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Nº 514 | Ano XVII | 30/10/2017

Lutero e a Reforma
500 anos depois. Um debate
Walter Altmann Andreas Urs Sommer
Martin Dreher Helmut Heit
Elaine Neuenfeldt Massimo Firpo
Kirsi Stjerna Franco Ferrarotti
Vítor Westhelle Franco Cardini
Marco Vannini Adriano Prosperi
Teófanes Egido López Fulvio Ferrario
Philip Endean

Leia também
Vinicius Fornari ■ ■ Bruno Lima Rocha
Maurício Casotti ■ ■ Perfil: Luciana Curra
João Roncati ■
EDITORIAL

Lutero e a Reforma – 500 anos


depois. Um debate

H
á 500 anos Martinho Lutero afi- sob a perspectiva de Nietzsche.
xou suas 95 teses na porta da Igreja do Massimo Firpo, historiador italiano, destaca
Castelo de Wittenberg. O ato inaugura que Lutero ainda é um teólogo medieval, mas
a chamada Reforma Protestante. Mais do que que seu desejo de reformar a cristandade acaba
uma insurgência teológica, a Reforma Luterana contribuindo para a eclosão da Modernidade.
acabou gerando consequências políticas, eco-
nômicas e sociais, a ponto de ser compreendida Para o sociólogo italiano Franco Ferrarotti,
como um dos marcos históricos da transição da Lutero é “metamoderno”.
Idade Média para a Modernidade. Este é o tema Franco Cardini, historiador e professor ita-
principal em debate na revista IHU On-Line liano, destaca dois elementos da Reforma que
desta semana. contribuem para a transição à Modernidade:
Walter Altmann, professor de Teologia e a fragmentação do cristianismo e a associação
ex-presidente do Conselho Latino-Americano com o poder temporal que se constituía.
de Igrejas e do Conselho Mundial de Igrejas, Adriano Prosperi, historiador e jornalista
reflete acerca dos desafios, 500 anos depois italiano, analisa o que considera a perspectiva
da Reforma. antropológica mais importante: a mudança de
Martin Dreher, pastor luterano, professor e concepções na relação entre os vivos e os mortos.
historiador brasileiro, apresenta o movimento O teólogo valdense Fulvio Ferrario compre-
2 da Reforma e o analisa para além das perspec- ende que a Reforma inaugura outras possibili-
tivas teológicas. dades de ser cristão e viver a igreja do Cristo.
Elaine Neuenfeldt, teóloga e secretária-exe- A assim chamada Revolução 4.0 também é
cutiva da Secretaria de Mulheres na Igreja e destaque nesta edição. Podem ser lidas as en-
na Sociedade, da Federação Luterana Mundial trevistas com Vinicius Fornari, economista,
– FLM, e Kirsi Stjerna, professora de histó- com Maurício Casotti, que trabalha na área
ria luterana e teologia na Graduate Theological de marketing com foco na internet das coisas, e
Union, na Califórnia, destacam a participação com João Roncati, diretor da People+Strategy
feminina no movimento reformista e suas con- Consultoria Empresarial.
sequências para o cristianismo hoje.
Bruno Lima Rocha, cientista político, ques-
Vítor Westhelle, professor de Teologia Sis- tiona a legitimidade das agências de risco, e o
temática na Escola Luterana de Teologia em perfil é de Luciana Curra, a guardiã dos livros
Chicago, e Marco Vannini, italiano, renoma- mais antigos da Biblioteca da Unisinos.
do especialista nos estudos sobre mística me-
dieval, de perspectivas diferentes, analisam a A todas e a todos uma boa leitura e uma exce-
relação de Lutero com a mística. lente semana.

Teófanes Egido López, da Universidade de


Valladolid, na Espanha, destaca as mudanças
que a Reforma imprimiu no cristianismo.
O britânico Philip Endean, jesuíta, professor
de espiritualidade nas Faculdades Jesuítas de
Paris, Centre Sèvres, relaciona a espiritualida-
de luterana e a experiência de Inácio de Loyola,
fundador da Companhia de Jesus.
Andreas Urs Sommer, professor cate-
drático de filosofia na Universidade Albert Foto da Capa: estátua
em bronze de Martinho
Ludwig em Freiburg, Alemanha, e Helmut
Lutero na frente da
Heit, vice-diretor da Academia de Cultura igreja de Dresden |
Europeia na Universidade Tongji, em Shan- Pixabay/Creative
ghai, China, analisam o pensamento de Lutero Commons

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Tema de Capa | Walter Altmann: 500 anos depois, uma nova reforma visando o diálogo inter-religioso
14 ■ Tema de Capa | Martin Dreher: A Reforma e as reformas
24 ■ Tema de Capa | João Vitor Santos: Lutero, do medieval ao moderno
32 ■ Tema de Capa | Elaine Neuenfeldt: Liberdade: chave para a teologia luterana
38 ■ Tema de Capa | Kirsi Stjerna: O teólogo da liberdade que pensa o papel da mulher
42 ■ Tema de Capa | Vítor Westhelle: O místico que traz o monastério para o cotidiano popular
48 ■ Tema de Capa | Teófanes Egido López: O luteranismo e a moderna religiosidade secular
55 ■ Tema de Capa | Philip Endean: Lutero e Inácio de Loyola. A espiritualidade que vali além
da polarização entre reforma e contrarreforma
59 ■ Tema de Capa | Marco Vannini: A inversão da mística medieval
64 ■ Tema de Capa | Andreas Urs Sommer: Lutero como discípulo de Paulo e o cristianismo
como religião do ressentimento
67 ■ Tema de Capa | Helmut Heit: Reforma como farsa depois da tragédia da fundação
da igreja por Paulo, segundo Nietzsche
71 ■ Tema de Capa | Massimo Firpo: Moderna é a pluralidade de confissões que surgiram
do protesto de Lutero
76 ■ Tema de Capa | Franco Ferrarotti: Lutero, o metamoderno
78 ■ Tema de Capa | Franco Cardini: O encontro entre Reforma e o surgimento da Modernidade
81 ■ Tema de Capa | Adriano Prosperi: A grande virada na relação entre os vivos e os mortos
84 ■ Tema de Capa | Fulvio Ferrario: A Reforma inaugura novas formas de ser cristão e viver a igreja
3
88 ■ Vinicius Fornari: Brasil tem a obrigação de pôr em prática o conceito de indústria 4.0
91 ■ João Roncati: É fundamental que governos e grandes corporações construam cenários
para a Revolução 4.0
94 ■ Maurício Casotti: É preciso pragmatismo para o Brasil não ser um celeiro de mão-de-obra barata
98 ■ Perfil: Luciana Curra
100 ■ Crítica internacional | Bruno Lima Rocha: As análises de “risco” e a falsa aleatoriedade
103 ■ Publicações | Francisco de Aquino Júnior: Teologalidade das resistências e lutas populares
104 ■ Publicações | Colby Dickinson: A glória como arcano central do poder e os vínculos entre oikonomia,
governo e gestão
105 ■ Publicações | Armando de Melo Lisboa: Economia política aristotélica: cuidando da casa, cuidando
do comum
107 ■ Outras edições

Diretor de Redação Atualização diária do sítio


Inácio Neutzling Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
(inacio@unisinos.br) Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,
Anielle Silva, Victor Thiesen e William
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Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
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João Vitor Santos – MTB 13.051/RS
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A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Vitor Necchi – MTB 7.466/RS Instituto Humanitas Unisinos - IHU
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ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Editoração Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Gustavo Guedes Weber (jacintos@unisinos.br)

EDIÇÃO 514
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

“Somos uma sociedade amedrontada”. O medo


e a violência, dois problemas dos novos tempos
“Vivemos à procura de salvadores da pátria e nunca colocamos em prá-
tica um projeto de interdição moral e política da violência letal no Brasil.”
Renato Sérgio de Lima é doutor e mestre em Sociologia e graduado em Ciências Sociais pela
USP. Professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas – FGV-EAESP.

A tragédia do Brasil hoje: só Lula e o neopente-


costalismo falam à grande massa dos pobres
“Lula e as alternativas à sua direita certamente disputarão o apoio de
correntes do neopentecostalismo, e com algo terão de retribuir se tiverem
êxito. A onda reacionária entre nós é político-religiosa.”
Adriano Pilatti é graduado em Direito pela UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e
doutor em Ciência Política pelo Iuperj.

4 A reversão da crise requer uma exigência


democrática
“As classes dominantes brasileiras perderam o resto de vergonha que
ainda tinham.”
Ruy Fausto é graduado em Filosofia e em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e doutor
em Filosofia pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne.

Não há ‘outro mundo para se construir’, mas


outras relações e modos de vida a se construir
Só as lutas, o movimento, a experimentação é que vão nos restituir a po-
tência e nos fazer escapar desse lugar de espectadores ou de comentadores
da conjuntura.
Alana Moraes é graduada em Antropologia e mestra em Sociologia e Antropologia pela pela UFRJ,
onde atualmente cursa doutorado em Antropologia Social. É feminista e integrante do coletivo
Urucum pesquisa-luta.

Não tem espaço para reforma dentro da


ordem
“Será que o desenvolvimento das forças produtivas deve ser uma pauta e
um norte para esquerda?”
Fabio Luis Barbosa dos Santos é doutor em História Econômica pela USP, professor do curso de
Relações Internacionais da Unifesp e pesquisador colaborador do Programa de Pós-Graduação em
Integração da América Latina da USP.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Nove milhões de mortes Custo de denúncias Brasil tem 13 milhões


por ano: a poluição mata contra Temer alcança de analfabetos e não
15 vezes mais do que R$ 32,1 bi consegue redução há
as guerras três anos, diz Unesco

A poluição tornou-se a A negociação política para O Brasil ainda tem 13 mi-


mais séria ameaça à saúde. barrar duas denúncias cri- lhões de analfabetos e não
Em 2015 causou 9 milhões minais contra o presidente consegue reduzir esse nú-
de mortes, um sexto do total. Michel Temer tem um custo mero há três anos, segundo
Três vezes maior que o efeito que pode chegar a R$ 32,1 relatório da Unesco. A con-
combinado de aids, malária bilhões. Essa é a soma de di- clusão é que faltam incenti-
e tuberculose, e 15 vezes mais versas concessões e medidas vos para a educação profis-
do que todos os conflitos ar- do governo negociadas com sionalizante e para o aluno
mados e outras formas de parlamentares da Câmara terminar o ensino médio.
violência. entre junho e outubro. Reportagem publicada por G1 em
Reportagem de Antonio Cianciullo, Reportagem de Felipe Frazão, publi- 24-10-2017, disponível em https://goo.
publicada por Repubblica em 20- cada por O Estado de S. Paulo em gl/YUNzVS.
10-2017. Disponível em https://goo. 25-10-2017, disponível em https://goo.
gl/5KpRza. gl/GLDM1z.

Relatório final de CPI Emissão de gases estufa STF suspende novas


identifica que empresas do Brasil tem maior regras do trabalho
privadas devem R$ 450 crescimento em 13 anos escravo por ferir
bilhões à Previdência princípios da Constituição

O senador Hélio José As emissões brasileiras de A ministra Rosa Weber, do


(Pros-DF) apresentou seu gases do efeito estufa aumen- STF, concedeu uma liminar,
relatório final na CPI da taram 8,9% de 2015 a 2016. É pedida pelo partido Rede
Previdência, no qual defen- o segundo ano consecutivo de Sustentabilidade, que sus-
de que a Previdência Social crescimento – o maior desde pende a portaria do governo
não é deficitária. 2004 –, e, mais uma vez, des- Temer que altera — e reduz
A reportagem é publicada por Agência matamento e agropecuária — a fiscalização ao trabalho
Senado, 23-10-2017, disponível em pesaram na conta. escravo.
https://goo.gl/TAQhK4.
A reportagem é de Philippe Watanabe, Reportagem de Felipe Betim publica-
publicada por Folha de S. Paulo em do por El País em 24-10-2017, disponí-
26-10-2017, disponível em https://goo. vel em https://goo.gl/Atzx65.
gl/yF2xLw.

EDIÇÃO 514
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

VII Seminário A evolução da internet O poder constituinte:


Observatórios: das coisas e da ensaio sobre as
pesquisas, instituições inteligência artificial e alternativas da
e sociedade nas seus impactos modernidade.
tramas da crise na sociedade Comentário sobre a obra
de Antonio Negri
30 e 31/out 31/out 6/nov
Programação Horário Horário
https://goo.gl/WnsYG1 19h30min às 22h 19h30min às 22h
Local Conferencista Apresentação
Unisinos Campus POA Esp. Maurício Francisco Prof. Dr. André Luiz Olivier
Torre Educacional Casotti – Gerente de Negó- da Silva – Unisinos
cios e Soluções no CPqD
Local
Local Sala Ignacio Ellacuría e
Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Companheiros – IHU Unisinos Campus
Unisinos Campus São São Leopoldo
Leopoldo

6
Oficina: Objetivos Homo Deus. Uma Lançamento do livro
de Desenvolvimento breve história do Los Mercados Laborales:
Sustentável amanhã. Comentário Pobreza y Desigualdad
sobre a obra de Yuval desde un enfoque de
Noah Harari Derechos Humanos

7/nov 9/nov 13/nov


Horário Horário Horário
14h às 16h30min 17h30min às 19h 19h30min às 22h
Local Apresentação Conferencistas
Sala Ignacio Ellacuría e Prof. MS Gilberto Faggion Prof. Dr. Aloisio Ruscheinsky
Companheiros – IHU e Prof. Dr. Lucas Henrique – Unisinos, MS Rômulo
Unisinos Campus São da Luz – Unisinos José Escouto – Unisinos e
Leopoldo Alberto Altamirano – UFRGS
Local
Sala Ignacio Ellacuría e Local
Companheiros – IHU Sala Ignacio Ellacuría e
Campus Unisinos Companheiros – IHU
São Leopoldo Campus Unisinos
São Leopoldo

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TEMA DE CAPA

500 anos depois, uma nova reforma


visando ao diálogo inter-religioso
Walter Altmann analisa os significados da Reforma Luterana
e destaca como seus valores se atualizam em movimentos
que buscam desenvolver o ecumenismo
João Vitor Santos

M
artinho Lutero tem na crítica çarmos qualquer tentação ou intento de
às indulgências o ponto mais enfrentar os muçulmanos em nome da
lembrado quando se fala nas fé cristã, devemos construir de todos os
razões que o levaram a se insurgir contra modos possíveis avenidas de respeito e
a Igreja. Nessa questão das indulgências diálogo”, exemplifica. E sobre a aproxi-
– apenas um dos tantos pontos propos- mação entre católicos e luteranos, pon-
tos por ele –, é importante compreender tua: “não se trata de uma meta já plena-
o que está por trás dessa crítica. Segundo mente alcançada, mas de uma trajetória
o teólogo Walter Altmann, Lutero que- em curso. Pode-se dizer que o conflito
ria destacar a noção de gratuidade da foi deixado para trás. Há um reconheci-
salvação, acessível a todos. “Essa noção mento comum de que pessoas católicas
de gratuidade segue relevante nos dias e luteranas são irmãs em Cristo, a sepa-
de hoje, em que temos numerosas for- ração é sentida com dor e o diálogo tem
8 mas ‘modernas’ de mercantilização da avançado em muitas questões”.
fé”, acrescenta. Segundo Altmann, essa
gratuidade tem conexão direta com a no- Walter Altmann é pastor emérito
ção de liberdade, já que a partir da cisão da Igreja Evangélica de Confissão Lu-
emergem outras tantas formas de se viver terana no Brasil – IECLB, com douto-
o cristianismo. “Num mundo globalizado rado em Teologia pela Universidade
e de comunicação global, característico de Hamburgo, Alemanha, professor
para a atualidade, há uma movimentação de Teologia na Faculdades EST, de São
religiosa com uma intensidade jamais Leopoldo/RS, presidente do Conselho
vista”, pontua, na entrevista concedida Latino-Americano de Igrejas – CLAI,
por e-mail à IHU On-Line. de 1995 a 2001, pastor-Presidente da
IECLB de 2002 a 2010 e moderador do
Em meio a tantas formas de professar
Conselho Mundial de Igrejas – CMI, de
a fé, o teólogo destaca outro valor que
2006 a 2013. Entre suas publicações,
se torna importante em nosso tempo: o
destacamos Lutero e libertação. Re-
diálogo inter-religioso. Isso porque, no
leitura de Lutero em perspectiva lati-
passado, a Reforma gerou muito mais
no-americana (São Leopoldo: Editora
do que disputas teológicas, chegando a
Sinodal, 2016) e que foi recentemente
guerras. Hoje, destaca que é importante
publicada também em inglês, com o
fazer essa reforma da Reforma e com-
preender a necessidade de alimentar o título Luther and Liberation: A Latin
espírito ecumênico. É uma espécie de American Perspective (Minneapolis,
aproximação, não só com católicos, mas EUA: Fortress Press, 2016).
com diversos credos. “Hoje, ao recha- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- Walter Altmann – Embora a posso obter um Deus misericordio-
ender a Reforma Luterana para preocupação central de Lutero tenha so?”), é inegável que a Reforma teve
além da perspectiva teológica? sido uma questão teológica (“como implicações profundas na igreja e na

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“Lutero rompeu com a


concepção de uma tutela
da ordem eclesiástica
sobre a ordem secular”

sociedade do mundo ocidental. Ali- alemã. Gutenberg1 havia descober- Viena, Lutero defendeu o direito e
ás, foi a conjunção de vários fatores to a imprensa que foi determinante o dever da população de se defen-
que tornou a Reforma um evento para a extraordinária difusão não der e dos mandantes proteger seus
histórico epocal. De uma forma um apenas da Bíblia, mas também dos súditos, mas rechaçou totalmente o
tanto simplificada, mas ainda assim numerosos escritos de Lutero. conceito de qualquer “guerra santa”.
acurada, pode-se dizer que Lutero Tudo isso apontava para algo pro-
rompeu com a concepção de uma Como Lutero considerava que to- fundamente renovador.
tutela da ordem eclesiástica sobre a das as pessoas devem ter acesso à
ordem secular. Bíblia e que o estudo seria impor-
tante também para os ofícios secu- IHU On-Line – De que forma
Embora na concepção de Lutero lares, ele foi pioneiro em advogar podemos compreender o que
todos os setores da vida humana es- em favor de um sistema de educação leva Lutero a questionar a Igre-
tejam submetidos à vontade de Deus universal, e isso numa época em que ja da época? E como as inquie-
e devam servir para atender as neces- a esmagadora maioria da população tações de Lutero se atualizam 9
sidades das pessoas, ao fazer a distin- era analfabeta. Numa época em que em nosso tempo?
ção de que o ofício precípuo da Igreja emergiam unidades políticas terri-
é de ordem espiritual tão somente, Walter Altmann – O âmago da
toriais autônomas, potencialmente
forças políticas, econômicas, sociais e Reforma foi o que se convencionou
independentes, ele ancorou a digni-
culturais puderam desabrochar e de- chamar de a “redescoberta do Evan-
dade do ofício político no conceito de
senvolver-se sem as amarras às quais gelho”, isto é, a noção de que a sal-
sacerdócio geral das pessoas batiza- vação é concedida gratuitamente por
estavam submetidas. A ordem social das e ele o definiu como manutenção
já não seria mais regrada por um di- Deus, em Cristo, especificamente no
da paz, estabelecimento da justiça e Cristo crucificado, o que deve ser re-
reito divino imutável, mas por um di-
proteção às pessoas mais fracas. cebido em fé. Mas o estopim da Refor-
reito humano, reformável de acordo
com realidades contextuais. Na economia, inspirou iniciativas ma foram suas 95 Teses que, segun-
de caixas comunitárias, com o fim de do a tradição, teriam sido afixadas à
garantir a todas as pessoas o atendi- porta da Igreja do Castelo, na cidade
IHU On-Line – Qual o contex- mento de suas necessidades básicas, de Wittenberg, em 31 de outubro de
to histórico que a faz emergir? como sustento, saúde, educação. 1517. Nelas, a partir da noção de gra-
E quais suas consequências nos Também combateu práticas comer- tuidade da salvação, Lutero comba-
campos social, econômico, cien- ciais e financeiras que, no advento teu o comércio de indulgências. Suas
tífico/tecnológico e político? do capitalismo mercantil, explora- teses se difundiram qual rastilho de
vam os mais pobres, aprofundando pólvora pela Europa inteira.
Walter Altmann – No início do
século XVI, já estavam em curso vá- suas necessidades. Num tempo em Precisamente essa noção de gra-
rios processos de mudança na Euro- que tropas turcas avançavam sobre tuidade da salvação segue relevan-
pa. Na cultura, o Renascimento tra- a Europa, chegando às portas de te nos dias de hoje, em que temos
zia para o centro de suas obras (na numerosas formas “modernas” de
1 Johannes Gutenberg (1398-1468): inventor e
pintura, por exemplo) o próprio ser gráfico alemão que introduziu a forma moderna
mercantilização da fé. Significativa e
humano. Para Lutero, a fé pessoal de impressão de livros - a prensa móvel- que pos- acertadamente a Federação Luterana
sibilitou a divulgação e cópia muito mais rápida de
haveria de ser algo de suma impor- livros e jornais. Sua invenção do tipo mecânico mó- Mundial - FLM, em sua assembleia
tância. Também havia um movimen- vel para impressão começou a Revolução da Im- geral realizada num país do Sul, na
prensa e é amplamente considerado o evento mais
to cultural de “volta às fontes” da importante do período moderno. Teve um papel Namíbia, em maio passado, em ple-
fundamental no desenvolvimento da Renascença,
Antiguidade. Lutero haveria de fun- Reforma e na Revolução Científica e lançou as ba- no ano comemorativo da Reforma,
damentar a doutrina na Bíblia que ses materiais para a moderna economia baseada tomou como tema a gratuidade da
no conhecimento e a disseminação da aprendiza-
ele magistralmente traduziu à língua gem em massa. (Nota da IHU On-Line) salvação, afirmando nos subtemas

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TEMA DE CAPA

que “a salvação não está à venda”, “os IHU On-Line – Em que medi- radicalmente as relações entre os di-
seres humanos não estão à venda”, “a da podemos afirmar que a Igre- ferentes integrantes da família cris-
criação não está à venda”. Não são ar- ja Católica também “é reforma- tã, abrindo crescentes espaços para
tigos comercializáveis. Salvação seres da” depois de todas as questões o respeito e o entendimento mútuo,
humanos, criação – uma abrangência trazidas por Lutero? bem como a cooperação, não por úl-
ampla para atualização do âmago te- timo em áreas sociais.
Walter Altmann – O conflito re-
ológico da Reforma.
ligioso que se produziu entre Lutero O Vaticano II implantou uma série
e a Igreja Católica, embora não fos- de reformas e fez uma série de afir-
IHU On-Line – Quais as par- se sua intenção romper com ela (ao mações teológicas básicas que eram
ticularidades da Reforma Pro- contrário, Lutero foi excomungado caras ao protestantismo desde seus
testante que ocorreram nos da Igreja Católica em janeiro de 1521 primórdios, entre outras: a missa na
países hoje conhecidos como pelo Papa Leão X2), se agudizou ainda língua vernácula, e não mais em latim;
Alemanha, Suíça e França e, mais em tempos posteriores, tanto nas a ênfase na Bíblia, proporcionando o
mais tarde, Reino Unido, Es- questões doutrinárias quanto nos des- acesso dos fiéis a ela; a compreensão
candinávia e outros locais da dobramentos políticos, levando inclu- da eclesialidade plena da igreja local,
Europa? E como compreender sive à extraordinariamente sangrenta a valorização do sacerdócio comum
as divisões da Reforma Protes- Guerra dos Trinta Anos (1618-1648)3, dos fiéis; a compreensão da Tradição
tante pós-Lutero e o papel que até que, exauridos em sangue, católi- como um desdobramento da Escritu-
assumem outros líderes? cos e protestantes estabelecessem um ra, e não como um adendo a ela.
acordo de convivência territorial, com
Walter Altmann – De fato, a Re- territórios católicos e territórios pro-
forma, surgida em território alemão, se testantes. (O pluralismo religioso, em IHU On-Line – O que a resis-
expandiu com relativa rapidez para ou- que diferentes confissões religiosas tência à Reforma, a chamada
tras regiões e, para tanto, contou com convivam no mesmo espaço geográfi- Contrarreforma Católica, reve-
outras lideranças que se inspiraram em co, só viria muito tempo depois, com o la acerca da Igreja Católica da
Lutero. Contribuíram, para tanto, pe- advento pleno da Modernidade.) época? Quais as consequências
culiaridades de cada uma das regiões, e sociais, econômicas e políticas
10 Mas o dissenso católico-protestan-
as respectivas lideranças também colo- dessas disputas?
caram ênfases teológicas próprias, aqui te, aparentemente absoluto e irre-
e ali divergentes de Lutero. Nasceu conciliável, haveria de perdurar até o Walter Altmann – A chamada
uma diversificação eclesiológica que século XX. O advento do movimento Contrarreforma foi um intento de
se intensificou a partir do século pas- ecumênico no seio do protestantis- responder propositivamente (e não
sado. Um ponto comum certamente mo, com raízes no século XIX, mas simplesmente de modo repressivo)
era o desejo de maior autonomia civil e estabelecido a partir da Conferência ao desafio lançado pela Reforma. Su-
política das diferentes sociedades, bem de Missão de Edimburgo, em 1910, e primiu abusos na prática da Igreja
como uma compreensão eclesiológica a adesão oficial da Igreja Católica ao Católica de então, reavivou a serieda-
menos centrada numa hierarquia, e movimento ecumênico, com o Vati- de da teologia e da piedade, acendeu
mais na comunidade local (ou, em de- cano II (1962-1965)4 transformaram a paixão pela missão, e assim colocou
senvolvimento posterior, numa organi- barreiras à expansão da Reforma.
2 Papa Leão X (1475-1521): Papa católico durante Nas áreas que permaneceram solida-
zação territorial). a Reforma Protestante. Nascido Giovanni di Loren-
zo de’ Medici, foi o último não sacerdote ser eleito mente vinculadas à Igreja Católica,
Assim, o protestantismo foi se di- Papa (Nota da IHU On-line).
3 Guerra dos Trinta Anos (1618-1648): é a de- ela também acabou contribuindo,
fundindo não tanto como um orga- nominação genérica de uma série de guerras que não intencionalmente, para retardar
nismo estruturado, mas como um diversas nações europeias travaram entre si a
partir de 1618, especialmente na Alemanha. Entre o desenvolvimento social, político e
movimento que foi se estabelecendo as causas estão: rivalidades religiosas, dinásticas,
territoriais e comerciais. (Nota da IHU On-Line) econômico em direção ao capitalis-
com maior ou menor vigor em novos 4 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11- mo, sem, contudo, poder impedi-lo,
lugares e regiões. Na Escandinávia o 11-1962 pelo papa João XXIII. Ocorreram quatro
sessões, uma em cada ano. Seu encerramento por ser um processo regido por for-
luteranismo tornou-se a religião de deu-se a 8-12-1965, pelo papa Paulo VI. A revi-
são proposta por este Concílio estava centrada ças históricas próprias irreprimíveis.
quase unanimidade da população e na visão da Igreja como uma congregação de fé, As colônias, da América hispânica
sua organização social guarda muitas substituindo a concepção hierárquica do Concílio
anterior, que declarara a infalibilidade papal. As e portuguesa, por exemplo, ficaram
ênfases próprias da Reforma, como transformações que introduziu foram no sentido
a atenção para com as necessidades da democratização dos ritos, como a missa rezada
em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos em https://goo.gl/5IsnsM, e a edição 425, de
de toda a população, superando efi- diferentes países. Este Concílio encontrou resis- 1-7-2013, intitulada O Concílio Vaticano II como
tência dos setores conservadores da Igreja, de- evento dialógico. Um olhar a partir de Mikhail
cazmente a pobreza e as desigualda- fensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus Bakhtin e seu Círculo, disponível em https://goo.
des. Ao longo dos séculos, a Reforma frutos foram, aos poucos, esvaziados, retornando gl/8MDxOM. Em 2015, o Instituto Humanitas
a Igreja à estrutura rígida preconizada pelo Con- Unisinos – IHU promoveu o colóquio O Concílio
tornou-se um movimento de alcance cílio Vaticano I. A revista do Instituto Humanitas Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto
Unisinos – IHU, publicou na edição 297 o tema das transformações tecnocientíficas e sociocultu-
mundial, presente em todas as re- de capa Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, de rais da contemporaneidade. As repercussões do
giões do globo e crescentemente no 15-6-2009, disponível em https://goo.gl/GVTuEO, evento podem ser conferidas na IHU On-Line
bem como a edição 401, de 3-9-2012, intitulada 466, de 1-6-2015, disponível em https://goo.gl/
Sul, em particular na África. Concílio Vaticano II. 50 anos depois, disponível LiJPrZ. (Nota da IHU On-Line)

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por séculos hermeticamente fechadas Foram, a princípio, legalmente “tole- compromisso ecumênico de respeito,
à Reforma, que haveria de aportar rados” enquanto adeptos da Reforma. de compreensão, ainda que por vezes
de forma permanente em países da O reconhecimento legal pleno se deu, crítica (e ao mesmo tempo autocrí-
América Latina apenas após os pro- no caso brasileiro, apenas com a Pro- tica), do “outro”, o estabelecimento
cessos de independência nacional. clamação da República em 1889. de vias de diálogo e cooperação, por
exemplo no estabelecimento da paz
onde há conflitos e na defesa da dig-
IHU On-Line – Como a Refor- IHU On-Line – Como se con- nidade humana e cuidado da criação
ma Protestante chegou ao en- figura o cenário religioso hoje como um todo. Portanto, é algo que
tão chamado “novo mundo”? e o que isso representa para as ultrapassa a relação entre igrejas cris-
Walter Altmann – À parte de igrejas? tãs, mas abrange o relacionamento
algumas presenças esporádicas de Walter Altmann – Muito dife- entre religiões diversas.
indivíduos (por exemplo, o viajante rente de tempos passados, o cenário
alemão luterano Hans Staden5 no sé- religioso hoje é de um crescente plu-
culo XVI, que deixou relato de suas IHU On-Line – Como com-
ralismo. Primeiramente, tem havido,
peripécias, tendo inclusive se torna- preender o islã no contexto da
no caso brasileiro e, em larga medida
do cativo de tribo indígena, da qual Reforma? Em alguma medida,
até mesmo em nível mundial, parti-
conseguiu fugir) e dos intentos após a Reforma promove mudan-
cularmente no chamado Sul Global,
algum tempo fracassados de coloni- ças na relação entre cristãos e
um impressionante crescimento do
zação de parte de calvinistas franceses muçulmanos?
pentecostalismo e também do cha-
na Baía da Guanabara e de holandeses mado neopentecostalismo. Na ori- Walter Altmann – No tempo da
no Nordeste brasileiro, a presença de gem, o pentecostalismo emergiu do Reforma, a Europa cristã estava ame-
adeptos da Reforma na América Lati- interior de igrejas protestantes, mas açada em sua integridade política e
na se deu a partir do século XIX, seja hoje se configura como uma família cultural pelo avanço das forças bélicas
ligada a presenças diplomáticas e co- confessional própria. do Império Otomano (os chamados
merciais (de ingleses, por exemplo), “turcos”), que chegaram às portas de
seja da vinda de imigrantes (alemães, Também há no mundo católicos Viena, Áustria. Do ponto de vista re-
no Brasil a partir de 1824), como sol- carismáticos, praticamente em igual 11
ligioso, eram muçulmanos. Lutero
dados do Império ou agricultores e ar- número ao de pentecostais não cató- convocou à defesa do território, das
tesãos, necessários para o desenvolvi- licos. Há diferenças entre eles, por localidades e da população, mas o en-
mento de um país independente, seja exemplo no respeito à hierarquia e tendeu não como um empreendimen-
ainda, mais tarde, de missões protes- na manutenção fiel da celebração eu- to religioso, e sim como um dever da
tantes vindas dos Estados Unidos, das carística por parte dos carismáticos cidadania e do ofício das autoridades
quais se esperava uma contribuição católicos, enquanto os pentecostais seculares. Rechaçou completamente
em áreas carentes, como a educação. assumem grande liberdade no to- o conceito de uma guerra santa. A fé
cante a essas questões. Mas há muito não se impõe. A eventuais prisioneiros
5 Hans Staden (1525-1579): aventureiro merce- analogias e semelhanças nas formas cristãos recomendou que, inseridos
nário alemão. Por duas vezes passou pela Amé-
rica Portuguesa no início do século XVI, onde de culto e espiritualidade, bem como numa ordem islâmica, obedecessem
teve oportunidade de participar de combates na
Capitania de Pernambuco e na Capitania de São no enfatizar a centralidade das ma- a ordens civis, mas se dispusessem
Vicente, contra corsários franceses e seus aliados nifestações do Espírito Santo. inclusive ao martírio se viessem a ser
indígenas. Em sua segunda viagem, Staden par-
tiu de Castela rumo ao Novo Mundo. Depois de coagidos a assumir a fé islâmica.
violentos enfrentamentos com indígenas e pas- Num mundo globalizado e de co-
sar por fortes tempestades, seu navio naufragou municação global, característico para
próximo a São Vicente. Ele e seus companheiros Hoje, ao rechaçarmos qualquer
sobreviveram e Staden foi contratado como arti- a atualidade, há uma movimentação tentação ou intento de enfrentar os
lheiro pelos colonos portugueses para o Forte de
São Filipe da Bertioga. Enquanto caçava sozinho, religiosa (de uma religião à outra, de muçulmanos em nome da fé cristã,
Staden foi feito prisioneiro por uma tribo Tupi- uma região do globo a outra) com
nambá que o conduziu a Ubatuba. Desde o início devemos construir de todos os mo-
ficou claro que a intenção dos seus captores era uma intensidade jamais vista e que vai dos possíveis avenidas de respeito e
devorá-lo. Pouco tempo depois, os tupiniquins
aliados dos portugueses atacaram a aldeia onde muito além da cristandade, abrangen- diálogo. Na Europa, por exemplo, as
ele era mantido prisioneiro. Mesmo cativo, e não do uma multiplicidade de religiões.
tendo escolha, lutou ao lado dos tupinambás. Seu igrejas da Reforma têm se manifes-
desejo era tentar fugir para unir-se aos atacan- Um subproduto altamente problemá- tado claramente contra a exclusão de
tes. Mas, estes, vendo que a luta era inútil, logo
desistiram. Pediu ajuda a um navio português e tico desse fenômeno é a competição, refugiados à base de sua confissão re-
a outro francês. Ambos recusaram-se a ajudá-lo pacífica ou muitas vezes agressiva,
por não desejarem entrar em conflito com os ligiosa, mas ao contrário, têm apoia-
índios. Foi, enfim, resgatado pelo navio corsário entre diferentes expressões religiosas, do políticas de acolhimento e atenção
francês Catherine de Vetteville, comandado por
Guillaume Moner, depois de mais de nove meses levando até mesmo a ideologizações a eles. Radicalismos religiosos devem
aprisionado. De volta à Europa, redigiu um relato religiosas de conflitos armados mun-
sobre as peripécias em suas viagens e aventuras ser superados em todas as religiões.
no Novo Mundo, uma das primeiras descrições do afora. A resposta a esse fenômeno
para o grande público acerca dos costumes dos
indígenas sul-americanos. O livro foi publicado de parte das religiões em geral, em-
em Marburgo, Alemanha, por Andres Colben em bora aqui me refira em particular às IHU On-Line – Passados 500
1557. Chama-se comumente “Duas viagens ao
Brasil”. (Nota da IHU On-Line) igrejas cristãs, só pode ser um claro anos, como avalia a relação en-

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tre luteranos e católicos? Quais Igrejas Reformadas (calvinistas)9, e rações dos 500 anos o reformador
os desafios para o diálogo inter em princípio também acolhida favora- Martim Lutero foi extensamente
-religioso do nosso tempo? velmente pela Comunhão Anglicana10. evocado. Mas não é a ele que se co-
Os obstáculos remanescentes estão aí memora. Lutero teve seus lados obs-
Walter Altmann – O mais recen-
para serem superados. Mas, à parte de curos e condenáveis, como posicio-
te documento elaborado pela Comis-
resistências internas, tanto no protes- namentos que tomou não apenas em
são Internacional Católico-Luterana,
tantismo quanto no catolicismo, im- relação ao papa, mas também aos
instituída pelo Vaticano e pela Fede-
pera um espírito de relações fraternas. chamados anabatistas, ala radical
ração Luterana Mundial - FLM, de
Tanto que tem havido mundo afora da Reforma, aos judeus e também
2013, tem o significativo título “Do
comemorações conjuntas de católicos manifestações acerca de Maomé. Ele
conflito à comunhão”6. Não se trata
e luteranos acerca dos 500 anos da próprio estava muito consciente de
de uma meta já plenamente alcança-
Reforma, não por último pelo próprio suas limitações e pediu explícita e
da, mas de uma trajetória em curso.
Papa Francisco e o Presidente da Fe- contundentemente que ninguém se
Pode-se dizer que o conflito foi deixa-
deração Luterana Mundial, Bispo lu- chamasse de luterano, mas simples-
do para trás. Há um reconhecimento
terano Munib Younan11, de Jerusalém, mente de cristão. (“Quem sou eu,
comum de que pessoas católicas e
em Lund, na Suécia, em 31 de outubro pobre e fedorento saco de vermes,
luteranas são irmãs em Cristo, a se-
de 2016. Não é de se excluir que no dia a que se chamem por meu indig-
paração é sentida com dor e o diálogo
31 de outubro deste ano, na data dos no nome?” “Não fui crucificado por
tem avançado em muitas questões.
500 anos, haja novos gestos simbóli- ninguém.”). Por contingência histó-
Ainda há obstáculos, sobretudo de
cos que reforcem ainda mais a cami- rica surgiram igrejas “luteranas” e
entendimento eclesiológico, mas já
nhada rumo à comunhão almejada. hoje cerca de 75 milhões de pessoas
não na compreensão da salvação.
cristãs no mundo se entendem como
Diferenças aí são entendidas como “luteranas”.
ênfases complementares. A Declara- IHU On-Line – Deseja acres-
centar algo? Sabem-se, contudo, muito mais como
ção Conjunta Católico-Luterana acer-
“evangélicas”, no sentido de se senti-
ca da Doutrina da Justificação7, de Walter Altmann – Nas comemo- rem agraciadas pelas boas novas da
1999, foi entrementes subscrita tam-
12 liberdade em Cristo e comprometidas
bém pelo Concílio Metodista Mun-
9 O sítio do IHU, na seção Notícias do Dia, publi- com o chamado a servir em amor a
dial8 e pela Comunhão Mundial das cou uma série de textos sobre o tema. Entre eles
Igrejas Reformadas também assinarão a Declaração seu próximo. Em belo escrito acerca
Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, disponível do Cântico de Maria (o Magnificat), de
em http://bit.ly/2ziAlwD. Acesse mais em ihu.unisi-
6 Acesse a íntegra do documento em http://bit. nos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU On-Line) 1521, Lutero exaltou com a Virgem Ma-
ly/2ls2dIF. (Nota da IHU On-Line) 10 O sítio do IHU, na seção Notícias do Dia, publicou
7 Acesse a íntegra do documento em http://bit. uma série de texto sobre essa aproximação, entre ria o Deus que “derribou do seu trono
ly/2eqL75H. (Nota da IHU On-Line) eles Como os esforços ecumênicos católico-lutera- os poderosos e exaltou os humildes”
8 O sítio do IHU, na seção Notícias do Dia, pu- nos deram fruto nos últimos 50 anos, disponível em
blicou uma série de texto sobre esse encontro. http://bit.ly/2yf4Tz6. Acesse mais em ihu.unisinos. (Lucas 1:52). Isso vale a pena comemo-
Entre eles, Igrejas reformadas endossam o acordo br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU On-Line)
católico-luterano sobre disputa crucial da Reforma, 11 Munib Younan (1950): é um bispo luterano da
rar, no sentido de evocar sua memória
disponível em http://bit.ly/2zYPro6. Leia mais em Igreja Evangélica Luterana da Jordânia e da Terra e no sentido de se comprometer como
ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da Santa desde 1998 e presidente da Federação Lu-
IHU On-Line) terana Mundial. (Nota da IHU On-Line) uma tarefa recebida.■

Leia mais
- O desafio de compreender Lutero e a reforma 500 anos depois. Reportagem sobre con-
ferência realizada por Walter Altmann, publicada nas Notícias do Dia de 24-8-2017, no sítio
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2yaVMxN.
- Assista a íntegra da conferência com Walter Altmann, no canal do IHU no You Tube, dis-
ponível em http://bit.ly/2zQzcZp.
- 500 anos da Reforma manifesta o desejo de um futuro de diversidade reconciliada.
Entrevista especial com Walter Altmann, publicada nas Notícias do Dia de 21-10-2016, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2i7RZrY.
- A abertura ecumênica no pontificado de Francisco. Desafios e perspectivas. Entrevista
especial com Walter Altmann, , publicada nas Notícias do Dia de 6-12-2013, no sítio do Ins-
tituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2yNPbKJ.
- Protestantismo: é tempo de refletir. Entrevista especial com Cláudio Kupka, Martin Dreher
e Walter Altmann, publicada nas Notícias do Dia de 31-10-2011, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2y90CNA.

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A Reforma e as reformas
Martin Dreher

“ D
evemos ver a Reforma do século XVI como resposta
verdadeiramente revolucionária ao fracasso das refor-
mas dos séculos XIV e XV”, escreve Martin Dreher, em
artigo preparado para essa edição da IHU On-Line. E conclui:
“Reforma é um movimento muito mais amplo do que Lutero
ou Calvino. Reforma é todo um movimento que tentou dar res-
postas a questões que eram formuladas ao cristianismo já antes
do século XVI. Assim, quando falamos de Reforma, devería-
mos iniciar com Isabel de Castela e Cisneros, dizer de Lutero,
de Zwínglio, dos Anabatistas, dos Espiritualistas, de Thomas
Müntzer, de Calvino e de seu colega de estudos na Sorbonne,
Inácio de Loyola, de Trento, de Cromwell e dos Puritanos”.
Martin Norberto Dreher é pastor luterano, professor
e historiador brasileiro. Cursou teologia na Faculdade de
Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil - IECLB, é doutor em história da igreja pela Ludwig-
Maximilians Universtät, de Munique, na Alemanha. Foi
14 professor de Teologia e pastor em diversas paróquias da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana do Brasil. Entre seus livros
publicados, destacamos De Luder a Lutero (São Leopoldo,
RS: Sinodal, 2014), 190 anos de imigração alemã no Rio
Grande do Sul: esquecimentos e lembranças (São Leopoldo,
RS: Oikos, 2014) e História do povo de Jesus. Uma leitura
latino-americana (São Leopoldo, RS: Sinodal, 2013).
Eis o artigo.

1. Constelação política
No início do século XVI, havia se formado na Europa ocidental uma série de grandes Estados
nacionais. França, Ilhas Britânicas, Portugal e Espanha fazem parte desses estados nacionais.
Ninguém duvidava da fidelidade da Espanha ou da França ao catolicismo. A Espanha provara
ser uma salvadora da cristandade ao expulsar os árabes da Península Ibérica de forma definitiva
em 1492. Ali não havia espaço para a penetração de outro pensamento. Na França, o concilia-
rismo medieval havia garantido tantos direitos, que não se fazia mais necessária uma reforma.
Distinta era a situação na Europa Central. Nem a Alemanha tampouco a Itália havia conquis-
tado uma unidade política. Ali existia uma infinidade de centros regionais de poder, todos su-
bordinados ao poder imperial. Enquanto os poderes regionais buscavam assegurar sua partici-
pação no poder imperial, o imperador lutava para aumentar seu poder, levando os estamentos a
reclamarem constantemente da “servidão” a que estariam sendo submetidos. Foi nessa região,
especialmente na Alemanha, que explodiu o movimento reformatório. As tentativas imperiais de
pôr um fim às discussões religiosas nessa parte da Europa não surtiram efeito. Elas aconteceram
em 1530, em 1547 e em 1555, em Augsburgo. A segunda tentativa foi precedida de uma vitória
militar do imperador sobre os protestantes, mas também não surtiu efeito. Na última, decidiu-se
que a questão religiosa seria resolvida de território em território.

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“Reforma engloba tudo o que


carecia de reforma, mas também
situações e erros que a impediam”

Na Itália, a divisão territorial era ainda mais complicada. Ali nem dinastias existiam e as for-
mas de governo alternavam-se constantemente. Havia democracias que logo eram eliminadas
por tiranos, estes por sua vez derrubados para dar lugar a novas democracias. Nela encontrava-
se também o papado. De um lado, esse representava o poder hegemônico sobre a cristandade
ocidental; de outro, era governante do Estado Pontifício, que abrangia o centro da Itália. O pa-
pado era, assim, um dos centros de poder na Itália e, como tal, estava profundamente envolvido
nas questões da política local. Essa dupla função do papado teve consequências catastróficas
para a igreja universal.
A parte sul do Leste europeu encontrava-se sob o domínio turco. Desde os tempos das cru-
zadas, os turcos haviam se expandido, conquistando território após território nos Bálcãs. Em
1529, Suleimão II1 chegou às portas da cidade de Viena. O perigo turco foi o principal problema
político da Europa do século XVI. Carlos V2 e seu irmão Fernando3 assumiram a luta contra os
turcos, mas necessitaram do suporte financeiro dos estamentos alemães. Para estes estava claro
que se os turcos colocassem em xeque o poderio da Casa de Habsburgo4, eles seriam os próximos
a sentir as consequências. Por isso, assumiram o ônus da guerra. A cada auxílio, porém, nego-
ciaram vantagens.
A Reforma da Igreja e os acontecimentos políticos estão intimamente relacionados. O trágico 15
é que, nas guerras entre Carlos V e Francisco I, estiveram envolvidos dois governantes decidi-
damente católicos. Suas tropas, tanto os soldados quanto os oficiais, eram, em grande parte,
mercenários, lansquenetes alemães adeptos do pensamento de Lutero, ou suíços, igualmente
“evangélicos”. Em 1527, lansquenetes invadiram Roma e perpetraram o Sacco di Roma, can-
tando hinos de Lutero e causando terrível destruição. A situação de guerra fez com que Carlos
V necessitasse constantemente de aliados. Ora, esses aliados eram, em boa parte, protestan-
tes. Nas diversas Dietas, os estamentos alemães sempre exigiram que a questão religiosa fosse
discutida antes de se tratar de empréstimos para a guerra contra os turcos. Dependendo das
concessões religiosas, faziam-se concessões financeiras. Quando, por outro lado, os protestan-
tes se uniram, formando a Liga de Esmalcalda5, todos os adversários da Casa de Habsburgo
quiseram ser seus aliados. Assim, Francisco I ofereceu seu apoio, ao mesmo tempo em que

1 Solimão II (1642 – 1691): foi sultão do Império Otomano de 1687 a 1691. Irmão mais novo de Mehmed IV (1648–87), Solimão II
passou a maior parte de sua vida nas kafes, um tipo de prisão luxuosa para príncipes de sangue, existente no Palácio de Topkapı
(para impedir que alguém organizasse uma rebelião). (Nota da IHU On-Line)
2 Carlos V e I (1500 - 1558): foi o Sacro Imperador Romano-Germânico como Carlos V a partir de 1519 e Rei da Espanha como
Carlos I de 1516 até sua abdicação em favor de seu irmão mais novo Fernando I no império e seu filho Filipe II na Espanha. Carlos
era o herdeiro de três das principais dinastias europeias: a Casa de Habsburgo da Monarquia de Habsburgo, a Casa de Valois-Bor-
gonha dos Países Baixos Borgonheses e a Casa de Trastâmara das coroas de Aragão e Castela. Ele governou vastos domínios na
Europa central, oriental e do sul, além das colônias espanholas nas Américas. Como o primeiro monarca a governar Castela, Leão
e Aragão simultaneamente, ele se tornou o primeiro Rei da Espanha. Carlos tornou-se imperador em 1519. A partir de então seu
império cobria mais de quatro milhões de quilômetros quadrados pela Europa, Oriente e Américas. Grande parte de seu reinado
foi dedicado às guerras italianas contra a França, sendo militarmente bem sucedidas apesar dos enormes gastos, levando a cria-
ção do primeiro exército profissional europeu: o Terço. Além de suas realizações militares, Carlos é mais conhecido por seu papel
contra a Reforma Protestante. Vários príncipes germânicos abandonaram a Igreja Católica e formaram a Liga de Esmalcalda para
poder desafiarem a autoridade de Carlos com força militar. Não desejando que guerras religiosas chegassem em seus domínios,
ele forçou a convocação do Concílio de Trento que iniciou a Contrarreforma. A Companhia de Jesus foi estabelecida por Inácio de
Loyola durante seu reinado para combater o protestantismo de forma pacífica e intelectual. No Novo Mundo a Espanha conquistou
os astecas do México e os incas do Peru, estendendo seu controle por grande parte da América Central e do Sul. Carlos abdicou
em 1556 de todos os seus títulos. A Monaquia de Habsburgo passou para seu irmão Fernando, enquanto o Império Espanhol ficou
com seu filho Filipe. Os dois impérios permaneceriam aliados até o século XVIII. Carlos tinha apenas 54 anos na época de sua
abdicação, porém estava fisicamente exausto depois de governar energicamente por 34 anos e procurou paz de um monastério,
onde morreu dois anos depois. (Nota da IHU On-Line)
3 Fernando I & V (1793 –1875) foi o Imperador da Áustria e Rei de Lombardo-Vêneto como Fernando I e também Rei da Hungria,
Croácia e Boêmia como Fernando V de 1835 até sua abdicação em 1848 devido às Revoluções de 1848. Era o filho homem mais
velho do imperador Francisco I e sua segunda esposa Maria Teresa da Sicília. (Nota da IHU On-Line)
4 Casa de Habsburgo: também conhecida por Casa da Áustria ou Casa d’Áustria, é uma família nobre europeia que foi uma das
mais importantes e influentes da história da Europa do século XIII ao século XX. A ela pertenceu Maria Leopoldina de Áustria,
esposa do Imperador Dom Pedro I (Pedro IV em Portugal) do Brasil e mãe do último Imperador brasileiro Dom Pedro II. (Nota da
IHU On-Line)
5 Liga de Esmalcalda: ou de Schmalkalden, era uma aliança defensiva de príncipes protestantes do Sacro Império Romano criada
em 27 de fevereiro de 1531. Recebeu o nome da cidade de Schmalkalden, na Turíngia (atual Alemanha), onde foi proclamada.
(Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

perseguia abertamente os protestantes na França. Diferente não foi a posição de Henrique


VIII6. A Reforma deve sua expansão em grande parte às guerras que foram travadas na Euro-
pa. Hereges podem ser aliados preciosos.
A situação política na Itália era ainda mais complicada. Para preservar sua independên-
cia política, o papado tinha que decidir entre Carlos V e Francisco I, dois bons católicos.
Sob o aspecto militar, o poderio papal era insignificante; seu apoio poderia ser dispensado
pelos dois governantes. No entanto, sua decisão podia ter fins propagandísticos impor-
tantes: caso o papa se colocasse contra o imperador, seria exatamente contra aquele que
poderia vencer os hereges.

2. Cultura
Parcialmente, a Reforma coincide com o Renascimento e com o Humanismo. Muitos
reformadores eram humanistas, como Melanchthon 7, Zwingli 8 e Calvino9. É necessário
cuidado quando se busca distinguir Renascimento, Humanismo e Reforma, para não cair
no erro tantas vezes feito, quando se aponta para a discussão entre Lutero e Erasmo 10 em
torno do livre e do servo arbítrio. As pessoas que afirmam que Lutero rompeu definitiva-
mente com o Humanismo, em 1525, com seu escrito De servo arbitrio, com o qual respon-
deu ao escrito de Erasmo, de 1524, De libero arbitrio diatribe, esquecem que Lutero re-
correu em sua tese principal a ninguém mais do que humanistas italianos como Lourenço
Valla 11. A teologia apresentada por Erasmo não era católica e também não pôde ser aceita
por teólogos protestantes.
O nome Renascimento quer expressar que naqueles dias a Antiguidade renascia. Formalmente
são redescobertos escritos da literatura latina, vindos de Bizâncio para a Itália, após a queda de
Constantinopla. Na Itália, o Renascimento auxiliou na formação de um espírito nacional e levou
à busca da latinidade clássica. Na Alemanha foi além. Ali não só se estudaram os autores clássi-
16 cos dos gregos e romanos, mas também a língua hebraica. Ao lado do latim e grego, o hebraico
encontrou o caminho da Universidade. Também aqui o Humanismo auxiliou na formação de um
espírito nacional. Os brados de Lutero em seu escrito À nobreza cristã de nação alemã, de 1520,
foram vivamente aplaudidos por humanistas alemães.
Renascimento não é apenas um retorno à Antiguidade, enquanto estudo das línguas antigas e
da literatura clássica, mas novo sentimento de vida. É simplista querer afirmar que o ser medie-
val tenha estado completamente orientado no transcendente, enquanto o ser humano do Renas-
cimento tenha estado orientado no imanente. Certo é que a pessoa do Renascimento tinha uma
posição distinta em relação às realidades do imanente, acentuando a individualidade. História e
técnica cresceram em importância.
Sob o ponto de vista religioso, o Humanismo é multifacetado. Podemos notar isso no lema huma-
nista ad fontes. O lema pode referir-se tanto à Antiguidade anterior ao cristianismo quanto à Anti-

6 Henrique VIII Tudor (1491-1547): rei da Inglaterra de 21 de abril de 1509 até sua morte. Em seu reinado destaca-se a ruptura
com a Igreja Católica Romana e seu estabelecimento como líder da Igreja Anglicana, a dissolução dos monastérios, e a união da
Inglaterra com Gales. (Nota da IHU On-Line)
7 Philipp Melanchthon (1497-1560): foi um reformador, astrólogo e astrônomo alemão. Colaborador de Lutero, redigiu a “Con-
fissão de Augsburgo” (1530) e converteu-se no principal líder do luteranismo após a morte de Lutero. (Nota da IHU On-Line)
8 Ulrico Zuínglio (1484-1531): em alemão Huldreych, Huldreich ou Ulrich Zwingli, foi um teólogo suíço e principal líder da Reforma
Protestante na Suíça. Zuínglio foi o líder da reforma suíça e fundador das igrejas reformadas suíças. Independentemente de Mar-
tinho Lutero, que era doctor biblicus, Zuínglio chegou a conclusões semelhantes pelo estudo das escrituras do ponto de vista de
um erudito humanista. Zuínglio não deixou uma igreja organizada, mas as suas doutrinas influenciaram as confissões calvinistas.
(Nota da IHU On-Line)
9 João Calvino (1509-1564): teólogo cristão francês, teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante e que conti-
nua até hoje. Portanto, a forma de Protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome Calvinismo, embora
o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do Protestantismo viria a ser bem-sucedida em
países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos. Leia,
também, a edição 316 da IHU On-Line intitulada Calvino - 1509-1564. Teólogo, reformador e humanista, disponível em http://bit.
ly/1oBIrpn. (Nota da IHU On-Line)
10 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo e humanista neerlandês, conhecido como Erasmo de Roterdã. Seu principal livro
foi Elogio da loucura. Erasmo cursou o seminário com os monges agostinianos e realizou os votos monásticos aos 25 anos, vivendo
como tal, sendo um grande crítico da vida monástica e das características que julgava negativas na Igreja Católica. Optou por uma
vida de acadêmico independente - independente de país, independente de laços académicos, de lealdade religiosa - e de tudo que
pudesse interferir com a sua liberdade intelectual e a sua expressão literária (Nota da IHU On-Line)
11 Lorenzo Valla (1407—1457): foi um escritor, humanista, retórico e educador italiano. Célebre por sua aplicação dos novos pa-
drões humanistas de crítica a documentos usados pelo Papado em apoio de seu poder temporal. Em 1440 publicou o seu panfleto
contra a Doação de Constantino, que provou efetivamente que o famoso documento, pelo qual a autoridade imperial romana teria
sido transmitida ao Papado, era espúrio. (Nota da IHU On-Line)

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guidade cristã. Paulo12 pode ser tão importante quanto Platão13, e um pode ser usado para interpretar
o outro. A Patrística estava tão presente quanto o estudo de Platão. Quando nos dias da Reforma
se fala da Palavra de Deus como norma, a expressão pode significar tanto a Bíblia quanto o ensina-
mento dos Pais da Igreja. Humanista era Erasmo, humanista era Melanchthon, humanistas eram os
adversários da Reforma protestante. Também os anabatistas receberam em boa medida influências
do Humanismo. Praticamente todas as tendências da Reforma têm traços humanistas.

3. Objetivo da Reforma
Enquanto renovação da Igreja e da mensagem desta, a Reforma não pode ser explicada sim-
plesmente a partir dos acontecimentos políticos, sociais e culturais dos séculos XV e XVI. A
mensagem evangélica, à qual Lutero e outros deram expressão em seus dias, não foi sua criação.
Ela recebeu forma na cela monástica, na cátedra universitária, nas discussões e nos debates,
mas não é ideologia produzida nas discussões com a Igreja medieval, com as massas populares
e com a burguesia. A mensagem da Reforma não pode ser deduzida do processo histórico. Com
isso não estou negando que o processo histórico tenha sido importante no auxílio à redescoberta
da mensagem evangélica. A Reforma beneficiou-se do processo histórico, mas também sofreu
as consequências.
Não pretendo minimizar a coragem de Lutero e seu destemor ao enfrentar a Igreja constituída
hierarquicamente. No entanto, é bom ver que o movimento por ele desencadeado só pôde vingar
nos anos que antecederam e sucederam à morte de Maximiliano I. A Reforma beneficiou-se das
guerras de Carlos V e de Francisco I, das conquistas políticas dos senhores territoriais, do fato
de o papado preferir aliar-se a Francisco I e os turcos estarem fazendo constantes avanços. O
Humanismo auxiliou a Reforma. Seus avanços exigiam uma reforma do sistema universitário.
A Reforma só se beneficiou do fato porque na Alemanha essa reforma universitária foi feita,
atendendo aos reclamos dos adeptos da “nova fé”. Mas o Humanismo também se beneficiou da
Reforma: o estudo das línguas antigas recebeu total apoio e passou a ser fundamental para a
formação da nova geração de clérigos. 17
Na 62ª de suas 95 teses de 31 de outubro de 1517, Lutero afirma que “o verdadeiro tesouro da
Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus”. Quem quiser argumentar com essa
tese e dizer que a Reforma colocou o Evangelho novamente em seu devido lugar só o pode fazer
caso entender a Reforma não como um acontecimento encerrado a ser festejado, mas como algo
que tem que acontecer sempre. Em razão dos acontecimentos políticos e de seus aspectos cultu-
rais, é possível fazer a afirmação de que a Reforma conseguiu seu espaço e seus objetivos. Mas é
fato que o Evangelho e a Igreja que pretendia ser reformada sofreram grande desgaste. A Igreja
fragmentou-se em Igrejas Territoriais, que em seu interior muitas vezes souberam manifestar
pouco da liberdade evangélica. Não merecem o título de ecclesia reformata. Se, porém, enten-
dermos o propósito da Reforma do século XVI no sentido da ecclesia semper reformanda, então
podemos chegar à conclusão de que ela é um acontecimento importante na História.

4. Antecedentes da reforma religiosa no século XVI


A Reforma não pode ser explicada a partir de um único acontecimento ou a da ação de uma

12 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, era originariamente chamado de Saulo. Entretanto, é mais
conhecido como São Paulo, o Apóstolo. É considerado por muitos cristãos como o mais importante discípulo de Jesus e, depois de
Jesus, a figura mais importante no desenvolvimento do Cristianismo nascente. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais.
Primeiro porque, ao contrário dos outros, não conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua conversão, se dedicava à perseguição
dos primeiros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em uma dessas missões, quando se dirigia a Damasco, teve uma visão
de Jesus envolto numa grande luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três dias por Ananias, que o batizou como cristão. A
partir deste encontro, Paulo começou a pregar o Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou uma escola em Jerusalém, fez
carreira no Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito pela difusão
do Cristianismo entre os gentios e é considerado uma das principais fontes da doutrina da Igreja. As suas Epístolas formam uma
seção fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que foi ele quem verdadeiramente transformou o cristianismo em uma nova
religião, superando a anterior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Line 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema Paulo
de Tarso e a contemporaneidade, disponível em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a
sua relevância atual, disponível em https://goo.gl/bKZcM0. Também são dedicadas ao religioso a edição 32 dos Cadernos IHU Em
Formação, Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de realidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a edição
55 dos Cadernos Teologia Pública, São Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da mulher cristã no século I, disponível em
http://bit.ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line)
13 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialé-
tica. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República (São Paulo: Editora Edipro,
2012) e Fédon (São Paulo: Martin Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As implicações éticas da cosmologia de Platão,
concedida pelo filósofo Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU On-Line, de 04-09-2006, disponível em http://bit.ly/pteX8f.
Leia, também, a edição 294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, intitulada Platão. A totalidade em movimento, disponível em
http://bit.ly/2j0YCw8 . (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

única pessoa ou data: a Reforma não iniciou com a divulgação das 95 teses de Lutero, em 31 de
outubro de 1517. Antes de Lutero haviam se criado situações, ideias, sentimentos que provoca-
ram e possibilitaram o conflito com a Igreja de então. Podemos até dizer que tais sentimentos
estavam a exigir o que acabou acontecendo no século XVI. As origens da Reforma devem ser
procuradas no processo emancipatório do final da Idade Média, que levou à Idade Moderna. Ela
é período entre a Idade Média e a Idade Moderna.
A tensão existente entre Sacerdócio e Império caracteriza a unidade da Igreja no sistema de
cristandade medieval. A sentença tem que permanecer nessa contradição, pois a Idade Média
é período de sutil equilíbrio entre Sacerdócio e Império. No final, o próprio papado contribuiu
para pôr fim a ele. Para assegurar a independência da Igreja, buscou enfraquecer o poder do
Império. Os papas chegaram até a assumir o comando político do mundo ocidental. Quanto
mais ampliava seu poder no âmbito temporal, tanto mais oposição encontrava em um mundo
no qual sobressaíam as diferenças nacionais e que lutava por autonomia. A consequência foi que
se inverteu a ponta e passou-se a exigir a autonomia do Estado em relação ao poder religioso.
Após o cisma (1378-1417; 1449) e o Concílio de Basileia14, os papas buscaram reconhecimento
junto a príncipes, imperadores e reis, concedendo ao Estado grandes poderes sobre a Igreja.
Surgiram as Igrejas Territoriais, Igrejas dependentes do poder secular, que tanto podia ser re-
presentado pelo rei, príncipe como pelos conselhos municipais. Sem isso não podemos entender
a geografia religiosa da Europa de fins do século XV e do século XVI.
Na Idade Média, não raro a hierarquia eclesiástica e a nobreza souberam agir em conjunto,
melhorando as condições de piedade e de vivência da fé. Naqueles territórios, porém, nos quais
o senhor territorial era ao mesmo tempo bispo, o secular e o espiritual estavam de tal maneira
interligados, que era impossível determinar onde começava um e onde terminava o outro. Além
disso, faltava uma boa teologia para distinguir e para enfrentar os problemas. Havia muitos
bispos que não tinham qualquer interesse em questões espirituais e buscavam solidificar suas
18 posições por meios políticos. Por seu turno, muitos príncipes seculares buscavam fortalecer seu
poder, assumindo o controle da Igreja. Ao conceder os direitos do padroado aos reis de Portugal
e de Espanha, depois aos demais reis europeus, os papas acabaram por estabelecer que os reis
determinassem a vida religiosa e o preenchimento de cargos eclesiásticos.
O governante passou a controlar os dízimos. Decretos episcopais só tinham validade após a
autorização real. A pregação de indulgências só era permitida caso o príncipe tivesse parte nos
lucros auferidos. As intervenções de príncipes e cidades, que vão possibilitar a introdução da re-
forma luterana e calvinista, a criação da Igreja Anglicana ou a introdução das decisões de Tren-
to15 não são novidades surgidas no século XVI. São anteriores. Nas cidades, burguesia muito
consciente de seu poder lutou contra os direitos do clero, especialmente contra suas imunidades
fiscais e jurídicas. Por outro lado, à medida que buscava diminuir o poder do clero e introduzir
um governo civil, a cidade não desistia de controlar a atividade eclesial. As cidades criaram pa-
róquias, mas se reservaram o direito de nomeação dos pregadores. Também os conventos e suas
propriedades passaram a ser administrados pela cidade.
Na Idade Média, a Igreja assumiu a função de cristianizar os povos germânicos, de transmitir-
lhes e preservar-lhes a cultura do mundo antigo. Assim, a Igreja foi responsável pela formação
literária, pelo direito, pela tradição política e pela técnica. Com todas essas funções é lógico que
o clero tinha que ser o detentor do saber, indo muito além de suas prerrogativas teológicas.
Criara-se um clericalismo, que tinha que ser substituído. Era necessário que o cristão alcançasse
a maioridade e pudesse viver a liberdade cristã. Era necessário que como pessoa adulta se ocu-
passe com as questões de fé e com as heranças culturais. Caso a Igreja não abdicasse do controle
do saber por iniciativa própria, cedo ou tarde viria o dia em que novas forças haveriam de lutar
por seu espaço

14 Concílio de Basileia: foi um concílio ecumênico de bispos e outros membros do clero da Igreja Católica Romana. Ele começou
em 25 de Julho de 1431 em Basileia e foi transferido para Ferrara em 1438 por ordem do Papa Eugênio IV, movimento que fez com
que ele também ficasse conhecido como Concílio de Ferrara (ou, na sua forma portuguesa, de Ferrária). O encontro foi novamente
transferido para Florença em 1439 por conta do perigo de peste em Ferrara e por que a cidade de Florença concordou, com pro-
messa de pagamento futuro, em financiar o concílio. A localização inicial em Basileia refletia o desejo das partes que buscavam a
reforma de se encontrar fora dos territórios em poder do Papa, do Sacro Império Romano-Germânico ou dos reis de Aragão e da
França, cujas influências sobre o concílio procuravam evitar. Ambrogio Traversari esteve no concílio de Basileia como legado do
Papa Eugênio. (Nota da IHU On-Line)
15 Concílio de Trento: realizado de 1545 a 1563, foi o 19º concílio ecumênico. Foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a
unidade da fé (sagrada escritura histórica) e a disciplina eclesiástica, no contexto da Reforma da Igreja Católica e a reação à divisão
então vivida na Europa devido à Reforma Protestante, razão pela qual é denominado como Concílio da Contrarreforma. (Nota da
IHU On-Line)

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O conceito que mais caracteriza a Modernidade é “Liberdade”. Tudo o que concebemos sob
o termo “Reforma” é atraente para o ser humano dos séculos XV e XVI por causa do conceito
“Liberdade”. Não é por acaso que a senha “Liberdade cristã” foi lema da Reforma, mas também
motivo que levou para muitos se afastarem dela.
Devemos ver a Reforma de século XVI como resposta verdadeiramente revolucionária ao fra-
casso das reformas dos séculos XIV e XV. Houve nela tentativas de fazer voltar a roda da his-
tória, buscando fazer a Igreja retornar às situações primitivas da Igreja Antiga, como podemos
constatar em Thomas Müntzer e nos Anabatistas. Por outro lado, houve nela a busca sincera por
acomodação a novas situações e abertura para as necessidades do momento.
Vemos, pois, que Reforma engloba tudo o que carecia de reforma, mas também situações e
erros que a impediam. Os erros e as deformações na Igreja no final do século XV eram bastante
similares aos de meados do século XIV. Mas os seres humanos não os suportavam com a mesma
paciência. Eram mais atentos, mais críticos e mais exigentes, verificavam o descompasso entre
o ideal e a realidade, entre ensinamentos e vida da Igreja. Ao não observar as maiores necessi-
dades religiosas das pessoas, ao não verificar a emancipação dos crentes em questões de fé e ao
não substituir as estruturas entrementes arcaicas da Idade Média, a Igreja criou as condições e
os pressupostos para o clamor por uma Reforma.
As origens da Reforma e suas raízes mais restritas devem ser procuradas no papado renas-
centista, nos descalabros existentes no clero e nos abusos em relação ao povo, nas incertezas
dogmáticas e na vida religiosa. Sem dúvida, os papas do Renascimento deram importante con-
tribuição para o advento da Reforma. Aí sobressai a figura de Alexandre VI16 (1492-1503). Seu
pontificado é uma das mais ignominiosas páginas da história da Igreja. Jovem, Rodrigo Borgia
foi feito cardeal por seu tio Calixto III17 (1455-1458), recebendo ainda uma série de prebendas.
Pio II18 teve que advertir o jovem cardeal por causa de sua vida desregrada. Conhecido é seu
adultério com Vanozza de Cataenis19. Com ela teve quatro filhos. Teve outros filhos. Eleito papa,
continuou a vida desregrada. Como foi possível que o colégio de cardeais o elegesse? Por meio 19
de suborno. De outros papas da Idade Média se pode dizer que foram eleitos por pressões ou
imposições de reis e imperadores, a eleição de Alexandre VI se deu por simples suborno.
Como papa, Alexandre VI não alterou o comportamento. Tratou de cumular seus filhos com
benefícios. Logo nomeou o filho Césare, na época com 16 anos, arcebispo de Valência; um ano
mais tarde fê-lo cardeal. Seis anos mais tarde, Césare desistiu do cardinalato para casar-se com
uma princesa francesa e para receber parte do território dos Estados Pontifícios. São incontáveis
os assassinatos por envenenamento ordenados por ele. Comprovada está sua responsabilidade
no assassinato do segundo marido de sua irmã Lucrécia, bem como no assassinato do cardeal
Giovanni Michiel20, morto para que Césare pudesse apropriar-se de seus bens. É possível que
Césare também seja responsável pelo assassinato de seu irmão João.
Alexandre VI faleceu em 18 de agosto de 1503, muito possivelmente em consequência da in-
gestão de veneno que seu filho e ele haviam destinado a outro cardeal. Após um intermezzo de
26 dias, cardeal Giuliano della Rovere21 foi eleito papa. Seria Júlio III (1503-1513). Enquanto
cardeal, foi ferrenho adversário de Alexandre VI. Sua eleição foi comprada a peso de ouro. Orde-
nou a demolição da basílica de São Pedro e iniciou a construção da atual. Seus contemporâneos

16 Papa Alexandre VI: nascido Rodrigo de Borja, italianizado a Roderico Borgia (1431 – 1503) foi o 214.º papa da Igreja Católica,
de 11 de Agosto de 1492 até a data da sua morte. Adotou o nome de Rodrigo Borgia ao chegar à Itália. Natural de Valência, após
estudar em Roma, acompanhou seu primo Luis Juan de Milà y Borja à Universidade de Bolonha, onde se graduou em Leis. O nome
de sua família foi elevado à cátedra do Vaticano com a eleição do seu tio materno, Afonso Bórgia, como Papa Calisto III, por quem
foi feito cardeal. Foi sucessivamente elevado a cargos de mais qualidade: bispo, cardeal e vice-chanceler da Igreja. Tornou-se um
grande diplomata após servir à Cúria Romana durante cinco pontificados; adquiriu experiência administrativa, influência e riqueza,
mas não grande poder. Teve várias amantes: em particular Vanozza Catarei e Giulia Farnese, mulher de seu primo Orsino Orsini
Migliorati. (Nota da IHU On-Line)
17 Calixto III (1378 - 1458 ) foi o papa número 209 da Igreja Católica, de 1455 a 1458 . Seu nome de nascimento foi Alfons de Borja
(Alfonso de Borja, em espanhol ). (Nota da IHU On-Line)
18 Pio II (1405 —1464): nascido Enea Silvio Piccolomini, foi papa e líder mundial da Igreja Católica de 19 de agosto de 1458 até
sua morte, seis anos depois. Nascido em Corsignano, na Itália, no território sienês de uma família nobre, porém em decadência,
também foi um intelectual autor de diversas obras, como a história de sua vida, intitulada Comentários, a única autobiografia já
feita por um papa e editou a primeira bula condenado a escravidão. Eleito Papa, providenciou a reurbanização de sua cidade natal,
Corsignano, que passou doravante a chamar-se Pienza, tirando o seu nome de Pio. Teve um sobrinho que também foi papa, Pio III,
assim como um dos descendentes de seu irmão (Bento XIII). (Nota da IHU On-Line)
19 Vannozza dei Cattanei (1442 - 1518): foi uma das muitas amantes de Rodrigo Bórgia. Ela deu à luz a linhagem dos Bórgia italia-
nos quando Rodrigo era cardeal, futuramente o Papa Alexandre VI (em violação aos votos de celibato que o Papa tomou), e entre
eles, cujo relacionamento durou um longo tempo. Seus pais eram Jacopo dei Cattanei e Mencia Pinctoris. (Nota da IHU On-Line)
20 Giovanni Michiel (1447- 1503) foi um cardeal e bispo católico romano italiano . (Nota da IHU On-Line)
21 Papa Júlio II (1443 - 1513) nascido Giuliano della Rovere O.F.M, foi Papa de 1 de novembro de 1503 ate à data da sua morte.
Era frade franciscano. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

designaram-no de “Il Terribile”, o terrível, pois era mais rei e comandante de tropas do que líder
espiritual da Igreja. Para ele, a salvação da Igreja estava na política e na guerra, uma eclesiologia
altamente questionável.
Aos 38 anos, o cardeal Giovanni de Medicis 22 tornou-se papa, assumindo o nome de Leão
X (1513-1521). Era inteligente, letrado e defensor do humanismo. No dia de sua entroni-
zação foi feita uma procissão semelhante à de Corpus Christi para apresentar o papa e sua
corte. Sobre uma grande faixa podia ser lida a frase: “Outrora governou Vênus, depois
Marte; agora Palas Atenas detém o cetro”. Com Vênus fazia-se referência a Alexandre VI,
com Marte a Júlio III, com Palas Atenas saudava-se Leão X como mecenas e benfeitor de
humanistas e artistas.
Leão X não pode ser acusado de desmandos e de aberrações como Alexandre VI, mas de levian-
dade e de esbanjamento de recursos. Ao suceder a Leão X, Adriano VI disse: “O vício tornou-se
tão natural, que os que por ele foram manchados não sentem mais o fedor do pecado”. Leão X
não teve estatura teológica ao afirmar: “Curtamos o papado, já que Deus no-lo concedeu!”
A situação do clero não era melhor que a do papado. Não falo do concubinato dos sacerdotes.
Havia regiões em que era tão comum, que os fiéis não mais se chocavam com ele. O problema re-
sidia em outro lugar: para a maior parte do clero, a Igreja era vista como sendo de sua proprieda-
de. Era propriedade da qual se auferiam dividendos e prazeres. Quando se criava uma paróquia
ou um bispado, o determinante não era a preocupação com o culto e com a cura d’almas, mas
o desejo de realizar uma boa obra e obter, com isso, para si e para sua família parte nos tesou-
ros da graça. Os candidatos não passavam por grande processo de seleção. Bispos e sacerdotes
não se compreendiam como responsáveis por um ministério, para cujo desempenho recebiam
o sustento necessário. Pelo contrário, sentiam-se proprietários de uma prebenda no sentido do
direito feudal germânico. A prebenda era um direito do qual se podia usufruir e em relação à
qual se tinha alguns compromissos. Tais compromissos, porém, poderiam ser transferidos a um
20 representante, um vigário. Para tanto, buscou-se justificação teológica em João 10.12: as ovelhas
não pertenciam ao vigário, mas ele era alugado para a função.
Assim, foi possível que algumas pessoas reunissem em suas mãos diversos bispados ou paró-
quias. Em 1556, por exemplo, o cardeal Alexandre Farnese23, um neto de Paulo III24, detinha o
controle de 10 bispados, 26 conventos e 133 outros benefícios: canonicatos, paróquias e capela-
nias. Na Alemanha, as sés episcopais foram reservadas para filhos da nobreza, que na maioria
das vezes não se interessavam pela vida sacerdotal ou pela cura d’almas.
Se não havia preocupação com o espírito religioso ou com a cura d’almas, havia grande preo-
cupação em relação ao dinheiro. A Cúria buscava por todos os meios cobrir os seus gastos. Criou
para tanto um sistema de taxas, impostos, doações e penitências. A falta de dinheiro era cons-
tante em razão dos gastos com a corte, com construções ou com despesas militares, resultantes
das constantes guerras. A questão prepara a explosão da Reforma, com a qual nos deparamos na
discussão em torno das indulgências.
Todas as descrições acima feitas provocaram ódio em relação à Roma. Durante cem anos apre-
sentaram-se queixas contra a situação criada. Elas foram assumidas por Lutero e outros refor-
madores. Em troca, mesmo pessoas que não concordavam com sua doutrina estavam dispostas
a apoiá-los.

5. Incertezas teológicas
Mais importante do que apontar para os erros do papado, do clero e de leigos é perguntar pelo
ensino da Igreja. Havia uma imagem muito colorida da piedade popular, havia muita imitação
da vida dos santos, havia procissões, peregrinações, missas votivas. Qual era, seriedade que ha-
via por trás desses atos? Qual era a teologia que havia por trás da ação?
O período anterior à Reforma foi de grande incerteza teológica. As principais controvérsias te-

22 João de Cosmo I de Médici (1543-1562): em italiano: Giovanni di Cosimo I de’ Medici, conhecido também como João de Mé-
dici, o Jovem, foi um cardeal italiano da Casa de Médici. (Nota da IHU On-Line)
23 Alexandre Farnésio(1520-1589): em italiano Alessandro Farnese foi um cardeal e diplomata italiano, Decano do Colégio dos
Cardeais e Vice-Chanceler Apostólico. (Nota da IHU On-Line)
24 Papa Paulo III (1468-1549): 220º Papa Católico, assumiu o papado entre 1534 até sua morte. Lançador das bases da Contrarre-
forma, aprovou a criação da Companhia de Jesus de Inácio de Loyola em 1540. Convocou o Concílio de Trento em 1545. Conhecido
também pela promulgação da bula Veritas Ipsa, a favor da liberdade dos índios das Américas. (Nota da IHU On-Line)

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ológicas pendentes são geralmente resumidas às temáticas da justificação por graça e fé. A rigor,
porém, esta temática é decorrente de indefinições em outras áreas da Teologia. Lembro aqui a
questão relativa à visão de Deus, da imagem que se tem de Deus. Essa visão, por seu turno, está
intimamente relacionada com a questão da cristologia, pois dizer quem é Deus está intimamente
ligado com a pergunta: Quem é Jesus Cristo? A isso novamente está relacionada a doutrina da
penitência, que culminou no final da Idade Média na discussão em torno da venda de indulgên-
cias, estopim para a eclosão do movimento reformatório luterano.
As indefinições na questão da penitência mostram que, apesar das formulações de Agostinho25
relativas à graça, era justamente na temática da graça que continuavam a existir indefinições.
Ora, esses aspectos levaram, por seu turno, a visões distorcidas em relação aos meios da gra-
ça e prepararam discussões em torno dos sacramentos, mormente em relação à Eucaristia
e ao Batismo.
Contudo, as diferenças e questões indefinidas concentraram-se na temática da eclesiologia. Por
isso ouso afirmar que até hoje a principal diferença entre a Igreja Católica Apostólica Romana e
as Igrejas herdeiras da Reforma do século XVI está na eclesiologia.
Desde o final do século XIII havia fortes discussões eclesiológicas no seio da Igreja ocidental.
Por um lado, havia os que defendiam uma eclesiologia papalista. Aqui partia-se do dado históri-
co da monarquia papal, desenvolvida desde as lutas em torno das investiduras: o papa, investido
da plenitude do poder, significa e é a Igreja.
Essa teoria papal, desenvolvida nos dias dos papas Bonifácio VIII26 (1294-1303) e João XXII27
(1316-1334) foi revigorada após a derrota do conciliarismo no Concílio de Basileia (1431ss), prin-
cipalmente na Summa de ecclesia do cardeal Juan de Torquemada O.P28., escrita em 1453. No
centro da eclesiologia de Torquemada está a concepção de que o único detentor do poder eclesi-
ástico é o Papa, na sua condição de sucessor de Pedro. É ele quem concede autoridade aos bispos
e ao concílio. A autoridade do concílio depende do Papa, pois é este quem o convoca, quem o
dirige e confirma seus decretos. Torquemada era tão papalista que via nos concílios um perigo 21
para a unidade da Igreja. Sua ideia foi tão dominante, que quase impossibilitou a realização do
Concílio de Trento no século XVI.
Aparentemente, Lutero se desenvolveu numa Igreja em que dominou a teoria papal. Isso fica
ainda mais claro, se observarmos que no escrito “À nobreza cristã de nação alemã” (1520) Lutero
afirmou que, ao que tudo indica, ao invés do artigo “creio na santa Igreja cristã” se tenha que
confessar “creio no Papa em Roma”. De fato, a teoria papal era o cavalo de Troia, responsável por
todos os abusos cometidos na Igreja dos séculos XV e XVI.
O segundo tipo de eclesiologia do final da Idade Média é o conciliarismo. Os papalistas ha-
viam desenvolvido sua eclesiologia a partir da cúpula da Igreja, chegando a identificar a mesma
com essa cúpula. Os conciliaristas, que se baseavam em Marsílio de Pádua29 (1290-1342) e em
Guilherme de Ockham30 (1285-1349), partiam da base, da congregação dos fiéis, apostando na

25 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido como Santo Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e filósofos dos
primeiros anos do cristianismo, cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e da filosofia ocidental.
Escrevendo na era patrística, ele é amplamente considerado como sendo o mais importante dos padres da Igreja no Ocidente. Suas
obras-primas são A cidade de Deus e Confissões. (Nota da IHU On-Line)
26 Papa Bonifácio VIII (1235-1303): foi papa de 1294 até sua morte. Nasceu com o nome Benedetto Gaetani. Atualmente, Boni-
fácio VIII é provavelmente lembrado por seus conflitos com Dante Alighieri, que o retratou no inferno em sua Divina Comédia, e a
publicação da bula Unam Sanctam na disputa contra o rei Filipe IV de França. (Nota da IHU On-Line)
27 Papa João XXII (1249-1334): nascido Jacques d’Euse foi papa da Igreja Católica de 1316 até sua morte. Inaugurou o período dos
papas de Avinhão. Filho de um sapateiro em Cahors, estudou medicina em Montpellier e direito em Paris. O período de dois anos
de sede vacante entre a morte de Clemente V em 1314 e a eleição de João XXII em 1316 deveu-se às desavenças extremas entre
os cardeais, os quais estavam divididos em duas facções. Depois de dois anos, Filipe V de França finalmente articulou a realização
de um conclave com vinte e três cardeais em Lyon e, através de um engodo, prendeu os cardeais em uma igreja até que a eleição
estivesse concluída. Os cardeais então elegeram-no como Papa, sendo coroado em Lyon. Este Papa decidiu que a residência papal
seria em Avinhão e não em Roma. João XXII envolveu-se em movimentos políticos e religiosos de muitos países europeus, com
o objetivo de promover os interesses da Igreja, tornando-se um Papa muito controverso em seu tempo. (Nota da IHU On-Line)
28 Juan de Torquemada, O.P. (1388 - 1468): ou Johannes de Turrecremata, foi um cardeal espanhol. Torquemada participou no
Concílio de Basileia (1431-1449) como representante da sua Ordem e do Rei de Castela. Foi um dos mais brilhantes apoiantes
da Cúria Romana, pelo que foi recompensado com o posto de Mestre do Santo Palácio e posteriormente foi nomeado Cardeal,
em 1439. Torquemada participou ainda no Concílio de Florença. Foi nomeado pelo Papa Eugênio IV como encarregado de várias
missões na Alemanha e França, antes de se estabelecer na cúria romana. Apoiou a política das Cruzadas, defendida pelo Papa,
bem como a da reforma das casas religiosas e do primado do Papa. Participou na eleição de 4 Papas, tendo dado o voto decisivo
na eleição de papa Nicolau V (1447-1455). Morreu em Roma e está sepultado na Igreja de Santa Maria sopra Minerva. (Nota da
IHU On-Line)
29 Marsílio de Pádua (1275-80-1342-43) foi um filósofo, pensador político, médico e teólogo italiano. Nasceu em Pádua de uma
família de juízes e notários. Seu pai, Bonmatteo de Maianardini, foi notário da Universidade de Pádua. O ano do seu nascimento é
incerto. Embora algumas fontes indiquem o ano 1275, não há certeza a respeito. (Nota da IHU On-Line)
30 Guilherme de Ockham (1285-1347): foi um frade franciscano, filósofo, lógico e teólogo escolástico inglês, considerado como
o representante mais eminente da escola nominalista, principal corrente oriunda do pensamento de Roscelino de Compiègne
(1050-1120). (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

tese aristotélica de que o poder pertence ao povo. Para eles, também o poder existente na Igreja
emana do povo; não há hierarquia de direito divino. O poder eclesiástico é meramente espiri-
tual, limitando-se à pregação da palavra de Deus e à administração dos sacramentos. Como o
poder eclesiástico emana da congregação dos fiéis, o concílio geral, enquanto representante da
congregação dos fiéis, é a instância máxima que decide em questões de fé.
Através do estudo de Ockham, essas ideias continuaram presentes. Mas interessante é que não
foram assumidas justamente por aqueles teólogos que, após o grande cisma, viam no concílio
geral o único meio para restabelecer a unidade da Igreja. O que permaneceu foi a concepção de
que o concílio geral é a representação da Igreja universal e instância máxima em questões de
fé e da unidade da Igreja e exige obediência de todos os membros da Igreja, inclusive do papa.
Havia vozes que exigiam a convocação periódica de concílios, por exemplo de 10 em 10 anos,
como proteção contra eventuais excessos do centralismo da cúria romana. O concílio seria um
parlamento eclesiástico, um órgão controlador.
No início do século XVI, o conciliarismo estava muito presente nas universidades de
Paris, Pávia, Pádua e Bolonha. Mesmo tendo sido condenado pelo Concílio de Basileia ele
deveu a continuação de sua existência à discussão em torno da necessidade de reforma da
Igreja. Mas as principais autoridades eclesiásticas nada fizeram em prol dessa reforma.
Leigos então começaram a trabalhar por ela. Fernando, rei de Aragão, apresentou ao 5º
Concílio de Latrão uma relação de reformas a serem introduzidas na Igreja. Era comum
a opinião de que somente um concílio geral possibilitaria a reforma da Igreja. Essa ideia
estava ligada ao conceito que o ser humano medieval tinha de Igreja. A Igreja estava para
ele contida no conceito da Cristandade. A Cristandade é um todo político e social, um
corpo dividido em estamentos, dirigido por um braço espiritual e outro secular, com duas
cabeças: o papa e o imperador. Por isso, os grandes concílios da Idade Média não foram
apenas reuniões da Igreja, mas da Cristandade, nas quais estavam presentes os estamen-
tos, clero e laicato. Eles não se ocuparam apenas com questões eclesiais, mas com assuntos
22 que diziam respeito à Cristandade, cruzadas e questões de paz civil. Em todo o século XV,
sempre quando se falou em reforma da Igreja, falou-se também em reforma do Império. A
grande aspiração era reformar a Cristandade. O primeiro concílio a transformar as ques-
tões tratadas em temáticas realmente eclesiásticas, dando início ao desmonte do regime de
Cristandade, foi o Concílio de Trento.
É importante não ver apenas o conceito eclesiológico, mas também a imagem que se ti-
nha da Igreja. No todo, pode-se dizer que a descrição que se fazia da Igreja insere-se em
uma teoria de decadência e degeneração. Visto de um modo simplista, afirmava-se, em
geral, que ao longo de sua história a Igreja afastou-se sempre mais da situação ideal da
Igreja Primitiva. Somente o retorno à Igreja Primitiva poderia eliminar o mal que tomou
conta da Igreja em virtude do abuso feito com o poder papal. Essa leitura encontramos em
Erasmo e em muitos reformadores católicos, mas também em Lutero, em Zwínglio, em
Müntzer 31 e em muitos outros.
Finalmente, havia uma eclesiologia espiritualista. Joaquim de Fiore32 (1130-1202) predissera
que, após a era do Filho, viria a era do Espírito. Os franciscanos espirituais assumiram sua dou-
trina, no século XIII, e a desenvolveram. Essa eclesiologia vai explodir novamente no pensamen-
to de Thomas Müntzer.
Os três tipos eclesiológicos aqui apresentados não reproduzem todo o universo dessas concep-
ções. Eles não abarcam, por exemplo, a eclesiologia de Wiclif33 ou de Hus34.

31 Thomas Müntzer (1490-1525): foi um dos primeiros teólogos alemães da era da Reforma, ele se tornou um líder rebelde duran-
te a Guerra dos Camponeses. Müntzer virou-se contra Lutero, com vários escritos contra ele, e apoiou os anabatistas. Na Batalha
de Frankenhausen, Müntzer e seus seguidores foram derrotados. Ele foi capturado, torturado e decapitado. (Nota da IHU On-Line)
32 Joaquim de Fiore (1132-1202): também conhecido por Gioacchino da Fiore, Joaquim de Fiori, Joaquim, abade de Fiore ou Joa-
quim de Flora, foi um abade cisterciense e filósofo místico, defensor do milenarismo e do advento da idade do Espírito Santo. O seu
pensamento deu origem a diversos movimentos filosóficos, com destaque para os joaquimitas e florenses. (Nota da IHU On-Line)
33 John Wycliffe (1328-1384): foi professor da Universidade de Oxford, teólogo e reformador religioso inglês, considerado precur-
sor das reformas religiosas que sacudiram a Europa nos séculos XV e XVI. Trabalhou na primeira tradução da Bíblia para o idioma
inglês, que ficou conhecida como a Bíblia de Wycliffe. (Nota da IHU On-Line)
34 Jan Hus ou John Huss (1369-1415) foi um pensador e reformador religioso[1]. Ele iniciou um movimento religioso baseado nas
ideias de John Wycliffe. Os seus seguidores ficam conhecidos como os Hussitas. A Igreja Católica não perdoou tais rebeliões e ele
foi excomungado em 1410. Condenado pelo Concílio de Constança, foi queimado vivo e morreu cantando um cântico [“cântico de
Davi” Jesus filho de Davi tem misericórdia de mim] Um precursor do movimento protestante, a sua extensa obra escrita concedeu-
lhe um importante papel na história literária checa. Também é responsável pela introdução do uso de acentos na língua checa por
modo a fazer corresponder cada som a um símbolo único. Hoje em dia a sua estátua pode ser encontrada na praça central de
Praga, a Praça da Cidade Velha, em checo Staroměstské náměstí. (Nota da da IHU On-Line)

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Resumindo: no início do século XVI predominou o tipo papalista de eclesiologia. Deve-se,


porém, constatar que os pensamentos da eclesiologia conciliarista ainda não haviam desa-
parecido de todo. Caso contrário, a bula papal Exsurge domine, dirigida contra Lutero, teria
trazido consigo consequências bastante diversas daquelas que ofereceu a Lutero e ao movi-
mento reformatório. Isso nos prova, pois, que não havia uma eclesiologia uniforme na época
de Lutero. A primeira tentativa da parte da Igreja Católica Apostólica Romana de formular
uma eclesiologia uniforme surgiu apenas por ocasião do Concílio Vaticano I35 (1869-1870).
Este, porém, apenas conseguiu definir o primado e a infalibilidade papal. Uma eclesiologia
uniforme para a Igreja Romana só foi conseguida por ocasião do Concílio Vaticano II36, na
“Constituição Dogmática sobre a Igreja”.
Reforma é um movimento muito mais amplo do que Lutero ou Calvino. Reforma é todo um
movimento que tentou dar respostas a questões que eram formuladas ao cristianismo já antes
do século XVI. Assim, quando falamos de Reforma, deveríamos iniciar com Isabel de Castela37
e Cisneros38, dizer de Lutero, de Zwínglio, dos Anabatistas, dos Espiritualistas, de Thomas
Müntzer, de Calvino e de seu colega de estudos na Sorbonne, Inácio de Loyola, de Trento, de
Cromwell e dos Puritanos.■

35 Concílio Vaticano I: de 8 de dezembro de 1869 a 18 de Dezembro de 1870. E foi proclamado por Pio IX (1846 a 1878).
As principais decisões do Concílio foram conceber uma Constituição dogmática intitulada “Dei Filius”, sobre a Fé católica e a
Constituição Dogmática “Pastor Aeternus”, sobre o primado e infalibilidade do Papa quando se pronuncia “ex-cathedra”, em
assuntos de fé e de moral. E tratou-se de questões doutrinárias que eram necessárias para dar novo alento e informar melhor
sobre assuntos essenciais de Fé. Para além de proclamar como dogma a Infalibilidade Papal, principalmente para combater o
Galicanismo, o Concílio, ao defender os fundamentos da fé católica, condenou os erros do Racionalismo, do Materialismo e do
Ateísmo. (Nota da IHU On-Line)
36 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962 pelo papa João XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em cada ano.
Seu encerramento deu-se a 8-12-1965, pelo papa Paulo VI. A revisão proposta por este Concílio estava centrada na visão da
Igreja como uma congregação de fé, substituindo a concepção hierárquica do Concílio anterior, que declarara a infalibilidade
papal. As transformações que introduziu foram no sentido da democratização dos ritos, como a missa rezada em vernáculo,
aproximando a Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este Concílio encontrou resistência dos setores conservadores da Igreja,
defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus frutos foram, aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja à estrutura
rígida preconizada pelo Concílio Vaticano I. A revista IHU On-Line publicou na edição 297 o tema de capa Karl Rahner e a 23
ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, disponível em https://goo.gl/GVTuEO, bem como a edição 401, de 3-9-2012, intitulada
Concílio Vaticano II. 50 anos depois, disponível em https://goo.gl/5IsnsM, e a edição 425, de 1-7-2013, intitulada O Concílio
Vaticano II como evento dialógico. Um olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, disponível em https://goo.gl/8MDxOM.
Em 2015, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu o colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no
contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade. As repercussões do evento podem ser
conferidas na IHU On-Line 466, de 1-6-2015, disponível em https://goo.gl/LiJPrZ. (Nota da IHU On-Line)
37 Isabel I (1451-1504): apelidada de “a Católica”, foi a Rainha de Castela e Leão de 1474 até sua morte, além de Rainha Consorte de
Aragão a partir de 1479 e Imperatriz titular do Império Bizantino de 1502 até sua morte. Era filha do rei João II e sua esposa Isabel de
Portugal. (Nota da IHU On-Line)
38 Francisco Jiménez de Cisneros O.F.M. (1436-1517): cujo nome era Gonzalo, mais conhecido como Cardeal Cisneros. Foi um
cardeal, arcebispo de Toledo pertencente à Ordem Franciscana, terceiro Inquisidor Geral de Castela e regente da mesma até a
morte de Fernando, o Católico. Quando da morte de Filipe I de Espanha, presidiu também o Conselho Real que assumiu funções
de Regência sem consentimento da rainha Joana, até a chegada de Fernando, o Católico. Foi o fundador da Universidade de Alcalá.
(Nota da IHU On-Line)

Leia mais
- Protestantismo: é tempo de refletir. Entrevista especial com Cláudio Kupka, Martin Dreher e
Walter Altmann, publicada nas Notícias do Dia de 31-10-2011, disponível em http://bit.ly/2g1N9f1.
- Lutero. Reformador da Teologia. Entrevista com Martin Dreher, publicada na revista IHU
On-Line número 280, de 3-11-2011, disponível em http://bit.ly/2zgEON1.
- A morte foi privatizada. Entrevista com Martin Dreher, publicada na revista IHU On-Line
número 279, de 27-10-2008, disponível em http://bit.ly/2i3YuzG.
- “O mundo secularizado carece, desesperadamente, dos sinais da fé”. Entrevista com
Martin Dreher, publicada na revista IHU On-Line número 209, de 18-12-2006, disponível em
http://bit.ly/2xzlbxP.
- Há entre os pomeranos uma ética de trabalho muito acentuada.”. Entrevista com
Martin Dreher, publicada na revista IHU On-Line número 271, de 1-9-2008, disponível em
http://bit.ly/2zeJvH7.

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TEMA DE CAPA

Lutero em 1529 por Lucas Cranach | Reprodução: Wikipedia

24 Lutero, do medieval ao moderno


João Vitor Santos

A
s comemorações dos 500 anos da cionais e internacionais, é preciso lembrar
Reforma Luterana têm sido uma a trajetória de Lutero.
oportunidade de revisitar esse fato
Nascido em 10 de novembro de 1483
histórico, que vai além da perspectiva re-
na cidade Eisleben, no território alemão,
ligiosa. Mais do que inaugurar uma outra
tem a infância marcada pela educação fa-
versão do cristianismo, Martinho Lute-
miliar severa. Albert Greiner, um dos bió-
ro marca a transição de uma época. Para
grafos de Lutero, reproduz uma passagem
compreender as transformações advindas
em que ele manifesta o tratamento que,
da Reforma, é preciso olhar para a figura
juntamente com seus irmãos, recebia dos
desse monge que foi forjado no ambiente
pais. “Meus pais foram muito severos co-
da Idade Média, mas que está entre os que
migo e me tornei tímido. Minha mãe me
inauguraram uma nova forma de pensar,
açoitou um dia por causa de uma desgra-
fazendo com que muitos o considerem um
çada noz, a ponto de sangrar. Meus pais
dos desbravadores da Modernidade.
só queriam meu bem, mas não sabiam
Ao longo da presente edição, a revista
discernir os espíritos e eram desmedidos
IHU On-Line debate essa transição de
nos castigos”1. A dificuldade de discerni-
época que tem sua materialidade na ex-
mento é uma característica da época me-
periência de Lutero e que, talvez, possa
dieval, em que, embora fosse um tempo de
inspirar a pensar acerca das mudanças de
nosso tempo. Mas, antes de trazer as refle- 1 p.16, Lutero, de Albert Greiner. São Leopoldo, RS: Sino-
xões com professores e pesquisadores na- dal, 1983. (Nota da IHU On-Line)

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“Completamente aterrorizado
durante o temporal no
meio de um bosque, ele
promete que, se saísse vivo
diante daquela provação, se
entregaria à vida monástica.”

poder da Igreja Católica, as pessoas ainda do o apelido de “O Filósofo”. Nesse perío-


eram contaminadas por superstições e do, aprofunda-se na filosofia nominalista,
culturas populares folclóricas. Margarida perspectiva que põe em xeque a harmonia
Lutero, sua mãe, por exemplo, embora entre ciência e fé defendida pela escolás- 25
católica, era cercada pela atmosfera das tica2. Esse momento é importante e pode
ervas, duendes e maus espíritos. Atribuía justificar algumas de suas posições mais
até mesmo a morte de um dos filhos aos adiante, pois a filosofia nominalista vai se
“encantos diabólicos” de uma vizinha, o basear unicamente na vontade de Deus.
que lhe causava muitos tormentos. Assim, em 1502 o jovem conclui o bacha-
relado e, já em 1505, termina o mestrado.
O pai, Hans Lutero, trabalhava em minas
Ainda atendendo aos desejos da família,
de cobre, o que levou a família para a ci-
ingressa na escola de Direito da Universi-
dade de Mansfeld. Embora desse ao filho
dade de Erfurt.
uma educação simples, desejava que fosse
funcionário público e melhorasse as con-
A tempestade e a transformação
dições de vida da família. É outro traço da
Idade Média, onde classes que não per- No mesmo ano em que inicia os estudos
tenciam à nobreza aspiravam à ascensão de Direito, 1505, uma tempestade muda
social por meio de trabalho na burocracia tudo. Lutero, como homem medieval,
estatal. É por isso que Martinho é envia- era atormentado pela ideia da salvação e,
do para escolas de Mansfeld e Eisenach. principalmente, pelas questões da morte.
Aos 14 anos, ingressa na escola latina de Muito impressionado com a morte abrupta
Magdeburgo. É só nesse momento que re- de um amigo, ele volta para casa, quando
cebe, além de uma educação mais densa, é surpreendido por uma tempestade. Em
os ensinamentos cristãos mais profundos,
embora ainda muito contaminado pelas 2 Escolástica: linha dentro da filosofia medieval, de acen-
tos notadamente cristãos, surgida da necessidade de res-
crendices da época. Era um período em ponder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, conside-
que o desejo da salvação atormentava os rada então como a guardiã dos valores espirituais e morais
de toda a Cristandade, por assim dizer, responsável pela
cristãos, por isso ele passa à ideia fixa de unidade de toda a Europa, que comungava da mesma fé.
Esta linha vai do começo do século IX até ao fim do século
fugir do pecado, que leva ao inferno, e bus- XVI, ou seja, até ao fim da Idade Média. Este pensamento
cristão deve o seu nome às artes ensinadas na altura pe-
car a penitência, o caminho de salvação. los escolásticos nas escolas medievais. Estas artes podiam
ser divididas em Trivium (gramática, retórica e dialética)
Em 1501, aos 16 anos, Lutero ingressa na e Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e músi-
ca). A escolástica resulta essencialmente do aprofundar da
Universidade de Erfurt. Ali, entre os perí- dialética. Confira a edição 342 da revista IHU On-Line, de
odos de estudos, aprende a tocar alaúde. 6-9-2010, intitulada Escolástica. Uma filosofia em diálogo
com a modernidade, disponível em http://bit.ly/11mcjbi.
Aliás, pela sua dedicação, acaba receben- (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

meio a descargas elétricas, tem sua verda- essa preparação vai se revelar importante,
deira experiência de morte. É isso que o quando decide propor sua tradução para
faz mudar os rumos de sua vida. Comple- a bíblia. Além dos trabalhos acadêmicos,
tamente aterrorizado durante o temporal Lutero ainda atuava como pregador e con-
no meio de um bosque, ele promete que, fessor na Igreja de Santa Maria, na cidade,
se saísse vivo diante daquela provação, se e na Igreja do Castelo de Wittenberg. Em
entregaria à vida monástica. 1510, é chamado a Roma. É a partir dessa
ida e das experiências na atuação nas igre-
O período da Idade Média é também um
jas que o jovem sacerdote se dá conta de
tempo de grande poder monacal. Os mo-
nastérios crescem e enriquecem, enquanto alguns problemas. O mais marcante deles
os monges peregrinam em prol da evan- é o oferecimento de indulgências aos fiéis.
gelização, defendendo a pobreza e a vida As indulgências se solidificam no mes-
simples. Todo esse protagonismo que ad- mo período em que há o empoderamento
quirem os monastérios vai levar a inúme- e enriquecimento dos monastérios. Como
ros desvios, pois além de riqueza e poder, as pessoas se viam atormentadas pela ne-
passam a ser vistos como ponto de grande cessidade de salvação, a Igreja oferecia a
influência tanto no poder espiritual quan- oportunidade de que se realizassem ações
to temporal. Corrupções e heresias são para assim se apagarem os pecados come-
praticamente inevitáveis, pois nem todos tidos. Tais ações seriam desde doações fi-
que buscavam o monastério iam por vo- nanceiras até concessões de terras à Igreja.
cação. Havia quem buscasse uma forma Na prática da confissão, Lutero viu que as
de ascensão social. Isso vai levar a Igreja pessoas passaram a valorizar muito mais
Católica a uma verdadeira convulsão e a as indulgências do que a própria penitên-
inúmeras tentativas de reformas ao longo cia advinda do sacramento confessional.
do século XI. Muitas dessas reformas não A Igreja, mesmo ciente do que ocorria, se
se efetivam, mas são significativas porque omitia, porque era conveniente receber as
26 vão, de certo modo, preparando para o indulgências.
ápice da cisão entre os cristãos, o protes-
tantismo do século XVI. É esse contexto que leva Lutero a profe-
rir os sermões contra as indulgências em
De volta à casa da família, Lutero comu- 1516 e 1517, ano em que é atribuída a ele a
nica sua decisão a amigos e parentes, ven- fixação das 95 teses, que traz ainda outras
de seus livros e se despoja de tudo mais contestações à Igreja da época, na porta
que possui para, em meados de 1505, in- da Igreja do Castelo de Wittenberg. Seria
gressar na ordem dos Agostinianos, em uma intenção de, dentro do método da es-
Frankfurt. No monastério, entrega-se à colástica, promover um debate acerca de
vida religiosa com rigor e a práticas da seus questionamentos. Recentemente, em
época, como meditação, oração, confissões palestra promovida pelo Instituto Huma-
e até mesmo autoflagelações e peregrina- nitas Unisinos - IHU, o teólogo e pesquisa-
ções. Pela exímia dedicação, é ordenado dor da Escola Superior de Teologia - EST
sacerdote em 1507 e, também pela dedica- Walter Altmann3 destacou que esse ato,
ção, logo seus superiores determinam seu hoje, é questionado por historiadores, pois
início na carreira acadêmica. Em 1508, já Lutero já teria tornado públicos os seus
é professor de teologia na Universidade de argumentos numa correspondência a seu
Wittenberg, tendo os textos bíblicos como superior. “Sim, é um ato importante, mas
seu objeto de estudos. Em 19 de outubro qual o significado de publicar essas teses
de 1512, Lutero conclui o doutorado em numa sociedade onde a maioria não sabia
Teologia e, em 21 de outubro do mesmo ler?”, questiona o teólogo durante a confe-
ano, é “recebido no Senado da Faculdade
Teológica” com o título de “Doutor em Bí- 3 Walter Altmann é Teólogo pela Escola Superior em Te-
blia”. Logo em 1515, como vigário, é res- ologia, doutor em teologia sistemática pela Universidade
de Hamburgo, Alemanha. Atualmente é professor pesqui-
ponsável por 11 monastérios. sador da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo.
No campo da Teologia, atua com os temas de ecume-
nismo, teologia e teologia latino-americana, teologia da
As contestações libertação e ética. Foi pastor-presidente da Igreja Evangé-
lica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB, entre 2002 e
2010, moderador do Conselho Mundial de Igrejas, entre
Durante o período em que esteve à frente 2006 e 2013. Possui inúmeras publicações, entre as quais
destacamos o seu recente livro, Lutero e Libertação (São
de monastérios, estudou grego e hebraico, Leopoldo: Sinodal, 2016), que também foi traduzido para
o que o fez mergulhar ainda mais nas pes- o inglês e lançado nos Estados Unidos. Leia mais sobre
a referida conferência promovida pelo IHU em http://bit.
quisas sobre as Escrituras. Mais tarde, toda ly/2yaVMxN. (Nota da IHU On-Line)

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rência realizada em agosto. Lutero acaba qualificado como herético e


é chamado a Roma. Por motivos políticos,
De qualquer forma, o que fica claro é que
não responde ao chamado, nega o papado
Lutero condenava a avareza e o paganis-
e pede a realização de um concílio. Ainda
mo na Igreja como um abuso e pedia um
com a intenção de manter relações com o
debate teológico sobre o significado das
protetor de Lutero, Frederico, o Sábio6, o
indulgências. No período, a imprensa já
papa engendra uma tentativa final de so-
existia e a tradição de divulgação de ideais
lução pacífica para o conflito. Uma confe-
impressos se propagava. As Teses acaba-
rência com o representante papal Karl von
ram logo traduzidas para o alemão e am-
Miltitz7 em Altenburg, em janeiro de 1519,
plamente copiadas e impressas. Em pou-
leva Lutero a decidir guardar silêncio, tal
cas semanas, já haviam sido espalhadas
qual seus opositores. Também teve de es-
por toda a Alemanha e, em dois meses, por
crever uma carta ao papa e compôs um
toda a Europa. Este foi o primeiro episódio
tratado demonstrando suas opiniões sobre
da História em que a imprensa teve papel
a Igreja Católica. A carta nunca chegou a
fundamental, pois facilitou a distribuição
ser enviada, pois não continha nenhuma
simples e ampla do documento.
retratação; e, no tratado que compôs mais
tarde, negou qualquer efeito das indulgên-
A reação da Igreja
cias no Purgatório.
Lutero não chega a dirigir suas críticas
à pessoa do papa e, num primeiro mo- A cisão
mento, Leão X4 dá pouco crédito às con-
Sem a menor possibilidade de cessar o
testações do monge. Entretanto, em 1518,
conflito, os escritos luteranos chegam à
determina que um professor de teologia
França, Inglaterra e Itália, em 1519. Uma
dominicano investigue o assunto, o qual
legião de estudantes seguia para Wit-
acaba denunciando Lutero por oposição
tenberg para escutar Lutero. Ele desenvol-
ao pontífice. Suas teses são contestadas,
sua postura é condenada como herética e
veu doutrinas próprias, entre as quais, a de 27
ter ampliado o significado da Eucaristia.
a autoridade papal é referendada. O mon-
Por volta de 1520, Lutero mantinha con-
ge contesta todos os argumentos e acusa-
ções, iniciando assim uma discussão que
culminaria em excomunhão. Sobreviveu a esta epidemia, primeiro seguindo os con-
selhos dos seus médicos de se rodear de piras, e depois
Em meio a todo esse debate, Lutero bra- retirando-se para o campo, perto de Avinhão. Escreveu a
bula ‘Unigenitus’ (27 de janeiro de 1343), para justificar
da na convenção dos Agostinianos em o poder papal e a concessão de indulgências. Este docu-
mento foi usado na defesa das indulgências muitos anos
Heidelberg sua tese sobre a escravidão do depois, quando Martinho Lutero afixou as suas 95 teses
homem ao pecado e a graça divina. Para em Wittenberg, em 1517. (Nota da IHU On-Line)
6 Frederico III (1463-1525): também conhecido como
ele, era preciso voltar ao Evangelho e per- Frederico, o Sábio, foi o Príncipe-eleitor da Saxónia entre
1486 e 1525. Em 1502 ele fundou a Universidade de Wit-
ceber que Cristo morreu para que todos tenberg, onde Martinho Lutero e Melanchthon ensinaram.
fossem libertos do pecado, tendo a graça Ele foi também o candidato do papa Leão X para santo
imperador romano em 1519, mas ajudou a eleger Carlos
divina ao alcance de todos, sendo essa V. Frederico conseguiu a isenção da Saxónia do Édito de
Worms e assegurou que Lutero fosse ouvido perante a
uma concessão de Deus e vinculada aos Dieta de Worms em 1521. Ele protegeu Lutero do impe-
sacrifícios ou indulgências. Isso o leva a rador e do papa ao ordenar que o abrigassem no castelo
de Wartburg após a Dieta de Worms. Frederico teve, no
questionar diretamente a autoridade do entanto, pouco contato pessoal com Lutero, tendo per-
papa. São as chamadas doutrinas de “Te- manecido católico romano. (Nota da IHU On-Line)
7 Karl von Miltitz (1490-1529): era um núncio papal e um
souraria da Igreja” e “Tesouraria dos Me- cânone da catedral de Mainz. Em 15 de outubro de 1518,
Miltitz foi nomeado núncio para entregar a rosa ao elei-
recimentos”, que serviam para reforçar a tor. Ele se encontrou com Lutero em Altenburg em 5-6 de
doutrina e venda das indulgências, base- janeiro de 1519 e negociou uma tentativa de acordo para
a controvérsia: Lutero permaneceria em silêncio sobre a
adas na bula papal “Unigenitus”, de 1343, questão da indulgência, escreveria uma carta conciliadora
ao Papa e escreveria e publicaria um tratado de apoio à
do Papa Clemente VI5. autoridade papal. O silêncio de Lutero dependia do silên-
cio de seus oponentes; Johann Tetzel e Albert de Mainz
seriam disciplinados, e Lutero foi autorizado por Miltitz a
4 Papa Leão X (1475-1521): Papa católico durante a Re- deixar claro que não iria retrair sua posição. As reuniões
forma Protestante. Nascido Giovanni di Lorenzo de’ Medici, posteriores de Miltitz com Lutero em Liebenwerda (outu-
foi o último não sacerdote a ser eleito Papa. (Nota da IHU bro de 1519) e em Lichtenburg, perto de Wittenberg (ou-
On-line) tubro de 1520), foram infrutíferas. Com suas declarações
5 Papa Clemente VI (1291-1352): nascido Pierre Roger, no Debate de Leipzig em 1519 e os três tratados para a
O.S.B, foi Papa (o quarto do Papado de Avinhão) e teve o nobreza cristã da Nação alemã, sobre o cativeiro babilô-
seu pontificado de 7 de maio de 1342 até a data da sua nico da Igreja e sobre a liberdade de um cristão, todos
morte. Era Monge Beneditino. Tal como seus antecesso- publicados em 1520, Lutero destruiu toda esperança de
res, eram dedicados às causas francesas. Em 1347 canoni- reconciliação. Miltitz investigou a conduta de Tetzel e o
zou Santo Ivo (1253-1293), patrono dos advogados, pro- acusou de perpetrar numerosas fraudes e desvaloriza-
curadores, juízes, juristas, notários, órfãos e abandonados. ções. Miltitz foi mais tarde desacreditado até o ponto de
A 20 de outubro de 1349 proibiu os flagelantes, uma seita suas reivindicações não possuírem peso histórico. (Nota
da zona do Reno que emergiu na altura da Peste Negra. da IHU On-Line)

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tato com humanistas, entre eles, Melan- real em 22 de janeiro de 1521, chamando
chthon8, Reuchlin9 e Erasmo de Roterdã10, Lutero a renunciar ou confirmar seus di-
que queriam mantê-lo sob sua proteção, tos. Em 16 de abril, Lutero se apresenta
convidando-o para seus castelos na even- e diz que só volta atrás mediante provas,
tualidade de não ser seguro para ele per- com base nas Escrituras, de que seus ar-
manecer na Saxônia, em virtude da pros- gumentos são infundados. Assim, o im-
crição papal. perador, em 25 de maio de 1521, declara
Martinho Lutero fugitivo e herege, pros-
Enquanto isso, a cisão ia se fazendo
crevendo suas obras. Vale ressaltar a
praticamente inevitável. Em 15 de ju-
imensa associação entre poder espiritual e
nho de 1520, o papa adverte Lutero, com
temporal no período medieval. Assim, in-
a bula “Exsurge Domine”, documento
surgindo-se contra a autoridade do papa e
apostólico que o ameaçava com a ex-
da Igreja, Lutero também se insurge con-
comunhão se em 70 dias não repudias-
tra os códigos civis.
se sua doutrina. No mês de outubro do
mesmo ano, Lutero envia seu escrito “A Em viagem de volta da Dieta de Worms,
Liberdade de um Cristão” ao papa, em Lutero é sequestrado e levado ao Castelo
que, além de voltar a negar o pontífice, de Wartburg, em Eisenach, onde perma-
diz que não era preciso se curvar às leis nece por cerca de um ano. Deixa crescer
para compreender a palavra de Deus. A a barba e toma as vestes de um cavaleiro,
cisão efetivamente se dá quando, em 12 assumindo o pseudônimo de Jörg. Duran-
de dezembro, Lutero queima a bula, que te esse período de retiro forçado, Lutero
já tinha expirado há 120 dias, e o decre- trabalha na sua célebre tradução da Bíblia
to papal de Wittenberg. O papa Leão X para o alemão. Também produz outros
responde com a excomunhão de Lutero escritos, prepara a primeira parte de seu
em 3 de janeiro de 1521, na bula “Decet Guia para Párocos e “Von der Beichte”
Romanum Pontificem”. (Sobre a Confissão), em que nega a obri-
28 gatoriedade da confissão, e admite como
Dieta de Worms, exílio e a Re- saudável a confissão privada voluntária.
forma Em 6 de março de 1522, volta em segredo
a Wittenberg, onde trabalha na sua cuida-
O Imperador Carlos V11 inaugura a Dieta dosa Reforma.
Em abril de 1523, Lutero ajuda 12 frei-
8 Philipp Melanchthon (1497-1560): foi um reformador,
astrólogo e astrônomo alemão. Colaborador de Lutero, ras a escaparem do cativeiro no Convento
redigiu a “Confissão de Augsburgo” (1530) e converteu-se
no principal líder do luteranismo após a morte de Lutero. de Nimbschen. Entre elas está Catarina
(Nota da IHU On-Line) von Bora, com quem Lutero se casa dois
9 Johann Reuchlin (1455-1522): foi um humanista alemão
e professor de grego e hebraico, sendo uma das maiores anos depois. Com ela tem seis filhos. O
referências do ensino desses idiomas em sua época. Foi casamento de Lutero com a ex-freira in-
lido e estudado posteriormente por historiadores como
Ludwig Geiger. (Nota da IHU On-Line) centivou a união de outros religiosos que
10 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo e huma-
nista neerlandês, conhecido como Erasmo de Roterdã. haviam adotado a Reforma. Foi um rom-
Seu principal livro foi Elogio da loucura. Erasmo cursou pimento definitivo com a Igreja Romana.
o seminário com os monges agostinianos e realizou os
votos monásticos aos 25 anos, vivendo como tal, sendo
um grande crítico da vida monástica e das características O ex-monge agostiniano Martinho Lute-
que julgava negativas na Igreja Católica. Optou por uma ro teve morte natural, embora, entre seus
vida de acadêmico independente - independente de país,
independente de laços acadêmicos, de lealdade religiosa
- e de tudo que pudesse interferir com a sua liberdade in-
telectual e a sua expressão literária. Nesse ano em que se
comemora os 500 anos da Reforma, o IHU vem publican- do à criação do primeiro exército profissional europeu: o
do uma série de textos sobre Erasmo e Lutero. Entre eles Terço. Além de suas realizações militares, Carlos é mais co-
Lutero e Erasmo, a gênese de um diálogo fracassado, dis- nhecido por seu papel contra a Reforma Protestante. Vá-
ponível em http://bit.ly/2y4y9Yw. (Nota da IHU On-Line) rios príncipes germânicos abandonaram a Igreja Católica
11 Carlos V e I (1500-1558): foi o Sacro Imperador Ro- e formaram a Liga de Esmalcalda para poder desafiarem
mano-Germânico como Carlos V a partir de 1519 e Rei a autoridade de Carlos com força militar. Não desejando
da Espanha como Carlos I de 1516 até sua abdicação em que guerras religiosas chegassem em seus domínios, ele
favor de seu irmão mais novo Fernando I no império e forçou a convocação do Concílio de Trento que iniciou a
seu filho Filipe II na Espanha. Carlos era o herdeiro de três Contrarreforma. A Companhia de Jesus foi estabelecida
das principais dinastias europeias: a Casa de Habsburgo por Inácio de Loyola durante seu reinado para combater
da Monarquia de Habsburgo, a Casa de Valois-Borgonha o protestantismo de forma pacífica e intelectual. No Novo
dos Países Baixos Borgonheses e a Casa de Trastâmara das Mundo a Espanha conquistou os astecas do México e os
coroas de Aragão e Castela. Ele governou vastos domí- incas do Peru, estendendo seu controle por grande parte
nios na Europa central, oriental e do sul, além das colônias da América Central e do Sul. Carlos abdicou em 1556 de
espanholas nas Américas. Como o primeiro monarca a todos os seus títulos. A Monarquia de Habsburgo passou
governar Castela, Leão e Aragão simultaneamente, ele se para seu irmão Fernando, enquanto o Império Espanhol fi-
tornou o primeiro Rei da Espanha. Carlos tornou-se impe- cou com seu filho Filipe. Os dois impérios permaneceriam
rador em 1519. A partir de então seu império cobria mais aliados até o século XVIII. Carlos tinha apenas 54 anos
de quatro milhões de quilômetros quadrados pela Europa, na época de sua abdicação, porém estava fisicamente
Oriente e Américas. Grande parte de seu reinado foi de- exausto depois de governar energicamente por 34 anos e
dicado às guerras italianas contra a França, sendo militar- procurou paz de um monastério, onde morreu dois anos
mente bem-sucedidas apesar dos enormes gastos, levan- depois. (Nota da IHU On-Line)

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biógrafos, não haja um consenso acerca da Revoltas de camponeses já tinham existi-


causa da sua morte, em Eisleben, no ano do em pequena escala em Flandres (1321-
de 1546. 1323), na França (1358), na Inglaterra
(1381-1388), durante as guerras hussitas
As contradições de Lutero do século XV, e muitas outras até o século
XVIII. Mas muitos camponeses julgaram
O pensamento de Lutero representa um que os ataques verbais de Lutero à Igreja
rompimento de uma lógica do medievo, e sua hierarquia significavam que os re-
inaugurando assim o que hoje se conside- formadores iriam igualmente apoiar um
ra um pensamento moderno. “Aquele 31 ataque armado à hierarquia social. Supu-
de outubro de 1517 marcou a fratura deci- nham isso por causa dos fortes laços entre
siva entre as épocas que definimos Idade a nobreza hereditária e os líderes da Igre-
Média e Idade Moderna, e que poderíamos ja que Lutero condenava.
mais concretamente definir, respectiva-
mente, como a idade dos vivos a serviço Entretanto, não foi o que houve. Walter
dos mortos e a idade dos vivos que come- Altmann lembra que Lutero tinha uma
çam a se libertar do peso dos mortos”, de- visão apocalíptica e, por vezes, dramáti-
fine Franco Cardini, professor do Istituto ca. Preocupado com o caos que poderia se
Italiano di Scienze Umane - SUM, ao ana- instaurar com a revolta camponesa, acaba
lisar o pensamento luterano, em artigo re- se associando aos príncipes que, de forma
produzido pelo Instituto Humanitas Uni- sangrenta, suprimem os revoltosos. “Ele se
sinos - IHU12. “É difícil definir com tanta punha como interlocutor dos camponeses,
síntese lúcida o que é a Modernidade: que mas, com medo do que pudesse ocorrer,
começa a partir do momento em que o ho- acaba se associando aos príncipes”, expli-
mem ocidental (que ainda é um homem ca Altmann. Em 1522, Thomas Münzer14,
cristão) descobre a sua absoluta liberdade até então um de seus seguidores, comanda
individual; mas, como cristão, é forçado a massas camponesas contra a nobreza im-
associá-la imediatamente, profundissima- perial. Lutero, que defendia a existência de 29
mente, à sua escravidão em relação à Oni- “senhores e servos” como vontade divina,
potência divina”, completa. classifica Müntzer como um dos “profetas
do assassínio”.
Walter Altmann, na conferência que re-
alizou em agosto no IHU, destaca que a Dentro do movimento reformista, Lutero
Reforma é algo a comemorar, e não a ce- também questionou outro de seus segui-
lebrar. “A Federação Luterana Mundial, dores, o teólogo João Calvino15. Enquanto
inclusive, decidiu explicitamente usar a
Guerra dos Camponeses Alemães foi a maior e mais ge-
palavra comemoração, e não celebração neralizada revolta popular da Europa antes da Revolução
e muito menos jubileu. Essas palavras Francesa de 1789. A luta chegou ao auge na primavera e
no verão de 1525. A guerra começou com revoltas sepa-
até têm sido usadas, mas elas nos tornam radas, começando na parte sudoeste do que é hoje a Ale-
ufanistas demais”, explica. Isso porque há manha e a vizinha Alsácia, e se espalhou em insurreições
subsequentes às regiões central e oriental da Alemanha e
outras perspectivas do pensamento de Lu- atual Áustria. Após o levante na Alemanha ser suprimido,
ele brilhou brevemente em vários cantões suíços. (Nota
tero que revelam suas contradições. Entre da IHU On-Line)
elas, os conflitos com outros protestantes 14 Thomas Muentzer (ou Müntzer, Münzer) (1489-1525):
sacerdote do início da Reforma Protestante. Foi ordenado
e o rompimento com muitos deles, entre padre em 1513, tendo sido feito padre de São Miguel em
Braunschweig, em maio de 1514. Juntou-se à Reforma de
eles Erasmo. Martinho Lutero, tendo-se tornado pastor em Zwickau,
em 1520, por recomendação de Lutero. Lutero, no entan-
O episódio da Reforma também é as- to, não foi tão longe como Muentzer, que cortou relações
em 1521 por divergências quanto ao batismo de crianças,
sociado a conflitos sangrentos, como a entre outros assuntos, tendo fundado a sua própria sei-
Guerra dos Camponeses (1524-1525)13. ta religiosa. Por esta razão, Muentzer é considerado um
dos fundadores do Movimento Anabatista. No entanto,
é questionável se ele próprio alguma vez foi “rebatizado”.
Foi expulso de Zwickau pelas autoridades em 1521. Em
12 Confira o artigo Lutero, o “desbravador” da Moder- 1522, envolveu-se numa disputa com Lutero. Em 1523,
nidade, de Franco Cardini, reproduzido nas Notícias do casou-se com uma antiga freira e tornou-se o pastor de
dia de 20-8-2017, no sítio do Instituto Humanitas Uni- Allstadt, onde pregou até 1524., ano em que se tornou
sinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2zb7I18. (Nota um dos líderes das revoltas que ficaram conhecidas como
da IHU On-Line) a Guerra dos Camponeses. Em 1515, ele liderou um gru-
13 Guerra dos Camponeses: foi uma revolta popular ge- po de cerca de 8000 camponeses na Batalha de Franke-
neralizada nos países da língua alemã na Europa Central, nhausen, convencido que Deus iria intervir do seu lado.
entre 1524-1525. Falhou por causa da intensa oposição Muentzer foi capturado e aprisionado. Sob tortura ele
da aristocracia, que abateu até 100 mil dos 300 mil cam- abjurou o protestantismo para não ser queimado, sendo
poneses e agricultores mal armados e mal conduzidos. decapitado em 27 de maio de 1525. O livro mencionado
Os sobreviventes foram multados e obtiveram poucos pelo entrevistado é Thomas Münzer: teólogo da revolução.
ou nenhum de seus objetivos. A guerra consistia, como o Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1963. (Nota da
movimento precedente Bundschuh e as Guerras Hussitas, IHU On-Line)
em uma série de revoltas econômicas e religiosas em que 15 João Calvino (1509-1564): teólogo cristão francês,
os camponeses e agricultores, muitas vezes apoiados por teve uma influência muito grande durante a Reforma
membros do clero protestante, assumiram a liderança. A Protestante e que continua até hoje. Portanto, a forma de

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TEMA DE CAPA

Lutero queria reformar a Igreja Católica, caráter humano de Martinho Lutero. “Era
Calvino acreditava que a Igreja estava tão um pecador como qualquer outro, com
degenerada que não havia como reformá suas falhas”, reitera. Revolucionário no
-la, sendo inevitável uma nova Igreja. Alt- seu tempo, o monge também era questio-
mann diz que não se pode perder de vista o nador e tinha personalidade forte. Carac-
terísticas que o colocavam em divergências
Protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por com os próprios reformistas. É o caso, por
alguns pelo nome Calvinismo, embora o próprio Calvino
tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta exemplo, dos conflitos que acabou tendo
variante do Protestantismo viria a ser bem-sucedida em
países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África com Münzer, Calvino, os anabatistas, além
do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Esta-
dos Unidos. Leia, também, a edição 316 da IHU On-Li- de judeus e muçulmanos. Conflitos que
ne intitulada Calvino - 1509-1564. Teólogo, reformador e não se dão apenas no aspecto da religião,
humanista, disponível em http://bit.ly/1oBIrpn. (Nota da
IHU On-Line) mas também no espaço político. ■

Referências
ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1994.
DREHER, Martin. De Luder a Lutero: uma biografia. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2014.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.
GREINER, Albert. Lutero: ensaio biográfico. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1983.
LAU, Franz. Lutero. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1982.
30
LUTHER, Martin (tradução Leonidas Boutin e Heinz Soboll). Da Liberdade Cristã. São Leo-
poldo, RS: Sinodal, 1959.

Leia mais
Ao longo deste ano, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU vem publicando, na seção Notí-
cias do Dia de seu sítio, uma série de textos acerca de Lutero e dos 500 anos da Reforma.
Confira alguns destaques.
Para mais notícias, acesse ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias.
- O desafio de compreender Lutero e a reforma 500 anos depois, disponível em http://bit.
ly/2yaVMxN.
- Lutero e Erasmo, a gênese de um diálogo fracassado, disponível em http://bit.ly/2y4y9Yw.
- Quando Lutero era católico, disponível em http://bit.ly/2y7I118.
- “Não é possível compreender a Europa de hoje sem a Reforma do século XVI e a figura
de Lutero”, disponível em http://bit.ly/2za3F4X.
- Lutero. A Reforma e os paradoxos do mundo moderno, disponível em http://bit.ly/2yzimS8.
- Lutero, o “desbravador” da Modernidade, disponível em http://bit.ly/2zb7I18.
- Erasmo: nem com Roma, nem com Lutero. Artigo de Massimo Firpo, disponível em
http://bit.ly/2fWFXRG.
- Federação Luterana Mundial e os 500 anos da Reforma: perscrutando o futuro de
Deus, disponível em http://bit.ly/2g5hvB9.

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- Papa e luteranos: esperança comum e superação dos conflitos, disponível em http://


bit.ly/2yTJ4Rs.
- Lutero e Inácio de Loyola mudaram o cristianismo do século XVI, disponível em http://
bit.ly/2g5SnKx.
- Foi Martinho Lutero o “tuitador” cristão original?, disponível em http://bit.ly/2xrDoC5.
- Herdeira da Reforma Protestante, Igreja Luterana na Alemanha ordena mulheres e
abre caminho para casamento gay, disponível em http://bit.ly/2gnTouv.
- Um selo vaticano para reabilitar Lutero, disponível em http://bit.ly/2gpvxdX.
- 2017: Do Conflito à Comunhão?, disponível em http://bit.ly/2yAw6fl.
- O Lutero católico. Artigo de Carlo Molari, disponível em http://bit.ly/2fWZZuZ.
- A comemoração dos 500 anos da Reforma: um aniversário em comunhão. Artigo de
Kurt Koch, disponível em http://bit.ly/2kxza5Q.
- Francisco. 500 anos de Lutero: devemos olhar o passado sem rancores, disponível em
http://bit.ly/2xrxCR3.
- Os dominicanos e Lutero, disponível em http://bit.ly/2xryBRf.
- A Santa Sé reconhece Lutero como “uma testemunha do Evangelho”, disponível em
http://bit.ly/2xtkxqe.
- Reforma, ecumenismo, futuro da igreja, disponível em http://bit.ly/2xtp8nF.

31

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TEMA DE CAPA

Liberdade: chave para


a teologia luterana
Elaine Neuenfeldt destaca a “ênfase na liberdade e graça
acolhedora de Deus” num protestantismo que deve aceitar
todos, independentemente de gênero, classe social ou etnia
Márcia Junges | Edição: João Vitor Santos

O
conceito de liberdade é evo- “Recordar as mulheres do passado, im-
cado por muitos como básico plica, necessariamente, num movimen-
para se compreender a teologia to de deslocamento do lugar atribuído
concebida a partir de Martinho Lutero. às mulheres no presente. Conhecer cri-
“Mas esta liberdade é da pessoa cristã, ticamente a nossa história é fundamen-
e não liberdade de indivíduos. Os re- tal para que a nossa percepção e aná-
formadores não defendiam o que nós lise da realidade, tanto social, política,
conhecemos hoje como liberdade de econômica, e eclesial sejam igualmente
consciência, no sentido de liberdades permeadas por perguntas pelos sujeitos
de sujeitos individuais”, explica a teó- invisibilizados, mas que tiveram papel
loga feminista Elaine Neuenfeldt. “Os fundamental ”.
reformadores estavam preocupados Elaine Neuenfeldt possui gradua-
com a liberdade dada pela fé cristã”, ção em Teologia pela Escola Superior
32 completa. E é dessa mesma liberdade de Teologia – EST, e mestrado e douto-
que se dá outra chave para compreen- rado em Teologia pelo Instituto Ecumê-
der o papel ocupado pelas mulheres, nico de Pós-Graduação – IEPG. É pas-
pois, como destaca a professora, não há tora da Igreja Evangélica de Confissão
uma doutrina concebida de forma dife- Luterana no Brasil – IECLB, secretária
rente para cada gênero. “A graça, que é -executiva da Secretaria de Mulheres na
presente de Deus a partir da fé, é conce- Igreja e na Sociedade, da Federação Lu-
dida a pessoas, independentemente de terana Mundial – FLM. Entre suas pub-
seu gênero”, reforça. licações, destacamos The LWF Gender
Entretanto, na entrevista a seguir, Justice Policy, disponível em http://
concedida por e-mail à IHU On-Line, bit.ly/2yITdn1, The Participation of
Eliane reconhece que ainda há muito o Women in the Ordained Ministry and
que fazer, pois experiência de reforma- Leadership in LWF Member Churches.
doras femininas ainda está “escondida A baseline assessment in LWF mem-
entre as sombras da história, precisan- ber churches (disponível em http://
do esforço e criatividade para descobrir bit.ly/2gDjoVP) e Gender Justice:
onde estão as mulheres, quais papéis challenging gender roles and fighting
desempenharam, quais contribuições GBV (In: Religion and development.
para o movimento”. Assim, vê as co- Dialogue on gender rights and sensitive
memorações como mais uma oportu- issues. NORAD & UNFPA, Oslo, 2016).
nidade para movimentos de inclusão. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- – o espaço das mulheres no cristia- lheres ocupam nestas manifestações
ender o espaço da mulher no nismo é diverso e plural, assim como obedece ao contexto e realidades nas
cristianismo? o cristianismo é diverso e plural. Há quais estas se expressam. Há for-
Elaine Neuenfeldt – Na verda- uma pluralidade de manifestações mas de entender o cristianismo que
de, esta é uma pergunta bem ampla do cristianismo, e o lugar que as mu- restringem a posição das mulheres

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“Uma hermenêutica crítica


e libertadora de textos
bíblicos é fundamental”

à subordinação, especificamente ao Um dos momentos máximos desta liberdade de indivíduos. Os refor-


homem, usando aqui especialmente valorização das mulheres e de ruptu- madores não defendiam o que nós
a interpretação do texto sagrado – a ra com o modelo patriarcal, que na conhecemos hoje como liberdade de
Bíblia como fundamento desta su- minha opinião há nos evangelhos, consciência, no sentido de liberda-
bordinação. O texto da criação é a é a história da ressurreição. Jesus des de sujeitos individuais. Eles só
fonte primeira deste entendimento, aparece para uma mulher, Maria reconheciam a consciência enquanto
pois se ancora no texto onde o ho- Madalena1, e com isso ela se torna liberta pela Palavra de Deus, que era
mem é criado primeiro e a mulher a anunciadora da ressurreição. Esta autoridade máxima.
depois, como gerador de uma hie- é uma história que, de acordo com
as pesquisas de interpretação bíbli- Os reformadores estavam preocu-
rarquia, onde o homem é criado à
ca, coloca mulheres nos círculos de pados com a liberdade dada pela fé
imagem de Deus e a mulher, à ima-
discipulado de Jesus. Esta possibili- cristã – esta liberdade é o que faz a
gem do homem. Esta, em traços bem
dade é corroborada com as diversas pessoa se relacionar com Deus, como
gerais, é uma possibilidade.
menções do papel das mulheres nos filhos e filhas de Deus. Para Lutero, 33
Outra possibilidade é entender o textos posteriores do Novo Testa- não havia liberdade isolada da fé.
cristianismo como expressão orien- mento: mulheres aparecem nos Atos O aspecto da liberdade pessoal, tão
tadora de igualdade e justiça entre os dos Apóstolos e nas cartas paulinas importante para nós hoje em dia não
seres humanos. Uma hermenêutica em posições ativas de participação e era o que regia a conversa na época
crítica e libertadora de textos bíbli- liderança das primeiras comunida- da reforma. Liberdade cristã signifi-
cos é fundamental para este entendi- des. Basta lembrar de Romanos 16, ca a liberdade do pecado, uma vida
mento. O texto sagrado, nesta pers- por exemplo, onde uma extensiva de acordo com a vontade de Deus.
pectiva, apresenta uma narrativa de lista de mulheres é citada em dife-
E aqui reside o diferencial para
igualdade, onde o relato da criação rentes ministérios e funções, de ser-
as mulheres – não há doutrina es-
traz o princípio básico da imago viço e liderança nas comunidades.
pecífica para homens e outra para
dei – ou seja, o ser humano é cria-
mulheres. A graça, que é presente
do à imagem e semelhança do divino
IHU On-Line – Quais são as de Deus a partir da fé, é concedida a
– homem e mulher são criados em
proposições luteranas mais pessoas, independentemente de seu
igualdade e semelhança a Deus. importantes para a questão da gênero. Claro que Lutero ainda tem
Em Jesus Cristo, sua prática e vi- liberdade do sujeito e, mais es- rasgos em sua teologia que seguem
vência é outro critério para falar do pecificamente, da mulher? as estruturas sociais, patriarcais da
lugar da mulher no cristianismo. Os Elaine Neuenfeldt – Liberdade é época. Não vamos encontrar, por
relatos nos evangelhos trazem nar- o termo chave da Reforma. Mas esta exemplo, referência a um ministério
rativas de ações protagonizadas por liberdade é da pessoa cristã, e não ordenado de mulheres. Estas práti-
mulheres na história da salvação. A cas e desenvolvimentos teológicos
relação de Jesus com as mulheres 1 Maria Madalena: é descrita no Novo Testamen- são posteriores, como muitas outras
to como uma das discípulas mais dedicadas de
que participam da caminhada na Pa- Jesus Cristo. É considerada santa pelas diversas na teologia luterana. Entendería-
lestina daquele tempo é de diálogo e denominações cristãs e sua festa é celebrada no mos, então, que a teologia luterana
dia 22 de julho. Segundo relatos evangélicos, é
respeito. Jesus quebra com modelos ela quem encontra o sepulcro vazio e se depara contextualizada nos tempos atuais
com o Cristo ressurreto, de quem recebe a mis-
de exclusão e discriminatórios, que são de anunciar a sua ressurreição. O nome de nos ajuda a articular a fé, com ênfa-
relegavam mulheres a pessoas de Maria Madalena a descreve como sendo natural se na liberdade e graça acolhedora
de Magdala, cidade localizada na costa ocidental
segunda categoria. As mulheres são do Mar da Galileia. A IHU On-Line número 489, de Deus, que é ofertada a todas as
de 18-7-2016, intitulada Maria de Magdala. Após-
recebidas por Jesus, caminham com tola dos Apóstolos se dedica analisar a história de pessoas, independentemente de seu
ele, dialogam, atuam como sujeitos e Madalena e seu papel para o cristianismo. Acesse status social, de sua identidade se-
a edição em http://bit.ly/2yCiXlP. (Nota da IHU
interagem com seus ensinamentos. On-Line) xual e de gênero.

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TEMA DE CAPA

Esta referência a esta mulher refor- beth von Rochlitz7, Olimpia Morata8
“Os relatos nos madora é paradigmática para tratar (na Itália)9.
das experiências das mulheres com
evangelhos a Reforma: escondida entre as som-
Muito pouco se conhecia destas
mulheres. Foram necessários 500
trazem
bras da história, precisando esforço
anos para que descobríssemos a
e criatividade para descobrir onde
presença destas mulheres. Espero
narrativas estão as mulheres, quais papéis de-
sempenharam, quais contribuições
que não sejam necessários outros
500 para integrar o estudo de suas
de ações para o movimento da reforma. Marie
Dentière é exemplo de uma das re-
biografias e especialmente de sua te-
ologia, nos currículos dos cursos de
protagonizadas formadoras que fomos descobrindo
neste processo de comemorar 500
teologia, ou de história eclesiástica
ou do pensamento religioso.
por mulheres anos. Ela atuou junto com Calvino,
em Genebra. Dedicou-se aos estudos
Visibilização distorcida
na história da da sagrada escritura, e traduziu par-
te de textos bíblicos. Também escre- Outras vezes há ainda uma visibi-
salvação” veu sobre as mulheres testemunhas
da ressurreição: “se Deus deu então
lização distorcida, como as que fica-
ram atrás das cortinas, nas cozinhas,
a graça a algumas boas mulheres, re- como benfeitoras, ou como apoiado-
velando-lhes, pelas Santas Escritu- ras. Esta é uma visão que ainda é de-
IHU On-Line – Qual é o papel ras, algo santo e bom, não ousariam terminada pelas construções de gê-
das mulheres na Reforma Lute- elas escrever, falar e declará-lo uma nero que temos hoje em dia. Ou seja,
rana? à outra? Ah! Seria uma audácia pre- lê-se a história com as lentes carre-
Elaine Neuenfeldt – Quero co- tender impedi-las de fazê-lo. Quanto gadas, embaçadas pelos estereótipos
meçar trazendo uma imagem: aqui a nós, seria muita tolice esconder o de gênero que temos hoje em dia.
em Genebra, na Universidade de talento que Deus nos deu”.
Recordar as mulheres do passado,
Genebra, fundada por Calvino2, há Mulheres participaram ativamente
34 um muro em homenagem aos refor-
implica, necessariamente, num mo-
da reforma. Umas, por serem filhas vimento de deslocamento do lugar
madores – todas as figuras represen- da nobreza, apoiavam o movimento
tadas neste muro são homens. Há economicamente. Outras, por terem
espaço para Zwingli3 e Lutero. Bem ato de rebelião contra a sociedade do seu tempo
tido a chance de estudar e estar re- foi casar-se com um homem do clero, o sacerdote
ao lado, muitas vezes coberto por clusas na vida monástica, ao aban- Matthäus Zell. Com o casamento, Matthäus Zell
foi excomungado da Igreja Católica. Katharina
galhos, encontra-se o nome de uma donar e integrar-se à reforma, eram defendeu a diversidade do movimento da Refor-
mulher: Marie Dentière4. ma, opondo-se a radicalismos e exclusivismos. É
formadas em teologia e, por isso, considerada a primeira pregadora do movimento
participaram das elaborações teó- da Reforma Protestante, teóloga, mãe na fé, de-
fensora dos princípios protestantes. (Nota da IHU
2 João Calvino (1509-1564): teólogo cristão fran- ricas, teológicas do movimento. As- On-Line)
cês, teve uma influência muito grande durante 7 Elisabeth de Hesse (1502-1557): foi uma prin-
a Reforma Protestante e que continua até hoje. sim temos nomes como Argula von cesa hessiana e sucessora hereditária da Saxônia.
Portanto, a forma de Protestantismo que ele en- Grumbach5, Katharina Zell6, Elisa- Após a morte de seu marido, o príncipe heredi-
sinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome tário John of Saxony, ela administrou Wittum,
Calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse re- os escritórios saxões Rochlitz e Kriebstein, bem
pudiado contundentemente este apelido. Esta va- como outras posses, independentemente, o que
riante do Protestantismo viria a ser bem-sucedida 5 Argula von Grumbach (1492-1554): era uma lhe valeu o apelido de “Elisabeth von Rochlitz “.
em países como a Suíça (país de origem), Países nobre bávara que, a partir do início da década de Em seu território, Elisabeth permitiu a doutrina lu-
Baixos, África do Sul (entre os africânderes), In- 1520, se envolveu nos debates da Reforma Pro- terana a partir de 1537, quando sua cunhada no
glaterra, Escócia e Estados Unidos. Leia, também, testante na Alemanha. Ela se tornou a primeira resto da Saxônia ainda se agarrava estritamente
a edição 316 da IHU On-Line intitulada Calvino escritora protestante, publicando cartas e poe- ao catolicismo. No mesmo ano, seu irmão en-
- 1509-1564. Teólogo, reformador e humanista, mas promovendo e defendendo Martinho Lutero, viou-lhe o pregador protestante Johann Schiitz.
disponível em http://bit.ly/1oBIrpn. (Nota da IHU bem como seu colega de trabalho Philipp Melan- Philip também apoiou a admissão de Elizabeth
On-Line) chthon e outros grupos protestantes. Ela é mais no Schmalkaldische Bund, a aliança dos príncipes
3 Ulrico Zuínglio (1484-1531): em alemão Hul- conhecida por desafiar diretamente a faculdade protestantes. Como a única mulher nesta aliança,
dreych, Huldreich ou Ulrich Zwingli, foi um teólo- da Universidade de Ingolstadt quando escreveu é considerada como “as mulheres mais eficazes
go suíço e principal líder da Reforma Protestante uma carta a eles falando contra a prisão de um da Era da Reforma”. (Nota da IHU On-Line)
na Suíça. Zuínglio foi o líder da reforma suíça e aluno luterano. Como uma das poucas mulheres 8 Olimpia Fulvia Morata (1526-1555): foi estu-
fundador das igrejas reformadas suíças. Indepen- na época abertamente falando em seus pontos diosa italiana, filha mais velha de um estudioso
dentemente de Martinho Lutero, que era doctor de vista, seus escritos provocaram controvérsia e humanista, que, depois de ser forçado a fugir de
biblicus, Zuínglio chegou a conclusões semelhan- muitas vezes se tornaram best-sellers, com deze- sua cidade ao norte da Itália, palestrou sobre os
tes pelo estudo das escrituras do ponto de vista nas de milhares de cópias de suas letras e poemas ensinamentos de Calvino e Lutero. Olímpia flores-
de um erudito humanista. Zuínglio não deixou circulando dentro de alguns anos de sua publica- ceu em seus estudos, especialmente em latim e
uma igreja organizada, mas as suas doutrinas ção. (Nota da IHU On-Line) grego, exibindo erudição impecável. Ela escreveu
influenciaram as confissões calvinistas. (Nota da 6 Katharina Schütz Zell (1497-1562): teóloga diálogos em latim, poemas em grego e cartas
IHU On-Line) e pregadora protestante, era filha de Elisabeth tanto para estudiosos (em latim) quanto para mu-
4 Marie Dentière (1495-1561): reformadora pro- Gerster e Jakob Schütz, mestre carpinteiro que fa- lheres menos escolarizadas (em italiano). Em seu
testante e teóloga genovense. Ela desempenhou zia parte do Conselho da cidade. Katharina apren- “Diálogo entre Teófila e Filótima”, ela encorajou
um papel ativo na religião e na política de Ge- deu a ler e a escrever quando ainda não havia es- aqueles que temiam que seus enormes pecados
nebra, no fechamento dos conventos de Gene- colas públicas organizadas, mas em casas-escola, iriam obstruir seu caminho para Deus. (Nota da
bra e na pregação com reformadores como João onde professores ministravam aulas para meninas IHU On-Line)
Calvino e William Farel. Além dos escritos sobre a e meninos. Começou muito jovem a ler a Bíblia e 9 Para saber mais acesse os links http://bit.ly/2x-
Reforma, os escritos de Dentière parecem ser uma tinha muitas perguntas que envolviam a vida re- ZrUpQ, http://bit.ly/2yHcpjd e http://bit.ly/2gx9L-
defesa e propagação da perspectiva feminina no ligiosa, embora a prática da leitura da Bíblia não nV e o recente livro lançado pela editora Sinodal,
mundo em rápida mutação. Seu segundo mari- era apoiada pela hierarquia eclesiástica da época. São Leopoldo: As mulheres na Reforma, escrito pe-
do, Antoine Froment, também atuou na reforma. Ela não viveu no convento, algo que era comum las pastoras e doutoras Heloísa Gralow Dalferth e
(Nota da IHU On-Line) na vida de muitas mulheres. O primeiro grande Claudete Beise Ulrich. (Nota da entrevistada)

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atribuído às mulheres no presente. a serem superados. Há uma minoria da teologia luterana, que ainda foi
Conhecer criticamente a nossa his- de igrejas que não ordena mulheres, pouco discutida desde uma perspec-
tória é fundamental para que a nos- e o desafio constante é trabalhar na tiva teológica feminista. A pergunta
sa percepção e análise da realidade, superação de barreiras culturais e te- que precisa ser mais discutida é: se
tanto social, política, econômica, e ológicas que impedem mulheres de a salvação é graça e dom, quais são
eclesial sejam igualmente perme- ocupar espaços de liderança. as implicações desta teologia para as
adas por perguntas pelos sujeitos mulheres, que estamos acostumadas
invisibilizados, encobertos, mas Outras vezes, quando mulheres são
a vencer na vida por méritos e pro-
que tiveram papel fundamental no ordenadas pastoras e ocupam cargos
vas de nossa capacidade nas mais
desenvolver dos fatos. Trazer à luz de direção, como bispas e presiden-
diferentes áreas de conhecimento?
estes fatos e os sujeitos é fazer jus a tas, há resistência e questionamen-
Nos foi ensinado e sentimos no dia
uma grande parte da humanidade tos da sua capacidade de liderar.
a dia, como mulheres, teólogas, pas-
que muitas vezes não se sente refle- Muitos destes questionamentos são
toras, profissionais em todas e mais
tida nos livros oficiais de história, na baseados em argumentos culturais, diferentes áreas, de que precisamos
forma seletiva de narrar a história. que tardam em serem transforma- sempre dar o passo a mais, não só
Este é um movimento de inclusão e dos. Mas aos poucos os câmbios po- ser boas no que fazemos, temos que
de justiça, que traz consequências dem ser percebidos. Outras vezes, os ser melhores, mais qualificadas, com
positivas no papel que mulheres po- argumentos são bíblico-teológicos, e mais formação, e ainda assim rece-
dem ter hoje em dia tanto na socie- aqui reside um esforço que a teologia bemos menor salário, somos menos
dade quanto na igreja. da reforma, a confessionalidade lu- promovidas, somos mais questiona-
terana tem de riqueza: o acesso à lei- das sobre o status de nossa vida fa-
IHU On-Line – Qual é a im- tura e estudo da bíblia é para todas
portância das mulheres no lu- miliar quando somos avaliadas em
as pessoas crentes – todas pessoas nossa performance de trabalho. Ora,
teranismo hoje? Quais são os são capacitadas em sacerdócio uni-
limites e desafios ainda enfren- onde está a graça nisso tudo? Onde
versal de fomentar a sua fé através e como mulheres vivem a graça de
tados na ocupação de protago- do estudo das sagradas escrituras. A
nismo na Igreja e na sociedade? ser e do saber? Me parece que para
capacidade de interpretação usando aquelas que estamos inseridas nas
Elaine Neuenfeldt – As tradi- métodos histórico-críticos e a inser- igrejas que se fundamentam na teo- 35
ções e confessionalidades luteranas ção comunitária ajudam na supera- logia da reforma, com a propagação
são diversas e plurais, de acordo aos ção de leituras fundamentalistas e da graça e da liberdade como funda-
contextos geográficos e culturais nos fomentadoras de discriminação. mento básico da fé, esta formulação
quais as igrejas estão inseridas. Vou teológica oferece argumentos para
me restringir à realidade da Comu- contrapor todo um arcabouço teó-
nhão de igrejas que se filiam à Fede-
ração Luterana Mundial – são 145
“Os rico e prático que se usa de méritos,
da meritocracia para medir a fé, para
igrejas membro, com aproximada-
mente 74 milhões de pessoas cristãs,
reformadores qualificar o ser cristão.

em 98 países10. estavam Outra possibilidade que experi-


mento como pastora e parte de uma
Na Comunhão Luterana (FLM) há
uma maioria de igrejas que integra
preocupados igreja que se junta em comunhão lu-
terana é a capacidade de ler e inter-
mulheres no ministério ordenado
pastoral, da palavra e sacramentos:
com a pretar criticamente os textos sagra-
dos. A leitura da bíblia e mais, uma
mais de 80%. Há igrejas que consa-
gram mulheres nas funções de bis-
liberdade dada interpretação contextualizada, pode
muito bem ser exercício que se des-
pas e ou presidentes, muitas ocupam
funções de liderança como secreta-
pela fé cristã” dobra no contexto da Reforma Lute-
rana. Lutero já dizia que há que se
rias gerais, presidentes de sínodos traduzir e interpretar textos sagra-
ou assembleias gerais. Mulheres es- dos olhando para boca das pessoas
tudam teologia e são professoras de IHU On-Line – No que diz res-
que andam nos mercados, e buscar
cursos de teologia, fazem estudos de peito às questões de gênero,
palavras que fazem sentido, que são
pós-graduação e são ativas na pro- quais são as grandes pautas atu-
conhecidas das pessoas. Interpreta-
dução de recursos e reflexões teo- almente na tradição ou doutri-
ções literalistas, fundamentalistas,
lógicos. Mas, apesar de todas estas na, ou nas igrejas luteranas que
podem ser desafiadas a partir do
manifestações de presença e partici- precisam ser aprofundadas?
instrumental crítico que a teologia
pação de mulheres em cargos e fun-
Elaine Neuenfeldt – O aspec- luterana nos fornece. O mesmo foco
ções de liderança, ainda há desafios
to da graça que é a oferta e dom de na importância e acesso a educação,
10 Saiba mais em https://www.lutheranworld.org/
Deus para todas as pessoas é uma tanto de meninos quanto de meni-
content/about-lwf. (Nota da entrevistada) das riquezas tão grandes e profundas nas, que Lutero insistia ser tarefa

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

das igrejas, pode ser relido como sobre todas as coisas, assim como ciedade. Iniciativas de mulheres que
elemento fundamental que a teolo- Deus tem poder sobre, determinan- trazem uma contribuição relevante
gia luterana pode dar para o pensa- do limites e impondo o a sua vonta- no movimento de fortalecimento da
mento teológico e para a articulação de, lei e ordem, punindo e salvando. democracia tão fragilizada hoje em
do papel das igrejas como interlocu- dia no Brasil, ou da conversa sobre
O que estou reivindicando nesta
toras do poder público e político no as implicações da liderança de mu-
celebração de 500 anos de Reforma
contexto atual. lheres, ou dos desafios que mulheres
protestante, resgatando as histórias
enfrentam quando ocupam cargos e
e experiências das mulheres é uma
Teologia e teorias de gênero espaços de poder, são alguns temas
teologia, uma igreja, uma prática
que têm sido levantados. O Conselho
Não vejo nenhuma incompatibili- de religião que dá sentido às nos-
Nacional de Igrejas no Brasil tem se
dade entre ser pastora e teóloga lu- sas vidas fragmentadas, quebradas,
destacado neste campo.
terana e usar o instrumental crítico doloridas, sofridas... Que contribua
das teorias de gênero. Pelo contrário, a transformar estruturas e relações
vejo problemas em usar esta ideia injustas que produzem exclusão e
tão pouco crítica, tão cheia de inten-
ções ideológicas não ditas, encober-
marginalização. Que nossa concep-
ção de graça, de seres agraciados em
“Para Lutero,
tas de posições que se utilizam da fé
e religião para propagar a sua ver-
Deus, justificados pela fé nos faça li-
vres para abraçar e ir ao encontro do
não havia
dade única, tão cheia de si, que hoje outro, da outra. liberdade
se insere no que tem se chamado de
“ideologia de gênero”. Eu sempre
IHU On-Line – Em relação
isolada da fé”
deixo claro que o que me orienta na
ao ecumenismo, quais são os
minha articulação teórica, teológica
principais enfrentamentos e
é a Justiça de gênero. Quem chama
conquistas das mulheres lute- IHU On-Line – Como femi-
isso de ideologia tem que rever o que
ranas? E quais as perspectivas nista e militante da igualdade
define e usa como justiça.
que se abrem a partir de uma e justiça de gênero, como per-
36 A FLM adotou em 2013, após am- teologia feminista? cebe a realidade das mulhe-
plo estudo e discussão, num proces- res brasileiras em suas lutas
Elaine Neuenfeldt – Vejo uma
so participativo de todas as igrejas cotidianas? Quais são as lutas
bela e frutífera colaboração e parce-
membros, em contextualizações re- comuns às mulheres de todo o
rias ecumênicas das igrejas e impul-
gionalizadas, uma política de justiça mundo em nossos dias?
sionada pelas organizações de mu-
de gênero. Nesta política se define
lheres nas igrejas, no enfrentamento Elaine Neuenfeldt – Vejo com
justiça de gênero como:
à violência contra as mulheres, vio- profunda preocupação que há um
Justiça de gênero implica na lência baseada no gênero, violência crescimento mundial de discursos
proteção e promoção da digni- doméstica. Há iniciativas ecumêni- fundamentalistas e de extremismos
dade das mulheres e dos homens cas, e há um esforço específico que violentos que, em nome de uma su-
que, sendo criados na imagem gera uma ação conjunta das igrejas posta preocupação de preservação da
de Deus, são corresponsáveis que denuncia a violência contra família e da tradição, relegam as mu-
cuidadores da criação. A justi-
mulheres e de gênero como pecado, lheres para lugares e posições bem
ça de gênero se expressa atra-
vés da igualdade e através do usando uma linguagem da fé, teo- tradicionais, de submissão. O enfren-
equilíbrio nas relações de poder lógica. A Federação Luterana Mun- tamento de fundamentalismos religio-
entre homens e mulheres e na dial, junto com Conselho Mundial de sos em suas diferentes expressões faz
eliminação de sistemas institu- Igrejas e outras famílias ecumênicas parte da vida cotidiana das mulheres
cionais, culturais e interpesso- têm coordenado iniciativas globais no Brasil e no mundo. Há uma ex-
ais de privilégio e opressão que pressão fundamentalista que condena
nesta área, e tem produzido mate-
sustentam discriminação. riais e recursos relevantes, especial- toda iniciativa que coloca mulheres
A teologia feminista e a perspecti- mente para a campanha dos 16 dias em papéis protagonistas de liderança,
va de justiça de gênero contribuem de superação da violência de gênero tanto religioso como político. Esta ex-
para as necessárias rupturas teológi- (de 25 novembro a 10 dezembro). pressão usa de subterfúgios e evasivas
cas – afirmando uma igreja e teolo- como a sobrevalorização da materni-
Iniciativas ecumênicas aqui no dade, do papel na família, do medo da
gia sempre em reforma ou em contí-
Brasil são inúmeras e que trazem a diversidade da identidade de gênero
nuo processo de reforma. A teologia
riqueza do que é a teologia feminista como ameaças a uma suposta ordem
feminista como base teórica e práti-
que, em articulação com os espaços
ca para trabalhar as injustiças de gê- social e cultural.
e políticas públicas, traz para as mu-
nero vai necessariamente quebrar as
lheres e o movimento de mulheres O que preocupa é que homens e mu-
hierarquias e ordens sagradas onde
não só na igreja, mas em toda a so- lheres têm repetido este discurso, de
uma maioria de homens têm poder

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forma bem acrítica, especialmente no lugar de discriminação assustadora; pareciam estabelecidos. Há uma onda
mundo das igrejas, sem no mínimo pior que feito por quem leu artigo de de questionamentos a leis de defesa de
uma leitura ou conversa básica que revista, ou escutou algum político ou mulheres, de políticas positivas, como
amplie um pouco os horizontes. O religioso que vocifera seu desconheci- quotas, e de qualificação de violência
medo e o rechaço às teorias de gêne- mento em forma de discriminação. sexual e ou física (femicídio), que vêm
ro, usando de forma superficial uma sofrendo tentativas sistematizadas de
área de conhecimento como estas, são O que me parece comum no Brasil, anulação, de revogação. Me parece
de fato, intencionalmente pejorativas como em muitos outros contextos que há um trabalho exaustivo no dia
como “ideologia de gênero”. Ora, va- com os quais trabalho, na África e na a dia de quem trabalha e milita em
mos conversar sobre isso com quem Ásia ou mesmo na Europa, é que pa- movimentos de mulheres, de justi-
pesquisa na área, vamos escutar vozes rece que as mulheres e homens, além ça de gênero, feministas, de repetir
críticas, vamos escutar mulheres e ho- da luta diária de sobrevivência, de o que parece óbvio, ou que tínhamos
mens que estão pesquisando sobre as enfrentar situações de violência, de como agenda dada. Mas não. Há que
teorias e as perspectivas de gênero por pobreza, de conflitos cotidianos de renovar forças, juntar e cooperar a
anos, como nas áreas da educação, da acesso à terra, alimentos, que desde cada dia, para manter e para avançar
sociologia, da antropologia e mesmo muito seguem na agenda de movi- passos mínimos neste mundo em que
da teologia. Estas pesquisas acadê- mentos e organizações, ainda há, hoje a intolerância e a falta de ética têm
micas são sérias, com base de dados em dia, um movimento necessário de conquistado um lugar assustador de
extensa, e estão sendo relegadas a um garantir conquistas e direitos que já senso comum.■

Leia mais
- “O aborto é um assunto de ordem plural, de saúde pública, um problema social e fa-
miliar”. Entrevista com Elaine Neuenfeldt, publicada na revista IHU On-Line número 219, de
14-5-2007, disponível em http://bit.ly/2gxluTC .
37

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

O teólogo da liberdade que


pensa o papel da mulher
Kirsi Stjerna analisa a participação feminina na Reforma e as
concepções de Lutero acerca da vocação e missão das mulheres
Márcia Junges | Tradução: Isaque Gomes Correa | Edição: João Vitor Santos

A
s mulheres cristãs passam a ter meninas a irem para a escola estudar
um protagonismo na vivência da para a vocação. Mas, isto sim, conside-
fé a partir da Reforma Luterana. rava que o lar era o lugar delas – onde
Segundo a teóloga Kirsi Stjerna, isso se podiam ‘governar’ e serem encarrega-
dá a partir das concepções acerca da li- das de um monte de coisas”, completa.
berdade presente no monge reformista. Aliás, para a teóloga, é através da ma-
“As sementes da inclusividade e igual- ternidade que muitas participam da
dade são evidentes em sua teologia – Reforma. “Para alguns, a maternidade
mesmo se os luteranos não desenvolve- significava, realmente, um amplo leque
ram realmente estes temas até agora e de opções, incluindo a escrita de textos
com alguns inclusive nem empregando para os filhos (manuais). Nos lares, elas
estes termos”, destaca. Ela explica que contribuíam ensinando a nova fé para
é através dos sermões de Lutero que se os filhos. Algumas, mulheres nobres,
38 usaram ambientes jurídicos para im-
pode perceber como ele compreende a
mulher e a vocação a elas desejada por plementar a religião protestante”, des-
Deus. “O matrimônio e a maternidade taca, entre outras ações femininas no
são as vocações mais importantes. São movimento.
vocações que Deus abençoou e que são Kirsi Stjerna é professora de história
tão importantes quanto o ofício de um luterana e teologia, integra o corpo do-
bispo, entre outras coisas”, pontua. cente da Graduate Theological Union,
Na entrevista a seguir, concedida por em Berkeley, na Califórnia. É secretária
e-mail à IHU On-Line, Kirsi destaca executiva e editora de “The Annotated
que Lutero não era panfletário do di- Luther”, volumes 1 a 6 (Fortress Press,
reito da oratória feminina pública, mas 2015-2017); também escreveu Women
também não criticava as senhoras que and the Reformation (Wiley Blackwell,
discursavam. “Achava que haveria mo- 2009) e é uma das autoras de Martin
mentos especiais em que as mulheres Luther, the Bible and the Jewish People
seriam chamadas a profetizar e a pro- (Fortress Press, 2012).
clamar”, explica. “Ele não incentivou as Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os de- devemos vê-lo dentro deste contex- Lutero estritamente no contexto
safios para se compreender to. Ele foi igualmente diferente, an- do século XVI ou como alguém que
a figura de Martinho Lutero tecipando a modernidade – pode- pode também falar à modernidade/
de forma crítica, com todos mos analisá-lo sob esta luz também, pós-modernidade. Mas, também,
os seus avanços, mas também mas com o cuidado de não lermos, podemos ser criativos e encontrar
seus limites? em suas ideias, algo que, na verdade, ainda novas perspectivas nele, Lute-
Kirsi Stjerna – O principal é: Lu- não está – ou “ainda” não está – aí. ro, e na relevância de seu pensamen-
tero era uma figura medieval tardia, Ao deixar isto claro, é preciso lermos to hoje.

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REVISTA IHU ON-LINE

“É preciso lermos Lutero


estritamente no contexto do
século XVI ou como alguém
que pode também falar à
modernidade/pós-modernidade”

IHU On-Line – Ao longo da formistas anteriores, como os hus- nominalismo de Lutero se funda-
Idade Média, houve a tentativa sistas1 e os lollards2, com a exceção mentam na sua experiência trans-
de promover diversas reformas de que o movimento de Lutero era formadora como pessoa, estudioso,
da Igreja inspiradas no “des- mais inclusivo em termos de quem teólogo, pregador, e nasce um certo
pertar evangélico”, mas que se envolvia. Como outras iniciativas individualismo. O fato de ele dar a si
acabaram não se efetivando. reformistas anteriores, Lutero igual- o “direito” de “nomear a realidade”
De que forma Lutero se apro- mente focalizou a espiritualidade e está em sintonia com a escola nomi-
pria desses movimentos, mui- a espiritualidade reformada, com nalista3 de pensamento que está por
tos ocorridos até 200 anos an- novas orientações sobre como a “ve- trás de sua crítica ousada à “pesquisa
tes da Reforma Luterana? lha” fé é melhor vivida, e para isso de ponta” de sua época.
ele apresentou diretrizes teológicas
Kirsi Stjerna – Lutero reúne as A sua exigência de que todas as
que, a seu ver, não estavam propon-
vozes daqueles representantes re- pessoas tenham acesso à Palavra e o
do exatamente aquilo, e sim uma
formistas que exigiam, por exemplo, seu ensinamento da igualdade funda- 39
reorientação para os elementos es-
que todo mundo deveria ter acesso mental perante Deus, como santo e
senciais e para o cerne do magistério
às Escrituras em seu próprio idioma como pecador, representam uma se-
e da identidade cristã: o seguimento
e que o sacramento da Mesa deveria mente para pensamentos modernos
de Cristo.
ser inclusivo e tanto o pão quanto o sobre a igualdade. Considerar a mu-
vinho precisariam ser ofertados aos lher como igual na Criação – ainda
leigos também. Ele também não in- IHU On-Line – Podemos afir- que diferente –, igual em sua vocação
ventou a crítica à corrupção na Igre- mar que a reforma de Lutero sagrada e igual na ressureição é um
ja, à opulência com o dinheiro, aos inaugura o pensamento moder- desdobramento moderno. Também
problemas com o poder papal e a in- no? Por quê? a sua leitura crítica das Escrituras e
divíduos particulares na sede papal suas decisões tradutórias são passos
(por vezes pessoas realmente inte- Kirsi Stjerna – Sim e não. A crí- em direção à pesquisa moderna.
ressantes!). Ele não foi o primeiro a tica à Igreja medieval e a adesão ao
E digo sim e não porque, depois,
criticar a Igreja em sua imoralidade
1 Hussita ou Igreja hussita e (ou talvez ussiti): de- há as áreas onde Lutero encontra-
sexual clerical. fine um movimento reformador e revolucionário se bastante preso ao seu ambien-
que surgiu na Boêmia, no século XV. O nome vem
Em diversos sentidos, Lutero reúne do teólogo boêmio Jan Hus (1372-1452). O movi- te medieval tardio. É o caso de seu
mento mais tarde se juntou à Reforma Protestan-
o coro das críticas e dos que exigem te. No Concílio de Constança, em 1415, as ideias pensamento sobre os judeus e sua
reformas, incluindo os humanistas. de Jan Hus foram condenadas. Hus manteve uma religião – basicamente condenando
posição muito crítica perante o poder eclesiástico,
Além disso, ele também falou, com posições muito próximas às de John Wyclif e os o judaísmo. Ele não valoriza nem
veemência, em nome do matrimô- valdenses, opiniões que influenciaram Martinho imagina algum tipo de “pluralismo”
Lutero. (Nota da IHU On-Line)
nio, mais do que os seus antecesso- 2 Lollardismo: foi um movimento político e reli- ou “diversidade”.
gioso dos finais do século XIV e inícios do século
res. O seu questionamento da Tra- XV na Inglaterra. As suas exigências eram primei-
dição na Igreja teve predecessores, ramente a reforma da Igreja Católica. Entre as suas
principais doutrinas estavam que a devoção era 3 Nominalismo: teoria que afirmava a inexistên-
mas Lutero definitivamente expres- um requerimento para que um padre fosse um cia dos universais, que seriam apenas nomes da-
“verdadeiro” padre ou que levasse a cabo os sa- dos às coisas, e portanto produto de nossa mente
sou isto mais do que todos que vie- cramentos, e que o leigo devoto tinha o poder de sem uma existência prática assegurada. A ques-
ram antes dele na Idade Média. executar os mesmos ritos, acreditando que o po- tão dos universais, inicialmente lógico-gramati-
der religioso e a autoridade resultam da devoção cal, estendeu-se para os problemas teológicos e
e não da hierarquia da Igreja. Ensinava o conceito metafísicos, atingindo o conjunto de dogmas da
Os seus chamados à reforma tive- da “Igreja dos salvados”, significando que entre a igreja cristã. Por exemplo, João Roscelino, mestre
ram sucesso, muitos o seguiram em verdadeira Igreja de Cristo era a comunidade dos de Abelardo, com seu nominalismo coloca em dú-
fiéis, que tinha muito em comum, mas não era o vida o dogma trinitário de Deus: a única substân-
busca de um viver autêntico novo mesmo que a Igreja oficial de Roma. Ensinou uma cia divina não passa de um nome, as três pessoas
determinada forma de predestinação. Advogava a (Pai, Filho e Espírito Santo) são três substâncias
com a fé cristã. Aqui, a dinâmica pobreza apostólica e a taxação das propriedades diversas, indicadas por um nome comum. Assim
se assemelha à de movimentos re- da Igreja Católica. Negava a transubstanciação em surgiu a heresia do triteísmo, condenada em 1092
favor da consubstanciação. (Nota da IHU On-Line) pelo Concílio de Reims. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

escola estudar para a vocação. Mas, é fundamental para construirmos


“Lutero isto sim, considerava que o lar era conexões e para que as mulheres rei-
o lugar delas – onde podiam “go- vindiquem as origens de sua tradi-
igualmente vernar” e serem encarregadas de ção e se vejam na continuidade. Pen-

focalizou a
um monte de coisas. A maternida- so que elas podem se relacionar com
de era algo que atraía Lutero, e ele as mulheres do século XVI e com a

espiritualidade muito a respeitou como a vocação


especial feminina.
animação delas com a nova pregação
e com o magistério positivo de seus

ea papéis como mulheres. As mulheres


podem se inspirar na coragem que as

espiritualidade
IHU On-Line – Quais são os mulheres da Reforma exibiam, e po-
aspectos fundamentais da con- dem assumir um novo olhar sobre o
reformada” tribuição feminina à Reforma
Luterana?
significado do matrimônio e da ma-
ternidade, além de expandir as opor-
Kirsi Stjerna – As mulheres con- tunidades vocacionais.
IHU On-Line – Como compre- tribuíram dizendo sim, juntando-se Algumas podem se inspirar a es-
ender as concepções de Lutero aos movimentos de reforma. Por crever e entrar no diálogo teológico.
acerca do papel da mulher cris- meio da maternidade, elas tiveram Podem definir para si mesmas o que
tã? De onde vem a inspiração diversas maneiras de participar na suas vocações são e o significado de-
para essas suas concepções? Reforma. Para alguns, a maternida- las. A visão que Lutero tinha de re-
de significava, realmente, um amplo forma era uma visão radical, e elas
Kirsi Stjerna – Podemos ver, leque de opções, incluindo a escrita podem se encontrar em lugares de
por exemplo, a partir das palestras de textos para os filhos (manuais). reformas importantes. Seguindo os
de Lutero sobre o Gênesis como ele Nos lares, elas contribuíam ensinan- passos do líder alemão, podem rei-
compreende as mulheres como se- do a nova fé para os filhos. Algumas, vindicar a sua própria voz e lugar, e
res humanos e em suas vocações. mulheres nobres, usaram ambientes apresentar uma interpretação nova,
A partir dos seus sermões em par- jurídicos para implementar a reli- “delas”, a respeito de fontes cristãs e,
40 ticular, podemos saber como ele gião protestante. Muitas senhoras assim, ter um impacto tanto na ação
compreende a vocação das mulheres da nobreza apoiaram os movimen- cristã como no conteúdo da teologia
desejada por Deus: o matrimônio e tos reformistas com as suas rique- cristã.
a maternidade são as vocações mais zas e com uma insistência pessoal.
importantes. São vocações que Deus Portanto, contribuíram com as suas
abençoou e que são tão importantes próprias confissões/união ao movi- IHU On-Line – É possível
quanto o ofício de um bispo, entre mento, ensinando a fé aos filhos. afirmar que, a partir da expe-
outras coisas. riência das mulheres lutera-
Lutero não se pronunciou ativa- nas, está se constituindo uma
mente pelo direito da mulher de IHU On-Line – Sob o ponto de outra história da fé cristã?
falar, ensinar e proclamar na Igre- vista de historiadora e teóloga, Quais são os desafios que sur-
ja, bem pelo contrário. Ao mesmo como percebe o papel da teolo- gem desse agir?
tempo, não criticou as que faziam gia feminina no diálogo inter
-religioso? Kirsi Stjerna – Sim, é possí-
isso (por exemplo, Argula von
vel. Vivemos numa época em que,
Grumbach4). Achava que have- Kirsi Stjerna – Penso que a te- quando reescrevemos as histórias,
ria momentos especiais em que as ologia da mulher, a teologia femi- estamos não apenas incluindo as
mulheres seriam chamadas a pro- nista etc. são bastante significati- mulheres no relato (nos relatos, nas
fetizar e a proclamar. Ele não in- vas como um passo inicial e como histórias) cristã(s), mas também
centivou as meninas a irem para a um convite à reflexão crítica para buscando avaliar os eventos da Re-
além das fronteiras metodológicas forma e o seu “sucesso” a partir de
4 Argula von Grumbach (1492-1554): era uma e denominacionais. uma perspectiva da mulher. Além
nobre bávara que, a partir do início da década de
1520, se envolveu nos debates da Reforma Pro- disso, o conteúdo da teologia cris-
testante na Alemanha. Ela se tornou a primeira
escritora protestante, publicando cartas e poe- tã está sendo reformado como uma
IHU On-Line – Em que me-
mas promovendo e defendendo Martinho Lutero, consequência da contribuição da
bem como seu colega de trabalho Philipp Melan- dida o contexto da eclosão da
chthon e outros grupos protestantes. Ela é mais perspectiva delas e de suas experi-
conhecida por desafiar diretamente a faculdade Reforma pode inspirar as mu-
da Universidade de Ingolstadt quando escreveu
ências, bem como com a liderança
lheres de hoje a buscarem seus
uma carta a eles falando contra a prisão de um feminina na interpretação das fontes
aluno luterano. Como uma das poucas mulheres espaços dentro e fora da Igreja?
na época abertamente falando em seus pontos cristãs.
de vista, seus escritos provocaram controvérsia e Kirsi Stjerna – Primeiro de tudo,
muitas vezes se tornaram best-sellers, com deze-
nas de milhares de cópias de suas letras e poemas ter as mulheres do século XVI nos
circulando dentro de alguns anos de sua publica- IHU On-Line – Como pode-
ção. (Nota da IHU On-Line) “álbuns de família”, por assim dizer,

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mos compreender a provocação outros como Cristo. “Empoderar os geralmente recebem menos. Eu diria
“sempre reformada e empode- filhos a ler, empoderar as mulheres que, na Finlândia, as luteranas são
rada”, que inspira sua trajetória em suas vocações, empoderar todos bastante ativas e têm uma forte pre-
de teóloga e professora? os cristãos a ler as Escrituras (...) lu- sença – mesmo que todos os bispos
tar para acabar com a pobreza, desa- sejam (de novo) todos homens. Nos
Kirsi Stjerna – Lutero é um te-
fiando as autoridades da época (...)”. EUA, a meu ver, a presença da mu-
ólogo da liberdade. As sementes da
Aqui Lutero oferece um modelo lher luterana em postos de liderança
inclusividade e igualdade são evi-
inspirador e desafiador de como ser na igreja está em falta ainda.
dentes em sua teologia – mesmo
luterano: no centro desta identidade
se os luteranos não desenvolveram
estão a liberdade, a inclusividade e o
realmente estes temas até agora e
com alguns inclusive nem empre- empoderamento.
“As mulheres
podem se
gando estes termos –, e eu espero Hoje, necessita-se desesperada-
que o aniversário deste ano convide mente de muitas reformas. O traba-
as pessoas a olharem para os mo-
dos como a teologia da liberdade
lho da igreja não está feito, o nosso
trabalho não está feito; o status quo inspirar na
reformista luterana pode promover
mudanças reais em nosso mundo e
não deve ser desejado, isto é estra-
nho à natureza própria de uma tra- coragem que
assegurar a liberdade a todos, um
modelo de inclusividade, em todos
dição reformista.
as mulheres
os sentidos, incluindo as metodolo-
gias empregadas. IHU On-Line – Sob quais as- da Reforma
Lutero vivenciou a liberdade com
pectos há diferenças entre a re-
alidade das mulheres luteranas
exibiam”
as Escrituras. A sua vida se trans-
na Finlândia, de onde a senho-
formou, e isso mudou a sua carrei-
ra vem, e nos EUA, onde atual-
ra. O Evangelho o empoderou para
mente leciona e vive? IHU On-Line – Gostaria de
erguer a sua voz em temas que pre-
acrescentar algum aspecto não 41
cisavam de reformas. Ele insistia em Kirsi Stjerna – Nos Estados
questionado?
mudanças muito práticas, tais como Unidos, há muito mais mulheres
a criação de um “cofre” para apoiar professoras. Na Finlândia, poucas Kirsi Stjerna – Continuo dizendo
os necessitados financeiramente e mulheres são contratadas para le- a meus alunos que eles não devem
convidou para que todos os meno- cionar, o que também se mostra nas pensar, ingenuamente, que a miso-
res fossem à escola, inclusive as me- preferências metodológicas e nas es- ginia e o sexismo acabaram. Longe
ninas. Isso é empoderamento! No colhas dos cursos. Nos dois países, disso. Parece haver uma reação ne-
centro destas ações está a sua con- o número de mulheres interessadas gativa contra as mulheres e o femi-
vicção teológica de que somos livres, em estudos teológicos está aumen- nismo, até mesmo em nível global,
pelo modo de fazer e pela vontade tando. No entanto, há lacunas sala- o que se mostra nas estatísticas de
de Deus, e isto nos torna servos dos riais, na academia e na igreja: elas violência contra a mulher.■

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

O místico que traz o monastério


para o cotidiano popular
Vítor Westhelle propõe uma leitura de Lutero além da perspectiva cismática.
Convida a olhar o monge como “uma voz de uma consciência alerta a
seu tempo e lugar que busca o crucificado nas pessoas marginalizadas”
João Vitor Santos

Q
ue Martinho Lutero inaugura tro e fora do catolicismo. “Lutero vive já
um outro tipo de pensamento à não como um cismático, mas como uma
sua época, não há dúvidas. En- voz de uma consciência alerta a seu tem-
tretanto, há pesquisadores que se ques- po e lugar que busca o crucificado nas
tionam se seria ele a primeira cabeça pessoas marginalizadas e oprimidas, e
moderna ou a última medieval. O pro- na criação que sofre e geme sob o peso
fessor de Teologia Sistemática e pastor do capital que tem a si mesmo como
Luterano Vítor Westhelle propõe deixar fim”, analisa, ao pontuar as transfor-
esse debate de lado e olhar para algo mações nas igrejas desde a Reforma. “A
que há em comum tanto numa pers- igreja que Lutero buscou reformar não
pectiva quanto noutra. “Lutero supos- é a Igreja Católica Apostólica Romana
tamente havia rompido, definitivamen- de hoje. E é importante reconhecer que
te, com a/uma tradição mística. O fato um Lutero nunca surgiria na Igreja de
42 de sair no monastério e o uso burlesco Roma especialmente depois do Concílio
da linguagem que usava, sugeria esta Vaticano II”, destaca.
conclusão”, aponta. Ou seja, para ele,
é mais interessante observar como o Vítor Westhelle é pastor da Igreja
monge propõe uma perspectiva de rup- Evangélica de Confissão Luterana – IE-
tura através de uma mística própria. “A CLB. Concluiu sua formação teológica
questão central é que o misticismo não no Brasil e fez doutorado nos Estados
cabe como característica de nenhuma Unidos. Depois foi pastor e coordena-
era da história”, indica. “Lutero não era dor da Comissão Pastoral da Terra no
um místico em nenhum sentido tradi- Paraná. Atuou como professor de Te-
cional do termo, mas secularizou ele- ologia no Brasil, nos Estados Unidos,
mentos do misticismo que o colocam na África do Sul e na Dinamarca. Atu-
precisamente na transição entre o me- almente é professor de Teologia Siste-
dievo e o moderno”, conclui. mática na Escola Luterana de Teologia
em Chicago, nos Estados Unidos. Entre
Na entrevista a seguir, concedida por
seus livros em português, destacamos O
e-mail à IHU On-Line, Westhelle sin-
Deus Escandaloso (São Leopoldo, RS:
tetiza: “o que Lutero fez foi realmente
Sinodal, 2008) e O Evento Igreja (São
trazer o monastério para o cotidiano po-
pular”. E essa sua ação acaba realinhan- Leopoldo, RS: Sinodal, 2017).
do as perspectivas do cristianismo, den- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a impor- a compreensão dos desafios do Colombo1 às Américas (1492) e a cir-
tância de Martinho Lutero para novo mundo?
a América Latina? E, inscrito Vítor Westhelle – Dois eventos 1 Cristóvão de Colombo (1451-1506): foi um
navegador e explorador, responsável por liderar
no seu tempo, como o pensa- há que lembrar, pois marcaram a sa- a frota que alcançou o continente americano em
12 de outubro de 1492, sob as ordens dos Reis
mento luterano contribui para ída do mundo feudal, a chegada de Católicos de Espanha, no chamado descobri-

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“O que Lutero defendia e


pleiteava era o direito de
cada pessoa a interpretar as
escrituras em sua situação”

cum-navegação do globo por Fernão Em relação à eleição por Deus, nis- como deveria e era esperado. Ele era
de Magalhães2 (1519-1521). Estes fo- to nada podemos fazer, apenas crer, o capitão de sua esquadra e de seu
ram por Lutero sistematizados e tor- enquanto as relações inter-humanas destino. Curioso foi que, ante este
naram-se pedras de toque na transi- definem-se tendo em base a razão e mesmo imperador, Lutero, na dieta
ção para a modernidade. O primeiro não a fé. de Worms em 1521, negou-se a retra-
evento foi o encontro com o outro tar-se, como exigido, em base a sua
O segundo evento, representado
desconhecido e a determinação de consciência e à Bíblia.
por Magalhães, foi o movimento
seu status. Para o medievo este se
constante à frente sem necessidade Lutero concatenou em suas obras
definia pela capacidade de optar
de prestar contas e dever obediência estes dois elementos, enunciando
pelo Deus cristão. Lutero rompeu
a quem de direito. Ora, este direito assim as características de uma mo-
com este pressuposto em seu famoso
era tido como avalizado por Deus dernidade que alvorecia, a saber, a
tratado contra Erasmo de Roterdã3
através da Igreja. No caso de Ma- completa liberdade de Deus na elei-
sobre o “servo arbítrio”, separando
galhães, quem lhe comissionou foi ção de quem vem a crer e a autono- 43
radicalmente a questão da relação
o Imperador Carlos V4, mas a este mia em questões seculares negando
com o divino, por um lado, e a digni-
o navegador nunca prestou contas a qualquer pessoa direito divino no
dade da pessoa como tal, por outro.
exercício de sua autoridade, seja esta
4 Carlos V e I (1500-1558): foi o Sacro Imperador pessoa papa ou imperador. Para a
mento da América. Empreendeu a sua viagem Romano-Germânico como Carlos V a partir de
através do Oceano Atlântico com o objetivo de 1519 e Rei da Espanha como Carlos I de 1516 até América Latina, onde ainda vale o
atingir a Índia, tendo na realidade descoberto as sua abdicação em favor de seu irmão mais novo “sabes-com-quem-estás-falando?”,
ilhas das Caraíbas (Antilhas) e, mais tarde, a cos- Fernando I no império e seu filho Filipe II na Es-
ta do Golfo do México na América Central. Seu panha. Carlos era o herdeiro de três das principais Lutero significa o fim de todo privi-
nome em jamaico é Cristoforo Colombo, em latim dinastias europeias: a Casa de Habsburgo da Mo-
Christophorus Columbus e em espanhol, Cristó- narquia de Habsburgo, a Casa de Valois-Borgonha légio assumido como de direito.
bal Colón. Este antropônimo inspirou o nome de, dos Países Baixos Borgonheses e a Casa de Tras-
pelo menos, um país, Colômbia e duas regiões da tâmara das coroas de Aragão e Castela. Ele gover-
América do Norte: a Colúmbia Britânica no Cana- nou vastos domínios na Europa central, oriental e
dá e o Distrito de Colúmbia nos Estados Unidos. do sul, além das colônias espanholas nas Améri- IHU On-Line – Como compre-
Entretanto o Papa Alexandre VI, escrevendo em cas. Como o primeiro monarca a governar Castela,
latim, sempre chamou ao navegador pelo nome Leão e Aragão simultaneamente, ele se tornou o ender a relação entre a Refor-
de Christophorum Colon com significado de primeiro Rei da Espanha. Carlos tornou-se impe- ma Luterana e o movimento da
Membro e nunca pelo latim Columbus com signi- rador em 1519. A partir de então seu império co-
ficado de Pombo. (Nota da IHU On-Line) bria mais de quatro milhões de quilômetros qua- Teologia da Libertação5?
2 Fernão de Magalhães (1480-1521): foi um na- drados pela Europa, Oriente e Américas. Grande
vegador português que se notabilizou por ter or- parte de seu reinado foi dedicado às guerras ita-
ganizado a primeira viagem de circum-navegação lianas contra a França, sendo militarmente bem- Vítor Westhelle – Quando Lu-
ao globo de 1519 até 1522. Nascido numa família sucedidas apesar dos enormes gastos, levando à tero apelou à Bíblia como fonte ex-
nobre, em 1506 viajou para as Índias Ocidentais, criação do primeiro exército profissional europeu:
participando de várias expedições militares nas o Terço. Além de suas realizações militares, Carlos clusiva, foi para pleitear o direito
Molucas, também conhecidas como as Ilhas das é mais conhecido por seu papel contra a Reforma de cada pessoa a interpretá-la. Vale
Especiarias. O Pinguim-de-magalhães recebeu o Protestante. Vários príncipes germânicos aban-
seu nome como homenagem, já que Magalhães donaram a Igreja Católica e formaram a Liga de dizer que não se trata de fundamen-
foi o primeiro Europeu a ter visto um exemplar Esmalcalda para poder desafiarem a autoridade
da ave. As aptidões de navegação de Magalhães de Carlos com força militar. Não desejando que talismo que hoje graça em alguns
também foram reconhecidas na nomeação de guerras religiosas chegassem em seus domínios,
objetos associados à astronomia, incluindo as ele forçou a convocação do Concílio de Trento
Nuvens de Magalhães, as crateras lunares de Ma- que iniciou a Contrarreforma. A Companhia de Je-
galhães, e as crateras marcianas de Magalhães. sus foi estabelecida por Inácio de Loyola durante 5 Teologia da Libertação: escola teológica de-
(Nota da IHU On-Line) seu reinado para combater o protestantismo de senvolvida depois do Concílio Vaticano II. Surge
3 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo e forma pacífica e intelectual. No Novo Mundo a na América Latina, a partir da opção pelos pobres,
humanista neerlandês, conhecido como Erasmo Espanha conquistou os astecas do México e os in- e se espalha por todo o mundo. O teólogo pe-
de Roterdã. Seu principal livro foi Elogio da lou- cas do Peru, estendendo seu controle por grande ruano Gustavo Gutiérrez é um dos primeiros que
cura. Erasmo cursou o seminário com os monges parte da América Central e do Sul. Carlos abdicou propõe esta teologia. A teologia da libertação tem
agostinianos e realizou os votos monásticos aos em 1556 de todos os seus títulos. A Monarquia um impacto decisivo em muitos países do mun-
25 anos, vivendo como tal, sendo um grande crí- de Habsburgo passou para seu irmão Fernando, do. Sobre o tema confira a edição 214 da IHU
tico da vida monástica e das características que enquanto o Império Espanhol ficou com seu filho On-Line, de 2-4-2007, intitulada Teologia da li-
julgava negativas na Igreja Católica. Optou por Filipe. Os dois impérios permaneceriam aliados bertação, disponível para download em http://bit.
uma vida de acadêmico independente - indepen- até o século XVIII. Carlos tinha apenas 54 anos na ly/bsMG96.Leia, também, a edição 404 da revista
dente de país, independente de laços acadêmicos, época de sua abdicação, porém estava fisicamen- IHU On-Line, de 5-10-2012, intitulada Congres-
de lealdade religiosa - e de tudo que pudesse te exausto depois de governar energicamente por so Continental de Teologia. Concílio Vaticano II e
interferir com a sua liberdade intelectual e a sua 34 anos e procurou paz em um monastério, onde Teologia da Libertação em debate, disponível em
expressão literária. (Nota da IHU On-Line) morreu dois anos depois. (Nota da IHU On-Line) http://bit.ly/SSYVTO. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

círculos evangélicos. Isto seria um Vítor Westhelle – O celebrado Vítor Westhelle – A Reforma
crasso anacronismo. O fundamen- princípio escritural da Reforma (sola nasce quando já se anuncia a forma-
talismo surgiu apenas depois do scriptura8) não era original de Lute- ção de um modo de produção que
Iluminismo do século XVIII. O que ro. Isso ele herdou de vários precur- superaria o feudal. Este é o capitalis-
Lutero defendia e pleiteava era o sores que já usaram o sola scriptura mo. Dele Lutero foi arauto e já o seu
direito de cada pessoa a interpretar em sentido similar a Lutero. Este uso primeiro crítico. Aliás, esta foi uma
as escrituras em sua situação. Isto era primeiramente negativo, quer observação que já fez Karl Marx9 ao
hoje se chama de leitura contextual dizer, negava-se que houvesse outra chamá-lo de “o primeiro economista
da Bíblia. Com isso o reformador ne- fonte de autoridade com direito di- da nação alemã” e utiliza em profu-
gou que houvesse apenas o sentido vino, como o magistério ou os concí- são seus escritos contra a usura no
outorgado pelo magistério romano. lios. Daí a importância da tradução do primeiro volume do Capital.
da Bíblia ao vernáculo. O sentido
A Teologia da Libertação nos seus pri- A diferença que se encontra entre
positivo, o que as escrituras estão a
mórdios, mesmo antes de sua sistema- os países Europeus está, por um
nos dizer, decorre da interpretação
tização nas obras dos grandes teólogos lado, determinada pelo desenvolvi-
da Bíblia para contextos específicos.
e teólogas da América Latina, surgiu mento desigual das forças produ-
de comunidades de base que faziam a Como disse Lutero em um texto tivas e, por outro, pelas diferentes
leitura da Bíblia em seus próprios con- de 1525, há de se discernir a quem maneiras em que se organizam legal
textos. Isto foi libertador, pois inter- as escrituras estão se endereçando. e politicamente as relações de pro-
pretar contextualmente a Bíblia passa Nisto o princípio escritural opõe-se dução. É na organização destas re-
a ser um ato de tomar consciência da também a qualquer forma de funda- lações de produção que a Reforma
realidade. Paulo Freire6 chamou isto de mentalismo. Para o Reformador há teve um impacto significativo, assim
conscientização. A leitura e interpreta- partes da Bíblia que podem ser mui- como também determinou a forma-
ção da Bíblia foi tanto em Lutero como to importantes, mas não, necessaria- ção social em países europeus onde
na Teologia da Libertação veículo de mente, para este tempo e lugar. o catolicismo prevalece. Mas, quanto
conscientização. Embora separados aos países onde prevalece o protes-
por meio milênio, nisto a teologia de tantismo, há marcantes diferenças
44 Lutero e a Teologia da Libertação se
irmanam. Há muitos outros pontos de
“A ética entre várias formas que a Reforma
tomou. Mesmo tomando-se os gran-
aproximação ou distanciamento. Mas protestante de des blocos, como luteranos, calvinis-
estes são decorrentes deste dado pri- tas e anglicanos, há, dentro de cada
meiro, tendo-se sempre em conta os Weber não é de um destes, matizes diferentes. Mas

forma alguma
tempos e contextos distintos. qualquer generalização é muito ar-
riscada fazer, sobretudo consideran-

IHU On-Line – As escrituras luterana” do-se o alto nível de multiculturali-


dade na Europa de hoje.
têm uma centralidade na cons-
tituição do pensamento e da
teologia de Lutero. Que asso- IHU On-Line – Quais as par- IHU On-Line – Como compre-
ciações e dissociações podemos ticularidades da reforma pro- ender as divisões da Reforma
fazer dessa volta aos textos bí- testante nos países hoje conhe- protestante pós-Lutero e o papel
blicos de Lutero com o “desper- cidos como Alemanha, Suíça que assumem outros líderes?
tar evangélico”7, ocorrido ain- e França e, mais tarde, Reino
Unido, Escandinávia e outros Vítor Westhelle – O que Lutero
da cerca de 200 anos antes da
Reforma Luterana? locais da Europa?
9 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social,
6 Paulo Freire (1921-1997): educador brasileiro. economista, historiador e revolucionário alemão,
Como diretor do Serviço de Extensão Cultural da 8 Sola Scriptura: segundo a Reforma Protestante, um dos pensadores que exerceram maior influên-
Universidade de Recife, obteve sucesso em pro- é o princípio segundo o qual a Bíblia tem absoluta cia sobre o pensamento social e sobre os destinos
gramas de alfabetização, depois adotados pelo primazia ante a Tradição legada pelo magistério da humanidade no século 20. A edição 41 dos Ca-
governo federal (1963). Esteve exilado entre 1964 da Igreja Cristã, quando os princípios doutrinários dernos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Pau-
e 1971 e fundou o Instituto de Ação Cultural em entre esta e aquela forem conflitantes. A Refor- lani, tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx,
Genebra, Suíça. Foi também professor da Uni- ma não rejeita a Tradição, e ela continua a ser disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também so-
camp (1979) e secretário de Educação da prefei- usada como legitimadora para qualquer assunto bre o autor, a edição número 278 da revista IHU
tura de São Paulo (1989-1993). É autor de A Peda- não declarado pela Bíblia. Se houver divergências On-Line, de 20-10-2008, é intitulada A financeiri-
gogia do Oprimido, entre outras obras. A edição entre Bíblia e tradição, a Bíblia terá primazia. Nos zação do mundo e sua crise. Uma leitura a partir
223 da revista IHU On-Line, de 11-6-2007, teve movimentos de inspiração reformada conside- de Marx, disponível em https://goo.gl/7aYkWZ. A
como título Paulo Freire: pedagogo da esperança rados historicamente como radicais (anabatistas entrevista Marx: os homens não são o que pensam
e está disponível em http://bit.ly/ihuon223. (Nota e puritanos), e outros surgidos durante o século e desejam, mas o que fazem, concedida por Pe-
da IHU On-Line) XIX, esse princípio foi ressignificado como nuda dro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição
7 Alguns historiadores denominam como “des- scriptura, passando a ser entendido ao pé da letra, 327 da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em
pertar evangélico” uma série de movimentos re- adotando-se a ideia de que a A Escritura interpre- http://bit.ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou
formistas que ocorreram durante a Idade Média, ta a própria Escritura, bem como a que a mesma uma edição especial sobre desigualdade inspira-
entre eles o Franciscanismo. Em comum, além de era suficiente como única fonte de doutrina e prá- da no livro de Thomas Piketty O Capital no Sé-
reformar a Igreja Católica, pregavam uma volta tica cristãs em todos os aspectos. Devido a essa culo XXI, que retoma o argumento central de O
às escrituras, em especial aos Evangelhos, pois ressignificação, passou-se a chamar o entendi- Capital, obra de Marx, disponível em http://www.
acreditavam que ali estavam os preceitos e lições mento anterior reformado pelo novo nome Prima ihuonline.unisinos.br/edicao/449. (Nota da IHU
básicos do Cristo. (Nota da IHU On-Line) Scriptura. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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introduziu ao definir os dois funda- outra citação do mesmo tratado de A celebrada teologia da cruz de Lu-
mentos que balizaram a Reforma, a Lutero que citei. Esta total respon- tero12 assim como sua Mariologia13,
livre eleição divina e a liberdade da sabilidade é oriunda de minha total como desenvolvida em sua obra
consciência, não permite, em princí- liberdade de fazer escolhas. O amor Magnificat14, afirmam a presença de
pio, que o próprio Lutero seja fonte que expresso pelas pessoas e pela Deus não na prosperidade, mas no
de verdade como que divinamente criação é uma decisão racional pela seu revés, na cruz, no sofrimento, na
instituída. Isto quer dizer que com a outra pessoa e pela criação, e de for-
marginalidade, indignidade e opres-
Reforma não há mais heresias, pois ma alguma serve para marcar pon-
já não existe uma verdade que pos- são. Mais sobre isso tenho elaborado
tos no caderninho de Deus. Esta,
sa ser institucionalmente controlada então, é a base ética de Lutero. em meu livro, este em português, O
para defini-las. Este controle da ver- Deus Escandaloso.
dade é de direito humano, não divi-
IHU On-Line – No que consis-
no. Sendo assim é mutável e falível.
Disto resultou a grande diversidade te a ética protestante, que We- “Um dos
confessional. ber vai apreender como o espí-
rito do capitalismo? problemas ao
IHU On-Line – De que forma
Vítor Westhelle – A ética pro-
testante de Weber não é de forma
lidar com a
podemos compreender os con-
ceitos de fé, ética e liberdade no alguma luterana. De fato, Weber cruz é o que se
tem chamado
pensamento de Lutero? diz explicitamente no seu celebra-
do livro que, apesar de o conceito
Vítor Westhelle – Meu últi-
mo livro, Transfigurando Lutero
de vocação de Lutero ser de ser-
ventia para esta ética, Lutero de de dolorismo”
(Transfiguring Luther10, infeliz- forma alguma contribuiu para o
mente está apenas em inglês), tra- seu desenvolvimento. A ética pro-
ta desta questão em mais de 300 testante que Weber descreve é re- IHU On-Line – Como compre-
páginas. É difícil resumir isto em sultado de um calvinismo purita- ender o sentido da cruz sem o 45
algumas linhas. Mas talvez uma ci- no que se desenvolveu mormente Cristo crucificado? E que rela-
tação de Lutero que se acha no seu nos Estados Unidos. Este se carac- ções podemos estabelecer com
tratado Da liberdade cristã de 1520 terizou por fazer algo que Lutero as reflexões de Lutero acerca
ajude: “O cristão vive em Cristo precisamente lutou contra. Esta da vida, da dor, do sofrimento
pela fé e no próximo pelo amor”. forma de calvinismo desenvolveu e do amor?
Para Lutero, a fé é o meio pelo qual uma relação de causa e efeito en-
eu recebo a promessa divina pela tre a eleição divina e a prosperida- 12 Teologia da Cruz: também denominada estau-
qual a benção salvífica me é im- de temporal. O que Lutero clara- rologia, é um termo cunhado pelo teólogo Mar-
putada. Esta não depende de nada tinho Lutero para fazer referência à teologia que
mente separou, o evangelicalismo propõe que a cruz é a única fonte de conhecimen-
que eu possa fazer. Aliás, qualquer americano voltou a unir. to sobre quem é Deus e como Ele salva em con-
traste com a teologia da glória (theologia gloriae),
coisa que faça para merecê-la já a que enfatiza as habilidades e a razão humanas.
põe a perder. Mas a ética que Weber descreve (Nota da IHU On-Line)
13 Mariologia: é o conjunto de estudos teológi-
é diferente de teologias medievais cos acerca de Maria, mãe de Jesus Cristo na Igreja
O amor, no entanto, é racional! Não que enfatizavam a importância de Católica, que compreende uma vasta produção
bibliográfica que visa a salientar a importância da
se trata de sentimentalidade. Fer- obras de caridade para influenciar figura feminina de Maria e a profunda e piedosa
nando Pessoa11, o poeta português, crença dos fiéis a ela, com o objetivo de enrique-
a eleição divina. As 95 teses, cujos cer o âmbito teológico cristão. O jovem Lutero é
tinha algo de luterano quando disse 500 anos rememoramos, foi exa- considerado devoto de Maria, mas, depois como
reformista, Lutero condenou os excessos da de-
que “amor é razão”. Este depende tamente para cortar este laço. A voção medieval e ensino sobre Maria. Ele viu que
de minha ponderação e decisão. E é ela tinha sido decorada com atributos que apenas
ética protestante de que fala We- pertenciam a Cristo. (Nota da IHU On-Line)
neste exercício de racionalidade que ber não faz o que fazia a teologia 14 Magnificat: também conhecida como Can-
ção de Maria ou Canto de Maria, é um cântico
tenho total liberdade, bem como to- medieval, mas vê na prosperidade entoado frequentemente na liturgia dos serviços
tal responsabilidade no cuidado da eclesiásticos cristãos. O texto do cântico vem di-
uma evidência da bênção divina. retamente do Evangelho segundo Lucas (Lucas
outra pessoa, para parafrasear uma O resultado é a busca por prospe- 1:46-55) onde é recitado pela Virgem Maria na
ocasião da Visitação de sua prima Isabel. Na nar-
ridade para que alguém se saiba rativa, após Maria saudar Isabel, que está grávida
10 Eugene, OR, EUA: Cascade Books, 2016. (Nota com aquele que será conhecido como João Batis-
da IHU On-Line) eleito. Ao contrário da teologia ta, a criança se mexe dentro do útero de Isabel.
11 Fernando Pessoa (1888-1935): escritor por- Quando esta louva Maria por sua fé, Maria entoa
tuguês, considerado um dos maiores poetas de medieval, não a caridade mostra- o Magnificat como resposta. O cântico ecoa di-
língua portuguesa. Atuou no jornalismo, na publi- da a outrem, mas a prosperidade versas passagens do Antigo Testamento, porém a
cidade, no comércio e, principalmente, na litera- alusão mais notável são as feitas à Canção de Ana,
tura, onde desdobrou-se em várias outras perso- pessoal, o enriquecimento, aca- dos Livros de Samuel. Juntamente com o Benedic-
nalidades conhecidas como heterônimos. A figura tus e o Nunc dimittis, e diversos outros cânticos
enigmática em que se tornou movimenta grande bam sendo a maneira de decidir a do Antigo Testamento, o Magnificat foi incluído
parte dos estudos sobre sua vida e obra, além do eleição divina. Isto não tem nada no Livro de Odes, uma antiga coletânea litúrgica
fato de ser o maior autor da heteronímia. (Nota encontrada em alguns manuscritos da Septuagin-
da IHU On-Line) de luterano, até pelo contrário. ta. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

Vítor Westhelle – Um dos pro- mais celebrados místicos medievais. lerarem demais o processo reforma-
blemas ao lidar com a cruz é o que Esta dimensão de Lutero tem sido tório. Ele, ao contrário de alguns de
se tem chamado de dolorismo, a ce- mantida na teologia escandinava e seus mais achegados colaboradores,
lebração masoquista do sofrimento. enfatizada mais recentemente na como Melanchthon17, não manteve a
Quando Lutero fala sobre a cruz e o escola finlandesa de interpretação posição inicial que tinha de reformar
sofrimento, está falando da encar- de Lutero. A questão central é o que a Igreja de Roma. A partir de 1522
nação de Deus na história e nos lu- misticismo não cabe como caracte- já não guardava esperanças de re-
gares que Deus elege e nos convida rística de nenhuma era da história. conciliação com Roma. Mas foi sua
a estar lá junto e cooperar (uma ex- Há místicos medievais, como há da experiência de ser perseguido pelo
pressão que ele gostava de usar) na antiguidade e também da moderni- Império e por Roma que determinou
libertação das pessoas oprimidas, na dade. Lutero não era um místico em muitas de suas posturas e, estando
emancipação das marginalizadas, na nenhum sentido tradicional do ter- no centro dos eventos, nunca teve
dignificação das discriminadas e na mo, mas secularizou elementos do a distância necessária para avaliar
preservação da natureza. Mas este é misticismo que o colocam precisa- suas opções com neutralidade.
nosso trabalho de amor, deste amor mente na transição entre o medievo
Portanto, Lutero não é, como pes-
racional de que falava. Não se trata e o moderno.
soa, uma fonte de inspiração, não é
de agradar a Deus, trata-se de amor
Lutero vivia em uma época em que um santo nem buscou sê-lo. Viveu
a outrem e este inclui necessaria-
devia ao passado toda sua formação. sua vida de uma maneira que foi de
mente a natureza.
Mas vislumbrava uma aurora que um lado rígida, mas por outro ele era
nem tinha conhecimento do que im- também um bonachão. Gostava de
IHU On-Line – Podemos afir- plicava. Em outras palavras, Lutero compartilhar a mesa com amigos e
mar que Lutero supera o pen- não era nem medieval nem moder- beber a cerveja que sua companhei-
samento do homem medieval no; era transição. ra e esposa, a ex-freira Catarina de
e inaugura um pensamento Bora, fazia.
moderno? E que cristianismo
IHU On-Line – Quais foram
emerge daí?
os limites de Lutero e da Refor- IHU On-Line – Como analisa a
46 Vítor Westhelle – Esta é uma ma? E de que forma essa expe- relação entre as igrejas evangé-
discussão que dominou a teologia riência pode nos inspirar nos licas hoje?
alemã há um século, na assim cha- tempos atuais?
Vítor Westhelle – É preocupan-
mada “renascença luterana” dos
Vítor Westhelle – Lutero disse te. De um lado há um isolacionismo
primórdios do século XX. Era Lu-
que só a experiência faz um teólo- de grupos que evitam qualquer diá-
tero medieval ou já moderno? Os
go ou teóloga. Isto foi inusitado em logo para manter intactas as frontei-
pesquisadores (e eram só homens)
uma época, ao contrário da nossa, ras de seus territórios. De outro lado,
se dividiram. Mas ambos os lados
em que teologia se fazia a partir dos há um ecumenismo um pouco des-
trabalhavam com um pressuposto
conhecimentos contidos nos cânones mesurado em que a unidade eclesial
comum. Lutero supostamente ha-
da igreja e nos tratados e sumas teo- vai às custas de sua integridade con-
via rompido, definitivamente, com
lógicas de seus teólogos. Então, falar fessional. Esta me parece importan-
a/uma tradição mística. O fato de
em limites é bastante óbvio. Ele com- te, pois sejamos presbiterianas, cató-
sair no monastério e o uso burlesco
partilhava com seu tempo vários dos lica-romanas, luteranas, metodistas,
da linguagem que usava, ademais
preconceitos vigentes. Entre estes ou pentecostais, ou até mesmo de
de expressões de baixo calão em se
destaca-se seu antissemitismo, mais outras crenças não-cristãs, temos
tratando de adversários, sugeria esta
ao final de sua vida, depois de haver algo particular a aportar, na busca
conclusão.
defendido os judeus anteriormente. por definir nossa sina de pessoas hu-
Mas o que Lutero fez foi realmente manas em busca do bem comum.
Também não teve muita sensibili-
trazer o monastério para o cotidia-
dade em tratar de alguns efeitos da No movimento ecumênico há um
no popular. Além de Agostinho15, a
Reforma. O movimento entusiasta conceito que vale resgatar. Este é o
quem ele admirava sobremaneira,
que cativou a muitos foi por ele du- “processo conciliar” que visa não a
Bernardo de Claraval16 era um dos
ramente condenado, quiçá por ace- unidade visível das igrejas, mas esta-
15 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido
belecer as condições de possibilidade
como Santo Agostinho, foi um dos mais impor- de uma conversação entre pares em
tantes teólogos e filósofos dos primeiros anos do de Dijon, na Borgonha, França. Aos 22 anos foi
cristianismo, cujas obras foram muito influentes estudar teologia no mosteiro de Cister. Em 1115 busca de uma meta comum que nos
no desenvolvimento do cristianismo e da filoso- fundou a abadia de Claraval, sendo o seu primeiro
fia ocidental. Escrevendo na era patrística, ele é abade. Fundou 163 mosteiros em vários países da
amplamente considerado como sendo o mais im- Europa. Durante sua vida monástica demonstrava
portante dos padres da Igreja no Ocidente. Suas grande fé em Deus serviu à igreja católica apoian- 17 Philipp Melanchthon (1497-1560): foi um
obras-primas são A cidade de Deus e Confissões. do as autoridades eclesiásticas acima das preten- reformador, astrólogo e astrônomo alemão. Co-
(Nota da IHU On-Line) sões dos monarcas. Em função disto favoreceu a laborador de Lutero, redigiu a “Confissão de Au-
16 Bernardo de Claraval (1090-1153): conheci- criação de ordens militares e religiosas. Uma das gsburgo” (1530) e converteu-se no principal líder
do também como São Bernardo, era oriundo de mais famosas foi a ordem dos cavaleiros templá- do luteranismo após a morte de Lutero. (Nota da
uma família nobre de Fontaine-les-Dijon, perto rios. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

une como evento, mesmo que não foi o mais eficaz, mas de nenhuma As diferenças persistem, por su-
institucionalmente. Para citar uma maneira o único a seguir os passos posto, mas a gravidade das mesmas
parábola de Jesus, temos em nossos de Lutero e dos pré-reformadores, tende muito mais ao diálogo que à
tesouros coisas novas e coisas velhas mas sem romper com os vínculos confrontação. Neste sentido, Lutero
que podemos oferecer. Elas são nos- eclesiais que tinha. O Concílio de vive já não como um cismático, mas
so dote na busca de comunhão. Trento19, na segunda metade do sé- como uma voz de uma consciência
culo XVI, foi uma tentativa oficial alerta a seu tempo e lugar que busca
de responder à Reforma. E é im- o crucificado nas pessoas marginali-
IHU On-Line – 500 anos de- portante reconhecer que um Lutero zadas e oprimidas, e na criação que
pois da cisão, como observa a nunca surgiria na Igreja de Roma sofre e geme sob o peso do capital
relação entre católicos e lute- especialmente depois do Concílio que tem a si mesmo como fim.■
ranos? E como imagina que as Vaticano II20.
igrejas cristãs devam caminhar transformações que introduziu foram no sentido
da democratização dos ritos, como a missa rezada
nos próximos anos? em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos
religiosa católica no mundo. Para saber mais so-
bre Loyola, acesse a edição 186 da IHU On-Line, diferentes países. Este Concílio encontrou resis-
Vítor Westhelle – A igreja que disponível em http://bit.ly/1IBwk2U. Foi canoniza- tência dos setores conservadores da Igreja, de-
do em 12 de março de 1622 pelo Papa Gregório fensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus
Lutero buscou reformar não é a frutos foram, aos poucos, esvaziados, retornando
XV. Festeja-se seu dia em 31 de julho. (Nota da
Igreja Católica Apostólica Romana IHU On-Line) a Igreja à estrutura rígida preconizada pelo Concí-
19 Concílio de Trento: realizado de 1545 a 1563, lio Vaticano I. A revista IHU On-Line publicou na
de hoje. Esta passou por transfor- foi o 19º concílio ecumênico. Foi convocado pelo edição 297 o tema de capa Karl Rahner e a rup-
tura do Vaticano II, de 15-6-2009, disponível em
mações que a Lutero mesmo surpre- Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé (sa-
https://goo.gl/GVTuEO, bem como a edição 401,
grada escritura histórica) e a disciplina eclesiásti-
enderia. A chamada Contrarreforma ca, no contexto da Reforma da Igreja Católica e a de 3-9-2012, intitulada Concílio Vaticano II. 50
reação à divisão então vivida na Europa devido à anos depois, disponível em https://goo.gl/5IsnsM,
foi uma busca singela e decidida de Reforma Protestante, razão pela qual é denomi- e a edição 425, de 1-7-2013, intitulada O Concí-
lio Vaticano II como evento dialógico. Um olhar a
reformar a igreja. Inácio de Loyola18 nado como Concílio da Contrarreforma. (Nota da
partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, disponível
IHU On-Line)
20 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11- em https://goo.gl/8MDxOM. Em 2015, o Instituto
11-1962 pelo papa João XXIII. Ocorreram quatro Humanitas Unisinos – IHU promoveu o colóquio
18 Inácio de Loyola (1491-1556): fundador da sessões, uma em cada ano. Seu encerramento O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja
Companhia de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, cuja deu-se a 8-12-1965, pelo papa Paulo VI. A revi- no contexto das transformações tecnocientíficas
missão é o serviço da fé, a promoção da justiça, são proposta por este Concílio estava centrada e socioculturais da contemporaneidade. As reper-
o diálogo inter-religioso e cultural. A Ordem teve na visão da Igreja como uma congregação de fé, cussões do evento podem ser conferidas na IHU
grande importância na Reforma Católica. Atual- substituindo a concepção hierárquica do Concílio On-Line 466, de 1-6-2015, disponível em https://
goo.gl/LiJPrZ. (Nota da IHU On-Line)
mente a Companhia de Jesus é a maior Ordem anterior, que declarara a infalibilidade papal. As 47

Leia mais
- Católicos e protestantes, significados de um processo de (re)aproximação. Entrevista
com Vítor Westhelle, publicada na Revista IHU On-Line 496, de 31-10-2016, disponível em
http://bit.ly/2kMCDh3.
- Os desafios do luteranismo, hoje. Entrevista com Vítor Westhelle, publicada na Revista
IHU On-Line 280, de 3-11-2011, disponível em http://bit.ly/2yj57lx.
- Frida nos deixa sem jeito. Entrevista com Vítor Westhelle, publicada na Revista IHU On-Li-
ne 227, de 9-7-2007, disponível em http://bit.ly/2hG4ue6.
- A Reforma. Um ato de liberdade. Entrevista especial com Vítor Westhelle, publicada em
Notícias do Dia de 31-10-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2xDKMFU.
- 500 anos da Reforma. Luteranismo e Cultura nas Américas. Artigo de Vítor Westhelle,
publicado em Cadernos de Teologia Pública, número 97, disponível em http://bit.ly/2eTCOjL.

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

O luteranismo e a moderna
religiosidade secular
Teófanes Egido López analisa as mudanças
que a Reforma imprime ao cristianismo
João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

O
professor espanhol Teófanes secular, não-clerical, mais simples,
Egido López é direto ao defi- sem hierarquias”, completa. Ou seja,
nir Martinho Lutero: “como ele não se volta apenas para os textos
pensador, não há dúvida: foi um re- canônicos, mas os aproxima das pes-
formador da teologia comprometida soas, retira o poder da igreja mona-
com o que poderíamos chamar de mo- cal, com menos clérigos e mais pasto-
dernidade”. Ou seja, para ele, o mon- res. “Também mudavam os sistemas
ge agostiniano trazia uma visão de sacramentais, as formas de piedade,
mundo arraigada no medievalismo, as devoções, o olhar aos santos que
mas vai questionando certas perspec- já não podiam mais ser intercessores,
tivas e se afasta do pensamento típico mediadores, nem vistos e venerados.
do medievo. Entretanto, ressalta Ló- A Virgem Maria tampouco poderia
pez, é preciso compreender que Lute- ser uma concorrente de seu Filho”,
48 ro é um homem no seu tempo, o que o completa.
faz ora medieval, ora moderno. “Não Teófanes Egido López é licen-
se pode esquecer que, social e poli- ciado em Filosofia e Letras pela Uni-
ticamente, Lutero tinha mentalida- versidade de Valladolid, na Espanha,
de e convicções feudais, ‘de ordem’”, onde ocupa a cátedra de História Mo-
exemplifica, ao explicar a relação com derna. Especialista no século XVIII,
os conflitos camponeses. também trabalha com temas como a
López analisa, na entrevista con- opinião pública e oposição ao poder,
cedida por e-mail à IHU On-Line, Lutero e Reformas Protestantes, San-
que esses flertes que Lutero tem com ta Teresa e São João da Cruz e Igreja –
a Modernidade imprimem mudanças Estado. Entre suas publicações, des-
na forma de ser cristão. Valorizando tacamos Las reformas protestantes
a tradução da Bíblia para o alemão (Madri, Espanha: Editorial Síntesis,
falado nas ruas, que o professor con- 1992), Martín Lutero: Una mirada
sidera como grande feito que quebra desde la historia, un paseo por sus
o monopólio trentino sobre as escri- escritos (Salamanca, Espanha: Edi-
turas, compreende que é preciso ir ciones Sígueme, 2017) e Tolerancia
além para refletir sobre essa forma en la Historia (Valladolid, Espanha:
de religiosidade que emerge. “O lu- Universidad de Valladolid, 2004).
teranismo oferecia uma religiosidade Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como pode- Martinho Lutero? E que apro- tre sua experiência com a de
mos compreender a mística de ximações podemos fazer en- outros místicos, como João da

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REVISTA IHU ON-LINE

“Não se pode esquecer


que, social e politicamente,
Lutero tinha mentalidade e
convicções feudais, ‘de ordem’”

Cruz1, Teresa de Ávila2 e o pró- para vivê-la, que é a “Sola Scriptura”. lindo que escreveu, A Liberdade de
prio Inácio de Loyola3? um Cristão6, no qual canta este ma-
Os quatro, Lutero, Inácio de Loyo-
trimônio: “veja que troca e que due-
Teófanes Egido López – Já foi la, Teresa de Jesus, João da Cruz,
lo tão maravilhosos: Cristo é Deus e
dito, escrito, e ainda se diz e se es- foram místicos através da experiên-
homem; por conta do anel nupcial,
creve, que Lutero não foi um místi- cia, com a vivência de Deus. Mas,
isto é, pela fé, aceita como seus os
co. A afirmação se deve, certamente, cada um com a sua personalidade,
pecados da alma crente e atua como
ao que que se entende por mística com seu estilo, com sua linguagem
se ele mesmo fosse quem os houves-
que é, antes de tudo, a experiência na hora de manifestar e de comu-
se cometido. Pelos sinais, ou seja,
pessoal, íntima, de Deus; algo que, nicar esta experiência. Porque não
pela fé, libera-se a alma de todos os
à primeira vista, pode destoar do convém esquecer que a mística não
seus pecados e recebe o dote da justi-
caminho de Lutero para chegar à fé, é somente a experiência de Deus. É
ça eterna de seu esposo, Cristo. Não
também beleza na linguagem que a
é estupendo este enxoval pelo qual o
comunica com alegria. E beleza é o 49
1 João de Yepes ou São João da Cruz (1542- rico, nobre e tão bom esposo Cristo
1591): ingressou na Ordem dos Carmelitas aos que há nas canções de São João da
21 anos de idade, em 1563, quando recebe o aceita no matrimônio a esta pobre,
nome de Frei João de São Matias, em Medina del Cruz, nas Moradas4 de Santa Teresa,
Campo. Em setembro de 1567, encontrou-se com
depreciável, ímpia prostituta, despo-
em tantos escritos e sermões de Lu-
Santa Teresa de Jesus, que lhe falou sobre o pro- jando-a de toda sua malícia e enfei-
jeto de estender a Reforma da Ordem Carmelita tero, e, à sua maneira, também, na
também aos padres. Aceitou o desafio e trocou o tando-a com toda a classe de bens?
nome para João da Cruz. No dia 28 de novembro peculiar expressão inaciana do cami-
de 1568, juntamente com Frei Antônio de Jesús
Não é possível que os pecados a con-
nho até Deus.
Heredia, iniciou a Reforma. No dia 25 de janeiro denem, posto que Cristo os carregou
de 1675, foi beatificado por Clemente X. Cano-
nizado em 27 de dezembro de 1726 e declarado Fico com a tese de Pannenberg5, e os devorou”. Conta, portanto, com
Doutor da Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952, que gosto de repetir: sua fé (a de Lu- a justiça, tão rica, de seu esposo, que
foi proclamado Patrono dos Poetas Espanhóis.
Sua festa é comemorada no dia 14 de dezembro. tero) em Cristo torna-se experiência muito bem pode enfrentar todos os
Sobre São João da Cruz, confira As obras comple-
tas de São João da Cruz (Petrópolis: Vozes, 2002). mística; a sua é uma realidade de pecados. Desta realidade, São Pau-
(Nota da IHU On-Line) fé “como ato estático de união com lo fala: “Graças sejam dadas a Deus
2 Teresa de Ávila (1515-1582): freira carmelita es-
panhola nascida em Ávila, Castela, famosa refor- Cristo”, e a contemplação e riqueza que nos concedeu a vitória por Jesus
madora da ordem das Carmelitas. Canonizada por
Gregório XV (1622), é festejada na Espanha em 27 do dom da justificação inspiram-lhe Cristo; nela a morte e o pecado fo-
de agosto, e no resto do mundo em 15 de outubro. as palavras para expressar o feliz in- ram devorados”.
Foi a primeira mulher a receber o título de doutora
da igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Entre seus tercâmbio, o intercâmbio desigual,
livros citam-se Libro de su vida (1601), Libro de las
fundaciones (1610), Camino de la perfección (1583) e entre o esposo e a alma, da mística
Castillo interior ou Libro de las siete moradas (1588). nupcial, a de Teresa de Jesus e de
Escreveu também poemas, dos quais restam 31
deles, e enorme correspondência, com 458 cartas João da Cruz.
autenticadas. Sobre Teresa, confira Teresa – A San- 6 Da Liberdade de um Cristão (em latim: De Liber-
ta Apaixonada (Rio de Janeiro: Objetiva, 2005), de A respeito disso, não posso repri- tate Christiana; em alemão: Von der Freiheit eines
autoria de Rosa Amanda Strausz; Obras completas Christenmenschen): também chamado de Tratado
(São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Teresa de Jesus – mir meu desejo de recordar uma sobre a Liberdade Cristã, de novembro de 1520,
“Livro da vida” (4ª ed., São Paulo: Ed. Paulus, 1983). é o terceiro dos três grandes tratados escritos
A edição 460 da revista IHU On-Line, sob o título passagem do livro certamente mais por Martinho Lutero em 1520 publicado depois
A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, de “À Nobreza Cristã da Nação Alemã” (agosto)
dois centenários, analisa a legado de Merton. Confira e “Do Cativeiro Babilônico da Igreja” (outubro). A
em https://goo.gl/jOlXOi. (Nota da IHU On-Line) 4 As Moradas do Castelo Interior. São Paulo: É Rea- obra foi publicada em uma versão mais elaborada
3 Inácio de Loyola (1491-1556): fundador da lizações, 2014. (Nota da IHU On-Line) em latim e em outra mais curta em alemã. Não
Companhia de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, cuja 5 Wolfhart Pannenberg (1928): teólogo e filóso- há consenso acadêmico sobre qual das duas foi
missão é o serviço da fé, a promoção da justiça, fo que recupera ferramentas e conceitos filosó- escrita primeiro. O tratado desenvolve o conceito
o diálogo inter-religioso e cultural. A Ordem teve ficos essenciais em um contexto confessional lu- de que os cristãos, como filhos de Deus comple-
grande importância na Reforma Católica do sé- terano, alemão. Durante o Simpósio Internacional tamente perdoados, não estão mais obrigados a
culo XVI. Atualmente a Companhia de Jesus é a O Lugar da Teologia na Universidade do Século observar a lei de Deus (do Antigo Testamento);
maior Ordem religiosa católica no mundo. Para XXI, realizado em maio de 2004, foi ministrada eles servem a Deus e a seus vizinhos livremente e
saber mais sobre Loyola, acesse a edição 186 uma oficina que tratou do pensamento de Pan- de vontade própria. Lutero também desenvolveu
da IHU On-Line, disponível em http://bit.ly/1I- nenberg. Sobre ele foram publicados em 2005 os um pouco mais o conceito da justificação pela fé.
Bwk2U. Foi canonizado em 12 de março de 1622 Cadernos Teologia Pública números 19 e 20, dis- Entre as edições em português mais recentes está
pelo Papa Gregório XV. Festeja-se seu dia em 31 poníveis para download em ihu.unisinos.br/publi- Da Liberdade de um Cristão (São Paulo: Unesp,
de julho. (Nota da IHU On-Line) cacoes/mais-publicacoes. (Nota da IHU On-Line) 2015). (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

Oração cralizado (pois não havia outro) e se deram conta disto, e apenas ata-
naquelas sensibilidades. Por isso, caram a conduta dos papistas. Pes-
Tampouco me privo de apontar quando se enxerga a Lutero e a sua soalmente não digo nada particular
coincidências na maneira de orar. chamada Reforma (que foi mais do sobre sua forma de viver, mas sobre
Lutero escreve, por volta de 1530, que isso), e se pensa em Inácio de a doutrina. Meu modo de ação, meu
um pequeno tratado para seu ami- Loyola e sua Companhia, primeiro combate, centra-se em saber se os
go barbeiro (e também cirurgião), como Contrarreformas, ao menos às oponentes transmitem a doutrina
Pedro. Baseia-se no Pai Nosso. Pois vezes, está sendo incorrida em sim- verdadeira. Os demais criticaram
bem, Santa Teresa, também comen- plificações que são explicáveis, mas apenas a conduta, mas quando se
tadora da oração dominical, comen- que não se correspondem com a rea- ataca a doutrina é quando se agarra
ta o Pai Nosso com ternura. E como lidade histórica. Ambas as experiên- o ganso pelo pescoço… Tudo está ra-
defende a oração vocal do Senhor, cias, ambos os projetos, submetidos dicado na palavra; nessa palavra que
tem momentos de entusiasmo, exa- às circunstâncias em sua evolução, o papa nos roubou, falsificou e man-
tamente por esta se tornar a oração germinaram e frutificaram, precisa- chou para transmiti-la desfigurada
vocal na contemplação. O que diz mente porque encontraram um solo para a Igreja”.
Lutero ao amigo ao comunicar-lhe bem preparado. Lucien Febvre7, o
sua experiência de oração: “o que historiador pioneiro das mentalida-
me acontece com frequência é que des, autor do precioso livro (além
uma frase ou petição me suscitam
tantas meditações, que prescindo de
de rigorosamente histórico) lá pelos
anos 30 do século XX, Martín Lute-
“Mediava um
todas as demais. E quando fluem es-
tes pensamentos abundantes e bons,
ro, un destino8, insistia em que para
compreender aquelas iniciativas,
abismo entre
é preciso deixar de lado as petições
restantes, deter-se naqueles, escu-
e aqueles protagonistas, havia que
compreender, antes de tudo, que o
Lutero e os
tá-los em silêncio, não lhes pôr obs-
táculos por nada do mundo, porque
imenso apetite do divino viveria por protestos
todos.
50
então, quando se prega o Espírito
Santo, uma palavra de sua pregação Uma coisa foram os fundadores,
hussista e
é muito mais valiosa que mil de nos-
sas orações”.
os reformadores, e outra seus segui-
dores de depois, os dos tempos que
wiclefita”
começaram a ser chamados “confes-
Não sigo, porque quase nunca sionais” e contrarreformistas. Gosto
acabariam estas aproximações (o de reproduzir o que Lutero dizia e
que não quer dizer influências, podia ser colhido: “é preciso distin- IHU On-Line – De que forma
nem dependências) entre os místi- guir muito bem entre a doutrina e a as tentativas de reforma da
cos autênticos. vida. Nós vivemos mal, como mal vi- Igreja ao longo de toda a Bai-
vem os papistas. Não lutamos contra xa Idade Média11 influenciam
os papistas por conta da vida, mas Lutero? E por que somente a
IHU On-Line – Costuma-se
pela doutrina. Huss9 e Wycliffe10 não luterana leva à cisão e também
inscrever a experiência de Iná-
a outras perspectivas acerca do
cio de Loyola como um dos mo- 7 Lucien Febvre (1878-1956): historiador francês,
vimentos da contrarreforma e cofundador da chamada “Escola dos Annales”.
cristianismo?
(Nota da IHU On-Line)
combate ao luteranismo. Mas 8 San Diego, EUA: Fondo De Cultura Economica Teófanes Egido López – Pode
como podemos avançar na re- USA, 2004. [edição em espanhol]. (Nota da IHU
On-Line) haver dependências, similitudes e
flexão e analisar a experiência 9 John Huss (1369-1415) foi um pensador e re- influências entre os projetos me-
formador religioso. Ele iniciou um movimento
do fundador da Companhia de religioso baseado nas ideias de John Wycliffe. dievais de reforma e o de Lutero. As
Jesus em perspectiva ao lutera- Os seus seguidores ficaram conhecidos como os
Hussitas. A Igreja Católica não perdoou tais rebe- atitudes reformadoras (“as heresias”
nismo? liões e ele foi excomungado em 1410. Condenado que diriam os combatentes em nome
pelo Concílio de Constança, foi queimado vivo e
Teófanes Egido López – Dá morreu cantando um cântico [cântico de Davi” Je- das “ortodoxias”) da Idade Média es-
sus filho de Davi tem misericórdia de mim]. Um
a sensação de que, ao contemplar precursor do movimento protestante, a sua exten-
sa obra escrita concedeu-lhe um importante pa- 11 Baixa Idade Média: período que abarca desde
aqueles tempos e ao pensar naque- pel na história literária checa. Também é respon- o século XI até o Renascimento, já no século XV.
las pessoas que incentivaram a vida sável pela introdução do uso de acentos na língua É uma época de expansão e feudalismo na Euro-
checa por modo a fazer corresponder cada som pa, sendo o feudalismo um sistema governado
da Igreja (que se identificavam com a um símbolo único. Hoje em dia a sua estátua por uma minoria de aristocratas guerreiros que,
pode ser encontrada na praça central de Praga, com os membros da Igreja, retêm a propriedade
a sociedade) desde suas respectivas a Praça da Cidade Velha, em checo Staroměstské eminente da terra. A Baixa Idade Média é o auge
ilusões, há de se partir do confronto. náměstí. (Nota da IHU On-Line) do poder Católico, que domina toda a Europa e
10 John Wycliffe (1328-1384): foi professor da incita expansões como as Cruzadas. Este domínio
Houve, certamente, um confronto, Universidade de Oxford, teólogo e reformador é visível no número de catedrais e igrejas góticas
religioso inglês, considerado precursor das refor- por toda a Europa. Nesse período, o centro é Deus
mas a explicação de tantos entusias- mas religiosas que sacudiram a Europa nos sécu- e todos os fenômenos são explicados por Deus.
mos e propostas é preciso buscá-la los XV e XVI. Trabalhou na primeira tradução da Com o Renascimento, surge uma ligação direta
Bíblia para o idioma inglês, que ficou conhecida entre a Religião e a Arte, algo que provém deste
precisamente naquele ambiente sa- como a Bíblia de Wycliffe. (Nota da IHU On-Line) centralismo divino. (Nota da IHU On-Line)

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tavam presentes na mente de Lutero, devida remissão plenária da pena e Escoto14, com Ockham15, com o no-
não cabe dúvida. Conhecia e recor- da culpa, ainda sem a aquisição das minalismo (que em partes prestou-
dava Wicliffe. Na disputa sonora de cartas de indulgência ” (tese 36). Por lhe bons serviços), com o silogismo.
Leipzig teve de reconhecer, encurra- isto, “bem-vindos todos os profetas
E se não o inaugurou, não se pode
lado pelo formidável dialético João que pregam ao povo de Cristo “cruz,
negar que se apoiou no pensamen-
Maier12, que, ao menos em certo sen- cruz” posto que já não é tal cruz!”
to moderno que ele contribuiu para
tido, sua postura era parecida com a (tese 93).
fortalecer a partir de sua influência.
de Huss (com tudo o que a menção
Pouco depois, no capítulo provin- Tudo na dimensão religiosa é claro.
de Huss agitava naquela universida-
cial dos agostinhos, em Heidelberg, E o modernismo era o retorno às
de de Leipzig, alentada pelos fluidos
formulava de novo, e de forma mais fontes da fé e da espiritualidade, ou
da perseguição bohema, hussista).
sistemática, sua convicção: “o teólo- seja, a Escritura. Lutero, além disso,
Ali, e então, em 1519, já ficou mui-
go da glória chama ao mal, bem, e ao estava bebendo em São Paulo16, in-
to clara a ruptura com Roma, com
bem, mal; o teólogo da cruz chama
as normas conciliares, com a cúria e
as coisas como são em realidade”. De
com o quanto representava. por séculos. Prestou significativas contribuições
fato, sua teologia da cruz é a alegria para o pensamento humano, destacando-se nos
Mas mediava um abismo entre Lu- de sua teologia, de sua espiritualida- campos da ética, política, física, metafísica, lógica,
psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e
tero e os protestos hussita e wicle- de, de sua fé, e um dos capítulos clás- história natural. É considerado, por muitos, o filó-
fita por circunstâncias geográficas, sicos, dos mais clássicos, entre seus sofo que mais influenciou o pensamento ociden-
tal. (Nota da IHU On-Line)
pela história pessoal, e inclusive tratadistas. 14 John Duns Scot [ou Escoto Eriúgena] (1265-
1308): frade franciscano escocês, foi um filósofo
do inglês e do bohemo e, em maior e teólogo da tradição escolástica, chamado de
medida, por motivos políticos. Ao “Doutor Sutil”, em razão de ser um autor de aces-
so difícil, que lhe valeu essa reputação de sutileza.
contrário do que acontecia com Lu- Estudou nas Universidades de Oxford e Paris. Foi

“Sua teologia
mestre em teologia nessas duas universidades, as-
tero, não contaram com o respaldo sim como em Cambridge e Colônia. Foi mentor de
incondicional dos poderes seculares. outro grande nome da filosofia medieval, William
de Ockham. Foi beatificado em 20 de março de
Inclusive, sucedeu o contrário. Na
verdade, e ainda que sempre tenha
da cruz é a 1993, durante o pontificado de João Paulo II. For-
mado no ambiente acadêmico da Universidade
de Oxford, posicionou-se contrário a São Tomás
havido retornos, Wycliffe tornou-se
nada mais do que recordação na In-
alegria de sua de Aquino no enfoque da relação entre a razão
e a fé. Suas principais obras são a Opus parisien-
sis (“Obra de Paris”) e a Opus oxoniensis (“Obra
51
glaterra, e Huss reviveria, mas por
motivos minoritários nacionalistas.
teologia, de sua de Oxford”), também conhecida como Ordinatio,
ambas provavelmente compilações, por seus dis-
cípulos, de seus cursos. (Nota da IHU On-Line)

espiritualidade, 15 Guilherme de Ockham (1285-1347): foi um


frade franciscano, filósofo, lógico e teólogo esco-
lástico inglês, considerado como o representante
IHU On-Line – Como pode-
mos compreender a mística da
de sua fé” mais eminente da escola nominalista, principal
corrente oriunda do pensamento de Roscelino de
Compiègne (1050-1120). (Nota da IHU On-Line)
16 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso,
cruz vazia dos luteranos? Qual na Cilícia, hoje Turquia, era originariamente cha-
mado de Saulo. Entretanto, é mais conhecido
é a razão de ser dessa ruptura como São Paulo, o Apóstolo. É considerado por
com a tradição católica? muitos cristãos como o mais importante discípulo
IHU On-Line – Lutero foi um de Jesus e, depois de Jesus, a figura mais impor-
tante no desenvolvimento do Cristianismo nas-
Teófanes Egido López – Já des- reformador medieval ou um cente. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos
de o começo de seu protesto, todavia demais. Primeiro porque, ao contrário dos outros,
alguém que inaugura o pensa- não conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua
“ortodoxo”, isto é, nas simbólicas e mento moderno? conversão, se dedicava à perseguição dos primei-
ros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em
centenárias teses “contra” as indul- uma dessas missões, quando se dirigia a Damas-
gências que celebramos nos últimos Teófanes Egido López – Como co, teve uma visão de Jesus envolto numa grande
pensador, não há dúvida: foi um re- luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três
dias, o frei Martinho Lutero formu- dias por Ananias, que o batizou como cristão. A
lava o princípio, ou, melhor dito, o formador da teologia comprometida partir deste encontro, Paulo começou a pregar o
Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou
motivo de sua teologia, de sua espiri- com o que poderíamos chamar de uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo
modernidade. Porque, isso sim: o (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em
tualidade, de sua piedade: não são as duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito
indulgências, aquelas cartas que são frei Martinho Lutero (ou Ludher, já pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é
considerado uma das principais fontes da doutri-
pregadas por aí com tanto aparato e que usou vários nomes até que as- na da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção
sumiu o nome de humanista da luz, fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que
com tantos abusos, mas o arrependi- foi ele quem verdadeiramente transformou o cris-
mento, a cruz, os que conferem per- Lutero) foi, antes de ser da Igreja, tianismo em uma nova religião, superando a ante-
rior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Li-
dão, a salvação. Dizia: “todo cristão reformador da teologia. E como re- ne 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema
verdadeiramente arrependido tem a formador da teologia ele enfrentou Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível
em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição
com vigor a escolástica, que bebia 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevân-
cia atual, disponível em https://goo.gl/bKZcM0.
em Aristóteles13 e era expressa com Também são dedicadas ao religioso a edição 32
12 João Maier [ou João Eck] (1486-1543): foi um dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tarso
teólogo católico, vice-chanceler da Universidade desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de re-
de Ingolstadt. Defensor do catolicismo e adversá- 13 Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filó- alidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a
rio de Martinho Lutero. Refutou as suas teses na sofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São
obra Obelisci e com ele debateu por três sema- filosóficas – por um lado, originais; por outro, re- Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da
nas na célebre disputa de Leipzig. (Nota da IHU formuladoras da tradição grega – acabaram por mulher cristã no século I, disponível em http://bit.
On-Line) configurar um modo de pensar que se estenderia ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

terpretado e vivido com a mentali- Deus quem está montando, Deus vai da Bíblia de Lutero em alemão, mas
dade agostiniana, pois ele sempre foi lá onde quiser ir, conforme o Salmo em alemão moderno, não apenas
muito agostiniano, com certo ma- 73, 22, Ante ti sou como uma besta, o que era escrito em chancelarias,
niqueísmo antipelagiano no fundo. mas sempre estarei contigo. Quan- mas também o falado. Não se pode
Coincidia com o humanismo em al- do é Satanás quem cavalga, vai onde esquecer o que dizia, orgulhoso da-
guns aspectos, como na crítica a tan- quiser ir. Não depende de seu arbí- quela obra feita em equipe (o que lhe
tas formas de religiosidade não isen- trio escolher um ou outro dos dois convinha para, de passada, atacar os
tas de superstição de acordo com o cavaleiros; são os cavaleiros os que papistas): “não se pode demandar
que diziam seus críticos, ou em sua disputam para obtê-lo e possuí-lo”. dessas letras latinas de que forma
reivindicação da Bíblia não apenas se fala o alemão, que é o que esses
para as elites culturais, mas também idiotas (papistas) fazem; quem pre-
para o povo crente e fiel. cisa fazê-lo é a mãe que está em casa,

Por seu agostinismo cordial, por “O modernismo as crianças nas ruas, o homem co-
mum no mercado, que deduzem sua
seu conceito de Deus, ele não foi
capaz, no entanto, de conectar-se era o retorno forma de falar observando sua boca.
Depois disso feito é quando se pode
com a liberdade moderna, perso-
nificada por Erasmo17. E esta liber-
às fontes traduzir: será a única maneira de
que eles percebam que estão falando
dade impossível esteve na raiz da
ruptura clamorosa (e de certa for-
da fé e da com eles em alemão”.

ma, trágica) de 1525, na batalha por


arbítrio entre as pessoas livres e os
espiritualidade” Realmente, o panorama do cristia-
nismo estabeleceu-se em Trento18,
escravos. O que, na verdade, era o com o monopólio da Bíblia em sua
cerne de tudo, como Lutero confes- versão vulgata ou com o imposto so-
sava em sua resposta ao reconhecer IHU On-Line – Que cristianis- bre a monarquia espanhola com as
que havia sido o único a atacar a es- mo emerge a partir de Lutero? proibições inquisitoriais e os medos
com a Sagrada Escritura, contras-
sência do luteranismo: “nisto eu te Teófanes Egido López – Não
52 tando com o espetáculo do luteranis-
elogio e te propago com veemência, é fácil responder em poucas pala- mo com a sua Bíblia, com sua litur-
pois eras o único que, entre tantos, vras a uma pergunta tão sensata gia, seus salmos, com suas canções.
atacaram a essência desta causa, e por referir-se ao que às vezes não O luteranismo, além disso, oferecia
não me importunaste com questões se acentua ao pensar em Lutero e uma religiosidade secular, não-cle-
alheias ao debate acerca do papado, que, no entanto, foi o mais trans- rical, mais simples, sem hierarquias
o purgatório, as indulgências e ou- cendente, e inclusive visível, de (para a primeira Reforma, a de Lute-
tras bobagens nas quais quase todos seu empenho. Propriamente, foi a ro, porque na segunda, a confessio-
queriam caçar até agora em vão. grande diferença entre o cristianis- nal, as hierarquias e a escolástica re-
Fostes o único que chegou ao cerne mo medieval e o moderno, a pas- apareceriam em certo modo). Mas é
do problema, que pegou o touro pe- sagem da Cristandade para as Igre- preciso valorizar a mudança radical,
los chifres, e por isso estou sincera- jas, para as confissões. Da unidade inclusive no aspecto urbano das ci-
mente te agradecendo”. à variedade (ou divisão?). dades sem clero especial (todos eram
Pode haver muita retórica nessas O cristianismo “luterano” seria, an- sacerdotes graças a Cristo), com pas-
concessões. Tudo isto manifesta o tores, sem frades nem freiras posto
tes de tudo, bíblico, profundamente
abismo entre Erasmo, salvador da que os monastérios a partir da época
bíblico, evangélico. Seria caricatu-
liberdade humana e a presença da inicial eram esvaziados nos espaços
resca a mera tentativa de esclarecer
graça, com a postura, radical como germânicos, e fora da Alemanha,
o que a Bíblia significou para Lutero
em tudo, de Lutero, que sintetizada e o que ele significou para leitura da onde o Evangelho se impunha.
no parágrafo ardente de seu livro De Bíblia. Não é que não se recorres-
servo arbítrio: “a vontade humana, se a ela antes dele (como deixava Outras mudanças no ser
colocada entre Deus e Satanás, asse- transparecer às vezes) posto que até cristão
melha-se a um jumento. Quando é mesmo as “Bíblias para os pobres” Também mudavam os sistemas sa-
(em imagens) estavam em todos os cramentais, as formas de piedade, as
17 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo e
humanista neerlandês, conhecido como Erasmo
lugares. Existiam várias traduções, devoções, o olhar aos santos que já
de Roterdã. Seu principal livro foi Elogio da lou- incluindo aquelas feitas por judeus
cura. Erasmo cursou o seminário com os monges
agostinianos e realizou os votos monásticos aos na Espanha. Mas eram traduções da 18 Concílio de Trento: realizado de 1545 a 1563,
25 anos, vivendo como tal, sendo um grande críti- vulgata e, portanto, refere-se a espa- foi o 19º concílio ecumênico. Foi convocado pelo
co da vida monástica e das características que jul- Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé (sa-
gava negativas na Igreja Católica. Optou por uma ços de Lutero, eram traduções para o grada escritura histórica) e a disciplina eclesiásti-
vida de acadêmico independente - independente ca, no contexto da Reforma da Igreja Católica e a
de país, independente de laços acadêmicos, de le- alemão dialetal, regional. Por isto, é reação à divisão então vivida na Europa devido à
aldade religiosa - e de tudo que pudesse interferir preciso valorizar, e nunca será o su- Reforma Protestante, razão pela qual é denomi-
com a sua liberdade intelectual e a sua expressão nado como Concílio da Contrarreforma. (Nota da
literária. (Nota da IHU On-Line) ficiente de maneira justa, o presente IHU On-Line)

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não podiam mais ser intercessores, que tem sido chamado de o nasci- relação ao pensamento, especial-
mediadores, nem vistos e venera- mento do Estado moderno. O oposto mente em relação aos absolutismos
dos, em procissões. A Virgem Maria, ao fragmentado medieval, feudal, e anteriores. Já vimos como que, para
cantada por Lutero no comentário muito mais nos espaços do Império, ele, era necessário libertar-se das
sobre o Magnificat e em sermões até na Alemanha que não existia como imposições romanas, papistas, mas,
praticamente à véspera de sua mor- entidade política. Pois bem, as mo- no entanto, não havia liberdade ante
te, tampouco poderia ser uma con- narquias modernas eram assim por- a palavra de Deus, da qual havíamos
corrente de seu Filho, nem proposta que, ao mesmo tempo que tinham o de ser escravos.
como “Rainha do Céu”, nem media- poder político, tinham o poder re-
ligioso, ou seja, o controle de suas Quanto ao outro elemento do libe-
dora, mas como um modelo de hu-
igrejas “nacionais”. Era o que estava ralismo, o econômico, baseado no
mildade diante do olhar amoroso do
acontecendo na França com o gali- capitalismo, Max Weber22 é criticado
Senhor. E, no entanto, na vida espi-
canismo19, a monarquia espanhola por associar o nascimento das novas
ritual de Lutero abundam anjos e os
com o regalismo20, em Portugal, em formas econômicas que levam ao
demônios (há trabalhos que traçam
Cleves21 (de forma que diziam que o capitalismo com o espírito protes-
simetrias e diferenças, é claro, entre
rei, o príncipe, o duque, era o papa tante, bastante calvinista, com seu
os demônios de Lutero e, por exem-
em seus domínios). senso de poupança e outros. Mas é
plo, os de Santa Teresa).
mais do que provado que nem Calvi-
Poderia seguir, talvez devesse se- Mas o papa tinha suas atribuições, no23, nem mesmo Teodoro de Beza24,
guir, com as alterações na religio- ainda que só tenham sido (por mais eram amigos de certas operações, do
sidade que afetaram, obviamente, que não tenham sido só elas) as es- banco daquele tempo, isto é, do em-
as próprias mentalidades coletivas. pirituais. Neste caso, onde a Refor- préstimo com interesse. Bem pelo
Mas seria uma coisa que nunca aca- ma se implantava, como o papa não contrário. E quanto a Lutero, basta
baria. E em qualquer caso, não deve existia, nem a hierarquia eclesiásti- rever seus escritos sobre usura, co-
ser visto como motivo de divisão, ca era operativa, todo o poder das mércio, para deduzir facilmente seu
mas como um sinal de variedade, de primeiras Igrejas (o regulador e o espírito anticapitalista.
riqueza religiosa. inquisidor) era transferido para os
príncipes ou para as cidades. E não E socialmente, não é preciso nem
53
há dúvida: isso foi um incentivo para recordar as convicções feudais de
Lutero, a defesa da ordem estabe-
“Cristianismo
que os poderes civis e políticos esti-
mulassem a implementação da re- lecida, dos poderes (aqui não havia
diferença confessional) quando se
‘luterano’ forma em seus domínios.
tratava de reprimir desordens como

seria, antes de
as dos cavaleiros (alguns que eram
IHU On-Line – Como compre- muito amigos seus) ou, menos ain-

tudo, bíblico,
ender a gênese da ética pro- da, dos camponeses liderados no fi-
testante a partir da figura de nal por Thomas Müntzer25.

profundamente Lutero? Por que é considerada


como uma das inspirações para 22 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão,
considerado um dos fundadores da Sociologia.
bíblico, o liberalismo?
Teófanes Egido López – Pro-
Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das
suas mais conhecidas e importantes obras. Cem
evangélico” curo responder a sua pergunta com
anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua
101ª edição, de 17-5-2004, intitulada Max Weber.
A ética protestante e o espírito do capitalismo 100
simplificações forçadas. Penso, e não anos depois, disponível em http://bit.ly/ihuon101.
sou o único a fazê-lo, que a relação de Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cadernos
IHU em formação nº 3, de 2005, chamado Max
Lutero, por causa de sua ética, com Weber – o espírito do capitalismo disponível em
IHU On-Line – Quais as prin- http://bit.ly/ihuem03. (Nota da IHU On-Line)
o liberalismo, com o capitalismo in-
cipais diferenças entre o cris- 23 João Calvino (1509-1564): teólogo cristão
clusive, não acaba de responder ao francês, teve uma influência muito grande duran-
tianismo medieval e o moder- te a Reforma Protestante e que continua até hoje.
rigor histórico. Lutero estava cheio Portanto, a forma de Protestantismo que ele en-
no? E como essas diferenças sinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome
de contradições, e quem não estaria.
impactam na relação com o Calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse re-
O liberalismo é a liberdade, mas em pudiado contundentemente este apelido. Esta va-
poder? riante do Protestantismo viria a ser bem-sucedida
em países como a Suíça (país de origem), Países
Teófanes Egido López – Existe 19 Galicanismo: referente a tendência separatista Baixos, África do Sul (entre os africânderes), In-
da igreja católica da França em relação a Roma glaterra, Escócia e Estados Unidos. Leia, também,
uma relação direta entre Reforma e e ao Papa. A origem do nome provém de Gália, a edição 316 da IHU On-Line intitulada Calvino
nome antigo da França. (Nota da IHU On-Line) - 1509-1564. Teólogo, reformador e humanista,
poder político. Não posso fazer mais 20 Regalismo: doutrina que defende direito de disponível em http://bit.ly/1oBIrpn. (Nota da IHU
do que enunciá-la, posto que se tra- interferência do chefe de estado em assuntos in- On-Line)
ternos da Igreja Católica (Nota da IHU On-Line) 24 Teodoro de Beza (1519-1605): foi um teólogo
ta de algo, como quase tudo, muito 21 Cleves: ou Kleve em alemão, é uma cidade da protestante francês que desempenhou um papel
Alemanha, capital do distrito de Cleves, região ad- importante no início da Reforma Protestante. Foi
complexo e muito simples ao mesmo ministrativa de Düsseldorf, estado da Renânia do discípulo de João Calvino e o sucedeu na lideran-
tempo. A modernidade, os tempos Norte-Vestfália. Está situada no noroeste da Renâ- ça da Igreja em Genebra. (Nota da IHU On-Line)
nia do Norte-Vestfália, próxima aos Países Baixos 25 Thomas Müntzer (1490-1525): foi um dos
de Lutero, especificam-se por aquilo e ao Rio Reno. (Nota da IHU On-Line) primeiros teólogos alemães da era da Reforma,

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Qual o papel da comunicação de massa que ele co- IHU On-Line – Como compre-
escrita, e depois da imprensa, nhecia tão bem e soube aproveitar ender a relação que teve com
na elaboração, fixação e, mais em quase todas as suas possibilida- burgueses, príncipes e campo-
tarde, na circulação do pensa- des e em suas formas, a partir do neses?
mento luterano? livro volumoso até o panfleto e as
Teófanes Egido López – Re-
folhas volantes. E isso a partir das
Teófanes Egido López – A im- 95 teses centenárias de 1517 até os almente, a relação era muito di-
prensa, ou seja, os livros, foi o ins- últimos panfletos contra o papado, ferente no que tange aos setores
trumento mais eficaz e predileto da pouco antes de sua morte. sociais dos quais se tratava. Algo
mensagem, das mensagens, de Lute- que eu insinuei anteriormente.
ro, de sua Reforma e de seu Evange- Não se pode esquecer que, social e
lho. Ele teve a sorte de contar com um IHU On-Line – O que os escri- politicamente, Lutero tinha men-
veículo tão poderoso de expansão e tos de Lutero revelam sobre o talidade e convicções feudais, “de
penetração, como foi o da imprensa, monge agostiniano? ordem”, diríamos hoje, e de uma
“arte divina”, como chamavam os hu- ordem que deveria ser mantida.
Teófanes Egido López – O
manistas. Possivelmente na impren- Por isso é possível entender me-
melhor lugar para descobrir algo
sa, no livro, seja importante descobrir lhor suas reações diante daqueles
sobre Lutero, os Luteros, está em
a diferença substancial entre as “he- seus escritos, desde os primeiros que “atentavam” contra a auto-
resias” anteriores, como as medievais sobre a mística alemã até o pas- ridade legítima, isto é, contra os
de Wicliffe e Huss, comunicadas pela sado, com suas fobias e tudo. Sua senhores, contra os príncipes ou
palavra, pelo manuscrito, sempre li- personalidade rica, atraente e mu- contra o outro senhorio, os bur-
mitados. A Reforma de Lutero, com tável fica visível em diversas fases gueses das cidades. Suas primei-
suas características modernas e com de sua produção. A escrita e os seus ras atitudes contra as desordens
as possibilidades da nova tecnologia sermões falados. E no outro, as das de Wittenberg que lhe fizeram
a seu serviço, supera isso. cartas, tantas cartas quanto foram abandonar seu “exílio” em War-
possíveis publicar a partir da clás- tburg, ou suas posições adversas
Não é estranho que o reformador que atentavam contra os senhores,
sica edição de Weimar e as que vão
54 relacionasse ladainhas de elogios os escritos duríssimos contra os
sendo descobertas. E não se esque-
à imprensa, o poderoso meio de camponeses, as convocações con-
ça: Conversas à mesa revela muito,
muitíssimo, sobre sua personalida- tra qualquer germe da anabatismo
ele se tornou um líder rebelde durante a Guerra
dos Camponeses. Müntzer virou-se contra Lute- de, recolhidas por convidados, nas ou de antitrinitarismo, que tudo
ro com vários escritos contra Lutero, e apoiou os
anabatistas. Na Batalha de Frankenhausen, Münt- quais a cada momento se sobressai estava misturado, respondem a
zer e seus seguidores foram derrotados. Ele foi um Lutero mais espontâneo, e tam- suas convicções arraigadas, a sua
capturado, torturado e decapitado. (Nota da IHU
On-Line) bém mais próximo. mentalidade.■

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Lutero e Inácio de Loyola. A espiritualidade


que vali além da polarização entre
reforma e contrarreforma
Philip Endean analisa os pontos de encontro entre as
perspectivas de Martinho Lutero e Inácio de Loyola
João Vitor Santos | Tradução: Luís Marcos Sander

N
uma rápida e apressada aná- compreende que tanto Lutero quanto
lise, é comum ouvirmos que a Inácio inauguram outras formas de ser
Companhia de Jesus, capitane- cristão. “Há algo semelhante – uma
ada por Inácio de Loyola, se constitui qualidade da experiência de Deus que é
como um dos movimentos da Igreja Ca- inteiramente transformadora, e, de al-
tólica para frear a reforma tensionada gum modo, definitiva de uma nova gui-
por Martinho Lutero. “Lutero e seu mo- nada na consciência religiosa entre os
vimento foram para o cisma; Inácio e ocidentais no início da modernidade”,
os primeiros jesuítas, junto com muitas pontua. E completa: “se pudermos ver
outras figuras reformadoras do catoli- Lutero e Inácio como filhos de seu tem-
cismo da modernidade incipiente, ten- po, poderemos ficar livres para pensar
taram assumir os desafios de manter a de maneira nova e criativa sobre a nova
tensão unida”, analisa o teólogo jesuíta missão para a qual podemos esperar 55
Philip Endean. Entretanto, ele destaca que Deus já nos tenha consagrado”.
que é reducionismo pensar na ideia de
uma reforma e de um movimento que Philip Endean é britânico, jesuíta,
tenta sufocá-la, a contrarreforma. “É formado em Filosofia e Teologia. Le-
claro que há diferenças – eles são pes- cionou nas universidades de Londres e
soas diferentes. Mas também há seme- Oxford, e no Boston College, nos Esta-
lhanças marcantes”, destaca. dos Unidos. Atualmente é professor de
espiritualidade nas Faculdades Jesuítas
Na entrevista a seguir, concedida por
de Paris, Centre Sèvres. Ainda atuou
e-mail à IHU On-Line, Endean expli-
como editor de The Way, um periódi-
ca que “para ambos, uma crise de cul-
co inaciano de espiritualidade publica-
pa intensa, quase patológica, é aliviada
do pelos jesuítas britânicos. É autor do
subitamente por uma percepção de que
livro Karl Rahner and Ignatian Spiri-
é Deus que faz a obra real de nossa re-
tuality (Oxford, 2001), escrito a partir
denção, e que nosso desempenho moral
de sua tese de doutorado defendida em
não tem muito a ver com ela. Em am-
bos os casos, isso leva a uma transfor- Campion Hall, Oxford.
mação total da compreensão”. Assim, Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que as co- Mas é verdade que esse é o primeiro Em 2017, é o caráter puramen-
memorações dos 500 anos da grande jubileu luterano desde que o te divisor da herança que parece
Reforma podem inspirar tanto ecumenismo criou raízes. Em 1917, o constrangedor, e até não cristão.
católicos como luteranos? jubileu da Reforma ocorreu durante Um sinal dos tempos é que a Fe-
Philip Endean – Até mesmo os a 1ª Guerra Mundial. A memória de deração Luterana Mundial, ao
luteranos, conscientes do caráter Lutero foi usada para incentivar o preparar a comemoração de 2017,
divisor do legado de Lutero, pare- heroísmo militarista alemão de uma trabalhou junto com o Vaticano,
cem bastante contentes em falar de maneira que os historiadores hoje em produzindo um importante do-
comemoração e não de celebração. dia acham bizarramente chocante. cumento intitulado Do conflito à

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

comunhão1. A maioria das pessoas nhia foi criada para ajudar a igreja na começa a pensar nesses termos, elas
cristãs atualmente vive fora da Eu- Alemanha, na Índia ou onde quer que parecem mais variações sobre um
ropa, e muitas na África e na Ásia, seja. E então: no mesmo ano em que tema do que estar em desacordo.
em igrejas com menos de 100 anos Lutero foi chamado pelo diabo, Inácio
de idade. Se essa é sua experiência, foi chamado por Deus.” O documento
você não – para usar as palavras do que mencionei acima – Do conflito à IHU On-Line – Podemos falar
documento conjunto – vê com faci- comunhão – fala de um desafio com em afinidade espiritual entre
lidade os conflitos confessionais do que todos e todas nós nos deparamos os dois?
século XVI como seus próprios con- se quisermos avançar de modo since- Philip Endean – Isso é ir um pou-
flitos. As questões que incomodam ro e seguro. Nós não podemos mudar co longe demais. Eles são de classes
você tem a ver com a justiça, a ne- o que aconteceu no passado. Mas po- sociais diferentes e de culturas dife-
cessidade aguda e o fato de viver em demos aprender a nos lembrar disso rentes, e são figuras fundadoras de
situações de pluralismo religioso. E de maneira diferente. movimentos bastante diferentes. Mas
essas questões as pessoas cristãs das há, não obstante, ao menos uma ca-
igrejas históricas tentam enfrentar racterística notável em suas histórias
juntas – nós não fazemos as coisas IHU On-Line – Como pode-
mos avançar nesse sentido? pessoais que eles parecem ter em co-
separadamente a menos que tenha- mum. Olhando retrospectivamente
mos de fazê-las. Philip Endean – Podemos começar no final de sua vida, Lutero se lembra
com a coincidência das datas: o início de como, apesar de sua boa observân-
do século XVI, quando a imprensa es- cia monástica, tinha uma “consciên-
IHU On-Line – A partir dessa
tava começando realmente a moldar a cia extremamente perturbada” e não
perspectiva, que relação po- cultura ocidental. Nós conhecemos a
demos estabelecer entre Mar- conseguia acreditar que Deus fosse
história de Inácio em seu leito de enfer- aplacado por suas tentativas de viver
tinho Lutero e o fundador da mo em Loyola, lendo livros e sonhando
Companhia de Jesus, Inácio de corretamente. Mas então veio o alívio:
acordado, e dando-se gradativamente
Loyola2? conta de como suas reflexões surgiam [...] pela misericórdia de Deus,
Philip Endean – Para início de de um conflito – bastante sutil – entre meditando dia e noite [...] come-
56 Deus e sua própria resistência a Deus. cei a entender que a justiça de
conversa, temos de ir além do que a
O que não reconhecemos com tanta Deus é aquela pela qual a pessoa
segunda geração de jesuítas, no cen-
justa vive por um dom de Deus,
tro da resistência ao que eles viam facilidade é que Inácio faz parte da pri-
a saber, pela fé [...] Aí senti que
como a heresia luterana, tinham con- meira geração de pessoas fora de um eu tinha renascido inteiramente
dições de dizer. A experiência-chave monastério que está em uma posição e entrado no paraíso passando
de conversão de Inácio ocorreu em de se queixar do fato de que os livros por portões abertos. Aí um rosto
1521, e seus seguidores não tardaram na estante não são muito interessantes. inteiramente diferente da Escri-
a estabelecer a conexão. Encontra- A situação é um pouco semelhante à tura toda se revelou a mim.
mos um deles escrevendo o seguinte: nossa atualmente em relação ao wifi – Isso não está muito distante do que
“Deus chamou nosso Padre Inácio embora essa tecnologia simplesmente Inácio nos conta sobre seu período
mais ou menos no mesmo ano em não existisse há 20 anos, podemos fa-
formativo em Manresa. Ele confes-
que Lutero deixou seu convento e cilmente nos pegar classificando e ava-
sava seus pecados, mas nunca saía
contraiu seu casamento escandaloso. liando mentalmente os lugares aonde
satisfeito. Os escrúpulos ficavam vol-
[...] A partir desse fato entendemos vamos para ficar em termos da quali-
tando, cada vez mais fortes. De repen-
de maneira especial como a Compa- dade da conexão que eles têm. te, entretanto, “o Senhor quis que ele
No início do século XVI, os livros despertasse como que do sono”. Ele
1 O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção
Notícias do Dia, em seu sítio, publicou inúmeros estavam começando a ficar impor- reconhece que os escrúpulos provêm
textos relacionados ao documento. Entre eles de um espírito maligno, não de Deus,
Luteranos e católicos programam comemoração tantes. As pessoas instruídas e pri-
comum para 2016: ‘Do conflito à comunhão’, em vilegiadas começavam a praticar seu e que o Deus o libertou por pura mi-
21-1-2015, disponível em http://bit.ly/2xlp9uu;
2017: Do Conflito à Comunhão?, em 1-2-2016, cristianismo por livros e a reimaginar sericórdia. E isso leva a um relato de
disponível em http://bit.ly/2gBgnlx; e Diálogo algumas experiências místicas vigo-
católico-luterano a 500 anos da Reforma: o docu- a religião de todas as demais pessoas
mento “Do conflito à comunhão”, em 19-10-2016, como transmitindo o conteúdo des- rosas sobre como tudo se encaixa:
disponível em http://bit.ly/2y2cwcn. Leia mais em
ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da ses livros por lições catequéticas. Isso
IHU On-Line) é uma mudança enorme – que foi [...] os olhos de sua compreensão
2 Inácio de Loyola (1491-1556): fundador da
Companhia de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, cuja tão maciçamente influente que não começaram a se abrir: não que
missão é o serviço da fé, a promoção da justiça, ele tivesse visto alguma visão,
o diálogo inter-religioso e cultural. A Ordem teve a percebemos imediatamente –, mas
grande importância na Reforma Católica do sé-
mas compreendendo e sabendo
culo XVI. Atualmente a Companhia de Jesus é a
em vez disso nos concentramos nos muitas coisas, coisas espirituais
maior Ordem religiosa católica no mundo. Para pontos da diferença. Tanto a história e questões de fé e igualmente de
saber mais sobre Loyola, acesse a edição 186
da IHU On-Line, disponível em http://bit.ly/1I- de Lutero quanto a de Inácio têm a erudição – e isso com um escla-
Bwk2U. Foi canonizado em 12 de março de 1622 ver com a leitura e com as mudanças recimento tão forte que todas as
pelo Papa Gregório XV. Festeja-se seu dia em 31
de julho. (Nota da IHU On-Line) produzidas pela leitura. Quando se coisas pareciam novas para ele.

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

É claro que há diferenças – eles modernos geralmente imaginam. simplesmente a ajuda das almas –
são pessoas diferentes. Mas também Isso seguramente está certo. Há algo ajudar as pessoas a se tornar cristãos
há semelhanças marcantes. Para semelhante – uma qualidade da ex- melhores, e satisfazer necessidades
ambos, uma crise de culpa intensa, periência de Deus que é inteiramente da igreja que não se encaixavam
quase patológica, é aliviada subita- transformadora, e, de algum modo, dentro das estruturas-padrão. É só
mente por uma percepção de que definitiva de uma nova guinada na quando jesuítas começam a ir para a
é Deus que faz a obra real de nossa consciência religiosa entre os ociden- Alemanha – primeiro Pierre Favre6
redenção, e que nosso desempenho tais no início da modernidade. Não é por conta própria no início dos anos
moral não tem muito a ver com ela. coincidência que mesmo atualmente 1540 e depois grupos mais tarde –
Em ambos os casos, isso leva a uma consideremos os acontecimentos do que há qualquer espécie de acentu-
transformação total da compreen- século XVI na história da igreja como ação de contramedidas defensivas.
são. Para Inácio, todas as coisas pa- particularmente significativos.
À sua própria maneira, de fato, ele
recem novas; para Lutero, um rosto
Mas há também uma diferença im- foi um reformador (mas com “r” mi-
totalmente diferente da Escritura
portante. A oração que Inácio nos in- núsculo) – há uma nota manuscrita
toda se revela.
centiva a fazer no início de cada “exer- de um dos principais cardeais da épo-
cício espiritual” pede “para que todas ca em que os jesuítas chegaram pela
IHU On-Line – Como, então, as minhas intenções, ações e opera- primeira vez a Roma que os chama de
podemos entender a mística de ções sejam puramente ordenadas para os “preti reformati del Gesù”. Os pri-
Lutero e de Inácio? serviço e louvor de sua divina majes- meiros jesuítas, naquela época tanto
tade”. A intenção aqui está no mesmo quanto atualmente, pareciam bastan-
Philip Endean – Há uma geração, nível de duas palavras diferentes que te suspeitos para algumas pessoas. A
Karl Rahner3 escreveu um texto longo significam ação. Não estamos distan- preocupação de Inácio de desprender
e apaixonado em que imaginava Iná- tes da teoria aristotélica da virtude – os clérigos de um apego indevido ao
cio falando com um jesuíta contem- nós criamos nossa identidade através dinheiro é bastante evidente a partir
porâneo. A uma certa altura, o Inácio do que fazemos. A fé e as obras estão do texto dos Exercícios espirituais. A
de Rahner sugere de modo implican- estreitamente ligadas. ideia de que os clérigos deveriam se
te que a experiência fundamental de entender em termos de seu relacio-
Inácio estava muito mais próxima da Em contraposição a isso, Lutero ima- 57
namento com Deus e com o povo de
de Lutero, e com efeito da de Des- gina a liberdade espiritual como uma
Deus, e não como possuidores de um
cartes4, do que os católicos eclesiais união entre a alma e Deus que “nenhu-
benefício – de cujos frutos viveriam
ma coisa externa” pode influenciar. Em
enquanto pagavam algum subordi-
3 Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo si, essa diferença não é – como o tra-
católico do século XX. Ingressou na Companhia
nado para rezar a missa no lugar res-
balho ecumênico contemporâneo reve-
de Jesus em 1922. Doutorou-se em Filosofia e em pectivo – não está muito distante da
Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II e pro- lou – suficiente para justificar o fato de
fessor na Universidade de Münster. A sua obra te- polêmica de Lutero contra a venda
ológica compõe-se de mais de 4 mil títulos. Suas permanecermos divididos, e do ponto
obras principias são: Geist in Welt (O Espírito no
manipulativa de indulgências.
de vista histórico ela provavelmente
mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Pa-
lavra), 1941, Schrifften zur Theologie (Escritos de não é suficiente para explicar por que, IHU On-Line – Tanto Lutero
Teologia). Em 2004, celebramos seu centenário de quanto Inácio rompem com
nascimento e a Unisinos dedicou à sua memória afinal, ocorreu a cisão. Mas Inácio e Lu-
o Simpósio Internacional O Lugar da Teologia na tero estão operando a partir de quadros uma certa lógica hegemônica
Universidade do século XXI. Veja Karl Rahner. A
busca de Deus a partir da contemporaneidade, bastante divergentes de como nossa de seu tempo?
edição 446 da IHU On-Line, de 16-6-2014, nos-
identidade religiosa sob Deus e nosso
sa edição mais recente sobre o assunto. Dez anos Philip Endean – Eu sou britânico,
atrás, a edição número 102 da IHU On-Line, de comportamento no cotidiano afetam
24-5-2004, dedicou a matéria de capa à memó- e como tal acho o termo “lógica hege-
ria de seu centenário, em http://bit.ly/maOB5H. um ao outro. mônica” um pouco abstrato e teórico
Neste meio tempo, a edição 297, de 15-6-2009,
Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, também demais. Mas suspeito – transpondo
retomou o tema e está disponível para download Encontro entre Inácio e Lu- o hiato cultural – que basicamente
em http://bit.ly/o2e8cX. Além de diversos artigos
sobre o pensamento do teólogo ao longo do tero?
tempo, destacamos também o Cadernos Teolo-
gia Pública n° 5, Conceito e Missão da Teologia pudiado contundentemente este apelido. Esta va-
em Karl Rahner, do Prof. Erico Hammes, disponível Inácio não nos deixou qualquer riante do Protestantismo viria a ser bem-sucedida
em http://bit.ly/18XbPcU. Em 2014 a IHU On-Li- registro de um encontro com um em países como a Suíça (país de origem), Países
ne publicou a edição 446, intitulada Karl Rahner. Baixos, África do Sul (entre os africânderes), In-
A busca de Deus a partir da contemporaneidade, luterano (embora houvesse muitos glaterra, Escócia e Estados Unidos. Leia, também,
disponível em http://bit.ly/112CjfG. (Nota da IHU a edição 316 da IHU On-Line intitulada Calvino
On-Line) simpatizantes em Paris quando ele - 1509-1564. Teólogo, reformador e humanista,
4 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e estava lá, e na verdade João Calvi- disponível em http://bit.ly/1oBIrpn. (Nota da IHU
matemático francês. Notabilizou-se sobretudo On-Line)
pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, ten- no5). Sua preocupação principal era 6 Pierre Favre (1506-46): jesuíta nascido na Sa-
do também sido famoso por ser o inventor do sis- boia, amigo do fundador da Companhia de Jesus,
tema de coordenadas cartesiano, que influenciou Inácio de Loyola. É considerado pelo papa Fran-
o desenvolvimento do cálculo moderno. Descar- posição filosófica dos séculos 17 e 18 na Europa. cisco como seu jesuíta preferido. Foi canonizado
tes, por vezes chamado o fundador da filosofia e (Nota da IHU On-Line) pela Papa em 17/12/2013, dia em que o pontí-
da matemática modernas, inspirou os seus con- 5 João Calvino (1509-1564): teólogo cristão fran- fice completou 77anos. Antes, em 1872, foi be-
temporâneos e gerações de filósofos. Na opinião cês, teve uma influência muito grande durante atificado pelo papa Pio IX (1846-1878). Francisco
de alguns comentadores, ele iniciou a formação a Reforma Protestante e que continua até hoje. declarou o jesuíta santo antes mesmo de a Con-
daquilo a que hoje se chama de racionalismo con- Portanto, a forma de Protestantismo que ele en- gregação para as Causas dos Santos validar um
tinental (supostamente em oposição à escola que sinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome milagre obtido por sua intercessão. (Nota da IHU
predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), Calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse re- On-Line)

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

eu responderia à pergunta afirma- entre luteranos e católicos? E neos querelantes. Assim como
tivamente. Eu voltaria ao efeito da no que esses movimentos po- a missa, tenho o bendito sacra-
leitura, à maneira como a imagina- dem contribuir para ampliar mento permanentemente na
cela, e muitas vezes falo com o
ção das pessoas deve ter ficado – de o diálogo inter-religioso para
Senhor sobre você. Ele está nos
formas que são difíceis de imaginar além do cristianismo? consagrando aqui para uma
retrospectivamente – mais rica e nova missão.
Philip Endean – O ecumenismo
mais complexa à medida que livros
moderno – como destaca Do conflito O nazismo e o que ele traz consigo
impressos se tornaram comparati-
à comunhão – vive em um mundo marcam a passagem de um mundo
vamente disponíveis de maneira am-
que de algumas formas é muito dife- em que as confissões cristãs podem
pla. O resultado é que a autoridade
externa da igreja tinha de coexistir rente do século XVI. Para mim, uma operar separadamente. Agora nos
de algum modo com o que se podia figura profética é o jesuíta Alfred deparamos com novos desafios – e
encontrar no texto do Evangelho e na Delp (1907-1945)7, enforcado pelos em particular provavelmente preci-
mente e no coração de seus leitores nazistas por sua participação em samos reconhecer as limitações bem
e leitoras quando deixavam o texto um trabalho de resistência de pouca como os pontos fortes da moderni-
operar dentro deles e delas. Lutero e gravidade. Ele ficou na prisão pouco dade ocidental para a qual Lutero e
seu movimento foram para o cisma; mais de seis meses, e durante parte Inácio servem como símbolos reli-
Inácio e os primeiros jesuítas, junto do tempo teve condições de escrever. giosos complementares.
com muitas outras figuras reforma- Uma das cartas que temos foi diri-
gida a um luterano comprometido, O que isso significa é algo que temos
doras do catolicismo da modernidade de descobrir juntos. Hesito em dizer
incipiente, tentaram assumir os desa- Eugen Gerstenmaier (1906-1986)8,
e começa com um agradecimento demais aos latino-americanos sobre o
fios de manter a tensão unida. colapso contemporâneo do consenso
por um presente de Natal, qualquer
As respostas diferentes que eles que pudesse ele ter sido em 1944 sob político na Europa e nos EUA – sus-
deram às perguntas moldaram nos- peita-se que o Brasil já tenha estado
condições de prisão:
sa mitologia, particularmente na há várias gerações na extremidade
medida em que reforçaram outros E quando sairmos de novo, va- errada dos excessos do capitalismo
tipos de conflito entre grupos étni- mos mostrar que esse presen- liberal. Mas a globalização e o estado
58 te representava e representa
cos (penso, por exemplo, na história de nossa ecologia certamente colocam
recente da Irlanda). Mas, falando em mais do que um relacionamento desafios com os quais nossos para-
pessoal. Teremos de continuar digmas modernos não conseguem
termos teológicos, o aspecto signifi-
carregando o fardo das igrejas
cativo talvez seja que eles estavam mais lidar. A necessidade de diálogo
divididas como fardo e como
respondendo ao mesmo tipo de per- herança. Mas isso nunca mais inter-religioso – o diálogo que hon-
gunta. Como se lida com os conflitos deveria desacreditar a Cristo. ra nossas convicções de fé ao mesmo
em potencial entre as diferentes for- Eu tenho tão pouca crença como tempo que dá, de algum modo, espaço
mas pelas quais a palavra de Deus você em mixórdias idealistas. apropriado para as pessoas que creem
vem até nós? Esse tipo de pergunta Mas o Cristo uno é indiviso, e de maneira diferente ou nem creem –
adquiriu proeminência de uma for- onde o amor indiviso nos leva também faz parte disso. Ao menos, se
a ele, muita coisa ficará melhor
ma inteiramente nova no início do pudermos ver Lutero e Inácio como
para nós do que para nossos
século XVI. E ela ganhou novas for- predecessores e contemporâ- filhos de seu tempo, poderemos ficar
mas à medida que a alfabetização e livres para pensar de maneira nova
as comunicações continuaram a se 7 Alfred Delp (1907-1945): padre jesuíta alemão e criativa sobre a nova missão para a
desenvolver. executado por sua resistência ao regime nazista. qual podemos esperar que Deus já nos
(Nota da IHU On-Line)
8 Eugen Karl Albrecht Gerstenmaier (1906-1986): tenha consagrado. E para fazer isso
foi um teólogo evangélico alemão, combatente da
resistência no Terceiro Reich e um político da CDU juntos, para além das polaridades que
IHU On-Line – Como o senhor (União Democrata Democrata da Alemanha). De serviram a qualquer propósito que al-
1954 a 1969, ele foi o 3º presidente do Bundestag,
analisa a atual aproximação o parlamento alemão. (Nota da IHU On-Line) guma vez tiveram.■

Leia mais
- Inácio de Loyola em perspectiva luterana. Artigo de Philip Endean, reproduzido nas No-
tícias do Dia de 19-7-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2gFVskW.
- Lutero e Inácio de Loyola mudaram o cristianismo do século XVI. Reportagem publica-
da em Notícias do Dia de 29-10-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dispo-
nível em http://bit.ly/2h4nWS3.

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

A inversão da mística medieval


Para Marco Vannini, a mística luterana está centrada num
“saber” absoluto a partir da leitura da Bíblia
João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto

O
cristianismo tradicional chega ao inversão da mística do seu tempo, inaugu-
fim com a cisão que se dá a partir ra o que o professor compreende como “o
da insurgência de Martinho Lu- advento do eu”. “Daí a passagem ao senti-
tero. Mas quais as consequências? Para mentalismo religioso, com o qual o valor
Marco Vannini, reconhecido estudioso de de verdade da própria religião perde-se
mística, a divisão “abre caminho ao indivi- completamente: desaparecem conceitos
dualismo religioso, cujo último resultado é e experiências essenciais como conversão,
aquele tipo de religião ‘faça-você-mesmo’ renascimento, graça”, analisa.
que estamos assistindo nos nossos tem-
Marco Vannini é filósofo italiano, de-
pos”. Crítico de perspectivas protestantes,
dica-se há 50 anos ao estudo da mística.
destaca que Lutero inverte a mística que
vigorava ao longo de toda a Idade Média. Editou toda a obra de Meister Eckhart, ao
“Enquanto a mística medieval chegava à lado de muitos outros autores germâni-
humildade do ‘nada saber, nada querer’, cos (Suso, Tauler, Franck, Denck, Weigel,
Lutero, ao contrário, apoia sobre a sua in- Czepko, Silesius) e de outras nacionalida-
terpretação da Bíblia um ‘saber’ absoluto, des (Porete, Gerson, Fénelon, Guyon). Do
seu percurso intelectual, são particular- 59
enquanto, paralelamente, a ‘salvação’ ex-
pressa a permanência absoluta da vontade mente significativos os estudos: Dialetti-
pessoal”, dispara, na entrevista concedida ca della fede (Le Lettere, 2011); Mistica e
por e-mail à IHU On-Line. filosofia (Le Lettere, 2007); Prego Dio che
mi liberi da Dio. La religione come verità
Vannini ainda lembra que o rompimen-
e come menzogna (Bompiani, 2010); Ol-
to não se dá só a partir da experiência lu-
tre il cristianesimo. Da Eckhart a Le Saux;
terana, é algo que vem sendo tensionado.
All’ultimo papa. Lettere sull’amore, la gra-
Para ele, a história do monge agostiniano
zia, la libertà ( Bompiani, 2013) e o recen-
não pode ser tomada como caso isolado.
tíssimo Contro Lutero e il falso evangelo (
“Trata-se da história típica da heresia do
Lorenzo de Medici Press, 2017). A sua In-
Livre Espírito, que interpretava o ensina-
troduzione alla mistica foi traduzida para
mento da mística medieval sobre o fim
português: Introdução à Mística (São
da egoidade precisamente como Lutero
fez, ou seja, como ato extremo de apro- Paulo: Edições Loyola, 2005).
priação”, explica. Assim, partindo dessa Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consis- dele, ela abria mão da Escritura e esta- um uso absolutamente instrumental,
te a mística evangélica presente belecia uma relação homem-Deus sem tomando aquilo que lhe serve e dei-
em Lutero? Como concebe uma mediação bíblica e, portanto, também xando de lado ou até mesmo conde-
ideia de reforma a partir do sem Jesus Cristo. A sua ideia de Re- nando aquilo que não lhe serve ou que
Evangelho? forma baseia-se não tanto no Evan- até é contra a sua teologia.
Marco Vannini – A mística está gelho, mas sim nas epístolas paulinas
fortemente presente no jovem Lutero, e, particularmente, na epístola aos
mas depois o Reformador resoluta- Romanos, considerada por ele como IHU On-Line – Em que medi-
mente se distanciou dela, condenando “o evangelho mais puro”. Dos Evan- da Lutero de fato rompe com a
-a de forma decisiva, pois, na opinião gelhos e da Bíblia em geral, Lutero faz mística medieval?

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

Marco Vannini – Lutero rompe vontade pessoal. Deve-se notar que o verdadeira continuação da filosofia
com a mística medieval simplesmen- que aconteceu com ele absolutamen- clássica, e esse é também o motivo
te invertendo-a. Através do seu supe- te não é um caso isolado. De fato, pelo qual Lutero a rejeita.
rior e mestre, Johann von Staupitz1, trata-se da história típica da heresia
A mística alemã é alemã apenas
ele conhecera Tauler2 e o Anônimo de do Livre Espírito5, que interpretava
pela sua história medieval. Na ver-
Frankfurt (aquele que ele imprimiria o ensinamento da mística medieval
dade, ela é universal, parte da an-
como Teologia Alemã), em relação ao sobre o fim da egoidade precisamen-
tiguidade cristã, dos alexandrinos
qual se expressa com o apreço mais te como Lutero fez, ou seja, como ato
como Clemente8 e Orígenes9, e assim
alto, comparando-o até com Santo extremo de apropriação.
por diante: podemos citar Máximo10,
Agostinho3. De fato, tinha bem rece-
o Confessor, que fala de “seguir a fi-
bido o ensino fundamental dele, que
IHU On-Line – De que forma losofia de Cristo, exercitando-se em
é o do desapego e do fim da egoidade
podemos compreender a místi- morrer”. Recordemos que a defini-
apropriativa (a Eigenschaft), só que,
ca alemã? E que mística é essa ção da filosofia como “exercício de
nele, essa descoberta se torna elemen-
antes e depois da Reforma Lu- morte” é de Platão11.
to supremo de autoafirmação. Optimi
corruptio pessima, como diz Gregó- terana? No entanto, na Idade Média ger-
rio Magno4: paradoxalmente, de fato, Marco Vannini –Aquela que mânica, o principal expoente é Meis-
aquilo que era o aprofundamento na é chamada convencionalmente de ter Eckhart, com os seus discípulos
humildade torna-se orgulho desmedi- “mística alemã” (os franceses pre- dominicanos diretos, Suso12 e Tau-
do, por força do qual Lutero apresen- ferem dizer “mystique rhénane”)
ta o “seu” evangelho como a verdade, distingue-se pela sua característica conhecido como Mestre Eckhart, em reconheci-
acima e contra todos. eminentemente racional, ao contrá- mento aos títulos acadêmicos obtidos durante
sua estadia na Universidade de Paris, foi um frade
rio de místicas mais inclinadas ao dominicano, reconhecido por sua obra como te-
Enquanto a mística medieval che- ólogo e filósofo e por seu misticismo. Ele é con-
gava à humildade do “nada saber, sentimento e à sensibilidade. Nes- siderado como um dos grandes símbolos do es-
pírito intelectual da idade média. Para saber mais,
nada querer”, Lutero, ao contrário, se sentido, Pierre Hadot6 tem razão acesse o link http://bit.ly/2zht3sS .(Nota da IHU
apoia sobre a sua interpretação da quando escreve que a mística espe- On-Line)
8 Clemente de Alexandria (ou Tito Flávio Cle-
Bíblia um “saber” absoluto, enquan- culativa de Eckhart7 e arredores é a mente): escritor, teólogo, apologista cristão grego
60 nascido em Atenas. Pesquisou as lendas menos
to, paralelamente, a “salvação” ex- compatíveis com os valores cristãos. Sua abertu-
5 O entrevistado associa com os ideiais dos Ir- ra a fontes familiares aos não cristãos ajudou a
pressa a permanência absoluta da mãos do Livre Espírito. Foi um movimento lei- tornar o cristianismo mais aceitável para muitos
go cristão que floresceu no norte da Europa nos deles. Clemente foi um erudito numa época em
séculos XIII e XIV. Antinomianos e individualistas que os cristãos eram geralmente pouco letrados
1 Johann von Staupitz (1460-1524): foi um teó- na vigilância, entraram em conflito com a Igreja e abertamente hostis a intelectuais. Não obstante,
logo católico romano, pregador da universidade Católica e foram declarados heréticos pelo papa foi capaz de construir argumentos lógicos con-
e vigário geral dos frades agostinianos na Alema- Clemente V no Concílio de Vienne (1311-1312). vincentes, baseados nas escrituras e na filosofia,
nha, que supervisionou Martinho Lutero durante Eles são frequentemente considerados seme- a favor do cristianismo e contra os gnósticos de
um período crítico em sua vida espiritual. O pró- lhantes aos amalricanos. Floresceram em um Valentim, que, baseados em Alexandria - o mais
prio Lutero teria comentado: “Se não tivesse sido momento de grande trauma na Europa Ocidental importante centro de atividade intelectual da
o Dr. Staupitz, eu deveria ter sumido no inferno”. durante o conflito entre o decadente Papado de época - estavam em plena expansão. (Nota da
Embora Staupitz tenha morrido como um monge Avinhão e o Sacro Império Romano-Germânico, a IHU On-Line)
beneditino e tenha repudiado a Reforma, ele é Guerra dos Cem Anos, a Peste Negra, o aumento 9 Orígenes de Alexandria ou Orígenes, o Cris-
comemorado no dia 8 de novembro como sacer- das heresias dos cátaros e a subsequente Cruza- tão (185-253): foi um teólogo, filósofo neoplatô-
dote no calendário dos santos da Igreja Luterana. da albigense, o início da Inquisição, a queda dos nico patrístico e é um dos Padres gregos. Um dos
(Nota da IHU On-Line) Templários e o Cisma do Ocidente - que ajudaram mais distintos pupilos de Amônio de Alexandria,
2 Johannes Tauler (1300-1361): místico alemão, a alimentar o apelo de sua abordagem individua- Orígenes foi um prolífico escritor cristão, de gran-
pregador e teólogo católico. Foi discípulo de lista e milenar para o cristianismo e as Escrituras. de erudição, ligado à Escola Catequética de Ale-
Meister Eckhart, pertencia à ordem dominicana. Naquele momento de crise dentro da Igreja e da xandria. (Nota da IHU On-Line)
Tauler desenvolveu certa dimensão neoplatonis- sociedade como um todo, houve uma forte sen- 10 Máximo, o Confessor (580-662): também co-
ta na espiritualidade dominicana de seu tempo. sação de que o Fim do Mundo estava próximo e nhecido como Máximo, o Teólogo e Máximo de
(Nota da IHU On-Line) por isso a questão da espiritualidade do homem Constantinopla, foi um monge e teólogo cristão.
3 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido e da salvação tornaram-se cada vez mais impor- No início de sua vida foi servidor civil e ajudante
como Santo Agostinho, foi um dos mais impor- tante. Onde as pessoas deixaram de encontrar as do imperador bizantino Heráclio, porém desistiu
tantes teólogos e filósofos dos primeiros anos do respostas espirituais que procuraram a partir de da vida política para se dedicar ao monasticis-
cristianismo, cujas obras foram muito influentes Roma, os movimentos dissidentes, como os Ir- mo. É considerado um dos Pais da Igreja, grega
no desenvolvimento do cristianismo e da filosofia mãos surgiram em toda a Europa pregando uma (Oriental) e cristã. (Nota da IHU On-Line)
ocidental. Escrevendo na era patrística, ele é con- visão alternativa do cristianismo. Como a maioria 11 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Cria-
siderado o mais importante dos padres da Igreja das heresias, entraram em choque com a Igreja e dor de sistemas filosóficos influentes até hoje,
no Ocidente. Suas obras-primas são A cidade de sofreram perseguição considerável nas mãos das como a Teoria das Ideias e a Dialética. Discípulo
Deus e Confissões. (Nota da IHU On-Line) autoridades temporais e espirituais da época por de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre
4 Papa Gregório I: conhecido como Gregório meio da Inquisição. (Nota da IHU On-Line) suas obras, destacam-se A República (São Paulo:
Magno ou Gregório, o Grande foi papa entre 3 de 6 Pierre Hadot (1922-2010): filósofo francês, é Editora Edipro, 2012) e Fédon (São Paulo: Martin
setembro de 590 e sua morte, em 12 de março de um dos coautores do livro Dicionário de ética e Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As
604. É conhecido principalmente por suas obras, Filosofia Moral (São Leopoldo: Unisinos, 2003). implicações éticas da cosmologia de Platão, con-
mais numerosas que as de seus predecessores. Suas pesquisas concentraram-se primeiramente cedida pelo filósofo Marcelo Perine à edição 194
Gregório é também conhecido como Gregório, o nas relações entre helenismo e cristianismo, em da revista IHU On-Line, de 04-09-2006, disponí-
Dialogador na Ortodoxia por causa de seus “Di- seguida, na mística neoplatônica e na filosofia da vel em http://bit.ly/pteX8f. Leia, também, a edição
álogos” e é por isso que seu nome aparece em época helenística. Elas se orientam atualmente 294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, in-
algumas obras listado como “Gregório Dialogus”. para uma descrição geral do fenômeno espiritual titulada Platão. A totalidade em movimento, dis-
Foi o primeiro papa a ter sido monge antes do que a filosofia representa. Em português, pode ser ponível em http://bit.ly/2j0YCw8. (Nota da IHU
pontificado. Gregório é reconhecido como um lido o livro de sua autoria O que é a filosofia an- On-Line)
Doutor da Igreja e um dos Padres latinos. É tam- tiga? (São Paulo: Loyola, 1999). Para uma resenha 12 Heinrich Seuse: também chamado Amandus,
bém venerado como santo por católicos, ortodo- da obra, confira a revista Síntese 75 (1996), p. 547- que adotou nos seus escritos, e Heinrich (de) Suso
xos, anglicanos e alguns luteranos. Foi canoni- 551. A resenha do original francês é de Henrique em alemão, Henrique (de) Suso em português, foi
zado assim que morreu, por aclamação popular, C. de Lima Vaz. Em português, foi publicado, em um místico e teólogo germânico, declarado beato
como era o costume. O reformador protestante novembro de 2014, o seu livro Exercícios Espiritu- em 1831 pelo Papa Gregório XVI. Suso e o seu
João Calvino admirava Gregório e declarou em ais e Filosofia Antiga (É Realizações Editora). (Nota amigo dominicano Johann Tauler eram discípulos
seus “Institutos” que ele teria sido o “último bom da IHU On-Line) de Mestre Eckhart, também dominicano que for-
papa”. (Nota da IHU On-Line) 7 Eckhart de Hochheim, O.P. (1260-1328): mais maram Os amigos de Deus, núcleo da que veio a

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ler13. Já recordamos a chamada Teo- o definiu. Enfim, podem-se destacar tio omnis alteritatis et diversitatis,
logia Alemã, cujo verdadeiro título, como alguns elementos essenciais como dizia Nicolau de Cusa23. Ou
porém, é Livreto da Vida Perfeita, da mística medieval alemã passa- seja, a superação da alteridade ho-
escrito precisamente para defender ram para a filosofia do Romantismo mem-Deus, para sustentar outra
a reta doutrina de Eckhart da inter- e, acima de tudo, daqueles filósofos completamente diferente, de ordem
pretação licenciosa que dela faziam idealistas como Fichte20, Schelling21, sentimental. Por isso, é óbvia a rejei-
os irmãos e irmãs do Livre Espírito. Hegel22, aos quais também se deve a ção das imagens, como é próprio da
redescoberta dessa mística. tradição judaica, e do próprio cruci-
Depois de Lutero, podemos lem-
fixo, que expressam visualmente a
brar os seus contemporâneos Hans
união humano-divina.
Denck14 e Sebastian Franck15, ambos IHU On-Line – Pode-se fa-
primeiro católicos, tendo depois pas- lar em uma mística luterana?
sado ​​ao luteranismo, mas que, em Quais seriam suas caracterís- IHU On-Line – Qual a questão
seguida, saíram dele com horror. De- ticas centrais? Como compre- de fundo que há na recusa, feita
pois, devemos citar Valentin Weigel16, ender a recusa a imagens e à por Lutero, da fonte grega das
que foi pastor protestante exterior- própria representação do cru- escrituras?
mente, mas interiormente distante cificado?
de Lutero, razão pela qual não publi- Marco Vannini – Lutero odeia a
cou os seus escritos. Por fim, no sé- Marco Vannini – Pode-se fa- razão, odeia o universal da filosofia,
culo XVII, Daniel Czepko17 e Angelus lar de mística luterana assim como porque, obviamente, ela destrói a
Silesius18, cujo Peregrino Querubíni- se pode falar de mística judaica, ou pretensão exclusivista do “seu evan-
co é realmente uma síntese da mística seja, invertendo o sentido próprio e gelho”. Por isso, ele nega a “fonte
cristã, com Hans Urs von Balthasar19 essencial de mística, que é a abla- grega” (como dizia Simone Weil24) da
Escritura, tratando-a ao seu arbítrio.
É o que também lhe criticam muitos
ser conhecida como escola de misticismo renano. angústia (1951), O mistério das origens (1957), O
Como poeta lírico e trovador da sabedoria divi- problema de Deus no homem atual (1958) e Teo- que, nas origens, o seguiram, como,
na, Suso explorou com intensidade psicológica as logia da história (1959). A edição 193 da IHU On por exemplo, Hans Denck e Sebas-
verdades espirituais da filosofia mística de Eckart. -Line, de 28-08-2006, Jorge Luis Borges. A virtude
As suas obras devotas foram imensamente po- da ironia na sala de espera do mistério publicou tian Franck, que define a Escritura
pulares nos finais da Idade Média. (Nota da IHU uma entrevista com Ignácio J. Navarro, intitulada como “nariz muito dúctil, que pode 61
On-Line) Borges e Von Balthasar. Uma leitura teológica, dis-
13 Johannes Tauler (1300-1361): místico alemão, ponível no link http://www.unisinos.br/ihuonline/ ser puxado de qualquer modo e fazer
pregador e teólogo católico. Foi discípulo de uploads/edicoes/1158343116.57pdf.pdf. (Nota da
Meister Eckhart, pertencia à ordem dominicana. IHU On-Line) com que diga sim e não à vontade”.
Tauler desenvolveu certa dimensão neoplatonis- 20 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): filósofo
ta na espiritualidade dominicana de seu tempo. alemão. Exerceu forte influência sobre os repre-
(Nota da IHU On-Line) sentantes do nacionalismo alemão, assim como
14 Hans Denck (1495-1527): foi teólogo, líder sobre as teorias filosóficas de Schelling, Hegel e IHU On-Line – Como se dá a
anabatista e reformador alemão. Líder dos ana- Schopenhauer. Fichte decidiu devotar sua vida à
batistas da Alemanha, embora de caráter espiri- filosofia depois de ler as três Críticas de Immanuel relação entre a teologia de Lu-
tualista, Hans Denck estabeleceu sua confissão de Kant, publicadas em 1781, 1788 e 1790. Sua inves-
fé no dia 14 de janeiro 1525, quando afirmou que tigação obteve a aprovação de Kant, que pediu a tero e a filosofia antiga? Como
a sua fé havia sido implantada desde a infância seu próprio editor que publicasse o manuscrito. compreender as diferenças que
pelos seus pais. Em 1517, matriculou-se na Uni- O livro surgiu em 1792, sem o nome e o prefácio
versidade de Ingolstadt, onde se formou Bacharel do autor, e foi saudado amplamente como uma tem de Aristóteles25 a Tomás de
em Artes dois anos depois. Mais tarde estudou na nova obra de Kant. Quando Kant esclareceu o
Universidade de Basileia. (Nota da IHU On-Line) equívoco, Fichte tornou-se famoso do dia para a
15 Sebastian Franck (1499-1543): foi um escritor noite e foi convidado a lecionar na Universidade 23 Nicolau de Cusa (1401-1464): teólogo ale-
e pensador alemão renascentista. Foi um huma- de Jena. Fichte foi um conferencista popular, mas mão. Secundou a ação dos papas na Alemanha.
nista e reformista radical. (Nota da IHU On-Line) suas obras teóricas são difíceis. Acusado de ateís- Estudou na Universidade de Heidelberg, foco do
16 Valentin Weigel (1533-1588): era um teólogo mo, perdeu o emprego e mudou-se para Berlim. nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu Ma-
alemão, filósofo e escritor místico da Saxônia e Seus Discursos à nação alemã são sua obra mais temática, Direito e Astronomia. Ordenado padre,
um importante precursor da teosofia posterior. conhecida. (Nota da IHU On-Line) teve parte notável no concílio de Basileia (1432). A
(Nota da IHU On-Line) 21 Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm Joseph seguir, foi legado pontifício, cardeal, bispo. Viveu
17 Daniel Czepko von Reigersfeld: foi um poeta von Schelling, 1775-1854): filósofo alemão. Suas seus últimos anos na Itália. As obras fundamentais
e dramaturgo alemão. As obras mais importan- primeiras obras são geralmente vistas como um de Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia,
tes de Czepko são os versos Cicondon e Phyllis, elo importante entre Kant e Fichte, de um lado, e De conjecturis, Apologia doctae ignorantiae. (Nota
9222, que ele considerou seu principal, bem como Hegel, de outro. Essas obras são representativas da IHU On-Line)
a coleção do poema Sexcenta Monodisticha Sa- do idealismo e do romantismo alemães. Criticou 24 Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã fran-
pientium, que é o antecessor do vagabundo que- a filosofia de Hegel como “filosofia negativa”. cesa. Centrou seus pensamentos sobre um aspec-
rubiano de Angelus Silesius. Nesta coleção de Schelling tentou desenvolver uma “filosofia po- to que preocupa a sociedade até os dias de hoje:
epigramas, composta entre 1640 e 1647, Czepko sitiva”, que influenciou o existencialismo. Entrou o tormento da injustiça. Vítima da tuberculose,
reproduz seus pontos de vista filosóficos religio- para o seminário teológico de Tübingen aos 16 recusou-se a se alimentar, para compartilhar o
sos e naturais sob a influência de Paracelsus e os anos. (Nota da IHU On-Line) sofrimento de seus irmãos franceses que haviam
misticistas de Eckhart e Jakob Boehm. Por esta 22 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): permanecido na França e viviam os dissabores da
razão, a maioria dos escritos de Czepko caiu em filósofo alemão idealista. Como Aristóteles e San- Segunda Guerra Mundial. Sobre Weil, confira as
censura e permaneceu inédito durante a vida. to Tomás de Aquino, desenvolveu um sistema fi- edições 84, de 17-11-2003, Simone Weil Palavra
(Nota da IHU On-Line) losófico no qual estivessem integradas todas as Viva, disponível em http://bit.ly/tZSCDr; 168, de
18 Angelus Silesius (1624-1667): pseudônimo de contribuições de seus principais predecessores. 12-12-2005, Hannah Arendt, Simone Weil e Edith
Johannes Scheffler, poeta germânico, nascido em Sobre Hegel, confira a edição 217 da IHU On-Li- Stein. Três mulheres que marcaram o século XX,
1624 em Breslau, Polônia, e falecido na mesma ci- ne, de 30-4-2007, disponível em https://goo.gl/ disponível em http://bit.ly/v0aMxT; 313, de 3-11-
dade em 1667. (Nota da IHU On-Line) m0FJnp, intitulada Fenomenologia do espírito, de 2009, Filosofia, mística e espiritualidade. Simone
19 Hans Urs Von Balthasar (1905-1988): teólogo (1807-2007), em comemoração aos 200 anos de Weil, cem anos, disponível em http://bit.ly/w374lt.
católico suíço. Estudou Filosofia em Viena, Ber- lançamento dessa obra. Veja ainda a edição 261, (Nota da IHU On-Line)
lim e Zurique, onde doutorou-se em 1929, e em de 9-6-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. 25 Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filó-
Teologia em Munique e Lyon. Destacou-se como Um novo modo de ler Hegel, disponível em ht- sofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões
investigador dos santos padres e da Filosofia e tps://goo.gl/D94swr; Hegel. A tradução da histó- filosóficas – por um lado, originais; por outro, re-
Literatura modernas, especialmente a franco-ger- ria pela razão, edição 430, disponível em https:// formuladoras da tradição grega – acabaram por
mana. Criou sua própria Teologia, síntese origi- goo.gl/62UATd e Hegel. Lógica e Metafísica, edição configurar um modo de pensar que se estenderia
nal do pensamento patrístico e contemporâneo. 482, disponível em https://goo.gl/lldAkv. (Nota da por séculos. Prestou significativas contribuições
Entre suas obras destacam-se O cristianismo e a IHU On-Line) para o pensamento humano, destacando-se nos

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

Aquino26, de Erasmo de Rotter- neste caso, às Escrituras. De acordo gia luterana e como compreen-
dam27 a Thomas Müntzer28? com Lutero, a filologia destrói a fé, dê-los?
e isso dá a medida exata do que ele
Marco Vannini – Infelizmente, Marco Vannini – A fé é para Lu-
entende por “fé”.
Lutero teve uma formação filosófica de tero uma crença: em extrema sínte-
tipo escolástico em um tempo em que a Em Müntzer ainda vive algo da mís- se, a crença de que Cristo morreu pe-
Escolástica29 já tinha dado os seus me- tica medieval, sobretudo a ideia de que los nossos pecados e pode, por isso,
lhores frutos e estava, então, esgotada a luz divina se comunica ao homem “salvar-nos”. Contra esse conceito de
em sutilezas e formalismos lógicos que ohne mittel, sem mediação, e critica fé, obviamente oposto à razão e à ci-
pouco ou nada tinham a ver com a filo- Lutero pelo uso inescrupuloso da Bí- ência, há na história do cristianismo
sofia em sentido forte, clássico. De fato, blia, sem contar aqueles resultados outro conceito de fé, que é precisa-
desta última, Lutero só tinha notícias revolucionários que levaram Müntzer mente o da mística e que também se
de segunda mão. Isso explica, pelo me- a apoiar a revolta dos pobres campo- encontra em grandes filósofos, como
nos em parte, o seu ódio contra Aristó- neses alemães contra os príncipes, Hegel. É a fé não como crença, subs-
teles e Tomás de Aquino, vistos como tanto eclesiásticos quanto leigos. Lu- titutiva das certezas racionais, mas
pilares da Escolástica católica, mas, na tero, como se sabe, apoiou a repressão sim, ao contrário, como desapego.
realidade, Lutero odeia a filosofia, de- senhoril: ele se felicitou com a morte Desapego como o voltar-se da inte-
finida como “puta do diabo”, porque, atroz de Müntzer, de um modo certa- ligência ao Absoluto e, por isso mes-
como se disse acima, ele odeia razão mente muito pouco evangélico. mo, afastamento de todo relativo, de
como tal, já que ela varre a sua teologia. toda crença.

Pelo mesmo motivo, ele odeia Eras- IHU On-Line – Como o se- Por isso, São João da Cruz30 afirma
mo de Roterdã: Erasmo é a filologia, nhor compreende o verdadeiro que a fé não dá nenhuma noção ou
ou seja, a razão aplicada aos textos e, Evangelho e no que consiste a ciência, mas, ao contrário, retira toda
ideia do “falso Evangelho”? noção e ciência e conduz à noite, ao
campos da ética, política, física, metafísica, lógica, nada, que nada mais é do que o “nada
psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e Marco Vannini – Evangelho é saber” (Nichtwissen) da mística me-
história natural. É considerado, por muitos, o filó-
sofo que mais influenciou o pensamento ociden- uma palavra grega, não hebraica, e dieval alemã. O saber – que, no fim, é
62 tal. (Nota da IHU On-Line) significa “boa notícia”. A boa notí-
26 Tomás de Aquino (1225-1274): padre domi- um pretenso saber – é o que estabele-
nicano, teólogo, distinto expoente da escolás- cia é a da realidade e da presença de ce a alteridade de Deus, ou seja, a dis-
tica, proclamado santo e cognominado Doctor
Communis ou Doctor Angelicus pela Igreja Cató- Deus, luz eterna, que, sobre tudo e tância do Ser e do Bem, já que há um
lica. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo sobre todos, se efunde, e que todos
com a visão aristotélica do mundo, introduzindo sujeito que “sabe” e um objeto sabido,
o aristotelismo, sendo redescoberto na Idade Mé- podem acolher, sem distinção de que neste caso, seria Deus (sic!). A fé
dia, na escolástica anterior. Sistematizou o conhe-
cimento teológico e filosófico de sua época em povo, raça, língua, religião etc. As- como desapego, desapego infinito,
suas duas Summae: Summa Theologiae e Summa sim o entendem os místicos medie-
Contra Gentiles. (Nota da IHU On-Line) retira toda pretensão idolátrica, faz o
27 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo e vais, como Eckhart, para quem “os vazio na nossa alma, tornando-a final-
humanista neerlandês, conhecido como Erasmo
de Roterdã. Seu principal livro foi Elogio da lou- mestres pagãos conheceram a ver- mente acessível à luz divina. Esse é um
cura. Erasmo cursou o seminário com os monges
agostinianos e realizou os votos monásticos aos dade antes da fé cristã”. conceito de fé eminentemente racio-
25 anos, vivendo como tal, sendo um grande crí- nal, tanto que, na literatura sagrada da
tico da vida monástica e das características que Falso evangelho é a ideologia para a
julgava negativas na Igreja Católica. Optou por
qual existe um Deus ciumento, que só Índia, paradoxalmente, pode-se dizer
uma vida de acadêmico independente - indepen-
dente de país, independente de laços académicos, se mostra a alguns povos ou pessoas, que: “Quem não tem fé não pensa: só
de lealdade religiosa - e de tudo que pudesse
interferir com a sua liberdade intelectual e a sua “salva” apenas alguns, de acordo com a pensa quem tem fé”.
expressão literária. (Nota da IHU On-Line)
28 Thomas Müntzer (1490-1525): foi um dos pri- sua adesão ou não a uma fé, a uma dou- A ética luterana é próxima à da
meiros teólogos alemães da era da Reforma, ele trina e/ou a uma comunidade religiosa.
se tornou um líder rebelde durante a Guerra dos mística medieval germânica (e isso
Camponeses. Müntzer virou-se contra Lutero, com Esse é exatamente o caso de Lutero, en- explica como tantos estudiosos pu-
vários escritos contra ele, e apoiou os anabatistas.
Na Batalha de Frankenhausen, Müntzer e seus se- quanto homens como Sebastian Fran- deram chamar esta última de “pré
guidores foram derrotados. Ele foi capturado, tor- ck pensam que há um “Cristo implíci-
turado e decapitado. (Nota da IHU On-Line)
29 Escolástica: linha dentro da filosofia medieval, to” em todos os homens que amam o 30 João de Yepes ou São João da Cruz (1542-
de acentos notadamente cristãos, surgida da ne- 1591): ingressou na Ordem dos Carmelitas aos
cessidade de responder às exigências da fé, ensina- Bem, sejam eles pagãos, turcos, judeus 21 anos de idade, em 1563, quando recebe o
da pela Igreja, considerada então como a guardiã ou qualquer outra coisa, mesmo que nome de Frei João de São Matias, em Medina del
dos valores espirituais e morais de toda a Cristan- Campo. Em setembro de 1567, encontrou-se com
dade, por assim dizer, responsável pela unidade nunca tenham ouvido falar de Cristo. Santa Teresa de Jesus, que lhe falou sobre o pro-
de toda a Europa, que comungava da mesma fé. jeto de estender a Reforma da Ordem Carmelita
Esta linha vai do começo do século IX até ao fim Eles receberam a “boa notícia” não a também aos padres. Aceitou o desafio e trocou o
do século XVI, ou seja, até ao fim da Idade Média. partir de uma escuta exterior, mas sim nome para João da Cruz. No dia 28 de novembro
Este pensamento cristão deve o seu nome às artes de 1568, juntamente com Frei Antônio de Jesús
ensinadas na altura pelos escolásticos nas escolas da voz interior do Espírito, que habita Heredia, iniciou a Reforma. No dia 25 de janeiro
medievais. Estas artes podiam ser divididas em de 1675, foi beatificado por Clemente X. Cano-
Trivium (gramática, retórica e dialéctica) e Quadri- em cada ser humano. nizado em 27 de dezembro de 1726 e declarado
vium (aritmética, geometria, astronomia e música). Doutor da Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952,
A escolástica resulta essencialmente do aprofundar foi proclamado Patrono dos Poetas Espanhóis.
da dialética. Confira a edição 342 da revista IHU On Sua festa é comemorada no dia 14 de dezembro.
-Line, de 06-09-2010, intitulada Escolastica. Uma IHU On-Line – Que conceitos Sobre São João da Cruz, confira As obras comple-
filosofia em diálogo com a modernidade, disponível tas de São João da Cruz (Petrópolis: Vozes, 2002).
em http://bit.ly/11mcjbi. (Nota da IHU On-Line) de fé e ética emergem da teolo- (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

-protestante”), pois ensina a cumprir Marco Vannini – Em geral, po- resultado é aquele tipo de religião
o próprio dever, permanecendo na de-se dizer que a Reforma luterana “faça-você-mesmo” que estamos as-
condição e na profissão em que nos foi um desastre para a mística, que sistindo nos nossos tempos. Partindo
encontramos no momento em que Lutero, tendo-se tornado o Reforma- justamente da inversão da mística me-
acolhemos o chamado de Deus. O dor, rotulou como Schwarmerei, ou dieval, Lutero inaugurou aquilo que o
Meister Eckhart, de fato, escrevia que seja, fantasiosismo, ou pior. Ainda no filósofo católico Jacques Maritain31,
não são as obras que nos fazem san- século XX, os teólogos protestantes com razão, chamava de “o advento do
tos, mas somos nós que fazemos san- continuam opondo mística e profecia,
eu”, e daí a passagem ao sentimenta-
tas as obras, e que ordenhar a vaca ou, em última análise, filosofia e Es-
lismo religioso, com o qual o valor de
no estábulo é uma obra não menos critura, reiterando a origem helênica,
neoplatônica da mística e, por isso, o verdade da própria religião perde-se
nobre do que cantar Salmos na igre-
seu caráter essencialmente racional, completamente: desaparecem con-
ja. Porém, ao remeter ao sacrifício de
não bíblico. Porém, é preciso dizer ceitos e experiências essenciais como
Cristo a função salvífica, independen-
temente das próprias obras, a ética que, mesmo dentro da Igreja evangéli- conversão, renascimento, graça. Do
protestante foi até onde os contem- ca, houve figuras importantes que não cristianismo, então, só resta um vago
porâneos (Erasmo, Denck, Franck) a pensaram assim (recordávamos aci- filantropismo (em italiano, temos o
também viram imediatamente que ma Weigel ou Czepko, por exemplo) novo termo “buonismo” [bondade ex-
não podia ir, ou seja, à licenciosidade. e que mantiveram vivo o espírito da cessiva, exagerada, moralista, ndt.]),
O primado da consciência tornou-se mística medieval alemã. que desaparece em um instante diante
o primado da arbitrariedade, daí o do interesse pessoal.■
completo subjetivismo, que não co-
IHU On-Line – É possível afir- 31 Jacques Maritain (1882-1973): filósofo fran-
nhece outra regra senão a da felicida-
mar que, em alguma medida, cês. O pensamento tomista de Maritain serviu-lhe
de individual (a individual happiness de parâmetro para a abordagem e julgamento de
a cisão protestante inaugura o situações concretas como a política, a educação, a
dos Estados Unidos), e isso significa o arte e a religião vigentes. Mas tratou também da
fim de um tipo de cristianismo? base da gnosiologia, decidindo-se pelo realismo
fim da moral. Isso é inequivocamente Por quê? imediato e intuição do ser, tal como no aristo-
demonstrado por um grande filósofo telismo e na escolástica originária. Diferenciou a
filosofia e a ciência experimental, bem como as
protestante: Immanuel Kant. Marco Vannini – É possível ou, diversas ciências filosóficas. Advertiu para a dife- 63
melhor, necessário reconhecer que a rença entre o tema da lógica e o da gnosiologia.
Foi um dos principais expoentes do tomismo no
cisão protestante inaugura o fim do século XX. Uma de suas obras principais é Por um
humanismo cristão (São Paulo: Paulus, 1999). So-
IHU On-Line – Quais os im- cristianismo tradicional, sobretudo bre Maritain, confira o recém-lançado Maritain à
pactos da Reforma Luterana na no sentido de que abre caminho ao contre-temps: Pour une démocratie vivante (Paris:
Desclée de Brouwer, 2007), do filósofo jesuíta Paul
mística cristã? individualismo religioso, cujo último Valadier. (Nota da IHU On-Line)

Leia mais
- Lutero, a mística e o núcleo do Evangelho. Artigo de Marco Vannini, publicada em No-
tícias do Dia de 16-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2x9EqyA.
- Se o Lutero de Vannini torna-se um pretexto para criticar o Cristianismo. Artigo de Giuseppe
Lorizio, publicada em Notícias do Dia de 10-6-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2gRMYny.
- Uma reflexão livre sobre a mística cristã. Artigo de Marco Vannini, publicado em No-
tícias do Dia de 10-6-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2x9FO3W.
- “A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”.
Entrevista com Marco Vannini, publicada na revista IHU On-Line número 385, de 19-12-2011, dis-
ponível em http://bit.ly/2gTWk29.
- “Ninguém nunca viu a Deus”. Para a mística a verdade é sempre interior. Entrevista com
Marco Vannini, publicada na revista IHU On-Line número 435, de 16-12-2013, disponível em http://
bit.ly/2yAJYW1.
- A conexão mística de Teresa de Ávila e Thomas Merton. Entrevista com Marco Vannini, publi-
cada na revista IHU On-Line número 460, de 16-12-2014, disponível em http://bit.ly/2yzTy9O.
- “A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”.
Entrevista com Marco Vannini, publicada na revista IHU On-Line número 385, de 19-12-2011, dis-
ponível em http://bit.ly/2gTWk29.

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

Lutero como discípulo de Paulo


e o cristianismo como religião
do ressentimento
Andreas Urs Sommer assinala a oposição sistemática das obras
tardias de Nietzsche entre Reforma e Renascença. Ensinamentos
de Jesus teriam sido mal interpretados por Paulo e Lutero


Márcia Junges | Tradução: Walter O. Schlupp

E
m suas primeiras obras, Nietzs- ódio”, que teria conseguido transformar
che, cujo pai era pastor luterano, a mensagem de Jesus numa religião do
apresentava uma relação bastan- ressentimento de primeira categoria.
te positiva com Lutero; em O Nascimen- Nisso, Nietzsche considera Lutero dis-
to da Tragédia ele o coloca como pio- cípulo de Paulo, porém sem lhe atribuir
neiro da cosmovisão dionisíaca. A par a mesma importância: sua influência
do seu distanciamento com seu mentor histórica teria sido de séculos, enquan-
de outrora, Richard Wagner, Nietzsche to a de Paulo, de milênios.” Paulo seria
vai se distanciando de Lutero. Agora o o protagonista e Lutero, o “continuador
Reformador se apresenta como repre- dessa total inversão de intuições origi-
sentante de uma cosmovisão retrógrada, nariamente jesuínas.”
como valentão da colônia e provinciano
64 chauvinista alemão, até mesmo como Andreas Urs Sommer é filósofo, pro-
restaurador de um cristianismo que, na fessor catedrático de Filosofia, área de
verdade, já está fadado ao ocaso, como Filosofia da Cultura e especificamente
inimigo das ciências e da autoemancipa- Friedrich Nietzsche, na Universidade
ção da pessoa humana.” A afirmação é Albert Ludwig em Freiburg, Alemanha.
de Andreas Urs Sommer, na entrevista Estudou nas Universidades de Basel,
concedida por e-mail à IHU On-Line. Göttingen e Freiburg. Publicou inúme-
ras obras, mais recentemente Nietzsche
E acrescenta: “Também Paulo só re-
und die Folgen [Nietzsche e as Consequ-
cebe um papel central na obra tardia de
Nietzsche. Ali ele é o inventor propria- ências] (Stuttgart: J. B. Metzler, 2017).
mente dito do cristianismo, “gênio do Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir da crí- tem de Lutero2. De forma alguma é possível aplicar a elas um denomi-
tica formulada por Nietzsche, nador comum. Em suas primeiras
quem é Lutero e o que é o Lute- edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, obras, Nietzsche, cujo pai era pastor
disponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O
ranismo? biologismo radical de Nietzsche não pode ser mini- luterano, apresentava uma relação
mizado, na qual discute ideias de sua conferência bastante positiva com Lutero; em O
Andreas Urs Sommer – Em pri- A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche
e a questão da biopolítica, parte integrante do Ci- Nascimento da Tragédia ele o co-
meiro lugar surpreende quão multifa- clo de Estudos Filosofias da diferença – Pré-even-
to do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)gover- loca como pioneiro da cosmovisão
cetadas são as imagens que Nietzsche1 no biopolítico da vida humana. Na edição 330 da
revista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevis-
dionisíaca. A par do seu distancia-
ta Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação mento com seu mentor de outrora,
1 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo ale- da totalidade da existência, concedida pelo pro-
mão, conhecido por seus conceitos além-do-ho- fessor Oswaldo Giacoia e disponível em https:// Richard Wagner3, Nietzsche vai se
mem, transvaloração dos valores, niilismo, von- goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a
tade de poder e eterno retorno. A Nietzsche foi entrevista O amor fati como resposta à tirania do
dedicado o tema de capa da edição número 127 sentido, com Danilo Bilate, disponível em http:// tante. Foi o autor da primeira tradução da Bíblia
da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzs- bit.ly/HzaJpJ. Na edição 513, de 16-10-2017, leia para o alemão. Além da qualidade da tradução,
che: filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível a entrevista Uma política de vida ao invés de uma foi amplamente divulgada em decorrência da sua
para download em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição política sobre a vida. A biopolítica afirmativa de difusão por meio da imprensa, desenvolvida por
15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada Nietzsche, disponível em http://bit.ly/2y73xGC. Gutemberg em 1453. (Nota da IHU On-Line)
O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser (Nota da IHU On-Line) 3 Richard Wagner (1813-1883): compositor ale-
acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, tam- 2 Martinho Lutero (1483-1546): teólogo alemão, mão, considerado amplamente como um dos ex-
bém, a entrevista concedida por Ernildo Stein à considerado o pai espiritual da Reforma Protes- poentes do romantismo na música. Como compo-

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“A teologia de Lutero
resolutamente quer ser
uma teologia da cruz.”

distanciando de Lutero. Agora o virtudes cristãs da negação do mun- Tarso5 e Lutero? Quais são seus
Reformador se apresenta como do, do ficar voltado para o além, da contextos e diferenças funda-
representante de uma cosmovi- submissão e da compaixão teriam mentais?
são retrógrada, como valentão da sido substituídas, com a Renascen-
Andreas Urs Sommer – Tam-
colônia e provinciano chauvinista ça, pela afirmação do mundo, orien-
bém Paulo só recebe um papel central
alemão, até mesmo como restau- tação para o aquém, pela altivez e
rador de um cristianismo que, na grandiosidade. Para Nietzsche, a na obra tardia de Nietzsche.  Ali ele é
verdade, já está fadado ao ocaso, Renascença, em seus grandes feitos o inventor propriamente dito do cris-
como inimigo das ciências e da culturais bem como em sua cruelda- tianismo, “gênio do ódio”, que teria
autoemancipação da pessoa hu- de por vezes exorbitante, teria colo- conseguido transformar a mensagem
mana. Por outro lado, Nietzsche cado no centro o grande indivíduo, de Jesus numa religião do ressenti-
continua tendo em alta estima a para assim emancipá-lo da consci- mento de primeira categoria. Nisso,
tradução da Bíblia por Lutero; ele ência suja cristã. Nietzsche considera Lutero discípulo
chega a imitar o jeitão do alemão de Paulo, porém sem lhe atribuir a 65
bíblico de Lutero em sua obra As- mesma importância: sua influência
sim falou Zaratustra. Em suas IHU On-Line – E qual é a ra- histórica teria sido de séculos, en-
obras tardias, Nietzsche acaba ela- zão pela qual Nietzsche diz que quanto a de Paulo, de milênios.
borando uma oposição sistemática Lutero perdeu a grande chance
de evitar a decadência alemã IHU On-Line – De acordo com
entre Reforma 4 e Renascença.
quando impediu a Renascença?
5 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na
Cilícia, hoje Turquia, era originariamente chamado
Andreas Urs Sommer – Em O de Saulo. Entretanto, é mais conhecido como São
IHU On-Line – Por que Nietzs- Paulo, o Apóstolo. É considerado por muitos cris-
Anticristo Nietzsche expõe o conflito tãos como o mais importante discípulo de Jesus
che compreende a Renascença
histórico-universal entre a Renascen- e, depois de Jesus, a figura mais importante no
como uma transvaloração dos desenvolvimento do Cristianismo nascente. Pau-
ça e a Reforma; Lutero aparece como lo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais.
valores cristãos? Primeiro porque, ao contrário dos outros, não
o verdadeiro destruidor da emancipa- conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua con-
Andreas Urs Sommer – Para o ção dos vínculos cristãos que a Renas- versão, se dedicava à perseguição dos primeiros
discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em
Nietzsche tardio, a Renascença se cença conseguira. Renascença e Re- uma dessas missões, quando se dirigia a Damas-
co, teve uma visão de Jesus envolto numa grande
constitui na tentativa de romper a forma, portanto, não são vistas como luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três
moral escravista judaico-cristã que geralmente ocorre na historiografia dias por Ananias, que o batizou como cristão. A
partir deste encontro, Paulo começou a pregar o
já prevalece há dois mil anos. As iluminista, como movimentos para- Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou
uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo
lelos de uma libertação dos grilhões (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em
sitor de óperas, criou um novo estilo, grandioso, medievais, e sim como estando em duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito
cuja influência sobre a música foi forte a ponto pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é
de os músicos de seu tempo e posteriores serem contradição irreconciliável. Para Niet- considerado uma das principais fontes da doutri-
classificados como wagnerianos ou não-wagne- na da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção
rianos. (Nota da IHU On-Line) zsche, Lutero agora é representante fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que
4 Reforma Protestante: movimento reformista resoluto do retrocesso para o embara- foi ele quem verdadeiramente transformou o Cris-
cristão liderado por Martinho Lutero, autor das tianismo em uma nova religião, superando a ante-
95 teses pregadas na porta da Igreja do Castelo ço escravista moral cristão. Lutero – e rior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Li-
de Wittenberg, na Alemanha, em 31 de outubro ne 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema
de 1517, propondo uma reforma na doutrina do com ele os alemães – levariam a culpa Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível
catolicismo romano. Lutero foi apoiado por vários de ainda não nos termos livrado há em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição
religiosos e governantes europeus. Em resposta, a 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevân-
Igreja Católica Romana implementou a Contrar- muito do jugo do cristianismo. cia atual, disponível em https://goo.gl/bKZcM0.
reforma ou Reforma Católica, iniciada no Concílio Também são dedicadas ao religioso a edição 32
de Trento. Em decorrência destes fatos, ocorreu dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tarso
a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de re-
os católicos romanos e os protestantes. Confira a alidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a
edição 280 da IHU On-Line, de 3-11-2008, intitu- IHU On-Line – Que parale- edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São
lada Lutero. Reformador da Teologia, da Igreja e los podem ser traçados entre a Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da
criador da língua alemã, disponível em http://bit. mulher cristã no século I, disponível em http://bit.
ly/2hQ1FFc. (Nota da IHU On-Line) crítica nietzschiana a Paulo de ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

Nietzsche, o único cristão mor- Dionísio é o deus do sofrimento, uma testemunha a calhar.
reu na cruz. A partir dessa afir- porém o qual, na construção de
mação, como se pode entender Nietzsche (trata-se de um deus
o tipo de cristianismo sistema- fictício), diferentemente do deus IHU On-Line – Qual é o senti-
tizado por Paulo e a sua Refor- cristão luterano, afirma positiva- do da Reforma no contexto da
ma, proposta por Lutero? mente o mundo e não degrada as filosofia da cultura, empreendi-
pessoas a miseráveis pecadores. da pelo filósofo?
Andreas Urs Sommer – Com
efeito, Nietzsche, em sua obra tar- Andreas Urs Sommer – Na fi-
dia, retira Jesus de Nazaré do con- IHU On-Line – Em que medi- losofia mais abrangente da cultura
texto geral de decadência da história da a formação luterana de Niet- de Nietzsche, Lutero e a Reforma
universal com a qual ele descreve a zsche é um aspecto importante são peças de um jogo que, depen-
história judaico-cristã. Jesus teria a ser analisado em sua crítica a dendo da necessidade do momen-
sido o único cristão autêntico, que essa religião? to, podem ser utilizadas de diversas
teria ensinado não uma nova fé,
Andreas Urs Sommer – Com maneiras. A crítica de Nietzsche
mas uma nova “prática”, qual seja,
de abandonar todas as distâncias no certeza a socialização luterana de à Reforma tem um elemento emi-
sentimento. Os conceitos de Jesus Nietzsche desempenha certo papel nentemente provocador, uma vez
teriam sido pura linguagem simbó- ao se tentar reconstruir a imagem que boa parte dos leitores de Niet-
lica, que nada teria a ver com dou- que ele faz de Lutero. Além de se zsche prezava muito a Reforma, de
trinas de fé. Os próprios discípulos ter criado numa casa pastoral lu- modo que acabaram se sentindo
diretos já não teriam entendido seu terana, se fosse pelo desejo da fa- contrariados por ele. O desprezo
mestre, o “grande simbolista”; com mília, ele próprio também deveria pela Reforma também mostra o
a eclesialização do cristianismo te- ter-se tornado pastor luterano, quanto Nietzsche rejeita uma his-
ria ocorrido a total perversão do tendo inclusive iniciado o estudo toriografia do progresso: a história
modelo jesuíno. Paulo é o protago- de teologia. Lutero, de certo modo, não é algo que simplesmente vai
nista, e Lutero, o continuador dessa fazia parte do DNA social e mental evoluindo para melhor, uma evolu-
66 total inversão de intuições origina- de Nietzsche. Mas o que chama a ção na qual a Reforma até pudesse
riamente jesuínas. atenção é que ele nunca estudou
ser um marco.
Lutero a fundo, com exceção da
tradução da Bíblia, mas obteve
IHU On-Line – Se pensar- suas informações exclusivamente IHU On-Line – Gostaria de
mos que Nietzsche contrapõe de segunda mão. Ele sempre adap-
acrescentar algum aspecto não
Dionísio ao Crucificado, como tava seu Lutero às demandas filo-
entender o empreendimen- questionado?
sóficas e polêmicas do momento.
to de Lutero ao retirar Jesus Andreas Urs Sommer – Sem
da cruz e assim o representar dúvida a crítica de Nietzsche a Lu-
nessa religião? IHU On-Line – Qual foi a re- tero e à Reforma é de considerável
cepção e repercussão da crítica interesse para a historiografia do
Andreas Urs Sommer – A
nietzschiana em seu tempo?
oposição entre Dionísio e o cru- espírito humano. Porém é legítimo
cificado com que Nietzsche opera Andreas Urs Sommer – Ini- perguntar também até que ponto
em suas manifestações tardias não cialmente a repercussão da crítica ela ainda se justifica na atualidade.
é a oposição entre o helênico deus fundamental de Nietzsche a Lutero Na Alemanha reina uma euforia lu-
do vinho e o Jesus de Nazaré com foi bastante reservada. Posterior- terana instaurada pela igreja e pelo
quem Nietzsche simpatiza nessa mente foram principalmente teó- estado, que encontra pouco respal-
contraposição. O “crucificado” é o logos protestantes que se esforça- do na realidade histórica. Dizem
Cristo da doutrina paulina eclesi- ram em processá-la, na tentativa que Lutero preparou o caminho
ástica, aquilo em que a dogmática de demonstrar o quanto Nietzsche
para o Iluminismo esclarecedor,
o transformou: o filho de Deus que teria mal-entendido Lutero, ou que
em vez de enxergar nele justamen-
morreu pelos pecados do mundo. Lutero e Nietzsche em suas críticas
te o inimigo declarado da autode-
A teologia de Lutero resolutamen- na verdade estariam muito mais de
acordo entre si do que o próprio terminação humana individual.
te quer ser uma teologia da cruz.
Para Nietzsche, esta é uma expres- Nietzsche pensava. Depois, quem Neste ponto Nietzsche pode nos
são da perversa divinização do so- simpatizou com a crítica de Nietzs- ajudar a obter uma visão bem mais
frimento, a qual ele combate de to- che a Lutero foram principalmente sóbria, mesmo que ele próprio
das as formas possíveis, porque ela autores católicos, que pretendiam também não tenha argumentado
ao mesmo tempo acompanha uma destacar quão prejudicial Lutero como historiador bem informado e
autodegradação, autodiminui- teria sido; para tanto inesperada- sereno, e sim como polemista das
ção da pessoa humana. Também mente encontraram em Nietzsche ideias políticas. ■

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

A Reforma como farsa depois da


tragédia da fundação da igreja
por Paulo, segundo Nietzsche
Helmut Heit analisa o “poder explosivo das teses de Lutero” e assinala
que a maldição contra o cristianismo proferida por Nietzsche se
contrapõe aos Dez Mandamentos ou ao Sermão da Montanha
Márcia Junges | Tradução: Walter O. Schlupp

L
utero ainda estava preso ao pen- de filosofia europeia e alemã e vice-di-
samento medieval, e por isso não retor da Academia de Cultura Europeia
poderia “acolher bem a grandeza na Universidade Tongji, em Shanghai,
da cultura do Renascimento. A Reforma China. Estudou filosofia e ciência política
aparece, assim, como a obra de um fun- em Hannover, Melbourne e Berlim. Em
damentalista que restaura o cristianismo 2003 concluiu PhD em Hannover com
com base em Paulo e Agostinho”, pontua um estudo sobre a emergência da filoso-
o filósofo alemão Helmut Heit na entre- fia ocidental na Grécia Antiga. Antes de
vista que concedeu, por e-mail, à IHU lecionar em Shanghai, foi professor na
On-Line. “A Reforma de Lutero é, antes, Universidade Técnica de Berlim, na Uni-
a farsa que se segue à tragédia da fun- versidade de Humboldt, em Berlim, na
dação da igreja por Paulo. Ainda assim, Universidade da Califórnia em San Die- 67
Nietzsche fica naturalmente fascinado go, EUA, e na Universidade Leibniz, em
pelo caráter vigoroso de Lutero. Ele lou- Hannover. Em 2014 e 2015 foi professor
va, como se sabe, a linguagem de Lutero convidado no Departamento de Filoso-
e caracteriza a tradução da Bíblia como a fia da Universidade Federal de Pelotas
melhor obra de prosa alemã surgida até - UFPEL. É coeditor dos Nietzsche-Stu-
então.” Outros temas abordados por Heit dien e da série de livros Monographien
são o marco dos processos políticos, cul- und Texte der Nietzscheforschung (de
turais e eclesiásticos que gestam a Refor- Gruyter), membro do comitê executive
ma, bem como a Contrarreforma jesuíta, da Sociedade Nietzsche, na Alemanha, e
tida por Nietzsche como um movimento diretor fundador do Berliner Nietzsche-
retardador na história ocidental. Colloquium, entre outras atividades.
Helmut Heit é professor associado Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os nismo, mas, sobretudo, ao lute- ranismo?


pressupostos fundamentais da
Helmut Heit – A crítica de Niet-
crítica de Nietzsche1 ao cristia-
mizado, na qual discute ideias de sua conferência zsche ao cristianismo se baseia no
A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche
e a questão da biopolítica, parte integrante do Ci- pressuposto fundamental de que
1 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo ale- clo de Estudos Filosofias da diferença - Pré-evento
mão, conhecido por seus conceitos além-do-ho- do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo a hipótese cristã de Deus perdeu
mem, transvaloração dos valores, niilismo, von- biopolítico da vida humana. Na edição 330 da re- a credibilidade. A religião cristã
tade de poder e eterno retorno. A Nietzsche foi vista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista
dedicado o tema de capa da edição número 127 Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da não pode mais apresentar ao ser
da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzs- totalidade da existência, concedida pelo professor
che: filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível Oswaldo Giacoia e disponível em https://goo.gl/ humano moderno uma pretensão
para download em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a en- de verdade no sentido clássico da
15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada trevista O amor fati como resposta à tirania do
O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser sentido, com Danilo Bilate, disponível em http:// palavra. É isso que significa ini-
acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, tam- bit.ly/HzaJpJ. Na edição 513, de 16-10-2017, leia
bém, a entrevista concedida por Ernildo Stein à a entrevista Uma política de vida ao invés de uma cialmente o discurso a respeito da
edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, política sobre a vida. A biopolítica afirmativa de morte de Deus. Neste sentido, nos
disponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O Nietzsche, disponível em http://bit.ly/2y73xGC.
biologismo radical de Nietzsche não pode ser mini- (Nota da IHU On-Line) textos de Nietzsche essa ideia não é

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

desenvolvida como uma teoria pró- samento de Newton 3 ou Leibniz 4, mente, a ideia de Deus, persisten-
pria e original, mas é, antes, ape- está essencialmente obsoleto. Os te do ponto de vista da história da
nas constatada e averiguada quan- fenômenos são explicados de uma cultura, como uma projeção hu-
to a suas consequências. Nietzsche maneira diferente e melhor sem mana, que diz muita coisa sobre
pode pressupor que os argumentos ele. Também a análise histórico- nós seres humanos, mas não diz
a favor dela são conhecidos e não crítica dos textos bíblicos, de que nada sobre a eventual existência
os expõe sistematicamente, mesmo Nietzsche toma conhecimento já de tal ser.
que todas as objeções contemporâ- em Schulpforta, contribui para a
neas contra o cristianismo se en- profanização da anteriormente Deus, uma ficção útil
contrem em diversas passagens de “Sagrada Escritura”. Na Bíblia não
seus textos. temos comunicações inspiradas Em seu conjunto, essas objeções
de Deus, e sim as narrativas de tornam Deus uma noção que não
Os iluministas franceses, as- pode ser provada filosoficamente, é
um povo de pastores do Oriente
sim como os jovens hegelianos, cientificamente supérflua e histori-
Médio. Autores como Feuerbach 5,
neokantianos e positivistas, esta- camente modificável, cuja existência
Heine 6 e Marx 7 explicam, final-
vam em sua maioria convictos de pode ser bem explicada do ponto de
que o Deus tradicional como fun- vista da psicologia social. Em sécu-
3 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrônomo e
ção ou mesmo fundamento da fi- matemático inglês. Revelou como o universo se los anteriores, menos esclarecidos,
losofia e da ciência já dera o que mantém unido através da sua teoria da gravita-
ção, descobriu os segredos da luz e das cores e Deus estava vivo como ficção cole-
tinha para dar. Para a consciência criou um ramo da matemática, o cálculo infinitesi- tiva, sendo um fato social cultural-
mal. Essas descobertas foram realizadas por New-
contemporânea, as mais impor- ton em um intervalo de apenas 18 meses, entre mente atuante. Na época de Nietzs-
tantes objeções contra a pretensão os anos de 1665 e 1667. É considerado um dos
maiores nomes na história do pensamento huma- che, a crença geral antigamente real
de validade clássica da hipótese de no, por causa da sua grande contribuição à mate- e eficaz em um ser supremo tinha
mática, à física e à astronomia. O IHU promoveu
Deus são de natureza filosófica, de 3 de agosto a 16-11-2005 o Ciclo de Estudos perdido maciçamente validade; não
científico-natural, histórica e psi- Desafios da Física para o Século XXI: uma aventura
de Copérnico a Einstein. Sobre Newton, em espe- se precisa mais dele e não se crê mais
cológico-social. Immanuel Kant 2, cífico, o Prof. Dr. Ney Lemke proferiu palestra em nele. Neste sentido Deus está morto,
21-09-2005, intitulada A cosmologia de Newton.
com sua crítica de todas as provas (Nota da IHU On-Line) tendo mostrado ser uma ficção que
da existência de Deus e tentativas 4 Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716): filóso-
68 fo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecá- deixou de ter credibilidade.
filosóficas na teodiceia, transfor- rio alemão. O uso de “função” como um termo
ma o Deus cristão de uma existên- matemático foi iniciado por Leibniz, numa carta A crítica do cristianismo de Niet-
de 1694, para designar uma quantidade relacio-
cia indiscutível em um postulado nada a uma curva, tal como a sua inclinação em zsche, contudo, não se limita a per-
um ponto específico. É creditado a Leibniz e a guntar se os relatos a respeito de
moral e um objeto da religiosidade Newton o desenvolvimento do cálculo moderno,
privada. Nas teorias mecânicas, em particular o desenvolvimento da integral e da Deus, sua situação familiar e suas
regra do produto. Descreveu o primeiro sistema
cosmológicas e evolucionárias do de numeração binário moderno (1705), tal como ações, suas exigências e promessas,
o sistema numérico binário utilizado nos dias de capacidades e atividades são verda-
século XIX, Deus, diferentemente hoje. Demonstrou genialidade também nos cam-
do que ainda era o caso no pen- pos da lei, religião, política, história, literatura, ló- deiras. Ao que tudo indica, o que lhe
gica, metafísica e filosofia. (Nota da IHU On-Line)
5 Ludwig Feuerbach (1804-1872): filósofo ale- interessa é, antes, principalmente
mão, reconhecido pela influência que seu pensa- perguntar se Deus é uma ficção útil.
mento exerce sobre Karl Marx. Abandona os es-
tudos de Teologia para tornar-se aluno de Hegel, Neste caso se mostra que Nietzs-
durante dois anos, em Berlim. De acordo com sua
filosofia, a religião é uma forma de alienação que che não move uma crítica ideoló-
projeta os conceitos do ideal humano em um ser gica unilateral contra o cristianis-
supremo. É autor de A essência do cristianismo
(2ª ed. São Paulo: Papirus, 1997). (Nota da IHU mo, embora, em última análise, ele
On-Line)
2 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia- 6 Heinrich Heine (1797-1856): poeta romântico
também responda a essa pergunta
no, considerado como o último grande filósofo alemão, conhecido como “o último dos românti- negativamente para o presente e o
dos princípios da era moderna, representante cos”. Boa parte de sua poesia lírica, especialmente
do Iluminismo. Kant teve um grande impacto a sua obra de juventude, foi musicada por vários futuro: embora a hipótese da mo-
no romantismo alemão e nas filosofias idealistas compositores notáveis como Robert Schumann, ral cristã tenha dado um sentido à
do século 19, as quais se tornaram um ponto de Franz Schubert, Felix Mendelssohn, Brahms, Hugo
partida para Hegel. Kant estabeleceu uma dis- Wolf, Richard Wagner e, já no século XX, por Hans existência humana, e a interioriza-
tinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que Werner Henze e Lord Berners. (Nota da IHU On
chamou noumenon), isto é, entre o que nos apa- -Line) ção ascética da culpa e da má cons-
rece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si 7 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, ciência tenha tornado o ser humano
não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhe- economista, historiador e revolucionário alemão,
cimento científico, como até então pretendera a um dos pensadores que exerceram maior influên- mais profundo e interessante, isso
metafísica clássica. A ciência se restringiria, as- cia sobre o pensamento social e sobre os destinos
sim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituí- da humanidade no século 20. A edição 41 dos Ca- sempre se deu ao preço de uma de-
da pelas formas a priori da sensibilidade (espaço dernos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Pau- gradação, ofensa e humilhação do
e tempo) e pelas categorias do entendimento. lani, tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx,
A IHU On-Line número 93, de 22-3-2004, de- disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também so- ser humano e da vida.
dicou sua matéria de capa à vida e à obra do bre o autor, a edição número 278 da revista IHU
pensador com o título Kant: razão, liberdade e On-Line, de 20-10-2008, é intitulada A financeiri- A crítica a Lutero8 consiste, sobre
ética, disponível em http://bit.ly/ihuon93. Tam- zação do mundo e sua crise. Uma leitura a partir
bém sobre Kant, foi publicado o Cadernos IHU de Marx, disponível em https://goo.gl/7aYkWZ. A
em formação número 2, intitulado Emmanuel entrevista Marx: os homens não são o que pensam
Kant – Razão, liberdade, lógica e ética, que pode e desejam, mas o que fazem, concedida por Pe- culo XXI, que retoma o argumento central de O
ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, dro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição Capital, obra de Marx, disponível em http://www.
ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 327 da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em ihuonline.unisinos.br/edicao/449. (Nota da IHU
6-5-2013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. http://bit.ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou On-Line)
Imperativos e desafios, disponível em https:// uma edição especial sobre desigualdade inspira- 8 Martinho Lutero (1483-1546): teólogo alemão,
goo.gl/SIII5H. (Nota da IHU On-Line) da no livro de Thomas Piketty O Capital no Sé- considerado o pai espiritual da Reforma Protes-

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esse pano de fundo, principalmen- cristianismo são poderes culturais de resse de Nietzsche?
te na afirmação de que ele salvou o significado dialético. Elas encerram
Helmut Heit - Em comparação
cristianismo. Estando ele próprio tensões e dinâmicas que não são conde-
com Jesus, Paulo, Sócrates11 e Platão12,
ainda inteiramente preso no pensa- nadas unilateralmente por Nietzsche,
Lutero é de grande interesse para
mento da Idade Média, Lutero não mas com as quais também se associam
Nietzsche, mas não de interesse ex-
podia entender nem acolher bem a potenciais para o desenvolvimento da
traordinário. A Reforma de Lutero é,
grandeza da cultura do Renascimen- humanidade. Neste sentido, a Reforma
antes, a farsa que se segue à tragédia
to. A Reforma aparece, assim, como de Lutero certamente contribuiu para a
da fundação da igreja por Paulo. Ain-
a obra de um fundamentalista que individualização e privatização do pen-
da assim, Nietzsche fica naturalmen-
restaura o cristianismo com base em samento e do sentimento.
te fascinado pelo caráter vigoroso de
Paulo9 e Agostinho10.
Lutero. Ele louva, como se sabe, a lin-
IHU On-Line - Como essa crí- guagem de Lutero e caracteriza a tra-
IHU On-Line - Se pensarmos tica repercutiu na época em dução da Bíblia como a melhor obra
na crítica nietzschiana à gene- que foi formulada e qual a sua de prosa alemã surgida até então. Isso
alogia da Modernidade, qual é importância atualmente? também se refere à enorme atividade
a importância de suas ressalvas transformadora da cultura que Lute-
Helmut Heit - Como se sabe, entre ro conseguiu desenvolver. Na medida
a Lutero?
seus contemporâneos diretos Nietzs- em que Nietzsche também visa a uma
Helmut Heit - Esta pergunta é par- che teve pouca repercussão. Hoje em transformação, essa figura atrai natu-
ticularmente difícil de responder, pois dia, seu tratamento da religião é mui- ralmente sua atenção.
a confrontação de Nietzsche com a tas vezes reduzido, na opinião públi-
Modernidade é extremamente multi- ca, ao discurso a respeito da morte de
facetada. A Modernidade e também o Deus. Isso é lamentável, já que sua IHU On-Line - Até que ponto
crítica do cristianismo vai muito além podemos compreender a crí-
tante. Foi o autor da primeira tradução da Bíblia dessa afirmação negativa e pergunta tica nietzschiana aos alemães
para o alemão. Além da qualidade da tradução, a respeito das fontes e perspectivas e sua filosofia e teologia tendo
foi amplamente divulgada em decorrência da sua
difusão por meio da imprensa, desenvolvida por da necessidade religiosa. Lutero como figura central?
Gutemberg em 1453. (Nota da IHU On-Line) 69
9 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na Helmut Heit - Como disse aci-
Cilícia, hoje Turquia, era originariamente chamado
de Saulo. Entretanto, é mais conhecido como São IHU On-Line - Em que medida ma, eu não veria Lutero como figu-
Paulo, o Apóstolo. É considerado por muitos cris-
tãos como o mais importante discípulo de Jesus a formação religiosa de Niet- ra central da crítica de Nietzsche
e, depois de Jesus, a figura mais importante no
zsche fornece algumas pistas aos alemães, à sua filosofia e à sua
desenvolvimento do Cristianismo nascente. Pau-
lo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais. para explicar seu posiciona- teologia. Certamente a filosofia ale-
Primeiro porque, ao contrário dos outros, não
conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua con- mento em relação ao Lutera- mã de Kant, Hegel13 e Schleierma-
versão, se dedicava à perseguição dos primeiros
discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em nismo?
uma dessas missões, quando se dirigia a Damas- 11 Sócrates (470 a. C.- 399 a. C.): filósofo atenien-
co, teve uma visão de Jesus envolto numa grande Helmut Heit - Certamente o fato se e um dos mais importantes ícones da tradição
luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três filosófica ocidental. Sócrates não valorizava os
dias por Ananias, que o batizou como cristão. A de Nietzsche provir de uma família prazeres dos sentidos, todavia escalava o belo en-
partir deste encontro, Paulo começou a pregar o inteiramente protestante desem- tre as maiores virtudes, junto ao bom e ao justo.
Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou Dedicava-se ao parto das ideias (Maiêutica) dos
uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo penha um papel importante. Ainda cidadãos de Atenas. O julgamento e a execução
(era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em de Sócrates são eventos centrais da obra de Pla-
duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito durante o tempo que passou em Ba- tão (Apologia e Críton). (Nota da IHU On-Line)
pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é sileia ele se sente unido ao espírito 12 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Cria-
considerado uma das principais fontes da doutri- dor de sistemas filosóficos influentes até hoje,
na da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção de Lutero, e reage com perplexidade como a Teoria das Ideias e a Dialética. Discípulo
fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre
foi ele quem verdadeiramente transformou o Cris- à intenção de seu amigo Heinrich suas obras, destacam-se A República (São Paulo:
tianismo em uma nova religião, superando a ante- Romundt de se tornar justamente Editora Edipro, 2012) e Fédon (São Paulo: Martin
rior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Li- Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As
ne 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema sacerdote católico. Sua própria ca- implicações éticas da cosmologia de Platão, conce-
Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível dida pelo filósofo Marcelo Perine à edição 194 da
em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição minhada rumo à descrença é, bio- revista IHU On-Line, de 4-9-2006, disponível em
286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevân- graficamente, sem dúvida interes- http://bit.ly/pteX8f. Leia, também, a edição 294
cia atual, disponível em https://goo.gl/bKZcM0. da revista IHU On-Line, de 25-5-2009, intitulada
Também são dedicadas ao religioso a edição 32 sante. Em última análise, porém, o Platão. A totalidade em movimento, disponível em
dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tarso cristianismo lhe interessa não como http://bit.ly/2j0YCw8. (Nota da IHU On-Line)
desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de re- 13 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831):
alidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a objeto de religiosidade pessoal, e sim filósofo alemão idealista. Como Aristóteles e San-
edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São to Tomás de Aquino, desenvolveu um sistema fi-
Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da como fenômeno cultural. losófico no qual estivessem integradas todas as
mulher cristã no século I, disponível em http://bit. contribuições de seus principais predecessores.
ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line) Sobre Hegel, confira a edição 217 da IHU On-Li-
10 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido ne, de 30-4-2007, disponível em https://goo.gl/
como Santo Agostinho, foi um dos mais impor- IHU On-Line - Em que aspec- m0FJnp, intitulada Fenomenologia do espírito, de
tantes teólogos e filósofos dos primeiros anos do (1807-2007), em comemoração aos 200 anos de
cristianismo, cujas obras foram muito influentes tos a figura de Lutero como lançamento dessa obra. Veja ainda a edição 261,
no desenvolvimento do cristianismo e da filoso- de 9-6-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima.
fia ocidental. Escrevendo na era patrística, ele é “monge ressentido”, mas tam- Um novo modo de ler Hegel, disponível em ht-
amplamente considerado como sendo o mais im- bém como um tipo psicológico tps://goo.gl/D94swr; Hegel. A tradução da histó-
portante dos padres da Igreja no Ocidente. Suas ria pela razão, edição 430, disponível em https://
obras-primas são A cidade de Deus e Confissões. interessante, mobiliza o inte- goo.gl/62UATd e Hegel. Lógica e Metafísica, edição
(Nota da IHU On-Line) 482, disponível em https://goo.gl/lldAkv. (Nota da

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TEMA DE CAPA

cher14 é protestante de cabo a rabo. processos políticos, culturais e eclesiás- lista no protestantismo?
Não sem razão, Nietzsche faz troça do ticos que então acabam constituindo a
Helmut Heit - Eu não diria que há
idealismo dos teólogos do Seminário Reforma. Poder-se-ia, antes, entender
uma crítica dessas no pensamento de
de Tübingen [residência e instituição a maldição contra o cristianismo como
Nietzsche: ele não critica um conceito
de ensino de estudantes protestantes uma contraposição aos Dez Manda-
de Deus niilista no protestantismo;
no estado de Baden-Württemberg]. mentos ou ao Sermão da Montanha.
isso é feito, antes, por teólogos (ca-
Mas ele atribui a arrogância presun- tólicos) atuais que veem na teologia
çosa com que os alemães se entendem da morte de Deus uma consequência
como nação superior após 1870/71 IHU On-Line - Qual é a posi-
ção de Nietzsche em relação à problemática e deplorável da obra
a diversas fontes. O horizonte de sua de destruição protestante. Nietzsche
Contrarreforma15 representada
crítica à filosofia moderna não se res- pensa de modo diferente neste caso.
pelos jesuítas?
tringe à Idade Moderna, mas também Como todas as coisas grandes, o con-
compreende sempre a Antiguidade Helmut Heit - A Contrarreforma é ceito cristão de Deus se arruína por
grega e cristã. objeto de crítica de diversas formas no causa de si mesmo. Na pretensão de
pensamento de Nietzsche. No prefácio que Deus é a verdade já está contido o
de Além do bem e do mal, ele inclui o germe de sua autossuspensão.
IHU On-Line - É possível dizer jesuitismo entre os grandes movimen-
que a maldição contra o Cris- tos retardadores na história do Ociden-
tianismo, lançada ao final de te. Nietzsche parece ter visto na Con- IHU On-Line - Gostaria de
O Anticristo, opera como uma trarreforma a implementação católica, acrescentar algum aspecto não
contraposição às teses de Lute- isto é, generalizada do protestantismo. questionado?
ro? Por quê? Por meio da Contrarreforma, o cristia-
Helmut Heit - O que me parece
nismo foi salvo para a Modernidade.
Helmut Heit - Eu não colocaria particularmente interessante e impor-
isso necessariamente assim. As teses tante hoje em dia, justamente também
de Lutero tratam de maneira bastante IHU On-Line - Sob que aspec- à luz de um fundamentalismo que está
acadêmica e detalhada de questões da tos existe uma crítica de Nietzs- se fortalecendo nas mais diversas con-
70 certeza da salvação e da prática cristã. che a um conceito de Deus nii- fissões, é o fato de Nietzsche proble-
Elas são, inicialmente, sobretudo uma matizar a pretensão implícita ou explí-
contribuição para um problema teo- 15 Contrarreforma ou Reforma Católica: ini- cita de verdade da religião. Quando ele
ciado no Concílio de Trento, é um movimento critica a Reforma como “indignação
lógico. O poder explosivo das teses de regido pela Igreja Católica Romana em resposta
Lutero não é fácil de ser apreendido à Reforma Protestante, movimento reformista da simplicidade”, isso se refere menos
cristão liderado por Martinho Lutero, autor das
e também só se mostra no marco dos 95 teses pregadas na porta da Igreja do Castelo à simplicidade na acepção de burrice e
de Wittenberg, na Alemanha, em 31 de outubro falta de perspicácia, e sim a uma falta
de 1517. No documento, Lutero propôs uma re-
IHU On-Line) forma na doutrina do catolicismo romano, tendo de vontade ou capacidade de tolerar a
14 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768- sido apoiado por vários religiosos e governantes
1834): teólogo, filósofo e pedagogo alemão. Foi europeus. Em decorrência destes fatos, ocorreu a diversidade. A crença de que nós mes-
corresponsável pela aparição da teologia liberal, divisão da chamada Igreja do Ocidente entre os mos possuímos a verdade religiosa é
negando a historicidade dos milagres e a autori- católicos romanos e os protestantes. (Nota da
dade literal das Escrituras. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) uma ficção perigosa.■

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Moderna é a pluralidade de confissões


que surgiram do protesto de Lutero
Para Massimo Firpo, o monge agostiniano esteve imerso no contexto
medieval, querendo a volta de valores do cristianismo apostólico, mas
que culminou numa fragmentação moderna da cristandade
João Vitor Santos | Tradução: Ramiro Mincato

O
historiador Massimo Firpo não explica. Para o professor, inclusive, é das
acredita que Lutero seja alguém igrejas que vem uma tensão no sentido
que inaugura um novo tempo. contrário. “Não vejo diferença substan-
“Lutero não foi um homem da moder- cial entre o apoio do poder secular, sem-
nidade: foi um homem de Idade Média, pre procurado pela Igreja, tanto nos tem-
imerso nas práticas devocionais e no sa- pos medievais como na era moderna, sob
ber teológico. Lutero queria trazer a Igre- o esforço constante para subordinar o po-
ja de Roma de volta à pureza original da der secular ao poder religioso”, pontua.
era apostólica”, argumenta. Assim, para
Massimo Firpo é historiador italiano,
o professor, o tempo moderno chega qua-
diretor de Rivista Storica Italiana, mem-
se como uma consequência inesperada.
bro da Academia de Ciências de Turim
“A teologia de Lutero não era moderna,
mas o foi a pluralidade de confissões cris- e da Academia Nacional dos Liceus de
tãs surgidas de seu protesto”, pontua. Ou Roma. Foi professor de História Moder-
na na Universidade de Cagliari, de Turim 71
seja, Lutero leva a cabo uma divisão que
mais tarde promove uma fragmentação, e na Scuola Normale Superiore di Pisa.
libertando e criando outras tantas formas Pesquisou a crise religiosa do século XVI,
de ser cristão. “No final, este mundo plu- o que lhe rendeu diversas obras: Pietro
ral de Igrejas decorrentes da Reforma se Bizzarri, esule italiano do Cinquecento
tornaria um mundo pluralista garantido (Turim: Giappichelli, 1971), Il problema
pela lei”, completa. dela tolleranza religiosa nell’età moder-
na: Dalla Riforma Protestante a Locke
Firpo ainda destaca, na entrevista con-
(Torino: Loescher, 1978), entre outras.
cedida por e-mail à IHU On-Line, que
Depois, dedicou-se à investigação da ma-
é o Estado que consegue impor uma acei-
triz do radicalismo religioso do século
tação da pluralidade religiosa e é dele o
XVI. Sobre estes estudos, entre suas pu-
movimento de secularização. “Não foi a
blicações, destacamos Tra alumbrados
mensagem de fraternidade, de amor mú-
e «spirituali»: Studi su Juan de Valdés e
tuo, de recusa da violência registrada em
il valdesianesimo nella crisi religiosa del
tantas páginas do Evangelho a sancio-
‘500 italiano (Firenze: Olschki, 1990) e
nar os princípios de tolerância e depois
Riforma protestante ed eresie nell’Italia
de liberdade de consciência, mas foram
del Cinquecento: Un profilo storico (Ro-
os Estados a impor às relutantes Igrejas
cristãs, todas elas dispostas a praticar a ma-Bari: Laterza, 1993).
violência contra dissidentes religiosos”, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual foi o pa- contexto da Reforma Luterana? Massimo Firpo – Não existe pro-
priamente um papel de Erasmo na
pel de Erasmo de Roterdã1 no
Reforma Luterana, porque Erasmo
co da vida monástica e das características que jul-
1 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo e gava negativas na Igreja Católica. Optou por uma sempre foi estranho a ela. Certa-
humanista neerlandês, conhecido como Erasmo vida de acadêmico independente - independente mente, dizia-se que Lutero apenas
de Roterdã. Seu principal livro foi Elogio da lou- de país, independente de laços acadêmicos, de le-
cura. Erasmo cursou o seminário com os monges aldade religiosa - e de tudo que pudesse interferir tinha chocado os ovos colocados por
agostinianos e realizou os votos monásticos aos com a sua liberdade intelectual e a sua expressão
25 anos, vivendo como tal, sendo um grande críti- literária. (Nota da IHU On-Line) Erasmo, ou que, se não era Erasmo

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TEMA DE CAPA

a “luteranizar”, era Lutero a “eras- secundárias como votos, peregri- nismo. Não há dúvida de que, no
mizar” (aut Erasmus lutherizat aut nações, indulgências, relíquias de final, Erasmo indicou um modelo
Lutherus erasmizat). Neste sentido, santos, purgatório etc. de cristianismo muito mais com-
não há dúvida de que Erasmo deu patível com a modernidade, com
E Erasmo escolheu esse argumen-
um contributo decisivo para pre- a liberdade de consciência, com
to porque sobre o livre arbítrio se
parar a reforma e abrir o caminho a sensibilidade ética dos crentes
fundava o humanismo cristão, o
para o seu sucesso, insistindo ora de hoje, que parece pouco veros-
chamado à responsabilidade moral
com ironia mordaz como no Elogio símil ter, no passado, imolado e
de cada um, a rejeição da doutrina
da Loucura, ora com dureza severa mandado ao fogo por questões
da predestinação, consequência
como em Iulius exclusus ou em Cice- como o purgatório ou a confissão
de um arbítrio servil, com todos
ronianus, sobre os males infinitos da sacramental, que muitos crentes
os problemas irresolúveis na teo-
Igreja, as superstições populares ex- e praticantes agora dão tão pouco
diceia que essa implicava. Nesse
ploradas para fim de lucros por um valor. E, estranhamente, o cristia-
sentido, o cristianismo de Erasmo
clero ganancioso e insensato, sobre a nismo praticado hoje por muitos
não só se revelou diferente, mas
ignorância dos frades e preguiça dos reformados ou evangélicos é mui-
incompatível com aquele de Lute-
monges, sobre os absurdos dos teó- to mais erasmiano do que lutera-
ro, cujo escrituralismo bíblico era
logos escolásticos, sobre a corrupção no e calvinista. Por sorte, tem-se
estranho ao humanista holandês
e simonia da cúria romana, sobre os vontade de dizer! Mas as Igrejas
(que também publicou a primeira
abusos infinitos que se concretiza- oficiais e as diferentes ortodoxias
edição crítica do Novo Testamento
vam in capite et in membris. doutrinárias com que se identi-
em grego). A um cristianismo todo
teológico de Lutero, ele contrapu- ficam deveriam estar muito mais
Quando Lutero emergiu na der-
nha um cristianismo ético deriva- conscientes da violência, constri-
rocada da história alemã e euro-
do do Evangelho, não um abstrato ções e crueldades a que foram res-
peia, Erasmo percebeu que sua
código de verdades doutrinais, mas ponsáveis ​​no passado.
força, energia e indignação pode-
riam forçar Roma àquela reforma uma mensagem moral de amor fra- Devemos todos nos alegrar com
que seus escritos não tinham con- terno que impunha escolhas difí- o abraço do papa Francisco à pas-
72 seguido aviar. Por isso ele ficou ceis e, exatamente por isso, tinha tora luterana de Lund3, na Suécia,
em silêncio mesmo quando Lutero sentido e valor. mas isso não deve fazer esquecer as
se rebelou contra o papa, quando condenações, os anátemas, as per-
Por esta razão, em uma de suas úl-
rasgou a bula Exsurge Domine 2 e seguições, o sangue derramado em
timas obras, De amabili Ecclesiae
queimou em praça pública os li- nome daquelas ortodoxias doutri-
concordia, procurou dirigir um ape-
vros de Direito Canônico, quan- nárias. Talvez devêssemos começar
lo às contrapostas ortodoxias dou-
do publicou seus amargos libelos trinárias para propor uma modica a refletir – erasmianamente – que
de 1520, A Liberdade do Cristão, theologia, consciente das limitações todo abraço ecumênico (ou mesmo
O Cativeiro Babilônico da Igreja da mente humana e da sua incapa- apenas interconfessional) testemu-
de Roma, À nobreza cristã da na- cidade de acessar as verdades divi- nha o fracasso da teologia, de seu
ção alemã. Nem Erasmo intervém nas, mas tal para sugerir práticas de contínuo esforço em perseguir a
após a condenação de Lutero con- justiça, caridade, amor do próximo. história, muitas vezes com atrasos
tra a proibição do Imperador, nem Isso ajuda a explicar por que os teó- inaceitáveis, para explicar como o
quando proclamou que o papa era logos de todas as confissões que sur- que foi errado ontem torna-se cor-
o Anticristo ou anunciou a doutri- giram da grande crise religiosa do reto hoje, como o herege dado às
na da justificação unicamente pela século (com exceção dos antitrinitá- chamas ontem tornou-se o irmão
fé ou o sacerdócio universal dos rios) apresentassem Erasmo como separado de hoje. Mas nada, acre-
fiéis. Só fez ouvir sua voz até em um herege, ou nada mais do que um dito, nem mesmo Deus em pessoa,
1524, e o fez em uma questão até oportunista vira-casaca. seria capaz de convencer os teólo-
então à margem do controverso gos da inutilidade perigosa de sua
confronto com os teólogos católi- presunção de ensinar uma verdade
cos, o livre arbítrio, e Lutero ad- IHU On-Line – Como enten- perpétua e imutável a um mundo
mitiu que ele foi o único capaz de der a distância entre Erasmo e continuamente em mudança.
tocá-lo no ponto nevrálgico, sem Lutero?
desperdiçar tempo com questões 3 O entrevistado se refere a Antje Jackélen, ar-
Massimo Firpo – A distância cebispa luterana de Uppsala e primaz da Igreja
da Suécia. O IHU, na seção Notícias do Dia em
2 Exsurge Domine: é a bula pontifícia emitida entre Erasmo e Lutero decorre da seu sítio, publicou diversos textos acerca do en-
pelo papa Leão X em 15 de junho de 1520 em crescente consciência de ambos contro dela com o papa Francisco. Entre eles Um
resposta às 95 teses de Martinho Lutero e aos cinquentenário vivido com responsabilidade ecu-
seus escritos sucessivos. Dessas 95, o papa re- em dar um significado diferente à mênica e consciência global, disponível em http://
conhecia como válidas 54 teses, mas pedia que bit.ly/2yQCInv, e Bispa luterana Jackelén é a nova
Lutero se retratasse por 41 delas, assim como por palavra ‘cristão’, em reconhecer- presidente do Conselho das Igrejas da Suécia, dis-
outros erros especificados, oferecendo um prazo se não apenas em modelos dife- ponível em http://bit.ly/2i6YH1v. Leia mais em ihu.
de 70 dias a partir da sua publicação. (Nota da unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU
IHU On-Line) rentes, mas alternativos de cristia- On-Line)

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socinianos6, não-adorantes, depois Mais e mais, o mundo protestante


“Sobre o livre quakers7, presbiterianos8, indepen- quebrou-se e dividiu-se, e mesmo
dentes, puritanos, quinto monar- no século XVI o luteranismo viu-se
arbítrio se quistas, metodistas9, pentecostais, dentro de um conflito feroz entre

fundava o
adventistas do sétimo dia10, testemu- diferentes orientações, entre os cha-
nhas de Jeová11, e assim por diante. mados filipistas, herdeiros da mode-

humanismo IHU On-Line)


6 Socianismo ou socinianismo: sumaria as cren-
ração de Filipe Melâncton12, o braço
direito de Lutero, e os intransigentes

cristão” ças dos socinianos, seguidores de Fausto Socino


(falecido na Polônia, em 1604), que desenvolveu
sua teologia inspirada em seu tio Lélio Socino
Gnesio Luteranos13, luteranos puros,
indissoluvelmente ligados à palavra
(morto em 1562, em Zurique). A doutrina soci- do mestre.
niana é antitrinitária e considera que em Deus há
uma única pessoa e que Jesus de Nazaré é um
IHU On-Line – Podemos con- homem. Os socinianos se estabeleceram princi-
palmente na Transilvânia, Polônia e Países Baixos.
Pluralidade protestante
ceber a Reforma Luterana Suas crenças, resumida no Catecismo Racoviano.
como uma divisão entre o pen- (Nota da IHU On-Line) Dentro de poucos anos, em suma,
7 Quaker (também denominado quacre em por-
samento medieval e o moder- tuguês): é o nome dado a vários grupos religiosos, o mundo protestante se tornaria um
com origem comum num movimento protestante mundo plural, dividido entre confis-
no? Por quê? britânico do século XVII. A denominação quaker é
chamada de quakerismo, Sociedade Religiosa dos sões e seitas diferentes, e percorrido
Massimo Firpo – Não, abso- Amigos (em inglês: Religious Society of Friends),
ou simplesmente Sociedade dos Amigos ou Ami- por conflitos ásperos, ódios teológi-
lutamente não. Lutero não foi um gos. Eles são conhecidos pela defesa do pacifismo cos, condenações recíprocas. Como
e da simplicidade. Estima-se que haja 360.000
homem da modernidade: foi um quakers no mundo, sendo o Quênia na África em 1550 escreveu um exilado italia-
homem de Idade Média, imerso nas o local que possui a maior comunidade quaker.
Criado em 1652, pelo inglês George Fox, o Movi- no em Basileia, “não só na Itália há
práticas devocionais e no saber teo- mento Quaker pretendeu ser a restauração da fé Satanás, não só na Itália há o An-
cristã original, após séculos de apostasia. A Socie-
lógico. Lutero queria trazer a Igreja dade dos Amigos, como também são conhecidos, ticristo, não só na Itália há a causa
de Roma de volta à pureza original reagiu contra o que considerava abusos da Igreja
de todos os delitos, de toda a impie-
Anglicana, colocando-se como “sob a inspiração
da era apostólica, lutar contra as directa do Espírito Santo”. Os membros desta dade, de todos os males: o papado”.
degenerações modernas, contra sua sociedade, ridicularizados no século XVII com
o nome de quakers (inglês para “tremedores”), Não teriam sido as Igrejas, mas as
contaminação enfática com o huma- que a maioria adota até hoje, rejeitam qualquer
organização clerical, para viver no recolhimento, autoridades civis que puseram fim 73
nismo renascentista. na pureza moral e na prática ativa do pacifismo, às guerras religiosas, à tirania, ao
da solidariedade e da filantropia. (Nota da IHU
Lutero contribuiu para a moder- On-Line) faccionalismo, à intolerância de or-
8 Presbiterianismo: refere-se às igrejas cristãs
nidade, mas contra suas intenções protestantes que aderem à tradição teológica re-
todoxias doutrinais, até estabelece-
(outra confirmação da heterogenei- formada (calvinismo) e cuja forma de organização rem o princípio – mestres Spinoza14
eclesiástica se caracteriza pelo governo de uma
dade dos fins como força dominante assembleia de presbíteros, ou anciãos. Há mui- e Locke15 – que todos são livres para
tas entidades autônomas em países por todo o
da história). Conseguiu fundar uma mundo que subscrevem igualmente o presbite-
rianismo. Para além de distinções traçadas entre 12 Philipp Melanchthon (1497-1560): em portu-
nova Igreja, não derrubar o papa. E, fronteiras nacionais, os presbiterianos também se guês, Filipe Melâncton. Foi um reformador, astró-
do seu protesto, outras Igrejas sur- dividiram em alguns países por razões doutrinais, logo e astrônomo alemão. Colaborador de Lutero,
como o Liberalismo Teológico, Evangelicalismo, redigiu a “Confissão de Augsburgo” (1530) e con-
giram, outros credos, outras identi- Ordenação Feminina, práticas litúrgicas, entre verteu-se no principal líder do luteranismo após a
dades religiosas, todos invocando os outras razões, fazendo assim com que existam morte de Lutero. (Nota da IHU On-Line)
várias denominações presbiterianas diferentes em 13 Gnesio-Luteranos: nome moderno para um
mesmos fundamentos do cristianis- alguns países, mas todas com o mesmo sistema partido teológico na Igreja Luterana , em oposição
de governo eclesiástico. (Nota da IHU On-Line) aos filipenses após a morte de Martinho Lutero e
mo, o Novo e o Antigo Testamento, 9 Metodismo: movimento de avivamento espiri- antes da Fórmula da Concórdia . Em seus próprios
mas cada um em oposição aos ou- tual cristão ocorrido na Inglaterra do século XVIII dias eles eram chamados de Flacios por seus opo-
que enfatizou a relação íntima do indivíduo com nentes e simplesmente por Luteranos por conta
tros: calvinistas, anabatistas4 de vá- Deus, iniciando-se com uma conversão pessoal e própria. Mais tarde Flacian tornou-se um adepto
seguindo uma vida de ética e moral cristã. O me- da visão de Matthias Flacius sobre o pecado ori-
rias denominações, antitrinitários5, todismo foi liderado por John Wesley, eclesiástico ginal, rejeitado pela Fórmula da Concórdia . Em
da Igreja Anglicana, e seu irmão Charles Wesley, um sentido mais amplo, o termo Gnesio-Lutero é
considerado um dos maiores expoentes da músi- associado principalmente à defesa da doutrina da
4 Anabaptistas: são cristãos sectários do ana- ca sacra protestante. (Nota da IHU On-Line) Presença Real . (Nota da IHU On-Line)
batismo, a chamada “ala radical” da Reforma 10 Igreja Adventista do Sétimo Dia: é uma deno- 14 Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632-1677): fi-
Protestante. Os anabatistas não formavam um minação cristã protestante restauracionista, trini- lósofo holandês. Sua filosofia é considerada uma
único grupo ou igreja, pois havia diversos gru- tariana, sabatista, não-cessacionista, mortalista e resposta ao dualismo da filosofia de Descartes.
pos chamados genericamente de “anabatistas” aniquilacionista, que se distingue pela observân- Foi considerado um dos grandes racionalistas do
com crenças e práticas diferentes e divergentes. cia do sábado[7], o sétimo dia da semana judaico- século 17 dentro da Filosofia Moderna e o fun-
Eles foram assim chamados porque os converti- cristã (sabbath) e por sua ênfase na iminente se- dador do criticismo bíblico moderno. Confira a
dos eram baptizados apenas na idade adulta, por gunda vinda de Jesus Cristo. A igreja surgiu após edição 397 da IHU On-Line, de 6-8-2012, intitu-
isso, eles re-baptizavam todos os seus prosélitos o Grande Desapontamento de 22 de outubro de lada Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pen-
que já tivessem sido baptizados quando crianças, 1844, desencadeado pelo Movimento Milerita nos samento, disponível em https://goo.gl/GEGuI5.
pois creem que o verdadeiro baptismo só tem Estados Unidos, durante a primeira metade do (Nota da IHU On-Line)
valor quando as pessoas se convertem conscien- século XIX, sendo formalmente criada em 1863. 15 John Locke (1632-1704): filósofo inglês e ide-
temente a Cristo. Desta forma os anabatistas des- Entre seus vários pioneiros está Ellen White, cujos ólogo do liberalismo, sendo considerado o prin-
consideravam tanto o batismo católico quanto o escritos são tidos pelos adventistas como inspira- cipal representante do empirismo britânico e um
batismo dos protestantes luteranos, reformados e dos por Deus. (Nota da IHU On-Line) dos principais teóricos do contrato social. Locke
anglicanos. (Nota da IHU On-Line) 11 Testemunhas de Jeová são uma denominação rejeitava a doutrina das ideias inatas e afirmava
5 Antitrinitarismo (ou não trinitarianismo): re- cristã não-trinitária, milenarista e restauracionis- que todas as nossas ideias tinham origem no que
fere-se a um sistema de crenças monoteístas, ta que possuem adeptos em 240 países e terri- era percebido pelos sentidos. A filosofia da mente
principalmente dentro do cristianismo, que rejeita tórios autônomos, com cerca de 8,3 milhões de de Locke é frequentemente citada como a origem
a doutrina de Trindade, nomeadamente, o ensi- praticantes,[6] apesar de reunirem um número das concepções modernas de identidade e do
namento de que Deus é constituído por três hi- superior de simpatizantes. São conhecidas pelo “Eu”. O conceito de identidade pessoal, seus con-
póstases. No Primeiro Concílio de Constantinopla, seu trabalho regular e persistente de pregação de ceitos e questionamentos figuraram com desta-
a doutrina da trindade foi formulada como “três seus princípios e dogmas de casa em casa, nas que na obra de filósofos posteriores, como David
hipóstases em uma ousia (substância)”. (Nota da ruas e em locais públicos. (Nota da IHU On-Line) Hume, Jean-Jacques Rousseau e Kant. Locke foi

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TEMA DE CAPA

acreditar no que quiserem, contan- encontrarem as razões da unidade pois da gloriosa revolução, que foi
to que não infrinjam a lei, já que o sem insistir demais em sutilezas te- lançada, em 1689, a primeira lei
Estado não se ocupa com Deus, mas ológicas, que configurariam somente que permitiu e, ao mesmo tempo,
com os homens, tutelando a paz e motivos de divisão, na maioria so- impôs, a tolerância religiosa. Em
não a salvação eterna. bre questões não essenciais à fé e à outras palavras, gostando ou não
vida cristã. No Tratado Sull’autorità gostando, não foram as Igrejas e
No final, este mundo plural de
secolare, de 1523, Lutero exortou confissões cristãs que pediram leis
Igrejas decorrentes da Reforma se
os príncipes seculares a não inter- que garantissem a paz religiosa,
tornaria um mundo pluralista ga-
vir em questões religiosas, a deixar não foi a mensagem de fraternida-
rantido pela lei. E, graças a isso,
agir a Palavra de Deus, a evitar a de, de amor mútuo, de recusa da
católicos e protestantes, anabatis-
coerção religiosa; mas, em seguida, violência registrada em tantas pá-
tas e quakers, calvinistas e às vezes
o surgimento do anabatismo e as ginas do Evangelho a sancionar os
judeus iriam aprender, um pouco
tensões milenaristas da guerra dos princípios de tolerância e depois de
de cada vez, que se pode comer-
camponeses levaram-no a mudar liberdade de consciência, mas fo-
ciar proficuamente, que se pode e
de rumo, solicitando a intervenção ram os Estados a impor às relutan-
se deve honrar um contrato, que se
das autoridades políticas em tutela tes Igrejas cristãs, todas elas dis-
pode também fazer ótimos negócios
da “verdadeira” fé: um princípio que postas a praticar a violência contra
com pessoas de diferentes credos,
será enfim teorizado nos anos trinta dissidentes religiosos.
que se pode falar de política, beber
como ius reformandi, como direito
uma boa cerveja e talvez até con-
de impedir, nas terras confiadas ao
cordar em casar os próprios filhos,
seu governo, o ímpio culto papista.
mesmo com aqueles que pensam de
forma diferente sobre a eucaristia Uma Reforma incoativa, ainda “Dizia-se
ou, talvez, honrem seu Deus em um
dia diferente do domingo. A teolo-
fraca e incerta, deixava já espaço
para uma Reforma institucional,
que Lutero
gia de Lutero não era moderna, mas
o foi a pluralidade de confissões
para uma nova Igreja, pronta a rei-
vindicar o monopólio da verdade,
apenas tinha
74 cristãs surgidas de seu protesto. como fazia o Papa em Roma e Cal-
vino em Genebra. Foi a propagação
chocado os
IHU On-Line – Que relações
do pluralismo religioso dentro da
mesma comunidade política, como
ovos colocados
podemos estabelecer entre o
cisma, gestado em Erasmo,
a Inglaterra revolucionária ou as por Erasmo”
Províncias Unidas da Holanda a
mas eclodido em Lutero, com a obrigar as autoridades civis a evita-
secularização e divisão moder- rem confrontos religiosos que ame-
na entre os poderes temporal e açavam tornar-se lutas civis (pres-
espiritual? biterianos contra independentes, IHU On-Line – Os movimen-
Massimo Firpo – Erasmo não na Inglaterra, gomaristas16 contra tos da Igreja Católica de rea-
queria qualquer cisma, ao contrário, arminianos17 e remonstrantes18, na ção ao desafio luterano inau-
até escreveu De amabili Ecclesiae Holanda). Foi na Inglaterra, de- guram outras perspectivas,
concordia exortando a todos para vide a Contrarreforma. A par-
16 Gomaristas: seguidores de Franciscus Goma- tir daí, como compreender as
rus (1563-1641) foi teólogo, calvinista e Professor
o primeiro a definir o “si mesmo” através de uma de Teologia da Universidade de Leiden. Foi um outras associações que a Igreja
continuidade de consciência. Ele postulou que ferrenho opositor da teorias religiosas de Jacobus
a mente era uma lousa em branco (tabula rasa). Arminius, o qual foi formalmente julgado duran- faz com o poder temporal em
Em oposição ao Cartesianismo, ele sustentou que te o Sínodo de Dort (1618-1619). (Nota da IHU nome da expansão da fé cris-
nascemos sem ideias inatas, e que o conhecimen- On-Line)
to é determinado apenas pela experiência deriva- 17 Arminianismo: é uma escola de pensamento tã, já no período moderno das
da da percepção sensorial. O pensador escreveu soteriológica (doutrina da salvação), baseada so-
o Ensaio acerca do Entendimento Humano, onde bre ideias do holandes Jacobus Arminius (1560 conquistas territoriais? E no
desenvolve sua teoria sobre a origem e a natureza - 1609) e seus seguidores históricos, os remons- que se distinguem das alianças
do conhecimento. Suas ideias ajudaram a derru- trantes. A aceitação doutrinária se estende por
bar o absolutismo na Inglaterra. Dizia que todos boa parte do cristianismo desde os primeiros ar- do tempo medieval?
os homens, ao nascer, tinham direitos naturais - gumentos entre Atanásio e Orígenes, até a defe-
direito à vida, à liberdade e à propriedade. Para sa de Agostinho de Hipona do “pecado original.”
garantir esses direitos naturais, os homens haviam (Nota da IHU On-Line) Massimo Firpo – Através de prá-
criado governos. Se esses governos, contudo, não 18 Irmandade Remonstrante: também chamada ticas repressivas e de censura, a Igre-
respeitassem a vida, a liberdade e a propriedade, Igreja Remonstrante foi fundada em 1617, após a
o povo tinha o direito de se revoltar contra eles. expulsão no Sínodo Nacional Dordrecht de cer- ja Católica lutou duramente contra a
As pessoas podiam contestar um governo injusto ca de 45 ministros e teólogos dos Países Baixos
e não eram obrigadas a aceitar suas decisões. De- que deram continuidade ao desenvolvimento da heresia, mas isso ocorreu apenas na
dicou-se também à filosofia política. No Primeiro teologia de Jacobus Arminius (1560-1609). Nos Itália: somente na Itália, de fato, a
Tratado sobre o Governo Civil, critica a tradição Países-Baixos havia uma forma nativa da Reforma
que afirmava o direito divino dos reis, declarando Protestante antes da adesão do calvinismo em Inquisição romana teve jurisdição.
que a vida política é uma invenção humana, com- 1568, muitos desses neerlandeses professavam
pletamente independente das questões divinas. uma forma mais liberal de protestantismo e Jacob Mas o que me parece mais relevan-
No Segundo Tratado sobre o Governo Civil, expõe Arminius tentou primeiramente trazê-los para a te é que as escolhas feitas nos vér-
sua teoria do Estado liberal e a propriedade priva- teologia reformanda, mas acabou reavaliando
da. (Nota da IHU On-Line) suas próprias crenças. (Nota da IHU On-Line) tices da Igreja não foram o resul-

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tado do Concílio de Trento19, que concórdia, ora às condenações sem sia luterana.
de fato recebeu referências muito apelo. Houve propostas de reforma
Parece, portanto, lícito sustentar
subordinadas às instruções dadas da Igreja diferentemente incisivas,
que o conceito de Contrarreforma
pela Cúria romana, contando so- baseadas ora em uma dilatação da
não envolve tanto uma luta contra
bre uma maioria de bispos italia- autonomia dos bispos da periferia,
a distante Reforma Protestante,
nos, frequentemente muito pobres ora no fortalecimento da estrutura
(pequeníssimas eram as Dioceses quanto contra a próxima e con-
vertical da Cúria e, em particular, do
no sul da Itália) “assalariados pelo corrente estratégia de reforma da
poder papal. Foi a segunda estraté-
papa”, nem de uma estratégia uni- Igreja promovida por outras cor-
gia que prevaleceu, de acordo com
tária dos vértices curiais. O que rentes, outros grupos, outras pers-
o princípio estabelecido desde 1532,
aconteceu (nem seria possível pen- pectivas religiosas, que, no entan-
por Gian Pietro Carafa, mais tarde
sar que as coisas acontecessem de to, foram severamente derrotadas.
Papa Paulo IV20, que “os heréticos
outra forma) foi um áspero conflito Produziu uma Igreja forte, refor-
se querem tratados como hereges”,
dentro do próprio sagrado colégio çada em sua estrutura institucio-
e a serem tratados como hereges fo-
sobre os caminhos e melhores es- ram também os defensores da outra nal, reagrupada em torno de au-
tratégias para lidar com os grandes solução, como os cardeais Reginald toridade papal, forte de certezas
problemas levantados pela Refor- Pole21 e Morone22, acusados de here- teológicas inquestionáveis, capaz
ma Protestante, nomeadamente, de encontrar novas formas de vi-
como se relacionar com as posições 20 Papa Paulo IV (1476-1559): nascido Giovan- talidade no extraordinário esforço
ni Pietro Carafa, foi papa de 23 de maio de 1555 missionário implantado na época
teológicas dos grandes mestres da até a data da sua morte. Como papa, dedicou-
Reforma dos transalpinos e como se à Inquisição romana, fundada por Paulo III, e pós-tridentina, mas também com
à reconstrução administrativa e moral de Roma.
fazer zarpar a reforma da Igreja: Tomou medidas que constituíram significativos base em modelos autoritários, na
excessos de severidade e também contribuíram
que metas propor-se, que estraté- para tornar mais insolúveis os conflitos e para au- falta de cultura teológica dos lei-
gias seguir? mentar a antipatia contra ele em alguns setores gos (que foram proibidos de ler a
da Igreja, inclusive entre os seus antigos colabo-
radores. Exerceu com rigor a censura dos livros e Bíblia em suas línguas), na pas-
Houve várias propostas, ora volta- publicou o primeiro índex dos livros proibidos.
Sua má condução da política externa pontifícia, toral da obediência. Não vejo di-
das à mediação e ao acordo com os que na época estava a cargo do cardeal Carlos Ca- ferença substancial entre o apoio
protestantes, ora ao confronto fron- rafa, seu sobrinho, levou a um conflito aberto com 75
Carlos V em 1556. Não reconheceu o título im- do poder secular, sempre procu-
tal contra eles, ora às fórmulas de perial de Fernando I em 1558 e rompeu com Eli-
sabeth I da Inglaterra, aumentando o isolamento rado pela Igreja, tanto nos tempos
político que afetava Roma. (Nota da IHU On-Line) medievais como na era moderna,
19 Concílio de Trento: realizado de 1545 a 1563, 21 Reginald Pole (1500-1558): foi um cardeal in-
foi o 19º concílio ecumênico. Foi convocado pelo glês da Igreja Católica Romana e o último arcebis- sob o esforço constante, – e diver-
Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé (sa- po católico romano de Canterbury, ocupando o
grada escritura histórica) e a disciplina eclesiásti- cargo de 1556 a 1558, durante a Contrarreforma. samente modulado nos séculos de
ca, no contexto da Reforma da Igreja Católica e a (Nota da IHU On-Line)
reação à divisão então vivida na Europa devido à 22 Giovanni Girolamo Morone (1509-1580): foi acordo com diferentes circunstân-
Reforma Protestante, razão pela qual é denomi- um cardeal italiano, bispo-emérito de Módena e cias históricas – para subordinar o
nado como Concílio da Contrarreforma. (Nota da decano do Colégio dos Cardeais. (Nota da IHU
IHU On-Line) On-Line) poder secular ao poder religioso.■

Leia mais
- Lutero, revolucionário por acaso. Artigo de Massimo Firpo, reproduzido nas No-
tícias do Dia de 13-01-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos, disponível em
http://bit.ly/2zFICXE.
- Erasmo: nem com Roma, nem com Lutero. Artigo de Massimo Firpo, reproduzido nas
Notícias do Dia de 6-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos, disponível em
http://bit.ly/2fWFXRG .

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

Lutero, o metamoderno
Para Franco Ferrarotti, o monge não pode ser inscrito
no medievo e tampouco na modernidade
João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto

M
artinho Lutero é forjado na namento em nome do pecado, purgató-
Idade Média, mas rompe com rio etc. “É nas ‘Cartas aos Romanos’ que
todas as perspectivas da épo- Lutero compreende que o cristianismo
ca e inaugura o pensamento moderno, ultrapassa a tradição judaica e adquire
sendo assim um dos primeiros pensa- uma dimensão universal em sentido
dores da Modernidade. Correto? Não, cosmopolita”, analisa. “Lutero premia a
errado. Para o sociólogo Franco Ferra- paixão e a coragem, que vêm antes do
rotti, o agostiniano vai além e, pode-se puro conhecimento. Risco de um irra-
assim dizer, inaugura uma outra cate- cionalismo vaporoso”, completa.
goria, para além de uma temporalidade.
Franco Ferrarotti, sociólogo ita-
“Lutero não é totalmente medieval nem
completamente moderno”, aponta. E liano, é considerado um dos grandes
explica: “ele é metamoderno, no senti- nomes da sociologia na Itália na déca-
do de que a sua ‘liberdade do cristão’ le- da de 1960. Também foi deputado da
76 vanta a hipótese de uma pessoa ‘senho- República Italiana e seguiu a carreira
ra e responsável’ pelo próprio destino”. acadêmica. Hoje é professor emérito de
Ou seja, para o professor, Lutero dá um Sociologia na Sapienza - Universidade
passo além da própria modernidade e de Roma. Entre suas publicações em
avança na ideia de liberdade cristã para português, destacamos Uma Sociolo-
uma quase autonomia secular do ser. gia Alternativa (Rio de Janeiro: Afron-
“Lutero está além dos interesses políti- tamento, 1972). Recentemente lançou
co-econômicos contingentes”. Attualità di Lutero (Roma: EDB, 2017);
também destacamos Dialogare o peri-
Ferrarotti também destaca, na en-
re (Edizioni di Comunità, 2017), Roma
trevista concedida por e-mail à IHU
Caput Mundi (Roma: Gangemi, 2015) e
On-Line, que Lutero encontrou no
Scienza e coscienza. Verità personali e
próprio cristianismo a chave para sua
amplificação, potencializando o caráter pratiche pubbliche (Roma: EDB, 2014).
universal e deixando de lado o aprisio- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medi- pelo próprio destino. mento em que a modernidade ainda
da a experiência de Martinho está incompleta. O desafio do nosso
IHU On-Line – De que forma a
Lutero contribui para compre- tempo é dado pela confusão mortal
releitura da Reforma Luterana entre valores instrumentais e valores
endermos a Modernidade? hoje pode nos auxiliar a com- finais. A Reforma entrega a certitudo
Franco Ferrarotti – Lutero não preender os desafios de nosso salutis1 ao indivíduo em toda a sua
é totalmente medieval nem comple- tempo, a transição entre o que dramaticidade: a todo instante, o in-
tamente moderno. Ele é metamoder- podemos chamar de Moderni- divíduo faz um gesto que pode salvá
no, no sentido de que a sua “liberda- dade e Pós-Modernidade? -lo ou perdê-lo.
de do cristão” levanta a hipótese de Franco Ferrarotti – Não é possí-
1 No sentido de certeza ou segurança de salvação.
uma pessoa “senhora e responsável” vel falar de pós-modernidade no mo- (Nota da IHU On-Line)

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“Não é possível falar de pós-


modernidade no momento
em que a modernidade
ainda está incompleta”

IHU On-Line – Como com- Ele duvida, pensa, escreve, mas não aos Romanos” que Lutero compre-
preender a contraditória rela- age, não decide. Peca por avidez. ende que o cristianismo ultrapassa
ção de Lutero com burgueses e a tradição judaica e adquire uma
príncipes e com camponeses? dimensão universal em sentido cos-
IHU On-Line – Qual a centra- mopolita.
Franco Ferrarotti – Lutero está lidade e como se articulam os
além dos interesses político-econômi- conceitos de perdição e salva-
cos contingentes. Não ter compreen- ção, morte e vida, liberdade e IHU On-Line – Em que sentido
dido isso é o limite de Thomas Münt- servidão no pensamento de Lu- pode-se dizer que a tradição pau-
zer2 e do seu historiador Ernst Bloch3. tero? lina, mas também luterana, ga-
nham corpo na filosofia alemã?
Franco Ferrarotti – Na “expe-
IHU On-Line – Quais as dis- riência da torre”, Lutero entrevê, de Franco Ferrarotti – No sentido
tinções entre o pensamento de repente, o nexo entre fé e salvação. da verdade conservada na vida inte-
Erasmo4 e o de Lutero? Daí a sua (talvez excessiva) desva- rior (“o céu estrelado sobre mim, o 77
lorização da conduta, e, portanto: imperativo moral dentro de mim”).
Franco Ferrarotti – Erasmo peca, “pecca fortiter; crede fortius”.
aos olhos de Lutero, de nicodenismo5.
IHU On-Line – Podemos afir-
2 Thomas Müntzer (1490-1525): foi um dos pri-
meiros teólogos alemães da era da Reforma; ele IHU On-Line – Como compre- mar que Lutero força uma rein-
se tornou um líder rebelde durante a Guerra dos ender o antiaristotelismo e a venção do cristianismo? Por quê?
Camponeses. Müntzer virou-se contra Lutero,
com vários escritos contra ele, e apoiou os ana- reação ao racionalismo grego
batistas. Na Batalha de Frankenhausen, Müntzer
presentes em Lutero? Franco Ferrarotti – Não. Ele re-
e seus seguidores foram derrotados. Ele foi cap-
turado, torturado e decapitado. (Nota da IHU descobriu o que jazia sob a incrusta-
On-Line) Franco Ferrarotti – Lutero pre- ção de comportamentos acristãos. O
3 Ernst Bloch (1885-1977): filósofo alemão mar-
xista heterodoxo, que construiu vasta obra que mia a paixão e a coragem, que vêm espírito contra a letra.
ressalta o papel da utopia na história do homem. antes do puro conhecimento. Risco
Seu livro O Princípio Esperança (Rio de Janeiro:
Contraponto, 2005), foi destacado na editoria Livro de um irracionalismo vaporoso.
da Semana da 151ª edição da revista IHU On-Line,
de 15-8-2005, com a realização de duas entrevistas IHU On-Line – No que consis-
sobre a obra: uma com o tradutor do livro, Nélio te a distinção entre Filosofia e
Schneider, e outra com o professor da UFRGS, Ed-
son Sousa. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – Que relação po- Teologia feita por Lutero? É
4 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo e hu- demos estabelecer entre o pen- nessa distinção que se revela
manista neerlandês, conhecido como Erasmo de Ro-
terdã. Seu principal livro foi Elogio da loucura. Erasmo samento de Lutero e as perspec- uma espécie de inauguração do
cursou o seminário com os monges agostinianos e
realizou os votos monásticos aos 25 anos, vivendo tivas e a filosofia paulina? pensamento moderno?
como tal, sendo um grande crítico da vida monástica
e das características que julgava negativas na Igreja Franco Ferrarotti – É na “Carta Franco Ferrarotti – Não. Para
Católica. Optou por uma vida de acadêmico indepen-
dente - independente de país, independente de laços Lutero, é a palavra de Deus, a sua
acadêmicos, de lealdade religiosa - e de tudo que pu- evitar a perseguição da Igreja Católica, criticaram
desse interferir com a sua liberdade intelectual e a sua publicamente os católicos, participando também de pura força primigênia que “mata” os
expressão literária. (Nota da IHU On-Line) funções religiosas. Ele condenou esta prática, já que desvarios teológicos vãos e desvalo-
5 Nicodenismo: termo criado por Giovanni Calvino o cristão, em sua opinião, declarou publicamente
para designar a atitude dos protestantes que, para sua fé à custa do martírio. (Nota da IHU On-Line) riza as elucubrações filosóficas.■

Leia mais
- Lutero, reformador trágico. Artigo de Franco Ferrarotti, publicado nas Notícias do Dia de
19-1-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2yox1iD.

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

O encontro entre Reforma e o


surgimento da Modernidade
Franco Cardini analisa que a diferença na ação de Lutero e na de
Francisco de Assis está na insurgência ao papa e na associação
ao poder temporal, que contribui para o absolutismo moderno
João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto

O
historiador Franco Cardini notável ‘simpatia’ do imperador Carlos
compreende a figura de Marti- V, a ‘revolta’ de Lutero não teria suces-
nho Lutero como um agostinia- so”, pontua. O professor ainda lembra
no atormentado com a ideia de salvação que, a partir de Lutero, todos os refor-
e, particularmente, escandalizado com madores são levados a uma associação
a corrupção do alto clero. Para o pro- com o poder político da época para se
fessor, são esses elementos que o fazem dissociarem da igreja de Roma. “Mas
questionar o poder papal. Movimento o resultado disso foi a constituição de
semelhante ao que fez Francisco de As- Igrejas nacionais subordinadas ao po-
sis, em plena Idade Média. A diferen- der temporal”, completa.
ça, segundo Cardini, está na associação
que Lutero faz com o poder temporal. Franco Cardini é italiano de Floren-
“O seu sonho de retorno ao Evangelho ça. Historiador, professor do Istituto
78 faz parte de um programa e de um pro- Italiano di Scienze Umane - Sum. Ocu-
jeto”, reitera. “A diferença está no fato pa-se, há meio século, com estudos so-
de que Lutero, rebelando-se contra o bre as relações entre Europa medieval
papa, apelou ao mais alto poder tem- e Oriente, essencialmente como os te-
poral da época”, destaca na entrevista mas cruzadas, peregrinações, relações
concedida por e-mail à IHU On-Line. culturais, relações político-diplomá-
ticas, laços econômicos e comerciais.
Cardini ainda lembra que Lutero nun-
Ao longo das últimas três décadas, tem
ca quis um cisma, e, embora tivesse a
ampliado sua investigação aos tempos
intenção de romper com o pensamento
modernos e contemporâneos. Entre as
medieval, gostaria realmente de voltar
publicações, destacamos o título em
ao cristianismo apostólico. Ou seja, a
português Atlas Histórico do Cristia-
sua contribuição para a eclosão da mo-
nismo Para Jovens (São Paulo: Cidade
dernidade foi quase uma consequência
Nova, 2010), e os livros Samarcanda:
não planejada. “O seu gesto encontrou-
Un sogno color turchese (Società edi-
se com um dos elementos do nascimen-
to da Modernidade: a desagregação do trice il Mulino, 2016) e Andare per le
universalismo cristão, o nascimento Gerusalemme d’Italia (Società editrice
do absolutismo moderno. Sem o apoio il Mulino, 2015).
político da alta nobreza alemã e uma Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- agostiniano atormentado pelo pro- Assis1: a diferença está no fato de que
ender a figura de Martinho Lu- blema da relação entre salvação da
tero no contexto do tempo me- alma e predestinação, e sinceramen- 1 São Francisco de Assis (1181-1226): frade ca-
dieval? te escandalizado pela corrupção do tólico, fundador da “Ordem dos Frades Menores”,
mais conhecidos como Franciscanos. Foi canoni-
alto clero do seu tempo. O seu sonho zado em 1228 pela Igreja Católica. Por seu apreço
Franco Cardini – Idade Média, à natureza, é mundialmente conhecido como o
de retorno ao Evangelho faz parte de
Idade Moderna e assim por diante santo patrono dos animais e do meio ambiente.
um programa e de um projeto não Sobre Francisco de Assis confira a edição 238 da
são abstrações. Lutero é um religioso IHU On-Line, de 1-10-2007, intitulada Francisco.
muito diferentes dos de Francisco de O santo, disponível para download em http://bit.

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REVISTA IHU ON-LINE

“Sem o apoio político da alta


nobreza alemã e uma notável
‘simpatia’ do imperador
Carlos V, a ‘revolta’ de
Lutero não teria sucesso”

Lutero, rebelando-se contra o papa, IHU On-Line – De que forma gerar outras reformas, tanto
apelou ao mais alto poder temporal podemos entender as mudan- dentro do catolicismo como do
da época. ças do pensamento medieval ao protestantismo, com divisões
moderno e por que a Reforma duras entre os próprios evan-
O seu gesto encontrou-se com um dos Luterana pode ser tida como gélicos?
elementos do nascimento da Moderni- um marco dessa mudança?
dade: a desagregação do universalismo Franco Cardini – Uma vez ini-
Franco Cardini – Na Reforma, ciado o processo de cisma, ele se re-
cristão, o nascimento do absolutismo
há duas características tipicamente produziu, por natureza própria.
moderno. Sem o apoio político da alta
modernas: a relação primária com o
nobreza alemã e uma notável “simpa-
Estado laico e a atitude individualis-
tia” do imperador Carlos V2, a “revolta” ta no exame da Sagrada Escritura. IHU On-Line – No que consis-
de Lutero não teria sucesso. E ele nun- te a paradoxal coexistência das
ca pensou em provocar um cisma. ideias de liberdade e servidão 79
IHU On-Line – A experiência presentes em Lutero? Como
ly/1NLAtl7 e a entrevista com a medievalista ita- do protestante Lutero provoca esses conceitos se articulam no
liana Chiara Frugoni, intitulada Uma outra face de
São Francisco de Assis, na revista IHU On-Line nú- transformações nas relações mundo medieval e de que for-
mero 469, de 3-8-2015, disponível em http://bit.
ly/2erAzUq. (Nota da IHU On-Line) entre poder temporal e espiri- ma são ressignificados na Mo-
2 Carlos V e I (1500-1558): foi o Sacro Imperador tual? De que forma? dernidade?
Romano-Germânico como Carlos V a partir de 1519
e Rei da Espanha como Carlos I de 1516 até sua ab-
dicação em favor de seu irmão mais novo Fernando Franco Cardini – Com Lutero e Franco Cardini – A coexistência
I no império e seu filho Filipe II na Espanha. Carlos depois de Lutero, todos os reforma-
era o herdeiro de três das principais dinastias euro- da liberdade do cristão e a servidão
peias: a Casa de Habsburgo da Monarquia de Habs- dos (com exceção de algumas seitas do súdito é um elemento constante
burgo, a Casa de Valois-Borgonha dos Países Baixos
Borgonheses e a Casa de Trastâmara das coroas de radicais) se apoiariam nos poderes na Idade Média. O tema central da
Aragão e Castela. Ele governou vastos domínios na temporais ou, melhor, lhes solicita-
Europa central, oriental e do sul, além das colônias Idade Média, a partir desse ponto de
espanholas nas Américas. Como o primeiro monar- riam a se substituírem à Igreja na vista, é a relação entre onipotência
ca a governar Castela, Leão e Aragão simultane-
amente, ele se tornou o primeiro Rei da Espanha. gestão de poderes e de riquezas. Mas divina e respeito, por parte de Deus,
Carlos tornou-se imperador em 1519. A partir de o resultado disso foi a constituição pela vontade humana. Como essa
então seu império cobria mais de quatro milhões
de quilômetros quadrados pela Europa, Oriente e de Igrejas nacionais subordinadas vontade pode verdadeiramente ser
Américas. Grande parte de seu reinado foi dedicado
às guerras italianas contra a França, sendo militar- ao poder temporal. livre sem prejudicar o princípio da
mente bem sucedidas apesar dos enormes gastos, onipotência divina continua sendo o
levando a criação do primeiro exército profissional
europeu: o Terço. Além de suas realizações milita- principal problema que permanece
res, Carlos é mais conhecido por seu papel contra IHU On-Line – A Igreja Me- mesmo depois da Reforma.
a Reforma Protestante. Vários príncipes germânicos
abandonaram a Igreja Católica e formaram a Liga de dieval passou por reformas que
Esmalcalda para poder desafiarem a autoridade de antecederam a Luterana. Como
Carlos com força militar. Não desejando que guerras
religiosas chegassem em seus domínios, ele forçou esses movimentos vão impac- IHU On-Line – Que relações
a convocação do Concílio de Trento que iniciou a
Contrarreforma. A Companhia de Jesus foi estabele- tar no pensamento do monge podemos estabelecer entre o
cida por Inácio de Loyola durante seu reinado para Lutero?
combater o protestantismo de forma pacífica e inte- processo de secularização e
lectual. No Novo Mundo a Espanha conquistou os mesmo a ideia de globaliza-
astecas do México e os incas do Peru, estendendo Franco Cardini – Sem dúvida,
seu controle por grande parte da América Central Lutero é influenciado pelas reformas ção, dos tempos modernos
e do Sul. Carlos abdicou em 1556 de todos os seus
títulos. A Monaquia de Habsburgo passou para seu anteriores. O tema reformare defor- até os dias atuais, com a des-
irmão Fernando, enquanto o Império Espanhol ficou coberta de Lutero acerca das
com seu filho Filipe. Os dois impérios permanece- mata é típico e usual na vida da Igreja.
riam aliados até o século XVIII. Carlos tinha apenas contradições entre fé, liber-
54 anos na época de sua abdicação, porém estava
fisicamente exausto depois de governar energica- dade individual e Onipotên-
mente por 34 anos e procurou paz de um monas- IHU On-Line – E como a ci- cia divina presentes na alma
tério, onde morreu dois anos depois. (Nota da IHU
On-Line) são promovida pelo monge vai cristã?

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

Franco Cardini – A Modernida- IHU On-Line – Quais foram os costumes eclesiais.


de, na sua essência, é duas coisas: limites do protestantismo lute-
individualismo e primado da eco- rano?
nomia. Lutero estabelece um ponto IHU On-Line – O senhor é um
Franco Cardini – Essencialmen- estudioso das cruzadas medie-
firme do primeiro através do “livre
te, o apoio por parte das aristocra- vais. Que relações podemos es-
exame da Sagrada Escritura”. Calvi-
cias alemãs, depois a subordinação tabelecer entre essas guerras e
no3, do segundo, através do concei-
da Igreja reformada a um poder os conflitos entre muçulmanos
to de sucesso na vida mortal como
temporal que encontrava na rebelião e cristãos no nosso tempo?
sinal da predileção divina e, por-
contra a Igreja e na apropriação dos
tanto, da predestinação à salvação. Franco Cardini – Nenhuma,
seus poderes e das suas riquezas a
Os poderosos e os ricos tornam-se exceto o uso distorcido que foi fei-
fonte das suas novas prerrogativas.
os candidatos à salvação espiritual, to por parte de historiadores im-
os prediletos de Deus. A sintaxe do IHU On-Line – De que forma provisados ​​e de publicistas igno-
“Discurso das bem-aventuranças” é o movimento de Lutero pode rantes e desonestos para se servir
invertida, e afirma-se a ideia de que inspirar outros movimentos no do passado para estabelecer uma
poder e riqueza estão do lado da nosso tempo? analogia com os do presente que
vontade de Deus. têm uma origem totalmente dife-
Franco Cardini – A rejeição do
princípio de autoridade eclesiástica rente. O mundo muçulmano não
e da relativa disciplina, portanto, a tem nenhuma verdadeira memória
IHU On-Line – Lutero propõe
“democratização” da vida das comu- das cruzadas (no árabe clássico,
um outro tipo de humanismo
nidades cristãs é fonte contínua de não havia sequer uma palavra para
cristão?
nascimento de movimentos autorre- designá-las). O ressentimento, no
Franco Cardini – O humanis- ferenciais. máximo, diz respeito ao período
mo cristão de Lutero se baseia no de colonial e, sobretudo, às décadas
Lorenzo Valla4: exegese filosófica da da hegemonia e da exploração des-
Escritura como possibilidade e ca- IHU On-Line – Que avaliação de o fim da Primeira Guerra Mun-
pacidade de entender o seu autênti- o senhor faz da aproximação dial até hoje.
80 co valor, portanto, estudo filológico entre católicos e luteranos?
como início da salvação espiritual. Quais desafios ainda precisam
ser superados? IHU On-Line – O que a aproxi-
mação entre católicos e lutera-
3 João Calvino (1509-1564): teólogo cristão fran-
Franco Cardini – Problemas nos pode significar ao diálogo
cês, teve uma influência muito grande durante como o celibato do clero não obsta- inter-religioso? E como pensar
a Reforma Protestante e que continua até hoje.
Portanto, a forma de Protestantismo que ele en- culizam a reaproximação; são mais em estabelecer esse diálogo
sinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome pesados os problemas relacionados
Calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse re- para além do cristianismo?
pudiado contundentemente este apelido. Esta va- à exclusividade do exercício minis-
riante do Protestantismo viria a ser bem-sucedida Franco Cardini – Tendo claro
em países como a Suíça (país de origem), Países terial por parte das pessoas de sexo
Baixos, África do Sul (entre os africânderes), In- masculino. A questão do primado que as religiões correspondem ao
glaterra, Escócia e Estados Unidos. Leia, também,
a edição 316 da IHU On-Line intitulada Calvino de Pedro e da sua aceitação poderia Absoluto, e, sobre o Absoluto, não
- 1509-1564. Teólogo, reformador e humanista,
ser superada através do reconheci- se pode dialogar. Mas os seres hu-
disponível em http://bit.ly/1oBIrpn. (Nota da IHU
On-Line) mento de um primado no plano da manos de diferentes religiões dialo-
4 Lorenzo Valla (1407-1457): foi um escritor,
humanista, retórico e educador italiano. Célebre auctoritas e de uma condução por gam: e dialogam com base em pro-
por sua aplicação dos novos padrões humanistas
parte do corpo episcopal da Igreja blemas éticos, econômicos e sociais
de crítica a documentos usados pelo Papado em
apoio de seu poder temporal. Em 1440 publicou o (“conciliarismo”) sobre o da potes- comuns. A partir desse ponto de
seu panfleto contra a Doação de Constantino, que vista, a colaboração entre religiões
provou efetivamente que o famoso documento, tas. O culto à Virgem e aos santos
pelo qual a autoridade imperial romana teria sido poderia ser aceito com base nos diferentes é fácil e desejável.■
transmitida ao Papado, era espúrio. (Nota da IHU
On-Line)

Leia mais
- Lutero, o “desbravador” da Modernidade. Comentário de Franco Cardini, reproduzido
nas Notícias do Dia de 20-8-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2ySMs08.
- “Não é uma cruzada. É uma guerra moderna e totalmente ideológica.” Entrevista com
Franco Cardini, reproduzida nas Notícias do Dia de 28-7-2016, no sítio do Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2lnheLx.

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

A grande virada na relação


entre os vivos e os mortos
Adriano Prosperi analisa o que considera como o ponto mais
importante na perspectiva antropológica da Reforma Luterana
João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto

T
er clareza sobre o conceito de li- vivos com relação à morte. “Com a mor-
berdade e a relação entre vivos e te, as almas entram em um mundo de
mortos é fundamental para com- que não sabemos nada. Não podemos
preender os efeitos da Reforma capita- fazer nada por elas. Portanto, abando-
neada por Martinho Lutero. Afinal, ele na-se a crença no Purgatório e a prá-
vem de uma perspectiva feudal, em que tica de financiar eclesiásticos para que
o espírito da vassalagem mantém o ser rezem missas pelas almas dos mortos”,
humano medieval atrelado a um se- pontua. É essa a chave que vira, mar-
nhor, seja no poder temporal ou espiri- cando a passagem de um pensamento
tual. “Lutero acolheu e sofreu a influên- “vassálico” medieval para o moderno li-
cia do Agostinho antipelagiano tardio, vre. “Sem conhecer Lutero, não se pode
com a sua doutrina da radical pecami- entender grande parte dos aspectos da
nosidade humana e da impossibilidade cultura religiosa e da vida civil e política
de o homem se salvar pelos seus méri- moderna”. 81
tos”, completa o historiador e jornalista
Adriano Prosperi. Mas, segundo ele, é Adriano Prosperi é historiador e
o próprio Lutero que rompe e anuncia jornalista italiano. Atuou nos jornais
que “o cristão é livre de toda obrigação italianos Corriere della Sera, Il Sole 24
e de todo senhor, sujeito somente a Ore e La Repubblica. Entre suas publi-
Deus e à própria consciência”. cações, destacamos Tribunais da Cons-
ciência. Inquisidores, confessores, mis-
Na entrevista a seguir, concedida por
sionários (São Paulo: EDUSP, 2013),
e-mail à IHU On-Line, Prosperi ainda
Lutero. Gli anni della fede e della liber-
ressalta que a palavra liberdade apa-
tà, Collezione Le Scie (Milano: Mon-
rece pela primeira vez num texto im-
dadori, 2017)1, Identità. L’altra faccia
presso nos escritos luteranos. “Na ex-
della storia, Collana I Robison. Letture
periência de Lutero, ela [liberdade] se
(Roma-Bari: Laterza, 2016) e La voca-
manifesta com a recusa de obedecer às
zione. Storie di gesuiti tra Cinquecento
máximas autoridades do mundo cris-
e Seicento, Collana Storia (Torino: Ei-
tão, o papa e o imperador”, explica. O
historiador ainda aponta como grande naudi, 2016).
virada antropológica a libertação dos Confira a entrevista.

IHU On-Line1 – Podemos com- de Média2? Por quê? Adriano Prosperi – As premis-
preender a Reforma Luterana sas medievais da Reforma de Lute-
como algo que foi lentamente 2 Baixa Idade Média: período que abarca desde
ro foram, por um lado, a concepção
gestado ao longo da Baixa Ida- o século XI até o Renascimento, já no século XV.
É uma época de expansão e feudalismo na Euro-
pa, sendo o feudalismo um sistema governado
por uma minoria de aristocratas guerreiros que,
com os membros da Igreja, retêm a propriedade por toda a Europa. Nesse período, o centro é Deus
1 O IHU publicou no seu sítio, na seção Notícias eminente da terra. A Baixa Idade Média é o auge e todos os fenômenos são explicados por Deus.
do Dia, uma resenha do livro assinada por Franco do poder Católico, que domina toda a Europa e Com o Renascimento, surge uma ligação direta
Carini. Acesse em http://bit.ly/2gq39vg. (Nota da incita expansões como as Cruzadas. Este domínio entre a Religião e a Arte, algo que provém deste
IHU On-Line) é visível no número de catedrais e igrejas góticas centralismo divino. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

da Igreja de Huss3 e Wyclef4 e, por bilidade de o homem se salvar pelos Adriano Prosperi – A palavra
outro, o misticismo de Tauler5, que seus méritos. “liberdade” em um texto impresso
chegou a Lutero com o tratado The- apareceu pela primeira vez na his-
ologia Deutsch6, impresso por ele tória europeia com o escrito de Lu-
em 1516. A descoberta das ideias de IHU On-Line – De que forma tero. É o anúncio de que o cristão
Huss ocorreu por volta de 1518 (dis- Lutero é impactado pelo “des- é livre de toda obrigação e de todo
puta de Heidelberg). pertar evangélico”, que tem senhor, sujeito somente a Deus e
suas primeiras ocorrências à própria consciência. Na experi-
ainda cerca de 200 anos antes ência de Lutero, ela se manifesta
IHU On-Line – A Igreja Me- da Reforma Luterana? com a recusa de obedecer às máxi-
dieval foi submetida a inúme- mas autoridades do mundo cristão,
Adriano Prosperi – A redesco-
ras reformas. Como compre- o papa e o imperador. Mas, como
berta do Evangelho e do dever do
ender essas reformas e de que membro da sociedade terrena, o
cristão de imitar Cristo sofredor e
forma impactam, ou inspiram, cristão, de acordo com Lutero,
pobre ocorreu com os movimentos
a Reforma Luterana? deve obedecer à autoridade, por-
pauperistas. Os seguidores do co-
Adriano Prosperi – Lutero, merciante de Lyon Valdo8 se reco- que toda autoridade vem de Deus
como membro da Ordem Agosti- nheceram nas ideias de Calvino e (Paulo, Carta aos Romanos 13, 1ss).
niana, acolheu e sofreu a influência aderiram à Reforma em 1536.
do Agostinho7 antipelagiano tardio,
IHU On-Line – O que mais as
com a sua doutrina da radical peca-
IHU On-Line – Como pode- perspectivas teológicas de Lu-
minosidade humana e da impossi-
mos compreender a mudança tero revelam?
de mentalidades entre a Idade Adriano Prosperi – Lutero não
3 Jan Huss ou John Huss (1369-1415): foi um
pensador e reformador religioso. Ele iniciou um Média e a Moderna a partir da recebe “revelações” de Deus. Ele é
movimento religioso baseado nas ideias de John Reforma Luterana e da experi- hostil a profetas e pregadores vi-
Wycliffe. Os seus seguidores ficaram conhecidos
como os Hussitas. A Igreja Católica não perdoou ência de vida de Lutero? sionários que anunciam revelações
tais rebeliões e ele foi excomungado em 1410.
Condenado pelo Concílio de Constança, foi quei- Adriano Prosperi – O ponto especiais. A sua proposta é: “sola
82 mado vivo e morreu cantando um cântico [“cântico Scriptura” e “sola fides”.
de Davi” Jesus filho de Davi tem misericórdia de mais importante no plano antro-
mim]. Um precursor do movimento protestante, a
sua extensa obra escrita concedeu-lhe um impor- pológico é a virada na relação entre
tante papel na história literária checa. Também é os vivos e os mortos: com a morte,
responsável pela introdução do uso de acentos na IHU On-Line – Como é possí-
língua checa por modo a fazer corresponder cada as almas entram em um mundo de
som a um símbolo único. Hoje em dia a sua está- vel perceber as perspectivas de
tua pode ser encontrada na praça central de Praga, que não sabemos nada. Não pode-
Agostinho em Lutero?
a Praça da Cidade Velha, em checo Staroměstské mos fazer nada por elas. Portanto,
náměstí. (Nota da da IHU On-Line)
4 John Wycliffe (1328-1384): foi professor da abandona-se a crença no Purgatório Adriano Prosperi – O agosti-
Universidade de Oxford, teólogo e reformador e a prática de financiar eclesiásticos nianismo de Lutero lança uma luz
religioso inglês, considerado precursor das refor-
mas religiosas que sacudiram a Europa nos sécu- para que rezem missas pelas almas sombria sobre a capacidade huma-
los XV e XVI. Trabalhou na primeira tradução da
Bíblia para o idioma inglês, que ficou conhecida dos mortos. na de fazer o bem. A partir desse
como a Bíblia de Wycliffe. (Nota da IHU On-Line) ponto de vista, Lutero é anti-hu-
5 Johannes Tauler (1300-1361): místico alemão,
pregador e teólogo católico. Foi discípulo de manista. Não por acaso, o seu de-
Meister Eckhart, pertencia à ordem dominicana. IHU On-Line – Em seu livro9,
Tauler desenvolveu certa dimensão neoplatonis- sacordo com Erasmo10 abriu uma
ta na espiritualidade dominicana de seu tempo. o senhor destaca a grande des- grave crise na cultura do seu tem-
(Nota da IHU On-Line)
6 Theologia Deutsch: também conhecida como Te- coberta de Lutero acerca da li- po. Coube a Melâncton 11 separar-
ologia Germanica, é um tratado místico que se acre- berdade. No que consiste essa se de Lutero e dar uma impressão
dita ter sido escrito no século 14 do século passado
por um autor anônimo. De acordo com a introdução liberdade e como se manifesta humanista à reforma da escola na
da Theologia, o autor era um sacerdote e um mem-
bro da Ordem Teutônica que morava em Frankfurt na experiência luterana? Alemanha.
, Alemanha. A Theologia foi escrita durante o rei-
nado disruptivo do Papado de Avinhão (1309-78),
quando muitos clérigos foram proibidos de realizar 8 Pedro Valdo(1140 – 1220): em francês Pierre
ritos católicos , por causa da luta de poder entre o Vaudès ou de Vaux, foi um rico comerciante de
Papa e o imperador romano santo . Grupos leigos Lyon. Em 1176, teve contato com uma tradução 10 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólogo e
de indivíduos piedosos, como os Amigos de Deus, do Novo Testamento e decidiu abandonar todos humanista neerlandês, conhecido como Erasmo
se tornaram proeminentes durante esse período, e os seus bens, com exceção daquilo que fosse ne- de Roterdã. Seu principal livro foi Elogio da loucura.
o autor geralmente está associado aos Amigos de cessário para o sustento de sua família. Um grupo Erasmo cursou o seminário com os monges agosti-
Deus. A Theologia sobrevive hoje em apenas oito de discípulos logo se formou, tornando-se conhe- nianos e realizou os votos monásticos aos 25 anos,
manuscritos, todos da segunda metade do século cidos como os Pobres de Espírito. Valdo e seus vivendo como tal, sendo um grande crítico da vida
XV. Claramente, portanto, não foi amplamente di- seguidores passaram, então, a pregar suas ideias monástica e das características que julgava negativas
vulgado antes de chamar a atenção de Martinho pela região. Em virtude de sua recusa em interrom- na Igreja Católica. Optou por uma vida de acadêmica
Lutero. (Nota da IHU On-Line) per suas pregações, eles foram excomungados em independente - independente de país, independente
7 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido 1184. Valdo também foi um tradutor, que tradu- de laços acadêmicos, de lealdade religiosa - e de tudo
como Santo Agostinho, foi um dos mais importantes ziu a Bíblia para o francoprovençal. Mesmo após que pudesse interferir com a sua liberdade intelectual
teólogos e filósofos dos primeiros anos do cristianis- a morte de Pedro Valdo, em 1220, seus discípulos e a sua expressão literária. (Nota da IHU On-Line)
mo, cujas obras foram muito influentes no desen- continuaram o movimento, sendo nomeados, en- 11 Philipp Melanchthon (1497-1560): foi um
volvimento do cristianismo e da filosofia ocidental. tão, os valdenses. (Nota da IHU On-Line) reformador, astrólogo e astrônomo alemão. Co-
Escrevendo na era patrística, ele é amplamente con- 9 Lutero. Gli anni della fede e della libertà, Colle- laborador de Lutero, redigiu a “Confissão de Au-
siderado como sendo o mais importante dos padres zione Le Scie (Milano: Mondadori, 2017). Leia a gsburgo” (1530) e converteu-se no principal líder
da Igreja no Ocidente. Suas obras-primas são A cida- resenha reproduzida pelo IHU em http://bit.ly/2g- do luteranismo após a morte de Lutero. (Nota da
de de Deus e Confissões. (Nota da IHU On-Line) q39vg. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

IHU On-Line – Que chaves da. Muitos preconceitos hostis dos Adriano Prosperi – Existem
de leitura a experiência da protestantes contra as culturas ca- muitos e grandes problemas que
Reforma Luterana fornece tólicas mediterrâneas, e dos países se apresentam ao mundo euro-
para compreendermos a Mo- mediterrâneos contra a Europa atlântico e que requerem soluções
dernidade? atlântica e norte-oriental surgiram adequadas: fundamental entre
Adriano Prosperi – Creio que, continuamente: pense-se nas acu- todos é a diferença de níveis de
sem conhecer Lutero, não se pode sações de corrupção, por um lado, liberdade e de segurança social.
entender grande parte dos aspec- de fetichismo estatalista e de obe- Mas, por enquanto, a Europa e as
tos da cultura religiosa e da vida diência acrítica, por outro. suas culturas difundidas na Amé-
civil e política moderna, não só em rica do Norte parecem incapa-
relação à Alemanha. E é impor- zes de enfrentá-los e fechadas na
tante levar em conta as profundas IHU On-Line – É possível con- defesa da própria riqueza. Seria
diferenças que caracterizam hoje ceber uma ideia de reforma preciso outra Reforma ou outra
as culturas europeias para superar hoje, na transição entre Mo- Revolução: mas, se ela ocorresse,
as dificuldades que se apresentam dernidade e Pós-Modernidade? certamente não se trataria de um
na construção de uma Europa uni- Como? jantar de gala.■

Leia mais
- Deus, o horror e a eterna pergunta. Artigo de Adriano Prosperi, publicado em Notí-
cias do Dia de 24-11-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2gnhngs.
- A nossa vergonha. Artigo de Adriano Prosperi, publicado em Notícias do Dia de 83
20-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2yvhTzB.
- Os tormentos do perdão. Artigo de Adriano Prosperi, publicado em Notícias do Dia
de 11-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2hM67XJ.
- O método de Francisco. Artigo de Adriano Prosperi, publicado em Notícias do Dia
de 18-9-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2zgqAec.

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

A Reforma inaugura novas formas


de ser cristão e viver a igreja
O valdense Fulvio Ferrario analisa os efeitos da cisão
para além das perspectivas evangélicas luteranas
João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto

A
o longo de toda a Idade Média ram à Reforma: indubitavelmente, isso
houve tentativas de reformar a constitui uma grande mudança na sua
Igreja Católica. Muitas até ti- teologia e na sua práxis. A partir daque-
veram algum êxito, como as que ocor- le momento, no entanto, a valdense se
reram a partir de Cluny1, mas só em torna uma Igreja presbiteriana clássi-
Lutero, de fato, se efetiva uma cisão ca”, explica o teólogo. “A Reforma deu
e a constituição de uma nova Igreja. origem a um modo novo de ser Igreja.
Outros reformistas, essencialmente os A nossa tarefa hoje me parece ser du-
que defendiam a retomada radical aos pla: a) verificar em que medida o tipo
escritos evangélicos, que não tiveram de cristianismo nascido da Reforma é
grande sucesso com suas reivindica- ainda atual e promissor hoje; b) reali-
ções, encontraram em Martinho Lutero zar, também junto com nossos irmãos
a oportunidade de levar adiante seus e irmãs de outras Igrejas, se considera-
84 ideais. “É preciso notar o fato de que rem oportuno, a nossa reforma, no nos-
Lutero tem o tempo para amadurecer so tempo”, completa.
uma evolução do próprio pensamento. Fulvio Ferrario é italiano, teólogo
Os elementos originais (por exemplo, a evangélico. Atualmente é professor de
crítica ao sistema das indulgências) se Teologia Sistemática na Faculdade de
desenvolvem e se unem a temas que, Teologia de Valdezia, em Roma. Estu-
antes, não estavam sobre a mesa, de- dou filosofia na Universidade Católica
sembocando em um novo tipo de cris- de Milão. Em 1983, tornou-se membro
tianismo”, destaca o teólogo valdense da Igreja valdense e pouco depois rea-
Fulvio Ferrario, em entrevista concedi- lizou estudos na Faculdade de Teologia
da por e-mail à IHU On-Line. de Roma em vista do ministério pasto-
Assim, os valdenses, que nascem na ral. É, ainda, doutor em Teologia. Entre
Idade Média, ainda antes de Lutero, a as publicações mais recentes, destaca-
partir da exigência de um discípulo ra- mos Bonhoeffer (Roma: Carocci, 2014),
dical que tem na pobreza e no compro- Il futuro della Riforma (Torino: Clau-
misso missionário seu ideal, também diana, 2016) e Dio era in Cristo (Tori-
se associam às perspectivas luteranas. no: Claudiana, 2016).
“No século XVI, os valdenses aderi- Confira a entrevista.

IHU On-Line1 – No que a Re- forma Luterana, 500 anos de- retamente enraizado na fé dos após-
pois, pode nos inspirar a pen- tolos) de ser Igreja. A nossa tarefa
1 Reformas cluníacas: foram uma série de mu-
sar sobre o nosso tempo? hoje me parece ser dupla: a) verifi-
danças realizadas no monasticismo da Igreja oci-
dental cujo objetivo era restaurar os princípios Fulvio Ferrario – A Reforma deu car em que medida o tipo de cristia-
tradicionais da vida monástica, encorajando a arte nismo nascido da Reforma é ainda
e o cuidado pastoral com os pobres. O movimen- origem a um modo novo (embora di-
to começou na Abadia de Cluny em 910 com o atual e promissor hoje; b) realizar,
duque Guilherme I (875–918), no seio da Ordem
dos Beneditinos. As reformas em si foram reali- Provença, Auvergne e Poitou), pelo Reino da In- também junto com nossos irmãos e
zadas principalmente por Santo Odo (c. 878–942) glaterra e através dos territórios modernos da Itá-
e se espalharam pelo Reino da França (Borgonha, lia e da Espanha. (Nota da IHU On-Line) irmãs de outras Igrejas, se conside-

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Até agora, porém, o


pentecostalismo não parece
muito interessado no diálogo
com o protestantismo clássico”

rarem oportuno, a nossa reforma, no ferência é às de Huss4 e Wyclif5, en- IHU On-Line – Podemos afir-
nosso tempo. contram-se, de um lado, elementos mar que o luteranismo apre-
de continuidade; de outro, é preci- senta “um novo Cristo”?
so notar o fato de que Lutero tem o
IHU On-Line – Que relações Fulvio Ferrario – O Cristo da
tempo para amadurecer uma evolu-
podemos estabelecer entre o Reforma é o do Novo Testamento.
ção do próprio pensamento. Os ele-
surgimento da Igreja Valdense2 Pode-se acrescentar que, entre os
mentos originais (por exemplo, a crí-
e a Reforma Luterana? autores neotestamentários, Paulo6
tica ao sistema das indulgências) se
é particularmente importante para
Fulvio Ferrario – O movimen- desenvolvem e se unem a temas que,
Lutero.
to valdense nasce na Idade Média, antes, não estavam sobre a mesa,
em nome da exigência de um discí- desembocando em um novo tipo de
pulo radical, que viveu na pobreza cristianismo. IHU On-Line – De que forma
e no compromisso missionário. No Hans Küng7 pode nos auxiliar
século XVI, os valdenses aderiram
85
IHU On-Line – Por que a Re-
à Reforma: indubitavelmente, isso
forma Luterana é vista como di- 6 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na
constitui uma grande mudança na Cilícia, hoje Turquia, era originariamente chamado
visor de águas entre os tempos de Saulo. Entretanto, é mais conhecido como São
sua teologia e na sua práxis. A partir Paulo, o Apóstolo. É considerado por muitos cris-
medievais e modernos? Como
daquele momento, no entanto, a val- tãos como o mais importante discípulo de Jesus
essa transição epocal incide so- e, depois de Jesus, a figura mais importante no
dense se torna uma Igreja presbite- desenvolvimento do Cristianismo nascente. Pau-
bre o pensamento cristão? lo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais.
riana clássica (ou, como também se Primeiro porque, ao contrário dos outros, não
diz, reformada). Fulvio Ferrario – As regiões eu- conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua con-
versão, se dedicava à perseguição dos primeiros
ropeias e norte-americanas que aco- discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em
lheram a Reforma determinaram os uma dessas missões, quando se dirigia a Damas-
co, teve uma visão de Jesus envolto numa grande
IHU On-Line – No que a Re- grandes modelos culturais, políticos luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três
forma Luterana se distingue e dias por Ananias, que o batizou como cristão. A
e econômicos da modernidade. Por- partir deste encontro, Paulo começou a pregar o
no que se associa às reformas tanto, desenvolveram-se diversas Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou
uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo
da Baixa Idade Média3? teorias sobre a relação entre protes- (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em
duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito
Fulvio Ferrario – Depende de tantismo e modernidade. pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é
considerado uma das principais fontes da doutri-
quais reformas se entende. Se a re- na da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção
4 Jan Hus ou John Huss (1369-1415) foi um fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que
pensador e reformador religioso. Ele iniciou um foi ele quem verdadeiramente transformou o cris-
movimento religioso baseado nas ideias de John tianismo em uma nova religião, superando a ante-
2 Igreja Vandense: valdenses são uma denomina- Wycliffe. Os seus seguidores ficaram conhecidos rior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Li-
ção cristã que teve sua origem entre os seguido- como os Hussitas. A Igreja Católica não perdoou ne 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema
res de Pedro Valdo na Idade Média e subsiste hoje tais rebeliões e ele foi excomungado em 1410. Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível
como um grupo etnorreligioso na Itália e Uruguai Condenado pelo Concílio de Constança, foi quei- em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição
nas igrejas Valdense e Evangélica Valdense do Rio mado vivo e morreu cantando um cântico [“cânti- 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevân-
da Prata, além de descendentes na Alemanha, co de Davi” Jesus filho de Davi tem misericórdia de cia atual, disponível em https://goo.gl/bKZcM0.
Estados Unidos e França. (Nota da IHU On-Line) mim]. Um precursor do movimento protestante, a Também são dedicadas ao religioso a edição 32
3 Baixa Idade Média: período que abarca desde sua extensa obra escrita concedeu-lhe um impor- dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tarso
o século XI até ao Renascimento, já no século XV. tante papel na história literária checa. Também é desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de re-
É uma época de expansão e feudalismo na Euro- responsável pela introdução do uso de acentos alidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a
pa, sendo o feudalismo um sistema governado na língua checa por modo a fazer corresponder edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São
por uma minoria de aristocratas guerreiros que, cada som a um símbolo único. Hoje em dia a sua Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da
com os membros da Igreja, retêm a propriedade estátua pode ser encontrada na praça central de mulher cristã no século I, disponível em http://bit.
eminente da terra. A Baixa Idade Média é o auge Praga, a Praça da Cidade Velha, em checo Sta- ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line)
do poder Católico, que domina toda a Europa e roměstské náměstí. (Nota da IHU On-Line) 7 Hans Küng (1928): teólogo suíço, padre cató-
incita expansões como as Cruzadas. Este domínio 5 John Wycliffe (1328-1384): foi professor da lico desde 1954. Foi professor na Universidade
é visível no número de catedrais e igrejas góticas Universidade de Oxford, teólogo e reformador de Tübingen, onde também dirigiu o Instituto de
por toda a Europa. Nesse período, o centro é Deus religioso inglês, considerado precursor das refor- Pesquisa Ecumênica. Foi consultor teológico do
e todos os fenômenos são explicados por Deus. mas religiosas que sacudiram a Europa nos sécu- Concílio Vaticano II. Destacou-se por ter questio-
Com o Renascimento, surge uma ligação direta los XV e XVI. Trabalhou na primeira tradução da nado as doutrinas tradicionais e a infalibilidade
entre a Religião e a Arte, algo que provém deste Bíblia para o idioma inglês, que ficou conhecida do Papa. O Vaticano proibiu-o de atuar como te-
centralismo divino. (Nota da IHU On-Line) como a Bíblia de Wycliffe. (Nota da IHU On-Line) ólogo em 1979. Nessa época, foi nomeado para

EDIÇÃO 514
TEMA DE CAPA

a compreender mais profunda- católicos e protestantes hoje? dia, deu origem a várias pers-
mente as críticas dos reformis- Qual sua avaliação sobre a visi- pectivas sob as escrituras que
tas à Igreja? ta apostólica do Papa Francisco hoje podemos apreender na
à Suécia, no início das come- diversidade de religiões evan-
Fulvio Ferrario – Küng é funda-
morações dos 500 anos da Re- gélicas no mundo. Como pode-
mentalmente católico: um católico
forma Luterana? mos compreender essa diversi-
progressista. A sua ideia é a de um
dade e sua relação com a Igreja
catolicismo que procura integrar al- Fulvio Ferrario – Francisco é
Evangélica Luterana? É possí-
guns elementos importantes subli- seguramente um homem de diálo-
vel conceber um ecumenismo
nhados pela Reforma. Até agora, a go. Do ponto de vista doutrinal e
evangélico?
sua Igreja não o escutou. pastoral (por exemplo, a questão da
partilha da Eucaristia entre católi- Fulvio Ferrario – Se nos referi-
IHU On-Line – Como o senhor
cos e protestantes), até agora, não mos ao movimento pentecostal, ele
analisa a aproximação entre
mudou nada. É verdade, porém, certamente é o fenômeno mais sig-
a cadeira de Teologia Ecumênica. De 21 a 26 de que o clima do debate é mais dis- nificativo das últimas décadas. Até
outubro de 2007 aconteceu o Ciclo de Confe- agora, porém, o pentecostalismo
rências com Hans Küng - Ciência e fé – por uma tendido e amigável.
ética mundial, com a presença de Hans Küng, re- não parece muito interessado no
alizado no campus da Unisinos. Confira no sítio
do IHU, em http://migre.me/R0s7, a edição 240 diálogo com o protestantismo clás-
da revista IHU On-Line, de 22-10-2007, intitula- IHU On-Line – O despertar sico, considerado “liberal” e pouco
da “Projeto de Ética Mundial. Um debate”. (Nota
da IHU On-Line) evangélico, ainda na Idade Mé- confiável.■

Leia mais

86 - “É preciso repensar a Reforma.” Entrevista com Fulvio Ferrario, publicada em Notícias do


Dia de 13-10-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2zq79zF.
- Nem todos os católicos ‘perdoaram’ Lutero. Artigo de Fulvio Ferrario, reproduzido nas
Notícias do Dia de 4-4-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2xVxI3G.

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REVISTA IHU ON-LINE

87

EDIÇÃO 514
ENTREVISTA

Brasil tem a obrigação de pôr em


prática o conceito de indústria 4.0
Vinicius Fornari afirma que, para muitos setores, a única
forma de se manter competitivo no longo prazo é com
adequação a essa nova revolução industrial
Vitor Necchi

M
uito se fala na Revolução 4.0, Outro aspecto que não pode ser es-
no entanto, o impacto na in- quecido é a “capacitação de recursos
dústria ainda é incipiente não humanos adequados à nova realidade
apenas no Brasil, mas em outros países, da indústria”, algo que tem desperta-
incluindo Alemanha e Estados Uni- do a atenção de especialistas em todo o
dos. Conforme o economista Vinicius mundo. Na esfera regulatória, há outros
Fornari, “para muitos setores, a única desafios que precisam ser enfrentados
forma de se manter competitivo no lon- para que o país não perca a Revolução
go prazo é com adequação a essa nova 4.0: proteção de dados, cyberseguran-
revolução industrial”. O cenário não é ça, modernização das relações traba-
desfavorável, pois, o Brasil tem “uma
lhistas e a definição de padrões que
base industrial diversificada, com em-
assegurem a interoperabilidade e a
presas com competência em áreas-cha-
88 ve para a indústria 4.0, como máquinas
integração das empresas brasileiras às
cadeias globais de valor.
e equipamentos, integração de sistemas
e software, onde há muitas oportunida- Vinicius Cardoso de Barros For-
des de desenvolvimento”. nari é graduado em Ciências Econô-
Em entrevista concedida por e-mail micas e mestre em Economia pela Uni-
à IHU On-Line, Fornari é enfático: versidade Estadual Paulista – Unesp,
“O Brasil não só tem condições de pôr doutor em Economia pela Universida-
em prática o conceito de indústria 4.0, de Estadual de Campinas – Unicamp.
como tem a obrigação de fazê-lo”. Neste É Especialista em Políticas e Indústria
sentido, um estudo realizado pela CNI na Confederação Nacional da Indús-
identificou alguns eixos de atuação: tria – CNI.
disseminação de sua importância para
Fornari esteve no IHU no último dia
a competitividade das empresas; uma
4/10, proferindo a palestra Impacto
política que promova a difusão de tec-
da quarta Revolução Industrial
nologias digitais ao longo das cadeias
na economia e na indústria. Leia
produtivas; o estímulo ao desenvolvi-
mento tecnológico local; e o desenvol- mais em http://bit.ly/2yWT2CU.
vimento da infraestrutura digital. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como caracte- de diferentes tecnologias que combi- (M2M), infraestrutura de comunica-
rizar a quarta Revolução Indus- nam componentes físicos e digitais. ção, inteligência artificial, sistemas
trial? Entre as mais relevantes para este de simulação.
processo estão a Internet das Coisas
Vinicius Fornari – A quarta (IoT), sensores, robótica avançada,  
Revolução Industrial, também co- impressão 3D, novos materiais, big IHU On-Line – O senhor traba-
nhecida como Indústria 4.0 e ma- data, computação em nuvem, siste- lha na Confederação Nacional
nufatura avançada, é a integração mas de conexão máquina-máquina da Indústria (CNI), cuja pers-

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REVISTA IHU ON-LINE

“A quarta Revolução Industrial, também


conhecida como Indústria 4.0 e
manufatura avançada, é a integração de
diferentes tecnologias que combinam
componentes físicos e digitais.”

pectiva de atuação é defender vi) o surgimento de novas atividades digitais associadas à indústria 4.0
os interesses do setor indus- e novas profissões, que demandarão ainda não é um fenômeno ampla-
trial. Quais os principais temas adaptações no padrão de formação mente disseminado pelo tecido in-
de interesse da entidade no que de recursos humanos. dustrial desses países. O Brasil não
se refere à Revolução 4.0? só tem condições de pôr em prática o
Na indústria, são inúmeros os im-
conceito de indústria 4.0, como tem
Vinicius Fornari – Interesse de pactos. Podemos citar: maior inte-
a obrigação de fazê-lo.
ter a indústria brasileira competi- gração vertical e horizontal, eficiên-
tiva. Para muitos setores, a única cias nos usos dos recursos, tempo de
forma de se manter competitivo no desenvolvimento de produtos, flexi- IHU On-Line – Qual o papel
longo prazo é com adequação a essa bilidade da produção (customização do governo e do empresariado
nova revolução industrial. Temos em massa), ganhos de produtivida- na implementação da indústria
uma base industrial diversificada, de, novos modelos de negócios etc. 4.0?
com empresas com competência em 89
áreas-chave para a indústria 4.0, Vinicius Fornari – O apoio do
como máquinas e equipamentos, IHU On-Line – Em que países Estado será decisivo para o nosso
integração de sistemas e software, a indústria 4.0 está mais avan- sucesso, bem como a capacidade de
onde há muitas oportunidades de çada e por quê? E no Brasil, em promover essa transformação rapi-
desenvolvimento. que estágio se encontra? damente. Nossos principais concor-
Vinicius Fornari – Em primei- rentes colocaram a indústria 4.0 no
  centro de suas estratégias de política
IHU On-Line – Qual o impacto ro lugar, é importante ter em mente
que a indústria 4.0 se manifesta de industrial (Alemanha, Estados Uni-
da quarta Revolução Industrial dos e China).
na economia e na indústria? forma distinta em diferentes contex-
tos. Ela está associada a um amplo No governo brasileiro, há duas
Vinicius Fornari – Na econo- conjunto de tecnologias digitais que frentes de trabalho. Em 2014, o Mi-
mia podemos citar: i) a redução das podem se agrupar de muitas formas nistério das Comunicações (atual
vantagens comparativas, que ten- dependendo do setor, do tipo de ati- Ministério da Ciência, Tecnologia,
derão a ser solapadas pelos ganhos vidade e do próprio país. Inovações e Comunicações – MC-
de produtividade decorrentes da
Cada um desses países tem dese- TIC) criou a Câmara de Internet das
adoção das novas tecnologias, com
nhado estratégias de desenvolvi- Coisas, com objetivo de desenvolver
a possibilidade de redefinir fatores
mento da Indústria 4.0/Manufatura o Plano Nacional de Internet das
determinantes de localização de in-
Avançada a partir das características Coisas. A câmara é composta por
vestimentos produtivos; ii) a am-
dos seus setores produtivos e dos de- uma gama de associações e minis-
pliação da cooperação entre agen-
safios que estes terão que enfrentar térios, dividida em diversos subgru-
tes econômicos, cujas operações
para ganhar ou preservar sua com- pos, sendo um deles o de Indústria
serão cada vez mais integradas; iii)
petitividade no longo prazo. 4.0/Manufatura Avançada.
o reforço da competitividade que se
estabelece entre sistemas produti- A evolução da indústria 4.0 no Em 2017, o MCTIC e o Banco Nacio-
vos, que incluem empresas, forne- Brasil ainda é incipiente, mas esse nal do Desenvolvimento Econômico
cedores, clientes e ambiente; iv) o quadro não é muito diferente do e Social (BNDES) assinaram um
estabelecimento de novos modelos que observamos em outros países, acordo de cooperação técnica para a
de negócios e de inserção nos mer- pois trata-se de um fenômeno rela- coordenação de um grande estudo,
cados, com a possível redefinição de tivamente novo até em países como que tem como objetivo realizar um
setores de atividade econômica; v) a Alemanha e Estados Unidos. A ado- diagnóstico e propor políticas públi-
ampliação da escala dos negócios; e ção em larga escala das tecnologias cas no tema Internet das Coisas. O

EDIÇÃO 514
ENTREVISTA

estudo será utilizado como subsídio digital. A capacitação de recursos relacionadas é fundamental, pois
para elaboração do Plano Nacional humanos adequados à nova reali- antes do investimento é preciso ter o
de Internet das Coisas. A previsão é dade da indústria é outro aspecto conhecimento.
que o estudo saia em outubro. que tem demandado a atenção de
especialistas em todo o mundo. Fi-
Em 2016, o Ministério da Indústria, IHU On-Line – Em relação
nalmente, na esfera regulatória, os
Comércio Exterior e Serviços (MDIC) aos empregos, há projeções de
desafios envolvem temas como pro-
e o MCTIC lançaram o estudo Pers- que ocorrerão drásticas dimi-
teção de dados, cybersegurança, mo-
pectivas de especialistas brasileiros nuições em postos de trabalho.
dernização das relações trabalhistas
sobre oportunidades e desafios para Se isso ocorrer, afetará o con-
(por exemplo, para viabilizar as tec-
a manufatura avançada no Brasil, sumo e, em consequência, as
nologias de cooperação homem-má-
resultado de workshops realizados empresas. Como haverá manu-
quina) e a definição de padrões que
em sete estados brasileiros, dos quais
assegurem a interoperabilidade e a tenção do consumo sem consu-
participaram 300 especialistas em
integração das empresas brasileiras midores? De que forma a CNI
inovação. Em 2017, foi criado pelo às cadeias globais de valor. e o mundo empresarial estão
MDIC o grupo de trabalho Indústria
lidando com esse cenário?
4.0, que reúne um conjunto de asso- IHU On-Line – Conforme da-
ciações e especialistas para desenvol- dos da CNI publicados em maio Vinicius Fornari – Há muita in-
ver um plano nacional para Indústria de 2016, 42% das empresas do certeza sobre o impacto da indústria
4.0 no Brasil. país desconhecem a impor- 4.0 nos empregos. É uma preocupa-
tância das tecnologias digitais ção natural e, se olharmos para trás,
para a competitividade da in- veremos que as três revoluções in-
IHU On-Line – De que manei- dústria e 52% não utilizam ne- dustriais que a precederam também
ra a CNI lida com os desafios e nhuma tecnologia digital. Qual geraram muita especulação em rela-
as contradições suscitados pela sua análise sobre estes dados? ção ao trabalho. Em todas elas, con-
indústria 4.0? tudo, o que vimos foi o desapareci-
Vinicius Fornari – A Sondagem
Vinicius Fornari – Em um es- Especial 66 sobre Indústria 4.0, pes- mento gradual de empregos de pior
90 tudo que fizemos na CNI, Desafios quisa realizada pela CNI, mostrou qualidade, muitos dos quais exigiam
para indústria 4.0 no Brasil, iden- que o conhecimento da indústria muito esforço físico do trabalhador,
tificamos alguns eixos de atuação. brasileira sobre tecnologias digitais e e sua substituição por empregos de
O primeiro passo é a disseminação a sua incorporação à produção, pré- maior qualidade e mais bem remu-
de sua importância para a competi- condições para o avanço da Indústria nerados. Se acreditarmos que essa
tividade das empresas em um prazo 4.0, ainda é pouco difundido: 42% tendência se repetirá, deve servir
que, para alguns setores, pode ser das empresas desconhecem a impor- como um estímulo adicional para
relativamente curto. É preciso uma tância das tecnologias digitais para a que o Estado invista na educação da
política que promova a difusão de competitividade da indústria e mais população e a prepare para assumir
tecnologias digitais ao longo das ca- da metade delas (52%) não utilizam os novos empregos que virão. De
deias produtivas, o estímulo ao de- nenhuma tecnologia digital de uma qualquer forma, acredito que ainda
senvolvimento tecnológico local e o lista com 10 opções. Para isso, uma é cedo para fazer previsões a esse
desenvolvimento da infraestrutura ampla disseminação das tecnologias respeito. ■

Leia mais
É importante pensar política industrial e competitividade para o Brasil não perder a re-
volução 4.0. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 6-10-2017, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em https://goo.gl/tK1D3t.

30 DE OUTUBRO | 2017
ENTREVISTA REVISTA IHU ON-LINE

É fundamental que governos e


grandes corporações construam
cenários para a Revolução 4.0
O economista João Roncati afirma que é preciso ter cuidado
e projeta que as mudanças poderão ser rápidas, senão bruscas
Vitor Necchi

A
Revolução 4.0 afetará o mundo mente como emprego formal”, projeta.
do trabalho “pelo deslocamen-
Para as empresas não se tornarem ob-
to de funções, pela exigência de
soletas, em razão das rápidas transfor-
novas competências ‘técnicas ou rela-
mações em curso, Roncati propõe que
cionais’ e por uma possível extinção
elas explorarem a enorme quantidade
de empregos com alto índice de repe-
de informações disponíveis. “As empre-
titividade”, afirma o economista João
Roncati. Em relação às projeções de de- sas precisam estar atentas, refletirem,
semprego em decorrência das transfor- debaterem, repensarem suas estruturas
mações decorrentes da indústria 4.0, básicas, e rápido”, recomenda.
Roncati acredita que “é difícil dizer se João Roncati é diretor da People+S-
há exagero, mas é fundamental que te- trategy Consultoria Empresarial, mes-
nhamos cuidado e que governos e gran- tre em Planejamento Estratégico pela
des corporações construam cenários e 91
Universidade de São Paulo – USP e
troquem informações, pois tudo indica economista com Especialização em Fi-
que a mudança poderá ser rápida, se- nanças e Controladoria. Também cur-
não, brusca”. sou o MBA Executivo Internacional na
Em entrevista concedida por e-mail à USP.
IHU On-Line, Roncati disse que o de-
Roncati esteve no IHU no último dia
bate acerca da renda básica universal é
13/10, proferindo a palestra A quarta
necessário e urgente. “O deslocamento
Revolução Industrial e o futuro dos
de empregos ou sua extinção exigirão
empregos. Saiba mais em http://bit.
que parte da população mundial tenha
sua renda proveniente de formas dife- ly/2gVsihC.
rentes das que conhecemos historica- Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que define a no tema, é a revolução basicamente ra a quarta Revolução Indus-
quarta Revolução Industrial? baseada na rápida digitalização, que trial afeta o mundo do trabalho
promove uma convergência entre o e, em particular, os empregos?
João Roncati – Como preconiza
o Klaus Schwab1, autor de referência digital, o biológico e o “mecânico”. João Roncati – Afetará pelo des-
locamento de funções, pela exigência
1 Klaus Schwab (1938): engenheiro e economis- de novas competências “técnicas ou
ta nascido na Alemanha, é fundador e presidente IHU On-Line – De que manei- relacionais” e por uma possível ex-
executivo do Fórum Econômico Mundial. Escreveu
o livro A Quarta Revolução Industrial, lançado no tinção de empregos com alto índice
Brasil pela editora Edipro. Em 1971, Schwab le- O objetivo de Schwab era introduzir as empresas
cionava Universidade de Genebra, Suíça, quando europeias nas práticas de gestão dos Estados Uni- de repetitividade.
convidou 444 executivos de empresas da Europa dos. Para tanto, fundou o Fórum de Gestão Eu-
Ocidental para o primeiro Simpósio Europeu de ropeu, organização sem fins lucrativos localizada
Gestão. O evento foi realizado no Centro de Con- em Genebra, convocando todos os meses de ja-
venções de Davos, então recentemente construí- neiro anualmente, líderes empresariais europeus IHU On-Line – As projeções,
do. O encontro teve patrocínio da Comissão Euro- para Davos. O nome do fórum mudou para World
peia e das associações industriais do continente. Economic Forum em 1987. (Nota da IHU On-Line) muitas delas alarmantes, em

EDIÇÃO 514
ENTREVISTA

relação ao desemprego provo- universal costuma ser rechaça- pessimista. Estarem atentos aos no-
cado pela indústria 4.0 são exa- da, mas o debate acerca desse vos modelos de trabalho, geração de
geradas? Por quê? instrumento tem ganhado mais renda e, competição.
espaço, e empresários de proje-
João Roncati – É bastante difí- Os demais trabalhadores devem
ção global passaram a defendê
cil afirmar, pois ainda são projeções também ficar atentos, pois para eles
-la. Qual a sua opinião?
e perspectivas. Existem estudiosos também a informação está dispo-
mais otimistas, que preconizam o João Roncati – A minha opinião nível, mas pode não ser “sensível”.
deslocamento de mão de obra e a ge- é que é um debate necessário e ur- Assim, as organizaçòes de classe e as
ração de valor de forma mais equita- gente. O deslocamento de empregos próprias corporações deveriam com-
tiva, e mais “pessimistas”, que falam ou sua extinção exigirão que parte da partilhar seu conhecimento e infor-
da extinção maciça de postos de tra- população mundial tenha sua renda mações.
balho. É difícil dizer se há exagero, proveniente de formas diferentes
mas é fundamental que tenhamos das que conhecemos historicamente
cuidado e que governos e grandes como emprego formal. IHU On-Line – Nem todas as
corporações construam cenários e pessoas detêm conhecimento e
troquem informações, pois tudo in- destreza para repensarem suas
dica que a mudança poderá ser rápi- IHU On-Line – E a taxação de carreiras ou projetar seu papel
da, senão brusca. robôs, funcionaria como com- em um cenário de profunda
pensação ao desemprego? transformação tecnológica. A
quem cabe fazer algo para in-
IHU On-Line – Se houver um João Roncati – Eu não acredito, crementar a mentalidade do
expressivo desemprego, isso embora seja uma das teses defendi- trabalhador? Governos? Enti-
afetará o consumo e, em con- das. Seria como fechar o círculo de dades empresariais? Entidades
sequência, as empresas. De que geração de custos/renda, e poderia de classe?
forma o mundo empresarial desestimular em grande medida os
ganhos com a revolução. Acho que João Roncati – A resposta está
está lidando com esse cenário?
seria melhor repensar a economia de na pergunta: todas as organizações
92 João Roncati – O desemprego consumo que ainda é relativamente que trabalham para o suporte e de-
afetará o consumo no caso da pura rudimentar e que é a base de grande senvolvimento dos trabalhadores,
extinção dos postos de trabalho. Mas parte dos países que se autodenomi- ou como é o caso do Governo, na re-
se a quarta Revolução promover a nam capitalistas. gulação dos interesses dos diferen-
geração de valor e estiver baseada tes agentes econômicos. Tambem
em fontes muito baratas de energia as organizaçòes privadas com sen-
limpa (como a solar), é possível que IHU On-Line – O que as em- sibilidade para a Responsabilidade
não ocorra a redução do consumo presas precisam fazer para Social de sua própria existência. As
pela incapacidade individual (econô- não se tornarem obsoletas, em universidades pela capacidade de
mica), mas até porque alguns bens razão das rápidas transforma- “livre pensar”, enfim, todos que são
estariam disponíveis e não precisa- ções em curso? sensíveis de alguma maneira para
riam ser comprados. Poderá haver as relações na sociedade moderna e
uma reconfiguração das bases da João Roncati – Explorarem o preocupados com o seu futuro.
economia. que nos beneficiou de forma quase
totalmente democrática na era da
mídia: a enorme quantidade de in- IHU On-Line – Trabalhadores
IHU On-Line – Quando se fala formações disponíveis. As empresas menos qualificados ou que de-
nos benefícios da tecnologia, precisam estar atentas, refletirem, senvolvem atividades rudimen-
destaca-se muito o ganho e a debaterem, repensarem suas estru- tares são os mais vulneráveis,
produtividade das empresas. A turas básicas, e rápido. se levarmos em conta os impac-
situação dos trabalhadores não tos previstos para a revolução
deveria ser mais discutida? 4.0?
IHU On-Line – E os trabalha-
João Roncati – A situação dos dores? João Roncati – Sem dúvida.
trabalhadores é tão importante e
requer tanta atenção que o Fórum João Roncati – Os trabalhado-
Econômico de Davos 2017 criou um res do conhecimento, como Peter IHU On-Line – Qual o papel
comitê permanente para discutir os Drucker definia todos os que têm da educação na preparação dos
impactos sobre os empregos. Então com grande valor sua força intelec- cidadãos e dos profissionais
a resposta é sim! tual e/ou de compilação, análise de do futuro? As escolas não de-
conhecimento e tomada de decisão, veriam exercer também uma
necessitam refletir, fugindo do en- espécie de alfabetização para o
IHU On-Line – A renda básica cantamente fácil ou do alarmismo mundo do trabalho?

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

João Roncati – As escolas deve- ampliar o interesse por temas de ca- cimentos em campos que realmente
riam exercer uma preparação para ráter público e não apenas privado. lhe atraem e pensar que o trabalho
o mundo do trabalho, mas não pode é fundamental para a sobrevivência
ser o seu foco principal, pois é enor- para a sociedade como foi concebi-
me o risco de ensinarem algo que IHU On-Line – Conselho não da até agora. Não sabemos se será
será obsoleto no momento que seus se dá, mas, em tempos de pre- assim no futuro, então, cultivo de
alunos chegarem ao “mundo do tra- visões sombrias, que conselho uma vida equilibrada, de respeito à
balho”. O seu papel vital é mobilizar o senhor daria para quem pre- diversidade das diversas expressões
as pessoas para uma formação sólida cisa pensar em sobrevivência e da própria vida e um profundo senso
renda?
de valores, estimular sua capacidade de coletivo (ecossistemas sustentá-
reflexiva, pensamento sistêmico e João Roncati – O conselho seria o veis) será definidor da longevidade
criativo, estimular o apetite por ci- de procurar compreender à sua ma- da raça humana e dos critérios que
ência pura (sem o quê não existe co- neira o que é esta Revolução, buscar nortearão a profunda transformação
nhecimento aplicado de alto nível) e desenvolver mais atividades/conhe- que está por vir. ■

Leia mais
“Estamos voando às cegas”. Ritmo dos acontecimentos da Revolução 4.0 é vertiginoso.
Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 25-10-2017, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em https://goo.gl/HjqHAq.

93

EDIÇÃO 514
ENTREVISTA

É preciso pragmatismo para o Brasil não


ser um celeiro de mão-de-obra barata
Para Maurício Casotti, não é possível fechar os olhos para os avanços
da automação, mas é preciso identificar áreas onde se pode atuar
Vitor Necchi

O
momento atual é similar ao iní- do rapidamente”, observa.
cio de massificação da internet Não é possível fechar os olhos para os
nos anos 1980. “Naquela época, avanços da automação, mas, conforme
eram feitos muitos prognósticos de como
Casotti, é preciso “identificar ações em
a nossa vida mudaria com a rede mundial
áreas onde podemos atuar”. Ele cita um
de computadores, como era chamada,
estudo segundo o qual “menos de 5%
mas não se podia prever as redes sociais e
das ocupações podem ser totalmente au-
seus impactos em nosso dia-a-dia”, recor-
tomatizadas pelo uso de tecnologia, mas
da Maurício Casotti. “Quem poderia ima-
60% dessas ocupações têm pelo menos
ginar que o waze estaria disponível para
30% de suas atividades automatizáveis”.
nos ajudar a ir de um lugar a outro? Quem
Não se trata de uma equação simples de
ousaria dizer que o maior operador de
se resolver, “mas precisamos atacá-las
transportes no mundo seria uma empre-
94 com pragmatismo para o Brasil não ser
sa de tecnologia e não possuiria nenhum
um celeiro de mão-de-obra barata”.
veículo e nenhum motorista? E quanto ao
Airbnb, com mais 180 milhões de hospe- Maurício Casotti é graduado em
des sem possuir um único hotel?” matemática pela Unicamp e tem MBA
Em entrevista concedida com e-mail à Executivo com concentração em Ges-
IHU On-Line, Casotti considera que os tão de Empresas e Complementação
principais impactos do emprego de tec- em Marketing pela Escola Superior de
nologia estão relacionados ao consumo Propaganda e Marketing – ESPM. Tra-
mais eficiente dos recursos existentes. “A balha atualmente na área de marketing
internet das coisas e a inteligência artifi- com foco na internet das coisas e na
cial não são exceção, mas talvez a princi- transformação digital. É gerente de Ne-
pal mudança é a transformação da cadeia gócios e Soluções no Centro de Pesqui-
produtiva, que poderá atender a necessi- sa e Desenvolvimento em Telecomuni-
dades hoje não atendidas”, analisa. cações – CPqD

Todos os segmentos são suscetíveis Casotti fará a conferência A evolução


aos impactos da internet das coisas e da internet das coisas e da inteligência
da inteligência artificial. A tecnologia artificial e seus impactos na sociedade
sempre impacta com a automatização no dia 31 de outubro, às 19h30min, na
das tarefas repetitivas. “A questão é que Sala Ignacio Ellacuría e Companhei-
com a velocidade do avanço das tecno- ros – IHU, no campus São Leopoldo da
logias habilitadoras, a nossa visão do Unisinos.
que é uma tarefa repetitiva está mudan- Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é inter- les é a definição mais tecnológica, e porada para se comunicar e detectar
net das coisas (IoT, do inglês para isso podemos utilizar a defini- ou interagir com seus estados inter-
internet of things)? ção propagada pelo Gartner [www. nos ou o ambiente externo”.
Maurício Casotti – A definição gartner.com], ou seja, “a Internet O outro aspecto leva em conta os
de IoT tem a meu ver dois aspectos das Coisas (IoT) é a rede de objetos fatores sociais e econômicos de IoT.
que devem ser considerados. Um de- físicos que contêm tecnologia incor- Trata-se de uma onda de transfor-

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Apesar de IoT e AI seguirem


seus caminhos próprios de
desenvolvimento no campo da
pesquisa, não há como separá-
las no campo da aplicação.”

mação impulsionada pela tecnologia to mais rápidos, impulsionados por estão relacionados ao consumo mais
que afeta as interações que temos alguns fatores: eficiente dos recursos existentes. A
com o mundo que nos cerca. internet das coisas e a inteligência
• Miniaturização da eletrônica
artificial não são exceção, mas talvez
e a redução de custo pelo ga-
a principal mudança é a transforma-
IHU On-Line – E inteligência nho de escala tem viabilizado
ção da cadeia produtiva, que pode-
artificial (AI)? embarcar sensoriamento e in-
rá atender a necessidades hoje não
Maurício Casotti – A inteligên- teligência em objetos do nosso
atendidas.
cia artificial pode ser definida como dia-a-dia com baixo consumo
a capacidade de sistemas de compu- de energia.
tação que executam funções atribuí- • Conectividade pervasiva – a IHU On-Line – E em relação ao
das à mente humana. Tais capacida- combinação de tecnologias di- futuro, o que se pode esperar? É
des podem ser divididas em: ferentes de conectividade tem seguro fazer prognósticos?
possibilitado novos modelos
95
• Percepção: coletar e inter- Maurício Casotti – Estamos viven-
pretar o mundo envolvendo de ofertas que atendem técnica ciando um momento similar ao início
processamento de linguagem e economicamente diferentes de massificação da internet nos anos
natural, visão computacional e cenários de aplicação. 80. Naquela época, eram feitos muitos
processamento de áudio. Esse prognósticos de como a nossa vida mu-
• Cloud Computing, que trazem
é o principal elo entre IoT e AI. daria com a rede mundial de compu-
escalabilidade e resiliência no
tadores, como era chamada, mas não
• Predição: envolve o uso de “ra- processamento e armazenan-
se podia prever as redes sociais e seus
ciocínio” para antecipar com- do de dados a custos cada vez
impactos em nosso dia-a-dia. Quem
portamentos e resultados. mais acessíveis.
poderia imaginar que o waze estaria
• Prescrição: diz respeito a to- • Poder computacional – os disponível para nos ajudar a ir de um
mar decisões com o objetivo smartphones que temos em lugar a outro? Quem ousaria dizer que
de atingir determinados resul- nossas mãos têm mais poder o maior operador de transportes no
tados. de processamento do que tí- mundo seria uma empresa de tecno-
nhamos em grandes mainfra- logia e não possuiria nenhum veículo e
mes de pouco tempo atrás. nenhum motorista? E quanto ao Airb-
IHU On-Line – O que internet nb, com mais 180 milhões de hospedes
das coisas e inteligência artifi- sem possuir um único hotel?
cial têm em comum?  Apesar de IoT e AI seguirem seus
caminhos próprios de desenvolvi-
Maurício Casotti – A combina-
mento no campo da pesquisa, não IHU On-Line – Quais segmen-
ção de IoT com AI é o que podemos
há como separá-las no campo da tos são mais suscetíveis aos im-
chamar de 4ª Revolução Industrial,
aplicação. pactos da internet das coisas? E
rompendo barreiras entre o mundo
da inteligência artificial?
físico e o mundo virtual. As tecnolo-
gias envolvidas tanto em IoT como Maurício Casotti – Todos os
IHU On-Line – Que impactos
em AI já estão sendo pesquisadas, segmentos, desde a academia, os
a internet das coisas e a inteli-
desenvolvidas e aplicadas há algu- meios de produção e o consumo de
gência artificial têm provocado
mas décadas e têm trazido impactos produtos e serviços. Desde sempre
na sociedade?
na sociedade e na economia, porém, a tecnologia vem trazendo impacto
nos últimos anos, os avanços em tec- Maurício Casotti – Os principais com a automatização das tarefas re-
nologias habilitadoras têm sido mui- impactos do emprego de tecnologia petitivas. A questão é que com a ve-

EDIÇÃO 514
locidade do avanço das tecnologias Comunicações] trata essa questão de pressupõe correr riscos e um macroam-
habilitadoras, a nossa visão do que é maneira horizontal, pois afeta consi- biente favorável, por isso, as questões
uma tarefa repetitiva está mudando deravelmente todos os segmentos. relacionadas a modelos de negócios
rapidamente. sustentáveis são o principal fator para
impulsionar os investimentos na mo-
IHU On-Line – Há projeções dernização das empresas. Os principais
“Quem ousaria de que a Revolução 4.0 provo-
cará drásticas diminuições no
fatores que impactam na construção de
modelos de negócios sustentáveis são:
dizer que o número de postos de trabalho.
Se isso ocorrer, afetará o con-
segurança e privacidade, regulamenta-
ção, disponibilidade de mão-de-obra e
maior operador sumo e, em consequência, as
empresas. Como haverá consu-
acesso às fontes de fomento à inovação.

de transportes mo sem consumidores?


IHU On-Line – Como a inter-
Maurício Casotti – A questão aqui
no mundo seria é não fechar os olhos para os avan- net das coisas pode beneficiar
as cidades e a população?
uma empresa
ços da automação, mas identificar
ações em áreas onde podemos atuar. Maurício Casotti – Com um

de tecnologia Não são todas as funções que podem


ser automatizadas, o estudo Internet
ecossistema de IoT que envolve a
administração pública, a população
e não possuiria das Coisas: um plano de ação para
o Brasil apontou que menos de 5%
e a inciativa privada com empresas
consolidadas e startups, a cidade
nenhum veículo das ocupações podem ser totalmente
automatizadas pelo uso de tecnologia,
alcança a capacidade de realizar a
coleta, a integração e a análise de da-
e nenhum mas 60% dessas ocupações têm pelo
menos 30% de suas atividades auto-
dos de diferentes origens e formatos
para subsidiar as estratégias do mu-
motorista?” matizáveis. A equação não é de longe
simples de se resolver, mas precisa-
nicípio pautadas no bem-estar dos
cidadãos, na sustentabilidade e no
96 mos atacá-las com pragmatismo para desenvolvimento local.
o Brasil não ser um celeiro de mão-de
IHU On-Line – Especifica- -obra barata. As cidades precisam se posicionar
mente no mundo do trabalho, o como uma plataforma digital, con-
que muda? solidando o ecossistema que melhor
IHU On-Line – Neste contex- atenda à crescente demanda por ser-
Maurício Casotti – É fato que o to, uma pessoa que esteja pla- viços públicos de qualidade com efici-
trabalho está mudando, a demanda nejando sua carreira, deve le- ência e custos adequados à realidade
por profissionais mais qualificados é var em conta que aspectos? brasileira.
cada vez maior, e. mais uma vez, isso
Maurício Casotti – Se houver uma
não é de hoje.
recomendação fundamental e perene IHU On-Line – A realidade
em qualquer área de conhecimento, projetada por obras de ficção
IHU On-Line – Quando se fala ela pode ser resumida a “aprenda a científica está mais perto de ser
em digitalização dos processos aprender”, pois o conhecimento ad- alcançada?
e o impacto disso nas empre- quirido é cada vez mais perecível e
logo precisa ser renovado. Maurício Casotti – Sim, mas é di-
sas, fala-se muito em ganho
fícil dizer quando. A questão mais im-
de produtividade e competiti-
porte para mim é a de como o Brasil irá
vidade – ou seja, a perspectiva IHU On-Line – Um relatório participar dessa evolução inevitável.
da empresa, do negócio. Não é divulgado em abril do ano pas-
importante que se discuta mais sado pelo CPqD revelou que o
a realidade dos trabalhadores? uso da internet das coisas (IoT) IHU On-Line – O desenvolvi-
Maurício Casotti – Sem dúvida estava aumentando dentro das mento tecnológico deve agra-
alguma a preparação de profissionais empresas, mas menos da meta- var ou diminuir as desigualda-
para esse novo cenário é de suma im- de das organizações cujos pro- des sociais?
portância, tanto que o estudo Internet fissionais foram ouvidos desen-
Maurício Casotti – Não é o desen-
das Coisas: um plano de ação para o volvia algum processo baseado
volvimento tecnológico, mas o acesso a
nesse conceito. Quais fatores
Brasil, liderado pelo BNDES [Banco ele é que pode diminuir as desigualda-
entravam a modernização das
Nacional do Desenvolvimento Eco- des sociais. A falta de desenvolvimento
empresas?
nômico e Social] e MCTIC [Ministério tecnológico local e a sua disseminação
da Ciência, Tecnologia, Inovações e Maurício Casotti – A inovação tendem a agravar as desigualdades. ■

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EDIÇÃO 514
PERFIL

Inovação dirigida aos formatos


contemporâneos de leitura
A engenheira de produção Luciana Curra busca empreender na
forma como gerencia a Biblioteca para fisgar o público e mantê-lo fiel

Lara Ely

U
ma das guardiãs das obras raras da subgestor, passou a apoiar a coordenação
universidade é também a principal como gerente, posição que ocupa há 10
cabeça pensante por trás das ino- anos. Foi no Mestrado que estudou a ques-
vações desenvolvidas na Biblioteca. Aos 43 tão de inovação, e a partir disso, passou a
anos, a engenheira Luciana Curra dedicou desenvolver acervos diferenciados, como o
mais da metade de sua vida a organizar de obras raras, gibis, jogos e discos – em
estantes, comprar novas edições e pensar breve, será inaugurada a discoteca. Esse
formas para gerenciar os espaços que abri- foi um movimento que Luciana entendeu
gam o conhecimento. necessário ao olhar para novas formas de
Natural de Caxias do Sul, ela veio para leitura e ouvir a opinião dos usuários.
São Leopoldo es-
98 tudar e aqui ficou.
Iniciou sua forma-
ção na Arquitetura e
depois mudou para
a Engenharia de
Produção, onde se
formou e fez Mes-
trado. Tem 25 anos
de casa, tempo este
dedicado a tarefas
diversas, mas sem-
pre entre os livros.
Ela, que tem na
corrida um de seus
hobbies, é fã de li-
teratura histórica,
principalmente da A engenheira se empenha para adaptar a biblioteca às demandas do público | Foto: Lara Ely/IHU
história brasileira, e
diz que os livros aju-
dam a entender a realidade ao seu redor. – Devido à entrada de Google e outras
Com base nessa paixão, sonha em fazer ferramentas que nos atacavam como cen-
seu Doutorado em Letras, para depois dar tro de conhecimento, veio a necessidade
aulas. de se reinventar. Perguntava aos usuários
Mesmo sendo habilidosa para lidar com se eles imaginavam que a biblioteca ia
números, desenvolve suas atividades com morrer. Eles diziam que não, que buscam
foco nas pessoas. Multitarefas, ela come- aqui a calma necessária para ler.
çou no atendimento ao público antes de Segundo ela, a biblioteca segue sendo re-
passar para o ambiente interno, onde cui- ferência para os alunos mesmo em tempos
dou do processamento de dados, entradas de leitura digital, atuando na mediação do
e saídas de material, aquisições e compras. que é bom, uma espécie de filtro de qua-
Enfim, quando houve a necessidade de um lidade em relação a escolha dos alunos.

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Exemplo disso é o apoio técnico dado aos leituras acadêmicas). Eles ficam em uma
usuários do portal da Capes, permitindo sala especial na sala e dividem espaço com
uma experiência mais completa aos pes- os livros do marido. Um dos preferidos na
quisadores. Para acompanhar, então, as atualidade é Homo Sapiens, onde Yuval
tendências dos leitores – mais baseado nos Noah Harari conta uma breve história da
pdfs e menos no papel – uma série de ações humanidade. Já o acervo dos filhos Valen-
foram desenvolvidas para ressignificar o tina, 10, e Theodoro, 5, estão nas estantes
local: serviço de delivery, sala com pufs, de seus próprios quartos. Quando eles vêm
novos acervos e eventos como o Sarau e o visitar a mãe na universidade, gostam de
Biblioweek – para tornar a biblioteca um ir na Livraria Cultural, e nas sessões de
agente cultural. gibis, e nos pufs. Aliás, esse foi um dese-
jo dos usuários atendido pelas medidas de
O Book Express, por exemplo, desenvol-
inovação, que hoje, é disputado na hora
vido há cerca de três anos, ajudou a melho-
dos intervalos. “Tem até luz apagada para
rar o acesso dos alunos às obras a partir da
o pessoal poder relaxar”, diz.
reserva pela internet e retirada no local es-
colhido. A ideia começou como serviço de Sobre a nova geração de leitores, ela diz
entrega para as engenharias, mas deu tão não temer os efeitos da tecnologia na me-
certo que foi adaptada. mória, e observa a facilidade com que con-
seguem sintetizar o pensamento. “Nosso
Já o acervo de obras raras, organizado
organismo é tão adaptável que ajusta au-
dentro do Memorial Jesuíta da Unisinos,
tomaticamente o foco para o que é mais
surgiu no final dos anos 90, quando vie-
necessário e importante. Difícil é para nós,
ram para cá 200 mil exemplares do Co-
os mais velhos, aprender a lidar com es-
légio Cristo Rei, antigo seminário de São
sas novas formas de cognição”, explica, ao
Leopoldo. Lá estão relíquias como uma
acrescentar que se esforça para entender
obra conterrânea da Bíblia de Gutemberg,
como a filha mais velha fala com as pala- 99
o Repertorium totius summe domini Anto-
vras cortadas, fazendo menção ao estilo
nini archiepiscopi florentini ordinis predi,
como os jovens escrevem nas redes sociais
de 1496, de autoria de Santo Antoninos
e aplicativos de comunicação.
(1389-1459). Ou a Enciclopédia Francesa,
editada por Diderot e D’Alembert, em 17 Otimista, ela tem certeza de que a biblio-
volumes publicados entre 1751 e 1772. teca não irá morrer; pelo contrário, ganha-
rá cada vez mais relevância como espaço
A biblioteca passou a ser guardiã desse
de curadoria da informação. Relembra que
importante acervo, localizado em uma sala
uma das mais célebres bibliotecas da histó-
do terceiro andar, e que só pode ser aces-
ria, em Alexandria, no Egito, já tinha esse
sado mediante comprovação de pesquisa.
propósito: de ser um lugar onde os pensa-
No sexto andar, está uma parte comple- dores da época se encontravam para refle-
mentar, as coleções especiais, que têm ma- tir sobre os valores de seu tempo. Então,
terial dos padres Milton Valente, Rambo seguindo a mesma ideia, a engenheira que
e Arthur Rabuske, além de Vianna Moog, administra a biblioteca cuida para que o
Ovídio Batista e José Lutzenberger. espaço se torne local de encontro e difusão
E como seria a biblioteca particular da- da cultura, seja por meio dos livros, filmes,
quela que administra a leitura de toda periódicos. “Nos reinventamos com esse
uma universidade? Ela conta que seu acer- propósito, de buscar a arte diária de conec-
vo possui quase mil exemplares e é quase tar as pessoas com o conhecimento, e fazer
todo analógico, já que prefere os livros de essa entrega em formatos inovadores e em
papel aos digitais (a esses só recorre para novos espaços”.■

EDIÇÃO 514
CRÍTICA INTERNACIONAL

As análises de “risco” e
a falsa aleatoriedade
Bruno Lima Rocha

O
que legitima as agências de risco? As chamadas
agências de “análise” de risco produziriam indi-
cadores críveis para investidores interessados em
adquirir ações ou dívidas na forma de títulos ou produtos
financeiros exóticos gerados por agentes econômicos priva-
dos. Isto nas origens, porque a relevância destas empresas
de bens simbólicos cresceu. Afirmo que estas agências, a
partir das três maiores, Standard & Poor’s (S&P), Moody’s
e Fitch Rating, hoje são peça fundamental da engrenagem
capitalista em sua etapa financeira, reforçando um meca-
nismo de legitimação que reforça e blinda o papel nefasto
que a especulação financeira tem.
Bruno Lima Rocha é doutor em ciência política pela
UFRGS e professor do curso de relações internacionais da
Unisinos.
Eis o artigo.
100
A S&P aponta suas baterias contra a Europa. Trata-se da mesma agência que até dias antes da
falência do Lehman Brothers – em setembro de 2008 – classificava-o como AAA. É um papel
semelhante ao aval que a empresa de auditoria contábil Arthur Andersen dera para a empresa
de energia Enron, sendo que esta pediu concordata em dezembro de 2001 após o exercício de
contabilidade “criativa”. A diferença é que a Arthur Andersen acompanhara a diretoria da Enron
direto para uma investigação de fraude corroborada pela auditoria. Na sexta-feira (13/1/2012),
a S&P rebaixou a classificação da dívida (e dos títulos desta) de nove países europeus, incluindo
a França, potência latina da Zona Euro e rival da Alemanha no projeto da Europa unificada. Já
na segunda-feira (16/1), veio a consequência, com o também rebaixamento do Fundo Europeu
de Estabilidade Finaneira (Feef), composto por todos os Estados já depreciados pela mesma
agência. Imediatamente, o ex-vice-presidente do Goldman Sachs e atual presidente do Banco
Central Europeu, Mario Draghi, pediu celeridade dos países membros na busca por ajustes de
austeridade.
Tanto a S&P como o próprio Draghi são agente e ator diretamente responsáveis pela fraude
com nome de “crise” que hoje assola a Europa. Desaparecera por mágica a relação causal direta
do aumento da dívida pública dos países membros, fruto da maior transferência de renda da
história da humanidade, quando os Estados passaram recursos públicos para bancos privados
insolventes após haverem negociados derivativos podres.
Quando o movimento por outra globalização se expandiu, nos anos 1990, uma das bandeiras
consensuais era a instauração da Taxa Tobin, onerando a especulação internacional. É pouco. É
preciso desmontar o poder de legitimação das instituições financeiras que impõem suas vonta-
des sobre Estados soberanos e governos eleitos, incluindo as agências de “análise”.
Observação final após a publicação original do artigo: como era de se esperar, a contra-pauta
desse lide avança mesmo por dentro das estruturas de poder do ocidente. O procurador do mu-
nicípio de Trani, Michele Ruggiero, na região de Milão, abriu investigação junto ao aparato da
Guarda de Finanças (ligada ao Tesouro Italiano, mas com outras funções de polícia) e adentrou
em diligência dentro do escritório da referida agência na cidade que consagrara Silvio Berlusconi
como presidente de clube de futebol com projeções populistas. A S&P e a Moody’s estão na alça

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“Se a economia do Império decadente é o


motor engasgado da locomotiva mundial,
romper com esta interdependência
em escala planetária é tarefa de todo e
qualquer governo minimamente balizado
no respeito da soberania de seu país.”
de mira da Justiça da Itália, justamente por fazerem – ou supostamente haverem feito – aquilo
que são acusadas: manipulação de dados e julgamentos imprudentes e infundados. A S&P, em
julho de 2011, e a Moody’s, em maio do mesmo ano, geraram fatos políticos a partir de relatórios
supostamente “técnicos” ainda com o jogo político oficial em andamento (a primeira no Parla-
mento, e a segunda com o mercado em aberto). Além do tradicional comportamento de manada,
os informes puseram contra a parede a capacidade de mando do próprio governo italiano.

É o momento para uma nova ordem mundial?


A ameaça de calote da dívida pública dos Estados Unidos vem suscitando uma série de debates
a respeito do possível fim de uma era ou ciclo de dominação dentro do capitalismo. Para quem
viveu o período da Guerra Fria, o cenário hoje vislumbrado não era sequer imaginável. Hoje,
pela primeira vez na história contemporânea, os efeitos da política interna e externa dos EUA
pós-11 de setembro de 2001 se veem como uma possível crise de legitimidade e perda da hege-
monia mundial – no médio prazo – do único Estado do planeta que é uma superpotência militar. 101
Isto se dá por uma série de fatores, mas uma relação causal de fácil compreensão é que a conta
simplesmente não fecha. A equação é simples. Os EUA sozinhos gastam mais com o complexo
industrial-militar do que todos os demais Estados existentes no planeta. Isto ajuda a gerar a
maior dívida interna do mundo acompanhada de um progressivo corte de gastos públicos e au-
mento de isenções e repasses de verbas para grandes transnacionais. O efeito é o abismo social,
fortalecendo os 1% mais ricos e seus poderosos lobbies. Um Império decadente com supremacia
militar e sistemas produtivos dependentes da China não tem condições prolongadas de exercer
sua vontade soberana acima de organismos multilaterais, desde que os Estados emergentes as-
sim o desejem.
A gangorra poderia começar a pender para outros lados se blocos regionais ou de países, como
a Unasur e o G-20, estabelecessem medidas de proteção mútua, tais como fundos de emergência
e índices de risco, por fora das estruturas estabelecidas pela atual hegemonia em franca deca-
dência. Por mais surreal que pareça, o balizador das dívidas dos países são índices de empresas
privadas de análise de risco (da possível ausência de pagamento), a saber, Standard & Poors,
Moody’s e Fitch. Para os organismos financiadores do capitalismo, a informação produzida atra-
vés destas empresas é considerada superior a coproduzida pelas autoridades de países como
Brasil, Rússia, Índia, Indonésia, China e Coreia do Sul.
Retirar a absurda legitimidade das empresas de “análise” de risco e, ao mesmo tempo, iniciar
acordos multilaterais em busca de novos lastros para além do fator dólar-dólar, tal como uma
possível moeda cambial dos emergentes, seria um belo primeiro passo. Se a economia do Impé-
rio decadente é o motor engasgado da locomotiva mundial, romper com esta interdependência
em escala planetária é tarefa de todo e qualquer governo minimamente balizado no respeito da
soberania de seu país.

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto
Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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Teologalidade das resistências


e lutas populares

A
edição 126 do Cadernos Teologia Pública, publicado pelo Institu-
to Humanitas Unisinos – IHU, traz o texto Teologalidade das resis-
tências e lutas populares, de Francisco de Aquino Júnior, doutor em
teologia pela Wetfälischen Wilhelms Universität, de Münster – Alemanha;
professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza – FCF e da Univer-
sidade Católica de Pernambuco – Unicap; presbítero da Diocese de Limoeiro
do Norte, no Ceará.
O artigo se confronta com um dos aspectos mais fundamentais e determi-
nantes das teologias da libertação, enquanto teologias feitas a partir e em
vista dos processos históricos de libertação: a problemática da teologalida-
de ou do caráter salvífico-espiritual
das resistências, lutas e organizações
populares. Partindo da experiência
bíblica de Deus (revelação-fé), expli-
cita o caráter estritamente teologal 103
ou espiritual das resistências e lutas
populares (salvação), bem como sua
densidade e relevância epistemoló-
gicas (teologia). E conclui indicando,
em forma de teses, alguns desafios
para um fazer teológico que se queira
consequente com o processo histórico
de realização da salvação ou do rei-
nado de Deus e que tem nos pobres
e marginalizados e em seus processos
de libertação sua medida e seu crité-
rio permanentes.
A versão completa do artigo está disponível em https://goo.gl/xoiPFP.
Esta e outras edições do Cadernos Teologia Pública também podem
ser obtidas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus
São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço
humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590–8213.

EDIÇÃO 514
PUBLICAÇÕES

A glória como arcano central


do poder e os vínculos entre
oikonomia, governo e gestão

A
edição 127 do Cadernos Teologia Pública, publicado pelo Institu-
to Humanitas Unisinos – IHU, apresenta o texto A glória como arca-
no central do poder e os vínculos entre oikonomia, governo e gestão,
de Colby Dickinson, doutor em Teologia pela Katholieke Universiteit Leuven
e mestre em Estudos Religiosos e Teologia pela Duke Divinity School, pela
Saint Louis University e pela Katholieke Universiteit Leuven.
O artigo analisa a glória como arcano central do poder, nos seus múltiplos
vínculos estabelecidos, tendo como referência a contribuição de Giorgio
Agamben. Tal contribuição está na proposição de uma interpretação teoló-
gica particular que não foi manifesta-
da explicitamente dentro da maioria
das explicações histórico-teológicas
da relação do cristianismo com for-
mas econômicas. Isso significa uma
104 reflexão crítica para que estabelecen-
do uma suspensão messiânica não
perpetue, mesmo que revestido este-
ticamente, a articulação e a justifica-
ção do poder soberano, por parte de
Deus, da humanidade e da Igreja em
termos muito reais e mundanos.
A versão completa do artigo está dis-
ponível em https://goo.gl/hGFqCf.
Esta e outras edições do Cadernos
Teologia Pública também podem
ser obtidas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus
São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço
humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590–8213.

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Economia política aristotélica: cuidando


da casa, cuidando do comum

A
edição 265 do Cadernos IHU Ideias, publicado pelo Instituto Hu-
manitas Unisinos – IHU, apresenta o texto Economia política aristo-
télica: cuidando da casa, cuidando do comum, de Armando de Melo
Lisboa, doutor em Sociologia Econômica pela Universidade Técnica de Lis-
boa, mestre em Sociologia Política e graduado em Ciências Econômicas pela
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, onde atualmente leciona.
Clássica e protocolarmente, as dis-
cussões genealógicas sobre “Econo-
mia” mencionam a origem etimológi-
ca grega de “Economia”, destacando
de maneira ligeira Aristóteles e sua
célebre distinção entre “oikonomia”
e “crematística”. Comumente então
se informa sobre o caráter embrio-
nário e ralo das suas considerações, 105
indicando a inexistência nele de uma
análise econômica propriamente dita.
Este texto examina criticamente a
abordagem econômica feita por Aris-
tóteles, sugerindo haver ricos ele-
mentos na mesma que a configuram
com um padrão próprio e consistente,
muito diferenciado dos estreitos limi-
tes modernos em que tanto a análise
econômica quanto a análise política
foram enquadradas.
A versão completa do artigo está dis-
ponível em https://goo.gl/DM3xxz.
Esta e outras edições do Cadernos
IHU Ideias também podem ser obti-
das diretamente no Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, no campus São
Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos,
950), ou solicitadas pelo endereço hu-
manitas@unisinos.br. Informações
pelo telefone (51) 3590–8213.

EDIÇÃO 514
106

30 DE OUTUBRO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Lutero. Reformador da Teologia, da Igreja e


criador da língua alemã
Edição 280 – Ano VIII – 3-11-2008

“Ainda em 2008, quando se inicia a “Década de Lutero”, preparando a


celebração dos 500 anos da Reforma, tendo como lema “Lutero 2017 –
500 anos de Reforma”, a IHU On-Line abordou o tema na sua primeira
edição de novembro. A ideia foi reconstituir vida e obra de Lutero at-
ravés de entrevistas com pesquisadores e pesquisadoras.”

Calvino - 1509-1564. Teólogo, reformador e


humanista 107

Edição 316 – Ano IX – 23-11-2009

“No ano em que foram celebrados os 500 anos de nascimento do refor-


mador francês João Calvino (1509-1564), O Instituto Humanitas Unis-
inos – IHU dedicou um amplo espaço nas Notícias do Dia, em seu sítio
para reflexões acerca deste importante evento. Nesse número da IHU
On-Line, o objetivo foi aprofundar a análise e o debate sobre o legado
deste grande teólogo, reformador e humanista.”

O cristianismo e a ultramodernidade -
Limites e possibilidades do seu futuro

Edição 128 – Ano IV – 20-12-2004

“Na última IHU On-Line de 2004, já em tempo para preparação para o


Natal, uma época em que não se pode passar com indiferença, a revista
trouxe ao debate sobre o cristianismo em tempos ultramodernos. O ob-
jetivo foi amplificar a discussão do livro Le religieux après la religion de
Luc Ferry e Marcel Gauchet, recém lançado à época. A obra foi traduzida
em português como Depois Da Religião (Algés, Português: Difel, 2008).”

EDIÇÃO 514
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