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Repensando o

Império Romano
Perspectiva Socioeconómica, Política e Cultural
Copyright © by
ÍNDICE
( iilvan Ventura da Silva, Norma Musco Mendes (orgs.) et alii, 2006

Direitos desta edição reservados à VlMOSENTAÇÃO 9


MAUAD Editora Ltda., em co-edição com
a Editora da UFES (EDUFES). \ Martins Magalhães
Mauad Editora: Rua Joaquim Silva, 98, 5° andar
Lapa — Rio de Janeiro — RJ — CEP: 20241-110 INTRODUÇÃO: O IMPÉRIO ROMANO E NÓS 13
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www.mauad.com.br Vorberto Luiz Guarinello
(' \nrniLO I: O SISTEMA POLÍTICO DO PRINCIPADO 21
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Tel.: (27) 3335.2370 < v r i i i L o II: ECONOMIA ROMANA NO INÍCIO DO PRINCIPADO 53
/'< dro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni
< \ II i o I I I : TERRA E TRABALHO NA ITÁLIA NO ALTO IMPÉRIO 65
Projeto Gráfico:
Núcleo de Arte/Mauad Editora / nino Duarte Joly

Revisão: CAPÍTULO I V : A SOCIEDADE ROMANA DO ALTO IMPÉRIO 85


Sandra Pássaro ( u i> I lamuriou Cardoso e Sônia Regina Rebel de Araújo
Ilustração da capa: < M U I i o V: PRÁTICAS CULTURAIS NO IMPÉRIO ROMANO:
Segmentos da Tabula Peutingeriuna. I M HI \ ÍNIDADE E A DIVERSIDADE 109

Rigllta Maria da Cunha Bustamante


C I P - B R A S I L . CATALOGAÇÃO-NA-FONTE < M I M i o V I : A RELIGIÃO NA URBS 137
S I N D I C A T O NACIONAL DOS E D I T O R E S D E L I V R O S , R J .
Í laudia Beltrão da Rosa
R336
< vr V I I : CRISTIANISMO E IMPÉRIO ROMANO 161
Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconómica, política e
cultural / Gilvan Ventura da Silva; Norma Musco Mendes (organizadores). i min Leonardo Chevitarese
- Rio de Janeiro: Mauad; Vitória, ES: EDUFES, 2006
t M I M i o \: O s SEVEROS E A ANARQUIA MILITAR 175
Inclui bibliografia
ISBN 85-7478-181-9 \n,i IIIIMI Marques Gonçalves
i u-iii H I I V DIOCLECIANOECONSTANTINO:
1. Roma - História - Império, 30 a.C.-476 d.C. 2. Roma - Política e governo -
30 a.C. - 476 d.C. I. Ventura, Gilvan. II. Mendes, Norma Musco. \ 0NHTR1 < \ IN ATO 193
CDD 937.06 < .1/1 .<// Ventura da Silva v Norma Musco Mendes
CDU 94(37)
* M I M M I \ ESTRUTURAS SOCIAIS NA
\I i I H M I I TARDIA OCIDENTAL (SÉCULOS I V / V I I I ) 223
lí• iiiin I i irli< tio
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CONGRÈS INTERNATIONAL D'ARCHÉOLOGIE CLASSIQUE (Paris, 1963). religião altamente rituali/ada, com poucas concessões à expressão religiosa.
Le rayonnement des civilisations grecques et romaine sur les cultures Muitos tendem a associar este caráter com o sucesso dos romanos nos aspectos
périphériques. t. 2. Paris: Boccard, 1965, pp. 237-242. práticos da vida - a guerra, a arquitetura, o planejamento das cidades, etc. - e
PICARD, G-Ch. La civilisation de VAfrique Romaine. 2 a ed. Paris: Etudes
Augustiniennes, 1990. sugerem que organizaram sua vida religiosa com o mesmo tipo de eficiência,
RAVEN, S. Rome in Africa. 3 a ed. London: Longman, 1993. estabelecendo barganhas rudes com os deuses. Há razões, porém, para crermos
que esta imagem não corresponde exatamente ao que foi a religião romana.
SAHLINS, M. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. Há diferentes modos de analisar a religião romana. Um deles é aceitar a ima-
SAUMAGNE, C. La survivance du punique en Afrique aux Ve. siècle et VIe. siècle gem das fontes disponíveis como reflexo mais ou menos verdadeiro da vida reli-
après J.-C. Karthago 4:169-178, 1953. giosa romana e aceitar que sua religião operava com um vocabulário muito limi-
SCHEID, J. La religion des romains. Paris: Armand Colin, 1998. (Coll. Cursus, Série tado. Outro modo é argumentar que recebemos de nossas fontes, especialmente
"Histoire de 1'Antiquité"; dir. F. Hartog, P. Shmitt-Pantel e J. Scheid) as textuais, uma imagem cuidadosamente editada do que se queria que fosse a
SENNETT, R. Carne e pedra; o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de vida religiosa, escolhida para refletir uma piedade escrupulosa. Percebemos que
Janeiro - São Paulo: Record, 1997. havia entre os romanos, no modo como viam a si mesmos, uma forte convicção
VEYNE, P. Le pain et le cirque; sociologie historique d'un pluralisme politique. Pa- de serem o mais religioso dos povos, o que contrasta estranhamente com a visão
ris: Seuil, 1976. que a modernidade teve de sua religião. Um escritor como Tito Lívio, que se
WEBSTER, J.; COOPER, N. (ed.). Roman imperialism: post-colonial perspectives. voltava ao passado romano a partir do século de Augusto, acreditava que o suces-
Leicester: School of Archaeological Studies, 1996. so dos romanos na conquista do mundo deveu-se a um escrupuloso cuidado nas
relações com os deuses. Muitos comentadores o consideram um céptico, mas não
há dúvidas de que sua narrativa contém elementos religiosos. Deste modo, é pos-
sível que a imagem que se tornou tradicional não reflita absolutamente a icalida
dr, e c provável que ;i religião romana fosse plena de elementos desconhecidos
Nao tomos cio acreditar, e talve/ não devêssemos acreditar, que as fontes de desejo de influenciá-los. Nesta versão, se não ouvimos a experiência individual,
informação que possuímos nos dão uma imagem perfeita da religião romana nossa imagem é incompleta. Enfim, há várias questões que devemos terem men-
Nossas principais fontes textuais sobre os primeiros séculos romanos são historiado ir num estudo da religião romana: as fontes disponíveis nos permitem uma ima-
res como Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso, que viveram no tempo de Augusto !'rm satisfatória da religião romana? Elas nos permitem conhecer a vida religiosa
e suas narrativas dependem em muito de antigos historiadores, agora perdidos, e «la sociedade como um todo ou apenas das elites? Poderia a experiência religiosa
estes mesmos escreveram no século II a.C, ou mesmo depois. Estas são as prin que escapa de nossa documentação ser tão importante que sua ignorância viciaria
cipais fontes de que provêm as linhas gerais de nossa imagem; outras contribu nosso conhecimento sobre a sociedade romana ou seu conhecimento não modifi-
em, às vezes crucialmente, como moedas com imagens religiosas, fontes arqueo caria substancialmente esta imagem?
lógicas e topográficas de Roma e arredores, inscrições, cópias do Calendário O princípio fundamental pelo qual a religião romana costuma ser interpretada
romano do período de Augusto, etc. Contudo, estas fontes são oriundas de sacer- é o de que os romanos formavam uma sociedade conservadora incomum. Até
dotes ou são documentos oficiais de um tipo ou de outro. Estes documentos ge- certo ponto, isto é verdadeiro: podemos, e.g., mostrar que alguns dos rituais ar-
ralmente não expressam a experiência das massas romanas, mas a atividade reli- caicos eram ainda praticados regularmente no século I a.C, e mesmo depois e, se
giosa que afetava o Estado e suas atividades. eles reproduziam os rituais ano após ano, é possível que tenham mudado pouco
A religião romana que conhecemos é baseada num corpo limitado de material. através dos tempos. Uma das consequências deste supostamente estranho desen-
Este material nos mostra a escassez de intervenções divinas diretas, de grandes volvimento da religião romana é que teria posto toda a sua ênfase não nos deuses
mitos de atividades divinas e mesmo de "profetas". Não que falte material e nos mitos, mas sim nos rituais e na sua correta execução. Uma combinação de
divinatório, de um tipo ou de outro, mas este não toma a forma de indivíduos excessivo ritualismo e seu domínio por colégios sacerdotais, cujo propósito prin-
inspirados a dizer a verdade ou predizer o futuro. O que encontramos são grupos cipal seria a fixação e a repetição das ações rituais, conduziria todas as negocia-
de sacerdotes - tanto arúspices (supostamente importados da Etrúria) ou sacer- ções com os habitantes do mundo divino, cujo favor podia assegurar aos romanos
dotes que guardavam os Livros Sibilinos (sucessivamente dois, dez e quinze ho- 0 sucesso na guerra e na paz. Assim, esta teoria tradicional apresentava a imagem
mens para sacrifícios, os quindecimviri), que emanavam oráculos de seu conhe- geral de um tipo muito negativo de religião, uma religião que teria sua validade
cimento respectivo ou arquivados para guiar o ritual em Roma. Eles reportavam nos primeiros tempos, antes ou na época da fundação da cidade, mas permaneceu
essencialmente o que os deuses pediam em forma de sacrifícios ou outros rituais. sempre "primitiva", sem alterar suas raízes agrícolas e pastoris; sempre teria sido
Nossa principal preocupação aqui é com as áreas da vida religiosa sobre a dominada pela repetição de fórmulas, que se tornavam cada vez mais sem sentido
qual temos uma quantidade maior de informação, de um tipo ou de outro - rituais, e se tornavam distante da experiência concreta. Partindo deste suposto
festivais, atividades religiosas na vida política, prédios religiosos e santuários. As conservadorismo, os estudiosos do século XIX e início do século XX desenvol-
fontes para o estudo da religião romana, então, são variadas e nos dão uma ima- veram teorias que explicavam as características do sistema religioso romano com
gem, principalmente, das atividades da elite social do mundo romano, mais da base na ideia de que ele reteve uma especial "romanidade" que podia ser traçada
atividade pública do que da privada. Surge, porém, uma pergunta: o quão com- desde tempos remotos. Esta ideia era combinada com uma teoria derivada parti-
pleta é esta imagem? Podemos argumentar que o que é permitido ver nas fontes cularmente da antropologia da virada do século XX, que ligava a experiência
liga-se quase sempre ao setor público de atividades, e que esta era a área que religiosa romana a um estágio comum chamado "animismo", no qual o ritual não
interessava à comunidade como um todo e que o homem antigo, ao contrário do era destinado aos deuses conhecidos em períodos posteriores, mas a poderes na-
moderno, não percebia a si mesmo como um ser isolado. Esta versão minimiza a turais ou em atividade na natureza - trovões, árvores, etc. Segundo tal teoria,
importância da expressão religiosa privada, mas tem a vantagem de não projetar estes poderes abstratos aos poucos se tornaram mais próximos à forma, mesmo
imediatamente, no mundo antigo, uma certa consciência moderna de vida religiosa. ao comportamento humano, podendo ser representados em estátuas e outras for-
Uma versão alternativa é a de que todas as sociedades têm certos tipos de ele- mas artísticas e se tornando protagonistas de lendas e aventuras. Em outras pala-
mentos religiosos comuns e que um deles é a experiência emocional, pessoal, em vras, tornaram-se, progressivamente, mais parecidos com os deuses que associa-
relação aos poderes sobrenaturais que controlam o universo - e o correspondente mos aos gregos e outros povos antigos e modernos.

138 RELIGIÃO NA URBS REPENSANDO o IMPÉRIO ROMANO 139


Esta teoria parecia, em seu tempo, muito esclarecedora sobre a experiência Deuses e Homens
dos romanos arcaicos em particular, e a ideia de uma fase "pré-deísta" tornou-se
parte normal do vocabulário do debate sobre o assunto, ainda tendo seus seguido- As interações entre deuses e homens eram constantes na urbs, quase sempre
res. Como uma questão passiva, os romanos pareciam ter tido um longo período através da ação ritual. Há poucos, se é que há algum, incidentes de que tenhamos
durante o qual não fizeram representações de seus deuses, e este período se es- conhecimento, de que os deuses interviessem diretamente nos assuntos humanos,
tenderia até cerca de 575 a.C, que, de fato é aproximadamente a data em que a mudando os acontecimentos ou aparecendo em forma visível, mas não é correto
influência etrusca passou a ser mais visível em Roma. Como resultado, esta teo- pensar que vivessem afastados dos assuntos humanos. De certo modo, os deuses
ria tornou solidamente estabelecido que o conservadorismo romano levou a uma estavam sempre presentes, não somente como estátuas em seus templos, mas nas
história religiosa muito peculiar. Os romanos teriam retido por muito tempo o ruas, nos jogos, nas ocasiões públicas, nos eventos especiais. Neste sentido, os
caráter "animista" de sua religião primitiva e somente sob a influência de seus deuses romanos eram também cidadãos, participando de seus triunfos e derrotas
vizinhos etruscos e gregos começaram a atingir o próximo estágio, o e de seus rituais. Certamente, todas as ações importantes do Estado envolviam
antropomorfismo, isto é, a perceber os deuses numa forma humana, mas teriam rituais, tanto em forma de auspícios como de sacrifícios; uma vitória, e.g., era
atingido o "nível" dos gregos. celebrada por uma procissão, o triunfo, no qual o exército e seu general desfila-
É sempre uma situação perigosa quando uma teoria se torna tão estabelecida vam pela cidade para sacrificar a Júpiter no Capitólio; e o Estado definia suas
que passa a ser imune às críticas; a teoria acima delineada tem uma longa histó- relações com os cidadãos divinos por juramentos regulares em que se prometiam
ria, e seus detalhes, decerto, não podem ser comentados aqui, por vários motivos. recompensas em troca do apoio divino (BEARD, M. NORTH, J.A.; PRICE, S.R.F.
Atualmente, pouco ou quase nada dela é aceito sem reservas. Em primeiro lugar, 1988:32-5).
porque o esquema evolucionista do desenvolvimento religioso já foi abandona- Ninguém duvida de que rituais de vários tipos eram uma parte crucial nas
do, e.g., pelos antropólogos e pelos historiadores. Ao mesmo tempo, porque as interações entre deuses e homens na religião romana. Rituais marcavam todos os
pesquisas arqueológicas demonstram cada vez mais que, mesmo nos primeiros eventos públicos e celebrações; alguns deles podem ser classificados como oca-
tempos, Roma estava longe de ser uma comunidade isolada, desenvolvendo suas siões religiosas propriamente ditas - festivais anuais, a realização e o cumpri-
próprias tradições. Os romanos mantinham estreitos contatos com outros povos mento dos juramentos, os aniversários das fundações de templos, etc. Outros,
que, indubitavelmente, influenciaram seu desenvolvimento cultural. É também como seculares - as eleições, as assembleias, o censo dos cidadãos romanos;
abusivo dizer que a cultura romana fosse completamente dominada ou controla- outros, ainda, podem variar segundo os critérios adotados: os jogos, as
da pelos etruscos ou por qualquer outro povo, mas sim eram todos participantes performances dramáticas, que tinham elementos rituais em seu programa, mes-
de interações culturais entre si e com outras partes do mundo mediterrânico. Há mo que tivessem também o entretenimento entre os seus propósitos. Mas temos
muitos indícios de que a ideia de uma tradição romana pura, não afetada por em mente que estas distinções são problemas de interpretação nossos; os roma-
influências estrangeiras, deve ser tratada como um mito moderno e não como nos não pareciam ver na existência de diferentes tipos de rituais algo problemáti-
uma realidade romana. Os mitos da Roma primitiva nos oferecem um certo co per se. O programa dos rituais era complexo e muito articulado, e podemos
número de provas de que a religião dos romanos era menos "anormal" do que inferir alguns dos princípios pelos quais eram realizados. Dois pontos são claros:
pensamos ter sido. Mas também é verdade que o reino público da atividade primeiro, que o sacrifício era feito estritamente segundo regras e tradições, que
parece mais importante e mais desenvolvido do que a vida religiosa dos cida- necessariamente tinham de ser respeitadas; segundo, que a habilidade dos
dãos tomados individualmente e relativamente mais importante do que nas sacrificantes permitia a comunicação entre homens e deuses.
modernas sociedades. Outro meio regular de trocas eram os prodígios e a sua interpretação. Um
prodígio era um evento extraordinário, considerado contrário à ordem natural e
sinal de um desequilíbrio entre as relações homens-deuses. Os prodígios são muito
importantes para a compreensão da religião romana, por muitas razões. Uma de-
IÍI«Í é nomue lais eventos e seus resultados são inuilo presentes nos textos que nos
chegaram de Roma; OUtra é a própria precisão com que conservavam as listas cie ( OLKGIOS SACERDOTAIS ROMANOS
prodígios. Sabemos, por exemplo, que estas listas derivavam de Tito Lívio ou de
Júlio Obsequens, cuja obra preservou as listas por muito tempo após o texto de Os quatro maiores colégios sacerdotais, consultados regularmente pelo Senado:
Lívio estar perdido. Além disso, os prodígios estavam envolvidos, de um modo
ou de outro, com quase todos os grupos que tinham influência na tomada das Pontífices:
decisões estatais - os colégios sacerdotais, o Senado, os magistrados, mesmo Composição: 9 membros desde 300 a.C: cinco plebeus e quatro patrícios, aumentados
ocasionalmente o povo nos comitia. Os prodígios nos dão ótimas informações para 15 membros por Sila; os membros eram cooptados pelo colégio até a lex Domitia e
novamente por Sila, até 63 a.C; em outros momentos, eram eleitos por 17 das 35 tribos.
sobre como estes grupos cooperavam e o papel que tinham nas decisões estatais. Líder: pontifex maximus, que falava pelo colégio no Senado, escolhia e disciplinava
Um fato, porém, é que as fontes que temos não são explícitas sobre a natureza da os membros adicionais.
conexão entre a ocorrência do prodígio, as predições que deviam ser baseadas Membros adicionais: Flamines - três maiores - Dialis, Martialis, Quirinalis - e 12
nele e as ações {remedia) realizadas para minimizar os danos implicados pelo menores; Rex sacrorum (1 - sucessor do rei original); Vestais - seis, que serviam por
prodígio. O discurso De haruspicum responso, de Cícero, inclui não só uma lista trinta anos, a partir da infância.
de ações que deviam ser tomadas e das divindades que deviam ser aplacadas, mas Funções: aconselhar o Senado sobre todos os assuntos referentes aos sacra; aconse-
também das ofensas humanas que podiam ter causado o distúrbio. Se esta respos- lhar o povo em temas da lei sagrada, incluindo a lei dos mortos; supervisionar os
ta serve como um modelo para as outras das quais não conhecemos os detalhes, assuntos da lei familiar (adoção, herança, etc), manter os registros do Estado.
podemos reconhecer uma série de falhas humanas, de eventos que eram vistos Augures: tinham o mesmo número dos pontífices, mas sem membros adicionais.
como excedendo os limites naturais, e deuses que exigiam reparação. Eleição/cooptação, como os pontífices.
Os Jogos {Ludi), provavelmente, remontam aos primeiros tempos de Roma, Funções: supervisores e conselheiros sobre os rituais e procedimentos concernentes
pelo menos em duas versões, os Ludi plebeii e os Ludi Romani, que foram estabe- aos auspícios.
Tres/septemviri epulones: colégio criado com três membros em 196 a.C; aumentado
lecidos na República arcaica, mas outros tipos e mais dias foram acrescentados para 7 membros por Sila; eleitos/cooptados como os pontífices.
progressivamente na República tardia, chegando a mais de cinquenta (BEARD, Função: supervisão dos Jogos regulares em Roma.
M., NORTH, J.A., PRICE, S.R.F:263). Incluíam competições e divertimentos; Duo/decem/quindecimviri sacris faciundis: originalmente 2; 10 a partir de 367 a.C;
havia vários tipos de corridas, dramatizações e mimos, lutas de gladiadores e 15 após Sila. Eleição/cooptação, como os pontífices.
animais selvagens (SCULLARD, H. H. 1981:183-6). Ninguém duvidaria de que Funções: manutenção e, somente quando solicitado pelo Senado, consulta aos Livros
sua popularidade e a multiplicação de seus dias foi resultado do apelo dos diver- Sibilinos
timentos que eram oferecidos, mas os jogos jamais perderam seu aspecto ritual:
os deuses desciam de seus templos para assisti-los e havia rituais religiosos reali- Colégios sacerdotais ocasionalmente consultados pelo Senado:
zados, inclusive representados perfeitamente para que a cerimónia fosse bem- Fetiales: 20 membros, que lidavam com temas de relações internacionais: guerra, paz,
sucedida. E tinham de ser repetidos, caso houvesse algum erro. Havia, inclusive, tratados, etc.
um colégio especial de sacerdotes, criado em 196 a.C, cuja obrigação era super- Haruspices: existe uma lista de 60 membros. Este colégio não é romano; são especia-
visionar os jogos e as cerimónias religiosas a eles relacionadas, os epulones. listas na arte etrusca dos prodígios e adivinhações.
Colégios sacerdotais que são eram consultados pelo Senado:
Salii: dois grupos de doze membros cada, que dançavam e cantavam na cidade nos
Festivais de Março e Outubro.
Luperci: dois grupos, cujo número de membros é desconhecido, que corriam pelas ruas
da urbs no Festival da Lupercália, batendo nas pessoas com chicotes de pele de cabra.
Fratres Arvales: doze membros, que cuidavam da manutenção do culto da Dea Dia,
numa gruta fora de Roma: envolveram-se muito com o culto imperial posteriormente.

142 RELIGIÃO NA URBS


REPENSANDO o IMPÉRIO ROMANO 143
Percebemos também, nas diversas fontes, a relação estreita entre o templo e o Política e Religião: Inovação e Conservadorismo
teatro. A associação entre o templo e algumas formas de representações públicas
remonta aos primeiros tempos de Roma, pois vários templos tinham um teatro Quando observamos as relações entre política e religião, há algumas questões
ligado a eles ou em frente deles. Sua forma arquitetônica parece refletir o fato de que devem ser discutidas. Sem dúvida, a religião encontrava-se profundamente
que as primeiras representações aconteciam num teatro construído de madeira envolvida na vida política romana em todos os períodos. Seria inevitável, pois os
para uma ocasião particular. Sem dúvida, os deuses, então, apareciam nos de- rituais religiosos estavam intimamente ligados com as demais atividades de guer-
graus em frente de seus templos para assistirem à representação. Para exemplificar, ra e paz. Assim, e.g., a aprovação de uma lei ou a eleição de um magistrado eram
quando Pompeu, em 55 a.C, terminou a construção do primeiro teatro perma- atos que envolviam a tomada dos auspícios; a validade destes auspícios era juris-
nente, este foi incorporado ao templo dedicado a Vénus Victrix, respeitando a dição dos augures, responsáveis pelo sistema especial de regras que os controla-
associação tradicional entre teatro e templo. A construção e a manutenção dos vam, o ius augurale (LINDERSKI, J., 2146-312). A questão em jogo não é a
templos era um dos principais meios pelos quais o contato entre homens e deuses existência desta relação, mas o modo como era usada. A forma extrema da hipó-
era mediado. Esta era, além disso, uma atividade na qual uma grande quantidade tese tradicional de "declínio da religião romana" na República tardia implicava o
de recursos era investida. Em particular a criação de novos lugares sagrados, uso da religião puramente para se obter vantagens políticas. De fato, há duas
sejam templos propriamente ditos ou santuários com um altar, era tema de inte- variações possíveis desta ideia: primeiro, a de que toda a elite romana era com-
resse público e conflito potencial. Cícero aponta duas ocasiões em que tentativas pletamente céptica e que conspirava para iludir os demais segmentos da popula-
de dedicação foram canceladas pelos pontífices, com base em que não foram ção; em segundo lugar, a ideia de que a população romana como um todo era
aprovadas pelos comitia {De domo sua, 136). Muitos templos do período repu- céptica e a religião era entendida por todos como um conjunto de regras mantidas
blicano resultaram de promessas de generais em batalhas, que muitas vezes con- somente para uso em conflitos políticos. A segunda versão é completamente im-
duziam os contratos e a cerimónia de consagração, mas eram ocasiões oficiais provável, principalmente porque os membros da elite política geralmente fala-
controladas pelos sacerdotes e pelo Senado e, com o tempo, o espaço urbano se vam em público com um cuidadoso respeito pelos deuses, e a primeira visão, a da
transformou pelo número crescente desses templos, em posição proeminente e "teoria da conspiração", não pode ser facilmente refutada e tem, no mínimo, o
muitas vezes agrupados em colunatas. Eles serviam não apenas como uma ima- apoio de uma famosa passagem de Políbio, falando da Roma que conheceu nos
gem visível do domínio romano sobre o Mediterrâneo, mas da contribuição de anos 140 a.C. Nela, Políbio declara que os romanos eram superiores aos gregos
novos e antigos deuses em cada estágio dessa conquista. precisamente porque os líderes romanos faziam aquilo que os gregos esquece-
Podemos ver, então, o quanto os romanos eram cuidadosos e preocupados ram: usar as superstições das massas para mantê-las submissas. Ao mesmo tem-
com sua vida religiosa. Esta preocupação se manifestava em diferentes níveis de po, percebemos que o próprio Políbio apresenta uma outra imagem, em contraste
atividade, como nas construções e nas inovações no espaço público religioso: os com a anterior, ao declarar que os magistrados romanos sempre mantinham seus
grandes nomes da vida política na República tardia e no início do Império se juramentos ( L . V I , 5 6 . 6 - 1 4 ) . Assim, não apenas as massas, mas, também, os
envolveram em grandes construções (BEARD, M., NORTH, J.A., PRICE, S.R.F: magistrados demonstravam respeito pelas obrigações religiosas; para Políbio, um
121-25). Quanto a isto, radicavam na tradição das gerações anteriores, porém respeito superior ao demonstrado por seus contemporâneos gregos.
construindo numa escala espctacular. Nesta expansão e reconstrução de Roma, A imagem de religião que percebemos, então, não corresponde a uma ideia de
templos e monumentos religiosos tiveram um papel predominante. Em termos declínio da experiência religiosa. É claro que há várias indicações que sugerem
gerais, um magnífico dispêndio de tempo, dinheiro e esforço foi posto em monu- que os agentes políticos romanos contavam com a religião e com os deuses como
mentos religiosos tanto antes como depois da "queda da República" e do estabe- fatores importantes na determinação dos eventos e na garantia de suas reivindica-
lecimento do novo regime. Não é exagero dizer que a competição entre os líderes ções de autoridade e comando. Do mesmo modo, há mudanças profundas neste
políticos da República tardia travou-se, em grande medida, em termos da lingua- momento; talvez elas não fossem causadas por atitudes religiosas, mas encontra-
gem religiosa. vam seu modo de expressão nas competitivas atividades religiosas de indivíduos
poderosos. De fato, a religião era uma das expressões, e das mais visíveis, da

Ill RF.LICÍIÃO NA URBS REPENSANDO O IMPÉRIO ROMANO 145


mentol dos grandes colégios, m e s m o que sa.bamos que eles continuaram a Punci
ideologia ila elite romana, de suas técnicas de manutenção e/ou limitação do po onar e a receber novos m e m b r o s .
der de indivíduos e de grupos políticos. Ao mesmo tempo, eram os rituais que
garantiam as relações entre os dois grupos, homens e deuses. Garantir os ritos
representava a certeza da manutenção da sociedade como a queriam: ordenada e
segura. Ao respeitar as regras de comportamento, como o respeito aos deuses,
sobretudo em seus espaços, ao curvar-se sob a autoridade dos rituais, o cidadão
garantia a ordem social, e a pax deorum e as práticas que acarretavam a trans-
gressão à ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e à desagregação. A
concórdia entre homens e deuses é a garantia da ordem romana.
Uma das características mais visíveis da atmosfera religiosa romana, porém,
era uma abertura às inovações e ajustes em todos os períodos sobre os quais
temos informações. Havia mesmo mecanismos regulares para facilitar e regular
esta abertura, ao mesmo tempo, contudo, valorizavam as tradições e o mos Ara Pacis Augustae - Parede esquerda
maiorum, acreditando que somente a escrupulosa retenção das práticas e rituais Fonte:http://wings.buftalo.edu/AandL/Maecenas/
podia agradar às divindades. Uma das soluções do paradoxo talvez seja notar que rome/ara_pacis/section_contents.html
muito do que chamamos de inovação não foi percebido como tal por seus con-
temporâneos. O papel dos Livros Sibilinos, por exemplo, pode ter garantido que
quaisquer cultos ou práticas recomendados não eram realmente "novos", mas
apenas o reconhecimento de um poder que desde sempre foi poderoso. Em um ou Mais importante do que a aquisição formal do ofício sacerdotal foi a mais
dois casos temos uma imagem mais substancial do que esta continuidade pode ter informal, porém inequívoca, posse de todas as iniciativas religiosas peloprinceps.
significado. O culto da Magna Mater nos provê um bom exemplo: o culto foi uma Augusto tomou a si a responsabilidade da restauração de templos e da construção
inovação dramática, mas o título e a localização do novo tempo faziam com que de novos. A ele é atribuída a restauração de algumas instituições perdidas para
ela não fosse uma deusa nova e estrangeira, mas simplesmente a Mãe do Monte nós. Os detalhes podem não nos ser muito claros, mas o significado geral é: uma
Ida, uma montanha próxima de Tróia. Foi para Ida que se dirigiu Enéas após a vez que o detentor do poder religioso é o mesmo indivíduo que mantém o contro-
destruição de Tróia e dali iniciou seu périplo que o levaria ao Lácio, onde seu le político do novo regime do Império, rapidamente ele se tornou o "cabeça" da
filho fundaria Alba Longa, a predecessora de Roma. Então, se o culto era novo religião do Estado e suas ações cada vez mais refletem esta posição.
num determinado sentido, em outro tinha estreito contato com profundas raízes Outros acontecimentos mostram mais dramaticamente a direção que a reli-
da identidade romana (WISEMAN, T. P. 1985:117-28). gião tomava neste período. Dois cultos maiores, um dos quais especialmente as-
O que se seguiu nas décadas subsequentes ao assassinato de César traz outro sociado com Augusto e o outro - o mais central de todos os cultos romanos -
problema de interpretação, que pode ser tratado de vários modos. O que não pode foram postos em estreita associação com a própria casa do princeps no Palatino.
ser posto em dúvida, contudo, é que Augusto, o primeiro dos príncipes, usou seu O templo de Apolo foi construído adjacente a ela, e o novo templo de Vesta foi a
poder de modo efetivo e cauteloso, criando uma posição que jamais existira sob a ela incorporado (BEARD, M., NORTH, J.A., PRICE, S.R.F: 189-91; 199-201). A
República. Ele se tornou membro de todos os colégios sacerdotais. A Ara Pacis razão para tal foi que a residência tradicional do pontifex maximus localizava-sc
(ca. 12 d.C.) provavelmente o representa em seu novo papel de pontifex maximus, no Fórum, perto do antigo templo de Vesta. E difícil imaginar um gesto que resu-
liderando os demais sacerdotes em procissão. Se esta interpretação for correta, ma mais claramente a situação do que transferir o coração religioso de Roma para
ela representa a nova e revolucionária ordem religiosa do período imperial e to- a domus do imperador-sacerdote.
dos os seus sucessores foram também pontifex maximus até o século IV d.C.
Olhando por este prisma, contudo, muito pouco é percebido sobre os procedi-
REPENSANDO o IMPÉRIO ROMANO 147
146 RELIGIÃO NA URBS
Os Jogos Seculares do período augustano provem exemplos interessantes o especialmente no De OJficiis reclamaram da negligência da elite em relação aos
processo elc conservação e inovação. Hram apresentados como parle da scc|tirii ritos tradicionais e outras atividades religiosas. É difícil resistir à ideia d e um
cia de celebrações que deveriam ocorrer apenas uma vez em cada século. A data declínio da religião romana e pensar em termos de um lugar-comum detectado na
em que Augusto os celebrou (17 a.C), de modo a marcar o início de uma cia literatura em outras datas. Após as guerras civis dos anos 40 e 30 a.C, este tema
nova e melhor para a humanidade, não visava à contagem tradicional do tempo, se tornou gritante.
mas uma nova contagem, a partir de uma criativa releitura da história. Percebe- O caso mais famoso neste ponto foi o intervalo de quase setenta anos na no-
mos, também, que os próprios rituais foram fundamentalmente alterados em rela- meação àoflamen Dialis, desde a morte do último sacerdote em 86 a.C. Sabe-
ção a sua versão republicana. Pouca coisa é clara nesta "colcha de retalhos" que mos que um sucessor fora nomeado, mas aparentemente não fora inaugurado.
são os relatos que temos dos primeiros tempos; mas sabemos que os destinatários Um novo sacerdote só foi inaugurado nos anos 20 a.C, sob Augusto. Este even-
do ritual eram divindades infernais - primeiramente Dis Pater e sua rainha, to, para além de outros, foi celebrado no grande friso da Ara Pacis, mostrando
Prosérpina. Na versão augustana, estes deuses foram substituídos por Júpiter, Augusto na frente e os quatro flamines o seguindo (TORELLI, M. 1982:43-4;
Juno, Apolo e Diana; a Ode (carmen saeculare) escrita para a ocasião, por Horácio, ELSNER, P.T 1991). A mensagem é a de que o dano causado pelo lapso foi
mostra que o ritual foi bastante transformado. Detectamos, porém, certa continui- afastado pelo novo pontifex maximus. Em outras palavras, acreditamos que, para
dade nos rituais e nos sacerdócios, com fórmulas e tradições que remontavam aos o novo regime, a ideia de um declínio da religião no passado era um apelo útil e
primeiros tempos. Encontramos algo na tradição sibilina que pode ter contribuí- tangível, permitindo-lhes restaurar os sacerdócios, os rituais esquecidos, os tem-
do para o programa de 17 d.C: por exemplo, os coros dos Jogos Seculares ti- plos: os deuses ficariam satisfeitos e tudo estaria em paz.
nham precedentes em outros rituais recomendados pelos Livros. Novamente aqui,
a intervenção de um oráculo pode ter sido a chave que permitia as modificações Se para os contemporâneos tratava-se de uma oportunidade que não podia ser
sem que os participantes reconhecessem o fato como tal, mesmo se os perdida, esta percepção da religião romana foi dramaticamente interpretada pelos
organizadores combinassem diferentes passagens de rituais. modernos. Dos primeiros trabalhos publicados sobre o tema no século XIX, tor-
nou-se um postulado não discutido que a religião romana no início do principado
Se parte da história religiosa romana consiste em uma negociação entre mu- estava declinante e que o "renascimento augustano" estava fadado ao fracasso.
dança e acomodação da mudança, o outro lado da moeda não pode ser negligen- Somente no final do século XX, este tema foi rediscutido e diferentes interpreta-
ciado. Se novos elementos constantemente chegavam, antigos elementos eram ções da religião romana surgiram; especialmente, uma das maiores inovações do
frequentemente omitidos ou esquecidos; este processo é muito mais difícil, para nascente principado que marcou fortemente a ideia do declínio da religião roma-
nós, de acompanhar, posto que as inovações são mais documentadas em nossas na, foi vista sob nova luz. A novidade foi o desenvolvimento do chamado "culto
fontes, enquanto as perdas não são bem documentadas, talvez por um desejo de imperial" no final da República e do início do Império. Tanto o caráter deste culto
vê-las restauradas. Tendo ou não documentação para tratá-las, é possível que como a história de seu desenvolvimento são altamente controversos. Alguns es-
sempre tenha havido um incessante fluxo de antigos ritos caindo no esquecimen- tudiosos acreditaram que uma nova força religiosa se impusera mesmo que uma
to e novos ritos entrando em prática. Mesmo que nada possamos comprovar, mas nova religião teria sido criada. Esta ideia tem de ser tratada com um certo ceticis-
apenas inferir, temos duas notícias indiretas deste fluxo. mo. Primeiro, porque não temos informações que demonstrem que o culto fora
A chamada "renovação augustana" vem sendo relacionada com a teoria do organizado, e muito menos imposto, a partir do centro do Império (BICKERM AN,
declínio da religião na sociedade romana, e por isso o princeps teria tentado res- E.J-.1973; PRICE, S.R.F:1984); havia variações locais em grande número, com o
taurar o edifício da religião tradicional. Vemos, porém, a ação de Augusto radi- sem o consentimento central. Em segundo lugar, é difícil avaliar o quão nova ou
cando do mesmo movimento de outros antes dele, como uma parte regular no controversa seria a inovação; em muitas áreas do Império, o culto ao soberano
ciclo da vida religiosa. A ação de Augusto está, evidentemente, em estreita cone- era algo tradicional. É tentador dizer que o culto do imperador é mais um proble-
xão com episódios de restauração e especialmente com as recorrentes observa- ma dos modernos do que dos antigos.
ções de que as tradições ancestrais estavam sendo perdidas ou abandonadas. Este Houve, certamente, áreas de atrito. Por exemplo, judeus e depois os cristãos,
é um tema central nos livros de Varrão sobre a religião romana. Ele e Cícero - como monoteístas, não podiam aceitar a inclusão de deuses e cultos sem graves
148 RKLIGIÃO NA URBS REPENSANDO o IMPÉRIO ROMANO 149
tensões. C o m o resultado, os judeus sacrificavam em prol do imperador e não (i.c. Lívia), uma coruja para Divus Cláudio, uma vaca para Diva Popéiã
para o imperador, e os cristãos se recusavam a participar de qualquer sacrifício Augusta, um touro para o génio do imperador Nero Cláudio César Augusto
pura e simplesmente (GORDON, R. 1990). Se pensarmos que os altares ao impe- Germânico (i.c, Nero), uma vaca para a Juno de Messalina (i.c., a espo-
rador eram colocados muito próximos ao tribunal do magistrado que ouvia os sa de Nero)."
seus casos, era um sacrifício simbólico ao imperador que geralmente se pedia Vemos que a lista segue uma ordem bastante coerente: primeiro, os deuses
como prova de sua lealdade a Roma. tradicionais; depois, os Divi; em terceiro, o Genius e a Juno do imperador vivo e
Outra área de tensão parece ter sido a atitude de alguns membros da elite de sua esposa. Parece, então, ter havido um cuidadoso respeito pela regra de que
romana, que tinham claras dificuldades, ou pelo menos ironia, de aceitar que se os governantes vivos não recebiam sacrifícios diretamente como deuses; e que 08
tratasse um homem como a um deus. Este fato não é simples de interpretar, como sacrifícios às suas essências divinas ocupavam o último lugar na ordem ritual.
pode parecer à primeira vista. O mais famoso ensaio sobre este tema é uma sátira Não temos, porém, motivos para pensar que esta precisão era respeitada fora do
de Séneca, provavelmente escrita no início do reinado de Nero, aApocolocyntosis contexto da urbs. Para os especialistas, estas distinções são de grande importân-
do Divino Cláudio. A sátira tem como objeto o falecido imperador e recém-deifi- cia; mas claramente elas pertenciam a Roma e a instituições romanas tradicio-
cado Cláudio, e pode ser lida como um ataque a deificação dos governantes em nais, como o exército, e não havia motivos para a sua imposição às províncias.
geral. Mas, de fato, a sátira é mais complexa do que parece numa leitura superfi- Assim, podemos concluir que temos motivos para afirmar que em fins da Repú-
cial. Séneca apresenta discursos de muitos deuses reunidos em seu próprio Sena- blica e no primeiro período imperial, um grande nível de fluidez e criatividade
do; mas o principal ataque ao pretenso novo deus não provém de Júpiter ou de era aceitável em relação aos deuses, deusas e rituais em Roma.
outros deuses tradicionais de Roma, mas do próprio Divus Augustus, que investe
contra a ideia de deificar Cláudio, não no sentido de ser ridículo deificar um ser
humano, mas porque Cláudio seria um homem por demais ridículo para ser hon- Os Romanos e os "Outros"
rado com a divinização.
Para a maioria da população do Império, não parece ter havido maiores pro- É fácil pensar que a religião romana fosse essencialmente tolerante com ou-
blemas para aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus, e vemos tras formas de atividade religiosa. Se os romanos aceitaram uma série de cultos
somente alguns esforços espasmódicos dos imperadores no sentido de rejeitar distintos em sua cidade ao longo do tempo, parece seguro concluir pela tolerân-
tais ofertas rituais. Parece-nos que apenas em Roma os pruridos eram maiores cia de sua atitude religiosa. Mas há observações a fazer, antes de chegarmos a
neste sentido. Houve mesmo o desenvolvimento da crença de que a apoteose só qualquer conclusão. É nítido que, se eram tolerantes, esta não era uma tolerância
ocorria após a morte do imperador e somente para alguns, e não para todos indis- de princípio. Parece-nos que os romanos toleraram o que não lhes parecia perigo-
tintamente. Há mesmo indícios de testemunhas que atestavam no Senado - onde so e eram intolerantes quando algo lhes parecia perigoso. Eles não viam maiores
era aprovado o ritual de apoteose - a subida da alma do imperador falecido aos perigos em muitos cultos contemporâneos, e muitos deuses, deusas e ritos se
céus na forma de uma águia. Em outros casos, o imperador morto não era divinizado assemelhavam aos seus.
nem recebia o culto póstumo. Após César e Augusto, Cláudio foi o primeiro a ser Isto se tornou muito claro nos anos 180 a.C, quando se depararam com um
deificado, sendo Tibério e Caio omitidos, como também o foram Nero e Domiciano. culto, o de Baco, que, com certa razão, decidiram tratar como uma ameaça à sua
Quatorze imperadores foram divinizados entre Augusto e Caracala (PRICE, S.R.F. própria ordem. Nosso conhecimento desta questão é baseado num texto de um
1987:56-105). A distinção entre os deuses, os Divi (os mortos deificados) e o impe- decreto do Senado regulando o culto e num longo relato de T. Lívio (39. 8-I1)).
rador vivo e sua esposa (os ainda não divinizados) é cuidadosamente marcada nos Uma imagem do que aconteceu emerge destas fontes. O culto, evidentemente,
registros de sacrifício apresentados por S.R.F. Price (1987:93): não era novo. Tinha profundas raízes e estava intimamente relacionado, na Itália,
a um culto tradicional, o de Líber Pater. Mesmo a forma particular do culto de
"...uma coruja para Júpiter, uma vaca para Juno, uma vaca para Baco encontrado nos anos 180 já estava obviamente muito bem-estabelecida.
Minerva, uma coruja para Divus Augusto, uma cava para a Diva Augusta Aparece como um culto familiar no teatro de Plauto, em peças representadas

150 RELIGIÃO NA URBS REPENSANDO o IMPÉRIO ROMANO 151


muito antes dos anos 180, e a arqueologia demonstra que as autoridades romanas cultos públicos eram organizados pelo Estado, os cultos familiares pelos chefes
tinham conhecimento do culto antes de sua perseguição (BEARD, M., NORTH, de família (sempre homens), os cultos de seções particulares da cidade ou das
J.A., PRICE, S. R. F.:93). Mesmo o decreto destinado a controlar o culto contém províncias pelas autoridades locais, e as associações baseadas na profissão ou na
uma cláusula particular para estabelecer o que aconteceria se um grupo báquico vizinhança, por seus próprios líderes. Mas aquilo que nos é mais familiar cm
particular possuísse um santuário com objetos sagrados nele. termos de organização religiosa, sejam seitas ou religiões, i.e, pessoas reunidas
Em Lívio, trata-se de uma narrativa de como o cônsul do ano 196, em sua porque comungam da mesma crença religiosa, é algo virtualmente desconhecido
ingenuidade e persistência, descobriu a conspiração, e sobre as dramáticas ações pelas cidades do mundo romano. Então, não havia nenhum sistema de poder al-
para suprimi-la não somente na cidade de Roma, mas em toda a Itália (esp. 14- ternativo, consistindo em igrejas ou sacerdotes ao largo das assembleias e conse-
15). Tal perseguição foi, pelo que sabemos até o momento, algo sem precedentes lhos políticos. A organização dos grupos báquicos deve ter ameaçado aos roma-
em Roma, implicando a percepção, pelas autoridades, de uma grande ameaça no nos também por trazer uma nova e perigosa forma de poder.
caráter do culto. Mas de que ameaça se trataria? A analogia com a futura perseguição aos cristãos não deve ser feita de modo
Há várias hipóteses. Uma delas diz que não se tratou de uma crise religiosa imediato. Não há motivos para pensar que os seguidores de Baco fossem hostis a
propriamente dita, mas de um caso de ação policial contra uma conspiração. Ou- deuses ou rituais das sociedades de que faziam parte. Eles não rejeitavam os
tra é que o culto foi visto como uma influência estrangeira no período em que os sacrifícios, nem viam os deuses como demónios e, como se pode presumir, não
romanos suspeitaram da influência grega em sua cultura. Estas teorias não são tinham qualquer problema em executar os rituais tradicionais ou em respeitar
necessariamente erradas, mas nos parecem inadequadas para explicar tanto a outros deuses que não o seu. Mas a ameaça que representaram foi real. Tito
magnitude da ação romana quanto o ataque a um culto previamente aceito. Lívio, mesmo distante dos eventos, nos dá uma ideia do que estava em jogo, num
O indício crucial está no decreto do Senado, que chegou até nós numa placa discurso que atribuiu ao cônsul Póstumio Albino, numa contio, quando falou ao
de bronze, se endereçando não às próprias comunidades romanas, mas a uma das povo da ameaça de um poder rival:
cidades aliadas. As regras nele contidas se referiam à estrutura dos grupos nos "A menos que vocês se precavejam, homens de Roma, esta vossa as-
quais a organização do culto estava evidentemente baseada. Ele proibia aos gru- sembleia diurna, apropriadamente reunida pelo cônsul, será rivalizada
pos ter líderes ou sacerdotes masculinos, ou um tesouro do grupo, ou juramentos por sua assembleia noturna. Neste momento, eles, separadamente, te-
ou fiéis. Ele também restringia o tamanho dos grupos e a estrutura de seus mem- mem a vocês, agora reunidos em assembleia; quando vocês retornarem
bros (NORTH, J. A.: 1979, GRUEN, E. S.:1990). Isto só faz sentido em dois às suas casas e fazendas, eles se reunirão para decidirem sobre sua pró-
casos: a) o Senado estava banindo uma organização de que tinha conhecimento pria salvação e a vossa ruína. Será quando vocês, separadamente, terão
na Itália; b) não estavam lidando com uma irrupção selvagem de fanatismo des- de temê-los, reunidos ( 3 9 . 16.4)."
controlado, mas com um culto bem-estabelecido e organizado. Se a segunda op-
ção for procedente, não há necessidade de invocar nem a influência estrangeira (é De certo modo, a ação contra os adeptos de Baco foi mais determinada e mais
possível que o culto tivesse raízes locais), bem como não se trataria do temor de consciente do que foi a ação contra os cristãos, séculos mais tarde. Aqui, não se
uma atividade criminosa, apesar de serem, ambas, duas boas armas numa guerra de tratava de aguardar denúncias contra indivíduos às autoridades; os funcionários
propaganda que pode ter se dado contra um perigoso inimigo político-religioso. do Estado e os soldados procuravam os adeptos e levaram muitos à morte.
A existência de grupos tais como esse implica uma mudança maior na cultura É difícil exagerar a importância da revolução religiosa da qual este aconteci-
religiosa da Itália neste período. Os documentos deixam claro que o culto estava mento foi o primeiro sinal na Itália. Uma vez que havia grupos de pessoas unidas
muito disseminado, inclusive na própria Roma, no Lácio, na Etrúria e na Itália por suas crenças religiosas, toda uma nova gama de possibilidades religiosas
central e do sul. Neste momento, a Itália estava longe de ter um único povo, ou emerge. Os líderes do grupo adquirem um grau de controle sobre os membros
uma única cultura, e as implicações do caso podem estar nas linhas do controle que os sacerdotes romanos jamais tiveram; o grupo organizado se torna uma for-
polílico-social. As autoridades romanas estavam familiarizadas com o lalo dc ça política cm potencial; as crenças religiosas, mesmo que fossem consideradas
que a religião seguia e expressava as linhas principais da estrutura social. Os importantes no contexto tradicional, tomaram se focos dc grande interesse e aten-
çào, porque as crenças individuais se tornaram, pela primeira vez, o determinante le, c.f>, no cómodo decorado da Vila dos Mistérios, em Pompeia, mas não lia
desta ou daquela ação religiosa. A conversão de uma religião a outra se torna uma acordo se trata de um esquema decorativo ou se é uma referência à prática do
possibilidade e, consequentemente, o indivíduo passa a ser identificado como culto na casa.
membro de um grupo particular. O ápice deste desenvolvimento se dá quando os Podemos identificar outros grupos religiosos no período posterior à Bacanal ia.
membros do grupo passam a ter um nome comum e a serem conhecidos por este que foram objeto de uma limitada, mas hostil, ação das autoridades romanas. Os
nome. No caso dos adeptos de Baco dos anos 180, há traços deste desenvolvi- caldeus (presumidamente astrólogos) foram expulsos de Roma em 139 a.C; se-
mento: ao menos as mulheres do culto eram conhecidas como bacchae e os ho- guidores de Isis em várias ocasiões na República Tardia e no primeiro principa
mens de status respeitável, independentemente de sua origem (cidadãos roma- do; judeus foram expulsos, possivelmente em 13, junto com os caldeus e certa
nos, latinos ou aliados), eram proibidos de se casarem com elas, sem permissão mente também depois (BEARD, M., NORTH, J.A., PRICE, S.R.F: 161, 230-1).
específica de Roma. Se a implicação do nome é a de que os adeptos viam a si Em todos esses casos, podemos acreditar que ao menos parte do problema foi que
mesmos como exclusivamente "bacantes" e, por isso, alheios aos cultos normais os praticantes desses cultos ou artes eram vistos como estrangeiros envolvidos
dos deuses tradicionais, é algo que as nossas fontes não permitem afirmar. em práticas anti-romanas. As ações contra eles parecem ter sido menos violentas
Numa longa duração, a consequência deste novo tipo de vida religiosa foi e duradouras do que contra os cultos báquicos e mais por meio de uma ação
muito radical. Uma série de novos elementos surgia: pela primeira vez, os indiví- policial temporária do que uma perseguição propriamente dita. Mas talvez te-
duos tomavam decisões que afetavam sua experiência e seus compromissos reli- nham sido assim justamente por serem vistos como grupos estrangeiros e não
giosos. Tais decisões não eram necessariamente dramáticas; não precisamos evo- como uma mistura social variada, unida por suas crenças. Estrangeiros com "maus
car aqui o modelo da conversão repentina, como a dos grandes santos da tradição hábitos" podiam ser perigosos, porém eram mais facilmente eliminados do que
cristã (realmente os casos mais extremos desta experiência). E também nem to- grupos locais "desviados".
das as decisões eram genuinamente individuais, pois frequentemente uma famí- Nos séculos seguintes, um grande número de cultos orientais de mistérios
lia, ou escravos, tinham pouca escolha e seguiam a decisão do chefe de família, e atraiu pessoas na Itália e nas províncias ocidentais. Esta expressão, "cultos orien-
mesmo que agissem individualmente, talvez não fossem tão corajosos para desa- tais", é genérica porque os cultos em questão tinham - ou diziam ter - elementos
fiar a autoridade familiar, muito maior em Roma do que entre nós. Mas, ao longo de várias partes do Oriente (ísis, do Egito; Cibele e Átis, da Ásia Menor; Atargatio
do Império Romano, houve muitos casos de indivíduos que mudaram de lealdade da Síria; Mitra, da Pérsia, etc). O maior problema é que eles continham uma
religiosa porque suas crenças mudaram. Estes eventos aos poucos transformaram estrutura semelhante, envolvendo uma iniciação ritual e a revelação de um co-
o significado social e o sentido de "crença". O fato de que os indivíduos passa- nhecimento secreto aos iniciados. Esta estrutura comum pode ser claramente vis-
ram a levar com mais gravidade suas ações religiosas pode ser uma consequência
disso. ta como derivada da Grécia Arcaica e não do Oriente propriamente dito
(BURKERT, W. 1987). Então, é plenamente plausível que estes cultos se desen-
A revolução no comportamento religioso que ocorreu nos séculos subsequen- volveram em contextos culturais gregos em diferentes partes do mundo helenístico,
tes consistiu em dois processos relacionados, que são os dois lados de uma mes- usando as divindades indígenas e o mito da sabedoria do Oriente para construir
ma transformação. Seus efeitos foram sentidos em toda a sociedade antiga, tanto novas formas religiosas, que evidentemente tinham grande apelo para os ociden-
para seus atores quanto para quem não o era. Alguns efeitos podiam ser pontuais tais e não para os orientais. O Império Romano permitiu as possibilidades de
e violentos, como a supressão do culto báquico nos anos 180 e, por isso, este viagens e trocas, que permitiam às pessoas e às religiões viajarem rapidamente.
período permanece tão significativo. Mais frequentemente, porém, vemos um O problema que provocou por mais tempo teorias e especulações foi a relação
padrão de mudanças lentas, de acomodações graduais, alguns confrontos intelec- entre a existência desses cultos e a emergência, no mesmo período, de uma forma
tuais e poucos conflitos abertos. O destino do culto báquico na Itália é desconhe- religiosa mais radical, como a do judaísmo, do cristianismo e do maniqueísmo. A
cido após estes eventos. É provável que os grupos báquicos tenham continuado a teoria simplista é a de que a crença pagã tradicional declinou e foi cada vez mais
existir, mas não temos notícias de novos conflitos na República Tardia. Temos abandonada pelos próprios romanos, e os cultos de mistério proviam um alento
notícias de grupos báquicos sob o Império. Um eco dos cultos de mistérios exis- para as necessidades espirituais que os cultos tradicionais não conseguiam fazei
154 RELIGIÃO NA URBS REPENSANDO o IMPÉRIO ROMANO 155
Sabemos que esta teoria radica num profundo desconhecimento do caráter tio Esta ideia vem sendo criticada de muitos pontos de vista e é difícil defende la
culto cívico tradicional. A ideia de fundo remonta a uma teoria do século XIX desta forma hoje em dia. Primeiro, porque os diferentes cultos de mistérios nau
que via o monoteísmo cristão como o estágio evolutivo mais alto, destinado ne- pareciam oferecer a esperança de uma vida após a morte, e mesmo quando o
cessariamente a substituir outras formas de religiosidade. Neste ponto de vista - faziam, não fica claro se o fizeram antes do desenvolvimento do cristianismo.
que ainda tem seguidores - era apenas uma questão de tempo para que os pagãos Cada um deles parece ter tido sua particularidade na revelação dos mistérios e no
reconhecessem a inadequação de suas crenças religiosas tradicionais. recrutamento de iniciados. O mito de Attis, e.g., parece terminar não no renascimento
Há, contudo, alguns aspectos em que podemos estabelecer semelhanças entre do deus, mas numa redescoberta, que pode indicar uma escatologia diversa. Por
os cultos de mistérios e o cristianismo. Eles deviam oferecer aos seus iniciados outro lado, o mitraísmo tem outro padrão de experiência, no qual o progresso do
uma experiência religiosa mais pessoal do que a encontrada nos cultos tradicio- iniciado nas diferentes fases da revelação parece refletir o progresso da alma nos
nais, que era característica de antigos rituais. Eles também admitiam seus mem- estágios da esfera celeste.
bros, ligados por alguma organização permanente, com seus próprios sacerdotes Há, também, importantes limites no grau de convergência entre os cultos.
e lideranças. Em algumas versões, também encontramos convergências signifi- Este culto nunca, pelo menos até onde sabe, se separara da vida pagã como um
cativas entre o cristianismo e a experiência dos mistérios. Por exemplo, em seu todo. Os adeptos não tinham de rejeitar outros deuses ou evitar os festivais e
famoso ataque ao comportamento das mulheres, Juvenal, satirista romano do sé- rituais da cidade ou a prática do culto ao imperador. Não havia nada que os pu-
culo II d.C, descreve a contenção das mulheres devotadas à deusa Isis: estas sesse em conflito com as autoridades, e os cultos de mistério, mesmo ocasional-
mulheres estão sempre prontas e sofrer por sua deusa e aceitam a intervenção dos mente, recebiam o apoio de membros da elite romana. O máximo que podemos
sacerdotes em sua vida sexual (Juvenal, 6. 522-41). O mais importante para nós dizer é que alguns de seus procedimentos eram secretos, e que o local das reuni-
não é hostilidade de Juvenal, mas as atividades religiosas que ele denigre e que ões dos adeptos, e.g., de Mitra não era um espaço público, mas um ambiente
dificilmente inventou. Novamente no contexto do culto de Isis, desta vez na no- privado. Podemos nos perguntar em que medida o culto de Mitra podia conflitar
vela O asno de ouro, de Apuleio, temos outro relato da experiência religiosa indo com as crenças tradicionais, pelo menos em algumas de suas manifestações. Isto
além dos limites usualmente encontrados na vida pagã. Esta fonte é problemáti- pode ser surpreendente num culto tão proeminente no contexto do exército nas
ca, especialmente por ser um romance, mas seja qual for a atitude do autor em áreas fronteiriças, quando o culto parece mesmo ter tido um caráter scmi-oficial,
relação ao culto, não é de se acreditar que as experiências de seu herói fossem com seus graus de iniciação refletindo os níveis do exército. Contudo, um culto
completamente divorciadas da vida real. O protagonista, em gratidão pela ajuda exclusivamente masculino que classificava as mulheres como fora da humanida-
da deusa, pretende devotar sua vida a seu serviço: recebe conselho espiritual do de e cujo emblema principal do sacrifício era bem distinto dos demais dificilmen-
sacerdote, é visitado pela deusa num sonho, recebe três iniciações sob a inspira- te poderia coexistir confortavelmente na vida urbana normal. Mas não há indíci-
ção da deusa e tem sua vida totalmente transformada por estas experiências. Se- os de conflitos, apesar do fato de que romanos destacados que participavam do
ria arriscado classificar isto como uma conversão propriamente dita, pois não culto no exército não parecem tê-lo feito quando permaneciam na cidade.
temos como saber o quanto este "Lúcio" rejeitou seu "passado", mas o vemos Do nosso ponto de vista,' o fenómeno religioso mais importante do Império é
devotado ao serviço da deusa e como um bem-sucedido advogado em Roma. a emergência de várias ideias e instituições a partir do contato de diferentes gru-
No início do século XX, era comum a sugestão de que os cultos de mistério pos religiosos - conversão, perseguição, martírio, heresia, e todo o aparato cria-
ofereciam a seus iniciados um lugar seguro no além, e que esta transcendência da do para defini-los e reprimi-los. Se tais concepções existiram antes, tiveram uma
morte era, em todo caso, garantida pela morte e renascimento da divindade do aplicação muito limitada no quadro da cidade antiga. Só nos anos 180 vemos
culto. Era também argumentado que este padrão de experiência religiosa era ori- uma forma de religião ser perseguida. Como vimos, não há evidência que de-
ginalmente um padrão pagão datado de antes da emergência do cristianismo. monstre que os adeptos de Baco romperam com a religião tradicional, mas, ao
Começava com o culto dos deuses da vegetação, que morriam no inverno e renas- menos potencialmente, representaram um perigo para as autoridades romanas.
ciam na primavera. O cristianismo seria, então, uma mistura da ideia judaica do No mesmo período, grupos judeus nas cidades do mundo mediterrânico man-
Messias e a ideia pagã de um deus que cria a imortalidade para seus seguidores. tinham suas tradições religiosas em meio a comunidades pagãs. Isto implicava
156 RELIGIÃO NA URBS REPENSANDO o IMPÉRIO ROMANO 157
manter um calendário diferente, uma dieta distinta dos demais membros da cida- SÉNECA, The Apocolocyntosis. London: Penguin Classics, 1986.
de e, ao menos em princípio, evitar os rituais e festivais da cidade pagã. Isso não TITO LÍVIO. History of Rome. 3 vols. London: Penguin Classics, 1990.
leva necessariamente a um conflito, mas há sempre o risco de os habitantes da
cidade temerem a existência deste grupo, com que vivia lado a lado. Mas a diáspora Bibliografia
judaica tinha a seu favor o fato tranquilizador de sua religião ser herdada dos seus
ancestrais, e não buscavam fazer proselitismo neste período. Provavelmente, não BEARD, M. "Priesthood in the Roman Republic". In: BEARD, M. & NORTH, J. A.
se distinguiam sobremaneira de outros grupos étnicos, que também viviam nas (ed.) Pagan Priests. London: Routledge and Kegan Paul, 1990, pp. 17-48.
cidades e mantinham suas práticas religiosas. Os pagãos podiam vê-los mais como
excêntricos ou engraçados, mas dificilmente como perigosos. Em certos aspec- BEARD, M., NORTH, J.A., PRICE, S.R.F. Religions of Rome. Vol 1. Cambridge:
tos, porém, esta ideia é um erro. Assim como as comunidades cristãs posteriores, Cambridge University Press, 1988.
os judeus rejeitavam os deuses dos gentios. Além disso, as comunidades judaicas BEARD. M; CRAWFORD, M. Rome in the Late Republic. Problems and
parecem ter atraído seguidores entre os gentios ou ao menos apoios fortes para a Interpretations. New York, Ithaca: Cornell University Press, 1985.
religião judaica. É também verdade que a identidade religiosa judaica é incom- BICKERM AN, E.J. "Consecratio". In: Le culte des souverains dans 1'Empire romain.
patível com a prática de qualquer outro culto de outra religião. De fato, conhecemos Foundation Hardt, Entretiens 19 (1973), Vandoueuvres-Geneva: 3-25.
muito pouco da vida das comunidades judaicas nas cidades pagãs para emitirmos um BURKERT, W. Ancient Mistery Cults. Cambridge, MA and London, 1987.
juízo seguro. De todo modo, é inquestionável que o cristianismo aparecerá às autori-
dades romanas como uma religião muito mais ameaçadora do que o judaísmo. ELSNER, P T "Cult and Sacrifice: sacrifice in the Ara Pacis Augustae". JRS 81 (1991):
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