos índios, bem como de trazer ao ambiente acadêmico uma situação que é
corriqueira às diversas etnias. Também tem por escopo romper com as amarras do
1
A 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, ocorrida no Rio de Janeiro em 1953, aprovou uma convenção para
uniformizar a grafia dos nomes tribais brasileiros. Neste estudo, portanto, os “nomes tribais se escreverão com
letra maiúscula, facultando-se o uso de minúscula no seu emprego adjetival” e, ainda, “não terão flexão
portuguesa do número ou gênero, quer no uso substantival, quer no uso adjetival”. (SCHADEN, 1976, p. XII).

266
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

colonialismo que nos rodeiam e que utilizam formas de opressão e ocultamento de


identidades indígenas, levando-as ao extermínio.
A identidade dos índios vincula-se à sua forma cultural de habitar as terras e de fazer
uso dos recursos naturais nelas existentes que não somente é fonte de subsistência, como
também de preservação do meio ambiente. A terra é a base de produção e sustentáculo da
identidade étnica, sendo uma premissa à fruição dos demais direitos. Nesse sentido, o artigo
não trata apenas de uma questão sobre conflito agrário, mas da necessidade de (r)existência
étnico-cultural dos povos indígenas ante a colonialidade de poder2 que se verifica tanto à nível
local, como regional e global.3
Ao longo da leitura, será possível perceber que a epistemologia indígena é
fortemente ligada às vontades da natureza. Essa noção de mundo entra em conflito com a de
atores sociais e governamentais que possuem concepções socioeconômicas, pautadas em leis
nacionais e internacionais, que permitem uma relação de domínio dos recursos ambientais. A
exterminação das identidades indígenas relaciona-se à degradação do meio ambiente,
tratando-se, portanto, de um estratégia político-econômica.
Dessa forma, conservar a vida, concepções identitárias, heranças de pensamentos e
sabedorias significa cultivar a alteridade e uma perspectiva de solidariedade intercultural,
alcançando uma consciência de humanidade planetária. Isso implica diálogo e salvaguarda de

2
Índios e não índios encontram-se numa relação de “colonialidade de poder” (QUIJANO, 2005) que desde
tempos remotos sustenta uma suposta superioridade/inferioridade. Essa relação baseia-se em dicotomias como
“cultura científica/cultura literária, conhecimento científico/conhecimento tradicional, homem/mulher,
cultura/natureza” (SANTOS, 2000, p. 739).
3
O julgamento da Petição nº 3.388, a respeito da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, instituiu como marco
temporal ao direito à terra indígena a data de promulgação da Carta Magna, ou seja: 05.10.1988. (BRASIL,
Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Carlos Ayres Britto, julgado em 19.03.2009). Embora o Supremo
Tribunal Federal tenha definido que o marco temporal se aplicaria somente a esse caso, em 2015, aplicou,
também, para anular a demarcação das Terras Indígenas de Guyraroka, dos Guarani Kaiowá, e Limão Verde e
Buriti, dos Terena. Não bastando, em 20.07.2017, foi emitido parecer pela Advocacia Geral da União e assinado
pelo Presidente da República, Michel Temer, com o mesmo entendimento quanto ao marco temporal. Muito vem
sendo discutido a respeito da natureza desse parecer. Uns entendem que seja apenas opinativo, não tendo força
vinculante, e até mesmo inconstitucional (nesse sentido, ver: http://cimi.org.br/site/pt-
br/?system=news&conteudo_id=9395&action=read Acesso em: 02.08.2017). Outros afirmam que o parecer é
vinculante, o que significa que toda a administração federal deverá incorporar elementos da decisão do Supremo
Tribunal Federal sobre o caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (nesse sentido, ver http://cimi.org.br/site/pt-
br/?system=news&action=read&id=9393 Acesso em 02.08.2017). Outra transgressão aos direitos indígenas
ocorreu em 21.08.2017, quando o Ministério da Justiça anulou a Portaria nº 581 de 2015 que reconhecia 500
hectares da Terra Indígena do Jaraguá, pertencente ao povo indígena Guarani, em São Paulo. Segundo a decisão, a
área “foi demarcada sem a participação do Estado de São Paulo na definição conjunta das formas de uso da área”
reduzindo-a para apenas 3 hectares. A anulação propiciará a privatização da Unidade de Conservação, Parque
Estadual do Pico do Jaraguá (https://pib.socioambiental.org/pt/noticias?id=181337&id_pov=76 Acesso em
22.08.2017). O artigo não objetiva o aprofundamento dessas questões e etnias, trazendo-as apenas para ilustrar a
problemática que assola os povos indígenas brasileiros.

267
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

direitos que garantam a diversidade cultural, condições de igualdade e dignidade. Esses


direitos estão previstos em tratados internacionais e são constitucionalmente outorgados aos
membros da sociedade nacional, mostrando-se fundamentais a uma convivência justa e
pacifica da sociedade.
O caminho metodológico aporta-se na construção de um diálogo entre o saber
científico ocidental e o entendimento de que natureza e sociedade constituem-se de objetos e
fenômenos dependentes entre si e que se condicionam numa relação de troca. Como
resultado, ocorrem reações no modus vivendi circundante dos índios, ainda que condicionadas
a forças contraditoriamente articuladas, geradoras de raízes, identidades e conflitos.
Nesse sentido, o prisma epistemológico ofertado pelo Direito, que se baseia em fatos
e normas predefinidas, permite examinar positivamente quais os direitos violados e os
princípios gerais que melhor esclareçam a controvérsia. Já a base empírica do estudo,
amparada pela ótica antropológica, demostra o ponto de vista dos sujeitos e evidencia suas
práticas e saberes locais, indagando se a questão analisada tem algo a dizer sobre o universal,
a fim de compreender o etnocultural Chiquitano. Dessa forma, o estudo etnográfico permite
aquilatar as mudanças no modo de vida percebidas pelas comunidades Chiquitano.
A exploração científica desta questão conduz ao estudo e entrecruzamento de
diversos vieses epistemológicos. Implica na interface de campos do conhecimento, como
direito, história, geografia geral e regional, sociologia e antropologia, donde emerge o caráter
interdisciplinar que propicia o processo de tradução e diálogo entre saberes.
A FUNAI providenciou o reconhecimento étnico do povo Chiquitano somente no
final da década de 1990, revelando uma situação complexa e pouco estudada sob a ótica
jurídica, antropológica e histórica. Portanto, promover uma abordagem jurídica sobre os
possíveis direitos humanos violados nas comunidades Chiquitano reveste-se de caráter
urgente e prioritário para uma das mais obscuras questões do indigenismo mato-grossense na
atualidade. Certamente, uma análise do ponto de vista do direito poderá fortalecer o processo
de luta do povo indígena Chiquitano para terem suas terras tradicionais demarcadas.

268
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. POVO INDÍGENA CHIQUITANO: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO E AS


REPERCUSSÕES DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NO PODER
JUDICIÁRIO

O povo indígena Chiquitano origina-se de uma amálgama de etnias fusionadas nas


missões jesuíticas implantadas nos anos de 1691 a 1760. Recebeu essa designação do
naturalista francês Alcides d’Orbigny durante sua visita à Bolívia, em 1831, como uma
atribuição genérica aos índios que habitavam a região. Nos dias de hoje, os Chiquitano
ocupam terras nos dois lados da fronteira Brasil-Bolívia, na hinterlândia das cabeceiras do rio
Paraguai com a do rio Guaporé, no Brasil, e, a Oeste, com o rio Guapay, em solo boliviano.
Dados de 20084 demonstram que, em Mato Grosso, estima-se uma população de 2400 índios
vivendo em trinta e três comunidades nos municípios de Cáceres, Porto Esperidião, Pontes e
Lacerda e Vila Bela da Santíssima Trindade, formando um contínuo fronteiriço. (MOREIRA
DA COSTA, 2006).5
O Tratado de Madri, firmado entre Portugal e Espanha em 1750, estimulou o
povoamento da Província de Mato Grosso com a utilização da mão de obra indígena pelos
Portugueses, sendo que a do Chiquitano era considerada especializada na produção de redes,
mantas, alimentos. Um século depois, a Lei de Terras (1850)6 e o Tratado de Ayacucho

4
Trata-se de dado trazido por Moreira da Costa (2006) pautado em relatório elaborado por Grupo de Trabalho da
FUNAI. Para aproximar-se de uma noção mais atualizada, pesquisas documentais realizadas nesse mesmo órgão,
em 2014, possibilitou-me auferir a existência de 137 famílias somente no município de Vila Bela da Santíssima
Trindade, mais especificamente, na Aldeia Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs; dados coletados nesse mesmo
período apontam que Fazendinha e Acorizal possuem cerca de 384 moradores; em Vila Nova Barbecho, 90
moradores; em Santa Luzia, 130.
5
Moreira da Costa (2006) aponta a existência de trinta e uma comunidades. No entanto, em 2017, ocorreu divisão
interna que originou as comunidades Notchopro Matupama e Nautukich, de acordo com entrevista realizada
virtualmente com membro Chiquitano, totalizando trinta e três comunidades. Notchopro Matupama adveio da
comunidade Central e Nautukich da Acorizal. De acordo com Moreira da Costa (2006), são consideradas
comunidades os núcleos de famílias Chiquitano, mesmo que em algumas se observe a presença significativa de
não índios.
6
Promulgada por Dom Pedro II, trata-se da primeira iniciativa brasileira no sentido de organizar a propriedade
privada, que até então não possuía nenhum documento que regulamentasse a posse de terras. Foi aprovada no
mesmo ano que a Lei Eusébio de Queirós, que previa o fim do tráfico negreiro e sinalizava a abolição da
escravidão no Brasil. Em razão da preocupação de fazendeiros e políticos latifundiários de que negros pudessem
vir a se tornar donos de terras, foi estabelecido também por essa lei que as terras só poderiam ser adquiridas por
compra e venda ou doação do Estado. Portanto, não era mais permitido obter terras por meio de posse
(usucapião). Aqueles que já ocupavam algum lote recebiam o título de proprietário, mas desde que residissem e
tivessem produtividade na localidade.

269
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(1867)7, intensificaram a ocupação das terras Chiquitano, tidas como devolutas pelos
fazendeiros e destacamentos militares. (MOREIRA DA COSTA, 2006).
Com o advento da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em
1891, segunda constituição do Brasil e primeira de sistema republicano de governo, as terras
devolutas foram transferidas à competência dos governos estatais. Estes expediram títulos de
domínio de terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas que não tinham seus
territórios reconhecidos, gerando muitos conflitos agrários e socioambientais.
Na guerra do Chaco, entre a Bolívia e o Paraguai, no início do século XX, índios
Chiquitano lutaram no exército boliviano. Este foi um momento muito difícil para
sobrevivência da etnia, pois o exército boliviano obrigou homens e meninos a entrarem no
combate. Várias famílias Chiquitano fugiram da Bolívia para o Brasil, a fim de pouparem
seus filhos da guerra que os dizimou em grande parte e dispersou muitas comunidades no
Brasil, pois o exército boliviano entrava em terras na fronteira brasileira para arregimenta-los
para a guerra.
Além disso, a regularização fundiária efetuada pelo INCRA nas terras tradicionais
pertencentes aos Chiquitano, a partir de 1970, permitiu a expansão de grandes latifúndios, o
que contribuiu ao aumento das dificuldades de sobrevivência desse povo. (MOREIRA DA
COSTA, 2006; SILVA, 2004).8 Assim, comunidades Chiquitano tiveram suas terras
parceladas em diminutos lotes que, posteriormente, foram adquiridos por fazendeiros. Alguns
índios, sob coação, acabaram abandonando seu local de origem e, por não terem para onde ir,
ocupam faixas de servidão de estradas e periferias de municípios próximos. Os que resistem
em suas terras estão cercados e encapsulados por fazendeiros, confinados em pequenas áreas
comunais. Desde então, assistem aos recursos naturais necessários a sua sobrevivência físico-

7
Celebrado em La Paz, Bolívia, também conhecido como Tratado da Amizade ou Tratado Muñoz-Netto.
Declarou paz entre o Império Brasileiro e a Bolívia, bem como estabeleceu a possibilidade legal de navegação e
tráfego. Assim, foram recuadas as fronteiras bolivianas a favor do Império Brasileiro. As embarcações bolivianas
passaram a ter acesso aos rios brasileiros. O extrativismo da borracha na região tornou-se o novo projeto de vida
de nordestinos que buscavam fugir da seca, o que resultou em maior povoamento da região. Em 1898, a Comissão
Demarcadora de Limites demonstrou que parte do Acre pertencia à Bolívia. Acontece que essa divisão territorial
entre os Estados-nação ocultava os verdadeiros donos das terras: os indígenas que ali viviam.
8
Durante pesquisa documental realizada na FUNAI, em 2014, foi possível auferir que, em 08.01.2013, o
Ministério Público instaurou, por meio da Portaria nº 2, Inquérito Civil Público para apurar o envolvimento do
INCRA no processo de parcelamento das terras tradicionais Chiquitano.

270
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

cultural serem transformados em pastagens, ironicamente por sua própria força de trabalho
que, muitas vezes, é realizada de forma análoga à escravidão.9
Em decorrência desse histórico processo de esbulho, discriminação e silenciamento,
apenas quatro, das trinta e três comunidades Chiquitano, se declaram indígenas. Por isso, o
presente artigo elege, especificamente, a trajetória das comunidades Chiquitano: Fazendinha e
Acorizal (localizadas nas Glebas Casalvasco, Tarumã e Santa Rita), Vila Nova Barbecho e
Nossa Senhora Aparecida (situadas na Gleba Tarumã). Em outra conformação, também
objeto deste estudo, a Aldeia Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs, composta por Chiquitano
moradores de bairros periféricos do município de Vila Bela da Santíssima Trindade, todas
elas em Mato Grosso.
No final dos anos de 1990, o licenciamento ambiental para a construção do
Gasoduto Bolívia-Mato Grosso10 indicou a necessidade de demarcação das terras Chiquitano
ao longo da fronteira brasileira. Diante de tal condicionante, o Estado brasileiro concedeu
maiores recursos à FUNAI a fim de que promovesse a identificação e delimitação da Terra
Indígena Portal do Encantado, como pressuposto à construção de estrada que passaria pelo

9
Durante pesquisa de campo, por meio de formulário dialogado, foi relatado por membros Chiquitano a forma
como realizavam os trabalhos para fazendeiros que, nos termos da Constituição Federal de 1988 e das leis
infraconstitucionais, configurariam trabalho análogo à escravidão. Isso porque, a exemplo da comunidade Vila
Nova Barbecho, os índios chegavam a ficar mais de doze horas dentro das águas de rio da região, incentivados por
pinga para permanecerem com seus corpos quentes quando no inverno. As condições da comida e o local onde se
alimentavam eram impróprios. Além disso, um dos fazendeiros que chegou a morar na região destruiu a roça da
comunidade, forçando-os a comprarem alimentos produzidos em suas fazendas, bem como as ferramentas de
trabalho em mercearia próxima. No final do mês, ficavam endividados e não tinham dinheiro para receber. Após a
chegada da FUNAI, no final da década de 1990, essa situação cessou, mas não se sabe ao certo como os trabalhos
são empreendidos por aqueles que não se autodeclaram indígenas, pois preferem silenciarem-se a perderem o
trabalho.
10
A efetivação desse projeto foi impedido por movimentos sociais bolivianos, incidente denominado “Guerra do
Gás”. A construção da estrada fazia parte do projeto de desenvolvimento do Eixo Andino (Venezuela, Colômbia,
Equador, Peru, Bolívia) operado pela Iniciativa de Integração da Infraestrutura Sulamericana (IIRSA), que
objetivava implementar interesses do Eixo Interoceânico Central (Sudeste brasileiro, Paraguai, Bolívia, norte do
Chile, sul do Peru), bem como do Eixo Perú-Brasil-Bolívia. A IIRSA é um programa composto por 12 países da
América do Sul que visa promover a “integração sul-americana” a partir da modernização conjunta da
infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações. Para isso, seria necessário a construção da referida
estrada que passaria por territórios indígenas na fronteira Brasil-Bolívia, almejando a exploração e exportação dos
recursos naturais pela Petroandina e pela Petrobrás. A construção da estrada para ligação dessas regiões, em nome
do desenvolvimento econômico, seria realizada pela empreiteira brasileira OAS, financiada pelo Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O Eixo Peru-Bolívia-Brasil permitiria a expansão do
comércio destes países com a Ásia. (SANTIAGO; BELLO, 2017). Essa política de desenvolvimento buscava
uma dependência dos países centrais. No entanto, acabou por demonstrar não a integração do Sul, mas uma
interrelação de interesses de mercados globais e de subimpérios calcados na degradação ambiental e extermínios
de etnias indígenas. (SANTIAGO; BELLO, 2017).

271
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

território indígena.11 Assim, parte da área foi reconhecida como pertencente às comunidades
Acorizal e Fazendinha, no entanto, a portaria que assim a declara foi suspensa por decisão
judicial12.
Pesquisas iniciais sobre o processo histórico de esbulho das terras onde se
encontram os Chiquitano, desde a chegada do INCRA, indicam transgressão ao direito à vida.
De acordo com dados coletados, por meio de questionário esquematizado realizado em
pesquisa de campo no ano de 2014, existe a possibilidade de trabalho em condições análogas
à escravidão desde o parcelamento das terras indígenas. Isso, bem como o histórico de
preconceito, degradação ambiental, restrições à reprodução físico-cultural ocasionam fortes
transformações no modo de vida do povo indígena Chiquitano.
Conforme relatos dos indígenas, também foram desrespeitados os direitos à
integridade física e psíquica, em razão dos maus tratos dos gerentes para submetê-los a
jornadas extensas de trabalho e em condições degradantes, bem como quando encontravam-
se doentes ou a fim de obrigá-los a realizar determinada tarefa. Após a chegada da FUNAI, no
final da década de noventa, essa situação atenuou em razão do atendimento que passou a
fornecer à etnia. No entanto, alguns fazendeiros passaram a negar trabalho àqueles que se
declaram índios, sendo que estes dependem da venda da mão de obra para sobrevivência. O
histórico de preconceito e silenciamento faz com que muitas comunidades Chiquitano
neguem sua identidade indígena, dificultando os trabalhos da FUNAI.
A comunidade Vila Nova Barbecho, localizada na Gleba Tarumã, está um longo
período privada de água. Isso porque embora o córrego São Pedro passe por ela, suas águas
banham, primeiramente, as terras da fazenda vizinha, homônima ao do rio, que utilizava o
córrego para abastecimento do gado a ela pertencente, deixando-o impróprio ao uso humano.

11
A Funai é responsável por orientar e executar a demarcação de terras, nos termos da Diretoria de Proteção
Territorial (DPT), conforme disposições da Lei nº 6.001, de 19.12.1973 (Estatuto do Índio), do Decreto nº 1.775,
de 08.01.1996, e do Decreto nº 7.778, de 27.07.2012, que determina as atribuições da FUNAI.
12
Depois de todo o trâmite do processo administrativo demarcatório, de competência da FUNAI, foi publicada no
D.O.U. (Diário Oficial da União) em 31.12.2010, a Portaria nº 2219/2010 do Ministério da Justiça. No entanto,
esta encontra-se suspensa desde 2011. Isso porque foi concedida tutela antecipada no Processo nº 0000151-
76.2011.4.01.3601, que tramita na 1ª Vara da Justiça Federal da subseção judiciária em Cáceres, distribuído em
13.01.2011, cuja parte requerente é possuidora de fazenda na mesma área. Após a declaração do reconhecimento
da Terra Indígena (ato do Ministro da Justiça) e sua homologação (ato do Presidente da República), não há mais
possibilidade, pela via administrativa, de contestação por interessado, devendo o caso, necessariamente, ser levado
à análise do Judiciário. De acordo com o Código Civil, o prazo para que seja feita a contestação de uma portaria
que homologa uma terra indígena, bem como da declaração de posse indígena, é de 15 anos e começa a contar da
publicação da portaria. Exceto tratando-se de Mandado de Segurança impetrado pelo Estado, situação em que será
de 120 dias, nos termos do artigo 110, parágrafo único e do artigo 247, § 1º, ambos do Regimento Interno do
Supremo Tribunal Federal (vide Ação Civil Ordinária AgR 365, MT, de relatoria de Aldir Passarinho, 1987).

272
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Em junho de 2015, o proprietário da fazenda foi multado por poluição e danos ao córrego
pelo Juizado Especial Volante Ambiental (Juvam) da Comarca de Cáceres.13 Em razão das
constantes ameaças empregadas aos índios pelo então proprietário da fazenda São Pedro, em
2006, o Ministério Público instaurou processo14 no qual foi decidido que, ainda que não tenha
demarcação definitiva das terras pela FUNAI, se construísse um poço semiartesiano. A
decisão judicial também estipulou a delimitação de uma área exclusiva de 25 hectares para a
comunidade e o acesso comum à área da fazenda para a coleta de matérias-primas para
confecção de seus artefatos e subsistência.
O acesso comum à área da fazenda é evitado pelos índios, em razão de ameaças
sofridas ao tentarem coletar de matérias primas, caçar e pescar. O material para construção do
poço ficou muito tempo parado na comunidade, já que a empresa responsável se recusa a
construí-lo em decorrência de ameaças efetuadas pela fazenda quando da tentativa de
construção. Não bastando, o material desapareceu, deixando os índios desesperançosos
quanto à possibilidade de terem água potável na comunidade. O processo, em fase de
execução, ainda não promoveu medidas para a efetiva construção do referido poço, mesmo se
tratando de um bem universal necessário à sobrevivência e dignidade. Essa situação evidencia
a morosidade e inefetividade do Poder Judiciário.
A fim de suprir a escassez de água potável, uma missão religiosa construiu um poço
semiartesiano, mas, ainda assim, insuficiente ao abastecimento das 18 famílias da
comunidade15, pois fornece pouco volume de água e não funciona em dias nublados, já que é
movido a energia solar. Em entrevista realizada virtualmente no início de agosto de 2017,
membro indígena da comunidade de Vila Nova Barbecho mencionou que a fazenda aparenta
possuir novo proprietário que desmata e implanta pasto. A utilização da água do córrego
continua sendo evitada pelos índios em razão da desconfiança de emprego de agrotóxicos na
plantação aos arredores do córrego.
Na Gleba Casalvasco, resistem diversas comunidades ao longo do rio Barbados,
dentre elas a de Nossa Senhora Aparecida, única da região que se identifica indígena, motivo

13
Conforme notícia divulgada no site oficial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso
http://www.tjmt.jus.br/noticias/40117#.WYJA5ITyvIU Acesso em: 02.08.2017.
14
Ação Civil Pública nº 0001482-69.2006.4.01.3601 que tramita na Justiça Federal da subseção judiciária de
Cáceres.
15
Dado encontrado em uma das petições da Funai no processo.

273
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pelo qual é alvo de constantes ameaças.16 Embora a FUNAI tenha dado início ao estudo de
identificação e delimitação,17 este não pode ser concluído, pois parte significativa dos
membros da comunidade não se identificam como indígena, em decorrência do histórico de
preconceito e silenciamento.18
Muitas famílias Chiquitano dependem da venda de mão de obra e dos favores dos
fazendeiros que passaram a recusar trabalho àqueles que se autoidentificam indígena. Por
isso, muitos, com medo de não terem para onde ir ou como viver, bem como, por vezes,
envergonhados, em razão do preconceito da região para com indígenas, preferem silenciar-se.
A situação, além de dificultar os trabalhos da FUNAI, tem gerado conflitos internos que
perduram há mais de uma década.
Em Vila Bela da Santíssima Trindade, em 2014, foi possível entrevistar o indígena
Chiquitano Antônio Leite, à época líder de 137 famílias que vivem, em sua maioria, no Bairro
Aeroporto. A comunidade, chamada de Aldeia Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs, que na
língua significa “espírito protetor das águas”, reivindica o retorno para suas terras tradicionais,
a maior parte localizadas na Gleba Casalvasco, mais especificamente na região de Baía
Grande. Ainda no mesmo ano, em carta ao Ministério Público Federal, Antônio Leite relatou
a ação de expulsão de suas terras de ocupação tradicional, praticada por autoridades locais e
fazendeiros, bem como a prática de violência às famílias indígenas.
Os conflitos agrários perpetuados nas comunidades de Fazendinha, Acorizal, Vila
Nova Barbecho, Nossa Senhora Aparecida e Aldeia Urbana Aeroporto Hitchi Tuúrrs, entre
1970 a 2017, demonstram a vulnerabilidade que o povo indígena Chiquitano se encontra. São
anos de luta para terem suas terras tradicionais demarcadas, assolados pelos ideais do
capitalismo verde e silenciados pelas estruturas sociais e estatais.

16
Denúncias encaminhadas ao Ministério Público Federal culminaram na instauração do Inquérito Civil Público,
por meio da Portaria nº 033/2012, com o fito de apurar o conflito entre Nossa Senhora Aparecida e a Fazenda São
João do Guaporé, esta, localizada dentro da referida comunidade.
17
Estudo instaurado pela Portaria nº 686/2003, publicada no D.O.U. em 16.07.2003.
18
O procedimento de demarcação de terras é composto pelas seguintes fases: fase de identificação e delimitação,
fase de demarcação física, fase da homologação e fase do registro das terras indígenas. Portanto, logo na primeira
fase, identificação e delimitação, o procedimento administrativo frustrou-se por não preencher o requisito da
autoafirmação da etnia.

274
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. CAPITALIMSO VERDE E INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS


EMANCIPADORES: EXISTEM ALTERNATIVAS?

Como o pensamento Latino-Americano entende a questão do desenvolvimento? A


temática do desenvolvimento tem sido uma constante no pensamento social latino-americano.
No século XIX, foi, em grande parte, influenciado pelo debate sobre civilização e barbárie. O
atraso no desenvolvimento econômico era explicado em razão de aspectos culturais e étnicos
da sociedade majoritariamente não europeia.
O progresso era, inclusive, uma das categorias fundamentais do pensamento das
classes médias latino-americanas, muito influenciadas pelo pensamento positivista, pois o
positivismo colocava como meta histórica da civilização o desenvolvimento da indústria,
tecnologia, ciência, cuja implantação seria o resultado da ação de uma classe industrial. Essa
era a noção de progresso da classe média, no entanto, embora seja o que tenha ocorrido na
segunda metade do século XIX, por outro lado não trouxe desenvolvimento próprio e
autônomo. (DOS SANTOS, 2015).
O problema central nos estudos direcionados à natureza das transições políticas
contemporâneas começa em definir onde começa a transição e onde termina. Especialmente
nos anos 80 do século passado, as análises das transições democráticas concentram-se na
liberalização das economias, sob a ótica neoliberal. Durante os anos 80 e 90 do século
passado e a primeira década do século atual, ocorreram fenômenos na América Latina que
passaram despercebidos pela literatura que dispunha acerca das transições. Isso porque,
segundo SANTOS (2010), se detinham à análise do início e término de uma transição, sua
duração e características totalizantes.
Para os povos indígenas, a transição tem duração maior. Isso porque começa com a
resistência ao colonialismo e só termina com o reconhecimento da autodeterminação dos
povos. Para os movimentos afrodescendentes, a transição começa com a resistência à
escravidão e o aprofundamento do colonialismo e do capitalismo que só terá término quando
findado o colonialismo e a acumulação. Para os campesinos, a transição começa com as
independências e com a resistência perante o direito a suas terras de uso comum e as lutas
perante a concentração de terras em mãos da oligarquia. Portanto, esses movimentos
demonstram que as transições de transformação social não são curtas, somente podendo ser
superadas quando da reflexão do conceito de tempo que as permeia, pois a noção linear diz
respeito a ditames da modernidade ocidental. (SANTOS, 2010).

275
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Portanto, a luta dos povos indígenas brasileiros encontra como obstáculo não apenas
as engrenagens do capitalismo que opera em uma sociedade atravessada pela colonialidade
em suas diversas dimensões. O racismo estrutural que está imbricado na dominação colonial
(QUIJANO, 2009) atravessa a existência das tantas etnias nacionais como mais uma forma de
manutenção do status quo que marginaliza e invisibiliza os povos originários.
É dentro desta estrutura racista que se articulam o racismo institucional e o racismo
ambiental. A nível institucional pode-se compreender que o racismo de apresenta como uma
“falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas
por causa de sua cor, cultura ou origem étnica” (GELEDÉS, 2013, p. 17), o que vem a
legitimar condutas excludentes que se dão pela insuficiência ou inadequação do tratamento
conferido institucionalmente aos indígenas.
O racismo institucional, portanto, faz parte de um “mecanismo estrutural que
garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados” (GELEDÉS, 2013, p. 17),
operando a nível das instituições públicas ou privadas que se configuram como engrenagens
da hierarquia racial o que, no caso em questão, se impõe na discriminação e marginalização
do povo Chiquitano.
No que se refere ao racismo ambiental, o povo Chiquitano também se apresenta
como uma parcela oprimida por um recorte sócio-espacial, já que, conforme compreende
Bullard (2005, p. 57) “o racismo é um potente fator de distribuição seletiva das pessoas no seu
ambiente físico; influencia o uso do solo, os padrões de habitação e o desenvolvimento de
infra-estrutura”. Dentro de um contexto capitalista no qual uma pequena parcela se
desenvolve e obtém lucro através da exploração e invisibilização de outros grupos, o desvelar
do racismo ambiental se faz indispensável para uma luta que prese pela justiça social e
ambiental.
Assim, o que pensar então, tratando-se dos movimentos indígenas, quando se almeja
uma transição em que o regresso ao passado ancestral, precolonial, se transforma na versão
mais capacitadora da vontade de futuro, um futuro não no sentido de ser inventado, mas
desproduzido? Como almejar demandas de utopia através da memória, de forma a sustenta-la
na realidade? Tais perguntas revelam as dificuldades da tradição crítica eurocêntrica em
entender o sentido dessas questões bem como a impossibilidade de dar-lhes respostas dentro
do marco epistemológico e ontológico ocidental.

276
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A capacidade em ressignificar19 instrumentos ocidentais, de forma a atuarem à favor


da parcela populacional excluída, se dá por meio das lutas sociais. Nesse sentido, a
refundação do Estado deriva de um projeto de país consagrado na constituição. No caso do
Equador e Bolívia, foi consagrado o princípio do Bem-viver, resultando em direitos da
natureza, entendida segundo a cosmovisão andina da Pachamama (mãe Terra). Isso
demonstra o forte aspecto da plurinacionalidade e as lutas sociais por trás que resultaram na
consolidação constitucional desse projeto.
A plurinacionalidade implica no fim da homogeneidade institucional do Estado no
âmbito interno e externo. Exemplos de novas formulações institucionais na Bolívia:
Assembleia Legislativa Plurinacional; Tribunal Constitucional Plurinacional; Órgão Eleitoral
Plurinacional. No Equador: Corte Constitucional. Rompe-se com a noção ocidental de que
“todo Estado é de direito e todo direito advém do Estado” por meio do constitucionalismo
plurinacional que estabelece que a unidade do sistema jurídico não pressupõe sua
conformidade. A constituição do Equador define a organização do Estado como “Participação
e Organização do Poder”, estabelecendo a “participação na democracia como orientação
central. Na Bolívia, a constituição traz quatro órgãos: Legislativo, Executivo, Judicial e
Eleitoral.
Outro aspecto importante diz respeito à ressignificação da concepção de território
configurado pelo Estado-nação, de origem ocidental. Isso porque, o território nacional passa a
ser o marco geoespacial de unidade e integridade que organiza as relações entre diferentes
territórios geopolíticos e geoculturais, segundo princípios constitucionais de unidade na
diversidade e da integridade com o reconhecimento de autonomias assimétricas. Isso resulta
em plurinacionalidades dentro de um mesmo país.

3. ESTADO PLURINACIONAL, DEMOCRACIA INTERCULTURAL E LUTAS


SOCIAIS

Todas as mudanças até agora mencionadas derivam da ideia de Estado plurinacional


e obrigam uma nova organização do Estado, no que se refere ao conjunto de instituições

19
O sentido aqui utilizado com a palavra “ressignificar” está relacionado a uma atitude crítica do indivíduo em
buscar alternativas em “como não ser governado” (FOUCAULT, 2000) por princípios, em nome de princípios,
em vista de objetivos, por meio de procedimentos que demandam interesses capitalistas que atuam em detrimento
de grupos sociais vulneráveis. Dessa forma, é possível construir um pensamento e práxis críticos que atuam
conjuntamente no sentido de suspeitar, recusar, limitar, medir, transformar, escapar.

277
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

políticas e administrativo-burocráticas de gestão pública e de planificação. Nessa trilha, a


plurinacionalidade é o reconhecimento de que a interculturalidade não resulta de um ato
voluntarista de arrependimento histórico. Trata-se de um resultado advindo de um ato político
deflagrado por grupos étnico-culturais distintos com um passado histórico de relações que,
apesar da inerente violência, abre na presente conjuntura uma janela de oportunidade para um
futuro diferente. Por essa razão, no marco da plurinacionalidade, a interculturalidade somente
se realiza como democracia intercultural20.
A plurinacionalidade é o reconhecimento de que a interculturalidade não resulta de
um ato voluntarista de arrependimento histórico. Trata-se de um resultado advindo de um ato
político deflagrado por grupos étnico-culturais distintos com um passado histórico de relações
que, apesar da inerente violência, abre na presente conjuntura uma janela de oportunidade
para um futuro diferente. Por essa razão, no marco da plurinacionalidade, a interculturalidade
somente se realiza como democracia intercultural.
A construção de uma democracia intercultural de refundação do Estado pressupõe
uma educação que: 1) legitime e valorize; 2) forme participantes para uma cultura de
convivência capaz de superar altos níveis de desconstruções e marcos; 3) prepare a classe
política convencional para a perca do controle do debate; 4) criação de um inconformismo e
rebeldia; 5) que seja orientada para a criação de um novo sentido comum intercultural que
implica outras mentalidades e subjetividades.

CONCLUSÃO

O artigo não objetivou formular respostas aos empasses em que se encontram os


povos indígenas no contexto brasileiro, mas evidenciar a postura crítica necessária em como
pensar instrumentos constitucionais e sua importância enquanto ferramenta emancipadora.

20
Santos (2010) define democracia intercultural como conjunto das seguintes características: 1) a coexistência de
diferentes formas de deliberação democrática, do voto individual ao consenso, das eleições, de lutas por assumir
cargos e suas responsabilidades (a esse aspecto, Santos denomina de “demodiversidade”); 2) Diferentes critérios
de representação democrática (representação quantitativa, de origem moderna, eurocêntrica, ao lado da
representação qualitativa, de origem ancestral, indocêntrica); 3) reconhecimento de direitos coletivos dos povos,
como condição do efetivo exercício dos direitos individuais (cidadania cultural como condição de cidadania
cívica); 4) reconhecimento dos novos direitos fundamentais (simultaneamente individuais e coletivos): o direito à
água, terra, alimentos, recursos naturais, biodiversidade, bosques, saberes tradicionais; 5) direito à educação
orientada a formas de sociabilidade e subjetividades baseadas na reciprocidade cultural: um membro de uma
cultura somente está disposto a conhecer a outro cultura se sente que sua própria é respaldada e isso se aplica tanto
às culturas indígenas como às não-indígenas.

278
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Também foi abordada a postura cautelosa em não reproduzir discursos ocidentais a fim de
não potencializar relações desiguais de poder.
Partindo da realidade do povo indígena Chiquitano, o artigo demonstrou a
importância do exercício da crítica ao discurso tradicional inviável à efetivação de direitos aos
grupos sociais vulneráveis, à exemplo do direito à terra. Tratando-se de um bem de primordial
interesse do capital, a terra configura alvo de conflitos socioambientais.
Instrumentos constitucionais demonstram potencial para fortalecer lutas sociais, à
exemplo da Bolívia e do Equador que adquirem ideologias emancipadoras originárias dos
povos indígenas. Esse movimento emergente vai de encontro ao discurso racionalista
técnico-jurídico constantes na epistemologia de raiz ocidental.
Assim, mostra-se necessário viabilizar as lutas sociais e instrumentos
emancipadores, partindo de uma autocrítica e autovigilância epistemológica para
compreensão dos interesses por trás de cada demanda. Tais instrumentos não são algo dado
ou conquistado, tratam-se de ferramentas de luta para alcance de direitos que estão em
constante movimento e reformulação.

REFERÊNCIAS

BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In: Henri Acselrad, Selene Herculano e
José Augusto Pádua (orgs) Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004.

DOS SANTOS, Theotonio. Teoria da Dependência: balanço e perspectivas. Florianópolis: Ed. Insular, 2015.

FOUCAULT, Michel. O que é a Critica? In: BIROLI, F., ALVAREZ, M.C. Michel Foucault: Historias e destino
de um pensamento. Marilia, UNESP- Marilia- Publicações, 2000.

GELEDÉS, Instituto da Mulher Negra. Racismo Institucional: Uma abordagem conceitual. 2013b. Disponível
em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/FINAL-WEB-Racismo-Institucional-uma-
abordagem-conceitual.pdf. Acesso: 02.07.2017.

MOREIRA DA COSTA, José Eduardo Fernandes. A Coroa do Mundo: religião, território e territorialidade
Chiquitano. Cuiabá, MT. Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 2006.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Clacso, set. 2005, p.
227-278 (Colección Sur Sur). Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/libros/lander/pt/Quijano.rtf

SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado em América Latina: Perspectivas desde una
epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, 2010.

SCHADEN, Egon. Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976 (Biblioteca
Universitária, Série 2ª. Ciências Sociais. V. 7).

279
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

SILVA, Joana Aparecida Fernandes. Relatório Circunstanciado de Identificação e delimitação da Terra


Indígena Portal do Encantado. Brasília: Fundação Nacional do Índio, 2004.

280
BEM VIVER E UBUNTU:
MUDANÇAS DE VALORES NA BUSCA PELO ECOSSOCIALISMO

LEMOS, Walter Gustavo da Silva


Doutorando em Direito pela UNESA/RJ. Professor da graduação do curso de Direito da FCR – Faculdade
Católica de Rondônia e da FARO – Faculdade de Rondônia.

RESUMO

O presente artigo objetiva proceder a abordagem sucinta de alguns problemas ambientais que servem
de pano de fundo para a demonstração de que estamos vivenciando uma crise no modo de produção
capitalista, que pauta sua atuação na produção de bens de consumo, gerando a riqueza e o lucro para
poucos em detrimento da promoção da justiça social e do uso predatório do meio ambiente, sendo
necessária a mudança de visão da produção para que se dê atenção a necessidade da sociedade,
preservando e usando de forma equilibrada a natureza. Na busca pela implementação do
ecossocialismo, é de suma importância a adoção de novos valores que possam garantir uma maior
conexão do indivíduo com sua comunidade e com a natureza, sendo que os valores que o Bem viver e
Ubuntu acabam promovendo, podem auxiliar na implementação de uma sociedade mais justa. Assim,
o artigo promove a análise destes conhecimentos utilizando-se do método de abordagem dedutivo, pelo
uso do procedimento monográfico e de uma pesquisa bibliográfica para, assim, conectar tais ideias e
demonstrar a importância de suas interações no processo de produção ecossocialista.

Palavras-chave. Ecossocialismo; Ubuntu; Bem viver.

ABSTRACT

The present article aims at succinct approaches to some environmental problems that serve as a
background for the demonstration that we are experiencing a crisis in the capitalist mode of
production, which guides its performance in the production of consumer products, generating wealth
and profit for the few at the expense of promoting social justice and the predatory use of the
environment. It is necessary to change the vision of production so that attention is taken to the need of
society, but preserving and using nature in a balanced way. In the search for the implementation of
ecossocialism, it is important to adopt new values that can guarantee a greater connection of the
individual with his community and with nature, and the values that the Well living and Ubuntu end up
promoting can help in the implementation of a society more just. Thus, the article promotes the
analysis of this knowledge using the method of deductive approach, using the monographic procedure
and a bibliographical research, to connect such ideas and demonstrate the importance of their
interactions in the process of ecossocialist production.

Keywords. Ecossocialism; Ubuntu; Well live.

281
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Cada vez mais nosso planeta passa por intempéries, das mais distintas origens, que
causam intensos problemas a todos nós. Seja a intensificação da seca no nordeste brasileiro,
na África subsaariana ou na região entre o México e os EUA; ou na promoção de aumento
dos mares em alguns lugares do Pacífico; ou o aumento dos níveis de chuva em outros pontos
do território terrestre, como na Ásia ou na região sul do Brasil; o aumento do frio durante o
inverno em outros locais; ou o aquecimento dos mares de forma geral, entre outros
problemas.
Ocorre que vivemos um período em que a natureza vem apresentando sinais de
respostas às ofensas que constantemente temos praticado contra o meio ambiente, o que vem
ocasionando estes problemas pontuais em alguns lugares do globo terrestre, em que sempre se
tenta relativizar a sua importância.
Porém, há de se perceber que é crescente a poluição que assola o mundo,
principalmente nas grandes cidades, mas que já é possível se sentir nas zonas rurais, ante o
grande impacto das suas consequências, o que deveria dar início à uma preocupação global
com a questão e seus reflexos no clima e na saúde do ser humano.
Não é possível se ver grandes ações governamentais no sentido de empreender a
defesa da natureza e o combate aos males que lhe são destinados, já que estes atos causariam
um impacto direto na ordem econômica e nos meios de produção que os Estados estão
empreendendo de forma geral.
É claro que não podemos deixar de recordar que a partir dos anos 70, iniciou-se um
período de criação de uma série de normas internacionais realizadas no intuito de demonstrar
a preocupação com o meio ambiente e a diminuição da poluição.
Assim, em 1971 a Unesco promoveu a primeira Conferência sobre o tema, chamada
de “O Homem e a Biosfera”, com o intuito de proceder a discussão sobre as mudanças
climáticas e a poluição do meio ambiente. Já em 1972, inicia-se uma Conferência das Nações
Unidas, em Estocolmo, na Suécia, para que fosse tratada a questão do meio ambiente.
Durante esta Conferência, várias foram as discussões que se tornaram basilares para o
desenvolvimento do direito ambiental internacional como vemos hoje, com a descrição do
princípio do poluidor-pagador.
Já em 1987, a Organização Mundial da Saúde divulgou o relatório intitulado “Nosso
futuro comum”, coordenado pela então ministra da Noruega Gro Brundtland, estabelecendo a

282
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

necessidade de um ecossistema equilibrado para que a saúde dos habitantes do nosso planeta
não sofresse qualquer consequência.
Na ECO-92, é assinada a Convenção Quadro das Nações Unidas, sobre Mudanças
Climáticas, estabelecendo as condições de combate ao aquecimento global e, assim,
formulando princípios de políticas de internacionais coordenadas de mitigação de emissão de
gases de efeito estufa, baseado na responsabilidade dos Estados sobre tais ocorrências.
A partir daquele momento, grande parte da discussão internacional sobre o meio
ambiente tomou o rumo somente da discussão do aquecimento global, ficando outras pautas
menos prestigiadas, já que as soluções que foram se apresentando quase sempre tinham como
objetivo de promover a manutenção dos mesmos meios e modos de produção e de utilização
do meio ambiente. Assim, chegamos em 2017 e uma série de questões precisariam ser
amplamente discutidas, como gestão de água, matriz energética dos países, o comércio e a
nossa dependência do uso do petróleo, o uso de agrotóxicos em alguns países, o
desmatamento, entre outras questões que nos afligem, mas tais discussões não se dão, pois,
para isso, seria necessário discutir o próprio modo de produção capitalista como um todo e a
necessidade de se implementar medidas de modificação do uso dos recursos provenientes do
meio ambiente.
Para a mudança destas realidades se faz necessária uma mudança de valores e do
modo de ver o meio ambiente por perspectivas que são apresentadas pelo ecossocialismo
como meio de modificar este modo de produção capitalista atual, baseado no produtivismo,
onde as pessoas são impulsionadas a consumir cada vez mais e de forma menos racional,
gerando-se necessidades de consumo que não é real.
Tal preocupação produtivista orienta os mecanismos de desenvolvimento para uma
lógica de crescimento individual pelo acesso e o consumo de bens, sendo que sistema não se
preocupa com o meio ambiente e os seus impactos na produção dos bens a serem
consumidos, o que acaba por gerar alguns dos problemas ambientais anteriormente descritos.
Assim, a resolução destes problemas ambientais passa diretamente pela necessidade
de mudança do meio de produção capitalista e dos valores que a sociedade que vivenciam tais
meios impõe, sendo necessário vivenciar um novo modo de viver com a modificação dos
valores de produção e de consumo, pautado em um novo tipo de realidade civilizatória, não
individualista, mas coletiva e preocupada com o meio ambiente, no qual essa se encontra
inserida. (Löwy, 2014)

283
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O ecossocialismo objetiva promover esta mudança de paradigma de modo de


produção não em uma perspectiva socialista como meio de produção, mas como a
preocupação de implementar um meio de produção que respeite o meio ambiente e a sua
preservação. Este pensar nos leva a necessidade de estabelecer novos valores e paradigmas
para a sociedade, sendo que as ideias de Bem viver, apresentadas pelo novo
constitucionalismo latino-americano, e do Ubuntu, filosofia africana de perspectiva
comunitária, lançam-se no intuito de estabelecer estas concepções voltadas a bem-estar social,
pautado na atuação conjugada com a preservação da natureza e da vida comunitária.
Assim, o presente artigo objetiva promover a análise destes institutos
correlacionados, na busca de estudar o ecossocialismo e as perspectivas das mudanças de
valores que este pode estabelecer, de forma a permitir uma melhor correlação do homem com
a natureza, sendo que se faz tal estudo por via do método de abordagem indutivo, se valendo
do procedimento monográfico e de uma pesquisa bibliográfica para examinar tais ideias e
tentar demonstrar que a prática do Ubuntu e do Bem viver podem gerar novos valores em
certa sociedade, na busca por um modo de produção mais equilibrado, socialmente
responsável e sustentável no uso da natureza.

1. OS PROBLEMAS AMBIENTAIS QUE VIVEMOS

A degradação ambiental que vivemos no cotidiano global atualmente, vem desde o


advento do surgimento das atividades agrícolas, tendo um grande avanço com o advento da
Revolução Industrial, atingindo o seu nível máximo de poluição e problemas ambientais no
atual estágio do modo de vida capitalista.
O surgimento da preocupação ambiental surgiu em paralelo a este panorama, sendo
pauta de discussões em todo o mundo sobre uma série de problemas vivenciados, porém, a
principal pauta ambiental levantada hoje é a do Aquecimento Global e das discussões
mundiais sobre as normas e tratados sobre tal tema.
Com o desenvolvimento de uma sociedade industrial e altamente voltada para o
consumo de energia e bens de consumo, patente foi a necessidade de se produzir mais e mais,
para atender a totalidade das exigências deste novo mercado. Conjuntamente com o atual
momento da economia mundial, faz-se surgir o seu outro lado: o aumento da poluição e da
concentração de gases nocivos à saúde na atmosfera, o que acabou gerando o chamado efeito

284
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estufa, entre outros problemas ambientais que vemos nos dias atuais. E, por efeito estufa,
entende-se a concentração de gases na atmosfera que impedem o reflexo dos raios solares,
causando a refração de tais raios de volta para a crosta terrestre e, assim, ocasionando
mudanças climáticas.
Segundo SISTER (2007), tal acontecimento decorre dos “gases que causam o efeito
estufa formando uma espécie de película entre a atmosfera e o espaço, impossibilitando a
reflexão da irradiação solar que provoca o aquecimento do globo terrestre (...)”. Tal efeito
decorre da concentração de vários gases, que se concentram na atmosfera, retendo calor e
raios solares, que retornam a atmosfera, realizando um novo aquecimento da superfície
terrestre, por via da emissão de radiação de ondas longas (infravermelhas) na atmosfera.
Este é um dos grandes problemas que hoje enfrentamos, sendo que também
podemos ver problemas de seca em alguns lugares do mundo, aumento do volume dos mares,
aumento dos níveis de chuva, o aumento do frio durante o inverno em outros locais, ou o
aquecimento dos mares de forma geral, fora os problemas das ofensas reiteradas a fauna e a
flora.
Neste momento histórico, surge a necessidade de promover-se novas alternativas a
este uso exacerbado da natureza e dos recursos ambientais, posto que estas práticas têm
contribuído em muito para o agravamento dos problemas acima apresentados.
Boff versando sobre o tema, assevera que tais problemas derivam diretamente do
modo de produção capitalista e da forma de consumo que este estabelece, quando assevera
que

Devastou e continua devastando inteiros ecossistemas, desflorestando grande parte


da área verde do mundo, envenenando os solos, poluindo as águas, contaminando o
ar, erodindo a biodiversidade na razão de cem mil espécies de seres vivos por ano,
segundo dados do eminente biólogo Ewdard O. Wilson, destruindo a base físico-
química que sustenta a vida e pondo em risco o futuro de nossa civilização,
suscitando a imagem tétrica de uma Terra depredada e coberta de cadáveres e
eventualmente sem nós, como espécie humana? (2015)

Ou seja, a forma que se promove o uso econômico do meio ambiente acaba por
proceder a sua devastação, já que não há um pensamento equilibrado e uso sustentável dos
seus recursos, mas um uso de acordo com as necessidades impostas pelo capital e pelo
mercado, o que faz a natureza ser cada vez mais explorada. Esta mesma ideia é descrita por
Löwy (2014).

285
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Para evitar tais problemas de destruição do meio ambiente e a escassez dos recursos
naturais, é necessária a implementação de uma nova visão econômica, que pense no uso da
natureza de forma equilibrada, na promoção do bem-estar social e na forma efetivamente
sustentável, de forma que seus recursos sejam utilizados para o que for realmente necessário.
Isso passa efetivamente pela necessidade de normas de preservação e uso consciente
do meio ambiente, mas também da promoção de mudanças na forma de explorá-lo, já que
não é mais possível utilizá-lo a partir de um meio de produção predatório e produtivista, que
se pauta na geração de consumo a todo custo para a geração de riqueza, onde grande parte dos
recursos são retirados na natureza de forma não equilibrada e saudável.
Portanto, além de normas que impeçam a propagação destes problemas ambientais,
também se faz necessária a mudança do próprio meio de produção em que vivemos, já que a
continuidade da sua utilização acabará por promover o colapso da humanidade pelo
consumismo excessivo (BOFF, 2015).

2. O ECOSSOCIALISMO

Uma forma de pensar a mudança desta forma de exploração é a implementação de


práticas econômicas pensadas a partir do ecossocialismo, como meio de suplantar o meio de
produção capitalista e o seu meio produtivista de gerar demanda para vender consumo,
promovendo a mercantilização de tudo que possa existir, de forma a gerar lucro para aquele
que produz, não importando a que custo, humano ou ambiental, isso se dá. (SIQUEIRA,
2004)
Assim, o ecossocialismo se apresenta como uma forma de refletir de uma maneira
crítica os meios de produção, de forma a pensar uma convergência entre o pensar ecológico
com o pensar socialista e marxista, já que não é mais sustentável a manutenção da forma de
exploração da natureza do modo hoje vivenciado, sendo necessário um novo modo de
consumo, que permita ao Planeta a continuidade da vida para as próximas gerações.
Neste sentido, é que o ecossocialismo apresenta o caminho de uma revolução
ecológica. Ao definir o que é ecossocialismo, Löwy descreve que

Trata-se de uma corrente de pensamento e de ação ecológica que faz suas as


aquisições fundamentais do marxismo – ao mesmo tempo que o livra das suas
escórias produtivistas. Para os ecossocialistas a lógica do mercado e do lucro –
assim como a do autoritarismo burocrático de ferro e do “socialismo real” - são

286
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

incompatíveis com as exigências de preservação do meio ambiente natural. (2014,


p. 44)

A partir de tal noção, podemos ver que o ecossocialismo encerra em si o


pensamento marxista com a discussão ecológica, sendo necessário suplantar o modo de
produção capitalista que acaba não só propagando a desigualdade entre os indivíduos e
explorando os trabalhadores para a geração de riqueza, como também por proceder a
utilização desregrada e nociva dos recursos ambientais, para a produção dos bens de
consumo. Montibeller Filho ao definir esta ideia, descreve

Ecomarxismo é, em síntese, uma teorização e análise da relação contraditória


existente entre o capital e o ambiente natural, o que constitui a segunda contradição
básica do sistema. Tal inter-relação é assim denominada em razão da sua
semelhança com a relação que o capital tem com o trabalho, esta chamada de
primeira contradição e sobejamente conhecida e extensivamente analisada,
sobretudo por Marx. (2000, p. 108)

Este pensamento é, portanto, a conjugação das críticas marxistas ao capitalismo, mas


sem a manutenção do pensamento produtivista em um modo de produção socialista, já que se
acresce a necessidade de preservação do meio ambiente, de forma que este somente seja
utilizado de forma necessária e equilibrada.
Löwy descreve que o pensamento ecossocialista tem que como objetivo romper
com a ideia produtivista amplamente estabelecida no sistema capitalista, em que a produção é
meio para a geração da riqueza pelo consumo excessivo e a qualquer custo dos bens captados
pela exploração do meio ambiente, ao se manifestar que

Em ruptura com a ideologia produtivista do progresso – na sua forma capitalista


e/ou burocrática – e oposta à expansão ao infinito de um modo de produção e de
consumo destruidor da natureza, tal corrente representa uma tentativa original de
articular as ideias fundamentais do socialismo marxista com as aquisições da crítica
ecológica. (2014, p. 45)

O Manifesto Ecossocialista, no seu item 18, descreve a necessidade de mudança do


modo de desenvolvimento, já que não é possível desenvolver sem preservando os recursos
naturais, posto que o ecossocialismo é

A crítica ecossocialista da matriz produtivista-consumista dos atuais modelos de


desenvolvimento predatórios, embotantes e desumanos se dirige também à proposta
de “crescimento zero” ou do anticonsumismo monástico para o Terceiro Mundo.
Propomos, sim, um redirecionamento da produção-consumo que vise
prioritariamente a superação da miséria, tanto material como espiritual, e uma

287
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

gestão democrática dos recursos. Para os ecossocialistas, a produção não é um fim


em si mesma, mas um meio para a efetivação de uma sociedade igualitária baseada
na radicalização democrática (que combina democracia direta e representativa).

O Ecossocialismo tenta harmonizar as críticas do materialismo histórico e da


ecologia, a partir da crítica ao método de produção somada com a imposição do bem-estar
ecológico coletivo, sendo que estabelece uma nova visão de práxis, a partir da necessidade de
experiências ecológicas comunitárias, coletivas e plurais que possam pensar o meio ambiente
não como um meio para explorar riquezas, mas como meio de convivência conjunta entre os
seres.
Alexandre, ao abordar a questão em análise, descreve que tais práticas devem sair
dos limites individuais para outros limites, quando descreve que

Os ecosocialistas aceitam que existem tanto limites sociais quanto limites


ecológicos em torno do desafio do crescimento econômico. Reconhecem a
necessidade do papel das instituições democráticas de caráter descentralizado, que
sejam essas instituições, capazes de trabalhar idéias como as da auto-gestão
democrática com a participação do Estado exercendo o controle e a regulação dos
interesses sociais, e a da democratização no processo de produção de bens. Além
disso, os ecosocialistas defendem fortemente a promoção de novas atitudes no
relacionamento laboral, como divisão de tarefas e redução da jornada de trabalho
que permitam trabalhos sem riscos à saúde, mais conforto e horas de lazer. (2005,
p. 173)

Portanto, se o sistema capitalista não é capaz de produzir riquezas de forma


equânime e preservar a natureza, o ecossocialismo propõe a realização de uma nova visão ao
uso do meio ambiente, com novas cosmovisões e valores que expressem a integração entre a
coletividade e o meio em que essa se relaciona, estabelecendo novas cadeias de produção e
fontes de energia renováveis e sustentáveis. (LÖWY, 2014)
Não é possível manter as formas de exploração da natureza promovidas pelo sistema
capitalista na transição para um meio de produção socialista, posto que acabaria por se
substituir os meios e não a forma de uso da natureza, já que somente por via práticas
ecológicas sustentáveis, equilibradas, comprometidas com a proteção do meio ambiente que
será possível garantir a fluência da vida em nosso Planeta, já que a manutenção dos mesmos
meios de exploração da natureza acabam por estabelecer a continuidade dos problemas
ambientais anteriormente descritos.
A atuação ecossocialista visa uma mudança de valores, de transformação social,
onde todos os indivíduos conjuntamente buscam a valoração da natureza e do trabalho, onde a

288
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

natureza deve ser vista um ambiente saudável e existente para o bem de todos, sendo que a
relação homem-meio ambiente deve ser harmoniosa e estabelecer a preocupação com a vida
do planeta.
Na Declaração Ecossocialista de Belém (2007) se diz claramente:

A humanidade enfrenta hoje uma escolha extrema: ecossocialismo ou


barbárie…visa parar e inverter o processo desastroso do aquecimento global em
particular e do ecocídio capitalista em geral, e construir uma alternativa prática e
radical ao sistema capitalista. O Ecossocialismo situa-se em uma economia
transformada, fundada nos valores não monetários de justiça social e de equilíbrio
ecológico.

A busca da aplicação do ecossocialismo representa a importância dos movimentos


sociais, a mudança de maneiras de se produzir e a visão que não dá para se reformar o que aí
está, sendo necessário mudar os valores que se inserem as sociedades e, assim, possibilitar
que as experiências de convivência solidária do Bem Viver e do Ubunto tragam concepções
éticas e sociais que possibilitem mudanças profundas na construção de uma sociedade
comunitária, solidária e ambientalmente engajada. Esta revolução passa pela tomada de
consciência da necessidade de se gerar riqueza, criar empregos, tecnologia, conhecimentos e
solidariedade.
Assim, é possível ver a importância desta discussão, sendo que muito desta se passa
pela implementação de novos valores, sendo eles sociais, éticos, jurídicos, econômicos, entre
outros tipos de valorações que podemos vivenciar dentro desta experiência, sendo que o Bem
viver e o Ubuntu são importantes visões no sentido de proceder a mudança do meio de
produção capitalista para um modo de produção que se preocupe com a natureza.

3. BEM VIVER E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

Após a análise da questão pela discussão sobre o ecossocialismo, necessária é a


descrição do pensamento do Bem Viver, a partir de um pensamento comunitário pautado na
correlação do indivíduo com a sociedade em que se envolve, mas que não pode deixar de lado
os elementos naturais como meros bens sujeitos à apropriação, sendo necessária a existência
de um convívio simbiótico entre a sociedade e a natureza que se encontra ao seu redor. Tais
direitos inerentes ao Bem Viver importam na necessidade de garantir proteção à
ancestralidade, ao plurinacionalismo e direitos decorrentes da natureza, já este conceito

289
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

importa na necessidade de que a sociedade onde este se aplica deve conviver


harmonicamente, compreendendo e aceitando as suas diferenças.
As ideias de Bem Viver aparecem nas Constituições do Equador, de 2008, onde
ficou patente a utilização deste pensamento de sumak kawsay, e da Constituição boliviana, de
2009, onde estas normas tratam da questão da relação estabelecida entre as suas sociedades e
a natureza, prezando pela atenção do bem-estar natural como meio equilibrado de
desenvolvimento, onde tais ideais buscam a implementação de um certo bem de vida, em que
a população possa, nos termos do art. 14 da Constituição equatoriana de 2008, “viver em um
ambiente são e ecologicamente equilibrado, que garanta sustentabilidade e bem viver.”
Esta ideia se baseia na necessidade de que todos os seres possam viver
harmonicamente no meio ambiente, de forma a agir com sustentabilidade na exploração das
riquezas que a natureza nos oferece, bem como na atuação de um ideal de vida com
qualidade, equilíbrio e respeito à natureza, onde esta última passa a ser vista como um ser
vivente, sendo, então, considerada como detentora de direitos e deveres para com o restante
dos seres.
Ao assim refletir, a natureza passa a ser vista não somente como uma coisa sujeita à
apropriação, mas como ente personalizado, devendo o desenvolvimento social pautar-se pela
sua adequação aos interesses gerais desta nova personalidade, que sempre buscará a
sustentabilidade como meio de progresso, garantindo a vida, o equilíbrio do meio ambiente,
da biodiversidade e dos seres que a habitam, como também parte da ancestralidade dos seres.
Seguindo com a leitura do teor do mesmo artigo anteriormente descrito da
Constituição equatoriana, há a declaração de ser “de interesse público a preservação do
ambiente, a conservação dos ecossistemas, a biodiversidade e a integridade do patrimônio
genético do país, a preservação do ano ambiental e a recuperação dos espaços naturais
prejudicados. “ (EQUADOR, 2008)
A natureza passa a ser vista não somente como coisa sujeita à apropriação, mas
como ente personalizado, devendo o desenvolvimento social pautar-se pela sua adequação
aos interesses gerais desta nova personalidade, que sempre buscará a sustentabilidade como
meio de progresso, garantindo a vida, o equilíbrio do meio ambiente e a biodiversidade. A
ideia de Bem Viver aglutina-se com a finalidade social do uso da natureza pelo povo que
junto a esta se integra, como uma necessidade de uma atuação conectada do ser humano com

290
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

a natureza como meio de progresso responsável e saudável, como um novo horizonte


direcional.
A partir destas expressões, Zaffaroni (2012) descreve a ideia da Pachamama e o ser
humano, como uma interação do homem com esta natureza, a partir destes novos conceitos
constitucionais latino-americanos, onde aborda uma série de questões, inclusive a necessidade
de que o ser humano respeite os animais dentro desta atuação em Bem Viver. Dussel (2011)
também estabelece a descrição deste pensamento, não se pautando somente na conexão
natureza e sociedade, mas sobre uma perspectiva do homem latino-americano e a sua conexão
com a ancestralidade e os seus elementos culturais pautados no reconhecimento do ser e do
outro. Na mesma esteira, Boff (2000) descreve o seu ethos mundial como a necessidade de
uma atuação conectada do ser humano com a natureza com meio de progresso responsável e
saudável.
Tal pensamento parte da busca de uma nova expressão do pensamento jurídico, um
pensamento do ‘Sul’, latino-americano, o que se relaciona diretamente com as ideias da
Epistemologia do Sul, descrita por Santos (2009), onde este descreve a necessidade do
desenvolvimento do Direito a partir de um marco latino-americano, livrando-se do
pensamento colonialista imposto pelo norte do globo terrestre, de forma a estabelecer um
pensamento descolonial.
Por tal pensamento, objetiva-se descolonizar os discursos produzidos nos mais
vastos campos do conhecimento, para que possamos trazer outras epistemologias para a
conceituação dos institutos jurídicos, principalmente trazendo ao protagonismo ideias de
epistemologias do Sul, a partir de conhecimentos descritos na realidade localizada no
hemisfério sul e de suas vivências próprias, a partir da análise do ser latino-americano, da sua
ancestralidade e sua pluriculturalidade.
A junção de tais conceitos com o direito, fica devidamente clara no art. 71 da
Constituição do Equador que descreve que “Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad
podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza.” (2008).
É patente que esta defesa não é uma questão do Estado, em representação do meio ambiente,
mas de qualquer pessoa, de qualquer nacionalidade, a promoção da defesa da natureza com o
fito de fazer cumprir o que a norma garante.
Como um meio de atuação descolonial, a ideia de Bem Viver vê o ser humano como
um ser conectado com a natureza, com a sua ancestralidade e as nacionalidades ligadas a certa

291
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sociedade, sendo que a conjunção destes fatores, num ambiente local integrado, deve se
pautar na harmonia e equilíbrio no uso do meio ambiente, buscando um desenvolvimento
econômico que não integre e preserve o seu entorno.
Abordando a questão do Bem Viver, Gudynas e Acosta acabam por promover não
só a descrição da ideia de bem viver, como também conectá-lo a necessidade de
desenvolvimento com sustentabilidade e responsabilidade social e ecológica, quando descreve
ser esta “una expresión de un conjunto de derechos, y que para asegurarlos es indispensable
encarar cambios sustanciales en las estrategias de desarrollo. (...) que tensiona el concepto de
desarrollo con una propuesta a ser construida, el buen vivir.” (2011, p. 75)
O Bem Viver importa em aglutinar a sua finalidade social e sustentável para
utilização da natureza, já que há uma atuação conectada do ser humano com a natureza com
meio de progresso responsável e saudável, como um novo horizonte direcional para a sua
promoção. Os conceitos ora lançados objetivam a formação de uma concepção de justiça que
assenhore à dignidade do ser humano, a necessidade de respeito a natureza e a sua
sustentabilidade, pela imperatividade de que desta interação do homem com esta natureza se
estabeleça uma vida em conjunto, sendo que a partir destes novos conceitos constitucionais
latino-americanos, inclusive a necessidade de que o ser humano respeite a fauna e a flora
nesta atuação em Bem Viver, a natureza necessita de respeito e não pode ser usurpada pelo
simples supérfluo e banal, mas somente pode se apropriar desta por algo que importe em
necessidade.
Mas a utilização do Bem Viver importa no ser humano se conectar diretamente com
a natureza, com a Pachamama, agindo socialmente integrado ao seu ambiente local,
conectando-se, a partir disso, na formação da sua concepção do que seja justo.
Se o Bem Viver nos traz a noção da natureza como sujeito de direitos, isso nos leva
a compreensão de que nada natural deva ser apropriado, desde que não seja para o equilíbrio
do próprio desenvolvimento sustentável deste sujeito e para a sua relação direta com as
pessoas e a sociedade ao seu entorno, já que a soma destes sujeitos formam um todo
simbiótico que não pode desenvolver senão de forma a sustentar equilibradamente a soma
formada.
Sobre este tema, ARON ao falar sobre a importância do ideário de bem viver com
meio de contraposição ao individualismo da vida moderna, descreve que

292
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Deste modo, o ser humano deixa de ser o centro do universo e passa a integrar a
natureza. A relação do indivíduo com a Pachamama passa a ser outra, a qual
renuncia o ideal eurocêntrico de desenvolvimento, provocando uma verdadeira
transformação no direito, indicando uma tendência ecocêntrica. Trata-se de uma
epistemologia própria, que reivindica a prática de novos conceitos, fundada na
convivência harmônica e interdependente do ser humano com a natureza. (2015)

Assim, o Bem Viver busca que o ser humano perceba que não é possível que
“outros seres humanos possam tratar seu semelhante com desprezo, bem como uma
perspectiva externa, na qual permite o Estado produzir uma série de ações que violam a igual
dignidade,” (SOUSA, 2013) o que também não permitiria que tal tipo de trato ocorresse em
face dos elementos naturais.

4. UBUNTU

Um antigo pensamento ético africano, derivada das práticas dos povos zulu e xhosa,
onde se exprime a ideia de correlação entre o indivíduo e a comunidade ao qual este pertence,
sendo que Luz (2014) descreve como tal pensamento de “uma sociedade sustentada pelos
pilares do respeito e da solidariedade faz parte da essência de Ubuntu, filosofia africana que
trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras. “
O termo Ubuntu pode ser traduzida como “eu sou porque nós somos”, na
demonstração de uma consciência pessoal que é afetada quando seus semelhantes são
diminuídos, oprimidos, o que impõe a ideia de que o ser humano não é uma ilha, sendo
essencial da natureza humana agir com compaixão, partilha, respeito e empatia (LUZ, 2014).
A origem dessa práxis é descrita por alguns como associada à África Subsaariana e
às línguas bantos (grupo etnolinguístico localizado principalmente na África Subsaariana),
como a ideia de prática do respeito mútuo como conduta social básica, sendo esta máxima
absorvida pelos povos zulus no desenvolvimento de suas práticas religiosas e tradicionais.
Assim, o Ubuntu é um sistema de crenças africanas, que estabelece uma ética
coletiva, pelo desenvolvimento de um pensamento humanista espiritual que se pauta por
atitudes de altruísmo, fraternidade e colaboração entre os seres humanos, que devem se
preocupar uns com os outros.Nas práticas dos povos xhosa, há uma premissa popular que
descreve “Umuntu Ngumuntu Ngabantu”, que significa “uma pessoa é uma pessoa por causa
das outras pessoas”, que é uma ideia que se relaciona diretamente com a ideia da filosofia
Ubuntu.

293
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Para o Ubuntu, os membros de uma comunidade devem pensar na comunidade em


detrimento de suas vantagens pessoais, já que mais importante é o bem-estar do grupo, pois
para que “uma pessoa seja feliz será preciso que todas do grupo se sintam felizes. Estamos
conectados uns com os outros e essa relação estende-se aos ancestrais e aos que ainda
nascerão. “ (DOMINGUES, 2015)
Este pensamento objetiva dar a noção de integração entre os povos de certas
comunidades, de forma que se estabeleça a compreensão de unidade e humanidade. Shutte
discorre sobre isso ao dizer que

O conceito de UBUNTU tem se tornado para mim a chave para responder essas
questões. A palavra UBUNTU significa humanidade. O conceito de UBUNTU
encorpa um entendimento do que é ser humano e o que é necessário para que seres
humanos cresçam e encontrem satisfação. É um conceito ético e expressa uma
visão do que é valioso e do que vale a pena na vida. (2001, p.10-11)

Assim, Ubuntu parte do respeito mútuo, de forma geral e irrestrita, estando


devidamente ligado ao sentimento de pertencimento da comunidade à sua terra e a sua
preservação. Gera-se com isso um pensamento filosófico africano moderno de expressão viva
de uma alternativa ecopolítica, partindo da vigilância ecológica, da dignidade humana e da
unidade como elementos agregadores destas noções de Ubuntu. (DOMINGUES, 2015)
O Ubuntu é um pensamento holístico de reconhecimento da interconectividade e
interdependência das relações humanas, a partir de diálogos inter-religiosos e tradicionais de
vários povos daquela região, que vão descrever o respeito entre os indivíduos como condição
para o desenvolvimento da comunidade, valorizando o consenso, mas também respeitando as
particularidades e a ancestralidade dos indivíduos.
O Ubuntu se presta a promover a formação de uma filosofia, uma prática ética,
humanista e humanitária, de respeito e valorização dos elementos tradicionais de religiosidade
comunitária, para o desenvolvimento de práticas públicas de fraternidade, comunhão e
reconciliação, que influenciam na religião, na política e nas condutas sociais.
Segundo o Arcebispo Desmond Tutu

Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para as outras, apoia as outras,
não se sente ameaçada quando outras pessoas são capazes e boas, com base em
uma autoconfiança que vem do conhecimento de que ele ou ela pertence a algo
maior que é diminuído quando outras pessoas são humilhadas ou diminuídas,
quando são torturadas ou oprimidas. (2000, p.21-22)

294
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A partir desta ideia de abertura e disponibilidade das pessoas para com as outras se
forma uma compreensão de responsabilidade coletiva a influenciar os seus praticantes no
desenvolvimento das suas ações sociais. Shutte promovendo uma crítica a ampla utilização da
filosofia Ubuntu como meio de incluí-la e várias discussões centradas na África do Sul, mas
descreve a necessidade de que esta prática seja utilizada na compreensão da reconciliação e
construção de uma nova sociedade sul-africana.

A ética, como um ramo da filosofia, é sempre crítica. Então o que estou


apresentando é uma interpretação crítica de ambas as tradições, a africana e a
europeia. Mas meu objetivo final é mais criativo do que crítico. Eu quero criar e
aplicar uma ética de UBUNTU que seja baseada nas intuições universais genuínas
dos pensamentos europeu e africano e, assim, como as próprias intuições podem ser
reconciliadas, será possível reconciliar também os diferentes elementos de uma
nova cultura sul-africana. (2001, p.11)

Assim, é bastante clara a importância da ideia Ubuntu para o processo pós-apartheid,


pela sua utilização nos procedimentos de busca da verdade e estabelecimento da reconciliação
e reparação dos atos de violência realizados por aqueles que promoveram a política racial
discriminatória naquele país.
No processo sul-africano se formou a Comissão da Verdade e Reconciliação, criada
pela Lei da Promoção da Unidade e Reconciliação Nacional de 1995, que objetivava o
registro dos casos de violações de Direitos humanos entre os anos de 1960 a 1994, para a
promoção da reconciliação e os demais atos necessários. A Comissão era dividida em Comitê
de Violação de Direitos Humanos, o Comitê de Anistia e o Comité de Reparações e
Reabilitação. (OLIVEIRA; CARMO, 2015)
Todos os comitês utilizaram o Ubuntu, importando na necessidade das comunidades
onde estes estavam realizando os seus trabalhos apresentarem suas reclamações, o que levava
com que os acusados pela comunidade se apresentassem e, então, seriam ouvidos e
descrevendo as suas razões das práticas realizadas, para só, então, poderem pedir perdão pelos
atos cometidos, onde, caso os ofendidos aceitassem, ocorreria a anistia para aquelas acusações
(ROSE; SSEKANDI, 2007). O pensamento sob o qual foi criada a Comissão era de uma
Justiça restaurativa e de conciliação (BATISTA; BOITEUX; HOLANDA, 2010).
Neste sentido, Pinto (2007, p.405) descreve a ideia de que o Ubuntu foi utilizado nos
procedimentos de Justiça de Transição na África do Sul, como a expressão da necessidade de
se aplicar aos trabalhos realizados a compreensão do perdão, da harmonia e solidariedade

295
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

com a implementação deste conceito, gerando um espírito coletivo de união e reconciliação


entre todos.
Isso é corroborado por outros pensadores, que avaliaram o caso da África do Sul,
onde foi descrita a nítida influência do Ubuntu no processo de reconciliação, por via da busca
da verdade, da concessão do perdão e na promoção da paz e do bem-estar social a todos,
como é descrito por Redonnet, como se vê

Na tradição do sul-africano, a reconciliação é expressa através do ubuntu, que é um


valor baseado na inquietação humanista e da partilha pela comunidade, o que
orientou a Comissão da Verdade e Reconciliação, que serviu como referência para
o objetivo nacional de reconstrução e reconciliação. J. Y. Mokgoro, juiz do
Tribunal Constitucional da África do Sul, mostrou também que este princípio
filosófico fundamental que é o ubuntu, marcou decisivamente a própria norma, já
que a Constituição de 1993 trouxe a inclusão do direito aborígene ao novo quadro
constitucional. Baseado na reconciliação, o ubuntu estava dentro do espírito
buscado nas leis. (2001, p.484)

A aplicação do Ubuntu fica nítida, já que muitos pareciam buscar saídas para a
punição e aplicação de sanções, se para os grupos ofendidos houvesse a reconciliação, já que
tal prática transformava a sociedade sul-africana numa sociedade que buscava a unidade.
O pensamento de Shutte, bem demonstra que a função pensada pelo Ubuntu não se
afasta das aplicações institucionais, mas sim devem se aplicar a tais instituições como
representação dos elementos tradicionais da cultura sul-africana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este estudo, procedemos uma abordagem de alguns problemas que


vivenciamos em relação ao meio ambiente, para embasar a ideia trazida de ecossocialismo,
como meio de produção equilibrado e coletivo na produção de bens que atendam a todos, mas
que não se baseia em uma atuação produtivista e sim pautada pela preservação e uso
consciente dos recursos naturais, já que o homem está inserido na natureza e não pode viver
sem ela, sendo necessária a mudança dos paradigmas do modo de produção que hoje se
vivencia.
O que se vê no modo capitalista é o desenvolvimento de uma economia calçada no
individualismo, no fomento exacerbado ao consumo e na geração de lucro na produção de
bens de rápida obsolescência, o que gera uma produção constante e exploratória dos bens
naturais. Este modo de produção não é sustentável, já que usa o causando, a devastação do

296
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

meio ambiente, escassez de recurso e desaparecimento de espécie, promovendo um estado de


crise que nos leva a necessidade de mudança deste modo de produção para o ecossocialismo,
pautado na fusão do universo marxista e as questões ecológicas, onde a pauta da necessidade
de preservação que se associa a uma sociedade socialmente justa e ambientalmente
equilibrada.
Assim, é necessária uma mudança de valores das sociedades que passam a aplicar o
ecossocialismo, sendo que o Bem viver e o Ubuntu são importantes visões no sentido de
proceder esta conversão de padrões para um modo de produção que se preocupe com a
natureza. O Bem viver e o Ubuntu são valores a se pensar uma sociedade que objetiva colocar
em primazia a coletividade e a sua conexão com o meio ambiente.
O Ubuntu, valor ético africano, que parte da integração do indivíduo com o seu
povo, em uma visão coletiva e não do próprio indivíduo e daquilo que se expressa no outro.
Em decorrência do espírito de união, fraternidade e humanitarismo que o Ubuntu carrega
consigo, já que esta tradição holística importou na criação de um ambiente propício ao
reconhecimento da interconectividade e intersubjetividade entre os indivíduos.
Já o Bem viver, valor jurídico estabelecido no novo Constitucionalismo latino-
americano, prega o apreço pela vida comunitária, o respeito ao próximo e a Pachamama,
pautado em um forte sentimento de interdependência e reciprocidade entre os seres, pois
somente é possível vivenciar a plenitude da condição humana se devidamente conectada ao
meio ambiente em que estamos inseridos.
Assim, ambos valores estabelecem a formação de um discurso de mudança de
cosmovisão, para que o homem se integre à natureza e a coletividade ao seu entorno, fugindo
do caráter individual que impregna este discurso e enlaçando esta discussão em abordagens
comunitárias e inclusivistas, o que são pautas lançadas pelo ecossocialismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRE, Agripa Faria. O papel dos atores sociais do ambientalismo na reorganização das políticas
públicas do Estado brasileiro. Civitas – Revista de Ciências Sociais, v. 5. n. 1, jan.-jun. 2005.

ARON, Ananda. O paradigma do “Bem viver” e a necessidade do reconhecimento dos Direitos da natureza.
2015. Disponível em: http://unisinos.br/blogs/ndh/2015/03/24/o-paradigma-do-bem-viver-e-a-necessidade-do-
reconhecimento-dos-direitos-da-natureza/. Acessado em 08/10/2017.

BATISTA, Vanessa Oliveira; BOITEUX, Luciana; HOLANDA, Cristina Buarque de. Justiça de Transição e
Direitos Humanos na América do Sul e na África do Sul. Revista da OABRJ, v. 25, n. 2, p. 55-75, 2010.

297
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

BOFF, Leonardo. Ethos Mundial: Um consenso mínimo entre os humanos, Brasília, Letraviva, 2000, p. 90.

BOFF, Leonardo. O ecossocialismo: um projeto promissor. 2015. Jornal do Brasil: Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2015/04/27/o-ecossocialismo-um-projeto-promissor/. Acessado em
02/10/2017.

DOMINGUES, Joelza Ester. “UBUNTU”, o que a África tem a nos ensinar. Blog Ensinar História, 2015.
Disponível em http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/ubuntu-o-que-a-africa-tem-a-nos-ensinar/. Acessado em
26/04/2017.

DUSSEL, E. Filosofia de la liberación. México: Fondo de Cultura Económica, 2011.

EQUADOR. CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA DEL ECUADOR. 2008. Disponível em


http://www.derechoecuador.com/Files/images/Documentos/Constitucion-2008.pdf. Acesso set/2017.

GUDYNAS, Eduardo; ACOSTA, Alberto. El buen viver mas allá del desarrollo. Qué Hacer, nº 180, 2011, Ed.
Desco: Lima. pág. 70-81

LÖWY, Michael. O que é ecossocialismo? 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 128.

LUZ, Natália da. Ubuntu: a filosofia africana que nutre o conceito de humanidade em sua essência. 2014.
Disponível em: http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/ubuntu-filosofia-africana-que-nutre-o-conceito-de-
humanidade-em-sua-essencia. Acessado em 01/10/2017.

MONTIBELLER-FILHO, Gilberto. Ecomarxismo e capitalismo. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis:


EDUFSC, n.28, p.107-132, out. de 2000.

OLIVEIRA, Érica Patrícia Barbosa de; CARMO, Erinaldo Ferreira do. África do Sul: pós-apartheid e Comissão
de Verdade e Reconciliação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4215,15 jan 2015.
Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/29685>. Acesso em: 08 abril 2017.

REDONNET, Jean-Claude. L’idée de réconciliation dans les sociétés multiculturelles du Commonwealth: une
question d’actualité? Estudos Ingleses, 4/2001 (Volume 54), p. 479-496. Disponível em
http://www.cairn.info/revue-etudes-anglaises-2001-4-page-479.htm. Acessado em 20/11/2016.

ROSE, Cecily Rose; SSEKANDI, Francis M. A Procura da Justiça Transicional e os Valores Tradicionais
Africanos: Um Choque Civilizações – O Caso de Uganda. Sur – Revista internacional de Direitos Humanos, nº
7, ano 4, 2007, p. 101-127.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.

SHUTTE, A. Ubuntu: An ethic for a New South Africa. Pietermaritzburg: Cluster Publications, 2001.

SIQUEIRA, Holgonsi Soares Gonçalves. A ideologia do Produtivismo. 2004. Disponível em:


http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/produtividade.html. Acessado em 02/10/2017.

SISTER, Gabriel. Mercado de carbono e Protocolo de Quioto. Rio de Janeiro: Elseveier, 2007.

SOUSA, Adriano Corrêa de. O novo constitucionalismo latino-americano: Um estudo comparado entre o Bem
Viver e a Dignidade da pessoa humana nas culturas jurídico-constitucionais da Bolívia e do Brasil. Dissertação
(Mestrado em D. Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade Federal Fluminense. 2011. pág. 111.

TUTU, Desmond. No future without forgiveness. New York: First Image Press, 2000.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La pachamama y el humano. Buenos Aires: Colihue, 2012.

298
Grupo de Trabalho 06

POLÍTICA, SUBJETIVIDADE
E VIDA COLETIVA:
RESISTÊNCIA E MOVIMENTOS
SOCIAIS

ccxcix
O DIREITO ACHADO NA RUA
COMO UMA PERSPECTIVA PARA A CONSTRUÇÃO
DE UM TRATADO VINCULANTE
SOBRE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

FERREIRA, Livia Fazolatto


Estudante de mestrado do Programa de Direito e Inovação da UFJF
ROLAND, Manoela Carneiro
Professora do Programa de mestrado em Direito e Inovação da UFJF
SENRA, Laura Monteiro
Estudante de mestrado do Programa de Direito e Inovação da UFJF

RESUMO

O presente artigo aborda a corrente de pensamento conhecida como “Direito Achado na Rua”, que tem
como ponto central a reflexão sobre a importância de se construir o direito para além das instituições
legalmente encarregadas de sua positivação, mas partir de uma formação plural e participativa da
sociedade. A partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema, o trabalho, de cunho exploratório,
pretende trazer essa temática para o âmbito da discussão sobre a formulação de um instrumento
internacional vinculante regulador da atuação de empresas transnacionais no tocante às violações de
direitos humanos que ocorrem em função do desempenho de suas atividades. Busca-se ressaltar a
necessidade de que o documento, que está sendo construído tanto na ONU, quanto a partir de
mobilizações da sociedade civil, seja pensado a partir de uma lógica crítica de direitos humanos, que
coloca a sociedade como ator principal no debate.

Palavras-chave. Direito Achado na Rua; Direitos Humanos e Empresas; Tratado vinculante sobre
Direitos Humanos e Empresas.

ABSTRACT

This article presents the line of thought known as “Law Found on the Street” that has as a bottom line
the reflection about the importance of building the law beyond the institutions legally in charge of its
positivation, however, from a plural and participative formation of the society. Out of a bibliographic
revision, this work, with an exploratory bias, aims to bring this subject for the discussion about the
formulation of an international binding instrument that regulates the activity of the transnational
corporations concerning human rights violations that occurs for its activities. It points that the
document which is building both in the UN and for the civil society, must be think from a critical
perspective of human rights that considers the society the central actor of the debate.

Keywords. The Law Found on the Street; Human Rights and Business; Binding-treaty on Human
Rights and Business.

300
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O termo Direitos Humanos, entendido a partir de uma perspectiva crítica, é


considerado paradoxal, já que é encontrado em grande parte dos códigos, especialmente
ocidentais, trazendo consigo um grande simbolismo, porém, completamente destoante do que
ocorre na realidade.
O autor Costas Douzinas (2009) faz uma análise sobre esse caráter contraditório ao
mostrar que o termo combina a ideia de direito e moralidade. Sob o manto de lei, que possui
prescrições objetivas e abstratas, bem como depende do posicionamento ideológico dos
encarregados de sua elaboração, há a possibilidade de que os indivíduos busquem realizar
seus direito e, ao mesmo tempo, sofram limitações. Enquanto pretensões morais, por sua vez,
pode ser que determinado “direito” seja moralmente válido, mas não se encontre formalmente
contemplado no ordenamento jurídico. Desse modo, os direitos humanos, mesmo sendo
conferidos às pessoas por conta de sua humanidade, dependem de uma vontade política para
estarem dispostos no arcabouço legal e, muitas vezes, serem observados e respeitados.
Além disso, o autor ainda traz o argumento de que os direitos humanos são
considerados neutros e racionais, acima das políticas e prioridades estatais, acarretando em
um enfraquecimento do vínculo dos direitos com bens humanos relevantes. Segundo
Douzinas: “falar de direitos humanos tornou-se uma maneira fácil e simples de descrever
complexas situações históricas, sociais e políticas (...)” (2009), porém, faz-se fundamental
entender que o mesmo termo é usado de forma heterogênea, por diferentes atores, por vezes,
até mesmo antagônicos, e com diferentes propósitos.
Para o autor Boaventura de Sousa Santos (2013), quando se trata de direitos
humanos, é necessário entender que a hegemonia do termo como linguagem de dignidade
humana convive com a realidade perturbadora de que a maioria de população não é sujeito de
direitos humanos. Dessa forma, a busca por uma concepção contra-hegemônica, que é
fundamental, deve começar a partir da forma como eles são convencionalmente entendidos,
ou seja, como vinculados a uma matriz ocidental e liberal.
Para que essa concepção seja buscada, o autor considera necessário, além de um
trabalho teórico de construção alternativa dos direitos humanos, com o intuito de retirar do
termo a ambiguidade que garante um consenso, a ideia de construção a partir de um trabalho
dos movimentos e organizações sociais, no sentido de que haja uma representatividade

301
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

qualitativa, em que diferentes frentes, nas quais se incluem as minorias, sejam ouvidas e
participem da construção do conceito.
O presente trabalho se estrutura em consonância com essas ideias, no sentido de
trabalhar, primeiramente, com o termo direitos humanos sob uma lente crítica, mostrando as
questões envolvidas por trás de sua utilização, bem como ressaltando a necessidade de se
buscar sua reconstrução e ressignificação, que se desprenda de um discurso vazio a serviço
das esferas dominantes de poder e assuma contornos práticos, libertários, democráticos e
imbuídos de luta.
Para tratar dessa questão, foram trazidas as correntes de pensamento chamadas
“Direito Insurgente” e “Direito Achado na Rua”, sendo dado destaque à última, como
perspectivas de buscar uma construção do direito que tenha real compromisso com as
discussões que são travadas no seio da sociedade, de forma que a produção do direito seja em
conformidade com as manifestações populares e tenha um caráter verdadeiramente
democrático, plural, libertário e que abarque de forma concreta os direitos humanos, a partir
do respeito às particularidades dos sujeitos.
A partir disso, foi abordada a temática de direitos humanos e empresas, em que se
buscou fazer um breve histórico de como as discussões em torno desse tema tiveram início no
cenário mundial e passaram a ser tão relevantes no presente contexto capitalista, chegando ao
ponto de haver a necessidade de se produzir um instrumento internacional juridicamente
vinculante, que regule as práticas das transnacionais, com o intuito de coibir possíveis
violações aos direitos humanos.
A ideia central do trabalho reside em ressaltar a importância de construção do
tratado que efetivamente leve em conta e valorize as discussões sociais, conforme preceitua o
“Direito Achado na Rua”, mesmo que, nessa corrente, haja um enfoque na busca por uma
alternativa de produção do direito no âmbito do Estado. É possível, no entanto, transportar
essa ideia para esse contexto de produção do tratado sobre direitos humanos e empresas, em
que há uma frente de discussão correndo em paralelo à institucional, composta pela sociedade
civil, centros acadêmicos e demais atores engajados com o tema.
De cunho exploratório, o presente trabalho é fruto de uma revisão bibliográfica
sobre o tema de direitos humanos, encarado sob uma perspectiva crítica, com enfoque nas
produções acerca do “Direito Achado na Rua”, produzidas pelo centro de pesquisa com o
mesmo nome, da Universidade de Brasília. Além disso, abordagem da temática de direitos

302
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

humanos e empresas foi trazida a partir das discussões produzidas no âmbito do Homa –
Centro de Direitos Humanos e Empresas, da Universidade Federal de Juiz de Fora, que
trabalha com o tema de direitos humanos e empresas a partir de uma perspectiva crítica e que
abarque a participação de diferentes atores na construção desse campo de conhecimento.

1. UMA PERSPECTIVA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS

Uma abordagem interessante para compreender o termo Direitos Humanos é feita


pelos autores José Geraldo de Sousa Junior e Antonio Escrivão Filho (2016), no sentido de
separar a expressão e trabalhar com o sentido de cada uma das palavras de forma
independente, para que seja possível uma compreensão mais abrangente do termo.
Em relação à palavra Direito, os autores mostram que houve uma limitação, no
contexto do Estado Moderno, em seu significado, sendo considerado apenas uma “noção de
ciência das leis, composta de normas estatais dotadas de sanção e imperatividade” (SOUSA
JUNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016). Além disso, a partir da abordagem de Lyra Filho
(1982), pode-se observar que a concepção de Direito foi sintetizada basicamente nas
ideologias de jusnaturalismo e juspositivismo 1, ou, diante de outra abordagem, o jurídico se
resume à dicotomia de sistemas do commom law e do civil law. De qualquer modo, essas
formas reducionistas levam em conta apenas a identificação do Direito como Lei, não
reconhecendo “como jurídicas as normatividades constituídas noutras dimensões do social,
fora ou até contra as disposições que daí emanam” (SOUSA JUNIOR; ESCRIVAO FILHO,
2016).
Já em relação ao termo Humano, percebe-se que não há um consenso, mesmo que, à
primeira vista pareça ser uma característica comum a todos. É importante observar, antes de
tudo, que a força cultural é um fator de destaque para o reducionismo do termo, já que,
através de crenças, sejam elas religiosas, políticas, científicas ou filosóficas, as respostas e

1
Em sua obra, “O que é direito?”, o autor Roberto Lyra Filho (1982) aborda a discussão sobre as diferenciações
entre as duas das principais ideologias presentes no campo do Direito, que são o jusnaturalismo e o positivismo.
Ao trazer este último, o autor mostra ser a sua essência a ordem estabelecida, no sentido de que as normas
positivadas traduzem o alcance da justiça, sendo o limite máximo desta, definindo padrões de conduta com a
previsão de sanções individualizadas e seus meios de aplicação. Esse ordenamento é fruto do monopólio estatal,
que é povoado por classes e grupos dominantes, que produzem a estrutura da norma com base em sua organização
social e repelem todas as formas que com ela conflitam, não sendo consideradas válidas dentro do ordenamento
vigente. O Estado, nesse entendimento, seria a expressão da classe dominante.

303
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

concepções de mundo diferem de indivíduo para indivíduo e de uma coletividade para outra,
transmitindo a ideia, para uns, de que o outro não se encaixa em sua concepção de Humano.
Dessa forma, seria mais plausível admitir a diversidade da conceituação do termo, já
que é temeroso tentar estabelecer um consenso para a sua definição que não termine por
deixar de lado características inerentes a determinado povo ou cultura, impondo, dessa forma,
um modelo que não abarque todas as inúmeras formas de sociedade e acabe por perpetuar um
padrão de exclusão, como é possível notar com a imposição do padrão ocidental de sociedade
aos demais povos do mundo.
Com essas colocações, percebe-se que não é tarefa fácil estabelecer um consenso
sobre o que seriam os Direitos Humanos, se eles deveriam ser considerados a partir de uma
concepção superior e abstrata cuja marca seria a universalidade, somente esperando que a
razão humana trate de entender como devam ser realizados. Por outro lado, se devem ser
encarados como algo inerente à natureza e à humanidade, tidos como completos e plenos,
apenas à espera de serem desvendados pelos sujeitos. Ou, ainda, serem os Direitos Humanos
provenientes de uma razão mística e superior, tido como uma essência divina inscrita no
coração de cada ser humano, revestida de caráter absoluto e universal (SOUSA JUNIOR;
ESCRIVAO FILHO, 2016).
Além dessas concepções, é comum encontrar a compreensão do termo com base nas
disposições das normas de direito internacional, consubstanciados, por exemplo, na
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Esse tipo de fundamentação, porém,
não se mostra adequado, na medida em que, apesar de documentos desse tipo traduzirem
processos históricos de combate a dominações e violações, há a questão da matriz civilizatória
envolvida em seu bojo, já que as nações tidas como civilizadas não levam em consideração a
carga cultural dos povos que não se encaixam nesse padrão, declarando seus direitos como
universais.
Seja qual for a noção escolhida, importa verificar que essas concepções dos Direitos
Humanos os trazem como uma forma alheia à ação do homem, estando, portanto, fora de um
contexto social e histórico. Com essa descontextualização, os Direitos Humanos são
utilizados como estratégia em favor do sistema capitalista, se tornando ferramentas úteis a
proporcionar uma sensação de satisfação de direitos apenas com a mera positivação destes,
gerando, dessa forma, um efeito imobilizante e de ordem, que tem como consequência a

304
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

redução da busca pela justiça social (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016 apud
LUÑO e RUBIO, 2014).
Com isso, aqueles Direitos Humanos que ainda não se encontram na esfera da
positivação e são excluídos por carência de força, especialmente econômica e política, ficam à
margem do ordenamento jurídico e, por isso, não são considerados direitos, tendo sido as
lutas para que emergissem, inclusive, criminalizadas e desqualificadas. Isso pode ser
observado com clareza na luta pelo reconhecimento dos povos indígenas, mulheres,
população sem-terra, entre outros, negando todo o processo de surgimento e desenvolvimento
destes. Nas palavras de Sousa Júnior e Escrivão Filho:

Assim, o direito positivado assume a condição de fundamento enquanto os


processos de lutas sociais que produziram a positivação como resultado são
retirados da história. É dessa forma, portanto, que se constrói uma noção abstrata de
Direitos Humanos, identificando-os com princípios e normas jurídicas que, apesar
de previstas, não estão ao alcance de sujeitos coletivos de direito, ao passo que uma
série de direitos ainda não previstos, sequer podem ser reivindicados. (2016).

O prof. David Sánchez Rubio (2014) aborda o tema dos Direitos Humanos
ressaltando que os indivíduos concebem o termo de forma dissociada aos processos sócio-
históricos de constituição e de significação, na medida em que a busca por sua efetividade se
reveste nas políticas públicas ou nas decisões judiciais, deslegitimando outras formas de
implementação de um sistema de garantias. A isso se soma o entendimento reduzido sobre a
democracia, que é percebida como representação partidária e eleição, sendo essa herança de
despolitização na seara dos Direitos Humanos a causa de uma construção fragilizada do poder
popular, tendo em vista que, a partir da visão tecnicista imprimida ao referido termo, elimina-
se a dimensão combativa e libertadora típica de movimentos sociais que exercitam seu poder
de luta frente a contextos de dominação e exploração.
Assim, deve-se considerar que o sistema de garantia dos Direitos Humanos deve
assumir contornos concretos, não se confundindo com declarações e ideias, mas sendo
resultado de um processo de criação pela sociedade, em uma trajetória de emancipação
humana. As concepções contra-hegemônicas de Direitos Humanos surgem em contraposição
a estas teorias, pois afirmam o caráter histórico e cultural destes como processos de combate
às violações e luta pela efetivação de direitos não observados ou não previstos.

305
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. O DIREITO INSURGENTE E O DIREITO ACHADO NA RUA

O movimento chamado Direito Insurgente, conforme apresenta Baldéz (2010), diz


respeito às práticas insurgentes amplas contra o direito estatal por parte de alguns setores
organizados de oprimidos e de operadores do direito comprometidos diante das lutas sociais,
podendo ser entendido como manifestações e práticas jurídicas operadas no interior das
comunidades marginalizadas pelo direito positivado. Ele encontra força nas lutas concretas
dos trabalhadores frente à exploração de uma sociedade capitalista, podendo ser traduzido
como o rompimento com o direito classista que é aplicado indistintamente, sem levar em
conta qualquer particularidade cultural, social, econômica e politica.
Esse movimento é fruto de uma mudança no contexto latino-americano na década
de 60, que se encontrava em uma conjuntura política complexa caracterizada por um
pensamento além da matriz positivista, marcado pelo desenvolvimento de reflexões jurídicas
críticas que almejavam a reinserção do direito no campo político, tendo como base a crítica
marxista e a atitude militante.
O Direito Insurgente pode exercer grande influência no aparato estatal e vir a trazer
contornos permanentes, passando a fazer parte das ações legislativas, executivas e judiciárias.
Um exemplo de influência no âmbito legislativo foi o que ocorreu com a Constituição Federal
de 1988, que diante do panorama político e social da época, foi capaz de internalizar
conquistas dos movimentos sociais, como a previsão de importantes objetivos, como a
erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades regionais e sociais,
bem como os direitos sociais à saúde, educação e função social da propriedade.
Imbuída dessa essência social, há, na carta constitucional, algumas previsões de
avanços desse fenômeno insurgente nos âmbitos do executivo, ao tratar da necessidade de
participação popular nas tomadas de decisão, e do judiciário, no tocante a atuação de seus
profissionais para além do estrito legalismo. Essa inserção é uma conquista que deve ser
festejada, pois configura um avanço no sentido de reconhecimento da necessidade de
observância desses temas de cunho social.
Deve-se ressaltar, porém, que os resultados positivos eventualmente tidos nesses
espaços não podem ser considerados vitórias finais, na medida em que, para que essas
conquistas sejam concretizadas, é fundamental a participação dos movimentos e trabalhadores
no âmbito institucional de discussões e de tomadas de decisões, evitando a dispersão, uma
tendência do Estado movido pelo capitalismo.

306
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Essa forma de se pensar o direito está intimamente ligada a uma crítica


transformadora, concreta e coletiva, buscando desmistificar a ordem jurídico-burguesa posta e
estabelecendo condições reais de superação de conceitos tradicionais a partir de experiências
vivas, sendo, nessa seara, de fundamental importância o papel dos movimentos sociais. Dessa
forma, pode-se entender o Direito Insurgente, nas palavras de Baldéz (2010), como:

[...] ação e expressão jurídico políticas das lutas concretas da classe trabalhadora,
ação enquanto pressupõe movimento, e expressão em suas manifestações efetivas:
ou na resistência organizada à sentença injusta, ou nos conselhos populares, ou na
elaboração interna das comunidades subalternizadas ou na sentença contra a lei
injusta, proferida pelo juiz democrata. Na verdade, sob qualquer tipificação, direito
contra a ordem burguesa. Insurgente, portanto.

Já o Direito Achado na Rua nasce a partir de uma lógica de necessidade de


discussão e formação de núcleos para a promoção de uma crítica ao pensamento jurídico com
vocação política e teórica, no contexto latino-americano. Sua formulação se inicia com
estudos desenvolvidos na década de 60 na Universidade de Brasília2, tendo como expoente o
professor Roberto Lyra Filho, no contexto da Nova Escola Jurídica Brasileira, que propunha a
reflexão e compreensão sobre a atuação jurídica de novos movimentos sociais a partir da
análise de experiências populares de criação do direito3. Essa forma de trabalho demandava
uma abertura para o diálogo entre os acadêmicos, os movimentos sociais e suas acessorias
jurídicas, exigindo elementos, como a interdisciplinaridade e interinstitucionalidade para uma
compreensão mais ampla da questão.
Com isso, o Direito Achado na Rua pode ser compreendido, nas palavras de
Escrivão Filho e Sousa Junior (2016), como; “um projeto constituído desde uma múltipla
perspectiva epistemológica, orgânica e prática, emergido assim, [...], como fruto e enunciação
de uma nova práxis para o Direito”. Dessa forma, ele é tratado como um Direito que surge

2
O Direito Achado na Rua foi apresentado, primeiramente, em uma publicação em 1987, e como curso de ensino
à distância, administrado pelo Centro de Educação a Distância (CEAD) e pelo Núcleo de Estudo para Paz (NEP),
sob a coordenação do Prof. José Geraldo de Sousa Junior. Além disso, consolidou-se como linha de pesquisa,
certificada pela Plataforma Lattes de Grupos de Pesquisa do CNPq e nos programas de Pós-Graduação –
Mestrado e Doutorado em Direito (Faculdade de Direito da UnB) e Direitos Humanos e Cidadania – Mestrado
(CEAM – Centros de Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB) e como disciplinas da Graduação e Pós-
Graduação em Direito (Faculdade de Direito da UnB), apresentando vasta bibliografia que contribui para a
formação de coletivos com a mesma denominação em várias universidades e centros de pesquisa no Brasil.
3
Dentre os objetivos, segundo Sousa Junior (2008), se destacam: 1) a determinação do espaço político em que as
práticas sociais que anunciam direitos, mesmo que os “contra legem”, se inserem; 2) desvendar a natureza jurídica
do sujeito coletivo, que é apto a auxiliar na busca de um projeto político de transformação social, além de elaborar
a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) inserir os dados derivados destas práticas sociais
criadoras de direitos e, além disso, estabelecer categorias jurídicas inovadoras.

307
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

transformador dos espaços públicos, onde há a reinvenção da sociabilidade que possibilita a


abertura para a consciência de novos indivíduos para uma cultura de participação democrática
e de cidadania.
Dentro desse contexto, Lyra Filho (1982) trouxe a análise do distanciamento do
direito com a realidade social, argumentando que essa lógica somente seria superada se a
matriz histórica fosse uma baliza científica para que a sociologia pudesse influenciar na
definição da práxis jurídica. É nesse sentido que o Direito Achado na Rua tem seu campo de
atuação, na medida em que busca observar o direito vigente com base nas relações de
opressão e dominação que o formam e reflete sobre a possibilidade de ser ele mais digno e
libertário, buscando inspiração na interação com a sociedade organizada.
Para o referido autor (1982), a identificação entre a lei e o direito faz parte do
repertório ideológico do Estado, que almeja, diante de sua posição superior, mostrar que o
poder é satisfatório para atender o povo e que as contradições legais cessaram. Porém, ele traz
o pensamento do líder marxista Gramsci de que, através de uma visão dialética, é possível
alargar o foco do direito, abrangendo as pressões coletivas que emergem na sociedade civil. A
partir disso, ressalta que o autêntico direito global “não pode ser isolado em campos de
concentração legislativa”; se ele é reduzido à pura legalidade, já representa a dominação
ilegítima, por força desta mesma suposta identidade.
A existência de várias fontes do direito, além da oficial do Estado, tendem a ser
reprimidas por práticas conservadoras, que acreditam ser o monismo jurídico o mais
adequado por ser uma mudança operada pelo Estado e pela lei. Percebe-se, dessa forma, que o
termo em tela conversa com o fenômeno do pluralismo jurídico, em que há o reconhecimento
de normatividades para além das tradicionalmente produzidas pelo Estado, estando a palavra
“rua” inserida nele com o intuito de designar os espaços de criação e realização dessa outra
forma de produção do direito.
No cenário internacional é possível notar dinâmica semelhante, como observa
Roberto Aguiar (2014), quando traz uma reflexão interessante sobre a dimensão da
internacionalização do direito, no sentido de as normas geradoras de dominação tenderem a se
uniformizar em escala mundial, passando os direitos a serem semelhantes na grande parte dos
Estados, mesmo que os Direitos Humanos sejam reconhecidos pela maioria destes. E essa
ideia é ilustrada quando empresas multinacionais instalam suas filiais em países em
desenvolvimento com o intuito de promover a exploração, sendo que para que isso ocorra, as

308
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

normas que instituem a dominação são travestidas de tratados, convenções e pactos, cujo
conteúdo se traduz em normas contrárias aos Direitos Humanos, mas necessárias, na medida
em que garantem a dominação das nações mais pobres, que, por sua vez, são dependentes
dessa relação, pois tem como fonte de riquezas a exportação de matéria-prima em seus
territórios.
A partir disso, trazendo a questão para a seara dos Direitos Humanos, é importante
notar que para que eles deem frutos é necessário que eles provenham de um contexto de
contradições, de modo que eles cresçam diante de lutas sociais, concessões e conquistas. Eles
nunca encontrarão a devida eficácia quando outorgados em textos normativos, mas quando
estes forem resultado de conquistas sociais (AGUIAR, 2014).
As normas jurídicas não podem servir para fortalecer os instrumentos de controle e
repressão do poder, restringindo os direitos daqueles que são destinatários delas por uma
minoria, senão estaremos diante de um ordenamento que não serve ao bem da maioria, sendo
legal, porém não legitimo. Diante disso, pode-se perceber que a justiça não é neutra, está
sempre comprometida, expressão de interesse de determinado grupo. O Direito Achado na
Rua, dessa forma, tem um papel importante, na medida em que reflete sobre essa fundamental
participação dos atores sociais para a conformação do direito, que deve ser entendido para
além do exercício estatal, podendo, desse modo, ser de fato aplicado e justo para os nichos
marginalizados.

3. DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

3.1. Um breve histórico

A ocorrência de violações de direitos humanos por empresas, embora sempre


presente na sociedade orientada pela lógica capitalista, passou a ser um assunto que ganhou
holofotes em diversos âmbitos, como na ONU e nos movimentos sociais, a partir da década
de 70. Isso se deu principalmente a partir da ocorrência de alguns casos de violações, em que
se percebeu como as corporações, especialmente as transnacionais, exerciam um papel
relevante em escândalos de corrupção, influenciavam governos e, até mesmo, geravam efeitos
sobre a democracia dos Estados em que atuavam.
A partir da percepção de que, diante desse cenário de graves violações e
impunidade, haveria a necessidade de que as empresas passassem a ser responsabilizadas

309
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pelos danos por elas perpetradas, logo, algumas iniciativas em torno dessa temática foram
ocorrendo no âmbito das Nações Unidas. Entre elas, destaca-se o Pacto Global, proposto pelo
secretário-geral Kofi Annan, no ano de 1999, que trouxe um conjunto de princípios
voluntários sobre boas práticas corporativas no âmbito internacional, tendo tido uma ampla
aceitação pelas corporações e stakeholders4. Essa iniciativa incorporava em sua essência a
polêmica ideia de responsabilidade social corporativa, por ter o documento um caráter
eminentemente voluntarista, em que as corporações tem a poder de escolha de serem ou não
signatárias, bem como por dar abertura para que as empresas utilizem essa forma de
vinculação como propaganda de boas práticas, enquanto continuam com sua operação nociva
aos direitos humanos e ao meio ambiente (BERRÓN, 2016).
Vindo ao encontro dessa tendência voluntarista do Pacto, foram criadas, em 2003, as
“Normas sobre Responsabilidade de Corporações Transnacionais e Outras Empresas de
Negócios em Relação a Direitos Humanos”, ainda no contexto da ONU, no âmbito da
Comissão de Direitos Humanos, significando um avanço muito importante no tocante à
necessidade de impor obrigações aos Estados signatários. Porém, a ideia foi rechaçada pelos
países do Norte global por serem, em sua maioria, sede das matrizes das corporações. O
objetivo dessas normas nunca foi alcançado, mas elas serviram para levantar o debate sobre a
importância de haver um instrumento vinculante que gere obrigações para as empresas em
matéria de direitos humanos.
Outro capítulo relevante dessa temática foi a participação do professor John Ruggie,
que criou o “UN Protect, Respect and Remedy Framework”, uma importante contribuição
para o debate, que teve como base a elaboração de consultas nos mais diversos lugares ao
redor do mundo, tanto a membros da sociedade civil como as próprias empresas. Esse
formato, que ainda privilegiava a perspectiva de protagonismo do Estado enquanto principal
responsável pela proteção dos direitos humanos desembocou, em 2011, nos Princípios
Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, que foi adotado por consenso no contexto
do Conselho de Direitos Humanos da ONU, seguindo no entanto, a lógica que se coaduna ao
voluntarismo das empresas no tocante à proteção de direitos humanos durante o desempenho

4 Stakeholder significa ”público estratégico” e diz respeito à uma pessoa ou grupo que possui alguma relação de
interesse com uma empresa, negócio ou indústria, podendo ou não ter realizado investimentos neles. Alguns
exemplos de stakeholder podem ser: seus funcionários, gestores, gerentes, proprietários, fornecedores,
concorrentes, ONGs, clientes, o Estado, credores, sindicatos e diversas outras pessoas ou empresas que estejam
relacionadas com uma determinada ação ou projeto.

310
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de suas atividades. Além disso, foi criado, ainda, um Grupo de Trabalho de Direitos Humanos
e Empresas, que teria o objetivo de orientar os Estados a desenvolverem sua política nacional
de proteção de direitos humanos em face das corporações, consubstanciadas nos chamados
Planos Nacionais de Ação, que incorporariam no âmbito interno os princípios aprovados no
contexto das Nações Unidas.
Percebe-se que a iniciativa dos princípios orientadores de Ruggie, que culminou na
perspectiva dos Planos Nacionais de Ação, embora considerada válida, no sentido de ser mais
um mecanismo que possa vir a contribuir para o enfrentamento da temática, não pode ser
visto como a ferramenta principal para lidar com o tema, em razão da roupagem que recebeu,
em que não há um tensionamento com a para a mudança das práticas hegemônicas da relação
entre empresas e direitos humanos. Seria necessário, dessa forma, um instrumento que
pudesse ser usado em um processo complementar aos planos, mas, que atuassem nos temas
que fugissem da zona de competência desses, especialmente em relação aos aspectos
internacionais ligados ao tema. Logo, entra em cena a possibilidade de um tratado, criado no
âmbito da ONU, que tratasse também desse objeto.

3.2. Iniciativas de construção do tratado vinculante de direitos humanos e empresas

Como consequência do processo capitaneado pelo professor Ruggie, no âmbito da


ONU, houve reações da sociedade civil e da academia, em razão da lógica de “pragmatismo
de princípios” que dava o tom dos debates em torno dos Princípios Orientadores (BÉRRON,
2016). Desse modo, esses setores persistiram em buscar um instrumento que trouxesse de
modo mais contundente a ideia de responsabilização das empresas pelas violações de direitos
humanos no desempenho de suas atividades e que impusesse obrigações vinculantes em
relação às suas práticas.
Assim, no contexto de renovação do mandato do Grupo de Trabalho sobre os
Princípios Reitores, houve uma união de Estados, especialmente os do Sul Global, juntamente
com setores da sociedade civil, em torno de uma campanha pela criação de um tratado
vinculante, ficando conhecida como Aliança pelo Tratado. A proposta era a criação de um
grupo de trabalho intergovernamental que seria responsável por negociar entre os Estados a
criação de um instrumento obrigatório no âmbito internacional que trataria do tema de direitos
humanos e empresas.

311
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Houve a proposição de uma resolução autônoma, em junho de 2014, no Conselho


de Direitos Humanos da ONU para a criação de um grupo de trabalho que se encarregaria das
discussões sobre o tratado de direitos humanos e empresas, sendo aprovada sob o título de
“Elaboração de um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre empresas
transnacionais e outra empresas com respeito aos direitos humanos”.
A partir daí, o instrumento passou a ser pensado, tanto no contexto da ONU, quanto
no âmbito das discussões da sociedade civil e academia, que buscaram propor temáticas para
a construção de um instrumento que verdadeiramente refletisse a busca por mecanismos de
coibição de práticas que possam vir a violar direitos humanos, bem como mecanismos de
reparação devidos as vítimas de casos de violações já ocorridas. Entre esses temas, estão: a
necessidade de se responsabilizar a empresa, enquanto pessoa jurídica, pelas violações a
direitos humanos, afastando a lógica estadocêntrica que permeia esse contexto; a necessidade
de deixar clara qual vai ser o alcance de atuação do tradado, se haveria a responsabilização
somente das transnacionais ou de todas as empresas; e a questão da separação entre a
responsabilidade da pessoa jurídica e dos sócios controladores da empresa. Há, além dessas,
outras questões que tangenciam a discussões, como as discussões sobre gênero e meio
ambiente, que são temas cotados para fazer parte do instrumento.
Essas discussões eleitas para serem abarcadas no contexto do tratado vinculante são
primordiais para que o instrumento atinja seu verdadeiro objetivo, no entanto, a forma como
ele deve ser construído deve ser o foco principal da discussão, uma vez que ele deve ser
produto de uma formulação que abarque diversas frente e atores, incluindo especialmente as
vítimas de violações de direitos humanos que têm muito a contribuir para o debate sobre a
questão. É nesse aspecto que a ideia do “Direito Achado na Rua” se insere, no sentido de se
promover uma discussão do direito “de baixo para cima”, ou seja, de uma ferramenta jurídica
realmente comprometida com as lutas sociais e contenha em seu bojo de forma efetiva as
construções do que mais se beneficiarão dela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho buscou realizar uma abordagem sob uma perspectiva eminentemente


crítica acerca do conceito de direitos humanos, ressaltando as incoerências do entendimento
baseado em uma lógica ocidental e de matriz liberal. A partir disso, buscou levantar a questão

312
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

da necessidade de redefinição de sentido do termo, com vistas a torná-lo mais próximo ao que
ele propõe essencialmente, qual seja, garantir direitos aos seres humanos de forma efetiva,
sem condicionamentos e limitações e, para isso, faz-se necessária uma construção em que a
maior representatividade possa ser possível.
Com o intuito de buscar um formato que contemplasse essas ideias, foi trazida,
principalmente, a corrente a corrente de pensamento do “Direito Achado na Rua”, que busca
estudar, reunir e sistematizar iniciativas que possibilitem a construção de um aparato jurídico
que contenha efetivamente o compromisso com as discussões sociais, especialmente o que é
formado no âmbito de movimentos e frente de ação, de modo a permitir que o direito tenha
um caráter verdadeiramente democrático, plural, libertário e que abarque de forma concreta os
direitos humanos.
Essa ideia foi trazida para a discussão de direitos humanos e empresas, com o
traçado de um contexto de evolução do tema, culminando na construção de um tratado
juridicamente vinculante, que regule as práticas das corporações frente às violações aos
direitos humanos.
Com isso, o objetivo do estudo foi tentar mostrar, através da proposta pregada pelo
“Direito Achado na Rua”, a necessidade de se construir um tratado que efetivamente seja
baseado nas discussões e manifestações sociais, ainda que filtradas e sintetizadas por
movimentos ligados de forma mais aproximada ao tema, como ONGs e membros da
sociedade civil e academia. É fundamental que os que verdadeiramente sofrem com as
violações perpetradas pelas empresas, bem como os entes engajados com essa temática que
realmente almejam uma discussão mais aprofundada sobre ela, sejam atores protagonistas
dessa produção, que extrapola os limites estatais, pois, somente dessa forma, é possível se
falar em direitos humanos construídos por todos e para todos.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Roberto. Direito, Poder e Opressão. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2014.

BALDÉZ, Miguel Lanzellotti. Anotações sobre direito insurgente. In: Captura críptica: direito, política,
atualidade - Revista discente do curso de pós-graduação em direito da Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, n.3, v.1, p. 195-205, jul/dez. 2010.

BERRÓN, Gonzalo. Derecho huanos y empresas transnacionales. In: Nueva Sociedade, nº 264, Buenos Aires,
julho-agosto de 2016, p. 147-158.

DOUZINAS, Costas. Que são direitos humanos? In: Projeto Revoluções. 2009.

313
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. Coleção primeiros passos. Brasília: Ed. Brasiliense, 1982 e 1984.

MELUCCI, Alberto. Um objetivo para os movimentos sociais? São Paulo: Lua Nova: Revista de Cultura e
Política, 1989, nº 17. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64451989000200004. Acesso em: 17/11/2016.

MEYERSFELD, Bonita. A Binding Instrument On Business and Human Rights: Some Thoughts for an Effective
Next Step in International Law, Business and Human Rights. In: Homa Publica: Revista Internacional de
Direitos Humanos e Empresas, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 19 – 39, Novembro 2016. ISSN 2526-0774.

RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente na assessoria jurídica de movimentos populares no Brasil (1960-2010).
2015. 208f. Tese de conclusão do programa de pós-graduação (Doutorado) – Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

RUBIO, David Sánchez. Entrevista realizada pela Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa. In:
www.odireitoachadonarua.blogspot.com.br. Acesso em 17/11/2016.

SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São
Paulo: Cortez, 2013.

SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Experiências populares
emancipatórias de criação do direito. 2008. 338f. Tese de conclusão do programa de pós-graduação (Doutorado)
– Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

_______; ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Para um Debate Teórico-conceitual e Político sobre os Direitos
Humanos. Belo Horizonte: D`Plácido Editora, 2016.

_______ (coord.); O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015.

314
RAFAEL BRAGA VIEIRA
E A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA
NO CONTEXTO BIOPOLÍTICO

IGNATOWSKI, Thiago Salles


Aluno de Mestrado do PPGSD/UFF
LOPES, Gilberto Santiago
Graduado em Direito pela UNISUAM
PINTO, Anna Carolina Cunha
Aluna de Mestrado do PPGSD/UFF

RESUMO

A história do sequestro dos negros e negras africanos deixou marcas que ainda hoje têm repercussões
perversas em nossa sociedade. O lugar social dado a esses indivíduos sempre foi uma posição
subalterna em que a fruição de direitos mínimos é obstaculizada pelo arranjo socioeconômico e pelo
funcionamento institucional que contribuem para sua permanente segregação. As altas taxas de
violência e encarceramento que vitimam o jovem negro no Brasil demonstram a inserção desses
indivíduos em um âmbito de exceçãoque os torna matáveis, sujeitos à violência de todo gênero. Nesse
contexto, tornou-se emblemático o caso de Rafael Braga Vieira, preso nas manifestações de 2013 no
Rio de Janeiro e, depois, em 2016, vítima de dois flagrantes forjados que o mantém encarcerado até
hoje. O homo sacer de Giorgio Agamben é figura que permite analisar,pelo prisma biopolítico, esse
panorama do qual Rafael é um claro exemplo.

Palavras chave. Rafael Braga Vieira. Biopolítica. Estado de Exceção. Homo sacer. Criminalização da
pobreza.

315
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A expansão do neoliberalismo tem reflexos que vão muito além da dimensão


estritamente econômica. Ao seu desenvolvimento correspondem câmbios institucionais e
discursivos profundamente influenciadores das dinâmicas sociais. No bojo de tais
repercussões, encontra-se a seletividade penal,modo de operar observado na atuação das
agências criminalizadoras (BATISTA; ZAFFARONI; ALAGIA; SLOKAR; 2003, p. 46),
que serve à administração das parcelas estruturalmente excluídas da sociedade.
Ao mesmo tempo em que se observa a retração de uma postura provedora dos
Estados,há uma expressiva valorização do sistema de justiça criminal, frequentemente tido
como solução para a insegurança vivenciada pelos indivíduos. Uma atmosfera de
ameaçafabricada e exploradamidiaticamente, apresenta como supostosinimigosos integrantes
das”classes perigosas”(WACQUANT,2007, p. 29), que, no Brasil, correspondem, em grande
medida, ao jovem negro periférico, a quem se dirige a desconfiança e a predileção enquanto
sujeito passivo da repressão estatal. Nota-se claramente um processo de “demonização”, no
qual a população excluída passa a ser também vista como degenerada, sobrepondo à imagem
do excluído a imagem do inimigo, merecedor de uma tutela violenta(WACQUANT, 2007, p.
43).Constrói-se a imagem de indivíduosperigosos,indignos ematáveis. O resultado é o
encarceramento massivo e o morticínio violento de jovens negros (INFOPEN, 2014, p. 36)
(MAPA DA VIOLÊNCIA, 2016, p. 54).
Nesse contexto, tornou-se emblemático o ‘caso Rafael Braga’, exemplo claro do
racismo institucional e da seletividade penal, intimamente relacionados à matabilidade desses
indivíduos, identificados com o que Giorgio Agamben chamou homo sacer (2014).
O presente trabalho pretende apresentar e discutir a trajetória de Rafael Braga Vieira
à luz da concepção biopolítica de Giorgio Agamben, destacando a atmosfera de exceção que
se tornou o paradigma da política atual, sobretudo no tratamento dispensado aos socialmente
desclassificados, submetidos à segregação e à eliminação sistemática.

1. A HISTÓRIA COMO ELEMENTO DE COMPREENSÃO DO CASO RAFAEL


BRAGA E DA LATENTE CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA

Para entender o presente, em muitos momentos, precisamos resgatar a nossa história


na busca por compreender as raízes de algumas questões que a atravessam. Não poderia ser

316
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

diferente ao se tratar da criminalização da pobreza que atinge prioritariamente os negros


noBrasil.O país foi o que mais recebeu indivíduos trazidos compulsoriamente da África para
terem sua mão-de-obra explorada, o que até o ano de 1888 aconteceu sob o manto da
legalidade.
Desde a chegada dos primeiros africanos ao país, foram empreendidas, de variadas
formas, iniciativas com fito de desumanizar e marcar a diferença entre as vidas dos brancos e
dos negros, que sequer eram considerados humanos no período colonial. Tratados como
animais, esses indivíduos, que com seu trabalho sustentavam o padrão nababesco de vida de
seus senhores e toda a estrutura do Brasil Colônia, sequer tinham garantida alimentação
adequada. Autores como Ademar Vidal (1940), relatam que a pouca comida dada aos
escravos, cuja jornada de trabalho chegavaa 16 (dezesseis) horas em algumas fazendas, era
comumente jogada ao chão, o que resultava em disputapelo alimento, que se misturava à
sujeira do chão.
A proximidade da África e a consequente facilidade para obter a mão-de-obra de
homens e mulheres sequestrados influía diretamente no tratamento que lhes era dispensado.
Esse consumo facilitado do trabalho negro contribuiu para a compreensão por parte dos
grandes proprietários da Colônia de que era vantajoso explorar essas pessoas ao máximo, no
período de sua vida útil -o que durava aproximadamente de 7 (sete) a 8 (oito) anos de trabalho
- e providenciar um novo indivíduo, quando suas forças se exaurissem. Tratar-lhes com
dignidade não parecia interessante.
Tal análise é corroborada e sintetizada por MOURA (1992, p. 21) ao afirmar que o
negro escravo no Brasil “vivia sob as formas mais violentas de controle social, num clima de
terrorismo permanente” e que só se reencontrava com “sua condição humana” ao fugir para
as matas, onde se organizavam osquilombos.
A abolição da escravatura, no ano de 1888, não significou o fim da desumanização
dos negros e negras sequestrados da África. Sua posição na sociedade brasileira sempre foi
um lugar subalterno em relação aos indivíduos brancos, algo absolutamente refletido nas
relações sociais e econômicas e no funcionamento das instituições, o que segue sendo uma
permanência histórica.
Havia no Brasil um esforço para “branquear” a população. As classes mais
abastadas da sociedade em formaçãose via diante de uma enorme população negra, “livre,
cuja vida era pouquíssimo valorizada para além da possibilidade de exploração econômica.

317
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Novos imperativos econômicos fizeram com que a mão-de-obra negra sofresse um processo
de depreciação, bastante agravado pela facilitação para a chegada de imigrantes europeus para
ocupar os postos de trabalho com sua mão-de-obra supostamente mais qualificada. Ao
mesmo tempo que se investia no clareamento da pele da população, buscava-se obter
trabalhadores considerados mais aptos a contribuir para o desenvolvimento do país. Com isso
consolidou-se a institucionalização de uma política que, se nãoinviabiliza a vida negra, torna-a
absolutamente dificultada e descartável, vista como menos digna de existir e, portanto,
matável.
Sobre a essa substituição pelo trabalhador branco europeu, FLAUZINA (2006, p.
62) afirma que “o imigrante europeu é, nesse sentido, o antídoto à intoxicação negra que a
essa altura já começava a sufocar as elites locais”.
A criação do crime de “vadiagem” durante o Império, antes mesmo da abolição,
aponta para o compromisso de seu sistema penal com o controle dos destinos dos negros no
Brasil. Libertos na dimensão jurídica, negros e negras se viam diante de enormes dificuldades
para inserção na sociedade. Trabalho e moradia dificilmente eram conseguidos e muitas
dessas pessoas tinham de se sujeitar a condições de vida absolutamente precárias. Os que não
permaneceram trabalhando para os antigos senhores e vagavam pelas cidades sem emprego
eram alvo do encarceramento e da violência policial. Novamente, é importante destacar o
pensamento de FLAUZINA (2006, p.61) em sua análise sobre o período: “se as bases do
controle e da inviabilização social desse contingente estavam a se sedimentar, as do
extermínio também atuavam com vigor”.
Ainda hoje, no Brasil, as desigualdades raciais são estruturantes da desigualdade
social conforme se depreende em relatórios como Situação Social da população negra por
estado, divulgado em 2014, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Desse
modo, não causa espanto que esses indivíduos permaneçam fixados nas zonas periféricas,
com renda inferiorà dos brancos, inseridos no mercado de trabalho em postos subalternos,
com níveis mais baixos de estudo e ocupando moradias precárias. Seu padrão de vida e o
tratamento que recebem por parte das instituições denotam o desvalor atribuído a suas vidas.

318
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2 A TRAJETÓRIA DE NEGAÇÃO DE DIREITOS DE RAFAEL BRAGA

Apesar de não mais haver políticas oficiais que possuem o objetivo declarado de
inviabilizar a dignidade da vida negra, convivemos com inúmeros episódios que nos mostram
que tais práticas não ficaram no passado. A seletividade do sistema penal que superlota
presídios por todo o país com indivíduos negros majoritariamente negros (INFOPEN, 2014,
p. 36) é um exemplo sintomático doracismo institucional que confere mais direitos aos
brancos do que aos negros e negras.
Este panorama é muitíssimo bem exemplificado pelo ‘caso Rafael Braga’,
representativo de um enorme contingente de jovens negros e negras que foram selecionados
pelo Estado como merecedores da segregação pelo cárcere.
Rafael Braga Vieira nasceu no dia 31 de janeiro de 1988, no município do Rio de
Janeiro, filho de Adriana e de Reginaldo, moradores da favela da Vila Cruzeiro. Os bons
ventos que pareciam soprar trazendo a “Constituição Cidadã”,em construção naquele
momento na capital do país, não embalariam o menino. Seus primeiros 29 (vinte e nove) anos
de vida seriam prova cabal de que a promessa de uma República protetora da dignidade e
promotora do bem de todos, sem discriminação por origem ou por cor, estavam impressas em
papel, mas não na realidade de quem, como ele, havia cometido o crime de nascer negro e
pobre em uma periferia brasileira.
A hostilidade do entorno não demorou a se fazer presente na vida de Rafael, que,
com apenas 01 (um) ano de idade, mudou-se com sua mãe para Aracaju. O motivo: fugir da
miséria.Adriana tinha alguns parentes naquela cidade e a estrutura familiar era relevante para
sua subsistência e de seu primeiro filho.Aos 08 (oito) anos de idade, Rafael já engraxava
sapatos no centro de Aracaju como forma de obter algum dinheiro e ajudar com a renda da
família. A pobreza ainda marcava severamente a vida dos Braga e a adversidade, novamente,
motivou a mudança.
No início dos anos 2000, Rafael retornou ao Rio de Janeiro, onde passou a
sobreviver coletando materiais recicláveis que encontrava pelas ruas. A volta para casa na
Vila Cruzeiro, após um dia extenuante de coletas, nem sempre era possível devido ao valor do
transporte público, que para muitos representa uma proibição - não positivada, mas
absolutamente efetiva - de circular pela cidade. Não raro, Rafael passava a noitenas ruas.
Em junho de 2013, em meio às manifestações que fervilhavam em todo o país, o
jovem foi abordado por policiais em um imóvel abandonado na região da Lapa, onde se

319
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

abrigaria naquela noite. Sem qualquer participação nas manifestações, Rafael foi detido sob
suspeita de portar material explosivo.O suposto‘coquetel molotov’ encontrado em seu poder
consistia em duas garrafas plásticas contendo água sanitária e “pinho-sol”, material
examinado por peritos e considerado inapto para funcionar como arma. Apesar da prova
pericial em seu favor e da ausência de qualquer relato fático que denotasse uma ação delitiva,
Rafael foi preso e condenado a cinco anos e dez dias-multa, em regime inicialmente fechado,
pelo juiz da 32ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro1.
Àsua prisão se seguiu uma mobilização de advogados populares, notadamente do
Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH, que passaram a atuar na defesa técnica
de Rafael. No ano de 2014, surgiu a Campanha pela Liberdade de Rafael Braga,
organizadapor militantes da Assembleia Popular da Cinelândia, com o objetivo de dar
visibilidade a sua história e de angariar recursos para o sustento de sua família.
No final do ano de 2015, Rafael recebeu com muita alegria a notícia de que havia
reunido as condições para a progressão de regime e,por isso, poderia ir para casa, com a
condição de usar uma tornozeleira eletrônica.
Na manhã do dia 21 de janeiro do ano de 2016, policiais militares, em operação na
Vila Cruzeiro, avistaram o jovem negro que se dirigia a uma padaria e o julgaram “suspeito”.
O dispositivo em sua perna, chamava a atenção. A tornozeleira eletrônica constitui uma marca
que serve à pronta identificação dos socialmente (des)classificados como indignos.
Rafael,abordado pelos agentes do Estado,foi imediatamente capturado e tratado como
“vagabundo”2. Instado a fornecer informações sobre o tráfico de drogas na localidade, ao que
respondeu dizendo que não tinha envolvimento com tais atividades, Rafael foi levado a um
terreno baldio, onde foi fisicamente e psicologicamente torturado, com toda sorte de agressões
e ameaças de violência sexual. Os policiais que efetuaram a prisão atribuíram ao rapaz a posse
de um saco plástico contendo 0,6 (zero virgula seis) gramas de maconha e 9,3 (nove virgula
três) gramas de cocaína, além de um sinalizador. Levado à 22ª Delegacia de Polícia, Rafael
foi indiciado e processado pelo suposto cometimento dos delitos de”tráfico de drogas” (artigo
33 da lei 11.343/06) e de “associação ao tráfico” (artigo 35 da lei 11.343/06).
Apesar do arcabouço probatório extremamente frágil, embasado em depoimentos
contraditórios dos próprios policiais que forjaram a situação de flagrante delito e do
1
Processo nº 0212057-10.2013.8.19.0001, em trâmite perante a 32ª Vara Criminal.
2
Segundo afirmou Rafael durante o contato com seus advogados já na delegacia, era assim que os policiais
militares o chamavam durante todo o tempo em que o tiveram sob custódia.

320
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

depoimento de testemunha que presenciou a ação dos policiais, o juiz da 39ª Vara Criminal
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro condenou Rafael Braga Vieira a 11 (onze)
anos e 03 (três) meses de reclusão e ao pagamento de um mil seiscentos e oitenta e sete dias-
multa3.
No cárcere, Rafael Braga Vieira contraiu tuberculose, doença que vem alcançando
números alarmantes na vitimização de pessoas presas4 e obteve, do Superior Tribunal de
Justiça, uma medida liminar em sede de habeas corpus para receber tratamento em casa,
tendo-se em vista as péssimas condições de higiene observadas no cárcere.
A história de Rafael vem se tornando cada vez mais conhecida, amplamente
noticiada pela mídia nacional5 e por importantes veículos internacionais6.Artistas, intelectuais
e pessoas comuns têm manifestado apoio ao jovem, que aguarda o julgamento do recurso de
apelação contra a sentença que o condenou pelo suposto envolvimento com o tráfico de
drogas.

3 A DECISÃO SOBERANA E A BIOLOGIZAÇÃO DA POLÍTICA

Ao falarmos da trajetória de Rafael, é patentesuainserção em um contexto de


exceção que, como afirmaGiorgio Agamben,tornou-se paradigma de governo. Sua condição
de vulnerabilidade social é determinante para a manutenção da condenação kafkiana que lhe
mantém no cárcere.
Para Agamben, não há obstáculos para a escalada do estado de exceção permanente
e a lógica da soberania está ligada a uma figura do direito romano arcaico, ohomo sacer,
investigada pelo filósofo italiano no projeto homônimo.
Na obra Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua, o autor constrói uma
analogia com essa figura dúbia(visível e invisível), e estabelece uma espécie de biologização
da política tendo como base jurídica o direito, que nessa perspectiva, inaugura o estado de

3
Processo nº 0008566-71.2016.8.19.0001, em trâmite perante a 39ª Vara Criminal.
4
UNIVERSO ONLINE. “Massacre silencioso”: doenças tratáveis matam mais que violência nas prisões
brasileiras”, 2017.Disponível em:<https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/14/massacre-
silencioso-mortes-por-doencas-trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm> Acesso em 20 set
2017.
5
G1. Justiça nega liberdade a Rafael Braga, 2017. Disponível em <https://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/justica-nega-liberdade-a-rafael-braga-dizem-advogados.ghtml> Acesso em 20 set 2017.
6
BBC. Rafael Braga: Scapegoatordangerousprotester?, 2016. Disponível em: <
http://www.bbc.com/news/world-latin-america-35578395> Acesso em 20 set 2017.

321
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

exceção (AGAMBEN, 2004, p. 13). O poder soberano, ao longo dos anos, vem alimentando
a máquina bipolar estatal segregatória e incluindo o ser vivente como mercadoria barata e
dócil, sujeita ao ostracismo da vida nua. O Estado, cada vez mais, vem tendo interesse na zoé
(o simples fato de viver), e incluindo o ser vivente em seus cálculos exclusivos. Esse é o
paradigma moderno da política contemporânea: a captura do ser vivente pelos dispositivos
biopolíticos da contemporaneidade através de um método de exceção que submete o
indivíduo a toda sorte de violências institucionais, dentre elas, o processo penal e, por
conseguinte, o cárcere.
Nesse passo, é possível perceber, de modo claro, o paralelo que se estabelece com a
história de Rafael Braga Vieira. O jovem foi denunciado pelo Ministério Público, como
incurso nas penas dos artigos 33 e 35, ambos da lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), e como
exposto,condenado a 11 (onze) anos e 03 (três) meses de prisão por ter sido supostamente
flagrado portando 0,6g de maconha; 9,3g de cocaína e um rojão.
Analisando criticamente a decisão referida, é possível notar o desvalor do indivíduo
em decorrência do racismo institucionalizado que permeia a atuação jurisdicional. O
vocabulário bélico empregado na sentença denuncia a clara institucionalização do racismo no
Poder Judiciário, premissa lógica à luz do pensamento de Agamben quando trata de que uma
das características essenciais do estado de exceção é a abolição momentânea da distinção
entre os poderes do governo (AGAMBEN, 2003, p. 19).
Essa abolição ocorre entre direito público e fato jurídico criando um ponto de
desequilíbrio entre estes e escrevendo a anomia no ordenamento jurídico. O magistrado nessa
ocasião tem o papel preponderante de elaborar um direito positivo de crise. Esse significado
imanente biopolítico aparece com clareza na decisão que condenou Rafael Braga.
No plano de construção da decisão soberana, atribui-se a ela o papel de romper com
a ordem constitucional e de mudar o curso da atividade judicial do magistrado. Em apertada
síntese, a teoria da decisão atua como limitador ao exercício do pensamento crítico, dando
lugar a um pensamento concreto, estereotipado, racista, pautado pelo medo de absolver e
elegendo o magistrado um neo-inquisidor e responsável por todas as inquietudes da
coletividade. A decisão assume uma lógica eficientista a partir de perversões
inquisitoriaistrazendo à baila o pensamento do juiz autoritário.

322
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Na obra Estado de Exceção, Agamben critica o caráter autônomo da decisão


soberana e traça um contexto de desconstrução partindo da premissa de que uma decisão que
se encontra entre ordenamento e situação (entre direito e fato) não podem ceder ao arbítrio.

A especificação “ao mesmo tempo” não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de
suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o
paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei está fora dela mesma”, ou
então: “ eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei”
(AGAMBEN, 2003, p.22).

Em sua obra Processo Penal do Espetáculo – Ensaios sobre o poder penal a


dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira (2015), o juiz do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, Rubens Casara, tratou do funcionamento do sistema de justiça
criminal no período pós Constituição Federal de 1988, e segundo uma pesquisa empírica
realizada no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, chegou à conclusão de que 80%
dos magistrados daquele tribunal atuam de forma a fortalecer a segurança pública do Estado.
Os atores jurídicos agem como se a decisão fosse objeto de uma resposta ao clamor público
O magistrado, nessa ocasião deixa de ser juiz, - Poder Judiciário- e assume o papel
de agente de polícia - Poder Executivo- que se personifica na figura do soberano. A decisão
soberana funcionaria como um aparelho bipolar repressivo, deixando suspenso todo o
arcabouço constitucional, podendo o julgador praticar um juízo de censura inquisitorial.
Inscreve-se então no ordenamento jurídico a possível articulação entre o estado de exceção e a
ordem jurídica (AGAMBEN, 2003, p. 54).
Agamben, sobre a decisão soberana, alerta sob o aspecto formal da norma e o
discurso de emergência no qual a teoria da decisão tem seu fundamento desestabilizando o
Estado de direito. O operador que permite ancorar o estado de exceção na ordem jurídica
nesse caso passa a criar antítese poder constituinte e poder constituído. O estado de exceção
tem um diferencial lógico da anarquia e de caos, juridicamente ainda existe uma ordem
imanente mesmo ela não sendo uma ordem jurídica (SCHMITT, 2006, p.18). A ideia da
teoria da decisão, pensada em Schmitt, é inscrever através de uma possível articulação
paradoxal entre estado de exceção e ordem jurídica, entre normas do direito e normas de
realização do direito (AGAMBEN, 2003, p. 54).

323
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

4. UM OLHAR BIOPOLÍTICO PARA A QUESTÃO

É possível compreender que a população negra, pobre e periféricavive uma


realidade bastante distinta, ainda hoje, daquela experimentada pela população branca no
Brasil. Chamaa atenção, como um traço notório dessa desigualdade, a relação de negação de
direitos empreendida em relação às pessoas negras. É esse aspecto, tão marcante na situação
de Rafael Braga, que buscamos compreender com auxílio da obra biopolítica de Michel
Foucault e da filosofia política de Giorgio Agamben, destacadamente na obra Homo Sacer – o
poder soberano e a vida nua.
Agamben (2002, p.11) pontua que Foucault ao fim de Vontade de Saber resume o
processo através do qual a vida natural passa a se incluir nos mecanismos e cálculos do poder
estatal e que a política se transforma, assim, em biopolítica. Com essa passagem para a
biopolítica o objeto da política passa a ser vida do ser vivente. Ademais, filósofo político
italiano também ressalta a essencialidade do biopoder para o sucesso do Capitalismo, tendo
em vista que o primeiro irá moldar os indivíduos, através da disciplina, para que o último
obtenha os homens de corpos docilizados de que necessita ou, nas palavras de Erich Fromm,
homens alienados de si mesmos (2000, p.67).
Nesse sentido, ao discorrer sobre a arte de governar na contemporaneidade em
Segurança, Território e População, Foucaultafirma que é impossível para aquele que
governa, a seu bel prazer, moldar os indivíduos. Os componentes da população possuem uma
natureza que lhes é própria e que não pode, portanto, ser alterada por decreto. Desse modo, a
biopolítica compreende a necessidade de conhecer a naturalidade dos processos que compõe a
população, já que essa natureza não é impenetrável. Através da penetrabilidade da natureza,
tem-se a possibilidade de um governo influenciar esses processos por estímulos e
desestímulos, o que viabiliza que essas técnicas moldem o meio em que as pessoas estão
inseridas de acordo com a ocasião e com suas necessidades.
Compreendemos que a maneira como o destino da população negra foi selado,
especialmente, com a criminalização da desocupação produzida pela repentina inadequação
do negro ao trabalho. O medo que passa a ser disseminado e a própria construção de uma
identidade desviante que associa o negro ao estigma da ameaça ainda que nada faça nesse
sentido. Através dessas escolhas segregadoras, feitas em um momento em que deveria ser
promovida a reconciliação com nossa história, objetivando a igualdade entre os povos que
aqui se uniram, estrategicamente, optou-se pela manutenção da desigualdade. Mais do que

324
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

isso: optou-se pela manutenção da vida nua para uns. É a essa vida que podemos comparar a
vivida por Rafael.
Nessa esteira, portanto, cumpre destacar em virtude do episódio em discussão no
presente trabalho, o papel das instituições penais conforme Foucault delineia em O
Nascimento da Biopolítica ao exemplificar o cruzamento entre a veridição e a jurisidição:

A questão veridicional que está no cerne do problema da penalidade moderna, a


ponto até de embaraçar sua jurisdição, e era a questão da verdade formulada ao
criminoso: quem é você? A partir do momento em que a prática penal substitui a
questão: o que você fez? pela questão: quem é você?, a partir desse momento,
vocês vêem que a função jurisdicional do penal está se transformando ou é
secundada pela questão da veridição, ou eventualmente minada por
ela.(FOUCAULT, 2008, p.48)

Evidentemente no caso Rafael Braga a pergunta decisiva é “quem é você?” e não “o


que você fez?”. Afinal, se a própria perícia indica para a inaptidão do material portado por
Rafael como arma, não existe sentido para privação da sua liberdade após tal declaração.
Como visto, isto não só foi inútil nesse sentido como também, novamente, a pergunta “quem
é você?”foi decisiva no cenário de sua segunda prisão. Há aqui uma intersecção possível entre
essa noção apregoada por Foucault acerca do cruzamento de veridição e jurisdição com as
ideias de homo sacer e de estado de exceção pensadas por Agamben.
A figura paradigmática do homo sacer cuja vida, de acordo com Agamben (2002,
p.189) é “em muitos aspectos similares do bandido”, no que diz respeito ao banimento e a
forma como que ambos são submetidos a um processo de perda de humanidade perante os
demais e o Estado. Para essas pessoas cuja vida é pura bios7, isto é, uma vida nua e despojada
de direitos intrínsecos a todo e qualquer homem como o direito à liberdade, aqui discutido, o
estado de exceção dá-se de modo permanente em suas vidas. Nesse sentido, elucidam
BARSALINI e CARVALHO (2017,p.12) que:

Cristalizada no campo, a exceção se torna, desde os regimes totalitários do século


XX até a atualidade, a regra, desafiando as democracias contemporâneas (...). Os
totalitarismos do passado, assim com as ditaduras do presente, enlaçados entre si
num jogo originalmente violento e repetidamente beligerante de relações políticas,
econômicas, culturais e religiosas com as democracias, têm produzido,
sistematicamente, homo sacer, vidas nuas, sujeitos que podem ser radicalmente

7
Os gregos utilizavam as palavras zoé e bios para expressar o que chamamos de vida. Para eles a zoé consistia no
simples fato de viver, comum a todos os seres vivos e, por sua vez, a bios expressava uma forma de viver própria
de um indivíduo ou grupo. A simples vida natural, no entanto, apenas é considerada no mundo clássico, na polis,
quando analisada sob o prisma de mera vida reprodutiva.

325
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

desprezados em no limite, aniquilados, sem que tal ato seja passível de pena àqueles
que a isso tenha dado causa.

Cremos que para fins de justificar o referido desprezo àquele que, na prática, se
equipara ao homo sacer em nossa sociedade exista a necessidade de um discurso, ainda que
raso, que demonstre a “razoabilidade” de tal prática. Largamente empregada, a criminalização
da pobreza é um processo complexo, mas que, sucintamente, é tratado pela Professora Cecília
Coimbra, da Universidade Federal Fluminense, em sua exposição realizada no I Seminário
Internacional de Direitos Humanos, Violência e Pobreza: a situação de crianças e
adolescentes na América Latina hoje:

Presente entre nós até os dias de hoje, esse dispositivo vai afirmar que tão
importante quanto o que um indivíduo fez, é o que ele poderá vir a fazer. É o
controle das virtualidades; importante e eficaz instrumento de desqualificação e
menorização que institui certas essências, certas identidades. Afirma-se, então, que
dependendo de uma certa natureza (pobre, negro, semi-alfabetizado, morador de
periferia...) poder-se –à vir cometer atos perigosos, poder—se- à entrar para o
caminho da criminalidade. (2006, p.2)

Aindavalendo-nos das palavras de COIMBRA (2006, p.6) houve um trabalho


incessante de provar cientificamente a periculosidade das classes mais pobres. Aqueles
considerados “viciosos”, isto é, excluídos do mundo do trabalho foram associados à
delinqüência e passaram a ser vistos como um “perigo social que deve ser erradicado”
justificando-se, assim, “as medidas coercitivas, já que são criminosos em potencial”. A
criminalização da pobreza se desenha como verdadeira estratégia biopolítica que permite a
eliminação do indesejável8 em variadas formas dentro desse permanente estado de exceção
vivenciado.

CONCLUSÕES

A trajetória de Rafael Braga nos permite estabelecer o paralelo entre sua vida com
uma vida nua, matável, assim como a do homo sacer. Olhar para situação sob esse ponto de
vista permite compreender a banalização da privação de sua liberdade pelo Poder Judiciário,
em que pese a movimentação de diversos setores da sociedade em defesa da mesma.

8
AGAMBEN (2004, pp. 12-13) compreende que é possível a utilização de dispositivos através dos quais
mecanismos de exceção coexistam com o Estado de Direito. Tais mecanismos terão como destinatário desde
adversários políticos ou até mesmo categorias inteiras de cidadãos que pareçam “inadequados à ordem vigente”.

326
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Insta ressaltar que o perfil de Rafael é o mesmo, por exemplo, daqueles indivíduos
que mais morrem e tem suas mortes esvaziadas pelo uso do instituto dos autos de resistência:
ambos são jovens, negros, pobres e moradores das periferias. As vítimas dos autos de
resistência, assim como aqueles que superlotam os presídios provisoriamente e os que são
revistados em operações de caráter notoriamente higienista como a “Operação Verão”
contemplam esse mesmo e nítido perfil. Suas vidas e, por conseguinte, seus direitos não têm o
mesmo valor, para o Estado, do que se verifica com indivíduos oriundos das camadas mais
abastadas da sociedade.
É inaceitável que convivamos em silêncio com a captura da vida desse modo pelo
Estado e, tampouco, que consideremos razoáveis as duas condenações de Rafael. É preciso ter
a consciência de que tal situação só se dá por intermédio de uma escolha estatal de quem são
os indesejáveis, os inimigos a serem combatidos através do estado de exceção. No caso do
Brasil, resta claramente comprovado pela nossa trajetória histórica a escolha do desviante, do
indivíduo a ser eliminado seja através de sua morte, de seu encarceramento ou de sua
invisibilização social.
Nesse sentido, oportuna reflexão de BAUMAN (2004, p.108) sobre o legado do
Holocausto:

[...] demonstrar a futilidade da lei pela execução sumária de suspeitos, aprisionar


sem julgamento nem prazo de soltura, espalhar o terror que aleatória e casualmente
infligia tormentos aos montes – foi amplamente comprovado que tudo isso serve à
causa da sobrevivência e é, portanto, “racional”.

Segundo o sociólogo polonês esse legado nos mostra o nível da desumanização da


sociedade. Em que pese os diferentes contextos, também extraímos uma lição valorosa para a
nossa realidade: aceitar os absurdos que permeiam o caso aqui debatido é um reflexo dos
nossos tempos, tão fortemente marcados pela indiferença e pela dificuldade de amar ao
próximo. Precisamos abraçar a história de Rafael e nos comprometer não só com a luta por
sua liberdade, mas em deixar claro que não é da nossa natureza essa desumanização e que não
existe estímulo que seja bastante para nos fazer indiferentes.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

327
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

______ Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.

BARSALINI, Glauco, CARVALHO, Ricardo. Entre o político e o sagrado: o homo sacer contemporâneo. Em
Interações v.12, n.21, Editora: PPGCR/ PUC Minas, Jan- Julho/2017, p.10-28.

BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. 2 ed. Direito Penal
Brasileiro. Primeiro Volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

CASARA, Rubens R.R. Processo Penal do Espetáculo. Florianópolis: Editora Emporio do Direito, 2015.

COIMBRA, Cecília. (2006). Direitos Humanos e Criminalização da Pobreza. Trabalho apresentado em Mesa
Redonda: Direitos Humanos e Criminalização da Pobreza no I Seminário Internacional de Direitos Humanos,
Violência e Pobreza: a situação de crianças e adolescentes na América Latina hoje, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

FLAUZINA, Ana Luiza. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o processo genocida do Estado
brasileiro. 145 fl. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2008.

________Segurança, Território e População. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FROMM, Erich. A Arte de amar Tradução de Milton Amado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Disponível em: ,
acessado em 31 de maio de 2008.

HART, Carl. Um Preço Muito Alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas.
Tradução Clóvis Marques. - 1. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

MOURA, Clovis. História do Negro Brasileiro. 2ª. Ed. São Paulo: Ática, 1992.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. 2ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

VIDAL, Ademar. Costumes e práticas do negro. In II CONGRESSO AFRO BRASILEIRO. Salvador, 1937. O
negro no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira. 1940.

WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. [A onda punitiva]. Trad.:
Sérgio Lamarão. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

328
REFLEXÕES SOBREA JUDICIALIZAÇÃO
DA EDUCAÇÃO DOMÉSTICA (HOMESCHOOLING):
DISPOSITIVO, IMMUNITAS E A FORMA-DE-VIDA

FARIAS-LARANGEIRA, Marcelo
Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais – Programa de Pós – Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)
– Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais – Programa de Pós –
Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) – Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Professor de
Direito Empresarial e Tutela Coletiva – Universidade Salgado de Oliveira (Departamento de Ciências Jurídicas
- UNIVERSO – Campus de São Gonçalo – RJ). Advogado.
LIMA, Andrea Peres
Especialista em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Graduada
em Letras – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduanda em Direito pela UNESA
(Universidade Estácio de Sá – Campus de Niterói-RJ). Professora de Língua Inglesa da Fundação de Apoio à
Escola Técnica do Rio de Janeiro (FAETEC-RJ).

RESUMO

O presente artigo pretende analisar a educação doméstica a partir da perspectiva do pensamento


biopolítico de Foucault, Agamben e Esposito. A judicialização do tema pelo Supremo Tribunal Federal
lança luzes sobre o debate que, até então, encontrava-se em regiões de penumbra ou, de certa maneira,
eram aplicadas a casos muitos específicos. Neste sentido, a forma-de-educar proposta pela educação
domestica (homeschooling) se posiciona no campo retórico como parte de uma agenda educacional
cujo seus adeptos reivindicam um “direito de escolha”, entretanto, sem medir as eventuais
consequências que tal empreendimento pode trazer aos sujeitos-educandos. O isolamento ou a
imunização a certos saberes considerados por estes grupos como “perigosos” reacende a discussão
entre a quem cabe o direito de educar: à família ou ao Estado?

Palavras-chave. Educação doméstica, dispositivo, biopolítica

ABSTRACT

This article pretends to analyze homeschooling under the perspective of biopolitics theory developed
initially by Foucault at College de France (in the seventh decade of the 20th century). Nowadays,
Italian authors as Agamben and Esposito discuss the biopolitics issue as well. At the present,
homeschooling is in the spotlight since the debate is under judicial review by Brazilian Supreme Court.
Earlier in time, this issue was undercover somehow; in order that homeschooling was only applied in
specific cases. Therefore, homeschooling form-of-education is inserted in rhetoric field as part of an
educational agenda whose defenders claim the “right to choose” the way their children must be
educated. This claim, on the other hand, must raise an important reflection, such as the possible
consequences this endeavor may cause to learners as subjects. Isolation or immunization to certain
‘harmful’ contents learned at school, according to these groups, has reignited debate over who has the
right to educate these subjects: Family or Government?

Keywords. Homeschooling, dispositif, biopolitics

329
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O tema da biopolítica tem sido discutido por diversos pensadores no campo da


filosofia durante o século XX. De Foucault a Agamben até Esposito, o caminho investigativo
da biopolítica se difere no aspecto metodológico com qual o dispositivo biopolítico é
compreendido; em suas distintas matizes. Tanto G. Agamben quanto R. Esposito encontram-
se inseridos na tradição do pensamento biopolítico italiano, entretanto, ambos se apresentam,
em caminhos disjuntivos para compreensão da narrativa do biopoder dos séculos XX e XXI,
especialmente no estudo da experiência extrema deste: o campo de concentração.
O esboço geral dos conceitos da biopolítica, de Foucault a Esposito, pode nos ajudar
a compreender os elementos que circundam a relação entre a educação doméstica
(homeschooling) e a immunitas. Diante deste cenário, indagamos: O que a educação
doméstica deseja conservar? Contra “o que” e “contra quem”, os arautos da educação
doméstica pretendem imunizar? E qual a relação entre a educação doméstica e o paradigma
imunitário? Pode esta forma-de-educar se constituir como um dispositivo?
A educação doméstica se apresenta como uma alternativa, como afirma M.C.
Chaves Vasconcellos (2017) diante da “crise da escola” na década de 1960 e já possui muitos
simpatizantes e adeptos1 (VASCONCELOS, 2017), inclusive, há quem afirme que a
educação doméstica ou homeschooling faz parte de um projeto liberal em curso no intuito de
descentralizar a educação; podendo conduzir as discussões sobre educação a terrenos
movediços, até então, sem precedentes.
Há muito se conhece, desde dos cursos ministrados por M. Foucault (1926-1984) na
década de 1970, a relação entre o liberalismo e a biopolítica e, é exatamente neste contexto,
que a presente análise encontra-se inserida. O que se pretende aqui é lançar luzes sobre o tema
da educação doméstica e se há eventuais relações entre homeschooling, liberalismo e
biopolítica e quais são os possíveis desdobramentos. Através do Recurso Extraordinário n.
888.815/RS, que atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), a educação
doméstica é judicializada, assim se discute em sede constitucional, o direito de se educar. A
quem este compete? “À família ou ao Estado?
Para tanto, sob o aspecto metodológico deste trabalho, parte-se da descrição dos
discursos dos arautos desta forma-de-educar, a fim de se compreender como estes discursos

1
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. Educação na casa: perspectivas de desescolarização ou liberdade de
escolha? Revista eletrônica Pro-posições. Vol.28, número 2: Campinas Maio-Agosto 2017. ISSN 1980-6248.

330
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

se formam e, também, quais as possíveis direções que estes podem conduzir os sujeitos
inscritos no mundo da vida. A revisão bibliográfica do pensamento da biopolítica que se
estende desde Foucault até os debates atuais de Agamben (forma-de-vida) e Esposito
(immunitas) podem constituir de grande valia à compreensão dos processos de subjetivação.
Nesse sentido, as pretensões de validade linguísticas emergem como crível sintoma de uma
racionalidade ainda mais profunda.
Por fim, o objetivo desta comunicação não gravita em torno dos processos de
ensino-aprendizagem que envolvem este método de ensino. A educação doméstica
(homeschooling) se perfaz uma ferramenta de análise para se verificar a possibilidade desta
forma-de-educar constituir um dispositivo biopolítico eclipsado pela precariedade da
estrutura pública de ensino.

1. PRÁTICAS, DISCURSOS E JUDICIALIZAÇÃO: A LUTA PELA FORMA-


DE-EDUCAR

O aparecimento da homeschooling ou educação doméstica ou domiciliar (ED)


apresenta-se como uma reação aos processos de precarização da educação pública e das
insuficiências dos currículos oferecidos pelos Estados e Municípios brasileiros. Determinados
segmentos da população arguem que o serviço público educacional e suas políticas
pedagógicas não atendem certas expectativas. No caso brasileiro, ocorre uma mobilização de
grupos sociais cuja compreensão jaz no direito (natural) das famílias, enquanto primeiro
núcleo social do indivíduo, a transmissão de valores e códigos de moralidade.
Não é nenhuma novidade a relação entre o discurso e a práxis; a conexão entre a
linguagem e a performance dos indivíduos no mundo da vida que, se articulam através do
trânsito destes nas instituições. A judicialização da ED apresenta-se como uma ferramenta
interessante à investigação dos movimentos cognitivos construídos no interior dos sujeitos a
partir da dimensão cultural; especialmente do discurso religioso. Não se perquiri aqui, como
já dito alhures, acerca dos métodos, dos processos de ensino-aprendizagem e dentre outras
questões que envolvem a ED, entretanto, o que está em jogo é a ED como um uma espécie de
paradigma imunitário em menor escala. Todavia é importante dizer que os desejos dos arautos
da ED não são suficientes para trazer sua constelação de valores e significado para o plano da
efetividade de direito. É mister que se engendrem mecanismos de legitimação que sejam

331
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

capazes de emergir um certo regime de verdade, dessa forma um destes mecanismos é a


judicialização da ED. Vejamos a seguinte questão:
Atualmente, tramita no Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF), o Recurso
Extraordinário (RE) n. 888.815/RS2 cujo ponto nevrálgico é o direito de educar. Ora, a quem
cabe tal direito? O artigo 205 da Constituição brasileira de 1988 ratifica o direito da educação
como uma condição sine quae non para o exercício da cidadania, mas a parte final deste
preceito constitucional explicita que há um valor, uma preocupação com a forma de se
educar: a qualificação para o trabalho. Em outras palavras, é a preocupação do Estado em
educar “o corpo” para aderir à produção.
O “cálculo utilitário” do corpo manifesta-se como um fragmento decalcado no
direito de educar, posto que “educar” é um dever. Dessa forma, existe um “direito à
educação”, um “dever” do Estado em promovê-la. Não há um direito aberto as formas-de-
educar; contrario sensu, há uma determinada forma-de-educar. Esta certa forma-de-educar é
a produção da subjetivação adquirida através do que Foucault (2014) nomina de instituição
disciplinar.
O sujeito não é um “ser” pré-fabricado, contudo, é resultante das técnicas
disciplinares que a partir de uma “média” – parâmetro de normalização – auferem-se o
normal e o anormal3. A escola comum, como instituição disciplinar, produz e reproduz, ativa
e reativa quotidianamente o retroalimentar do binômio saber-poder; cujo objetivo é a
“produção dos corpos dóceis”.
Encontra-se diante do Tribunal Constitucional a decisão sobre quem ostenta a
legitimidade de se educar e a maneira de se educar. Nos autos do processo citado, os autores
do processo judicial arguem, no primeiro momento, as insuficiências estruturais da educação
pública do município de Canelas/RS, que citamos, v.g., a instalação dos alunos em turmas
“multiseriadas” e o convívio com alunos de idade mais avançadas. Outra questão levantada
que, é digna de nota, é a discordância da autora do RE acerca do conteúdo que é ministrado
nas escolas públicas, como por exemplo o ensino da teoria da evolução biológica do biólogo
C. Darwin (1809-1882)4. A autora da ação judicial reivindica o direito de educar através da

2
Pesquisa realizada em Outubro de 2017.
3
Sobre a disciplina e as instituições disciplinares, ver FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 42º Edição. Petrópolis:
Editora Vozes, 2014.
4
BRASIL. República Federativa. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 888.815/RS Relator:
Luís Roberto Barroso.

332
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ED em detrimento da ‘metodologia de ensino ofertada pelo Estado’. Além disso, algo que
chama a atenção no processo judicial é que, apesar do reconhecimento do STF da
repercussão geral do debate sobre a ED acerca dos limites da liberdade de escolha sobre os
meios de educar segundo as convicções religiosas, morais, pedagógicas e políticas, no Brasil,
é possível obter o certificado de conclusão do ensino médio através do ENEM5.
Outra questão que chama a atenção são os pedidos de ingresso na ação judicial de
entes públicos e privados na qualidade de amicus curiae6; tais como Procuradorias-Gerais e
entidades ligadas ao ED no Brasil. Ao que fica claro, a judicialização do debate sobre a ED
lança luzes sobre o problema da imunização do sujeito-corpo, daquilo que é o comum – o
negativo da immunitas; entretanto, a emergência deste debate também abre frestas para um
limiar até então obscuro, ou seja, a judicialização.
Esta emerge aqui como uma possível arena, onde o problema dos regimes de
verdade desenvolvidos alhures por M. Foucault no Collège de France vem à tona e o
dispositivo imunitário que, no primeiro momento, vem transfigurado pelo discours que
confina os processos de subjetivação ao campo do privado. O paradigma imunitário não se
relaciona somente com a vida, contudo este se articula com sua conservação. Parece-nos que
a ED e os seus arautos desejam conservar algo, mas o quê?
A vida nunca se manifesta distante das relações de poder, assim como não existe um
poder externo à vida. A política não é senão a condição de possibilidade de se conservar ou,
melhor dizendo, trata-se de um possível dispositivo de conservação de uma forma-de-vida.
Cabe-nos analisar como o paradigma imunitário, o discurso e a forma-de-vida encontram-se
decalcados na ED, formando uma espécie de diagrama.

2. IMMUNITAS, DISCURSO E A FORMA-DE-VIDA COMO DIAGRAMA DA


EDUCAÇÃO DOMÉSTICA (HOMESCHOOLING)

O tema da biopolítica tem sido discutido por diversos pensadores no campo da


filosofia durante o século XX. De Foucault a Agamben até Esposito, o caminho investigativo
5
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) é o exame geral de admissão aos cursos de ensino superior nas
universidades brasileiras.
6
A figura do amicus curiae é regulado pelo artigo 138 do Código de Processo Civil Brasileiro “tem suas origens
no direito romano, sendo que no direito norte-americano deu-se o seu maior desenvolvimento, com fundamento
na intervenção de um terceiro desinteressado em processo em tramite com o objetivo de contribuir com o objetivo
de contribuir com juízo de formação de seu convencimento.” (ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. Novo
Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Editora JusPodivm, 2016, p. 223.

333
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

da biopolítica difere-se no aspecto metodológico com qual o dispositivo biopolítico é


compreendido; em suas distintas matizes. Tanto G. Agamben quanto R. Esposito encontram-
se inseridos na tradição do pensamento biopolítico italiano, entretanto, ambos apresentam
caminhos disjuntivos para compreensão da narrativa do biopoder dos séculos XX e XXI,
especialmente no estudo da experiência extrema deste: o campo de concentração.
L.A. Ribeiro (2012) pondera que a reflexão agambeniana não se propõe a seguir o
método proposto por M. Foucault, entretanto, mantém-se próxima, ao menos
metodologicamente, do autor francês7. Isso posto, é importante trazer à baila que, G.
Agamben, ao contrário de Foucault, situa a relação entre o Poder Soberano e a biopolítica na
Antiguidade; já M. Foucault detecta a partir dos dispositivos de gestão da população nos
séculos XVIII e XIX, o elemento biopolítico.
R. Esposito (2010), na obra “Bios: Biopolítica e Filosofia” se distancia de ambos –
Foucault e Agamben – e pretende empreender uma trajetória própria acerca da relação entre o
político e o biológico a partir, como próprio autor italiano afirma, das lacunas deixadas por
Foucault ao longo de suas reflexões sobre a biopolítica durante a década de 1970; na qual
aponta as obscuridades acerca da dimensão histórica do biopoder. Neste sentido indaga R.
Esposito se:

A biopolítica precede, segue ou coincide temporariamente com a modernidade?


Tem uma dimensão histórica, epocal ou primeva? Também sobre esta interrogação
– decisiva posto que ligada logicamente à interpretação da nossa
contemporaneidade - a resposta de Foucault não totalmente clara no sentido que
oscila entre uma atitude continuísta e uma outra inclinada a marcar os limiares
diferenciadores. (ESPOSITO, 2010, p. 24).

Para Esposito (2010), o pensador francês ao não avançar com maior profundidade
na caixa preta da biopolítica permite o estabelecer da incerteza epistemológica por não
instituir um elo entre o biopoder e a modernidade, ensejando, ipso facto, em aporias
intransponíveis. Deste modo, o autor italiano sugere como viés de superação daquela aporia
enjeitada pela tradição foucaultiana a ideia de imunização8.

7
RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. The foucaultian archaeological method in Giorgio Agamben. 25th IVR World
Congress: Law science and technology. Paper series n. 97/2012 Series B. Human Rights, Democracy;
Internet/intellectual property, globalization. Frankfurt am Main: Goethe Universität. Conference paper, August,
2012. Disponível em
<https://www.researchgate.net/publication/282117453_The_Foucaultian_Archaeological_Method_in_Giorgo_A
gamben> . DOI: 10.13140/RG.2.1.1136.6884.
8
ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010, p.
24.

334
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

É exatamente neste ponto – a imunização9 - que se insere a análise deste


acontecimento chamado de homeschooling10 ou educação doméstica, cuja a metodologia de
ensino consiste, em apertada síntese, no isolamento do sujeito-educando pela família a fim de
ser educado conforme determinados paradigmas introjetados por seus genitores ou tutores.
Neste sentido, trata-se, de certa maneira, de uma categoria de resistência em desfavor da
agenda governamental dada voltada para uma determinada forma-de-educar.
A segunda baliza que sustenta a presente análise transitará pelo conceito da forma-
de-vida desenvolvida por G. Agamben, na 3ª Parte da obra, “Altíssima pobreza11“, onde o
autor italiano compreende o sentido da palavra forma:

(...) neste caso, ‘exemplo, ‘paradigma’, mas a lógica do exemplo não é de modo
algum simples, e não coincide com a aplicação de uma lei universal. Forma vitae
designa, neste sentido, um modo de vida que, ao aderir estreitamente a uma forma
ou modelo, de que não pode ser separado. (AGAMBEN, 2014, p.101).

Recapitulando, duas são as grades de sustentação teóricas que embasarão as


eventuais aporias que circundam a problemática da educação doméstica: o paradigma da
imunização [imunitas] em R. Esposito e a forma-de-vida presente no sistema de pensamento
agambeniano. A questão aqui depurada não passa pela análise da educação doméstica em seu
sentido ôntico, suas técnicas, metodologias e processos de aprendizagem, entretanto, trata-se
de utilizá-la como ferramenta para refletir sobre os possíveis elementos biopolíticos que esta
forma-de-educar pode apresentar em determinadas circunstâncias. O isolamento e a
segregação dos sujeitos-educandos pelas respectivas famílias podem revelar forças que
habitam nas profundezas das práticas sociais quotidianas e, de certa maneira, naturalizadas.

9
Sobre o paradigma da imunização, ver ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas
da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.
10
Em linhas gerais, Homeschooling, also called home education, educational method situated in the home rather
than in an institution designed for that purpose. It is representative of a broad social movement of families, largely
in Western societies, who believe that the education of children is, ultimately, the right of parents rather than a
government. Beginning in the late 20th century, the homeschooling movement grew largely as a reaction against
public school curricula among some groups. Tradução livre: “‘Homeschooling’, também denominada educação
doméstica, trata-se de um método educacional situado no ambiente doméstico, ao invés de ser operacionalizada
nas instituições criadas para este propósito. Representado por um considerável movimento social de famílias, em
sua maioria nas sociedades ocidentais, que acreditam que a educação da criança é, em última análise, o direito
dos pais ao contrário de ser uma tratativa ou imposição governamental. Iniciado no século XX tardio, o
movimento do ‘homeschooling’ cresceu amplamente como uma reação de alguns grupos contra o currículo das
escolas públicas.”. (BRITANNICA ACADEMIC. Disponível em http://academic-eb-
britannica.ez24.periodicos.capes.gov.br/levels/collegiate/article/homeschooling/488637
11
AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza: Regras monásticas e formas-de-vidas. Tradução de Selvino J.
Assmann. 1ª Edição. Coleção: Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2014.

335
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Entretanto, desde da emergência do modelo de Estado social, ora catalisado durante


o século XX, a educação da população emerge como uma importante agenda; tanto que chega
ao ponto de ser alçada à categoria de um direito fundamental do cidadão. O conceito de
‘cidadão’ positivado no Estado liberal pós-revolucionário na Declaração Universal dos
Direitos dos Homens e do cidadão (1791) trazia em si os ressentimentos de uma visão de
mundo calcado no privilégio e na linhagem e no desejo, ainda que não dito, do banimento da
ideia de desigualdade dos homens com fulcro na linhagem familiar.
Era no sangue que se encontrava gravado a desigualdade entre os homens que, por
sua vez, eram decididas na álea do nascer. De acordo com D. Laêrtios (2014), Platão, verbi
gratia, remetia sua descendência a Sólon e Gláucon que, de acordo com Trásilos (apud
LAÊRTIOS, 2014, p.85), a linhagem de Platão o conduzira até Poseidon12.
O que é importante dizer, a partir desta digressão, é que a ideia de desigualdade dos
homens não se constituía exclusivamente no plano político, todavia, o arquétipo aristocrático
fundado na linhagem sobreviveu até o século XVIII tardio e, de certa maneira, definia a
fortuna dos homens no acesso a forma-de-educar. As Revoluções liberais e seus
ressentimentos romperam com o paradigma do sangue e a fortuna do nascer e trouxeram
para o sistema legal o discurso da igualdade dos homens. Entretanto, o modelo liberal de
Estado ou modelo negativo prometera a mínima intervenção na dimensão privada.
Como já dito alhures, o Estado social insere a educação na agenda de Estado;
alçando-a na categoria de direito fundamental. Em outras palavras, compete neste momento
ao Estado prover a educação da população positivamente, todavia sua pretensão jaz na
ampliação do alcance das políticas educacionais sobre os cidadãos através das instituições
públicas; perfilando-se como uma espécie de antítese do Estado negativo não-
intervencionista.
Tomemos o seguinte exemplo trazido por C.R. Jamil Cury (1998) sobre a
Constituição de Weimar. Segundo o Cury (1998), o artigo 143 da Constituição do Reich
define como papel das instituições públicas a educação da juventude, inclusive há no mesmo
dispositivo legal a previsão de colaboração entre os Estados e Municípios13, sendo a educação
submetida a inspeção do Reich, podendo este delegar o encargo aos Municípios.

12
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vida e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego de Mário da Gama Kury. 2ª
Edição. Brasília: Editora UNB, 2014, p. 85.
13
CURY, Carlos Roberto Jamil. A constituição de Weimar: Um capítulo para a educação. Educ. Soc., Campinas ,
v. 19, n. 63, p. 83-104, Aug. 1998. Disponível em

336
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Por fim, outra questão digna de nota se situa no campo da obrigatoriedade


educacional da população imposta pela Constituição de Weimar que estabelece um mínimo
de oito anos de escolarização14. Outra questão importante é o número de artigos que a
Constituição de Weimar dedica à educação, conforme reporta C. R. Jamil Cury (1998):

A primeira constatação é o elevado número de artigos (nove) no capítulo referente à


educação. E mais: eles são analíticos, com uma intensidade de redação por vezes
minuciosa. A educação escolar goza da garantia constitucional. A seguir, pode-se
assinalar quatro grandes ideias que dominam o conjunto destes artigos. Primeira:
investir em educação é apostar no presente e no futuro do Reich uma vez que ela é
considerada peça estratégica no soerguimento da nação. Daí o detalhismo na
própria Constituição. Segunda: busca-se uma democratização da educação escolar,
via sistema nacional, que contemple a escola primária única, gratuita e obrigatória
para todas as classes sociais e para todos os cidadãos alemães sem quaisquer
discriminações. Terceira: a busca de um acordo mínimo em torno da questão do
ensino religioso, penosamente obtido. Criou-se, pois, uma multiplicidade
institucional de escolas públicas: umas com regime laico, outras com regime
confessional e outras com regime interconfessional. Finalmente, tem-se a presença
forte do Estado no sentido de ser ele o titular da educação escolar. Só ele tem a
capacidade jurídica de inspecionar estabelecimentos, de autorizar a abertura de
escolas privadas, de restringir a amplitude da liberdade de ensino e de interferir na
educação religiosa. (CURY, 1998, p. 83-104).

Historicamente, percebe-se que a experiência alemã considerava a educação como


elemento estratégico à própria sobrevivência do Reich e, em certo grau, definia o papel da
educação no Estado Social. É importante que se reflita, antes de adentrarmos no tema central
desta comunicação, ou seja, a educação doméstica como uma reação imunitária a forma-de-
educar própria dos Estados Sociais segundo um currículo comum a priori definido por estes.
Ora, a potência imunitária da educação doméstica se esforça em escapar “para fora”
do direito educacional estatal para seguir outro paradigma e; propor, desta maneira, uma
outra forma-de-educar “fora do Estado”. É mister que façamos neste momento o
desenvolvimento da primeira baliza desta análise que, lança luzes sobre a educação doméstica
(homeschooling). Pode este elemento se constituir um dispositivo biopolítico de imunização?
R. Esposito (2010) afirma ter encontrado no paradigma da imunização uma espécie
de chave interpretativa que teria escapado de M. Foucault segundo o qual a categoria de

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000200006&lng=en&nrm=iso . acesso
em 24.09.2017.
14
“Art. 145: O ensino é obrigatório para todos. Para atender a esta tarefa haverá escolas nacionais com um
mínimo de 8 anos de escolaridade. Haverá também escolas complementares até que o indivíduo complete 18
anos. O ensino e o material escolar são gratuitos tanto nas escolas nacionais quanto nas complementares.” (In:
CURY, Carlos Roberto Jamil. A constituição de Weimar: Um capítulo para a educação. Educ. Soc., Campinas, v.
19, n. 63, p. 83-104, Aug. 1998. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
73301998000200006&lng=en&nrm=iso . acesso em 24.09.2017).

337
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

“imunidade” se posiciona na encruzilhada entre as esferas do direito e da vida (ESPOSITO,


2014, p. 73). No âmbito biomédico, a imunização se refere, para R. Esposito (2010), uma
espécie de “condição de refrangibilidade, natural ou induzida, em relação a uma dada
doença por parte de um organismo vivo, em linguagem jurídico-política refere-se à isenção
temporária ou definitiva, de um sujeito em relação a determinadas obrigações, ou
responsabilidades, às quais normalmente está vinculado”15.
Para o referido autor, a noção de biopolítica em M. Foucault é de outra natureza; ou
seja, é compreender a trilha percorrida pelo autor francês a partir da genealogia nietzschiana o
qual este se anela metodologicamente, o pensamento biopolítico foucaultiano também emerge
nas entranhas deste movimento; nasce a biopolítica a partir da emergência de determinadas
forças; posto que esta não se encontra gravada na origem (Entestehung)16.
A emergência das forças, na perspectiva de Foucault, atuará, mutatis mutandi, sob a
forma de dispositivos (de segurança) na gestão (indireta) da população, visto que esta ostenta
em si uma certa espessura. Foucault olha para a história, no seu sistema de pensamento do
como uma espécie de história do “presente”; neste sentido, G. Agamben também segue nesta
direção.
A biopolítica foucaultiana se apresenta como uma emergência da Modernidade;
tornando-se a tática hegemônica do exercício do poder, entre os séculos XVIII e XIX. Em
nenhum momento, Foucault afirma que a biopolítica nasceu com o fim da soberania,
entretanto, esta emerge quando a soberania deixa de ser um conjunto de dispositivos

15
ESPOSITO, Roberto. Op. cit., p. 74.
16
“Entestehung designa de preferência a emergência, o ponto de surgimento. Do mesmo modo que se tenta
muito frequentemente procurar a proveniência em uma continuidade em interrupção, também seria errado dar
conta da emergência pelo tempo final. Como se o olho tivesse aparecido, desde o fundo dos tempos, para a
contemplação, com se o castigo tivesse sido destinado a dar o exemplo. Esses fins, aparentemente últimos, não
são nada mais que o atual episódio de uma série de submissões: o olho foi primeiramente submetido à caça e a
guerra; o castigo foi alternativamente submetido a necessidade de se vingar, de excluir o agressor, de se libertar
da vítima, de aterrorizar os outros (...) A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não a
potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações. A emergência se produz sempre em um
determinado estado de forças.” (FOUCAULT, Michel. Nietzsche, A genealogia e a história. Tradução de
Marcelo Catan. In: Microfísica do Poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 26ª
Edição. São Paulo: Editora Graal, 2013, p. 66.

338
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

hegemônicos de exercício do poder17. Em R. Esposito, é na Modernidade que a biopolítica


adquire seu caráter imunitário18.
Na tradição do pensamento biopolítico italiano, aqui estão inseridos R. Esposito e G.
Agamben, a biopolítica tão antiga quanto a própria soberania19; em R. Esposito, esta se
apresenta na forma do paradigma imunitário que:

Fora da qual se devia falar da biopolítica desde o mundo antigo. Alguma vez, com
efeito, penetrou mais o poder na vida biológica do que na longa fase em que o
corpo dos escravos estava plenamente à mercê do domínio incontrolado dos seus
patrões e os prisioneiros de guerra podiam ser legitimamente passados à fio de
espada pelos vencedores? E como não conotar em termos biopolítico o poder da
vida e da morte exercido pelo pater famílias romano em relação aos próprios filhos?
(...) A única resposta que me parece plausível refere-se justamente à intrínseca
conotação imunitária destas últimas, ausente pelo contrário do mundo antigo.
(ESPOSITO, 2010, p. 83)

R. Esposito (2010) não se limita a olhar o elemento biopolítico sob o viés da gestão
da população, ao exemplo de Foucault, apesar de reconhecer a originalidade das suas
reflexões sobre o tema20, entretanto, se esforça em apresentar um novo limiar; o novo
horizonte de conceitos e paradigmas no qual a biopolítica se assentaria e, deste modo, uma
estrutura, até então, oculta tanto a Foucault quanto para Hannah Arendt. O primeiro não
incluiu o campo de concentração como topos no qual a relação entre política e vida é levada
ao seu extremo horror. Quanto à segunda, em seu estudo sobre o totalitarismo não anelou os
conceitos de animal laborans e homo faber, ambos presentes n’A Condição Humana.
O esboço geral dos conceitos da biopolítica, de Foucault a Esposito, pode nos ajudar
a compreender os elementos que circundam a relação entre a educação doméstica
(homeschooling) e a immunitas nos oferece uma outra perspectiva de análise. Diante deste
cenário, indagamos: O que a educação doméstica deseja conservar? Contra “o que” e
“contra quem”, os arautos da ED pretendem imunizar? E qual é a relação entre a
educação doméstica e o paradigma imunitário? Pode esta forma-de-educar se constituir

17
Neste sentido, ver. RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Notas de aula ministrada em 12.12.2016. Disciplina: Justiça
Social I: A filosofia em Roberto Esposito. Curso ministrado no Programa de Pós Graduação em Sociologia e
Direito (PPGSD). Universidade Federal Fluminense (UFF), Faculdade de Direito, Niterói – RJ, 1º Semestre de
2017.
18
RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Ibidem.
19
ESPOSITO, R. Op. cit. p. 83.
20
ESPOSITO, R. Op. cit.

339
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

como um dispositivo? Ora, são questões que apresentam no limiar do direito e a forma-de-
vida que passamos a comentar.
Um possível traço semiótico que torna possível a análise deste problema são os
2122
discursos dos defensores desta forma-de-educar. É importante sublinhar que,
metodologicamente, o que se chama de discurso aqui se apresenta como uma espécie de
ferramenta para se investigar algo que reside nas profundezas do impronunciável23; que se
pronuncia, contudo tal pronunciamento se localiza no campo do inaudível, na zona de
indiscernibilidade entre o “dentro e fora do direito”.
Sobre o discurso e sua relação com o conceito de arquivo, M. Foucault elucidou que
estes são os “discursos efetivamente pronunciados” (FOUCAULT, 2015, p. 151), entretanto,
não somente de um conjunto de acontecimentos ocorridos ao longo dos processos históricos,
e uma vez esgotados, foram relegados aos seus “porões”, muito pelo contrário, trata-se de
uma condição de possibilidade à emergência de outros discursos, ainda que revisitados. Neste
sentido, o autor francês entende o arquivo24, como:

(...) O conjunto de discursos efetivamente pronunciados; e esse conjunto é


considerado não somente como um conjunto de acontecimentos que teriam
ocorrido uma vez por todas e que permaneceriam suspensos, nos limbos ou no
purgatório da história, mas também como um conjunto que continua a funcionar, a
se transformar através da história, possibilitando o surgimento de outros discursos
(FOUCAULT, 2015, p.151).

21
Por ora, entende – se o “discurso” no sentido dado pela Teoria Social que consiste no “modo de falar e pensar
sobre um assunto, unido por princípios comuns. Seu intuito pe estruturar a compreensão e as ações das pessoas
sobre determinado assunto.” (GIDDENS, Anthony. SUTTON, Philip. Conceitos essenciais da sociologia.
Tradução de Cláudia Freire. 1ª Edição. São Paulo: Editora UNESP, 2016, p.7).
22
Sobre a relação entre o discurso, poder e os regimes de veridicção, M. Foucault ponderou que “era o discurso
que pronunciava a justiça e atribuía cada qual a sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não
somente anunciava o que se ia passar, mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se
tramava assim o destino.” (FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida
Sampaio. 6ª edição. Coleção Leituras Filosóficas, São Paulo: Editora Loyola, 2000, p. 15).
23
“A intenção do sujeito falante, sua atividade consciente, o que ele quis dizer, ou ainda o jogo inconsciente que
emergiu involuntariamente do que disse ou da quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas; de
qualquer forma, trata-se de reconstruir um outro discurso, de descobrir a palavra muda, murmuramente,
inesgotável” (FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8ª edição (5ª
tiragem). Rio de Janeiro: Editora Gen/Forense Universitária, 2016, p. 33).
24
FOUCAULT, M. Entrevista com J.- J. Brochier. “Michel Foucault explica seu último livro”. Publicado na
Magazine littéraine, n. 28, abril-maio de 1969, p.23-25. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II: Arqueologia das
ciências e história dos sistemas de pensamento. Organização: Manoel Barros da Motta. 3ª edição. 2ª Reimpressão.
Rio de Janeiro: Editora Gen/Forense Universitária, 2015, p.151.

340
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A relação entre o discurso, conforme já exposto por Foucault no último fragmento, e


os acontecimentos no mundo da vida (Lebenswelt)25 pode apontar um caminho investigativo
que relacione a ED e o paradigma da imunização espositano, ainda que indiretamente. O
conjunto de discurso pronunciados performado por sujeitos falantes que ostentam em si as
expectativas e frustrações adquiridas nas dimensões social, cultural e até política do mundo da
vida pretendem, como finalidade última, ensejar em efeitos sobre os demais sujeitos falantes.
E. Husserl (2008) conceitua o mundo da vida como um mundo circundante vital;
local onde as subjetividades capturam e constroem seus sentidos, refutando o reducionismo
radical do mundo objetivo26. Para a fenomenologia de E. Husserl, o reducionismo do objetivo
deixa escapar:

(...) o fundamento permanente do seu trabalho mental, subjetivo, é o mundo


circundante (Lebensumwelt) vital, que constantemente é pressuposto como base,
como o terreno da atividade, sobre o qual suas perguntas e seus métodos de pensar
adquirem um sentido (HUSSERL, 2008, p. 83).

O mundo da vida forma contextos e processos de entendimento (HABERMAS,


2012, p. 248) como é o caso dos sujeitos que desejam educar a prole, segundo determinados
mandamentos ditos tradicionais, pois compreendem que o ato de educar, devem conter certos
valores religiosos. Por esta razão, a importância da relação realizada por E. Husserl dos
sujeitos que transitam, culturalmente, no mundo da vida.
A perspectiva dos participantes em relação ao mundo da vida cotidiano27, a
dimensão sociocultural deste mundo, pode se tornar algo fundamental ao entendimento das
representações narrativas28. Para o filósofo alemão: “quando os participantes da interação,
voltados “ao mundo”, reproduzem, mediante suas realizações de entendimento, o saber

25
Mundo da vida (Lebenswelt) é considerado aqui, no sentido husserliano como “o mundo histórico-cultural
concreto, sedimentado intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre os quais se encontra a
imagem de mundo elaborada pelas ciências. O Lebenswelt é o âmbito de nossas originárias ‘formações de
sentido’, do qual nasce as ciências. (...) Segundo Husserl, é preciso recolocar a subjetividade transcendental no
centro da reflexão.” (ZILLES, Urbano. A fenomenologia husserliana como método radical. In: HUSSERL,
Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia, Introdução e tradução de Urbano Zilles. Coleção Filosofia
41. 3ª Edição. Porto Alegre: Editora EdPUCRS, 2008, p. 45).
26
HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia, Introdução e tradução de Urbano Zilles.
Coleção Filosofia 41. 3ª Edição. Porto Alegre: Editora EdPUCRS, 2008, p. 83.
27
HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo: Sobre a crítica da razão funcionalista. Volume 2. Tradução de
Flavio Beno Siebeneichler. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 251.
28
HABERMAS, J. Op. cit., 2012, p. 250-251.

341
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

cultural do qual nutrem, eles reproduzem ao mesmo tempo sua identidade e sua pertença a
coletividades”29. J. Habermas (2012) escreve que:

O conceito “mundo da vida cotidiano, que tomamos como ponto de referência para
representações narrativas, tem de passar por uma reelaboração antes de ser utilizado
teoricamente na formulação de proposições sobre a reprodução e/ou
automanutenção de mundos da vida estruturados comunicativamente. Na
perspectiva dos participantes, o mundo da vida é dado apenas como contexto
formador do horizonte de determinada situação da ação; já o conceito cotidiano de
mundo da vida, pressuposto na perspectiva do narrador, é utilizado para fins
cognitivos. (HABERMAS, 2012, p.251).

É neste ponto que, o discurso, a comunicação e o mundo da vida se articulam para


formar uma espécie de diagrama ou grade onde a immunitas inscrita no interior das formas-
de-vida que, de certa maneira, reforça, as reativações de determinados saberes e práticas que,
até então aparentemente se encontravam hibernadas nas profundezas do modo liberal de
governar próprio do Estado liberal. Ou seja, a antítese do modelo de educar segundo o
modelo de Estado Social e da Constituição de Weimar não emerge na dimensão jurídica ou
política, entretanto, na dimensão cultural dos participantes.
Entretanto, em que consiste tal a finalidade? Parece-nos que a questão gravita em
torno da racionalização da ação dos demais indivíduos; nos seus efeitos e repercussões no
mundo da vida. No problema em comento, a naturalização do paradigma imunitário de
educar; isolando-o das relações de co-presença30 que a escola da pluralidade e das tensões e
potências que o encontro das diversas imagens de mundo. A reivindicação dos apologistas da
educação doméstica ou domiciliar rompe com a educação pública aqui entendida em sentido
lato; como um serviço público ainda que seja exercida pela gestão privatista.
A conservação de uma forma-de-vida – a partir de um compêndio de valores
ancorados na tradição judaico-cristã – parece emergir indiretamente através da
homeschooling. Para os adeptos, esta forma-de-vida é mais que uma escolha, contudo, esta
pertence ao patrimônio jurídico-legal daqueles; oposto a prescrição legal dos modelos de

29
HABERMAS, J. Op. cit., 2012, p. 255.
30
Como devemos entender o termo “co-presença”? De acordo com Goffman, e também com meu emprego aqui,
co-presença está estribada nas modalidades perceptíveis e comunicativas do corpo. As condições chamadas por
Goffman ‘condições plenas de co-presença’ são encontradas sempre que os agentes “sempre estar
suficientemente próximos para serem percebidos em sua ação, seja esta qual for, incluindo sua experiência de
relação com os outros e, para serem percebidos neste sentir ser percebidos.” (GIDDENS, Anthony. A
constituição da sociedade. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009, p. 78-79.

342
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Estado social, conforme já dito aqui alhures. A homeschooling pretende colocar-se fora do
direito a partir do próprio direito em jogo binário de exclusão – inclusão.
O sentido de forma-de-vida concedido nesta elongação encontra-se inserida na
reflexão agambeniana dado na “Altíssima Pobreza”, que é parte do projeto Homo Sacer.
“Forma” no sentido agambeniano toca o sentido do “paradigma”. G. Agamben esclarece que
a

Forma vitae designa, neste sentido, um modo de vida que, ao aderir estreitamente a
uma forma ou modelo, de que não pode ser separado, se constitui por isso mesmo
como um exemplo (...) para que se transmitisse aos homens o exemplo de vida a ser
vivida (AGAMBEN, 2014, p. 101).

A ED traz em si decalcada em sua linguagem a forma-de-vida que se deseja


alcançar; modulada a partir da dogmática religiosa. Para tanto, retira-se, esvazia-se, do Estado
o direito de educar segundo determinados paradigmas ou eventuais cálculos de utilidade. As
insatisfações declaradas por seus arautos se transformam em elementos jurídicos inseridos no
processo judicial; naquilo que M. Foucault já chamou nos regimes de veridicção31.
As questões levantadas por Agamben (2014) ao analisar sobre os princípios
franciscanos e as regras monásticas a fim de se construir o conceito de forma-de-vida ou seja,
“uma vida que vincule tão estreitamente a sua forma a ponto de ser inseparável dela”32. A
ED quer se separar da vida do comum para enveredar-se aos caminhos da immunitas.
Ora, ED, aqui observada sob a perspectiva apresentada, propõe com uma forma-de-
educar ancorada nos fundamentos da teologia cristã, com a potência necessária para se
apresentar como um dispositivo de regulação da vida e ao mesmo tempo, um dispositivo33 de
subjetivação que inculca os sujeitos para o intolerável segundo suas liturgias e crenças. Caso a
ED seja regulamentada no Brasil, diante desta imunização da vida: Indaga-se: Quais seriam as
consequências caso este paradigma se torne a regra?

31
Sobre os regimes de veridicção, ver FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de
France (1978-1979). Aula de 17 de janeiro de 1979. p. 4São Paulo: Martins Fontes Editores. p.49.
32
AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza: regras monásticas e forma de vida. Tradução de Selvino J. Assmann.
1ª Edição. São Paulo: Editora Boitempo, 2014, p. 101.
33
O dispositivo é o conjunto homogêneo, linguístico e não linguístico que, inclui virtualmente qualquer coisa no
mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo
em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. (In: AGAMBEN, Giorgio. O que é o dispositivo?
O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos Editora, p.
29.

343
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O horizonte da immunitas está se deslocando diante dos nossos olhos, seja pelo
discurso, seja pela judicialização, fato é que os traços de um diagrama formador de um
dispositivo aponta para o aberto; um campo movediço de indecibilidades; a ED emerge como
esforço de se conservar, ao exemplo das regras monásticas, uma única forma-de-vida, onde o
pluralismo ou a convivência das diversas formas não são toleráveis; prefere-se então como
alternativa sombria, imunizar.

CONCLUSÃO

Diante da presente análise pretendeu-se lançar luzes sobre um tema que a priori
encontrava-se adstrito aos círculos das discussões pedagógicas sobre metodologias de ensino
que podem ser aplicadas no processo de ensino-aprendizagem. Com a judicialização da ED
ou homeschooling ante a falta de regulamentação legal, cria-se um “vazio de direito”,
abrindo-se artérias para que outras anomias emerjam. O “direito de educar” se consolida com
o surgimento do Estado Social; gerando uma espécie de vis attractiva ao Estado em prover a
educação da população. Presente na Constituição de Weimar, o direito de educar a população
foi repetido em diversos sistemas constitucionais, inclusive no direito brasileiro.
O que chama a atenção na experiência brasileira da ED é o discurso conservador
fundado no paradigma cristão para se justificar a sua utilização, abdicando-se do sistema
público de ensino. Atualmente, a questão chega ao STF, superando o debate local ou um
mero inconformismo de uma família confessante de uma certa fé e, adquire o status
constitucional de se estabelecer como uma alternativa para se educar, podendo inclusive
suprimir teorias que, eventualmente, conflitem com as crenças teológicas.
A homeschooling, neste contexto, adquire uma potência imunitária de se isolar toda
a convivência com os demais sujeitos que não comungam com a teologia praticada. Nesta
guisa, as relações de co-presença que o ambiente escolar pode proporcionar aos sujeitos
encontra-se em xeque. Mas o que pode surgir daí? Diante do sucateamento da estrutura
pública de ensino no Brasil, que indubitavelmente ostenta seus problemas, entretanto, mesmo
com tantas condicionantes, as instituições públicas de ensino oferecem os espaços de co-
presença e a exposição a pluralidade das diversas imagens de mundo. Contrario sensu, o
paradigma da ED coloca o sujeito em ‘isolamento’, e privado da co-presença.

344
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Mas qual o flanco que se abre ante a este estado de coisas? É difícil dizer. Quais
seriam as consequências, caso a ED se torne não só uma opção juridicamente possível, mas
um paradigma? Ou um instrumento para se imunizar o sujeito das relações de co-presença.
Basta “judicializar” o debate para que uma “verdade” seja revelada, confirmada ou, como já
disse M. Heidegger, a judicialização da ED confirma um “desvelar” da verdade? São apenas
questões, são inquietações que circundam o debate que ainda se encontra fora do alcance da
sociedade ou, como prefere J. Habermas chamar, de concernidos. Mas como dizemos são
questões, apenas questões.

REFERENCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza: Regras monásticas e formas-de-vidas. Tradução de Selvino J.


Assmann. 1ª Edição. Coleção: Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2014.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o dispositivo? O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinicius
Nicastro Honesko. Chapecó: Argos Editora

ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Editora
JusPodivm, 2016, p. 223.

BRASIL. República Federativa. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 888.815/RS, Relator:
Luís Roberto Barroso.

BRITANNICA ACADEMIC. Disponível em http://academic-eb-


britannica.ez24.periodicos.capes.gov.br/levels/collegiate/article/homeschooling/488637

CURY, Carlos Roberto Jamil. A constituição de Weimar: Um capítulo para a educação. Educ. Soc., Campinas , v.
19, n. 63, p. 83-104, Aug. 1998. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000200006&lng=en&nrm=iso .
acesso em 24.09.2017.

ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e filosofia. Tradução de M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8ª edição (5ª tiragem). Rio de
Janeiro: Editora Gen/Forense Universitária, 2016.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 6ª edição. Coleção
Leituras Filosóficas, São Paulo: Editora Loyola, 2000.

FOUCAULT, M. Entrevista com J.- J. Brochier. “Michel Foucault explica seu último livro”. Publicado na
Magazine littéraine, n. 28, abril-maio de 1969, p.23-25. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II: Arqueologia
das ciências e história dos sistemas de pensamento. Organização: Manoel Barros da Motta. 3ª edição. 2ª
Reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Gen/Forense Universitária, 2015.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 42º Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Aula de 17 de
janeiro de 1979. São Paulo: Martins Fontes Editores.

345
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, A genealogia e a história. Tradução de Marcelo Catan. In: Microfísica do
Poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 26ª Edição. São Paulo: Editora Graal,
2013.

GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2009.

GIDDENS, Anthony. SUTTON, Philip. Conceitos essenciais da sociologia. Tradução de Cláudia Freire. 1ª
Edição. São Paulo: Editora UNESP, 2016.

HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo: Sobre a crítica da razão funcionalista. Volume 2. Tradução de
Flavio Beno Siebeneichler. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia, Introdução e tradução de Urbano Zilles.
Coleção Filosofia 41. 3ª Edição. Porto Alegre: Editora EdPUCRS, 2008.

LAÊRTIOS, Diôgenes. Vida e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego de Mário da Gama Kury. 2ª
Edição. Brasília: Editora UNB, 2014.

RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Notas de aula ministrada em 12.12.2016. Disciplina: Justiça Social I: A filosofia
em Roberto Esposito. Curso ministrado no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD).
Universidade Federal Fluminense (UFF), Faculdade de Direito, Niterói – RJ, 1º Semestre de 2017

RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. The foucaultian archaeological method in Giorgio Agamben. 25th IVR World
Congress: Law science and technology. Paper series n. 97/2012 Series B. Human Rights, Democracy;
Internet/intellectual property, globalization. Frankfurt am Main: Goethe Universität. Conference paper, August,
2012. Disponível em
<https://www.researchgate.net/publication/282117453_The_Foucaultian_Archaeological_Method_in_Giorgo_
Agamben> . DOI: 10.13140/RG.2.1.1136.6884.

VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. Educação na casa: perspectivas de desescolarização ou liberdade de


escolha? Revista eletrônica Pro-posições. Vol.28, número 2: Campinas Maio-Agosto 2017. ISSN 1980-6248.

ZILLES, Urbano. A fenomenologia husserliana como método radical. In: HUSSERL, Edmund. A crise da
humanidade europeia e a filosofia, Introdução e tradução de Urbano Zilles. Coleção Filosofia 41. 3ª Edição.
Porto Alegre: Editora EdPUCRS, 2008.

346
A CONSTRUÇÃO DA “VERDADE”
E O FIM DAS ILUSÕES ACERCA DO INDIVÍDUO

MONTEIRO, Mariana L.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF (PPGSD-UFF)

RESUMO

O trabalho que ora se apresenta tem como objetivo colocar em questão o modelo de produção de
verdades construído sob o legado na modernidade filosófica, tendo como eixo de análise a percepção
individual do sujeito que as produz. Indivíduo enquanto uma entidade pronta e acabada, portador de
uma natureza fixa e imutável. Sujeito que goza de aparente privilegio sobre tudo o mais no real em
razão de uma distinta e pretensamente mais qualificada essência. Para reconstruir as condições que
permitiram a consolidação de uma narrativa que produz verdades, retomaremos a passagem o modelo
da palavra mágico-religiosa para o da palavra-diálogo, na Grécia Antiga (séculos VIII-VI), na qual se
dá a afirmação de um discurso racional, laico, em substituição ao simbólico-religioso. A emergência de
um espaço público em que o prestígio da palavra e a argumentação tornam-se dominantes, abrindo o
caminho para o estabelecimento de verdades tão inquestionáveis e dogmáticas quanto as religiosas...

Palavras-chave. Verdade, indivíduo, modernidade.

ABSTRACT

The following paper intends to enlight the truth-making model built over the modern philosophy
legacy, foccusing on the individual that leads this process. An individual as a finished entity that
carries within itself an estabilished and unchangeable essence, apparently priviledged in comparison
to everything else, due to a distinct and seemingly mode qualified nature. In order to rebuild the
conditions that allowed the setting of a narrative that creates truths, we shall retrace the passage from
the magical-religious word to the dialog-word, back in Ancient Greece (VIII-VI a.c), the milestone of
the setting of the rational speech, secular, that took over the religious-simbolic one. The rising of a
public arena in which the prestige of the words and arguments became dominants, paving the way to
the stabilishment of certain truths so certain and dogmatic as the religious ones…

Keywords. Truth, individual, modernity.

347
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A descrença de que haja uma verdade a ser revelada aos homens, pré-existente a
eles, remonta ao aparecimento da cidade1 e da vida social, que marcam a decadência da
palavra mágico-religiosa, entre os séculos VIII e VII, instituindo um espaço de domínio
público. Dá-se, assim, a transformação do saber esotérico, composto por dogmas impostos
aos homens de forma inquestionada, em um novo campo de sentido no qual prevalece a
palavra como instrumento de poder por excelência, diferente daquela palavra “intemporal;
inseparável das condutas e dos valores simbólicos; o privilégio de um tipo de homem
excepcional2“, presa a uma origem simbólico-religiosa. A emergência da cidade permitiu a
laicização palavra, afastando-a do ritual, da noção de justo, aproximando-a da discussão, do
debate, da argumentação e da retórica. A esse respeito, dirá Jean-Pierre Vernant:

“Historicamente, são a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das
formas do discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembleia e do
tribunal, abrem caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir, ao lado de uma
técnica da persuasão, regras da demonstração e ao pôr uma lógica do verdadeiro,
própria do saber teórico, em face da lógica do verossímil ou do provável, que
preside aos debates arriscados na prática3“.

As relações estabelecidas no contexto das diversas instituições gregas (assembleias


deliberativas, partilha do butim, jogos funerários) seguiam o modelo do espaço circular em
que cada um está em posição de igualdade com relação aos demais, ao redor do méson
(centro), em uma disposição espacial da qual derivarão as noções de publicidade e
comunidade. O centro representa o lugar do público (em oposição ao privado) e da
publicidade, noções fundamentais para a palavra-diálogo, “laicizada, complementar à ação,
inscrita no tempo, provida de uma autonomia própria e ampliada às dimensões de um grupo
social”. Este grupo social foi formado pelos guerreiros, entre os quais as relações não se
davam ao nível familiar, de parentesco, mas vinculando-se através de relações contratuais, o
que será determinante para o desenvolvimento determinadas estruturas de pensamento
claramente distintas do modo de pensar que se constrói tendo por base a palavra mágico-
religiosa. A palavra dos guerreiros é laica e necessariamente complementar à ação humana.
Não transcende aos homens, ao contrário, se funda nas relações entre eles, retirando sua força
da aprovação do grupo social.

1
A pólis grega.
2
Detienne, Marcel, Os mestres da verdade na Grécia Antiga. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988, p.45.
3
Vernant, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,1992, p.35.

348
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A vida em sociedade propiciou aos homens a experiência de viver sob uma lei e
uma ordem igualitárias, em substituição à velha dominação inconteste do monarca, bem como
a vivência de um espaço onde se encarnaram as instituições da polis grega: o espaço político.
A nova organização do espaço urbano reflete, de modo mais estrito, os esforços de se
organizar e racionalizar o próprio mundo humano. É possível notar que este novo quadro
espacial refletiu sobre a orientação geométrica própria da astronomia grega, demonstrando
clara “analogia de estrutura, entre espaço institucional no qual se exprime o cosmos humano e
o espaço físico no qual os milésimos projetam o cosmos natural4“. Decorre disto que a Ágora
materializa no plano dos homens a organização espacial, instituindo um lugar do comum,
onde todos que adentram identificam-se como iguais, em relações de clara reciprocidade.
No tocante à importância grega para o nascimento da linguagem, dirá Pierre Vidal-
Naquet

É na história da sociedade grega, do homem grego, que devemos procurar os traços


fundamentais que explicam o abandono voluntário do mito, a passagem das
estruturas organizadoras inconscientes – quero dizer, aquelas que não sabem que
são ‘lógicas’, no sentido em que nos procura mostrar (e consegue muitas vezes)
Lévi Strauss – a uma tentativa deliberada de descrever, ao mesmo tempo, o
funcionamento do Universo ( a razão dos ‘físicos’ jônicos e italianos) e o
funcionamento dos grupos humanos (a razão histórica, seja a de um Hecateu, de um
Heródoto ou de um Tucídides)5.

O prestígio da palavra e a argumentação tornam-se determinantes para o agir


político, tomando o lugar do prestígio pessoal ou religioso como fonte de validade e poder,
estatuto de verdade e poder. Já não se sustentam as versões ocultas, secretas, religiosas do
real, agora são os sábios que debaterão acerca das “verdades”. Observamos então a coroação
do racionalismo político em oposição aos antigos processos religiosos. Ainda que libertadora
da potência humana, essa nova prática das cidades excluiu o vulgo deste processo. As novas
“verdades” foram formuladas em termos desconhecidos a ele, excluindo-o. Segundo Vernant,
essa passagem da palavra mágico-religiosa para a palavra-diálogo

(...) leva o mistério para a praça pública; faz dele objeto de um exame, de um
estudo, sem deixar entretanto completamente de ser um mistério. Aos ritos de
iniciação tradicionais que proibiam o acesso às revelações interditas, a sophia e a
philosophia substituem outras provas: uma regra de vida, um caminho de ascese,
uma via de pesquisa que, ao lado das técnicas de discussão, de argumentação, ou

4
Vernant, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1992, p.91.
5
Naquet, Vidal Pierre, in prefácio a Detienne, Marcel, Os mestres da verdade na Grécia Antiga. Ed. Jorge Zahar,
Rio de Janeiro, 1988, p.8.

349
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

dos novos instrumentos mentais como as matemáticas, conservam em seu lugar


antigas práticas divinatórias, exercícios espirituais de concentração, de êxtase, se
separação da alma e do corpo6

Era na Ágora que, em assembleia política, iniciada pela pronúncia do arauto “Quem
quer trazer ao centro uma opinião prudente para a sua cidade?”, os homens levavam suas
opiniões ao centro, fazendo da linguagem um instrumento e consolidando um mundo de
maior autonomia do pensamento. Embora não tivesse origem divina, tampouco se pode
afirmar da palavra-diálogo que ela seja de uso de todos. Apenas os mais talentosos, mais
aptos, privilegiados, podiam fazer uso dela, em detrimento da massa (dêmos), que não tinha
direito de falar por não ser constituída por guerreiros, membros de uma elite. A palavra torna-
se o instrumento político por excelência, permitindo aos homens exercerem dominação uns
sobre os outros.
O desenvolvimento de práticas públicas, aliado ao prestígio da palavra, resultou
numa certa identificação entre os citadinos que, por mais diferentes entre si que pudessem ser,
terminavam por se equiparar, se assemelhar na arena pública. Tal semelhança tem como
efeito a produção de certa homogeneidade, uma unidade na polis, em oposição à relação
hierárquica de domínio anterior. O social não encontra-se mais tecido sobre a autoridade
soberana, submetido a um criador de predicados excepcionais. Na cidade é a ordem que rege
as relações entre os sujeitos, limitando sua ação (poder) e estabelecendo a supremacia da lei e
da ordem.
A esse processo de deslocamento da autoridade religiosa, transcendente, para a
verdade produzida no plano terreno, entre os homens que provassem seu valor publicamente,
segue-se outro efeito, não tão positivo. A exaltação do prestígio e do poder do indivíduo,
práticas marcadamente aristocráticas, aos poucos tendeu a catapultar este a um nível mais
elevado do que o desejado. Passam, assim, a ser rejeitadas práticas que estabelecem a
desigualdade entre os homens, afastando-os, criando desarmonia e cindindo a cidade, como
“a falta de comedimento, a ostentação da riqueza, o luxo das vestimentas, a suntuosidade dos
funerais, as manifestações excessivas da dor em caso de luto, um comportamento muito
ostensivo das mulheres, ou o comportamento demasiado seguro, demasiado audacioso da
juventude nobre7“. Esparta, repudiando a ostentação da riqueza, concentrava-se

6
Idem, ibidem. Pg.41
7
Idem, ibidem, pg.45.

350
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

exclusivamente na sua vocação guerreira, fechando-se em si mesma, rejeitando interferências


estrangeiras e, assim, a circulação das ideias. Proibia o comércio, a atividade artesanal,
desvalorizava as letras e mantinha-se longe de debates intelectuais. Novamente, trata-se de
um mundo regido pela lei e ordem, em que todos aqueles que tinham treinamento militar
possuíam igual status social, não estando sob o rei numa relação de submissão.
No que se refere à dualidade sujeito/mundo, Merleau-Ponty resgatará o valor do
corpo de modo que a consciência não pode ser pensada sem este, sendo mesmo a consciência
de um corpo, não existente em abstrato. Dirá: “o meu corpo é feito da mesma carne do mundo
(é um percebido) e que, além disso, desta carne do meu corpo participa o mundo8“. Ou seja,
aquele que conhece e o mundo produzido por ele, são um só. O que percebe e o percebido são
indiscerníveis, não há sujeito sem objeto nem objeto sem sujeito. Mundo e percepção não se
separam, o percebido e aquele que percebe estão necessariamente imbricados. Se assim é,
como algo pode ser tomado como verdade em abstrato, “de saída”, independente do olhar do
observador, deslocado da realidade concreta? O verdadeiro não precede ao indivíduo na
medida em que sequer existe antes dele.
Uma vez estabelecidas as bases sobre as quais se fundará a transição do pensamento
mágico-religiosa para o pensamento e racional, podemos compreender de que forma a
modernidade se constituiu, posteriormente, em projeto de neutralização das relações, o campo
de batalha do individualismo possessivo ou das relações que se estabelecem entre os homens
e as coisas (capital, mercadorias) e não entre sujeitos. Trata-se de projeto de desconstituição
das relações recíprocas do Antigo Regime, de certo, mas também contra a lei da convivência
associativa dos homens para, assim, evitar o risco. Dentre os filósofos modernos, Hobbes foi
quem primeiro forneceu uma forma mais acabada a esse projeto, quando toma por base da sua
concepção acerca da emergência do Estado, a necessidade de se evitar “a guerra de todos
contra todos9“, garantindo maior segurança para as vidas individuais em troca da liberdade. A
sociedade assim formada, naturalmente neutraliza as possibilidades associativas entre os
homens.
A história da filosofia política (em especial a filosofia moderna) tem sido por muito
tempo um esforço para justificar a existência do Estado. No pensamento hobbesiano nota-se
uma centralidade do medo enquanto motivador para o estabelecimento de um vínculo social e
8
Merleau-Ponty, Maurice, Le visible et l,invisible, p.260, in Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia.
Ed.70, Lisboa, 2004, p.228.
9
Hobbes, Thomas. Leviatã, in Os Pensadores, ed. Abril, 1979, Rio de Janeiro, p.75.

351
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

é sobre ele que em grande parte sua teoria repousa. Para Hobbes, os homens são iguais por
natureza – igualdade na natureza, na mortalidade, não uma igualdade jurídica, vale ressaltar.
Daí o medo disseminado da morte, a qual nos atravessa e nos constitui. Há um esforço que
nos é essencial e espontâneo de buscar tudo que é bom e se compõe com a própria vida, do
mesmo modo que há outro de fugir de tudo que é mal e nos enfraqueça, sobretudo do pior dos
males, a morte. Este é o esforço de conservação, tal qual nos apresenta Hobbes - “O direito de
natureza(...) é a liberdade que todo o homem tem de usar o seu poder, como ele entenda, na
preservação de sua natureza, isto é, da sua vida, e por conseguinte, de fazer seja o que for que,
a seu juízo e segundo sua razão, ele conceba como meio mais adequado para tanto10“.
Tememos a morte muito mais do que desejamos a vida.
Trata-se de um medo terrivelmente originário e que está ligado ao desconhecimento
do que virá, à incerteza – afinal, se há certeza do mal que virá, não há mais esperança e sim
desespero, de modo que medo e esperança andam necessariamente juntos. Esperança e medo
não se separam, quando muito experimentamos mais de um do que do outro – a esperança
jamais vence o medo. O medo é fundacional da política. A esperança nasce do conceber um
mal, juntamente com a forma de evitá-lo, ao passo que o medo que se concentra sobre um
bem e consiste em imaginar um modo de perdê-lo.
Interessa a Hobbes o homem tal como ele se apresenta, sem ilusões a seu respeito ou
sobre uma pretensa moral universal, utópica. Ele rejeita as teorias idealistas, levando-nos à
constatação de que o bom resultado das instituições não pode depender da qualidade dos
homens. É preciso trabalhar com esse homem real, sendo o medo o primeiro motor da
atividade política. Qualquer Estado, bom ou ruim, se origina do medo e, vale notar, não
repousa apenas nas bases do Estado despótico, mas mesmo nas formas legítimas e positivas.
Ele está lá e se compõe inclusive com a razão, ou seja, pode ser força produtiva. O medo não
determina apenas fuga e isolamento, mas também relação e união. É preciso que os homens
se sintam razoavelmente seguros sob a proteção da instituição estatal (temendo-a, ainda
assim) com relação àquele outro medo, o do estado de natureza. Esse medo está ligado
mesmo ao aparecimento do Estado moderno e não é exclusividade do pensamento
hobbesiano, ainda que para muitos autores essa seja uma realidade difícil de enfrentar,
reconhecer.

10
Hobbes, Thomas. Leviatã, in Os Pensadores, ed. Abril, Rio de Janeiro, 1979, p.78.

352
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Do que se tem medo? Da morte, foi sempre a resposta. E de todos os males que
possam simbolizá-la, antecipá-la, recordá-la aos mortais. Da morte violenta,
completaria Hobbes. De todos os entes reais e imaginários que sabemos ou cremos
dotados de vida e de extermínio: da natureza desacorrentada, da cólera de Deus, da
manha do Diabo, da crueldade do tirano, da multidão enfurecida; dos cataclismos,
da peste, da fome e do fogo, da guerra e do fim do mundo. Da roda da Fortuna. Da
adversidade. Da repressão, murmuram os pequenos; da subversão, trovejam os
grandes. Do que se tem medo? Da morte inglória e infame num mundo
aristocrático e agonístico para o qual o supremo valor é a coragem nos campos de
batalha. Do que temos medo? Da morte seca e nua como um osso, sem mediação,
terror no despencar da guilhotina, no “suicídio acidental” dos calabouços, no grito
abafado dos fornos crematórios. Da morte, senhora absoluta, enfrentada pelo herói
hegeliano para descobrir que não era, afinal, a verdadeira morte, pois passou por ela
e não morreu, deixando a vitória àquele que realmente tremeu de horror diante dela
– o escravo, capaz de construir a liberdade11.

A modernidade colocou o homem no centro do pensamento, de certo, mas não há


como negar sua finitude. É a filosofia da finitude. Reconhecendo os limites da faculdade
humana, Kant especulará acerca das potências do homem e o que está para além delas, vale
dizer, o que não nos é dado conhecer. Dirá:

Quisemos, portanto, dizer: que toda nossa intuição é senão a representação de


fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal qual as instituímos,
nem que as suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos
aparecem e que se suprimíssemos o nosso sujeito ou também apenas a constituição
subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso desapareceriam toda a constituição,
todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo.
Todas essas coisas enquanto fenômenos não podem existir em si mesmas, mas
somente em nós. O que há com os objetos em si e separados de toda essa
receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido.
Não conhecemos senão o nosso modo de percebê-los, o qual nos é peculiar e não
tem que concernir necessariamente a todo ente, mas sim a todo homem. Temos a
ver unicamente com esse modo de percepção. Espaço e tempo são as suas formas
puras, sensação em gera a sua matéria. Podemos conhecer aquelas unicamente a
priori, isto é, ante de toda percepção real, e chama-se por isso intuição pura; a
última, porém, é o que o nosso conhecimento a faz chamar-se conhecimento a
posteriori, isto é, intuição empírica. Aquelas inerem à nossa sensibilidade de modo
absolutamente necessário, seja de que espécie forem nossas sensações; estas podem
ser bem diversas. Mesmo se pudéssemos elevar nossa intuição ao grau supremo de
clareza, com isso não nos aproximaríamos mais da natureza dos objetos em si
mesmos. Com efeito, em todo o caso conheceríamos inteiramente apenas o nosso
modo de intuição, isto é, a nossa sensibilidade, e esta sempre só sob as condições
espaço e tempo originariamente inerentes ao sujeito; o que possam ser os objetos
em si mesmos jamais se nos tornaria conhecido nem mesmo pelo conhecimento
mais esclarecido do seu fenômeno, o qual unicamente nos é dado.12

Para Descartes, apenas uma faculdade ou potência humana é infinita: a vontade. A


faculdade de conhecer é finita, a vontade não. Reconhece na condição humana a faculdade de
11
Chauí, Marilena in Os Sentidos da paixão, ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1987, p36.
12
Kant, Immanuel. Crítica da razão pura, in Os Pensadores, ed. Abril, São Paulo, 1979, pp. 49 e 50.

353
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

conhecer algo como “muito pequena e grandemente limitada” ao passo que a vontade figura
como algo muito mais amplo e extenso, “se dirige e se estende infinitamente a mais coisas13“.
A filosofia moderna é, portanto, a filosofia da finitude do homem, uma filosofia da morte,
embora evidentemente não se apresente assim. Diferentemente, se estamos no campo das
relações, no terreno do acontecimento, estamos inscritos no devir, submetidos a uma
dinâmica qualquer, a processos que não cessam de acontecer e que não se cristaliza. Se há
algo que se pode afirmar daquilo que somos, algo que o homem “é”, será quando muito um
algo em aberto, constantemente sendo produzido nas relações. Trata-se de um aberto que não
se agrega ao ser, não o predica, é acontecimento. Não se refere a ele ou lhe atribui qualidades,
o que há são constantes relações, processos, acontecimentos, abertura continua para o novo.
A empresa moderna de classificar e limitar o sujeito, categorizar o real e estabelecer
essências universais, pode ser reconhecida na nossa linguagem, na qual predominam os
substantivos, nomes, indicando algo fixo, consagrando a existência de essências distintas.
Dizemos “o cão”, “o homem”, “a árvore”, por exemplo, ao invés de descrever as coisas por
aquilo que elas fazem ou acontecem (verbos). Nesse sentido, dirá Deleuze, sobre a árvore, que
ela “verdeja14“, em detrimento de dizer dela que é verde. O aberto pode ser pensado como um
sujeito, mas sujeito dinâmico, não egóico. Um aberto em que o sujeito e seu par, o objeto,
andam sempre juntos, não havendo o “eu” separado do que me rodeia, de modo que pensar a
dualidade sujeito/objeto só faz sentido quando não se consideram essas continuas relações
entre eles.
O aberto é, ele mesmo, efeito de um “com”, é sujeito num outro sentido, uma
subjetividade sem ego e que vai se apoiar pura e simplesmente na relação, no que acontece
entre coisas. É como reconhecer que há o sujeito quando se produz ali um sentido, uma
relação. Quando, por exemplo, pensamos nas duas mãos que são necessárias para produzir o
som de palmas ou na dança que só acontece no encontro, em relação, de dois corpos. Não foi
a mão direita ou a esquerda que produziu o som dos aplausos, mas o encontro das duas. Não
foi o corpo do homem ou da mulher que produziram a valsa, mas a relação dos dois.
O nascimento humano, segundo Hanna Arendt, ultrapassa o mero acontecimento
biológico, dado que o homem é capaz de cultura, o que significa dizer que a cada geração ele
é capaz de novas coisas, diferente dos animais, que repetem os mesmos atos, por instinto,

13
Descartes, René, in Os Pensadores. Ed. Abril, São Paulo, 1979, pg.118.
14
Deleuze, Gilles. Lógica do Sentido, Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p.10.

354
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sempre, num “curso repetitivo”. É início que se repete infinitas vezes numa “pluralidade
diferencial15“, o que revela a originalidade da vida humana face à vida animal e abre a
possibilidade de agir rompendo com os instintos. A este respeito, dirá:

...exatamente como, do ponto de vista da natureza, o movimento retilíneo do curso


da vida do homem entre o nascimento e a morte parece um peculiar desvio da regra
natural comum do movimento cíclico, assim também a ação, do ponto de vista dos
processos automáticos que parecem determinar o curso do mundo, se assemelha a
um milagre (...). O milagre que preserva o mundo, a esfera dos afazeres humanos,
da sua normal, ‘natural’, ruína é em definitivo o fato da natalidade, na qual está
ontologicamente radicada a faculdade de agir. É, por outras palavras, o nascimento
de novos homens e o novo início, a ação de que eles são capazes em virtude de
terem nascido16“.

Os processos de subjetivação são abertos, jamais produzem uma forma definitiva,


abrem sempre outros processos. Por mais que se individue, o homem não deixa de ser “larva”,
de se abrir constantemente a novas formas. A individuação física é sempre incompleta e é
justamente nesse espaço, em tal abertura, que ela se abre para a individuação biológica que,
por sua vez também incompleta, abre-se ainda para a individuação psíquica. Cada uma sucede
a outra numa cadeia de processos de individuação. Para que haja sujeito não basta a
individuação física nem só a biológica, precisa haver também a individuação psíquica a criar
o “vivente humano”. Este é mais que o vivente, há uma diferença de grau com relação ao
simples vivente. O vivente humano não deixa de ser o mero vivente, mas o sucede, o
ultrapassa em grau - a diferença não é de substância.
É justo essa abertura, esse eterno devir, que constitui o humano e mesmo o político.
Não há uma essência ou natureza humana, há sim um LIMIAR, um esforço ou uma tendência
em uma certa direção. Esse ultrapassar de um limiar qualquer que o homem ultrapassa é
definido, em termos de nascimento, quando se dá o psíquico. O homem não possui nada por
natureza, de forma inata, as faculdades do homem nascem junto com suas funções no
movimento da vida, não se separa esta daquelas. Assim, o nascimento não é um fenômeno da
vida e sim a vida um fenômeno do nascimento. A vida é fenômeno que ocorre nesses limiares
ultrapassados, esforços, durações, uma individuação continuada. Em síntese, é o que nos
ensina Gilbert Simondon ao dispor que

15
Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004, p.251.
16
Arendt, Hannah, Vita active, cit.,p.182, in, Espósito, Roberto, op.cit, p.251.

355
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

“O indivíduo concentra em si a dinâmica que o fez nascer e perpetua a primeira


operação de uma individuação continuada: viver é perpetuar um permanente nascimento
relativo. Não basta definir o vivente como organismo. O vivente é organismo na base da
primeira individuação; mas só pode viver se for um organismo que organiza, e se organiza, ao
longo do tempo. A organização do organismo é o resultado de uma primeira individuação,
que se pode chamar absoluta; mas esta última, mais do que vida, é condição de vida; é
condição daquele nascimento perpétuo que é a vida17“.
Há clara semelhança entre o pensamento de Simondon e Spinoza, nesse aspecto. Só
é possível pensar o ser como aquilo que ele efetivamente pode ou, em outras palavras, “cada
coisa natural recebe da natureza tanto direito quanto o poder que tem de viver e agir18“. O que
chamamos direito são os fatos da vida, não é algo abstrato, e só existe enquanto inseparável
da concretude da vida. Não há sentido em submeter a vida à norma, dado que elas não se
separam. Se não há efetivação do direito (eficácia) então não há direito, haja vista que a coisa
não se separa daquilo que ela pode. Pensar o coletivo é também pensar um outro tipo de
indivíduo que conjuntamente produz certos efeitos, ou seja, concretamente, nunca em
abstrato.
Potencia é produção de efeitos e, portanto, sempre e necessariamente eficaz. Só
assim podemos conceber um coletivo concreto. O sujeito coletivo é um outro tipo de
indivíduo, conjunto de sujeitos que concorrem para a produção de efeitos mas que ainda
assim podem ser pensados como UM indivíduo (a cidade, por exemplo, é um indivíduo).
Pensar no coletivo como outros tipos de individuação nos afasta dos universais,
generalidades, inscrevendo-nos num plano de imanência e da experiência.
Essa é uma compreensão agonística da vida – como conflito, batalha, guerra.
Existimos num processo da determinação de forças, ou seja, se uma força triunfa não quer
dizer que a que está submetida desapareceu. O resultado dessa luta é sempre provisório, as
forças derrotadas em algum momento podem prevalecer. Trata-se de forças múltiplas e
heterogêneas, não há igualdade entre elas. Segundo Nietzsche, são essas as forças que têm

17
Simondon, Gilbert, L,individu et sa genèse phsyco-biologique (1964), Paris, 1995, p.77, in Espósito, Roberto,
op.cit, p.255.

18
Spinoza, Baruch de, in Opera, Heidelberg 1924, vol.III (trad.it.Trattato politico, Roma-Bari, 1991, p.9), apud
Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004, p.261.

356
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

caráter originário, e não as conservativas, como pretende Hobbes. O instinto de conservação é


força orgânica da vida (biológica) e que, assim
Sendo, tende à repetição, hábitos, nunca brotando daí nada de novo. As forças
originárias da vida, diferentemente, quebram toda forma de hábito, repete apenas o devir
numa repetição que não significa “mais do mesmo”, já que o que se repete é a diferença.

CONSIDERAÇÕE FINAIS

Em síntese, imaginar que qualquer forma de conhecimento possa reclamar para si o


estatuto de verdade, implica necessariamente no reconhecimento de que tanto o que está para
ser conhecido, como aquele que conhece, possam ser definidos ou reconhecidos em termos de
algo que “é”. Aceitar que o mundo vive pacificamente à nossa espera de organizá-lo,
existindo independente do olhar do observador, apartado da experiência concreta do ser no
mundo, do ser “com”, quando tudo o que podemos alcançar são relações de forças em
permanente dinâmica, acontecendo em ato, num eterno devir. O sujeito que percebe não “ë”,
ele “vai sendo”. A potência da vida é de continuamente formar-se em outra coisa. É devir, não
ser. A vida projeta-se sempre para além de si mesma num permanente “haver estado”, sempre
em mudança, que quer constantemente superar sua forma e que evolui a partir de uma
superabundância, um excesso, nunca um déficit, falta. Tende, assim, a destruir e autodestruir-
se, sem que haja aí uma conotação negativa. São forças conquistadoras, que pretendem
afirmar-se, indômitas, enfim.
Ao despotencializar o homem, o projeto imunitário da modernidade acabou por
negar o próprio conteúdo vital, as potências vitais. Se algo se pode afirmar como próprio do
homem, é o expressar tudo o que ele pode - fazer, causar, produzir. Há certas forças que
eventualmente podem separá-lo daquilo que ele pode, momentaneamente, como expressões
de uma vontade negativa, mas ainda que isso possa parecer algo de destruição, de separação
(daquilo que se pode), pode representar também uma transmutação das forças, quando
levadas ao limite, fazendo surgir o novo. Não há cisão entre observador e objeto da
observação, verdades prontas à espera de serem reveladas, conhecimentos ou naturezas
prévias à vida. O desejo quer se prolongar indefinidamente, inclusive com dificuldade de se
compor com as forças orgânicas. O que antes parecia tão certo e indubitável, no momento
seguinte já não é, foi atravessado por diferentes forças e entrou em outras relações consigo

357
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

próprio e com o mundo todo. Há uma vontade que emana em nós de continuamente nos
expressar e que pode eventualmente ser contida, mas nunca extinta - desliza para algum outro
lugar, a vida sempre escapa de algum modo. E se nem mesmo nós podemos ser definidos em
termos estanques, como afirmar algo diferente do que está para ser conhecido? Verdades?
Que verdades?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Vita activa, cit., p.182, in Espósito, Roberto

CHAUÍ, Marilena. Os Sentidos da paixão, ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1987.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido, Editora da Universidade de São Paulo, 1974.

DESCARTES, René. Descartes, René, in Os Pensadores. Ed. Abril, São Paulo, 1979.

DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Antiga. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988.

ESPÓSITO, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004.

HOBBES, Thomas. Leviatã, in Os Pensadores, ed. Ab, Rio de Janeiro, 1979.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura, in Os Pensadores, ed. Abril, São Paulo, 1979.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l,invisible, p.260, in Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia.
Ed.70, Lisboa, 2004.

SIMONDON, Gilbert. L,individu et sa genèse phsyco-biologique (1964), Paris, 1995, p.77, in Espósito, Roberto.
Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004.

SPINOZA, Baruch de, in Opera, Heidelberg 1924, vol.III (trad.it.Trattato politico, Roma-Bari, 1991, p.9), apud
Espósito, Roberto. Bios – Biopolítica e filosofia. Ed.70, Lisboa, 2004.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,1992

358
DA BIO À TANATOPOLÍTICA:
AUTOS DE RESISTÊNCIA E A SELETIVIDADE DIREITO À VIDA

PINTO, Anna Carolina Cunha


Aluna de Mestrado do PPGSD/UFF
SANTIAGO, Gilberto Lopes
Graduado em Direito pela UNISUAM
FELDKIRCHER, Gabriela Fenske
Graduada em Direito pela PUC/ Rio

RESUMO

O presente trabalho analisa à luz da filosofia política, destacadamente de Michel Foucault e Giorgio
Agamben, o instituto dos autos de resistência e sua estreita relação com o que compreendemos se
caracterizar como verdadeira seletividade do direito fundamental à vida. A flexibilização e supressão
do direito em tela se mostra direcionada à uma segmento da população específico,o qual cremos
possível de equiparação à figura do homo sacer própria do Direito Romano e retomada no pensamento
agambeniano. Partindo da análise do instituto em questão e da seletividade do direito à vida é que se
demonstra, na prática, a passagem da gestão da vida (biopolítica) para, também, a gestão da morte
(tanatopolítica) pelo exercente do poder.

Palavras chave. Biopolítica. Tanatopolítica. Auto de resistência.

359
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O instituto brasileiro dos autos de resistência é uma ferramenta que nasceu no seio
da ditadura militar através da Portaria “E”, nº 0030 de 06 de dezembro de 1974. Até hoje, seu
uso por agentes policiais se tornaram uma justificativa antidemocrática para legitimar mortes
em confronto.
Nesse trabalho nos propomos a realizar investigação sistemática e filosófica com fito
de diagnosticar uma possível redefinição na gestão estatal no tocante ao controle de vidas que
não interessam ao Estado. Em outras palavras, buscamos analisar o instituto dos autos de
resistência e sua estreita relação com o que compreendemos se caracterizar como verdadeira
seletividade do direito fundamental à vida à luz da filosofia política, com especial destaque às
contribuições de Michel Foucault e Giorgio Agamben. Nessa toada, cumpre destacar que a
flexibilização e até mesmo a supressão do direito em tela se mostra direcionada a um
segmento da população específico,o qual cremos possível de equiparação à figura do homo
sacer, própria do Direito Romano e retomada no pensamento agambeniano. Partindo da
análise do instituto em questão e da seletividade do direito à vida é que se demonstra, na
prática, a passagem da gestão da vida (biopolítica) para, também, a gestão da morte
(tanatopolítica) pelo exercente do poder.
Insta salientar que tal verificação é inserida no contexto da crescente escalada da
criminalidade e a fabricação de uma “crise” na segurança pública do Estado, na qual se faz
necessária a aparição do fenômeno da exceção.Ademais, cumpre assinalar que, em que pese a
alteração recente da nomenclatura1 empregada para o instituto em deslinde, optamos,
metodologicamente por utilizar a denominação clássica do mesmo, tendo em vista sua
história que remonta ao período militar, no qual passou a ser legalmente previsto além, é
claro, do seu uso sistemático que não pode ser abrandado pela nova designação para um
instituto que, como sabido, mantém todo seu teor, peso e letalidade à serviço de uma política
de exceção dos indesejáveis.
Importa esclarecer, ainda, que estes incidentes são registrados de forma singular
pelas polícias, tornando-os diferentes de um caso comum de homicídio tentado ou consumado
por civis. Isso porque, as mortes e/ou lesões corporais classificadas preliminarmente como
autos de resistência, assim o são, na maioria das vezes, para que as execuções sumárias sejam

1
Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/fim-do-auto-de-resistencia-e-mudanca-cosmetica-
dizem-especialistas> Acesso em 14.11.2017

360
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

legitimadas e/ou ocultadas, isso sob um respaldo muito maior do âmbito político do que
jurídico.
Agamben,afirma que o Estado moderno que outrora se preocupava em administrar o
território, na atualidade se ocupa na administração dos corpos dóceis pensados em Foucault,
podendo reduzir a vida à mero meio de uma política exclusiva, fazendo uma correlação entre
poder político e direitos e garantias fundamentais.
Possível diagnosticar a lógica beligerante dos mecanismos de exclusão do Estado,
quando da análise de pesquisa realizada pelo Professor Michel Misse da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesse trabalho, constatou-se após a colheita dados oficiais do
Instituto de Segurança Pública (ISP/SSP-RJ) que entre 2001 e 2011 mais de 10 mil pessoas
foram mortas em confronto com a polícia no Estado do Rio de Janeiro, em casos registrados
como autos de resistência. A pesquisa conduzida por Misse também observou que diante de
todos os inquéritos instaurados para apurar autos de resistência no ano de 2005, houve um
número alarmante de arquivamentos, chegando ao percentual de 99% do total (MISSE,
2013).
Através dos dados apresentados como resultado da pesquisa de Michel Misse é
possível compreender que os autos de resistência se elevam, à luz da biopolítica, a qualidade
de dispositivo fundamental para a empreitada biopolítica estatal. Cremos que através do
instituto em discussão é implantado um novo paradigma de governo, cujos reflexos podem
ser observados na segurança pública, assegurando a matabilidade de certos indivíduos,que
culmina em sua consequência mais dramática que é a tanatopolítica.
Acenar para possíveis respostas é, como apregoa Agamben, abrir um canteiro que
demandaria anos de escavações e investigações para se aproximar do centro e localizar se
possível, a base teórica e sistemática que utiliza a gestão estatal na eliminação dos indivíduos.

1. AUTOS DE RESISTÊNCIA

O auto de resistência é um instituto comumente utilizado pelo Estado a fim de


justificar ações policiais que resultaram na morte de um ou mais civis, sob a alegação de que
os agentes estatais envolvidos, normalmente Policiais Militares, teriam agido diante de uma
ou mais causas de exclusão de ilicitude: estado de necessidade, legítima defesa, estrito
cumprimento do dever legal e/ou exercício regular do direito.

361
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O registro de tais homicídios ocorre por meio desta designação, ou, em face da
atualização de terminologias: “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial”
ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”2.

1.1. O AUTO DE RESISTÊNCIA NOS DIAS ATUAIS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Considerando a realidade prática da cidade do Rio de Janeiro, na qual as políticas de


segurança pública adotadas são de extrema repressão e violência, não é incomum que
operações policiais (em especial em locais de maiores conflitos, como favelas e comunidades)
resultem na morte de civis praticadas por agentes do Estado.
Por certo, não se pode ignorar o risco que tais operações apresentam para os
policiais. Todavia, ainda que mediante a um cenário beligerante, é imperioso que o uso da
força do Estado seja utilizado de forma proporcional ao risco apresentado, do contrário não
será legítimo e as mortes que porventura venham a ocorrer não estarão configuradas como
autos de resistência e sim execuções sumárias.
Entretanto, em pesquisa realizada pelo professor Michel Misse, da Universidade
Federal Fluminense (UFRJ), anteriormente citada, constatou-se que o instituto dos autos de
resistência tem sido largamente utilizado mesmo em casos em que não estão configurados, de
modo a encobrir a ilicitude cometida, ou seja, as execuções sumárias praticadas. Vez que, sob
o ‘véu’ da legitimidade, as investigações não vingam, quando porventura prosperam os casos
são arquivados e nos pouquíssimos que não o são, há uma incompleta inversão de valores, os
policiais que praticaram os homicídios de modo ilegal são julgados inocentes, pois é
defendida a tese do “bandido bom, é bandido morto”.
Cabe, ainda, destacar que os autos de resistência não se limitam a casos de
homicídios, mas podem ser aplicados em hipóteses de lesão corporal.Nessas circunstâncias, o
civil, vítima da lesão corporal praticada por um agente policial, torna-se autor do fato e,
portanto, réu da ação penal, pois terá sua conduta tipificada como criminosa. Ou seja, há uma
incompleta inversão da situação, se morto estiver, será vítima de um suposto auto de
resistência; estando vivo, será réu de um processo penal.
Ou seja, o instituto leva a uma sequente impunidade, esta que é corroborada por
operadores do poder jurídico em matéria criminal (policiais, delegados, promotores, por vezes

2
Resolução conjunta nº 2, de 13 de outubro de 2015 – Conselho Superior de Polícia.

362
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

defensores, juízes) e também pela sociedade que coaduna com o discurso do “bandido bom, é
bandido morto” (MISSE, 2013).
Resta claro, portanto, que o instituto dos autos de resistência tornou-se uma das
principais ferramentas da política de extermínio do Estado brasileiro, direcionado a um
segmento específico da população – classes e grupos sociais excluídos, os invisíveis da
sociedade – que vivem na condição de homo sacer (AGAMBEN, 2014). Logo, incontestável
a seletividade do direito à vida exercida por agentes estatais, que evidencia que, para além da
gestão da vida dessa população (biopolítica) o Estado passa a operar também com fito de
empreender, em relação à essas pessoas, consideradas indignas de vida, a gestão da morte
(tanatopolítica).
A título de exemplo, apenas no ano de 2016 o Estado do Rio de Janeiro registrou
925 homicídios provenientes de oposição à intervenção policial, sendo 463 deles registrados
no município do Rio de Janeiro. O perfil das vítimas, segundo dados do Instituto de
Segurança Pública (ISP)3, consiste em: 97% homens, 0,4% mulheres e 2,4% não fora
informado o gênero; 47,6% de pardos, 29,8% de negros, 12,1% de brancos e 10,5% não fora
informada a cor; 42,2% entre 18 a 29 anos, 11,7% entre 12 a 17 anos, 8% entre 30 a 59 anos
e 38,2% não fora informada a idade. No mesmo período, 147 policiais foram mortos no
Estado do Rio de Janeiro.
Em rápida análise dos dados supracitados é inquestionável a quem as políticas de
segurança pública, ou melhor, as políticas de extermínio do Estado são direcionadas: aos
marginalizados, invisíveis da sociedade, que são portadores de deveres e não de direitos, que
vivem em territórios tidos como perigosos (periferias e favelas).
Para além disso, importante observar, que os policiais que são constantemente
colocados em situação de risco, em sua maioria, advém da mesma classe social daqueles
quesão alvo de suas operações. Ou seja, assim como as vidas ceifadas por eles são
consideradas matáveis pelo Estado, as deles também o são. Isso resta claro quando
analisamos que temos a polícia que mais mata, mas também a que mais morre.
Em meio a isso tudo, a seletividade da vida e as dificuldades já mencionadas em
relação às investigações dos homicídios cometidos por agentes do Estado contra civis,
primordial mencionar que recentemente sobreveio nova legislação que, lamentavelmente,

3
Disponível em: <http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf>. Acesso em:
14.11.2017.

363
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estabelece que crimes dolosos contra a vida praticados por militares em ações que envolvam a
segurança da instituição militar ou em missões, como operações de paz e de garantia da lei e
da ordem, serão investigados pela corregedoria da própria corporação e julgados pela Justiça
Militar.
A Lei nº 13.461/2017, que transferiu a competência da Justiça Comum para a Justiça
Militar, é um tremendo retrocesso, pois retornamos a uma legislação pré-1996, que interfere
substancialmente na elucidação dos casos, de maneira prejudicial, diga-se de passagem, e
também dá margens para julgamentos corporativistas.
Ou seja, ao invés de avançarmos e buscarmos aprimorar nossa legislação, estamos
fazendo o caminho inverso. Se até então já tínhamos uma série de dificuldades e obstáculos
para deslindar os homicídios praticados por agentes do Estado contra civis, agora teremos um
desafio ainda maior para enfrentarmos e, parte disso, já fora constado recentemente.
Em novembro de 2017, ocorreu uma chacina no Complexo do Salgueiro, em São
Gonçalo, na qual morreram sete civis durante uma operação conjunta da Polícia Civil e do
Comando Militar do Leste (CML). E, segundo informações prestadas na Delegacia de
Homicídios de Niterói e São Gonçalo (DHNSG), por agentes da Coordenadoria de Recursos
Especiais (Core), os disparos no confronto foram realizados apenas por homens das Forças
Especiais do Exército, estes que ainda não foram ouvidos, vez que segundo a legislação em
vigor (Lei nº 13.461/2017) a Polícia Civil não tem atribuição para investigar militares. Logo, a
investigação já iniciou prejudicada, conclusão essa tida pelo Delegado Marcus Amin,
responsável pela mesma. Nas palavras dele:”— Isso atrapalha a minha investigação. Eu
preciso de todas as partes envolvidas para montar o cenário. Quando não tenho uma das
peças, isso dificulta a reconstituição do que aconteceu.”4.
Ainda sobre o caso, em momento posterior, o Comando Militar do Leste, através de
seu porta-voz, Coronel Roberto Itamar, afirmou que a equipe militar não atirou, sendo assim
não há razão, segundo ele, para instauração de um inquérito pelo Exército, mas ressalvou que
isso poderia ocorrer caso a Polícia Civil apresente indícios de envolvimento das tropas nas
mortes5.

4
Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/dh-quer-saber-se-militares-entraram-na-mata-durante-
operacao-com-sete-mortes-22061597.html>. Acesso em: 15.11.2017
5
Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/apos-chacina-com-sete-mortos-em-sao-goncalo-militares-
policia-civil-negam-autoria-dos-disparos-22066617.html>. Acesso em: 15.11.2017.

364
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Ou seja, duas versões foram apresentadas que não poderão ser verdadeiramente
confrontadas caso a Polícia Civil não faça a oitiva dos militares envolvidos na Operação, o
que pode não ocorrer já que a Polícia Civil não tem competência, conforme a legislação em
vigor, para investigar militares. Sendo assim, como saber qual versão é a verdadeira? Como a
Polícia Civil poderá apresentar indícios do envolvimento das tropas militares sem ouvir todos
os envolvidos na Operação? Como elucidar o caso?
Em menos de um mês da Lei nº 13.461/2017 em vigor, já resta claro as graves
consequências acarretadas pela mesma, principalmente no que tange ao deslinde dos casos,
conforme o relatado acima acerca da investigação da chacina ocorrida no Complexo do
Salgueiro, em São Gonçalo/RJ.
Entretanto, é preciso pensar além, em como essa legislação vai afetar as políticas de
segurança pública, se as tornará mais repressivas e violentas, habilitando ainda mais o uso da
força policial ao patamar de massacre6, ou seja, qualificando o uso letal dos agentes do Estado
como uso legal da força (ZACCONE, 2016, p.25) e, portanto, legitimando ainda mais a
sistemática produção de mortes pelo Estado brasileiro de uma parcela específica da
população, que vive da condição de homo sacer. Ademais, necessário refletir sobre a
segurança jurídica ou a falta dela, que a nova legislação trará a sociedade.
Conforme já aludido, tivemos um grande retrocesso com a sanção da Lei nº
13.461/2017, a mesma acrescenta mais obstáculos àqueles que já existiam e não o contrário.
Infelizmente, seguimos constantemente violando e relativizando direitos basilares de parte
dos cidadão brasileiros, principalmente daqueles que vivem em condições precárias, em
territórios marginalizados, que fazem parte de uma classe social excluída composta
principalmente por negros, jovens, moradores de favelas e periferias. Ou seja, há um longo
caminho pela frente e o percurso só fez aumentar.

1.2. O AUTO DE RESISTÊNCIA EM RETROSPECTO

O instituto dos autos de resistência adveio do seio da Ditadura Militar, um dos


períodos mais obscuros da história do Brasil, que fora fortemente marcado por medidas

6
De acordo com Zaffaroni (2012, p. 358), “massacre é, antes de tudo, um homicídio múltiplo, embora na forma
de prática, ou seja, de exercício de decisão política e não de ação isolada emergente de algum segmento. Assim,
não entram no conceito de massacre os casos de assassinatos policiais isolados que não sejam resultado de uma
prática sistemática”.

365
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

excepcionais, tais como, a legalização da pena de morte, da prisão perpétua e de práticas


clandestinas de tortura, extermínio e ocultação de cadáver.
Em meio ao caos o instituto foi oficialmente criado em 02 de outubro de 1969, pela
Superintendência da Polícia do então Estado da Guanabara, através da Ordem de Serviço
“N”, nº 803 e publicada no Boletim de Serviço em 21 de novembro de 1969. Dispunha sobre
a dispensa da prisão em flagrante ou do inquérito nas circunstâncias previstas no artigo 292 do
Código de Processo Penal (VERANI, 1996, p. 33). Tendo tido seu conteúdo ampliado pela
Portaria “E”, nº 0030 de 06 de dezembro de 1974, do Secretário de Segurança Pública, que
fora publicada no Boletim de Serviço três dias depois.
Vale transcrever a Portaria “E”, nº 0030, de modo a aclarar a questão:

(...) Considerando que somente o inquérito regular poderá fornecer à Justiça os


elementos de convicção de excludente criminal em favor dos policiais que agiram
no estrito cumprimento do dever e em legítima defesa;
considerando, finalmente, que a diversidade de providências adotadas por
autoridades policiais desta Secretaria, quando diante de fatos concretos da espécie,
acarreta, por vezes, retardamentos prejudiciais à Justiça e ao serviço policial,
resolve:
1. A presente portaria objetiva uniformizar o procedimento das autoridades policiais
da Secretaria de Segurança Pública nos eventos decorrentes de missões de
segurança em que o policial, no estrito cumprimento do dever e em legítima defesa,
própria ou de terceiro, tenha sido compelido ao emprego dos meios de força
necessários, face à efetiva resistência oferecida por quem se opôs à execução do ato
legal.
2. Ocorrendo a morte do opositor, a autoridade determinará imediata instauração de
inquérito, para a perfeita elucidação do fato, que compreende:
a) as razões de ordem legal da diligência;
b) as figuras penais consumadas ou tentadas pelo opositor durante a resistência;
c) a apuração da legitimidade do procedimento do policial.
2.1. O inquérito poderá ser instruído com o auto de resistência, lavrado nos termos
do art. 292, do Código de Processo Penal, e, necessariamente, com o auto de exame
cadavérico e o atestado de óbito do opositor, para permitir ao Juízo apreciar e julgar
extinta a punibilidade dos delitos cometidos ao enfrentar o policial.
2.2. O inquérito deverá ficar concluído e relatado no prazo máximo de 30 dias,
cabendo à autoridade promover a remessa dos autos ao Juízo competente para
processar e julgar os crimes praticados pelo opositor.
3. Quando, apesar da resistência, o opositor houver sido dominado e preso ou
logrou evadir-se, a autoridade policial adotará as medidas adequadas estabelecidas
no Código de Processo Penal.
3.1. A apuração, no caso deste item, também deverá abranger a legitimidade da
atuação do policial.
4. Na hipótese de serem vários os opositores, em coautoria, ocorrendo a morte de
algum, sendo presos vários outros e se evadindo os demais, a autoridade deverá:
a) ordenar a lavratura do auto de prisão em flagrante para os que foram dominados
e presos;
b) promover a instrução dos autos na forma do item 2 desta portaria;
c) determinar diligências para a perfeita identificação dos que se evadiram.
4.1. Na impossibilidade de concluir, no prazo legal, as diligências aludidas na alínea
c deste item, a autoridade deverá sugerir ao Juízo competente a separação

366
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

processual, com fulcro no art. 80, do Código de Processo Penal, a fim de não
retardar o início da ação penal contra os já identificados.(VERANI, 1996, p. 35/36).

Resta evidente, pela transcrição acima, que a Portaria foi criada objetivando
legitimar a ação policial não propiciando a elucidação dos casos, vez que da abertura do
inquérito policial não há qualquer investigação, ao contrário, esta ocorre tão somente para que
seja materializada a culpa do civil (opositor da intervenção policial), tanto nas situações em
que este vem a falecer, quanto daquelas em que sobrevive.
Ao opositor, conforme já mencionado anteriormente, é atribuída a condição de
homo sacer, de mera vida nua matável (AGAMBEN, 2014) .Sua ‘memória’ é constantemente
vilipendiada, sendo resumida à folhas policiais, adjetivada e qualificada como meliante,
traficante, bandido, delinquente, mesmo quando não possuí qualquer anotação em sua folha
de antecedentes criminais (FAC).
Entretanto, como bem asseverou Sérgio Verani, apesar da previsão legal do instituto
advir da Ditadura Militar, a conduta que leva a lavratura do auto de resistência, ou seja, do
crime doloso contra a vida praticado por agente do Estado contra civil, é uma prática adotada
no Brasil desde os tempos da escravatura (VERANI, 1996).
O autor elenca algumas ocorrências históricas, sendo especialmente marcante a do
preto Martinho, escravo do Rev. Padre Alexandre Cidreira’, datado de julho de 1882,
conforme se lê abaixo:

O escravo desobedeceu ao senhor porque passava fome e frio. Recebeu um tiro. O


senhor nada sofreu. O escravo foi preso em flagrante por tentativa de homicídio e
resistência. Foi denunciado e pronunciado. A denúncia sustenta a ‘necessidade de
severa repressão de tais atentados’. (VERANI, 1996, p. 33).

À época em que tais fatos ocorreram, o preto Martinho não tinha sua condição
humana reconhecida, vez que escravos, negros e índios não eram contemplados pelos direitos
e garantias previstos na Constituição de 1824, então vigente, ou seja, não eram sujeitos de
direito, ao contrário, eram considerados seres matáveis, viviam da condição de homo sacer.
Ocorre que passados mais de 135 anos, histórias semelhantes ao do preto Martinho
ainda são cotidianamente registradas nas delegacias brasileiras, como vimos anteriormente.
Entretanto, ao contrário da Constituição de 1824, a Constituição de 1988, atualmente em
vigor, garante no caput do art. 5º que todos são iguais perante a Lei, porém, curiosamente,
atualmente são os mesmos ‘sujeitos’ que figuram esses registros, os invisíveis da sociedade,

367
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

advindos de classes e grupos sociais excluídos: pobres, negros, moradores de favelas e


periferias. Ou seja, para eles o estado de exceção é regra, seus direitos mais basilares são
constantemente relativizados e violados.

1.3. AUTOS DE RESISTÊNCIA À SERVIÇO DO ESTADO DE EXCEÇÃO

Por vezes, as operações em favelas causam um número de mortes demasiado


acentuado e, por conseguinte, os policiais apresentam grande número de autos de resistência
em sua ficha administrativa. Nessa perspectiva, a polícia do nosso país exibe o título de ser a
que mais mata no mundo e, também, a de que mais morre conforme dados divulgados pela
Anistia Internacional7. Comumente, os policiais alegam estar amparado pela excludente de
ilicitude, qual seja, a legítima defesa própria ou de terceiros8,porém, à luz da biopolítica, o uso
dos autos de resistência se mostra eficaz para legitimar e/ou ocultar, execuções sumárias. As
mesmas encontram fundamento no âmbito político ao invés de ocuparem o espaço de ações
pautadas de acordo com o ordenamento jurídico vigente.
Todo esse aparato de exclusão ocorre como uma cadeia de extermínio dos seres
viventes que são capturados dando ao estado de exceção um caráter extrajurídico. Como
salienta Rafael Valim: “o estado de exceção corrói por dentro, ao modo do cupim com a
madeira, o vínculo entre o mandato popular e a legitimidade da dominação política”.
(VALIM, 2017, p.10)
Segundo Agamben (2003, p.12) o estado de exceção tem sua atuação em uma zona
de indeterminação, verdadeira “terra de ninguém”, entre o direito público e o fato político e
entre a ordem jurídica e a vida. Uma ambivalência que se situa entre norma e exceção,
ordenamento jurídico e sua violação, e generalizada através da “deslealdade à constituição”.
A letalidade do sistema de justiça criminal brasileiro usa de legitimidade em uma
normalidade de exceção em que as ações policiais contam com a chancela do Ministério
Público, do Poder Judiciário, de grande parte da população e da mídia. A aplicação desse
modelo de extermínio se torna regra, como foi nos campos de concentração nazista. Nesse
diapasão, Rafael Valim afirma que:

7
Nesse teor: https://exame.abril.com.br/brasil/policia-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio/
8
Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta
agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

368
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Desnecessário dizer que, nesse contexto, o Direito Penal e o direito processual


Penal sofrem um completo desvirtuamento, perdendo sua vocação garantista em
prol da mera legitimação das pretensões autoritárias do Estado. A persecução penal
se torna um jogo de cartas marcadas, com um absoluto desprezo ao direito de
defesa. (VALIM, 2017, p. 36)

Assim, a cadeia segregatória pode encontrar sua construção lógica na legitimação de


um estado de exceção permanente, tornando as agências de justiça criminal, uma máquina
burocrática de eliminação, naturalizando práticas de execuções sumárias.
A questão da utilização do termo “crise” é outro aspecto relevante para entender a
mudança de paradigma do modelo de governo, que é utilizada como um recurso retórico, para
ocultar a estrutura de um modelo de Estado. Sobre o tema, Rubens Casara afirma:

O que hoje se afirma como “crise” não o é. Se a “crise” é permanente, se a “crise”


não pode passar, não é de crise que se trata, mas de uma nova realidade, uma trama
simbólica-imaginária com novos elementos que se deferenciam daqueles que
constituíram a realidade anterior, uma realidade que, hoje, existe apenas como
lembrança, embora essa lembrança possa produzir efeitos ilusórios de que aquilo
que não existe mais ainda se faz presente. (CASARA, 2017, p. 13)

Nesse sentido, cumpre destacar a crítica sobre a utilização desse critério elaborada
por Rafael Valim:

Não é só o poder executivo, por intermédio de medidas de polícia administrativa,


mas também o poder judiciário se convertem em fonte de exceção. Vê-se, portanto,
que o estado de exceção constitui uma categoria analítica decisiva para revelar a
articulação “ invisível” entre fenômenos à primeira vista desconexos, mas que, em
conjunto, compõem a chave de compreensão da sociedade contemporânea.
(VALIM, 2017, p. 36)

A”crise” consiste na verdade em um modo de governar certos indivíduos, ocultando


o real interesse do Estado, que é a criação e permanência de um estado de exceção duradouro.
Tal ideia é denominada por Rubens Casara como “Estado pós democrático” (2017, p.16).
Nesse diapasão, verifica-se que o poder judiciário no enredo da exceção se torna o principal e
o mais perigoso agente da exceção no Brasil.
Deve-se observar com fundamento na base teórica agambeniana a possível fratura
no Estado democrático de direito e a existência dos autos de resistência enquanto um
dispositivo fundamental para a empreitada biopolítica estatal, implantando um novo
paradigma de governo na segurança pública, e assegurando a matabilidade de certos
indivíduos.

369
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Forma-se neste caso, uma lógica paradoxal, que para assegurar e tutelar direitos de
certos cidadãos, o Estado naturaliza a morte de sujeitos, que nesse contexto são inimigos da
sociedade, podendo o Estado se tornar uma máquina de eliminação de vidas através de um
juízo discricionário de exceção, articulando uma lógica soberana. Compreendemos que as
ações policiais da atualidade são encaradas hoje como técnicas biopolíticas de eliminação da
população pobre e negra do Brasil, através de sutis intervenções biopolíticas na sociedade na
esteira exclusiva do estado de exceção.

2. O HOMO SACER NA CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Giorgio Agamben retoma em sua obra biopolítica a figura arcaica do direito romano
do homo sacer. Tal indivíduo era compreendido como ser jurídico-político após a prática de
conduta delituosa, que determinava sua exclusão do direito romano e do escopo divino, ou
seja, o homo sacer sofria o afastamento total da vida religiosa e também de seus direitos,
ganhando um corpo biopolítico propriamente dito. A condição que sua nova forma de vida
lhe outorgava, impedia que ele pudesse ser legalmente morto e, tampouco, sacrificado aos
deuses, apontando para a imposição de castigo permanente pelo Estado. A vida é abandonada
pelo direito e tem sua posição política incluída pela exclusão e excluída de forma inclusiva.
Por ser a vida do homo sacer uma vida matável, seu assassinato não acarretava em nenhuma
consequência jurídica para quem a praticasse.
Na obra Homo Sacer, onde desenvolve suas ideias a partir de tal figura que dá nome
ao livro,Agamben esclarece que sua pesquisa concerne precisamente no ponto oculto de
intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico de poder. Desse
modo, a produção de um corpo biopolítico é considerada uma contribuição original do poder
soberano, o que permite afirmar que, ao colocar a vida biológica no centro de seus cálculos, o
Estado moderno não faz mais do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à
vida nua- a protagonista da obra que analisamos por ora, isto é, é a vida matável e
insacrificável do homo sacer. O filósofo vai além: entende que a caracterização da política
moderna não se dá apenas pela vida considerada objeto dos cálculos e previsões estatais,
tampouco pela inclusão da zoé na pólis. O que é decisivo é a noção de que, lado a lado, nesse
processo através do qual a exceção se torna a regra:

370
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem


progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo
e interno, bíos e zoé direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção
(AGAMBEN, 2014, p.16).

O homem como vivente abandona a condição de objeto para alcançar a de sujeito do


poder político, não havendo mais dúvida de que o que está em jogo é a vida nua do cidadão -
o novo corpo biopolítico da humanidade. Resta evidenciado que todos os cidadãos estão
potencialmente na condição análoga à do homo sacer. Porém, especialmente no que tange ao
direito à vida, é notória a maior propensão de alguns indivíduos a, na prática, mais do que
apresentarem mera potência, já poderem ser objeto dessa equiparação.
Como já delimitado anteriormente, existe um perfil mais propenso a compor o rol
das vítimas de homicídios classificados como auto de resistência – os homens jovens, negros
e periféricos. Não podemos considerar coincidência à luz de uma análise biopolítica que o
perfil dessas vítimas comungue com o perfil mais típico nas unidades do sistema prisional
brasileiro - conforme apontam os dados compulsados na base de dados do INFOPEN: 55%
têm entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo,
de acordo com o levantamento publicizado em dezembro de 20149.
Considerando que na vigência de um permanente estado de exceção como o que
experimentamos segundo AGAMBEN (2004, p.13) no qual verifica-se:

A instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que
permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de
categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao
sistema político [...] o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como
paradigma de governo dominante na política contemporânea.

Através da assunção da vida pelo poder, explicitada por Michel Foucault na obra
intitulada Em Defesa da Sociedade, um dos fenômenos fundamentais do século XIX
compreendida através da análise da teoria clássica da soberania, Foucault conduz-nos, então,
à ideia de que nesse bojo teórico tinha-se por atributos fundamentais do soberano o direito de
vida e de morte de seus súditos razão pela qual “o súdito não é, de pleno direito, nem vivo
nem morto” (FOUCAULT, 2010, p.202). Através dessa dinâmica tanto a vida quanto a morte

9
Dados disponíveis em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-
institucional/estatisticas-prisional/base-de-dados-infopen-csv.csvAcesso em: 14/10/2017.

371
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

são postas como fenômenos situados na esfera do poder político, poder exercido de maneira
desigual conforme apregoa Foucault:

Dizer que o soberano tem direito de vida e de morte significa no fundo, que ele
pode fazer morrer e deixar viver (...) o direito de vida e de morte só se exerce de
uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte. O efeito do poder soberano
sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar. Em
última análise, o direito de matar e que detém efetivamente em si a própria essência
desse direito de vida e de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu
direito sobre a vida. (FOUCAULT, 2002, p. 285-286)

As reflexões à luz do pensamento tanto foucaultiano quanto agambeniano acerca da


eliminação física dos indivíduos indesejáveis aponta para o que desejamos demonstrar acerca
do uso desmedido do auto de resistência nas comunidades periféricas. O estado através de
seus agentes escolhe quais são os indivíduos que vão morrer, isto é, os indivíduos que serão
eliminados. Como mote para estabelecer quem deve ser eliminado CASARA (2017, p.55)
elucida que:

(...) para aqueles que não interessam à sociedade neoliberal, por não produzirem,
não prestarem serviços, não consumirem ou resistirem à racionalidade neoliberal,
reserva-se a resposta penal (e a prisão persiste como resposta penal preferencial aos
desvios) ou a eliminação física – o Brasil, por exemplo, é o país em que os policiais
mais matam e mais morrem em razão da função que exercem.

Cientes do critério, resta evidenciado que a seletividade do direito à vida


empreendida em face da juventude negra, pobre e periférica através dos agentes estatais são
compreendidas como mecanismo de manutenção do permanente estado de exceção que é
potencializado quando direcionado aos indivíduos em deslinde, cuja vida nua não deixa
dúvidas da pertinência de sua equiparação ao homo sacer do direito romano.

CONCLUSÕES

Ana Luiza Flauzina (2006, p.101) é certeira ao afirmar que o genocídio da


população negra no Brasil possui diversos ângulos e que podemos elencar, indubitavelmente,
o nível de pobreza ao qual estão expostos tais sujeitos entre eles. Em sua dissertação de
mestrado, a professora cita um trecho da obra Guerra Civil, de Luís Mir que afirma: “a
pobreza é a mais extremada e requintada arma do Estado. Mata lentamente, reduz suas
vítimas a andrajos humanos e é extremamente barata” (MIR, 2004, p. 299 apud FLAUZINA,

372
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2006, p.103). A pobreza, cumpre destacar, não pode ser desconsiderada como elemento
manipulado pela biopolítica e, muito menos, ser compreendida nesse contexto como causa de
processos discriminatórios que apequenam existências: a pobreza é a causa desses processos e
ela é direcionada aos negros como verdadeiro instrumento de redução das condições de vida
historicamente, não sendo correto, portanto, afirmar que tal processo é apenas influenciado
pelo capital.
O preconceito racial ainda é gritante em um país cuja história é marcada pelo
encontro de povos vindos de distintos continentes, encontro esse que resultou em mais de três
séculos de imigração compulsória, bem como o trabalho desempenhado pelos africanos que
aqui desembarcavam na condição de escravos. Tratados de maneira desumana e assim
considerados, posteriormente à abolição da escravidão, tais indivíduos foram descartados
como mão de obra e tiveram sua existência dificultada por medidas governamentais, como a
criação do crime de vadiagem e a facilitação para a imigração de europeus para trabalharem
nas lavouras de café. Relembrar e compreender a história é fundamental na compreensão da
situação aviltante de discriminação racial que, ainda hoje, ceifa vidas negras
indiscriminadamente.
A pobreza e a negritude, alvos de esteriótipos, são determinantes no momento da
ação policial que buscam invalidar ou eliminar o inimigo a ser combatido. Nesse sentido, é
fundamental compreender que a sociedade confiou à polícia uma significativa parcela do
controle social e, por conseguinte, da tomada de decisões políticas. Mais do que instrumentos
da gestão da vida, os policiais se transformam no contexto do auto de resistência sujeitos
investidos da capacidade de decidir, a exemplo de um tribunal de exceção, qual serão os
indivíduos cuja pena capital será decretada sem que lhe seja assegurada nenhuma das
garantias processuais previstas em sede constitucional além, evidentemente, do direito
fundamental à vida.
Acreditamos, pelo exposto nesse trabalho, que ainda se configure como um dos
grandes desafios brasileiros a adoção de uma política de segurança pública que equilibre os
direitos e garantias fundamentais elencados constitucionalmente com o combate a
criminalidade. Tendo em vista a constância com que se noticiam episódios envolvendo
violência policial parece-nos que a superação desse desafio siga distante da nossa realidade.
Cumpre, ainda, ressaltar que apesar da recente alteração de sua nomenclatura, o
instituto segue sendo largamente utilizado para legitimar homicídios cometidos pela polícia

373
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

em situações outras que não aquelas que configurariam o chamado “auto de resistência”. Isso
é, o utilizam para encobrir o uso arbitrário da força letal do Estado e, assim, evitar a
responsabilização pelas mortes. Nesse sentido, importante consideração feita pela ONG
HumanRightsWatch, com fito de alertar para existência de provas substanciais e críveis de
que “que muitas das pessoas mortas em supostos confrontos com policiais foram, na
realidade, vítimas de execuções extrajudiciais” no relatório O bom policial tem medo – os
custos da violência policial no Rio de Janeiro lançado em 2016.
No que concerne a direito à vida, vemos sua seletividade nascer de ações estatais, o
que aponta para. o Estado, ciente das estatísticas e conhecedor de sua população, ser
conivente com os números expressivos de mortes dos mais vulneráveis. Ausentes quaisquer
medidas com fito de efetivamente reduzir tais índices além, é claro, do próprio desinteresse na
apuração do ocorrido resta evidenciada a conivência estatal com tais mortes. À luz da filosofia
foucaultiana e agambeniana brevemente analisada, podemos afirmar, como propomos no
começo desse trabalho, que o Estado não só deixa morrer, como escolhe quem morre. Desse
modo, a condição de homo sacer atribuída aos que prioritariamente superlotam os presídios
brasileiros e que também são prioritariamente as vítimas de homicídios praticados também
pelos agentes do Estado, resta comprovada tendo em vista a vida despojada de direitos ou
existência política.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

__________Estado de Exceção. 2ª edição. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. (Estado de
Sítio).

__________Estado de exceção e genealogia do poder- DOI: 10.9732/P. 0034-7191.2014 v.108, p21. Revista
Brasileira de Estudos Políticos n 108, 2014.

CASARA, Rubens. Estado Pós Democrático. Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 1ª edição. – Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

FLAUZINA, Ana Luiza. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o processo genocida do Estado brasileiro.
145 fl. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Tradução de Maria Ermentina de Almeida Prado Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.

HUMAN RIGHTS WATCH. O bom policial tem medo. Os custos da violência policial no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Human Rights Watch, 2016.

374
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

MISSE, Michel; GRILLO, Carolina Christoph; TEIXEIRA, César Pinheiro; NERI, Natasha Elbas. Quando a
polícia mata: homicídios por “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: NECVU;
Booklink, 2013;

VALIM, Rafael. Estado de Exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. 1ª edição. São Paulo: Editora
Contracorrente. 2017;

VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da lei: Uma prática ideológica do Direito Penal. Rio de Janeiro:
Aldebarã, 1996;

ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2016;

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Rio de Janeiro:
Saraiva, 2012.

375
UMA REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE E RECONHECIMENTO
A PARTIR DO PARADIGMA DA IMUNIZAÇÃO
DE ROBERTO ESPOSITO

PINTO, Simã Catarina de Lima


Estudante de mestrado do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense

RESUMO

O objetivo do presente artigo é, com base na análise do paradigma imunitário de Roberto Esposito,
refletir sobre identidade e reconhecimento de grupos sociais num contexto contemporâneo marcado
por ideais políticos modernos e ainda submetidos ao ideal do sujeito universal o qual se constitui como
um óbice para o reconhecimento e efetivação dos direitos das minorias políticas. Propõe-se, a partir
disso, uma reflexão acerca do paradigma imunitário para se compreender melhor o reconhecimento de
grupos sociais à margem da efetivação de direitos individuais. A estrutura criada a partir dos ideais
imunitários de conservação da vida reforça as discriminações vivenciadas no lugar de experiências de
cidadania e reconhecimento, razões pelas quais a reflexão parte dos conceitos acima referidos de
Roberto Esposito e passa pela identidade, reconhecimento e representação como meios de se obter uma
compreensão mais próxima acerca dessas questões tão centrais nos debates contemporâneos.

Palavras-Chave. Paradigma imunitário; identidade; reconhecimento.

ABSTRACT

The objective of the present article is, based on the analysis of the immune paradigm of Roberto
Esposito, to reflect on the identity and recognition of social groups in a contemporary context marked
by modern political ideals and still submitted to the ideal of the universal subject which constitutes an
obstacle to the recognition and enforcement of the rights of political minorities. Based on this, it is
proposed to reflect on the immune paradigm in order to better understand the recognition of social
groups at the margin of the realization of individual rights. The structure created from the immunity
ideals of life preservation reinforces the discriminations experienced in the place of experiences of
citizenship and recognition, reasons for which the reflection starts from the above concepts of Roberto
Esposito and passes through the identity, recognition and representation like means of being to gain a
closer understanding of such central issues in contemporary debates.

Keywords. Immune paradigm; identity; recognition.

376
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O paradigma da imunização de Roberto Esposito se conduz entre dicotomias


biopolíticas. Essas dicotomias dizem respeito a, como aponta o Filósofo, “declinações
prevalecentes do paradigma da biopolítica – a afirmativa e produtiva e a negativa e mortífera”
(ESPOSITO, 2010, p. 74). Há, por assim dizer, dois polos que se contrapõem, uma vez que
“ou o poder nega a vida ou aumenta o seu desenvolvimento; ou a violenta e exclui ou a
protege e reproduz; ou a objetifica ou subjetiviza” (ESPOSITO, 2010, p. 74). Nessa passagem
se encontra a base a partir da qual o presente trabalho se direcionará para tratar da identidade e
do reconhecimento proposto.
Tratar da imunidade requer também que se adentre ao conceito de communitas que
lhe é inerente, conforme se verá, segundo o qual é o oposto e o contrário de immunitas na
medida em que enquanto este nega a vida a fim de preservá-la e conservá-la, ao privar os
indivíduos da vida em comum, da contínua abertura ao outro e ao que lhe é externo; aquele,
em oposição, evoca uma subjetividade coletiva por meio de um uma reciprocidade afetiva na
qual interesses comuns são partilhados e vividos coletivamente. A obrigação de uns em
relação aos outros é inerente a essa subjetividade partilhada e impessoal.
A imunidade pressupõe a Modernidade a qual será também refletida na medida em
que seus ideais inserem no sujeito uma nova forma de pensar e ver a si mesmo, o que gera
uma alteração em sua essência e na maneira com a qual ele passa a ver a si mesmo e os
outros. O paradoxo que há na imunidade apresenta propostas a serem aqui refletidas e uma
delas é o surgimento de grupos sociais identitários, frutos desse contexto pós-moderno.
Emerge daí a necessidade de se refletir e aprimorar o debate sobre identidade e
reconhecimento, por estes fazerem surgir questões fundamentais em torno das causas e
consequências que grupos sociais apresentam num contexto paradoxal e ao mesmo tempo
estimulante por refletir a afirmação e a negação daquilo que os constitui e que os faz aparecer.

1 A MODERNIDADE E A CONSERVAÇÃO DA VIDA PELA IMUNIZAÇÃO

O paradigma imunitário diz respeito à preservação da vida que se impõe por meio da
sujeição. A ideia de sujeição remete a uma situação na qual a submissão ou a obediência se dá
sem muita resistência ou sem resistência efetiva, concreta. O sujeito deixa de algum modo de
se opor e de resistir no intuito de que sua vida preservada. Esposito (2010, p. 74) utiliza o

377
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

termo “conservação” ao tratar da imunização como uma “proteção negativa da vida”. Nesse
sentido, conservar o organismo de uma maneira indireta ou mediata faz com que o organismo
se submeta a uma “condição que ao mesmo tempo lhe nega, ou reduz, a força expansiva”
(ESPOSITO, 2010, p. 74), um poder que o coage e lhe é exterior, contra o qual ele não
apresenta resistência, já que lhe é introjetado parte daquilo que o ameaça. Um fragmento do
inimigo, nesse aspecto, é colocado dentro do organismo no intuito de conservá-lo.
Esposito relaciona o conceito de imunidade com o conceito de communitas, sendo
que esta seria seu oposto. Ambos os conceitos se contrapõem por serem essencialmente
contrários, já que, enquanto communitas relaciona seus membros reciprocamente numa
relação de interdependência, a imunidade ou immunitas é o seu contrário, pois nega a doação
recíproca de seus membros e os individualiza ao dispensar as obrigações existentes entre eles.
As obrigações comuns são dispensadas e os membros são liberados à sua própria
individualidade. Evoca-se com a imunidade a prevalência da identidade individual.
Como se pode verificar, um dos pressupostos iniciais para a reflexão que aqui se
propõe é a compreensão do conceito de communitas, que diz respeito ao conjunto de pessoas
unidas por um dever ou uma dívida em comum, que gera um afeto recíproco por alguma falta
que tornam os sujeitos responsáveis entre si. Ocorre aí um comprometimento espontâneo que
se dá de forma impessoal, na medida em que não se considera um coletivo de pessoas cada
qual com seus interesses individuais, mas sim o que seria seu contrário, ou seja, um coletivo
de pessoas, se assim se pode dizer, despersonalizadas por forças em comum que as
descaracterizariam como pessoas e as tornariam um coletivo de intensidades, já que essas
pessoas não estão eximidas e dispensadas de deveres entre si, mas, inversamente a isso, estão
numa espécie de dívida entre si. Por essa razão é que Esposito aponta que “o 'imune' não é
simplesmente distinto do 'comum', é seu contrário” (ESPOSITO, 2003, p. 39)
Pode-se dizer a partir disso que o paradigma imunitário, ao negar os deveres
recíprocos das obrigações da comunidade, chama para si outras obrigações que são também
contrárias a estas, por se referirem à substituição de um coletivo de forças que une pessoas por
meio de um coletivo de sujeitos de direitos; estes indivíduos se obrigam, espontaneamente, a
responsabilidades que visam manter sua proteção. A relação social que se estabelece é de
obediências contratuais por meio das quais as relações sociais são preestabelecidas e a vida
vivida é renunciada em seu próprio viver. Seria impossível, como observou Esposito (2003, p.
43), “não reconhecer o resíduo de irracionalidade que se insinua nas dobras do mais racional

378
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

dos sistemas: a vida é conservada pressupondo seu sacrifício.” Trata-se, ainda, de um conceito
que se insere dentro do contexto da modernidade, já que esta dá lugar a esse “mecanismo
sacrificial”, na medida em que a modernidade se autolegitima, como aponta Esposito (2003,
p. 43), “desligando-se de todos os laços sociais, de todo vínculo natural, de toda lei comum.”
A modernidade altera substancialmente a ideia de sujeito, o qual passa a ter uma
autonomia em duplo sentido. Nesse aspecto, como aponta Souza (1998, p. 395), o sujeito
deixa um “heteros divino” e se afirma num primeiro sentido como autoconsciente cuja auto-
afirmação se encontra na sua substância, ou seja, aquilo que concebe a si mesmo como
entidade autônoma. Num segundo sentido, a afirmação da autonomia do sujeito se refere à
sua dinâmica essencial a qual “está ligada a uma dinâmica essencial: autopreservação”
(SOUZA, 1998, p. 395). A preservação de si na modernidade é “endo-determinada,
determinada a partir de dentro. Uma vez que ela é endogenamente determinada, temos, então,
'uma inversão da teleologia', caracterizada por uma “autopreservação endo-determinada.”
(SOUZA, 1998, p. 396).
Por conseguinte, a identidade e a consciência de si passam a ser aspectos
fundamentais para a compreensão do sujeito na modernidade, bem como a compreensão do
sujeito em relação a si mesmo e a correspondente premissa do desejo, a qual, de acordo com
Hegel (apud Kojève, 2002), seria a base da consciência de si. A compreensão da modernidade
em Hegel diz respeito a um saber absoluto o qual decorreria não meramente de uma
consciência ou de uma capacidade contemplativa, mas, antes, de uma

Consciência de si, uma filosofia consciente de si mesma, prestando contas de si,


justificando a si própria, sabendo que é absoluta e revelando-se como tal a si
mesma, é preciso que o homem seja, no fundo de seu Ser, não apenas
contemplação passiva e positiva, mas também desejo ativo e negador (KOJÈVE,
2002, p. 162).

Pode-se dizer que em Hegel o sujeito e o saber decorrente da plena consciência que
esse sujeito tem de si mesmo é levado às últimas consequências, na medida em que este
sujeito só pode deter o saber absoluto se for além de sua capacidade contemplativa e ir além
do que é, e assim o faz ao abandonar seu eu fixo e se transformar a partir de seu próprio vazio.
Por consequência, “o homem só é o que é na medida em que ele se torna; seu Ser (Sein)
verdadeiro é devir (Werden) (...)” (KOJÈVE, 2002, p. 162). A centralização do “eu” em
Hegel para determinar o saber absoluto a partir da consciência de si reflete o ápice do sujeito
consciente de si como centro no pensamento moderno, por ultrapassar o pensamento como

379
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

uma premissa da existência e apresentar uma premissa mais essencial que a da mera
existência, isto é, o sujeito que existe porque compreende seu próprio desejo que o caracteriza
como sujeito.
Isso demonstra a relevância do pensamento de Hegel para compreender o
pensamento moderno, seu paradigma imunitário e a questão identitária que se apresenta de
forma intensificada na contemporaneidade que se dá em razão de ele indicar tanto a essência
da importância do sujeito na concepção moderna quanto o aparecimento da identidade e de
sua auto-afirmação. Ambas, nesse sentido, são características de um pensamento
essencialmente imunitário por evidenciar a pessoalidade e a individualidade presentes nas
relações, além de inaugurar uma estrutura de pensamento que altera substancialmente a
subjetividade, já que Hegel aponta uma consciência voltada para o ser que a pensa, tornando-
o sujeito porque pensa a si mesmo e o esvazia ao se projetar e ao contemplar a si mesmo, o
que ressalta as características do paradigma imunitário.
Essas características do pensamento moderno, voltadas ao sujeito e à autonomia a
partir da consciência de si, sustentam sua identidade, sua autoafirmação e autopreservação, a
communitas “é a saída para o exterior a partir do sujeito individual, seu mito é precisamente a
interiorização dessa exterioridade, a duplicação representativa de sua presença, a
essencialização de sua existência” (ESPOSITO, 2003, p. 44), o que reflete, pode-se dizer, a
ambiguidade inerente a qual os filósofos se deparam ao ter como perspectiva o munus, já que
este, como conceito objeto de reflexão, estaria já sem o elemento subjetivo. Dito de outro
modo, como tornar possível a reflexão sobre o munus num contexto cujos sujeitos são
essencialmente autoafirmativos e autopreservativos? O munus na modernidade careceria do
aspecto subjetivo que une essas identidades de maneira que elas não fossem mais
compreendidas como identidades, mas como uma única identidade, caracterizada por um
vínculo afetivo decorrente dessa subjetividade coletiva? Conforme colocou Esposito

Si la communitas es la salida al exterior a partir del sujeto individual, su mito es


precisamente la interiorización de esa exterioridad, la duplicación representativa de
su presencia, la esencialización de su existencia. Pero no hay que considerar esta
indebida superposición sólo como un 'error' subjetivo del intérprete. Ella no expresa
más que el descarte objetivamente inherente al doble fondo semântico del concepto
de munus, a la ambigüedad estructural de su forma constitutivamente ancípite.
(ESPOSITO, 2003, p. 44)

Esposito, com base no paradigma imunitário, evidencia uma substituição ou uma


relação contraditória anônima do tipo comunitário pelos “modelos privatísticos ou

380
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

individualistas” (ESPOSITO, p. 80), o que está em consonância com a modernidade e seus


ideais iluministas que culminaram nos paradigmas relacionados ao indivíduo que passa a ser
um sujeito de direitos individuais. Esses direitos pressupõem a imunização cujo núcleo é
aquilo que não tem nada em comum ou não é comum com os outros. A imunização
“pressupõe aquilo que no entanto nega”, pois há nela uma introjeção de seu oposto, que é o
conceito de communitas. A imunidade nega aquilo que a habita invariavelmente, como uma
parte imprescindível a qual ela não pode negar, mas que mesmo assim a nega. Trata-se, se
assim se pode dizer, de um conceito que contém como parte nuclear aquilo que ele próprio
nega, na medida em que “o negativo de immunitas – ou seja a communitas – não só não
desaparece do seu âmbito de pertinência mas constitui ao mesmo tempo o seu objeto e seu
motor” (ESPOSITO, 2010, p. 82).
A intenção é imunizar a comunidade, ou seja, fazer com que ela se conserve e não se
“contamine”, que não se contagie nem tenha nada em comum com o que lhe externo ou
estranho. Ao pretender conservá-la, nega-se seu “originário horizonte de sentido”.
(ESPOSITO, 2010, p. 82). A imunização é, no pensamento de Esposito (2010, p. 82), um
“aparelho de defesa sobreposto à comunidade”, por haver nela um liame que, no intuito de
promover sua proteção, coloca-a distante dela, já que a nega por conter em sua essência uma
contradição que não lhe sustenta. A comunidade, em razão disso, interioriza “a modalidade
negativa de seu oposto” (ESPOSITO, 2010, p. 82).
Esposito, ao criticar o “tempo” da biopolítica como estruturalmente moderno em
Foucault, esclarece a importância do seu caráter imunitário, uma vez que esta já seria
preexistente à modernidade por se tratar de uma política voltada para a vida e menciona que
em períodos muito anteriores à Modernidade a biopolítica já se verificava na sociedade. Já o
paradigma da imunização que decorre da biopolítica se insere especificamente na
modernidade e esta seria a razão pela qual, para Esposito, ser o paradigma imunitário e não a
biopolítica uma característica própria da modernidade, por esta estar presente desde o mundo
antigo.
Isso não quer dizer, entretanto, que não tenham existido nas sociedades pré-
modernas aparelhos defensivos, mas que a razão de sua exigência era diferente da que é a
modernidade e a pós-modernidade, pois a imunização, se assim se pode dizer, seria um
pressuposto de qualquer aparelho defensivo. No entanto, “apenas a civilização moderna foi
por ela constituída na sua mais íntima essência” (ESPOSITO, 2010, p. 86), cujo aspecto mais

381
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

central seria a “autoconservação da vida” que teria, conforme uma observação do Autor, feito
nascer a modernidade, na medida em que, com o surgimento de novas tendências
conservatórias que descaracterizaram um mundo simbólico e “natural”, uma nova tendência
desponta com a “exigência de um diferente aparelho defensivo de tipo artificial voltado a
proteger um mundo que passou a estar constitutivamente exposto ao risco” (ESPOSITO,
2010, p. 86). Isso fez com que a conservação e desenvolvimento da vida tivessem que ser
ordenados por processos artificiais capazes de subtrair a vida aos seus riscos naturais, o que
ilustra a distinção da política moderna da que lhe precedeu. (ESPOSITO, 2010, p. 87)
A autoconservação da vida na modernidade pressupõe sempre uma proteção
negativa da vida, o que torna imune a própria vida que quer preservar, na medida em que uma
de suas características é a segurança do sujeito e a preservação de sua vida. Nesse aspecto,
“ligar o sujeito moderno ao horizonte de segurança imunitária significa reconhecer a aporia
em que sua experiência fica presa: a de procurar o refúgio da vida nas mesmas potências que
impedem o seu desenvolvimento”. (ESPOSITO, 2010, p. 88) O paradigma imunitário,
portanto, despotencializa a vida ao assegurá-la.

2 IDENTIDADE E RECONHECIMENTO E SUA RELAÇÃO COM O


PARADIGMA IMUNITÁRIO

A ideia que o sujeito passa a ter de si mesmo com o advento da Modernidade lhe dá
uma autonomia que o fundamenta e essencializa; a determinação do sujeito parte apenas dele
mesmo, tornando-o autônomo de forças externas e de um possível criador. A ressonância
moderna sobre o sujeito lhe torna essencialmente autônomo e sua subjetividade passa a se
constituir a partir de uma racionalidade cujas condições de possibilidade são apenas os
“elementos estruturais de sua própria reflexão” e de uma “orientação original de liberdade e
autonomia” (SOUZA, 1998, p. 400), características estas que apresentam ao sujeito uma nova
identidade marcadamente individualizada, consciente de si e autopreservadora, na qual o
paradigma imunitário se encontra. Nesse sentido, a immunitas, por ser o poder de conservação
da vida e, em razão disso, a proteção negativa da vida, “salva, assegura, conserva o
organismo, individual ou coletivo, a que é inerente – mas não de uma maneira direta,
imediata, frontal”, mas, contrário a isso, submete-o a “uma condição que ao mesmo tempo lhe
nega, ou reduz, a força expansiva”. (ESPOSITO, 2010, p. 74)

382
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A immunitas e a communitas, por conseguinte, são dois paradigmas que sustentam


subjetividades diferentes, modos de pensar e agir que divergem e criam condições distintas. A
modernidade e as subjetividades geradas no paradigma imunitário contribuem para formação
e manutenção de uma estrutura que exclui e separa, cria uma rede de afetos distinta da
communitas. A organização das sociedades passa a operar a partir de ideais individuais e
mantém à margem aqueles grupos de pessoas que não se enquadram no modelo do sujeito
neutro. Criam-se, com isso, padrões de relações que predeterminam os perfis aceitáveis que
são abrangidos pelo alcance dos direitos, o que é possível fazer à medida que formalmente
são previstos direitos e garantias individuais a todos, sem quaisquer distinções, enquanto
concretamente os grupos minoritários continuam à margem da representação, da cidadania e a
da efetividade de direitos.
Representação tem que ver com reconhecimento, o que, nas discussões atuais, não
deveria ser compreendido como uma questão externa ao debate público na medida em que o
paradigma imunitário corresponde a uma ideia de democracia liberal na qual os indivíduos
que são sujeitos de direitos individuais faz com que eles se desobriguem entre si. O caráter da
pessoalidade se fortalece e o funcionamento das sociedades passa a se guiar por um forte
aspecto privado, já que seus indivíduos têm a seu favor a garantia de direitos individuais.
Nesse aspecto, se communitas é caracterizada por um afeto que vincula e obriga os
indivíduos uns em relação aos outros de maneira que eles não se imunizem dessa obrigação e
dessa mutualidade intrínseca que inevitavelmente os une de fato, seu oposto é o que
caracteriza a distinção dos indivíduos, tornando-os imune entre eles e, portanto,
enfraquecendo um potencial emancipatório concreto.
Se por um lado o paradigma imunitário distorce o objetivo da conservação da vida
em razão de ao conservá-la, torná-la vazia de si mesma, isto é, do que se pode chamar de vida,
ele evoca também um fenômeno contemporâneo que se pauta na diferenciação de minorias
políticas que se apresentam por meio de grupos organizados em torno de causas específicas as
quais se pautam no reconhecimento de sua identidade frente a uma estrutura homogeneizante
e de princípios universais. Nesse aspecto, ao mesmo tempo que a modernidade traz consigo a
ideia de um sujeito universal em torno do qual as sociedades ocidentais modernas passam a
operar, ela traz também a oposição a esse ideal universal a partir da organização de grupos
pertencentes a minorias políticas que não se sentem representadas.

383
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O sujeito universal se encontra distante dos indivíduos reais em seus diferentes


contextos, o que dificulta o alcance das necessidades de minorias políticas, dentre elas
mulheres, negros, homossexuais, pessoas com deficiência etc., grupos estes que possuem
também suas diferenças internas, sendo certo que dentro de alguns desses grupos diferentes
tipos de opressões se cruzam e se comunicam, o que faz com que a representação por meio da
ideia de um sujeito universal neutro se torne ainda mais problemática e destoante da realidade,
já que este sujeito universal não coincide com os referidos grupos. Além disso, a neutralidade
guarda em si a ideia de um universalismo dos direitos humanos que se apresentam “como
postulados generalizáveis a toda a humanidade” (FLORES, 2009, p. 166), e se tornam “o
campo de batalha em que os interesses de poder se enfrentam uns aos outros para
institucionalizar 'universalmente' seus pontos de vista sobre os meios e os fins a conseguir”
(FLORES, 2009, p. 166) porque “falar de dignidade humana não implica fazê-lo a partir de
um conceito ideal ou abstrato. A dignidade humana é um fim material” (FLORES, 2009, p.
31).
Desta forma, o aparecimento de grupos de minorias políticas cujos interesses podem
ser divergentes em razão da diferenciação dessas minorias seria uma das consequências do
paradigma imunitário, na medida em que o advento da modernidade e a consequentemente
garantia de direitos individuais que se destinam a um sujeito universal e cujos efeitos não são
concretizados para aqueles sujeitos que não se enquadram na categoria neutra do sujeito de
direitos faz com que surjam grupos sociais cujos integrantes sustentam uma identidade que só
é possível por meio de uma consciência de si, o que permite a oposição a um sistema político
e jurídico que garante a efetividade de direitos apenas a indivíduos que apresentam
determinadas características. O sujeito universal, por conseguinte, é aquele que representa
todas as lacunas do Estado Moderno e seu sistema legal de garantia de direitos, pois ele
intensifica a discriminação de categorias políticas que permanecem à margem do alcance de
direitos.
Se o paradigma imunitário guarda em si o seu oposto, isto é, a communitas, ao
afastar o exercício de uma política que adentre nas relações entre os indivíduos que integram a
sociedade de modo que eles se afetem mutuamente, seria equivocado dizer que a immunitas
guardaria também um aspecto do excesso de individualismo e pessoalidade ao se atribuir a ela
o surgimento de grupos sociais identitários, pois, como colocado, esses grupos, embora se
pautem no reconhecimento identitário, visam sua inclusão e um comprometimento coletivo

384
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

em busca da concretização de direitos. A contradição se dá em razão de esses grupos surgirem


como oposição à figura do sujeito universal o qual é fortalecido pela mesma modernidade que
o faz surgir. Os diversos grupos minoritários se opõem à ideia de sujeito universal no intuito
de minimizar o excesso de proteção desse sujeito neutro e de sua permanência, da
conservação de sua vida como sujeito único e permanentemente a ser preservado. Se por um
lado, a imunização causa um distanciamento dos indivíduos – o que a distingue da
communitas –, por outro lado, causa também, por consequência da primeira, a necessidade de
grupos excluídos se oporem a lógica imunitária a qual contribui tanto para a individualidade
quanto para o fortalecimento de grupos sociais identitários.
Trata-se, por conseguinte, de um paradoxo gerado pela imunidade ao levar às
últimas consequências o distanciamento dos indivíduos a fim de lhes proteger, acaba por
afastá-los uns dos outros, rompe-se com quaisquer valores comuns e recíprocos e os substitui
pela necessidade de se conservar uma vida apartada das demais, uma vida individual, com
ideais individuais e um direito que não alcança a realidade da multiplicidade de vidas. A outra
ponta do paradoxo se encontra no surgimento dos grupos cujas características se constituem a
partir da consciência de si, no reconhecimento de sua própria identidade e de um caráter
pessoal, mas que, a despeito de elevarem essas características que seriam, a princípio,
necessariamente imunitárias, dado o caráter individual que ali existe, se opõem à manutenção
do paradigma imunitário como princípio conservador da vida do sujeito de direitos
individuais.
De modo consequente, a dignidade da vida individual está vinculada à dignidade da
vida coletiva na medida em que, o que pode ser exemplificado pela relação existente entre
identidade pessoal e o desrespeito, conforme colocado por Honneth, segundo o qual “a
degradação valorativa de determinados padrões de autorrealização tem para seus portadores a
consequência de eles não poderem se referir à condução de sua vida como a algo a que
caberia um significado positivo no interior de uma coletividade” (HONNETH, 2003, p. 217-
218). Isto é, a auto-estima pessoal tem que ver com o assentimento social em seu respectivo
grupo, o valor que ela dá a si mesma com base nos valores de seu grupo, o que está
relacionado com o que Hegel já havia afirmado no sentido de que “a realidade humana nada
mais é que o reconhecimento de um homem por outro homem.” (HEGEL, apud KOJÈVE,
2002, p. 165). No entanto, Honneth aponta que

385
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Um sujeito só pode referir essas espécies de degradação cultural a si mesmo, como


pessoal individual, na medida em que os padrões institucionalmente ancorados de
estima social se individualizam historicamente, isto é, na medida em que se referem
de forma valorativa às capacidades individuais, em vez de propriedades coletivas;
daí essa experiência de desrespeito estar inserida também, como da privação de
direitos, num processo de modificações históricas. (HONNETH, 2003, p. 218)

Há que se verificar, ainda, que algumas críticas concernentes a políticas identitárias


ocorrem porque não se compreende que há dois tipos de injustiça e que eles advêm de uma
mesma origem, isto é, tanto a injustiça econômica quanto a injustiça cultural ou simbólica
decorrem de um modelo que tem como base o paradigma imunitário. O reconhecimento se
insere no segundo tipo de injustiça, muito embora o desrespeito se refira também a sujeitos
que permanecem estruturalmente excluídos “da posse de determinados direitos no interior de
uma sociedade” (HONNETH, 2003, p. 216). Há, conforme coloca Fraser (2006, p. 233), um
dilema da redistribuição-reconhecimento, na medida em que “pessoas sujeitas à injustiça
cultural e à injustiça econômica necessitam de reconhecimento e redistribuição”, o que torna o
dilema difícil, já que as respectivas políticas “parecem ter com frequência objetivos
mutuamente contraditórios”. (FRASER, 2006, p. 233). As políticas de reconhecimento
tendem a promover a diferenciação do grupo, enquanto as políticas de redistribuição tendem a
desestabilizá-la (FRASER, 2006), pois a redistribuição implica uma certa homogeneidade
coletiva de maneira que não haja separação por grupos; ao contrário das políticas de
reconhecimento que demandam a valorização do grupo.
O paradigma imunitário gera, portanto, o surgimento de ambas as coletividades
mencionadas, tanto aquelas que precisam de políticas de redistribuição quanto aquelas que
precisam de reconhecimento. Entretanto, ambas podem coincidir em coletividades
“bivalentes”, em razão de seu caráter híbrido e, por isso, não são excludentes entre si, mas
complementares, embora, conforme colocado, constituam um dilema; “oprimidas ou
subordinadas, portanto, sofrem injustiças que remontam simultaneamente à economia política
e à cultura”, na medida em que “essas injustiças não são efeitos uma da outra, mas ambas
primárias e co-originais.” (FRASER, 2006, p. 233)

CONCLUSÃO

A partir do paradigma imunitário trazido por Esposito e a preservação da vida que


lhe é inerente, bem como do conceito de communitas o qual se contrapõe ao primeiro, é

386
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

possível compreender melhor as bases sobre as quais a Modernidade opera. Traça-se, com
isso, os referidos conceitos que são essencialmente opostos de modo que a imunidade diz
respeito a obrigações cujas causas remetem à necessidade de proteção da vida, por meio de
obediências contratuais cuja consequência é a renúncia da própria vida.
O paradoxo que se apresenta, a partir disso, ilustra o resíduo de irracionalidade
presente na modernidade na medida em que a vida é sacrificada no intuito de se conservá-la.
O sacrifício se encontra na maneira pela qual o caráter privatista é evocado e levado a efeito
na modernidade; priva-se os indivíduos do que lhes é comum, mas com a subjetividade
racional da modernidade o pressuposto é já individualista porque a autonomia do indivíduo
lhe confere uma sujeição à sua autopreservação, o que altera toda sua forma de pensar e agir.
E é neste ponto que a essência da modernidade se encontra e se mantém, pela autoafirmação
irrestrita do eu.
Identidade e autoconsciência se elevam na subjetividade e centralizam a consciência
no eu, o que faz com que a imunidade se contraponha à communitas, na medida em que
ambas evocam conceitos e modos de agir não só distintos, mas essencialmente contrários. O
conceito do primeiro está em consonância com a centralidade do sujeito e seu núcleo é a
afirmação da identidade por meio de sua autoconsciência, o que se harmoniza à modernidade.
No que concerne ao conceito de communitas, pode-se dizer que ele se coloca distante dos
ideais da modernidade, por ter como base pressupostos opostos ao da imunidade, razões pelas
quais a própria reflexão do que é a communitas é obstaculizada. Nesse sentido, todas as bases
do pensamento moderno e do que deriva dele são invariavelmente pautadas pelo sujeito como
centro. Assim, a ideia de communitas, nos termos que Esposito propõe apenas subjaz ao
paradigma imunitário.
O paradigma imunitário visa, por conseguinte, maneiras privatísticas e
individualistas de existir no mundo. O sujeito de direitos individuais não se contamina com o
que lhe é estranho ou ameaçador à sua própria individualidade; sua subjetividade é pautada na
sua proteção em relação ao que lhe é externo e ele se priva do que é comum ou pode ser
comum a todos. A comunidade lhe é privada com seu consentimento, sua obediência
contratual que lhe promete a proteção e conservação de sua vida. A noção de riscos passa a
ser condição para que a imunidade opere e os riscos estão relacionados com o que pode ser
comum a todos, com a contaminação do que diz respeito a todos, ao externo e, portanto, à
impessoalidade ao lidar com o que não seria do interesse apenas de um indivíduo, mas seu

387
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

contrário, isto é, lidar e se obrigar ao que é comum; abandonar a pessoalidade e se dirigir a um


campo no qual o “eu” dá lugar a uma consciência coletiva, consciência esta que encontra
dificuldade de se localizar na estrutura moderna.
É no contemporâneo, com influência moderna, que grupos sociais politicamente
minoritários surgem como forma de autoafirmação e de oposição ao sujeito universal que é
aquele efetivamente representado, o qual, por sua vez, intensifica a discriminação e a
marginalização de minorias políticas. Pode-se dizer que o próprio paradigma imunitário ao
mesmo tempo que traz consigo o potencial discriminatório por conter nele mesmo
pressupostos individuais, traz também o surgimento de grupos que se opõem às
discriminações por meio do reconhecimento de suas identidades e sua autoafirmação
individual que se reflete nos grupos dos quais fazem parte. Ou seja, os grupos identitários não
surgem apenas como uma reafirmação da pessoalidade intrínseca a esses grupos, como forma
de intensificar a individualidade de algumas categorias de pessoas, mas também como meio
de se opor a uma individualidade nociva cujas consequências esbarram na discriminação e na
marginalização de pessoas que não se enquadram no modelo do sujeito universal.
Diante disso, o paradoxo imunitário, ao ensejar a privação da vida coletiva por meio
do ideal de um sujeito autônomo e livre de se obrigar afetivamente a questões que dizem
respeito a interesses coletivos, apresenta uma abertura para a luta política, isto é, há um certo
retorno do que o paradigma imunitário nega, na medida em que minorias políticas lutam por
mais visibilidade, o que reflete a “abertura de processos de luta pela dignidade humana”
(FLORES, 2009, p. 21), conforme apontou Flores ao definir os direitos humanos como uma
“categoria de deveres autoimpostos nas lutas sociais pela dignidade, e não de direitos
abstratos a partir de fora” (FLORES, 2009, p. 21) das lutas e compromissos e dos direitos
como processos de luta, isto é, “o resultado sempre provisório das lutas” (FLORES, 2009, p.
28). Trata-se, portanto, de políticas de reconhecimento as quais se caracterizam pela
diferenciação de grupos e sua valorização com base no reconhecimento de suas
peculiaridades.

REFERÊNCIAS

ESPOSITO, Roberto. Bios: Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições 70, Lda., 2010.

ESPOSITO, Roberto. Communitas: Origen y destino de la comunidad. 1ª. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.

388
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

FRASER. Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos
de Campo. São Paulo, n. 14/15, 2006.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003.

KOJÈVE. Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

SOUZA, José Carlos Aguiar de. A configuração estrutural do paradigma da racionalidade moderna. Síntese Nova
Fase. V. 25, n. 82, 1998.

389
O TRABALHO ESCRAVO E O CAPITALISMO:
UM PROBLEMA NA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

VELOSO, Carla Sendon Ameijeiras


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida e Universidade Estácio de Sá.
FIGUEIRA, Hector Luiz Martins
Doutorando em Direito, Constituição e Cidadania pelo PPGD – UVA, professor da Estácio/RJ.
CHAUFUN, Mery
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Mestre em Direito pela
UNESA. Professora da Universidade Veiga de Almeida do Curso de Direito.

RESUMO

O Brasil é uma formação social e econômica complexa e comporta muitas contradições. É a décima
terceira economia do mundo (FMI, 2017), ao passo que persistem em seu território a superexploração
de trabalhadores vulneráveis em termos de educação e renda (PHILLIPS, 2012). Nesse cenário, o
trabalho escravo contemporâneo é uma de suas mais graves, injustas e persistentes problemáticas
sociais. Longe de ser um fenômeno recente, isolado e pontual, o trabalho escravo compôs parte da
história econômica brasileira, em diferentes modalidades, tais como tráfico de pessoas, servidão por
dívida, exploração de órgãos ou até mesmo sexual. A despeito da abolição da escravatura, o trabalho
escravo, resiste na atualidade. A problemática da escravidão é um dos traços marcantes no
desenvolvimento da história humana. Mais especificamente, o Estado determina um limite externo à
relação de assalariamento no Brasil, que contempla o tipo de coerção específica do capitalismo, pois
independe da coação individual do comprador da força de trabalho para se configurar. Os desafios à
diminuição da incidência de condições de trabalho análogas à escrava são colossais e incluem
resistências desde os próprios aparelhos do Estado. O presente artigo utilizará método bibliográfico
através da literatura jurídica existente

Palavras-Chave. Trabalho Escravo, Capitalismo, Mercado de Trabalho.

SUMMARY

Brazil is a complex social and economic formation and it has many contradictions. It is the thirteenth
largest economy in the world (IMF, 2017), while the overexploitation of vulnerable workers in
education and income persists on their territory (PHILLIPS, 2012). In this scenario, contemporary
slave labor is one of its most serious, unjust and persistent social problems. Far from being a recent
phenomenon, isolated and punctual, slave labor composed part of Brazilian economic history in
different modalities, such as human trafficking, debt bondage, organ exploitation or even sexual
exploitation. In spite of the abolition of slavery, slave labor resists today. The problem of slavery is one
of the defining traits in the development of human history. More specifically, the State determines an
external limit to the wage relationship in Brazil, which contemplates the specific type of coercion of
capitalism, since it does not depend on the individual coercion of the buyer of the work force to be
configured. The challenges to reducing the incidence of slave-like working conditions are colossal and
include resistance from the state apparatuses themselves. This article will use bibliographical method
through existing legal literature

390
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Keywords. Slave Work, Capitalism, Labor Market.

INTRODUÇÃO

Trabalho escravo ou trabalho em condição análoga à de escravo agride os direitos de


personalidade, também denominados de direitos fundamentais, violando o principal bem
jurídico a ser protegido, que é a dignidade da pessoa humana.
O critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade, segundo
Sarlet (2001), passa a ser o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de coisificar o outro.
O nosso ordenamento jurídico não possui um conceito próprio para o trabalho
escravo, sendo certo que o artigo 149 do Código Penal tipifica a conduta delituosa de reduzir
alguém a condição análoga à de escravo.
A presença de qualquer um dos seguintes elementos é suficiente para configuração
de trabalho escravo: trabalho forçado; jornada exaustiva; servidão por dívida; e condições
degradantes (MTE, 2015).
As estimativas do trabalho escravo no mundo, conforme o Walk Free Slavery
Index1 (2014), dão conta de que se trata de uma situação que não pode mais ser negligenciada
nos estudos que tratam de gestão e organizações. Segundo as estimativas (WALK FREE
SLAVERY, 2014)1, são 35,8 milhões de homens, mulheres e crianças presos na escravidão
moderna, em todo o mundo, abrangendo os cinco continentes.
Como bem disse Gustavo Luís Teixeira das Chagas (2012, p. 65), a redução do ser
humano à condição análoga à de escravo perpassa pela liberdade do ser humano em sua
acepção mais essencial: a de poder ser.
A liberdade em sua essência é eivada de livre arbítrio, e, é nessa linha que foram
deliberadas as leis protecionistas no Estado brasileiro. Suprimir a liberdade do cidadão em
pleno século XXI significa podar seu próprio destino.
Segundo Miraglia (2011, p. 216) , a liberdade diz respeito não apenas ao direito
subjetivo de ir e vir, significando, no âmbito coletivo, a liberdade de associação e exercício da
1
Relatório elaborado pela Fundação Internacional Walk Free Slavery, “uma organização global com a missão de
acabar com a escravidão moderna em nossa geração pela mobilização de um movimento ativista global, gerando
pesquisa da mais elevada qualidade, atraindo negócios e elevando os níveis sem precedentes de capital para
promover mudanças naqueles países e indústrias que carregam a maior responsabilidade pela escravidão moderna
atual” (WALK FREE SLAVERY, 2014)

391
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

atividade sindical obreira. Ademais, pode-se afirmar que também é possível inferir dessa
liberdade o direito de livre-arbítrio na escolha do serviço prestado e o direito de o trabalhador
encerrar a relação jurídica a qualquer tempo.
No mundo da moda nos deparamos com o trabalho escravo em diferentes matizes,
sendo necessário um questionamento sobre as possíveis políticas de erradicação e as
consequências no consumo.
“Quantos escravos trabalham para você?” é a pergunta que o aplicativo
SlaveryFootprint, da Organização Não Governamental (ONG) anglo-australiana Made in a
Free World, utiliza para instigar as pessoas a pensarem sobre o tema. O teste é composto por
onze perguntas, que incluem a aquisição de produtos de higiene, alimentação, vestuário, entre
outros, a fim de mensurar quantos escravos podem ser encontrados ao longo dessa cadeia
produtiva.
Enquanto o internauta responde às questões, são exibidas informações a respeito do
trabalho escravo no mundo e sua relação com o consumo.
Por meio da conscientização, a ONG busca fazer com que as pessoas repensem seus
hábitos de compra e, em consequência, desestimular a prática criminosa de trabalho escravo.
No Brasil, a ONG Repórter Brasil desenvolveu, em 2013, o aplicativo Moda Livre,
que avalia grandes grupos varejistas de moda e relaciona aqueles em que a produção têxtil foi
flagrada em casos de trabalho escravo.
A proposta é que o consumidor conheça a conduta das marcas antes de efetuar a
compra e, assim, se torne um agente no combate ao trabalho escravo.

1. A ESCRAVIDÃO ONTEM?

Ao criar intangibilidade sobre o fenômeno do trabalho escravo analisamos as


diferentes matizes que o trabalho adquire ao longo da história.
Iniciamos o estudo através do pensamento de Hannah Arendt que distingue a
condição humana da natureza humana como forma de entender os três aspectos envolvidos,
labor, trabalho e ação que propiciam a compreensão do tema (ARENDT, 2000).
Ela preceitua a relevância de caracterizar os momentos históricos importantes como
forma de compreender a condição humana, a reboque de Hegel e Marx, que analisam através

392
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

da história as relações concretas entre os homens, sendo, uma delas o trabalho (ARENDT,
2000).
A condição humana é mutável, enquanto que a natureza humana não porque é
inerente ao homem.
A dignidade é um valor inerente a pessoa humana e está intimamente ligada à
respeitabilidade no grupo social. Somente a pessoa é considerada honrada quando ela tem sua
honra reconhecida e respeitada (ARENDT, 2000)
Diante disso, faz sentido compreender as duas situações nas quais Hannah Arendt
(ARENDT, 2000), refere-se quando analisa o aspecto interno, ou seja, aquilo que pensamos
ou sentimos. Sendo que há uma condição extrínseca que está ligada à cultura, à família, aos
amigos e à vida cotidiana.
Tais aspectos são roubados do trabalhador escravizado, tenha sido no passado como
no Estado Contemporâneo.
A partir de meados do século XIX, os ingleses começam a pressionar o Brasil para
que faça a abolição da escravidão. A pressão interna para a abolição da escravatura também é
forte. Em contrapartida, os donos de escravos defendem a manutenção da escravidão, mesmo
que nos moldes moderados, a fim de preservar a economia brasileira, que depende do trabalho
escravo (COSTA, 1977, p. 222.)
Como disse Emilia Viotti da Costa (COSTA, 1982, p. 9), “a escravidão marcou os
destinos da nossa sociedade. Seus traços ficaram indeléveis na herança e nos legaram a
cultura negra e as condições sociais nascidas do regime escravista”.
A escravidão pré-capitalista era considerada uma forma tradicional de trabalho,
legalizada e permitida pelo Estado.
A questão econômica sempre foi um dos traços marcantes no predomínio da
escravidão, havendo outros como a liberdade, dignidade, desigualdade e miséria.
Privilegiamos perseguir o aspecto econômico para evidenciar que tanto no mundo antigo
como no mundo contemporâneo, existem os que dominam e os que são dominados e os
mecanismos de combate a esta realidade são de difícil cumprimento.
Finalmente, a Lei Áurea2, como é denominada, não contem mais que dois artigos e
coloca fim a uma instituição de mais de três séculos no Brasil, além de determinar que os

2
A palavra áurea, que vem do latim, aurum, é uma expressão de uso simbólico que significa “feito de ouro”,
“resplandecente”, “iluminada”. A palavra áurea é usada para expressar o grau de magnitude das ações humanas e

393
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

senhores não sejam indenizados, assim como não prevê qualquer forma de reparação aos ex-
escravos.
Vale ressaltar, que em 13 de maio de 1888, mais de noventa por cento dos escravos
já estão libertos em nosso país, seja por meio de fugas ou alforrias (ALBUQUERQUE, 2006).
Segundo Jacob Gorender: “Com toda a evidência, a Abolição não foi ‘negócio de
brancos’. Constituiu conquista revolucionária da luta autônoma dos escravos conjugada à
militância do abolicionismo urbano-popular” (GORENDER, 2011, p. 182).

2. ESCRAVIDÃO HOJE ?

A problemática central da presente pesquisa fulcra na pergunta sobre a eficácia


sobre a utilização da mão de obra escrava na indústria da moda.
Bauman (2008), ao descrever a passagem de uma sociedade de produtores para uma
sociedade de consumidores, argumenta que está em curso a transformação de uma sociedade
sólida para uma sociedade líquida, em que tudo é avaliado como mercadoria, predominando o
desapego, a troca e o eterno recomeço. A principal característica da sociedade de consumo é a
visão das pessoas em um espaço social mercantilizado no qual tudo se transforma em
mercadoria. Essa ideia é reforçada pelo ingresso no mundo virtual, que reflete o homem como
produto em redes que expõem as pessoas, de forma semelhante a mercadorias em um
catálogo, e tudo acontece de forma rápida (BAUMAN, 2008).
Dentro desta questão problema constatamos que o mundo da moda possui imagem
vinculada ao glamour, à beleza e nele há uma forte valorização do novo. No entanto, na
indústria da moda existem mazelas, entre elas, a exploração criminosa de trabalhadores, por
meio de trabalho escravo. As marcas e conceitos das grandes corporações são criteriosamente
criados, mas a produção é repassada a terceiros. Esses, por sua vez, pagam valores ínfimos
por peça produzida, obrigando trabalhadores a jornadas extenuantes a fim de produzirem
muito recebendo uma remuneração mínima para sobrevivência (REPÓRTER BRASIL,
2012).

é explorada há séculos por muitos soberanos, reis, imperadores e faraós, no ato de assinatura de seus tratados.
Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em :<http://www.priberam.pt>

394
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A busca por melhores condições de vida e a miséria existente em várias localidades


do nosso país favorece o aliciamento destes trabalhadores pelos “gatos”3, que disponibilizam
locais para facilitar o aliciamento, e daqueles que utilizam do trabalho escravo que são dentre
outras formas as oficinas de costura no Estado Brasileiro.
Não raro, nomes de grandes marcas e grandes varejistas da indústria da moda estão
vinculados à exploração de mão de obra escrava nessas condições (AYRES, 2012; PRADO,
R., 2011; SANTINI, 2014; VERONESE, 2014).
A justificativa de ordem social reside no fato de que, ao conhecer os argumentos
utilizados pelos consumidores de moda quanto a adquirirem ou não produtos de empresas
denunciadas por utilizar trabalho escravo contemporâneo, oferecemos à sociedade pontos
para reflexão a respeito de suas próprias escolhas.
Assim, a sociedade poderá ser estimulada a pensar se suas escolhas contribuem para
a manutenção de práticas corporativas criminosas contra aqueles que estão em condições de
desigualdade em relação aos consumidores das marcas para a qual produzem.
Há uma questão cultural muito forte em nosso país referente a escravidão, assim
como na atualidade podemos destacar o analfabetismo, exclusão social, abismo econômico
que acarreta na pobreza e desemprego. Tudo isso é somado a ausência eficaz estatal em todos
os recantos do nosso país que facilita o aliciamento de trabalhadores.
Além disso, o aspecto psicológico do escravizado e o medo da denúncia aos órgãos
competentes dificulta o flagrante e consequentemente a sua libertação.
O Estado Brasileiro tem diante dele certas expressões da questão social que são a
pobreza, exclusão social, analfabetismo, desemprego e essa realidade social beneficia a
prática da escravidão contemporânea. Tais sintomas sociais se coadunam a precarização dos
direitos do trabalho que são um dos problemas mais graves na atualidade, e, uma ausência de
políticas públicas de coibição a prática deste crime.
Existe uma questão muito forte de dependência entre o senhor que detém os meios
de produção e o escravo que possui a força de trabalho.
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de um lucro
exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de custos, a violabilidade dos direitos e a
perpetuação do trabalho escravo.

3
Gato é o intermediador entre o empregado e o empregador. É a pessoa que alicia trabalhadores com promessas
de excelentes salários e condições de vida (MIRAGLIA, 2011).

395
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Ameaças de morte, castigos físicos, dívidas que impedem o livre exercício do ir e


vir, alojamentos sem rede de esgoto ou iluminação, sem armários ou camas, jornadas que
ultrapassam 12 horas por dia, sem alimentação ou água potável, falta de equipamentos de
proteção, promessas não cumpridas, ou seja, uma pressão psicológica tão forte e degradante
que impossibilita que o trabalhador se permita sair da condição de escravo e
consequentemente seja liberto, tornando-se um ciclo vicioso de submissão.
Pessoas, inclusive pessoas de direito, só são individualizadas por meio da
coletivização em sociedade. Sob essa premissa, uma teoria dos direitos entendida de maneira
correta vem exigir exatamente a política de reconhecimento que preserva a integridade do
indivíduo, inclusive nos contextos vitais que conformam sua identidade.” (HABERMAS,
2002, p. 235)
Há denúncias cada dia mais frequentes que hasteiam a bandeira da responsabilidade
social, do respeito, do comportamento ético e do compromisso com a verdade. Criam códigos
de conduta que contemplam missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático
de Direito e, com isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos e
utilizam-se da mão de obra escrava.
É difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha crueldade e covardia tão
perto de nós. Trata-se da exploração de pessoas realizada por grifes de renome e de solidez
econômica, das quais provavelmente já adquirimos produtos. É uma escravidão impune, pois
não está visível aos olhos da sociedade. A melhor solução para combater esse crime talvez
esteja em nossas mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos depositando
nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria foi produzida. É
preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que exercem trabalhos análogos à
escravidão.
Quando compramos, estamos depositando nosso voto de confiança na empresa e na
forma como aquela mercadoria foi produzida. É preciso fortalecer essa consciência e repugnar
grifes que exercem trabalhos análogos à escravidão.

3. HAVERÁ ESCRAVIDÃO NO FUTURO ?

Existem consumidores que acreditam que a sociedade pode e deve promover


mudanças. Estes consumidores consideram as consequências sociais do seu ato de consumo,

396
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ou utilizam-se do boicote como forma de promover mudanças ou ainda privilegiam empresas


que mostram maior responsabilidade social ou ambiental (WEBSTER JR, 1975).
Observa-se uma legitimação moral que segundo Crane (2013) consiste na aceitação
mínima no campo institucional, como, por exemplo, de clientes e comunidade local propicia a
perpetuação dessa prática. Nesse sentido, os argumentos quanto ao boicote ser um caminho
para promover as mudanças, vai ao encontro da posição de Crane (2013), por ser esse uma
ação que não sustenta e não compartilha com essa prática.
O consumidor ético forja uma nova cultura do consumo, expressando sua visão
social de mundo e sua ética. Esse consumidor considera as consequências do seu consumo e
assume responsabilidade pelas questões sociais (FONTENELLE, 2007, 2010).
Nesse contexto de surgimento de figuras de consumidores socialmente responsáveis
e outras formas de pensar o consumo, como o consumo ético, verde, consciente, político,
entre outras denominações (CRAIG-LEES E HILL, 2002, MALPASS ET AL, 2007;
MICHELLETTI ET AL, 2003), que chamam a atenção para a importância do consumo como
um processo psicológico e social.
Os argumentos centram-se na ideia de que, no Brasil, o trabalho escravo
contemporâneo é uma prática ilegal e criminosa, no entanto, as empresas, para lucrarem mais,
infringem as leis, tornando-se ilegais e criminosas, porém, isso não as intimidam. Já os
consumidores que adquirem esses produtos tornam-se coniventes, incentivando que essa
prática criminosa se perpetue e se torne uma prática de gestão, legitimando-a moralmente
(CRANE, 2013).
Os consumidores que consideram a exploração escravagista atual como crime
utilizaram como dado a ilegalidade do ato, mesmo que fosse tratado como infração
trabalhista, o fato de não ser uma atitude idônea por si só faz como que parte dos
consumidores considerem como um ato ilegal.
A garantia utilizada pelos consumidores foi que pessoas não podem ser escravizadas
e que as empresas querem aumentar a margem de lucro diminuindo os custos com
trabalhadores, cometendo o crime de utilizar mão de obra escrava.
A necessidade e a reputação das marcas como motivadores de compra revelaram
que existem consumidores que procuram evitar o consumismo, procurando um
comportamento racional e responsável. Estes consumidores indicaram que se veem inseridos
na cadeia produtiva e têm consciência das consequências sociais do ato de consumir,

397
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

procurando utilizar 89 do seu poder de compra para promover uma mudança social, seja por
meio do consumo de produtos oriundos de empresas responsáveis ou do boicote àquelas que
não possuem comportamento compatível com a visão social dos consumidores (WEBSTER
JR, 1975).
Encontrar consumidores com esse comportamento indica que existe espaço para o
consumo consciente, no entanto, esse espaço é percebido pelas organizações como importante
para o crescimento de um mercado, como criticado por Barros et al (2011), Fontenelle (2007)
e por Sampaio (2013). É por meio do consumo que as pessoas expressam seus pensamentos,
seus ideais e sua ética. O consumo consciente é uma nova cultura do consumo forjada para
este público (FONTENELLE, 2007, 2010), que assume a responsabilidade pelos crimes
organizacionais, sob a noção de que se não houvesse consumo não haveria oferta de produtos
oriundos de práticas criminosas. Quanto mais visibilidade as práticas das organizações, sejam
elas boas práticas ou nefastas, mais os consumidores poderão se posicionar e fazer escolhas
racionais, de acordo com seus ideais.
Por derradeiro, pode-se afirmar que a história do trabalho no Brasil não se iniciou
com a industrialização ou com a CLT, mas sim com o trabalho escravo, que persistiu como
atividade legal por mais de três séculos, iniciado com a exploração de mão de obra indígena e
consolidado com o tráfico negreiro e exploração do trabalho dos africanos (ROCHA; GÓIS,
2011).
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de um lucro
exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de custos, a violabilidade dos direitos e a
perpetuação do trabalho escravo.
A dinâmica do processo gira em torno do capital e poder enraizado no Estado
Brasileiro, seja no aspecto comportamental, político, psicológico, regional, dentre outros.

CONCLUSÃO

A escravidão no Brasil está inserida na história do nosso país e a abolição da


escravatura não fez como que esta forma de trabalho fosse extinta. Embora em diferentes
formas constata-se que os relatos de escravidão contemporânea no Estado Brasileiro
remontam ao ano de 1971, embora somente a partir do acordo firmado no Caso José Pereira,

398
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

perante a Corte Interamericana de Direitos Humanas, é que o Brasil se tornou uma referência
ao combate ao trabalho escravo.
A problemática inicia-se na dificuldade em estabelecer um conceito preciso para
caracterizar está temática, o que incide muitas vezes, na inviabilidade da sua concretização.
Não há ausência de legislações, nem, tampouco tratados ou convenções, mas como
cada uma utiliza um conceito e nomenclatura própria, torna a discussão mais ampla em sede
jurisdicional.
O trabalho precário e, especificamente, o trabalho escravo contemporâneo, interfere
negativamente no desenvolvimento do indivíduo, visto que viver para o trabalho atrapalha a
educação dos trabalhadores e de suas famílias, não apenas pelas possibilidades de ascensão
promovidas pela educação, mas pela mudança cultural e intelectual que a educação produz.
Aceitar que pessoas trabalhem sem garantir educação é condená-las a estas condições
precárias. A educação, por si só, pode não transformar a sociedade, mas “sem ela tampouco a
sociedade muda” (FREIRE, 2000, p.67), mas isto é pauta para uma outra discussão.
A respeito da responsabilidade do Estado, podemos relacionar a baixa educação
formal para essas pessoas escravizadas como os fatores que enraízam a escravidão
contemporânea, conforme identificados por Crane (2013): extrema pobreza, falta de educação
e conscientização.
As contribuições desta pesquisa são de natureza teórica e social. Como contribuição
teórica adentramos nas discussões sobre trabalho escravo contemporâneo, conseguimos
relacionar organizações, cultura e sociedade ao tema, mostrando a relevância do tema para a
área de Estudos Organizacionais. A contribuição social foi mostrar à sociedade e, em especial,
aos consumidores, a existência do trabalho escravo contemporâneo e a participação de cada
indivíduo no combate ou manutenção dessa prática criminosa.
Grandes grifes hasteiam a bandeira da responsabilidade social, do respeito, do
comportamento ético e do compromisso com a verdade. Criam códigos de conduta que
contemplam missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito e,
com isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos. Contam com
público fiel à marca e ao estilo de vida que lhe corresponde. Mascara-se, no entanto, uma
realidade cruel e pungente: uma produção barata e degradante. Pulveriza-se intensamente a
cadeia produtiva: contrata-se e subcontrata-se, dissipando-se os riscos da atividade. Negocia-

399
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

se a prestação dos serviços sob o rótulo de relações estritamente comerciais. Paga-se pouco,
muito pouco: o limite necessário para garantir o lucro máximo. (CAVALCANTI, 2013).
Somado a isso há uma cultura do medo que é instaurada para evitar denúncias sobre
a existência nos locais de trabalho escravo. Para combater a prática da escravidão
contemporânea é preciso denunciar. Através das denúncias, o Ministério Público, o Ministério
do Trabalho e a Polícia Federal iniciam um processo de investigações e de fiscalizações.
Apesar de todos os esforços resta constatada a existência em pelo século XXI de
trabalho escravo contemporâneo em nosso território nacional.
A realidade é que constatamos mais de 125 anos após a abolição da escravatura, que
o Estado Brasileiro ainda é insuficiente e ineficaz no combate ao trabalho forçado, valendo
destacar, que muitas pessoas são libertadas todos os anos no país em condições análogas à de
escravos, e, tantas outras permanecem sem a efetiva aplicação da proteção estatal.
Portanto, é difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha crueldade e
covardia tão perto de nós. Trata-se da exploração de pessoas realizada por grifes de renome e
de solidez econômica, das quais provavelmente já adquirimos produtos. É uma escravidão
impune, pois não está visível aos olhos da sociedade. A melhor solução para combater esse
crime talvez esteja em nossas mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos
depositando nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria foi
produzida. É preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que exercem trabalhos
análogos à escravidão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1998.

ABIT – Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção. Muito mais força para o setor e para o Brasil.
Disponível em: Acesso em: 17, maio, 2017.

ABOIN, Luciana. Termo de ajuste de conduta. São Paulo, Ed. LTr, 2004.

ALBUQUERQUE, Wlamayra R. de. Uma história do negro no Brasil. Brasília: Centro de Estudos Afro-
Orientais; Fundação Cultural Palmares, 2006

ALMEIDA. Marcelo Pereira. A tutela coletiva e o fenômeno do acesso à justiça. Rio de Janeiro; Freitas Bastos.
2007.

ALVES, Daniela. Espanhola põe à venda órgãos para evitar despejo. Blog Daniela Alves -Base de Dados sobre
o Tráfico da Vida Humana. Acessado em 15 mai 2016.

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

400
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ARISTÓTELES, Política. Tradução de Pedro Constantin Tolens. 5ª. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001.

AUDI, Patrícia. A Organização Internacional do Trabalho e o combate ao trabalho escravo no Brasil. In:
CERQUEIRA, Gelbaet al (org.). Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: contribuições críticas para
sua análise e denúncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

BAUMAN, Z. A crise do sistema que hipotecou o futuro. Globo News, Programa Milênio, 16 jan. 92. Entrevista
concedida a Silio Bocanera. Disponível em: .Acesso em: 10 maio 2017.

BALES, Kelvin. Disposable people: new slavery in the global economy. Berkley: University of California
Press, 1999.

BELISÁRIO, Luiz Guilherme. A redução de trabalhadores rurais à condição análoga à de escravo: um


problema de direito penal trabalhista. São Paulo: LTr, 2005.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do cristianismo. São Paulo. Fundamento. 2012

BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente: análise jurídica da exploração, trabalho
forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: Ltr, 2004a

BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise a
partir do tratamento decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. In: VELLOSO, Gabriel;
FAVA, Marcos Neves (Coord.). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. São
Paulo: LTr, 2006.

BUENO, Eduardo. Capitães do Brasil: a saga dos primeiros colonizadores: Rio de Janeiro: Objetiva, 1999
(Coleção Terra Brasilis, v. 3).

CAMPBELL, C. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro das Sombras: a
política imperial. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho escravo. In:
Trabalho escravo no Brasil contemporâneo. São Paulo: Ed. Loyola, 1999.

CAVALCANTI, Klester. A Dama da Liberdade. 1ª Ed. São Paulo. Ed. Saraiva, 2015.

COMISSÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. Solução amistosa. José Pereira. Disponível
em: . Acesso em 12 de maio de 2017.

CRANE, A. Modern slavery as a management practice: Exploring the conditions and capabilities for
human exploitation. Academy of Management Review, v. 38, 2013, n. 1, p. 49- 69.

CROALL, H. Who Is The White-Collar Criminal? The British Journal of Criminology, v.29, 1989, n.2, p. 157-
174.

_______. Victims of white collar and corporate crime. Victims, crime and society. S.l.: SAGE Publications,
2009, p. 78-108.

Fapesp. Brasil líder mundial em conhecimento e tecnologia de cana e etanol. São Paulo: Fapesp; 2007.

DE HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil: edição comemorativa 70 anos. Companhia das letras, 2006. DE
MIRANDA, J. A atualidade da novilíngua. Psychê, v. 12, n. 22, 2008, p. 113 124

FMI, World Economic Outloook Database :abril de 2017.

401
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

FONTENELLE, I. A. Assédio Moral e Assédio Sexual: faces do poder perverso nas organizações. RAE,
Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 41, n, 2, 2001, p. 8 – 19.

FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000

Galeano E. As veias abertas da América Latina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores; 2010.

MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

MELTZER, Milton. História Ilustrada da Escravidão. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro. 2004.

MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. Trabalho escravo contemporâneo: conceituação à luz do princípio da
dignidade da pessoa humana,2008. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-graduação em Direito,
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

MIRAGLIA, Livia Mendes Moreira. Trabalho Escravo Contemporâneo - conceituação à luz do princípio da
dignidade da pessoa humana. 2ª ed. São Paulo: Ltr. 2015.

Phillips N, Sakamoto L. Global Production Networks, Chronic Poverty and ‘Slave Labour’ in Brazil. Stud Comp
Int Dev 2012; 47:1-29.

SANTOS, Ronaldo Lima dos. A escravidão por dívida nas relações de trabalho no Brasil contemporâneo.
Revista do Ministério Público do Trabalho, ano 13, n. 26, set. 2003.

SATA, Paula. O que caracteriza o trabalho escravo hoje no Brasil; Revista Escola, maio de 2009.

SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil na atualidade. São Paulo: Ltr, 2000.

SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil. São Paulo: Ed. LTR, 2001.

SHWARZ, Rodrigo Garcia. Trabalho Escravo: a abolição necessária. São Paulo: LTr., 2008, p. 89.

SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas. Ed. da Unicamp, 1996.

SILVA, Marcelo Ribeiro. Execução do Termo de Compromisso Firmado perante o Ministério Público do
Trabalho na Justiça Obreira - possibilidade à luz do ordenamento jurídico-normativo vigente. São Paulo.
Revista Ltr., 2000.

SILVA, Marcelo Ribeiro. Trabalho análogo ao de escravo rural no Brasil do século XXI: novos contornos
de um antigo problema, 2010. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiânia, UFG, Goiânia,
2010.

THÉRY, H. et al. Geografias do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Nera, n. 17, 2011, p. 7-28.

TUCCI, F.; BARROS, D. F.; COSTA, A. M. A denegação do consumo: a ética do consumo consciente. In:
SOUZA FILHO, D. M. de. (Org.). Ética & Realidade Atual. 1 a Ed. Rio de Janeiro: PoD Editora, 2013, p. 42-46

VELUDO-DE-OLIVEIRA, T. et al. Consumo Socialmente Responsável no Varejo da Moda: Analisando a


Intenção dos Consumidores de Deixar de Comprar de Empresas Denunciadas por Escravidão
Contemporânea. Revista de Gestão Social e Ambiental, v. 8, n. 2, 2014, p. 63.

402
Grupo de Trabalho 07

DIREITOS HUMANOS,
CIDADANIA
E ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO

cdiii
O CERRADO BRASILEIRO E SUA INVISIBILIDADE
NAS METAS DO ACORDO DE PARIS:
A OMISSÃO DO ESTADO COM O DESMATAMENTO
NA “CUMEEIRA” DA AMÉRICA DO SUL

BOLSON, Simone Hegele


Estudante de doutorado no PPGSD/UFF
MIRANDA, Napoleão
Professor e coordenador do PPGSD/UFF

RESUMO

Pretende este ensaio trazer a lume a omissão do Estado brasileiro quanto ao desmatamento do Cerrado
nas metas de redução da emissão dos gases de efeito estufa, firmadas no Acordo de Paris, através da
INDC (Contribuição Nacionalmente Pretendida). O Cerrado é um sistema biogeográfico que distribui
– como se fosse a cumeeira de uma casa – as águas de suas bacias hidrográficas, as quais alimentam a
bacia amazônica e a floresta. Conquanto essa condição especialíssima, ele vem sendo devastado nos
últimos decênios por projetos desenvolvimentistas predatórios, seja com plantações de soja (v.g.
projeto do MATOPIBA) ou com a pecuária extensiva. Embora a importância do bioma Cerrado, ele
continua “invisível”, olvidado na política pública nacional e internacional, sendo alvo de degradação
que coloca em risco sua biodiversidade, mas que, antes de tudo, coloca em risco a própria Amazônia.

Palavras-Chave. Cerrado; Acordo de Paris e INDC; Omissão do Estado.

404
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A Amazônia, sem dúvida, é o bioma mais importante para a manutenção do


equilíbrio climático no Planeta, vez que sua devastação provocaria (provoca) a desregulação
no clima, contribuindo decisivamente para o aquecimento global e as mudanças climáticas.
Além dela, contudo, há outros biomas no Brasil que vêm sendo alvo de desmatamento, mas
um, em particular, em níveis muito maiores que o bioma amazônico: o Cerrado. Estudos
divulgados por instituições nacionais e internacionais afirmam que a devastação no Cerrado
brasileiro importa - e muito – na (des) conservação da própria Amazônia.
O “berço das águas” brasileiro e “cumeeira” da América do Sul é um sistema
biogeográfico com elementos imprescindíveis à manutenção do equilíbrio climático, seja em
razão dos seus recursos hídricos, como de sua rica biodiversidade faunítica e botânica. Essa
riqueza natural e a possibilidade de “desbravar” o sertão, desde o século XVIII, atraiu a
exploração da terra e de seus minérios por “desbravadores”. A interiorização do país e a
migração na década de 50 do século XX foi a nova face da colonização de uma área que há
séculos já era percebida como o “Eldorado” brasileiro.
Os “bandeirantes” de hoje, ao contrário dos do século XVIII, não usam de armas e
escravos para a exploração da terra, mas de um modelo de negócio que (supostamente) estaria
levando o desenvolvimento econômico à região, colocando abaixo toda e qualquer vegetação
do(s) Cerrado(s) e substituindo-a por culturas exógenas como a soja e a pecuária extensiva. O
desmatamento, assim, é utilizado na nova fronteira agrícola de forma indiscriminada.
Esse desmatamento do Cerrado coloca em risco, além dele próprio, a Amazônia. Os
dois biomas são simbióticos; um depende do outro! Se os rios do Cerrado secarem, os rios da
bacia amazônica poderão secar; sem a água do Cerrado, não há Amazônia. É como a teia da
vida, lembrando F. Capra, há uma interligação entre os biomas: uma teia da vida dos (nos)
biomas. Assim, o escopo desse ensaio é o de trazer a lume estudos sobre a importância do
Cerrado e de como sua devastação tem influência direta na Amazônia, buscando em
documentos internacionais recentes inferir a omissão do Estado brasileiro em relação ao
mesmo. Para tanto, a pesquisa realizada é a documental e bibliográfica, com utilização de
importante relatório divulgado pela ONG Mighty Earth em março de 2017.
O Cerrado é (continua) invisível nas políticas públicas nacionais e internacionais
firmadas pelo Brasil. No Acordo de Paris, em sua INDC – Contribuição Nacionalmente
Determinada - não há qualquer referência ao desmatamento nesse bioma. Tanto é assim que

405
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

projetos desenvolvimentistas predatórios como os do MATOPIBA continuam sendo


instalados no Norte e Nordeste do país.
Para a (possível) mudança desse quadro, é necessário o comprometimento da
sociedade civil na defesa do Cerrado. Infelizmente, o governo, pelo menos, o federal
encontra-se ao lado dos “bandeirantes” do século XXI, seja apoiando a implementação de
projetos desenvolvimentistas predatórios ou ensejando projetos de leis que visam retirar
direitos socioambientais, dando ensejo a um retrocesso ecológico no Brasil.

1 O CERRADO BRASILEIRO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O BIOMA


BRASILEIRO MAIS DEVASTADO NOS ÚLTIMOS DECÊNIOS

O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, abrangendo 11 estados e o Distrito


Federal em uma área de cerca de 208 milhões de hectares. Localizado na região central do
país, faz limites com a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, a Caatinga e o Pantanal
(TERRACLASS CERRADO, 2015). Originariamente, o Cerrado cobria aproximadamente
24% do território brasileiro (cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados); considerado o
“berço das águas” brasileiro, o Cerrado abastece três das maiores bacias hidrográficas da
América do Sul (Tocantins-Araguaia, São Francisco e Paraná-Prata) e alimenta três dos
maiores aquíferos do mundo (Guarani, Bambuí e Urucuia). Milhares de veredas, nascentes e
cabeceiras que abastecem grandes rios, como o São Francisco, Parnaíba, Tocantins, Araguaia
e Rio das Mortes, já foram destruídas pelo desmatamento, agrotóxicos e pela erosão, com
graves consequências para as populações do campo e as urbanas.
Esse bioma apresenta, hoje, 3,1 % de sua área total protegida em unidades de
conservação de proteção integral e 5,5 % em unidades de conservação de uso sustentável
(TERRACLASS CERRADO, 2015, p.12-13). Enquanto o bioma Amazônia ainda mantém
cerca de 80% de sua cobertura original, 50% do Cerrado já foi convertido para outros usos
nos últimos 50 anos (BUSTAMANTE, 2015, p. 8-15). Ecologicamente, relaciona-se à
savana, e há quem afirme que o Cerrado seria configuração regionalizada desta. No Brasil,
este tipo de paisagem recebe denominações diferentes, de acordo com a região: gerais, em
Minas e Bahia; tabuleiro, na Bahia e outras áreas do Nordeste; e ainda campina (Goiás e
Tocantins).

406
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Para o antropólogo e, reconhecidamente, um dos maiores estudiosos do Cerrado,


Altair Sales Barbosa (2016),

Nenhuma dessas designações populares reflete sua totalidade ecológica, referindo-


se apenas a uma modalidade fisionômica, às vezes, associada a uma ou outra
configuração geomorfológica. No mesmo sentido, paradigma puramente botânico
não tem sido suficiente para demonstrar a totalidade e a importância ecológica dos
cerrados, já que destaca ou enfatiza apenas parcelas fragmentadas de sua
composição.

Diferente dos outros matizes ambientais brasileiros, segundo o professor Sales


Barbosa, o Cerrado tem que ser entendido como um sistema biogeográfico (2016, p.8-13).
Sistema é um conjunto de elementos intimamente interligados, e qualquer modificação em
um desses elementos provoca alterações maiores no sistema como um todo.1 Nesse bioma, há
ambientes totalmente ensolarados, como as campinas e os campos limpos, e ambientes
sombreados:

Entre o ambiente ensolarado e o umbrófilo (sombreado), há todo um conjunto de


outros ambientes stricto sensu, como o cerradão, a vereda, as matas ciliares, todos
interdependentes. Modificou um deles, todo o sistema sofre mudança. Isso vem
sendo observado numa história evolutiva de milhões de anos. Por exemplo, nos
chapadões, onde se encontram as campinas e os campos limpos, é onde ocorre
também a recarga do aquífero, que alimenta áreas de matas situadas em terrenos
mais baixos. A cobertura vegetal do cerradão, na área plana, é que garante a
infiltração da água da chuva nas raízes das plantas. Retirada essa cobertura, a
infiltração não ocorre como deveria, e isso prejudicará em maior ou menor grau
todos os demais ambientes. O aquífero só é abastecido ali, as demais áreas são de
descarga.
[...] Houve uma adaptação a um tipo específico de solo, de clima, de agente
polinizador que, se eliminado ou alterado, modifica as características dos demais
elementos envolvidos (SALES, 2016a, p.2)

O Cerrado também pode ser denominado de cerrados, já que sua região não pode
ser entendida como uma unidade zoogeográfica particularizada, pois não apresenta esta
característica; tampouco pode ser considerada uma unidade fitogeográfica, por não se tratar
de uma área uniforme em termos de paisagem vegetal – ele é tanto os chapadões como os
campos limpos – mas ela é um sistema, justamente por ser um conjunto de vários elementos

1
Desde 1992, o antropólogo Altair Sales Barbosa tem sugerido a utilização do conceito biogeográfico,
classificando cada grande matriz ambiental como um sistema. Essas grandes matrizes ambientais podem ser
agrupadas da forma seguinte: Sistema Biogeográfico Amazônico; Sistema Biogeográfico Roraimo-Guianense;
Sistema Biogeográfico das Caatingas; Sistema Biogeográfico Tropical Atlântico; Sistema Biogeográfico dos
Planaltos Sul-Brasileiros; Sistema Biogeográfico das Pradarias Mistas Subtropicais, e por último o Sistema
Biogeográfico do Cerrado. Em entrevista ao IHU On-line: Cerrado: o laboratório antropológico ameaçado pela
desterritorialização. Edição n. 500, 13. março. 2017.

407
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

que abrange áreas planálticas, v.g. , o Planalto Central Brasileiro, com altitude média de 650
metros, clima tropical subúmido de duas estações, solos variados e um quadro florístico e
faunítico extremamente diversificado e interdependente (SALES BARBOSA, 2013, p.2-3)
Sob a perspectiva histórica, o(s) Cerrado(s) exerceu papel fundamental na vida das
populações pré-históricas que iniciaram o povoamento das áreas interioranas do continente
sul-americano. Na região do(s) Cerrado(s), essas populações desenvolveram importantes
processos culturais que moldaram estilos de sociedades bem definidas, em que a economia de
caça e coleta imprimiu modelos de organização espacial e social com características
peculiares. Os processos culturais indígenas, que se seguiram a este modelo, trouxeram pouca
modificação à fisionomia sócio-cultural, e embora ocorresse o advento da agricultura
incipiente, exercida nas manchas de solo de boa fertilidade natural existentes no domínio dos
cerrados, a caça e a coleta, em particular a vegetal, ainda constituíam fatores decisivos na
economia dessas sociedades (SALES BARBOSA, 2013, p.4-5).
Esse panorama regional começou a sofrer sensíveis modificações, a partir do século
XVIII, com a colonização e as entradas e bandeiras que se embrenharam pelo interior do País,
em busca de ouro, pedras preciosas e índios escravos. Não é aleatório que os nomes de
Bartolomeu Bueno da Silva (Anhanguera) e Raposo Tavares, hoje, são denominações de ruas,
avenidas, bairros, rodovias e até cidades na região do Cerrado. Nesse contexto, e a partir dessa
data, surgiram os primeiros aglomerados urbanos e a exploração mais intensa dos recursos
minerais que começava a se incrementar, já provoca os primeiros sinais de degradação, como
ocorreu com as “vilas”, Vila Boa de Goiás (depois Goiás Velho) e Pirenópolis, em Goiás. No
apogeu desse ciclo, essas vilas eram tão ricas quanto Vila Rica (hoje Ouro Preto).
Findo o ciclo da mineração, a região do(s) Cerrado(s) permaneceu economicamente
dedicada à criação extensiva de gado e à agricultura de subsistência. Tais modelos
econômicos persistem em espaços localizados até os dias atuais, e outros modelos mais
simples, baseados no extrativismo, são adotados por populações caboclas, habitantes atuais de
espaços definidos. Somente no século XX, em um processo de interiorização, o Cerrado
passou a ser atraente economicamente e a necessidade da produção de alimentos em níveis
maiores encontrou terreno fértil naquele ecossistema.
Contudo, hoje, o que degrada o rico ecossistema do Cerrado é o que lhe trouxe,
paradoxalmente, desenvolvimento econômico a partir da década de 60: a pecuária, em um

408
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

primeiro momento, e a agricultura intensiva de cereais, como a soja e o milho. Essa nova
“corrida” às gerais e ao sertão foi fruto da expansão da agropecuária:
Entre as décadas de 1950 e 1970, a hoje reconhecida economia agropecuária
instalada no cerrado começou a tomar forma. Além da criação de infraestrutura e de um
mercado consumidor, a introdução de alta tecnologia, apoiada em planos nacionais de
desenvolvimento, acelerou esse processo. A partir da fundação da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 1973, foi possível fazer o melhoramento genético de
plantas e animais e a correção da fertilidade e acidez dos solos no cerrado, bem como o
treinamento e a formação de profissionais envolvidos nessas pesquisas. Junto com o
desenvolvimento do transporte rodoviário e o crescimento do mercado nacional e
internacional de bens e serviços agrícolas (entre eles, a exportação de algodão e de grãos,
como soja e milho), essas transformações atraíram populações de outras regiões para o
cerrado, levando ao rápido crescimento demográfico de algumas cidades.
Até meados da década de 70, o Cerrado das “gerais” e do “sertão” goiano e mineiro
recebeu várias levas de migrantes do Centro-Sul (principalmente gaúchos e paulistas) que ou
compraram – legalmente - áreas na região ou, infelizmente, se apropriaram através da
grilagem de terras, e que ali implantaram uma estrutura fundiária ligada à monocultura, seja
da soja ou de outro cereal. Conquanto essa nova “fronteira agrícola” tenha sido amplamente
explorada, uma nova região – no Cerrado mesmo – passou a ser alvo de cobiça, qual seja: o
Oeste da Bahia; o Sul do Maranhão e, mais recente, o Sudoeste do Pará. Nesse sentido,
explicam Ferreira; Bustamante e Fernandes:

Na década de 1980, a economia agropecuária incorporou espaços ainda mais


distantes, como o oeste da Bahia e a zona de transição com a Amazônia (no
chamado arco do desmatamento – região que marca a fronteira política e
econômica entre a Floresta amazônica e o Cerrado), ainda predominantemente
caracterizada por vegetação de cerrado. Dessa vez, os novos produtores eram,
sobretudo, migrantes do sul do país, vulgarmente chamados de “gaúchos”, que
vinham com suas famílias em busca de terras mais baratas, com bons atributos para
a agricultura (em geral, relevo plano ou pouco ondulado e clima estável, com
períodos chuvosos bem definidos). Em decorrência desse movimento, muitas
cidades foram estabelecidas nessas regiões, formando uma rede urbana que incluía
tanto pequenas cidades, que davam suporte à agricultura, quanto grandes centros
urbanos, de onde os negócios eram geridos (CIÊNCIAHOJE, 2016, p. 26)

Na década de 90, a fronteira agrícola foi expandida para quase todas as terras
restantes no Cerrado. Devido aos (ainda) preços proporcionalmente baixos das terras e com
boas condições de mecanização e melhoramento da fertilidade, essa expansão chegou à região

409
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

hoje conhecida como MATOPIBA, formada pela confluência dos limites estaduais de
Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Tal região, hoje, apresenta os maiores índices de
desmatamento, justamente em razão de uma política desenvolvimentista predatória e alheia às
consequências socioambientais nefastas dessa opção por um tipo de desenvolvimento
econômico explorador e destrutivo.

1.1. O CERRADO COMO A CUMEEIRA DO BRASIL E DA AMÉRICA DO SUL

O Cerrado é considerado estratégico sob diferentes perspectivas que frequentemente


colidem na elaboração e condução de políticas públicas: seja na produção de alimentos e
bioenergia, na geração de recursos hídricos e biodiversidade – apresenta a maior diversidade
de plantas entre as savanas tropicais, com cerca de 12.000 espécies de plantas com flores -, e
na própria regulação climática, com estoques e fluxos significativos de carbono no solo e na
vegetação.
Os chapadões centrais do Brasil, cobertos pelo domínio fitogeográfico e
morfoclimático dos cerrados, constituem a cumeeira do Brasil e também da América do Sul,
pois distribuem significativa quantidade de água que alimenta as principais bacias
hidrográficas do continente (SALES BARBOSA, 2016, p.13).
A cumeeira é a parte mais alta de uma casa, a parte que recebe a água da chuva que
flui pelos quatro – ou mais – cantos do telhado. O Cerrado recebe e retém a água da chuva e
as distribui para todas as bacias do continente: Bacia Amazônica, do São Francisco, do Paraná
e inúmeras bacias independentes, como a do Parnaíba. Essa, inclusive, embora pequena em
relação à Amazônica, é tão complexa que carreia sedimentos do Jalapão, da Chapada das
Mangabeiras e forma o segundo maior delta das Américas, com mais de 74 ilhas, distribuindo
as areias desde o Maranhão, formando os lençóis maranhenses e piauienses (Delta do
Parnaíba) e indo até Jericoaquara, no Ceará. Tudo isso é terra levada pelo rio Parnaíba, que
nasce no aquífero Urucuia, que está na Chapada das Mangabeiras e no Jalapão (no Tocantins)
e vai dividindo o Piauí do Maranhão até chegar ao Atlântico (SALES BARBOSA, 2016, p.
13-14).
A Bacia Amazônica, com todos os seus afluentes, tem suas nascentes, seu curso
médio, situado na região do Cerrado. Da mesma maneira os rios Paraná e São Francisco, e
praticamente todas essas águas se encontram na parte mais alta do Planalto Central brasileiro,

410
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

que é em Formosa, formando a Reserva Biológica das Águas Emendadas, com águas do São
Francisco, do Araguaia e assim sucessivamente.
Sendo o Cerrado a cumeeira, ele detém a condição de distribuidor das águas para
as maiores bacias hidrográficas do país. Essa condição especialíssima está ameaçada pelo
desmatamento e a desenfreada exploração econômica de um bioma que desde o Ciclo do
Ouro tornou o interior do Brasil o “Eldorado” a ser atingido e sua natureza “domesticada”.
Hoje, a destruição que houve no Ciclo do Ouro está se perpetuando com o “Ciclo da Soja”,
não só esse cereal, mas principalmente, e em conjunto com o manejo da pecuária de corte.

2 A DESTRUIÇÃO DO CERRADO: O DESMATAMENTO DE EXTENSAS


ÁREAS COMO A DO PROJETO DESENVOLVIMENTISTA DO MATOPIBA

De acordo com organizações não-governamentais, como a Mighty Earth e a


Rainforest Foundation Norway, o desmatamento no Cerrado brasileiro, no período 2011-
2015, foi maior que na Floresta Amazônica. Em estudo divulgado pelas ONGs, em que foram
pesquisadas 28 localidades no Cerrado brasileiro e na Bacia Amazônica, utilizando-se de
entrevistas, resultados de satélites e drones, chegaram à conclusão que, em um período de 4
anos, mais de 567.000 hectares foram desmatados para dar lugar à produção de soja e à
pecuária, sendo que a primeira foi o principal motivo pelo qual houve o desmatamento na
região (MIGTHY EARTH, 2017, p.1-20).
Mas não só as ONGs verificaram a destruição do bioma; o próprio governo federal
divulgou, no mês de julho de 2017, um estudo realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE), cujos dados são de uma série entre 2013-2015 e corroboram o que as
ONGs e as universidades já vinham detectando: o Cerrado perdeu 9.483 quilômetros
quadrados de vegetação em 2015, um número que equivale a mais de seis cidades de São
Paulo e supera em 52% a devastação na Amazônia no mesmo ano (OBSERVATÓRIO DO
CLIMA, 2017). Outro dado divulgado é que o Cerrado continua perdendo 1% de sua área
remanescente por ano, bem como dados do projeto MapBiomas publicados neste ano indicam
que o desmatamento acumulado no bioma neste século foi três vezes maior que o da
Amazônia, proporcionalmente ao tamanho da área de vegetação remanescente (IDEM).
Segundo dados do mesmo estudo, os dez municípios mais desmatados ficam em
área denominada MATOPIBA (Decreto 8447/2015), palco da expansão da fronteira agrícola

411
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (o acrônimo advém das siglas dos
estados). Juntos, eles respondem por 11% dos quase 30 mil quilômetros quadrados
desmatados no Cerrado entre 2013 e 2015. Os três campeões são baianos: São Desidério (337
km2), Jaborandi (295 km2) e Formosa do Rio Preto (271 km2), todos municípios produtores
de soja (OBSERVATÓRIO DO CLIMA, 2017).
Em estudos divulgados pelas ONGs antes citadas constatou-se que entre as
empresas de soja que operam no Cerrado, a Cargill e a Bunge são as duas empresas de soja
mais ligadas ao desmatamento (MIGTHY EARTH, 2017). Ambas as empresas compram
soja de fazendeiros, que é enviada para várias partes do mundo para alimentar galinhas,
porcos e vacas mantidos em confinamento, até serem transformados em sanduíches de frango,
bacon e hambúrgueres. A Cargill é a maior empresa privada dos Estados Unidos, com
faturamento de US$ 120 bilhões, líder mundial no comércio de soja, óleo de palma, gado,
algodão e outras commodities. Já a Bunge possui a maior infraestrutura instalada no
MATOPIBA, a região do Cerrado com maior desmatamento causado pela soja.
Recentemente, a Bunge ampliou ainda mais a sua rede na região.
Denuncia a ONG que, nos 29 municípios do Cerrado onde a Bunge opera silos
comerciais foram detectados quase 50 mil hectares de desmatamento em 2015, e um total
acumulado de 567.562 hectares de 2011 a 2015, conforme o referido anteriormente. Já nos 24
municípios onde a Cargill opera silos, foram 130 mil hectares de desmatamento durante esses
mesmos cinco anos. Além disso, em 12 municípios, tanto a Cargill quanto a Bunge operam
silos. O desmatamento total dessas áreas atingiu um total de 90.129 hectares no mesmo
período. A investigação não pode afirmar que todo o desmatamento identificado foi causado
pela soja. Entretanto, essas empresas fornecem incentivos financeiros que estimulam a
destruição e não estão tomando medidas adequadas para evitar o desmatamento das regiões
onde operam.
Embora a Bunge tenha adotado uma política de proibição do desmatamento em sua
cadeia de suprimentos, não houve comunicação clara e expressa aos seus fornecedores. Já a
política da Cargill para esse assunto é reconhecidamente falha. Ao contrário dos concorrentes
com políticas de proibição de desmatamento que entram em vigor imediatamente, a Cargill
deu a si mesma o prazo até 2030 para eliminar o desmatamento de suas cadeias de
suprimentos, dando aos produtores de soja e de outras mercadorias quase 15 anos para
continuar o processo de destruição.

412
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Em entrevistas realizadas com fazendeiros pelas ONGs, eles confirmaram que a


Cargill e a Bunge são os dois maiores clientes de soja dos locais que foram visitados na
Bahia. A Bunge adotou uma política de proibição do desmatamento em sua cadeia de
suprimentos, mas não a comunicou claramente aos seus fornecedores. Já a política da Cargill
para esse assunto é reconhecidamente falha. Ao contrário dos concorrentes com políticas de
proibição de desmatamento que entram em vigor imediatamente, a Cargill deu a si mesma o
prazo até 2030 para eliminar o desmatamento de suas cadeias de suprimentos, dando aos
produtores de soja e de outras mercadorias quase 15 anos para continuar o processo de
destruição. Independentemente disso, nenhuma das políticas da empresa parece ser
suficientemente eficaz.
Recentemente também foi divulgado um relatório da ONG internacional Global
Witness apontando que mais ativistas ambientalistas haviam sido mortos no Brasil que em
qualquer outro país do mundo. A maioria dos assassinatos ocorreu nas regiões com maior
proporção de terras ocupadas por fazendas de gado e plantações de soja. Somente em 2015,
50 ambientalistas foram mortos em razão de sua militância.
Não obstante o Código Florestal brasileiro defina que a Reserva Legal deve ser de
80% em propriedades rurais localizadas em área de floresta na Amazônia Legal, 35% em
propriedades situadas em áreas de cerrado na Amazônia Legal (sendo no mínimo 20% na
propriedade e 15% na forma de compensação ambiental em outra área, porém na mesma
microbacia) e 20% nas propriedades situadas nas demais áreas do Cerrado, o que se verifica
é que o aumento indiscriminado do desmatamento nas regiões do MATOPIBA, dando ensejo
ao aumento da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera, os quais contribuem para o
aquecimento global e as mudanças climáticas.
Um dos parágrafos do Manifesto contra o desmatamento do Cerrado (2017)
recentemente divulgado é nesse sentido:

A principal causa de desmatamento no Cerrado é a expansão do agronegócio sobre


a vegetação nativa. Entre 2007 e 2014, 26% da expansão agrícola ocorreu
diretamente sobre vegetação de Cerrado. Quando considerada somente a região do
MATOPIBA – porções de Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e
Bahia –, que é a principal fronteira do desmatamento, 62% da expansão agrícola
ocorreu sobre vegetação nativa. Em relação às pastagens, análises recentes apontam
que, entre 2000 e 2016, 49% da expansão no MATOPIBA ocorreu sobre o
Cerrado. Note-se que, muitas vezes, a área desmatada para pastagem torna-se,
posteriormente, área de uso agrícola. (Grifo nosso)

413
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

São dados alarmantes divulgados por quarenta (40) ONGs que assinam o manifesto.
O esforço brasileiro à conservação da Floresta Amazônica é inegável, por que, então, não
estão em curso os mesmos esforços para a conservação do Cerrado? O reconhecimento da
savana mais biodiversa do Planeta e cumeeira da América do Sul é imprescindível à própria
regulação do clima na Terra. A Amazônia não sobreviverá sem a água do Cerrado. Deter o
desmatamento do Cerrado é tão importante quanto deter o desmatamento da Amazônia!

3 POLÍTICA NACIONAL DE MUDANÇA CLIMÁTICA E O ACORDO DE


PARIS: A AUSÊNCIA DO CERRADO NAS METAS DO CONTROLE DO
DESMATAMENTO NA INDC NACIONAL

A Política Nacional de Mudança do Clima, instituída em 2009 por meio da Lei no


12.187, oficializou o compromisso voluntário do Brasil junto à Convenção do Clima das
Nações Unidas de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) entre 36,1% e 38,9%
das emissões projetadas para 2020. O Decreto no 7.390/2010 apresentou a linha de base de
emissões de GEE para 2020 em 3,236 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. Portanto, a
redução correspondente deveria ser entre 1,168 e 1,259 bilhões de toneladas de CO2
equivalente, respectivamente. Esse montante envolveria a redução de 80% da taxa anual de
desmatamento de Amazônia e 40% dos índices anuais de desmatamento do bioma
Cerrado em relação à média verificada entre os anos de 1999 a 2008 (BUSTAMANTE,
2015, p.2).
A taxa média anual de desmatamento do Cerrado foi estimada em cerca de 18 mil
quilômetros quadrados (km2) entre 1994-2002 e 14,1 mil km2 entre 2003-2008. O total das
emissões projetadas para o ano de 2020 é resultado da multiplicação, em etapas sucessivas, da
taxa de desmatamento projetada – 15,7 mil km2, pelo valor médio de emissões de CO2 por
unidade de área. Dessa forma, estabeleceu-se pela PNMC que uma taxa “aceitável” de
desmatamento no Cerrado seria a perda anual de cerca de 9,4 mil km2! Essa taxa significaria
perder cerca de 1% ao ano da área remanescente de Cerrado em 2009. Entretanto, entre 2009-
2010 quando a PNMC foi lançada a taxa de desmatamento no Cerrado já era de cerca de 6,5
km2 (7,6 mil entre 2008-2009) e assim a PNMC definiu um compromisso para o Cerrado que
já havia sido atingido antes de sua implementação. Isso indica que, já em 2009,
compromissos mais ambiciosos e robustos para a conservação e uso sustentável do Cerrado

414
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

poderiam ter sido encaminhados pela política brasileira de clima, porém não o foram. As
escolhas legislativas foram tímidas em relação às metas determinadas na lei.
Hoje a taxa média anual de desmatamento no Cerrado está em torno de 6 mil
quilômetros quadrados, ou seja, superior à perda de cobertura nativa na Amazônia em 2014
(4,8 mil quilômetros quadrados) (BUSTAMANTE, 2015). Essa taxa é um valor médio e
regiões que hoje concentram as novas frentes do desmatamento vem perdendo vegetação
nativa a taxas maiores ocasionando um intenso processo de fragmentação que compromete
importantes funções ecológicas. Adicionalmente, o bioma concentra aproximadamente 5
milhões de hectares de áreas de vegetação, em especial nas áreas de intenso uso agropecuário,
que devem ser restauradas de acordo com o Código Florestal (sendo 1, 7 milhão de hectares
de áreas de preservação permanente, tão relevantes para a conservação dos recursos hídricos).
Se já em 2009, era preocupante ver um compromisso pouco ambicioso por parte do
governo brasileiro com relação ao desmatamento do Cerrado, seis anos depois, em 2015, na
COP- 21, o texto da contribuição brasileira para o Acordo de Paris, a denominada INDC (em
português: Contribuição Pretendida Nacionalmente Determinada), acentua essa preocupação.
O desmatamento é o maior responsável pelas elevadas emissões de gases de efeito estufa, as
quais pretendem ser prevenidas e combatidas pelo novo acordo climático,
O Acordo de Paris é um instrumento de governança climática global, firmado por
195 países, tendo entrado em vigor, após a ratificação de mais da metade dos países, em
novembro de 2016. Considerado o mais ambicioso dos acordos sobre o clima, tem como base
de trabalho as projeções sobre o câmbio climático, divulgadas pelo IPCC (Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) em seu 5º Relatório, constituindo-se em um
acordo internacional cujas metas pretendem mitigar os efeitos das mudanças climáticas,
adaptar-se às mesmas, além de pretender estabilizar o nível das emissões dos gases de efeito
estufa, visando que a temperatura da Terra não aumente mais que 1,5 grau nos próximos
decênios (VIOLA; NEVES, 2016).
A INDC brasileira traz a contribuição nacional em relação à prevenção e combate às
mudanças climáticas, tendo sido formulada com base no trabalho de negociadores. Dentre
esses negociadores há os membros da diplomacia brasileira; os técnicos do Ministério do
Meio Ambiente; os integrantes do Fórum Brasileiro sobre Mudanças Climáticas e
representantes do Legislativo federal, etc. tendo sido os responsáveis pela construção de
novas metas brasileiras.

415
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Uma das primeiras contribuições pretendidas é “a) Da mitigação Contribuição: o


Brasil pretende comprometer-se a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em
37% abaixo dos níveis de 2005, em 2025. Contribuição indicativa subsequente:
reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% abaixo dos níveis de 2005,
em 2030. Tipo: meta absoluta em relação a um ano-base. Abrangência: todo o
território nacional, para o conjunto da economia, incluindo CO2, CH4, N2O,
perfluorcarbonos, hidrofluorcarbonos e SF6. Ponto de referência: 2005. Horizonte
temporal: meta para o ano de 2025; valores indicativos de 2030 apenas para
referência. Métrica: Potencial de Aquecimento Global em 100 anos (GWP-100)
usando valores do IPCC AR5. Abordagens metodológicas, inclusive para
estimativa e contabilização de emissões antrópicas de gases de efeito de estufa e,
conforme apropriado, remoções: abordagem baseada em inventário para estimativa
e contabilização das emissões antrópicas de gases de efeito estufa e, conforme
apropriado, remoções, seguindo as diretrizes aplicáveis do IPCC”. (Grifo nosso).

O texto da INDC nem ao menos menciona o Cerrado. Há uma atroz omissão do


Estado brasileiro em relação ao desmatamento no Cerrado, senão vejamos:

i) no setor florestal e de mudança do uso da terra:


- fortalecer políticas e medidas com vistas a alcançar, na Amazônia brasileira, o
desmatamento ilegal zero até 2030 e a compensação das emissões de gases de
efeito estufa provenientes da supressão legal da vegetação até 2030. Grifo nosso.
(Ministério do Meio Ambiente, 2015).

A INDC do Brasil indica a intenção de conter o desmatamento ilegal na Amazônia


apenas em 2030 (INDC, 2015, p.3). Não há indicação de contenção do desmatamento no
Cerrado. Em realidade, postergar por mais 15 anos a contenção do desmatamento ilegal da
Amazônia já não é um bom sinal, mas não mencionar o desmatamento ilegal (ou o
desmatamento legal, eufemisticamente denominado supressão de vegetação) em outros
biomas é um péssimo sinal. Resta lembrar, também, que, ao lado Cerrado, há uma situação
crítica de desmatamento na Caatinga.
Infere-se do texto da INDC que o Brasil exige, essencialmente, uma estabilização de
suas emissões totais e deixa uma margem para um pequeno crescimento. Assim, esse
compromisso de redução da INDC até 2025 estaria garantido pela redução das emissões
oriundas de mudanças no uso da terra, sobretudo pelo combate ao desmatamento na
Amazônia, e ficaria restrito ao período após 2025 a cota adicional de mitigação em relação
aos esforços já realizados.
Adicionalmente, a INDC do Brasil (2015, p.4) indica a intenção de restaurar e
reflorestar 12 milhões de hectares de florestas até 2030. Considerando os 15 anos até 2030, tal
reflorestamento deverá ser majoritariamente com o uso de espécies exóticas em sistemas
intensivos. Mesmo considerando essas espécies de crescimento rápido, parece pouco factível

416
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

cumprir essa meta sem que já esteja em curso um conjunto objetivo de medidas para garantir
seu cumprimento.
Mais uma vez, percebe-se, aqui, a pouca relevância dada à presente situação
ambiental do Cerrado. A distribuição das áreas convertidas no bioma não é homogênea. Há
áreas de ocupação mais antiga e com menores proporções de remanescentes na porção sul do
bioma, enquanto a região norte do Cerrado concentra os últimos grandes remanescentes de
vegetação nativa e também as novas frentes de desmatamento que avançam pelo citado
projeto desenvolvimentista predatório do MATOPIBA.
Logo, há omissão do Estado brasileiro em relação ao bioma Cerrado. Não há,
portanto, um compromisso claro acompanhado de um esforço político consistente de reduzir
o desmatamento no Cerrado e nos demais biomas de forma mais ambiciosa em relação ao
fixado em 2009 pela PNMC, nem na INDC. Aliás, essa “omissão” vai ao encontro da guinada
de retrocesso jusambiental que o governo Temer vem promovendo (inobstante já no governo
Dilma isso também se verificasse), v.g., vários projetos pretendendo subtrair direitos
socioambientais conquistados a duras penas.
Embora o governo brasileiro tenha lançado em 2010 o Plano de Prevenção e
Controle do Desmatamento no Cerrado (PPCerrado)2, nos moldes do que há havia sido
instituído para a Amazônia, tendo como objetivo promover a redução contínua da taxa de
desmatamento e da degradação florestal, bem como da incidência de queimadas e incêndios
florestais no Cerrado através da integração e aperfeiçoamento das ações de monitoramento e
controle de órgãos federais (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2010), não foram
obtidos resultados que convergissem para a diminuição das taxas de desmatamento, ao revés,
projetos agropecuários - cujo exemplo maior é o do MATOPIBA – continuam sendo
implantados em áreas tanto de campina (v.g. Centro-Sul do Tocantins) como de chapadões
(v.g. Oeste da Bahia)

2
Suas ações visam a regularização ambiental das propriedades rurais, gestão florestal sustentável e combate às
queimadas, ordenamento territorial, conservação da biodiversidade, proteção dos recursos hídricos e uso
sustentável dos recursos naturais, incentivo a atividades econômicas sustentáveis, manutenção de áreas nativas e
recuperação de áreas degradadas. In: Plano de Prevenção e Controle Desmatamento do Cerrado e
Queimadas. Ministério do Meio Ambiente, Brasília, 2010.

417
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os brasileiros - e todos os outros - devem se preocupar com o desmatamento do


Cerrado por três razões. Primeiro, a agricultura no Cerrado depende da água das
chuvas alimentadas pela vegetação nativa. Nós mostramos que a agricultura produz
umidade por transpiração e evaporação de uma forma diferente que o Cerrado
natural. E isso pode afetar a precipitação, o que é ruim para toda a agricultura que
depende das chuvas na região. Segundo, por causa da vegetação do Cerrado nativo.
Terceiro, por causa da vegetação da Amazônia. Outros estudos têm mostrado que
manter o que restou do Cerrado intacto é essencial para preservar a Amazônia.
(STEPHANIE SPERA, pesquisadora da Brown University em entrevista à revista
Época).

Esse breve ensaio trouxe à tona um tema que emergiu nas discussões jurídico-
ambientais nos últimos anos, com o recrudescimento do aquecimento global e as mudanças
climáticas. Trata-se de um recorte de um estudo maior que está sendo realizado no âmbito de
um projeto de pesquisa desenvolvido no PPGSD/UFF e que relaciona a atuação do Brasil no
âmbito internacional (Acordo de Paris); a opção por um desenvolvimentismo predatório em
nível interno e as práticas – como o projeto agropecuário do MATOPIBA – implementadas
com o intuito de degradação.
A destruição do Cerrado e suas consequências é tão importante quanto a destruição
da Amazônica. O bioma ou sistema biogeo. Cerrado é indispensável à Amazônia; é a partir do
Cerrado e suas águas, que abastecem os rios amazônicos, o que torna o que é a Floresta
Amazônica – o maior regulador do clima mundial! Sem água, a floresta não consegue prestar
o mais importante serviço ecossistêmico ao Planeta.
Há uma simbiose entre esses dois biomas, um não sobrevive sem o outro! Além
disso, o Cerrado (ou os cerrados) contém uma biodiversidade tão rica que sua perda significa
uma erosão genética sem precedentes. Portanto, o desmatamento do Cerrado é devastador e
degradante, pois além de elevar per si o número das emissões de gases de efeito estufa – o
que contribui ao aquecimento global e as mudanças climáticas – também é responsável pelos
reflexos diretos na Amazônia.
Contudo, infelizmente, o Cerrado continua invisível nas metas estabelecidas pelo (e
para o) Brasil na prevenção e combate às mudanças climáticas. No Plano Nacional sobre
Mudanças Climáticas (PNMC, Lei 12.187/2013) houve o estabelecimento de metas
voluntárias quanto à diminuição das emissões dos gases de efeito estuda e, via de
consequência, o combate ao desmatamento. Mas, no acordo climático de Paris, não obstante a
INDC tenha feito referência expressão à Amazônia, o Cerrado foi olvidado. Em realidade,

418
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

configura-se uma omissão do Estado brasileiro inconcebível, dada a importância do Cerrado


na própria preservação da Amazônia.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Altair Sales. Sustentabilidade no Sistema Biogeográfico do Cerrado. In: BENJAMIN, César (org.).
Revista Polítika. Brasília, Fundação João Mangabeira, nº 4, jul./dez. 2016, p.6-19.

__________. Cerrado: é laboratório antropológico ameaçado pela desterritorialização. IHU On-line, São
Leopoldo, n. 500, 13 de março 2016, p. 52-56. Disponível em http://www.ihuonline.com.br Acesso em 1º. set.
2017.

BRASIL. Lei 12.187, de dezembro de 2009. Disponível em http://www.senado.gov.br . Acesso em 20. set. 2016.

_________. Ministério do Meio Ambiente. Mapeamento do Uso e Cobertura do Cerrado. Projeto TerraClass
Cerrado 2013. Brasília: MMA, 2015.

BUSTAMANTE, Mercedes. Política de clima negligencia o Cerrado – mais uma vez

Plano entregue à ONU não menciona o segundo maior bioma do país. Observatório do Clima on-line. Edição
de 24. nov. 2015. Disponível em: http://www.observatoriodoclima.eco.br . Acesso em 2 set. 2017

CIÊNCIAHOJE. Cerrado: o fim da história ou uma nova história? Laerte Guimarães Ferreira; Mercedes
Bustamante; Geraldo Fernandes; Ricardo Bomfim Machado. Instituo Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 334, v.56,
mar. 2016

Desmatamento eliminou 1,9 milhão de hectares do cerrado em dois anos. Ministério Público Federal questiona
incentivos do governo ao agronegócio na região conhecida como "Matopiba". Brasil de Fato on-line, São
Paulo, 28 de Julho de 2017.

FERREIRA JR., Laerte Guimarães (org.). A encruzilhada socioambiental: biodiversidade, economia e


sustentabilidade no cerrado. Goiânia : Ed. da UFG, 2007.

MIGTHY EARTH & RAINFOREST FOUNDATION NORWAY. Relatório: O maior mistério da cadeia de
produção de carne – os segredos por trás do Burger King e da produção mundial de carne. Divulgado em março
de 2017. Disponível em: http://www.mightyearth.org/mysterymeat-portuguese/ . Acesso em 22. jul.2017.

NOVAES, Pedro da Costa; LOBO, Fábio Carneiro; FERREIRA, Manuel Eduardo Ferreira. Pobreza,
desenvolvimento e conservação da biodiversidade em Goiás. In: FERREIRA JR., Laerte Guimarães (org.). A
encruzilhada socioambiental: biodiversidade, economia e sustentabilidade no cerrado. Goiânia: Ed. da
UFG, 2007.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Pretendida Contribuição Nacionalmente Determinada (iNDC)


para Consecução do Objetivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Ministério
do Meio Ambiente. Brasília, 2016. Disponível em: http\\www.mma.gov.br . Acesso em 21. abr. 2017.

419
A JUSTIÇA RESTAURATIVA
COMO EFETIVAÇÃO NO PROCESSO DE ADMINISTRAÇÃO
DOS CONFLITOS ESCOLARES

ESTEVES, Pâmela
Professora adjunta do Departamento de Educação da UERJ.
Pesquisadora da Puc-Rio.
GOMES, Ingrid
Mestranda em Educação pela UERJ.

RESUMO

Esse artigo busca compreender como a cultura escolar se constrói dentro de uma sociedade que
aprendeu a naturalizar/banalizar a violência. Em outras palavras, nosso interesse é investigar os tipos de
conflitos que são produzidos na escola e os procedimentos adotados diante dos casos de elevada
gravidade. Com o objetivo de facilitar o entendimento do leitor dividimos o artigo em três partes. Na
primeira parte apresentamos uma discussão sobre o cotidiano escolar no que tange a relação entre
diferença e violência, a partir da constatação da dificuldade dos estudantes em reconhecerem as
diferenças que os constituem e os casos de violência que são oriundos dessa dificuldade (ESTEVES,
2015). Em um segundo momento, analisamos situações de judicialização dos conflitos que acontecem
nas escolas do município de São Gonçalo/RJ, caracterizadas pela atitude da escola em acionar o
Conselho Tutelar, doravante (CT) e este, por sua vez, encaminha o caso para a Delegacia de proteção à
criança e ao adolescente (DPCA) e/ou ao juizado da infância e da juventude. Por fim, na última parte,
argumentamos a favor da urgência do desenvolvimento de concepções de justiça no ambiente escolar,
em especial de uma justiça restaurativa voltada para construção de uma cultura de paz, como um
instrumento de educação em direitos humanos e uma alternativa à judicialização da educação.

Palavras-Chave. Conflito escolar; Judicialização; Justiça Restaurativa; Direitos Humanos.

ABSTRACT

This article seeks to understand how school culture is built within a society that has learned to
naturalize / trivialize violence. In other words, our interest is to investigate the types of conflicts that
are produced in the school and the procedures adopted in cases of high gravity. In order to facilitate
the understanding of the reader we divide the article into three parts. In the first part, we present a
discussion about the school routine regarding the relation between difference and violence, based on
the students' difficulty in recognizing the differences that constitute them and the cases of violence that
arise from this difficulty (ESTEVES, 2015) . In a second moment, we analyzed situations of
judicialization of the conflicts that occur in the schools of the municipality of São Gonçalo / RJ,
characterized by the attitude of the school in triggering the Guardianship Council, henceforth (CT)
and this, in turn, forwards the case to the Police station for the protection of children and adolescents
(DPCA) and / or the Juvenile Court. Finally, in the last part, we argue in favor of the urgency of the
development of conceptions of justice in the school environment, especially a restorative justice aimed
at building a culture of peace, as an instrument of human rights education and an alternative to
judicialization education.

420
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Keywords. School conflict; Judicialization; Restorative Justice; Human rights.

INTRODUÇÃO:

Vivemos em tempos sombrios, dizia Hannah Arendt no momento em que o


autoritarismo se tornava o modus operandi da política totalitária na Europa. Décadas mais
tarde, os países da América Latina foram vítimas dos mesmos tempos sombrios, mergulhados
no autoritarismo político anunciado nas mais diversas formas de violação aos direitos
humanos. Nos dias de hoje, temos ainda o fantasma daqueles tempos nebulosos onde a
violência contra a condição humana atingiu patamares descomunais. O totalitarismo foi
desfeito e a Democracia, a duras penas, se consolidou. Mas, todas essas transformações
saudosamente positivas não foram suficientes para desestruturar e impedir o surgimento de
novas formas de tempos sombrios.
A violência estrutural que ameaça a vida comum na sociedade brasileira nos
possibilita pensar que estamos, sim, vivendo um momento sombrio. Felizmente, o contexto
histórico não é mais de um poder político totalitário que transforma os indivíduos em sujeitos
massificados e artificializados diante da homogeneização capitalista. Contudo, a violência
social, da maneira como vem se constituindo, é uma ameaça contundente à dignidade
humana, pois motiva o medo como um sentimento constante, inviabiliza a liberdade, destrói o
sentimento de solidariedade e produz a descrença na função do Estado enquanto uma
instituição protetora da sociedade civil.
Os graves e recorrentes casos de violência social que se proliferam nas manchetes
brasileiras denotam o quão sombrio é o momento atual. Arendt (1987b) nos mostrou que a
violência é sempre instrumental, ou seja, necessita ser justificada. Logo, a grande questão é o
que está por trás desse cenário crescente de violências sociais. Para essa problemática,
algumas respostas são possíveis: (1) a crise do nosso atual modelo de Estado; (2) a crise na
tradição de valores morais/éticos que fundamentem a construção de uma sociedade justa; (3) a
disputa por poder, ressaltando que o poder é um fim em si próprio, por isso, não necessita de
justificação, mas sim de legitimidade.
Assim sendo, uma sociedade violenta é caracterizada pela construção e reconstrução
de diversas formas de disputas de poder. Dentro dessas disputas, a violência se transforma no

421
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

principal instrumento de conquista do poder, e não estamos aqui nos restringindo ao poder
político, mas sim as mais diversas relações de poder que se constroem/reconstroem formando
uma economia do poder religioso, ideológico, econômico, midiático, entre outros
(FOUCAULT, 2008). Quanto mais disputas pelo poder, mais violência. Essa equação pode
ser exemplificada no aumento das intolerâncias religiosas, quando o poder religioso é
disputado através de radicalismos. Os crescentes episódios de racismo, também, nos ajudam a
compreender a relação entre poder e violência, nos casos em que a hegemonia branca é
desafiada por etnias minoritárias. Temos, ainda, as disputas pelo poder político, agravadas
pela falência do Estado Nacional brasileiro, cuja a violência se expressa no momento em que
pessoas inocentes são mortas por “balas perdidas” em confrontos entre a polícia (poder
estatal) e traficantes (poder paralelo) nas periferias brasileiras.
E na escola? A escola é uma instituição de formação, consolidação dos valores
morais apreendidos no seio familiar e socialização das experiências do crescer, mas
atualmente, vem se transformando em uma instituição de combate à violência. Cada vez mais,
a sociedade acredita e deposita suas crenças na educação escolar como um caminho
impeditivo ao protagonismo da criminalidade. O paradoxo é que a escola é uma instituição
social, o que significa que não está imune à violência produzida pela sociedade e que por mais
esforços que sejam feitos por parte da comunidade escolar, esta não tem condições nem
obrigação de assumir a responsabilidade do Estado e reduzir a violência.
É diante desse panorama, de múltiplas e crescentes formas de violências, que esse
artigo busca compreender: Como a cultura escolar se constrói dentro de uma sociedade que
aprendeu a naturalizar/banalizar a violência? Em outras palavras, nosso interesse é investigar
os tipos de conflitos que são produzidos na escola, sem deixar de considerar a estreita relação
desses conflitos com a cultura violenta que permeia as relações sociais externas à escola.
Além de compreender a natureza e as especificidades da violência escolar, buscamos,
também, conhecer os procedimentos adotados diante dos casos de elevada gravidade.
Com o objetivo de facilitar o entendimento do leitor, dividimos o artigo em três
partes. Na primeira parte, apresentamos uma discussão sobre o cotidiano escolar no que tange
a relação entre diferença e violência, a partir da constatação da dificuldade dos/as estudantes
em reconhecerem as diferenças que os constituem e os casos de violência que são oriundos
dessa dificuldade (ESTEVES, 2015). Em um segundo momento, analisamos situações de
judicialização dos conflitos que acontecem nas escolas do município de São Gonçalo (RJ),

422
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

caracterizadas pela atitude da escola em acionar o Conselho Tutelar, doravante (CT) e este,
por sua vez, encaminha o caso para a Delegacia de proteção à criança e ao adolescente
(DPCA) e/ou ao juizado da infância e da juventude. Por fim, na última parte, argumentamos a
favor da urgência do desenvolvimento de concepções de justiça no ambiente escolar, em
especial de uma justiça restaurativa voltada para construção de uma cultura de paz, como um
instrumento alternativo à judicialização da educação.

1. A VIOLÊNCIA ESCOLAR COMO PRODUTO DO NÃO


RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS

Charlot (2002) argumenta que a violência escolar não é uma novidade dos séculos
XX e XXI. Já no século XIX, há registros de práticas violentas em escolas secundárias,
sancionadas com prisões. Contudo, se a violência escolar não é um fenômeno radicalmente
novo, ela tem assumido novas feições. Na medida em que a violência escolar passa a ser vista
como estrutural e não mais acidental, as famílias, os/as estudantes, os/as professores/as e toda
a comunidade escolar passam a desacreditar no potencial da escola como instituição
formativa, socializadora e protetora. Na escola, a violência não se restringe a dificultar o
processo de ensino e aprendizagem, mas também contribui para um cotidiano inseguro,
permeado por medos, revoltas, injustiças das mais diversas e, fatalmente, atitudes autoritárias
e punitivas.
Sposito (2001) também considera que a violência escolar não é um fenômeno novo
e, devido as suas novas roupagens, demonstra preocupação na maneira como ela vem sendo
conceituada. Buscando evitar equívocos, Sposito (2001) defende a necessidade de
compreender a violência escolar como aquela que nasce entre os muros da escola, isso
significa trabalhar em uma perspectiva stricto sensu que nos permita minimizar afirmações
precipitadas baseadas em raciocínios de causa e efeito como o binômio pobreza/violência, e
possibilita compreender a violência escolar em sua singularidade.
Há várias interpretações para o aumento da violência escolar. Explicações
macrossociais responsabilizam os altos índices de violência social, na medida que uma
sociedade que recorre à agressão como mecanismo de resolução de conflitos produz escolas
violentas. De certa forma, essa visão é compartilhada pela sociologia francesa de Bourdieu
(1975), que compreende o sistema educacional como um instrumento de dominação do

423
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sistema capitalista, produtor de violências simbólicas que reproduzem de maneira


diferenciada a ideologia da classe dominante.
Assim, Bourdieu (1989) considera o processo educativo uma ação coercitiva,
definindo a ação pedagógica como um ato de violência, de força. Neste ato são impostos aos
educandos sistemas de pensamento diferenciais que criam nos mesmos hábitos diferenciais,
ou seja, predisposições para agirem segundo um certo código de normas e valores que os
caracteriza como pertencentes a um certo grupo ou uma classe. Nessa perspectiva, o sistema
educacional é autoritário e dominador ao impor o habitus da classe dominante, e ao cooptar
membros isolados das classes. Esses membros, uma vez familiarizados com a axiologia da
classe dominante, defendem e impõem de maneira mais radical à classe dominada os sistemas
de pensamentos que a fazem aceitar sua sujeição à dominação.
Reconhecemos e admitimos o potencial macroestrutural da análise de Bourdieu.
Mas, defendemos nesse artigo que na virada do século XX para o século XXI, a violência
escolar não pode mais ser explicada apenas pelo viés estruturalista, pois acreditamos que os
conflitos escolares auferiram singularidades oriundas da dificuldade dos estudantes em
reconhecer/aceitar as diferenças que nos constituem como seres humanos. É fato que essa
dificuldade é representativa de uma sociedade preconceituosa, excludente e discriminatória.
Todavia, a aversão à diferença não se restringe à dominação da ideologia capitalista1. Na
escola, os conflitos são motivados por todos os tipos de diferenças, basta não corresponder ao
padrão de normalidade socialmente acordado. E o que define esse padrão? Essa é a questão.
O padrão não corresponde mais somente a questão da classe social. Atualmente, a definição
do padrão é uma questão antropológica de pertencimento cultural e identitário. São as
identidades rotuladas como diferentes que não são reconhecidas e que, na maioria das vezes,
aparecem como vítimas nos conflitos escolares. Na escola, a diferença é constantemente
colocada à prova, isso porque a escola foi pensada e construída no formato de uma instituição
uniformizadora, que historicamente pouco assimilou o reconhecimento das diferenças.

O lamentável é que a escola pode também ser um mecanismo de exclusão, dando a


alguns o acesso aos mecanismos de poder (direito, língua, história, ciência etc.) e
negligenciando a outros. A escola pode sociabilizar com ênfase no respeito à
diferença, mas pode também uniformizar (uniforme, provas únicas, currículo único,
a mesma maneira de ensinar para todos). (ANDRADE, 2009, p.23).

1
Estamos argumentando que os conflitos escolares não se restringem a uma dominação de classe no sentido
proletário/burguês.

424
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No entanto, hoje, a diversidade cultural e identitária desafiam as tentativas


homogeneizantes que a escola ainda tenta impor. É nesse ambiente de (re)construção e
reprodução da diversidade que a violência se constitui, enquanto um comportamento de
negação e inferiorização das diferenças. Quando a diferença aparece, ela não é somente
negada, mas é também inferiorizada, naturalizada e banalizada. A escola insiste em negar as
diferenças em nome da igualdade porque compreende que o respeito ao que é de todos não
pressupõe o respeito e o reconhecimento ao que é individual e ao que é dos outros.
Resta-nos agora pensar o porquê da diferença tanto incomoda no ambiente escolar.
A modernidade prioriza a defesa da igualdade, por isso, historicamente, a diferença é vista
como um obstáculo à garantia e à aplicabilidade de direitos. Todavia, a diferença que
incomoda não é aquela que legitimou historicamente os privilégios de classe, mas sim aquela
que estrutura os preconceitos, discriminações e estereótipos. É aquela que inferioriza uma
identidade, que reduz os seres humanos e legitima exclusões. A diferença que tanto incomoda
na escola é aquela que não corresponde ao padrão moderno de indivíduo: homem, branco,
heterossexual, magro, talentoso, inteligente, proativo, etc. Os que não se enquadram nesse
padrão são os diferentes, alvos de práticas preconceituosas, intolerantes e discriminatórias.

2. O CAMINHO DA JUDICIALIZAÇÃO

Em seu sentido geral, compreendemos a judicialização como a intervenção das


instâncias judiciárias em diferentes esferas sociais na resolução de conflitos e na proteção dos
direitos individuais e coletivos.Vianna et al. (1999) trata a judicialização:

em termos de uma procedimentalização do direito e da ampliação dos instrumentos


judiciais como mais uma arena pública a propiciar a formação da opinião e o acesso
do cidadão à agenda das instituições políticas.

Considerando esse crescente cenário da judicialização das relações sociais, isto é, da


transferência de poder das instâncias políticas tradicionais para as instâncias judiciárias com o
objetivo de julgar as questões relevantes do âmbito político, social ou moral, esse fenômeno
compreende diferentes facetas, e como exemplo prático expressado no contexto brasileiro, se
apresenta casos relativos ao direito à saúde, quando há necessidade de regulamentação de
medicamentos específicos por meio de uma ação judicial desencadeando, assim, a
judicialização da saúde.

425
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Cumpre salientar que apesar de não ter expressado o termo judicialização,


propriamente dito, o filósofo francês, Michel Foucault, teceu conceitos que nos permitem
dialogar com questões que suscitam tal problemática, tendo em vista que os seus esforços
investigativos indicavam, desde a década de 70, a expansão das funções judiciárias por todo o
corpo social. A presença do poder regulamentador das instituições jurídicas funcionou como
um dispositivo disciplinar que atuou, e ainda atua, de forma estratégica na fabricação de
indivíduos úteis e dóceis. O Direito, na modernidade, se constituiu como um produtor de
verdades que atuam nas diferentes formas jurídicas através da normalização, submetendo os
indivíduos à obediência e definindo o normal e o anormal, o proibido e o permitido (Foucault,
1990).
É em função do normal que as normas são estabelecidas e fixadas, as verdades
construídas e a justiça acionada. Quando o Poder Judiciário aplica uma determinada lei na
sociedade, a verdade é apresentada e a justiça instituída. O justo, a partir da modernidade se
tornou a aplicação de leis, por isso a judicialização é interpretada como um procedimento
válido, capaz de solucionar situações de conflito. A lei é tão suprema que está sempre acima
de tudo e de todos de modo que, quando violada, temos a prática de um crime, e seu violador
se transforma em inimigo da sociedade, aquele que foi capaz de passar por cima da
superioridade da lei. Contudo, chamamos atenção para o processo de padronização da lei que
ocorre quando uma legislação é acionada de forma estandardizada operando como um
mecanismo de modelização capaz de tornar a lei uma referência última da vida, naturalizando
o Poder Jurídico. O ato de naturalizar a lei como verdade pode nos levar a naturalizar a
punição como sinônimo de justiça, uma vez que a punição é a extensão da não obediência à
lei.
Em Vigiar e Punir (1987), Foucault desenvolveu o estudo sobre a expansão da
incidência dos corpos, dos indivíduos enclausurados, pelo poder. Nesta obra, Foucault desvela
a falsa ideia de poder expressada unicamente na concepção negativa e destrutiva. Para além
de uma lógica repressiva, de exclusão ou de omissão, Foucault nos indica um outro lado do
poder a ser pensado, o da transformação. A lei é um poder transformador e serviu de
instrumento para o domínio e controle sobre o corpo humano, por meio de técnicas próprias
de vigilância e de sanções normalizadoras, que não eram exclusivas da prisão, mas
permeavam outras instituições, como a escola. Isso porque a lei funciona como uma
economia de poder na medida em que estorva atitudes e comportamentos não normatizados.

426
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Foi esse tipo de poder, que fabrica o indivíduo, que Foucault delimitou como poder
disciplinar, cujo os métodos “que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que
asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-
utilidade (...)” (FOUCAULT, 1987, p.139).
Nessa lógica, o controle das ações e dos comportamentos dos indivíduos segue em
voga no contexto de vigilância e de punição das instituições sociais, num movimento onde o
poder de decisão recai sobre o poder judiciário, tendo o seu modo de operação – controle,
julgamento, punição – legitimado diante das situações de gerência da vida e de subjetivação
dos indivíduos. Nesse sentido, Nascimento e Scheinvar afirmam que:

.... a intervenção do judiciário é assumida na sociedade moderna como um dever do


Estado em favor do ‘bem comum’ e ‘em benefício’ das partes sob júdice.
Independentemente dos efeitos das práticas judiciárias, estas foram produzidas
historicamente como benéficas e sempre inquestionáveis, verdadeiras (...). Para
instrumentalizar a prática judiciária, o arcabouço legal compreende normas
universais a serem aplicadas sem considerar as condições diversas que vivem os
sujeitos alvo das leis.” (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2007, p.154).

Não se trata aqui de extinguir o aparelho jurídico do mundo social, mas de


problematizar os motivos pelos quais as relações cotidianas, mais especificamente, as relações
do mundo escolar, estarem cada vez mais colonizadas pela esfera judicializante. Sabemos
que, no ambiente escolar, esse cenário é fruto de uma multiplicidade de fatores que envolvem
desde o desconhecimento por parte da comunidade escolar das legislações educacionais, em
específico o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e a omissão da escola em discutir as
diferentes concepções de justiça que se configuram no cotidiano escolar, até a presença de
uma racionalidade que delega à justiça (poder judiciário) o papel de resolução dos conflitos
escolares materializando a ideologia do império da lei. É fato que em determinados casos, que
serão expostos mais adiante, a judicialização é um instrumento necessário para a resolução de
conflitos que extrapolam o papel educacional da escola. Porém, é urgente discutir a questão
da responsabilização civil da escola diante de conflitos oriundos da dinâmica da cultura
escolar. Até porque, cabe enfatizar que todas as vezes que ocorre a judicialização dos
conflitos escolares, a justiça que é estabelecida não é construída pela comunidades escolar,
mas sim por mecanismos exteriores à escola e através da aplicação de leis que também foram
fabricadas distantes da realidade escolar. Na judicialização, o justo vem de fora. Nas palavras
de Heckert e Rocha (2012):

427
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Esta judicialização tem se caracterizado pela expansão da ação da justiça no


território da escola, com o aparato jurídico sendo acionado para intervir em
conflitos que emergem no chão da escola e/ou para esclarecer dúvidas, muito mais
quanto aos deveres não cumpridos do que com relação aos direitos sociais não
garantidos. A lógica judicial passa a permear o cotidiano escolar, ofertada e
requisitada, principalmente, para manter a ordem. Utilizando-se de ameaças de
punição, intensifica-se a criminalização de ações que interrogam as práticas
instituídas, forjando-se políticas do medo e do controle do suposto risco social.
(Heckert; Rocha, 2012, p. 90).

Diante do exposto, no contexto escolar, o caminho para a resolução dos conflitos


escolares tem sido cada vez mais buscado em instâncias fora do âmbito escolar, de justiça ou
policiais, sendo elas: o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a delegacia, a Justiça.
Inclusive, essas próprias instâncias tem adentrado e participado das relações escolares. Como
exemplos dessa realidade, no interior dos colégios da rede municipal de São Gonçalo (RJ),
guardas municipais realizam o patrulhamento da chamada Ronda Escolar2. Enquanto que
colégios da rede estadual de São Gonçalo (RJ), contam com a participação diária de policiais
militares. Ambos os exemplos sob o respaldo de garantia de segurança da comunidade escolar
e do patrimônio público escolar.

3. A ATUAÇÃO DO CONSELHO TUTELAR

O Conselho Tutelar (CT) tem sido constantemente acionado para intervir em


conflitos escolares. Instituído em 1990, através do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA),
Lei 8.069/1990, o Conselho Tutelar (CT) representa um órgão permanente e autônomo, não
jurisdicional, cuja função primordial se deve a proteção integral do cumprimento dos direitos
da criança e do adolescente previstos no ECA. Com efeito, a ideia da criação do Conselho
Tutelar se pautou na desjudicialização do atendimento ao referido público, sem a necessidade
de acionar o Poder Judiciário, uma vez que o poder de representação caberia aos conselheiros
tutelares, representantes da sociedade civil elegidos através de voto popular, para atuarem
com autonomia na busca pela garantia de direitos. Em contrapartida, a lei prescrita está
estritamente vinculada com as práticas do Poder Judiciário, e quem não se enquadrar a ela,
cujo horizonte corresponde à aplicação da justiça, terá que responder pela punição. Portanto,

2
“Desde 1998, o Grupamento especializado de Ronda Escolar foi criado com o objetivo de atender os alunos da
rede municipal de ensino, além de manter proteção de serviços, bens e instalações nas unidades escolares
municipais.” Informação extraída em: http://www.pmsg.rj.gov.br/guardamunicipal/grupamentos.php. Acesso em:
13/06/2017.

428
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mesmo sendo um órgão não-jurisdicional, muitas das práticas dos sujeitos que ali atuam se
revelam pautadas na lógica jurídica, conforme afirmam, novamente, Nascimento e Scheinvar
(2007), sobre a juridicialização das práticas, que a:

[...] presença de modelos de atuação característicos do Poder Judiciário, que


acabam sendo adotados, mesmo em espaços que não detêm tal poder, mas que, por
serem revestidos de certa autoridade e terem como fundamento para a sua prática o
termo da lei, assumem tais formas como as adequadas para o seu exercício. Do
nosso ponto de vista, é esta a lógica que tem pautado algumas das práticas dos
conselhos tutelares.” (NASCIMENTO; SCHEINVAR, 2007, p. 153).

Dessa forma, o conselho tutelar (CT) é uma instituição contraditória. Sua criação
remete a tentativa de desjudicialização, nomeando a sociedade civil para auxiliar na proteção
e garantias de direitos às crianças e adolescentes, porém, o que a práxis nos mostra é um
conjunto de procedimentos regulamentadores da vida escolar que enquadram os conflitos em
legislações e normatizações construídas fora do espaço escolar, ou seja, a judicialização das
relações escolares.
O contexto desta pesquisa, ainda em fase preliminar, busca investigar as três
unidades de Conselho Tutelar do município de São Gonçalo (RJ) divididas por áreas de
abrangência3, que atendem o respectivo município em sua totalidade. Com base em
entrevistas semiestruturadas, realizadas individualmente com os/as conselheiros/as4 e com as
pedagogas5 oriundos/as destas três diferentes unidades procurou-se compreender as formas de
atuação e de articulação entre os pares no cotidiano de trabalho; a relação do CT com as
escolas do município, e os seus respectivos entendimentos sobre a judicialização dos conflitos
escolares bem como os recursos utilizados diante desses casos. Consideramos que estes
aspectos poderiam expor as concepções e a realidade de trabalho dos/as conselheiros/as e de
sua equipe técnica frente às ocorrências escolares recebidas, favorecendo o entendimento
empírico da dinâmica do órgão e do tema de pesquisa.
Uma característica marcante observada foi o fato do Conselho Tutelar atuar em
redes, como menciona a conselheira C2:

Nós trabalhamos em rede, nós trabalhamos com abrigo, nós trabalhamos com
hospitais, com escolas. Então, é assim, tudo depende da rede. O conselho tutelar

3
O município de São Gonçalo (RJ) é composto por três unidades do CT. Cada unidade atende por
localização/bairros específicos.
4
Para garantir o anonimato dos sujeitos de pesquisa, mencionaremos como C1, C2 e C3.
5
Pelo mesmo motivo do anonimato, mencionaremos como P1 e P2.

429
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

não trabalha sozinho. A gente depende de outros órgãos. Nós somos garantidores
de direitos, mas não necessariamente nós vamos ser atendidos. Nós podemos
representar o órgão que não nos atende, mas às vezes a condição que o governo dá
não nos ajuda mesmo a gente tendo o respaldo legal que nós somos garantidores de
direito.” (C2)

Sob a ótica educacional, a ocorrência encaminhada pela escola que mais se destaca é
a FICAI (Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente), que se refere aos/às alunos/as
ausentes na escola, com sucessivo número de faltas. A escola recorre ao conselho para saber o
porquê das referidas faltas do alunado. Apesar de realizarem essa tarefa, os/as conselheiros/as
afirmam, unanimamente, que essa atribuição deveria ser acolhida pela própria escola, não
cabendo ao conselho. Este é um exemplo de ocorrência descrito pelos/as conselheiros/as em
que a escola deixa de assumir o seu papel educacional e recorre ao conselho sem a verdadeira
necessidade, deixando de solucionar questões que poderiam ser resolvidas no interior da
própria instituição escolar.
Outro exemplo ilustrativo que contribui com essa percepção é o recebimento de
ocorrências envolvendo conflitos escolares, que para os/as entrevistados/as a escola deveria
tentar realizar medidas para lidar com essas situações, pois “não é qualquer coisa que é pro
conselho”6. Em outras palavras, “a escola poderia ‘enxugar’ mais, fazer todas as tentativas
possíveis antes de vir pro conselho.”7 Os conselheiros percebem que há uma aguda ausência
de diálogo no interior das escolas para resolver essas situações, e logo buscam o CT. Nesse
sentido, a conselheira C2 afirma que:

... assim, o conselho tutelar é chamado pra isso, pra essas divergências. E, muitas
das vezes, esses conflitos na escola depende só de orientação e não de conselho
tutelar. Só que eles, em algumas situações de colégio, dependendo do colégio, eles
têm medo dos orientadores. A direção tem medo de ir pra um conflito maior, mais
intenso por causa da situação de tráfico, de ser da comunidade, e aí encaminha pro
conselho. (C2)

Em contrapartida, os/as entrevistados/as alegam ocorrências graves, que chegam ao


conselho, no seu estopim. Em consonância com essa constatação, um estudo realizado por
Burgos et al. (2014) sobre a relação escola, família e Conselho Tutelar aponta que:

...essa agência representa, para a escola e a família, uma espécie de pronto-socorro


para onde são encaminhadas as situações consideradas mais graves do ponto de

6
Fala proferida por C1.
7
Fala proferida por C1.

430
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

vista da integridade física e intelectual da criança/adolescente. (BURGOS et al.,


2014, pg.75)

Dentre os exemplos de conflitos escolares, entre os próprios/as alunos/as ou entre


aluno/a e professor/a, que chegam ao CT estão os casos relacionados com agressão física,
ameaças, indisciplina, depredação do patrimônio escolar e tráfico de drogas. Como exemplo,
um dos casos de agressão, envolvendo duas alunas, decorreu de bullying. Uma das alunas
estava munida de um canivete, que só foi descoberto pela gestão escolar após a agressão. Nas
palavras da conselheira:

... ela não aguentava mais a colega falar sobre algo no corpo dela, e aquilo foi
passando. Foi passando, até que um dia ela projetou que aquilo ia acabar. Como
que acabaria isso? Ela machucando a colega. Graças a Deus, não chegou até o
final.Alguma coleguinha contou que a professora, a coordenadora, não recordo, que
fulano estava com algo cortante na mochila. Aí, elas não podem mexer, né. E aí, ela
foi chamada na secretaria. A menina mesmo mostrou que estava. E aí, a ronda
escolar junto com a direção, mais a família vieram aqui no conselho. (C3)

Diante da exposição desse caso, a priori, a atuação do CT vem sendo de


acompanhamento das alunas, após escutá-las individualmente, bem como, os seus respectivos
responsáveis legais, após receberem a notificação. As envolvidas vêm sendo acompanhadas
por psicólogas do próprio CT, que avaliarão se o atendimento será estendido.
Concomitantemente, a gestão escolar segue neste acompanhamento. O caso citado ainda está
em andamento.
Em outras situações, além deste procedimento inicial descrito acima, em caso do/a
criança e/ou adolescente não ter mais possibilidade de permanecer com os responsáveis legais
nem com a família extensa, o CT recorre à vara da infância solicitando o acolhimento
institucional (o abrigamento).
Dentre as medidas que a escola poderia realizar para solucionar e/ou evitar o
acontecimento de certos conflitos, do ponto de vista dos/as entrevistados/as, foram à busca, a
saber: 1) pelo diálogo com o corpo discente; 2) pela aproximação com as famílias; 3) pela
aproximação com o Conselho Tutelar. Como nos indica nessa fala da conselheira C2:

Eu acho que palestras pros adolescentes é uma saída, porque quando os


adolescentes tão voltados pro conhecimento, e eles começam a perceber que eles
também podem ser punidos, eu acho que muda o quadro das escolas, porque nós já
tivemos experiências aqui de colégios, que depois que o conselho teve, fez
palestras, que eles começaram a ter conhecimentos do que eles tem, dos direitos,
dos deveres, melhorou o relacionamento entre direção e alunos. (C2)

431
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Os casos de conflitos judicializados compartilhados, transcorrem de alguma situação


envolvendo lesão corporal. Como exemplo, o trecho do segundo discurso dito pelo/a
conselheiro/a C2, sobre o caso de uma adolescente que tinha histórico com autoria de
agressão por domínio de território escolar. A saída encontrada era sempre a mudança de
escola, sem nunca ter oferecido qualquer oportunidade de trabalhar essa questão dentro da
instituição escolar, como é possível verificar abaixo:

E quando se trata de lesão corporal, já não cabe muito a mim, né. A gente pode até
tentar, pode. Mas aí, já se torna lesão corporal, que é crime. Então, não compete ao
conselho. Então, fica muito difícil não judicializar, mas pode parar só na delegacia
também. Mas assim, já foge da minha competência. (C1)

A mãe retirou ela de um colégio, colocou ela em outro, ela fez o mesmo
procedimento: tomar conta do colégio. E aí, ela sempre acha um alvo: um
adolescente que não aceita as regras dela, e aí ela vai e espanca. E aí, quando ela foi
fazer a ocorrência, ela viu que já tinha outro registro. E aí, que gerou um processo
criminal, porque ela levou 16 pontos. Um soco que ela deu. (C2)

Embora seja assegurado pela Constituição Federal do Brasil (1988) e pelo ECA
(1990), que todos têm direito à educação, há um escancarado descompasso com a realidade
na garantia de vaga na escola. A implementação desses aparatos se mostra frágil para
concretização plena do que se propõe. Diante disso, é paradoxal primar por uma educação
pública de qualidade com um sistema de educação excludente.
Algumas equipes do Conselho Tutelar constataram um distanciamento na relação
com as escolas, no sentido de realizarem trabalhos preventivos, e consideram este um dos
motivos que endossa o medo da comunidade escolar pelo Conselho Tutelar, “porque as
pessoas identificam o conselho tutelar como um órgão punidor”8. Não há um contato
frequente para estabelecer trocas de informações ou trabalhos estratégicos de sensibilização
que fortaleçam a difusão das prerrogativas do ECA, como um instrumento de luta e
resistências pelos direitos e deveres da infância e juventude brasileira. Scheinvar (2012) nos
indica que:

O viés punitivo da escola tem encontrado aliança no conselho tutelar, cuja prática é
vivida de forma ameaçadora. A característica singular do conselho tutelar é não ser
do âmbito da justiça, mas a sua existência está diretamente vinculada a uma lei, o
que tem contribuído para que use métodos da justiça. Não que a escola não seja
punitiva, mas todos pensam que não cabe à escola julgar, condenar e punir, apesar
da ênfase na sua função de controle dos alunos – o que acaba significando a adoção

8
Fala proferida pela conselheira C2.

432
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de práticas semelhantes às da justiça. Já ao conselho tutelar, proposto como um


órgão de garantia de direitos, é associada uma demanda explícita por julgamento e
punição. E ele não só corresponde a tais expectativas como, com sua prática,
produz tal demanda. (SCHEINVAR, 2012, p.48).

As pedagogas entrevistadas consideram que a sua função no CT, junto à equipe


técnica, prima pela mediação dos conflitos familiares/escolares, pelo acompanhamento dos
casos, pela promoção da auto-estima do/a aluno/a, e pela conscientização/orientação dos
responsáveis legais dos seus respectivos deveres para manter os cuidados necessários da
criança e do adolescente.
Outro argumento trazido pela equipe do conselho tutelar, sobre os conflitos
escolares, sobre a raiz do problema, é o discurso da “família desestruturada”9 ou da “estrutura
familiar banalizada”, que reflete no comportamento “indisciplinado”, e no mau
desenvolvimento escolar da criança e do/da adolescente. Nesse sentido, muito similar às
práticas que caracterizam a sociedade disciplinar, expressada por Foucault, o Conselho
Tutelar, além de punidor, também se mostra como um espaço de controle do comportamento
dos indivíduos para adaptá-los à norma vigente. Portanto, parafraseando Foucault, promovem
regras a serem seguidas para a “ortopedia social”.10
O recurso da judicialização de conflitos escolares reforça expressamente a
desqualificação institucional escolar e a própria destituição da autoridade, provocando um
esvaziamento da potencialidade de autonomia que permeia a escola quando episódios de
conflitos entre pares na escola se deslocam cada vez mais do campo pedagógico para o
jurídico, mediante a ações de tecnologias de coerção, vigilância e criminalização das ações
infantojuvenis.

4. A RESTAURAÇÃO COMO ALTERNATIVA

A justiça restaurativa surgiu nos anos de 1970 como uma alternativa ao modelo de
justiça criminal prevalecente. Em oposição ao modelo de justiça baseado em leis, atribuição
de culpa, e punição, a justiça restaurativa enfatiza os danos, as necessidades e as obrigações.
Ao contrário de responsabilizar advogados e juízes para o relato do conflito e sobre a decisão
quanto ao destino dos autores, a justiça restaurativa estimula a participação ativa de vítimas,

9
Os termos, entre aspas, referem-se as próprias falas dos/as entrevistados/as.
10
Em “A Verdade e as Formas Jurídicas” (1999).

433
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

autores e membros da comunidade na reconstituição dos fatos e na administração da justiça.


O sentido do conflito é construído a partir das perspectivas e experiências daqueles que foram
mais afetados por este: a vítima, o autor e em alguns casos os membros da sociedade.
Os defensores da justiça restaurativa acreditam que as práticas restaurativas são
capazes de enfrentar o moderno fenômeno da criminalidade e ao mesmo tempo produzir à
reintegração dos autores a sociedade. Eles argumentam que todo o dano causado por alguém
rompe o equilíbrio das relações sociais na comunidade. Esta ruptura produz várias situações
indesejáveis, parte delas diretamente perceptível como sofrimento por parte da vítima. Nessa
situação, a Justiça Restaurativa busca restabelecer as relações sociais; re-construir o equilíbrio
rompido. Para isso, entretanto, será necessário descobrir, tão exatamente quanto possível, qual
a extensão do dano produzido. Neste movimento, sabemos que a vítima foi diretamente
afetada, por isso dar-lhe a palavra e permitir que ela ocupe um papel central no processo é a
melhor maneira de saber a amplitude do dano por ela experimentado (Rolim, 2006).
Martins (2004, p.25-26) observa que;

Na justiça restaurativa os participantes têm a chance de relatar os acontecimentos a


partir do seu próprio ponto de vista e demonstrar as consequências sofridas pelo
comportamento criminoso. A partir de então procura-se reparar os danos físicos e
emocionais, minimizando os efeitos negativos futuros. As vítimas dispõem de um
fórum seguro para dizer como foram afetadas, desempenhando um papel
fundamental na decisão a respeito da melhor maneira de reparar o dano. Elas
participam do processo de construção da decisão justa. O criminoso, ao invés de se
esquivar isolando-se da comunidade, tem que confrontar as consequências do seu
comportamento e assumir a responsabilidade pelos danos causados.

Em síntese, o processo de justiça restaurativa reverte a tendência de outrificação e


distanciamento social tão presente nos processos de justiça retributiva. Por meio do
mecanismo dialógico, as categorias “nós” e “eles” são desfeitas, para dar lugar a uma
categoria que engloba a todos e que é moldada pelo entendimento conjunto do significado e
reparação do conflito.
A partir da exposição dos pressupostos teóricos da justiça restaurativa fica claro que
este modelo apresenta uma estrutura conceitual substancialmente distinta da chamada justiça
tradicional ou justiça retributiva. O foco da justiça restaurativa está na vítima e na restauração
de sua vida através da reparação do dano sofrido, ao contrário, na justiça retributiva a vítima
ocupa um papel periférico, seus sentimentos e traumas recebem linguagens técnicas e
genéricas que não dão conta de expressar a realidade vivenciada. Nesse modelo a ênfase está

434
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

nos antagonismos do processo e não no diálogo e na negociação, não há indagações sobre os


motivos que levaram ao conflito ou porque as pessoas transgrediram as normas legais e
morais de convívio social, o foco está na vingança que é oficializada pelo Estado e a punição
deve ser proporcional ao dano praticado.
As tabelas abaixo explicitam o contraste entre os modelos restaurativo e retributivo e
acentuam a mudança de paradigma que a justiça restaurativa propõe no processo de resolução
e administração de conflitos.11

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

Prevenção geral e especial - foco no infrator Abordagem do crime e suas consequências -


para intimidar e punir foco nas relações entre as partes para restaurar

Pedido de desculpas, reparação, restituição,


Penalização - Penas privativas de liberdade,
prestação de serviços comunitários. Reparação
restrição de direitos, multa, estigmatização e
do trauma moral e dos prejuízos emocionais -
discriminação
restauração e inclusão

Penas desarrazoadas e desproporcionais em


regime carcerário desumano, cruel, Proporcionalidade e razoabilidade das
degradante e criminógeno - ou - penas obrigações assumidas no acordo restaurativo
alternativas ineficazes (cestas básicas)

PALAVRAS FINAIS: A JUSTIÇA ESTÁ NA RESTAURAÇÃO

A judicialização dos conflitos escolares, mesmo quando necessária, deveria assumir


uma abordagem restaurativa de justiça possibilitando a construção de uma cultura de paz no
ambiente escolar. Esse foi o objetivo da criação dos Conselhos Tutelares, direcionar a
responsabilidade pelos conflitos escolares para a sociedade civil permitindo o protagonismo
desta na proteção e garantia dos direitos às crianças e adolescentes. Todavia, quando a escola
aciona o CT para solucionar conflitos que poderiam ser administrados internamente não perde
apenas a autonomia a identidade de uma instituição formadora, mas também inviabiliza o
potencial restaurador que a situação produzir. Dito de outra maneira, numa situação de
bullying a escola teria a oportunidade de usar a ofensa como um instrumento pedagógico

11
As três tabelas foram construídas com base nos dados retirados do artigo de GOMES PINTO, Renato Sócrates.
A construção da Justiça Restaurativa no Brasil. O impacto no sistema de Justiça criminal. Jus Navigandi,
Teresina. 11, n. 1432, 3 jun. 2007. Disponível em http//jus2.uol.com/doutrina/texto.asp. Último acesso em:
18/01/2010

435
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

para trabalhar empatia, o perdão, e a responsabilização pelos erros através da reparação da dor
provocada.
Infelizmente a escola ainda busca o modelo retributivo que educa pela punição e
recorre a lei como um instrumento absoluto da verdade e da justiça. A diferença desafia a
escola construindo e reconstruindo situações de conflitos que uma vez desnecessariamente
judicializadas são procedimentalizadas através de uma lógica penal julgadora que ao invés de
problematizar como os conflitos são produzidos, se concentra apenas na legalidade das
práticas que serão regulamentadas. Já a justiça restaurativa se estabelece como uma oposição
à violência quando defende a restauração da paz através da reparação do dano, quando se
posiciona pelo reconhecimento e pela valorização das diferenças, quando postula a paridade
na participação do processo de resolução do conflito e principalmente quando explicita a
importância de sempre se considerar o outro.
Uma escola justa luta para compreender seus próprios conflitos, investiga os
contextos que a violência é produzida, analisa os diferentes discursos, enfatiza a validade do
diálogo na busca pelo pedido/aceitação da desculpa. Nessa escola os estudantes são
chamados a compreender a origem de seus conflitos e de que maneira é possível aprender
com os próprios erros. Quando, e se todas essas possibilidades não forem efetivas, nesse caso,
o Conselho Tutelar deve ser acionado, mas não para enquadrar o conflito em leis previamente
normatizadas e nem tampouco para consertar a escola com a lógica retributiva do poder
judiciário, mas sim para aconselhar a equipe escolar na administração do conflito
responsabilizando assim a sociedade civil pela garantia e proteção dos direitos das crianças e
dos adolescentes nesses tempos tão sombrios!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, M. Tolerar é Pouco? Pluralismo, mínimos éticos e prática pedagógica. Petrópolis, RJ: DP ET Alii:
De Petrus; Rio de Janeiro: Novamérica, 2009.

ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 2ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

CHARLOT, Bernard. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão. Sociologias,
Porto Alegre, 2002

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

436
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

______. A Verdade e as Formas Jurídicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999.

HECKERT, A. L.; ROCHA, M. L. A maquinaria escolar e os processos de regulamentação da vida. Psicologia &
Sociedade; 24(num. esp.), 25-30.

NASCIMENTO, M. L.; SCHEINVAR, E. De como as práticas do conselho tutelar vêm se tornando


jurisdicionais.Aletheia, n.25, p.152-162, 2007.

OLIVEIRA, C. F. B.; BRITO, L. M. T. Judicialização da Vida na Contemporaneidade. Psicologia: Ciência e


Profissão, 33 (núm. esp.), 78-89, 2013.

SCHEINVAR, E. Conselho tutelar e escola: a potência da lógica penal no fazer cotidiano. Psicologia &
Sociedade; 24 (num, esp.), 45-51, 2012.

SPOSITO, Marilia Pontes. Um breve balanço da pesquisa sobre violência escolar no Brasil. São Paulo,
Educação e Pesquisa, v. 27, n. 1, p.85-103, 2001

VIANNA, L. W. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan,
1999.

437
REGULAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO:
PERCEPÇÕES DE UMA (RE) CONFIGURAÇÃO
DA CIDADANIA ATRAVÉS DA FORMALIZAÇÃO DA
ATIVIDADE EMPRESARIAL

JUAREZ, Rodson
Doutorando do PPGSD/UFF
Pesquisador associado ao InEAC/UFF

RESUMO

Com o objetivo de refletir sobre a formalização empresarial de pequenos negócios individuais no


formato Microempreendedor Individual (MEI) como possibilidade escolha autônoma, mesmo em
cenário regulado, considerando as implicações e as práticas que possibilitam tal ocorrência, utilizamos
o método qualitativo para compreender a percepção dos colaboradores SEBRAE, operadores do
sistema penitenciário, agentes do judiciário e de apenados. As conclusões preliminares se dão no
sentido das percepções criminológicas, que focam no sistema punitivo construído por uma sociedade,
bem como nos efeitos que tal sistema provoca na sociabilidade, com interferência na noção de
cidadania e de empreendedorismo, bem como no reconhecido na legislação que possibilita a
formalização de empresas com uma abordagem mais simples, operando no sentido da (re) construção
de uma cidadania ou da conformação de corpos para uma perspectiva moralmente ajustada e aceitável.

Palavras-Chave. Empreendedorismo. Cidadania. Regulação.

ABSTRACT

In order to reflect on the business formalization of small individual businesses in the Individual
Microentrepreneur (MEI, under Brazilian law) format as an autonomous choice possibility, even in a
regulated scenario, considering the implications and practices that allow such occurrence, we use the
qualitative method to understand the perception of SEBRAE employees, penitentiary system operators,
judicial agents and prison inmates. The preliminary conclusions are in the sense of criminological
perceptions, which focus on the punitive system constructed by a society, as well as on the effects that
such a system provokes in sociability, with interference in the notion of citizenship and
entrepreneurship, as well as not recognized in the legislation that allows the formalization of
companies with a simpler approach, operating towards (re) building a citizenship or the conformation
of bodies to a morally adjusted and acceptable perspective.

Keywords. Entrepreneurship. Citizenship. Regulation.

438
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O cenário de mutações do capitalismo contemporâneo, considerando as


transformações no regime de acumulação e nas relações produtivas, com a terceirização de
atividades e redução do escopo dos projetos econômicos, promovendo uma regulação própria
para o movimento de pequenos negócios, rela uma tendência no comportamento social,
substituindo o fetiche do emprego pelo da busca do lucro, mesmo que em pequena escala,
oriundo de atividade empreendedora. Assim, até que ponto estaria o Estado brasileiro
oferecendo garantias para o aprimoramento desse movimento através do Simples Nacional
como regime tributário e pela lei e política de promoção do Microempreendedor Individual?
Na percepção da existência de uma lógica capitalista na formatação da dinâmica
social, surgem inquietações sobre a autonomia liberal da ética kantiana e seu referente
imperativo categórico, evidenciando a presença de uma liberdade condicionada pela
participação em uma sociedade do consumo, que prima pelo uso ostensivo de bens ou
serviços que marquem o status hierarquizado no tecido social, marcando a ação “racional”
como instrumento para alcançar uma finalidade não coletiva, mas que satisfaça intenções
individuais de pertencimento pelo consumo. Essa intenção não marca, necessariamente,
integração ao proletariado ou ao corpo produtivo através do trabalho assalariado, mas pela
possibilidade de aplicação de capital diminuto e da atividade empresarial de baia
complexidade.
Este artigo representa um esforço na construção de um caminho descritivo das
representações simbólicas das causas e efeitos produzidos pela utilização da formalização
empresarial na condição de Microempreendedor Individual (MEI), inclusive por apenados
para comprovação de “ocupação lícita” e “aptidão para prover à própria subsistência mediante
trabalho honesto”, de acordo com os previstos na Lei de Execução Penal e Código Penal,
respectivamente, com a finalidade de progressão de regime da pena, principalmente do
regime semiaberto para o aberto; ou para remição da pena; ou para alcançar o livramento
condicional.
Na busca por representações sociais, identificar o processo de formação da cidadania
brasileira revela uma maneira de perceber como tal cidadania pode sofrer uma análise de (re)
significação em relação ao crime; ao indivíduo que praticou atividades ilegais; ao
empreendedorismo; e ao trabalho. Pois entendemos que a cidadania é composta por
dimensões diversas, sendo o empreendedorismo passível de ser analisado como uma das

439
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

características componentes do grupo de garantias mínimas que classificam uma pessoa como
cidadã, mesmo considerando as possibilidades da existência de gradações de cidadania.
Assim, o aparato normativo para a formalização de atividade empresarial, como
condição de conferir reconhecimento oficial da atividade, constrói o ambiente que possibilita
a transição de condições informais para formais, conformando e institucionalizando
indivíduos sob suas regras, produzindo efeitos pedagógicos sobre os procedimentos de
operacionalização da gestão empresarial. Especificamente no formato Microempreendedor
Individual (MEI), que demonstra regras menos burocráticas, mais disponíveis e flexíveis, o
que acabou popularizando a formalização de pequenos negócios.
A etnografia realizada revela um referencial simbólico na prática dos servidores e
consultores do SEBRAE, que passam a reproduzir a comunicação estratégica para a
formalização e divulgação do MEI como uma política pública de fomento à atividade
empreendedora, sob diversos enfoques de justificativa. As abordagens do tema da
formalização, dos indivíduos apenados e as reações aos desafios de orientação empresarial
são identificados e descritos, bem como a ambientação dos eventos descritos.
As conclusões são preliminares, por se tratar de pesquisa empírica em
desenvolvimento, buscando comparações em comarcas diferentes, com práticas e significados
próprios. Mas as percepções já compõem argumentos no sentido da identificação de um perfil
empreendedor sonegado na tratativa da composição da cidadania, com demonstrações de
reconfigurações de sentidos, percebendo o precariado, o desviante, o outsider e as recentes
transformações na economia brasileira como conceitos presentes na compreensão desse
cenário que conforma os corpos e suas atitudes.

1. EMPREENDEDORISMO E O MEI

O cenário de mutações do capitalismo contemporâneo, considerando as


transformações no regime de acumulação e nas relações produtivas, com a terceirização de
atividades e redução do escopo dos projetos econômicos, traços marcantes do pós-fordismo
segundo David Harvey (1992), o que acaba promovendo uma regulação própria para o
movimento de pequenos negócios, revela uma tendência no comportamento social,
substituindo o fetiche do emprego pelo da busca do lucro, mesmo que em pequena escala,
oriundo de atividade empreendedora. Assim, até que pondo estaria o Estado brasileiro

440
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

oferecendo garantias para o aprimoramento desse movimento através do Simples Nacional


como regime tributário e pela lei e política de promoção do Microempreendedor Individual?
Na percepção da existência de uma lógica capitalista na formatação da dinâmica
social, surgem inquietações sobre a autonomia1 da vontade dos indivíduos ao buscarem a
formalização empresarial, evidenciando a presença de uma liberdade condicionada pela
participação em uma sociedade do consumo, com marcas da Modernidade Líquida
conceituada por Zygmunt Bauman (2005) quando reconhece a condição de redundância de
indivíduos “extranumerários, desnecessários, sem uso”. Quais as regras disponíveis e
aplicáveis na condição de indivíduos que “escolhem” formalizar atividade empresarial
rudimentar?
O perfil já não representa mais o papel do trabalhador do período fordista, como
parte integrante de uma lógica produtivista com posicionamentos claros, compondo classes
definidas e demandando atenção específica para demandas do grupo. Mas a noção do
desemprego, não necessariamente como antônimo de emprego, mas na produção de outras
buscas e significados, que primam pelo uso ostensivo de bens ou serviços que marquem o
status hierarquizado no tecido social em posição superior (pretendida) ao lugar ocupadopelo
assalariado, marcando a ação “racional” como instrumento para alcançar uma finalidade não
coletiva, mas que satisfaça intenções individuais de pertencimento pelo consumo.
Essa intenção não marca, necessariamente, integração ao proletariado ou ao corpo
produtivo através do trabalho assalariado, mas pela aplicação de capital na medida de sua
disponibilidade e da atividade empresarial de baixa complexidade. A instituição do formato
empresarial Microempreendedor Individual (MEI) influencia de forma decisiva na
precarização das relações de trabalho na produção capitalista contemporânea no Brasil, na
medida em que o movimento de terceirizações de contratações e subcontratações de mão de
obra oriunda de empresários do formato MEI provoca a sensação de ocupação real, mas sem
vínculo empregatício, deteriorando o conjunto de garantias sociais formais a que teria direito
um funcionário em ocupação análoga dentro do escopo de um empreendimento.
Tal expectativa se dá pela observação preliminar no trabalho de campo realizado,
revelando as contratações de mão de obra na construção civil, por exemplo, como movimento
crescente de contratações de empresários no formato MEI para realização de empreitadas

1
No conceito de autonomia trazido por KANT (1999), como condição de exercício da liberdade, não
instrumentalizada, mas como regulação da ação moral.

441
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

com tempo predeterminado, nas quais o responsável pela realização dos serviços realiza
subcontratações empresariais para realização da obra, deixando de contratar recursos
humanos, passando a tratar seu contratado como pessoa jurídica, uma empresa formal.

1.1. ESCLARECIMENTO E A RACIONALIDADE DO MEI

Para Jürgen Habermas (1989), a modernidade inventou o conceito de razão prática


como faculdade objetiva, centrada na filosofia do sujeito, considerando a razão pratica em
contraste com a percepção de felicidade, caracterizada como movimento pelo individualismo.
Para o autor, a autonomia do indivíduo é representação da liberdade do homem, como sujeito
privado, mesmo que membro da sociedade civil, do Estado e do mundo, no sentido mais
amplo. Aí, uma breve confusão com a imagem de um homem geral, que deve ser dissociado
do sentido de um “eu singular”, este último com preservação da relevância de sua história de
vida.
O Estado propõe políticas públicas tendo os indivíduos como sujeitos de direito
gerais, inseridos numa lógica mais ampliada que recepciona direitos específicos, dentre eles o
direito de composição e inauguração de empreendimento capitalista. Sem perder o espírito
objetivo presente nos preceitos hegelianos (HABERMAS, 1989), com a unidade da vida em
sociedade na política e na organização do Estado. São indivíduos sociais como parte de um
todo, de uma coletividade. Assim, nas sociedades modernas complexas percebe-se o perfil de
sociedade centrada no Estado, composta de indivíduos cada vez mais individualistas, com
esvaziamento do sentido de solidariedade, com pretensão de autoadministração de forma
democrática.
O poder burocrático do Estado se funde com a economia capitalista e o “homem
lobo do homem” se mostra recorrente nessa modernidade flexível na autoafirmação
naturalista dos indivíduos. E, imerso nesses sentidos, o indivíduo busca pelas escolhas
racionais que sejam funcionais para alcance de suas metas individuais, mesmo que se
distancie da racionalidade prática para orientação de suas escolhas. Mas a preferência por uma
condição de liberdade empreendedora demanda a condição de “esclarecimento” por porte do
indivíduo, como “a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado”
(KANT, 1985).
Essa condição de autonomia pressupõe liberdade e esclarecimento, condições nem
sempre disponíveis aos interessados em empreender formalizando suas atividades no formato

442
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

MEI, tendo em vista que as regras ficam disponíveis de forma filtrada pelos operadores do
sistema perito específico, que antecede a formalização empresarial. Advogados, analistas e
operadores do sistema de orientação àquele que pretende se inserir no movimento empresarial
formal conservam as informações específicas para realização da formalização MEI, mesmo
que publicamente disponíveis no Portal do Empreendedor, no sítio digital da Receita Federal
do Brasil dedicado para tal.
Ainda, a avaliação da condição pós-moderna em David Harvey (1992) constrói
cenário que serve como base para compreensões sobre as mutações do capitalismo
contemporâneo e como se dão alterações no tecido social, seja pelas alterações no regime de
acumulação da produção capitalista, seja pelas novas regulações que se ajustam a tais
mudanças. Identificando uma redução no escopo dos empreendimentos capitalistas entre as
décadas iniciais do século XX e os anos que o findaram, saindo de uma lógica fordista,
centralizadora do sistema de tomada de decisões e com domínio direto dos recursos
produtivos, para um formato mais leve, descentralizado e com menores recursos individuais
investidos, ou pulverizados pela abertura de capitais da atividade empresarial na negociação
de mercados futuros.
Essa dinâmica, trazendo efeitos na composição das relações sociais, migrando as
expectativas individuais de parte da população brasileira contemporânea com foco no
trabalho, para a condição de empresário, ou “dono do próprio negócio”, sem a presença do
patronato ou das relações tradicionais que marquem classes proletária e capitalistas. Essa
disseminação induz as escolhas individuais e a ação racional, pretendida por Immanuel Kant
(1999) quando tece sua critica da razão prática, que não deve ter sua moralidade
instrumentalizada para que seja idealizada, mas a busca de uma concepção pela coletividade
que se é pretendida.
Ao se perceber a busca de ganhos ou benefícios individuais daquele que age
racionalmente, percebe-se, então, o uso da razão para construção de um cenário propenso à
satisfação de necessidades próprias do individuo. Mas ainda considerando o raciocínio
kantiano, qual é tal autonomia dos indivíduos ao realizarem tal escolha pela atividade
empresarial de baixa complexidade e capitais em detrimento das relações tradicionais do
trabalho? Percebe-se, então, que a regulação da atividade empresarial formal se apresenta
como veiculo de uma vertente heterônoma de coerção social pelo fetiche do status

443
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

“empresário”, retirando, assim, a possibilidade de autonomia, liberdade ou esclarecimento dos


indivíduos ao tomarem a decisão, mesmo que de forma individual e subjetiva.
Tal perfil não parece estar perfeitamente enquadrado em nenhuma das classes de
direitos do sistema cunhado por Marshal (1967), ao analisar a construção da noção de
cidadania pela aglutinação de direitos civis, políticos e, por conseguinte, sociais. O autor
busca essa concepção para lógica dos fatos sociais e históricos da Inglaterra, sendo tal ordem
de direitos diversa na história brasileira, e com lógicas próprias e com perfil de uma
“estadania”, ou seja, uma cidadania garantida pelo Estado e condicionada às intenções do
Direito ou de suas condições (CARVALHO, 2008).
Mais uma vez a autonomia do individuo, pretendida pela ética kantiana, se põe em
contradição. Pois o regramento da condição de cidadania, por si só, já pode demonstrar o
esvaziamento de sentido do indivíduo em produzir o sentido coletivo de suas escolhas
racionais, um condição heterônoma que limita ou normatiza a liberdade individual. Assim, a
escolha pela formalização MEI entrega uma sublógica capitalista, que representa processo de
reificação do sujeito e retirando composição da parte da dimensão da cidadania. Seria mais
uma forma conformação de corpos e (re) produção de um perfil socialmente desejado, do que
o exercício cívico de liberdade de escolhas estratégicas e agir objetivo, com foco no bem
coletivo.

1.2 Atualizações sobre o MEI

Somente Microempreendedores Individuais (MEI’s) já somavam mais de 6,5


milhões de empresas com baixos complexidade e capital investido no mês de outubro de
2016, dos quais, quase 10% estão cadastrados para desenvolver a atividade de “comércio
varejista de artigos do vestuário e acessórios” (CNAE2 4781400). Consolidando, conforme
gráfico 1 a seguir, mais de 7,3 milhões de empresas formalizadas com opção pelo Super
Simples, modelo inaugurado pela Lei Complementar 128/2008.

2
A Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) tem o objetivo de padronizar os códigos de
identificação das unidades produtivas do país nos cadastros e registros da administração pública nas três esferas de
governo

444
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

8.000.000

7.000.000

6.000.000

5.000.000
Quantidade

4.000.000

3.000.000

2.000.000

1.000.000

0
31/10/2009 31/10/2010 31/10/2011 31/10/2012 31/10/2013 31/10/2014 31/10/2015 31/10/2016 31/07/2017
MEI's 24.982 648.629 1.524.107 2.562.694 3.534.243 4.527.267 5.545.935 6.540.843 7.310.314

Gráfico 1: Evolução da formalização de MEI’s no Brasil


Fonte: (Portal do Empreendedor; organizado pelo autor)

Tal comportamento manifesta a formalização de uma atividade que estava sendo


desenvolvida de forma clandestina, que passou a ser amparada pela norma brasileira, o que
não melhorou, necessariamente, a organização dos empreendimentos dessa natureza, mas tão
somente lhes garantiu registros oficiais da atividade, que continuam com baixo capital, sem
empregar funcionários na maioria dos casos, sem a necessidade de um estabelecimento físico,
entre outros quesitos tradicionais de uma empresa sob o regime de acumulação fordista, por
exemplo, ou sob as características do liberalismo clássico.
Os grandes centros urbanos do Brasil são os que mais formalizam seus indivíduos
nesse formato inaugurado pela LC 128/2008. São Paulo é o Estado com maior quantidade de
MEI’s formalizados, com 1.892.882 (quase dois milhões), representando 26% das
formalizações brasileiras, conforme o gráfico 2, a seguir. Rio de Janeiro é o segundo Estado
em números de formalizações, com 895.807 MEI’s, com um milhão a menos que São Paulo,
representando 12% das formalizações totais. O terceiro Estado, também é componente da
Região Sudeste, Minas Gerais soma 808.140 microempreendedores formalizados,
representando 11% do total brasileiro.
O maior número de formalizações está registrado no CNAE 4781400, na atividade
de “Comércio Varejista de Artigos do Vestuário e Acessórios”, com 664.528 empreendedores
formalizados em todo território brasileiro. A segunda maior ocupação está na CNAE
9602501, “Cabeleireiros, Manicure e Pedicure”, com 559.853 formalizados para exercer a

445
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

atividade de prestação de serviços. Assim, o comércio e os serviços relatados, somam mais


um milhão e duzentos mil formalizados, representando 16,77% dos totais das formalizações.
A terceira maior ocupação, “Lanchonetes, Casas de Chá, de Sucos e Similares”, CNAE
5611203, observa 209.343 inscritos.

RJ; 895.807; 12%

SP; 1.892.882;
MG; 808.140; 26%
11%

BA; 425.137; 6%

Gráfico 2. Distribuição das formalizações por UF


Fonte: (Portal do Empreendedor; organizado pelo autor).

Percebe-se, então, o perfil capitalista perseguido por quem formaliza atividade


empresarial precária, seja para fugir dos estigmas do proletariado tradicional e alcançar um
status diferenciado mais aceito pela moralidade do consumo, seja para encontrar alternativas à
falta de emprego resultante de políticas sociais ou mesmo do movimento pela redução do
escopo dos empreendimentos do capitalismo contemporâneo. É comum a associação do
empreendedorismo como alternativa à ocupação formal no lugar do emprego, cada vez mais
escasso na organização social da contemporaneidade.
Esse condicionamento demonstra a construção e consolidação de um movimento de
busca por condições formais de se iniciar um negócio ou formalizar atividade empresarial já
em execução. O que se busca é acesso ao crédito, condições de transacionar e contratar com
grandes empresas, ou mesmo com o poder público, bem como acesso aos serviços específicos
para empresas como abertura e manutenção de conta corrente para pessoa jurídica, alvará para
livre funcionamento e obtenção de licenças específicas para determinadas atividades.
Tal movimento estabelece um conjunto de conformações sociais que recepcionam
os interesses difusos e individuais dos cidadãos elegíveis para a formalização empresarial.
Apesar da popularização das medidas de oficialização da atividade empresarial, muitos não

446
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

podem formalizar; ou por executarem atividades não previstas e autorizadas pela legislação
para constituição de empresa no formato MEI ou pela condição individual de vínculo anterior
em sociedade empresarial, por exemplo.
Esse movimento não se encontra dissociado de demais significados e utilidades. A
possibilidade de oficialização de atividades antes consideradas clandestinas cria uma série de
desdobramentos. Entre eles, a utilização dos documentos formais de empresário para a
progressão de regime de apenados ou obtenção de Livramento Condicional, demonstrando
que a apropriação de uma política pública por setores ou grupos sociais pode ser remodelada
pelos significados que empregam e pela utilização que propõem.

2 MEI COMO INSTRUMENTO: A FORMALIZAÇÃO DE APENADOS NO


AMAPÁ

A abordagem da descrição do evento para a formalização de apenados do Instituto


de Administração Penitenciária do Amapá (IAPEN) busca a construção de percepções
criminológicas, que focam no sistema punitivo construído por uma sociedade, bem como nos
efeitos que tal sistema provoca na sociabilidade, com interferência na noção de cidadania e de
empreendedorismo, bem como no reconhecido na legislação que possibilita a formalização de
empresas com uma abordagem mais simples, operando no sentido da (re) construção de uma
cidadania ou da conformação de corpos para uma perspectiva moralmente aceitável.
Tal uso observado no caso remete à percepção de um uso instrumentalizado para a
prática penalista da execução da pena, ou a mera tentativa de gozar de “privilégios”
convencionalmente prestados ao cidadão padrão, considerando a conformação moral
ocidental dado ao trabalhador, no caso brasileiro, especificamente, o empregado como sujeito
direitos e garantias mínimas através de ambiente para o mercado de trabalho. Tal
instrumentalização possibilita a reflexão sobre o tipo de lição vem ofertando a regulação
brasileira aos indivíduo sob suas leis, explicitando o uso da formalização não mais como
política para promoção da atividade econômica, mas um uso diverso, visando satisfação de
condição legal para recuperação de gradação da liberdade.

447
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2.1. A DESCRIÇÃO DO CASO

A busca por formalização com auxílio do SEBRAE é promovida por campanhas


televisivas e circulação de jingles nas transmissões radiofônicas, alcançando uma massa
relevante da população. É comum o grande movimento de interessados nas modalidades de
formalização de empresas que circulam pelos escritórios SEBRAE em diversos Estados. No
Amapá e no Rio de Janeiro não é diferente. Filas se formam. “Atendimento somente com
agendamento”, dizem técnicos e analistas SEBRAE aos clientes que buscam afoitos por um
auxílio informacional.
Sim, mesmo considerando a sociedade técnico-científico-informacional que
caracteriza a contemporaneidade para Milton Santos (1996), com a disponibilidade de
informações através de meios tecnológicos e com tempos acelerados, a busca por peritos
ainda é muito grande. Levando uma massa a receber orientações filtradas por instituições e
modeladas para atender aos interesses de uma política pública específica: formalizar o maior
número de empresários possível.
Assim, os atendimentos se tornam cada vez mais mecânicos e padronizados, mesmo
os atendentes institucionais sendo treinados para captar a demanda individualizada daquele
que busca por informações. Mas o aumento da demanda e da necessidade de ritmos
acelerados de atendimento produz esse tipo de efeito para a reificação do sujeito, que passa a
representar número para uma lógica produtivista.
Não foi diferente quando chegou um grupo demandando informações para a
formalização de MEI. Um a um, apresentaram todos os documentos necessários para a
realização do cadastro como pessoa jurídica no Portal do Empreendedor. Não demorou para
uma das funcionárias do SEBRAE, pálida, buscar por auxílio, quase um socorro. Ao tomar
conhecimento de que se tratava de uma comitiva, sob a escolta do IAPEN, que buscava
documentos formais para demonstrar ocupação lítica para a Vara de Execução Penal da
comarca.
Um prédio moderno, com instalações imponentes e atendimento especializado para
empreendedores foi o cenário para a dinâmica que se seguiu. Os apenados foram orientados
por funcionários do SEBRAE a seguirem para uma sala onde receberiam atendimento
coletivo por um especialista. Separados do salão principal de atendimento, continuaram nas
orientações para a formalização. Uns formalizaram atividades de encanador, marceneiro ou

448
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pedreiro, outros como lanchonetes, outros como salão de beleza, entre outras atividades
empresariais. Do lado de fora, logo na entrada principal do prédio, uma equipe operacional de
agentes penitenciários, guarneciam e garantiam a permanência dos apenados no local. Não
que o comportamento dos presos desse algum sinal de tentativa de fulga ou produção de
desordem.
Ouvia-se murmurinhos nos corredores sobre o atendimento que ocorria dentro da
sala escolhida para tal. Essa demanda não era recorrente, apesar de informarem vários casos
de apenados que já haviam passado pelo atendimento SEBRAE, mas que não revelavam sua
condição para causar o espanto que estavam causando. Presos anteriores buscaram
atendimento durante gozo de algum indulto e não estavam sob a escolta de agentes. Essa
diferença movimentou os olhares e tirou pessoas de suas cadeiras confortáveis para saber do
que se tratava a presença daqueles “estranhos”.
Afinal, o público apenado não é recorrente no atendimento das agencias de
orientação e formalização. Treinamentos não são realizados para compreensão ou
racionalização desses efeitos sobre o movimento empreendedor. Pensar sobre a formalização
MEI como potencial meio para alcançar uma finalidade penalista, na execução da pena, é
uma demanda colateral, como efeito não planejado para esse uso. Os peritos, que operam o
sistema perito para formalização ou orientação, não carregam essa condição específica para
diminuir os riscos dos patos sociais em relação ao empresariado, mesmo no nível mais baixo
de organização.
Esse despreparo ficou evidente na falta de protocolo procedimental para resposta a
esse quesito penal após a formalização. Os olhos e gestos desconfortáveis dos atendentes
habilitados denunciaram o estranhamento, não só das demandas apresentadas pelos apenados,
como pela própria presença dos corpos daqueles indivíduos. A percepção do “outro”, em
contraste ao cotidiano daqueles que frequentemente utilizavam aquele ambiente, evidenciava
uma classificação hierarquizada, bem marcada através da escolha de quem atenderia o
apenado, quais os procedimentos sumaríssimos e especiais eram adotados, com a finalidade
de terminar o atendimento e sem “contradizer o cliente”, como costumava lembrar uma
gerente de atendimento em relação ao trato diferenciado para demandas diferenciadas,
especialmente dos apenados.
Outros procuraram atendimento em outros lugares, ou realizaram a formalização por
conta própria, através do sítio da Receita Federal, próprio para esse autoatendimento, o

449
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mesmo que é utilizado pelos atendentes SEBRAE, mas que apresenta vantagens em relação
às explicações de detalhes que poderiam passar despercebidos. Muitos usuários entram no
Portal do Empreendedor para buscarem informações, preenchem um formulário eletrônico e
acabam formalizando uma empresa, sem se dar conta dos efeitos sobre suas opções.
O fato aguçou as percepções dos atendentes e da própria instituição, que buscou
confirmação das informações sobre os apenados, percebendo a possibilidade de
ressocialização através do empreendedorismo. De fato, os presos apresentaram os
documentos construídos com o auxílio do SEBRAE para a Vara competente e tiveram suas
petições apresentadas pela representação da Defensoria Pública do Estado do Amapá,
alcançando ou progressão de regime (do semiaberto para o abeto), ou Livramento
Condicional. Tais documentos foram essenciais para comprovação de ocupação lícita, uma
vez que não tinham conseguido emprego com carteira assinada, ou outro trabalho
remunerado.

2.2. O SUJEITO-PRODUTO
A construção de políticas públicas através da execução da pena, bem como de seus
operadores nas variadas agências, passando pela manifestação oficial da legalidade de
determinada atividade empresarial, pode ser interpretada como uma possibilidade de controle
sobre comportamento do apenado.
Com a aplicação de intenções evidentes, a hierarquia social também se evidencia,
não somente dentro do cárcere, mas fora dele também. Esse movimento constrói condições de
desigualdade que impendem a competição social de forma livre, deixando alguns indivíduos
em desvantagens em relação a outros. Mudanças na dinâmica social alteram também as
relações dentro do cárcere, numa lógica de interação de causa e efeito, onde um interfere no
outro.
Dario Melossi e Massimo Pavarini (2010) tecem uma crítica ao sistema liberal de
prisão, pois o crescimento do crime foi dada a uma questão: as pessoas não tinham medo da
prisão, ao contrário, elas cometiam pequenos delitos para serem presas e poder ter um lugar
para comer e um lugar menos miserável para dormir. Esse agravamento da luta por
sobrevivência pôs o nível de vida da classe trabalhadora incrivelmente baixo; as massas de
pessoas mais pobres eram conduzidas ao crime no fim do século XVIII e início do século
XIX.

450
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Entre os novos métodos na administração carcerária havia um mínimo existencial


para poder prender alguém, contando que esse mínimo fosse mais baixo que o mais baixo
nível existencial do homem livre mais pobre, com a finalidade de promover uma resistência
social ao movimento pela preferência à prisão com garantias do Estado no lugar da miséria
livre. Assim, que seja em uma mínima atitude que fosse considerada criminosa ou um
mínimo de droga ilícita, por exemplo, o indivíduo livre passaria a não desejar a condição de
preso.Na questão do trabalho carcerário, como não eram mais necessários criar pessoas para
trabalhar para o Estado, foram criados trabalhos inúteis para manter os prisioneiros ocupados
nas prisões.
A noção trazida aqui é de que o desenvolvimento econômico gera pobreza, um
conjunto de indivíduos marginalizados, o que demanda políticas de controle social. Essa
lógica está permeada com a ética protestante no cenário dos Estados Unidos. Antes da
independência dos EUA, a pobreza era gerenciada coletivamente pelos mais abastados, mas
depois da grande difusão dos ideais republicanos, os norte-americanos mais pobres eram
identificados como efeitos de suas escolhas que o levaram para longe do sucesso financeiro
individual, carregando sobre si a culpa da pobreza que se encontra, como condição do pouco
mérito que não lhe recai sob os valores liberais. Eis a marginalização da condição de pobreza
que demandava controle social.
O amplo desenvolvimento econômico, associado ao aumento do encarceramento
(dos pobres) demanda soluções mais eficientes. Segundo os autores, a busca por esses
sistemas mais econômicos por parte da administração, associada ao trabalho produtivo no
cárcere, provocava tendências nos mercados, induzindo os preços das mercadorias e da mão
de obra, reduzindo os salários e controlando os preços de produtos estratégicos para a
administração. Mas esse esforço não produzia somente esse efeito mercadológico, mas
transmutava homens reais em homens ideais, em consonância com as necessidades
econômicas de uma sociedade voltada para o modelo produtivo.
Com a aplicação de intenções evidentes, a hierarquia social também se evidencia,
não somente dentro do cárcere, mas fora dele também. Esse movimento constrói condições de
desigualdade que impendem a competição social de forma livre, deixando alguns indivíduos
em desvantagens em relação a outros. Mudanças na dinâmica social alteram também as
relações dentro do cárcere, numa lógica de interação de causa e efeito, onde um interfere no
outro.

451
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Modernidade e consumo são conceitos identificados nos tratados de Zygmunt


Bauman nos textos “modernidade líquida” (2001), “vida para o consumo: a transformação
das pessoas em mercadorias” (2008), e “vidas desperdiçadas” (2005). Para o autor, nunca
houve tanta transação em sociedades pré-modernas, com as relações fixadas em estruturas
culturalmente construídas, com sociabilidades conhecidas e previsíveis. Mas os “riscos
líquidos”, próprios da modernidade descrita por Bauman (2001), a questão dos sistemas
peritos propõe uma resposta como diminuição das percepções desses riscos, com indivíduos
passando a exercitar a fé, não especificamente no perito, mas na perícia utilizada no sistema,
passando o indivíduo a representar seu conhecimento e posição pericial.
Não é diferente no quesito empresarial. Ao buscar a formalização de seu
empreendimento, o MEI absorve pra si uma marca de uso dentro do sistema perito,
sinalizando aos seus usuários ou clientes que podem depositar parte de sua fé, ou confiança,
em operar a modernidade através do consumo. O mínimo de riscos é ainda observado no
sistema perito, mas os menores riscos dentre as opções disponíveis, são aqueles com maior
possibilidade de ser absorvido pelos consumidores. Assim, a lógica de demonstração de
conformidade com as expectativas de um mercado transacional conforma a percepção do
indivíduo que ocupa espaço de oferta de produtos ou serviços, transformando ele próprio em
um produto, uma confirmação da tecnicidade pretendida no sistema perito.
Giddens (1991) constrói uma percepção dos elementos da modernidade, dentre eles
a desconfiança na modernidade, mas contrapondo a confiança nos sistemas peritos como
critério indispensável para a vida moderna e sua operacionalização. O autor percebe bases
sólidas para que a sociabilidade ocorra, com uma classificação pós-tradicional não centrada
na tradição, mas ainda moderna. Em Bauman (2001), essa modernidade não encontra bases
sólidas, mas se apresenta de forma líquida, que escorre entre os dedos e está em lugar algum.
Assim, a natureza impessoal da modernidade induz um alongamento do sistema de relações
sociais, com base na crença ou confiança no sistema perito e suas operações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os apontamentos encontrados até este ponto da pesquisa são no sentido de que a


lógica capitalista induz um comportamento empreendedor nos indivíduos, que fazem escolhas
que afastam da condição de empregado “com carteira assinada”, impulsionando-os a alcançar

452
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

outro status na hierarquia social, buscando a identificação como “empresários”, mas através
de empreendimentos de baixa complexidade que lhe entregam um rendimento baixo e que
aumenta pouco o capital aplicado ao negócio, sendo utilizados por empreendimentos com
maior capital através de subcontratações e terceirizações, seguindo a lógica de um regime de
acumulação flexível, inerente ao capitalismo contemporâneo.
Percebe-se, então, o perfil capitalista perseguido por quem formaliza atividade
empresarial precária, seja para fugir dos estigmas do proletariado tradicional e alcançar um
status diferenciado, pretensamente majorado, seja para encontrar alternativas à falta de
emprego resultante de políticas sociais ou mesmo do movimento pela redução do escopo dos
empreendimentos do capitalismo contemporâneo. É comum a associação do
empreendedorismo como alternativa à ocupação formal no lugar do emprego, cada vez mais
escasso na organização social da contemporaneidade.
Pretende-se avançar nos achados de campo, identificando as estruturas de Direito
disponíveis em e como produzem um comportamento empreendedor entre seus indivíduos.
Não somente a formatação jurídico-legalista como estrutura estruturante sobre a formalização
da atividade empresarial, mas a comparação de diferentes dimensões cidadanias e qual o lugar
ocupado pelo empreendedorismo na contemporaneidade.
Mas já se pode considerar a concepção de Dario Melossi e Massimo Pavarini
(2010), no livro Cárcere e Fábrica, o cárcere desempenha um papel para domesticar o
desviante para desempenho de funções especificas para o interesse de uma sociedade
produtivista. Não somente promove a mutação antropológica, domesticando o sujeito, mas
bestializando seu corpo, maltratando-o até conseguir alcançar os objetivos da administração,
pela subordinação econômica e ética pretendida, o que se legitima pela internalização de tais
aspectos. Nesse processo punitivo, criminoso e preso são tratados da mesma forma, pois
pertencem ao mesmo grupo social, esvaziado de valor econômico e que demandam
intervenção da política de controle social.
Com a mesma lógica apresentada para labor, pode-se perceber que o movimento
para a formalização de atividades empresariais rudimentares pode estar no cerne inconsciente
do esforço social e produzir e reproduzir percepções de uma cidadania empreendedora, não
mais associada exclusivamente ao emprego formal, mas à condição de um sujeito
empreendedor, digno de gozar de status da estrutura social do consumo, gerando, fornecendo
e facilitando o consumo de outros indivíduos, principalmente satisfazendo necessidades

453
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

metropolitanas, mas também sendo agente ativo do consumo, garantindo a marca de sucesso
na contemporaneidade.
Assim, a produção de um efeito sobre o sujeito não estaria na conformação de seus
corpos para o trabalho, como antes do refinamento das características da modernidade, mas
satisfazendo um perfil de regime de acumulação flexível, com regras maleáveis e dominação
dos interesses individuais sobre os coletivos. Representando uma maneira alternativa de
construção da cidadania, seja pela apropriação dos objetivos estratégicos que instituíram o
MEI, seja pelo uso diverso com foco em benefícios não necessariamente empresarias. Ainda
assim, a percepção de autonomia não resta presente, uma vez que o regramento heterônomo
que promove ambiente para as escolhas tuteladas.

BIBLIOGRAFIA

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

______. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. 349 p.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1999.

______. Resposta à pergunta: que é “esclarecimento”? In: ______. Textos seletos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

MARSHAL, Thomas H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário. COLEÇÃO
Pensamento Criminológico. vol.11. Revan, 2010.

Realidade social: preso pode progredir de regime sem comprovar trabalho. REVISTA Consultor Jurídico, mar.
2013. Acesso: 10 jul. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-mar-07/progressao-regime-nao-
condicionada-comprovacao-trabalho>.

RUSH George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. COLEÇÃO Pensamento Criminológico. n. 3.
Revan, 2004.

SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

454
A ARMADILHA AUTORITÁRIA E O ESTADO DE EXCEÇÃO:
AS LIÇÕES DE CARL SCHMITT

MENEZES, Wellington Fontes


Estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense (PPGSD/UFF)

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo adentrar na análise do pensamento do jurista e filósofo político
alemão, Carl Schmitt, e suas contribuições para o campo da Política e do Direito. Particularmente, duas
obras serão destacadas “Teologia Política” (1922) e “O Conceito do Político” (1932). Na natureza da
análise política de Schmitt predomina o autoritarismo como forma de manifestação máxima do
soberano. Por sinal, a soberania é um conceito essencial para o pensamento schmittiano e o qual coloca
o Direito em um plano inferior, uma vez que o soberano é quem decide sobre a aplicação material do
estado de exceção, ou seja, uma zona nebulosa entre a democracia e o absolutismo. Ademais, seu
pensamento se torna atual e merece ser analisado, na medida em que se observa uma evolução
degenerada das democracias ocidentais que fazem concessões para o fascínio do autoritarismo, caindo
em uma sedutora armadilha de difícil saída.

Palavras-Chave. Carl Schmitt; Estado de exceção; Soberania.

ABSTRACT

The present work aims at analyzing the thinking of German jurist and political philosopher, Carl
Schmitt, and his contributions to the field of Politics and Law. Particularly, two works will be
highlighted "Political Theology" (1922) and "The Concept of the Political" (1932). In the nature of
Schmitt's political analysis, authoritarianism predominates as the ultimate manifestation of the
sovereign. By the way, sovereignty is an essential concept for Schmittian thought and which places
Law on a lower plane, since the sovereign is the one who decides on the material application of the
state of exception, that is, a nebulous zone between democracy and absolutism. In addition, his
thinking becomes current and deserves to be analyzed, as one observes a degenerate evolution of the
western democracies that make concessions to the allure of authoritarianism, falling into a seductive
trap of difficult exit.

Keywords. Carl Schmitt; State of exception; Sovereignty.

455
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A Política entre os homens é uma construção dinâmica. Para além do “animal


político”, descrito por Aristóteles, compreende-se aqui a “macropolítica”, como sendo aquela
que envolve agentes governamentais, Estado, sociedade, intenso emprego de recursos
materiais e humanos; é essencialmente de uma natureza estratégica, tática e,
predominantemente, movida por um senso de dinamismo próprio dos interesses factuais e
conjunturais de pessoas ou grupos envolvidos.
A capacidade de reflexão é cada vez mais pertinente no mundo atual, diante de uma
dinâmica de fatos e informações que fomentam ideologias e uma suposta racionalidade dos
agentes econômicos marcadamente pela imposição do modelo capitalista de produção
material e psicológico. Não é possível projetar o século XXI sem entender suas bases, os seus
alicerces, seu estofamento de mundo oriundo de meados do século XIX.
Na renovação das democracias modernas que soerguem com o colapso dos últimos
impérios que ainda resistiam na Europa após a Primeira Guerra Mundial, moldaram-se novas
práticas de administração da política, com o advento da força dos Parlamentos, minimizando
o poder centralizado de um soberano. Talvez a Alemanha seja o melhor exemplo deste fato.
Após a queda do Imperador Guilherme II, em 1918 e a instauração da República de Weimar
e sua forma semipresidencialista de governo, ocorre uma divisão de poderes entre o
presidente, o chefe de Estado (Reichspräsident), o gabinete do chanceler da República
(Reischkanzler) e o parlamento (Reichstag). O modelo da República de Weimar se constitui
em uma forma pouco conhecida dos alemães e não foi por acaso tamanha instabilidade da
experiência republicana, o que culminou na restauração de um novo império, o III Reich, com
Adolf Hitler no comando, em 1933.
O próprio Carl Schmitt, autor central deste presente trabalho, um contemporâneo de
observação privilegiada, passaria a criticar este sistema de governo da República de Weimar.
O “espírito do autoritarismo” como plataforma de governabilidade permeava as formas de
entender a política, por sinal, crucial nos anos 1920 até meados dos anos 1940 e, por sua vez,
pode-se dizer que nunca deixou de estar presente direta ou indiretamente nas formas de
governo até os nossos dias.
Carl Schmitt, jurista, filósofo político e professor universitário, conquistou muita
influência na academia e intelectualidade alemã; foi um dos grandes nomes do seu tempo e
escreveu suas principais obras no período entre guerras. Sua trajetória foi motivo de muita

456
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

controvérsia assim como a natureza do seu pensamento. Schmitt encontrou no ideário


autoritário, em consonância com a sua ojeriza pela via liberal de fazer política, um
instrumento efetivo de poder, persuasão e domínio por parte do soberano. Schmitt aderiu ao
nacional-socialismo se filiando ao partido nazista de Hitler em 1933. Seu ingresso nas fileiras
nazistas se deu mais por conveniência e oportunismo de carreira, do que propriamente por
convicções ou simpatia perante o comandante supremo dos nazistas. Ao final da guerra, ficou
preso em um campo de concentração após ter sido capturado pelos russos e Aliados,
vencedores, assim como muitos dirigentes do derrotado III Reich. Nunca foi comprovado
nada sobre sua conduta de crimes no período nazista e, por causa disso, foi absolvido no
Tribunal de Nuremberg, seguindo sua vida universitária até o falecimento, em 1985. Todavia,
Schmitt nunca se retratou publicamente e tampouco pediu algum tipo de desculpas por seu
envolvimento ou engajamento com as atrocidades nazistas.
Na análise política, não cabe situar ou demandar moralismos sem levar em contar a
dinâmica dos fatos e suas reais conjunturas e, de forma mais pragmática, não cair em análises
viesadas que criam mais névoa do que esclarecimento. Schmitt foi um pensador do seu tempo
e isto não deve ser objeto, em si, de degradação moral como muitos autores fazem em
“demonizar” os escolhidos por suas ações contextualizadas. No entanto, isto não omite o
sujeito de eventuais culpas passionais, mas o presente trabalho não tratará desta atmosfera
psicológica. Logo, Smith buscou fazer da análise teórica um subsídio para a ação política. Por
sinal, teoria política e ação política são dois campos fundamentais e, paradoxalmente, de
difícil execução de uma práxis material (teoria/ação). Possivelmente, no século XX, o grande
construtor da amálgama teoria/ação foi o teórico político russo Vladimir Ilyich Ulyanov, mais
conhecido como Lênin, o principal líder bolchevique que levou à frente a custosa e seminal
Revolução Russa de 1917, atravessando a turbulenta guerra civil russa (1917-1922), e
instalando na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) um novo paradigma de
mundo e administração do poder.
Para este trabalho, foi analisada a construção refinada de duas obras seminais do
pensamento schmittiano: “Teologia Política”, de 1922, e “O Conceito de Político”, de 1932.
O primeiro, posterior à assinatura do Tratado de Versalhes e sua aceitação pela Assembleia de
Weimar, em 1919, o qual impôs terríveis condições para a derrotada Alemanha, por parte dos
vencedores Aliados e, em partilhar, as “reparações de guerra” e a sofrer as humilhações que
foram exploradas por todos aqueles críticos da República de Weimar, desde o campo das

457
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

esquerdas (socialdemocratas e comunistas) quanto o da direita e seus extremos. O segundo,


foi escrito no ano de ingresso de Schmitt no partido nazista e da ascensão de Hitler ao cargo
de chanceler da Alemanha e início oficial da escalada megalomaníaca do III Reich.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1. A SOBERANIA E A EXCEÇÃO EM CARL SCHMITT

No prefácio da segunda edição de “Teologia Política”, escrito em 1933, Schmitt fez


uma breve síntese do enquadramento da política frente à sua participação direta na
orquestração do Estado monárquico até a sua defesa da teologia da soberania “total”:

A “representação”, que durou do século XV até o século XIX, a monarquia do


século XVII, cujo soberano era imaginado como o Deus da filosofia barroca, o
“neutro” do século XIX, “qui règne et ne gouverne pas” (que reina e não governa) e
até as ideais do Estado dispositivo e administrativo puro “qui administre et ne
gouverne pas” (que administra e não governa), são também alguns exemplos da
fecundidade do pensamento de uma teologia política. [...] nós conhecemos o
“político” como o “total”, por isso sabemos também que a decisão, mesmo sendo
algo apolítico, representa sempre uma decisão política, independente de quem ela
atinge e que roupagens ela assume para se justificar: Isso também vale quando se
quer saber se uma determinada teologia é política ou apolítica. (SCHMITT,
1933/1996, p. 83-84)

Ainda sobre o prefácio da segunda edição de “Teologia Política”, Schmitt classifica


em três os tipos de pensamento jurídico-científico: o normativo, o princípio decisório e o
institucional:

Enquanto o pensamento normativista puro mantém-se dentro de regras impessoais


e o do principio decisório, aplica o “bom direito” da situação política corretamente
compreendida, transformando-o numa decisão pessoal, o pensamento jurídico-
institucional desdobra-se em instituições e configurações suprapessoais. E, o
normativista, em sua descaracterização, transforma o direito num mero modus
funcional de uma burocracia de Estado, e o do princípio decisório corre sempre o
perigo de perder, através da funcionalização do momento, o “ser” que repousa em
todo grande movimento político, um pensamento institucional isolado leva ao
pluralismo de um crescimento sem a soberania corporativo-feudal. Dessa maneira,
as três esferas e elementos da unidade política “Estado-movimento-povo”, podem
ser classificados tanto em suas formas salutares quanto nas descaracterizadas, nos
três tipos de pensamento jurídico. (SCHMITT, 1933/1996, p. 84, grifo do autor)

458
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Vale salientar que as reflexões e análises de Schmitt estavam sendo calcadas na


visão da Alemanha da República de Weimar, assim segue a aplicação dessas doutrinas na
pátria do autor:

Os assim chamados positivismo e normativismo da doutrina alemã do direito de


Estado da era guilhermínica e da República de Weimar são só um normativismo
contraditório em si, degenerado (porque em vez de fundamentado num direito
natural ou da razão, está ligado a normas de valor meramente factual), misturado a
um positivismo que era só um princípio decisório degenerado juridicamente cego,
apoiado na força normativa do “factual” e não na autêntica decisão. A mistura sem
forma, ou de forma ineficaz, não estava à altura de um problema sério de direito de
Estado e de Constituição. A última fase das ciências alemãs de direito de Estado
caracteriza-se pela falta de resposta do caso decisivo do conflito constitucional com
Bismarck na Prússia e, consequentemente, também da resposta a todos os outros
casos decisivos. Para evadir-se da decisão, o direito de Estado apregoou uma norma
que se voltou contra ele mesmo e que desde então usa como lema: “O direito de
Estado termina aqui”. (SCHMITT, 1933/1996, p. 84-85)

Ficou consagrado na literatura, o conceito-chave schmittiano sobre o “Estado de


exceção” que abre a “Teologia Política” e funciona como uma espécie de “mantra” no
pensamento do jurista alemão: “Soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção”
(SCHMITT, 1933/1996, p. 87). Tal afirmação é apenas uma introdução formal, mas é a tese
central do livro. A partir dela, Schmitt desenvolverá tal conceito ao longo de seu trabalho,
dando destaque de sobremaneira ao papel fulcral do soberano e ao conceito-chave do “Estado
de exceção”:

O fato de se entender o Estado de exceção como um conceito genérico da doutrina


de Estado, e não como qualquer situação emergencial ou Estado de sítio [...]. E o
fato também de o Estado de exceção, no sentido eminente, ser adequado para a
definição jurídica de soberania, tem uma razão sistemática lógico-jurídica.
(SCHMITT, 1922/1996, p. 84)

Uma questão que merece destaque no pensamento schmittiano é que “soberania é o


ponto culminante do poder, e não o desvio do poder” (SCHMITT, 1933/1996, p. 88). Neste
sentido, Schmitt busca traçar um panorama conceitual para a exposição de suas ideias diante
da turva questão de tipificar o Estado de exceção dentro de um “estado emergencial”: “Não se
pode determinar com clareza precisa quando ocorre um caso emergencial, como também não
se pode enumerar o que pode ser feito nesses casos, quando se trata realmente de um caso
emergencial extremo que deva ser eliminado” (SCHMITT, 1922/1996, p. 87).

459
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Diante da imprecisão do Estado de exceção, por ser um mecanismo plasmado para


além dos contratos jurídicos e constitucionais, Schmitt afirma que seu território de atuação
está além do Estado de direito:

A Constituição, no máximo, menciona quem pode tratar da questão. Se esse


tratamento não se subordinar a nenhum controle, então não se distribuirá (como na
prática da Constituição do Estado de direito) de alguma forma entre as diversas
instâncias mutuamente restritivas e balanceadoras: assim e evidenciará claramente
quem é o soberano. Ele não só decide sobre a existência do Estado emergencial
extremo, mas também sobre o que deve ser feito para eliminá-lo. Ele se situa
externamente à ordem legal vigente, mas mesmo assim pertence a ela, pois é
competente para decidir sobre a suspensão total da Constituição. Todas as
tendências do desenvolvimento do moderno Estado de direito são no sentido de
eliminar o soberano. (SCHMITT, 1922/1996, p. 88)

Schmitt recupera as ideias de Jean Bodin1 contidas em seu volumoso e seminal


trabalho “Os seis livros da República”, em 1576, o qual se desdobra sobre o conceito de
soberania do seu tempo, ou seja, o caso material do Estado de Exceção, em outras palavras, o
“caso crítico” assinalado pelo jurista alemão:

Ele [Jean Bodin] é o início da moderna doutrina do Estado, muito menos por causa
da sua sempre citada definição (“la souveraineté est la puissance absolute et
perpétuelle d’une republique” – a soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma
República) do que pela sua doutrina dos “vraies remarques de souveraineté” (sinais
verdadeiros de soberania; cap. X do primeiro livro de A república) (SCHMITT,
1922/1996, p. 89).

Enfatizando, uma questão crucial para Schmitt é sua busca por uma legitimação de
um conceito tão crítico, polêmico e oscilante entre o objetivo e o subjetivo para a percepção
do soberano e, na mesma medida, nas pretensões dele das formas mais variadas de
atrelamento ao poder e seus limites reais de atuação. Schmitt retorna a Bodin onde analisa tais
comportamentos possíveis do soberano e seus compromissos com as corporações:

1
Jean Bodin (1530-1596) passou por uma formação entre os campos da Teologia, Direito e Política e escreveu em
1576 sua primeira edição de “Os seis livros da República”, tal como afirmou LENZ (2004, p. 119): “o florentino
de formação humanista, pretendeu, a partir de leituras dos escritos antigos, mesclados à sua experiência nas
atividades políticas, escrever uma orientação para os dirigentes políticos”. Bodin tinha uma preocupação em
escrever propostas para o uso na prática da política, visando à manutenção da ordem pública. Neste quesito, pode-
se encontrar semelhanças na natureza objetiva da realidade entre Bodin e Schmitt. Desta forma, o âmago das
interlocuções de Bodin dentro do campo jurídico-político consistia no diálogo entre “[...] questões teóricas,
práticas políticas, administrativas e constitucionais devidamente relacionadas à economia política” (LENZ, 2004,
p. 120). Bodin sujeita a Economia ao plano da Política, uma vez que pregava que o soberano teria o controle sobre
“câmbios e moedas, pesos e medidas, tributação interna e externa” (LENZ, 2004, 129). É importante salientar que
Bodin foi um homem do seu tempo histórico e o seu livro foi escrito no seio de intensas contendas teológicas,
grandes conflitos políticos e assassinatos em meio às guerras religiosas (LENZ, 2004).

460
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Bodin [...] diz que as promessas são compromissos porque a força do compromisso
de uma promessa repousa no direito natural. Mas, no caso emergencial, o
compromisso segundo fundamentos naturais genéricos acaba. Geralmente, diz ele,
diante das corporações ou do povo, o príncipe só é obrigado a algo na medida em
que o cumprimento da sua promessa é de interesse do povo; mas ele não permanece
ligado ao compromisso se “la necessite est urgente” (se a necessidade é urgente).
Esse é, na verdade, o fator mais marcante de sua definição, que considera a
soberania uma unidade indivisível e decide definitivamente a questão do poder do
Estado. (SCHMITT, 1922/1996, p. 89)

A introdução da soberania no livro de Bodin despertou historicamente o interesse


dos analistas a respeito do papel desempenhado pelo soberano. Bodin não apenas foi o
pioneiro, mas se tornou um pensador paradigmático com relação às pertinentes questões que
envolvem o conjunto da ação/controle do poder por uma autoridade:

Hoje quase não existe uma explicação para o conceito de soberania no qual não
apareça essa citação de Bodin. Mas em nenhum lugar encontramos a citação do
trecho essencial daquele capítulo de A república. Bodin pergunta se as promessas
que o príncipe faz às corporações ou ao povo anulam sua soberania. E responde
apontando o caso em que se torna necessária a transgressão dessas promessas,
modificações ou anulações das leis, “selon l’exigence des cas, des tempos et des
personnes” (segundo a exigência de cada caso, da época, e das pessoas). Se, num
caso assim, o príncipe tiver que consultar previamente o Senado ou o povo, então
ele terá que dispensar-se de seus súditos. (SCHMITT, 1922/1996, p. 89-90)

Para a análise de Bodin, segundo Schmitt, haverá um impasse entre o desejo do


soberano e todos aqueles que não estariam com a incumbência de exercer a soberania, sem
criar conflitos ou dualidades onerosas. Sendo assim, “[...] o poder de suspender a lei vigente –
em geral ou em casos isolados – é a característica verdadeira da soberania” (SCHMITT,
1922/1996, p. 90), consequentemente, Bodin considera derivarem, a partir deste preceito,
todos os outros poderes (entre eles, entre outras atribuições, estaria a declaração de guerra e
paz, nomeação de funcionários e até mesmo o direito de induto).
Desta maneira, pode-se entender que para Bodin, a Lei seria uma espécie de
“acessório opcional” do soberano pelo qual ele poderia seguir suas normas conforme seus
desígnios subjetivos em nome dos interesses do Estado personificando a necessidade ou
desejo do próprio soberano. Havia um entendimento, na avaliação de Schmitt (1922/1996, p.
90), que “[...] a questão da soberania era entendida como a questão de decisão sobre o caso de
exceção”. Portanto, segundo Schmitt (1922/1996, p. 90) , “[...] cada ordem baseia-se numa
decisão, e o conceito da ordem jurídica, aplicado como algo natural, também contém em si
mesmo a oposição dos dois diferentes elementos do jurídico. Até mesmo a ordem jurídica,

461
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

como toda ordem, baseia-se numa decisão e não numa norma”. Schmitt foi um pensador da
“práxis política”, ou seja, buscou simultaneamente elaborar suas análises com uma visão de
aplicabilidade no mundo material.
Sob o auspício das Constituições dos Estados Modernos, destaca-se aquela
produzida pela Alemanha que levou o nome de “Constituição da República de Weimar”.
Uma Carta com muitas inovações paradigmáticas, dentre elas um artigo exclusivo pelo qual o
presidente do Reich poderá impor o Estado de exceção sob controle do Parlamento e, por sua
vez, poderá exigir a sua imediata suspensão conforme desejar:

Artigo 48 – Se um Land não executar as obrigações que lhe incumbem pela


Constituição ou pelas leis, o presidente do Reich pode obrigá-lo a isso com a ajuda
da força armada. No caso em que, no Reich, a segurança ou a ordem públicas,
forem sensivelmente ameaçadas para restabelecimento da segurança e da ordem
públicas, empregando se for o caso a força armada. Com esse objetivo, pode
suspender no todo ou em parte os direitos fundamentais reconhecidos nos artigos
114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153. O Reichstag deve ser informado sem demora
de todas as medidas tomadas com respeito ao item 1 ou 2 desse artigo. A pedido do
Reichstag essas medidas são anuladas. No caso do perigo iminente, o governo de
um Land pode aplicar as medidas previstas no item 2. Elas são suspensas por
solicitação do Reichstag ou do presidente do Reich. (KLEIN, 1995, p. 93)

Schmitt busca interpretar tal artigo como uma forma de testar a legitimidade e
consistência dos Estados constituintes do Reich Alemão:

De acordo com a interpretação predominante do artigo 48, quando qualquer um dos


Estados não possuir mais nenhum poder independente para declarar o Estado de
exceção, então não será mais considerado um Estado. É no artigo 48 que está o
ponto crucial da questão, se os territórios alemães são Estados ou não. Havendo a
possibilidade de circunscrever os poderes conferidos nos casos de exceção por meio
de um controle mútuo ou de uma restrição temporal ou, finalmente, como uma
regulamentação feita pelo Estado de direito para o Estado de sítio, por meio da
enumeração dos poderes extraordinários – então a dúvida sobre a soberania recua
um pouco, mas naturalmente ainda não é afastada. (SCHMITT, 1922/1996, p. 92)

O impasse surge entre como poderia se concretizar ou materializar o estado de


exceção, abrindo espaço para elaborações particulares, interpretações equivocadas ou
ambíguas. Schmitt se preocupa em desfazer as ambiguidades que poderiam ser derivadas de
uma jurisprudência “deturpada”, ou seja, não condizentes com o ideal de soberania
schmittiano:

Diante de um caso extremo, ela se sente confusa, pois nem toda atribuição
excepcional, nem toda medida ou ordem emergencial policial é um Estado de
exceção. É preciso muito mais do que isso para a atribuição de um poder em
princípio ilimitado, isto é, capaz de suspender toda a ordem vigente. Assim que essa

462
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

condição se instala, torna-se claro que o Estado continua existindo, enquanto o


direito recua. (SCHMITT, 1922/1996, p. 92)

Este é um ponto essencial na obra de Schmitt, a consideração da suspensão do


Estado de direito e de todas as suas garantias constitucionais para um estado emergencial, ou
seja, o Estado de exceção. A imposição do Estado de exceção seria então, pela lógica
schmittiana, uma medida excepcional de defesa do próprio Estado, buscando livrá-lo de
quaisquer desordens ou caos que supostamente ameaçaria a soberania do Estado e a própria
figura do Soberano, invocando o direito à autopreservação do Estado. Nesta mesma passagem
na “Teologia Política” de Schmitt, temos uma clareza do dispositivo totalitário em seu âmago.
A criação de poderes “totais” do Estado de exceção contra tudo e contra todos aqueles que o
soberano eleger como “inimigo”. Posteriormente, será comentando outro conceito-chave
schmittiano que é a correlação “amigo/inimigo”. Doravante, fica claro aqui o descolamento
do elemento político de qualquer entrave do jurídico.
O político se torna um elemento totalizante nas análises de Schmitt, em nome da
“ordem” serão suprimidos todos os demais preceitos que regem o Estado de Direito. A
vontade do soberano se funde com a natureza de aplicação da ordem visando uma suposta
eliminação do caos. Neste sentido, Schmitt permite uma leitura na qual o jurídico, ou seja, o
Estado de Direito, é incapaz de organizar um Estado em momento de clímax, onde o “caos
reinaria”. Sendo assim, o limite da norma se posicionaria no início do caos e para impor-se
diante da desordem, o soberano invocaria o estado de exceção:

Não existe norma aplicável no caos. A ordem deve ser implantada para que a
ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, o soberano
é aquele que decide, definitivamente, se esse Estado normal é realmente
predominante. Todo direito é um direito “situacional”. O soberano cria e garante a
situação como um todo, em sua totalidade. Ele detém o monopólio dessa última
decisão. É nisso que reside a essência da soberania estatal que, portanto, define-se
corretamente não como um monopólio da força ou do domínio, mas juridicamente,
como um monopólio da decisão, em que a palavra “decisão” é empregada num
sentido genérico, passível de um maior desdobramento. O caso da exceção revela
com a maior clareza a essência da autoridade estatal. Nesse caso, a decisão
distingue-se da norma jurídica e (formulando-a paradoxalmente) a autoridade prova
que, para criar a justiça, ela não precisa ter justiça. (SCHMITT, 1922/1996, p. 93)

Nesta passagem acima, pode-se perceber a natureza totalitária do arcabouço teórico


de Schmitt na sua “Teologia Política”, revelando-se de forma sedutora e convidativa para um
soberano que deseja controle máximo. O desejo do Pai da horda primeva, um pai mítico, um
elemento fundante da Psicanálise Freudiana, fomentadora da estrutura neurótica, do qual

463
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ninguém escapa e se mostra possível mediante a configuração de proteção total de um pai


agressivo. Utilizando-se de uma analogia, o soberano se constitui como o grande pai desta
horda, o qual se torna uma figura mítica perante seus súditos e estes, por sua vez, cumpre a
zelar pela imagem do pai, reprimindo desejos em nome da ordem social (FREUD 1912-
13/1996).
Schmitt faz uma crítica àqueles que não compreenderam a racionalidade política do
Estado de exceção. Entre eles, temos John Locke, Immanuel Kant e, particularmente, o
desafeto, Hans Kelsen que, segundo Schmitt, trazem como elemento comum é não
conseguirem observar as potencialidades inatas do caso da exceção:

Para a doutrina do Estado de direito de Locke e o pensamento racional do século


XVIII, o Estado de exceção era algo incomensurável. A consciência viva do
significado do caso de exceção, predominantemente no direito natural do século
XVII, perdeu-se no século XVIII, quando passou a imperar uma ordem relativa,
mais duradoura. Para Kant, o direito emergencial não é nem mais direito. A
doutrina atual do Estado mostra o interessante jogo em que ambas as tendências, a
indiferença racionalista e o interesse pelo caso emergencial, derivadas de ideias
essencialmente opostas, estão simultânea e reciprocamente contrapostas. É
compreensível, por exemplo, que um neokantiano como Kelsen não soubesse o que
fazer com o Estado de exceção. Mas os racionalistas deveriam ver-se interessados
também em saber que a própria ordem jurídica pode prever o Estado de exceção e
“suspender a si mesma”. (SCHMITT, 1922/1996, p. 93)

Ainda prossegue a crítica de Schmitt à Kelsen, um dos seus principais rivais


intelectuais do seu tempo:

Kelsen resolve o problema do conceito de soberania simplesmente negando-o. a


conclusão de suas decisões é: “O conceito de soberania deve ser radicalmente
reprimido” [...]. Na prática, essa é a velha negação liberal diante do direito e o
desdém pela questão independente da concretização do direito. (SCHMITT,
1922/1996, p. 99)

Ademais, Schmitt fez questão de distinguir o caso da exceção dos elementos


anárquicos, sendo que o primeiro possui a racionalidade política tão cara à análise
schmittiana:

Mas como unidade e a ordem sistemáticas poderiam se auto-suspender num caso


concreto é algo difícil de conceber, e continua sendo um problema jurídico de
qualquer espécie de anarquia. A tendência do Estado de direito de regulamentar
detalhadamente o Estado de exceção representa a tentativa de circunscrever o caso
no qual o direito se suspende a si mesmo. (SCHMITT, 1922/1996, p. 93)

464
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Há uma passagem muito sintomática do fascínio de Schmitt pelo caso da


excepcionalidade política, ou seja, sua admiração indisfarçável pelas práticas que
interrompem o fluxo da continuidade normativa com seus ritos e preceitos. Schmitt é enfático
ao assinalar que prefere a excepcionalidade à norma: “A exceção é mais interessante que o
caso normal. O normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra,
mas a própria regra vive só vive da exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta
de uma mecânica cristalizada na repetição” (SCHMITT, 1922/1996, p. 94).
A despeito da lei, Schmitt é muito enfático quanto à natureza do seu processo como
uma construção política e não normativa: a decisão é o que importa sobre a legislação: “O que
importa para a realidade da vida jurídica é quem decide. Ao lado da questão do conteúdo
correto surge a questão da competência. Na oposição entre o sujeito e conteúdo da decisão e
no significado intrínseco do sujeito é que reside o problema da forma jurídica” (SCHMITT,
1922/1996, p. 108).
Entre muitas análises controversas de Schmitt à luz do século XXI, mas que ainda
resistem como expressões sedutoras em momentos de fragilidade do arcabouço democrático
de muitos Estados, tanto na sua legitimidade, quanto da sua representatividade, há a Teologia
se aproximando da Política, quase como processo de justaposição, de forma a construir um
desejo de “verdade”, conforme a visão schmittiana. Daí o título “Teologia Política” não é
apenas batismo do terceiro capítulo do livro, o qual leva mesmo nome do título, mas mais um
elemento conceitual das elaborações de Schmitt (1922/1996, p. 109): “Todos os conceitos
expressivos da moderna doutrina de Estado são conceitos teológicos secularizados. [...] Para a
jurisprudência, o Estado de exceção possui um significado análogo a do milagre para a
teologia”.
Assim, segundo uma analogia teológica da ação decisiva por parte do soberano cuja
influência se transfere na ação do Estado em sua amplitude total. A análise de Schmitt
(1922/1996, p. 110-111) tem como pressuposto teológico que: “O Estado interfere em todos
os lugares como um ‘Deus ex machina’ decidindo uma controvérsia por meio da legislação
positiva [...] [por consequência] o Estado age sob várias roupagens, mas continua sempre
como aquela mesmo pessoa invisível”.
Pode-se encontrar nessa passagem da “Teologia Política” de Schmitt, uma analogia
da “mão invisível” do mercado preconizada na alegoria de Adam Smith, na sua ideia de
mercados autorreguláveis que foi seminal nos alicerces da ideologia capitalista. Em ambas as

465
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

construções análogas, temos o misticismo de um agente onipresente, o “mercado” para Smith


e o “Estado” para Schmitt como, respectivamente, reguladores da Economia e da Política.
Não é à toa que o recurso da “onipotência” tem como característica basal, um poder divino
que circunscreve as obras de Schmitt e Smith, ainda que em ambos tem-se uma construção
que se pode eleger como teológica que rege as leis da economia de mercado para Smith e, no
campo da Política, o soberano teria poderes excepcionais para o pensamento de Schmitt.
Sendo assim, para Schmitt, a teoria política dirige o Estado e a soberania, da mesma maneira
que a teologia fez com Deus.
A linha de articulação argumentativa e intelectual de Schmitt se espelha em alguns
dos seus influenciadores de pensamento que tinham desprezo ou mesmo eram reticentes
quanto à natureza humana e o aspecto da negatividade da condição humana2:

Naturalmente, o que ele [Juan Francisco Donosco-Cortés] diz sobre a maldade e a


crueldade dos homens é mais terrível do que tudo o que jamais uma filosofia de
Estado absolutista apresentou para justificar um regime de força. [Joseph] De
Maistre também se assustou com a maldade dos homens, e suas afirmações sobre a
natureza deles têm a força que emana de uma moral sem ilusões e das experiências
psicológicas solitárias. [Louis] Bonald também não se iludia sobre os maus
instintos fundamentais dos homens e reconhece a incorrigível “vontade de poder”
tão bem quanto qualquer psicologia moderna. (SCHMITT, 1922/1996, p. 124)

Ainda uma imagem do simbolismo da descrença na humanidade está em uma


analogia de um suposto comportamento errático dos homens e a ira divina transcrita por
Schmitt (1922/1996, p. 125) do católico Donosco-Cortes: “A humanidade é um navio que
permanece à deriva com uma tripulação revoltada, ordinária, recrutada à força, que berra e
dança, até que a ira de Deus jogue essa corja rebelde ao mar, para que o silêncio volte a
reinar”. Como ferrenho crítico da democracia parlamentar burguesa, Schmitt segue citando
Donosco-Cortes em sua crítica ao que ele considerava ser infrutífero debate em nível
parlamentar. Em uma das passagens mais contundentes da “Teologia Política” de Schmitt a
respeito de sua crítica à democracia liberal burguesa e o próprio liberalismo, encontra-se que:

A burguesia liberal quer um Deus, mas ele não deve tornar-se ativo; ela quer um
monarca, mas ele deve ser frágil; ela exige liberdade e igualdade e mesmo assim
exige que o direito de voto seja restrito às classes dos proprietários para garantir a
influência necessária da cultura e da propriedade sobre a legislação, como se cultura

2
Schmitt se refere aos filósofos da contrarrevolução iluminista: o visconde Louis Bonald (1754-1849), político e
escritor francês e defendia os príncipes monárquicos e católicos; conde Joseph de Maistre (1753-1821), escritor e
filósofo francês que foi contrário à Revolução Francesa e apoiou a autoridade do rei e do papa; Juan Francisco
Donosco-Cortés (1809-1853), filósofo católico e diplomata espanhol (Schmitt, 1922/1996).

466
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

e propriedade lhes dessem o direito de oprimir as pessoas pobres e incultas. A


burguesia elimina a aristocracia de sangue e de família, mas admite o domínio
vergonhoso da aristocracia do dinheiro, a forma mais tola e ordinária de
aristocracia; ela não quer a soberania do rei, nem a do povo. (SCHMITT,
1922/1996, p. 125-126)

Posto isto, Schmitt (1922/1996, p. 108) ainda finaliza de maneira inquisidora e


indignada a respeito do liberalismo burguês: “Mas afinal, o que ele quer?”. A partir desta
crítica, curiosamente Schmitt faz uma assimétrica união de conservadores como Danoso-
Cortês e F. J. Stahl e revolucionários socialistas como Karl Marx e Friedrich Engels,
justificando reunião de opostos contra o liberalismo burguês:

Acontece que aqui nos deparamos com o caso raro em que, numa situação política
concreta, um erudito alemão burguês de formação hegeliana pode ser confrontado
com um católico espanhol, porque ambos – naturalmente sem influências mútuas –
constataram as mesmas inconsequências para depois, por meio de suas diversas
avaliações, assumirem uma rivalidade de bela e típica clareza. (SCHMITT,
1922/1996, p. 126)

Ainda para reafirmar seu posicionamento contra as decisões do liberalismo


parlamentar burguês, Schmitt se utilizando das premissas de Danoso-Cortês e assim descreve:

Danoso considera isso apenas um método de evitar a responsabilidade e dar uma


importância exagerada à liberdade de discurso e de imprensa, para que no final não
se precise tomar uma decisão. Assim como o liberalismo discute e transige sobre
qualquer detalhe político, ele também quer dissolver a verdade metafísica numa
discursão. Sua natureza é negociar, é a insuficiência em compasso de espera, na
esperança de que o confronto definitivo, a sangrenta batalha decisiva possa se
transformar num debate parlamentar e ser eternamente suspensa através da
discussão eterna. (SCHMITT, 1922/1996, p. 128)

Em sequência, Schmitt (1922/1996) afirma de caráter peremptório: “A ditadura é o


oposto da discussão”. Já no final de sua “Teologia Política”, Schmitt em uma façanha
retórica, conseguiu unir todos os extremos em uma só meta “antipolítica” muito mais uma
construção caricatural do seu antiliberalismo do que uma análise mais pormenorizada e
contextualizada:

Hoje, nada é mais moderno do que a luta contra tudo o que é político. Magnatas
americanos, técnicos industriais, socialistas, marxistas e revolucionários anarco-
sindicalistas juntam-se ao exigir a eliminação da dominação não-objetiva da
política sobre a objetividade da vida econômica. Não devemos mais existir
problemas políticos, só tarefas-organizacionais e econômico-sociológicas. A
espécie de pensamento econômico hoje dominante pode até nem aceitar mais uma
ideia política. O Estado moderno parece realmente ter se transformado naquilo que
Max Weber previu: uma grande empresa. (SCHMITT, 1922/1996, p. 129)

467
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A preocupação de Schmitt com uma visão “puritana” da política, ou seja, uma visão
sem contextualizar a política como uma eclosão de fatos materiais e artifícios momentâneos
entre os atores envolvidos torna-se sintomática a passagem de sua indignação pela
“desconstrução” que transitava na política de sua época em defesa de sua legitimação da
ditadura:

O político desaparece no econômico ou no técnico-organizacional e, por outro lado,


se desfaz do eterno discurso das generalidades histórico-filosóficas e culturais, que
com caracterizações estéticas degustaram uma época como clássica, romântica ou
barroca. Em ambos, a essência da ideia política, a decisão moral exigente é
desviada. (SCHMITT, 1922/1996, p. 130).

1.2.A ESCOLHA DICOTÔMICA: AMIGO OU INIMIGO?

Pouco antes de Adolf Hitler ascender ao poder na Alemanha e implantar o regime


nazista, Schmitt lançou o clássico “O Conceito de Político”, em 1932. Para Jürgen Habermas
que analisa tal obra de Schmitt, descreve a admiração do jurista alemão por Thomas Hobbes e
simultaneamente seria um crítico dele:

“Ele [Schmitt] celebra em Hobbes o único teórico político de categoria que teria
reconhecido no domínio soberano a substância decisionista da política estatal. Mas
lamenta o teórico secular que teria recuado diante das últimas consequências
metafísicas e, contra sua vontade, tornando-se um dos ancestrais do Estado de
direito da lei positiva” (HABERMAS, 1987/2008, p. ix).

Interessante é o apontamento de Habermas a respeito da crítica de Schmitt a respeito


da escolha infeliz que Hobbes fez em sua obra ao denominar “Leviatã”, o gigante mitológico
análogo às estruturas de Estado e não ter entendido ou conhecido a “versão subversiva”
judaica, o qual o nome se remete a uma terrível imagem apontada inicialmente por Hobbes o
qual teve um efeito nocivo sobre o referido clássico da Ciência Política.
A descrença na condição humana para se auto-organizar foi compartilhada tanto
por Hobbes quanto por Schmitt, lembrando que ambos viveram em épocas de grande
instabilidade socioeconômica e efervescentes disputas políticas. Schmitt com suas principais
obras nos anos 1920 e 1930, um período intenso e turbulento que gestaria a futura aventura da
barbárie imposta pelo nazismo alemão. A questão da soberania é central para a própria
existência do Estado, cuja manutenção é primordial em detrimento dos desígnios do povo
nela inserido:

468
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Da mesma forma como o Leviatã só constitui o poder que ele é, quando subjulga
Beemot, o Estado se afirma como poder soberano somente ao oprimir a resistência
revolucionária. O Estado é a guerra civil continuadamente impedida. Sua dinâmica
constitui-se na repressão da revolta, na sujeição continuada de um caos, instalado na
natureza má dos indivíduos. Estes insistem em sua autonomia e pareceriam no
sobressalto de sua emancipação, se não fossem salvos pela facticidade de um poder
que domina qualquer outro poder. (HABERMAS, 1987/2008, p. x)

O soberano, segundo Schmitt, ou seja, aquele que determina a respeito do Estado de


exceção, é uma figura “sobre-humana” politicamente, cuja capacidade encontraria no
depósito sacrossanto da “verdade” e da “justiça”, um ser acima dos outros seres:

E, uma vez que as forças subversivas sempre se apresentam em nome da verdade e


da justiça, o soberano que quer prevenir o estado de exceção há de também
restringir para si a decisão sobre a definição do que é publicamente considerado
verdadeiro ou justo. Seu poder de decisão é a fonte de toda validade. O Estado
unicamente determina a confissão pública dos seus cidadãos. (HABERMAS,
1987/2008, p. x)

Sobre a Alemanha de Weimar, Habermas analisou a situação do pós-Primeira


Guerra e as condições materiais que pudessem justificar o estratagema schmittiano, tendo
como exemplo a ascensão do fascismo na Itália de Benito Mussolini:

Weimar surgiu como o período de declínio: os restos de um Estado concebido,


inclusive por Hobbes, já sem entusiasmo, dissolveram-se em uma apolítica “auto-
organização da sociedade”. A crise só podia ser superada através do emprego
temporário do parágrafo 48 (estado de necessidade) da Constituição de Weimar,
mas de forma duradoura apenas pelo “Estado totalitário”. Schmitt estava pensando
primeiramente em Mussolini e no fascismo italiano. Após a tomada de poder pelos
nazistas, ele foi oportunista o suficiente para dar à sua contribuição estatal aquela
pequena mudança necessária a fim, de não mais ter que conceber o decisionismo do
Führer como puramente hobbesiano, e assim como o pico soberano acima dos
“ornamentos concretos” do povo. (HABERMAS, 1987/2008, p. xi-xii)

Crítica de Habermas ao sistema de “democracia igualitária” proposta por Schmitt


que vê nele uma construção tirânica, uma espécie de “democracia autoritária” personificada
na homogeneidade performática e ética do soberano:

[...] o lance verdadeiramente problemático é dado por Carl Schmitt com a separação
entre democracia e liberalismo. Ele restringe o processo da discussão pública ao
papel da legislação parlamentar, desacoplando-o da volição democrática em geral,
como se a teoria liberal já não tivesse sempre incluído a noção de uma formação de
vontade e opinião na publicidade política. Democraticamente é a condição de
participação com igualdade de oportunidades de todos em um processo de
legitimação guiado pela via da discussão pública (adjudicada ao liberalismo) a
democracia compreendida de forma identitária. Conceitualmente, ele prepara estes
pressupostos universais de participação geral, restringi-la a um substrato

469
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

populacional etnicamente homogêneo e reduzi-la à aclamação, destituída de


argumentos, das massas incapazes. Isto se explica pelo fato de que, somente assim,
é possível imaginar uma democracia autoritária de homogeneidade cesarística e
étnica, na qual se personifica algo como “soberania”. Com isto, aliás, fornece a Carl
Schmitt o esboço de democracia que, posteriormente, seus colegas emigrados para
os Estados Unidos usarão para sua teoria do totalitarismo. (HABERMAS,
1987/2008, p. xviii-xix)

“O conceito de Estado pressupõe o conceito de político”, assim Schmitt (1932/2008,


p. 19) abre o seu “O Conceito de Político”. Nele, o jurista alemão trabalha com a ideia da
instabilidade permanente entre as relações humanas (para além dos limites sociais, mas na
esfera do sujeito), condicionando-se na inevitabilidade de suas ações para os conflitos. Logo,
acima de tudo, Schmitt poderia assim dizer, seria um ideólogo de uma “teoria do conflito”,
não no sentido marxista, entre classes sociais, mas entre os homens que detém o poder, ou
seja, uma teoria do conflito entre elites, que assume uma caracterização guerreira entre
“amigos e inimigos”.
Somente em 1963, no prefácio à edição deste ano, Schmitt faz uma correção ao
texto de 1932:

O texto reimpresso de 1932 tinha que ser apresentado como documento, na sua
forma original, com todas as suas falhas. A principal falha no tema reside no fato de
que vários tipos de inimigo – inimigo convencional, real ou absoluto – não são
diferenciados e separados o suficiente de maneira nítida e precisa. [...] É inexorável
acerca do problema, desempenhando esta um autêntico progresso em termos de
consciência, pois os modernos tipos e métodos de guerra forçam a refletir sobre o
fenômeno da inimizade. (SCHMITT, 1963/2008, p. 16)

Schmitt cita Jacob Burckhardt no sua “História Mundial” sobre a contradição interna
entre um tema tão apreciado pelo jurista alemão, o Estado constitucional liberal e a
democracia:

Por um lado, o Estado deve ser, assim, a realização e a expressão da ideia cultural
de cada partido e, por outro, apenas a roupagem visível da vida burguesa, mas
apenas onipotente ad hoc! Ele deve poder fazer tudo que é possível, mas não deve
ter a permissão para mais nada, ou seja, não lhe é permitido defender sua forma
existente perante nenhuma crise – e, ao fim, deseja-se, sobretudo, participar
novamente do exercício de seu poder. Desta maneira, o regime estatal torna-se cada
vez mais discutível e a abrangência de poder cada vez maior. (BURCKHARDT
apud SCHMITT, 1932/2008, p. 25, grifos do autor)

Schmitt combatia o que ele considerava a “despolitização” do Estado no século XIX


para um “Estado político” no século XX, vulgata nevrálgica para a arquitetura de um “Estado

470
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

total”, denso e coercitivo, uma entidade autônoma e impositiva de “vida própria”. Os


conceitos de “amigo” e “ inimigo” são pilares basilares do seu pensamento. Assim, justifica a
sua caracterização:

A diferenciação entre amigo e inimigo tem o próprio de caracterizar o extremo grau


de intensidade de uma união ou separação, de uma associação ou desassociação,
podendo existir na teoria e na prática, sem que, simultaneamente, tenham que ser
empregadas todas aquelas diferenciações morais, estéticas, econômicas ou outras.
O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser esteticamente
feio; talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios com ele. Ele é
precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja, em
um sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido,
de modo que, em caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não
podem ser decididos nem através de uma normalização geral empreendida
antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro “não envolvido” e,
destarte, “imparcial”. (SCHMITT, 1932/2008, p. 25)

Para Schmitt, o conflito entre amigo/inimigo não passaria por outro “intermediador”
que pudesse resolvê-lo. Logo, Schmitt poderia se dizer que era um “antimediador”, ou seja, a
natureza de um conflito somente se resolveria, tão somente, por meio das partes beligerantes.
Daí sua crítica à então Liga das Nações, como intermediadora de pesadas sanções econômicas
contra a Alemanha, a grande derrotada da Primeira Guerra Mundial.

A possibilidade de um reconhecimento e entendimento corretos e, com isso,


também o poder de voz ativa e de julgamento, está aqui dada apenas por meio da
participação e colaboração existenciais. O caso de conflito extremo só pode ser
resolvido pelos próprios envolvidos entre si: isto é, cada um deles só pode decidir
ele próprio se o caráter diferente do desconhecido significa, no existente caso
concreto de conflito, a negação do próprio tipo de existência e, por isso, se será
repelido ou combatido a fim de resguardar o tipo de vida próprio e ôntico. Na
realidade psicológica, o inimigo é facilmente tratado como mau e feio, pois toda
diferenciação, na maioria das vezes, naturalmente, a política como diferenciação e
agrupamento mais forte e mais intensos. [...] Por conseguinte, é também válido o
inverso: o que é moralmente mau, esteticamente feio ou economicamente
prejudicial, não precisa ser inimigo por isso; o que é moralmente bom,
esteticamente belo e economicamente útil ainda não se converte em amigo no
sentido específico, i.e., político da palavra. (SCHMITT, 1932/2008, p. 28-29)

Schmitt segue suas conceituações a respeito da descrição do para antagônico


amigo/inimigo:

Os conceitos de amigo e inimigo devem ser tomados em seu sentido concreto e


existencial, e não como metáforas ou símbolos, não misturados ou enfraquecidos
por noções econômicas, morais e outras, e menos ainda em um sentido privado-
individualista e psicologicamente como expressão de sentimentos e tendências
privadas. Não constituem antíteses normativas nem “puramente espirituais”. Em
seu típico dilema entre espírito e economia [...], o liberalismo tentou reduzir o

471
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

inimigo, pelo lado comercial, a um concorrente e pelo lado espiritual, a um


adversário nas discussões. (SCHMITT, 1932/2008, p. 29)

Merece destaque a seguinte passagem que Schmitt (1932/2008, p. 27) afirma no “O


Conceito de Político”: “Na realidade é o Estado total que não mais conhece nada
absolutamente apolítico, é ele quem tem que eliminar as despolitizações do século XIX e pôr
fim, sobretudo, ao axioma da economia livre do Estado (apolítica) e do Estado livre da
economia”. O conceito de inimigo, ou seja, quem ou o quê seria o “outro” foi tema de
desdobramento teórico de Schmitt, o qual ele procurou justificar seus conceitos com
explicações que remetiam até a Platão, buscando fazer uma distinção ontológica dos
“inimigos”: “[...] um povo não poderia fazer guerra contra si mesmo e uma ‘guerra civil’
significaria tão somente autodilaceramento, e não a formação de um novo Estado ou mesmo
de um povo”. Ademais, Schmitt caracteriza uma diferenciação entre inimigo do adversário,
ou seja, não seria qualquer inimigo, mas um “inimigo público”:

Assim, inimigo não é concorrente ou adversário em geral. Tampouco é inimigo o


adversário privado a quem se odeia por sentimentos de antipatia. Inimigo é apenas
um conjunto de pessoas em combate ao menos eventualmente, i.e., segundo a
possibilidade real e que se defronta com um conjunto idêntico. Inimigo é somente o
inimigo público, pois tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas,
especialmente a todo um povo, se torna, por isso, público. Inimigo é hostis, não
inimicus em sentido amplo; polemios, não echtros. A língua alemã, assim como em
outras línguas, não diferencia entre o “inimigo” privado e o político, de modo que
se fazem possíveis muitos equívocos. (SCHMITT, 1932/2008, p. 30, grifos do
autor)

A definição da guerra por Schmitt (1932/2008, p. 35) merece destaque dentro do


campo teórico da polaridade amigo/inimigo: “A guerra é apenas a realização extrema da
inimizade”. Remetendo-se ao general polonês Carl von Clausewitz, escreveu um dos
principais clássicos de guerra de todos os tempos, Schmitt recupera o conceito nas palavras
desse autor: “A guerra nada mais é que uma continuação do trânsito político com intromissão
de outros meios”. Sendo um texto de 1932, “O Conceito de Político” parece sintomática a
preocupação pela caracterização do “inimigo” e, por sua vez, o clímax de inimizade, a guerra.
Sete anos após a escrita do texto, a Alemanha, sua terra natal, movida pelo expansionismo
nazista, deflagra a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o maior conflito armado de todos
os tempos.

Embora as guerras não sejam mais tão numerosas ou quotidianas como


antigamente, elas aumentaram em imponência e força total em proporções iguais

472
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ou talvez mais intensas do que perderiam numericamente em frequência e


cotidianidade. Também hoje, o caso da guerra é um “caso crítico”, pode-se dizer
que aqui, como em outros casos, é o caso excepcional que tem um significado
especialmente decisivo e revelador do cerne das coisas, pois é no combate real que
primeiramente se manifesta a extrema consequência do agrupamento político em
amigo e inimigo. É a partir desta mais extremada possibilidade que a vida do ser
humano adquire sua tensão especificamente política. (SCHMITT, 1932/2008, p.
37)

Quem então decidiria quem seria o inimigo? Para Schmitt (1932/2008, p. 48, grifo
do autor), tal tarefa teria incumbência destinada ao Estado: “Ao Estado como unidade
essencialmente política pertence o jus belli, isto e, a real possibilidade de determinar o inimigo
no caso dado por força de decisão própria e de combatê-lo”. Ademais, reafirma a
responsabilidade do Estado a respeito de sua dimensão e presença sobre a vida do seu próprio
povo. Da mesma posição que o Estado tem para fazer a guerra, tem também de promover a
paz. Schmitt tem como pressuposto o engajamento do Estado na escolha de inimigos e critica
uma suposta falsa neutralidade daqueles que recusam esta escolha. Para ele, a questão da
escolha é política e estaria inerente ao povo que saiba conduzir o seu próprio caminho e se
proteger e, caso contrário, sofrerá riscos: “O político não desaparecerá do mundo só porque
um povo não mais possui a força ou a vontade de se manter na esfera do político. O que
desaparecerá será tão somente um povo fraco” (Schmitt, 1932/2008, p. 57). Aqui, Schmitt já
utiliza uma linguagem mais intensa, um “inimigo” com rosto a ser “eliminado”, um “povo
fraco” como base de um pensamento totalitário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estado de exceção como práxis das democracias contemporâneas

A necessidade de reflexão sobre o atual ordenamento jurídico envolto nas


democracias contemporâneas merece atenção de todos aqueles que primam pelo respeito à
dignidade humana frente às formas manifestadas inscritas ou subjetivas de barbárie. Neste
vasto campo, o presente trabalho pretende estabelecer algumas considerações conceituais
sobre o estado de exceção como paradigma e práxis das democracias ocidentais ou
ocidentalizadas. Situação essa que não escapa do atual contexto do Estado brasileiro.
A priori, se faz necessária a distinção entre soberania e estado de exceção, a qual foi
estabelecida inicialmente por Carl Schmitt em 1922, na obra “Teologia Política”, e que define

473
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

o soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT apud
AGAMBEN, 2004, p. 11). Em seu ensaio a respeito do estado de exceção, Giorgio Agamben
delimita algumas condições que dão suporte para a compreensão do estado de exceção e sua
instauração dentro de um Estado supostamente democrático, mais particularmente, pela
“força de lei” por parte do soberano ao modo schmittiano:

O estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou inconstitucional,


comissária ou soberana), mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em
que todas as determinações jurídicas – e, antes de tudo, a própria distinção entre
público e privado – estão desativadas. Portanto, são falsas todas aquelas doutrinas
que tentam vincular diretamente o estado de exceção ao direito, o que se dá com a
teoria da necessidade como fonte jurídica originária, e com a que vê no estado de
exceção o exercício de um direito do Estado à própria defesa ou a restauração de
um originário estado pleromático do direito (os “plenos poderes”). (AGAMBEN,
2004, p. 78-79)

A “zona de anomia” citada por Agamben (2004), ou seja, um espaço vazio do


Direito introduz aos infortúnios passíveis que vitalizam os rizomas das transgressões do
estado democrático de direito. A força-motriz que media a natureza dos homens, em
potencial, a sociedade constituída pelos “cidadãos”, criação basilar do Ocidente moderno,
onde os ordenamentos jurídicos dariam condições igualitárias de direitos ao conjunto dos
“cidadãos”, frente às imposições de um Estado severamente coercitivo e com o pressuposto
real do monopólio da violência.
Todavia, o instrumento do estado de exceção, não é nenhuma novidade frente às
políticas dos Estados-nacionais. A teoria do estado de exceção foi inaugurada em 1921 por
Carl Schmitt em um estudo sobre a ditadura, e que se tratava inicialmente como uma
“ditadura constitucional” (AGAMBEN, 2004, p. 17). Sobre a importância de percepção do
estado de exceção no período envolvendo as duas grandes guerras mundiais, temos que:

A Primeira Guerra Mundial – e os anos seguintes – aparece, nessa perspectiva,


como o laboratório em que se experimentaram e se aperfeiçoaram os mecanismos e
dispositivos funcionais do estado de exceção como paradigma de governo. Uma
das características essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da
distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostra, aqui, sua
tendência a transformar-se em prática duradoura de governo. (AGAMBEN, 2004,
p. 19)

Os abusos do exercício sistemático e regular do estado de exceção, segundo


Agamben (2004, p. 19), “levaria necessariamente à liquidação da democracia”. Neste sentido,
a democracia estaria em “suspensão” na vigência do estado de exceção e o qual um novo

474
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

regime se imporia levando um estado de permanente coação dos seus cidadãos. Conforme
enfatiza Agamben (2004, p. 13) o qual ele define como “guerra civil mundial”:

[...] o estado de exceção tende cada vez mais se apresentar o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida
provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar
radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e
o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado
de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação
entre democracia e absolutismo. (AGAMBEN, 2004, p. 13)

O Decisionismo defendido por Schmitt recai diante de um paradoxo: ao invocar a


Política como elemento da decisão soberana, de forma autocrática, arbitrária, egóica, ao
mesmo tempo, nega a práxis da própria Política circundada diante de uma atmosfera de
decisão para além da vontade particular de um único ator político. Sendo assim, o
Decisionismo recorrer ainda, por via de sua natureza autocrática, unilateral e subjetiva, a
viabilização do terror e da violência políticas. Diante deste aspecto, temos a formação deste
“paradoxo schmittiano”, o qual defende a Política para posteriormente aniquilá-la de acordo
com a vontade do soberano.
As democracias modernas ocidentais foram cooptadas pelo mercado, o qual os
Estados, cujos governos são cada vez mais dependentes de “democracias eleitorais” com
grande aporte de capital privado para eleger seus governantes (na verdade, a luta é para quem
é o “melhor gestor” da “coisa pública” que se confunde com a “coisa privada”), não mais
trabalham para o uso-fruto dos seus cidadãos, mas ao contrário, criam-se formas autoritárias
de coerção dos mesmos para manter a lógica de dominação capitalista, pulverizando a
pluralidade e atomizando-a em diversas diferenças sob os auspícios da barbárie, uma vez que:

O fetichismo da economia converte a política em bode expiatório: a democracia


substituída por lobbies e o enfraquecimento da dimensão simbólica da Lei resultam
em indiferença política; o fim da democracia como esperança dá-se sob os
auspícios do capitalismo tardio. Este substitui a democracia da pluralidade por
aquela da “diferença”[...] fratura-se a sociedade pela via do gueto e da tribo [...],
construindo sociedades etnicamente homogêneas e, como se sabe, a pureza de
sangue, de espírito ou de conhecimento, está na origem de todas as barbáries.
(MATOS, 2003, p. 48)

Sobre sua pertinência na História, o estado de exceção esteve vigente em diversas


democracias (ou países tido como outrora “democráticos”). O paradigma basilar que se pode
encontrar no período que abrangeu o final da Alemanha durante a República de Weimar e

475
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

durante todo o regime Nacional-socialista, o estado nazista, liderado por Adolf Hitler. Logo
que subiu ao poder, Hitler com auxílio das suas tropas de assalto, a SA (Sturmabteilung), em
27 de fevereiro de 1933, forja um incêndio no palácio presidencial do Reichstag e, como
planejado, o atentado caiu sobre as costas dos comunistas à responsabilidade pelo ato. A
orquestração de Hitler teve a comoção esperada e, no dia seguinte, persuadiu o presidente
alemão Paul von Hindenburg assinar o chamado “Decreto para a proteção do povo e do
Estado” e que tinha como efeito a suspenção dos artigos da Constituição de Weimar, no que
se referia às liberdades individuais e civis (PRINTCHARD, 1976)3. A esse respeito, o estado
de exceção se instaurava na Alemanha da ascensão nazista e perdurou até o seu fim, em 1945
e se mostrou a face mais intensa e devastadora do totalitarismo moderno:

O decreto nunca foi revogado, de modo que todo o Terceiro Reich pode ser
considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12
anos. O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração,
por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação
física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de
cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.
(AGAMBEN, 2004, p.13)

Sendo assim, é pertinente observar a inserção de um novo paradigma político


imposto sob a forma uma construção não-inscrita de um ordenamento jurídico ao sabor do
soberano, ao estilo schmittiano, alicerçando práxis de dominação no âmbito à todos os
Estados ditos democráticos: “Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência
permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das
práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”
(AGAMBEN, 2004, p. 13).
É preciso ainda fazer uma distinção necessária entre estado de exceção e estado de
sítio, de defesa ou medida jurídica similar excepcional que é amparada dentro da lei. Por sinal,
este último está inscrito na Constituição Federal brasileira (BRASIL, 1988), nos artigos 137 a
139 como elemento de um ordenamento jurídico. Conforma aponta SERRANO (2016, p. 33),
o estado de exceção “trata-se de algo fora do direito, em que este é suspenso, prevalecendo a
decisão soberana”. É importante atentar-se sobre as circunstancias do estado de exceção que
são impostas pelo soberano e implicam o seu entendimento:
3
O episódio do incêndio do Reichstag ainda permanece controverso. Historiadores como Martin Kitchen
defendem que foi realizado por um ato unilateral de um militante comunista e que teve relevâncias graças à uma
série de “coincidências” danosas que permitiram Hitler explorar os fatos para seus planos pessoais de governo e
impor seu ideário de medo e xenofobia social (KITCHEN, 2013).

476
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

[...] a escolha da expressão “estado de exceção” implica uma tomada de posição


quanto à natureza do fenômeno que se propõe a estudar e quanto à lógica mais
adequada a sua compreensão. Se exprimem uma relação com o estado de guerra
que foi historicamente decisiva e ainda está presente, as noções de “estado de sítio”
e de “lei marcial” se revelam, entretanto, inadequadas para definir a estrutura
própria do fenômeno e necessitam, por isto, dos qualificativos “político” ou
“fictício”, também um tanto equívocos. O estado de exceção não é um direito
especial (como o direito de guerra), mas, quando suspensão da própria ordem
jurídica, define seu patamar ou seu conceito limite. (AGAMBEN, 2004, p. 15)

Ressalta-se ainda o papel do soberano schmittiano, ou seja, aquele que induz por sua
própria vontade a imposição do estado de exceção. A consolidação ou execução do estado de
exceção visa proteger os interesses subjacentes ao Estado e não seus cidadãos, ou seja, na
situação limite, estabelecer a prerrogativa de proteção do Estado frente aos seus próprios
cidadãos! Conforme salienta Agamben (2004, p. 30), a instauração por via de um estado de
exceção se configuraria em uma “democracia protegida” como regra e não mais como uma
excepcionalidade.
A instabilidade e a fragilidade das democracias contemporâneas, com forte rejeição
e desconfiança dos cidadãos, baixa participação ativa dos mesmos, além da evocação de uma
“desnaturalização” da política do meio social e banalização do sentido de se fazer política na
sociedade (em geral, confundida com as disputas fratricidas entre partidos políticos), são
elementos que ajudam a diluir a organização política da ação da democracia participativa em
um Estado e aliando-se ainda a uma grande porosidade e aglutinação indevida entre os
poderes da República.
Conforme ressalta Matos (2003, p. 49), “onde não há política, governam a violência
e o terror”. O estado de exceção é a negação da liberdade e da democracia dentro de um
Estado. Seus cidadãos ficam reféns de um estado onde o soberano emprega leis como um
arauto divino, tal como Carl Schmitt comparava o estado de exceção na política, ao milagre
na teologia. O perigoso trade off entre liberdade e segurança é cada vez mais voltado para o
segundo pressuposto vital, com a falência da Política como mediação entre os cidadãos,
prossegue assim Matos (2003, p. 49): “o descrédito no parlamento, nas instituições políticas
de representação social, nas punição de sua violação, em sua aplicabilidade faz com que,
hobbesianamente, troque-se liberdade por segurança”.

477
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 out. 1988. Disponível:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso: 01 ago. 2016.

FREUD, Sigmund (1912-13). Totem e Tabu e outros trabalhos (1913-1914). Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

HABERMAS, Jürgen (1987). Liquidando os danos: os horrores da autonomia. In: SCHMITT, Carl (1932). O
Conceito de Político/Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

KITCHEN, Martin. História da Alemanha moderna: de 1800 aos dias de hoje. São Paulo: Cultrix, 2013.

KLEIN, Claude. Weimar. São Paulo: Perspectiva, 1995.

LENZ, Sylvia Ewel. Jean Bodin: As premissas de um Estado Soberano. Mediações, Revista de Ciências Sociais.
Vol. 9, n. 1, 2004, p. 119-134. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/9051/7580 Acesso em: 01 julho 2017.

MATOS, Olgária. Modernidade: república em estado de exceção. Revista de História, São Paulo, n. 59, p. 46-53,
set./nov., 2003.

PRITCHARD, R. John. O incêndio do Reichstag. Coleção História Ilustrada da 2ª. Guerra Mundial. Rio de
Janeiro: Editora Renes, 1976.

SERRANO, Pedro Estevan Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição
e exceção. São Paulo: Alameda, 2016.

SCHMITT, Carl (1922). A crise da democracia parlamentar/Teologia Política. São Paulo: Scritta, 1996.

SCHMITT, Carl (1932). O Conceito de Político/Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

VERA-CRUZ PINTO, Eduardo. Prefácio. In: SERRANO, Pedro Estevan Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na
América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016.

478
DIREITO E MORAL:
UMA DISCUSSÃO ACERCA DAS POSSIBILIDADES DE
UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

MONNERAT, Alice Nogueira


Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação
Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO

O presente artigo pretende discutir as possibilidades de universalização e internacionalização dos


direitos humanos na sociedade contemporânea. Para tanto, faz-se um resgate das compreensões acerca
da relação entre direito e moral, para posteriormente, realizar uma análise da Declaração Universal dos
Direitos Humanos das Nações Unidas buscando compreender os desafios e as perspectivas inerentes a
um projeto de internacionalização dos direitos humanos. Por fim, trazemos novas perspectivas frente a
possibilidade de universalização de direitos humanos.

Palavras Chave. direitos humanos, moral, universalização.

ABSTRACT

The present article intends to discuss the possibilities of universalization and internationalization of
human rights in contemporary society. In order to do so, the understanding of the relationship between
law and morals is rediscovered, and then an analysis of the United Nations Universal Declaration of
Human Rights seeking to understand the challenges and perspectives inherent to a project of
internationalization of human rights. Finally, we bring new perspectives to the possibility of
universalization of human rights.

Keywords. human rights, moral, universalization.

479
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada em 10 de dezembro de


1948 pelas Nações Unidas, é um marco de uma era de reconstrução após as barbáries
ocorridas na Segunda Guerra Mundial (PIOZZI, 1998). Pretendemos analisar, a partir da
perspectiva de universalização de direitos apresentada por Habermas e Alexy, baseada no
discurso racional, as possibilidades de internacionalização de direitos humanos. Com apoio da
bibliografia, será feita uma análise da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DECLARAÇÃO, 1948), tendo como abordagem principal as possibilidades de efetivação e
universalização dos mesmos enquanto normas de direito internacional.
Posteriormente, serão apresentadas proposições e perspectivas frente à possibilidade
de universalização dos direitos humanos, em busca da construção de uma nova forma de
enxergar política internacional: mais construtivas têm sido as tentativas variadas de
compatibilização entre o particularismo das culturas diversas e o que há de efetivamente
universal na ideia de direitos fundamentais, sendo essa uma complexa tarefa intelectual,
afinal, a própria noção de direitos humanos é Ocidental (ALVES, 2005, p. 11).

1. O CONCEITO DE DIREITO

Jürgen Habermas, atrela o conceito direito em direitos humanos ao jurídico, não


sendo os direitos humanos direito pré-jurídicos, moralmente puros, e sim normas legais. Há
uma diferença significativa em compreender os direitos humanos como pré-estatais ou
direitos jurídicos. Como direitos morais eles são fracos: não se pode ir a um tribunal exigir sua
proteção, podendo seu respeito ser reclamado apenas na esfera pública. Essa perspectiva
remonta a tradição liberal, em que direito humanos são direitos pré-estatais fundamentados no
direito natural ou no direito racional, sendo nesse caso, o direito e a política, apenas meios ou
objetos de sustentação dos mandamentos morais. (LOHMANN, 2013, p. 88)
Os defensores do direito natural nos dizem que existe, entre direito e moral, uma
conexão necessária, conceitual, enquanto a tradição positivista defende que o direito é
conceitualmente independente da moral, existindo apenas relações contingenciais entre os
dois fenômenos (BULYGIN, 2001, p. 41 e 42). O positivismo não nega o poder que as
convicções morais têm de influenciar os sistemas jurídicos, porém, não é essa uma relação de
caráter necessário (GAIDO, 2001, p. 17).

480
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Robert Alexy, por sua vez, desenvolve a ideia da natureza dupla do direito,
incluindo uma dimensão real ou fática e uma dimensão ideal ou crítica. O lado fático seria
refletido em elementos definitórios da produção formalmente adequada e da eficácia social, e
o ideal na correção moral. Para o autor, o conceito positivista de direito se baseia apenas no
primeiro ponto, a produção adequada e a eficácia social. A tese da dupla natureza tem um
caráter não positivista acrescendo a equação a correção moral. (ALEXY, 2010, p. 9)
É preciso observar dois argumentos para entender a posição de Alexy: o argumento
da injustiça - as normas e os sistemas jurídicos vão perder seu caráter jurídico quando
sobrepassarem determinados limites de injustiça - e o argumento da correção - em que, no
momento da criação de uma norma e da aplicação do direito, é formulada necessariamente
uma pretensão de correção (GAIDO, 2001, p. 19).
Para entender melhor podemos utilizar da discussão entre Alexy e Bulygin, em que
Alexy traz uma afirmação como exemplo para explicar a pretensão de correção que é
necessariamente formulada por todo ordenamento jurídico: supõe-se uma assembleia
constituinte que formula como primeiro artigo da nova constituição o seguinte “X é uma
república soberana, federal e injusta.” (tradução livre). Para Bulygin, o artigo em questão não
tem sentido enquanto ordem, afirmando que existem Constituições justas, mas tal estado não
pode ser ordenado ou prescrito, somente ações ou estados de coisas que são resultados de uma
ação podem ser conteúdo de normas. Portanto, tal enunciado pode ser interpretado como uma
declaração política, expressando a intenção do órgão constituinte, assim, teria o enunciado
sentido, apesar de deficiente. (BULYGIN, 2001, p. 46 e 47)
Alexy responde Bulyngin dizendo que a cláusula de injustiça não exprime apenas
um erro político. Nas palavra do autor:

Isso [um erro político] ela [cláusula de injustiça] é sem dúvida, embora tal fato
também não esclareça completamente o defeito. [...] Nem a incorreção
convencional, nem a moral, nem a técnica explicam a absurdidade da cláusula de
injustiça. Ela resulta, como é comum em absurdos, de uma contradição. Tal
contradição que se origina, com o ato constituinte, de uma pretensão de correção
que é erigida, a qual, nesse caso, é essencialmente uma pretensão de justiça.
Pretensões incluem, como exposto, asserções. No caso da pretensão de justiça aqui
levantada, a asserção é a de que a república é justa. (ALEXY, 2010, p. 12)

Assim, através da observação do enunciado, é possível entender que, devido a


pretensão de correção, o mesmo perde seu sentido de existir, isso porque a existência de um
ordenamento jurídico necessariamente pressupõe a intenção de justiça.

481
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O próprio Alexy apresenta objeções possíveis a pretensão de correção, como sendo


apenas expressão de uma ilusão, baseada em julgamentos sobre o que seria ou não
moralmente obrigatório, bom e mau, justo e injusto, o que seria subjetivo e relativo. O autor
contrapõe a tais argumentos com a teoria do discurso, que tem como suposições centrais que a
provação discursiva pode, em primeiro lugar, vir a depender de argumentos e que existe, em
segundo lugar uma relação necessária entre a aprovação universal e os conceitos de correção,
sendo assim corretas e válidas as normas que possam ser qualificadas como corretas por
qualquer um em um discurso ideal. (ALEXY, 2010, p. 20)

2. DIREITO E MORAL

Gaido (GAIDO, 2001, p. 31 e 32) afirma que, para Alexy, o jogo da argumentação é
regido pelas regras da teoria do discurso, sendo assim, depois da argumentação, é possível
obter diferentes respostas corretas como resultado, o que terá que ser feito é o sobrepesamento
para decidir qual será aplicada, havendo apenas um limite, retirado por Alexy da fórmula
radbruchiana: “o que é extremamente injusto não é direito” (tradução livre). Assim, a extrema
injustiça impossibilitaria o caráter jurídico devido a pretensão de correção: o que é
extremamente injusto não pode se incorporar ao direito por não respeitar as regras
estabelecidas que fazem possível um discurso racional.
A pretensão de correção seria, então, uma dimensão ideal e necessária que conecta o
direito com a moral universal procedimental, implicando, a pretensão de correção, uma
pretensão de justificabilidade, criando a possibilidade de apresentação de contra-argumentos
que possam levar a mudança a prática da justificação. Justificação na presença de qualquer
um: igualdade e universalidade como bases de uma ética procedimentalista a aceitação do
outro como igual e a pretensão de defender o que se afirma (GAIDO, 2001, p. 28 e 29).
Para Alexy, uma conexão entre direito e moral não traz a necessidade uma moral
objetiva compartilhada por todos que fazem direito, sendo suficiente a prática da
argumentação racional sobre o que é moralmente correto (GAIDO, 2001, p. 33).
Habermas traz a possibilidade de uma interpretação moral dos direitos humanos
com base na ideia de que o aperfeiçoamento político de uma cidadania democrática pode
preparar o caminho para um status de cidadão do mundo. Assim, uma perspectiva moral dos
direitos humanos seria necessária para que Habermas possa pretender que os direitos

482
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

fundamentais sejam concedidos a todos os homens, o que levaria a uma fundamentação moral
dos direitos humanos, sendo o direito responsável apenas pela forma. (LOHMANN, 2013, p.
93 e 94)
Habermas defende ideia contrária a uma oralização da política mundial
fundamentada nos direitos humanos, em que a possibilidade de reagir contra violação de
direitos humanos se encontrasse em uma instável indignação moral, tornando impossível a
tarefa de paz e segurança e a produção do direito internacional. Para o autor, para que
violações de direitos humanos em âmbito mundial possam ser denunciadas judicialmente, é
preciso um tribunal global de direitos humanos que siga um processo efetivo. (LOHMANN,
2013, p. 96)
Em Faticidade e validade, Habermas pesquisou as ações e efeitos de uma justiça
constitucional: discutindo uma interpretação republicana da linguagem jurídica constitucional
desenvolve um entendimento proceduralista constitucional, em que as condições
procedimentais apoiam a suposição de que o processo democrático permite resultados
racionais. Habermas desenvolve então uma compreensão política deliberativa e constitucional
em que a teoria do discurso fundamenta um modelo de mediação entre a moral universal, a
institucionalização limitada do direito e a revisão constitucional. Para o autor, os direitos
humanos universalizados não vão atuar como normas morais, mas sim como regras formais
de procedimento da legislação e controle constitucional. Tal compreensão sofreu críticas por
seu caráter puramente formal, o que levou Habermas a enriquecer o conteúdo moral dos
processos formais: o universalismo interno se alimenta de conteúdos morais de formas de
vida transigentes, conteúdos que o direito formal não poderia criar (LOHMANN, 2013, p.
98).

3. ANÁLISE DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

A Organização das Nações Unidas foi oficialmente criada em 24 de outubro de


1945, a partir da ratificação da Carta das Nações Unidas. Atualmente, tem como sede a cidade
de Nova York, possuindo amplos princípios, e “ao mesmo tempo, inflexíveis para atender às
demandas singulares das diferentes nações.”. A ONU representa “o reconhecimento da
autoridade de poder dos países, sem, no entanto, permitir que tal comando motive e/ou agrave
a discriminação entre os povos.”, atuando na defesa da igualdade soberana e buscando

483
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

soluções para situações enfrentadas para os mais de 190 estados-membros da Organização.


(UNIC RIO DE JANEIRO, 2011 apud MENDONÇA, VIEIRA, TARGINO, 2013, p. 81).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, promulgada em 1948,
sinaliza a responsabilização do Estados e das organizações frente a defesa aos direitos
humanos, sejam eles de quaisquer natureza, como direito à equanimidade, direito à segurança,
direito à cidadania, direitos trabalhistas e demais direitos que sejam necessários na garantia de
uma sobrevivência digna dos seres humanos. (MENDONÇA, VIEIRA, TARGINO, 2013, p.
83).
Os direitos humanos têm como ponto de partida o ordenamento jurídico de
atribuição estatal e a sua execução nas e pelas nações que se comprometam “com a garantia e
implementação desses valores humanos”. No que diz respeito ao “processo de valoração dos
direitos humanos num plano internacional”, este se dá a partir da iniciativa de diversos países
que visem a absorção de ideais do “bem comum’’. (MENDONÇA, VIEIRA, TARGINO,
2013, p. 83).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas é, portanto,
claramente um marco na tentativa de cooperação internacional na defesa dos Direitos
Humanos. Porém, a Declaração, é produto ocidental, refletindo em seu conteúdo uma
perspectiva de direito humanos do Ocidente. Araújo (2011, p. 30), ao fazer uma análise dos
direitos humanos sob a ótica de diferentes tradições religiosas, ressalta como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos é influenciada pela tradição cristã ocidental, assim como, tal
tradição, continua a influenciar a atual doutrina dos direitos humanos. A conclusão da autora
vem no sentido da necessidade do respeito às diferenças na discussão acerca da
universalidade dos direitos humanos:

Desde a Conferência de Viena, e conforme os textos reunidos por Baldi, é possível


distinguir que, além da efetivação que os direitos humanos reclamam, é necessário
buscar mecanismos que garantam o respeito às diferenças étnicas, culturais e
religiosas. Não com o objetivo de relativizar os direitos humanos, como pretendem
alguns. Mas, sim, no intuito de aperfeiçoá-los, valorizando-os como tema dos mais
importantes na agenda internacional. (ARAÚJO, 2011, p. 30)

Outra importante contribuição trazida pela autora, diz respeito a participação de


grupos minoritários nas reuniões de prepação da Convenção de Viena, mais especificamente
as mulheres orientais que atuaram de forma ativa questionando os valores feministas da atual
concepção de direitos humanos (ALVES apud ARAÚJO, 2011, p. 32).

484
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Embora o posicionamento defendido por estas mulheres, pareça um retrocesso aos


pressupostos inerentes à concepção dos direitos humanos vigentes no ocidente,
como alertou Habbermas (1997, p. 93), é preciso ter cuidado para não bloquear o
intercâmbio horizontal de posicionamentos espontâneos e, portanto, o uso das
liberdades comunicativas, identificando e denunciando aquelas estruturas que
fazem com que o espectador fique passível perante o coletivo [...] (HABBERMAS
apud ARAÚJO, 2011, p. 32)

O agir comunicativo atuaria portanto na garantia de defensa de suas concepções para


essas mulheres, assim como na contramão de uma atuação colonizadora na busca pelo
respeito aos direitos humanos.
Leão (2013, p. 30), traz nossa atenção para o surgimento da Organização das Nações
Unidas, que ocorre após o término da Segunda Guerra Mundial, estando dessa forma, sob
influência dos vencedores da mesma:

Em consequência, seu Conselho de Segurança (CSONU), desde sua criação, esteve


sob influência dos ideais desses países vencedores. Ancorado nestes cinco
principais países, (Estados Unidos da América do Norte, Inglaterra, França, China e
a, então, URSS), o CSONU refletia o ideal político, social, econômico e militar de
cada uma dessas potências. (LEÃO, 2013, p. 30)

Resta claro o domínio de uma perspectiva Ocidental, centrada nos países vencedores
da Segunda Guerra Mundial, e também componentes permanentes do Conselho de Segurança
da ONU, presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na atuação da
Organização das Nações Unidas, o que nos traz questionamentos não apenas acerca das reais
possibilidades de universalização dos direitos humanos através da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, mas também dos desafios e da necessidade de novas perspectivas em
busca de um projeto universalizante.

4. UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO

Costas Douzinas (2009, p. 3), parte de uma perspectiva externa de direitos humanos,
afirmando que a sociedade capitalista do individualismo e do livre-arbítrio não possui um
“código de moral universal”, assim, o que restringe o egoísmo privado são determinações
externas: “É exatamente isso que crime, delito e direitos realizam”. É a lei que irá possibilitar
que os indivíduos façam valer seus direitos, assim como será a lei que irá limitar o exercício
de tais direitos. O autor afirma que podem os direitos humanos ser a última expressão “de um

485
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

impulso humano de resistir à dominação e opressão e para discordar da intolerância da


opinião pública” (DOUZINAS, 2009, p. 7).
Abordar direitos humanos, de maneira perigosa, virou forma de descrever situações
históricas complexas, sociais e políticas. Em um nível global, os direitos humanos se
transformaram na única ideologia universal desde 1989, proporcionando a união de Norte e
Sul, globalizando tanto imperialistas quanto manifestantes anti-globalização: “Ao juntar lei e
moral, os direitos humanos obtém um estatuto especial devido à importância dos bens ou
atividades que eles protegem, normalmente a dignidade, liberdade e igualdade.” O que levou
Douzinas a perguntar quais seriam as fontes normativas e de argumentação possíveis de
serem usadas atualmente para formulação de direitos e promoção de um acordo sobre seus
princípios? (DOUZINAS, 2009, p. 9-11)
Reconfortante seria poder afirmar que os direitos humanos são conferidos às pessoas
simplesmente por pertencerem a raça humana. Na realidade: “os únicos direitos efetivos são
dados pelos Estados a seus cidadãos. Estrangeiros, refugiados, apátridas, os que não têm
estado ou governo para protegê-los [...] tem muito poucos direitos, quando tem”
(DOUZINAS, 2009, p. 11).
Douzinas (2009, p. 17-18) traz então o debate sobre “significado e o alcance dos
direitos humanos”, que atualmente é dominado pela contraposição entre universalistas e
relativistas. Os universalistas acreditam que os “valores culturais e as normas morais devem
passar por um teste de aplicabilidade universal e consistência lógica”, assim para o
universalista: “as decisões derivadas de condições locais são moralmente suspeitas”.
Douzinas ponta o risco de a “natureza contra-intuitiva do universalismo” levar à arrogância,
passando este a considerar apenas um “agente moral representante do universal”, podendo,
dessa forma, o universalista, se transformar em “um imperialista que promove a missão
‘civilizadora’ pela força das armas”.
Por sua vez, os relativistas procedem da observação do “senso comum de que os
valores estão ligados ao contexto, que eles de desenvolvem dentro de histórias e tradições
particulares”, existindo opiniões dispares sobre o que é certo e errado, e não sendo possivel a
existência de valores transculturais (DOUZINAS, 2009, p. 18).
No entanto, enfrentam os relativistas uma contradição meta-ética: “negar todas as
pretensões absolutas à verdade, exceto àquela feita para o princípio do relativismo”. Ademais,
governos opressores têm adotado a posição relativista como forma de se defender contra

486
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

críticas acerca de suas práticas repressoras, transformando “normas locais e valores


tradicionais em verdades absolutas” e as impondo sobre quem discorda “com a opressão da
tradição” (DOUZINAS, 2009, p. 19).
Ambas as abordagens, no momento em que se transformam em “essências
absolutas” e assim passam a definir “o sentido e o valor da humanidade” tendem a achar o
que escapa a elas é dispensável. As duas vão exemplificar o “impulso da metafísica
contemporânea: eles tomaram uma decisão axiomática quanto ao que constitui a essência da
humanidade e seguem-na com uma inflexível desconsideração por argumentos e tradições
contrárias”. Porém, para Douzinas, “a humanidade não tem essência”, residindo a
colaboração dos direitos humanos no “interminável processo de redefinição da humanidade e
sua tentativa necessária, mas impossível, de escapar de uma determinação externa”
(DOUZINAS, 2009, p. 20).
Acerca do debate entre universalismo e relativismo, vejamos Flores (2009, p. 150):

A polêmica sobre os direitos humanos no mundo contemporâneo está centrada em


duas visões, duas racionalidades e duas práticas. Em primeiro lugar, uma visão
abstrata, vazia de conteúdos e referências com relação às circunstâncias reais das
pessoas e centrada em torno da concepção ocidental de direito e do valor da
identidade. Em segundo lugar, uma visão localista na qual prevalece o próprio, o
nosso com respeito ao dos outros e centrada em torno da ideia particular de cultura
e do valor da diferença. Cada uma dessas visões dos direitos propõe um
determinado tipo de racionalidade e uma versão de como colocá-los em prática.

Para o autor, as duas posições apresentam razões que justificam sua defesa:

O direito, visto desde sua aparente neutralidade, pretende garantir a “todos” e, não
apenas a uns frente a outros, um marco de convivência comum. A cultura, vista
desde seu aparente encerramento local, pretende garantir a sobrevivência de alguns
símbolos, de uma forma de conhecimento e de valoração que orientem a ação do
grupo para os fins preferidos por seus membros. (FLORES, 2009, p. 150)

A perturbação vem no momento em que cada perspectiva passa a se considerar


superior, desconsiderando o que é proposto pela outra visão.

O direito acima do cultural, ou vice-versa. A identidade como algo prévio à


diferença, ou vice-versa. Nem o direito, garantidor da identidade comum, é neutro;
nem a cultura, garantidora da diferença, é algo fechado. O relevante é construir uma
cultura dos direitos que acolha em seu seio a universalidade das garantias e o
respeito pelo diferente. Mas isso já supõe outra visão que assuma a complexidade
do tema que abordamos. (FLORES, 2009, p. 150)

487
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Flores, apresenta então, uma visão complexa dos direitos humanos, que pode ser
simplificada a partir do esquema: “Visão complexa → Racionalidade de resistência → Prática
intercultural”. Perspectiva essa que deseja superar “a polêmica entre o pretendido
universalismo dos direitos e a aparente particularidade das culturas”.

Ambas as afirmações são o produto de visões distorcidas e reducionistas da


realidade. Ambas acabam ontologizando e dogmatizando seus pontos de vista ao
não relacionar suas propostas com os contextos reais. [...] Por essa razão, a visão
complexa dos direitos aposta em nos situarmos na periferia. Só existe um centro, e
o que não coincide com ele é abandonado à marginalidade. Periferias, entretanto,
existem muitas. Na verdade tudo é periferia, se aceitamos que não há nada puro e
que tudo está relacionado. […] Ver o mundo desde a periferia, implica reconhecer
que mantemos relações que nos mantêm amarrados tanto interna quanto
externamente a tudo e a todos. A solidão do centro pressupõe a dominação e a
violência. A pluralidade das periferias nos conduz ao diálogo e à convivência.
(FLORES, 2009, p. 150-151)

Para o autor, as visões abstrata e localista têm em comum o problema do contexto,


onde, na visão abstrata, temos uma ausência total de contexto, por ela se explicar no “vazio de
um essencialismo perigoso”, mas que não se assume de tal forma e se afirma baseada em
fatos e dados reais. Enquanto para a visão localista, existe um excedente de contexto, que
acaba por sumir no “vazio que provoca a exclusão de outras perspectivas: outro essencialismo
que somente aceita o que inclui, o que incorpora e o que valora; enquanto exclui e rechaça o
que não coincide com ele”. A visão complexa defendida por Flores traz o contexto a partir de
seu conteúdo: “a incorporação dos diferentes contextos físicos e simbólicos na experiência do
mundo” (FLORES, 2009, p. 152).
Por fim, Flores (2009, p. 157) critica a utilização e aceitação de forma cega de
discursos especializados, o que é feito por ambas as visões, abstrata e localista, relagando o
conhecimento “a uma elite que define o que é o universal ou que estabelece os limites do
particular”. Defende assim, que na visão complexa, se “assume a realidade e a presença de
múltiplas vozes, todas com o mesmo direito a se expressar, a denunciar, a exigir e a lutar”,
apostando em uma “racionalidade de resistência”. Seria uma racionalidade que “não nega que
se possa chegar a uma síntese universal das diferentes opções ante os direitos e também não
descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças étnicas ou de gênero”. O
que não se aceita é julgar o universal “como um ponto de partida ou um campo de
desencontros”.

488
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nossa racionalidade de resistência conduz, então, a um universalismo de contrastes,


de entrecruzamentos, de mesclas. [...] Por isso, propomos uma prática não
universalista nem multicultural, mas sim intercultural. Toda prática cultural é, em
primeiro lugar, um sistema de superposições entrelaçadas, não meramente
sobrepostas. Esse entrecruzamento nos conduz a uma prática dos direitos que estão
inseridos em seus contextos, vinculados aos espaços e às possibilidades de luta pela
hegemonia e em estreita conexão com outras formas culturais, de vida, de ação, etc.
Em segundo lugar, nos induz a uma prática social nômade que não procura impor
“pontos finais” ao extenso e plural conjunto de interpretações e narrações humanas.
Uma prática que nos discipline na atitude de mobilidade intelectual absolutamente
necessária em uma época de institucionalização, arregimentação e cooptação
globais. Por último, caminharíamos para uma prática social híbrida. (FLORES,
2009, p. 159-160)

Conclui o autor sobre a necessidade da visão complexa na abordagem dos direitos


humanos no mundo contemporâneo, da necessidade de uma “racionalidade de resistência e
dessas práticas interculturais, nômades e híbridas para superar os obstáculos universalistas e
particularistas que impedem sua análise comprometida há décadas”. Ressalta que o direitos
humanos não são apenas declarações textuais, mas também produtos de uma determinada
cultura. Assim, os direitos humanos são os “meios discursivos, expressivos e normativos que
pugnam por reinserir os seres humanos no circuito de reprodução e manutenção da vida”,
permitindo a abertura de espaços de reivindicação e luta. (FLORES, 2009, 163).

CONCLUSÕES

Em outro texto seu, Costas Douzinas traz sete teses de direitos humanos, onde,
aponta, na tese número 7, a necessidade de se combinar direito à resistência e igualdade
axiomática na projeção de uma humanidade que se oponha ao individualismo universal e ao
fechamento comunitário. O autor defende que não devemos desistir do ímpeto
universalizante, do que chama de ‘cosmos que desraiga toda a polis, perturba toda filiação,
contesta toda soberania e toda hegemonia’. (DOUZINAS, 2013, tradução nossa). Nos
convida a acreditar na utopia de uma nova sociedade, onde o ser humano não seja mais
escravizado e oprimido. Nossas conclusões vêm, portanto, em sentido encaminhativo,
incentivando que se amplie o debate acerca da universalização dos direitos humanos, dentro e
fora do âmbito da Organização das Nações Unidas, a partir de uma visão complexa, que
busque a construção de espaços de luta através de uma racionalidade de resistência, tendo
como horizonte utópico a garantia de direitos humanos para todos, assim como uma nova
organização societária onde seja possível a completa emancipação do ser humano.

489
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Entrevista a Aguiar de Oliveira e a Travessoni Gomes Trivisonno. Teoria discursiva do direito.
1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 362, 2014.

ALEXY, Robert. Principais elementos de uma teoria da dupla natureza do direito. Tradução de Fernando Leal.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 253, p.9-30, 2010.

ALVES, Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2005.

ARAÚJO, Giselle Marques de. Os direito humanos sob a ótica das diferentes tradições religiosas. Lex Humana, v.
3, n. 1, p. 17-35, 2011.

BULYGIN, Eugenio. Capítulo Primero: Alexy y el argumento de la corrección. In: ALEXY, Robert; BULYGIN,
Eugenio. La pretensión de corrección del derecho: La polémica Alexy/Bulygin sobre la relación entre derecho y
moral. Tradução de Paula Gaido. Bogotá: Universidade Externado de Colombia, p. 41-51, 2001.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. ONU, 1948. Disponível


em:<http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf> Acesso em: 02 ago. 2017.

DOUZINAS, Costas. Que são direitos humanos? Projeto Revoluções, 2009.

DOUZINAS, Costas. Seven Theses on Human Rights: (7) Cosmopolitanism, Equality & Resistance. Critical
Legal Thinking, 2013. Disponível em: <http://criticallegalthinking.com/2013/06/13/seven-theses-on-human-
rights-7-cosmopolitanism-equality-resistance/> Acesso em 08 out. 2017.

FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia;
Antônio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundaçao José Arthur
Boiteux, 2009.

GAIDO, Paula. Introducción. In: ALEXY, Robert; BULYGIN, Eugenio. La pretensión de corrección del
derecho: La polémica Alexy/Bulygin sobre la relación entre derecho y moral. Bogotá: Universidade Externado
de Colombia, p.15-39, 2001.

LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O acesso direto dos indivíduos ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais da ONU. Universitas Relações Internacionais, Brasília, v. 11, n. 1, p. 29-38, 2013.

LOHMANN, George. As definições teóricas de direitos humanos de Jürgen Habermas - O princípio legal e as
correções morais. Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, p. 87-102, 2013.

MENDONÇA, Marina Alves de; VIEIRA, Fernando Augusto Alves; TARGINO, Maria das Graças.
Responsabilidade social internacional: conceituação, contextualização e aplicabilidade no âmbito do Estado e
das organizações. Perspectivas em Gestão & Conhecimento, João Pessoa, v. 3, n. 2, p. 75-91, 2013.

PIOZZI, Patrizia. A reivenção da felicidade: uma breve nota sobre o cinqüentenário da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Educ. Soc. [online], vol.19, n.65, p.181-184, 1998.

490
ENFRENTAMENTO À VIOLENCIA DOMÉSTICA:
REFLEXÕES A PARTIR DA DESOBEDIENCIA CIVIL,
ÉTICA-MORAL E MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

PIRES, Rosely Maria da Silva


Estudante de doutorado do Programa de Sociologia e Direito
SILVA, Rosely Dias da
Estudante de mestrado do Programa de Justiça Administrativa
GOUVEA, Roberta Suzane
Advogada do Projeto de Extensão Fordan/UFES

RESUMO

A violência doméstica contra a mulher tem aumentado de forma alarmante, e por este motivo tem sido
alvo de estudos de todas as áreas de conhecimento. A proposta deste trabalho é discutir a complexidade
dessa temática propondo uma intervenção que seja eficiente no combate dessa violência. A
metodologia adotada é a pesquisa de referências bibliográficas atinentes ao estudo proposto. Busca-se
entender a violência doméstica dentro de uma dimensão histórica, política, cultural e ideológica,
procurando pistas e sinais da objetivação da mulher como eixo principal desse problema. Utiliza como
base de discussão a desobediência civil, a problematização entre ética e moral, e a mediação como
mecanismo de superação dos conflitos de interesses que nos permitem compreender como estes
estudos são fundamentais para a problematização e enfrentamento da violência doméstica contra a
mulher.

Palavras-Chave. Violência Doméstica. Desobediência Civil. Etica-moral. Mediação.

RESUMEN

La violencia doméstica contra la mujer ha aumentado de forma alarmante, y por este motivo ha sido
objeto de estudios de todas las áreas de conocimiento. La propuesta de este trabajo es discutir la
complejidad de esta temática proponiendo una intervención que sea eficiente en el combate de esa
violencia. La metodología adoptada es la investigación de referencias bibliográficas sobre el estudio
propuesto. Se busca entender la violencia doméstica dentro de una dimensión histórica, política,
cultural e ideológica, buscando pistas y señales de la objetivación de la mujer como eje principal de
ese problema. Utiliza como base de discusión la desobediencia civil, la problematización entre ética y
moral, y la mediación como mecanismo de superación de los conflictos de intereses que nos permiten
comprender cómo estos estudios son fundamentales para la problematización y enfrentamiento de la
violencia doméstica contra la mujer.

Palabras Clave. Violencia Doméstica. Desobediencia civil. Etica-moral. Mediación.

491
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Em 2016 os participantes de uma audiência pública da Comissão de Direitos


Humanos e Legislação Participativa (CDV), afirmavam que a redução da violência contra a
mulher não passa apenas pela aprovação de leis, ela requer um enfrentamento cultural e
educacional contra a misoginia e o machismo. Dentro dessa linha a ONU, também em 2016,
lançou a campanha do combate ao machismo na volta à escola.
Participando do Painel Justiça pela Paz em Casa, realizado em parceria do
Ministério político do Espírito Santo e a Rede Gazeta, (agosto de 2017) apresentamos como
o projeto que coordeno (FORDAN/UFES) tem enfrentando a violência, evidenciando a
importância da arte com reflexão sobre as permanência e reedições históricas do Patriarcado
que imprimi a ideologia de objetivação da mulher. Participando das pré-conferencias de
Educação Municipal e Estadual (agosto de 2016), observamos um movimento grande de
lideranças religiosas, e famílias com visões tradicionais de educação, que acolheram a “Escola
sem Partido”, por acreditarem que discutir gênero, violência domestica nas escolas seria uma
forma de doutrinação interferindo na sexualidade de seus filhos.
Ao que parece há um consenso, pelo menos aparente, de que a sociedade precisa
conversar sobre as temáticas que estão na raiz da violência contra mulher. A questão é como
as instituições como, escolas, famílias, religiões, sistema judiciário, grupos sociais
organizados, todos com valores e regras de comportamento tão diferentes e as vezes tão
antagônicas conseguem dialogar.
Para pensar conosco essa problemática buscamos um diálogo com as teorias de
desobediência civil, princípios da ética e moral e a mediação como mecanismo de superação
de conflito estudados por Hansen . A escolha deve-se ao fato de que Hansen estuda Habermas
a 18 anos. Encontramos um primeiro texto do autor datado de 1999 com o título “Aspectos
introdutórios acerca da reflexão Habermasiana sobre a política”. Os textos escolhidos se
colocam como proposta de pensar as teses citadas acima, estudadas e acrescida de
intervenções atualizadas por Hansen.
Os estudos de Hansen acrescidos da problematização da raiz da violência contra a
mulher tomam forma, neste ensaio, de uma incursão em que um pesquisador/tecelão que a
convite de (Ginzburg,1989), procura pistas, indícios e sinais que se repetem e que nos
impõem uma experiência de investigação dessa trama tecida por tantas gerações, qual seja, a
violência doméstica. Dialogar com Arendt (2009), Augusto (2015), Oliveira e Cavalcanti

492
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(2007), Pires e Rodrigues (2016) foram se tornando movimentos de compreensão da


consistência das diversas teia e tramas que constituem esse tapete que é a violência, tapete
este trançado em várias direções, histórica, política, cultural e ideológica.

1 DA DESOBEDIENCIA CIVIL, ÉTICA E MORAL E MEDIAÇÃO:


MECANISMO DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA

1.1. DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Pires, Campos e Rodrigues, (2015, p.1) no texto “O homem criativo intervindo na


violência” apresentam a violência como um fenômeno histórico e tão antigo quanto a
constituição da sociedade Brasileira. Os exemplos citados são a escravidão indígena e
africana; a colonização mercantilista, o coronelismo, “as oligarquias antes e depois da
independência, somados a um Estado caracterizado pelo autoritarismo burocrático, exemplos
estes que contribuíram enormemente para o aumento da violência que atravessa a história do
Brasil”. Esses momentos de exploração do povo, no entanto, foram acompanhados por
movimentos de resistências pela população escravizada e por muitas outras lutas por uma
sociedade democrática e mais humana.
Esses movimentos de resistências das populações insatisfeitas com o gerenciamento
político, econômico e cultural do Brasil poderiam ser considerados como manifestações de
desobediência civil? Optamos por buscar um diálogo com Gilvan Luiz Hansen, no intuito de
entender qual o conceito, as possibilidades/contribuição e o papel que a desobediência civil
assume neste contemporâneo permeado por conflitos de toda ordem.
Em 2004 Gilvan Luiz Hansen apresentou uma tese com o título “Facticidade e
Validade da Desobediência Civil no Estado Democrático de Direito”. Neste estudo o autor,
busca referencias principalmente em Habermas, mas vai além das teorias desse autor
dialogando com outras referências complementares, o que propicia um debate amplo e
primoroso do tema. Chama-nos atenção quando Hansen apresenta a desobediência Civil
como um ato político, indo além das discussões de Habermas.
É importante ter em mente o texto de Habermas sobre desobediência civil, de 1957,
para perceber a relevância da afirmação de Hansen (2004, p. 192) de que esse autor entende a
questão da desobediência civil como um “problema crucial na definição das normas e ações
ético-político e jurídicas das sociedades contemporâneas”. Isso porque ela se coloca no beiral

493
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de uma atitude que pode desembocar num “processo revolucionário de ruptura das normas
constitucionais”, ou seja, como o primeiro estágio de uma caminhada que conduzirá à
violência e ao terrorismo.
Essa análise perniciosa da desobediência civil é alimentada pela sociedade civil e
governos. Com isso é criada uma “ojeriza social” à atitudes e pessoas que se utilizam das
manifestações, pois estas são consideradas por muitos como desobediência. (HANSEN, 2004,
p. )
A desobediência civil e a resistência à autoridade são discutidas pelo autor em tela
como parte do processo de constituição da espécie humana que nunca esteve isento de
conflitos de opiniões e interesses. Moises, Spartacus e Wiliian Wallace e a Revolução
Francesa foram por ele escolhidos como exemplos de resistência à autoridade e desobediência
civil.
Moises consegue tirar um povo inteiro da sua zona de conforto e estes apostam tudo,
deixam para trás uma história de sofrimento e fazem a busca por uma nova história, sem se
eximir das dores e sacrifícios que também são inerentes às mudanças, principalmente quanto
mudamos concepções de vida. Já Spartacus nos dá pistas de como os processos de
mobilização entre pessoas diferentes são fundamentais para mudar toda uma realidade de
exclusão. Em William Wallace encontramos o exemplo de como podemos possuir o poder
evitando que ele nos possua, pois este mesmo com tanta autoridade em suas mãos, abriu mão
dessa e buscou libertar aquele que era o soberano legitimo. Finalizando os exemplos, citados
por Hansen (2004), a Revolução Francesa nos ajuda a pensar como na modernidade se faz
importante modificar rumos políticos, jurídicos e culturais .
Interessa também nos atermos na análise que o autor faz de Facticidade e Validade
da Desobediência Civil, entendendo a predominância da tensão entre elas atingindo diferentes
esferas da vida humana.
O pressuposto da facticidade da desobediência civil possui as seguintes
características: “contexto de opressão ou injustiça [...] intransigência do poder constituído [...]
Descrédito no poder da autoridade [...] punição exemplar dos vencidos [...] Dramaticidade de
heroísmo [...]” (HANSEN 2004, P. 206). No entanto, não podemos extrair apenas elementos
comuns da dimensão factica da desobediência civil, mas, precisamos estabelecer validade
para a desobediência civil considerando-a como ato desenvolvido na sociedade.

494
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Mas, além desses elementos comuns também podem ser observados no trabalho de
Hansen aquilo que legitima cada um desses movimentos, e contribui para estabelecer assim
uma validade para a desobediência Civil. A primeira condição apresentada pelo autor sobre a
validade da desobediência civil é a exigência da “possibilidade de reflexão, de argumentação
sobre o próprio sentido da existência.” Interessa-nos em especial a fala de Hansen ao
caracterizar essa capacidade de reflexão como existência da capacidade racional. Para o autor
“ser racional implica desejo de ser melhor a cada dia, libertando-se das mazelas as quais o
homem se prende” (HANSEN, 2004, p.207- 208).
Uma segunda condição apresentada por Hansen (2004, p.207- 208-210) passa pelo
conceito de liberdade não apenas como livre arbítrio em que podemos decidir qual caminho,
que são postos como opção, mas também, como “autonomia ou possibilidade de escolher e
seguir preceitos e normas que a si mesmo o ser humano se impõe, na condição de legislador”.
Acrescenta ainda que para garantia dos direitos e tornar estáveis as conquistas surgem a
importância da ordem jurídica que se torna onipresente na sociedade a partir figura do
Estado. “[...] A desobediência civil e a resistência à autoridade injusta é legitima num Estado
democrático de direito?
Transformando a fala do autor em questionamento recorremos a um fragmento do
seu trabalho em que ele responde de uma forma incisiva esta questão

[...] a desobediência civil é um ato público, não violento, perpetrado por uma pessoa
ou grupo de pessoas no sentido de sensibilizar a maioria e chamar a atenção da
opinião pública para ações, decisões ou normas injustas que tem vigência na
sociedade. [...] A desobediência civil é, portanto, um mecanismo indispensável para
a saúde política e jurídica do Estado democrático de direito, como o é para qualquer
Estado de direito. (HANSEN, 2004, p. 214)

Finalizamos essa breve discussão sobre a desobediência civil, pensando juntamente


com Hansen, na importância desse assunto como alerta dos problemas que afligem nossa
sociedade e da necessidade de implementá-la de forma mais justa e solidária para todos e
todas.
Essa reflexão é fundamental para o enfrentamento da violência doméstica numa
sociedade que naturaliza o machismo e o patriarcado afirmado e confirmado a todo tempo por
regras e normas injustas presentes inclusas em políticas públicas e ordenamentos jurídicos que
coercivamente disciplinam muitas condutas humanas violentas travestidas de paz social.

495
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Passamos agora a discussão de Hansen sobre ética e moral como forma de entender
as condutas humanas demarcando valores culturais.

1.2. ÉTICA E MORAL

Os textos escolhidos foram “Resolução de Conflitos no Estado Democrático de


Direito: Uma Perspectiva Habermasiana”; e “Conhecimento, Verdade e Sustentabilidade:
Perpectivas Ético-Morais em Cenários Contemporâneos”, publicados respectivamente em
2011 e 2012. Através deles, interessa-nos pensar, principalmente, a análise do autor sobre
tensão e a confusão que muitos fazem entre a ética e a morale , também, a mediação
apresentada como possibilidades de resolução de conflitos de interesses, discutidos ao seu
olhar entre pessoas físicas e jurídicas, as quais nós vislumbramos como possibilidades para
toda a sociedade.
Iniciando então, a discussão sobre ética e moral, que nos ajudará a pensarmos o
diálogo entre grupos diferentes, Hansen (2011, p.18) nos apresenta uma distinção importante
entre esses dois termos. Ética seria um “conjunto de valores e de concepções de bem viver
partilhados por uma coletividade” , e neste caso, uma coletividade tem em sua comunidade
várias éticas convivendo. O problema acontece quando um grupo não reconhece como valido
a ética do outro grupo, e assim iniciam-se os conflitos. A intolerância religiosa talvez seja um
bom exemplo para entendermos essa reflexão trazida pelo autor.
Em Vitoria - ES, o jornal A Gazeta (31/09/2017) noticiou o fato de que um pastor
da igreja Evangélica Batista pediu que uma professora retirasse a boneca colocada no quadro
da escola, afirmando que esta, por originar-se de uma religião africana, era símbolo de
macumba. A boneca Abayomi, de origem africana, foi colocada no painel da escola após a
produção do projeto, coordenado por essa professora, sobre resgate da cultura afro-brasileira.
O projeto vai ao encontro da Lei 10.639/03 que trata da obrigatoriedade do ensino da historia
e cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares.
Será que os valores e a concepção de bem viver do pastor da igreja Batista estão
sendo ameaçados pela ética da cultura afro-brasileira e pelas religiões de matrizes africanas,
conceituadas por ele, como macumba? A escuta de Hansen nos permite ampliar esse debate.

Neste momento é que surge o impasse, pois a partir de qual critério se pode definir
qual ética é passível de realização e qual será inviabilizada? Será pela força bélica?
Pela etnia? Pelo poderio econômico? Pela capacidade de subjugação da
alteridade?(...) e o problema é que, na maioria das vezes, não encontramos

496
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

alternativas ao estado de coisas patológico que toma conta da sociedade e das


relações interpessoais. E as saídas que nos apontam, quase sempre alicerçadas em
concepções ontológico-metafisicas de conhecimento e em absolutizações de
verdade, só engendram novos problemas, preconceitos, conflitos. O que fazer? – eis
a questão! (HANSEN, 2012, p.71).

Em um texto que escrevi em parceria com Rodrigues intitulado “Paradigma


Indiciário como Possibilidade de Leitura Textual: A Lógica Perversa na Política” (PIRES E
RODRIGUES, 2016), problematizamos a perversidade incutida em gestos como estes do
pastor que em nome de uma religião, maltrata, humilha e ridiculariza pessoas. Tantas vezes
isso tem se repetido em casos como LGBTfobias, nas violências contra a mulher e contra a
criança, nas gordofobias, e em muitos outros tipos de intolerâncias em que pessoas chegam ao
estremo de até matarem em nome de uma “verdade”.
Se o estudo sobre a ética nos ajuda a entender como os conflitos se dão, o estudo
sobre a Moral apresentado por Hansen (2004) nos possibilita o enfrentamento a esses
conflitos, entendendo onde está a base do processo de humanização do ser humano. O
conceito de moral deve buscar se orientar a partir de perspectivas universais balizadas por
regras que tenham como referencia a justiça. É bom esclarecer que Hansen afirma que esses
princípios de universalização têm como inspirador Kant. Buscando resumir os três princípios
apresentados, e assumindo o risco do reducionismo quando optamos por esta forma de
exposição de bases teóricas tão importantes, apresentaremos abaixo fragmentos trabalhados
por nós.
A primeira nos convida à reflexão se nossas atitudes podem ser referendadas como
“auto-referente positiva” ou “auto-referente negativa”.

1ª) Age de tal modo que tua ação sirva de modelo aos demais (...) Isso significa que
se pratiquei uma ação, ela será moral se todos puderem praticá-la sem que, com
isso, a sociedade seja ameaçada ou inviabilizada. Se minha ação trouxer beneficio a
todos, então ela é moral [...] (HANSEN, 2012, p. 72).

A segunda noção de moralidade inspirada em Kant, nos ajuda pensar se estamos


próximos da “idéia de dignidade humana” ou de objetivação e coisificação das pessoas.

2ª) Age de tal maneira a tratares, na tua pessoa ou de qualquer outrem, a


humanidade não somente como meio, mas sempre como fim em si mesma. (...) não
podemos aceitar que, estando “sob ordens” (subordinados) - portando, em
assimetria funcional- sejamos tratados como seres cujo status enquanto humanos é
também assimétrico (HANSEN, 2012, p. 72).

497
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A terceira e ultima diz respeito ao papel de cada um de nós buscando sempre a


reflexão de que nossa intervenção no mundo, valida ou desconstrói decisões autoritárias,
excludentes.

3ª) Age de tal maneira que tua ação seja a de um legislador universal. A atitude de
alguém que se move moralmente implica na vigilância crítica e permanente ás
normas e leis, de sorte que uma lei ou norma somente adquirem validade e
legitimidade á medida que puderem receber a autorização racional daqueles para as
quais se voltam. Esse prisma torna cada um dos cidadãos não apenas cumpridores
das leis, mas também legisladores (HANSEN, 2012, p. 73).

Um problema, porém se coloca como obstáculo a essa resolução de conflitos. Esses


espaços com objetivos democráticos, pensados numa dimensão interativa social de produção
de projetos tem sido relegado ao segundo plano, principalmente se voltados ao bem comum e
construído de forma coletiva. Esse esvaziamento de espaços coletivos, o uso de “medidas
baseada na força e a imposição da vontade aniquiladora”, têm sido elementos que dificultam a
condição reflexivo-argumentativa que constitui um “grande fator diferenciador e identificador
de nossa espécie com relação às demais (HANSEN, 2011, p.101)”.
Pensar uma proposta democrática de resolução de conflito numa perspectiva
democrática nos coloca diante de uma condição de pensar mecanismos positivos como os
estudados por Hansen (2011) em seu texto “A resolução de Conflitos no Estado Democrático
de Direito: uma perspectiva Habermasiana”. Neste sentido apresentaremos na sequência a
proposta do uso da mediação exposta pelo autor.

1.3. MEDIAÇÃO

A nossa opção pela mediação como mecanismo de superação de conflito se deve ao


fato de que este se apresenta como um complemento a nossa discussão. A mediação como
mecanismo de superação de conflito de interesses nos oferece pistas enfrentar os conflitos já
existentes entre comunidades diferentes.
No contemporâneo há uma sobrecarga do judiciário, visto que são levados para a
esfera do direito, problemas que podem ser resolvido entre os pares. Esse aumento da
demanda judicial tem prejuízos incalculáveis, e romper com esse paradigma nos impõe o
desafio de:

Resgatar, perante a sociedade, a autocompreensão dos cidadãos acerca da


possibilidade que estes trazem em si de resolver seus próprios conflitos, sem

498
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

necessitar de alguém que, de forma coercitiva e ostensiva, diga a eles o que é o


direito, o que é o justo, o que é que eles devem crer ou esperar, o que eles querem
para si próprios (HANSEN, 2011, p. 115).

A mediação como mecanismo de superação das tensões se faz importante a ser


analisada. Ela é trabalhada pelo autor na dimensão jurídica, porém aqui queremos pensá-la
numa dimensão ampliada para todas as esferas da sociedade, família, escola, igreja.
A mediação ao buscar a solução de conflitos, no ituito de resgatar a “qualidade das
relações abaladas”, tem como desafios

[...] a reconstrução das relações que se desgastarem ao longo do tempo por


discórdia e divergências de opiniões, refazimento de laços, fomentando e
amadurecimento do dialogo entre as partes, valorização das partes envolvidas no
conflito, transformação de pontos divergentes em um ponto comum (HANSEN,
2004, p. 115).

A base da mediação é a identificação do conflito para o resgate da relação


desgastada, o que exige “tempo, cuidado, dedicação e, muitas das vezes vigilância do
mediador com relação à sua própria conduta no processo de resgate da dignidade das partes
que se efetiva durante a mediação” (HANSEN, 2004, p. 116).
Para nós é importante a postura do mediador que evita a neutralidade, e busca a
imparcialidade, ouvindo todas as partes e aprendendo junto com os mediados.
Fazer parte de uma equipe multidisciplinar e acreditar na solução do conflito
também são pontos chaves para que a mediação seja eficiente e eficaz resolução das lides.
Um cuidado é não atuarmos a partir de experiências muitas vezes carregadas de pré-conceitos
produzidos ao longo da nossa vida e da nossa condição de sujeito histórico.
Ao apresentar aqui as preocupações do autor sobre a formação de pessoas para
atuarem como mediadores e com os parâmetros que estes usarão, retomamos a discussão
sobre a ética e a moral, apresentada acima, que se coloca como fundamental para o mediador.
Hansen (2011) trabalhou a possibilidade da mediação resgatar o valores e os procedimentos
democráticos, chamando a atenção sobre a urgência em pautar as ações em procedimentos
democráticos de forma a:

[...] não nos contradizermos e não admitirmos a contradição; [...] utilizarmos


linguagem clara e transparente nas ações e procedimentos [...] não usarmos dois
pesos e duas medidas [...] Garantirmos a ampla manifestação de todos os
argumentos, desejos, necessidades e percepção das partes [...] pautarmos as
intervenções de todos os autores [...] Reconhecermos todos os participantes do
processo como linguisticamente competente e por isso capazes de se manifestar [...]

499
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Acreditarmos na força do diálogo e do discurso como meios de resolução de


problemas [...] confiarmos firmemente na possibilidade da construção de consensos
[...] que possamos descobrir, na pratica da mediação e da arbitragem um modo de
nos comportamos nas diversas instancias que compõe nossa existência em
sociedade. (HANSEN, 2004, p. 119)

Finalizamos a discussão sobre Desobediência Civil; princípios da ética e moral; e a


mediação como mecanismo de superação dos conflitos de interesse compreendendo que
encontramos pistas importantes para pensar o enfrentamento às violências, principalmente
àquelas contra a mulher.
Nos pontos analisados por Hansen em seus textos sobre esses elementos
fundamentais para pensar uma sociedade com bases solidadas de democracia encontramos
uma proposta de intervenção que tem na desobediência civil uma justificativa, os objetivos
nos princípios da ética e da moral e na mediação um método alternativo de intervenção
resgatando processos democráticos de convivência social.

2. A VIOLENCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UM PROBLEMA


HISTÓRICO, POLÍTICO, CULTURAL E IDEOLÓGICO

Segundo o Forum Brasileiro de Segurança Publica, em 2016, a cada hora, 503


mulheres sofrem algum tipo de agressão física, das quais, 52% das agredidas disseram não ter
feito nada após a agressão, nem mesmo procuraram a ajuda da família, amigos e, muito
menos, a delegacia.
40% das mulheres Brasileiras afirmam terem sido assediadas, 70% ouviram
comentário desrespeitosos na rua, sendo que 19% relatam ter ocorrido no ambiente de
trabalho, e 15% no transporte público .
O DataSenado em parceria com o Observatório da mulher contra a violência,
apresenta o índice de mulheres que de 2015 a 2017 declararam ter sofrido violência. O que
significa que o índice passou de 18% para 29%.
Três temas incluídos nas perguntas feitas a essas mulheres nos pede observação: o
primeiro é relativo a percepção das mulheres sobre a violência contra elas, que aumentou 69%
considerando que 89% afirmaram ter ouvido falar mais sobre a temática no ultimo semestre; o
segundo diz respeito a vulnerabilidade, em que o percentual de mulheres que afirmaram
conhecer outras mulheres que sofreram violência saltou de 56% para 71%. Mulheres que
possuem filhos estão mais propensas a sofrerem violência, o percentual dessas violências

500
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

cometidas por um homem foi: 15% em mulheres sem filhos e 34% com filhos; a raça e o tipo
de violência também foi apresentado dentro da temática vulnerabilidade, pois das violentadas
57% eram brancas e 74% pretas ou pardas. O terceiro tema que pede observação diz respeito
a Lei Maria da Penha, embora todas tenham afirmado conhecer esta lei, 77% declaram que
este conhecimento é superficial.
Ao analisar a pesquisa acrescento outro tema fundamental, a situação da infância.
Segundo dados do IPEA (2014), crianças e adolescentes são 70% das vitimas de
estupro, 24,1% dos agressores são pais ou padrastos e 32,2% são outras pessoas próximas
(tios, vizinhos, primos e amigos).
O Espírito Santo é o estado com maior numero de feminicídio do Brasil. Na
pesquisa sobre a realidade Brasileira sobre feminicídio, 68,8% ocorreram dentro de casa,
sendo 65% cometido por parceiros ou ex-parceiros. Cristiane Brandão (2015) professora
Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora dessa pesquisa,
afirma que a violência contra a mulher é um sintoma de uma sociedade brasileira machista e
patriarcal.
Oliveira e Cavalcanti (2007) realizaram uma pesquisa utilizando os acervos da
Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Salvador-Bahia, nesta pesquisa uma
delegada e uma doutora em história observaram que a violência contra a mulher se manifesta
de diversas formas e que esta tem sua base principal na naturalização de desigualdade entre
homens e mulheres. Perceberam que as categorias poder e violência são temáticas bases para
a análise do fortalecimento de valores históricos e culturais do patriarcado. A base do poder
discutido pelas autoras se aproxima de uma visão negativa do poder, ou seja, aquele que
adestra impondo uma “docilidade-utilidade” produzindo domínio e carregando verdades.
Buscando ampliar essa discussão sobre o poder recorremos a Arendt (2009, p. 62)
que nos convida a uma reflexão sobre a distinção entre violência e poder. Para a autora o
poder é a habilidade de buscar o assentimento para uma ação sobre o outro. Já a violência é o
uso da força, vigor e coerção para chegar o domínio de outrem. Comenta que “a diminuição
do poder, seja individual, coletivo ou institucional é sempre um fator que pode levar à
violência [...] muito da presente glorificação da violência é causada pela severa frustração da
faculdade de ação do mundo moderno” Fazendo uma escuta a contrapelo e analisando a teoria
de Arendt adequada á época que vivemos, refletimos que a violência contra a mulher é

501
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

naturalizada e por isso não reconhecida como violência. Esta, ganha contornos ainda mais
perverso porque se efetiva a partir do poder.
Oliveira e Cavalcanti (2007) analisam o patriarcado, numa perspectiva do individuo,
engendrando e naturalizando uma cultura de gênero que define papéis, funções e condutas de
homem e mulher. No que se refere ao chamado estrutural, as autoras afirmam que esta mesma
crença e valores de gênero que atua no individual é reforçada pelas instituições como justiça,
escola, família, espaços sociais, hospitais enfim nos espaços de circulação de poder.

Em relação a dominação, esta por si só é uma violência simbólica, vez que


instituída pela adesão do dominado ao dominador e à própria dominação.
Apresenta-se para quem é atingido por seus efeitos, como uma relação
“naturalizada”. Ademais, há uma subordinação que e estabelece com parte
integrante das relações entre os envolvidos desse processo (OLIVEIRA;
CAVALCANTI, 2007, p.42)

Faz parte desse processo de produção de ideologia de gênero a implementação de


leis e decretos que ao longo da história possibilitaram ao homem o entendimento de
proprietário da mulher. As Ordenações Filipinas datadas de 1830 imprimiam ao homem a
função de impor castigos corporais e até morte à mulher para que esta o obedecesse. Hoje a
Lei Maria da Penha busca corrigir esse equívoco colocando a violência cometida contra a
mulher como crime e em caso de feminicidio, a pena que para homicídio tem uma margem de
6 a 20 passa para 12 a 30 de reclusão do assassino.
Uma experiência importante, para pensar esse processo de naturalização da
violência contra a mulher, é o projeto de uma Promotora de Justiça do Ministério Publico do
Mato Grosso. Contou-nos a Drª. Lindinalva Rodrigues Dalla Costa, em uma palestra durante
o V Congresso Estadual do ES sobre a Lei Maria da Penha, que os homens que eram presos
por agressão às mulheres questionavam suas prisões afirmando que não haviam roubado nem
matado, apenas haviam batido em suas mulheres. Com base nestas afirmativas a promotora,
com sua equipe, criou o projeto “Lá em Casa quem Manda é o Respeito”, este projeto é
desenvolvido pela Secretaria de Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social, parceria
entre o Ministério Público e o Governo do Estado do MT. Ainda segundo a Drª Lindinalva,
com a implantação efetiva do projeto a reincidência dos homens por agressão ás mulheres nos
presídios quase zerou, visto que eles discutiam efetivamente a raiz da violência doméstica.
Retornamos a Arendt (2012) quando no julgamento de Adolf Eichiman, ousou ao
afirmar que o tribunal estava julgando o homem, mas esquecendo de julgar o sistema. A

502
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

autora enfatiza que Adolfo Eichiman abdicou da característica que mais define o homem
como humano.
Comenta a autora:

[...] há de ser capaz de pensar e essa capacidade de pensar permitiu que muitos
homens comuns cometessem atos cruéis [...] a manifestação do ato de pensar não é
o conhecimento, mas a habilidade de distinguir o bem do mal [...] eu tenho a
esperança de que o pensar dê forças ás pessoas para evitarem a catástrofe nesses
raros momentos na hora da verdade. (ARENDT, 2012)

CONCLUSÃO

Conversar os autores supracitados nos aguça os sentidos e amplia nossa percepção


de várias pistas, indícios e sinais para o enfrentamento da violência doméstica contra a
mulher. Algumas questões foram se evidenciando e se configurando como possibilidades de
uma proposta de trabalho.
A experiência do projeto “Lá em Casa quem Manda é o Respeito”, colocando em
discussão não apenas o ato do agressor, mas toda uma ideologia histórica, política e cultural
do patriarcado que se manifesta numa sociedade machista com objetivação da mulher nos
aproxima dos estudos de Hansen sobre ética e moral. A ética enquanto valores de um grupo,
de uma coletividade precisa dar espaço à discussão da moral que se orienta em perspectivas
mais universais que buscam como referencia os valores democráticos.
Percebemos que tanto o conceito de ética, quanto o conceito de moral são
fundamentais para o enfrentamento das violências, pois propicia a busca por ampliação de
espaços de debates, com a participação de todos, não só nas deliberações mas, nas
implementações de atividades. Essas devem buscar, como evidencia Hansen (2003, p.73) “a
convivência pacifica, solidária e produtiva de diversas comunidades éticas.”
Para tanto será necessário dialogar sobre a ética de cada comunidade para o encontro
e entendimento dos princípios de universalização apresentados neste estudo. Os espaços
multiculturais, multidisciplinar, enfim, inclusivos, precisam dialogar sobre conhecimentos e
“verdades” produzidos ao longo da história e ainda muito presentes nas nossas ações
cotidianas e, na maioria das vezes, de forma inconsciente.
A pesquisa realizada na Delegacia Especial de Atendimento à mulher de Salvador-
Bahia problematizando que o sistema patriarcado fortalece a hierarquia entre homem e

503
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mulher e com isso naturaliza a violência contra mulher, evidencia o poder como violência
simbólica efetivado na dimensão individual e institucional.
Essa pesquisa nos aponta a desobediência civil como possibilidade de enfrentamento
desse sistema histórico, político, cultural e ideológico, uma vez que concordamos Hansen
quando a refere como uma resistência à autoridades injustas. Desobedecer, nesse sentido,
seria então se contrapor às normas e decisões vigentes nos espaços sociais, na família, na
escola, na igreja enfim nas instituições, chamando a atenção também da opinião pública das
injustiças presentes nestes espaços que se afirmam democráticos.
Quanto ao mecanismo de superação de conflito, tendo como base a mediação,
acreditamos que nos ajuda a identificar, nas nossas experiências cotidianas, onde estão os
pré-conceitos existentes em nossa subjetividade e que fomos reproduzindo e recriando ao
longo da nossa condição de sujeitos históricos e sociais.
A fala de Arend colocando o pensar como enfrentamento á violência, por parte de
quem sofre e também de quem violenta, nos dá pistas importantes para a análise daquilo que
nos constitui enquanto sujeitos das nossas experiências ao longo da nossa história individual e
coletiva. Como nem sempre conseguimos ter clareza que nos tornamos cúmplice da nossa
própria dominação, a proposta da autora nos convida a uma humildade que na maioria das
vezes estamos longe de possuir.
Em nosso projeto de extensão da UFES, criado desde 2005 “Fordan: Cultura com
Enfrentamento à Violência” temos experimentado identificar em nos resquícios fortes de do
racismo, lgbtfobia, gordofobia, machismo, e outra violências, visto que a compreensão de que
esses valores excludentes nos constitui e nos ajuda romper e buscar uma moral compatível
com nossa proposta de auto-formação humana.
Ao acolhermos as mães, crianças e jovens em situação de vulnerabilidade e que
sofrem violências cotidianamente, acionamos a mediação como mecanismo de superação de
conflitos de interesse.
A equipe multidisciplinar formada por advogada, assistentes sociais, professores de
arte, professores de educação física, professores universitários da área de ciência sociais,
história, letras, psicanálise tem buscado acreditar na solução de conflitos, engajando em lutas
especificas e pontuais junto a políticas sociais, oferecendo acessos aos direitos negados a essa
população, e principalmente se colocando como ponto de resistência, fazendo a própria

504
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

critica, estudando e dialogando constantemente sobre cada violência que temos buscado ações
para combatê-la.
Os espaços de conversa usando como dispositivos a arte, dança e música também
têm se colocado como necessários e potentes para a discussão junto com os acolhidos pelo
projeto, desta complexidade histórica, política, cultural e ideológica da violência. Como
Arendt temos esperança de que pensar fortalece as pessoas..

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hanna. Sobre a violência. Trad. André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009.

Audiência publica do Senado 2016. Disponível em:


<http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/06/13/estupros-sao-decorrencia-de-misoginia-e-machismo-
dizem-palestrantes.> Acessado em 31/09/2017.

AUGUSTO, Cristiane Brandão. Violências contra a Mulher e as Práticas Institucionais. Série Pensado o Direito,
v. 52, p.1 -109, 2015.

Boneca Afro em Escola: Professora diz que vai continuar com projeto. Disponível em:
<http://www.gazetaonline.com.br/noticias/cidades/2017/08/boneca-afro-em-escola-professora-diz-que-vai-
continuar-com-projeto-1014088783.html> Acessado em 31/09/2017.

DataSenado aponta aumento no percentual de mulheres vítimas de violência. Disponível em:


<http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/06/08/datasenado-aponta-aumento-no-percentual-de-
mulheres-vitimas-de-violencia> Acessado em 31/09/2017.

Especialistas apóiam debate sobre violência contra mulher em escolas. Disponível em:
<http://www.gazetaonline.com.br/noticias/cidades/2017/08/especialistas-apoiam-debate-sobre-violencia-contra-
mulher-em-escolas-1014093883.html> acessado em 31/09/2017.

GINZBRUG, C. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In: Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e
história. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

HANNAH ARENDT. Direção:Margarethe von Trotta, Produção:Bettina Brokemper, Johannes. Alemanha:


WDR, 2012.1 DVD.

HANSEN, Gilvan Luiz. Aspectos introdutórios acerca da reflexão habermasiana sobre a política. Crítica (UEL),
Londrina, V.4, n. 16, p. 473 – 494, 1999.

________. Facticidade e validade da desobediência civil no Estado Democrático de Direito. 2004. Tese
(Doutorado em Filosofia) – Curso de pós-graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro,2004

________. Conhecimento, verdade e sustentabilidade: perspectivas ético-morais em cenários contemporâneos.


(ISBN 978-85-7920-121-9). In: REBEL GOMES, Sandra Lúcia; NOVAIS CORDEIRO, Rosa Inês; MENDES
DA SILVA, Ricardo Perlingeiro. (Org.). Incursões interdisciplinares: direito e ciência da informação. 1.ed.
Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2012, v. 1, p. 55-76.

505
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

________. A resolução de conflitos no Estado Democrático de Direito: uma perspectiva Habermasiana. In:
Direito e Filosofia – Diálogos. Zulmar Fachim e Clodomiro José Bannwart Júnior (coord.). Campinas:
Millennium, 2013, pp.99-120.

OLIVEIRA, A. P. G.; CAVALCANTI, V. R. S. Violência doméstica na perspectiva de gênero e políticas


públicas. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, v. 17, n. 1, p. 39-51, 2007.

PIRES, R. ; SANTOS, K. C. ; RODRIGUES, M. B. F. . O Homem Criativo “Intervendo” Na Violência:


Apresentação de Dança na Perspectiva Indiciária. In: XIX Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte e VI
Congresso Internacional de Ciências do Esporte, 2015, Vitória. Territorialidade e diversidade regional no
Brasil e na América Latina: suas conexões com a Educação Física e com as Ciências do Esporte, 2015.

PIRES,R.S, RODRIGUES, M.B. Paradigma Indiciário como possibilidade de leitura textual: a Lógica Perversa
na Política. Revista Educação e Linguagem, v. 03, p. 1-11, 2016.

Projeto Lindinalva. Disponível em: < http://www.compromissoeatitude.org.br/projeto-la-em-casa-quem-manda-


e-o-respeito/.> Acessado em 31/09/2017.

Violência doméstica: 80% das mulheres não querem a prisão do agressor. Disponível em:
<http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2015-05-03/violencia-domestica-80-das-mulheres-nao-querem-a-prisao-
do-agressor.html> Acessado em 31/09/2017.

506
CONSIDERAÇÕES ACERCA DE UMA CONSTRUÇÃO
HORIZONTALIZADA DOS DIREITOS HUMANOS COM
APORTES NO TRANSCONSTITUCIONALISMO

FERREIRA, Lucas Pontes


Mestrando em Direito Constitucional – PPGDC/UFF

RESUMO

Através do conceito formulado por Marcelo Neves de transconstitucionalismo, pretende-se elencar


alguns aspectos relevantes à comparação entre os dois sistemas internacionais de proteção aos direitos
humanos, o interamericano e o europeu, abordando a categoria teórica dos direitos humanos. Assim,
primeiramente, delineia-se o fenômeno do transconstitucionalismo para, em seguida, desenvolver
algumas considerações sobre os direitos humanos, trazendo-se elementos dos sistemas internacionais
de proteção. A problemática traçada diz respeito a conjugação entre o domínio privilegiado do Estado
nacional na solução de questões constitucionais, ante os sujeitos e ordem internacional. Dessa forma,
articula-se – por meio dos direitos humanos - a discussão apontando a necessidade e importância da
construção dos significados dos casos através de uma interpretação dialógica.

Palavras-Chave. Transconstitucionalismo; Sistemas internacionais; Direitos humanos; Interpretação.

ABSTRACT

Through the concept formulated by Marcelo Neves de transconstitucionalismo, it is intended to list


some aspects relevant to the comparison between the two international systems of protection of human
rights, the Inter-American and the European, addressing the theoretical category of human rights.
Thus, first, the phenomenon of the transconstitutionalism is delineated and then develop some
considerations about human rights, bringing elements of international protection systems. The
problematic traced relates to the conjugation between the privileged domain of the national State in
the solution of constitutional questions, before the subjects and international order. Thus, through the
discussion of human rights, the discussion points out the necessity and importance of the construction
of the meanings of the cases through a dialogical interpretation.

Keywords. Transconstitutionalism; International systems; Human rights; Interpretation.

507
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Por meio do transconstitucionalismo formulado por Marcelo Neves pretende-se


apontar alguns aspectos relevantes à comparação entre os dois sistemas internacionais de
proteção aos direitos humanos, o interamericano e o europeu. Dialoga-se com a categoria
teórica dos direitos humanos.
Para tanto, ao desenvolvimento do presente, a técnica de pesquisa adotada foi
predominantemente bibliográfica, contando com documentação jurídica, envolvendo texto
normativo; e não jurídica. Consiste em abordagem analítica, apresentada de forma descritiva e
explicativa, dividida em dois pontos.
No primeiro, delineia-se o fenômeno do transconstitucionalismo para
posteriormente desenvolver algumas considerações sobre os direitos humanos, trazendo-se
elementos dos sistemas internacionais de proteção a esses direitos – o europeu e o
interamericano.
A abordagem do tema tem como problema a conjugação entre o domínio
privilegiado do Estado nacional na solução de questões constitucionais, ante os sujeitos e
ordem internacional. Assim, articula-se – por meio dos direitos humanos - a discussão
apontando a necessidade e importância da construção dos significados dos casos através de
uma forma dialógica.

1. BALIZAMENTOS ACERCA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO

Devido ao fato de se tratar de uma construção teórica, dificilmente se encontra o


significado da palavra transconstitucionalismo através da etimologia, mas entende-lo é
necessário para se captar o sentido a que se denomina. Quando se pensa “trans”, não seria
incomum vir à memória nomenclaturas como transexual, transgênero, que é algo, de certo
modo, aproveitável, nesse entendimento, haja vista que transexual pressupõe um sexo
diferente ao existente, e transgênero um gênero diferente ao existente. Em dada medida,
transconstitucional diz respeito a uma ordem constitucional diversa, porém não é apenas isso.
Se se desaglutina a palavra trânsito, sito de parado e trânsito de movimento, fluidez,
flexibilidade entre os lugares, possivelmente esse é o sentido que mais se aproxima da
proposta de Marcelo Neves ao versar sobre o transconstitucionalismo.

508
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Marcelo da Costa Pinto Neves é professor de Direito Público da Universidade de


Brasília - UNB, possui uma reflexão sobre a função social do direito no Brasil, através de uma
visão sociológica e filosófica, fora membro do Conselho Nacional de Justiça – CNJ
(2009/2012), fez doutorado na Universidade de Bremen, Alemanha sob a orientação de Karl
Heinz Ladeur e Niklas Luhmann, onde publicou sua tese intitulada Verfassung und Positivität
des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation
des Falls Brasilien, na qual dialoga com conceitos tanto de Luhmann, quanto de Jürgen
Habermas.
Apesar de utilizar elementos teóricos desses autores, o professor da UNB se recusa a
aplicá-los automaticamente no Brasil, por considerar que eram autores que dialogavam com a
realidade na qual estavam inseridos e o Brasil por pertencer a um contexto diferente perderia
com um transplante teórico.
Porém, Neves (2012) também se recusa a aplicar uma teoria genuinamente brasileira
para a compreensão do fenômeno jurídico, porque entende que as teorias têm caráter
universal, então é possível dialogar com elas desde que sejam traduzidas, incorporadas de
modo que respeite as idiossincrasias que possibilitam maior compreensão do funcionamento
do direito no Brasil.
Tanto assim que alguns sociólogos tratam Marcelo como vanguardista dada essa
dupla recusa em se aplicar automaticamente teorias estrangeiras e teoria tipicamente
brasileira. Sua proposta caminha em direção à digestão de ambas. Haja vista que “o
transconstitucionalismo, muitas vezes, enfrenta ordens que não admitem os pressupostos do
constitucionalismo” – exemplo das comunidades remotas, diferentemente da
interconstitucionalidade, na qual, “supõe-se que duas ordens são orientadas a buscar soluções
para a proteção dos direitos fundamentais e a organização (limitação e controle) jurídica do
poder” (CONHECENDO, 2012, p. 415).
Por conseguinte, entende que o direito no Brasil não se dá de forma autopoiética,
mas alopoiética, que dizer, ocorre determinações externas que influenciam na formulação do
Direito, e os códigos internacionais são exemplos.
Grosso modo, o direito para Luhmann corresponde a um sistema operativamente
fechado e cognitivamente aberto. Isto é, conhece o que lhe é exterior, mas isso não interfere
no modo como se vai produzir o direito. Por isso autopoiético, que é um conceito trazido da
biologia pelos chilenos Humberto Maturana e Fagundes Varela (AMADO, 2004).

509
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Esse pensamento de Marcelo Neves permite fazer o Brasil entrar na modernidade


central. O que, arrazoadamente, assemelha-se a ideia de soberania compartilhada, espécie de
pluralismo pós-Estatal (HABERMAS, 2001). Ou seja, soberania com vários centros, o que é
realizado quando um país se sujeita a um tratado, podendo sofrer suas influências e sanções.
O que também, conforme Douglas Elmauer (2013), conduz a superação dos debates entre as
teorias monistas e dualistas no Direito Internacional.
Nessa medida, surge a invocação da racionalidade transversal, conceito elaborado
pelo filósofo alemão Wolfgang Welsh. Transversal porque não há um metadiscurso universal
capaz de ser referência a todos os discursos particulares, quer dizer, não há na perspectiva de
Neves um “Estado Mundial” que controlaria e centralizaria todos os ordenamentos, porém
sim, constante adequação recíproca através do diálogo.
Por isso, Marcelo Neves (2014, p. 194) adverte que esse diálogo não se dá na
mesma vertente de Habermas, para quem os conflitos argumentativos poderão levar ao
consenso racional ou à aniquilação.
Desse modo, o transconstitucionalismo trata dessa capacidade pós-moderna de em
matéria constitucional referente aos direitos humanos poder se argumentar com outros órgãos
e instituições a fim de se encontrar a melhor solução. Com o objetivo de elucidar alguns
exemplos de transconstitucionalismo, Neves (2009) elenca em sua tese 98 casos, mas que,
entretanto, devido as limitações deste trabalho não serão esmiuçadas.
Não obstante, ponto relevante em um dos casos citados diz respeito ao depositário
infiel em que o art. 5º, LXVII da CRFB/88 planteia sua permissão enquanto que o art. 7º, nº 7
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) dispõe em sentido negativo. No
entanto, com o HC 87.585/TO surgiu que o tratado internacional pode entrar com status de
emenda constitucional se versar sobre direitos humanos, passando pelo crivo do art. 5, §3º da
CRFB/88.
Nesse sentido, impõe destacar que em 1988 todos os tratados eram incorporados na
forma do art. 49, I e 84 da CRFB/88, em que o Presidente da República assina, o Congresso
Nacional aprova por meio de decreto – maioria simples – e o Presidente da República
promulga por meio de decreto presidencial, conferindo status de norma ordinária federal.
Isto, em dada medida, não agradava a doutrina. Porém, a emenda constitucional n.45
de 2004, acrescentou ao art. 5 o §3º na CRFB/88 com a redação versando que tratados que

510
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

passarem em 2 turnos em cada casa legislativa com 3/5 dos votos terão status de emenda
constitucional – norma constitucional derivada.
Em 2007, o Presidente da República assinou a Convenção Internacional e o
Protocolo facultativo relacionado aos direitos humanos - no que tange a pessoa com
deficiência. O Congresso Nacional aprovou por meio do Dec. 186 e o Presidente da
República promulgou na forma do Dec. 6949/2004, sendo até o momento o único que possui
status de norma constitucional.
Outro ponto sinalizado por Marcelo Neves é a grande proporção em que a
jurisprudência brasileira cita outras ordens jurídicas, mas sem se deixar influenciar por elas,
um caso que pode ser mencionado é o das células tronco (ADI n. 3510). Em contrapartida,
um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas - FGV, divulgado em abril de 2012 sobre
os recursos extraordinários, entre os anos de 2003 a 2009, constatou que 95,5% dos acórdãos
trazem obras nacionais e 34,7% estrangeiras, e não há citação à Convenção Americana
(ROSILHO, et. al., 2012, p. 18).
Contudo, nessa perspectiva de análise sobre o transconstitucionalismo, traz-se
Cançado Trindade1 em “Os Tribunais Internacionais Contemporâneos” (2013), no que tange,
grosso modo, a relação entre a interação entre o direito internacional e os tribunais. No
primeiro capítulo do livro o autor aborda os antecedentes históricos até o advento da Antiga
Corte de Haia (CPJI). Versa que em 1907 criou-se o primeiro tribunal internacional – a Corte
Centro Americana de Justiça, estabelecida pela Convenção de Washington – que tinha ampla
base jurisdicional atendendo aos Estados e aos indivíduos, estes através das reclamações
apresentadas, conforme as pretensões da II Conferência da Paz de Haia.
Em 1920, quando se estava na elaboração do Estatuto da Corte Permanente de
Justiça Internacional (CPJI), optou-se que o exercício da função jurisdicional internacional
estaria adstrito aos Estados, isso para favorecer os membros do comitê de juristas encarregado
de redigir o Estatuto da CPJI.

1
Antônio Augusto Cançado Trindade, jurista brasileiro nascido em Belo Horizonte/MG em 1947. Professor
Emérito de Direito Internacional da Universidade de Brasília; Professor Titular de Direito Internacional do
Instituto Rio Branco (1978-2009); Professor Honorário da Universidade de Utrecht; Honorary Fellow da
Universidade de Cambridge; Ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Juiz da Corte
Internacional de Justiça (Haia); Ex-Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores (1985-1990);
Membro Titular do Institut de Droit International, e do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia.

511
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Cançado entende que houve avanço na ideia internacional, sendo um ponto


marcante a luta pelo reconhecimento e afirmação da personalidade e capacidade jurídicas do
indivíduo, para pleitear direitos que lhes são inerentes como ser humano.
No terceiro capítulo, o autor desenvolve que os tribunais internacionais têm sido
sensíveis às demandas dos indivíduos, buscando atender o acesso direto entre eles e suas
jurisdições. O que para Cançado Trindade significa o resgate dos indivíduos como
verdadeiros sujeitos do direito internacional dos direitos humanos. Assim como o direito
internacional público com capacidade jurídica para atuar na esfera internacional, o que traduz
plenas personalidades e capacidade jurídicas internacionais.
Nesse sentido, planteia que a Corte Europeia e Interamericana têm desenvolvido
vasta jurisprudência em relação aos direitos protegidos por ambas as convenções regionais de
direitos humanos.
Trindade destaca, em seu estudo, a relevância dos princípios gerais do direito, os
quais abarcam igualmente os princípios do próprio direito internacional, informando e
conformando tais normas, abrindo caminho a uma justiça objetiva.
Para Cançado Trindade, os princípios gerais formam o próprio substrato do
ordenamento jurídico, integrando a unidade do direito, já que direito interno e internacional
em grande parte dos países passam a caminhar juntos, tanto que no ciclo dos casos peruanos
(2007/2010 – período de violações de direitos humanos) a jurisdição internacional interveio
em prol da nacional a fim de se restaurar o Estado de Direito.
Assim, o direito internacional atribui funções internacionais também aos tribunais
nacionais por meio da expansão da personalidade e responsabilidade internacionais destes.
Com base em sua atuação profissional na magistratura internacional, o autor planteia
que os tribunais internacionais contemporâneos possuem juízes provenientes de distintos
sistemas jurídicos nacionais, culturas jurídicas e formação - caráter plural que contribui para a
construção de um direito internacional universal.
Realizado esse breve panorama impera repensar sobre os aspectos similares e
díspares entre os sistemas europeu e interamericano de direitos humanos para se compreender
melhor sobre a categoria teórica do transconstitucionalismo.

512
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. SISTEMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS - EUROPEU E


INTERAMERICANO: Algumas Considerações

Com o objetivo de reconstruir o mundo, vários Estados europeus juntaram forças


criando organizações internacionais, cujo desenrolar culminou na organização
intergovernamental denominado Conselho da Europa – criado em 5 de maio de 1949. Seu
objetivo principal é a proteção dos direitos humanos, o regime democrático e o Estado de
Direito (CARVALHO, 2016, p. 165).
Importante frisar que por trás da criação desse Conselho havia interesses como negar
o comunismo soviético e fortalecer políticas liberais internas (CARVALHO, 2016, p. 166).
Nessa medida, não seria desarrazoado dizer que a internacionalização de tais direitos não
surgiu como algo vinculado as lutas e deliberações individuais, senão por um ideal abstrato de
direito humanos baseado na negação dos horrores cometidos na 2ª Guerra Mundial.
Já nas Américas o pano de fundo seriam as conferências pan-americanas que tinham
como escopo o estímulo à abertura de mercados e a formação de uma cooperação técnica, o
que possibilitou as codificações internacionais e a aproximação entre os Estados americanos.
Nesse ponto, ressalta Danielle Souza que

[...] que oito meses antes da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos
pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, vinte e um países das Américas,
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República
Dominicana, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Haiti, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, reunidos em
Bogotá, adotaram aquele que, de fato, deveria ser considerado como o primeiro
instrumento de relevo no campo da proteção internacional dos direitos humanos: a
Declaração Americana dos Direitos do Homem.

E, que o integra o conjunto de proteção de direitos humanos é a Declaração


Americana de Direitos e Deveres do Homem, a Carta da Organização dos Estados
Americanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Protocolo de San Salvador.
Juntos formam o sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos.
O sistema europeu fora criado antes do Interamericano, conta com 46 juízes, possui
maior estrutura física e também recursos para atender aos honorários dos juízes e receber
grande quantidade de casos. Apenas emitiu duas opiniões consultivas, porém suas funções
são eminentemente contenciosas sendo mais interiorizado e conhecido pelos seus cidadãos.
José Antonio Pastor Ridruejo (2007), jurista espanhol de Direito Público, dispõe que se se

513
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

perguntar a um nacional de um país da América Central ou meridional da OEA, poucos ou


ninguém conhece a CIDH.
Embora a CIDH se sobressaia no aspecto cautelar – art. 63.2 – que não há na
Convenção de Roma, o que os autores que fazem essas comparações entre os sistemas
praticamente planteiam é que o sistema interamericano de direitos humanos é muito
embrionário nesse aspecto.
O labor deve ser completado por mecanismos intergovernamentais com
procedimentos de assistência consultiva em matéria constitucional, esse é o ponto de encontro
entre o estudo comparativo entre os dois sistemas e o transconstitucionalismo.

2.1. ANÁLISE INTERPRETATIVA DOS DIREITOS HUMANOS

Em 1948 densificou-se o conceito de “direitos humanos”, sendo uma “Declaração”


não vinculante e não um tratado internacional (CARVALHO, 2016, p. 209). A incorporação
de direitos humanos foi implementada paulatinamente, pois “foi a partir de 1991, que a
promoção de direitos humanos foi alavancada por um fato inédito na história da organização:
pela primeira vez, todos os Estados membros efetivos (o governo de Cuba estava suspenso)
eram democracias” (CARVALHO, 2016, p. 211).
A consequência prática disso na atualidade localiza-se no campo da efetividade
versus normatividade. À proporção em que, normativamente são universalizados,
consentâneo é que se tenha um sistema que viabilize a efetividade.
Todavia,

As novas leis e programas destinados a combater a exclusão social, racismo e


sexismo dificilmente são implementados. Isso ocorre em razão da contínua
concentração de poder nas mãos da elite, corrupção e problemas institucionais do
sistema judicial no Brasil. As políticas neoliberais adotadas por todos os partidos no
poder desde o fim da ditadura militar têm reduzido ainda mais a capacidade do
Estado de implementar os programas de direitos humanos.
Diversas ONGs locais e internacionais de direitos humanos têm denunciado essa
situação e apresentado denúncias às cortes brasileiras. Contudo, tendo em vista que
a polícia e grupos de interesse poderosos estão freqüentemente envolvidos em
violações de direitos humanos, as cortes locais e o governo têm evitado consertar
essas organizações (SANTOS, 2007, p. 35-36).

Analisando como o Estado Brasileiro tem respondido a algumas demandas levadas a


CIDH, Santos (2007, p. 43-49) constata determinada deficiência ao que diz respeito à
efetividade ao acatamento das deliberações no Brasil. No caso da Guerrilha do Araguaia, p.

514
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ex., “o governo federal [...] tem se confrontado com uma forte resistência por parte dos
militares no tocante ao acatamento da decisão da justiça federal e à garantia do direito à
memória. Consequentemente, o governo federal tem promovido uma política de
esquecimento e impunidade”.
Em relação ao caso Maria da Penha, o governo do Ceará resistiu para indenizar a
vítima; e no Simone Diniz, a autora dispõe que “no âmbito federal, a Secretaria Especial para
Direitos Humanos tentaram, embora sem êxito, encontrar novas maneiras de cumprir as
recomendações feitas pela CIDH. No âmbito local, o estado de São Paulo negou até mesmo a
existência da violação”.
Assim, a postulação de denúncias de ONGs e indivíduos à CIDH acaba sendo uma
estratégia política para se fomentar a mudança social pretendida e, a reformulação das normas
internacionais de direitos humanos, já que se encontram emperradas no estado nacional
(SANTOS, 2007, p. 40).
Nesse sentido, André Ramos Carvalho (2016, p. 183-185) considera que a
interpretação internacional dos direitos humanos é contramajoritária, porque as violações que
chegam ao plano internacional são aquelas que não foram reparadas mesmo após o
esgotamento dos recursos internos. Assim, na visão de Carvalho, o aspecto abstrato encontra
concretude. Isto é, o próprio plano internacional confere concretude à normatização abstrata,
quer dizer:

[...] para as minorias vulneráveis, o universalismo será mais uma palavra ao vento
caso não seja possível o acesso às instâncias internacionais, para que possam
inclusive questionar as interpretações nacionais majoritárias dos Tribunais
domésticos que tenham violado direitos humanos. Por isso, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos não aceita a teoria da margem de apreciação nacional
(CARVALHO, 2016, p. 186).

Por essa teoria da margem da apreciação – que fora formulada na antiga Comissão
Europeia de Direitos Humanos – em linhas gerais, a Corte internacional deixaria de interferir
em questões polêmicas sobre direitos humanos para que cada Estado exercesse a sua
interpretação – isto é, realizasse sua margem apreciativa sobre o caso.
O fato da Corte Interamericana não adotar essa teoria significa verdadeiro reforço à
afirmação da justiça internacional em defesa dos direitos humanos dessas minorias em
contraste às tradições nacionais majoritárias com discurso universalista. No Brasil, por meio
do Dec. Legislativo n. 89/1998, reconheceu-se a jurisdição obrigatória da CIDH. Isto permite

515
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

o questionamento às possíveis violações realizadas pelo país nessa matéria, consagrando a


interpretação internacional, haja vista que o Texto constitucional de 1988 assim garante no
artigo 4º ao dispor os princípios que regem a República em suas relações internacionais.
Não à toa, Carvalho dispõe que:

Caso eliminássemos a interpretação internacional ingressaríamos no bizarro mundo


dos "tratados internacionais nacionais" e das "declarações universais de direitos
humanos locais". Não teríamos somente uma Convenção Europeia, mas 47
Convenções, pois cada Estado europeu membro do Conselho da Europa
interpretaria "intimidade", "tortura", "devido processo legal" etc. Destruiríamos,
indiretamente, o próprio ideal universalista, de igualdade entre todos os seres
humanos, ingressando no terreno pantanoso do relativismo (cada Estado, em
virtude de sua cultura e história, tem um parâmetro próprio de direitos) e exclusiva
proteção local dos direitos humanos do período anterior à Grande Guerra e à
barbárie nazista.
Esse uso da interpretação nacional dos direitos humanos internacionais consagra o
que denomino "internacionalização ambígua ou imperfeita dos direitos humanos":
os Estados ratificam os tratados de direitos humanos, mas continuam a interpretá-
los localmente. Verdadeira pseudointernacionalização, pois a interpretação final
continua sendo nacional (CARVALHO, 2016, p. 184).

Essa questão que está intimamente relacionada à soberania e separação de poder dos
estados nacionais quanto a interpretação, também encontra normatização na Carta da
Organização dos Estados Americanos, cujo art. 1ª traz a não intervenção nos assuntos
domésticos e defesa da soberania, a saber:

Os Estados americanos consagram nesta Carta a organização internacional que vêm


desenvolvendo para conseguir uma ordem de paz e de justiça, para promover sua
solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade
territorial e sua independência. Dentro das Nações Unidas, a Organização dos
Estados Americanos constitui um organismo regional.
A Organização dos Estados Americanos não tem mais faculdades que aquelas
expressamente conferidas por esta Carta, nenhuma de cujas disposições a autoriza a
intervir em assuntos da jurisdição interna dos Estados membros.

Apesar disso, conforme já discorrido acerca do fato de se ter uma interpretação


sobre os direitos humanos no âmbito internacional, entende-se que sua garantia dialoga com o
transconstitucionalismo à proporção que se reforça a construção de métodos lógicos e
sistemáticos do direito estrangeiro e nacional pelos órgãos jurisdicionais de cúpula do Estado
(NEVES, 2009, p. 260). Logo, não se trata de uma discussão a respeito da possível
sobreposição de uma ordem a outra, justamente porque não é algo escolhido de modo
randômico e, sim, construído entre as duas ordens.

516
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Essa perspectiva, de certo modo, insere-se também na interpretação pluralista


desenvolvida por Peter Häberle, o qual ao identificar que havia outros participantes para a
interpretação constitucional, que até então eram desconsiderados pela teoria da interpretação,
versa que esta esteve “muito vinculada a um modelo de interpretação de uma sociedade
fechada” (2002, p. 12), na qual a interpretação fica adstrita aos juízes e aos procedimentos
formais2.
Para tanto, realiza uma viragem na teoria da interpretação constitucional oxigenando
a “sociedade fechada” ao reconhecer que não é possível restringir a quantidade de intérpretes
da Constituição, pois todos os sujeitos, assim como “todos os órgãos estatais, todas as
potências públicas, todos os cidadãos e grupos” (2002, p. 13) que vivenciam a norma acabam
por interpretá-la. Isto é, a extensa gama de sujeitos que estão ou são regulados pelo
ordenamento constitucional são seus intérpretes, por isso a intepretação não pode ser limitada
aos magistrados, pois não são apenas eles que vivem a norma.
Häberle (2002, p. 10) considera que a norma “não é uma decisão prévia, simples e
acabada”, sendo necessário, nesse sentido, conhecer os sujeitos para que o intérprete possa ser
orientado não só pela teoria, mas também pela práxis. Para isso, necessário se faz a inclusão
de cada concernido do programa normativo para que possa contribuir ao processo integrando
suas realidades através das suas interpretações. Assim, os tribunais aprenderiam3 com os
participantes e a unidade da Constituição adviria da “conjugação do processo e das funções de
diferentes intérpretes” (2002, p. 30-33).
Ressalta-se que os intérpretes não são somente aqueles envolvidos em uma relação
institucionalizada ou já estabelecida, como, por ex., as partes de uma lide jurídico processual.
A participação pluralista no processo de interpretação permite a possibilidade de “experts e

2
Note-se que sentido semelhante há em Cesare Beccaria (1999) apenas no que diz respeito ao reconhecimento de
que a intepretação não pode ficar limitada aos juízes. Entretanto, nesse modelo de Häberle não se reduz a
atividade do magistrado ao mero silogismo perfeito, tampouco se atribui a intepretação apenas ao soberano –
aqueles que cederam parcela de suas liberdades para a formulação do bem comum, conforme desenvolvido por
Beccaria para o contexto de sua época, ao qual se insurgira contra as desproporções entre a aplicação da pena e o
delito cometido defendendo a elaboração de leis mais objetivas e próximas dos indivíduos para que a partir do seu
envolvimento na elaboração, até os delitos pudessem ser reduzidos. Na hermenêutica de Peter Häberle, reconhece-
se todos como intérpretes, até mesmo os magistrados e legisladores (HÄBERLE, 2002, p. 24-25), cuja
interpretação de todos forma a sociedade aberta, cujo texto constitucional está conformado com a realidade.
3
O próprio Häberle destaca a diferença da sua teoria do sistema de autopoiésis de Luhmann, pois pela
hermenêutica pluralista, não obstante a existência de conflitos de consenso, os tribunais atuariam em harmonia
com a qualidade dos discursos (vinculados ao direito) da sociedade, e não apenas conhecendo suas deliberações,
entendendo-os legítimos tão somente no plano formal como em Luhmann – no qual prevalece um sistema
cognitivamente aberto e operativamente fechado. Sobre Niklas Luhmann, ver: (AMADO, 2004, 301-339).

517
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pessoas interessadas” se converterem em intérpretes do direito estatal, o que “significa que


não apenas o processo de formação, mas também o desenvolvimento posterior, revela-se
pluralista” na concepção de Häberle (2002, p. 17-18).
Entretanto, o método ou procedimento dessa interpretação precisa de determinada
clareza da teoria constitucional no que tange a “explicitar os grupos concretos de pessoas e os
fatores que formam o espaço público, o tipo de realidade de que se cuida, a forma como ela
atua no tempo, as possibilidades e necessidades existentes” (HÄBERLE, 2002, p. 19). É
preciso que haja, portanto, identificação dos sujeitos bem como do contexto que estão
inseridos, a fim de viabilizar, por ex., o trabalho do Tribunal.
Privilegia-se nessa teoria da interpretação pluralista a relação entre o texto
constitucional e o contexto social. Ambos devem estar em sintonia, uma vez que “a
intensidade do controle de constitucionalidade há de variar segundo as possíveis formas de
participação” (HÄBERLE, 2002, p. 46). Nas bases dessa atuação do judiciário coordenada
com a interação social, não se retira da Corte Constitucional o dever de proteger os indivíduos
que estão excluídos do processo de interpretação4, haja vista que a soberania da constituição
deve ser resguardada e com ela a proteção aos direitos e garantias fundamentais.
Esse modelo inclusivo de interpretação se propõe ao ajustamento dos órgãos do
estado com a realidade enfrentada pelos seus participantes. Entretanto, ao contrário do que se
pode supor, essa relação dialética não é livre de tensões, uma vez que o “consenso resulta de
conflitos e compromissos entre participantes que sustentam diferentes opiniões e defendem os
próprios interesses” fazendo com que o Direito Constitucional seja “um direito de conflito e
compromisso”. (HÄBERLE, 2002, p. 51).
Por essa razão, a Corte deve resguardar os “interesses não representados ou não
representáveis” (HÄBERLE, 2002, p. 46) para que possa refinar o processo de participação
dos intérpretes, dado que a interpretação é inclusiva, ou seja, não restritiva ao Estado
tampouco a organizações sociais coletivas.
Habermas (2011, p. 150) adverte que Peter Häberle ao estender o número de
intérpretes do texto constitucional “ampliou o sentido democrático-procedimental da
participação no processo estendendo-o aos direitos a prestações sociais em geral” e a

4
Para conformação do processo constitucional, planteia Häberle (2002, p. 46-48) que “os instrumentos de
informação dos juízes constitucionais – não apesar, mas em razão da própria vinculação à lei – devem ser
ampliados e aperfeiçoados, especialmente no que se refere às formas gradativas de participação e à possibilidade
de participação no processo constitucional (especialmente nas audiências e nas ‘intervenções’)”.

518
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

consequência disso seria a de se sobrecarregar “o direito processual transformando-o no


substituto de uma teoria da democracia”.
A teoria do discurso habermasiana tem como cerne a liberdade de organização
individual dos sujeitos para que possam se articular e defender seus próprios interesses
(subsistemas) e, depois de alcançada determinada racionalização dos argumentos, eles atuem
como integrantes legitimadores das normas. Esse destaque realizado por Habermas da teoria
de Häberle vem com base na preocupação do processo constitucional vir a substituir o espaço
público de discussão.
Não obstante, as duas teorias desenvolvidas trazem o entendimento de que uma
concepção de Estado autorreferenciado5 não mais subsiste às sociedades contemporâneas6,
dada a mutabilidade das questões sociais. Desse modo, ratificam, por meio da teoria social e
hermenêutica, a preocupação do aprimoramento das vias comunicacionais para o exercício da
democracia.
Se se estende essa análise para o âmbito internacional discutindo sobre os direitos
humanos, que é um direito fundamental, a própria construção de sentido desse direito merece
ser construída a partir dos sujeitos, de suas interpretações, por isso, torna-se importante a
intermediação interpretativa da Corte Interamericana, de forma a se alargar o debate na
tentativa de se conseguir formular um sentido adequado no qual não só os indivíduos, mas
também as instituições se vejam compelidas a respeitar e acatar, uma vez que se reconhecem
como parte desse processo.
Essa horizontalidade interpretativa dos direitos humanos é trazida também por
Manuel E. Gándara Carballido (2015) e Aníbal Quijano (2000), para quem esses direitos
precisam ser reconhecidos como produto histórico das lutas dos povos em busca de sua
libertação, quer dizer, consagrá-los e esvaziar a carga utópica universalista e europeia. A
ressignificação dessa categoria teórica caminha na vertente de se conferir condições
favoráveis à redução das desigualdades sociais.
Ora, na exposição e defesa da tese do transconstitucionalismo Marcelo Neves
aborda várias questões difíceis de serem resolvidas dentro dos mecanismos jurídicos, uma vez
que precisam de outras áreas do saber para auxiliar no entendimento, e até mesmo de socorro
do sistema internacional, na tentativa de demonstrar que o diálogo interpretativo entre as

5
Utiliza-se aqui a noção luhmanniana de sistema que não dialoga com o que lhe é exterior.
6
Complexas para Habermas e plural para Häberle.

519
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ordens nacionais e internacionais é frutífero para a construção do sentido mais adequado


possível à resolução do conflito.
Esse ponto de compreensão também é uma chave para se reformular o próprio
sistema institucional interno dos países. Tomando como base o 1º júri indígena realizado em
2015 na comunidade Maturuca, localizada na região da Raposa Serra do Sol, no Brasil,
encontram-se elementos para se repensar não só a categoria dos direitos humanos, mas,
principalmente, a relação entre instituições e pessoas quanto ao procedimento.
Brevemente, quanto ao caso, dois índios foram acusados por homicídio por questões
culturais, pois confessaram ter tentado matar Antônio Alvino Pereira, cortando seu pescoço,
uma vez que acreditam que ele estava possuído pela entidade do mal, denominada Canaimé.
O jurados, que eram todos indígenas pertencentes a aldeia, comungavam, portanto,
dos mesmos valores. Absolveram um e condenaram o outro a uma pequena pena por
entenderem que o contexto justificava o cometimento do delito. Ressalta-se que não se
pormenorizará neste breve texto o caso, para isso, veja-se a tese de doutorado de Thaís
Lutterback, que fora advogada de defesa no processo.
Acontece que, esse júri não fora bem aceito pelos indígenas, que o consideraram
desrespeitoso para com a sua própria cultura no tratamento da questão. Tanto que o refizeram
de acordo com seus costumes sem a interferência do direito estatal, onde se decidiu pela
condenação de ambos e de mais um terceiro que teria fomentado a briga. A punição consistiu
na expulsão da aldeia por dois anos, tendo de prestar serviços comunitários em outra aldeia,
sem poderem participar dos acontecimentos da comunidade.
Trata-se de uma questão que embora realizada dentro do constitucionalismo
envolvendo direito ao acesso à justiça, garantia de direitos fundamentais e jusdiversidade, não
admite os seus pressupostos, não só quanto ao procedimento no trato da matéria, mas também
em relação ao respeito à sua cosmovisão de ser e estar no mundo.
Embora não se tenha invocado a ordem internacional para resolução do caso,
envolve direitos humanos e diz respeito a uma espécie de pluralismo jurídico
(BOAVENTURA, 1988) que transita entre as ordens constitucionais. Caso ocorra o
chamamento da CIDH e esta dê seu parecer a respeito da questão, estaríamos diante do que
denomina Marcelo Neves de transconstitucionalismo. Porém, mesmo sem se invocar o direito
internacional – ao caso-, essa categoria de análise permite vislumbrar a importância da

520
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

construção dialógica entre sujeitos e ordens jurídicas, que através de constante adequação
podem construir uma interpretação coerente aos seus contextos.

APONTAMENTOS FINAIS

Não se pretendeu por meio dessa abordagem afirmar a noção de que o


transconstitucionalismo como a via de emancipação do Estado. Caso assim fosse, estar-se-ia
formulando algo completamente diverso ao que se propôs Marcelo Neves ao formular o
conceito.
Por essa categoria, pretendeu-se o contrário, que é firmar o reconhecimento das
diversas ordens jurídicas envolvidas na resolução de uma questão constitucional, cujo diálogo
entre elas, articulando seus limites e possibilidades contribuem para a sua solução. Quer dizer,
a partir e com o olhar interpretativo do outro, constrói-se uma interpretação que atende a todos
os envolvidos no problema constitucional.

REFERÊNCIAS

AMADO, Juan Antonio Garcia. A sociedade e o direito na obra de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Editora
Lúmen Júris, p. 301-339, 2004.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 3510. Brasília. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Publicação: DJ
29.05.2008. Disponível: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 jun. 2017.

______. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 10 jun. 2017.

______. Decreto Legislativo n. 89 de 3 de março de 1998. Disponível em:


<http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:decreto.legislativo:1998-12-03;89>. Acesso em: 10 jun. 2017.

CAMARILLO GOVEA, Laura Alicia. Convergencias y divergencias entre los sistemas europeo e interamericano
de derechos humanos. Prolegómenos. vol.19, n.37, p. 67-84, 2016.

CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em:


<https://www.oas.org/dil/port/tratados_A-
41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm#ch1>. Acesso em: 10 jun. 2017.

CARVALHO, André Ramos. Processo Internacional de Direitos Humanos. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

CONHECENDO o professor Marcelo Neves. Revista dos estudantes de direito da UNB. N. 10, 2012.

DONDERO, F. Sistema europeo e interamericano de protección de los derechos humanos. Similitudes y


diferencias. Disponível em: http://www.derecho.usmp.edu.pe/. Acesso 10 jun. 2017.

ELMAUER, Douglas. Transconstitucionalismo: do acoplamento estrutural à racionalidade transversal. Revista da


Faculdade de Direito USP. v. 108, p. 855-864, 2013.

521
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

GANDARA CARBALLIDO, Manuel Eugenio. Repensando os direitos humanos a partir das lutas. Revista
Culturas Jurídicas, Niterói, v. 1, n. 2, p. 75-105, 2014. Disponível em:
http://www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/article/view/88. Acesso em: 10 jun. 2017.

HAIDAR, Rodrigo. Acesso à justiça não é só o direito de ajuizar ações. Consultor Jurídico. Brasil, 12 de jul.
2009. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jul-12/fimde-entrevista-marcelo-neves-professor-
conselheiro-cnj. Acesso em 10 jun. 2017.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição
para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São
Paulo: Littera Mundi, 2001.

______. Direito e Democracia: entre a facticidade e validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. v. II, Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011.

LONDOÑO, M. Las cortes interamericana y europea de derechos humanos em perspectiva comparada.


International Law, Revista Colombiana de Derecho Internaciona, 5, p. 89-115, 2005.

LUTTERBACK, Thaís. Direito e Causas Indígenas: o Supremo Tribunal Federal como campo de observação.
Tese (Doutorado). Orientador: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão. Curso Justiça Administrativa. Faculdade de
Direito, Niterói, 2017.

______. Marcelo Neves e o transconstitucionalismo. Os constitucionalistas. Brasil, 2 de dez. 2009. Disponível


em: http://www.osconstitucionalistas.com.br/marcelo-neves-e-o-transconstitucionalismo. Acesso em: 10 jun.
2017.

MARQUES, José. Índios classificam 1º júri feito em aldeia de 'brutal' e refazem sentença. In. Folha de São Paulo,
22.05.2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1632330-indios-classificam-1-juri-
feito-em-aldeia-de-brutal-e-refazem-sentenca.shtml>. Acesso em: 10 jun. 2017.

NEVES, Marcelo. Do diálogo entre as cortes supremas e a Corte Interamericana de Direitos humanos ao
transconstitucionalismo na América Latina. Revista de Informação Legislativa, v. 201, p. 193-214, 2014.

______. Transconstitucionalismo. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes Ltda, 2009.

______. Entre Têmis e Leviatã: Uma Relação Difícil: O Estado Democrático de Direito a partir e além de
Luhmann e Habermas. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 3. ed. 2012.

PASTOR RIDRUEJO, J. La protección jurisdicional de los derechos humanos: uma comparación entre em
Tribunal Europeo y la Corte Interamericana. Revista Electónica Iberoamericana, 1, p. 5-14, 2007.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (comp.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2000, p. 107-130. Disponível em:
http://www.antropologias.org/rpc/files/downloads/2010/08/Edgardo-Lander-org-A-Colonialidadedo-Saber-
eurocentrismo-e-ciências-sociais-perspectivas-latinoamericanas-LIVRO.pdf. Acesso em: 10 jun. 2017.

RODRIGUES, Alexandro Costa. O fenômeno do transconstitucionalismo como instrumento de ampliação da


ordem jurídica do estado nacional soberano na proteção dos direitos fundamentais e humanos do cidadão.
Revista Científica da Escola de Direito, ano 6, n.2 – abr/set 2013.

522
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ROSILHO, André, et al. Fundamentação e previsibilidade no Supremo Tribunal Federal: um estudo empírico de
recursos extraordinários. Núcleo de Justiça e Constituição - NJC/GV. Abril de 2012. Disponível em:
http://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/eventos/arquivos/ws_pesquisa_fundamentacao_e_previsibilidad
e_no_stf_njc.pdf. Acesso em 10 jun. 2017.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

SANTOS, Cecília Macdowell. Ativismo jurídico transnacional e o estado: reflexões sobre os casos apresentados
contra o Brasil na comissão interamericana de direitos humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos. N.
7, ano 4, 2017.

SOUZA, Danielle Aleixo Reis do Vale. O Estado brasileiro e a corte interamericana de direitos humanos:
reflexões sobre o multilateralismo em direitos humanos no âmbito da organização dos estados americanos.
Disponível em: <www.agu.gov.br/page/download/index/id/1068606>. Acesso em: 10 jun. 2017.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos. Brasília: Fundação


Alexandre de Gusmão, 2013.

523
A EFETIVAÇÃO DA SEGURANÇA
ALIMENTAR E NUTRICIONAL EM PAUTA:
A ALIMENTAÇÃO ADEQUADA
COMO DIREITO FUDNAMENTAL

SOARES, Durcelania da Silva


Mestranda em Direito pelo Centro Universitário Salesiano São Paulo. Especialista Lato Sensu em Direito pela
Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Direito pela Universidade Iguaçu.
GOMES Luciane Mara Correa
Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Ciências Jurídicas e
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora no Centro Universitário Augusto
Motta e Faculdade Mercúrio.
RANGEL, Tauã Lima Verdan
Bolsista CAPES. Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo PPGSD-UFF (2013-2015).
Especialista em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penale Processo do Trabalho pelo
Centro Universitário São Camilo-ES (2014-2015).

RESUMO

É fato que alimentação e nutrição são requisitos básicos para a promoção e a proteção da saúde,
viabilizando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com
qualidade de vida e cidadania, tal como estruturação de condições sociais mais próximas das ideais.
Em âmbito internacional, a partir de 1994, com a Declaração de Roma, o direito à alimentação passou
a figurar como direito humano e pautado no trinômio disponibilidade, acessibilidade e adequação. Em
relação à disponibilidade do alimento, destaca-se que, quando requisitado por uma parte, a alimentação
deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos, o cultivo da terra e
pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça ou coleta. Pressupõe-se, em
relação à disponibilidade alimentar, que o direito reclama uma alimentação natural, com o mínimo de
acréscimo de pesticidas e similares, tal como o combate aos transgênicos. No debate acerca dos
alimentos transgênicos, sobretudo sua utilização na afirmação do direito em comento, há defensores
que entendem que aqueles serviriam para subsidiar a materialização do direito em comento, porquanto
seriam capazes de colocar fim à fome, em especial nos países em que essa é extrema e alcançam
índices alarmantes, tal como poderá influenciar diretamente no barateamento dos gêneros alimentícios.
Ocorre, porém, que o direito à alimentação não deve ser encarado como sinônimo de utilização de
qualquer fonte alimentar, mas sim gêneros que sejam quantitativamente e qualitativamente detentores
de condições mínimas, residindo em tal debate o artigo proposto.

Palavras-Chave. Segurança Alimentar e Nutricional. Direito Humano à Alimentação Adequada.


Efetivação.

ABSTRACT

It is true that food and nutrition are basic requirements for the promotion and protection of health,
enabling the full realization of growth potential and human development, quality of life and citizenship

524
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

as structuring closer to the ideal social conditions. Internationally, since 1994, with the Rome
Declaration, the right to food has been integrated as a human right and guided the trinomial
availability, accessibility and adequacy. Regarding the availability of food, it is emphasized that, when
requested by a party, the power must be obtained from natural resources, ie by producing food, the
cultivation of land and livestock, or otherwise obtain food , such as fishing, hunting or collecting. It is
assumed in relation to food availability, the law calls for a natural diet, with minimal addition of
pesticides and the like, such as the fight against transgenics. In the debate about GM foods, especially
their use in law statement under discussion, there are advocates who understand that those would
serve to support the realization of the right to comment, because they would be able to put an end to
hunger, particularly in countries where this is extreme and reach alarming rates, as can directly
influence the cheapening of foodstuffs. It happens, however, that the right to food should not be
regarded as synonymous with the use of any food source, but genres that are quantitatively and
qualitatively holders of minimum conditions, living in such a debate the proposed article.

Keywords. Food Security and Nutrition. Human Right to Adequate Food. Effectuation.

INTRODUÇÃO

Josué de Castro (2003, p. 79), sobre a fome, especificamente na região nordeste do


país, já discorreu que ela não atua apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo
sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também atua sobre seu
espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Mais que isso, há que se
destacar que nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão maciçamente
e num sentido tão nocivo quanto à fome, quando alcança os verdadeiros limites da inanição.
Sobre a influência da imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são
despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental
que pode parecer das mais desconfortantes. Jean Ziegler, em mesmo sentido, já colocou em
destaque que “dolorosa é a morte pela fome. A agonia é longa e provoca sofrimentos
insuportáveis. Ela destrói lentamente o corpo, mas também o psiquismo” (2013, p. 32).
Inexoravelmente, a questão da fome fundamenta-se em conceitos de incidência
específicos, desdobrados na fome aguda e na fome crônica. A primeira equivale à urgência de
se alimentar, a um grande apetite, e não é relevante para a discussão proposta no presente.
Doutro aspecto, a fome crônica, permanente, a que subsidiará a pesquisa apresentada, ocorre
quando a alimentação diária, habitual, não propicia ao indivíduo energia suficiente para a
manutenção do seu organismo e para o desempenho de suas atividades cotidianas. A fome
crônica e permanente é capaz de provocar um sofrimento agudo e lancinante no corpo,
produzindo letargia e debilitando, gradualmente, as capacidades mentais e motoras. Trata-se

525
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

da marginalização social, perda da autonomia econômica e, evidentemente, desemprego


crônico pela incapacidade de executar um trabalho regular. Inevitavelmente, conduz à morte.
Ao lado disso, cuida ponderar que Oliveira et all sustentam que a fome crônica “é um
fenômeno que possui elementos socioeconômicos e culturais: insatisfeita, prolongada ou
apenas parcialmente saciada, cria vulnerabilidades e muitas vezes se traduz em importantes
patologias” (2009, p. 415).
A complexidade do tema, segundo Maluf (2003, p. 53), fomenta maior discussão
quando se estabelece como pilar inicial o fato de que a alimentação humana se dá em uma
interface dinâmica entre o alimento (natureza) e o corpo (natureza humana), realizando-se
integralmente apenas quando os alimentos são transformados em gente, em cidadãos e
cidadãs saudáveis. A situação é agravada, sobretudo no território nacional, em decorrência do
antagonismo existente, pois, conforme aponta Oliveira et all (2009, p. 414), o Brasil, na
proporção que, sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, ainda convive com
uma condição social em que milhões pessoas se encontram, já que não tem plenamente
assegurado o direito humano à alimentação adequada.

1. O RECONHECIMENTO DA FOME COMO QUESTÃO HISTÓRICA


BRASILEIRA: A CONTRIBUIÇÃO DE JOSUÉ DE CASTRO

Josué de Castro (2003) vai voltar-se sobre a fome, no que toca à região do sertão
nordestino, discorrendo que ela não atua apenas sobre os corpos das vítimas da seca,
consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também
atua sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Mais que isso, há
que se destacar que nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão
maciçamente e num sentido tão nocivo quanto à fome, quando alcança os verdadeiros limites
da inanição. Sobre a influência da imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos
primários são despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma
conduta mental que pode parecer das mais desconfortantes. Josué de Castro explicita, ainda,
que:

A ação da fome, no homem, não se manifesta como uma sensação contínua, mas
como um fenômeno intermitente, com acessos e melhorias periódicas. No começo,
a fome provoca uma excitação nervosa anormal, uma extrema irritabilidade e,
principalmente, uma exaltação dos sentidos que se animam num elã de
sensibilidade ao serviço quase exclusivo das atividades que permitem obter

526
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

alimentos e, portanto, satisfazer o instinto mortificado da fome. Entre os sentidos,


os que sofrem o máximo de excitação são o da visão e do olfato, os que podem
melhor orientar o faminto na procura de alimentos. Neste momento, o homem se
apresenta, mais do que nunca, como um verdadeiro animal de rapina, obstinado na
procura de uma presa qualquer para acalmar sua fome [...] É a obsessão do espírito
polarizado para um único desejo, concentrado em uma única aspiração: comer
(CASTRO, 2003, p. 79-80).

Seguindo o exame de o regime alimentar identificado por Josué de Castro, no sertão


do nordeste, o autor, na obra Geografia da Fome, inicia suas ponderações fazendo menção às
epidemias calamitosas da fome, típicas de tal região, e que não estão limitadas aos aspectos
discretos e toleráveis das fomes parciais, das carências específicas, encontradas em outras
áreas do território nacional. “São epidemias de fome global quantitativa e qualitativa,
alcançando com incrível violência os limites extremos da desnutrição e da inanição aguda e
atingindo indistintamente a todos, ricos e pobres, fazendeiros abastados e trabalhadores do
eito, homens, mulheres e crianças” (CASTRO, 1984, p. 165). Na região do sertão nordestino,
neste primeiro contato, a fome epidêmica é um açoite impiedoso que a todos afeta, em
decorrência do terrível flagelo da seca.
É interessante, ainda, pontuar que Josué de Castro, ao estruturar seus estudos, irá
afirmar que a população do sertão tem seu regime alimentar alicerçado no milho. “Do milho
associado a outros produtos regionais, em combinação as mais das vezes felizes, permitindo
que, fora das quadras dolorosas das secas, viva esta gente em perfeito equilíbrio alimentar,
num estado de nutrição bastante satisfatório” (CASTRO, 1984, p. 165); já no período das
epidemias da fome, o milho se apresenta como fonte de energia e vigor imprescindível para a
sobrevivência do estalar do açoite da calamidade, evitando, comumente, o aumento do
despovoamento da região. Ao lado disso, cuida reconhecer que as secas periódicas atuam
como elemento de desorganização da economia primária da região, extinguindo as fontes
naturais de vida, crestando as paisagens, arrasando as lavouras e dizimando o gado, reduzindo
o sertão a uma paisagem desértica, com seus habitantes sempre desprovidos de reservas,
morrendo à mingua de água e de alimentos. “Morrendo de fome aguda ou escapando
esfomeados, aos magotes, para outras zonas, fugindo atemorizados à morte que os dizimaria
de vez na terra devastada” (CASTRO, 1984, p. 166-167).
Com efeito, a Geografia da Fome retrata um cenário no qual a paisagem natural do
sertão nordestino, desde a topografia, as características do solo, a fisionomia vegetal, a fauna,
a economia e a vida social daquela, tudo traz marcado, com uma nitidez inconfundível, a

527
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

influencia da falta d’água, da inconstância da água na região semidesértica. Castro vai


explicitar que “o solo arenoso, pouco espesso, quase sempre pobre em elementos nutritivos e
ricos em seixos rolados, é um produto dos extremos climáticos, dos largos períodos de
exagerada insolação e dos aguaceiros intempestivos, desagregando as rochas areníticas e
acelerando todos os processos de demolição que nelas se realizam” (1984, p. 167).
Comumente, os terrenos desnudados em certos trechos, quase sem nenhuma cobertura de solo
arável recobrindo o esqueleto das rochas vivas, que afloram em brancos serrotes escarpados,
são manifestações ofuscantes da terrível capacidade do clima: “capacidade de roer as terras do
sertão nordestino, deixando expostos os núcleos mais duros do seu esqueleto de granito e de
calcário” (CASTRO, 1984, p. 167).
Apresentada a moldura cênica em que o sertanejo encontra-se inserido, faz-se
necessário rumar para o regime alimentar de tal região. Imediatamente, é oportuno consignar
que Josué de Castro, ao descrever tal figura, aponta que o sertanejo é um plantador de
produtos de sustentação para seu próprio consumo. “Um semeador, em pequena escala, de
milho, feijão, fava, mandioca, batata-doce, abóbora e maxixe, plantados nos vales mais
sumosos, nos baixios, nos terrenos de vazante, como culturas de hortas e jardins” (CASTRO,
1984, p. 180). Trata-se da típica roça de matuto e que, na limitação e singularidade do cenário
em que o sertanejo encontra-se inserido, veio a constituir um peculiar elemento de valorização
das condições de vida regional e, nos limites permitidos, a diversificação do regime alimentar
do sertanejo. Neste quadrante, as características da alimentação sertaneja, um tanto magra e
despida de qualquer excesso de tempero, encontra harmonia com os traços naturais da terra
magra dos sertões nordestinos. “Tanto pela influência do clima semi-árido (sic), a que está
submetido, como pelo laborioso gênero de vida que exerce, necessita o sertanejo retirar de sua
dieta um potencial energético mais alto do que o suficiente para o habitante de qualquer outra
área equatório-tropical” (CASTRO, 1984, p. 191). Ao lado disso, há que se reconhecer que a
ação do clima semidesértico incide diretamente sobre o sertanejo e se faz sentir pelas
características estimulantes do ar seco, pela baixa taxa de umidade relativa que condiciona,
claramente, uma perda fácil de calor e, consequentemente, um estímulo às queimas orgânicas
que regulam a intensidade do metabolismo.
No que toca ao seu regime alimentar, conquanto aparentemente pouco abundante,
cuida reconhecer que há um potencial energético, em especial, segundo Castro (1984), devido
às porções de milho, de batata-doce e de leite que são inseridas na dieta alimentar do

528
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sertanejo. “É bem verdade que nem sempre obtêm estes ascéticos vaqueiros um tal teor
calórico em sua ração e mais raramente ainda dispõem de um excesso de energia alimentar
que se possa acumular sob a forma de reserva de depósito de gordura de glicogênio”
(CASTRO, 1984, p. 194) e que, obviamente, seria de inestimável valor no período de seca.
Com efeito, ainda na perspectiva apresentada em Geografia da Fome, é esta parcimônia
calórica, sem margens a exageros, que faz do sertanejo um tipo magro e anguloso, de carnes
enxutas, sem arredondamentos de tecidos adiposos e sem nenhuma predisposição ao
artritismo, à obesidade ao diabetes. Trata-se do atleta fisiológico descrito por Castro (1984),
com o seu sistema neuromuscular equilibrado, dotado de grande força e agilidade e com
excepcional resistência, nos momentos oportunos.
Ainda no que toca à dieta alimentar verificada nos comboios de retirantes, que em
uma tentativa desesperada de fugir do açoite da seca e da fome que estala em seus corpos,
Castro vai descrever que eles são forçados a ingerir substâncias bem pouco propícias à
alimentação, das quais os habitantes de outras zonas do país sequer ouviram falar que fossem
alimentos. “Substâncias de sabor estranho, algumas tóxicas, outras irritantes, poucas
possuindo qualidades outras além da de enganar por mais algumas horas a fome devoradora,
enchendo o saco do estômago com um pouco de celulose” (CASTRO, 1984, p. 211). Mais
que isso, esgotados os recursos naturais de alimentação, tocados pela fome, os famintos do
sertão nordestino, em uma tentativa excruciante de aplacar o flagelo que os açoita, se atiram
aos últimos recursos vegetais, comumente impróprios à alimentação, ricos apenas em
celulose, mesmo que sejam tóxicos, a exemplo de mucunã e de macambira. Nesta linha, do
cardápio extravagante do sertão faminto fazem parte uma série de iguarias bárbaras, tais
como: farinha de macambira, de xique-xique, de parreira brava, de macaúba e de mucunã;
palmito de carnaúba nova, chamado de guandu; raízes de umbuzeiro, de manjerioba, de
mucunã; beijus de catolé, de gravatá e de macambira mansa (CASTRO, 1984).
Quando o sertanejo utiliza tão extravagante cardápio é que o martírio da seca já vai
longe e que sua miséria já atingiu os limites de sua resistência orgânica. Trata-se da última
etapa de sua permanência na terra desolada, antes de se fazer retirante e descer aos magotes,
em busca doutras terras menos castigadas pela inclemência do clima. Ora, esgotadas as suas
esperanças e reservas alimentares de toda espécie, iniciam os sertanejos o êxodo, despejados
do sertão pelo flagelo implacável. Sem água e sem alimentos, tem início a terrível retirada,
encontrando-se pelas estradas poeirentas e pedregosas as intermináveis filas de retirantes,

529
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

como se fossem uma centopeia humana. Homens, mulheres e crianças, todos esqueléticos,
deformados pelas perturbações tróficas, com a pele enegrecida colada às longas ossaturas,
desfibrados e fétidos pelo efeito da autofagia. São sombrias caravanas de espectros
esquálidos, esmaecidos, caminhado centenas de léguas em busca das serras e dos brejos, das
terras de promissão. “Com os seus alforjes quase vazios, contendo quando muito um punhado
de farinha, um pedaço de rapadura; a rede e a filharada miúda grupada às costas, o sertanejo
dispara através da vastidão dos tabuleiros e chapadões descampados, disposto a todos os
martírios” (CASTRO, 1984, p. 218). Sem recursos de nenhuma espécie, atravessando zonas
de penúria absoluta, gastando na farpada trilha o resto de suas energias comburidas, os
retirantes acentuam no seu êxodo as consequências terríveis da fome. Vê-los é ver, em todas
as suas ferinas manifestações, o drama fisiológico da inanição.

2. O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA (DHAA) ALÇADO


AO STATUS DE DIREITO FUNDAMENTAL

É fato que alimentação e nutrição são requisitos básicos para a promoção e a


proteção da saúde, viabilizando a afirmação plena do potencial de crescimento e
desenvolvimento humano, com qualidade de vida e cidadania, tal como estruturação de
condições sociais mais próximas das ideais. Podestá (2011, p. 27-28) destaca que a locução
segurança alimentar, durante o período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), passou a
ser empregado na Europa, estando associado estritamente com o de segurança nacional e a
capacidade de cada país de produzir seu próprio alimento, de maneira a não ficar vulnerável a
possíveis embargos, boicotes ou cercos, em decorrência de políticas ou atuações militares.
Contudo, posteriormente à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sobretudo com a
constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), o conceito da locução
supramencionada passa a se fortalecer, porquanto compreendeu. Assim, nas recém-criadas
organizações intergovernamentais, era possível observar as primeiras tensões políticas entre
os organismos que concebiam o acesso ao alimento de qualidade como um direito humano, a
exemplo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), e
alguns que compreendiam que a segurança alimentar seria assegurada por mecanismos de
mercado, tal como se verificou no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco
Mundial. Após o período supramencionado, “a segurança alimentar foi hegemonicamente

530
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

tratada como uma questão de insuficiente disponibilidade de alimentos” (PODESTÁ, 2011, p.


28). Passam, então, a ser instituídas iniciativas de promoção de assistência alimentar, que
foram estabelecidas em especial, com fundamento nos excedentes de produção dos países
ricos.
Havia, portanto, o entendimento de que a insegurança alimentar decorria da
produção insuficiente de alimentos nos países pobres. Todavia, nas últimas décadas, a
concepção conceitual de segurança alimentar que, anteriormente, estava restrita ao
abastecimento, na quantidade apropriada, foi ampliada, passando a incorporar, também, o
acesso universal aos alimentos, o aspecto nutricional e, por conseguinte, as questões
concernentes à composição, à qualidade e ao aproveitamento biológico. Em uma perspectiva
individual e na escala coletiva, sobreditos atributos estão, de maneira expressa, consignados
na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os quais foram, posteriormente
reafirmados no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos e Sociais e incorporados à
legislação nacional em 1992. Historicamente, a inter-relação entre a segurança alimentar e
nutricional e o direito humano à alimentação adequada (DHAA) começa a ser delineada a
partir do entendimento existente acerca dos direitos humanos na Declaração Universal de
1948.
Convém pontuar, ainda, que, em um cenário internacional, apenas em 1996, durante
a realização da Cúpula Mundial de Alimentação, em Roma, que chefes de estados e governos,
empenharam a sua vontade política e asseveraram, de maneira clara, sobre o direito a uma
alimentação adequada e o direito fundamental de todos a não sofrer a fome. Oportunamente, o
documento ora mencionado reconheceu que a problemática da fome e da insegurança
alimentar possui uma dimensão global e são questões que tendem a persistir e aumentar
dramaticamente em algumas regiões, a não ser que medidas urgentes sejam tomadas,
notadamente em decorrência do crescimento populacional e a pressão existente sobre os
recursos naturais. Estruturou-se, ainda, o ideário de que a pobreza é a maior causa de
insegurança alimentar, logo, apenas um desenvolvimento sustentável seria capaz de promover
sua erradicação, melhorando, por consequência, o acesso aos alimentos.
É possível frisar que a concretização dos direitos humanos, sobretudo o direito
humano à alimentação adequada (DHAA), abarca responsabilidade por parte tanto do Estado
quanto da sociedade e dos indivíduos. Assim, nas três últimas décadas, denota-se que a
segurança alimentar e nutricional passou a ser considerada como requisito fundamental para

531
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

afirmação plena do potencial de desenvolvimento físico, mental e social de todo o ser


humano. A Cúpula de Roma de 1996 estabeleceu, em órbita internacional, que existe
segurança alimentar quando as pessoas têm, a todo o momento, acesso físico e econômico a
alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e
preferências alimentares, com o objetivo de levarem uma vida ativa e sã. Afirma Podestá que
“ao Estado cabe respeitar, proteger e facilitar a ação de indivíduos e comunidades em busca
da capacidade de alimentar-se de forma digna, colaborando para que todos possam ter uma
vida saudável, ativa, participativa e de qualidade” (2011, p. 26).
Dessa maneira, nas situações em que seja inviabilizado ao indivíduo o acesso a
condições adequadas de alimentação e nutrição, tal como ocorre em desastres naturais
(enchentes, secas, etc.) ou em circunstâncias estruturais de penúria, incumbe ao Estado,
sempre que possível, em parceria com a sociedade civil, assegurar ao indivíduo a
concretização desse direito, o qual é considerado fundamental à sua sobrevivência. A atuação
do Estado, em tais situações, deve estar atrelada a medidas que objetivem prover as condições
para que indivíduos, familiares e comunidade logrem êxito em se recuperar, dentro do mais
breve ínterim, a capacidade de produzir e adquirir sua própria alimentação. “Os riscos
nutricionais, de diferentes categorias e magnitudes, permeiam todo o ciclo da vida humana,
desde a concepção até a senectude, assumindo diversas configurações epidemiológicas em
função do processo saúde/doença de cada população” (BRASIL, 2011, p. 11). Hirai (2011, p.
24) aponta que os elementos integrativos do conceito de segurança alimentar e nutricional
foram se ampliando e passam, em razão da contemporânea visão, a extrapolar o entendimento
ordinário de alimentação como simples forma de reposição energética. Convém destacar que,
no território nacional, o novo conceito de segurança alimentar foi consolidado na I
Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em 1994.
No cenário nacional, as ações voltadas a garantir a segurança alimentar dão em
consequência ao direito à alimentação e nutrição, ultrapassando, portanto, o setor de Saúde e
recebe o contorno intersetorial, sobretudo no que se refere à produção e ao consumo, o qual
compreende, imprescindivelmente, a capacidade aquisitiva da população e a escolha dos
alimentos que devem ser consumidos, inclusive no que tange aos fatores culturais que
interferem em tal seleção. Em tal cenário, verifica-se que o aspecto conceitual de Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN), justamente, materializa e efetiva o direito de todos ao acesso
regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade satisfatória, de modo a não

532
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

comprometer o acesso a outras necessidades essenciais da dignidade da pessoa humana.


“Nunca é demais lembrar que o direito humano à alimentação adequada tem por pano de
fundo as práticas alimentares promotoras de saúde, atinentes à diversidade cultural e que
sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis” (MEDEIROS; SILVA; ARAÚJO,
s.d., p. 34).
Atualmente, consoante Hirai (2011, p. 24), as atenções se voltam para as dimensões
sociais, ambientais e culturais que estão atreladas na origem dos alimentos. Ademais, a
garantia permanente de segurança alimentar e nutricional a todos os cidadãos, em decorrência
da amplitude e abrangência das questões que compreende, passa a reclamar diversos
compromissos, tais como: políticos, sociais e culturais, objetivando assegurar a oferta e o
acesso universal a alimentos de qualidade nutricional e sanitária, atentando-se para o controle
da base genética do sistema agroalimentar. O diploma legal supramencionado estabelece que
a segurança alimentar e nutricional consiste na realização na realização do direito de todos ao
acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que haja
comprometimento do acesso a outras necessidades essenciais, tendo como fundamento
práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam
ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Destaca Ribeiro (2013, p. 38) que
o direito humano à alimentação adequada não consiste simplesmente em um direito a uma
ração mínima de calorias, proteínas e outros elementos nutritivos concretos, mas se trata de
um direito inclusivo, porquanto deve conter todos os elementos nutritivos que uma pessoa
reclama para viver uma vida saudável e ativa, tal como os meios para ter acesso.
A partir da Lei Orgânica da Segurança Alimentar (LOSAN), a segurança alimentar
e nutricional passou a abranger a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio
de produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da
industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do
abastecimento e da distribuição dos alimentos, compreendendo a água, bem como a geração
de emprego e da redistribuição de renda. A locução supramencionada compreende a
conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos, bem como a promoção
da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se os grupos populacionais
específicos e populações em situação de vulnerabilidade sociais. A LOSAN abrange, ainda, a
garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como
seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que

533
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população. Está inserido na rubrica em


análise a produção de conhecimento e o acesso à informação, bem como a implementação de
políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e
consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País. A visão
existente em torno do DHAA alcança como ápice, em sede de ordenamento jurídico interno, a
Emenda Constitucional nº 64/2010 responsável por introduzir na redação do artigo 6º, o
direito fundamental em comento.

3. A TRÍADE CARACTERÍSTICA DO DHAA

Para a consecução do DHAA, é importante explicitar que o alimento deve reunir


uma tríade de aspectos característicos, a saber: disponibilidade, acessibilidade e adequação.
No que concerne à disponibilidade do alimento, cuida destacar que, quando requisitado por
uma parte, a alimentação deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção
de alimentos, o cultivo da terra e pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo
da pesca, caça ou coleta. Além disso, o alimento deve estar disponível para comercialização
em mercados e lojas. A acessibilidade alimentar, por seu turno, traduz-se na possibilidade de
obtenção por meio do acesso econômico e físico aos alimentos. “La accesibilidad económica
significa que los alimentos deben estar al alcance de las personas desde el punto de vista
económico” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 03). Em relação à
acessibilidade, as pessoas devem ser capazes de adquirir o alimento para estruturar uma dieta
adequada, sem que haja comprometimento das demais necessidades básicas. A acessibilidade
física materializa-se pela imperiosidade dos alimentos serem acessíveis a todos, incluindo
indivíduos fisicamente vulneráveis, como crianças, enfermos, deficientes e pessoas idosas.
A acessibilidade do alimento estabelece que deve ser assegurado a pessoas que estão
em ares remotas e vítimas de conflitos armados ou desastres naturais, tal como a população
encarcerada. Renato Sérgio Maluf, ao apresentar sua conceituação sobre segurança alimentar
(SA), faz menção ao fato de que se deve considerar aquela como “condições de acesso
suficiente, regular e a baixo custo a alimentos básicos de qualidade. Mais que um conjunto de
políticas compensatórias, trata-se de um objetivo estratégico [...] voltado a reduzir o peso dos
gastos com alimentação” (1999, p. 61), em sede de despesas familiares. Por derradeiro, o
alimento adequado pressupõe que a oferta de alimentos deve atender às necessidades

534
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

alimentares, considerando a idade do indivíduo, suas condições de vida, saúde, ocupação,


gênero etc. “Los alimentos deben ser seguros para el consumo humano y estar libres de
sustancias nocivas, como los contaminantes de los procesos industriales o agrícolas,
incluidos los residuos de los plaguicidas, las hormonas o las drogas veterinarias”
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 04). Um alimento adequado, ainda,
deve ser culturalmente aceitável pela população que o consumirá, inserido em um contexto de
formação do indivíduo, não contrariando os aspectos inerentes à formação daquela.

4. ALIMENTOS TRANSGÊNICOS: INCERTEZAS NO FUTURO

Nas últimas décadas, o desenvolver e o emprego dos organismos geneticamente


modificados, ou simplesmente transgênicos, em larga escala na agricultura têm se amparado
sob três principais argumentos: a preservação do meio ambiente, o aumento da produção para
combater a fome e a redução dos custos de produção. Organizações governamentais e
intergovernamentais têm planejado estratégias e protocolos para o estudo da segurança de
alimentos derivados de cultivos geneticamente modificados. É nessa linha que verificasse a
necessidade de alertar os cidadãos sobre as “verdades científicas” veiculadas nas mídias ou
nos discursos políticos sociais. Ribeiro e Marin discutem que:

Ainda hoje, pesquisas e estudos que envolvem os potenciais riscos ao consumo


humano de AGM ainda são muito restritos. No entanto, existem estudos sobre o
efeito da ingestão de soja Roundup Ready em ratos, que demonstraram em análises
ultraestruturais e imunocitoquímica, alterações em células acinares do pâncreas
(redução de fatores de "splicing" do núcleo e do nucléolo e acúmulo de grânulos de
pericromatina); em testículos (aumento do número de grânulos de pericromatina,
diminuição da densidade de poros nucleares e alargamento do retículo
endoplasmático liso das células de Sertoli), havendo a possibilidade de tais efeitos
estarem relacionados ao acúmulo de herbicida presente na soja resistente, além de
alterações em hepatócitos (modificações na forma do núcleo, aumento do número
de poros na membrana nuclear, alterações na forma arredondada do nucléolo,
indicando aumento do metabolismo) sendo potencialmente reversíveis neste último
grupo de células (RIBEIRO; MARIN, 2012, p.362).

A temática dos transgênicos cobre um conjunto de domínios e aspectos sociais,


econômicos culturais e ambientais. A grande questão que vem sendo levantada é o quão
seguras são essas tecnologias, se elas estão de acordo com o Guia Internacional para
Segurança em Biotecnologia (IGSB) aceito pelo Programa Ambiental das Nações Unidas
(MOSS, 2008, s.p.). Ultimamente, os assuntos dos adeptos do princípio da precaução forçam
os governos de muitos países incluindo o Brasil, a modificar suas políticas e desistir da

535
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

produção de variedades geneticamente modificadas. Assegura Rubens Onofre Nodari (2003)


sobre o assunto, que os testes de segurança são conduzidos caso a caso e modelados para as
características específicas das culturas modificadas e as mudanças introduzidas através da
modificação genética. Todavia o mesmo autor salienta que o maior problema na análise de
risco de organismos geneticamente modificados, é que seus efeitos não podem ser previstos
na sua totalidade. Os riscos à saúde humana incluem aqueles inesperados, alergias, toxicidade
intolerância. No ambiente, as consequências são a transferência lateral (horizontal) de genes, a
poluição genética e os efeitos prejudiciais aos organismos não alvos.
Estudos elaborados por Costa (2007) apontam que, todos os fenômenos e eventos
indesejáveis resultantes do crescimento e consumo dos organismos geneticamente
modificados podem ser classificados em três grupos de risco: alimentares, ecológicos e
agrotecnológicos. Os riscos alimentares compreendem: a) efeitos imediatos de proteínas
tóxicas ou alergênicas do OGM; b) riscos causados por efeitos pleiotrópicos das proteínas
transgênicas no metabolismo da planta; c) riscos mediados pela acumulação de herbicidas e
seus metabólitos nas variedades e espécies resistentes; d) risco de transferência horizontal das
construções transgênicas, para o genoma de bactérias simbióticas tanto de humanos quanto de
animais. Os riscos ecológicos abarcam: a) erosão da diversidade das variedades de culturas
em razão da ampla introdução de plantas GM derivadas de um grupo limitado de variedades
parentais; b) transferência não controlada de construções, especialmente daquelas que
conferem resistência a pesticidas e pragas e doenças, em razão da polinização cruzada com
plantas selvagens de ancestrais e espécies relacionadas. Os possíveis resultados são o declínio
na biodiversidade das formas selvagens do ancestral; c) risco de transferência horizontal não
controlada das construções para a microbiota da rizosfera; d) efeitos adversos na
biodiversidade em razão de proteínas transgênicas tóxicas, afetando insetos não alvos, assim
como a microbiota do solo, rompendo desta forma a cadeia trófica; e) risco de rápido
desenvolvimento de resistência às toxinas implantadas no transgênico por insetos fitófagos,
bactérias, fungos e outras pragas devido à pesada pressão seletiva; f) riscos de cepas altamente
patogênicas de fitovírus emergirem em razão da interação do vírus com a construção
transgênica que é instável no genoma dos organismos receptores e, portanto, são alvos mais
prováveis para recombinação com DNA viral.
No que compete aos riscos agrotecnológicos, é possível explicitar: a) riscos de
mudanças imprevisíveis em propriedades e características não alvo das variedades GM e em

536
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

razão dos efeitos pleiotrópicos de um gene introduzido; b) riscos de mudanças transferidas


nas propriedades de variedade GM que deveriam emergir depois de muitas gerações em razão
da adaptação do novo gene ao genoma, com manifestação da nova propriedade pleiotrópica e
as mudanças já citadas; c) Perda da eficiência do transgênico resistente a pragas em razão do
cultivo extensivo das variedades GM por muitos anos; d) possível manipulação da produção
de sementes pelos donos da tecnologia “terminator”. Entretanto, observa-se que a
preocupação com a produção e utilização dos OGM por sua vez, e a combinação de riscos
complexos e incertos com a existência de vulnerabilidades sociais e ambientais, torna ainda
mais explosiva a necessidade da dialética entre produção-destruição inerente aos atuais
modelos de desenvolvimento econômico e tecnológicos.

CONCLUSÃO

Alimentar-se é muito mais do que a mera ingestão de alimentos. É, conforme o


artigo 2º da LOSAN, a materialização de um direito fundamental do ser humano, inerente à
dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na
Constituição Federal, devendo o Poder Público adotar as políticas e ações que se façam
necessária para promover a segurança alimentar e nutricional da população. O ato de
alimentação requer a presença de alimentos em qualidade, em quantidade e de maneira
regular, a fim de que haja concretização do ideário de dignidade que reveste a vida humana. A
reunião dos três pilares materializa o ideário de segurança alimentar e nutricional e direito
humano à alimentação adequada. Denota-se que está se valendo da premissa de acesso de
alimentos, o que é diferente de disponibilidade de alimentos, já que esses podem estar
disponíveis, mas as populações mais pobres podem não ter acesso a eles, em decorrência da
renda ou outros fatores.
Dentro de tal temática, a utilização de organismos geneticamente modificados ganha
especial destaque, sobretudo sua incorporação na temática de segurança alimentar e
nutricional. Por se tratar de uma nova tecnologia e considerando o reduzido conhecimento
científico a respeito dos riscos de OGMs, torna-se indispensável que a liberação de plantas
transgênicas para plantio e consumo, em larga escala, seja precedida de uma análise criteriosa
de risco à saúde humana e do efeito desses produtos e serviços ao meio ambiente, respaldadas
em estudos científicos, conforme prevê a legislação vigente. Assim, normas adequadas de

537
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

biossegurança, licenciamento ambiental, e mecanismos e instrumentos de monitoramento e


rastreabilidade são necessários para assegurar que não haverá danos à saúde humana, animal e
ao meio ambiente. Também são imprescindíveis estudos de impacto socioeconômicos e
culturais, daí a relevância da análise da oportunidade e conveniência que uma nação deve
fazer antes da adoção de qualquer produto ou serviço decorrente da transgenia.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Relatório Anual da Comissão Especial de Monitoramento de Violação do Direito Humano à


Alimentação Adequada. Brasília: SDH, 2011.

CASTRO, Josué. Fome: um tema proibido. CASTRO, Ana Maria de (org.). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.

____________. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1984.

COSTA, Thadeu Estevam Moreira Maramaldo et all. Avaliação de Risco dos Organismos Geneticamente
Modificados. Ciências e Saúde Coletiva, n. 16, v. 1, 2007; p. 327-336. Disponível em:
<http://www.scielosp.org>. Acesso em 20 set. 2017.

HIRAI, Wanda Griep. Segurança Alimentar: Em tempos de (in) sustentabilidades produzidas. Jundiaí: Paco
Editorial, 2011.

MALUF, Renato Sérgio. Economia de Rede. O Papel da Distribuição e a Problemática da Segurança Alimentar.
In: ___________; WILKINSON, John (org.). Reestruturação do Sistema Agroalimentar. Rio de Janeiro:
REDCAPA, 1999.

______________. Fome, desnutrição e cidadania: inclusão social e direitos humanos. Saúde e Sociedade, v. 12, n.
1, p. 51-60, jan.-jun. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em 20 set. 2017.

MEDEIROS, Robson A. de; SILVA, Eduardo P.; ARAÚJO, Jailton M. de. A (in) segurança alimentar e
nutricional no Brasil e o desenvolvimento humano. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br>. Acesso em 20
set. 2017.

MOSS, Bob. Genetically Modified Organisms (GMOs): Transgenic Crops and Recombinant DNA Technology,
2008. Disponível em: <http://www.nature.com>. Acesso em 18 mai.2015.

NODARI, R. O.; GUERRA, M. P. Plantas transgênicas e seus produtos: impactos, riscos e segurança alimentar.
Revista Nutrição, n. 16, v. 1, 2003, p. 105-116. Disponível em: <http://www.scielo.br> Acesso em 20 set. 2017.

OLIVEIRA, Juliana Souza et all. Insegurança Alimentar e estado nutricional de crianças de São João do Tigre, no
semi-árido do Nordeste. Revista Brasileira de Epidemiologia, a. 12, n. 3, p. 413-423, 2009. Disponível em:
<http://www.scielosp.org>. Acesso em 20 set. 2017.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. El derecho a la alimentación adecuada. Disponível em:


<http://www.ohchr.org >. Acesso 20 set. 2017.

PODESTÁ, Olívia Perim Galvão de. Programa Bolsa de Família e a Segurança Alimentar e Nutricional: O Caso
do Município de Anchieta-ES. 139f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local) –
EMESCAN, Vitória, 2011.

538
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

RIBEIRO, Isabelle Geoffroy; MARIN, Victor Augustus. A falta de informação sobre os Organismos
Geneticamente Modificados no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, n. 17, v. 2, 2012, p. 359-368. Disponível em:
<http://www.scielo.br>. Acesso em 20 set. 2017.

RIBEIRO, Ney Rodrigo Lima. Direito Fundamental Social à Alimentação Adequada: Análise com ênfase no
ordenamento jurídico brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013.

ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: geopolítica da fome. PAULO NETTO, José (trad.). São Paulo: Cortez
Editora, 2013.

539
A DIVULGAÇÃO DAS OPERAÇÕES DA POLICIA FEDERAL:
DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO,
LIBERDADE DE IMPRENSA E INTERESSE PÚBLICO

SANTOS, Denis Ribeiro dos


Doutorando do PPGJA/UFF

RESUMO

Discute a divulgação de notícias sobre a persecução penal e o direito de acesso à informação, diante do
direito à privacidade e o interesse social. Aborda os efeitos do interesse particular e interesse coletivo e
geral em face do acesso à informação. Discute o direito à informação face à liberdade de imprensa e o
direito de imagem. Aborda a boa fé na liberdade de imprensa sob a perspectiva da ética habermasiana.

Palavras-Chave. Persecução penal. Acesso à informação. Liberdade de imprensa. Inquérito policial.

INTRODUÇAO

A divulgação pela imprensa sobre a execução dos trabalhos das polícias (civil,
federal e militar) preocupa uma parcela da população nos dias de hoje, mas em tempos outros
muitos clamaram pela publicidade de sua prisão como forma de ser novamente encontrado.
Independentemente da divulgação da imagem, a preocupação no período da ditadura militar
era o de não ser levado na calada da noite (ou do dia) e depois nunca mais ser visto. Um
exemplo disso foi o caso de Rubens Paiva, cuja filha buscou apoio na imprensa nacional e
internacional para salvar os pais que haviam sido levados à prisão pelos militares.1

1
- Rubens Paiva foi deputado federal pelo estado de São Paulo. Com o Regime Militar, foi cassado e exilado,
tendo voltado ao Brasil clandestinamente. Foi levado de sua residência na zona sul da cidade do Rio de Janeiro e
nunca mais foi visto. Sua esposa e filha (Eliana Paiva) foram levadas para uma unidade do Exército no mesmo
dia; tendo a primeira ficado 12 dias em poder dos militares e a segunda (menor de idade na época) permanecido
no calabouço por 24 horas. Eliana Paiva narra que procurou apoio da imprensa; principalmente a imprensa
internacional, para tentar a soltura de seus pais. Sua mãe retornou ao seio familiar após doze dias na prisão, mas
seu pai nunca mais foi visto. De acordo com a entrevista concedida, houve até dificuldade em provar que o
deputado cassado havia sido levado pelos servidores do regime militar; o que só foi possível através da exibição
do recibo de entrega do veículo do desaparecido, que estava no pátio do Doi-Codi do Rio de Janeiro. Entrevista
disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/pela-primeira-vez-filha-de-rubens-paiva-conta-que-passou-
4120922. Acessado em 30.set.2014.

540
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Buscando dar segurança ao cidadão que é preso, o legislador constituinte de 1988


incluiu artigos que garantem o direito de comunicação com advogado e com a família. Criou,
também, a obrigatoriedade de comunicação das prisões ao Ministério Público, ao Juiz
Criminal. Nesse direito/dever de comunicação está incluída a liberdade de a imprensa
divulgar os fatos, no dizer do artigo 5º, inciso LX que “a lei só poderá restringir a
publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o
exigirem;”.
Discute-se a exposição pela imprensa das pessoas presas em operações policiais,
bem como no caso de prisão em flagrante, com o fito de preservar a imagem da pessoa, mas
contrariamente do que pensa a maioria, a submissão aos princípios da transparência e da
publicidade, previstos nos artigos 5º, inciso XXXIII e 37, ambos da Constituição Federal,
também alcança os órgão de governo responsáveis pela persecução penal.
Nesse sentido foi editada a Lei nº 12.527/2011:

dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito


Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto
no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da
Constituição Federal. (grifo do original)2

Além do direito de acesso à informação, a lei prevê a obrigatoriedade da divulgação,


o que é feito nos sítios dos órgãos públicos, isentando, em parte, dessa obrigação, apenas os
municípios com menos de 10 mil habitantes.
Assim, o acesso à informação conquistou o status de direito previsto na Carta
Magna, bem como a liberdade de expressão, nos moldes de diversos institutos internacionais,
dentre os quais aquele vigente na União Européia, que traduz a liberdade de expressão como
o direito de receber e de comunicar informações e idéias sem a ingerência da autoridade
pública (MENDEL, 2009).
Sendo a investigação policial ato do poder público da administração direta, deve
adequar-se aos mandamentos contidos na lei sob comentário, conforme exporemos em
seguida.
O objetivo do presente trabalho é de apresentar argumentações, a partir da
perspectiva habermasiana sobre a divulgação dos atos da administração pública,

2
Artigo primeiro da Lei nº 12.527/2011, que submete aos Poderes das três esferas de governo e mais ao
Ministério Publico e os Tribunais de contas os princípios da publicidade e do acesso à informação.

541
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

principalmente aqueles relacionados à persecução penal, que dão causa à demandas judiciais
por reparação de danos morais, tendo-se como base discussões sobre: esfera pública e
privada para efeito de divulgação; direito de informação e liberdade de imprensa; efeitos
fastos e nefastos da mídia e; ética e moral na divulgação de fatos.
Para atingir tal objetivo traremos fragmentos históricos, sociais e filosóficos a partir
do referencial teórico habermasiana, numa tentativa de tentaremos externar nossa
compreensão ao entendimento de Sylvia Moretzshon, de que “O exercício do jornalismo é
basicamente o respeito à realidade factual”3 e, por fim, argumentar sobre efeito fasto e/ou
nefasto na divulgação dos atos praticados pelos órgãos responsáveis pela persecução penal.

1. O QUE É PÚBLICO E O QUE É PRIVADO PARA EFEITO DO DIREITO DE


INFORMAÇÃO

O direito à informação visa dar oportunidade ao indivíduo de saber sobre o que


consta a seu respeito nos arquivos da administração pública. Também visa dar conhecimento
à coletividade sobre atos da administração para possibilitar que sejam fiscalizados, em
obediência aos princípios constitucionais inscritos, principalmente, no artigo 37 da Carta
Magna; quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A investigação criminal, vinculada ao direito público (direito processual penal)
subordina-se ao princípio da transparência e ao princípio da publicidade. Como a sociedade é
composta por indivíduos, têm-se pessoas privadas reunidas em torno do interesse público,
como na esfera pública burguesa em que pessoas privadas que nela se relacionam entre si
como público (HABERMAS, 2003, p. 43). Essa relação ambígua faz com que o indivíduo
reivindique privacidade quando se encontra em situação da esfera pública e se vê exposto pela
imprensa, tendendo a reivindicar situação da vida privada.
Habermas (2003, p. 45) facilita o entendimento ao indicar a separação entre o setor
privado e a Esfera do Poder público, deixando a esfera pública política e a esfera pública
literária numa espécie de zona intermediária. Nesse esquema o filósofo indica que as
situações do setor privado se verificam na sociedade civil e no espaço íntimo da família; a da
esfera pública é revelada com as atividades típicas do Estado (exercício do poder de polícia),

3
Nota de aula em: UFF .dez.2013.

542
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

assim como na sociedade de corte. Na zona intermediária fica a esfera pública política, a
esfera pública literária e o mercado de bens culturais que formam a chamada opinião pública.
Trazendo para o “mundo da vida” essas distinções verifica-se o ponto a partir do
qual deve-se preservar o indivíduo da divulgação de informações pela imprensa, pois se se
levar em consideração as informações que o Estado detém sobre pessoas (registro de
nascimento, arquivos de institutos de identificação, identificação cível, criminal, informações
funcionais, etc.) trata-se de dados da vida privada cadastráveis no serviço público – estes
abrangidos pelo interesse particular - enquanto as informações voltadas para a esfera pública
são aquelas de interesse coletivo ou geral, portanto passíveis de divulgação nos sítios dos
órgãos públicos, ou na imprensa em geral, dependendo de sua repercussão no interesse da
sociedade.
É aí que se posicionam os atos da persecução penal; sobre os quais podem ser
exercidos, com menos limite, o direito de informação e a liberdade de imprensa, posto que
sua divulgação melhor atende aos interesses da coletividade.

2. INTERESSE PARTICULAR E INTERESSE COLETIVO OU GERAL4 PARA


EFEITO DE ACESSO A INFORMAÇÃO

O tipo de interesse tem ditado a ocorrência de dano ou prejuízo na vida do indivíduo


ou à sociedade. Seguindo os ensinamentos de Habermas acima expostos e comparando com o
texto de LAI (Lei de Acesso à Informação), tem-se que o interesse particular se classificaria
como sendo do setor privado; enquanto o interesse coletivo ou geral se classificaria como
sendo da Esfera do Poder Público e da esfera do poder político, tudo levando a crer que a
situação estritamente particular é de menos interesse para divulgação e conseqüentemente tem
causado menos impacto.
Carvalho (1999, p. 7) aborda o tema sob o título de Interesse Público e Interesse
Privado, mencionando Nelson Saldanha5 que equipara o interesse público à Praça e o
interesse privado ao jardim.

4
A Constituição Federal, no artigo 5º,inciso XXXIII trata do tema sob a denominação interesse particular e
interesse coletivo e geral; enquanto a Lei nº 12.527/2011 (LAI – Lei de Acesso à Informação) cita entidades
privadas de um lado e ações de interesse público de outro.
5
SALDANHA, Nelson. O Jardim e a Praça: Ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e
Histórica.

543
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2.1. SETOR PRIVADO X INTERESSE PARTICULAR

O setor privado se refere à sociedade civil (setor de troca de mercadorias e os locais


de trabalho), bem como ao espaço familiar (HABERMAS,2003, p.45), enquanto que no texto
da LAI (Lei de Acesso à Informação)6a menção correlata está definida no artigo 4º, inciso
“IV – informação pessoal: aquela relacionada à pessoa natural identificada ou
identificável;” . É nesse compasso que caminhou o Código Civil Brasileiro, que no seu artigo
20 protege a imagem da pessoa natural de qualquer divulgação que não esteja devidamente
autorizada, salvo se tal publicação for do interesse da administração da justiça ou para
manutenção da ordem pública. As demais definições se adéquam ao conceito habermasiano
de Esfera do Poder Público ou esfera do poder político, correlatos à administração direta ou
indireta.

2.2. ESFERA DO PODER PÚBLICO E DA ESFERA DO PODER POLÍTICO

Os termos correlatos aos conceitos habermasianos na Lei de Acesso à informação


dizem respeito aos órgãos públicos integrantes da administração direta dos três poderes, aí
incluindo os tribunais de contas e o ministério público, para Esfera do Poder Público e;
administração indireta (fundações públicas, empresas públicas, sociedade de economia mista
e demais entidades controladas direta ou indiretamente pelas três esferas de governo – União,
Estados, Distrito Federal e Municípios), estas, quase sempre, relacionadas à esfera do poder
político.
Nesse seguimento torna-se necessário a constante fiscalização do cumprimento dos
princípios constitucionais da administração pública somado ao princípio da publicidade,
acrescentando a liberdade de imprensa que, a nosso ver, melhor atende ao interesse geral e
coletivo.

2.2.1. DIREITO À INFORMAÇÃO X LIBERDADE DE IMPRENSA

As informações veiculadas em obediência aos termos da Lei de Acesso à


Informação são tímidas e colocadas, sem detalhes, para a sociedade, posto que os agentes
públicos filtram as informações e só divulgam aquilo que pensam que deve ser sabido e na

6
Lei nº 12.527/2011

544
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

medida em que acham que deve ser sabido. É nesse espaço entre a informação filtrada e
aquilo que deve ser sabido que entra a liberdade de imprensa.
A liberdade de imprensa avança mais. Apesar do jornalista, em parte, agir com o
mesmo ânimo limitador do agente público – no sentido de publicar aquilo que pensa que deve
ser sabido – aplica a teoria de Marx7 no sentido de apropriar-se da informação disponível por
força de lei e nela incorporar determinada quantidade de trabalho de forma a transformá-la
numa mercadoria; ou seja: enquanto a informação é o produto, a matéria jornalística é a
mercadoria. A informação agregada de valor gera o conhecimento.
Verifica-se no portal da Polícia Federal – exemplo de transparência ativa - a
publicação do resumo das operações que foram deflagradas, mas o conteúdo não é suficiente
para prestar o esclarecimento que numa matéria jornalística se presta.
Daí há de surgir o questionamento se o acesso à informação - conforme cumprido
pelos órgãos públicos - está atingindo a função social vislumbrada pelo legislador, ou melhor;
como necessitam os concernidos. É sabido que quase todo o trabalho de persecução penal é
feito com utilização de meios tecnológicos (monitoramento telefônico, escuta ambiental, etc)
que permitem à descoberta de fragmentos de informações que requer dos órgãos envolvidos a
agregação de mais trabalho para que seja produzida uma informação pronta para ser acessada
e processada jornalisticamente.
Carvalho (1999, p.81/86) afirma que a expressão liberdade de imprensa é
ultrapassada, posto que o termo remete à invenção da máquina por Gutemberg. Diz que, para
os dias atuais, a expressão mais acertada é informação jornalística em função dos vários
meios e órgãos de comunicação que dispomos:

Mas a expressão não lhe presta mais, não é suficiente para designar um complexo
de relações jurídicas em que se transformou a imprensa na sociedade moderna. A
sua atividade característica – a informação de fatos – hoje é exercida por vários
outros meios ou órgãos, como a televisão, o rádio, a internet e quem sabe tantos
outros que ainda surgirão. Por isso, não é mais justificável tratar-se de imprensa este
tipo de informação responsável pela divulgação de fatos. Melhor mesmo concebê-
la como informação jornalística.8

O autor justifica o uso do termo imprensa apenas como reconhecimento romântico


da época em que a imprensa, em toda parte do mundo:

7
MARX, Karl. Manuscritos econômicos –filosóficos e outros textos escolhidos (Salário,Preço e Lucro), pag.80
8
Obra citada, p. 81/82

545
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

[...] lutou contra alguém ou contra um sistema, geralmente inimigos poderosíssimos


que a golpearam por todos os lados e de todos os modos. Os governantes poder ter
caído, os jornais podem ter sido fechados, os jornalistas podem ter sido fuzilados...
mas a instituição imprensa sobreviveu a tudo e tornou-se indispensável à sociedade.
Desse modo, é compreensível e até justo manter-se o termo e, se isso ocorrer aqui,
credite-se também a esse tributo. Mas, por uma questão de rigor, deve-se preferir a
expressão informação jornalística.9

Verifica-se que a imprensa ainda encontra resistência. Às vezes a liberdade para


divulgação dos fatos depende de quem sejam os atores, daí resultando os efeitos da
divulgação de tema sobre a persecução penal.

3. A PERSECUÇÃO PENAL: INTERESSE E DIVULGAÇÃO

As atividades da polícia sempre chamaram atenção da imprensa, sendo que mais


comuns são aquelas notícias cotidianas apuradas nas delegacias de polícia civil ou da
atividade da polícia militar. Nos últimos 20 anos, a Polícia Federal tem chamado atenção da
imprensa, especialmente nas chamadas “Operações Policiais”, quase sempre, realizadas com
utilização de monitoramento telefônico e escuta ambiental.
Nesse sentido palestrou o magistrado Abel Gomes – Desembargador do Tribunal
Regional Federal da 2ª Região, quando do Seminário de 25 anos do Tribunal, afirmando que
nas décadas de 80 e 90 as ações da Polícia Federal e, conseqüentemente, os processos penais
que tramitavam na Justiça Federal, quase sempre, diziam respeito ao contrabando e
descaminho, falsificação de passaportes; daí não se falar em suspeitos bem posicionados
socialmente. A partir de quando as investigações descambaram para os crimes financeiros,
crimes contra a administração publica de grande monta, nas quais figuram como suspeitos
desde o operário mais simples de um aeroporto até o comandante de uma aeronave; desde o
mais humilde serventuário da justiça até o presidente do tribunal; desde o porteiro até o
presidente de uma casa legislativa, etc., o foco de atenção dos trabalhos da Polícia e Justiça
Federal passou ganhar mais espaço na mídia em geral e com isso vieram os casos de
demandas por danos morais, isso na tentativa de afastar do povo o direito a informação:

Mas logo depois o Congresso começou a promulgar as leis que alteraram essa
configuração. No rol de novas normas, Abel Gomes citou as Leis 9.034, de 1995,
que tipifica e prevê punições para o crime organizado, a 9.296, de 1996, que regula
as interceptações telefônicas, a 9.613, de 1998, sobre o crime de lavagem de

9
Idem, p. 82

546
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

dinheiro, e, ainda, a 9.605, também de 1998, que cuida dos crimes contra o meio
ambiente.
A partir daí, e da intensa atuação que a Polícia Federal começou a desenvolver
ancorada nessas normas, tornou-se possível processar e julgar os acusados de
crimes de grande poder lesivo à ordem e à economia públicas: “Notadamente,
depois de 2003, verificamos uma sensível mudança de paradigma. As ações
policiais, que até ali eram quase sempre isoladas e pontuais, passaram a se constituir
na forma de forças-tarefa, de ações orquestradas em vários Estados
simultaneamente, envolvendo setores de inteligência e o uso de aparatos
tecnológicos sofisticados”, afirmou.10

A partir da mudança de paradigma mencionada pelo magistrado também resultou na


mudança da clientela, como se afirmou acima. A atual clientela, quase sempre composta por
“personalidade pública”; ou seja: pessoa com destaque público, comparado ao nobre descrito
por Habermas (2003, p.26), cuja representatividade pública fica maculada com a divulgação
de sua boa ou má ação, de forma que reivindique por intimidade, privacidade e,
conseqüentemente o limite a atuação da imprensa.
Sérgio Cavalieri Filho11 ao prefaciar a obra de Carvalho (1999), afirma que a
liberdade de informação pode escudar empresas jornalísticas para que estas invadam a
intimidade alheia e divulgue fatos da vida privada, vindo até provocar decisões judiciais
conflituosas e contraditórias. E referindo-se à obra prefaciada transcreve a passagem em que o
autor afirma que a informação “é a mais poderosa arma dos tempos modernos; quem detém
a informação, tem o poder”. E conclui dizendo que o direito de informar deve sofrer certo
limite para não comprometer o bem maior que é “o principio fundamental da dignidade
humana”.
É necessária a preocupação com o princípio da dignidade da pessoa humana, mas o
interesse individual, ainda que pareça violado, não deve prevalecer sobre o interesse da
sociedade, conforme a leitura que se pode fazer do artigo 93, inciso IX da Constituição
Federal:

IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e


fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente
a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no
sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 45, de 2004)

10
Disponível em: http://www10.trf2.jus.br/25anos/seminario-25-anos-da-justica-federal-da-2a-regiao-questoes-
penais-controversas-a-partir-da-constituicao-de-1988/. Acessado em: 01.fev.2015.
11
Carvalho (1999) – prefácio

547
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3.1. O DIREITO DE IMAGEM X DIREITO A INFORMAÇÃO

O direito da pessoa que é indicada como suspeita de cometer determinado crime


pode ser preservado, mas o direito da sociedade em tomar conhecimento de quem são os
possíveis inimigos do Estado deve prevalecer sobre o direito individual de imagem. Para o
bem da persecução penal, o processo criminal corre em sigilo até certo ponto – até a
elaboração do relatório pela autoridade policial - não sendo possível – nem devido - ocultar
da sociedade os temas que envolvem corrupção, desvio de verbas publicas, dentre outros
crimes que ameaçam o bem-estar geral. Deixar de divulgar algumas investigações, por vezes,
pode significar a impunidade, haja vista que o poder que a imprensa tem de trazer a baila
situações de injustiça. Cabe aqui o uso da frase proferida no discurso do integrante da
Comissão da Verdade da OAB/RJ, se referindo aos desmandos da ditadura militar, mas
ajustável, a nosso ver, à presente discussão: a sociedade "precisa saber dos fatos para que
eles não se repitam".12
A exposição de fatos devidamente apurados não atenta contra a dignidade da pessoa
humana, pois o indivíduo enquanto membro da sociedade também tira proveito da probidade
pública.
O que atenta contra a dignidade da pessoa humana, assim como atenta contra a
sociedade é a indevida interpretação dos elementos de prova e conseqüente desvirtuamento
dos fatos.
Nos relatórios de investigação, nas peças de denúncia e nas decisões judiciais
(sentenças e acórdãos) o compromisso deve ser com a verdade, abstendo-se o profissional que
estiver à frente da escrita, de manter-se distante de interpretações, silogismos e sofismas que
possam comprometer a imagem do investigado e que, posteriormente, a afirmação
apresentada venha a ganhar contornos diferentes e até mesmo ser refutada. Mais uma vez o
compromisso com verdade não é para com o investigado, mas para com a sociedade, pois
uma mentira contada em desfavor de um determinado cidadão pode ser contada em relação a
uma infinidade deles, o que causa a insegurança jurídica que deve ser evitada na sociedade. O
mesmo deve ocorrer na divulgação dos fatos, de forma a ficar bem claro o que é informação e
o que é opinião.

12
Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI158606,81042-
OABRJ+Campanha+pela+memoria +e+verdade+tem+novos+projetos. Acessado em: 20 mar. 2015.

548
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Levando-se em consideração a separação entre opinião e informação, a lei nº 12.527


orienta para que se dê a informação preservando-se a originalidade da fonte, posto que a
opinião, muitas vezes desprovida de elementos fáticos, vira fruto de interpretação e com isso
poderá viciar-se até chegar ao destino que é a sociedade como um todo.
Wittgenstein (2011), num de seus fragmentos, alerta para o vício da interpretação
sem o devido cuidado, uma vez que na interpretação emprestamos formas lingüísticas cuja
profundidade tem significado para nós, mas para os destinatários pode dar entendimento
diferente:

Os problemas que nascem de uma má interpretação de nossas formas lingüísticas


têm o caráter da profundidade. São inquietações profundas; estão enraizadas tão
profundamente em nós quanto as formas de nossa linguagem, e sua importância é
tão grande como a de nossa linguagem. – Perguntemo-nos: por que sentimos uma
brincadeira gramatical como profunda? (E isto, com efeito, é a profundidade
filosófica.)

3.2. BOA FÉ NA LIBERDADE DE IMPRENSA

Habermas (2013) devolve à discussão os efeitos do princípio da publicidade, que na


imprensa burguesa serviu, que teve, de início, a função de criticar as prática secreta do Estado
e foi “refuncionalizado” para atividades outras senão a de divulgar os fatos e evitar as ações
secretas, mas como meio manipulações políticas para todo e qualquer fim, como denunciado
por Carreira Alvim (2011), quando afirma que uma operação da Polícia Federal teve o único
propósito de afastá-lo da concorrência para o cargo de Presidente do Tribunal.
Alertamos no início desse trabalho que o propósito do princípio da publicidade e
transparência trazido na Constituição Cidadã serviu para descobrir a práxis das masmorras,
mas vem, também servindo para nefastos objetivos políticos, conforme escreveu o filósofo de
Düsseldorf:

[...] o princípio da publicidade, imposto inicialmento com uma função claramente


crítica contra a práxis secreta do Estado absolutista e ancorado nos procedimentos
dos órgãos do Estado de direito, foi refuncionalizado para finalidades
demonstrativas e manipulativas. Embora apresente tecnicamente um potencial de
libertação, a rede de comunicação, tecida de forma cada vez mais densa, das mídias
eletrônicas de massa é organizada hoje de tal modo que, em vez de servir para
submeter os controles sociais e estatais por seu turno a uma formação

549
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

descentralizada e discursiva da vontade, a qual é significativamente canalizada e


liberta de seus limites, controla antes a lealdade de uma população despolitizada.”13

Portando, se não se operar os fundamentos do Código de Ética dos Jornalistas14, não


se completa a entrega da informação, pois não se chega à conclusão de onde reside a razão; se
no argumento da acusação ou da defesa, posto que o meio termo faz aumentar a dúvida e a
desconfiança no sistema de persecução criminal
Se de um lado o acesso à informação garante um direito, a informação em si, se
precipitada, pode significar violação de direitos. Daí a necessidade de que a colheita e
divulgação das informações seja cercada pela moral e ética sob os auspícios dos imperativos
categóricos e ética habermasiana.
Com a afirmação de que “o exercício do jornalismo é basicamente o respeito à
realidade factual”15 e apresentando suas restrições ao papel da imprensa sensacionalista,
Moretzsohnn (2007) remete ao ensaio de Kant numa referência de que pode não existir essa
condenação através da mídia, mas uma possibilidade iluminista de levar o povo a pensar no
que, de fato, ocorre na esfera pública, e daí – num ato de auto libertação – tirar suas próprias
conclusões.
A liberdade de imprensa aliada ao direito à informação seria – pelo que entendemos
sobre o texto de Moretzsohnn – resultam no esclarecimento; mas não bastaria que um viesse
desacompanhado do outro em função da sujeição à menoridade que pode acompanhar a
informação, uma vez que essa é processada de acordo com o interesse da “repartição” - que

13
Teoria e práxis, página 29
14
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros: “Art. 2º Como o acesso à informação de relevante interesse público
é um direito fundamental, os jornalistas não podem admitir que ele seja impedido por nenhum tipo de interesse,
razão por que:
I - a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação e deve ser cumprida
independentemente de sua natureza jurídica - se pública, estatal ou privada - e da linha política de seus
proprietários e/ou diretores.
II - a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o
interesse público;
III - a liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a
responsabilidade social inerente à profissão;
IV - a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas, incluindo as não-governamentais, é uma
obrigação social.
V - a obstrução direta ou indireta à livre divulgação da informação, a aplicação de censura e a indução à
autocensura são delitos contra a sociedade, devendo ser denunciadas à comissão de ética competente, garantido o
sigilo do denunciante.” Disponível em: http://www.fenaj.org.br/materia.php?id=1811. Acessado em 25 mar.2015.
15
Anotado na aula ministrada em 02/12/2013 - UFF

550
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

elege o que o povo pode e deve saber – enquanto a liberdade de imprensa visa dar
conhecimento que permita o indivíduo a “pensar, ou pensar que está pensando”.
A junção de ambos – liberdade de imprensa e direito à informação – forma o
esclarecimento que “é a saída do homem de sua menoridade auto-imposta, isto é da sua
incapacidade de pensar por si próprio.” (pag. 111)
Portanto, liberdade de imprensa é, no dizer de Moretzsohnn (2007), o jornalismo
para esclarecer; enquanto ao direito à informação visa cumprir o rito da lei, sem extrair do
indivíduo a manifestação que expresse opinião.
Ao tratar de jornalismo, verdade e política Moretzsohnn referencia Hanna Arendt,
que bem esclarece o atual comportamento da mídia, diante de um suposto desaparecimento da
esfera do poder público e esfera privada, para a prevalência do poder político, como se
percebe, em que se retorna à prática da época original do jornalismo, quando grandes
comerciantes e empresários custeavam as publicações. Com as publicações bem pagas pelo
poder político criam-se vínculos de amizade e de negócios que comprometem a
imparcialidade da mídia jornalística, pois não há “isenção do interesse pessoal no
pensamento e no julgamento” (ARENDT, apud Moretzsohnn – página 116)

Há uma contradição aparente na permanência desse ideal, quando atualmente um


dos valores básicos para o jornalismo – embora muito problemático – é a
imparcialidade. Mas a contradição se desfaz se percebermos que a mudança incide
sobre o agente do esclarecimento; já não mais o sujeito (que defende causas), mas o
objeto (os “fatos”, que supostamente “falam por si”). Essa concepção começa a se
estabelecer em meados do século XIX, coerente com a concepção de ciência
prevalente à época e – como veremos adiante – com os objetivos empresariais
desse “negócio” que é a produção de jornais. É o que contribui para encobrir,
convenientemente, o caráter ideológico da atividade jornalística, juntamente com a
confusão a respeito do seu papel de mediador, fundado na conceituação clássica (e
idealista) de “quarto poder”, como se a imprensa fosse uma instituição acima das
contradições sociais, capaz de falar em nome de todos, indistintamente,
representando a sociedade contra os abusos do Estado.16

Lopes Filho (2011)17 aponta que são tantos as investigações que os delegados
tendem a escolher aquelas que prometem melhor destaque ao trabalho (na mídia), deixando

16
Op. Páginas 106/107
17
Entretanto, é fato que todas as dificuldades do IP são superadas, nos casos de maior repercussão midiática,
quando então recebe contornos de show, e seus protagonistas adquirem status de verdadeiras estrelas e astros de
televisão ou cinema: alguns assumindo o papel de vilões e de abomináveis encarnações do mal; outros, o papel de
pobres e indefesas vítimas; finalmente, existem ainda os “mocinhos” do enredo, quais sejam,, os representantes
estatais envolvidos no inquérito (investigadores, delegados, promotores), dispostos a desvendar a trama e a punir
os culpados, que, a essa altura do dramático enredo, de regra, já foram pré-julgados e punidos pela grande massa

551
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

outras – menos interessantes – entregues ao esquecimento. A escolha se faz por critério de


mídia; ou seja: aquilo que a mídia possa se interessar em divulgar. Cada Inquérito Policial –
que é a fase preliminar da persecução penal – é uma investigação e, na Polícia Federal, cada
inquérito tem potencialidade de vir a ser objeto de uma “operação”. Se fosse trabalhado o
número de inquéritos policiais, com a mesma desenvoltura; com a mesma aplicação de
recursos dispendidos nas “mega” operações; não se teria recursos e nem servidores
suficientes. Isso apenas na primeira fase da persecução penal. “Não sobraria pedra sobre
pedra”, tal a confusão que se verifica no tratar da coisa pública como se fosse coisa privada.
O mau uso das provas obtidas na persecução penal é um desses gargalos. É o atalho;
é o não cumprimento da lei; é o arranjo possível, pois a sutileza de que se aproveita a ação
criminosa permite a interposição de intermináveis recursos; protelatórios ou não, mas que
depois de longos anos do início da persecução penal viciada, resulta em anulação de todo o
trabalho, tendo como conseqüências a prescrição e a impunidade.
Os emblemáticos casos em que se aproveitou, plenamente, a prova obtida com
monitoramento telefônico e escuta ambiental, foram conjugados com diligências materiais. O
monitoramento telefônico, a nosso ver, aponta para a cogitação criminosa; nem mesmo
enquadra-se no conceito de tentativa. Se fosse assim, o uso de termos pejorativos, a conversa
de sedução deveriam ser punidos como estupro, atentado violento ao pudor, etc. Se em
conversa telefônica os investigados tratam sobre entrega de valores, cabe ao investigador, no
mínimo, encontrar o valor na mão do corrompido ou do corruptor; sob pena de não existir
qualquer tipo penal, a não ser que seja punível como cogitação ou tentativa.
Estamos diante de vários casos em que se divulga a cogitação como crime cometido,
e como as provas dos autos não se sustentam; tudo passa ser uma mentira só, ou pura calunia
e conseqüente difamação.
Temos o grande problema da origem da informação. Se a investigação não se calcar
em base sólida, todo o resto da persecução penal estará comprometido.
Partindo para o lado da economia, em que se fala de valor, para distinguir o produto
da mercadoria, temos que a informação é produto para os investigadores, assim como o
relatório de investigação tende a ser produto para o ministério público, cuja denúncia tende a
ser produto para o juiz. Cabe a cada um, a partir da moral e da ética, colocar seu trabalho

da opinião pública. LOPES FILHO, Ozéas Corrêa. Inquérito Policial: uma alternativa democrático-
discursiva para o modelo brasileiro. Dissertação. UFF/PPGSD. Niterói, 2011.

552
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sobre o produto e entregar mercadoria ao seguimento seguinte,para que a sociedade receba


uma sentença/mercadoria e assim seja atingido o objetivo social da persecução penal.
Ainda que a divulgação de fatos da investigação possa ser precipitada, no dizer de
Habermas (2001) a sociedade precisa saber dos fatos que ameaçam a probidade
administrativa. Isso não quer dizer que se possa divulgar tudo o que se entende como
criminoso, pois deve haver por parte de quem investiga, um aprofundamento da pesquisa
antes que o fato se torne público.

4. EFEITOS FASTO E NEFASTO DA LIBERDADE DE IMPRENSA

A utilidade de toda essa definição reside no efeito fasto ou nefasto que causará, após
a deflagração de uma operação policial de cumprimento de determinação judicial, fruto de
persecução penal na qual foi usado como meio de produção de provas o monitoramento
telefônico e/ou a escuta ambiental.
O efeito fasto da divulgação dos atos de polícia é a garantia do direito à informação,
previsto na Constituição Federal e nas leis infraconstitucionais. É bom que a sociedade saiba
quem são seus inimigos, posto que a divulgação de fatos criminosos têm sido mais eficaz que
o próprio encarceramento do indivíduo. Não faz retornar ao status quo anti, mas garante o
estancamento ou diminuição do prejuízo social.
O efeito nefasto só opera sobre as pessoas inocentes e injustiçados, posto que a
antecipação da divulgação sem a devida checagem causa dano irreparável ou de difícil
reparação.
O contrapeso opera em favor da sociedade, haja vista que se permitir somente o
sigilo, se estaria avalizando para que o criminoso permanecesse impune ou, no mínimo,
invisível; assim como a divulgação, ainda que precipitada pode dar oportunidade do inocente
apontar o real culpado, ou demonstrando sua inocência, abre os olhos para que se localize o
real culpado.
É fato que a imprensa tem seus pecados, mas sem seus olhos e bocas muitos crimes
caem no esquecimento e na impunidade.

553
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão que se chega, tomando por base os ensinamentos de habermasianos,


comparando com a práxis do mundo da vida que se tem revelado nas chamadas
espalhafatosas operações da Polícia Federal é que a divulgação pela imprensa, ainda que, em
tese, provoque uma espécie de condenação antecipada, provoca, de certa forma, um rearranjo
na esfera pública, com pouca interferência na esfera privada.
O rearranjo na esfera pública significa, a nosso ver, é revelador de que algo que não
restou efetivamente comprovado (ou provado) não estava caminhando bem. “Há algo de
podre no reino da Dinamarca”. Existia, de certa forma, vício de comportamento e postura
que, mesmo que não caracterize o crime que foi capitulado,
O texto bíblico abaixo aponta o cuidado prévio no qual a administração pública pode
se pautar, principalmente para que não tenha um poder da república que interferir no outro. A
vigília interna, sem corporativismo deve ser constante:

“Não deixe de corrigir seus filhos; a disciplina não lhes fará mal! Não morrerão se
você der uma surra neles! O castigo irá conservá-los longe do inferno.” Provérbios
23.13-14

Essa chamada de atenção serve para as Corregedorias dos órgãos do poder público,
pois a harmonia entre os poderes pressupõe que cada poder esteja exercendo seu mister com
moral e ética, para que não ocorram episódios como o da Operação Dominó18 em que agentes
dos Três Poderes foram presos e expostos, por circunstâncias naturais da democracia, à
imprensa.

"São os homens e não as leis que precisam mudar. Quando os homens forem bons,
melhores serão as leis. Quando os homens forem sábios, as leis por desnecessárias,
deixarão de existir. Mas isto, será possível somente, quando as leis estiverem
escritas e atuantes no coração de cada um de nós." – Hermôgenes

A tolerância administrativa obriga que se “tente matar mosca com tiro de canhão”.
“Parece que exagerar é preciso” quando os comportamentos chegam à raia do absurdo.
18
A Polícia Federal desencadeou em 04 de agosto, no estado de Rondônia, a Operação Dominó, para desarticular
uma organização criminosa que agia na Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia (ALE/RO) desviando
recursos públicos. O grupo também é acusado de exercer influência indevida e promíscua sobre agentes do Poder
Judiciário, Ministério Público, Tribunal de Contas e do Poder Executivo do Estado. Na operação foram presos
deputados estaduais, um procurador, o desembargador presidente do TJ/RO, além de um juiz de direito e
empresários. No total, 24 pessoas foram presas. Disponível em: http://www.dpf.gov.br/agencia/estatisticas/2006#
Dominó. Acessado em 20 mar.2015.

554
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Verifica-se a cada dia que muitas operações policiais serão necessárias para que se
dê bom rumo ao mundo, posto que, por todo lado, é notável os pequenos deslizes, que se
avolumam até se tornar insuportáveis. Na verdade o que está ocorrendo é apenas a
condenação pela imprensa; a condenação virtual, o que nos leva a indagar: A imprensa é o
único tribunal?
Se hoje o principal meio de prova criminal é o monitoramento telefônico, a escuta
ambiental, o uso de imagens, fotografias, etc; e estas não forem colhidas com a devida isenção
e seriedade, colocará por terra toda a utilidade da persecução penal. Estamos a enxugar gelo;
estamos a construir castelos de areia, pois se a prova não é bem produzido todo o trabalho só
poderá provocar o susto da deflagração da operação. Passado o “susto” da divulgação dos
fatos, os casos caem no esquecimento; a persecução penal se desacelera; todos descansam em
paz, inclusive os investigados, até que surjam outros fatos que possa dar repercussão.
Hansen (notas de aula) afirma que quando se inaugura um novo escândalo, o
anterior tende a cair no esquecimento. Ontem foi o “Mensalão”, hoje o “Petrolão”; não dá
tempo de se apurar até o fim, antes do próximo capítulo.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.


br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em 02.fev.2015.

______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/


2002/l10406.htm. Acessado em 10.jan.2015.

______. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2


011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acessado em 02.fev.2015.

ALVIM. J.E. Carreira. Operação Hurricane: um juiz no olho do furacão. Geração Editorial. São Paulo, 2011.

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de Informação e liberdade de expressão. Editora
Renovar. Rio de Janeiro, 1999.

HABERMAS, Jürgen. Teoria e Práxis: Estudos de filosofia social. Tradução e apresentação Rúrion Melo.
Editora UNESP. São Paulo, 2013.

______. Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quando uma categoria da sociedade
burguesa. Tradução Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

LOPES FILHO, Ozéas Corrêa. Inquérito Policial: uma alternativa democrático-discursiva para o modelo
brasileiro. Dissertação. UFF/PPGSD. Niterói, 2011.

MENDEL, Toby. Liberdade de informação: um estudo de direito comparado. UNESCO. 2ª Ed. Brasília,
2009.

555
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos: jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso
crítico. Editora Revan. Rio de Janeiro, 2007.

WITTGENSTEIN, Ludwig J.J.Investigações Filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. Editora Nova Cultural.
São Paulo, 1999.

556
O DIREITO NA SOCIOLOGIA

SANTANA, Gabriela T. M. da Hora


Estudante de Mestrado em Segurança Pública e Administração de Conflitos no Programa de Pós-Graduação de
Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).

RESUMO

Através da observação do cotidiano acerca das disparidades sociais que afligem determinados grupos e
da análise de dados que expõem a relação entre a igualdade formal e a realidade socialmente desigual,
surgiu o interesse de investigar mais a fundo as perspectivas que envolvem a questão da cidadania no
Brasil. A Política brasileira e as suas instituições refletem a baixa legitimidade da agenda de segurança
pública no conceito ampliado de direitos humanos e cidadania. No presente artigo será dada ênfase à
população vulnerável socialmente através do estudo da discriminação sofrida por esse grupo e da
exposição a determinadas situações sociopolíticas e jurídicas que ocorrem por não terem acesso ao
exercício pleno da sua cidadania.

Palavras-Chave. cidadania; segurança; vulnerabilidade

ABSTRACT

Through the observation of daily life about the social disparities afflicting certain groups and the
analysis of data that expose the relationship between formal equality and socially unequal reality, the
interest arose to investigate more deeply the perspectives that involve the issue of citizenship in Brazil.
The Brazilian policy and its institutions reflect the low legitimacy of the public security agenda in the
expanded concept of human rights and citizenship. This article will emphasize the socially vulnerable
population through the study of the discrimination suffered by this group and exposure to certain
socio-political and legal situations that occur because they do not have access to the full exercise of
their citizenship.

Keywords. citizenship; safety; vulnerability

557
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

A sensação de insegurança generalizada é um problema social e, diante desta


realidade, a manutenção da ordem tornou-se pauta importante dos debates políticos. No
entanto, diversos projetos que têm como objetivo a inclusão social e a formação cidadã de
pessoas pobres, moradoras das áreas consideradas violentas e expostas a situações de risco,
acabam não indo adiante na promoção da cidadania.
O caput do art. 5º da Constituição Federal apresenta o princípio da isonomia como
uma das cláusulas pétreas em relação aos direitos e garantias individuais dos cidadãos, mas
em uma sociedade tão díspar como a nossa, acredito ser de suma importância o estudo de uma
"igualdade material", na qual se discute o tratamento diferente dado aos indivíduos para
alcançar uma igualdade nos resultados através de uma "discriminação positiva" (tratando os
diferentes na medida da sua desigualdade).
A luta por direitos à igualdade tornou possível o debate acerca da inserção social,
ainda que formal, dos grupos marginalizados nas instâncias decisórias das instituições
públicas. Contudo, as ações do Estado Brasileiro não se apresentam efetivas na garantia do
funcionamento conjunto das instituições e da sociedade.
A deterioração das relações sociais e a precarização das formas de trabalho, que
ocorreram para atender as demandas do mercado, promoveram a ascensão desse “Estado
penal”. Porém, o controle que o Estado exerce sobre os diferentes grupos sociais é distinto:
enquanto os indivíduos mais pobres sofrem com uma maior intensidade na penalização, as
classes mais abastadas têm uma punição mais branda.
Desta forma, pretendo colaborar com o estudo multidisciplinar sobre a falta de
acesso à cidadania plena e a dificuldade que gera no reconhecimento dos indivíduos destas
classes vulneráveis socioeconomicamente sobre o seu potencial enquanto sujeitos de direitos,
capazes de viver uma vida sem “problemas jurídicos” e discriminação social negativa.

1. DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICAS

Para possibilitar a análise sobre a naturalização da desigualdade que ganhou vulto no


projeto capitalista e que, consequentemente, promoveu um padrão de desenvolvimento social
desigual, é de suma importância pensar em instâncias repressivas como o Direito Penal e o
seu caráter exclusivamente coercitivo na resolução dos conflitos criminais-sociais.

558
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A caracterização do perfil dos presos no sistema penitenciário brasileiro como


sendo: jovens do sexo masculino com idade entre 18 e 30 anos, moradores de periferias, na
sua maioria negros, com pouca escolaridade e de baixa renda, está constantemente presente
nos debates sobre a criminalidade.
Estes dados estereotipados podem ser relacionados às desigualdades
socioeconômicas a que estes jovens estão expostos e à falta do autorreconhecimento enquanto
sujeitos de direitos; estas questões provocam a vulnerabilidade deles diante das proposições
do que deveria ser a igualdade no acesso à justiça.
O crescimento do projeto neoliberal promoveu um desvio nas funções do Estado
que, através do apelo à responsabilidade moral da sociedade, promoveu arranjos institucionais
com organizações do terceiro setor para que elas ficassem responsáveis por questões que
tocam o cerne da cidadania (como, por exemplo, a pobreza e a desigualdade) e o Estado ficou,
praticamente, limitado à organizar as subjetividades da sociedade para que o projeto
capitalista neoliberal se desenvolvesse; esta confluência é perversa por promover um
deslocamento desses assuntos da agenda pública, ao mesmo tempo que dá maior autonomia
ao corpo social (através da perspectiva liberal).1
Desta forma, na medida em que o Estado reduz sua intervenção em questões
importantes para a cidadania plena dos indivíduos e limita-se em exercer sua função
coercitiva e fim de manter a ordem social capitalista, ele contribui para uma submissão ainda
maior dos sujeitos em relação a lógica desigual neoliberal.
Essa “subordinação livre” dos indivíduos é reconhecida além desta ótica econômica
– na qual ocorre uma subsunção do trabalhador2 que não percebe a dominação sofisticada
ocultada por um ideal de liberdade autônoma –, ela está diretamente relacionada às questões
sociais e jurídicas através de uma repressão ideológica que possibilita o não reconhecimento
destes indivíduos sobre as garantias fundamentais a que têm direito e sobre as ideologias
jurídicas que corrompem e invisibilizam estes direitos.
Um conceito que trabalha a fragilidade do exercício dos direitos civis no Brasil foi
analisado pelos antropólogos Teresa Caldeira e James Holston através da “Democracia
Disjuntiva”:

1
DAGNINO, Evelina. (2004) (2005)
2
NAVES, Márcio Bilharinho. (2014)

559
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A violência e o desrespeito aos direitos civis constituem uma das principais


dimensões da democracia disjuntiva do Brasil. Ao denominá-la disjuntiva, James
Holston e eu (1998) chamamos atenção para seus processos contraditórios de
simultânea expansão e desrespeito aos direitos da cidadania, processos que de fato
marcam muitas democracias do mundo atual. (CALDEIRA, 2000, p. 343)

Caldeira declara, então, que a cidadania civil foi deslegitimada no Brasil e que os
direitos individuais (especialmente das classes trabalhadoras) foram reduzidos. A partir do
raciocínio categorizante de “fala do crime”, os indivíduos marginalizados
socioeconomicamente são cada vez mais segregados e expostos à uma realidade na qual o uso
da violência é legitimado sob um discurso de manter a ordem social e torna-se um dos
instrumentos de desigualdade e que serve para hierarquizar dois códigos sociais opostos.3
A concretude do universo do crime é um caráter disjuntivo da democracia brasileira
porque ele cria uma contradição entre a expansão da cidadania política e a deslegitimação da
cidadania civil.
De acordo com os dados do “Estudo Global sobre Homicídio 2013”, o Brasil é o 16º
país mais violento do mundo, com uma média de 25,2 mortes por mil habitantes, quase seis
vezes maior que a média mundial de 6,2 mortes por mil habitantes (a Organização Mundial
da Saúde considera uma epidemia de homicídios quando a taxa ultrapassa 10). A 10ª edição
do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apresentou dados de que a taxa de mortes
decorrentes da intervenção policial no Brasil (1,6 mortes/100 mil habitantes) é maior que a
taxa do país considerado o mais violento do mundo, Honduras, que possui uma taxa de
violência policial de 1,2/100 mil habitantes.4
Outro dado alarmante apresentado foi que em 2012 56 mil pessoas
(aproximadamente 3% da população) foram assassinadas e, destas, 30 mil estão na faixa
etária dos 15 aos 29 anos e, desses jovens, 77% são negros. Esses assassinatos ganharam
tamanha proporção que a Anistia Internacional os usou como tema de uma campanha em
novembro de 2014. A ação “Jovem Negro Vivo” defende a preservação da vida sem
preconceitos e a realização de políticas integradas de segurança pública, educação, cultura,
trabalho, etc., além de trazer também o debate sobre a impunidade e a indiferença com a qual
esses jovens são tratados na agenda pública nacional.

3
CALDEIRA, 2000, p.138.
4
10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, p. 21.

560
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

James Holston conceitua como “Cidadania Insurgente” a cidadania que se


desenvolveu no Brasil a partir da segregação e exclusão das camadas menos favorecidas da
sociedade.
A insurgência nas áreas periféricas do país possibilitou que estes indivíduos se
tornassem proprietários das suas moradias. Este fato, somado ao acesso aos direitos políticos e
à institucionalização dos direitos sociais (concedidos sob a ilusão dos direitos trabalhistas),
transformaram os trabalhadores pobres e moradores desses locais em novos cidadãos urbanos,
resultando em uma nova cidadania urbana, que visa combater a cidadania diferenciada5.
A “nova cidadania” é composta por uma nova esfera pública de participação que
conta com a ação de organizações mediadoras, elas buscam melhores condições no espaço
urbano, lutam por um custo de vida mais acessível para a sociedade e pelos direitos humanos,
que deveriam ser garantidos pelo Estado.
Essa questão retoma a tese de “confluência perversa”6 já que o Estado reduz sua
participação na sociedade e ela passa a ser desenvolvida por organismos do Terceiro Setor.
No entanto, o modelo democrático do Estado brasileiro – garantidor dos interesses dos
cidadãos – deveria ser capaz de administrar as diferenças sob os conceitos de igualdade
material, prevendo o acesso à Justiça e assegurando uma cidadania plena.
Mas o que percebemos, sob outra ótica, é a cidadania brasileira caracterizada pelos
privilégios legalizados e desigualdades legitimadas e sendo responsável pelo distanciamento
dos grupos sociais (enquanto algumas pessoas têm direito à lei, outros têm direito à punição
gerada pela lei), geralmente promovendo uma criminalização da pobreza.

2. PROBLEMAS DAS DESIGUALDADES NO ÂMBITO JURÍDICO

Estas desigualdades devem ser estudadas com base no descumprimento do primado


dos princípios democráticos, ou seja, pelo fato de que a lei não é completamente integrada e
harmônica com a vontade popular exposta nestas normas. Isso ocorre porque no Brasil a lei é
codificada através de hipóteses para, posteriormente, buscar sua aplicabilidade – as fontes do
direito são anteriores e independentes da manifestação concreta

5
Cidadania diferenciada: a exemplo do que ocorre no Brasil, a cidadania legitima as diferenças entre os grupos,
reproduzindo-as e gerando uma distribuição desigual de direitos a partir deste conceito.
6
DAGNINO, Evelina. (2004) (2005)

561
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A eficácia do Direito é encontrada na prática, mas quando a Teoria é baseada em


uma falsa igualdade no acesso aos direitos, a cidadania e a representatividade de grupos
marginalizados são disfarçados sob um aparente discurso homogêneo através do Princípio da
Isonomia.

Uma vez que o direito possui a finalidade de resolver conflitos de interesses, o


método jurídico deve ter essa serventia e deve estar subordinado à teleologia do
melhor fim do direito. O conflito que ocorre concretamente ocorre pela diversidade
social não abrangida de forma uniforme pelo direito e pelo método
jurídico. (HESPANHA, 2009. p 765)

Lembrando que os direitos fundamentais apresentam mais que um caráter moral de


proteger todos os indivíduos, mas também um forte caráter jurídico de que só são
reconhecidos como portadores de direitos aqueles que pertencem a alguma comunidade
jurídica como cidadãos; em uma sociedade complexa como a nossa, onde as relações são
assimétricas, a efetividade dos direitos fundamentais e, consequentemente, o exercício da
cidadania plena é prejudicado e se torna um dilema na construção democrática.
Quando titulares de direitos estão em situação de carência (seja econômica, social ou
cultural), a violação de direitos fundamentais é mais frequente. Esta realidade pode ser
observada também na tese já mencionada da “Democracia Disjuntiva” para demonstrar que a
ampliação dos direitos humanos não se deu por completa no Brasil. A população mais pobre é
vulnerável socialmente, uma vez que não tem seus direitos civis respeitados ao enfrentar o
despreparo dos profissionais de segurança (inclusive no âmbito da Justiça), a segregação
social e a naturalização da violência.
Os indivíduos que nutrem preconceito social veem a classe trabalhadora como um
grupo marginal que pode vir a lhe invadir de alguma forma e, por isso, justificam as ações
violentas como punição, o que enfatiza o desrespeito aos direitos civis individuais.
Durante esse debate sobre as realidades sociais distintas de grupos pertencentes a
uma mesma sociedade, é importante refletirmos sobre os contextos sociológicos dos
obstáculos que os indivíduos enfrentam no momento em que buscam seus direitos.
Em relação a esses obstáculos, trago o jurista Marcelo Neves na sua tese de que a
"Subcidadania”7 brasileira é resultado da invisibilidade dos problemas sociais sob uma
aparente igualdade cidadã.

7
NEVES, Marcelo. (2013)

562
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Enquanto um grupo é marcado por práticas “privilegiadas” e contam com o apoio da


burocracia estatal para não precisarem se subordinar às atividades punitivas referentes ao não
cumprimento de deveres e responsabilidades e mantêm a postura dos “sobrecidadãos” em
relação à ordem jurídica é instrumental, utilizam-na quando convêm aos seus interesses
particulares; os “subcidadãos” estão fadados a um sistema jurídico negativo. Esses indivíduos
não têm acesso aos benefícios do ordenamento jurídico, mas dependem das suas imposições.
Eles não têm condições de exercer seus direitos fundamentais, mas têm deveres e
responsabilidades a cumprir, impostos pelo poder coercitivo do Estado a cumprir.
Neves descreve que, geralmente, os “marginalizados” são inseridos no sistema
jurídico, não como detentores de direitos, mas como descumpridores dos deveres. No campo
institucional, o autor afirma que o não cumprimento dos direitos fundamentais em relação às
camadas subalternas se dá, principalmente, pelas ações violentas ilegais do Estado. 8
Diferente do "saber jurídico" (vias de manifestação e formação do direito no
ordenamento político) atribuído ao Direito, a perspectiva sociológica se importa com as
normas jurídicas que tiveram impacto social, além de se interessar por normas que não foram
obedecidas, mas que são consideradas normas de conduta.
Diante desse quadro de desigualdades generalizadas, é preciso que compreendamos
o contexto jurídico em que os grupos marginalizados estão localizados para que consigamos
entender as normas de reconhecimento que norteiam as ações deles em relação ao Direito. E,
para isso, as teorias realistas (do Direito) são importantes ao estudarem o efeito das normas
jurídicas, através da confirmação de base empírica, atribuindo ênfase maior ao
reconhecimento normativo no tecido social que às suas interpretações.
A capacidade de observação social e a constatação de comportamentos é mais
importante que o reconhecimento das leis, propriamente dito. O elenco das fontes de direito
deve ser extraído da observação das normas admitidas como jurídicas e pelo sentimento das
comunidades sobre o que é o Direito.
Diante a importância de analisarmos a facticidade do Direito – como as leis
impostas pelo Estado são reconhecidas na prática pela sociedade –, é possível reconhecermos
a validade destas normas, porque as condutas pessoais são legitimadas pelo seu
reconhecimento normativo; e o não reconhecimento destas leis, por vezes, leva ao seu
descumprimento.

8
NEVES, Marcelo. (2013). p. 250.

563
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONCLUSÃO

Ainda que direito positivado nas leis garanta que “todos são iguais perante a lei”,
materialmente este princípio não é aplicável e a partir da relação dos autores citados, é
possível perceber os problemas postos na realidade sociojurídica, na qual a desigualdade no
acesso aos direitos fundamentais promove ainda mais disparidade na sociedade entre os
diversos grupos, e os que estão/são vulneráveis socialmente continuam sendo cada vez mais
marginalizados devido a esse círculo vicioso – como não têm acesso aos direitos são
excluídos da comunidade; uma vez que são excluídos, permanecem não reconhecendo seus
direitos.

Questões como a dificuldade em reformar as instituições de segurança, a


deslegitimação do poder judiciário e os abusos de poder dos policiais auxiliaram
para a formação de um “ciclo de violência” e este resultado se tornou um dos
principais desafios para a consolidação da democracia no Brasil. (CALDEIRA,
2000, p. 13).

Obstáculos à realização de um Estado Democrático de Direito manifestam-se


claramente no plano normativo, pois, enquanto muitos indivíduos marginalizados são
inseridos no sistema jurídico não como detentores de direitos (visto que, às vezes, nem os
reconhecem como tal), mas como descumpridores dos deveres, um grupo privilegiado utiliza
a ordem jurídica como instrumento dos seus interesses.
Desta forma, a teoria jurídica (fetichista) e a facticidade social dos direitos vão
permanecer distantes e a falta de um sistema normativo garantidor do acesso aos direitos vai
continuar promovendo a manutenção das disparidades sociais, mesmo em uma ordem
democrática (já que deveria ser realizada uma administração que assegurasse a equidade na
Justiça e Cidadania).
Enquanto o Direito tem um olhar normativo de justificar o que deveria ser aplicado
a todos, a Sociologia traz a facticidade das questões, estudando o que ocorre de fato. Faz-se,
portanto, necessário refletirmos sobre a articulação entre o saber jurídico e as ciências sociais
para que as leis sejam reconhecidas na prática.

564
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS

10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (edição atualizada em 18/11/2016). Disponível em:
</http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/10o-anuario-brasileiro-
de-seguranca-publica>

Autor desconhecido. “Assassinato de jovens negros é tema de nova campanha da Anistia Internacional”.
Disponível em: <https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/>. Acesso em: 10/11/2014.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALDEIRA, Teresa P. R. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. 1ª edição. São
Paulo: Ed. 34 & Ed. USP, 2000.

DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência


perversa, Revista Política & Sociedade, Florianópolis, v.3, n. 5, p.139-164, Maio 2004.

_____. Políticas culturais, democracia e o projeto liberal, Revista do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 15,
p.45-65, Jan./Abril 2005.

HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação baseada nos direitos humanos. Trad. Maria Celina Bodin de
Moraes e Gisele Cittadino. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 1, jan.-mar./2013.

_HESPANHA, Antônio Manuel. O caleidoscópio do Direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de
hoje. 2a ed. Coimbra: Almedina, 2009.

HOLSTON, James. Cidadania Insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. 1ª edição,


São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2013.

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra
Universitário, 2014 (p. 9-104).

NEVES, Marcelo. “Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil”, 3ª edição/ 2ª tiragem, São Paulo: Ed.
WMF Martins Fontes, 2013.

565
Grupo de Trabalho 08

NARRATIVAS DE
CONTRADIÇÕES DE CLASSE E
RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO

dlxvi
A ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA
E SEU DOPPELGÄNGER:
AS TENSÕES ENTRE HEGEMONIA CAPITALISTA
E RESISTÊNCIA NESTE RECORTE
DO MUNDO DO TRABALHO

PITA, Flávia Almeida


Doutoranda – PPGSD-UFF
Professora do Curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana. Integrante do Programa
Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da UEFS

RESUMO

Objetiva-se neste artigo, a partir de reflexões teóricas, circunscrever o que se denomina economia
popular e solidária, especialmente no que diz respeito às contradições e questões que a permeiam, com
ênfase no papel que ocupa no mundo do trabalho contemporâneo, no Brasil. O texto compõe um
quadro maior de apontamentos teóricos necessários a pesquisa em andamento, desenvolvida perante o
PPGSD-UFF, cujo objetivo é investigar os processos de formalização jurídica de grupos que hoje
atuam na chamada economia popular e solidária, no Brasil, tendo como pano de fundo as relações
estabelecidas entre capitalismo e Direito, e entre ambos e os arranjos econômicos e produtivos
peculiares à história e ao modo de sociabilidade brasileiros, em especial considerando o processo
colonizatório.

Palavras-Chave. Economia Popular e Solidária. Capitalismo. Trabalho. Hegemonia

INTRODUÇÃO
As reflexões reunidas neste artigo visam a compor um quadro maior de
apontamentos teóricos necessários a pesquisa em andamento, desenvolvida perante o
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Estadual Federal
Fluminense. Seu título provisório é Direito e Colonialidade do Poder: um olhar a partir do
problema da formalização jurídica de grupos de trabalho associado da economia popular e
solidária no Brasil.
O título, por si, demonstra a tentativa de articulação entre diversos campos, mas que
tem como horizonte principal uma reflexão sobre o Direito na nossa específica condição de
povo que vivenciou o processo de colonização política e continua enfrentando seus
desdobramentos: qual o papel que desempenha o Direito de matriz europeia na conformação
do modo brasileiro de trabalhar e produzir?

567
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Sendo possível admitir que o Direito de matriz europeia mantém-se como parâmetro
acrítico no Estado burguês, empiricamente localizado na América Latina e na
contemporaneidade, a pesquisa tem como pano de fundo as relações estabelecidas entre
capitalismo e Direito, e entre ambos e os arranjos econômicos e produtivos peculiares à
história e ao modo de sociabilidade brasileiros, em especial considerando o processo
colonizatório.
Pensar um cenário tão amplo, por certo, exige um enquadramento que torne viável a
empreitada. Eis porque se elegeu para a pesquisa um trecho da realidade onde se identifica
uma ponte entre um recorte do mundo do trabalho e uma determinada questão jurídica: o
objetivo, assim, é investigar os processos de formalização jurídica de grupos que hoje atuam
na chamada economia popular e solidária, no Brasil. Para isso, parte-se do marco teórico que
circunda este aspecto da realidade para recortar uma unidade de investigação empírica mais
específica, dois grupos de trabalhadoras da zona rural de Feira de Santana, município do
semi-árido nordestino. Os grupos produzem e comercializam alimentos, organizam-se de
maneira associada e participam de projetos de pesquisa participante em execução pela
Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da UEFS, programa do qual a
pesquisadora faz parte.
Neste artigo pretende-se, por ora, no bojo do esforço teórico que pressupõe a
investigação, circunscrever o que se denomina economia popular e solidária, apresentando as
razões que justificam fazer dela o recorte pesquisado – inclusive no que diz respeito às
contradições e questões que a permeiam, desde o seu nome até o papel que ocupa no mundo
do trabalho contemporâneo. Pretende-se que estas reflexões subsidiem, assim, a análise das
específicas configurações das lutas, contradições e características da economia popular e
solidária no semi-árido baiano, considerando a unidade de investigação escolhida.
Muito embora a expressão economia solidária prevaleça no Brasil, em especial
devido à sua adoção oficial pelas políticas públicas implementadas desde o início do primeiro
governo Lula, são diversas as formas pelas quais, aqui e no resto do mundo, o conceito é
batizado: economia social, alternativa, invisível, subalterna, periférica1. Desde já se pontua a
preferência (e a adoção, a partir daqui) por economia popular e solidária, justificada pela
intenção de agregar às notas distintivas gerais da chamada Economia Solidária – “atividades

1
Uma boa retrospectiva sobre a gênese e utilização das diversas expressões, no Brasil e fora dele, em LECHAT
(2002)

568
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

econômicas organizadas segundo princípios de cooperação, autonomia e gestão democrática”


(LAVILLE; GAIGER, 2009, p. 162) – o caráter de uma economia política dos setores
populares (LIMA, 2014, p. 74). Economia popular e solidária, já se demarcando um sentido
mais específico:

[...] trata-se de uma expressão que demarca uma passagem de transição


organizativa, por vezes vinda de economia popular, bem como pela
representatividade epistemológica forjada na América Latina [...].
Atua, de maneira geral, descontratualizada, sob o protagonismo popular que se
manifesta em trabalhos familiares e coletivos, pela escolha por atividades
autônomas ou por não se adequar ao modelo mercadológico vigente ou, ainda, por
opção consciente em relação a outro modelo socioprodutivo (LIMA, 2014, p. 73).

Trata-se de arranjos econômicos alternativos cujos traços característicos centrais,


não obstante sua heterogeneidade, são a organização de coletivos de trabalhadores que têm
como pretensão atuar de forma autogestionária, fora da lógica da exploração do trabalho pelo
capital. Fazem parte do discurso envolvido nesta forma de trabalho princípios como
solidariedade (em oposição ao individualismo e competitividade das práticas hegemônicas),
gestão democrática, propriedade coletiva dos meios de produção. Estão sempre presentes
entre o ideário e as práticas, no entanto, o conflito que marca o dia-a-dia das relações
individuais e coletivas, a luta pela sobrevivência, as contradições entre a ideologia capitalista
hegemônica e outros valores a resgatar, construir ou reconstruir.
Na esteira dos três primeiros Fóruns Sociais Mundiais, ocorridos entre 2001 e 2003
em Porto Alegre, e da criação simultânea, em 2003, do Fórum Brasileiro de Economia
Solidária, da Secretaria Nacional de Economia Solidária-SENAES e do Conselho Nacional
de Economia Solidária, em 2006, a economia popular e solidária foi encampada como
política pública nos governos petistas. Produziram-se, inclusive, mapeamentos nacionais que
indicaram números muito expressivos: foram catalogados, segundo o último levantamento
realizado pela SENAES (2013)2, mais de 1.500.000 trabalhadores e trabalhadoras, em cerca
de 20.000 iniciativas.
Tais números são capazes de representar um movimento de resistência da classe
trabalhadora? Podem ser interpretados como movimentos de luta contra-hegemônica? Ou
revelariam, simplesmente, um fenômeno adaptativo à crise do mundo do trabalho, servindo

2
O governo Temer rebaixou a SENAES a uma sub-secretaria, desde a primeira reforma ministerial
implementada. Os recursos e projetos minguaram desde então, no mesmo ritmo das políticas sociais de uma
maneira geral.

569
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

como acolchoamento protetivo à expansão do capital? Trata-se apenas de uma forma


modificada de reprodução do trabalho em função dos interesses do capital? Ou lhe constituem
uma ameaça? Como interpretar as contradições que lhe caracterizam?
São essas as questões que se pretende explorar neste artigo. Com elas levanta-se a
hipótese de que, não obstante as experiências da economia popular e solidária integrem-se ao
processo real de reprodução do mercado global capitalista no Brasil, simultaneamente
potencializam a emergência de contradições capazes de fragilizar a reprodução das relações
de dominação, contribuindo para aprofundar as raízes de uma ainda frágil solidariedade
anticapitalista – que, qual um bebê, precisa de olhos e cuidados que se apercebam dos
detalhes e alimentem seu crescimento.

1. IMPERIALISMO AO CAPITAL-IMPERIALISMO

Não são poucas as tentativas de compreensão e explicação do grave panorama que


se configura na contemporaneidade, no que diz respeito ao modo como o capitalismo, em seu
repetitivo movimento de readaptação às resistências, expandiu-se e consolidou-se.
Globalização, mundialização, neoliberalismo, capital-imperalismo são termos que vem sendo
usados para dar conta deste contexto, cujos desafios, especialmente no que diz respeito ao
mundo do trabalho, ainda estão longe de ser compreendidos e enfrentados.
No mundo pós-guerra fria, o que já se pensou como fim da história tem, nas últimas
décadas, se apresentado como uma espinhosa volta ao começo: assiste-se a uma clara
regressão de conquistas seculares das classes trabalhadoras, associada a um quadro de
desemprego e subemprego crescente, que subjulga a força de trabalho a condições cada vez
mais precarizadas, e aponta para uma renovada onda de expropriações sociais em prol da
concentração do capital, sem que sejam poupadas, inclusive, as economias ditas centrais.
É o que Virgínia Fontes (2012) associa à expansão da base social do capital: uma
inédita expansão da disponibilidade da força de trabalho ao capital, associada a expropriações
primárias e secundárias, traduzidas no desmantelamento de direitos sociais e trabalhistas,
dilapidação do patrimônio público pela privatização crescente e apropriação privada de bens
comunais (terras, águas, subsolo, espaço, ar, conhecimento...)

570
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Esta leitura da realidade, no entanto, exige contornos próprios considerando as


especificidades históricas e sociais concretas do caso brasileiro, especialmente tendo em vista
a sua condição periférica na ordem capitalista global e seu histórico colonial.
Aníbal Quijano (2005), em sua tentativa de entender o lugar da América Latina no
processo que ele chama de globalização neoliberal, lembra que, nela, em torno da relação
capitalista padrão do capital-salário, gravitaram e sobreviveram diversas formas de
exploração do trabalho e controle da produção-apropriação-distribuição de produtos, todas
conformadas e voltadas para o metabolismo capitalista que se expandia a partir das nações
colonizadoras3 (incluídas, por certo, as nações da Europa que, num processo de escala,
subordinavam os colonizadores ibéricos, em especial a Inglaterra, num primeiro momento e, a
partir do século XX, os Estados Unidos). Assim, o atual recrudescimento da precarização da
relação de emprego padrão, salientado a partir dos países centrais, não é exatamente uma
novidade ao sul do Equador, já que as relações de trabalho beneficiadas pelas conquistas das
lutas de resistência que dividiram espaço com as revoluções industriais sempre foram, por
aqui, um privilégio para poucos:

No entanto, se existem 200 milhões de escravos, se a servidão pessoal está de volta,


se a pequena produção mercantil é ubíqua mundialmente, já que é o elemento
central do que se denomina “economia informal”, se a reciprocidade, isto é, o
intercâmbio de trabalho e força de trabalho que não passa pelo mercado, está em
processo de reexpansão, então temos a obrigação teórica e histórica de nos
perguntar se deste modo não há algo que não havíamos vista bem nesta ideia de que
o capitalismo gerava o único padrão de classificação social e creio que a conclusão
é inevitável: esta ideia era basicamente errônea porque nunca ocorreu assim e
porque, muito provavelmente, nunca ocorrerá assim. E creio que a América Latina
é um excelente exemplo para mostrar que assim nunca foi.4 (QUIJANO, 2013, p.
151)

A compreensão do mundo do trabalho na América Latina e, de modo ainda mais


específico, no Brasil, assim, se complexifica sobremodo ao se constatar que, de forma
ampliada, por aqui conviveram e convivem diferentes relações de produção e trabalho, e suas

3
Como bem exemplifica Eduardo Galeano ao descrever a dinâmica do latifúndio açucareiro na Américo colonial:
“A plantação, nascida da demanda de açúcar no ultramar, era uma empresa movida pelo afã do lucro de seu
proprietário e posta a serviço do mercado que a Europa ia articulando internacionalmente. Por sua estrutura
interna, no entanto – e considerando que, em boa medida, bastava-se a si mesma –, alguns de seus traços
dominantes eram feudais. Por outro lado, utilizava mão de obra escrava. Três idades históricas distintas –
mercantilismo, feudalismo, escravatura – ajustavam-se numa só unidade econômica e social, mas era o mercado
internacional que estava no centro da constelação de poder que o sistema de plantações desde cedo integrou”
(2016, p. 92)
4
Tradução livre da Autora.

571
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

respectivas racionalidades. Muito embora engolfadas e subordinadas à magnética espoliação


capitalista, tais diversas ordens importam igualmente em sobrevivências e resistências em
potência, em relações simbólicas, culturais5 e subjetividades peculiares, a despeito de séculos
de negação, e de um processo incessante de apagamento de seu potencial de resistência.
Relações comunais de trabalho e produção típicas dos povos indígenas e das populações
africanas subordinadas à escravidão, arranjos produtivos que subvertem a propriedade privada
dos meios de produção (como as comunidades de fundo de pasto, faxinais, quebradeiras de
coco babaçu, de pescadores, arranjos produtivos familiares) e que muitas vezes traduzem
relações de trabalho não subordinado e focadas no valor de uso de seu produto: são todas
experiências que sobrevivem, (em especial fora dos grandes centros urbanos, mas também
dentro deles), mas cujo sentido anti-hegemônico resta adormecido sob grossas camadas de
baixa-estima, sobretudo centradas na ideia de raça, outro subproduto fundamental do processo
colonizatório. Trata-se de um contundente processo de ordem cultural6, de construção de uma
subjetividade fundamentada na oposição entre homem branco europeu (razão, sujeito,
ciência, certeza, competição, civilização) e todo o resto (negro, índio, mestiço, mulher,
emoção, objeto, solidariedade, saberes populares, barbárie7), a elevar exponencialmente o
potencial de subordinação e apatia da classe trabalhadora submetida à colonização.
Assim, onde o Imperialismo colonizatório fez suas marcas, o Capital-Imperialismo
(FONTES, 2012) parece encontrar um terreno ainda mais fértil, no rastro do histórico secular
de expropriações8 e da divisão internacional do trabalho. Esta peculiar condição de

5
Nas palavras do filósofo argentino Enrique Dussel, “desde uma releitura cuidadosa e arqueológica de Marx
(desde suas obras juvenis de 1835 a 1882), indicávamos que toda cultura é um modo ou um sistema de ‘tipos de
trabalho’. Não é em vão que a ‘agri-cultura’ era estritamente o ‘trabalho da terra’ – já que ‘cultura’ vem
etimologicamente do latim ‘cultus’, no sentido de consagração sagrada. A poiética material (fruto físico do
trabalho) e mítica (criação simbólica) são produção cultural (um por para fora, objetivamente, o subjetivo, ou
melhor, o intersubjetivo, comunitário). Desta maneira, o econômico (sem cair no economicismo) era resgatado”
(2005, p. 8). (Tradução livre da Autora)
6
Sua análise aparece de maneira muito precisa em outro texto do sociólogo peruano, o clássico Colonialidad y
Modernidad-Racionalidade (1992), em que Quijano apresenta, pela primeira vez, o conceito de colonialidade do
poder: “Durante o mesmo período em que se consolidava a dominação europeia se foi constituindo o complexo
cultural conhecido como a racionalidade-modernidade europeia, o qual foi estabelecido como um paradigma
universal de conhecimento e de relação entre a humanidade e o resto do mundo. Tal simultaneidade entre a
colonialidade e a elaboração da racionalidade-modernidade não foi de nenhum modo acidental, como o revela o
modo mesmo em que se elaborou o paradigma europeu do conhecimento racional”.(p. 440) (Tradução livre da
Autora)
7
Para a contraposição civilização versus barbárie na compreensão dos processos históricos dos países americanos,
vide Raúl Fornet- Betancourt (1999).
8
“A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da
população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África

572
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

semiproletarização da classe trabalhadora latinoamericana, também pontuada por Virgínia


Fontes, pode ser aproximada da leitura crítica de Aníbal Quijano, apontando para diversas
questões que estão a aguardar uma análise mais cuidadosa, especialmente considerando o
momento presente de expressiva expansão das relações sociais capitalistas. Salientando a
possibilidade de coexistência de formas produtivas diversas, ainda que sob o predomínio do
capital, e a extrema desigualdade que marca, à exceção dos primeiros países industrializados,
o processo concomitantemente de formação de uma classe capitalista e da massa de
disponibilizados para o mercado, Fontes também aponta para

[...] uma enorme resistência de formas tradicionais ou originárias, mesmo


submetidas aos mais diversos e brutais constrangimentos cujas populações,
incorporadas subalternamente ao mercado, mantêm, reproduzem ou reconstroem
formas de propriedade e de sociabilidade diversas da capitalista, ainda que
plenamente submersas pela dominação do capital (2012, p. 91)

Continua, então, salientando o potencial, ainda que contraditório, de resistência


presente nesta múltipla realidade, que é invibilizada pela régua niveladora da racionalidade
neoliberal:

A defesa e preservação de processos comunitários (que inclui a conservação de


línguas, costumes e tradições), a luta pela preservação de outras formas de
propriedade, defrontam-se com a permanente tendência a reduzi-las a um tipo de
propriedade uniforme e única, característica do capital, expropriando não apenas a
terra, mas todo um conjunto de práticas e conhecimentos, assim como sua própria
existência social.Muitas sociedades tradicionais ou originárias, por terem
preservado formas de trabalho cooperativo e uma base igualitária, podem propulsar
lutas para além da mera demanda de incorporação do trabalho ao capital, lutas que
têm como base de sustentação sua própria semiproletarização, uma vez que
mantêm a garantia da subsistência para além da subalternização direta ao capital.
Nas condições contemporâneas, nas quais ondas ainda mais intensas, violentas e
rápidas de expropriação se descortinam, essas lutas podem se traduzir em
enfrentamento direto ao capital, se abalarem as formas generalizadas da sujeição do
trabalho e de sua subordinação e não apenas reivindicarem sua incorporação plena
enquanto assalariados para o capital, ou ainda se limitarem a demandar uma
preservação pontual, distanciada das vicissitudes dos demais trabalhadores.(2012,
p. 92)

A realidade brasileira parece desafiar, assim, uma análise que não se completa com
o que já se tem constatado genericamente acerca dos problemas enfrentados pela classe
trabalhadora no resto do mundo, desafiando esforços teóricos e críticos e aproximações
empíricas ainda mais específicas e atentas a tais peculiaridades.

numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses
processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva.” (MARX, 2017, p. 821)

573
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. A ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA E SEU DOPPELGÄNGER

O mundo globalizado assiste, após a breve “era de ouro” do pós-guerra, desde a


desaceleração do crescimento econômico nos anos 70, a ofensiva do capital em busca de
espaços de reprodução, no seu motocontínuo de expansão. Como de costume, o movimento
resulta em novas formas de extração de mais-valia e de subalternização, que chegam ao
século XXI contribuindo para um grave quadro de espoliação das classes trabalhadoras. A
reunião de diversos fatores – que vão desde avanços tecnológicos que dispensam mãos e as
pulverizam espacialmente, até mecanismos de instabilização das relações de trabalho,
produzindo massas disponíveis e amedrontadas de trabalhadores dispostos a vender sua força
a qualquer preço – configura um cenário em que o capital avança como nunca em seu
processo de concentração, mas igualmente necessita de novas formas de justificar sua
expansão e docilizar as consciências.
Tais processos confirmam a aposta de Marx na centralidade assumida pelo
desemprego (exército de reserva) na explicação das dinâmicas do capitalismo9, mas vão mais
longe, pois no contínuo da globalização capitalista, e da divisão internacional do trabalho,
chega a ser possível se falar em países, ou mesmo continentes inteiros, cujos trabalhadores
foram deliberadamente excluídos dos projetos modernizadores do capitalismo:

A categoria dos desempregados, portanto, deveria ser expandida para abranger a


amplitude da população, desde os desempregados temporários, passando pelos não
mais empregáveis e permanentemente desempregados, até as pessoas que vivem
nos cortiços e outros tipos de guetos (aqueles muitas vezes descartados pelo próprio
Marx como ‘lumpemproletariado’) e, por fim, áreas, populações ou Estados inteiros
excluídos do processo capitalista global, como aqueles espaços vazios dos mapas
antigos” (ŽIŽEK, 2012, p. 14)

A violenta produção de desigualdade e expoliação, assim, depende da presença,


eficiente e simultânea, de estratégias de ocultação, sob um tapete imaginário, do lixo e mortos
produzidos. Este processo de “maquiagem” parece se valer, em especial, de mecanismos que
viram ao avesso as resistências, sugando-lhes o que representam de perigo, docilizando-as,
transformando-as em seu contrário, incorporando-as à própria lógica do mercado e do capital.

9
“Mas se uma população trabalhadora excedente é um produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento
da riqueza com base capitalista, essa superpopulação se converte, em contrapartida, em alavanca da acumulação
capitalista, e até mesmo numa condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército
industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por
sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para
ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional.” (MARX, 2017, p. 707)

574
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A força deste movimento amplifica-se, por certo, nos espaços em que, como o brasileiro, pelo
seu histórico de colonização, as subjetividades individuais e coletivas foram forjadas
secularmente a partir do lugar do excluído, da negativa (não branco, não civilizado, não
desenvolvido).
O filósofo italiano Roberto Esposito, ao desenvolver seu conceito de immunitas,
como força repulsiva e contraditória que opõe à communitas, na tentativa de explicar os
dilemas da modernidade, a desenha como “uma engrenagem interna d’Ela [da omunidade]: o
vinco que algum modo a separa de si mesma [...]” obrigando-a a “introjetar a modalidade
negativa de seu próprio oposto, mesmo que esse oposto siga sendo um do de ser, privativo e
contrastivo, da comunidade mesma”10 (2006, p. 83-84). Eric Santner assemelha este
mecanismo ao nascimento de um Doppelgänger (2011, p. 15), demônio de lendas germânicas
capaz de transformar-se na cópia idêntica e ao mesmo tempo maligna de suas vítimas.
Do alemão doppel (duplo, réplica, suplicata) e Gänger (aquele que anda, ambulante,
ser errante), a figura mitológica do Doppelgänger serviu muitas vezes de inspiração para a
literatura. Willian Wilson (1839), conto de Edgar Alan Poe, O Duplo (1846), de Dostoievski e
os célebres Dr. Jekyll e Mr. Hyde (O médico e o monstro,1886) do escritor escocês Roberto
Louis Stevenson, são disso exemplos. O médico e o monstro, em especial, foi inspiração para
diversas versões cinematográficas. Nos quadrinhos, talvez o mais famoso Doppelgänger
contemporâneo seja o “Incrível Hulk”, criado na década de 60 pelos americanos Stan Lee e
Jack Kirby.
Há leituras que estabelecem uma relação de inspiração entre o mito do duplo e a
estrutura psicanalítica freudiana do id, ego e superego. Vale menção ainda um ensaio de
Freud, de 1919, “Das Unheimliche” (“The uncunny”, “El sinistro”, L’inquiétante familiarité”
ou “O estranho”), onde a força do mito do “duplo” é explorada através da novela O Elixir do
Diabo (1816), do escritor romântico alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822), mais um
exemplo da apropriação do mito do Doppelgänger pela literatura. No ensaio, Freud parte da
etimologia da própria palavra alemã “Unheimliche” (algo como “não-familiar” – un-não,
heimliche-familiar, amistoso, íntimo), na tentativa de compreender o sentido psicanalítico do
“estranho” – “pode ser verdade que o estranho [unheimlich] seja algo que é secretamente
familiar [heimlich-heimisch], que foi submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo
que é estranho satisfaz essa condição.” (FREUD, 1996).

10
Tradução livre da Autora.

575
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A metáfora parece vir a calhar para ilustrar aquilo que se quer ressaltar: o
capitalismo, em seus esforços para suplantar as resistências, segue produzindo seus
Doppelgängers – seu oposto maligno que, afinal, é o mais eficiente assassino de seu gêmeo. É
a partir dela que se deseja pensar a economia popular e solidária no contexto que se vem até
agora traçando.
Modos alternativos de viver, trabalhar e produzir convivem e sobrevivem aos
avanços do capitalismo, que, todavia, imuniza-se de seu potencial contra-hegemônico,
integrando-os paulatinamente à sua lógica. É possível catalogar diversos exemplos de
experiências produtivas11 que reúnem mais ou menos características opostas aos signos da
mercadoria, do mercado, da competitividade, da racionalidade plasmada no sujeito-homem
versus objeto natureza, na valorização do tempo da vida. Muitas delas encontram guarida na
expressão economia popular e solidária, sem que dela dependa sua existência12, sendo
reconhecíveis, aliás, muito antes que para elas se criasse um nome13.
Num sentido oposto, o discurso e as práticas do que vem sendo chamado no Brasil
de economia popular e solidária também são com frequência apontadas tout court como um
produto do quadro de crise da sociedade do trabalho. Indícios relevantes o justificam: os
números oficiais apontam para um crescimento significativo das iniciativas catalogadas nos
levantamentos oficiais (associações, cooperativas e, em número significativo, grupos
informais) concomitantemente ao quadro de agudização da mencionada crise (em especial,
nas últimas três décadas); e, não menos importante, os mesmos dados demonstram um
considerável grau de precariedade das condições de trabalho neste universo, com baixas
remunerações, ausência de cobertura previdenciária e outros direitos garantidos pela
legislação trabalhista.
Em detrimento dos trabalhadores formais (cuja centralidade, no caso brasileiro,
sempre foi discutível), avolumam-se as relações de trabalho que, embora reproduzam
implicitamente a subordinação da relação de emprego tradicional, não estão juridicamente
formalizadas como tal (e, portanto, alijadas das garantias legais que – cada vez mais

11
Uma eloquente relação, representativa da multiplicidade e factualidade de tais experiências em todo mundo,
pode ser encontrada em Boaventura de Souza Santos (2005), por exemplo.
12
Sem que se desconheça, é claro, wittgensteinamente, que o mundo também se cria pela linguagem, e pode ter
nela seu limite.
13
Foram diversas as vezes que a autora presenciou, em suas atividades de pesquisa e extensão junto a
trabalhadores deste universo, a surpresa ao se dar conta que, o que “o pessoal da universidade” descrevia como
economia popular e solidária é “o que eu sempre fiz, mas não sabia o nome”

576
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

precariamente – estabelecem limites à exploração). Identifica-se ainda um terceiro grupo de


trabalhadores que, aparentemente sobrevivendo do trabalho “autônomo” (é o caso do MEI –
“microempreendedor individual”), subordinam-se indiretamente ao capital e ao mercado14.
Nele estaria todo um grande volume de pessoas estimuladas pela “nova razão do mundo”
neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016) a serem “empresárias de si mesmas”, sob a nova
palavra de ordem do empreendedorismo15.
Ricardo Antunes, em seu clássico O Caracol e sua Concha (2005), faz referência a
dados (levantados em trabalho de José Alcides Figueiredo Santos), que apontavam, já em
1996, para o recrudescimento de tal quadro, que não parece ter retrocedido desde então (à
exceção da configuração favorável, especialmente na primeira década dos governos petistas,
que se tem explicado pela peculiar valorização das commodities no mercado internacional),
aprofundando-se, ao contrário, desde a crise de 2008:

Em seu estudo meticuloso, de grande utilidade para o insuficiente mapeamento de


nossas classes sociais, Figueiredo Santos mostra, a partir dos dados da PNAD, que,
na América Latina, o traço distintito é dado pela ampliação do ‘setor informal’, pelo
crescimento dos pequenos negócios e pela feminização do mundo do trabalho.
Com a reestruturação produtiva na Brasil especialmente a partir de 1990, ‘ocorre
uma intensa redução do contingente de operários industriais, com um corte de
38,1% dos empregos formais entre 1990 e 1997. Como já pudemos dizer em outros
textos, aumenta a heterogeneidade e fragmentação da classe trabalhadora; a
subcontratação, diz o autor, segmenta ainda mais os trabalhadores industriais, entre
os ‘centrais’ e os ‘periféricos’”.(2005, p. 108).

A crítica ao papel assumido pela economia popular e solidária nas últimas décadas,
no contexto de precarização e flexibilização do trabalho acima descrito, mobiliza em especial

14
“Uma noção ampliada de classe trabalhadora deve incluir também todos aqueles e aquelas que vendem sua
força de trabalho em troca de salário, incorporando, além do proletariado industrial e dos assalariados do setor de
serviços, também o proletariado rural, que vende sua força de trabalho para o capital. Incorpora o proletariado
precarizado, o sub-proletariado moderno, part-time, o novo proletariado McDonald’s, os trabalhadores
terceirizados e precarizados, os trabalhadores assalariados da chamada ‘economia informal’ – que muitas vezes
são indiretamente subordinados ao capital –, além dos trabalhadores desempregados, expulsos do processo
produtivo e do mercado de trabalho pela reestruturação do capital e que hipertrofiam o exército industrial de
reserva na fase de expansão do desemprego estrutural” (ANTUNES, 2005, p. 60)
15
Dardot e Laval (2016) salientam como este processo deságua em uma racionalidade peculiar, a produzir uma
nova subjetividade acoplada à lógica empresarial, na qual se centra o neoliberalismo. O enevoamento da
subordinação e alienação do ser humano à exploração capitalista atinge, assim, um grau de eficiência nunca dantes
visto, desenhando subjetividades ainda mais incapazes de reagir: “Do sujeito ao Estado, passando pela empresa,
um mesmo discurso permite articular uma definição do homem pela maneira como ele quer ser “bem sucedido”,
assim como pelo modo como deve ser “guiado”, “estimulado”, “formado”, “empoderado” (empowered) para
cumprir seus “objetivos”. Em outras palavras, a racioanlidade neoliberal produz o sujeito de que necessita
ordenando os meios de goberná-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que,
por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais
fracassos.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 328)

577
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

dois argumentos importantes. Em primeiro lugar, considerando a adoção do conceito na


esteira de políticas públicas de “inserção” produtiva, aponta-se a sua correlação direta com
estratégias para absorção e amortecimento da mão-de-obra excedente em crescimento, com
efeitos domesticadores e apaziguadores que atendem, muito mais do que enfrentam, as
demandas do capital em expansão. Observe-se, por exemplo, a crítica de Mauger (2011), que
se escolhe a propósito de demonstrar que não se trata de uma peculiaridade brasileira:

Os objetivos explícitos da integração ao mundo laboral no âmbito dos contratos


assistidos e/ou empresas alternativas (‘economia solidária’) são a formação (dentro
de uma concepção educativa tradicional) e a adaptação ao mundo do trabalho
(evoca-se ainda ‘o caráter essencial da imersão no seio da empresa’).
Implicitamente, trata-se aqui talvez sobretudo de atividades de substituição
destinadas à iludir (‘pseudo-formação’ e ‘empreendimentos de fachada’ que ao
mesmo tempo cumprem o de ilusionismo social e a criação de um universo de
consolação) e/ou apaziguar [...]. Um novo status aparece: nem desempregado, nem
assalariado, ‘o quase-empregado’, apresentado como uma ‘alternativa ao trabalho
assalariado’16. (MAUGER, 2011, p. 12-13)

Em segundo lugar, considerando a ênfase que as políticas públicas de economia


popular solidária e seus teóricos atribuem ao cooperativismo17, parece reeditar-se, nas
discussões em torno do tema, a antiga oposição entre o socialismo utópico e científico. Neste
sentido, por exemplo, a crítica de Henrique Wellen (2012):

16
Tradução livre da autora.
17
Há uma evidente coincidência entre os princípios que informam o movimento cooperativista (i. adesão
voluntária e livre; ii. gestão democrática; iii. participação econômica dos membros; iv.autonomia e independência;
v. educação, formação e informação; vi. intercooperação; vii. interesse pela comunidade) (OCB, s/d, on line) e as
características escolhidas pela SENAES para conceituar a Economia Solidária:
Alguns princípios são muito importantes para a economia solidária. São eles:
1. Cooperação: ao invés de competir, todos devem trabalhar de forma colaborativa, buscando os interesses e
objetivos em comum, a união dos esforços e capacidades, a propriedade coletiva e a partilha dos resultados;
2. Autogestão: as decisões nos empreendimentos são tomadas de forma coletiva, privilegiando as
contribuições do grupo ao invés de ficarem concentradas em um indivíduo. Todos devem ter voz e voto. Os
apoios externos não devem substituir nem impedir o papel dos verdadeiros sujeitos da ação, aqueles que
formam os empreendimentos;
3. Ação Econômica: sem abrir mão dos outros princípios, a economia solidária é formada por iniciativas com
motivação econômica, como a produção, a comercialização, a prestação de serviços, as trocas, o crédito e o
consumo;
4. Solidariedade: a preocupação com o outro está presente de várias formas na economia solidária, como na
distribuição justa dos resultados alcançados, na preocupação com o bem-estar de todos os envolvidos, nas
relações com a comunidade, na atuação em movimentos sociais e populares, na busca de um meio ambiente
saudável e de um desenvolvimento sustentável.(MTE-SENAES, 2015, on line)
Contraditoriamente, no entanto, no Brasil, a forma jurídica cooperativa, por sua complexidade e onerosidade, está
muito distante da realidade dos grupos populares de economia solidária. O último mapeamento da SENAES
(2013) indica que apenas 8,8% das iniciativas mapeadas adotam este formato.

578
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Por outro lado, no caso da ‘economia solidária’, trata-se mesmo de um retrocesso


na luta da classe trabalhadora pela transformação social, visto que:[...] ao contrário
de representar a continuidade de um processo crescente de lutas dos trabalhadores
(‘é uma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o
capitalismo’), a tentativa de restabelecer o cooperativismo como centro da luta dos
trabalhadores pelo socialismo, nos dias de hoje, constitui um retrocesso às limitadas
ações anticapitalistas do trabalhadores na sua infância como classe social
(GERMER, 2006, 201).

Se, no contexto histórico dos socialistas utópicos, em que o mercado capitalista se


apresentava ainda numa fase inicial, e, consequentemente, desprovido das
determinações da sua atual fase, investir na luta econômica contra as empresas
capitalistas já se apresentava como uma fatalidade, reapresentar tal proposta dois
séculos depois significa, no mínimo, uma postura regressiva (GERMER, 2012, p.
408-409)

Também neste segundo caso o argumento do “reformismo” em oposição à efetiva


transformação é mais uma vez mobilizado pelos críticos, reforçando-se a dúvida quanto ao
potencial alternativo de tais arranjos produtivos.
A desconfiança é amparada com fartura em números e constatações que apontam,
em especial, uma perigosa imbricação entre as experiências catalogadas pela SENAES e o
fenômeno das “coopergatos”, a Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB18, o
universo das “ONGs” e do “Terceiro Setor”, da “economia criativa”, “economia de
comunhão”, do “empreendedorismo social”.
Em sua análise sobre reconfiguração da classe trabalhadora brasileira nas últimas
décadas, Virgínia Fontes identifica diversas causas para o processo de ”intensa
desqualificação da política e sua requalificação rebaixada” (2012, p. 255), com a abolição
paulatina, verbal e retórica, da luta de classes, e sua substituição por uma versão de
democracia reduzida a “capacidade gerencial de conflitos”. Relaciona entre elas o impacto da
crise nos países socialistas, a massiva adesão empresarial ao programa neoliberal, um
agressivo antiestatismo e, sobretudo, para o que interessa mais diretamente às nossas
reflexões, um “processo complexo de conversão mercantil-filantrópica da militância” (Idem,
ibidem), a evidenciar o sucesso de aparelhos privados de hegemonia, sobretudo representados

18
Tradicional longa manus das elites rurais brasileiras, como destaca Virginia Fontes (2012, p. 221-222): “Em
finais do século XX, a industrialização do campo brasileiro modificaria, enfim, a estrutura representativa das
diversas frações dessa burguesia e, sem eliminar suas antecedentes, passaria a ter como fulcro outras entidades
associativas, como a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), porta-voz do agronegócio estreitamente
associado aos grandes capitais multinacionais internacionais, mas agregando em seu interior expressivas parcelas
da grande burguesia agroindustrial brasileira.”

579
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pelas chamadas organizações não governamentais (“ONG”), traduzidas na ideia de um


imaginário “terceiro setor”, nem Estado, nem mercado. Nestes termos:

Forja-se uma cultura cívica (ainda que cínica), democrática (que incita à
participação e à representação) para educar o consenso e disciplinar massas de
trabalhadores, em boa parte desprovidos de direitos associados ao trabalho, através
de categorias como “empoderamento”, “responsabilidade social”, “empresa
cidadã”, “sustentabilidade”.
A “onguização” da associatividade popular prossegue, convertendo-a em espaço
privado e competitivo – com hierarquias internas fortes e, portanto, com
diferenciações burocráticas e sociais que reproduzem a gestão empresarial.
Subalternizam-se as mais incipientes formas de organização popular, direcionadas
para “gerenciamento de força de trabalho”, processo potencializado pela
formatação atual do Estado (2012, p. 296).

Desde a sua criação em 2003, a SENAES foi responsável pela inserção da


“economia solidária” no vocabulário das políticas públicas no Brasil. A partir de então, a
expressão tanto batizou experiências reais muito anteriores, quanto estimulou a formação de
cooperativas, associações, grupos informais, proporcionou a criação de toda uma rede de
entidades de fomento, no âmbito público e privado, no contexto das universidades e de
ONGs, que produziram e vêm produzindo, com recursos públicos e privados de diversas
origens, pesquisas, material acadêmico, assessorias e experiências. A coerência de tais
empreitadas é constantemente posta à prova pelos financiadores, pela perigosa proximidade
com o léxico do empreendedorismo (os levantamentos realizados pela SENAES, por
exemplo, atribuem às iniciativas produtivas catalogadas o indistinto título de
“empreendimentos econômico-solidários”) e pela própria precariedade imposta aos técnicos e
assessores. Nascia simultaneamente, aí, aliás, um novo espaço para profissionais de formação
universitária, já impactados pela retração do mercado de trabalho.
Virgínia Fontes explicita o quanto contraditório e complexo se demonstra o cenário
em que se descortinam tais relações:

Multiplicam-se as especializações universitárias de gestores de programas privados


de cunho “social”, cuja função é disseminar padrões de gestão altamente
competitivos para educar e conter massas populares, capazes, porém, de realizar as
atividades necessárias ao novo padrão de uso da força de trabalho, supostamente
sob a forma da autoexploração traduzida pelo empreendedorismo. Este novo
padrão [...]. Converte os trabalhadores em adiantadores voluntários de sua
capacidade de trabalho [...]. Muitos daqueles totalmente desprovidos de direitos
precisam fornecer previamente os “projetos” de sua eventual inserção no mercado
de trabalho, ingresso disfarçado de militantismo, porém sem direitos.
As pesquisas de mercado realizadas pelas empresas são multiplicadas pela
disseminação de milhares de “projetistas”, ou em outros termos, de trabalhadores à
busca de remuneração mercantil, pesquisando nichos de atividades, muitas vezes

580
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

gratuitamente e que, eventualmente, serão contemplados com recursos para testar


tal ou qual atividade; [...] com intermediação de tais aparelhos privados de
hegemonia, convertidos em empresas intermediadoras, principalmente para a área
de saúde, mas também sob a forma de cooperativas desprovidas de direitos
(“coopergatos”). (2012, p. 293-294)

Eis o Doppelgänger “maligno” da economia popular e solidária, mas que – sob


pena da criança seguir ralo abaixo com a água da bacia – ao mesmo tempo não permite
desconhecer e, mais que isso, exige fortalecer e preservar o seu contrário original, vítima
principal de tal “duplicação”. Ambiguidade, contradição, lutas por espaços produtivos e
semânticos: vários elementos a indiciar, enfim, a presença de gérmens de mudança,
transformação em potência em busca das fissuras que o rolo compressor do capitalismo não
tem como evitar.

3. CONTRA-ATAQUE?

Da mesma forma que a comercialização de créditos de carbono não é capaz de negar


a essencialidade da causa ambiental, as ambiguidades da causa da economia popular e
solidária – no sentido da necessária luta por uma outra forma de trabalhar que suplante aquela
em torno da qual se sustenta o capitalismo – igualmente não justificam a sua negação. A luta
contra-hegemônica, ao contrário, pode se assenhorar da estratégia do “inimigo”, desvelando o
processo de duplicação, separando o joio do trigo, explicitando as contradições para combatê-
las sem que isto signifique o fenecimento do potencial de resistência contra o qual elas foram
forjadas.
Sob pena de resvalar para o idealismo que o materialismo dialético marxiano
pretendeu por de ponta cabeça, o horizonte revolucionário não se constitui apenas de uma
face política, mas exige especialmente a superação social radical da base material que ampara
o capitalismo, e em especial a forma de trabalho que lhe corresponde. Afinal, modo de
produção é conceito que “não se limita à atividade econômica imediata, mas remete à
produção da totalidade da vida social, ou ao modo de existência” (FONTES, 2012, p. 41) .
Economia social, solidária, popular solidária, alternativa: todos são nomes que, ao
serem apropriados e negados pelo discurso hegemônico a que causam incômodo, parecem
justificar esforços para, mesmo sob as camadas de lama que teimam em ser jogadas sobre as
boas intenções, fazer emergir o signo anti-hegemônico de vivências resistentes, por meio das

581
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

quais se entrevê, em gérmen, processos que se colocam em contradição com a lógica


produtiva do capitalismo, fomentando incerteza, negação, contradição, lutas.
O olhar atento aos sinais escondidos no contrapelo, ao tempo que revela a não
linearidade da resistência das classes trabalhadoras, demonstra a necessidade de se aquilatar
com cuidado e argúcia, sem maniqueísmos, a complexidade de seus movimentos e os que
elas suscitam em resposta. E. P. Thompson (2002) revela, por exemplo, a importância que
desempenharam os chamados socialistas utópicos, nos seus avanços e inconsistências,
potências e fraquezas, ao comporem com suas ideias e práticas os ingredientes do caldo
contraditório que alimentaria, mais tarde, a formação da consciência do operariado inglês
enquanto classe. Assim, por exemplo, ao mesmo tempo em que as propostas owenistas
nascentes deixavam entrever características como paternalismo, o sentido de “adestramento”
utilitarista dos operários, correspondente a um planejamento da sociedade ao estilo de um
“gigantesco panóptico industrial”, também é certo que a imprecisão dos textos de Robert
Owen serviram de amparo a diversas experiências, adaptadas às diferentes realidades dos
trabalhadores. Sempre citado como precursor do movimento cooperativista, assim como dos
socialistas utópicos que foram criticados por Marx19, uma análise simplista de seu papel
parece fadada à imprecisão.Thompson relata, por exemplo, que, ao final dos anos 1820, uma
ou outra variante da teoria cooperativa e a economia do trabalho tinha conseguido o controle
da estrutura do movimento operário (2002, p. 398). O owenismo parece ter sido muito bem
sucedido em criar a ambiência para a ideia de união dos trabalhadores, de todos os ofícios,
“um meio de unir os trabalhadores organizados do país num momento comum” (2002, p.
400).
Revelando, por sua vez, os impasses e contradições vivenciadas na empreitada
revolucionária em sua plena execução, resgata-se igualmente um texto de Lenin (1961), em
que reflete acerca dos desafios enfrentados no bojo da implementação da Nova Política
Econômica soviética. Ponderava, então, que “a cooperação adquire em nosso país uma
importância verdadeiramente extraordinária”, muito embora não deixe de pontuar que “nos
sonhos dos velhos cooperativistas há muita fantasia”. Aliás, “amiúde são cômicos pelo seu
caráter fantasioso” (1961, p. 612):

19
Muito embora saliente Thompson que Engels fora generoso com Owen no seu Anti-Düring (2002, p. 289, nota
118)

582
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Mas em que consiste esse caráter fantasioso? Em que essa gente não compreende a
importância fundamental, essencial, da luta política da classe operária para derrubar
o domínio dos exploradores. Agora já é um fato esta derrubada, e muito do que
parecia fantástico, mesmo romântico e até vulgar nos sonhos dos velhos
cooperativistas, converte-se em realidade sem artifícios (1961, p. 612)

Lenin equipara a formação para o trabalho cooperativo, então, a uma tarefa de


transformação cultural, de que dependeria o sucesso da revolução: “se pudéssemos organizar
nas cooperativas toda a população, já estaríamos com ambos os pés em solo socialista”(1961,
p. 618).

CONCLUINDO

As palavras de Lenin, muito embora não se pretenda sejam tomadas de modo


descontextualizado e absoluto, confirmam o quanto o espaço da realidade ocupado pelo que
se tem chamado economia popular e solidária não pode ser analisado de maneira simplista.
Repetem-se, então, as perguntas iniciais, feitas com vistas à compreensão do que se
optou chamar de economia popular e solidária. Está-se aí diante de um movimento contra-
hegemônico? Ou, simplesmente, um fenômeno adaptativo à crise do mundo do trabalho, que
se presta ao amortecimento dos riscos por que passa o capital no seu movimento de
expansão? Em outras palavras, em que medida o estímulo ou o reconhecimento e apoio ao
trabalho coletivo autogestionário exaspera a disponibilidade dos trabalhadores para o capital?
Ou aduba o solo da resistência e da autonomia, necessário como trampolim para a superação
revolucionária, social e politicamente, do capitalismo?
Tudo que parece ser possível concluir é que o caminho para essa superação não
admite um andar desavisado. As sibilinas manobras do capital exige um olhar atento para as
contradições, que teimam, aliás, em se invibilizar por detrás do sempre competente trabalho
de fetichização. Isto não pode significar, no entanto, que se tropece na já velha estória do fim
da história. A este tropeço inevitavelmente chegaremos, se se optar por respostas que
desconsiderem a complexidade da questão proposta.
Acredita-se que todo movimento no sentido de aproximação do trabalhador “da
propriedade das condições de realização de seu trabalho”20 (MARX, 2017, p. 786,) assume,

20
“Num primeiro momento, dinheiro e mercadoria são tão pouco capital quanto os meios de produção e de
subsistência [...]A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições
da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa separação,

583
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

em si, um potencial revolucionário – talvez o mais factível diante da pulverização das classes
trabalhadoras que caracteriza a nova razão do mundo neoliberal –, e deve ser preservado e
adubado como uma semente preciosa no solo árido que hoje abriga tanta desesperança e
desalento. Deste modo, no dizer de Carlos Schmidt:

Se a economia solidária tiver uma perspectiva revolucionária, se forjar uma


identidade de classe dada pelo papel que pode ocupar na luta de classes – inserindo-
se no movimento geral dos trabalhadores – que seja contestador do sistema
capitalista, poderá abarcar parcelas significativas da economia, constituindo no
imaginário coletivo a consciência da possibilidade da autogestão, desenvolvendo
tecnologias alternativas às do capital adaptadas à autogestão plena e respeitadora do
meio ambiente.
Desta forma, cria-se a possibilidade de uma mudança muito mais ampla que a
obtida pela experiência precedente que fracassou. Mudam-se as relações de
propriedade, mas também as de produção, velo sonho de Marx e Engels da
sociedade de livres produtores associados.
A economia solidária com essa perspectiva cria espaço para a desnaturalização das
relações mercantis da sociedade, premissa que está presente de forma implícita nas
análises de muitos marxistas (Wood, 2001) e contribui decisivamente para a
refundação da utopia socialista. (2013, p. 26)

É possível arriscar como resposta provisória, considerando o quadro maior da


pesquisa em andamento, e visando a potencializar outras perguntas, que a economia popular e
solidária corresponde a um recorte do mundo do trabalho onde, mesmo imerso em uma
plêiade de contradições, é possível identificar práticas e sentidos de resistência contra-
hegemônicas e, mais que isso, que espelham características que se peculiarizaram no Brasil,
em virtude do processo colonizatório e de modos específicos de produzir e relacionar dos
povos não-europeus.
A partir dessa constatação, no seguimento da pesquisa, pretende-se reduzir o campo
de observação deste específico recorte do mundo do trabalho, mirando, em especial, o papel
assumido pelo Direito burguês em meio a tais processos de resistência/conformação à pressão
expansionista do capital.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo:
Boitempo, 2005.

mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo
de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por
um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores
diretos em trabalhadores assalariados.” (MARX, 2017, p. 786)

584
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo:
Boitempo, 2016.

DUSSEL, Henrique. Transmodernidad e Interculturalidad (Interpretación desde la Filosofía de la Liberación) .


Mexico City: UAM-Iz, 2005. Disponível em:
http://enriquedussel.com/txt/TRANSMODERNIDAD%20e%20interculturalidad.pdf

ESPOSITO, Roberto. Bíos: Biopolitica y filosofía. Buenos Aires, Amorrortu, 2006.

FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ,
2012.

FORNET-BETANCOURT, Raúl. Supuestos filosóficos del diálogo intercultural. Revista de Filosofía, Mexico,
D.F., v. 32, n. 96, p. 343-371, 1999.

FREUD, S. O estranho. Obras completas, ESB, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre, RS: L&PM, 2016.

LAVILLE, Jean-Louis; GAIGER, Luiz Inácio. Economia Solidária. In: CATTANI, Antonio David. et al.
Dicionário Internacional da Outra Economia. Coimbra: Almeida, 2009. pp. 162-168.

LECHAT, Noëlle Marie Paule. As raízes históricas da economia solidária e seu aparecimento no Brasil. Palestra
proferida na Unicamp por ocasião do II Seminário de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, em
20 mar 2002. Disponível em: <http://www.itcp.usp.br/drupal/node/250>. Acesso em: 13 nov. 2013.

LÊNIN, Vladimir I. Sobre a cooperação. In: LÊNIN, Vladimir I. A aliança operário-camponesa. Rio de Janeiro:
Vitória, 1961, p. 612-618.

LIMA, José Raimundo Oliveira. A Economia Popular e Solidária como estratégia para o desenvolvimento local
solidário. 2014 Tese (Doutorado em Educação e Contemporaneidade) - Faculdade de Educação, Programa de
Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, Bahia, 2014.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política – livro I. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

MAUGER, Gérard. Les politique d’insertion: une contribuition paradoxale à la déstabilistion du marché du
travail. In: Actes de la recherche en sciences sociales, v. 136-137, Nouvelles formes d’encadrement, pp. 5-14,
mar. 2011. Disponível em: http://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_2001_num_136_1_2706

MINISTÉRIO do Trabalho. Economia Solidária: o que é. 2015. Disponível em:


http://trabalho.gov.br/trabalhador-economia-solidaria/o-que-e

ORGANIZAÇÃO das Cooperativas Brasileiras – OCB. O que é cooperativismo. Disponível em:


http://www.ocb.org.br/o-que-e-cooperativismo

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad-Racionalidad. In: BONILLA, Heraclio (Org.). Los conquistados:
1492 y la población indígena da las Américas. Santafé de Bogotá, Colombia: Tercer Mundo; Ecuador:
FLACSO: Libri Mundi, 1992, p. 437-447.

________. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.) A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur.
Ciudad Autónoma de Buenos Aires, CLACSO, 2005.

________. El Trabajo. Argumentos, México, D.F., v. 26, n. 72, p. 145-163, may-ago. 2013.

SANTNER, Eric L. The Royal Remains: The People’s Two Bodies and the Edgames of Sovereignty. Chicago:
The University of Chicago Press, 2011.

585
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

SANTOS, Boaventura de Souza (Org). Produzir para Viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

SCHMIDT, Carlos. A economia solidária: panaceia do capitalismo pós-moderno ou um caminho para o


socialismo. In: SCHMIDT, Carlos; NOVAES, Henrique T. Economia Solidária e transformação social: rumo a
uma sociedade para além do capital? Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013. p. 15-28.

SENAES.MTE. Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária. Atlas Digital da Economia Solidária:
dados do segundo mapeamento nacional de empreendimentos econômicos solidários (EES), 2013. Disponível
em: http://sies.ecosol.org.br/atlas. Acesso em: 10 ago. 2014.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, v. III. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

WELLEN, Henrique. Para a crítica da “Economia Solidária”. São Paulo: Outras Expressões, 2012.

ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012.

586
VIA COLONIAL E NEOLIBERALISMO:
AS REFORMAS TRABALHISTAS
E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO

JACINTO, Ana Letícia Domingues


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)
RODRIGUES, Arthur Bastos
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)

RESUMO

Pretende-se no artigo, desvendar as novas formas de precarização do trabalho feminino, com especial
atenção ao desmantelamento das previsões legais de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras, como
parte das medidas impostas pelo neoliberalismo, que ganha fôlego no Brasil a partir da década de 90 do
século XX. Para isso, partimos de compreensões acerca da formação do capitalismo brasileiro, aqui
categorizado como capitalismo de via colonial, e que, ante sua gênese específica, apresenta também
peculiaridades na consolidação do movimento global neoliberal. Tendo em vista tais perspectivas,
lançamos o olhar à questão das condições de trabalho das mulheres no contexto neoliberal brasileiro,
buscando identificar como os recentes ataques às legislações protetivas, especialmente a reforma
trabalhista aprovada pela lei 13.467 de 2017, influem no aumento da exploração das trabalhadoras.

Palavras-Chave. Capitalismo de via colonial e neoliberalismo. Trabalho feminino. Reforma


trabalhista.

ABSTRACT

The aim of this article is to unveil the new forms of precariousness of women's work, with special
attention to the dismantling of legal provisions to protect workers, as part of the measures imposed by
neoliberalism, which has gained momentum in Brazil since the 1990s of the 20th century. For this, we
start with understandings about the formation of Brazilian capitalism, here categorized as colonial
capitalism, and which, before its specific genesis, also presents peculiarities in the consolidation of the
neoliberal global movement. In view of these perspectives, we look at the issue of women's working
conditions in the Brazilian neoliberal context, seeking to identify how the recent attacks on protective
legislation, especially the labor reform approved by law 13,467 of 2017, influence the increase in the
exploitation of women workers .

Keywords. Colonial capitalism and neoliberalism. Female work. Labor reform.

587
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

No artigo, pretendemos relacionar a exploração da classe trabalhadora brasileira no


neoliberalismo, com especial atenção às mulheres trabalhadoras, com a especificidade da
formação do capitalismo brasileiro e seus processos históricos de desenvolvimento.
A categoria “capitalismo de via colonial”, teorizada por J. Chasin, nos permitirá
compreender, na primeira parte da análise, as especificidades da formação do modo de
produção capitalista no Brasil, caracterizado, entre outros, pela superexploração da classe
trabalhadora como marca fundamental. Além disso, seria também elemento caracterizador do
capitalismo de via colonial, a sua própria consolidação nos moldes neoliberais da
mundialização do capital, como resultado de seu processo histórico de desenvolvimento.
Estes entendimentos serão úteis para que se siga na investigação da condição da
mulher trabalhadora no neoliberalismo brasileiro que, subordinada a relações que envolvem
classe, gênero e raça (tendo em vista que as mulheres negras estão à frente deste processo de
precarização)enfrentam intensos processos de desvalorização e exploração no mundo do
trabalho.
O avanço da precarização do trabalho pós 70 contribuiu muito para a feminização
do mercado de trabalho, que de fato é uma inserção rebaixada ao mundo do trabalho pelas
mulheres. Pois, a informalidade, os baixos salários e a dupla jornada sempre foram a regra da
exploração da força de trabalho feminina. A precarização, portanto se movimenta, de forma
mais intensa e com determinada antecedência, para os grupos já vulneráveis que dominam o
subemprego e a informalidade, no caso o feminino. As reformas trabalhistas recentes no
processo de desenvolvimento do neoliberalismo no país podem ser compreendidas em sua
gênese função histórica, assim, a partir da análise pormenorizada das variadas formas de
flexibilização da força de trabalho feminina.
Assim, a partir de estudos já consolidados acerca da realidade do trabalho feminino
no cenário brasileiro, tentaremos investigar como os desmontes neoliberais às legislações
trabalhista nas últimas décadas, e mais recentemente com a reforma trabalhista aprovada em
2017, afetam as mulheres trabalhadoras, com a hipótese de que as novas formas de
precarização atingem de modos diferentes homens e mulheres e mais fortemente as
trabalhadoras, seja por sua anterioridade temporal, ou maior intensidade. Elegemos, para isso,
pontos da reforma trabalhista que entendemos como centrais nesse processo amplo de

588
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

precarização geral, para demonstrar como seus efeitos se diferenciam entre homens e
mulheres trabalhadoras.

1. CAPITALISMO DE VIA COLONIAL E NEOLIBERALISMO

A compreensão do atual estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira exige


uma investigação sobre seu processo de gênese histórica. A sua atual conjuntura política e
econômica de roupagem neoliberal na perspectiva da mundialização do capital em seu braço
financeiro hipertrofiado tem relação com a conformação histórica do desenvolvimento
particular do capitalismo brasileiro incrustado nas teias do desenvolvimento mundial do
capital.
Nesse sentido, nosso objeto de estudo nessa pesquisa são as dimensões e funções da
reforma trabalhista contemporânea no Brasil e os efeitos de precarização sobre a classe
trabalhadora. Para isso, escolhemos analisar a classe trabalhadora feminina pelo fato de as
novas formas de trabalho flexível atingirem em sua maior intensidade os grupos já
vulneráveis. Além disso, desde 1970 estudos comprovam uma crescente feminização do
mercado de trabalho que persiste. De forma que os grupos vulneráveis e especialmente as
trabalhadoras trariam o sentido de “ponta de lança” dos processos de precarização da força de
trabalho.
Entretanto, as reformas trabalhistas contemporâneas não são uma novidade na
história do país e é necessário compreender o processo mais amplo de crise e reestruturação
produtiva do capital em nível mundial, que o Brasil se envolve numa lógica combinada e
desigual. Nesse sentido, o neoliberalismo enquanto prática econômica e como ideologia, nas
suas variadas feições, aparece como um projeto “salva-vidas” e como única saída possível
para crises, mas que é tomado por contradições e pela intensificação da exploração em termos
materiais e de decadência ideológica das subjetividades.
De qualquer modo, todas as experiências neoliberais compartilham traços universais
em todos os países, mas também possuem suas formas específicas e concretas em cada um.
Se países de passado colonial trazem consigo um histórico de subordinação econômica, no
contexto de mundialização do capital, o neoliberalismo se objetiva com efeitos diferentes em
cada país (FILGUEIRAS, 2005). Em suma, o “neoliberalismo” é uma doutrina geral, mas o
“projeto neoliberal” e o “modelo econômico” a ele associado, são mais ou menos

589
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

diferenciados, de país para país, de acordo com as suas respectivas formações econômico-
sociais.
Por isso faz-se necessário trazer a categoria de via-colonial para caracterizar a
especificidade do capitalismo brasileiro, em sua gênese histórica, que pode iluminar a
compreensão sobre a especificidade do neoliberalismo no país. José Chasin, dentro dos
debates sobre as vias de objetivação para o capitalismo iniciado com os marxistas clássicos
(via clássica, via francesa, via prussiana, via russa...) diferencia a formação do Brasil dos
modelos de atraso da via-prussiana, e realizando na década de 70 uma “síntese corretora do
pensamento social brasileiro de talhe marxista” (PAÇO CUNHA, 2017), particulariza a via-
colonial em relação às outras vias para o capitalismo É uma via particular por ser um
processo histórico hiper-tardio.
O capitalismo de via colonial diferencia-se assim das outras vias para o capitalismo -
via clássica e prussiana - como um “particular contrastante do qual se avizinha o caso
brasileiro, também diverso dos casos clássicos.” (CHASIN, 1999, p. 627) - por ser um
processo histórico hiper-tardio, incompleto, retardatário, não-autocentrado, lento, inorgânico e
atrófico (ASSUNÇÃO, 2004, p. 9), sustentado por uma burguesia caudatária, que não cumpre
sua função na industrialização e independência do país e se nutre da superexploração das
classes trabalhadoras, excluindo-as dos processos políticos.
Desta forma, “A superexploração da força de trabalho também é uma característica
do país e tem raízes firmemente plantadas na história nacional.” (ASSUNÇÃO, 2004, p. 11).
Chasin aponta que todos os chamados “milagres econômicos” brasileiros - que sempre foram
centrados nos bens de consumo duráveis, capitaneado por empresas monopólicas
majoritariamente estrangeiras, e complementado pelo “esforço exportador”, basicamente de
produtos agrários - tinha como pilar fundamental o rebaixamento salarial: a superexploração
do trabalho. A forma retardatária, subordinada e conciliada com o historicamente velho de
evolver a industrialização brasileira mostra a manutenção, devidamente modernizada e
“desenvolvida”, de sua fase mais perversa - a miserabilidade das amplas massas
trabalhadoras, que se põe, não como produto de uma lacuna “distributivista”, mas como
sustentáculo da própria forma de desenvolvimento (Contrim, 2000).
O processo de consolidação do capitalismo de via colonial que se dá nos anos de
1930 e o seu caminhar posterior se coloca frente a alternativas que se efetivaram sempre

590
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

como saídas conciliatórias com o passado colonial e com a subordinação econômica ao


mercado estrangeiro.
Entretanto, claro, não sem contradições postas tanto pelas crises econômicas
nacionais reféns da flutuação internacional, quanto das lutas dos trabalhadores. A ditadura
bonapartista de 64 é uma resposta à mobilização popular democrática de forma a retirar
quaisquer formas de turbulências à renovação do velho, que se caminha como transição
durante o século XX no país, em conformidade com os movimentos expansionistas do capital
internacional. A chamada redemocratização não trouxe transformações substanciais
(CHASIN, 2000) e a década de 80 é a consolidação do processo de gênese da via-colonial, ou
seja, o seu próprio acoplamento ao movimento de mundialização do capital. Postas
alternativas de rompimento, que não se cumpriram, o desenvolvimento do capitalismo de via
colonial de 1930 até as décadas de 80 e 90 significaram de fato a consolidação do seu
“destino mais forte” que objetivamente se pôs inquebrantável com o golpe de 64 e o processo
de retomada à autocracia, claramente evidenciado na funcionalidade efetiva do projeto
neoliberal globalizante que a partir de então se torna hegemônico.
Segundo Contrim (2000), essa constituição do capitalismo brasileiro pela via
colonial vai dando seus últimos passos em fins da década de 80, em conformidade, mais uma
vez, com as alterações que se verificavam no plano internacional. No percurso da via colonial,
longe de fatalismos na história, Chasin mostra a vinculação entre o acabamento da transição à
autocracia, a chamada “redemocratização”, e do próprio processo de constituição do
capitalismo no Brasil, desde os anos 30, indicando que, nesses seus passos finais, a burguesia
brasileira abandona definitivamente qualquer ilusão ou aparência de autonomia que pudesse
ter alimentado antes, para assumir plenamente, de sua condição subordinada, por isso o
encerramento da via colonial.

De maneira que, se o golpe de 64 fora dado para barrar movimentos e propostas de


mudança, a chamada redemocratização ao contrário, pôs na ordem do dia somente
a modernização do arcaico, sua manutenção sob outra roupagem, adaptada às novas
formas e necessidades do capital mundial. É justamente a reviravolta no panorama
internacional pós 70 que marca e induz os momentos finais da via colonial. O
neoliberalismo, seja enquanto prática efetiva do capital, seja enquanto ideologia, se
confunde com este período em que a superprodução de capital aparece como
superabundância de capital financeiro, que, em busca de espaço de reprodução,
arrebenta os limites que o constrangem, para isto rompendo as barreiras comerciais
e políticas que pudessem emperrá-lo. A desregulamentação e a restrição do papel
econômico dos estados nacionais foram suas manifestações mais evidentes. É sob o
influxo da mundialização do capital que a via colonial vive seu encerramento. A
vitória de Collor em 89 significou de fato a vitória dos ideais profundos de 64. O
encerramento da via colonial pela trilha de suas próprias determinações, e não pela

591
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ruptura com elas, deu-se, assim como todas as anteriores alterações significativas na
vida nacional, por influxo, pelo alto e sob o domínio dos capitais subordinantes.
(Contrim, 2000)

Considerando, já agora, o processo acelerado de mundialização do capital, e o novo


fôlego então obtido pela proposta de integração subordinada, representada, na campanha
sucessória, fundamentalmente por Collor, mas também, pelo PSDB, e recentemente PT e o
PMDB, salta à vista que a tendência mais forte, determinada pela própria dinâmica da via
colonial, era a efetivação da industrialização subordinada ao capital externo, o que implicava
a “resolução” da questão agrária pela manutenção de sua estrutura básica latifundiária e a
necessidade da intensificação da superexploração do trabalho, bem como as dificuldades
assim postas de integralização da classe trabalhadora (Contrim, 2000).
Desta forma a superexploração e miserabilidade da classe trabalhadora é
característica que se reafirma, na “modernização do arcaico”, com o projeto do golpe de 64 se
realizando na redemocratização transada pelo alto. O neoliberalismo como ideologia e prática
econômica desregulamenta as proteções sociais, intensifica a exploração da força de trabalho
através do desemprego estrutural, da proliferação dos trabalhos temporários e de formas cada
vez mais variadas de flexibilização, alterando significadamente a morfologia da classe
trabalhadora (ANTUNES, 2006), mesmo em países em que a informalidade e a
miserabilidades das massas que vivem do trabalho é própria do desenvolvimento histórico.
A integração mundial do capitalismo “inviabiliza qualquer encaminhamento de
soluções no âmbito nacional”, gerando o influxo cada vez maior sob o “domínio dos
movimentos dos capitais subordinantes” (CONTRIM, 2000). Em outras palavras, os rumos
da exploração dos trabalhadores se acopla cada vez mais aos processos de crise e expansão do
capital em suas formas cada vez mais ofensivas, atingindo objetivamente e subjetivamente o
trabalhador. O processo de gênese da via colonial marcada pela superexploração dos
trabalhadores, na égide de sua consolidação pós-80, com a atual ofensiva globalizante
neoliberal, sem freios, como direitos, nem barreiras comerciais, avança mais facilmente sobre
os trabalhadores brasileiros, cada vez mais desprotegidos, que nunca puderam contar com
efetivos direitos sociais.
O neoliberalismo no Brasil que se inicia com Collor em 1989 na retomada pelo alto
da autocracia burguesa se objetiva através dos programas neoliberais experimentados pelo
mundo como na Europa, com Thatcher, e mesmo antes no Chile, com Pinochet (Anderson,

592
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2000, p. 9). Diz Anderson (2000), que apresenta uma cronologia histórica do neoliberalismo
no mundo, desde sua teorização até consolidação e reprodução desse movimento ideológico,
que

Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente


decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e
sua extensão internacional. Eis aí algo muito mais parecido ao movimento
comunista de ontem do que ao liberalismo eclético e distendido do século passado.
Nesse sentido, qualquer balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório.
Este é um movimento ainda inacabado. (Anderson, 2000, p. 12)

Os duros programas neoliberais que são hegemônicos ideologicamente com suas


práticas de desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em
favor dos ricos e privatização, no Brasil, iniciam-se com o governo Collor retirando as
barreiras alfandegárias em processos de desregulamentações estatais e de privatização de bens
públicos. A desregulamentação do Estado, a partir de então, no ritmo da reprodução mundial
com a financeirização do mercado, favorece a subordinação plena da economia brasileira
industrial ao capital global. Com os governos do PSDB1, PT2 e PMDB, nas suas
especificidades próprias, o neoliberalismo se consolida cada vez mais ideologicamente como
única saída para as crises e misérias advindas da reprodução social do capital, mas que de fato
não são falhas, mas sustentáculos de seu desenvolvimento. A eliminação de barreiras
alfandegárias e de tributos às remessas de lucros, as privatizações, a diminuição dos gastos
públicos, as variadas formas de flexibilização dos direitos trabalhistas, aliados ao desemprego
estrutural, são as velhas formas que se regeneram nas atuais mediações da sociedade brasileira
cada vez menos autônoma.
O neoliberalismo nesse sentido atua também na subjetividade da classe trabalhadora.
Sua reprodução através do desemprego crônico e estrutural, não mais cíclico, indica uma
tendência forte à fragmentação e competição entre os trabalhadores, prejudicando sua
identificação como ser social que vive do trabalho. O discurso que intensifica esta competição
responsabiliza os trabalhadores pela empregabilidade, e em termos da via-colonial, nunca
houve a ideologia do pleno emprego nem do Bem Estar Social. Assim, os processos de auto-

1
Sobre o governo FHC e as reformas de Estado neoliberais: “E isso se explica pela permuta de valores ocorridos
no governo FHC. Ao trocar a idéia de solidariedade, presente na Constituição de 88, pela competitividade,
expressa a elevação das questões econômicas a um primeiro plano, de forma a relegar a questão social a um
simples pano de fundo, inserida na lógica neoliberal de restrição dos gastos sociais.” (Carinhato 2008, p. 46).
Ainda sobre reformas trabalhistas no Governo FHC ver KREIN, J. D., 2003
2
Sobre os governos PT ver: CASTELO, Rodrigo, 2012 e também Boito Júnior, Armando

593
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

alienação, justificando o auto-emprego e a precarização, com os atuais mecanismos de info-


empregos, com o trabalho por aplicativos (“uberização da vida”), são mais agudos no Brasil e
a classe trabalhadora se esvazia de compreensões coletivas e classistas de organização da
vida.
A superexploração da classe trabalhadora se objetiva nas dimensões materiais e
subjetivas. Há uma horizontalização ideológica no discurso para atingir a subjetividade do
trabalhador, através das narrativas pós-modernas de empreendedorismo, “trabalhador-
colaborador” ou “trabalhador-sócio”. Esse discurso ideológico distorce a realidade cada vez
mais verticalizada em exploração, pois o empreendedorismo e a flexibilização da relação
trabalhista indica de fato precarização, desemprego e concentração massiva de riquezas, com
o consequente aumento da miséria, violência e desigualdade (CASTRO, 2013).
Desta forma, as reformas trabalhistas em curso atualmente atingem de forma
estrutural, devido a sua substância (ANTUNES, 2006; CASTRO, 2015), a exploração do
trabalho no Brasil. Sem barreiras, sejam as legais ou as de resistência dos trabalhadores, e
com a gênese histórica da superexploração como elemento central da formação social
brasileira, as reformas neoliberais, de recuo de direitos, são vertiginosas e generalizantes, com
efeitos devastadores a curto prazo.
Nesse novo ciclo do capital, de precarização neoliberal do trabalho, em que a
desregulamentação passa a se tornar regra e o direito trabalhista se pauta pela desproteção, as
variadas formas de flexibilização das proteções legais (ANTUNES, 2006; CASTRO, 2015)
são mediadas através de modos específicos. Preocupa-nos particularmente nesta pesquisa a
especificidade do trabalho feminino neste processo de reforma estrutural, pois generalizante.
Mas o processo de generalização e preponderância passa por mediações intermediárias de
desenvolvimento e transição, como a precarização dos grupos mais vulneráveis e aqui
particularmente do trabalho feminino.

2. DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E A SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA


DE TRABALHO FEMININO

Como trazido por Cláudia Mazzei Nogueira (2004), através do enfoque nas relações
de trabalho, é possível apreender de um lado, a exploração da mulher inerente à sociedade de
classe e de outro, diferenciações e explorações especificamente suportadas pela mulher

594
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

trabalhadora, partindo, para isso, da complexa indissociabilidade e complementariedade das


questões de gênero e classe (HIRATA & KERGOAT, 1994).
De acordo com Saffioti (1979-a), ainda que em sociedades pré-capitalistas as
funções femininas pudessem ser marcadas pela subsidiariedade e complementariedade em
relação às atividades produtivas dos homens, é especialmente com o desenvolvimento do
sistema capitalista que as desvantagens das mulheres se tornam cada vez mais marcantes.
Ocorre que, as trajetórias de homens e mulheres, muito mais do que diferenças
biológicas, são marcadas especialmente por construções sociais que destinam os papéis de
cada sexo. Segundo Kergoat (2009), destas relações sociais decorrem tanto a separação dos
trabalhos exercidos por homens e mulheres, quanto as diferentes destinações e valor social
agregado às suas funções.
Saffioti acerca do trabalho feminino no processo de industrialização da economia
brasileira, revela que o capitalismo dependente3 no Brasil teve como elemento o fato de que
“a participação da mulher na força de trabalho brasileira tem sido uma das baixas do mundo”
(SAFFIOTI, 1979-b, 409), entre outros motivos, porque durante a primeira metade do século
XX, cerca de 50% das trabalhadoras brasileiras estavam inseridas em atividades de corte não-
capitalista, como empregadas domésticas, lavadeiras, costureiras, entre outros, (SAFFIOTI,
1979-b).
Não obstante à realidade do capitalismo brasileiro de manter à margem do mercado
de trabalho grandes contingentes de trabalhadoras, é evidente que a dinâmica do capital exige
que, em diferentes momentos da economia, também diversas parcelas de trabalhadores
marginalizados sejam incorporados pelo setor capitalista (SAFFIOTI, 1979-b).
Segundo Hirata (2009), a gênese do processo de globalização e de reestruturação das
forças produtivas na década de 70, gerador do atual processo de acumulação capitalista, em
sua fase neoliberal, teve como uma de suas consequências o crescimento do emprego
feminino em todas as partes do globo.
Além disso, ao mesmo tempo em que há o aumento do número de mulheres em
profissões intelectuais valorizadas, há a manutenção das ocupações de cuidado e educação
tradicionalmente femininas, mas que crescentemente se tornam cada vez mais instáveis, mal
remunerados e também intensificadas (HIRATA, 2009).

3
Heleith Saffioti trabalha a partir da teoria marxista da dependência nas teorizações realizadas por Florentan
Fernandes. Tendo sido orientada em sua tese de doutoramento A mulher na sociedade de classes: mito e realidade
pelo sociólogo paulista.

595
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Ademais, apesar dos efeitos de aprofundamento do desemprego estrutural e


pauperização da população, as políticas de cunho neoliberal surgiram como estratégia de
combate à crise do capital iniciada nos anos 1970, entretanto não cumpriram sua promessa,
pois o desemprego estrutural (CASTRO, 2015) é característica desse novo processo de
acumulação atual. Destaca-se que, para Bruschini (1994), a não redução no número de
mulheres economicamente ativas no Brasil na década de 80, ao revés da crise econômica e do
desemprego estrutural, demonstra a consolidação da força de trabalho feminina na realidade
brasileira, especialmente como estratégia de enfrentamento à situação econômica adversa.
Também neste sentido, Cláudia Mazzei Nogueira, reconhece que o período pós-
1970 foi marcado pela feminização do mundo do trabalho, com a forte intensificação da
inserção das mulheres no mercado, no entanto, “essa presença feminina se dá mais no espaço
dos empregos precários, onde a exploração, em grande medida, se encontra mais acentuada”
(NOGUEIRA, 2009, p. 187).
Assim, partindo do entendimento da indissociabilidade da questão de classe e
gênero, mostra-se a realidade de diferenças das trajetórias sociais de homens e mulheres
durante o processo histórico de formação da classe trabalhadora no capitalismo de via
colonial, vez que, como nos ensina Saffioti “as diferentes formações sociais, com suas
culturas e tradições específicas, darão um colorido especial à inserção da mulher nas
diferentes economias nacionais” (SAFFIOTI, 1979-b, p. 408).

3. CONDIÇÃO DA MULHER TRABALHADORA E REFORMA


TRABALHISTA DE 2017

As recentes reformas ocorridas no mundo do trabalho, nesse contexto de


mundialização, com tendência ao subemprego e à informalidade, além de processos intensos
e variados de flexibilização de direitos, como é o caso do aumento e generalização das
atividades terceirizadas, iniciadas com fôlego na década 90 no Brasil, tem tido efeitos intensos
sobre o trabalho feminino. A Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943 apesar de ser uma
proteção relevante que por hora é atacada, não atinge a totalidade dos trabalhadores, por isso,
seu caráter simbólico (CASTRO, 2015). Desde sua promulgação, os trabalhadores rurais e
domésticos, com relevo para a força de trabalho feminina, ficaram excluídos da proteção
social trabalhista por longas décadas.

596
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Além disso, mesmo com a CLT, a exploração da força de trabalho no Brasil sempre
foi marcada por grandes contingentes de trabalhadores na informalidade. Com a expansão do
mercado de trabalho feminino do final do século XX, as formas de flexibilização do trabalho,
desde as formas mais recentes de teletrabalho e uberização, até o próprio desemprego
estrutural, afetam de modo específico, a exploração da força de trabalho feminina, indicando
uma maior intensidade e anterioridade da desproteção da mulher trabalhadora.
Desta forma, a recente reforma trabalhista aprovada em 2017, Lei 13.467 de 2017,
tende a precarizar fortemente as condições de trabalho da trabalhadora. Em vista de suas
alterações substanciais nas formas de remuneração, na extensão da jornada de trabalho, na
flexibilização das formas de contratação, permitindo a terceirização ampla, o trabalho
temporário e o intermitente, recua-se em relação à, já, pouca estabilidade presente na CLT, e
abrem caminho para uma exploração aberta. As indicações e tendências históricas evidenciam
que a informalidade, os baixos salários e, mais recentemente, as ocupações atípicas e
precárias, como respostas às crises produtivas, especulativas e de queda da taxa de lucros,
pela natureza e profundidade destas crises e contradições, materializam-se através dos setores
mais fragilizados socialmente. Em outras palavras, buscando recuperar taxas econômicas
anteriores às crises, a precarização do trabalho como saída é rapidamente direcionada para o
trabalhador mais precarizado, neste caso, o das trabalhadoras.
É por isso que, Cláudia Mazzei Nogueira (2009) afirma que, muito embora as
alterações no mundo do trabalho atinjam a totalidade dos trabalhadores, em verdade a
precarização tem sexo, e ainda, como trazido por Hirata & Kergoat (2007), no caso das
mulheres trabalhadoras, a questão do tempo de trabalho assume papel de destaque no
processo de flexibilização do emprego feminino.
A flexibilização da jornada de trabalho no caso das mulheres, é incentivado pelo que
Miriam Nobre (2004) denomina como “sabedoria da conciliação”, através da qual as
trabalhadoras são levadas a ocuparem jornadas flexíveis tendo em vista o tensionamento entre
as obrigações familiares e profissionais.
É o caso do trabalho por tempo parcial, atividade majoritariamente feminina, que se
expandiu fortemente nos anos 1990 num grande número de países (HIRATA, 2002-a),
possibilitado no Brasil a partir da medida provisória 2164-41 de 2001 e caracterizado pela
jornada não excedente a vinte e cinco horas semanais, excluída a possibilidade de realização

597
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de hora extraordinária, com salário proporcional à jornada contratada, vez que, como destaca
Hirata (2002-a) trabalho em tempo parcial significa salário parcial.
Como nos apresenta Cássia Maria Carloto em Gênero, Reestruturação Produtiva e
Trabalho feminino, as novas estruturas do mercado, especialmente as ocupações de tempo
parcial, facilitam a exploração da força de trabalho feminino, “substituindo homens melhor
remunerados e mais difíceis de serem admitidos, pelo trabalho feminino mal pago”
Aliás, é a tendência do mercado de trabalho brasileiro a expansão dos postos de
trabalho precarizados, conforme trazido pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas
(IPEA):

Houve queda expressiva do trabalho precário4 até 2013, com leve tendência de
aumento a partir de então, corroborada pelos dados da Pnad 2014, conforme se
pode depreender do gráfico abaixo. O percentual de trabalhadores inseridos em
formas precárias de ocupação apresenta a mesma estrutura hierárquica que os
estudos clássicos sobre estratificação social com base na renda apresentam: a
mulher negra é a base do sistema remuneratório, sujeito preferencial das piores
ocupações, convergência da tríplice opressão de gênero, raça e classe. Nada menos
que 39,1% das mulheres negras ocupadas estão inseridas em relações precárias de
trabalho, seguida pelos homens negros (31,6%), mulheres brancas (27,0%) e
homens brancos (20,6%) (IPEA, 2016, p. 11-12)

Neste ponto, destaca-se a categoria de telemarketing, caracterizada pela jornada


parcial e por ser predominantemente feminina, vez que 70% (setenta por cento) dos postos de
trabalho neste setor são ocupados por mulheres. Trata-se de uma ocupação precarizada e em
grande processo de expansão, de baixos salários, alto controle de tempo e intervalos para
descanso e alimentação, ritmo e pressões intensas no ambiente de trabalho. (NOGUEIRA,
2009).
Ademais, a reforma trabalhista aprovada pela lei 13467 de 2017, representa ainda
maior exploração ao trabalhador deste regime, vez que aumentou o teto de horas semanais
para trinta horas, incluindo a possibilidade de realização de horas extraordinárias (que podem
ser convertidas em compensação de horas) nos regimes menores de vinte e seis horas
semanais, viabilizando ainda o abono pecuniário de um terço do período de férias.
Assim, este ponto da reforma trabalhista de 2017, se apresenta como fortemente
ligado ao trabalho feminino, tendo em vista que a feminização deste setor é motivada pelo

4
Foram classificados como trabalhadores precarizados aqueles trabalhadores com renda de até 2 salários mínimos
e com as seguintes posições na ocupação: sem carteira assinada, construção para próprio uso, conta-própria
(urbano), empregador com até 5 empregados (urbano), produção para próprio consumo (urbano) e não-
remunerados (urbano).

598
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

tempo parcial de trabalho, pela suposta possibilidade de conciliação com suas tarefas no
ambiente reprodutivo:

Talvez possamos afirmar que os ofícios de jornadas parciais (como é o caso do


telemarketing) estejam mesmo reservados para as mulheres trabalhadoras, porque,
culturalmente (e por interesse da própria lógica do capital), na sociedade patriarcal,
as prioridades femininas residem na esfera doméstica. (NOGUEIRA, 2009, p. 208)

Outra forma de absorção do trabalho feminino que se baseia na conciliação com


obrigações domésticas e familiares é o denominado teletrabalho, já viabilizado legalmente a
partir da alteração à CLT pela lei 12.551 de dezembro de 2011 e regulamentado pela reforma
trabalhista de 2017.
Estabelecido como um regime de trabalho sem qualquer tipo de controle de jornada,
a partir da reforma de 2017 os teletrabalhadores não gozam de adicional por horas
extraordinárias, adicional noturno ou intervalos para descanso e alimentação e intervalo entre
jornadas.
Em artigo denominado Teletrabalho: subjugação e construção de subjetividades,
Isabel de Sá Affonso da Costa (2007) revela que, inseridos no discurso do empreendedorismo
de si5, os teletrabalhadores possuem uma alta carga de trabalho e horas de jornada, pouca
infra-estrutura combinada com a necessidade de disponibilização de espaço dentro de casa,
convivendo ainda com a transferência de custos e seu isolamento. Acresce-se a isso a
responsabilização do trabalhador, uma vez que a lei dispôs caber ao empregador instruir os
empregados, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho,
porém “o empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as
instruções fornecidas pelo empregador”, conforme parágrafo único do artigo 75-E da CLT
trazida pela lei de 2017.
Apesar das implicações aos trabalhadores de modo geral, esse tipo de trabalho
possui reflexos distintos no caso das mulheres, impondo grandes custos emocionais pela
invasão do mundo produtivo ao espaço reprodutivo ao mesmo tempo em que reforça sua
condição de responsáveis pelas tarefas domésticas (CASACA, 2002).

5
Para o aprofundamento do debate acerca da lógica de empreendedorismo de si, com especial atenção às
mulheres, e suas implicações com a tripla jornada de trabalho e a “polivalência precária” do trabalho feminino das
revendedoras de comésticos, ver ABÍLIO, Ludmila. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de
revendedoras de cosméticos. São Paulo : Boitempo, 2014

599
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Casaca (2002) argumenta que esta espécie de trabalho representa para as mulheres
uma “saída flexível” para conciliar a atividade remunerada com as funções domésticas,
gerando, no entanto, problemas com a gestão do tempo, tendo em vista a distorcida união
entre o tempo de atividade profissional e o tempo com a família e obrigações domésticas,
além da necessidade de simultaneidade de tarefas:

A indistinção entre tempo de trabalho e de não trabalho, assim como a ampliação


do tempo de trabalho não pago, são hoje elementos centrais para problematizarmos
a relação entre exploração do trabalho e acumulação, e reproduzem muito da lógica
que historicamente estrutura o trabalho feminino em domicílio. (ABÍLIO, 2014, p.
96)

Soma-se ao processo de precarização dos postos de trabalho predominantemente


femininas, as dificuldades de organização das mulheres trabalhadores, tendo em vista “o seu
isolamento ou as condições de flexibilidade do tempo de trabalho impostas pelas empresas”
(HIRATA, 2002-a).
Na obra A classe operária tem dois sexos de 1991, Elizabeth Souza-Lobo revelou a
dificuldade de participação das mulheres nas lutas sindicais ocorridas na indústria brasileira
nas décadas de 70 e 80, apesar do grande aumento de trabalhadoras no setor industrial
verificado à época.
Mesmo no período de forte resistência dos trabalhadores, como ocorrido nas
indústrias automobilísticas do ABC paulista a partir da década de 1970, o discurso sindical se
mantinha alinhado à lógica de destinação natural das mulheres à esfera reprodutiva e a
consequente complementariedade do salário feminino em relação ao principal provedor,
identificando como secundárias as necessidades e reivindicações da força de trabalho
feminina.
Ocorre que, ainda hoje, o movimento sindical continua fortemente marcado pela
presença masculina, especialmente no que se refere à direção sindical, uma vez que as
mulheres permanecem “sub-representadas (quando não totalmente excluídas) das posições de
liderança e de poder tanto nos sindicatos locais quanto nas organizações federativas de âmbito
regional ou nacional” (ARAÚJO & FERREIRA, 2000, p. 311).
É neste contexto em que se apresenta ainda a reforma trabalhista de 2017,
estabelecendo que a negociação coletiva prevalece sobre a lei, em questões relacionadas à
jornada e intervalores, banco de horas, teletrabalho, enquadramento do grau de insalubridade,
entre outros pontos.

600
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Assim, tendo em vista as dificuldades de organização coletiva dos trabalhadores,


causado especialmente pelo elevado grau de desemprego e relações flexíveis de emprego, o
negociado apresenta-se não como um instrumento de conquistas da classe trabalhadora, mas
sim como meio de desmantelamento das proteções sociais anteriormente conquistadas e de
fragmentação da classe trabalhadora, o que pode ser ainda mais gravoso no caso das mulheres
já vulneráveis no mercado de trabalho e excluídas dos processos de negociação coletiva e
organização de categoria profissional.
Merece destaque ainda, pelo alto potencial lesivo às mulheres trabalhadoras, a
alteração da reforma trabalhista de 2017, relativa ao arbitramento de condenações decorrentes
do assédio sofrido nos ambientes de trabalho, uma vez que a fixação da indenização a ser
paga, depende agora do salário do ofendido.
Através disso, a reforma na legislação trabalhista permite que uma mesma ofensa
moral seja condenada de forma desigual entre empregados com diferentes salários e deixa
claro, através da própria folha de pagamento, qual funcionário é “mais barato” de ser
assediado. Ante, a desigualdade salarial do mercado de trabalho, se torna evidente a
população mais afetada pela alteração legal, uma vez que de acordo com o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2014, a diferença salarial entre homens e mulheres
brancos era de 30% (trinta por cento) e ainda que, no caso das mulheres negras, a percepção
do salário é 60% (sessenta por cento) menor que o salário recebido pelos homens brancos,
mostrando como no caso das mulheres negras o processo de precarização é ainda mais
intenso.

CONCLUSÃO

A superexploração da classe trabalhadora, se objetiva de diversas maneiras


específicas na reprodução social do capitalismo, neste sentido, a feminização do mercado de
trabalho tem como uma das causas centrais o processo de precarização da força de trabalho
pós 70. Pois, se a necessidade do capital é efetivar a tendência de generalização das variadas
formas de trabalho flexível, a universalização dos grupos vulneráveis no mercado de trabalho
é uma ação imediata de ponta de lança desse próprio desenvolvimento.
É por isso que acreditamos que a compreensão da gênese histórica e da função das
reformas trabalhistas em curso pode ser apreendida através da investigação dos recentes

601
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

modos de precarização do trabalho feminino, tanto nos efeitos destas flexibilizações na


contratação individual, quanto na complexa desestruturação das relações coletivas e
desfragmentação das categorias sindicais, intensificada pela reforma trabalhista de 2017.

REFERÊNCIAS

ABÍLIO, Ludmila. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo :
Boitempo, 2014.

ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, E. e GENTILI, P. Pós-Neoliberalismo: As


políticas sociais e o Estado Democrático. Ed. Paz e Terra, São Paulo, p. 09 – 23, 1995.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade

do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2006.

______. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. SãoPaulo: Boitempo, 2005.

ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Ferreira de. Constituição do Capitalismo Industrial no Brasil: a via colonial. In:
Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 1, Ano I, periodicidade semestral. – ISSN
1981-061X; Outubro de 2004.

ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Ferreira de; RAGO FILHO, Antonio; SARTÓRIO, Lúcia Ap.; VAISMAN, Ester. A
trajetória de J. Chasin teoria e prática a serviço da revolução

social. Entrevista com os Profs. Drs. Antonio Rago Filho e Ester Vaisman Por Lúcia Ap. Valadares Sartório e
Vânia Noeli Ferreira de Assunção. n. 9, Ano V– Publicação semestral – ISSN 1981-061X – Edição Especial: J.
Chasin. , nov. 2008.

ARAÚJO, Angela Maria Carneiro e FERREIRA, Verônica Clemente. “Sindicalismo e relações de gênero no
contexto da reestruturação produtiva”. In: BALTAR DA ROCHA, Maria Isabel (org.) Trabalho e gênero:
mudanças, permanências e desafios. Campinas: ABEP, NEPO/UNICAMP e CEDEPLAR/UFMG / São Paulo:
Ed. 34, 2000. p. 309-346.

BOITO JÚNIOR, Armando. O Governo Lula e a reforma do neoliberalismo. Artigo escrito a partir de duas
palestras realizadas a estudantes e ativistas dos movimentos populares no CecAC (do Rio de Janeiro) e no
Instituto de Física Teórica da Unesp-SP.

BRANCO, Rodrigo Castelo. O novo-desenvolvimentismo e a decadência ideológica doestruturalismo latino-


americano. Rio de Janeiro: Oikos, vol. 8, Nº 1, p. 71-91, 2009.

BRASIL. Lei 13.467. 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho

(CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974,
8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações
de trabalho.

BRUSCHINI, Cristina. O Trabalho da mulher no Brasil: Tendências Recentes. In:SAFFIOTI, Heleieth;


MUÑOZ-VARGAS, Mônica (Orgs). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.

CARINHATO, P.H. Neoliberalismo, reforma do Estado e políticas sociais nas últimas décadas do século XX no
Brasil. Aurora (UNESP, Marília) ano 2, n. 3, dez 2008, p. 37-46

602
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CARLOTO, Cássia Maria. Gênero, reestruturação produtiva e trabalho feminino. Serviço Social em Revista,
Londrina, vol 4, n 2.

CASACA, Sara Falcão. E...quando o local de trabalho (remunerado) e o espaço doméstico se encruzam. Como
vivem mulheres e homens a experiência do trabalho? Anais do Colóquio Internacional da Associação
Portuguesa de Sociologia. Lisboa: 2002

CASTRO, Carla Appollinario de. Crítica à razão empreendedora: a função ideológica do empreendedorismo no
capitalismo contemporâneo. Tese apresentada ao curso de Doutorado do Programa Pós-Graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, dez. 2013.

________. O mundo do trabalho hoje no Brasil: breves considerações sobre a nova ofensiva neoliberal. 5º
seminário interdisciplinar em sociologia e direito. Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN
2236-9651, n.5

CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo híper-tardio. 2. ed.
Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 1999.

______. A miséria brasileira. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000

CONTRIM, Lívia. Apresentação O capital atrófico: da via colonial à mundialização. In:CHASIN, José A miséria
brasileira. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000

COSTA, Isabel de Sá Affonso da. Teletrabalho: subjugação e construção de subjetividades. Rev. Adm. Pública,
Rio de Janeiro , v. 41, n. 1, p. 105-124, Feb. 2007

FILGUEIRAS, Luiz. Projeto político e modelo econômico neoliberal no brasil: implantação, evolução, estrutura e
dinâmica, 2005

HIRATA, Helena. Globalização e divisão sexual do trabalho. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17/18, p. 139-156,
2002-a

______. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo,
2002-b

______. Reestruturação produtiva, trabalho e relações de gênero. Revista Latinoamericana de Estudos do


Trabalho, São Paulo, ano 4, n. 7, p.5 -27, 1998.

______ A precarização e a divisão internacional e sexual do trabalho. In. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21,
p. 24-41. 2009

HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniéle. A classe operária tem dois sexos. In. Revista Estudos Feministas. Rio de
Janeiro, v.2, n.3, 1994

______. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, v.
37, n. 132, p. 595-609. São Paulo, 2007.

INSTITUTO de Pesquisa Econômica Aplicada. Mulheres e trabalho: breve análise do período de 2004-2014.
Brasília, 2016.

KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In:HIRATA, Helena (org.).
Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Unesp, 2009.

KREIN, J. D. Balanço da Reforma Trabalhista no Governo FHC. IN: PRONI, M. W.,

HENRIQUE, W. (org.) Trabalho, Mercado e Sociedade, SP, ED. UNESP/Inst.Economia UNICAMP, 2003, pp.
279-322.

603
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

NOBRE, Miriam. Trabalho doméstico e emprego doméstico. In:COSTA, Ana Alice; OLIVEIRA, Eleonora
Menicucci de; LIMA, Maria Ednalva Bezerra de; SOARES, Vera. Reconfiguração das relações de gênero no
trabalho. São Paulo: CUT Brasil, 2004.

NOGUEIRA, Claudia Mazzei. A feminização no mundo do trabalho: entre a emancipação e a precarização.


Campinas, SP: Autores Associados, 2004.

NOGUEIRA, Claudia Mazzei. As trabalhadoras do telemarketing: uma nova divisão sexual do trabalho? In:
ANTUNES, Ricardo; BRAGA Ruy (Org.). Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo:
Boitempo, 2009

PAÇO CUNHA, Elcemir. Direito e Via-Colonial. Niterói. NIEP/2017. Acesso em


http://www.niepmarx.blog.br/MM2017/anais2017.htm

RAGO FILHO, Antônio. A teoria da Via Colonial de objetivação do capital no Brasil: J. Chasin e a crítica
ontológica do capital atrófico. Santo André. Verinotio revista on-line – n. 11, Ano VI, abr./2010, ISSN 1981-
061X

SAFFIOTI, Heleieth I. B. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade. Coleção Sociologia Brasileira,
vol. 4. Petrópolis: Vozes, 1979.

______. O trabalho feminino sob o capitalismo dependente: opressão e discriminação. ABEP, 1979.

______. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

SAFFIOTI, Heleieth; MUÑOZ-VARGAS, Mônica (Orgs). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1994.

SOUZA-LOBO, Elizabeth. A classe operária tem dois sexos. São Paulo, Editora Brasiliense, 1991.

604
APORTES MATERIALISTAS AO
ESTUDO DO PENSAMENTO JURÍDICO COMO IDEOLOGIA:
A CRÍTICA ROMÂNTICA DO CAPITALISMO
E O DIREITO SOCIAL DE CESARINO JÚNIOR

SALES, Anna Paula Almeida


Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação
da Universidade Federal de Juiz de Fora
PAÇO CUNHA, Elcemir
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação da Universidade Federal de Juiz de Fora
MONNERAT, Alice Nogueira
Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação
da Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO

Este artigo objetiva apresentar a fundamentação ontoprática para o estudo do pensamento jurídico
como ideologia. A proposta coloca-se entre duas tendências igualmente insuficientes: a primeira que
autonomiza o pensamento para lançar-se a uma hermenêutica e a segunda que procede por mera
derivação do pensamento jurídico da estrutura econômica. Dessa maneira, recupera-se de Marx,
Lukács, Mészáros e Chasin delimitações para o estudo das formas de consciência como “objeto
ideológico” com gênese e função. Situou-se prioritariamente essa discussão nos marcos da decadência
ideológica a partir de 1848, quando se desenvolve uma crítica romântica do capitalismo. A
determinação ontoprática do direito como ideologia assegura sua gênese e funcionalidade no interior
dos conflitos sociais, em que o pensamento jurídico possui especificidades se comparado a outras
formas de consciência. A partir desses elementos, o artigo apresenta um exemplo de pesquisa,
lançando mão de uma investigação de dois materiais de Cesarino Júnior, ambos de 1940 e versados em
direito social, para determinar o desenvolvimento da crítica romântica do capitalismo no contexto de
objetivação hipertardia do capitalismo.

Palavras-Chave. Pensamento jurídico; ideologia; crítica romântica do capitalismo

ABSTRACT

This article aims at to present the ontopractical study of juridical thought as ideology. The proposal
falls between two equally inadequate tendencies: the first that autonomizes thought to launch some
hermeneutics and the second that proceeds by mere derivation of juridical thought from the economic
structure. Thus, recovers from Marx, Lukács, Mészáros and Chasin delimitations for the study of forms
of consciousness as ideological objects with its own genesis and function. This discussion has placed
first within the framework of ideological decadence since 1848, when the romantic critique of
capitalism arises. The ontopractical determination of law as ideology ensures your genesis and
functionality inside social conflicts, in which juridical thought has specificities compared to other
forms of consciousness. From these elements, the article presents an example of research, using an
investigation of two materials of Cesarino Júnior, both from 1940 and about social law, to determine
the development of romantic critique of capitalism in the context of hiperlate capitalist objetification.

605
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Keywords. Juridical thought; ideology; romantic critique of capitalism.

INTRODUÇÃO

Uma das questões prementes da pesquisa no direito é a adequada apreensão dos


nexos entre o pensamento jurídico e a realidade material. Em termos gerais, esse aspecto é
consideravelmente aceito e propalado. À diferença disso são os meios de se investigar tais
nexos.
Dois caminhos são frequentemente replicados. Por um lado, está o esforço de uma
hermenêutica dos textos que compõem a “materialidade” do pensamento jurídico. Ao eleger
tais textos como o objeto do estudo, tendencialmente se corta os elementos perturbadores para
que o mergulho seja profundo e proveitoso. Atitude correta e incontornável; insuficiente,
porém. A eleição do objeto dedicado frequentemente exige a dilapidação das determinações
concretas desse pensamento jurídico em favor de uma autonomia que ele não possui e o
mergulho profundo não é compensado pela eliminação do confinamento necessário a essa
hermenêutica. Ao final, a tendência predominante é fixar o pensamento jurídico como a força
motriz da própria realidade. Por outro lado, está o que se pode chamar de materialismo
mecânico. Se não se limita a paralelismos grosseiros entre a base econômica e o pensamento
jurídico, também ecoa uma derivação linear deste pensamento a partir da estrutura
econômica. Encontra assim uma realidade como um traço retilíneo entre pontos fixos,
tornando a dimensão das formações ideais, como tal pensamento jurídico, um puro
epifenômeno: uma realidade, ao final, morta e sem reciprocidades.
A tais insuficiências é possível contrastar a propositura delineada a partir das
aquisições de Marx a respeito da determinação social do pensamento ou das reciprocidades
entre ser social e pensamento. O ponto de partida é a constatação de que “Pensar e ser são,
portanto, certamente diferentes, mas [estão] ao mesmo tempo em unidade mútua” (MARX,
2004, p. 108) e que o “mundo das formas de consciência e seus conteúdos não é visto como
produto imediato da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social” (LUKÁCS, 2012,
p. 308). E mais além: os nexos existentes de relações recíprocas jamais podem ser cindidos,
pois a explicação do pensamento em questão deve ser buscada nas condições objetivas que o

606
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

tornam possível e, ao mesmo tempo, compreender a função social a que tal pensamento é
chamado a responder nos contextos materiais particulares.
É nesse sentido que a consideração do pensamento jurídico como “objeto
ideológico”, isto é, como ideologia que nasce de condições objetivas e atua no interior delas, é
contributiva à pesquisa na área do direito. Também é particularmente útil para o estudo desse
pensamento no contexto brasileiro de objetivação do capitalismo. Como parte de um estudo
mais amplo sobre a função do direito nas vias de desenvolvimento do capitalismo clássico,
prussiano e colonial (brasileiro), esta investida demonstra na exemplaridade de Cesarino
Júnior (1930-1940) não só a convergência de tendências teóricas do período (como a crítica
romântica do capitalismo), mas também, e tão importante quanto, como esse pensamento é
chamado a atuar no conflito social posto entre as classes sociais no período marcadamente
industrializante. Cabe acrescentar que Cesarino Júnior foi importante jurista, compilador dos
direitos sociais e teve destacável relacionamento como intelectual no período em questão.
Para efeito dessa exemplificação, restringiu-se a consulta a Direito Corporativo e Direito do
Trabalho e Direito Social Brasileiro, ambos com primeira edição em 1940.
Assim, o presente trabalho tem por objetivo apresentar o estudo dos “objetos
ideológicos” tendo por base um materialismo consequente como alternativa aos limites dos
caminhos frequentemente percorridos. Para tanto, recorreu-se a, sobretudo, Marx, Lukács,
Mészáros e Chasin, para discutir precisamente esse materialismo e o direito como ideologia
para, em seguida, apresentar uma formulação que demonstra a pesquisa do pensamento
jurídico na formação do capitalismo brasileiro na exemplaridade de Cesarino Júnior.

1. “OBJETO IDEOLÓGICO” E CRÍTICA ROMÂNTICA DO CAPITALISMO

Marx (1996) coloca o ano de 1830 como ano de início da crise decisiva da
Economia Política burguesa, quando, tendo a burguesia tomado o poder político na França e
Inglaterra, a luta de classes assume, tanto na teoria quanto na prática, “formas cada vez mais
explícitas e ameaçadoras” (MARX, 1996, p. 135). Assim, “já não se tratava de saber se este
ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial,
cômodo ou incômodo, subversivo ou não” (MARX, 1996, p. 135). O combate da burguesia
contra o feudalismo se encerra; a defensiva contra o proletariado ascendente se inicia
(LUKÁCS, 1979, p. 32).

607
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Lukács aponta como, em período anterior, que se inicia “no fim do primeiro terço do
século XIX” (LUKÁCS, 1979, p. 31), a filosofia burguesa clássica ocupa um importante
papel na produção do conhecimento. Neste período, a filosofia burguesa clássica, gera a
“expressão mais elevada de concepção de mundo da burguesia” (LUKÁCS, 1979, p. 31), por
ser o momento da revolta burguesa frente ao feudalismo, de consequente apresentação dos
princípios e da visão de mundo próprios da burguesia (LUKÁCS, 1979, p. 32).
Em período posterior a 1848, a filosofia se desvia das questões últimas, passando a
pressupor sem utilidade tais estudos, e considerar “anticientíficas as grandes realizações
ideológicas do período precedente” (LUKÁCS, 1979, p. 43). O período de decadência
ideológica burguesa “tem início quando a burguesia domina o poder político e a luta de classe
entre ela e o proletariado” (LUKÁCS, 1968, p. 50) passa a ocupar o centro da dinâmica social
regida pelas legalidades fundamentais da sociabilidade do capital.
Analisar ideologias exige a compreensão do que é afirmado por elas e, ainda, na sua
“relação com a situação concreta de quem as afirma” (CHASIN, 1978, p. 66). Assim, quando
se fala da filosofia burguesa em seu período de decadência, é necessário observar as novas
condições materiais em que se encontra enquanto classe.

Dentro de contornos assim delineados compreender-se-á, pois, do que se trata;


quando se afirma, ao ter sistemas ideológicos como objetos científicos, que sua
delucidação obriga a remeter à totalidade histórica onde se produzem e onde se
encerram; em outros termos: a análise de ideologias implica necessariamente no
entendimento do que é por elas afirmado na sua relação com a situação concreta de
quem as afirma. E se os produtos ideológicos são obviamente expressos pelas bocas
ou penas singulares de indivíduos singulares, cabe, no entanto, assinalar que sua
produção efetiva já não goza, tão amplamente, da mesma evidência empírica, e que
é necessário não simplificar, a questão é considerar que, pelo menos, ela seria o
resultado de um vasto e complexo trabalho interindividual [...] cabe grifar, todavia,
que a análise de ideologias requer, desde o início, o reconhecimento de que essa
interindividualidade implica na consideração analítica de grupos e interesses sociais
coletivos, donde, portanto, na atenta consideração da "anatomia" há pouco referida.
Com isto não estamos sugerindo, nem, muito menos, uma linearidade mecânica
entre o econômico e o ideológico, mas fixando um nexo básico, sem deixar de
subentender o espaço próprio das mediações que entre ambos concretamente se
desdobra (CHASIN, 1978, p. 66-67).

Para Lukács, a abordagem de um objeto ideológico “implica na determinação de sua


gênese e de sua função social” (CHASIN, 1978, p. 62): para a compreensão de uma entidade
ideológica precisa-se analisar “os textos que a explicitam com a investigação de sua gênese
histórica e com a da função social que desempenha” (CHASIN, 1978, p. 78).

608
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Em outros termos, a formulação sintética de que partimos (...) implica reconhecer


que o tratamento analítico de uma questão ideológica qualquer (como qualquer
outro fenômeno sócio-histórico) só pode ser dirimido se nos situarmos no terreno
das relações entre o todo e as partes, na imprescindibilidade de relacionar a
ideologia (parte) ao todo da existência social (CHASIN, 1978, p. 63).

A totalidade na concepção de Lukács não tem relação com configurações estáticas


ou com a junção de fragmentos recortados e posteriormente rearticulados, mas sim uma
“totalidade em processo, teleologicamente orientada” (CHASIN, 1978, p. 64). Assim, “[...] a
totalidade em processo não é um devir arbitrário, mas uma sucessão ordenada de ordenações,
de ‘equilíbrios estruturais’ regidos por leis próprias que resolvem as grandes tendências gerais
de transformação” (CHASIN, 1978, p. 65).
Para Chasin é, portanto, inquestionável a relevância conferida ao “complexo
histórico-social como determinante fundamental do pensamento” (CHASIN, 1979, p. 67).

Fica com isto superado o tipo de análise que dicotomiza a questão, colocando de
um lado as condições para o florescimento de uma ideologia, e doutro a ideologia
ela própria, o que, de algum modo, sugere sempre que cada uma delas habita um
universo fechado e que suas relações se baseiam numa reciprocidade excludente,
isto é, aparecem como se fossem externas uma à outra, da mesma forma que o
ninho, apesar de sustentar, é externo ao ovo e à ave que o ocupam (CHASIN, 1979,
p. 67).

Em direção semelhante, Mészáros (1996) afirma que as ideologias conflitantes de


qualquer período histórico constituem a consciência prática necessária para as principais
classes sociais se relacionarem e se confrontarem. Desse modo, a natureza da ideologia será
determinada “pelo imperativo de se tornar praticamente consciente do conflito social
fundamental, com o propósito de resolvê-lo através da luta” (MÉSZÁROS, 1996 p. 23). Ou
seja, as diversas formas ideológicas de consciência social irão promover implicações práticas
de longo alcance em todas as variantes possíveis. Será esta orientação prática que definirá o
tipo de racionalidade apropriado para o discurso ideológico, na medida em que seus interesses
não devem se articular como proposições teóricas abstratas que não gerarão nada além de
outras proposições teóricas abstratas, mas sim “devem se articular como indicadores práticos
bem fundamentados e estímulos efetivamente mobilizadores, direcionados às ações
socialmente viáveis dos sujeitos coletivos reais” (MÉSZÁROS, 1996, p. 24).
Mészáros (1996, p. 25) coloca duas formas possíveis de determinação das ideologias
por sua época: a primeira seria na medida em que o impulso conflitante das diversas formas
de “consciência social prática” constituem - na sociedade divida em classes - a característica

609
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mais relevante dessas formas de consciência prática; a segunda, na medida em que o caráter
do “conflito social fundamental”, que marca as ideologias conflitantes, surge exatamente do
caráter historicamente modificável das “práticas produtivas e distributivas da sociedade e da
necessidade correspondente de se questionar a continuidade da imposição das relações
socioeconômicas e político-culturais que, anteriormente viáveis, tornam-se cada vez menos
eficazes no decorrer do desenvolvimento histórico” (MÉSZÁROS, 1996, p. 25).
O autor húngaro aponta então três posições ideológicas fundamentalmente distintas,
sendo a primeira a que apoia a ordem estabelecida de forma acrítica, exaltando a formação do
sistema dominante vigente, independentemente de suas problemáticas e contradições; a
segunda mostra com certa competência as irracionalidades presentes na sociedade de classes,
rejeitando-as, porém sua crítica é “viciada pelas contradições de sua própria posição social”,
que se encontra submetida às determinações de classe; a terceira, por sua vez, questiona a
“viabilidade histórica da própria sociedade de classes”, tendo como objetivo a superação de
toda e qualquer forma de antagonismo de classe (MÉSZÁROS, 1996, p. 26).
A divisão acima exposta, proposta por Mészáros, se assemelha com a crítica
realizada por Lukács, em que define a “apologética”, denunciada por Marx, como
problemática da reviravolta político-ideológica do pensamento burguês após o fim do
feudalismo e consequente ascensão da burguesia ao poder, em que o materialismo e a
dialética são liquidados, passando o pensamento do “apologetas” a abandonar a crítica das
contradições do desenvolvimento social para então buscar mitigá-las, de acordo com as
necessidades econômicas da burguesia (LUKÁCS, 1968, p. 51). A semelhança é clara a com
primeira posição ideológica proposta por Mészáros, seriam os apologetas aqueles que fazem a
exaltação da ordem vigente, fechando os olhos para as contradições presentes na sociedade,
operado um falseamento da realidade. Lukács aponta, ainda, para a chamada crítica romântica
do capitalismo, que se pode relacionar com a segunda posição ideológica trazida por
Mészáros. A crítica romântica possibilita o desenvolvimento de uma apologética mais
“complicada e pretensiosa”, sendo uma apologia indireta, que faz a defesa a partir da crítica
(LUKÁCS, 1968, p. 55).
Recuperando o já mencionado acima, o período de decadência do pensamento
burguês se inicia com a tomada de poder pela burguesia em meados de 1830, Lukács (1979)
aponta para uma tendência ao agnosticismo, que renuncia a descoberta da essência verdadeira
do mundo e da realidade, alegando que nada podemos saber sobre esta. Assim, para o

610
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

agnosticismo, a preocupação deve ser com o desenvolvimento das ciências especializadas e


separadas umas das outras, sendo papel da filosofia vigiar “para que ninguém ultrapasse os
limites definidos pelas ciências e para que ninguém ouse tirar das ciências econômicas e
sociais conclusões poderiam desacreditar o regime” (LUKÁCS, 1979, p. 34).
No período imperialista, a filosofia irá apresentar uma considerável evolução, o que
não significa uma mudança na base da teoria do conhecimento, que continua a mesma,
porém, apresenta características diferenciadas como uma tendência ao objetivismo e o
nascimento de uma “pseudo objetividade”; a luta contra o formalismo na teoria do
conhecimento, que vem acompanhada de uma apologia a intuição; e a retomada do estudo das
questões ideológicas. Tais temas correspondem às necessidades particulares dessa fase
específica da evolução social, se distanciando do elogio direto da sociedade capitalista para ter
como tema central a crítica da cultura capitalista, apontando um chamado “terceiro caminho”
ou “terceira via”: “ideologia segundo a qual nem capitalismo nem socialismo correspondem
às verdadeiras aspirações da humanidade” (LUKÁCS, 1979, p. 44).
A filosofia burguesa clássica deu lugar ao nascimento e ao desenvolvimento de uma
ideologia universal e potente, colocada sob o signo do progresso. Nessa época, a filosofia
ocupava o cume das ciências humanas; era o têrmo, a base e o quadro de todo o
conhecimento. A ideologia constituía então o objeto propriamente dito da filosofia, ela
própria produto orgânico do progresso social ininterrupto, término e corolário do conjunto da
atividade científica de cada etapa da evolução social.

O período economicamente repleto de compromissos sociais desviou-se com


preguiça e covardia de toda questão ideológica, cujo estudo julgava inútil,
declarando anticientíficas as grandes realizações ideológicas do período precedente.
Quanto à “intelligentzia” do período de crise, aspira à resignação e ao reconforto
que uma ideologia nova devia fornecer-lhe (LUKÁCS, 1979, p. 43).

São sintomas da crise da filosofia a necessidade de ideologia e do reconforto, é o


momento de se comentar de forma persistente os problemas e contradições presentes no
capitalismo. Reconforto este que está ligado a uma perspectiva idealista - ahistórica e abstrata
-, em que, de forma pessimista, se encara “o destino do homem do período imperialista, como
sendo o destino do homem em geral” (LUKÁCS, 1979, p. 44). Será um reconforto fatalista.
Para Lukács (1979, p. 45), o “terceiro caminho” está empenhado em não permitir
que a conclusão retirada da crise seja o socialismo, não deixando, portanto, de ser uma
apologia ao capitalismo, tornando-se a luta contra o socialismo a questão ideológica

611
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

fundamental, afinal, é uma luta filosófica contra o materialismo dialético. A falta de


argumentos concretos para atacar o socialismo, a filosofia burguesa passa a enfrentá-lo nas
ciências naturais e sociais, ao mesmo tempo que procura atender os desígnios da
“intelligentzia” frente à crise (LUKÁCS, 1979, p. 46).
Cabe ressaltar a tendência ao escamoteamento dos princípios subjetivos ligados ao
idealismo presentes no chamado “terceiro caminho”, de forma que as questões da consciência
passam a ser apresentadas como “realidades objetivas” (LUKÁCS, 1979, p. 47). O idealismo
tende então à “produção de mitos” (LUKÁCS, 1979, p. 49), concedendo uma atribuição de
realidade às “construções puras do espírito” (LUKÁCS, 1979, p. 49). Para Lukács (1979, p.
51), a intuição será o instrumento de conhecimento deste novo objetivismo, vista de forma
independente do pensamento discursivo terá um papel central na metodologia objetiva da
filosofia imperialista. Utilizando-se da intuição, a filosofia imperialista cria uma ideologia
anti-científica, que busca “destronar a razão” (LUKÁCS, 1979, p. 54). Na análise da crise do
imperialismo, a filosofia burguesa precisa questionar verdade que até então pareciam ser
eternas, devendo então, reconhecer sua incapacidade de dar respostas reais ao problema posto.
Porém, tal reconhecimento levaria à constatação da própria falência da filosofia burguesa,
coisa que não se pode permitir à burguesia, porque seria o mesmo que indicar como saída o
socialismo. A solução encontrada é a declaração da falência da própria razão, sustentando que
não existe razão verdadeira, apregoando que “a verdadeira realidade, a realidade superior, é
irracional e supra-racional” (LUKÁCS, 1979, p. 56). O irracionalismo se funda então como a
ideologia do período de crise, tendo como característica essencial a transformação da
condição do ser humano dentro no imperialismo na “condição humana geral e universal”
(LUKÁCS, 1979, p. 57). O racional e o social serão colocados como inimigos da
personalidade humana, que será patenteada como naturalmente irracional. Resta à crítica uma
saída romântica frente aos problemas postos, assumindo formas regressivas, conservadoras,
abertamente autoritárias, etc.
Retomando Mészáros e suas considerações de o que se deve esperar da ideologia
dominante não é uma reflexão verídica do mundo social e da representação dos agentes
sociais e de seus conflitos, mas sim o fornecimento de uma única explicação plausível, que
possibilite a projeção da “estabilidade econômica vigente” (MÉSZÁROS, 1996, p. 28). A
ideologia dominante tem como tendência “produzir uma estrutura categorial que atenua os

612
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

conflitos vigentes e eternize os parâmetros estruturais do mundo social estabelecido”


(MÉSZÁROS, 1996, p. 28).
Assim, “o relacionamento entre o complexo historicamente específico das
necessidades sociais e as variadas manifestações cultural-ideológicas que emergem de sua
base” possui determinações dialético-recíprocas, de modo que “as práticas cultural-
ideológicas concorrentes da época” atuam de forma ativa na articulação das necessidades
sociais. Dessa forma, tais práticas ideológicas intervêm “no decorrer dos desenvolvimentos
históricos” (MÉSZÁROS, 1996, p. 72), seja de forma crítica ou apologética, contribuindo
para a realização de determinadas potencialidades em detrimento de outras.
É o caso do direito e sua funcionalidade. Cabe, então, determinar sua especificidade
como ideologia.

2. A ESPECIFICIDADE DO DIREITO COMO IDEOLOGIA

A questão da ideologia vem sendo estudada no decorrer da história através de um


prisma gnosiológico, estabelecendo um vínculo imediato entre ideologia e a problemática do
conhecimento. Mesmo no marxismo, a perspectiva geral tende a se dar através daquele
prisma, imputando uma compreensão da ideologia enquanto sinônimo de falsa consciência
equivocadamente a Marx (VAISMAN, 2010, p. 42). Essa compreensão tem como
consequência direta o estabelecimento de uma oposição entre ideologia e ciência, de modo
que algo científico não pode ser ideológico, e vice-versa.
A tendência de se estudar o fenômeno ideológico pela perspectiva gnosiológica
corresponde a um fenômeno que se desenrolou durante muito tempo na filosofia, tendo o
pensamento filosófico sido dominado pela teoria do conhecimento em detrimento do interesse
pela questão ontológica. No entanto, segue-se aqui o entendimento de Lukács, conforme o
qual seria impossível negar a questão do ser, a ontologia, visto que esta se encontra
intimamente ligada à vida e à práxis (VAISMAN, 2010, p. 45). Dessa maneira, a ontologia é
incontornável na trilha do marxismo porque trata de um desafio histórico-concreto: o real
existe, sua existência e sua natureza são passíveis de reprodução pela consciência, e na
medida em que o real pode ser capturado, ele também pode ser modificado pela ação
cientificamente instruída, ideológica e conscientemente conduzida pelos homens. Lukács,

613
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

portanto, refuta o critério gnosiológico para a análise do fenômeno ideológico, buscando a


conexão ontológica desse fenômeno com o ser social.
No interior da temática lukácsiana, a condição de produto de falsa consciência não
identifica um pensamento como ideologia. O fato de determinado pensamento ser classificado
como verdadeiro ou falso não basta para determiná-lo como ideologia, pois essa
caracterização não está ligada à falsidade da consciência, mas sim à função que determinado
pensamento assume junto às lutas sociais. Deste modo, algo não nasce como ideologia, mas
pode vir a sê-lo quando e se desempenhar determinada função social. Está aí exposto o
fundamento ontológico-prático utilizado por Lukács para a análise do fenômeno ideológico.
O autor, dessa maneira, deixa de lado o critério científico-gnosiológico, dado que este é capaz
de determinar apenas se um produto espiritual é falso ou verdadeiro, e não se ele pode ou não
pode assumir uma função social (VAISMAN, 2010, p. 51). Não obstante o acento sobre a
funcionalidade, sua apreensão depende também dos condicionantes de sua gênese por meio
da qual se revela precisamente as condições objetivas que tornam tal elemento possível de
emergir na vida social e também condicioná-la, dadas as inelimináveis reciprocidades.
Em termos de gênese, a história mostra que o surgimento da escravidão foi
responsável por instaurar a primeira divisão de classes na sociedade. Com o advento da troca
de mercadorias, o comércio e a usura, outros antagonismos de classe surgiram, e foi somente
a partir das controvérsias manifestadas nesse momento que se tornou necessário o
aparecimento de um sistema judicial conscientemente posto, não mais meramente tradicional,
capaz de regular essas atividades materiais decisivas. Com o decorrer do desenvolvimento
social e a crescente socialização do ser social, torna-se latente a necessidade de uma regulação
dos antagonismos sociais por outro meio que não a força bruta, tendo em vista que o uso puro
desta levaria à uma desagregação da sociedade. Dessa maneira, conforme Lukács (2013, p.
232), e que dissolve a falsa oposição entre direito e violência, “deve estar em primeiro plano
aquela unidade complexa de força indisfarçada e latentemente velada, revestida da forma da
lei, que adquire seu feitio na esfera jurídica”. Por certo que o direito surgido para responder às
necessidades que se consolidaram na sociedade de classes nascente era essencialmente um
direito de classe, correspondente aos interesses e ao poder da classe dominante1.

1
Isto não elimina certa maleabilidade nesse terreno para acomodar tensões, a depender de contextos históricos
contingentes. O Livro dos Mortos do antigo Egito registra que, apelando para o aspecto religioso, sofreria os
infortúnios após a morte aquele senhor que maltratasse seus escravos. A zona cinzenta que acentua certo aspecto
protetivo cobre uma dimensão no limite em que não ameace seriamente a própria relação social posta. Em
verdade, a preservação dessa relação depende da reprodução física do próprio escravo como condição básica

614
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Posteriormente, essa necessidade de regulação de controvérsias tomou uma forma


própria na divisão social do trabalho, estratificando-se num segmento particular: o dos
juristas, que se tornaram então os “especialistas” na regulação desses conflitos (LUKÁCS,
2013, p. 247). Ocorre que é justamente nesse momento de divisão social do trabalho que as
ideologias se especificam, num movimento que autonomiza uma atividade peculiar, exigida
pela produção material para sua própria efetivação. Por conseguinte, a existência de
profissionais da atividade jurídica indica um desenvolvimento e uma maior socialização da
sociedade e da produção, pois é necessária, dada a contradição, certa estruturação e
organização social para que uma determinada quantidade de pessoas possa tomar parte nesse
tipo de função, sem participar da produção material de essência (VAISMAN, 2010, p 51).
Essa diferenciação acarreta também a criação simultânea de uma doutrina jurídica, em
conjunto com a criação desse estrato profissional dos juristas, completando desse modo, o ser
do direito como ideologia.
Para melhor explicar, toma-se uma exemplificação: a transição do sistema feudal
para o capitalista e a maior socialização da sociedade daí decorrente tornou necessária a
implementação de uma regulação jurídica universal de todas as atividades sociais em razão da
necessidade de resolver conflitos que passaram a existir em decorrência desse novo modo de
produção e do antagonismo de classes recém surgido, transformando em questão crucial da
vida social a superioridade e a autoridade da regulação central. Conforme a sociedade
avançava e a divisão social do trabalho se complexificava, a esfera jurídica também ia se
especificando de forma gradativa, até chegar ao ponto que precisou de profissionais e uma
técnica particulares para funcionar. É somente neste ponto que Lukács considera o direito
enquanto uma ideologia específica e em heterogeneidade diante de outras mediações, pois sua
manutenção, reprodução e transformação passam a depender da atividade desses especialistas.
A esfera jurídica alcança, então, uma amplitude cada vez maior na realidade, o que,
por sua vez, desencadeia um desconhecimento também maior da essência ontológica do
direito, além de uma extrapolação da mistificação desse campo (LUKÁCS, 2013). À medida
em que a esfera jurídica fecha-se mais em razão dessa especialização, um autoenaltecimento e

dessa relação. O caso da Ática antiga é também ilustrativo no episódio das resoluções de Sólon com respeito à
nova redistribuição das terras entre gregos ricos e pobres. Na iminência de uma guerra civil, decide, como
legislador, pela nova partição apenas até certo limite, arrefecendo o conflito então posto. Podemos multiplicar
esses exemplos até o contemporâneo, como as leis fabris na Inglaterra ou as leis trabalhistas no Brasil da primeira
metade do século XX. O importante é não descartar o terreno jurídico por ser expressão da dominação de classes
e, igualmente importante, reconhecer que esta é sua determinação material irrevogável. É a existência das classes
que torna funcional o terreno jurídico, das formas arcaicas e antigas, às modernas.

615
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

uma suposta autonomia do fenômeno e da própria atividade do jurista lhe são garantidas,
afastando-a da realidade econômica, e “mascarando” a influência dessa realidade no direito.
Nesse sentido, o conteúdo e a forma do direito passam a assumir uma “roupagem fetichista de
forças soberanas da humanidade” (VAISMAN, 2010, p. 52).
No momento em que a divisão social do trabalho delega o cuidado do âmbito
jurídico aos seus especialistas, ocorre aquilo que Lukács chama de “ideologização da
ideologia”: fecha-se o ciclo da ideologia, pois os especialistas do direito tendem a apresentar
uma resistência à visão ontológica do fenômeno ideológico, procedendo com uma espécie de
“operação escamoteadora”. Conforme Vaisman:

Nessa operação escamoteadora da esfera jurídica, é sintomático que a escamoteada


seja a dimensão ontológica do fenômeno e de sua análise. Para logo em seguida
retornar acriticamente a uma “ontologia” meramente imputada, em que a
mundaneidade real passa a “desprezível submundo da existência”, e uma pura
espiritualidade passa à condição de essência real e explicativa (VAISMAN, 2010,
p. 52).

Com o surgimento do Estado de direito no século XIX, os elementos manipuladores


do positivismo adquiriram maior importância, transformado o direito em uma esfera da vida
social na qual as chances de êxito e os riscos de danos deveriam ser calculados de modo
semelhante ao que se fazia no âmbito da economia (LUKÁCS, 2013). Há então uma
“prioridade ontológica do econômico” na realidade, e não do direito. De acordo com Marx, o
direito seria apenas o “reconhecimento oficial do fato” (MARX, 1985, p. 86), configurando
um espelhamento que não é consciente e tampouco adequado do meio econômico, porque o
reconhecimento de caráter oficial, ou seja, estatal, do fato permite que uma determinada
classe se apodere desse poder de determinação ainda que guarde potencialmente
possibilidades de reconhecimento de demandas fáticas das classes dominadas. Afirma Lukács
(2013, p. 240) que “a constatação dos fatos e seu ordenamento dentro de um sistema não
estão ancorados na realidade social mesma, mas apenas na vontade da respectiva classe
dominante de ordenar a práxis social em conformidade com suas intenções”, mas não em
completa ausência de resistências e disputas.
Logo, o direito positivo ganhou bastante importância em sentido prático, cuja gênese
e condições sociais de desenvolvimento apareceram de modo cada vez mais indiferente em
termos teóricos. O direito assume, portanto, a forma de um sistema cada vez mais lógico e
coeso, não só na sua práxis, mas também na sua teoria, podendo ser manejado unicamente

616
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

conforme uma certa “lógica jurídica” autossuficiente, que necessita cada vez mais de
“especialistas” capazes para tanto. No entanto, para que um sistema jurídico possa ser real,
não basta que seja teórico, mas deve, antes de tudo, ser prático. Assim, o caráter do direito é
duplo: ao mesmo tempo em que ele deve expor a factualidade do modo mais exato possível
em termos de definição ideal, essas constatações também devem compor um sistema formal,
coeso e livre de contradições. Com efeito, o sistema jurídico não espelha a realidade, mas a
manipula em busca dessa aparência de coesão. Sendo assim, o funcionamento do direito
positivo se dá através da manipulação das contradições existentes na realidade, de modo que
através disso surja não só um sistema unitário e coeso, mas um sistema capaz de regular na
prática as contradições sociais, capaz de se mover entre os polos antinômicos elasticamente,
com o intuito de implementar nos casos concretos as decisões que não ameaçam seriamente a
preservação das relações postas. Destarte, para que a manipulação aconteça, faz-se necessária
a existência de uma técnica bem própria, o que explica o fato de que o complexo jurídico só é
capaz de se reproduzir se houver em conjunto uma reprodução de seus especialistas
(LUKÁCS, 2013).
Importa ressaltar que a especificação da função ideológica do direito não o impede
de se inter-relacionar e se alimentar de outros conteúdos. Como dito acima, o direito se
configura como um corpo aparentemente coeso, coerente e isento de contradições, e como
instrumento de resolução de conflitos sociais que reflete o estágio desse conflito e que segue
precisamente uma direção de apaziguamento tensionado. Ele reflete o meio econômico de
forma aproximada, mas não mecânica, até porque do contrário sua efetividade estaria
comprometida. O direito, portanto, deve pretender o máximo de universalidade, objetividade
e autonomia possíveis para cumprir sua função de regulação, e é aí que a análise do direito
enquanto ideologia deve ser feita. Não importa, portanto, se o direito é falso, pois o que o
determina enquanto ideologia é se ele cumpre o seu papel como forma de regulação e
ordenação da vida econômica de forma efetiva.
Dado o duplo caráter do direito como ideologia, ele se diferencia da filosofia, por
exemplo, na medida em que a filosofia constitui, junto com a arte, aquilo que Lukács chamou
de “ideologia pura”. Formas ideológicas puras são aquelas que não estão diretamente
vinculadas à ação prática humana, objetivando cultivar o gênero humano (VAISMAN, 2010,
p. 57), diferenciando-se, portanto, do direito e da política, formas ideológicas que visam atuar
diretamente na práxis humana. A filosofia configura uma forma ideológica particular, cuja

617
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

particularidade reside no fato de objetivar as questões últimas da existência e do


conhecimento humano, “isto é, a concepção do próprio mundo sob suas formas abstratas e
gerais” (LUKÁCS, 1967, p. 30).
Isso, entretanto, não significa que a filosofia não pode interferir no rumo de
desenvolvimento social, e pelo contrário, ela vai interferir, mas apenas que essa não é sua
determinação precípua. A filosofia caracteriza-se por ser uma área do conhecimento
interessada pelo destino do homem, por sua essência e as questões relativas ao gênero
humano, de modo que não se esgota em si mesma. É uma forma pura porque suas questões
ultrapassam a imediaticidade do cotidiano, como o direito, e também porque não dispõe de
meios próprios para ser praticada. Foge da especificidade da filosofia uma intervenção direta
e imediata sobre a realidade, contudo isso não impede que a mesma possa vir a exercer uma
influência ideológica na realidade dependendo da circunstância. Como essa esfera do
conhecimento não possui os meios necessários para realizar essa interferência diretamente,
essa influência só se concretizará de forma efetiva quando houver possibilidades históricas
reais para tal (VAISMAN, 2010, p. 57).
Esse contraste com as formas puras permite uma melhor captura do caráter mais
imediato do direito como mediação no interior do conflito social. Mediante os juristas
ideólogos e os instrumentos práticos do dispositivo legal, desponta-se uma ideologia que
nasce diretamente do conflito e deve necessariamente retornar a ele em seu cotidiano,
refletindo o próprio estágio do conflito e produzindo efeitos diversos e contingentes na
dinâmica dos processos históricos.

3. CRÍTICA ROMÂNTICA NO DIREITO SOCIAL DO CAPITALISMO


HIPERTARDIO

Como visto, em síntese, o estudo das formas ideológicas exige o mesmo rigor que
qualquer análise que se lance sobre o plano concreto. Mesmo porque está pressuposto a
compreensão deste plano concreto para a devida apreensão. No caso, considerando a
ideologização da ideologia como atributo dos juristas, o exercício sucinto aqui no presente
tópico tem natureza meramente demonstrativa e não conclusiva. Para isso, vamos considerar
aspectos acerca do direito social que Cesarino Júnior esboçou sob as confluências dos anos de

618
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1930 e 1940 no Brasil (Direito Corporativo e Direito do Trabalho, de 1940, e Direito Social
Brasileiro, do mesmo ano, atualizado várias vezes até os anos de 1950).
Procura-se apontar as marcas da crítica romântica do capitalismo nas condições do
capitalismo no Brasil do período como sustentáculo do chamado direito corporativo, não se
tratando de um espelhamento mecânico do fascismo, mas sim de uma variante do ideário
nostálgico do corporativismo medieval de talhe católico e industrialmente orientado para as
condições nacionais de então que, em insuficiência material, recorre compreensivelmente ao
Estado como agente modernizante. Aliás, solução compartilhada em grande medida pelas
vias mais tardias de objetivação do capitalismo, como a própria Alemanha, remontando aos
processos turbulentos do século XIX, não obstante a particularidade do processo brasileiro.
Enquanto a via prussiana teve por anterioridade a existência do feudalismo, a via colonial
marcadamente brasileira é historicamente delimitada no sistema colonial escravista já
integrado de modo subordinado aos processos dinâmicos principalmente europeus. Essa
diferença separa claramente a particularidade brasileira, cuja objetivação capitalista se dá de
maneira hipertardia se comparada ao modo tardio prussiano e clássico inglês e francês. Certos
aspectos, no entanto, igualam o modo tardio e hipertardio: processo de modernização não
revolucionário, dado por via de conciliação entre as classes (CHASIN, 1978).
Para efeito de recuperação, basta dizer que a crítica romântica do capitalismo que se
desenvolve no entre guerras parte do reconhecimento de certas modalidades de contradições
da sociabilidade, mas nega a alternativa prática de superação do próprio capitalismo,
estabelecendo uma espécie de resignação a um capitalismo modificado em termos de
limitação do liberalismo. Diante da inexistência de uma real “terceira via”, a crítica romântica
é uma apologia indireta ao capitalismo. No caso brasileiro, de condições débeis de
objetivação do capitalismo, essa crítica romântica assume formas diferenciadas. É o caso, por
exemplo, do integralismo de Plínio Salgado. Tratou-se de uma “proposta ruralista, tecida
sobre as mal traçadas linhas de uma crítica romântica ao capitalismo” (CHASIN, 1978, p.
618) que, em sua especificidade,

[...] não foi certamente uma cópia [do fascismo]; correspondendo às condições
histórico-sociais, foi um movimento reacionário, conciliatório, norteado por valores
e interesses da pequena-burguesia parasitária do capitalismo; inscrito num
panorama de capitalismo atrasado, o presente e sobretudo o futuro lhe causavam
medo, e ele incorporou um máximo de tradição ruralista e patriótica, refugando a
dinâmica do mundo industrial; para fazer isso, absorveu elementos essenciais do
fascismo, que o inspirou em boa parte, desenvolvendo, todavia, traços próprios que
permitem considerá-lo uma variante especificamente brasileira; se não foi um

619
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

fascismo foi certamente um semi-fascismo verde-amarelo, que não chegou talvez a


definir toda a sua fisionomia nos cincos anos que durou oficialmente (CANDIDO,
1978, p. 20).

Esse integralismo coexistiu com outras variantes conciliatórias, refletindo também


no pensamento jurídico do período, porém, influenciado pela crítica romântica ao capitalismo
posicionada ao lado das classes industrialistas.
Nessa direção, é importante considerar que o contexto nacional refletia o período de
uma transição problemática em que as forças sociais de então confrontavam-se de modo mais
ou menos velado. Enquanto o território político era o palco de uma conciliação mais ou
menos turbulenta entre os interesses agroexportadores e urbano-industriais ascendentes, o
território dos direitos sociais prevaleceu como mediação para acomodação dos interesses
populares impossibilitados de se colocar no plano diretamente político (cf. PAÇO CUNHA,
2017). Nesse particular, o direito social expressava o conflito crescente entre capital e trabalho
no meio urbano. Não por outro motivo, os industrialistas tinham mais do que razões para
participar ativamente do processo que modelaria os direitos sociais, particularmente a
legislação trabalhista. Uma parte considerável dessa burguesia era não apenas favorável à
legislação como tinha, e isso é mais importante, interesse em determinar os limites de tal
legislação (cf. GOMES, 1979). Pupo Nogueira (1935), Jorge Street (1980) e Roberto
Simonsen (1973) talvez sejam emblemáticos a esse respeito. Seus textos se direcionavam
francamente em apoio a tais direitos, desde que sem exageros e que não fossem meras cópias
do que se passava na Europa - temerosos que seguiam com relação a uma potencial
radicalização. E influíram como puderam para que a legislação promovesse determinados
direitos sem que houvesse prejuízo ao processo de acumulação de capitais em curso. É a mais
fina expressão da consciência prática dos homens de negócio, ou melhor, da vanguarda da
classe do capital.
Nesse contexto de objetivação do capitalismo industrial no Brasil, um processo de
acomodação entre o velho e o novo, estabelece-se as bases do pensamento jurídico do período
na exemplaridade de Cesarino Júnior, articulado ao empresariado industrial. Como dito antes,
não é uma mera derivação da estrutura econômica, mas a determinação do pensamento pelo
ser social e que envolve, naturalmente, inúmeros fatores que estão em reciprocidade num
conjunto articulado em que o fator econômico desempenha o papel preponderante, a raiz da
problemática posta.

620
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A gênese do direito social, tal como Cesarino Júnior foi capaz de apreender, é o
conflito social e a ele deve retornar para, como ideologia, atuar em suas direções. Explicou o
jurista que como o “Direito Social se criou para resolver as questões surgidas com o
aparecimento da grande indústria, entre patrões e operários, teve ele, a princípio, os nomes de
Direito Industrial e de Direito Operário, com as correspondentes finalidade de regular as
relações oriundas desses problemas” (1957, p. 27). Não obstante o fato de capturar o
problema da gênese, não era dada a possibilidade de determinar a real funcionalidade do
direito e jamais pôde abandonar sua posição social que, muito próxima de homens como
Roberto Simonsen, cobrava resposta prática na direção da industrialização. Este último
aspecto não é, em absoluto, desimportante. A filiação a determinados interesses sociais postos
no contexto conflituoso implica uma programática manifesta através da pena do jurista.
Embora o próprio autor não estivesse em condições de apreender, a “situação econômica
geral” atuou sobre a “mentalidade dos legisladores”2 (1987, p. 91).
Mas a força do período não se direcionava tão somente pelo aspecto industrializante.
Refletia-se na manifestação de grandes questões da época. Os conflitos sociais no exterior, a
revolução russa de 1917, as críticas de diferentes tipos ao capitalismo rodavam o mundo:

O período entre as duas guerras foi dominado pela doutrina corporativista na área
católica. Várias idéias estavam confluindo numa fórmula: a crise da representação
liberal, um certo esvaziamento dos parlamentos, a necessidade de superar o conflito
capitalismo vs. comunismo, a nostalgia das corporações medievais, o
reconhecimento de que nós entrávamos numa época em que a sociedade seria
organizada em corporações (em sentido lato) (TORRES apud CHASIN, 1978,
327).

É nesse contexto que se demarca o pensamento do jurista em tela, num esforço


constante de situar a explicação para o que estava em processo no país particularmente no
terreno jurídico. E fica patente em seus textos o registro de uma crítica romântica ao
capitalismo. Pois o direito social é “essencialmente anti-individualista” (CESARINO
2
Como dito antes, a especialização heterogênea do terreno do direito o afasta da realidade econômica e produz o
efeito de obliterar a influência dessa mesma realidade sobre aquele terreno. É curioso como Cesarino Júnior intuía
essa reciprocidade sem poder dar um acabamento à questão: “Embora talvez não mais importante que as da
Economia no Direito Social, são pelo menos mais palpáveis as influências do Direito Social na Economia. É que
as leis sociais têm a suas repercussões na Economia mais facilmente observáveis, através do estudo da vida das
empresas, que o influxo da situação econômica geral, mais ou menos vago, sobre a mentalidade dos legisladores”
(1957, p. 91). O jurista não estava em condições objetivas que lhe permitissem alguma isenção subjetiva
necessária à apreensão do “influxo”. E fica patente que tomava o próprio terreno do direito como o ponto de
arranque, ao invés da própria economia. Na verdade, tendo o direito gênese na materialidade, a ela volta por
“influxo”. A inversão determinativa não é exclusividade do idealismo objetivo do século XIX. A crítica romântica
herda e desenvolve de modos irracionalistas esta inversão.

621
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

JÚNIOR, 1957, p. 23), explicou o autor. Em discussão acerca da nomenclatura, grafou que “a
lembrança da sua origem na solução da ‘questão social’, nas dúvidas entre as ‘classes sociais’,
ao mesmo tempo que a extensão do campo de aplicação das novas normas jurídicas,
inspiradas aliás, em conceitos filosóficos opostos ao individualismo, não deixava de influir
para que se desse, ao novo direito, também a denominação de Direito ou legislação Social”
(1957, p. 27).
A crítica romântica aqui não se completa pela constatação do aspecto individualista
do capitalismo - o que é tautológico -, mas pela resposta de uma propositura que nega
peremptoriamente a alternativa prática disponível à época. Quer dizer, a recusa do caminho
socialista revolucionário, de um lado, e a constatação dos problemas intrínsecos do
capitalismo, de outro, assinalam a busca de uma via que não existia. Após dar mostras da
recorrente ignorância acerca do marxismo, condição compartilhada, aliás, com muitos de seus
contemporâneos e sucedâneos, sustentou que o “coletivismo é, relativamente, uma escola
moderna (…). É uma doutrina nascida no século XIX, tendo sido CARLOS MARX,
sobretudo na sua obra ‘O Capital’, quem a sistematizou” (1957, p. 65). Não apenas não há
sistematização em O capital sobre assunto e, se houvesse, não seria sobre coletivismo. É a
vulgata que operava em todos os níveis e servia à contrapropaganda da revolução russa (cuja
pobreza material já tinha se revelado cabalmente nos anos de 1930, isto é, o retrato de uma
revolução que não que tinha condições objetivas de ocorrer, mas não poderia deixar de ser
realizada). O que Cesarino denomina de “coletivismo integral de MARX” (1957, p. 67) não
passa da posição ideologicamente instruída a encontrar uma posição intermediária e
inexistente entre capitalismo e socialismo. Não há dúvidas com respeito a isso, pois,
contrariando todos os nexos concretos que apontam, com o mais alto rigor, para o trabalho
como o fundamento da produção social, sustentou, sem provas aliás, que “sem a propriedade
privada, não haveria riqueza a distribuir, pois, a mola da produção é o interesse privado”
(1957, p. 69). Vê-se que a crítica romântica que se esboça é igualmente uma apologia indireta
do capitalismo. E a propositura que Cesarino Júnior adjunta é para que se confirme o “espírito
da legislação social do trabalho, principalmente no Brasil”, orientada “no sentido da
solidariedade social, do equilíbrio de interesses, da justiça social e da dignidade do homem”
(1957, p. 101).
Todos esses apetrechos expressam o empuxo de garantir que os fundamentos da
ordem do capital permaneçam intocados. Não é algo que se oculte a todo instante, mas

622
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

também não é parte do argumento geral sempre reposto. Todavia, ao classificar as leis sociais
quanto aos efeitos sobre a produção, explicou que não tinha “em vista encarar as leis sociais
mais do ponto de vista de sua elevada finalidade, pois agora o aspecto em que nos colocamos
é tão somente o de sua influência no mecanismo da produção. (...) qualquer conclusão a
respeito deve ter por escopo, para ser a um tempo útil e justa, propor, nunca qualquer medida
prejudicial a essas finalidades, mas tão somente as alterações aconselháveis no seu modus
faciendi, isto é, modificações de forma e não de conteúdo”. É uma expressão de caráter
positivista, do cálculo entre riscos de danos e chances de êxitos. Mais importante ainda, é que
o jurista ecoava não apenas a posição da classe industrial brasileira em sua vigorosa iniciativa
de estabelecer limites aos inevitáveis direitos sociais naquele período, em fazer a legislação
refletir as condições de realização dos interesses do capital em condições débeis de
desenvolvimento. Ecoava igualmente o contumaz argumento desta classe de que os
legisladores são estranhos em matéria econômica. Em linguagem condizente com o que está
em jogo, escreveu que é “óbvio que este estudo lucraria muito mais em ser feito por um
industrial e não por um professor universitário”, explicou o jurista, fazendo reverência a
Roberto Simonsen de passagem. “E se o fizemos - queremos repeti-lo - é unicamente com o
intuito de sugerir a sua realização pelos competentes” (CESARINO JÚNIOR, 1957, p. 93).
Sua vinculação ao projeto industrializante é bastante evidente, diferenciando-o da variante
ruralista que marcou, como visto, o integralismo de Plínio Salgado.
Essas questões são adensadas pela análise de material da mesma época e terminam
por enfatizar ainda mais o aspecto conciliatório ao dar preponderância ao Estado. O jurista
responde, por encomenda do então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo, o recorrente Roberto Simonsen, sobre as diferenças entre a organização do Estado
Brasileiro, determinada pela Constituição de 1937 e a organização do Estado Corporativo
Italiano3. Concluindo pelas diferenças mais do que pelas igualdades, ressalta que na “esfera
econômica, em matéria de organização do Estado, há que acentuar a preocupação política
dominando a economia italiana e o fato da Constituição de 1937 traçar somente as bases de
um corporativismo de Estado, já plenamente atuado no Estado Fascista Italiano” (1940, p. 9).

3
Mais tarde escreveria: “No capítulo sobre a ordem econômica, vê-se muito forte a influência da Carta do
Trabalho italiana” (Cesarino Júnior, 1957, p. 124). Completando em nota que “Não significa isto, porém, a
inexistência de diferenças entre a nossa legislação social e a italiana. Há diferenças fundamentais” (1957, p. 124,
nota 166).

623
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Segue, no geral e no específico, na letra e no espírito, a quem considera ser a síntese


maior do corporativismo. Daí a importância de laçar algumas indicações, para além das que
Cesarino reproduziu diretamente. Brèthe de la Gressaye (1938, p. 117) sugere que o “puro
regime individualista, como o regime corporativo integral, são simplistas e mutilam o real”, já
de partida aqui sinalizando a posição entre os caminhos abertos na história. Enfaticamente
explica que a “modalidade atual” manifesta na propositura do corporativismo “é em reação
contra o individualismo e o liberalismo absolutos da Revolução francesa” (1938, p. 110). A
nostalgia do medievo sobressalta-se, no entanto, demandante do Estado em sua configuração
mais ou menos atualizada, pois a “corporação é a liberdade para a profissão de se governar ela
mesma sob o controle do Estado, guardião do bem comum”. Aludindo a aspectos ecoados
inclusive por Francisco Campos (cf. CESARINO JÚNIOR, 1940, p. 20), o jurista francês
escreve que a “corporação é a descentralização econômica, desincumbindo o Estado de uma
série de tarefas para as quais ele não se destina”. Registre-se, asseverava, “Totalmente
diferente é a corporação de tipo fascista” (Brèthe de la Gressaye, 1938, p. 113-4). Lamentava
que tenha sido sobre o fascismo que o corporativismo teria se desenvolvido, mas que seus
princípios sobreviveriam ao teste de fogo desse “totalitarismo” identificado.
Não obstante, e o que é decisivamente mais importante, é de demarcação sem
disfarce de que o “corporativismo se apresenta como uma via mediana entre o liberalismo e o
socialismo. O que é ele de fato? Uma forma de socialismo, o socialismo de Estado”
(BRÈTHE DE LA GRESSAYE, 1938, p. 114). É um ideário para o qual, não por acaso,
sobretudo as “classes sociais não constituem os corpos sociais tanto que não são organizados
por uma defesa de um interesse ou de um bem comum” (1938, p. 79). Precisamente a
particularidade que medeia o singular e o universal nas condições sociais, e que é força social
significativa, é expurgada não por outra razão senão o fato de que é precisamente o conflito
das classes que faz estremecer os pilares do altar. Como confessa o jurista francês, foi
moldado à luz de uma definição de corporação resgatada do “Compendium das Decisões da
União de Friburgo (Paris, 1893), que resume o trabalho realizado de 1885 a 1891 por um
grupo de católicos sociais da França, Áustria, Itália, Suíça e Bélgica, conhecida como União
Internacional de Católicos Sociais” (1938, p. 79, nota 1). É uma crítica romântica ao
capitalismo, crítica de matriz católica.
É preciso repetir que Cesarino Júnior segue na letra e no espírito esse desenho de seu
par francês. Repete, igualmente, Francisco Campos na definição, como manda o figurino

624
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

jurídico, da “organização corporativa”. É uma lógica imputada pelo intelecto à realidade, e


não o contrário, mas suficiente para denotar o caráter de sua propositura acomodada por
Cesarino Júnior. Francisco Campos, em seu exercício de “dialética”, uma dialética restrita às
formas políticas dado que o conteúdo econômico real é a todo custo protegido, escreveu que o
“liberalismo político e econômico conduz ao comunismo. O comunismo funda-se,
precisamente, na generalização à vida econômica dos princípios, das técnicas e dos processos
do liberalismo político” (CAMPOS, 1940, p. 61). Seguindo a toada já explicitada, o
capitalismo é alvo da crítica romântica estabelecida que recusa do socialismo. Daí que o
“corporativismo mata o comunismo como o liberalismo gera o comunismo. O corporativismo
interrompe o processo de decomposição do mundo capitalista previsto por Marx como
resultante da anarquia liberal” (1940, p. 61). Assim, o “corporativismo, inimigo do
comunismo e, por consequência, do liberalismo, é a barreira que o mundo de hoje opõe à
inundação moscovita” (1940, p. 62). A terceira via, ao final, é apologia do capitalismo
acomodado por uma forma política supostamente capaz de arrefecer suas contradições mais
ou menos identificadas. Em detalhes, isto quer dizer que um modo de organização assim
idealizado, nos dois sentidos, como momento ideal e fantasia, precisa supor que o conflito
entre as classes é precisamente aquilo que deveria ser combatido, não para superá-la, por
óbvio, mas para acomodá-la nos contornos de uma variante do capitalismo. Para isso é
preciso supor a altivez de um ente moral de se colocar acima das relações entre as classes. É
nesses termos que o “Estado é a justiça; as corporações, os interesses. Nos quadros do Estado,
só os interesses justos encontram proteção” (1940, p. 62).
Do mesmo jeito, replica Manoilescu e Oliveira Vianna. Mas já temos material
suficiente para a exemplificação proposta. Procurou-se evitar a solução mais simples de
igualar o fascismo ao pensamento jurídico do período. Em síntese, o pensamento jurídico
como objeto ideológico na exemplaridade de Cesarino Júnior é determinado socialmente num
período de conturbação nacional e internacional. É uma variante da crítica romântica do
capitalismo, conciliatória, escavando uma mediania entre as alternativas historicamente
postas, colocando-se ao lado dos interesses industrialistas no entrechoque político com o
capital agroexportador e econômico-social com a classe trabalhadora. Seja por sua linha
direta, seja por suas fontes replicadas com recorrência, temia mais o presente do que o futuro
posto como imagem de uma pacificação social que atendesse ao processo de objetivação do
capitalismo. Suas condições atróficas de desenvolvimento apelam para o Estado, modificado

625
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

em sua forma corporativa e idealizado na qualidade ente moral supra classe, que servisse de
alavanca necessária a tais processos nas condições atróficas de um capitalismo hipertardio. E
é por esse motivo que a crítica ao capitalismo que dá o arranque a esse processo é, ao final,
uma apologia do capitalismo.
Nesses termos, revela-se que o fio vermelho é a crítica romântica do capitalismo que
pressupõe superá-lo sem, de fato, mudar sua essência. A ilusão do controle das contradições
por meio dessa modalidade política se desfez no tempo histórico, pois irromperam à luz do
dia nos períodos subsequentes, denotando os limites e a temporalidade de medidas desse tipo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo objetivou apresentar a pesquisa de talhe materialista dos “objetos


ideológicos”, demonstrando suas possibilidades através da análise não exaustiva do
pensamento jurídico do período crucial de formação do capitalismo no Brasil na figura de
Cesarino Júnior.
Nessa direção, o artigo apresenta contribuições em duas direções interligadas. A
primeira é no aspecto teórico-metodológico, por assim dizer, em razão da demarcação dos
nexos irrompíveis entre o pensamento jurídico e as condições materiais e, portanto, da
determinação material da gênese e da função do direito. De tal maneira, o pensamento
jurídico nunca surge autonomizado e autoexplicativo.
A segunda contribuição está na demonstração, ainda que não exaustiva, das
possibilidades de pesquisa ao inquirir o pensamento jurídico de Cesarino Júnior do período de
objetivação hipertardia do capitalismo. Revelou-se que tal pensamento esteve em ligação com
as formações ideais propaladas no período entre guerras. Viu-se que essa fase histórica é uma
continuação da decadência ideológica e do fortalecimento da crítica romântica ao capitalismo.
Não obstante tal ligação, o que explica esse pensamento é o contexto material do Brasil de
então, em meio ao conflito social posto e a inclinação industrializante em razão da filiação do
jurista em tela à classe do empresariado nacional. Nesse sentido, não se esgota o pensamento
jurídico em questão como um simples reflexo do fascismo. Há especificidades dadas pela via
particular de objetivação do capitalismo no Brasil, em meio ao conflito entre capital
agroexportador, urbano-industrial ascendente e o proletariado em progressiva constituição, de
modo que a crítica romântica ao capitalismo atende à funcionalidade de dar vazão a um

626
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

direito social orientado a influir principalmente sobre as questões postas entre capital e
trabalho.
Essas contribuições apontam também para a necessidade de continuação da
pesquisa, uma vez que os achados se sustentam em poucos materiais. Seria muito importante
adicionar outros elementos de composição do pensamento jurídico do período em tela, mas
também seria proveitoso abarcar outros períodos e outros personagens igualmente
indispensáveis e que marcaram o processo histórico nacional.

REFERÊNCIAS

BRÈTHE DE LA GRESSAYE, Jean. La corporation et l'État (histoire et doctrine). Archives de philosophie du


droit et de sociologie juridique, n. 1-2, 1938, p. 78-118. Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5405 903v>. Acesso em 17 de setembro de 2017.

CAMPOS, Francisco. O Estado nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.

CANDIDO, Antonio. Prefácio. In: Chasin, José. O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Ciências
Humanas, 1978.

CESARINO JÚNIOR, A.F. Direito corporativo e direito do trabalho. 2 vols. São Paulo: Martins, 1940.

______. Direito social brasileiro. 2 vols. São Paulo: Freitas Bastos, 1957.

CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.

GOMES, Angela M. de. C. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil 1917-1937. Rio de Janeiro:
Campos, 1979.

LUKÁCS, G. Marx e o problema da decadência ideológica. In: Lukács, G. Marxismo e teoria da literatura. São
Paulo: Civilização Brasileira, 1968.

______. Existencialismo ou marxismo? São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

______. Para uma ontologia do ser social. v. 1. São Paulo: Boitempo, 2012.

______. Para uma ontologia do ser social. v. 2. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

______. O Capital, Livro I, Coleção Os Economistas, vol. I, São Paulo: Nova Cultural, 1996.

MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.

PAÇO CUNHA, Elcemir. A função do direito na via colonial. Marx e os Marxismos: Niterói, 2017.

PUPO NOGUEIRA, Otávio. A indústria em face das leis do trabalho. São Paulo: Escolas Profissionais
Salesianas, 1935.

SIMONSEN, Roberto. Evolução industrial do Brasil e outros estudos. São Paulo: Editora Nacional, 1973.

627
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

STREET, Jorge. Ideias sociais de Jorge Street. Brasília: Senado Federal, 1980.

628
UMA REFLEXÃO SOBRE AS CATEGORIAS:
CAMPESINATO E AGRICULTURA FAMILIAR
COMO PROCESSO DE LUTA

SOARES, Mara Magda


Estudante de Especialização em Filosofia e Teoria do Direito
RIBEIRO, Ana Maria Motta
Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito
SOUZA, Maria José Andrade de
Estudante de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito

RESUMO

Em homenagem aos “Cem anos da Revolução Russa", esse trabalho propõem uma reflexão histórica
sobre o “Relato de pesquisa do retrato da repressão política no campo: Brasil 1962-1985 - camponeses
torturados, mortos e desaparecidos”. Qual foi o legado dos camponeses em 1917, quais foram as
transformações sociais e políticas naquela época e como essa revolução reverberou na
contemporaneidade. Uma análise de pesquisadores críticos que revelam através de entrevistas,
memórias e uma vasta pesquisa bibliográfica, quais foram as perseguições camponesas no Brasil. Uma
releitura da construção de uma luta emancipatória campesina, suas contradições e o desmantelamento
das relações sociais. Pretende-se também analisar a desconstrução do conceito camponês em outra
terminologia - os agricultores familiares.

Palavras-Chave. Revolução Russa. Camponeses. Agricultores Familiares.

ABSTRACT

In honor of "one hundred years of the Russian Revolution", this paper proposes a historical reflection
on the "research report on the portrait of political repression in the countryside: 1962-1985 Brazil-
peasants tortured, killed and missing". What was the legacy of the peasantry in 1917, which were the
socio-political transformations of that epoch and how the revolution reverberated in contemporary
times. Also approaches an analysis of critical researchers reveal through interviews, memoirs and a
wide bibliographical research; how were the peasant chases in Brazil. We have here the construction
of retelling a peasant emancipatory struggle, its contradictions and rupture of social relations. Lastly
is intend to analyze a deconstruction of the concept peasant in another terminology- family farmers.

Keywords. Russian Revolution. Peasant. Family Farmers.

629
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Neste ano homenageamos os “100 anos da Revolução Russa” seu legado, e quais
foram as transformações sociais, políticas, históricas e culturais conquistadas ao longo desse
século. Este trabalho propõe uma releitura de um “Relato de pesquisa do retrato da
repressão política no campo: Brasil 1962-1985 - camponeses torturados, mortos e
desaparecidos”. Quais foram as influências desse movimento revolucionário em 1917 e nos
tempos atuais. Trata-se de um recorte da opressão, resistência e luta dos camponeses na
Rússia naquele ano e o seu alcance nas décadas de 60 a 80 no Brasil.
Para compreender melhor as mudanças e as transições neste período, foram
utilizadas várias fontes de informações:

Em Minas Gerais, existe um variado registro bibliográfico disponibilizado pelos


núcleos do Projeto República: Núcleo de Pesquisa, Documentação e Memória do
Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, sob
coordenação da professora Heloísa Starling, que desenvolveu em parceria com o
NEAD o Projeto Sentimento de Reforma Agrária, Sentimento de República. Além
dos dados e documentos históricos em outros arquivos e centros de memória,
visitando a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; o Programa de História Oral do
CPDOC Fundação Getúlio Vargas; o Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp
(AEL) e o Centro de Documentação e Memória da Unesp (Cedem). Privilegiando a
procura por relatos fornecidos pelos próprios trabalhadores e seus líderes, com
entrevistas notáveis, como a concedida por Francisco Julião à socióloga Aspásia
Camargo, em 1977, no México, disponível no CPDOC-FGV. Na Biblioteca
Nacional, tivemos acesso a edições da revista O Cruzeiro e dos periódicos
Movimento e Terra Livre (CARNEIRO, 2010, p.15).

Os camponeses com suas especificidades e tradições, possuem um traço histórico


diverso, complexo e resistente que dissipam de qualquer suposição que possamos ter de suas
ações. Eles revelam uma extraordinária natureza criativa e transformadora nesta Revolução
Russa de 1917 que marcou a história do mundo (BADCOCK, 2017).
Nessa proposta de estudo, pretende-se discutir quais são as controvérsias
conceituais, a motivação política e social da mudança dessas terminologias: camponeses e
agricultores familiares.

630
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1. PERCURSO HISTÓRICO DE UMA CLASSE

Em 1859, na confecção de sua obra, Karl Marx descreve como foi construído o
processo de produção do capital (a acumulação para o capitalismo) e a expropriação que
levou os camponeses, ao desmantelamento de suas relações sociais, levando-os a um quadro
de miséria, delineando a construção de um novo sistema de exploração da mais valia e
transformando em capital. Nesse percurso, houveram resistências, conflitos e subordinação
dos camponeses:

Assim, o movimento histórico, que transforma os produtores em trabalhadores


assalariados, aparece, por um lado, como sua libertação da servidão e da coação
corporativa; e esse aspecto é o único que existe para nossos escribas burgueses da
História. Por outro lado, porém, esses recém-libertados só se tornam vendedores de
si mesmos depois que todos os seus meios de produção e todas as garantias de sua
existência, oferecidas pelas velhas instituições feudais, lhes foram roubados. E a
história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com traços de
sangue e fogo (MARX, 1859, p. 341).

O preço pela luta contra a opressão e expulsão de suas terras significou a perda de
suas próprias identidades, quando muitas vezes eram levados à clandestinidade e á miséria na
cidade maior, longe de seus familiares, forçados a romperem seus vínculos mais essenciais. A
outros, o terror do passado deixou derradeiras marcas emocionais, que não esmaecem nem se
apagam (CARNEIRO, 2010, p.20).

Os camponeses foram atores políticos decisivos em 1917. Definiram as respostas


dos políticos para os desafios nacionais; eles produziram, controlaram e ditaram o
suprimento de alimentos. Armados e fardados, os camponeses serviram como
soldados, fazendo parte do poder político e rompendo com ele e, como a maioria
dos residentes urbanos da Rússia, eles tiveram papéis centrais nas revoltas urbanas
[...]. No entanto, quando falamos de revoluções camponesas, normalmente nos
referimos às batalhas rurais pelo uso e propriedade da terra (BADCOCK, 2017).

Assim, o campesinato ao resistir passou a representar historicamente uma


importante forma de organização social para o desenvolvimento humano em diferentes
escalas geográficas. Nesse alinhamento, na contemporaneidade, podemos destacar a retomada
do uso da categoria “camponês” na América latina como uma forma de representação
politizada de ações de diferentes segmentos de trabalhadores do campo e, no Brasil, desde as
Ligas, passando por associações que reagiram de modo organizado contra o Latifúndio e que

631
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

hoje se batem contra a pressão espoliadora do agronegócio que concentra cada vez mais as
terras disponíveis, seja enquanto “sem terra” ou como agricultor familiar. Apenas pode-se
considerar que em geral, pesquisas tem apontado para o fato de que a presença de
assentamentos de trabalhadores rurais, ou a concentração de pequenas propriedades, ou
posses caracterizando a produção familiar, tem demonstrado uma tendência a efetivação de
impactos socioterritoriais positivos contribuindo tanto para a preservação ambiental como
para a distribuição de alimentos contribuindo para as políticas de Segurança Alimentar e
Nutricional, e, finalmente fortalecendo o desenvolvimento regional e com a melhoria da
qualidade de vida (FERNANDES, 2004, p.2).

O conceito de camponês permite apreender a complexidade do sujeito histórico que


designa, diferentemente do que ocorre com outros conceitos como os de pequena
produção e agricultura familiar. Trata-se de um conceito que possui uma história
significativa no interior das ciências sociais e que tem se relacionado às disputas
políticas e teóricas travadas em torno da interpretação da questão agrária brasileira e
das direções tomadas pelo desenvolvimento capitalista no campo (MARQUES,
2008, p.60)

Marx (1859, p. 355-356), descreve a violenta luta dos expropriados, arrancados de


seu modo costumeiro de vida, retirados dos campos, conquistados para a agricultura
capitalista, incorporados na base fundiária até o capital, criando assim, uma indústria urbana
como oferta necessária de um proletariado livre como os pássaros. Converteram-se numa
massa de esmoleiros, assaltantes e vagabundos, em parte por predisposição e na maioria
forçados pelas circunstâncias da pobreza e fome.

1.2. MOVIMENTO CAMPONÊS NA RÚSSIA

O início do movimento camponês na Rússia está atrelado as sucessivas revoluções,


transformações políticas que do século XIII até o século XIX, foram necessárias para varrer o
sistema feudal e o antigo regime: a Revolução Francesa (1789 - 1799) foi o momento crítico
(COGGIOLA, 2013, p. 282).
Em 1917, a situação agrava-se, devido à volatilidade de sua sociedade, à má
administração do sistema czarista obrigava os trabalhadores rurais a pagarem altos impostos
para manter sua estrutura, governando de forma absolutista, ou seja, concentrava os poderes
em suas mãos, não abrindo espaço para a democracia. Mesmo os trabalhadores urbanos, que

632
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

desfrutavam dos poucos empregos da fraca indústria russa, viviam descontentes com esse
governo (CHRETIEN, 2017, p. 20).

A Revolução de Fevereiro iniciou um contínuo desdobramento das aspirações e


ações camponesas, mas a forma como os revolucionários rurais lutavam por
igualdade dependia do uso local que faziam da terra e dos padrões de propriedade.
A maioria dessas ações não envolveram violência ou confiscos forçados. Ao invés
disso, as comunidades rurais testaram e transgrediram as leis da propriedade
privada enquanto tentavam se proteger de potenciais repressões (BADCOCK,
2017).

Para contribuírem nas várias revoltas clandestinas na Rússia em 1917, algumas


ações camponesas, mostravam sua indignação e resistência com o sistema, vezes abriam
portões e permitiam que o gado de todo o vilarejo se alimentasse no pasto dos donos das
terras, em outras produziram documentos aparentemente oficiais que lhes garantiram o uso
dos recursos locais perpetuamente, outros revoltavam-se trabalhando juntos para derrubar a
madeira de florestas da vizinhança (BADCOCK, 2017).

1.3. MOVIMENTO CAMPONÊS NO BRASIL

Marques descreve a origem do conceito do campesinato no Brasil:

Está relacionada à realidade da idade média europeia, mas a formação do


campesinato brasileiro guarda as suas especificidades. Aqui, o campesinato é criado
no seio de uma sociedade situada na periferia do capitalismo e à margem do
latifúndio escravista (MARQUES, 2008, p.60).

O termo “camponês” passou a ser adotado no Brasil em meio às ações do Partido


Comunista Brasileiro, a partir de meados dos anos 40, difundindo ali o linguajar adotado
pela III Internacional Comunista. Se originou numa espécie de “importação política”, fora
da realidade rural brasileira daquela época. Nesse percurso, os trabalhadores reunidos,
sobressaíram no engajamento político - seja ele partidário ou não - decorrente de distintas
iniciativas de “camponeses” na condução dos movimentos em cada região do país
(CARNEIRO, 2010, p.21).

Foi a partir dos anos 1950 que os movimentos passaram a generalizar o uso do
termo “camponês” no país, revestindo demandas locais em propostas políticas
vinculadas a um projeto nacional. A palavra reunia ampla gama de categorias -
lavradores, trabalhadores rurais, meeiros, foreiros, agricultores familiares, pequenos
proprietários, posseiros, articulando reivindicações diversas: direitos trabalhistas,
acesso à previdência social, direito à posse, reforma agrária, etc. Assim, carregava

633
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

um significado simbólico e um sentido político. Foi justamente esse sentido político


do termo “camponês” que passou a ser combatido, não apenas pelos agentes da
repressão militar, como também por latifundiários e seus capangas (CARNEIRO,
2010, p.20).

A resistência do campesinato brasileiro, através de sua luta por terra e por direitos,
trazia em si singularidades, como a repressão política e as transformações democráticas.
Muito antes do golpe militar de 1964, o campo brasileiro já era um trágico palco de abusos e
assassinatos de trabalhadores rurais. As associações de trabalhadores rurais e as ligas
camponesas expandiram-se nas décadas de 50 e 60, desenvolvendo-se significativamente no
Nordeste, mas tiveram também núcleos no Paraná, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no
Rio Grande do Sul e em Goiás. Mesmo diante de tantas coerções ainda havia certo espaço
para as manifestações populares, uma possibilidade de enfrentamento contra a violência dos
patrões. Era adotado um sistema de sindicatos, mas a situação se tornou ainda mais crítica nos
anos 1970, quando ocorreu um maior número de prisões e assassinatos dos líderes
camponeses, praticadas por pistoleiros, jagunços e capangas, que eram contratados por
latifundiários e empresas, para matar e muitas vezes, para compor milícias privadas. Um
percurso violento que se estende no tempo e no espaço (CARNEIRO, 2010, p.21-28).

A questão agrária, tão antiga quanto vasta, incide diretamente sobre a longa história
de lutas sociais no país. A “reforma agrária”, ao contrário, remete ao designativo
mais recente, datada de meados da década de 1950, e a um discurso estatizado. A
questão agrária sempre existiu, com ou sem projetos de reforma agrária,
acontecendo independentemente desta última (NATIVIDADE, 2013).

Diante de tantos conflitos, consideremos a citação de Marx que descreve a


repercussão da privação dos meios de primeira necessidade para criar uma dependência ao
sistema capitalista:

Portanto, o processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que o
processo de separação de trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho,
um processo que transforma, por um lado, os meios sociais de subsistência e de
produção em capital, por outro, os produtores diretos em trabalhadores assalariados.
A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo
histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece como
“primitivo” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que
lhe corresponde (MARX, 1859, p.340).

No Brasil, segue o mesmo modelo de sujeição que fora criado na dialética


internacional:

634
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nesse percurso, houveram muitos exemplares de migrantes imposta aos


camponeses em todo o país: expulsos pela lógica do latifúndio, nômades do grande
capital sob a tutela do regime militar. Uma circulação constante e às vezes tensas
entre campo e cidade. A urbanização promovida pelo desenvolvimentismo do
governo militar, afinal, passava justamente pela concentração fundiária e tinha,
como consequente destino dos camponeses, agrupamentos precários de moradias
em uma incipiente periferia rural (CARNEIRO, 2010, p.169).

Para Marx, o movimento histórico que transforma os produtores rurais em


trabalhadores assalariados inicia-se:

[...] todos os momentos em que grandes massas humanas são arrancadas súbita e
violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho
como proletários livres como os pássaros. A expropriação da base fundiária do
produtor rural, do camponês, forma a base de todo o processo. Sua história assume
coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases em sequência
diversa e em diferentes épocas históricas (MARX 1859, p. 341-342).

Abaixo, uma lista de registro de camponeses mortos e reprimidos em Minas Gerais:

635
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Quadro: Lista de vítimas de repressão no campo


Fonte: Relato de pesquisa do Retrato da Repressão Política no Campo: Brasil 1962-1985 - camponeses
torturados, mortos e desaparecidos

1.4. CAMPONÊS E O AGRICULTOR FAMILIAR

A transmutação do termo camponês em agricultor familiar no Brasil, nos traz uma


série de discussões e debates sobre a redefinição do trabalhador rural. Os camponeses
possuem um percurso histórico de lutas, de conquistas sociais e políticas, contudo perdem seu
valor conceitual e estrutural para uma nova determinação: os agricultores familiares.

O processo de transformação do sujeito camponês em sujeito agricultor familiar


sugere também uma mudança ideológica. O camponês metamorfoseado em
agricultor familiar perde a sua história de resistência, fruto da sua pertinácia, e se
torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação que passa a ser um
processo natural do capitalismo (FERNANDES, 2004, p.2)

Essa desconstrução conceitual, deslegitima as ações e lutas na ampliação de um


campesinato forte que possui um projeto nacional para geração de renda, contribui na
construção da soberania alimentar no país, no abastecimento popular, e possuem um plano
unificador entre pesquisadores e intelectuais, membros do governo para consolidar assim, as
melhorias nas condições de vida no campo, vida de qualidade, esporte, cultura, lazer e um
bom viver no campo. Uma afirmação de identidade de uma classe, modo e projeto de fazer
uma agricultura sustentável e energética (MPA e Plano Camponês, descrição baseada em
áudio, 2017).

O campesinato é formado por um conjunto de famílias camponesas existentes em


um território, num contexto de relações sociais que se expressam em regras de uso
(instituições) das disponibilidades naturais (biomas e ecossistemas) e culturais
(capacidades difusas internalizadas nas pessoas e aparatos infraestruturais tangíveis
e intangíveis) de um dado espaço geográfico politicamente delimitado (COSTA; F.
A.; CARVALHO, H. M., 2012, p.115).

636
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nesse contexto, a agricultura familiar é descrita:

Para Neves (2012a, p.34), O termo agricultura familiar corresponde a múltiplas


conotações. Apresenta-se como categoria analítica, segundo significados
construídos no campo acadêmico; como categoria de designação politicamente
diferenciadora da agricultura patronal e da agricultura camponesa; como termo de
mobilização política referenciador da construção de diferenciadas e
institucionalizadas adesões a espaços políticos de expressão de interesses
legitimados por essa mesma divisão classificatória do setor agropecuário brasileiro
(agricultura familiar, agricultura patronal, agricultura camponesa); como termo
jurídico que define a amplitude e os limites da afiliação de produtores (agricultores
familiares) a serem alcançados pela categorização oficial de usuários reais ou
potenciais do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf) (decreto nº 1.946, de 28 de junho de 1996). [...] Pela legislação específica
(decreto nº 1.946, de 28 de junho de 1996, lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006,
especialmente artigo 3º, e demais instrumentos que vão adequando os
desdobramentos alcançados e incorporados): agricultor familiar é o que pratica
atividades no meio rural, mas se torna sujeito de direitos se detiver, a qualquer
título, área inferior a quatro módulos fiscais; deve apoiar-se predominantemente em
mão de obra da própria família e na gestão imediata das atividades econômicas do
estabelecimento, atividades essas que devem assegurar o maior volume de
rendimentos do grupo doméstico.

A legislação brasileira impõe aos agricultores familiares uma demarcação de espaço


para o cultivo e manejo de seus produtos, diferentemente do camponês que não tem essa
mesma delimitação. Há uma divergência no tamanho dos módulos, já que o Brasil é um país
de proporções continentais, o tamanho do módulo fiscal se torna um pouco contraditório, pois
cada município possui tratamento jurídico diferenciado. O módulo é uma unidade de medida
agrária familiar variável conforme cada região, exprimindo uma interdependência entre a
dimensão, a situação geográfica e a forma de aproveitamento econômico do imóvel (REZEK,
2007, p.66).
Para o campesinato, a terra é uma herança, uma reprodução familiar pelas gerações
subsequentes. Wanderley (2003, p.56-57), descreve as diferenças estruturais dos dois
conceitos no Brasil. Não houve uma construção de um projeto em comum, o capitalismo
desenvolvido no setor agrícola brasileiro, antes ou depois do processo de modernização,
jamais se libertou de sua vinculação com a propriedade da terra. As várias lutas no campo, as
transformações sociais e tecnológicas ampliaram uma visão em que os camponeses e seu
modo de vida não se adaptariam as essas novas condições de plantio de larga escala. Com
isso, nos anos 70, por ocasião do processo de modernização, denominado Revolução Verde,
os camponeses não foram convocados para participar desse projeto da agricultura, sob o
argumento tautológico de que eram tradicionais e avessos ao progresso. Para eles, os

637
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

agricultores familiares adaptariam melhor ao estilo mercadológico e automatizado, nas


orientações técnicas de manejo da terra, pois estariam sob as orientações de especialistas
agrícolas no desenvolvimento do seu plantio, entretanto essa classe de trabalhadores, lutou
para que a captação das políticas públicas alimentares fizessem parte da sua sobrevivência.

O saber tradicional dos camponeses, passado de geração em geração, não é mais


suficiente para orientar o comportamento econômico. O exercício da atividade
agrícola exige cada vez mais o domínio de conhecimentos técnicos necessários ao
trabalho com plantas, animais e máquinas e o controle de sua gestão por meio de
uma nova contabilidade. O camponês tradicional não tem propriamente uma
profissão; é o seu modo de vida que articula as múltiplas dimensões de suas
atividades. A modernização o transforma num agricultor, profissão, sem dúvida,
multidimensional, mas que pode ser aprendida em escolas especializadas e com os
especialistas dos serviços de assistência técnica (WANDERLEY, 2003, p.46).

O agricultor familiar, construiu sua própria história nesse emaranhado campo de


forças que vem a ser a agricultura e o meio rural inseridos em uma sociedade moderna. O que
o faz recorrer à sua própria experiência (camponesa) procurando adaptar-se, como já foi dito,
às novas “provocações” e desafios do desenvolvimento rural (WANDERLEY, 2003, p.58).

Na última década do século XX, o conceito de agricultura familiar é proposto por


alguns autores como substituto para o de camponês enquanto conceito-síntese e
aceito sem maiores reflexões por muitos, seja na academia, na burocracia do
Estado, ou também entre os próprios agricultores, seus sindicatos e movimentos
sociais. Essa substituição se dá com base na adoção de uma abordagem
evolucionista sobre o desenvolvimento da história e contribui para o
empobrecimento do debate político em torno da questão agrária. Diferentemente do
que ocorreu com o conceito de pequena produção, que aparece de forma articulada
ao de camponês em algumas situações, o emprego do conceito de agricultura
familiar passa pela afirmação de sua diferença em relação ao de camponês, que não
mais se aplicaria às novas realidades criadas a partir do desenvolvimento do
capitalismo na agricultura (MARQUES, 2008, p.61).

Neves (2005b, p.23) descreve também o termo agricultura familiar como um


segmento de produtores modernos integrados ou tecnificados ao mercado pela especialização
e sob uso intensificado de instrumentos de trabalho concebidos pela lógica industrial. No
contexto de lutas políticas, essa categoria se utiliza dessa definição jurídica para o acesso de
políticas públicas construídas para essa classe, com o aval de certos intelectuais, políticos,
sindicalistas articulados pelos dirigentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (Contag).

638
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Dentro dessa mudança ideológica, conceitual e cultural num cenário de lutas e


resistências, o agricultor familiar e o camponês labutam por melhores condições no campo,
pelo seu espaço e por uma vida digna para suas famílias.

RESULTADOS ALCANÇADOS

Essa releitura dos fatos históricos sobre o campesinato, a agricultura familiar, as


repressões aos movimentos políticos e sociais não se esgotam por aqui. São inúmeras
questões e problematizações. A partir de processos reais das contradições a história se
redesenha, em diferentes lugares de reconstrução e da valorização de uma gama de fontes de
informações e de linguagens. Um país pode, por exemplo, reconstruir a visão sobre seu
próprio mapeamento, certamente inacabado nos ajudam a compreender a singularidade da
resistência do homem do campo, sua luta por terra e por direitos, que traz em si toda sua força
e resistência pelas transformações democráticas do campo e em seu país.

CONCLUSÃO

A riqueza das mobilizações, as pesquisas no campo, os relatos, os movimentos de


massa, formam-se nas coletividades autônomas e criativas. Como força política própria,
constroem um novo Brasil e um novo mundo. Tanto o campesinato, quanto os agricultores
familiares, apesar de terem um mesmo modo de identificação de luta de classes, representam
cada um, formas de reprodução social, econômica e cultural articuladas por grupos
heterogêneos, que pelejam pelo direito de posse da terra. Eles possuem histórias e contextos
econômicos diferentes, sejam sociais ou políticos. Apresentam novos paradigmas, nos quais
sugerem uma maior e mais democrática aplicação e distribuição de políticas públicas. Por isso
e por todas as questões envolvidas nessa discussão, este tema se torna fundamental nos
tempos atuais.
Agricultura Familiar
Chico Antônio

Alguém já disse que a enxada só presta


Para “puxar cobra pros pés” do produtor
Mas é com ela e a semente que germina
Que faz a planta dar a fruta, pão e flor

639
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Pois acredite também que o que resta


Fauna, flora, água, solo e o que for
São tratados com carinho e destreza
E o alimento da mesa tem a mão do agricultor

Para cuidar não é preciso usar veneno


Pois o agrotóxico adoece o cidadão
O camponês aprendeu desde pequeno
Que o excedente da sua alimentação
Vai para a economia solidária
Sanar a fome de toda a nossa nação

E o agronegócio produz com suas máquinas


Mercadorias para a exportação

O lavrador diversifica sua roça


Cultivando a agroecologia
Produz verdura, feijão, arroz e farinha
Peixe, carne e galinha
Que consome todo o dia

Para o café, o almoço e o jantar


E para a nossa segurança alimentar
Vamos viver, vamos beber, vamos comer
Produtos da agricultura, agricultura familiar
Canta tudo outra vez

REFERÊNCIAS

ANTÔNIO, Chico. Agricultura Familiar. Intérprete Chico Antônio. Moçambique, 2012 (5 min. 53 segs.).
Disponível em: <https://www.letras.mus.br/chico- antonio/agricultura-familiar/>. Acesso em 17 set. 2017.

BADCOCK, Sarah. Blog da Boitempo. As revoluções camponesas de 1917: na Rússia de 1917, o povo rural
comum tomou ação direta para transformar sua realidade. Especial Revolução Russa. Disponível em:
<https://blogdaboitempo.com.br/2017/09/12/a-revolucao-dos-camponeses-de-1917-especial-revolucao-russa/>.
Acesso em: 21 set. 2017.

CARNEIRO, Ana. Retrato da Repressão Política no Campo: Brasil 1962-1985 - Camponeses torturados, mortos
e desaparecidos. Brasília: MDA, 2010. 360p. Disponível em:
<http://dh.sdh.gov.br/download/dmv/retrato_da_repressao.pdf>. Acesso em: 13 set. 17.

COSTA, Francisco de Assis Costa; CARVALHO, Horácio Martins de. Verbete: Campesinato. In: CALDART,
Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.) Dicionário da
Educação do Campo. Verbete Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
Expressão Popular, 2012.

640
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

COGGIOLA, Osvaldo. Novamente, a revolução francesa. Projeto História, São Paulo, n. 47, p. 281-322, ago.
2013.

FERNANDES, Bernardo Mançano. Teoria e política agrária: subsídios para pensar a educação do campo. I
Seminário do PRONERA, Vitória, 1 de outubro de 2004. Disponível em:
<http://web2.ufes.br/educacaodocampo/down/cdrom1/i_04.html>. Acesso em 13 set. 2017.

MARQUES, Marta Inez Medeiros. A atualidade do uso do conceito de camponês. Revista Nera, ano 11, n. 12,
jan. /jun. 2008. Disponível em: <http://www.reformaagrariaemdados.org.br/sites/default/files/1399-4032-1-
PB.pdf>. Acesso em: 25 set. 2017.

MOVIMENTO CAMPONÊS POPULAR QUEREM APOIO PARA AGRICULTURA FAMILIAR. MPA e o


Plano Camponês. (04 min. 56 segs. 4.53 MB). Disponível em: <http://nixmp3.com/bajar/movimento-
campones-popular-querem-apoio-para-agricultura-familiar-musica.html>. Acesso em 17 set. 2017.

NATIVIDADE, Melissa de Miranda. A questão agrária no Brasil (1961- 1964): uma arena de lutas de classe e
intraclasse. 168 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1725.pdf>. Acesso em:12 set. 2017.

NEVES, Delma Pessanha. Verbete: Agricultura Familiar. In: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil;
ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.) Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro,
São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012a. p. 34-40.

______. Verbete Agricultura Familiar. In: MOTTA, Márcia (org.). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005b. p.23-24.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro o processo de produção do capital. Tomo 2
(capítulos XIII a XXV). São Paulo: Nova Cultural, 1996. 394 p. (Os Economistas). Disponível em:
<http://www.gepec.ufscar.br/publicacoes/livros-e-colecoes/marx-e-engels/o-capital-vol-2.pdf/view>. Acesso
em: 17 set. 2017.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos
Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, 21, Outubro, 2003: 42-61. Disponível em: <http://wp.ufpel.edu.br/leaa/
files/2014/06/Texto-6.pdf>. Acesso em: 22 set. 2017.

641
Grupo de Trabalho 09

ARTE E LITERATURA
EM CENÁRIOS SOCIOJURÍDICOS

dcxlii
O DIREITO E SUAS NECESSÁRIAS INTERAÇÕES
COM A LITERATURA E A TECNOLOGIA

SANTO, Letícia Alonso do Espírito


Estudante do Programa de Mestrado em Direito e Inovação da Universidade Federal de Juiz de Fora.

RESUMO

O presente trabalho pretendeu analisar a relação do Direito com a Literatura e as inovações


tecnológicas, avaliando a influência que é exercida, de forma recíproca, entre essas temáticas para a
criação das leis. Primeiramente foi traçado um paralelo sobre as maneiras com que esses diferentes
sistemas fundamentalmente distintos evoluem, ressaltando os diferentes ritmos com que as mudanças
ocorrem em cada um deles. Após essa análise inicial, pretendeu-se debater acerca da influência mútua
que é exercida entre os sistemas. O estudo almejou examinar se a linguagem e as inovações
tecnológicas influenciam o Direito ou se a legislação e a jurisprudência podem ditar os rumos da
literatura e da tecnologia. Dessa forma, foi verificada a existência ou não de uma integração entre
Direito e Literatura, e o nível de integração existente entre os sistemas, com embasamento no texto do
autor François Ost, “El Reflejo Del Derecho En La Literatura”.

Palavras-Chave. Tecnologia, Direito, Literatura.

ABSTRACT

The present work had as objective to analyze the relation between Law and Literature and
technological innovations, evaluating the influence that is exerted, of reciprocal form, between these
subjects for the creation of laws. First, a parallel was drawn on the ways in which these different
fundamentally distinct systems evolve, highlighting the different rhythms with which changes occur in
each of them. After this initial analysis, it was intended to discuss the mutual influence that is exerted in
each system. The study aimed to examine whether linguistic and technological innovations influence
the law or whether legislation and jurisprudence can dictate the directions of literature and
technology. Thus, it was verified the existence or not of an integration between Law and Literature and
the level of integration between the systems based on the text of the author François Ost, "The
Reflection of the Right in the Literature".

Keywords. Technology, Law, Literature.

643
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Em uma análise superficial, é certo que Direito, Linguagem e Tecnologia são áreas
que abordam ramos notoriamente diversos do estudo científico, possuindo poucas
características em comum e diferentes formas de construção. E, ainda hoje, são estudadas e
concebidas de forma isolada, sem que haja esforço de integração de seus sistemas de
estruturação.
O presente e preliminar estudo se desenvolveu diante da percepção de que há
necessidade que seus estudos e desenvolvimentos sejam integrados, porque a pouca
integração entre elas é prejudicial aos seus próprios aprimoramentos e adequação social.
Partiu-se da ideia de pensar um estudo ou uma ciência multidisciplinar, cujo qual
tem como proposta aliar os sistemas, integrando-os, o que visa colaborar com suas respectivas
evoluções. Logo de início já foi possível vislumbrar o surgimento de novas disciplinas e
grupos de estudo, que propõem efetivar essa ligação constante entre os diferentes ramos,
como, por exemplo, um estudo do livro “Crime e Castigo”, do escritor russo Fiódor
Dostoiévski, e sobre como as câmeras de vigilância podem auxiliar na prevenção e repressão
aos crimes.
Com relação às tecnologias, quase impossível negar que há uma interação delas com
o Direito e que essas interações ocorrem de maneiras distintas, podendo os recursos
tecnológicos servirem de auxílio à resolução dos conflitos, mas também se valem do Direito
para regulamentar o seu uso ou proteger seus dados – como nos casos de propriedade
intelectual relacionado a novos programas e aparelhos, por exemplo.
Já no que tange ao Direito e a Literatura, esta consiste em uma maneira do Direito
compreender a razão prática, ao passo que a literatura perpassa a mera retórica judicial,
alcançando questões fundamentais de justiça e poder.
Considerando a obra de François Ost, “El Reflejo Del Derecho em La Litertura”, e
de Austin Sarat, Cathrine O. Frank, e Matthew Anderson, “Teaching Law and Literature”,
bem como as aulas ministradas pelo professor Vicente Riccio na disciplina “Direito, Mídia e
Construção Social do Justo”, do Mestrado em Direito e Inovação da Universidade de Juiz de
Fora, se desenvolveu um estudo balizado na compreensão da inter-relação dos ramos e a
necessidade de entender como ocorre a integração multidisciplinar.

644
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Com base no referencial teórico supramencionado, se torna viável analisar os pontos


de integração, o que se pretende fazer de maneira dedutiva, pois o estudo não pretende avaliar
casos específicos e, sim, compreender a influência exercida entre os sistemas em pauta.

1. EVOLUÇÃO E INTERAÇÃO DO DIREITO

Uma característica notória do Direito é seu fim sociológico, de pacificação social.


Ele organiza toda a dinâmica coletiva, tanto as questões pessoais dos indivíduos quanto as
organizações públicas e privadas. Há um embasamento principiológico do ramo, cujo qual é
necessário para que haja respeito e probidade nas relações entre as partes de uma demanda.
Hodiernamente, de forma superficial, é possível dizer que cada nação adota uma
metodologia diferente para gerenciar seus conflitos e estabelecer diretrizes de convivência,
sendo mais destacáveis as que advém do sistema romano-germânico e o modelo da Common
Law. O ordenamento jurídico brasileiro tem suas raízes no sistema romano-germânico, que se
funda em normas compiladas em leis e códigos, ou seja, a principal fonte jurídica é a norma
escrita.
Nos países de Common Law, a principal fonte do direito são as decisões emitidas
pelos tribunais referentes a algum caso em concreto. Apesar de haver normas escritas
dispondo sobre princípios gerais, essas leis escritas tem uma importância mitigada, sendo
apenas uma diretriz básica. A formação do Direito, nesses sistemas, se dá no deslinde do caso.
Independentemente do viés adotado pelo país, os diferentes tipos de ordenamento
jurídico têm suas evoluções correlacionadas aos contextos históricos vivenciados e as
mudanças sociais ocasionadas, bem como a própria definição do sistema legal preponderante.
Os novos costumes, as novas possibilidades de vida, conforto e acesso ao conhecimento, são
alguns dentre tantos outros fatores que desencadeiam a construção de um novo Direito,
tornando o até então prevalente obsoleto.
Nos sistemas em que a lei é fonte norteadora a sua alteração deve obedecer maior
trâmite, sendo um sistema mais engessado no que tange à possibilidade de mudanças e
acompanhamento dos novos valores e das novas tecnologias. Já nos sistemas de origem
anglo-saxônica, a atualização jurídica é muito mais ligada aos novos casos que vão ser
apresentados perante o juízo.

645
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Fato é que toda nação possui seu formato de Direito, o qual terá desenvolvimento ou
alteração mais facilitada ou mais burocrática, mas, da mesma forma que as sociedades
evoluem, as normas também sofrem mutações para acompanharem – ou tentarem
acompanhar – as novas formas de expressão, composição e inovação da coletividade que visa
regular.
A doutrina e a jurisprudência, mesmo em países de Civil Law, denotam, cada vez
mais, seu potencial para impulsionar mudanças, almejando tornar o Direito aplicado eficaz. A
evolução pode ser lenta, mas ocorre, e os fatores de inovação, assim como os de reflexão, são
essenciais à formação de um novo contexto ensejador de atualizações.

1.1. A REFLEXÃO ENSEJADA PELA LITERATURA:

O ensino jurídico se conecta com o real e é formado em consonância com a vontade


social e política de uma determinada comunidade, mas nem sempre se coaduna com o ideal
de justiça prevalente naquele contexto, tendo em vista que as letras da lei podem se
demonstrar desatualizadas ou injustas em certos casos. Mormente após o final da 2ª guerra
mundial, houve maior clamor pela interpretação do Direito com uma linguagem em que
prepondere o ideal de justiça, uma textura mais aberta do Direito, voltada ao contexto em que
se aplica e obedecendo uma série de garantias.
A Literatura acompanha o contexto e o modelo histórico, ela vai sendo construída ao
longo dos anos, estando sempre sujeita e aberta às mudanças e novas reflexões. Ela não
pertence a um ramo fechado e direcionado a apenas uma área científica e, sim, é construída de
acordo com que vivencia ou acredita os diversos autores, o que a dota de ambiguidades e
possibilidade de alcance das mais diversas situações.
A Literatura permite ir além, o que se relaciona com a aplicação garantista da lei,
segundo a qual as normas devem estar em constante revisão e aprimoramento. E, como já
assinalado introdutoriamente, o conhecimento compartilhado ou multidisciplinar é o mais
apto a permitir a inter-relação das disciplinas, ele facilita o acréscimo de inovações, o que
permite maior abertura das diretrizes jurídicas. A Literatura possui a habilidade de refletir a
cultura, o que fornece meios para a correção da dogmática.
É necessário que o Direito pare de reprimir sua própria retórica e se aproxime das
criações sociais e culturais. O estudo da Literatura em conjunto com o do sistema jurídico
torna notório o valor de uma cultura crítica da lei, pois a primeira contribui para a formação

646
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de realidades culturais que funcionem no momento de construção e aplicação das normas. O


Direito e a Literatura, uma vez estudados em conjunto e como iguais, são capazes de produzir
discursos e redefinir o que vale como norma imposta, considerando que a lei é composta por
múltiplas tradições e interesses.
O Direito constitui uma atividade do raciocínio e da linguagem, ele codifica a
realidade a partir da organização e compilação de pressupostos acordados entre os sujeitos de
determinada sociedade, sendo que esses pressupostos vão acarretar na imposição de limites e
sanções. Ao revés, a literatura é aberta às possibilidades de reflexão, não se atém às
convenções e nem está adstrita às situações estereotipadas, o que a permite se renovar de
diferentes formas.
O exercício dialético entre esses ramos de estudo permite uma criação
transformadora. Toda a sociedade se encontra imersa em diretrizes normativas e estas são
emergidas da Literatura, que é seu meio refletor. Essas criações são institucionalizadas, o que
acarreta a formação ou alteração do Direito, passando a impor certas obrigações por meio de
determinadas autoridades. A criação literária baliza a revisão de ideias e reexame de valores,
consubstanciando-se em um incentivo para conhecer e aprimorar a razão prática.
A evolução do Direito precisa ser constante, não se coadunando com a natureza
imutável e rígida da lei, já que fruto de uma criação cultural, uma deliberação finita ou
modelos pré-estabelecidos. A ideia democrática requer que o ordenamento jurídico se assente
no exercício de uma liberdade responsável, caso contrário, se tornaria uma espécie de
opressão. Disto advém a necessidade da relação constante com a Literatura, tendo em vista
que esta demonstra os liames de uma instituição e as possíveis distorções que podem ocorrer.
Uma decisão justa, em um determinado momento e contexto, pode se tornar injusta
a posteriori, uma vez que a dinâmica social é mutável. Em um Estado Democrático de
Direito, a concepção de justiça tem que estar aberta ao debate, o que possibilitará revisões e
ponderações.

1.2. A REFLEXÃO ENSEJADA PELA TECNOLOGIA

As modernas tecnologias permitem que pessoas de qualquer parte do mundo


possam trocar informações e realizar pesquisas de maneira rápida e cômoda, pois o acesso
pode se dar em qualquer local, sendo raras as exceções de locais que não possuem pleno
acesso.

647
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A popularização da internet acarretou um desenvolvimento tecnológico


incomensurável nos diversos setores e segmentos existentes. Inovações tecnológicas, antes
tidas como ilusórias ou pertencentes apenas às criações cinematográficas, estão sendo
incorporadas ao cotidiano social.
As inovações se incorporaram à nossa rotina de forma veloz e têm se tornado
essenciais em todos os ramos de estudo, o que nos faz vivenciar a chamada “Era da
Informação”. Essa agilidade, peculiar dos meios de inovação, destoa consideravelmente da
forma com que evoluem os sistemas jurídicos, pois a evolução deste é lenta e gradativa.
O avanço tecnológico no Direito tem progredido cada vez mais rápido, mas há
verdadeiro despreparo da lei em abordar e recepcionar os novos recursos. A forma de
produção e a incorporação ao processo requer um pensamento diferenciado, uma
compreensão além da mera técnica de aplicação normativa. Os recursos tecnológicos já
existentes permitem um amplo controle dos indivíduos pelo Estado, mas este ainda não
conseguiu delimitar até onde pode-se permitir esse manejo pelo ente público.
Há uma série de garantias no ordenamento jurídico que vedam violações à
privacidade dos sujeitos, sendo a cultura jurídica vigente determinante no tratamento dessa
incorporação, se vai ser mais incisiva ou não. Nos países de Common Law, em que o Direito é
construído a partir dos casos levados aos tribunais, existe maior abertura às novas situações.
Mas, no que concerne aos países de Civil Law, é difícil conceber a utilização de um recurso
inovador que esteja colidindo com uma lei ou com um princípio. Ambos os sistemas possuem
dificuldade de acompanhar os progressos tecnológicos, até pela natureza tão distinta da lei,
que requer vinculação à um mínimo de garantias, mas os de tradição romano-germânica se
encontram mais limitados.
É indubitável que a tecnologia possibilita maior proximidade entre o Estado e os
cidadãos, o que reforça o ideal democrático, consistindo em um meio de garantir
transparência e controle dos atos dos administradores e agente públicos. Incorporação de
sistemas como, por exemplo, o processo judicial eletrônico, representa uma necessidade da
sociedade moderna, na qual se preconiza facilitação do acesso, independentemente do local
em que se reside. Não obstante, os recursos tecnológicos não caminham simultaneamente
com o universo jurídico.
Impulsionado pelo exponencial crescimento tecnológico que se populariza cada vez
mais, o Direito precisou ceder ao uso de novos recursos, como a videoconferência, que vêm

648
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sendo utilizada para oitiva dos envolvidos em um processo, sejam eles partes ou testemunhas.
Os casos judiciais em que são utilizados recursos tecnológicos também têm crescido, embora
ainda haja notória resistência por parte dos operadores da lei.
A utilização das inovações nos casos judiciais não tende a diminuir, pelo contrário, a
tendência é que sejam mais valorizados no processo como lastro probatório ou meio de
obtenção de provas. Existe uma inevitabilidade de que as provas obtidas por meio de
inovações, como vídeos, gravações sonoras e coisas do gênero, repercutam de forma mais
intensa na formação da opinião do espectador, e essa repercussão precisa ser analisada de
maneira crítica e objetiva, para que a incorporação ao sistema judicial não abale as garantias
constitucionalmente asseguradas às partes envolvidas. No presente trabalho não se pretendeu
desenvolver essa temática, servindo apenas para demonstrar que a incorporação tecnológica
também requer estudo e regulamentação – devendo haver dinamicidade nesse processo.
Os desafios lançados ao Direito envolvem não só a imprescindibilidade de
incorporação das ferramentas tecnológicas, o que demanda repensar conceitos jurídicos, mas,
também, regulamentar o desenvolvimento dessas inovações e seus limites de alcance. A
integração entre os sistemas enseja dificuldades, considerando as diretrizes do texto legal e a
dinâmica veloz das inovações. Talvez uma das maiores dificuldades seja entender que, para
que haja integração, deve ocorrer verdadeira mudança e não mera incorporação dos recursos
na aplicação das normas atuais, pois serão conflitantes. O Direito deve ser repensado como
um todo, para que haja recepção dos meios tecnológicos, de modo que se evite o dissenso
entre os doutrinadores e aplicadores.
Antigos conceitos jurídicos devem ser repensados para que se crie um novo formato
de processo, o qual se coadune com a inserção de recursos tecnológicos e abarque a própria
regulamentação do uso das tecnologias. Sem uma reforma substancial não é possível haver
uma integração eficiente entre os ramos. O Novo Código de Processo Civil Brasileiro se
propôs a algumas mudanças, mas manteve uma concepção engessada, pois o estudo para a
sua criação não foi multidisciplinar, tendo apenas focado nas normas já existentes e
reformulações pouco significativas ao ramo tecnológico.
É de extrema importância um estudo multidisciplinar para que exista a integração
entre os sistemas jurídico e tecnológico, uma vez que o Direito se forma pelo clamor social e
o contexto vigente, sendo inegável que a popularização das tecnologias torna imprescindível
sua incorporação.

649
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Tecnologia e Direito são áreas de estudo intrinsecamente divergentes, possuindo a


primeira uma natureza propensa a mudanças, pois sua forma peculiarmente dinâmica enseja
mutações frequentes. Já a segunda é um ramo que se funda e desenvolve à medida que existe
um clamor social ou um contexto político propício a alteração, não havendo uma propensão à
mudança. Entretanto, as inovações proporcionadas pelas inovações foram tamanhas que é
impossível pensar em não as utilizar nas outras disciplinas, principalmente, a jurídica.
O diálogo entre os ramos deve ser frequente e de maneira pormenorizada, sempre
almejando o ideal de justiça. O Direito é o meio apto a assegurar que o desenvolvimento
tecnológico se estabeleça de acordo com parâmetros éticos, ou seja, que a evolução se
construa sem ofensa aos princípios norteadores da sociedade e, por conseguinte, da lei. Ao
passo que a tecnologia permite e fomenta a atualização jurídica.

2. BENEFÍCIOS DE UM ESTUDO MULTIDISCIPLINAR

Os estudos e pesquisas sobre a interação entre Direito e Literatura no Brasil ainda


são muito recentes, bem como sobre as possibilidades do estudo interdisciplinar. A
interdisciplinaridade pode, além de melhorar a técnica de cada ciência, pode conferir
efetividade a instrumentos de solução dos conflitos sociais.
O ensino jurídico precisa estar sempre em evolução, contudo, o que se averigua nas
faculdades é um ensino cada vez mais doutrinador e pouco crítico. O Direito vem sendo
construído através de um senso comum sobre situações pré-determinadas, não indo além em
suas possibilidades, muito menos refletindo sobre as possibilidades de fundamentação e
compreensão das lides.
Nesse sentido, crítica Lênio Streck:

(...) essa falta de aderência teórica se origina na produção rasa de conhecimento


jurídico, no ensino plastificado do Direito. Em outras palavras, cada vez mais o
direito está sendo reduzido a resumos plastificados e aos chamados manuais de
direito, auxiliando os juristas a desenvolver uma representação precária e limitada
sobre o que é o direito e a sua integração à sociedade” (STRECK, 2008, p. 77-80).

O paradigma jurídico-dogmático precisa analisar a sociedade em que se encontra


inserido e que pretende exercer função reguladora, haja vista que os postulados acadêmicos
não conseguem retratar todas as formas de convivência e conflitos sociais. Uma matriz

650
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

curricular rígida e conservadora não conseguirá formar profissionais críticos e humanos, o


que tem sido um problema crescente na área jurídica.
A Literatura passa a ter grande importância no ensino jurídico, uma vez que, por
possuir uma natureza mais abstrata, abrange mais situações e é construída através da
exploração de diversas áreas de conhecimento, o que possibilita e facilita a reformulação de
muitos pressupostos jurídicos.
Apesar do movimento de integração entre Direito e Literatura estar mais
consolidado nos países anglo-saxões, no Brasil já se propaga essa ideia. Alguns clássicos da
nossa Literatura abordam questões relevantes socialmente e que, por conseguinte, acabam
tendo reflexos no mundo jurídico. Temos a abordagem de questões como a marginalização, o
preconceito, a desigualdade, ausência do mínimo existencial, como, por exemplo, a obra
Capitães da areia, de Jorge Amado, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
A Literatura representa e reconstrói o convívio social, retratando a realidade e a
orientando. Apesar disso, ainda há certo preconceito com sua utilização no mundo jurídico,
sobre até que ponto essa ciência pode influenciar na formação do cidadão e na compreensão
dos seus atos. Mas, certo é que há um papel importante de adequação social, que desperta a
sensibilidade do leitor ao criar um juízo crítico. A criação de indivíduos críticos, por si só, já é
um importante instrumento para alcance de melhorias socioculturais.
A interação entre as ciências, no caso o Direito e a Literatura, favorece que os juízes
criem juízos críticos mais articulados, mais suscetíveis a novas possibilidades e não se
vinculem a uma solução sempre óbvia e nem sempre justa. A literatura auxilia na solução dos
litígios, pois amplia a visão acerca das possibilidades de aplicação do Direito. Conforme
salientam TRINDADE e GUBERT (2008, p. 43):

(...) a imaginação literária possibilita o resgate da singularidade e das nuanças do


mundo da vida, pois ela aproxima o sujeito das situações de qualquer um que é
diferente de si, na medida em que o leitor admite (re) conhecer, mediante uma
representação concreta, o valor da dignidade humana e as necessidades daqueles
que com ele vivem. A imaginação literária deve, portanto, ser entendida como “um
componente essencial de uma posição ética que nos exige a preocupação com o
bem das outras pessoas, cujas vidas encontram-se distantes da nossa. ”

É importante que os aplicadores do Direito também sejam dotados de humanidade e


não só conhecimentos processuais esquematizados e técnicos. A doutrina molda a práxis e
também a contesta, e a Literatura reconstrói sentidos, se desfazendo de estigmas e repressões,

651
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

a soma dos estudos dessas duas ciências possibilita novas formas de ver o Direito e, também,
novos modelos de construções literárias.
A Literatura também pode ser considerada uma fonte de conhecimento jurídico,
assim como são os costumes, porque ela retrata o que já foi vivenciado ou está sendo vivido
em uma determinada época e em um local específico. Afora o fato de que muitas obras
literárias vão além do seu tempo, explorando situações que um dia poderão se tornar um
conflito fático e judicial.
Enquanto o Direito figura como uma ciência mais fechada, a Literatura tem como
característica ser ampla, aberta a visões de mundo completamente diferentes, o que incita o
sujeito que está envolvido em sua trama a sentir empatia aos personagens. O leitor consegue
vivenciar novas situações e, assim, se posicionar sobre aquela situação retratada após uma
reflexão palpável.
A construção de uma formação mais crítica é importante para o ensino jurídico, pois
isso vai além de um auxílio ao desenvolvimento crítico dos indivíduos, isso toca questões de
justiça e equidade. O Direito deve ser dotado de estudos mais aprofundados para que não se
torne uma ciência superficial e distante da realidade em que esteja inserido.
No que concerne ao uso das tecnologias, o profissional da área jurídica necessita
desenvolver habilidades na área tecnológica, pois as exigências estão maiores, não basta mais
apenas saber digitar, é preciso entender um pouco das configurações dos sistemas. Isto ficou
claro a partir da implantação dos processos jurídicos eletrônicos, que são meios facilitadores
(pois permitem acesso à distância) e também complicadores para quem não se adaptou aos
meios digitais.
O número de analfabetos digitais é grande, o que tem como um dos fatores o
conflito de gerações, pois alguns se negam a aderir à realidade digital da comunidade ou ainda
possuem um acesso precário, outros sequer entendem como pode se dar o uso de provas de
vídeo, áudio e etc – o que na verdade ainda gera dúvidas em todo o meio jurídico, seja ele
acadêmico ou relacionado à práxis -. As mudanças, mesmo que positivas pela facilitação do
acesso e da ampliação dos meios probatórios, ainda gera dificuldade de adaptação e
obstáculos que precisam ser superados pelo Poder Judiciário.
Os cursos jurídicos estão carentes de disciplinas que considerem a exclusão digital,
bem como promovam um estudo mais profundo sobre as provas no processo. É cada vez
maior o número de casos envolvendo contratos via telemarketing, crimes virtuais, flagrantes

652
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

registrados em vídeos, e muitos desses temas ainda não estão devidamente ou suficientemente
regulamentados pelo legislador.
É necessário que os aplicadores do Direito priorizem a inserção dos aparatos
tecnológicos, renovando suas posturas e se abrindo aos novos meios e possibilidades, com o
fito de dinamizar a tramitação dos processos, para que a justiça se torne eficaz, garantindo o
acesso à justiça, à igualdade, a informação e, como consequência, teremos a consolidação da
Democracia.

CONCLUSÃO

Um dos principais pressupostos do Direito é propiciar e garantir a Democracia em


uma comunidade política e, uma vez tido como inerente à Democracia, ele é essencial ao
desenvolvimento. A Democracia é a forma de organização que proporciona a emancipação
social, assegurando o respeito às diferenças e o desenvolvimento livre das capacidades
individuais.
A concepção do Direito como um limite ético é fruto de uma compreensão cultural,
enraizada e criada não pelo meio jurídico, mas por toda a coletividade. A própria criação e
evolução do Direito é fruto de uma criação cultural, sendo exigido pela ideia democrática que
o ordenamento jurídico se assente no exercício de uma liberdade responsável. Destarte, disso
advém a imposição de uma relação constante com a Literatura, como já mencionado, tendo
em vista que é ela que torna possível estabelecer os liames de uma instituição e as possíveis
distorções que podem ocorrer.
No que tange aos recursos tecnológicos, é preciso compreender que o Direito e a
Tecnologia integram uma mesma cultura, apesar de possuírem ritmos diferentes de
transformação. Os meios inovadores alteraram a dinâmica social, logo, são parte do Direito, o
influenciando diretamente. O que se torna evidente é que os avanços tecnológicos não podem
ser subjugados a leis imutáveis ou engessadas, o conteúdo jurídico deve refletir as inovações,
integrá-las ao seu estudo. É dever do Estado auxiliar que a norma acompanhe o progresso
tecnológico, bem como regulamentá-lo.
O que se vive atualmente é a chamada “era digital” e a evolução não cessa. Com
essa nova dinâmica, outros modos de litígio surgem sem possuir soluções pré-estabelecidas
no ordenamento, sendo um requerimento atual que a antiga sistemática seja transformada,

653
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pois não é mais condizente ao novo contexto. Afora o fato de que o trâmite para elaboração
ou alteração de uma norma não é apto, regra geral, a acompanhar de forma adequada o
desenvolvimento tecnológico e suas constantes transformações, ficando o ordenamento
jurídico, frequentemente, em falta para com a sociedade.
O Direito, como instrumento de gestão do convívio social, serve para pacificar e
organizar o espaço público, necessitando, portanto, ser reflexo das demandas da sociedade em
que se encontra inserido. Ele representa a expressão da vontade social, não estando, portanto,
submetido a conceitos imutáveis, pelo contrário, precisa se adequar aos avanços.
De tudo que fora exposto, resta claro que a inter-relação do Direito com a Literatura
e as tecnologias é algo intrínseco à sua própria natureza, porquanto ambas lhe permitem se
atualizar e se manter alinhado aos valores da comunidade. Para que isso se torne real, deve o
Poder Público incentivar a integração desses ramos científicos, criando e exigindo a
incorporação de disciplinas multidisciplinares nas grades curriculares, fornecendo incentivos
para que as empresas e o ordenamento possam estabelecer acordos voluntários de
desenvolvimento e regulamentação das tecnologias, enfim, promover estudos
interdisciplinares.
Destarte, se faz necessária a criação de meios que garantam maior eficácia das
diretrizes jurídicas e integração das tecnologias ao mundo jurídico, para que representem,
efetivamente, a vontade social.

REFERÊNCIAS

OST, François. El Reflejo Del Derecho En La Literatura. Doxa, Cuadernos de Filosofía del Derecho, 2006, 29, p.
333-346.

SARAT, A.; FRANK, C.; ANDERSON, M. Teaching Law and Literature. New York, Modern Language
Association, 2006.

STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. 2 ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008.

TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas
para se pensar o direito. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães (Orgs.). Direito &
Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

654
ORDEM E DESORDEM NA FRONTEIRA DO DESERTO:
A NARRATIVA DE BREAKING BAD E
AS TRANSGRESSÕES MORAIS.

MADEIRA FILHO, Wilson


Professor da Universidade Federal Fluminense
DIAS, Fabricio de Barros Seraphim
Mestre pelo Programa de Sociologia e Direito da UFF
SANTOS, Rayanne Monteiro de Andrade
Estudante da graduação em Direito da Unisuam

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo a análise da narrativa do seriado Breaking Bad, do canal de
televisão por assinatura AMC, criado por Vicent Gilligan utilizando como contraponto conceitual
produções acadêmicas nacionais selecionadas que versam sobre análises pontuais de características da
sociedade brasileira, buscando estabelecer paralelos conceituais que aproximam as particularidades
existentes entre as representações arquetípicas dos personagens da série e a teoria que se conecta à
realidade brasileira. A complexidade narrativa do seriado, assim como o teor das obras nacionais aqui
selecionadas, permite uma coerente análise das representações e dos modelos utilizados no enredo do
seriado que revelam traços das contemporâneas configurações sociais do mundo ocidental. Como
método de análise destacamos pontos centrais da narrativa das cinco temporadas que compõem o
seriado, contrapondo os discursos e representações ali produzidos às teorias contidas nas obras
acadêmicas nacionais selecionadas. Como resultado, será esclarecido como os indivíduos
representados na narrativa do seriado se relacionam com as questões de ordem e desordem e como as
transgressões ocorrem numa configuração social contornada pela moral religiosa protestante.

Palavras-Chave. Breaking Bad, narrativa, ordem e desordem, utilitarismo.

ABSTRACT

The objective of this paper is to analyze the TV series Breaking Bad, from the cable TV channel AMC,
created by Vicent Gilligan, using as conceptual counterpoint selected national academic productions
that discuss punctual analyses characteristic of Brazilian society, in order to establish conceptual
parallels that approximate the existing particularities between the archetypal representations of
characters from the series and the theory that connects it to the Brazilian reality. The narrative
complexity of the series, as well as the tenor of the national works selected for discussion, allow for a
coherent analysis of representations and of the models utilized in the series plot that reveal traces of
the contemporary social configurations of the Western world. As method of analysis, we highlight
central narrative points of the five seasons that compose the series, contrasting the discourses and
representations there produced to the theories pertaining to the selected national academic works. As a
result, this paper explains how individuals represented in the narrative of that series relate to questions
of order and disorder and how the transgressions occur in a social configuration circumvented by the
protestant religious morals.

655
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Keywords. Breaking Bad, narrative, order and disorder, utilitarism.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo o exame da narrativa de Breaking Bad,


seriado criado por Vicent Gilligan e exibido pelo canal de televisão por assinatura AMC no
período compreendido entre janeiro de 2008 e setembro de 2013. O enredo do seriado gravita
ao redor da história da transformação de Walter White, um professor de química, dedicado
pai de família, que diante da descoberta de um câncer decide começar a produzir
metanfetamina para sustentar sua mulher e filhos, personagens inseridos num tardio sonho
americano, determinado pela lógica de consumo.
Do exame proposto, se depreende das primeiras cenas do seriado que os
personagens atuam num mundo de moral rígida, de imposições padronizadas, de restrições e
limitações generalizadas que atingem de igual modo a todos os indivíduos. As condutas dos
personagens são desdobramentos naturais das exigências morais e da ética peculiar de uma
sociedade cunhada pela austera educação protestante que moldou o caráter dos cidadãos
norte-americanos mediante o constante conflito entre a pureza e o pecado. Desta obsessão
pela moral temos que as transgressões à ordem historicamente imposta são punidas de modo
exemplar, tanto pelo aparato psicológico, interno, orientado pela culpa, quanto pelos
mecanismos externos, pelo aparato repressivo-punitivo estatal, valendo tais regras de
condutas para todos, sem qualquer espécie de tratamento desigual que privilegie um ou outro
em razão de qualquer condição que os possa diferenciar.
Todavia, a hipótese que aqui se apresenta, e que se deixa escapar da análise mais
aprofundada da narrativa da série, é a de que, para além do imenso apreço pela igualdade e
individualidade – a obsessão pela ordem - que a sociedade ocidental norte-americana prega
como preceito fundamental democrático, a necessidade de sobrevivência individual, em
alguns casos, empurra grupos de indivíduos para condutas desviantes, transgressivas que
operam de acordo com uma determinada lógica, de natureza utilitarista, orientada,
principalmente, pelo “Princípio da Maior Felicidade”1. As condutas dos indivíduos, postas

1
MILL, Stuart. Utilitarismo: Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Trad. Pedro Galvão. Porto: Editora
Porto Editora, 2005, p. 43.

656
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sob o olhar da ética utilitarista, obedeceriam a um cálculo individual racionalizado que


consideraria necessariamente os custos e benefícios de uma determinada ação, com a mira
apontada para o saldo líquido de prazer que pode ser proporcionado daquela performance.
Da análise da narrativa da série Breaking Bad e de posse de algumas produções
acadêmicas nacionais que versam sobre análises pontuais sobre características da sociedade
brasileira - que nos utilizaremos como marcos teóricos - buscaremos estabelecer paralelos
conceituais que aproximam as particularidades existentes entre a série e a teoria que se
conecta à realidade brasileira.
Para aprofundar a discussão proposta, nos utilizaremos dos textos emblemáticos de
Antônio Cândido e Roberto DaMatta, numa tentativa de demonstrar como se dá a dinâmica
social dentro de uma sociedade que se encontra delineada por conflitos e graves
desigualdades em diversos âmbitos e esferas.

1. A ÚTIL LETRA ESCARLATE

Na pacata cidade de Albuquerque, tudo transcorre aparentemente sob o manto da


normalidade. A silenciosa vizinhança (que se confunde por vezes e intencionalmente com o
árido deserto, recorrente paisagem no seriado), a pretensa vida harmônica do subúrbio norte-
americano sulista e os desejos de consumo e felicidade individuais comungados por toda a
comunidade desenham o quadro dos valores ali coletivamente partilhados.
Claramente, falamos aqui sobre os valores puritanos norte-americanos, e nisto temos
que o caráter destes indivíduos são organizados em torno da rígida educação religiosa, que
através da consciência natural internalizada de reverência às leis divinas de cunho moral – que
atuam em um disputado jogo cotidiano com a conduta pecaminosa - valoriza a honestidade, a
verdade, a honra, o produto do trabalho árduo, de sol a sol, o temor, o medo do desconhecido,
entre outros tantos valores característicos da sociedade em estudo.
Walter White, um cidadão americano arquetípico2, professor de química, caixa de
lava jato nas horas vagas, é o patriarca e provedor da família White, e mantém os seus entes
queridos - sua esposa Skyler e seu filho Walter White Junior - ante as dificuldades financeiras,

2
De acordo com Anthony Stevens (2012) “os arquétipos dão origem a pensamentos, mitologemas, sentimentos e
ideia semelhantes nas pessoas, independente de classe, credo, raça, localização geográfica ou época histórica. A
herança arquetípica inteira de um indivíduo compõe o inconsciente coletivo, cujo poder e autoridade pertencem a
um núcleo central, responsável pela integração da personalidade como um todo, que Jung chamou de si mesmo”.

657
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

e esta obrigação de manutenção do núcleo familiar decorre em razão de regras bem


estabelecidas no tempo. No mesmo sentido, a maneira com que o protagonista se posiciona
perante a sociedade, é o reflexo exato dos valores partilhados: ser um homem honesto, justo,
adimplente com suas obrigações familiares e financeiras, empenhado no ofício, apesar do
desinteresse dos alunos e do baixo salário, obediente às leis e antipático à desordem.
Com mesma intensidade, observamos em Skyler o compartilhamento dos mesmos
valores sociais que guiam White. O companheirismo do arquétipo da esposa do protagonista
da série, a pressuposta fidelidade matrimonial (promessa violada no decorrer do seriado), o
respeito e admiração pelo marido que a sustenta financeiramente, a força da coesão moral que
se exprime em pequenas atitudes cotidianas são indicativos desta vida conduzida pelas regras.
O pensamento perturbador de se tornarem pecadores, violadores das regras sociais,
personagens desviantes, não é uma possibilidade que se apresenta facilmente no mundo de
Walter White e Skyler. E é nisto que a série conquista o público: na impossibilidade que se
concretiza como enredo improvável.
Nestas sociedades norte-americanas historicamente reguladas pelo puritanismo
religioso, os inconvenientes sociais e as delinquências dos grupos desviantes são tratados
pelos indivíduos sob o olhar de reprovação e indiferença daqueles que de modo corriqueiro
seguem cegamente (e inconscientemente) as regras dispostas no meio social para além das
sanções legais dispostas no ordenamento jurídico, quando é o caso.
Contudo, a felicidade traduzida em termos de poder de consumo, como necessidade
básica da sociedade ocidental moderna conjugada às dificuldades de inserção individual (e
familiar) neste irreal e inalcançável (pelo menos para o indivíduo da classe média) mundo de
compras e aquisições que se renovam constantemente, impele grupos de pessoas a condutas
que vão de encontro, de certo modo, aos valores regentes da sociedade, já tão impregnados no
inconsciente coletivo puritano. A grande questão que emerge daí passa necessariamente pela
expressão interrogativa: como consumir o que está à disposição, diante das inúmeras
dificuldades que a vida real apresenta, se orientando pelos valores morais que orientam a
sociedade norte-americana? Como agir de acordo com um código mora rígido, de raiz
puritana, conservadora, se os maiores prazeres da vida são proibidos?
A felicidade nas sociedades modernas é compreendida, basicamente, em termos de
poder de consumo, e esse mantra consumista é perpetuado pelas propagandas e produtos que
criam novas necessidades diariamente e que se unem ao anseio de prazer que seduz os

658
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

indivíduos. O que Walter White deseja inicialmente, e que se apresenta como mote principal
do seriado, é a felicidade de sua família, ou seja, a manutenção efetiva dos seus entes na
sociedade de consumo. O objetivo do protagonista fica claro quando este, sabendo que
morrerá de câncer e sua família ficará desprovida depois do inevitável desenlace, estabelece
como meta uma quantia de dinheiro que seria bastante para atender as exigências mínimas
dos seus familiares, tais quais, educação, plano de saúde, faculdade e alguns confortos.
Resolve, pois, unir seu conhecimento em química à expertise das ruas, que Jesse Pinkman,
seu parceiro na empreitada, parece possuir, e monta o lucrativo negócio de produção e venda
de metanfetamina.
Algumas produções culturais se apresentam como marcos representativos destes
valores puritanos, que até hoje em dia permeiam o consciente e inconsciente da sociedade
norte-americana. Nathaniel Hawtorne no livro “A letra escarlate” narra a história de Hester
Prynne, uma jovem que, quando da ida do seu marido à guerra em Amsterdã, acaba se
envolvendo, secretamente, com Arthur Dimmesdale, o jovem sacerdote da cidade, e
engravida deste. A comunidade puritana de Boston do século XVII ao tomar ciência do fato -
do adultério de Hester - clama pela condenação da personagem, o que, de fato, acontece.
Além da prisão, Hester é condenada a usar perpetuamente a letra A escarlate presa às suas
vestimentas. Ou seja, a letra A (de adultério) escarlate é a marca da vergonha, do pecado, da
humilhação e do mesmo modo, dos valores da sociedade.
Embora compelida pela comunidade a revelar o nome de seu amante, Hester Prynne
não o faz. O sacerdote, no entanto, com a culpa e o pecado pesando em sua consciência –
mecanismos de repressão interna - se pune, de diversos modos, chegando a gravar no seu
peito, na carne, a letra A, assim como Hester Prynne. Por baixo de sua batina está a vergonha,
a penitência auto infligida por ter pecado, mas a cor escarlate da letra marcada no dorso tem a
cor do próprio sangue do pastor. Mas ninguém sabe, a sociedade de Boston do século XVII
não desconfia que o pastor violou as regras morais. A letra escarlate se encontra escondida
dos olhos dos cidadãos.
A letra escarlate é a expressão-símbolo da sociedade moral tradicional norte-
americana. Uma sociedade rígida, obcecada com o irrestrito e imediato cumprimento da lei e
da observância da moral, preocupada com a ordem cujos indivíduos se apropriam, por vezes,
da lógica utilitarista para operacionalizar suas intenções de conquista do saldo líquido de
prazer.

659
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A teoria ética utilitarista, que encontra em Stuart Mill seu maior defensor, parte da
premissa de que o objetivo principal na vida dos indivíduos é a busca pelo prazer. Assim, se a
finalidade da vida humana é a perseguição da felicidade, as ações moralmente corretas seriam
aquelas que se consolidassem como instrumentos para o alcance deste objetivo principal, vez
que “os princípios utilitários nos aconselham que boas ações são aquelas que produzem o
máximo de felicidade para o maior número de pessoas” (SARA, 2014).
O Princípio da Maior Felicidade, principal guia da teoria utilitarista, determina que
“as ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas na medida
em que tendem a produzir o reverso da felicidade”3 e desse modo, em nome do prazer e da
satisfação pessoal, as ações seriam moralmente justificáveis. Na busca pela felicidade
individual os indivíduos estariam ao mesmo tempo promovendo a felicidade geral vez que o
padrão moral teria a natureza de senso comum, seriam, em verdade, princípios morais gerais.
Decorre naturalmente daí que, uma vez que o significado de felicidade é compartilhado por
toda uma sociedade, a busca da felicidade de um indivíduo seria uma colaboração para a
felicidade de toda a sociedade em que os valores fossem compartilhados.
Assim, o certo e o errado na ética utilitarista se mostram como parâmetros flutuantes
que, de acordo com a situação concreta, podem sofrer alterações nos seus significados,
outrora estabelecidos pelo método indutivo/empírico. O que foi considerado certo uma vez, e
possibilitou dada conduta individual do ponto de vista moral, pode não ser considerado certo
na próxima oportunidade. Os conceitos de certo e errado seriam constantemente reanalisados
à luz da necessidade de se obter saldos positivos de prazer e, deste modo, a decisão a ser
tomada ou o ato a ser realizado seria moralmente correto se tal conduta tivesse o condão de
proporcionar ao indivíduo uma maior felicidade.
A útil letra escarlate é, enfim, o pecado racionalmente praticado, que se esconde por
baixo das roupas, muito embora marcado na carne. Se esconde, em verdade, dos olhos dos
outros. É a vergonha do pecado cometido, mesmo que não visto por ninguém, e por assim ser,
ainda que exista a reprovação do próprio individuo da sua conduta, uma vez libertado das
correntes morais, a lógica utilitarista se mostra como um permissivo para a o ilícito, para a
desordem. A performance do indivíduo é o que vale se um bom resultado é alcançado, e o
que existe de ruim neste ato, o que se mostra como negativo, imoral, não merece ser visto, por
ninguém, nem pelo próprio indivíduo.

3
Stuart Mill, op. cit, p. 48.

660
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. MALANDRAGEM IDÍLICA OU CLIENTELISMO?

Concentraremos nossa atenção, no presente momento, para a obra denominada


“Dialética da Malandragem: caracterização das Memórias de um sargento de milícias”, de
Antonio Candido, uma análise crítica acerca da obra literária de Manuel Antônio de Almeida,
e da comparação com a série objeto de estudo, teceremos algumas considerações acerca das
ideias desenvolvidas pelo autor, principalmente sobre o movimento da sociedade brasileira
que opera entre a ordem e a desordem.
Antônio Cândido analisa a obra do escritor brasileiro e observa que, por ser um
romance representativo legítimo de natureza popular que revela a “imitação de uma estrutura
histórica por uma estrutura literária” (SCHWARZ, 1987), possui um alcance identitário
generalizado, ocasionando, pois, uma assimilação da ficção com a realidade, e por
consequência, despertando ressonância nos leitores representados pela obra em destaque.
A crítica realizada por Cândido congrega análise literária e teoria social, eis que
denuncia as estruturas ocultas que servem de mecanismo de movimentação das engrenagens
da sociedade brasileira. Mediante a constatação da existência do nexo entre a ficção e a o
mundo real, é possível se determinar “o lugar da realidade dentro da ficção e o lugar da ficção
na realidade”4, tornando possível a percepção na obra literária da existência de um “mundo
imaginário construído segundo a lógica de um aspecto real”5 , um mundo real que se encontra
determinado por características próprias.
Da análise do livro de Manuel Antonio de Almeida, observamos uma narrativa em
terceira pessoa, um narrador onisciente, impessoal e imparcial, que desvela para o leitor,
através da suspensão de qualquer juízo de valor, as aventuras transgressoras de Leonardo,
desde o momento do primeiro encontro de seus pais - Leonardo Pataca, comerciante de
roupas, e Maria das Hortaliças, camponesa - no navio que os trazia de Lisboa até o Rio de
Janeiro da época joanina.
Após o seu nascimento, Leonardo é abandonado pelos pais, vindo a ser criado pelo
padrinho, o Barbeiro, que desenvolve grande apego ao protagonista e decide que o menino,
quando crescido, ingressará no seminário. Leonardo é um malandro nato que em nada se
conecta com as básicas noções de responsabilidade, respeito e ordem que seu padrinho tenta,
inutilmente, lhe passar. Por conta disso, Barbero é constantemente enganado pelo
4
Ibidem, p. 143
5
Ibidem, p. 142

661
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

protagonista. Até mesmo quando entra na escola, sua permanência na instituição é


interrompida precocemente, ante o comportamento inadequado do protagonista.
Crescido, Leonardo se torna um desocupado e é preso algumas vezes pelo Major
Vidigal - bastião da ordem na obra - por conta de seu comportamento infrator e desordeiro.
Com a súbita morte de Barbeiro, Leonardo, herdeiro do padrinho, é obrigado a voltar a morar
com o pai, Leonardo Pataca, eis que este último administra a herança.
Em pouco tempo, Leonardo é expulso da casa de seu pai, indo morar em seguida na
Rua da Vala, com outros adolescentes. Ali conhece Vidinha, com quem acaba se envolvendo.
O breve romance com Vidinha acaba por desembocar em mais uma prisão, só que desta vez,
o protagonista é obrigado pelos policiais a se alistar no Exército.
Depois de mais algumas transgressões e confusões, com a colaboração de amigos e
conhecidos, se utilizando de seus contatos no mundo social, Leonardo toma posse no posto de
sargento. Assim, com a conquista do posto de sargento, o protagonista se casa com Luisinha,
um amor que teve na juventude, e que veio a se tornar, felizmente, uma bela e rica mulher.
Com a morte de Dona Maria, Luisinha, sua filha, e Leonardo ficam com a herança da
falecida.
Sobre a natureza do romance, Cândido defende que a obra de Manuel Antonio de
Almeida, cujo pequeno resumo deixa-se revelar acima, não se constitui num romance
picaresco, vez que o protagonista, Leonardo, é carregado pela narrativa do enredo, não
instituindo o mundo fictício a partir do seu próprio ponto de vista. O livro é “contado em
terceira pessoa por um narrador (ângulo primário) que não se identifica”6 . Está ausente do
personagem principal, ainda, um traço básico do pícaro: a malandragem como atributo
adquirido em razão da brutalidade do mundo traduzida em “reflexos de ataque e defesa”7.
Observa o autor que Leonardo é um malandro nato, quase como se tal característica fosse
uma qualidade essencial do personagem, parte do seu caráter natal. Das dificuldades que
enfrenta, Leonardo nada aprende, não reflete moralmente acerca de nada.
A opção de base marxista na análise de Cândido aponta para uma sociedade de
classes que se dividem em patrícios e plebeus, corte e escravos, em transubstanciação
dialética via homens livres, esses sim a oscilar entre ordem e desordem, criando o tipo
malandro. Neste sentido observa Schwarz que “a dialética de ordem e desordem é construída

6
Antônio Cândido, op. cit., p.70
7
Ibidem, p. 71

662
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

inicialmente enquanto experiência e perspectiva de um setor social, num quadro de


antagonismo de classes historicamente determinado”8. Da supressão de grande parte da
população brasileira do período joanino - a elite e os escravos - a obra “Memória de um
sargento de milícias” não documenta a realidade integral, mas apenas uma parcela dela. É
nesta parcela setorizada, que exclui as extremidades, que ganha corpo a luta de classes de base
marxista que, conforme se observa no pensamento de Cândido, é a síntese da própria dialética
da malandragem. Contudo, a luta de classes é representada pelo autor de forma agradável,
simpática, risonha, conduzindo à conclusão que seríamos uma sociedade da interseção, de
homens cordiais, de aceitação, de horizontes éticos amplos, que caminha entre os polos da
ordem e da desordem, num aparente mundo sem culpas interiores, sem repressões internas
mais severas, e isto, ao fim se apresentaria como uma vantagem.
Neste cenário bipolarizado que constrói caminhos que conduzem os cidadãos na
direção ora da ordem, ora da desordem, haveria sempre espaço de sobra para os dois lados das
questões, vez que os antagonismos constroem o próprio tecido social. Os indivíduos agiriam,
naturalmente, sempre com um pé na ordem e outro da desordem, para além das normas e da
moral estabelecida.
A ordem criada por um sistema de normas e condutas que se baseia principalmente
nos ideais de moral e licitude e nos valores de uma elite dominante se mostra como mera
ficção para grande parte da sociedade, e os comportamentos desviantes diante destes meios de
disciplina irregulares se apresentam como provas reais desta distância que se firma no seio da
sociedade representada. A própria dinâmica social, o ritmo da sociedade, é regido pelos
valores desta elite dominante, e assim, para que se possa caminhar no ritmo imposto, alguns
“pormenores” devem ser reanalisados pelos cidadãos.
A preponderância da igualdade dos indivíduos nas relações sociais, peça
fundamental da democracia ocidental norte-americana, se apresenta inicialmente como
condição impeditiva da oscilação natural das condutas entre os polos, tal qual se observa no
caso brasileiro. A reprovação da conduta transgressiva nessas sociedades morais se daria não
apenas através das externalidades, dos controles extracorpóreos, mas seria, principalmente,
orientada pelo interior, pela culpa construída e insculpida no corpo pelas fortes instituições
morais e legais, que explicariam em grande parte a obsessão norte-americana pela ordem, que
agiriam como forças contrárias às formas espontâneas de vida social.

8
Roberto Schwarz, op. cit., p. 150

663
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Inserido neste debate, Roberto DaMatta sustenta a existência de diferenças entre


sociedades que operam sob a orientação do domínio da pessoa e aquelas outras, que
privilegiam o domínio do indivíduo. Ressalta o autor, no entanto, que as duas noções – pessoa
e indivíduo - estão sempre presentes nas diferentes sociedades, existindo, portanto uma
dialética entre os dois conceitos. Ora a noção de pessoa prepondera sobre a de indivíduo, ora,
o contrário ocorre.
Através da análise do rito autoritário da máxima “sabe com quem está falando?”,
DaMatta constata, através do estudo do caso brasileiro, a existência de uma estrutura social
construída, principalmente, a partir das relações interpessoais de compadrio e troca de favores
em detrimento de um sistema baseado na igualdade, na impessoalidade conferida pelas leis e
regulamentos gerais que se aplicam de igual modo e intensidade a todos.
Enquanto Cândido corrobora com um Brasil jovial e cordial, na linha de Sérgio
Buarque de Hollanda, que acaba criando um tipo roussoniano tropical, DaMatta evoca
criticamente para o brasileiro a tradição escravocrata e dominial, denunciando a estrutura
hierárquica que persiste na história brasileira. Para DaMatta não existe o malandro tal qual
Cândido contempla, tampouco o homem cordial, mas sim, indivíduos que se relacionam
autoritariamente na micropolítica cotidiana. Qualquer que seja o posto, a autoridade é
acionada, e as relações se modificam a partir deste rito. O brasileiro é tirano com o próximo.
Para o autor, o uso reiterado da expressão “sabem com quem está falando” pelos
cidadãos revela a existência de um rito de separação com características essencialmente
autoritárias e denuncia, do mesmo modo, a presença de uma estrutura social altamente
hierarquizada que se mostra como traço representativo essencial das sociedades que operam
no domínio da pessoa.
Nessas sociedades de pessoas, as relações interpessoais de consideração se mostram
como instrumento principal de acesso à cidadania, muito embora tal instrumento conviva
mutuamente com um discurso recorrente que se mostra avesso a esse rito autoritário. Sob o
manto dos enunciados de igualdade, universalidade e impessoalidade, existe a preponderância
do particular, dos laços pessoais como forma de garantia de acesso à cidadania. Através da
exigência de tratamento diferenciado, personalizado, se estabelecem as relações numa
sociedade onde predomina o domínio da pessoa.
Observa Da Matta que o rito em destaque

664
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(...) é um instrumento de uma sociedade em que as relações pessoais formam o


núcleo daquilo que chamamos de moralidade, e tem um enorme peso no jogo vivo
do sistema, sempre ocupando os espaços que as leis do estado e da economia não
penetram. É uma função da dimensão hierquizadora e da patronagem que permeia
nossas relações diferenciais e permite em consequência o estabelecimento de elos
personalizados em atividades basicamente impessoais.”9

Através da persecução de valores como “a intimidade, a consideração, o favor, o


respeito e apreciações éticas e estéticas generalizantes”10 a pessoa busca um tratamento
especial e exclusivo na aplicação da lei. Exige ser uma exceção à regra da generalidade, que é
característica principal de sociedades onde predomina a noção de indivíduo.
Enquanto o indivíduo se constrói na impessoalidade das leis, na universalidade, na
igualdade, no anonimato, se reconhecendo, assim, no público, eis que é ele quem contém a
11
sociedade dentro de si , a pessoa preza pelo privado, pelo biográfico, pela hierarquia
definida em termos de relações pessoais, de poder e prestígio. A pessoa busca a
transcendência das regras, a suspensão da igualdade em nome do tratamento diferenciado, do
privilégio dado pelas relações interpessoais, do “conchavo”, da “carteirada”.
Como já mencionado, se faz necessário destacar que o dualismo entre as noções de
indivíduo e pessoa é característico de todas as sociedades ocidentais, preponderando em
alguns sistemas a noção de pessoa, e em outros, a de indivíduo, havendo necessariamente
uma coexistência desses domínios.
Neste sentido, observa Da Matta que

(...) de um lado temos a ênfase numa lei universal (cujo sujeito é o indivíduo),
sendo apresentada como igual para todos; e de outro, temos a resposta indignada de
alguém que é uma pessoa e exige uma curvatura especial da lei (...) duas noções
operando de modo simultâneo, devendo a pesquisa sociológica localizar os
contextos em que o indivíduo e a pessoa são requeridos.12

O malandro, para DaMatta, surge nas situações concretas, forçando sua passagem
através do uso do poder e prestígio disponibilizado pelos ritos autoritários que permitem sua
transição do domínio do indivíduo para o domínio da pessoa, e é assim que o “uso do rito de
autoridade expressa uma tentativa de transformação drástica, do universo da universalidade

9
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Ed.
Rocco: Rio de janeiro, 1997, p. 185
10
Ibidem, p.192
11
Ibidem, p. 222
12
Ibidem, p. 229

665
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

legal para o mundo das relações concretas, pessoais e bibliográficas”13. A presença do


malandro no cenário social, para DaMatta, é a própria denúncia de uma sociedade
hierarquizada que prevê brechas de acesso a pessoas que conseguem estabelecer e/ou manter
relações de consideração, de apadrinhamento se apropriando e/ou se utilizando de poder e
prestígio, de forma autoritária, para exigir da lei uma curvatura que privilegie os interesses
pessoais em jogo em dado caso concreto. E deste modo, para o autor, o malandro é o símbolo
do autoritarismo, a sua personificação.
A lei geral e universal valeria num primeiro momento para todos os indivíduos, vez
que indiferenciados dentro da sociedade que se pressupõe inicialmente coberta pelo manto da
igualdade, pressuposto básico da democracia. Contudo, em situações de conflito, aberta a
possibilidade de não incidência das regras na iminência de algum prejuízo ou conseqüência
indesejada contrária aos interesses individuais envolvidos na situação prática, entra em jogo a
demanda pelo tratamento diferenciado informal e ali revela-se o momento exato da transição
do indivíduo para a pessoa.
O caso da sociedade norte-americana seria o inverso. Conforme observa o autor, há
naquela sociedade uma evidente preponderância do domínio do indivíduo, uma preocupação
em grande escala com a aplicação impessoal da lei. O tratamento indiferenciado entre os
indivíduos é a tônica da dinâmica social norte-americana, e por assim ser, o trânsito livre entre
a ordem e a desordem estaria prejudicado.

3. MALANDRAGEM EM PRETO E BRANCO

A narrativa da série Breaking Bad revela que por trás da sociedade de indivíduos -
baseada na aplicação da lei geral para todos, do moralismo puritano norte-americano
ensejador de uma culpa interna repressiva que impediria o processo de formação de formas
espontâneas de sociabilidade - existe uma estrutura social que denuncia a conduta individual
que, mediada através de manejos muito bem calculados, escapa da rígida ordem imposta.
As ações das personagens da série indicam a existência subjacente de uma desordem
latente que denuncia com mesmo efeito a ausência de obsessão de uma ordem que sobrevive
apenas como uma fina camada superficial da sociedade norte-americana. São desvios
comportamentais, imoralidades, transgressões, ilicitudes que passam desapercebidas pelo

13
Ibidem, p. 219

666
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

termômetro ético das consciências das personagens e que ganham corpo no cotidiano, nas
práticas sociais rotineiras, exigindo, para tanto, longos formatos de adaptação.
Walter White possui marcado no seu dorso uma imensa letra escarlate cuja
acentuada cor é composta pela mistura do sangue das vidas ceifadas em decorrência da
ganância cega e do egoísmo do personagem. Diante da necessidade de sua sobrevivência e de
sua família, o anti-herói opta por caminhar pelo mundo sem quaisquer amarras morais, muito
embora mantenha, ciente do olhar vigilante da comunidade em que vive, a fantasia puritana
que exibe no dia a dia. White exige o lugar ao sol que tanta dedicação com o trabalho deveria
ter trazido da forma mais utilitarista possível, sob o salvo conduto do câncer, que na verdade
se alastra pela sua alma muito mais do que pelo corpo já doente.
Com a notícia do câncer, e do pouco tempo de vida que lhe resta, White decide
“despertar”, conforme enuncia no episódio piloto. Começa a produzir e traficar
metanfetamina para conseguir dinheiro para sua família, dado que sua morte é inevitável, e
mesmo sabendo que está cometendo um crime, a consciência desta conduta não lhe parece ser
um impedimento e isso graças a lógica utilitarista que orienta a consciência do personagem,
racionalizando suas condutas em torno de uma avaliação de custo e benefício. Nisto,
destacamos que a criação pelo protagonista de Heisenberg, seu alterego, é o ponto de virada
da narrativa da série que indica que as reflexões morais de White serão deliberadamente
suplantadas em determinadas ocasiões em benefício próprio.
White, inserido numa sociedade moral de valores rígidos, uma sociedade de
indivíduos - tal qual descreve DaMatta - ao se subordinar superficialmente à lei universal e
individualizante se revela como uma caricatura do moralismo que orienta a sociedade da qual
faz parte: possui um discurso sobre correção que orienta os caminhos de sua vida, mas tal
discurso se descola das suas ações. Mas esconde, e bem, as transgressões cometidas, e apesar
de ‘passar’ a imagem de um indivíduo que age corretamente, moralmente, temos um
personagem egoísta, por vezes cruel, e que não enxerga o prejuízo que causa ao mundo a seu
redor.
Para o protagonista não há problema algum em produzir e traficar metanfetamina e
que com isso seja causado um prejuízo à sociedade e, especialmente, à vida pessoal de seu
parceiro, que é viciado no produto que distribui. As preocupações de White com o jovem
parceiro se resumem às questões que envolvem exclusivamente a felicidade do protagonista.
Se a produção e a venda de metanfetamina forem prejudicadas por conta de algum problema

667
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

na vida de Jesse Pinkman, afetando de algum modo o lucro do protagonista com o negócio,
White é capaz de resgatá-lo do inferno, e se sente bem com isso, como se fosse o salvador e
redentor do jovem. Através do correto e preciso manejo da hipocrisia e da mentira White
passa pelas reavaliações morais de suas próprias ações, e assim, dá continuidade aos seus
desejos e anseios, objetivando ao final, a sua própria satisfação material e emocional. A letra
escarlate permanece escondida sob suas roupas de tom pastel, que se tornam recorrentes a
partir do seu ingresso no mundo do crime.
Neste sentido, temos que White é um malandro, mas de natureza diversa daquele
compreendido pela análise Cândido: é um malandro do puritanismo, que através destes jogos
de interpretação entre o certo e o errado, orientado pela busca da felicidade, subverte a ordem
estabelecida, ocultamente, sem que ninguém saiba ou perceba. O segredo acerca do conduta
desviante, transgressiva, é condição indispensável deste modo de agir peculiar à sociedade
norte-americana.
Jesse Pinkman, o pupilo e principal comparsa de White, não racionaliza acerca de
suas condutas e, assim, dificilmente poderíamos afirmar que suas ações estão orientadas por
uma análise de custo e benefício, própria do utilitarismo. O personagem, um outsider viciado
em metanfetamina, que caminha pelo submundo das drogas, seja consumindo, seja vendendo
e produzindo, possui uma hipersensibilidade em relação ao mundo que conquista o
espectador. Pinkman é a resistência, é o olhar de humanidade que falta a quase todos os outros
personagens da série. E por isso se culpa, se destrói, e irracionalmente, se vê tragado para um
buraco que ele mesmo criou. Se existe algum traço de malandragem o personagem é apenas o
resquício do malandro romantizado, quase um pícaro, que se brutaliza ante as circunstâncias
da vida, mas possui uma natureza ingênua e uma espontaneidade que afasta a lógica
utilitarista. O comportamento em Pinkman são apenas reflexos de ataque e defesa, nada mais.
O cunhado de White, Hank Schrader, o agente da narcóticos que investiga, sem
saber, White, é o bastião da ordem, modelo forte de conduta regrada e ilibada, o arquétipo do
americano puritano tradicional. Hank é a referência de ordem e moral dos outros personagens
da série. Aos poucos, é revelado que o exemplar (e politicamente incorreto) agente do
departamento de narcotráfico da polícia de Albuquerque dá seus passeios pela desordem,
fazendo vista grossa aos roubos de sua mulher em lojas de jóias e roupas, torturando
prisioneiros para conseguir informações, importando charutos proibidos de Cuba, entre outros
deslizes morais e ilícitos, que passam desapercebidos por qualquer julgamento moral interno.

668
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Os desvios de conduta do bastião da ordem da série ocorrem através da mesma dinâmica que
as transgressões de White se dão. O custo-benefício das ações de Hank indicam que este
percebe que seus desvios são muito mais úteis que prejudiciais à sociedade. Ou seja, torturar
os prisioneiros não se mostra como atitude reprovável se tal proceder leva ao principal
traficante da cidade de Albuquerque, que causa com suas ações criminosas muito mais dano
aos indivíduos. Muito embora seja eixo de autoridade, Hank se apropria da ética utilitarista,
do mesmo modo que White. Através de um método indutivo/empírico, que leva em conta as
experiências pessoais, Hank pondera acerca de suas escolhas, buscando a melhor
performance, ainda que, os danos oriundos de tal escolha sejam inevitáveis.
Skyler, a mulher de White, irredutível personagem quando se trata de flexibilização
nas suas convicções morais, é a própria encarnação da obsessão norte-americana pela ordem.
É a mão-de-ferro que, através de seu discurso e ações, em inúmeros momentos, traz à tona
todo o sistema de valores morais constritores de condutas. Contudo, ao descobrir que o
marido está produzindo e traficando drogas, depois de superadas as tormentas que a
consciência lhe preparou, resolve tornar lícito o dinheiro sujo do negócio de White, propondo
a compra de um lava-jato, que serviria de empresa de fachada, se apropriando das mentiras do
marido, tornando-as verossímeis. Soma-se isto o caso extraconjugal que Skyler manteve com
seu chefe, mas que, no entanto, não aparentou qualquer arrependimento ou culpa. O
moralismo é, sem maiores reflexões, posto de lado, sem muitas cerimônias. O pensamento
consequencialista de Skyler demonstra o peso que a personagem confere à reinterpretação
entre o certo e o errado. Dependendo da circunstância, do caso concreto, Skyler adequa os
significados da moral que muito bem conhece. Mas, assim como o marido, mantém a letra
escarlate escondida por baixo da roupa, uma outra letra, diversa da A, de adultério, eis que o
caso extraconjugal não foi escondido dos olhos da sociedade.
Saul Goodman, advogado de White e Pinkman - que surgiu como um personagem
secundário, mas ganhou espaço e atualmente é o protagonista de uma série que carrega o seu
lema profissional, a saber, “Better call Saul”- é o que mais se aproxima do malandro
brasileiro, conforme o pensamento de Cândido. Goodman utiliza o trânsito entre a ordem a
desordem como ferramenta de trabalho. Entre ilegalidades, ilicitudes e o ordenamento
jurídico norte-americano, o patrono de White opera dentro e fora da lei e da moral, para
garantir a satisfação dos seus clientes, e consequentemente, alcançar o sucesso em sua
carreira. E nesta lista de ilicitudes que buscam se travestir em legalidades estão incluídas

669
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

negociatas com traficantes e revendedores de drogas, lavagem de dinheiro, saídas legais para
problemas burocráticos, entre outras diversas práticas moralmente corrosivas.
Gus Fring, o poderoso executivo da rede de restaurantes de fast-food Los Pollos
Hermanos, controla ao mesmo tempo o mercado nacional norte-americano de metanfetamina.
Vestido com ternos impecáveis, uma postura elegante, cauteloso, disciplinado, uma fala
serena, calma, aparentemente, Gus é a própria visão da ordem, o exemplar mais puro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Superficialmente, a sociedade representada pela série é igualitária, com valores


traduzidos em termos de normas legais e morais que se aplicam indistintamente a todos,
independente do status ou qualquer outra condição social que o indivíduo possa ostentar.
Mas, numa análise mais detida, temos que os valores impostos são por vezes ficções e não se
adaptam à realidade dos indivíduos e que, em razão da urgência de sobrevivência social, de
busca pelo saldo líquido de prazer há nestas sociedades de indivíduos a necessidade inerente
de transformação do universo social, muito embora, não declarada.
Todavia, a transformação social na sociedade americana se dá através de uma outra
abordagem, através de outro intricado viés. A letra escarlate que se mantém escondida dos
olhos de todos é parte do modelo puritano de malandragem. Na sociedade norte-americana
não observamos espaço para a existência do malandro de Cândido, contudo, notamos a
criação de um outro tipo, um malandro do puritanismo, que obedece a um proceder muito
peculiar.
O malandro brasileiro de Cândido surge num mundo ausente de culpas, onde todos
os membros da sociedade cometem transgressões, desvios, imoralidades, ilícitos, e por assim
ser, ninguém é censurado. Transitar entre a ordem e a desordem é o ato de não se submeter
por completo à lei geral, é operar para além do princípio da igualdade, princípio tão caro às
sociedades ocidentais modernas. A dialética da ordem e da desordem é a confirmação e a
exigência de que a lei e a moral não devem ser aplicadas em alguns casos, devem se manter
secretamente, diante do olhar do outro, suspensas.
O contrário ocorre nas sociedades de indivíduos norte-americanas, cujo sistema
observa a necessidade de igualdade de tratamento através de uma lei geral que todos, sem
exceção devem seguir. Os hemisférios da ordem e da desordem se encontram de forma

670
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

dialética, como possibilidade de formação de formas espontâneas de vida social, apenas no


caso brasileiro. A obsessão pela ordem e a força da moral tradicional não permite que surja o
malandro brasileiro na sociedade americana, não permite que a ordem e a desordem se
articulem assim, à luz do dia, às claras. A utilidade da letra escarlate que se esconde dos
olhares de toda a comunidade, cria o malandro de tipo puritano, que através da ética
utilitarista, transgride, em segredo, longe dos olhares reprovadores e sancionadores. As
transgressões se consumam e são escondidas pelo falso-moralismo, que se conecta, somente
neste sentido, à afirmação de Cândido: a hipocrisia é o pilar da civilização ocidental.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das memórias de um sargento de milícias) In:
Revista do Instituto brasileiro, nº 8, São Paulo, USP, 1970.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Ed. Rocco:
Rio de janeiro, 1997.

MILL, Stuart. Utilitarismo: Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Trad. Pedro Galvão. Porto: Porto
Editora, 2005.

WALLER, Sara. Eu aprecio a estratégia. In: Breaking bad e a filosofia: viver melhor com a química. Org. David r.
Koepsell e Robert Arp. Tradução: Caio Pereira. São Paulo: Editora Figurati, 2014.

SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem. In: Que horas são? São Paulo:
Cia das Letras, 1987.

STEVENS, Anthony. Jung. Trad. Rogério Bettoni. Porto Alegre, Editora L&PM, 2012.

671
Grupo de Trabalho 10

ESTADO,
POLÍTICAS PÚBLICAS E
GOVERNANÇA

dclxxii
A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE:
UM ESTUDO DOCUMENTAL

CHRIZOSTIMO, Raquel Marinho


Estudante de mestrado do Programa Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde – PACCS, da Escola de
Enfermagem Aurora de Afonso Costa - EEAAC, da Universidade Federal Fluminense (UFF)
SILVINO, Zenith Rosa
Doutora, professora titular do Departamento de Fundamentos de Enfermagem e Administração e do Programa
Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde - PACCS, da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa -
EEAAC, da Universidade Federal Fluminense (UFF)
SANTOS, Marcelo José
Aluno especial do Mestrado Profissional de Ensino na Saúde – MPES, da Escola de Enfermagem Aurora de
Afonso Costa - EEAAC, da Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO

Trata-se de estudo documental com abordagem quantitativa que visa discutir os principais casos de
procura do judiciário para solução de litígios relacionados às pessoas jurídicas de direito privado que
operam planos de assistência à saúde, regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Envolve direito social garantido constitucionalmente e, assim, a pesquisa abordará casos publicados da
26ª Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no período de
2012 a 2016. No desenvolvimento será verificada a judicialização da saúde, ao considerar demandas
repetitivas relacionadas ao assunto, decorrente da falta de garantia a esse direito na esfera
administrativa. Os dados serão coletados por meio de formulário com a utilização de busca de
Decisões Monocráticas e/ou Acórdãos no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Assim, trará como possibilidade de solução para o problema a reestruturação da esfera administrativa.

Palavras-Chave. Judicialização da saúde; Sistema único de Saúde (SUS); Plano de saúde

ABSTRACT

This is a documentary study with a quantitative approach that aims to discuss the main cases of
judicial search for the settlement of litigation related to legal entities under private law that operate
health care plans, regulated by the National Agency of Supplementary Health. It involves a
constitutionally guaranteed social right and, thus, the research will address published cases of the 26th
Consumer Civil Chamber of the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro, between 2012 and
2016. In the development will be verified the judicialization of health, when considering demands
related to the subject, due to the lack of guarantee to this right in the administrative sphere. The data
will be collected through a form using the search for Monocratic Decisions and / or Judgments on the
website of the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro. Thus, it will be possible to solve the
problem of restructuring the administrative sphere.

Keywords. Judicialization of health; Single Health System (SUS); Health insurance

673
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O presente trabalho foi baseado em projeto de pesquisa do Mestrado do Programa


Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde, da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso
Costa, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem como objeto de pesquisa os casos de
litígios da 26ª Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, no período de 2012 a 2016, relacionados às pessoas jurídicas de direito privado que
operam planos de assistência à saúde, regulados pela Agência Nacional de Saúde
Suplementar. Surge a partir do interesse em estudar casos de prestação de tutela jurisdicional
relacionados a usuários de planos de saúde no TJ/RJ, através de pesquisa com abordagem
quantitativa. Como o estudo está em fase inicial, os resultados ainda não foram obtidos.
Sendo assim, a investigação se desenvolverá com intuito de que se verifique a
judicialização da saúde, tendo em vista a grande quantidade de demandas judiciais
relacionadas ao assunto, decorrente da falta de garantia a esse direito na esfera administrativa.
Com base neste tema, será estudada a trajetória do surgimento dos direitos sociais, com foco
no direito à saúde, com consequente reflexão sobre alguns entraves que impedem a garantia
plena deste direito, de forma a verificar possíveis soluções para o problema.
Neste contexto, cabe enfatizar que, no Brasil, o marco inicial da institucionalização
dos direitos sociais foi a Constituição de 1934, com influência das Constituições do México
(1917); da Alemanha, de Weimar (1919); e da Espanha (1931) (MARTINS, 2008, p. 23). De
início, tratava-se de normas fundamentalmente programáticas, no entanto, a intenção foi de
tornar essas normas eficazes, pois quanto mais se reconhece eficácia e se aplica normas
constitucionais que reconhecem direitos sociais, sua principal garantia é revelada.
Conforme Martins (2008, p. 23), a Constituição de 1937 “suprimiu direitos civis e
políticos, de forma a estabelecer uma ordem econômica liberal, sem relação com o princípio
da justiça e dos anseios da população, o que impossibilitou retirar suas necessidades básicas e
violando o princípio da dignidade da pessoa humana”.
A Constituição de 1946 voltou a prever os direitos sociais e aderiu às ideias da
Constituição alemã de Weimar em 1919 (MARTINS, 2008, p. 23) ao dispor sobre “ordem
econômica, social e liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano”.
A Constituição de 1967, marcada por um “grande período de ditadura militar e pela
concentração de poder”, de 1967 a 1985, (MARTINS, 2008, p. 23), significou retrocesso

674
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

quanto aos direitos políticos. Já em relação aos direitos sociais, não apresentou grandes
alterações, apenas diminuiu as possibilidades de intervenção do Estado na esfera econômica.
O centro dos direitos sociais da atual Constituição (BRASIL, 1988) está fundado no
direito do trabalho e no direito de seguridade social e, em torno destes, outros direitos
gravitam. O direito à saúde é um deles, bem como o direito de previdência social, o de
assistência social, o de educação e o do meio ambiente.
A Constituição Federal de 1988 inaugura a abordagem sobre os direitos
econômicos, sociais e culturais no rol dos direitos fundamentais e, a fim de que esses direitos
sejam eficazes, menciona dispositivos que abordam a matéria, como, por exemplo, a previsão
de fonte de recursos para a seguridade social, com aplicação obrigatória nas ações e serviços
de saúde e às prestações previdenciárias e assistenciais (arts. 194 e 195) e a reserva de
recursos orçamentários para a educação (art. 212), além de outros (BRASIL, 1988).
Doutrinariamente, os direitos sociais são chamados de direitos fundamentais de
segunda geração e se revelam como direitos de crédito do indivíduo contra o Estado. Foi na
intenção de toda população ter acesso ao direito à saúde que o Sistema Único de Saúde (SUS)
foi criado pela Constituição Federal de 1988 (art. 198) e regulamentado pela Lei nº 8.080/90,
chamada Lei Orgânica da Saúde (BRASIL, 1990a), e pela Lei nº 8.142/90 (BRASIL, 1990b).
O SUS surgiu com o fim de modificar a situação de desigualdade na assistência à
saúde, através da obrigatoriedade do atendimento público a qualquer indivíduo, com
proibição de cobrança de quaisquer valores pelo serviço prestado. Dessa forma, pode-se dizer
que a ideia inicial era de equidade no atendimento das necessidades de saúde da população,
com oferta de serviços de qualidade adaptados às necessidades, independente do poder
aquisitivo do indivíduo. Objetiva gerar saúde ao privilegiar as ações preventivas e ao
democratizar as informações importantes, para que a população perceba seus direitos e riscos
à saúde.
As Leis 8.080/90 (BRASIL, 1990a) e 8.142/90 (BRASIL, 1990b) dispõem que, em
cada esfera de governo, a direção do SUS é formada pelo órgão setorial do Poder Executivo e
pelo Conselho de Saúde correspondente.
O SUS tem algumas responsabilidades, dentre elas, controlar a ocorrência de
doenças, seu aumento e propagação; controlar a qualidade de remédios, exames, alimentos,
higiene e adequação de instalações que atendem ao público, onde atua a vigilância sanitária.

675
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Os centros e postos de saúde, hospitais, inclusive os universitários, laboratórios,


hemocentros, fundações e institutos de pesquisa integram o SUS. Assim, pelo SUS as pessoas
têm direito a consultas, exames, internações e tratamentos nas Unidades de Saúde ligadas ao
SUS, públicas (de ordem municipal, estadual e federal), ou privadas, contratadas pelo gestor
público de saúde.
A participação do setor privado no SUS pode causar estranheza, no entanto, isto
ocorre, ainda que seja de maneira complementar, através de contratos e convênios de
prestação de serviço ao Estado em ocasiões em que as unidades públicas de assistência à
saúde são insuficientes para garantir atendimento a toda população de determinada região.
Para funcionar adequadamente, o SUS se estruturou com base em princípios, quais
sejam: princípio da saúde como direito; princípio da unidade do sistema SUS; princípio da
integralidade do atendimento; princípio da preservação da autonomia das pessoas; princípio
do direito à informação às pessoas assistidas; princípio da igualdade; princípio da participação
da comunidade; princípio da solidariedade no financiamento, ou da diversidade da base de
financiamento; princípio da vinculação de recursos orçamentários; princípio da
ressarcibilidade ao SUS; princípio da prevenção ou precaução; princípio da beneficência;
princípio do não retrocesso; e princípio da justiça
A gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) tem duas modalidades de participação
popular, as Conferências e os Conselhos de Saúde, que estão previstos na Lei 8.142/1990
(BRASIL, 1990b). Já o controle, é exercido por órgãos interno e externo, além do Sistema
Nacional de Auditoria (SNA), previsto no art. 16, XIX da Lei nº 8.080/1990 (BRASIL,
1990a) e no art. 6º da Lei nº 8.689/1993 (BRASIL, 1993), organizado junto à direção do SUS.
As entidades privadas com ou sem fins lucrativos que a respectiva direção do
Sistema Único de Saúde tiver celebrado contrato ou convênio sofrerão controle, avaliação e
auditoria pelos órgãos do SNA. Ou seja, as atividades de controle de execução, para averiguar
consonância com os padrões; auditoria de regularidade dos procedimentos praticados por
pessoas naturais e jurídicas, por exame analítico e pericial e a avaliação da estrutura, dos
processos aplicados e dos resultados alcançados, para conseguir ajustamento aos critérios e
parâmetros exigidos de eficiência, eficácia e efetividade, referentes às ações e serviços
desenvolvidos no âmbito do SUS, serão realizados pelo SNA.
Ocorre que, embora estruturado com a finalidade de atender a população de forma
igualitária, o SUS apresenta diversos problemas demonstrados pelas grandes filas,

676
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

atendimento deficiente, ausência de leitos, exames, médicos e medicamentos. No entanto, é


preciso destacar que os referidos entraves não surgiram com o SUS, são resultado de uma
desordem histórica de um modelo de atenção à saúde centrado na assistência médica.
Assim, diante das falhas na prestação de serviços de saúde e na intenção de obter
qualidade, a população começou a recorrer aos planos de saúde. Os planos de saúde atuam
numa esfera denominada “saúde suplementar”, que se refere à prestação de serviços de saúde
em contexto diferente daquele do Sistema Único de Saúde. A “saúde suplementar” está
ligada a um sistema organizado de intermediação por pessoas jurídicas especializadas,
denominadas operadoras de planos de saúde. Melhor dizendo, revela prestação privada de
assistência médico-hospitalar no âmbito do subsistema da saúde privada por operadoras de
planos de saúde.
Os contratos de Direito Público ou convênios entre hospitais ou serviços privados e
o SUS, nem o atendimento por meio de pagamento direto pelo paciente não estão inseridos na
esfera da “saúde suplementar”.
A Lei nº 9.656/1998 (BRASIL, 1998) disciplina sobre os planos de saúde e foi
alterada por algumas Medidas Provisórias, até chegar à Medida Provisória nº 2.177-44, de 24
de agosto de 2001 (BRASIL, 2001), que está em vigor. Já a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), é o órgão responsável pela regulação, normatização, controle e
fiscalização das atividades realizadas pelos planos de saúde.
A ANS foi criada pela Lei nº 9.961/2000 (BRASIL, 2000), que prevê em seu art.1º
que se trata de “órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que
garantam a assistência suplementar à saúde”, bem como dispõe no art. 3º que “a ANS terá
como finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência
suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com
prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no
País”.
Dessa forma, a ANS se revela como o órgão responsável por contornar a relação
entre usuários e operadoras de serviços de saúde, com implementação de regras e fiscalização
das atividades executadas, de forma que os serviços sejam prestados de forma adequada. No
entanto, não raro, a ANS tem apresentado deficiência em suas atividades.
Ou seja, também na assistência à saúde privada, diversos problemas têm ocorrido,
especialmente quanto às questões que envolvem abuso ao direito do consumidor. Os planos

677
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de saúde, em muitos casos, negam a prestação de serviço de saúde a usuários que têm direito
de obtê-los. Sendo assim, impossibilitada a resolução do conflito na esfera administrativa,
resta aos interessados buscar solução no judiciário.
Dessa forma, fica a cargo dos juízes decidirem demandas referentes a fornecimento
de remédios, tratamentos de saúde, cirurgias, internações, dentre outros procedimentos
terapêuticos. Portanto, o judiciário fica abarrotado de ações vinculadas ao tema saúde, o que
pode se denominar “judicialização da saúde”.
Se, com a existência de problemas, as pessoas se deparassem com uma
administração bem estruturada, capaz de apresentar soluções, elas não teriam necessidade de
procurar o judiciário, o que colaboraria para reduzir o número de demandas repetitivas.
Além disso, é importante destacar que, para resolver demandas referentes à saúde, o
julgador adentra em um domínio que foge ao seu conhecimento técnico. Desta forma, para
melhor solucionar os problemas que envolvem prestação de serviços e produtos de saúde,
seria adequado reestruturar a administração, tendo em vista ser este o setor responsável.
Logo, diante dos entraves apresentados quanto à prestação de serviços e produtos de
saúde, o estudo analisará os principais pedidos judiciais referentes à saúde vinculados à
prestação de serviços pelos planos de saúde, no âmbito da 26ª Câmara Cível do Consumidor
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro no período de 2012 a 2016.

1. DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA

Tendo em vista que o Poder Executivo é o responsável por garantir assistência


terapêutica à população brasileira, quais são as mais frequentes demandas judiciais da 26ª
Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vinculadas
à prestação de serviços e produtos de saúde?

2. HIPÓTESE

A reestruturação da esfera administrativa para que ela possa atender as demandas da


população decorrentes da ausência de fornecimento de produtos e serviços de saúde, ao
considerar a deficiência da gestão em assistência à saúde. Dessa forma, o judiciário atuaria
excepcionalmente, e não como órgão primordial de fornecimento de serviços e produtos de
saúde.

678
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3. JUSTIFICATIVA/RELEVÂNCIA

A pesquisa é relevante tendo em vista estar diretamente vinculada ao direito à saúde,


direito essencial do cidadão garantido constitucionalmente. Interessante, portanto, é o estudo
de alguns fatores que dificultam a garantia plena desse direito, pois geram desdobramentos
que prejudicam a sociedade como um todo.
Então, a trajetória que tornou o direito à saúde importante merece ser estudada. Com
a transição do feudalismo para o capitalismo e entrada na Idade Moderna, uma nova
percepção de mundo passou a se consolidar gradualmente. Através dos processos de
secularização, racionalização e individualização, a ideologia tradicional da Igreja Católica
Romana foi sendo substituída, assim a legitimidade de uma sociedade hierarquizada, com
base em privilégios de nascimento, perdeu a força.
Nesta fase de mudanças, o saber científico, crítico e otimista predominou a fé e o
trinômio particularismo/organicismo/heteronomia foi substituído pelo trinômio
universalidade/individualidade/autonomia, que dispõe que a descoberta das verdades depende
do esforço criativo do homem (PINSKY, 2003, p. 115).
O desenvolvimento de uma consciência histórica da desigualdade foi um dos
eventos mais relevantes dessa transição, a contextualização histórica da desigualdade
fundamentou uma importante mudança no caminho da humanidade: a do citadino/súdito para
citadino/cidadão.
Dessa forma, a partir de então, o homem passou a ter direitos na cidade além de
deveres. A Era dos Deveres abre espaço para uma próspera Era dos Direitos. Desse modo, a
evolução da cidadania na Europa centro-ocidental foi marcada pelo desenvolvimento dos
direitos civis no século XVIII, desenvolvimento dos direitos políticos no século XIX e
desenvolvimento dos direitos sociais no século XX.
Relacionadas a tais direitos, outras formas de Estado, outras funções estatais
indicadoras de uma relação dinâmica entre indivíduos, sociedade e aparelho estatal foram
formadas.
A origem do desenvolvimento dos direitos de cidadania se deu no século XVII,
quando ocorreu a Revolução Inglesa, considerada a primeira revolução burguesa da história e
que fez surgir o primeiro país capitalista do mundo.
Nos Estados Unidos da América, a cidadania e a liberdade estão intrinsecamente
ligadas e foram consolidadas a partir da experiência colonial e da Guerra de Independência.

679
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O conceito norte-americano de cidadania foi estruturado com base em documentos


como a Declaração de Independência, as dez primeiras emendas, o zelo da Suprema Corte e
com novas legislações como o Civil Rights Act de 1964 (PINSKY, 2003, p. 151), que
extinguia, juridicamente, quaisquer diferenças de raça, sexo, cor, religião ou origem nacional.
Por um lado, a cidadania era estruturada a partir de instrumentos de defesa do
indivíduo perante o Estado ou outros indivíduos, por outro lado, era construída a ideia do
excepcionalismo norte-americano, ligado à ideologia do dever do país propagar essas virtudes
pelo mundo.
Muitos processos históricos surgiram no século XVIII e, dentre eles, um importante
processo, o de construção do homem comum como sujeito de direitos civis, com destaque
para a Revolução Francesa, que pode ser compreendida como instauradora dos direitos civis.
No entanto, é importante destacar que o direito natural foi inaugurado no século XVII e tem
como base a razão, característica central do homem.
Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade impulsionaram a Revolução
Francesa e, com base neles, lutou-se contra as opressões vividas desde muito tempo, bem
como sintetizou-se a natureza do novo cidadão.
Assim como a Revolução Americana, a Revolução Francesa teve como ponto
crucial a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, embora divergentes, já que a
Declaração francesa pretendia ser universal, ou seja, declarar os direitos civis dos homens,
sem qualquer tipo de diferenciação e que abrangesse a humanidade como um todo.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França, por apresentar
caráter universal, representa avanço no processo de transformação do homem comum em
cidadão, cujos direitos civis lhe são garantidos por lei (PINSKY, 2003).
A Declaração também dispõe sobre direitos da Nação, sendo que estes devem estar
subordinados aos direitos do cidadão, já que o Estado não é um fim em si mesmo e seu
principal objetivo é assegurar o exercício dos direitos civis ao cidadão. Se o Estado não
cumpre essa sua incumbência, o cidadão tem direito de insurgir.
Os 17 artigos desta Declaração da França inauguraram um novo período histórico.
Portanto, pode-se dizer que a cidadania vem se construindo de forma paulatina desde a
Revolução Inglesa no século XVII, passando pelas Revoluções Americana e Francesa e,
especialmente, pela Revolução Industrial, já que este último movimento fez surgir uma nova
classe social, o proletariado.

680
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O proletariado adveio da burguesia e, além de trazer dela a consciência histórica do


papel de força revolucionária, buscou ampliar nos séculos XIX e XX os direitos civis que
auxiliou a burguesia a conquistar, por meio da Revolução Francesa. E, assim, abre-se o leque
de possibilidades para que as minorias tenham chance de serem abrangidas pelos direitos
civis, sendo certo que a história está em constante construção.
É nesta perspectiva, de enxergar o ser humano como cidadão, que algumas garantias
surgiram. Além de obrigações, o homem passou a ter direitos, dentre eles, os sociais. Os
direitos sociais visam garantir mínima qualidade de vida às pessoas, através da prestação de
serviços.
Assim, relevante é o estudo do direito à saúde, previsto constitucionalmente, vez que
se trata de direito social que tem como finalidade garantir condição básica de vida à
população.

4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A fundamentação do estudo contará com a contribuição de ALVES, Danielle Garcia


e CARDOSO, Henrique Ribeiro, que mencionam que a instauração de políticas públicas pelo
Poder Público, principalmente aquelas que se referem à saúde, estaria vinculada aos
princípios e preceitos constitucionais, e não à livre vontade do administrador, de forma que o
destinatário de seus serviços, o cidadão, seja tratado com a dignidade e o respeito que sua
condição de ser humano impõe, dentro de uma atuação ética dos profissionais de saúde e do
Poder Público.
Também será utilizada GONÇALVES, Sandra Krieger, que leva a refletir sobre a
efetivação do Direito à Saúde e analisar os problemas decorrentes da fundamentação utilizada
pelo Poder Judiciário no momento de intervir nas relações jurídicas respectivas, sobretudo
naquelas travadas em sede de Saúde Suplementar.
E, ainda, CARNEIRO, Bernardo Lima Vasconcelos, que dispõe sobre a amplitude
do âmbito de proteção material do direito fundamental à saúde em cada caso concreto levado
ao conhecimento do Judiciário, nos quais se requer o custeio estatal de medicamento ou
tratamento não disponibilizado pelo SUS.
Assim, esses autores irão auxiliar no fundamento teórico.

681
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

5. OBJETIVOS

5.1. OBJETIVO GERAL

Discutir os principais casos julgados pela 26ª Câmara Cível do Consumidor do


Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no período de 2012 a 2016, para solução de
litígios relacionados às pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à
saúde, regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar.

5.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

 Identificar casos de procura do judiciário para solução de litígios relacionados às


pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde,
regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar;
 Estabelecer a prevalência dos litígios;
 Qualificar os temas emergentes dos litígios.

6. METODOLOGIA

Pesquisa documental de abordagem quantitativa sobre os casos julgados e


publicados da 26ª Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, no período de 2012 a 2016.
Os dados serão coletados por meio de formulário com a utilização de busca de
Decisões Monocráticas e/ou Acórdãos no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, com critério de inclusão baseado no tema plano de saúde; na origem e competência
do órgão julgador; no período dos julgados; na motivação do requerente por não ter suas
necessidades de prestação de serviços e/ou produtos de saúde atendidas no âmbito
administrativo. Quanto aos critérios de exclusão, serão desconsiderados os casos que não
atendam ao objeto da pesquisa; os julgados que não estejam vinculados à busca de prestação
de serviços e produtos de saúde, embora vinculados aos planos de saúde.
Estes dados serão tratados com o uso de programa estatístico denominado Excel,
para saber a frequência dos serviços e produtos de saúde requeridos às pessoas jurídicas de
direito privado que operam planos de assistência à saúde.

682
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como o estudo está em fase inicial, não há resultados concretos de quantificação das
principais demandas judiciais referentes à prestação de saúde pelos planos de pré-pagamento
no âmbito da 26ª Câmara Cível do Consumidor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, no período de 2012 a 2016. Portanto, o desenvolvimento se dará com intuito de que
essas necessidades sejam contabilizadas, com observância de que o direito à saúde é
constitucionalmente garantido e se encontra no rol dos direitos fundamentais, o que
demonstra sua relevância à população.

REFERÊNCIAS

ALVES, Danielle Garcia; CARDOSO, Henrique Ribeiro. Direito à saúde: Por uma Prestação Ética do Estado .
Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2017.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Edição


Especial. Serviço de Biblioteca no Lar. In Encyclopaedia Britannica do Brasil. Companhia Melhoramentos de
São Paulo. Indústria de Papel, São Paulo,1988.

CARNEIRO, Bernardo Lima Vasconcelos. A Efetivação Jurisdicional do Direito à Saúde. Lumen Juris, Rio de
Janeiro, 2016.

GONÇALVES, Sandra Krieger. Judicialização do direito à Saúde e o sistema de saúde suplementar no Brasil.
Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016.

_________. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei 8.080/1990, de 19 de
setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização
e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. 1990a. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l8080.htm>. Acesso em: 10 fev. 2016.

_________. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.142, de 28 de
dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e
sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.
1990b. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8142.htm>. Acesso em: 10 fev. 2016.

_________. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.689/1993, de
27 julho de 1993. Dispõe sobre a extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
(Inamps) e dá outras providências.1993. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8689.htm>. Acesso em: 14 fev. 2016.

_________. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.656/1998, de 03 de
junho de 1998. Dispõe sobre os planos de saúde e foi alterada por algumas M. 1998. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/topicos/11326907/artigo-30-da-lei-n-9656-de-03-de-junho-de-
1998edidasprovisórias>. Acesso em: 10 fev. 2016.

_________. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9961, de 28 de
janeiro de 2000. Cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e dá outras providências.
2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/ leis/L9961.htm>. Acesso em: 14 fev. 2016.

683
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

_________. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Medida Provisória nº
2.177/1944, de 24 de agosto de 2001. Altera a Lei no 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos
privados de assistência à saúde e dá outras providências. 2001. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2177-44.htm>. Acesso em: 10 fev. 2016.

_________. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de


2012. Objetiva aprovar as seguintes diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres
humanos. 2012. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html>. Acesso em: 14 fev. 2016.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2010. (Coleção temas sociais).

PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Vários autores. História da Cidadania. São Paulo: Contexto
(Editora Pinsky Ltda), 2003.

MARTINS, Wal. Direito à Saúde: Compêndio. Belo Horizonte: Forum, 221p., 2008. ISBN 978-85-7700-0

MARCONI, Marina de Andrade e LAKATOS, Eva Maria. Metodologia Científica. São Paulo: Atlas, 2007.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo:
HUCITEC, 2011.

PERLINGEIRO, Ricardo. Desjudicializando as políticas de saúde? Faculdade de Direito do Recife. Revista


acadêmica,v.86, n. 2, p.3-10, 2014.

SCHULMAN, Gabriel. Planos de Saúde - Saúde e contrato na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Renovar,
2009. ISBN 978-85-7147-748-3

684
GOVERNANÇA CORPORATIVA,
GOVERNANÇA PÚBLICA E ACCOUNTABILITY:
INSTRUMENTOS PARA A CONCRETIZAÇÃO
DE DIRETOS FUNDAMENTAIS NAS COMPANHIAS ABERTAS

DALCASTEL, Marcia Bataglin


Professora Adjunta de Direito Empresarial da Universidade Federal Fluminense.
Doutora em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro
ALONSO, Pedro Moreira
Bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense
Bolsista de Iniciação Científica da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ

RESUMO

O presente trabalho visa analisar como as normas de governança corporativa e governança pública
podem contribuir para a efetividade dos direitos fundamentais, pelo fortalecimento do princípio da
prestação de contas (accountability), nas relações jurídicas polarizadas por sociedades anônimas de
capital aberto, mais especificamente as sociedades de economia mista. Para tal, primeiro será feita uma
breve análise das governanças corporativa e pública na cultura empresarial nacional e como a
governança pode ser instrumentalizada para a prevenção de danos aos direitos humanos/fundamentais.
Logo após, será procedido um estudo de caso a partir da análise dos instrumentos de governança
adotados pelas sociedades de economia mista Petrobras S/A, Copel S/A e CEDAE, além de um breve
exame a fim de averiguar se estas promessas se realizam, a partir de busca realizada no banco de dados
disponibilizado no sítio eletrônico do Ministério Público do Trabalho.

Palavras-Chave. Governança Corporativa, Governança Pública, Direitos Fundamentais.

ABSTRACT

This present paper intends to analyze how corporate governance and public governance norms can
contribute to the enforcement of the constitutional rights, by the empowerment of the accountability in
the juridical relations polarized by join-stock companies, more specifically those that are state-owned
enterprises. In order to do it, will be proceeded a brief analysis of the corporate and public governance
in brazilian business culture, and how the governance can be utilized for the prevention of damages in
constitutional/human rights. There upon will be proceeded a case study by the review of governance
instruments adopted by Petrobras S/A, Copel S/A and CEDAE, and a short scrutiny to discover if these
promises are undertaken, by means of a search in the database from the website of the Ministério
Público do Trabalho.

Keywords. Corporate Governance, Public Governance, Constitutional Rights.

685
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O movimento de implementação das boas práticas de governança corporativa vem


crescendo na cultura empresarial brasileira, mormente no âmbito das sociedades anônimas de
capital aberto. A governança corporativa pode ser definida como um conjunto de modos de
agir empresarial em prol da ética, probidade, transparência, com o fim último de melhor
informar os investidores e, assim evitar os conflitos internos na sociedade1.
O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC, um dos mais eminentes
atores do movimento de implementação da governança, dentre várias de suas publicações,
editou o Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa, contendo diversas
recomendações nesse fim. Cabe ressaltar que há um capitulo do referido Código que trata da
prevenção dos atos de caráter ilícito, no qual propõe que as companhias criem um canal de
denúncias para apuração interna de atos ilícitos cometidos pela companhia e mantenham um
órgão interno independente para receber e apurar tais relatos. Partindo da premissa de que
toda agressão a direitos fundamentais constitui espécie de ato ilícito, pode-se dizer que tais
medidas podem vir a colaborar com a diminuição de lesões a direitos fundamentais no âmbito
das companhias.
Nessa linha de proteção e prevenção, não se pode olvidar do relatório da ONU em
matéria de Direitos Humanos e Empresas, mais conhecido como Princípios Ruggie, no qual
pela primeira vez as Nações Unidas estabeleceram princípios norteadores de tal matéria. Os
princípios são baseados no trinômio proteger, respeitar e reparar, de modo a não somente
estabelecer obrigações negativas – abster-se de violar -, mas também obrigações positivas,
impondo aos estados-membros e às empresas a obrigação de promoção dos direitos humanos.
Para além do que já existe em matéria de governança corporativa, aos moldes do
que propõem o IBGC e os próprios Princípios Ruggie em matéria de Direitos Humanos, há
que se destacar também as normas que abordam o tema da governança sob um viés da
Administração Pública, quando estamos a tratar de empresa pública e sociedade de economia
mista. Mais especificamente quando se tratar de sociedade de economia mista que possui
características muito próprias, visto serem entes da administração pública indireta, mas que
seguem também regras das sociedades privadas, nos termos do que determina o texto
1
Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa em seu Código de Melhores Práticas de Governança
Corporativa: (...) governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas,
monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria,
órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. ” (IBGC, 2015, p.20)

686
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

constitucional (art. 173). Muitas delas com ações negociadas em bolsa de valores, também se
submetem às regras da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, bem como devem estar em
conformidade com o que sugere o IBGC para que possuam um grau de governança perante a
Bolsa de Valores que possa atrair investidores.
Desse modo, o que em princípio se busca destacar é a relação entre direitos
humanos/fundamentais e mercado de capitais quando se está diante de uma sociedade de
economia mista. A ideia inicial é de alertar para o fato de que nem sempre o que as
companhias prometem aos investidores em matéria de sustentabilidade, respeito aos direitos
humanos/fundamentais, responsabilidade social, ambiental, etc., estão sendo efetivados na
prática, ou se constituem meros discursos desvinculados de qualquer prática. Também
deverão ser analisadas as normas, por exemplo, do TCU e TCE que versem sobre o controle
das estatais, visto que para além da prestação de contas propriamente dito, deverão, enquanto
entes da administração pública, ter uma boa governança pública também.
Governança pública, regra geral, vale ressaltar, é a capacidade que o estado tem de
executar as decisões tomadas. Assim, considerando a governança e a accountability para
efeitos de verificação da atuação estatal nas sociedades de economia mista, no que tange, por
exemplo, aos processos de corrupção sistêmicos ocorridos ultimamente no país, pode-se
ressaltar que há um déficit de accountability que gera, por si só, um déficit de governança.
Ressalta-se que o momento não é o mais adequado para tratarmos do assunto, restando o
mesmo apenas como exemplo: aquisição da Refinaria de Pasadena2. Plenamente perceptível,
no caso mencionado, a falta de governança, bem como de accountability (prestação de contas,
responsabilização dos agentes e responsividade)3.
Os programas e determinações de transparência dos atos públicos, por exemplo,
também não deixam de ser comando normativo, de origem inclusive constitucional, que
também não passa de “norma de papel” – o que é lamentável – mas que, em grande parte

2
Por todos, conferir reportagem que trata da condenação, pelo TCU, de 11 diretores da Petrobras pela compra de
Pasadena. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/07/1490125-tcu-condena-11-diretores-da-
petrobras-por-prejuizo-de-us-792-mi-na-compra-de-pasadena.shtml>. Acesso em 05 de out 2017.
3
Sobre a classificação, cabe observar que a accountability, além das formas vertical e horizontal pode ainda
ser entendida em 3 dimensões: (i) Prestação de contas: que reflete a transparência do governo para com a
população, como, por exemplo, Lei de responsabilidade Fiscal (LRF); (ii) Responsabilização dos agentes: os
agentes púbicos são responsáveis pelos mau uso dos recursos, como, por exemplo, Lei de Improbidade
Administrativa (LIA); e (iii) Responsividade dos agentes: está relacionada com a capacidade de resposta do
poder público às demandas sociais, como, por exemplo, colocar em prática as políticas escolhidas pelos
cidadãos, como, por exemplo, a imediata aprovação da Lei das Estatais em momento de descrédito nos
agentes da administração Pública (lei 13.303/2016)

687
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sem, ou muito pouca, efetividade. Ainda nessa linha, observa-se que enquanto se tem de um
lado normas que são soft law por parte do direito privado, como são as normas de governança
corporativa, por outro lado temos normas impositivas, decorrentes da lei e da própria
Constituição Federal e aí fica complicado estabelecer uma divisão nítida de aplicação às
sociedades de economia mista, ainda mais no que diz respeito à observância de normas
direcionadas a proteção de direitos fundamentais, não se olvidando de demais diretrizes de
outros órgãos como a OCDE, BIRD, BID4 etc.
Para uma melhor compreensão do acima apontado foram selecionadas três
sociedades de economia mista. São elas: Petrobras, Copel e CEDAE. O objetivo é demonstrar
se as companhias selecionadas estão agindo ou não em conformidade com o que apontaram
em seus estatutos ou códigos de conduta no que está relacionado aos direitos
humanos/fundamentais.
A metodologia utilizada na realização do presente trabalho se fez em razão da
análise da bibliográfica e documental, bem como do levantamento de dados empíricos
levantados junto ao banco de dados do Ministério Público do Trabalho, sendo o método
dedutivo-indutivo o utilizado para a conclusão do exposto.

1. DIREITOS HUMANOS/FUNDAMENTAIS E O EXERCÍCIO DA EMPRESA

O exercício da empresa5 tem grande importância em uma economia de mercado


como a vivenciada no atual contexto de globalização econômica. Tendo em vista tal fato, o
constituinte originário estabeleceu que a “ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social (...)”6
Portanto, é opção adotada pelo constituinte a prescrição que, na ordem jurídica
nacional, os fatores de produção devem cooperar a fim de promover o bem comum. Disso
decorre que ao enunciar o princípio da livre-iniciativa, enuncia-se também a finalidade da
existência do mesmo que é a promoção da justiça social.

4
Vale mencionar que recentemente (20.06.2017) foi aprovado pela CAE (comissão de assuntos econômicos) o
repasse de US$750 milhões oriundos do BID para o BNDES, a fim de financiar investimentos em energias
renováveis.
5
Empresa tida neste trabalho como atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de
serviços, como é enunciada pelo art. 966 do Código Civil, apesar das diversas teorias a respeito da empresa.
6
Artigo 170 da CRFB/88.

688
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Além disso, teorias vêm se desenvolvendo no sentido de propor que a exploração da


atividade econômica não deve ter como único objetivo a maximização dos lucros. Em tal
gênero se encaixa a teoria do Capitalismo Consciente7, a qual prescreve que as companhias
devem ter um propósito maior (higher purpose) no desenvolvimento de suas atividades. Os
autores de tal teoria afirmam que a incorporação de valores éticos pelas sociedades
empresárias acarretará melhores resultados para as partes interessadas8, o que gerará melhores
desempenhos econômicos e sociais para a companhia. Desse modo, pode-se dizer que a
doutrina do Capitalismo Consciente está alinhada com os ditames da Constituição 1988.
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas já é pacificada
na jurisprudência nacional, a partir de interpretações constitucionais em prol de maior
efetividade dos direitos fundamentais. Nesse diapasão, a tese predominante sobre a incidência
dos direitos fundamentais nas relações privadas é a tese da eficácia direta ou imediata, a qual
propõe que os direitos fundamentais tenham eficácia plena nas relações entre particulares,
prescindindo de intermediação legislativa. Logo, em uma relação de possíveis conflitos entre
um direito fundamental invocado e o direito fundamental de liberdade do empresário9, deverá
ser procedida, pelo órgão incumbido de resolver o conflito10, uma ponderação de interesses
(SARMENTO, 2010, p. 205).
No entanto, diverso é o caso de sociedades empresárias comprometidas com a ética,
equidade, promoção dos direitos humanos, como vemos em diversos casos. Na eventualidade
de tais companhias discutirem se devem ou não ser vinculadas ao direito fundamental
invocado no caso concreto, não há dúvida que tal direito fundamental deverá ter um maior
peso prima facie em comparação com a autonomia da vontade da sociedade. Afinal, a
sociedade utilizara de sua autonomia da vontade para se vincular aos compromissos acima
descritos.
Destarte, pode-se afirmar que companhias de capital aberto que negociem em bolsa
de valores, e que por isso devem possuir elevados padrões de governança, além de diversos
compromissos éticos, acaso enveredem pelo desrespeito aos direitos fundamentais, poderão
vir a sofrer restrições em razão de seu atuar de forma menos branda. A adesão interna das
7
Ver em: SISODIA, Rajendra S.. Doing business in the age of conscious capitalism. Journal of Indian Business
Research Vol. 1 Nos 2/3, 2009. pp. 188-192.
8
O conceito de partes interessadas (stakeholders) abrange todo o grupo atingido de alguma pelo exercício da
empresa, como empregados, comunidade local, o Estado, acionistas, etc.
9
Definido como aquele que exerce empresa, ainda segundo a redação do art. 966 do Código Civil.
10
Tal órgão pode ser o órgão judiciário, câmaras arbitrais, ou até um órgão interno da sociedade empresária.

689
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sociedades em defesa e promoção dos direitos fundamentais a vinculam para além de normas
gerais, considerando ter advindo de sua liberdade no exercício da empresa o seu
comprometimento às normas de governança, tornando-a mais comprometida que as demais,
visto estar inserto em seus regulamentos e códigos de conduta referido agir. Dito de outra
forma, o comprometimento integra o objeto social e reforça o interesse público da companhia,
mais especificamente ainda da sociedade de economia mista.

2. GOVERNANÇA CORPORATIVA E A FIXAÇÃO DO RESPEITO AOS


DIREITOS HUMANOS/FUNDAMENTAIS COMO VALOR EMPRESARIAL

O movimento de implementação de melhores práticas de governança corporativa


tem por finalidade minorar os conflitos de agência11. Como o conceito de partes interessadas é
bem amplo, abrangendo todos os grupos impactados de alguma forma pelo exercício da
atividade empresarial – consumidores, trabalhadores, comunidade local, etc. – as boas
práticas de governança corporativa podem ser instrumentalizadas em prol de uma maior
efetividade dos direitos fundamentais nas relações jurídicas em que as sociedades empresárias
forem partes.
Aparentemente o maior número de lesões a direitos fundamentais está relacionado
com os trabalhadores, podendo ser citado, a título de exemplo, a utilização de mão de obra
escrava, a restrição do direito de greve, a não observância das horas de intervalo e por aí em
diante. Também há relatos em relação à discriminação de gênero, ao trabalho da mulher...há
restrições as liberdades individuais e um total desalinhamento entre o comando constitucional
de proteção aos direitos fundamentais individuais e sociais com o efetivo atuar das sociedades
empresárias.
Outrossim, vale destacar que faz parte do conjunto de proposições de boas práticas
de governança corporativa as políticas de prevenção de atos ilícitos, constando, por exemplo,
no Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa, elaborado pelo IBGC, um
capítulo destinado a este tema no qual se propõe a criação de um órgão de controle
independente e um canal de denúncias diretamente vinculado a este órgão, além da
implantação de uma política de não retaliação a quem denuncie a possível prática de atos
ilícitos no interior das companhias.

11
Conflitos de agência são os conflitos entre as diversas partes interessadas de uma determinada empresa.

690
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Desse modo, a partir de um simples silogismo, conclui-se que todo ato violador de
direitos fundamentais seja um ato ilícito, máxime a partir do protagonismo conferido aos
direitos fundamentais com a promulgação Carta Constitucional de 1988, inserida no contexto
de afirmação das bases democráticas e valorização da pessoa humana. Portanto, a partir de tal
instrumento de governança, pode-se prevenir não só o conflito de interesses unicamente
econômicos, mas também aqueles em que se esteja em jogo direitos constitucionalmente
protegidos, e mais especificamente, os direitos humanos/fundamentais.
Por outro viés, as propostas de governança prescrevem maior transparência nas
atividades empresárias, partindo do pressuposto que a companhia deve prestar contas à
sociedade, em geral, de sua atuação. Desse modo, o consumidor/investidor consciente do
papel que as companhias devem desempenhar na sociedade poderá nortear a sua atuação no
mercado com base, não só com os proveitos que suas transações geram (a mercadoria ou os
dividendos), mas também com o que tal companhia gera de valor para o meio em que atua.
Não faz parte do escopo deste trabalho responder se o agente econômico, em posse de tais
informações, norteará (ou, pelo menos, levar em consideração) sua atuação com base nos
impactos gerados para a sociedade, meio ambiente, etc. Contentamo-nos com a mera
possibilidade que a exigência de respeito aos valores da pessoa humana possa vir dos próprios
agentes econômicos.
O mercado de capitais, portanto, pode ser visto também como um instrumento capaz
de auxiliar na construção de uma postura mais alinhada aos ditames constitucionais,
permitindo um atuar mais ético dos agentes econômicos, integrando investidores e
companhias de capital aberto e propiciando um maior controle e transparência também neste
aspecto, que vai além do controle econômico propriamente dito.

3. EMPRESAS ESTATAIS E DIREITOS FUNDAMENTAIS: GOVERNANÇA


CORPORATIVA E GOVERNANÇA PÚBLICA NAS SOCIEDADES DE
ECONOMIA MISTA

A Constituição de 1988, em seu artigo 173, prescreve que a atuação do Estado de


forma direta na atividade econômica somente será permitida quando necessário aos
imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse público, conforme definidos em
lei. Já no parágrafo primeiro do mesmo artigo, com redação conferida pela Emenda 19 de

691
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

junho de 1998, o poder constituinte derivado exara mandamento de elaboração de estatuto


jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que
explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de
serviços.
A Lei 13.303, promulgada em 30 de junho de 2016, considerado o estatuto das
estatais, veio concretizar tal comando constitucional às pressas, a fim de atender aos reclamos
da sociedade civil ante os escândalos de corrupção envolvendo empresas estatais, os quais
deixaram grande mácula nos princípios norteadores da administração pública, insculpidos no
art. 37 da Constituição, mormente os da impessoalidade e moralidade. Nesse ínterim, a
grande preocupação do legislador ordinário ao elaborar tal diploma legal foi a de trazer para o
regime jurídico das empresas estatais os avanços conquistados nas sociedades privadas em
questão de governança corporativa, de modo a melhorar também a governança pública.
O estatuto das estatais, em que pese críticas contundentes sobre o mesmo, rompeu
com um silêncio de quase 20 anos e inovou em alguns pontos. Merece destaque, neste
trabalho, a obrigatoriedade da confecção de uma carta anual, a qual intitulamos de “carta
compromissória”, como requisito mínimo de transparência a ser implementada pelas estatais
nos termos do art.8, I da Lei 13.303/2016.
Referida Carta compromissória deve ser subscrita pelos membros do Conselho de
Administração, contendo os compromissos em relação aos objetivos a serem alcançados pela
empresa estatal, de modo a atender ao interesse público coletivo, ou ao imperativo de
segurança nacional que justificou a criação da mesma. Tal instrumento, grosso modo, pode
servir inclusive de autorização para o cancelamento da existência da estatal quando em
descompasso com norma autorizativa de sua existência, haja vista flagrante
inconstitucionalidade.
De toda sorte, o estatuto das estatais pode vir a ser também mais um elemento a
somar na busca por uma maior proteção aos direitos humanos/fundamentais no âmbito das
estatais, mais especificamente das sociedades de economia mista com ações negociadas no
mercado de capitais. O aumento no grau de governança pública/corporativa só fará com que o
mercado passe a se reorganizar também de forma comportamental em busca de maior
proteção aos direitos humanos/fundamentais.

692
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Espera-se que com a entrada em vigência12 de tal diploma legal, ocorra um


incremento nos níveis de governança das empresas estatais – o que é desejável ante o atraso
das mesmas em relação às companhias privadas, conforme demonstrado em recente estudo
promovido pelo IBGC13.

4. ESTUDO PRÁTICO – CASOS PETROBRAS, Copel e CEDAE

Para ilustrar o acima mencionado, foram separadas algumas estatais: (i) Petrobras,
(ii) Copel e a (iii) CEDAE.
O objetivo é demonstrar o quanto as referidas empresas estão alinhadas com seus
estatutos e códigos de conduta para que se possa verificar o grau de efetiva governança, bem
como se estão alinhadas com as propostas apresentadas aos investidores no que se relaciona à
proteção de direitos humanos/fundamentais, de forma a demonstrar também o grau de
comprometimento das empresas com suas propostas e como seu efetivo agir no mercado.
Vale mencionar também que a Petrobras S/A é signatária do Pacto Global da
Organização das Nações Unidas, o qual “pretende mobilizar um movimento global de
empresas sustentáveis e as partes interessadas para criar o mundo que queremos”14 (ONU,
2017). Em sendo companhia de grande projeção nacional, e internacional, com ações
negociadas na B3 e na Bolsa de Nova Iorque, deve-se ficar atento para todo
comprometimento realizado para que não passem a ser apenas instrumento capaz de chamar a
atenção de investidores e que não tragam maiores consequências, tal qual a vinculação ao que
proferiram em relação à proteção e implementação de direitos humanos /fundamentais.
Também será apresentado o resultado de uma análise do banco de dados do
Ministério Público do Trabalho a fim de averiguar a possível violação de direitos
humanos/fundamentais dos empregados de tais companhia. Justifica-se a escolha pela
reconhecida fragilidade de tal parte interessada para corroborar com o acima referido que são
os trabalhadores os que mais sofrem lesão aos seus direitos fundamentais, para além dos
demais agentes que com a empresa se relacionam, como consumidores, fornecedores,
acionistas, investidores etc.
12
As estatais já constituídas à época da promulgação da lei terão 24 meses para se adaptar às disposições da Lei
13.303, conforme redação de seu art. 91.
13
Ver em: INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Governança Corporativa em
empresas estatais listadas no Brasil / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. São Paulo, SP : IBGC, 2017.
14
Disponível em: https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/mission, acessado em 02/11/2017.

693
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

As breves linhas traçadas sobre o tema têm o condão, repita-se, de chamar a atenção
para a vinculação dos estatutos sociais e códigos de conduta das sociedades de economia
mista como elemento também de instrumentalização de governança pública e corporativa,
que devem ser considerados quando da análise para efeitos de verificação de accountability e
responsividade do agente público ante ao agente privado também em sede de mercado de
capitais.

4.1. PETROBRÁS S/A

A Petrobrás S/A é uma sociedade de economia mista da União, vinculada ao


Ministério de Minas Energia15, e tem por objeto, nos termos do art.3º do seu estatuto social:

Art. 3º- A Companhia tem como objeto a pesquisa, a lavra, a refinação, o


processamento, o comércio e o transporte de petróleo proveniente de poço, de xisto
ou de outras rochas, de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos
fluidos, além das atividades vinculadas à energia, podendo promover a pesquisa, o
desenvolvimento, a produção, o transporte, a distribuição e a comercialização de
todas as formas de energia, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou
afins.

Recentemente a Petrobras foi reconhecida “como uma das empresas brasileiras que
mais atendem a requisitos de conformidade, práticas de mercado e excelência em governança
e transparência” pela Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest)
para a formação do inédito Indicador de Governança (IG Sest), merecendo ser destacado ter
recebido nota 10 em todos os quesitos. 16 Também está previsto uma reformulação do estatuto
da estatal a fim de que se faça uma adequação do mesmo as novas regras impostas pelo
estatuto das estatais.17
Sobre suas ações, de acordo com a tabela abaixo, é possível identificar a composição
acionária em 30/09/2017:

Ações Ordinárias 7.442.454.142 100,00%


União Federal 3.740.470.811 50,26%

15
Vale mencionar que a estatal foi criada pela Lei 2004/1953. Seu estatuto social foi alterado pela Lei 9.478 de
1997 e recentemente tem previsão de ser novamente modificado.
16
Conforme pode ser verificado em: <http://www.petrobras.com.br/fatos-e-dados/lideramos-ranking-de-
governanca-e-transparencia-com-nota-maxima.htm>.Acesso em 14 nov.2017
17
Disponível em: http://www.valor.com.br/empresas/5193255/petrobras-convoca-assembleia-para-discutir-
reforma-do-estatuto-social>. Acessado em 14 nov 2017.

694
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

BNDESPar 11.700.392 0,16%


BNDES 734.202.699 9,87%
Fundo de Participação Social – FPS 6.000.000 0,08%
Fundo Soberano – FFIE 0 0,00%
ADR Nível 3 1.384.062.778 18,60%
FMP - FGTS Petrobras 200.964.801 2,70%
Estrangeiros (Resolução nº 2.689 C.M.N) 796.368.159 10,70%
Demais pessoas físicas e jurídicas (1) 568.684.502 7,64%
Ações Preferenciais 5.602.042.788 100,00%
União Federal 0 0,00%
BNDESPar 1.250.053.496 22,31%
BNDES 161.596.958 2,88%
Fundo de Participação Social – FPS 0 0,00%
Fundo Soberano – FFIE 0 0,00%
ADR, Nível 3 e Regra 144 -A 752.226.094 13,43%
Estrangeiros (Resolução nº 2.689 C.M.N) 1.520.973.047 27,15%
Demais pessoas físicas e jurídicas (1) 1.917.193.193 34,22%
Capital Social 13.044.496.930 100,00%
União Federal 3.740.470.811 28,67%
BNDESPar 1.261.753.888 9,67%
BNDES 895.799.657 6,87%
Fundo de Participação Social – FPS 6.000.000 0,05%
Fundo Soberano – FFIE 0 0,00%
ADR (Ações ON e PN) 2.136.288.872 16,38%
FMP - FGTS Petrobras 200.964.801 1,54%
Estrangeiros (Resolução nº 2.689 C.M.N) 2.317.341.206 17,76%
Demais pessoas físicas e jurídicas (1) 2.485.877.695 19,06%

Tabela 1
Fonte: (Petrobras; 2017)

Tal tabela revela a divisão das ações em ordinárias e preferências. Estas sem direito
a voto por determinação do parágrafo único do art. 62 da Lei 9.478. Destarte, a União detém
50,26 % das ações ordinárias. Ressalte-se a participação do BNDES e do BNDESPar, tanto
no quadro de ações ordinárias, tanto no de ações preferenciais. A Petrobras negocia suas
ações na Bolsa de Valores de Nova Iorque (NYSE – New York Stock Exchange),

695
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

submetendo-se, portanto, a níveis mais exigentes de governança do que os necessários para


negociar na B3.
No Código de Conduta da Petrobras não há uma referência expressa e genérica em
relação ao respeito aos direitos humanos/fundamentais, embora contenha referências a alguns
direitos em dispositivos do documento, como o direito de isonomia, do meio ambiente
equilibrado, etc. No entanto, como tal empresa estatal está vinculada ao Pacto Global da ONU
e seus dez princípios, a Petrobras manifesta sua vontade na promoção dos direitos humanos,
uma vez que os dois primeiros princípios de tal pacto geram a obrigação de “apoiar e respeitar
os direitos humanos reconhecidos internacionalmente e de não ser cúmplices em violações de
direitos humanos”18. Também possuem comandos específicos em relação ao trabalho forçado
e infantil, os quais aqui são considerados como desdobramentos de direitos fundamentais.
No plano prático foram encontradas no banco de dados do MPT-RJ duas
recomendações caracterizadoras de violações incompatíveis com os compromissos assumidos
pela Petrobras A primeira, a Recomendação nº 922.201519, de 11 de fevereiro de 2015,
exarada pela Procuradoria do Trabalho do Município de Cabo Frio, recomenda: “Somente
reativar a calderaria da Plataforma P - 18, após a instalação de um sistema de renovação de
ar a fim de eliminar gases, vapores e fumos empregados durante os trabalhos a quente”
(MPT, 2015, p.1). Tal recomendação demonstra que o ambiente de trabalho na referida
calderaria não era o adequado ao resguardo da incolumidade física dos trabalhadores.
A segunda, a Notificação Recomendatória nº 165136/201620, de 13 de maio de
2016, exarada pela Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, destinada à Petrobras
Transportes - Transpetro S/A – subsidiária da Petrobras e, portanto, submetida aos mesmos
compromissos –, na qual o membro do MPT recomenda que tal companhia “se abstenha de
adotar quaisquer medidas que atentem contra o exercício do direito de greve dos seus
empregados, em especial daqueles expressamente previstos no art. 6º da Lei nº

18
Principle 1: Businesses should support and respect the protection of internationally proclaimed human rights;
and;Principle 2: make sure that they are not complicit in human rights abuses. Disponível em:
https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/mission/principles, acessado em 02/11/2017.
19
Disponível em: http://www.prt1.mpt.mp.br/component/mpt/?task=baixa&format=raw&arq=Ch6_yP7BU7lIK6
x4RUYfsfHlXtrG3or4h2WtPnDHWWfnksqIBrg1_JWA6eK8HK8aHunr6AzeBnRj60VsCj-kC5RxbfFxv4z3fpg
GJM7jX-L9clgUfxw3ewq2c5EjeFRX, acessado em 02/11/2017.
20
Disponível em: http://www.prt1.mpt.mp.br/component/mpt/?task=baixa&format=raw&arq=Ch6_yP7BU7lIK6
x4RUYfsfHlXtrG3or4h2WtPnDHWWftAmkR2DTH6W4GLG63qkklWqEt-ZoZcAKIimSLJQhQGJRxbfFxv4
z3fpgGJM7jX-L9clgUfxw3ewq2c5EjeFRX, acessado em 02/11/2017.

696
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

7.783/1989”21 (MPT, 2016, p.2). Exsurge, portanto, da leitura de tal documento a agressão ao
direito fundamental à greve garantido no art. 9º da Constituição Federal.

4.2 COPEL

A Companhia Paranaense de Energia S/A – Copel é uma sociedade de economia


mista do Estado do Paraná, de capital aberto, que tem entre os sócios a BNDESPar. Abriu seu
capital em 1994 e em 1997 foi a primeira empresa do setor elétrico brasileiro a ter suas ações
negociadas na bolsa de Nova York. Possui ações negociadas também na bolsa de valores de
Madri. Integram oficialmente o Nivel 1 da B3 e é uma empresa com alto grau de governança
corporativa, tendo, inclusive, se antecipando ao estatuto das estatais e reorganizado sua
estrutura interna na luta contra corrupção.
Conforme consta de seu Código de Conduta, a Copel recomenda “respeitar os
direitos humanos e trabalhistas e adotar práticas que contribuam para a erradicação do
trabalho forçado ou compulsório e do trabalho infantil”, bem como entende ser conduta não
aceita a de “desrespeitar a proteção dos direitos humanos reconhecidos
22
internacionalmente”. Em relação aos clientes interno a Copel ainda assevera que não é
conduta não aceita a que “discriminar qualquer pessoa por cor, etnia, classe social,
convicção política, naturalidade, sexo, identidade de gênero, orientação sexual, credo,
religião, culto, idade, deficiência, nível de escolaridade, nível hierárquico, cargo e função” e
com relação aos clientes externos aponta ser conduta não aceita a de “discriminar clientes,
seja por cor, etnia, classe social, convicção política, naturalidade, sexo, identidade de
gênero, orientação sexual, credo, religião, culto, idade, deficiência, nível de escolaridade,
origem, porte econômico ou localização geográfica”. Assim, tem-se que a Copel está
diretamente e fortemente comprometida com a proteção dos direitos humanos/fundamentais.
A empresa também informa em seu Código de Conduta que possui um portal – Portal

21
“Art. 6º São assegurados aos grevistas, dentre outros direitos: I - o emprego de meios pacíficos tendentes a
persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve; II - a arrecadação de fundos e a livre divulgação do
movimento. § 1º Em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou
constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem. § 2º É vedado às empresas adotar meios para
constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do
movimento. § 3º As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao
trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa.”
22
Conforme disponível em:
<http://www.copel.com/hpcopel/root/sitearquivos2.nsf/arquivos/conduta_port/$FILE/ codigo_conduta.pdf>.
Acesso em 15 de nov.2017

697
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Compliance – que possibilita a implementação de maior transparência, segurança e demonstra


o comprometimento da empresa com sua conduta ética.23
Em sendo realizada uma busca junto ao MPT do Estado do Paraná para verificar se
alguma conduta contrária ao estabelecido em relação ao proposto em face da proteção dos
direitos humanos/fundamentais, cabe observar que nada foi encontrado, levando a crer que a
companhia segue à risca seu Código de Conduta e seu estatuto social, bem como as demais
regras no que diz respeito aos direitos humanos/fundamentais.
Merece ser destacado que a Copel ainda possui um Conselho de Orientação Ética –
COE, o qual é formado por doze conselheiros, sendo onze empregados e um representante da
sociedade civil, que tem por objetivo fazer valer as orientações contidas no Código de
Conduta da Companhia.24
A tabela abaixo expõe o quadro societário da companhia:

Acionistas ON % PNA % PNB % TOTAL %


Estado do Paraná 85.029 58,6 - - - - 85.029 31
BNDESPAR 38.299 26,4 - - 27.282 21,3 65.581 24
Eletrobras 1.531 1,1 - - - - 1.531 0,6
Custódia da Bolsa 19.874 13,7 77 23,4 100.964 78,7 120.915 44,2
B3 18.610 12,8 77 23,4 64.949 50,6 83.636 30,6
NYSE 1.264 0,9 - - 35.932 28 37.196 13,6
LATIBEX - - - - 83 0,1 83 -
Outros 298 0,2 252 76,6 49 - 599 0,2
TOTAL 145.031 100 329 100 128.295 100 273.655 100
Tabela 2

23
“Comprometida com a conduta ética e visando maior transparência e segurança de suas atividades, a Copel
possui o Portal Compliance e o Programa de Integridade, incentivados pela alta direção da Companhia. A
disponibilização de canais de acesso, abertos e amplamente divulgados ao público, empregados e terceiros,
expressa o compromisso da Copel com o cumprimento efetivo deste Código de Ética e de Conduta Empresarial.
Estes canais fazem parte do sistema de compliance adotado pela Companhia”. Disponível em:
<http://www.copel.com/hpcopel/root/sitearqui vos2.nsf/arquivos/conduta_port/$FILE/codigo_conduta.pdf>.
Acesso em 15 nov. 2017.
24
Nos termos do Código de Conduta: “O Conselho de Orientação Ética – COE é constituído como um colegiado
vinculado administrativamente à Presidência, com a atribuição de contribuir para que a atuação da Companhia
seja permanentemente conduzida por princípios moralmente sãos no desenvolvimento de seus negócios, bem
como pela divulgação e efetiva aplicação dos preceitos e orientações deste Código de Conduta por parte dos
empregados, administradores e contratados, em consonância com os valores da Copel, os Princípios do Pacto
Global e os Princípios da Governança Corporativa. O COE aprecia e emite orientação em processos relacionados
à conduta ética na Companhia. Para garantir transparência e autonomia, o COE é constituído por doze
conselheiros, dos quais onze são empregados da Copel nomeados através de circular e um é representante da
sociedade civil”. Disponível:
<http://www.copel.com/hpcopel/root/sitearquivos2.nsf/arquivos/conduta_port/$FILE/codigo_conduta.pdf>.
Acesso em 15 nov. 2017.

698
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Fonte: (COPEL, 2017)

4.3. COMPANHIA DE ÁGUAS E ESGOTO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO –


CEDAE

A Companhia de Águas e Esgoto do Estado do Rio de Janeiro – CEDAE, é uma


sociedade de economia mista, tendo 99,9996% das ações titularizadas pelo Estado do Rio de
Janeiro, e outras 0,0004% das ações de acionistas minoritários25. A falta de governança é
facilmente observável: basta a não disponibilização do estatuto social da companhia em seu
sítio eletrônico.
Há um Código de Ética26 da companhia, porém não contém previsão expressa de
promoção dos direitos fundamentais. Contudo, pode ser extraído do item 3.1 tal preceito,
visto que em tal item há a previsão do respeito à legislação como um princípio ético da
companhia. Além disso, há a previsão de um Comitê de Ética no item 16 a fim de
implementar as normas do Código de Ética e Conduta.
Na Recomendação nº 7116.201627, exarada pela Procuradoria do Trabalho no
Município de Petrópolis, ficou constada violações aos direitos fundamentais perpetradas pela
Cedae ao oferecer um ambiente de trabalho inadequado aos seus trabalhadores da Estação de
Tratamento de Água de Paraíba do Sul.

CONCLUSÃO

Do exposto, pode-se dizer que as sociedades de economia mista ainda precisam


melhorar e muito em suas boas práticas de governança, seja para atingir os objetivos da nova
legislação em relação à governança corporativa das estatais, seja para implementação mesmo
das regras de direito público já devidamente expostas na Constituição Federal de 1988.
Em que pese a existência de normas e recomendações nacionais e internacionais é
possível perceber que o mercado de capitais ainda não deitou maiores atenções para o

25
Tal informação foi obtida no seguinte endereço: <http://www.cedae.com.br/portals/0/ri_cedae/a_cedae/distri
buicao_capital/distribuicaodosacionistas.pdf>
26
<http://www.cedae.com.br/Portals/0/codigoconduta.pdf>
27

<http://www.prt1.mpt.mp.br/component/mpt/?task=baixa&format=raw&arq=Ch6_yP7BU7lIK6x4RUYfsfHlX
trG3or4h2WtPnDHWWfFQ9k7TdFR6vM_8Gu2L0QaBlNeAXukdRmCy2gAz_jqf5RxbfFxv4z3fpgGJM7jX-L
9clgUfxw3ewq2c5EjeFRX>

699
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

desenvolvimento prático das condutas assumidas no âmbito interno das companhias, condutas
estas que servem para traçar um norte ao investidor – e talvez aos demais agentes que se
relacionam com a companhia –, mas que não demonstram ter eficácia direta e ser condutas
efetivamente assumidas e seguidas pelas companhias de uma maneira geral.
A melhora na exigência de maior governança por parte da legislação, ainda que
pendente de melhoras na própria legislação, já aponta para um comportamento mais
condizente com a exigência do mercado, ao qual as sociedades de economia mista terão que
se adaptar, não podendo mais ficarem sob o manto da proteção do interesse público e de
normas de direito administrativo que impediam, de certa forma, maior acesso a informações
não só em relação ao atuar econômico da sociedade, mas também em relação ao seu agir em
conformidade com os ditames legais, tais quais os relacionados a proteção de direitos
fundamentais, direcionando a companhia para aquilo que podemos considerar como sendo
uma maior interação ética das estatais e mais alinhadas também com a teoria do Capitalismo
Consciente, em razão da personalidade jurídica de direito privado que recobre as sociedades
de economia mista, de forma que o interesse público possa ser identificado na realização
mesmo dos direitos humanos/fundamentais.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Empresas Estatais. Gen-Forense: São Paulo, 2017.

BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 10 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

COSTA, Fernando Nogueira da. Economia comportamental: de volta à filosofia, sociologia e psicologia.
IE/UNICAMP, Campinas, n. 173, dez. 2009.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Governança Corporativa em empresas


estatais listadas no Brasil / Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. São Paulo, SP: IBGC, 2017.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Portal da Transparência. Disponível em:<


http://portal.mpt.mp.br/MPTransparencia/>, acessado em 01/11/2017.

ROCHA, Arlindo Carvalho. Contabilidade, Gestão e Governança, Brasília, v. 14, n. 2, p. 82 - 97 ·mai/ago 2011.
Disponível em: <https://cgg-amg.unb.br/index.php/contabil/article/viewFile/314/pdf_162>. Acesso em: 05 de
out.2017.

SISODIA, Rajendra S.. Doing business in the age of conscious capitalism. Journal of Indian Business Research
Vol. 1 Nos 2/3, 2009. pp. 188-192.

VERGARA, Sylvia Constant; BRANCO, Paulo Durval. Empresa Humanizada: a organização necessária e
possível. RAE - Revista de Administração de Empresas. Abr./Jun. 2001. São Paulo, v. 41, n. 2, p. 20-30.

700
O IMPACTO DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS
NA PRODUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

LOPES, Monique Rodrigues


Historiadora (UFV-MG); acadêmica em Direito (Estácio-JF-MG); Mestranda no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF)

RESUMO

A atuação dos movimentos de mulheres e feministas no Brasil tem sido de grande importância na
consolidação e garantia dos direitos das mulheres e na luta pela equidade de gênero. Nesse sentido, este
trabalho busca compreender a trajetória brasileira de luta das mulheres, desde a década de 1980 até os
dias atuais, no que tange a efetiva promoção de seus direitos a contar qualquer tipo de discriminação.
Como a estrutura de dominação do direito pode ser quebrada pela atuação tática do movimentos das
mulheres e feminista? Como instituições, Ongs, associações e movimentos na luta pelos direitos das
mulheres tem se articulado na promoção e garantias dos direitos das mulheres principalmente após o
final da década 1980? Desta forma, traçaremos a história da inclusão das pautas feministas nesses
movimentos e organizações, os avanços alcançados na luta pelos direitos das mulheres e o que muito
há por fazer pelas mulheres brasileiras.

Palavras-Chave. Feminismo, Direito das Mulheres, Esfera pública, movimentos sociais, trajetórias
históricas

O impacto das trajetórias feministas na construção de direitos para mulheres e de


políticas públicas, vem ao longo da história se mostrando em constante construção. Sabemos
que a história é julgada não mais em um aspecto autorreferencial, “mas em função do respeito
ou do desprezo com que os direitos humanos são tratados” (TOURAINE, 2011, p.27). Esse
construir a história é algo peculiar entre as mulheres. Se uma das teorias sociais mais
influentes apostou na historicidade com início, meio e fim – nomeadamente o Marxismo -o
feminismo praticante, isto é, o da vida cotidiana das mulheres parece não depositar sua fé em
localizar as práticas em uma determinada etapa dessa história como devir. No trabalho
empírico de Touraine, é possível observar que as mulheres avaliam sua situação na hora
presente, não como etapa histórica de um contínuo. Conta-nos Touraine:

[a]s mulheres que ouvimos não falavam nem de progresso nem de retrocesso, ao
passo que os homens, e por consequência os discursos que eles detêm, quase
sempre falam em progresso ou retrocesso, mesmo quando se inquietam com as
ameaças que pesam sobre um desenvolvimento durável (2011,p.72)

701
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Dessa maneira percebe-se o gênero como ato fundador da identidade da mulher. É


pela sexualidade que a mulher começa a se construir e a se avaliar; a sexualidade enquanto
desejo como fim em si mesmo está radicada no sujeito, diferente da ideia de libertação ou de
progresso, que estão radicadas na história enquanto plano evolutivo (ou evolucionário, se
preferir). A observação de Touraine é precisa e contundente quando afirma que colocar a
sexualidade sob foco significa passar da narrativa coletivizante para a narrativa individual.
Essa mudança é difícil de ver expressa nos homens, posto que sempre tivessem sua voz
ouvida no cenário público, lócus ainda que soe ensurdecedora ausência de voz feminina, um
silêncio que diz muito.
A sociedade brasileira está estruturada de forma piramidal, marcada fortemente pela
desigualdade social e, para refletir sobre essa questão, devemos levar em consideração suas
multi-dimensões (gênero, sexualidades, raça/etnia, classe social, geração...), compreendendo-
as enquanto fenômenos que estruturam relações sociais e apresentam suas peculiaridades,
porque se inscrevem no domínio da história. No mundo e, especificamente no Brasil, as
mulheres vivenciam uma desvantagem sistemática em relação aos homens em quase todos os
indicadores sociais. Refletir sobre a categoria gênero é extremamente importante para a
discussão da igualdade no contexto da sociedade como um todo. A atuação dos movimentos
de mulheres e feminista no Brasil tem sido de grande importância na consolidação e garantia
dos direitos das mulheres e na luta pela equidade de gênero. Nas últimas décadas, a atuação
desses movimentos foi fundamental para a formulação, implantação e implementação de
políticas públicas de gênero no país, nos diferentes níveis de governo (municipal, estadual e
federal) e nos vários campos das políticas, dentre as quais: a assistência, a saúde, a educação e
a violência.
Nesse sentido, o presente trabalho busca identificar como esses movimentos tem se
articulado, isolada e conjuntamente, para vocalizar as pautas das mulheres, pautas comuns e
específicas (se pensarmos nas especificidades das transversalidades e interseccionalidades,
como mulheres brancas, mulheres negras, mulheres campesinas, mulheres transexuais e etc.),
no espaço público e como a institucionalidade tem lidado com essas pautas.
Nessa esteira de lutas, conquistas e desafios enfrentados pelos movimentos
feministas no que tange o período da nova constituinte, o de redemocratização e o dias atuais,
destacamos alguns acontecimentos de suma importância para consolidação dos direitos das
mulheres. Essas transformações estruturais, somadas ao esforço já realizado pelos movimento

702
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

feminista e de mulheres, tornaram ilegítimas as assimetrias artificiais entre homens e


mulheres e criaram uma base sólida para a construção social, edificada e sustentada na justiça
e nos direitos humanos (BLAY; AVELAR,2017).
Os avanço nas condições de vida das mulheres, na saúde, na educação, no mercado
de trabalho, entre outros é uma revolução lenta mas contínua e que na palavras de Eva Blay,
não está imune a retrocessos, como veremos mais adiante. Assim destacamos alguns
acontecimentos como a criação do Geledés, Instituto da mulher negra em 1988, que é uma
organização política contra o racismo e o sexismo. Sendo uma das maiores ONGS de
feminismo negro do Brasil com várias campanhas e ações significativas contra o racismo.
Seus canais de comunicação estão sempre atualizados com temas de direitos humanos,
gênero, educação, saúde, com diversas pesquisas públicas com relação a esses temas.
Já após o período de redemocratização temos em 1992 a criação da Rede Nacional
Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos que vem reafirmar princípios já explicitados na
Constituição Federal de 1988, em específico, o conteúdo do Artigo 226, § 7º, que “dispõe
sobre o direito de mulheres e homens decidirem livremente sobre concepção e anticoncepção,
e o dever do Estado de informar e assegurar a prestação dos serviços necessários para a
garantia desses direitos”.
Tais questões no início da década de 1990, principalmente com a Conferência do
Cairo (CIPD, 1994) e na Rio 92 ganhavam as pautas das discussões e movimentos de
mulheres pela questão de se colocar os direitos reprodutivos como direitos humanos pela
primeira vez. A emblemática questão do controle populacional imposto pelos Estados
principalmente nos países pobres também ganhava pautas de discussão. Em seu documento
final, (parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo) a questão do aborto inseguro aparece
como um grave problema de saúde pública.
Pouco tempo depois, a IV Conferência Mundial sobre Mulheres (Beijing, 1995),
Intitulada “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, partiu de uma avaliação dos
avanços obtidos desde as conferências anteriores (Nairobi, 1985; Copenhague, 1980; e
México, 1975) revelou a distância das mulheres dos espaços de poder e a relação entre o
empoderamento de gênero e a superação dos desequilíbrios mundiais.
É importante registrar que a IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, em 1995)
reconheceu que as assimetrias de gênero são condicionadas, também, pelas políticas públicas
e recomendou duas estratégias para alcançar a igualdade entre os homens e as mulheres: a

703
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

transversalidade em todos os processos de tomada de decisão e o empoderamento das


mulheres.
Assim, surgiu a perspectiva da “transversalidade de gênero” nas políticas públicas
visando à garantia e à ampliação dos direitos humanos das mulheres. A Conferência também
nomeou doze áreas de atenção, a saber: a crescente proporção de mulheres em situação de
pobreza (fenômeno que passou a ser conhecido como a feminização da pobreza); a
desigualdade no acesso à educação e à capacitação; a desigualdade no acesso aos serviços de
saúde; a violência contra a mulher; os efeitos dos conflitos armados sobre a mulher; a
desigualdade quanto à participação nas estruturas econômicas, nas atividades produtivas e no
acesso a recursos; a desigualdade em relação à participação no poder político e nas instâncias
decisórias; a insuficiência de mecanismos institucionais para a promoção do avanço da
mulher; as deficiências na promoção e proteção dos direitos da mulher; o tratamento
estereotipado dos temas relativos à mulher nos meios de comunicação e a desigualdade de
acesso a esses meios; a desigualdade de participação nas decisões sobre o manejo dos
recursos naturais.
O Brasil teve participação ativa na Conferência de Pequim e em sua continuação.
Com o intenso diálogo entre o governo e a sociedade civil e com participação ativa dos
movimentos feministas, assim como da interação construtiva com os demais Poderes do
Estado, em especial parlamentares e representantes de conselhos estaduais e municipais sobre
a condição feminina. A aguda articulação com o movimento de mulheres, estabelecida desde
então, tornou-se elemento essencial à formulação das políticas públicas no Brasil, que hoje
incorporam a perspectiva de gênero de forma transversal.
Neste sentido de plataforma transversal, destaca-se também já nos anos 2000 a
criação da Secretaria de políticas para mulheres com vínculo ministerial que recentemente em
2016 no governo de Michel Temer foi extinta pela medida provisória 696 com a junção da
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir); Secretaria de Políticas para
as Mulheres (SPM); Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e Secretaria Nacional de
Juventude (SNJ).
Todas essas secretarias juntas, passando a ser vinculada ao Ministério da Justiça e
Cidadania. O que com enfatiza Eva Blay, são os retrocessos que caminham lado a lado com
as conquistas pois em um país como no Brasil de democracia tão jovem e frágil onde os
direitos das mulheres são desrespeitados constantemente, onde o número de mulheres

704
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

representa menos de 10% nas eleições de 2014 na Câmara Federal, perdendo o Brasil para
todos os países da américa do sul (BLAY, Eva. 2017, p.50); onde estima-se que cinco
mulheres são espancadas a cada 2 minutos; o parceiro (marido, namorado ou ex-
companheiro) é o responsável por mais de 80% dos casos reportados, segundo a
pesquisa “Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado” (FPA/Sesc, 2010).
Importante ressaltar a aprovação da Lei Maria da Penha (lei 11.340) em 2006 onde
todo o processo começou no Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (Cejil) e no
Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem). Quando os dois
órgãos e Maria da Penha formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o então marido dela, o
colombiano Heredia Viveiros. A discussão que chega ao governo federal coordenada pela
secretaria especial de políticas para mulheres e pela repercussão internacional coloca as
autoridades do país em cheque.
Ainda nesse caminhar das trajetórias da consolidação de direito das mulheres e sua
ocupação nos mais diversos espaços de poder temos em 2010 Dilma Rousseff eleita
presidente da República. Pela primeira vez uma mulher ocupa o cargo mais elevado do
executivo federal.
Entre erros e acertos desse período, não podemos deixar de mencionar o quanto
misógino foi o processo de impedimento da mesma presidente no decorrer de seu segundo
mandato em 2016. Vinculações de imagens depreciativas com referências claras ao estupro.
A imagem da presidenta - com as pernas abertas sobre a entrada do tanque de combustível –
foi adesivada em alguns automóveis, sugerindo a vulgaridade da pessoa, a violação de seus
direitos, enquanto mulher, bem como uma vontade de que a política, ou seja, sua gestão
explodisse com a injeção da bomba de combustível em seu corpo, no caso, na sua vagina. No
entanto, quando alguma crítica política se dirige ao homem, não verificamos os mesmo
adjetivos misóginos ou pejorativos no sentido de ofender sua sexualidade.
Tal fato nos remete a questão da virilidade e violência abordada por Pierre Bourdieu
(1998) no poder simbólico masculino dos espaços públicos no que o autor chama de
“‘agorafobia socialmente imposta’, que pode subsistir por longo tempo depois de terem sido
abolidas as proibições mais visíveis e que conduz as mulheres a se excluírem motu próprio da
agora”( BOURDIEU,1998. p.52), isso somado a dominação do assédio com a conotação da
bomba de gasolina entrando e explodindo, assim o que acontece é que ele (o assédio) “visa,

705
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

com a posse, nada mais que a simples afirmação da dominação em estado


puro”(BOURDIEU, 1998. p. 31).
Assim, naturalizando a presença do homem no espaço público e determinando
lugares privados à mulher, o discurso contemporâneo apresenta um forte domínio machista.
Os constantes comentários sobre a aparência de mulheres nos cargos públicos são parte desse
fenômeno, como se fosse um lembrete de que a função das mulheres no mundo ainda é
decorativa, haja vista a figura das primeiras-damas. Também é comum comentários acerca da
estabilidade emocional das mulheres/políticas. Insinuar que a mulher é louca e por isso
incapaz de gerir a Coisa pública chega a ser anacrônico, já que se baseiam nos argumentos do
passado, os mesmos que defendiam que a mulher não deveria votar e ser votada por ser
emocional demais. (KARAWEJCZYK, 2013).
Outra questão que pode ser analisada é a construção da autonomia e
responsabilidade das mulheres pelas decisões que mais lhe tocam em sua privacidade e
intimidade pelas instituições jurídicas. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 54, que tratou da possibilidade do aborto terapêutico na hipótese de feto anencéfalo em
2012 constitui um bom exemplo. Em seu bojo, ficou constatada a invisibilidade institucional
perpetrada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro. O órgão máximo do judiciário nacional,
guardião da Constituição, foi omisso, quando não enfrentou a possibilidade de antecipação de
parto terapêutico ou mesmo o aborto pela perspectiva da privacidade e autodeterminação da
mulher. Em uma discussão tecnicista que se circunscreveu em definir a atipicidade da conduta
do aborto de fetos anéncefalos, o STF deixou passar uma ótima oportunidade de colocar na
esfera pública as bases para a igualdade, equidade e autodeterminação das mulheres.
Não podíamos deixar de mencionar a votação ocorrida recentemente, no dia 8 de
novembro de 2017, da PEC 181, que em comissão especial foi aprovada na câmara dos
deputados por 18 votos a 1(somente essa era mulher), a apelidada de “cavalo de Troia” por se
tratar da ampliação de direitos trabalhistas, como o aumento do tempo da licença-maternidade
para mulheres cujos filhos nasceram prematuros, determina que a vida começa desde a
concepção. Ou seja, visa barrar a descriminalização do aborto, vetando a pratica em qualquer
situação mesmo nas já permitidas por lei como no caso de estupro, anencefalia do feto ou
gravidez com risco de morte para a mãe.
Protestos de movimentos feministas ocorreram nesse último mês nas principais
capitais de todo o país contra esse ato tomado e que para não passe pelas demais casas do

706
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

senado. Considerando nossa estrutura de sociedade machista e patriarcal, quaisquer


possibilidade das mulheres conseguirem o mínimo de direitos garantido na constituição,
Beauvoir (1967) afirma: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou
religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são
permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” (p. 21)
Os incentivos institucionais são extremamente importantes, justamente para
funcionarem como motor auxiliar na máquina de luta por direitos. O feminismo busca a
construção de uma ética pessoal e interpessoal; noutros termos, o que se busca é o
fundamento de uma ética que reflita no modo que alguém se relaciona consigo mesmo e com
os demais, bem como as instituições que normatizam e distribuem o discurso hegemônico.
Essa relação repercutirá na “orientação moral” e, consequentemente, na “concepção de
direitos” que conformam o tecido social (TOURAINE, 2011, p.73).

PRODUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES

Para Galeotti (2002) as políticas públicas estabelecem um vínculo com o Estado e a


sociedade civil além do mercado, assim esse vínculo não é imparcial porque implica sujeitos
sociais, posições e interesses diferentes. O Estado então é visto como arena de negociações e
articulações políticas, não deixando de destacar a relação entre economia e política que se
produz no capitalismo.
Conceitua então as políticas públicas como um meio pelo qual se distribuem
recursos econômicos e simbólicos. Se tratando de ações deliberadas, que levam a cabo atores
governamentais para determinar a forma em que serão atribuídos os recursos com vista a
satisfazer as necessidades e interesses da população. Essa intervenção do Estado estabelece
quem tem direito a que e quem não. Assim em cada momento da história as políticas públicas
constroem determinadas identidades coletivas. Para Galeotti (2002) praticas fortemente
naturalizadas e arraigadas se sustentam como fortes estereótipos e dificilmente são
consideradas questões que precisam de modificação.
Considerando a esfera social é um lugar privilegiado e que há uma contradição entre
o caráter social da força de trabalho e a apropriação privada da riqueza social. As relações de
exploração portanto não são só e classes, mas também opressão de sujeitos que ocupam
lugares subalternos, entre eles, as mulheres.

707
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Dessa maneira dentro das políticas sociais as políticas de gênero fazem referência as
políticas do Estado que buscam reduzir as desigualdades e descriminação entre os gêneros e
atender as mulheres na sua condição de subjugação. Assim, essa inclusão demanda uma
necessidade de redistribuição e também de reconhecimento, implicando condições matérias
de existência e também de “condições simbólicas” que quebrem uma somatização das
relações sociais de dominação. (BOURDIEU, op.cit p. 33)
Nessa esteira de reconhecimento e redistribuição a qual menciona Nancy Fraser
(2001), temos que esses vetores da justiça vão estabelecer como as disputas serão resolvidas.
A política lida assim como quem pode reivindicar e nesse sentido há uma problema de falsa
representação. Tanto as políticas de reconhecimento quanto a de redistribuição são ações de
transformação que buscam assim os problemas estruturais que as originaram.
Assim, a forma como homens e mulheres foram alocados no mundo público ou na
esfera privada, revela o caráter patriarcal da doutrina liberal que vem hoje sendo
reforçadamente denunciado pelas teorias feministas. Dessa maneira, a autora se apoia na ideia
de que a família e a vida pessoal são reguladas politicamente, assim sendo, “problemas
pessoais só podem ser resolvidos através de uma reflexão política e de uma ação política”
(LAVINAS apud PATEMAN,1989).
Dentro desse contexto de ação política que os movimentos organizados de mulheres
e feministas tem procurado exercer sobre as cidades, para Lavinas uma espécie de lar
expandido. Assim nesse sentido as mulheres fazem suas reivindicações colocadas pelas lutas
urbanas, como moradia, qualidade de vida e serviços básicos. Surge então uma questão nessa
relação que é as mulheres estabelecerem o Estado como interlocutor na luta por atendimento
as suas necessidades, via formulação de políticas públicas e esse Estado para qual se voltam
as mulheres é o mesmo patriarcal que se apropria do trabalho doméstico não remunerado
delas, da maternagem e no trato com os idosos. (LAVINAS.L,ibidem,1997).
Como esse estrutura de dominação do direito e do Estado pode ser quebrada pela
atuação dos movimentos feministas? Se percebemos o Direito como instrumento de uma
dominação historicamente masculina e patriarcal com reprodução dos valores
heteronormativos como afirma Catherine Mackinnon1 (1991a), vendo as leis de

1
Estamos cientes dos problemas epistemológicos de trabalhar com a leitura de Mackinnon sobre feminismo,
principalmente na questão da diversidade, dado as premissas radicais que ela evoca em seu discurso. Nada
obstante, para os fins deste trabalho, sua perspectiva de igualdade e papel do Direito nos serve bem como ponto de
partida.

708
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

discriminação sexual, que são analisadas dentro da teoria moral corrente, vêem as questões de
igualdade e gênero como questões de similitude e diferença. De acordo com essa abordagem,
que tem dominado a percepção política, jurídica e social, a igualdade é vista como
equivalência, não distinção, enquanto gênero é visto como uma distinção, não uma
equivalência.
O mandato legal da igualdade de tratamento, afirma Mackinnon, que é tanto uma
norma sistêmica quanto uma especificidade jurídica, se torna uma questão de tratar os iguais
como iguais e os desiguais a partir de suas desigualdades. Isto é, gênero é socialmente
construído como diferença epistemológica e a legislação limita a igualdade de gênero a partir
da diferença através da doutrina, o que acaba por não enfrentar diretamente a questão da
desigualdade histórica da vivência dos gêneros.
Como afirma Foucault (2014, p.37), existem “as sociedades do discurso, cuja função
é conservar e produzir discursos, mas para fazê-los circular em espaços fechados, distribuí-los
somente segundo regras restritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa
distribuição”, isto é, o Direito como dominação atribui papéis pré-estabelecidos. Assim, ainda
com Mackinnon (1991b), a dominância reificada torna-se diferença. A coerção legitimada
torna-se consentimento. A realidade objetificada torna-se ideias. Ideias objetificadas tornam-
se realidade; e a realidade é inquestionável.
Já buscando respostas na teoria feminista pós-moderna do direito, por mais que sua
proposta não seja oferecer respostas mas destrinchar os questionamentos, argumenta que as
abordagens comparativas do tratamento igual (mulheres são como os homens) e do
feminismo cultural (as mulheres não são como os homens) assumem erroneamente que todas
as mulheres são, grosso modo, iguais, tal como os homens (LEVIT e VERCHICK, 2006).
Neste sentido, defende, por um lado, que as categorias binárias de homem e mulher são
ambas um produto e reprodução de relações de poder, estando especialmente interessada em
analisar como mulheres e homens são construídos pelo direito e como o direito reproduz as
relações de gênero (MCCORKER et al., 2000). Por outro lado, recorre à ferramenta da
desconstrução para questionar a existência de verdades absolutas e, em especial, de um direito
imparcial e objetivo (LEVIT e VERCHICK, 2006).
Na mesma linha, isto é, sobre a necessidade de repensar o “como se faz” pela via
institucional, Judith Batller (2008) afirma que as teóricas feministas que debatem o papel de
dominação social via legislação compartilham de três premissas: as doutrinas jurídicas

709
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

convencionais, produzidas por homens, em uma sociedade dominada por homens, possuem
em si os preconceitos machistas, ainda que se digam ostensivamente neutros em relação a
gênero; a vida das mulheres são diferentes, por diversas razões, da vida dos homens, de modo
que as doutrinas tradicionais não conseguem encaixar ou retratar a realidade concreta das
vidas das mulheres; por fim, concordam que o desenvolvimento de uma teoria feminista do
Direito requer a produção de doutrina jurídica a partir de mulheres, que coloquem na teoria as
suas práticas, as suas vivências e suas perspectivas.
Neste sentido, a corrente feminista pós estruturalista vai dizer que o Direito não é
uma construção racional como a ciência jurídica propõe, menciona (OLSEN, 1990) tampouco
que o Direito seja masculino. O Direito não tem uma natureza imutável, ele é uma atividade
humana, uma prática social, que tem sido operada majoritariamente por homens e que, por
este motivo, as características culturalmente associadas ao masculino são ressaltadas e
valorizadas em detrimento das características associadas ao feminino, que não teriam sido
eliminadas, mas sim invisibilizadas. Então, a autora menciona que o “Direito é tão irracional,
subjetivo, concreto e particular como também pode ser racional, objetivo, abstrato e
universal”. (OLSEN, ibidem p. 32, 1990). Os estudos pós-estruturalistas vêm, assim,
confrontar o essencialismo da categorização de homens e mulheres feita por meio de valores
distintos e duais, sustentando que tal normatização é a própria origem das formas de opressão.
Assim, Olsen, parte da constatação de que desde o pensamento liberal, o nosso
pensamento (pensamento ocidental) se estruturou em torno de dualismos ou pares opostos:
ativo/passivo, racional/irracional, objetivo/subjetivo, cultura/natureza, universal/particular. Os
primeiros termos são culturalmente associados ao masculino e os segundos, ao feminino
(termos estão sexualizados e hierarquizados), de modo que esta bipolarização teria
contribuído para limitar o acesso e a influência das mulheres no Direito (já que o Direito é
identificado com o lado masculino dos dualismos).
Negando então que a irracionalidade e a passividade sejam categorias inerentes às
mulheres, pois elas teriam sido ensinadas a serem assim e isso precisa ser desconstruído, para
que as mulheres possam ter a capacidade de se desenvolver e, que a possibilidade de quebra
ou de inversão da hierarquia dos termos seria uma forma de subverter esses dualismos.
Nos perguntamos portanto como trazer essa perspectiva para o Direito? Sendo ele
participante da produção das identidades e na produção de políticas públicas é preciso incluir
o gênero no ensino do Direito, como aponta (REVOREDO, 2006). De acordo com a mesma,

710
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

isso poderia ser feito de duas formas: uma mudança de cima para baixo, reelaborando a
estrutura curricular das faculdades, com o objetivo de formar operadores do Direito
questionadores de uma ordem sexista e conscientes da bagagem cultural que pode ser
estendida para aplicação e criação das normas ou, uma mudança de baixo para cima, quando
os professores e professoras trazem esse debate para dentro de sala de aula, inclusive
propondo disciplinas que tratem sobre gênero e sexualidade. Mas, como aponta Smart (2000)
é preciso considerar que nem todos os alunos se interessam pelo assunto e que muitos, não se
interessam não porque não seja relevante, mas que esse estudo mais teórico e crítico não é
absorvido depois pelo mercado de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As transformações estruturais, somadas ao esforço já realizado pelos movimento


feminista e de mulheres, tornaram ilegítimas as assimetrias artificiais entre homens e
mulheres e criaram uma base sólida para a construção social, edificada e sustentada na justiça
e nos direitos humanos (BLAY,opcit, 2017). Sendo assim nenhum outro momento da história
foi tão fértil para mudanças como o século XXI.
Objetivando, pois, analisar a trajetória de lutas e conquistas dos movimentos
feministas no que tange o início do período de redemocratização no Brasil, bem como
fazendo uma análise de como as estruturas de dominação podem ser quebradas ou repensadas
por um viés que contemple de fato a mulher com a construção de políticas públicas que
construam identidades coletivas que realmente versem sobre um direito plural. Que rompa
com as práticas arraigadas e naturalizadas do sistema patriarcal e que o avance nas condições
de vida das mulheres, na saúde, na educação, no mercado de trabalho, na política.
E nesse caminhar de trajetórias que se encontram e sabendo que a revolução é lenta
mas contínua e que não está imune a retrocessos, seguimos na busca de uma sociedade sem
desigualdades sociais e de gênero, sendo essa uma meta a ser atingida ainda no século XXI.
(BLAY, op cit, 2017).

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 30 mai. 2016.

711
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia. 50 anos de Feminismo: Argentina, Brasil e Chile. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo,2017.

BEAUVOIR, Simone de.P. Segundo Sexo, Vol.2: A Experiência Vivida, Difusão Européia do Livro, 1967;

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo,2014

BORDIEU, Pierre. A Imagem Ampliada. A dominação masculina. Bertrando do Brasil, RJ.pp.13-67

BUTLER, Judith: Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilizaçao
brasileira, 2008.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In:


SOUZA, J (Org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.

FOUCAULT, Michel A Ordem do Discurso. Aula Inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de


dezembro de 1970. 19.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009a.

GALEOTTI, Elisabetta Ana. Cidadania e diferença de Gênero. O problema da dupla lealdade. In: SCOTT,
Joan W. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e o direito do homem. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2002.

LAVINAS, L. Gênero, cidadania e políticas urbanas. In: RIBEIRO, Luiz.C de Q, JUNIOR,Orlando A.dos S
(orgs.). Globalização, Fragmentação e reforma Urbana. O futuro das cidades brasileiras na crise.Rio de Janeiro:
Ed. Civilização brasileira, 1997.

LEVIT, N & R. R.M .VERCHICK (2006). A primer: femininist legal theory. USA, New York, New York
University Press.

MACKINNON, Catherine A. Sex Equality: On difference and dominance. In: MACKINNON, Catherine A.
Toward a feminist theory of State. Cambridge: Havard University Press, 1991a

_______. Toward Feminist Jurisprudence. In: MACKINNON, Catherine A. Toward a feminist theory of State.
Cambridge: Havard University Press, 1991b

MCCORKER, Jill, Schmitt, Frederika E., Hans, Valerie P. (2000), Gender, law, and justice?, in Joseph Sanders,
V. Lee Hamilton (eds.), Handbook of justice research in law,KluwerAcademic/Plenum Publishers, pp. 301-341.

REVOREDO, Marisol Fernández. Usando el género para criticar al Derecho. In: Derecho PUCP; No. 59
(2006); 357-369.

SMART, Carol. La teoria feminista y el discurso jurídico. In: BIRGIN, Haydée (comp.) El Derecho en el
género y el género en el Derecho. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2000, pp. 31-32.

OLSEN, Frances. El sexo del derecho. In RUIZ, Alicia E. C. (comp.). Identidad feminina y discurso jurídico.
Buenos Aires: Editorial Biblos, pp. 25-43.

TOURAINE, Alain. O mundo das Mulheres; tradução de Francisco Morás. 3ª ed.– Petropólis, RJ: Vozes, 2011

KARAWEJCZYK, Mônica. As filhas de Eva querem votar. Dos primórdios da questão à conquista do
sufrágio feminino no Brasil (c.1850-1932). 398 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

Edisciplinas USP acessado em 10 de novembro de 2017. Disponível em:


https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/169650/mod_resource/content/2/Texto%20DDSSDDRR.pdf

712
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Secretaria de políticas para mulheres, acessado em 29 de outubro de 2017. Disponível em:


http://www.spm.gov.br/sobre/a-secretaria

Agencia Patrícia Galvão, acessado em 15 de novembro de 2017. Disponível em:


http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/violencia-domestica-e-familiar-contra-as-mulheres/

Revista Carta Capital, acessado em 15 de novembro de 2017. Disponível em:


https://www.cartacapital.com.br/politica/comissao-aprova-projeto-que-restringe-aborto-ate-em-caso-de-estupro

O poder do direito e o poder do feminismo: revisão crítica da proposta teórica de Carol Smart (PDF Download
Available). Available from:
https://www.researchgate.net/publication/263203342_O_poder_do_direito_e_o_poder_do_feminismo_revisao_
critica_da_proposta_teorica_de_Carol_Smart. Acesso em 22 de Novembro 2017.

713
ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS
CONDENADOS (APAC) COMO POLÍTICA PÚBLICA
ALTERNATIVA AOSISTEMA CARCERÁRIO CONVENCIONAL

NUNES, Isabela Gomes


Bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida.
RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense.
Pós-Graduada em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Professora de Direito Constitucional ede
Direitos Humanos em Instituições de Ensino Superior.

RESUMO

O presente trabalho visa demonstrar, através da jurisprudência, da doutrina e de dados numéricos, que
o sistema prisional brasileiro não cumpre com um dos seus objetivos centrais, qual seja, a
ressocialização dos condenados. Para ocorrer uma mudança nesse quadro deve ser aplicada uma nova
política pública ao sistema carcerário. Com esse objetivo, será demonstrado o método APAC como
política pública alternativa ao sistema penitenciário convencional. O método já é aplicado em alguns
Estados brasileiros e também outros países. Os resultados da aplicação do método “apaqueano” têm
sido positivos, pois respeita os direitos fundamentais do ser humano no momento da execução da pena
e os ditames previstos na lei de execução penal, de forma que o nível de reincidência torna-se baixo e o
custo mensal de cada preso é reduzido pela metade, se comparado com os números do sistema
prisional atual.

Palavras-Chave. sistema prisional brasileiro; direitos fundamentais dos presos; Estado de Coisas
Inconstitucional; execução penal; Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC).

ABSTRACT

This work intend to demonstrate that the brazilian prison system do not fulfill its main goal: the re-
socialization of prisioners. Therefore, it will be shown the APAC as a alternative public policy. This
system has been aplied in some brasilian states and in others countries. The consequences of adopting
this method are positive: the fundamental rights of prisioners are respected, the predictions of penal
execution law are fulfilled, the nível of recidivism are low and the cost is cut in half if compare with the
tradicional system.

Keywords. Brazilian Prision System; fundamental rights of prisioners; unconstitutional state of affair;
penal execution; APAC.

714
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal vem enfrentando importantes questões


com relação ao sistema penitenciário brasileiro. A Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 347 é um novo marco nesta temática, tendo em vista que declarou que o
sistema penitenciário brasileiro vive em um “Estado de coisas inconstitucional”1, ou seja,
encontram-se dentro desse sistema inúmeras violações diretas à Constituição da República
Federativa do Brasil, em especial no que tange a proteção dos direitos dos presos.
Conforme o Informativo da Rede de Justiça Criminal nº 8 - de janeiro de 2016, a
população carcerária brasileira já passa de 600.000 presos2, sendo que 41% destes presos são
provisórios3.O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, estando atrás apenas de
Estados Unidos, China e Rússia. Porém, a punição excessiva não fez com que os índices de
violência regredissem4.
Este artigo propõe a discutir sobre a necessidade de implementação da Associação
de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) como uma política pública alternativa ao
sistema carcerário brasileiro, tendo em vista a falência da Lei de Execução Penal, no que
tange a sua implementação e efetividade.
A APAC vem se demonstrando um modelo prisional bem-sucedido comparado ao
atual, garantindo um cumprimento de pena digno e humano. São propiciados aos apenados
meios para que, ao fim da sua condenação, possam ser realocados no mercado de trabalho e,
consequentemente, reinseridos na sociedade.
Assim, a presente pesquisa, partindo do pressuposto do colapso do sistema prisional
brasileiro, apresenta o método “apaqueano” como possível política pública alternativa à crise
penitenciária que vive atualmente o Brasil. Para tanto, serão trazidos breves dados sobre a
crise do sistema penitenciário atual. Posteriormente, impõe a análise do estudo do caso
escolhido, ou seja, será analisado o método APAC e seus resultados positivos, em dados
numéricos, na recuperação do apenado. Por fim, será demonstrado como a adoção da APAC
enquanto política pública alternativa de implementação de eficiência e eficácia no alcance de

1
ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO
ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.
2
INFORMATIVO REDE DE JUSTIÇA CRIMINAL, São Paulo: ed. 8, jan. 2016.
3
Idem
4
Ibidem.

715
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

um dos objetivos da pena, qual seja, a recuperação do apenado e a sua reinserção sadia no
meio social.

1. O COLAPSO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Vivemos em um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamento


supremo de validade e ápice axiológico a Constituição da República Federativa do Brasil
(CRFB). O texto constitucional brasileiro um extenso catálogo de direitos civis e políticos,
econômicos, sociais e culturais, direitos transindividuais, além de possibilitar a proteção de
direitos implícitos5. Nossa Constituição, considerada Cidadã, prevê diversos normativos
protecionistas, garantindo direitos fundamentais dos seres humanos.
Todas essas prerrogativas devem também alcançar aqueles que se encontram
privados da sua liberdade de locomoção em razão do cometimento de ilícitos penais.
Compactuando com este entendimento, Rodrigo Roig6 salienta que:

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, estabelece como


fundamentos a prevalência dos direitos humanos, o respeito à cidadania, a
dignidade da pessoa humana e a tutela dos direitos e garantias individuais. Não
obstante, o sistema carcerário em nosso país evidencia, e sempre evidenciou, a
abissal distância entre a existência formal dos preceitos normativos e sua eficácia
concreta, como meios de contenção do arbítrio estatal sobre o indivíduo.

Como se afirma acima, apesar da Magna Carta dispor estes direitos e garantias ao
preso, a norma constitucional torna-se inócua e vazia de sentido frente à realidade do sistema
prisional brasileiro, pois não é devidamente aplicada na execução penal, tornando o texto
constitucional uma mera diretriz, quando deveria ser mandamental, sendo claro, como será
disposto a seguir, a ineficiência do Estado Brasileiro na implementação dessa política pública
O que se vê, no sistema penitenciário brasileiro, é a total discrepância entre o que é
determinado na Constituição e na lei de execução penal com o que realmente ocorre dentro do
cárcere. Ao preso e ao internado devem ser garantidos todos os direitos que não se oponham
ao que lhe foi retirado pela sentença: sua liberdade de locomoção.

5
CRFB, art. 5, § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte.
6
ROIG , Rodrigo Duque Estrada. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Saraiva, 2006. p.15.

716
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Como consequência da não observância dos direitos e garantias fundamentais e


também da não efetivação das medidas dispostas na lei de execução penal, que disciplina
maneiras para que haja reinserção social, vivemos em um total caos penitenciário, com
motins, mortes dentro do sistema carcerário, proliferações de doenças e reincidência
criminal7.
Neste sentido, Rogério Greco8 enumera os diversos episódios onde ocorreu a falha
total do Estado brasileiro, entre estes, pode-se citar para melhor elucidar a questão9: o
“massacre do Carandiru” em 1992; as rebeliões simultâneas em 73 presídios Paulistas
comandadas pelo Líder do PCC em 2006; a Rebelião que ocorreu no presídio conhecido
como Urso Branco em Rondônia onde houveram execuções sumárias do alto do prédio do
presídio; e, mais atualmente, o que aconteceu no Complexo de Pedrinhas – São Luís do
Maranhão, entre os anos de 2010 a 2014, onde inúmeros presos foram mutilados e/ou mortos.
Cabe ressaltar que grande parte dessas falhas foram constatadas pela Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que visitou inúmeros presídios dos Estados
brasileiros10.
Nesse contexto, torna-se evidente e notório o descumprimento do supraprincípio da
dignidade da pessoa humana, alicerce da Constituição e fundamento da República Federativa
do Brasil, previsto no artigo 1º, inciso III da CRFB11, e que é garantido a todas as pessoas,
estejam elas dentro ou fora do cárcere.
Reiterando este entendimento, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – 347, afirmou que “deve o
sistema penitenciário nacional ser caracterizado como ‘Estado de coisas inconstitucional’”,
restando evidente que a Suprema Corte entende que essa política pública não vem sendo
aplicada de maneira eficiente, conforme o julgado e também as palavras da Ministra Cármen
Lúcia12.

7
GRECO, Rogério. Sistema Prisional: Colapso Atual e Soluções Alternativas.3. ed. Niterói: Impetus, 2016.
8
Idem 7.
9
Idem 7. p. 174 – 176.
10
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados apud .GRECO, 2016. p. 176.
11
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da
pessoa humana;
12
ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO
ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.

717
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nesse sentido, Carlos Alexandre de Azevedo Campos13 ressalta no sistema


penitenciário brasileiro estão evidenciados todos os pressupostos de configuração do Estado
de Coisa Inconstitucional14. Em suas palavras:

O sistema prisional brasileiro revela violação massiva e generalizada de direitos


fundamentais dos presos quanto à dignidade, higidez física e integridade psíquica.
A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e
presídios, mais do que inobservância da ordem jurídica correspondente pelo Estado,
configuram tratamento desumano, degradante, cruel, ultrajante e indigno a pessoas
que se encontram em custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em
nossos presídios convertem-se em cruéis e desumanas; os presos tornam-se “lixo
digno” do pior tratamento possível, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à
existência minimamente segura e salubre.

Adiante, pode-se observar a emenda da Decisão Proferida pelo Supremo Tribunal


Federal brasileiro, na Arguição de Preceito Fundamental 347, que na tendência da Corte
Colombiana, reconheceu que devido à situação degradante e caótica, que se encontra o
sistema penitenciário brasileiro, deve este ser configurado como Estado de Coisas
Inconstitucional, em consequência da precariedade das penitenciárias, onde é notada a
violação constante dos preceitos fundamentais, propondo o STF medidas para que haja uma
mudança dessa política pública15.

13
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional.1. ed. Salvador: JusPodvim, 2016.
p. 271.
14
Vale salientar que, o Estado de Coisas Inconstitucional foi reconhecido pela primeira vez pela Corte
Constitucional da Colômbia, em um processo que envolvia direitos previdenciários e de saúde de professores
municipais. Esta Corte é conhecida como modelo de ativismo judicial na América do Sul e uma das mais ativistas
do mundo, voltada, sobretudo, para o “controle das práticas políticas e das ações dos Poderes Executivos e
Legislativos, e a promoção dos direitos fundamentais, sociais e econômicos” (YEPES, 2007 apud CAMPOS,
2016. p. 100). Após este processo, diversos foram os temas que tiveram como fundamento o Estado de Coisas
Inconstitucional e foram acolhidos pela Corte Colombiana, como por exemplo, reivindicações por melhorias no
sistema prisional colombiano.
15
CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de
descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil.
SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES
DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS
ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de
violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas
públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e
orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “Estado de coisas inconstitucional”.
FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária
das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional.
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais,
observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos
Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso
perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão. (ADPF 347 MC,

718
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No mencionado julgamento, a Ministra Cármen Lúcia, quando do seu voto, que


acompanhou o relator, destacou a importância de haver uma discussão junto à sociedade
sobre este tema, pois “faliu esse tipo de penitenciária que vem sendo feita”16 no Brasil. Além
disso, ressaltou que, para que haja efetivação das leis, deve-se pensar em novos modelos
prisionais, e mencionou a experiência da parceria público-privada nas penitenciárias de Minas
Gerais, afirmando que é um modelo completamente diferente de tudo que ela já havia visitado
no país17.
De acordo com o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias –
Infopen, publicado em dezembro de 2014, existem 622.202 presos no Brasil. Deste elevado
número, cerca de 41% são presos provisórios, isto é, em número são 249.668 indivíduos que
sequer foram condenados18.
Entre os anos de 2002 e 201319, a população brasileira aumentou 15%, em
contrapartida a população carcerária teve um acréscimo de 140%. Se formos abranger a
análise para um período maior, pode-se dizer que nos últimos 14 anos houve um acréscimo de
167,32% de pessoas encarceradas no Brasil20.
Em razão disso, o sistema carcerário atual encontra-se em evidente a superlotação,
apesar de ter sido triplicado o número de vagas entre 2000 a 201421. Em dados numéricos
pode-se dizer que são 16 presos para 10 vagas dentro do sistema carcerário brasileiro22.
Após esta análise, é notório a ineficiência do Estado Brasileiro na implementação
dessa política pública, sendo visto diversos aspectos onde é descumprida a lei de execução
penal e demais direitos fundamentais descritos na Constituição da República. O sistema

Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO
DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016).
16
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF determina realização de audiências de custódia e
descontingenciamento do Fundo Penitenciário. Brasília, 09 set. 2015. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo= 299385>. Acesso em: 03 abr. 2017.
17
STF determina realização de audiências de custódia e descontingenciamento do Fundo Penitenciário. Brasília,
09 set. 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo= 299385>.
Acesso em: 03 abr. 2017.
18
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, InfoPen - Dezembro de
2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/>. Acesso em: 05
abr. 2017.
19
Idem 18. p. 4.
20
Idem 18. p.18.
21
Idem 18. p. 4.
22
Idem 18. p. 37.

719
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

prisional brasileiro não consegue atingir a finalidade da pena, qual seja, a reabilitação do
condenado e a sua reinserção na sociedade.
Por conseguinte, foi evidenciada, através desses dados, a falência do modelo
prisional atual, sendo este uma política pública que precisa ser revisada e reformulada para
que possa enquadrar-se com os dispositivos legais que o regulam e, acima de tudo, com o que
dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil. Partindo desse pressuposto, o
presente artigo, visa demonstrar o modelo “Apaqueano”, apresentando-o como uma
alternativa de política pública carcerária.

2. A ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS

2.1 O QUE É UMA APAC?

Inicialmente, necessário se faz uma conceituação da Associação de Proteção e


Assistência aos Condenados (APAC). Esta pode ser descrita como uma organização voltada a
gerir a execução penal de maneira humanizada, buscando o auxílio não apenas do Poder
Público (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas primordialmente da comunidade, prestando
auxílio àqueles que estão privados de sua liberdade23.
A APAC tem personalidade jurídica própria, possui autonomia jurídica,
administrativa e financeira, não tem fins lucrativos, seguindo sempre as diretrizes da lei de
execução penal; dispõe de estatuto próprio e é filiada à Fraternidade Brasileira de Assistência
aos Condenados (FBAC)24.
Quanto à FBAC, esta pode ser descrita segundo as palavras de Valdeci Ferreira e
Mário Ottoboni25: “a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados - FBAC é uma
associação civil de direito privado sem fins lucrativos que tem a missão de congregar e
manter a unidade de propósitos das suas filiadas e assessorar as APACs do exterior.”
Vale destacar que Mário Ottoboni é o idealizador das APACs e o projeto se iniciou
em São José dos Campos (SP) em 1972, quando ele se reuniu com 15 pessoas com o objetivo
de procurar uma solução para a crítica situação que se encontrava os presídios do município.

23
OTTOBONI, Mário; FERREIRA, Valdeci. Método APAC: Sistematização de Processos. 1. ed. Belo Horizonte:
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2016. p. 20.
24
Idem 23. p. 21.
25
Idem 23. p. 21.

720
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

partindo dessa perspectiva, ele começou a se aprofundar sobre os problemas nos presídios de
todo o Brasil26.
Em 1986 foi fundada juridicamente a APAC de Itaúna – Minas Gerais, que,
atualmente, é referência no mundo inteiro, sendo uma entidade civil com caráter social, que
necessita de voluntários, conta com parcerias públicas e privadas e que tem o auxílio dos
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como de empresas privadas e,
fundamentalmente, da comunidade27.
Em Minas Gerais, o Poder Público se envolve através da Secretaria de Estado de
Defesa Social, que garante o repasse de recursos financeiros; para isso ocorrer: “O Poder
Legislativo, por meio da Lei 15.299/2004, reconheceu as APACs como entidades aptas a
firmar convênios com o Poder Executivo [...]”28, já o Poder Judiciário contribuiu com o
“Projeto Novos Rumos”, que foi criado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com o
objetivo de difundir o método APAC nas demais Comarcas do Estado29.
Além de Minas Gerais, já existem APACs nos Estados do Espírito Santo,
Maranhão, Paraná, Rio Grande do Norte. Tendo ainda 6330 em processo de implementação,
“que ainda não tem uma sede ou um Centro de Reintegração Social, em vários Estados
brasileiros. Estas APACs existem juridicamente e estão em processo de implantação”31.
O método APAC, adotado nesses Estados é baseado no amor, na confiança e na
disciplina. A filosofia da APAC é “matar o criminoso e salvar o homem”32. Com isso, deve-
se enxergar o ser humano além das suas transgressões, incentivar a participação da família do

26
SILVA, Jane Ribeiro (Org.). A Execução Penal à Luz do Método APAC, 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, 2012. p. 55 – 56.
27
Idem 23. p. 159 – 160.
28
Idem 26. p. 6.
29
Idem 23. p.19.
30
Localizam-se nas Comarcas de: Alfenas (unidade feminina), Araçuaí, Barbacena, Barroso, Belo Horizonte,
Bom Sucesso, Campos Gerais, Carlos Chagas, Conceição do Rio Verde, Conselheiro Lafaiete (unidade feminina),
Conselheiro Pena, Curvelo, Diamantina, Divinópolis, Guanhães, Ibiá, Ipanema, Itabira, Itabirito, Itajubá,
Itamarandiba, Jaíba, Manhumirim, Mantena, Matozinhos, Monte Santo de Minas, Montes Claros, Muriaé,
Nanuque, Nova Era, Novo Cruzeiro, Piumhi, Sacramento, Santa Vitória, Santos Dumont, São Sebastião do
Paraíso, Tupaciguara, Uberaba, Uberlândia e Varginha (MG); Alto Paraná, Cascavel, Cruzeiro do Oeste,
Jacarezinho, Londrina, Marilândia do Sul, Matelândia, Palotina, Piraí do Sul, Ponta Grossa, Prudentópolis, Santo
Antônio da Platina e Toledo (PR); Cachoeiro de Itapemirim, Vila Velha e Vitória (ES); Distrito Federal (DF);
Bacabal e Balsas (MA); Cuiabá (MT); Canoas (RS); Ji-Paraná e Porto Velho (RO).
31
FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. APACs filiadas em processo
de implementação. Disponível em: <http://www.fbac.org.br/index.php/pt/component/contact/category/72-apacs-
mundo/68-apacs-brasil/142-em-implantacao?alias=sao-joao-del-rei-feminina&limitstart=0> Acesso em: 18 abr.
2017.
32
OTTOBONI, Mário. Vamos Matar o criminoso?: Método APAC. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 2014. p.49.

721
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

apenado durante o cumprimento da pena, acreditando que nenhuma pessoa é irrecuperável,


conforme afirma Mario Ottoboni33: “ [...] a APAC é um método de recuperação de presos
(não um “lugar geográfico”) que pode ser aplicado em qualquer estabelecimento penal”.
A disciplina dentro das APACs é rígida, o dia a dia é repleto de atividades, como a
obrigatoriedade dos estudos34, do trabalho, da participação nos atos relativos à valorização
humana e dos grupos de autoajuda. As atividades se iniciam às 6 da manhã e o horário de
silêncio é às 10 da noite35.
O maior diferencial da APAC em relação ao sistema prisional convencional é a
participação efetiva dos apenados na sua reintegração social, denominando-os como
recuperandos, que tem também responsabilidade pela própria recuperação. Desta forma, o
apenado torna-se sujeito ativo na execução de sua própria pena, para que este entenda que a
mudança deve começar inicialmente por sua vontade própria e depende em grande parte do
seu esforço pessoal.
Outra dessemelhança entre os modelos prisionais é descentralização penitenciária
proposta pela APAC, que não se trata de uma inovação do método, mas sim de disposição
que constava no Código Criminal do Império de 1830, onde disciplinava que os presos
condenados a penas mais brandas cumpririam a sua condenação em local mais próximo ao
que foi praticado o delito. Dessa forma o preso não é privado do convívio com a sua família,
possibilitando a visitação mais frequente dos seus entes, fator extremamente relevante para a
recuperação do apenado.
Além disso, viabiliza a melhora das instalações das cadeias públicas, direcionando
as verbas destinadas a construção de penitenciárias para construção de mais salas destinadas a
educação, ensino profissionalizante, atos religiosos, reflexões em grupo, oficinas de trabalho,
conforme disciplina Mário Ottoboni36. Outrossim, para melhor sustentar a metodologia
APAC, foram desenvolvidos fundamentos que sustentam o método.

33
Idem 32. p. 56.
34
Apesar da notável importância da educação, que além de prevenir a reincidência, é uma forma de remição de
pena (12 horas de frequência escolar é igual a menos 1 dia de pena), no sistema carcerário convencional, apenas
13% da população prisional participam de atividades educacionais (infopen, 2014, p. 6) Cabe salientar que apenas
50% de estabelecimentos prisionais têm salas de aula, apesar da obrigatoriedade do oferecimento, no mínimo, do
ensino fundamental aos presos (infopen, 2014, p. 118).
35
NEVES, Eduardo. Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados. Informações sobre APACs
[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <belinhagnunes@hotmail.com.br> em 02 maio 2017.
36
Idem 32. p. 58 – 59.

722
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Com o intuito de consolidar o método “apaqueano” foram desenvolvidos elementos


fundamentais, que para inteira observância da proposta da APAC sejam cumpridos de forma
integral, sendo indispensáveis na aplicação da metodologia. Segundo o método criado por
Mario Ottoboni37, são doze os seus fundamentos: participação da comunidade38, recuperando
ajudando recuperando39, trabalho40, religião41, assistência jurídica42, assistência à saúde43,
valorização humana44, família45, voluntário e sua formação46, Centro de Reintegração Social
– CRS47, mérito48 e jornada de libertação com Cristo49.

37
Idem 32. p. 65 – 100.
38
Tal diretriz, já presente no artigo 4º da lei de execução penal, o método APAC apregoa a conscientização da
sociedade, primordialmente da comunidade local, chamando-a para a responsabilização e cooperação na execução
penal, através do voluntariado.
39
Este elemento diz respeito à cooperação que deve ser incentivada entre os recuperandos, devendo ensiná-los a
viver em comunidade. Os apenados devem aprender a importância da solidariedade.
40
Cada regime prisional tem uma especificidade quanto ao trabalho. No regime fechado, o método APAC indica
os trabalhos laborterápicos (artesanais), no regime semiaberto o trabalho visa dar ao recuperando uma profissão,
caso ainda não tenha, ou praticar suas habilidades já adquiridas. Já ao passar para o regime aberto, o objetivo do
trabalho é a consolidação de todo o processo de transformação do recuperando. O trabalho nessa fase será uma
comprovação que o recuperando já está apto a viver em sociedade e a ter obrigações e responsabilidades.
41
A evangelização no método APAC é embasada na valorização humana. Inicialmente se deve reconstruir a
confiança no homem para que a partir disso o recuperando possa ter uma religião, sem uma imposição de credo,
fazendo-o refletir sobre o amor ao próximo e a oportunidade de uma vida nova.
42
A assistência jurídica deve se restringir àqueles definitivamente pobres que se encontram comprometidos na
proposta da APAC, não devendo apenas visar a liberdade do preso sem levar em conta os seus méritos.
43
A assistência à saúde deve estar em primeiro plano, pois além de dar maior qualidade de vida ao recuperando,
transmite a mensagem de cuidado e acolhimento. Para a aplicação desta assistência é necessário que se busque
voluntários da área da saúde, da localidade em que se encontra a APAC, que possam, mesmo que de forma
intervalada, prestar atendimento aos recuperandos.
44
Ações como chamar o recuperando pelo nome, ouvir as necessidades de cada um e tentar atendê-las dentro do
possível, conhecer a família de cada um que se encontra na entidade, são medidas que contribuem para a o
restabelecimento da autoestima do recuperando.
45
Em cada entidade deve haver um departamento próprio para lidar com os entes dos recuperandos, oferecendo
aos familiares cursos e palestras que façam estreitar o relacionamento destes com os recuperandos, buscando-se
sempre facilitar o contato entre os mesmos. Segundo o Informativo da Infopen (2014, p. 88-89), no sistema
carcerário atual, apenas 37% dos estabelecimentos prisionais tem local reservado à visitação, existindo somente
em 31% dos estabelecimentos prisionais locais destinados a visitas íntimas.
46
O trabalho na APAC é, em sua maioria, gratuito; a entidade deve manter-se pelo voluntariado e pelo trabalho
dos recuperandos. Após a captação dos voluntários, um curso será ministrado a eles, para que possam desenvolver
suas habilidades compatíveis com o trabalho na entidade.
47
Trata-se do espaço físico onde será constituída a entidade, visando o cumprimento da pena o mais próximo
possível do núcleo afetivo do recuperando. É disposto em três pavilhões, cada um para um regime: fechado,
semiaberto e aberto, respeitando desta forma o que preceitua a lei de execução penal.
48
Este fator deve se sobrepor ao lapso temporal para embasar a progressão de pena, verificado através das
atividades que o recuperando desempenha dentro da entidade, não sendo relacionado com uma obediência
imposta. O cotidiano do apenado, assim como todas as tarefas que desempenha, é registrado em uma pasta-
prontuário para que possa ser avaliado o mérito.
49
A Jornada de Libertação com Cristo é disposta em três dias, dividindo-se em duas etapas, com a seguinte
finalidade, conforme preleciona Mário Ottoboni (2016, p. 100), “a Jornada nasceu da necessidade de se provocar

723
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Restando esclarecer a importância do respeito e efetivação de cada elemento e da


comunhão de todos eles para o sucesso da metodologia, não podendo excluir nenhum dos
fundamentos, que devem funcionar harmonicamente juntos para que ocorra o resultado
propagado pelo método.

2.1. O PROCESSO DE IMPLEMENTAÇÃO DE UMA APAC

De acordo com o Sr. Ronald Nikkel, presidente e chefe executivo da PFI (Prison
Fellowship International), durante a realização do 6º Congresso Nacional das APACs na
cidade de Itaúna, Estado de Minas Gerais, em Julho de 2008: “o fato mais importante que está
acontecendo no mundo hoje, em matéria prisional é o movimento das APACs no Brasil”50.
Em contrapartida, resta inconteste a ineficiência do Estado Brasileiro na
implementação da política pública relativa ao sistema carcerário, após o que foi disposto
acima, é notório que a APAC seria uma opção viável de política pública a ser aplicada no
sistema carcerário, sendo o método apaqueano de fácil implementação.
Com base no livro “Método APAC: Sistematização de Processos”51, pode-se
compreender como se dá o processo de implantação de uma APAC. O processo inicia-se
através de uma audiência pública que tem por objetivo demonstrar à comunidade o método
APAC. A partir deste ponto, apura-se os interessados em criar uma APAC e também àqueles
que pretendem dar subsídios para tanto, após, forma-se uma assembleia geral e aprova-se o
estatuto pelos membros que estarão à frente da criação e gestão da APAC, devendo ser
encaminhado a FBAC, que emitirá um parecer sobre a aquiescência ou não da implementação
da nova unidade.
Após a aprovação pela FBAC, deve-se registrar a entidade no cartório da localidade
onde será implantada a APAC. Posteriormente a filiação, devem os membros dos conselhos
eletivos e demais responsáveis pela implementação visitar unidades que já estão em
funcionamento. Além disso, deverá ser realizado o seminário de estudos e conhecimentos do
método “apaqueano” juntamente com a FBAC.

uma definição do recuperando sobre a adoção de uma nova filosofia de vida [...], com o objetivo precípuo de fazer
o recuperando repensar o verdadeiro sentido da vida[...]”
50
FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. Filiação à FPI. Disponível em:
< http://www.fbac.org.br/index.php/pt/filiacao-a-pfi> Acesso em: 01 maio 2017.
51
OTTOBONI, Mário; FERREIRA, Valdeci. Método APAC: Sistematização de Processos. 1. ed. Belo Horizonte:
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2016.

724
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Para a instalação física da APAC é ideal que haja a aquisição de um lugar próprio,
com setores distintos para cada regime penal de cumprimento de pena. Podendo este ser
obtido através de uma cessão pelo Poder Público ou Privado de um terreno ou edificação,
podendo também ser alugado. Essa escolha deve ser levada a aprovação do Ministério
Público, do Poder Judiciário e da FBAC.
A partir desse ponto, a obtenção de parcerias é necessária para que possa ser dado
início aos trabalhos da APAC, essas parcerias podem se dar através de convênios com o
Poder Púbico estadual e municipal, instituições privadas sem fins lucrativos, empresas
privadas, entidades religiosas, bem como toda e qualquer instituição que possa contribuir para
o trabalho da APAC. Logo em seguinte é oferecido pela FBAC o curso de capacitação para
os voluntários que irão trabalhar na unidade.
A etapa posterior ocorre faltando três meses para o início dos trabalhos na unidade
da APAC, onde deverão ser escolhidos pela equipe da APAC dois a três condenados que
cumprem pena no sistema penitenciário convencional, para que façam um estágio em uma
APAC já instituída, com o fim de se adaptarem ao funcionamento do CRS e assimilarem a
metodologia.
Concomitantemente a etapa anterior, deve-se requerer ao Poder Executivo que seja
feito um convênio de custeio com a APAC, visando que sejam atendidas necessidades básicas
dos recuperandos. Os recursos que o poder público disponibiliza para a APAC é
correspondente a metade dos valores que disponibilizaria no sistema convencional para o
custeio do mesmo preso.
Antes de inaugurar a nova unidade da APAC, ocorre o estágio em APACs já
consolidadas para os funcionários que irão trabalhar nesse novo Centro de Reintegração
Social - CRS, esse estágio irá selecionar e qualificar os futuros funcionários da APAC.
Após todas as etapas acima concluídas, pode-se inaugurar o novo Centro de
Reintegração Social, a nova APAC começará suas atividades com número muito pequeno de
recuperandos, para que haja inicialmente uma adaptação não apenas dos apenados, mas
também dos voluntários e funcionários52.
Para assegurar a aplicação da metodologia na APAC recém-inaugurada é necessário
a constante comunicação da unidade com a FBAC. Este contato tem como fim controlar, de

52
OTTOBONI, Mário; FERREIRA, Valdeci. Método APAC: Sistematização de Processos. 1. ed. Belo Horizonte:
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2016..p. 30 – 31.

725
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

forma habitual, as atividades da APAC, mantendo esse canal direto da unidade com a
Fraternidade.
Por todo exposto e, após esta sucinta disposição do processo necessário para
implantação dessa política pública, é notório que a implementação do sistema “apaqueano”
como política pública pode ser uma solução para a falência do sistema prisional convencional,
que atualmente é aplicado no Brasil. Para tanto, é necessário, para a implementação dessa
política pública, a colaboração da comunidade, cabendo ao Poder Público o papel de
incentivar e propagar a metodologia APAC, oferecendo subsídios para que o método
“apaqueano” seja instituído como política pública alternativa ao modelo prisional brasileiro.

3. A ADOÇÃO DA APAC COMO POLÍTICA PÚBLICA ALTERNATIVA AO


SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

A partir da conceituação da APAC e da demonstração do seu processo de


implementação e, em razão da eficiência na recuperação dos apenados, a adoção da APAC
enquanto política pública traria melhor governança pública na execução penal. Segundo
dados que serão demonstrados adiante, a APAC é a política pública que melhor se adéqua ao
que dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil e a lei de execução penal e,
consequentemente, a que proporciona melhores condições de reinserção social dos
condenados.
Resta esclarecer e demonstrar que, o modelo apaqueano não se trata de política
pública apenas disposta em livros ou teorizada por um idealizador. Ele já vem sendo aplicado
em diversos estados brasileiros e também utilizado como parâmetro em outros países. Através
da análise dos dados a seguir, é possível vislumbrar que a sua adoção como política pública
carcerária poderá trazer de volta ao Estado o poder de aplicar penas que tenham efeito prático
e positivo tanto para com os encarcerados, quanto para a sociedade.
De acordo com os dados fornecidos no último relatório de atividade da Fraternidade
Brasileira de Assistência aos Condenados, emitido em abril de 201753: “a FBAC presta

53
FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. Relatório de Atividades da
FBAC – Abril de 2017. Disponível em:
<https://www.dropbox.com/sh/7epj02ditiaobua/AADsLlBfmNL6L0jS7OiwRAkOa>. Acesso em: 01 maio 2017.

726
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

assistência às 108 APACs filiadas, em 09 Estados da Federação e no DF, e àquelas que


aplicam parcialmente o método em 24 países”.
A FBAC é responsável pela uniformização na aplicação da metodologia APAC em
todas as unidades existentes, para a criação de uma APAC é necessário parecer deste órgão.
Ela também é “filiada à Prison Fellowship International – PFI, organização consultora da
ONU para assuntos penitenciários54”.
Sobre as unidades filiadas à FBAC, ainda existem 63 APACs que estão em processo
de implementação55, essas serão fixadas nos Estados do Espírito Santo, Minas Gerais,
Maranhão, Paraná (onde já existem outras APAC’s); e nos Estados de Mato Grosso,
Rondônia, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal (onde não existem ainda APAC’s
funcionando).
Entre os países que adotam, de forma relativa, o método “apaqueano” pode-se citar:
Canadá, Estados Unidos, México, Costa Rica, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Uruguai,
Nigéria, Portugal, Alemanha, Holanda, Hungria, Itália, Austrália56.
De acordo com o relatório57, dentre as APAC’s que já estão em funcionamento, 48
entidades funcionam em sede própria sem o concurso das polícias civil e militar e também
sem agentes penitenciários.58 Dentre estas unidades, localizam-se 39 no Estado de Minas
Gerais, 6 no Maranhão, 2 no Paraná e 1 no Rio Grande do Norte, atendendo uma média de
3.500 recuperandos.
Ao passar a análise dos dados estatísticos das APACs, serão utilizados dados
fornecidos pela FBAC por e-mail59, esses dados registram uma média de 28% de reincidência

54
Idem 55.
55
NEVES, Eduardo. Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados. Informações sobre APACs
[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <belinhagnunes@hotmail.com.br> em 02 maio 2017.
56
FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. Mapa das APACs no mundo.
Disponível em: < http://www.fbac.org.br/index.php/pt/realidade-atual/mapas-2> Acesso em: 01 maio 2017.
57
Idem 53.
58
Localizam-se nas Comarcas de: Alfenas-MG, Araxá-MG, Arcos-MG, Campo Belo-MG, Caratinga-MG,
Canápolis-MG, Conselheiro Lafaiete-MG, Frutal-MG, Governador Valadares-MG (feminina), Inhapim-MG,
Itaúna-MG (masculina), Itaúna-MG (feminina), Ituiutaba-MG, Januária-MG, Lagoa Da Prata-MG, Manhuaçu-
MG, Nova Lima-MG (masculina), Nova Lima-MG (feminina), Paracatu-MG, Passos-MG, Patos De Minas-MG,
Patrocínio-MG (masculina), Patrocínio-MG (feminina), Perdões-MG, Pedra Azul-MG, Pirapora-MG, Pouso
Alegre-MG (masculina), Pouso Alegre-MG (feminina), Rio Piracicaba-MG (feminina), Salinas-MG, Santa
Bárbara-MG, Santa Luzia-MG, Santa Maria Do Suaçui-MG, São João Del Rei-MG (masculina), São João Del
Rei-MG (feminina), Sete Lagoas-MG, Teofilo Otoni-MG, Timóteo-MG, Viçosa-MG, Barracão-PR, Pato Branco-
PR, Macau-RN, Imperatriz-MA, Itapecuru-Mirim -MA, Pedreiras-MA, São Luis-MA, Timom-MA , Viana –MA.
59
NEVES, Eduardo. Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados. Informações sobre APACs
[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <belinhagnunes@hotmail.com.br> em 02 maio 2017.

727
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

criminal nas APACs de todo o Brasil, confrontando uma média de 80 a 85% que ocorre no
sistema prisional convencional e a média mundial que é cerca de 70%. Quanto ao custo
mensal de cada preso na APAC, este é de R$ 1.089,73, enquanto no sistema prisional
convencional o custo médio é de R$ 2.200,0060.
Diferente do que ocorre no sistema penitenciário atual61, nenhuma rebelião,
assassinato ou ato de violência foram registrados nas APACs, desde a sua criação, em 1992.
Mesmo as chaves do Centro de Reintegração Social estando sob o controle dos recuperandos,
fugas são consideradas raras dentro do sistema “apaqueano”62.
Consta destes dados, também, outra informação relevante: “Além dos funcionários
que atuam especificamente no setor administrativo, as APACs contam com mais de 800
voluntários atuando nos mais diversos setores, como saúde, educação, valorização humana,
revistas, etc.63”
Além disso, relativamente a experiência mineira, segundo relato de Cristiane Santos
de Souza Nogueira, no livro publicado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
divulgado em 2012: “As dezenas de unidades APAC, que são mantidas por convênio com o
Estado de Minas Gerais, custam aos cofres mineiros 1/3 (um terço) do valor que seria
despendido para manutenção do preso no sistema comum”64.
Para concluir, cabe ressaltar que avanços significativos já estão sendo alcançados,
em Minas Gerais, no mês de maio de 2017, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa do Estado realizou uma audiência pública com o intuito de discutir a implantação
do método APAC em todo o Estado. Um grande passo rumo à aplicação da metodologia
APAC como regra de modelo prisional e não mais exceção aplicada apenas em parte do

60
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cármen Lúcia diz que preso custa 13 vezes mais do que um
estudante no Brasil. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83819-carmen-lucia-diz-que-preso-custa-
13-vezes-mais-do-que-um-estudante-no-brasil> Acesso em: 07 de maio 2017.
61
De acordo com o Informativo Rede Justiça nº 08 (2014, p. 6), confrontando a proporção de pessoas mortas por
100 mil habitantes da população brasileira, há uma disparidade de três vezes mais mortes dentro da prisão, do que
mortes que aconteceram fora do cárcere. Segundo o informativo: “ Mesmo sem a apresentação dos dados de São
Paulo e Rio de Janeiro, o número de mortes nas unidades prisionais brasileiras assusta: apenas no primeiro
semestre de 2014 foram registradas 565 mortes, sendo que aproximadamente metade delas foi classificada pelos
agentes públicos como violentas intencionais”.
62
Idem 59.
63
Idem 59.
64
SILVA, Jane Ribeiro (Org.). A Execução Penal à Luz do Método APAC, 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, 2012.

728
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

nosso país, logo tornando mais próximo a sua implementação como política pública
alternativa ao sistema carcerário brasileiro.

CONCLUSÃO

O presente artigo abordou as deficiências latentes da política pública aplicada ao


sistema prisional brasileiro, que infringe os direitos fundamentais descritos na Constituição da
República Federativa do Brasil e também na lei de execução penal, assim como os demais
dispositivos legais protecionistas. Ficando evidente que o sistema penitenciário brasileiro não
alcança um dos principais objetivos da pena, qual seja, a ressocialização.
Para que ocorra a mudança neste quadro, é necessário que uma nova política pública
criminal seja implementada no Brasil. Com esse intuito, este trabalho apresentou o método
“apaqueano” como política pública alternativa. A APAC tem como filosofia “matar o
criminoso e salvar o homem”.
O método “apaqueano” é fundado na disciplina, no amor ao próximo, na
solidariedade, buscando ainda o apoio da comunidade e da família dos condenados no
cumprimento da pena. Os presos têm acesso à educação, ao ensino profissionalizante e ainda
ao trabalho, adequando as atividades laborativas a cada regime de cumprimento de pena.
As unidades das APACs existentes subsistem com o trabalho voluntário e dos
próprios presos, e ainda por parcerias tanto públicas quanto privadas. O custeio de cada preso
dentro de uma unidade da APAC é reduzido à metade em comparação com o sistema
prisional, os níveis de reincidência são baixos e os presos cumprem sua pena, sempre que
possível, próximo as suas famílias.
Em decorrência disto, a aplicação da metodologia APAC como política pública
carcerária poderá ser uma solução ao colapso que se vê hoje no sistema penitenciário
brasileiro, que se distancia dos ditames da lei de execução penal e só vem desumanizando
àqueles que ali adentram que, ao contrário disso, deveriam dentro do cárcere (re)descobrir
suas habilidades e sua função na sociedade.
Por tudo isso, o propósito deste trabalho foi demonstrar que não há mais
possibilidade de continuarmos aplicando a atual política pública ao sistema carcerário, pois
esta não consegue mais alcançar os objetivos centrais da pena. O ideal seria que fossem
revistas as políticas públicas carcerárias, sendo estabelecido o modelo “apaqueano” como

729
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

política pública padrão ao cumprimento das penas no Brasil, pois este assegura uma forma
digna de cumprimento de pena. E o modelo prisional adotado atualmente, seria aplicado de
forma subsidiária, com as devidas correções, para alcançar os ditames da lei nº 7.210/84.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

______. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.

______. STF. ADPF nº 347. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 09/09/2015. DJe 19/02/2016.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. 1. ed. Salvador: JusPodvim, 2016.

FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. Portal – FBAC. Disponível em:


< http://www.fbac.org.br/> Acesso em: 20 set. 2017.

GRECO, Rogério. Sistema Prisional: Colapso Atual e Soluções Alternativas.3. ed. Niterói: Impetus, 2016.

INFORMATIVO REDE DE JUSTIÇA CRIMINAL, São Paulo: ed. 8, jan. 2016.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen – Junho de


2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-
feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2017

______. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, InfoPen - Dezembro de 2014. Disponível


em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/>. Acesso em: 05 abr. 2017.

NEVES, Eduardo. Fraternidade Brasileira de Assistência ao Condenado. Informações sobre APACs


[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <belinhagnunes@hotmail.com.br> em 02 maio 2017.

OTTOBONI, Mário. Vamos Matar o criminoso?: Método APAC. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 2014.

______; FERREIRA, Valdeci. Método APAC: Sistematização de Processos. 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, 2016.

ROIG , Rodrigo Duque Estrada. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Saraiva, 2006.

SILVA, Jane Ribeiro (Org.) A Execução Penal à Luz do Método APAC. 1. ed. Belo Horizonte: Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, 2012.

730
OS PAÍSES DO BRICS E O
CONTEXTO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO:
O DEBATE NO ÂMBITO DA GOVERNANÇA GLOBAL

RACHED, Gabriel
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)

RESUMO

Desde 2009, os países do BRICS vêm buscando estabelecer estratégias coordenadas para uma nova
plataforma de cooperação econômica entre esses países, com o objetivo de alcançar um maior nível de
desenvolvimento acompanhado de um reposicionamento na arena internacional. Apesar de todas as
diferenças, esses países têm alguns elementos e aspirações que os unem e o desafio consiste em
projetar uma plataforma comum para ganhar espaço e uma maior inserção do ponto de vista
internacional. Neste sentido, as questões podem ser colocadas da seguinte forma: num mundo em
constante transformação, no qual se percebe a perda do poder econômico e político dos poderes
tradicionais (especialmente Estados Unidos e Europa), como seria possível pensar inserção dos
chamados "países emergentes"? Como esse processo pode ser dinamizado com o conjunto de
instituições internacionais em vigor? O Novo Banco de Desenvolvimento (BRICS Bank) poderia
desempenhar um papel relevante neste contexto? Nesta perspectiva, pretende-se discutir como repensar
a inserção dos países do BRICS no cenário internacional, levando em consideração a dinâmica atual
em face às aspirações desses países do ponto de vista das instituições internacionais. Para tanto, a idéia
consiste em refletir sobre esses pontos, usando uma abordagem ampla e crítica acerca da temática em
questão.

Palavras-Chave. Inserção internacional dos países emergentes. BRICS. Nova Governança Global.

ABSTRACT

Since 2009, the BRICS countries have been seeking to develop coordinated strategies for a new
platform for economic cooperation between these countries, with the aim of reaching a higher level of
development accompanied by a repositioning in the international arena. Despite all the differences,
these countries have some elements and aspirations that unite them and the challenge is to design a
common platform to gain space and greater insertion from the international perspective. At this
moment, the questions are posed as follows: in a world in constant transformation, in which can be
perceived the loss of economic and political power of the traditional powers (especially the United
States and Europe), how it would be possible to think on the insertion of the so-called "emerging
countries"? How could this process be dynamic with the set of international institutions in force?
Would the New Development Bank (BRICS Bank) play a relevant role in this context? From this
perspective, this paper intends to discuss how to rethink the insertion of the BRICS countries in the
international scenario - taking into consideration the current dynamics face to the aspirations of these
countries from the point of view of the international institutions. In order to execute it, the idea is to
reflect upon these points, using a broad and critical approach to the thematic.

Keywords. International insertion of the emerging countries. BRICS. New Global Governance.

731
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO E LOCALIZAÇÃO DO TEMA

Nas últimas décadas vem se observando uma série de transformações – cada vez
mais velozes e profundas - na conjuntura internacional que se reflete em aspectos
econômicos, políticos, sociais e institucionais.
Ainda nos anos 80 e 90, com exceção dos países asiáticos, a quase totalidade dos
países periféricos - dentre os quais os da América Latina e África - apresentou não apenas
baixas taxas de crescimento, como também uma ampla restrição externa imposta por crises de
dívida e pela abertura financeira nos anos 90, tornando essas economias amplamente
dependentes das economias centrais.
Em contraste com este período, desde os anos 2000 tem se observado tanto o
aumento das taxas de crescimento dos países periféricos, como uma maior contribuição destes
para o crescimento do PIB global e do comércio mundial, quando comparados à participação
dos países centrais, como os Estados Unidos e Europa.
Com singularidades evidentes e contrastantes os países do BRICS - Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul - vêm expandindo seu comércio externo e suas taxas de
crescimento através da ampliação de seus mercados domésticos e da intensificação do
comércio realizado entre estes próprios países. Ainda que com eventuais particularidades ao
longo do período é possível observar, como tendência mais geral, que o cenário concernente
aos países periféricos está em transformação – o que sugere um panorama com maior
inserção internacional das economias até então consideradas não centrais. Dessa forma,
dentro desta nova configuração da economia internacional, observa-se a presença de polos
autônomos de crescimento que surgem em paralelo ao “centro cíclico principal”.
Essas transformações alcançam dimensões que extrapolam a esfera econômica
passando por mudanças que envolvem também as correlações de força dentro do sistema
interestatal.
Nessa perspectiva é possível afirmar que a nova conjuntura expressa uma fase de
mudanças do sistema interestatal, ainda centrada na expansão do poder americano, porém
apresentando agora elementos que apontariam para um possível cenário no qual as decisões
internacionais seriam permeadas por plataformas de países que alcançaram uma posição
intermediária, denominados países ou economias emergentes. Em tal ambiente reforça-se a
pressão competitiva entre os Estados e aponta-se até mesmo para um processo de expansão
ou nova corrida imperialista.

732
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Esse processo representa uma transformação estrutural de longo prazo do sistema


interestatal iniciada na década de 70, quando os EUA acentuam seu processo de expansão de
forma explícita. Ainda hoje os EUA seguem tendo papel decisivo, dadas: a posição do dólar
como moeda de referência das relações comerciais e financeiras a despeito inclusive da atual
crise financeira mundial; a liderança no ranking do maior arsenal bélico e atômico mundiais;
além da centralização da informação e da corrida tecnológica. Apesar dessa posição de
liderança a disputa entre as grandes potências não acabou, ao contrário, se intensificou. Nesse
sentido, o processo de expansão americano acabou por reforçar os nacionalismos e a
concorrência entre as principais nações mundiais.
Alguns dos sinais dessa pressão competitiva e de corrida entre os Estados já podem
ser observados na presença cada vez mais ativa de países como China e Rússia, com
interesses territoriais e energéticos que apontam o acirramento da competição interestatal.
Estas transformações de ordem econômica e política manifestam-se também em
outras esferas, apontando para (novas) articulações institucionais, outras formas de
organização social, além de propostas de políticas a nível internacional que vêm sendo
formuladas para enfrentar os dilemas do sistema internacional contemporâneo.
Por esta perspectiva, torna-se pertinente através deste estudo discutir de forma ampla
e profunda as mutações de ordem econômica, social e política em curso no sistema
internacional, bem como refletir, a partir do trabalho de pesquisa, acerca da inserção dos
países do BRICS e do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) nesse novo contexto. Isso
permitirá uma reflexão sobre as condições do presente, os constrangimentos do passado e as
possibilidades de futuro, buscando compreender os reflexos e impactos dessa gama de
transformações no contexto latino-americano atual.

1. BRICS E O NOVO BANCO DE DESENVOLVIMENTO

Assim como outras regiões periféricas, os países emergentes vêm enfrentando uma
série de desafios nesse início de século XXI. Novas estratégias de desenvolvimento
econômico, inserção em uma nova dimensão da divisão internacional do trabalho, aderência a
novos arranjos institucionais, além de decisões ligadas à alocação de recursos estratégicos
tornam-se questões da ordem do dia cujo debate apresenta-se fundamental. É dentro desse

733
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

contexto que se pretende analisar a inserção internacional dos países emergentes do BRICS,
bem como investigar o papel sua principal instituição – o Novo Banco de Desenvolvimento.
Para tanto, torna-se relevante nesse momento voltar aos primórdios dos anos 2000,
no intuito de situar os acontecimentos e processos decisórios, que levaram da criação do
agrupamento do BRICS à constituição do NBD.
O termo BRIC foi criado em 2001 pelo economista inglês Jim O'Neill1 para fazer
referência a quatro países Brasil, Rússia, Índia e China. Em abril de 2001, foi adiciona a letra
“S” em referência à entrada da África do Sul (em inglês South Africa). Desta forma, o termo
passou a ser BRICS.
Estes países emergentes, naquele momento, apresentavam características comuns
como, por exemplo, perspectivas positivas de crescimento econômico no médio e longo
prazo. Ao contrário do que se pensa, estes países até então não compõem especificamente um
bloco econômico, apenas compartilham de uma situação econômica com índices de
desenvolvimento e situações econômicas parecidas - ainda que não similares. Esses países
configuram uma espécie de aliança que busca ganhar força no cenário político e econômico
internacional, diante da defesa de interesses comuns. A cada ano ocorre uma reunião (cúpula)
entre os representantes destes países, com o intuito de formalizar acordos e medidas com
claros objetivos de compor um bloco econômico. Um exemplo disso foi a criação recente do
Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como Banco do BRICS, visando
representar uma fonte alternativa àquelas preexistentes em termos de financiamento do
desenvolvimento.
Criado em 15 de Julho de 2014, na ocasião da 6ª Cúpula dos BRICS, o Novo Banco
de Desenvolvimento foi fundado em decorrência do acordo entre os países membros do
BRICS com um capital inicial de 100 bilhões de dólares e um fundo (Arranjo Contingente de
Reservas) contemplando mais 100 bilhões de dólares.
O Arranjo Contingente de Reservas possui um sistema de governança em dois
níveis: as decisões mais importantes serão tomadas pelo Conselho de Governadores
(Governing Council) e os assuntos de nível executivo e operacional ficarão a cargo de um
Comitê Permanente (Standing Committee), sendo que o consenso será a regra para quase
todas as decisões.

1
Nessa ocasião em 2001, Jim O’Neill (economista da Goldman Sachs) intuiu que o PIB dos países do BRIC até
2041 (horizonte posteriormente antecipado para 2039 e depois para 2032) seria superior àquele dos principais
países industrializados do G7. Para mais sobre esse tema, ver O’Neill (2011) e Goldstein, (2011), p.07-11.

734
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Se por um lado o capital de fundação do Banco possui aporte igualitário entre os


cinco países membros (20 bilhões de dólares cada) com igual poder de voto, o Arranjo
Contingente de Reservas (Contingent Reserve Arrangement - CRA) que representa um fundo
de estabilização entre os cinco países, é composto da seguinte forma: China participa com 41
bilhões, Brasil, Rússia e Índia com 18 bilhões cada e África do Sul com 5 bilhões. De acordo
com Paulo Nogueira Batista Jr., vice-presidente da instituição como representante do Brasil:

Trata-se de um “pool” virtual de reservas, em que os cinco participantes se


comprometem a proporcionar apoio mútuo em casos de pressões de balanço de
pagamentos. O termo “contingente” reflete o fato de que, no modelo adotado, os
recursos comprometidos pelos cinco países continuarão nas suas reservas
internacionais, só sendo acionados se algum deles precisar de apoio de balanço de
pagamentos. Os limites de acesso de cada país aos recursos do CRA são
determinados por suas contribuições individuais vezes um multiplicador. A China
tem um multiplicador de 0,5; o Brasil, a Índia e a Rússia, de 1; e a África do Sul, de
2. O apoio aos países pode ser concedido por meio de um instrumento de liquidez
imediata ou de um instrumento precaucionário, este último para o caso de pressões
potenciais de balanço de pagamentos (BATISTA JR., In: SOUZA, P., 2015, p.
265).

Uma das questões que se coloca nesse momento se refere à diferença entre os países
em relação ao montante que compõe o Arranjo Contingente de Reservas. Essa diferença já
remeteria a uma diferença de poder no interior da organização? Nessa direção, seria uma
evidência do protagonismo da China desde a fundação do Banco?
A proposta do Novo Banco de Desenvolvimento consiste em financiar projetos de
infra-estrutura e desenvolvimento sustentável não somente nos países membros do BRICS,
mas também em outros países em desenvolvimento diante da carência de recursos para
financiar o desenvolvimento de infra-estrutura no âmbito internacional. Ou seja, a própria
iniciativa de fundação do Banco se formaliza para oferecer mais uma possibilidade de
financiamento, com a diferença que desta vez não se trata de um organismo tradicional
decorrente do formato instituído em Bretton Woods.
O Banco estará aberto à participação dos países-membros das Nações Unidas, sendo
que os países desenvolvidos poderão ser sócios, porém não tomadores de empréstimos. Por
outro lado, os países em desenvolvimento poderão ser sócios e captar recursos. Os países do
BRICS preservarão sempre pelo menos 55% do poder de voto total enquanto os países
desenvolvidos terão no máximo 20% do poder de voto. Exceto os países-membros, nenhum
outro deterá mais do que 7% dos votos.

735
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Em relação às definições básicas e distribuição de cargos-chave do Novo Banco de


Desenvolvimento: a China ficou com a sede em Xangai; a Índia com a primeira presidência
do Conselho de Governadores; o Brasil com a primeira presidência do Conselho de
Administração; a Rússia com a primeira presidência do Conselho de Governadores; e a África
do Sul deve sediar o Centro Regional Africano da instituição. Nesse sentido, como sugere
Paulo Nogueira Batista Jr., “corre-se o risco de que o NDB venha a ser um banco
essencialmente asiático, dominado pela China e pela Índia, com os demais BRICS
desempenhando papel caudatário” (BATISTA JR., In: SOUZA, P.,2015, p. 267).
De modo geral, até o momento, o Novo Banco de Desenvolvimento representa uma
instituição bastante recente, tendo apenas iniciado suas atividades de financiamento de
projetos e com previsão de início da abertura para novos membros ainda em 2017.
A novidade consiste em que, para além das diferenças econômicas, políticas e
históricas, trata-se de um acordo, com perspectiva de longo prazo, entre um conjunto de
países heterogêneos, porém com alguns traços em comum: são países de economia
emergente, de grande porte econômico, territorial e populacional, que de certa forma possuem
e seguem buscando condições para atuar com mais autonomia – sendo que esse não
representa o cenário da maioria dos demais países em desenvolvimento.
Esse novo processo de cooperação entre países emergentes poderia sinalizar que o
formato tradicional dos organismos multilaterais estaria em descompasso com as demandas
do século XXI? Ou apenas representa uma forma a mais de financiamento de projetos de
desenvolvimento que passa a estar disponível para a periferia do sistema?

2. O FINANCIAMENTO DO DESENVOLVIMENTO

Nesse contexto, com a abertura para novos membros do Banco prevista em 2017
será interessante observar como os principais players internacionais irão se posicionar: seria
interessante integrar e participar desse projeto do ponto de vista das economias centrais
(sobretudo EUA e Europa)? Mais especificamente, o que a fundação desse novo acordo com
tendência de longo prazo poderia estar sinalizando no cenário internacional?
A relevância do desenvolvimento do BRICS deriva possivelmente do modus
operandi que se vem decidindo percorrer. Não se trata apenas de um Fórum que se propõe a
revolucionar a governança global, mas sim, de um caminho que vem trilhando através de uma

736
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

via legal sinalizando para a necessidade de reforma - que possa contemplar, gradualmente, um
formato que se aproxime na direção de decisões multilaterais promovendo maior justiça
social no âmbito interno e também internacional. Esse projeto aparentemente já foi lançado,
ainda que as distâncias para as metas progressivas e no que concerne à forma de atuação a
curto, médio e longo prazo, ainda sejam passiveis de acompanhamento e observação ao longo
das próximas décadas.
De acordo com o artigo 3 do documento final oriundo do Fourth BRICS Summit:
Delhi Declaration (2012), “Os BRICS são uma plataforma para o diálogo e a cooperação
entre países que representam 43% da população mundial, para a promoção da paz, da
segurança e do desenvolvimento em um mundo globalizado multipolar, interdependente e
cada vez mais complexo. Vindo da Ásia, da África, da Europa e da América latina, a
dimensão transcontinental dessa interação ganha valor e significado”2.
O que parece permear as iniciativas do BRICS é uma proposta construtiva atípica,
na qual o fluxo de medidas políticas e normas legais vão formando um novo e diverso modelo
de institucionalização regional. O dinamismo desencadeado desse processo de cooperação
interestatal acaba representando um processo diferente daquele verificado no caso europeu ou
norte americano. Do ponto de vista jurídico institucional, por exemplo, destaca-se o forte
papel que esses cinco países remetem ao Estado.
Segundo Lucia Scaffardi (2012), os BRICS quanto atividade interinstitucional, se
inserem em perspectiva de comparação internacional (inclusive sob o ponto de vista do FMI e
Banco Mundial) através de elementos centrais e imprescindíveis para a compreensão de
policymaking interno e externo a outros Estados – comparação que requer esforço cognitivo e
avaliativo complexo tanto do ponto de vista jurídico institucional como levando em conta as
estruturas informais que levam em conta o “diálogo” e o “fluxo” que sustentam a dinâmica
em curso (SCAFFARDI, 2012, p.163).
A pergunta que fica em aberto se refere a qual posicionamento seria o mais
apropriado na direção do crescimento e desenvolvimento econômico pensando na realidade e
conjuntura dos diferentes Estados. Esse assunto não toca apenas aos países periféricos ou
emergentes, mas a todos os países do globo, que possuem suas nuances e suas demandas
nesse início de século XXI. Voltamos ao debate recorrente da proporção desejável entre

2
Art. 3 da Declaração final do New Delhi Summit (29.03.2012). Disponível em: <http://brics5.co.za/aboutbrics/
summit-declaration/fourth-summit/>. Acesso em Junho de 2017.

737
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

intervencionismo e liberalismo na busca pela dinâmica de sociedades mais prósperas e


abundantes.
O fato desses cinco países não centrais – que juntos possuem boa parte do território,
população, mercado consumidor e PIB mundial - se reunirem e buscarem se organizar
institucionalmente paralelamente ao formato tradicional proposto em Bretton Woods, é algo
significativo em termos de governança global e política internacional.
Nesse contexto, o papel do Novo Banco de Desenvolvimento também torna-se
pertinente como objeto de análise, de modo que analisar mudanças envolvendo questões
econômicas, sociais, políticas e institucionais relacionados com os campos da geopolítica
internacional, reposicionamento nas relações de forças e novas inserções dos países
emergentes no sistema interestatal, assim como seus impactos na realidade latino-americana
recente, tornam-se assuntos de interesse para que se possa compreender o cenário
contemporâneo.
Essas são questões que se colocam nesse início de século e, em mundo em que as
transformações acontecem de forma cada vez mais acelerada, torna-se pertinente analisar e
refletir sobre esses pontos para que se possa, a partir das lições do passado, compreender
melhor quais as tendências de transformação do cenário internacional que estão em curso e
que são desejáveis na construção de uma sociedade global que contemple desenvolvimento
econômico e qualidade de vida com amplo alcance e difusão em nível internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste artigo consistiu em resgatar alguns elementos que antecedem a


constituição do bloco dos países denominados BRICS, no intuito de contextualizar a análise
dos acordos desse conjunto de países que se estabelece internacionalmente no século XXI –
sobretudo levando em conta a fundação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) –
também conhecido como Banco dos BRICS.
Nesse sentido, recorrer ao passado torna o trabalho de observação mais pertinente
uma vez que permite analisar o surgimento do Novo Banco de Desenvolvimento enquanto
produto de uma série de eventos históricos, e não como ponto de partida da análise.
Por essa perspectiva, assume-se neste trabalho que as relações interestatais,
sobretudo suas rivalidades e hierarquias, correspondem a um elemento fundamental para que

738
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

se possa entender o nascimento, a dinâmica e a potencial evolução do NDB ao longo do


tempo. Da mesma forma, as mudanças no cenário internacional podem ser entendidas como
elementos fundamentais para a fundação do Novo Banco de Desenvolvimento.
Em um sistema constituído por Estados Nacionais o NDB representa, pela primeira
vez, uma iniciativa com aspiração em tornar-se uma instituição de escopo global, formada
exclusivamente por países emergentes – ou seja, sem a participação direta de nenhum país
“desenvolvido”. Assume-se assim, de forma inovadora, uma nova conotação de cooperação e
abrangência internacional.
Novos players em um cenário internacional em mutação configuram um panorama
onde as demandas específicas dos países-membros possam abrir novos espaços criando,
assim, a possibilidade de revisão de suas respectivas inserções individuais na estrutura global
da organização. Nesse contexto, perceber quais mudanças estariam por trás e dinamizando a
criação do Novo Banco de Desenvolvimento, torna-se algo pertinente dentro do cenário
geopolítico internacional contemporâneo.
A reflexão em torno do NDB nesse princípio de século XXI requer uma análise
histórica crítica, associada à elaboração de uma nova agenda de compromissos que, levando
em conta o fato da adoção do receituário tradicional aplicado pelas instituições de Bretton
Woods nem sempre ter favorecido o processo de desenvolvimento dos países periféricos,
possua vínculos com o resgate da autonomia e desenvolvimento econômico dessas nações.
Por esse prisma, países semiperiféricos e periféricos ainda possuem longo percurso a
percorrer, sobretudo se forem levadas em conta as mudanças a serem perseguidas em termos
da governança dos organismos multilaterais.
Vivemos um momento em que as transformações internacionais estão acontecendo
em uma velocidade rápida. Alguns players progressivamente vêm ganhando destaque e isso
apresenta reflexos em torno dos debates na arena internacional. Nessa direção, o Novo Banco
de Desenvolvimento - Banco dos BRICS - criado em Julho de 2014, pode ser considerado
uma evidência desse processo de transformação. Porém, o processo de mudanças em termos
da governança dos organismos multilaterais, ainda que aparentemente esta temática esteja
mais presente no debate, precisa ganhar mais fôlego para que se torne efetivo.
Nesse sentido, o que se pode observar, é o peso do ordenamento do sistema
interestatal em bases multilaterais, e como o sistema ainda segue “amarrado” à ordem
proposta em Bretton Woods. A velocidade das mudanças depende exclusivamente da

739
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mobilização política das partes interessadas em rediscutir o modelo, caso contrário,


seguiremos reproduzindo “mais do mesmo”. O papel efetivo e os instrumentos de persuasão a
serem adotados pelos países envolvidos nesse processo permanecem representando uma
questão em aberto (e que merece debate) na conjuntura internacional atual.
Se o Novo Banco de Desenvolvimento ocupará um papel de destaque, sinalizando
um processo de mudanças no contexto internacional, é algo ainda a ser verificado e que se
torna um assunto interessante na conjuntura atual do ponto de vista de uma possível nova
configuração no médio, mas sobretudo no longo prazo, dentro do sistema interestatal.
Pela perspectiva de promoção do desenvolvimento, os impactos do ponto de vista
latino-americano, seriam representados pela possibilidade gradual de acesso a uma via
paralela/complementar de financiamento que tem pretendido, até o momento, apresentar-se
de forma menos excludente e limitadora que o formato de financiamento tradicional
associado ao modelo de Bretton Woods.

BIBLIOGRAFIA

ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto ; São
Paulo: Editora Unesp, 1996.

ARRIGHI, G. ; SILVER, B. J. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto
/ Editora UFRJ, 2001.

BATISTA JR., P. N. “BRICS: um novo fundo monetário e um novo banco de desenvolvimento.” In: SOUZA, P.
Brasil, Sociedade em Movimento. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2015.

BRICS. Delhi Declaration. Delhi: Fourth BRICS Summit, 2012. Disponível em: http://brics5.co.za/about-
brics/summit-declaration/fourth-summit/. Acesso em Junho de 2016.

BRICS POLICY CENTER. Os Bancos de Desenvolvimento nos países dos BRICS. Rio de Janeiro: Centro de
Estudos e Pesquisas Brics / IBASE, 2015.

CASELLA, P. B. BRICS - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul: uma perspectiva de cooperação
internacional. São Paulo: Editora Atlas, 2011.

CHOSSUDOVSKY, M. “BRICS and the fiction of “De-dollarization”. Disponível em:


http://www.globalresearch.ca/brics-and-the-fiction-of-de-dollarization/5441301. Acesso em 12 de Junho de
2016.

EUROPEAN UNION The European Union and the BRIC countries. Luxembourg: Publications Office of the
European Union, 2012.

FOOT, R. ; MACFARLANE, S. N. ; MASTANDUNO, M. (Orgs.) US Hegemony and International


Organizations: the United States and Multilateral Institutions. Oxford: Oxford University Press, 2003.

740
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

GOLDSTEIN, A. BRIC: Brasile, Russia, India, Cina alla guida dell’economia globale. Bologna: Societá editrice il
Mulino, 2011.

GONÇALVES, R. Economia Política Internacional: fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil.


Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2005.

GRIESGRABER, J. M.; GUNTER, B. G. (Orgs.) Promoting Development: effective global institutions for the
twenty-first century. London: Pluto Press, 1995.

HURRELL, A. (Org.) Os BRICS e a ordem global. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

KIELY, R. The BRICS, US ‘decline’ and global transformations. London: Palgrave Macmillan, 2015.

KINGAH, S. ; QUILICONI, C. Global and Regional Leadership of BRICS Countries. Switzerland: Springer
International Publishing, 2016.

LESAGE, D. ; VAN DE GRAAF, D. (Orgs.) Rising Powers and Multilateral Institutions. London: Palgrave
Macmillan, 2015.

LO, V. I. ; HISCOCK, M. (Orgs.) The Rise of the BRICS in the Global Political Economy: Changing Paradigms?
Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2014.

O’NEILL, J. The Growth Map: economic opportunity in the BRICs and beyound. New York: Penguin Group,
2011.

SCAFFARDI, L. (Org.) The BRICS Group in the Spotlight: an Interdisciplinary Approach. Napoli: Edizioni
Scientifiche Italiane, 2015.

TILLY, C. Big Structures, Large Processes, Huge Comparisons. New York: Russel Sage, 1984.

741
AS DISPUTAS DE CAPITAL SIMBÓLICO NO CAMPO JURÍDICO:
AS REAÇÕES AO NOVO DESENHO CONSTITUCIONAL DA
DEFENSORIA PÚBLICA

ALÔ, Bernard dos Reis


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito

RESUMO

O Direito brasileiro observou, nos últimos anos, o processo de reconfiguração institucional da


Defensoria Pública, notadamente marcado por sucessivas Emendas Constitucionais. A Emenda
Constitucional 80/2014 apenas complementa um ciclo iniciado com a Emenda Constitucional 45/2004,
no sentido da reestruturação constitucional da Defensoria Pública e da teórica tentativa de efetivação da
política pública de acesso à justiça. O presente estudo objetiva um diálogo do Direito com a Sociologia,
a fim de demonstrar que, por trás de argumentações jurídicas, relativas à adequação das citadas
Emendas Constitucionais ao sistema jurídico pátrio, existe, na realidade, uma disputa de capital
simbólico. O trabalho se funda nos conceitos clássicos da obra de Pierre Bourdieu, a fim de embasar a
tese proposta, no sentido de que o conflito de teses jurídicas mascara disputas corporativas em
determinado campo social.

Palavras-Chave. Acesso à Justiça. Defensoria Pública. Pierre Bourdieu.

ABSTRACT

In recent years, brazilian law has observed the process of institutional reconfiguration of the Public
Defender's Office, notably marked by successive Constitutional Amendments. Constitutional
Amendment 80/2014 only complements a cycle initiated with Constitutional Amendment 45/2004, in
the sense of the constitutional restructuring of the Public Defender's Office and the theoretical attempt
to implement the public policy of access to justice. The present study aims at a dialogue between Law
and Sociology, in order to demonstrate that, behind legal arguments related to the adequacy of the
aforementioned Constitutional Amendments to the national legal system, there is in fact a dispute of
symbolic capital. The paper is based on Bourdieu’s classic concepts, in order to base the proposed
thesis, in the sense that the conflict of legal theses masks corporate disputes in a certain social field.

Keywords. Access to Justice. Public defense. Pierre Bourdieu.

742
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O Direito brasileiro observou, nos últimos anos, o processo de reconfiguração


institucional da Defensoria Pública, notadamente marcado por sucessivas Emendas
Constitucionais. O direito fundamental de acesso à justiça, dissecado pela obra clássica de
Cappelletti e Garth1, e constantemente revisitado por autores contemporâneos2, experimentou,
em nosso país, um novo capítulo, especialmente após o advento da Emenda Constitucional
80/2014, que consagrou a plena autonomia da Defensoria Pública, em âmbito nacional, dos
Poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário). A Emenda Constitucional 80/2014,
na realidade, apenas complementa um ciclo iniciado com a Emenda Constitucional 45/2004,
como abordaremos no decorrer da explanação, no sentido da evolução constitucional da
Defensoria Pública, Instituição eleita pelo constituinte como garantidora, no plano estatal, da
política pública de acesso à justiça e do serviço público de assistência jurídica integral e
gratuita.
Contudo, esse novo desenho constitucional da Defensoria Pública não foi recebido
pelo campo jurídico com isenção de críticas e questionamentos, principalmente por outras
Instituições de igualmente elevada estatura constitucional. Aprofundando a análise, se busca,
no presente estudo, um diálogo do Direito com a Sociologia, a fim de demonstrar que, por trás
de argumentações jurídicas, relativas à adequação das citadas Emendas Constitucionais ao
sistema jurídico pátrio, existe, na realidade, uma disputa de capital simbólico. No decorrer da
dissertação, nos afluiremos dos conceitos clássicos da obra de Pierre Bourdieu, a fim de
fundamentar a tese proposta.

1. O NOVO DESENHO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA

A reestruturação institucional da Defensoria Pública teve início, no direito pátrio,


com o advento da Emenda Constitucional 45/2004, que inseriu, no texto maior, o § 2º, do art.
134, concedendo às Defensorias Públicas estaduais autonomia funcional, administrativa e
financeira (iniciativa de elaboração de sua proposta orçamentária, prevendo a sua gestão
financeira anual). Por via reflexa, a Instituição, no âmbito estadual, deixou de ser um simples

1
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça: Trad. Ellen Grancie Northfleet. Porto Alegre:
Fabris, 1988.
2
ECONOMIDES, Kim. “Lendo as ondas do movimento de acesso à justiça: epistemologia versus metodologia”.
Revista Cidadania, Justiça e Violência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.

743
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

órgão auxiliar do governo, passando a ser órgão constitucional independente, sem qualquer
subordinação ao Poder Executivo. Assim, tinha início o processo de tentativa de
concretização do direito fundamental de acesso à justiça, através da assistência jurídica
gratuita estatal, tendente a abolir qualquer vinculação entre a Instituição e o Poder Executivo,
seja no que toca à “atividade-meio” ou à “atividade-fim”.
Continuando o movimento, o Congresso Nacional promulgou, em 29 de março de
2012, nova Emenda Constitucional, oriunda da proposta nº 445/2009, que concedeu
competência ao Distrito Federal para organizar e manter a sua própria Defensoria Pública. A
Constituição Federal, no art. 21, XIII, conferia à União a organização e manutenção da
Defensoria Pública do Distrito Federal, e o art. 22, XVII, atribuía à União a competência
privativa para legislar sobre a instituição. Destarte, o Distrito Federal não possuía autonomia
quanto à Defensoria Pública, embora pudesse, com fulcro no art. 24, XIII, primeira parte, da
CF, legislar sobre assistência jurídica.
Com a Emenda Constitucional nº 69/2012, a organização e manutenção da
Defensoria Pública do Distrito Federal passaram a ser de competência deste ente federativo e
não mais da União, alterando a redação dos arts. 21, XIII, 22, XVII e 48, IX, da Constituição
da República. Importante observar que, segundo o art. 2º, da referida Emenda, à Defensoria
Pública do Distrito Federal, sem prejuízo do estatuído pela Lei Orgânica do DF, seriam
aplicáveis as regras e princípios atinentes às defensorias estaduais, inclusive no que toca à
plena autonomia.
Contudo, subsistia a exclusão da Defensoria Pública da União, que permanecia
vinculada à estrutura organizacional do Ministério da Justiça, o que, inclusive, foi objeto da
ADI nº 4282, sob o patrocínio do então advogado, hoje Ministro do STF, Luís Roberto
Barroso, buscando interpretação conforme a Constituição, com intuito de estender as
garantias institucionais conquistadas à Defensoria Pública da União.
Todavia, antes que o mérito da ação fosse julgado pela Corte Suprema, o poder
constituinte reformador conferiu, expressamente, as garantias institucionais do art. 134, § 2º,
da Constituição, à Defensoria Pública da União, através da Emenda Constitucional nº
74/2013. A partir de então, a Defensoria Pública da União adquiriu o mesmo patamar
constitucional das Defensorias estaduais e do Distrito Federal, podendo gerir sua própria
proposta orçamentária.

744
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Cabe registrar que, em 2015, por ocasião do primeiro orçamento próprio da DPU,
sem qualquer vinculação ao Ministério da Justiça, já houve incremento significativo dos
valores. Em 2014, o governo federal enviou proposta ao Parlamento em valor inferior ao
executado no ano de 2013 (R$ 115 milhões), apenas R$ 103 milhões para custeio, enquanto,
em 2015, a proposta encaminhada pela DPU foi de R$ 245 milhões. Ressalte-se que este
aporte orçamentário permitiu, no ano 2016, o planejamento da abertura de 25 novas unidades,
em locais que não eram atendidos pela Instituição, iniciando o processo de plena
interiorização.
Arrematando o processo, em 04 de Junho de 2014, foi promulgada a Emenda
Constitucional nº 80/2014, conhecida, no mundo jurídico, como “PEC Defensoria Para
Todos”, “PEC das Comarcas” ou “PEC das Defensorias Públicas”. A alteração constitucional
buscou interferir na realidade do sistema de Justiça no país, empoderando a Instituição, com o
escopo de garantir a universalização do atendimento, com os recursos jurídicos e materiais
necessários para sua plena interiorização.
A Emenda em tela constitucionalizou o art. 1º, da Lei Complementar nº 80/94
(alterada pela Lei Complementar nº 132/2009), Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública
(LONDP), e os princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e independência
funcional (art. 3.°, LC 80/94), além de ampliar o conceito de Defensoria Pública, tornando-a
“instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como
expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a
promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos
direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do
inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal” (art. 134, caput, da CRFB 88).
Ademais, criou-se a Seção IV, no Capítulo constitucional das Funções Essenciais à
Justiça, diferenciando, inequivocamente, a Advocacia privada, presente na Seção III, da
Defensoria Pública, cada qual com Seção específica (Ministério Público, Advocacia Pública,
Advocacia Privada e Defensoria Pública, respectivamente). Mudança importante também
ocorreu nos requisitos de ingresso na carreira de Defensor Público, arrastando para o cargo a
exigência, já aplicável à Magistratura e ao Ministério Público (art. 93, CRFB/88), de três anos
de atividade jurídica para os concursos públicos.
Entretanto, os pontos mais relevantes deste diploma foram a estipulação de
mandamento constitucional tendente à efetiva instalação da Defensoria Pública em todo

745
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

território nacional, tendo o constituinte derivado, inclusive, estipulado o prazo de 8 anos para
concretização (art. 98, § 1º, ADCT), e, principalmente, a previsão de iniciativa legislativa,
conforme arts. 96, inc. II, e 134, § 4.°, da CRFB, conferida aos Defensores Gerais, no que
toca a matérias relevantes como, por exemplo, criação e extinção de cargos.
Assim, consolidou-se o arcabouço constitucional necessário à efetiva instalação da
Defensoria Pública, em âmbito nacional e em todas as esferas de governo (União, Estados e
Distrito Federal), conferindo-lhe, o constituinte, toda musculatura jurídica necessária para a
busca de recursos materiais indispensáveis à prestação de um serviço público de qualidade.
Interessante notar que, como colocado acima, o novo patamar orçamentário conferido à DPU
pela EC 74/2013 permitiu, no ano 2016, o planejamento da abertura de 25 novas unidades,
sendo certo que, mantendo-se tal proporção de investimento e o mesmo ritmo de abertura de
novas unidades (25/ano), em 8 anos a DPU alcançará as 200 subseções judiciárias da justiça
federal que ainda carecem de sua atuação, cumprindo, com exatidão, o prazo estipulado pela
EC 80/2014.
A nova moldura constitucional aqui narrada resultou, portanto, na plena autonomia
da Defensoria Pública em relação aos Poderes constituídos, permitindo que a Instituição possa
defender os interesses de seus assistidos, independente de qualquer ameaça de retaliação à
Instituição ou aos seus membros. Contudo, reações dos Poderes Executivos surgiram, a fim
de manter a subordinação da Instituição. A partir da EC 45/2004, práticas costumeiras dos
Governos estaduais, que travavam o desenvolvimento institucional, como, por exemplo,
cortes unilaterais de dotação orçamentária e subordinação da Defensoria a Secretarias
estaduais, passaram a ser repelidas pela Corte Suprema. Nesse sentido, vejamos:

A autonomia administrativa e financeira da Defensoria Pública qualifica-se como


preceito fundamental, ensejando o cabimento de arguição de descumprimento de
preceito fundamental, pois constitui garantia densificadora do dever do Estado de
prestar assistência jurídica aos necessitados e do próprio direito que a esses
corresponde. Trata-se de norma estruturante do sistema de direitos e garantias
fundamentais, sendo também pertinente à organização do Estado. A arguição
dirige-se contra ato do chefe do Poder Executivo estadual praticado no exercício da
atribuição conferida constitucionalmente a esse agente político de reunir as
propostas orçamentárias dos órgãos dotados de autonomia para consolidação e de
encaminhá-las para a análise do Poder Legislativo. Não se cuida de controle
preventivo de constitucionalidade de ato do Poder Legislativo, mas, sim, de
controle repressivo de constitucionalidade de ato concreto do chefe do Poder
Executivo. (...) Nos termos do art. 134, § 2º, da CF, não é dado ao chefe do Poder
Executivo estadual, de forma unilateral, reduzir a proposta orçamentária da
Defensoria Pública quando essa é compatível com a LDO. Caberia ao governador
do Estado incorporar ao PLOA a proposta nos exatos termos definidos pela
Defensoria, podendo, contudo, pleitear à Assembleia Legislativa a redução

746
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pretendida, visto ser o Poder Legislativo a seara adequada para o debate de


possíveis alterações no PLOA. A inserção da Defensoria Pública em capítulo
destinado à proposta orçamentária do Poder Executivo, juntamente com as
Secretarias de Estado, constitui desrespeito à autonomia administrativa da
instituição, além de ingerência indevida no estabelecimento de sua programação
administrativa e financeira. (ADPF 307-MC-REF, rel. min. Dias Toffoli,
julgamento em 19-12-2013, Plenário, DJE de 27-3-2014.)

A EC 45/2004 outorgou expressamente autonomia funcional e administrativa às


defensorias públicas estaduais, além da iniciativa para a propositura de seus
orçamentos (art. 134, § 2º): donde, ser inconstitucional a norma local que estabelece
a vinculação da Defensoria Pública a Secretaria de Estado. A norma de autonomia
inscrita no art. 134, § 2º, da CF pela EC 45/2004 é de eficácia plena e aplicabilidade
imediata, dado ser a Defensoria Pública um instrumento de efetivação dos direitos
humanos. (ADI 3.569, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-4-2007,
Plenário, DJ de 11-5-2007.) No mesmo sentido: ADI 4.056, rel. min. Ricardo
Lewandowski, julgamento em 7-3-2012, Plenário, DJE de 1º-8-2012; ADI 3.965,
Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 7-3-2012, Plenário, DJE de 30-3-2012;
RE 599.620-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 27-10-2009, Segunda
Turma, DJE de 20-11-2009.

No plano federal, por sua vez, após a EC 74/2013, a Presidência da República


deixou de incorporar a proposta orçamentária da Defensoria Pública da União ao projeto de
lei orçamentária de 2015, suprimindo 95% dos valores relativos à despesa com pessoal
definida originalmente pela Instituição. Este fato motivou a impetração do Mandado de
Segurança nº 33.193, perante o STF, sendo proferida, pela Ministra Rosa Weber, na qualidade
de Relatora do feito, decisão liminar, assegurando a apreciação pelo Congresso Nacional da
proposta orçamentária elaborada pela DPU, como parte integrante do projeto de lei
orçamentária anual de 2015.
Em acréscimo, o Executivo Federal também se insurgiu contra a EC 74/2013,
ajuizando a ADI 5.296, sob o argumento de que a reforma constitucional seria
inconstitucional, por suposto vício de iniciativa. De acordo com o professor Daniel Sarmento,
em parecer juntado aos autos da referida ADI, “mais uma vez, o interesse público secundário
na economia de recursos foi posto na frente da proteção dos direitos fundamentais dos
hipossuficientes”3. Cumpre citar que o Estado de São Paulo, por seu Procurador Geral do
Estado, requereu admissão na ação como amicus curiae, sustentando a inconstitucionalidade
da EC 74, nos mesmos termos da inicial, demonstrando clara tendência ao mesmo
questionamento em âmbito estadual. A ação, em seu mérito, ainda está pendente de

3
ASSOCIAÇÃO DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível
em: <http://www.adpergs.org.br/todas-as-noticias/item/parecer-de-daniel-sarmento-na-adi-proposta-pelo-governo-
dilma-rousseff-contra-a-autonomia-da-defensoria-publica-da-uniao>. Acesso em: 03 de agosto de 2017.

747
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

julgamento. Porém, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos (8 a 2),
indeferiu o pedido de liminar, sob o entendimento de que não houve violação a princípios
constitucionais.

2. AS REAÇÕES AO NOVO DESENHO CONSTITUCIONAL DA


DEFENSORIA PÚBLICA, À LUZ DA TEORIA SOCIOLÓGICA DE
BOURDIEU

Aproveitando-nos do caráter interdisciplinar do presente evento acadêmico,


estimulante do diálogo do Direito com a Filosofia e, principalmente, a Sociologia, cabe
analisarmos a resistência diante da afirmação institucional da Defensoria Pública, à luz da
obra de Pierre Bourdieu.
Em seus escritos, Bourdieu4-5 trabalha conceitos indispensáveis para entendermos
que, por trás de eventuais divergências jurídicas existentes sobre os atos normativos que
embasam a evolução institucional, há, na essência, uma intensa disputa de poder, ou, nas
palavras do autor, de capital econômico, social e/ou simbólico, entre atores de um
determinado campo social. A ação jurídica é permeada pela noção de poder, seja na
concorrência entre aqueles que necessitam da justiça para defesa de seus interesses, seja na
concorrência entre os profissionais da área6.
Segundo Bourdieu, as relações sociais são vistas como um sistema hierarquizado de
poder e privilégio, determinado tanto pelas relações econômicas, como pelas relações
simbólicas ou culturais entre os indivíduos. Assim, a posição dos agentes nessa estrutura
social deriva da distribuição, naturalmente desigual, de recursos e poderes. Por recursos ou
poderes, Bourdieu coloca especificamente o capital econômico (exemplos: rendas, salários,
imóveis), o capital cultural (diplomas e títulos representativos de conhecimentos adquiridos),
o capital social (relações sociais que podem ser capitalizadas) e, por fim, mas não menos
importante, o capital simbólico (vulgarmente chamado de prestígio e/ou honra). Nessa toada,

4
BOURDIEU, Pierre. Capitulo 1: Espaço Social e Espaço Simbólico; Capitulo 2: O Novo Capital, Capitulo 4:
Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. IN: Razões práticas: sobre a teoria da ação.
Campinas: Papirus, 1996 (pp. 13-28, 35-52, 91-124).
5
______. Capitulo III: A Genese dos conceitos de Habitus e de Campo. In: O Poder Simbólico. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2010 (pp. 59-73).
6
SANTOS, Márcio Achtschin . Uma leitura do campo jurídico em Bourdieu. In: Águia: revista científica da
FENORD , v. 01, p. 90-105, 2011.

748
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

a posição de “privilégio” ou “não privilégio” ocupada por um grupo ou indivíduo é definida


de acordo com o volume e a composição de capitais adquiridos ao longo das respectivas
trajetórias sociais.
A sociologia bourdieusiana tende a interpretar os fenômenos sociais de maneira
crítica, buscando as verdadeiras relações de poder mascaradas pelas convenções sociais.
Nesse diapasão, consideramos indispensável para a análise realista das resistências impostas
ao novo patamar constitucional da Defensoria Pública a exposição de que não se está a tratar
apenas de debates sobre teses jurídicas, mas de disputas, dentro do campo social jurídico, de
troféus específicos.
Um campo pode ser compreendido como um espaço estruturado de posições, onde
agentes estão em concorrência pelos seus troféus específicos, seguindo regras igualmente
específicas7. Afirma Bourdieu (apud Bonnewitz8):

Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede ou uma
configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas
objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus
ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na
estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse
comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo no campo e, ao mesmo
tempo, por suas relações objetivas com outras posições (dominação, subordinação,
homologia etc.). Nas sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social é
constituído do conjunto destes microcosmos sociais relativamente autônomos,
espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de uma necessidade
especificas e irredutíveis às que regem os outros campos. Por exemplo, o campo,
artístico, o campo religioso ou o campo econômico obedecem a lógicas diferentes.”

Destarte, o conceito de campo engloba um espaço no qual são travadas relações


sociais múltiplas entre agentes que disputam os mesmos interesses, ou seja, pelejam por
troféus específicos, mas sem dispor dos mesmos recursos. É um lócus de batalha entre
dominantes e dominados, respectivamente agentes que possuem um acúmulo maior de capital
(poder) para intervir no campo, e empregam estratégias para conservarem suas posições, e
aqueles desejosos de abandonar sua posição de dominados, empregando, geralmente,
estratégias de subversão. A estrutura do campo, portanto, consiste no eterno embate entre
agentes dominantes e dominados engajados na luta.

7
BARROS, Clóvis de Barros. “A sociologia de Pierre Bourdieu e o campo da comunicação”: Uma proposta de
investigação teórica sobre a obra de Pierre Bourdieu e suas ligações conceituais e metodológicas com o campo da
comunicação. Tese de doutorado, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2003. p. 120.
8
BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2005. P. 60.

749
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Neste ponto, interessante verificar a diferença conceitual entre o espaço público


habermasiano9 e a ideia de campo social de Bourdieu. Este avalia a sociedade e seus diversos
campos como espaço de luta, de enfrentamento. Não há consenso, como aduz Habermas, mas
sim dominação. Habermas, por sua vez, acredita no acordo de convivência, advogando que,
através do debate e das decisões coletivas, aprimora-se a democracia. Em oposição à lógica de
Bourdieu, calcada em uma arena truculenta de dominação, o espaço público habermasiano é
local de convencimento e consenso.
Ao alcançar o presente patamar constitucional, a Defensoria Pública subverteu a
lógica específica do campo social jurídico, deixando de figurar como agente dominado para
disputar capital social e troféus específicos com Instituições dominantes. Paralelamente, em
uma ótica mais abrangente do campo, as classes sociais representadas pela Defensoria,
historicamente dominadas, passaram a ter, pelo menos em tese, representatividade jurídica,
com certa paridade de armas, perante classes sociais historicamente dominantes, ensejando
naturais movimentos de resistência. Enquanto dominantes buscam conservar seu capital
social e seus troféus específicos, dominados buscam subverter a lógica do campo, sendo tal
dinâmica intrínseca às relações sociais.
Interessante anotar que as reações às conquistas de capital social da Defensoria não
surgiram em momento recente, sendo um fenômeno recorrente a cada avanço concretizado.
Apenas a título exemplificativo, além das questões já citadas em tópicos anteriores, podemos
citar mais dois casos concretos, aptos a demonstrar disputas por troféus específicos do campo
jurídico.
Em primeiro plano, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente
procedente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 230), em que o governo do Rio de
Janeiro, réu contumaz nas ações promovidas pela Defensoria Pública, questionava itens da
Constituição estadual sobre prerrogativas dos Defensores Públicos. Especificamente sobre
dispositivo que estabelecia como prerrogativa do Defensor Público o poder de requisição de
informações de autoridades públicas e dos seus agentes ou de entidades particulares,
instrumento importante de atuação, tendo em vista as dificuldades enfrentadas pela população
hipossuficiente na obtenção de documentos básicos, ante o argumento de se evitar um
“superadvogado”, com “superpoderes”, o que, em tese, quebraria a igualdade com outros

9
VOIROL, O. A esfera pública e as lutas por reconhecimento: de Habermas a Honneth. Cadernos de filosofia
alemã, São Paulo, n. 11, p. 33-56, Jan./Jun, 2008.

750
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

advogados, foi declarado integralmente inconstitucional o dispositivo. Com o exemplo, se


verifica, para o observador mais crítico, que, nos bastidores de uma disputa aparentemente
jurídica, se trava, na realidade, uma disputa por posições de vantagem dentro do campo social.
Indo além, em outra ocasião, por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal
Federal julgou improcedente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3943) e considerou
constitucional a atribuição da Defensoria Pública para o ajuizamento de ações civis públicas.
Essa atribuição foi questionada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério
Público (CONAMP), em clara disputa de capital simbólico no microcosmos jurídico.
Interessante, nesse julgado, verificar que, nos próprios votos, alguns Ministros transpareceram
que o debate revelaria uma disputa entre Instituições, distante de uma preocupação
unicamente ligada à higidez do ordenamento jurídico. Nesse sentido, ponderou a relatora,
Ministra Carmem Lúcia:

Para a Autora, a Defensoria Pública não poderia defender, por ação civil pública,
direitos coletivos (difusos e coletivos estrito senso – transindividuais) tampouco
direitos individuais homogêneos porque a atuação da Defensoria está condicionada
à identificação dos que comprovarem a insuficiência de recursos.
Partindo da afirmativa de que, em ação civil pública, não são identificáveis e
individualizáveis os hipossuficientes que poderiam se beneficiar dos serviços da
Defensoria, esse instrumento processual não se adequaria aos limites impostos à
instituição pela Constituição da República, pelo que a norma impugnada deveria ser
declarada inconstitucional.
Parece-me equivocado o argumento, impertinente à nova processualística das
sociedades de massa, supercomplexas, surgida no Brasil e no mundo como reação à
insuficiência dos modelos judiciários convencionais. De se indagar a quem
interessaria o alijamento da Defensoria Pública do espaço constitucional-
democrático do processo coletivo.
A quem aproveitaria a inação da Defensoria Pública, negando-se-lhe a legitimidade
para o ajuizamento de ação civil pública?
A quem interessaria restringir ou limitar, aos parcos instrumentos da
processualística civil, a tutela dos hipossuficientes (tônica dos direitos difusos e
individuais homogêneos do consumidor, portadores de necessidades especiais e dos
idosos)? A quem interessaria limitar os instrumentos e as vias assecuratórias de
direitos reconhecidos na própria Constituição em favor dos desassistidos que
padecem tantas limitações? Por que apenas a Defensoria Pública deveria ser
excluída do rol do art. 5º da Lei n. 7.347/19852?
A ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que
compõem o sistema constitucional de Estado Democrático de Direito.
(…)
A ausência de demonstração de conflitos de ordem objetiva decorrente da atuação
dessas duas instituições igualmente essenciais à justiça (a Defensoria Pública e o
Ministério Público) demonstra inexistir prejuízo institucional para a segunda,
menos ainda para os integrantes da Associação Autora.”

O Ministro Marco Aurélio, defendendo que o mérito da ação sequer deveria ser
analisado, por ausência de pertinência temática da CONAMP, coloca:

751
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

“Presidente, peço vênia para divergir. Não reconheço à CONAMP – e vejo que a
CONAMP tem receio da Defensoria Pública – a legitimidade universal.”

Importante registrar que não se está a advogar um cenário de heróis e vilões, no qual
instituições supostamente mais legítimas seriam perseguidas por outras menos legítimas. Na
realidade bourdieusiana que expomos, todas estão legitimamente disputando capital social e
troféus específicos. Apenas a título exemplificativo, pode-se citar as Ações Diretas de
Inconstitucionalidades (ADIs) 3892 e 4270, que declararam a inconstitucionalidade de
normas do Estado de Santa Catarina sobre a defensoria dativa e a assistência judiciária
gratuita. O Estado não possuía Defensoria Pública e a população hipossuficiente recebia
prestação jurídica gratuita por meio de advogados dativos indicados pela seccional
catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SC). Não obstante a discussão técnico-
jurídica travada, inegável que, no âmago, buscava a Defensoria ganhar capital social,
conquistando um espaço no campo até então ocupado pela advocacia privada.
A reflexão que merece ser feita diz respeito ao limite tênue em que excessos nas
contendas institucionais passam a disputar espaço com a efetiva tutela dos direitos. Até que
ponto preocupações com aspectos meramente formais, que tentam esconder competições
sociais de poder, colocam em segundo plano a preocupação com a efetivação da justiça? Eis
uma provocação que merece destaque, notadamente na discussão sobre a materialização
social da ciência jurídica.

CONCLUSÃO

No presente estudo, se buscou um diálogo do Direito com a Sociologia, a fim de


demonstrar que, por trás de argumentações jurídicas, existe, na realidade, uma disputa de
capital simbólico. Valendo-nos dos conceitos clássicos da obra de Pierre Bourdieu, se
aprofunda o debate entre o tema proposto e as demais ciências sociais, suscitando
ponderações sobre a interpretação jurídica em geral e, no presente estudo, especificamente
sobre os atos normativos relacionados ao fortalecimento institucional da Defensoria Pública, a
fim de situá-la não como um fenômeno hermético e apartado da realidade, mas sim como um
fato social representativo das relações intrínsecas de poder.

752
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS

Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.adpergs.org.
br/todas-as-noticias/item/parecer-de-daniel-sarmento-na-adi-proposta-pelo-governo-dilma-rousseff-contra-a-aut
onomia-da-defensoria-publica-da-uniao>. Acesso em: 03 de agosto de 2017.

BARROS, Clóvis de Barros. “A sociologia de Pierre Bourdieu e o campo da comunicação”: Uma proposta de
investigação teórica sobre a obra de Pierre Bourdieu e suas ligações conceituais e metodológicas com o campo
da comunicação. Tese de doutorado, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2003.

BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2005.

BOURDIEU, Pierre. Capitulo 1: Espaço Social e Espaço Simbólico; Capitulo 2: O Novo Capital, Capitulo 4:
Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. In: Razões práticas: sobre a teoria da ação.
Campinas: Papirus, 1996.

______. Capitulo III: A Gênese dos conceitos de Habitus e de Campo. In: O Poder Simbólico. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2010.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça: Trad. Ellen Grancie Northfleet. Porto Alegre: Fabris,
1988.

ECONOMIDES, Kim. “Lendo as ondas do movimento de acesso à justiça: epistemologia versus metodologia”.
Revista Cidadania, Justiça e Violência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.

SANTOS, Márcio Achtschin. Uma leitura do campo jurídico em Bourdieu. In: Águia: revista científica da
FENORD, v. 01, p. 90-105, 2011.

VOIROL, O. A esfera pública e as lutas por reconhecimento: de Habermas a Honneth. Cadernos de filosofia
alemã, São Paulo, n. 11, p. 33-56, Jan./Jun, 2008.

753
CORRUPÇÃO E INSTITUIÇÕES

BRETAS, Carlos Renan Moreira


Mestrando do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da UFF
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO

O presente artigo discute um fenômeno muito presente no passado e nos dias atuais: a corrupção. Para
tanto, será apresentado neste ensaio algumas teorias que buscavam explicar a relação entre Estado,
corrupção e agentes políticos e econômicos. Neste sentido, destaca-se, inicialmente, a teoria da
modernização, muito presente a partir dos anos 1950, segundo a qual a corrupção poderia ser explicada
a partir da lacuna deixada entre o desenvolvimento econômico e a baixa institucionalização da política.
A corrupção surge, nesse contexto, como um mecanismo para driblar barreiras políticas para a
obtenção de benefícios econômicos. Ressalta-se também, teorias institucionalistas, que tentaram
articular a ideia de atores autointeressados e o papel das instituições. Neste caso, insere-se uma
discussão a respeito do rent-seeking, uma teoria que evidencia como agentes agem em busca de rendas
geradas pela atuação estatal. Por fim, deve-se apontar, na realidade brasileira, que fatores contribuíram
e contribuem para práticas corruptivas e que medidas são tomadas para combatê-las.

Palavras-Chave. corrupção, economia, política

ABSTRACT

This article discusses a very present problem in the past and in the present day: corruption. For this,
we will demonstrate in this essay some theories that sought to explain the relationship between State,
corruption and political and economic agents. In this sense, the theory of modernization, very present
from the 1950s onwards, stands out, according to which corruption could be explained from the gap
left between economic development and the low institutionalization of politics. Corruption emerges in
this context as a mechanism to overcome political barriers to obtaining economic benefits.
Institutionalist theories have also tried to articulate the idea of self-interested actors and the role of
institutions. In this case, there is a discussion about rent-seeking, a theory that shows how agents act in
search of revenues generated by state performance. Finally, it should be pointed out, in the Brazilian
reality, what factors contributed to and contribute to corruptive practices and what measures are taken
to combat them.

Keywords. corruption, economy, politics

754
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a analisar algumas teorias sobre corrupção que foram
desenvolvidas ao longo do século XX. Veremos que, em muitas delas, aborda-se este
fenômeno a partir de uma perspectiva da economia - a economia política da corrupção.
A teoria da modernização evidencia a corrupção a partir do espaço deixado entre o
desenvolvimento econômico e a baixa institucionalização política, em que os agentes
políticos e econômicos tendem a burlar regras do sistema político em seu próprio benefício.
Enquanto a teoria da escolha pública toma um indivíduo como foco de análise,
considerando uma instituição como agrupamento de pessoas, em que cada uma visa um
interesse específico, a teoria da escolha racional, desenvolvida a partir dos anos 1980, procura
evidenciar o papel que as instituições exercem sobre o comportamento dos indivíduos.
Dentro desse panorama, surgem análises mais específicas, como a do rent-seeking.
A partir dessa teoria, da atuação estatal, como a regulação, por exemplo, surgem rendas, ou
seja, benefícios que são almejados por agentes econômicos. Para ganhar essas rendas, esses
agentes encontram na corrução uma saída com custo inferior ao caminho que deveria ser
perseguido caso fossem observadas as regras do sistema.
Analisaremos ainda a situação brasileira, fortemente marcada pelo patrimonialismo,
“que envolve a ideia de confusão entre bens particulares e públicos” (SOUZA, 2012, p.68),
fenômeno já apontado por Sérgio Buarque de Holanda em 1936, evidenciando uma realidade
histórica em nosso país. Além disso, ao longo do século passado, diversas práticas
contribuíram para o avanço da corrupção, como o clientelismo.
Ainda em curso, a operação Lava-Jato é um marco dos dias atuais que demonstra,
não obstante nossa história tenha mudado de atores, que práticas corruptivas estão ainda
muito presentes na relação entre Estado e sociedade.

1. TEORIA DA MODERNIZAÇÃO

Ao longo do século XX, diversos autores, sobretudo estadunidenses, a partir de um


olhar econômico sobre o problema político da corrupção, criaram diversas teorias sobre esse
instituto. Em um primeiro momento, em um panorama pós-segunda guerra mundial,
desenvolveu-se aquilo que posteriormente se denominou teoria da modernização. Esta teoria
explora a relação entre mudanças sociais e atos de corrupção, que são praticados em um

755
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

contexto de um desenvolvimento econômico que não é acompanhado por uma evolução das
instituições. O principal pano de fundo para essa teoria são “grandes dicotomias como rural e
urbano, não industrializado e industrializado, subdesenvolvidas e desenvolvidas”
(FILGUEIRAS, 2012, p.300).
A partir da década de 1950, a questão da modernização ganhou força dentro de uma
análise funcionalista, cujo objetivo era investigar a relação entre o desenvolvimento político-
econômico e a corrupção. Samuel Huntington1, um dos principais nomes dessa escola,
sustentava que a corrupção surgia no espaço existente entre a modernização e a
institucionalização (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.10), quando esta não conseguia
resolver as necessidades que aquela impunha.
Para HUNTINGTON, a baixa institucionalização política seria um fator que
favoreceria a prática de atos corruptivos. Neste sentido:

Corruption is behavior of public officials which deviates from accepted norms in


order to serve private ends. [...] Corruption is one measure of the absense of
effective political institutionalization. Public officials lack autonomy and coherence,
and subordinate their institucional roles to exogenous demands2. (HUNTINGTON,
2002, p.253)

Com isso, devido à baixa institucionalização das organizações políticas, que pouco
se adaptam à dinâmica de mudanças, ocorre a corrupção, que pode representar um meio
facilitado de ascensão para o agente corrupto. Há autores, como JOSEPH NYE, que aludem a
um caráter positivo da corrupção, que se consubstanciaria na formação de “capital privado,
superação de barreiras burocráticas, integração das elites políticas e de capacidade
governamental” (FILGUEIRAS, 2012, p.301), o que, em uma perspectiva econômica,
favoreceria o desenvolvimento político de um país. Contudo, isso apenas se aplicaria em
casos de corrupção controlada.
Os estudos funcionalistas da corrupção, a partir da teoria da modernização, tiveram
grande influência até os anos 1970, restando superada, simbolicamente, com a queda do muro
de Berlim3.

1
Um de seus principais livros é “A ordem política em sociedades em mudança”, de 1975.
2
Texto original data de 1968.
3
FILGUEIRAS, 2012, p.302

756
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. TEORIA INSTITUCIONAL DA ESCOLHA PÚBLICA

Paralelamente aos estudos da teoria da modernização, nos anos 1950 começaram a


se desenvolver outras ideias aplicadas ao sistema político a partir de uma abordagem
econômica. A principal agenda dessa linha ficou conhecida como teoria da escolha pública,
ou public choice theory, que aplicava um método da economia a elementos historicamente
estudados pela ciência política, tais como: “grupos de interesse, partidos políticos, processo
eleitoral, análise da burocracia, escolha parlamentar e análise constitucional” (PEREIRA,
1997, p.419).
A teoria da escolha pública assenta-se em uma perspectiva denominada
individualismo metodológico, que consiste em tomar o indivíduo como eixo de análise, pois
só ele é dotado de valores e estímulos, que podem orientar suas ações, sejam estas individuais
ou coletivas. Nessa perspectiva, as instituições são consideradas como agrupamento de
indivíduos, não se cabendo falar em uma concepção orgânica de instituição passível de ser
analisada. Nesse sentido, portanto, qualquer decisão coletiva é fruto de preferências
individuais de cada agente envolvido, instrumentalmente racional, assim como do arcabouço
normativo que viabiliza a passagem de diversos interesses pessoais para uma escolha coletiva.
(PEREIRA, 1997, p.423-424)
Os principais cientistas que desenvolveram a teoria da public choice foram Anthony
Downs, em sua obra “An Economic Theory of Democracy”, publicada em sua primeira
edição em 1957, e Marcur Olson, em se livro “A lógica da Ação Coletiva”, publicado em
1965. São duas obras importantes para se compreender a atuação de grupos de interesse na
política.
A obra de Dows deixa a intuição de um paradoxo na relação entre dois níveis, que
aparece de formas variadas, nos escritos de outros autores contemporâneos da época. Trata-se
do paradoxo da ação coletiva, segundo o qual as ações dos agentes racionais, consideradas em
uma esfera micro, podem convergir em uma irracionalidade de uma esfera macro, restando
frustrados os interesses de todos. (REIS4, 2013, p.12)
Olson defendeu que o fato de existir um grupo com objetivos em comum não é
condição de per si para a consolidação de um grupo de interesse, tendo em vista que diversos
daqueles grupos existem de maneira latente e, em razão disso, permanecem incapacitados de

4
Apresentação do Livro Uma teoria econômica da democracia, de Anthony Downs

757
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

exercer uma forte pressão sobre o governo para a defesa de seus interesses. Até mesmo
grupos menores podem ser “mais eficazes em organizarem-se e em influenciarem as políticas
governamentais” (PEREIRA, 1997, p.434).

3. TEORIA INSTITUCIONAL DA ESCOLHA RACIONAL

A partir dos anos 80, passaram a exercer força no cenário político proposições da
teoria da escolha racional (rational choice) e de teorias institucionalistas. Nesse contexto,
evidenciam-se análises sobre grupos de interesse mais específicos, como no caso do rent-
seeking5, que será abordado em seguida.
O grande diferencial desse novo panorama consiste na consideração por parte dos
teóricos vinculados ao neo-institucionalismo da escolha racional do papel fundamental que as
instituições exercem na influência sobre o comportamento dos agentes e grupos de interesses
envolvidos no processo político. Segundo MARQUES:

O neo-institucionalismo da escolha racional considera as instituições fundamentais


para a definição das estratégias dos atores. Para eles, as instituições representam
constrangimentos à escolha estratégica, alterando o comportamento auto-
interessado. (MARQUES, 1997, p.77)

A escola do neo-institucionalismo da escolha racional se divide em duas vertentes.


A partir do primeiro modelo teórico, instituições seriam meras “regras do jogo”, um elemento
exógeno aos atores, e que representa uma espécie de script que descreve como deve agir cada
um no alcance dos seus interesses. Uma segunda interpretação leva em conta que essas
“regras do jogo” são estabelecidas pelos próprios atores-jogadores; logo, por esse viés,
instituições representam a forma “como os jogadores desejam jogar”. Com isso, se um ator
não concorda com a regra e deseja jogar de forma diferente, a instituição se torna frágil.
Como consequência disso, evidencia-se uma baixa institucionalização política. Neste sentido,
SHEPSLE:

Within the rational choice tradition there are two now-standard ways to think about
institutions. The first takes institutions as exogenous constraints, or as an
exogenously given game form. The economic historian Douglass North, for
example, thinks of them as ‘‘the rules of the game in a society. [...] An institution is
a script that names the actors, their respective behavioral repertoires (or strategies),
the sequence in which the actors choose from them, the information they possess

5
Em português: caçadores de rendas

758
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

when they make their selections, and the outcome resulting from the combination
of actor choices. (SHEPSLE, 2006, p.24)

The second interpretation of institutions is deeper and subtler. It does not take
institutions as given exogenously. Instead of external provision, the rules of the
game in this view are provided by the players themselves; they are simply the ways
in which the players want to play. (SHEPSLE, 2006, p.25)

Institutions are simply equilibrium ways of doing things. If a decisive player wants
to play according to diferent rules [...] then the rules are not in equilibrium and the
‘‘institution’’ is fragile. (SHEPSLE, 2006, p.26)

A teoria da escolha racional juntamente com uma visão institucionalista


proporcionam os elementos para a análise do problema da corrupção, por considerarem, como
primeiro nível de análise, o indivíduo. As teorias que levam em conta o comportamento dos
agentes destacam-se pelo foco no indivíduo, deixando em segundo plano, fatores gerais.
Nesta linha teórica, situa-se Susan Rose-Ackerman, referência em estudos sobre corrupção.

First, there is rational choice theory: public choice theory. For the independent
variables to explain corruption, it primarily looks at the level of the individual.
(GRAAF, 2007, p.46)

This group of causal theories is made popular by Rose-Ackerman (1978), who


claims that public officials are corrupt for a simple reason: they perceive that the
potential benefits of corruption exceed the potential costs. (GRAAF, 2007, p.47)

The advantage of public choice theory is that it has relatively close focus (Schinkel
2004: 11). Instead of looking for general determining factors, it concentrates on a
specific situation of an agent (a corrupt official) who calculates pros and cons. In
that sense however, it is insensitive to the larger social context (which is something
public choice in general has often been criticized for). (GRAAF, 2007, p.48)

Susan Rose-Ackerman possui um relevante estudo a respeito da corrupção,


incluindo, junto à teoria da escolha racional, o papel das instituições. Sua perspectiva de
análise consiste em tentar compreender como ajustes institucionais são coordenados a fim de
permitir que atores, visando interesses egoístas, possam potencializar ganhos ao desrespeitar
regras que organizam o sistema político. O que se busca é explicar a corrupção a partir da
“ação estratégica de atores políticos, de acordo com o cálculo racional que eles fazem para
burlar ou não uma regra institucional”. (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.11)

759
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

4. RENT-SEEKING

Uma teoria que se fortaleceu no âmbito do estudo da corrupção por economistas é a


do rent-seeking. Trata-se de um conceito advindo do campo da economia, sobretudo das
ideias inseridas no campo da teoria da escolha racional. As principais obras sobre esse assunto
foram desenvolvidas por autores como “Tullock, Bhagwati, Krueger, Rose-Ackerman, entre
outros” (ZURBRIGGEN, 2012, p. 365). A teoria do rent-seeking pretende explicar como
certos atores buscam a maximização das suas rendas em prejuízo de recursos públicos. Para
KRUEGER e TULLOCK, atitudes típicas do rent-seeking são mais observadas em contextos
de monopólio político de poder e recursos, o que favorece a persecução de rendas pelos
agentes, os quais não encontram qualquer incentivo para seguir as regras institucionais do
sistema. (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.11) Neste sentido:

Costly transfers should be particularly an issue in the case of a monopoly. As


monopolies give rise to rents, these incite disputes regarding their distribution.
(LAMBSDORFF, 2007, p. 111)

Com isso, a problemática da corrupção, a partir de vertentes teóricas oriundas de


proposições econômicas – como é o caso do rent-seeking, é explicada pela atitude dos atores
políticos “no contexto de instituições que procuram equilibrar esses interesses com noções
amplas de democracia”. (FILGUEIRAS, 2009, p. 396) Com isso:

From the outset, corruption has been considered as one form of rent-seeking. It was
viewed as a special means by which private parties may seek to pursue their
interests in the competition for preferential treatment. Just like other forms of rent-
seeking, corruption representes a way to escape the invisible hand of the market and
influence policies to one’s own advantage. (LAMBSDORFF, 2007, p. 113-114)

A teoria do rent-seeking possibilitou a conexão entre a ação de grupos de interesse e


governo, tendo em vista que este possui a capacidade de deliberar sobre “a atribuição de
direitos de propriedade sobre determinados recursos, conceder concessões de exploração,
atribuir licenças, [...], regular mercados, no sentido de uma restrição à competição, etc.” A
partir dessas inúmeras possibilidades de atuação estatal surgem as rendas de monopólio.
(PEREIRA, 1997, p.435)
Com isso, a busca por rendas é uma expressão designada para evidenciar a procura
por privilégios por parte de agentes públicos e privados. Estes últimos buscam influir
politicamente sobre os primeiros, para conseguirem alterações em medidas de cunho

760
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

econômico que sejam benéficas seus fins, em prejuízo do bem-estar da coletividade. Trata-se,
de todo modo, de uma manifestação da corrupção (ZURBRIGGEN, 2012, p. 365). Neste
sentido, portanto:

A busca por rendas se define como a competência de empresas ou grupos de


interesse organizados para obter privilégios, rendimentos financeiros e favores
políticos individuais, em contraposição ao bem-estar social. [...] Os empresários
atuam de maneira racional, e incorrem em condutas de caça à renda quando julgam
que os prováveis benefícios por cometer um ato ilícito superam os custos.
(ZURBRIGGEN, 2012, p. 365)

Ao analisar a teoria do rent-seeking, portanto, observamos um grande enfoque da


atitude de agente, que realizam atos de corrupção com o fim de alcançar seus próprios
interesses. Para isso, considera-se o governo como o “agente dos interesses dos cidadãos,
eleito para representar seus interesses através da formulação e execução de políticas públicas”
(ZURBRIGGEN, 2012, p. 366).
Para alguns autores como ZURBRIGGEN, uma saída para o problema do rent-
seeking consiste na execução de mudanças institucionais, a partir da perspectiva do
institucionalismo da escolha racional, que oferece um enfoque “útil para compreender os
aspectos microeconômicos da caça às rendas” (ZURBRIGGEN, 2012, p. 366).
Com isso, passa-se além de um enfoque micro de relações para a análise de uma
dinâmica macro, ao se investigar o papel das instituições, sejam elas formais ou informais,
que dominam o cenário político no qual os atores agem para que decisões políticas favoráveis
a seus interesses sejam adotadas. Partir para um estudo institucionalista do problema é
essencial para que se compreendam as relações de renda não apenas como uma “mera troca
de recursos, ou seja, benefícios específicos por apoio político ou eleitoral”. Neste sentido, o
próprio rent-seeking constitui-se como instituição específica, presente nos regimes políticos,
sobre tudo na América Latina, que “se reproduzem em forma de redes de caça à renda”.
(ZURBRIGGEN, 2012, p. 367).

5. CORRUPÇÃO NO BRASIL

Vimos até então, diversas teorias que buscavam compreender a corrupção,


sobretudo a partir de uma abordagem do campo da economia. Muitos autores que, ao longo

761
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

do século XX, desenvolveram esses estudos eram estadunidenses, inseridos, portanto, em um


contexto econômico diferente do nosso.
No caso brasileiro, a corrupção remonta desde os tempos da colonização, passando
pelo Império, até os dias atuais. Para se interpretar o fenômeno da corrupção na época
colonial, é preciso ter em vista as “diretrizes gerais que marcavam a cultura política, as
práticas administrativas e a dinâmica da colonização mercantilista na América portuguesa”
(FIGUEIREDO, 2012, p.174).
Caio Padro Jr. em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo, relata diversas
práticas realizadas no âmbito da Administração, que careciam de total imparcialidade e que
não visavam a um fim comum, mas sim, a interesses de segmentos políticos, religiosos ou
mesmo econômicos. Isso se devia a uma realidade que assim descreveu o historiador:

Numa palavra, e para sintetizar o panorama da sociedade colonial; incoerência e


instabilidade no povoamento; pobreza e miséria na economia; dissolução nos
costumes; inépcia e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos. (PRADO JR,
1961, p.355)

No contexto de uma sociedade completamente desestruturada, de uma


administração ineficaz e de uma economia voltada para a exportação de gêneros para o
mercado exterior, em que a colônia era importante apenas em aspectos que representassem
ganhos financeiros para a metrópole, certas práticas eram bastante comuns:

Magistrados, capitães, governadores, vice-reis, meirinhos, contratadores,


eclesiásticos não desperdiçaram chances de cultivar ganhos paralelos. Em troca
deles guardas facilitavam a soltura de condenados, juízes calibravam o rigor das
sentenças, fiscais unhavam parte das mercadorias que deveriam tributar. A
participação em atividades de contrabando revelava-se também tolerada. Afinal era
recomendável, ao menos tacitamente, participar das oportunidades da economia
colonial amealhando ganhos para o patrimônio familiar. Essa lógica que tornava
natural a recepção por parte dos funcionários de ganhos no exercício de funções em
nome do rei integrava o universo cultural em diversas escalas, desde o ambiente das
relações locais em que a autoridade atuava, que aceitavam, até as esferas decisórias
na metrópole, que toleravam. (FIGUEIREDO, 2012, p. 177)

A corrupção no Brasil é atribuída como uma herança ibérica, assim como também
decorrente do patrimonialismo, que constitui uma modalidade de dominação política. Para
AVRITZER e FILGUEIRAS, a corrupção não é uma prática a ser considerada como natural,
mas sim um fenômeno existente em várias dimensões:

762
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Esse tipo de leitura a respeito do problema da corrupção atribui ao Estado e à


cultura política brasileira a explicação das mazelas institucionais promovidas pela
malversação dos recursos públicos, tendo em vista nossa herança histórica. [...] Por
esse tipo de abordagem, é proporcionado um engessamento crítico das instituições
políticas, uma vez que a possibilidade de controle da corrupção ocorreria apenas
por uma revolução cultural e histórica do Brasil. [...] No entanto, para entender a
corrupção como fenômeno que afeta o Brasil democrático no começo do século
XXI, é importante desnaturalizá-la, isto é, entender que um conjunto de práticas e
instituições que existem no país tem forte centralidade na persistência do fenômeno,
que nada tem de natural. Assim, a organização do sistema político, a organização
do Estado e a organização das formas de controle sobre o sistema administrativo-
estatal são as principais dimensões da corrupção que a tornam um fenômeno
fortemente contencioso no Brasil. (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.8)

Um dos fatores que mais contribuíram para o fortalecimento da corrupção no Brasil


foi a “baixa institucionalização política”. Em função disso, a corrupção, ainda que em um
contexto de modernidade, relacionar-se-ia com “práticas políticas típicas de sociedades
tradicionais”. Exemplos dessas práticas são: “o clientelismo, a patronagem, o nepotismo, o
fisiologismo”. Embora possa se reconhecer que esses comportamentos possam não
obrigatoriamente constituir corrupção propriamente dita, “promovem vulnerabilidades
institucionais que resultam na corrupção”. (AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.10) Neste
sentido:

[...], práticas como clientelismo, patronagem, nepotismo, malversação de recursos


públicos, extorsão, concussão, suborno, prevaricação e outras práticas mais podem
ter um sentido de corrupção à medida que seja considerada uma ação ilegítima em
contraposição ao interesse público. [...] Em primeiro lugar, porque estabelece uma
tensão entre o conceito de corrupção e os valores políticos fundamentais de uma
ordem democrática. Em segundo lugar, porque permite transcender a ideia, por si
restrita, de que a corrupção esteja referida apenas ao uso indevido de dinheiro
público ou ao suborno. Em terceiro lugar, porque assume que o efeito da corrupção
esteja não apenas no aspecto gerencial do Estado, mas no problema da legitimação
da ordem democrática como um todo. Em quarto lugar, porque permite absorver a
ideia de que o controle da corrupção envolve uma concepção mais ampla, assentada
em uma concepção aberta de cidadania e de accountability. Em quinto lugar,
porque permite perceber que o enfrentamento da corrupção não envolve apenas o
ajuste das instituições a sistemas de incentivo, mas compromissos de sociedades
inteiras, tendo em vista aspectos que são sociais, econômicos, culturais e políticos.
(AVRITZER, FILGUEIRAS, 2011, p.13)

Desde 2009, no Brasil, desenvolvem-se investigações do Ministério Público e da


Polícia Federal que levantaram uma série de irregularidades em contratos celebrados entre o
Estado e grandes empreiteiras, e que culminou na prisão de diversas pessoas, incluindo
políticos outrora influentes. Trata-se da operação Lava-Jato, que recebeu esse nome pelo fato
de uma rede de postos de combustíveis e de lava-jato de veículos ter sido usada como

763
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ferramenta de movimentação de recursos ilícitos. Trata-se da maior investigação sobre


corrupção empreendida no Brasil, que ganhou notoriedade, sobretudo em 2014, com a
deflagração da primeira fase, que culminou com a prisão do doleiro Alberto Youssef e Paulo
Roberto Costa, ex-diretor da Petrobrás. A operação sofreu alguns desmembramentos, dentre
os quais o do Rio de Janeiro, em 2015. No ano seguinte, com a deflagração da Operação
Calicute, o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral é preso preventivamente a partir
de investigações que apontaram irregularidades em contratos celebrados pelo estado, em sua
gestão, como no caso das obras de reforma do Maracanã e da construção do Arco
Metropolitano. A partir daí, diversas outras denúncias foram oferecidas pelo Ministério
Público em desfavor de Sérgio Cabral, que resultaram em novos pedidos de prisão sua e de
outras pessoas que eram ligadas ao ex-governador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se afirmar, ao fim, que não é aconselhável falar-se em uma teoria política da
corrupção. Como foi visto, diversas teorias foram desenvolvidas ao longo do século passado,
cada uma com um foco específico. A corrupção é um fenômeno ainda muito presente na
realidade brasileira e de outros países. Trata-se de uma manifestação institucionalizada, a
partir da qual agentes políticos e econômicos procuram obter vantagens pessoais em
detrimento do interesse público.

REFERÊNCIAS

AVRITZER, Leonardo; FILGUEIRAS Fernando. Corrupção e controles democráticos no Brasil. Brasília, DF:
CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA, 2011

DOWNS, Anthony. Uma teoria econômica da democracia. Tradução de Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos.
São Paulo: Edusp, 2013.

FIGUEIREDO, Luciano Raposo. A corrupção no Brasil colônia. In. Corrupção: ensaios e críticas. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2. ed., 2012

FILGUEIRAS, Fernando. Marcos teóricos da corrupção. In. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2. ed., 2012

GRAAF, Gjalt de. Causes of corruption: towards a contextual theory of corruption. Vrije Universiteit
Amsterdam, 2007

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 26. ed., 1995

764
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

HUNTINGTON, Samuel: “Modernization and corruption”. In Heidenheimer, Arnold J. and Johnston, Michael
(eds.): Political Corruption: Concepts and Contexts (Third Edition), New Brunswick and London: Transaction
Publishers, 2002

LAMBSDORFF, Johann Graf. The institucional economics of corruption and reform. Cambridge, 2007

MARQUES, Eduardo. Notas críticas à literatura sobre estado, políticas estatais e atores políticos. BIB, Rio de
Janeiro, n. 43, 1° semestre de 1997, pp. 67-102

PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Brasiliense, 1961.

PEREIRA, Paulo Trigo. A teoria da escolha pública (public choice: uma abordagem neoliberal?. Análise Social,
vol. xxxii (141), 1997 (2°), 419-442

SHEPSLE, Kenneth A. Rational choice institutionalism. In. The Oxford handbook of political institutions.
Oxford, 2006

SOUZA, Jessé. Weber. In. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2. ed., 2012

ZURBRIGGEN, Cristina. Empresários e redes rentistas. In. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2. ed., 2012

765
A LEI N. 13.019/14: LIÇÕES DE “BOA” GOVERNANÇA
NAS PARCERIAS COM O TERCEIRO SETOR?

SILVA, Daniela Juliano


Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense.

RESUMO

Nos primeiros meses do corrente ano, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro expediu uma
recomendação ao Município do Rio de Janeiro para que o mesmo suspendesse novas contratações por
meio de Organizações Socias (OS’s) para a saúde. O argumento que serve de base argumentativa para
tal documento sugere que a Secretaria Municipal de Saúde deve promover, antes de tudo, uma
reestruturação interna, de modo a ser capaz de realizar uma fiscalização eficaz dos contratos de gestão
firmados. A recomendação se alicerça nos sucessivos casos de corrupção capitaneados por OS’s, com
o desvio de pelo menos quarenta e oito milhões de em recursos públicos. O caso em apreço exterioriza
apenas um dos pilares da crise que afeta os entes do Terceiro Setor. A falta de repasse dos recursos
fomentados, aponta para o fracasso do modelo quando pautado apenas na parceria com o poder público
e coloca em xeque a efetividade, grande bandeira dos entes do Terceiro Setor. O denominado “Marco
Regulatório do Terceiro Setor” - Lei n. 13.019/15 - surge em um cenário de incertezas como promessa
não só de um lugar ao sol para tais entes parceiros do poder público na realização de direitos sociais de
primeira grandeza, mas também como esperança de um modelo de sucesso na implementação de mais
transparência e uma governança exemplar no trato desses acordos.

Palavras-Chave. Terceiro Setor. Accountability. Compliance.

ABSTRACT

In the earliest months of 2017, Ministério Público of Rio de Janeiro State, an institute responsible for
public accountability and compliance, recommended to Rio de Janeiro healthy secretary to interrupt
their contracts with social organizations which are responsible for the management of contracts in
health área. The reports of corruption had increased properly. The crisis in the sector, with
economical impacts in the contracts, is another cruel reality of the partnership constructed between
groups that are socially responsible and the public sector. A bill, that marks the regulation of the
Brazilian third sector – n. 13.019/14 – is a huge promise in the construction of more transparency and
responsability between public and private partners, in order to implement a fairness that could change
the logic of the implementation of public services.

Keywords. Third Sector. Accountability. Compliance

766
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O característico dualismo maniqueísta ainda presente em nosso dia a dia inspira as


reflexões do presente estudo. A tendência simplista de se rotular tudo com base em seus
opostos (bom x mau; sujo x limpo; certo x errado), de pessoas a instituições, também afeta o
tema central de nossas reflexões: o denominado “Terceiro Setor”. O espectro do “bom”
também afeta o poder público, na sua permanente busca por uma “boa administração”, fator
que influencia as parcerias firmadas entre tais entes e o poder público na gestão de direitos
sociais de relevância.
Antecipando, desde já, o que enfrentaremos em seus pormenores no
desenvolvimento deste artigo, o Terceiro Setor, por conta de sua estruturação “sem fins
lucrativos” e de suas bandeiras em prol de uma cidadania mais ativa, se apresentaria, para
alguns (CARDOSO apud IOSCHPE, 1995) (AMARAL, 2009), como fruto da dinâmica de
fortalecimento da sociedade civil rumo a uma verdadeira reestruturação capitalista. Nesses
termos, o Terceiro Setor se contrapõe ao mercado e ao Estado como verdadeira alternativa,
como algo “bom”, pautado na solidariedade e no reconhecimento do “outro”. Para outros, o
Terceiro Setor não causa qualquer ruptura no sistema da livre iniciativa, servindo-se, em
verdade, como instrumento de reprodução de toda esta lógica (MONTAÑO, 2005). Além
disso, quando o Terceiro Setor firma parcerias com o poder público (sua grande “bandeira” na
atualidade) para a realização de direitos sociais de relevância (saúde, educação, cultura, meio
ambiente), o mesmo estaria, em verdade, tentando garantir “sua ração no caldeirão das
verbas” (NERFIN, 1991).
Igualmente inspirados pela concepção kantiana de “boa vontade”, bem como por
seu Imperativo Categórico, as reflexões aqui postas impõem o desenvolvimento do tema, de
modo a se buscar, não uma resposta definitiva ao questionamento proposto no título do
presente artigo, mas sim um ponto de vista que vá além do senso comum que coloca o
Terceiro Setor ora como uma opção milagrosa, ora como o pior dos mundos.
Primeiramente, parte-se do reconhecimento de que a Administração Pública
brasileira, como não poderia deixar de ser, vem sofrendo sucessivas transformações. Tal
assertiva se justifica na medida em que se verifica que a Administração não mais realiza o
exercício de suas competências públicas somente por intermédio dos órgãos da
Administração Direta e das entidades da Administração Indireta (autarquias, empresas
públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas). Outros modelos têm sido

767
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

adotados na busca pela plena realização das finalidades públicas, indicando um cenário de
pulsante mudança. É certo que essa mudança estrutural não sinaliza para outra coisa senão
para a conclusão inquestionável de que o próprio Estado se encontra em permanente mutação.
É neste cenário que insurgiu a perspectiva de um “Terceiro Setor”, que se
desenvolve para além do “Primeiro Setor” (Estado) e do “Segundo Setor” (mercado), e que
tem como expoentes, as Organizações Não Governamentais (ONGs), as Organizações
Sociais (OS’s) e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
Como não poderia deixar de ser, o primeiro capítulo do presente estudo traçará, em
algumas poucas linhas, acerca da evolução da Administração Pública que culminou no
cenário que temos hoje, de verdadeira proliferação dos entes do Terceiro Setor. Sendo assim,
antes de adentrarmos na problemática proposta no título deste estudo, passar-se-á,
primeiramente, à análise de todo o processo que culminou na mudança do paradigma estatal,
bem como nas repercussões doutrinárias que impulsionaram a adoção desta nova estrutura
administrativa, que recebe a denominação recorrente de “Terceiro Setor”.
Em um segundo momento, interessa-nos mais de perto, focando-se no objeto em
estudo, a percepção desenvolvida no sentido de se entender que a evolução do Terceiro Setor,
fruto de uma verdadeira “profissionalização” da sociedade civil organizada, encontra-se
cercado de promessas e dificuldades. Em um segundo capítulo, pretende-se enfrentar tal
problemática, com base em revisão bibliográfica pautada em alguns marcos teóricos de
importância ao tema, no que citamos: Montaño (2008) e Oliveira (2008).
Por fim, no terceiro capítulo, de modo a proporcionar certo direcionamento ao
questionamento impresso no título deste estudo, julgamos oportuna uma breve reflexão acerca
do pensamento kantiano sobre seu entendimento quanto a “boa vontade”, sua percepção do
“outro” com base em sua concepção de alteridade. Refletir-se-á, ainda, em contraponto,
acerca das noções de cidadania e solidariedade, que rotulam o Terceiro Setor no sentido de
fazer o “bem” e o poder que tal condição lhe investe.

1. A EVOLUÇÃO ESTATAL RUMO AO ESTADO SUBSIDIÁRIO

Ernst Forsthoff (1958) já advertia: “Cada época da história dos Estados produz um
tipo próprio de Administração, caracterizado por seus fins peculiares e pelos meios de que se
serve. Isso não quer dizer, está claro, que uma espécie de Administração seja substituída,

768
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

abrupta e repentinamente por outra” 1. Pelas palavras de citado autor é possível perceber a
gradação das mudanças, que não ocorrem de forma súbita. Novos paradigmas vão sendo
incorporados de modo a respeitar as realidades históricas e sociais.
A primeira forma do Estado moderno é o Estado absoluto. Aqui, o poder ainda se
encontra com a aristocracia, mas aliada à burguesia, burguesia esta que não representa mera
fonte de poder, mas também as elites profissionais, passando a demandar a garantia dos
direitos civis. Nessa perspectiva, desabrocham os primeiros traços do Estado liberal,
garantidor destes direitos, garantia pautada em uma conduta absenteísta, avessa a qualquer
tipo de intervenção.
A premissa maior no Estado Liberal de Direito sugere uma postura negativa, um
non facere. Fundado nos direitos de liberdade, propriedade e de participação política, o
Estado ausente, até mesmo indiferente, é que garantiria as liberdades individuais. Tal
sistemática fazia toda a lógica diante das arbitrariedades estatais tão presentes no Estado
Absoluto, que desconhecia conceitos tais como o de Direitos Fundamentais.
Voltado à limitação do poder em favor das liberdades individuais, o Estado liberal
concedia à iniciativa privada toda a liberdade negocial, ficando a seu cargo poucas atividades,
ligadas à segurança, tributação e relações exteriores. Nesta linha, sob pena de se caracterizar
ofensa a essa, digamos, “ordem natural”, a Administração correspondia à burocracia guardiã,
patrimonialista, encarregada de tarefas clássicas de segurança pública, defesa externa e
distribuição de justiça2.
Ademais a expectativa de que a atividade econômica conduzisse ao
desenvolvimento de toda a sociedade, o crescimento incomum da economia no século XIX
representou um aumento da concentração de riquezas, que culminou em níveis alarmantes de
exclusão social e miséria. Os mecanismos autorreguladores do mercado não conseguiram
frear crises econômicas cíclicas. O liberalismo não se prestava a dar respostas às gritantes
contradições sociais.
O movimento reivindicatório das massas, aliado às concepções socialistas levou à
crise do Estado, que foi compelido a movimentar seu aparato administrativo para atender aos
reclamos da sociedade. Surgem desigualdades que não podem mais ser dirimidas e suportadas
pela sociedade. O senso coletivo floresce e o Estado se faz presente efetivamente, no que se
1
FORSTHOFF, Ernst. Tratado de derecho administrativo. Tradução de LACAMBRA, Legaz, FALLA, Garrido
e ORTEGA Y JUNGE, Gómez de. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1958. p. 35.
2
NICZ, Alvacir Alfredo. A liberdade de iniciativa na constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 67.

769
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

chama de Estado Social. Migra-se da concepção de uma prestação estatal negativa para uma
prestação positiva (facere). Inicia-se, então, a transição do Estado liberal para o Estado Social,
na tentativa de superar as injustiças provocadas pela postura abstencionista do liberalismo.
Esta nova “fórmula” demandou uma conduta ativa por parte do Estado, sendo
significativa a demanda por maior intervenção administrativa (planejamento, coordenação,
execução e controle). Sem deixar de lado a defesa da liberdade, o Estado assumiu a justiça
social como sua preocupação primeira, bem como a busca pela igualdade material. O Estado,
em especial sua Administração Pública, deixa sua postura abstencionista e passa a assumir a
responsabilidade pela condução do processo de satisfação das necessidades coletivas.
O público passa a prevalecer sobre o privado, estando o Estado no comando do
interesse coletivo. A retomada da gestão direta da ordem social e econômica tornou-se
imperativo essencial à correção dos efeitos disfuncionais de um desenvolvimento social e
econômico não controlado, estruturando a sociedade através de medidas diretas ou indiretas3.
O aumento da demanda social sobre o Poder Público forçou o crescimento do
aparato administrativo, com o incremento do número de empresas estatais, escancarando o
mau gerenciamento administrativo que acabou por conduzir ao aumento no déficit público.
Uma lista cada vez maior de necessidades sociais sem o correspondente incentivo ao
investimento eficaz, o crescimento do setor público e a corrupção inerente ao sistema
administrativo corroboraram para o colapso do sistema4.
Diante deste cenário, passa a ganhar destaque uma sistemática estatal mais
colaborativa, de um Estado fomentador, negocial, subsidiário, que vai em busca de parcerias
para realizar de forma efetiva suas competências públicas. Um Estado financiador, nas
palavras de Gaspar Ariño Ortiz5, se caracterizaria como a atividade de estímulo e pressão,
realizada de modo não coativo, sobre os cidadãos e grupos sociais, para imprimir um
determinado sentido a suas atuações . Para o autor, por meio de subvenções, isenções fiscais e
créditos, o Estado não obriga nem impõe; oferece e necessita de colaboração do particular
para que a atividade fomentada seja levada a cabo.

3
GARCIA PELAYO, Manuel. Las transformaciones Del Estado contemporâneo. Madrid: Alianza Universidad,
1980, p. 21-23.
4
MUÑOZ, Jaime Rodrigues-Arana. Reflections on the reform and modernization of the public administration.
Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Millano, Dott. A. Giuffré, n. 2, p. 522, apr/giu. 1996.
5
ARIÑO ORTIZ, Gaspar. Principios de derecho publico econômico: modelos de Estado, géstion pública,
regulación econômica. Granada: Comares, 1999, p. 290.

770
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

É neste cenário, onde se encontrariam as bases do denominado “neoliberalismo” e


também é neste cenário que desponta no Brasil, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado, aprovado em 21 de setembro de 1995, pela Câmara da Reforma do Estado, que
tratava das diretrizes para o início de uma ampla reforma do aparelho estatal. Citado Plano
reafirmou a noção de uma Administração Pública gerencial, que se postularia como
verdadeira resposta aos problemas do modelo anterior, firmando-se sob critérios de eficiência,
de um adequado sistema de prestação de serviços públicos e por dotar as organizações de uma
cultura empreendedora. Deste paradigmático instrumento é de onde se estruturou e se
alimentou o denominado “Terceiro Setor”, a ser tratado de forma pormenorizada no tópico
seguinte.

2. O TERCEIRO SETOR

Pedro Gonçalves pontua com extrema clareza três momentos essenciais do processo
de transformação do Estado contemporâneo: “(i) a cooperação mais ou menos sistemática e a
conjugação ordenada dos papéis de actores públicos e privados no desenvolvimento das
tradicionais finalidades do Estado Social e de Serviço Público; (ii) Sob o mote de uma
‘modernização administrativa’, um complexo processo de ‘empresarialização’ que, por vezes,
passa pela ‘privatização das formas organizativas da Administração Pública’; (iii) A
promoção de mecanismos de envolvimento e de participação de particulares ‘interessados’ na
gestão de um largo leque de incumbências públicas”6.
O Terceiro Setor, como tivemos a oportunidade de verificar no tópico anterior, nasce
deste cenário de profusa mutação estatal. A expressão “Terceiro Setor”, traduzida do inglês
third sector, se difundiu a partir da década de setenta, se referindo às organizações formadas
pela sociedade civil, cujo objetivo maior é a satisfação do interesse social e não o mero lucro.
O Terceiro Setor surge em contraposição aos chamados Primeiro Setor
(representado pela figura do Estado) e o Segundo Setor (Mercado). Disto se extrai que o
Terceiro Setor é tradicionalmente entendido como área dentro da qual se encontram todas as
entidades, que não fazem parte do Estado nem do mercado.
Neste viés, difundiu-se a utilização, como referência para classificação do Terceiro
Setor, dos critérios estabelecidos pelo Handbook on nonprofit institutions in the system of

6
GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005. p. 13-14.

771
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

national accounts, editado pela Organização das Nações Unidas, em conjunto com a
Universidade John Hopkins. Sob esta metodologia, fariam parte do Terceiro Setor as
entidades que detenham, cumulativamente: (i) natureza privada; (ii) ausência de finalidade
lucrativa; (iii) institucionalizadas; (iv) auto-administradas; (v) voluntárias7.
Apesar desta referência, ela não se presta à adoção de um conceito satisfatório à
dogmática jurídica, mormente pela amplitude e pelos contornos assumidos pela matéria no
cenário institucional pátrio. De toda forma, na tentativa de conceituar o Terceiro Setor uma
concepção prevalece: a idéia de delegação social. É o que alerta Diogo Figueiredo Moreira
Neto, ao inserir os entes do Terceiro Setor no que denomina entes intermédios, para os quais
haveria a transferência de serviços de interesse público “(...) em favor de entes criados por ela
própria sociedade, dedicados à colaboração no atendimento de interesses legalmente
considerados como públicos”8.
Diante dos mais variados conceitos apresentados pela doutrina do que se entenda
por Terceiro Setor, citamos o conceito de Gustavo Justino de Oliveira, por sua variedade de
elementos, senão vejamos: “o conjunto de atividades voluntárias, desenvolvidas por
organizações privadas não-governamentais e sem ânimo de lucro (associações ou fundações),
realizadas em prol da sociedade, independentemente dos demais setores (Estado e mercado),
embora com eles possa firmar parcerias e deles possa receber investimentos (públicos e
privados)9”.
Há ainda quem diga:

O terceiro setor é um tipo de ‘Frankstein’: grande, heterogêneo, construído de


pedaços, desajeitado, com múltiplas facetas. É contraditório, pois inclui tanto
entidades progressistas como conservadoras. Abrange programas e projetos que
objetivam tanto a emancipação dos setores populares e a construção da sociedade
mais justa, igualitária, com justiça social, como programas meramente assistenciais,
compensatórios, estruturados segundo ações estratégico-racionais, pautadas pela
lógica de mercado. Um ponto em comum: todos falam em nome da cidadania
(...)10.

7
SALAMON, Lester; ANHEIER, Helmut. The emerging sector: an overview. Baltimore, 1994.
8
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.
129-130.
9
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito do Terceiro Setor. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 17.
10
GOHN, Maria da Glória. Mídia, terceiro setor e MST: impacto sobre o futuro das cidades e do campo.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 60.

772
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

De toda forma, a expressão “Terceiro Setor” é recente e a abrangência de seu


conceito encontra-se em fase não só de consolidação, mas de reflexão, principalmente no
Brasil, em razão do recente aparato legislativo que instituiu o Marco Regulatório do Terceiro
Setor – a Lei n. 13.019/2014.
O histórico de desenvolvimento do Terceiro Setor no Brasil tem seus contornos
próprios, respeitando as peculiaridades do país. A princípio, a prestação de serviços de
interesse público se restringiu à atuação da Igreja Católica, por meio de confrarias e
irmandades que, posteriormente, ganharam companhia de entidades criadas por outras igrejas
e de associações de imigrantes. No século XX, frente aos processos de urbanização e
industrialização, este quadro se alteraria sensivelmente. Surgem numerosas associações
profissionais, associações de classe e sindicatos, como instrumentos de amparo ante a
ausência de normas regulatórias das relações de trabalho.
Com a Constituição de 1934, o Estado brasileiro assume o modelo de Estado social,
ocorrendo uma aproximação entre Estado e sociedade, caracterizada por um movimento de
“socialização do Estado e estadualização da sociedade11”, ou melhor, “(...) absorção da
Sociedade pelo Estado, isto é, a politização de toda a sociedade12”.
Como expressão máxima do modelo intervencionista de Estado, foram criadas nessa
época, empresas públicas para atuação na área econômica, bem como foi ampliado o aparato
estatal destinado à prestação de serviços sociais. Nesta perspectiva, cita-se a criação da Legião
Brasileira de Assistência – LBA pela Lei 4.830/42. Cite-se também, a instituição, por
determinação legal, dos denominados serviços sociais autônomos (em nível federal, as
entidades do chamado sistema “S” – SENAI, SESI, SESC, SENAC, SEBRAE, SENAR),
pessoas jurídicas de direito privado, mantidas por contribuições sociais e dotação
orçamentária, com o objetivo de prestar educação profissional e assistência aos cidadãos
vinculados ao setor produtivo.
Finalmente, digno de menção, a criação do Conselho Nacional do Serviço Social –
CNSS (1938), momento em que se consolida a aliança entre Estado e as entidades prestadoras
de serviços de interesse público nas áreas de assistência social, saúde e educação. A princípio,
este órgão tinha por atribuição, a avaliação de pedidos de subvenções, passando, tempos
depois, a gerenciar um Registro Geral de Instituições (que acaba por servir de requisito para a
11
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado e do direito: do Estado de Direito Liberal ao
Estado Social e Democrático de Direito. Coimbra: Coimbra Ed., 1987, p. 197.
12
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. P. 231.

773
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

concessão de benefícios fiscais a estas entidades) e a fornecer o certificado de fins


filantrópicos.
Com a promulgação da Constituição de 1988 foi possível identificar dois
fenômenos sociais opostos: por um lado, experimentou-se uma desmoralização destes
instrumentos de relação entre o Estado e as entidades prestadoras de serviços públicos, ante
sucessivos escândalos envolvendo os mesmos e, de outro lado, ocorreu a explosão no número
de movimentos associativos tanto nacional quanto internacionalmente.
Ademais este cenário, forçoso reconhecer que, pela primeira vez, uma Constituição
brasileira tratou de maneira expressa acerca da sociedade civil, atribuindo à mesma, em
inúmeros dispositivos (art. 199, §1º; art. 204, I; art. 205; art. 213, I e II; art. 216, §1º; art. 227,
§1º), o dever de contribuição para a consecução dos objetivos do Estado brasileiro. Tal
perspectiva se coaduna com a necessidade de mudança na atuação estatal, principalmente no
sentido de se alcançar maior eficiência nas atividades da Administração Pública, voltando a
ação dos serviços do Estado para o atendimento dos cidadãos.
Neste panorama surge o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado que,
adotando um modelo conceitual baseado na distinção de quatro setores específicos de ação
estatal, conforme a natureza de suas atividades, associando-os a modalidades de propriedade
(pública, pública não-estatal e privada) e formas de gestão, tendo previsto a criação de
entidades denominadas Organizações Sociais (OS’s), exteriorizando a tentativa de redefinir o
plano de relações entre o Estado e as entidades prestadoras de serviços de interesse público
(Setor de serviços não-exclusivos do Estado).
No desenvolvimento de todo esse cenário destacaram-se outras entidades, no que
citamos as agências reguladoras, as agências executivas e a Organização da Sociedade Civil
de Interesse Público (OSCIP). Tais entidades têm em comum o fato de não pertencerem nem
à Administração Direta nem à indireta e esta seria a lição primeira, consolidada nas palavras
de Celso Antônio Bandeira de Melo (2009), da seguinte forma:

As “organizações sociais” e as “organizações da sociedade civil de interesse


público”, ressalte-se, não são pessoas da Administração Indireta, pois, como além
se esclarece, são organizações particulares alheias à estrutura governamental, mas
com as quais o poder público (que as concebeu normativamente) se dispõe a manter
parcerias – para usar a expressão em voga – com a finalidade de desenvolver

774
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

atividades valiosas para a coletividade e que são livres à atuação da iniciativa


privada13.

Os entes do Terceiro Setor na atualidade brasileira se destacam pelas parcerias que


firmam com o Primeiro Setor para a realização de fins públicos (saúde, educação, meio
ambiente, cultura, dentre outros). Tal posicionamento coloca-os no centro de polêmicas que
acusam os entes do Terceiro Setor de oportunismo e instrumento para a privatização da coisa
pública. Essa discussão não é o centro do presente trabalho.
Sendo assim, feita a contextualização do tema e toda a necessária exposição que
fornece elementos para a construção da discussão central do presente estudo, passamos ao
enfrentamento do tema sob a perspectiva de suas principais bandeiras: a da solidariedade e da
cidadania ativa. Passa-se ainda à análise da obra de Immanuel Kant, na tentativa de
apresentarmos uma resposta contundente ao questionamento presente no título deste artigo e a
contraposição do tema a sua natural percepção de “bom”.

3. O TERCEIRO SETOR E A “BOA” GOVERNANÇA

Como já tivemos a oportunidade de pontuar, o Terceiro Setor se alimenta do


discurso da solidariedade e da realização do bem comum, de modo que se torna um
verdadeiro centro de atração para o maior número possível de defensores. Nada mais natural
do que não se opor àquele que prega e tem como missão ajudar ao próximo. O “fazer o bem
sem olhar a quem” que parece perseguir as intenções desses entes inspira seguidores e cria
uma massa de colaboradores altruístas por excelência, o que mascara e coloca em segundo
plano quaisquer outras intenções. Um olhar mais crítico a despeito dos discursos de
solidariedade e fraternidade se faz necessário e é o que também se pretende neste capítulo.
A solidariedade nunca foi uma máxima social incontestável, ademais a inata
vocação humana pelo coletivo. Por muito tempo o individualismo prevaleceu como valor. Na
Antiguidade, os sofistas representavam a face mais óbvia desta afirmação, com a famigerada
declaração de Protágoras que afirmava que o homem, ser pensante, bastava por si só, segundo

13
BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros.
2009, p. 167.

775
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

aforismo “o homem é medida de todas as coisas, das que são o que são, e das que não são o
que não são”14.
A partir do início do século XX, por imposição de suas Constituições (seguindo a
influência da Constituição Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919), os Estados passam a
fornecer prestações positivas, a fim de viabilizar a plena fruição dos direitos fundamentais de
que são titulares os cidadãos, além do dever de abstenção em relação às chamadas liberdades
públicas. Nesta escala evolutiva, após a segunda metade do século XX, verifica-se a
ocorrência do fenômeno que se denominou de neoconstitucionalismo, onde não se afirma
apenas o caráter estrutural ou organizacional da Constituição, mas sua nova dimensão: a da
normatividade e da eficácia dos direitos fundamentais.
Como uma faceta deste constitucionalismo contemporâneo, surge a expectativa de
que o mesmo seja incorporado ao que foi chamado por Roberto Dromi e Eduardo Menem de
“constitucionalismo da realidade”, baseado em um sistema “que no solo consolida y afianza
El Estado de derecho, sino que posibilita uma verdadeira ejecución de sus proclamas, una
realización de la verdad prática de sus declaraciones, derechos e garantias” 15.
Nestas bases, a solidariedade surge como um novo valor, sendo, segundo citados
autores, uma nova concepção de igualdade, sustentada sobre o velho princípio da segurança
jurídica, constituindo não a exaltação do individualismo, mas sim, um equilíbrio entre o
homem e as instituições.
Proveniente de um dos primados da Revolução Francesa (fraternidade) e alçado à
qualidade de princípio, a solidariedade (que para muitos tem como fundamento último a
dignidade humana), encontra fundamento no ordenamento constitucional brasileiro como
objetivo da República Federativa do Brasil (art. 3º, I, CF/88).
Analisando o tema pelo viés filosófico, percebe-se uma permanente disputa entre
egoísmo x altruísmo. Aristóteles teria sido o primeiro a ressaltar a verve egoísta do ser
humano, tendo defendido que toda ação humana busca a felicidade do agente e o altruísmo
genuíno é algo impossível16. Arthur Schopenhauer chegou a afirmar que “o egoísmo é

14
SILVA, Cleber Demétrio. O princípio da solidariedade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1272, 25
dez. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9315>. Acesso em: 10 ago. 2015.
15
DROMI, Roberto; MENEN, Eduardo. La Constitucion reformada, comentada, interpretada y concordada.
Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1994, p. 19.
16
ALLAN, D. J. A filosofia de Aristóteles. Tradução de Rui Gonçalo Amado. Lisboa: Editorial Presença, 1983, p.
166.

776
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

gigantesco: ele rege o mundo”17. Terence Irwin e John Cooper18, por sua vez, tentaram
mostrar a importância do altruísmo sustentando em uma felicidade que consiste no
desenvolvimento da parte racional da alma, tornando genuína não só a preocupação consigo,
mas com os outros.
Immanuel Kant (1724-1804), como um dos expoentes do pensamento moderno e
como verdadeiro norte em termos de teoria do conhecimento, presta-nos como autor de
referência, na medida em que passados mais de duzentos anos de sua morte, seu pensamento
surpreende pela atualidade, precisão e conexão com a temática abordada. Sua compreensão
de moralidade e a construção do denominado “Imperativos Categórico” emprestam
importantes contribuições ao estudo ora empreendido, bem como a sua noção de “boa
vontade”.
Em termos de solidariedade, Kant alimenta o paradoxo que denominou de
“sociabilidade insociável dos homens”, explicando que: “isto é, a sua tendência para entrar
em sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência universal que,
incessantemente, ameaça dissolver a sociedade. Esta disposição reside manifestamente na
natureza humana. O homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque em
semelhante estado se sente mais como homem, isto é, sente o desenvolvimento das suas
disposições naturais. Mas tem também uma grande propensão para se isolar, porque depara ao
mesmo tempo em si com a propriedade insocial de querer dispor de tudo a seu gosto e, por
conseguinte, espera resistência de todos os lados, tal como sabe por si mesmo que, da sua
parte, sente inclinação para exercer a resistência contra os outros”19.
Segundo o autor, é nesta insociabilidade que se construiria, verdadeiramente, o valor
social do homem20, no que acreditamos sejam as bases para a construção de sua ideia de boa
vontade e de seu Imperativo Categórico.

17
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de insultar. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 51.
18
IRWIN, T. H. Aristotle’s First Principles. Oxford: Clarendon Press, 1992, p. 364; COOPER, John. The forms
of Friendship in: COOPER, John. Reason and Emotion. New Jersey: Princeton University Press, 1999, p. 316.
19
KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Trad.Rodrigo Naves e
Ricardo R. Terra. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 08.
20
Segundo Kant, seria na insociabilidade onde “desenvolvem-se a pouco e pouco todos os talentos, forma-se o
gosto e, através de uma incessante ilustração, o começo transforma-se na fundação de um modo de pensar que,
com o tempo, pode mudar a grosseira disposição natural em diferenciação moral relativa a princípios práticos
determinados e, por fim, transmutar ainda, deste modo, num todo moral uma consonância para formar sociedade,
patologicamente provocada” (KANT, 1986, p. 08).

777
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Em sua proeminente obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, de 1785,


Kant advertia: “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser
considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”21. Segundo
o autor, de nada valeriam os talentos, dons e as mais prestigiosas virtudes, “se não existir
também a boa vontade que corrija a sua influência sobre a alma e juntamente todo o princípio
de agir e lhe dê utilidade geral”22. Percebe-se, nessas reflexões iniciais, que Kant chama
atenção para o “bom” não como algo absoluto, mas como algo que se encontra sujeito a
limitações, a uma certa medida. O “bom” pelo “bom” não se justifica por si só, merece ajustes
e temperamentos, bem como em uma referência que o identifique como a verdadeira noção
de “bom”. Daí sua noção de “boa vontade”, que seria:

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para
alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é em si
mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do
que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer
inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações23.

Nesta perspectiva, o autor atrela a concepção de boa vontade à concepção de dever,


asseverando: “Para desenvolver, porém, ó conceito de uma boa vontade altamente estimável
em si mesma e sem qualquer intenção ulterior, conceito que reside já no bom senso natural e
que mais precisa de ser esclarecido do que ensinado, este conceito que está sempre no cume
da apreciação de todo o valor das nossas ações e que constitui a condição de todo o resto,
vamos encarar o conceito do Dever que contém em si o de boa vontade, posto que sob certas
limitações e obstáculos subjetivos, limitações e obstáculos esses que, muito longe de
ocultarem e tornarem irreconhecível a boa vontade, a fazem antes ressaltar por contraste e
brilhar com luz mais clara”24.
Em sua lição, o dever encontra-se carregado de conteúdo moral, afastando o dever
que se concretiza pela vontade egoísta25. Nesta medida, a moralidade kantiana se encontra
impregnada por um princípio de universalização, um cosmopolitismo que marca sua obra e a
torna mais contemporânea do que nunca, bem como, serve de inspiração a seu Imperativo

21
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Portugal: Edições70,
2007, p. 21.
22
KANT, 2007, p. 22.
23
KANT, 2007, p. 23.
24
KANT, 2007, p. 26.
25
KANT, 2007, p. 27.

778
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

categórico. Hansen (2012) resume de modo bastante pontual as três formulações do


Imperativo Categórico kantiano, em sendo: 1ª) Age de tal modo que tua ação sirva de modelo
aos demais; 2ª) Age de tal maneira a tratares, na tua pessoa ou de qualquer outrem, a
humanidade não somente como meio, mas sempre como fim em si mesma; 3ª) Age de tal
maneira que tua ação seja a de um legislador universal26.
Percebe-se presente nessas máximas, ideais que alimentam o Terceiro Setor na
atualidade. Esse se apresenta como um verdadeiro representante das duas primeiras
formulações acima referidas. Os entes do Terceiro Setor se comportam como verdadeiros
modelos de plenitude, pautado nas melhores das intenções, preocupados com a humanidade
como um todo, com o bem comum, tendo por finalidade a ajuda ao próximo.
Por sua vez, Habermas (2002) reflete acerca do sentido deontológico da moral
kantiana presente no Imperativo Categórico, incluindo a responsabilidade solidária, no que
pontifica:

A ética do discurso justifica o teor de uma moral do respeito indistinto e da


responsabilidade solidária por cada um. Certamente, ela só chega a isso pela via da
reconstrução racional dos conteúdos de uma tradição moral abalada em sua base
validativa religiosa. Se a maneira de ler o imperativo categórico assumido pela
teoria discursiva permanece atrelada a essa tradição da origem, essa genealogia se
interporia ao objetivo de comprovar o teor cognitivo dos juízos morais em geral27.

De todo modo, é o próprio Kant que, como já tivemos a oportunidade de pontuar, na


construção de todo seu pensamento trata de deixar claro que a formação dessa boa vontade
não é do mero “bem” pelo “bem”. De modo a deixar clara sua concepção de boa vontade
atrelada ao dever (“por dever”), kant, de modo bastante didático, afirma:

Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de
disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou
interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar
com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo, porém, que
neste caso uma tal ação, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem
contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras
inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo
que efetivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente
honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o

26
HANSEN, Gilvan Luiz. Conhecimento, verdade e sustentabilidade: perspectivas ético-morais em cenários
contemporâneos. In: REBEL GOMES, Sandra Lúcia ; NOVAIS CORDEIRO, Rosa Inês; MENDES DA SILVA,
Ricardo Perlingeiro. (Orgs.). Incursões interdisciplinares: Direito e Ciência da
Informação. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012, v. 1, p. 55-76.
27
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Trad. Gorge Sperber e Paulo Astor
Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 53.

779
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

conteúdo moral que manda que tais ações se pratiquem, não por inclinação, mas
por dever28.

E mais:

(...) se a natureza não tivesse feito de um tal homem (que em boa verdade não seria
o seu pior produto) propriamente um filantropo, — não poderia ele encontrar ainda
dentro de si um manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que
o dum temperamento bondoso? Sem dúvida! — e exactamente aí é que começa o
valor do carácter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto, e que
consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever.

Diante de todo exposto, percebe-se um grande peso ao conteúdo moral na percepção


kantiana de boa vontade. O homem virtuoso e possuidor de uma boa vontade legítima é um
ser abnegado, coloca seus desejos em segundo plano e é quem supera suas frustrações mais
mundanas.
Ainda que se intente enxergar nos entes do Terceiro Setor uma tendência ao
altruísmo e todas as suas bases se construam sob esse fundamento, um olhar crítico e mais
voltado ao dia a dia destas instituições, que se proliferam no Brasil e assumem cada vez mais
competências, pode evidenciar realidades mais egoísticas. Na prática, é possível verificar
certo movimento de estruturação de entes filantrópicos (associações, fundações, ONGs), a fim
de receberem a qualificação de Organizações Sociais (OS’s) ou Organizações Sociedade Civil
de Interesse Público (OSCIP). Tal movimentação parece ter por fim único e exclusivo, a
formação de parcerias com entes políticos/públicos, de modo a se servirem de verbas públicas
para a realização de direitos sociais de importância, o que em um último aspecto, aumentam
sua área de influência e alimentam sua boa reputação.
Na verdade, ainda que esta dinâmica seja interessante para os entes do Terceiro
Setor, o que se percebe, é uma dependência destes entes não só dos recursos frutos dos
arranjos firmados com o poder público, mas também de eventuais ideologias que certamente
deverão sustentar tais parcerias. Tornam-se mais um “braço” do poder público, sendo
coniventes com suas políticas e controladas por métodos de avaliação e desempenho. Tal
dependência gera desconfiança quanto a suas reais intenções e acaba deturpando seus fins
originais. Além do mais, afasta tais organizações da sociedade civil com quem tem direta
relação direta, comprometendo tal interlocução.

28
KANT, 2007, p. 28.

780
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No mais, é possível dizer, com certa certeza, que associações, fundações privadas,
organizações não-governamentais (todas pessoas jurídicas de direito privado) possuem em
seu instinto (e em seu discurso) a ideologia do coletivo. Em breves considerações, vimos
todas as consequências do discurso que preza pela tutela do coletivo e neste, momento, nos
valemos de uma reflexão que coloca em xeque os efeitos do poder por detrás das ideologias,
inclusive das que pregam a solidariedade.
Assim nos alerta Pedro Demo (2002):

(...) as relações de poder são repletas de artimanhas, das quais a mais conhecida é a
ideologia, no sentido mais preciso de Thompson (1995): ideologia é reflexo
necessário do poder e se configura como tentativa sempre renovada de justificação
do cultivo e manutenção do poder. Ideologia é discurso orientado, em primeiro
lugar, para justificar, encobrir, pregar subalternidades, por vezes de modo ostensivo,
mas mais comumente de modo sibilino. Ideologia inteligente vende-se como
ciência, evolução lógica, rodeios aparentemente fundamentados, números
reveladores, porque sabe que a relação de poder torna-se mais aceitável quando
manejada sob o véu do envolvimento lógico e emocional.

Percebe-se nas linhas acima trasladadas, toda a lógica avassaladora e atraente da


ideologia como efeito de poder, no caso em estudo, alimentada pela solidariedade,
fraternidade e ausência de lucro. Essa última característica, pautada em um sentimento
altruístico que não é nutrido pelo ganho, entendemos restar caracterizada a bandeira mais
atrativa dos entes que aqui estudamos. Se ao nos debruçarmos sobre a lógica da
responsabilidade social das empresas (mercado) nos intriga suas reais intenções e eventuais
vantagens geralmente estornadas em forma de outras rendas (know how, influência e
expansão da área de alcance), que não o lucro propriamente dito.
O tema merece permanente ponderação, não somente pelos diferentes sentimentos
que desperta, mas também pela importância e pelos espaços que vem assumindo. Além disso,
há de se considerar o reconhecimento que o setor recebeu recentemente com o advento do
denominado “Marco Regulatório do Terceiro Setor”, com a instituição da Lei n. 13.019, de 31
de julho de 2014. O tema exige, portanto, reflexão contínua.

CONCLUSÕES

A reforma da Administração Pública brasileira teria sido a responsável por trazer


uma figura que representa um instrumento de efetiva cooperação entre a sociedade e o Estado
na busca pela concretização do bem estar comum, recebendo a denominação de “Terceiro

781
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Setor”. As Organizações Não Governamentais – ONGs, as Organizações Sociais – OS’s e as


Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP’s, típicos exemplos de
entidades que formam o cenário acima descrito, enfrentam dificuldades práticas na realização
de um discurso que privilegia a cidadania ativa e um espaço alternativo ao modo capitalista.
Pretendeu-se um olhar sobre o Terceiro Setor sob a perspectiva de “boa vontade” de
Immanuel Kant e de seu Imperativo Categórico. Desse modo, uma vez que as reflexões aqui
postas tem como ponto de partida o pensamento kantiano, por certo, fecharmos o presente
estudo com uma resposta ao questionamento presente no título deste artigo. Desta feita, sob a
perspectiva kantiana de boa vontade e especialmente tendo por base o universo das parcerias
firmadas entre o Terceiro Setor e o Primeiro Setor (Estado), há de se concluir que o mesmo
não é bom, na medida em que o elemento moral que dita seu modo de vida na realidade
brasileira atual, o coloca como importante centro de influência e instrumento de conquistas
com base em uma agenda que não lhe pertence.
Há de se separar o “joio do trigo”, de modo a não se colocar todos os entes do
Terceiro Setor sob a mesma perspectiva. Também há de se ter o cuidado de não se deixar
seduzir pelo discurso milagreiro que geralmente envolve tais instituições. De fato, em sua
essência, tais entes carregam em suas bases, um verdadeiro “investimento ético29”, mas não
podemos nos deixar envolver pela promessa de uma solidariedade que, em verdade, pode vir
a se distorcer em novas formas de poder.
Desta feita, ainda que o Terceiro Setor tenha se concretizado na atualidade como
espaço de construção de uma cidadania ativa e de uma solidariedade revisitada, seu estreito
relacionamento com o Estado para a realização de direitos sociais de relevância, o colocam
como centro de pesadas crítica e de percepções distorcidas.
De todo modo, há de se reconhecer que o tema ora em estudo tem tido cada vez
mais espaço nas discussões acadêmicas e no universo legislativo. Data de Julho de 2014, a
Lei n. 13. 019 que recebeu a denominação de “Marco Regulatório do Terceiro Setor” e
adentra no universo normativo brasileiro como instrumento e promessa de concretização dos
entes do Terceiro Setor em nossa realidade. Programada para entrar em vigor na data de sua
publicação, o posicionamento foi revisto, havendo sido dilatado o prazo de vigência da lei, a
fim de se decantar todas as ponderações e reflexões que o tema abarca. A discussão é
multidisciplinar e cabe a várias ciências.

29
CARDOSO, Carlos Cabral. Comportamento Organizacional e Gestão. Lisboa: Editora RH, 2006, p.16.

782
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

BIBLIOGRAFIA

ALLAN, D. J. A filosofia de Aristóteles. Tradução de Rui Gonçalo Amado. Lisboa: Editorial Presença, 1983.

AMARAL, Ângela Santana do. “A categoria Sociedade Civil na Tradição Liberal e Marxista”. In: O mito da
assistência social. Ensaios sobre Estado, Política e Sociedade. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.

ARIÑO ORTIZ, Gaspar. Principios de derecho publico econômico: modelos de Estado, géstion pública,
regulación econômica. Granada: Comares, 1999.

BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros. 2009.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

BRASIL. Presidência da República. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Presidência da República,
Câmara da Reforma do Estado, Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1995.

CARDOSO, Carlos Cabral. Comportamento Organizacional e Gestão. Lisboa: Editora RH, 2006.

COOPER, John. The forms of Friendship in: COOPER, John. Reason and Emotion. New Jersey: Princeton
University Press, 1999.

DROMI, Roberto; MENEN, Eduardo. La Constitucion reformada, comentada, interpretada y concordada. Buenos
Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1994.

FORSTHOFF, Ernst. Tratado de derecho administrativo. Tradução de LACAMBRA, Legaz, FALLA, Garrido e
ORTEGA Y JUNGE, Gómez de. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1958.

GARCIA PELAYO, Manuel. Las transformaciones Del Estado contemporâneo. Madrid: Alianza Universidad,
1980.

GOHN, Maria da Glória. Mídia, terceiro setor e MST: impacto sobre o futuro das cidades e do campo. Petrópolis:
Vozes, 2000.

GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Trad. Gorge Sperber e Paulo Astor Soethe.
São Paulo: Loyola, 2002

HANSEN, Gilvan Luiz. “Conhecimento, verdade e sustentabilidade: perspectivas ético-morais em cenários


contemporâneos”. In: REBEL GOMES, Sandra Lúcia ; NOVAIS CORDEIRO, Rosa Inês; MENDES DA
SILVA, Ricardo Perlingeiro. (Orgs.). Incursões interdisciplinares: Direito e Ciência da Informação. Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2012, v. 1, p. 55-76.

IRWIN, T. H. Aristotle’s First Principles. Oxford: Clarendon Press, 1992.

KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Trad.Rodrigo Naves e
Ricardo R. Terra. São Paulo: Brasiliense, 1986.

_____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Portugal: Edições70, 2007.

MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. 3ª ed.
São Paulo: Ed. Cortez, 2005.

783
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

MUÑOZ, Jaime Rodrigues-Arana. Reflections on the reform and modernization of the public administration.
Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Millano, Dott. A. Giuffré, n. 2, p. 522, apr/giu. 1996.

NICZ, Alvacir Alfredo. A liberdade de iniciativa na constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.

NERFIN, M. As Relações entre ONGs, Agências da ONU, Governos: desafios, possibilidades e perspetivas. I
Encontro Internacional de ONGs e Agências do Sistema da ONU. Rio de Janeiro, Ibase et alli,1991.

NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado e do direito: do Estado de Direito Liberal ao Estado
Social e Democrático de Direito. Coimbra: Coimbra Ed., 1987.

OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito do Terceiro Setor. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008.

ROSA, A. M. Marco legal do Terceiro Setor: aspectos teórico e prático. Florianópolis: Tribunal de Justiça, 2003.

SALAMON, Lester; ANHEIER, Helmut. The emerging sector: an overview. Baltimore, 1994.

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de insultar. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SILVA, Cleber Demétrio. O princípio da solidariedade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1272, 25 dez.
2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9315>. Acesso em: 10 ago. 2015.

784
Grupo de Trabalho 11

SEXUALIDADE,
DEMOCRACIA E PODER

dcclxxxv
A SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES, O POLIAMOR E O
RECONHECIMENTO DA UNIÃO POLIAFETIVA PELO
TABELIÃO DE NOTAS EM ESCRITURA PÚBLICA

BOLSON, Simone Hegele


Doutoranda PPGSD-UFF

RESUMO

No mundo hodierno novos arranjos familiares surgem com diferentes contornos, tendo por suporte
vínculos afetivos poliamorosos. É o afeto, emoção construída socialmente, o elemento estruturante do
poliamor. As relações poliafetivas ocorrem entre mais de duas pessoas e são anti-monogâmicas em sua
essência. Sob a ótica jurídica, as uniões poliafetivas - nova espécie de família -, são “invisíveis” à
sociedade e invisibilizadas pelo Judiciário. Embora o menoscabo pela sociedade, as uniões poliafetivas
existem no contexto nacional e são fatos sociais dos quais os operadores jurídicos não podem descurar.
O tabelião de notas, enquanto ator social e jurídico, através do exercício de sua função e, instado a
exercê-la, pode lavrar escrituras públicas poliafetivas, e, em consonância com os princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana, a pluralidade das entidades familiares e autonomia
existencial, estabelecer cláusulas que traduzam a vontade dos policonviventes e, ao fim e ao cabo,
realizem os direitos de personalidade dos mesmos.

Palavras-Chave. Sociologia das Emoções. Afeto. Poliamorismo. União poliafetiva.

ABSTRACT

In the modern world new family arrangements arise with diferente outlines, having as support
polyamorous affective bonds. It is affection, socially constructed emotion, the structuring element of
polyamory. Poly-affective relations occur between more than two people and are anti-monogamous in
their essence. From the juridical point of view, polyaffective unions - new species of family -, are
"invisible" to the society and invisibilizadas by the Judiciary. Although society is undermined,
polyaffective unions exist in the national context and are social facts that legal practitioners can not
ignore. The notary public, as a social and legal actor, through the exercise of his or her function and,
when called upon to exercise it, may draw up public legal writings and, in accordance with the
principles of equality and dignity of the human person, the plurality of family entities and existential
autonomy, to establish clauses that reflect the will of the polyvinists and, after all, to realize their
personality rights.

Keywords. Sociology of Emotions. Affection. Polyamory. Polyaffective union.

786
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade assiste-se ao surgimento de um novo paradigma de família.


Muito se fala na fluidez das emoções, na descartabilidade dos sentimentos, na impaciência
para relacionamentos permanentes, na angústia e aflição atuais, entretanto olvida-se que as
gerações anteriores batalharam justamente por essa liberdade de pensamento, sexual, de
gênero e que, hoje, novos arranjos familiares indicam que a sociedade está em mutação; a
vida social transforma-se diuturnamente. Essas novas famílias existem, são formadas também
de relações poliafetivas e não há como negar, na legalidade constitucional, que o afeto
constitui esses novos núcleos familiares; a monogamia, não; o matrimônio, não!
E se Anna Karenina não precisasse escolher entre o conde Vronsky e Alexei
Karenin, e se Rick Blaine pudesse partir de Casablanca com Ilsa Lund e Victor Laszlo? E se o
coronel Odorico Paraguaçu “assumisse” as irmãs Cajazeiras? E se Gabriela, Nacib e Tonico
Bastos vivessem “a três”? Se todas essas personagens pudessem ter vivido em paz seus afetos
não haveria a literatura de um Tolstói, Dias Gomes ou Jorge Amado, ou o cinema de Michael
Curtiz. Mas, fora da arte literária ou cinematográfica, e em tantos casos conhecidos, se
pudesse ter havido a aceitação da poliafetividade, talvez quantas dores teriam sido evitadas,
quantos amores teriam sido vividos plenamente?
Esse exercício do “se” tem uma carga revisionista, mas também de constatação de
que os tempos hodiernos são, contraditoriamente, de avanços e retrocessos. Nas relações
interpessoais, o afeto – enquanto emoção, sentimento construído socialmente – foi guindado
ao centro das relações, elemento definidor das mesmas sendo reconhecido como categoria
jurídica. Houve a construção do direito das famílias: reconhecimento da paternidade
socioafetiva; tutela dos direitos da(o) companheira(o); reconhecimento da união homoafetiva;
multiparentalidade. Tudo em uma marcha rumo à consolidação da autonomia existencial, da
dignidade da pessoa humana, da pluralidade das famílias. Contudo, nessa trajetória, assim
como nos processos históricos, a contramarcha surgiu, se antes isolada, tímida, receosa frente
à exuberância da doutrina laica e plural e à jurisprudência civil-constitucional; hoje, unida,
exibida, destemida em seu propósito – o de retroceder, o de anular as conquistas,
invisibilizando os arranjos familiares plurais existentes, tutelando o anacronismo, surrupiando
a esperança de que, finalmente, o Brasil aceitara que a(s) família(s) poderia(m) assumir
múltiplos contornos.

787
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Trava-se no Congresso Nacional uma luta entre o obscurantismo e as luzes de um


Estado laico. É como se a virada de Copérnico, lembrando a expressão tão cara ao Direito
Civil Constitucional e ao seu maior entusiasta – ministro do STF Edson Fachin – estivesse
sendo obliterada pelos projetos de leis com visão “ptolomaica” e de retrocesso em temas
familiaristas (v.g. PL 65813/2013; PL 4508/2008; PL 478/2007; PDC 395/2016, etc.).
A inter-relação entre um campo do saber específico da Sociologia e a emoção afeto;
a observância, na prática, de como o afeto é uma construção social e do que se constitui a
cultura poliamorista em um estudo etnográfico em Brasília; a possibilidade do poliamor ser
reconhecido, senão (ainda) socialmente, juridicamente em instrumentos públicos notariais; e o
papel do tabelião de notas diante dessa realidade são os itens que integram o trabalho e serão
desenvolvidos com o objetivo de análise desse relacionamento humano, ensejando um novo
arranjo familiar alicerçado no valor afeto, sem o dogma da monogamia e que desafia os
padrões vigentes.
Nos primeiros itens, analisam-se a Sociologia das Emoções e o afeto como uma teia
de sentimentos, construído socialmente, além de etnografia realizada por pesquisador da UnB.
Não se desconhecem os excelentes trabalhos jurídicos sobre o afeto e as novas famílias,
porém, busca-se um viés sociológico sobre essa emoção que foi categorizada juridicamente e
a etnografia de um grupo de poliamor de Brasília.
Após a análise do estudo etnográfico, insere-se em item posterior a investigação
sobre o poliamor e as uniões poliafetivas ensejando novos arranjos familiares, destituídos
(ainda) de uma juridicidade própria, vez que não reconhecidos, porém abordados pela
doutrina e a jurisprudência. O STF, no Recurso Extraordinário 656.298/SE, com repercussão
geral conhecida, julgou pelo reconhecimento de união estável e relação homoafetiva
concomitantes. Não obstante esse avanço, as uniões poliafetivas ainda são invisíveis à
sociedade e invisibilizadas pelo Judiciário, pois, quando tratadas em juízo, ainda
permanecem, no mais das vezes, decisões em que o poliamorismo é visto, pejorativamente,
como concubinato adulterino, nesse sentido a manifestação do professor Cristiano Chaves de
Farias (2017, p. 1):

Todavia, a jurisprudência vem assumindo um papel recrudescente, negando


proteção e direitos ao poliamor, a partir do tratamento que foi historicamente
emprestado ao concubinato. ‘Um lapso, equívoco, que precisa ser reparado’,
protesta. O sistema jurídico, conforme o especialista, precisa ser de inclusão, e não
de exclusão de direitos.

788
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Embora tenha havido histórica decisão no acórdão paradigmático do Supremo


Tribunal Federal que admitiu a união homoafetiva (STF, ADI 4277; ADPF 132) e dela os
efeitos que se irradiaram na sociedade, mesmo essa uniões – hoje – são alvo de um
pretensioso revisionismo jurídico (v.g., com o Estatuto da “Família” – PL 6583/13), quanto
mais se falar em uniões poliafetivas. Afora o tratamento de galhofa geralmente dado ao tema
– quando em conversas coloquiais – o operador jurídico se defronta com o preconceito e a
ausência de uma cultura estribada na diversidade.
Em geral, a sociedade brasileira é refratária a temas que refogem do nosso cotidiano,
ignora-se o diferente, o diverso do pensamento do cidadão “médio”; contudo, se o tabelião de
notas – delegatário de um serviço público - instado por situação existencial diversa que se
apresenta diante de si, em sua serventia, ele não pode se furtar a exercer a sua relevante
função de formalizar juridicamente a vontade das partes. Por isso, o último item se refere à
possibilidade do reconhecimento das uniões poliafetivas pelo tabelião de notas em escrituras
públicas poliafetivas. Compartilha-se da doutrina que entende que os princípios que devem
nortear a atuação de atores sociais como o tabelião ou mesmo os registradores é o da
igualdade e dignidade da pessoa humana; o da proteção da entidade familiar – seja o tipo que
for: monoparental, simultânea, homoafetiva, poliafetiva, mosaico, anaparental – e o da
autonomia existencial.
Na conclusão, alinhavam-se os principais pontos discorridos ao longo do trabalho,
posicionando-se pelo reconhecimento das uniões poliafetivas em escrituras públicas lavradas
pelo tabelião de notas, com fundamento nos princípios antes citados e no dever de prevenção
de litígios que está arrolado na lei de regência (Lei 8495/1994) como um dos inarredáveis
deveres funcionais do notário ou registrador.
Para além do escopo inicial investigatório sobre tema polêmico, deseja-se que as
ideias contidas nesse locus acadêmico reverberem, pois em tempos de caos, de incertezas, de
perda de direitos, combater o conservadorismo e o retrocesso em temas familiaristas é um
modo de demonstrar empatia, afeto pelo outro e os dramas que trazem consigo!

789
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. A SOCIOLOGIA DAS EMOÇÕES: O AFETO COMO CONSTRUÇÃO


SOCIAL

A Sociologia é a ciência que estuda os fenômenos sociais decorrentes das atividades


humanas, seja analisando e interpretando a influência e ação das estruturas sociais, e o
comportamento dos indivíduos enquanto grupo integrante de uma sociedade, ou, por vezes,
buscando a manutenção e a estabilização dessas mesmas estruturas e a regularidade do
comportamento social, ou mesmo visando entender a realidade a qual os indivíduos então
inseridos, com a intenção de propor a apresentação de uma possível transformação deste
estado no qual podem se encontrar. Essa área do conhecimento surgiu ao final do século
XVIII, em decorrência das mudanças drásticas que a Revolução Industrial e o novo modelo
econômico – o capitalismo – impuseram à sociedade, e se firmou ao longo do século XIX, em
um primeiro momento com os estudos de Karl Marx, Émile Durkein; Max Weber – “pais
fundadores” da Sociologia Clássica - e, mais tarde, com a Escola do Interacionismo
Simbólico - Mead e Goffman.
As sociologias especiais, de forma genérica, partem dos mesmos princípios teórico-
metodológicos da Sociologia geral, embora abarquem em suas discussões algumas questões e
fenômenos sociais mais específicos, como é o caso da Sociologia da religião, da família, da
saúde, da arte, do direito, das profissões jurídicas, entre outras. Uma das mais recentes
subdisciplinas da Sociologia geral, e de enfoque neste trabalho, é a chamada Sociologia das
Emoções, que, como o próprio nome sugere, tem como encargo de suas investigações a
categoria de análise "emoção", buscando identificar o caráter social de nossas emoções, quais
os fatores sociais que nos influenciam a sentir determinada emoção, bem como identificar o
caráter cultural da construção destas emoções. Esse processo foi iniciado nos anos de 1970
nos Estados Unidos, já no Brasil a luta pelo reconhecimento e a consolidação aconteceu quase
vinte anos depois na década de 90. A constituição dessas novas disciplinas deu-se como um
processo de busca de rejuvenescimento da teoria social, permitindo uma releitura da tradição
sociológica e antropológica, desde os seus clássicos. Pensadores como Derrida e Foucault –
pela filosofia francesa, além de Norbert Elias, e o seu processo civilizador, entre outros
autores, influenciaram diretamente o surgimento dessa sociologia “especial” (KOURY, 2014,
p.841).

790
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A Sociologia das emoções aparece, então, com o intuito de compreender os


fenômenos emocionais como uma construção social, preocupando-se com os fatores sociais
que influem na esfera emocional. Conforme Mauro Koury (2009, p.9),

As emoções nas ciências sociais e, especificamente, na antropologia e sociologia,


podem ser definidas como uma teia de sentimentos dirigidos diretamente a outros, e
causados pela interação com os outros em um contexto e situação social e cultural
determinados. A antropologia e sociologia das emoções, vistas como áreas de
interesse em intenso compartilhamento e debates, deste modo, parte do princípio de
que as experiências emocionais singulares, sentidas e vividas por uma pessoa, são
produtos relacionais entre os indivíduos, a cultura e a sociedade da qual faz parte.
Em suas fundamentações analíticas vão além do que uma pessoa determinada sente
em certas circunstâncias, ou em relação às histórias de vida estritamente pessoais.
As preocupações que orientam os debates no interior destes campos disciplinares
que relacionam emoções, cultura e sociedade, portanto, se dirigem aos fatores
culturais e sociais que influenciam a esfera emocional, como elas interagem entre
si, como se conformam e até onde vai a influência e a reciprocidade entre elas.
(Grifo nosso).

Essa sociologia especial possuiu duas grandes tendências teóricas de análise das
emoções, que divergem significativamente no modo como veem e analisam o objeto. Em sua
obra Emoções, Sociedade e Cultura, Koury (2009) apresenta, brevemente, segundo a
concepção de Kemper, estas duas grandes perspectivas teóricas como sendo, uma de cunho
positivista e outra com feições “antipositivistas”. A primeira analisa as emoções dentro da
sociologia concebendo maior importância aos aspectos biológicos e fisiológicos em relação
aos substratos sociais, partindo de uma concepção teórico-metodológica positivista. A
segunda, por sua vez, sobreleva os aspectos socioculturais das experiências emocionais,
valorizando os sentidos subjetivos que os próprios atores sociais atribuiriam aos fenômenos
emocionais através das relações sociais criadas e desenvolvidas na sociedade e na cultura as
quais pertencem. Desta forma para esta segunda posição as emoções são uma construção
social (KOURY, 2009, p.9).
Assim, para Koury, o que de fato importa para esta corrente teórica, não é se existem
semelhanças biossociais/universais entre as emoções, nem o processo evolucionário das
emoções, e sim os aspectos da emoção que diferenciam os grupos sociais de seres humanos.
Sejam ligadas ao interacionismo simbólico ou não, as atuais tendências de estudos na
Sociologia das Emoções privilegia a perspectiva culturalista das emoções como explicação
social para os fenômenos emocionais, demonstrando que o modo como se vê e se percebe o
mundo ao nosso redor e todos os fenômenos recorrentes de interações sociais, são
constituídos no seio destas mesmas interações, que regem nosso comportamento. Dentre essas

791
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

emoções, o afeto, ao mesmo tempo em que constitui o sujeito em relação, é constituído da


interação entre esse sujeito e o outro, permeado pela cultura e sociedade da qual faz parte.

1.1. O AFETO COMO EMOÇÃO: DE TEIA DE SENTIMENTOS À


CATEGORIZAÇÃO JURÍDICA

O(s) afeto(s) é uma teia de sentimentos que pode englobar o amor, a amizade, o
desejo sexual, a confiança, a solidariedade e, paradoxalmente, o egoísmo, o rancor, a mágoa,
a desconfiança. Lembrando Giselle Groeninga (2015, p. 1), “o afeto é o que nos emociona, o
que nos move, e que ganha no encontro com o Outro, igual ou diferente de si mesmo, a
qualidade de sentimento: o que dá sentido às relações. Tal teia dá conformidade a um produto
relacional advindo da interação entre os indivíduos, a cultura e a sociedade de que fazem
parte. Se sob a perspectiva da Neurociência, as emoções têm origem no sistema límbico e são
definidas como processos neuroquímicos que ocorrem no cérebro, e na Psicologia elas têm
uma concepção de cunho cognitivo, isto é, como fruto de como se interpreta conscientemente
determinadas situações; na Sociologia o afeto é uma construção social, sob a perspectiva de
cunho culturalista-construtivista. Há uma interação entre as estruturas sociais existentes e a
influência dessas no “como sentimos”. Nas relações afetivas são estabelecidas alianças entre
os envolvidos, em que os esforços de manutenção desses laços de amor, de amizade se
pautam por uma moral e por códigos de ética próprios, mas que não estão imunes à influência
de uma estrutura social pré-existente, pois o ser humano é um sujeito em relação.
A categorização jurídica do afeto é recente, fruto da repersonalização do Direito
Privado e da constitucionalização do Direito de Família. Não obstante a expressão afeto não
esteja no texto da Constituição Federal, houve, nos últimos vinte e oito anos, um processo de
construção doutrinária calcada na valorização da afetividade, como uma das projeções da
dignidade da pessoa humana – princípio expresso no artigo 1º, III, CF. O afeto, de mera
expressão do subjetivismo, transmudou-se em um valor jurídico. Para Tepedino (2015, p.7),

O afeto torna-se, nessa medida, elemento definidor de situações jurídicas,


ampliando-se a relação de filiação pela posse de estado de filho e flexibilizando-se,
com benfazeja elasticidade, os requisitos para a constituição da família. O direito de
família passa a atribuir particular importância (não à afetividade como declaração
subjetiva ou obscura reserva mental de sentimentos não demonstrados) à percepção
do sentimento do afeto na vida familiar e na alteridade estabelecida no seio da vida
comunitária. Nessa esteira, situa-se a ampla admissibilidade, pela jurisprudência
atual, de entidades familiares extraconjugais, incluindo-se a união de pessoas do
mesmo sexo, as famílias simultâneas, cuja repercussão geral foi reconhecida (STF,

792
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

RG no ARE 656.298/SE), além das uniões poliafetivas, reguladas pelo tabelionato


(escritura pública foi lavrada pelo 15º Ofício de Notas/RJ para contratualizar união
entre 3 mulheres), e cuja eficácia, no âmbito do direito de família, ainda é objeto de
controvérsia, justamente porque o conceito de família há de ser necessariamente
elástico, em contínua evolução.

Na trajetória do direito das famílias, com a ascensão do afeto à categoria jurídica,


várias situações jurídicas existenciais puderam ser finalmente reconhecidas, entre elas as
uniões homoafetivas, hoje, modelo ao (futuro) reconhecimento de outros arranjos familiares.

2. DO POLIAMOR À UNIÃO POLIAFETIVA: DE MOVIMENTO DE


VANGUARDA E ESTILO DE VIDA AO ESTABELECIMENTO DE (NOVA)
FAMÍLIA COM SUPORTE NO AFETO

O poliamor surgiu a partir da reunião de vários discursos fundados na libertação


sexual, com o objetivo de promover o espaço e o conjunto de valores éticos pertinentes a
estilos de vida alternativos e a relacionamentos íntimos, sexuais e/ou amorosos que não
observavam o senso comum da cultura da “monogamia compulsória”. Em um contexto
histórico, sua gênese e trajetória são recentes, encontradas suas proto-origens no final da
década de 60 do século XX com o movimento hippie. Entretanto, concomitantemente às
ideias de amor livre, também emergiam daquelas comunidades hippies indivíduos que
buscavam a felicidade em relacionamentos não-monogâmicos, mas com características
distintas de relacionamentos afetivos abertos, nesse espaço acadêmico sendo abreviadas para
RLi (relações de amor livre). Relações poliamorosas são distintas das relações de amor livre.
Em um dos estudos mais completos sobre o tema, Rafael Silva Santiago (2014, p.
118-123) esclarece que o movimento do poliamor é de abrangência mundial e que uma das
principais ferramentas de informações acerca do mesmo é o sítio eletrônico da organização
“Loving More.” De acordo com o “Loving More”, o poliamor se refere ao amor sentido por
mais de uma pessoa, marcado pela honestidade e pela ética, bem como pelo total
conhecimento e consentimento de todos os interessados. Em outro site - “The Polyamory
Society” - há a transcrição da definição de poliamor:

Poliamor é a filosofia não-possessiva, honesta, responsável e ética, bem como a


prática de amar várias pessoas ao mesmo tempo. O poliamor enfatiza a escolha
consciente de com quantos parceiros alguém deseja estar envolvido, ao invés de
aceitar normas sociais que determinam que se ame uma única pessoa ao mesmo

793
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

tempo (THE POLYAMORY SOCIETY, 2013a, tradução nossa). (SANTIAGO,


2014, p. 118-119).

A principal ideia do poliamor é admitir uma pluralidade de sentimentos (seja amor,


amizade, paixão, desejo ou carinho) que se desenvolvem em relação a diversas pessoas, os
quais vão até mesmo além da mera relação sexual. Inclusive aqueles que praticam o poliamor
definem esse sentimento como um vínculo afetivo sério, íntimo, romântico ou, ao menos,
estável que uma pessoa tem com outra ou com um grupo de pessoas. “O vínculo afetivo
desempenha um papel fundamental no poliamor, vez que a aceitação do afeto em relação a
mais de uma pessoa é o fator que o diferencia das demais formas de relacionamento não-
monogâmicas” (SANTIAGO, 2014, p.120).
Para aqueles criadores do poliamor, o modo de relacionamento é menos importante
do que o entendimento de seus valores. A liberdade para se entregar e permitir que o amor – e
não apenas a paixão sexual, as normas sociais, as críticas religiosas ou as reações emocionais
– estabeleça a forma dos relacionamentos íntimos é a essência do poliamor. Importa ressaltar
que, por isso, para além de movimento, ele é um verdadeiro estilo de vida, em que dois pilares
muito importantes fazem parte de tal estilo: honestidade e consenso. Enquanto a ideia ética de
consenso só pode ser obtida em um processo de negociação, a honestidade é um pressuposto
para que esse processo seja possível em sua totalidade.
Em apertada síntese, é possível vislumbrar que o principal valor do poliamor diz
respeito ao afeto que existe entre seus integrantes, não se tratando de um relacionamento
marcado pela promiscuidade ou pelo sexo casual. Toda e qualquer relação de poliamor só se
justifica enquanto tal a partir do amor, da afetividade, por conseguinte, toda a relação
poliamorosa encerra afeto(s) e isso vai ao encontro do imprescindível fundamento do direito
das famílias e dos novos arranjos familiares que o ordenamento jurídico nacional deve tutelar.

2.1. ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE O POLIAMOR - O GRUPO POLIAMOR


BRASÍLIA - E SUAS LIÇÕES: A RECUSA À MONOGAMIA E O ESTIGMA E
PRECONCEITO COM OS PRATICANTES

Tendo em vista que o afeto é uma construção social e o principal valor do poliamor
e esse artigo analisa esse fenômeno social e as uniões poliafetivas, que já existem na
sociedade, não poderia deixar de trazer um recorte que trata de interessante estudo etnográfico
realizado em Brasília, com um grupo denominado Poliamor Brasilia, cujos participantes ou

794
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

são simpatizantes ou mantêm relações poliafetivas, ambos portadores de um discurso anti-


monogâmico, isto é, contra a monogamia como estruturante dos relacionamentos mantidos
(FRANÇA, 2016).
A pesquisa foi realizada durante um ano e 4 meses (julho de 2014 a outubro de
2015) e consistiu na participação das reuniões do grupo, de entrevistas com os participantes, e
interação através das redes sociais. Na condição de observador-participante, o autor colhia
informações para a sua (futura) dissertação de mestrado em Antropologia Social/UnB, com o
intuito de traçar um painel do poliamor e de seus praticantes em um local e espaço temporal
previamente determinados, estudando aspectos referentes à identidade, gênero e
conjugalidade do grupo,

[...] Assim, acredito que a etnografia que realizei no Poliamor Brasília – DF


permite vislumbrar algumas das estratégias mobilizadas por estes sujeitos no que
tange à constituição de diversas formas de arranjos em termos de afetividade e de
conjugalidade. Inclusive, extrapolam o binarismo monogamia versus não-
monogamia, tendo em vista que uma forma de relacionamento guarda elementos da
outra e vice-versa, conforme mostrarei ao longo do trabalho. (FRANÇA, 2016, p
12.)

No que compete a este artigo, cumpre esclarecer que o estudo etnográfico realizado
em Brasília mais do que levantar dados, descrever as visões de mundo e a própria atuação
sócio-política desse grupo, retrata a crítica ao amor romântico e à monogamia. Não é
demasiado dizer que algumas das conclusões da dissertação são o esboço do pensamento de
parte dessa nova geração acerca de institutos “tradicionais” como o casamento e a família,
além das escolhas amorosas. Uma geração que convive com a diversidade sexual e novos
arranjos afetivos e que têm suas idiossincrasias. O grupo pesquisado era composto por jovens,
como se infere da faixa etária dos participantes, entre os 18 e os 34 anos; em sua maioria,
formada por universitários ou profissionais recém-egressos do ensino superior, moradores do
Plano Piloto na capital federal, com hábitos semelhantes, inseridos em uma mesma cultura.
Diz o pesquisador que “praticamente todas/os integrantes do Poliamor Brasília
compartilham da ideia de que na monogamia e no amor romântico há um discurso hipócrita
sobre a dimensão das relações amorosas”, tendo em vista que mesmo em relações
monogâmicas pode acontecer de ambas as partes se apaixonarem por alguém de fora da
relação e isso se tornar fonte de conflito, mágoa, revolta, etc.
Outro aspecto que é sublinhado nesse espaço é o que tange ao estigma e preconceito
com os poliamoristas. Em todos os espaços de discussão do Poliamor Brasília (grupos de

795
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Facebook e WhatsApp, poliencontros, happy hours do amor etc.), boa parte dos relatos
giraram em torno de situações em que poliamoristas eram acusadas/os de serem
promíscuas/os e, no limite, estarem usando o termo poliamor como desculpa para praticar
“putaria”, ou ainda, “pegação”. A seguir alguns dos comentários sobre a condição de
poliamoristas e o estigma sobre a mesma:

Para os conservadores que acham isso tudo uma grande putaria, deixamos duas
notícias: a primeira é que não adianta lutar contra essa tendência, pois ela já está
acontecendo. No futuro, iremos olhar para a época em que vivemos hoje e será
mais fácil identificar essa mudança acontecendo na vida de muitas pessoas. A outra
notícia é que essa abertura tende a quebrar modelos e apontar para uma direção
onde não há regras – se alguém quer ficar casado por 60 anos com a mesma pessoa,
ótimo. Se a outra quer casar com 5 pessoas, ótimo também. Se a outra quer ficar
sozinha, sem problemas. (FACEBOOK, 2014). (Grifo nosso).
[...]
Valéria [negra, 25 anos, faz graduação no curso de Letras, feminista: Debater a
pluralidade do amor ok, mas, falar que você namora 3 pessoas [risos] é complicado
[...] Imagina só, eu falando sobre isso no meu serviço ou para a minha avó cristã de
70 anos [risos].
[...]
Maiara [Comunicadora]: Eu costumo dizer que meus pais sabem que eu sou do
poliamor, mas eles preferem chamar carinhosamente de “promiscuidade”.
(FRANÇA, 2016, p.95-102).

Nas falas colacionadas pela pesquisa, o estigma evidenciado é formado pelos


comentários, insinuações, atitudes e opiniões que de alguma forma (da perspectiva de
poliamoristas) deslegitima o poliamor enquanto válido em termos de afetividade e de
conjugalidade porque se trata de uma prática não-monogâmica. Há, em geral, primeiro, o
desconhecimento do que é o poliamor; segundo, um julgamento moral de seus praticantes;
terceiro, a invisibilização desse movimento e dos indivíduos ligados a ele, como se a realidade
social pudesse ser “apagada”.
Não obstante a etnografia tenha sido realizada em Brasília, é possível afirmar que o
que acontece nesse microcosmo no Planalto Central pode ser visto em outros lugares. O
poliamor é uma nova opção de relacionamento, geralmente entre jovens (alerta-se, nem
sempre), que já nasceram em um ambiente livre (pós-anos 80 e a ditadura civil-militar),
comungando de valores diferentes dos “tradicionais”, influenciados por uma cultura que
também vem sendo construída desde a revolução sexual, cujos afetos e desejos expressam
subjetividades que se formam em um meio diverso e plural. Não é um modismo; não é
passageiro! Reflete a transição de costumes.

796
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

É claro que, ao lado disso, há as permanências. Relacionamentos monogâmicos e o


próprio casamento também fazem parte dos ideais de (outros) jovens (não só deles), basta a
análise do número crescente de uniões estáveis e de registro de casamentos civis (e dos
divórcios, também). Então, por que não é possível que se reconheça que, ao lado da
“permanência”, há o – hoje - “diferente” poliamor? Por que as relações poliafetivas, no
Direito, ainda são percebidas como algo exótico? O julgamento do STF não impôs um novo
tratamento às uniões homoafetivas, por que não estendê-lo às uniões poliafetivas? Acaso os
valores constitucionais da autonomia e pluralidade somente são válidos para a família nuclear
e monogâmica?

2.2. AUTONOMIA PRIVADA EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


E A PLURALIDADE: PERSPECTIVA JURÍDICA DO POLIAMOR E A UNIÃO
POLIAFETIVA

O poliamor é tema interdisciplinar, pois abriga noções da Psicanálise, Sociologia,


Antropologia, conforme o antes visto. Sob uma perspectiva jurídica, no Brasil, um dos
primeiros autores que trouxeram a lume o tema do poliamor foi o magistrado e professor
Pablo Stolze Gagliano, quando, ainda em 2008, publicou um artigo intitulado “Direitos da(o)
amante”. Então, há quase dez anos a doutrina familiarista vem tratando do tema, nem sempre
com razão e sensibilidade.
Além de movimento e estilo de vida (perspectiva antropológica), compreende-se o
poliamorismo como uma escolha pessoal, uma subjetividade que tem no afeto seu vínculo
maior. Nesse rumo, trata de situação subjetiva existencial, manifestação direta, portanto, da
personalidade; a liberdade da escolha por um tipo de relacionamento não-monogâmico pelo
poliamorista nada mais é do que a opção de vida que melhor lhe realiza. Infere-se desse
quadro a autonomia privada existencial como primado do poliamor, é dizer, a livre realização
da personalidade. Essa autonomia pode ser traduzida como a auto-determinação, o direito de
decidir os rumos de sua vida, ou, na concepção do ministro do STF, Luis Roberto Barroso e
Letícia Martel (2010, p.191):

É o poder de realizar escolhas morais relevantes, assumindo a responsabilidade


pelas decisões tomadas. Por trás da concepção de autonomia está um sujeito moral
capaz de se autodeterminar, traçar planos de vida e realizá-los. Com efeito, as
decisões sobre a própria vida de uma pessoa, escolhas existenciais sobre religião,
casamento, ocupações e outras opções personalíssimas que não violem direitos de

797
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

terceiros não podem ser subtraídas do indivíduo, sob pena de se violar sua
dignidade.

O legislador constituinte quando se expressou por uma república que objetiva a


constituição de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF) e pela promoção do bem
de todos, sem qualquer tipo de preconceito (art. 3º, III, CF), impôs, a priori, o respeito às
concepções pessoais de felicidade e ao livre desenvolvimento da própria personalidade. “É
esta liberdade que franqueia a possibilidade de cada sujeito elaborar sua própria identidade, a
qual, embora construída dialogicamente com seus convivas, torna-se única e individual,
elemento de seu destacamento frente a seus pares” (TEIXEIRA; KONDER, 2010, p.5).
Nos aspectos que tangem ao poliamorismo e às uniões poliafetivas, reitera-se, há a
proteção que decorre do texto constitucional: dos princípios da igualdade e dignidade da
pessoa humana (artigo 1º, III, CF) – os quais perpassam a todas as situações subjetivas
existenciais e que já foram objeto de inúmeros estudos, obras acadêmicas, decisões jurídicas,
constituindo um conjunto doutrinal e jurisprudencial de fôlego e da proteção
(indistintamente) às entidades familiares (artigo 226,caput, CF)
Com o reconhecimento do poliamor, o Estado estará provendo o mínimo existencial
para os indivíduos que escolheram esse estilo de vida e novo modelo de relação afetiva, no
sentido de contemplar seus anseios existenciais pertinentes à formação de uma família
poliamorosa, assegurando o respeito à sua legítima expectativa de se inserir na sociedade a
partir de sua própria identidade relacional, e não a partir de um dogma mitificado e propagado
pela sociedade ocidental (SANTIAGO, 2014, p.141).

2.3. UNIÃO POLIAFETIVA – NOVA ENTIDADE FAMILIAR - E A MONOGAMIA

A expressão união poliafetiva foi utilizada pela tabeliã de notas Claudia do


Nascimento Domingues, a qual lavrou a primeira escritura pública de união poliafetiva no
Brasil. Não se sabe ao certo se foi a primeira a utilizar o termo, mas, sem dúvida, a partir de
seu trabalho foi difundido o mesmo.
A união poliafetiva pode ser conceituada como uma união mantida por mais de duas
pessoas, constituída com base em vínculos afetivos que englobam o animus de constituir
família e as mesmas crenças individuais quanto ao exercício da sexualidade. E não se
confunde com as famílias paralelas ou simultâneas, em que, em regra, um homem vive com
duas mulheres, mas em casas distintas; as uniões poliafetivas não são paralelas, pois formam

798
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

uma única união. E como entidades familiares que são, devem ser protegida (artigo 226,
caput, CF).
Embora no mesmo artigo 226, o parágrafo 3º, CF tenha regulamentado a união
estável entre duas pessoas, isso não significa uma negativa de proteção da união entre mais de
duas pessoas, pois, segundo a melhor doutrina, não quis o dispositivo expressar que somente
será união estável aquela que possa ser convertida em casamento. (VECHIATTI, 2014).
Não é o matrimônio e muito menos a monogamia que constitui família. Destaca-se
que a monogamia não é princípio estruturante do direito das famílias e que, em razão disso,
são inconsistentes teses que desqualificam a união poliafetiva como (nova) entidade familiar.
A monogamia caracteriza um vetor que pode ou não se inserir no mundo dos valores de cada
um dos membros da família. É capaz de contentar mais ou menos algumas pessoas – seja por
fatores morais, religiosos e/ou culturais – ou desagradar mais ou menos outras – seja por
fatores individuais, sexuais e/ou íntimos. No caso dos policonviventes, é obvio que não se
trata de vetor inserido em suas vidas.
Compartilha-se da opinião de Rafael Santiago de que,

Não cabe ao Estado ou à doutrina, a partir de um exercício hermenêutico


subversivo, transpor a barreira que separa os planos axiológico e deontológico,
impondo um valor como um “dever ser” e atribuindo-lhe um falso caráter
principiológico em razão de aspectos morais, religiosos e/ou culturais. Tal
movimento representa uma grave violação à autonomia dos indivíduos em decidir
qual vetor axiológico irá delinear as regras de seu relacionamento amoroso.
(SANTIAGO, 2014, p. 102).

Na mesma esteira – a de que a monogamia foi superada como princípio estruturante


do Direito de Família – as conclusões alinhadas por Marcos Alves da Silva (2013), em
portentoso estudo sobre o tema e em recente artigo da lavra de Luciana Poli e César Fiuza
(2016).

2.4. A (IN)VISIBILIDADE DA UNIÃO POLIAFETIVA NA JURISPRUDÊNCIA

Se a doutrina “despertou” para o tema da união poliafetiva, de sua constituição e


embasamento jurídico, o mesmo não pode se dizer da jurisprudência. Sublinha-se que as
decisões proferidas tratam em sua maioria de famílias simultâneas ou paralelas, ou a
expressão concubinato, embora os casos sejam de poliafetividade, talvez em razão do caráter
i) preconceituoso; ii) novidade. O fato é que a união poliafetiva também é (ainda) invisível aos

799
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

tribunais, como se depreendo do julgamento do Recurso Extraordinário 883.168/SC, rel. Min.


Luiz Fux, tratando-se aquele caso de união poliafetiva como concubinato adulterino, nesses
termos:

Direito Constitucional, Previdenciário e de Família. Recurso Extraordinário.


Repercussão geral. Tema 526. Concubinato de longa duração. Efeitos
previdenciários. Pensão especial de ex-combatente. Distinção entre união estável e
concubinato. Alcance da proteção das famílias. Novas concepções de família e de
conjugalidade. Impossibilidade de conferir tratamento igualitário a situações
diferenciadas. Cogência dos deveres inerentes ao matrimônio e dos impedimentos
previstos na legislação. Provimento do recurso.
1 – Proposta de Tese de Repercussão Geral – Tema 526: É possível o
reconhecimento de efeitos previdenciários ao concubinato, quando presentes as
condições para sua equiparação à união estável, mas não ao concubinato
adulterino.

Conquanto essa “invisibilidade” das uniões poliafetivas, o reconhecimento


concedido, em julgamento histórico do STF, às uniões homoafetivas quando do julgamento
da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ e da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 4.277/DF conferindo interpretação conforme a Constituição Federal
para excluir do artigo 1.723 do Código Civil todo significado que impeça o reconhecimento
da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar,
acabou por aceitar que não se pode negar proteção estatal a qualquer família, posto que todas
possuem o mesmo elemento definidor - o afeto. A hermenêutica constitucional, portanto,
prestigiou a autonomia existencial e a pluralidade das entidades familiares, além da dignidade
da pessoa humana. O mesmo poderá valer para uniões poliafetivas, o Judiciário não poderá
negar-lhes a prestação jurisdicional. Assim como a família(s) mudou ao longo do tempo, a
percepção sobre o poliamorismo e as uniões poliafetivas também há de mudar.
A título de exemplo, traz-se a percepção da Colômbia, que recentemente oficializou
o matrimônio de três homens, no dia 3 de junho do corrente ano, em um cartório em Medelín.
Registra-se que o casamento gay é legal na Colômbia desde o ano passado, mas esta é a
primeira união oficial entre três pessoas do mesmo sexo no país (O GLOBO, 2017), o
primeiro na Colômbia e o segundo no mundo.

800
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3. O RECONHECIMENTO, PELO TABELIÃO DE NOTAS, DA UNIÃO


POLIAFETIVA EM ESCRITURAS

O tabelião de notas exerce uma função pública; é um delegatário de serviço público


colocado à disposição da população, ex vi do artigo 236, CF. De modo precípuo, formaliza
juridicamente a vontade das partes, intervindo nos atos e negócios jurídicos a que as partes
devam ou queiram dar forma legal. A doutrina notarial esclarece que essa função deve ser
exercida com imparcialidade e independência, além disso, há o dever de prevenção que se
consubstancia no princípio da justiça preventiva, o qual tem a finalidade de prevenir conflitos
e garantir a paz social (LOUREIRO, 2016).
Na lei de regência da atividade notarial – Lei 8.935/1994 – os direitos e deveres
estão insculpidos nos artigos 28 a 30 - e como são delegatários do Estado se obrigam à estrita
observância dos princípios constitucionais da Administração Pública – artigo 37, CF e, por
isso, sujeitos também à lei de improbidade administrativa. Em razão de escolhas legislativas,
nos últimos anos, vários procedimentos judiciais deixaram de fazer parte do rol da atividade
jurisdicional e passaram ao abrigo da atividade notarial e/ou registral, implementando o
fenômeno da desjudicialização.
A atuação desses delegatários, em específico do tabelião de notas, contribui para que
a conflituosidade/litigiosidade diminua, pois, assim como os demais operadores
jurídicos/intérpretes, o que o guia (ou pelo menos, deveria guiar) é o respeito, em primeiro
lugar, à Constituição Federal. Como intérprete que é, quando instado ao exercício de sua
função, em particular na formalização jurídica da vontade das partes (função ampla) ou
autenticando documentos e reconhecendo firmas (função específica), o tabelião de notas
confere ao fato social que lhe é narrado a moldura legal necessária, não devendo se furtar à
realização de análise sobre o que lhe trazem à serventia.
Existindo uma realidade social (fato social) sem regulamentação expressa, mas sem
óbice no ordenamento, o tabelião há de encontrar a moldura legal ao caso concreto. Pode-se
afirmar que quando o notário está diante de uma norma legal e busca seu conteúdo e sentido,
estará realizando atividade interpretativa. Do mesmo modo, estará interpretando e, portanto,
criando, quando se deparar com uma situação de inexistência de norma, ou quando houver
lacuna na lei.
Os policonviventes que se dirigem a um tabelionato de notas para formalizarem
juridicamente suas vontades têm o direito de fazê-lo, a uma, pois o relacionamento poliafetivo

801
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(= fato social) existe e é fundado na autonomia existencial e dignidade da pessoa humana; a


duas, o ordenamento jurídico não lhes nega tutela, não há regra proibindo-lhes o
relacionamento, levando-se em consideração que a monogamia não é um princípio
estruturante do direito das famílias; a três, o tabelião de notas não pode deixar de realizar o ato
por ausência de norma expressa. Quando, no exercício de sua função, o tabelião se deparar
com uma situação em que não haja norma jurídica expressa, deverá recorrer aos princípios, à
analogia, ou até mesmo aos costumes para suprir a lacuna ou para complementar o que a
norma deixou em aberto (FISCHER, 2017). Além disso, respeitados alguns pressupostos
contidos no artigo 1.723, CCB, como, por exemplo: ser pública, ser contínua, ser duradoura
(não há limite temporal), apresentar objetivo de constituir família, não apresentar
impedimentos matrimoniais, contidos no artigo 1.521, CCB (v.g., ascendente não pode se
casar com descendente), a união poliafetiva há de ser reconhecida.
O que o tabelião de notas não deve fazer é um juízo de valor no que tange à
moralidade daquele relacionamento e dos indivíduos envolvidos. De outro lado, negar a
existência de famílias poliafetivas como entidade familiar acaba por excluir de todos os
envolvidos os direitos no âmbito do direito das famílias e sucessório. Negando-lhe
reconhecimento jurídico nenhum de seus integrantes poderia receber alimentos, herdar, ter
participação sobre os bens adquiridos em comum. A rejeição de ordem moral ou religiosa à
dupla conjugalidade não pode gerar proveito indevido ou enriquecimento injustificável de um
ou de mais de um frente aos outros partícipes da união.
A intervenção do notário também tem um viés preventivo. In casu, os
policonviventes, justamente por enxergarem no estabelecimento formal de cláusulas que lhes
garantam harmonia e segurança, assim como as demais espécies de
companheiros/conviventes, almejam que suas vontades instrumentalizadas em um documento
público lhes previnam de (futuros) conflitos.

3.1. DAS ESCRITURAS PÚBLICAS POLIAFETIVAS: INSTRUMENTO PÚBLICO


EM UM ESTADO LAICO E PLURAL À DISPOSIÇÃO DE NOVOS ARRANJOS
FAMILIARES

A escritura pública é a expressão concreta da função exercida pelo notário ou


tabelião, “é considerada essencial nos países de direito continental, tanto para o indivíduo,
quanto para o Estado” (LOUREIRO, 2016, p.62). Esse documento notarial garante uma

802
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

verdadeira liberdade contratual – consentimento livre com conhecimento de causa – ao


indivíduo, e oferece ao Estado a segurança jurídica e estabilidade do regime de direito. Trata-
se de um documento solene, cujos requisitos estão expressos, em sua maior parte, no artigo
215, CCB, mas há outros em legislação especial. As uniões poliafetivas, nos mesmos moldes
das uniões estáveis “comuns” ou homoafetivas, são objetos de escrituras públicas
poliafetivas; o que instrumentaliza tais uniões, então, é o documento notarial em que há o
reconhecimento dessa nova família.
Tudo o que é novo causa perplexidade, mais por ignorância, do que propriamente
por aversão. No ano de 2012 causou perplexidade a lavratura de escritura pública com tal
teor; pioneiramente a tabeliã de notas da comarca de Tupã (SP) lavrou escritura em que três
policonviventes (duas mulheres e um homem) declararam suas vontades, estabelecendo
direitos e deveres. Mais tarde, em 2015 e 2016, no 15º Tabelionato de Notas da comarca do
Rio de Janeiro, houve o reconhecimento de outras uniões poliafetivas, uma entre heteros e
outra em relacionamento homoafetivo. Em seguida, talvez em razão da ampla publicidade em
torno do assunto, houve manifestação de vários juristas – favorável ou contrariamente ao
tema .
As manifestações jurídicas quanto à validade e eficácia dessas escrituras traduzem a
controvérsia do tema. E, como se vive em um Estado laico e plural, posicionamentos
contrários à realização de escrituras públicas poliafetivas são legítimos, ainda que isso
desconsidere a autonomia existencial e a dignidade da pessoa humana, como é o caso da
Associação de Direito de Família e Sucessões (ADFAS).
Logo, ao revés de posicionamento emanado da ADFAS, não há nulidade absoluta
no ato notarial, por suposta ilicitude do objeto (artigo 166, II, CCB). Negar a existência de
uniões poliafetivas é, no mínimo, obtuso. Há uma diversidade de famílias que têm no afeto o
seu elemento estruturante; conforme demonstrado, o afeto é uma construção social e valor
jurídico. Ontologicamente dizendo: ele é e constitui as relações poliafetivas que resultam em
uniões poliafetivas.
No plano da validade, também por representar uma declaração de vontade hígida e
sem vícios dos envolvidos, não há qualquer problema no seu objeto. Conforme o já delineado,
compartilha-se da opinião de Alves (2013) e Santiago (2014) de que a monogamia não é
princípio estruturante do direito das famílias. Por isso, uniões poliafetivas são válidas,
conforme Flávio Tartuce (2017, p.2)

803
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

No que diz respeito ao objeto do negócio em estudo, como tenho exposto em aulas
e escritos, a monogamia não está expressa na legislação como princípio da união
estável, mas apenas do casamento, eis que o Código Civil enuncia que não podem
casar as pessoas casadas, sob pena de nulidade do casamento (arts. 1.521, VI, e
1.548, CCB). Em relação à união estável, muito ao contrário, admite-se até que a
pessoa casada tenha um vínculo de convivência, desde que esteja separada
judicialmente, extrajudicialmente ou de fato (art. 1.723, § 1º, do CC/2002, em
leitura atualizada), o que denota um tratamento diferenciado a respeito da liberdade
de constituição das duas entidades familiares.

Quanto à validade e eficácia de tais uniões, expressa Tepedino, “há de se afastar o


paradigma do casamento, submetido a controle formal e substancial rigoroso e, em particular,
ao princípio da monogamia, que não se constitui em modelo prescritivo único” (TEPEDINO,
2016). Então, não é razoável a recomendação feita pela Corregedoria do Conselho Nacional
de Justiça, em abril de 2016, no sentido de que as serventias extrajudiciais não realizem
escrituras de uniões poliafetivas.
As cláusulas que constam das escrituras, em realidade, são declaratórias e valorizam
um relacionamento que já existe no mundo dos fatos. O que pode gerar discussões é quanto
aos efeitos jurídicos de tais cláusulas, porém, o que aqui se defende, reitera-se, é que o
tabelião de notas – atento aos princípios da dignidade da pessoa humana e pluralidade das
entidades familiares – há de conformar a vontade dos policonviventes à legalidade
constitucional, é dizer, à proteção da entidade familiar e aos direitos de personalidade de seus
membros.

CONCLUSÃO

Ao longo do artigo discorreu-se sobre tema polêmico que já faz parte da sociedade
brasileira. Alicerçou-se o estudo na convicção de que o poliamorismo, mais do que um
movimento ou estilo de vida, é uma manifestação dos tempos pós-modernos no âmbito das
relações humanas. Ancorado na emoção/teia de sentimentos que é o afeto, as relações
poliamorosas vividas por jovens da geração pós-anos 80, em um microcosmo como
Brasília(DF), e suas representações podem ser vislumbradas em outros ambientes do país. Se
nos Estados Unidos já há mais de meio milhão de pessoas que se identificam como
“poliamorosas” (SANTIAGO, 2014, p.256), no Brasil, ao contrário, não há uma
demonstração consistente quanto à essa condição. Mas essa é uma realidade social, que não
pode ser desconsiderada pelo Direito.

804
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Em tempos pós-modernos, embora os problemas decorrentes da desagregação


familiar, seja em razão dos excessos, da intolerância e impaciência nos relacionamentos,
novos arranjos familiares se constituem, como é o caso das uniões poliafetivas. É um aparente
paradoxo nesse tempo de incertezas, fluidos, líquidos (Bauman) que novas famílias se
formem a partir de subjetividades e escolhas baseadas na autonomia existencial e que queiram
instrumentalizar suas vontades em escrituras públicas poliafetivas visando justamente a
proteção e garantia de seus direitos da personalidade.
O Direito de Família (das famílias) não tem como princípio estruturante a
monogamia. Essa é um valor enquanto identidade relacional; logo, cada pessoa tem o condão
de valorar a monogamia da forma que melhor lhe aprouver, escolhendo por inseri-la ou não
em seu mundo de valores. Os relacionamentos não-monogâmicos estão inseridos em um
novo cenário sociojurídico, em que situações subjetivas existenciais diferentes dos padrões
vigentes poderão ser reconhecidas em razão dos princípios da dignidade da pessoa humana e
da pluralidade de entidades familiares.
Retroceder aos Oitocentos por uma moralidade desagregadora que não consegue
perceber que a realidade do mundo é muito mais complexa do que a lei consegue aferir é dar
guarida a concepções de mundo que não se coadunam com a pós-modernidade. Sejam
famílias simultâneas, paralelas, homoafetivas, poliafetivas, o que há são sujeitos em relação;
pessoas que tem no afeto o núcleo de suas relações.
Há uma evidente transição de costumes no Brasil, que ainda não foi percebida
adequadamente pelos Tribunais. À vista disso, o tabelião de notas, no exercício de sua função,
quando procurado pelas partes, pode, realizando uma interpretação conforme CF, e com
esteio nos princípios acima delineados, lavrar escrituras pública contendo cláusulas que, ao
fim e ao cabo, implementam o direito de personalidade dos policonviventes.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto; MARTEL, Letícia. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da
vida. In: PEREIRA, Tania. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010.

Colômbia oficializa casamento entre três pessoas do mesmo sexo. O Globo. Notícias. 14. jun. 2017. Disponível
em: https://oglobo.globo.com/sociedade/colombia-oficializa-casamento-entre-tres-pessoas-do-mesmo-sexo-
21477279. Acesso em 1º.ago.2017.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11ª. ed. São Paulo: RT, 2016.

805
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

FARIAS, Cristiano Chaves de. A ausência do poliamor na jurisprudência brasileira. Notícias IBDFAM.
02.08.2017. Disponível em:
www.ibdfam.org.br/noticias/6373/A+aus%C3%AAncia+do+poliamor+na+jurisprud%C3%AAncia+brasileira.
Acesso em 04. ago.2017.

FERREIRA, Delson. Manual de Sociologia. São Paulo: Saraiva, 2014.

FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos: pedaços da realidade em busca da
dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

FRANÇA, Matheus Gonçalves. Além de dois existem mais: estudo antropológico sobre poliamor em
Brasília/DF. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (inédita),
Brasília, UnB, 2016, 135 p.

FISCHER, José Flávio Bueno. União poliafetiva e a função social do Tabelião. Artigo. Colégio Notarial do
Brasil – Conselho Federal. 10.out. 2016. Disponível em
www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=ODQ4Ng==

GAGLIANO, Pablo Stolze. Direitos da (o) amante - na teoria e na prática (dos Tribunais). Disponível
em http://www.lfg.com.br. 15 jul. 2008. Acesso em 2.jul.2017.

__________; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Direito de Família. São Paulo:
Saraiva, 2015, v,6.

GROENINGA, Giselle Câmara. Algo estranho no ar: famílias de família e famílias nem tão de família. Conjur,
19. fev. 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-fev-15/algo-estranho-ar-familias-familia-
familias-nem-tao-familia. Acesso 22. jul. 2017.

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Pela consolidação da sociologia e da antropologia das emoções no Brasil.
Revista Brasileira de Sociologia das Emoções. João Pessoa, UFPB, 2014.

__________. Sociologia das emoções. O Brasil urbano sobre a ótica do luto. Petrópolis, Vozes, 2003.

__________. Emoções, sociedade e cultura: a categoria de análise emoções como objeto de investigação na
sociedade. Curitiba: Editora CRV, 2009.

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 7ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

POLI, Luciana; FIUZA, César. Núcleos familiares concomitantes: (im) possibilidade de proteção jurídica.
Pensar, Fortaleza, v. 21, n. 2, maio/ago. 2016.

SANTIAGO, Rafael da Silva. O mito da monogamia à luz do Direito Civil-Constitucional: a necessidade de


uma proteção normativa às relações de poliamor. Dissertação apresentada à Faculdade de Direito UnB.
Brasília, 2014, 258 p.

SILVA, Marcos Alves da. Da Monogamia: a sua superação como princípio estruturante do Direito de
Família. Curitiba: Juruá, 2013.

TARTUCE, Flávio. Da escritura pública de união poliafetiva . Migalhas, 26. abr. 2017 . Disponível
http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI257815,31047-
Da+escritura+publica+de+uniao+poliafetiva+Breves+consideracoes .Acesso 03.ago.2017

TEIXEIRA, Ana Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Autonomia e solidariedade na disposição de órgãos para
depois da morte Revista da UERJ, vol. 18, Rio de Janeiro, UERJ, 2010. Disponível em:
http://www.revistadireito.uerj.br/artigos/Autonomiaesolidariedadenadisposicaodeorgaosparadepoisdamorte.pdf.
Acesso em 04.ago.2017.

806
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

TEPEDINO, Gustavo. Editorial. Novas famílias entre autonomia existencial e tutela de vulnerabilidade. Revista
Brasileira de Direito Civil, v. 6, Belo Horizonte, dez. 2015.

________; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor. O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa:
estudos em homenagem a Stefano Rodotá. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

VECHIATTI, Paulo Iotti. Famílias paralelas e poliafetivas devem ser reconhecidas pelo Judiciário. Conjur,
05.ago. 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-05/paulo-iotti-familias-paralelas-
poliafetivas-reconhecidas . Acesso em 22.jul. 2017.

807
DIÁLOGO ENTRE FEMINISMOS, DIREITO E RELIGIÃO

COLEN, Karen de Sales


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD)
da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista Capes

RESUMO

A modernidade tem sido o palco da superação de grandes tradições e do surgimento de movimentos


com caráter emancipatório, principalmente, no que diz respeito a dominação masculina. Neste sentido,
considerando a articulação entre feminismos e a religião cristã, o presente artigo aponta a eclosão do
movimento feminista cristão, apresentando as reivindicações de dois grupos presentes no cenário
sócio-político brasileiro: as Católicas pelo Direito de Decidir e as Evangélicas pela Igualdade de
Gênero. Indaga-se, ao final, se tal movimento possui uma prática emancipatória ou se consiste em uma
adaptação religiosa do discurso feminista às dinâmicas sociais.

Palavras-Chave. Cristianismo. Feminismo. Emancipação.

ABSTRACT

Modernity has been the scene of overcoming great traditions and the emergence of emancipatory
movements, especially with regard to male domination. In this sense, considering the articulation
between feminisms and the Christian religion, this article points to the outbreak of the Christian
feminist movement, presenting the demands of two groups present in the Brazilian socio-political
scenario: Catholics for a Free Choice and Evangelicals for Gender Equality. In the end, it is
questioned whether such a movement has an emancipatory practice or whether it consists of a
religious adaptation of feminist discourse to social dynamics.

Keywords. Christianity. Feminism. Emancipation.

808
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Estruturalmente, a sociedade se desenvolveu com base em relações de poder, em


uma aparente distinção hierarquizada entre homens e mulheres. Não se pode negar que esta
assimetria social também é fruto de doutrinas religiosas cristãs que, ao longo dos séculos,
sustentaram a superioridade masculina, a quem a mulher deveria se subordinar. Entretanto,
considerando que este cenário tem sofrido consideráveis transformações, o objetivo geral
desse artigo é analisar a eclosão, no século XX, do movimento feminista cristão, que se opõe
não só a dominação masculina no âmbito religioso, mas também aos discursos moralizadores
que orientam as práticas sociais das fiéis e, por vezes, legitimam a violência de gênero.
A metodologia será pautada na consulta bibliográfica das teorias feministas e das
produções teóricas de feministas cristãs, bem como na observação e indagação das
experiências humanas e interações sociais dos seguintes grupos: Católicas pelo Direito de
Decidir e Evangélicas pela Igualdade de Gênero. Assim, serão utilizados como métodos de
pesquisa a revisão bibliográfica e a pesquisa de práticas sociais na internet.
Em um primeiro momento, será traçada a trajetória do movimento feminista, com as
especificidades de cada uma de suas vertentes e, além disso, a influência dessas novas
dinâmicas sociais no contexto religioso. Posteriormente, adentra-se ao debate da articulação
entre os feminismos e a religião cristã, apontando quais são as reivindicações e as frentes de
luta das mulheres católicas e protestantes, em sua busca por autonomia e emancipação.
Somente ao final de todas as explanações, nas considerações, é que se reflete criticamente e se
aponta um caminho para observar se o movimento feminista cristão pode ser considerado, de
fato, um movimento feminista ou se que o tem sido produzido é uma adaptação religiosa do
discurso feminista.1

1. MODERNIDADE E FEMINISMOS

A modernidade, período histórico que emergiu na Europa a partir do século XVII, é


caracterizada pelo afastamento de uma visão teológica e metafísica de compreensão do
mundo, com o rompimento de crenças e costumes religiosos. Nesse sentido, os postulados da
racionalidade substituíram os da tradição (GIDDENS: 1991,40), de modo que tal momento

1
O presente artigo não tem como objetivo aprofundar tal discussão, pois esta constitui parte do debate que será
desenvolvido no estudo para dissertação de Mestrado.

809
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

histórico se tornou palco do surgimento de movimentos com caráter emancipatório,


sobretudo, no que diz respeito ao patriarcado e a dominação masculina.
O principal desses movimentos ocorreu no mundo ocidental, amplamente conhecido
como movimento feminista, que surgiu da passagem do século XVIII para o século XIX,
reivindicando a igualdade entre homens e mulheres. Para este importante momento histórico,
o patriarcado pode ser entendido como "uma forma de expressão do poder político"
(SAFFIOTI: 2004,53), mas este significado não é unânime entre as teóricas feministas, haja
vista que, com o desenvolvimento das dinâmicas sociais, tem se utilizado o termo dominação
masculina, "com o patriarcado sendo uma de suas manifestações históricas"
(MIGUEL;BIROLI: 2013,7).
Jean Elshtain, por exemplo, entende que o patriarcalismo está vinculado a uma
organização política própria do absolutismo, que já não é mais verificada em sociedades
democráticas contemporâneas (MIGUEL;BIROLI: 2013,7). Nancy Fraser (2013), por sua
vez, compreende que, embora as estruturas familiares sejam compostas por relações desiguais
onde a mulher é a parte mais vulnerável, não haveria a ingerência do patriarcado em si, mas
da dominação masculina. Dessa forma, esta dominação restaria demonstrada por estruturas e
mecanismos sociais mais impessoais e fluidos, em que, apesar de não se ter, necessariamente,
restrições institucionalizadas (MIGUEL;BIROLI: 2013,34), as diferenças de gênero
continuariam sendo hierarquizadas.
A partir de uma noção ampla do feminismo, o que se buscou foi justamente a
concepção de que as diferenças entre homens e mulheres precisavam ser reconhecidas, mas
não deveriam ser organizadas ou operadas segundo graus de subordinação. Assim,
considerando que esta concepção é trabalhada de maneira distinta em cada corrente feminista
− razão pela qual fala-se em feminismos, no plural −, vale ressaltar as contribuições e críticas
de suas vertentes.
A primeira fase do feminismo tinha como reivindicações o direito ao voto, a
educação das mulheres e a igualdade no casamento. É o feminismo liberal, desenvolvido ao
longo do século XIX e tendo como expoentes Mary Wollstonecraft e John Stuart Mill, que
traz à tona uma crítica aos processos de socialização que classificam as mulheres como seres
inferiores. Exigia-se, então, a extensão dos ideais liberais − liberdade e igualdade de
tratamento − também às mulheres, fundamentais para que fossem consideradas cidadãs.
Desse modo, o modelo liberal feminista denunciou a subordinação das mulheres aos homens

810
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

nas práticas dos atos da vida civil, relegando-as ao cuidado do lar e da prole na esfera
doméstica.
O século XIX também abarcou o surgimento do feminismo socialista ou marxista,
que insere no debate a discussão da relação entre a desigualdade de gênero, a exploração
sexual e a estrutura econômica capitalista, numa tentativa de demonstrar que o patriarcado é
subproduto do capitalismo.2 E que, por este motivo, aos homens estaria confiada a produção
social por meio do trabalho assalariado e as mulheres, a reprodução. Analisando a opressão
sob o viés de classe e de gênero, a reprodução feminina seria explorada pelos homens da
mesma forma que o seu trabalhado produtivo seria explorado pelo sistema capitalista.
A argumentação sobre a necessidade da igualdade de gênero, largamente utilizada
no século XIX, foi substituída pela valorização da diferença. Assim, o feminismo cultural (ou
da diferença), a partir dos estudos de Carol Gilligan (1982), pontuou que homens e mulheres
possuem uma formação moral distinta, constituindo duas perspectivas: a ética da justiça e a
ética do cuidado. A primeira, considerada tipicamente masculina, estaria baseada em um
raciocínio abstrato, em que as decisões são tomadas com base em noções de justiça,
respeitando direitos individuais e normas universais. Já a segunda, consistiria em um
raciocínio contextual, já que as mulheres se perceberiam como integrantes das relações
sociais e, dessa maneira, com o devido cuidado e atenção, prezariam pela manutenção de
relacionamentos pacíficos.
O estudo da diferença também é observado no feminismo radical, que tem como
expoente a jurista Catherine Mackinnon. Esta corrente demonstra que a igualdade formal
entre homens e mulheres não alterou a realidade da subordinação feminina na sociedade,
apontando que a sexualidade constitui um lugar privilegiado de opressão dos homens sobre as
mulheres. Nesse caso, o ponto central de explicação da dominação masculina seria o
patriarcado, em que as instituições − sociais, políticas, econômicas e jurídicas − estariam
baseadas em linguagens, interesses e perspectivas essencialmente masculinas, modelando o
desejo e se apropriando da sexualidade feminina.
Diferentemente das abordagens supramencionadas, o feminismo pós-moderno ou
pós-estruturalista preocupou-se com a multiplicidade de identidades e subjetividades. As
reflexões desta vertente partem de uma compreensão de gênero como fruto de um discurso de
poder, que oprime os indivíduos por meio das noções de feminino e masculino. Nesse

2
No Brasil, a abordagem feminista marxista do patriarcado é inaugurada por Heleieth I. B. Saffioti.

811
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sentido, a autora Judith Butler (2003 [1990]) tensiona as concepções de sexo e gênero, pois
ambos seriam um produto das relações sociais e culturais dos indivíduos, não havendo uma
característica inerente ao ser humano que o definisse segundo o binarismo homem/mulher.
Portanto, provoca-se a desconstrução da neutralidade e da naturalidade das convenções sobre
sexo, gênero e sexualidade.
Diante dessa breve contextualização, pode-se observar que a construção dos sujeitos
e a sua relação com a sociedade não estariam mais pautadas em uma ordem divina, mas sob
uma perspectiva humana, centrada na razão. Não há mais uma lógica transcendente que
determina o sentido do ser e o desenvolvimento de papéis sociais para homens e mulheres,
mas uma constante releitura e reconstrução dos espaços sociais e de quem deles participam.
Nesse sentido, vale ressaltar que o próprio contexto religioso tem absorvido essa
dinâmica. E isso se deve as sucessivas críticas internas às estruturas das instituições religiosas,
no tocante a dominação masculina. As pregações, a literatura, as músicas, os discursos e todas
as outras formas de ensino religioso são acusadas de impor uma posição hierárquica, de
superioridade do homem, como se ele fosse "um cidadão de primeira classe, escolhido para
dominar não somente os animais e a terra, como também a mulher" (RODRIGUES:2011,11).
É nesse contexto que as mulheres cristãs têm criticado não somente as constantes
reafirmações do masculino como único representante do sagrado, mas também as relações
sociais operadas na dicotomia entre o público e o privado. A crítica à exclusão da mulher da
esfera pública e a sua submissão à esfera privada é, historicamente, o tema central do
pensamento feminista. Só que, neste caso, o que está em questão é a herança da religião
primitiva cristã, em que a esfera pública religiosa se confunde com a esfera privada da
família. (FIORENZA:1992, 287). E, diante disso, como a igreja é considerada a extensão da
casa, a ingerência do poder patriarcal é potencializada.
Com isso, o que se pretende levantar é que se a igreja é um espaço público, "a casa é
política" (SOUZA:2009, 8) e isto significa que nem a instituição religiosa, tampouco o lar são
espaços de ocultamento das injustiças sociais praticadas contra as mulheres. Assim, a
tentativa é a de que as discussões sobre as atividades públicas e privadas estejam atentas as
representações de gênero, que perpassam os corpos dos sujeitos, construindo as noções de
masculinidade e feminilidade no âmbito religioso.
Apesar de muitas mulheres ainda estarem sujeitas a sacralização masculina e a igreja
representar uma das estruturas sociais de dominação masculina em que se reproduzem e se

812
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

justificam formas de violência, sobretudo, a violência simbólica (BOURDIEU, 2002), esse


cenário tem apresentado crescentes mudanças. E isso se deve ao fato de que a construção
teórica dos feminismos, sustentando e inspirando práticas de resistências à sujeição e opressão
feminina (ROSADO: 2011, 81), tem influenciado tanto as mulheres católicas, quanto as
mulheres protestantes, a ponto de se poder falar em uma hermenêutica feminista para a leitura
bíblica. Assim, pautada nas discussões de gênero, tem sido produzida a chamada "teologia
feminista".
Por meio desse novo discurso teológico, que passou a ser produzido e difundido na
América Latina a partir da década de 1970, as mulheres reivindicaram a ordenação sacerdotal
e pastoral feminina; ressignificaram as imagens de deus; afastaram o ensino da teologia
patriarcal e, ressaltaram a importância da história de vida das mulheres na (re)construção da
própria história cristã. Segundo a filósofa e teóloga feminista brasileira, Ivone Gebara3,

(...) quando as teologias feministas se articulam aos movimentos feministas e fazem


de suas questões as questões cotidianas vividas pelas mulheres, se dá uma espécie
de ruptura em relação às questões tradicionais da teologia e à sua forma de
abordagem. Mais uma vez, essa maneira de fazer teologia não é institucional, no
sentido de não ser assumida oficialmente pelas igrejas. Desenvolve-se à margem e
por isso muitas vezes é difícil manter sua reprodução e crescimento, visto o caráter
assistemático em que se apresenta. Nesse sentido, talvez precisaríamos criar
formas de atuação mais organizadas para garantir uma vivência e uma teoria
teológica que acompanhe o avanço dos movimentos feministas. (grifos nossos)

Não obstante a observação de Ivone Gebara quanto a teologia feminista se


desenvolver à margem das instituições religiosas não seja o foco deste artigo, a passagem é
importante, pois menciona a articulação da teologia ao movimento feminista. Esta constatação
é que permite uma breve análise da aproximação da religião cristã aos feminismos,
responsável pela eclosão, no século XX, de mais um movimento que, em princípio, busca um
caráter emancipatório: o movimento feminista cristão.

2. FEMINISMOS E CRISTIANISMO: O DEBATE SOBRE OS DIREITOS DAS


MULHERES

A busca por emancipação por parte das mulheres cristãs se iniciou nos Estados
Unidos, no século XIX, onde surgiu uma das primeiras construções de uma interpretação

3
O fragmento é parte da entrevista de Maria José Rosado Nunes com Ivone Gebara, publicado na Revista de
Estudos Feministas. vol.14, n.1, Florianópolis, jan./abr. 2006.

813
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

bíblica feminista. Elisabeth Cady Stanton publicou um projeto coletivo de revisão e


reinterpretação da Bíblia sob uma nova perspectiva, que ficou conhecido como The Woman's
Bible − A Bíblia da Mulher. Entretanto, justamente por visar afastar o caráter patriarcal das
interpretações bíblicas e se constituir como um instrumento de emancipação das mulheres, o
trabalho não se tornou popular devido ao seu viés político. (FIORENZA:1992,31-36)
Na América Latina, por sua vez, a reflexão teológica foi considerada como o
segundo momento da teologia, já que o primeiro plano da questão recairia sobre a vida social
das mulheres. (LÓPEZ, 85) Foi a Teologia da Libertação, preocupada com a libertação dos
pobres e oprimidos, a forma de interpretação bíblica que permitiu às mulheres a participação
na construção do conhecimento e do discurso no âmbito religioso, a partir de suas próprias
experiências. (AQUINO:1997,11) Diante desta possibilidade, houve uma produção teológica
feminista de acordo com as particulares das mulheres, incluindo mulheres negras e indígenas
latino-americanas.
Essa nova perspectiva de compreensão do divino, que é criada por mulheres e se
destina a elas, se justifica no fato de que,

As mulheres das diferentes esferas de vida e de trabalho necessitam uma das outras
para celebrar sua fé, reforçar sua luta, redescobrir ou, se for o caso, rejeitar tradições
cristãs. Quer dizer, a teologia feminista tanto é expressão como porta-voz deste
movimento de mulheres no cristianismo e em outras religiões em busca de superar
o patriarcado. É ruptura e saída a um só tempo. (GOSSMANN: 1997, 505)

Como resultado não só desse pensamento, mas também desse engajamento, é que se
faz necessário demonstrar, brevemente, a história e a atuação de dois grupos presentes no
contexto social e político brasileiro: o Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) e o
Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG). Tais movimentos, opondo-se a assimetria sócio-
eclesial sustentada, ao longo dos séculos, pelas doutrinas religiosas cristãs, militam em prol da
autonomia, da garantia de direitos e da emancipação das mulheres.

2.1. CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR (CDD)

O grupo Católicas pelo Direito de Decidir (Catholics For a Free Choice - CFFC)
surge, inicialmente, nos Estados Unidos, na década de 1970. Anos mais tarde, em 1990, seus
ideais serão recepcionados por alguns países da América Latina. Em qualquer dos casos, é um

814
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

movimento que se caracteriza como católico, mas que se contrapõe aos ensinamentos
clericais tradicionais, fundamentando os seus posicionamentos com argumentos feministas.
No Brasil, a organização não governamental Católicas pelo Direito de Decidir
(CDD/BR) foi fundada em 1993, sendo composta por pesquisadoras e pesquisadores da
academia, operadoras e operadores do Direito e por fiéis de forma geral.4 Além disso, integra
a Rede Latino-americana de Católicas pelo Direito de Decidir, criada em 1996, que se articula
por mais onze países.5 A Rede, atuando a partir da teologia feminista, luta contra as injustiças
sociais na América Latina e no Caribe e é responsável por difundir argumentos que
fundamentam o direito de decidir, a liberdade de consciência e o reconhecimento da
diferença, todos em prol da autonomia feminina.
No contexto brasileiro, a ONG tem como enfoque promover transformações
sociais, no que diz respeito a desconstrução de padrões culturais e religiosos. Para tanto, tem
como objetivos específicos contribuir para a promoção da justiça social, a garantia de uma
vida sem violência, o diálogo interreligioso e, por fim, assegurar a implementação de leis e
políticas públicas necessárias ao desenvolvimento das mulheres, em sua interseccionalidade
com as questões de raça, classe, geração, orientação e identidade sexuais.
Além disso, as Católicas, assim como muitas teóricas feministas, trabalham com a
ideia da maternidade como sendo invenção da modernidade. (GIDDENS:1993,53) Nesse
caso, opõem-se aos discursos religiosos que condenam a atribuição de uma natureza própria
às mulheres, cuja essência é a maternidade, bem como o exercício livre da sexualidade.
Importante destacar que, a socióloga e uma das fundadoras da CDD/BR, Maria José Rosado
Nunes, questiona o sentido materno imposto as mulheres católicas, tendo em vista que se não
forem mães biológicas, poderão − e deverão − cumprir o seu papel sendo mães espirituais.6
Ademais, cumpre destacar que contrapondo-se a moral sexual católica, ressaltam a
contribuição dos feminismos que retiraram a discussão dos direitos sexuais e reprodutivos do
campo da moral e os colocaram no campo dos direitos. Seguindo esta influência e,
entendendo que a possibilidade de interrupção da gravidez é tema controverso dentro da

4
Todas as informações mencionadas estão disponíveis nos seguintes sítios eletrônicos: <http://catolicas.org.br/> e
< https://www.facebook.com/catolicasdireitodecidir/?fref=mentions>.
5
A Rede se articula nos seguintes países: Argentina, Chile, Colômbia, Chile, Equador, Espanha, El Salvador,
Nicarágua, México, Paraguai e Perú.
6
Esta crítica foi levantada numa palestra sobre "Feminismo e Religião" que integra a série "O que querem as
mulheres?", com curadoria de Margareth Rago, e que está disponível na seguinte página eletrônica do programa
Café Filosófico: <https://www.youtube.com/watch?v=kFpLZC8tNS0 >

815
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

igreja católica7, a organização defende o aborto, de forma legal e segura. Na realidade,


defende-se o direito ao aborto, a livre escolha da mulher de decidir sobre o seu corpo, pois "o
que está em jogo (...) é precisamente a individualidade e a identidade da mulher". (COHEN:
2012 [1997],196)
Nesse sentido, como meio de difundir argumentos que sustentem os direitos e à
autonomia das mulheres, a organização disponibiliza em sua página eletrônica livros, artigos,
cartilhas, revistas e pesquisas de opinião pública.8 Os temas principais são sexualidade,
maternidade, aborto e planejamento familiar, que também são abordados e divulgados por
intermédio de peças publicitárias, vídeos e de rádios comunitárias. O objetivo é promover a
educação popular de homens e mulheres, no que diz respeito aos direitos sexuais e
reprodutivos, confrontando as convenções impostas pela moral sexual religiosa.
Por fim, tão importante quanto as atividades desenvolvidas pela CDD, tem sido
considerada a sua atuação no cenário político. Em setembro de 2017, por exemplo,
comunicou que fez o pedido de amicus curiae no âmbito da ADPF 442, em que se pede a
descriminalização do aborto até a 12ª semana da gestação. A ONG entende que o aborto é
uma questão de saúde pública, que afeta desproporcionalmente as mulheres, pois a que tem
menos acesso a informação e poder econômico, realizam o procedimento de forma
clandestina, correndo risco de vida.
E mais do que tratar o aborto como direito social e questionar as precárias condições
em que é praticado, fato que começa a ser denunciado pelas feministas brasileiras a partir da
década de 1990 (SCAVONE:2008, 676-677), a ONG defende os princípios da laicidade do
Estado. Indo de encontro a grupos religiosos conservadores, reafirmam a separação entre
igreja e Estado, para se poder dialogar sobre cidadania das mulheres, sem que políticas
públicas e propostas legislativas sejam pensadas em favor de um único credo religioso.
Observa-se, diante do exposto, que a associação das pautas dos movimentos
feministas com as demandas das mulheres cristãs católicas tem contribuído para reconstruir a
esfera pública religiosa e privada familiar, afirmando a autonomia individual das mulheres
para decidirem sobre todos os campos da sua vida e para buscarem emancipação de doutrinas
religiosas patriarcais. E quanto as mulheres protestantes? Quais são as contribuições dos

7
Somente no século XIX é que se afirma que o feto possui vida a partir da concepção.
8
O livro mais recente publicado é "Entre dogmas e direitos: religião e sexualidade" e está disponível para
download no link que segue: <http://catolicas.org.br/wp-content/uploads/2017/09/ENTRE-DOGMAS-E-
DIREITOS_RELIGI%C3%83O-E-SEXUALIDADE.pdf>.

816
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

feminismos para as suas vivências? É o que se passa a expor, com base no grupo Evangélicas
pela Igualdade de Gênero.

2.2. EVANGÉLICAS PELA IGUALDADE DE GÊNERO (EIG)

O grupo Evangélicas pela Igualdade de Gênero foi criado em maio de 2015, durante
o Fórum Pentecostal Latino-Caribenho, diante da necessidade de se discutir como se
operacionalizam as relações de gênero dentro da igreja. O objetivo geral é reunir mulheres
protestantes, pentecostais e neopentecostais, para compartilharem as vivências e experiências
de suas caminhadas cristãs. O eixo dos debates são as violências contra as mulheres, sejam
elas físicas ou simbólicas, praticadas tanto no espaço doméstico e de trabalho, quanto no
âmbito da igreja. Para este último ponto de análise, reivindicam-se voz e participação
feminina no seio religioso, em igualdade de condições com os homens.
Apesar da EIG só ter sido constituída em 2015, Valéria Cristina Vilhena, uma de
suas fundadoras, defendeu em 2009, sua dissertação de Mestrado intitulada "Pela Voz das
Mulheres: uma análise da violência doméstica entre mulheres evangélicas no Núcleo de
Defesa e Convivência da Mulher − Casa Sofia". Em sua investigação, ela desenvolveu um
estudo que relaciona gênero e religião. Sua motivação foi o campo de pesquisa, a Casa Sofia,
projeto social da igreja católica localizado na periferia de São Paulo, onde os dados revelaram
que 40% das mulheres atendidas se declaravam evangélicas. (VILHENA:2009, 90)
Não por acaso, a pauta norteadora da EIG seja a violência praticada contra as
mulheres, incluindo, a violência doméstica, justificada no dever de sujeição feminina ao
homem e reforçada pelos aconselhamentos dos líderes religiosos de que a mulher deve
preservar o matrimônio. No entanto, segundo Valéria, essa questão precisa ser tratada fora do
âmbito religioso, pois violência doméstica e familiar é crime e não há argumentos religiosos
que o podem contrapor:

(...) quando tratamos de direitos humanos, como é o caso do 'direito a ter uma vida
sem violência', entendemos que as teologias deveriam procurar rever suas bases
estruturais à não utilizarem bases sexistas e patriarcais que fortaleçam relações de
violência doméstica. (VILHENA: 2009, 125)

A dissertação foi o início de uma caminhada que rendeu como frutos as seguintes
obras: Uma Igreja sem Voz (2011), Evangélicas por sua Voz e Participação (2015) e
Violências de Gênero, Evangélicos (a)políticos e os Direitos Humanos (2015). A partir dos

817
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

títulos do livros, observa-se a tentativa de romper com o silenciamento das mulheres nos
templos cristãos, demonstrando que "não são subalternas e que podem falar"9 e, além disso,
que são sujeitas de direito dentro e fora da igreja. Assim, busca-se um tratamento igualitário,
sem hierarquias, nos espaços religiosos.
A reivindicação pela extensão da liberdade e da igualdade às mulheres no âmbito
religioso é fruto da aproximação dos feminismos com a fé cristã. Sobre esse assunto,
questionada sobre a possibilidade de uma feminista se manter religiosa, Valéria Vilhena10
afirma que:

Muitas mulheres, jovens ou não, têm demonstrado que é possível continuar a ser
cristã, mesmo aderindo ao feminismo. Mesmo porque o movimento feminista é
composto por muitas linhas de pensamento feminista. É um movimento plural.
Nem todas as feministas convergem em todos os pontos. Há divergência. E isto só
nos enriquece, porque consegue responder a mais demandas sociais. Mas há um
ponto comum: a igualdade entre homens e mulheres. O olhar para além das
diferenças biológicas, ou seja, as diferenças biológicas não podem justificar
injustiças, violências, desigualdades de oportunidades. Nem tão pouco a bíblia
pode ser base para isso, porque é violento - toda desigualdade é violenta. O
feminismo pauta-se em direitos humanos, no resguardo da dignidade humana para
homens e mulheres, independentemente da diversidade humana que nos diferencia.
O feminismo é forma de luta política e a bíblia tem muitos textos que pautam por
estas lutas pelos mais pobres, os desfavorecidos, os injustiçados, as minorias.
(grifos nossos)

A hermenêutica bíblica realizada por essas mulheres também parte de um viés


feminista, de modo que entre as evangélicas também se tem utilizado a teologia feminista. O
intuito é desconstruir a teologia patriarcal, ressignificando as escrituras. Afinal, para muitas
evangélicas, a bíblia não tem sido considerada como palavra de ordem divina, mas como
criação e interpretação de homens. Por esta e outras razões, algumas instituições religiosas já
praticam a ordenação pastoral feminina, o que não acontece no catolicismo − em que não há
papisa11.

9
"Pode o subalterno falar?" é o título da obra de Gayatri Chakravorty Spivack, publicado pela Editora UFMG,
em 2010.
10
Entrevista concedida por Valéria Cristina Vilhena a Edson Caldeira, do sítio eletrônico Metrópole de Brasília. A
entrevista foi publicada, em 30 de maio de 2017, na página eletrônica da EIG, sob o título "É possível alinhar a
proposta feminista com o evangelho?" e pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico: <
https://mulhereseig.wordpress.com/2017/05/30/e-possivel-alinhar-a-proposta-feminista-com-o-evangelho/>
11
Há quem defenda a existência da Papisa Joana, embora não se tenha relatos que confirmem o período histórico
de seu papado.

818
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Além disso, ressalta-se que as atividades e as discussões promovidas pela EIG


podem ser acessadas em duas páginas eletrônicas12, sendo uma delas em rede social, que já
contém cerca de 2.800 seguidoras e seguidores. Sobre esta última, merece destaque a nota
oficial publicada em 10 de novembro de 2017, convidando a todas as mulheres a participarem
da manifestação contra a aprovação da PEC nº 181/2015. Apelidada de "cavalo de tróia", a
proposta tinha como objetivo inicial aumentar a licença maternidade para mães de bebês
prematuros, mas foi alterada por um Deputado, incluindo a palavra "concepção" no texto que
modifica artigos da Constituição Federal de 1988, com o objetivo de que este momento
marque o início da vida. Assim, o aborto seria criminalizado em todos os casos, mesmo nos
que já possui permissão legal. 13
Segue um trecho da nota oficial14:

A PEC, apelidada de “Cavalo de Tróia” pelo movimento feminista, a princípio


tinha como tema aumentar o tempo de licença maternidade para mães de
prematuros. Seria um avanço nos direitos trabalhistas das mulheres, mas então
abriram o Cavalo de Tróia e o os inimigos estavam lá - 18 oportunistas, moralistas,
conservadores e hipócritas, achando-se no direito de votar ao que nomearam de
“proteção do direito à vida desde a concepção” e em nome de Deus. Por isso,
como cristãs evangélicas e feministas somaremos ao movimento das mulheres no
ATO contra a PEC CAVALO DE TRÓIA e ocuparemos as ruas! Em ato de
resistência e muita indignação nos reuniremos no dia 13/11, próxima segunda-feira,
na Av. Paulista, no MASP junto às Católicas Direito de Decidir, Feministas
Cristãs e a Frente Feminista de Esquerda, em apoio a todos os movimentos
presentes! A descriminalização e a legalização do aborto – passando a ser tratado
como questão de saúde pública NÃO obrigará quem crê ser pecado abortar. Mas
impedirá que mulheres que não creem desta maneira ou estão em situações muito
difíceis, sem apoio de familiares, já com muitos filhos, empobrecidas, abandonadas
(maioria dos casos) e que, com muita dor decidem abortar, NÃO morram por
isso. (grifos nossos)

Diante desse fragmento, pode-se constatar que as mulheres cristãs, de forma geral,
se posicionam e se declaram feministas, a fim de lutar pela efetivação dos direitos das
mulheres. Nesse caso, tanto católicas, quanto evangélicas têm somado forças para juntas
defenderem o direito de decidir, independente de qualquer postura conservadora que, não só

12
As páginas eletrônicas são: < https://mulhereseig.wordpress.com/> e <
https://www.facebook.com/mulhereseig/>.
13
BOLDRINI, Angela. Comissão da Câmara aprova regras mais duras sobre o aborto no país. Folha, Brasília, 08
nov. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/11/1933899-comissao-da-camara-
aprova-regras-mais-duras-para-aborto-no-pais.shtml> Acesso: 10 nov. 2017.
14
Nota publicada em 10 nov. 2017, podendo ser acessada na rede social Facebook a partir do seguinte link: <
https://www.facebook.com/pg/mulhereseig/posts/?ref=page_internal>

819
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

os parlamentares, mas também elas mesmas possam vir a ter, no tocante a interrupção da
gravidez.
Portanto, observa-se que as mulheres evangélicas não só tem lutado por liberdade e
igualdade, mas também tem buscado uma ruptura com o paradigma masculino, que cerceia
todo e qualquer sentido emancipador insistentemente almejado por elas. E isso tem se
expandido, tal como já realizado há muitos séculos por feministas não religiosas, ao espaço
público, político. São mulheres que, independente de estarem ou não "desigrejadas"15,
mantém a sua religião na esfera privada, e buscam desconstruir uma mentalidade sexista e
conservadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto e, após as contribuições do debate no Grupo de Trabalho


"Sexualidade, Democracia e Poder", observa-se que, refletindo sobre a interação entre o eu e
o mundo social, as mulheres cristãs têm reconhecido o caráter arbitrário das normas impostas
por figuras masculinas dominantes em diferentes estruturas sociais, incluindo o contexto
religioso. Esta consciência, como demonstrado, é resultado da influência dos feminismos
entre as mulheres católicas e protestantes (pentecostais e neopentecostais).
Essa influência se faz sentir na busca por liberdade e igualdade, ao mesmo tempo
em que se requer o reconhecimento da diferença, sem a hierarquização entre os gêneros.
Nesse sentido, sob o ponto da teologia feminista, as católicas lutam pela autonomia das
mulheres, principalmente, no tocante ao exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. E as
protestantes, por sua vez, reivindicam voz e participação na igreja, denunciando o
silenciamento da mulher, inclusive, no âmbito familiar, onde doutrinas religiosas são acusadas
de sustentar relações de violência doméstica.
Entretanto, para alcançarem um sentido emancipatório por meio de uma teologia
que se propõe feminista, esses movimentos de mulheres cristãs precisariam gerar uma
falibilidade e uma reflexividade sobre os discursos religiosos. Mesmo porque, quando as
instituições religiosas se colocam no espaço público para debater, elas se reconhecem como
um espaço humano − e não divino − de discussão. É preciso analisar, sob a perspectiva da

15
Expressão que caracteriza quem mantém o exercício da fé, ainda que não mantenha vínculos com nenhuma
instituição religiosa específica. Algumas observações empíricas, que não são alvo desse artigo, mostram que
muitas mulheres se declaram evangélicas, mas não pertencem a denominações cristãs.

820
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

teoria política feminista, se o conteúdo valorativo cristão é condizente com os parâmetros da


modernidade que, nesse caso, independem da religiosidade.
Ao que tudo indica, a teoria política feminista pode fornecer um caminho para que
os novos pressupostos cristãos sejam recepcionados. Além disso, é por este meio que poderá
ser observado se, mesmo mantendo a religião na esfera privada, essas mulheres conseguem a
preservação e a garantia de seus direitos, na esfera pública, pautada na liberdade e no
tratamento igualitário. Somente assim se compreenderá se esse movimento feminista cristão
pode ser considerado, de fato, um movimento feminista ou se que o tem sido produzido é uma
adaptação religiosa do discurso feminista.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Maria Pilar. A teologia, a Igreja e a Mulher na América Latina. Tradução de Rodrigo Contrera. São
Paulo: Paulinas, 1997.

BOLDRINI, Angela. Comissão da Câmara aprova regras mais duras sobre o aborto no país. Folha, Brasília, 08
nov. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/11/1933899-comissao-da-camara-
aprova-regras-mais-duras-para-aborto-no-pais.shtml> Acesso: 10 nov. 2017.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de La domination masculine por Maria Helena Kuhner.
2ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 [1990].

CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR. Disponível em: <http://catolicas.org.br/> Acesso em: 20 out.
2017.

COHEN, Jean L. Repensando a privacidade: autonomia, identidade e a controvérsia sobre o aborto. Revista
Brasileira de Ciência Política, nº7. Brasília, janeiro - abril de 2012 [1997], pp. 165-203.

EVANGÉLICAS PELA IGUALDADE DE GÊNERO. Disponível em: < https://mulhereseig.wordpress.com/>


Acesso em: 20 out. 2017.

EVANGÉLICAS PELA IGUALDADE DE GÊNERO. Disponível em: <


https://www.facebook.com/EIG.evangelicaspelaigualdadedegenero/> Acesso em: 20 out. 2017.

FIORENZA, Elisabeth Schussler. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. Tradução
de João Rezende Costa. São Paulo: Edições Paulinas, 1992.

FRASER, Nancy. Para além do modelo senhor/serva: sobre O contrato sexual, de Carole Pateman. In: MIGUEL,
Luis Felipe; BIROLI, Flávia (Orgs.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Horizonte, 2013. p.
251-264.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP,
1991.

821
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

________. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. Tradução de
Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

GILLIGAN, Carol. In a different voice. Cambridge. Harvard University Press, 1982.

GOSSMANN, Elisabeth. [et, al.] Dicionário de teologia feminista. Tradução de Carlos Almeida Pereira. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 1997.

LÓPEZ, Maricel Mena. Globalización y religión: Un análisis en perspectiva afro-feminista. Revista


THEOlogando. Revista Teológica, ano 01, nº 01. São Paulo: Fonte editorial, p. 85.

MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Teoria política feminista: textos centrais. Vinehdo: Editora Horizonte,
2013.

NUNES, Maria José Rosado Nunes. Teologia feminista e a crítica da razão religiosa patriarcal: entrevista com
Ivone Gebara. Revista de Estudos Feministas, vol. 14, n.1. Florianópolis, jan./abr. 2006.

RODRIGUES, Silvia Geruza Fernandes. Um outro gênero de igreja - As mulheres e sua ordenação
sacerdotal. São Paulo: Fonte Editorial, 2011.

ROSADO, Maria José. O impacto do feminismo sobre o estudo das religiões. Cadernos pagu, 2001, pp.79-96.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado e violência. 1ª edição. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004.

SCAVONE, Lucila. Políticas feministas do aborto. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, maio/agosto
2008, pp. 675-680.

SOUZA, Sandra Duarte de. A casa, as mulheres e a Igreja: relação de Gênero e Religião no contexto
familiar. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.

VILHENA, Valéria Cristina. Pela Voz das Mulheres: uma análise da violência doméstica entre mulheres
atendidas no Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher − Casa Sofia. 2009. 152 f. Dissertação (Mestrado
em Ciências da Religião) − Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de Humanidades e Direito. São
Paulo, 2009.

822
Grupo de Trabalho 12

ENSINO JURÍDICO,
FACULDADES DE DIREITO E
FORMAÇÃO PROFISSIONAL

dcccxxiii
A ARTE DE ENSINAR DIREITO TRIBUTÁRIO

MELLO, Elizabete Rosa de


Professora Doutora do Programa de Pós-graduação de Direitos Humanos e Inovação da UFJF

RESUMO

Este artigo trata da experiência da Professora Elizabete Rosa de Mello, que ministrou aulas de Direito
Tributário, Coordenou Cursos de Pós-graduação Lato sensu por mais de quinze anos em instituições
públicas e particulares, demonstrando ser possível desmistificar os conteúdos de uma disciplina que,
geralmente, não tem muita aceitação entre os alunos. O artigo sugere metodologias, procedimentos e
recomendações para chegar a ter resultados satisfatórios de aprendizagem, detectados por diversas
formas de avaliação. Para ensinar é necessário primeiro ter conhecimento, metodologias adequadas e
requisitos de ordem subjetiva e objetiva. Tudo isso pode ser apreendido, não somente para ensinar
Disciplinas que tratam do Direito Tributário, como também para outras, já que ensinar é uma arte
interdisciplinar de constante transformação.

Palavras-chave. Direito Tributário. Metodologias. Ensino aprendizagem.

ABSTRACT

This paper discusses the experience of lecturer Elizabete Rosa de Mello, who has taught Tax Law for
over ten years in public and private institutions, demonstrating that it is possible to demystify the
content of a discipline which is usually not very popular among university students. The article
suggests methodologies, procedures and recommendations for achieving satisfactory learning
outcomes, prover by various means of evaluation. Successful teaching requires knowledge of the
subject, appropriate methodology as well as subjective and objective requisites. All this can be learned,
not only for subjects dealing with Tax Law, but also for others, since teaching is an interdisciplinary
art of constant transformation.

Keywords. Tax Law. Methodologies. Education learning.

824
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Poucos professores e alunos interessam por disciplinas que envolvem o Direito


Tributário, devido ao fato de não conhecerem seu conteúdo ou não perceberem sua inter-
relação com outras disciplinas e sua compatibilização entre teoria e prática.
Este artigo trata de sugestões de como deve ser o ensino do Direito Tributário, sobre
a necessidade de conhecer seu conteúdo para poder ensiná-lo, sua interdisplinariedade com
outras disciplinas e outras áreas, e de metodologias que possam servir de alicerce ao ensino
aprendizagem.
Alguns procedimentos e requisitos também serão sugeridos com o intuito de
qualificar o docente, e algumas formas de avaliação serão explicadas, tudo baseado em
atividades empíricas realizadas pela autora deste artigo que, por mais de quinze anos foram
aceitas em instituições públicas e particulares, onde coordenou cursos e ministrou aulas e,
também, recebeu elogios e prêmios por adotar metodologias diferenciadas.

1. O ENSINO DO DIREITO TRIBUTÁRIO

Ensinar é uma dádiva, saber o conteúdo de um tema de Direito e transformá-lo em


algo entendível aos alunos, é uma arte, que pode ser apreendida.
Ensinar disciplinas que tratam do Direito Tributário, como Legislação Tributária,
Introdução ao Estudo do Direito Tributário, Direito Financeiro e Tributário, Direito Tributário
Internacional, Direito Tributário Ambiental ou, simplesmente, Direito Tributário, por mais de
quinze anos em várias Universidades, públicas e privadas foi mais do que um mister, não foi
fácil, demandou e ainda demanda muita dedicação, já que primeiro aprende-se a entender o
conteúdo, interpretando-o, depois aprende-se a ensiná-lo para alunos de diversas faixas
etárias, classes sociais e de diferentes níveis, oriundos ou não das cotas sociais e raciais e, por
último, aprende-se a avaliar o aluno.
Como ensinar uma Disciplina que os alunos, geralmente, não têm empatia, na
verdade têm aversão?
O primeiro passo é desmistificar a disciplina, trazê-la para realidade dos alunos, para
seu cotidiano, com exemplos e casos concretos vivenciados na advocacia ou que são tratados
pelos Tribunais, pela mídia; jornais, boletins, revistas, por meio da internet e outros.

825
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O segundo passo é demonstrar que o Direito Tributário, apesar de ser positivista,


deve ser humanizado. A humanização do direito vai além da subsunção do fato à norma,o
aluno
deve estar consciente dos fundamentos, formação e evolução do Direito Tributário,
para poder compreendê-lo e entender o Sistema Tributário Brasileiro.
Ser docente é tratar o conteúdo aparentemente difícil em algo de fácil assimilação
por qualquer um, mas, principalmente, pelos próprios alunos, é ser didático. Todavia, não é só
transmitir o conhecimento de forma simplista e planejada, é ajudar o aluno a entender o que
está sendo tratado de forma crítica.
A metodologia de ensino deve ser apreendida e utilizada pelo docente, e pode ser
conservadora ou inovadora, o que será tratado posteriormente no item 3 deste artigo.

2. CONHECIMENTO PARA ENSINAR

O conhecimento do conteúdo que se pretende ensinar, deve ser bem planejado, de


acordo com o Plano de Ensino, com seu conteúdo programático, bibliografia e métodos pré-
estabelecidos pela instituição onde se oferece a Disciplina de Direito Tributário. Isso não
significa que o docente não possa inovar, já que possui liberdade de cátedra.
Para cada aula é necessário buscar o entendimento de vários autores sobre o tema e,
inclusive da jurisprudência, e dos verbetes e informativos dos Tribunais Superiores. Na área
do Direito Tributário, a doutrina interpreta a legislação da forma que considera correta e o
aluno também pode interpretá-la de outras maneiras, dependerá de como o docente irá
informar o conteúdo, não como verdade absoluta, por existir a liberdade de interpretação no
nosso Estado Democrático de Direito.
O bom docente nunca deve parar de estudar para ensinar. Fazer cursos de
atualização, especialização, mestrado, doutorado, pós-doutorado é uma obrigação de quem
ensina, só aprende a ensinar quem aprende a aprender.
Discutir o que se estuda é fundamental, para isso, participar de Congressos,
Seminários, de reuniões em Institutos e Associações, de Grupos de Pesquisa e de Estudos é
relevante para o docente, para poder esclarecer e debater temas complexos com seus pares e
seus discentes.

826
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2.1. INTERDISCIPLINARIDADE DO DIREITO TRIBUTÁRIO

Ensinar Direito Tributário sem relacioná-lo com outros ramos e áreas é afastá-lo da
realidade jurídica e social.
Geralmente as disciplinas relacionadas ao Direito Tributário como Legislação
Tributária, Introdução ao Estudo do Direito Tributário, Direito Financeiro e Tributário,
Direito Tributário Internacional, Direito Tributário Ambiental ou, simplesmente, Direito
Tributário são ministradas nos últimos períodos da Faculdade por ser uma disciplina de
caráter profissional, de especialização e, muitas vezes, não são relacionadas com os demais
ramos e áreas do Direito, fazendo com que a aluno imagine ser uma disciplina totalmente
nova, o que é um grave engano, por termos disciplinada a tributação no Brasil desde a
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 e, atualmente, pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e pelo Código Tributário Nacional de
1966.
O Direito Tributário inter-relaciona com todas outras áreas do Direito, a saber: com
o Direito Constitucional, que é a base de sua fundamentação, por estar o Sistema Tributário
Nacional disciplinado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; com o
Direito Financeiro por ser o tributo a principal fonte de receita orçamentária do Poder Público;
com o Direito Administrativo por serem atos administrativos os atos tributários praticados
pelos agentes fiscais, considerados como servidores públicos; com o Direito Empresarial
diante teoria das sociedades empresariais e títulos de crédito, que em suas relações jurídicas
incidem variados tributos; com o Direto do Trabalho pela tributação retida na fonte
empregadora; com o Direito Previdenciário diante do pagamento das contribuições
previdenciárias; com o Direito Penal perante os crimes contra a ordem tributária; com o
Direito Processual para viabilizar concretamente o direito material tributário; com o Direito
Civil diante do disposto no artigo 110 do Código Tributário Nacional(CTN) no sentido de que
podemos utilizar conceitos de direito privado, como alguns conceitos do Direito Civil, como
propriedade, inventário, casamento e outros, sem alterar sua definição, evidentemente, porque
conceitos milenares não devem ser afastados pela CTN instituído em 1966; com o Direito
Ambiental por utilizar a tributação na sua função extrafiscal como forma de educação e de
proteção do meio ambiente; com o Direito Imobiliário diante de toda transação imobiliária
estar sujeita a tributação, exceto às protegidas pelos benefícios fiscais, como imunidade,

827
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

isenção, anistia, moratória e remissão, finalmente, com o Direito Internacional perante a


tributação internacional, tributos sobre o comércio exterior, repatriação de bens e valores
encaminhados indevidamente para o exterior, preços de transferência, e Tratados e Convênios
Internacionais.
Ainda, o Direito Tributário relaciona-se com a Ética já que os agentes fiscais devem
pautar suas condutas na boa-fé objetiva, conduta socialmente recomendada; com a
Antropologia, na medida em que ao estudar o homem, pode-se tratar de fundamentos de
igualdade e de mínimo existencial para afastar a tributação em determinadas localidades do
país; com a Sociologia, para interpretar as leis tributarias num viés macro, entre a coletividade
e o Estado, como por exemplo, a influencia que causaria uma isenção geral para um
Município que não pode deixar de arrecadar o IPTU (imposto sobre a propriedade territorial
urbana); com a Economia por estar o déficit e superávit de um país relacionados à tributação
nacional e internacional; com a Deontologia Jurídica e com a Filosofia, já que primeira é parte
da segunda, no sentido de tratar a finalidade social que se tem com arrecadação de
determinados tributos.
Enfim, percebe-se que o Direito Tributário não é uno, isolado, ele necessita ser
estudado e inter-relacionado com outras disciplinas e com a realidade social.

3. METODOLOGIAS PARA ENSINAR

No decorrer das aulas, o uso de metodologia adequada para o conteúdo a ser


ministrado é de extrema importância e irá fazer a diferença entre ensinar bem ou mal.
O ensino jurídico tradicional, segundo Álvaro Melo Filho (1976. p. 11) “[...]
repousava na aula magistral expositiva em que o mestre explicava o Direito a um auditório
passivo. Toda a pedagogia era centrada na ação unilateral do magister dixet”. O que ainda é
praticado por muitos docentes, considerada como metodologia conservadora.
A metodologia inovadora não significa que está sendo criada pela primeira vez, mas
no sentido de afastar do ensino a aula somente expositiva sem a participação do aluno,
passando a dar ênfase na participação dos discentes por meio da aula dialogada, unindo teoria
e prática, o que já vem sendo estudado desde 1976, em matéria tributária, pelo mencionado
autor Álvaro Melo Filho (1976).

828
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A metodologia inovadora defendida neste artigo, baseia-se no ensino teórico-prático


com a participação efetiva dos alunos, é possível unir teoria com a prática, por meio da aula
dialogada, sempre desenvolvendo nos discentes o saber-pensar e interpretar, que para Álvaro
Melo Filho (1976. p. 15) significa:

[...] Na sociedade tecnológica não se deve perder de vista a concomitância desses


dois objetivos, exigindo que o ensino do Direito seja, a um só tempo,
suficientemente teórico, para insuflar, no discente, o conhecimento geral da ciência
jurídica, o sentimento do Direito e aquela dose de idealismo e de ética,
indispensável àqueles que militarão no exercício diário da profissão, e o
suficientemente prático para que o bacharel, ao findar seu curso de Direito, não se
sinta estonteado e incapaz ante as dificuldades que tem de enfrentar na vida forense
e na advocacia preventiva.

A aula dialogada propicia ao docente a aprender a lidar com a tensão entre a palavra
e o silêncio, e ao discente a fazer perguntas, que segundo Paulo Freire (1989. p. 2-3):

[...] Se alguém como educador não resolve bem esta tensão, pode ser que sua
palavra termine por sugerir o silêncio permanente dos educandos.
Se não sei escutar os educandos e não me exponho a palavra deles, termino
discursando “para” eles. Falar e discursar “para” termina sempre em falar “sobre”,
que necessariamente significa “contra”.
Viver esta experiência de tensão da palavra e o silêncio não é fácil. Exige muito de
nós.
Temos de aprender algumas questões básicas, como estas, por exemplo: não existe
pergunta boba nem resposta definitiva.
A necessidade de perguntar é parte da natureza do homem. A ordem animal foi
dominando o mundo fazendo-se homem e mulher sobre o alicerce de perguntar a
perguntar-se.
É preciso que o educador testemunhe aos educandos o gosto pela pergunta e o
respeito à pergunta.
[...] É necessário desenvolver a pedagogia da pergunta, porque o que sempre
estamos escutando é uma pedagogia da contestação, da resposta. De maneira
geral, nós professores, respondemos a perguntas que os alunos não fizeram.

Incentivar os alunos a formular perguntas é o primeiro caminho, elogiar é


fundamental para que continuem perguntado, das perguntas sobrevém novas perguntas que
poderão ser respondidas pelo docente ou novamente perguntadas aos alunos na forma de
questão de desafio, um dos métodos que serão abordados no próximo item deste artigo.
Como no Direito Tributário há uma constante mudança na legislação, diante da
quantidade de tributos existentes no Brasil, o docente deve utilizar de métodos e instrumentos
necessários a melhor aprendizagem do aluno, na medida em que não basta somente conhecer
a legislação atual, o discente deve entendê-la para saber critica-la, e quem sabe altera-la, por

829
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

meio de sugestões de projetos de lei, ou de interpretações de acordo com os princípios ou em


conformidade com a Constituição Brasileira.
Pode-se citar o uso de mapa mental ou conceitual, de tabelas comparativas, de
roteiros de aulas, de filmes, de noticiários, de questões de desafio e de casos concretos,
instrumentos a serem utilizados na aula dialogada para buscar sempre interagir a teoria com a
prática.
O mapa mental ou conceitual servirá como uma forma de sintetizar o conteúdo,
apresentando ao aluno: do todo, para depois ele entender cada parte, a seguir apresenta-se um
exemplo de mapa mental, sobre a ação de execução fiscal, o qual deverá ser complementado
pelos alunos e docente no decorrer da exposição da aula:

Fonte: Mapa Mental elaborado pela autora desse artigo.

As tabelas comparativas, por exemplo, sobre os tributos visam trazer informações


essenciais como os dispositivos constitucionais e legais, o conceito de cada tributo,
características, fato gerador, contribuinte ou responsável e benefícios fiscais. Outro exemplo é
a tabela comparativa entre decadência e prescrição, institutos que os alunos confundem em
qualquer área do Direito, demonstrando suas semelhanças e diferenças.
Os roteiros de aulas são direcionamentos para o estudo do aluno sobre o conteúdo
do Plano de Aula que será ministrado. Ao final de cada aula, no mesmo dia em que for
ministrada a aula, o docente encaminha ao aluno o roteiro correspondente por meio

830
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

eletrônico, o que faz com que, o aluno sinta-se prestigiado, fazendo parte do processo ensino-
aprendizagem. O docente também poderá colocar o roteiro, semanalmente, na página do
facebook, abrindo um Grupo de Estudos de Direito Tributário, uma vez que é notório que a
maioria dos alunos acessa o facebook, que também pode ser utilizado como instrumento de
acesso ao conhecimento e à aprendizagem, com a criação desse grupo o professor poderá
incluir notícias dos Tribunais, alterações legislativas e benefícios fiscais relacionados ao
Direito Tributário.
Em cada roteiro é necessário que seja colocada uma advertência no sentido de que a
simples leitura do roteiro não substitui a bibliografia indicada ao final, no próprio roteiro.
Nenhum roteiro, tabela, mapas substituem livros que contribuirão para análise crítica do
conteúdo a ser ministrado, apenas ajudarão nos estudos.
Apresentações de filmes, noticiários demonstrando o direito vivo, como a apreensão
de mercadorias e bens pertencentes a contribuinte que não efetuaram o pagamento de tributos,
nos portos e aeroportos, realizada por fiscais da Receita Federal, demonstra que o conteúdo
tratado em aula está mais perto da realidade do discente do que ele imagina.
O incentivo aos alunos para responderem questões de desafios e casos concretos,
não se trata de “obrigar” o discente a escreve algo, mas oportuniza-lo a pensar e interpretar,
mostrando que pesquisar, aplicar e concluir é mais importante do que decorar um instituto
para passar em uma prova.
Aqui, temos duas metodologias diferenciadas: a do caso concreto (AMARAL, 2011.
p. 39) e a da questão de desafio, para esta última devem ser observados os seguintes
procedimentos: o docente ministra a aula e diante de um assunto que ele ainda irá tratar, ele
faz um questionamento aos alunos solicitando para eles pesquisarem e trazerem a resposta
para a próxima aula, a maioria dos alunos se sentem desafiados a acertarem e, trazem de
forma escrita a resposta, o docente rubrica e devolve para o aluno antes de respondê-la, e na
data da prova o aluno entrega todas as questões respondidas para que seja atribuída a
pontuação acordada entre docente e discente no início do período letivo.
A questão de desafio deve gerar no aluno uma necessidade de pesquisar, para que o
discente não venha de plano com a resposta, para obtê-la terá de pesquisar a legislação,
doutrina e jurisprudência. O docente deverá sempre informar o tema relacionado à questão de
desafio, como no exemplo abaixo:

TEMA: SUPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

831
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

QUESTÃO DE DESAFIO:
Para o contribuinte, pessoa física ou jurídica, recorrer na esfera administrativa ele
deve depositar 30% do valor do crédito tributário?
Responda de forma fundamentada informando o atual entendimento do STF.

Na metodologia do caso concreto refere-se ao conteúdo extraído dos julgados dos


tribunais brasileiros na forma de questão a ser elaborada pelo docente e, a cada aula o discente
entrega ao professor as respostas, que são rubricadas pelo docente e devolvida ao discente. O
aluno recebe pontuação pela tempestividade, por ter feito a tarefa no dia que foi determinado
e pontuação pela correção do docente de todos os casos concretos, fazendo com que o aluno
assista às aulas e corrija as respostas dos casos concretos e, principalmente, opine a respeito
das respostas de outros colegas e traga sua contribuição, na medida em que reflete sobre
vários temas tributários.
Tanto na metodologia da questão de desafio, como na do caso concreto, nem sempre
a maioria dos alunos consegue chegar à resposta correta, ou porque não tentaram com
dedicação ou porque não conseguiram mesmo por falta de hábito ou de conhecimento de
como e onde pesquisar. A resposta é construída com a participação dos alunos, depois o
docente explica como chegou àquela conclusão e onde deveria pesquisar, que tipos de
expressões foram utilizadas para a pesquisa, em quais sites, livros e revistas jurídicas o tema
está sendo abordado. Todavia, o mais importante é que foi desenvolvido o senso crítico do
aluno, sua argumentação, essencial não somente para o aluno enquanto estudante de direito,
mas para depois que obtiver o título de bacharel ou ter êxito no concurso da prova da OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil), enfim como profissional do direito.
Para ilustrar a metodologia do caso concreto, apresentamos a seguir um caso
concreto como exemplo do que foi tratado:

TEMA: SUJEIÇÃO ATIVA E PASSIVA


CASO CONCRETO:
Em contrato de locação de imóvel, localizado na zona urbana do Município de Juiz
de Fora, ficou pactuado entre locador, locatário e a empresa administradora do
imóvel que o locatário assumiria todos os encargos incidentes sobre o imóvel,
fincando a empresa responsável pela administração e fiel execução de toas as
cláusulas contratuais, que exigissem a sua interveniência. Considerando-se que o
locador é o proprietário do imóvel, responda de forma fundamentada:
a) Em caso de inadimplemento do IPTU, de quem o Município de Juiz de Fora
deverá cobrar o imposto?
b) O locatário é parte legítima para impugnar o lançamento deste imposto, caso ele
não concorde com o seu valor?
Responda de forma fundamentada informando o entendimento majoritário do STJ.

832
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O caso concreto ajuda o aluno a relacionar teoria com a prática, que na visão de
Paulo Freire (1989. p. 6-7) é uma das principais virtudes do educador:

[...] Outra virtude é a de viver intensamente a relação profunda entre a prática e a


teoria, não como superposição, mas como unidade contraditória. Viver esta relação
de tal maneira que a prática não possa prescindir da teoria.
Temos de pensar a prática para, teoricamente, poder melhorar a prática.
Fazer isto, demanda enorme seriedade, uma grande rigorosidade (e não
superficialidade). Exige estudo, criação de uma disciplina séria.
Pensar que tudo que é teórico é mal, é algo absurdo, é absolutamente falso.
[...]
Não há porque negar o papel fundamental da teoria.
Entretanto, a teoria deixa de ter qualquer repercussão se não existir uma prática que
a motive.

Ainda Paulo Freire (1989. p. 8) entende que “[...] toda a leitura de texto pressupõe
uma rigorosa leitura do contexto”, independente do grau de instrução dos educandos é
necessária a experiência indispensável de ler a realidade sem ler as palavras. Para que
inclusive, se possa entender as palavras”.
Assim, o docente ao levar para a sala de aula uma cópia de uma certidão de
inscrição de dívida ativa eivada de vícios, retirada de um processo de uma ação de execução
fiscal, deverá informar ao aluno o contexto daquela certidão, oriunda de qual Município e em
qual ano foi inscrita. Com estas informações o aluno poderá identificar o que está disposto no
artigo 202 e parágrafo único do Código Tributário Nacional (requisitos da certidão de
inscrição em dívida ativa), com a cópia da certidão que está em suas mãos. O discente
presenciará o direito vivo, identificando quais falhas ocorreram em um processo com uma
certidão nula, que durante muitos anos tramitou e por fim, foi julgado o pedido sem o
julgamento do mérito, causando prejuízo para às partes, de tempo e de investimento, por não
ter o aplicador do direito observado a teoria com a prática.
Depois do término de um curso, seja de Graduação ou Pós-graduação, o aluno
seguirá sozinho. E como trabalhar sozinho? Somente sabendo pesquisar. E como saber
pesquisar se não aprendeu a fazê-lo? O docente deve ensinar o aluno a pesquisar e orientá-lo a
desenvolver suas respostas nos seguintes pilares: legislação, princípios, jurisprudência e
doutrina e, preferencialmente, nesta ordem. Evidentemente, a opinião do aluno deve ser
explicitada, afinal ele pode inovar, concordar ou discordar com o que vem sendo tratado a
respeito do Sistema Tributário brasileiro.

833
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

4. REQUISITOS PARA SER UM BOM DOCENTE

Não basta aplicar determinada metodologia para ser um bom docente, a metodologia
é o instrumento que não deve somente ser aplicado, deve ser bem aplicado, este é um dos
requisitos objetivos sugeridos.
Um bom docente ajuda o aluno a pensar e a interpretar determinada lei ou instituto
jurídico e fatos, segundo o autor Eros Roberto Grau (2005, p. 71):

Praticamos a interpretação do direito não – ou não apenas – porque a linguagem


jurídica é ambígua e imprecisa, mas porque, [...] interpretação e aplicação do direito
são uma só operação, de modo que interpretamos para aplicar o direito, e ao fazê-lo,
não nos limitados a interpretar (=compreender) os textos normativos, mas também
compreendemos (= interpretamos) os fatos.
O intérprete autêntico procede à interpretação dos textos normativos e,
concomitantemente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os acontecimentos
que compõem o caso apresentam vai também pesar de maneira incisiva na
produção da(s) norma(s) aplicável (veis) ao caso.

Outro requisito objetivo é a quantidade de conhecimento, não basta apenas ministrar


o conteúdo determinado no Plano de Aula, deve ser tratado com qualidade, envolvendo
sempre a legislação, jurisprudência e doutrina atuais, não se esquecendo de mencionar os
clássicos do Direito Tributário, cada qual no seu contexto social. Muitos alunos dizem que
alguns professores sabem muito, mas não conseguem entender o que o docente quis dizer ao
tratar de determinado assunto jurídico, por isso, insistimos, a metodologia é essencial para
tornar o conteúdo que aparentemente é complicado em algo de fácil entendimento.
A metodologia de ensino deve ser estudada anteriormente à aula, quando o docente
prepara a aula, de forma concomitante no decorrer da aula e, posteriormente, quando avalia
seus alunos.
Os requisitos de ordem subjetiva são os que dependem da conduta do profissional da
educação, do docente, estamos na era da Humanização do Direito, não basta o docente
somente chegar à sala de aula e dizer onde parou com a matéria, primeiro que ele deveria ter
anotado para não fazer este tipo de pergunta. Deve antes de iniciar a aula, tratar seus alunos
com urbanidade, cumprimentando-os, perguntando se estão bem, demonstrando que está ali
porque gosta de ensinar e importa-se com a aprendizagem dos alunos, porque são os seus
alunos.
Outros requisitos de ordem subjetiva são facilmente identificáveis, como a
pontualidade e a assiduidade, que são qualidades imprescindíveis para qualquer profissional, a

834
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pontualidade não deve ser medida apenas por meio de um ponto eletrônico, o que adianta um
docente usar o ponto eletrônico e demorar a adentrar na sala de aula, ou estar em sala de aula
sem sequer tratar do conteúdo programático e da metodologia? Ser pontual é chegar com
antecedência para ministrar a aula mas, além disso, é iniciar a aula no horário programado, os
alunos vão se adaptando a chegar no horário programado e também encerrar a aula no
horário, já que os discentes poderão ter outras aulas e outras atividades.
A assiduidade é também necessária, um docente ausente não interessa ao aluno,
mesmo que ele seja o melhor dos professores, sem estar com os alunos não adiantará nada. As
faltas frequentes são sinônimas de ausência de comprometimento com a turma e consigo, já
que o docente deve ensinar o conteúdo proposto pela Faculdade.
Outro aspecto relevante é a postura do docente, que se traduz desde sua vestimenta,
seu linguajar e suas críticas em relação à instituição onde ensina. O docente é uma imagem
modelo para o aluno, ir para sala de aula de tênis de corrida e camiseta, como se estivesse
indo fazer um lazer ou produzido(a) como se estivesse indo para uma festa, ou sentar em cima
de uma mesa de qualquer jeito, não convém. O professor que pretende se aproximar dos
alunos falando gírias apenas os incentivam a continuar com este linguajar, o que para a
carreira jurídica é inapropriado. Nossa língua portuguesa deve ser correta, polida, formal em
qualquer matéria que se pretenda ensinar, para evitar interpretações incorretas.
Criticar de forma negativa a instituição onde se ministra aulas além de ser antiético é
desagradável, existem formas de fazer isso, até mesmo sem que o docente necessite ser
identificado, como por meio de caixas de sugestões ou diretamente perante às Coordenações
de Cursos. O docente sempre deve zelar estritamente pela aprendizagem do aluno, esta é uma
de suas atribuições determinada pelo artigo 13, inciso III da Lei nº 9.394 de 20 de dezembro
de 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Portal do MEC, 2014).
As tarefas extracurriculares dos professores, como o preenchimento das pautas com
os lançamentos de todas e frequências, não é uma exigência somente da instituição de ensino
onde se ministra as aulas, é também do MEC, além de ser essencial para o aluno acompanhar
sua vida acadêmica.
Nas instituições públicas o docente deve se preocupar não somente com ensino, mas
também com pesquisa e extensão, mas não deve esquecer de seus alunos graduandos, que são
sua razão de ser, sem eles ficará inviável pesquisa e extensão. Ministrar uma boa aula,

835
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

melhor, uma excelente aula, dependerá de muito planejamento, dedicação, estudo e


metodologias de ensino para chegar ao objetivo final: educar seus alunos para a vida.
Um docente pode começar como um bom professor, mas poderá atingir ao status do
ótimo docente, para isso, deve ser entendido e compreendido por seus alunos, antes, durante e
depois das aulas.

5. AVALIAÇÃO

A cada semestre a avaliação dos discentes acaba sendo a pior parte do trabalho dos
docentes, muitos reclamam que devem corrigir provas de diversas turmas e acabam passando
madrugadas fazendo isso.
A avaliação é necessária para que o docente verifique se a sua metodologia de
ensino deu certo, servirá tanto para analisar se o aluno conseguiu entender a matéria quanto
para o professor, se foi apto o suficiente para informar, transformar e educar seus alunos.
Há várias espécies de avaliação do aluno, desde sua autoavaliação, pouco utilizada,
até as provas escritas, provas orais, seminários, simulados, grupos de debates e avaliação
contínua, durante às aulas pela participação dos alunos.
Com a metodologia do caso concreto e das questões de desafio é possível esta
avaliação contínua, o discente tenta elaborar uma resposta, e terá a oportunidade de falar sobre
ela em sala, treinará sua oratória e argumentação.
As provas escritas sobre o conteúdo ministrado é a espécie de avaliação mais
utilizada, incontestada, pois expressa o conteúdo que o aluno conseguiu reter ou apreender, de
forma escrita. Dependerá muito do docente ao elaborar sua prova para ser uma forma de
avaliação eficiente, de sua metodologia empregada.
Todo docente deveria fazer um curso ou oficina de como elaborar questões objetivas
e discursivas, para poder apreender os diversos níveis de dificuldades das questões, e saber
montar uma prova. Não se pode partir do pressuposto que um professor já nasce professor, ele
aprende a ser professor, e quando mais aprende, melhor será.
A prova é um contínuo processo de aprendizagem, anterior, concomitante e
posterior a sua realização, o docente deve escolher o conteúdo que será utilizado na prova,
dentre os que foram tratados em sala de aula, com seus níveis de dificuldade, ao fazer a prova

836
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

o aluno está testando tempo versus conteúdo, se consegue naquele curto período de
tempo expressar
em palavras o que conseguir aprender e, posteriormente, diante do gabarito
apresentado pelo docente, o discente verifica o que acertou e o que errou. E, por fim, teríamos
a avaliação após o gabarito, de aplicar uma prova oral somente com os alunos que erraram,
para eles explicarem o motivo de tais respostas erradas e quais seriam as respostas corretas, já
que na maioria das vezes o aluno ao ter o gabarito guarda ou descarta a prova, sem entender
bem os erros que cometeu. O erro também é uma forma de aprendizagem para chegar ao
acerto.
Estas foram apenas algumas sugestões que poderão ser aperfeiçoadas com o
objetivo de concretiza a arte de ensinar, de tornar-se um educador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ensinar envolve aprendizagem contínua, primeiro do próprio docente, de como ele


deve transmitir o conteúdo, a maioria dos professores não costuma fazer cursos de
atualizações jurídicas, de didática, de como ensinar, de como elaborar questões, de como
aprender técnicas de aprendizagem, de como utilizar a voz da melhor maneira possível, de
como utilizar novas tecnologias e até mesmo a lousa.
Conclui-se que ensinar não é fácil, ser educador, ser professor é a arte da
transformação, que exige muita dedicação, muitos desafios e aprendizagem contínua na busca
da interdisciplinariedade, da compatibilidade entre teoria e prática, de novas metodologias e
principalmente, da humanização do Direito.
O professor já capacitado com o conhecimento do conteúdo da matéria que pretende
ministrar, deve saber como utilizar estes instrumentos que o auxiliará na conquista de seu
maior objetivo: ensinar com qualidade.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Antônio Carlos Rodrigues. Ensino Jurídico e Método do Caso: ética, jurisprudência, direitos e
garantias fundamentais. São Paulo: Lex Magister, 2011.

FILHO MELO. Álvaro. Direito Tributário: metodologia e aplicação. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

837
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

FREIRE, Paulo. Virtudes do Educador. In pronunciamento verbal realizado no dia 21 de junho de 1985, na
Reunião Preparatória da III Assembléia Mundial de Educação de Adultos promovida pelo CEAAL(Conselho de
Educação de Adultos da América Latina). Disponível em: <
http://acervo.paulofreire.org/xmlui/handle/7891/1475#page/4/mode/1up>. Acesso em: 15 ago. 2017.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação: aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2005.

Portal do MEC: Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=comContent&view=article&id=13088:legislacao-e-
normas&catid=323:orgaos-vinculados>. Acesso em: 15 ago. 2017.

838
AS UNIVERSIDADES PRIVADAS NO BRASIL:
O LONGO CAMINHO

FIGUEIRA, Hector Luiz Martins


Doutorando em Direito, Constituição e Cidadania pelo PPGD – UVA, professor da Estácio/RJ.
VELOSO, Carla Sendon Ameijeiras
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida e Universidade Estácio de Sá.
ARRUDA, Camila Rabelo de M. S.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida dos Cursos de Direito e Administração.

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo problematizar o ensino privado no Brasil. De que modo a reforma do
ensino superior promoveu a transformação do cenário educativo brasileiro. Compreendendo o percurso
histórico do nascimento da universidade no país e seus desdobramentos na atualidade. Para além do
aspecto acadêmico também pretendemos apontar e investigar problemas de gestão, mantença tão
comuns a estas instituições. Ainda, analisar os meios de regulação e burocracia que regem o ensino
privado no Brasil e seus reflexos na seara jurídica, social e educacional. Demonstra profunda
relevância dentro do contexto jurídico nacional, posto que o cenário da realidade das futuras gerações
no que concerne a educação Brasileira está em vias de extinção.

Palavras-Chave. Educação superior; ensino privado, gestão, burocracia.

ABSTRACT

This study aims to problematize private education in Brazil. In what way did higher education reform
promote the transformation of the Brazilian educational scene. Understanding the historical course of
the birth of the university in the country and its unfolding in the present time. In addition to the
academic aspect, we also aim to identify and investigate management problems that are so common to
these institutions. Also, to analyze the means of regulation and bureaucracy that govern the private
education in Brazil and its reflections in the legal, social and educational area.

Keywords. Higher education; Private education, management, bureaucracy.

839
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo discutir as transformações da universidade no


Brasil. Nosso recorte limita-se a analisar a universidade privada e seu desenvolvimento no na
história da educação superior no país. Percebendo ainda as rupturas e as continuidades do seu
processo de sedimentação no solo brasileiro. Deste modo, além do esboço de todo o percurso
histórico, trataremos também dos fenômenos legais que contribuíram para que a educação
fosse entendida como um mecanismo único para persecução do saber e do conhecimento.
Em decorrência de estudos e pesquisas realizados sobre a história da universidade
brasileira, suas origens, desenvolvimento e impasses vivenciados até a Reforma Universitária
de 1968, poder-se-ia observar que há um longo caminho a percorrer ainda, por isto a
importância deste artigo. Não se pretende afirmar, com isso, que algumas conquistas já não se
fizeram sentir. Neste sentido, a universidade é convocada a ser o palco de discussões sobre a
sociedade e suas práticas e não somente em termos puramente teóricos, abstratos. Devendo
ser o espaço em que se desenvolve o pensamento teórico-crítico de ideias, opiniões,
posicionamentos, como também o encaminhamento de propostas e alternativas para solução
de problemas sociais complexos. Não resta dúvida de que essas tarefas constituem um
aprendizado difícil e por vezes exaustivo, mas necessário nos dias de hoje.
Assim, discutir academicamente o setor privado de educação superior no país
permite compreender suas lógicas, e seus anseios. No entender de Barreyro (2008, p.15), o
ensino superior privado no Brasil surge na República com a Constituição de 1891, pelo Art.
35. Naquele tempo, pela ausência de universidades, “essas instituições eram de confissão
católicas ou criadas pelas elites locais às vezes com apoio de governos estaduais ou
exclusivamente pela iniciativa privada.” (Sampaio, 2000, p.37).
Segundo Gürüz (2011), a educação superior entrou em uma era em que foram
iniciados processos para transformá-la de um setor público estruturado e regulado pelo
governo para um setor semi-público (privado) a fim de responder a demanda e a competição
econômica. Esse processo continua até o presente momento devido ao nosso sistema
capitalista e a sociedade de mercado e consumo. Some-se a isto ainda, propostas recentes de
democratização do ensino superior e a real necessidade de aberturas de novas vagas. Bem
como o atendimento aos objetivos sociais do estado democrático brasileiro. Neste sentido,
Júnior e Spears (2012, p.7)

840
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O ensino superior brasileiro, tanto na esfera privada como pública, é reconhecido


pelo Estado brasileiro como parte de uma estratégia de longo prazo de hegemonia
na América do Sul. O ensino superior também é romantizado em seu objetivo de
ascensão social, amenizando as estruturais desigualdades sociais no Brasil.
Paradoxalmente, no entanto, o ensino privado atrai aqueles alunos que não
conseguem passar no vestibular da Universidade Pública Federal (geralmente
classe média baixa) e, o sistema público e gratuito continua a ser aquele que aceita
os alunos de elite do país (a maioria dos quais oriundos de escolas particulares).
Essa dialética entre as esferas pública e privada na educação desafia a axiologia
tradicional das humanidades e ciências sociais à luz de um reducionismo aplicado à
aprendizagem e ao currículo, que visam à formação prática em determinadas
carreiras com base numa epistemologia da prática.

É importante destacar, ainda, que a política de privatização da educação superior,


demonstrada nos dados do Resumo Técnico do Censo da Educação Superior de 2012,
apontava que havia naquele momento 2.416 instituições privadas, sendo 51 IES a mais do que
em relação ao Censo de 2011. Desmembrando esses dados, somamos 2.112 IES privadas
(87,41%) e 304 IES públicas (12,58%). Além disso, já havia mais de 7 milhões de matrículas
na educação superior, concentradas na iniciativa privada, com 5.140.312 alunos (73,03%),
enquanto que o setor público estava com apenas 1.897.376 (26,96%). Noutras palavras, é
válido dizer que a atividade da universidade privada é uma realidade marcante no cenário da
educação superior no Brasil, merecendo toda sorte de estudo e reflexão. Por isso, propomos
aqui discuti-la e até mesmo repensá-la no quesito administrativo e acadêmico.

1. BREVE PERCURSO HISTÓRICO: O INÍCIO DO CAMINHO

Para sistematizar e tornar didático nossa explanação histórica, dividimos as fases do


processo de nascimento da universidade no Brasil da seguinte forma: Primeiro período:
Colônia – Iniciando-se em 1572, data de criação dos cursos e artes e teologia no colégio dos
jesuítas da Bahia. Segundo período: Império – iniciou-se de fato quando o Brasil era ainda
colônia, em 1808, com a criação de um novo ensino superior, estendendo-se até 1889, com a
queda da monarquia. Terceiro período: Primeira república – iniciou-se com o governo
provisório de Deodoro e terminou com a instalação do provisório de Vargas em 1930. Quarto
período: Era Vargas – começou com a revolução de 1930 e findou-se com a deposição do
ditador em 1945.
Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, o que se tinha no Brasil eram cursos com o
objetivo de servir à qualificação das elites agrárias e à classe dominante da metrópole
exploradora da Colônia. Durante o período colonial, os núcleos educacionais importantes

841
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

eram os colégios jesuítas espalhados pelo país. Neste sentido Luiz Antônio Cunha (2007,
p.27):

O estabelecimento dos jesuítas seguiam normas padronizadas, que vieram a ser


sistematizadas na Ratio atque Insituto Studiorum Societas Jesu – ou, simplesmente
Ratio Rtudiorum -, promulgada após versões preliminares, em 1559. Esse tratado
previa um currículo único ara os estudos escolares dividido em dois graus, supondo
o domíneo das técnicas elementares da leitura, escrita e cálculo: os studia inferiora
correspondentes, grosso modo, ao atual ensino secundário, e os studia superiora,
correspondendo aos estudos universitários. Grifos do autor.

Assim, o Ensino Superior no Brasil nasceu com a transferência da sede do poder e


da elite portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Os cursos de Ensino Superior foram
criados para atender, predominantemente, as necessidades do Estado nascente: formação dos
seus burocratas, formação de especialistas para a produção de bens de consumo das classes
dominantes (aristocratização do saber). Desta forma, para a exteriorização do saber e
apropriação do conhecimento era fundamental que se estudasse fora do Brasil, principalmente
em Portugal. Sobre tal temática elucida Anísio Teixeira (1989, p. 65):

Até os começos do século XIX, a universidade do Brasil foi a Universidade de


Coimbra, onde iam estudar os brasileiros, depois dos cursos no Brasil nos reais
colégios dos jesuítas. No século XVIII, esses alunos eram obrigados a um ano
apenas no Colégio de Artes de Coimbra para ingresso nos cursos superiores de
Teologia, Direito Canônico, Direito Civil, Medicina e Filosofia, nesta última,
depois da reforma de 1772, incluídos os estudos de ciências físicas e naturais. Nessa
universidade graduaram-se, nos primeiros três séculos, mais de 2.500 jovens
nascidos no Brasil.

O brasileiro da Universidade de Coimbra não era um estrangeiro, mas um português


nascido no Brasil, que poderia mesmo se fazer professor da Universidade. O próximo período
histórico foi o período denominado de Primeira República que vai da Proclamação da
República em 1889 até a revolução de 1930, que surgiram as escolas superiores não
dependentes do Estado.1 A primeira Constituição Republicana, de 1891, foi omissa em
assuntos da Educação e do ensino, não previa a escolarização obrigatória e determinava a
laicidade nas instituições públicas.

1
Entre 1891 e 1910 foram criadas vinte e sete escolas superiores, nove de Medicina, Obstetrícia, Odontologia e
Farmácia; oito de Direito, quatro de Engenharia, três de Economia e três de Agronomia. Final do século XIX: a
criação da Escola de Engenharia do Mackenzie College, em 1896, e a criação da Escola de Engenharia de Porto
Alegre, no mesmo ano, de iniciativa privada e sem orientação religiosa.

842
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Mesmo tendo em vista a previsão da laicidade, não se pode olvidar do aparecimento


das instituições com viés religioso e sua forte marca no processo de criação e surgimento das
universidades privadas no brasil. A Mackenzie College, em 1896, de influência protestante e
de modelo norte americano. E ainda, o surgimento das Pontifícias Universidades Católicas. A
PUC/RJ foi fundada em 1941 por D. Sebastião Leme e pelo padre Leonel Franca, e
reconhecida oficialmente pelo Decreto 8.681, de 15 de janeiro de 1946. Já neste ano, tivemos
a fundação da PUC/SP no dia 13 de agosto de 1946 pelo Cardeal-Arcebispo da Cúria
Metropolitana de São Paulo, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, nasceu a partir da
fusão da Faculdade Paulista de Direito com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
São Bento, esta fundada em 1908.
Por fim, em resumo, na Era Vargas, Francisco Campos, o primeiro Ministro da
Educação e Saúde do Estado Novo elaborou o Estatuto das Universidades Brasileiras. O
ensino superior brasileiro poderia se organizar na forma de universidade (pública ou privada).
No inicio da Era Vargas (1930): três universidades surgiram (Universidade do Rio de Janeiro
e Universidade de Minas Gerais e Escola de Engenharia de Porto Alegre); No fim da Era
Vargas (1945) mais outras: cinco universidades (Universidade do Brasil, Universidade
Técnica do Rio Grande do Sul, Universidade de São Paulo, Universidade Católica do Rio de
Janeiro e Universidade do Distrito Federal). E logo adiante temos o boom na criação das
universidades privadas.

2. NOVOS RUMOS DA UNIVERSIDADE PRIVADA NO BRASIL

Contextualizando a temática no tempo, vale dizer que no ano de 1968 tivemos a


grande reforma universitária. Tal reforma, significou a criação da Lei de Diretrizes Bases da
Educação (LDB) assegurando ao ensino superior autonomia didático-científica, disciplinar,
administrativa e financeira. Entre as principais características do ensino superior está a
possibilidade de privatização das instituições e o desenvolvimento de instituições de pequeno
porte. A reforma de 1968 proporcionou, portanto, grandes modificações que se colocam
presentes atualmente na organização das instituições educacionais brasileiras.
A LDB passou por diversas transformações e adaptações até chegar ao formato atual
que temos hoje de 1996 e é apontada por isso como marco legal da reforma que foi colocada
em curso na década de 1990, pela qual o Estado assume o controle e a gestão das políticas

843
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

públicas. Ou seja, o Estado é o máximo gestor no que se refere à avaliação e ao controle das
IES, mas é o mínimo no que se refere ao financiamento das IES públicas, liberando a oferta
da educação superior para a iniciativa privada, conforme vemos a seguir:

Art.7º: O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I –


cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de
ensino; II- autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder
Público; III – capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 2134
da Constituição Federal (BRASIL, LDB, 1996).

A aprovação da LDB, no entanto, favoreceu que a iniciativa privada com fins


lucrativos ou sem fins lucrativos (filantrópicas) pudessem atuar em paralelo com as
instituições públicas, patrocinando e democratizando o ensino superior pra diversos
seguimentos da sociedade brasileira. Contudo, reside aqui a grande crítica de muitos
estudiosos no que se refere às instituições de ensino privado. Sob a alegação que as mesmas
não praticam qualquer tipo de pesquisa e extensão, comprometendo assim a qualidade do
ensino prestado. Contudo, nossa discussão não caminha sobre este prisma, por isso não
adentraremos neste mérito.
Durante o regime militar, sobretudo na fase posterior a reforma universitária de
1968, o processo expansionista assumiu feição predominantemente privatista,
consubstanciada pelas políticas de liberalização adotadas pelo Conselho Federal de Educação
(CFE). Assim, na década de 90 uma grande expansão do ensino superior aconteceu e novos
padrões de regulação e gestão, muitos ainda sofrendo com o processo de internacionalização.2
Segundo Guadilla (1996), durante os anos de 1990 consolidou-se uma tendência descrita há já
algum tempo por Brunner (1990) como “a explosão dos números”: o aumento do corpo
estudantil, do professorado e do número de instituições foi notável; também foi considerável a
ampliação do percentual correspondente ao setor privado. 3
Importante ressaltar que com o advento e a possibilidade do ensino privado no
Brasil um processo de mercantilização do ensino de fato emergiu na nossa economia, sendo

2
Grupo LAUREATE – que envolve administra várias universidades/faculdades no brasil. E também a rede
ILUMNO – mantenedora da UVA.
3
Da educação mercadoria à certificação vazia [...] O ensino superior, público e privado, no Brasil, passou por
grandes transformações nas últimas décadas. Essas mudanças – travestidas de democratização, por favorecerem o
acesso – visaram atender a uma proposta de privatização e barateamento da educação. A predominância de
objetivos economicistas em detrimento dos pedagógicos nas IES privadas permitiu um fenômeno relativamente
novo no Brasil: a formação de conglomerados educacionais, grandes empresas, de capital aberto e com forte
participação de grupos estrangeiros em seu quadro de acionistas. (SOUZA, Le Monde Diplomatique Brasil,
online).

844
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

representado por grandes conglomerados econômicos de fins meramente comerciais. Assim,


a Anhanguera Educacional foi a primeira instituição privada de educação superior a abrir seu
capital, tornando-se a primeira Instituição de Ensino Superior (IES) privada da América
Latina a ter ações na Bolsa de Valores. De certa forma, está parece ser uma alternativa viável
para a sobrevivência desse campo do ensino, haja vista que pequenas universidade familiares
ou faculdades com problemas de gestão fecham as portas devido à dificuldade financeiras
encontradas no mercado.
Um caso emblemático marcou o estado do Rio de Janeiro no ano de 2014 – foi o
fechamento das portas de duas universidades – a Gama Filho (UGF) e a UniverCidade. O
MEC ao descredenciá-las alegou: "a baixa qualidade acadêmica, o grave comprometimento
da situação econômico-financeira da mantenedora [das instituições] e a falta de um plano
viável para superar o problema, além da crescente precarização da oferta da educação
superior".4 Ainda em situação análoga, podemos citar a Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ. Apesar de ser mantida pelo poder publico a UERJ, um dos grandes nomes da
educação superior no Brasil, parece ter parado no tempo, sem aulas, professores em greve e
sem salários. Tudo isso devido a problemas de repasse e gestão das verbas destinadas à
educação.
O exemplo nos relata um problema relevante enfrentado pelas instituições de capital
privado no Brasil, o obstáculo de gestão. Ao que tudo indica gestões esquizofrênicas são
praticadas muitas vezes levando à falência de grandes nomes do setor educacional. Faz-se
necessário, portanto, aprimorar a competência e seriedade do trabalho universitário, tanto dos
controladores administrativos, quanto de docentes, vendo na universidade um
empreendimento em permanente construção e reconstrução do saber. Noutras palavras, o
sistema de gestão acadêmico implantado pelas IES privado precisa se reconstituir numa
perspectiva histórico-crítica para a edificação de um futuro promissor. Em que pese à
existência de mecanismos nítidos de privatização e mercantilização do ensino superior, por
outro lado, tem-se uma recente democratização perpetrada pelo governo do PT e suas
políticas de acesso, como ressalta a revista Forum:

Atualmente, o País vive a expansão do setor público da educação superior com a


ampliação das redes das universidades federais e dos institutos de educação
profissional e tecnológica. No setor privado, o governo federal criou o programa

4
MEC fecha Universidade Gama Filho e UniverCidade, no Rio: <http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/01/
mec-descredencia-universidade-gama-filho-e-univercidade-no-rio.html>

845
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Prouni – que concede bolsas de 100% e 50% a estudantes de baixa renda para
cursos em instituições privadas – e ampliou o alcance do Fies – Programa de
financiamento estudantil. O setor privado da educação superior vive forte processo
de concentração e de internacionalização das instituições que, ao longo deste início
do século XXI, mantiveram a tendência de crescimento, especialmente nos
primeiros anos da década.5

3. UNIVERSIDADE PRIVADA E SUA AUTONOMIA JURÍDICA E DE


GESTÃO

De acordo com CRFB de 1988 em seu Art. 207 – “As universidades gozam de
autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e
obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão"; Já o
Decreto nº 2.207, de 15 de abril de 1997 - Regulamenta para o Sistema Federal de Ensino. Art
1º - As instituições de ensino superior do Sistema Federal de Ensino, nos termos do art. 16 da
Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, classificam-se, quanto a sua natureza jurídica, em:
II - privadas, quando mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito
privado.
Com base neste mecanismo legal questiona-se: a universidade privada deve ter o
mesmo modelo de gestão da universidade pública? É possível um ensino que conjugue a
educação de qualidade e a satisfação do mercado econômico que visa o lucro? Sabemos que
as universidades possuem autonomia pra gerir seus departamentos, sendo necessário respeitar
apenas critérios mínimos de exigência do MEC na graduação e da CAPES na pós-graduação.
O conceito de autonomia tem sido tratado pela doutrina nos moldes do art. 207 da CRFB. Na
lição de Ferreira (1995, p. 97):

A autonomia da universidade é assim o poder que possui esta entidade de


estabelecer normas e regulamentos que são o ordenamento vital da própria
instituição, dentro da esfera da competência atribuída pelo Estado, e que este repute
como lícitos e jurídicos. A autonomia pode ser exercida em diversas esferas: no
plano político, com o direito de as universidades e faculdades elegerem a sua lista
sêxtupla de reitores ou diretores; no plano administrativo, dentro dos limites do seu
peculiar interesse; no plano financeiro, com as suas verbas e o seu patrimônio
próprio; no plano didático, estabelecendo os seus currículos; no plano disciplinar, a
fim de manter a estrutura da sua ordem. A autonomia pode ser plena ou limitada,
segundo a sua extensão, e será exercida tanto pela universidade como pelas
unidades que a integram (faculdades, escolas e institutos). A autonomia plena não
significa, entretanto, que a Universidade, que dela desfruta, posse esmagar e anular
a autonomia limitada de que gozam as unidades integrantes da universidade. A
autonomia plena será exercida pela universidade; a autonomia limitada será

5
<http://www.revistaforum.com.br/2012/10/18/democratizacao-da-educacao-superior-no-brasil-avancos-e-
desafios/>

846
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

exercida pelas unidades que a integram. A autonomia plena não significa o poder
de tudo fazer, mas ela mesma está condicionada pelos limites com que a legislação
a enclausurou, estabelecendo competências privativas e exclusivas tanto para a
universidade como para as suas unidades integrantes. Cada uma delas tem
autonomia no campo de suas atividades especificas e exclusivas, competências que
não deverão e não poderão ser anuladas pelo poder central da universidade. Tudo se
resume, pois, em uma questão de competências, de atribuição e exercício de
competência.

A autonomia da universidade estabelece normas e regulamentos que são o


ordenamento vital da própria instituição, dentro da esfera da competência atribuída pelo
Estado, e que este repute como lícitos e jurídicos. Contudo, esta liberdade não é plena, deve
ser limitada em alguns aspectos. Se por um lado a universidade privada não precisa fazer
concurso público de títulos e provas para a seleção de professores e pode definir sua estrutura
curricular, por outro, a constituição no art. 167, inciso VI, veda que sem prévia autorização
legislativa se faça a transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma
categoria para outra. Percebe-se então que esta autonomia não se trata de uma soberania plena
para a execução de seus projetos. Prova da limitação desta autonomia é que o poder judiciário
em muitos casos já decidiu pelo encerramento das atividades de universidades privadas como
o caso da Gama Filho já citado dentre outros6.
Desta maneira, a autonomia universitária, como já abordamos, é uma autonomia
relativa, pois seu parâmetro é a própria Constituição, estando em consonância com o
ordenamento jurídico pátrio, pode-se afirmar ainda que sua autonomia está situada no mesmo
patamar do Ministério Público e mais recente, as Defensorias públicas. A autonomia jurídica
então decorrente de lei pode ser mitigada caso haja interesse maior do Poder Público, como
no caso do fechamento de universidades por baixa qualidade do ensino.
O princípio da autonomia congrega os elementos fundantes da identidade
universitária, ainda que coexistindo com a contradição público/privado presente no primeiro
princípio. Autonomia sugere autodeterminação, independência e liberdade; heteronomia,
subordinação a ordens e agentes externos, adequação a demandas mercadológicas, a agendas
estatais marcadas pelo pólo privado/mercantil. Outro princípio de grande relevância é o

6
Universidade Braz cubas. Curso de Odontologia. Fechamento por inobservância da legislação de regência.
Portaria n. 196, de 3-2-94, do ministro da educação e do desporto. O ensino universitário, administrado pela
iniciativa privada, há de atender aos requisitos, previstos no art. 209 da constituição federal: cumprimento das
normas de educação nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. MS 3318/DF, Rel.
Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 31.05.1994, DJ 15.08.1994 p.
20271

847
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

princípio da democracia universitária. Ou seja, a universidade, ainda que tenha que se


submeter ao ordenamento jurídico do Estado, de alguma forma reciprocamente o submete,
posto que aquele deve submissão à sociedade, isto é, ao ente público.
Outro fator que se atrela a autonomia é a burocracia das universidades. O
desembargador Johonsom di Salvo, da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
considerou ilegal uma resolução da Universidade Federal do ABC que exigiu coeficiente de
aproveitamento mínimo para participação de alunos em estágios, além daqueles estabelecidos
na Lei 11.788/2008. Segundo o desembargador, a autonomia universitária não permite que
atos das universidades estejam imunes a julgamento pelo Poder Judiciário. “Ademais, não se
está invadindo a seara de discricionariedade (oportunidade e conveniência) da Universidade
Federal do ABC.”7
Num cenário de economia globalizada, a disputa por espaço no meio empresarial é
cada vez maior, fazendo com que surjam inúmeras vagas nestas universidades. Some-se a isso
a exigência do mercado capitalista que implica na necessidade de capacitação cada vez maior
por parte de estudantes e pesquisadores, por este motivo a universidade não pode se furtar de
um dos mais nobres ideais – o partilhar do conhecimento em prol da solidariedade humana.

CONCLUSÃO

No Brasil, a Universidade surgiu, tardiamente, com características bem peculiares e


se consolidou em escolas superiores isoladas com orientação precipuamente voltada à
preparação profissional naquelas áreas mais tradicionais que as elites emergentes do país
demandavam. As universidades não foram mais do que a reunião desses estabelecimentos
isolados que relutaram em se articularem numa nova instituição, mantendo seu status
particular e características originárias. As reitorias surgiram sem poder acadêmico, relegadas
às questões burocráticas e de relações com o Governo para a obtenção de recursos.
Percebe-se então, que este modelo que se formou a universidade no Brasil deve-se
ao processo histórico de formação nascimento desta instituição. Com o passar dos anos vários
mecanismos legais foram criados para regular a questão do ensino superior no país. Entre
variáveis e permanências, inúmeras leis, projetos foram propostos para regular a universidade

7
Agravo de instrumento 0005960-87.2015.4.03.0000/SP.

848
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

no país. Contudo, nenhuma nunca se apresentou de forma adequada para suprir as


necessidades e demandas do campo educacional.
A Universidade tem um papel inalienável na geração e disseminação do
conhecimento em todo o Sistema Educacional, pelo seu papel na preparação de seus recursos
humanos e geração de alternativas para o desenvolvimento autônomo da nação. Portanto, a
universidade se insere na comunidade como criadora e difusora do conhecimento,
impulsionando o crescimento da sociedade, do Estado e do País, e tendo responsabilidades
frente aos seus alunos (e famílias), à sociedade, aos professores e funcionários e, ainda, frente
às entidades financiadoras.
Conclui-se, portanto que as universidades demandam estruturas, sistemas e métodos
diferenciados daqueles desenvolvidos nas burocracias tradicionais. Seus dirigentes, além das
competências para gestão, comuns às demais organizações necessitam de conhecimentos,
habilidades e atitudes inerentes a sistemas políticos, porque a universidade é um sistema
político do que uma organização burocrática.
Por fim, em que pese muitos autores pensarem na universidade privada como uma
instituição de viés meramente empresário e como finalidade última a obtenção de lucro, não
concordamos com essa premissa. Corroboramos com a ideia de que a universidade de capital
privado tem grande representatividade no cenário acadêmico, social, político e jurídico. Sendo
ela imprescindível para a melhor democratização do ensino superior.

REFERÊNCIAS

ANÍSIO TEIXEIRA. Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até 1969. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989.

BARREYRO, Gladys Beatriz. Mapa do ensino superior privado. Brasília (DF): Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2008. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.puccampinas.edu.br/services/e-books /Relatosdepesquisa37.pdf> Acesso em jun. 2014.

BRAGA, Mariza Alves. A atuação do Programa Universidade para Todos no Rio de Janeiro e na Rede de Ensino
Superior Estácio de Sá. In: Maria de Fátima Costa de PAULA; Maria das Graças Martins da SILVA. As
políticas de democratização da educação superior nos Estados do Rio de Janeiro e de Mato Grosso: produção de
pesquisas e questões para o debate, Cuiabá, EdUFMT, 2012, p.121-140

CUNHA, L.. A. Qual Universidade. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1989.

_____ A educação nas Constituições Brasileiras: Análise e propostas. In: Educação e Sociedade, nO23, ano VIII,
abril de 1986. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1986.

_____A Universidade Temporã. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

849
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira, 7° volume, Art.s, 193 a 245, ADCT - Art., 1° a 70 -
EC.1/92, 2/92, 3/93, 4/93, ECR-1/94, 2/94, 3194, 4194, 5/94, 6/94, Editora Saraiva, São Paulo, 1995, p. 207.

GARCÍA GAUDILLA, C. Situación y principales dinâmicas de transformación de la educación superio em


America Latina. Caracas. Cresalc/Unesco, 1996.

SAMPAIO, Helena. O ensino superior no Brasil: o setor privado. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2000.

SOUZA, Andrea Harada. Da educação mercadoria à certificação vazia. Le Monde Diplomatique Brasil.
Disponível em: <https://www.diplomatique.org.br/print. php?tipo=ar&id=1072> Acesso em: set. 2014.

FÁVERO, M. L.A. Vinte e cinco anos de reforma universitária: um balanço. In: MOROSINI, M. C. (Org.)
Universidade no Mercosul. São Paulo: Cortez, 1994, p 149177.

______. UNE em tempos de autoritarismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

______. Universidade e Poder. Análise Crítica/Fundamentos Históricos (1930-45). 2. ed. Brasília: Plano, 2000.

FERNANDES, F. Os dilemas da reforma universitária consentida. Debate e Crítica. São Paulo, n. 2, p. 1-42,
jan./jun. 1974.

PAIM, A. A busca de um modelo universitário. In: SCHWARTZMAN, S. (Org.). Universidade e Instituições


Científicas no Rio de Janeiro. Brasília: CNPq, 1982.

RIBEIRO, D. A Universidade Necessária. 4. ed. Capo11 e 111.São Paulo: Paz e Terra, 1982.

850
A CRISE NO ENSINO JURÍDICO
E OS CONCURSOS PÚBLICOS

COSTA, Beatriz Guimarães


Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito

RESUMO

O trabalho se concentra na crise do ensino de Direito no Brasil, questionando-se o modelo tradicional


de ensino, baseado na reprodução acrítica de conhecimento, descolado da realidade prática e
subordinado aos interesses do mercado de preparação para concursos públicos. Analisa-se os esforços
de intervenção regulatória do Estado no ensino jurídico através de normas específicas, suas
contribuições para a melhoria da qualidade de formação e suas limitações frente à manutenção de um
modelo pedagógico tradicional. Também se aborda a relação entre o aumento exponencial do número
de cursos de Direito a partir da década de 90 do século XX, a baixa qualidade da formação jurídica e a
subordinação desta ao mercado de preparação para concursos públicos.

Palavras-Chave. ensino jurídico; concurso público; formação jurídica.

ABSTRACT

The paper focuses on the crisis of law education in Brazil, questioning the traditional model of
education, based on the uncritical reproduction of knowledge, detached from practical reality and
subordinated to the interests of the market for preparation for public tenders. It analyzes the efforts of
the State's regulatory intervention in legal education through specific norms, its contributions to the
improvement of the quality of training and its limitations in the maintenance of a traditional
pedagogical model. It also discusses the relationship between the exponential increase in the number
of law courses since the 1990s, the low quality of legal training and the subordination of this to the
market for preparation for public examinations.

Keywords. legal education; public tender; legal training.

851
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento dos cursos jurídicos brasileiros coincidiu com a afirmação do


Brasil enquanto império, independente de Portugal. Foi na Assembleia Constituinte do ano de
1823 quando se apresentou um primeiro projeto de Curso de Direito, que só veio a ser
realmente implantando quatro anos mais tarde, em São Paulo e em Olinda. Antes disso,
aqueles brasileiros que possuíam condições iam cursar Direito em Portugal, na Faculdade de
Direito de Coimbra, e regressavam já formados para exercerem as profissões jurídicas ou
polítcas. Dessa forma é correto dizer que, até 1827, todos os juristas que atuavam no Brasil,
mesmo os de nacionalidade brasileira, eram portugueses, pois eram formados conforme o
sistema jurídico de Portugal.
Desde aquele período, poucas foram as alterações do modelo ensino jurídico
brasileiro. Mais de cento e cinquenta anos depois da implantação das faculdades de Direito no
Brasil, elas mantinham o mesmo discurso e a mesma metodologia de cariz liberal do Brasil
Império 1. Apenas com a promulgação da Constituição de 1988 criou-se ambiente propício
para se implementar reformas no ensino jurídico que fossem realmente transformadoras.
Assim é que, no início da década de 1990, já havia um diagnóstico de crise do
ensino jurídico brasileiro, que não conseguia formar profissionais com o nível técnico exigido
para lidar com as novas demandas existentes na sociedade brasileira pós CF/88, cujos
conflitos eram complexos e não mais suprimidos por um governo ditatorial 2. Nesse contexto
a Ordem dos Advogados do Brasil iniciou em 1992 um estudo para reavaliação do ensino
jurídico com base na Resolução nº 3 de 1972 do Conselho Federal de Educação, que tinha
sido a última norma editada para regular a matéria, de caráter conservador.
A evolução desse estudo resultou na Portaria nº 1.886/94 do Ministério da
Educação, que revogou a resolução citada acima e atualizou a estrutura dos cursos jurídicos
ao modelo que ainda se vê hoje. Por sua relevância, é proveitoso mencionar as reformas que a
portaria implementou no cenário educacional relativo ao Direito.
Primeiramente foi determinada uma carga horária mínima de 3.300 horas de
atividades a serem ministradas em pelo menos cinco anos de curso, fixando um limite de
quatro horas de atividades didáticas para o período noturno sem, contudo, abrir mão do

1
MARTÍNEZ, Sérgio Rodrigo. A evolução do ensino jurídico no Brasil. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/ portal/sites/default/files/anexos/29074-29092-1-PB.pdf>. Acessado em 28 set. 2017.
2
Idem.

852
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mesmo nível de qualidade. Também foi fixado um mínimo de 300 horas de estágio de prática
jurídica obrigatória.
A portaria também incluiu no currículo de Direito a obrigação de redação,
apresentação e defesa de monografia final perante banca examinadora. Outras importantes
inovações trazidas foram a exigência de desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e
extensão, de forma interligada e obrigatória, a obrigatoriedade de implementação de
“escritórios modelos” nas faculdades e a exigência da manutenção de bibliotecas com pelo
menos dez mil volumes.
A evolução do quadro das faculdades de Direito não pode ser creditada inteiramente
à portaria do MEC, pois outras normas aplicadas tiveram importância na manutenção de uma
rede de avaliação e controle periódico de qualidade das condições de ensino e do conteúdo
absorvido pelos alunos. Deve-se mencionar, nesse sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (Lei 9.394/96).
Sobreveio a Resolução 09/2004, também do Ministério da Educação, que revogou a
sobredita portaria, mas manteve suas inovações, diferenciando-se desta por acrescentar
disciplinas ao currículo, além de ser mais explícita e detalhista quanto ao nível de qualificação
que um curso de Direito deve oferecer ao graduando, prescrevendo uma “sólida formação
geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da
terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos
jurídicos e sociais”.
Com a portaria de 1994 verifica-se um esforço em ir além das reformas anteriores
do ensino jurídico, que se limitavam a alterações de currículo. Inovações como a obrigação de
horas mínimas de estágio e as atividades de pesquisa e extensão demonstram um movimento
no sentido de superar a ideia da educação apenas como o que acontece em sala de aula e de
uma formação não só dogmática, mas também prática.
Apesar disso, o modelo liberal e tradicional de transmissão do conhecimento em sala
de aula permaneceu o mesmo e é lá que a maior parte da carga horária se realiza. A
concepção do mercado ditando a formação dos graduandos resistiu à intervenção regulatória
do Estado. Também permanece a influência de um modelo pedagógico onde o professor é a
figura que concentra todo o conhecimento e o transmite aos alunos, sem interações
significativas e sem troca de experiências.
Criticando a didática jurídica tradicional, Santiago Dantas afirma:

853
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A didática tradicional parte do pressuposto que, se o estudante conhecer as normas


e instituições, conseguirá, com os seus próprios meios, com a lógica natural do seu
espírito, raciocinar em face de controvérsias, que lhe sejam amanhã submetidas. O
resultado dessa falsa suposição é o vácuo que a educação jurídica de hoje deixa no
espírito do estudante já graduado, entre os estudos sistemáticos realizados na escola
e a solução ou a apresentação de controvérsias, que se lhe exige na vida prática. 3

Essa pedagogia tradicional onde o professor se limita a expor o conteúdo e os alunos


a o receberem de forma acrítica e meramente reprodutiva contribuiu e ainda contribui com o
modelo liberal de ensino livre, conforme os ditames do mercado 4. O mercado, por sua vez,
mostra-se voltado para os concursos públicos, especificamente com a necessidade de
suprimento de uma demanda por produtos e serviços de preparação para os certames.

1. A VALORIZAÇÃO DO CONCURSO PÚBLICO E SUA LÓGICA


AUTORREFERENCIADA

A Constituição de 1988 determinou a obrigatoriedade de concursos públicos para


investidura nos cargos de servidores públicos e nos cargos profissionais de carreira pública
(magistrado, promotor de justiça, advogado geral da União, procurador do Estado, defensor
público), criando demanda para tudo aquilo que possibilitasse a investidura em tais cargos,
incluindo aí o curso de graduação em Direito. Por conseguinte, houve um aumento gradual e
constante no número de certames ao longo dos anos. A essa tendência o mercado respondeu
com a expansão da oferta de produtos e serviços voltados à preparação para participação
nesses processos seletivos, de forma que se verifica hoje a existência de um “universo” dos
concursos públicos, que impacta a realidade.
Para melhor entender o contexto que possibilitou essa valorização do concursos
públicos, é útil utilizar o conceito weberiano de “tipos ideais” para identificar ideologias que
ajudam a explicar a relevância alcançada pelo concurso público no Brasil e todo o mercado de
preparação para os mesmos 5. A primeira é a ideologia republicana, que determina a
utilização de critérios racionalizados e impessoais de acesso a cargos públicos, rompendo com
a tradição da monarquia de nomeação, hoje visto como prática antidemocrática. Os concursos

3
DANTAS, Santiago. A educação jurídica e a crise brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1955. p. 16.
4
MARTÍNEZ. “A evolução...”.
5
FONTAINHA, Fernando de Castro; GERALDO, Pedro Heitor Barros; VERONESE, Alexandre; ALVES,
Camila Souza. O concurso público brasileiro e a ideologia concurseira. Revista Jurídica da Presidência Brasília v.
16 n. 110 Out. 2014/Jan. 2015 p. 673-674.

854
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

públicos se encaixam nessa ideologia por serem um avanço em direção à igualdade de


condições de acesso.
Também é possível apontar para uma subsequente ideologia burocrática, onde a
administração do Estado passa a ser exercida por um conjunto de funcionários aprovados em
concursos, ou seja, selecionados por um critério racional-legal, ao qual se confere maior
legitimidade por supostamente preencher os quadros com os candidatos mais qualificados.
Com isso marca-se o primado da técnica sobre a política, identificando-se nesse processo a
valorização da forma escolar como parâmetro para auferir o grau de “saber neutro” dos
funcionários.
Do cruzamento da ideologia republicana com o valor da democracia surgiu o
conceito da meritocracia, inicialmente construído em um ensaio publicado por Michael
Young em 1956 para identificar uma forma mais justa de seleção das elites, independente de
variáveis como parentesco e condição financeira e totalmente vinculado ao valor “talento”.
Retirado de seu contexto, no entanto, a meritocracia foi alçada à condição de ideologia,
definida como “aquela que vê, no resultado dos processos objetivos de medição de
performance, a expressão do mérito, definido por Young como esforço + talento” 6.
Em países como França, Estados Unidos e Inglaterra, a ideologia meritocrática já era
estudada e questionada antes mesmo de sua importação para o Brasil em relação aos
concursos públicos. Há diversos estudos que demonstram o fracasso da meritocracia no
ambiente escolar para equalizar a performance dos alunos de diferentes origens sociais e
econômicas e as dificuldades de se implementar padrões justos e precisos de avaliação de
rendimento escolar, ou mesmo de se utilizar esse rendimento como parâmetro para avaliar a
qualificação dos indivíduos para o mercado de trabalho. Denunciava-se, enfim, já no início do
século XX “a educação baseada na meritocracia como um mito” 7.
Apesar de todos os indicativos contrários, a ideologia meritocrática aflorou no Brasil
e teve nos concursos públicos um grande referencial, posto que o concurso seria a forma mais
isenta de selecionar e premiar os indivíduos mais talentosos, esforçados e capazes. A
quantidade de concursos públicos ocorridos a partir da década de 1990 deixam clara a adesão
do Estado brasileiro a essa ótica. Contudo, esse modelo adotado no Brasil não resulta da

6
Idem. p. 674.
7
Idem. p. 677.

855
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

superação dos problemas do ideal meritocrático; o cenário brasileiro não é em nada melhor ao
cenário de países como França, EUA e Inglaterra.
Investigações sobre o universo dos concursos públicos demonstram fatores de
influência sobre as chances de aprovação que contrariam o conceito de meritocracia. Questões
como renda familiar, grau de escolaridade e local de residência são determinantes para as
possibilidade de aprovação em certame 8.
Fernando de Castro Fontainha et al (2014) realizaram pesquisa estatística nos editais
de 698 processos seletivos ocorridos entre os anos de 2001 e 2010 através de vários recortes
distintos, mas sempre focando nos editais, enquanto projetos das instituições recrutadoras; não
apenas como documentos jurídicos que estabelecem as regras de realização dos certames, mas
principalmente como “fontes de discursos institucionais” 9, retirando dos mesmos o perfil de
candidato que as instituições desejam empregar em seus quadros.
Através do estudo verificou-se que, em relação aos critérios para seleção de
profissionais 10, virtualmente todos se valem de prova de múltipla escolha e a maioria também
utilizam provas discursivas e de títulos. Exames médico, psicológico e de vida pregressa
foram encontrados em uma minoria dos concursos. A experiência do candidato com as
funções do cargo que pretende ocupar foi aferida em apenas 4,3% dos concursos e nenhum
dos quase 700 certames aplicou prova prática para avaliar a capacidade de desempenho das
funções típicas da carreira.
Além disso, estudo identificou uma incongruência chamativa: nos concursos
estudados, os profissionais com título de mestrado percebiam menos da metade dos
vencimentos dos profissionais com graduação. Profissionais com doutorado também ganham
menos que os graduados, embora a diferença fosse menor (cerca de 20% menos) 11, indicando
que o grau de titulação não é fator para fixação de salário, em clara contradição à lógica da
meritocracia escolar.
Realizado esse estudo, os autores expõem uma “ideologia concurseira” baseada na
constatação de que “os certames recrutam os mais habilidosos, competentes e aptos a fazê-
12
los” . De fato, da forma como são organizados, os certames privilegiam sobremaneira o

8
Idem. p. 680.
9
Idem. p. 682.
10
Idem. p. 694-695.
11
Idem. p. 693.
12
Idem. p. 682.

856
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

domínio do conteúdo bibliográfico proposto, cobrado na forma de questões aplicadas em


prova “que sequer emulam ou simulam contextos análogos aos que [o candidato] enfrentará
na carreira” 13.
Como o conteúdo cobrado não possui necessariamente vínculo com a atividade a ser
desenvolvida, o concurso público torna-se um fim em si mesmo, aferindo basicamente o grau
de adaptabilidade do candidato às condições impostas pelo edital, sem a necessária garantia
de que os aprovados são os mais aptos a desenvolverem a contento as funções que deverão
ocupar.
Aliando-se essa constatação à realidade evidenciada pelos estudos sobre o perfil dos
candidatos aprovados, tem-se que os concursos públicos, tal como aplicados no Brasil,
apresentam as mesmas fraquezas e limitações inerentes à ideologia meritocrática, mas não
alcançam o resultado proposto por essa ideologia. Em outras palavras, os concursos públicos
não são capazes de equalizar eficazmente as chances de sucesso de candidatos com diferentes
condições socioeconômicas e também não aprovam os candidatos de maior “talento” para o
exercício da função pública.

Ao contrário do que se pode supor, os editais não expressam uma vontade, mas
uma ideologia que legitima os funcionários públicos e orienta os concurseiros.
Entender esses instrumentos em termos políticos permite compreender a complexa
ligação entre as instituições e as entidades organizadoras e entre os candidatos e o
mercado de cursinhos. 14.

Conforme indicado, a situação teratológica criada pela ideologia concurseira é


potencializada pela criação e expansão de um mercado de produtos e serviços de preparação
para realização de concursos, que aderiram integralmente a tal ideologia e propagam uma
cultura autorreferenciada de memorização do conteúdo cobrado que se adapta ao perfil da
instituição recrutadora e da instituição organizadora do certame. Assim, por exemplo, uma
norma é constitucional ou inconstitucional a depender do órgão que se pretende integrar e a
corrente doutrinária correta corresponde àquela defendida pelos membros da banca
avaliadora.

13
Idem. p. 695.
14
Idem. p. 683-684.

857
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2. A MASSIFICAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO E SUA SUBORDINAÇÃO À


ÓTICA DOS CONCURSOS PÚBLICOS

Em 1964 havia 61 cursos de Direito no Brasil. Dez anos depois esse número dobrou:
eram 122 cursos em 1974 15. Quase duas décadas à frente, em 1991, percebia-se um pequeno
aumento ao alcançarmos 165 faculdades de Direito credenciadas. Repetindo novamente o
intervalo de vinte anos, tem-se que, em 2011 o Brasil contava com 1.174 cursos, um
16
crescimento de 612% . Em 2015, uma última atualização dá conta de 1.280 cursos de
graduação em Direito 17.
Paralelamente a esses dados, são recorrentes as notícias sobre os baixos índices de
aprovação no exame nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que ficou em 22% no XX
Exame (2016) e chegou a apenas 15% no XXI Exame (2017). Além disso, a entidade
recomenda apenas 142 faculdades de Direito em 2016 18.
Não se defende a utilização do exame da OAB como parâmetro para aferição de
qualidade, tendo em vista a qualidade do próprio modelo de provas, critérios de avaliação e
correção etc. Porém, se impõe a correlação entre a proliferação dos cursos de Direito e a
percebida baixa qualidade da formação jurídica.
Conforme se observa pelos dados acima, a partir da década de 1990 houve um
investimento maciço na criação de novos cursos de Direito. Esse incremento na oferta de
cursos de graduação pode ser creditado ao modelo liberal de ensino para fins de suprir as
necessidades do mercado.
A graduação em Direito foi valorizada não apenas por ser requisito para investidura
em cargos públicos, mas também porque seu currículo engloba conteúdo cobrado nos
certames. Além disso, fomentou-se todo um mercado de preparação para concursos públicos,
como cursos preparatórios e material didático específico.
Conforme a oferta de cursos jurídicos crescia para atender a demanda por
preparação para concursos públicos, também se configurava a subordinação do ensino

15
MARTÍNEZ. “A evolução...”.
16
Disponível em: <http://www.jb.com.br/pais/noticias/2011/06/17/numero-de-faculdades-de-direito-chega-a-
mais-de-mil/>. Acessado em 28 set. 2017.
17
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-set-06/segunda-leitura-excesso-faculdades-direito-implodem-
mercado-trabalho>. Acessado em 28 set. 2017.
18
Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/29187/oab-entrega-a-142-faculdades-selo-de-qualidade-em-
ensino-de-direito>. Acessado em 28 set. 2017.

858
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

jurídico a este fim. As frequentes confluências entre professores de graduação, professores de


cursos preparatórios, integrantes de bancas organizadoras, autores de livros doutrinários e
autores de livros específicos para concursos evidenciam essa relação perniciosa. Nas palavras
de Lênio Streck:

É um círculo vicioso e não virtuoso. Os concursos repetem o que se diz nos


cursinhos, um conjunto de professores produz obras que são indicadas/utilizadas
nos cursos de preparação, que por sua vez servem de guia para elaborar as questões
que são feitas por aqueles que são responsáveis pela elaboração das provas
(terceirizados — indústria que movimenta bilhões e os próprios órgãos da
administração pública) 19.

Também é interessante considerar o relator de Geraldo Prado sobre o tema:

Ao mesmo tempo, o intenso recrutamento de profissionais da área jurídica,


impulsionado pela expansão das vagas no setor público em virtude da crescente
jurisdicionalização das demandas, a reclamar mais juízes, promotores de justiça,
defensores públicos e delegados de polícia (na esfera criminal) e mais concursos,
realizados periodicamente, fomentou o mercado dos cursos preparatórios para
concurso público.
Nestes cursos, por sua vez, crescia a demanda por “professores” cuja expertise era
avaliada pelo sucesso em “ser aprovado em um concurso público”, em um círculo
vicioso que funcionava a partir do sucesso dos respectivos profissionais medido
pela citada aprovação prévia em um concurso público da área e ainda pela
capacidade de aprovar alunos em concursos similares.
(...)
Ser magistrado, por exemplo, qualificava mais alguém para ser professor em um
curso preparatório para concursos do que ser mestre, doutor ou livre docente na
disciplina, embora advogado 20.

Encontra-se fundamento na obra de Pierre Bordieu, que divide o espaço social em


campos dotados de certa autonomia e que funcionam de acordo com estruturas e critérios
próprios. Os campos são compreendidos como espaços de disputa de poder, havendo
posições dominantes e dominadas que concorrem pelo domínio de sentidos e significados e
que se valem de diferentes estratégias de ação.
Nesse contexto de disputa deve-se utilizar a noção de capital, que não se limita ao
capital econômico, mas também inclui capital cultural, que pode ser entendido como os

19
STRECK, Lenio Luiz. Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis!. 2013. Revista Consultor
Jurídico. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-fev-28/senso-incomum-concursos-publicos-nao-
perguntas-imbecis>. Acessado em 26 set. 2017.
20
PRADO, Geraldo. Campo jurídico e capital científico: o acordo sobre a pena e o modelo acusatório no Brasil –
transformação de um conceito. In: PRADO, Geraldo; MARTINS, Rui Cunha; CARVALHO, Luis Gustavo
Grandinetti Castanho de. Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. Madrid:
Marcial Pons, 2012. p. 43.

859
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

títulos, a experiência, o conhecimento, e capital social, correspondente à rede de


relacionamento dos agentes. Cada campo valoriza as diversas formas de capital de sua própria
maneira, de acordo com interesses específicos.
Assim, a relação entre a demanda por preparação para concurso público e a
formação jurídica dos cursos de graduação em Direito é feita a partir da perspectiva de
interação entre diversos campos sociais, especialmente o campo jurídico e seus subcampos,
que Bordieu define como o universo de agentes e instituições que produzem, reproduzem e
difundem o conhecimento jurídico. É um espaço social onde se disputa “o direito de dizer o
direito”, ou seja, a “correta” interpretação e a aplicação do direito.
A vantagem do conceito de campo é levar em consideração abertamente a influência
de fatores externos ao discurso científico produzido. Especificamente em relação à formação
jurídica dos graduandos em Direito, pode-se afirmar que determinados agentes do campo
jurídico disputam pelo domínio da influência nessa formação. Geraldo Prado afirma que, na
década de 1990, os “cursinhos” preparatórios para concurso público representavam a
21
“principal Escola Jurídica no Brasil” justificando sua opinião na colonização das
publicações jurídicas por obras voltadas a concursos públicos, que compartilhavam com estes
a mesma estrutura de perguntas e respostas, as quais dispensavam um juízo crítico do
conteúdo e omitiam do graduando intensos debates doutrinários.
É possível identificar a ocorrência de um processo de colonização do ensino jurídico
como um todo pelo mercado dos concursos públicos, na medida em que se percebe situações
como a do próprio material didático utilizado nos cursos de graduação se confundindo com as
publicações voltadas à aprovação em concurso público, ou a divulgação do ranking de cursos
de graduação conforme a taxa de aprovação de seus graduandos no exame da OAB. Também
é válido apontar para a criação de cursos de Direito derivados de cursos preparatórios para
concursos públicos e voltados para “as carreiras públicas”, com intercâmbio entre professores
entre os cursos de graduação e preparatórios 22.

21
Idem. p. 31.
22
Como exemplo: Faculdade de Direito Damásio de Jesus, Faculdade de Direito do Instituto Processus,
Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. SANTOS, Aline
Sueli de Salles. A formação acadêmica em direito e a preparação para concursos públicos: conexões e disputas no
interior do campo jurídico. In: Anais completos do VIII Congresso Nacional da Associação Brasileira de Ensino
do Direito (ABEDi) / Associação Brasileira de Ensino do Direito. 1ª ed. Brasília: Associação Brasileira de Ensino
do Direito, 2015. p. 80.

860
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Aline Santos também visualiza um “espaço de disputa” na formação do bacharel


ocasionado pela necessidade de aprovação em concurso público ou exame específico da OAB
23
para que o bacharel possa exercer uma profissão jurídica . O mercado de cursos
preparatórios para concurso cresceu em conjunto com o número de certames realizados e essa
lógica liberal acabou por interferir no foco da formação jurídica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível verificar a manutenção de uma crise do ensino jurídico, cujas origens


remontam à implantação das primeiras faculdades de Direito no país, que importaram o
modelo de Portugal. Esse modelo de ensino tradicional é caracterizado por posições bem
marcadas. De um lado o professor, detentor de todo o conhecimento, que expõe em sala-de-
aula o conteúdo que deve ser assimilado acriticamente pelo aluno, a quem cabe apenas a
reprodução do conhecimento recebido. Trata-se então de um conhecimento dogmático e
hermético, fechado em si mesmo, que não dialoga com outros ramos do saber ou com o meio
em que o aluno se insere.
Essa característica foi potencializada com a previsão do concurso público como
método de obtenção de cargo público e com a implementação do exame da OAB para
habilitação como advogado. Dessa forma o bacharel se vê impedido de exercer uma profissão
jurídica sem antes passar por uma seleção, atualmente baseada em uma lógica própria.
Especificamente em relação aos concursos públicos, verificou-se que os mesmo são
organizados para classificar candidatos conforme suas aptidões para realizarem provas de
múltipla escolha e discursivas com base em conteúdo selecionado por bancas. Esse universo
hermético é construído com base em uma ideologia de meritocracia escolar onde se deve
internalizar um “saber neutro”. Com a expansão do ensino e sua subornação aos ditames do
mercado de preparação para concursos, há um aprofundamento do modelo liberal e
tradicional.
O ensino jurídico se mostra, assim, deficitário na preparação do corpo discente para
a vida prática, que não é aparelhado para lidar com os conflitos existentes no mundo jurídico.
É um modelo de ensino totalmente ligado à ideia de mercado, orientado então aos concurso

23
Idem. p. 81-82.

861
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

públicos, os quais possuem lógica interna própria e reproduzem os valores negativos da


sociedade capitalista.

REFERÊNCIAS

ADEODATO, Joao Mauricio Leitao. A OAB e a massificação do ensino jurídico. In: SILVEIRA, Vladimir
Oliveira da; SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini; COUTO, Monica Bonetti (Org.). Educação
jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013. Contém bibliografia. p. 565 - 576.

BARROS, Marco Antonio de. Ensino do direito: dos primordios a expansao pelo setor privado. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 832, p. 83-99., fev. 2005.

BASTOS, Aurelio Wander. A crise brasileira e perspectivas do ensino jurídico. Sequência, Florianópolis, v. 14, n.
27, p. 49-57., jul. 1993.

_____. O ensino jurídico no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2000.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

DANTAS, Santiago. A educação jurídica e a crise brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1955. p. 16.

HADDAD, Fernando. A expansão do ensino jurídico e o desafio da qualidade. In: FACHIN, Luiz Edson;
TEPEDINO, Gustavo José Mendes; CAMPELO, Jose Norberto Lopes (Co-autor). Anais da XX Conferencia
Nacional dos Advogados: estado democrático de direito x estado policial: dilemas e desafios em duas décadas
da Constituição. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2009.

FINCATO, Denise Pires. A crise do ensino jurídico. Propostas de superação a partir dos cursos jurídicos.
AJURIS, Porto Alegre, v. 30, n. 90, p. 299-312., abr. 2003.

FONTAINHA, Fernando de Castro; GERALDO, Pedro Heitor Barros; VERONESE, Alexandre; ALVES,
Camila Souza. O concurso público brasileiro e a ideologia concurseira. Revista Jurídica da Presidência Brasília
v. 16 n. 110 Out. 2014/Jan. 2015 p. 671-702.

GENTIL, Plinio Antonio Britto. A (in) eficiência da justiça e a preparação do bacharel. In: SILVEIRA, Vladimir
Oliveira da; SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini; COUTO, Monica Bonetti (Org.). Educação
jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013. Contém bibliografia. p. 415 - 429.

MARTÍNEZ, Sérgio Rodrigo. A evolução do ensino jurídico no Brasil. Disponível em:


<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/29074-29092-1-PB.pdf>. Acessado em 28 set. 2017.

PRADO, Geraldo; MARTINS, Rui Cunha; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Decisão
judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. Madrid: Marcial Pons, 2012.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei; MAROCCO, Andréa de Almeida Leite. Formação profissional, núcleo de
prática jurídica e método earp como alternativa para as práticas simuladas. In: Direito, educação, ensino, e
metodologia jurídicos. Organização CONPEDI/UFSC; coordenadores: Horácio Wanderlei Rodrigues, Samyra
Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches, Alexandre Kehrig Veronese. Aguiar. – Florianópolis : CONPEDI, 2014.
Disponível em: <http://publicadireito.com.br/publicacao/ufsc/livro.php?gt=137> Acessado em 28 set. 2017.

SANTOS, Aline Sueli de Salles. A formação acadêmica em direito e a preparação para concursos públicos:
conexões e disputas no interior do campo jurídico. In: Anais completos do VIII Congresso Nacional da
Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi) / Associação Brasileira de Ensino do Direito. 1ª ed.
Brasília: Associação Brasileira de Ensino do Direito, 2015. p. 75-84.

862
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

STRECK, Lenio Luiz. Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis!. 2013. Revista Consultor Jurídico.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-fev-28/senso-incomum-concursos-publicos-nao-perguntas-
imbecis>. Acessado em 26 set. 2017.

863
ENTRE O TECNÓLOGO E O JURISTA

LOPES, Ricardo Ferraz Braida


Estudante de doutorado do Programa de Sociologia e Direito da UFF
Professor de Direito da FUPAC, Ubá, MG, e Estácio de Juiz de Fora, MG
MEIRELLES, Delton Ricardo Soares
Professor adjunto do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense. Integra o corpo
docente permanente do Programa de Pós-Gradução em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF)

RESUMO

Considerando a oportunidade atual sobre o debate da proliferação dos cursos de graduação em Direito
no Brasil e também a abertura dos cursos de tecnólogos em serviços jurídicos, pergunta-se: qual é o
objetivo do estudante em Ciências Jurídicas e o que se espera do curso de Direito? Objetiva-se, assim,
destacar parte das intenções dos discentes nos cursos que abordam o sistema judicial. Para tanto,
procede-se a um levantamento em uma faculdade particular na cidade de Ubá, Minas Gerais,
“Fundação Presidente Antônio Carlos”, com um questionário direcionado para 78 alunos que estão nos
primeiros e últimos períodos. A pesquisa será direcionada a traçar as expectativas dos que ingressam e
dos que finalizam o curso. Desse modo, observa-se a mudança de projeções futuras, o que permite
indagar a necessidade e relevância da expansão dos cursos de Direito e a criação de cursos técnicos
para atenderem a demanda dos mercados e atuações profissionais contemporâneos.

Palavras-Chave. Ensino. Direito. Tecnólogo

ABSTRACT

Considering the current opportunity on the discussion about the proliferation of universities of Law in
Brazil and the opening of the certificate programs in legal services, we ask: what is the objective of the
student in Law and what is expected of the course? It aims to highlight some of the intentions of the
students in the courses that approach the judicial system. To do so, a survey was carried out in the city
of Ubá, Minas Gerais, at "Presidente Antônio Carlos Foundation". The research was directed to
discover the expectations of those who enter and those who finish the course. In this way, we can
observe the change in future projections, which allows us to investigate the need and relevance of the
expansion of Law courses and the creation of certificate programs to meet the demand of job markets
and professional performances.

Keywords. Education. Law. Certificate

864
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Considerando a oportunidade atual sobre o debate da proliferação dos cursos de


graduação em Direito no Brasil e também a recém-possibilidade de expansão dos cursos de
tecnólogos em serviços jurídicos, pergunta-se: qual é o objetivo do estudante em Ciências
Jurídicas e o que se espera do curso de Direito? Além disso, pode-se indagar: esses cursos
ajudam no desenvolvimento de um ofício específico?
Objetiva-se, assim, destacar parte das intenções dos discentes nos cursos que
abordam o sistema judicial. Para tanto, procede-se a um levantamento em uma faculdade
particular na cidade de Ubá, Minas Gerais, “Fundação Presidente Antônio Carlos”, com um
questionário direcionado para 78 alunos que estão no primeiro, segundo, oitavo e décimo
períodos. Quanto ao tipo, o questionário aplicado foi fechado, formado por sete perguntas e
uma última discursiva com a possibilidade do entrevistado apresentar a sua opinião. Além
disso, o questionário foi direto e também não assistido.
A pesquisa foi direcionada a traçar as expectativas dos que ingressam e dos que
finalizam o curso. Desse modo, buscou-se observar a mudança de projeções futuras. Contudo,
a hipótese inicial não se confirmou, conforme será destacado nas conclusões do presente
trabalho. Assim, diante do resultado obtido, foi possível indagar, a partir de novos pontos de
vista, a necessidade e a relevância da expansão dos cursos de Direito e a criação de cursos
técnicos para atenderem a demanda dos mercados e atuações profissionais contemporâneos.

1. O CURSO DE TECNÓLOGO EM SERVIÇOS JURÍDICOS

Uma polêmica ronda o universo jurídico no Brasil. Após uma suspensão temporária
e a consequente reabertura, no dia 4 de outubro de 2017 foi publicado no Diário Oficial da
União (D.O.U.) o reconhecimento pelo Ministério da Educação (MEC) do curso a distância
de Gestão de Serviços Jurídicos e Notariais (Tecnológico) do Centro Universitário
Internacional (Uninter), com três mil vagas. A contragosto, a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), que discorda publicamente da iniciativa desde 2015, ingressou com uma ação
civil pública contra o reconhecimento do curso (REVISTA CONSULTOR JURÍDICO,
2017).
Pelo menos três instituições de ensino do país já oferecem cursos de tecnologia em
Serviços Jurídicos, na modalidade a distância. O Centro Universitário Internacional (Uninter)

865
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

oferece desde 2014 aulas de Gestão de Serviços Jurídicos e Notariais. A sua grade curricular
inclui legislação trabalhista, mediação e arbitragem, registro de imóveis e competências do
oficial de Justiça (LUCHETE, 2017)
O site da Uninter anuncia: “O curso prepara você para um excelente desempenho
nas carreiras parajurídicas do Poder Judiciário, cartórios judiciais e extrajudiciais,
tabelionatos, escritórios de advocacia, esfera policial, departamentos jurídicos e de recursos
humanos de empresas, assessoria parlamentar, ou como profissional autônomo” (in
LUCHETE, 2017).
Portanto, o curso de tecnólogo tem o intuito de encaminhar ao mercado de trabalho
pessoas aptas a auxiliar advogados, promotores e juízes, por exemplo, além de concursos que
não exigem a formação específica em Direito. É preciso destacar que a preparação do
tecnólogo é distinta da de um bacharel em Direito. Sua formação se dá em dois anos, mas o
diploma é também considerado de ensino superior.

2. A CIDADE, A FACULDADE E O QUESTINÁRIO

Nessa etapa iremos delimitar o campo de análise, apresentando a cidade de Ubá,


Minas Gerais, e a Faculdade em que foi aplicada a presente pesquisa - Fundação Presidente
Antônio Carlos. Em um segundo momento, serão destacados os resultados das perguntas
direcionadas aos estudantes do curso de Direito, trazendo algumas observações sobre os
dados quantitativos.

2.1. FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS (FUPAC) DE UBÁ, MG

O município de Ubá, pertencente à mesorregião da Zona da Mata, encontra-se no


estado de Minas Gerais, mais precisamente a 280 km da Capital Belo Horizonte. Com uma
população estimada em 113.300 mil habitantes, seu PIB (Produto Interno Bruto) no ano de
2010 foi de R$ 13.564,99 (IBGE). Ubá é ainda o centro econômico da sua microrregião e de
microrregiões próximas. É considerado o principal polo moveleiro do estado e o terceiro
maior do país.
De acordo com o site institucional da universidade, a Fundação Presidente Antônio
Carlos (FUPAC) de Ubá é uma das unidades mais antigas da história da Universidade
Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), que teve início em 1963, em Barbacena, Minas Gerais.

866
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Em uma contínua expansão, a Fundação Presidente Antônio Carlos passou a estar presente na
cidade de Ubá no ano de 1970. Atualmente a FUPAC/UNIPAC está presente em mais de 160
cidades de Minas Gerais, com cerca de 45 mil universitários, oferecendo mais de 200 cursos
de graduação, e contando ainda com o Ensino Fundamental, Médio, pós-graduação lato sensu
em diversas áreas do conhecimento, além de pós-graduação stricto sensu, em Administração,
Direito, Comunicação e Tecnologia e Educação e Sociedade.
Mais precisamente, a Faculdade de Direito da FUPAC de Ubá teve sua primeira
turma de ingressos no ano de 1997. Atualmente a unidade conta com cerca de 320 alunos na
graduação de Direito. De acordo com a última avaliação (2017) do MEC, o curso de Direito
recebeu conceito 4, o que denota um desempenho satisfatório.

2.2. QUESTIONÁRIO

Entre os dias 19/10/2017 a 25/10/2017 foi aplicado um questionário a 78 alunos de


Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Ubá, Minas Gerais, com o intuito de
proceder a um levantamento sobre suas opiniões acerca da criação de cursos para Tecnólogo
em Serviços Jurídicos. O universo de alunos foi compreendido entre os que ingressaram há
pouco tempo (1 º e 2º períodos) e aqueles que estão na etapa final (8º e 10º períodos).
Quanto ao tipo, o questionário aplicado foi fechado, formado por sete perguntas e
uma última discursiva com a possibilidade do entrevistado apresentar a sua opinião. Além
disso, o questionário foi direto e também não assistido.
Assim, pode-se destacar abaixo as respostas obtidas:

2.2.1. QUANTOS ANOS VOCÊ TEM?

Gráfico 1. Idade

867
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Os dados indicam uma média de idade de aproximadamente 23 anos. O maior


número de entrevistados também possuem 23 anos (16,7%). Os mais novos (10 ao todo)
possuem 18 anos, o entrevistado mais velho possui 54 anos.

2.2.2. QUAL É O SEU ATUAL PERÍODO?

Gráfico 2. Período

De acordo com o levantamento, 58,9% (8º e 10º períodos) dos entrevistados são os
potenciais egressos. Enquanto que 41,1% (1º e 2º períodos) são os ingressos no curso.

2.2.3. ALÉM DAS DISCIPLINAS CURSADAS NA FACULDADE DE DIREITO,


QUE OUTRAS ATIVIDADES CONSOMEM CONSIDERAVELMENTE SEU DIA ÚTIL?

Gráfico 3. Atividades

Entre o universo de alunos entrevistados se destaca a característica de que uma


grande parcela (39,8%) trabalha em uma atividade que não está ligada ao ramo do Direito.
Além disso, é preciso destacar que 33,3% atuam em estágios remunerados, somando um total
de 73,1% de discentes que percebem alguma renda durante o curso.

868
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2.2.4. QUAL É O SEU OBJETIVO APÓS GRADUAR-SE EM DIREITO?

Gráfico 4. Objetivos

Quanto ao objetivo dos estudantes após graduarem-se, 33,3% assinalaram a hipótese


de prestar concursos para áreas administrativas e cartoriais (17,9%), além das carreiras
policiais (15,4%). É importante destacar esse dado, pois tais concursos não exigem a
formação específica em Direito.
Ressalta-se, ainda, que 11,6% dos entrevistados não sabem até o momento qual o
objetivo com a possível formação em Direito.

2.2.5. VOCÊ SABIA QUE O BRASIL POSSUI CERCA DE 1.240 CURSOS


SUPERIORES DE DIREITO? COM ESSE NÚMERO, O PAÍS SE CONSAGRA COMO A
NAÇÃO COM MAIS CURSOS DE DIREITO DO MUNDO TODO. A SOMA TOTAL DE
FACULDADES DE DIREITO NO MUNDO CHEGA A 1.100 CURSOS. AS
INFORMAÇÕES SÃO DE 2017 E FORAM DIVULGADAS NO BLOG LEIS E NEGÓCIOS
DO PORTAL IG.

Gráfico 5. Número de faculdades de Direito

869
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nessa etapa destaca-se o pouco conhecimento sobre a expansão dos cursos de


Direito no Brasil e, consequentemente, o seu mercado profissional. Assim, pode-se apreender
que 80,8% dos estudantes ignoram a realidade concreta da hiperinflação dos cursos de
Direito, realidade ao qual estão inexoravelmente inseridos.

2.2.6. VOCÊ FICOU SABENDO DA POSSIBILIDADE DE CRIAÇÃO DO CURSO


DE TECNÓLOGO EM SERVIÇOS JURÍDICOS?

Gráfico 6. Criação do curso de tecnólogo em Serviços Jurídicos

Ao contrário da pergunta anterior, 50% dos graduandos afirmaram ter ciência da


possibilidade de criação do curso de tecnólogo em Serviços Jurídicos, o que pode denotar
uma atenção especial a esse novo campo de ensino.

870
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2.2.7. O TECNÓLOGO PODE SE FORMAR EM DOIS ANOS E SAI COM


DIPLOMA CONSIDERADO DE ENSINO SUPERIOR. O CURSO PREPARA VOCÊ PARA
UM DESEMPENHO NAS CARREIRAS "PARAJURÍDICAS" DO PODER JUDICIÁRIO,
CARTÓRIOS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS, TABELIONATOS, ESCRITÓRIOS DE
ADVOCACIA, ESFERA POLICIAL, DEPARTAMENTOS JURÍDICOS E DE RECURSOS
HUMANOS DE EMPRESAS, ASSESSORIA PARLAMENTAR, OU COMO
PROFISSIONAL AUTÔNOMO. CONTUDO HÁ RESTRIÇÃO NA ATUAÇÃO DAS
CARREIRAS JURÍDICAS, COMO JUIZ, PROMOTOR, ADVOGADO, DEFENSOR
PÚBLICO E DELEGADO. SABENDO DESSAS INFORMAÇÕES, VOCÊ ESCOLHERIA
O CURSO DE TECNÓLOGO EM SERVIÇOS JURÍDICOS AO INVÉS DO CURSO DE
DIREITO?

Gráfico 7 – Entre o tecnólogo e o jurista

Dentre os entrevistados, 9% responderam afirmativa sobre a possibilidade de


escolha do curso de Tecnólogo em Serviços Jurídicos ao invés do curso de Direito. Contudo,
a maioria esmagadora (93%) negou a possibilidade de trocar a graduação em Direito por um
curso que oferece maiores restrições profissionais.
Há que se destacar que dentre os 7 (o que equivale a 9%) que assinalaram
positivamente, três são do 2º período; dois do 8º período; e dois do 10º período.
Contudo, é preciso ressaltar que, incoerentemente, apenas três entrevistados
afirmaram na pergunta 2.2.4 que desejariam a área administrativa ao formarem e escolheram,
por fim, o curso de tecnólogo.

871
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2.2.8. VOCÊ TEM ALGUMA OPINIÃO FORMADA SOBRE O TEMA? QUER


DEIXAR A SUA OPINIÃO?

Nesta última parte, aberta à participação dos alunos, somente 19 entrevistados


apresentaram alguma opinião. Abaixo seguem algumas posições favoráveis e contrárias à
criação do curso de tecnólogo.
Posições contrárias:

“Já existem bacharéis de direito e advogados de sobra. Só inflacionaria o mercado e


pioraria os ganhos dos profissionais já formados e capacitados. O ideal é efetivar a
fiscalização das faculdades de péssima qualidade que se multiplicam
cotidianamente. Essa proposta mostra apenas mais uma face do nosso "jeitinho
brasileiro", mais uma invenção política sem lógica. Quem se beneficia com essa
falsa democratização da educação? Qual vantagem tem o aluno da escola pública
sair com um diploma se a faculdade não prepara um profissional minimamente
qualificado? Não me assustaria se aprovada, só seria mais uma jabuticaba...”
(Estudante do 8º período)

Acho que os 05 anos que estudamos o Direito não é suficiente para nos qualificar
de forma adequada para o mercado de trabalho, imagina profissionais formando
com muito menos tempo. Sem contar que são vários sacrifícios para enfrentar uma
faculdade durante 05 anos, para criarem um curso que teoricamente o aluno teria a
mesma qualificação de quem fez um curso de Direito regular. (Estudante do 10º
período)

Acho o curso de TECNÓLOGO extremamente abusivo e uma ofensa a nós


estudantes e bacharelados em DIREITO. Nosso curso vai ser desvalorizado e cabe
a OAB tomar medidas extremas a esse curso. (Estudante do 8º período)

Após o curso de direito ser sucateado havendo a possibilidade de qualquer


faculdade abrir o curso e o ingresso de inúmeros profissionais desqualificado, o
MEC insiste em demonstrar seu descaso com a função judiciaria e cria o curso de
tecnólogo. (10º estudante do período)

Posições favoráveis:

Acho que o curso de tecnólogo é válido para aqueles que fazem o curso de Direito
mas na verdade não pensam em seguir nenhuma carreira jurídica, mas querem
ampliar seus conhecimentos e consequentemente as oportunidades de emprego.
(Estudante do 8º período)

Ao meu ver depende muito da condição social do estudante. Exemplo: conheço


várias pessoas que optam por cursos técnicos por não terem condições de cursar
uma graduação regular. Não só isto, muitos saem de casa para trabalhar o dia todo,
e manter uma casa é complicado. Portanto, se estes estudantes tivessem condições,

872
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

e tempo; com certeza fariam o curso em uma faculdade ou até mesmo em uma
federal. (Estudante do 10º período)

Creio que o curso para técnico seria uma opção mais viável para pessoas com um
tempo mais curto e que não tenham interesse nas grandes oportunidades que o
direito pode proporcionar. (Estudante do 2º período)

Superinteressante a possibilidade, visando buscar a celeridade na formação dos


acadêmicos que possuem interesse em atuar nos cargos que possibilitam a atuação
pelo curso tecnólogo. (Estudante do 10º período)

Acredito que para a área jurídica, em regra, não haja uma substancial diferença
entre cursar a graduação em direito ou tecnólogo para aqueles que desejam prestar
concurso público nas áreas permitidas para ambos os cursos. Haja vista que os
concursos são muito concorridos e o que diferencia os candidatos é a dedicação nos
estudos direcionados para o concurso que pretende. (Estudante do 10º período)

CONCLUSÕES

Em derradeiro, cabe na presente oportunidade apresentar considerações e conclusões


sobre a pesquisa, refletindo criticamente o método adotado e a hipótese inicial da pesquisa.
Como já exposto, o universo de amostragem foi bastante reduzido, o que delimita uma
apreensão mais ampla sobre o tema. Contudo, uma interpretação pode se destacar.
Quando iniciada a pesquisa, a hipótese seria a de que os alunos que estão nos
últimos períodos refletiriam sobre a hiperinflação dos cursos de Direito no Brasil e a saturação
do mercado de trabalho. Assim, analisando sobre suas possíveis atuações profissionais no
futuro, apresentariam uma maior aceitação sobre a possibilidade de cursar uma graduação de
Tecnólogo em Serviços Jurídicos ao invés de Direito, já que grande parte dos entrevistados
pretende prestar concursos para áreas que não exigem a graduação específica em Direito.
Imaginava-se que o esgotamento de cinco anos de curso e a iminente perspectiva sobre a
entrada em um mercado de trabalho extremamente concorrido levaria a uma conclusão
pragmática: capacitar-se para as mesmas oportunidades (concursos para áreas administrativas
e carreiras policiais) em um tempo menor (2 anos).
Contudo, essa hipótese não se confirmou. A partir das repostas, principalmente das
opiniões apresentadas, pode-se depreender que quanto mais próximo da conclusão de curso,
mais contundente é a crítica sobre a possibilidade de abertura do curso de Tecnólogo em
Serviços Jurídicos. Dessa informação, é possível perceber que o esforço de graduar-se em

873
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Direito gera também um discurso de reserva de mercado e uma perceptível indignação que se
transforma em críticas à política de ensino das ciências jurídicas.
Talvez isso explique em parte a resistência de algumas instituições, como a OAB, à
abertura do curso de Tecnólogo em Serviços Jurídicos. Talvez isso denote uma contradição na
própria pesquisa. A certeza é a de que o estudo e o debate necessitam de mergulhos reflexivos
mais profundos.

REFERÊNCIAS

FUNDAÇÃO PRESIENTE ANTÔNIO CARLOS. Sobre a FUPAC. Disponível em


http://www.ubafupac.com.br/pagina/2/sobre_a_unipac

IBGE. Disponível em
https://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=_PT&codmun=316990&search=||infogr%E1ficos:-dados-
gerais-do-munic%EDpio

LEIS E NEGÓCIOS. In Portal IG. Disponível em https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/brasil-tem-


mais-cursos-de-direito-do-que-todos-os-outros-paises-do-mundo-juntos/

LUCHETE, Felipe. Conselho do MEC libera cursos de tecnólogo e técnico em Serviços Jurídicos. Consultor
Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-abr-10/conselho-mec-libera-tecnologo-tecnico-
servicos-juridicos

REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. OAB vai à Justiça contra curso superior de tecnólogo em Serviços
Jurídicos. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-out-23/oab-justica-curso-tecnologo-servicos-
juridicos.

874
AÇÕES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE:
RETRATOS DE UMA PESQUISA SOBRE
A INSERÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS EM UMA
FACULDADE PÚBLICA DE DIREITO

SANTOS, Erli Sá dos


Estudante de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF
ALMEIDA, Matheus Guarino Sant’Anna Lima de
Estudante de graduação da Faculdade de Direito da UFF
PACHECO, Heloisa de Faria
Estudante de graduação da Faculdade de Direito da UFF

RESUMO

O presente artigo traz conclusões e reflexões de pesquisa realizada acerca da implementação das ações
afirmativas em uma Faculdade de Direito de uma universidade pública federal. A pesquisa se dividiu
em dois momentos: em uma primeira parte, a pesquisa consistiu na coleta e tabulação objetiva de
dados nos bancos públicos da universidade. Na segunda parte, a pesquisa buscou investigar a
percepção da comunidade acadêmica (graduandos, pós-graduandos, professores e servidores) sobre o
sistema de cotas, através de questionários semi-estruturados. Foram utilizados os referencias teóricos
da Análise do Discurso de matriz francesa. Os resultados da pesquisa apontam para a mudança no
perfil do corpo discente da faculdade, e aponta ainda dificuldades no combate ao racismo, no
sentimento de pertencimento dos alunos cotistas, e no silenciamento do debate sobre cotas na
Faculdade.

Palavras-Chave. Ações Afirmativas. Racismo. Silenciamento.

ABSTRACT

The following article brings conclusion and reflection about the search done onto the Federal
University Law school. The research has been devided in two topics: the first part consists in the
gathering and systemizing of public data from the university. In the second part, the research
investigated the academic community’s (undergraduates and graduated students, professors and staff)
perception about the quota system, through semi-structured questionnaires. For the purpose of this
article, theoretical references from French school of Discourse Analysis. Research results point to a
change in the student body profile, and also to challenges in combating racism, in the quota student’s
sense of belonging and in the silencing of quota debate in the University.

Keywords. Affirmative Actions. Racism. Silencing.

875
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto de pesquisa realizada entre os anos de 2015 e 2016, acerca da
implementação e recepção das ações afirmativas na Faculdade de Direito da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Mais precisamente, a pesquisa buscava investigar tanto dados
sobre o sistema de ações afirmativas implementado na UFF, quanto dados objetivos
relacionados às ações afirmativas na Faculdade de Direito desta universidade, quanto dados
subjetivos ligados às percepções dos diferentes seguimentos da comunidade acadêmica desta
faculdade quanto à implementação das ações afirmativas, compreendendo alunos de
graduação, pós-graduação, professores e servidores.
O sistema de reserva de vagas por cotas para o ingresso no ensino superior em
universidades federais foi implementado em seu modelo atual através da lei 12.711/2012, a
chamada lei de cotas. Anteriormente a ela, algumas universidades federais já adotavam outros
modelos de ações afirmativas para grupos minoritários, por critérios de renda ou raça e etnia.
Na UFF, havia anteriormente um sistema de acréscimo de pontos na nota do vestibular para
os autodeclarados pretos e pardos, sistema este que foi abandonado com a implementação da
lei atual.
Pela lei atual, são reservados, “em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos
de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (BRASIL,
2012a). Deste percentual, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes
oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e
meio). Ainda deste percentual, serão reservadas vagas aos autodeclarados pretos, pardos,
indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde a
universidade estiver situada, de acordo com o censo da Fundação Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Os outros 50% de vagas do total serão destinados aos
estudantes não cotistas, ou seja, aqueles que fazem o processo seletivo em ampla
concorrência.
Desta maneira, a reserva é realizada atualmente em quatro modalidades, de acordo
com o artigo 14 da Portaria nº 18, de 11 de outubro de 2012, do Ministério da Educação
(BRASIL, 2012b), que regula a aplicação da lei de cotas. A primeira modalidade (chamada
L1) engloba os candidatos com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário
mínimo que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. A segunda

876
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

modalidade (L2) engloba os candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, com


renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado
integralmente o ensino médio em escolas públicas. A terceira modalidade (L3) engloba os
candidatos que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio
em escolas públicas. E a quarta modalidade (L4) engloba os candidatos autodeclarados pretos,
pardos ou indígenas que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o
ensino médio em escolas públicas.
De acordo com o art. 8º do Decreto 7.824/2012, a implementação de 50% de reserva
de vagas se deu de maneira progressiva, sendo aplicada 12,5% de reserva de vagas a cada
ano, até agosto de 2016, quando houve a integralização da reserva de vagas. Desta maneira,
os períodos mais iniciais, apresentam maior quantidade de cotistas do que os períodos mais
avançados (aqueles próximos de concluir o curso).
A motivação inicial da pesquisa foi realizar uma investigação ampla sobre a inserção
e recepção do sistema de reserva de vagas na Faculdade de Direito da UFF, investigando
como a comunidade acadêmica entendia as mudanças na Faculdade a partir de sua
implementação, relacionando possíveis resultados desta política pública a questões como o
combate racismo, à inclusão, à diversidade e a formação educacional do profissional de
direito.
A pesquisa partiu de um entendimento pressuposto no senso comum de que a
Faculdade de Direito é considerado um ambiente geralmente elitista, conservador, opressor e
racista (percepção esta que acabou por ser corroborada pelos diversos depoimentos trazidos
na pesquisa), a pesquisa se justificava pela necessidade de gerar dados sobre a situação dos
ingressantes por ações afirmativas na Faculdade de Direito, sobre seus sentimentos de
pertencimento, e sobre a percepção de toda a comunidade acadêmica acerca de temáticas
ligadas à às ações afirmativas e ao racismo, além das mudanças que a Faculdade teria passado
com o decorrer da implementação do sistema de cotas.
A pesquisa foi realizada ao longo dos anos de 2015 e 2016, sob a coordenação do
professor Delton Meirelles. Participaram da pesquisa, de início, alunos voluntários, e ao longo
de 2016, durante os períodos de 2016.1 e 2016.2, alunos inscritos na disciplina optativa
“Grupo de pesquisa em Direitos Humanos, Governança e Poder”.
O presente artigo traz alguns dados e reflexões sobre a pesquisa, sendo dividido em
quatro partes. Na primeira, será explicada a construção da pesquisa, a maneira de coleta e

877
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

interpretação de dados, e algumas reflexões sobre eles. Na segunda parte, serão expostos e
analisados alguns dos dados objetivos coletados pela pesquisa, provenientes dos bancos
públicos de dados da Universidade, oriundos de dados cedidos pela coordenação de curso da
Faculdade de Direito, e coletados a partir dos questionários semi-estruturados. A terceira parte
realizará uma breve análise das respostas abertas dos questionários, sobre a percepção da
comunidade acadêmica sobre o sistema de cotas. Por fim o encerramento traz algumas
reflexões sobre o silenciamento do debate acerca do racismo e das ações afirmativas,
entendendo o silenciamento como a materialidade do silêncio. Tomando por base os
referenciais teóricos da Análise de Discurso de matriz francesa, através dos conceitos
desenvolvidos por Eni ORLANDI (1995), será apresentado o resultado de um esforço
interpretativo que buscou compreender os discursos apurados na pesquisa. Assim, com essa
base teórica, o silêncio no contexto universitário representa uma categoria que significa,
porque por trás dele há uma história, que possibilita sua compreensão.

1. A CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA

Como colocado, a pesquisa foi realizada entre os anos de 2015 e 2016 e contou com
diversas etapas. A primeira etapa, inicial, consistiu na coleta e tabulação objetiva de dados nos
bancos públicos da UFF e de dados fornecidos pela Coordenação do curso de Direito da UFF.
Primeiramente, foi realizado um mapeamento do corpo estudantil da UFF e das
formas de ingresso dos estudantes entre os anos de 2010 e 2015. Para o mapeamento, foram
utilizados dados públicos da Coordenação de Seleção Acadêmica da UFF (COSEAC-UFF) e
do SISU/ENEM1 do Ministério da Educação. Estes dados foram cruzados com dados
fornecidos pela Coordenação de Curso da Faculdade de Direito da UFF, que traziam
informações como CR (Coeficiente de Rendimento, média de notas do aluno ao longo do
curso), trancamento e reprovação de disciplinas, idade, abandono, nota de ingresso no ENEM.
Também foram obtidos dados gerais sobre notas de corte, notas de chamada na última
chamada, desistência de vaga, cancelamento2, porcentagem de alunos que continuam

1
SISU é o Sistema de Seleção Unificada para o ingresso no ensino superior, generalizado para a maior parte das
universidades brasileiras, através das notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), realizado
anualmente pelo Ministério da Educação.
2
Os cancelamentos foram descriminados em trancamentos por indeferimento de avaliação socioeconômica, por
alteração de matrícula, por mudança de curso, por rematrícula ou por solicitação oficial. Se realizados com os
dados do ano de 2017, também haveriam dados

878
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

cursando o curso e os que estão com a matrícula trancada, sendo todos estes dados
descriminados por semestre de ingresso e por forma de ingresso (cada tipo de reserva de
vagas ou ampla concorrência). Estes dados, conforme será demonstrado, nos ajudaram a
desfazer uma série de pré-concepções sobre o aproveitamento dos alunos ingressantes por
ação afirmativa em comparação com os ingressantes por ampla concorrência, assim como
mapear uma série de desafios para a concretização dos fins do sistema ações afirmativas.
A partir desta etapa inicial, os pesquisadores envolvidos puderam discutir e elaborar
as questões a constarem nos formulários que seriam distribuídos para a comunidade
acadêmica, tomando como base as reflexões tiradas da análise dos dados coletados, e
reflexões acerca da problemática das ações afirmativa das questões raciais e sociais internas à
Faculdade de Direito e ao campo jurídico.
Em um segundo momento, então, foi realizada pesquisa através de questionários
semi-abertos, distribuídos por meio eletrônico, a serem respondidos pelos diversos setores da
comunidade acadêmica. Desta maneira, foram elaborados questionários diferentes para os
alunos de graduação3, para os alunos de pós-graduação, para os professores e para os

3
A título de exemplo, o formulário graduandos (ingressantes por ampla concorrência ou por ação afirmativa)
possuía onze perguntas objetivas e uma de resposta aberta. Todas as perguntas objetivas, com exceção das
perguntas 4 e 8, consistiam em uma afirmação, à qual se questionava o nível de concordância (“concordo
integralmente”, “concordo parcialmente”, “discordo parcialmente”, “discordo integralmente” ou “não tenho
opinião formada”). Eram elas: 2) “Com relação à frase "a Universidade deveria considerar exclusivamente o
mérito intelectual como critério de acesso aos cursos de graduação”; 3) “Com relação à frase "a Universidade
deveria selecionar estudantes que representassem fielmente a diversidade econômica e étnica de nossa sociedade”;
5) “Com relação à frase "reservar vagas para estudantes de baixa renda diminui a qualidade do Curso de Direito";
6) “Com relação à frase "reservar vagas para estudantes egressos de escolas pública (ensino médio) diminui a
qualidade do Curso de Direito"; 7) “Com relação à frase "reservar vagas para estudantes indígenas, negros e
pardos”; 9)“Com relação à reserva de vagas para bolsas no Curso de Graduação em Direito da UFF (monitoria,
extensão, PIBIC etc.)”; 10) “Com relação a reserva de vagas para ingresso nos Cursos de Pósgraduação stricto
sensu (mestrado e doutorado) vinculados à Faculdade de Direito da UFF”; 11) “Com relação a reserva de vagas
nos concursos para professor efetivo do Curso de Direito da UFF: diminui a qualidade do Curso de Direito"; e 12)
Com relação a reserva de vagas nos concursos para carreiras jurídicas (magistratura, Ministério Público,
Defensoria Pública, Advocacia Pública etc.)”. As duas perguntas que possuíam opções de respostas diferentes
eram: 4) “Em sua opinião, a reserva de vagas por política de ação afirmativa (pode marcar mais de uma opção)”,
com as seguintes possibilidades de resposta: a) “Não deveria existir”; b) “Deve incluir estudantes que cursaram
ensino médio em escolas públicas”; c) “Deve incluir estudantes pobres.” d) “Deve incluir estudantes por critérios
étnicos (indígenas, negros e pardos)” e) “Não tenho opinião formada”; e 8) “Em sua opinião, qual seria um
percentual justo de reserva de vagas, no Curso de Direito da UFF, para políticas de ação afirmativa?”, com as
seguintes possibilidades de resposta: a) “0% (todos devem disputar em igualdade de condições).”; b) “1% a
10%.”; c) “11% a 25%.”; d) “26% a 50%.”; e) “51% a 75%.”; f) “76% a 90%.”; g) “91% a 99%.”; h) “100%”. i)
“Não tenho opinião formada.”
A pergunta aberta era “Qual é a sua opinião sobre reserva de vagas para o Curso de Direito da UFF, em razão de
políticas de ação afirmativa ("cotas").
Os outros formulários distribuídos aos professores, servidores e estudantes de pós-graduação traziam perguntas
sobre os conhecimentos, percepções e opiniões destas pessoas acerca do sistema de cotas, sua inserção na
Faculdade de Direito, e sobre outras políticas de ações afirmativas.

879
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

servidores, além de um formulário específico para os graduandos ingressantes por reserva de


vagas.
Os questionários respondidos pelos ingressantes por ação afirmativa possuíam
também perguntas de caráter socioeconômico, e perguntas que buscavam as experiências e
anseios destes alunos sobre o curso de Direito e a Universidade4.
Após a distribuição dos questionários, foram realizados também, em dois encontros,
grupos focais com os alunos cotistas, onde, reunidos, se conversou sobre o sistema de cotas,
sobre racismo, sobre a Faculdade de Direito e sua experiência nela.
A pesquisa mapeou 193 ingressantes por ação afirmativa por bônus ou reserva de
vaga com matrícula ativa no segundo semestre de 2015. A distribuição dos formulários por
via eletrônica obteve 115 respostas para este seguimento. Quanto ao resto da comunidade

4
Constavam como perguntas específicas para este questionário: 1)“Em qual escola você concluiu o ensino
médio?” (resposta aberta) ; 2) “Em que ano você concluiu o Ensino Médio?” (resposta aberta); 3) “Você
frequentou algum curso preparatório para o ENEM?” (com as possíveis respostas: a) não; b) “Sim, curso
preparatório gratuito ou com taxa de valor baixo, incluindo "pré-vestibular" comunitário”, ou c) “Sim, curso
preparatório pago”); 4) “Em qual município você morava ao optar, no vestibular/SISU, pelo Curso de
Direito/UFF?” (resposta aberta); 5) “Você permanece morando no mesmo município, atualmente?” (com as
possíveis respostas: a “sim”; b) “Não, ao longo do curso, mudei-me com minha família (pais, casamento, união
estável etc.”) c)” Não, ao longo do curso, mudei-me para morar sozinho”; e d) Não, ao longo do curso, mudei-
me para morar com outras pessoas (ex. "república estudantil"); 6) “Exerce alguma ocupação além dos
estudos?” (com as possíveis respostas: a) “Não, sou estudante em tempo integral” b) “Sim, faço estágio
extraoficial não remunerado; c) “Sim, faço estágio extraoficial remunerado”; d) “Sim, faço estágio oficial em
instituição pública (MP, Defensoria, Juizado etc.)”; e) Sim, faço estágio oficial em escritório de advocacia.” f)
“Sim, trabalho em órgão público (servidor ou terceirizado)”; g) “Sim, trabalho em empresa privada com
carteira de trabalho”; h) “Sim, sou profissional liberal e/ou trabalhador informal”; i) Prefiro não responder a
esta pergunta .h)Outros); 7) Você cursou outra graduação antes de se matricular no Curso de Direito da UFF?
(com as possíveis respostas: a) “Não”; b) “Sim, cursava graduação em Direito em instituição particular, com
financiamento estudantil”; c) “Sim, cursava graduação em Direito em instituição particular, sem financiamento
estudantil (FIES)”; d) “Sim, cursava graduação em Direito em outra universidade pública”; e) “Sim, na própria
UFF, e me graduei em outro curso”; f) “Sim, na própria UFF, sem concluir outro curso de graduação”; g)
“Sim, em outra universidade pública, concluindo a graduação em outro curso”. h) “Sim, em outra universidade
pública, sem concluir o outro curso de graduação”); j) “Sim, em instituição particular (com FIES) concluindo a
graduação em outro curso”. h) “ Sim, em instituição particular (com FIES), sem concluir outro curso de
graduação”; i) “Sim, em instituição particular (sem FIES), concluindo a graduação em outro curso” k) “Sim, em
instituição particular (sem FIES), sem concluir outro curso de graduação”) ;8) Por que você decidiu cursar
Direito? (resposta aberta); 9) Atualmente, o que mais motiva você a concluir a graduação em Direito? (resposta
aberta); 10) Com relação aos estudos no ensino médio, você considera o Curso de Direito da UFF (com as
possíveis respostas: a) “Com maior exigência e rigor nas avaliações”; b) Com praticamente o mesmo nível de
exigência do Ensino Médio” c) “menos exigente que o Ensino Médio”). 9) Ao longo do Curso, você obteve algum
tipo de apoio financeiro e/ou acolhimento? (com as possíveis respostas: a) “Não, e não faria diferença para
mim”; b) “Não, e isto seria importante para minha vida acadêmica” c) “Sim, fui/sou bolsista (monitor, iniciação
científica, extensão, acolhimento etc) d) “Sim, moradia estudantil”; e) “Sim, obtive apoio financeiro eventual
para participação em eventos acadêmicos, esportivos e/ou culturais.”; f) “Outros”). Por fim, também era
perguntado no questionário, se o aluno se disponibilizaria para participar de grupo focal com o grupo de pesquisa,
o que resultou nos dois grupos focais descritos ao longo do texto.

880
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

acadêmica, obteve-se a resposta de 16 professores, 20 servidores/técnicos, 317 graduandos5 e


34 pós-graduandos.
Uma vez coletados e sistematizados os dados e as respostas das pesquisas, estes
foram discutidos pelo grupo de pesquisa, e levados junto ao Centro Acadêmico Evaristo da
Veiga (CAEV - Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UFF) ao Colegiado de Curso
da Faculdade, resultando em uma série de discussões com os membros do colegiado que
culminaram na aprovação de ações afirmativas e recomendações com o intuito de incentivar a
permanência e as discussões acerca das temáticas de ações afirmativas e racismo na
Faculdade.
A observação dos dados coletados possibilitou a identificação de marcas (formas) de
silêncio: ausências, apagamentos, não-ditos, negações. As ferramentas da Análise de
Discurso, presentes nas obras de Eni P. Orlandi, possibilitam entender que essas
manifestações (ou não manifestações) são especialmente significativas, já que elementos
discursivos. Nesse contexto acadêmico, considerado de elite, em que os interesses
hegemônicos são perpetuados em especial pela relação entre poder e dominação, é muito
possível a compreensão da presença de racismo.

2. ALGUNS DADOS OBJETIVOS OBTIDOS NAS RESPOSTAS DOS


QUESTIONÁRIOS

A pesquisa coletou e mapeou dados objetivos provenientes dos bancos de dados


públicos, da Coordenação de Seleção Acadêmica da UFF (COSEAC-UFF) e do SISU/ENEM
do Ministério da Educação, e fornecidos pela coordenação da Faculdade de Direito da UFF
referentes aos estudantes cotistas com matrícula ativa no segundo semestre de 2015. Nesse
período, 193 estudantes que ingressaram por bônus ou reserva de vagas entre o primeiro
semestre de 2013 e o segundo semestre de 2015 permaneciam cursando a graduação em
direito.
Através dos provenientes da COSEAC-UFF e do SISU/ENEM, foi possível mapear
a nota de corte de ingresso pela ampla concorrência e por reserva de vagas. Mapeando a nota

5
A pesquisa zelou para que fosse obtido um mínimo de respostas para cada período da graduação, de modo a não
haver uma contaminação de respostas da pesquisa por um grande número de respostas de alunos de um período, e
menos de outro, uma vez que com o processo gradual de implementação do sistema de cotas, as turmas mais
antigas possuem menos cotistas.

881
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de corte do SISU entre o primeiro semestre de 2014 e o segundo semestre de 2015, as maiores
notas de corte na primeira chamada foram todas da ampla concorrência, sinalizando que a
nota dos ingressantes por ampla concorrência é superior à dos ingressantes por reserva de
vagas em geral, Nesse período, a maior nota de corte na primeira chamada da ampla
concorrência foi 756,42 pontos no primeiro semestre de 2015 para o turno integral, enquanto
a maior nota para reserva de vagas nessa seleção foi 733,10 pontos na modalidade L3 para o
turno integral. Já maior nota de corte na primeira chamada da reserva de vagas nesse período
foi 741,22 pontos na modalidade L3 no primeiro semestre de 2014 para o turno integral,
enquanto a nota de corte para ampla concorrência foi 754,82 pontos nesse processo seletivo.
Em contra partida, a menor nota de corte na ampla concorrência nesse período foi 732 pontos
no segundo semestre de 2014 para o turno noturno, enquanto a menor nota de corte para
reserva de vagas foi 671,64 pontos foi no segundo período de 2015, modalidade L2.
A diferença de notas para o ingresso através da ampla concorrência e da reserva de
vagas muitas vezes reafirma a pré concepção de que os estudantes cotistas não teriam
condições de acompanhar o curso ou prejudicariam a qualidade dele. Entretanto, apesar da
diferença de notas no ingresso pelo SISU, os dados sobre o Coeficiente de Rendimento Médio
(CR) dos ingressantes por ampla concorrência e por reserva de vagas sinalizam que o
aproveitamento destes estudantes não diverge ao longo do curso. Nesse sentido, o maior CR
médio no primeiro semestre de 2013 foi 8,62 pontos dos estudantes ingressantes pela
modalidade L3 de reserva de vagas; no segundo semestre de 2013 foi 9,07 pontos dos cotistas
ingressantes pela modalidade L1; no primeiro semestre de 2014 foi 9,04 pontos dos cotistas
ingressantes pela modalidade L4; no segundo semestre de 2014 foi 9,01 pontos dos cotistas
ingressantes pela modalidade L4; no primeiro semestre de 2015, 8,81 pontos dos estudantes
cotistas ingressantes através da modalidade L3 de reserva de vagas. Ao contrário do senso
comum, os dados sinalizaram que os estudantes cotistas apresentam maior Coeficiente de
Rendimento Médio ao longo de todo o período da pesquisa, apontando que, apesar do deficit
na formação básica, os ingressantes por reserva de vagas não possuem um aproveitamento
inferior aos ingressantes por ampla concorrência.
Além dos dados sobre as notas de ingresso através do SISU e do aproveitamento dos
graduandos ao longo do curso, a pesquisa também possibilitou o mapeamento do perfil dos
estudantes cotistas, como a idade, a escola em que ele concluiu o ensino médio, se ele realizou
algum curso preparatório para o vestibular, a participação em programas de assistência

882
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estudantil ou apoio financeiro, entre outros dados. O mapeamento desses dados ocorreu
através da coleta de informações por meio de questionários eletrônicos com doze perguntas
gerais, respondidos por 115 estudantes cotistas.
A pesquisa possibilitou mapear se os estudantes que ingressaram por ações
afirmativas receberam algum tipo de apoio financeiro ou acolhimento estudantil ao longo do
curso. Das 115 respostas recebidas, 28 estudantes (24,3%) responderam que não receberam
auxílio e que este apoio não faria diferença para eles; 53 estudantes (46,1%) responderam que
não receberam auxílio e que este apoio seria importante para a vida acadêmica deles; 27
estudantes (23,5%) responderam que receberam apoio pois receberam bolsa de monitoria,
iniciação científica, extensão, acolhimento estudantil, etc.; 1 estudante (0,9%) respondeu que
morava na moradia estudantil; 2 estudantes (1,7%) responderam que obtiveram apoio
financeiro para participação em eventos acadêmicos, esportivos e/ou culturais; e 13 estudantes
(11,3%) deram outras respostas, como participação em projetos de extensão ou auxílio
financeiro dos pais.
O questionário também possibilitou mapear se os estudantes cotistas frequentaram
algum curso preparatório para realizar o ENEM/Vestibular. Das 115 respostas recebidas, 68
estudantes (59,1%) responderam que não realizaram qualquer tipo de curso preparatório; 23
estudantes responderam que frequentaram curso preparatório gratuito ou com taxa de valor
baixo, incluindo-se pré-vestibular comunitário; e 24 estudantes (20,9%) responderam que
frequentaram curso preparatório pago.
A pesquisa também buscou mapear se os estudantes cotistas conciliavam a
graduação em direito com alguma outra ocupação. Das 115 respostas recebidas, 43 estudantes
(37,4%) responderam que estudavam em tempo integral; 5 estudantes (4,3%) respondera que
realizavam estágio extraoficial não-remunerado; 13 estudantes (11,3%) responderam que
realizavam estágio extraoficial remunerado; 18 estudantes (15,7%) responderam que
realizavam estágio oficial em instituição pública, como o Ministério Público, a Defensoria
Pública, etc.; 4 estudantes (3,5%) responderam que realizavam estágio oficial em escritório de
advocacia; 24 estudantes (20,9%) responderam que era servidor ou terceirizado de órgão
público; 3 estudantes (2,6%) responderam que trabalham em empresa privada com carteira
assinada; 5 estudantes (4,3%) responderam que eram profissional liberal ou trabalhador
informal; 7 estudantes (6,11%) sinalizaram outras respostas.

883
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Em um segundo momento, foi realizada uma pesquisa com os diversos setores da


comunidade acadêmica (servidores, professores, graduandos e servidores/terceirizados)
buscando observar a percepção desses segmentos sobre diversos aspectos da implementação
das ações afirmativas no curso de Direito da UFF, como o conhecimento da comunidade
acadêmica sobre o modelo de reserva de vagas; se reserva de vagas prejudica a qualidade do
curso; sobre a reserva de vagas para monitoria, extensão, PIBIC, etc.; sobre a reserva de vagas
para ingresso nos cursos de pós graduação strictu sensu; sobre a reserva de vagas nos
concursos para professor efetivo e para as carreiras jurídicas.
Apesar da implementação da lei de cotas a partir de 2013, 21,1% dos
servidores/terceirizados e 18,8% dos professores desconheciam a existência de política de
ações afirmativas no curso de direito; 31,6% dos servidores/técnicos e 31,3% dos professores
pensavam que o critério era reserva de vagas apenas para candidatos provenientes de escolas
públicas de ensino médio; 26,3% dos servidores/terceirizados e 43,8% dos professores
acreditavam que o critério existente era de reserva de vagas apenas para candidatos negros,
pardos e indígenas; e 21,1% dos servidores/técnicos e 6,3% dos professores pensavam que o
critério era reserva de vagas somente para candidatos vulneráveis socioeconomicamente.
No que tange as percepções da comunidade acadêmica sobre a alteração do perfil
dos discentes da graduação em direito, a pesquisa mapeou que 30% dos
servidores/terceirizados e 25% dos professores não identificam qualquer diferença no perfil
dos estudantes ao longo dos últimos anos; 20% dos servidores/terceirizados e 25% dos
professores pensam que há mais estudantes negros do que antes; 35% dos
servidores/terceirizados e 37,5% pensam que há mais estudantes pobres do que antes; e 15%
dos servidores/terceirizados e 12,5% dos professores afirmaram que não tinham opinam
formada.
Por fim, a pesquisa possibilitou mapear a opinião da comunidade acadêmica sobre
outras políticas de ações afirmativas, como a reserva de vagas para bolsas de monitoria,
extensão, PIBIC; para o ingresso na pós-graduação e nos concursos públicos para o
magistério e para as carreiras jurídicas.
Com relação a reserva de vagas para bolsas no Curso de Graduação (monitoria,
extensão, PIBIC, etc.), 20% dos servidores/terceirizados, 56,3% dos professores e 27,5% dos
estudantes indicaram discordância integral; 40% dos servidores/terceirizados, 6,2% dos
professores, 42,4% dos pós-graduandos e 32,5% dos graduandos responderam que

884
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

concordam com a reserva apenas para estudantes com renda familiar inferior a 1,5 salário-
mínimo; 30% dos servidores/terceirizados, 37,5% dos professores, 54,5% dos pós-
graduandos e 21,9% dos graduandos concordam com a reserva de vagas apenas para pobres,
indígenas e negros; e 10% dos servidores/terceirizados e 17,5% dos graduandos não tem
opinião formada.
Com relação a reserva de vagas para ingresso nos cursos de Pós-Graduação stricto
sensu (mestrado e doutorado) vinculados à Faculdade de Direito da UFF, 20% dos
servidores/terceirizados, 50% dos professores e 34,7% dos graduandos discordam
integralmente com a reserva de vagas; 30% dos servidores/terceirizados, 20,6% dos pós-
graduandos e 23,4% dos graduandos concordam com a reserva de vagas apenas para
candidatos com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo; 35% dos
servidores/terceirizados, 50% dos professores, 55,9% dos pós-graduandos e 28,4% dos
graduandos concordam que haja reserva de vagas para candidatos pobres, indígenas negros e
pardos; 15% dos servidores/terceirizados.
Com relação a reserva de vagas nos concursos para professor efetivo do Curso de
Direito da UFF, 45% dos servidores/terceirizados, 50% dos professores, 23,5% dos pós-
graduandos e 47,5% graduandos discordam integralmente; 20% dos servidores/terceirizados,
concordam que haja reserva apenas para candidatos pobres (renda familiar inferior a 1,5
salário-mínimo); 12,5% dos professores, 14,7% dos pós-graduandos concordam que haja
reserva de vagas apenas para candidatos indígenas, negros e pardos; 20% dos
servidores/terceirizados, 37,5% dos professores, 47,1% dos pós-graduandos e 25,9% dos
graduandos concordam que haja reserva de vagas para candidatos pobres, indígenas, negros e
pardos. Os demais não possuem opinião formada.
Com relação a reserva de vagas nos concursos para carreiras jurídicas (magistratura,
Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública, etc.), 45% dos
servidores/terceirizados, 43,8% dos professores, 20,6% dos pós-graduandos e 43,4% dos
graduandos discordam integralmente. 10% dos servidores/terceirizados, 12,5% dos
professores, 17,6% dos pós-graduandos; 35% dos servidores/terceirizados, 43,8% dos
professores, 50% dos pós-graduandos e 27,8% dos graduandos concordam que haja reserva
de vagas para candidatos pobre, indígenas, negros e pardos. Os demais não possuem opinião
formada.

885
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3. RESPOSTAS ABERTAS

Como já exposto, os questionários distribuídos para todos os seguimentos


(graduandos, pós-graduandos, servidores e técnicos e professores) portavam uma pergunta de
resposta aberta, a ser respondida livremente. A pergunta proposta era “Qual é a sua opinião
sobre reserva de vagas para o Curso de Direito da UFF, em razão de políticas de ação
afirmativa ("cotas")?”.
Dos questionários enviados para enviados para os graduandos, foram obtidas 320
respostas no total. Para os professores, servidores/técnicos e pós-graduandos, foram obtidas,
respectivamente, 15, 20 e 33 respostas. Neste tópico, abordaremos brevemente6 as principais
recorrências nas respostas, destacando alguns elementos para a análise. Centraremos a análise
nas respostas oferecidas pelos graduandos, uma vez que este seguimento realizou um número
muito superior de respostas, que torna a análise mais abrangente e representativa.
Neste seguimento, das 320 respostas, 281 se mostravam favoráveis à reserva de
vagas, 32 se mostraram contra e 7 delas não expressaram qualquer opinião de que fosse
possível retirar um posicionamento. Dentre as favoráveis às ações afirmativas, 58 delas
apresentaram algum tipo de ressalva à reserva de vagas.
Os argumentos favoráveis as cotas articulam diferentes estratégias discursivas7,
com o objetivo de justificar a existências desta política pública. Podemos identificar dois
principais tipos de argumento em defesa das ações afirmativas, no qual foram agrupadas as
respostas, os argumentos de “reparação” e os argumentos de “diversidade”. Conforme
assinala Thula Pires

O argumento da diversidade admite a adoção de políticas de ações afirmativas


como mecanismos de garantia da pluralidade em ambientes de ensino, trabalho,

6
Pretende-se que uma análise mais profunda destas respostas seja alvo de publicação específica.
7
Para a análise, entendemos as respostas como um modo de organização argumentativo, articulando categorias
da análise do discurso de matriz francesa. O modo de organização argumentativo se baseia em alguns fatores.
Basicamente, pode-se dizer que é necessário que exista “uma proposta sobre o mundo que provoque um
questionamento, em alguém quanto à sua legitimidade (um questionamento quanto à legitimidade da proposta).”
(CHARAUDEAU, p. 2014, p. 205), além de um sujeito engajado em defender esta proposta e um sujeito-alvo a
ser convencido dela. Além disso, toda argumentação parte de “uma busca de racionalidade” que tende a um ideal
de verdade quanto à explicação de fenômenos do universo”, além de “uma busca de influência que tende a um
ideal de persuasão, o qual consiste em compartilhar com o outro (interlocutor ou destinatário) um certo universo
de discurso até o ponto em que este último seja levado a ter as mesmas propostas” (CHARAUDEAU, p. 2014, p.
205). Nas respostas analisadas, veremos que as argumentações tem como tema as ações afirmativas, elaborando
diferentes estratégias discursivas para legitimarem um posicionamento de defesa ou repulsa a reserva de vagas.
Por estratégias discursiva, entende-se a maneira, consciente ou não, que o discurso se constrói, quais informações
e argumentos articula.

886
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

repartições pública, entre outros. É a possibilidade de conviver com as diferenças


que avalizaria medidas em processos seletivos, por exemplo. Quando se fala em
reparação, por sua vez, defende-se a correção da injustiça gerada pelo legado
escravista através de ações públicas voltadas à promoção da igualdade dos negros
(PIRES, 2013, p. 231)

Os argumentos de diversidade, ligados a ideia de que a pluralidade de alunos de


diferentes origens causam um ganho para todo o ambiente acadêmico, foram menos
recorrentes, sendo encontrados em apenas 25 respostas dos graduandos. Os argumentos
ligados à ideia de reparação, ou seja, de que as cotas vem para reparar uma injustiça histórica
ou uma desigualdade presente por motivos sociais ou raciais, são mais presentes, aparecendo
em 69 respostas8.
A maior parte dos argumentos de reparação analisados se limitava a falar de
reparação em um sentido mais amplo, sem especificar exatamente o que estava sendo
reparado. Muitas respostas identificam especificamente o déficit educacional brasileiro,
colocando como ponto central da reparação o fato de que o ingressante por ações afirmativas
em questão não teve direito a uma educação adequada. Estas respostas, em geral, mesmo que
favoráveis, identificam nas cotas uma política paliativa, uma vez que o principal problema
seria a falta de qualidade das escolas públicas brasileiras.
Menos recorrente que os argumentos que falam da reparação por causa do déficit de
ensino foram as respostas que criavam a argumentação da reparação histórica com base em
uma dívida histórica que a sociedade tem com o povo negro. Destas, apenas duas citam
explicitamente o passado escravocrata da sociedade brasileira. Algumas poucas respostas
articulavam categorias ligadas ao racismo, de modo que a maior parte das respostas baseadas
em reparação histórica não abordava a questão racial inerente às ações afirmativas do sistema
de cotas9.
Os argumentos de diversidade articulam outras ideias. Um primeiro aspecto das
respostas é a percepção de que o curso de Direito é tradicionalmente um curso elitista, vendo
na reserva de vagas uma maneira de alterar este perfil, sendo interessante notar que várias

8
A maior parte das respostas, 187 delas não articularam nenhum tipo de argumentação consistente, se limitando a
preencher o campo com afirmações como “sou a favor”, “positiva” e “perfeito”.
9
De maneira diversa em relação ao argumento que se baseia apenas na debilidade do ensino público, o argumento
que tem como base a dívida histórica por causa do passado escravocrata se baseia em aspectos muito mais
diversos, como genocídio da juventude negra, baixos salários, encarceramento e violência e racismo. Desta
maneira, aqueles que se baseiam neste argumento vêem nas cotas uma solução para problemas sociais mais
profundos e amplos do que a simples equiparação no acesso a universidade. A cota seria uma maneira lutar contra
o racismo e a desigualdade racial brasileira.

887
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

respostas já identificam nas turmas mais novas, com maior número de cotistas, estas
mudanças. As respostas dão a entender que alunos cotistas seriam mais interessados em um
aspecto social do Direito, e não teriam apenas interesses individuais e profissionais.
Outra recorrência é a proposição de que a presença de alunos de diferentes origens
traria um benefício geral para a universidade. Os cotistas seriam pessoas que trariam suas
vivências diferenciadas para o ambiente universitário, de modo a contribuírem para uma
produção acadêmica diferenciada, pluralizando o ambiente acadêmico e o tornando mais rico
e inovador. A diversidade também seria um elemento de luta contra o racismo e a exclusão
dentro do ambiente acadêmico, e contribuiria, com a formação de profissionais e intelectuais
negros, pardos e indígenas, ou de classes sociais diversas, para a criação de um mercado de
trabalho e uma sociedade mais inclusiva.
Mesmo entre os argumentos favoráveis, como colocado, foram diversas as ressalvas
as cotas. A primeira ressalva, já apresentada, consiste em ressaltar o caráter paliativo ou
temporário das cotas, explicando que, apesar de ser a favor do sistema de reserva de vagas,
entende que ele deve ser realizado junto com outras medidas, como o combate a pobreza ou a
melhoria do sistema educacional. Importante notar que estes argumentos nunca articulam o
racismo como um problema em si, identificando sempre como principal problema a
desigualdade socioeconômica. As outras duas ressalvas dentre as respostas favoráveis são a
ampla possibilidade de fraude às cotas10, e os problemas ligados à permanência dos alunos
cotistas, que articulam a ideia de que o simples ingressos destes alunos não garantem a
permanência deste aluno, que encontra outras dificuldades para continuar na faculdade.
Todas as ressalvas feitas pelas pessoas favoráveis às cotas também estão presentes
nos argumentos das pessoas contrárias a elas. Desta maneira, muitas respostas contrárias as
cotas reconhecem os mesmos problemas que os defensores das cotas enxergam, mas
simplesmente entendem que as cotas não são um caminho para solucionar estes problemas.
Das respostas contrárias, dois são os elementos centrais. O primeiro deles é a
identificação do principal problema a ser combatido. Este seria a desigualdade social, que
seria resolvido com políticas públicas de combate a pobreza, e por um ensino básico de
qualidade. Desta maneira, o debate racial em geral não é citado, e quando é citado, é citado
em subordinação à questão social. Resolvendo um, se resolveria o outro.

10
Como já dito, a pesquisa foi realizada antes da instauração do Comissão Verificadora de Cotas pela UFF, que
veio para combater estes tipos de fraudes no que tange à reserva de vagas por critérios étnico-raciais.

888
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A segunda questão central é a ideia de mérito. Os argumentos contrários as cotas em


geral articularam ideias ligadas ao mérito, com base em uma ideia específica de igualdade
formal. Todos devem ter condições iguais de ingresso (um vestibular sem reserva de vagas)
para que o mérito seja testado.
Interessante notar que uma resposta cita expressamente a oposição a uma “igualdade
material sofismática” dos defensores das cotas, de modo a reconhecer a oposição entre os
conceitos de igualdade presentes. Na análise das respostas, é possível notar como muitas das
respostas favoráveis e contrárias as cotas se articulam com base nos mesmos termos,
utilizando apenas interpretações diferentes dos mesmos conceitos. Assim, noções de
igualdade formal são levantadas pelos opositores das cotas, enquanto noções de igualdade
material são levantadas pelos defensores das cotas, com ideias diferentes de mérito sendo
articuladas pelos dois grupos. O debate racial, porém, é um recurso argumentativo das
pessoas favoráveis as cotas, e é negado pelos opositores, que subordinam a questão aos
problemas sociais e econômicos.

4. A MATERIALIDADE DO SILÊNCIO EM UMA PESQUISA

Um texto é um tecido cujas linhas podem ser constituídas por palavras (se texto
verbal) ou outros signos não linguísticos (texto não verbal), sua essência reside no significar.
Um texto é uma unidade significativa. E, numa situação comunicativa, seja verbal ou não
verbal, os interlocutores comprometem-se, mesmo que inconscientemente, com a
significação, com o político, já que um texto é discurso. Deve, assim, ser compreendido como
materialização de um processo histórico-ideológico, presente na sua construção, porque toda
palavra integra um contexto, por isso tem história. Essa afirmativa é essencial para se
interpretar o silêncio, porque “Sem considerar a historicidade do texto, os processos de
construção dos efeitos de sentidos, é impossível compreender o silêncio.” Essa unidade de
sentido, que sempre diz algo, utiliza determinadas formas/maneiras para dizer, porque o
tecido não é apenas produto, mas, sobretudo, processo. Ler um texto é, portanto, um
movimento de atribuição de sentido. Deve o leitor atentar não só para o resultado, mas para o
como, por que, para que e para quem se diz.
Considerando-se que a ideologia está presente no texto (que é discurso) e que o dizer
é um enunciado produzido por um sujeito que é motivado a dizer e, portanto, o dito tem uma

889
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

finalidade, o mesmo pode ser afirmado quando ao não dizer, ao silêncio, compreendido como
elemento comunicativo, portanto, como categoria de sentido.
Na pesquisa, foi possível identificar formas de não dizer significativas, elementos
discursivos que, no contexto de implementação de uma política afirmativa de inclusão social
e étnico-racial, podem simbolizar mais que ausência de conhecimento, mas, talvez, não
reconhecimento, constituindo-se o silêncio que torna não aparente, o que está presente. É o
que podemos evidenciar na fala de um dos entrevistados em entrevista (grupo focal)
promovida pelo grupo de pesquisa:

A faculdade de direito é uma faculdade bem elitista, apesar das exceções, mas é
uma faculdade bem elitista, a parte das políticas de ações afirmativas, as pessoas
não gostam de tocar no assunto, pelo ao menos eu senti assim, as pessoas da minha
turma são ótimas, mas ninguém toca no assunto, as pessoas falam de colocação,
políticas de ações afirmativas ninguém toca muito, assim, eu não sei muito bem
quem entrou por política de ação afirmativa ... Há comentários, eu já ouvi assim, a
maioria não gosta a maioria com quem eu tive contato, mas isso não é verbalizado.

Os dados apresentados nas seções 1 e 2 deste artigo demonstram a problemática na


recepção das ações afirmativas na Faculdade de Direito. Apesar do número elevado de
apoiadores do sistema de reserva de vagas, um número razoável de pessoas discordava da
utilização de ações afirmativas para diversas outras áreas da vida acadêmica ou profissional.
Também foi demonstrado um grande desconhecimento acerca do próprio funcionamento da
política de cotas, tanto nas respostas abertas quanto fechadas.
Na construção da pesquisa, a própria dificuldade de obtenção dos dados, uma vez
que os formulários foram distribuídos pela internet, demonstraram uma dificuldade na
inserção das pessoas no debate sobre o tema. O silêncio então se mostrou como uma maneira
de resistência ao debate, na materialização de sentidos específicos sobre a temática. Nas
palavras de Orlandi (1995), “Os sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em todas as
direções e se fazem por diferentes matérias, entre as quais se encontra o silêncio.”
Ora, um índice de 17,5% de graduandos que dizem não ter opinião formada (opinião
silenciada) sobre um assunto relativo a uma importante forma de viabilizar materialmente a
trajetória acadêmica de alunos cotistas indica um não reconhecimento de determinadas
condições de permanência no curso, específicas dos alunos cotistas (negros e índios,
inclusive), uma realidade do outro, sobre a qual não se pensou (ainda?). Contrapor isso ao
resultado relativo à reserva apenas para candidatos pobres (índice de 32,5%), e à área do
gráfico (quase imperceptível) ocupada pelos que concordaram com a reserva étnico-racial,
890
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

são elementos que evidenciam apagamento da participação de negros e indígenas, nesse


processo. O racismo estrutural explica a não associação desses modos de dizer e não dizer a
uma forma de distinção naturalizada e, portanto, não questionada.
Enfim, nessas poucas linhas permitidas pelo espaço de um artigo, é possível afirmar,
à guisa de conclusão dessa sessão, que tanto a ausência de palavras quanto algumas (muitas)
das palavras ditas, como parte de um processo de comunicação, de troca de sentidos entre
pessoas. O ato de comunicação (pelo dizer ou pelo silêncio), entendido na perspectiva da
função social, é ferramenta de interação pelo discurso, e representa o olhar sobre o mundo,
expondo modos de ser e de estar nesse lugar. Identifica o sujeito como ser social. Liga-se à
história e à ideologia e aponta, portanto, para uma realidade que se estrutura pelas relações por
ela responsável: as relações de poder hegemônico e dominação.

CONCLUSÃO

A pesquisa desenvolvida possibilitou avaliar a mudança do perfil dos estudantes


ingressantes na Faculdade de Direito da UFF, desfazendo pré concepções e ressaltando
desafios da comunidade acadêmica e da universidade para combater o racismo e garantir a
permanência e inclusão dos estudantes cotistas na universidade. Nesse sentido, apesar de a
pesquisa mapear que os estudantes ingressantes por ações afirmativas possuem desempenho
acadêmico equivalente aos ingressantes por ações afirmativas, ela também ressalta o desafio
para incluí-los nos programas de monitoria, pesquisa, extensão e de auxílio à permanência.
Os dados coletados e sistematizados e as respostas da pesquisa ampliaram a
discussão e as ações afirmativas foi objeto de debates nos órgãos colegiados e reuniões
departamentais na Faculdade de Direito da UFF. O Colegiado de Curso realizado no dia 21 de
junho de 2016 debateu o tema e culminou na aprovação de ações afirmativas e
recomendações que buscavam incentivar a permanência e o debate sobre ações afirmativas e
racismo na universidade. Na reunião departamental ordinária do Departamento de Direito
Processual (SDP) no dia 29 de agosto de 2016 foi aprovada a reserva de vagas da monitoria
para os estudantes cotistas. Por unanimidade foi aprovado que o edital de monitoria para o
ano de 2017 reservaria 20% (vinte por cento) das vagas para os alunos cotistas; e que o edital
de 2018 contemplaria a reserva de 50% (cinquenta por cento) das vagas para estudantes
cotistas.

891
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Lívia. Igualdade e meritocracia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

BAUMAN, Zygmunt. Cegueira moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida. 1.ed., Rio de Janeiro:
Zahar, 2014.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 12. Ed. São Paulo: Cortez, 2009.

MENDES JUNIOR, A.A.F.; WALTENBERG, F.D. Políticas de cotas não raciais aumentam a admissão de
pretos e pardos na universidade?: simulações para a UERJ. Texto Para Discussão: CEDE/UFF, Niterói, p.1-21,
2013. (Disponível em http://www.proac.uff.br/cede/sites/default/files/TD89.pdf).

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. 8. ed. Campinas: Pontes, 2009.

_______________. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, Editora da Unicamp, 1995.

TEIXEIRA, Moema De Poli. Negros na Universidade: identidade e trajetória de ascensão social no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Pallas, 2003.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. A discussão judicial das ações afirmativas étnico-raciais no Brasil. In:
PAIVA, Angela Randolpho. Ação Afirmativa em Questão: Brasil, Estados Unidos, África e França. Rio de
Janeiro: Pallas, 2013. p. 210-239.

WALTENBERG, Fábio; CARVALHO, Márcia de. Cotas aumentam a diversidade de estudantes sem
comprometer o desempenho? Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 7, p. 36-77, 2012. (Disponível em
http://www.proac.uff.br/cede/sites/default/files/TD73.pdf).

______________, Elementos para uma definição de justiça em educação. Outubro, 201. (Publicado nos Cadernos
Cenpec. Pesquisa e ação educacional. V. 3(1), pp. 41-62, 2013. (Disponível em:
http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/).

892
A EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO NA COMAR UNIG

NADER, Carmen Caroline Ferreira do Carmo


Professora da Universidade Iguaçu
Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis
RANGEL, Tauã Lima Verdan
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF. Mestre em Ciências
Jurídicas e Sociais pela UFF.
NADER, Cristian
Especialista em Sociologia pela Faculdade Signorelli
Graduando em Direito pela Universidade Iguaçu

RESUMO

O objetivo do presente consiste em analisar a experiência de mediação desenvolvida pela Comissão de


Conciliação e Arbitragem da Universidade Iguaçu (COMAR-UNIG). É fato que o modelo tradicional
beligerante de processo brasileiro encontra uma série de obstáculos para sua real efetivação,
notadamente em decorrência do uso indevido da etapa judiciária e a necessidade, pelas partes
processuais, do comando sentencial como manifestação da vingança privada. Neste sentido, o sistema
tende a privilegiar uma postura infantilizada das partes processuais, o que, por si só, colabora para o
agravamento do tratamento das demandas. De lado outro, a COMAR-UNIG, ancorando-se no
postulado da cultura do diálogo promovido pelos métodos extrajudiciais de tratamento de conflitos, em
especial a mediação, preocupa-se em fomentar a cultura do empoderamento dos envolvidos, a partir de
etapas pré-judiciárias. O método empregado é o indutivo, auxiliado de revisão de literatura, pesquisa
bibliográfica e dados primários como técnicas de pesquisa. Como resultados parciais identificados,
verifica-se que a COMAR desempenha importante papel na condução do diálogo entre o público
atendido, em especial as demandas envolvendo questões familiares e consumerista, o que implica em
um exitoso número de consensos.

Palavras-Chave. Mediação. Cultura do Diálogo. Empoderamento dos Mediandos. COMAR-UNIG.

893
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O presente estudo iniciou-se em 2014, ano de início das atividades da COMAR


UNIG (Comissão de Conciliação e Arbitragem da Universidade Iguaçu). Apesar a Resolução
nº. 125 do CNJ que trata da mediação ser datada de 2010, representou uma novidade no
núcleo de prática da UNIG, há mais de 40 anos lidando de maneira tradicional com os
conflitos apresentados pelas partes. A ideia era implantar tanto a mediação quanto a
arbitragem, o que justifica o nome COMAR. Mas estudos iniciais acabaram por demonstrar a
inviabilidade econômica da criação de uma câmara de arbitragem naquele momento,
mantendo-se a nomenclatura para futura implantação. A função da COMAR é proporcionar a
resolução por meio da mediação - método compositivo de solução de conflitos – de questões
que seriam levadas ao judiciário para a resolução por uma sentença.
Ao observar algumas mediações realizadas dentro daquele ambiente específico,
surgiram dúvidas se a mediação ali realizada correspondia com a mediação propagada pelos
estudiosos do tema e pelo Tribunal de Justiça. Surgiu então a ideia de identificar como essa
mediação está sendo realizada e se de fato ela representa a grande mudança prometida em
teoria para a resolução dos conflitos. O que se busca é entender se os discursos sobre as
qualidades da mediação coadunam com sua prática.
O recorte temporal levou em conta as mediações observadas no primeiro semestre
de 2017. Ao iniciar a pesquisa na COMAR UNIG, algumas categorias específicas dentre as
propagadas quando se trata de mediação chamaram mais atenção: celeridade em relação ao
processo convencional, tipos de questões para as quais a mediação é mais indicada, diferenças
em relação à conciliação e, a que pareceu mais intrigante: o conceito de mediação “positiva” e
mediação “negativa”, associado à realização ou não de acordos pelas partes, acordos estes que
posteriormente serão homologados pelo Judiciário. O trabalho então passou a ter por objetivo
a compreensão dessas categorias - propagados pelo Tribunal de Justiça e incorporados pela
COMAR - e identificação de suas implicações na prática.

1. BREVE ANÁLISE TEÓRICA DA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

A palavra mediação provém do latim mediatio, que significa intervenção,


intercessão, intermediação. Assim, mediação é entendida como um processo extrajudicial de
resolução de conflitos, no qual um terceiro imparcial dá assistência às pessoas em conflito,

894
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

com a finalidade de que possam manter uma comunicação produtiva à procura de um acordo
possível para elas. Destaco que não colide, nem compete com o processo judicial, sendo mais
um meio de resolução de conflitos.
Considerada dialogal, especialmente indicada para conflitos interpessoais e relações
continuadas, apresenta a promessa de resolver a questão de forma integral, e não apenas a lide
processual, sendo um método que promete ser rápido, barato e eficaz, contribuindo para um
efetivo acesso à justiça (AMARAL, 2009, p. 89) Além disso, busca atuar previamente, na
medida em que educa para a solução autônoma dos próprios conflitos, intencionando
promover mudanças nos relacionamentos sociais e por consequência, a promessa de
pacificação social. Em definição de Guillaume-Hofnung:

[...] a mediação se define principalmente como um processo de comunicação ética


baseado na responsabilidade e autonomia dos participantes, no qual um terceiro –
imparcial, independente, neutro e sem poder decisório ou consultivo com uma
única autoridade que lhe foi reconhecida pelos mediados – propicia mediante
entrevistas confidenciais o estabelecimento ou restabelecimento de relação social, a
prevenção ou a solução da causa (GUILLAUME-HOFNUNG, 2007, p. 71 apud
AMARAL, 2009, p. 91).

Propícia quando utilizada em situações em que se busque manter o relacionamento


entre as partes, onde o litígio contenha contextos mais profundos (emocionais, psicológico,
entre outros), bem como a ruptura do diálogo. Sendo assim, é mais utilizada para resolver
conflitos advindos de relações de múltiplos vínculos, como as familiares, de amizade, de
vizinhança, uma vez que através desse procedimento é possível preservar os demais vínculos.
A Resolução n. 125 do Conselho Nacional de Justiça instituiu a chamada “Política
Judiciária Nacional de Tratamento adequado dos conflitos”, determinando que todos os
órgãos do judiciário passariam a oferecer mecanismos de resolução de conflitos “paralelos”,
segundo Filpo (2016, p. 45), que denomina, em via diametralmente oposta, a via judicial de
“convencional”, com o intuito de garantir às demandas a possibilidade de um tratamento
diferenciado, de acordo com sua natureza e complexidade. Ainda segundo o autor:

Esses meios, segundo tal normativa, seriam a mediação e a conciliação, bem como
os serviços de atendimento e orientação ao cidadão. Esse serviço recebe o nome de
atendimento de cidadania, e tinha, inicialmente, prazo limite de 12 meses para ser
colocado em funcionamento em todas as cortes do país (FILPO, 2016, p. 45).

A Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015, regulamenta a mediação entre particulares


como meio de solução de controvérsias e versa sobre a autocomposição de conflitos no

895
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

âmbito da administração pública, com a equiparação da condição do mediador judicial a


auxiliar da justiça, buscando a promoção de solução consensual do litígio. Segundo o artigo 2º
da referida Lei, a mediação possui como princípios norteadores a isonomia entre as partes,
oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, imparcialidade do mediador,
busca do consenso, confidencialidade e boa-fé. Importante destacar que se trata de rol
exemplificativo, e não taxativo, porém, considerados essenciais para a eficácia da mediação
realizada.
O acordo que resulta da mediação não é algo imposto por um terceiro após
valoração das provas e emissão de sentença após seu convencimento, e sim, uma solução que
deve ser debatida por ambas as partes, que manifestam seus interesses, concordam entre si e
se propõe a cumprir um objetivo comum que foi determinado por elas de forma consensual.
Como espécie de autocomposição, a mediação promete se basear na identificação e
eliminação das causas que geraram o conflito, surgindo daí a necessidade de qualificação do
profissional atuante na mediação.

2. O RECORTE ESPACIAL DA PESQUISA

Segundo dados do IBGE datados de 2016, a cidade de Nova Iguaçu possui


população estimada em 797.435 pessoas, denominados de iguaçuanos, com área da unidade
territorial de 519.159 quilômetros quadrados. Ainda segundo o IBGE, a incidência de pobreza
é de 54,15%. Esses dados são importantes para a compreensão da dimensão física da cidade e
sua importância para a região da Baixada Fluminense.
Nova Iguaçu possui fórum estadual localizado atualmente no Bairro da Luz, bairro
este vizinho ao Centro da cidade, possuindo 4 Juizados Especiais Cíveis, 5 Varas de Família,
7 Varas Cíveis e 7 Varas Criminais, além do cartório da Dívida Ativa, Juizado da Infância e
Juventude, uma sede da OAB e instalações da Defensoria Pública. A cidade, que já foi
denominada de “Cidade-dormitório”, pois não era considerada um local com boas
oportunidades de emprego, obrigando seus moradores a buscarem trabalho em outras áreas do
Estado, hoje possui, no bairro do Centro, grandes polos de comércio, entretenimento e
inúmeros empreendimentos imobiliários, com imóveis que chegam a ultrapassar da faixa de 1
milhão de reais.

896
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Entretanto, nos bairros periféricos, entre os quais se localiza a Universidade Iguaçu,


ainda há ruas sem asfalto e sem saneamento básico. É nesse contexto que está inserida a
Universidade Iguaçu, o principal objeto de estudo desse trabalho, que será apresentada a
seguir.

2.1. A UNIG

A UNIG – Universidade Iguaçu foi fundada em 1970. A Faculdade de Filosofia,


Ciências e Letras de Nova Iguaçu, ofereceu a primeira unidade de ensino de terceiro grau à
Baixada Fluminense com a implantação dos cursos de Letras (Habilitações: Português-
Literatura e Português-Inglês), Matemática, Física, Ciências Biológicas, reconhecido em
1974. Em 1976, o curso de Pedagogia também foi reconhecido, seguido, quatro anos depois,
em 1974, pela implantação da Faculdade de Direito, que atualmente conta com a nota 4
(quatro) na avaliação do MEC e nota 3 no ENADE. Segundo o site da instituição, todos os
cursos oferecidos pela UNIG surgiram da identificação das características da região, sendo
observadas as demandas de mercado relativas aos perfis profissionais identificados, tendo por
missão institucional gerar progresso científico e tecnológico no país e servir diretamente à
comunidade, valendo-se dos recursos e meios de que dispõe.
Com exceção do curso de medicina, os demais possuem convênios que possibilitam
descontos na mensalidade de até 50 % (cinqüenta por cento) para alunos e dependentes por
intermédio de certas empresas privadas e públicas, sindicatos, Ministério da Defesa, escolas,
cursos, CDL (Câmara de dirigentes lojistas), Igrejas e Prefeituras, além dos próprios
funcionários da instituição e seus dependentes, cujo desconto chega a 100% (cem por cento).
De acordo com relatos de moradores locais, o bairro no entorno do Campus I, localizado em
Nova Iguaçu, desenvolveu e expandiu com a implantação da Universidade, o que deu ensejo
a uma linha de ônibus chamada “Faculdade”, em referência à universidade. Hoje, outras
Instituições de Ensino Superior, a exemplo da UNIABEU e a Universidade Estácio de Sá,
funcionam na região, mas a UNIG ainda possui um grande quantitativo de alunos,
funcionando nos turnos da manhã, tarde e noite. Em 2017.1, somente o curso de Direito
contou com mais de 2.000 alunos nos três turnos.
Atualmente, além do Curso de Direito, a Universidade possui diversos outros cursos
vinculados a cinco Faculdades: Ciências Biológicas e da Saúde, Ciências Exatas e
Tecnológicas, Educação e Letras, além de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas. Fora o

897
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Campus I, onde funciona a sede em Nova Iguaçu, possui ainda outros quatro Campi ativos
distribuídos na Baixada Fluminense, sendo um dos mais importantes o Campus III, onde está
localizada a EDHAPI (Escola de Desenvolvimento de Habilidades Profissionais Integradas),
que abrange o Núcleo de Prática Jurídica (NPJUR), o Escritório de Prática Jurídica
(ESAJUR), além de possuir pólos conveniados do PROCON e SEBRAE.
O Núcleo de Prática Jurídica tem o objetivo de estabelecer o diálogo entre sociedade
hipossuficiente de Nova Iguaçu e a Universidade, por meio da Assistência Jurídica
Universitária, realizando atividade de extensão, de acordo com o que estabelece a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, em seu artigo 52 que diz que “as universidades são
instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de
pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano(...)”.
Tendo em vista que a Defensoria Pública do Estado, órgão constitucionalmente
incumbido de atender aos vulneráveis economicamente, não tem condições materiais de
suportar tamanha demanda, o Escritório de Prática Jurídica acabou tornando-se uma
alternativa para aqueles que não têm condições de suportar as inúmeras filas e o atendimento
massificado pela enorme quantidade de processos que necessitam do auxílio deste Órgão.
Muitas partes que procuram inicialmente a Defensoria Pública da Comarca acabam sendo
encaminhados para o ESAJUR, realizando uma espécie de “convênio informal”, seja por
terem alguma restrição física que os impossibilitaria de enfrentar as longas horas de espera
para atendimento na Defensoria, seja por tratarem de ações não abrangidas por sua
competência, mas trabalhadas pelo ESAJUR (Que englobam direito do trabalho e direito
previdenciário, por exemplo).
Em contrapartida, os alunos integrantes do Núcleo, além de terem contato com a
prática jurídica de forma holística e multidisciplinar, são incentivados a terem uma visão
crítica e humana do direito, condizente com as necessidades da população local, em especial a
atendida pelo Núcleo, tendo em vista que o mesmo se presta a assistir os hipossuficientes.

3. A COMAR UNIG

A COMAR (Comissão de Mediação e Arbitragem) foi implementada pelo centro de


Formação Profissional da Universidade Iguaçu em fevereiro de 2014, com o objetivo de
utilizar a mediação de conflitos como solução para restabelecer o diálogo entre as partes, além

898
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de proporcionar ao graduando em direito contato com a prática da mediação por intermédio


de profissionais capacitados. O projeto teve início em 2012, de acordo com a portaria nº
12/2012, datada de 6 de novembro de 2012, expedida pelo Gabinete do Diretor do Curso,
Professor João Batista Barreto Lubanco1. Importante destacar que o objetivo inicial era, além
de realizar mediações, também estabelecer no local câmaras de arbitragem, daí a
nomenclatura utilizada. Contudo, tal medida não foi possível devido ao alto custo financeiro,
que não poderia ser suportado pela universidade naquele momento. A razão da manutenção
da nomenclatura se dá, pois até o final do ano de 2017 será feito novo estudo econômico para
tentar viabilizar sua implementação.
A Comissão de Mediação e Arbitragem da UNIG foi criada com a função de criar
oportunidade para que as partes discutam, questionem e contestem os seus conflitos
abertamente, com fins de solução amigável entre elas. O atendimento ocorre durante todos os
dias da semana. As partes atendidas devem residir nos Municípios de Nova Iguaçu ou
Mesquita e ter proventos individuais comprovados de até 3 (três) mil reais. O Centro de
Formação Profissional ao qual se vincula a COMAR localiza-se no Centro da cidade de Nova
Iguaçu. Fica em um prédio comercial, funcionando das 08:00 às 22:00h, de modo a
compreender os três turnos do curso de Direito e suas turmas, o que também acaba por
facilitar o acesso por parte da população economicamente ativa, que por trabalhar durante o
horário comercial, teria dificuldade de atendimento na Defensoria Pública, por exemplo, que
funciona somente de 2ª a 6º feira, em horário comercial.
A COMAR realiza as sessões de mediação às segundas-feiras o dia todo, quartas
pela manhã, quintas também o dia todo e sextas somente na parte da manhã, mas o primeiro
atendimento ocorre todos os dias nos três turnos, das 8 às 22hr. Há supervisão de advogados
do Núcleo de Prática Jurídica, que se revezam de acordo com os turnos e seus dias de plantão
de atendimento, sendo cinco ao todo.

1
Em pesquisa na rede mundial de computadores, é citado pelos sites da Prefeitura de São João de Meriti e de
Nova Iguaçu, mas não possui uma página oficial. Segundo o site Wikipédia, é formado pelo curso de direito na
Faculdade de Direito do Catete (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1954. Foi interventor de São João de
Meriti, nomeado pela ditadura militar, em 1970, permanecendo até 1971. Nas eleições de 1972 foi eleito vice-
prefeito de Nova Iguaçu. Em 1975, eleito pelo partido do governo, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA),
Lubanco assumiu a chefia do executivo até 1977. Em sua administração construiu a primeira pista de skate de
América Latina, inaugurada em 1976, e desapropriou a Fazenda São Bernardino, marco da arquitetura colonial do
Brasil, e expulsou seus moradores e proprietários (família Gavazzoni). Foi também deputado estadual do Rio de
Janeiro de 1978 a 1982. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Batista_Barreto_Lubanco>.
Acesso em 22 jun. 2017.

899
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Importante esclarecer que a comissão atende, além dos moradores de Nova Iguaçu,
moradores do município vizinho, Mesquita, que durante muitos anos foi parte da cidade de
Nova Iguaçu. Apenas em 1997, a cidade de Mesquita foi desvinculada e elevada à categoria
de Município, mas, a despeito de já ser considerada comarca de segunda entrância pelo
CODJERJ2 desde 2011, somente teve sua sede inaugurada em dezembro de 2013. Por esta
razão, mesmo após sua emancipação, durante o período de 1997 a 2013, as demandas
provenientes da população da região foram absorvidas pela Comarca de Nova Iguaçu, o que
explica a abrangência da Comissão de Mediação. Até o momento da inauguração de sua sede,
Mesquita contava apenas com um ônibus da chamada “Justiça Itinerante”, que de acordo com
o site do TJRJ, é coordenado pela Divisão de Justiça Itinerante e acesso à Justiça - DIJUI,
ligada ao Departamento de Instrução Processual - DEINP da Diretoria Geral de Apoio aos
Órgãos Jurisdicionais - DGJUR, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, cujo
principal objetivo é dar concreção ao postulado do amplo acesso à Justiça e fomentar a
cidadania, por meio de atendimentos regulares previamente estabelecidos mediante
calendários amplamente divulgados.
Foram realizadas ao todo 10 visitas, entre os meses de abril e maio de 2017, ocasião
em que foram realizadas observações no local, além de entrevistas com os atores da COMAR
(assistidos e funcionários). Foi possível observar que, inicialmente, as partes procuram o
Núcleo de Prática Jurídica da Universidade, seja por indicação de amigos e parentes que já
tenham passado por algum tipo de atendimento no local, seja por indicação da Defensoria
Pública, conforme explicado anteriormente, para ter acesso ao atendimento jurídico gratuito,
ou mesmo indicado por alunos ou ex aluno da instituição.
Após a triagem, que é feita por funcionários com treinamento específico, onde se
identifica o problema apresentado e o motivo da visita, o assistido, como é denominado o
atendido pelo Centro de Formação Profissional, é perguntado sobre a possibilidade de acordo
no problema apresentado, sendo ele na seara cível ou familiar. Caso a resposta seja positiva, o
funcionário pergunta se ele acredita que a outra parte aceitaria vir ao local para uma conversa
informal sobre o objeto da questão para então tentar se chegar a um acordo. Essa pergunta é
considerada crucial para o encaminhamento ou não da parte para a realização do

2
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Lei nº 6.956, de 13 de janeiro de 2015. Dispõe sobre a Organização e Divisão
Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. Disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.
br/CONTLEI.NSF/f25571cac4a61011032564fe0052c89c/7954a68a437095b983257dcf00599dda?OpenDocume
nt>. Acesso em 22 jun. 2017.

900
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

procedimento de mediação. O assistido é informado que se trata de uma tentativa de acordo, o


nome mediação é citado, mas nãofoi possível observar de fato uma explicação específica
sobre a mediação, ou mesmo um interesse das partes em compreender do que se trata.
Foi possível perceber um cuidado em informar as partes e de fato incentivar o
restabelecimento do diálogo entre elas. Não há imposição para o acordo ou mesmo
obrigatoriedade na realização daquela mediação. As partes são recebidas na sala de mediação,
recebem uma breve explicação sobre o procedimento, enfatizando que o mesmo só pode ser
concretizado caso as próprias partes tenham interesse e queiram estabelecer o diálogo. As
mediações são marcadas com ao menos 1 hora de diferença entre uma e outra, e vi algumas
situações em que as mesmas foram remarcadas, não existindo uma quantidade pré-
estabelecida de remarcações.
Na COMAR, a sessão de mediação inicia-se com as partes sendo chamadas até a
sala específica, onde são solicitados seus documentos pessoais para a confecção de
procuração, declaração de hipossuficiência e uma ata, nos moldes de uma petição inicial, que
será posteriormente distribuída eletronicamente por meio do site do Tribunal de Justiça para a
homologação judicial por um juiz da Comarca de Nova Iguaçu ou de Mesquita, dependendo
da localidade em que moram os assistidos.
Caso as partes entrem em acordo, a ata da mediação, que conforme dito, é
confeccionada como uma petição inicial, é distribuída eletronicamente no site do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro no item do sistema eletrônico “homologação de transação
extrajudicial”, com livre distribuição para qualquer uma das cinco Varas de Família da
Comarca de Nova Iguaçu, a fim de serem homologadas por um juiz de família da Comarca. É
importante destacar que não há prazo ou mesmo limites para o número de mediações a serem
realizadas, dependendo das partes mediadas e do caso concreto a ser analisado, o que
confirma uma das promessas da mediação relacionada à informalidade do procedimento, que
deve amoldar-se ao caso concreto.
A despeito disto, os relatórios de atendimento não discriminam quantas mediações
são realizadas em um mesmo caso concreto, e limitam-se a elencar as mediações “positivas”,
que conforme dito, são entendidas como as mediações homologadas, e “negativas”,
entendidas como as não homologadas ou aquelas em que há ausência de uma ou de ambas as
partes. Não levam em consideração os motivos da desistência de uma das partes, ou de
ambas, por exemplo, ou mesmo se o não comparecimento se deu por motivos outros que não

901
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

a ausência de interesse, e sim a disponibilidade de tempo ou recursos financeiros, já que a


Comissão atende em sua maioria pessoas consideradas hipossuficientes pela Lei, que
conforme dito, devem possuir renda individual mensal de no máximo R$ 3.000,00 (Três mil
reais).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas mediações observadas e entrevistas com assistidos e assistentes da


COMAR UNIG algumas observações foram possíveis. A primeira delas, é que de fato os
procedimentos de mediação realizados pela COMAR UNIG são mais céleres do que um
procedimento judicial, tanto em relação ao primeiro atendimento, quanto em relação à
homologação. A fala que se repetiu entre os assistidos, que antes de procurar a COMAR se
dirigiram à Defensoria Pública é que a marcação para o primeiro atendimento estava sendo
agendada para três meses, o que não ocorria na COMAR, onde o primeiro atendimento era
agendado, em média para no máximo um mês.
Pela fala dos funcionários, mediadores e pelos documentos a que pude ter acesso,
em geral, do primeiro atendimento à homologação, as mediações da COMAR levam três
meses, podendo variar para um pouco mais ou um pouco menos, dependendo da vara em que
forem distribuídas. Já em relação aos procedimentos judiciais tradicionais, ainda que
consensuais, não é possível precisar com exatidão. Conforme o próprio Relatório Justiça em
Números, que traz indicativos da duração dos processos no Brasil, essa tarefa é complexa.

O tempo do processo é um objeto de pesquisa de difícil apuração, pois são quase


infinitas as combinações de situações de fato e de direito a caracterizarem cada ação
judicial no Brasil. Quando tantas especificidades são reunidas em um número
apenas, a natural primeira impressão é de imprecisão, já que os extremos são
diluídos em uma média. Portanto, a duração dos casos judicializados no Brasil
ainda não detalhará os efeitos de cada componente de tantas combinações a
configurarem cada característica de um processo, nem possibilitará que se saiba
quais as causas para as maiores delongas, tampouco aclarará por completo o que
faz com que muitos casos sejam bastante céleres. Ainda estamos perseguindo estes
objetivos por outros caminhos, paralelos ao Justiça em Números. (BRASIL, 2016,
p. 13)

Contudo, pelos relatos dos funcionários, esses costumam durar bem mais que os três
meses de média das mediações, desde a propositura até a homologação do acordo, o que
indica que as mediações, ao menos realizadas pela COMAR, são de fato mais céleres do que
o procedimento tradicional.

902
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Outra percepção possível é com relação às diferenças entre mediação e conciliação.


Essa distinção não parece ser bem compreendida pelos atores da mediação. Essa confusão se
estabelece o tempo todo na COMAR, não só na fala dos funcionários do Núcleo e
participantes diretos da mediação, mas nos próprios documentos oficiais do órgão
institucional. Os assistidos também não conseguem observar essas diferenças, algo que não
parece importar para eles, sendo uma discussão meramente técnica. Na prática, o que esperam
é a resolução rápida de seus problemas, sem conhecimento dogmático de como isso se dá ou
mesmo preocupação de como acontece.
Com relação à autonomia das partes, foi possível observar que a maioria dos casais
que participaram de mediações “positivas” já chegavam ao local com os termos praticamente
prontos, então não foi possível identificar se de fato a mediação propiciou essa tomada de
decisões conjunta e autônoma, parecendo mais que isso já estava pré-estabelecido entre eles,
cabendo à mediação apenas a “legalização” de suas decisões.
Uma das promessas da mediação é a sua indicação para questões de relação
continuada, como as de família. Importante destacar que a grande procura pela resolução de
questões familiares é e sempre foi alta no Núcleo de Prática Jurídica da Universidade, o que
posso dizer pela experiência como aluna e depois como professora no local, pro
aproximadamente 2 anos. Isso acaba “esvaziando” o atendimento que é realizado em outras
áreas. Contudo, como se tratam de relações complexas, de múltiplos vínculos e que
geralmente envolvem mais de uma possibilidade de ação (Divórcio pode envolver alimentos e
guarda, entre outros) a realização dessas mediações parece de fato contribuir para um maior
número de soluções consensuais nesse tipo de caso, o que vem crescendo a cada semestre,
diminuindo o ingresso de ações judiciais não consensuais pelo Escritório de Prática Jurídica.
Outro fator que explica a grande quantidade de mediações na área de família e
pouca na área é que a maioria das pessoas quando procura o Núcleo para questões
envolvendo matéria cível, está em busca de reparação referente a direito do consumidor,
sendo encaminhados diretamente para o PROCON. De fato, a mediação sequer é a medida
mais indicada para esse tipo de questão, ao menos do ponto de vista dos seus estudiosos. Há
de fato um grande número de realizações de acordo nas mediações. Quando esta não ocorre,
em geral, é porque se tratam de questões que envolvam patrimônio, o que torna mais difícil
uma decisão consensual. Contudo, isso pareceu ocorrer mais devido a uma pré-disposição das
partes que procuram a UNIG e pela forma como são encaminhadas para a COMAR, do que

903
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

algo efetivamente proporcionado pelo emprego da mediação em na resolução dos seus


conflitos.

REFERÊNCIAS:

ALVES, José Cláudio Souza. Dos Barões ao extermínio: uma história de violência na Baixada Fluminense. Rio
de Janeiro: Ed. Sepe/APPH-CLIO. 2003.

AMARAL, Márcia Terezinha Gomes. O Direito de Acesso à Justiça e a Mediação. Rio de Janeiro: Lumem Juris,
2009.

ARAUJO, Silvia Maria de; BRIDI, Maria Aparecida; MOTIM, Benilde Lenzi. Sociologia: um olhar crítico. São
Paulo: Contexto. 2009.

BARRETTO, Vicente de Paulo (Org). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar. 2006.

BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. A importância da interdisciplinaridade na pesquisa jurídica: olhando o


direito sob outro viés. Anais do XVI Encontro Nacional do CONPEDI, 2007.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 125 de 29 de novembro de 2010. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323-resolucoes/12243-resolucao-no-125-de-29-
de-novembro-de-2010>. Acesso em 20 ago. 2017.

______. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:


http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=330350. Acesso em 20 ago. 2017.

______. Justiça em Números 2016: Ano base 2015/Conselho Nacional de Justiça – Brasília. CNJ, 2016.
Disponível em
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf>. Acesso em
20 ago. 2017.

______. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 20 ago. 2017.

______. Lei nº 13.140, de 25 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução
de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera a Lei
no 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o § 2o do art. 6o da Lei
no 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/Lei/L13140.htm>. Acesso em 20 ago. 2017.

CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Fabris, 1988.

DEMO, Pedro. Pesquisa e informação qualitativa. Aportes Metodológicos. São Paulo: Papirus, 2001.

FILPO, Klever Paulo Leal. Mediação Judicial: Discursos e práticas. 1 ed. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2016.

FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Como chegar ao SIM: negociação de acordos sem
concessões. Tradução: Vera Ribeiro e Ana Luiza Borges. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

GOMES, Luciane Mara Correa. NADER, Carmen Caroline Ferreira do Carmo. Mediação como política pública:
a sociedade reclama um Judiciário mais sensível aos conflitos sociais. IV Jornada de Ciências Sociais UFJF –
“As Ciências Sociais: Caminhos e interseções”. 10-13 nov. 2015, UFJF, Juiz de Fora-MG, p. 4.

904
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

LIMA, Roberto Kant de. Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do Direito
brasileiro em perspectiva comparada. Anuário Antropológico, v. 2, 2010.

______; BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. A pesquisa empírica no Direito como desafio para um judiciário
mais democrático. Anais do Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política. 7, Recife, Pernambuco,
2010.

MANZINI, E. J. Entrevista Semi-estruturada: análise de objetivos e de roteiros. IN: Seminário Internacional sobre
pesquisa e estudos qualitativos. 2004, Bauru. Anais... Bauru: USC, 2004, v.1. p.01-10. 1 CD.

MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Curso de Processo Civil. Volume 1. 2015

MORAIS. José Luis Bolzan de. SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à jurisdição!
3ª. Ed. rev. e atual. com o Projeto de Lei do novo CPC brasileiro. (PL 166/2010), Resolução 125/2010 do CNJ.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

PINHO, Humberto Dalla Bernardino de. O novo CPC e a Mediação: Reflexões e Ponderações. Disponível em
http://www.humbertodalla.pro.br/artigos.htm. Acesso em 20 ago. 2017.

______. PAUMGARTTEN, Michele Pedrosa. Os desafios para a integração entre o sistema jurisdicional e a
mediação a partir do novo código de processo civil. Quais as perspectivas para a justiça brasileira. In
ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A mediação no novo código de processo civil. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2016, p. 1-32.

RIO DE JANEIRO (ESTADO). Lei nº 6.956, de 13 de janeiro de 2015. Dispõe sobre a Organização e Divisão
Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências. Disponível em:
<http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/f25571cac4a61011032564fe0052c89c/7954a68a437095b983257
dcf00599dda?OpenDocument>. Acesso em 22 jun. 2017.

UNIVERSIDADE IGUAÇU. Disponível em: <http://www.unig.br>. Acesso em 20 ago. 2017.

VASCONCELOS, Carlos duardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 4 ed. rev., atual. e ampl. Rio
de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2015.

905
EM BUSCA DE UM NOVO SABER JURÍDICO:
A EXPERIÊNCIA EM “PODER JUDICIÁRIO E POLÍTICA”

MACHADO, Joana de Souza


Professora da Faculdade de Direito da UFJF
VALENTE, Mário José Bani
Estudante de Graduação da Faculdade de Direito da UFJF

RESUMO

O presente estudo traz relato de experiência em torno da criação e vivência do curso de Poder
Judiciário e Política na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. A partir desse
relato, intenta refletir sobre tradições no ensino jurídico e vias de ruptura para a construção de uma
educação emancipatória. Para tanto, aborda as tentativas de inovação metodológica e de estruturação
de temas no campo da disciplina, na busca de uma experiência de educação jurídica socialmente
referenciada, horizontal e contra hegemônica. Aponta e analisa criticamente os desafios encontrados
nessa trajetória e as perspectivas por ela lançadas. O trabalho se ampara teoricamente nas construções
críticas de Paulo Freire e Pierre Bourdieu sobre educação. Espera-se contribuir para uma avaliação
crítica da realidade do ensino jurídico, bem como para a reflexão sobre alternativas aos modelos
tradicionalmente adotados.

Palavras-Chave. Poder Judiciário. Ensino Jurídico. Metodologia.

ABSTRACT

The present study brings an experience report about the creation and experience of the course of
Judiciary and Politics at the Law School of the Federal University of Juiz de Fora. From this report, it
tries to reflect on traditions in the legal education and routes of rupture for the construction of an
emancipatory education. In order to do so, it approaches the attempts of methodological innovation
and structuring of subjects in the discipline field, in the search for an experience of socially referenced,
horizontal and counter hegemonic legal education. It points out and critically analyzes the challenges
encountered in this trajectory and the perspectives it launches. The work theoretically relies on the
critical constructions of Paulo Freire and Pierre Bourdieu on education. It is hoped to contribute to a
critical evaluation of the reality of legal education, as well as to the reflection on alternatives to the
models traditionally adopted.

Keywords. Judiciary. Legal Education. Methodology.

906
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O presente trabalho traz relato de experiência em torno da criação e vivência de uma


disciplina no curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, a
disciplina “Poder Judiciário e Política”. A partir desse relato, é problematizada a realidade
local do ensino jurídico e são discutidos caminhos para que seja repensado em moldes
emancipatórios. Para tanto, discutem-se concepções metodológicas e didáticas testadas a
partir de 2012 quando se deu a proposta de criação da disciplina de ênfase pela Professora
Joana de Souza Machado, ministrada e atualizada com a constante colaboração da equipe do
projeto de monitoria.
A proposta da disciplina funda-se na busca pela contraposição ao que Paulo Freire
chama de educação bancária, que rege as relações dentro das salas de aula, ou seja, procura-se
contrapor ao modelo de educação verticalizada, hierarquizada, que se ampara no pressuposto
de que o aluno nada sabe, mero objeto que recebe o conhecimento do professor, o detentor do
saber. Esse modelo contribui, de forma consciente ou não, para a formação de indivíduos não
questionadores e subordinados a uma ordem dominante vigente. Há vias de ruptura com esse
modelo?
O presente trabalho procurará recompor os caminhos do processo de construção do
conhecimento em Poder Judiciário e Política (PJP) e apresentar alternativas possíveis para o
ensino jurídico a partir dessa experiência em campo. Inicialmente, será apresentada a
concepção acerca da avaliação e do ensino no sistema educacional em curso e os métodos
adotados na referida disciplina. Em seguida, abre-se espaço à discussão sobre o papel de
ferramentas extras, utilizadas mais pontualmente ao longo do curso, como rodas de conversa,
sensibilização pela arte e grupo virtual, na construção do saber. Por fim, são apontadas e
analisadas criticamente as dificuldades e perspectivas de modelos alternativos de ensino
jurídico, especialmente o adotado em PJP.
Ao se discorrer sobre as discussões metodológicas do ensino jurídico, não devem
estar fora do locus de análise e da proposta deste estudo os problemas enfrentados ao se
lecionar uma das “profissões imperiais” (COELHO, 1999), como é o Direito, e que, portanto,
carrega consigo um elitismo marcante desde as primeiras Faculdades de Direito no território
brasileiro, quais sejam, as de Olinda e de São Paulo. O tradicionalismo ainda presente, sem
grandes modificações, nas salas de aula, dificulta a introdução de temas caros à construção do
saber no campo jurídico, como o racismo, a LGBTTIfobia, o machismo, a intolerância

907
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

religiosa e a política, de modo que quando chegam a ter espaço esses temas costumam receber
um tratamento tecnicista e socialmente pouco ou nada referenciados.
Desse modo, a partir da reflexão que propõe, este trabalho busca contribuir para a
ruptura das amarras que ainda inibem modificações mais substanciais nas formas de se
conceber o ensino jurídico na contemporaneidade. Assim, utiliza-se de autores críticos ao
modelo de ensino tradicional e ao campo jurídico, como Paulo Freire e Pierre Bourdieu,
respectivamente, na expectativa de pavimentar caminho para a construção de um novo saber e
ensino jurídicos, com novas cores, horizontalidade, empatia, acolhimento e humanidade.

1. O MÉTODO EDUCATIVO E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO SABER

Primeiramente, é necessário que se apresentem quais as concepções sobre avaliação


(ou exame) e o ensino jurídico que orientam a proposta de Poder Judiciário e Política. Dessa
forma, entende-se que “o exame não é outra coisa senão o batismo burocrático do
conhecimento, o reconhecimento oficial da transubstanciação do conhecimento profano em
conhecimento sagrado” (MARX, 2005), ademais, não se pode perder de vista que ele é, além
da expressão mais visível dos valores e das escolhas do sistema de ensino, é, também, através
da separação entre profano e sagrado, um instrumento extremamente eficaz à introdução da
cultura dominante e dos valores inerentes a ela (BOURDIEU; PASSERON, 2014).
Nesse sentido, o exame serve como instrumento de dominação, que se materializa
com o exercício de uma violência simbólica (BOURDIEU, 1989). Ademais, utilizando-se dos
conceitos de habitus e de capital cultural propostos por Pierre Bourdieu, permite-se afirmar
que são linhas que se conectam constantemente nas salas de aula de uma Faculdade de
Direito, isso porque possibilitam a intensificação das diferenças por meio da imposição
daqueles que detêm o saber e cultura, eruditos, sobre aqueles que são, em tese, despossuídos
destes. Assim, um ensino que se pretende atenuador de diferenças, acaba por intensifica-las e
contribuir para a construção de um saber que domina e não liberta. Questões como essas são
constantemente debatidas em PJP, privilegiando a participação dos (as) estudantes, tendo por
objetivo a desconstrução de tradições e de elitismos que não coadunam com uma proposta de
ensino emancipatória. Mas o que significa um ensino crítico e emancipador?
Um ensino crítico e emancipador pode ser entendido como aquele que percebe no
ensino tradicional a priorização da técnica e da transmissão de um conhecimento

908
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

instrumental, no qual as instituições de ensino são grandes centros de instrução,


impossibilitando a conscientização sobre temas importantes, como o conhecimento, a
dominação e o poder-saber (FOUCAULT, 2015). Para Paulo Freire e sua teoria educacional,
é necessário compreender a ideia de que as formas tradicionais de educação são instrumentos
de objetivação e de alienação dos grupos oprimidos, assim, a proposta do debate acerca de
temas relacionados às variadas facetas da opressão em PJP procura, essencialmente, a
superação dessa forma de se conceber o ensino, pautando o desenvolvimento pelos (as)
estudantes de uma compreensão crítica de sua relação com o mundo.
O caminho para a auto-emancipação passa necessariamente pela dialética e pelo
diálogo em sala de aula, pois “o diálogo é exigência existencial” (FREIRE, 1987) para que
seja possível a reflexão sobre a realidade que os (as) estudantes se depararam hoje, enquanto
alunos (as), e no futuro, enquanto profissionais. Por esse motivo, o processo avaliativo e o
método educativo do curso de Poder Judiciário e Política procuram privilegiar a fala dos (as)
estudantes em sala de aula, seja abrindo espaço para que possam apresentar argumentos
aplicados a casos concretos, seja incentivando a expressão de forma lúdica e artística.
Ademais, busca-se valorizar a criticidade e a criatividade, a fim de se construir um espaço no
qual se incentive uma construção plural do saber, distanciando-se da tradicional tentativa de
pura transferência de conteúdo. A valorização da criticidade, em especial, deve ser
compreendida enquanto fomento da reflexão crítica da realidade em que tanto o educando
quanto o educador estão inseridos (FREIRE, 1987).
Por meio do uso de referenciais transdisciplinares em PJP – essencialmente, da
Ciência e Filosofia Políticas, da Sociologia e da Teoria da Justiça – e de uma perspectiva
comparada de sistemas jurisdicionais, a disciplina articula seu conteúdo programático em três
módulos de maneira a contribuir para que os (as) estudantes se engajem em uma reflexão
crítica a respeito do sistema de justiça e repensem os limites institucionais da atividade
judicial, além de concebê-la enquanto novo (e crítico) espaço de representação política e
tradicional esfera de efetivação de direitos.
Dessa forma, o método educativo de “Poder Judiciário e Política” foge da
tradicional prática do ensino jurídico dos cursos de Direito, os quais prezam somente pelo
tecnicismo e pela reprodução do conhecimento, deixando de lado a construção dialética deste,
onde os (as) estudantes teriam papel central. Destarte, as atividades utilizadas no processo
avaliativo e de construção do conhecimento também se distanciam das usuais provas, mas

909
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sem se distanciarem do campo jurídico, comprovando ser possível entendê-lo de uma nova
forma. Utilizam-se os seguintes instrumentos: painéis de discussão de textos; práticas
argumentativas; visita a órgão estatal; participação em role-play e na sensibilização pela arte;
elaboração de um portfólio, de um ensaio de análise de caso e de um grupo em rede social.
Parte-se, portanto, à explicação conceitual e programática de cada um desses instrumentos,
compreendidos como construtores de conhecimento, não mais como avaliativos stricto sensu.

1.1. PAINÉIS DE DISCUSSÃO DE TEXTOS: EM BUSCA DE ACÚMULO TEÓRICO


COLABORATIVO

Os painéis de discussão consistem na apresentação e no debate de textos de variados


autores e autoras, divididos em três módulos ao longo do semestre. A atividade, hoje, após
algumas modificações ao longo da existência da disciplina, estrutura-se de forma que os (as)
estudantes pré-selecionados (as) são divididos (as) em dois grandes grupos, quais sejam:
relatores e revisores. Os primeiros devem procurar apresentar suas apreensões sobre o texto e
a teoria trabalhada por ele, procurando trazer conceitos essenciais para uma compreensão
inicial do tema. Os segundos devem atuar como verdadeiros revisores, ou seja, fazendo
questionamentos e apontamentos ao texto e em diálogo com a fala do painel de relatoria. Essa
prática de construção do conhecimento é feita semanalmente e preza, em grande medida, por
oportunizar um acúmulo teórico colaborativo sobre as temáticas, no qual cada estudante em
sala se responsabiliza pela construção do saber do outro.
Assim, os painéis cumprem função muito importante, pois estimulam os (as) alunos
(as) a participarem ativamente da construção de seu conhecimento jurídico, além de
contribuírem para o desenvolvimento da espontaneidade e da argumentação. Além disso,
fogem da “lógica manualesca” presente nas Faculdades de Direito, propondo um real esforço
cognitivo pelos (as) estudantes. Por fim, cabe mencionar que é papel da educadora e dos
monitores contribuir com o fomento deste debate, trazendo novas críticas e ponderações,
especialmente por meio de conexões da teoria com a realidade, estrutural, e/ou com a
conjuntura.

910
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1.2. PRÁTICA ARGUMENTATIVA: DAS REFLEXÕES TEÓRICAS AOS CASOS


CONCRETOS

Nas aulas seguintes aos painéis, são realizadas as práticas argumentativas, que se
caracterizam pela reflexão acerca de um caso concreto, geralmente decisões judiciais que
propiciem a aplicação dos conceitos presentes no painel anterior, de modo a efetivar o debate
acerca desses conceitos e a proporcionar a construção de uma visão reflexiva e crítica.
Durante a atividade, os (as) estudantes são divididos (as) em grupos com distintas tarefas
argumentativas diante do caso. Sugere-se em geral que o (a) estudante tente identificar
eventual pré-compreensão sobre o pano de fundo temático do caso e que procure integrar o
grupo cuja tarefa argumentativa se choque com essa posição, a fim de que exercite sua
capacidade argumentativa.
São priorizados nas escolhas dos casos concretos aqueles que tangenciem problemas
sociais que influenciam o hoje e o amanhã dos (as) alunos (as), sendo possível que eles (as)
interajam com as demandas sociais. Nesse sentido, as práticas argumentativas são de extrema
importância, pois, primeiramente, contribuem para o melhor entendimento dos temas
trabalhados em aula anterior, e também porque, por meio da construção de argumentos, é
possível romper com as amarras impostas pelo ensino tradicional, principalmente o ensino
jurídico tradicional, através de uma análise interdisciplinar.

1.3. VISITA AO ÓRGÃO ESTATAL E O ROLE-PLAY COMO VERDADEIRAS


PRÁTICAS JURÍDICAS

A disciplina de PJP procura desafiar a cisão entre teoria e prática comumente


cultuada no ensino jurídico. Para tanto, dentro do ensino construído na disciplina, adotam-se
algumas aproximações práticas, como a experiência junto a órgão estatal e a prática simulada
por meio do método do role-play. O ensino jurídico tradicional costuma situar como aula
prática aquela lecionada por um docente cuja ocupação profissional principal seja outra, como
se a experiência do docente como agente essencial da justiça, por exemplo, fosse
imediatamente transferível, independentemente de escolhas metodológicas, ao conjunto de
estudantes. Sob a compreensão de que valorizar a prática é oportunizar experiências próprias
às e aos estudantes de aproximação com o direito em movimento, a disciplina investe nas
seguintes estratégias metodológicas.

911
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A experiência junto ao órgão estatal tem o objetivo de aproximar o (a) aluno (a) da
atuação de um dos Poderes da República. A inserção dessa atividade foi posterior e se faz
importante pois leva o conhecimento para fora da sala de aula, possibilitando a compreensão
sobre temas debatidos durante o semestre, como a repartição dos poderes, as atividades
legislativa e judicial, a construção do Direito institucionalmente, dentre outros. Após a
experiência (visita, participação de audiência pública, etc.), é necessário que se faça um
relatório, abordando quais foram as impressões e as dificuldades detectadas em realizar essa
atividade. Durante essa relatoria não somente cabem os apontamentos de questões objetivas,
mas também devem ser descritas as informações subjetivas e as sensações relativas ao
ambiente físico visitado - ponto muito relacionado com a análise de Pierre Bourdieu sobre o
campo jurídico, que é discutida pelos (as) alunos (as) - bem como as contribuições
proporcionadas por esta experiência.
Realizam-se também simulações de julgamento, que, apesar de serem uma opção
de prática jurídica, ainda não são tão frequentes no curso de Direito da UFJF. Por meio da
dinâmica de role-play, a disciplina propicia a experimentação de sensações similares às que
visitam juízes (as) e partes envolvidas em casos difíceis, como os que ditam sobre direitos de
minorias representativas, de forma que a análise crítica feita, ao longo da disciplina, em torno
da atividade jurisdicional, possa ser também humanizada.
O role-play é uma espécie do grande gênero da prática simulada e consiste em um
jogo de papéis, com natureza lúdico-pedagógica, por meio da qual pessoas adultas brincam de
vivenciar situações que suscitam decisões, posicionamentos, antecipação e avaliação de
consequências. A dramatização propicia o envolvimento dos e das participantes em torno de
algum conflito em relação ao qual precisam realizar um julgamento moral.
São realizadas três atividades desta espécie ao longo do semestre, sempre ao fim de
cada módulo. São organizadas simulações de julgamento de casos de grande repercussão
social, anteriormente apreciados pelo Supremo Tribunal Federal e, preferencialmente,
daqueles nos quais o Tribunal tenha utilizado audiência pública, que ao menos, em tese, serve
como instrumento de diálogo social voltado a conferir legitimidade democrática à tomada de
decisão da esfera deliberativa. Ao longo de todos os semestres em que a disciplina, que tem
caráter de ênfase, foi disponibilizada aos alunos, já foram simulados diversos julgados de
grande repercussão social, como o das ações afirmativas no ensino superior, do aborto de
fetos anencéfalos, do uso de células tronco, do reconhecimento da união estável homoafetiva,

912
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

do uso de substância entorpecente, escola sem partido, entre outros e o mais recente, sobre
ensino religioso em escolas públicas.
Por fim, cabe uma explicação sobre como a atividade é estruturada. Dessa forma, a
experiência é dividida em dois momentos: o primeiro corresponde à fase de audiência
pública, na qual são ouvidos atores da sociedade civil que têm relação com a temática
discutida; no segundo, é simulada a sessão de julgamento em que as ministras e os ministros
do STF proferem seus votos. Para interpretar tais papeis, alunas e alunos são incentivadas (os)
a se caracterizar, assumindo o personagem. São disponibilizadas togas para aqueles (as) que
representam os (as) ministros (as) do STF, o que facilita a adequação e a crítica à posição
ocupada pelo (a) julgador (a). Após a interpretação, as alunas e os alunos devem tecer uma
opinião crítica sobre o tema e a posição adotada por quem interpretou. Pode-se concluir,
portanto, que a disciplina possibilita aos (as) alunos (as) uma abordagem plural e
extremamente rica de métodos de ensino jurídico, sem se descolar tanto de discussões
dogmáticas quanto da apreensão de questões sociais tocantes ao Direito.

1.4. ENSAIO CRÍTICO E PORTFÓLIO: PRODUÇÃO DE TEXTO E BALANÇO DO


PROCESSO EDUCACIONAL

Ao final do semestre letivo os (as) estudantes devem apresentar dois trabalhos. O


primeiro deles é o ensaio crítico, produção de texto em que se mobiliza o acúmulo teórico
construído de forma colaborativa na disciplina. Estudantes, em seus ensaios, problematizam a
natureza e os limites da atividade judicial, a partir de um caso concreto de sua livre escolha, já
julgado pelo Judiciário brasileiro. Mais uma forma pela qual se busca a construção de um
saber socialmente referenciado.
O segundo desses trabalhos é o portfólio, que se traduz em uma coletânea de
evidências sobre o próprio processo de aprendizagem e habilidades desenvolvidas ao longo
do estudo em Poder Judiciário e Política. Devem ser juntados elementos que dialoguem com a
disciplina e seu objeto de estudo, como anotações de aula, poesias, imagens, letras de músicas
e até mesmo publicações em rede sociais atinentes ao curso. Não são impostas estruturas
formais para sua elaboração, ou seja, é livre e deve ser e pautada na criatividade em
demonstrar o impacto gerado pelo curso nos (as) estudantes. Sua função é simples, porém, de
grande valia, isso porque permite que a professora e a equipe de monitoria tenham um repasse
por toda turma sobre como conceberam a disciplina, possibilitando uma constante reflexão

913
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sobre os métodos adotados, já tendo contribuído para modificações estruturais. Dessa forma,
cumpre-se mais uma vez a proposta dialética da disciplina, onde professora, monitores e
alunos (as) atuam em conjunto na construção do projeto de ensino.

2. RODAS DE CONVERSA, ARTE, O VIRTUAL E A RESSIGNIFICAÇÃO DO


QUE É JURIDICAMENTE RELEVANTE

Como se demonstrou até aqui os processos de construção do saber em Poder


Judiciário e Política são os mais variados, prezando-se pela construção coletiva de um
conhecimento teórico e prático, sem descuidar do necessário vínculo com a realidade em que
estamos inseridos, a qual deve ser constantemente refletida. Nesse contexto, acredita-se,
também, que é possível adotar novas formas de se discutir o campo jurídico de modo a
ressignificar o que é considerado juridicamente relevante. Para tanto, adotam-se ferramentas
extras na disciplina, quais sejam: a Roda de Conversa, a Sensibilização pela Arte e a
discussão em grupo de uma rede social. Parte-se, portanto, à explanação acerca delas.
As Rodas de Conversa são realizadas em três ocasiões, sempre antes da realização
de cada role-play, tendo como ponto de central de discussão temas que tangenciam o
julgamento que será simulado. Tal iniciativa busca a conscientização social dos (as)
estudantes, procurando proporcionar um espaço de protagonismo aos temas tradicionalmente
marginalizados pelo ambiente acadêmico. Em geral, são objeto das discussões o movimento
negro, o LGBTTI, questões de gênero, a intolerância religiosa, o próprio ensino jurídico e
temas que foram propostos pelos (as) estudantes.
Importante destacar que nesta atividade pessoas que têm vivência no tema debatido
e/ou que se dedicam a estudá-lo são convidadas para que possam contribuir com a dinâmica,
com um ponto de partida hábil a conferir ao tema a sua devida complexidade. Com as rodas
de conversa dois objetivos são alcançados: os (as) estudantes têm a possibilidade de
compreender temas que geralmente são invizibilizados no meio acadêmico; e, por meio do
privilégio de fala, ampliam-se as vozes que comumente são silenciadas em nossa sociedade.
De todo modo, apesar dessa apresentação inicial e o privilégio de fala, o debate é aberto,
proporcionando aos alunos a possibilidade de questionamentos às e aos convidados e entre
seus pares.

914
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Outro caminho adotado para romper com o ensino jurídico hermético e alienante é a
realização da Sensibilização pela Arte. Experiências sensoriais, viabilizadas pelas artes, são
transformadoras em nosso processo de formação de identidade, contribuindo também para o
processo pedagógico crítico e reflexivo previsto no plano de curso da disciplina, criticidade e
reflexão que, como nos alerta Paulo Freire, são aspectos indispensáveis para a superação da
alienação. Dessa forma, a arte não somente nos (re) conecta e contribui para melhorar a
qualidade de vida no ambiente universitário, como também proporciona o encontro com a
sociedade e a cultura em que estamos inseridos.
Nessa lógica, na proposta da atividade, a sala de aula é afirmada enquanto espaço
lúdico e cultural, acomodando a livre manifestação das subjetividades, com intervenções
artísticas diversas, como poemas, músicas, teatros, danças, dentre outras modalidades. O
conteúdo das apresentações é livre, procura-se que hajam apresentações que de alguma forma
dialogam com o tema da disciplina, ou seja, o Poder Judiciário e Política, entretanto, não há
uma limitação quanto a isso, de forma a realmente contribuir com o objetivo da proposta.
Deste modo, não há censura prévia ou juízo de admissibilidade para as intervenções, bastando
apenas a vontade de se expressar.
Como a disciplina propõe-se a desenvolver um saber crítico, direcionado à realidade
social, as e os estudantes acabam por demonstrar esse espírito crítico nas apresentações, como
fruto direto das experiências vivenciadas em sala de aula. Assim, as e os estudantes
percebem-se como sujeitos do conhecimento, atores responsáveis pela sua própria condução
pedagógica – dentro e fora da disciplina - pois o indivíduo “deve ser o sujeito de sua própria
educação, não pode ser o objeto dela” (FREIRE, 1979).
Por fim, cabe destacar, neste momento, que Poder Judiciário e Política não só
promove métodos avaliativos diferenciados, nos quais o objetivo é a construção do
conhecimento do (a) estudante, como também fomenta a discussão fora dos muros da
universidade – o que torna as redes sociais amplamente relevantes, pois se configuram como
espaços férteis de promoção de debates. Para fazer essa comunicação se estender ainda mais
para outros horários e espaços que não os da aula, a disciplina conta com um grupo no
Facebook. Neste grupo, quaisquer alunos ou alunas podem manifestar-se publicando notícias
e assuntos relativos aos temas discutidos durante as aulas. O grupo é composto por estudantes
que estão com a disciplina em curso no semestre e por aqueles e aquelas que já passaram
pelas aulas.

915
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O seu objetivo desta proposta é funcionar como um fórum constante de discussão,


uma vez que o pensamento crítico não deve ficar restrito apenas às salas de aula, devendo
perpassar todos os aspectos da vida. Dessa forma, há um intercâmbio de conhecimento que
torna a experiência em Poder Judiciário e Política mais rica e proveitosa. É exatamente nesse
sentido que a disciplina se constrói, promovendo espaços de discussão que abranjam
quaisquer opiniões e que possibilitem o diálogo entre experiências distintas, pois a prática
educativa deve ser local de intenso diálogo e debate, sempre aberto aos educandos, e à análise
crítica sobre a realidade.

3. PASSADO, PRESENTE E FUTURO: A REALIDADE, AS DIFICULDADES E


AS PERSPECTIVAS

A disciplina de Poder Judiciário e Política tem história. Foi construída, do ponto de


vista dos temas e bibliografia, a partir dos estudos de mestrado e doutorado da Prof.ª Joana
Machado, e teve como proposta, desde seu início, apresentar uma nova forma de se conceber
o ensino jurídico, especialmente no que se refere às posições hierarquizadas, à participação do
(a) aluno (a) na construção do saber e o papel das avaliações. Entretanto, isso não significa
que não houve dificuldades em sua implementação, dificuldades ainda presentes. Afinal, em
uma Faculdade de Direito, em um campo mais conservador como o campo jurídico, como se
pode conceber uma aula com arte ou a partir de uma roda de conversa?
Ao longo dos mais de cinco anos em que a disciplina ênfase é ofertada, do teste e
amadurecimento da proposta, não foram poucos os desafios e resistências encontrados. Como
a disciplina trabalha com o conceito de presença qualificada, via participação, e não de
controle de frequência, sofreu, naturalmente, concorrência desafiadora com as disciplinas que
não apenas adotam o controle de frequência, mas que operam em lógica quase terrorista de
cobrança de frequência e absorção de conteúdo, que podem levar, inclusive, a consequências
desastrosas no sistema de ensino. Não à toa o debate sobre a saúde mental dos (as) estudantes
tem cada vez mais conquistado espaço dentro das universidades públicas e privadas no país.
Esta concorrência em alguns momentos pesou sobre a disciplina e repercutiu em baixo e
confesso nível de comprometimento de alguns e algumas estudantes com a proposta, o que
prejudicou, por vezes, a qualidade das atividades.

916
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Tais apontamentos têm origem nos portfólios, que se mostram como um ótimo
instrumento para que se possa estar em constante reflexão sobre o método adotado. Por meio
dessas atividades entregues ao final do período letivo já foi possível perceber que há uma
grande dificuldade em lidar na prática com a autonomia trabalhada na disciplina, por não ser
tão exercitada concretamente no ambiente acadêmico, em suma, ter autonomia é algo
estranho para os (as) estudantes de um curso de Direito.
Além disso, ao trazer para a sala de aula temas considerados cada vez mais
explosivos – como sexualidade, gênero, relações étnicas raciais, dentre outros – embora
essenciais a uma adequada formação profissional, a disciplina foi espaço para a manifestação
de conflitos presentes em nossa sociedade. Esta experiência, como esperado, não foi fácil.
Deixou aflorar pré-compreensões muitas vezes amparadas em uma moralidade religiosa
intolerante e inconfessa. O conforto da certeza e da verdade, em geral buscados na academia,
foi, em muitos momentos, substituído pelo incômodo do desnudamento de contradições e da
autodescoberta da reprodução de culturas opressoras.
Como já apontado é perceptível o estranhamento de alguns ao modelo de aula
proposto. O rigor com presença e na atribuição de notas em outras disciplinas contribui para
que o comprometimento com o método alternativo de ensino não seja uno, ainda que
involuntariamente, o que evidencia a necessidade de que o ensino jurídico seja rediscutido em
linhas emancipatórias. Nesse sentido, foram necessárias algumas mudanças, como na
distribuição dos painéis. A decisão de como fazer isso não foi fácil, a professora e o grupo de
monitoria discutiram em várias oportunidades o que poderia ser feito, mas sem ceder à
pressão imposta pela concepção tradicional de ensino jurídico.
Portanto, o modelo de ensino em PJP sofreu modificações e continuará sofrendo,
sempre tendo como alvo a construção de uma educação contra hegemônica. A contribuição
dos alunos e das alunas, não somente por meio dos portfólios, mas também por
questionamentos e debates, é sempre importante nesta conjuntura. Pretende-se que evoluções
sejam constatadas, assim como são percebidas no momento em que este trabalho é redigido e
que PJP não seja entendida como um projeto findo, tão menos o melhor projeto possível, a
constante crítica é condição imprescindível para que melhores resultados sejam alcançados.

917
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo propôs, portanto, a rediscussão sobre o modelo de ensino


majoritariamente adotado nas Faculdades de Direito brasileiras, em especial a da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Para tanto, fez-se necessária a alocação no tempo e
espaço da disciplina de Poder Judiciário e Política, principalmente as matrizes teóricas e os
conceitos que a orientam. Dessa forma, compreender o exame tradicional como o instrumento
“mais adequado para inspirar o reconhecimento dos veredictos escolares e das hierarquias
sociais que eles legitimam” (BOURDIEU. PASSERON, 2014) é essencial. Ademais, deve-se
compreender que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a
sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 1997), de forma que aos (as) estudantes
seja proporcionado local central na construção do conhecimento e não meros objetos que
devem ser apenas instruídos.
Ao se apresentar todas as atividades e projetos que compreendem a disciplina
objetivou-se mostrar como é possível entender o ensino como uma multiplicidade de métodos
e, no que se refere ao ensino jurídico, não se trata apenas de se proporcionar teoria e prática,
mas a teoria e prática socialmente referenciada, o que é mais facilmente proporcionado por
meio da pluralidade de formas de se construir o conhecimento ao longo não somente do
período de PJP, mas nos cinco anos de um curso de Direito. Em especial os portfólios e o
ensaio, ao final do período, comprovam que a metodologia proporciona, em grande medida, a
compreensão dogmática e jurídica, demonstram ainda o desenvolvimento de senso crítico e a
abertura à metodologia adotada, evidenciando que a disciplina diferencia e pluraliza sua
formação.
Em contexto de propostas de escola sem partido, de criminalização de docentes e
estigmatização de temas como ideológicos, as resistências já encontradas tendem a se
intensificar. Avalia-se, porém, que a disciplina tem contribuído para romper com o tradicional
ensino jurídico, formalista, conservador e patriarcal, pois, ao lado das dificuldades, encontra-
se um válido e vívido retorno.
As resistências e dificuldades ajudam a demonstrar a quão desafiadora é a tentativa
de construção de um ensino contra hegemônico, pautado na conscientização social. Um
ensino realmente inclusivo, sem papéis, limites ou lugares determinados para cada indivíduo.
Um ensino efetivamente produzido por todas e todos, mas que, infelizmente, ainda está longe
de ser alçando. O projeto PJP possui a intenção de caminhar nesse sentido, mas não se revela

918
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

com a pretensão de configurar-se como a panaceia de todos os males, como a solução ideal.
Não haverá soluções herméticas, prontas e perfeitas, mas sim tentativas, que sempre
enfrentarão desafios. “Poder Judiciário e Política” busca colocar-se como mais uma destas
tentativas.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino.
Petrópolis: Vozes, 2014.

COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro,
1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015

FREIRE, Paulo. Mudança e Educação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

______. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São
Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo. Paz e Terra, 1997.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

919
Grupo de Trabalho 13

SOCIOLOGIA
DOS SENTIMENTOS MORAIS

cmxx
MANUEL DA NÓBREGA E AS MISSÕES JESUÍTAS
NOS PRIMEIROS ANOS DO GOVERNO GERAL
DO ESTADO DO BRASIL (1549-1559)

BROCCO, Pedro
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
(PPGSD-UFF)
GONÇALVES, Marcus Fabiano
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito (PPGSD-UFF)

RESUMO

O trabalho objetiva analisar a dinâmica dos primeiros anos de funcionamento do Governo Geral do
Estado do Brasil. Partindo do exame de fontes produzidas por membros da Companhia de Jesus,
sobretudo pelo jesuíta Manuel da Nóbrega (1517-1570), que esteve à frente das missões brasileiras
desde 1549, a construção da análise se debruçará sobre a problemática moral (de fundo teológico)
acerca dos costumes dos nativos brasileiros, dos colonos portugueses e do clero secular que habitavam
a terra antes da fundação do Governo Geral por D. João III. Neste sentido, se pretende verificar em que
medida o projeto missionário, para além de sua preocupação com a conversão dos nativos, gera
impactos na reforma dos costumes e na administração da justiça na colônia.

Palavras-Chave. Jesuítas. Manuel da Nóbrega. Período colonial.

ABSTRACT

This work aims to analyze the dynamics of the first years of operation of the General Government of
the State of Brazil. Starting from the examination of sources produced by members of the Society of
Jesus, especially by the Jesuit Manuel da Nóbrega (1517-1570), who has been at the leader of the
Brazilian missions since 1549, the construction of the analysis will focus on the moral problematic (of
theological background) about the customs of the Brazilian natives, the Portuguese settlers and the
secular clergy who inhabited the land before the founding of the General Government by King John
III. In this sense, it is intended to verify to what extent the missionary project, besides its concern with
the conversion of the natives, generates impacts on the reform of customs and on the administration of
justice in the colony.

Keywords. Jesuits. Manuel da Nóbrega. Colonial period.

921
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO: A CHEGADA DA COMPANHIA DE JESUS AO BRASIL, 1549

A atuação da Companhia de Jesus no Brasil tem início no ano de 1549, quando


chegam de Lisboa cinco jesuítas (padres João de Azpilcueta Navarro, Leonardo Nunes,
Antônio Pires e os Irmãos Diogo Jácome e Vicente Rodrigues) chefiados por Manuel da
Nóbrega (1517-1570) entre as três naus, duas caravelas e um bergantim que chegam à Bahia
levando mais de mil pessoas, entre elas o Governador Geral Tomé de Sousa. Pode-se mesmo
afirmar que aí começa-se a construção do Brasil com sede administrativa, em Salvador, do
lado do braço secular, e com os rudimentos de uma província jesuíta, que mais à frente é
criada por Inácio de Loyola, em 1553, nomeando Nóbrega como primeiro provincial.
Estes primeiros anos, no entanto, também chamados de “período heroico” da
Companhia de Jesus no Brasil, são de extrema dificuldade na fixação das bases coloniais e
demandarão grandes esforços adaptativos e administrativos. Tais demandas trazem especial
interesse ao nosso estudo, pois implicarão o fundamento de bases mais sólidas a respeito do
direito, da administração pública e do conjunto de normas que formarão a estrutura colonial,
na medida em que o direito apresenta-se como uma técnica e uma tecnologia de controle
social (concepção gerada somente com sua independência epistemológica em relação à
teologia e à moral), e, neste sentido, importa realizar aqui uma leitura sobre o início da
implantação da colônia brasileira e os respectivos comportamentos impostos aos súditos da
fatura tropical do Império português. O que se chama aqui de “conjunto de normas” será
alimentado em suas configurações gerais, nestes primeiros anos e de maneira muito especial,
pela Companhia de Jesus, não obstante a constante tensão entre jesuítas e colonos sobre a
administração dos índios, que perdurará até a expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses
pelo Marquês de Pombal.
O objetivo deste trabalho é o de contextualizar as primeiras medidas administrativas
e jurídicas tomadas pelo Governo Geral em consonância com as diretivas dos jesuítas,
concentrando-nos nestes primeiros anos de presença jesuíta no Brasil, e marcando de forma
especial a centralidade da figura da conversão para os objetivos propostos do assentamento
português em território brasileiro.
João Adolfo Hansen toca nestes pontos em seu estudo sobre Manuel da Nóbrega1.
Começando pela concepção de tempo, podemos observar, seguindo o trabalho de Hansen,

1
HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010,
pp. pp. 11-47, passim.

922
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

outro tipo de relação, metafísica, com a temporalidade e a teologia aí implícita: “A sociedade


portuguesa do século XVI não é burguesa, iluminista ou liberal. Sua experiência do tempo é
outra, diferente da experiência temporal moderna, pois pressupõe a presença providencial de
Deus como Causa e Fim da sua história”2.
Cumpre ressaltar e realçar este ponto: no que tange à compreensão histórica da
estrutura comportamental (e aqui embute-se o sentido de ética) da Companhia de Jesus a
animar o espírito do século XVI, há que se ter um distanciamento cauteloso em relação a
interpretações de fatos e eventos cuja definição de seu significado histórico nos pareça hoje
muito clara, como é o caso da análise histórica da expansão comercial das potências ibéricas.
Do ponto de vista comercial e material, tais expansões foram animadas pela descoberta de
novas rotas comerciais que levassem às Índias e implicassem em uma supremacia militar,
econômica e política para o Estado que as executasse. Havia, no entanto, outras motivações,
talvez mais determinantes do que esta: aquela que diz respeito à expansão da forma de vida
cristã e o subjugar das culturas infiéis, além da conversão dos estrangeiros (gentios): fruto de
uma outra forma de compreender o tempo, a pessoa humana, as relações sociais, o poder, etc.
Em Os Lusíadas, poema épico fundante da cultura lusófona, há um excelente
material de análise das motivações da expansão ibérica para o Oriente. Em não poucas
passagens, fica clara a tensão envolvendo Ocidente cristão e Oriente ora infiel, mouro, ora
estranho, exótico. Porém do ponto de vista da justificativa expansionista portuguesa, Luís de
Camões parece ser muito claro ao colocar na frente de todos os motivos o da dilatação do
cristianismo, como se observa em dois trechos do Canto Sétimo:

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,


Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A Lei da Vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade,
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

E, também, mais à frente:

Ó míseros Cristãos, pola ventura


Sois os dentes, de Cadmo desparzidos,
Que uns aos outros se dão à morte dura,
Sendo todos de um ventre produzidos?

2
Idem, p. 11.

923
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Não vedes a divina Sepultura


Possuída de Cães, que, sempre unidos,
Vos vem tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se famosos pela guerra?3

Nestes dois trechos pode-se vislumbrar duas linhas de força centrais na construção
da epopeia de Camões: a que coloca Portugal na dianteira da cristandade europeia a lançar-se
ao mar para dilatar a vida cristã, a Lei da Vida eterna e, de outro lado, uma feroz rivalidade
frente às outras religiões monoteístas e aos gentios: “Vós, que esperamos jugo e vitupério /
Do torpe ismaelita cavaleiro / Do Turco Oriental e do Gentio / Que inda bebe o licor do santo
Rio”4.
Camões coloca Portugal liderado por Vasco da Gama, e ele próprio, Camões, sobre
dois eixos principais: do lado cultural, nas disputas militares pela vitória da melhor e mais
verdadeira religião, e do lado temporal, também cultural, de supremacia de uma forma de vida
cristã, produtora dos mais sublimes feitos capazes de serem cantados e escritos. Ilustram essas
afirmações as famosas três primeiras estrofes do Canto Primeiro:

As armas e os barões assinalados


Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano


As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

3
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 2014, pp. 239-241.
4
Idem, Canto Primeiro, p. 67.

924
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Que outro valor mais alto se alevanta.5

As três estrofes ou estâncias acima citadas representam três grandes linhas de força
dos Lusíadas: a de colocar Portugal na dianteira da dilatação da cristandade no mundo,
edificando “Novo Reino”, a de, assim fazendo, conservar as gloriosas memórias de reis
cristãos construtores no campo secular da fé e do império cristão frente a outras religiões e
culturas; e, finalmente, a pretensão de escrever um poema épico capaz de fazer frente a
grandes cânones da cultura clássica, como os gregos (Homero) e troianos (referência à Eneida
de Virgílio) e as respectivas navegações que narram, Homero com Ulysses ou Odisseu;
Virgílio com Eneias. Camões visa narrar o heroico percurso de Vasco da Gama e sua
esquadra até a Índia, em um esforço ao mesmo tempo militar e literário: Alexandre e Trajano
dividem a estrofe com Homero e Virgílio. Tal é, de fato, a posição de Portugal naquele
momento: a de estar na vanguarda econômica e militar, lançando-se ao arrojo da nova rota
comercial na Índia via périplo africano, o que não custou pouco investimento em tecnologias
náuticas e em planejamento. Camões aparece, assim, como um virtuoso poeta
fundamentalmente patriota, sublimando os feitos portugueses nas letras de sua épica.
Pode-se dar razão a comentadores de Camões como Emanuel Paulo Ramos,
organizador da edição aqui consultada, quando diz que “o real grandioso” de que se ocupa
Camões diz respeito a dois mundos: o mundo material, abrangendo os grandes fenômenos
observáveis pelos sentidos: batalhas, cercos, tempestades, etc.; e o mundo moral, reunindo
estados psicológicos das pessoas que participam da ação “ou durante ela são recortadas ou
pressentidas em profecia”6: tal é o caso de lançar mão de certos personagens capazes de
transmitir ideias e conceitos: D. Afonso Henriques é evocado para transmitir ímpeto épico; já
Inês de Castro, no Canto Terceiro, aparece como personagem histórico transmitindo
passividade e dominância por sentimentos elevados7. Não obstante essa divisão no interior da
obra, pode-se sustentá-la também em relação ao que foi afirmado logo acima: Camões
enquanto sujeito histórico produz sua épica em um Portugal dividido entre o mundo material,
do comércio e da supremacia geopolítica ante seus rivais e, ao mesmo tempo, o mundo moral
ou aquele que forma a estrutura psicológica de seus agentes, movidos por uma ingente e ígnea
vontade de dilatar os limites do catolicismo pelo mundo, subjugando militarmente os
5
Idem, p. 65.
6
RAMOS, Emanuel Paulo. Introdução literária a Os Lusíadas, op. cit., p. 44.
7
Idem, ibidem.

925
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

resilientes e trazendo para si os convertidos. Também faz parte desta dinâmica, e de forma
muito peculiar, a Companhia de Jesus. Fundada por um ex-militar, é certo afirmar que a
Companhia de Jesus manteve uma estrutura muito próxima da militar: rígida hierarquia,
rigorosa formação, incursões em locais distantes e hostis em operações nomeadas de
“missões”.
Um jesuíta devia ser um exemplo de preparo teológico e humanista, capaz de
dominar as mais refinadas capacidades voltadas às letras, à teologia, às ciências e à tradução.
Envolvida em operações de alto nível de dificuldade de consecução, a Companhia produziu
ao mesmo tempo padres tradutores capazes de descrever não apenas o mundo físico que se
descortinava às potências europeias, mas as sociedades e os costumes ali desenvolvidos.
Tradutores completos, humanistas e teólogos, vivendo em uma (quase) estrutura militar:
talvez aí se possa buscar o vigor e o sucesso da Ordem nos dois séculos em que atuou mais
diretamente no campo da tradução e conversão das culturas estrangeiras.
A Companhia de Jesus, fundada no mesmo período histórico em que Camões
participa das incursões às Índias como soldado e escreve sua poesia épica, compartilha com
Camões dos mesmos pressupostos de sua ação: tanto cultural quanto militar. Anima a
Companhia de Jesus o desejo de igualmente dilatar a fé cristã pelo mundo quanto o da
supremacia de uma civilização sobre outras. O método a ser utilizado, no entanto, não será o
de subjugar pelas armas, mas pela conquista espiritual ou conversão.
O subjugar pela conversão envolve uma rede de posturas e saberes que vai sendo
formada e atilada ao longo dos primeiros séculos de contato ibérico com o Novo Mundo e
com o Oriente.
A conversão não implica somente na criação de qualquer espécie de docilidade na
alma dos convertidos, mas em refazer suas coordenadas imaginárias e simbólicas, primeiro
mediante uma aproximada compreensão de seu mundo, seus usos e costumes, além de seu
ambiente físico, para depois realizar um processamento e conversão do registro estrangeiro
em clave europeia-católica. Pode-se supor de início a supremacia cultural europeia, em
relação à qual seriam os padres os representantes e porta-vozes. É verdade que em relação às
culturas americanas e em alguns lugares da Ásia, conseguiu-se com sucesso implantar as
principais coordenadas simbólicas europeias, como o vernáculo, porém não é verdade que o
intuito fosse o de apenas subjugar aqueles povos em nome de uma cultura “europeia” ou de
um país específico: o interesse era antes mais sofisticado e religioso. Mesmo dentro dos

926
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

limites da Europa, havia a guerra intestina entre católicos e protestantes. Tratava-se então de
recolocar a conversão dos gentios no interior do planejamento e dos objetivos tridentinos
contrarreformistas da Igreja católica.
Buscando aliar a disciplina militar a uma robusta preparação e treinamento nas letras
e na teologia, a Companhia enviava os padres mais eruditos para serem superiores das
missões. É o caso do primeiro Provincial jesuíta do Brasil, Manuel da Nóbrega. Nóbrega
estudou em Salamanca e em Coimbra, tendo obtido o grau de bacharel em cânones. Forte em
direito canônico e filosofia, possuindo como mestre Martín de Azpilcueta Navarro, Nóbrega
tentou tornar-se Lente (professor) da Universidade, mas não obteve sucesso nas provas de
leitura devido ao fato de ser gago. Talvez para enfrentar tal defeito na fala, Nóbrega é
ordenado pela Companhia de Jesus aos vinte e sete anos, em 1544, tornando-se pregador.
Após viajar por Portugal e Espanha pregando o Evangelho, recebe um convite do rei D. João
III para juntar-se à armada de Tomé de Sousa que partia para o Brasil em 1549. Chegam com
ele os padres jesuítas Leonardo Nunes, João de Azpilcueta Navarro (sobrinho de Martín de
Azpilcueta Navarro), Antônio Pires e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jacome. Nóbrega
desde o início possui atuação muito próxima ao poder secular de Tomé de Sousa, o que
continua com seus sucessores, sobretudo Mem de Sá, do qual se torna também amigo e
conselheiro. Nessa atuação conjunta dos poderes secular e espiritual se depreende a
importância do direito positivo (secular) para a consecução dos fins da conversão da
Companhia de Jesus, e vice-versa. Como afirma Nicola Gasbarro, é impossível separar a
faceta religiosa das missões da faceta política e civilizacional, o religioso e o civil. Ao longo
da gestão conjunta de Nóbrega e Mem de Sá, percebe-se um esforço de extinção da prática da
antropofagia através de leis penais mais rígidas contra a prática, com a instalação de um
pelourinho em Salvador. Nóbrega também pede que o Governador Geral baixe leis para a
proteção dos índios, visando coibir sua escravização sem limites legais (os da guerra justa).
Com isso, o padre abre espaço para o início do uso de mão-de-obra escrava africana, tendo
inclusive apoiado tal expediente.
O exame de suas cartas e de seu diálogo composto para retratar as agruras da
conversão no Brasil da segunda metade do século XVI – período de análise deste trabalho –
será fundamental para estudos subsequentes.

927
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. O OTIMISMO DOS PRIMEIROS ANOS

O tom das primeiras cartas de Nóbrega é o de otimismo. Transmite aos destinatários


boas informações sobre as condições da terra, sobre o clima e sobre a cidade nova que se
construía, chamada de Salvador. De maneira geral, as cartas de Nóbrega apresentam
características interessantes quando comparadas ao estilo epistolar que caracterizava as
missivas dos membros da Companhia de Jesus, os quais costumavam compor cartas
edificantes sobre as missões. Nóbrega de fato escreve cartas mais otimistas e edificantes
quando as envia aos colégios ou endereçadas aos padres e irmãos, provavelmente a serem
lidas em voz alta para uma coletividade. As cartas enviadas a autoridades, porém, como
provinciais, ao rei D. João III bem como a carta enviada a Tomé de Sousa, demonstram os
reais problemas que a Companhia enfrentava na missão do Brasil. Quando organizadas em
seu aspecto retórico-estratégico e analisadas em conjunto, as cartas de Nóbrega mostram as
principais linhas de força que atuaram a favor e contra a Companhia de Jesus no Brasil: se por
um lado havia um constante apoio declarado da Coroa, por outro surgia uma crescente
resistência por parte dos colonos, envolvidos nas atividades econômicas que logo
demandariam uma necessidade cada vez maior de força de trabalho escrava.
Em relação à conversão dos nativos também se percebe ainda otimismo, embora
sejam claros os juízos negativos de Nóbrega sobre os costumes dos índios, mas também de
igual maneira em relação aos costumes dos colonos portugueses.
Logo na primeira carta, enviada ao padre Simão Rodrigues, após a chegada da
armada à Bahia, Nóbrega observa;

Eu prégo ao Governador e á sua gente na nova cidade que se começa, e o padre


Navarro á gente da terra. Espero em Nosso Senhor fazer-se fructo, posto que a
gente da terra vive em peccado mortal, e não ha nenhum que deixe de ter muitas
negras8 das quaes estão cheios de filhos e é grande mal. Nenhum delles se vem
confessar.9

8
Era comum que jesuítas e colonos nestes primeiros anos se referissem aos índios como negros. Cf.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
9
NÓBREGA, CB, p. 72.

928
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A queixa de Nóbrega de que nenhum colono, naqueles primeiros dias10 de presença


jesuíta, se confessava, denota que nenhum deles ainda se sentia constrangido com sua forma
de vida e, assim, não havia internalizado qualquer tipo de censura ou sentimento de culpa. Os
jesuítas atuavam nestas filigranas da psicologia humana11 ao buscar transmitir ao colono e ao
nativo, ao mesmo tempo, a noção de pessoa humana e a de juízos implicados nas ações, o que
levaria à má ação geradora de culpa e penitência. O procedimento da penitência era feito
através da confissão, sacramento que havia ganhado nova importância na Contrarreforma
tridentina12.
A estratégia de Nóbrega para o planejamento da conversão se dá no Brasil, nesta
segunda metade do século XVI, de modo geral a partir de duas estratégias: pela força
dissuasória dos poderes religioso e secular (compelle intrare), apostando mais no medo do
que na caridade entre os adultos, e pelo ensino da doutrina cristã às crianças. Neste ensino
compreende-se também o aprendizado da leitura e da escrita, que se fazia nas escholas de ler
e escrever. Fazendo com que as crianças nativas aprendessem a ler e a escrever, Nóbrega
buscava doutriná-las para o batismo.
A imagem do papel branco para escrever à vontade marca a diferença do gentio do
Brasil em relação a outros lugares onde a Companhia de Jesus instalou missões. Como o
nativo brasileiro não possuía escrita e se formava por uma cultural oral, os padres
encontravam um quase grau zero da educação e catequese, presente nas crianças. Embora se
aproxime da doutrina aristotélica do ato-potência e vise imprimir à vontade no nativo do
Brasil as principais formações civilizacionais e religiosas europeias, tal imagem,
retoricamente muito forte, não era verdadeira. Os jesuítas necessitaram operar uma leitura
protoetnológica da organização social, crenças e costumes do gentio brasileiro para poder
atuar sobre ele de forma eficaz na conversão.
O método utilizado para a conversão passava pelo aprendizado, por parte dos
jesuítas, da língua dos nativos. É possível que antes da política de construção dos
aldeamentos, as missões volantes dos jesuítas se concentrasse em uma imersão nas aldeias
10
A carta é escrita depois de 31 de março e antes de 15 de abril, conforme se depreende da análise da carta
subsequente, também enviada a Simão Rodrigues, quando a certa altura Nóbrega diz: “ontem foi Domingo de
Ramos”, isto é, 14 de abril. Cf. CB, p. 77. A armada de Tomé de Sousa, onde vieram os primeiros jesuítas, partiu
de Lisboa no dia 1 de fevereiro de 1549, chegando à Bahia no dia 29 de março.
11
Não estamos aqui nos referindo à psicologia científica moderna, mas àquela profundamente ligada ao étimo que
remonta ao grego psyché para representar o conceito de alma e a relação desta com a observação e ação sobre os
costumes, saber relacionado à ética clássica.
12
PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001.

929
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

nativas para o aprendizado de sua língua. É o que se depreende do seguinte trecho:


“Trabalhamos de saber a lingua delles e nisto o padre Navarro nos leva vantagem a todos.
Temos determinado ir viver com as aldeias, como estivermos mais assentados e seguros, e
aprender com elles a lingua e il-os doutrinando pouco a pouco”13.
Nóbrega não deixa de observar também o expediente muito usado pelos jesuítas de
aproximação e conversão das elites, que já pode ser notado nesta primeira carta:

Tambem achamos um Principal delles já christão baptisado, o qual me disseram


que muitas vezes o pedira, e por isso está mal com todos os seus parentes. Um dia,
achando-me eu perto dele, deu uma bofetada grande a um dos seus por lhe dizer
mal de nós ou cousa similhante. Anda muito fervente e grande nosso amigo;
demos-lhe um barrete vermelho que nos ficou do mar e umas calças. Traz-nos
peixe e outras cousas da terra com grande amor; não tem ainda noticia de nossa Fé,
ensinamo-lh’a; madruga muito cedo a tomar lição e depois vai aos moços a ajudal-
os ás obras. Este diz que fará christãos a seus irmãos e mulheres e quantos puder.
Espero em o Senhor que este ha de ser um grande meio e exemplo para todos os
outros, os quaes lhe vão já tendo grande inveja por verem os mimos e favores que
lhe fazemos. Um dia comeu comnosco á mesa perante dez ou doze ou mais dos
seus, os quaes se espantaram do favor que lhe dávamos.14

É neste sentido que Nóbrega diz a Simão Rodrigues que o que mais importava
naquele momento para a missão brasileira era o básico e o infraestrutural: tecidos para cobrir
os índios e pessoal para percorrer as aldeias indígenas e levar a eles o paradigma de vida
cristã. Diz Nóbrega: “Cá não são necessarias letras mais que para entre os Christãos nossos,
porém virtude e zelo da honra de Nosso Senhor é cá mui necessário”15.
Ao mesmo tempo em que pede cristãos virtuosos a Simão Rodrigues, Nóbrega
confessa temer o mau exemplo dos cristãos portugueses que já habitavam a terra. Fica clara a
questão já posta por Nóbrega, já na primeira carta escrita no Brasil, de que um dos principais
obstáculos para a conversão será a sociedade civil composta por colonos cristãos já instalados
no território. Se por um lado marca a docilidade do gentio e a facilidade de sua conversão,
teme pelo “mau exemplo que o nosso Christianismo lhe dá”:

O padre Leonardo Nunes mando aos Ilheos e a Porto Seguro, a confessar aquella
gente que tem nome de Christãos, porque me disseram de lá muitas misérias, e
assim a saber o fructo que na terra se póde fazer. (...) Leva por companheiro a
Diogo Jacome, para ensinar a doutrina aos meninos, o que elle sabe bem fazer; eu o
fiz já ensaiar na nau, é um bom filho. Nós todos os tres confessaremos esta gente; e
depois espero que irá um de nós a uma povoação grande, das maiores e melhores

13
CB, p. 73.
14
Idem, pp. 73-74.
15
Idem, p. 74.

930
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

desta terra, que se chama Pernambuco e assim em muitas partes apresentaremos e


convidaremos com o Crucificado. Esta me parece agora a maior empresa de todas,
segundo vejo a gente docil. Sómente temo o mau exemplo que o nosso
Christianismo lhe dá, porque ha homens que ha sete e dez annos que se não
confessam e parece-me que põem a felicidade em ter muitas mulheres. Dos
sacerdotes ouço cousas feias. Parece-me que devia Vossa Reverendissima de
lembrar a Sua Alteza um Vigario Geral, porque sei que mais moverá o temor da
Justiça que o amor do Senhor. E não ha oleos para ungir, nem para baptisar; faça-os
Vossa Reverendissima vir no primeiro navio (...).16

Não obstante perceber-se aqui já uma inclinação a adotar o medo (o temor da


Justiça) em contraste ao amor da caridade cristã, Nóbrega mostra-se confiante na empresa em
sua primeira carta. As primeiras preocupações de Nóbrega são, assim, em grande parte
materiais: roupa, óleo para a liturgia, bons funcionários jesuítas sob seu comando. Tratava-se,
com efeito, de administrar uma empresa, cujos lucros mediam-se em número de almas
convertidas à civilização cristã.
Para a Igreja Católica, segundo Castelnau-L’Estoile, o processo de alargamento da
catolicidade é percebido como um processo temporal. Trata-se de fazer com que as novas
terras tornem-se plenamente cristãs e que o direito canônico se exerça. Antes, porém, de
chegar-se a tal objetivo, “um regime jurídico excepcional, o direito missionário, conjugação
de faculdades para o clero e privilégios para os fiéis, se aplica”17. Tal regime jurídico de
exceção era visto como provisório e funcionaria até o momento em que o regime ordinário da
Igreja pudesse se estabelecer e operar.
A figura do missionário desde o fim da Idade Média aparece ligada a faculdades que
se traduzem em poderes excepcionais capazes de colmatar lacunas das regras de direito
canônico ou de acordar benefícios espirituais para determinadas demandas de fiéis. O caso da
dispensa de impedimentos ordinários para o casamento figura entre os benefícios espirituais
concedidos aos fiéis. É este o caso do Brasil, quando a Companhia de Jesus assume o
monopólio da evangelização. Com efeito, o importante sacramento do casamento pôde ser
administrado entre os índios pelos padres da Companhia, que concediam tais benefícios como
a dispensa de impedimentos de casamento por parentesco e afinidade, com base no
conhecimento da organização do social das sociedades indígenas. Esta é também uma faceta
da accomodatio jesuíta, o acomodar-se aos costumes locais para buscar a conversão desde o
16
Idem, p. 75.
17
« Une Église aux dimensions du monde : expansion du catholicisme et ecclésiologie à l’époque moderne » in
Les clercs et les princes. Paris: Presses de L’École Nationale des Chartes, 2013, p. 313-330.

931
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

lado de dentro das sociedades com as quais se relacionavam. E se vinham desde o lado de
fora e funcionavam ou buscavam funcionar como os que estavam do lado de dentro,
buscando a compreensão de seus mecanismos, os jesuítas mostram a ductibilidade da
natureza humana, ao transitarem entre diferentes consistências sociais e culturas e fazerem o
“dentro” e o “fora” deixarem de apresentar fronteiras rígidas.
A liberdade de obter privilégios e conceder benefícios, em lugares geograficamente
muito distantes das estruturas do clero secular e de superiores hierárquicos como os bispos,
pode trazer um questionamento, a nosso ver, a respeito da obediência que o jesuíta devia ter
ao Papa, constante do quarto voto. Ao menos, o funcionamento do jesuíta em terras
longínquas marca o caráter curioso de um voto e juramento de obediência e, ao mesmo
tempo, a grande liberdade para administrar as almas e suprir o direito canônico então
inoperante em sua integralidade nessas localidades, fazendo espécies de arranjos e adaptações
adequadas ao modo de funcionamento das sociedades locais. Castelnau-L’Estoile chega a
uma afirmação curiosa que toca no cerne deste trabalho: “a missão é definida não mais como
um espaço geográfico mas como um espaço jurídico onde o clero tem a necessidade de
faculdades. Às faculdades do clero correspondem os privilégios dos fiéis, outro instrumento
jurídico em terra de missão”18.
Torna-se interessante o pensamento das missões como zonas jurídicas por dois
motivos: o primeiro deles é o deslocamento do ponto de vista da colonização da conquista
militar e tomada territorial para o de um horizonte jurídico capaz de fundar uma sociabilidade.
O segundo motivo toca na raiz do que se entenderia neste contexto como “jurídico”. Pois
parece que mesmo fundada em um direito cujo sentido último seria o direito divino19, o
jurídico tomado no século XVI como a criação de um ambiente de vida social capaz de
organizar e regular um horizonte de suposições razoáveis de mútua expectatividade20, o papel
exercido pelo termo “jurídico” não foi alterado desde então. O que se observa a partir do
século XVIII, de modo especial, é a tentativa de fundar o direito epistemologicamente em um
campo não religioso, ao mesmo tempo em que também se busca fazer o mesmo com a moral.

18
Idem, p. 326.
19
Fazendo-se aqui menção aos desenvolvimentos teóricos da Escola de Salamanca, com o direito natural e o ius
gentium, a partir dos conceitos de ius communicationis de Francisco de Vitoria.
20
Esta é a definição de Marcus Fabiano Gonçalves para a noção de confiança: a suposição razoável de uma
mútua expectatividade (cf. GONÇALVES, M. F.; ARRUDA, Edmundo Lima. Fundamentação ética e
hermenêutica: alternativas para o direito. Florianópolis: CESUSC, 2002). Com efeito, não seria o direito um
saber capaz de caucionar a confiança e fundamentar uma vida social e cooperativa possível? Parece-nos que sim.

932
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Deve-se em grande parte a Kant a configuração de uma moral alheia à religião e submetida à
Razão, bem como as noções de agir conforme os imperativos categórico e hipotético. Tais
conceitos, relacionados também aos de liberdade e autonomia, irão dar origem às noções de
autonomia e heteronomia, fundamentais à epistemologia de uma ciência do direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS OU FEITICEIROS, COLONOS, CLERO


SECULAR: RESISTÊNCIAS AO PLANEJAMENTO DAS MISSÕES

Os jesuítas são tributários de uma longa tradição orientada pela tecnologia da escrita
que vai desde a dimensão religiosa, sob o registro do hebraico até o grego dos evangelhos
sinóticos, e também pela grande tradição greco-romana, em seu aspecto filosófico e jurídico
que informou as principais estruturas de poder e de sociedade, como, por exemplo, todo o
saber que envolveu o direito civil romano, direto influenciador do direito canônico. As lutas
que envolveram a evangelização e conversão de tradições orais no Brasil, neste sentido,
seriam as mesmas em relação àquelas que ocorreram depois do fim do Império romano do
Ocidente, levadas adiante pela Igreja primitiva, em vias de se tornar um grande poder
hegemônico capaz de mobilizar o saber e a tradição ocidentais. Compreender que a
evangelização e a cristianização vai de mãos dadas com todo este saber potencial que envolve
a tecnologia da escrita é de grande importância para sustentarmos que a Companhia de Jesus
foi o primeiro grande esforço, no Brasil, de implantação efetiva de aparato jurídico, ético e,
neste sentido, político. Sem este esforço de mudança de registro e paradigma que subjaz à
evangelização, toda tomada de território resvalaria na ineficácia e na violência, como ocorreu
nos primeiros anos de colonização ibérica na América e no fracasso das capitanias
hereditárias.
Um exemplo podemos encontrar nesta mesma carta de Nóbrega, quando relata uma
pregação por intermédio de um menino língua21:

Quando viajamos nós outros da Companhia, nunca nos abandonam, e antes nos
acompanham para onde se queira, maravilhados com o que pregamos e escutando
com grande silencio.

21
Os “línguas” eram os intérpretes e tradutores. Nóbrega desde o início utiliza línguas, neste primeiro momento
crianças, para se comunicar com os índios, inclusive na confissão, o que gerou um grande atrito com a Igreja.

933
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Dentre outras coisas, recordo-me que por meio de um menino lingua eu lhes dizia,
uma noite em que eu pregava ao luar (não lhes podendo ensinar mais), que tivessem fé em
Jesus Christo, e que ao deitar e ao levantar o invocassem dizendo: Jesus, eu te encommendo a
minh’alma, e depois que delles me parti, andando pelos caminhos, notei a alguns que diziam
em voz alta o nome de Jesus, como lhes havia ensinado, o que me dava não pequena
consolação.
A rivalidade dos jesuítas com os feiticeiros travava-se neste contexto de uma cultura
oral que dava grande importância aos anciãos que conseguiam conservar e repetir oralmente
os saberes e as fórmulas aprendidas entre as gerações. Os padres buscavam então vencer a
eficácia simbólica dos feiticeiros (lembremos dos ritos envolvendo os maracás) através das
pregações e dos sacramentos, como a confissão e o batismo. O batismo, assim, neste primeiro
momento, apresentava este aspecto performativo e dotado de eficácia simbólica a partir da
qual se entrava na comunidade cristã depois de um rito e um conjunto de palavras proferidas.
Percebe-se neste momento um esforço já de início dos aldeamentos que pudessem
funcionar como isolamento em relação aos feiticeiros e assim também ao saber oral que
portavam e, ao mesmo tempo, como centros de instrução-alfabetização e educação nas
questões morais e religiosas.
Neste sentido, a criação de “centros de educação” estava colocada de forma
inseparável do sacramento do batismo. Tornar-se catecúmeno era um status relacionado ao
batismo:

Em duas das principais aldeias de que tem cargo, fizeram-lhe uma casa onde esteja
e ensine aos cathecumenos; em outra aldeia, tambem próximo a esta cidade22,
fizemos uma casa a modo de ermida, onde um de nós está incumbido de ensinar e
pregar aos baptisados de pouco, e a outros muitos cathecumenos, que nella vivem.
Os Principaes da terra baptisaremos em breve (...).23

Ensinar, pregar, converter: a conversão extrai sua eficácia do ensino da doutrina


católica mobilizado em sua plenitude somente com o domínio da leitura e escrita. Porém,
neste primeiro momento da atuação jesuíta, Nóbrega parece querer dizer que o esforço
principal estava em catequizar e criar os primeiros rudimentos de uma sociedade cristã.
Nóbrega adota a metáfora do papel branco ao falar sobre a necessidade de incremento de
novos missionários no Brasil, “que tão poucos operarios possue”: “Poucas lettras bastariam
22
Salvador.
23
NÓBREGA, op. cit., p. 93.

934
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

aqui, porque tudo é papel branco, e não ha que fazer outra cousa, sinão escrever á vontade
as virtudes mais necessarias e ter zelo em que seja conhecido o Creador destas suas
creaturas”24.
Essas virtudes mencionadas por Nóbrega tocam em pontos importantes da moral e
do funcionamento social dos índios. Além da já citada antropofagia, em que se encerra o
mandamento de amar o próximo como a si mesmo do Sermão da Montanha, tem-se também
a delicada questão da poligamia e de como os índios organizavam-se acerca das relações
sexuais e amorosas:

(...) outra cousa não se espera sinão que tornem á suas mulheres, que têm esperança
qme que conservem a fidelidade: porque é costume até agora entre elles não
fazerem caso do adulterio, tomarem uma mulher e deixarem outra, como bem lhes
parece e nunca tomando alguma firme. O que não praticam os outros infieis de
Africa e de outras bandas, que tomam mulher para sempre e si a abandona é mal
visto: o que não se usa aqui, mas ter as mulheres simplesmente como concubinas.25

Tal questão naquele momento era crucial e toca de alguma maneira em todos os
seguintes pontos: religião, moral, subjetividade, direito, política, família e sociedade. A Igreja
era a responsável por ministrar os sacramentos que organizavam a vida seja do indivíduo, seja
da família cristã: está-se aqui falando de batismo e casamento. Ao mesmo tempo, a noção de
indivíduo que possui um nome e uma história de vida toca no ponto da tradição e da
transferência geracional e simbólica do nome de família: aspectos que se incorporam na
história social e individual daqueles que se assujeitam a tal ordem simbólica.
Estava, portanto, em jogo na conversão a mudança de paradigma segundo o qual os
índios organizavam sua vida social: a maneira como se nomeavam, como se entendiam como
sujeitos e partícipes da sociedade. Sabe-se que no rito antropofágico o nome do executado era
incorporado pelo que o matava. Com a interdição à poligamia e concubinato, estava-se em
busca de um horizonte social e moral em que se pudesse fundar um sistema de parentesco,
com suas possibilidades e proibições, à moda europeia: famílias fundadas por e centradas no
leito matrimonial monogâmico; um sistema social e moral que produzisse vergonha e culpa
àqueles que transgredissem suas normas: aí comparece o sacramento da confissão, para que as
culpas possam ser ouvidas e examinadas antes que o ato se possa produzir, ou expiadas após
sua execução. Mais uma vez, trata-se de examinar os atos individuais em uma história de

24
Idem, p. 94.
25
Idem, p. 93.

935
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

vida; uma implicação narrativa de um indivíduo em relação aos atos cometidos na história
narrada; enfim, a produção de um sujeito que se pensa enquanto tal.

REFERÊNCIAS

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 2014.

CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. “Une Église aux dimensions du monde : expansion du catholicisme et


ecclésiologie à l’époque moderne” in Les clercs et les princes. Paris: Presses de L’École Nationale des Chartes,
2013, p. 313-330.

GONÇALVES, Marcus Fabiano; ARRUDA, Edmundo Lima. Fundamentação ética e hermenêutica:


alternativas para o direito. Florianópolis: CESUSC, 2002

HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.

NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1988.

PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001.

936
XENOFOBIA PARA ALÉM DA MORAL

MONTEIRO, Tiago Leão


Estudante de mestrado do Programa de Pós-graduação e Sociologia e Direito
da Universidade Federal Fluminense

RESUMO

O discurso e as condutas xenofóbicas alcançam cada vez com mais força as sociedades democráticas
ocidentais, trazendo consigo a reação de pessoas que se indignam e rejeitam tal comportamento. No
entanto, ainda que não se deva descartar o conteúdo moral das motivações da xenofobia, há outros
elementos a ele anteriores que na academia, em especial nas áreas de ciências humanas, costumam não
receber a devida atenção, e geralmente sequer são tomados em consideração aos estudos migratórios.
Com base em obra recente do primatologista Robert Sapolsky, apresento estudos de neurologia que
remetem à compreensão da empatia, da compaixão e da repulsa. Este trabalho repercute uma parte da
pesquisa realizada para elaboração de dissertação de mestrado, cujo problema principal foi a questão da
integração do estrangeiro aos esquemas normativos sociais e jurídicos da sociedade de recebimento.

Palavras-Chave. Xenofobia. Migrações. Neurologia.

ABSTRACT

Xenophobic discourse and behavior increasingly reaches Western democratic societies, bringing with
them the reaction of people who are outraged and reject such behavior. However, although the moral
content of the motivations of xenophobia should not be discarded, there are other elements to it that in
academia, especially in the human sciences, are not given due attention, and are generally not even
taken into account in migration studies. Based on the recent work of the primatologist Robert Sapolsky,
I present studies of neurology that refer to the understanding of empathy, compassion and repulsion.
This work reflects a part of the research carried out for the elaboration of a master's dissertation,
which main problem was the integration of the foreigner to the normative social and legal schemes of
the receiving society.

Keywords. Xenophobia. Migrations. Neurology.

937
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O medo das invasões bárbaras há muito tempo não mais se funda no pavor da
chegada da guerra e aniquilação. Em outros tempos, pessoas que se comunicavam em
idiomas diferentes do falado no país e pessoas provenientes de etnias e culturas diferentes
geralmente eram apenas invasores ou mercadores. Naturalmente as pessoas temiam o
estrangeiro, o hostis. Esse temor não mais faz sentido, porém a xenofobia ainda existe.
Nos dias atuais, muitas palavras que se reportam a conceitos vêm sendo utilizadas
como porretes orais, sempre dispostos a nocautear argumentos discordantes, e geralmente
atacando o interlocutor e não o conteúdo do argumento. Vivendo em tempos de imensos
fluxos migratórios, a palavra xenofobia está entre as que mais repercutem. Porém, xenofobia,
assim como grande parte das demais palavras, não é propriamente insulto, mas conceito
elaborado para designar um fenômeno específico.
No plano do direito e da legislação brasileira, a xenofobia pode ser encontrada na
Lei 7.716 de 1989, ainda que implicitamente, pois há punição a certas condutas que abusam
da discriminação de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, e na Lei de
Migração1, que prevê que “(n)inguém será impedido de ingressar no País por motivo de raça,
religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”. Esta lei, ainda recente
no ordenamento jurídico brasileiro, dispõe ainda que o “repúdio e prevenção à xenofobia, ao
racismo e a quaisquer formas de discriminação” é um dos princípios da política migratória
brasileira, apesar de deixar em aberto a definição de xenofobia.
A abstração em torno do tema dificulta o investimento em soluções, pois presume
que ter ou não ter atitude xenófoba é fruto de uma opção moral por conduzir-se pelo caminho
do mal ou do bem. Essa linha de pensamento não é descartável e tem mérito somente a partir
de um processo de autoconhecimento coletivo da sociedade e de um aprofundamento a
teorias do bem. Não seguirei aqui esse percurso, por maior que seja meu fascínio pelo tema.
Além disso, como bem resumiu Peter Singer, “(d)escobrir que alguma forma de
comportamento tem uma base biológica não justifica aquele tipo de comportamento”
(SINGER, 2011, p. 150), apenas nos permite compreendê-lo melhor.

1
Lei 13.445 de 2017.

938
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. A REJEIÇÃO DO ‘NÃO-EU’

Barbaridade e civilização não existem enquanto instintos – com a exceção das


capacidades neurológicas de formação de grupos de dentro e de fora, como será analisado
mais à frente –, mas sim enquanto códigos de conduta que permitem aos humanos adequarem
e julgarem suas ações e as de outros. São duas categorias morais possibilitadoras da avaliação
da conduta humana em termos de bom e ruim. Não há critérios estabelecidos universalmente
para se definir barbaridade e civilização (TODOROV, Tzvetan, 2010) – e evitarei neste
trabalho, por prudência, adentrar nessa importante análise de uma teoria do bem.
Resta apenas um sentimento comum de fraternidade e a consideração da existência
de outros seres que guardam semelhança mínima entre si, e uns nos outros a si se reconhecem
e se respeitam. Esse ideal moral pode cair por terra quando o distanciamento entre nós e eles
se torna um desfiladeiro intransponível.
A xenofobia presume um estabelecimento implícito ou explícito não
necessariamente acurado de uma noção de eu e de não eu. Slavoj Žižek repercutiu em seu
livro publicado em 2016 que “nós mesmos não somos ‘pessoas como a gente’”. Isso se deve a
uma falha na autocompreensão de quem somos, e repercute em como vamos mensurar o
outro, haja vista que o convívio social é estruturado por nós a partir de uma interpretação de
nós mesmos. Como diz o ditado, “antes de acusar outros, examine tua própria existência”2,
pois possivelmente se encontrará mais inclinado a julgar seus próprios pecados.
Não há muita novidade nisso. A expressão em latim nescio vos – eu não vos
conheço –, muito usada por diversas figuras importantes, como Santo Agostinho, Santo
Tomás de Aquino e Molière, derivada do evangelho de Mateus3, hoje tem o condão de
designar a total recusa de se enxergar e ouvir o outro, excluindo a possibilidade de qualquer
comunicação4.
Não se trata de uma mera rejeição do outro, do diferente, do estrangeiro. Se trata da
rejeição do estrangeiro sem uma justificativa plausível que supere o medo irrazoável. Segue a
linha do preconceito, em oposição ao pré-conceito. Todo indivíduo é um intérprete do mundo,
2
Cum accusas alium, propriam prius inspice vitam. (TOSI, 2010, p. 332)
3
Essa é uma fala de Jesus Cristo quando esteve em Jerusalém, segundo o Evangelho de Mateus: “Quando o
mestre da casa tiver entrado e se fechado, você estará fora, e vai começar a bater à porta, dizendo: Senhor, Senhor,
abre-nos; e ele lhe responderá: Não sei quem você é” (VOLTAIRE, 1843). O original em latim: “Cum autem
intraverit pateramilias et clauserit ostium et incipietis foris stare et pulsare ostium dicentes ‘Domine, aperi nobis’
et respondens dicet vobis ‘Nescio vos’” (TOSI, 2010, p. 315).
4
(TOSI, 2010).

939
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

e dele captura apenas as demandas que lhe alcançaram cognitivamente a partir das lentes pré-
compreensivas subjetivas moldadas por suas experiências de vida.
Adotar uma posição difere de ter preconceito. A posição exige um “encargo
argumentativo de fundamentação e justificação”5, respeitadas as capacidades para liberdade
argumentativa – aceitação ou rejeição do argumento com base na razão6 – , ainda que haja
discordâncias de bases axiológicas. Os preconceitos são o contrário da tomada de posição7:

Trata-se daquilo que, justamente por não se revelar ou não se assumir enquanto
posição, só pode ser presumido e conjecturado segundo os rumores ou efeitos que
produz ou deixa como resultado. Um preconceito estabelece distinções
interpretativas, porém sem arcar com o custo de suas justificações. (ARRUDA
JUNIOR e GONÇALVES, 2002, p. 257)

Isso quer dizer que o preconceito oculta subjetividades e transparece a infundada


opinião, enquanto uma posição, ou o pré-conceito, é uma manifestação sobre um assunto
fundamentada numa justificativa gerada de uma interpretação da situação, a partir de uma pré-
compreensão consubstanciada de certos conhecimentos adquiridos ad-hoc e outros pré-
estabelecidos na vivência histórica subjetiva ordinária, podendo ser, a posição, devidamente
confrontada com argumentos racionais da mesma natureza. O preconceito discriminatório,
por outro lado, oculta superstições, suspeitas, intolerâncias, interesses escusos ou crenças
ortodoxas8.
O preconceito é sedutor. Ele “pode aplacar a perplexidade de indivíduos atônitos
diante de um mundo hipercomplexo” e, ao abrir mão do fardo de “fundamentar
universalmente, traz consigo o risco do desprezo às peculiaridades e às diferenças que fazem
de uma coisa ela mesma e não outra”9. Gonçalves, ao interpretar Ernst Tugendhat, sacramenta
a definição de preconceito, como perfeitamente encaixo neste estudo sobre xenofobia, como
“adoção sumária de uma discriminação, diferenciação ou até de uma desigualdade sem a
devida justificação dessa exceção perante os membros de uma comunidade”10.

5
(ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002, p. 257).
6
(BENHABIB, 2004).
7
(ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002)
8
(ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002).
9
(ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002, p. 259).
10
(ARRUDA JUNIOR e GONÇALVES, 2002, p. 259).

940
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Betts e Collier afirmaram em sua mais recente obra, que não sentir compaixão por
quem precisa ser salvo de algo seria uma conduta sociopata11. Essa generalização me parece
improdutiva e não dá conta do problema da rejeição a imigrantes, o que vulgarmente
generalizamos como xenofobia, o medo do estranho12 (do xenos) ou de estrangeiros. Que
mecanismos despertam essa rejeição, que muitas vezes sobrepõe fortes valores, como
compaixão e hospitalidade, e anula a empatia?

2. COGNIÇÃO DO MUNDO SOCIAL E ESTADO EMPÁTICO

A compaixão, enquanto sentimento análogo ao contágio emocional característico ao


estados empáticos13, estes, quando em funcionamento dentro dos padrões de normalidade, são
influenciados por componentes afetivos e componentes cognitivos14. Entre os afetivos, a
ativação do córtex anterior cingulado (CAC) está relacionada à atividade do cérebro de
processamento de informação interoceptiva – informações do próprio corpo, como sensação
de boca seca ou um ronco no estômago – e ao monitoramento de conflitos de estímulos – o
caso de um indivíduo estar acostumado, por exemplo, a receber um mesmo prêmio sempre
que executa uma mesma atividade, e, subitamente, recebe um prêmio maior (o CAC percebe
a mudança) ou menor (o CAC é ativado como um alarme)15.
O CAC é auto-orientado ao bem-estar do indivíduo. Não obstante, revela Sapolsky,
há vários estudos que demonstram que “um dedo alfinetado, um rosto triste, um conto de
infortúnio”16 evocam um estado empático, e é detectada a ativação do CAC proporcional à
dor sentida pelo indivíduo observado à distância. O CAC está relacionado à tomada de atitude
em relação à angustia ou dor sofrida, haja vista a reação ante a liberação do neuropeptídio
(hormônio) ocitocina pelo hipotálamo quando se entra em contato (interage) com alguém

11
(BETTS e COLLIER, 2017, p. 103).
12
Ainda que xenos, do grego antigo, não se traduza como estrangeiro, mas como alguém que faz parte do pacto
xenía, a palavra veio a ser empregada como prefixo de xenofobia com o sentido de “sujeito incomum”. No grego
contemporâneo, xenos é traduzido como desconhecido. A palavra estranho melhor seria traduzida por paráxenos
(παράξενος). Logo, xenofobia não necessariamente designa o medo de estrangeiros ou ao repúdio a outras
nacionalidades ou etnias (algo fácil de se confundir em francês – étrange e étranger), mas o medo ou repúdio ao
desconhecido, ao estranho, ao incomum.
13
Segundo Sapolsky, ao alcançar a idade adulta, a empatia se dá através de um processo envolvendo um circuito,
que inclui o CAC, a amígdala cerebral e a ínsula.
14
(SAPOLSKY, 2017).
15
(SAPOLSKY, 2017).
16
(SAPOLSKY, 2017, p. 360).

941
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

identificado dentro da percepção subjetiva de nós. A ocitocina tem influência na promoção de


comportamentos afiliativos e vinculantes, de confiança e de generosidade17. Sapolsky alerta
que, essa interação, quando feita com alguém do grupo eles, com a liberação de ocitocina,
torna as pessoas mais hostis e xenofóbicas18.
Em algumas ocasiões, quando o despertar do estado empático se funda na
interpretação dos fenômenos do mundo social, se ativam componentes cognitivos19. Da
mesma forma que alguns animais confortam as vítimas de ataques e não o agressor, seres
humanos tendem a optar pela vítima de um comportamento desproporcional ou injusto, como
quando, durante uma partida de futebol em que não há prévia preferência de lados,
escolhemos torcer pelo time mais fraco, desde que ele se esforce; ou quando nos
compadecemos mais por alguém que contraiu moléstia por uma transfusão de sangue do que
pelo uso de drogas injetáveis; ou quando nos comiseramos mais pelo sofrimento de uma
vítima de abalroamento do que pelo sofrimento do causador da colisão.
Não se trata de optar entre algoz e vítima, mas de sentir mais a dor de um e menos
de outro. A dor de uma perna amputada é a mesma para alguém que é vítima de ação alheia e
para alguém que causa o próprio dano. Ainda assim nos aproximamos mais da vítima ao
acionarmos automaticamente o processo cognitivo do estado empático. Isso ocorre porque o
CAC é mais ativado nestas ocasiões20. Ou seja, nas palavras de Sapolsky, interpretando a
pesquisa de Jean Decety, “processos cognitivos servem como um porteiro, decidindo se um
particular infortúnio é digno de empatia”21.
Superar a estranheza do desconhecido pode ser tarefa árdua para um ser humano, ao
contrário de ratos companheiros de gaiola utilizados em estudos. Para o ser humano, é uma
tarefa cognitiva não-automática superar o desconhecido, sendo possível o alcance do contagio
emocional e o atingimento do estado empático em relação a alguém considerado diferente ou
não-atraente22 mediante esforço. Isso quer dizer que despertar empatia por pessoas como nós
é automático, enquanto a empatia em relação a estranhos depende da ativação de elementos
de cognição que vão decidir se a pessoa e a sua dor se enquadram como despertadores do

17
(SAPOLSKY, 2017).
18
(SAPOLSKY, 2017).
19
(SAPOLSKY, 2017).
20
(SAPOLSKY, 2017).
21
(SAPOLSKY, 2017, p. 361).
22
(SAPOLSKY, 2017).

942
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estado de empatia (ou de mera simpatia, como na expressão, tipicamente anglofônica, I am


sympathetic with you, but I prefer not to intervene). Simpatia, enquanto sentir por outra
pessoa, e não com outra pessoa.
Esse esforço cognitivo para tornar uma reação a um membro do grupo eles como se
fosse a um do grupo nós demanda maior ativação fronto-cortical (onde ficam os “neurônios
executivos”23). Esse empenho, que tem como objetivo suprimir a automática reação de
indiferença ou de repulsa ao outro, se caracteriza pela busca de elementos em comum entre o
intérprete da situação e o comiserado. Segundo analisou Sapolsky:

(...) nós temos uma resposta sensorimotor mais forte em nossas mãos quando a mão
que vemos sendo espetada com uma agulha é de nossa raça; quanto mais forte for o
viés implícito de grupo-de-dentro do indivíduo, mais forte é seu efeito. Enquanto
isso, outros estudos demonstram que quanto mais forte for a discrepância em
padrões de ativação neural enquanto se observa uma pessoa do grupo-de-dentro que
sofre versus uma do grupo-de-fora, menores são as chances de ajudar a última.
(SAPOLSKY, 2017, p. 362)

O estado empático, seja ele ativado em relação a semelhantes ou diferentes, desperta


emoção e cognição, que agem em modulada e contínua alternância conforme a proximidade
ou distância entre o intérprete e o analisado. O elemento cognitivo tem maior destaque
quando a percepção inicial é de desproporcional domínio das diferenças sobre as
similaridades entre o intérprete e o que sofre24. A cognição social é o processo pelo qual
entendemos e lidamos com outros, e ela envolve uma série de áreas do córtex para reconhecer
expressões faciais, processar emoções e promover alinhamento emocional com outros – a
empatia.
Em trabalho publicado em 2005, Marco Iacoboni e equipe divulgaram resultados de
sua pesquisa sobre a neuroatividade ocorrida enquanto se realiza processo de entendimento da
intenção de outros. Como o cientista informa, anteriormente se acreditava que as áreas de
neurônios-espelho25 do córtex pré-motor26 – que recebe a informação do córtex pré-frontal e
repassa para o córtex motor para acionamento de músculos – , ativadas em momentos de
execução e observação de ações, se envolvessem apenas em reconhecimento de ações, porém,

23
(SAPOLSKY, 2017).
24
(SAPOLSKY, 2017).
25
(CAGGIANO e colab., 1996; DI PELLEGRINO e colab., 1992; FOGASSI e colab., 1992).
26
(SAPOLSKY, 2017).

943
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

como conclui seu artigo, os neurônios-espelho de fato participariam da interpretação e


entendimento da intenção dos outros27.
É preciso esclarecer um pouco mais sobre o que seria a intenção. Imputar intenção a
uma ação de outrem é presumir um objetivo futuro. Essa operação realizada pelo cérebro é
feita automaticamente pelo sistema motor, que recebe informação do pré-motor. Era já sabido
que os neurônios-espelho (localizados no córtex pré-motor28) proviam um mecanismo neural
para entender intenções simples, como “fulana esticou o braço em direção à TV fazendo com
a mão o formato de um punho, porém com o dedo indicador para frente, logo fulana quer
apertar o botão da TV”. Isto é, o seu objetivo imediato é apertar o botão da TV.
A questão crucial era saber se os neurônios-espelho também participavam na
codificação da intenção global da pessoa observada. Por que ela quer apertar o botão? Ela
quer ligar ou desligar a TV? Ela quer ver um filme específico ou apenas ouvir notícias?
Algumas pesquisas concluíram que há grande participação dos neurônios-espelho, porém há
críticos que afirmam que também há de diversas outras partes do cérebro.
Os neurônios-espelho, responsáveis pela imitação de comportamentos observados
ou sentidos (cheiro de comida e som do forno micro-ondas despertam fome, por exemplo),
não reagem meramente a estímulos captados (movimentos), assim defendem alguns estudos,
mas também incorporam e respondem à intenção global complexa. Por exemplo, a visão de
alguém pegando uma xicara à mesa para limpá-la não ativa o sistema de neurônios-espelhos29
da forma como ele é ativado quando se pega a xícara para beber café. Isso ocorre porque a sua
atividade sofre influência das “circunstâncias da imitação, conscientemente ou não, incluindo
a imitação da ideia de uma ação, assim como a intenção por trás dela”30. Ou seja, a “mesma
ação realizada em dois contextos diferentes adquire diferentes significados e pode refletir duas
intenções diferentes”31.
Ainda assim, os estudos sobre a participação de neurônios-espelho entre os
mecanismos neurais e funcionais que subscrevem a habilidade de fazer interpretações ou

27
(IACOBONI e colab., 2005).
28
Os neurônios "executivos" no córtex pré-frontal decidem algo, passando a notícia para o resto do córtex frontal
logo atrás dele. Que envia projeções para o córtex pré-motor logo atrás dele. Que envia projeções um passo para
trás, para o córtex motor, que então envia comandos aos músculos. Assim, o córtex pré-motor abrange a divisão
entre pensar e realizar um movimento. (SAPOLSKY, 2017, p. 364)
29
(SAPOLSKY, 2017).
30
(SAPOLSKY, 2017, p. 364).
31
(IACOBONI e colab., 2005, p. 530).

944
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

entender as intenções dos outros enquanto se observa as suas ações têm um longo caminho
pela frente32. Além disso, após mais de duas décadas da descoberta dos neurônios-espelhos
por Giacomo Rizzolatti e Vittorio Gallese e a sua associação ao desenvolvimento de estados
empáticos (o que faz sentido, pois a replicação de um sentimento pela observação é a sua
característica), nos últimos anos surgiram dúvidas quanto ao grau de importância deles no
sistema empático, que envolve uma série de outras áreas do córtex, incluindo críticas à
centralidade sobre cognição dada ao sistema motor33.

3. PROGRAMANDO HUMANOS PARA CONVIVER COM DIVERSIDADES

Feitas todas as últimas considerações sobre neurociência, ainda que não haja
participação dos neurônios-espelho no sistema empático, ou que haja pouca, este sistema
funciona a partir de acionamentos automáticos e cognições ditando o grau de envolvimento
emocional de um indivíduo com uma forte emoção de outrem, um forte sentimento.
Há uma questão mais profunda sobre o processamento de valores que tomaria muito
tempo neste trabalho, que, malgrado pisar neste e em outros campos epistemológicos de alta
complexidade, não se propõe a neles aprofundar-se. O que desejo aqui, com o máximo de
cuidado dentro dos limites da proposta, é repercutir pontos essenciais – cuja contumaz
ausência nos estudos migratórios impossibilita uma visão holística do fenômeno – para
compreender as razões pelas quais uma mesma situação vivida por pessoas é observada e
interpretada de formas diferentes por outras, despertando, em diversos graus e em diferentes
pessoas, sentimentos de compaixão, indiferença e repulsa pelo outro. Seria possível afirmar
que a prévia adesão a um ou outro sistema moral influencia na automática ativação do sistema
empático e na produção da reação por ele ornamentada? Ou estamos fadados ao
determinismo biológico?
A intenção é responder por que motivos um italiano residente ao sul da península
tem uma reação empática a migrantes diversa de um alemão ao norte do continente. O mesmo
ocorre entre nacionais do Reino Unido residentes em Londres e York, ou americanos da
cidade de Nova Iorque e do interior do Wyoming.

32
(IACOBONI e colab., 2005).
33
(HICKOK, 2014; SAPOLSKY, 2017).

945
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A interpretação das imagens de pessoas alcançando as bordas da Europa em


péssimas condições, ou de imigrantes caminhando pelo deserto que divide México e EUA,
variam conforme as noções subjetivas de imagem de si, as idiossincracias, e as consequências
destas chegadas de pessoas ao plano da segurança individual de quem as interpreta. O fato de
serem pessoas geralmente diferentes em termos fenotípicos, culturais e econômicos, torna
mais significativa a ativação de elementos cognitivos para a interpretação da situação e
elaboração da decisão de como agir.
A capacidade de se colocar no lugar destas pessoas e despertar o alinhamento
emocional responsável pela empatia e compaixão – e não de indiferença e repulsa –, além
destes fatores, está ainda atrelada a um juízo sobre a intencionalidade e justificativa das
condutas dos indivíduos que terminaram por se encontrar em situação migratória.
O aumento da carga cognitiva reduz a chance de o indivíduo ser pró-social com
estranhos34. Baixa sociabilidade35 e stress36 podem reduzir a generosidade e a capacidade
empática. Por essa razão enfatizei acima a adesão a um ou outro sistema de valores, além das
experiências passadas acumuladas, o que inclui o costume de conviver ou não (e de forma
pacífica ou não) com altos graus de diversidades. Ainda que o indivíduo se solidarize com a
comiseração de imigrantes desesperados em um naufragante bote que se esvazia em meio a
um mar gelado e revolto, será ele capaz de se colocar em seu lugar e sentir o que ele sente?
Ainda que inicialmente assim se sinta, após os elementos de cognição entrarem em
funcionamento e analisarem uma conjuntura maior e a intencionalidade, seria ainda possível o
estado empático se sustentar? Ainda assim, seria ele potente o suficiente para despertar uma
reação compassiva?
A empatia não necessariamente desperta uma ação solidária à outra pessoa. Se o
indivíduo, por via da ressonância emotiva, sentir-se extremamente angustiado poderá ser
compelido a investir todos os seus esforços em aliviar-se, tornando a si mesmo sua maior
prioridade37. Há maior chance, portanto, de estados empáticos darem ensejo a
comportamentos solidários e compassivos quando se é possível administrar uma certa
distância38. Por essa razão, Sapolsky apresenta estudos sobre as diferenças entre

34
(SAPOLSKY, 2017).
35
(TWENGE e colab., 2007).
36
(MARTIN e colab., 2015).
37
(SAPOLSKY, 2017).
38
(SAPOLSKY, 2017).

946
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

comportamento empático (com foco total em sentir o sofrimento de alguém que experimente
angústia) e comportamento compassivo (com foco total no sentimento de acolhimento e
cuidado ao comiserado)39. O empático demonstra maior ativação da amídala cerebral e um
estado negativo de ansiedade40. O compassivo demonstra não despertar a amídala, ativando
fortemente elementos de cognição (córtex dorsolateral pré-frontal) atuando em conjunto com
regiões dopaminérgicas, gerando emoções mais positivas e maior tendência a
comportamentos pró-sociais41.
A adequação positivista da situação de cada indivíduo ou grupo de indivíduos em
deslocamento sob o manto protetivo jurídico-conceitual do refúgio geralmente influencia a
decisão do intérprete, talvez pela mesma razão que tendemos a consolar vítimas e não
agressores. Presumimos serem estas pessoas vítimas das circunstâncias e merecedoras de
compaixão e caridade. Porém, quando se não mais enxerga essa aura de miserabilidade da
vítima, seja porque a situação individual não é (pelo sujeito intérprete) julgada enquadrar-se
como refúgio, ou porque se há uma noção genérica de que ser refugiado não mais o torna
presumidamente uma vítima, ou ainda, quando surge uma ideia de que o refugiado ou o
migrante econômico, ainda que reconhecidamente vítima das condições difíceis em sua terra
natal, na Europa passaria a ser um possível agressor, a interpretação subjetiva da situação
realizada no âmbito da produção de um estado empático pode tomar uma série de caminhos
que genericamente, nos tempos atuais, são prematuramente enquadrados como xenofóbicos.
Além do sentimento de compaixão, podem surgir a indiferença e a repulsa. Logo, se
podemos dizer que hostilidade é o alter ego da hospitalidade, a xenofobia é, portanto, o alter
ego da empatia.
Em 2007 foi publicada uma pesquisa que pode ser importante para aqueles que,
como eu, nutrem esperança após estes parágrafos, que podem parecer um tanto duros e
alinhados com um determinismo aparentemente inultrapassável. Compreender os fenômenos
o mais desenviesadamente possível é o único caminho para se pensar em soluções factíveis, e
o resultado alcançado pode parecer desanimador, mas é dele que as alternativas realistas
surgem.

39
(RICARD e colab., 2014; SAPOLSKY, 2017).
40
(SAPOLSKY, 2017).
41
(SAPOLSKY, 2017).

947
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Tendo isso em mente, me deparei com a pesquisa realizada por Caroline Catmur e
sua equipe do Departamento de Psicologia da University College London, que estudou o
“sistema espelho” com o objetivo, entre outros, de descobrir se o espelhamento de ações
acontece de forma fixa ou pode reprogramado.
Catmur e equipe descobriram, não apenas que o sistema espelho, após regularmente
adquirido em certa idade, pode ser reprogramado ao nível neurofisiológio por aprendizado
sensorimotor (observação-execução de ações), bem como que suas propriedades não são
inteiramente inatas, e que ele é ao mesmo tempo produto e processo de interações sociais42.
Essa pesquisa pouco tem a dizer sobre a reprodução de um sentimento alheio em si,
mas ela indica ao menos não ser impossível a reprogramação após a fixação. Tendo o estudo
apenas se concentrado no espelhamento de uso dos dedos das mãos, se é possível remodular o
espelhamento de reações emotivas, ainda que tenha aberto a possibilidade, isso não ficou
claro.
Retomando o raciocínio do início, a xenofobia ocorre quando há uma repulsa
injustificável ou sem fundamento racional aceitável enquanto ainda que reprovável,
caracterizada pelo preconceito. Há, ainda que possa não parecer, ativação significante do
sistema cognitivo. Mas ela pode se manifestar automaticamente ao se interpretar fenômenos,
ou seja, sem envolver muita cognição. Isso aconteceu em um curiosíssimo caso
hollywoodiano.
Durante as filmagens do cânone do cinema Planeta dos Macacos de 1968, os atores
utilizando maquiagem e fantasia foram divididos em três grupos: chimpanzés, gorilas e
orangotangos. De modo que durante as refeições eles preservassem o duro trabalho de
transformação em primatas, um bufê especial foi organizado onde os “humanos” não
entravam. Peculiarmente, as três espécies jamais se misturavam ou se sentavam juntas. E
todos eles praticamente não se relacionavam com os humanos fora do set de filmagens. Eles
se auto segregavam. Havia, sim, certas regras, como a proibição dos fantasiados de deixar o
set durante o dia de gravações, e havia segredo total na produção, mas não havia regras contra
o relacionamento social.
Kim Hunter, que interpretou a Doutora Zira, um chimpanzé, afirmou que “foi uma
questão de se aproximar com quem entendia o que você estava passando”43. De fato, os atores

42
(CATMUR e colab., 2007).
43
(HOFSTEDE, 2001, p. 13).

948
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

acordavam as cinco horas da manhã e começavam o dia com fatigantes três horas e meia de
sessão de colocação da fantasia e maquiagem. Não podiam se coçar ou espirrar, e comer era
complicado44. Hunter era muito amiga do ator Maurice Evans45, que estava no elenco, porém
raramente se comunicavam, pois estavam em grupos símios diferentes – Evans era um
orangotango.
O longo e diário processo de transformação física auxiliava na transformação mental
necessária para que os atores entrassem no papel de símios. Eles se esforçavam para acreditar
que eram verdadeiros chimpanzés, gorilas e orangotangos. Hunter investia com tanto esmero
que chegou ao ponto de ter seu pior pesadelo da vida durante um cochilo em um intervalo de
filmagens. Ela dormiu com a maquiagem e sonhou ter de fato o rosto de um chimpanzé e não
conseguia ver se o resto de seu corpo havia também se transformado em símio 46. Maurice
Evans revelou que “assim que toda essa maquiagem é aplicada, a pessoa, como ocorreu, entra
na pele do papel47” (CLARKE, 1972, p. 30).
Conforme se depreende do exposto até o momento, diversas forças externas às
adesões a agrupamentos axiológicos também interferem na repulsa aos diferentes, e que
podem ter influência no despertar de preconceitos, que são as atitudes negativas infundadas,
ou insuficientemente fundamentadas, a pessoas que se subjetivamente julgue compor o grupo
dos eles. Um último elemento que apresento que sustenta esse argumento, entre vários outros,
pode ser demonstrado por uma pesquisa publicada em 200948 que concluiu que mulheres
brancas em período de ovulação têm mais negativa atitude em relação a homens afro-
americanos. Isso ocorre porque, quando mulheres estão ovulando, certas áreas do córtex
cerebral reagem com mais intensidade a rostos, principalmente masculinos, tendo os
hormônios influência na formação dos grupos nós e eles.
Como afirma Sapolsky, “(n)ossos sentimentos sobre eles podem ser moldados por
forças subterrâneas que sequer temos ideia”49. E “ter ideia” deles, ou ao menos termos
consciência de que há fatores desconhecidos atuando, é crucial para compreendermos melhor
os fenômenos da hospitalidade, da compaixão e da xenofobia.

44
Comida líquida, tipo papinha para bebês (HOFSTEDE, 2001).
45
Dr. Zaius.
46
(CLARKE, 1972).
47
A expressão get into the skin em inglês remete a “sentir o que o outro sente”.
48
(NAVARRETE e colab., 2009).
49
(SAPOLSKY, 2017, p. 279).

949
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Xenofobia crescente em uma sociedade que recebe muitos imigrantes é sintoma de


que algo está errado. Provavelmente de que esta sociedade não está preparada para receber a
quantidade de estrangeiros que ora recebe. Seja por sua hermeticidade, pela incapacidade
(econômica, cultural, social) de assimilar grandes contingentes humanos, ou pelo grau de
dissemelhança entre os locais e os estrangeiros imigrados. São subsequentes ciclos de
imigração descontrolada, que não considera a capacidade de absorção de cada sociedade e as
necessárias medidas de inclusão de estrangeiros, que poderiam reduzir o abismo que dá causa
a manifestações xenófobas e comprometedoras da coesão.
O modelo Interculturalista de integração de imigrantes às sociedades, modelo
proposto por Ted Cantle, Ricard Zapata-Barrero e outros, e que considero ser o que mais se
atenta às preocupações que expus neste trabalho, e que faz oposição aos modelos
Assimilacionista e Multiculturalista, leva em consideração a importância de a sociedade de
acolhida também investir em medidas em que ela própria dê um passo adiante para encontrar
o estrangeiro, considerando a cultura majoritária local como paradigma, mas abrindo espaço
para manifestações culturais de imigrantes no seio da sociedade, sem segrega-los a supostos
espaços grupais, vulgarmente conhecidos como guetos.

CONSIDERAÇÔES FINAIS

Partindo de uma vontade de compreender os fenômenos migratórios sob uma


perspectiva neutra, que abarca todas as questões que possam vir a repercutir no tema
designado, compreender o conceito de xenofobia através dos fatores que a influenciam para
além das questões morais, e que envolvam a rejeição prima facie de outrem, é de suma
importância. Diante de tais considerações, a compreensão, ainda que superficial, da incidência
de marcadores biológicos averiguados por estudos de neuroci, nos insufla a deixar o conforto
de nossa redoma epistemológica, que, por muito tempo, nos protegeu de influências externas
e de demandas de alta complexidade.
Atualmente, não basta ao acadêmico, se se deseja repercutir suas palavras no mundo
fático, ater-se à unidade epistemológica, pois os fenômenos estudados, em especial, os de
natureza humana, não mais nos permitirão a este luxo, nos demandando, ante sua crescente
complexidade, a expansão dos horizontes dos estudos e pesquisas.

950
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Isso quer dizer que é preciso explorar além do espaço conhecido, ao menos para que
não se abra lacunas à ignorância de elementos importantes às questões estudadas, como, no
caso deste trabalho, as migrações, nos permitindo, assim, tocar o outrora desconhecido. Este
trabalho não tem a presunção de inovar no campo da neurologia, tampouco no da moral, mas
o desejo de iluminar o caminho dos estudos migratórios e recordar que o conhecimento não se
encerra nas barreiras que construímos, ainda que elas existam para facilitar a aquisição de
conhecimento.

REFERÊNCIAS

ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima De e GONÇALVES, Marcus Fabiano. Fundamentação Ética e


Hermenêutica - alternativas para o direito. Florianópolis: CESUSC, 2002.

BENHABIB, Seyla. The rights of others - aliens, residents and citizens. Cambridge: Cambridge University Press,
2004.

CAGGIANO, Vittorio e colab. Premotor cortex and the recognition of motor actions. In: Current Biology, v. 23,
n. 2, p. 131–141, 1996.

CANTLE, Ted. For the Era of Globalisation, Cohesion and Diversity. In: Political Insight, p. 38–41, Dez 2012a.

CANTLE, Ted. Interculturalism : For the Era of Globalisation, Cohesion and Diversity. In: Political Insight,
December, p. 38–41, 2012b.

CANTLE, Ted. Interculturalism: The New Era of Cohesion and Diversity. Basingstoke: Palgrave Macmillan,
2012c.

CATMUR, Caroline e WALSH, Vincent e HEYES, Cecilia. Sensorimotor Learning Configures the Human
Mirror System. I:n Current Biology, n. 17, p. 1527–1531, 2007.

CLARKE, Frederick S. Special Planet of the Apes issue. In: Cinefantastique, 1972.

DI PELLEGRINO, G. e colab. Understanding motor events: a neurophysiological study. In: Experimental Brain
Research, v. 91, n. 1, p. 176–180, 1992.

FOGASSI, L e colab. Pace Coding By Premotor Cortex. In: Experimental Brain Research, v. 89, p. 682–690,
1992.

HICKOK, Gregory. The Myth of Mirror Neurons: The Real Neuroscience of Communication and Cognition.
2014.

HOFSTEDE, David. Planet of the apes: an unofficial companion. Toronto: ECW Press, 2001.

IACOBONI, Marco e colab. Grasping the intentions of others with one’s own mirror neuron system. In: PLoS
Biology, v. 3, n. 3, p. 0529–0535, 2005.

MARTIN, Loren J. e colab. Reducing social stress elicits emotional contagion of pain in mouse and human
strangers. In: Current Biology, v. 25, n. 3, p. 326–332, 2015.

951
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

NAVARRETE, Carlos David e colab. Race bias tracks conception risk across the menstrual cycle. In:
Psychological Science, v. 20, n. 6, p. 661–665, 2009.

RICARD, Matthieu e LUTZ, Antoine e DAVIDSON, Richard J. Mind of the meditator. 2014.

SAPOLSKY, Robert M. Behave: the biology of humans at our best and worst. New York: Penguin Press, 2017.

SINGER, Peter. The Expanding Circle: Ethics, Evolution, and Moral Progress. Princeton: Princeton University
Press, 2011.

TODOROV, Tzvetan. The Fear of Barbarians: Beyond the Clash of Civilizations. Chicago: The University of
Chicago Press, 2010.

TOSI, Renzo. Dictionnaire des sentences latines et grecques. Grenoble: Jérome Millon, 2010.

TWENGE, Jean M e colab. Social Exclusion Decreases Prosocial Behavior. v. 92, n. 1, p. 56–66, 2007.

VOLTAIRE. Philosophical Dictionary. Volume the first. London: W. Dugdale, 1843.

ZAPATA-BARRERO, Ricard. The three strands of intercultural policies: a comprehensive view - A critical
review of Bouchard and Cantle recent books on interculturalism. In: Working Paper Series. Barcelona: [s.n.],
2013.

ŽIŽEK, Slavoj. Refugee, Terror and Other Troubles with Neighbors - against the double blackmail. London:
Melville House Publishing, 2016.

952
IMPEACHMENT NA CONVERGÊNCIA ENTRE DIREITO,
MORAL E POLÍTICA À LUZ DA TEORIA INSTITUCIONALISTA
DE NEIL MACCORMICK

SILVA, Anna Carolina Pinheiro da Costa


Professora de Teoria do Direito da UFRJ
Mestranda do PPGDC-UFF

RESUMO

O impeachment, instituto jurídico de natureza político-administrativa, constitui um espaço de


convergência e interação, por excelência, entre os campos do direito, da moral e da política. Entretanto,
o processo sofrido por Dilma Rousseff, em 2016, ressaltou uma série de problemas deste mecanismo
destituinte. A teoria institucional de Neil MacCormick elucida os espaços de comunicação das três
esferas sociais, conferindo compreensão sobre a legitimidade em termos procedimentais e discursivos.
Não obstante, considerando a tessitura aberta dos crimes de responsabilidade tal como previstos e a
ampla discricionariedade dos parlamentares investidos na função judicante, as falhas do impeachment
agravam-se em contextos de crise de legitimidade democrática e corrupção sistêmica e pela falta de
correspondência entre investidura pelo voto direto e destituição por representantes eleitos
indiretamente.

Palavras-Chave. Impeachment. Exercício da cidadania. Legitimidade democrática.

ABSTRACT

Impeachment, a legal institute of political-administrative nature, constitutes a space of convergence


and interaction, par excellence, between the fields of law, morality and politics. However, the process
undergone by Dilma Rousseff in 2016 highlighted a number of problems of this destitute mechanism.
The institutional theory of Neil MacCormick elucidates the spaces of communication of the three social
spheres, conferring understanding on the legitimacy in procedural and discursive terms. Nevertheless,
considering the openness of the crimes of responsibility as foreseen and the wide discretion of the
parliamentarians invested in the judicial function, the failures of impeachment are aggravated in
contexts of crisis of democratic legitimacy and systemic corruption and the lack of correspondence
between investiture by the direct vote and dismissal by indirectly elected representatives.

Keywords. Impeachment. Exercise of citizenship. Democratic legitimacy.

953
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O impeachment é um instituto de natureza político-administrativa, cuja finalidade,


na engenharia constitucional, é a de fornecer um mecanismo destituinte de agentes que atuam
nas altas esferas de poder, ou seja, atingem a chamada politically exposed person (PEP). Em
que pesem as variações da disciplina em cada país, como regra geral, parlamentares, ministros
da Suprema Corte e, sobretudo, o chefe de governo são os agentes passivos do processo que,
mais do que a responsabilização por seus atos no exercício do múnus público, visa à proteção
da dignidade do cargo e das credenciais para o gozo da cidadania participativa (perda do
cargo) e à existência do Estado e manutenção da ordem constitucional (inabilitação para
ocupar funções públicas). Portanto, em um primeiro plano, tem viés preventivo e restaurador
da normalidade, e não punitivo.
Nesse sentido, os crimes de responsabilidade, nomem iuris da conduta imputada ao
agente que enseja seu impedimento para o exercício de funções públicas, versam sobre
infrações que de natureza financeira, administrativa e política em sentido estrito, incluídos
aqui os crimes propriamente ditos de ação própria de funcionários públicos. Como exemplos
que se extraem da Lei n. 1.079/50, que regulamenta a matéria no Brasil, temos declarações de
guerra sem autorização do Congresso Nacional (art. 5o, item 8), tentativas de dissolução deste
(art. 6o, item 1), obstáculos à cidadania direta por meio do voto (art. 7o, item 1), crimes contra
a segurança interna do país (art. 8o, item 4), ausência ou mora na prestação de contas anuais
(art. 9o, item 2) e excesso nos gastos das verbas orçamentárias sem autorização legal (art. 10,
item 2).
Recentemente, a responsabilidade pela existência e manutenção financeiras do país,
dentro da ordem constitucional vigente, ensejou o impeachment da ex-presidente Dilma
Rousseff, em decisão do Senado Federal tomada por 61 votos a favor e 20 contra.
Diferentemente do que ocorrera no caso Collor, em que ampla maioria de eleitores e da
opinião pública apoiaram a destituição por atos de corrupção, o manejo do instituto em 2016
dividiu parte de setores ligados a movimentos sociais e às classes artística e intelectual, tendo,
nos apoiadores de Dilma, as manifestações mais expressivas, ao argumento de que a
inexistência de crime, no caso, equivaleria a um golpe de Estado.
Não obstante as dificuldades naturais na compreensão popular atécnica das
complexidades envolvidas na gestão das verbas públicas, que mobilizam conhecimentos nos
campos financeiro, orçamentário e contábil, foram as dimensões jurídica, política e moral que

954
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

efetivamente catalisaram a disputa de narrativas e de adesão popular mais abrangente. Em


uma conjuntura política marcada por escândalos de corrupção, diariamente alimentados pelas
noticiadas investigações da Operação Lava Jato, e no quadro estrutural de um sistema
presidencialista calcado no voto direito, em que o apelo carismático e o personalismo na
pessoa do chefe de governo (e do partido) são a tônica, submetê-lo a julgamento político por
representantes eleitos indiretamente, carecedores daquela identificação pessoal, partidária e
institucional, impõe um ônus sobre as credenciais moral e de legitimidade democrática e
jurídica dos juízes naturais do processo.
Neste cenário, mostra-se relevante um estudo sobre o instituto do impeachment para
a elucidação do diálogo entre as dimensões jurídica, moral e política, cujo conteúdo e
resultado prático são um resultado da experiência discursiva elaborada procedimentalmente
nas instituições e delegações competenciais previstas na Constituição. Para tanto, propõe-se a
investigação do impeachment nos marcos da teoria institucional de Neil MacCormick, que
fornece elementos de averiguação da incorporação dos âmbitos político e moral aos
procedimentos estabelecidos juridicamente, tanto como elementos fornecedores de sentido
gramaticalmente identificável nas razões públicas quando da concretização dos direitos
(incluídos os da cidadania), quanto como condicionantes do próprio funcionamento
procedimental do Direito.
O presente estudo, restrito ao caso Dilma Rousseff, divide-se, assim, em uma
explanação sobre o instituto do impedimento, em que se ressaltam sua origem e importação
do direito estrangeiro, sua natureza jurídica, a carga de discricionariedade e critérios do
julgamento político, tendo Paulo Brossard como marco teórico; em um segundo momento,
segue-se à análise do impeachment pela teoria institucional e da argumentação de
MacCormick, desenvolvendo os conceitos de confiança recíproca, razão pública, legitimidade
procedimental, poder de fato e injustiças graves, que fornece o modelo teórico de análise do
instituto; e, por fim, faz-se a composição do quadro compreensivo do impeachment, tal como
existe e é praticado atualmente, bem como o necessário cotejamento entre este mecanismo
destituinte e o princípio democrático no Estado de direito, levando em consideração as
ramificações e limitações nas esferas moral e política e os problemas apontados e suas
possíveis soluções.

955
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1. O IMPEACHMENT NA CONVERGÊNCIA ENTRE DIREITO, MORAL E


POLÍTICA

A doutrina pátria já se debruça há muito sobre o instituto do impeachment. O que


fora importado do constitucionalismo de inglês sem grandes alardes dentro de uma tradição
monárquica de common law (URUGUAI, 2002) e adaptado ao modelo de civil law, tendo
como parâmetro a Carta Constitucional francesa de 1815, foi alvo de severas críticas com o
advento da República em 1891, desde constitucionalistas do jaez de Rui Barbosa e seus
contemporâneos a estudiosos que dedicaram amplas e profundas análises ao assunto como
Paulo Brossard (1992).
De fato, há uma imprecisão epistemológica no tratamento do instituto, que é
agravada pelo “aparatoso cerimonial” do impeachment, ao misturar procedimentos e
nomenclaturas próprias dos julgamentos de natureza criminal, que possuem uma lógica
hermenêutica de aplicação restrita, e que não se coaduna com a natureza política e de
interpretação mais dilatada do crime de responsabilidade, mas que se explica pela origem do
instituto quando de sua incorporação a nosso ordenamento histórico-constitucional, cujo foro
de julgamento constituía um juízo universal, atingindo a pessoa e os bens do político
impedido (BROSSARD, 1992).
A maioria da doutrina esposa o entendimento de que o instituto do impeachment e
as condutas definidas como crime de responsabilidade têm natureza político-administrativa.
Por sua vez, o juiz natural do processo de impedimento, tal como este foi constituído
historicamente em nossa tradição jurídico-constitucional, tem ampla margem de
discricionariedade para a definição, reconhecimento e decisão acerca do cometimento de um
crime de responsabilidade pelo presidente, dentro dos marcos procedimentais que ele mesmo,
nos limites impostos pelo constituinte histórico originário, tem competência para definir.
Todavia, os problemas decorrentes do manuseio do instituto, quanto às matérias
analisadas no caso concreto e ao conteúdo fogem ao campo do estritamente jurídico-
constitucional e são remetidas ao campo da política - aos atos de vontade política das
autoridades competentes, os parlamentares -, tendo-se em conta ainda que são consequências
das falhas do próprio instituto, como instrumento de política e de conformação e rearranjo de
instabilidades entre as forças de poder, em que objetivamente se apura a responsabilidade
política de um político perante seus pares políticos.

956
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

À vagueza semântica dos tipos descritos na norma como crimes de responsabilidade


alia-se a natureza política e não técnica das decisões e formação de certezas putativas dos
parlamentares, cujo acesso aos cargos e investimento em sua autoridade interpretativa e
aplicadora do direito requer como qualificações gerais tão somente o gozo de direitos
políticos e a alfabetização precária (admite-se o analfabeto funcional), além de, mais
recentemente, o requisito negativo da não condenação nas condutas definidas na Lei da Ficha
Limpa.
No julgamento de Dilma Rousseff, o caráter político do instituto e a ampla
discricionariedade dos políticos investidos na função judicante fizeram-se evidentes na
revaloração da prática contábil de atraso nos repasses de verbas aos bancos intermediadores
de pagamentos de programas do governo, o que se convencionou chamar de “pedalada
fiscal”. De fato, a mudança de entendimento originara-se no TCU, que, ao dar parecer sobre
as contas presidenciais de 2014 e 2015, rejeitou-as, apontando que o balanço apresentado pela
União continha irregularidades que feriram preceitos constitucionais, a Lei Orçamentária e a
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Foram detectadas distorções envolvendo mais de R$
100 bilhões na execução orçamentária do governo, dos quais R$ 52 bilhões se referiam às
pedaladas. O parecer de outubro de 2015, referente ao exercício de 2014, foi histórico, pois
não se opinava pela rejeição desde 1937, sob o governo Vargas, que curiosamente também
fora alvo de um processo de impeachment em 1953, apesar do resultado negativo.
Entretanto, antes do parecer de 2015, as contas de 2013 já haviam sido aprovadas
com 26 ressalvas, constando entre elas os mencionados atrasos dos repasses do Tesouro para
programas do governo gerenciados por bancos, como a Caixa Econômica Federal, o Banco
do Brasil e o BNDES, cujo total fora apurado em R$ 36,07 bilhões. O alerta foi feito devido
aos volumes expressivos, fazendo com que as instituições bancassem as despesas que eram
do governo federal e não das entidades financeiras, gerando uma melhora artificial no
resultado fiscal e, em concreto, aumento do déficit das contas públicas, fixado e alterado por
lei. Em outubro de 2016, novo parecer do TCU opina pela rejeição do balanço das contas do
governo Dilma relativo ao exercício de 2015, com passivo, em novembro daquele ano, de R$
58,68 bilhões, somente em relação às pedaladas. No comparativo com o início do governo
Dilma, as pedaladas somaram R$ 12,98 bilhões no fim de 2011 (primeiro ano do mandato),
avançando para R$ 19,7 bilhões em dezembro de 2012.

957
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O fim da parcimônia ou tratamento como irrelevante jurídico com que tratava a


pedalada fiscal, a despeito de sua decantação política no processo de impeachment de 2016, é
antes uma consequência da vertiginosa escalada e insustentável pressão financeira de uma
prática que, como afirmado tantas vezes pelos apoiadores de Dilma, era recorrente e aceita
pelos tribunais de contas em todo o país. No histórico das contas federais, em anos anteriores,
vislumbra-se claramente esse quadro.
De acordo com dados do Banco Central, a prática já existia no governo FHC, mas
em proporções menores, somando R$ 1 bilhão e R$ 948 milhões, respectivamente, no fim dos
anos de 2001 e 2002. Durante o governo Lula, no fim de 2003 (primeiro ano da gestão), havia
um passivo contabilizado do governo com bancos públicos e com fundos, como o FGTS, de
R$ 1,2 bilhão, passando para R$ 1,07 bilhão no fim de 2004. No fechamento de 2005, 2006 e
de 2007, por exemplo, as pedaladas fiscais somaram, respectivamente, R$ 1,06 bilhão, R$
799 milhões e R$ 997 milhões, e no fechamento de 2008, 2009, 2010, um passivo junto aos
bancos de R$ 2,3 bilhões, R$ 4,04 bilhões e R$ 8,43 bilhões, nessa ordem. E a aprovação de
verbas suplementares por meio de decretos, só posteriormente aprovados por lei, ao contrário
do que exigido constitucionalmente, completaria o cenário de ajustes e manobras fiscais que
não refletiriam nem a situação real das contas públicas e tampouco sua adequação às metas
fiscais estipuladas pelo Congresso.
Não obstante, outra guinada de interpretação política foi observada neste caso, agora
para beneficiar Dilma Rousseff. A antes inabilitação automática para o exercício de função
pública foi convertida em penalidade subsidiária à perda do cargo, podendo ou não ser
aplicada, a critério do julgador, fazendo-se para tanto, votação em separado no Senado
Federal. Esse novo parâmetro hermenêutico não encontra correspondente na história da
aplicação do instituto no Brasil, que ressignificou a expressão constitucional “perda do cargo,
com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública” (art. 52, parágrafo
único).

2. A TEORIA INSTITUCIONAL E ARGUMENTATIVA DE NEIL


MACCORMICK

Na análise do tema pelo filtro da teoria institucional do direito de MacCormick


(2011), leva-se em consideração o conceito de ordem normativa institucional ou formal como

958
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

um conjunto de expectativas sociais mais ou menos parecidas, às quais pode ser imputada
uma gama de ações praticadas pelos participantes, em uma convergência interpretativa
explicitada por atitudes. Vejamos como decompõem-se tais expectativas comungadas pelo
prisma eminentemente jurídico e as incorporações e processamentos que o Direito faz das
emanações advindas da moral e da política.

2.1. O DIREITO

O direito, como sistema prescritivo, contribui para a integração social, suprindo a


necessidade de maior grau de certeza a respeito do conteúdo e da eficácia, por meio dos
mecanismos previstos nas regras e da autoridade, sendo que, a esta última, caberia a
interpretação das regras e das práticas sociais, moldadas, em última análise, por valores
articulados dentro de um contexto social, político e econômico específico, ou seja, como
objeto da empiria do campo e do direito positivado, composto por regras e princípios.
Já os direitos (no plural), enquanto relações ou posições, são apreciados através da
interpretação de situações específicas lidas à luz de regras e princípios que se sedimentam nas
interpretações recíprocas de crenças normativas recíprocas e confiança razoável, incorporando
assim, à concepção normativa, a concepção valorativa (MACCORMICK, 2011, p. 33). A
viabilidade de uma prática e a verificação dessa confiança razoável compartilhada nas
interpretações recíprocas só é possível se existe um reconhecimento por um número suficiente
de pessoas, para que a prática seja viável, o que remete a normatividade ao aspecto interno do
comportamento, enquanto referencial para a formação de expectativas de conduta
(MACCORMICK, 2011, p. 61-63).
Em outros termos, a definição conceitual de direito vai além de meras estruturas
formais, cognoscíveis simplesmente por meio de uma abordagem sistemática, e se abre para
uma adesão a um conjunto abstrato de valores, permitindo a composição de diferentes
concepções de justiça, bem como a definição dos conteúdos, dentro dos marcos de confecção
legislativa e conformação política.
Dessa forma, trata-se de uma metodologia antirreducionista, não limitada às
estruturas prescritivas, mas também preocupada com a legitimidade e a eficácia social das
interpretações e aplicações. A ausência de catalogação de uma gramática social dos valores a
priori, com seus percalços e perigos metafísicos, ficaria compensada e garantida pelos
procedimentos que permitiriam a atribuição de conteúdos compartilhados, em um processo

959
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

intersubjetivo de reconstrução normativa dos valores imanentes à ordem institucional.


Portanto, o sentido ético estaria inscrito na própria prática institucional, pelo reconhecimento
mútuo de suas necessidades, convicções e habilidades.

2.2. A MORAL

Não se deve confundir a esfera jurídica, institucional, com a moral, de natureza


diversa, não institucional. Os agentes morais são indivíduos autônomos que se
autodeterminam, segundo sua própria apreciação discursiva das exigências de uma vida boa e
decente junto a outros agentes morais autônomos na comunidade humana (MACCORMICK,
2011, p. 21). Ou seja, embora o processo de construção e introjeção de valores morais e
concepções de bem seja um fenômeno verificado socialmente, a interpretação resultante não é
recíproca ou intersubjetivamente experimentada e compartilhada, mas individualmente
sentida e dessa forma exteriorizada.
O atributo da universalizabilidade, a saber, o potencial para universalização, está
presente nas razões públicas, no conceito-valor da razoabilidade e na concepção de justiça
imparcial, todos critérios de justificação jurídica que não são desprovidos de conteúdo moral
– e nesse sentido a validade jurídica encontrará limite em injustiças graves –, contudo estão
limitados pelas exigências da legalidade e do Estado de direito, bem como pelas
possibilidades fáticas do fenômeno jurídico. E a teoria da argumentação jurídica de
MacCormick, desdobramento de sua abordagem institucionalista, aparece aqui como forma
de incorporação de valores morais, utilizando-se tanto das teorias retóricas quanto das teorias
procedimentais para uma moldura racional aceitável, ou seja, com capacidade de formação de
confianças recíprocas e reconhecimento por um número razoável de pessoas.

2.3. A POLÍTICA

A estabilidade da ordem jurídica depende consideravelmente da possibilidade de


exercício do poder de fato, segundo determinados critérios que definirão as qualificações
exigíveis da pessoa que será competente para julgar, as circunstâncias diante das quais a
competência será exercida e quais formalidades processuais deverão ser observadas. Nesse
contexto, a subsistência do direito é observada em razão de sua complementaridade em
relação à política e vice-versa (MACCORMICK, 2011, p. 199).

960
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O poder político, como poder de fato, depende da opinião dos membros da


sociedade acerca da legitimidade, por isso raramente independe de potestades jurídicas. Vale
dizer, a ordem jurídica confere o poder, que será exercido discursiva e decisionalmente na
sedimentação procedimental de interpretações recíprocas, dotadas de confiança razoável,
potencialmente veiculadoras de conteúdos morais abrangentes.
O processo jurídico, espaço da concertação de reciprocidades, se move por meio de
uma cadeia de certezas putativas, a cada etapa passíveis de questionamento, ou seja, certezas
sujeitas a mudança. Essa certeza excepcionável ou anulável (defeasible), como concepção do
direito de defesa construída dentro da ideologia do Estado de direito, constitui uma proteção
contra a ação arbitrária dos governos ou grupos políticos dotados de potestades jurídicas.
A partir desse quadro conceitual da teoria institucional do direito desenvolvida por
MacCormick, pode-se fazer uma análise das interações entre direito, política e as eventuais
implicações morais pertinentes ao caso do impeachment de Dilma Rousseff.

3. CRISE DE LEGITIMIDADE E DISSONÂNCIA DEMOCRÁTICO-


INSTITUCIONAL

Em ambientes de corrupção endêmica, densamente capilarizada das mais altas às


mais baixas esferas de poder, onde predomina um tratamento da coisa pública por uma ínsita
lógica privatística, a formação das verdades putativas na consolidação das interpretações
recíprocas e na exteriorização discursiva das razões públicas FICA permeável a uma série de
vicissitudes e interesses de ordem econômica, política e seus rearranjos institucionais, não
trazidas a público e que apenas pode ser aferida ou questionada, mas não impugnada
diretamente, pelas interpretações recíprocas da cidadania ampla, o eleitorado, pois não
autorizados qualificativa e procedimentalmente na formação daquelas interpretações
lastreadoras de decisões.
O desconforto e o questionamento pela população, fonte da investidura da
autoridade no poder, de casos concretos isolados é consequente incontornável quando há uma
dissonância entre as interpretações consolidadas institucionalmente e as várias compreensões
circulantes no seio social. Tratando-se do impeachment, a cidadania não tem o poder jurídico-
procedimental da palavra no mérito e a maior ou menor veiculação pela autoridade das
interpretações recíprocas espraiadas no corpo da sociedade, quando capazes de ser

961
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

efetivamente sedimentadas em uma clara maioria, será dada pelas capacidades de


mobilização social e real pressão sobre a autoridade, esta sim legitimamente investida, pelos
procedimentos, na posição decisória.
No caso de Dilma, verifica-se, ainda que sem aprofundamento e clareza discursivo-
narrativa, uma vasta circulação de interpretações e crenças morais recíprocas e confianças
razoáveis, dos mais variados matizes e inclinações ideológicas, mas sem a sedimentação e
exteriorização interpretativa exigida, de uma forma mais sensível que pudesse influir naquelas
vicissitudes citadas. Em outras palavras, não houve a emergência de atribuição de sentido por
um número suficiente de pessoas quanto à existência de uma injustiça grave na condenação
da ex-presidente.
Por outro lado, fica evidente o aporte e a contribuição da teoria institucional na
compreensão da complementaridade entre direito e política e na viabilização da estabilidade
jurídica e a sobreposição de momentos de impasse, ao garantir a recomposição dos
pressupostos fático-práticos de aplicação do sistema jurídico de normas competenciais da
esfera de ações atribuíveis à figura do chefe de Estado e largamente dependentes da formação
e manutenção de uma base político-parlamentar de sustentação, a chamada governabilidade.
E isso ocorre seja pela confirmação do presidente no exercício do mandato e de seu capital e
credenciais fático-políticas, seja pelo término antecipado do mandato e a possibilidade de
concertação em novas bases de sustentação, agora centradas na figura do vice-presidente,
recompondo-se a aplicabilidade das potestades jurídico-constitucionais e a própria
estabilidade do sistema jurídico pela via política procedimentalmente balizada.
Não por outro motivo, tanto a Constituição de 1988 como a Lei nº 1.079/50, editada
sob a égide da Constituição de 1946 e que regulamenta o impeachment até hoje, apresentam
tipos de configuração aberta, gramaticalmente permeáveis à interpretação do juiz natural em
uma moldura de possibilidades decisionais ampla. Junte-se a isso não haver gradações quanto
a uma maior ou menor gravidade da conduta no julgamento do presidente; resolve-se
binariamente em termos de “tudo ou nada”, procedente ou improcedente, culpado ou
inocente, e a penalidade é apenas uma: a perda do mandato, com a condenação acessória e
automática de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos.
Portanto, a legalidade do processo é aferida: 1) pela subsunção de um único tipo
previsto à conduta apurada e reconhecidamente imputada ao presidente, e aferida em amplas
bases hermenêuticas, 2) por um corpo de julgadores leigos em questões técnicas e

962
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

provenientes das mais diversas origens e formações pessoais, o que é próprio e basilar do
princípio democrático – a possibilidade de qualquer cidadão ser eleito, sem credenciais mais
rígidas –, 3) atendidos os princípios-garantia da ampla defesa e do contraditório e demais
regras e garantias processuais previstas na lei.
Não obstante, em um contexto de alta complexidade social e crescente
distanciamento entre os clamores e humores populares, de um lado, e a capacidade de
decomposição e oferta por parte dos representantes democraticamente eleitos, de outro,
verifica-se uma dissociação entre a formação de interpretações condensadas em decisões que
espelhem as percepções e desideratos sociais depositados no voto e renovados
conjunturalmente na execução dos mandatos eletivos. O sentimento e experiência geral é o de
que os representantes, umas vez eleitos, não falam e agem em nome e nos interesses de seus
representados, e sim de que estariam encastelados no parlamento, em nebulosos
procedimentos, negociações e respectivos jogos de poder. No caso brasileiro, em que a
eleição de parlamentares é pelo voto proporcional, ademais, os cidadãos não tem um
reconhecimento ou identificação com determinado deputado ou senador, que figuram como
uma massa indivisa no Congresso Nacional, e a quem não se sabe como recorrer e cobrar suas
expectativas.
Esse quadro de desagregação cívico-política, de crise de legitimidade democrática,
remete e esgota ao momento das urnas e aos procedimentos eleitorais renovados a cada quatro
anos, o depósito da legitimidade democrática para a investidura e exercício dos mandatos,
mas sem a correspondente expectação quanto às medidas e políticas públicas, principalmente
estruturais, insertas em um projeto de governo e de nação, que seriam postas em prática
durante a vigência da legislatura. A própria noção de legislatura dissolve-se quando não se
tem uma renovação dos quadros políticos eleitos e mesmo dentro dos novos partidos, que são
formados por transferências de nomes da antiga para a nova sigla.
De fato, a engenharia constitucional, nos moldes em que foi importada da matriz
norte-americana, propicia essa separação e isolamento entre representantes e representados
para além do voto proporcional. Perquirindo sobre a lógica desse modelo de disposição e
organização do poder, expressa nos artigos de O Federalista e que serviu de base para a
confecção das constituições da quase totalidade dos países latino-americanos, Roberto
Gargarella (2009) elucida que a ideia de representação dos pais fundadores dos Estados
Unidos, está estreitamente vinculada ao governo de alguns poucos capazes e ilustrados.

963
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A engenharia constitucional criada à época e reproduzida até hoje procura com êxito
garantir interesses contramajoritários e o exercício da representação a salvo ou infensa às
demandas de maiorias naturalmente orientadas pelas paixões e não pela razão, a qual apenas
floresceria se os governantes credenciados ostentassem um distanciamento do eleitorado.
Dispositivos variados são apontados para a concretização desse escopo, como mandatos
dilatados, a exemplo dos senadores brasileiros, foro privilegiado e imunidades parlamentares.
O impeachment se enquadra nessa lógica.
Mais que isso, na análise do impeachment de um chefe de Estado e governo como
mecanismo de resolução de instabilidades políticas, procedimentalmente viabilizado pelo
direito, mas resolvido exclusivamente na seara política, ainda que seja um evento
extraordinário na ordem constitucional, aprofunda a situação de crise de representação se se
considera que, em países presidencialistas, há uma forte tendência ao culto da personalidade
do presidente, essa figura unipessoal e de identificação imediata, eleito diretamente pelo povo
(BONAVIDES, 1974).
Some-se a isso, um histórico que reforça esse reconhecimento e aproximação do
eleitorado ao chefe do Poder Executivo em países como o Brasil, cuja aquisição de direitos de
cidadania não teria seguido a ordem lógica da Revolução Francesa dos direitos de liberdade,
igualdade e solidariedade (MARSHALL, 1967), em que os direitos sociais foram sendo
conquistados não como o encadeamento de uma luta e conquista sequencial 1) pelas
liberdades civis, salvaguardados pelo Poder Judiciário, 2) pelos direitos políticos na influência
ou ascensão ao Poder Legislativo, via movimentos sindicais e ampliação e franqueamento dos
critérios de habilitação para votar e ser votado, e, por fim, 3) pela conquista de direitos sociais
levados a efeito pelas políticas públicas do Poder Executivo, como desdobramento da etapa
anterior.
Ao contrário, teria seguido a ordem inversa (CARVALHO, 2010), desenvolvendo-
se pela concessão de direitos sociais, sobretudo trabalhistas e previdenciários, por um
Executivo que traz para si, organizando, financiando e fiscalizando, dentro da administração
estatal, a estrutura sindical, em que o sindicato e organizações da sociedade civil exercerão ao
invés do papel de centro de mobilizações e demandas combativas, o de negociador e
mediador entre Estado e os seguimentos da população por ele representados.
A cena que se descortina no impeachment especificamente opõe, assim, de um lado,
um parlamento que, quando na eventualidade de decidir orientado pela opinião da maioria ou,

964
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

antes, pela coincidente confluência de seus interesses com os de uma ampla maioria, não age
e não é reconhecidamente identificado como agindo em nome do povo (a conquista é deste,
sem intermediários); a um presidente que, dado o alto nível de personificação dos regimes
presidencialistas e a construção pública e publicitária que se irá construir em torno de sua
imagem e percepção social do cometimento de crimes de responsabilidade e as
discursividades e narrativas daí advindas, irá coligir desde as mais ferrenhas campanhas pró
ou contra sua manutenção no exercício do poder até a total apatia e indiferença sociais (que
resolvam os políticos entre si os seus problemas, já que efetivamente não representam os
cidadãos).
Em outros termos, o funcionamento e funcionalidade do instituto do impedimento é
algo que só se verificado ao sabor de complexas conjunturas e como pretexto jurídico-
procedimental legitimador de uma finalidade, não meio ou mecanismo de solução de
mandatos presidenciais de políticos apurados e julgados como indignos de exercer a alta
função de chefe do Executivo.
Não por outro motivo, Bruce Ackerman (2009) propôs uma revisão da separação
dos poderes segundo a formulação de sua teoria da democracia dualista, que distingue a
política extraordinária, correspondente aos momentos de intensa manifestação da cidadania
em contextos de grande mobilização cívica; da política ordinária, que se realiza
cotidianamente por meio das deliberações de órgãos de representação popular. Tem-se, assim,
dois instantes de mobilização política da cidadania.
Na teoria dualista, que se debruça justamente sobre os problemas de crise de
representação das democracias modernas, os eleitos, sob a fiscalização das cortes,
determinarão os conteúdos constitucionais rotineiros por meio da edição de leis ordinárias
(normal lawmaking) e, em situações excepcionais, fá-lo-ão por meio da intervenção mais
intensa do povo, que, inclusive de maneira direta pela realização de referendos regulares,
conferirá legitimidade democrática extraordinária a seus representantes para que possam
editar normas constitucionais originárias ou derivadas, superando obstáculos eventualmente
impostos pelas instituições que se destinam a preservar a integridade da ordem constitucional
vigente (higher lawmaking).
Transpondo-se esta teoria para o presente objeto de estudo, tem-se que o
impeachment constitui procedimento judicante exercido pelo Poder Legislativo em função
não típica, portanto não se trataria propriamente da edição de normas, mas de um julgamento

965
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

em verdadeira manifestação do sistema de freios e contrapesos manejado contra atos de


exacerbação das funções do chefe do Executivo.
A proposta de Ackerman, dessa forma, é a de trazer o povo novamente para dentro,
resolvendo-se momentos de crise por meio de uma série espaçada de testes eleitorais,
intermediados por amplo debate e em igualdade de condições, inclusive quanto ao acesso a
financiamento, dos grupos contrários envolvidos, de maneira a impedir a exploração da
ignorância popular, como soe acontecer em campanhas únicas e breves. Em todo caso, faz-se
a ressalva aqui de que tal procedimento não poderia se estender por muitos meses, sob pena
de resolver a problemática da legitimidade, contudo, manter o desgaste do longo processo de
impeachment.
Acrescente-se, ainda, que esta proposta deriva, em última análise, de mecanismos de
exercício da democracia direta já existentes na teoria do estado, a saber, o referendo
revogatório e o recall, que se apresentam como técnicas modernas e mais condizentes com a
realidade social de países presidencialistas tradicionalmente identificados com figuras fortes e
populistas que se sobrepõem à imagem de seus partidos políticos e as demandas por
legitimação democrática (SILVA, 2000), com o necessário reforço da multiplicidade dos
referendos populares e o resguardo contra abusos no uso do instrumento, ao condicioná-lo a
limitações, como a convocação por uma supermaioria ou a proibição de mais de uma
iniciativa por legislatura.

CONCLUSÕES

O impeachment de Dilma Rousseff, em meio a uma crise também econômica, ao


incremento das demandas sociais e à instabilidade e perda de apoio político, decidido em um
ambiente social não gerador de grandes maiorias, e todo o desgaste daí advindo por meses e
cujo término só se vislumbra efetivamente no advento das eleições presidenciais de 2018,
pode ser considerado como o fracasso do instituto.
Em que pese neste caso específico verificar-se a discricionariedade do impeachment
e sua legalidade e legitimidade jurídico-constitucional segundo uma concepção institucional
do direito, o instituto apresenta falhas que não fornecem subsídios à pacificação social, nem
possibilitam aportes mais densos de conteúdos morais.

966
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Pela teoria dualista da separação de poderes, a responsabilização política do


Presidente da República, por atos cometidos no exercício do mandato e que ofenderiam a
ordem constitucional, deve-se dar dentro dos mecanismos oferecidos pela técnica da
democracia direta, conforme o entendimento e ao sabor não mais da política congressual, mas
da democracia cidadã, para a qual o instituto da revocação ou recall em referendos múltiplos
conferiria, a um só tempo, tanto um reforço ao princípio democrático e ao reconhecimento da
legitimidade da decisão não apenas em termos procedimentais quanto uma possibilidade de,
em um debate de amplas proporções, evitar-se ou diminuir as armadilhas do culto da
personalidade.
Em síntese, mecanismos diretos de destituição guardam parametricidade com seus
correspondentes mecanismos diretos de investidura em cargos políticos. E, em cenários, não
apenas de baixa densidade democrática, mas de pouca permeabilidade do campo político a
conteúdos morais mais palpáveis e estruturantes discursiva e concretamente, a democracia
direta ainda continuará sendo a melhor técnica de engenharia constitucional apta a
desenvolver os demais direitos de cidadania no Estado democrático de direito.

REFERÊNCIAS

ACKERMAN, Bruce. A nova separação dos poderes. Coleção ANPR de Direito e Democracia. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 2009.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1974.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

GARGARELLA, Roberto (coord). Teoría y Crítica del Derecho Constitucional. Tomo I, Democracia. Buenos
Ayres: Abeledo Perrot, 2009.

MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1967.

MACCORMICK, Neil. Instituciones del Derecho. Tradução de Fernando Atria y Samuel Tschorne. Madrid:
Marcial Pons, 2011.

PINTO, Paulo Brossard de Souza. O impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da


República. 3ª ed. ampl. São Paulo: Saraiva, 1992.

SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a constituição). São Paulo: Malheiros,
2000.

967
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

URUGUAI, Visconde de. Paulino José Soares de Sousa: Visconde do Uruguai. José Murilo de Carvalho (org. e
intr.). São Paulo: Ed. 34, 2002.

968
Grupo de Trabalho 14

HERMENÊUTICA,
PROCESSO E TEORIA DA
DECISÃO

cmlxix
LEI OU JUSTIÇA:
UMA ANÁLISE ETNOMETODOLÓGICA
DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS I E II DA COMARCA
DE VOLTA REDONDA

MIRANDA, Napoleão
Professor do PPGSD-UFF
SEIXAS, Marcus Wagner de
Doutorando do PPGSD-UFF
MARCHI, Amanda Aguado
Aluna de Graduação de Direito na UFF/VR

RESUMO

A Lei n° 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, trouxe como um de seus
grandes escopos a promoção da conciliação. Para fins de sua observância prática, foram escolhidos os
Juizados Especiais Cíveis da Comarca de Volta Redonda I e II como objeto de estudo. Em fase inicial
da pesquisa, foi constatado que o número de acordos é praticamente igual ao número de sentenças
proferidas. A fim de investigar os fatores responsáveis pelo baixo número de acordos nestes JECs, foi
utilizada a etnometodologia. Formulou-se a hipótese de que um juiz mais rígido com relação à
aplicação da Lei (em especial a Lei 8.078/90) desestimula a apresentação de propostas de acordo por
parte dos reclamados; enquanto um outro Juiz mais propenso em buscar o justo entre as partes,
acabaria por estimular indiretamente a busca do consenso na fase prévia de análise do mérito. Todavia,
os resultados encontrados apontaram para um tema extremamente discutido no cenário atual: o
ativismo judicial.

Palavras-Chave. Conciliação. Sentenças. Etnometodologia.

ABSTRACT

The Law No. 9.099 / 95, which created the Special Civil and Criminal Courts, has brought conciliation
as one of its great scopes. For the purpose of its practical observance, the Special Civil Courts of the
District of Volta Redonda I and II were chosen as object of study. In the initial phase of the research, it
was found that the number of agreements is practically the same as the number of sentences handed
down. In order to investigate the factors responsible for the low number of agreements in these JECs,
ethnomethodology was used. It was hypothesized that a more rigid judge with respect to the
application of the Law (in particular Law 8.078/90) discourages the presentation of proposals of
agreement on the part of the claimed ones; while another Judge more prone to seek the fair between
the parties, would eventually indirectly stimulate the search for consensus in the previous phase of
merit analysis. However, the results found point to an extremely discussed topic in the current
scenario: the judicial activism.

Keywords. Conciliation. Judgment. Ethnomethodology.

970
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Em um cenário onde o ativismo judicial encontra-se em voga, é necessária a


reflexão: qual o impacto de tal postura nos casos concretos decididos nas primeiras
instâncias?
Como objeto de análise para a investigação foram escolhidos os Juizados Especiais
Cíveis I e II da Comarca de Volta Redonda – RJ. Houve levantamento das cinco empresas
mais demandadas e do número de processos que foram solucionados através de sentença e de
acordo, descobrindo-se que estes são praticamente iguais. Frente às vantagens do acordo,
dentre elas a celeridade, menor custo, maior diálogo entre as partes, promoção da pacificação
social e da capacitação para dirimir eventuais futuros conflitos, questionou-se o por quê de um
número tão baixo.
Assim, levantou-se uma hipótese, qual seja a de que um juiz mais rígido com
relação à aplicação da Lei (em especial a Lei 8.078/90) desestimula a apresentação de
propostas de acordo por parte dos reclamados; enquanto um outro Juiz mais propenso em
buscar o justo entre as partes, acabaria por estimular indiretamente a busca do consenso na
fase prévia de análise do mérito.
Para verificar a hipótese foi realizada pesquisa utilizando-se da etnometodologia,
incluindo entrevistas aos juízes leigos e aos advogados atuantes nos JECs I e II.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

As sociedades são caracterizadas, entre outras, por situações de conflito entre os


indivíduos, surgindo a necessidade de buscar alternativas para normatizar essas situações.
Para evitar então que esses indivíduos façam uso de suas próprias forças e ferramentas para a
resolução desses conflitos, valendo-se da autotutela, foi que o Estado moderno começou a
intervir até mesmo nas relações privadas, no intuito de buscar uma solução mais justa e
igualitária.
O atual denominado Estado Democrático e Social de Direito, como ente
personalizado e capaz de adquirir direitos e contrair obrigações, caracteriza-se como
soberano, e tem a prerrogativa de até mesmo uso da força se necessário for (poder de polícia
e/ou Estado-juiz), e com isso tenta solucionar os conflitos impondo decisões aparentemente

971
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de forma imparcial e justa. Esse poder se estende ainda aos conflitos entre os particulares e o
próprio Estado, ou seja, a pacificação é o escopo da jurisdição.
Porém, esse poder-dever que o Estado possui de pacificação social, nem sempre é
feito da forma mais eficiente e célere, uma vez que os processos em nosso país são morosos
(por diversos motivos) e possuem um alto custo financeiro para que sejam concluídos. Diante
dessas dificuldades, surgem meios alternativos, por parte do Estado, como forma de resolução
dos conflitos, tais como, a conciliação , a mediação e o arbitramento.
A idéia de conciliação está presente em nosso ordenamento desde a Constituição
Imperial brasileira, contudo, somente a partir da Constituição de 1988 ela passa a ser
entendida como meio eficaz de pacificação social e resolução de conflitos.
Com o novo Código de Processo Civil, as técnicas autocompositivas adquiriram
ainda maior relevância, porquanto logo no §2° do artigo 2 está prevista a promoção da
solução consensual dos conflitos pelo Estado sempre que possível, e no §3° do mesmo artigo
está estabelecido que a “conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de
conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”
Ao incluir os supracitados dispositivos no capitulo das normas fundamentais do
processo civil, o legislador colocou como escopo a utilização de métodos consensuais de
solução de conflitos, ao invés do antigo modelo heterônomo de decisão.
Estes métodos já eram priorizados em algumas leis, tais como a Lei nº. 10.259 de
2001, que estabeleceu os Juizados Especiais Federais, e a Lei nº. 12.153 de 2009, que criou os
Juizados Especiais da Fazenda pública.
Neste mesmo sentido, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais foram criados pelo
artigo n° 98, inciso I, da Constituição Federal e disciplinados pela lei Federal nº. 9.099 de 26
de Setembro de 1995. Eles são competentes para a conciliação, mediação, o julgamento e a
execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial
ofensivo.
Segundo a Lei nº. 9.099 de 1995, a postura do conciliador deve ser tranqüila e
respeitosa. Conciliador é um profissional que através de técnicas autocompositivas facilita o
diálogo entre as partes e estimula a buscar soluções compatíveis com os interesses em jogo.
Ao mesmo tempo, o artigo 2 da referida lei exige que o princípio da informalidade reja as
atividades do Juizado Especial Cível.

972
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O valor da causa é importante para fixação da competência do Juizado Especial


Cível, pois as causas não podem extrapolar o valor de 40 salários mínimos (teto federal), e
somente pessoas físicas e capazes e microempresas podem ser os proponentes de tais ações.
O acordo firmado durante a conciliação proporciona benefícios frente à morosidade
do sistema judiciário, pois permite que as partes decidam a causa, ao invés de aguardar uma
solução imposta pelo juiz, poupando tempo para o resultado final e solucionando seus
problemas, além do fato do acesso ao Juizado Especial Cível ser gratuito em sua 1ª instância.
Todavia, conforme dados obtidos em fase inicial da pesquisa, nos Juizados Especiais
Cíveis I e II da Comarca de Volta Redonda o número de acordos é praticamente igual ao
número de sentenças proferidas. Diante de tal resultado, realizou-se uma investigação para
identificação dos fatores que obstaculizam o maior número de conciliações.

2. METODOLOGIA:

Inicialmente, foi solicitada a autorização do Diretor do Fórum de Volta Redonda


para a realização da pesquisa nas serventias dos I e II JEC’s. Uma vez concedida, realizou-se
um levantamento dos mais recorrentes reclamados, no período de 3 meses seguidos.
Selecionou-se os cinco mais recorrentes e estabeleceu-se um quadro estatístico de
processos finalizados por acordo ou não. Nos que não foram finalizados por acordo, quais
foram as decisões? Condenados ao pagamento de indenizações aos reclamantes, ou não? Em
caso positivo, quais os valores das condenações no I e no II JEC?
Após, foi utilizada a etnometodologia. A etnometodologia possui cinco conceitos-
chave:

Conceito Conteúdo
Prática / Indica a experiência e a realização da prática dos membros de um grupo em
Realização seu contexto cotidiano, ou seja, é preciso compartilhar desse cotidiano e do
contexto para que seja possível a compreensão das práticas do grupo.
Indicialidade Refere-se a todas as circunstâncias que uma palavra carrega em uma situação.
Tal termo é adotado da linguística e denota que, ao mesmo tempo, em que
uma palavra tem um significado, de algum modo “genérico”, esta mesma
palavra possui significação distinta em situações particulares, assim, a sua
compreensão, em alguns casos, necessita que as pessoas busquem
informações adicionais que vão além do simples entendimento genérico da
palavra. Trata-se da linguagem em uso.

973
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Reflexividade Está relacionada aos “efeitos” das práticas de um grupo, trata-se de um


processo em que ocorre uma ação e, ao mesmo tempo, produz uma reação
sobre os seus criadores.
Relatabilidade É como o grupo estudado descreve as atividades práticas a partir das
referências de sentido e significado que o próprio grupo possui, pode ser
considerada como uma “justificativa” do grupo para determinada atividade e
conduta.
Noção de O membro é aquele que compartilha da linguagem de um grupo, induz a uma
membro condição de “ser” do e no grupo e não apenas de “estar”.

Tabela 2 - Fonte: elaborado por BISPO, Marcelo de Souza, com base em Coulon (2005), Garfinkel
(2006) e Heritage (1987).

A partir de observação participante, notas de campo e conversas informais, que


possibilitam ao pesquisador a apropriação da realidade vivida por um determinado grupo,
tornando-o apto a descrever e interpretar as práticas ali presentes, foi possível perceber a
propensão dos magistrados dos JECs I e II da Comarca de Volta Redonda a buscar ou não a
conciliação entre as partes.
Além disso, foi analisada a postura dos advogados das empresas mais demandadas e
dos consumidores; e identificou-se fatores não anteriormente previstos que influenciam na
obtenção do acordo.
Por fim, realizou-se entrevistas qualitativas com os juízes leigos, com o intuito de
traçar um perfil ideológico e identificar uma possível relação entre sua ideologia e seu
estímulo à conciliação; e com os advogados, a fim de verificar sua satisfação com as
sentenças dadas e captar seus pareceres sobre a legislação consumerista e a postura dos
magistrados.

3. RESULTADOS ALCANÇADOS

No levantamento das cinco empresas mais demandadas dos Juizados Especiais


Cíveis I e II da Comarca de Volta Redonda e da solução dada ao litígio, foram obtidos os
seguintes resultados:

974
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3.1. 2013

I JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DA COMARCA DE VOLTA REDONDA

JULHO 2013 AGOSTO 2013 SETEMBRO 2013


Oi – 32 processos Oi – 44 processos Oi – 39 processos
Santander - 20 processos Santander – 20 processos Santander – 22 processos
Itau Unibanco – 12 processos Bradesco – 17 processos Itau Unibanco – 17 processos
Bradesco – 11 processos Itau Unibanco – 12 processos Bradesco – 17 processos
Vivo – 9 processos Vivo – 10 processos Vivo – 12 processos

II JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DA COMARCA DE VOLTA REDONDA

JULHO 2013 AGOSTO 2013 SETEMBRO 2013


OI - 30 processos OI – 57 processos OI – 51 processos
ITAÚ - 27 processos VIVO – 37 processos SANTANDER – 47 processos
SANTANDER – 24 processos ITAÚ – 30 processos ITAÚ – 42 processos
VIVO – 20 processos SANTANDER – 26 processos VIVO – 36 processos
BRADESCO – 17 processos BRADESCO – 25 processos BRADESCO – 28 processos

3.2. 2014

I JEC II JEC
Empresas mais N° processos Empresas mais N° processos
demandadas demandadas
1ª OI 112 PROCESSOS 1ª OI 138 PROCESSOS
2ª SANTANDER 70 PROCESSOS 2ª SANTADER 100 PROCESSOS
3ª BRADESCO 57 PROCESSOS 3ª ITAÚ 99 PROCESSOS
4ª ITAÚ 50 PROCESSOS 4ª VIVO 93 PROCESSOS
5ª CLARO 24 PROCESSOS 5ª BRADESCO 70 PROCESSOS
Total de Processos no 848 PROCESSOS Total de Processos no 1.611 PROCESSOS
Juizado no período Juizado no período
avaliado avaliado
RESOLUÇÃO DA LIDE EM:
Média Média em Média Média em
numérica Valores numérica Valores
ACORDO 104 R$ 561,63 ACORDO 162 R$ 134.64
CONDENAÇÃO 108 R$ 303,03 CONDENAÇÃO 142 R$ 216,48

975
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Foi constatado que as empresas mais demandadas são as telefônicas e as instituições


financeiras. Através de conversa informal com um juiz leigo, todavia, foi dito que além de
processos contra empresas telefônicas e instituições financeiras, há muitos processos contra
empresas fornecedoras de eletrodomésticos nos JECs, mas seus números não são tão
expressivos (por exemplo, o número de demandas contra o Banco do Brasil é bem maior do
que contra a Ricardo Eletro) pois alguns advogados entram contra o varejista, e outros contra
o fabricante, pulverizando o número.
Após a identificação, foi constatado que o número de acordos e condenações é
semelhante. Em uma conversa informal, uma juíza leiga disse que no dia, de quarenta e cinco
audiências que realizou, houveram apenas sete acordos.
Para investigar o baixo número de acordos, priorizou-se a observação das audiências
de instrução e julgamento em que as empresas mais demandadas eram rés. Isto, pois as AIJs
são o único momento processual nos JECs em que há tentativa de conciliação, uma vez que as
audiências de conciliação foram extintas recentemente devido à falta de conciliadores.
As audiências são presididas por cinco juízes leigos, em sua maior parte
provenientes da EMERJ. O juiz togado acompanha o processo e revisa as sentenças,
homologando-as ou não, porém não tem contato com as partes.
Nas entrevistas realizadas com os advogados, muitos afirmaram que esta distancia
do juiz togado com as partes prejudica o processo, porquanto o juiz togado não apreende a
versão das partes, verificando qual a extensão do dano que sofreram, tendo contato apenas
com as provas juntadas e padronizando os casos, considerando todos os danos morais como
“mero aborrecimento”.
Ademais, nestas audiências o foco é a celeridade, vez que elas são marcadas com
intervalo de apenas dez minutos. Assim, não há tempo suficiente para que o consumidor
lesado tenha a devida atenção, tampouco há um empenho da empresa em reparar seus
serviços para evitar futuras situações semelhantes.
Mesmo nos processos em que autor e réu são pessoas físicas, não há a construção de
uma solução entre eles que despolarize a relação e efetivamente pacifique o conflito, há
apenas ganhadores e perdedores, uma quantificação do dano sofrido que nada altera o plano
fático. Nestes casos, entretanto, a não realização de acordo não se deve à postura dos juízes,
que se empenham em promover o entendimento das partes, mas sim à cultura da litigiosidade

976
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

presente em nosso país, que somada à falta de informação sobre seus direitos dos cidadãos
leva-os a pensar que aceitar um acordo consiste em dar razão à outra parte.
Outro fator dificultador da obtenção do acordo é a pequena flexibilidade e
autonomia dos advogados contratados pelas grandes empresas investigadas nessa pesquisa,
que recebem as instruções do teto a que poderá chegar o acordo e a elas estão presos, não
podendo tentar negociar com o autor, que tem duas opções: acatar o valor oferecido pela
empresa ou esperar pela sentença. Um exemplo é, se o advogado de determinada operadora
telefônica vem com proposta de x valor de danos morais, mas o autor, além de danos morais,
quer o cancelamento da linha telefônica; nenhum acordo será feito, pois a empresa não
instruiu o advogado a negociar o cancelamento da linha e por isso este não terá autonomia
para tanto, resignando-se as partes a esperar a sentença.
Neste sentido, em entrevista a seguir relatada, uma advogada afirmou que um dos
fatores que contribuíam para o baixo número de acordo destes JECs é a:

(...) dificuldade de negociação entre os próprios advogados. (...) Na verdade os


advogados correspondentes ficam presos às propostas que são enviadas pelas
empresas. Geralmente elas fazem uma média da condenação. Na verdade os
acordos são combinados diretamente com o valor da condenação do juízo. Se os
juízes não têm uma condenação elevada, as propostas de acordo vêm mais ou
menos, faz uma média em relação a esse valor para poder fazer.”

Ainda, uma advogada que atua para as empresas mais demandadas contou que:

(...) a gente não tem como negociar, é como falei. Vem, a empresa se organiza de
uma forma, manda aquilo para a gente e a gente segue um roteiro. Às vezes,
quando a gente pode fugir, vem um telefone, que a gente pode tentar entrar em
contato. Mas na maioria das vezes não, a gente é preso àquilo, e como que vem esse
acordo ? Quando o escritório realmente tem essa organização, ele se baseiam mais
ou menos no valor da sentença. Então por que o valor do acordo está vindo baixo,
porque a sentença é ruim. É isso que vejo aqui em Volta Redonda, acontece isso.
Por que os valores estão vindo baixos ? Porque as sentenças estão sendo muito
precárias.”

Na fase seguinte, iniciaram-se as entrevistas com os juízes leigos e com os


advogados atuantes nos JECs I e II da Comarca de Volta Redonda. Foram 20 advogados
entrevistados, cujas respostas encontram-se sintetizadas e em forma de dados estatísticos nas
tabelas a seguir:

977
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Você faz parte de uma sociedade unipessoal de advogados, de um escritório ou é


advogado autônomo?

Autônomo 50%
Sociedade 15%
Escritório 35%

Há diferença no modo de julgamento dos juízes leigos e togados?

Sim 70%
Não 30%

Muitos afirmaram que as sentenças dos juízes togados são melhor fundamentadas e
mais minuciosas quanto ao caso concreto. Ainda, 45% criticou a limitada autonomia dos
juízes leigos ao proferirem suas sentenças, que por serem homologadas posteriormente pelo
juiz togado, que não teve contato com as partes, reforma as que destoam muito dos seus
entendimentos, padronizando-as

As sentenças dadas nestes JECs são justas a seu ver?

Sim 50%
Não 50%

Ao fundamentarem suas respostas ao questionário, 75% dos entrevistados


reclamaram do baixo valor de indenização a título de danos morais concedido, quando
concedido. O baixo valor das indenizações seria, conforme alegado por muitos, um dos
principais fatores responsáveis pelo baixo número de acordos, uma vez que a espera pela
sentença é mais vantajosa do que a proposta de conciliação, porquanto prolonga o tempo até a
execução e o valor da condenação é baixo, não tornando mais atraente o oferecimento de
acordo.
Ainda, 75% deles acredita que o baixo valor é o responsável por manter a prática de
condutas abusivas ao consumidor por parte das empresas, que preferem pagar indenizações
aos poucos que recorrem ao judiciário do que reestruturar e reparar seus serviços oferecidos.
Neste sentido, uma das advogadas afirmou que as empresas persistem apresentando as
mesmas falhas

978
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(...) porque não tem uma punição muito grande para elas. Mil reais, o que é mil
reais para as Casas Bahia? Não é nada. Muitas das vezes eles não pagam, você tem
que entrar várias vezes pedindo penhora online. Eu particularmente estou com um
caso agora por causa de mil reais, estou pedindo a penhora online porque as Casas
Bahia não cumpriu dano moral de mil reais. Acho que um dos grandes motivos de
eles não melhorarem o atendimento deles perante o consumidor é isso, é essa falha
em cobrar isso deles, uma punição maior para que faça ser cumprida a lei.

Você identifica alguma falha na legislação consumerista?

Sim 50%
Não 50%

Você acha que o poder judiciário está antenado com a sociedade?

Sim 45%
Não 55%

Se os juízes fossem mais liberais, as sentenças seriam diferentes?

Sim 15%
Não 50%
Eles têm de se ater mais à letra da lei 35%

Com esta pergunta, pretendeu-se confirmar a hipótese inicial. O resultado foi


surpreendente, porquanto 35% afirmou que os juízes devem seguir mais a letra da lei e menos
suas próprias convicções.
A grande queixa destes profissionais com relação aos JECs da Comarca de Volta
Redonda, qual seja o entendimento do juiz togado responsável por eles de que danos morais
configuram mero dissabor, provém deste desapego em relação ao texto da lei n° 8.078/90, que
prevê como direito básico do consumidor a efetiva reparação dos danos morais (art 6°, VI e
VII), e prescreve a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços pelos danos causados
(art 14, caput).
Devido a um entendimento do juiz, portanto, demandas diferentes estão sendo
solucionadas com sentenças iguais, e muitas delas contemplando apenas os danos materiais
sofridos, relevando os morais.
Sobre o assunto, um dos entrevistados afirmou que acha que os magistrados

979
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(...) têm que ser um pouco mais rígidos, trazer um pouco mais pro lado concreto e
não pensar só em estatística. Porque o tribunal de justiça do Rio tem uma política
que é o seguinte: achata o dano moral que é para diminuir o número de demandas.
Quando na verdade deveria talvez dar indenizações mais altas, como ocorre nos
EUA, para evitar as demandas em massa.

Outro, ainda, contou, ao fundamentar sua opinião de que as sentenças são injustas,
que “às vezes a sentença são baixas. Vai para a turma recursal e em razão do volume eles
têm uma tendência em manter as sentenças que são dadas aqui em primeiro grau.”
Desta forma, verifica-se um efeito cascata. O magistrado prioriza a não concessão
de indenização e, nos casos em que concede, a fixação de um baixo valor, com o fim de
desestimular o consumidor lesado a ingressar no judiciário buscando sua reparação. O baixo
valor ou apenas a condenação a obrigações de fazer reafirma nas empresas o comportamento
lesivo, sem investimento na melhoria dos serviços oferecidos e interesse na proposição de
acordos, porquanto a espera pela sentença retarda o pagamento, e muitas vezes as execuções
são frustradas, devido à ocultação de bens.
Aos consumidores, por fim, restam duas vias: tentar solucionar seus problemas pela
via administrativa, sem no entanto ter seus danos morais indenizados, ou ingressar no
judiciário, contando com a sorte para que sua sentença respeite minimamente seus direitos
previstos no CDC e sua execução seja bem sucedida.
Todavia, há de se fazer uma reflexão: a adoção desta postura pelo magistrado reduz,
a longo prazo, a demanda, ou a mantém, porquanto a impunidade ou baixa punitividade das
empresas reitera seu comportamento lesivo, gerando repetidos danos aos consumidores ?
Qual o real impacto destas decisões ? Não estariam apenas negando o efetivo acesso à justiça
dos consumidores, e perpetuando a alta demanda nestes JECs ?
Ainda mais: seria o direito ao acesso à justiça, previsto constitucionalmente, tão
disponível assim, a ponto de ser mitigado para melhor atender aos interesses dos magistrados,
guiados por um ativismo judicial desenfreado ?
Impera a realização desta reflexão, porquanto o acesso à justiça é um direito
fundamental, viabilizador da efetivação dos demais, que não pode operar somente no plano
formal, na mera possibilidade do ingresso em juízo, devendo buscar ao máximo o escopo
final da resolução do litígio e da pacificação social.

980
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação dos Juizados Especiais Cíveis proporcionou a superação de dois dos


maiores problemas do judiciário brasileiro: a morosidade e o alto custo. Guiados pelos
princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade,
aproximaram a população deste poder, ao permitir a apreciação das pequenas causas pelo
magistrado.
Embora promissores, na prática estes Juizados, como se apreende através dos JECs I
e II da Comarca de Volta Redonda, utilizados como objeto de estudo da pesquisa, tiveram
falhas na implementação de seus princípios, devido a alguns fatores ao longo de dois anos
investigados.
O primeiro escopo que encontra obstáculos é a conciliação, porquanto foram
extintas as audiências de conciliação, restando esta importante técnica autocompositiva para
um momento processual realizado de maneira extremamente rápida e objetiva, a Audiência
de Instrução e Julgamento. Marcadas de 10 em 10 minutos, impossibilitam a plena atenção às
necessidades das partes, que muitas vezes, desinformadas de seus direitos, negam o acordo
por achar que estarão “concordando com a falha” da empresa prestadora de serviço. Ademais,
devido ao baixo valor das condenações, as propostas de acordo, quando vêm, são
desvantajosas, porque é preferível às empresas aguardar a sentença e só então realizar o
serviço ou pagamento, do que oferecer proposta de teor parecido e ter que cumprir antes com
suas obrigações. Somado a isso, há a reduzida autonomia dos advogados das empresas rés
para negociar, que ficam adstritos às orientações passadas, sem poder de fato compor uma
solução para o problema.
Não obstante, também foram mitigados nos JECs I e II de Volta Redonda os
princípios da economia processual e da celeridade, pois as sentenças muitas vezes se mostram
ineficazes, dependendo de penhora online para assegurar o direito pertencente ao consumidor,
ou de recurso, porquanto o pleito da parte autora não foi totalmente contemplado.
Assim, percebe-se que a postura do magistrado, embora não totalmente responsável
pelo sucesso da conciliação, tem sobre ela grande influência, muito além do mero estímulo à
reconciliação entre as partes em audiência, que por vezes sequer é dado. As próprias
sentenças, inobservantes dos preceitos legais contidos na Lei n° 8.078/90, repercutem de
maneira negativa facilitando inclusive o surgimento de novas demandas, decorrentes das
mesmas falhas não corrigidas das empresas mais demandadas.

981
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Portanto, insta o olhar cuidadoso às partes, a análise detida de cada caso concreto,
porquanto a padronização das sentenças não está promovendo a celeridade, tampouco
diminuindo a demanda, que mostra-se repetitiva e com soluções pouco efetivas. Urge a
atenção com a vontade do legislador, expressa recentemente no Código de Processo Civil de
2015, e a utilização dos textos legais como balizador para as decisões proferidas, de modo a
promover um formal e material acesso à justiça.

REFERÊNCIAS:

BRASIL, Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.

BRASIL, Constituição Federal (1988).

BRASIL, Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras
providências.

BRASIL, Lei 12.291 de 20 de Julho de 2010. Torna obrigatória a manutenção de exemplar do Código de Defesa
do Consumidor nos estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços.

CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Edito, 1988.

DE ÁVILA, Flávia e NETO, José Querino Tavares e PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Acesso à Justiça. In:
XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 2015, UFS, Florianópolis – SC. CARVALHO, Ana Terra
Teles de e DIAS, Clara Angélica Gonçalves. Concretização do direito fundamental ao acesso à justiça: novas
vias para um antigo problema. CONPEDI. Florianópolis: 2015, p. 304-323.

GASTALDO, Édison. Goffman e as relações de poder na vida cotidiana. Em: Revista Brasileira de Ciências
Sociais – vol 23 nº 68. São Paulo: TJSP, outubro de 2008, 1-13.

LINN, Hammergren. Twenty-five years of latin american judicial reforms: achievements, disappointments, and
emerging issues. In: The Whitehead Journal of Diplomacy and International Relations. New Jersey:
Winter/Spring 2008, P.89-104.

PAROSKI, Mauro Vasni. A Constituição e os Direitos Fundamentais: do Acesso à Justiça e suas Limitações no
Brasil.. Dissertação (Mestrado em Direito Negocial) – Centro de Estudos Sociais Aplicados, Universidade
Estadual de Londrina. Londrina: 2006, p. 13-484.

SILVA, Hélio R.S. A situação etnográfica: andar e ver. Em: Horizontes Antropológicos – vol 15 n°32. Porto
Alegre: jul/dez de 2009, .171-188.

Ministerio Publico de la Defensa de la Republica Argentina. Modulo de acceso a la justicia y derechos humanos
em Argentina. 2010, Instituto Interamericano de Derechos Humanos.

LUGARO, Jorge A. Marabotto Lugaro. Um derecho humano esencial: el acesso a la justicia. Anuario de Derecho
Constitucional Latinoamericano.2003.

FRADE, Catarina. A resolução alternativa de litígios e o acesso à justiça: A mediação do sobreendividamento.


Revista Crítica de Ciências Sociais, 65, Maio 2003: 107-128.

982
TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL
NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO:
ALGUNS ARRANJOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 

CATHARINA, Alexandre de Castro


Doutor em Sociologia pelo IUPERJ/UCAM. Professor de Direito Processual Civil
da Universidade Estácio de Sá. Membro do IBDP.

RESUMO

Dentre as principais inovações do Código de Processo Civil de 2015 podemos citar a gestão
cooperativa do procedimento e a democratização do processo decisório. Essas técnicas processuais
exigem, para ter eficácia na prática jurídica, uma reformulação na teoria do processo e na teoria da
decisão judicial, pois toda produção científica elaborada no período de vigência do CPC/73 tinha como
pano de fundo um modelo processual individualizante e centrado no monopólio do processo decisório
pelo juiz. Diante deste cenário, se faz necessário elaborar uma teoria da decisão judicial, que dê conta
das técnicas de democratização do processo decisório inseridas no CPC/2015. O presente artigo tem
como principal escopo refletir sobre alguns arranjos, teóricos e metodológicos, que podem contribuir
para o debate sobre a temática.

Palavras-Chave. Teoria de decisão judicial; técnica processual; processo democrático.

ABSTRACT

Among the main innovations of the Civil Procedure Code of 2015 we can mention the cooperative
management of the procedure and the democratization of the decision-making process. These
procedural techniques require, in order to be effective in legal practice, a reformulation of process
theory and judicial decision theory, since all scientific production elaborated during the period of CPC
/ 73 had as its background an individualized and monopoly of the decision-making process by the
judge. Given this scenario, it is necessary to elaborate a theory of judicial decision, which gives
account of the democratization techniques of the decision-making process inserted in the CPC / 2015.
The main objective of this article is to reflect on some theoretical and methodological arrangements
that can contribute to the debate on the theme.

Keywords. Theory of judicial decision; procedural technique; democratic process.


O artigo apresenta os resultados parciais da pesquisa em andamento intitulada As dimensões democratizantes do
CPC/2015 e seus impactos na cultura jurídica processual brasileira, com auxílio da Bolsa Produtividade da
Universidade Estácio de Sá. As reflexões e conceitos aqui apresentados são desdobramentos das ideias
desenvolvidas no texto Elementos para (re) construção da teoria geral da decisão judicial no Processo Civil
brasileiro publicado na Revista da Faculdade de Direito de Valença.

983
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil de 2015 promoveu uma verdadeira virada


epistemológica e metodológica1 no modo de ser da processualística brasileira cujos reflexos,
na prática judiciária, devem ser analisados com prudência e de forma continuada. A virada
epistemológica diz respeito às mudanças elementares nos fundamentos do direito processual
civil, caracterizado pela inserção de diversos dispositivos jurídicos voltados para coletivização
e democratização do processo judicial. Como exemplo podemos citar a abordagem ampliada
da atuação do amicus curiae (art. 138), como também o estabelecimento do Incidente de
resolução de demandas repetitivas (art.976), dentre outros.
A virada metodológica concerne à mudança na estrutura mesmo do processo como
método de solução de conflitos. O estabelecimento de um procedimento comum único,
ampliando os poderes do juiz para adaptar o procedimento, nas hipóteses do art. 139, VI, e
possibilitando às partes a realização de negócios processuais (art.190), configura, de certo
modo, um novo modelo de gestão do procedimento sem precedentes na legislação revogada.
Por sua vez, a inserção da mediação como etapa anterior à defesa do réu (art. 334) e a
possibilidade de se conceder a antecipação de tutela antecedente sem formulação do pedido
principal (art. 303), entre outras inovações, representam uma mudança de perspectiva do
direito processual enquanto método de julgamento. Neste sentido, o processo decisório passa
a ser centrado menos na condução centralizadora do julgador do que no princípio da
colaboração entre os sujeitos processuais atuantes numa estrutura dialógica de julgamento2.
Uma importante mudança metodológica inserida pela Lei nº 13.105/2015
corresponde à exigência de uma fundamentação qualitativa, por parte do julgador, nas
decisões judiciais. O novo texto normativo processual, portanto, somente admite como válida
a decisão judicial cuja fundamentação for devidamente estruturada, justificando
pormenorizadamente, por exemplo, a opção por aplicar um determinado precedente judicial e
a exclusão dos demais que, em tese, também poderiam ser aplicados ao caso concreto. Não
obstante, o novo código também ampliou as hipóteses de improcedência liminar do pedido,

1
A virada metodológica mencionada no texto diz respeito ao método de julgamento e não à metodologia de
pesquisa, que será utilizada na parte final do trabalho.
2
Entendemos por estrutura dialógica de julgamento a ampliação da participação dos sujeitos processuais na
construção da decisão judicial.

984
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

admite a estabilização da tutela antecipada e tratou de forma específica o regramento da


sentença parcial.
Essa nova metodologia de julgamento requer uma sólida teoria acerca da decisão
judicial, que dê amparo aos profissionais do direito, em especial ao julgador e aos advogados,
para atuarem num sistema processual fortemente assentado, do ponto de vista normativo, num
sistema amplo de decisões judiciais, encadeado a partir da exigência de uma fundamentação
devidamente estruturada. A despeito da importância dessa inovação para assegurar o devido
processo legal e a segurança jurídica, é oportuno o debate acerca da (in) existência de uma
teoria da decisão judicial no processo civil que contemple as exigências deflagradas pela Lei
nº 13.105/2015.
Considerando esse contexto, o presente artigo tem como escopo analisar, num
primeiro momento, as inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 no âmbito
das decisões judiciais, e, num segundo momento, discutir, com os aportes da sociologia, os
necessários arranjos, teóricos e metodológicos, que em nosso entender, contribuirão para o
necessário debate acerca da construção de uma teoria abrangente da decisão judicial no
processo civil brasileiro.

1. TRATAMENTO NORMATIVO DA DECISÃO JUDICIAL NO CPC

O CPC/2015 pretendeu dar um tratamento amplo ao tema das decisões judiciais de


modo a incorporar os avanços doutrinários e jurisprudências forjados no período de vigência
do CPC/73 e das diversas reformas processuais ocorridas no Brasil. Nesta perspectiva, o
código estabeleceu a denominada sentença parcial do mérito (art. 356), ampliou as hipóteses
de improcedência liminar (art. 332), dispôs sobre a tutela antecipada antecedente (art. 303) e
buscou amarrar as regras relativas aos precedentes judiciais (art. 926) à fundamentação
estruturada detalhada no art. 489 do código.
Embora as regras sejam sofisticadas e com amparo na literatura estrangeira, ainda
não há no Brasil uma teoria da decisão que aborde, de forma abrangente e sistemática, essas
inovações da perspectiva da cultura processual aqui estabelecida. Antes de avançarmos nesta
reflexão, passemos à breve análise dos mencionados institutos.

985
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

1.1. FUNDAMENTAÇÃO ESTRUTURADA DA SENTENÇA

A análise da fundamentação das decisões judiciais na vigência do Código de


Processo Civil de 1973 tinha como escopo as regras dos arts. 165 e 458, II, que dispõe,
respectivamente, sobre o dever de fundamentar e sobre a estrutura trifásica da sentença e dos
acórdãos. Não havia, num primeiro momento, uma normatização mais acurada que vinculasse
o julgador ao dever de fundamentar adequadamente suas decisões.
Diante dessa fragilidade normativa, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 93,
IX, permitiu uma releitura do dever de fundamentação das decisões judiciais contribuindo
para evitar decisões judiciais arbitrárias ou com razões de decidir obscuras, impossibilitando,
dessa forma, a adequada impugnação mediante recurso. Com efeito, decisões interlocutórias,
sentenças e acórdãos sem fundamentação adequada são considerados nulos por violarem o
texto constitucional ensejando, inclusive, interposição de recurso extraordinário.
No entanto, a mera exigência de fundamentação, ainda que com amparo na
Constituição Federal, não foi suficiente para coibir decisões arbitrárias que, a despeito de
serem fundamentadas, desconsideravam argumentos importantes ventilados pelas partes ou se
assentavam em jurisprudência minoritária, dificultando o controle adequado dessas mesmas
decisões judiciais mediante recursos ou ações autônomas de impugnação.
O novo Código de Processo Civil, com efeito, avança no sentido de vincular o
julgador ou colegiado a um sistema de decisões judiciais com fundamentação estruturada
dificultando, pelo menos em tese, decisões arbitrárias ou que desconsidere todas as questões
jurídicas envolvidas no julgamento da causa. Passemos, então, ao sistema de decisões
judiciais disposto de forma minuciosa na Lei nº 13.105/2015.
A fundamentação adequada e estruturada da sentença, disposta no art. 489,§1º, do
Código de Processo Civil de 2015, constitui importante arranjo normativo com escopo de
evitar decisões arbitrárias, assentadas em argumento de autoridade ou até mesmo contrárias
aos precedentes judiciais editados pelos Tribunais superiores. Segundo o mencionado
dispositivo não se considera fundamentada a decisão que: I - se limitar à indicação, à
reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a
questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo
concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar
qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo

986
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar
precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem
demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir
enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a
existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Destarte, o código exige uma fundamentação qualificada exigindo do julgador uma
justificação acerca da sua convicção e das questões jurídicas que foram fundamentais para o
equacionamento dado ao caso. Por outro lado, exige a adequada aplicação do sistema de
precedente determinando o dever de justificar o critério de distinção (distinguish) como
também evidenciar de forma inequívoca a ratio decidendi do precedente que melhor se ajusta
ao caso sob julgamento, conforme art. 489, §1º, V.
Essa mudança paradigmática, do ponto de vista normativo, foi bem destacada pela
escola mineira de processo civil através da seguinte passagem:
Em todos esses posicionamentos a decisão judicial é vista como ato de criação
solitária pelo magistrado; mesmo aqueles que pensam que a exigência se abriria a uma
possibilidade de um controle público da decisão.

Essa premissa equivocada agora foi corrigida normativamente pelo Novo CPC,
pois este leva a sério o atual quadro de litigiosidade massiva que impõe aos juízes e,
especialmente, aos Tribunais (em decorrência da força que a jurisprudência vem
obtendo na práxis jurídica), analisar desde a primeira vez que as questões (com
destaque para as repetitivas) com amplo debate e levando a sério todos os
argumentos para que, tais decisões e suas ratione decidendi, possam ter a dimensão
que necessitam. É dizer, ao contrário do que possa parecer a uma leitura menos
atenta, a fundamentação substancial é resposta (e não empecilho) a esse momento
no qual há que se enfrentar julgamentos em massa e formação de precedentes: um
precedente bem formado, quando amadurecida a questão, é a solução mais
consentânea com os ditames constitucionais e práticos para servir de parâmetro
para o julgamento de futuros casos sobre a mesma temática. Para isso, no entanto,
há que ser formado como resposta às questões postas, de ambos os lados do debate
(THEODORO JUNIOR; DIERLE; BAHIA E QUINAUD, 2015).

Interessante observar, por oportuno, que o art. 489, §3º do código é contundente ao
asseverar que a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os
elementos tratados no dispositivo legal estabelecendo um potente critério de justificação e
validade das sentenças tendo como eixo valorativo a fundamentação estruturada e adequada.
Essa nova perspectiva da sentença reflete no próprio conceito de interpretação das
normas de Kelsen como também redimensiona a definição de jurisdição no âmbito do

987
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

processo civil, tornando insuficientes as teorias dualista (Chiovenda) e unitária (Carnelluti e


Calamandrei) como bem sinalizou Marinoni (2015).
O novo Código de Processo Civil ampliou a irradiação dos princípios
constitucionais estabelecendo um sistema decisório que torna inviável, pelo menos em tese, a
prolatação de sentenças e acórdãos arbitrários, unipessoais utilizando para se justificar pseuda
fundamentação. Por seu turno, a eficácia normativa dessas inovações depende, em grande
medida, da superação de uma cultura jurídica voltada para a criação solitária da decisão
judicial pelo julgador.

1.2. IMPROCEDÊNCIA LIMINAR DO PEDIDO

A efetividade do processo e a celeridade processual são os eixos que orientaram boa


parte das reformas processuais realizadas no Brasil. A sentença liminar, inserida em nosso
ordenamento através da Lei nº 11.277/2006, que acrescentou ao CPC/1973 o art. 285-A,
constitui importante metodologia de julgamento permitindo ao juiz singular proferir sentença
de mérito, em desfavor do autor, quando se tratar de matéria de direito e no órgão
jurisdicional houver casos similares previamente julgados. Essa reforma processual
possibilitou o julgamento célere das demandas repetitivas contribuindo, em alguma medida,
para dar maior celeridade processual.
A lei nº 13.105/2015 aprofundou essa metodologia de julgamento ampliando as
hipóteses de improcedência liminar do pedido. Conforme dispõe o art. 332, o juiz julgará
liminarmente o pedido autoral que contrariar: I - enunciado de súmula do Supremo Tribunal
Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal
Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III -
entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de
competência; IV - enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.
Verifica-se, portanto, que o novo código optou por privilegiar o fortalecimento dos
precedentes judiciais, julgando liminarmente improcedente os pedidos formulados em sentido
contrário às decisões paradigmas dos Tribunais superiores e dos Tribunais locais. Essa regra
deve ser objeto de sérias reflexões, pois caso seja aplicada indevidamente acarretará
insolúveis violações ao princípio do amplo acesso à justiça, devidamente assegurado no art.
5º, XXXV, da CF/88 e no art. 3º do CPC/2015.

988
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A decisão que julgar liminarmente improcedente o pedido do autor deve ser


fundamentada de forma adequada e criteriosa, nos termos do art. 489,§1º, do CPC/2015, para
evitar que tenha como fundamentos determinantes precedentes judiciais superados ou que não
seja adequado ao caso concreto sub judice. Todas essas dificuldades reais terão seu campo de
incidência reduzido quando se estabelecer uma teoria geral das decisões judiciais que
viabilizem o adequado controle das sentenças que julgar improcedente liminarmente o pedido
do autor.

1.3. SENTENÇAS PARCIAIS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O Código de Processo Civil de 1973 não tratou especificadamente da sentença


parcial. O art. 330, I, admitia tão somente o julgamento antecipado da lide permitindo ao juiz
o julgamento integral da lide nas hipóteses em que a demanda versasse somente sobre
questões de direito ou questões de fato em que não houvesse necessidade de produção de
provas.
No entanto, a Lei nº 10.444/2002 acrescentou o parágrafo 6º ao art. 273, cuja
redação autoriza o juiz antecipar, nas hipóteses de cumulação, os pedidos incontroversos
através de decisão interlocutória, devendo ser confirmado através da sentença.
A Lei nº 13.105/2015 avançou qualitativamente admitindo a possibilidade de
sentença parcial (art. 356) nos casos de pedidos incontroversos (inciso I) e quando um ou
alguns dos pedidos estiverem em condições de imediato julgamento (inciso II). Trata-se de
instituto novo no direito processual civil brasileiro, pois admite a sentença parcial, com os
respectivos efeitos da coisa julgada material, autorizando a liquidação e execução definitiva
da decisão proferida, conforme dispõe o art. 356, §3º.
A sentença parcial poderá ser impugnada mediante agravo de instrumento3, nos
termos do art. 1.015, II, do CPC/2015, revelando a nítida opção do legislador em não causar
transtornos ao processamento dos demais pedidos que não foram julgados antecipadamente,
considerando que não se admite apelação por instrumento na processualística brasileira.
Importante destacar, ainda, o cabimento da ação rescisória contra sentença parcial nos termos
do art. 966 da Lei nº 13.105/2015.

3
Há muito se defende, em sede doutrinária, a existência de decisões interlocutórias com nítido conteúdo de
sentença como ocorre nos casos de rejeição liminar da reconvenção ou exclusão prematura de um litisconsorte. O
novo código, por sua vez, normatizou adequadamente a sentença parcial compatibilizando com um sistema
recursal que viabilize a efetividade do processo e celeridade no julgamento das demandas.

989
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Ainda no âmbito procedimental o novo Diploma autoriza a execução definitiva da


sentença parcial em autos suplementares a requerimento da parte ou de acordo com o critério
do julgador, conforme dispõe o art. 356, §4º. Verifica-se, com efeito, a evidente opção das
comissões de processualistas, que atuaram no debate público acerca do novo código, em
normatizar de forma detalhada a possibilidade de sentença parcial e de sua respectiva
liquidação e execução.
Trata-se, portanto, de inovação importante que deve ser operada de forma acurada
para que não se aplique a sentença parcial como se fosse antecipação parcial dos pedidos
controversos, tal como modelo efetuado pela Lei nº 10.444/2002. Para que não haja dúvidas
ou continuidades na prática judiciária em contradição com o espírito reformador, necessário
se faz a construção de uma teoria abrangente das decisões judiciais na nova sistemática criada
pelo novo Código de Processo Civil.

1.4. TUTELA ANTECIPADA ANTECEDENTE E SUA ESTABILIZAÇÃO

As tutelas de urgência foram sistematizadas de forma mais detalhada no novo


Código de Processo Civil. Além da exclusão de um livro específico sobre tutela cautelar, o
legislador processual avançou em organizar de forma sistematizada a tutela antecipada e a
tutela cautelar no regime da denominada tutela provisória. O novo código incorporou, neste
sentido, abalizada doutrina permitindo, em boa parte, um avanço normativo na temática.
A novidade em relação ao tema concerne à possibilidade de se conceder tutela
antecipada, antecedente, nos casos de urgência, sem a necessidade de se formular na petição
inicial o pedido principal, conforme se depreende da interpretação literal do art. 303. Trata-se
de instituto muito similar à denominada tutela cautelar satisfativa, caracterizada pela solução
de uma situação da vida através de uma medida deferida em cognição sumária.
Segundo o dispositivo mencionado, o juiz, após a antecipação do contraditório,
poderá conceder a tutela antecipada antecedente à formulação do pedido principal, sendo
facultado ao autor formular o pedido principal ou permitir a estabilização da tutela antecipada
permitindo manutenção dos efeitos medida urgente deferida, nos termos do art. 304.
Interessante observar que na hipótese de autor não formular pedido principal e contra a
decisão que concedeu a antecipação da tutela não for interposto recurso o processo será
extinto, estabilizando-se os efeitos da tutela provisória, sem a ocorrência de coisa julgada
material, em conformidade com o disposto no art. 304,§6º do código.

990
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Trata-se de uma interessante inovação no sentido de se permitir que a concessão da


tutela antecipada mantenha seus efeitos mesmo inexistindo sentença de mérito que a
confirme. Com efeito, necessário se faz muito refletir sobre tal instituto e sua aplicabilidade
no cotidiano forense para melhor compreender o alcance dessa norma. No entanto, o acúmulo
reflexivo e teórico acerca da decisão interlocutória não é suficiente para compreender a
estabilização da antecipação de tutela, seus limites objetivos e subjetivos e, principalmente,
nas hipóteses contra a qual poderá ser proposta ação rescisória, em consonância com art.966,
§2º do CPC/2015.

1.5. JUSTIFICAÇÃO DO SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS

O art. 926 da Lei nº 13.105/2015 institui um verdadeiro sistema de precedentes


judiciais no ordenamento processual civil brasileiro. Embora possamos identificar diversos
dispositivos orientados para a formação dos precedentes judiciais no CPC/1973, conforme se
depreende da leitura do art. 557, o novo código aprofundou a normatização do sistema de
precedentes judiciais estabelecendo um ordenamento jurídico híbrido assentado na legislação
e no direito criado pelas decisões judiciais nos denominados casos difíceis.
Com efeito, o novo Diploma processual, em seu art. 927, fundou um sistema vertical
de valoração dos precedentes judiciais editados pelos Tribunais superiores e pelos Tribunais
locais, edificando um verdadeiro itinerário intelectual a ser seguido pelo juiz na aplicação do
sistema de precedentes ao caso concreto.
É evidente que não se trata, numa primeira reflexão, de engessamento interpretativo
dos juízes de primeiro grau, do julgador monocrático, em sede recursal, ou até mesmo dos
colegiados dos tribunais locais, mas de uma metodologia de julgamento voltada para
racionalizar a administração da justiça com objetivo de superar a morosidade sistêmica, muito
bem sinalizada por Boaventura de Souza Santos (2006).
No entanto, esse sistema requer um procedimento refinado de aplicação e
justificação que não guarda estreita relação com a cultura jurídica processual brasileira, que
foi forjada na lógica da subsunção da norma ao caso concreto. A aplicação do sistema de
precedentes judiciais requer um critério analítico profundo, onde o julgador deve manejar
com segurança a metodologia do distinguish, overruling (art. 927, §2º, 3º 3 4º), e
principalmente a habilidade de extrair os fundamentos determinantes de cada precedente
judicial (ratio decidendi) separando de forma racional e fundamentada dos argumentos

991
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

utilizados na decisão judicial, mas que não foram fundamentais para o julgamento (obter
dicta).
Esse complexo exercício analítico deve ser levado pelo julgador nos casos
concretos, observando a fundamentação estruturada, conforme dispõe o art. 927, §1º do
CPC/2015, o que exige, para que esse sistema tenha eficácia plena, uma sólida teoria da
decisão judicial que contemple essa metodologia de julgamento. Luiz Guilherme Marinoni
(2010) e Thomas da Rosa de Bustamante (2012) envidaram esforços intelectuais, exitosos em
nosso entendimento, no sentido de estabelecer os elementos fundantes de uma teoria dos
precedentes judiciais na processualística brasileira. No entanto, com a aprovação do novo
Código de Processo Civil exsurge a necessidade de uma teoria geral da decisão judicial onde
o sistema de precedentes constitui um dos institutos.

2. ALGUNS ARRANJOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA


ELABORAÇÃO DE UMA TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL NO BRASIL

Ao longo deste trabalho destacamos as importantes inovações encartadas pelo novo


Código de Processo Civil e que foram, em alguma medida, transplantadas de outras culturas
jurídicas assentadas em teorias próprias do direito sedimentadas em determinadas sociedades
específicas. Não se pode negar que o diálogo entre culturas jurídicas distintas é importante
para o aprimoramento dos diversos sistemas jurídicos, mas também não se pode negar que é
imprescindível repensar de forma crítica a recepção de modelos de julgamento de outros
ordenamentos jurídicos em nossa cultura jurídica, até mesmo para se antecipar as possíveis
rejeições ou sintomas dos efeitos colaterais.
Embora o novo Código de Processo Civil traga em seu texto normativo um sistema
complexo e avançado de decisões judiciais, a literatura processual acumulada sobre as
decisões judiciais ainda é incipiente e limitada em sua abordagem, considerando a própria
limitação das normas dispostas no Código de Processo Civil de 1973 sobre o tema. Nesse
sentido, o art. 162, §1º, do CPC/1973 defini sentença como ato do juiz que implica alguma
das situações previstas no art. 267 e 269 desta Lei. Por seu turno, o parágrafo 2º dispõe que
decisão interlocutória é “o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão
incidente”.

992
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Essa limitação normativa reflete diretamente nos conceitos doutrinários elaborados a


partir do mesmo. A despeito da limitação normativa quanto ao tema, diversos autores como
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Medina (2009), entre outros, contribuíram, de
forma decisiva, para o aprofundamento da temática. No entanto, o novo código exige uma
ampla e sólida teoria geral da decisão judicial que contemple toda a sorte de metodologia de
julgamento retratada na Lei nº 13.105/2015, principalmente com escopo de evitar decisões
contrárias à Constituição Federal de 19884.
A nossa proposta nesse artigo é contribuir para esse debate apresentando duas linhas
de estudos preliminares que podem contribuir, ainda que pouco, para a elaboração de uma
teoria abrangente e interdisciplinar da decisão judicial no processo civil brasileiro5. A primeira
linha de reflexão diz respeito ao necessário diálogo entre a teoria da decisão judicial e a teoria
democrática que se consolidou na América Latina nos últimos anos.
A segunda linha de estudo, por sua vez, propõe um novo arranjo metodológico de
modo apreender, através de pesquisas científicas, os impactos que as decisões judiciais com
ampla repercussão social provocam no tecido social como também, num segundo momento,
compreender em que medida os grupos sociais impactam no processo decisório levado a
efeito pelos tribunais nestas mesmas decisões.

2.1. TEORIA DEMOCRÁTICA E PROCESSO CIVIL: UM ARRANJO TEÓRICO


NECESSÁRIO

O modelo decisório elaborado no período de vigência do CPC/73 tinha como


principal escopo o exercício mental de subsunção, pelo juiz, de aplicação da norma abstrata
ao caso concreto posto em juízo. Essa atividade intelectual e solitária do juiz era voltada,
basicamente, para solucionar conflitos individuais e de cunho patrimonial, caldo da cultura
jurídica liberal fundante do processualismo brasileiro.
A literatura processual, neste período, tinha como principal escopo definir com
clareza as distinções entre sentenças definitivas, sentenças terminativas, decisões
interlocutórias e decisões interlocutórias com conteúdo de sentença. A ênfase era dada na

4
Fredie Didier e Dierle Nunes possuem importantes trabalhos neste sentido.
5
Os trabalhos sobre decisão judicial utilizam como principal referencial teórico os aportes da hermenêutica e da
filosofia do direito. A nossa proposta neste trabalho tem como principal escopo discutir a teoria da decisão judicial
utilizando, para tanto, os aportes da perspectiva sociológica da teoria democrática.

993
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

natureza do pronunciamento judicial com o objetivo de se definir com clareza qual recurso
cabível em cada caso.
A Constituição Federal de 1988, ao expandir os direitos e garantias coletivas,
contribuiu para romper, pelo menos em parte, com esse modelo de processo e trouxe para o
Poder Judiciário o debate sobre direito das minorias étnicas, questões de gênero, direitos
humanos, populações tradicionais entre outros temas.
Em outra perspectiva, a admissão dos amici curiae na jurisdição constitucional,
sobretudo nos processos com ampla repercussão social, com o advento das Leis nº 9.868/99 e
9.882/99, foi determinante para democratização da processo decisório através da intervenção
de variados atores coletivos e entidades da sociedade civil organizada (CATHARINA, 2015).
Esse redimensionamento do processo decisório no Supremo Tribunal Federal, com destaque
para a democratização do processo decisório, pode ser identificado em diversas ações
constitucionais como ADPF 186, ADI 3239, ADC 41, ADI 4277, ADPF132, ADPF 54,
dentre várias outras.
O Poder Judiciário, neste contexto, se constitui como uma esfera pública através da
qual a sociedade civil, atores coletivos e movimentos sociais atuam para debater publicamente
suas demandas que, de alguma forma, não foram contempladas pelas instituições
democráticas tradicionais ou mesmo excluídos do projeto político dominante. Esse fenômeno
social e político, muito comum na América Latina (WOLKMER & RONCHI, 2016)
transfere para o Judiciário a dinâmica da vida democrática, que até então era restrita à
sociedade política6.
Nesta toada, o CPC/2015 estendeu as dimensões democratizantes do amicus curiae
para todas os graus de jurisdição (art. 138) como também dispôs sobre a audiência pública no
julgamento de recursos extraordinário e especial, possibilitando, pelo menos em tese, a
participação da sociedade civil na formação dos precedentes judiciais. A dimensão
democrática do processo civil e da jurisdição constitucional já foi abordada nos trabalhos de
Dierle Nunes (2008) e Catharina (2015).
Não há dúvidas de que a teoria da decisão judicial elaborada no período anterior à
Constituição Federal de 1988, marcadamente individualizante, não tem condições de

6
Importante ressaltar que não houve mudança estrutural no Poder Judiciário, enquanto instituição hierarquizada e
conservadora. Entretanto, o deslocamento das tensões da vida democrática para este espaço institucional tem sido
importante para se repensar as estratégias de atuação dos movimentos sociais e da sociedade civil no período
posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988.

994
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

apreender a democratização do processo decisório realizado no atual contexto da jurisdição


constitucional e da proposta normativa do CPC/2015.
Dentre os processualistas civis brasileiros Fredie Didier (2017) é um dos autores que
vêm trabalhando no sentido de se consolidar uma teoria da decisão judicial que dê conta das
inovações normativas levado a efeito pelo CPC/2015. Entretanto, a abordagem desse
importante autor volta-se, como deve ser, para a classificação, conteúdo e eficácia jurídica dos
pronunciamentos judiciais (dos juízes e tribunais) no âmbito jurídico. Entretanto, num
processo civil democrático, se faz importante abordar, também, a construção e eficácia das
decisões judiciais com forte impacto social e político no tecido social.
É neste sentido que se faz importante e necessário estabelecer um diálogo entre a
teoria do processo e teoria democrática. Embora a teoria democrática de Habermas (2003)
seja importante para se pensar a democracia e o direito, e, como consequência, a relação entre
sociedade, Judiciário e a criação do próprio direito, optamos7 por utilizar os conceitos de
democracia e esfera pública de Avritzer e Costa (2004) elaborados a partir de suas reflexões
sobre América Latina.
Para esses autores, a democracia, na América Latina, não é algo dado ou construído
de forma definitiva. É um permanente processo e nunca inteiramente acabado no sentido de
se consolidar a soberania popular. Por esse motivo os autores utilizam o conceito de
democratização, que, em verdade, representa esse processo de busca pela soberania e
efetivação de direitos, sobre dos grupos excluídos. Importante observar que a democratização
não se limita às instituições políticas mas se irradiam para outras instituições, como o Poder
Judiciário.
Nesta perspectiva o próprio Poder Judiciário se constitui como uma importante
esfera pública onde a democratização se manifesta de forma densa e intensa. O conceito de
esfera pública8 aqui utilizado, cunhado pelos mencionados autores, diz respeito a um contexto
de relações difuso no qual se concretizam e se condensam intercâmbios comunicativos
gerados em diferente campos da vida social. Essa esfera ganha estatura de arena privilegiada
para se observar o modo que se operam os câmbios sociais, a própria reconfiguração do poder

7
Essa opção decorre da constatação de que a teoria habermasiana tem como pano de fundo a Europa, cuja cultura
política diverge em boa medida da que foi aqui estabelecida.
8
O conceito de esfera pública de Habermas ainda contribui para se pensar as sociedades complexas
contemporâneas. Entretanto, o aperfeiçoamento do conceito pelos autores, ao incorporar, em certa medida, as
críticas de Nanci Fraser, em muito contribui para se pensar o Poder Judiciário na América Latina.

995
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

político e a forma como os novos atores sociais ganham relevância na política contemporânea
(AVRITZER & COSTA, 2004).
A dialética processual nos casos com ampla repercussão social transformam o Poder
Judiciário numa importante esfera pública para democratização onde a decisão judicial
proferida retrata, em grande medida, as disputas sociais ocorridas no processo decisório. Essa
dimensão sociológica do processo civil, sobretudo no período de vigência do CPC/2015, deve
ser considerada numa teoria abrangente da decisão judicial. Por essa razão que se propõe
estabelecer, neste particular, um diálogo entre a teoria do processo e a teoria democrática
elaborada a partir da América Latina9. Esse trabalho representa um pequeno passo neste
sentido.

2.2. DECISÃO JUDICIAL E A COMPREENSÃO DE SEUS IMPACTOS SOCIAIS


ATRAVÉS DE UMA METODOLOGIA ADEQUADA

Propomos acima um arranjo teórico que apreenda as dimensões jurídicas e


sociológicas da decisão judicial Entretanto, esse arranjo teórico somente se justifica de for
estabelecida uma metodologia da pesquisa que nos permita apreender a dinâmica do processo
decisório das decisões judiciais com forte repercussão social e como estas impactam no tecido
social.
O método tradicional de pesquisa no campo jurídico, assentado na revisão
bibliográfica, além da sua esterilidade, vez que jamais permitiu apreender a realizada social
em que o direito é aplicado, está superado enquanto método autônomo e exclusivo. Por sua
vez, a jurimetria, que se pretende como método autônomo de pesquisa, conforme abordagem
de Barbosa & Menezes (2015), apresenta limitações, em razão mesmo da fase embrionária
em que essa metodologia se encontra nas pesquisas brasileiras.
A aplicação da estatística, exclusivamente, para se verificar o comportamento dos
juízes ou mesmo a dinâmica do Judiciário nos parece insuficiente, sobretudo se
considerarmos as variáveis e relações de força que se manifestam num determinado processo
decisório. Tais disputas simbólicas não se apresentam nos dados estatísticos. Por outro lado,
os dados fornecidos pelas instituições jurídicas, como todas as demais, representam uma parte
da realidade.

9
Empreendimento similar, em perspectiva diversa, já vem sendo realizado pela Escola Mineira de Processo,
capitaneada por autores como Dierle Nunes e Alexandre Bahia.

996
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A metodologia que nos parece mais adequada é aquela forjada nas pesquisas
realizadas no campo das ciências sociais. Um arranjo metodológico que conjugam os
elementos das pesquisas quantitativas e quantitativas permitirá ao pesquisador se aproximar
mais da realidade social objeto da pesquisa permitindo-o surpreender dados “não ditos” num
determinado processo judicial. Esse arranjo metodológico foi por nós aplicado em pesquisa
publicada no livro Movimentos sociais e a construção dos precedentes judiciais (2015).
Neste contexto, para se analisar, de forma adequada, a eficácia das normas
inovadoras do CPC/2015 em relação à decisão judicial e à democratização do processo é
imprescindível aplicar um arranjo metodológico abrangente, que conjugue investigação
qualitativa e quantitativa.

CONCLUSÃO

A principal proposta deste trabalho teve como fio condutor tornar público algumas
reflexões sobre a necessidade de uma teoria abrangente da decisão judicial que aborde as
dimensões jurídicas e sociológicas do processo civil brasileiro. A pesquisa é embrionária e
será expandida na medida em que o debate for se ampliando, tanto em sede doutrinária como
jurisprudencial.
No entanto, o atual estado da arte nos permite inferir que um estudo aprofundado no
campo da ciência processual brasileira não pode prescindir do estudo sociológico da decisão
judicial e de seus impactos no tecido social. Eis o nosso propósito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVRITZER, Leonardo. COSTA, Sérgio. Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na
América Latina. Trabalho apresentado no XVIII Encontro ANPOCS, ST08, Caxambu, outubro, 2004.

BARBOSA, Cássio Modenesi. MENEZES, Daniel Francisco Nagao. Jurimetria como método autônomo de
pesquisa. Trabalho apresentado no VIII Congresso Latinoamericano de Ciência Política. Pontifícia Universidad
Catolica del Peru, 2015.

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e aplicação das regras
jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.

CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northflleet. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 1999.

997
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

CATHARINA, Alexandre de Castro. Acesso à justiça e direitos coletivos: análise da cultura jurídica a partir
do caso da Comunidade Remanescente de Quilombo Pedra do Sal. Dissertação de Mestrado defendida no
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, 2007.

_____________________________, Movimentos sociais e a construção dos precedentes judiciais. Curitiba:


Juruá, 2015.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

HABERMAS, Jurguen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003. 2 v.

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil – Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2015.

MEDINA, José Miguel Garcia. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo Civil Moderno. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009. V.1.

MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009. v. 14.

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas
processuais. Curitiba: Juruá, 2012.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A sociologia dos tribunais e a democratização da justiça. In Pela Mão de
Alice: O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2006. p. 141-162.

THEODORO JUNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flavio
Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

WOLKMER, Antônio Carlos, RONCHI, Maria Laura. Processos Constituintes Latino-Americanos e a presença
dos movimentos sociais no Brasil e na Bolívia. Revista Culturas Jurídicas, Niterói, RJ, v.3, n. 6. p. 151-171,
2016.

998
PERÍCIAS NAS AÇÕES DE
CONCESSÃO DE AUXILIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO:
A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIODA RAZOABILIDADE
NOS PROCESSOS JUDICIAIS

MARQUES, Marcilene Margarete Cavalcante


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD- Professora da Universidade
Estácio de Sá. E-mail: carlaameijeiras@gmail.com
CHALFUN, Mery
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida do Curso de Direito.
BORGES, Letícia Maria de Oliveira
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito PPGD-UVA. Professora da Universidade
Veiga de Almeida e da Universidade Estácio de Sá.

RESUMO

O estudo proposto tem por fim analisar a demora na realização das pericias medicas no âmbito
administrativo e processual. A problemática do atraso na realização da perícia médica nos casos de
concessão de auxílio doença acidentário vem causando infindáveis problemas aos segurados da
Previdência Social. No âmbito judicial Estadual a pesquisa analisou, o porquê da necessidade de
realização de duas perícias, quando já se poderia em uma única perícia de nexo causal detectar se a
incapacidade laborativa do segurado decorre de acidente de trabalho ou de doença ocupacional em
razão das atividades exercidas pelo segurado. Pois assim, teríamos uma demanda justa e célere, sem
gastos desnecessários para o Estado com a realização da 2ª perícia. Quando o Magistrado não
determina seja identificada a relação do nexo causal já na primeira perícia, isso faz com que o segurado
fique no “limbo”, pois não recebe do INSS nem do seu empregador. Devemos atentar que quando o
cidadão procura o judiciário, ele espera ter uma justiça célere, eficaz e justa já que é um direito
fundamental esculpido no artigo 5º, inciso LXXVIII, da nossa Constituição Federal. Observa-se que a
questão é de relevância para a academia, tendo em vista que causa danos não só ao segurado
individualmente, como a toda a sociedade que padece com a insegurança jurídica em situações
análogas. É fundamental um estudo sobre as viabilidades de se minimizar a demora na realização das
perícias para concessão do benefício previdenciário, bem como a real necessidade de submissão de
dois exames realizados por Perito para a comprovação do nexo de causalidade e a incapacidade.

Palavras-Chave. Perícias médicas. Nexo causal. Justiça. Direito fundamental.

SUMMARY

The purpose of this study is to analyze the delay in the performance of the medical examinations in the
administrative and procedural scope. The problem of the delay in performing medical expertise in the
cases of granting accidental illness aid has been causing endless problems to Social Security
policyholders. In the State judicial area, the study analyzed the reason for the need to carry out two
tests, when one could already in a single investigation of causal link detect if the incapacity of work of
the insured is due to work accident or occupational illness due to the activities performed by the

999
insured. Thus, we would have a fair and fast demand, without unnecessary expenses for the State with
the accomplishment of the 2 nd expertise. When the Magistrate does not determine that the relationship
of the causal link is already identified in the first examination, this causes the insured to remain in the
"limbo", since he does not receive from the INSS or his employer. It should be noted that when the
citizen searches for the judiciary, he expects to have speedy, effective and fair justice, since it is a
fundamental right set forth in article 5, paragraph LXXVIII, of our Federal Constitution. It is noted
that the issue is of relevance to the academy, since it causes damage not only to the insured individual,
but also to the whole society that suffers from legal uncertainty in similar situations. It is fundamental
to study the feasibility of minimizing the delay in performing the skills to grant the social security
benefit, as well as the real need to submit two exams performed by Expert to prove the causal link and
the disability.

Keywords. Medical expertise. Causal link. Justice. Fundamental right.

INTRODUÇÃO

A morosidade de nossa justiça é fato amplamente debatido em nossos dias, sem, no


entanto ser um problema dos dias de hoje. É um problema que remonta à antiguidade e que
vem sendo questionado desde então. Esse trabalho almeja levar a todos a reflexão de como se
pensar em mecanismos para diminuir, ao máximo e na medida do possível, o tempo que leva,
atualmente, um processo judicial e administrativo. Por haver uma escassez em dados
estatísticos, esse trabalho utilizou pesquisa na literatura jurídica e filosófica.

1. ORIGEM

Podemos afirmar que existem vestígios que o princípio do devido processo se


iniciou há mais de cinco séculos antes de Cristo. Especificamente na peça Antígona de
Sófocles exibida em Atenas ao redor de 441 a.C., onde se invocavam princípios morais e
religiosos não escritos frontalmente opostos à tirania das leis escritas.
Muito embora se tenha afirmado que o due process of law, que primeiramente era
conhecido como law of the land, se iniciou em 15.06.1215, na Inglaterra, com a declaração
de direitos conhecida como Magna Carta das Liberdades (Great Chart of Liberties). Tal
declaração foi chancelada pelo então Rei João, chamado “O Sem-Terra”, que se viu obrigado
a apor selo real. A princípio, a finalidade era de atuar como um limite ao poder do rei, uma
defesa contra o Estado.
O documento compunha-se de 63 artigos, e um dos mais importantes era o artigo 39
que estabelecia:
Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou
tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos
contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos
seus pares, ou pela lei da terra.

Significava que o rei devia julgar os indivíduos conforme a lei, seguindo o devido
processo legal, e não segundo a sua vontade, até então absoluta.
Também estabelecia a Carta Magna que o rei não poderia mais criar impostos ou
alterar as leis sem antes consultar o Grande Conselho, órgão que seria integrado por
representantes do clero e da nobreza. Além disso, nenhum súdito poderia ser condenado à
prisão sem antes passar por um processo judicial.
Nas colônias inglesas da América do Norte esse princípio foi reconhecido e evoluiu
para uma posterior consagração na Constituição dos Estados Unidos. Em 12.06.1776 com a
Declaração de Direitos da Virginia, mais uma vez, se fortalecia a ideia de associação do
devido processo e da duração razoável do processo.

2. DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A duração razoável do processo por ser um direito fundamental consagrado em


diversos documentos internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos, nos impõe
fazer uma breve digressão sobre esses documentos.
A Carta Internacional de Direitos Humanos se destaca na proteção e promoção dos
direitos humanos no mundo e consiste em três documentos: Declaração Universal de Direitos
Humanos, proclamada pela Assembleia-Geral da ONU em 1948, o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
ambos também aprovados pela Assembleia-Geral da ONU em 1966.
Os pactos internacionais, uma vez ratificados pelos Estados-membros das Nações
Unidas, possuem força de lei no âmbito interno. O Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos consagra o direito a um processo justo, com inúmeras garantias, entre as quais a de
um julgamento em tempo razoável.
Quanto ao direito ao processo em tempo razoável, embora implicitamente este
princípio já vigorasse em razão do direito ao devido processo, expressamente só ingressou no
ordenamento jurídico em 24.04.1992 quando o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos entrou em vigor no Brasil. Sendo que a EC 45/2004 apenas imprimiu maior
visibilidade a sua existência com o objetivo de garantir efetividade ao incluir o inciso
LXXVIII no artigo 5º da nossa Carta Magna:
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

3. DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO

A questão do tempo no processo filia-se à própria ideia de justiça e é tão difícil de


defini-lo como a justiça, que é vista de diversas formas, seja no campo da sociologia, da
filosofia ou do direito. Para melhor entendermos, ficaremos com a perspectiva aristotélica de
justiça como uma mediania. Ou seja, a justiça é uma virtude e se traduz em uma mediania, a
justa medida (in medios virtus).
Esta concepção aplica-se ao tempo no processo, vez que a prestação jurisdicional
apressada pode significar verdadeira injustiça, pois a jurisdição exige reflexão.
O jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr.1 Adverte que não há nada pior
que a injustiça célere, que é a pior forma de denegação da justiça. Por outro lado o excesso de
tempo na prestação jurisdicional é uma verdadeira sonegação de justiça. Como ensina Rui
Barbosa2: “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
De certo que a decisão justa não se esgota apenas no conteúdo, mas também na
forma em que é produzida, quer dizer, deve estar consoante com os princípios processuais,
aos quais a atividade jurisdicional deve obediência.
Assim, pode se dizer que uma decisão só é justa quando é formal e materialmente
justa.
A forma da decisão (decisão formalmente justa) refere-se ao tempo. Uma decisão
justa não pode ter o açodamento e a irreflexão, incompatíveis com a atividade jurisdicional,
tampouco pouco pode ter a morosidade destrutiva da efetividade da jurisdição. Quer dizer, há
de se encontrar a justa medida para se fazer justiça.
Assim, percebe-se que o direito a um processo em tempo razoável é um direito
correlato ao direito ao devido processo ou ao processo justo e equitativo. Ou seja, o processo
com duração razoável nada mais é do que uma consequência lógica do devido processo.

1
REALE JR., Miguel. Valores fundamentais da Reforma do Judiciário. Revista do Advogado. vol.24. n.75. p.78-
82. São Paulo: IASP, 2004.
2
Ruy Barbosa de Oliveira foi um extraordinário brasileiro, tendo se destacado principalmente como jurista,
político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador.
4. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da razoável duração do processo está intrinsecamente ligado ao


princípio da dignidade da pessoa humana, que é elencado como princípio fundamental
esculpido no artigo 1º, inciso III da nossa Carta Magna. Indispensável à configuração do
Estado, o princípio da dignidade da pessoa humana preconiza que o ser humano é merecedor
de consideração e respeito por parte do Estado e visa lhe conferir condições mínimas de
existência digna.
Importantíssimo registrar-se as considerações de Ingo Wolfgang Sarlet3, para quem:

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental atrai o conteúdo


de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção
dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à
pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-
se-á negando-lhe a própria dignidade.

O princípio constitucional à luz da razoável duração do processo que mais ascende é


o da dignidade da pessoa humana, vez que se ocorrer a duração irrazoável do processo,
ocorrerá a violação desse princípio, não se olvidando que quanto mais demorado for o final
do processo, menos será a justiça.
Por isso, é esperado que o Poder Judicial atue com qualidade e celeridade na
prestação jurisdicional, assegurando a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal.

5. COMO MEDIR A RAZOABILIDADE DA DURAÇÃO DO PROCESSO?

Essa vem a ser a preocupação que ronda há muito os tribunais de todo o mundo. A
duração razoável do processo é um conceito vago e indeterminado, porém segue sendo o
objeto dos TEDH e dos Tribunais Constitucionais dos países europeus há mais de 30 anos.
Como também da Suprema Corte Americana, que reconhece que:

O direito a um julgamento célere é um conceito mais vago do que outros direitos


processuais. É, por exemplo, impossível determinar com precisão quando o direito
foi negado. Não podemos dizer definitivamente o quanto pode ser considerado
longo em um sistema em que a justiça deve ser supostamente rápida, mas prudente.

3
Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 88-89. 3.
Apesar de reafirmarmos que a razoável duração do processo é um conceito vago e
indeterminado, isso não pode importar na negatividade de efetividade ao direito até porque é
função do Judiciário interpretar conceitos vagos e indeterminados.
No entanto, a imprecisão desse conceito poderia nos levar à tentação de se entender
necessária a fixação de prazo para se verificar a razoabilidade e o tempo e, por consequência,
o descumprimento destes indicaria a violação do direito. Seria essa uma saída?
Lopes Jr.4 defende que todos têm direito de saber, antecipadamente e com precisão,
o tempo máximo de duração dum processo concerto, justificando ser inerente às regras do
jogo. É uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos
abrir mão. Ou seja, associa-se desta forma a fixação de prazo com a própria natureza
democrática do processo.
Por outro lado, os que defendem a não fixação de prazo, o fazem embasados no fato
de que o tempo é relativo e subjetivo. Assim, quem teria melhor condição de aferi-lo ao
processo? O legislador, que deve atuar de forma genérica e abstrata ou o juiz que atua no caso
concreto?
A Comissão Interamericana de Direito Humanos (CIDH) também perfilha o
entendimento de que não é possível fixar um prazo razoável e que os Estados não estão
obrigados a prescrever um prazo fixo.
É certo que estamos tratando de um conceito vago e indeterminado. Mas, nem por
isso se pode tomar por justificativa a imprecisão do texto para se negar efetividade à norma
constitucional, consagrada também em instrumentos internacionais. Igualmente, não se pode
interpretar esse preceito arbitrariamente sem balizar-se em nenhum critério.
A parte de ser uma matéria por demais polêmica, O TEDH como também os
Tribunais Constitucionais de países europeus, buscando dar objetividade na análise da
duração razoável do processo, destaca alguns critérios. Certo é que tais critérios são
igualmente aplicáveis à realidade brasileira. São eles:

1. Analisar a efetiva duração do processo fixando o período a ser considerado;


2. Considerar os critérios objetivos para aferição da razoabilidade do prazo.
3. Pronunciar-se sobre a violação do direito e sobre o pedido formulado.

4
Aury Celso Lima Lopes Junior é um jurista gaúcho, graduado em Direito pela Fundação Universidade Federal do
Rio Grande em 1991, especialista em Direito desde 1993 e obteve seu doutorado em Direito Processual Penal pela
Universidade Complutense de Madrid em 1999.
De toda a forma, a elaboração destes critérios reflete o esforço de se buscar uma
racionalização que permita uma interpretação coerente fugindo à arbitrariedade.
É importante frisar que a importância concreta do processo para os demandantes é
um fator que deve, indubitavelmente, ser considerado pelo Judiciário na aferição de violação
do direito à duração razoável do processo.
Outro ponto importantíssimo de registro são as justificativas levantadas pelo
Judiciário pelos atrasos questionados: o acúmulo do trabalho, a falta de juízes, a legislação
deficiente, o comportamento das partes, problemas estruturais e conjunturais.
No entanto, o TEDH se mostra intransigente com tais justificativas, alegando que ao
consagrarem a Convenção, os Estados devem efetivamente cumprir seus compromissos.
Concluindo, é necessário rigor na avaliação das justificativas sob pena de se negar a
efetividade do direito ao processo em tempo razoável por deficiência estrutural do Estado que
assumiu o dever de garantir a todos este direito fundamental, seja quando depositou sua
adesão ao pacto internacional, seja quando incluiu o inciso LXXVIII do artigo 5º da
CRFB/88.
Afinal, como ensina Canotilho5, viu-se nesta fase que a pessoa não tinha apenas o
direito a um processo legal, mas, sobretudo, a um processo justo e adequado, pois o processo
devido deve ser orientado materialmente por princípio de justiça. Não pode o legislador criar
qualquer procedimento para conduzir as pessoas à privação da liberdade e de outros valores.
Por tal razão passou-se a exigir que o processo seja justo, pautado nos valores e
critérios materiais fixados na Constituição. Isso deve ocorrer desde a criação legislativa e os
Juízes, baseados em princípios constitucionais de justiça, poderiam e deveriam analisar os
requisitos intrínsecos da lei, daí o surgimento do judicial review of legislation.

6. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Não se pode deixar de dizer da responsabilidade civil do Estado por violação ao


direito à duração razoável do processo. Contudo, a via indenização do Estado muita das
vezes é insatisfatória, pois o tema ainda é bem tímido no Brasil. Todavia, começam a surgir as
primeiras decisões de responsabilização do Estado por demora injustificada.
A responsabilidade do Estado por demora na prestação jurisdicional não é um tema
simples. E impõe a discussão de dois pontos muito polêmicos: de um lado, a questão

5
CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003. P.
492-494.
preliminar e geral sobre os limites da responsabilidade do Estado por dano decorrente da
prestação jurisdicional, o que vale ressaltar que dificilmente em nosso ordenamento jurídico
se encontrará tema de maior contraste.
E, por outro lado, a questão da responsabilidade do Estado por comportamentos
omissivos dos seus agentes, que resultam na demora na prestação jurisdicional. A regra geral
na matéria, segundo a jurisprudência amplamente majoritária, é a responsabilidade pessoal do
magistrado, ancorada nas regras do direito civil, vale dizer, a responsabilidade subjetiva e
direta do agente público, exigente de demonstração da culpa, referida em diversas disposições
infraconstitucionais.
Segundo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal e pela
jurisprudência majoritária, o Estado somente responde por danos decorrentes da prestação
jurisdicional em hipóteses expressamente indicadas na lei:

1. erro judiciário em condenação penal (CF, art. 5º, LXXV);


2. quando o condenado ficar preso além do tempo fixado na sentença (CF, art. 5º,
LXXV).

Ou seja, jurisprudência nacional admite a responsabilidade objetiva e direta do


Estado apenas na esfera criminal e para decisões definitivas, condenatórias, objeto de revisão
penal.
Na ausência de previsão explícita e específica, há irresponsabilidade do Estado.

7. DA PROBLEMÁTICA DA DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO NAS


DEMANDAS DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DE AUXÍLIO-DOENÇA
ACIDENTÁRIO

O objetivo desse trabalho é informar como a dificuldade da aplicação do princípio


da duração razoável do processo, até mesmo pela inexatidão do conceito, prejudica o
andamento das ações de concessão de benefício de auxílio-doença acidentário pela demora na
realização de perícias médicas na Justiça Estadual.
Tal benefício é requerido pelo segurado que sofre um acidente de trabalho, que de
acordo com o artigo 19 da Lei 8213/91 consiste em:
7.1. CONCEITO DE ACIDENTE DE TRABALHO

Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da
empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do
artigo 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause
a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o
trabalho.

Como o acidente de trabalho é um evento de natureza não programada, incorrendo


em perda da capacidade laborativa do trabalhador, e consequentemente de sua subsistência, o
Estado compreendeu a necessidade de amparo a todo trabalhador nessa situação.
E, também por isso, o auxílio-doença acidentário gera a estabilidade provisória de
12 meses quando o empregado retornar ao trabalho de 12 meses, conforme Sumula 378 do
TST, e seu valor corresponderá a 100 % do salário-de-benefício. E conforme preceitua o
artigo 129 da Lei 8213/91, a competência para julgamento de lides acidentárias é sempre da
Justiça dos Estados.

7.2. CONCEITO DE INCAPACIDADE

A incapacidade para o trabalho é a impossibilidade temporária ou definitiva do


desempenho das funções específicas de uma atividade ou ocupação, em consequência de
alterações morfopsiquicofisiológicas provocadas por doença ou acidente para o qual o
examinado estava previamente habilitado e em exercício. O risco de vida para si ou para
terceiros, ou de agravamento, que a permanência em atividade possa acarretar, está
implicitamente incluído no conceito de incapacidade, desde que palpável e indiscutível.
O conceito de incapacidade deve ser analisado quanto ao grau, à duração e à
profissão desempenhada. Ou seja, para fazer jus ao benefício do auxílio-doença acidentário
tem de se estabelecer o nexo causal entre a incapacidade e a atividade laborativa do
trabalhador. E esse nexo causal é feito através de perícia médica.
Nesse trabalho nos deteremos apenas nas perícias médicas incidentes nas ações
judiciais para obtenção do auxílio-doença acidentário na Justiça Estadual, cujo maior entrave
é justamente a demora na sua realização.
Como sabemos, a demora na prestação da tutela jurisdicional pode proporcionar
graves danos àqueles que necessitam se socorrer ao Estado-Juiz, cujo objetivo é obter êxito na
pretensão, principalmente as pessoas mais necessitadas de recursos financeiros e as detentoras
de interesse legítimo.
Em resposta a tal morosidade, o Novo Código de Processo Civil em seu art. 4º
inseriu nova redação , já previsto no inciso LXXVIII no art. 5º da Constituição Federal de
1988, que assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
No entanto, a resolução do problema da morosidade não passaria apenas pela
criação do princípio da razoável duração do processo, mas sim pela elaboração de
mecanismos eficientes que sejam passíveis de tornar tal princípio efetivo.
E assim, a situação mais comum de quem se socorre do Poder Judiciário para fazer
valer o seu direito à concessão do referido benefício, devido à demora entre a realização das
perícias na Justiça Estadual, é a angústia por não poder trabalhar, face a sua incapacidade; o
não recebimento do salário do empregador e ainda, em razão da demora, o não recebimento
do benefício da Previdência Social.

7.3. A DEMORA DAS PERÍCIAS MÉDICAS

O que acontece hoje é que após o ajuizamento da ação, o juiz determina a perícia
médica para se constatar a incapacidade alegada. E isso, por suposto leva algum tempo.
Depois de realizada, o juiz novamente determina outra perícia para o estabelecimento do nexo
causal entre a incapacidade e a atividade laborativa do trabalhador, para que ocorra a
concessão o restabelecimento ou manutenção do benefício decorrente de acidente de trabalho.
E, infelizmente, isso também leva outro tanto de tempo.
Enquanto isso, o trabalhador está sem trabalhar por conta de sua incapacidade, sem
receber do empregador, pois a ele não lhe compete mais essa obrigação, vez que está por
conta do INSS, que também não lhe paga a espera da sentença do juiz.
Ou seja, o trabalhador está totalmente à deriva, sem capacidade de subsistência
própria e de sua família. É uma realidade estrutural que acaba por causar grave prejuízo aos
segurados.

7.4. CONCESSÃO, RESTABELECIMENTO OU MANUTENÇÃO

Os pedidos de ações de auxílio-doença acidentário podem ser de concessão, de


restabelecimento ou de manutenção do benefício. Veremos a seguir cada uma das situações.
Concessão: nos casos de indeferimento de pedido de auxílio-doença acidentário
pelo INSS, após a perícia médica não atestar a incapacidade, pode o trabalhador recorrer ao
Poder Judiciário.
Restabelecimento: quando ocorre do INSS dar alta a um segurado, embora
persistindo sua incapacidade, o segurado, depois de pedido de prorrogação ou de
reconsideração indeferido, também está apto a ajuizar ação judicial.
Manutenção: o objetivo desse pedido é evitar o término do auxílio doença antes da
melhora do estado clínico do segurado, submetendo-o a nova avaliação para que o perito
médico do INSS possa considerar a necessidade da continuidade do afastamento do trabalho.
No entanto, é comuníssimo nos dias de hoje, que a data da nova perícia normalmente
ultrapasse o prazo previsto para o fim do benefício. E, aí, entende o INSS que o segurado
deve ficar sem receber o benefício até que tal perícia possa ser realizada, independente do
tempo de espera. Dado o caráter alimentar do benefício, ao trabalhador não lhe resta
alternativa a não ser ir ao judiciário. Muito embora, lá também haverá espera, apesar de
menor.

7.5. CAUSAS DA OBTENÇÃO DO AUXÍLIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO:


DOENÇAS OCUPACIONAIS

As doenças ocupacionais são aquelas deflagradas em virtude da atividade laborativa


desempenhada pelo individuo, que resultando de constante exposição a agentes físicos,
químicos e biológicos, ou mesmo do uso inadequado dos novos recursos tecnológicos, como
os da informática. Dividem-se em doenças profissionais e doenças do trabalho.

7.5.1. DOENÇAS PROFISSIONAIS

Classificam-se como decorrentes de situações comuns aos integrantes de


determinada categoria de trabalhadores, relacionadas como tal no Decreto 3.048/99,
Anexo II, ou caso comprovado o nexo causal entre a doença e a lesão, aquela reconhecida
pela Previdência, independente de constar da relação. As doenças profissionais são chamadas
de idiopatias, tecnopatias ou ergopatias.

7.5.2. DOENÇAS DO TRABALHO

São aquelas adquiridas ou desencadeadas em função de condições especiais em que


o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, estando elencadas no Anexo II do
Decreto 3.048/99, ou reconhecidas pela Previdência. As doenças do trabalho são
denominadas mesopatias.
A prevenção no caso deve ser baseada na limitação do tempo de exposição (duração
da jornada e concessão de pausas regulares), na alteração do processo e organização do
trabalho (evitando excessos de demanda) e na adequação de máquinas, mobílias,
equipamentos e ferramental do trabalho às características ergonômicas dos trabalhadores.
Nas doenças ocupacionais não existem violência nem subtaneidade (como no
acidente de trabalho típico), pois as doenças são previsíveis e não dependem de evento
violento e súbito; são as contingências do trabalho desempenhado ao longo do tempo que
estabelecem o nexo causal entre a atividade laborativa e a doença.

7.6. COMUNICAÇÃO DA EMPRESA

Segundo o art. 22 da Lei 8.213, é obrigação da empresa comunicar o acidente do


trabalho à Previdência Social até o 1º (primeiro) dia útil seguinte ao da ocorrência e, em
caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável entre o
limite mínimo e o limite máximo do salário de contribuição, sucessivamente aumentada nas
reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social.
A comunicação não exime a empresa de responsabilidade pela falta do cumprimento
do disposto neste artigo. A multa, contudo, não se aplica na hipótese do caput do art. 21‑ A
da lei 8.213/91.
Dessa comunicação receberão cópia fiel o acidentado ou seus dependentes, bem
como o sindicato a que corresponda a sua categoria.
Na falta de comunicação por parte da empresa, podem formalizá‑ la o próprio
acidentado, seus dependentes, a entidade sindical competente, o médico que o assistiu ou
qualquer autoridade pública, não prevalecendo nestes casos o prazo previsto neste artigo.
Os sindicatos e entidades representativas de classe poderão acompanhar a cobrança,
pela Previdência Social, das multas previstas neste artigo. A multa de que trata este artigo não
se aplica na hipótese do caput do art. 21-A da lei 8.213/91.

8. A PRECÁRIA CONDUÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO E


JUDICIAL PARA CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS

Embora o foco desse trabalho seja o processo judicial, é bom que se diga que a
precariedade na concessão do benefício de auxílio-doença acidentário por incapacidade
laboral, tanto na esfera administrativa quanto na judicial se deve a demora extrema no
agendamento de perícias médicas. O resultado disso, é a afronta aos direitos fundamentais dos
segurados, que são privados de seu trabalho, e ao mesmo tempo da proteção estatal em forma
pecuniária, seguro social devido a este tipo de risco social.
A solução seria na esfera administrativa tornar obrigatório o deferimento inicial
pelas agências de previdência de todo país tendo por base os pareceres dos médicos
assistentes. Uma vez que pela ausência de efetivo necessário nas agências da Previdência
Social, que não possuem um número de peritos-médicos suficientes para atender, as filas de
segurados doentes se tornam gigantescas.
Em 2012, foram as agências do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) do
Paraná as que mais demoram no país para analisar os pedidos de aposentadoria, auxílio-
doença e auxílio-maternidade, entre outros. Segundo dados do Boletim Estatístico da
Previdência Social, de dezembro de 2011, 47% dos benefícios solicitados naquele mês
demoraram mais de 45 dias para serem examinados – quase o dobro da média nacional, que
foi de 25%. O que vai de encontro ao estabelecido no próprio Decreto 3.048/99 do INSS, que
estipula que a primeira parcela do benefício solicitada pelo trabalhador seja paga em até 45
dias após a entrega da documentação exigida.
Não à toa, o INSS aparece como litigante (uma das partes do processo) em 43,1%
das ações em trâmite na Justiça Federal do país, conforme pesquisa do Conselho Nacional de
Justiça6.
O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) é o maior litigante do País nas justiças
Estadual e Federal. Isso significa que o órgão participa da maior fatia do total de processos,
4,38%, ingressos na Justiça Comum e nos Juizados Especiais, entre janeiro e o fim de outubro
de 2011, último dado disponível. Ao todo são 56 tribunais espalhados pelo País, que integram
o SIESPJ (Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário). Somente na Justiça Federal, o INSS
liderou com 34,35% das ações. A segunda posição nesta área é da Fazenda Nacional, que
detém 12,89% dos processos. Os dados são da pesquisa Os 100 maiores litigantes 2012,
publicada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Boa parte dos processos em tramitação são recursos do INSS contra decisões
favoráveis a trabalhadores que reivindicam benefícios, especialmente aos relacionados a
auxílio-doença. Levantamento do instituto revela que só no Grande ABC, entre janeiro e
maio, as agências da Previdência Social realizaram 75.992 perícias médicas. Sendo elas
iniciais ou recorrentes.

6
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/
8.1. PERÍCIAS MÉDICAS

Como vimos acima, não vencida a etapa na área administrativa, recorre o


trabalhador à esfera judicial. Aqui, o maior empecilho no processo judicial é a desnecessidade
de duas perícias médicas para o estabelecimento do nexo causal entre a incapacidade e a
atividade laborativa do trabalhador. Para que, assim, seja deferida a concessão,
restabelecimento ou manutenção do auxilio-doença acidentário.
O tempo percorrido entre essas duas perícias é longo, fazendo com que a duração do
processo também seja longa. E como se pode aplicar o princípio da duração razoável do
processo num caso assim? Por certo, que como discutido acima a aplicação desse princípio,
por conceito aberto e indefinido, é um desafio aos aplicadores do Direito.
A sugestão abordada nesse trabalho seria de reduzir a uma perícia médica, isto é,
logo na primeira perícia deferida no processo, o perito atestaria a incapacidade e sua conexão
com a atividade laborativa do trabalhador, ou seja, o nexo causal.
Assim, se reduziria o tempo de duração do processo. Não podemos esquecer que
esse trabalhador nesse momento está sem salário do empregador, sem o benefício do INSS e
sem poder trabalhar pela incapacidade.
Na lista de soluções para reduzir a litigiosidade crescente e desatravancar os fóruns e
tribunais brasileiros que julgam ações contra o INSS está o uso do processo coletivo,
instaurado por meio de ações civis públicas, apto a reduzir de forma considerável as milhões
de demandas individuais que discutem questões meramente de direito.

CONCLUSÕES

A evolução dos direitos fundamentais confirma que não mais se pode falar em
liberdade e igualdade sem a existência dos pressupostos materiais que viabilizem tais direitos,
surgindo a necessidade de assegurar meios que possibilitem seu exercício.
Há uma preocupação do Novo Código de Processo Civil em, mais que agilizar,
entregar à demanda um laudo conclusivo para elucidar a causa em questão e entregar a justa
prestação jurisdicional no menor tempo possível. E é justamente disso que trata esse trabalho.
A perícia no Novo Código de Processo Civil é tratada nos artigos 464 a 480 e é
aquela que conta com um especialista em determinada área técnica (perito) para esclarecer
certo fato que interessa à demanda. E se destacam quatro novidades de maior interesse
prático: produção de prova técnica simplificada; apresentação de currículo do perito; perícia
consensual; e requisitos do laudo pericial.
Sem dúvida alguma, trata-se de importante inovação do NCPC, a permitir a
desburocratização em demandas nas quais, embora exista a necessidade da prova técnica, a
baixa complexidade envolvida em nada justifica que as partes se sujeitem à demorada e
custosa produção da prova pericial nos moldes tradicionais, tal como previstos atualmente.
Igualmente importante é ressaltar a necessidade imperiosa, agora prevista em lei, de
que o perito, no prazo de cinco dias de sua nomeação, junte aos autos, além da sua proposta
de honorários e dos seus contatos profissionais, também o seu currículo atualizado com a
devida comprovação de sua especialização, sob pena de substituição, conforme disposto no
artigo 462, parágrafo 2º, inciso II e artigo 468, inciso I do NCPC. O que é muito alvissareiro,
pois que não raro se vê na prática a nomeação de peritos não especialistas na matéria objeto
de controvérsia entre as partes.

REFERÊNCIAS

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003. p.
492-494.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29.ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p.537-567.

MACHADO, Edinilson Donisete; NAHAS, Thereza Christina; PADILHA, Norma Sueli. Gramática dos Direitos
Fundamentais. 1.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p.21-44.

NICOLITT, André. Razoável Duração do Processo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2014. p.15-40.

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 256.

REALE JR., Miguel. Valores Fundamentais da Reforma do Judiciário. Revista do Advogado. vol.24. n.75. p.78-
82. São Paulo: IASP, 2004.
Grupo de Trabalho 15

ENSINO JURÍDICO HOJE

mxiv
O DIREITO E O ENSINO JURÍDICO
SOB A PERSPECTIVA DE MICHEL MIAILLE
E A RECONFIGURAÇÃO DA CIÊNCIA JURÍDICA
A PARTIR DAS OCUPAÇÕES DAS ESCOLAS PÚBLICAS

ABREU, Angélica Kely


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito UFF
Bolsista Capes

RESUMO

O presente estudo objetiva realizar uma abordagem crítica sobre o direito e o ensino jurídico, para
tanto, utilizaremos Michel Miaille e faremos um diálogo entre a emergência de um ensino do direito
transdisciplinar e a necessidade de uma ciência jurídica que coadune prática e teoria com os fenômenos
sociais, isto é, faremos um paralelo entre as críticas de Miaille quanto ao estudo jurídico ofertado nas
instituições de ensino, com os apontamento de Marilena Chauí de um ensino tecnológico e mercantil.
Para percebemos que o direito pode ser entendido e estudado com algo alternativo, distante do que os
manuais impõem, traremos para o debate as ocupações das escolas públicas como lugar onde houve
um estudo crítico do direito, da democracia e da cidadania, na tentativa de ilustrarmos a partir de uma
abordagem empírica como lugares comuns (não tão acadêmico) podem realizar verdadeira explicação
do que é o direito.

Palavras-Chave. Análise crítica do direito; obstáculos epistemológicos; ciência jurídica.

ABSTRACT:

This study aims to make a critical approach to law and legal education, therefore, we will use Michel
Miaille and make a dialogue between the emergence of a school of transdisciplinary law and the need
for a legal science that incorporates practice and theory with social phenomena, that is, we will make
a parallel between the critical Miaille as the legal study offered in educational institutions, with the
appointment of Marilena Chauí a technological and commercial education. To realize that the right
can be understood and studied with something alternative, distant than manual impose, we will bring
to the debate the occupations of public schools as a place where there was a critical study of law,
democracy and citizenship in the try of illustrate from an empirical approach as ordinary places (not
so academic) can hold true explanation of what is right.

Keywords. Critical analysis of the law; epistemological obstacles; legal science.

1015
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Este trabalho é um estudo sobre a análise crítica do direito realizada sob a


perspectiva de Michel Miaille (1994). Objetivamos compreender as características das
ciências jurídicas, reconhecendo seus fins e seu lugar como uma instância de um “todo
complexo com dominante” (Miaille, 1994), que se afasta das conceituações abstratas - e se
formos mais longe, de cunho liberal e positivista - que ainda são comumente ensinadas nos
cursos e programas de introdução ao direito.
O estudo do direito apresenta-se como tema de diversas teorias. Dessa forma,
diversos apontamentos sobre as influências sofridas pelos estudos das ciências jurídicas são
realizados na busca pela compreensão da epistemologia destas (epistemologia no sentido de
conhecimento científico) é esse o objetivo principal desta pesquisa: que o direito seja
estudado a partir de concepções científicas, distanciando-se de concepções abstratas que
normalmente o circulam.
Para realizar um estudo sobre as ciências jurídicas realizaremos um diálogo entre a
teoria de Miaille com alguns fenômenos sociais, em especial, as ocupações das escolas
públicas. Na tentativa de promover um conhecimento do direito para além do senso comum,
tão presente nos manuais utilizados nas instituições de ensino, questionaremos, portanto, de
qual forma o direito pode se apresentar em uma roupagem mais humanista, conforme ensina
Roberto Lyra Filho: “um direito vivo que não se deixe matar pela dogmática” (FILHO, 1981,
p.7).

1. OS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS NO ESTUDO DA CIÊNCIA


JURÍDICA

Miaille inicia sua obra com o conceito de obstáculo epistemológico que são
obstáculos objetivos interligados às condições históricas nas quais a investigação científica se
realiza. Com isso, preleciona que a ciência jurídica se esbarra com tais obstáculos que são
estudados a partir das características da sociedade francesa. O autor realiza a análise do
trabalho sob três eixos:

[...] a falsa transparência do direito ligada a uma dominação do espírito positivista


em França desde há mais de um século; o idealismo profundo das explicações
jurídicas, consequência de uma forma de pensamento que é em muito maior escala
a das sociedades submetidas a um regime capitalista; finalmente, uma certa imagem

1016
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

do saber onde a especialização teria progressivamente autorizado as


compartimentações que constatamos atualmente. (MIAILLE, 1994, p. 38)

A falsa transparência do direito para autor é a simplicidade na qual as obras jurídicas


se inserem: “os autores contentam-se em deitar uma olhadela sobre as instituições jurídicas da
nossa sociedade para dela extrair o conhecimento, a ciência do direito”. O autor defende a
necessidade de se conceber o direito através de sua própria experiência.
Miaille tece críticas no sentido de que as regras jurídicas não possuíam autonomia e
se interligavam à teologia (sob uma perspectiva histórica). Desse modo, as regras do direito
seriam uma extensão da vontade de Deus, ou seja, estariam subordinadas a essas. Havia,
portanto, uma abstração metafísica da qual o conhecimento do direito precisava se libertar.
Urge a necessidade de um estudo do direito objetivo que se desconecte ao ideal e à influência
da Igreja Católica.
O empirismo apresenta-se, diante de uma forte ligação entre o direito e as catedrais,
como uma forma de promover um estudo científico através do qual o conhecimento seja
resultado da experiência. Há a necessidade de constituir um conhecimento através do
resultado da observação, das experiências que o próprio direito possa revelar. Assim, a
experiência e a observação tornam-se técnicas indispensáveis para o conhecimento do direito.
Dessa forma, a ciência jurídica precisa ultrapassar a esfera da metafísica, da teologia, ao passo
que a experiência seja constituída para além da observação com aporte dos conceitos teóricos.
A partir dessa observação, o direito criaria um caráter positivista e, por isso, o estudo do
direito passa a ser relativo às regras e limitando-se a elas.
O positivismo apresenta-se como um pensamento contrário ao jusnaturalismo. Este,
por sua vez, é a doutrina que visa estudar origem do direito a partir da Natureza, além de
entender que há direitos naturais que se sobressaem em relação a outros direitos. A teoria
positivista para Miaille não é apenas uma substituição da teoria jusnaturalista, e sim uma
necessidade advinda da “evolução geral da sociedade francesa” (MIAILLE, 1994, p. 44).
Como já mencionamos, Miaille realiza seus estudos a partir da sociedade francesa, havendo
diversos apontamentos em sua obra sobre ela.
Objetivamos promover, como já informamos, uma pesquisa sobre os obstáculos que
impedem o estudo das ciências jurídicas, os quais o autor denomina de obstáculos
epistemológicos. A assimilação de ideias recebidas (pré-noções), por exemplo, sem o
questionamento, ou seja, sem o estudo de seu funcionamento é um dos obstáculos

1017
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

epistemológicos. É necessário ver para além do direito positivo e se atentando para sua
experiência e para sua especificidade, como já suscitamos.
Além disso, o idealismo jurídico também se afigura como obstáculo epistemológico.
Tal idealismo causa uma sobreposição da filosofia sobre o materialismo, ou seja, a explicação
do mundo está no campo das ideias. Em paralelo ao mundo jurídico, os juristas realizam o
idealismo quando ignoram o contexto social de um caso concreto e subordinam esse ao seu
pensamento soberano.

[...] a atitude dos juristas resulta de as noções de direito serem sempre apresentadas
e tratadas, nos fatos, fora de um contexto social preciso: o jurista não nega a
existência e o peso das estruturas sociais, subordina-as ao seu sistema de
pensamento. Estes mecanismos intelectuais conduzem a resultados desoladores: os
fenômenos, por vezes os mais evidentes, perdem-se, enquanto que as ideias se
tornam o fundamento da realidade. A introdução ao direito não é senão sempre a
aprendizagem insidiosa desta inversão de perspectivas (MIAILLE, 1994, p. 38).

O idealismo, por sua vez, é uma abstração a partir da representação de alguma coisa,
sendo, portanto, uma abstração ideológica. Em contrapartida, quando se há uma abstração a
partir de uma explicação tem-se uma abstração científica, isto é, noções produzidas de acordo
com os métodos próprios.
Em relação ao mundo jurídico, a partir da percepção de uma abstração ideológica e
uma abstração científica, a ciência jurídica se apresenta como uma imagem do mundo do
direito, quando deveria ser uma explicação.
A ciência jurídica para Miaille (1994), na forma como é ensinada, se funda apenas
nas instituições e nas noções criadas pela sociedade para representar uma ordem social.
Apresenta-se, assim, o Estado que tenta promover a ordem da desordem. E para manter uma
vida social em uma sociedade desigual e dividida em classe criam-se noções que são
representações do mundo real: o idealismo.
Nesse contexto de representação do mundo real surge a ciência jurídica que “vai
tomar como certa a imagem que lhe transmite a sociedade e tomá-la pela realidade”
(MIALLE, 1998, p. 51). Desse modo, temos um ciclo em que a sociedade cria noções que a
representam e as representações se explicam por elas próprias. Como informamos, tudo
constitui abstrações ideológicas, representações.
A noção de direito não se relaciona com o fenômeno social que a produziu, mas
com as idealizações da sociedade: a representação da vida real. Assim os juristas tornam-se
grandes idealistas que reproduzem uma representação da vida e não a explicação e abordagem

1018
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

científica das noções que os circundam. Surge assim, um universalismo a-histórico e um


pluralismo de explicações.
A universidade de direito, por exemplo, se acomete por esse idealismo: há uma
pluralidade de explicações que na verdade se remetem a uma unicidade de posição, pois
utiliza-se, majoritariamente, a “melhor teoria” que em regra é aquela que o professor aponta
ser a melhor.
Além dessa unicidade de posição que gera um pluralismo de explicação, que é
marcado por técnicas de oratória e não por pluralidade teórica, há a unidade de pensamento
que dificulta a criação de uma ciência jurídica autêntica e independente.
Para estudar o direito é necessário um aprofundamento das regras jurídicas que
coadune com o estudo das relações econômicas, sociais que influenciaram no seu
desenvolvimento. Miaille (1994) tece crítica sobre o conhecimento “tecnológico” do direito e
reforça a necessidade de interação das ciências jurídicas com matérias entendidas como
complementares: história, sociologia, entre outras.
Contudo, a maioria das faculdades de direito reforçam o isolamento deste. Muito
embora houvesse a necessidade de uma interdisciplinaridade existem obstáculos para sua
concretização frente à visão egocêntrica do jurista, que reforça o isolamento do direito e sua
incomunicabilidade com outras áreas que contribuiriam com o seu desenvolvimento de uma
maneira mais criativa. A estrutura universitária cria um obstáculo epistemológico. O direito é
estudado e apreendido por si, na forma de um hermetismo fechado, que desloca as demais
disciplinas para as margens da produção sobre esse campo do saber, o que acarreta a já
mencionada visão tecnicista do direito.
Nesse sentido, embora necessária, é importante enfatizar que a interdisciplinaridade
não é suficiente para se buscar uma ciência menos dogmática do direito. Nesse caso, Miaille
apresenta como possível caminho a transdiciplinaridade, ou seja, “a ultrapassagem das
fronteiras atuais das disciplinas” (MIALLE, 1998, p. 61), no sentido de romper com a divisão
do saber. Em outras palavras, a necessidade de ter um direito que se comunique com outras
matérias como sociologia e economia, pois todas advêm de uma mesma teoria que é a
história.

Ora o que eu proponho mostrar é que direito e economia, mas também política e
sociologia, pertencem a um mesmo continente, estão dependentes da mesma teoria,
a da história. É que direito e economia podem ser reportados ao mesmo sistema de
referências científicas. Para admitir esta nova perspectiva é necessário abandonar o
mito da divisão natural do saber. Este mito não é de papel: é um obstáculo, na

1019
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

medida em que é preciso forçá-lo, a fim de se conseguir obter os meios de traçar


um caminho científico. (MIAILLE, 1994, p.62).

Miaille (1994) defende que para termos um estudo científico do direito precisamos
ultrapassar três obstáculos: transparência do objeto de estudo, o idealismo tradicional da
análise jurídica, a convicção da necessidade de isolamento do direito.

Resumamos as conclusões às quais chegávamos agora. Para desenvolver um estudo


científico do direito, temos de forçar três obstáculos tanto mais sólido quando mais
naturais aparecem: a aparente transparência do objeto de estudo, o idealismo
tradicional da análise jurídica, a convicção, finalmente, de que uma ciência não
adquire o seu estatuto senão isolando-se de todos os outros estudos. O
reconhecimento destas dificuldades conduz-nos desde logo a afirmar que temos de
construir o objeto de nosso estudo – e não deixarmos-nos impor a imagem que o
sistema jurídico veicula consigo –, subverter totalmente a pespectiva idealista e
fracionada do saber que domina atualmente. Como facilmente se pode constatar, a
revelação destes obstáculos, quer dizer, a denúncia dos erros que eles fazem pensar
não reveste o caráter gratuito de uma simples crítica negativa: leva-nos
positivamente a constituir de outra maneira a ciência do direito. A crítica radical
desta ciência abre-nos a via de novas hipóteses científicas (MIAILLE, 1994, p.62).

Desse modo, torna-se necessária a construção da ciência jurídica com objetividade,


na medida que seja revestido de cientificidade e não apenas uma representação ideológica.
Para Miaille (1994), os juristas não conseguem realizar a distinção entre objeto de ciência e
objeto real, isto é, um objeto de estudo que reflita o objeto real ao mesmo tempo que realize
um estudo de forma explicativa e não representativa (tais conceitos já foram trabalhados
anteriormente).
Os juristas precisam reconhecer que seu estudo é, na verdade, não apenas uma
representação da sociedade, mas um conhecimento sobre as sociedades e as suas
transformações na história, que não poderiam ser bem compreendidas pelo empirismo, nem
mesmo pelo idealismo.

2. A INFLUÊNCIA DA TEORIA MARXISTA NO ESTUDO DAS CIÊNCIAS


JURÍDICAS

O autor defende que a confluência entre prática e teoria leva a uma emancipação,
com isso, procura na teoria marxista a referência para o desenvolvimento de seu estudo sobre
as ciências jurídicas. Não adentraremos, especificamente, na obra de Marx, mas essa teoria
inaugurou uma nova forma de estudo na qual o seu objeto é visto não apenas através de seu

1020
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

resultado. Assim, para compreendermos o direito precisamos de um estudo prévio da história,


ou seja, “a renovação do estudo do direito não é senão através de uma formulação
completamente nova do estudo da sociedade e das suas transformações na história”
(MIAILLE, 1994, p.68).

A novidade da abordagem de Marx no que diz respeito ao direito não consiste no


fato de ele o tratar como um fenômeno social: estão todos de acordo, os juristas
inclusive, que o direito é um produto da sociedade – ubi societas, ibi jus – onde há
sociedade também há direito, é uma dessas máximas que florescem em todos os
manuais – de preferência na sua formulação latina, o que dá aparentemente mais
autoridade. O que Marx traz de novo é que em vez de deixar esta ideia de produção
social inerte, sem consequências, integra todos os manuais mais autoridade
(MIAILLE, 1994, P. 68).

Dessa maneira, para uma cientificidade das ciências jurídicas precisa-se entender
“que tipo de direito produz tal tipo de sociedade e porque é que esse direito corresponde a
essa sociedade” (MIAILLE, 1994, p.68).
Observamos a necessidade de um estudo de direito mais crítico que se distancie de
uma abordagem tecnicista baseada em manuais de juristas que impõem seus pensamentos e
estes se afiguram como a representação da sociedade.
Miaille (1994) desmistifica o conceito de modo de produção criado por Marx, que
não pode ficar restrito ao significado unilateral econômico, e o conceitua como a maneira
como uma sociedade se organiza para produzir a vida social.
O autor sugere que a partir do conceito de modo de produção podemos compreender
o lugar ocupado pelo sistema jurídico na vida social. Dessa forma o direito não estaria
respaldado apenas por si próprio (o direito é o direito) que seria uma percepção positivista,
bem como escaparia do idealismo (o direito é a expressão da justiça).
A explicação do direito não por si mesmo se torna possível a partir do conceito de
modo de produção trazido por Marx, que permite compreender a organização social e o
sistema jurídico. Miaille faz uma análise do conceito “produção social da existência”
desenvolvida por Marx, entendendo que a produção social da existência significa que “a vida
social nunca é uma vida dada pela natureza, pelo ambiente, mas sim que é sempre construída
pelos homens, e construída na totalidade dos seus elementos tanto materiais como espirituais”
(MIAILLE, 1994, p. 70). Reforça, contudo, a ideia de que essa produção ocorra de forma
organizada, utilizando-se de métodos próprios.

1021
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Por outra perspectiva, a vida do indivíduo ultrapassa o seu poder individual de


organizá-la, pois é influenciada, ou melhor, organizada pela sociedade por estruturas a ela
pertencentes, seja a econômica, jurídica ou política. A partir do conceito de modo de
produção teria como estrutura de base a economia, e como superestruturas a política, o
jurídico e ideológica. O autor faz um alerta sobre o cuidado de não se criar interpretações um
tanto quanto simplista de tal afirmação, pois a vida social se apresenta de forma complexa.
As relações sociais são determinadas por múltiplos mecanismos da sociedade, como
já mencionamos, tais mecanismo vão desde a economia até as ideologias e para o
reconhecimento destes é imprescindível o reconhecimento do lugar, dos laços, dos canais
onde se realizam os fenômenos sociais. Assim, a sociedade seria um todo estruturado, através
de base e superestruturas, dividida em três níveis: o nível econômico (base), o nível jurídico e
político e o nível das formas de consciência sociais que seriam as representações, ou seja, um
nível ideológico. A estrutura da sociedade estaria dividida na base econômica e nas
superestruturas jurídico e político e ideológico. Elas se estruturam de forma autônoma: “cada
instância possui uma certa autonomia na medida em que participa no funcionamento global
com a sua própria lógica, os seus próprios mecanismos, as suas próprias instituições”
(MIAILLE, 1994, p. 74). Mas essas instâncias se comunicam e não são independentes.
Miaille (1994) preocupa-se com um estudo da teoria marxista não somente pela
perspectiva econômica e tece comentários sobre teorias da obra de Marx divididas em teorias
materialistas e teorias voluntaristas. As materialistas realizam o estudo marxista sobre uma
perspectiva da supervalorização da estrutura de base, ou seja, do conteúdo econômico. Já a
teoria voluntarista faz o estudo da teoria de Marx com a supervalorização das superestruturas,
ou seja, jurídica-política e ideológica.
Os economistas (materialistas) ressaltam dessa forma a instância econômica, já os
voluntaristas realizam seus estudos a partir da percepção da vontade da classe dominante.
Miaille (1994) propõe uma análise do modo de produção a partir de uma causalidade
estrutural não sendo “o nível econômico, político ou ideológico que explica este ou aquele
gesto que faço, é a estrutura complexa das causalidades e, portanto, das explicações
científicas” (MIAILLE, 1994, p.80). Essas estruturas complexas da causalidade fazem com
que, na esfera individual, por exemplo, a natureza na sua materialidade (existência) oponha-se
à ação do indivíduo, assim ensina Miaille:

1022
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

É a constatação que Marx traduz pelo termo materialismos: há, fora de mim, uma
realidade que não esperou a minha ação ou a minha reflexão para se manifestar.
Esta constatação é de todo cientista. É simplesmente testemunho da necessidade
que o espírito tem de reconhecer a existência e a oposição da matéria. Não há aí
nenhuma declaração acerca do primado da matéria sobe o espírito. Esta seria de
natureza filosófica: não teria qualquer sentido num estado científico. (MIAILLE,
1994, p. 80-81).

O que Marx propõe de acordo com Miaille é uma construção do pensamento


científico com a relação do objeto e do sujeito, na qual a existência de um depende da
existência do outro. O pensamento apresenta-se então como uma reflexão do real a partir de
percepções formuladas em conceitos.
O pensamento não deve realizar uma apropriação da realidade e estudá-la de forma
isolada. Como já discutimos, esse isolamento, no caso das ciências jurídicas, torna-se um
obstáculo epistemológico que dificulta uma explicação científica do direito, o qual precisa ser
estudado a partir da história, da sociologia de modo com que haja uma transdisciplinaridade.

A função do pensamento é precisamente apropriar-se do real, não refletindo


passivamente este real (hipótese do realismo ou do materialismo vulgar), não
funcionando de modo isolado (hipótese do idealismo, mas como produto da
elaboração das percepções e das representações em conceitos). O real aparece então
como um todo pensado, um concreto-pensado (MIAILLE, 1994, p.81).

Desta feita, precisa ser vigilante para que o pensamento científico não utilize como
verdades imagens criadas pelo sistema ideológico do indivíduo. Contudo, o indivíduo sofre
influência direta da sociedade, de modo que não passa ileso pelos reflexos das instâncias
econômicas, políticas, jurídicas, em uma palavra, ideológicas.

3. AS CARACTERÍSTICAS DA INSTÂNCIA JURÍDICA

Nesse ponto, o autor realiza uma distinção do sentido do termo direito. Até aqui
utilizava-se direito como um sistema de regras, daqui para frente será utilizado como instância
jurídica. Desmistifica a ideia de um direito imutável e blindado à interferências externas ao
seu campo. Adota-se a percepção de uma instância jurídica que faz parte de um todo e,
portanto, não é dotada de uma autonomia absoluta do modo de produção a qual se insere.

O próprio termo indica que se trata de uma parte de um todo e que portanto não tem
valor ou não é compreensível senão em função deste todo; mas, por outro lado,
significa que este todo, sendo um dos modos de produção teoricamente definidos,
dá a esta instância um lugar, uma função, um eficácia particular. Funcionando o

1023
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

sistema de regras jurídicas de modo diferente segundo os modos de produção, é


pois necessário abandonar radicalmente a imagem de um fenômeno jurídico que
atravessaria as épocas e as sociedades, sempre igual a si próprio (MIAILLE, 1994,
p. 84).

O que propõe o autor nesse tópico é um debate sobre a introdução à instância


jurídica no seio de uma sociedade dominada pelo modo de produção capitalista. Entende-se
que as discussões dos autores das doutrinas tradicionais sobre a definição do direito são
genéricas que, parafraseando Fernando Pessoa, passam a ser um pedaço de papel pintado com
tinta onde há a indistinta distinção entre nada e coisa alguma, isto é, meras confirmações do
senso comum.

4. ANÁLISE CRÍTICA DAS DEFINIÇÕES DO DIREITO

Os manuais de direito buscam a definição da ciência jurídica a partir da distinção


aos “sistemas de obrigações ” (MIAILLE, 1994), ou seja, a moral, a religião, os costumes e os
usos. O autor realiza uma crítica sobre o conceito do dever ser do direito, pois para ele o
objeto do estudo da ciência jurídica é saber o que é a regra do direito, não o que ela deve ser.
O que se encontra nas doutrinas é uma replicação do senso comum.
Assim, o erro se inicia ao tentar tecer uma explicação do direito a partir do conceito
de dever ser ou de sanção (uma coação exercida por meio da força advinda do Estado). Um
sistema jurídico não tem sua existência condicionada a uma sanção repressiva.

Assim, a ideia de que a sanção-repressão é característica do direito é totalmente


falsa. O erro metodológico é portanto grave: não se pode definir cientificamente um
fenômeno pelas suas consequências senão quando elas aparecem ligadas ao
aparecimento do fenômeno (MIAILLE, 1994, p. 89).

Outro erro para a conceituação do direito é o entendimento de que norma é uma


obrigação, um imperativo. No sentido denotativo, norma significa medida. Para Miaille a
norma é um instrumento de medida que institui pessoas, que estabelece um sistema de
ligações, um sistema de relações que cria papéis, possibilidades, lugares para cada indivíduo.
As normas são, portanto, as medidas dessas relações sociais marcadas pelas distinções, como
informamos, de papéis, possibilidades, lugares.

1024
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Precisamos compreender também a relação da norma e a pessoa, como propõe o


autor. Para tanto, há uma aproximação da relação da mercadoria na esfera econômica com a
norma na esfera pública.
A mercadoria da esfera econômica faz com que as relações sociais que organizam a
produção e a circulação desapareçam. A mercadoria apresenta-se em um plano econômico
que a matéria e a riqueza se sobressaem às relações individuais, tudo se coisifica.

O feitichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo único do


direito, faz esquecer que a circulação, a troca, e as relações entre pessoas são na
realidade relações entre coisas, entre objetos, que são exatamente os mesmos da
produção e da circulação capitalista (MIAILLE, 1994, p.94).

Em paralelo ao mundo do direito, as relações se dão como se passasse entre as


pessoas, mas em sentido hierárquico, entre os subordinadores e os subordinados, e tudo se
apresenta como originado por decisões, por uma Razão, “jamais aparece a densidade de
relações que não são queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de estruturas
constrangedoras mais invisíveis” (MIAILLE, 1994, p. 94). Ou seja, o sistema jurídico em
nossa sociedade capitalista afigura-se por formas abstratas da norma e através de uma
generalização que representa “a unidade social de maneira ao mesmo tempo real e
imaginária” (MIAILLE, 1994, p. 95).
A norma não possui como qualidade intrínseca a obrigatoriedade e a imperatividade,
pois tais características estão associadas à relação social expressa por ela. Então, assim como
“a mercadoria não cria valor, mas o realiza no momento da troca, a norma jurídica não cria
verdadeiramente a obrigação: realiza-a no momento das trocas sociais” (MIAILLE, 1994, p.
95).

5. A DEFINIÇÃO DE UMA INSTÂNCIA JURÍDICA

Para o autor a instância jurídica é um sistema de comunicação composto a partir de


normas para criar uma unidade, isto é, um sistema de produção e de trocas econômicas e
sociais determinadas.
A instância jurídica se apresenta então como um sistema de comunicação articulado
em três níveis: ideológico, institucional e prático. O aspecto ideológico se dá através das
práticas dos juristas em tentar qualificar tudo que circunda a sociedade (fenômenos,
instituições…). Isso é um processo que intui colocar o direito no centro e isolá-lo de todas as

1025
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

outras formas de conhecimento, pois essas são vistas através das definições hegemônicas
impostas pelo próprio direito. Assim, cria-se uma ideologia particular do direito que é sempre
utilizada para embasar as técnicas deste. Essa ideologia também é denominada de forma
distinta pelos juristas, deuses criadores do direito, afigurando-se como fundamentos do
direito.
Noutro giro, o aspecto ideológico do direito é revestido pelo sentimento de justiça e
de segurança. A justiça está entrelaçada à concepção de dar a cada um o que lhe é de direito,
um tanto quanto genérica tal premissa. Além do mais a partir dela pode-se concluir que há um
incentivo às lutas (os trabalhadores se rebelariam por seus direitos laborais, as trabalhadoras
pela equiparação salarial em relação aos homens...) daí surge a importância do outro
sentimento: a segurança. A segurança apresenta-se como ordem, bons costumes, interesse
geral sendo corolário da justiça e como forma de despertar um sentimento que reforça a ideia
da real existência da justiça.
Miaille ao tecer comentários sobre a justiça e a segurança faz uma crítica no sentido
de que estamos inseridos em um sistema jurídico marcado por uma ideologia jurídica que no
campo universitário leva a discussões acaloradas e abstratas e que propõe mudanças que são
distantes dos fundamentos reais das instituições jurídicas, ou seja, um tanto quanto supérfluas.
Por isso o direito é visto como um sistema de comunicação em melhoramento, pois é através
dele que a ideologia jurídica se consubstancia. Há um aperfeiçoamento constante do
vocabulário, por exemplo, pois o que se pretende é “integrar fenômenos novos a esquemas
antigos” (MIAILLE, 1994, p. 98).
Por outro lado, o campo institucional é caracterizado pelo conjunto de técnicas e
métodos que permitem a concretização da ideologia jurídica. As instituições seriam um
conjunto de normas jurídicas que engloba várias relações sociais que se assemelham por
exercerem a mesma função, e podem ser tanto um aparelho quanto uma organização
(Administração, justiça, universidade dentre outras). Nessas instituições o conhecimento é
marcado com princípio e ideias sem valor explicativo, como o autor defende, não passam de
meras representações.
A ciência jurídica tem o poder da dominação sobre a organização social e associa a
isso a expressão ordem jurídica ou ordenamento jurídico, que nós, bacharéis de direito,
aprendemos ser a mais complexa estrutura jurídica que abarca e possui soluções para todos os
eventos da sociedade. Na verdade, o ordenamento jurídico é apresentado nos cursos de direito

1026
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

como a máxima da ciência jurídica, estruturando-se de forma hierarquizada e coerente, muito


embora não se isente de lacunas.
Quanto à prática jurídica é ela que dá forma às ideologias jurídicas formuladas pelas
instituições. A prática jurídica está compreendida dentro da prática social e esta, por sua vez, é
um “conceito que designa os modos de transformação que sofrem certas relações sociais em
condições históricas determinadas, no seio e em relação com um dado modo de produção”
(MIAILLE, 1994, p.101). As práticas jurídicas são um raciocínio do direito que advém de
algum tipo de transformação que se dá na esfera jurídica devido ao conjunto de leis que
estabelecem que determinado acontecimento se concretizou no mundo do direito.
O exemplo mais clássico e apontado pelo autor é o do vaso de plantas. Imagine que
você reside em um apartamento e possui em sua casa um vaso de plantas que fica no
parapeito da sua residência. Certo dia o vaso se desequilibra e cai na rua, nada de
extraordinário até então. Não há a incidência de nenhum fato jurídico. Imagine, contudo, que
no instante que o caso cai na rua uma pessoa está passando e é atingida na cabeça pelo vaso.
Como ocorreu uma lesão à integridade física de uma pessoa, há a concretização de um fato
jurídico que através de práticas jurídicas próprias é judicializado e externalizado através de
danos físicos e morais. Assim, todos os eventos sociais, desde os mais banais, são passiveis de
se tornarem eventos jurídicos, de modo que o direito - longe de ser um fenômeno meramente
estatal e formal - atravessa e colabora para constituição das relações sociais no seu conjunto.

6. ANÁLISE PRÁTICA DA CIÊNCIA JURÍDICA SOB UMA PERSPECTIVA


CRÍTICA

O autor faz uma reflexão de que para compreensão do direito é necessária uma
análise da própria sociedade, ou seja, “que tipo de direito produz tal tipo de sociedade e
porque é que esse direito corresponde a essa sociedade” (MIAILLE, 1994, p.68), isto é, uma
perspectiva crítica do direito que se distancia do senso comum tão reproduzido pela visão
tecnicista presente nas faculdades e nas instituições de ensino de um modo geral.
Trago para o debate as percepções de Marilena Chauí, que compartilha do mesmo
entendimento de Miaille ao afirmar que o ensino reproduz uma visão tecnocrata, que não
aguça o senso crítico, mas reitera a hegemonia de certas práticas, que não encontram
correspondência na realidade social.

1027
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Uma forma de rompimento e de levante contra um ensino tecnicista (Marilena


Chauí utiliza o termo tecnocrata) e que fez surgir um espírito de coletividade além do debate
de ideias e a luta por conquistas de direitos foram as ocupações das escolas públicas, em
2015-2016, que chamaram a atenção da sociedade e dos governos para os problemas da
educação pública em diversas frentes – desde as condições básicas de funcionamento às
propostas curriculares e pedagógicas. A partir desse diálogo promoveu-se um verdadeiro
estudo das ciências jurídicas, pois se promovia um debate sobre as normas propostas pelo
governo que não correspondiam aos anseios sociais. Promovendo um questionamento de que
norma tem que ser a medida para a regulação da vida em sociedade e não uma sanção
repressiva que se impõe sem qualquer diálogo com aqueles que terão suas vidas alteradas por
elas. Como ensinou Miaille, as normas se concretizam assim como a circulação das
mercadorias: ignorando as relações sociais que as originam e coisificando a sua prática.
Alunos do ensino médio das mais diversas escolas, e em distintos estados, em
destaque o estado de São Paulo e Rio de Janeiro no ano de 2015-2016 se mobilizaram para
reivindicar as mudanças políticas e a proposta de reestruturação do Ensino Médio. Só no
estado de São Paulo, 190 (cento e noventa) escolas foram ocupadas (ESTADÃO, 2015)1. As
reivindicações possuíam pontos em comum, como manifestação contra a PEC 241
(congelamentos dos gastos em educação por vinte anos), a Medida Provisória 746/2016
(reforma curricular do ensino médio), com o Projeto de Lei 867/2015 (escolas sem partidos).
Além de reivindicações pontuais, como planejamento dos currículos escolares com
participação democrática da comunidade escolar, maior participação de toda comunidade
escolar nas mudanças a serem instauradas na área da educação, reavaliação do corte de verbas
das instituições públicas, entre outras2.
Ali se promoveu um estudo crítico sobre a ciência jurídica, tão defendido por
Miaille, ou seja, um direito que se insira como parte de um todo que é composto pelos
fenômenos sociais (no caso das ocupações estávamos diante um cenário de reformas, de
cortes de verbas públicas na educação e saúde e de uma proposta de ensino médio
consubstanciados por normas que não traduziam as manifestações da sociedade) influenciado
e modificado ao longo da história (tal influência era o objetivo principal dos estudantes) que

1
Disponível em http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,invasoes-em-escolas-recriam-movimento-
estudantil,10000003261. Acesso em 28/07/2016.
2 Essas reivindicações foram feitas pelos alunos do colégio Pedro II na cidade do Rio de Janeiro, e divulgadas nas
redes sociais. Disponível em: <https//m.facebook.com/ocuparCP2real/?locale=pt_BR>. Acesso em 28/07/2017.

1028
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

tenha uma experiência amparada por conceitos teóricos e um empirismo real. Nas palavras de
Roberto Lyra Filho (1981), o que os estudantes promoveram foi uma manifestação para que
houvesse um “direito vivo, isto é, o direito que não se deixa matar pela dogmática e
embalsamar nas urnas da velho jurisprudência nunca esteve tão forte, prestante e reclamado
como agora” (FILHO, 1981, p. 7).
Os alunos pleiteavam o reconhecimento de seus direitos e a participação deles nas
tomadas de decisão. O que faz questionar se não seria a função da educação a integração dos
alunos no debate, o fomento e construção do senso crítico. Como defende Marilena Chauí, em
Ideologia e Educação (1979) a educação deveria ser “um instrumento de conhecimento e de
transformação do real, graças à sua compreensão crítica”. Vejamos:

Em geral, costuma-se opor educação como formação e educação como informação,


oposição que reaparece quando se distinguem aprendizagem e treinamento,
conscientização e pragmatismo, espírito crítico e autômatos. Aqueles que
privilegiam o polo formação/aprendizagem/conscientização têm a esperança de que
a educação possa ser um instrumento de conhecimento e de transformação do real,
graças à sua compreensão crítica. Não podemos também ignorar o fato de que tais
oposições implicam uma outra, qual seja, entre uma visão humanista e uma visão
tecnocrática da educação (CHAUÍ, 1979, p.5).

As ocupações são a nova configuração das mobilizações sociais. Estudantes se


organizaram para debater assuntos políticos, econômicos, educacionais. Através de uma
estrutura pautada na solidariedade, e uma reorganização do sistema de ensino com a
promoção de oficinas, debates, encontros, palestras, momentos de troca de conhecimento sob
uma perspectiva coletiva, em que o ideal de comunidade prevalecia. Organizaram-se para
debater, votar, limpar, promover eventos, divulgar suas reivindicações. Fizeram com que nas
escolas, como defende Chauí (1979) houvesse a prevalência de uma visão humanista frente a
uma visão tecnocrática arraigada na educação.
Os alunos do Colégio Pedro II, em dezembro de 2016, ao desocuparem as escolas
elucidaram a importância do convívio coletivo, a redescoberta da democracia, a formação
cidadã e a necessidade da luta. Ou seja, promoveram um estudo crítico do direito, ao debater
as normas que contrariavam as concepções de escola e ensino que comungavam, ao elucidar
o conceito de democracia, justiça, lutas sociais e da necessidade da interdisciplinaridade
dentro das instituições de ensino.
Para melhor ilustrar a importância das ocupações das escolas públicas na construção
crítica do que é o direito e como este é desenvolvido a partir de reivindicações e lutas,

1029
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

apresento o relato dos próprios estudante que em uma rede social com a denominação “Ocupa
CPII Real” (2016) assim descreveram o que significaram as ocupações:

[...] Democracia, um conceito perdido em breves definições didáticas, foi


redescoberto. Em um período de rápidas reações virtuais, estar fisicamente, em
comunidade nos despertou para o outro, nos ofereceu uma formação cidadã que o
anterior modelo pedagógico nunca pôde. Nossa autogestão permitiu a prática de um
projeto de mundo horizontal e sem injustiças, cujo qual pensávamos ser
impraticável até então. Neste convívio de 63 dias, pudemos viver e experimentar o
que matérias como filosofia, sociologia, artes, educação física já se propunham em
meio as lutas pedagógicas. Mesmo com ameaças e pressões externas, o movimento
esteve firme e convicto de sua importância perante todos os desmontes que o estado
brasileiro vem sofrendo. Desmontes estes que afetam áreas básicas e fundamentais
como saúde e educação. Hoje, desocupamos fisicamente o espaço escolar para
seguirmos ocupando-o ideologicamente, com nossa herança negra e periférica
exibida orgulhosamente. A luta, por sua vez, não termina aqui. A ocupação teve seu
início e o fim não contempla agora3.

E diante esse relato, encerramos nosso estudo que buscou realizar uma análise
crítica do direito a partir da teoria de Michel Miaille com o objetivo de demonstrar o ensino
deficitário nas instituições de ensino que promove um estudo superficial do direito a partir de
técnicas do senso comum dos juristas. Por outro lado, demonstramos alternativas
antissistêmicas, ou melhor, “fora da caixinha” que derrubam obstáculos epistemológicos e
realizam uma análise crítica do direito que juristas e os manuais de direito não comportam. As
ocupações das escolas públicas, como manifestação contra-hegemônica aos ditames da
normatização estatal, nos parece um caso exemplar de uma concepção de direito que faz a
sociedade, na medida em que é feito por esta, como lembra Pierre Bourdieu (2010). Nesse
passo, como uma instância de um todo complexo com dominante no dizer de Miaille (1994),
o direito se expressa e se constitui em contradição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O autor propõe um estudo científico do direito que se afaste de um empirismo, que


se apresenta como realista quando não o é e de um idealismo tradicional que é uma
representação de pensamentos, isto é, meramente ideológico. Reforça a ideia de um objeto de
estudo, a partir do qual o direito não se isole e que não se projete no centro, mas que haja uma
projeção dele no interior de uma formação social, abandonando, assim, conceituações
hegemônicas e universalizantes e criando conceitos historicamente determinados. Tais

3
Disponível em: <https//m.facebook.com/ocuparCP2real/?locale=pt_BR. Acesso em 28/07/2017>.

1030
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

mudanças permitirão que o mundo do direito tenha seu funcionamento e sua existência sendo
estudados de uma maneira explicativas e não mais apenas como mera representação da
sociedade a partir do pensamento de juristas que entendem que suas ideologias são expressões
máximas sobre a realidade.
Podemos concluir que se faz necessário um direito inserido como parte de um todo
que é composto pelos fenômenos sociais, influenciado e modificado ao longo da história, que
tenha uma experiência que coadune os conceitos teóricos com a empiria advinda de uma
formação social, sendo esta consubstanciada pelas mobilizações sociais que os estudantes de
escolas públicas promoveram durante as ocupações.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BOURDIEU, P.O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

CHAUI, Marilena. Ideologia e educação. Campinas: Faculdade de Educação Estadual de Campinas: 1979.

FILHO, Roberto Lyra. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília: Editora Obreira, 1981.

MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editora Estampa, 1994.

1031
PARA ALÉM DAS AULAS EXPOSITIVAS:
UM REPENSAR DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DO
PROTAGONISMO DOS DISCENTES

FERREIRA, Oswaldo Moreira


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Norte Fluminense.
Professor da Faculdade Metropolitana São Carlos – campus Bom Jesus do Itabapoana-RJ.
GOMES, Luciane Mara Correa
Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Ciências Jurídicas e
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora no Centro Universitário Augusto
Motta e Faculdade Mercúrio.
RANGEL, Tauã Lima Verdan
Bolsista CAPES. Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo PPGSD-UFF (2013-2015).
Especialista em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro
Universitário São Camilo-ES (2014-2015).

RESUMO

O presente tem por objetivo examinar a experiência de métodos de ensinagem empregados nas
disciplinas ministradas e que auxiliaram no rompimento da tradicional aula expositiva, conferindo aos
discentes, em uma nova perspectiva, maior autonomia na construção do conhecimento jurídico.
Tradicionalmente, o processo de ensino-aprendizagem jurídico tem suas bases assentadas em aulas
meramente expositivas, pautada na premissa de que o docente é detentor do conhecimento e o discente
apenas um receptáculo vazio a ser preenchido pelo conteúdo ministrado. Comumente, a construção do
conhecimento jurídico dá-se com o simples entendimento e memorização de conteúdo, sem que haja a
submersão do discente na (des)construção das bases epistemológicas do conhecimento, limitando-se,
portanto, a reproduzir o que lhe fora ensinado. Contudo, pesquisas apontam que este modelo está
superado, sendo, para tanto, imprescindível o repensar do processo de ensino-aprendizagem jurídico,
notadamente no que toca ao fortalecimento de metodologias ativas que confiram protagonismo ao
discente nos cursos de Direito. O método utilizado é o hipotético-dedutivo, valendo-se de revisões
bibliográficas e estudo de caso das turmas em que a metodologia ativa foi empregada. As conclusões
parciais alcançadas apontam que o empoderamento dos discentes na condução do processo de ensino-
aprendizagem é de preponderante importância para conferir autonomia na apreensão do conteúdo
proposto e, destarte, efetivar caminhos para o processo de emancipação crítica.

Palavras-Chave. Ensino Jurídico; Emancipação Intelectual; Protagonismo Discente.

ABSTRACT

This aims to examine the experience of teaching and learning methods employed in the subjects taught
and helped in breaking the traditional lecture, giving the students in a new perspective, greater
autonomy in the construction of legal knowledge. Traditionally, the legal teaching-learning process
has its foundations settled in merely lectures, based on the premise that the teacher holds the
knowledge and the student just an empty vessel to be filled by the content taught. Commonly, the
construction of legal knowledge occurs with the simple understanding and memorizing content without

1032
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

submersion of the student in the (de) construction of the epistemological foundations of knowledge,
limited, therefore, to reproduce what taught you off . However, surveys show that this model is
outdated and is, therefore, imperative to rethink legal education-learning process, notably as regards
the strengthening of active methodologies which give prominence to students in law schools. The
method used is the hypothetical-deductive, drawing on literature reviews and case studies of classes in
which the active methodology was employed. The partial conclusions reached indicate that the
empowerment of students in conducting the teaching-learning process is of major importance to
empower the seizure of the proposed content and, Thus, effect paths to the critical emancipation
process.

Keywords. Legal Education; Intellectual Emancipation; Student role.

ENSINO JURÍDICO NO BRASIL: COMENTÁRIOS INTRODUTÓRIOS

Repensar o ensino e a educação no Brasil tornou-se algo imprescindível para que se


concretize a emancipação do conhecimento desde a sua base epistemológica. O paradigma
educacional reclama uma revisão, uma aproximação mais substancial da realidade para
proporcionar, via de consequência, uma formação mais crítica e humanizada. O processo de
ensino-aprendizagem, em especial nos cursos de Direito, ainda é desenvolvido de forma
compartimentada, separada em disciplinas estanques, incapazes de se comunicarem entre si e,
por vezes, alheia a realidade vivenciada. Ao que parece, tal cenário se agrava principalmente
pelo fato de da formação jurídica ainda guardar contornos tradicionais e demasiadamente
formalistas.
Por isso, o Direito ainda forma profissionais herméticos, adeptos ao legalismo 1 e ou
seja, preocupados com o império das leis e um tanto distanciados da realidade social que os
envolve. Tal ensino, não raras vezes, é pautado na concepção acumulativa do conteúdo
ministrado, estabelecida a partir de dois sujeitos: o professor e o aluno; o primeiro narra e o
segundo escuta. Muitas vezes, a narração desenvolvida está limitada a uma simples leitura de
códigos e leis como se a dinâmica advinda da vida social e o Direito neles se encerrassem. A

1
Ao utilizar esta expressão, este trabalho faz uma crítica à reprodução automática de definições e conceitos
legalistas em inobservância com a hermenêutica e com finalidade da norma em alcançar a paz social. Nas palavras
de Nonet e Selznick (2010) “o foco nas normas tende a estreitar o leque de fatos juridicamente relevantes,
separando com isso a reflexão jurídica da realidade social. O resultado é o legalismo, uma predisposição a apoiar-
se inteiramente na autoridade das leis em detrimento da solução de problemas práticos. (...) O legalismo custa
caro, em parte pelas rigidezes que impõe, mas também porque regras interpretadas in abstrato são muito
facilmente satisfeitas por uma observância formal que pode ocultar importantes omissões substantivas em
matérias de política pública.”

1033
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

educação e o ensino jurídico, de forma geral, sofrem com a narração, na qual, uma vez
enunciados, conteúdos se petrificam, permanecendo alheios à realidade.
Neste sentido, Orsini e Silva (2013, p. 13) explica que o ensino jurídico, alicerçado
apenas na sala de aula e que valoriza uma concepção bancária da educação, fomenta uma
formação fundada na realização do depósito, pelo professor, de conteúdo estanques e
compartimentados nos discentes, que se reduzem a meros receptáculos deste conhecimento,
promovendo lacunas no processo de sensibilização social dos discentes e os alienando, por
vezes, do contexto no qual estão inseridos.
“Uma educação pré-fabricada, não adaptada a seu destinatário final, não irá
favorecer a construção de um ensino voltado a despertar nos alunos interesse pelos problemas
sociais, que estão muito além dos conteúdos normativos repassados nas faculdades de direito”
(ORSINI; SILVA, 2013, p. 13). Os docentes, e também os discentes, devem, imperiosamente,
repensar as estruturas do ensino jurídico, de forma a favorecer uma aproximação crítica e
emancipatória da realidade, permitindo, inclusive, sua transformação. Pesquisas apontam,
cada vez mais, que esta concepção de ensino está em crise por não favorecer uma
aproximação com a realidade social além de não permitir o desenvolvimento de uma visão
crítica, autônoma e emancipatória do saber (RODRIGUES, 1992; MORATO, 2001;
FREITAS, 2003; FAGÚNDEZ, 2004; MACHADO, 2006; STRECK, 2006; BITTAR, 2008;
GARCEZ, 2012; FACHIN, 2013)
Em se tratando de educação geral, Freire (1979), em apontamento ainda
contemporâneo, entende que o professor fala da realidade como se esta fosse estagnada, sem
movimento, separada em compartimentos e previsível; ou, ainda, fala de um tema alheio à
experiência existencial dos discentes. Em tal situação, verifica-se que o docente, no processo
de ensino-aprendizagem, desempenha uma tarefa de “encher” os discentes do conteúdo da
narração, conteúdo alheio à realidade, destacado da totalidade que a gerou e poderia conferir
sentido. Santos (2007), ao discorrer acerca dos cursos de Direito, aponta que há uma tentativa
de se eliminar os elementos extranormativos do ensino jurídico, causando indiferença ou
mesmo um não conhecimento das mudanças ocorridas na sociedade e, por consequência, o
distanciamento das preocupações sociais por parte dos operadores do Direito, que se tornam
profissionais descomprometidos com as questões da sociedade. O cenário retratado é mero
reflexo de um Direito formalista e burocrático, e de um ensino desvinculado da extensão e da
pesquisa, instrumentos aptos a permitir uma aproximação da instituição de ensino e dos

1034
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

discentes com a comunidade, seus problemas, e sua realidade, além de também promover a
possibilidade de atuação construtiva e transformadora, não inerte e não conformada.
Assim, em consonância com Duarte (2003), Colaço (2006), Machado (2006),
Fachin (2013) e Orsini e Silva (2013), apenas com o fomento de um ensino jurídico
preocupado em associar teoria e prática, doutrina e realidade, é que será viável a formação de
operadores do Direito conscientes do papel que devem desempenhar como dos problemas
sociais, que certamente vindicarão a intervenção de um profissional preparado e
contextualizado, não alheio ao que se passa no meio social. Há que reconhecer que, para a
materialização do protagonismo discente, no processo de ensino-aprendizagem, o modelo
tradicional estruturado, pautado em aula expositiva, requer uma reestruturação.

1 A DIDÁTICA NA CONTEMPORANEIDADE: O PROCESSO DE ENSINO-


APRENDIZAGEM COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO

À luz das ponderações supracitadas, cuida reconhecer que o processo de ensino-


aprendizagem reclama o desenvolvimento de didática fulcrada na prática, compatível com o
conteúdo a ser ministrado. No Brasil, o senso comum entende que didática é a simples
reunião das disciplinas básicas da educação na composição dos processos de “ensino-
aprendizagem” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2000). Por outro lado, a didática pode ser
entendida como o processo peculiar apto a permitir a transformação do pensamento, das
atitudes e do comportamento dos discentes, quando se estreita com a realidade cotidiana
Gómez (2000). Destarte, um “docente com didática” é descrito como um profissional que
sabe substancializar e adjetivar os processos de ensino e aprendizagem para possibilitar ao
discente a experimentação de sua realidade de forma diferenciada, conferindo-lhe autonomia
e emancipação intelectual.
Para Gil (2009b), em termos educacionais, a aprendizagem é a aquisição de
conhecimento e o desenvolvimento de habilidades e atitudes em decorrência de experiências
educativas vivenciadas, ou seja, o processo de aprendizagem viabiliza modificações
específicas das capacidades, que não são atribuídas ao conhecimento adquirido com mero
processo do amadurecimento. O processo de aprendizagem é bastante complexo e, por
conseguinte, desafia a reflexão e implementação de diversas metodologias de ensino. Na
perspectiva contemporânea, a ênfase do processo de aprendizagem deixou de ser o ensino; o

1035
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

professor deixou de ser o principal responsável pelos resultados obtidos e os discentes


deixaram de ser vistos com passividade (MACHADO, 2006). “O foco principal, na
perspectiva contemporânea, está na aprendizagem – o papel do professor é ajudar a aprender.
Para tanto, é preciso que o professor adote uma postura técnica em relação ao processo de
aprendizagem”. (CÂMARA; MURARO, 2012, p. 08).
Nesse mote, é imprescindível que o docente reconheça e valorize a diversidade, as
diferenças individuais, podendo fazer uso de informações prévias e avaliação diagnóstica,
objetivando identificar as particularidades discentes e os interesses compartilhados pela
turma. Além disso, visando manter a atenção dos discentes em um momento tão tecnológico,
além de dominar o conteúdo de modo teórico e prático, “deve utilizar recursos auxiliares de
ensino diversificados, deve provocar a participação dos alunos com perguntas simples e deve
estimular reação dos alunos (favorecer anotações, intervenções, depoimentos pessoais dos
alunos e ampliação de ideias)” (CÂMARA; MURARO, 2012, p. 08).
Todavia, o problema repousa no emprego constante e equivocado da aula
expositiva., e em que pese a pertinência das críticas, há que se reconhecer, porém, que a aula
expositiva materializa estratégia adequada em situações específicas, dependendo, obviamente,
do objetivo estabelecido para determinado momento do processo de ensino-aprendizagem
(GIL, 2009b; SANTOS, 2010; OLIVEIRA 2016). Em linhas gerais, Haydt (1994) esclarece
as concepções dos objetivos na área da educação, que se materializam por meio da descrição
do que se pretende alcançar como resultado da atuação pedagógica do docente. Os objetivos
gerais são aqueles cuja extensão é prevista a longo prazo, geralmente advindo de um
determinado ciclo ou área de estudos. Por seu turno, os objetivos específicos são aqueles
definidos para uma disciplina, unidade de ensino ou aula e que operacionalizam os objetivos
gerais, norteando, de forma mais direta, o processo de ensino-aprendizagem. Com destaque, a
definição de objetivos específicos auxilia o docente a utilizar de estratégias para colaborar na
construção de conhecimentos, conceitos, competências e habilidades, além de identificar a
metodologia mais adequada a ser empregada, considerando a natureza do conteúdo, as
características dos discentes, bem como as condições físicas e o tempo disponível.

1036
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

2 A BANALIZAÇÃO DA AULA EXPOSITIVA NO ENSINO JURÍDICO: A


CONFLUÊNCIA ENTRE O DESPREPARO DOS DOCENTES E O ASPECTO
MERAMENTE PROFISSIONALIZANTE DO DIREITO

Conforme expresso alhures, tradicionalmente, a aula expositiva é a estratégia mais


empregada no ensino superior, consistindo, segundo Gil (2009a, p. 133), na “preleção verbal
utilizada pelos professores com o objetivo de transmitir conhecimento” acerca de um tema de
maneira lógica. Trata-se do método mais antigo e o mais utilizado por ser mais facilmente
adequado a classes numerosas. Ao lado disso, é caracterizado por ser flexível, ou seja, pode
ser adaptado, em tempo real, aos mais diversos públicos. (CÂMARA; MURARO, 2012, p.
15). Entretanto, as aulas expositivas enfatizam o conteúdo e não garantem o efetivo
aprendizado:

(...) muitas vezes são atribuídas a especialistas no respectivo campo de


conhecimento que não dispõem de maiores habilidades pedagógicas. Este fator é
muito crítico porque simplesmente “dar aulas” não garante o efetivo aprendizado.
A aula expositiva somente é eficiente quando bem planejada e executada mediante
princípios e técnicas de ensino, o que significa que a aula expositiva pode ser
considerada estratégia tão ou mais difícil de ser implementada quando as
discussões, demonstrações e dramatizações (GIL, 2009a, p. 134-135).

Na seara do Direito, a utilização de aulas expositivas levou em consideração de que


para se montar uma Faculdade ou Curso de Direito basta apenas o quadro-negro e giz
(CÂMARA; MURARO, 2012). Há que se reconhecer que tal concepção prosperou,
porquanto o emprego de outros métodos, corriqueiramente, é obstado pela necessidade, além
de investimentos por parte da instituição, de maior esforço por parte dos docentes e discentes,
reclamando maior entrega, organização, planejamento e dedicação ao Curso de Direito. Isto é,
a aula expositiva materializa a mera reprodução de informação, sem proporcionar um
aprendizado para o discente ou mesmo despertar-lhe continuamente o interesse pelo tema. As
ministrações, comumente, em sede de aulas expositivas, partem da iconografia que o discente
é um receptáculo a ser preenchido de conteúdo, independente se esse é, ou não, apreendido no
processo de ensino-aprendizagem (ORSINI & SILVA, 2013).
A utilização acrítica e exclusiva da aula expositiva, dentre outros fatores,
potencializou a crise no ensino jurídico (RODRIGUES, 1992; MORATO, 2001; FREITAS,
2003; FAGÚNDEZ, 2004; STRECK, 2006; BITTAR, 2008; GARCEZ, 2012; FACHIN,
2013; MACHADO, 2016). Trata-se de consequência danosa na formação dos juristas que

1037
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

implica em falhas na visão crítica, na autonomia e na emancipação intelectual. Além disso, os


referidos profissionais, tornam-se meros repetidores do legalismo observado por Nonet e
Selznick (2010). Neste sentido, as ponderações de Fachin (2005) corroboram ao criticar o
modelo de aula ministrada com o método da indiferença utilizado pela “velha aula-douta
Coimbra”2:

O fosso entre a realidade do ensino jurídico atual e o que ela deveria ser são um dos
múltiplos fatores, ao lado de aspectos econômicos, políticos e sociais, que tem
contribuído para a “crise do ensino jurídico” (...). Quem percorre os programas de
ensino de nossas escolas, e sobretudo quem ouve as aulas que nelas se proferem,
sob a forma elegante e indiferente da velha aula-douta Coimbra, vê que o objetivo
atual do ensino jurídico é proporcionar aos estudantes o conhecimento descritivo e
sistemático das instituições e normas jurídicas. Poderíamos dizer que o curso
jurídico é, sem exagero, um curso de institutos jurídicos apresentados sob a forma
expositiva de tratado teórico-prático (FACHIN, 2005, p. 56-57).

Grande parte das vezes, a aula expositiva é a única alternativa do docente, seja em
decorrência da falta de preparo técnico do docente, seja pelo número elevado número de
discentes nas turmas, seja por falta de condições materiais nas instituições de ensino ou por
exigência das coordenações dos cursos que optam pela manutenção do caráter
exclusivamente profissionalizante/mercadológico do curso. Segundo Lima (2005), a
sociedade impõe aos cursos de Direito novas realidades, nada obstando que os docentes se
desenvolvam, concomitantemente, em uma consistente formação humanística, reflexiva e
crítica, tal como uma sólida formação profissionalizante. Mais que isso, há que anotar que as
formações mencionadas elas não são incompatíveis ou excludentes; ao reverso, são
complementares e trazem grandes contribuições para a missão formativa que deve orientar os
cursos superiores.

3 A SUPERAÇÃO DA TRADICIONAL AULA EXPOSITIVA DOGMÁTICA: A


EDIFICAÇÃO DE AULA DIALOGADA COMO INSTRUMENTO DE
EMANCIPAÇÃO CRÍTICA DOS DISCENTES DO CURSO DE DIREITO

No campo do Direito, o principal cuidado a ser observado, no que toca à utilização


do método, repousa na compreensão de que existem dois modelos antagônicos de aula

2
Um trabalho interessante acerca da história do ensino jurídico brasileiro a partir dos preceitos elencados pela
Universidade de Coimbra/Portugal está presente no trabalho elaborado por RODRIGUES (2000) e WOLKMER
(2003).

1038
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

expositiva, a saber: a exposição pode ser dogmática e, nesse cenário, a mensagem emitida
pelo docente deve ser aceita pelo discente, sem contestação e para ser repetida de maneira
automática por ocasião das avaliações, ou a exposição pode ser aberta e dialogada, sendo que,
nessa situação, o discurso apresentado pelo docente servirá como ponto de apoio para
desencadear a participação dos discentes. (WACHOWICZ, 2001)
Em sede de ensino jurídico, os maiores inconvenientes das aulas expositivas advêm
das exposições meramente dogmáticas, nas quais as mensagens transmitidas não comportam
contestação e são aceitas como verdades absolutas. Assim, a exposição dogmática é aquela
alocada no modelo clássico do ensino bancário (ORSINI & SILVA, 2013), caracterizada pela
docilidade do discente. Por seu turno, a aula dialogada é aquela inserta no contexto
contemporâneo da moderna ciência da comunicação, na qual o processo de comunicação está
vinculado a habilidades na transmissão e com as características da mensagem, com a
conveniência do canal de veiculação e com a disposição do receptor (DUARTE 2003;
MACHADO, 2006; GHIRARDI, 2012).
Na aula dialogada, docentes e discentes são partes integrantes de um processo de
comunicação. Obviamente, isso requer dos professores múltiplos cuidados, conforme
obtempera Gil (2009b), porquanto o professor, na aula expositiva, é a fonte das informações.
Logo, o docente deve cuidar da clareza dos seus objetivos, de maneira que os alunos
compreendam. Ademais, como fonte de informação, os docentes devem cuidar da
organização de ideias, do tom, da altura e do ritmo da voz.
Defensores de uma metodologia dialogada, Câmara & Muraro (2012, p. 18)
expõem, “a mensagem emitida pelo professor deve ser adequada à necessidade e
características dos alunos; deve ser clara e concisa; os tópicos devem ser planejados
considerando uma sequência lógica; a mensagem deve ter um ´colorido emocional´ com a
inclusão de momentos bem humorados e de fatos pitorescos”. A mensagem deve propor
situações problematizadas e apresentar ideias de forma diversa para escapar da monotonia,
evitando a tentação de expor o tempo todo e apresentar um conteúdo engessado e dogmático.
Há que se reconhecer que o diálogo ganha importância, porquanto permite a
liberdade de expressão, ao conceder aos participantes, docente e discentes, no processo de
ensino-aprendizagem o controle da ação. É o que se aproxima dos estudos denominados “sala
de aula invertida” propostos por Oliveira (2016). Segundo Martínez (2005), não há como
questionar sem diálogo, porquanto monólogo significa imposição do conhecimento. Mais que

1039
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

isso, dialogar significa expor-se em público, combate a imposição de conteúdo e ajustar, a


partir de um viés coletivo, a compreensão dialética do conhecimento problematizado, por
novas trilhas de esclarecimento.
Em sede de ensino jurídico, dialogar é viável e necessário. Discutir teses
doutrinárias, enfrentar jurisprudências conflitantes, questionar leis com base em princípios
constitucionais e humanitários, sugerir, inquietar e apresentar novas abordagens é algo
acessível ao professor do Direito. Não se trata de o próprio docente apresentar
questionamentos e sua solução, mas sim permitir ao discente, individualmente ou em grupo,
buscar a resolução do conflito, edificando criativamente soluções. Para que a aula expositiva
dialogada alcance tal escopo, é ofuscante a necessidade de dedicação do docente, no que
concerne ao prévio planejamento, bem como a apreensão de um conhecimento prévio, com o
fito de auxiliar na compreensão dos discentes daquilo que será transmitido e sua
aplicabilidade no mundo concreto.

A mudança para a ação docente dialógica está na adoção do lema cooperação em


sala de aula, na qual o professor deixa o seu papel de propagandista de regras
jurídicas e passa a desempenhar, lado a lado com seus alunos, uma parceria
transformadora da sociedade, na revisão do sentido de suas regras. Nesse processo,
a interação (cooperação) entre professor e alunos é fundamental para o
desenvolvimento das atividades de ensino dialógicas. Se, na abordagem tradicional
ou "educação bancária", o professor se coloca em um pedestal de autoridade,
afastando-se do contado direto com os alunos, na pedagógica crítica esse contato
não pode mais ser evitado. (MARTÍNEZ, 2005, p. 04).

Com a modificação, o docente dialógico passa acompanhar o desenvolvimento da


histórica educacional dos discentes. É, justamente, em tal ponto que aflora o rompimento com
a tradicional escola jurídica, das aulas magistrais ou expositivas. O surgimento do processo
pedagógico dialógico, senão novo, ao menos ganha contornos mais democráticos, no qual o
docente não é apenas o operador do Direito, mas também educador de fato, fomentando a
formação de profissionais autônomos, críticos e empoderados, capazes de analisarem
situações concretas, a partir do conhecimento teórico ministrado e apresentar possíveis
soluções. Rompe o paradigma de respostas prontas, engessadas e pré-fabricadas, favorecendo,
doutro ângulo, o protagonismo dos discentes na construção do conhecimento. Incumbe, nesse
cenário, ao docente garantir aos alunos o máximo de acesso eficaz e crítico ao conhecimento
proposto no conteúdo programático, alicerçado na realidade existencial do grupo e nos pontos
fortes individualizados. Outra ação dialógica a ser adotada está assentada na organização

1040
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

profissional da atividade pedagógica, o que se inicia pela preparação do conteúdo


programático a ser ministrado no ano, semestre, bimestre, mês, aula e se finda com o feedback
reprogramático das avaliações realizadas. Em um processo cíclico de auto e
heteroconhecimento, obtido por meio de avaliações, que sejam capazes de orientar o docente
a conhecer as aptidões de seus discentes.
Com destaque, o início da ação dialógica organizadora ocorre antes do contato entre
o docente e o discente e depende, diretamente, da escolha de opções para o conteúdo
programático, a serem debatidas pelos discentes, conferindo-lhes protagonismo no processo
de ensino-aprendizagem. Opções de conteúdo que não devem só permitir aos alunos pensar
criticamente sobre o estudo no semestre ou ano letivo, mas também estar de acordo com sua
percepção da realidade, estabelecendo, portanto, claros contornos a visão crítica sobre a
realidade. Isto é, eleger um conteúdo programático sob a forma de uma pedagogia crítica
requer a dialogicidade da dialogicidade, na construção cooperativa dos conteúdos a serem
objeto de futuro diálogo em sala de aula. Neste ponto, como observa Martínez (2005, p. 04),
“um exemplo bem sucedido de investigação para a elaboração de um conteúdo programático
seria aquele que leva em consideração, por meio de questionários, entrevistas e dissertações, a
realidade daquele determinado grupo de alunos, focando a aprendizagem em tópicos
correlacionados com aquela base vivencial em que estão situados”.

4 AS METODOLOGIAS ATIVAS E O EMPREGO DA PROBLEMATIZAÇÃO


COM ESTRATÉGIA DE FORTALECIMENTO DO PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZAGEM

Por todo o exposto, pode-se entender que, as metodologias ativas empregam a


problematização como estratégia do processo de ensino-aprendizagem, com o escopo de
alcançar e motivar o discente, pois, diante do problema, ele se detém, examina, reflete,
relaciona a história e passa a ressignificar as descobertas, ou seja este método cuida da real
participação dos discentes, “invertendo a sala de aula” como preconiza Oliveira (2016).
Ademais, problematização pode levar o discente ao contato com as informações e à produção
epistemológica do conhecimento, notadamente com a finalidade de solucionar os impasses e
promover o seu próprio desenvolvimento, fortalecendo o ideário de protagonistas.

1041
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O comprometimento do discente em relação a novas aprendizagens, pela


compreensão, pela escolha e pelo interesse, substancializa condição essencial para ampliar
suas possibilidades de exercitar a liberdade e a autonomia no processo de tomada de decisões
em diferentes momentos do processo que vivencia, preparando-se para o exercício
profissional futuro. Para tanto, deverá contar com uma postura pedagógica de seus docentes
com características diferencias daquelas de controle. Desta feita, como Berbel (2011, p. 30)
aponta, “educar para a autonomia significa também, consequentemente, um ato político e para
o campo de formação profissional e ou formação de professores, um ato político pedagógico”.
Em tom uníssono, reconhece-se que são muitas as possibilidades de metodologias
ativas, com potencial de levar os discentes a aprendizagens para a autonomia,
desenvolvimento de visão crítica e emancipação intelectual. A título de exemplificação, é
possível fazer menção ao estudo de caso, comumente empregado no curso de Direito.
(BERBEL, 2011), em que o discente é provocado a analisar problemas e construir decisões a
partir da conjunção dos dados informados no caso simulado e o conhecimento teórico
ministrado. Os grupos expõem as conclusões para a classe e ao final são promovidos debates.
“O estudo de caso é recomendado para possibilitar aos alunos um contato com situações que
podem ser encontradas na profissão e habituá-los a analisá-las em seus diferentes ângulos
antes de tomar uma decisão” (BERBEL, 2011, p. 31). O processo do incidente é uma
variação do estudo de caso e sua caracterização, como aponta Gil, se dá:

O professor apresenta à classe uma ocorrência ou incidente de forma resumida, sem


oferecer maiores detalhes. A seguir, coloca-se à disposição dos alunos para
fornecer-lhes os esclarecimentos que desejarem. Finda a sessão de perguntas, a
classe é subdividida em pequenos grupos e os alunos passam a estudar a situação,
em busca de explicações ou soluções (GIL, 2009b, p. 84).

Há que reconhecer que esta técnica serve para alertar os discentes sobre a
necessidade de maior número de informações quando se quer analisar fatos não presenciados.
Doutro lado, requer mais preparo do professor, tal como os materiais relacionados. Com o
emprego do processo do incidente algumas vezes pelo professor, é possível que os discentes
sejam orientados ou convidados a preparar situações para desenvolvê-lo em sala com seus
colegas, sob a supervisão do docente. “Desse modo, a criatividade e a responsabilidade são
estimuladas e valorizadas, podendo resultar no desenvolvimento de graus de envolvimento,
de iniciativa, autoconfiança, ingredientes importantes para a autonomia” (BERBEL, 2011, p.
31). Supera-se, assim, a visão engessada de conteúdos compartimentados e independentes no

1042
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ensino jurídico, os quais não usufruem de um liame vinculativo e de uma confluência de


abordagem.
Ora, em ambas as exemplificações apresentadas, verifica-se que o escopo da
metodologia ativa, conjugada com uma visão dialogada da abordagem dos conteúdos,
superando a tradicional visão da aula expositiva dogmática, substancializa importante marco
na formação dos profissionais do Direito, porquanto confere protagonismo dos discentes na
explanação e apreensão do conteúdo teórico e sua vinculação com os fatos sociais,
permitindo, por extensão, a valoração de uma postura autônoma, crítica e emancipatória.

COMENTÁRIOS FINAIS

O Direito sofre um significativo revés em relação às demais áreas das ciências


humanas e sociais, notadamente no que atina ao fomento de um processo de ensino-
aprendizagem que confira autonomia a seus discentes. Logo, contemporâneos métodos de
aprendizagem devem ser repensados, sobretudo em prol da superação da tradicional
dogmática jurídica e com vistas à promoção de um pensamento crítico-reflexivo nos cursos
de Direito, em especial com foco na produção de pesquisas científicas mais complexas e
aproximadas dos fenômenos sociais, trazendo, dessa maneira, relevantes benefícios para a
área, permitindo uma emancipação intelectual dos discentes, na medida em que confere maior
visão crítica sobre os fatos sociais.
Contudo, para que seja viabilizada uma reforma do ensino jurídico há a
imprescindibilidade de uma mudança na mentalidade dos docentes e discentes na trilha do
Direito e o fomento à metodologia ativa proporcionaria uma qualificação diferenciada dos
profissionais. A complexidade das relações e o contínuo processo de transformação dos
fenômenos sociais demandam, com urgência, a adoção de uma processo de ensino-
aprendizagem cuja metodologia seja compromissada com tais fatores, maiormente
desenvolvida sob bases coerentes com a prática reflexiva e questionadora do modelo
tradicional produzido e mantido pelas instituições.
Há que se reconhecer que o ensino jurídico no Brasil vindica muita atenção das
autoridades educacionais, sob diversos aspectos, seja pelo aumento da procura pelos cursos
jurídicos sem que haja um mercado de trabalho favorável para atender tal demanda, seja pelos
altos índices de reprovação no Exame da Ordem dos Advogados, ou mesmo pelo

1043
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

conservadorismo dos métodos aplicados e matérias repetitivas sem a prática da inter e


transdisciplinaridade nos currículos, sobremodo sem a valorização de uma metodologia
emancipadora e que estabeleça uma clara vinculação entre o conhecimento teórico e as
mudanças sociais, influindo, diretamente, formação do profissional do Direito.
Desta feita, há que se reconhecer que o modelo tradicional de aula expositiva
dogmática não mais encontra assento na contemporaneidade, sendo imprescindível o
fortalecimento de uma metodologia dialógica, pautada no fortalecimento do processo de
autonomia, de visão crítica e de emancipação intelectual do discente do Curso de Direito.
Assim, o ensino jurídico não mais está encerrado nas salas de aula, mas sim encontra no meio
social arena fértil para a formação mais completa dos futuros juristas.

REFERÊNCIAS:

BERBEL, Neusi Aparecida Navas. As metodologias ativas e a promoção da autonomia de estudantes. In:
Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 32, n. 1, p. 25-40, jan.-jun. 2011. Disponível em:
<http://www.proiac.uff.br/sites/default/files/documentos/berbel_2011.pdf>. Acesso em 15 set. 2017.

BITTAR, Eduardo C. B. Crise da ideologia positivista: por um novo paradigma pedagógico par ao ensino jurídico
a partir da Escola de Frankfurt. In: XV Congresso Nacional do Conpedi/UEA, ANAIS..., Manaus. 2008.

CÂMARA, Edna Torres Felício; MURARO, Mariel. Além da mera intuição: aula expositiva e a utilização de
recursos audiovisuais in Direito, educação, ensino e metodologia jurídicos [Recurso eletrônico on-line] /
organização CONPED/UFF ; coordenadores: Pedro Heitor Barros Geraldo, Fernando de Castro Fontainha,
Orides Mezzaroba. – Florianópolis : FUNJAB, 2012. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7f5fc754c7af0a63 >. Acesso em 15 set. 2017.

COLAÇO, Thais Luzia. Humanização do ensino do direito e extensão universitária. In: Seqüência: estudos
jurídicos e políticos, 2006

COSTA, Mila Batista Leite Corrêa da; ORSINI, Adriana Goulart de Sena. Ensino jurídico: resolução de conflitos
e educação para a alteridade. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 56, p. 11-32, jan.-jun.
2010.

DUARTE, José B. Participação ou tédio na universidade. Um modelo crítico versus um modelo dogmático. In:
THEODORO, A; VASCONCELOS, M.L. (Org.) Ensinar e aprender no ensino superior: Por uma
epistemologia da curiosidade na formação universitária. São Paulo: Cortez, 2003.

FACHIN, Luiz Edson. Ensino Jurídico e Direitos Fundamentais: Ideia para a libertação pelo conhecimento. In:
Revista de Ensino Jurídico e Reforma Curricular. CADORE, Rodrigo Garcia; TANNOUS, Thiago Saddi
(orgs.). Curitiba: Centro Acadêmico Hugo Simas, 2005.

_____________. Limites e possibilidades do ensino e da pesquisa jurídica: repensando paradigmas. Argumenta


Journal Law, Jacarezinho - PR, n. 1, p. 25-34, jan. 2013. Disponível em:
<http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/2>. Acesso em: 15 set. 2017.

FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila. A crise do ensino jurídico. RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org). Ensino
jurídico: para que(m)?. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000.

1044
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire.
São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

FREITAS FILHO, Roberto. Crise do direito e juspositivismo: a exaustão de um paradigma. Brasília Jurídica,
2003.

GHIRARDI, José Garcez. O instante do encontro: questões fundamentais para o ensino jurídico. São Paulo:
Fundação Getulio Vargas, 2012.

GHIRALDELLI JR., Paulo. Didática e teorias educacionais. Rio de Janeiro: DP&A, 2000

GIL, Antônio Carlos. Didática do Ensino Superior. São Paulo: Atlas, 2009a.

_____________. Metodologia do Ensino Superior. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009b.

GOMEZ, A. I. Perez Compreender e transformar o ensino. In: SACRISTAN, J. G.; GOMEZ, A. I. Perez (orgs.).
Ensino para a compreensão. 4 ed.. Porto Alegre: AR-TMED, 2000.

HAYDT, Regina Célia Cazaux. Curso de Didática Geral. São Paulo: Ática, 1994

LIMA, Abili Lázaro Castro de. A função e a importância das disciplinas propedêuticas na estrutura curricular dos
cursos de direito no Brasil. In: Revista de Ensino Jurídico e Reforma Curricular. CADORE, Rodrigo Garcia;
TANNOUS, Thiago Saddi (orgs.). Curitiba: Centro Acadêmico Hugo Simas, 2005

MACHADO, Ana Maria Ortiz. Ensino jurídico: aprender para ensinar, ensinar para aprender. 2006. PhD
Thesis. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

MARTÍNEZ, Sérgio Rodrigo. Reflexões sobre o ensino jurídico: aplicação da obra de Paulo Freire aos Cursos de
Direito. 2005. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/29073-29091-1-
PB.pdf>. Acesso em 15 set. 2017.

MORATO, Antonio Carlos. Breves considerações sobre o futuro do profissional do direito: a crise do Estado, as
alterações de ordem interdisciplinar e a crise do ensino jurídico. In: Revista da Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, 2001.

NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Rio de
Janeiro: Revan, 2010.

OLIVEIRA, Eliana Maria Pavan. Docência em Direito e a “Sala de aula invertida” como opção metodológica
ativa. In: Revista Evidência, 2016.

ORSINI, Adriana Goulart de Sena; SILVA, Nathane. Ensino jurídico, pesquisa e extensão: a experiência do
programa RECAJ UFMG. Universistas/JUS, v. 24, n. 2, p. 11-21, 2013. Disponível em:
<http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/view/2364/2059>. Acesso em 15 set.
2017.

PAULA, Rodrigo Francisco. Por uma educação em direitos humanos fundada em um projeto educativo
emancipatório: reflexões sobre seus limites e possibilidades a partir de um diálogo entre Hannah Arendt e
Boaventura de Sousa Santos. In: FRANCISCHETTO, Gilsilene Passon P. (Org.). Educação como Direito
Fundamental. Curitiba: CRV, 2011.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. A crise do ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo: indo além
do senso comum. 1992. PhD Thesis. Universidade Federal de Santa Catarina.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei (ORG). Ensino jurídico: para que(m)?. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2000.

1045
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007.

SANTOS, Ricardo Goretti. Os Bastidores da Prática na Instituição: Preparação, Execução e Socialização das
Experiências. In: MIGUEL, Paula Castello; OLIVEIRA, Juliana Ferrari de. (Coord.). Ensino Jurídico:
Experiências Inovadoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao
neoconstitucionalismo. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan.-jun.
2006. Disponível em: <http://www.ite.edu.br/ripe/>. Acesso em 15 set. 2017.

WACHOWICZ, Lilian Anna. O método dialético na didática da educação superior. In: CASTANHO, Sérgio;
CASTANHO, Maria Eugenia (Orgs.). Temas e textos em Metodologia do Ensino Superior. 2. ed. Campinas:
Papirus, 2001

WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

1046
AÇÃO AFIRMATIVA, EDUCAÇÃO E JUDICIALIZAÇÃO:
SILÊNCIOS E SENTIDOS

SANTOS, Erli Sá dos

RESUMO

O artigo que segue desenvolve uma reflexão sobre o tema Políticas Afirmativas de Inclusão Racial no
Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, tomando
por base o Edital 2017. Procura estabelecer relações entre a implementação da política, seus
desdobramentos, principalmente, o processo de judicialização do certame e o contexto educacional
inaugurado. Em especial, o texto busca discorrer sobre a categoria silêncio identificada como nas
relações travadas entre os sujeitos envolvidos no processo. O principal interesse é situar essa categoria
como elemento discursivo, portanto, significativo, utilizando-se para isso os referencias teóricos da
Análise de Discurso, vertente francesa, presentes nos estudos realizados por Eni P. Orlandi (1995;
2009).

Palavras-Chave. Pós-Graduação; Política Afirmativa; Judicialização.

ABSTRACT

The following article develops a reflection about Affirmative Politics of Racial Inclusion in the
Prostgraduate of Sociology and Law from Fluminense Federal University, taking for base the 2017
notice. Looks for establish relations between politics implementation, your topics, especially, the
judicialization of competition and the inaugurated educational context. In especial, the text looks to
describe the silence category, it identifies as on relationships between the subjects envolved in the
process. The main interest is to locante this category as a discursive element, significant, using for that
the theoretical references of Law Analysis, presented on studys developed by Eni. P. Orlandi (1995;
2009).

Keywords. Postgraduate; Affirmative Politics; Judicialization.

1047
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

“... enquanto esperamos em silêncio pelo luxo final do destemor, o peso deste
silêncio nos sufocará. O fato de que estamos aqui e que eu estou dizendo estas
palavras é uma tentativa de quebrar este silêncio e conciliar algumas destas
diferenças entre nós, porque não é a diferença que nos imobiliza, mas o silêncio. E
há muitos silêncios a serem rompidos.” 1

Este trabalho representa uma leitura, dentre outras possíveis, acerca do tema
“Políticas Afirmativas de Inclusão Racial”. O recorte diz respeito à implementação dessa
política pública no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense (PPGSD).
Ler é atribuir sentido, portanto, interpretar. A interpretação aqui apresentada é
resultado de um exercício de atribuição de sentido ao silêncio identificado no processo de
judicialização do certame de ingresso na pós-graduação do PPGSD (Edital 2017), marcado
pela presença do silêncio como estratégia de manutenção do poder hegemônico.
Conduzem o processo de atribuição sentido ao corpus selecionado para observação,
em especial, os referenciais teóricos da Análise de Discurso (AD), vertente francesa, presentes
em obras de Eni P. Orlandi (1995; 2009). A partir dessa lente teórica é possível atribuir
sentidos às mais diferentes vozes identificadas, bem como aos silêncios, que podem se
manifestar nas mais diversas situações e, como elemento discursivo, significa. Tomar por
base um suporte teórico cujo interesse se volta para o discurso, definido, nas palavras de
Orlandi, como “palavra em movimento, prática de linguagem...” (2009, p.15) constitui um
método que conduz o processo de leitura, a interpretação, tomando o silêncio como categoria
significativa já que discurso 2, porque resultante de um processo histórico, do qual faz parte.
Ora, se a palavra discurso, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de
movimento, essas qualidades possibilitam atribuição de sentido também ao silêncio, eis que
também integra a atividade comunicativa humana, significando, no contexto comunicativo.
As vozes (os ditos) e os silêncios (os não ditos) analisados como elementos linguísticos, numa
perspectiva materialista (Materialismo Histórico), situam-se, de acordo com Orlandi, “em
1
Audre Lord, in “A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação”, palestra proferida no painel
“Lesbianismo e Literatura” da Modern Language Association, em Chicago, Illinois, dezembro de 1977, ...
disponível em https://transformativa.wordpress.com/2017/01/31/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-
acao-audre-lorde/
2
Etimologicamente a palavra discurso representa a idéia de movimento, dinamismo. Qualidades essas que
concede permissão para a atribuição de sentido também ao silêncio, eis que integrante da atividade comunicativa
humana, portanto significante.

1048
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pontos de dizer, em regiões historicamente determinadas de relações de força e de sentidos: as


formações discursivas.” (1995, p.20).
A interpretação desse silêncio e do que a ele está relacionado tem relação, portanto,
com ideologia, compreendida, nesse contexto, como a interseção entre, conforme diz Orlandi,
a “materialidade da língua com a materialidade da história” (1995, p. 20), porque

(...) o discurso é o lugar desse encontro, é no discurso (materialidade específica da


ideologia) que melhor podemos observar esse ponto de articulação. (...) As
diferentes formulações de enunciados se reúnem em pontos do dizer, em regiões
historicamente determinadas de relações de força e de sentidos: as formações
discursivas. 3

Esse percurso interpretativo observa o homem como ser social, na sua relação com o
outro, exigindo uma abordagem interdisciplinar. Assim, busca-se realizar uma conexão entre
conceitos de diversas áreas do saber.
Contribuem para a abordagem, em alguma medida, como recurso metodológico
interpretativo, conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu, no campo da sociologia da
educação, sendo utilizados como lentes condutoras do olhar sobre os recortes feitos para
realização de uma leitura interessada em busca de elementos para compreensão do recorte
feito: poder simbólico e violência simbólica, capital social e cultural, habitus e reprodução.
Esses conceitos mostram-se fundamentais para a atribuição de sentido às manifestações em
sociedades como a brasileira, em que as relações sociais, e, consequentemente, as relações no
campo da educação sistematizada, são marcadas pelos arbítrios da classe dominante, visando
à manutenção do seu poder e dominação sobre os excluídos.
O conceito de invisibilidade social, de larga utilização nos estudos das sociedades
contemporâneas, mostra-se imprescindível para a abordagem. É essencial para compreender a
negação do acesso ao lugar conquistado pelos alunos autodeclarados aprovados no concurso
do PPGSD-2017. Essa negação pode ser compreendida como manobra institucional de
apagamento do sujeito (também pelo silenciamento), portanto de invisibilização.
Por fim, porém não menos importante, como recurso metodológico de atribuição de
sentido, serão utilizados os referenciais teóricos da Teoria Crítica da Raça que, segundo Pires
& Félix, “compreende o conceito de raça a partir de uma construção social e não sob o viés
biológico. Desta maneira, a referida teoria inova ao questionar o direito sob uma perspectiva

3
Orlandi, 1995, p.20.

1049
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

racial, refutando a meritocracia como critério de avaliação...” (2016, p. 362). Seus


pressupostos teóricos fornecem os elementos necessários, no campo do conhecimento, para o
domínio de conceitos básicos relativos à questão da exclusão racial, tais como: racismo e
discriminação estrutural, dentre outros.
Esses pressupostos situam-se como extremamente relevantes para a abordagem dos
silêncios presentes no contexto acadêmico, lugar historicamente não frequentado por alunos
afrobrasileiros.

1. EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

Durante muitos anos, no Brasil, o sistema de seleção para o acesso ao ensino


superior, foi marcado pela reprodução do modelo de exclusão social, com a universidade
selecionando os integrantes das camadas privilegiadas, os chamados “mais capacitados”, para
integrarem o seu sistema de ensino. Na pós-graduação, o mesmo modelo. Como estratégia
mantenedora da estrutura, a classe social hegemônica usou e continua usando mecanismos de
estabilização de seu poder hegemônico, garantindo a satisfação de seus interesses. O sistema
legal e a educação inserem-se nesse contexto. A histórica exclusão do processo de educação é
parte disso. No ensino superior, no Brasil, segundo Sader,

(...) ao longo dos séculos, o acesso aos cursos de maior prestígio nas universidades
que, por sua vez, representava o cartão de ingresso aos postos de poder de maior
peso, nos remetia quase que inevitavelmente à imagem de brancos. Médicos,
advogados, engenheiros, por exemplo, Bacharéis, com anéis nos dedos, ‘dotores’,
em que repousava o saber e o poder que advém daí.4

De acordo com a Romanelli, que faz um estudo sobre a educação brasileira a partir
da Revolução de 1930, o quadro em que se situa a educação no Brasil, hoje, pode ser
explicado pelo contexto de expansão do capitalismo, caracterizado pela luta de classes, que
influenciou diretamente o sistema de ensino. Segundo a autora, a

(...) luta assumiu no terreno educacional características assaz contraditórias, uma


vez que o sistema escolar, a contar de então, passou a sofrer, de um lado, a pressão
social de educação, cada vez mais crescente e cada vez mais exigente, em matéria
de democratização do ensino, e, de outro lado, o controle das elites mantidas no
poder, que buscavam, por todos os meios disponíveis, conter a pressão popular,

4
Emir Sader, in texto de apresentação do livro “Cotas Raciais no Brasil: A primeira avaliação. 2007, p,7.

1050
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

pela distribuição limitada de escolas, e, através da legislação do ensino, manter o


seu caráter ‘elitizante’.5

Para perpetuar essa estrutura, a classe hegemônica utiliza-se de mecanismos


(instituições/institutos) que impõem a sua cultura – os aparelhos ideológicos – a escola é um
deles. Assim, nas palavras de Durand, “O ato pedagógico, então, só pode ser definido como
ação de violência simbólica que não elimina, mas reforça, descaracterizando os atos de força
pura enquanto atos de força pura” (1979, p. 16).
A educação, que pode figurar como índice de transformação e melhoria da vida
humana, é situada, no ordenamento jurídico brasileiro, como direito fundamental, primando
pelo ideal de igualdade, na prática reproduz a estrutura social de excludente. Porém, nas
palavras de d’Adesky,

(...) para que haja verdadeiramente igualdade e liberdade, o princípio de igual


respeito entre os indivíduos dever ser plenamente aceito e disseminado na
sociedade. Esse princípio traduz-se pela idéia de que a igualdade entre os
indivíduos requer que cada um reconheça a igualdade em dignidade do outro e aja
em relação a ele com espírito de fraternidade, independentemente das diferenças de
sexo, raça, nacionalidade, etnia, religião, etc... 6

Corroboram para isso as políticas públicas educacionais voltadas para a atenção a


demandas sociais históricas ainda não satisfeitas. As Políticas de Ação Afirmativa de Inclusão
Racial caracterizam-se pela

(...) intenção deliberada para corrigir as desigualdades resultantes da racialização já


existente na origem do racismo. Elas não vêm para dividir,pelo contrário, vêm para
aproximar e unir pela redução das desigualdades. Elas não criam a raça, não a
reforça e nem a faz reviver, pois a raça já está bem antes na mente, na cultura, no
tecido social da sociedade como produto de uma longa história da humanidade
apesar das diferentes reformulações, teorizações e usos ideológicos recentes. 7

Ou ainda, quanto à diversidade na unidade (universidade):

O princípio da diversidade se justifica em nodo do bem comum – o bem comum da


própria faculdade e também da sociedade em geral. Primeiro, defende que o corpoo
estudantil como diversidade racial permite que os estudantes aprendam mais entre
si do que se todos tivessem antecedentes semelhantes. Assim como um corpo
discente cujos componentes pertencessem a uma só área do país limitaria o alcance
das perspectivas intelectuais e culturais, o mesmo aconteceria com um corpo

5
2002, p. 64-65.
6
D’Adesky,2006, p. 48.
7
Moore, 2007, p.16.

1051
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estudantil que refletisse homogeneidade de raça, etnia e classe social. Em segundo


lugar, o argumento da diversidade considera que as minorias deveriam assumir
posições de liderança na vida pública e profissional, porque isso viria ao encontro
do propósito cívico da universidade e contribuiria para o bem comum.8

Analisar a política de reserva de vaga para afrobrasileiros, na pós-graduação, que


integra o contexto educativo ainda mais elitizado do que a graduação, apresenta-se como
relevante, pelo dito e também porque são hoje uma política pública de extrema importância.

2. POLÍTICA AFIRMATIVA NO PPGSD, JUDICIALIZAÇÃO, SILÊNCIOS E


SENTIDOS

Em 11 de maio de 2016, antes de sair do governo, a presidenta Dilma Roussef


assinou a Portaria Normativa nº 139, concedendo às Instituições de Ensino um prazo de 90
dias para apresentar propostas de Políticas de Ações Afirmativas visando à inclusão de negros
(pretos e pardos), indígenas e pessoas deficientes, nos Programas de Pós-Graduação.
Esse processo configura-se uma continuidade ao que já vinha ocorrendo na
graduação das Universidades Públicas Federais, com base na Lei Federal 12.711/ 2012, cuja
aplicação vem provocando mudança no perfil das instituições públicas brasileira nos últimos
anos.
Com base na portaria, o colegiado do PPGSD, em votação apertada10, que
demonstra o grau de resistência da academia, decidiu pela implementação da política e, ainda
em 2016, o programa iniciou o processo de seleção com a previsão de reserva de vagas. O
Edital de Seleção PPGSD-2017 estipulou o percentual mínimo de 20% (vinte por cento) das
vagas, reservadas para afrodescendentes, por autodeclaração.
O certame contou com um grande número de inscritos. Até o resultado final tudo
transcorreu com certa normalidade. Não houve registro de impugnação ao edital, embora isso
pudesse ocorrer, administrativa ou judicialmente. No entanto, com a divulgação do resultado,
eis que ocorre a judicialização. Um candidato, não aprovado na fase final da seleção, interpôs
ação judicial, distribuída ao Juízo da 4ª Vara Federal, sob o número 0022396-

8
Sandel, 2011, p. 213.
9
O texto da Portaria não estipula índice de reserva de vagas, ficando a critério da instituição a estipulação do
percentual de reserva.
10
O registro encontra-se em ata.

1052
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

03.2017.4.02.5102. Dessa forma, concretizou-se uma busca, pelas vias judiciais, da resolução
de um conflito que, no ponto de vista do canditato, havia se instaurado. Nas palavras do
Ministro do STF Luís Roberto Barroso, “judicialização representa em grande parte a
transferência de poder político para o Judiciário, principalmente, para o Supremo Tribunal
11
Federal.
Antes de iniciar o primeiro semestre de 2017, em março desse ano, o juiz da causa,
que, nesse momento, ainda tramitava em 1ª instância, na base do Poder Judiciário, portanto,
proferiu decisão suspendendo o processo seletivo. O conteúdo de sua decisão, em síntese,
questionava a política de cotas raciais no certame, bem como a probidade administrativa dos
componentes da banca avaliadora. Essa suspensão é aqui compreendida como primeira marca
institucional de silêncio, que, conforme define Orlandi, “É o silêncio da opressão”. (1995, p.
104), portanto, violência simbólica que congelou o percurso do processo. Na prática,
suspendeu também o início do período letivo, adiando o início das aulas para os alunos
aprovados.
Segundo postagem na página do PPGSD, em nota de esclarecimento na rede social
facebook,

Em decisão desse Juízo, foi suspenso o PPGSD da UFF, em hipótese levantada por
particular, mas também pelo MPF, em Ação Civil Pública. No processo existem
várias questões relevantes, entre elas a aplicação execução de ações afirmativas, a
partir da Portaria 13 do MEC.12

Consta no termo de audiência, realizada em sede judicial, em 17 de março de 2017,


que, para o juiz ,

As duas soluções possíveis aqui a fim de fazer uma moderação de interesses, são:
1a. ) suspender o concurso em face dos erros que contém, ou 2º.) não suspender o
concurso, mas sim manter o autor-candidato no programa na qualidade de “sub-
judice”, assim preservando seu eventual direito e evitando maior prejuízo ao
andamento do Programa. Como já disse, os ônus e responsabilidade da suspensão
não são do Juízo ou do MPF, mas da própria UFF, que, embora alertada pelo MPF,
não melhorou o Edital. Não obstante isso, interessa ao Juízo providenciar a decisão
menos gravosa. A segunda solução não foi dada inicialmente pois, em princípio,
prefere o juízo não determinar isso unilateralmente, ainda mais quando há notícia

11
http://www.conjur.com.br/2009-mai-17/judicializacao-fato-ativismo-atitude-constitucionalista
12
https: //PT-br.facebook.com/permalink.php

1053
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de que o projeto do aluno não é satisfatório. Porém, para evitar delongas para quase
uma centena de alunos a melhor solução é a segunda.”13 (Grifei.)

Segundo Kabengele Munanga, ao prefaciar a obra Racismo & Sociedade: novas


bases epistemológicas para entender o racismo14, fazendo uma análise dos argumentos
daqueles que se colocam contra a política pública de ação afirmativa,

Imputar à ação afirmativa as divisões inerentes à história e à estrutura da sociedade


é negar a própria história e a estrutura da sociedade e substituí-las pela mágica da
imaginação criativa de nossos cientistas e jornalistas. É interessante como eles
conseguem, pelo jogo das palavras e dos exemplos propositadamente escolhidos,
agradar a inteligência e inverter a lógica, transformando a busca dos caminhos e das
soluções em fatores causadores dos problemas. 15

Uma Audiência Pública, sob a presidência do juiz da causa, foi realizada no dia 20
de julho de 2017, nas dependências da Faculdade de Direito – UFF, para o debate de três
temas: ações afirmativas, autodeclaração e nota de corte. Essa diversidade temática diluiu o
debate, invisibilizando a demanda central que deu origem à judicialização do concurso.
Nas palavras do presidente da audiência, na dinâmica da Audiência Pública, cada
um dos inscritos teria 10 minutos para falar, momento seguido de perguntas formuladas pelos
componentes da bancada, com previsão de réplica e tréplica. A primeira testemunha, uma
professora, que explanou sobre autodeclaração e banca verificadora, falou, nas palavras do
próprio juiz, durante 1h10min, entre sua explanação inicial e respostas às questões levantadas.
O segundo orador, que também representava uma fala especializada, não levou menos tempo.
O terceiro, representante cuja fala também pode ser compreendida como especializada no
lidar com a temática, não ficou longe. A “delonga”, retoma-se aqui a seleção vocabular do
juiz em sua primeira decisão judicial, contribuiu significativamente para a diluição ainda
maior dos pontos relevantes para o processo judicial propriamente dito.
Vale ressaltar que essa “aparente democratização” do desenrolar processo, não se
confirma, porque houve cortes, interrupções, imposição de sentidos e isso, como bem diz
Orlandi, tem relação com silêncio, “Poder-se-ia falar do modo como a censura funciona do
lado da opressão. Mas isto não tem nenhum mistério: proíbem-se certas palavras para se
proibirem certos sentidos.” (1995, p. 78).

13
Trecho da termo de audiência, disponível em https: //PT-br.facebook.com/permalink.php
14
Moore, 2007.
15
Moore, 2007, p. 15-16.

1054
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

As palavras enunciadas pela representante do coletivo Quilombo16, aluna preta do


PPGSD, ao fazer uma “pergunta” à testemunha especialista que havia feito uma
(de/a)longa(da) explanação sobre banca de aferição, contribui para “descobrir” o cenário:

A gente tem pouco espaço de fala na audiência e tivemos pouca representação,


inclusive dos estudantes negros da UFF. É importante ressaltar que a luta dentro da
UFF contra as fraudes, contra o racismo, tem sido sofrida e denunciada...

Nesse momento a fala foi interrompida pelo juiz que solicitou sua identificação. E,
feita a devida identificação, a estudante continua seu questionamento:

Nesse momento, gostaria de fazer uma pergunta, na verdade uma complementação


de uma informação que a gente teve essa semana, que na UFF vários programas de
pós-graduação não estão obedecendo ao determinado pela portaria, ao contrário do
PPGSD que se vê arrolado nesta ação judicial... Eu estou aqui há mais de uma hora
e chamei ela (sic) três vezes para saber quando é que a gente poderia ter o direito de
fala, e de fato os colegas da graduação e da pós estão aqui esperando o direito de a
gente poder falar, porque nós somos sujeitos diretamente atingidos, por essas ações
que foram dirigidas de forma extremamente ofensiva aos estudantes cotistas desse
programa e até agora nenhuma decisão do juízo pedindo retratação sobre o que foi
dito das acusações falsas contra os estudantes cotistas, usando inclusive a exposição
dessas pessoas e de professores nas redes sociais, chamando de beneficiados pelo
programa, ou que não houve lisura ao selecionar os estudantes negros. (Grifei.)

A representando do coletivo, ao ser novamente interrompida pelo juiz, que tentou se


justificar diante da fala apontando a dificuldade de se fazer uma Audiência Pública, dizendo
inclusive que “poderia nem ser feita”. A aluna identificou outra marca de silêncio naquele
momento solene:

É que nós temos aqui especialistas que não foram aceitos para falar aqui também.
E, além disso, nós temos os coletivos negros que estão fazendo a denúncia de
fraude e que tem uma ligação direta com os temas debatidos aqui, mas que não
estão tendo o direito de fala.

A justificativa do juízo veio prontamente e baseou-se no grande quantitativo de


pessoas arroladas pela UFF, esclarecendo que a fala da aluna (dos alunos) já estava garantida,
para próxima audiência.
O silêncio imposto pode ser situado no campo do racismo institucional, conceito
que, segundo esclarecem Pires & Félix,

16
Coletivo de estudantes negros da pós-graduação do PPGSD.

1055
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

(...) foi pensado com o objetivo de evidenciar a reprodução do racismo, a


seletividade racial, dentro das instituições públicas e privadas, mostrando os
marcadores da diferença ente negros e brancos. Por conseguinte, demonstra a
diferença de tratamento e oportunidades, dentro dos espaços privilegiados, em
razão da cor, raça ou etnia. 17

A ação de silenciamento de vozes pode ser questionada: Quem não diz? Quem não
permite dizer? Por que não se permite dizer? Para quem não se diz? O que não se diz? A
resposta talvez seja a já enunciada por Orlandi: “Essa situação corresponde a uma forma
direta e sem sutilizas da política do silêncio, ou melhor, do silenciamento: se obriga a dizer
“x” para não deixar a dizer “y”. (1995, p.83).
Os silêncios impostos pelo processo de judicialização contribuem para silenciar a
efetiva presença dos alunos cotistas, mas não só, também a dos autodeclarados negros
aprovados na ampla concorrência, apagando o sujeito, invisibilizando sua existência em mais
um espaço institucional, o que configura uma prática de reprodução da estrutura social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

D’Adescky muito contribui para apontar marcas muito significativas nesse processo
ao qual foi submetido o PPGSD. De acordo com o pesquisador, “há ainda uma longa trilha a
ser percorrida, no sentido do encontro de uma sociedade menos desigual. Do mesmo modo,
tanto as políticas de ação afirmativa, como o cenário socioeconômico recente de queda das
assimetrias sociais e raciais estão sujeitos a sérias ameaças. (2015, p. 26).
Ora, mesmo com as transformações que marcam o cenário da graduação em Direito
da UFF, na pós- graduação, cujo processo inicia-se em 2017, as barreiras iniciais ainda não
foram superadas. Por isso a importância de, já neste momento, romper o silêncio institucional,
que tem relação com racismo institucional, apontando o silêncio e significando-o. Mesmo
sendo um enfrentamento difícil, significa movimento no sentido de fazer valer direitos que
são hoje constitucionalmente garantidos.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani (organizadores). 13 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

17
2017, 359.

1056
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

______________. O Poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand, 1989.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei nº 9394/96). 20 de dezembro de 1996.

____________. DURAND, José Carlos Garcia (Org.). Educação e hegemonia de classe. Rio de Janeiro: Zahar,
1979.

D’ADESKY, Jacques. Anti-racismo. Liberdade e Reconhecimento. Rio de Janeiro: Dauldt, 2006, p. 45-62.

_______________. Afro-Brasil: debates e pensamentos. Organização: Jacques d”Adesky e Marcos Teixeira de


Souza. Rio de Janeiro: Cassará Editora, 2015, p. 15-69.

MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte:
Mazza Edições, 2007, p. 1-55.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, Editora da Unicamp,
1995.

________________. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. 8. ed. Campinas: Pontes, 2009.

PIRES, Carolina; FELIX, Clarisse. “Mulheres negras: identidades forjadas pela negação”. In Qual o futuro da
sexualidade no direito? Organizadores Eder Fernandes Monica, Ana Paula Antunes Martins. Rio de Janeiro:
Bonecker; PPGSD, 2017.

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil: (1930/1973). Petrópolis, Editora Vozes,
2012.

TEIXEIRA, Moema De Poli. Negros na Universidade: identidade e trajetória de ascensão social no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Pallas, 2003.

WALTENBERG, Fábio; CARVALHO, Márcia de. Cotas aumentam a diversidade de estudantes sem
comprometer o desempenho? Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 7, p. 36-77, 2012. (Disponível em
http://www.proac.uff.br/cede/sites/default/files/TD73.pdf).

______________, Elementos para uma definição de justiça em educação. Outubro, 201. (Publicado nos Cadernos
Cenpec. Pesquisa e ação educacional. V. 3(1), pp. 41-62, 2013. (Disponível em:
http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/).

1057
ENSINO JURÍDICO NO BRASIL:
A PREPARAÇÃO MULTIFUNCIONAL

SOUZA, Mylena Devezas.


Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito e Sociologia -UFF
SOUZA, Gabriel Santos Cintra Gomes de.
Bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida, UVA

RESUMO

A pesquisa visa analisar a questão da preparação do estudante de direito brasileiro em comparação com
a preparação jurídica de outros países, diante da ausência de necessidade de curso de formação
específica para certas atuações profissionais após a conclusão da universidade, como ocorre na
advocacia. Analisam-se ainda os casos em que apesar de ocorrer curso de formação após a aprovação
em concurso público, a duração do curso pode não ser suficiente para a preparação de profissionais que
ocuparão importantes cargos. O objetivo é analisar os problemas gerados por esta formação
multidisciplinar e verificar possíveis impactos no desempenho profissional dos operadores do direito.
Como fonte de pesquisa serão analisados editais de Concursos Públicos e do Exame Nacional da OAB
para verificar os requisitos de ingresso e eventuais necessidades de cursos preparatórios para o
exercício da função.

Palavras-Chave. Ensino Jurídico; Curso de Formação; Concurso Público.

ABSTRACT

The research aims at analyzing the issue of the preparation of the student of Brazilian law in
comparison with the legal preparation of other countries, due to the absence of a need for a specific
training course for certain professional activities after the university conclusion, as in the law. It is also
analyzed the cases in spite of the fact that a training course takes place after the approval in public
competition, the duration of the course may not be sufficient for the preparation of professionals who
will occupy important positions. The objective is to analyze the problems generated by this
multidisciplinary training and to verify possible impacts on the professional performance of the
operators of the law. As a source of research, public tender bids and the OAB National Examination
will be analyzed to verify entry requirements and possible needs for preparatory courses for the
exercise of the function.

Keywords. Legal Teaching; Graduation course; Public Contest.

1058
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O curso de direito é tradicionalmente um dos mais procurados pelos estudantes ao


ingressar na universidade diante da possibilidade de amplo mercado de trabalho após a
formação universitária, fato este comprovado pelas elevadas notas de corte no vestibular para
o ingresso no curso nas Universidades Públicas. Entretanto, o ensino jurídico enfrenta alguns
problemas que precisam ser superados, um deles diz respeito à formação multifuncional.
O bacharel em direito pode se tornar advogado apenas pela aprovação no Exame
Nacional da OAB, pode ainda prestar concurso e se tornar servidor judiciário, seja como
analista ou como técnico, ou seguir carreira como delegado, como docente, como diplomata,
como juiz, como promotor, como procurador, dentre outras possibilidades de carreira pública
jurídica, sem contudo, que haja necessariamente a exigência de formação em um curso
preparatório específico para o cargo almejado.
A ampla possibilidade de cargos e empregos no mercado de trabalho para um
bacharel em direito apesar de ser um dos atrativos pra o ingresso no curso, prejudica a
formação do profissional, já que há apenas uma formação para diversas profissões jurídicas,
as quais possuem práticas diferenciadas. Exemplifica-se com o caso de juízes e advogados,
enquanto estes precisam defender seu cliente buscando a norma que lhe é mais favorável,
aqueles precisam aplicar a legislação mais adequada ao caso concreto a partir de uma
imparcialidade.
De acordo com o Censo da Educação Superior o curso de direito é um dos que mais
recebe matrículas e mais acrescenta profissionais no mercado de trabalho, embora não
necessariamente todos sigam a carreira jurídica, o número de bacharéis em direito é cada vez
mais alto, assim como o número de advogados inscritos nos quadros da OAB.
O problema é que após a aprovação no Exame Nacional da OAB o bacharel em
direito pode automaticamente atuar como advogado, sem que ocorra uma preparação
específica para isso. Se enquanto estudante o bacharel não teve contato com a prática de
escritórios de advocacia, o exercício da mesma torna-se complicado, por ser completamente
diferente da prática no serviço público.
Em outros países, como na França, após a aprovação na prova para a advocacia, o
bacharel precisa passar por um curso de formação, preparando-o de uma forma mais
adequada a profissão a ser realizada. No Brasil a ausência de cursos de formação não é

1059
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

exclusiva da advocacia, sendo poucos os concursos públicos que condicionam a aprovação no


curso de formação para o início da prática profissional.
Na realidade, na maior parte dos editais de concursos públicos não preveem a
obrigatoriedade de participar de cursos de formação, apesar de existirem, não sendo claro para
o candidato quando do momento da inscrição o período de formação ou sequer as regras dos
cursos.
Analisam-se aqui, editais de concursos públicos para mapear casos em que há ou
não previsão de curso de formação após ou durante o processo seletivo, para por fim, verificar
os possíveis problemas gerados pela formação jurídica multifuncional presente no Brasil
comparando com outros países em que o exercício profissional depende de aprovação em
curso específico para o curso almejado.

1. PANORÂMA DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL

No Brasil existem cerca de 1240 cursos de direito segundo informações do


Conselho Nacional de Justiça1 em 2010, além disso, em 18 de novembro de 2016 a OAB2
registrou um milhão de advogados inscritos em seus quadros, número esse que não leva em
consideração as inscrições suplementares e as de estagiários. Segundo dados do INEP (2016)
o curso de Direito em 2016 foi o curso com maior número de matrículas, totalizando 862.234,
destes 255.128 ingressantes e 107.909 concluintes.
Percebe-se assim a alta procura do curso de direito no Brasil, sendo essa procura
ocasionada pelo elevado número de cargos possíveis após a obtenção do bacharelado em
direito. Afinal, o bacharel em direito possui um alto número de concursos públicos nos quais
se encontra apto a se inscrever, seja para advogado público, promotor, procurador, juiz,
delegado, diplomata, analista de tribunal, juiz federal, juiz do trabalho, juiz do tribunal
estadual, dentre tantos outros.
No Brasil o ensino jurídico se dá a partir do bacharelado em direito com duração de
cinco anos, durante o qual há não somente o curso das disciplinas teóricas em uma carga
horária estabelecida pela universidade, mas ainda a realização de estágio obrigatório a partir
do sétimo período.

1
Fonte: https://g1.globo.com/educacao/guia-de-carreiras/noticia/brasil-tem-mais-faculdades-de-direito-que-china-
eua-e-europa-juntos-saiba-como-se-destacar-no-mercado.ghtml
2
Fonte: https://jota.info/carreira/oab-registra-1-milhao-de-advogados-em-seus-quadros-18112016

1060
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Com a obtenção do bacharelado em direito, o candidato se encontra apto a exercer


diversas carreiras jurídicas, já que não são todos os concursos que exigem outras condições,
tais como pós graduação lacto ou strictu sensu, ou ainda algum período mínimo de prática
jurídica.

2. CURSO DE FORMAÇÃO PREPARATÓRIO PARA CARREIRAS


JURÍDICAS

O ingresso em carreiras jurídicas na área privada é realizado por meio de processos


seletivos das empresas, onde em sua maioria exige-se apenas certa titulação e a inscrição no
quadro da OAB. Já no setor publica o ingresso é feito por meio de concursos públicos para as
mais diversas áreas.
Para seguir a carreira da advocacia o bacharel em direito precisa ser aprovado no
Exame Nacional da OAB, o qual consiste em uma prova de duas fases, sendo a primeira
objetiva e a segunda discursiva. O exame pode ser prestado a partir do nono período da
faculdade e possui diversas seleções todos os anos. A aprovação na primeira etapa exige o
acerto de pelo menos metade das cerca de 80 questões objetivas, tornando o candidato apto
para a segunda etapa.
Na segunda fase o candidato precisa elaborar uma peça processual e responder
quatro questões discursivas, o erro na identificação correta da peça processual adequada para
o caso apresentado suspende a correção da prova. A aprovação na segunda etapa se dá com a
obtenção mínima do grau seis ao somar a pontuação da peça e das questões. Após a conclusão
do bacharelado e com o certificado da aprovação no Exame Nacional da OAB, o bacharel em
direito pode solicitar a sua inscrição nos quadros da OAB, sem qualquer outra exigência.
Não ocorre, portanto, uma preparação específica para o exercício de advocacia, nem
há a exigência de curso de pós-graduação, sendo o bacharel em direito apto para advogar. O
exercício profissional em outros cargos jurídicos a partir da aprovação em concurso público e
conclusão do bacharelado também são permitidos, como verificamos em alguns editais
analisados.
A Advocacia Geral da União publicou em 27 de agosto de 2013 o edital nº 04
referente ao concurso público para formação de cadastro de reserva e provimento de cargos
de procurador federal de 2ª categoria. O item 16 de referido edital determina a matrícula

1061
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

obrigatória no curso de formação, o qual possui carga horária de 88horas presenciais, em


tempo integral, sendo este a segunda etapa do concurso. Ao final do curso há uma avaliação
cuja nota será somada a nota da primeira etapa.
O Ministério Público do Trabalhou publicou o Edital nº 136 em 09 de maio de 2017
sobre o 20º Concurso Público para provimento de cargos de Procurador do Trabalho. O item
2.17 do edital exige que o candidato possua três anos de exercício de atividade jurídica.
Entretanto no edital não há previsão de Curso de Formação para os novos procuradores.
O Ministério Público Federal publicou o Edital nº14/2016 no dia 29 de agosto de
2016 referente ao 29º Concurso Público para provimento de cargos de Procurador da
República. O artigo 6º § 2º prevê a comprovação de três anos de exercício de atividade
jurídica após a obtenção do grau de bacharel. Não há no edital qualquer previsão de Curso de
Formação para os novos procuradores.
O Tribunal Superior do Trabalho publicou o Edital em 29 de junho de 2017
referente ao 1º Concurso Público Nacional Unificado para ingresso na carreira da
Magistratura do Trabalho. O edital também prevê a comprovação de três anos de exercício de
atividade jurídica após a obtenção do grau de bacharel. Porém, trata-se de mais um edital sem
previsão de curso de formação para os novos juízes.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região publicou o Edital nº TRF2-EDT-
2016/00009 em 17 de novembro de 2016, para Concurso público de provas e títulos destinado
a selecionar candidatos para provimentos de cargos de juiz federal substituto da 2ª região. O
item 2.6 do edital prevê como requisito o exercício de três anos de atividade jurídica após a
obtenção do diploma em direito, mas não há qualquer previsão quanto a obrigatoriedade de
curso de formação para os novos juízes.
Como se vê nos exemplos acima são poucos os cargos que exigem a formação
complementar específica para o cargo, a preparação do próprio professor de direito é por
vezes falha, já que em diversos cursos de direito apenas com o bacharelado é possível o
ingresso na carreira de docência, sem que se exija qualquer curso de pós-graduação, seja lato
ou strictu senso.
O bacharel em direito por diversas vezes não se encontra apto a lecionar, já que por
não ser um curso de licenciatura, não há matérias preparatórias para o exercício da docência.
Além disso, até mesmo em alguns Programas de Pós-Graduação o estágio-docência só é
obrigatório para bolsistas vinculados ao CNPQ, não sendo obrigatório para os não bolsistas,

1062
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

que por vezes ao concluir o mestrado já se candidatam como professores, iniciando a


docência sem qualquer preparação prática.
A preparação prática do docente jurídico é importante, de modo que os estágios de
docência precisam proporcionar de fato uma experiência prática da profissão.

Da mesma forma, e tendo isto como supedâneo, os cursos jurídicos de pós-


graduação strictu sensu não podem, em seus estágios de docência, limitar a atuação
do estagiário a aplicar trabalhos, fazer controle de frequência e tomar conteúdos,
assim centrando sua presença principalmente nas denominadas disciplinas
propedêuticas. Isso seria formar auxiliares de cozinha, jeitosos, mas sem
criatividade, raciocínio autônomo ou qualquer compromisso para além de suas
panelas (salvo vocacionadas e honrosas exceções). A instituição de ensino superior
deve ter como desiderato formar chefs jurídicos: surpreendentes, habilidosos,
semeadores de novos paradigmas, lastreados na ciência e na renovação constante de
seus saberes e, sobretudo, comprometidos com “as fomes” do mundo. (FINCATO,
2010, p. 36)

A ausência de cursos específicos de formação para o cargo jurídico não somente


prejudica aquele recém aprovado, como também as pessoas que receberão seus serviços,
afinal a falta de prática e de conhecimento do funcionamento pode gerar erros prejudiciais,
como a perda de um prazo processual ou a apresentação de peça processual errada para a fase
do processo.
O estudante que durante a graduação em direito fez estágio no serviço público
desconhece a rotina dos escritórios de advocacia, e possui dificuldade para lidar com a
pressão dos prazos e elevado número de processos para acompanhamento. Outra questão é
que no serviço público, como na defensoria, os prazos são contados em dobro, ao passo que
para advocacia privada a contagem é simples, podendo ocasionar confusões para o jovem
advogado.
Questiona-se assim, a importância da previsão de cursos de formação já nos editais
dos concursos públicos, assim como no edital da AGU, de modo a avaliar a prática e vocação
do candidato para o cargo específico e evitar possíveis prejuízos para os jurisdicionados.

3. DIREITO COMPARADO

No Brasil a formação jurídica se dá a partir da obtenção do grau de bacharelado em


direito, entretanto essa formação não é a mesma que a exigida em outros países, por exemplo
nos Estados Unidos a faculdade de direito é como se fosse uma pós graduação.

1063
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Acho que o primeiro fato que precisa ser observado quanto às faculdades de Direito
nos Estados Unidos é que elas fazem parte de uma estrutura de pós-graduação.
Após terminar o Ensino Médio, o estudante norte-americano ingressa no “college”,
que geralmente integra uma universidade (embora possa existir de forma
autônoma) e outorga títulos equivalentes ao curso superior no Brasil, como o de
bacharel.
Após concluir essa etapa, o estudante pode se candidatar ao ingresso em uma
faculdade de Direito. Uma das implicações mais notáveis dessa diferença é que os
alunos são mais “velhos” que nos cursos jurídicos brasileiros. Não é raro encontrar
calouros com 27 anos nos corredores das faculdades nos Estados Unidos. Outra
consequência é que os alunos têm mais experiência profissional, já que muitos
preferem trabalhar após concluir o “college” e só então decidem ingressar na
faculdade de Direito. (DE MACEDO, 2013, p. 21)

A diferença não se encontra apenas na estrutura do ensino, mas até mesmo no


formato aplicado nas aulas para o ensino do direito. Enquanto que no Brasil a maior parte das
Universidades utilizam o estudo baseado nas doutrinas e legislações com explicações pelo
professor podendo ou não haver problematização em sala de aula, para posterior avaliação,
nos Estados Unidos as aulas possuem um formato diferente.

Apenas para deixar claro: a aula consiste em resolver os problemas. Eles não são
complementos ao que o professor ensina.
O que acabo de explicar não se confunde com o “estudo de caso” (algo muito
diferente). Neste há um caso (geralmente um precedente importante) decidido por
um tribunal (talvez a Suprema Corte) e os alunos devem saber o que aconteceu
(entender os fatos), o que o Judiciário decidiu e o fundamentos da decisão. (DE
MACEDO, 2013, p. 24)

O estudo pelos extensos manuais e citações de diversos posicionamentos da doutrina


é uma característica do ensino jurídico brasileiro que não é compartilhada pelo ensino jurídico
americano.

Um aspecto que acho interessante destacar é que, ao estudar para uma disciplina, os
norte-americanos não costumam ler doutrina. Em regra, o estudante se prepará para
uma aula apenas lendo a legislação, a jurisprudência ou um livro básico (só
explicando os conceitos mais rasos). (DE MACEDO, 2013, p. 24)

O ensino jurídico brasileiro também não é similar ao ensino jurídico europeu. Afinal
no Brasil é preciso cursar cinco anos de bacharelado, dois anos de mestrado e quatro anos de
doutorado para que uma pessoa tenha o título de doutor em direito, totalizando onze anos de
estudos.

Na Europa a formatação do ensino também destoa da estrutura brasileira Tendo que


se adaptar ao sistema universitário europeu – sem no entanto deixar de protestar –
as Facultés de Droit oferecem basicamente quatro diplomas: (1) a Licence, obtida

1064
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

após três anos de curso, (2) o Master 1, constituindo um quarto ano de curso, (3) o
Master 2, constituindo um quinto ano de curso, (4) e o Doctorat, após três anos de
pesquisas e a defesa de uma tese. A obtenção do diploma de Master 1 – após quatro
anos de curso – autoriza a candidatura à profissões jurídicas como a advocacia, a
magistratura ou o comissariado de polícia. Nas Faculdades de Direito, após cinco
anos de curso e a obtenção do Bacharelado, está autorizada a candidatura a todas as
profissões jurídicas, à exceção da docência superior em Direito. Nas Facultés de
Droit, um doutorado é condição essencial para que ocorra a agregação de um
profissional à carreira da docência. (FONTAINHA, 2014, p. 71)

Há ainda diferenças referente à prática profissional. Ao passo que no Brasil o


exercício a docência é raramente exclusiva nos cursos de direito, o mesmo não ocorre na
França. No Brasil o salário de professor exclusivo das universidades públicas não é tão
elevado quanto de outras carreiras jurídicas, de modo que é comum professores que também
sejam juízes, procuradores, promotores ou advogados, além do mais não há incentivo e
fomento à pesquisa científica jurídica, sendo pouquíssimos os professores de dedicação
exclusiva.

Talvez a diferenciação profissional entre acadêmicos e práticos do direito na França


(Bourdieu: 1986) seja o contraste mais marcante entre lá e cá. A docência em
Direito, assim como a advocacia e a magistratura, são profissões que se exercem
com exclusividade, sendo raríssimas as exceções. É interessante notar que esta
exclusividade não toca apenas o corpo docente. O processo de formação dos
estudantes por lá também é bastante intenso, em período integral, não sendo raras
inclusive aulas e provas aos sábados. Um estudante de Direito francês tem por
principal ocupação esta condição, e é apenas no quarto ano que a faculdade o
autoriza a estagiar, o que é feito com dura e estrita supervisão da instituição.
(FONTAINHA, 2014, p. 72)

Já no Brasil os cursos são oferecidos em sua maioria durante apenas um turno, de


modo que o estudante tenha o outro turno livre para a prática de estágio, que por muitas vezes
é iniciado logo no começo da faculdade, anos antes do período de estágio obrigatório.
Quanto ao exercício da advocacia há também uma grande diferença quando do seu
início, como já abordado em tópico anterior, no Brasil o exercício da advocacia se dá após a
aprovação no Exame Nacional da OAB habilitando o bacharel para o imediato exercício da
advocacia. Já na França a aprovação no exame para o exercício da advocacia apenas permite
ao candidato a inscrição no Centro Regional de Treinamento para a Profissão de Advogado3.

Uma das grandes diferenças entre o Examen d’Admission e o Exame de Ordem é


que a aprovação no primeiro dá direito ao candidato de inscrever-se em um CRFPA
para formação profissional, e a aprovação no segundo dá direito ao candidato

3
Tradução livre

1065
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

solicitar sua inscrição profissional nos quadros de uma OAB. (FONTAINHA,


2014, p. 77)

A própria aplicação do exame possui grandes diferenças. No Brasil

(...) o Exame de Ordem é composto por duas provas. A primeira prova é composta
de até oitenta questões de múltipla escolha, sendo habilitado para a segunda prova o
candidato que acertar ao menos metade delas, que versarão sobre as seguintes
disciplinas: Processo Civil, Processo Penal, Direito Civil, Direito Penal, Direito
Comercial, Direito e Processo do Trabalho, Direito Tributário, Direito
Constitucional, Direito Administrativo, Direitos Humanos e Deontologia. A
segunda prova é discursiva e dividida entre a “redação de uma peça profissional” –
comumente uma petição ou um parecer – e a resposta a “questões práticas, sob a
forma de situações-problema”, ambas sobre uma das matérias à escolha dos
candidatos: Direito Administrativo, Direito Civil, Direito Constitucional, Direito
Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Penal e Direito Tributário. Está
definitivamente aprovado no Exame o candidato que obtiver ao menos a nota seis
na segunda prova (FONTAINHA, 2014, p. 79)

Na França o Examen d’Admission também possui duas fases, entretanto as provas


aplicadas em cada uma destoam muito das aplicadas no exame brasileiro.

Há duas fases no exame. A primeira fase é composta de três provas de igual


coeficiente (peso 2): 1) uma prova de cinco horas de duração na qual o candidato
deve redigir uma Nota de Síntese com base em “documentos relativos a aspectos
jurídicos dos problemas sociais, políticos, econômicos ou culturais do mundo
atual”; 2) uma prova de cinco horas de duração comportando duas redações
visando avaliar a capacidade do candidato ao “raciocínio jurídico”, uma sobre o
Direito das Obrigações, e outra, à escolha do candidato, sobre Processo Civil,
Processo Penal ou Processo Administrativo; e 3) uma prova de três horas de
duração comportando uma redação de caráter prático, sobre uma das disciplinas à
escolha do candidato: Direito das Pessoas e da Família, Direito Patrimonial, Direito
Penal Geral e Especial, Direito Comercial e dos Negócios, Processos Coletivos e
Garantias, Direito Administrativo, Direito Público das Atividades Econômicas,
Direito do Trabalho, Direito Internacional Privado, Direito Comunitário e Europeu,
Direito Tributário dos Negócios. Os candidatos aprovados para a segunda fase
enfrentarão as cinco provas seguintes, todas realizadas em sessões públicas: 1) uma
exposição oral de quinze minutos, após uma preparação de uma hora, seguida de
quinze minutos de arguição pela banca, sobre tema relativo a “proteção das
liberdades e direitos fundamentais, visando apreciar a capacidade de argumentação
e expressão oral do candidato” (peso 3); 2) uma prova oral de quinze minutos, após
uma preparação de igual tempo, sobre tema de uma matéria não escolhida para a
segunda prova da primeira fase (peso 2); 3) uma prova oral de quinze minutos, após
uma preparação de igual tempo, sobre uma das matérias seguintes: Processo Civil
de Execução ou Processo Comunitário e Europeu (peso 1); 4) uma prova oral de
quinze minutos, após preparação de igual tempo, sobre uma das matérias seguintes:
contabilidade Privada ou Finanças Públicas (peso 1); e 5) uma arguição oral na
língua estrangeira escolhida pelo candidato, dentre as opções: alemão, inglês, árabe
clássico, chinês, espanhol, hebraico, italiano, japonês, português e russo (peso 1).
(FONTAINHA, 2014, p. 78)

1066
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Importante ressaltar que a aprovação no Examen d’Admission não garante a


inscrição do candidato nos quadros da equivalente à OAB, mas tão somente lhe dá o direito
de se matricular no CRFPA4. Outra diferença na aplicação dos exames é que na França este
só pode ser realizado em até três vezes, já que após a terceira reprovação o candidato perde o
direito de ter acesso à profissão de advogado. Essa mesma regra é também aplicada na
seleção da magistratura francesa (FONTAINHA, 2014, p. 79).
Já no Brasil não há nenhum limite numérico de tentativas do candidato, seja para o
ingresso nos quadros da OAB ou para ingresso em concurso público, de modo que há aquelas
pessoas que se dedicam a realizar concursos pelo país, os chamados “concurseiros”.
Assim, após a aprovação o estudante francês inicia seu curso de formação
profissional para o exercício da advocacia.

Uma vez aprovados no Examen d’Entrée, os candidatos, doravante élèves-avocats


(alunos-advogados) devem seguir uma formação inicial de dezoito meses no seio
dos CRFPAs, financiados pelas contribuições dos advogados, pelo próprio Estado,
e pelas matrículas pagas pelos seus alunos (FONTAINHA, 2014, p. 80)

Após completos os dezoito meses de formação o aluno-advogado pode se submeter


então ao Examen de Sortie (exame de saída) do CRFPA. A aprovação neste exame
confere o CAPA, certificado necessário para o pedido de inscrição nos quadros do
Barreau e para o efetivo exercício da advocacia na França (FONTAINHA, 2014, p.
80)

A diferença prática não se restringe apenas à advocacia, já que há também um


processo seletivo diferente para o candidato à magistratura francesa, já que a seleção pode
ocorrer por meio de concurso público ou por meio de recrutamento lateral.

(...) para se tornar um magistrado deve ser selecionado em uma das formas
dispostas por lei e depois ter sido escolarizado na ENM, exceto aqueles que são
dispensados. (FONTAINHA, 2014 p. 158)

Além disso, a mera escolarização na ENM não garante o exercício da magistratura.

Isso porque que após a escolarização na ENM, um júri pronuncia-se sobre a


capacidade e a classificação final de cada auditor. Em seguida, este júri pode, para
cada candidato, declarar a capacidade geral, recomendar a repetição (um ano a mais
na escola), declarar a exclusão ou recomendar restrições funcionais (por exemplo:
tal magistrado nunca poderia presidir audiências para crianças). .(FONTAINHA,
2014 p. 159)

4
Centres Régionaux de Formation à la Profession d’Avocat

1067
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Resta claro, portanto, as diferenças existentes entre o ensino jurídico no Brasil e o


ensino jurídico nos Estados Unidos e na Europa, não foi possível aqui realizar uma análise
detalhada de todas as diferenciações, mas pretendeu-se aqui um panorama geral das principais
diferenças, seja na estrutura acadêmica ou na atuação prática após a conclusão do
bacharelado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que no Brasil não há uma preparação específica para o cargo jurídico que
se pretende exercer, e quando há um curso de formação para aperfeiçoamento no cargo
raramente esse faz parte do processo seletivo, ou é de alguma forma condicionante ao
exercício da carreira almejada. A falta de uma formação específica para o cargo pode gerar
dificuldades para o ingressante na carreira e prejudicar sua atuação, bem como trazer
prejuízos para os jurisdicionados.
No Brasil criou-se uma indústria de cursinhos preparatórios para concursos públicos
e para o ingresso na OAB, Fontainha faz uma crítica do assunto ao dizer em seu artigo:

A autonomização das seleções e concursos jurídicos no Brasil é um fenômeno tão


possante que sequer os tribunais e as OABs conseguiram instrumentalizá-la
institucionalmente, mas o fazem financeiramente. Que quero dizer com isso? Ao
possuir na preparação boa parte de seus quadros, estas instituições não conseguiram
transformar as seleções em “medidores de vocação”, onde competências em
potencial poderiam ser testadas tendo em vista as necessidades que o trabalho
cotidiano de cada profissão impõe. No lugar de deixar que cada um afira os
produtos financeiros da atividade, as instituições progressivamente criam escolas
para competir neste mercado. Desta forma, muitas Escolas de Magistratura tem
essencialmente a função de preparar para o Concurso da Magistratura7. O mesmo
vem acontecendo com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Desde maio de
2009, quando o exame de ordem tornou-se unificado, tem proliferado pelo país os
cursos preparatórios organizados pelas Escolas Superiores da Advocacia (ESAs),
ligadas as Seccionais das OABs. (FONTAINHA, 2014, p. 77)

Não se faz a defesa aqui de que o modelo de ensino e prática jurídica do Brasil
precisa ser igual ao dos Estados Unidos ou da França, questiona-se apenas os problemas que
podem ser gerados para os jurisdicionados e para os ingressantes na carreira jurídica sem que
ocorra a preparação específica para o cargo a ser exercido.
A alteração do atual modelo de formação jurídica multiprofissional é importante
para que se possa preparar os profissionais de uma maneira mais adequada de modo a evitar

1068
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

possíveis erros por falta de conhecimento prático, além de se proporcionar uma melhor
atuação profissional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. O debate sobre a fundação dos cursos jurídicos no Brasil (1823-1827). Uma
reavaliação. In Varia hist. [online]. 2017, vol.33, n.62, pp.419-458. ISSN 0104-8775. Disponível em <
http://www.scielo.br/pdf/vh/v33n62/0104-8775-vh-33-62-0419.pdf> Data de acesso: 01/11/2017

DE MACEDO, Igor Alexandre Felipe. Breve relato de uma outra experiência educacional: O ensino jurídico nos
Estados Unidos. In FIDES: Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade, 2013, Vol.4(2), pp.19-27
[Periódico revisado por pares] Fundación Dialnet. Disponível em: <https://issuu.com/revistafides/docs/8ed>.
Data de acesso: 11/11/2017.

FINCATO, Denise Pires. Estágio de docência, prática jurídica e distribuição da justiça. In Rev. direito GV
[online]. 2010, vol.6, n.1, pp.29-37. ISSN 2317-6172. Disponível em <
http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v6n1/02.pdf>. Data de Acesso: 15/10/2017.

FONTAINHA, Fernando de Castro. Como se Faz um Advogado no Brasil e na França: Um Breve Ensaio
Comparativo e Crítico. In Revista de Direito UNB, v. 01, nº02, julho-dezembro, 2014, p. 67-86. Disponível em:
<http://revistadireito.unb.br/index.php/revistadireito/article/view/73/67>. Data de acesso: 11/11/2017.

FONTAINHA, Fernando de Castro. Como se faz um juiz na França: Uma revisão de literatura. In Revista
Confluências, vol. 16, n. 2 (2014). Disponível em:
<http://www.confluencias.uff.br/index.php/confluencias/article/view/393>. Data de acesso: 15/10/2017.

INEP. Censo da Educação Superior – Principais Resultados, 2016. Disponível em: <
http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2016/censo_superior_tabelas.pdf>
Data de acesso: 16/10/2017

MIAILLE, Michel e FONTAINHA, Fernando de Castro. O ensino do direito na França. In Revista direito GV
[online]. 2010, vol.6, n.1, pp.59-66. ISSN 2317-6172. Disponível em: <
http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v6n1/04.pdf>. Data de acesso: 16/10/2017.

1069
Grupo de Trabalho 16

ARTE, MÍDIA
E DIREITOS HUMANOS:
O TEATRO, A FOTOGRAFIA,
O CINEMA E A TELEVISÃO

mlxx
A VERDADE DE NIETZSCHE NA OBRA
A LIBERDADE GUIANDO O POVO DE EUGENE DELACROIX,
UMA PERSPECTIVA FEMINISTA

COELHO, Naiara
Estudante de mestrado do Programa de Sociologia e Direito da UFF

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar a obra A liberdade guiando o povo, de Eugene Delacroix a
partir do conceito de verdade apresentado por NIetzche no seu texto intitulado Verdade e mentira no
sentido extramoral, a partir de uma perspectiva feminista. Sem a intenção de faer uma análise artística
a perspectiva apresentado é do caráter representativo das imagens enquanto registros da história e de
como a imagem cria um aspecto de realidade. Para isso, a pesquisa traz as funções da imagem, o
contexto da Revolução Francesa, a atuação das mulheres na Revolução e a análise da obra.

Palavras-Chave. Representação, Mulheres, Veracidade.

ABSTRACT

The objective of this work is to analyze Eugene Delacroix 's The Freedom Guiding the People from the
concept of truth presented by NIetzche in his text Truth and lies in the extramoral sense, from a
feminist perspective. Without intending to make an artistic analysis the perspective presented is the
representative character of the images as records of history and how the image creates an aspect of
reality. For this, the research brings the functions of the image, the context of the French Revolution,
the role of women in the Revolution and the analysis of the work.

Keywords. Representation, Women, Veracity.

1071
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

Ainda mais do que as palavras, imagens são capazes de nos contar histórias,
passadas ou inventadas repletas de ambiguidades, contradições e invisibilidades. Assim, o
presente trabalho se propõe a observar esses elementos de interpretação na obra de Eugene
Delacroix, intitulada A liberdade guiando o povo.
Essa ilustração hoje entendida como emblema da revolução Francesa nos permite
recontar a história da revolução a partir de uma perspectiva que a história não se empenhou
em fazer, a da luta das mulheres.
Considerado como o primeiro momento do feminismo enquanto movimento
organizado, a imagem símbolo da Revolução pouco e mal tem para nos dizer desse fato de
tanta importância, motivo pelo qual esta pesquisa alia a leitura da obra à perspectiva da
história feminista na Revolução Francesa.
Para melhor compreensão do tema, este artigo se divide em quatro momentos. O
Primeiro consiste na apresentação da imagem como registro da verdade, após contextualiza-se
a situação da França no período de revolução, para então se falar da atuação das mulheres no
período e, enfim, analisar a imagem proposta.
Encerra-se o trabalho apresentando as considerações finais do estudo.

1. A IMAGEM COMO REGISTRO DA VERDADE

Desde as pinturas rupestres, imagens são utilizadas para transmitir às gerações


futuras fatos ocorridos no passado. Seja por lazer, pela necessidade de registrar o cotidiano ou
os grandes acontecimentos, a reprodução de fatos, a partir de imagens, se apresenta como um
recurso visual de aprendizado.
A imagem pode representar ideia políticas, valores morais ou crítica social que se
quer propagar, ou inculcar na mente do público. Contudo, a efetividade das representações
dependem da existência de uma aceitação coletiva, propícia à adesão de ideias ou da
construção de um novo imaginário social. Nesse sentido, Bordieu (2001) nos ajuda a pensar o
poder da criação de uma nova realidade, a partir do conceito de poder simbólico, por meio do
qual se entende que é o “poder sobre o uso particular de sinais (...) sobre a visão e o sentido do
mundo natural e social (...) que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe”
(BORDIEU, 2001, p. 72).

1072
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Utilizada como estratégia de ensino para populações não alfabetizadas, as ilustrações


conseguem passar mensagem sem que seja utilizada uma palavra sequer. De forma enfática e
lúdica, a imagem é capaz de traduzir sentimentos e contar histórias, como os documentos
escritos, como fez a Igreja Católica para dissipar a mensagem de seu líder.

Porque o que a escrita (scriptura) proporciona às pessoas que lêem, a pintura


oferece aos iletrados (idioti) que a olham, porque esses ignorantes vêem aí o que
devem fazer; aqueles que não conhecem as letras lêem aí, de modo que a pintura
desempenha o papel da leitura, sobretudo entre os pagãos (gentibus) (MAGNO,
1982).

Assim, a utilização da imagem enquanto método de ensino reforça o fato de que


ilustrações são também registros utilizados para representar épocas em que não se vive, mas
onde é possível se retornar através de sua representação visual. Trata-se, então, da
possibilidade de resgatar a memória visual e do entorno sociocultural, através da análise da
interpretação da vida histórica (KOSSOY, 2001, p.55).
Para a transmissão de fatos antigos, quando não havia fotografia, a captação de
imagens era realizada por artistas, os grandes responsáveis por retratar a realidade e produzir
registro dos grandes acontecimentos. Que mais tarde servem como símbolos e se tornam
emblemas da história.
Muitas vezes financiados, é grande o número de obras que foram encomendadas,
assim, ainda que a as obras tenham como propósito de contar uma história, Kornis (1992), nos
lembra de que a imagem poderá ser a realidade ou uma representação (KORNIS, 1992,
p.243), algo criado não apenas com a intenção de reprodução da realidade, mas de uma
reinterpretação do que se vê.
Para nos ajudar a pensar a observação de Kornis (1992), Nietsche (2001) explica
que a verdade jamais será única, haverá sempre múltiplos pontos de vista que são
denominados por ele como “verdade do rebanho”. Isso porque, a verdade advirá do que cada
grupo decidir ter como real e útil de assim ser mantido.
Para Nistzche (2001), a verdade é uma construção que decorre da vida no rebanho,
grupo de socialização, e da linguagem que lhe corresponde. Onde a verdade é dita a partir do
critério de utilidade e dos interesses a que se propõe (NIETZCHE, 2001, p. 13).
Dessa forma o artigo proposto tem com objetivo analisar a verdade do rebanho de
revoltosos da Revolução Francesa através da análise do quadro A liberdade guiando o povo

1073
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de Eugene Delacroix, a partir do fato de que a Revolução Francesa é considerada um marco


do feminismo como movimento organizado.
Por esse motivo a sessão seguinte se prestara a contextualizar a França no período da
mencionada revolução.

2. A REVOLUÇÃO FRANCESA

Iniciada em 1789, a Revolução Francesa decorreu da revolta dos burgueses contra o


Antigo Regime, onde o poder decorria da hereditariedade e da benção divina concedida aos
monarcas, enquanto a população - majoritariamente miserável, era cada vez mais explorada
pelos governantes e a burguesia, como classe em ascensão, não conseguia gozar dos
privilégios exclusivos da Monarquia e da Igreja Católica.
Neste período a França era o país mais importante, e mais contraditório, da Europa
continental. Quanto ao desenvolvimento econômico, apesar de ter iniciado a industrialização,
ainda era majoritariamente agrário, com uma população significativamente maior do que os
países que se destacavam a época, como a Inglaterra, tendo atingido a marca de 25 milhões de
habitantes, uma população muito superior à de qualquer outro país da Europa ocidental. Paris,
a capital, era a cidade mais populosa do planeta, e já era a capital intelectual de Europa.
No que tange às decisões políticas, a última palavra era do rei. Ainda que dividida
em três ordens ou estados, o topo da hierarquia era do monarca e abaixo dele estavam o clero
ou Primeiro Estado, nobreza ou Segundo Estado, e povo ou Terceiro Estado.
Essa última característica corresponde a um dos grandes motivos da Revolução.
Para Toqueville, francês e parlamentar que estudou a democracia francesa, a centralidade das
decisões se uniformidade administrativa estabelecida na França constituiu um fator de
insegurança da população, que, apesar de ser a maioria, não tinha seus direitos respeitados e
muito menos suas vontades políticas eram ouvidas (TOQUEVILLE, 1979, p. 132).
Dessa questão decorre também outro fator decisivo para a revolução, na França, não
havia liberdade para que a população formasse um corpo político que transmitisse suas
anseios e demandas, tudo devido a grande repressão exercido pelo Estado.
Nem mesmo as classes privilegiadas se apoiavam politicamente para demandar
mudanças na estrutura de poder. Nobreza e burguesia, que detinham grande parte do poder

1074
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

econômico não foram aliadas em nenhum momento e, estrategicamente, isso desarticulou


qualquer forma de articulação de poder perante a monarquia.
O grupo que liderou a revolução foi o de burgueses, a classe que, no período
desfrutava da riqueza do comércio, mas não do status de alta sociedade, muito menos dos
privilégios do clero ou da nobreza de não pagar impostos ou ser mantido pelo pagamento dos
impostos da população.
Os burgueses compunham um grupo em que predominavam os comerciantes, mas
também havia intelectuais que juntos lutaram pelo ideal que mais tarde ficou conhecido como
o lema da Revolução: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Conhecida então como uma revolução que pregava a democracia, a Revolução
Francesa, contudo não deu conta de atender aos anseios de todos os cidadãos franceses que
estavam descontentes com o governo monárquico. Robespierre, filósofo e apoiador da
Revolução francesa afirmava que “O governo da Revolução é o despotismo da liberdade
contra a tirania” (SCHILLING, 2017, s.p.), mas essa liberdade não era para todos, metade da
população não teve suas pautas sequer ouvidas: as mulheres.

3. AS MULHERES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

No que se pese a repercussão positiva do fim do Antigo Regime e da monarquia


francesa, abolindo-se a manutenção de privilégios pela hereditariedade ou sangue, existem
críticas importante as serem feitas à Revolução Francesa, como a forma com que se deu a
participação das mulheres e a repercussão da revolução para este grupo específico.
Conforme Toqueville, um dos grandes problemas da Revolução Francesa foi tratar o
cidadão de forma generalizada, não se atentar as demandas específicas e, assim com a
religião, trazer uma proposta que se vende como justa a toda uma população, heterogênea
como todas são.

(...) ela [Revolução Francesa] considerou o cidadão de um modo abstrato, fora de


todas as sociedades particulares, assim como a religião considera o homem. (...)
Não procurou saber qual era o direito particular do cidadão francês, mas quais os
direitos e deveres gerais em matéria política (TOCQUEVILLE, 1979, p.89).

Parte dessa heterogeneidade mencionada por Toqueville, as mulheres, não foram


consideradas em suas individualidades. Além de constituir o grupo de manifestantes,

1075
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

estrategistas e burgueses que lutavam intensamente pelos seus direitos, existiram conquistas
importantes realizadas por mulheres e pouco evidenciadas.
Um desses fatos foi a Marcha de 5 de outubro de 1789, considerada a primeira
intervenção da multidão feminina na Revolução, marcou o início da participação política
expressiva das mulheres do povo no processo revolucionário.
Essa manifestação ocorreu principalmente devido a um suposto novo complô dos
aristocratas que queriam derrotar o povo pela fome. Para as mulheres do povo, era o pior dos
mundos: a escassez, os autos preços dos alimentos e o desemprego causado pela retração do
comércio da moda e da criadagem doméstica, afetados seriamente pela crescente emigração
dos nobres. Nessa situação as mulheres começaram a agir de formas não tradicionais (LEVY,
1980, p. 15), saindo em procissões e marchas rituais quase diárias.
No dia 05 de outubro, a continuada falta de pão e as notícias de ofensas ao povo por
parte dos oficiais em um banquete ocorrido em Versalhes foram o estopim de uma
insurreição. Seis mil mulheres de Paris e das regiões próximas, com a ajuda armada de parte
da Guarda Nacional, marcharam até Versalhes para levar o rei até o Palácio de Tulherias
(MARAND, 1989, p. 72), onde havia maior vigilância popular.
As mulheres conseguiram alcançar o objetivo que pretendiam e foram retratadas na
ilustração anônima, conhecida como Marcha das Mulheres.

Fonte: Ilustração alusiva à Marcha sobre Versalhes, Museu Carnavalet, Paris.


5 de outubro de 1789

1076
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Para Joan Landes, a Marcha de Versalhes trata-se de uma longa tradição da


participação feminina em protestos populares, especialmente durante crises de subsistência
(LANDES, 1988, p. 110). Isso porque, além de responsáveis pelo orçamento doméstico e pela
alimentação da família, o comércio de alimentos em Paris, era dominado pelo trabalho das
mulheres no mercado central (MERCIER, 1782, p. 241), fato que auxiliou o poder de
autonomia, negociação, interesse político e contato com pessoas importantes da cidade.
Assim, importante ressaltar que, à época mulheres lutavam pela igualdade tanto
quanto seus companheiros homens, de forma organizada, como por meio da Sociedade das
Republicanas Revolucionárias, de Claire Lacombe e Pauline Léon, como as ativistas
Théroigne de Méricourt e Olympe de Gouges, mulheres reivindicavam por direitos políticos
dentro e fora da discussão da constituinte (BIROLI, 2014, p. 20). Contudo, ainda que
engajados com a causa da Revolução e seus três lemas, a maioria dos revolucionários
franceses ou eram desinteressados quanto aos direitos das mulheres ou eram hostis quanto ao
assunto.
Muito do machismo dos revolucionários advém da inspiração teórica da revolução:
os estudos de Rousseau. Tendo como objeto de estudo dois dos três lemas da Revolução
Francesa – liberdade e igualdade , Rousseau também afirmava que a liberdade dos homens
não incluía as mulheres, que eram “naturalmente” pretensas à esfera doméstica (PATEMAN,
1989, p. 26).
Externalizando suas reivindicações das mais diversas formas, Olympe de Gouges
ganhou notoriedade ao escrever a obra “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã”, em
1791, em resposta ao documento elaborado pelos revolucionários intitulado “Declaração dos
direitos do homem e do cidadão” onde, de forma proposital não se inclui os direitos das
mulheres sob qualquer perspectiva (SCOTT, 2002, p. 63). A obra de Gouges se trata da
transcrição da “Declaração dos direitos do homem de do cidadão” para o feminino com
acréscimos importantes para as especificidades da vida das mulheres, como a garantia de que
mulheres podem subir à tribuna e que tem liberdade para indicar o nome do pai de seus filhos.
O ímpeto revolucionário de Olympe não prosperou como o de seus companheiros e
ela foi guilhotinada pela defesa de seus ideais em 1973. Ela que foi também artista e escreveu
diversas peças sobre a vida das mulheres na França, não viu, nem na arte a devida
representação das mulheres se desenvolver.

1077
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

4 A REPRESENTAÇÃO DA REVOLUÇÃO FRANCESA

Símbolo da Revolução Francesa, a obra A Liberdade guiando o povo de Eugène


Delacroix, foi feita em homenagem a Revolução de 1830 que conseguiu de forma definitiva
cumprir com o grande objetivo da Revolução Francesa: derrubar o Antigo Regime.

Fonte: A Liberdade guiando o povo, Eugène Delacroix, 1830.

Eugene Delacroix foi um artista da escola romântica de pintura francesa conhecido


por utilizar as cores livres. A imagem foi pintada numa carta ao seu irmão, datada de 21 de
outubro de 1830, onde escreveu: "O meu mau humor está desaparecendo graças ao trabalho
árduo. Embarquei num tema moderno - a barricada. Mesmo que eu não tenha lutado pelo
meu país, pelo menos pinto para ele” (TOUSSANIT, 1982).
Na imagem, é a figura central uma mulher que carrega em sua mão direita a
bandeira da França e na esquerda uma arma. Ela olha para o lado esquerdo, onde homens
parecem caminhar destemidos com ela. À esquerda pode-se identificar quatro homens, onde
cada uma parece representar um grupo de cidadãos franceses e, à direita, há um menino com

1078
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

uma arma em cada mão que parece chamar os demais para a caminhada, como faz a mulher
no centro da imagem. Esses personagens masculinos simbolizam as várias camadas da
sociedade que agora tinham voz, como os intelectuais, operários e demais estratos da
sociedade.
Todos os personagem estão em cima de corpos, o que simboliza a derrota do
governo absolutista, eles se sobrepõem como se formassem um pedestal onde o lugar de
destaque é o da bandeira da França e da liberdade ali representada apela imagem da mulher.
Essa mulher ao centro aparece em perspectiva maior do que qualquer outro
personagem, ela também leva as cores mais destacadas e destoa dos demais ao apresentar seu
seio a mostra e os pés descalços. É ela quem guia o povo, ela representa a Liberdade que
intitula a obra.
Na imagem ela aparece vitoriosa, lembrando a imagem de uma deusa. A liberdade
vence, tem a França em suas mãos e chama por todas as camadas a lutarem com ela. Com
olhares firmes e determinados, todos caminham a frente, destemidos e certos de seus passos.
Os principais personagens se inscrevem dentro de um triângulo em cujo vértice está
a bandeira. As cores predominantes são azul, branco e vermelho – as cores da bandeira da
França, que se destacam dos tons de cinza e marrom predominantes. O branco que remete a
luz da vitória, o céu em um azul que chama à comemoração e mostra a energia de um dia
ensolarado e o vermelho sangue, cor símbolo de revoltas e sangue.
Tendo entre os personagens, o de maior destaque uma mulher, ao centro, carregando
a bandeira, em uma posição elevada e a frente dos demais, que verdade essa imagem
transmite com relação aos direitos das mulheres na Revolução Francesa¿
A Revolução Francesa, considerada o ponto inicial do feminismo e símbolo da luta
pelo sufrágio no movimento feminista, em sua imagem emblemática, retrata em destaque a
representação de um grupo de indivíduos que não foram por ela considerados enquanto
sujeitos de direitos.
Há contradição em simbolizar a liberdade com uma mulher, já que a única liberdade
de que as mulheres gozaram foi a de servir à luta, mas sem dispor de seus frutos na mesma
proporção.
A verdade para os revoltosos se manteve na imagem idealizada da mulher enquanto
deusa, mas não como cidadã real e sujeita de direitos. O contrassenso da ordem de morte à
Olympe e tantas outras mulheres que foram consideradas transgressoras por defenderem seus

1079
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ideais são escancarados quando o símbolo da Revolução leva o rosto de uma mulher que guia
o povo, enquanto que, na realidade, elas não foram ouvidas, apoiadas ou respeitadas por eles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os processos de representação da realidade permanecerão sendo parciais, para a


apresentação de um contexto, algo é evidenciado enquanto outro ponto se apresenta como
ausente. Por isso a necessidade de investigar para além do que se vê.
Durante toda a história da sociedade patriarcal o protagonismo das mulheres foi
invisibilisado em relação aos homens, sejam enquanto líderes ou coletividade significativa, a
luta das mulheres permanece anônima nas representações visuais e escritas.
Se isso é verdade no século XXI, mais ainda será nas representações histórias, em
décadas onde a criticidade em reação à sociedade não abarcada questões como machismo e
feminismo. Assim caberá a nós, mulheres da nova geração reler e recontar a história de qual
sempre fizemos parte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
5, n.10, 1992.

KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 2.ed. São Paulo: Cotia: Ateliê Editorial, 2001.

LANDES, Joan B. Women and the Public Sphere in the age of the Franch Revolution. Ithaca and London.
Cornell University Press: 1988.

LEVY, Darline G e outros. Women in revolutionary paris – 1789-1795. Selected documents translated with notes
and comentary by the authors – Urbana e Chicago. University of Illlinois Press. 1980.

MARAND-FOUQUET, Catherine. La femme au temmps de La Revolution. Éditions Stock/Laurence Pernoud:


1989.

MERCIER, louis-Sébastien. Le Tableu de paris. Vol. 12. Amsterdam: 1782-2, VI, p. 306 In GARRIOCH, David.
The Everyday Lives of Parisian Women and the October Days of 1789 – Social History. Vol 24. Nº 3 (oct.
1999).

MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Política e Feminismo. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

NIETZSCHE, Friedrich. Verdade e mentira no sentido extramoral. Comum, Rio de Janeiro, Vol. 6. Nº17, p. 6 à
23. Jul/dez 2001.

1080
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

PATEMAN, Carole. The disorden of women. Democracy, feminism and Political Theory. Stanford: Stanford
University Press, 1989.

SÃO GREGÓRIO MAGNO. Epistola ad Serenus. XI, 10. GREGORIUS MAGNUM. Registrum Epistularum.
Turnhout: Brepols, 1982 (CCSL 140A).

SCOTT, Joan. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem. Florianópolis: Mulheres,
2002.

TOUSSAINT, Hélene (1982). La Liberté guidant le peuple de Delacroix. Paris: Editions de la Réunion des
Musées Nationaux.

TOQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Vol 1. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1979.

1081
A(R)TIVISMO FEMINISTA:
INTERSECÇÕES ENTRE ARTE POLÍTICA E FEMINISMO

COSTA, Maria Alice Nunes


Professora do Programa de Sociologia e Direito da UFF
COELHO, Naiara
Estudante de mestrado do Programa de Sociologia e Direito da UFF

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar a categoria artística Artivismo, por meio da discussão sobre
as conexões entre arte, política e feminismo. Através da análise do conceito de artivismo, serão
apresentadas artistas e obras que possibilitam visualizar a arte enquanto manifestação política de
algumas das reivindicações feministas, como as produções de Bárbara Kruger, Guerrilla Girls e Márcia
X, além da modificação de uma campanha publicitária brasileira.

Palavras-Chave. Feminismo, Arte política, Ativismo.

ABSTRACT

This work aims to present the artistic category Artivismo, through the discussion about the connections
between art, politics and feminism. Through the analysis of the concept of artivism, artists and works
will be presented that make it possible to visualize art as a political manifestation of some of the
feminist claims, such as the productions of Barbara Kruger, Guerrilla Girls and Márcia X, as well as
the modification of a Brazilian advertising campaign.

Keywords. Feminism, Political art, Activism.

1082
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa trazer à discussão a reivindicação de direitos feministas


através da modalidade artística denominada Artivismo. O termo utilizado para designar arte
política e crítica aparece no Brasil após um período longo de repressão as mais diversas
formas de expressão, assim, este trabalho pretende trazer o uso da categoria artística enquanto
manifestação feminista e reivindicação de direitos. Para isso serão utilizadas fontes
bibliográficas que tratem da arte enquanto manifesto político, de demandas feministas e do
conceito e função do direito na sociedade contemporânea.
A arte feminista, assim como as produções de autoria e de conteúdo relacionado às
minorias são menos expostas e valorizadas, por esse motivo, a categoria artística denominada
artivismo, se apresenta de forma mais compatível com a proposta política das obras que, além
de ocuparem espaços públicos e não tradicionais da arte, tem como conteúdo principal o
cotidiano.
Através de revisão bibliográfica e do método indutivo, apresentar-se-á o conceito de
artivismo, suas principais características e representações para, em seguida, apresentar o
artivismo feministas, as artistas de maior destaque, suas especificidades e vertentes. Encerra-
se o trabalho apresentando as considerações finais que lhe cabem.

1. ARTIVISMO

Possuindo sentido amplo, o conceito de Arte tem abarcado cada vez mais variações
dentro de sua concepção principal. Hoje, longe de ser apenas o que remete à Arte Clássica,
como a mera reprodução de retratos de pessoas ou paisagens, à simples diversão das elites e à
distração das massas, a arte encontra também o seu teor político, crítico e reinvindicativo que
ultrapassa a técnica.
A essas variações da arte, principalmente a partir da década de noventa, passam a ser
utilizados diversas nomenclaturas – como ativismo, arte ativista, arte política e artivismo. etc.
(MESQUITA, 2011, p. 36). O termo artivismo surge em 2003, enquanto resposta à crítica
artística de Juliana Monachesi, que tentou relacionar a produção dos coletivos artísticos do
momento às obras dos situacionistas Cildo Meirelles, Helio Oiticica e Artur Barrio,
importantes artistas da década de sessenta e setenta, no Brasil. Segundo Juliana, os novos
artistas estariam utilizando dos mesmos meios e técnicas próprios dos situacionistas,

1083
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

correspondendo, então ao ressurgimento dessa arte, o que ela chamou de “A(r)tivismo”


(Mesquita, 2011, p.237).
Ainda que os artistas tenham discordado da crítica e utilizado esse momento para
suscitar o debate acerca da relação da mídia com a arte, do papel político das produções
artísticas e terem reaçizado uma auto crítica dos trabalhos coletivos e pessoais, conforme
Boas (2015, p.39), as categorias possuem mais convergências do que divergências.
Assim, observa-se que os métodos, matérias e procedimentos do ativismo, arte
política, arte ativista e artivismo, são comuns entre eles, pois todos utilizam a arte enquanto
manifesto político. Neste trabalho, a partir de uma perspectiva que busque aproximar os
conceitos de Arte, Política e Ativismo, opta-se pelo uso do termo Artivismo, pelas razões
expostas a seguir.
Assim como o artivismo, conforme Mesquita (2011. p.17) “a arte ativista não
significa apenas arte política, mas um compromisso de engajamento direto com as forças de
uma produção não mediada pelos mecanismos oficiais de representação”, o que ressalta as
primeiras características do artivismo que são a possibilidade de autoria por uma pessoa que
não seja, necessariamente, profissional da arte e, assim, a sua popularização enquanto
expressão também fora das classes elitizadas, outra característica.
Além disso, o artivismo tem como particularidade a possibilidade de autoria por
um/uma não profissional das artes (BOAS, 2015. p. 68), e o uso de meios diversos de
comunicação (MESQUITA,2011. p.17). Isso porque, a titulação de artista e o uso dos meios
tradicionais são considerados espaços engessados e que distanciadores, assim, o artivismo se
faz não apenas nos meios tradicionais e hegemônicos, possibilitando maior liberdade de sua
forma e conteúdo. Para o artivismo, basta que a/o artista ativista se utilize de tecnologias e
mídias diversas, a fim de intervir na sociedade através de ações artísticas.
Além disso, é comum ao artivismo que seu conteúdo seja o cotidiano, sem o crivo
erudito da arte conceitual (BOAS, 2015. p. 70), sua substância encontra proximidade aos
temas de minorias pouco ou mal abordados pelas mídias hegemômicas. Dessa forma o
artivismo possibilita “imprimir maior potencialidade para o indivíduo seguir na sua
existência, perante o poder político ou micropoderes difusos (...) bem como emprestar maior
eficiência aos interesses e programas de instituições e grupos dirigentes do corpo coletivo”
(CHAIA, 2007. p.14).

1084
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Enquanto conteúdo e substancia do artivismo, este trabalho propõe pensar o


feminismo, movimento social e político que busca também através da arte reivindicar e
externalizar a luta das mulheres pelo fim das diversas formas de opressão que sofrem.

2. ARTIVISMO FEMINISTA

Apesar de o termo Artivismo surgir de forma mais intensa no Brasil apenas na


década de 90, é possível dizer que todas as ondas feministas brasileiras contaram com
manifestações artísticas do “ser mulher”.
Uma das artistas que se destaca na primeira onda feministas (1920-1930) é Gilka
Machado, poetisa e militante pelo voto das mulheres, escreveu sobre a dura realidade de ser
mulher no século XIX e transgrediu padrões patriarcais ao escrever sobre erotismo. Na
década de 70 – segunda onda feminista, os panfletos organizados pelo Movimento Feminino
Pela Anistia, apresentavam frases marcantes e imagens cheias de simbolismo (PINTO, 2003.
p. 65), já no fim da década de 80/90 os primeiros jornais feministas apresentavam as charges
que mostrava os objetivos dos diversos grupos feministas da época (FERREIRA, 1995/1996.
p. 187).
Para ser considerado feminista, o conteúdo do artivismo estará ligado
principalmente a critica do patriarcado, enquanto forma de dominação e subordinação das
mulheres. Por esse motivo, grande parte das obras artivistas questiona a pouca visibilidade
dada a mulheres, a representação deturpada do que é ser mulher, a denúncia o machismo no
meio artístico ou do cotidiano, etc (TAVARES, sd., p. 5).
Helena Cabello e Ana Carceller, artistas que pesquisam a arte feminista, identificam
duas grandes vertentes do movimento feminista no artivismo: a essencialista a vertente
construcionista (2000, p. 31), onde a essencialista tem como foco as especificidades do que é
biologicamente caracterizado como feminino e o construtivismo, partirá da concepção de
gênero, reafirmando que feminino e masculino são construções sociais. Além dessas duas
vertentes, é possível verificar o feminismo radical nos trabalhos de Nikki Craft (FONSECA,
2010, p.766), o feminismo interseccional de Bárbara Kruger (ARRUDA, 2011, p.390) e
demais questionamentos comuns a todas as vertentes do feminismo, como a inferiorização
das mulheres.

1085
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Assim, das mais diversas forma e mais fortemente a partir do século XX, as
mulheres, artista ou não, tem se utilizado dos métodos artísticos para a intervenção e
manifestação política da crítica a subordinação das mulheres no sistema patriarcal, como será
visto nos exemplos a seguir.

3. BARBARA KRUGER

Um exemplo de artivismo feminista são os trabalhos de Bárbara Kruger. Nascida


nos Estados Unidos, em 1945, Bárbara possui um estilo único e permanece até os dias atuais
como um símbolo da Arte feminista.
Seu método consiste na apropriação de imagens vinculadas em revistas, com a
sobreposição de frases, que visam subvertem o sentido original da imagem, trazendo assim,
um olhar crítico. Suas obras utilizam as imagens em preto e branco e a escrita em branco e
vermelho, com fontes semelhantes às utilizadas em jornais e revistas. Nenhuma de suas obras
possui nome, a maioria é identificada pela frase que a compõe (ARRUDA, 2011, p. 394).

KUGER, Bárbara – s.d.: 100% Natural e I Never Wanto To Grow. Acervo Bárbara Kruger.

Uma de suas obras mais famosas é a Your body is a battleground (Seu corpo é um
campo de batalha – tradução livre), criada em 1989 para a passeata em favor do direito de

1086
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

escolha das mulheres, no caso de aborto (ARRUDA, 2011, p. 395). A manifestação decorreu
da demanda judicial do caso Roe x Wade, onde um lado defendia o direito a vida dos fetos e o
outro, a escolha das mulheres.

KUGER, Bárbara – 1989: Your body is a battlegroud. Acervo Bárbara Kruger.

Apesar de expor em grandes galerias do Estados Unidos, a arte de Bárbara Kruger é


própria do artivismo, sendo vista muitas vezes em canecas, camisetas, bolsas e outdoors.
Assim, a artista possui prestígio nos espaços hegemônicos e também em espaços populares.

4. GUERRILLA GIRLS

Guerrilla Girls é um grupo de mulheres que tem como principal objetivo questionar
como a mulher é vista no meio artístico e mostra o quão são desvalorizadas e invisibilizadas.
A primeira aparição do grupo se deu em 1987, em Manhattan, quando fizeram uma passeata
com cartazes que expunham de forma irônica “As vantagens de ser uma mulher artista”
(TAVARES, sd., p. 4), como o salário inferior a outros artistas, as múltiplas jornadas de
trabalho e os poucos convites para exposição.
A identidade real do grupo não é conhecida, pois todas utilizam máscara de gorilas e
nomes de artistas famosas já falecidas. Segundo as integrantes do grupo, essa escolha se deu

1087
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

de forma estratégica, para que o foco seja mantido nos fatos que elas questionam e para que
elas possam circular e estar em todos os lugares à vontade (GUERRILA GIRLS, s.d., s.p.).

Fonte: GUERRILLA GIRLS: NÃO PRONTO PARA FAZER AGRADECIMENTOS, 30 ANOS E AINDA
CONTAR , Abrons Art Center , NYC, 2015. Pop-up Birthday Exhibition. Acervo Guerrilla Girls

Suas obras utilizam cores fortes, textos pequenos, geralmente acompanhados de


dados oficiais, ou por elas mesmas coletados, além de releitura de imagens de mulheres. A
Bienal de Veneza de 2005, que ficou conhecida como a primeira bienal feminista
(TAVARES, sd., p. 5), recebeu a exposição das Guerrilla Girls que discutiu a ausência de
mulheres artistas em mostras de arte moderna, como reflexo do distanciamento da alta
cultura, que é dominada e administrada pelo gênero masculino.
Conforme, Arruda (2011, p. 399) a interpretação do número alto de frequência dos
nus femininos na arte, com relação aos masculinos, permite apreender a mulher como uma
espécie de objeto culturalmente adormecido, alvo do olhar contemplativo e isenta de
participação como sujeito-social ou agente atuante na cultura moderna e contemporânea.
Em 2017, as Guerrilla Girls estiveram no Brasil expondo no Museus de Arte de São
Paulo (MASP) e, fizeram uma releitura do cartaz já realizado por elas em 1989 – com dados
sobre o Museu Metropolitam, agora com os dados do MASP, onde o texto da imagens
questionava o número de nu femininos expostos em contraposição ao número de artistas
expondo sua sobras.

1088
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Fonte: GUERRILLA GIRLS: MASP, 2017. Acervo Guerrilla Girls

A exposição foi bem recebida no Brasil e compôs uma série individual que deve
ficar disponível ao público, por três meses. No Brasil, também existem artistas que levam esse
tipo de crítica e conseguem visibilidade na mídia, ainda que em menor intensidade.

6. BRASILEIRAS

No Brasil são comuns as propagandas de cerveja com mulheres vestindo pouca


roupa e geralmente servindo aos homens. Além de falas e textos bastante ofensivos às
mulheres. A campanha de uma marca em específico foi alvo de grandes críticas das mulheres,
por desvalorizar uma resposta negativa, ao que a publicidade dava entender que seria um tipo
de cantada.

Fonte: Folha SP Online, 2016.

1089
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

A repercussão negativa fez com que a marca se retratasse com o público feminino
que também conse seu produto e, como estratégia, convidou oito ilustradoras brasileiras para
refazerem seus anúncios de forma respeitosa e positiva. Além da retirada dos anúncios
ofensivos, as novas versões foram publicizadas e a marca assumiu o compromisso de
modificar seu posicionamento.

Fonte: Skol Repost – Camila do Rosário, 2016.

Fonte: Skol – s.d.

1090
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Fonte: Skol Repost – Eva Uivedo, 2016.

Outra artista brasileira de destaque é Márcia X, artista plástica desde 1980, Márcia
através de suas performances questiona estruturas culturais e institucionais de poder, por meio
d eum olhar sensível e crítico da realidade.
É a partir de 200 que Márcia tem sue trabalho reconhecido pela crítica especializada
e passa a expor em grandes evento e espaços artísticos. Suas obras, pelo alto teor crítico já
chegaram a ser inclusive censuradas em alguns espaços, como é o caso da performance
Desenhando com terços.
Nesta obra, a artista utiliza diversos terços para desenhar no chão inúmeros pênis,
numa área indeterminada. A performance, dura de três a seis horas e o público pode
acompanhar o desenvolvimento do trabalho que adquire características específicas,
dependendo da situação em que é realizado.
A proposta tem como objetivo, impactar o espectador através do uso de um objeto
que se liga ao sagrado, formando a imagem de um órgão sexual, possibilitando o
questionamento do sexo dentro da religião, do hierarquização masculina de homens nessa
crença, dos casos não relatos de abuso etc.

1091
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Fonte: Desenhando com terços – 2000/2003. Acervo Márcia X.

Outra performance impactante de Márcia X é Pancake (2001). Nela, a artista


questiona o estereótipo feminino culturalmente construído, ligado a representação da mulher
doce, sensível, enfeitada e passiva.

Fonte: PANCAKE – 2001. Acervo Márcia X.

1092
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Nesta performance, a artista derruba sobre si diversas latas de leite condensado, até
que fique completamente coberta, quando, então, esparrama sobre sim, através de uma
peneira, confeitos coloridos, terminando sua apresentação como se houvesse se transformado
em um tipo de doce.
Assim, podemos verificar que os questionamentos feministas são expostos através
da arte de diversas formas e em muitos países. No Brasil, ainda que com menor visibilidade, o
artivismo existe e vem crescendo com o acesso as discussões feministas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desse estudo é possível verificar que a arte tem sido um meio de
manifestação também política de mulheres que se posicionam contrarias ao padrão machista
de grande parte dos ramos profissionais. Mais especificamente a partir do artivismo feminista,
observa-se que o feminismo se torna lúdico e autoexplicativo através de imagens e
performances que representam o que é a inferiorização das mulheres.
Apesar das obras e artistas escolhidas, percebe-se que o conteúdo das obras não é
tema recente na arte, porém de pouca visibilidade e acesso, o que inclusive é motivo dos
questionamentos recentes. Além disso, muitas artistas de rua tem seu trabalho não divulgado
ou apropriado, por sofrerem de outras opressões que ultrapassam a questão de gênero, como a
questão racial e econômica.
Sendo assim, releva-se possível e pertinente a intersecção entre arte, política e
feminismo enquanto forma de manifestação artística, luta contra opressões e demonstração
das reivindicações e perspectivas dos grupos feministas.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Lina Alves; COUTO, Maria de Fátima Morethy. Ativismo artístico: engajamento político e questões
de gênero na obra de Barbara Kruger. Revista Estudos Feministas, 2011.

BOAS, Alexandre Gomes Vilas. A(r)tivismo: Arte + Política + Ativismo - Sistemas Híbridos em Ação. Instituto
de Artes: São Paulo, 2015.

CHAIA, Miguel. (org)Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.

FERREIRA, Verônica C. Entre emancipadas e quimeras - imagens do feminismo no brasil. Cadernos AEL, n.
3/4, 1995/1996.

FONSECA, Rui Pedro. O activismo estético feminista de Nikki Craft. Revista Estudos Feministas, 2010.

1093
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

GUERRILLA GIRLS. Acervo. Disponível em: < https://www.guerrillagirls.com/> Acesso em: 10 out. 2017.

Helena Cabello e Ana Carceller, “Sujetos imprevistos (Divagaciones sobre lo que fueron, son y serán)”, Zona F,
Espai D’Art Contemporani de Castelló, 3 Febrero – 9 de Abril de 2000, Castelló.

Márcia X. Acervo. Disponível em: < http://marciax.art.br/index.asp> Acesso em: 10 out. 2017.

MESQUITA, André. Insurgências Poéticas: Arte Ativista e ação coletiva. São Paulo: Annablume Editora, 2011.

PINTO, Céli Regina. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. 2003.

TAVARES, Paula. Breve cartografia das correntes desconstrutivas feministas na produção artística da segunda
metade do século XX. Arte Capital, sd.

1094
INDIVÍDUO, SOCIEDADE E O CINEMA:
A CONTEMPORANEIDADE, O DINHEIRO
E O MOVIMENTO NA CIDADE

RIBEIRO, Wanisy Roncone


Doutoranda em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO

Este artigo busca analisar a influência do dinheiro na contemporaneidade, no sentido da utilização


deste instrumento como fim em si próprio, e demonstrar a maneira de atuação desta ferramenta na
contemporaneidade. O presente estudo tem como base a crítica ao mundo moderno em Georg Simmel,
em relação ao advento da economia monetária, seguida da análise dessas circunstâncias na vida social
e no movimento na cidade, utilizando-se o filme “Medianeras”, dirigido por Gustavo Taretto, e o
documentário “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho, como uma realidade específica onde a cidade é
personagem juntamente com os indivíduos que nela habitam.

Palavras-Chave. contemporaneidade; dinheiro; cidade; cinema.

ABSTRACT

This article seeks to analyze the influence of money in contemporary times, in the direction of the use of
this instrument as an end in itself, and demonstrate how to work this implement in contemporary
society. The present study is based on the criticism of the modern world in Georg Simmel, in relation to
the advent of the monetary economy, followed by the analysis of these circumstances in social life and
the movement in the city, using the film "Medianeras", directed by Gustavo Taretto, and the
documentary "Edifício Master", by Eduardo Coutinho, as a specific reality where the city is character
along with the individuals who inhabit it.

Keywords. contemporaneity; money; city; cinema.

1095
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

INTRODUÇÃO

“O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de


pão e muitos mais à fome de abraços”. (GALEANO, 2009, p. 81)

“O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão a serviço das coisas”.
(GALEANO, 2009, p. 129)

A contemporaneidade trouxe com ela relevantes fenômenos, especialmente a nível


social, onde presenciamos historicamente o surgimento de uma nova ordem mundial,
transições políticas, e mudanças culturais a larga escala. Cabe ressaltar, nesse contexto, uma
observação de Jessé Souza, em análise aos postulados de Simmel (2005), na qual diz que,
para este autor, o fator estrutural mais importante da modernidade é o advento da economia
monetária.
Nesse sentido, será ponto de partida no presente trabalho a análise da influência do
dinheiro na vida moderna, e o quão importante tal ferramenta se constituiu nas relações
pessoais. O que anteriormente era percebido como aparato facilitador das negociações, hoje é
fim em si mesmo, sendo alvo de ambições cada vez mais gananciosas, acumuladoras e
grotescas, não mais servindo apenas como moeda de troca.
O dinheiro ao mesmo tempo em que favoreceu o desenvolvimento do lado pessoal e
da personalidade, quando assume o papel nas transações econômicas, facilitou, também, o
declínio da vida social e a abertura para uma individualidade exacerbada. É neste contexto
que os postulados de Simmel e suas críticas ao mundo moderno são fontes preciosas para o
presente trabalho.
Com o objetivo de não generalizar a crítica ao mundo moderno já estabelecido em
premissas, mas de inicialmente questionar o papel do dinheiro na contemporaneidade, será
feita uma abordagem metodológica de raciocínio dedutivo, com uma perspectiva que parte do
geral para o particular, visando, nos capítulos seguintes, destacar o resultado da intervenção
econômica nas cidades, sendo estas produtos da economia monetária por excelência, para, ao
final, problematizar a atuação social perante o caos instaurado pelo dinheiro nas arquiteturas
urbanas e nas mazelas sociais.
Como uma realidade específica e fonte de uma narrativa própria, além da pesquisa
de base documental e bibliográfica, será utilizado o cinema que, através de um olhar crítico e

1096
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

ao mesmo tempo artístico, serve de instrumento para a formulação de percepções gerais e


específicas objetivadas no presente trabalho.

1. A ERA DO DINHEIRO – A CONTEMPORANEIDADE E A VIDA


ECONÔMICA

O dinheiro tornou-se um dos maiores ícones da era moderna, em especial quando


tratamos da constituição das liberdades. Podemos evidenciar tal afirmativa ao recordar, ainda
no contexto feudal, a substituição progressiva e paulatina das obrigações pessoais por
contraprestações monetárias, tornando um importante símbolo da liberdade quando, então,
pode ser preservada a personalidade pessoal (inalienável) do desempenho (mão de obra
específica, que pode ser comprada em dinheiro).
Nesse contexto de possível liberdade e impessoalidade das relações, a
individualidade é preservada no momento em que o dinheiro dispensa o comprometimento do
indivíduo, possibilitando o desenvolvimento individual, quando, por outro lado, a prestação se
transformou em números, uma realidade comprável.
Ocorreu uma mudança estrutural plena, com qualidades sendo transformadas em
quantidade, quando antes zelava-se pelo valor pessoal, subjetivo, hoje a objetividade dominou
a cena, o dinheiro funciona não mais como uma moeda de troca, mas sim meio e fim em
todos os aspectos da vida.
A frustação é plena quando a permuta, a troca, o escambo, que permitia ainda um
certo valor não monetário do objeto, consequentemente perdeu o seu valor para as moedas de
câmbio, visto que é muito mais fácil circular com notas e moedas, do que com objetos
propriamente ditos. É um exemplo claro ao recordarmos os antigos modos de agricultura e
pecuária, quando pequenas porções de terra, verduras, legumes, ou até mesmo animais, eram
trocados por outras espécies de prestações, outras terras, ou outras produções quaisquer. A
qualidade dos “produtos” ainda não eram números, quantidades, notas, nem moedas.

A cidade grande moderna, contudo, alimenta-se quase que completamente da


produção para o mercado, isto é, para fregueses completamente desconhecidos, que
nunca se encontrarão cara a cara com os verdadeiros produtores. Com isso, o
interesse das duas partes ganha uma objetividade impiedosa, seus egoísmos
econômicos, que calculam com o entendimento, não têm a temer nenhuma
dispersão devida aos imponderáveis das relações pessoais. E isso está,
evidentemente, em uma interação tão estreita com a economia monetária — que
domina nas grandes cidades e desaloja os últimos restos da produção própria e da

1097
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

troca imediata de mercadorias e que reduz dia a dia o trabalho para o cliente.
(SIMMEL, 1903, p. 579)

A facilidade da compra e venda, e circulação de mercadorias, tornou o mundo


moderno ao mesmo tempo dinâmico e trágico. É o que, para Simmel, podemos chamar de
“lado escuro” desse fenômeno:

O ponto positivamente valorizado por Simmel nesse processo é o de que o dinheiro,


ao separar as esferas subjetiva e objetiva, contribui para o desenvolvimento de
ambas, na medida em que permite que cada qual siga uma lógica imanente. O
dinheiro dispensa, por assim dizer, as formas de solidariedade tradicional, nas quais
a pessoa, o indivíduo enquanto tal, se comprometia. O poder libertário da economia
monetária reside, como vimos, no fato de uma personalidade jamais estar em jogo
nas transações monetárias. Essa distância é o que possibilita o desenvolvimento
individual. O elemento alienante do dinheiro, por outro lado, advém do “lado
escuro” desse mesmo fenômeno, visto que, com o afastamento e o distanciamento
de tudo que é pessoal, desaparece, também, a possibilidade de expressão de
qualquer qualidade específica não-econômica. O papel universalizador do dinheiro
como equivalente geral é de uma uniformização unilateralmente dirigida “para
baixo”, ou seja, com qualidades sendo transformadas em quantidade. (SOUZA,
2005, p. 12)

O desenvolvimento dessa cultura objetiva foi proporcionado pela conjunção da


economia monetária e da divisão social do trabalho, “assim, a época moderna conseguiu
separar e autonomizar o sujeito e o objeto, para que ambos realizassem o próprio
desenvolvimento de forma mais pura e mais rica” (SIMMEL, 2005, p. 24). A partir da divisão
laboral e das especializações, a sensação de preservação da personalidade e individualidade
tende a ser mais intensa, quando o dinheiro se impôs na relação, comprando parte do
desempenho do homem, havendo então uma ponte entre o ser e o objeto, ocasionada pela
economia monetária. Todavia, como nos coloca Simmel, “não podemos morar numa ponte”
(2005, p. 33).
O distanciamento do corpo (do homem enquanto ser) da prestação laboral foi o que
tornou possível a substituição do pagamento pessoal pelo pagamento em espécie, quando, de
repente, não era mais a concretude da atividade pessoal que o outro poderia reivindicar, mas
só, e somente só, o resultado nada pessoal daquela atividade, o dinheiro.

A dança do dinheiro afeta decisivamente as economias e a fome por capitais


voláteis (com sua “sensibilidade” para as flutuações econômicas, sociais e políticas
dos “mundinhos” locais) multiplica os dilemas provenientes da globalização. Além
do desaparecimento dos empregos, da supressão de carreiras estáveis no mercado
de trabalho e da readaptação contínua (e cada vez mais solitária) aos novos sistemas
produtivos, assiste-se também ao desmantelamento progresso de referências locais,
comunitárias, de parentesco e de tradições culturais. (FRIDMAN, 2000, p. 51)

1098
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

É neste viés que podemos perceber uma nova dinâmica monetária, quando, por
exemplo, a indenização por danos morais e materiais seja na ausência na prestação de
determinado serviço, ou por quaisquer que seja a ofensa, até mesmo em caso de morte, seja
em valores representados pelo dinheiro.
A sensação do “dinheiro como Deus moderno”, assim como trata Simmel, é
atingida porquanto tal “produz a expressão e a equivalência de todos os valores, unindo os
contrários e os estranhos” (SOUZA, 2005, p. 13). Essa onipotência do “Deus-dinheiro” é
circunstancialmente demonstrada quando tudo pode ser comprável e valorizado conforme
critérios monetários, tornando possível, dessa forma, relações econômicas das mais diversas
possíveis, como transações bancárias mundiais simultâneas, constituições de empresas,
compra e venda de ações, dentre outras, como até mesmo as compras feitas pela internet,
transacionando coisas e pessoas que, muitas vezes, nem se conhecem.
Dessa forma, o mundo das quantificações fez heroica a personalidade destacável
dentre as demais, distinta na medida em que foge a regra dos padrões impostos por essa nova
ordem. O que aparentemente faz da distinção “a única saída contra as patologias do cotidiano
instauradas pelo império do dinheiro” (SOUZA, 2005, p. 16), daí vem a moda, e o que
conhecemos como “alternativo”, também. Os modos de vida alternativa aos padrões
capitalistas e metropolitanos tendem a ser a única maneira de se estabelecer isento ao modelo
de vida atual das grandes cidades, porém, fugir dessa nova engrenagem econômica é cada dia
mais difícil.

O dinheiro confere às grandes cidades suas duas características mais marcantes: o


intelectualismo e a calculabilidade, por um lado, e a indiferença, por outro. A ênfase
nas faculdades intelectuais, em oposição às relações baseadas no sentimento e na
pessoalidade típicas das pequenas cidades, é produto da necessidade de medidas
objetivas para comparar desempenhos, produzir previsibilidades e regularidades,
sem as quais seriam impossíveis a economia monetária e a manutenção dos
serviços em uma metrópole. A ênfase na pontualidade, previsibilidade, exatidão e
competição impregna o ser do citadino, de tal forma que lhe confere um ritmo
próprio, nervoso, ansioso, repressivo com relação a seus instintos e necessidades.
(SOUZA, 2005, p. 18)

As frustações pessoais desempenhadas pelo dinheiro tornaram-se cada vez mais


comum quando este assumiu a forma de finalidade primordial da vida, não mais um meio,
quiçá moeda de troca. A busca apaixonada pela acumulação de riqueza monetária produziu o
ritmo nervoso e acelerado da vida moderna, o stress banalizado, as depressões e os
afastamentos sociais, ocasionando cada vez mais desigualdades amplas e uma sociedade

1099
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

completamente apartada nas grandes cidades, estas “como grandes palcos onde os efeitos do
dinheiro podem ser mais bem observados” (SOUZA, 2005, p. 16).

2. “AS GRANDES CIDADES COMO PRODUTO DA ECONOMIA


1
MONETÁRIA POR EXCELÊNCIA” – AS “MEDIANERAS”

Estou convencido de que as separações e os divórcios, a violência familiar, o


excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a abulia, a
depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, as
contraturas, a insegurança, o estresse e o sedentarismo são responsabilidade dos
arquitetos e empresários da construção. Desses males, exceto o suicídio, eu padeço
de todos.2

A sociedade apartada presente nas grandes cidades é visível em todos os cantos:


edifícios cada vez mais altos, prédios projetados para suporte a um grande número de
moradores, centro comerciais inseridos a todo custo e publicidade nas medianeras 3. Mas essa
arquitetura moldada para grandes movimentações nas cidades ao mesmo tempo em que faz
presente uma grande soma de pessoas, as afasta, “encaixotando-as” em apartamentos cada
vez menores, e apartando as mesmas, como a palavra “apartamento” 4 já diz.
O conjunto de relações sociais advindo da economia monetária interferiu de forma
abrupta na vida urbana contemporânea, com um aumento das privatizações dos espaços
públicos, como a especulação imobiliária e a poluição visual advinda da publicidade. Tal
interferência se manifesta em modificações graduais da cidade e em nefastas consequências
às pessoas que nela habitam.

1
Utiliza-se aqui os postulados de Simmel no que tange aos aspectos mais visíveis da economia monetária
emergente. É nesse sentido que ao sinalizar as grandes cidades como produto desta nova ordem, estas são vistas
como catalisadoras dos efeitos do dinheiro sobre a vida social, funcionando como uma espécie de palco.
2
Tradução livre da fala inicial do personagem Martín (Javier Drolas) no filme argentino Medianeras (2011),
dirigido por Gustavo Taretto, ao comparar a construção assimétrica das cidades às subjetivações humanas.
Trabalharemos com o longa metragem mencionado ao longo do presente trabalho.
3
“Medianeras” é a designação dada às paredes costumeiramente sem janelas dos edifícios, também conhecidas
como “paredes cegas”. Essas paredes laterais tornam-se impossibilitadas de qualquer tipo de abertura, como
janelas, devido à proximidade com áreas vizinhas. São comuns na utilização de outdoors ou qualquer tipo de
publicidade. Tal termo não se encaixaria tão bem no contexto do filme se o desenvolvimento das cidades não
estivesse intrinsicamente ligado às relações humanas. (Disponível em: <
http://portalarquitetonico.com.br/medianeras/>. Acesso em 16 jul. 2014).
4
Em termos semânticos, a palavra nos remete ao ato ou efeito de “apartar”, separar. E, ainda, no Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa, podemos encontrar sinônimos como ausência, retiro, solidão. Disponível em:
<http://www.priberam.pt/DLPO/apartamento>. Acesso em 15 jul. 2014.

1100
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

O ambiente urbano moderno, resultante desses processos, se caracteriza como um


espetáculo cuja nova ordem mundial capitalista o transformou em uma cenografia, um
cenário completo.

A sociedade que modela tudo o que a cerca construiu uma técnica especial para agir
sobre o que dá sustentação a essas tarefas: o próprio território. O urbanismo é a
tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao
desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a
totalidade do espaço como seu próprio cenário. (DEBORD, 1997, p. 112)

Desse modo, o cotidiano moderno na cidade, por sua vez, rege-se agora por
princípios segregatórios, os quais a transformam em uma verdadeira mise-en-scène
mercadológica, turística e consumista. Os citadinos experimentam uma cidade cada vez mais
em concreto e em obras. As suas vivências aceleradas advindas das conquistadas obrigações
da vida moderna, resultaram em um empobrecimento da experiência urbana e social daqueles
que habitam, com o crescimento, por outro lado, das barreiras sociais e dos muros, onde a
única coisa que se compartilha é a solidão.
É o que se passa no filme Medianeras com o personagem Martín, que divide sua
vida em um pequeno apartamento, e sua única interação física é com o cachorro de estimação.
O filme é uma excelente amostra da realidade citadina, onde os indivíduos não mais se
conhecem e interagem, no momento em que se tornou muito mais fácil estar “presente”
através de um sinal wireless.

A modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era


marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases
anteriores da cultura humana. Em meio à turbulência sem precedentes do tráfego,
barulho, painéis, sinais de trânsito, multidões que se acotovelam, vitrines e anúncios
da cidade grande, o indivíduo defrontou-se com uma nova intensidade de
estimulação sensorial. A metrópole sujeitou o indivíduo a um bombardeio de
impressões, choques e sobressaltos. O ritmo de vida também se tornou mais
frenético, acelerado pelas novas formas de transporte rápido, pelos horários
prementes do capitalismo moderno e pela velocidade sempre acelerada da linha de
montagem. A modernidade, em resumo, foi concebida como um bombardeio de
estímulos. Como afirmou Simmel em seu ensaio de 1903, “A metrópole e a vida
mental” [...], a modernidade envolveu uma “intensificação da estimulação
nervosa”. A modernidade transformou os fundamentos fisiológicos e psicológicos
da experiência subjetiva. (SINGER, 2004, p. 96)

A circulação massiva de pessoas nos grandes centros, além do consequente número


de veículos nas ruas e um fluxo de trânsito cada vez mais intenso, com jornadas de trabalho
que equivalem em muito dos casos a um dia inteiro, aponta um crescimento populacional

1101
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

cada vez maior nas cidades, e uma massa homogênea de seres que comportam-se de uma
maneira muito semelhante. Estas pessoas geralmente trabalham para sustentar uma qualidade
de vida ao menos padrão para aquela sociedade, nem que isso signifique a “venda” de mais da
metade do seu dia, e ao chegarem no “apartamento-apartado”, normalmente cansadas,
preferem não experimentar o espaço em que vivem, e restringem a passos largos sua vivência
social.
A “falta de tempo” cotidiana, o mal do século para alguns, faz levar a crer que não
há mais tempo nem espaço para os vínculos interpessoais no espaço público. E ainda que haja
após o expediente diário, muitos preferem permanecer invólucros e estagnados em seus
apartamentos, sem mais nenhum tipo de interferência externa devido ao stress e cansaço
gerado em meio ao caos urbano.
Ao mesmo tempo em que há uma aparente necessidade de nos constituirmos em
barreiras sociais e físicas levantadas pelas cidades, surge o sentimento de estar só em meio a
multidão. Aqui se apresenta um dos principais elos com a virtualização das relações: como
afirmado anteriormente, a internet trouxe consigo uma sensação de proximidade, porém,
vazia, como é percebido no filme “Medianeras”.
Essas angústias contemporâneas retomam ao pensamento de Simmel quando este
trata da cultura do dinheiro na vida moderna. A partir da nova geração econômica e a garantia
de liberdade preconizada pelo dinheiro, ou seja, quando o homem das épocas anteriores
realizavam negócios de modo pessoal, comprometendo-se com outros individualmente bem
definidos, e hoje podemos permuta-los a nosso bel-prazer, por meio de relações anônimas e
impessoais, conquistamos uma relação de forte individualismo. Desta forma, Simmel ressalta
que

Não é o isolamento em si que aliena e distancia os homens, reduzindo-os a si


próprios. Pelo contrário, é uma forma específica de se relacionar com eles, de tal
modo que implica anonimidade e desinteresse pela individualidade do outro, que
provoca o individualismo. (SIMMEL, 2005, p. 28)

É neste contexto que a libertação da personalidade possibilitou um cerco individual


que reprime rotineiramente o contato com o próximo. A aglomeração típica das grandes
cidades ao mesmo tempo em que aproxima, afasta.

As cidades, é claro, sempre foram movimentadas, mas nunca haviam sido tão
movimentadas quanto se tornaram logo antes da virada do século. O súbito
aumento da população urbana (que nos Estados Unidos mais do que quadruplicou

1102
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

entre 1870 e 1910), a intensificação da atividade comercial, a proliferação dos sinais


e a nova densidade e complexidade do trânsito das ruas [...] tornaram a cidade um
ambiente muito mais abarrotado, caótico e estimulante do que jamais havia sido no
passado. (SINGER, 2004, p. 96)

Podemos citar como exemplo o caso da Daniela, moradora do Edifício Master em


5
Copacabana, que em entrevista a um documentário homônimo dirigido pelo cineasta
Eduardo Coutinho, relata sua vivência citadina como uma terrível experiência:

Eu tenho problemas de neurose e de sociofobia, e a aglomeração típica do vai e


vem [sic] em Copacabana faz com que eu chegue em casa muito estressada. [...] Eu
não sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas ou se é uma fusão
desagradável dos dois elementos. Eu sei que pode ser feio, mas eu muitas vezes fico
contente quando eu subo e desço no elevador sozinha, não porque eu não [sic] vou
perder tempo parando num andar, mas porque eu sei que eu não vou ter que ver e
nem ser vista. 6

O edifício cenário desse documentário mostrou realidades muito diferentes, onde


todos vivem próximos, porém, em sua grande maioria, solitários. Nas experiências relatadas
pelas lentes dirigidas por Eduardo Coutinho, o que chama a atenção é que a sociabilidade nos
espaços públicos dos grandes centros urbanos é permeada pelo anonimato, as pessoas
circulam pela cidade, mas não se conhecem, a aglomeração e a diversidade fazem da cidade
um palco a céu aberto, e o trabalho como este realizado pelo documentário, faz com que
consigamos enxergar o outro além do meu próprio espaço individual.
Muitas vezes os limites instalados para a divisão entre o espaço público e a
propriedade privada, criam fronteiras sociais além da física. Sem falar na instigação ao medo
e ao caos público instaurada pela metrópole e pelo sensacionalismo midiático, que suscita
ainda mais a vontade de se estabelecer em muros, criando uma sensação de insegurança, ao
passo que sua liberdade é cerceada com a necessidade de se estabelecer ainda mais limites no
espaço privado com o público, para se “proteger” da cidade.

5
“Edifício Master” (2002) é um documentário brilhante que narra a experiência da vida em sociedade sob os
olhares dos moradores do Edifício Master, um antigo e tradicional edifício, que possui em média 500 moradores,
com 276 apartamentos conjugados, 12 andares e 23 apartamentos por andar, localizado em Copacabana, um
bairro cartão-postal da cidade do Rio de Janeiro, conhecida por atrair uma grande soma de pessoas de todos os
lugares do mundo, e movimentada por natureza. O cineasta Eduardo Coutinho e sua equipe alugaram um
apartamento nesse edifício por um mês, e filmaram a vida no prédio por uma semana, e o resultado pode ser visto
através das 37 entrevistas que formam o documentário, realizadas com os moradores do prédio.
6
O trecho citado é parte integrante da entrevista realizada com a Daniela, moradora do edifício Master, que se
declara portadora de neurose e sociofobia, deixando clara a sua intolerância ao modelo de vida dos grandes
centros.

1103
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Lembramos aqui de Guy Debord e seus estudos da “sociedade do espetáculo”, onde


afirma que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção
se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos” (DEBORD, 1997, p.13), de tal
forma que hoje vemos uma vida em sociedade espetacularizada, em especial a violência
pregada pelos jornalismos grotescos que vendem jornais e audiências, instigadores de medo, e
que atualmente funcionam como formadores de uma massa cada vez mais propagadora de
discursos violentos, punitivistas e segregadores. A prova disso é a atual situação carcerária
brasileira.

O caos da cidade instilou na vida um flanco nervoso, uma sensação palpável de


exposição ao perigo. [...] A cidade moderna parece ter transformado a experiência
subjetiva não apenas quanto ao seu impacto visual e auditivo, mas também quanto
as suas tensões viscerais e suas cargas de ansiedade. A experiência moderna
envolveu um acionamento constante dos atos reflexos e impulsos nervosos [...].
(SINGER, 2004, p. 106)

As cidades do caos e dos muros são constituídas de tal forma que permitem a
privacidade e a preservação da individualidade, e, ao mesmo tempo, facilitam o anonimato e o
desinteresse pelo outro que não seja o “eu”, constituindo verdadeiros egoísmos e
individualismos exacerbados.
É o caso de relatos como o da Daniela, que para muitos a fazem soar como “louca”,
mas pode ser percebida como uma simples consequência e resultado dos muros e impactos
causados por esse novo modelo de sociedade imposta pelas grandes cidades. Desta forma,
colocamos a cidade como personagem de uma nova conjuntura social, onde temos como
exemplos desta realidade o documentário mencionado, de maneira semelhante à forma
exposta no filme “Medianeras”.
Assim, a configuração da cidade como personagem no filme argentino conversa
com os “personagens” do documentário brasileiro. Em tempos os quais o olhar sobre o outro
é visto de forma banal, não é difícil afirmarmos que todos nós carregamos consigo as nossas
medianeras portáteis.
Seja pelo uso indiscriminado dos espaços virtuais que afastam ao pregar uma maior
proximidade, como é o caso dos aparelhos celulares, computadores e semelhantes, ou até
mesmo pela busca do elevador vazio, como é o caso da Daniela do edifício Master, o fone de
ouvido ao transitar pelas ruas, ou até mesmo um semblante de poucos amigos, todas essas
ferramentas constituem as nossas medianeras diversas dos muros de concreto.

1104
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

3. A INTERVENÇÃO ECONÔMICA NA CIDADE – A “RUA DOS


JUNQUILHOS”7

No livro “A miséria do mundo”, de Pierre Bourdieu, percebemos os conjuntos


habitacionais como espaços onde se desenrolam conflitos específicos muito especiais. Um
dos capítulos trata da Rua dos Junquilhos, localizada em um bairro organizado pela vida
industrial na França, e coabitada por argelinos e franceses, a qual constituiu um dos cenários
no qual Bourdieu coordenou uma pesquisa dedicada a compreender as condições de produção
das formas de misérias modernas.
Tal pesquisa é interessante ao presente trabalho no que tange ao conjunto de
habitações formado devido à instauração de fábricas naquela área, fazendo com que famílias
se estruturassem naqueles ambientes, que se tornaram zonas carentes devido ao declínio
econômico daquelas indústrias, com o consequente aumento na taxa de desemprego, fazendo
com que o desenvolvimento familiar e social se tornasse pobre, e cada vez mais difícil.
Todavia, a Rua dos Junquilhos se tornou um excelente objeto de análise, em especial
no que tange ao desenvolvimento as pressas de uma cidade que surgiu devido às
consequências de uma arbitrariedade do sistema econômico, da proximidade entre a indústria
e o indivíduo, e nas consequências que o capitalismo trouxera a vida em sociedade.
Em entrevista a um casal de moradores desta rua, o senhor e a senhora Leblond,
ambos argelinos, Bourdieu pode perceber uma decadência individual que acompanhou a
decadência coletiva das empresas industriais da região, onde o senhor Leblond, operário,
advindo da Argélia (África do Norte) é um dos poucos que conseguira manter seu emprego
na fábrica da região, e sua esposa, ateve-se as tarefas domésticas.

Os moradores da rua dos Junquilhos são um pouco como os sobreviventes de um


imenso desastre coletivo, e eles sabem disso. Com as fábricas sua razão de ser
desapareceu: eles aí chegaram muito naturalmente, às vezes muito cedo, aos 14

7
Rua dos Junquilhos, como bem relata Bourdieu, é o “conjunto de habitações heteróclitas, primeiramente
designado por iniciais burocráticas, ZUP (Zona a urbanizar com prioridade), depois rebatizada 'Vai Saint Martin’,
um desses eufemismos pelos quais os responsáveis pelas ‘operações’ de ‘desenvolvimento social dos bairros’
(DSQ) pretendem ‘mudar a imagem’ dos bairros a restaurar, é, como as populações que o habitam, o traço visível
que as políticas industriais sucessivas têm deixado, como sedimentos, sobre as antigas terras agrícolas que se
estendem ao pé do monte Saint Martin e de sua igreja romana. A torre de 14 andares foi destruída no começo dos
anos 90, não resta mais hoje em dia que um arruamento de pequenas casas geminadas, em ‘acesso à propriedade’,
ocupadas por famílias de operários qualificados, chefes de equipe ou contramestres da indústria metalúrgica que,
muitas vezes oriundos do estrangeiro, principalmente da Argélia, estão, quase a metade, desempregados ou em
pré-aposentadoria, em consequência das diferentes ‘reestruturações’ da indústria siderúrgica”. (BOURDIEU,
2008, p. 15)

1105
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

anos, depois do diploma de escolaridade, acompanhando seus pais, e eles aí


destinavam muito naturalmente a sorte de seus filhos. (BOURDIEU, 2008, p. 16)

Os efeitos da coabitação são ainda piores devido à pobreza, tornando o ambiente


intolerável, e a proximidade desagradável, favorecendo ainda mais a individualidade citadina
e a perda no interesse pelo espaço público. Tanto é que, na entrevista com o senhor Leblond,
quando interrogado sobre seus vizinhos, em especial os franceses, ele responde mais ou
menos com os mesmos termos de sua esposa, “sem dúvida porque ele não pode dizer, por
razões diversas, nem que é bom, nem que é mau, e o descreve como nulo, ou neutro, isto é,
reduzido ao ‘bom-dia’, ‘boa-tarde’” (BOURDIEU, 2008, p. 21).
O padrão de vida capitalista exigiu portabilidade dos citadinos. A busca pelo
dinheiro - este não mais como um meio, moeda de troca, mas sim fim em si mesmo – fez com
que as pessoas se deslocassem cada vez mais em busca da sobrevivência. A nova dinâmica
econômica fez a metrópole ser atraente com suas promessas de emprego e garantia de um
novo padrão de vida, ainda que este custe um retrocesso – a perda da personalidade, outrora
colocada por Simmel (2005) como uma das seguranças estabelecidas pelo dinheiro.
A liberdade individual possível, colocada por Simmel (2005) como uma resultante
da substituição da prestação pessoal por contraprestação valorizada em espécie monetária,
tende a ruir ao pensarmos o indivíduo moderno como um corpo dócil 8 facilmente domado
pelo dinheiro. As pessoas não se importam mais em deslocar-se continuamente por conta de
emprego, ou vender-se as infinitas horas extras de trabalho, elas são impelidas a isso, fazendo
com que suas vidas sejam substituídas pelo dinheiro, em um cenário que nos faz lembrar um
contexto escravagista – o crachá (cartão de identificação) e o relógio funcionando como um
símbolo de dominação pelo “senhor proprietário” de sua “mão de obra”.
Houve um novo significado dos espaços na cidade. Com o advento da “Revolução”
Industrial e uma sociedade de indústrias, estas passaram a transformar os espaços públicos de
uma forma inimaginável, ao ocupar o mesmo ambiente que as pessoas ao redor, segregando-
as e modificando paulatinamente a vida social.

8
“É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2008, p. 118). Utilizamos aqui as referências de Foucault para sinalizar um dos
desdobramentos da era moderna no contexto trabalhado no presente artigo, qual seja, a transformação dos corpos
conforme a necessidade, sendo modelados e disciplinados conforme a atuação de poder. Um detalhamento maior
de tal conceito pode ser estudado na obra “Vigiar e Punir” de Foucault, publicado originalmente em 1975.

1106
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

Hoje as “grandes cidades” são conhecidas como aquelas em que há um grande


número de pessoas por metro quadrado, indústrias, empresas, carros e um modo de vida que
se assemelha às máquinas – agitado, acelerado e incansável, transformando até mesmo os
corpos daqueles inseridos neste mecanismo – assemelhando-se ao personagem Carlitos de
Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos” 9, onde ele próprio transforma-se em uma
engrenagem, passa a viver como se fosse máquina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os fenômenos da modernidade percebidos no mundo ocidental são estruturados


principalmente pela economia monetária implicada nas relações humanas, como bem
percebidos por Simmel em sua crítica ao mundo moderno. Ao mesmo tempo em que as
relações pessoais de outrora foram substituídas por relações monetárias impessoais, as
consequências destes fatores vão além do viés econômico.
A nova ordem mundial do capital e do liberalismo trouxe com ela mudanças sociais
de cunho relevante na estruturação pessoal e urbana. As cidades foram moldadas através de
um urbanismo que atendeu as ordens do sistema moderno. A questão inicial tomada de base,
qual seja, o homem contemporâneo sendo uma criatura mediada pelo dinheiro, serve de ponto
de partida para análises mais complexas do novo mecanismo social instaurado, dentro deste,
estão as grandes metrópoles e os citadinos.
As obras cinematográficas servem como uma realidade específica. Seja no
“Medianeras”, com a sua solidão compartilhada, da mesma forma em que se percebe no
“Edifício Master”, com suas histórias isoladas e logisticamente separadas por andar. Até
mesmo “Tempos Modernos”, de Chaplin, serve como demonstrativo de uma modernidade
complexa e resultante dos novos modelos econômicos.
Assim, o que podemos perceber é que toda a vida moderna fora moldada pelas mãos
do dinheiro e estruturada mercadologicamente. Se for dessa forma que o fenômeno
econômico se estabeleceu modernamente, o dinheiro é muito mais do que ferramenta de
transações, e materializa-se na própria arquitetura da cidade, a qual serve ao protótipo ideal

9
“Tempos Modernos” (Modern Times), filme produzido pelo próprio Charles Chaplin em 1936, nos serve como
base para discussões e críticas ao modo capitalista de produção e ao liberalismo econômico. É considerado hoje
um clássico do cinema moderno, onde Chaplin mostra seu famoso personagem "O Vagabundo" (The Tramp) em
meio ao mundo moderno e industrializado, trabalhando em uma grande fábrica, sofrendo as ingerências do
sistema, e transformando-se em um instrumento mecanizado e rotinizado.

1107
Anais do 7 Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito
ISSN 2236-9651, n. 7

dos centros urbanos econômicos, e modela o próprio homem, visceralmente transformado em


grades e concretos.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

EDIFÍCIO MASTER. Direção: Eduardo Coutinho. Produção: João Moreira Salles e Mauricio Andrade Ramos.
Roteiro: Eduardo Coutinho. Elenco: moradores do edifício Master. Brasil: Videofilmes; 2002. 1 filme (110
min).

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens pós-modernas: configurações institucionais contemporâneas. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2009.

MEDIANERAS: Buenos Aires na era do amor virtual. Direção: Gustavo Taretto. Produção: Natacha Cervi e
Hernán Musaluppi. Roteiro: Gustavo Taretto. Intérpretes: Javier Drolas; Pilar López de Ayala; Inés Efron e
outros. Argentina: Eddie Saeta S.A.; Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA); Pandora
Filmproduktion; Rizoma Films; Televisió de Catalunya (TV3) e Zarlek Producciones; 2011. 1 filme (95 min).

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, Out. 2005.
Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132005000200010&script=sci_arttext>.
Acesso em: 5 ago. 2014.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo;
SCHWARTZ, Vanessa R (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p.
95-123.

SOUZA, Jesse & ÖELZE, Berthold (Orgs). Simmel e a modernidade. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2005.

TEMPOS MODERNOS. Direção: Charles Chaplin. Produção: Patríciu Santans. Roteiro: Charles Chaplin.
Intérpretes: Charles Chaplin; Paulette Goddard; Henry Bergman; Stanley Sandford; Chester Conklin e outros.
Estados Unidos: Charles Chaplin Productions; 1936. 1 filme (87 min).

1108

S-ar putea să vă placă și