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Renato Ortiz

O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira


• Artes Plásticas e Literatu ra — Carlos ZiHo, Lígia Chiappini e J.
LuizLafetá
• Cinema — Jean-Claude Bernardet e M. Rita GatvSo
• Música — Ênio Squeffe José Migue! Wisnik
• Seminários — Marilena Chau!
• Teatro — José Arraba! e Mariãngela AJves de Lima
• Televisão — C. A. Messeder Pereira e Ricardo Miranda
Cultura brasileira
• Sertão Mar — Glauber Rocha e a Estética da Fome — Ismail
Xavier
identidade nacional
• Vianinha — Teatro, Política e Televisão — Fernando Peixoto
lorg.l
1? edição 1985
2? edição
Colação Primeiros Passos
• O que é Cultura — José Luiz dos Santos
• O que é Cultura Popular — Antonio Augusto Arantes
• 0 que é Folclore — Carlos R. Brandão
• 0 que é Nacionalidade — GuiUermo Raú! Rubem

Coleção Tudo é História

A Aventura da Jovem Guarda - Paulo de Tarso C. Medeiros


A Chanchada no Cinema Brasileiro — Afrânio M. Catani e
José Inácio de M. Souza
Cultura e Participação nos anos 60 — Heloísa B. de HoUanda e
Marcos A. Gonçalves
Teatro Oficina U958-1982) Trajetória de Uma Rebeldia Cultural
— Fernando Peixoto
Tio Sam Chega ao Brasil — A Penetração Cultural Americana
— Gerson Moura
Um Palco Brasileiro — O Arena de São Paulo — Sábato
Maaaidi
k © Renato Ortiz
Capa:,
Ettore Bottini

*
Revisão:
José W, S.
Moraes
José E. Andrade

índice ______________
Introdução ................................................... .... 7

Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias ra-


ciais do século XIX ...................................... .... ........ 13

Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional .............. 36

Alienação e cultura: o ISEB .............................................. .... 45

Da cultura desalienada à cultura popular: o CPC da UNE 68

Estado autoritário e cultura ............................... .................. 79

Estado, cultura popular e identidade nacional ...................... ........ 127

Bibliografia ....................................................................... 143


brasiliense

Editora Brasiliense S.A.


R. General Jardim, 160
01223 - São Paulo - SP
Fone (011)231-1422 .
Introdução
O tema da cultura brasileira e da identidade nacional é
um antigo debate que se trava no Brasil. No entanto, ele per-
manece atual até hoje, constituindo uma espécie de subsolo
estrutural que alimenta toda a discussão em torno do que é o
nacional. Os diferentes autores que têm abordado a questão
concordam que seríamos diferentes de outros povos ou países,
sejam eles europeus ou norte-americanos. Neste sentido, a crí-
tica que os intelectuais do século XIX faziam à “cópia” das
idéias da metrópole é ainda válida para os anos 60, quando se
busca diagnosticar a existência de uma cultura alienada, im-
portada dos países centrais. Toda identidade se define em re-
lação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença. Podería-
mos nos perguntar sobre o porquê desta insistência em bus-
carmos uma identidade que se contraponha ao estrangeiro.
Creio que a resposta pode ser encontrada no fato de sermos
a descoberta: um país do chamado Terceiro Mundo, o que significa dizer
que a pergunta é uma imposição estrutural que se coloca a
Seguimos nosso caminho por este mar de partir da própria posição dominada em que nos encontramos
longo no sistema internacional. Por isso autores de tradições dife-
Até a oitava da Páscoa rentes, e politicamente antagônicos, se encontram, ao se for-
Topamos aves
E houvemos vista de terra mular uma resposta para o que seria uma cultura nacional.
Porém, a identidade possui ainda uma outra dimensão, que é
(Pero Vaz de Caminha, Poesia Pau-Brasil) interna. Dizer que somos diferentes não basta, é necessário
e RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 9

mostrar em que nos identificamos. Este é o ponto polêmico, o afirmam, por exemplo, que não existe um pensamento brasi-
divisor de águas entre autores como Gilberto Freyre e Álvaro leiro anterior ao modernismo, o que de fato eles estão fazendo
Vieira Pinto. Se existe uma unidade em afirmarmos que o é introduzir um corte arbitrário na história. Eles selecionam
Brasil é “distinto” dos outros países, o consenso está longe de um evento para orientar politicamente uma luta ideológica
se estabelecer quando nos aproximamos de uma possível defi- contra um outro grupo social, que até então possuía o mono-
nição do que viria a ser o nacional. pólio da definição sobre o Ser nacional — os intelectuais tra-
O objetivo deste livro é retomar as diferentes maneiras dicionais. Não resta dúvida de que o estudo dos escritores do
como a identidade nacional e a cultura brasileira foram consi- século XIX mostra a existência de um pensamento autóctone,
deradas, Minha preocupação inicial foi a de compreender brasileiro. O que me assusta é o seu caráter profundamente
como a questão cultural se estrutura atualmente no interior de conservador. Na verdade, a luta pela definição do que seria
uma sociedade que se organiza de forma radicalmente distinta uma identidade autêntica é uma forma de se delimitar as fron-
do passado, pois, na medida em que o capitalismo atinge no- teiras de uma política que procura se impor como legítima.
vas formas de desenvolvimento, tem-se que novos tipos de or- Colocar a problemática dessa forma é. portanto, dizer que
ganização da cultura são implantados, em particular a partir existe uma história da identidade e da cultura brasileira que
de meados dos anos 60. Dentro deste contexto, qual o signifi- corresponde aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua
cado da noção de cultura brasileira? Qual o sentido de uma relação com o Estado.
identidade ou de uma memória que se querem nacionais? Fo- O que o leitor encontrará nos capítulos que seguem é uma
ram essas perguntas, que estão subjacentes no texto, que me tentativa de trabalhar a problemática da maneira que expli-
orientaram, inclusive no estudo relativo aos intelectuais do fi- citamos anteriormente. O livro, no entanto, não foi escrito por
nal do século XIX. De certa forma, o passado se apresentava um historiador. Não me preocupei, por exemplo, em estabe-
para mim como uma maneira de se conhecer e entender me- lecer uma periodização, ou ainda em esgotar as múltiplas de-
lhor 0 momento presente. Neste sentido é interessante ressal- finições que existem sobre o nacional. Tenho consciência de
tar que a problemática da cultura brasileira tem sido, e per- que este trabalho poderá ser realizado com maior sucesso por
manece, até hoje, uma questão política. Como o leitor poderá historiadores profissionais. O que fiz foi procurar compreen-
perceber, eu procuro mostrar que a identidade nacional está der o assunto dentro de uma ótica diferente da qual ele é ha-
profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos bitualmente discutido. Se a história se encontra presente na
grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro. discussão, e não poderia ser de outra forma, eu parti da An-
Mas, ao colocar o debate dentro desta perspectiva, eu tive tropologia, e integrei vários conceitos como de “sincretismo”,
de enfrentar um problema que se tornou clássico na discussão “memória coletiva”, “mito”, símbolo”, em minhas análises
da cultura brasileira: o de sua autenticidade. Como veremos sobre os autores nacionais. De alguma maneira procurei lê-los
no último capítulo, creio que é o momento de reconhecermos como Lévi-Strauss “leu” os mitos primitivos. Não que a aná-
que toda identidade é uma construção simbólica (a meu ver lise proposta seja estruturalista, mas, ao tratar os diversos dis-
necessária), o que elimina portanto as dúvidas sobre a veraci- cursos sobre o Brasil, recuperei toda uma corrente da Antro-
dade ou a falsidade do que é produzido. Dito de outra forma, pologia que se inicia com Durkheim e Mauss em seus estudos
não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de sobre as categorias de classificação primitiva, e que deságua
identidades, construídas por diferentes grupos sociais em dife- em autores mais recentes como Victor Turner e Clifford
rentes momentos históricos. O "pessimismo” de Nina Rodri- Geertz.' Por outro lado, me voltei também para Mauss. cujo
gues, o “otimismo” de Gilberto Freyre, o “projeto” do ISEB
são as diferentes faces de uma mesma discussão, a da relação
entre cultura e Estado. Na verdade, falar em cultura brasileira (1) Ver Durkheim, Les Formes Bementaires de la Vie Religieuse, Paris,
é falar em relações de poder. Quando os intelectuais do ISEB PUF, e Textes, 3 vols.. Paris, Ed. Minuit; Marcei Mauss, Anthropologie e So-
t
10 RENATO ORTIZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 11
conceito de totalidade me auxiliou em muito para entender a
questão do nacional e sua relação com o popular. Não me sinceramente gostaria de agradecer aos colegas que me propi-
preocupei, porém, em realizar toda uma discussão teórica an- ciaram a oportunidade de fazer com eles este debate. Prefiro
tes da utilização dos conceitos. Optei por não sobrecarregar não citá-los nominalmente nesta introdução, pois são muitos,
em demasia o texto, pois poderia perder de vista o próprio as- mas eles se encontram neste livro no corpo do texto, nas notas
sunto que me propunha tratar. Fica nesta introdução uma rá- de referência e na bibliografia sobre o assunto que procurei
pida observação para o leitor, o que lhe permite situar o pen- organizar para o leitor.
samento do autor dentro de um quadro mais abrangente.
Mas, se me voltei para a Antropologia na busca de novos Pampulha, 21 de agosto de 1984
horizontes, foi-me necessário sair dela ao tratar da problemá-
tica da cultura brasileira. A Antropologia Clássica, ao se ocu-
par das sociedades primitivas, deixa de lado, ou minimiza,
uma série de questões que são cruciais para o entendimento
das sociedades industrializadas. Estado, ideologia, hegemo-
nia, intelectuais são temas que crescem à sombra do pensa-
mento antropológico mas que ocupam uma posição de desta-
que em outros setores das Ciências Sociais. Por isso o antro-
pólogo de algurha maneira deve “distorcer” os conceitos e
combiná-los a um quadro de análise que lhe permita passar

n
1
para o nível sociológico. É isso que possibilita conferir ao pen-
samento uma maior abrangência ao mesmo tempo que se pode
enxergar a realidade social e política com novos olhos. Não
creio que esteja propondo com isto uma leitura eclética de
autores de tradições diferentes, simplesmente sou daqueles
que pensam, como Marx e Durkheim (deixando de lado sua
inclinação positivista), que são tênues as fronteiras entre os
campos de conhecimento, e preferem buscar o entendimento
da sociedade dentro de uma perspectiva global.
Uma última palavra. Os estudos aqui reunidos resultam
em grande parte das discussões realizadas pelo Grupo de So-
ciologia da Cultura ligado à Associação Nacional de Pós-Gra-
duação e Pesquisa em Ciências Sociais. Os vários encontros
que fizemos para tratar do problema da cultura brasileira
contribuíram em muito para o amadurecimento de minhas re-
flexões. Evidentemente assumo a responsabilidade pelas posi-
ções que pessoalmente tomo ao longo de minhas análises, mas

clologie, Paris, PUF; Oeuvres, 3 vois.. Paris, Ed. Minuit; V. Turner, The Forest
of Simbols, Londres, Cornell University Press, 1977; C. Geertz, A Interpretação
das Culturas, Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
Memoria coletiva
e sincretismo científico:
as teorias raciais
do século XIX

*
O que surpreende o leitor, ao se retomar as teorias expli-
cativas do Brasil, elaboradas em fins do século XIX e início do
século XX, é a sua implausibilidade. Como foi possível a exis-
tência de tais interpretações, e, mais ainda, que elas tenham se
alçado ao staíus de Ciências. A releitura de Sílvio Romero, Eu-
clides da Cunha, Nina Rodrigues é esclarecedora na medida
em que revela esta dimensão da implausibilidade e aprofunda
nossa surpresa, por que não um certo mal-estar, uma vez que
desvenda nossas origens. A questão racial tal como foi colo-
cada pelos precursores das Ciências Sociais no Brasil adquire
na verdade um contorno claramente racista, mas aponta, para
além desta constatação, um elemento que me parece signifi-
cativo e constante na história da cultura brasileira: a proble-
mática da identidade nacional. Gostaria de tecer neste capí-
tulo algumas reflexões em torno da relação entre questão ra-
cial e identidade brasileira. Acredito que privilegiando um
momento da vida cultural poderei talvez apreender alguns as-
pectos mais gerais das diferentes teorias sobre cultura brasi-
leira.
Tomemos como objeto de estudo alguns autores, como
Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Esta es-

(’) Publicado nos Cadernos CERU n? 17, set. 62.

L
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 15
14 RENATO ORTIZ
duzi-lo a uma dimensão exclusiva, pode-se dizer que evolucio-
colha não é arbitrária; ela privilegia justamente os teóricos nismo em parte legitima ideologicamente a posição hegemô-
que são considerados, e com razão, os precursores das Ciên- nica do mundo ocidental. A “superioridade” da civilização
cias Sociais no Brasil. O estatuto de precursor revela a posição européia torna-se assim decorrente das leis naturais que orien-
desses autores que na virada do século se dedicaram ao estudo tariam a história dos povos. A "importação” de uma teoria
concreto da sociedade brasileira, seja analisando suas mani- dessa natureza não deixa de colocar problemas para os inte-
festações literárias, seja considerando as tradições africanas lectuais brasileiros. Como pensar a realidade de uma nação
ou os movimentos messiânicos. O discurso que construíram emergente no interior desse quadro? Aceitar as teorias evolu-
possibilitou 0 desenvolvimento de escolas posteriores, como cionistas implicava analisar-se a evolução brasileira sob as lu-
por exemplo a escola de antropologia brasileira, que, vincula- zes das interpretações de uma história natural da humani-
da aos ensinamentos de Nina Rodrigues, adquire com Arthur dade; 0 estágio civilizatório do país se encontrava assim de
Ramos a configuração definitiva de ciência da cultura. Neste imediato definido como “inferior” em relação à etapa alcan-
sentido, Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha çada pelos países europeus. Torna-se necessário, por isso, ex-
podem ser tomados como produtores de um discurso paradig- plicar 0 “atraso” brasileiro^ e apontar para um futuro pró-
mático do período em que escrevem; têm ainda a vantagem de ximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir en-
podermos considerá-lo como discurso científico, o que de uma quanto povo, isto é, como nação. O dilema dos intelectuais
certa forma esclarece as origens das Ciências Sociais brasi- desta época é compreender a defasagem entre teoria e reali-
leiras. dade, 0 que se consubstancia na construção de uma identidade
Ao se referir ao declínio da hegemonia do romantismo de nacional. A interpretação do Brasil passa necessariamente por
Gonçalves Dias e José de Alencar, que podemos situar em esse caminho, daí a ênfase no estudo do “caráter nacional”, o
torno de 1870, Sílvio Romero arrola um lista das teorias que que em última instância se reportava à formação de um Es-
teriam contribuído para a superação do pensamento român- tado nacional. O evolucionismo fornece à intelligentsia brasi-
tico.' Dentre elas, três tiveram um impacto real junto a intel- leira os conceitos para compreensão desta problemática; po-
ligentsia brasileira: e de uma certa forma delinearam os limi- rém, na medida em que a realidade nacional se diferencia da
tes no interior dos quais toda a produção teórica da época se européia, tem-se que ela adquire no Brasil novos contornos e
constitui: o positivismo de Comte, o darwinismo social, o evo- peculiaridades. A especificidade nacional, isto é, o hiato entre
lucionismo de Spencer. Elaboradas na Europa em meados do teoria e sociedade, só pode ser compreendido quando combi-
século XIX, essas teorias, distintas entre si, podem ser con- nado a outros conceitos que permitem considerar o porquê do
sideradas sob um aspecto único: o da evolução histórica dos “atraso” do país. Se o evolucionismo torna possível a com-
povos. Na verdade, o evolucionismo -se propunha a encontrar preensão mais geral das sociedades humanas, é necessário po-
um nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da rém completá-lo com outros argumentos que possibilitem o
história; aceitando como postulado que o “simples” (povos entendimento da especificidade social. O pensamento brasi-
primitivos) evolui naturalmente para o mais “complexo” (so- leiro da época vai encontrar tais argumentos em duàs noções
ciedades ocidentais), procurava-se estabelecer as leis que pre- particulares: o meio e a raça.
sidiriam 0 progresso das civilizações. Do ponto de vista polí- Os parâmetros raça e meio fundamentam o solo episte-
tico, tem-se que o evolucionismo vai possibilitar à elite euro- mológico dos intelectuais brasileiros de fins do século XIX e
péia uma tomada de consciência de seu poderio que se conso- início do século XX. A interpretação de toda a história brasi-
lida com a expansão mundial do capitalismo. Sem querer re-

(2) E sugestivo que o cap. III do livro de Silvio Romero se intitule "A
(1) Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, José
Olympio, 1943. Filosofia de Buckiee o atraso do povo brasileiro".
16 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 17

leira escrita no período adquire sentido quando relacionada a e da raça. Ser brasileiro significa viver em um país geografi-
esses dois conceitos-chaves. Nâo é por acaso que Os Sertões camente diferente da Europa, povoado por uma raça distinta
abre com dois longos e cansativos capítulos sobre a Terra e o da européia. Sílvio Romero compreende claramente esta si-
Homem.^ Sílvio Romero, já em seus primeiros estudos sobre o tuação quando considera o meio e a raça como “fatores in-
folclore, dividia a população brasileira em habitantes das ma- ternos” que definiriam a realidade brasileira.'’ Ele vai con-
tas, das praias e margens de rio, dos sertões, e das cidades.^ trapô-los às “forças estranhas”, seja, as influências estran-
Nina Rodrigues, em suas análises do direito penal brasileiro, geiras que possibilitam uma “imitação” da cultura européia.’
tece inúmeras considerações a respeito da vinculação entre as Meio e raça traduzem, portanto, dois elementos imprescin-
características psíquicas do homem e sua dependência do díveis para a construção de uma identidade brasileira; o na-
meio ambiente.^ Na realidade, meio e raça se constituíam em cional e o popular. A noção de povo se identificando à proble-
categorias do conhecimento que definiam o quadro interpre- mática étnica, isto é, ao problema da constituição de um povo
tativo da realidade brasileira. A compreensão da natureza, no interior de fronteiras delimitadas pela geografia nacional.
dos acidentes geográficos esclarecia assim os próprios fenô- Consideremos brevemente a problemática do meio. Uma
menos econômicos e políticos do país. Chegava-se, desta for- interpretação do atraso brasileiro, corrente entre os intelec-
ma, a considerar o meio como o principal fator que teria in- tuais da época, é a do historiador inglês Buckle. Ao procurar
fluenciado a legislação industrial e o sistema de impostos, ou analisar a realidade brasileira em contraposição à civilização
ainda que teria sido elemento determinante na criação de européia, Buckle retoma as perspectivas de outros autores que
uma economia escravagista. Combinada aos efeitos da raça, a buscavam entender a evolução histórica do homem. Basica-
interpretação se completa. A neurastenia do mulato do litoral mente, 0 que se propunha era vincular o desenvolvimento das
se contrapõe, assim, à rigidez do mestiço do interior (Euclides civilizações a alguns fatores como calor, umidade, fertilidade
da Cunha); a apatia do mameluco amazonense revela os tra- da terra, sistema fluvial. Em princípio, teríamos que todas as
ços de um clima tropical que o tornaria incapaz de atos previ- civilizações teriam evoluído a partir desses elementos de base.
dentes e racionais (Nina Rodrigues). A história brasileira é, Surge porém a pergunta; se o Brasil contém esses elementos
desta forma, apreendida em termos deterministas, clima e fundamentais, qual a razão da inexistência de uma civilização
raça explicando a natureza indolente do brasileiro, as mani- nesta parte do mundo? A resposta, pueril, mas convincente
festações tíbias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quen- para o momento, era simples: por causa dos ventos alísios.
te dos poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade desen- Segue-se toda uma argumentação climatológica que procura
freada do mulato. justificar o atraso brasileiro através deste elemento conjuntu-
O evolucionismo se combina, assim, a dois conceitos-cha- ral, os ventos alísios. Resulta dessa interpretação um quadro
ves que na verdade têm ressonância limitada para os teóricos
europeus. No entanto, são fatores importantes para os intelec-
tuais brasileiros, na medida em que exprimem o que há de (61 Silvio Romero, História..., op. cit., p. 258.
específico em nossa sociedade. Quando se afirma que o Brasil (7) Ê interessante observar que para os autores considerados a idéia da
nâo pode ser mais uma “cópia” da metrópole, está subenten- “imitação’' tem um duplo significado. Um primeiro negativo se refere à noção
de “cópia" e procura ironizar o elemento estrangeiro superficialmente assimi-
dido que a particularidade nacional se revela através do meio lado pelos brasileiros. Por exemplo. Euclides da Cunha acredita que a força do
mestiço do interior resulta, em parte, da distância do sertão em relação ao
litoral. Em principio, o mulato do litoral estaria mais exposto às influências ne-
fastas e aos modismos da metrópole portuguesa. 0 segundo significado é cla-
<3) Euclides da Cunha, Os Sertões, Rio de Janeiro, Ed. Ouro. ramente positivo ase associa às teorias de Gabriel Tarde. Imitar significa, neste
{41 Silvio Romero, Cantos Populares no Brasil, Rio de Janeiro, José sentido, se socializar. A educação se dá através do processo de imitação, o que
Olympio, 1954. possibilita a transmissão da herança cultural através das gerações. Tarde è um
(5) Nina Rodrigues, As Raças Humanas e a Responsabilidade Pena! no autor citado inúmeras vezes pelos intelectuais do período, o que mostra que se
Brasil, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, s.d.p. desconhecia as criticas de Durkheim em relação a essa teoria da socialização.
e
16 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 19

acentuadamente pessimista do Brasil, onde a natureza su-


ram o elemento nativo para promovê-lo a símbolo nacional.
planta 0 homem, a cultura européia tem dificuldades em se
As reflexões em relação ao cruzamento inter-racial são, no
enraizar, o que determinaria o estágio ainda bárbaro em que
entanto, superficiais e pouco esclarecedoras. O trabalho de
permanece o conjunto da população brasileira. Sílvio Romero
Couto de Magalhães é na realidade uma coleta heterogênea de
aceita a interpretação de Buckle mas a considera incompleta,
informações sobre os índios, que um general letrado procura
se propõe por isso a aprimorá-la com um estudo mais deta-
colher ao longo de sua carreira militar. O romantismo de
lhado do meio e particularmente relacionando-o à questão ra-
Gonçalves Dias e José de Alencar se preocupa mais em fabri-
cial. A posição é idêntica em Euclides da Cunha e Nina Ro-
car um modelo de índio civilizado, despido de suas caracte-
drigues. As críticas que os intelectuais fazem às teorias de Bu-
rísticas reais, do que apreendê-lo em sua concretude.'” Por
ckle se referem simplesmente aos exageros, ao pouco conheci-
outro lado, nada se tem a respeito das populações africanas;
mento que 0 autor inglês tinha do Brasil. Elas não tocam, no
0 período escravocrata é um longo silêncio sobre as etnias ne-
entanto, a substância de seu pensamento; aceita-se, sem ne-
gras que povoam o Brasil. Era sua bricolage de uma identi-
nhum conhecimento crítico, o argumento do meio como fun-
dade nacional, o romantismo pode ignorar completamente a
damento do discurso científico. Um exemplo claro de conti-
presença do negro. A situação se transforma radicalmente
nuidade dessa tradição é o livro de Euclides da Cunha sobre
com 0 advento da Abolição. Como fato político a Abolição
Canudos. O nordestino só é forte na medida em que se insere
marca o início de uma nova ordem onde o negro deixa de ser
num meio inóspito ao florescilnento da civilização européia.
mão-de-obra escrava para se transformar em trabalhador li-
Suas deficiências provêm certamente desse descompasso em
vre. Evidentemente, ele será considerado pela sociedade como
relação ao mundo ocidental, sua força reside na aventura de
um cidadão de segunda categoria; no entanto, em relação ao
domesticação da caatinga. Procura-se dessa forma descobrir
passado tem-se que a problemática racial torna-se mais com-
os defeitos e as vicissitudes do homem brasileiro (ou da sub-
plexa na medida em que um novo elemento deve obrigatoria-
raça nordestina) vinculando-os necessariamente às dificul-
mente ser levado em conta. O negro aparece assim como fator
dades ou facilidades que teria encontrado junto ao meio am-
dinâmico da vida social e econômica brasileira, o que faz com
biente que 0 circunda.
que, ideologicamente, sua posição sejareavaliada pelos intelec-
A problemática racial é mais abrangente; Sílvio Romero
tuais e produtores de cultura. Para Sílvio Romero e Nina Ro-
chega a considerá-la como mais importante que a do meio. Na
drigues ele adquire uma importância maior que a do índio
realidade, ela é vista como *‘a base fundamental de toda a his-
(que se acredita estar fadado ao desaparecimento), ou, como
tória, de toda política, de toda estrutura social, de toda a vida
dirão alguns: “o negro é aliado do branco que prosperou”.
estética e moral das nações”. ’ A política de imigração desen-
Abordar a problemática da mestiçagem é na realidade
volvida no final do século vem ainda reforçar a importância
retomar a metáfora do cadinho, isto é, do Brasil enquanto
deste assunto. Retoma-se assim uma questão que desde mea-
espaço da miscigenação. Somente que, aquilo que posterior-
dos do século tinha sido considerada tanto pelos viajantes es-
mente será analisado em termos culturais por Gilberto Freyre,
trangeiros que permaneceram um curto período no Brasil
se caracteriza como racial para os intelectuais do período con-
(Gobineau, Agassiz) quanto pelos autores brasileiros. Couto
siderado. Neste momento toma-se corrente a afirmação de
de Magalhães havia abordado o problema da mestiçagem in-
que o Brasil se constituiu através da fusão de três raças fun-
dígena durante os anos 70;’ os escritores românticos descobri-
damentais: o branco, o negro e o índio. O quadro de inter-
pretação social atribuía porém à raça branca uma posição de

(81 Silvio Romero, História..., op. cit., p. 185.


19) Couto ds Magalhães, O Selvagem, São Paulo, Cia. Ed. Nacional,
1935. (10) Sobre o romantismo e sua relação com o nacionalismo ver Antônio
Cândido, Formação da Literatura Brasileira, São Paulo, Ed. USP, 1975.
20 RENATO ORTTZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 21

superioridade na construção da civilização brasileira. As con-


categoria através da qual se exprime uma necessidade social
siderações de Sílvio Romero sobre o português, de Euclides da
— a elaboração de uma identidade nacional. A mestiçagem,
Cunha sobre a origem bandeirante do nordestino, os escritos
moral e étnica, possibilita a “aclimatação” da civilização eu-
de Nina Rodrigues, refletem todos a ideologia da supremacia
ropéia nos trópicos. Esta idéia de aclimatação, que Couto de
racial do mundo branco. “Estamos condenados à civilização”,
Magalhães desenvolve em relação aos indígenas, e que é reto-
dirá Euclides da Cunha, o que pode ser traduzido pela análise
mada por nossos intelectuais, parece-me essencial. Afirmar
de Nina Rodrigues: 1) as raças superiores se diferenciam das
que a raça branca se aclimata nos trópicos significa considerar
inferiores; 2) no contato inter-racial e na concorrência social
a existência de um fator diferenciador que deve ser levado em
vence a raça superior; 3) a história se caracteriza por um aper-
conta. Ê do resultado dessa experiência aclimatadora que se
feiçoamento lento e gradual da atividade psíquica, moral e
pode caracterizar uma cultura brasileira distinta da européia.
intelectual. “ Associa-se, desta forma, a questão racial ao
A temática da mestiçagem é neste sentido real e simbólica;
quadro mais abrangente do progresso da humanidade. Dentro
concretamente se refere às condições sociais e históricas da
desta perspectiva, o negro e o índio se apresentam como en-
amálgama étnica que transcorre no Brasil, simbolicamente
traves ao processo civilizatório. Ê interessante notar que os
conota as aspirações nacionalistas que se ligam à construção
estudos de Nina Rodrigues sobre as culturas negras decorrem
de uma nação brasileira.
imediatamente de suas premissas racistas; se é verdade que
Colocada da maneira como a analisamos, tem-se que a
procura compreender o sincretismo religioso, é porque o con-
problemática da miscigenação se apresenta aos intelectuais do
sidera como forma religiosa inferior. A absorção incompleta
período como um dilema. Se por um lado é urgente a elabora-
de elementos católicos pelos cultos afro-brasileiros demons-
ção de uma cultura brasileira, por outro se observa que esta se
tra, para o autor, uma incapacidade de assimilação da popu-
revela como inconsciente. Vimos que a crença no determi-
lação negra dos elementos vitais da civilização européia. O
nismo provocado pelo meio ambiente desemboca numa pers-
sincretismo atestaria os diferentes graus de evolução moral e
pectiva pessimista em relação às possibilidades brasileiras; as
intelectual de duas raças desiguais colocadas em contacto.
considerações a partir das teorias raciais vigentes vão agravar
Surge assim um problema teórico fundamental para os “cien-
este quadro ainda mais. O mestiço, enquanto produto do cru-
tistas” do período: como tratar a identidade nacional diante
zamento entre raças desiguais, encerra, para os autores da
da disparidade racial. Do equacionamento deste problema
época, os defeitos e taras transmitidos pela herança biológica.
decorre a necessidade de se sublinhar o elemento mestiço. Na
A apatia, a imprevidência, o desequilíbrio moral e intelectual,
medida em que a civilização européia não pode ser transplan-
a inconsistência seriam dessa forma qualidades naturais do
tada integralmente para o solo brasileiro (vimos que o meio
elemento brasileiro. A mestiçagem simbólica traduz, assim, a
ambiente é diferente do europeu), na medida em que no BrasÜ
realidade inferiorizada do elemento mestiço concreto. Dentro
duas outras raças consideradas inferiores contribuem para a
desta perspectiva a miscigenação moral, intelectual e racial do
evolução da história brasileira, toma-se necessário encontrar
povo brasileiro só pode existir enquanto possibilidade. O ideal
um ponto de equilíbrio. Os intelectuais procuram justamente
nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro,
compreender e revelar este nexo que definiria nossa diferen-
ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasi-
ciação nacional. O mestiço é para os pensadores do século
leira. É na cadeia da evolução social que poderão ser elimi-
XIX mais do que uma realidade concreta, ele representa uma nados os estigmas das “raças inferiores”, o que politicamente
coloca a construção de um Estado nacional como meta e não
como realidade presente.
(11) Ver Nina Rodrigues, op. cit.
(12) Ver Nina Rodrigues, L'Animisme Fétichiste de Nègres de Bahia,
Paris, 1890.
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 23
RENATO ORTIZ
Um primeiro ponto chama de imediato a atenção: a pro-
Uma interpretação dissidente blemática brasileira somente existe enquanto parte de um sis-
tema mais abrangente, o da América Latina. Manuel Bonfim
Ao estudar as idéias racistas que influenciaram a elite possui uma visão internacionalista que não encontra corres-
intelectual brasileira, Skidmore propõe uma periodização in- pondência nos outros autores brasileiros da época. Neste sen-
teressante do predomínio dessas idéias: 1888-1914. ” O pe- tido a questão nacional se reveste de uma especificidade polí-
ríodo demarcado corresponderia à hegemonia de um determi- tica mais geral, pois perguntar-se sobre o Brasil equivale a se
nado tipo de pensamento que definiria uma intelligentsia bra- indagar a respeito das relações entre América Latina e Eu-
sileira; ele constituiria o que Sartre denominou o Espírito da ropa. A compreensão do atraso latino-americano se liga assim
Época. 1888 é a data da Abolição da escravatura, mas repre- ao esclarecimento das relações entre nações hegemônicas e na-
senta também, particularmente para nós neste ensaio, o mo- ções dependenteS;. Para explicar esta posição peculiar à Amé-
mento de publicação da obra mestra de Sílvio Romero, Histó- rica Latina, Manuel Bonfim recotre às teorias de Comte, mas
ria da Literatura Brasileira. 1914 simboliza o início da Pri- retém em particular sua comparação entre a sociedade e os
meira Guerra Mundial, isto é. a emergência de um espírito organismos biológicos. Seu instrumental teórico pode ser re-
nacionalista que procura se desvencilhar das teorias raciais e sumido através dos seguintes pontos: 1) as sociedades existem
ambientais características do início da República Velha. É como organismos similares aos biológicos; 2) existem leis or-
importante sublinhar a unicidade de um determinado tipo de gânicas que determinam a evolução; 3) a análise da naciona-
pensamento que prevalece junto aos intelectuais brasileiros. lidade depende do meio em ação combinada com seu pas-
Nina Rodrigues escreve em fins dos anos 90 e início do século, sado.’^ É necessário observar que o evolucionismo de Manuel
Euclides da Cunha publica Os Sertões em 1903. Entretanto, Bonfim se refere menos às etapas das sociedades do que uma
neste mesmo ano, Manuel Bonfim escreve em Paris América filiação a Comte, que enfatiza o estudo do social enquanto
Latina: Males de Origem. '■* O livro retoma as mesmas preocu- organismo biológico. As leis da evolução cedem, assim, lugar
pações dos autores estudados, a questão nacional, mas o re- às leis biológicas, isto é, desloca-se o enfoque evolucionista no
trato do Brasil obtido contrasta vivamente com o anterior. sentido da proposta de Comte que desenvolve a analogia entre
Consideremos as idéias mestras que orientam o estudo de Ma- a sociedade e os organismos vivos. Este aspecto de Comte é
nuel Bonfim, elas nos permitirão colocar algumas questões ignorado pelos outros autores brasileiros. Manuel Bonfim se
singulares a respeito da história da cultura brasileira. aproxima de alguns autores como Durkheim, para quem o
Manuel Bonfim se insere no interior dos grandes marcos biológico é modelo de compreensão dos fatos sociais. Da
que delimitam as fronteiras do pensamento da época — Com- analogia entre biologia e sociedade chega-se à noção de doen-
te, Darwin, Spencer. No entanto, sua interpretação desses au- ça, conceito-chave para o entendimento do atraso latino-ame-
tores é sui generis e se opõe às combinações brasileiras que ricano. Retomando os argumentos biológicos, Manuel Bon-
absorvem o evolucionismo aos parâmetros da raça e do meio. fim define a doença como uma inadaptação do organismo a
Na verdade, Manuel Bonfim se aproxima algumas vezes do certas condições especiais. Desde que as condições presentes
positivismo durkheimiano, cuja inspiração se encontra na teo- se revelem como favoráveis, a cura se daria através do conhe-
ria biológica do social desenvolvida por Augusto Comte. Veja-
mos como o autor procura diagnosticar os “males” da Amé-
rica Latina.
(15) Manuel Bonfim, op. cit.. p. 34.
(16) Os argumentos utilizados pelo autor lembram muitas vezes alguns
estudos de Durkheim, em particular sua "Divisão do Trabalho Social". No en-
tanto Manuel Bonfim não cita Durkheim em nenhum momento, o que toma
(13) T. Skidmore, Preto no Branco, Rio de Janeiro, Faze Terra, 1976. difícil identificar seu pensamento a uma possivd reavaliação durkheimiana de
(14) Manuel Bonfim, América Latina: Males de Origem, Rio de Janeiro, Comte.
Ed. A Noite.
24 RENATO ORT12

cimento da história da doença. O paralelo com as sociedades


subdesenvolvidas pode então ser realizado: “aparentemente
F CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL

cruciais determinam esta relação; o primeiro é relativo a um


25

não há nada que justifique o atraso em que se vêem, as difi-


período de expansão agressiva, o segundo a. uma fase de fixa-
culdades que têm encontrado no seu desenvolvimento. O meio
ção sedentária. O tempo de expansão caracteriza a fase depre-
é propício, e por isso mesmo, diante desta anomalia, o soció-
dadora do colonialismo, é o momento em que a metrópole
logo não pode deixar de voltar-se para o passado a fim de
pilha as colônias, seja através da exploração do ouro, pedras
buscar as causas dos males presentes”.” Temos por um lado
preciosas, destruição das civilizações autóctones, etc. Neste
a necessidade de se conhecer o passado das nações latino-ame-
sentido, o escrito de Manuel Bonfim é um libelo contra a
ricanas, pois somente através do conhecimento da inadapta-
opressão das nações colonizadoras, Portugal e Espanha. A
ção do organismo-sociedade poderemos diagnosticar os pro-
metrópole “suga” as colônias e vive parasitariamente do tra-
blemas atuais. Por outro, tem-se que a problemática do meio
balho alheio; a introdução do trabalho escravo vai consolidar
encontra-se descartada, uma vez que se postula a existência
ainda mais este estado de parasitismo social. O período de fi-
de um meio ambiente propício à evolução social.
; xação sedentária corresponde à implantação de um regime de
A analogia entre biológico e social leva Manuel Bonfim a
! dominação no qual a nação colonizadora se define como pólo
construir uma curiosa teoria do imperialismo baseada em ter-
; de poder. Esta etapa se define sobretudo pela consolidação de
mos de parasitismo social. Podemos resumi-la na seguinte
um Estado forte e conservador que procura através da força e
forma: 1) o animal parasita possui uma fase depredadora,
da tradição manter o status quo. O resultado dessa situa-
momento em que ataca sua vítima; 2) durante o período para-
ção colonial é duplo: por ura lado tem-se que a metrópole
sitário, o parasita vive da seiva nutritiva elaborada pelo ani-
tende a se degenerar, a involuir,” por outro essa dimensão
mal parasitado; 3) partindo-se do princípio de que a “função
de degenerescência se transmite aos próprios colonizados. O
faz o órgão”, tem-se, em certo período longo de parasitismo,
retrato das nações latino-americanas pintado por Manuel
um atrofiamento dos órgãos do animal parasita. A conclusão
I Bonfim é cáustico: “lutas contínuas, trabalho escravo, Es-
natural desta comparação é que uma sociedade que vive para-
tado tirânico e espoliador — qual será o efeito de tudo isto
sitariamente das outras tende a degenerar, a involuir. Trans-
sobre o caráter das novas nacionalidades? Perversão do sen-
ferindo-se os resultados das experiências biológicas sobre o
! so moral, horror ao trabalho livre e à vida pacífica, ódio ao
parasitismo para o mundo social, pode-se então afirmar: “so-
I governo, desconfiança das autoridades, desenvolvimento dos
bre os grupos sociais humanos, os efeitos do parasitismo são
instintos agressivos”. “
os mesmos. Sempre que há uma classe ou uma agremiação
Analisar o Brasil dentro de uma visão do parasitismo so-
parasitando sobre o trabalho de outra, aquela — o parasita —
cial significa considerá-lo na sua inter-relação com a metró-
se enfraquece, decai, dégenera-se, extingue-se”Interpreta-
pole portuguesa. No entanto, na medida em que o colonizado
se desta forma a exploração social e econômica como capítulo
é educado pelo colonizador, tem-se que aquele procura imi-
de um parasitismo social; as leis biológicas se referem, por-
íá-lo. As mazelas do “animal” parasita se transmitem, assim,
tanto, mais a uma involuçâo da sociedade parasita do que
hereditariamente para o parasitado. Das qualidades transmi-
propriamente às etapas de progresso social da humanidade.
tidas que definiriam o caráter brasileiro, duas delas Manuel
Dentro desta inusitada teoria biológico-social tem-se que
Bonfim considera como as mais funestas: o conservantismo e
as relações entre colonizador e colonizado são apreendidas en-
a falta de espírito de observação. O conservantismo decorre da
quanto relações entre parasita e parasitado. Dois momentos
(19) M. Bonfim interpreta desta forma o atraso de Portugal e Espanha,
mas se esquece de que o progresso das demais nações européias se deve so-
(17) M. Bonfim, op. cit., p. 35. bretudo à expansão colonialista que sua análise biológica não consegue inte-
grar.
118) M. Bonfim, op, cit., p. 50.
(20) M. Bonfim, op. cit.. p. 176.
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 27
26 RENATO ORTIZ
os ingleses governem o Cabo, e os cafres cavem as minas; se-
posição do colonizador, que procura, custe o que custar, man- jam os anglo-saxões senhores e gozadores exclusivos da Aus-
ter a tradição que lhe assegura o poder. Explica-se dessa for- trália, e destruam-se os australianos como se fossem uma es-
ma 0 horror com que os brasileiros encaram todo projeto de pécie daninha...Tal é em síntese a teoria das raças inferio-
mudança social; o apego às tradições conservadoras traduz na res”.’' A passagem é clara, através dela pode-se perceber que
verdade uma dificuldade em se colocar diante do progresso os autores como Gobineau e Agassiz são substituídos por ou-
social. A crítica de Manuel Bonfim se dirige principalmente tros, como, por exemplo, Topinard, o que possibilita a M.
aos políticos e intelectuais, que ele considera como essencial- Bonfim fundamentar seu discurso contra uma pretensa desi-
mente conservadores. A falta de espírito de observação corres- gualdade das raças humanas.
ponderia a uma incapacidade de se analisar e compreender a
própria realidade brasileira. O abuso dos "chavões e aforis-
mos consagrados” (o bacharel), a imitação do estrangeiro se- A “cópia” da$ idéias estrangeiras
riam fatores que contribuiriam para o florescimento dessa
miopia nacional. As análises de Manuel Bonfim, quando comparadas ao
Paralelamente a essas qualidades negativas transmitidas pensamento dominante da intelligentsia brasileira, colocam
pelo colonizador, mas reelaboradas pelo colonizado, outras, um problema recorrente na história da cultura nacional: o da
de origem indígena e negra, se integram ao espírito brasileiro. absorção das idéias estrangeiras. Se levarmos em conta o tes-
Porém, contrariamente a Nina Rodrigues, Sílvio Romero ou temunho de diferentes críticos do pensamento brasileiro, nos
Euclides da Cunha, o autor considera a mistura racial como deparamos de imediato com a questão da “imitação”. Parece
"renovadora”, no sentido de que tenderia a reequilibrar os ter-se transformado em senso comum a tese do Brasil en-
elementos negativos herdados do colonizador. Não nos faça- quanto espaço imitativo. Os protagonistas da Semana de Arte
mos porém grandes ilusões. Dentro do pensamento positivista Moderna denunciaram ao infinito esse traço do "caráter bra-
da época, Manuel Bonfim toma partido pelo progresso, isto é, sileiro”, que Manuel Bonfim chamava de "falta de espírito de
pela civilização européia. O caráter "renovador” das culturas observação”, ou que Sílvio Romero combatia em seus estudos
negra e índia não possui, como o da cultura portuguesa, as literários. Particularmente durante o período estudado tem-se
qualidades que possibilitam orientar o progresso no sentido da a impressão, através dos próprios críticos, de que o Brasil se-
evolução da sociedade; entretanto tal afirmação se dá sem que ria um entreposto de produtos culturais provindos do exterior.
se faça apelo às teorias racistas vigentes. Pelo contrário, todo A última moda, em particular a parisiense, aportava no Rio
0 capítulo relativo ao cruzamento racial procura refutar tais de Janeiro para ser em princípio consumida sem maiores pro-
teorias que predominavam junto à elite intelectual brasileira. blemas. Se aceitássemos esse quadro explicativo para com-
Recusa-se dessa forma as qualidades de indolência, apatia, preender a penetração das idéias estrangeiras junto aos inte-
imprevidência atribuídas seja ao mestiço, seja aos negros ou lectuais brasileiros, como interpretar a diferença profunda
índios. Manuel Bonfim vai ainda mais longe ao denunciar entre autores como Manuel Bonfim e Nina Rodrigues? Ro-
essas teorias como ideologias que procuram legitimar uma si- berto Schwarz, em seu debate sobre as “idéias fora do lugar”,
tuação de exploração em detrimento das nações subdesenvol- afirmava que as idéias "viajam”; como entender no entanto
vidas. Dirá: "levada à prática a teoria (racista) deu o seguinte 0 fato de algumas idéias chegarem ao porto de destino e outras
resultado: vão os povos ‘superiores’ aos países onde existem
esses povos ‘inferiores’, organizam-lhes a vida conforme as
suas tradições — deles ‘superiores’ —, instituem-se em classes (21) M. Bonfim, op. cit., p. 308.
dirigentes e obrigam os inferiores a trabalhar para sustentá- (22) Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batatas, São Paulo Duas Ct-
uades, 1977.
los; e, se estes não o quiserem, então que os matem e eliminem
de qualquer forma, a fim de ficar a terra para os superiores:
28 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 29

não? Gostaria de retomar esta problemática constante da his- em que os intelectuais brasileiros escrevem. Entre meados e
tória brasileira e recolocá-la para nosso caso particular das fins do século a teoria raciológica sofre uma reviravolta com as
Ciências Sociais. Focalizaremos especificamente o quadro das críticas que vem recebendo da parte de diferentes antropólo-
teorias raciais elaboradas na Europa, e que predominam junto gos. Um artigo de Boas, escrito em 1899, retrata claramente o
à elite brasileira entre 1888-1914. impasse era que se encontram os estudos anatômicos e etno-
Ao se consultar as origens das teorias raciológicas, ob- lógicos das raças. “ Na França, Paul Topinard, discípulo de
serva-se que elas floresceram sobretudo em meados do século Broca, estabelece a distinção entre raça e “tipo”, e argumenta
XIX.“ Retzius, anatomista e antropólogo sueco, desenvolve no sentido da dificuldade de se falar em raças biológicas. Es-
uma técnica para medidas cranianas em 1842. Pierre Borca crevendo em 1892, coloca claramente a inconsciência de se
funda a primeira sociedade de Antropologia em Paris em assimilar a raça às nacionalidades: “The ethnographers would
1859, e se especializa em craniologia. Quatrefages é professor no longer have do busy themselves with anything but what is
de anatomia e etnologia no Museu de História Natural de Pa- the direct object of their studies, as the etymology of their
ris em 1855 — seu livro L 'Espèce Humaine è de 1877. O mo- name would have its peoples: the manner of their historical
mento científico é de fundação de uma antropologia profissio- formation; the languages they spoke; the socio-physiological
nal que se volta para os estudos anatômicos e craniológicos, characters they manifest; their manners and customs; their
procurando responder assim às indagações a respeito das dife- beliefs... Oneof the happiest resuits of this definition of terri-
renças entre os homens. A questão não era nova, pelo contrá- tory would be once an for all the elimination from anthropo-
rio, já se encontrava em Spencer, Darwin e outros autores; no logy of this question of nationality which is none of its busi-
entanto, o que caracteriza as análises raciológicas de então ness”.“ Os estudos de Denicker — Les Races de VEurope —
é uma multiplicação de experiências empíricas que aparente- vêm reforçar a crítica às antigas teorias raciais, uma vez que
mente legitimam o estatuto científico das teorias construídas. se considera o próprio conceito de raça como aplicável ao reino
Este processo de legitimação é fundamental, pois o espírito da zoologia mas não às sociedades humanas. É interessante
positivista que predomina requer a confirmação empírica dos observar que durante os anos 90 já se desenvolvem os traba-
argumentos enunciados teoricamente. Meados do século é lhos de Boas (que terão influência posterior em Gilberto Frey-
também o momento da vulgarização das idéias a respeito da re), onde a noção de raça cede lugar à noção de cultura. Por
evolução social e seu vínculo imediato cora as premissas ra- outro lado, neste mesmo período se dá a emergência da escola
ciais. Gobineau publica Essais sur les Inégalités des Races sociológica durkheimiana que terá influência decisiva no pen-
Humaines em 1853-1855, Agassiz publica seu Joumey in Bra- samento antropológico da época. L 'Année Sociologique é fun-
zil eml868. Esses dois autores terão uma influência direta dada em 1896 e os principais trabalhos de Durkheim datam
junto aos intelectuais brasileiros na medida era que assimilam dessa época. A concepção durkheimiana de sociedade como
as teorias da época ao problema da mestiçagem brasileira.^*' fato sui generis orienta o estudo do social para uma perspec-
Como viajantes ilustres — Gobineau era amigo íntimo do im- tiva radícalmente diferente da problemática das raças ou do
perador D. Pedro 11 — são considerados como ponto de refe- meio (por exemplo, Le Play).
rência de toda e qualquer discussão a respeito da situação ét- Uma primeira conclusão se impõe. No momento em que
nica. as teorias raciológicas entram em declínio na Europa, elas se
Existe porém uma defasagem entre o tempo de matu- apresentam como hegemônicas no Brasil. Torna-se, assim, di-
ração das teorias raciais (e suas vulgarizações) e o momento

(25) F. Boas, "Some Recent Criticism of Physrcal Antiiropology", in


(23) Ver Watter Scheidl, "The Concept of Race in Anthropology", ''Bce, Langage and Cultura, Nova Iorque, McMillan, 1948.
(24) Sobre a influência de Gobineau e Agassiz ver Skidmore, op. dt. (26) Paul Topinard, "On Race".
30 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 31

fícil sustentar a tese da “imitação”, da “cópia” da última forma de organização político-econômica, por outro possibi-
moda; existe na realidade uma defasagem entre o momento de litam o conhecimento nacional projetando para o futuro a
produção cultural e o momento de consumo. Por outro lado, construção de um Estado brasileiro. É interessante observar
tem-se que esse consumo é diferenciado, Manuel Bonfim se que a política imigratória, além de seu significado econômico,
volta para um autor como Topinard, a ponto de Skidmore se possui uma dimensão ideológica que é o branqueamento da
surpreender com seu conhecimento “atualizado” da literatura população brasileira. O fato de este branqueamento se dar em
antropológica, Sílvio Romero prefere Agassiz ou Broca. O pro- um futuro, próximo ou remoto, está em perfeita adequação
cesso de “importação” pressupõe portanto uma escolha da com a concepção de ura Estado brasileiro enquanto meta. Re-
parte daqueles que consomem os produtos culturais. A elite tomando Roberto Schwartz, eu diria que as idéias “estão no
intelectual brasileira, ao se orientar para a escolha de escri- seu devido lugar”, uma vez que sua importação resolve, no
tores como Gobineau, Agassiz, Broca, Quatrefages, na ver- nível intelectual, o dilema proposto.
dade não está passivamente consumindo teorias estrangeiras. Trabalhemos um pouco mais nosso argumento da esco-
Essas teorias são demandadas a partir das necessidades inter- lha. Por volta de 1905 Sílvio Romero retoma seu estudo sobre
nas brasileiras, a escolha se faz assim “naturalmente”. O di- a literatura brasileira, publicado em 1888, à luz de “novos”
lema dos intelectuais do final do século é o de construir uma conceitos da escola de Ciência Social francesa — Le Play. “
identidade nacional. Para tanto é necessário se reportar às Curiosamente toma-se como referência um autor que escreve
condições reais da existência do país. No prólogo à primeira Ouvriers Européens em 1855 e Lórganisation de la Famille
edição de sua História da Literatura Brasileira, Sílvio Ro- em 1871; não nos interessa porém retornarmos à questão da
mero pondera: “Todo homem que empunha uma pena no defasagem entre a produção e o consumo das idéias, o que
Brasil deve ter uma vista assentada para tais assuntos, se ele importa é analisar com maiores detalhes o que estamos cha-
não quer faltar a seus deveres, se não quer embair o povo”. ” mando de processo de escolha. Sílvio Romero se volta para Le
Que assuntos são esses que preocupam a elite intelectual bra- Play por uma razão bastante simples: tem-se com esta escola
sileira? A Abolição, o aproveitamento do escravo como prole- uma argumentação científica mais sofisticada da ação do meio
tário, a colonização estrangeira, a consolidação da República. geográfico sobre os homens. Comparada às interpretações de
Só é possível conceber um Estado nacional pensando-se os Buckle, a escola francesa é màís completa e convincente. No
problemas nacionais. No entanto, se a Abolição significa o entanto, ao se absorver os conceitos desta corrente, alguns
reconhecimento da falência de um determinado tipo de eco- problemas ressurgem. Le Play considera a questão racial den-
nomia, ela não coincide ainda com a implantação real do tra- tro de uma perspectiva histórica, o que o leva a falar de “raça
balho livre, ou sequer apaga a tradição escravocrata da so- histórica". Isto significa que a raça seria um produto histó-
ciedade brasileira. Por outro lado, a nação vive o problema da rico, e não propriamente biológico, decorrente dos diversos
imigração estrangeira, forma através da qual se procura re- fatores que teriam influenciado o homem ao longo de sua evo-
solver a questão da formação de uma economia capitalista. A lução. Para Sílvio Romero, aceitar um argumento desta natu-
questão da raça é a linguagem através da qual se- apreende a reza colocava um problema sério, pois a teoria praticamente
realidade social, ela reflete inclusive o impasse da construção contradizia a maioria dos diagnósticos a respeito da sociedade
de um Estado nacional que ainda não se consolidou. Nesse brasileira. É necessário, por isso, antes de se retomar os es-
sentido, as teorias “importadas” têm uma função legitiraa- tudos de Le Play, que se faça uma discussão sobre a diferença
dora e cognoscível da realidade. Por um lado elas justificam as entre “raça histórica” e “raça antropológica”. Para Sílvio Ro-
condições reais de uma República que se implanta como nóva mero, a “raça antropológica” seria aquela vinculada aos parâ-

(271 Sílvio Romero, op. cit., p. 22. (28) Sílvio Romero, op. cit., parte III.
RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 33
32

metros biológicos e que traria consigo as qualidades psicosso- dida em que existe uma memória africana que escolhe, entre
ciais das nacionalidades, Sílvio Romero não submete, porém, as santas católicas, aquela que possui um elemento analógico
o pensamento de Le Play a uma crítica fundamentada, na rea- à divindade africana: a chuva. Isto não significa, porém, que
lidade sequer procura refutar essas “novas" teorias france- o sistema africano de classificações se confunda com o sistema
católico; a memória coletiva africana conser\’a sua autonomia
sas, simplesmente coloca a questão em termos brasileiros. Na
mesmo que o elemento sincretizado provenha de uma fonte
medida em que o Brasil não possui uma raça unitária (postu-
exterior a ela. O processo de pensamento de nossos intelec-
lado aceito por todos), tem-se que o fator étnico é dominante,
tuais parece ser semelhante. Euclides da Cunha, por exemplo,
o que equivale a dizer que somente no futuro poderíamos ser abre uma das partes do capítulo "A Terra” citando Hegel a
uma “raça histórica”. respeito da influência do meio geográfico sobre o homem.
Se analisarmos com um pouco mais de atenção o exemplo Surge a pergunta: mas como harmonizar a teoria hegeliana a
apresentado, poderemos descobrir alguns encadeamentos ló- uma perspectiva da raça e do meio? Por que não se escolhe
gicos que presidem o pensamento do autor. Aceita-se primei- junto ao pensamento hegeliano a parte relativa à dialética?
ramente uma teoria “estrangeira” na medida em que ela pos- Poder-se-ia afirmar que Euclides da Cunha “leu mal” Hegel,
sui algo em comum com outras teorias já utilizadas — no ignorando os elementos substanciais de sua doutrina; eu pre-
caso, a problemática do meio ambiente. No entanto, parte feriria dizer que a leitura foi a mais conveniente possível. Na
dessa teoria é ignorada, uma vez que entra em contradição verdade, o que se fez foi selecionar em Hegel um elemento
com problemas que lhe são externos — a questão racial brasi- que já havia sido determinado a priori pelo sistema de preocu-
leira. O que faz Sílvio Romero? Escolhe um elemento do pen- pações de Euclides da Cunha. Hegel aparece simplesmente
samento de Le Play para utilizá-lo como ilustração, isto é, como ilustração da tese da influência do meio geográfico sobre
agenciando-o segundo suas preocupações brasileiras. Compa- os homens, ele seria um pouco o que Santa Bárbara é para os
rado ao estudo da sociedade brasileira escrito em 1888, o de candomblés afro-brasileiros. Pode-se então dizer que a lógica
1905 nada acrescenta de novo, uma vez que o núcleo de preo- que preside o pensamento de nossos intelectuais se decompõe
cupações do autor permanece o mesmo; ele serve no entanto em dois momentos: 1) escolhe-se entre os diferentes objetos a
como repetição renovada de um objetivo já alcançado. serem sincretizados, isto é, as teorias disponíveis, algumas
O pensamento dos precursores das Ciências Sociais no dentre elas; 2) no interior dessas teorias seleciona-se os ele-
Brasil parecer ser neste ponto muito semelhante ao fenômeno mentos considerados pertinentes pelo sistema-partida, no caso
do sincretismo religioso.’’ Retomando uma definição de Bas- a problemática do nacional. O que é a memória coletiva para
tide a respeito do sincretismo, eu havia trabalhado a lógica os africanos seria, para nós, a própria ideologia produzida
sincrética no interior dos cultos afro-brasileiros. “ Basica- pelos intelectuais. Neste ponto uma diferença se impõe em re-
mente tinha chegado à seguinte conclusão: o sincretismo se dá lação ao sincretismo religioso. A memória coletiva africana se
quando existe um sistema-partida (memória coletiva) que co- aproxima mais do mito, uma vez que tende a permanecer
manda a escolha e depois ordena, dentro de seu quadro, o ob- idêntica a si mesma. Nos cultos afro-brasileiros procura-sê
jeto escolhido. Um exemplo. Santa Bárbara é lansã na me- reatualizar uma memória que existiria em princípio destes
tempos imemoriais. O presente é uma rememorizaçâo do pas-
(29) Guerreiro Ramos, ao se referir aos intelectuais brasileiros, fala em sado. O pensamento científico de nossos autores está mais
sincretismo das teorias estrangeiras. No entanto, para o autor a idéia de sincre- proximo da ideologia. Ele é fabricado a partir de motivações
tismo é sinônimo de mistura. Ver "Nota para üm Estudo Critico da Sociolo- reais vividas no presente, possuindo ainda a possibilidade de
gia", in IntroduçSo Critica à Sociologia no Brasil, Rio de Janeiro, Ed. Andes,
1957. se projetar para o futuro. Mito e ideologia se apresentariam
(30) R. Bastida, "Mémoire Collective et Sociologia du Bricolage", aqui como duas tendências contrapostas do conhecimento, a
L'Année Sociologigue, vol. 21, 1970; R. Ortiz, A Consciência Fragmantada, segunda se associando aos grupos dominantes que teriam em
Rioae Janeiro, Paz e Terra, 1980.
34 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 35

princípio um projeto, ou a consciência do dilema da constru- como a “Propaganda Nativista”, fundada em 1919, poderá
ção nacional. incluir em seu programa a adoção do princípio da igualdade
Roberto Schwaríz, ao estudar a obra de Machado de As- das raças. A virada do século é ainda um momento de inde-
sis, se refere à dualidade dos escritores brasileiros do pe- cisão, o que faz com que os intelectuais das classes dominan-
ríodo. Existiria, por assim dizer, uma defasagem entre o dis- tes reproduzam, em níveis diferenciados, uma exigência histó-
curso ideológico da classe dirigente e a própria realidade so- rica que transparece claramente no interior do discurso ideo-
cial. Este hiato entre as idéias e a sociedade decorreria, no lógico elaborado.
entanto, de uma necessidade conjuntural e se imporia aos in-
telectuais como uma objetividade histórica. Vamos reencon-
trar essa mesma dualidade na esfera das teorias científicas
consideradas. O que se propõem os intelectuais do período é a
construção de uma identidade de um Estado que ainda não é.
As modificações realizadas na esfera sócio-econômica (fim de
uma economia escravagista, emergência de uma classe média)
ainda não tinham se consolidado no interior de uma nova or-
dem social. Vivia-se um momento de transição, e neSte sen-
tido as teorizações sobre a realidade brasileira refletiam neces-
sariamente 0 impasse vivenciado. Guerreiro Ramos tem razão
ao afirmar que os republicanos de 1870 e os positivistas esta-
vam “impedidos” de compreender a realidade brasileira; é
necessário, porém, estender o argumento a autores como Síl-
vio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Na ver-
dade, as Ciências Sociais da época reproduzem, no nível do
discurso, as contradições reais da sociedade como um todo. A
inferioridade racial explica o porquê do atraso brasileiro, mas
a noção de mestiçagem aponta para a formação de uma pos-
sível unidade nacional. Neste sentido as teorias elaboradas são
mais “adequadas” que as de Manuel Bonfim; o Estado a que
se refere este último será consolidado somente com a revolu-
ção de 30. Talvez isto explique em parte o insucesso de um
autor que na virada do século já se contrapunha à ideologia
dominante das interpretações racistas. Era necessário espe-
rar, porém, pelos anos que representam uma evolução deci-
siva da economia e da sociedade brasileiras e que correspon-
dem a um momento de despertar nacionalista. A partir da
Segunda Guerra Mundial se multiplicam os esforços para
construção de uma consciência nacional, e uma sociedade

(31) R. Schwarz, "Complexo, Moderno, Nacional e Negativo", Encon-


tro de Grupo de Sociologia da Cultura, São Paulo, USP, 1981.
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 37

fluência é tal que um autor como Oliveira Viana pode, em


plena década de 20, desenvolver um pensamento fundamen-
tado nas premissas racistas da virada do século.^ Fica porém
uma pergunta: qual a razão de uma mudança tão radical, que
transubstancia o elemento mestiço, produto do cruzamento
com uma raça considerada inferior, em categoria que apreen-
de a própria identidade nacional? Creio que se considerarmos
as relações entre cultura e Estado a questão pode ser melhor
esclarecida.
Parece não haver dúvidas de que a ideologia de ura Bra-
sil-cadinho começa a se forjar no final do século XIX. Procu-
ramos mostrar como a categoria de mestiço é, para autores
Da raça à cultura: como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues,
uma linguagem que exprime a realidade social deste momento
a mestiçagem e o nacional histórico, e que ela corresponde, no nível simbólico, a uma
busca da identidade. O movimento romântico tentou cons-
truir um modelo de Ser nacional; no entanto, faltaram-lhe
1 condições sociais que lhe possibilitassem discutir de forma
, Florestan Fernandes, ao tratar da questão racial no Bra- mais abrangente a problemática proposta. Por exemplo, o
sil, afirmava que o brasileiro tem o preconceito de não ter Guarani, que é um romance que tenta desvendar os funda-
preconceito.' Com esta boutade ele sintetizava toda uma si- mentos da brasüidade, é um livro restritivo. Ao se ocupar da
tuação na qual as relações raciais são obscurecidas pela ideo- fusão do índio (idealizado) com o branco, ele deixa de lado o
logia da democracia racial. São vários os autores que têm negro, naquele momento identificado somente à força de tra-
insistido sobre o aspecto da questão racial, mas se é verdade balho, mas até então destituído de qualquer realidade de cida-
que hoje existe uma ideologia da miscigenação democrática, é dania. Por outro lado, o modelo que se utiliza para pensar a
interessante observar que ela é um produto recente na história sociedade brasileira é o da Idade Média. Nisso o nosso roman-
brasileira. Houve um tempo em que tínhamos preconceito tismo se diferencia pouco do romantismo europeu, que se vol-
loüt court. Até a Abolição, o negro não existia enquanto ci- ta para 0 passado glorioso para entender o presente. Não foi
dadão, sua ausência no plano literário é tal que um autor por acaso que os estudos do folclore se fazem na direção
pouco progressista como Sílvio Romero chega inclusive a de- oposta ao que se denominou na época os exageros do roman-
nunciar esse descaso, que tinha conseqüências nefastas para tismo. No entanto, até mesmo nas análises do folclore, escri-
as Ciências Sociais. Os primeiros estudos sobre o negro so- tas na década de 70, o elemento negro se encontra ausente. Ê
mente se iniciarão com Nina Rodrigues, já na última década interessante observar que os estudos de Sílvio Romero sobre a
do século, mas sob a inspiração das teorias raciológicas que poesia popular trazem, em 1880, uma novidade em relação
vimos no capítulo anterior. Muito embora essas teorias sejam aos de Celso Magalhães, que são de 1873. O que Sílvio Ro-
questionadas a partir da Primeira Guerra Mundial, sua in- mero critica neste autor é justamente a ausência da categoria
do mestiço, o que o impossibilita de pensar o Brasil como um

(11 Florestan Fernandes, O Negro no Mundo dos Brancos, São Paulo


DIFEL, 1972. (2) Oliveira Viana, Evolução do Povo Brasileiro, São Paulo, Ciar Ed..
Nacional, 1938.
38 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 39

todo. ’ A escravidão colocava limites epistemológicos para o interpretar a realidade, mas não modificá-la. Em jargão an-
desenvolvimento pleno da atividade intelectual. Somente com tropológico eu diria que o mito das_três_ raças nâo consegue
o movimento abolicionista e as transformações profundas pôr ainda se ritualizar, pois as condições materiais pa.ra a sua exis-
que passa a sociedade é que o negro é integrado às preocupa- tência são_puramente_simbóiicas. Ele é linguagem e não cèle-
ções nacionais. Pela primeira vez pode-se afirmar, o que hoje braçào.
se constitui num truísmo, que o Brasil é o produto da mesti- Quando se lê um livro como O Cortiço, publicado em
çagem de três raças: a branca, a negra e a índia. 1880 pode-se perceber as dificuldades que rondam os intelec-
Ê, portanto, na virada do século que se engendra uma tuâisna interpretação de uma sociedade como a nossa. O des-
“fábula das três raças”, como a considera Roberto da Matta.'’ tino que Aluísio de Azevedo reserva a um dos personagens
A idéia de fábula é sugestiva, mas talvez fosse mais preciso centrais da trama literária, Jerônimo, é exemplar. Jerônimo,
falarmos em mito das três raças. O conceito de mito sugere imigrante português, chega ao Brasil cora todos os atributos
um ponto de origem, um centro a partir do qual se irradia a conferidos à raça branca: força, persistência, previdência,
história mítica. A ideologia do Brasil-cadinho relata a epopéia gosto pelo trabalho, espírito de cálculo. Sua aspiração básica:
das três raças que se fundem nos laboratórios das selvas tropi- subir na vida. Porém, ao se amasiar com uma mulata (Rita
cais. Como nas sociedades primitivas, ela é um mito cosmoló- Baiana), ao se “aclimatar” ao país (troca a guitarra pelo vio-
gico, e conta a origem do moderno Estado brasileiro, ponto de lão baiano, 0 fado pelo samba), ele se abrasileira, isto é, toma-
partida de toda uma cosmogonia que antecede a própria rea- se dengoso, preguiçoso, amigo das extravagâncias, sem espí-
lidade. Sabemos em Antropologia que os mitos tendem a se rito de luta, de economia e de ordem. No início do romance
apresentar como eternos, imutáveis, o que de uma certa forma Jerônimo ocupa a mesma posição social que João Româo, ou-
se adequa ao tipo de sociedade em que são produzidos. Torna- tro português que participa também das qualidades étnicas da
se, assim, difícil apreender o momento em que são realmente raça branca. É bem verdade que Aluísio de Azevedo apresenta
elaborados. O antropólogo clássico opera sempre a posteriori João Romão com grande desprezo; ele não se deixa seduzir
e tem poucos elementos para fixar a origem histórica dos uni- pelo caráter alegre e sensual do mulato brasileiro. No entanto
versos simbólicos. Numa sociedade como a nossa, o problema 0 desfecho do romance é parabólico. João Romão, calculista e
se coloca de maneira diferente; pode-se datar o momento da ambicioso, ascende socialmente no momento em que se dis-
emergência da história mítica, e não é difícil constatar que tancia da raça negra (ele se desvencilha da negra Bertoleza,
essa fábula é engendrada no momento em que a sociedade com quem viveu grande parte de sua vida); Jerônimo, ao se
brasileira sofre transformações profundas, passando de uma abrasileirar, não consegue vencer a barreira de classe, e per-
economia escravista para outra de tipo capitalista, de uma manece "mulato”, junto à população mestiça do cortiço. Em
organização monárquica para republicana, e que se busca, linguagem sociológica, Simmel diria que as qualidades atri-
por exemplo, resolver o problema da mão-de-obra incenti- buídas à raça branca são aquelas que determinam a raciona-
vando-se a imigração européia. Se o mito da mestiçagem é lidade do espírito capitalista. Ao se retirar do mestiço as qua-
ambíguo é porque existem dificuldades concretas que impe- lidades da racionalidade, os intelectuais do século XIX estão
dem sua plena realização. A sociedade brasileira passa por negando, naquele momento histórico, as possibilidades de
um período de transição, o que significa que as teorias racio- desenvolvimento real do capitalismo no Brasil. Ou melhor,
lógicas, quando aplicadas ao Brasil, permitem aos intelectuais eles têm dúvidas em relação a esse desenvolvimento, pois a
identidade forjada é ambígua, reunindo pontos positivos e
negativos das raças que se cruzam.
(3) Ver Sílvio Romero, Estudos de Poesia Popular no Brasil, Peirópolis, A partir das primeiras décadas do século XX, o Brasil
Vozes, 1980. sofre mudanças profundas. O processo de urbanização e de
(4) Roberto da Mata, Pelativizando, Petrópolis, Vozes, 1981.
industrialização se acelera, uma classe média se desenvolve,
40 RENATO ORTÍZ

surge um proletariado urbano. Se o modernismo é conside-


rado por muitos como um ponto de referência, é porque este
movimento cultural trouxe consigo uma consciência histórica
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL

ganização que segue os moldes dos antigos Institutos Histó-


ricos e Geográficos. Não há ruptura entre Sílvio Romero e Gil-
berto Freyre, mas reinterpretação da mesma problemática
41

II
que até então se encontrava de maneira esparsa na sociedade. proposta pelos intelectuais do final do século. Arthur Ramos
Ao se cantar o/ox-rror, o cinema, o telégrafo, as asas do avião, dizia que para se ler Nina Rodrigues bastava trocar o conceito
o que se estava fazendo era de fato apontar para uma gama de de raça pelo de cultura. A afirmação pode talvez parecer sim-
transformações que ocorriam no seio da sociedade brasileira. plista, mas creio que encerra uma boa dose de veracidade.
Com a Revolução de 30 áS mudanças que vinham ocorrendo Gilberto Freyre reedita a temática racial, para constituí-la,
são orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar como se fazia no passado, em objeto privilegiado de estudo,
0 próprio desenvolvimento social. Dentro deste quadro, as em chave para a compreensão do Brasil. Porém, ele não vai
teorias raciológicas tornam-se obsoletas, era necessário su- mais considerá-la em termos raciais, como faziam Euclides da
perá-las, pois a realidade social impunha um outro tipo de Cunha ou Nina Rodrigues: na época em que escreyÇj as teorias
interpretação do Brasil. A meu ver, o trabalho de Gilberto antropológicas que desfrutam do estatuto científico são ou-
Freyre vem atender a esta “demanda social’’. tras, por isso ele se volta para o culturalismo de Boas. A pas-
Carlos Guilherme Mota, em seu livro Ideologia da Cub '■ sagem do conceito de raça para o de cultura elimina uma série
tura Brasileira, considera que os anos 30 foram decisivos na ' de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança
reorienlação da historiografia brasileira. Partindo de um tes- atávica do mestiço. Ela permite ainda um maior distancia-
temunho de Antônio Cândido, ele analisa três obras mestras mento entre o biológico e o social, o que possibilita uma aná-
desse período: Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Jr. lise mais rica da sociedade. Mas, a operação que Casa Grande
(1933), Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1933), e e Senzala realiza vai mais além. Gilberto Freyre transforma a
Rcízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1936). A negatividade do mestiço em positividade, o que permite com-
colocação, tal como está formulada, se tornou clássica. Eu me pletar definitivamente os contornos de uma identidade que há
pergunto, no entanto, se ao considerarmos desta forma não muito vinha sendo desenhada. Só que as condições sociais
estaríamos tomando o testemunho de um autor pela própria eram agora diferentes, a sociedade brasileira já não mais se
explicação histórica. A meu ver, Sérgio Buarque e Caio Prado encontrava num período de transição, os rumos do desenvol-
Jr. estão na origem de uma instituição recente da sociedade ' vimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar
brasileira, a universidade. Neste sentido eles são fundadores essas mudanças. O mito das três raças torna-se então plausí-
de uma nova linhagem, que busca no universo acadêmico uma vel e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiça-
compreensão distinta da realidade nacional. Não é por acaso gem, que estava aprisionada nas ambigüidades das teorias ra-
que a USP é fundada nos anos 30, ela corresponde à criação cistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se
de um espaço institucional onde se ensinam técnicas e regras tornar senso comum, ritüálmente celebrado nas relações do
específicas ao universo acadêmico. Gilberto Freyre representa < , cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol.
0 ápice de unia outra estirpe, que se inicia no século anterior, que era mestiço torna-se nacional.
m^s que, como veremos nos outros capítulos, se prolongou até Eu havia afirmado anteriormente que a obra de Gilberto
hoje como discurso ideológico. Sérgio Buarque e Caio Prado Fre yre atendia a uma “demanda social” determinada. Não
Jr. significam rupturas não tanto pela qualidade de pensa- quero com isto estabelecer uma ação mecânica entre o autor e
mento que produzem, mas sobretudo pelo espaço social que sua obra. Tenho clara para mim a observação de Sartre de
criam e que dá suporte às suas produções. Gilberto Freyre re- que se Paul Valéry é um burguês, nem todo burguês é Valéry.
presenta continuidade, permanência de uma tradição, e não é
por acaso que ele vai produzir seus escritos fora desta institui-
ção “moderna” que é a universidade, trabalhando numa or- (5) Ver Arthur Ramos, Le Métissage au BrésU, Paris, Hermann, 1K2.
42 RENATO ORTIZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 43

O problema que procuro tratar é outro. O que me interessa


discutir não é o trabalho de Gilberto Freyre como um todo, de Vargas, por exemplo na ação que se estabelece em direção
que é certamente multifacetado — por exemplo, sua aproxi- à música popular. Ê justamente nesse período que a música
mação antropológica da história, sua tentativa de analisar da malandragem é combatida em nome de uma ideologia que
historicamente a sexualidade, etc. É o tema da cultura brasi- oropõe erigir o trabalho como valor fundamental da sociedade
leira, da mestiçagem, que é relevante para a discussão. Neste brasileira.’ O que se assiste neste momento é na verdade uma
sentido cabe entendermos como a continuidade do pensa- transformação cultural profunda, pois se busca adequar as
mento tradicional se inscreve na descontinuidade dos anos 30. mentalidades às novas exigências de um Brasil “moderno".
Existe hoje um certo tabu em torno de Gilberto Freyre que Ao mulato de Aluísio de Azevedo se contrapõe a positividade
dificulta a apreciação de seus escritos. Frequentemente a ar- do mestiço, que diferentes setores sociais procuram orientar
gumentação se encerra num círculo vicioso. Ele é um autor para uma ação racional mais compatível com a organização
genial porque escreveu Casa Grande e Senzala, e vice-versa: social como um todo. Não tenho dúvidas de que esta ideologia
trata-se de um grande livro porque foi escrito por Gilberto do trabalho se encontra ausente do texto de Gilberto Freyre.
Freyre. Colocar a questão da continuidade do passado no mo- O que quero mostrar é que a operação Casa Grande e Senzala
mento de reorganização do Estado brasileiro é, na verdade, possibilita enfrentar a questão nacional em novos termos. Daí
procurar fora da obra as razões do sucesso do livro. Muito eu ter afirmado que o sucesso da obra se encontra também
embora existam contradições internas entre a estrutura da fora dela. Ao permitir ao brasileiro se pensar positivamente a
obra e 0 Estado centralizador (abordaremos este tema no ca- si próprio, tem-se que as oposições entre um pensador tradi-
pítulo sobre Estado autoritário e Cultura), o livro possui uma cional e um Estado novo não são imediatamente reconhecidas
qualidade fundamental, ele une a todos: casa-grande e sen-~ como tal, e são harmonizadas na unicidade da identidade
zala, sobrados e mucambos. Por isso ele é saudado por todas” nacional.
as correntes políticas, da direita à esquerda. O livro possibilita O mito das três raças, ao se difundir na sociedade, per-
a afirmação inequívoca de um povo que se debatia ainda com mite aos indivíduos, das diferentes classes sociais e dos diver-
as ambigüidades de sua própria definição. Ele se transforma sos grupos de cor, interpretar, dentro do padrão proposto, as
em unicidade nacional. Ao retrabalhar a problemática da cul- relações raciais que eles próprios vivenciam. Isto coloca um
tura brasileira, Gilberto Freyre oferece ao brasileiro uma car- problema interessante para os movimentos negros. Na medida
teira de identidade. À ambiguidade da identidade do Ser na- em que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as
cionál íorjada pelos intelectuais do século XIX não podia re- integra no discurso unívoco 3o’ nacional, tem-se que elas per-
sistir mais tempo. Ela havia se tomado incompatível com o dem sua especificidade. Tem-se insistido muito sobre a difi-
processo de desenvolvimento econômico e social do país. Basta culdade de se definir õque é o negro no Brasil. O impasse não
lembrarmos que nos anos 30 procura-se transformar radical- é a meu ver simplesmente teórico, ele reflete as ambigüidades
mente o conceito de homem brasileiro. Qualidades como da própria sociedade brasileira. A construção de uma identi-
“preguiça”, “indolência”, consideradas como inerentes àraça dade nacional mestiça deixa ainda mais difícil o discernimento
mestiça, são substituídas por uma ideologia do trabalho. Os entre as fronteiras de cor. Ao se promover o samba ao título de
cientistas políticos mostram, por exemplo, como esta ideolo- nacional, o que efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especi-
gia se constituiu na pedra de toque do Estado Novo. * O mes- ficidade de origem, que era ser uma música negra. Quando os
mo processo pode ser identificado na ação cultural do governo movimentos negros recuperam o soul para afirmar a sua negri-
tude, o que se está fazendo é uma importação de matéria sim-

(6j Ver Lúcia Lippi (coord.), Bite Intelectuale Debate Político nos Anos (7) Ver Ruben Oliven, Violência e Cultura no Brasil, Petrópolis, Vozes,
30, Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1980, e Claudia Matos, Acertei no MHhar: Samba e Malandragem no Tempo de
GetúHo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
44 RENATO ORTIZ

bólica que é ressignificada no contexto brasileiro. Ê betn ver-


dade que o soul não supera as contradições de classe ou entre
países centrais e periféricos, mas eu diria que de uma certa
forma ele “serve” melhor para exprimir a angústia e a opres-
são racial do que o samba, que se tornou nacional. O pro-
blema com que os movimentos negros se deparam é de como
retomar as diversas manifestações culturais de cor, que já vêm
muitas vezes marcadas com o signo da brasilidade. Uma vez
que os próprios negros também se definem como brasileiros,
tem-se que o processo de ressignificaçâo cultural fica proble-
mático. O mito das três raças é neste sentido exemplar, ele
não somente encobre os conflitos raciais como possibilita a
todos de se reconhecerem como nacionais. •

Alienação e cultura; o ISEB


Roland Corbisier costumava dizer que antes do movi-
mento modernista o que tínhamos no Brasil era simplesmente
pré-história. A afirmação, de inspiração hegeliana, mostra
como os intelectuais dos anos 50 estabeleciam sua filiação a
uma corrente de pensamento distinta daquela representada
por Sílvio Romero ou Gilberto Freyre. Os isebianos, ao cons-
truírem uma teoria do Brasil, retomam a temática da cultura
brasileira, mas vão imprimir novos rumos à discussão. Vimos
como 0 conceito de raça cede lugar ao de cultura, é necessário
agora compreendermos como nos anos 50 o conceito de cul-
tura é remodelado. Contrários a uma perspectiva antropoló-
gica, que toma o culturalismo americano como modelo de re-
ferência, os intelectuais do ISEB analisam a questão cultural
dentro de um quadro filosófico e sociológico. A crítica que
Guerreiro Ramos faz do estudo do negro realizado por autores
como Arthur Ramos revela uma posição epistemológica dife-
rente daquela proposta anteriormente. Categorias como
“aculturação” são pouco a pouco substituídas por outras
como “transplantação cultural”, “cultura alienada", etc. Se-
guindo os passos da sociologia e da filosofia alemãs, Manheim
e Hegel, por exemplo, os isebianos dirão que cultura significa
as objetivações do espírito humano. Mas eles insistirão sobre-
tudo no fato de que a cultura significa um vir a ser. Neste sen-
46 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 47

tido eles privilegiarão a história que está por ser feita, a ação bitscheck se caracteriza por uma internacionalização da eco-
social, e não os estudos históricos; por isso, temas como pro- nomia brasileira justamente no momento em que se procura
jeto social, intelectuais, se revestem para eles de uma dimensão “fabricar" um ideário nacionalista para se diagnosticar e agir
fundamental. Ao se conceber o domínio da cultura como ele- sobre os problemas nacionais. Por outro lado, o golpe de 64
mento de transformação sócio-econôraica, o ISEB se afasta do encerrou, definitiva e autoritariamente, as atividades deste
passado intelectual brasileiro e abre perspectivas para se pen- grupo de intelectuais.’ O que se propunha, portanto, como
sar a problemática da cultura brasileira em novos termos. ideologia reformista da classe dirigente que procurava moder-
A leitura dos isebianos nos traz um misto de sentimento nizar 0 país é estancado, e paradoxalmente no momento em
de atualidade e passado sem que muitas vezes saibamos nos que 0 capitalismo brasileiro irá tomar uma força até então
situar de maneira segura no tempo. Quando, nos artigos de nunca vista em nossa história. A crítica que Maria Sílvia Car-
jornais, nas discussões políticas ou acadêmicas, deparamos valho Franco faz a Álvaro Vieira Pinto sobre sua concepção da
com conceitos como “cultura alienada”, “colonialismo” ou alienação do trabalho é correta; “ ele certamente não percebe
“autenticidade cultural”, agimos com uma naturalidade es- que, ao erigir a nação, como categoria central de reflexão, en-
pantosa, esquecendo-nos de que eles foram forjados em um cobre as diferenças de classe e elabora uma ideologia que uni-
determinado momento histórico, e creio eu, produzido pela fica capitalista e trabalhadores. Porém, apesar da justeza da
intelligentsia do ISEB. Penso que não seria exagero considerar crítica, seria difícil argumentar que esta ideologia serviu de
0 ISEB como matriz de um tipo de pensamento que baliza a algum modo para que se desse uma hegemonia da classe diri-
discussão da questão cultural no Brasil dos anos 60 até hoje. gente no país. Para que isso pudesse ocorrer, seria necessário
O livro de Corbisier Formação e Problema da Cultura Bra- que os trabalhadores intemalizassem a ideologia produzida; a
sileira é, neste sentido, paradigmático, pois desenvolve filoso- própria história se encarregou de eliminar no entanto essa
ficamente uma argumentação que se tornou familiar nos meios possibilidade. O golpe de 64 erradicou qualquer pretensão de
do cinema, do teatro, da literatura e da música.' Apesar de oficialidade das teorias do ISEB, entretanto, curiosamente
alguns estudos recentes estabelecerem uma crítica profunda esta ideologia encontrou um caminho de popularização que
da ideologia dos intelectuais isebianos, o trabalho de Caio Na- ganhou pouco a pouco terreno junto aos setores progressistas
varro Toledo é pioneiro e abre uma perspectiva nova, perma- e de esquerda. A meu ver esta é a atualidade de ura pensa-
nece um descompasso entre a realidade e a crítica, uma vez mento datado, produzido por um grupo de intelectuais, mas
que os conceitos são articulados a nível político e a crítica é que se popularizou, isto é, tomou-se senso comum e se trans-
sobretudo de caráter filosófico,’ Eu diria que o que é atual no formou em "religiosidade popular” nas discussões sobre cul-
pensamento do ISEB é justamente que ele não se constitui em tura brasileira.
“fábrica de ideologia” do governo Kubitscheck. Se de fato o Na esfera cultural a influência do ISEB foi profunda. Ao
Estado desenvolvimentista procurou uma legitimação ideoló- me referir a este pensamento como matriz, o que procurava
gica junto a um determinado grupo de intelectuais, não é me- descrever é que toda uma série de conceitos políticos e filosó-
nos verdade que os avatares desta ideologia caminharam em ficos que são elaborados no final dos anos 50 se difundem pela
um sentido oposto ao do Estado brasileiro. O período Ku- sociedade e passara a constituir categorias de apreensão e
compreensão da realidade brasileira. No início dos anos 60
dois movimentos realizam, de maneira diferenciada, é claro,
(1) Roland Corbisier, Formação e Problema da Cultura Brasileira, Rio de
Janeiro, ISEB, 1958.
(2) Ver 0 excelente trabalho de Caio Navarro Toledo, ISEB: Fábrica de
Ideologias, São Paulo, Ática, 1977. Dentro da mesma linha, Maria Silvia Car- (3) Ver N. W. Sodré, A Verdade sobre o iseb, Rio de Janeiro, Avenir
valho Franco, “0 Tempo das Ilusões", zh Ideologia e Mobilização Popular, Rio Ed.,1978.
de Janeiro, PazeTerra, 1978. (4) M. S. Carvalho Franco, op. cit.
48 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 49

OS ideais políticos tratados teoricamente pelo ISEB. Refiro-me época. Na área cinematográfica dois documentos situam de
ao Movimento de Cultura Popular no Recife e ao CPC da maneira exemplar a influência isebiana: Uma Situação Colo-
UNE. Se tomarmos, a título de referência, dois intelectuais nial de Paulo Emílio Salles Gomes, e Uma Estética da Fome,
proeminentes desses movimentos, Paulo Freire e Carlos Este- de Glauber Rocha.” O diagnóstico de Paulo Emílio sobre a
vam Martins, observamos que as relações com o ISEB sào alienação do cinema brasileiro marca toda uma série de análi-
substanciais. Carlos Estevam foi assistente de Ãlvaro Vieira ses sobre a problemática do cinema nacional. Ele ressurge,
Pinto e trabalhava no ISEB no momento em que assume a por exemplo, na proposta de realização de um cinema novo.
direção do CPC.^ As filiações do pensamento de Paulo Freire Pode-se dizer que até mesmo o debate sobre a bossa nova é
com o ISEB são conhecidas, Vanilda Paiva mostra muito bem marcado pela discussão da alienação ou não da importação do
como a filosofia existencialista, o conceito de cultura e de po- jazz pela música brasileira.’
pular orientam diretamente seu método de alfabetização.‘ Se aceitarmos as críticas que atualmente fazemos à ideo-
Não resta dúvida de que existem matizes entre as duas abor- logia do ISEB — e eu partilho integralmente desse ponto de
dagens, no entanto creio que se pode genericamente afirmar vista —, um aspecto resta a compreender. Como essa filosofia
que os dois movimentos se construíram em grande parte com pode se materializar enquanto tal, e mais ainda se populari-
base no conceito de alienação cultural. A teoria isebiana, ou zar a ponto de ser determinante em qualquer discussão sobre
pelo menos parte dela, penetra tanto as forças de esquerda a questão cultural?'" Se não respondermos corretamente a
marxista quanto o pensamento social católico. Um instru- esta pergunta, o que nos é imediatamente sugerido é que essa
mento teórico que era posse exclusiva de alguns intelectuais ideologia seria pura e simplesmente uma insensatez. Neste
da cultura brasileira se distribui socialmente, e gradativa- ponto eu me separo das análises de Caio Navarro Toledo e
mente é integrado nas peças teatrais {Auto dos 99%, por de Maria Sílvia Carvalho Franco. Não creio que os escritos
exemplo), na música (Trilhãozinho), e nas cartilhas escolares. do ISEB sejam um “coquetel filosófico”, “uma distorção do
Mas a influência isebiana ultrapassa o terreno da chamada idealismo”, “um arranjo indigenista” do marxismo, e muito
cultura popular, ela se insinua em duas áreas que são palco menos uma “leitura sem rigor” dos textos. Seria difícil, dentro
permanente de debate sobre a cultura brasileira: o teatro e o desta perspectiva, entender o porquê da hegemonia de um
cinema. E suficiente ler os textos de Guarnieri e de Boal sobre pensamento que se difunde praticamente em toda a esquerda
o teatro nacional para se perceber o quanto eles devem aos brasileira. Se o período Kubitscheck é um tempo de ilusões, é
conceitos de cultura alienada, de popular e de nacional. Fala- necessário descobrir a que realidade essas ilusões correspon-
se, assim, na necessidade de se implantar um “teatro nacio- diam.
nal” em contraposição a um “teatro alienado”, cujo modelo A comparação com Fanon, que me proponho desen-
seria o Teatro Brasileiro de Comédia; em algumas passagens, volver, vem no sentido de responder a essa indagação. Ê im-
figuras de expressão do ISEB, como Guerreiro Ramos, são
explicitamente citadas nos textos.’ Não se deve esquecer que
esses textos analíticos formaram a base de um pensamento (8) Ver P. E, Salles Gomes e Glauber Rocha em Arte em Revista, n? 1,
que informa toda uma dramaturgia que se desenvolve na 1979.
(9) Ver "Debate; Caminhos da MPB", Arte em Revista, n? 1.
(10) Caio Toledo observa que nos escritos de N. W. Sodré o conceito
de alienação raramente aparece. Na verdade, em seu estudo sobre as "Raizes
(5) Sobre o CPC, ver o cep. 3 deste livro e o trabalho de Manuel Ber- Históricas do Nacionalismo no Brasil” (ISEB, 1959), ele utiliza, ao discutir o
llnck, "Projeto para Cultura Brasileira nos Anos 60", UNICAMP, mimeo. prablema cultural, o conceito de transplantação. No entanto, em seu livro
(6) V. Paiva, Paulo Freire e o Nacionalismo Desenvoivimentista, Rio de
SínteM de uma História da Cultura Brasileira", Rio de Janeiro, Civilização
Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.
(7) ^ G. Guarnieri, "O Teatro como Expressão da Realidade Nacional", “^asilaira, 1970, a problemática da cultura alienada surge com toda sua expres-
A. Boal, "Tentativa de Análise de Desenvolvimento do Teatro Brasileiro", Arte w. O mesmo acontece com Oarcy Ribeiro, que ern Os Brasileiros, livro de
emfíevista, n?6,1980. j 0 pensamento isebiano no que diz respeito à alienação e à ques-
tão da consciência.
50 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 51

portante, porém, antes de iniciarmos nossa análise, dissipar- a questão do humanismo torna-se o eixo central das discus-
mos possíveis dúvidas que possam surgir. Não estou insi- sões que se realizam no final dos anos 40 junto à comunidade
nuando que exista uma filiação direta entre o pensamento de intelectual francesa. O célebre livro de Sartre L'Existentia-
Fanon e dos intelectuais do ISEB, algo como uma influência lisme est un Humanisme é somente um dos escritos que enfa-
de um sobre outro. Tudo indica que os trabalhos de Fanon são tizam a dimensão humana da libertação, e mostra que o de-
elaborados sem maiores conexões com os pensadores nacio- bate entre marxismo e existencialismo se realiza sob o signo
nalistas brasileiros. Mas é justamente essa independência de do humanismo.’’ O debate terá influências diretas em Fanon,
pensamentos que torna o problema mais interessante. A refe- que nâo hesitará em pensar a libertação nacional em termos
rência a um tipo de ideologia não brasileira introduz novos de humanização universal do próprio homem. As repercussões
elementos para a compreensão do discurso isebiano e nos per- são também nítidas nos pensadores do ISEB, e Álvaro Vieira
mite entender como a história penetra e estrutura o próprio Pinto não deixa de considerar o problema em seu livro Cons-
discurso político. Por outro lado, ela dá uma abrangência ciência e Realidade Nacional. ”
maior à discussão da problemática do nacional, pois não se O conceito de situação colonial foi praticamente elabo-
restringe à particularidade do quadro brasileiro. rado por Balandier, que em 1951 publica um primeiro artigo a
esse respeito nos Cahiers Internationaux de Sociologie. '* Sar-
tre, que muitas vezes é apresentado como um dos elaboradores
Aventuras e desventuras das idéias do conceito, publica Le Colonialisme est un Système, em data
bem posterior (1956), mas seu texto terá certamente influên-
O que chama a atenção nos escritos de Fanon e do ISEB é cias tanto em Fanon quanto nos isebianos.'’ A originalidade
que ambos se estruturam a partir dos mesmos conceitos fun- de Balandier consiste em apreender o colonialismo enquanto
damentais: 0 de alienação e o de situação colonial. As fontes fenômeno social total. Bom leitor de Mauss, ele procura se
originárias são também, nos dois casos, idênticas: Hegel, o afastar das visões particularistas dos antropólogos anglo-sa-
jovem Marx, Sartre e Balandier. A categoria de alienação, de xões (aqui talvez devêssemos sublinhar duas exceções, Glucks-
origem hegeliana, se reveste nos textos de uma acentuada in- man e Fortes), e tenta pela primeira vez compreender o con-
terpretação francesa do idealismo alemão. É que a obra de tato entre civilizações dentro de uma perspectiva globalizante
Hegel, traduzida e comentada por Hyppolite e Kojève nos que leve em consideração os diferentes níveis da realidade: so-
anos 40, difunde pouco a pouco uma compreensão do sistema cial, econômico, político, cultural e até mesmo psíquico. Neste
hegeliano calcada na problemática da alienação. A dialética do sentido, Balandier procura entender os aspectos da domina-
senhor e do escravo torna-se assim clássica nas discussões so- ção colonialista, seja a nível do imperialismo econômico seja
bre a dominação social, econômica e cultural. Paralelamente, em suas manifestações mais profundas que engendram a pró-
é neste período que é traduzido para o francês Manuscritos
de 44, onde Marx retoma o pensamento hegeliano sobre a alie-
nação para aplicá-lo à compreensão da luta de classes." Sua
análise profundamente humanista irá reforçar a interpretação 112) A polêmica entre Sartre e Lukãcsé conhecida de todos, no entanto
pode-se compreender o quanto a discussão sobre o humanismo era central
de Hegel proposta pelos exegetas franceses. Cabe lembrar que quando notamos que um autor menor, membro do PCF, escreve para refutar
Sartre um livro-resposta, L'Existentialisme n'est pas un Humanisme. J. Ka-
napa. Paris, 1947.
ri3) A. V. Pinto, Consciência e Realidade Nacional, Rio de Janeiro,
ISEB, 1960.
(11) Sobre a presença de Hegel na França consultar Mark Póster, Sxis-
(141 G. Balandier. "La Situation Coloniale: Aproche Théorique", Ca-
tentía! Marxism in Postwar France, Nova Jersey, Princeton, Univ, Press, 1977.
nters Internationaux de Sociologie. n? XI, 1951.
Ver ainda Kojève, Introductíon à le Lecture de Hegel, Paris, 1946, e J. Hyppo-
o Sartre, "Le Colonialisme est un Systôme”, Les Temps Modernas,
lite, Génèse et structure de la Phénomenologie de 1'Esprit de Hegel, Paris,
n. 123, março-abril de 1956.'
1946.
1

52 RENATO ORTIZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 53

pria personalidade do homem colonizado. Ele retoma assim ‘‘globalmente alienadas”, servirá de ponto de partida para o
os estudos de O. Mannoni, que descrevem o complexo de infe- ensaio de Corbisier sobre a cultura brasileira.
rioridade do africano, sua personalidade calcada no ressenti- No entanto, uma vez ressaltada a importância de sua
mento, e chega até mesmo a esboçar uma tipologia de reações contribuição, é necessário sublinhar que as preocupações de
subjetivas ao colonialismo, chamando a atenção, por exemplo, Balandier são distintas dos intelectuais e dos ensaístas polí-
para os movimentos messiânicos africanos com um tipo de ticos do mundo periférico. A conclusão de um outro artigo
reação à dominação colonial. Balandier irá mais longe em seu, que procura dar um balanço das análises sobre o com-
suas análises, e talvez seja o primeiro intelectual que associe o plexo colonial, revela o caráter pronunciadamente acadêmico
conceito de alienação ao de situação colonial. Muito embora de seus estudos, que estão mais preocupados em pensar como
esta questão não seja o cerne de sua abordagem, ele traz o a sociologia e a economia política podem retirar maiores ensi-
problema da “tomada da consciência” e o vincula diretamente namentos da observação científica dos efeitos da dominação
à dialética do senhor e do escravo. Procurando entender as colonial.*’ Sua polêmica com Malinowski, sua insistência em
revoltas malgaches e a revolução chinesa ele pergunta: como compreender a situação colonial enquanto “fenômeno social
os habitantes dessas regiões, que se comportavam passiva- total” mostram que seus interesses, embora possuam uma di-
mente em relação às organizações sócio-culturais tradicionais, mensão política, têm sobretudo um caráter acadêmico. Ás
foram capazes de se revoltar? Ao que responde: nesses casos análises de Sartre se revestem sem dúvida de uma outra colo-
"a consciência é apreendida numa situação social que se de- ração, Les Temps Mndernes é uma das poucas revistas de es-
senvolve acusando as relações de dominador a dominado, os querda que denunciam o colonialismo em todos os sentidos, e
antagonismos entre esses dois termos — ela conduz a uma não hesita em tomar partido contra o pensamento colonialista
tomada de consciência que aspira a uma transformação radical dominante na época até mesmo no interior dos partidos Co-
da situação, a um progresso. ís'to Hegel já exprimiu afirmando munista e Socialista franceses. Mas os interlocutores de Sartre
que a servidão do trabalhador é a fonte de todo progresso hu- são europeus, a quem ele procura mostrar por todos os meios
mano, social e histórico. Marx, em seguida, anunciou o papel a mistificação da moral colonialista. No prefácio ao livro de'
histórico do proletariado, papel que não depende somente da Memmi, Sartre faz uma bela análise do processo de desuma-
evolução das forças produtivas materiais e das relações de pro- nização do oprimido, mostrando que o colonizado é tratado
dução, mas ainda de uma tomada de consciência que permite como coisa pelo colonizador.” E conclui: “A impossível desu-
constituir o proletariado em classe. O que mostra a importân- manização do oprimido volta-se e transforma-se em alienação
cia a se dar à noção de consciência dependente”.'*’ Esta ênfase do opressor”; eu diria que é este o objeto privilegiado por Sar-
no aspecto da tomada de consciência está, por sinal, em per- tre em sua luta anticolonialista, a alienação do colonizador.’
feita consonância com os ensinamentos filosóficos de Sartrej'! 'Os intelectuais do mundo periférico falarão pelo “outro lado”,'
que em seu estudo sobre a questão judia vai trabalhar o pro- seja de uma forma reformista como o ISEB ou revolucionária
blema da autenticidade e da inautenticidade do homem ju- -como Fanon.
deu.” Balandier não se limita, porém, aos aspectos subjetivos Os conceitos de alienação e de situação colonial são reto-
da situação colonial, mas procura entèndê-la em sua totali- mados pelo ISEB e por Fanon dentro de uma perspectiva polí-
dade. Seu diagnóstico, de que as sociedades coloniais seriam

i. . G. Balandier. ''Sociologie de la Colonisation et Relations entre So-


(161 G. Balandier, "Contribution à une Sociologie de la Oépendance", ‘“8 Ulobales", Cahiers Internatíonaux de Sociologie, n? XVII, 1954.
Cahiers Internatíonaux de Sociologie, n° XII. 1952. . Sartre, "Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Coloni-
(171 VerSartre, fíefíexions surla Queitíon Juive, Paris, Gailimard. Este
Tom Albert Memmi, in Situações V, Rio de Janeiro,
livro è paradigmático para Fanon quando escreve Peau Noire Masques Blancs,
Stasileiro, 1968. O livro de Memmi foi traduzido para o português com
Paris, Seuil, 1952.
prefácio de R, Corbisier, Ed. Paz e Terra, 1967.
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 55
54 RENATO ORTIZ

tica que aponta para a superação da dominação colonialista. ciência crítica em relação a nós mesmos se explica pela alie-
É verdade que esta superação será concebida de maneira dife- nação, pois o conteúdo da colônia não é a própria colônia, mas
renciada, como procuraremos mostrar mais- adiante, mas o a metrópole... A tomada de consciência de um país por ele
qiiFé importante frisar no momento é que tanto o ISEB quan- próprio não ocorre arbitrariamente, mas é um fenômeno his-
to Fanon, ao operarem com os conceitos propostos, vão sub- tórico que implica e assinala a ruptura do complexo colo-
sumi-los à realidade objetiva que vivem enquanto atores so- nial”.“ A importância dada à temática da consciência é tal
ciais. A categoria de nação está ausente tanto em Sartre quan- que Álvaro Vieira Pinto chega a estruturar sua Consciência e
to em Balandier, ela é no entanto fundamental para os pensa- Realidade Nacional em dois volumes: o primeiro dedicado à
dores do mundo periférico. A superação colonialista só pode consciência ingênua, alienada, o segundo à consciência crí-
ser pensada quando associada aos movimentos nacionalistas tica, desalienada, e que aceleraria o processo de desalienação
concretos aos quais os teóricos políticos estão vinculados orga- nacional.
nicamente. Ê dentro deste quadro de pensamento que Corbi- O que permite no entanto que dois assuntos distintos, a
sier pode construir toda uma abordagem da cultura brasileira problemática racial e a nacional, possam ser tratados e com-
a partir da afirmação de Balandier de que a “alienação cons- preendidos através das mesmas categorias teóricas? Dito de
titui a essência do complexo colonial”. “ Fanon caminha na outra forma, o que existe de comum entre a temática da domi-
mesma direção, em seu livro Peau Noire Masques Blancs. nação racial e da dominação colonial? Creio que os movimen-
considera a problemática da alienação no que se refere à ques- tos negros como os movimentos nacionalistas têm uma neces-
tão racial. Neste momento de sua vida ele ainda não passou sidade premente de busca de identidade. Para além das cate-
pelo processo de engajamento político, o que só ocorrerá em gorias de colonizador/colonizado, branco/negro, opressor/
meados dos anos 50, quando passa a clinicar na Argélia e se oprimido, permanece a pergunta, "quem somos nós?” ou
integra à luta pela libertação nacional.’* Por isso a categoria “por que estamos assim?”. Fanon quando escreve se dirige
de nação se encontra ainda ausente deste seu texto. A situação aos negros e propõe uma leitura da realidade racial que os leve
colonial recebe, portanto, uma interpretação um tanto meta- a uma escolha entre uma situação autêntica ou inautêntica do
fórica, pois o que retém sua atenção é a dominação do negro homem negro. O mesmo tipo de inquietação orienta os inte-
pelo homem branco. O objetivo do livro é, porém, bastante lectuais do ISEB. Já em 1953 Guerreiro Ramos descobre dois
claro. Escrito na esteira de O que é a Literatura, de Sartre, traços fundamentais da sociologia brasileira: alienação e inau-
Fanon propõe levar ao leitor negro uma reflexão sobre sua tenticidade. Dentro desta perspectiva ele critica, por exemplo,
situação social. “ A leitura funcionaria como uma espécie de o livro de Paulo Prado, Retrato do Brasil, e a “mania” dos
espelho que revelaria ao negro sua imagem real, o que lhe brasileiros de utilizarem categorias pré-fabricadas fora do
permitiria se engajar em um processo de desalienação do seu país. A esta sociologia alienada, que ele denomina de con-
próprio Ser. O tema da “tomada de consciência", a que rapi- sular, opõe-se uma sociologia “autêntica”, “nacional”. Cân-
damente se referia Balandier, reaparece agora no interior do dido Mendes, ao definir as funções dos intelectuais e da uni-
discurso do dominado. No mesmo sentido dirão os intelectuais versidade, dirá que sua tarefa fundamental será a “procura da
do ISEB: “A falta de consciência nacional, a falta de cons- autenticidade”. “ Criticando os artistas e intelectuais africa-
nos que se voltam para o passado na busca de uma identidade

(20) Corbisier, op. cit. (23) Corbisier, op. cit., pp. 40 e82.
(21) Sobre Fanon, ver minha introdução a seus escritos. Atica, Coleção (24) Guerreiro Ramos, Introdução Crítica é Sociologia Brasileira, op.
Grandes Cientistas Sociais (no prelo), e, ainda, Irene Gendzier, Franz Fanon,
Toronto, Pantheon Books, 1973, e ftenate Zahar, Franz Fanon: Colonialism neiro Mendes, Nacionalismo e Desenvolvimento. Rio de Ja-
and Alienation. Nova Iorque, Monthly Review Press, 1974.
(22) Fanon, PeauNoire..., op. cH.
56 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 57

nacional, escreve Fanon: “Este criador que decide descrever a tidade leva a uma indagação sobre o homem negro ou_ o ho-
verdade nacional se volta paradoxalmente para o passado, mem colonizado.
para o inatual. O que ele visa na sua intencionalidade pro- Não é por acaso que a lição de Hegel sobre o senhor e o
funda são os excrementos do pensamento, o que está fora, os escravo é recuperada por esses intelectuais do mundo perifé-
cadáveres, o saber definitivaraente estabilizado. Ora, o inte- rico, ela permite o diagnóstico de uma realidade colonialista
lectual que quer fazer obra autêntica deve saber que a verdade unificando os níveis subjetivo e objetivo que a constituem. O
nacional é primeiro a realidade nacional”. A ênfase na au- livro de Fanon sobre o racismo contém especificamente um
tenticidade revela a necessidade visceral de se construir uma capítulo sobre “O negro e o reconhecimento”, e um subcapí-
identidade que se contraponha ao pólo de dominação. A ques- tulo é dedicado a “O negro e Hegel”. Ele parte da noção de
tão nacional está intimamente ligada ao problema étnico, reconhecimento e procura mostrar como o negro para se cons-
como atestam os movimentos separatistas bascos, ou como no tituir como pessoa tem de passar pela referência ao homem
passado mostrou Otto Bauer a respeito das nacionalidades na branco. Como todo ser humano, o negro sente a necessidade
Áustria. Os intelectuais do mundo periférico têm uma preocu- de se ver reconhecido enquanto tal, mas este reconhecimento
pação constante com o sujeito colonizado, por isso encontra- torna-se impossível numa sociedade onde existem senhores
mos recorrentemente nos diversos autores o tema do “com- brancos e escravos negros. Fanon capta muito bem esta situa-
plexo” de inferioridade do colonizado em relação ao coloni- ção quando afirma que o negro não possui uma “resistência
zador, do negro em relação ao branco. A crítica de Fanon da ontológica" diante do olhar do branco, pois ele só consegue se
ideologia do embranqueciraento se insere dentro desta pers- enxergar enquanto escravo, reflexo do dominador. Neste sen-
pectiva de uma procura de uma identidade própria, desalie- tido, sua “essência” está alienada no Ser do senhor branco.
nada do contexto social no qual foi engendrada. A cultura Sua abordagem da situação colonial, embora mais politizada,
define portanto um espaço privilegiado onde se processa a to- pois é escrita no momento da guerra da Argélia, é também
mada de consciência dos indivíduos e se trava a luta política. marcada pela presença de Hegel. Ao descrever o mundo co-
Escreve Corbisier: “Em um contexto globalmente alienado, a lonial como maniqueísta, dualista, separado entre dois pólos
cultura está inevitavelmente condenada à inautenticidade. Se antagônicos que se excluem, o mundo dos dominadores e dos
uma cultura autêntica é a que se elabora a partir e em função dominados, ele retoma o texto hegeliano. Mas não se trata
da realidade própria, do ser do país, a colônia não pode pro- mais do Hegel filósofo, ou do comentário crítico dos exegetas,
duzir uma cultura autêntica por si mesma que não tem ser ou os princípios filosóficos perdem em abstração e se transfor-
destino próprio. A sua cultura só poderá ser um reflexo, um mam em categorias sócio-políticas para o entendimento de
subproduto da cultura metropolitana, e a inautenticidade que uma realidade concreta. Preso à esfera da alienação, o colo-
a caracteriza é uma conseqüência inevitável da sua aliena- nizado/escravo será visto pelo senhor enquanto “coisa”, o que
ção”. Da mesma forma considera Fanon que a libertação significa que o maniqueísmo do mundo colonial irá desuma-
nacional é o único quadro possível para a realização de uma nizá-lo, diminuí-lo como homem. Da mesma maneira que o
cultura autêntica e nacional. “ A autenticidade marca por- negro, submisso à dominação racial, o colonizado não conse-
tanto os diferentes níveis de manifestação da situação colo- gue se reconhecer como ser humano, ele se vê através do olhar
nial, ela é subjetiva, cultural e em última instância se realiza do colonizador. Fanon dirá que o dualismo colonial “anima-
no interior de um espaço nacional. Por isso a procura da iden- liza" o colonizado, que o colonizador se relaciona com o colo-
nizado através de uma linguagem “zoológica”, que o coloca
na situação de uma “coisa". Entre os intelectuais do ISEB,
(26) Fanon, Les Damnées de la Terre, Paris, Maspero, 1970, p. 156.
(27) Corbisier, op. cZf-, p. 78.
Corbisier é talvez quem melhor explora as implicações dos
(28) Fanon, verem particular o cap. IV, "Sobre a Cultura Nacional", in conceitos hegelianos. Comentando o conceito de situação co-
LesDamnès..., op. cit. lonial ele escreve: “O binômio senhor e escravo, que marca as
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 59
58 RENATO ORTIZ

relações entre colonizado e colonizador, nos parece caracteri- senhor e o mundo, o que lhe confere uma posição de dina-
zar 0 complexo colonial. O colonizador é sujeito, ao passo que mismo em contraposição à ociosidade estática do senhor. O
o colonizado é objeto. O primeiro é titular de direitos e privi- escravo é a negação libertadora, ele está do lado da superação,
légios, 0 segundo só tem obrigações e deveres, quanto aos di- da história. A identificação do senhor ao colonizador e do es-
reitos apenas aqueles que o senhor concede. O escravo não é cravo ao colonizado é ceríamente ideológica, mas permite aos
sujeito e não tem direitos, porque, como diria Hegel, não é pensadores periféricos se situarem do lado da História, e pos-
reconhecido pelo senhor, não é visto por ele como se fosse sibilita articulação de um discurso político que se insurge con-
também sujeito. O escravo não tem ser próprio, nada é em si tra a dominação colonialista. Ao tratarem a situação colo-
mesmo, pois o seu ser se fundamenta no ser do senhor, de cuja nial em termos de alienação, imediatamente eles podem con-
vontade é apenas o reflexo”.” Dentro desta perspectiva, o co- ceber a sua contrapartida, o processo de desalienação do
lonialismo impõe aos países colonizados uma dupla domina- mundo colonizado. Se, como dizem alguns isebianos, o Ser do
ção, ela é exploração econômica das matérias-primas e im- homem colonizado está alienado no Ser do Outro, é nècéssânõ
portação de produtos acabados, mas sobretudo dominação dar início a um movimento que restitua ao colonizado a sua
cultural. A analogia com a economia levará alguns autores a “essência”. Isto só pode ocorrer se o discurso extravasar do
afirmar que a importação do Cadillac, da Coca-Cola, do chi- terreno filosófico para o domínio político.
clete, do cinema implica o consumo (antropofágico?) do Ser O mesmo tipo de operação discursiva, a passagem da fi-
do Outro. Dito de outra forma, o colonizado importa a sua losofia para a política, se dá em relação à categoria de totali-
consciência, ele é o reflexo do reflexo. Este tipo de análise dade, pelo menos no que diz respeito aos isebianos. Ãlvaro
marca até hoje as discussões sobre cultura brasileira. Um Vieira Pinto, por exemplo, procura mostrar como a totalidade
exemplo da sua atualidade, e de seus equívocos, pode ser dado é um caráter distintivo do pensar crítico, e ele a opõe a um
na recente discussão sobre a penetração da música soul junto outro tipo de pensamento que para compreender a realidade
às comunidades negras. Para muitos críticos isto não seria tem necessidade de mutilá-la.’® A apreensão seria neste caso
nada mais do que uma nova absorção, pelos negros brasilei- somente parcial. De uma certa forma Vieira Pinto retoma a
ros, do imperialismo cultural americano. crítica que Balandier faz aos antropólogos anglo-saxões, e ab-
Eu havia dito anteriormente que os intelectuais do mundo sorve a perspectiva teórica proposta por Mauss e amplamente
periférico falavam de um lugar diferente daquele ocupado por divulgada por um sociólogo como Gurvitch, que tinha na épo-
Sartre e Balandier, e que por isso os conceitos, que já se apre- ca uma importância considerável junto à intelligentsia brasi-
sentavam nesses autores europeus, sofreram um movimento leira. No entanto, a categoria de totalidade se reveste logo a
de rotação e passaram a ser considerados a partir de uma po- seguir de um outro significado, e passa a se identificar sobre-
sição térceiro-mundista. Na verdade, a dialética do senhor e tudo com a nação. Criticando o pensamento causal, que com-
do escravo possibilita uma dupla operação, o diagnóstico da preende a realidade social a partir de pontos de vista par-
realidade e, por conseguinte, uma ação política que visa trans- ciais, Vieira Pinto reabilita o pensamento total, mas em se-
fo£má-la. Hegel, ao descrever as relações entre o senhor e guida falará de “país subdesenvolvido como totalidade” e da
b escravo, sublinha a necessidade de reconhecimento, mas^. nação como totalidade envolvente”. Esta passagem do plano
adianta, a relação corresponde a um momento da objetivaçâo metodológico para o diagnóstico concreto acãFrêtã certamente
do Espírito. Ela deve portanto ser superada, e o escravo cor- problemas teóricos, mas, como no caso da dialética do sénhor
responde ao pólo ativo da relação. É o escravo quem trans- e do escravo, permite uma leitura ideológica, portanto polí-
forma 0 mundo pelo seu trabalho, ele é a mediação entre o

Ver A. V, Pinto, cap. IV, "A Categoria de Totalidade", in Cons-


•^isncia efíeahdadeNacional, op. c/f., vol. II.
(29) Corbisier, op. cZt, pp. 29-30.
60 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 61

tica, da situação colonial. Não é difícil perceber que Vieira universal.” Dramaticamente ele escreve nas últimas linhas de
Pinto passa sem grandes sutilezas da abstração filosófica de seú libelo contra o colonialismo: “Camaradas, por nós mes-
“estar no mundo” para a materialidade do “viver em um mos, pela humanidade, é preciso criar uma pele nova, desen-
mundo colonizado”. Pode-se, desta forma, associar o conceito volvermos um pensamento novo, tentarmos edificar um ho-
de totalidade aos princípios da dialética hegeliana, pois o ho- mem novo”.’^
mem que vive numa nação subdesenvolvida só pode realizar o
seu Ser ao transformar esse mundo, e para os isebianos trans-
formação significa desenvolvimento.^' jRessurge neste ponto o As idéias e seus reflexos
tema do humanismo ao qual já nos havíamos referido ante-
riormente. O desenvolvimento é um humanismo porque res- Até o momento vínhamos buscando as convergências
titui à nação a sua essência e devolve ao homem colonizado entre o pensamento de Fanon com o .dos intelectuais do ISEB.
sua dimensão humana. Um novo homem surgirá das cinzas Devemos sublinhar agora as diferenças, e o que é mais impor-
do anterior, mas isto só se concretizará se o mundo colonizado tante, interpretar o porquê das discrepâncias, uma vez que as
superar a história do colonialismo, isto é, criar_ura Estado perspectivas teóricas são semelhantes. Como então, a partir
“verdadeiramente” nacional. Falando sobre'a luta argelina, das mesmas premissas, podem resultar respostas políticas tão
Kânbh se refere à “verdade” da nação e afirma: “A nação ar- distintas? Para equacionar este problema gostaria de comen-
gelina não está mais num céu futuro. Ela não é mais o produto tar uma passagem na qual Fanon descreve o dualismo da si-
da imaginação nebulosa ou dos fantasmas enrijecidos. Ela tuação colonial. “Nos paísesrapitalisías, entre o explorado e o
está no centro do novo homem argelino. Existe uma nova na- poder se interpõe uma variedade de professores de moral, de
tureza do homem argelino, uma nova dimensão de sua exis- conselheiros, de ‘desorientadores’. Nas regiões coloniais, pelo
tência”.’’ contrário, o policial e o soldado, pela sua presença imediata,
As convergências de pensamento entre Fanon e Vieira suas intervenções diretas e freqüentes, mantêm o contato com
Pinto sãóTnteressantes. Bons leitores de Hegel, ou de seus o colonizado e o aconselham a golpes de coronha e de napalm
comentadores, intérpretes dos movimentos políticos que vi- a não se mexer.”” Uma primeira conclusão que se pode tirar é
venciam, eles não se limitam a discutir a possibilidade de exis- sobre a violência nas sociedades coloniais, este será por sinal
tência de um “novo” homem brasileiro ou argelino. Pelo me- um dos eixos em torno dos quais gira o pensamento fano-
nos filosoficamente a superação do colonialismo implica não niano. Para Fanon, a violência é o fundamento do colonia-
somente o desaparecimento do senhor, mas abre perspectiva lismo. Ela se expressa no nível econômico, político, adminis-
para que uma nova humanidade se concretize. Interessa-lhes trativo, e até mesmo psíquico. Suas análises dos sonhos dos
assim descobrir o homem por trás do colonizador, este homem colonizados são interessantes, elas mostram, por exemplo,
que é simultaneamente ordenador e vítima de um sistema de como esses homens têm sonhos “musculares”, “agressivos”,
opressão. A superação remete portanto a um universal, à hu- que denotam no nível do inconsciente uma liberação da opres-
manidade. Torna-se, assim, comum dizer que a morte do co- são do cotidiano.’* Por isso se afirma que nas sociedade colo-
lonizador é também a morte do colonizado. Fanon leva esta nizadas existe uma “violência atmosférica” que paira no ar; é
perspectiva às últimas conseqüências e chega inclusive a pen- essa violência-resposta, que é proporcional à violência exer-
sar o Terceiro Mundo como matriz de libertação do homem cida pelo opressor, que leva à revolução. Mas é essencial per-

Pourta Révolutíon Africaine, Paris, Maspero, 1969.


(31) A. V. Pinto, Ideologia e Desenvolvimento Nacional, Rio de Ja- 34) Fanon, Les Damnés....op. cit., p. 233.
neiro, ISEB, 1959. (35) Fanon, idem, p. 8.
(32) Fanon, Sociologie d'une Révolutíon, Paris, Maspero, 1968, p. 12. (36) Fanon, Les Dainnés..., op. cit.
62 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 63

ceber que para Fanon (o que é discutível) ela é distinta da constante nas preocupações isebianas diz respeito às discus-
violência exercida pelo colonizador. Fanon retoma a interpre- sões sobre a ausência ou presença de um “povo” brasileiro.
tação da dialética do senhor e do escravo e entende que so- Cândido Mendes, ao definir a situação colonial, dirá: “Fun-
mente o escravo pode ser revolucionário e que isto se realiza damentalmente não se encontra na colônia lugar para as posi-
através da morte do senhor. Neste sentido a violência expri- ções intermediárias atenuando os contrastes entre os extre-
mida na guerra anticolonialista é libertadora e transcende a mos, no cimo e na base do edifício coletivo. Numa palavra:
condição do oprimido para se revelar como libertação dõ ho- faltam as classes médias para exercerem esse papel e permi-
mem em geral. tirem que, em tais coletividades, surja um verdadeiro povo”. ’®
Mas o que permite esta violência de se concretizar? A Entre a dialética do senhor e do escravo e o diagnóstico da
resposta se encontra no próprio dualismo colonial. Entre colo- realidade brasileira se insinua portanto a história. Para os ise-
nizador e colonizado não existe mediação possível, o confronto bianos a independência não continha ainda as condições que
é direto. A situação colonial não se define, portanto, pela luta se articulavam suficientemente entre si a ponto de se consti-
de classes, pois a classe dirigente não é aquela que detém a tuir um povo brasileiro. Alguns, como Corbisier, chegam a
propriedade, mas primeiramente aquela que vem de “fora”. dizer que até a Semana de Arte Moderna existia no Brasil uma
“Ê-se rico porque é-se branco, é-se branco porque é-se rico.” ’’ pré-história. Mas a partir da industrialização e da urbaniza-
Esta passagem condensa bem o pensamento de Fanon. Mas ' ' çâo brasileira, assim como da revolução de 30, o passo da his-
0 que se afirma, quando se diz que na colônia não existem tória caminha cada vez mais para a constituição de ura ele-
“professores de moral” e “desaconselhadores”, é que a situa- mento novo: 0 advento do povo no Brasil. No final dos anos 50
ção colonial se caracteriza pela ausência de uma sociedade escreve Guerreiro Ramos: “Hoje, porém, o povo começa a ser
civil. Gramsci certamente diria que ela não se define pela he- um ente político, maduro, porque portador de vontade e dis-
gemonia, mas pela força. A zona intermediária que existe nas cernimento próprios. Opovo está substituindo, desta maneira,
sociedades ocidentais, e que serve para amortecer os conflitos, aqueles grupos e classes no papel de principal ator do pro-
inexiste nas sociedades coloniais. Dentro deste quadro não há cesso político”.” Mas 0 que seria concretamente este povo
possibilidades para que a luta ideológica se institua, o embate brasileiro, como defini-lo e diferenciá-lo dos segmentos oligár-
é aberto e violento, e leva necessariamente à revolução. quicos que em princípio deteriam o controle político do país?
Nada mais distante do pensamento do ISEB do que uma A esta pergunta, que perpassa a obra dos mais diversos inte-
reflexão sobre a violência ou a revolução. Somente Glauber lectuais do ISEB, Nelson Werneck Sodré responde: são, as
Rocha recuperou no Brasil uma discussão do tema proposto partes da alta e da média burguesia, a pequena burguesia, o
por Fanon. E aqui, creio eu, podemos falar de influência di- campesinato, o proletariado, e o semiproletariado.* Esta
reta, pois 0 manifesto sobre uma “Estética da Fome" possui ■ enumeração exaustiva deixa poucos setores fora do que se en-
uma inspiração acentuadamente fanoniana. Mas o que Glau- f tende por nação brasileira, mas ela tem um significado pro-
ber propõe é simplesmente uma estética violenta, isto é, uma fundo que é justamente o de negar a afirmativa de Fanon e
violência simbólica que exprima no cinema a miserabilidãde f . 1 confirmar a existência de uma sociedade civil. Maria Sílvia
dos povos do Terceiro Mundo. Existe porém uma distância j /x ^rvalho Franco captou bem este aspecto do pensamento ise-
entre a violência como realidade e a violência como metáfora. y bianó quando dizia que seus intelectuais eram fundadores da
Mas por que os isebianos não retirara de Hegél as mesmas,
conclusões? Acredito que a resposta pode ser encontrada
(38) Cândido Mendes, op. cit., p. 15.
quando se aborda o argumento da sociedade civil. Um tema cj o Guerreiro Ramos, O Problema Nacional do Brasil, Rio de Janeiro,
Ed. Saga, 1960.
(40) N. w. Sodré, Quem é Povo no Brasil?, Rio de Janeiro, Cadernos
do Povo, Civilização Brasileira, 1962.
(37) Idem, p. 9,
64 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 65

sociedade civil brasileira. A ausência de um “povo” caracte- encontra situado no futuro, pelo contrário, a existência de
riza o passado brasileiro, no momento em que os intelectuais uma sociedade civil atesta que ela é uma realidade presente
do ISEB escrevem, afirma-se a existência de uma sociedade mas que não se encontra ainda plenamente desenvolvida. Ao
j?ivil que não possui ainda a devida expressão política. Ao se mito-utopia de Fanon eles contrapõem um programa de de-
colocarem como representantes legítimos do “povo”, o que senvolvimento. A utopia, como diz Bloch, transcende o real e
eles de fato estão procurando realizar é dar às classes médias 0 apreende como ponto futuro, de uma certa forma ela é sem-
um papel político que elas não possuíam até então. Neste sen- pre um "projeto” (no sentido sartreano) inacabado. O pro-
tido a proposta política só pode ser reformista, nunca revo- grama nos remete para o presente, para a ideologia. Não é por
lucionária. acaso que os isebianos se autodefinem como ideólogos, eles
O conceito de nacional será portanto inflexionado em di- estão presos à realidade históriça_brasileira. e só podem elabo-
reções diferentes. Para Fanon a nação não é somente uma rar uma ideologia que seja conforme à hegemonia da classe
realidade sociológica, o Estado argelino, mas sobretudo uma dirigente que quer modernizar o país. Roberto Campos; era
utopia. O projeto nacional revela uma nova ontologia do ho- um pequeno artigo sobre a cultura brasileira, bem anterior ao
mem, e por isso se situa simultaneamente no presente e no texto de Álvaro Vieira Pinto, já dizia que para o Brasil a opção
futuro. O presente é a luta anticolonialista que se abre para fundamental era a “opção pelo desenvolvimento”.^’ O que
um ponto incerto que faz do projeto revolucionário uma busca significa planificação, eficácia, racionalização, formação tec-
incessante, um movimento. O livro Os Condenados da Terra, nológica, maximização do ritmo de crescimento. A função dos
que foi escrito logo após a independência argelina, mostra cla- intelectuais seria diagnosticar os problemas da nação e apre-
ramente essa perspectiva no capítulo sobre “As Desventuras sentar um programa a ser desenvolvido. Não há utopia, a rea-
da Consciência Nacional". Insatisfeito com os rumos que co- lização do Ser nacional era uma questão de tempo, cabia à
meçam a tomar os movimentos nacionalistas africanos, Fanon burguesia progressista comandar esse processo.
■procura entender o porquê deste hiato entre o projeto de liber-
■fação nacional e uma realidade africana pontilhada por lutas

*
*
*
tribais e a emergência de uma burguesia local. Incapaz de
apreender corretamente esta nova situação, ele chega inclu- Nosso estudo comparativo nos permite retomar a proble-
sive a afirmar em suas críticas que “a vocação histórica de mática do capítulo "Memória Coletiva e Sincretismo Cientí-
uma burguesia nacional seria de se negar enquanto burguesia, fico: As Teorias Raciais do Século XIX”. a que Roberto
de se negar enquanto instrumento do capital para se tomar Schwarz se referia como as idéias e suas viagens. Temos agora
totalmente escrava do capital revolucionário que constitui o um quadro mais amplo que nos possibilita avançar algumas
povo”. O que é evidentemente um contra-senso. Porém, o conclusões sobre a questão nacional. O primeiro ponto que
que permite a Fanon este contra-senso é sua própria concep- chama a atenção é que os conceitos de situação colonial e de
ção de nação enquanto mito-utopia que realizaria integral- alienação são preparados e difundidos durante os anos 50
mente as potencialidades do gênero humano. Quando ele per- (evidentemente a origem hegeliana é anterior). Existe por-
cebe que a realidade não concretiza esse ideal, novamente se tanto uma correspondência entre a assimilação e produção
coloca em um ponto futuro que age como referência para a dessas idéias e o processo de descolonização que se realiza na
transformação social presente. Asia entre 1943 e 1951 e na África entre 1954 e 1963. No início
Os intelectuais do ISEB falam a partir de uma outra rea- dos anos 50, a França sofre uma grande derrota na batalha de
lidade política e social. A nação brasileira não é algo que se

(42) Roberto Campos, "Cultura e Desenvolvimento", in Introdução aos


Prob/emas do Brasil, Rio de Janeiro, ISEB, 1956,
(41) Fanon, LesDamnés..., p. 96.
66 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 67

Dien Bien Phu, e os franceses são expulsos do Vietnã. Em brasileira. O que para alguns era utopia revolucionária, torna-
abril de 1955 realiza-se a conferência afro-asiática de Ban- se para outros programa de modernização.
dung, que reúne pela primeira vez os países do chamado Ter- A análise de discurso permite compreender como deter-
ceiro Mundo. Dentro deste quadro internacional os conceitos minados grupos agenciam suas idéias e procuram apreender o
permitem aos povos do mundo periférico tomarem uma posi- mundo tendo como ponto de referência os conceitos centrais
ção ofensiva no interior de um world system que se estrutura a que elaboraram. No entanto é necessário perceber que todo
partir dos países centrais. Tanto Fanon como os isebianos en- discurso se estrutura a partir de uma posição determinada, as
frentam situações semelhantes e encarnam respostas em rela- pessoas falam sempre de algum lugar. Essas situações concre-
ção a este quadro de dominação internacional. A busca da tas que dão base material à linguagem não são exteriores ao
autenticidade, de uma consciência crítica e independente ates- discurso, mas se insinuam em seu interior e passam muitas
tam, como já tínhamos destacado, a necessidade de se elabo- vezes a estruturá-lo e constituí-lo. As mesmas falas, em situa-
rar uma identidade que se contraponha ao pólo dominador. A ções distintas, possuem significados diferentes. No caso do
teoria é, neste caso, uma linguagem que procura dar conta ISEB eu diria que a situação internacional e brasileira se
dessa realidade. transformou em muito, mas os conceitos permaneceram en-
No entanto, as idéias viajam para portos diferentes. A quanto senso comum. Por isso torna-se importante compreen-
situação argelina não é a mesma da sociedade brasileira. Po- der 0 momento em que eles foram engendrados e a que neces-
deríamos pensar que os intelectuais do ISEB, como Euclides sidades procuravam responder.
da Cunha, “leram” mal Hegel, mas sabemos que este tipo de
resposta é insuficiente. Não resta dúvida de que, ao se pensar
a questão nacional, tem-se que as diferenças de classe são sub-
sumidas a uma totalidade que as transcende. Esta é por sinal
uma discussão que já está bastante documentada, no que diz
respeito à II Internacional, nos debates entre Kautsky e Otto
Bauer, e que se prolongam até o advento da III Internacio-
nal.'*^ O que gostaria, porém, de sublinhar é que, da mesma
forma que os isebianos, Fanon não crê que a análise marxista
dê conta da situação colonial. Suas críticas ao marxismo, que
não exploramos neste trabalho, privilegiara claramente o na-
cional em detrimento da luta de classes. Sua perspectiva não
deixa, porém, de ser revolucionária a ponto de ele exaltar a
violência como poucos escritores o fizeram na literatura polí-
tica mundial. Isto significa que as idéias são equacionadas no
interior das histórias concretas dos povos. Eu diria que o re-
formismo do ISEB não se deve tanto a se pensar a questão
nacional em oposição à luta de classes, mas de pensá-la a par-
tir de uma determinada posição social no interior da história

(43) Ver Leopoldo Marmora (org.), La Internacional y e! Problema Na-


cional y Colonial, 2 vols., México, Cuadernos PyP, 1978; M. Rodinson, Sobre
la Cuestión Nacional, Barcelona, Anagrama, 1975; Badia/Galissot, Marxisme
etAlgérie, Paris, Ed. 10/18,1976.
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 69

recuperam, sob os auspícios do pensamento mannheimiano,


uma^wncepção leninísta de vanguarda. Isto permite ao CPC
desenvolver toda uma ideologia a respeito da vanguarda artís-
tica, e compreender o tema da tomada da consciência dentro
de uma ação politicamente orientada à esquerda.
É importante porém sublinhar que a análise da ideolo-
gia do CPC deve ser referida ao momento histórico a que cor-
responde. Dois pontos me parecem fundamentais no que diz
respeito a este período: 1) a efervescência política, que em
última instância permitiu o desenvolvimento do CPC como
Da cultura desalienada ação revolucionário-reformista definida dentro de quadros
artísticos e culturais: 2) a ideologia nacionalista que trans-
à cultura popular: passa a sociedade brasileira como um todo e consolidava um
bloco nacional que congregava diferentes grupos e classes so-
o CPC da UNE ciais. A proposta de organização da chamada “cultura popu-
lar’’ se insere, portanto, dentro de limites precisos de um de-
terminado momento histórico. Não pretendo porém, com mi-
nha reflexão, reatuaiizar um movimento, que sem dúvida ne-
Gostaria neste capítulo de abordar um aspecto particu-
nhuma foi rico em experiências, mas que a meu ver esgotou
lar do debate sobre a cultura brasileira, ou seja, a temática da
historicamente sua própria razão de existir. O que me inte-
cultura popular. Para tanto, retomarei de maneira crítica uma
ressa é compreendê-lo criticamente, e na medida do possível
experiência histórica concreta desenvolvida no Brasil entre os
trazer elementos para uma análise atual do campo da cultura
anos 1962 e 1964: a ação do Centro Popular de Cultura, que
brasileira.
funcionou durante esse período junto à sede da União Nacio-
nal dos Estudantes, na Guanabara. O que é interessante na
experiência do CPC é que ela está teoricamente vinculada à Folclore e cultura popular
filosofia isebiana, muito embora seja uma radicalização à es-
querda dessa perspectiva. Por exemplo, o conceito de aliena- Antes de abordarmos a questão do CPC, seria interes-
ção terá em Marx e Lukács, e não mais em Hegel, seus repre- sante situar a problemática da cultura popular em sua assimi-
sentantes principais. No entanto, a importância que os isebia- lação á noção de folclore, estabelecida em particular pelos fol-
nos atribuíam ao papel do intelectual, sua ligação com o des- cloristas. Tem-se assim, numa certa medida, uma visão mais
tino mais amplo do país, permitiu, a um movimento cultural abrangente do problema da organização da cultura, ao mesmo
de inspiração marxista, estabelecer uma ponte entre tradições tempo que se realça a originalidade do CPC enquanto movi-
teóricas que muitas vezes são apresentadas como contraditó- mento ideológico na história da cultura brasileira. São inú-
rias. Para o ISEB os intelectuais têm um papel fundamental meras as definições de folclore. Ela é enciclopedista para Sé-
na elaboração e na concretização de uma ideologia do desen- billot, àurkheimiana para o 1 Congresso de Folclore (Rio de
volvimento; são eles que devem explicitar o processo de to- Janeiro, 1951), psicologista para Câmara Cascudo.' Entre-
mada de consciência, e, por conseguinte, viabilizar o projeto
de transformação do país. Mas, quando autores como Guer- ^^^'^^^'■•l-'^^'^f'J^OraleetEthnOgraphie, Paris, 1913: Renato de
reiro Ramos ou Álvaro Vieira Pinto afirmam que sem teoria Cadernos de Folclore, MEC. 1976; Cimara Cascudo, ÍVcw-
nenodeFd/ctoreerastfezfo, MEC 1954
do desenvolvimento não há desenvolvimento, eles na verdade
70 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 71

tanto, apesar da diversidade, a noção de cultura popular en- I maneira persiste o elemento conservador; valonza-se
quanto folclore recupera invariavelmente a idéia de “tradi- Adição como presença do passado, todo “progresso” impli-
ção”, seja na forma de tradição-sobrevivência ou na perspec- * orocesso de de-sacralização da sabedona popular.
tiva de memória coletiva que age dinamicamente no mundo 5^ exemplo típico desta forma de literatura é o Manifesto
da práxis. Esta ênfase no caráter tradicional do patrimônio nSionalista de Gilberto Freyre. Concebe-se assim uma pre-
popular implica, na maioria das vezes, uma posição conser- ínsa autenticidade das manifestações populares que irá radi-
vadora diante da ordem estabelecida. Florestan Fernandes calmente se opor a qualquer movimento de transformação da
aponta este caráter conservador ao considerar o folclore como
realidade social. ,.
uma necessidade histórica da burguesia européia.’ Para o au-
Apesar de algumas considerações contrarias, esta con-
tor, definir a cultura popular como o saber tradicional das
cepção conservadora da cultura popular dominou grande par-
classes subalternas das nações civilizadas, como o faz Thoms,
te da literatura folclórica brasileira; ela será entretanto funda-
implicaria imediatamente assimilá-lo à dimensão de “atraso",
roenlalmente questionada com a emergência dos Centros Po-
de “retardatário”. Tal concepção legitimaria a existência de
pulares de Cultura. Quando Ferreira Gullar afirma que a ex-
uma dicotomia estrutural da sociedade; por um lado teríamos
pressão “cultura popular” designa um fenômeno novo na vida
uma elite que se consolidaria como fonte e promulgadora do
brasileira,^ de um certo modo o autor afirma que a noção se
“progresso”, por outro, as classes subalternas, que represen-
desvincula do caráter conservador que lhe era atribuído ante-
tariam a permanência de formas culturais que arqueologica-
riormente. Rompe-se, desta forma, a identidade forjada entre
mente se acumulariam enquanto legado de um passado lon-
folclore e cultura popular. Enquanto o folclore é interpretado
gínquo. A construção de uma pretensa “ciência do folclore”
como sendo as manifestações culturais de cunho tradicional, a
aparece, desta forma, como a contrapartida das teorias evolu-
noção de “cultura popular” é definida em termos exclusivos
cionistas de Spencer, Darwin, Augusto Comte; ela delimita
de transformação. Critica-se a posição do folclorista, que cor-
para si uma esfera que bem poderia ser considerada a da per-
responderia a uma atitude de paternalismo cultural, para en-
petuidade dos fenômenos sociais. Num certo sentido, como
fim implantar as bases de uma política cultural segundo uma
afirma Florestan, teríamos ainda, no plano ideológico, uma
orientação reformista-revolucionária. Carlos Estevam, princi-
tentativa de refutação da tese marxista que considera o prole-
pal teórico do movimento, vai, portanto, considerar a “cul-
tariado como única classe que teria a possibilidade de desen-
tura popular” como uma ação de caráter fundamentalmente
volver 0 progresso de forma real e coerente. Um exemplo de
reformista; para o autor, ela “essencialmente diz respeito a
contestação explícita ao pensamento da filosofia da práxis
uma forma particularíssima de consciência: a consciência po-
pode ser encontrado nos escritos de um pensador como De
lítica, a consciência que imediatamente deságua na ação polí-
Man.’ Se a interpretação de Florestan Fernandes nos parece
tica. Ainda assim, não a ação política em geral, mas a ação
válida, seria legítimo perguntar se ela não se restringiria aos
política do povo”.*’ De forma mais sucinta, Ferreira Gullar
limites das sociedades européias; no caso do Brasil, pensamos
compreende a “cultura popular” como a “tomada de cons-
que 0 folclore é menos uma necessidade da burguesia, mas
sobretudo uma forma de saber que se associa, de início, às
camadas tradicionais de origem agrária (veja-se, por exemplo, (4) Por exemplo, a escola paulista que se desenvolve sob o impulso de
seus expoentes como Gilberto Freyre e Câmara Cascudo). De Bastide. Ver R. Bastide, Sociologia do Folclore Brasileiro, São Paulo,
rco?"’*’'' escritos sobre folclore recentemente publicados pelo
CERU, USP, Cadernos n? 10, nov. 1977. Ou ainda os trabalhos de Florestan
Fernandes e de M. I, Pereira de Queiroz.
(2) Florestan Fernandes, "Sobre o Folclore", in O Folclore em Questão, (51 Todas as vezes que nos referirmos ao termo "cultura popular" como
S3o Paulo, HUCITEC, 1978, pp. 38-48. ele foi definido pelo CPC, a palavra aparecerá entre aspas.
(3) Ver Gramsci, A Concepção Dialética da História, Rio de Janeiro, (6) Carlos Estevam, A Questão da Cultura Apular, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1978. I empo Brasileiro, 1963, pp. 29-30.
72 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 73

ciência da realidade brasileira”.’ O conceito de cultura po- L - da hegemonia implica necessariamente uma identifi-
pular se confunde, pois, com a idéia de conscientização; sub- ■^âo dos intelectuais com os interesses e aspirações das mas-
verte-se desta forma o antigo significado que assimilava a tra- Entretanto, se existem pontos em comum entre a proble-
dição à categoria de cultura popular. “Cultura popular” não ?Stica gramsciana e a do CPC, as diferenças subsistem, e são
é, pois, uma concepção de mundo das classes subalternas, ^nsideráveis. Para Gramsci, a categoria de intelectual é dis-
como 0 é para Gramsci e para certos folcloristas que se inte- tinta do significado que lhe atribuem os agentes do CPC; o
ressam pela “mentalidade do povo”, nem sequer os produtos intelectual é, na realidade, a expressão das massas, pois se en-
artísticos elaborados pelas camadas populares, mas um pro- contra vinculado organicamente aos interesses populares. A
jeto político que utiliza a cultura como elemento de sua reali- relação partido-massa é interna, e se realiza de baixo para
zação. O termo se reveste portanto de uma nova conotação, cima, isto é, ela emerge junto às classes subalternas que secre-
significa sobretudo função política dirigida em relação ao tam seus próprios intelectuais orgânicos. Para o CPC, a rela-
povo. Quando os agentes do CPC se referem às “obras da ção encontra-se invertida: são os intelectuais que levam cul-
cultura popular”, eles não se reportam às manifestações po- tura às massas. Fala-se sobre o povo, para o povo, mas dentro
pulares no sentido tradicional, mas sim às atividades realiza-
de uma perspectiva que permanece sempre como exteriori-
das pelos centros de cultura. Pode-se desta forma falar em
dade. Apesar das intenções, o distanciamento público-autor é
“militantes da cultura popular”, posto que a noção de subs-
tantivo se transforma em verbo. uma constante; ura exemplo patético disto são as produções
Da perspectiva de ação política, deriva de imediato a artísticas realizadas pelo CPC. Devido à ênfase colocada na
questão dos intelectuais e da organização da cultura. Neste instrumentalização dos bens artísticos, resulta que o elemento
sentido, a problemática do CPC é vizinha àquela estudada por estético seja praticamente banido. Basta analisar-se algumas
Grasmci nos Cadernos do Cárcere. Trata-se em última instân- peças teatrais para se convencer de que elas operam no fundo
cia de secretar um corpo de intelectuais que possa organizar a com estereótipos que banalizam a vida social: o estudante, o
cultura popular, mas não a cultura global, visto que aquela é sacerdote, o operário, o burguês, etc. Tem-se na realidade
definida em termos restritos, em contraposição à cultura alie- uma sociologia de atores que muito se assemelha aos ideal-
nada das classes dominantes. Para tanto, o intelectual deve tipos da análise weberiana; o sentido do texto decorre, desta
ser “parte integrante do povo”, isto é, deve “tornar-se povo". forma, do processo de interação entre os atores. Pode-se con-
Qual seria, porém, a forma através da qual se processaria a siderar aqui a mesma crítica que Gramsci estabelece com re-
aproximação entre elite e massas? Uma passagem da revista lação às obras de Manzoni; o povo é o personagem principal
Movimento, da UNE, coloca:'“Falando ao povo (a respeito da trama artística, mas na realidade se encontra ausente. Não
dos problemas do povo) o intelectual passa a ser povo e então há vida interior dos personagens, dilui-se a dimensão do indi-
seu porta-voz, e então intelectual da sociedade: não intelec- víduo, e com isso a própria existência, visto que esta é prete-
tual da anti-sociedade”.’ Tem-se aqui um problema análogo rida diante do argumento político colocado a priori como ne-
ao estudado por Gramsci quando este se refere à formação de cessidade interna ao texto. A máxima de Carlos Estevam
uma cultura nacional-popular na Itália.’ O processo de cons- fora da arte política não há arte popular" não somente em-
pobrece a dimensão estética, como distancia o autor dos inte-
resses populares, posto que todo aspecto não imediatamente
(7) Ferreira Gullar, Cultura Posta em Questão, Rio de Janeiro, Civiliza-
político é eliminado, Ê interessante notar que para Carlos Es-
ção Brasileira, 1965, p. 3. tevam, o lúdico, 0 religioso, o estético são aspectos secundá-
18) UNE, "Cultura Popular: Conceito é Articulação", Movimento, n? 4, da existência; eles exprimem, na realidade, uma perda de
julho 1962.
(9) Gramsci, Literatura e Vida Nacional, Rio de Janeiro, Civilização Bra- oras-homens” revolucionários, pois agiriam, segundo o au-
sileira, 1968. tor, como entrave ao desenvolvimento da ação política. Como
74 RENATO ORTIZ f CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 75

disse acertadamente Vianinha, o CPC se transforma num I


“pronto-socorro político”. entretanto atingir o nível de dignidade artística que a
denciasse como experiência legítima no campo da arte,
oSs a finalidade que a orienta é a de oferecer ao público um
Ideologia passatempo, uma ocupação inconsequente para o lazer, nâo
P colocando para ela jamais o projeto de enfrentar os pro-
Para o CPC, a análise da realidade social se articula fun- blemas fundamentais da existência”.’^ Reencontra-se assim
damentalmente através da categoria da alienação; este con- uma característica que se manifesta como constante no pen-
ceito se encontra disseminado ao longo dos escritos dos estu- samento do CPC, a preeminência do político em relação às
dantes da UNE, e no livro de Ferreira Gullar, mas foi parti- outras dimensões da vida social. Dentro desta perspectiva, so-
cularmente desenvolvido em sua aplicação à “cultura popu- mente a arte política pode ser considerada como legítima, uma
lar” por Carlos Estevam. OpÕe-se, desta forma, a “cultura vez que ela encarna a única forma possível de réplica ao pro-
alienada" das classes dominantes, internalizada em parte cesso de alienação. Como observa com justeza Uchôa Leite,
pelas classes dominadas, a uma “cultura desalienada". A pre- existe uma contradição inerente à teoria do CPC; para legiti-
sença teórica de Lukács é marcante, e pode ser apreendida mar a ação da “cultura popular” deve-se necessariamente ne-
através da utilização abundante do conceito de “falsa cons- gar a validade das próprias manifestações populares.” Consi-
ciência”. Existe porém um movimento de reificação dos con- derando-se o popular como "falsa cultura”, ele se encontra
ceitos, posto que a “falsidade da consciência”, ou as “ilu- fatalmente encerrado nas malhas da esfera da alienação. Toda
sões”, que para Marx são consideradas como formas neces- atividade político-cultural é portanto imediatamente externa
sárias de conhecimento, se transforma em "falsa cultura”, ao próprio movimento das massas, posto que naturalmente os
“cultura alienada". Define-se a “cultura popular”, isto é, a fenômenos populares recaem nos limites da consciência inau-
prática do CPC, como ontologicamente “verdadeira" em con- têntica.
traposição às “falsas” manifestações populares. O Manifesto Outro aspecto importante da ideologia é a questão do na-
da UNE de 1962 leva as considerações sobre o processo de cionalismo; trata-se evidentemente de uma problemática que
alienação às últimas consequências quando distingue três ti- domina a época na qual se desenvolvem as atividades dos cen-
pos de objetos artísticos populares; a arte do povo, a arte po- tros de cultura popular. Ferreira Gullar, que se ocupa parti-
pular, a arte revolucionária do CPC. “ As observações tecidas cularmente do fenômeno da alienação da arte brasileira, con-
em torno das duas primeiras são de caráter profundamente sidera que “a cultura popular tem caráter eminentemente na-
etnocêntrico, os autores chegam mesmo a denegar-lhes a con- cional e mesmo nacionalista”.'^ Popular e nacional represen-
dição de produtos artísticos. Afirma-se, por exemplo, "que a tam assim faces de uma mesma moeda; neste sentido, a prá-
arte do povo é tão desprovida de qualidade artística e de pre- tica do CPC implicaria a tomada de consciência da dependên-
tensões culturais que nunca vai além de uma tentativa tosca e cia dos países subdesenvolvidos com relação aos centros de
desajeitada de exprimir fatos triviais dados à sensibilidade decisões econômicas e culturais. Retoma-se de certa forma o
mais embotada. É ingênua e retardatária, e na realidade não argumento isebiano que focalizava o problema da dependên-
tem outra função que a de satisfazer necessidades lúdicas e de cia cultura! em termos de alienação. A luta antiimperialista,
ornamento. A arte popular, por sua vez, mais apurada e apre- ema essencial das manifestações estudantis, penetra desta
sentando um grau de elaboração técnica superior, não con- orma o texto artístico, e pode, pedagogicamente, ser exposta

(12) Carlos Estevam, op. cit., pp. 90-91.


(13) Sebastião Uchôa Leite, "Cultura Popular; Esboço de uma Resenha
(10) Entrevista com Oduvaido Vianna Filho, Opinião, 29.7.1974. , Revista Civilização Brasileira, n? 4, set. 1965, pp. 269-289.
(11) Ver Carlos Estevam, op. at.,p. 90 (parte II). (14) Ferreira Gullar, op. cit., p. 8.
76 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 77
. inadequado na abordagem da problemática da cultura
para a grande massa. Basta observar-se o enredo de peças 7 jça realidade, definir as manifestações populares
como o Auto dos 99%, ou músicas como Subdesenvolvido -falsa consciência” implica necessariamente eleger-se
Canção do Trilhão zinho, para se perceber como se articula a arWtrariamente valores da “veracidade” e de “autenticidade”
oposição de uma cultura nacional à cultura estrangeira. Di- cultural. Fatos sociais, como o futebol, o carnaval, a religião,
versas manifestações culturais passam assim a compor o es- aue dominam grande parte da vida das classes subalternas,
pectro de fenômenos considerados sob a classificação de "cul- são desta forma hipostasiados em categorias que no fundo os
tura popular”; o cinema novo que reivindica a implantação de concebem como epifenômenos. A análise da cultura se encerra
uma indústria cinematográfica nacional; o teatro que revalo- assim num círculo vicioso. Um autor que rompe com as limi-
riza os temas brasileiros; as tradições populares regionais. No tações deste tipo é Gramsci; com efeito, como já havíamos
que diz respeito às tradições folclóricas, pode-se apontar uma
sublinhado anteriormeníe, a problemática dos Cadernos se re-
incoerência teórica com relação à proposição da “falsa cul-
fere precisamente ao estudo da organização da cultura em ter-
tura”. Com a emergência da problemática do imperialismo
mos nacional e popular. Reencontra-se dentro deste quadro
cultural, tem-se que a questão dos fatos folclóricos enquanto
“falsidade” se transmuta em estado de “veracidade” nacio- de análise inclusive o tema da nacionalidade, da identidade
nal. O pensamento desloca-se do núcleo da "falsa cultura” nacional; entretanto, a cultura popular e o nacionalismo não
para centralizar-se sobre um novo pólo: o da independência são tratados por Gramsci segundo o conceito de alienação.
nacional; delimita-se assim uma esfera da "autenticidade" Devido à definição gramsciana de ideologia, que esvazia a dis-
nacional que naturalmente se manifesta na memória popular cussão de veracidade ou não das concepções de mundo, tem-
regional. O rock simbolizaria assim uma etapa do processo de se que 0 centro nodal da questão se coloca em termos de re-
alienação cultural, enquanto a música folclórica reafirmaria a lação de força. A alienação do popular e do nacional, que nos
identidade perdida no ser do outro.'' A comercialização da remete era última instância ao tema da degenerescência do
música regional aparece desta forma como uma de-sacraliza- ser, se apresenta portanto sob o ponto de vista da hegemonia;
çâo da autenticidade da arte popular (poderíamos dizer que de uma classe sobre as outras, de uma nação sobre as outras.
ela perde sua “aura”); paradoxalmente, a ideologia do CPC Colocar a questão da cultura popular em termos de hege-
vai reencontrar a problemática anteriormente colocada pelos monia pode, a meu ver, avançar a discussão a respeito da cul-
folcloristas. Uma vez que a noção de alienação se confunde tura brasileira. Um primeiro aspecto, que situa o problema
com a de inautenticidade, pode-se estabelecer uma aproxima- enquanto relação de forças, se refere à indústria cultural. Não
ção entre concepções que a priori se apresentavam como íron- se deve esquecer que o desenvolvimento deste ramo industrial
talmente antagônicas. é recente: nos anos 60 ele se encontra ainda em fase embrioná-
ria de crescimento, e só toma um impulso considerável quan-
do se aperfeiçoam e se difundem os meios de comunicação de
Aberturas massa que hoje tendem a integrar a nação como um todo.
Pode-se perguntar: em que medida o desenvolvimento de uma
Sebastião Uchôa Leite pondera que a ideologia do CPC, indústria cultural não corresponderia ao processo de hegemo-
ao considerar os fenômenos populares enquanto alienação, se nia ideológica das classes dominantes? Tudo leva a crer que o
aliena a esse mesmo conceito. A observação nos parece válida; espaço de dominação cultural se articula, ou tende a se arti-
fica porém a pergunta: em que medida o próprio conceito não cular atualmente de forma distinta do passado. Vimos que
uma das diferenças entre o pensamento de Fanon em relação
uos intelectuais do ISEB dizia respeito à existência ou não de
(151 Ver Nelson Lins e Barros, "Música Popular e suas Bossas", Movi- uma sociedade civil. Ora. nos últimos vinte anos ocrescimento
mento, n? 6, out. 1962, pp. 22-26.
® a diferenciação deste espaço dão uma nova configuração ao
78 RENATO ORTIZ

campo da cultura. Por outro lado, pela primeira vez o Estado


estabelece uma política cultural a nível nacional. Surgem, as-
sim, organismos do tipo EMBRAFILME, FUNARTE. Pro-
jeto Minerva, TV Globo, que começam a atuar como adminis-
tradores culturais. Toda manifestação popular tende portanto
a ser inserida num espaço de subordinação que arbitraria-
mente é imposto a partir do alto. O problema se apresenta,
pois, como relação de forças, não como alienação. A questão
do nacionalismo, tal como era considerada nos anos 60, deixa
de ter sentido. Efetivamente, existem hoje instituições que im-
plementam um real desenvolvimento da cultura brasileira;
não houve porém, a nosso ver, um movimento de desaliena-
çâo, mas sim estruturou-se um novo campo da cultura onde as
formas de dominação tomam configurações distintas. Tem
pouco significado afirmar que os cineastas do cinema novo
foram cooptados pelo sistema; na realidade, a própria ban-
Estado autoritário e cultura
deira do cinema novo se exauriu, uma vez que suas principais
reivindicações foram atendidas. Dentro do quadro de domi-
nação atual a problemática do nacionalismo adquire novos Introdução
contornos; vale a pena insistir que o Estado conseguiu estabe-
lecer com certo êxito uma divisão de tarefas com relação ao Para se pensar como se estrutura atualmente o campo da
domínio do econômico e do cultural. Tudo se passa como se a cultura é necessário levar-se em consideração a atuação do
infra-estrutura tivesse sido “abandonada” ao capital estran- Estado brasileiro, que sem dúvida alguma é um dos elementos
geiro, conservando-se porém a gestão da esfera superestrutu- dinâmicos e definidores da problemática cultural. Alguns es-
ral. O nacionalismo das novas produções brasileiras, das ma- tudos recentes têm procurado abordar este problema, por
nifestações folclóricas, do turismo é neste sentido puramente exemplo em algumas áreas específicas como o cinema, mas de
simbólico, mas ele recupera uma identidade nacional que se uma certa forma falta aos diversos trabalhos um conjunto de
encontra harmoniosamente fixada no nível do imaginário. informações que permitam aos autores uma discussão mais
abrangente. ’ Orientado por este tipo de preocupação, procu-
rei realizar uma análise do discurso do Estado pós-64 sobre a
produção e organização da cultura.’ Creio que o conheci-

(11 Sobre a política de cultura do Estado ver; Octávio lanni, OE^adoe


a Organização da Cultura", fnc. Ovihzação Brasileira, n? 1. julho 78; A. No-
vais, "O Debate ideológico e a Questão Cultural", foc. Civilização Brasileira,
nf 12, junho 79; J,-C. Bernardet, Cinema Brasileiro: Propostas para uma His-
tória, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; J. M. Ortiz, "Cinema, Estado, Lutas
Culturais”, tese de mestrado. São Paulo, PUC, 1982.
(21 Gabriel Cohn foi talvez um dos poucos pesquisadores que procura-
ram elaborar uma análise do discurso governamental. Ver "A Concepção da
Política Cultural nos Anos 70", Encontro sobre CuKura e Estado, IDESP, Sao
Paulo, ago.-set. 1982.
80 RENATO ORTIZ HF CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 81

mento e a interpretação de documentos de primeira mão pos- I . jje desenvolvimento capitalista bastante especifico.
sam contribuir para este debate e, na medida em que procurei ?^i modelo, geralmente descrito através de seus traços gené-
focalizar diversos setores culturais ligados ao Estado, que uma • '"concentração de renda, crescimento do parque indus-
reflexão mais global possa ser avançada, mesmo que a título criação de um mercado interno que se contrapõe a um
provisório. Com isto temos condições de progredir nas discus- **Trcado exportador, desenvolvimento desigual das regiões,
sões levantadas nos capítulos anteriores, pois havíamos cons- ^nceiitraçâo da população em grandes centros urbanos, reor-
tatado a insuficiência da abordagem proposta nos anos 50 e ganiza a sociedade brasileira como um todo. O processo de
60. Seria no entanto fundamental situar a questão cultural no "modernização” adquire assim uma dimensão sem prece-
interior da recente história brasileira, dai esta introdução rela- dente. Octávio lanni, por exemplo, quando estuda o planeja-
tivamente longa que antecede a própria análise do discurso mento estatal, afirma que a política governamental pós-64
governamental. possui uma nova sistemática e organização que a individualiza
em relação a todas as outras políticas adotadas desde 1930.'*
As relações entre cultura e Estado são antigas no Outro economista, procurando por indicadores não conven-
Brasil. Se tomarmos um exemplo relativamente recente, o dos cionais para apreender a especificidade desta nova realidade
anos 30, veremos que com o advento do Estado Novo, o apare- brasileira, vai insistir no aspecto da difusão de um ethos capi-
lho estatal encontra-se associado à expansão da rede das ins- talista, 0 que significa que o processo de racionalização não se
tituições culturais (criação do Serviço Nacional de Teatro), à confina aos limites da esfera administrativa, mas se estende,
criação de cursos de ensino superior, e também à elaboração como comportamento, aos próprios indivíduos. ’
de uma ideologia da cultura brasileira. A revista Cultura e Dentro deste quadro, as relações entre cultura e Estado
Política foi, em 1941-1945, um órgão ideológico do Estado, no são sensivelmente alteradas em relação ao passado. O proces-
mesmo período em que o DIP exerceu suas funções de cen- so de racionalização, que se manifesta sobretudo no planeja-
sura. No entanto, se consideramos como ponto de partida mento das políticas governamentais (em particular a cultural),
para nossa análise o ano de 1964, isto não se deu necessaria- não é simplesmente uma técnica mais eficaz de organização,
mente por uma imposição do material de pesquisa. Acredito ele corresponde a um momento de desenvolvimento do pró-
que 64 pode ser considerado um marco na história brasileira. prio capitalismo brasileiro. Se, como observa Lucio Kowarick,
Na verdade, o golpe possui um duplo significado: por um lado as técnicas de planejamento são inicialmente aplicadas na
ele se define por sua dimensão essencialmente política, por área econômica, pouco a pouco elas são difundidas para todas
outro aponta para transformações mais profundas que se rea- as esferas governamentais. Essas transformações mais am-
lizam no nível da economia. Ós economistas mostram que a plas, por que passa toda a sociedade brasileira, têm conse-
partir do governo de Juscelino se instaura uma segunda revo- qüências imediatas no domínio cultural. Pode-se afirmar que,
lução industrial no Brasil na medida em que o capitalismo no período em que a economia brasileira cria um mercado de
atinge formas mais avançadas de produção. 64 é visto, tanto bens materiais, tem-se que, de forma correlata, se desenvolve
pelos economistas quanto pelos cientistas políticos, como mo- um mer^do de bens simbólicos que diz respeito à área da
mento de reorganização da própria economia brasileira que cu tura. E bem verdade que Sérgio Miceli pode, por exemplo,
cada vez mais se insere no processo de internacionalização do analisar a produção intelectual dos anos 30 em termos de mer-
capital.^ O golpe militar tem evidentemente um sentido polí-
tico, mas ele encobre também mudanças econômicas substan-
ciais que orientam a sociedade brasileira na direção de um (41 Octâvio lanni, Estódo e «sneyamenfo gSgJg do'Sáneja-
llzação Brasileira. 1979. Ver também L.
mento Social no Brasil", Cadernos CEBRAPn. Í, 19 . Cadernos
(5) Luciano Martins. "A Política e os L.mites da Abertura ,
(3) Ver Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil, Rio
Janeiro, Zahar, 1975. de Opinião, n? 15, dez. 79-3go. 80.
82 RENATO ORTIZ ■f CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 83

cado? Rigorosamente falando, a noção de mercado simbólico P cultura como meio de integração, mas sob o controle
emerge no momento em que a esfera cultural adquire uma j nrelho estatal. As ações governamentais tendem assim a
autonomia em relação ao mundo material. Habermas vai lo- A Mr um caráter sistêmico, centralizadas em torno do Po-
calizar este momento no início da sociedade burguesa, quando 5” Nacional. Daí a busca incessante pela concretização de
os homens, individualizados e universalizados, trocam no «íistema Nacional de Cultura (o que não é conseguido) e a
mercado seus produtos materiais.’ No entanto, o que caracte- ^fptiva consolidação de um Sistema Nacional de Turismo em
riza 0 mercado cultural pós-64 é o seu volume e a sua dimen- 1067 ou de um Sistema Nacional de Telecomunicações. O
são. Nos anos 30 as produções culturais eram restritas e atin- Estado procura, dessa forma, integrar as partes a partir de
giam um número reduzido de pessoas. Hoje elas são cada vez um centro de decisão. Dentro deste quadro a cultura pode e
mais diferenciadas e atingem um grande público consumidor; deve ser estimulada. Não estou sugerindo com isto que esse
isto confere ao mercado cultural uma dimensão nacional que
controle é absoluto. Existe evidentemente um hiato entre o
ele não possuía anteriormente.
pensamento autoritário e a realidade. O que gostaria de res-
O problema da integração deste espaço público, dife-
saltar é que esta ideologia não se volta exclusivamente para a
renciado e nacional, se coloca imediatamente para o Estado.
repressão, mas possui um lado ativo que serve de base para
Veremos mais adiante que um dos aspectos com que se de-
uma série de atividades que serão desenvolvidas pelo Estado.
fronta 0 discurso ideológico governamental é o de como inte-
O crescimento da classe média, a concentração da popu-
grar as diferenças regionais no interior de uma hegemonia es-
lação em grandes centros urbanos vão permitir ainda a cria-
tatal. O conceito de integração nacional forjado pela ideologia
ção de um espaço cultural onde os bens simbólicos passam a
de Segurança Nacional e aplicado ao período que estamos es-
ser consumidos por um público cada vez maior. 64 inaugura
tudando procura, no nível do discurso e da prática, resolver
um período de enorme repressão política e ideológica, mas
esta questão. Ao definir a integridade nacional enquanto "co-
significa também a emergência de um mercado que incorpora
munidade”, 0 Manual da Escola Superior de Guerra retoma
em seu seio tanto as empresas privadas como as instituições
os ensinamentos de Durkheim e mostra a necessidade da cul-
governamentais. Durante o período 64-80 ocorre uma formi-
tura funcional como cimento de solidariedade orgânica da
dável expansão, a nível da produção, da distribuição e do con-
nação.* A noção de integração, trabalhada pelo pensamento
sumo de bens culturais. Ê nesta fase que se dá a consolidação
autoritário, serve assim de premissa a toda uma política que
dos grandes conglomerados que controlam os meios de comu-
procura coordenar as diferenças, submetendo-as aos chama-
nicação de massa (TV Globo, Ed. Abril, etc.); Gabriel Cohn
dos Objetivos Nacionais. No entanto, a ideologia autoritária
associa este processo de monopolização à centralização de po-
não se contenta com as categorias durkheimianas e vai além;
der no plano nacional. Um rápido apanhado das diferentes
aqui vale a pena citar: “No Estado de Segurança Nacional,
áreas culturais mostra a evidência do processo de expansão —
não apenas o poder conferido pela cultura não é reprimido,
boom da literatura em 1975, advento dos best-sellers, cresci-
mas é desenvolvido e plenamente utilizado. A única condição
mento da indústria do disco e do movimento editorial. Os da-
é que esse poder seja submisso^ ao Poder Nacional, com vistas
dos relativos à imprensa exprimem claramente a expansão do
à Segurança Nacional”.'’ Isto significa que o Estado deve esti-
volume do mercado consumidor. Em 1960 a tiragem dos pe-
riódicos diários era de 3951584 e de não diários, de 4 213802;
le) Sérgio Micefi, Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil, São Paulo, em 1976 da passa para 1272 901104 diários e 149 415 690 não
DIFEL,1979. diários. Apesar de o número de jornais praticamente ter
(7) Habermas, L 'Espace PubHc, Paris, Payoi, 1978.
(8) Manual Básico da Escola Superior de Guerra, Departamento de Es- permanecido o mesmo, o que em si já é um indicador do pro-
tudos MB-75, ESG; 1975.
(9) Joseph Comblin, A Ideologia da Segurança Nacional, Rio de Ja-
neiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 239. (10) IBGE, dados anuais relativos ao Brasil.
84 RENATO ORTIZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 85

cesso de monopolização dos meios de comunicação de massa < sÀTÍo compreender que paralelamente à marginalizaçâo eco-
mesmo sem levar-se em conta o aumento populacional, po<fe ômica e cultural de parcelas imensas das classes subalternas,
se observar que o aumento do público consumidor é bastante se manifesta a expansão de um mercado de bens simbólicos
grande. Mesmo na área cinematográfica, que sofre concor- aue tem expressão considerável na medida em que possibilita
rência direta da televisão, os números são significativos: em a consolidação das indústrias culturais e reorganiza a. política
1971 o Brasil possui 240 milhões de espectadores, o que lhe estatal no que se refere à área da cultura.
confere a posição de quinto mercado interno cinematográfico O Quadro 1 nos permite observar a intensidade da pre-
do mundo ocidental." Este volume de público corresponde sença do Estado no domínio cultural. Realizando o pensa-
ainda ao crescimento do próprio mercado de filmes nacionais mento autoritário do estímulo controlado da cultura, são cria-
que apesar de ser significativamente menor do que o de filmes das, após 64, as principais instituições estatais que organi-
estrangeiros, passa de 30 milhões de espectadores em 1974 zam e administram a cultura nas suas diferentes expressões. A
para 50 milhões em 1978. O mercado brasileiro adquire coluna “atividades’’ enumera, arbitrariamente, algumas das
assim, proporções internacionais; em 1975 a televisão é o nono realizações governamentais que julgamos importantes. Seria
mercado do mundo, o disco, o quinto em 1975, e a publici- no entanto fora do propósito deste trabalho classificar as di-
dade, o sexto em 1976. O quadro de evolução do investimento versas ações empreendidas ao longo do período. Em particu-
publicitário em 1962-1976 nos veículos de comunicação de lar tem-se que a ação governamental se intensifica a partir de
massa ” atesta a importância deste mercado, e o que é mais 1975. Com a elaboração de um Plano Nacional de Cultura
interessante, revela a origem desses investimentos. Os dois (primeiro documento ideológico que um governo brasileiro
maiores investidores são o Estado e as multinacionais. produz e que pretende dar os princípios que orientariam uma
Apreender a atuação do Estado na esfera cultural é na política de cultura), a criação da FUNARTE e a reformulação
realidade inserir a política governamental dentro deste pro- administrativa da ÈMBRAFILME, a área da cultura recebe
cesso mais amplo que caracteriza o desenvolvimento brasi- um impulso bem maior em relação aos anos anteriores.
leiro. O Estado é um elemento fundamental na organização e Uma série de artigos, organizados em coletâneas sobre
dinamização deste mercado cultural, ao mesmo tempo que música, teatro e literatura, realçam em particular este aspecto
nele atua através de sua política governamental. Ê bem ver- do incentivo cultural pós-75.''' O fato levou alguns autores a
dade que o espaço cultural se limita, numa sociedade perifé- formular a hipótese de que o interesse do Estado pela cultura
rica como o Brasil, aos grandes centros urbanos. Isto, porém, derivaria de um desgaste político; ao adotar uma estratégia
não deve ser atribuído a qualquer distorção social, mas cor- cultural 0 Estado estaria se aproximando mais das classes mé-
responde à consolidação de um mercado interno de bens ma- dias e consolidando uma nova base de apoio.“ Não creio que
teriais que téln como característica básica a concentração da a interpretação seja de todo implausível, é provável que exista
riqueza. A distribuição e a criação dos produtos culturais re- em 1975 um cálculo político que busque um reequilíbrio das
produz as contradições do próprio modelo capitalista brasi- orças políticas através do mundo da cultura. A hipótese não
leiro, que acentua a diferença entre as regiões e reforça a di- conta porém da própria política governamental. Os dados
visão de trabalho entre cidade e campo. Entretanto, é neces- mostram, e a ideologia da Segurança Nacional o confirma,
° Espado manifesta seu interesse pela questão cultural
es e 0 golpe militar. A criação de vários setores que se ocu-
(11) "Resolução dos 98 dias", Filme-Cultura. n? 18, jan.-fev. 1978.
(12) "Cultura Trocada em Milhões", entrevista com Roberto Farias,
Joma! do Brasil, 1.4.1978. neiro a série An
(13) Ver Marco Antonio Rodrigues Dias, "Política de Comunicação no 8'ro, Ed. Europa, 1979,
Brasil", in Meios de Comunicação: Realidade e Mito (org. J. Wertheim), São pular- ril T’’’ PPrticular, Margarida Autran, "0 Estado e o Músico Po-
Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1979. Margtnal a Instrumento", in Anos 70 — Música, op. cit.
86 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 87

F primeira vez na história brasileira, das diferentes


QUADR01
'^feras da cultura mostra o quanto a política governamental
A/w Órgãos Atividades *^ura ser abrangente. Não obstante, um problema colocado
ela série Anos 70 permanece. Por que 1975 aparece como um
1965 • EMBRATEL * Brasil se associa ao sistema ^0 marcante na política governamental? Gostaria de sugerir,
INTELSAT
ao lado da interpretação já levantada, uma nova pista. Carlos
1966 • Conselho Federal de Cultura • Definição de uma política Lcssa, ao analisar a ideologia do II PND (1974-1976) vai con-
• Conselho Nacional nacional de turismo
de Turismo jjderá-la como um produto da euforia do “milagre” econô-
• EMBRATUR mico de 69-73."’ Os planos dos governos anteriores enfatiza-
■ Instituto Nacional de Cinema
vam sobretudo a dimensão econômica do desenvolvimento.
1967 • Ministério de • Criação do Sistema Costae Silva já havia introduzido no discurso do planejamento
Telecomunicações Nacional
de Turismo 0 tema da “humanização do desenvolvimento”, e Mediei fa-
• 1 Encontro Oficial de
Turismo
lava em “desenvolvimento psicossocial". Porém, esses ele-
1968 Nacional
• 1 Reunião dos Conselhos
mentos são puramente discursivos: Geisel procura concretizá-
Estaduais de Cultura los ao introduzir um dado novo: a distribuição da renda e das
1969 • EMBRAFILME
oportunidades. Isto levará o governo a implementar algumas
políticas de distribuição indireta. Acredito que a área de cul-
1970 • Reforma administrativa do tura se beneficia justamente deste incentivo financeiro que
MEC, cria-se 0
Departamento de Assuntos tem origem no otimismo econômico do 11 PND. É significativo
Culturais (DACI, órgão para que o Plano Nacional de Cultura só seja elaborado em 1975,
execução de uma política
cultural quando já estava em discussão desde a criação do Conselho
• 1 Congresso da Indústria
Federal de Cultura. O período do “milagre” abre novas possi-
1972 • TELEBRÂS
Cinematográfica Brasileira bilidades para as realizações e os empreendimentos culturais.
• EMBRATEL completa 0 Observaremos, porém, com o advento da crise econômica, que
Sistema Básico de
Microondas que possibilita a uma mudança ocorre no discurso e no incentivo das ações cul-
integração nacional por TV turais do governo.
• TV a cores
Não resta dúvida de que a política estatal pós-64 tem um
1973 * 0 DAC lança o 1 ? Plano de impacto efetivo sobre o mercado cultural, ela atua no entanto
Ação Cultural (de ação
limitada) de diferentes maneiras e através de uma pluralidade de for-
1975 • Publicação do primeiro mas. Por exemplo, a política de turismo tem um impacto im-
• FUNARTE
• Extingue-se 0INC e Plano portante no processo de mercantilizaçâo da cultura popular.
Nacional de Cultura
ampliam-se as atribuições da
• Campanha de Defesa do
Não é por acaso que as Casas de Cultura Popular, sobretudo
EMBRAFILME
• Centro Nacional de Folclore Brasileiro no Nordeste, se encontram sempre associadas às grandes em-
Referência Cultural • 1 Encontro Nacional dos turismo, que procuram explorar as atividades fol-
Dirigentes de Museus
1978 • CONCINE • 1 Encontro Nacional de côricas e os produtos artesanais. Por outro lado, parece exis-
• RADIOBRÃS Cultura «Jr ^5*® divisão de trabalho entre cultura de massa e cultura
1979 artística” e popular. O Estado deixa às empresas privadas a
• DAC se transforma em • 1 Seminário Nacional de
Secretaria de Assuntos
Artes Cênicas
Culturais
• 1 Encontro Nacional de
• Secretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional Artistas Plásticos , (16)
Profissionais Potência como um Projeto do Estado para
• Fundação Pró-Memória Estado"
15, dez. 79-ago. 80.
88 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 69

administração dos meios de comunicação de massa e investe empresários, da área pública e privada, como o Encontro dos
sobretudo na esfera do teatro (Serviço Nacional de Teatro), do Secretários de Cultura ou o Congresso da Indústria Cinemato-
cinema (EMBRAFILME), do livro didático (Instituto Nacio- gráfica Brasileira. Dessa rede de atividades, é interessante
nal do Livro), das artes e do folclore (FUNARTE). Não existe, notar que as críticas ao controle estatal tenderam a se dirigir
porém, oposição entre esfera pública e esfera privada. Um quase que exclusivamente ao aspecto da censura. Acredito
documento interno de análise da política governamental evi- que isto se deve ao fato de a censura ter adquirido, no mo-
dencia este fato ao enunciar um princípio que transcende a mento em que a repressão era brutal, um significado político
área a que se refere: “Cabe ao Estado dar as diretrizes e pro- que parecia condensar todo o autoritarismo do regime. Ela
ver as facilidades”. A implantação da televisão no Brasil se representava.uma bandeira política concreta em torno da qual
adequa perfeitamente a essa máxima. É o Estado que efetiva- se agrupava o movimento democrático. Podemos hoje dizer
mente implanta a infra-estrutura tecnológica do sistema de que ela apontava somente para a superfície de um fenômeno
telecomunicações; neste sentido ele provê as “facilidades” que bem mais complexo. Durante o período 64-80 a censura não
serão exploradas pela empresa privada.” Porém, ele reserva se define tanto pelo veto a todo e qualquer produto cultural,
para si o controle último dos serviços de telecomunicação. Ao mas age primeiro como repressão seletiva que impossibilita a
se definir como concessionário único e transferir para a juris- emergência de determinados tipos de pensamento ou de obras
dição federal o poder de concessão, ele concentra poder e faci- artísticas. São censuradas as peças teatrais, os filmes, os li-
lita o controle sobre as redes nacionais de televisão. O discurso vros, mas não o teatro, o cinema ou a indústria editorial. O
de Geisel, pronunciado no Congresso da ABERT, não deixa ato repressor atinge a especificidade da obra mas não a gene-
margem a dúvidas: “Desse controle não poderá governo al- ralidade da sua produção. O movimento cultural pós-64 se
gum abrir mão, sem que falte ao cumprimento do dever ju- caracteriza por dois momentos que não são na verdade contra-
rado ou ponha em risco a própria segurança da nação”.’® A ditórios; por um lado ele é um período da história onde mais
ideologia da segurança nacional, que está na origem da polí- são produzidos e difundidos os bens culturais, por outro ele se
tica da telecomunicação no Brasil, se prolonga, desta forma, define por uma repressão ideológica e política intensa. Isto se
enquanto controle ideológico e político. O espaço de atuação deve ao fato de ser o próprio Estado autoritário o promotor do
das empresas privadas encontra-se, assim, delimitado pelos desenvolvimento capitalista na sua forma mais avançada. Por
critérios que orientam as atividades do Estado autoritário (o isso a censura encontrará resistência até mesmo na área em-
que muitas vezes implica choques entre os interesses da em- presarial. O Congresso Nacional da Indústria Cinematográ-
presa em relação ao Estado). fica (1972) e a Associação Carioca de Empresários Teatrais
A presença do Estado se exerce ainda, e sobretudo, atra- (1973) vão assim se pronunciar, embora timidamente, contra
vés da normatização da esfera cultural. A partir de 1964 são a censura. O rigor excessivo do censor acarreta também, para
baixadas inúmeras leis, decretos-leis, portarias, que discipli- os empresários, conseqüências negativas para o funciona-
nam e organizam os produtores, a produção e a distribuição mento do mercado cultural.
dos bens culturais — regulamentação da profissão de artista e
de técnico, obrigatoriedade de longas e curtas-metragens bra-
sileiros, portarias regularizando o incentivo financeiro às ati-
vidades culturais, etc.’’ O Estado promove ainda reuniões de
3^64 a 31,1.69, MEC, Serviço de Documentação; Ementário da Legislação Fe-
deral no Brasil — Ensino e Cultura (1930-1967); Coletânea da Legislação da
(17) Sobre as telecomunicações, ver Luiz Nogueira, "O Brasil e sua Po-
Educação e Cultura (1974-1975); Legislação do Cinema Brasileiro, Alcino T.
lítica de Telecomunicações", tese de mestrado, ECA, USP, 1978.
Mello. EMBRAFILME, 1978; um artigo interessante sobre as normas estatais
(18) Geisel, discurso de encerramento da ABERT, 1.10.1976.
para a televisão e o rádio ê "O Papel do Rádio e da TV na Formação da Cultura
(19) A normatização do espaço cultural pode ser encontrada em vários
Brasileira: Da Macrocefalia à Atomização", Roberto Amaral Vieira, fíevista
documentos, como; Atos do Governo da República Federativa do Brasil: 31.
ABEPEC, nf 4, junho 78.
RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 91
90

Memória nacional e mestiçagem lidade primeira, segundo seus estatutos, seria formular, em
conjunto com as autoridades governamentais, uma política
O governo militar se ressentiu desde o seu início da au- nacional de cultura.’^ Na verdade, esta ambição não se con-
sência de uma política cultural para o país; na verdade, os cretizará, cabe porém, no momento, sublinhar os pontos que
atos governamentais tinham sido marcados exclusivamente levaram o governo a se empenhar na criação deste órgão cul-
pela negatividade, uma vez que se tornou necessário desfazer tural.
as ligações políticas que se originavam da época de Goulart. Para que o Estado desenvolva um projeto cultural brasi-
Logo após 0 golpe é promulgada uma série de leis e de porta- leiro, é necessário que ele se volte para os únicos intelectuais
rias ministeriais que instituem o controle de diversas áreas so- disponíveis, e que se colocam desde o início a favor do golpe
ciais ao mesmo tempo que extinguem atividades culturais e militar. Quem são essas figuras, no dizer do próprio Conselho,
pedagógicas consideradas como subversivas — Comissão de “altamente representativas da cultura brasileira no campo das
Cultura Popular. Programa Nacional de Alfabetização, Con- artes, das letras e das ciências humanas”? São, na verdade,
selho Consultivo do Serviço Nacional de Teatro, etc. “ É signi- membros de um grupo de produtores de conhecimento que
ficativo que Castelo Branco, quando inaugura o Conselho Fe- pode ser caracterizado como de intelectuais tradicionais. Re-
deral de Cultura, justifique o atraso de uma política cultural crutados nos Institutos Históricos e Geográficos e nas Acade-
do governo devido aos “imperativos problemas estudantis” mias de Letras, esses intelectuais conservadores e represen-
com os quais se deparou o golpe de 64. Por isso se institui tantes de uma ordem passada irão se ocupar da tarefa de tra-
ainda em 1965 uma comissão que tem por finalidade elaborar çar as diretrizes de um plano cultural para o país. A origem e
as bases de um plano nacional de cultura.^’ Essa comissão, a ideologia desses intelectuais não deixará de criar problemas
trabalhando junto ao MEC, vem propor a criação de um Con- para o desenvolvimento dos objetivos a se propõem, pois suas
selho Federal de Cultura (CFC) que é instituído em 1966. ’’ A idéias não têm mais a força de necessidade histórica. Porém é
sessão inaugural do Conselho, aberta pelo presidente Castelo importante compreender que, para o Estado, sua incorpora-
Branco, mostra como o Estado atribuía uma importância con- ção permite estabelecer uma ligação entre o presente e o pas-
siderável às questões culturais, e o que se esperava de uma sado. Ao chamar para o seu serviço os representantes da “tra-
instituição como aquela. Apesar de o CFC não ser um órgão dição”, 0 Estado ideologicamente coloca o movimento de 64
executivo, seu objetivo seria coordenar as atividades cultu- como continuidade, e não como ruptura, concretizando uma
rais. Castelo Branco sublinha a necessidade de o governo de- associação com as origens do pensamento sobre cultura brasi-
senvolver para a cultura um “plano de envergadura nacio- leira, e que vem se desenvolvendo desde os trabalhos de Sílvio
nal”; Tarso Dutra, então ministro da Educação, também se Romero. Na medida em que grande parte desta ideologia tra-
refere a um “plano nacional em favor da cultura”. Esta balhada pelo pensamento tradicional é incorporada nos docu-
preocupação de se pensar a questão cultural em termos na- mentos governamentais, é importante analisar o discurso do
cionais está na raiz da criação do próprio Conselho, cuja fina- CFC para se compreender como se legitima uma visão de cul-
tura brasileira. “

(20) Ver Atos do Governo da República Federativa do Brasil: 31.3.1964 a (24) Consultar Decreto-Lei de criação do CFC, artigo 2?, sobre a com-
31.1.1969, MEC, Serv. Documentação, Rio de Janeiro, 1969. petência e objetivos do Conselho.
(21) Portaria Ministerial de 20.6.65 (Diário Oficial, 27.7.65, p. 7256,1. (25) A análise de discurso do CFC foi feita tomando-se como objeto de
A comissão, presidida por Josué Montello, é formada por Adonias Filho, Au- esbjdo as seguintes revistas: Cultura, publicação mensal e porta-voz oficial do
gusto Meyer, Murilo Miranda, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Américo Ja- Conselho. Pçríodo pesquisado: do n° 1, julho 1967, ao n? 42, dezembro 1970.
cobina Lacombe. Boletim, que substitui a revista Cultura, de periodicidade trimestral. Período
(22) Decreto-Lei h?74, de 21.11.66 (Diário Ofícial, 22.11.66; p. 13529). pesquisado; do n? 1, janeiro 1971, ao n? 36, julho-setembro 1979. Revista de
(23) Os discursos de Castelo Branco e de Tarso Outra foram publicados
Cultura Brasileira, também publicada pelo Conselho. Período pesquisado: do
na revista Cw/fura, n? 1, julho 1967.
92 RENATO ORTIZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 93

Se considerarmos o termo “mestiçagem” num sentido branco, negro e índio apontam neste sentido para uma di-
amplo, talvez possamos definir a ideologia do CFC como mensão que desde a obra de Gilberto Freyre vinha sendo colo-
sendo a de um Brasil mestiço. Como sabemos, a temática não cada como pluralidade étnica, cultural e física. “ Brâsil: plu-
é nova, pois foi uma preocupação constante dos pensadores do ralidade de culturas, diversidade de regiões. O discurso re-
final do século XIX e se prolongou até os anos 30. O que cha- toma a perspectiva do regionalismo como “filosofia social”
ma, porém, a atenção do pesquisador é que o termo mestiça- quando Arthur Cezar Ferreira Reis (segundo presidente do
gem se reveste na verdade de um duplo sentido. O primeiro, e Conselho) fala, por exemplo, sobre a importância da Amazô-
mais imediato, diz respeito à questão racial. Neste sentido, os nia no contexto cultural. Ele, na verdade, retoma os argumen-
artigos e as afirmações que encontramos se filiam ao velho tos de Gilberto Freyre sobre o Nordeste. ” A região é uma das
tipo de análise que compreende o Brasil como resultado da partes desta diversidade que define a unidade nacional. O ele-
fusão das três raças povoadoras.’^ No entanto, o discurso mento da mestiçagem contém justamente os traços que natu-
apresentado, apesar de se referir a esta dimensão da miscige- ralmente definem a identidade brasileira; unidade na diversi-
nação, não toma a problemática racial como ponto central. dade. Esta fórmula ideológica condensa duas dimensões: a
Isto é compreensível, pois de uma certa forma o problema já variedade das culturas e a unidade do nacional. Dentro desta
havia sido ideologicamente equacionado nos anos 30, o povo perspectiva o documento de Política Nacional de Cultura po-
brasileiro sendo de uma vez por todas definido pelo cruza- derá definir a cultura brasileira como o produto da acultura-
mento das raças. O que interessa, pois, ressaltar é o signifi- ção de diversas origens. Ela “decorre do sincretismo de dife-
cado segundo do preconceito de mestiçagem, o que nos leva à rentes manifestações que hoje podemos identificar como ca-
noção de heterogeneidade. Quando os membros do CFC afir- racteristicamente brasileiras, traduzindo-se num sentido que,
mam que a cultura brasileira é plural e variada, isto é, que o embora nacional, tem peculiaridades regionais”. “
Brasil constitui um “continente arquipélago”, o que se pro- A idéia de pluralidae encobre, no entanto, uma ideologia
cura é sublinhar o aspecto da diversidade. ” Os elementos de harmonia, característica do modelo de pensamento de Gil-
berto Freyre. Maria Isaura Pereira de Queiroz tem razão ao
afirmar que Gilberto Freyre é talvez um dos primeiros pensa-
n? 1, julho-setembro 1969, ao n? 20, abril-junho 1974, quando a publicação M dores brasileiros que procura compreender a realidade nacio-
encerra. A partir de janeiro de 1971, o MEC publica Cultura, de circulação rnais
abrangente que a antiga revista do Conselho. Muito embora esta nova revista
seja de encargo do Mec, ela veicula em vários pontos uma ideologia similar à
do Conselho. Por isso pesquisamos o período que vai do nf 1, janeiro 1971,
ao n? 30, dezembro 1978.
(26) Ver Manuel Diegues Jr., "História da Cultura Brasileira", Cultura, 1977. Sobre a regionalização da cultura, ver 3? Reunião Plenária do Encontro
n? 37, julho 1970; Manuel Diegues Jr., "Razões Brasileiras contra a Discrimi- Nacional de Cultura; "Integração Regional da Cultura", Miguel Reale; "Regio-
nação Racial", Cultura, n?21, março 1969; G. Freyre, "Negritude, Mística sem nalização e Inter-regionalização Cultural", M. Diegues Jr.; "Experiência de Re-
Lugar no Brasil", Boletim, n? 2, abril-junho 1971; Fala de Pedro Calmon, Bo- gionalização no Nordeste", Fernando Freyre..
letim, n? 23, julho 1976 (especial sobre o Encontro Nacional de Cultural; Gil- (28) A contraposição do discurso do Conselho aos trabalhos de Gilberto
berto Freyre, "O Brasileiro como Tipo Nacional de Homem Situado no Tró- Freyre (também membro do CFC) permite situá-lo dentro de um quadro que
pico", Revista Brasileira de Cultura, n? 6, out.-dez. 1970. denominamos da intelectualidade tradicional. Não se deve, porém, pensar em
(27) As afirmações sobre a cultura brasileira em sua essência plural é o uma influência causal de seus escritos sobre os membros do Conselho. Creio
substrato do discurso do Conselho. Vamos encontrá-la em todos os textos que que Gilberto Freyre pode ser considerado um autor paradigmático, isto é, sua
se referem à temática do homem brasileiro e da cultura nacional. Por tsso, só obra condensa, na sua forma mais acabada, a ideologia de todo um grupo
citaremos alguns artigos que a desenvolvem num sentido mais orgânico. Ar- social. Neste sentido a comparação explicita melhor a natureza do discurso
thur Cezar Ferreira Reis, "A Participação da Amazônia no Contexto Cultural", analisado, mas sem vinculá-lo a uma relação de causalidade. Tomamos Gil-
Cultura, n? 4, outubro 1967, "Programa de Ação em Favor da Cultura", Cul- berto Freyre mais como um representante de um determinado tipo de pensa-
tura, n? 18, dezembro 1968, "A Cultura Brasileira", Cultura, n? 36, junho 1970; mento do que um pensador que influencia esta ou aquela análise.
discurso do ministro Ney Braga no 1 Encontro Nacional de Cultura, Boletim, (29) Gilberto Freyre, interpretação do Brasil, Rio de Janeiro, José
n?23, julho 1976; Gilberto Freyre, "Cultura Plural", Boletim, n? 26, jan.-março Olympio, 1947.
(30) Política Nacional de Cultura, MEC, 1975, p. 16.
94 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 95

nal utilizando uma série de conceitos bipolares.” Casa-grande um clima democrático mais saudável do que o das repúblicas
e senzala, sobrados e mucambos, nação e região. Os próprios espanholas, nas quais, sob o nome de presidentes, caudilhos
títulos de algumas de suas obras revelam esta dimensão de puderam às vezes exercer durante anos e anos o mando abso-
polaridade que segundo o autor caracterizaria a vida brasi- luto”.” Democracia significa neste contexto heterogeneidade
leira. No entanto, para Gilberto Freyre diversidade significa e harmonia.
unicamente diferenciação, o que elimina a priori os aspectos A ideologia do sincretismo exprime um universo isento de
de antagonismos e de conflito da sociedade. As partes são dis- contradições, uma vez que a síntese oriunda do contato cultu-
tintas, mas se encontram harmonicamente unidas pelo dis- ral transcende as divergências reais que porventura possam
curso que as engloba. Num certo sentido o pensamento de existir. Calcada na antropologia culturalista, a imagem de um
Gilberto Freyre é tomista, pois elimina qualquer possibilidade Brasil cadinho das raças exprime o contato entre os povos
de superação; o senhor não se opõe ao escravo mas se dife- como uma aculturação harmônica dos universos simbólicos,
rencia deste. A senzala não representa um antagonismo à sem que se leve em consideração as situações concretas que
casa-grande, mas simplesmente impõe uma diferenciação que orientam os próprios contatos culturais. Na verdade, o con-
é muitas vezes complementar no quadro da sociedade global. ceito de aculturação, herdado da antropologia culturalista
Daí a ênfase da análise recair sobre os aspectos “positivos” americana, favorece este tipo de interpretação. Quando se de-
das culturas, seja, as suas contribuições (a música, a língua, a fine 0 contato cultural como a conjunção de dois ou mais sis-
cozinha) para uma cultura sincrética. Dentro desta perspec- temas culturais autônomos, o que se está fazendo é dissociar a
tiva os conflitos se resolvem no interior do próprio conceito de cultura da sociedade.^ Não se considera, assim, as “situa-
diferenciação, que pressupõe a existência de uma sociedade ções" histórico-sociais no interior das quais se realiza o con-
harmônica e equilibrada. A noção de mestiçagem engloba tato. Na verdade, cultura do “homem branco" não entra sim-
neste sentido outras idéias e vai travestir o significado de ter- plesmente em contato com a do “homem negro”, existe uma
mos como “democracia" e “liberdade". Não é por acaso que rede de relações sociais que os transcendem para apreendê-
os movimentos negros denunciam o racismo do conceito de los no interior de uma economia escravista. O que o conceito
“democracia racial". A idéia de harmonia preside, porém, de aculturação pressupõe é um mundo onde não se manifes-
todo 0 pensamento de Gilberto Freyre, e não se resume à ques- tam as relações de poder. Esta ausência é compreendida pela
tão racial, ela vai se manifestar em suas análises das relações ideologia tradicional como sendo um indício de democracia.
entre portugueses e árabes, cidade e campo, indústria e plan- É significativo que o discurso do primeiro presidente do CFC
tação.^? Quando se refere, por exemplo, ao equilíbrio demo- estabeleça um antagonismo entre cultura “para todos” ou
crático que se instaurou no Brasil devido à diferenciação de “soviética” e cultura “para cada um” ou “democrática”.” Ao
poderes, sistema monárquico e sistema de plantação, compa- apreender o processo de aculturação, o discurso ideológico se
rando-o às repúblicas espanholas ele dirá: “O resultado é que apropria de uma categoria antropológica, para associá-la à
se criou no Brasil, com essa rivalidade entre forças que quase noção de cultura democrática, o que imediatamente a contra-
se equiparavam (a monarquia e as fazendas) em autoridade, põe ao totalitarismo, atribuído ao socialismo. Uma segunda

(31) M. I. Pereira de Queiroz, "Cientistas Sociais e Autoconhecimento (33) Gilberto Freyre, interpretação do Brasii, op. cit., p. 116.
da Cultura Brasileira através do Tempo", III Encontro ANPPCS, Belo Hori- (34) Ver Linton, Redfield e Herskovits, "A Memorandum for the Study
zonte, 1979, mrmeo. of Accolturation", American Anthropoiogy, 1936, vol. XXXVIII; Siegel, Vogi,
(32) Gilberto Freyre, Interpretação do Brasil, Rio de Janeiro, José Olym- Watson, Broom, "AccuHuration; an exploratory formulation", American An-
pto,1947; O Mundo que o Português Criou, Rio de Janeiro, José Olympio, tbropoiogist, vol. 56, n? 6, 1954. Para uma crítica, ver R. Bastide, "Accultu-
1940; Região e Tradição, Rio de Janeiro, José Olympio, 1941; Casa Grande e ration". Paris, Enciciopaedia Universaiis, 1968.
Semeia, Rio de Janeiro, José Olympio; Sobrados e Mucambos, Rio de Ja- (35) Discurso de Josué Monteilo na ocasião da inauguração do CFC,
neiro, José Olympio, Cultura, n? 1,1967.
96 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 97

definição de cultura pode, assim, ser avençada: “É essa cul- mônio histórico, arquivos, folclore.” Nas discussões sobre a
tura para cada um, respeitando poderes e volições individuais, elaboração de um possível plano de cultura nacional, o ele-
que se harmoniza à tradição do Brasil como nação democrá- mento que retém prioritariamente a atenção dos intelectuais
tica”. * A qualidade democracia passa desta forma a consti- do Conselho é o da conservação do patrimônio,*’ Toda a polí-
tuir a essência da brasilidade, o que significa reconhecer a tica de criação dos Conselhos Estaduais de Cultura, que pro-
existência objetiva de uma "verdadeira” cultura brasileira, cura implantar um sistema nacional de cultura, está calcada
espontânea, sincrética e plural. Sua essência definiria a reali- nesta visão do tradicional. Os conselhos são instituições que
dade de uma identidade nacional que se realizaria no Ser do teriam por finalidade a "defesa da cultura”; por isso o CFC
homem brasileiro: “democrata por formação e espírito cris- tem, desde o início, interesse em normalizar os auxílios finan-
tão, amante da liberdade e da autonomia”.” ceiros destinados às instituições que se incumbiriam da con-
Um segundo aspecto do discurso do CFC diz respeito à servação e guarda do patrimônio nacional. O próprio docu-
tradição. Este traço é na verdade definidor da própria natu- mento de Política Nacional de Cultura, que integra boa parte
reza do pensamento dos intelectuais tradicionais. Voltados da ideologia do CFC, considera como seu objetivo primeiro
“conservar o acervo constituído e manter viva a memória na-
para o passado, eles insistem, como Gilberto Freyre em seu
cional, assegurando a perenidade da cultura brasileira”.'" O
manifesto tradicionalista, na preservação das expressões e
argumento da tradição é fundamental para a orientação de
manifestações configuradas no passado da história brasilei-
uma política do Estado que se volta para atividades como
ra. “ Não é por acaso que os Institutos Históricos e Geográfi-
“pró-memória”, “museu histórico”, “projeto memória do
cos cultivam a memória dos grandes nomes da história nacio- teatro brasileiro”, “dia do folclore”, etc.« Ele legitima a ação
nal, e que os folcloristas se voltam para o estudo das tradições
populares. A cultura brasileira dentro desta perspectiva é vista
como o conjunto de valores espirituais e materiais acumulados
através do tempo. Ela é um patrimônio, e por isso deve ser (39) Significativamente, o segundo número da revista Cultura é todo
dedicado â questão do patrimônio nacional (agosto 1967); o mesmo ocorro
preservada. A idéia de patrimônio possui no entanto duas di- com 0 n? 34 (abril 1970). A ênfase sobre o aspecto da preservação pode ser
mensões distintas. A primeira é de natureza ontológica e se avaliada quando o Consellio estabelece, por exemplo, as normas e prioridades
na distribuição dos parcos recursos que possui. São os critérios de "guarda e
refere ao Ser brasileiro. Tradicional significa diversidade e conservação do acervo" que são considerados como princípios norteadores de
multiplicidade da cultura brasileira. Quando Josué Montello uma política de financiamento. Ver "Relatório das Atividades do Exercício de
afirma que a “cultura para cada um” se harmoniza às “tradi- 1969", Cultura, n? 31, janeiro 1970.
(40) Ver ”0 que foi a 1? Reunião da Cultura”, Cultura, n? 10, abril
ções do Brasil”, pressupõe-se a existência de um substrato fi- ]®68; "Por um Plano Nacional de Cultura" (editorial). Cultura, n? 19, jan. 1969;
losófico que permanece invariável ao longo da história, e que A. C. F. Reis, "O Plano Nacional de Cultura", Cultura, n? 21, março 1969;
define a identidade nacional: democrática e plural. A segunda ■Diretrizes para uma Política Nacional de Cultura", Boletim, n? 9, jan.-mar.
1973; Irmão Otão, "Uma Política Nacional de Cultura", Boletim, n? 10. abril/
dimensão diz respeito à objetividade dessa cultura e se traduz )un)to1973.
pelo acervo material legado pela história. Os membros do con- (41) Política Nacional de Cultura, op. cit., p. 28.
(42) São inúmeros os artigos que aparecem na revista Cultura, do MEC,
selho têm uma preocupação constante com este tema, ele associando a questão da tradição ã da memória e da identidade nacional. Por
constitui na verdade o princípio que orienta toda uma política exemplo; Lélia Coelho Frota, "Museu Nacional do Cinema; Roteiro da Memó-
de preservação e defesa dos bens culturais — museus, patri- na Nacional", n? 3, júl.-set. 1971; Macksen Luiz, "Museu do Índio: Ou a Busca
ua Identidade Brasileira", n? 4, out.-dez. 1971; Manoel A. Barroso, ''Museu
Nacional Tem Viva a Memória Nacional", n? 8, out.-dez. 1972; Maria L. Bor-
9es, "Defesa e Programação do Folclore Brasileiro", n? 12, jan.-mar. 1974;
(36) Ibidem, p. 7. ernando Sales, "Defesa do Patrimônio é Incentivo â Cultura", n? 15, out.-
(37) Plano Nacional de Cultura, op. cit.. p. 8. ez, 1974. Ver também Aloísio Magalhães, "Fundação Nacional Pró-Memó-
(38) A. C. F. Reis, "O Culto do Passado no Mundo em Renovação", e , Boletim, n? 36, jul.-set. 1979; "Projeto Memória; Uma Estrutura Aberta",
Revista Brasileira de Cultura, n? 2, out.-dez. 1969. »evistade TeaíroíSNT), jan.-fev. 1977.
98 RENATO ORTIZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 99
do Estado nessas diversas áreas, desenvolvendo uma proposta
figuras como Sílvio Romero; Getúlio é fruto da zona missio-
que em princípio recuperaria a memória e a identidade brasi-
leira reificadas no tempo. neira, enquanto Sílvio Romero representaria as forças telúri-
cas e tradicionais do mundo nordestino, que em última ins-
Até o momento vínhamos cotejando o discurso do CFC
tância definem a raiz do Ser nacional.O Estado-Getúlio é “fo-
aos escritos de Gilberto Freyre porque o havíamos tomado em
rasteiro”, porque não manifesta a brasilidade dos “povoado-
sua dimensão paradigmática para compreender e explicitar o
res verticais”, isto é, da velha classe dominante que deitou as
pensamento tradicional. Porém, uma vez que a ideologia do
Conselho se expressa num momento histórico distinto daquele rdzes de um país como o Brasil. Carlos Guilherme Mota tem
em que Gilberto Freyre escreve, surgem algumas dificuldades. razão quando insiste que a grande influência de Gilberto
Freyre se deu devido à temática do nacionalismo. Mas é ne-
A problemática do Estado aparece na obra de GübertoFreyre,
em sua grande extensão, sob o signo da suspeita.'” Na ver- cessário compreender que este nacionalismo não se associa a
uma política de Estado que nos anos 30 e 40 encontra-se vol-
dade, 0 autor representa uma camada da classe dominante
tada para a promoção de valores distintos dos da República
que historicamente é superada pelos acontecimentos da revo-
lução de 30. Por isso o Estado moderno é visto quase que ex- Velha. A ideologia tradicional toma o partido das regiões, isto
é, do estamento dominante que pouco a pouco perde a direção
clusivamente em termos de sua tendência centralizadora. Em
política do Brasil. Neste sentido o Estado se contrapõe ao
sua análise do Império, esta questão da unificação e da cen-
“tradicional”, pois ele é o promotor do processo de “moder-
tralização já aparece. Porém, se Gilberto Freyre, por um lado,
aponta algumas vezes para os males da centralização no sé- nização” do país.
Quando os intelectuais tradicionais são recrutados pelo
culo passado, por outro ele “salva” os valores espirituais im-
Estado, eles se deparam com uma nova realidade: construir
periais ao definir a existência de uma “aristocracia democrá-
tica” que em princípio teria respeitado a tradição sincrética uma política de cultura. Isto faz com que a noção de Estado
tenha de se adequar, quando possível (e veremos que nem
brasileira, seja, a “democracia” racial e política. O movi-
sempre isto ocorre), ao discurso tradicional. O primeiro pro-
mento de 30 vai, no entanto, acentuar o processo de unifica-
ção nacional, o que será visto pelo pensamento tradicional blema cora 0 qual os conselheiros se defrontam se refere à
democracia. Em quase todos os documentos que nos remetem
como uma tendência “totalitária” que se contraporia à natu-
reza brasileira da unidade na diversidade. É interessante ver a uma eventual política de cultura, esta preocupação se mani-
como Gilberto Freyre interpreta, por exemplo, o advento do festa. Arthur Cezar Ferreira Reis dirá, por exemplo: “Numa
política de Estado visando o desenvolvimento do país e na qual
Estado Novo; comparando-o aos sistemas monárquico e de
plantação que imperavam no século passado, ele dirá: “A não poderá deixar de constituir capítulo de maior relevo o de
atual tendência antidemocrática na política brasileira signi- sua cultura, não os teremos de amarrar à disciplina rigorosa
que teima em limitar o espírito criador. As culturas, em ne-
fica, como sistematização de idéias fascistas ou quase fascis-
nhum momento da história, puderam desenvolver-se sob o
tas, fato novo, e contrário não somente aos pendores republi-
guante de programas e dos planos que controlassem e impe-
canos, mas às próprias tradições desenvolvidas à sombra da
dissem a naturalidade de sua elaboração. A liberdade de criar
monarquia e do velho sistema rural brasileiro”.“ O Estado
não pode nem deve encontrar restrições, o que não significa
moderno é, portanto, “estranho” à história brasileira. Por isso
que 0 Estado esteja ausente”.* O discurso tem, desta forma,
0 autor dirá que Getúlio Vargas é um caudilho, em oposição a
a necessidade de pensar ideologicamente um planejamento

(431 Ver Interpretação do BrasH, op. cit., onde o autor resume seu (45) C. Guilherme Mota, Ideologia da Cultura Brasileira, São Paulo,
ponto de vista em relação à história do Brasil. Ática, 1977.
(44) Ibidem, p. 115. (48) A. C. F. Reis, “Programa de Ação em Favor da Cultura", op. cit.,
p. 16.'
100 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 101

que garanta a “democracia” e as tradições brasileiras. A con- dois fatores essenciais: o reconhecimento e a valorização do
tradição é resolvida retomando-se o velho tema do “totalita- acervo e da expressão cultural do povo e, de modo paralelo, da
rismo”. Referindo-se a um esboço de plano de cultura nacio- divulgação e do consumo dos valores culturais universais a fim
nal, elaborado pelo Conselho e entregue ao ministro Jarbas de possibilitar efetiva participação na civilização atual. Quan-
Passarinho, os conselheiros dirão: “Foi (o plano) elaborado do defendemos valores culturais regionais, fazemo-lo pela di-
nos moldes mais atuais das linhas de planejamento de Estado, mensão universal neles contida.’"” Na mesma linha, o minis-
de modo a autorizar a presença oficial nas iniciativas criado- tro Jarbas Passarinho afirmará que a personalidade nacional é
ras do próprio Estado ou da iniciativa privada, desse modo a expressão mais elaborada da cultura brasileira, por isso “a
não limitada mas melhor assistida e incentivada para sua ação sua defesa impõe-se tanto quanto a do território nacional”. ”
criadora e renovadora. Não há nele qualquer vislumbre de A ideologia da Segurança Nacional se estende assim à esfera
contenção ideológica, como ocorre em certos países, onde o da cultura, a memória devendo necessariamente ser preser-
processo cultural é policiado pelo Estado, que impede a livre vada, caso contrário o homem brasileiro estaria se privando de
criação ou a criação intelectual que conflite com a ideologia sua dimensão ontológica: o sincretismo.
política vigente”. Não se leva, desta forma, em nenhum mo- A segunda dificuldade que surge com a associação dos
mento, o dado de realidade que marca a sociedade brasileira intelectuais tradicionais ao Estado se refere ao relacionamento
— a censura —, o discurso se situa em um plano puramente entre cultura e desenvolvimento. Desde a criação do CFC este
ideológico que busca resolver as contradições internas de um problema se coloca, e em seu discurso inaugural o ministro
pensamento que se associa a uma política de Estado. * Dentro Tarso Dutra procura equacioná-lo da seguinte maneira: “O
deste quadro, a liberdade de criação é preservada somente progresso que principia a irradiar-se em termos verdadeira-
quando associada à natureza sincrética das manifestações cul- mente nacionais, com o desenvolvimento harmônico de todas
turais. O Estado, assumindo o argumento da unidade na di- as regiões brasileiras, não poderia deixar de ser complemen-
versidade, torna-se brasileiro e nacional, ele ocupa uma posi- tado, no plano educacional e técnico, por um atendimento no
ção de neutralidade, e sua função é simplesmente salvaguar- plano da cultura”. A cultura é, neste sentido, considerada
dar uma identidade que se encontra definida pela história. O como complemento ao desenvolvimento tecnológico, o que
Estado aparece, assim, como guardião da memória nacional significa que uma nação, para se tornar potência, deveria le-
e da mesma forma que defende o território nacional contra as var em consideração os valores “espirituais” que a definiriam
possíveis invasões estrangeiras preserva a memória contra a como civilização. No entanto, a relação entre cultura e desen-
descaracterização das importações ou das distorções dos pen- volvimento aparece sempre, no interior do discurso do Conse-
samentos autóctones desviantes. Cultura brasileira significa lho, como uma tensão. Existe um descompasso entre as falas
neste sentido “segurança e defesa” dos bens que integram o do Ministério da Educação e a ideologia dos conselheiros,
patrimônio histórico. Clarival Valladares, falando das Casas pois, ao se considerar a cultura como elemento complementar
de Cultura contra a cultura “enlatada”, estrangeira e nacio- ao desenvolvimento, está-se na prática subordinando-a aos
nal, associa a guarda dos bens culturais à noção de segurança interesses de outras áreas, em particular da economia. Esta
nacional. “A segurança nacional que entendemos depende de tensão nunca é aberta, mas é interessante observar que os
membros do Conselho percebem o antagonismo que os coloca
(47) Relatório do presidente do CFC, Cultura, n? 42, dez. 1970, p. 16.
(48) As posições de vários conselheiros em favor da censura pode ser
avaliada através de artigos como; D. Marcos Barbosa, Cultura, n?36, junho 70, (49) Clarival do Prado Valladares, "Casas de Cultura", Cultura, n? 10,
"Liberdade irresponsável"; Divisão de Segurança e Informações, MEC, "Sobre abril 1968, p. 58.
Programas de Auditório na TV"; Ojacir Menezes, "Censura e Cultura", Bole- (50) "Diretrizes para uma Política Nacional de Cultura", documento ela-
tim, n? 19; e "Até Onde é Livre a Manifestação do Pensamento", Boletim, n? borado pelo Conselho, Boletim, n?9, jan.-mar. 1973, p;58.
21,jBn.-mar. 1976. (51) Fala do ministro. Cultura, n? 1, p. 15.
102 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 103

em posição secundária no interior do aparelho do Estado. São Paulo representa, na realidade, uma oposição entre mundo
várias as queixas que se referem à cultura como o “primo po- tradicional e mundo moderno. Não é difícil perceber na obra
bre” da economia. O Conselho possui uma pequena dotação de Gilberto Freyre a sedução que sobre ele exerce o mundo
orçamentária, o que o impede de promover uma efetiva po- dos senhores de engenho, as tradições populares, as festas, e
lítica de cultura. Os relatórios de atividade evidenciam este outros elementos que formaram o que se denominou de civili-
fato ao mesmo tempo que mostram as dificuldades dos conse- zação do açúcar. São, no entanto, as passagens mais literárias
lheiros em verem atendidas até mesmo algumas sugestões de de seus livros que melhor revelam esta dimensão do pensa-
caráter normativo, como, por exemplo, a criação de uma Se- mento do autor. Descrevendo a vida familiar no século pas-
cretaria de Assuntos Culturais do MEC (efetivada somente em sado, ele afirma: “Antes da Abolição vivia-se mais do que hoje
1979) ou a apresentação de um anteprojeto de Política Nacio- vida de família. E nada o prova melhor que o mobiliário de
nal de Cultura ao Congresso. Ê necessário, porém, entender então. Eram sofás, cadeiras, cômodas e consolos que pare-
0 porquê deste antagonismo, o que nos leva novamente à aná- ciam criar raízes no chão ou no soalho da casa. O mobiliário
lise da ideologia tradicional e dos trabalhos de Gilberto Freyre. de hoje é a idéia que menos oferece: fixidez e conforto”.^
Um aspecto interessante da obra de Gilberto Freyre é a Fixidez e raiz. A primeira idéia contém todos os elementos
distinção que se estabelece entre cultura e técnica, Não me re- que organizam a coesão patriarcal, as relações fixas entre pa-
firo tanto à definição antropológica de cultura ou aos proble- trões e trabalhadores, e que é ameaçada com o advento da
mas de aculturação, mas a uma dimensão do universo do pen- industrialização e da urbanização. A segunda nos remete às
samento tradicional, que associa intimamente o conceito a va- raízes da própria cultura brasileira, à tradição. Uma passa-
lores como tradição, região e humanismo. A polaridade cul- gem relativa aos serões é interessante: “Já não existem mais
tura/técnica não é de natureza conceituai mas ideológica, e serões de família, com a leitura depois do jantar, de algum
tende a vincular o último termo a todo um mundo de valores romance ou do novo Almanack. Serões que o candeeiro de
que corresponde ao progresso material e à economia. Ê suges- kerosene docemente favorecia, gregário pela sua natureza,
tivo o contraste que se constrói entre o Nordeste e São Paulo. não faltando a Agel Canivet razões para atribuir à luz elétrica
Desde seu manifesto tradicionalista, Gilberto Freyre opõe o lamentável influência sobre a vida familiar: a luz elétrica esti-
movimento modernista do Sul ao regionalismo e às tradições mula a dispersão individual”.O candeeiro é gregário, a luz
nordestinas. Em outros escritos esta polaridade se esclarece elétrica dispersiva. A categoria de cultura se reporta assim aos
melhor, e pode-se perceber que ela estrutura a própria obra valores espirituais que consolidam uma civilização tradicio-
do autor. São Paulo é “locomotiva”, “cidade”, e o paulista é nal, a técnica se refere à modernidade do mundo “industrial”.
"burguês”, “industrial”, tem gosto pelo trabalho, é arro- Os “velhos” paulistas eram representantes legítimos de um
gante pelas suas realizações técnicas e econômicas. O Nor- mundo passado, os “novos” são imbuídos de um espírito de
deste é "terra”, “campo”, seus habitantes são telúricos e tra- cálculo que fomenta o desenvolvimento tecnológico que em
dicionais, "os mais brasileiros pela conduta do que qualquer última instância inviabiliza a permanência do universo pa-
outro tipo regional”. A oposição não se restringe, porém, ao triarcal. Gilberto Freyre dirá, quando analisa a República,
aspecto regional, ela é mais profunda. Gilberto Freyre diz que que foi neste período que foram introduzidas as técnicas era
os nordestinos são como os “antigos” e “velhos” paulistas, da grande escala no país. Mas acrescenta: “Bem-sucedidos, na
mesma forma que atribui qualidades como telúrico e tradicio- valorização do seu café, os primeiros líderes republicanos do
nal aos “mineiros das zonas mais antigas”. Nordeste/São Brasil não cuidaram dos problemas humanos, não desenvol-

(52) Ver relatórios de atividades, Cultura, n?s25e31. (54) G. Freyre. Região e Tradição, op. cit., p. 125.
(53) G. Freyre, Interpretação do Brasil, op. cit. (55) G. Freyre, ibidem, p. 126.
104 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 105

veram nenhum plano para a valorização do homem brasi- mente a tradição encerra os valores universais que definiriam
leiro”; eles se contentaram com a “mística do progresso mate- a essência humana. Tem-se assim uma necessidade estrutural
rial”.^ A técnica é quantidade, a cultura é qualidade, por isso de conservação, “pois é nesse passado onde estão as riquezas
está vinculada aos valores “humanos” e “espirituais”. espirituais, as grandes fontes de pensamento”. “
A oposição cultura e técnica se reproduz no discurso do A crítica da modernidade se realiza, desta maneira, em
Conselho através da categoria de “humanismo". Seria inútil nome de um humanismo que privilegiaria a dimensão da qua-
procurar associar a noção empregada a uma concepção filosó- lidade em detrimento da quantidade. O ponto de tensão entre
fica mais elaborada do conceito, na realidade o que se consi- esses dois termos pode ser apreendido quando se considera,
dera como humanismo nos remete à problemática do tradi- por exemplo, a relação entre cultura popular e cultura de
cional e do moderno. Ao conceber o homem brasileiro como massa. O popular é concebido como beauté du mort, ele é
naturalmente humanista, o discurso vai contrapô-lo ao desen- reificado e objetivado enquanto memória nacional. A cultura
volvimento de uma sociedade moderna que, incapaz de se popular deve ser preservada porque em sua essência ela é tra-
orientar no caminho da cultura, se volta para o “economi- dição e identidade. Os meios de comunicação de massa per-
cismo” e para o “tecnicismo” da máquina. Neste sentido os tencem ao domínio da quantidade, eles massificam e unifor-
brasileiros estariam “copiando” os modelos estrangeiros. A mizam a diversidade do ideal brasileiro. “A cultura massifi-
análise de discurso permite perceber com clareza os antago- cante vem deturpando a conformação de nossa nacionalidade
nismos latentes entre este tipo de intelectual tradicional e os num internacionalismo gentio e que, subliminarmente poderá
tecnocratas que integram as esferas governamentais. Djacir ter consequências funestas de abolir, apagar, destruir nossas
Menezes, retomando de Gilberto Freyre a expressão “asfixia tradições e nossos hábitos”.^'' O folclore precisa ser preser-
do humanismo”, descreve o avanço do tecnicismo numa socie- vado da contaminação profana do mundo moderno. “Popu-
dade que se industrializa rapidamente como o Brasil.5’ Tra- lar" é cultura, a “massa” é técnica. Por isso o pensamento
çando uma breve história dos intelectuais brasileiros, ele desco- tradicional opõe os valores humanos e regionais ao tecnicismo
bre que a partir da revolução de 30 um novo tipo de pensa- moderno, brasileiro ou estrangeiro, como por exemplo em sua
mento se impõe: o tecnocrata. São esses intelectuais, que ca- crítica aos centros de televisão (São Paulo e Rio de Janeiro)
recem de “cultura geral”, não possuem uma “consciência no que produzem uma cultura massificante e que procuram
processo”, que se tornam a meta do sistema educacional bra- impô-la a todo o país.
sileiro. As universidades se especializam e perdem o aspecto O Estado, ao incorporar alguns elementos do discurso
qualitativo da cultura. A técnica é neste sentido quantidade, tradicional, legitima sua política cultural. Se percebermos que
isto é, massificação, progresso material, ideologia do valor a relação qualidade-quantidade corresponde à relação cul-
numérico, economia. Desmassificar significaria destacar a tura-técnica, tem-se que a implementação de uma política de
personalidade, em particular brasileira, do processo de unifor- cultura se associa a um processo de humanização da técnica.
mização cultural. Não existem porém afinidades entre o pen- Os'documentos oficiais, incorporando os argumentos do Con-
samento tradicional e conservador e o da escola de Frankfurt. selho, justificam as contradições do capitalismo brasileiro,
O indivíduo é algo que está historicamente dado, mas que se afirmando que o desenvolvimento econômico é insuficiente
perdeu ao longo do desenvolvimento das forças materiais. So- para o desenvolvimento social. O Estado passa, desta forma, a
ser definido como o centro irradiador de um “humanismo di-
rigido”, o que por um lado garante a neutralidade “democrá-
(56) G. Freyre, Interpretação do Brasil, op. cit., p. 201.
(57) Djacir IVlenezes, "Asfixia do Humanismo", Cultura, n? 24,
junho (58) Djacir Menezes, "Asfixia do Humanismo", op. cit., p. 11.
1969. Do mesmo autor: "Ainda os Velhos Temas de Tecnicismo e Huma- (K) Maria Alice Barroso, "Despertar para a Cultura", Boletim, n? 11,
nismo", Boletim, n? 8, out.-dez. 1972, e "Universidade, Massificação, Elite e jui.-set. 1973, p. 40.
Outros Problemas", Cultura, n? 29, nov. 19€S.
106 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 107

tica” da ação cultural, por outro significa, no nível do dis- ideológicas da cultura universal, na medida em que se processa
curso, a vinculação do desenvolvimento econômico aos valores uma consolidação da internacionalização do capitalismo.
humanos.“ Se tivermos em mente o estudo de Roger Bastide sobre as
religiões africanas no Brasil, observamos que a problemática
apontada é de certa forma semelhante?^ Com efeito, Bastide
As idéias e os nichos procura trabalhar como a memória coletiva africana, cortada
de sua infra-estrutura econômica, consegue se preservar no
A análise da ideologia do CFC coloca um problema inte- solo brasileiro. Ele nos mostra que esta memória deve se in-
ressante: como um discurso que se situa em contraposição ao crustar em nichos materiais (os candomblés), secretando desta
desenvolvimento do capitalismo moderno pode ser incorpo- forma um espaço social onde seu reavivamento coletivo possa
rado pelo Estado? Para respondermos a esta pergunta deve- se manifestar. Entretanto, na medida em que a sociedade bra-
mos analisar mais em detalhe o significado de uma ideologia sileira se transforma, tem-se que paralelamente ocorrem mu-
tradicional. Roberto Schwarz, ao estudar a literatura brasi- danças substanciais na consciência coletiva africana. A ma-
leira no século passado, se propôs apreender o fenômeno da cumba e a umbanda representariam o momento em que a su-
“importação cultural’’ em termos de “idéias fora do lugar”, “ perestrutura se adaptaria ao processo de transformação da
Se pensârmos que« superestrutura ideológica pode estar des- história brasileira, isto é, as idéias africanas se adequariam
colada do processo econômico e social, a abordagem proposta pouco a pouco à totalidade nacional. A questão dos intelec-
está evidentemente equivocada. Acredito porém ser possível tuais tradicionais coloca um problema análogo, só que articu-
uma outra interpretação; quando Roberto Schwarz analisa a lado no sentido inverso. A ideologia do CFC denota um dis-
ideologia liberal em uma sociedade escravocrata, o que ele curso cuja organicidade, no sentido gramsciano, se desfaz
pretende é compreender o descompasso das superestruturas uma vez que o capitalismo brasileiro atinge novas formas de
em relação à realidade global da sociedade brasileira. O pen- produção. Âs idéias tenderiam assim a “sair do lugar”. Po-
samento liberal encontra no Brasil um espaço político e social rém, como sabemos que toda superestrutura necessita de uma
durante o século XIX, trata-se porém de um espaço limitado base material para se reproduzir enquanto tal, tem-se que ela
que não se refere à sociedade como um todo. A ideologia não secreta seus nichos no interior dos quais a memória do grupo é
se adequaria assim plenamente ao modo de produção interno. vivenciada. Os Institutos Históricos e Geográficos e as Acade-
Desenvolvendo este tipo de raciocínio, Carlos Nelson Couti- mias de Letras formam esses nichos desempenhando a função
nho aprofunda este jogo dialético de adequação e desadequa- de “candomblés culturais”. O estudo de Madalena Diégues
ção, e mostra, em relação às idéias “importadas”, que pouco Quintella mostra como essas instituições tradicionais se vol-
a pouco, com a industrialização e a urbanização do país, elas tam para o culto do passado e reproduzem na liturgia de seus
tendem a “entrar no lugar”. Isto se daria porque a estrutura atos todo um ritual de reatualização da memória. ** Da mesma
de classes da sociedade brasileira tornar-se-ia análoga à estru- maneira que os candomblés realizam através do rito a memó-
tura de classes das sociedades capitalistas em geral. As con- ria coletiva africana, os institutos e academias reavivam a me-
tradições ideológicas que marcam a vida cultural nacional no mória de um grupo que se coloca como portador da memória
século XX se aproximariam cada vez mais das contradições nacional. Visto que os membros do CFC são recrutados em
grande parte nessas instituições culturais, o discurso dos inte-

(60) Ver Clarival do Prado Valladares, "Humanismo Dirigido", Bole-


tim, n? 34, jan.-mar. 1979, (63) R. Bastide, ,4s BeligiÕes Africanas no Srasii, São Paulo,
<61) RobenoSchwarz,j4oyefíce(íaresõstâtss,op.c/t. USP,
(62) Carlos Nelson Coutinho, "Cultura e Democracia no Brasil", Encon- 1970.
tros com a Civilização Brasileira, n? 17. nov, 1979. (64) Madalena Diègues Quintella, Relatório sobre as Instituições Cultu-
rais, Centro de Estudo Latino-Americano, Rio de Janeiro, 1978.
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 109
108 RENATO ORTIZ

lectuais tradicionais é incorporado à esfera governamental. possibilita uma ação orgânica no campo da cultura. Vejamos
Por um breve momento alguns se iludem com a possibilidade como se estrutura o discurso dos novos intelectuais no interior
de consubstanciar o discurso em ação, no entanto as idéias de um órgão estatal como o Instituto, Nacional do Cinema
veiculadas pela ideologia tradicional não são mais adequadas (INC), fundado no mesmo ano que o CFC.
ao desenvolvimento do capitalismo avançado, “elas não mobi- Criado em 1966, o INC absorveu o Instituto Nacional de
lizam mais os homens”, diria Gramsci, pois são incapazes de Cinema Educativo, abrindo novas perspectivas para a indús-
soldar organicamente uma vontade coletiva, e deixam de ser tria cinematográfica brasileira. Seus objetivos eram basica-
hegemônicas. A tensão entre cultura e técnica mostra o ponto- mente: 1) formular e executar a política governamental rela-
limite de uma ideologia que se associa a um Estado promotor tiva à produção, importação, distribuição e exibição de filmes;
da racionalidade e da técnica. Os intelectuais tradicionais 2) desenvolver a indústria cinematográfica brasileira. O an-
partilham do ideário conservador do governo militar, no en- tigo INCE se voltava praticamente para o cinema como instru-
tanto 64, para além de seu significado político, corresponde a mento de ensino e de expressão cultural, vivia de dotações or-
uma transformação que também é de natureza econômica. çamentárias, sendo sua atuação bastante reduzida. Por isso o
Dentro desta perspectiva o Estado (composto por setores dife- INC é geralmente descrito como um evento que inaugura uma
renciados) se vê diante da necessidade de bricolar as idéias “nova era” na cinematografia nacional. Flávio Tambellini,
disponíveis, reservando-se o direito de incorporar algumas, esboçando uma rápida história do cinema brasileiro, pon-
mas de abandonar outras. A ideologia da mestiçagem, que dera: “Jamais o cinema no Brasil contou, como no Governo
possibilita a definição da memória nacional e de uma ontolo- Castelo Branco, com tão nítido apoio”. ” O que não deixa de
gia do homem brasileiro, será absorvida, porém a parte que se ser verdadeiro, pois o Estado inicia em 1966 os primeiros pas-
refere à organicidade de uma política cultural será recusada. sos de uma política que visa uma integração cultural a nível
A incapacidade dos intelectuais tradicionais de elaborarem nacional. Em relação ao passado a atuação do Estado vai se
um plano nacional de cultura não é casual, mas estrutural, caracterizar por uma série de medidas que possibilitam uma
por isso 0 Estado se volta para um novo tipo de intelectual, implantação real de uma indústria cinematográfica. Duas
aquele que representa a possibilidade real de consolidação de providências fundamentais proporcionam ao INC ampliar o
uma organicidade política e ideológica: os administradores. trabalho de produção de filmes nacionais: a instituição do in-
gresso padronizado e do borderô, que não somente possibilita
um maior controle do mercado de exibição como também for-
nece uma parte de sua receita para oINC; e a cessão de 40%
A ideologia de mercado:
do Imposto de Renda recolhido da arrecadação dos filmes es-
trangeiros no Brasil. Isto faz cora que a produção de longa-
Num artigo da revista Boletim, Gilberto Freyre esboça o
metragem, que no período 1957-1966 era em média de 32 fil-
retrato de intelectual tipo sénior, ideal tipo de uma cultura
mes anuais, passe, nos anos 67-68-69, para uma média de 50
brasileira plural. “ O contraste com os novos intelectuais de-
mandados pelas burocracias estatais é patente; jovens com
carreiras promissoras, bem escanhoados, Ph.D. nos Estados (66) Foram analisados, para tanto, os exemplares do n? 1 (julho 1966)
Unidos, se opõem assim a uma geração de formação bachare- ao n? 33 (maio 1979) da revista Filme-Cultura. Esta revista não possui uma
periodicidade regular; até o n? 26 (set. 1974) é publicada pelo INC, a partir do
lesca, ensaísta e historiadora dos pequenos fatos da vida na- n? 27 (1978) passa a ser editada pela EMBRAFILIVIE.
cional. É esta nova intelectualidade que, por um lado, fornece (67) Ver Projeto de Criação do Instituto Naciona) de Cinema, Filme-Cul-
uma ideologia “moderna” ao aparelho de Estado, por outro tura, n?2, nov.-dez. 1966.
(68) Ver testemunho de Alcino Teixeira de Mello in Mercado Comum de
Cinema. EMBRAFILME, 1977, pp. 7-8.
(69) Flávio Tambellini, "Insurreição contra a Derrota", Filme-Cultura,
(65) G. Freyre, "Cultura Plural’ , op. cit n? 4, março-abril 1967, p. 2.
110 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL Hl

filmes.™ Com a criação da EMBRAFILME em 1969, que produto cultural de sua difusão e consumo. Dentro desta pers-
passa a funcionar com os recursos que haviam sido reservados pectiva, Durval Gomes Garcia poderá definir o conceito de
ao INC, e posteriormente com a absorção do Instituto pela “cinema total”, para o qual “o filme, além de veículo de co-
própria EMBRAFILME, a política do Estado toma-se mais municação cultural, é produto de consumo”.’* O problema
agressiva. Em 1971, a obrigatoriedade de se exibir filmes na- que se coloca, portanto, é o do público consumidor. A ideo-
cionais passa de 56 para 84 dias anuais; em 1975, a quota é logia se volta assim para a justificação de um cinema de entre-
ampliada para 112 dias ao ano. As medidas de proteção do tenimento, voltado para o “interesse do público”, isto é, ade-
mercado, aliadas ao maior incentivo da produção, fazem com quado ao mercado consumidor. O INC procura desta forma
que em 1975 tenha-se produzido 85 películas de longa-metra- combater dois tipos de posturas que se contraporiam às suas
gem, e era 1976, 84. O que significa que no plano mundial o posições mercadológicas: o esteticismo e o cinema ideológico.
Brasil passa a ser o quinto produtor de filmes cinematográ- O esteticismo é atribuído ao cinema de autor, e se encarnaria
ficos.” Com 0 impulso da indústria cinematográfica torna-se em movimentos como a nouvelle vague e o cinema novo. A
dominante a questão do mercado, e já não mais se limitam os crítica visa neste caso toda uma vertente que em princípio pri-
empresários da EMBRAFILME a pensar em termos de Bra- vilegiaria a qualidade artística da obra em detrimento da sua
sil, procura-se, assim, escoar o produto local para os merca- comunicação. Também o cinema ideológico, ao se concentrar
dos estrangeiros. Isto leva, por exemplo, a EMBRAFILME a nas mensagens políticas, tornar-se-ia hermético e de difícil
apresentar uma proposta brasileira de criação de um mercado compreensão para o grande público. Durval Gomes Garcia
comum de cinema aos países de língua portuguesa e espa- considera, por exemplo, que uma das características do “ci-
nhola. nema total” seria o descompromisso, isto é, ele se recusaria a
A nova realidade exige dos intelectuais do INC e da EM- pautar-se por “preconceitos ideológicos” ou por um estreito
BRAFILME um discurso que seja coerente com as perspecti- elenco de temas. ” O argumento é interessante, pois permite
vas de desenvolvimento econômico. Ê interessante observar apreender a atuação do Estado dentro de uma linha de neu-
que o tema da censura está ausente da revista Filme-Cultura. tralidade. A crítica aos preconceitos ideológicos corresponde
Significativamente, ele somente emerge no momento em que assim a uma crítica do dirigismo estatal e uma apologia da
se realiza o I Congresso da Indústria Cinematográfica Brasi- livre concorrência. Uma passagem de Filme-Cultura é clara a
leira. mas somente para receber as críticas dos empresários esse respeito: “Enquanto os cinemas baseados na iniciativa
que a julgam “desatualizada” para a época e nociva para a privada, sempre em busca de formas aptas a despertar o inte-
expansão do público consumidor.” Os empresários, na ver- resse do público, conhecem permanente florescimento, os ci-
dade, só fazem apontar para o tema que estrutura o discurso nemas estatais se estiolam nos trilhos da arte dirigida e só en-
dos intelectuais ligados à esfera da produção cinematográfica: contram público amplo em suas respectivas áreas, onde a exi-
0 mercado. Daí a necessidade de se redefinir uma obra como o bição de todo 0 produto nacional é automática e praticamente
filme. A primeira operação classificatória que o discurso esta- sem algo que se possa chamar de concorrência”.’* A ação do
belece se impõe ao se afirmar que “o filme é uma arte, o ci- Estado é, neste sentido, concebida, primeiro enquanto neu-
nema, uma indústria”. ™ Procura-se, desta forma, dissociar o tralidade, segundo enquanto preservação de um estado demo-
crático que se substancia no mercado. A restrição do elenco de

(70) Ver lei que extingue o INC e amplia as atribuições da EMBRA-


FILME, Alcino Teixeira de Mello, Legislação do Cinema Brasileiro, op. cit.
(71) Ver testemunho de Roberto Farias in Mercado Comum de Cinema, (74) Durval Gomes Garcia, "A Hora do Cinema Total", Filme-Cultura,
op. cit. n?9, abril 1968.
(72) I Congresso da I ndústria Cinematográfica Brasileira, Filme-Cultura, (75) Ibidem.
n?22, nov.-dez. 1972. (76) C. G. Mattos Jr., "Diálogos de Planejamento", Filme-Cultura, n?
21,jul./ago. 1972.
(73) "INC Hora Primeira", Filme-Cultura, n? 5, jul.-ago. 1967.
112 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 113

temas, ou a sua ininteligibilidade, implicam uma restrição do mente teóricas, alguns cineastas têm necessidade de se voltar
público consumidor. Por isso, segundo esses intelectuais, o para novas fontes financiadoras, e durante um certo tempo,
esteticismo e o cinema novo, diga-se a arte e a política, se as- além dos bancos privados, eles contam com o CAIC, órgão es-
sociam ao elitismo dos pequenos grupos em contraposição à tatal, mas limitado ao Estado da Guanabara. O grupo do ci-
comunicação universal com o público consumidor. Carlos G. nema novo entra, assim, em concorrência com o INC e busca
Mattos Jr., ao descrever a realidade do cinema brasileiro, novas alternativas de exploração do mercado cinematográfico.
dirá: “Ele saiu de uma fase em que a multiplicidade de reali- Em 1967 cria-se a DIFILM, espécie de cooperativa de distri-
zações experimentais e contestatórias provocou a retração do buição de filmes. Essas tentativas de organização indepen-
público. Agora há uma franca procura de narrativas de fácil dente fracassam, mas é interessante contrapor o discurso que
aceitação popular”.” O cinema brasileiro encontra final- esses cineastas produzem ao "cinema burocrático” ou à
mente o seu caminho e a sua vocação no descompromisso e no “chantagem do público a qualquer custo”, como afirmava o
entretenimento do grande público. Isto levará um cineasta manifesto.
como Gustavo Dahl a afirmar que sua principal função seria a O artigo de Paulo Emílio Salles Gomes é talvez o primeiro
higiene mental da população. documento que descreve cora clareza a situação do cinema
O discurso do INC pode ser melhor apreendido quando brasileiro. “ Ao analisar o conjunto de problemas que articu-
contraposto ao movimento do cinema novo que se desenvolve lam produtores, artistas, diretores, exibidores, críticos, ele
durante o mesmo período. Na verdade, o grupo que assume a diagnostica um quadro de “situação colonial”, o cinema bra-
direção do INC possui, desde meados dos anos 50, uma pers- sileiro sendo compreendido no interior da história da aliena-
pectiva industrialista do cinema brasileiro. José Mário Ortiz ção da sociedade brasileira. O cinema é alienado, isto é, está
Ramos mostra muito bem como ele se opõe a uma corrente voltado para o exterior, o estrangeiro, e na medida em que as
nacionalista que tem ^m Alex Viany uma expressão que se condições concretas de sua produção estão permeadas por
desdobrará posteriormente no cinema novo. Este grupo,que uma realidade colonial que é mais abrangente e o envolve. A
é paulista de origem, procura aplicar ao INC uma perspectiva tese de Paulo Emílio será retomada por Glauber Rocha, que
empresarial semelhante ao da antiga Vera Cruz. Ocorre com o unifica 0 momento da teoria e da prática cinematográfica, e
INC o que havíamos observado para o CFC. O Estado se volta ao prognóstico proposto, avança um projeto estético que em
para os intelectuais disponíveis, isto é, para aqueles que nas princípio se concretizaria no movimento do cinema novo.
suas áreas específicas afinassem com as propostas do governo Como vimos anteriormente, seu manifesto é profundamente
militar. Isto significa que existe durante os anos 60 uma luta fanoniano, e ao cinema digestivo Glauber contrapõe um ci-
ideológica que propõe duas visões distintas do cinema brasi- nema cuja manifestação cultural mais elevada seria a fome.
leiro. Quando se lê o manifesto “Luz e Ação”, assinados por Neste sentido o cinema novo é violento, agressivo e descortina
personagens como Glauber Rocha. Carlos Diegues, Leon Hirz- para o público uma realidade de violência engendrada pela
man, Nelson Pereira dos Santos e outros, pode-se perceber história colonial. O que é importante sublinhar dentro desta
claramente a oposição que se consubstancia entre o cinema do perspectiva é que a noção de público está intimamente asso-
INC e a proposta de produção de autor. ” O primeiro ponto ciada à problemática política. O cinema é “novo" porque é
diz respeito à própria concepção do INC que o manifesto con- realizado pelos “povos novos”, isto é, pelo escravo a que Hegel
sidera como uma burocracia que tenta instituir um cinema se referia na sua dialética do senhor e do escravo. Popular
nacional por decreto. Como as discordâncias não são mera- significa neste sentido o desvendamento da “verdade” da na-
ção. Por isso Glauber dirá que o cinema novo "se marginaliza
(77) Ibidem.
(78) J. M. Ortiz, op. cit.
(79) "Manifesto Luz e Ação", Ane em Revista, n? 1,1979. (80) Paulo Emflio Salles Gomes, "Uma Situação Colonial", op. cit.
114 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 115

da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é que “mercado é cultura”, sem o saber ele expressa uma reali-
com a mentira e a exploração”.®' Da mesma maneira que dade que transcende a esfera cinematográfica e que se refere
para Sartre a literatura dá ao leitor uma consciência infeliz, o ao domínio cultural como um todo, ao Espírito deumaépoca.®^
que lhe possibilita tomar consciência da realidade que o en- Ao se analisar os documentos publicados pelo MEC, atra-
volve, 0 cinema forneceria ao público uma consciência de sua vés de instituições como o DAC e a Secretaria de Assuntos
própria miséria. Neste ponto a proposta do cinema novo se dife- Culturais, pode-se perceber o quanto a dimensão do consumo
rencia, por exemplo, da do CPC, o que lhe abre a possibili- e da distribuição passa a ser valorizada. O discurso do CFC
dade de criar uma estética profundamente original. O cinema deixava praticamente de lado o aspecto da distribuição e do
politiza não tanto pelo conteúdo de sua mensagem, mas pelo consumo dos bens culturais. Isto se deve sobretudo a uma con-
fato de levar o público a uma reflexão sobre sua condição hu- cepção que associa a noção de cultura à de qualidade, atri-
mana. Ê interessante observar que a problemática do público buindo-se 0 domínio da quantidade ao reino do “tecnicismo”.
e do popular se manifesta igualmente em outras esferas artís- Os intelectuais tradicionais, ao discutirem um projeto de polí-
ticas, como 0 teatro. Tanto o Arena como o Oficina buscam tica de cultura, colocam invariavelmente a ênfase na preser-
uma relação palco/platéia que seja “nova”, isto é, se orientam vação do patrimônio. Os órgãos como o DAC, posteriormente
na direção de uma politizaçâo que se adeqüe ao momento por a SEAC, a FUNARTE, invertem em grande parte esta pers-
que passa a sociedade brasileira nos anos 60. As divergências, pectiva. As diretrizes dessas instituições apontam fundamen-
tanto no cinema como no teatro, se referem sempre a esta talmente para três aspectos: o incentivo da produção, a dina-
questão do público. A critica que o CPC faz ao cinema novo mização dos circuitos de distribuição e o consumo dos bens
se fundamenta, na verdade, sobre os mesmos princípios enun- culturais.®'’ Não que a dimensão da defesa do patrimônio es-
ciados pelos cineastas. Quando se afirma, por exemplo, que teja excluída dessas instituições, ela deixa no entanto de ser o
os filmes são “herméticos”, o que se coloca não é uma questão ponto central de uma ideologia cultural.®® O documento de
de mercado; para os ativistas do CPC o conteúdo estético “de- Política Nacional de Cultura é bastante claro ao analisar as
masiadamente trabalhado” dificultaria o desenrolar do pro- relações entre cultura e desenvolvimento: “Uma pequena elite
cesso político da tomada de consciência. A proposta do CPC intelectual, política e econômica pode conduzir, durante al-
era a de se abandonar as preocupações estéticas, mas as diver- gum tempo, o processo de desenvolvimento. Mas será impos-
gências, neste caso, eram mais relativas à eficácia política, e sível a permanência prolongada desta situação. È preciso que
não tanto aos princípios. todos se beneficiem dos resultados alcançados. E para este
O INC, ao promover o desenvolvimento do parque indus- efeito é necessário que todos participem igualmente da cultura
trial cinematográfico, reformula a categoria de popular. Na nacional”.®®Participação significa, portanto, acesso ao con-
medida era que o nacional se consubstancia na existência das
agências governamentais, popular passa a significar consumo.
Com relação à problemática cultural, tratada nos seus dife- (83) Gustavo Dahl, "Mercado é Cultura", Cultura, n? 24, jan.-mar.
rentes matizes ideológicos nos anos 60, existe uma despoliti- 1977.
(84) Ver documentos como: "Bases para uma polícia nacional Inte-
zaçâo. Poder-se-ia pensar que esta ideologia voltada para o grada", doc. Interno, SEAC, s.d.p.; "O Desenvolvimento Cultural — Objeti-
público consumidor fosse característica de uma arte dispen- vos”, doc. interno, SEAC, s.d.p.; "Diretrizes para uma Política Nacional de
diosa como 0 cinema, porém, quando Gustavo Dahl enuncia Cultura", doc. interno, MEC, s.d.p.; "Encontro Nacional de Cultura", SEAC,
Rio de Janeiro. 1977, e vários outros.
(85) Sérgio Miceli procura, por exemplo, apreender como no interior
das instituições de cultura do Estado uma "vertente executiva" se contrapõe a
uma outra "patrimonial". Ver "O Processo de Construção Institucional na Àrea
(811 Glauber Rocha, "Uma Estética da Fome", op. cit., p. 17. Cultural Federal — Anos 70", Encontro sobre Cultura e Estado, IDESP, São
(82) Ver documentos sobre teatro publicados em Arte em Revista, n? 5, Paulo.
1982. (86) Política Nacional de Cultura, op. cit., p. 9.
116 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 117

sumo dos bens culturais. Não é por acaso que a revista Cul- uma visão dicotômica, se contrapõe à dimensão quantitativa
tura, órgão oficial do CFC, passa para as mãos do MEC, e que da produção cultural. Da mesma forma que o INC critica o
logo após a divulgação do Plano Nacional de Cultura sofre “esteticismo” do cinema novo, as instituições culturais gover-
uma reformulação no seu projeto gráfico e na sua linha edi- namentais em sua crítica ao “elitismo” procuram dinamizar a
torial. O número 20 da revista abre com uma introdução do esfera da distribuição e do consumo. Uma entrevista do dire-
ministro Ney Braga que sugestivamente se intitula “Cultura tor da FUNARTE ilustra bem este tipo de ideologia: “Antes
para o Povo”. Na apresentação o ministro esclarece: "O lan- da qualidade é preciso provocar, desenvolver o interesse pela
çamento da revista Cultura sob a nova forma que esta edição manifestação cultural... Nossa política se baseia em dois as-
inicia responde a essa preocupação. Ela continuará saindo na pectos principais. Facilitar as condições de trabalho e criar
sua forma originária, destinada a quem já procurava desde o possibilidades de consumo deste trabalho. A nossa preocupa-
começo. E sem abandonar os velhos amigos (os intelectuais ção maior não é com a qualidade do artista, mas com o acesso
tradicionais?) estamos aqui saindo em busca de novos, mais da cultura ao maior número possível de pessoas”. O “acesso
numerosos e mais jovens de todas as classes sociais”. E refe- à cultura” se apresenta pois como argumento ideológico es-
rindo-se ao primeiro ponto de uma política de cultura, o edi- sencial, ele define o grau de “democratização” da própria so-
torial afirma: “O Ministério rejeita a tese de que a atividade ciedade brasileira. Vários documentos oficiais insistem na ne-
criadora e a função de seus benefícios é privilégio das elites. cessidade de se vincular o sistema de ensino ao desenvolvi-
Essa concepção corresponde a regimes sociais estratificados, mento cultural; a escola é vista como um espaço importante
aristocráticos ou oligárquicos. Uma das manifestações mais de formação de hábitos e de expectativas culturais, o que pos-
elevadas de qualquer regime que busca a democracia como sibilita uma extensão do consumo. Ao se afirmar, por exem-
meta a atingir ou a realidade a aperfeiçoar é a da difusão das plo, que o “homem brasileiro precisa se habituar a consumir
atividades culturais”. Os aspectos de difusão e de consumo cultura em sua vida diária”,®’ o Estado se propõe, por um
dos bens culturais aparecem assim como definidores da polí- lado, realizar uma potencialidade cultural do mercado consu-
tica do Estado, a eles se associa ainda a idéia de “democra- midor, por outro assegurar uma ideologia de “democratiza-
cia”. O Estado seria democrático na medida em que procura- ção” que concebe a distribuição cultural como núcleo de uma
ria incentivar os canais de distribuição dos bens culturais pro- política governamental.
duzidos. O mercado, enquanto espaço social onde se realizam O problema crucial que deve enfrentar o Estado para im-
as trocas e o consumo, torna-se o local por excelência, no qual plementar uma política de difusão cultural diz respeito, po-
se exerceriam as aspirações democráticas. rém, ao financiamento dos programas culturais. Como vere-
Dentro desta perspectiva, o consumo transforma-se em mos mais adiante, a distância entre a ideologia e a realidade é
índice de avaliação da própria política cultural; um relatório muito grande. No caso da indústria cinematográfica, apesar
sobre as atividades culturais do Estado dirá: “O rendimento dos riscos, a conversão do bem cultural em um bem rentável
de uma política cultural se mede pelo aumento do índice de está, de alguma forma, assegurada pelo consumo de massa. O
consumo e não pelo volume de iniciativas”. “ Novamente en- mesmo não ocorre com as áreas atendidas por instituições
contramos a oposição qualidade/quantidade, mas o elitismo a como a FUNARTE ou a Fundação Pró-Memória. Nesses ca-
que se referem os documentos oficiais das Secretarias de Cul- sos, o retorno do capital aplicado não está imediatamente as-
tura diz respeito à qualidade, que, analisada em termos de segurado. Os setores culturais do aparelho estatal têm. assim,
a necessidade de convencer as outras áreas de influência de

(87) Ney Braga, "Cultura para o Povo", Cultura, n? 20, jan.-mar. 1976.
(88) Bases para uma Política Nacional Integrada de Cultura, MEC/
SEAC. (69) Ver os documentos da SEAC, "O Desenvolvimento Cultural no III
PND", e "Programa Plurianual", 1980.
118 ' RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 119

que o investimento cultural é importante, mais ainda, que al- serva, em seu estudo sobre a política cultural nos anos 70, que
gumas vezes pode até ser fonte de lucro. Falando para os mili- a tentativa do grupo Portela fracassa. ” Cabe, no entanto,
tares da ESG, o secretário do MEC expressa seu otimismo: compreender o porquê desta proposta que procura reorientar
“Acredito que o estabelecimento de uma política cultural con- em parte os esforços de investimentos na área cultural. Isto
duzirá a um equilíbrio entre valor econômico e valor social nos remete a uma análise da idéia de popular nos documentos
através do eixo cultural. Cultura nâo é luxo, logo não pode ser produzidos pelas instituições oficiais.
classificada como não utilitária e não rentável”.*' Na verdade A Secretaria de Assuntos Culturais define durante este
ele exprime suas convicções pessoais de que uma política cul- período duas linhas mestras de sua política: a institucional e a
tural bem orientada poderia se transformar, a curto ou a mé- comunitária.*' A institucional, que se volta para a promoção
dio prazo, num real investimento de capital. Ê curioso obser- de eventos, determina um tipo de atividade que as instituições
var que até mesmo em atividades de caráter patrimonial, como governamentais vinham realizando até o momento — por
é 0 caso da Fundação Pró-Memória, esta dimensão mercado- exemplo, apoio às produções artísticas, incentivo à difusão
lógica da rentabilidade se manifesta. Referindo-se aos bens do cultural, etc. A linha comunitária, que se apresenta como uma
patrimônio histórico, Aloísio de Magalhães, diretor da Fun- novidade, se voltaria para as populações de baixa renda; no
dação, afirma: “Um dos objetivos (da Fundação) será o de nível mais imediato ela procuraria garantir um mercado para
transformar os bens da União em bens rentáveis, logicamente as produções populares. Um exemplo: criar um mecanismo de
quando isso for possível e nâo oferecendo riscos ao imóvel. distribuição do artesanato popular, assegurando desta forma
Assim, faremos o levantamento para saber quais os imóveis um nível de subsistência para as camadas populares produ-
que poderão ser transformados em albergues turísticos e en- toras. A ação comunitária revela assim um primeiro sentido:
tregues, por contrato, às companhias hoteleiras para explora- trata-se de se transformar em bens rentáveis a produção po-
ção comercial e que deverão ser conservados”. ” Procura-se pular. Este significado é no entanto secundário no discurso
desta forma integrar uma política de cultura a uma política de oficial, na verdade a definição primeira do conceito de comu-
turismo, e em parte resolver o descompasso entre o investi- nidade se refere à sua qualidade ideológica, seja, o de cultura
mento do capital e o consumo lucrativo dos bens culturais. da pobreza. Partindo de uma crítica da noção de cultura, os
intelectuais da gestão Portela opõem o saber popular a uma
cultura de elite. De certa forma retoma-se uma argumentação
conservadora desenvolvida pelo pensamento tradicional sobre
O popular revisitado o popular. Vários documentos de Pedro Demo procuram neste
A partir da gestão Portela (1979), nos documentos ofi- sentido distinguir três tipos de cultura: 1) a cultura da identi-
ciais relativos à área da cultura uma nova dimensão discursiva dade nacional, que se prende à criação de valores culturais
é sublinhada; são inúmeros os textos que se referem a um que identificam o povo brasileiro; 2) a cultura de subsistência;
“planejamento participativo” voltado para o “interesse comu- 3) a cultura alienada. Referindo-se a esta última o autor afir-
nitário” das populações de baixa renda.’’ Sérgio Miceli ob- ma; “Esta cultura intelectualizada, que acha importante sa-
ber nomes de comida francesa, conhecer música clássica, ter
boas maneiras, ir ao teatro, apreciar filmes herméticos e can-
(90)João G. de Aragão, Secretário geral do MEC, "Educação, Cultura ções de protesto político, tem seu valor, porque a ninguém faz
e Desporto", palestraria ECEMAfl, Rio de Janeiro, 8.10.1979.
(91) Ver "Cultura Trocada em Milhões", Jorna! do Brasil, 12.4.1979.
(92)Ver Mareio Tavares d'Amaral, discurso no I Encontro Nacional dos
Conselhos Estaduais de Cultura, MEC, SEAC; Linha de Trabalho para Obten- (93) Sérgio Miceli, "O Processo de Construção Institucional na Área
ção de Indicadores Culturais, SEAC; Pedro Demo, Planejamento Participativo, Cultural Federal (Anos70)". op. cit.
MEC; Educação Comunitária, MEC, outubro 1979; 0 Desenvolvimento Cultu- (94) Márcio Tavares d'Amaral, "Sociedade Brasileira e Política Cultu-
ral: Objetivos, SEAC. ral", SEAC, jan. 1980.
120 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 121

mal apreciar a literatura, a música, o teatro, o balé, etc. Mas subalternas lhes é adverso, cultura significa criatividade. Den-
é preciso perceber que isto nada tem a ver com os problemas tro desta perspectiva pode-se afirmar; “Usa-se muitas vezes o
sociais do país".’^ O contraste ao “elitismo" se consubstan- termo estratégia de sobrevivência, imaginando-se que o pobre,
ciaria no pólo popular através de manifestações como; "a rede em boa medida, reinventa sua vida cada dia. A própria aná-
de ajuda mútua desenvolvida pelos migrantes através dos laços lise dos dados que temos sobre a realidade nos leva a este posi-
de parentesco, a convivência com a selva amazônica por parte cionamento, porque a estatística, segundo a qual mais de 1/4
do caboclo, a cantiga popular, juntamente com a literatura de das famílias ganha até um salário mínimo mensal, não é tanto
cordel, o cantador, a farmacopeia popular”.’*' O tema da um dado, quanto um atestado de óbito. É matematicamente
democracia reaparece assim sob uma nova roupagem; à “cul- inexplicável a sobrevivência de uma família geralmente nume-
tura de elite de minoria” se contrapõe uma "cultura de sobre- rosa com tais níveis de renda. Daí suspeita-se que deve haver
vivência da maioria”. O Estado, dentro desta lógica discur- por trás esquemas informais de subsistência, à base do recurso
siva, deveria, era princípio, se voltar para uma atividade “real- ao mercado informal, às horas extras de trabalho, à mendi-
mente” popular. Dirá um documento; “Um povo sem teatro, cância, ao autoconsumo e assim por diante”. E se acrescenta:
sem arte, sem produção artística, sem vida noturna sofisti- “Se cultura é criatividade, não há criatividade maior que so-
cada é um povo sem dúvida pobre, mas há ainda pobreza breviver dentro de um mercado de trabalho tão excluden-
maior, a saber, a falta de condições básicas de estrit^ subsis- te”.‘“ A critica à cultura “elitista” se esclarece pouco a pou-
tência material”. ” E um outro texto acrescenta: “Enquanto o co. O Estado parte do reconhecimento das dificuldades econô-
povo viver em pobreza aguda, não lhe faz nenhuma falta des- micas não para resolvê-las, mas para conservá-las. O diagnós-
conhecer quem seja o maestro mais importante do país e muito tico descobre nas causas materiais os problemas mais gerais
menos do mundo. O Estado não deveria se empenhar neste da sociedade brasileira, porém a terapia se propõe a promover
tipo de atividade, mesmo porque a elite, que a aprecia, a pode a doença. Curiosa medicina. A oposição entre “elite” e “po-
financiar”.’® pular” é no caso purameníe retórica, pois os documentos já
O leitor incauto poderá pensar que uma mudança sub- nos haviam assegurado a manutenção da linha institucional,
reptícia e radical se processaria no MEC, uma leitura mais que em princípio contraria a perspectiva “comunitária” enun-
atenta esclarece porém a ilusão de ótica momentânea. Os pró- ciada. Fica no entanto a pergunta, qual o motivo desta mu-
prios documentos se encarregam de eliminar o mal-entendido dança no discurso governamental?
ao propor esta definição: “Cultura de subsistência significa a Acredito que a resposta pode ser dada em dois níveis:
arte de sobreviver num quadro de pobreza”. ” Retoma-se econômico e político. O que chama a atenção no conceito de
desta maneira o conceito de cultura da pobreza proposto por cultura de subsistência é o seu caráter materialista. O mesmo
Oscar Lewis em seus estudos das comunidades mexicanas. leitor, agora mais atento, se lembraria talvez de autores como
A noção se reveste agora de um significado antropológico, isto Plekhanov, mas o materialismo proposto é outro, ele apenas
é, ela é tomada como elemento que regula o cotidiano da vida mostra que a ênfase no aspecto da renda se abre para as preo-
dos homens. Mas cultura significa também adequação do ho- cupações econômicas. Ora, o período pós-79 se caracteriza
mem ao meio ambiente, e como o meio ambiente das classes sobretudo por ser um momento de crise econômica, o que de
imediato compromete toda e qualquer política de cultura. Na
discussão das prioridades o Estado relega para segundo plano
(95) P. Demo, Política Sociai da Cultura, MEC, Brasília. 1980. p. 4. a educação, a saúde e a cultura, seja, a dimensão de uma
(96) Idem. p. 3. política social. Parece-me que é a consciência desta crise, e
(97) P. Demo, Indicadores Culturais, MEC, outubro 1978, p. 6.
(98) P. Demo. Política Social da Cultura, op. cit., p. 4.
(99) P. Demo, Relevância da Dimensão Cultural para a Política Social,
MEC, nov. 1979, p. 26.
(100) P. Demo, PoUtica Social da Cultura, op. cit., p. 3.
122 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 123

por conseguinte as dificuldades que têm as instituições de im- vontade política de caráter mais abrangente. Neste sentido
plementar sua política, que leva a uma reorientaçâo, mesmo o discurso do secretário de Cultura do Ministério é claro
retórica, da política governamental. Os documentos reconhe- quando considera a ação comunitária uma ‘‘opção política”.
cem esta situação quando afirmam, por exemplo, que “é pra- Devemos lembrar que é durante os anos 70 que a ação da
ticamente impossível a generalização do acesso à cultura, as- Igreja, e de alguns segmentos de partidos políticos, se estru-
sim como é impossível que toda a população obtenha forma- tura nas periferias como movimentos políticos. O que carac-
ção superior”.O otimismo do IIPND cede, portanto, lugar teriza esses movimentos sociais é justamente seu caráter orga-
a um pessimismo realista. O Estado não pode, no entanto, nizativo enquanto Associações de Bairros, Comunidades Ecle-
aceitar a realidade tal qual ela se apresenta, pois em última siais de Base, movimentos de favelas, etc. Uma política cul-
instância ele se voltaria contra suas próprias bases ideológicas. tural comunitária proporcionaria ao Estado a possibilidade de
É necessário que o discurso trabalhe o real, pois a questão do intervir numa esfera da vida social sem abrir mão de sua polí-
consumo, uma vez sendo considerada impossível de ser simbo- tica econômica recessiva. A valorização da chamada cultura
licamente resolvida, torna-se um problema a ser reinterpre- de subsistência não seria um passo possível nessa direção?
taflo. A crítica do elitismo se estende assim àquelas produções
que numa situação ideal deveriam ser partilhadas por todos.
Cabe neste ponto sublinhar que é durante a gestão Portela que Observações não conclusivas
se iniciam, sob a mesma argumentação, os estudos sobre o
ensino pago nas universidades públicas. Ao considerar ‘“eli- Contrariamente ao pensamento tradicional, a ideologia
tista” a universidade ou as produções artísticas, o Estado dos empresários da cultura sublinha a dimensão da distribui-
fabrica uma argumentação que lhe permite justificar suas ção e do consumo no lugar da preservação dos bens culturais.
prioridades, que todos sabemos se voltam para a área econô- Ela se associa assim a práticas burocráticas precisas que per-
mica. mitem 0 desenvolvimento da gestão e do planejamento a nível
Creio que, em certa medida, uma segunda linha de inter- estatal. Dentro desta perspectiva de racionalização das em-
pretação pode ser avençada a título de hipótese. O programa presas abre-se a possibilidade de se implantar uma política de
plurianual da Secretaria de Assuntos Culturais define a ação cultura a partir de diretrizes globais consubstanciadas em pla-
comunitária da seguinte maneira: ‘‘Ela dar-se-á através de um nos de ação. É necessário compreender, porém, que o antago-
trabalho de base junto às comunidades, visando sua conscien- nismo das ideologias tradicional e administrativa não implica
tização para o valor do patrimônio cultural e natural da re- exclusão. Da mesma forma que as religiões modernas brico-
gião, a descentralização e deselitização das atividades cultu- lam 0 material tradicional das práticas mágico-religiosas, o
rais, identificação e mobilização de animadores culturais es- discurso do Estado, produzido por diferentes grupos sociais,
pontâneos, o envolvimento de associações e lideranças comu- procura soldar os elementos de um pensamento tradicional no
nitárias e a busca de fontes alternativas de recursos”. Não interior de uma ideologia de mercado. Na medida em que o
estaria neste caso o Estado procurando envolver as lideranças Conselho Federal de Cultura é definido simplesmente como
das chamadas comunidades de base? A hipótese não é desca- órgão normativo, tem-se que os intelectuais tradicionais tra-
bida. A ênfase dada às populações de baixa renda, à periferia balham para a elaboração de uma ideologia de reserva, que é
urbana, às populações carentes da área rural, marcam uma utilizada enquanto legitimação da ontologia da cultura brasi-
leira. A organicidade de uma política cultural se manifesta.

(101) P. Demo, Indicadores..., op. cít.,'p. 5.


(104) Ver documentos como: Programa de Ações Sácio-Pducativo-CuI-
(102) Ver CadernodaANDES, r<° y. 1981.
turais para as Populações Carentes do Meio Urbano, SEAC, nov. 1979; Pro-
(103) Programa Plurianual, op. cit., p. 5.
grama de Ações Sócio-Educativas e Culturais para o Meio fíural, SEAC.
124 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 125

porém, no seio da prática administrativa, pois esta se encon- Um ponto para o qual chamamos a atenção ao longo de
tra em adequação à realidade da sociedade. Tudo se passa nossa análise é esta necessidade que tem o Estado em se defi-
como se os intelectuais tradicionais fossem os decifradores do nir como espaço da neutralidade. Isto aparece claramente nos
Ser nacional, eles se ocupariam, como os filósofos, do reino da textos que se referem a diferentes aspectos, como a realização
qualidade, caberia aos administradores, uma vez assegurada de uma política de cultura, a conservação da identidade brasi-
a plenitude da cultura brasileira, realizá-la concretamente. O leira ou a atuação no mercado de bens simbólicos. As relações
Estado manipula a categoria de memória nacional no interior de poder são desta forma encobertas, o que leva a uma insis-
de um quadro de racionalização da sociedade. Esta memória tência obsessiva de um Estado autoritário a se apresentar
lhe possibilita, por um lado, estabelecer uma ponte entre o como democrático. Dentro desta perspectiva as categorias de
presente e o passado, o que o legitima na história de um Brasil "nacional” e “popular” são reelaboradas em função de um
sem rupturas e violência. Por outro, ela se impõe como me- discurso que tende a ser o mais globalizante possível. Eviden-
mória coletiva, isto é, como mito unificador do Ser e da socie- temente, existe um hiato entre intenção e realidade, o que se
dade brasileira. A sociedade mudou mas sua "essência” seria propõe nunca se concretiza inteiramente. Mas me parece que
idêntica à sua própria raiz. Como observa Halbwachs, a me- seria equivocado considerar o discurso do Estado como uma
mória é sempre revivida pelo presente, o que significa que mentira, acredito que seria mais correto pensá-lo como uma
0 discurso da preservação da identidade se dá no interior da ideologia que procura de certa forma tomar-se hegemônica. O
concretude do desenvolvimento capitalista. O esforço de con- exemplo da cultura de subsistência possui um efeito retórico,
servação, realizado por instituições como a Fundação Pró- porque seria impossível torná-lo hegemônico, a menos que
Memória, não é simplesmente uma volta ao passado, mas fosse para convencer as populações periféricas de que a fome é
uma inserção no presente a partir de uma ideologia conserva- uma virtude por excelência. No entanto o conceito de demo-
dora. Aloísio Magalhães é uma figura típica deste empreendi- cracia, ligado a uma perspectiva de difusão mercadológica, é
mento atual; empresário, dinâmico, ele procura se ocupar do mais amplo. Nós o encontramos, por exemplo, como ideologia
que existe de mais tradicional na história das idéias: a memó- trabalhada pelas indústrias culturais. Como observam Adorno
ria do homem brasileiro. Significativamente, como se faz no e Horkheimer, quando forjam o conceito de indústria cultu-
Centro de Referência Cultural, esta memória será tratada pela ral, a noção de cultura de massa pressupõe a idéia de demo-
linguagem e pela técnica mais avançada de que dispomos: o cracia, pois as agências, na medida em que desempenhariam
computador. Não existem dois discursos governamentais meramente uma função de distribuição, seriam neutras. O Es-
sobre a cultura, um tradicional e outro administrativo, mas tado e as indústrias culturais despolitizam a questão da cul-
um único que rearranja e reinterpreta as peças relativas à so- tura, uma vez que as relações sociais são apreendidas como
ciedade brasileira. No entanto, esta reinterpretaçâo se passa “expressão popular”. O discurso de instituições como TV
no interior de uma situação histórica determinada, é isto que Globo, Abril Cultural, empresas de discos em vários pontos se
impossibilita o grupo tradicional de converter suas aspirações assemelham à sua ideologia. Até mesmo as multinacionais,
em vontade política. agindo no interior do mercado brasileiro, recuperam as cate-
gorias de nacional e de popular. A direção para a qual aponta
o desenvolvimento do capitalismo brasileiro nos leva a pensar
(105) O tratamento sofisticado da memória pelo Centro Nacional de Re-
ferência Cultural pode ser apreendido pelos seus relatórios. "O CNRC — Idéias
que a ação estatal e privada caminhariam no sentido da ins-
Básicas em sua Instalação", Relatório nf 1, 20.7.75; "Observações e Reco- tauração de uma hegemonia cultural. As telenovelas, assim
mendações sobre o Projeto do CNRC”, David Hays, Relatório n? 2, 28.7.75; como o consumo de produtos distribuídos e financiados pelo
"Algumas Recomendações Propostas ao CNRC", Abraham A. Moles, Rela-
tório n? 4, 22.8.75; "Um sistema de informações para o CNRC", George
Estado, contribuem para que as relações de poder se reprodu-
Freund, Relatório n? 7, 20.11. 75; "Instrumento de Análise Planejamento, Cul- zam no interior da própria cultura. É interessante observar
tura”, Fausto Alvim, Relatório n? 17, 30.9.76; etc. que este processo não se acompanha, pelo menos até o mo-
126 RENATO ORTIZ

mento, de uma hegemonia política do Estado brasileiro. En-


tretanto, se a reprodução das relações de poder não se estru-
tura ao nível político-partidário, tem-se que elas se manifes-
tam politicamente na assimilação e consumo dos bens cultu-
rais. Se político-partidariamente constatamos uma crise ins-
titucional, culturalmente eu diria que existe uma tendência à
organicidade em torno do que se compreende como cultura
brasileira. Ê bem verdade que este processo de hegemoniza-
çâo, que teria necessariamente de ser analisado sob o ângulo
daqueles que recebem os bens culturais, se concentra nos cen-
tros urbanos. Não obstante, ele parece se delinear como uma
orientação futura do desenvolvimento do capitalismo brasi- Estado, cultura popular
leiro, dai a importância em analisar as linhas e tendências de
sua evolução. e identidade nacional

Jrode -se dizer que a relação entre a temática do popular


e do nacional é uma constante na história da cultura brasi-
leira, a ponto de um autor como Nelson Werneck Sodré afir-
mar que só é nacional o que é popular. Em diferentes épocas,
e sob diferentes aspectos, a problemática da cultura popular
se vincula à da identidade nacional. Silvio Romero, precursor
dos estudos sobre o caráter brasileiro, definiu o seu método de
trabalho como “popular e étnico”, isto porque o conceito de
povo que predominava junto aos intelectuais do final do sé-
culo XIX era o da mistura racial, o brasileiro se apresentando
como raça mestiça. Não é por acaso que Câmara Cascudo,
considera Sílvio Romero como um dos fundadores da tradição
dos estudos folclóricos, ele na verdade procura encontr^ na
cultura popular os elementos que em princípio constituiriam, o
homem brasileiro. ‘ Os escritos de Gilberto Freyre retomam,
nos anos 30, as mesmas preocupações dos intelectuais do final
do século. É bem verdade que os argumentos racistas que
pontilham as análises de Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Eu-
clides da Cunha são deixados de lado. Não obstante, o brasi-

(1) Câmara Cascudo, op. cit. Ver também Basflio Magalhães, O Fol-
clore no Brasil, Rio de Janeiro, 1939.
128 RENATO ORTIZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 129
leiro será caracterizado como homem sincrético, produto do
cruzamento de três culturas distintas: a branca, a negra e a e Engels, como insuficientes, o marxismo se colocando como
índia. O conceito de povo permanece, no entanto, relativa- um pensamento universalista e calcado sobre o conflito de
mente próximo àquele elaborado anteriormente, uma vez que classe.' A problemática do nacional é profundamente ambí-
o brasileiro seria constituído por este elemento popular oriun- gua na tradição marxista, apesar de ter sido amplamente dis-
do da miscigenação cultural. Identidade nacional e cultura cutida no momento de formação e expansão dos partidos so-
popular se associam ainda aos movimentos políticos e intelec- cial-democratas. Com Gramsci, porém, esta tradição é reo-
tuais nos anos 50 e 60 e que se propõem redefinir a problemá- rientada. e talvez pela primeira vez se trava um debate em torno
tica brasileira em termos de oposição ao colonialismo. Podería- do nacional-popular, uma das questões centrais dos Cadernos
mos ainda multiplicar os exemplos. O movimento modernista, do Cárcere.^ Como entender esta mudança? Sem querer apro-
que busca nos anos 20 uma identidade brasileira, se prolonga fundar a questão neste estudo, creio que uma resposta preli-
em Mário de Andrade em seus estudos sobre o folclore, e na minar poderia ser avençada. A obra de Gramsci é escrita sob
sua tentativa de criar um Departamento de Cultura, que entre 0 forte impacto da unificação italiana, o que faz com que toda
outros aspectos se volta para a cultura popular.’ a problemática que se refira ao Estado esteja de alguma forma
Se alargarmos o horizonte de nossas reflexões observamos ligada à construção da nação italiana. A presença desta situa-
que a relação entre nacional e popular se manifesta em outras ção histórica não se faz sentir somente em Gramsci. Paul Pic-
situações históricas e sob diferentes perspectivas teóricas. É o cone observa que até mesmo o pensamento político de Hegel é
caso do processo de descolonização africana, descrito, por reorientado por Spaventa e de Sanctis, pois é associado direta-
exemplo, na obra de Franz Fanon. Fanon se preocupa com as mente às lutas nacionais. Contrariamente às especulações teó-
práticas religiosas, com a cultura das etnias negras e muçul- ricas dos jovens hegelianos, o idealismo se vinculou na Itália à
manas, com a utilização das técnicas modernas pelas classes realidade política e social do século XIX. A questão do na-
populares (ver, por exemplo, seu artigo sobre o rádio no livro cional-popular emerge, portanto, junto a uma tradição de
Sociologia de uma Revolução), enfim, com uma série de ele- pensamento que procura compreender as relações do moderno
mentos que caracterizam o popular, mas associando-o intima- Estado italiano com uma possível hegemonia cultural e ideo-
mente a um projeto de libertação nacional. A luta contra o lógica dos diferentes grupos sociais. ” A compreensão da temá-
colonialismo é simultaneamente nacional e popular. Os escri- tica do Ressurgimento, que narra a construção da unificação
tos sobre a África têm como pano de fundo a criação de um
Estado nacional argelino no interior de uma união pan-afri-
cana de nações independentes do Terceiro Mundo. No embate 13) Muito embora a tradição teórica marxista tenha se interessado
anticolonialista, o que deve ser ressaltado aqui é a vinculação pouco peia temática do popular, existe um movimento interessante na União
Soviética que de uma certa forma retoma o problema que estamos colocando.
entre identidade nacional e Estado nacional; como vimos, so- Refiro-me ao Proletkultur, movimento artístico e cultural que procurou desen-
mente desta forma poderia dar-se a libertação do homem afri- volver logo após a revolução socialista uma "autêntica" cultura "proletária" no
cano. A literatura marxista nos fornece ainda um rico mate- país. O que me parece importante sublinhar neste exemplo é que a busca de
uma cultura proletária coincide com o nascimento do novo Estado socialista
rial para reflexão. É bem verdade que o marxismo clássico soviético. Ver Bogdanov, La Science, L 'Art et la Classe Ouvrière, Paris, Mas-
demonstrou pouco interesse no estudo da problemática que pero, 1977; B. Arvatov, Arte, Produção e Revolução Proletária, São Paulo,
estamos considerando. A razão disto é talvez devida ao fato Moraes Ed., 1977; S. Fiizpatrick, Lunacharskyy la Organiración Soviética de ia
Educación e de ias Artes, México, Siglo Veintey Uno, 1977.
que os conceitos de nação e de povo se apresentem, para Marx (41 Ver Gramsci, Literatura e Vida Nacional, op. cit.; Maquiavel, a Polí-
tica e o Estado Moderno, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968; H Risor-
gimento. Turim, Ed. Riuniti, 1975.
(5) Paul Piccone, "From Spaventa to Gramsci", Tetos, n? 31, Prima-
(2) Ver Joan Dassin, Política e Poesia em Mário de Andrade. S3o Pau- vera 1977.
lo, Duas Cidades, 1978. (6) Ver R. Ortiz, "Gramsci; Problemas de Cultura Popular", in A Cons-
ciência Fragmentada, op. cit.
130 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 131

da nação italiana pela burguesia, é crucial para Gramsci, pois é a problemática da cultura popular do Estado através da re-
através dela que ele desenvolve grande parte de sua teoria polí- lação entre memória coletiva e memória nacional. Proponho-
tica. O nacional e o popular devem por isso ser remetidos a me assim analisar criticainente a afirmação de que o nacional
uma dimensão que os antecede e os transcende, isto é, à pro- se definiria como a conservação “daquilo que é nosso”, isto é,
blemática do Estado. a memória nacional seria o prolongamento da memória cole-
Se as observações que fizemos são corretas, creio que po- tiva popular. Para tanto trabalharei dois exemplos, o candom-
deríamos generalizar e afirmar que a relação entre nacional e blé e alguns tipos de manifestações folclóricas, para em se-
popular se manifesta no interior de um quadro mais amplo, o guida contrapô-los ao problema da identidade e do Estado.
Estado. Esta relação, que aparece explicitameníe nos escritos
de Fanon e de Gramsci, pode a meu ver ser reencontrada no
caso brasileiro. Nos estudos considerados neste livro a questão Os elementos da memória coletiva
do Estado se coloca de maneira recorrente. A obra de Sílvio
Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha se insere na Ao estudar os cultos afro-brasileiros, Roger Bastide, ca-
tradição de pensamento do século XIX, que procura insisten- racterizando-os como “miniatura da África”, vai procurar
temente definir o fundamento do ser nacional como base do compreendê-los através do conceito de memória coletiva de
Estado brasileiro. O objetivo desses intelectuais é claro, eles se Halbwachs. Dentro desta perspectiva pode-se apreender os
.propõem a compreender as crises e os problemas sociais e ela- mitos e as práticas africanas como processos de reatualizaçâo
borar uma identidade que se adeqüe ao novo Estado nacional. e de revívificação que se manifestam no ritual das celebrações
Durante o período em que escreve Gilberto Freyre recoloca-se religiosas. O candomblé, ao definir um espaço social sagrado,
a questão do Estado. Nesse momento, que alguns historiado- 0 terreiro, possibilita a encarnação da memória coletiva afri-
res chamaram de “redescoberta do Brasil”, todo movimento cana em determinados enciaves da sociedade brasileira. Neste
de compreensão da sociedade brasileira se insere no contexto sentido, a origem é recorrentemente relembrada e se atualiza
mais amplo de redefinição nacional.A revolução de 30, o Es- através do ritual religioso. Os inúmeros ritos reproduzem as
tado Novo, a transformação da infra-estrutura econômica co- crenças e as práticas dos ancestrais negros, como por exemplo
locam para os intelectuais da época o imperativo de se pensar 0 ritual de iniciação que guarda nos terreiros tradicionais da
a identidade de um Estado que se moderniza. A problemática Bahia uma semelhança profunda com os da África. A cosmo-
do nacional e do popular nos anos 50 e 60 também se refere às logia dos deuses africanos se introduz assim no mundo afro-
questões econômicas e políticas com as quais se debate o Es- brasileiro do candomblé, a dança e o transe reproduzindo os
tado brasileiro no período, As tentativas do ISEB de decifrar gestos e os atributos imemoriais dos orixás. Um exemplo: uma
uma “essência” brasileira, as discussões em torno do que seria lenda conta que Xangô, deus do trovão, tinha três mulheres:
verdadeiramente nacional e popular correspondem a um mo- lansâ, Oxum e Obá, das quais Oxum era a favorita. Ura dia
mento em que existe uma luta ideológica que se trava em Obá pede a Oxum o segredo que fazia com que Xangô a consi-
torno do Estado. Por fim, vimos que com o golpe militar o derasse sempre como mulher preferida. A maliciosa deusa do
Estado autoritário tem a necessidade de reinterpretar as cate- amor, escondendo seu rosto mentiroso por detrás de um lenço,
gorias de nacional e de popular, e pouco a pouco desenvolve contou-lhe que havia cortado uma orelha para cozinhá-la na
uma política de cultura que busca concretizar a realização de
uma identidade “autenticamente” brasileira.
Se é verdade que a relação entre o nacional e o popular {7) R. Bastide, As Religiões Africanas no Brasil, op. cif, Mauríce Hal-
integra o quadro mais abrangente do Estado, é necessário se bwachs, La Mémoire CoHective, Paris, PUF, 1968.
(8) Ver Pierre Verger, Dieux d'Afrique, Paris, Hartmann, 1955, e "Pre-
perguntar que tipo de relação é esta. Gostaria de responder a mière Céremonie cfinitiation au Culte des Orishas Nago à Bahia au Brésil", Re-
essa questão retomando a noção de memória, e de aproximar vista do Museu Paulista, São Paulo, vol, iX, 1955.
132 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 133

comida de Xangô. Este, comendo o fetiche, ligou-se a ela para do deus africano. Seu sincretismo com São Pedro retém no
sempre numa aliança erótica. Obá, acreditando na mentira, entanto um outro traço, o da passagem, o de rei das encruzi-
corta sua orelha e segue as prescrições de Oxum. Quando lhadas, que se associa a Pedro, porteiro do céu. Tem-se assim
Xangô prova seu prato predileto, enojado, chama Obá, que que a memória coletiva se preserva inclusive no momento em
aparece com seu rosto desfigurado. Sua feiúra aumenta ainda que dinamicamente o sincretismo se estabelece.
mais a cólera de Xangô, que agora possuía novos argumentos Halbwachs considera que além de a memória coletiva se
para rejeitá-la de vez. Nos candomblés nagôs, quando Obá apresentar como tradição, ela se estrutura intemamente como
desce no terreiro, ela dança com uma orelha tapada com um uma partitura musical; isto nos possibilita apreendê-la como
lenço, e se por acaso ela encontra com uma filha de Oxum, se sistema estruturado, no qual os atores sociais ocupam deter-
precipita sobre esta e inicia uma briga infernal. Os gestos dos minadas posições e desempenham determinados papéis. O
deuses, incorporados nos seus cavalos-de-santo, repetem assim produto da rememorização, a sinfonia final, é o resultado das
as histórias míticas. múltiplas ações de cada agente (músico) em particular: no en-
O candomblé tende a manter uma tradição fixada nos tanto, o músico executa algo que se encontra programado de
tempos passados. Esta dimensão de preservação da tradição antemão. A perspectiva enunciada se aproxima da concepção
se manifesta na sua estrutura de culto assim como na ênfase que Goffman possui das dramatizações na vida cotidiana. “ É
que se dá à transmissão oral do conhecimento. Vários autores na trama da interação social que o teatro da memória coletiva
insistem na oposição que existe entre o saber escrito e o saber é anrâ'lfeadb.”Os papéis diferenciados de “mãe-de-santo”, “fi-
oral, Juana Elbein mostra que o “axe”, força sagrada, trans- Tha-de-sanío”, “ogã” definem posições e funções que permi-
mite-se de pessoa para pessoa, o que privilegia a comunicação tem 0 funcionamento do culto e a manutenção da tradição.
face a face da memória africana. Existem, pois, indivíduos Isto implica considerar que a memória coletiva deve necessa-
que detêm a totalidade do conhecimento (ou parte dele) desta riamente estar vinculada a um grupo social determinado. É_o
memória, enquanto que outros, os neófitos, são pouco a pouco grupo que celebra sua revificação, e o mecanismo de conser-
iniciados neste universo de saber. vação do grupo está estreitamente associado-à preservação
Não se pode, porém, pensar o processo de rememorização _da memória. A dispersão dos atores tem conseqüências drás-
como sendo estático, a tradição nunca é mantida integral- ticas e culmina no esquecimento das expressões culturais. Por
mente. O estudo dos cultos afro-brasileiros mostra a existên- outro lado, a mejnória coletiva só pode existir enquanto vi-
cia dos fenômenos de aculturação e sincretismo que indicam ■vência, isto é, enquanto pratica que se manifesta no cotidiano
precisamente o aspecto das mutações culturais. No entanto, das pessoas. Não é por acaso que fizemos a aproximação entre
cabe sublinhar que mesmo as transformações se fazem sob a Halbwachs e Goffman. Na verdade, as representações só ad-
égide de uma tradição dominante, a da memória coletiva afri- quirem significado quando encarnadas no cotidiano dos ato-
cana. Um exemplo disso é o sincretismo dos deuses africanos res sociais. Os deuses africanos. Xangô, Ogum, lemanjá, são
com os santos católicos. A associação entre lansâ e Santa Bár- vivenciados pelos seus “cavalos-de-sanlo" e é no dia-a-dia dos
bara, lemanjá e Nossa Senhora, Oxalá e Jesus, e várias outras, homens que se assegura a permanência do mundo sagrado. O
não são arbitrárias. A memória coletiva africana retém da ha- mito religioso penetra, desta forma, o universo profano, para
giografia católica aqueles elementos que têm alguma analogia atingir inclusive a cotidianidade daqueles que o suportam. As
com os orixás sincretizados. Exu, quando é sincretizado com filhas de Oxum são “lascivas”, os filhos de Xangô são “for-
0 demônio, aproxima as qualidades de Lúcifer às de trickster

(10) M. Halbwachs, "La Mémoíre Collective chez las Muslclens", fíé-


(9) J. Elbein e Deoscoredes dos Santos, "La Religion Nagô Gènératrice vue PhHosophique, n? 3-4,1939.
de Valeurs Culturelles au Brésil", Colloque de Cotonou, Paris, Prèsence Afri- (11) I. Goffman, A Representação do Eu na Vida Cotidiana, Petrópolis,
caine, 1970. Vozes, 1975.
134 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NÁCIONAL 135

tes”, as filhas de lemanjá são ‘‘maternais”. Cada orixá se as- dear um processo de desestruturaçâo de toda uma rede de
socia a uma parte do universo (Xangô — trovão, lemanjá — trabalho ritual, uma vez que desaparece um agente que ocu-
mar, Oxum — água doce), cada deus possui seu domínio da pava uma posição de destaque no teatro popular. Somente
natureza, seus gostos, suas tendências. O neófito repete os após um longo aprendizado prático é que os atores podem
atributos divinos e através destes vai definir seu cotidiano de encarnar com fidedignidade o seu papel. A memória popular
homem social. (seria mais correto colocar no plural) deve portanto se trans-
Se considerarmos os fenômenos folclóricos, podemos de- formar em vivência, pois somente desta forma fica assegurada
senvolver uma argumentação análoga à anterior. Cabe, no en- a sua permanência através das representações teatrais.
tanto, sublinhar que neste caso a tradição não se apresenta
como proveniente de uma mesma fonte (a África para a me-
mória dos cultos afro-brasileiros), mas se caracteriza pela sua Do mito à ideologia
pluralidade, A cultura popular é heterogênea, as diferentes
manifestações folclóricas — reisados, congadas, folias de reis Vimos na introdução deste estudo a estreita relação que
— não partilham um mesmo traço em comum, tampouco se se estabelece entre o nacional e o popular. A memória nacional.
inserem no interior de um sistema único. Gramsci tem razão se colocando na perspectiva da conservação dos valores popu-
ao considerá-la como fragmentada, na realidade ela se asse- lares não se identificaria por fim à própria memória popular’^
melha ao estado que Lévi-Strauss denominou de ‘‘pensamento Esta identificação, que os diferentes movimentos de cunho
selvagem”, isto é, se compõe de pedaços heteróclitos de uma nacionalista procuram descobrir, parece-me ilusória. A me-í
herança tradicional. A cultura popular é plural, e seria talvez mória coletiva é da ordem da vivência, a memória nacional set
mais adequado falarmos em culturas populares. No entanto, refere a uma história que transcende os sujeitos e não se con-j
se tomarmos como ponto de partida cada evento folclórico em cretiza imediatamente no seu cotidiano, O exemplo do can-
particular (um reisado, uma congada), a comparação com os domblé e do folclore mostrou a necessidade de a tradição se
cultos afro-brasileiros é legítima. A memória de um fato fol- manifestar enquanto vivência de um grupo social restrito; ax,
clórico existe enquanto tradição, e se encarna no gmpo_socia_l memória nacional se situa em outro nível, ela se vincula à his-
que a su^orfã.”Ê através dãssucessivas apresentações teatrais tória e pertence ao domínio da ideologia. A distinção que Pe-
que eTa é realimentada. Isto significa que os grupos folclóricos ter Berger propõe para os diferentes universos simbólicos nos
encenam uma peça de enredo único que constitui sua memó- auxilia a compreender as duas ordens de fenômenos que esta-
ria £oletiya£ a tradição é mantida pelo esforço de celebrações mos considerando. ” A memória coletiva se aproxima do mito^
sucessivas, como_no caso dos ritos afro-brasileiros. Porém, e se manifesta portanto ritualmente. A memória nacional é da
como coloca Carlos Brandão ao estudar os congados do ciclo

*-
ordem da ideologia, ela é o produto de uma história social, |
de São Benedito, este saber popular não existe fora das pes- não da ritualizaçâo da tradição. Enquanto história ela se pro- -
soas, mas entre elas.~^A partitura musical dos grupos folcló- jeta para q_futuro e não se limita a uma reprodução do pas-1
ricos distingue atores sociais, o "mestre”, o "discípulo”, que sado considerado como sagrado. Peter Berger coloca com'
desempenham papéis diferenciados nas manifestações cultu- propriedade que os universos simbólicos ordenam a história
rais. Da mesma forma que nos cultos afro-brasileiros, o pro- dos homens. Em relação ao passado eles estabelecem a “me-
blema do esquecimento se vincula às dificuldades de se man- mória” que é partilhada pelos indivíduos que compõem a
ter a coesão do grupo. A morte de um mestre pode desenca- coletividade: em relação ao futuro eles definem uma rede de
referências para projeção das ações individuais. Se essas são

(121 Carlos Rodrigues Brandão, Sacerdotes da Viola, Petrópolis, Vozes,


1981.
(13) P. Berger. A Construção Social da Realidade, Petrópolis. Vozes.
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 137
136 RENATO ORTIZ

propriedades de todos os universos simbólicos, cabe no en- elemento de cimentação da diferenciação social. Dentro desta
tanto diferenciar o tipo de sistematização histórica que o mito perspectiva, o problema não seria tanto o de contrapor uma
e a ideologia fundamentam. Uma primeira diferença que já sociedade dinâmica a outra estática, mas sim historicidades
exploramos diz respeito à tradição. Um segundo ponto, que que se constituem de formas diversas. Neste sentido, eu diria
decorre, a meu ver, do primeiro, pode ser colocado da se- que a memória coletiva dos grupos populares é particulari-
guinte forma: o mito é encarnado pelo grupo restrito, en- zada, ao passo que a memória nacional é universal. Por isso o
quanto a ideologia se estende à sociedade como um todo. Os nacional não pode se constituir como o prolongamento dos
exemplos do candomblé e das manifestações folclóricas mos- valores populares, mas sim como um discurso de segunda
traram a importância da existência do grupo social portador ordem.
da memóriacoletiva. Entretanto, o que caracteriza a memória Um seminário sobre a noção de identidade, coordenado
nacional é precisamente o fato de ela não ser propriedade par- por Lévi-Strauss, dizia nas conclusões de seu trabalho que a
ticularizada de nenhum grupo social, eia se define como um identidade é uma entidade abstrata sem existência real, muito
universal que se impõe a todos os grupos. Contrariamente à embora fosse indispensável còmo ponto de referência. Se
memória coletiva, ela não possui uma existência concreta, traduzirmos esta afirmação genérica em termos de identidade
mas virtual, por isso não pode se manifestar imediatamente nacional, temos que esta, assim como a memória nacional, é
enquanto vivência. Retomemos neste ponto a temática do uni- sempre um elemento que deriva de uma construção de se-
versal e do particular. A literatura antropológica está per- gunda ordem. Seria interessante trabalharmos neste ponto
meada pelo debate sobre a historicidade das sociedades primi- uma discussão que Roland Corbisier introduz ao procurar
tivas. Esta polêmica, que se encontra na raiz da Antropologia fundar uma “essência” da cultura brasileira. “ Existe na his-
como ciência — ver, por exemplo, a reação de Malinowski ou tória intelectual brasileira uma tradição que em diferentes
de Boas ao evolucionismo —, se prolonga na discussão entre momentos históricos procurou definir a identidade nacional
Sartree Lévi-Strauss.''' Parece-me que poderíamos colocar o em termos de caráter brasileiro. Por exemplo, Sérgio B. de
debate a respeito das sociedades de história "quente” ou Holanda buscou as raízes do brasileiro na “cordialidade”,
"fria” em outros termos. Sabendo que nas sociedades primi- Paulo Prado na "tristeza”, Cassiano Ricardo na “bondade”;
tivas 0 mito é 0 sistema que organiza o social, pode-se afirmar outros escritores procuraram encontrar a brasilidade em even-
que a história mitológica é a história dos grupos sociais restri- tos sociais como o carnaval ou ainda na índole malandra do
tos que a encarnam, enquanto a ideologia seria a história da ser nacional.A crítica de Corbisier visa esses autores quando
sociedade como um todo (ou pelo menos tenderia a sê-lo). Nas eles tentam descobrir os traços definitivos do caráter brasi-
sociedades primitivas o todo coincide com o particular, uma leiro. Considerar o homem nacional através de elementos
vez que o limite dessas sociedades é a própria tribo. Porém, no como “cordialidade”, “bondade”, “tristeza", corresponde-
momento em que a divisão do trabalho se acentua, em que os ria a atribuir-lhe um caráter imutável, à maneira de uma
grupos que compõem a sociedade se diferenciam, tem-se que substância filosófica. Para Corbisier. a procura de uma estru-
a sociedade torna-se progressivamente mais complexa. Ideo- tura ontológica do homem brasileiro seria na verdade a busca
logia e mito, que em um primeiro momento se confundiam, de uma “estrutura fásica" que se rearranjaria e se modificaria
tomam agora significados distintos. A ideologia se define as- no decorrer das diferentes “fases" da história brasileira. Ape-
sim como uma concepção de mundo orgânica da sociedade sar da justeza da crítica, Corbisier permanece no mesmo qua-
como um todo (ou visando a totalidade) e como tal age como
(15) Lévi-Strauss (org.), ddentité, Paris, Ed. Grasset, 1977.
(161 Consultar a parta relativa a "Notas", do livro de Corbisier, op. cit.
(14) Ver Lévi-Strauss, 0 Pensamento Selvagem, São Paulo, Cia. Ed.
(17) S. B. Holanda, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio,
Nacional, 1970, e Sartre, Critique de ta Raison Dialectique, Paris, Gailimard,
1973; Paulo Prado, Retrato do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1944.
1960.
138 RENATO ORTIZ
CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 139

dro teórico dos autores a que se refere, e não percebe que a nal. Ê através de uma relação política que se constitui assim a
identidade nacional é uma entidade abstrata e como tal não
identidade; como construção de segunda ordem ela se estru-
pode ser apreendida em sua essência. Ela não se situa junto à
concretude do presente mas se desvenda enquanto virtuali- tura no jogo da interação entre o nacional e o popular, tendo
dade, isto é, como projeto que se vincula às formas sociais que como suporte real a sociedade global como um todo. Na ver-
a sustentam. dade a invariância da identidade coincide com a univocidade
Seria interessante retomarmos neste ponto uma distinção do discurso nacional. Isto equivale a dizer que a procura de
que Gramsci estabelece entre filosofia e folclore, e à qual de uma "identidade brasileira” ou de uma “memória brasileira”
certo modo havíamos nos referido no exemplo das manifesta- que seja em sua essência verdadeira é na realidade um falso
ções populares.^ Ao considerar a cultura popular como hete- problema. A questão que se coloca não é de se saber se a iden-
rogênea, na verdade Gramsci a está apreendendo enquanto tidade ou a memória nacional apreendem ou não os “verda-
fenômeno particularizado. A realidade do mundo social é deiros” valores brasileiros. A pergunta fundamental seria;
múltipla, daí ela se opor à filosofia, sistema de conhecimento quem é o artífice desta identidade e desta memória que se
que ordena e compreende esta multiplicidade. O folclore; querem nacionais? A que grupos sociais elas se vinculam e a
como universo simbólico de conhecimento, se aproxima do que interesses elas servem?
•mito e se revela como o saber do particular. A pluralidade da
memória coletiva deriva justamente do fato de ela se encarnar O intelectual como mediador simbólico
no grupo que a representa. Sua fragmentação não decorre de
uma pretensa debilidade imanente ao popular, mas sim da A idéia de construção nos remete a uma outra noção, a de
diversidade dos grupos sociais que são portadores de memó- mediação. Ao colocarmos a identidade como um elemento de
rias diferenciadas.ÍNada unifica um candomblé, um reisado, segunda ordem, estamos implicitamente nos referindo aos
uma folia de reis, uma cavalhada, a não ser um discurso que agentes que a constroem. Se existem duas ordens de fenôme-
se sobrepõe à realidade social. Memória nacional e identidade nos distintos, o popular (plural) e o nacional, é necessário um
nacional são construções de segunda ordem que dissolvem a elemento exterior a essas duas dimensões que atue como agen-
heterogeneidade da cultura popular na univocidade do dis- te intermediário. São os intelectuais que desempenham esta
curso ideológicoJA essência da brasilidade que buscava Cor- tarefa de mediadores simbólicos. Sílvio Romero, Gilberto
bisier é uma construção, e como tal não pode ser encontrada Freyre, RolandCorbisiersãona verdade agentes históricos que
como realidade primeira da vida social. operam uma transformação simbólica da realidade sinteti-
A memória nacional opera uma transformação simbólica zando-a como única e compreensível. Dito de outra forma, o
da realidade social, por isso não pode coincidir com a memó- processo de construção da identidade nacional se fundamenta
ria particular dos grupos populares. O discurso nacional pres- sempre numa interpretação. A relação com o Estado será em
supõe necessariamente valores populares e nacionais concre- alguns casos direta, como por exemplo para Corbisier, que
tos, mas para integrá-los em uma totalidade mais ampla. A procura estabelecer uma ideologia desenvolvimentista, funda-
relação que procurávamos entre popular, nacional e Estado mento de uma "outra” ordem social. Noutros, indireta, como
pode agora ser explicitada. O Estado é esta totalidade que por exemplo para Gilberto Freyre, que exprime a nostalgia de
transcende e integra os elementos concretos da realidade so- um Estado que se esgotou historicamente. Todos, no entanto,
cial, ele delimita o quadro de construção da identidade nacio- se dedicam a uma interpretação do Brasil, a identidade sendo
0 resultado do jogo das relações apreendidas por cada autor.
Se os intelectuais podem ser definidos como mediadores
118) Sobre a distinção entre filosofia e folclore, ver Gramsci, Concep-
ção DiolétícB da História, op. c/t.; Alberto Cirese, “Conception du Monde, Phi- simbólicos é porque eles confeccionam uma ligação entre o
losophie Spontanée, Folklore", Dialectíques, n? 4-5,1974. particular e o universal, o singular e o global. Suas ações são.
140 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 141

portanto, distintas daqueles que encarnam a memória cole- Iam as manifestações culturais de sua esfera particular e as
tiva. Enquanto esses são especialistas que se voltam para uma articulam a uma totalidade que as transcende. Um exemplo
vivência imediata, aqueles se orientam no sentido de elaborar deste tipo de articulação se encontra na elaboração da iden-
um conhecimento de caráter globalizante. Em linguagem gof- tidade étnica — neste caso, a totalidade coincide com a etnia e
fmaniana poderíamos dizer que os atores da memória coletiva não mais com a nação. As manifestações de cultura negra
dramatizam um papel pautado pela estrutura da peça ence- sempre existiram enquanto expressões culturais, elas estão
nada (se bem que deve ficar claro que a objetividade do en- particularizadas nas ações dos africanos (por exemplo, uma
redo não existe fora dos atores sociais), ao passo que os agen- dança, um ritual religioso) ou dos negros americanos (por
tes da memória nacional se definem por uma ação politica- exemplo, um gesto, uma fala, um canto); porém, o movimento
mente orientada. Novamente reencontramos neste ponto a da negritude só pode surgir no momento em que um grupo de
distinção gramsciana entre folclore e filosofia. Entretanto, é intelectuais toma como objeto de reflexão a condição do negro
fundamental entender que essas duas instâncias são distintas diante do homem branco. Aimé Césaire, Senghor, Alioune
mas não forçosamente antagônicas. Colocar o intelectual co- Diop são intelectuais que, vivendo um momento de pós-guer-
mo mediador simbólico implica apreendermos a mediação ra, se voltam para a África na busca de uma identidade negra
como possibilidade de reinterpretaçâo simbólica. Dito em lin- que é no entanto algo virtual. ” Isto é, eles tomam como subs-
guagem gramsciana, o folclore penetra a filosofia. O intelec- trato de reflexão as expressões culturais negras e constroem
tual-filósofo trabalha os elementos do folclore para integrá-los uma identidade étnica que se contrapõe à dominação do se-
no sistema de conhecimento que Gramsci denomina filosofia. nhor branco. Os movimentos negros atuais operam de manei-
O folclore, que se define como conhecimento fragmentado, ra análoga. Eles buscam formas concretas de expressões cul-
passa desta maneira a integrar um todo coerente ao ser media- turais para integrá-las e reinterpretá-las dentro de uma pers-
tizado pela atividade intelectual. Ê bem verdade que este pro- pectiva mais ampla. Neste sentido, no caso dos movimentos
cesso de operação simbólica reedita a realidade, o folclore já negros brasileiros, a cultura afro-brasileira não é simples-
não é mais o mesmo, ele perde o seu significado primeiro, no mente vivenciada na sua particularidade, mas o singular passa
entanto, o que nos interessa sublinhar é que este elemento da a definir uma instância mais generalizada de conhecimento.
tradição subsiste, de forma reelaborada, no discurso da filoso- Ao integrar em um todo coerente as peças fragmentadas da
fia. Um exemplo: é por meio do mecanismo de reinterpreta- história africana (negra) — candomblé, quilombos, capoeira
ção que o Estado, através de seus intelectuais, se apropria das — os intelectuais constroem uma identidade negra que unifica
práticas populares para apresentá-las como expressões da cul- os atores que se encontravam anteriormente separados. A
tura nacional. O candomblé, o carnaval, os reisados, etc. são, identidade é neste sentido elemento de unificação das partes,
desta forma, apropriados pelo discurso do Estado, que passa assim como fundamento para uma ação política. Por isso um
a considerá-los como manifestação de brasilidade. ” Outro militante como Abdias do Nascimento pode apresentar o qui-
exemplo típico deste gênero de operação é realizado pela in- lombismo como um programa de ação que visa transformar a
dústria do turismo, que procura vender, a brasileiros e estran- situação do negro brasileiro. Na verdade, o que se propõe é
geiros, a identidade nacional manifestada nas produções po- uma interpretação do passado e da cultura negra orientando-
pulares. os no sentido de um movimento social.
A construção da identidade nacional necessita portanto O estudo da identidade nos remete a uma distinção entre
desses mediadores que são os intelectuais. São eles que desco- movimentos sociais e manifestações culturais. Não resta dú-

(19) Sobre os mecanismos de apropriação, ver Ruben Oliven, "As Me- (20) Sobre 0 movimento da negritude, ver Anthropologie de la NouveUe
tamorfoses da Cultura Brasileira", in Violência e Cultura no Brasil, Petrópolis, Poésie Nègre, Paris, PUF. Introdução de Jean-Paul Sartre.
Vozes, 1982. (21) Abdias do Nascimento, O QuUombismo, Petrópolis, Vozes, 1980.
Le Candomblé de Bahia. Paris, Mouton, 1958.
142 Afro-BrasUeiros, São RENATO ORTIZ
, Estudos Paulo, Ed. Perspectiva, 1973.
vidaSociologia
de que a do Folclore
cultura Brasileiro,
encerra Sâo dimensão
sempre uma Paulo, Anhembi,
de poder1959.
"Escritos sobre Folclore", n? especial Cadernos do
que lhe é interna. As manifestações populares podem ser, CERU,
as- USP,
n? 10,1977, sim, analisadas em termos de poder, como já o fizemos em
outros escritos. Procurei, no entanto, estabelecer uma distin-
ção entre político e política. Considero a dimensão do político
como imanente à vida social, e com isto quero dizer que as
relações de poder penetram o domínio da esfera da cultura.
Entretanto, o que é político (isto é, relação de poder) nem
sempre se atualiza enquanto política, o que implica aceitar
que entre os fatos culturais e as manifestações propriamente
políticas é necessário definir uma mediação. Os fenômenos
culturais encerram sempre uma dimensão onde se desenvol-
vem relações de poder, porém seria impróprio considerá-los
como expressão imediata de uma consciência política ou de
um programa partidário. É importante ter em mente que as Bibliografia ____________ _
expressões culturais não se apresentam na sua concretude
imediata como projeto político. Para que isto aconteça é ne-
cessário que grupos sociais mais amplos se apropriem delas Barros, N.Ricardo,
Almeida, Lins, “Música Popular;
e outros, Novas Tendências",
Arte Popular e Dominação.Revista
Recife, Civilização
Ed. Alter-
nativa, 1978.
Brasileira, n? 1, junho 1965.
para, reinterpretando-as, orientá-las politicamente. A totali- Azevedo,Manuel,
Berlinck. Thales, "Projeto para Cultura
Os Brasileiros. Brasileira
Salvador. CFBa,nos Anos 60: CPC”,
1981.
dade. que é o ponto de referência para esta orientação polí- Bastide, Roger, As
UNICAMP, Religiões
Dep. Africanas
Sociologia, no Brasil, Sâo Paulo, Ed. USP,
mimeo.
tica, pode ser diversificada; por exemplo, ela é nacional, ét- 1971.Jean-Claude, Cinema Brasileiro: Proposta para uma História,
Bernardet,
nica ou sexual (no caso do movimento feminista). O que im- Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
Bezerra de Menezes, E. Diatay, "Celso de Magalhães e os Inícios da Inves-
porta, porém, é que ela transcende a particularidade dos indi- tigação sobre Literatura Popular no Brasil", trabalho apresentado,
víduos e dos grupos sociais restritos, para inseri-los em um Grupo Sociologia da Cultura, VI Encontro ANPPCS, Friburgo, out.
projeto que os transcende. Os movimentos populares não coin- 0 1982.
cidem com as expressões populares. Na realidade eles agem Boal, Augusto, "Tentativa de Análise de Desenvolvimento do Teatro Bra-
sileiro”, Arte em Revista, n? 6,1980.
como filtro, privilegiando alguns aspectos da cultura mas es- Bonfim, Manuel, América Latina: Males de Origem, Rio de Janeiro, Ed.
quecendo outros. A cultura enquanto fenômeno de linguagem A Noite, s.d.p.
Brandão, Carlos R., Os Sacerdotes da Viola, Petrópolis, Vozes, 1981.
é sempre passível de interpretação, mas em última instância Buarque de Holanda. Heloísa, Patrulhas Ideológicas, São Paulo, Brasi-
são os interesses que definem os grupos sociais que decidem liense, 1980.
sobre o sentido da reelaboração simbólica desta ou daquela
manifestação. Os intelectuais têm neste processo um papel re-
levante, pois são eles os artífices deste jogo de construção sim-
bólica.
144 RENATO ORTIZ CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 145

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Revistas Pesquisadas:

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— Cultura, Conselho Federa] de Cultura.
— Boletim, Conselho Federal de Cultura.
— Revista de Cultura Brasileira. CFC.
— Cultura, Ministério de Educação e Cultura.
— Filme-Cultura, EMBRAFILME e Instituto Nacional de Cinema.
— Dionísios, Serviço Nacional de Teatro.
— Revista de Teatro, SBAT.
Biografia
Renato Ortiz nasceu em Ribeirão Preto (SP) em 1947. Estudou na Escola
Politécnica (USP) entre 1966 e 1969: formou-se em Sociologia pela Université
de Paris VII e doutorou-se em Sociologia e Antropologia pela Ecole des Hautes
Etudesen Sciences Sociales. Foi professor da Universidade de Louvain (1974-
7S). da UFPA (1976) e da UFMG (1977-1984). Como bolsista da Fulibrigfil ■
Cgres esteve como pesquisador junto ao Laiin American Instituteda Universi-
dadede Columbiae, recentemente, foi professor e pesquisador da Universida-
de de Notre Dame.
Publicou vários artigos sobre religiosidade popular, cultura brasileira e
cultura popular em diferentes revistas: Religião e Sociedade, Cadernos de
Opinião, Cadernos do CERU, Archives des Sciences Sociales des Religions,
Diogènes. E autor dos livros A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Vozes) e A
Consciência Fragmentada (Paz e Terra).
ANTROPOLOGIA DO COTIDIANO
da periferia à indústria Cultural

o OUTRO LADO
DA A POLÍTICA DOS OUTROS — O Cotidiano dos
Moradores da Periferia e o que Pensam do
COMUNICAÇÃO Poder e dos Poderosos
Teresa Pires do Rio Caldeira
A história de um bairro da periferia de São Paulo e de
O DIREITO DE COMUNICAR - Expressão, seus moradores, mostrando como se formou esse pedaço
Informação e Liberdade da cidade onde tudo é precário e quem são seus
Desmond Fischer habitantes, que idéias tém da política, como vivem — ou
sobrevivem — junto com seus familiares.
O objetivo deste livro é fazer o conceito de
comunicação melhor conhecido, de forma a encorajar
uma discussão mais ampla sobre o direito de TESTEMUNHA OCULAR - Textos de
comunicar, direito de estar informado e participar da Antropologia Social do Cotidiano
comunicação pública. Diversos Autores
Os cinco ensaios reunidos neste livro são o resultado da
aplicação da teoria antropológica moderna a algo
COMPANHEIROS DE VIAGEM familiar: a imagem do índio no livro didático, o conceito
Deocélia Vianna de valor de uso em confronto com os produtos da Souza
Esposa, mãe e companheira de trabalho falando dos Cruz, Imagens da educação, a testa de Natal e um caso
acontecimentos que marcaram sua vida ao lado do homossexual.
marido Oduvaldo Vianna e do filho Vianinha,
recuperando parte importante da história do rádio e ANTROPOLOGIA DO CINEMA
da cultura brasileira deste século. Do Mito ò Indústria Cultural
Massimo Canevacci
A partir da busca do "espirito do cinema", dos seus
ILUSÃO ESPECUUm - Uma Introdução à mecanismos de reprodução de estereótipos, e de toda
Fotografia mitologia que o cerca, o autor lança nova luz sobre a
Arlindo Machado questão do indústria cultural no capitalismo.
Através de um profundo estudo do código fotográfico,
são discutidos os conceitos de realidade e objetividade
atribuídos á fotografia, fazendo uma cntica dos seus
suportes ideológicos, de modo que se possa esclarecer
por que não podem existir sistemas significantes
neutros nem inocentes.
brasilíense

‘v.
Constituinte e
Democracia no Brasil hoje
Conhecidos intelectuais, políticos e jornalistas refletem, neste momento
histórico, sobre o futuro da democracia no Brasil. Textos de: Raymundo
Faoro, Ruy Mauro Marini, Cláudio Abramo. Paulo Sérgio Pinheiro, D.
Paulo Evaristo Arns. Severo Gomes, Fábio Konder Comparato, Dalmo
de
Abreu Dallari, Emir Sader (org.). Márcio Thomaz Bastos, Theotônio dos
Santos, Hélio Bicudo, Fernando Gabeira e Clóvis Rossi.

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A. Rouquié, B. LamouniereJ. Schvarzer (orgs.)
OS DEMOCRA TAS AUTORITÁRIOS — Liberdades individuais, de
associação política e sindical na Constituinte de 1946
João Almino
EXPLODE UM NOVO BRASIL — Diário da campanha das diretas
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