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Lacan
TEMA
O tema a ser desenvolvido por esta pesquisa é a relação da psicanálise com a ironia,
em: 1) seu sentido de figura de linguagem e tropo, no qual a psicanálise contribui com o
conceito de chiste elaborado por Freud e posteriormente desenvolvido por Jacques Lacan; 2)
ironia como modo de interrogação próprio à posição do analista, relação esta que fora
inaugurada por Lacan e desenvolvida por outros autores psicanalistas, tais como
Jacques-Alain Miller e Serge Cottet e; 3) ironia como retórica do inconsciente, pensamento
introduzido por Paul-Laurent Assoun.
OBJETIVOS
Objetivo Geral:
Objetivos Específicos:
JUSTIFICATIVA
As razões nas quais o presente anteprojeto assenta e justifica-se são divididas em três:
A primeira refere-se à importância da temática ao campo psicanalítico conforme
autores cuja produção de trabalhos na área indicam, desde Sigmund Freud a Jacques Lacan,
sendo desenvolvida ainda posteriormente por Paul-Laurent Assoun, Serge Cottet e
Jacques-Alain Miller, chegando a ser colocada por este último como uma forma de prática
clínica correspondente às últimas elaborações de Lacan, qual seja: a Clínica irônica, tal como
o trabalho homônimo de Miller apresenta.
A segunda razão estabelecida para o desenvolvimento deste trabalho emana da
constatação de que poucos foram os trabalhos produzidos cujo enfoque seja afim ao que esta
pesquisa propõe, principalmente entre aqueles fabricados em território nacional. Neste âmbito
o que se encontra na bibliografia recenseada é: um capítulo de Marco A. C. Jorge que dedica a
analisar a ironia na obra dos chistes de Freud; e seis artigos, (a maioria derivados de trabalhos
mais extensos, tais como livros, teses e dissertações) um por Antônio M. R. Teixeira, um por
Marie-Jean Sauret, um por Ines R. B. Loureiro, um de Ramon A. Souza, um por Anna L.
Kauffmann e um de Leila R. Coelho, cada qual ao seu modo retratando a temática da ironia e
alguma relação desta com a psicanálise, entretanto, destes, apenas o primeiro artigo
corresponde especificamente à mesma perspectiva desta pesquisa, sendo o capítulo publicado
por Marco A. C. Jorge e o artigo de Ines Loureiro materiais que tangenciam a proposta desta
pesquisa, porém em menor medida.
O levantamento bibliográfico acima exposto caracteriza, portanto, a realização que
este anteprojeto se propõe como um trabalho que em sua maior extensão apresenta uma
relação de pensamentos e desenvolvimentos da teoria psicanalítica, que apesar da atualidade,
pode trazer novos horizontes conceituais no que concerne ao campo psicanalítico brasileiro,
isto devido, principalmente, à diversidade dos materiais acerca da ironia já produzidos a
serem coligidos e cotejados.
Por fim, a terceira razão reside na lógica própria à ironia e nos modos de seu uso e
aparecimento na cultura que a tornam um fenômeno que, desde Sócrates até Lacan, tornou-se
objeto de estudo por diversas escolas e tradições filosóficas, de lingüistas e psicanalistas.
Assim, relacionar o que se produziu acerca da ironia, de modo muito específico e pontual da
filosofia clássica até a filosofia contemporânea, com a respectiva visada psicanalítica sobre os
mesmos pensamentos, os pontos de incidência na qual a forma de analisar o mesmo fenômeno
ora coincide, ora se distancia da psicanálise, mostra outra faceta do projeto aqui em questão
que contribui no esclarecimento daquilo que é específico do campo de estudos e práticas da
psicanálise acerca da ironia, assim como também circunscreve os lugares onde filosofia e
psicanálise comunicam-se e, por implicação, reserva o espaço que somente interessa ao
discurso filosófico.
Igualmente, desvelar os mecanismos pelos quais a ironia opera, as condições da
possibilidade de sua emergência no discurso, os efeitos clínicos quando realizada pelo
analista, o que pode indicar ao clínico quando é o analisante que a utiliza, dentre outras
dimensões e manifestações da ironia, configuram como dados e questões que visam ao
aprimoramento do campo psicanalítico. Por todas as razões acima mencionadas, a linha de
pesquisa que este anteprojeto melhor enquadra-se é a de Conceitos Fundamentais em
Psicanálise e Investigações no Campo Clínico e Cultura, cuja área de concentração
correspondente é a de Estudos Psicanalíticos.
REFERÊNCIAS TEÓRICAS
A ironia possui uma extensa historia. Diversos autores contribuíram para sua difusão,
alguns assim o fizeram através de dedicação à investigação de seu sentido, outros pela
freqüência desta em seus escritos, tendo sido explicitamente evocada em determinados casos
ou ainda mesmo que apenas tacitamente. Segundo D. C. Muecke (1995) são notados usos e
discursos sobre a ironia desde a antiguidade grega com poetas e filósofos como Homero,
Ésquilo e Platão, sendo o último conhecido por ter associado indissoluvelmente a figura de
Sócrates à ironia, tal como Xenofonte e Aristófanes também vincularam. Posteriormente, na
Roma antiga podemos citar Cícero, Horácio e Tácito; durante o Renascimento encontramos
formas de ironia registradas em Boccaccio e Ariosto na Itália; em Shakespeare, na Inglaterra
durante o Período elisabetano, e também em Cervantes, na Espanha. Ainda, para
mencionarmos mais alguns exemplos notáveis, encontramos registros de ironia no Iluminismo
em Voltaire e Diderot; durante o romantismo alemão, com autores como August Schlegel e
Søren Kierkegaard até autores mais contemporâneos como Henry Bergson, Gilles Deleuze,
Franz Kafka, Paul de Man, Richard Rorty, Jacques Derrida e Clément Rosset. Uma lista
completa de todos os autores que poderíamos categorizar no rol supracitado seria dificilmente
concluída, mas estes já mencionados bastam para que se tenha uma breve ideia do amplo
alcance da infiltração da ironia na história da cultura ocidental.
Se identificar traços de ironia em uma exaustiva lista de autores reconhecidos
mostrar-se-ia uma tarefa impossível, conceituar univocamente um sentido ao vocábulo ironia
seria uma realização mais difícil ainda. Esta opinião encontra respaldo, por exemplo, em De
Man (1996), para o qual:
Em verdade há um problema fundamental: o fato de que se a ironia realmente fosse um conceito seria
possível dar uma definição da ironia [...] Parece impossível se apossar de
uma definição [da ironia], e isto está inscrito em certa extensão na tradição
1
da escrita dos textos. (p. 164, tradução nossa).
1
There is indeed a fundamental problem: the fact that if irony were indeed a concept it should be possible to give
a definition of irony. (…) It seems to be impossible to get hold of a definition, and this is itself inscribed to some
extent in the tradition of the writing on the texts.
hiato cuja natureza seja antitética, seja sobre o representado e a representação, entre o dito e o
pensado, ou mesmo sobre a falsidade e a verdade.
Mas se esta forma de proceder pode parecer verídica neste pequeno exame e
começamos a crer que definir o que é a ironia não seja assim algo tão complicado, outras
concepções sobre sua significação, como, por exemplo, mesmo em Kierkegaard (1991),
quando estabelece a existência de uma ironia contemplativa diferenciando-a da ironia
executiva ( p. 220-221), mostram-se tão díspares em relação às aqui apresentadas que
novamente caímos em aporia e seu sentido torna-se novamente obnubilado. Igualmente, tal
como Kierkegaard que fizera algumas subdivisões em relação à ironia de modo a poder
organizar suas características em relação aos autores que anteriormente dela trataram, Muecke
(1995) realiza outras que abrem novas perspectivas à investigação do sintagma. Para este,
poder-se-ia separar a ironia entre: Ironia instrumental, Ironia do destino, Ironia verbal, Ironia
literária, dentre outras formas.
No mesmo sentido, recuperando brevemente as primeiras tentativas registradas de
significar o termo deparamo-nos com a mesma dificuldade.
Na Grécia antiga, Aristóteles, um dos primeiros autores a se preocupar em abstrair o
fenômeno da ironia, distinguia entre eironeia e alazoneia, dissimulação autodepreciativa e
dissimulação jactanciosa, respectivamente. A primeira, a eironeia, estaria mais para algo da
ordem de uma simulação de modéstia, uma forma de dissimulação superior à outra, a
alazoneia, que poderia ser traduzida do vocábulo grego como fanfarronice.
O termo eironeia aparece pela primeira vez na República de Platão sendo utilizada
por Sócrates no sentido de “uma forma lisonjeira, abjeta de tapear as pessoas” (MUECKE,
1995, p. 31). O eiron c onforme o político Demóstenes o via, é: “aquele que, alegando
incapacidade, fugia de suas responsabilidades de cidadão” (MUECKE, 1995, p. 31), já para
Teofrasto, o eiron s eria aquele que “era evasivo e reservado, escondia suas inimizades,
alegava amizades, dava uma impressão falsa de seus atos e nunca dava uma resposta direta”
(MUECKE, 1991., p . 31).
Por outro lado, o alazon corresponde à figura do zombeteiro, do fanfarrão, do
indivíduo que dissimula, não a fim de parecer pequeno, tal qual um eiron c omo Sócrates, mas,
sobretudo, a fim de se vangloriar e parecer grande aos demais. Deste modo, o alazon
caracteriza-se como aquele sujeito que se mostra fingidamente confiante, ao passo que o eiron
resume-se bem na figura do fingidamente modesto.
Já para Cícero, a ironia não teria tal pretensão abusiva como na Grécia antiga,
consistindo, principalmente, como figura de retórica, ou conforme Muecke (1995) indica:
“como a ‘pretensão amável’ totalmente admirável de um Sócrates, ironia como um hábito
pervasivo do discurso.” (p. 31).
A despeito da dificuldade de se objetivar um sentido único para a ironia, Freud tratou
desta diretamente em sua obra Os chistes e sua relação com o Inconsciente (1905),
enquadrando-a como uma dentre as onze técnicas de elaboração de chiste. Lá ele nos diz: “A
única técnica que caracteriza a ironia é a representação pelo oposto” (FREUD, 1969, p. 76).
No entanto, embora não tenha desenvolvido sistematicamente esta noção, Freud a
assenta e redige algumas páginas para exemplificar o que entende por ironia no campo dos
chistes. Mas antes de abordar dos pormenores de seus exemplos, cabe aqui uma consideração
preliminar a respeito do que seja o chiste tal como o considerara.
Para Freud (1969), os chistes (Jokes conforme a tradução inglesa de James Stratchey
para a palavra Witz, como consta originalmente em alemão, e Mot d’esprit t al como preferiu
Jacques Lacan empregar em francês o mesmo termo) são uma espécie de produção verbal
capaz de provocar riso e/ou gerar prazer, tanto para aquele que o elabora e o enuncia, quanto
para o interlocutor (p. 36). Por conseguinte categoriza-o como um dos fenômenos do cômico,
tal como o humor também o é. Entretanto, nem o humor nem os chistes subsumem-se na
categoria do cômico para Freud, e isto por razões específicas, pois o cômico corresponde a
algo que se constata e seja risível, já o chiste e o humor são produções, e, portanto, precisam
de ao menos um sujeito engajado ativamente para que ocorram.
Para além deste modo de diferenciar os fenômenos supracitados, qual seja, a
passividade daquele que reconhece algo como cômico e o caráter ativo, tanto do humorista
quanto do emissor de um chiste, Freud dividiu ainda os mesmos três fenômenos segundo
outra perspectiva, uma que atende mais especificamente à natureza da investigação das
relações destes com o inconsciente. Por esta via, chiste, cômico e humor assemelham-se
enquanto técnicas de extração de prazer, mas diferenciam-se conforme o recurso utilizado na
economia libidinal que realizam para a concorrência disto. Destarte:
O prazer nos chistes pareceu-nos proceder de uma economia na despesa com a inibição, o prazer no
cômico de uma economia na despesa com a ideação [catexia] e o prazer no
humor de uma economia na despesa com o sentimento. (FREUD, 1969, p.
218)
Implica-se daí que ocorre no chiste uma transgressão a ser autorizada, seja esta uma
infração em relação ao código lexical, tal como quando há a produção de um neologismo, ou
mesmo uma transgressão moral, como por exemplo, um chiste do gênero smut, ou uma ofensa
elaborada. Os primeiros, Freud (1969) os agrupou na classe que denominou de chistes
não-tendenciosos, os segundos na de tendenciosos.
Enquanto os já expostos modelos de análise dos processos psíquicos aptos à produção
do riso lançam luz sobre a dimensão econômica no curso de suas elaborações sob o domínio
inconsciente, ainda encontram-se outras concepções para estes fenômenos ao longo da obra
do referido autor. O humor pode ser visado também como um mecanismo de defesa, um
modo de um sujeito defender-se de um afeto doloroso, através do qual o humor irrompe no
lugar do afeto (FREUD, 1969, p. 212), enquanto o cômico pode ser entendido como uma
reação diante de uma situação que evoca a superioridade daquele que o constata (p. 183).
Da mesma forma, há outra característica no chiste que o diferencia radicalmente do
cômico e do humor, qual seja: a necessidade de outrem para sua efetivação. Pois se a atitude
humorística tanto pode ser dirigida a outros quanto para a própria pessoa (FREUD, 1927, p.
165), o chiste, “(...) pelo contrário, deve s er contado a alguém mais” (1969, p. 165. grifo
nosso). Sendo a ironia, ou representação pelo oposto, conforme Freud preferiu escrever na
maior parte dos casos que tratou desta técnica, uma das técnicas de elaboração de chiste, esta
também há de ser contada a alguém mais quando for produzida tal como um chiste. Contudo
Freud (1969) não restringe à ironia a peculiaridade de ser apenas um modo de chiste, mas
também um recurso que responde a outras funções, como o próprio autor destaca em uma
peça de Shakespeare na qual, em uma cena, quando diante do cadáver de César, Marco
Antônio exclama: “For Brutus is an honourable man...”, de modo que a platéia lhe devolve as
palavras no sentido realmente intencionado: “They were traitors: honourable men!” (p. 76).
Se para Freud a ironia mereceu apenas algumas páginas em sua obra sobre os chistes
(1905), encontramos ainda menos desenvolvimentos acerca desta na obra daquele que ficou
conhecido pelo seu empreendimento de um Retorno à Freud.
Os elementos que localizamos no conjunto dos textos e seminários de Jacques Lacan
acerca da ironia resumem-se a: uma frase no Seminário 4 na qual Lacan a caracteriza como
um modo de questionamento (1995, pág 29), definição que se alinha em certa extensão àquela
dada por Aristóteles, e em seu Seminário 2 (1985, pág 12) a propósito da ironia socrática. De
resto, o que se identifica do significante ironia, ou mesmo de significantes relacionados, tais
como ‘irônico’; ‘eiron’; ‘ironicamente’; etc., nos textos e seminários de Lacan, ou não passam
de indicações de que alguém fora irônico em determinada ocasião, ou então quando o próprio
autor utilizara para indicar que está sendo, ou não, irônico, no decorrer de suas exposições.
Apesar da pouca atenção que Lacan concedeu à ironia explicitamente, Jacques-Alain
Miller, em seu texto Clínica irônica, apresenta, entre outras ideias, a de que a clínica
psicanalítica dever-se-ia orientar à maneira de uma clínica universal do delírio, supondo
assim, que todos os sujeitos são delirantes uma vez que a própria linguagem introduz o
delírio, isto é, que a estrutura da linguagem, enquanto composta de significantes articulados a
outros significantes “irrealiza o mundo” (MILLER, 1996, p. 193).
Levando em conta esta concepção do hiato que a linguagem instaura entre a palavra e
a coisa, e em determinada acepção, entre o Real e o Simbólico, Miller argumentará em prol de
que a clínica psicanalítica seja irônica, uma vez que a ironia “vai contra o Outro” (MILLER,
1996, p. 191), e desse modo visa à desrealização dos semblantes que dão consistência ao
sujeito em sua alienação imaginária, diferentemente da clínica psiquiátrica, cuja perspectiva
melhor se expressaria na forma do humor, que como o autor pontua, se “inscreve na
perspectiva do Outro” (MILLER, 1996, p. 191).
Teixeira (2010) ressalta bem esta característica humorística da clínica psiquiátrica ao
comentar uma anedota na qual um médico que estando prestes a dar alta a um paciente
paranóico lhe diz: “estou de olho em você, você vai se haver comigo se eu souber que você
voltou com suas histórias de perseguição” (p. 14).
Assim, longe de se colocar em uma posição de prescrição do saber, tal como a clínica
psiquiátrica que seria a representante dessa vertente, tanto para Miller quanto para Teixeira, a
pertinência de uma clínica irônica para a psicanálise ganha corpo com a ideia de que: “A
ironia é a forma cômica tomada pelo saber de que o Outro não existe, isto é, de que, como
Outro do saber, ele não é nada” e, portanto: “(...) a ironia só se exerce aí onde a queda do
sujeito suposto saber foi consumada”. (MILLER, 1996, p. 191).
MÉTODOLOGIA
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund. O humor [ 1927]. In: Edição Standard Brasileira das obras completas de
XI. Rio de Janeiro, 1969.
Sigmund Freud v. X
LACAN, J. O seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1995
(Trabalho original publicado em 1956-1957)
MILLER, J-A. Clínica Irônica. In: Matemas I. Tradução, Sergio Laia; revisão técnica,
Angelina Harari. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.